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Em Defesa Da Fé (Apologética) - 2

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Tradução
Alderi S. de Matos

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Pelo mesmo autor

Em defesa de Cristo (Vida)


Inteligência espiritual (Vida)
© 2002, de Lee Strobel
Título do original - The case for Eaith
edição publicada pela
ZoNDERVAN PuBUSH1NG HOUSE
(Grand Rapids, Michigan, EUA)


Todos os direitos em língua portuguesa reservados por

EDITORA VIDA
Rua Júlio de Castilhos, 280 • Belenzinho
CEP03059-000. São Paulo, SP
TeJefax O xx 11 6096 6814
www.editoravida.com.br


PROIBIDA A REPRODUçAO POR QUAISQUER MEIOS,
SALVO El\1 BREVES CITAÇOES, CO:'.I INDICAC,ÃO DA FONIE.
Todas as citações bíblicas foram extraídas da
Nova Versão Internacional (NVI),
©2001, publicada pela Editora Vida,
salvo indicação em contrário.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, sP, Brasil)
Lee Strobel, 1952-
Em defesa da fé I Lee Suobel : tradução Alderi
S. de Matos - São Paulo: Editora Vida, 2002

Título original: The case for faith : a journalist


investigates the toughest objections to Christianity

ISBN 85~ 7367-603-5

1. Apologética 2. Crença e dúvida. 3. Fé 1. Título.

01-5288 CDD-22ü.6

Índices para catálogo sistemático

1. Defesa da fé : Apologética: Cristianismo 239


2. Fé : Defesa: Apologética: Cristianismo 239
llgradecimentos

enho uma profunda dívida de gratidão para com as pes-


soas que contribuíram na elaboração deste livro. O meu
agradecimento especial a Rick Warren por ter proporcionado
um ambiente estimulante e acolhedor em que se valoriza a cri-
ação de recursos cristãos, e a Bill Hybels, cujo aconselhamento
me formou de distintas maneiras que jamais saberei. Não tenho
palavras para descrever o quanto os admiro.
Como sempre, Mark Mittelberg me manteve motivado quan-
do as exigências do ministério e da redação do livro pareciam
avassaladoras. Ele é simplesmente o melhor amigo que já tive.
Os meus agradecimentos a [ohn Sloan, da Editora Zondervan,
pela orientação que me colocou na trajetória certa de Em Defe-
sa de Cristo e deste volume. Mais do que qualquer outro, ele é
responsável pela maneira como esses livros foram publicados.
Scott Bolinder, Stan Gundry, [ohn Topliff, Greg Stielstra, Bob
Hudson e o restante da equipe da Zondervan são os melhores
parceiros que jamais poderia imaginar.
Também sou grato a Kay Warren, Jim Mellado, Hank
Hanegraaff, Paul Young, Bob Gordon, Garry Poole e Paul
Braoudakis pelo incentivo; a Bob e Gretchen Passantino por seus
comentários; a [odi Walle, Parker VanderPloeg e Bárbara Hoglund
por sua assistência; e aos funcionários e membros da Saddleback
Valley Community Church e da Willow Creek Community
Church, especialmente a Glen Kreun, Doug Slaybaugh, Forrest
Reinhardt, Brad Iohnson e John Ortberg.
Sou especialmente grato pela participação dos especialis-
tas que concordaram em ser entrevistados. O caráter e a sabe-
doria deles me influenciaram profundamente. E, evidente-
mente, este livro jamais teria se tornado realidade sem mi-
nha esposa Leslie, minha filha Alison e meu filho Kyle, o
amor dos quais significa tudo para mim.
Intro;dução;
o desafio da fê

o teísmo cristão deve ser rejeitado por toda pessoa que


tenha um mínimo de respeito pela razão.
George H. Smith, ateu 1

A fé cristã não é algo irracional. Examinadas objetiva-


mente, as afirmações da Bíblia são proposições racionais
bem amparadas pela razão e pelas evidências.
Charles Colson, cristão?

B ill y Graham conseguiu se firmar segurando ambos os la-


dos do púlpito. Tinha 80 anos e estava lutando contra o
mal de Parkinson, mas fixou atentamente o olhar na multidão
que lotava o RCA Dome, em Indianápolis, e falou com voz fir-
me e vigorosa. Não havia nenhum sinal de hesitação, nenhu-
ma incerteza ou ambigüidade. Seu sermão foi em essência a
mesma mensagem direta e simples que ele vinha pregando há
cinqüenta anos.
Fez referência ao caos e violência pelo mundo afora e se con-
centrou na angústia, dor e confusão que existem no coração das
pessoas. Falou de pecado, de perdão, de redenção e sobre a soli-
dão, desespero e depressão que oprimem tantas pessoas.
"Todos nós queremos ser amados", disse com seu sotaque fa-
miliar da Carolina do Norte ao aproximar-se da conclusão da
mensagem. "Todos nós queremos que alguém nos ame. Bem, eu
quero lhe dizer que Deus o ama. Ele o ama tanto que nos deu o

"Atheism: the case against God, Arnherst, New York: Prometheus


Books, 1989, p. 51. -
2E agora como viveremos?, Rio de Janeiro: CPAD, 2. ed., 2000, p. 31-2.
la q EM DEFESA DA FÉ

seu Filho para morrer na cruz por nossos pecados. E ele o ama
tanto que entrará na sua vida e mudará a direção dela e fará de
você uma nova pessoa, não importa quem você seja.
"Você tem certeza que conhece Cristo? Existe um momento
em que o Espírito de Deus o convence, chama, fala que você
deve abrir seu coração e estar certo de seu relacionamento com
Deus. E centenas de vocês aqui esta noite não têm certeza. Vocês
gostariam de ter essa certeza. Vocês gostariam de sair daqui
hoje à noite sabendo que se morressem no caminho de casa
estariam prontos para encontrar-se com Deus."
Desse modo, Graham os desafiou a vir. E eles vieram -
inicialmente, somente uns poucos; então, as comportas se abri-
ram e indivíduos, casais e famílias inteiras encheram o espa-
ço vazio diante da plataforma. Logo postavam-se ombro a
ombro e a multidão cobria os lados do palco, quase três mil
pessoas ao todo. Alguns choravam, tomadas de solene con-
vicção; outros olhavam para baixo, ainda envergonhados de
seu passado; muitos sorriam de orelha a orelha -livres, radi-
antes ... em casa, finalmente.
Caso típico era o de uma senhora casada. "Minha mãe
morreu de câncer quando eu era jovem e naquela época achei
que estava sendo punida por Deus", disse a um conselheiro.
"Esta noite eu compreendi que Deus me ama - é algo que eu
sabia, mas não conseguia apreender de fato. Esta noite uma
grande paz invadiu meu coração.:?
O que é a fé? Não haveria necessidade de defini-la para as
pessoas daquela abafada noite de junho. A fé era quase pal-
pável para elas. Elas estendiam as mãos para Deus como se
esperassem abraçá-lo fisicamente. A fé arrancou a culpa que
as havia oprimido. Substituiu o desalento pela esperança.
Dotou-as de um novo senso de direção e propósito. A fé abriu
os céus, agindo como água fresca embebendo a ressequida
alma delas.

3Billy Graham Indiana Crusade. Disponível em: www.billygraham.org!


newsannouncement12.asp. Acesso em: 4 jun. 1999.

LJ.lll lI'IILIIII.'u. I 11, bIlL~ J j I. .,.


o desafio da fé p 11

Mas a fé nem sempre é tão fácil assim, mesmo para pesso-


as que desesperadamente a desejam. Algumas pessoas têm
fome de certeza espiritual, todavia algo as impede de
experimentá-la. Gostariam de poder experimentar esse tipo
de liberdade, mas certos obstáculos bloqueiam os seus cami-
nhos. As objeções as afligem. As dúvidas escarnecem delas.
O coração quer elevar-se a Deus, mas o intelecto as mantêm
firmemente presas ao chão.
Elas assistem à televisão mostrando multidões que foram à
frente para orar com Billy Graham e sacodem a cabeça. Se
fosse assim tão simples, suspiram. Se ao menos não houvesse
tantas interrogações.
Para Charles Templeton - que ironicamente havia sido
colega de púlpito e amigo íntimo de Billy Graham - algumas
dúvidas acerca de Deus se consolidaram em severa oposição
ao cristianismo. Como Graham, Templeton dirigia-se outrora
vigorosamente às multidões em grandes espaços e convidava
as pessoas a se entregarem a Jesus Cristo. Alguns chegaram a
predizer que, com o tempo, Templeton eclipsaria Graham como
evangelista.
Mas isso foi há muito tempo. Isso foi antes das sérias in-
dagações. Hoje, repetidamente afetada por dúvidas persis-
tentes e obstinadas, a fé de Templeton se esvaiu. Talvez para
sempre.
Talvez.

Da fé para a dúvida
Era o ano de 1949. Billy Graham, 30 anos, não sabia que
estava prestes a ser guindado à posição de notoriedade e in-
fluência mundial. Ironicamente, enquanto se preparava para
a cruzada de Los Angeles, que o tornou famoso, ele se viu às
voltas com uma incerteza - não quanto à existência de Deus
ou à divindade de Jesus, mas quanto à questão fundamental
de como ele podia confiar plenamente no que a Bíblia lhe
dizia.
12 q EM DEFESA DA FÉ
Em sua autobiografia, Graham disse que se sentiu como se
estivesse sendo esticado por um instrumento de tortura. Quem
o puxava em direção a Deus era Henrietta Mears, a brilhante e
compassiva educadora cristã que tinha conhecimento com-
pleto da moderna erudição e grande confiança na confiabili-
dade das Escrituras. Era puxado noutra direção por seu amigo
íntimo e colega de pregação Charles Templeton, 33 anos de
idade."
Segundo Templeton, ele tornou-se cristão quinze anos an-
tes, quando se viu cada vez mais insatisfeito com o seu estilo
de vida na redação de esportes do jornal Globe, de Toronto.
Tendo acabado de voltar duma noite em local de baixa repu-
tação, e sentindo-se vulgar e impuro, dirigiu-se ao seu quarto
e ajoelhou-se junto à cama, no escuro.
"De repente", recordaria mais tarde, "foi como se um cober-
tor escuro tivesse sido enrolado em mim. Uma sensação de culpa
invadia toda a minha mente e o meu corpo. As únicas palavras
que saíram foram: 'Senhor, desce. Desce..."'. E então:

Lentamente, o peso começou a sair, tão pesado quanto eu.


Passou pelas minhas pernas, meu tronco, meus braços e
ombros e saiu. Um calor inefável começou a invadir o meu
corpo. Parecia que uma luz se havia acendido em meu pei-
to e ela me purificava... Mal ousava respirar, temendo que
pudesse alterar ou pôr fim àquele momento. E eu me ouvi
sussurrando suave e seguidamente: "Obrigado, Senhor.
Obrigado. Obrigado. Obrigado". Mais tarde, na cama, eu
permaneci silencioso em meio a uma felicidade radiante,
arrebatadora, envolvente."

Depois de deixar o jornalismo para abraçar o ministério,


Templeton conheceu Graham em 1945, numa campanha da
Mocidade Para Cristo. Foram colegas de quarto e companhei-
ros constantes durante uma empolgante viagem pela Europa,

"[ust as Iam, Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1997, p.137-B.


5Farewell to God, Toronto: McClelland & Stewart, 1996, p. 3.

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o desafio da fé P 13

alternando-se no púlpito quando pregavam em campanhas.


Templeton fundou uma igreja que logo se tornou grande de-
mais para o seu templo de 1 200 lugares. A revista American
Magazine disse que ele "estabeleceu um novo padrão de
evangelização em massa"." Sua amizade com Graham cres-
ceu. "Ele é um dos poucos homens que admirei em minha
vida" Graham disse em certa ocasião a um biógrafo. 7
y

Todavia, Templeton logo começou a ficar roído de dúvi-


das. "Eu havia passado por uma experiência de conversão
quando ainda era um jovem muitíssimo imaturo", lembrou
mais tarde. "Carecia das aptidões intelectuais e de preparo
teológico necessários para sustentar as minhas crenças
quando - como era inevitável - perguntas e dúvidas co-
meçaram a me assaltar... A minha razão tinha começado a
desafiar e, por vezes, a rejeitar as convicções fundamentais
da fé cristã". 8

Triunfo da fé
Surgia agora o Templeton cético (em contraste com a fervoro-
sa Henrietta Mears}, tentando afastar seu amigo Billy Graham
das insistentes convicções que ela lhe transmitia de que as
Escrituras são fidedignas. "Billy, você está desatualizado cin-
qüenta anos", argumentava. "As pessoas não mais aceitam a
inspiração da Bíblia da maneira que você o faz. A sua fé é
excessivamente simplista".
Templeton parecia estar ganhando a queda de braço. "Se
não fiquei exatamente em dúvida", Graham iria lembrar, "cer-
tamente fiquei perturbado". Ele sabia que se não pudesse con-
fiar na Bíblia não poderia prosseguir. A cruzada de Los Angeles
- o evento que abriria as portas para a pregação mundial de
Graham - estava em jogo.

6Farewell to God, p. 11.


7Ibid., p. 9.
8Ibid., p. 5-6.
14 q EM DEFESA DA FÉ

Graham examinou as Escrituras em busca de respostas,


orou e meditou. Finalmente, durante uma caminhada nas mon-
tanhas enluaradas de San Bernardino, sentindo o coração pe-
sado, tudo atingiu o ponto culminante. Segurando firme uma
Bíblia, Graham ajoelhou-se e confessou que não podia res-
ponder algumas das questões filosóficas e psicológicas que
Templeton e outros estavam levantando.
"Eu estava tentando ser honesto com Deus, mas algo ainda
precisava ser dito", escreveu. "Por fim o Espírito Santo liber-
tou-me e pude dizer: 'Pai, eu vou aceitar isto como a tua Pala-
vra - pela fé! Eu vou permitir que a fé vá além dos meus
questionamentos e dúvidas intelectuais e passarei a acreditar
que esta é a tua Palavra inspirada'."
Levantando-se, com lágrimas nos olhos, Graham disse
que sentiu o poder de Deus como não o havia sentido há
meses. "Nem todas as minhas perguntas foram respondi-
das, mas uma grande ponte tinha sido atravessada", ele dis-
se. "Em meu coração e na minha mente, eu sabia que uma
batalha espiritual na minha alma havia sido travada e
vencida."9
Para Graham, esse foi o momento decisivo. Para Templeton,
todavia, foi uma transição de amargo desapontamento. "Ele
cometeu suicídio intelectual ao fechar sua mente", Templeton
declarou. O sentimento que mais fortemente teve em relação
ao seu amigo foi de pena. Seguindo agora caminhos diferen-
tes' eles começaram a se afastar.
A história registra o que aconteceria com Graham nos anos
subseqüentes. Ele se tornaria o evangelista mais persuasivo e
eficaz dos tempos modernos e um dos homens mais admira-
dos do mundo. Mas o que aconteceria com Templeton? De-
vastado pelas dúvidas, ele renunciou ao ministério e regres-
sou ao Canadá, onde se tornou comentarista e romancista.
O raciocínio de Templeton havia afugentado a sua fé. Seri-
am a fé e o intelecto realmente incompatíveis? É possível ser

9JUst as Iam, p. 139.

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o desafio da fé p 15

um pensador e ao mesmo tempo um cristão que crê na Bí-


blia? Alguns acham que não.
'~ razão e a fé são opostas, são dois termos mutuamente
excludentes: não há conciliação ou terreno comum", afirma o
ateu George H. Smith. "Fé é crença sem a razão ou a despeito
dela."!"
O educador cristão W. Bingham Hunter assume posição
oposta. "A fé", disse ele, "é resposta racional às evidências da
auto-revelação de Deus na natureza, na história humana, nas
Escrituras e no seu Filho ressurreto."ll
Para mim, tendo vivido grande parte da minha vida como
ateu, a última coisa que quero é uma fé ingênua edificada sobre
um tênue fundamento de devaneios ou faz-de-conta. Preciso
de uma fé que seja coerente com a razão, e não contraditória;
Pretendo convicções que sejam fundamentadas na realidade, e
não desligadas dela. Necessito descobrir de uma vez por todas
se a fé cristã pode resistir a um exame minucioso.
Era chegada a hora de falar cara a cara com Charles
Templeton.

De pastor a agnóstico
Cerca de 800 km ao norte de onde Billy Graham estava reali-
zando a sua campanha de Indianápolis, localizei Templeton
em um moderno edifício de um bairro de classe média de To-
ronto. Tomando o elevador para o décimo-quinto andar, diri-
gi-me a uma porta com a placa "Penthouse" [cobertura] e aper-
tei a campainha de bronze.
Levava debaixo do braço um exemplar do último livro de
Templeton, cujo título não deixa dúvidas quanto à sua linha
de raciocício: Farewell to God: my reasons for rejecting the
christian faith [Adeus a Deus: minhas razões para rejeitar a

lOAtheism: the case against God, p.98.


l1The God who hears, Dawners Grave, Illinois: InterVarsity Press, 1986,
p. 153.
16 q EM DEFESA DA FÉ

fé cristã]. Seu teor muitas vezes cáustico procurava aniquilar


as crenças cristãs, atacando-as de modo apaixonado por se-
rem "ultrapassadas, comprovadamente inverídicas e muitas
vezes, em suas diferentes manifestações, prejudiciais para os
indivíduos e a sociedade"."
Templeton recorreu a uma grande variedade de ilustrações
no esforço de solapar a fé no Deus da Bíblia. Porém, fiquei espe-
cialmente impressionado com urna passagem comovente na qual
ele aponta para os horrores da doença de Alzheimer, descreven-
do com horríveis detalhes como ela rouba às pessoas a identida-
de pessoal, destruindo a mente e a memória. E desafia: como,
um Deus compassivo poderia permitir que uma enfermidade tão
horrível torturasse suas vítimas e seus entes queridos?
A resposta, concluiu, era simples: o mal de Alzheimer não
existiria se houvesse um Deus de amor. Mas como a doença
existe, essa é mais uma evidência persuasiva de que Deus não
existe." Para alguém corno eu, que tenho familiares da minha
esposa suportando a devastação causada pelo mal de
Alzheimer, esse era um argumento de considerável impacto
emocional.
Eu não estava certo do que me esperava enquanto aguar-
dava Templeton abrir a porta. Seria ele tão agressivo quanto
era em seu livro? Ele se mostraria duro com Billy Graham?
Será que iríamos até o fim de nossa entrevista? Quando dera
o seu consentimento em uma breve conversa telefônica dois
dias antes, havia dito vagamente que sua saúde não estava
boa.
Madeleine Templeton, que tinha acabado de cuidar das
flores do seu canteiro no terraço, abriu a porta e nos sau-
dou calorosamente. - Eu sei que vocês vieram de longe, de
Chicago - ela disse, - mas sinto dizer que Charles está
muito doente.
- Posso voltar em outra ocasião - propus.

12~ VII.
13Ibid., p. 200-2.

I , I'..... _ 11.,. 1.1


o desafio da fé p 17

- Bem, vamos ver como ele está se sentindo - disse.


Ela me conduziu até uma escadaria coberta por um tapete
vermelho pelo seu apartamento de luxo, seguida de dois
poodles grandes e irrequietos.
- Eles estavam dormindo...
Naquele momento, o marido de 83 anos surge de seu quar-
to. Estava usando um roupão leve, marrom escuro, sobre um
pijama da mesma cor. Calçava chinelos pretos. Seu cabelo gri-
salho e ralo estava um pouco desgrenhado. Ele estava emagre-
cido e pálido, embora seus olhos cinza-azulados parecessem
alertas e expressivos. Ele estendeu a mão educadamente.
- Por favor, desculpe-me - disse, limpando a garganta,
- mas não estou bem. E acrescentou trivialmente: - Na ver-
dade, estou morrendo.
- O que se passa? - perguntei.
Sua resposta quase me "nocauteou". - Mal de Alzheimer
- replicou.
Meu pensamento voou para o que ele havia escrito sobre o
fato do mal de Alzheimer ser uma evidência da não-existên-
cia de Deus; repentinamente, tive a percepção de pelo menos
parte da motivação do seu livro.
- Estou com ele ... deixe-me ver, há uns três anos? - disse ,;

franzindo a testa e buscando o auxílio da esposa. - E isso


mesmo, não é, Madeleine?
Ela assentiu. - Sim, querido, três anos.
- A minha memória já não é a mesma - disse. - E, como
você talvez saiba, o mal de Alzheimer é sempre fatal. Sempre.
Soa melodramático, mas a verdade é que eu estou condena-
do. Mais cedo ou mais tarde, vai me matar. Mas antes vai le-
var a minha mente. Sorriu levemente. - Temo que já come-
çou. Madeleine pode confirmar isto.
- Olhe, sinto muito estar perturbando - disse. - Se o
senhor não estiver se sentindo disposto...
Templeton, porém, insistiu. Levou-me para a sala de es-
tar, decorada alegremente em estilo contemporâneo e banhada
pelo sol da tarde. A luz entrava pelas portas de vidro que
18 q EM DEFESA DA FÉ

propiciavam uma fantástica visão panorâmica da cidade.


Sentamo-nos em poltronas lado a lado e em questão de minu-
tos Templeton parecia ter reunido novas energias.
- Suponho que você queira que eu explique como passei
do ministério para o agnosticismo - disse. Em seguida, co-
meçou a descrever os acontecimentos que o levaram ao aban-
dono da sua fé em Deus.
Era isso o que eu estava esperando. Porém jamais poderia
ter previsto como a nossa conversa terminaria.

o poder de uma imagem


Templeton estava agora plenamente envolvido. Vez por outra
eu podia perceber alguma evidência de sua doença, como
quando ele não conseguia lembrar-se de uma seqüência pre-
cisa de eventos ou quando se repetia a si mesmo. Porém, de
modo geral ele falava com eloqüência e entusiasmo, utilizan-
do um notável vocabulário, sua voz rica e robusta subindo e
descendo para dar ênfase. Possuía um tom aristocrático que
às vezes beirava o teatral.
- Houve alguma coisa em particular que o levou a perder
sua fé em Deus? - perguntei de início.
Pensou por um momento.
- Foi uma fotografia na revista Life - disse por fim.
- Verdade? - indaguei. - Uma fotografia? Como assim?
Comprimiu ligeiramente os olhos e virou-se para o lado,
como se estivesse vendo a foto novamente e tornando a viver
aquele momento. Era a foto de uma mulher negra do norte da
África - explicou. - Estavam sofrendo uma seca devastado-
ra, e ela segurava nos braços o seu bebê morto que olhava
para o céu com a expressão mais desolada. Vi aquilo e pensei:
'É possível acreditar que existe um Criador amoroso e caridoso
quando tudo que esta mulher precisava era de chuva?'
Ao enfatizar a palavra chuva, suas grossas sobrancelhas
acinzentadas se fecharam e elevou os braços em direção ao
céu, como que esperando por uma resposta.

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o desafio da fé p 19

- Como poderia um Deus amoroso fazer isto com aquela


mulher? - exclamou e, sentindo-se melhor, moveu-se para a
ponta da cadeira. - Quem governa a chuva? Não sou eu, não
é você. Deus governa, era o que eu pensava. Mas ao ver a foto-
grafia, percebi, imediatamente que isso jamais aconteceria se
existisse um Deus amoroso. Não havia saída. Quem, a não ser
um demônio, mataria um bebê e quase eliminaria sua mãe
com seu sofrimento, quando o que simplesmente necessita-
vam era de chuva?
Ele fez uma pausa, deixando que a pergunta pairasse
pesadamente no ar. Recostando-se na poltrona disse:
- Esse foi o momento decisivo. Comecei então a refletir
sobre o mundo como criação de Deus. Passei a considerar as
epidemias que varrem partes do planeta e matam indiscrimina-
damente - amiúde de modo doloroso - todos os tipos de
pessoas, as comuns, as decentes e as corrompidas. Ficou sim-
plesmente nítido para mim que não é possível uma pessoa
inteligente crer que existe uma divindade que ama.
Templeton tocou na questão que me havia deixado perplexo
há anos. Na minha carreira como repórter, simplesmente não
tinha visto fotos de intenso sofrimento; fui com freqüência um
observador de primeira mão do submundo da vida em que
grassavam tragédia e sofrimento - as degradadas áreas
,. urbanas
centrais dos Estados Unidos; as imundas favelas da India; o pre-
sídio do Condado de Cook e as grandes penitenciárias; as enfer-
marias de pacientes terminais; todos os tipos de cenas de desas-
tre. Mais de uma vez, a minha mente girou confusa ao tentar
conciliar a idéia de um Deus de amor com a depravação, aflição
e angústia que estavam diante dos meus olhos.
Mas Templeton não havia terminado.
- Minha mente voltou-se para o conceito geral do inferno
- exclamou, a voz tomada de perplexidade. - Meu Deus, eu
não poderia pôr a mão de alguém no fogo por um momento.
Nem um instante! Como poderia um Deus de amor, só porque
você não o obedece ou não faz o que ele quer, torturá-lo para
sempre - não permitindo que você morra, mas continue com
20 q EM DEFESA DA FÉ
aquela dor por toda a eternidade? Não existe um criminoso
que faça isso.
- Foram essas as primeiras dúvidas que o senhor teve? -
perguntei.
- Antes disso, eu me questionara repetidamente. Eu havia
pregado para centenas de milhares de pessoas a mensagem
oposta e então descobri, para minha consternação, que não
mais podia crer nela. Acreditar seria negar o entendimento
que vinha formando. Ficou bastante claro que eu estivera er-
rado. Desse modo, decidi abandonar o ministério. Foi assim
essencialmente que me tornei um agnóstico.
- Defina o que o senhor quer dizer com isso - interrom-
pi, uma vez que diferentes pessoas têm apresentado distintas
interpretações desse termo.
- O ateu diz que Deus não existe - redarguiu. - O cris-
tão e o judeu dizem que existe um só Deus. O agnóstico diz:
'Eu não posso saber'. Não é não sei, mas não posso saber. Eu
nunca tive a pretensão de dizer peremptoriamente que Deus
não existe. Eu não sei tudo; eu não sou a encarnação da sabe-
doria. Mas não me é possível crer em Deus.
Hesitei em fazer a pergunta seguinte.
- À medida que o senhor envelhece - comecei em um
tom exploratório - , e enfrenta uma doença que é sempre fa-
tal, o senhor não está...
- Preocupado com que está acontecendo? - cortou
Não, não me preocupo, disse sorrindo.
- Por que não?
- Porque passei a vida toda pensando nisso. Se essa fosse
uma conclusão simplista resultante de um capricho, seria di-
ferente. Mas me é impossível - impossível- crer que existe
alguma coisa, pessoa ou ser que possa ser descrito como um
Deus de amor e que consinta com o que acontece em nosso
mundo, diariamente.
- O senhor gostaria de crer?
- E" claro! - exclamou. - Se eu pudesse, eu acreditaria.
Tenho 83 anos. Estou com o mal de Alzheimer. Estou morrendo,

,., l. a.L IL ,.,"'il.~ •• ,. " li I • ,I,~ ..... I .. ~ I • I·J I I.


o desafio da fé p 21

por Deus! Mas passei a minha vida pensando nisso e não vou
mudar agora. Por hipótese, se alguém chegasse a mim e dissesse:
{Olhe, velhote, a razão pela qual você está doente é uma punição
de Deus por sua recusa em continuar no caminho que seus pés
trilhavam' - isso faria alguma diferença para mim?
Respondeu à sua própria pergunta enfaticamente:
- Não - exclamou. - Não. Não pode haver, em nosso
mundo, um Deus de amor.
Seus olhos se fixaram nos meus. - Não pode haver.

A ilusão da fé
Templeton correu os dedos pelos cabelos. Falava em tom en-
fático e pude perceber que estava se cansando. Queria respei-
tar a sua condição, mas tinha algumas outras perguntas a fa-
zer. Com a permissão dele, continuei.
- Neste momento, Billy Graham está em meio a uma série
de campanhas em Indiana - disse a Templeton. - O que o
senhor diria às pessoas que vão à frente para depositar sua fé
em Cristo?
Os olhos de Templeton se arregalaram. - Ora, eu não iria
interferir de modo algum na vida delas - replicou. - Se al-
guém tem fé e isso faz dele uma pessoa melhor, sou totalmen-
te a favor - mesmo achando que é maluco. Tendo sido um
cristão, eu sei como a fé é importante para a vida das pessoas -
como afeta as suas decisões, como as ajuda a lidar com proble-
mas difíceis. Para a maior parte das pessoas, é um benefício
indescritível. Mas é por que existe um Deus? Não, não é.
A voz de Templeton não transmitia qualquer condescen-
dência, no entanto, as implicações do que dizia eram inteira-
mente paternalistas. É isso o que a fé significa - enganar a si
mesmo para tornar-se uma pessoa melhor? Convencer-se de
que existe um Deus de- modo a ficar motivado para elevar a
sua moralidade em alguns graus? Abraçar um conto de fadas
a fim de dormir melhor à noite? Não, obrigado, pensei com os
meus botões. Se a fé é isso, eu não estava interessado.
22 q EM DEFESA DA FÉ

- E quanto ao próprio Billy Graham - indaguei. - O


senhor disse em seu livro que sente pena dele.
- Oh, não, não - retrucou, contrariando os seus escritos. -
Quem sou eu para sentir pena daquilo que outro homem crê? La-
mento por ele, se assim posso dizer, porque ele fechou a sua mente
para a realidade. Mas eu lhe desejaria o mal? Absolutamente não!
Templeton olhou de relance para uma mesa de vidro pró-
xima e lá estava a autobiografia de Billy Graham.
- Billy é ouro puro - observou afetuosamente. - Não há
nenhum fingimento ou falsidade nele. É um ser humano de
primeira qualidade. Billy é profundamente cristão - é mate-
rial de primeira, como dizem. Acredita sinceramente, de ma-
neira inquestionável. Ele é o mais íntegro e fiel possível.
E quanto a Jesus? Eu queria saber o que Templeton achava
da pedra angular do cristianismo.
- O senhor acredita que Jesus existiu um dia? - perguntei.
- Sem dúvida - foi a imediata resposta.
- Ele achava que era Deus?
Meneou a cabeça. - Esse teria sido o último pensamento
que passaria pela sua cabeça.
- E os ensinamentos dele; o senhor admirava o que ele
ensinou?
- Bem, ele não era um pregador muito bom. O que disse
era simples demais. Ele não havia refletido sobre o que dizia.
Não havia meditado sobre a maior pergunta que se pode fazer.
- Que é ...
- Existe um Deus? Como alguém poderia crer em um Deus
que faz, ou permite, o que acontece no mundo?
- Desse modo, como o senhor avalia esse Jesus?
Esta parecia ser a pergunta lógica seguinte, mas não estava
preparado para a resposta que ela iria suscitar.

o fascínio de Jesus
A expressão corporal de Templeton se suavizou. Era como se
repentinamente ele se sentisse relaxado e à vontade para falar

.,~._ .1 ,.. 1.. .... , .. ~I.IIII


o desafio da fé p 2-3

sobre um velho e querido amigo. A sua voz, que às vezes re-


velava um lado vivo e insistente, assumia agora um tom me-
lancólico e reflexivo. Com sua guarda aparentemente rebai-
xada, falava em ritmo vagaroso, quase nostálgico, escolhendo
cuidadosamente as palavras enquanto discorria sobre Jesus.
- Ele foi - começou Templeton, - o maior ser humano
que jamais viveu. Foi um gênio moral. Seu senso ético era
singular. Foi a pessoa intrinsecamente mais sábia que já en-
contrei em minha vida ou em minhas leituras. Seu compro-
misso era total e o levou à morte, para grande prejuízo do
mundo. O que se poderia dizer a respeito dele senão que essa
era uma forma de grandeza?
Fui apanhado de surpresa. - O senhor fala como se real-
mente se importasse com ele - disse.
- Bem, sim, ele é a coisa mais importante da minha vida -
foi a resposta. - Eu... eu... eu - gaguejou, buscando a pala-
vra certa - eu sei que pode parecer estranho, mas eu tenho a
dizer que ... eu o adoro.
Eu não estava certo de como redarguir. - O senhor diz
isso com alguma emoção - completei.
- Bem, sim. Tudo de bom que conheço, tudo de decente
que conheço, tudo de puro que conheço, aprendi de Jesus.
Sim... sim. E de severo! Olhe para Jesus. Ele vergastou pesso-
as. Ficou irado. As pessoas não pensam nele dessa maneira,
mas não leram a Bíblia. Ele possuía uma ira justa. Importava-
se com os oprimidos e os explorados. Não há nenhuma dúvi-
da que tinha o mais elevado padrão moral, com a mínima
duplicidade, amais profunda compaixão por qualquer ser hu-
mano na história. Existiram muitas outras pessoas maravi-
lhosas, mas Jesus é Jesus.
- Faria bem o mundo em imitá-lo?
- Oh, por Deus, sim! Eu tenho tentado - e tentar é o má-
ximo que posso fazer - agir como creio que ele agiria. Isso
não significa que eu posso ler a sua mente, porque uma das
coisas mais fascinantes a respeito dele foi que freqüentemente
fazia o oposto do que era esperado.
24 q EM DEFESA DA FÉ

De repente, Templeton interrompeu suas reflexões. Hou-


ve uma breve pausa, como se ele estivesse hesitando em con-
tinuar.
- Ah ... mas ... não - prosseguiu lentamente - ele é o
mais ... Interrompeu e em seguida recomeçou. - No meu
entendimento - afirmou - ele é o ser humano mais impor-
tante que já existiu.
Foi aí que Templeton proferiu as palavras que jamais espe-
raria ouvir dele. "E se eu puder colocar dessa maneira - dis-
se com a voz começando a ficar embargada - eu... sinto fal-
ta ... dele!
Lágrimas inundaram os seus olhos. Girou a cabeça e olhou
para baixo, levantando a mão esquerda para esconder o rosto
de mim. Seus ombros estremeciam enquanto chorava.
O que estava acontecendo? Foi esse um lampejo inesperado
da sua alma? Eu me vi atraído em sua direção e quis confortá-
lo; ao mesmo tempo, o jornalista em mim queria ir até o fundo
no motivo dessa reação. Sentia falta dele por quê? Sentia falta
dele como?
Com voz suave, perguntei: - De que maneira?
Templeton fez um esforço para recompor-se. Podia perce-
ber que não era do seu feitio perder o controle na frente de
um estranho. Suspirou fundo e enxugou uma lágrima. Depois
de mais alguns instantes constrangedores, gesticulou com a
mão indicando que não queria prosseguir. Finalmente, calmo
mas resoluto, insistiu:
- Chega desse assunto.
Inclinou-se para pegar o seu café. Tomou um gole, segu-
rando a xícara firmemente com as duas mãos, como se qui-
sesse sentir o seu calor. Era óbvio que queria fazer de conta
que esta nítida visão da sua alma nunca havia ocorrido.
Mas eu não podia esquecê-la. Nem podia censurar as obje-
ções contundentes, mas sinceras, de Templeton a respeito de
Deus. Obviamente, elas exigiam resposta.
Tanto para ele, quanto para mim.

, • I.. L II ... "~I"I i •. 11.' li • •. ~,I •• I


Em busca de respostas

1,6 bilhão [de cristãos] podem estar errados [...] Susten-


to simplesmente que [...] pessoas racionais deviam aban-
donar essas crenças.
Michael Martin, ateu I

Parece-me hoje que não há uma boa razão para uma pessoa
inteligente abraçar a ilusão do ateísmo ou do agnosticismo
e cometer os mesmos erros intelectuais que eu cometi. Eu
gostaria [... ] de ter conhecido então o que conheço agora.
Patrick Glynn, ateu que se tornou cristão/

ouco tempo depois da entrevista com Charles Templeton,


minha esposa, Leslie, e eu iniciamos nossa viagem de volta
a Chicago, gastando boa parte do trajeto em animada conver-
sa sobre o meu enigmático encontro com o ex-evangelista.
Honestamente, eu precisei de algum tempo para assimilar
a experiência. Tinha sido uma entrevista incomum, abrangen-
do desde a resoluta rejeição de Deus até o desejo emocional de
voltar a ter ligação com o Jesus que se habituara a adorar.
A certa altura, Leslie comentou:
- Parece que você realmente gosta de Templeton.
- Gosto - confirmei.
A verdade é que eu senti simpatia por ele. Ele anseia pela
fé; chegou a admitir isso. Como alguém que se defronta com
a morte, tem todo estímulo para querer acreditar em Deus.
Existe um inegável fascínio por Jesus que vem claramente

"The case against Christianity, Philadelphia: Temple University Press,


1991, p. 3, 5.
2God: the evidence, Racklin, Calífornia: Forum, 1997, p. 20.
26 q 1:':\;1 DEFESA DA FÉ:

das profundezas do seu íntimo. Mas também existem aque-


las formidáveis barreiras intelectuais que bloqueiam o seu
caminho.
Como Templeton, sempre me defrontei com perguntas.
No meu trabalho anterior como editor de assuntos jurídicos
do Chicago Tribune, era conhecido por levantar o que cha-
mava de objeções" Sim, mas". Sim, eu podia ver que as evi-
dências de um julgamento apontavam para certo veredicto,
mas o que dizer daquela inconsistência, ou desta falha, ou
daquela conexão inconsistente? Sim, o promotor pode ter
apresentado uma argumentação convincente acerca da cul-
pa do réu, mas e quanto ao seu álibi ou à falta de impres-
sões digitais?
O mesmo se podia dizer da minha investigação pessoal
acerca de Jesus. Comecei como ateu, plenamente convicto que
Deus não criou as pessoas, mas as pessoas criaram Deus num
esforço patético para explicar o desconhecido e atenuar seu
avassalador medo da morte. Meu livro anterior, Em defesa de
Cristo, descreve minha investigação de quase dois anos das
evidências históricas que me levaram ao veredicto de que Deus
realmente existe e de que Jesus é de fato o seu Filho único.
(Para uma síntese dessas descobertas, favor consultar o apên-
dice deste livro.)
Mas isso por si só não havia sido suficiente para resolver
a questão de modo cabal. Restavam ainda aquelas incômo-
das objeções. Sim, eu podia ver como as evidências históri-
cas da ressurreição de Jesus sustentam a conclusão de que
ele é divino, mas que dizer da enxurrada de problemas que
levanta? Eu chamava esses enigmas de "os oito grandes":

• Se existe um Deus amoroso, por que este mundo di-


lacerado pela dor geme debaixo de tanto mal e sofri-
mento?
• Se os milagres de Deus contradizem a ciência, como
uma pessoa racional pode crer que sejam verdadeiros?
Em busca de respostas p 27

• Se Deus realmente criou o universo, por que as evidênci-


as persuasivas da ciência impelem tantas pessoas a con-
cluir que o processo espontâneo da evolução explica a vida?
• Se Deus é moralmente puro, como pode sancionar o
massacre de crianças inocentes, como o Antigo Testa-
mento diz que ele fez?
• Se Jesus é o único caminho para o céu, que dizer dos
milhões de pessoas que nunca ouviram falar dele?
• Se Deus se preocupa com as pessoas que criou, como
pode entregar tantas delas a uma eternidade de tormen-
to no inferno somente porque não creram nas coisas
certas a respeito dele?
• Se Deus é o dirigente supremo da igreja, por que ela tem
estado repleta de hipocrisia e brutalidade ao longo dos
séculos?
• Se ainda sou assaltado por dúvidas, ainda posso ser
cristão?

Estas estão entre as perguntas mais freqüentemente levan-


tadas acerca de Deus. Com efeito, foram algumas das ques-
tões fundamentais levantadas por Charles Templeton na en-
trevista que me concedeu e no seu livro. Exatamente como
ocorreu com Templeton, esses obstáculos um dia se interpu-
seram firmemente entre mim e a fé.

Superando objeções
Embora pudesse simpatizar com muitas das objeções levan-
tadas por Templeton, ao mesmo tempo eu não era ingênuo o
bastante para aceitá-las tacitamente. Evidente que alguns dos
seus obstáculos à fé não eram absolutamente impeditivos.
Por exemplo, Templeton estava simplesmente errado quan-
to ao fato de Jesus considerar-se um mero ser humano. Mes-
mo que você retroceda às informações mais antigas e elemen-
tares sobre ele - dados. que não poderiam ter sido maculados
por elaborações lendárias - você descobre que Jesus
28 q EM DEFESA DA FÉ

indubitavelmente encarava a si mesmo em termos transcen-


dentes, divinos e messiânicos."
Existe aqui uma ironia: os próprios documentos histó-
ricos a que Templeton recorreu para obter informações so-
bre a vida moral inspiradora de Jesus são na realidade os mes-
míssimos registros que repetidamente afirmam a sua divinda-
de. Assim, se Templeton está pronto a aceitar sua confiahilidade
quanto ao caráter de Jesus, deve também considerá-los fide-
dignos quando declaram que Jesus afirmou ser divino e sus-
tentou essa afirmação ressuscitando dentre os mortos.
Além disso, a ressurreição de Jesus não poderia ter sido
uma lenda como Templeton insistiu. O apóstolo Paulo pre-
servou uma crença da igreja dos primórdios que estava ba-
seada em testemunhos oculares sobre a volta de Jesus den-
tre os mortos - e que diferentes estudiosos dataram-na
de dois a três anos aproximadamente após a morte de [e-
sus." Isso foi rápido demais para que a mitologia contami-
nasse a narrativa. A verdade é que ninguém jamais pôde
mostrar um só exemplo na história de uma lenda que se
desenvolvesse tão rapidamente e apagasse um sólido nú-
cleo de verdade históricas.
Conforme documentei sistematicamente no livro Em de-
fesa de Cristo, as evidências dos testemunhos oculares, as
evidências comprobatórias, documentais, científicas, psico-
lógicas, proféticas ou "impressões digitais" e outros dados
históricos apontam poderosamente para a conclusão de que
Jesus é realmente o Filho de Deus único e exclusivo.
Sim, mas...

3V. Em defesa de Cristo, de Lee Strobel (São Paulo, Vida: 2002), p.


173-89; The Christology ofJesus, de Ben Witherington III (Minneapolis,
Minnesota: Fortress Press, 1990); e Reasonable [aith, de William Lane
Craig, (Wheaton, Illinois, Crossway, 1994), p. 233-54.
4V. 1 Coríntios 15.3-8.
5V. Em defesa de Cristo, p. 45, 175-7, 302-8, 348-50.
Em busca de respostas p 29

o que dizer daquelas irritantes questões que impedem


Templeton de abraçar afé que reconhecidamente tanto dese-
ja? Elas me perseguiam. Eram as mesmas questões que outro-
ra me deixaram perplexo - e enquanto Leslie e eu íamos para
casa pela rodovia interestadual, algumas delas voltaram a in-
quietar-me.

Viajando pelo mesmo caminho


Leslie e eu ficamos em silêncio por um tempo. Olhei através
da janela para as pradarias ondulantes do interior canadense.
Finalmente, Leslie disse:
- Parece que a sua entrevista terminou de modo um tanto
abrupto. O que foi que Templeton disse antes de você sair?
- Na verdade, foi bastante caloroso. Chegou a me mostrar
o seu apartamento - respondi. - Era como se não quisesse
que eu fosse embora. Todavia, por mais que eu tentasse, não
consegui levá-lo a retomar a discussão dos seus sentimentos
sobre Jesus.
Pensei por um momento antes de continuar.
- Ele disse outra coisa que me impressionou. Quando es-
tava me preparando para sair, olhou-me nos olhos fixamente,
apertou a minha mão e disse com grande sinceridade: 'Nós
percorremos o mesmo caminho'.
Lesl.ie acenou com a cabeça.
- Vocês certamente percorreram - disse. - Vocês dois
são escritores e os dois foram céticos. E acrescentou com um
sorriso: - E vocês dois são muito obstinados em aceitar a fé
até que estejam certos de que ela não está cheia de furos.
Ela estava certa.
- Mas, você sabe, a mente dele parecia tão fechada. Ele insis-
tiu que não pode haver um Deus amoroso. No entanto, seu cora-
ção a um só tempo parecia tão aberto. Em certo sentido, acho
que ele deseja Jesus tanto quanto as pessoas que responderam ao
apelo em Indianápolis. Somente que não consegue tê-lo. Pelo
menos, não acha que possa. Não com as objeções que opõe.
30 q El'vl DEFESA DA FÉ

Leslie e eu passamos a noite em um hotel de Michigan e


finalmente chegamos em casa no dia seguinte, antes do meio-
dia. Arrastei a mala escada acima e joguei-a sobre a cama.
Leslie abriu-a e começou a tirar as nossas roupas.
- Pelo menos estaremos em casa por algum tempo - ob-
servou.
- Bem, não exatamente.
Não conseguia livrar-me das perguntas de Templeton. Elas
ecoavam muito profundamente em meu cérebro. Decidi
recapitulá-las e expandir a minha jornada espiritual numa di-
reção diferente da que havia seguido quando escrevi Em defe-
sa de Cristo, que foi uma investigação das evidências históri-
cas da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. Eu queria
verificar uma vez mais se existem respostas satisfatórias para
a alma quando o cristianismo se defronta com as questões mais
difíceis e desconcertantes da vida, que colocam dúvidas incô-
modas em nosso coração e mente. A fé pode realmente enfren-
tar a razão? Ou o exame intelectual rigoroso afugentará Deus?
Resolvi localizar os mais preparados e ardorosos defenso-
res do cristianismo. Minha intenção não foi adotar uma abor-
dagem cínica ou agressiva perturbando-os com perguntas cap-
ciosas ou vendo se podia induzi-los retoricamente a se colo-
carem em uma situação difícil. Isso não era um jogo para mim'.
Eu estava sinceramente interessado em averiguar se eles
tinham respostas racionais para os "Oito Grandes" enigmas.
Queria dar-lhes ampla oportunidade para articularem os seus
arrazoados e evidências com detalhes, de modo que, no final,
eu pudesse avaliar se as suas posições faziam sentido. Acima
de tudo, eu queria descobrir se Deus estava falando a verdade
quando disse: "Vocês me procurarão e me acharão quando
me procurarem de todo o coração". 6
Peguei o telefone. Chegava o momento de fazer planos para
voltar a campo em busca de respostas.
A expectativa de Charles Templeton não seria nem um pou-
co menor.
"[eremias 29.13.
Primeira objeção
Uma vez qp.e o mal e o sofrimento
existem, não pode haver um Deus amoroso

Ou Deus quer abolir o mal, e não pode; ou ele pode, mas


não quer; ou ele não pode e não quer. Se ele quer, mas
não pode, ele é impotente. Se ele pode, e não quer, ele é
cruel. Mas se Deus tanto pode quanto quer abolir o mal,
conio pode haver maldade no mundo?
Epicuro, filósofo

o fato do sofrimento indubitavelmente tem sido o maior


desafio à fé cristã em todas as gerações. Sua distribuição
e grau parecem ser inteiramente ao acaso e, portanto,
injustos. Os espíritos sensíveis perguntam se o sofrimento
pode, de algum modo, reconciliar-se com a justiça e o
amor de Deus.
John Stott, teólogo}

- ~ orno
repórter jovem e idealista, recém-saído da escola de
jornalismo, uma das minhas primeiras tarefas no Chi-
cago Tribune foi escrever uma série de trinta artigos nos
quais iria traçar o perfil das famílias carentes da cidade.
Tendo sido criado nos subúrbios de classe média, em que
ser "necessitado" significava ter somente um Cadillac, ra-
pidamente me encontrei imerso na zona crítica, cercada de
privação e desespero, da cidade de Chicago. Em certo sen-
tido, minha experiência foi semelhante à reação de Charles
Templeton diante da foto da mulher africana com seu bebê
morto.

lA cruz de Cristo, São Paulo: Vida, 1991, p. 286.


32 q EM DEFESA DA FÉ

A pequena distância da Magnificent Mile de Chicago, onde


a imponente Tribune Tower ergue-se, vizinha de elegantes
butiques e hotéis de luxo, entrei no casebre minúsculo, escu-
ro e desolado habitado pela senhora Perfecta de Jesus, de 60
anos, e suas duas netas. Estavam vivendo ali há cerca de um
mês, desde que o local anterior, infestado de baratas, fora con-
sumido pelas chamas.
Perfecta, fraca e doente, tinha ficado sem dinheiro algu-
mas semanas antes e havia recebido uma pequena quantida-
de de cupons de alimentos para situações de emergência. Ela
fazia os alimentos renderem servindo apenas arroz com feijão
e pedacinhos de carne refeição após refeição. A carne logo
acabou. Depois o feijão. Agora tudo o que restava era um pu-
nhado de arroz. Quando finalmente chegasse o atrasado che-
que da assistência pública, seria rapidamente consumido pelo
aluguel e pelas contas de serviços públicos, e a família estaria
de volta à situação inicial.
O apartamento estava quase totalmente vazio, sem móveis,
aparelhos domésticos ou carpete. As palavras ecoavam nas
paredes vazias e no frio chão de madeira. Quando a sua neta
de onze anos, Lydia, saía nas geladas manhãs de inverno para
a caminhada de 800 metros até a escola, usava somente uma
fina blusa cinza sobre o vestido padronizado de mangas cur-
tas. A meio-caminho da escola, passava a blusa para a sua
irmã de treze anos, Jenny, que, trajando apenas um vestido
sem mangas, tremia de frio. Essas eram as únicas roupas que
possuíam.
- Eu procuro cuidar das meninas o melhor que posso -
explicou-me Perfecta em espanhol. - São boazinhas. Não se
queixam."
Horas depois, de volta em segurança ao meu luxuoso arra-
nha-céu diante do lago, com uma visão deslumbrante dos bair-
ros mais ricos de Chicago, senti-me perplexo com o contraste.

zv.
Thanksgiving Near; Only Food Rico, de Lee Strobel, publicado
em The Chicago Tribune (25/11/1974).
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... 9 33

Se existe um Deus, por que pessoas bondosas e honestas como


Perfecta e suas netas estariam sentindo frio e fome em meio a
uma das maiores cidades do mundo? Dia após dia, enquanto
realizava as investigações para a minha série, encontrei pes-
soas em circunstâncias iguais ou mesmo piores. Minha rea-
ção foi aprofundar-me ainda mais no meu ateísmo.
Dificuldades, sofrimento, angústias, a crueldade do homem
para com o homem - essa era a minha dieta diária como
jornalista. Não olhava para fotos de revistas de lugares distan-
tes; era a realidade e a dor da vida, bem próxima e pessoal.
Já tive a oportunidade de olhar nos olhos de uma jovem
mãe que tinha acabado de saber que a sua única filha havia
sido molestada, mutilada e assassinada. Ouvi testemunhos
em juízo descrevendo horrores repulsivos perpetrados contra
vítimas inocentes. Visitei prisões barulhentas e caóticas, montu-
ros da sociedade; asilos sem recursos em que os idosos defi-
nham após terem sido abandonados pelos familiares; enfer-
marias pediátricas em que crianças macilentas lutam em vão
contra o avanço inexorável do câncer; e bairros degradados
pelo crime em que o tráfico de drogas e os tiroteios a esmo
são coisas comuns.
Todavia, nada me chocou tanto quanto visitar as favelas de
>'

Bombaim, na India. Enfileiradas dos dois lados das ruas baru-


lhentas, imundas e congestionadas, até onde se podia enxer-
gar, havia pequenos barracos de papelão e aniagem situados
junto à estrada em que os ônibus e carros despejavam sua
fumaça e sujeira. Crianças despidas brincavam nas valas aber-
tas de esgoto que atravessavam toda aquela área. Pessoas sem
membros ou com os corpos afetados por deformidades esta-
vam inertes no chão. Insetos zuniam por toda parte. Era uma
cena horrível, um lugar em que, disse-me um motorista de
táxi, as pessoas nascem nas sarjetas, vivem toda a sua vida
nas sarjetas e experimentam a morte prematura nas sarjetas.
Vi-me então face a face com um menino de mais ou menos
dez anos, a mesma idade do meu filho Kyle na ocasião. Essa
criança indiana era esquelética e desnutrida e o seu cabelo,
34 q EM DEFESA DA FÉ

imundo e empastado. Um dos olhos estava doente e semicerrado;


o outro tinha um olhar perdido. Saía sangue das feridas do seu
rosto. Ele estendeu a mão e resmungou alguma coisa em hindi,
aparentemente pedindo moedas. Mas sua voz tinha um tom mo-
nótono, abafado e sem vida, como se ele não esperasse nenhuma
resposta. Como se tivesse perdido toda a esperança.
Onde estava Deus naquele buraco apodrecido do inferno?
Se ele tinha o poder de curar instantaneamente aquele meni-
no, por que voltou as costas? Se ele amava essas pessoas, por
que não o demonstrou salvando-as daquela situação? Será esta,
imaginei, a verdadeira razão: a própria presença de um sofri-
mento tão terrível e doloroso que na verdade nega a existên-
cia de um Pai bom e amoroso?

Compreendendo o sofrimento
Todas as pessoas se defrontam com dor e pesar. Uma enfermi-
dade cardíaca levou o meu pai, quando poderia ter vivido mui-
tos anos para ver os netos crescerem. Fiquei de vigília na unida-
de de tratamento intensivo neonatal enquanto minha filha re-
cém-nascida lutava contra uma enfermidade misteriosa que tanto
ameaçava a sua vida como confundia os médicos. Corri para o
hospital depois da ligação angustiante de um amigo cuja filha
havia sido atingida por um motorista embriagado. Segurava as
mãos deles no momento em que a vida a deixou. Tive de dar aos
dois filhos pequenos de um amigo a notícia que a mãe deles
havia cometido suicídio. Vi colegas de infância sucumbirem di-
ante do câncer, da doença de Lou Gehrig, * de problemas de co-
ração, de acidentes automobilísticos. Vi o mal de Alzheimer de-
vastar a mente de um ente querido. Estou certo de que você po-
deria contar histórias semelhantes de dor pessoal.
Nós emergimos recentemente de um século sem preceden-
tes em sua crueldade e desumanidade, no qual as vítimas de
*Doença de Lou Gehrig (EUA), mal de Charcot (França) e doença do
Neurônio Motor (Reino Unido) são os nomes dados no exterior à
Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA). (N. do K)

L • 11 ••• _ 1~.,.LI;~
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... P 35

tiranos como Hitler, Stálin, Pol Pot e Mao Tse-Tung subiram a


dezenas de milhões. A vastidão da crueldade insensibiliza as
nossa mente, mas vez por outra nos deparamos com uma his-
tória que personifica o horror e nos faz estremecer outra vez.
Como o relato que li recentemente de um jornalista italia-
no durante a Segunda Guerra Mundial que visitava o sorri-
dente Ante Pavelic, líder pró-nazista da Croácia. Pavelic mos-
trou-lhe orgulhosamente uma cesta cheia do que pareciam
ostras. Foi, disse, um presente de suas tropas - dezoito qui-
los de olhos humanos. Uma pequena recordação do massa-
cre de sérvios, judeus e ciganos. 3
Lemos histórias como essas - crueldades horrendas como
o Holocausto, os Campos da Morte no Camboja, o genocídio
de Ruanda e as câmaras de tortura da América do Sul - e
não podemos deixar de imaginar: Onde está Deus? Assisti-
mos pela televisão cobertura de terremotos e furacões em
que milhares de pessoas perecem, e imaginamos: Por que Deus
não o impediu? Lemos a estatística de que um bilhão de pes-
soas em todo o mundo carecem do suprimento das necessi-
dades básicas da vida, e imaginamos: Por que Deus não se
importa? Nós mesmos podemos sofrer dores persistentes,
perdas dolorosas ou circunstâncias aparentemente sem es-
perança, e imaginamos: Por que Deus não nos ajuda? Se ele é
amoroso, todo-poderoso e bom, então todo esse sofrimento
certamente não devia existir. E no entanto existe.
O que é pior, com freqüência os inocentes é que são vítimas.
"Se apenas os vilões tivessem a espinha quebrada ou câncer, se
somente os desonestos e trapaceiros tivessem o mal de Parkinson,
veríamos um tipo de justiça celestial no universo", escreveu
Sheldon Vanauken, um agnóstico que se tornou cristão.

Ocorre que uma criança de bom temperamento está mor-


rendo de tumor cerebral, uma feliz jovem esposa vê o seu
marido e filhos serem mortos diante dos seus olhos por um

3Peter MAASS, Top ten war crimes suspects, George, Iune 1999.
36 q EM DEFESA DA FÉ

motorista embriagado; e ... nós silenciosamente clamamos às


estrelas: Por quê? Por quê? A menção de Deus - da vontade
de Deus - não ajuda nem um pouco. Como poderia um
Deus bom, um Deus amoroso, fazer isso? Como ele poderia
até mesmo deixar isso acontecer? E nenhuma resposta vem
das estrelas Indiferentes."

oautor cristão Philip Yancey inicia o seu celebrado livro


sobre o sofrimento com um capítulo apropriadamente
intitulado "Um problema que não vai embora"." Essa não é
somente uma questão intelectual a ser debatida em estéreis
arenas acadêmicas; é um problema intensamente pessoal que
pode confundir nossas emoções e deixar-nos com vertigem
espiritual - desorientados, assustados e irados. Um escritor
referiu-se ao problema da dor como "o ponto de interrogação
transformado em um anzol no coração hurnano.?"
De fato, esse é o maior obstáculo isolado para os envolvi-
dos numa busca espiritual. Encarreguei George Barna, pes-
quisador de opinião pública, de realizar um levantamento
nacional em que perguntava a um grupo representativo de
adultos, escolhido cientificamente: "Se pudesse fazer a Deus
somente uma pergunta e soubesse que ele lhe daria a respos-
ta, o que você perguntaria?". A principal resposta, dada por
17% dos que disseram que tinham uma pergunta, foi a se-
guinte: "Por que existe dor e sofrimento no murido?"."
Charles Templeton também reivindicou uma resposta para
essa pergunta. Seu afastamento da fé começou com a foto da
revista Life mostrando a mãe africana que segurava o filho
que havia morrido por causa da simples falta de chuva. Em
seu livro de denúncia do cristianismo, Templeton relembra
uma lista de tragédias da história antiga e moderna, e então
declara:
4Peter KREEFT, Making sense out of suffering, Ann Arbor, Michigan:
Servant, 1986, viii.
"Deus sabe que sofremos, São Paulo: Vida, 1985, p. 18.
6Ibid., p. 20, citando o novelista Peter De Vries.
"The OmniPoll, realizada por Barna Research Group em janeiro de 1999.
U ma vez que o mal e o sofrimento existem... 9 37

"Um Deus amoroso" jamais poderia ser o autor dos horro-


res que descrevemos - horrores que continuam todos os
dias, têm persistido desde o início dos tempos e prosse-
guirão enquanto a vida existir. É uma história inconcebível
de sofrimento e morte e, porque os relatos são verdadeiros
- na verdade, a história do mundo - é evidente que não
pode haver um Deus amoroso."

Não pode? A presença do sofrimento significa necessaria-


mente a ausência de Deus? Esse obstáculo à fé é intransponível?
Para crer de todo o coração em um Pai amoroso e onipotente
eu tenho de encobrir a realidade do mal e da dor ao meu re-
dor? Como jornalista, essa simplesmente não era uma opção.
Tinha de explicar todos os fatos, todas as evidências, não
minimizando nada.
Estava tratando dessas questões com Leslie em um mo-
mento delicado da sua vida. Seu tio acabara de morrer e sua
tia tinha sido diagnosticada com o mal de Alzheimer e câncer
terminal. Abalada por essas turbulências, Leslie desconfiava
de qualquer pessoa que tentasse dar respostas fáceis.
- Se alguém acha que pode embrulhar tudo em um belo
pacotinho e colocar um bonito laço teológico sobre ele - ad-
vertiu - , vá para outro lugar".
Sabia que ela estava certa. Liguei para o Boston College e
pedi para marcar um encontro com o autor de Making sense out
of suffering [Tentando entender o sofrimento] - um livro cujo
título resumia exatamente o que eu estava procurando fazer.

Primeira entrevista: Peter John Kreeft, PH.D.

Gosto de me referir a Peter Kreeft como "o não-filósofo". Não


que ele não seja um filósofo; de fato, é um pensador filosófico
de primeira categoria, com doutorado pela Universidade
Fordham, estudos de pós-graduação na Universidade Yale e 38
anos de experiência como professor de filosofia na Universidade

"Farewell to God, p. 201-2.


38 q EM DEFESA DA FÉ

Villanova e (desde 1965) no Boston College. Ele leciona maté-


rias como metafísica, ética, misticismo, sexualidade e filoso-
fia oriental, grega, medieval e contemporânea, tendo recebido
prêmios como as bolsas Woodrow Wilson e Yale-Sterling.
Entretanto, se você imaginar um filósofo estereotipado; é
provável que Kreeft não viria à sua mente. De modo injusto
ou não, geralmente se pensa que os filósofos sejam um tanto
tediosos, falem com frases vagas e empoladas, residam nas
torres de marfim enclausuradas das academias e sejam sérios
até às raias da obstinação.
Ao contrário, Kreeft dá respostas realistas de modo interes-
sante e até divertido; comunica-se de maneira estimulante,
muitas vezes com uma marcante mudança de entonação; exi-
be um sorriso de contentamento e não consegue deixar de con-
tar piadas até mesmo sobre os assuntos mais sacrossantos.
Embora tenha 62 anos, pode ser visto com freqüência pratican-
do surfe, seu passatempo predileto. No livro que irá publicar
em breve, um dos capítulos tem o título "Surfo, logo existo".)
Kreeft, um católico amplamente lido por protestantes, es-
creveu mais de quarenta livros, entre os quais Love is stronger
than death [O amor é mais forte que a morte], Heaven: the
heart's deepest longing [O céu: o desejo mais profundo do co-
ração], Prayer: the great conversation [Oração: a grande con-
versa], A refutation of moral relativism [Refutação do
relativismo moral] e Handbook of Christian apologetics [Ma-
nual de apologética cristã], com Ronald K. Tacelli. Sua imagi-
nação excêntrica é especialmente evidente em O diálogo, que
imagina C. S. Lewis, John F: Kennedy e Aldous Huxley, de-
pois da morte, discutindo sobre Cristo, e em Socrates Meets
Jesus [Sócrates encontra-se com Jesus], no qual o antigo pen-
sador torna-se um cristão na Escola de Teologia de Harvard.
Deparei-me com o senso de humor pouco convencional de
Kreeft ainda antes de entrar no seu escritório. Enquanto as
outras dezesseis portas das salas do corredor entediante e mal
iluminado estavam nuas, a de Kreeft estava decorada com
charges de Doonesbury e Dilbert e outros lembretes irônicos

• I •• I II . , " •••IJ 11 • .IiI "ó 111


Uma vez que o mal e o sofrimento existem... p 39

- Odesenho de um touro cortado por uma barra transversal,


uma foto de Albert Einstein mostrando a língua jocosamente
e uma caricatura na qual Satanás saúda as pessoas no inferno
dizendo: "Você irá descobrir que aqui não existe certo ou er-
rado - somente o que funciona".
O que me levou a Kreeft foi o seu perspicaz livro sobre o
sofrimento, no qual tece habilidosamente uma viagem de des-
cobrimento por intermédio de Sócrates, Platão e Aristóteles;
por meio de Agostinho, Kierkegaard e Dostoiévski; por inter-
médio de Jornada nas Estrelas, O Coelho de Veludo e Hamlet;
e, por fim, de Moisés, Ió e Jeremias. Por todo o caminho exis-
tem pistas que definitiva e totalmente convergem para Jesus e
para as lágrimas de Deus.
Cheguei cedo e esperei por Kreeft no corredor. Logo apare-
ceu, vindo de um encontro filosófico que estava sendo reali-
zado em outro lugar de Boston. Seu paletó marrom de lã, gros-
sos óculos e cabelo grisalho escuro cuidadosamente penteado
davam-lhe um aspecto paternal. Sentou-se atrás de sua escri-
vaninha (sob uma placa que dizia "Proibido jogar lixo") e co-
meçamos a falar informalmente sobre o seu amado Boston
Red Sox [time de beisebol] - um assunto apropriado dado o
tema do sofrimento.
Aí mudei abruptamente de estratégia. Não havia outra abor-
dagem senão colocar Kreeft frente a frente com as ásperas
objeções de Templeton ao cristianismo, ilustradas por aquela
foto da revista Life mostrando uma mãe aflita segurando o
filho morto na África devastada pela seca.

Um urso, uma armadilha, um caçador e Deus


Encontrei a mesma intensidade emocional demonstrada por
Templeton ao me defrontar com Kreeft. Descrevi a foto e de-
pois citei o ex-evangelista palavra por palavra:

Pensei: "É possível crer que existe um Criador amoroso


ou solidário quando tudo o que essa mulher necessitava
40 q EM DEFESA DA FÉ

era chuva?" Como poderia um Deus amoroso fazer isso com


aquela mulher? Quem governa a chuva? Eu não, nem você.
Ele o faz - ou era isso que eu achava. Mas quando vi aque-
la fotografia, imediatamente percebi que não é possível que
isso aconteça e que exista um Deus amoroso. Não havia
como. Quem mais senão um demônio poderia destruir um
bebê e virtualmente matar a sua mãe de agonia - quando
tudo o que precisava era de chuva? .. Então comecei. .. a
considerar as pragas que varrem certas partes do planeta e
matam indiscriminadamente... e ficou cristalinamente claro
para mim que não é possível que uma pessoa inteligente
creia que existe urna divindade que ama.

Levantei o olhar das minhas anotações. Os olhos do pro-


fessor estavam cravados em mim. Encarando-o firmemente
e inclinando-me à frente na beira da minha cadeira a fim de
dar ênfase, disse em um tom um tanto acusatório:
- Dr. Kreeft, o senhor é uma pessoa inteligente e crê em
uma divindade que ama. Como afinal o senhor responderia
a Templeton?
Kreeft pigarreou.
- Em primeiro lugar - começou - eu me concentraria
nas palavras "não é possível". Até mesmo David Hurne, um
dos céticos mais famosos da história, disse que é só um
pouquinho provável que Deus exista. Pelo menos essa é uma
posição um tanto razoável- dizer que existe pelo menos uma
pequena possibilidade. Mas dizer que não há possibilidade
de que um Deus amoroso, que sabe muito mais que nós, até
sobre o nosso futuro, talvez pudesse tolerar um mal como o
que Templeton vê na África - bem, isso me parece intelectu-
almente arrogante.
Isso me pegou de surpresa.
- Verdade? - espantei-me. - Como assim?
- Como pode um simples ser humano finito estar certo de
que a sabedoria infinita não toleraria certos males de curta
duração a fim de alcançar bens de maior amplitude que não
poderíamos prever? - perguntou.
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... 9 41

Entendi seu argumento, mas precisava de um exemplo.


- Elabore um pouco mais - provoquei.
Kreeft pensou por um momento.
- Veja dessa maneira - disse. - Você concordaria que a
diferença entre nós e Deus é maior que a diferença entre nós
e, digamos, um urso?
Acenei, concordando.
"Pois bem. Então imagine um urso preso em uma armadilha
e um caçador que, movido pela simpatia, quer libertá-lo. Tenta
conquistar a confiança do urso, em vão, e em conseqüência tem
de dar um tiro de tranqüilizante no urso. O urso, no entanto,
pensa que isso é um ataque e que o caçador está tentando matá-
lo. Não compreende que isso está sendo feito por compaixão. A
fim de tirar o urso da armadilha, o caçador tem de empurrá-lo
mais para dentro da armadilha de modo a liberar a pressão da
mola. Se o urso nesse momento estivesse semiconsciente, fi-
caria ainda mais convencido que o caçador era seu inimigo e
estava querendo causar-lhe sofrimento e dor. Porém, o urso
estaria errado. Chega a essa conclusão incorreta porque não é
um ser humano.
Kreeft deixou a fábula produzir efeito. - Agora - con-
cluiu - , como pode alguém estar certo de que essa não é uma
analogia entre nós e Deus? Eu creio que Deus faz o mesmo
conosco às vezes, e nós não podemos compreender por que
ele o faz, mais que o urso pode compreender as motivações
do caçador. Do mesmo modo que o urso poderia ter confiado
no caçador, nós podemos confiar em Deus.

Fé e preconceito
Parei para pensar no argumento de Kreeft, mas ele continuou
antes que eu pudesse responder.
- No entanto - disse, - certamente não quero subesti-
mar Templeton. Ele está reagindo de modo muito honesto e
sincero ao fato de que algo se volta contra Deus. Somente em
um mundo em que ter fé é difícil pode existir fé. Eu não tenho
42 q EM DEFESA DA FÉ

fé em dois mais dois igual a quatro ou no sol do meio-dia.


Essas coisas são inquestionáveis. Mas as Escrituras descre-
vem Deus como um Deus oculto. Você precisa fazer um esfor-
ço de fé para encontrá-lo. Existem pistas que você pode se-
guir. Se não fosse assim, se houvesse algo mais ou menos que
pistas, seria difícil entender como poderíamos realmente ser
livres para fazer uma escolha a respeito dele. Se tivéssemos
provas absolutas em vez de pistas, então você não poderia
negar Deus mais do que você poderia negar o sol. Se não ti-
véssemos qualquer evidência, jamais poderíamos chegar lá.
Deus nos dá apenas a evidência suficiente para que aqueles
que o desejam possam encontrá-lo. Os que quiserem seguir as
pistas o farão. A Bíblia diz "Busquem, e encontrarão". 9 Ela
não diz que todos o encontrarão; ela não diz que ninguém o
encontrará. Alguns encontrarão. Quem? Os que buscam. Aque-
les cujos corações estão dispostos a encontrá-lo e que seguem
as pistas.
Interrompi.
- Espere um pouco, há instantes o senhor admitiu que
"alguma coisa se volta contra Deus", que o mal e o sofrimento
são evidências contra ele - observei. - Não estaria o senhor
admitindo que o mal nega a existência de Deus? Bati com a
mão na escrivaninha. - Caso encerrado! - declarei com um
ar zombeteiro de triunfo.
Kreeft retraiu-se um pouco com a minha explosão.
- Não, não - insistiu balançando a cabeça. - Em pri-
meiro lugar, as evidências não são necessariamente certas
ou conclusivas. Estou dizendo que neste mundo existem
evidências contra e evidências a favor de Deus. Agostinho o
colocou de maneira muito simples: "Se não existe um Deus,
por que há tanto bem; se existe um Deus, por que há tanto
mal?". Não há dúvida de que a existência do mal é um argu-
mento contra Deus - mas em um de meus livros eu sintetizo
vinte argumentos que apontam persuasivamente em outra

9V: Mateus 7.7.


Uma vez que o mal e o sofrímento exístem... ? 43

direção, a favor da existência de Deus.'? Os ateus devem res-


ponder a todos os vinte argumentos; os teístas devem respon-
der a somente um. Todavia, cada um de nós tem de dar um
voto. A fé é ativa; ela exige resposta. Ao contrário da razão, que
se dobra servilmente diante das evidências, a fé se baseia em
opiniões preconcebidas.
Essa última palavra me atingiu.
- O que o senhor quer dizer com 'opiniões preconcebidas'?
- Suponha que um policial entre nesta sala e diga que
acabaram de prender minha esposa em flagrante por ter as-
sassinado treze vizinhos decapitando-os, e que há testemu-
nhas. Eu riria dele e diria: "Não, isso não pode ser. Vocês não
a conhecem como eu a conheço". Ele diria: "Onde está a pro-
va7" Eu diria: "É um tipo de prova diferente da sua. Mas existe
evidência de que isto não pode ser verdade". De sorte que eu
sou parcial. No entanto, minhas opiniões preconcebids são pre-
conceitos razoáveis porque estão baseados nas evidências que
reuni em minha experiência real. Assim, alguém que conhece
Deus tem evidências - e, portanto, opiniões baseadas nessas
evidências - que alguém que não conhece Deus não tem.

o mal como evidência a favor de Deus


Kreeft parou por alguns segundos antes de acrescentar esta
observação inesperada e contra-intuitiva:
- Além disso, a evidência do mal e do sofrimento pode
funcionar em ambas as direções - de fato ela pode ser usada
a favor de Deus.
Endireitei-me na cadeira. - Como isso é possível? - per-
guntei.
- Considere o seguinte - disse Kreeft. - Se Templeton
está certo em reagir com indignação a esses acontecimentos,
isso pressupõe que realmente existe uma diferença entre o
bem e o mal. O fato de que ele está usando o padrão do bem
para julgar o mal - dizendo acertadamente que esse horrível
10V: Handbook of Christian apologetics, de Peter Kreeft e Ronald K.
Tacelli (Downers Grave. Illinois: InterVarsity, 1994), p. 48-88.
44 q EM DEFESA DA FÉ

sofrimento não é o que deveria ser - significa que tem uma


noção do que deve ser, que essa noção corresponde a algo
real, e que existe, portanto, a realidade chamada Bem Su-
premo. Este é outro nome para Deus.
Esta consideração despertou a suspeita de ser um truque de
prestidigitação filosófica. Desconfiado, resumi o argumento de
Kreeft para ver se o entendia.
- O senhor quer dizer que sem querer Templeton pode es-
tar testemunhando da realidade de Deus porque ao reconhecer
o mal ele está pressupondo que existe um padrão objetivo no
qual o mesmo está baseado?
- Correto. Se eu dou a um aluno a nota nove e a outro
oito, isso pressupõe que dez é um padrão verdadeiro. E o meu
argumento é o seguinte: se Deus não existe, onde nós encon-
tramos o padrão de bondade pelo qual julgamos o mal como
mal? Mais que isso, como disse C. S. Lewis: "Se o universo é
tão cruel. .. por que cargas d'água os seres humanos o atribu-
em à atividade de um Criador sábio e bom?". Em outras pala-
vras, a própria presença dessas idéias em nossa mente - isto
é, a idéia do mal e, por conseguinte, da bondade e de Deus
como origem e padrão da bondade - precisa ser explicada.
Um interessante contragolpe, imaginei.
- Existem quaisquer outros meios pelos quais o senhor
acredita que o mal funciona contra o ateísmo? - perguntei.
- Sim, existem - retrucou. - Se não existe um Criador e,
portanto, um momento de criação, então tudo é resultado da
evolução. Se não houve um princípio ou uma causa primeira,
então o universo deve ter sempre existido. Isso significa que o
universo tem estado evoluindo por um infinito período de tem-
po - e a esta altura tudo já devia ser perfeito. Teria havido
tempo mais que suficiente para a evolução ter acabado e o mal
ter sido banido. Mas ainda existem o mal, o sofrimento e a
imperfeição - e isso prova que o ateu está errado acerca do
umverso.
- Então o ateísmo - insisti, - é uma resposta inadequa-
da para o problema do mal?

I I ,I L •• I .. I". "~ I I i
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... p 45

- É uma resposta fácil, permita-me usar essa palavra, uma


resposta banal - disse. - O ateísmo é banal no tocante às
pessoas porque diz arrogantemente que nove entre dez pessoas
estão erradas ao longo da história com respeito a Deus e guar-
daram uma mentira no íntimo de seu coração. Pense nisso.
Como é possível que mais de noventa por cento de todos os
seres humanos que já viveram - geralmente em circunstân-
cias muito mais dolorosas que a nossa - puderam crer em
Deus? As evidências objetivas, somente olhando para o equi-
líbrio entre prazer e sofrimento, não parecem justificar a crença
em um Deus absolutamente bom. No entanto, tem-se acredi-
tado nisto quase universalmente.
- Estariam todos eles loucos? Bem, suponho que possa pen-
sar assim se você for um tanto elitista. Talvez, como Leão Tolstói,
tenhamos de aprender com os camponeses. Em sua autobio-
grafia, ele se debate com o problema do mal. Observou que a
vida continha mais sofrimento que prazer e mais mal que bem,
portanto, aparentemente uma existência sem sentido. Ele ficou
tão desesperado que se sentiu tentado ao suicídio. Disse que
não sabia como poderia suportar.
- Tolstói, com efeito, escreveu: "Espere um minuto - a
maior parte das pessoas suporta. A maioria das pessoas tem
uma vida mais difícil que a minha e no entanto a consideram
maravilhosa. Como podem fazer isso? Não com explicações,
mas com fé". Ele aprendeu com os camponeses e encontrou fé
e eaperariça.!'
- O ateísmo trata as pessoas de modo medíocre. Além
disso, rouba à morte o seu significado, e se a morte não tem
sentido, como pode a vida, em última análise, ter sentido? O
ateísmo vulgariza tudo o que toca - veja as conseqüências
do comunismo, a mais poderosa forma de ateísmo sobre a
terra.
- E no fim, quando o ateu morre e se encontra com Deus
em vez do vazio que havia predito, terá de reconhecer que o

llConfession, New York: W. W. Norton & Co., 1996.


46 q EM DEFESA DA FÉ

ateísmo foi uma resposta vulgar porque recusou a única coi-


sa que não é vulgar - o Deus de valor infinito.

Um problema de lógica
Kreeft tinha apresentado alguns interessantes argumentos ini-
ciais, mas nós circundáramos um pouco o assunto. Chega-
mos ao momento de chegar ao âmago da questão. Lançando
mão de algumas notas rabiscadas no avião, desafiei Kreeft com
uma pergunta que cristalizou a controvérsia.
- Os cristãos crêem em cinco coisas - disse eu. - Pri-
meira, Deus existe. Segunda, Deus é todo-bondade. Terceira,
Deus é todo-poderoso. Quarta, Deus é onisciente. E quinta, o
mal existe. Agora, como podem todas essas cinco afirmações
serem verdadeiras ao mesmo tempo?
Um sorriso enigmático estampou-se no rosto de Kreeft.
- Aparentemente não podem ser - admitiu. - Eu me lem-
bro de um pregador liberal que certa vez tentou me dissua-
dir de me associar aos fundamentalistas. Ele disse: "Existe
um problema lógico aqui - você pode ser inteligente, ou
honesto, ou fundamentalista, ou qualquer combinação de
dois, mas não todos os três". E o meu amigo fundamentalista
disse: "Eu diria que você pode ser honesto, ou inteligente,
ou liberal, ou qualquer combinação de dois, mas não os
três" .
Eu ri da história. - Nós temos o mesmo tipo de problema
lógico aqui - observei.
- Certo. Parece que você tem de deixar de lado uma da-
quelas convicções. Se Deus é todo-poderoso, ele pode fazer
qualquer coisa. Se Deus é todo-bondade, ele quer somente o
bem. Se Deus é onisciente, ele sabe o que é bom. Desse modo,
se todas essas convicções são verdadeiras - e os cristãos acre-
ditam que são - parece então que a conseqüência é que ne-
nhum mal pode existir.
- Mas o mal existe - disse. - Não seria lógico supor que
esse Deus não existe?
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... p 47

- Não, eu diria que uma daquelas convicções a respeito


dele deve ser falsa ou nós não a estamos entendendo de ma-
neira correta.
Chegara o momento de solucionar o problema. Com um
movimento da mão, convidei Kreeft a examinar esses três
atributos divinos - Deus como todo-poderoso, todo-bonda-
de e onisciente - um de cada vez, à luz da existência do
mal.

Atribulo n. o 1: Deus é todo-poderoso


- O que significa dizer que Deus é todo-poderoso? -
Kreeft perguntou, e em seguida respondeu a própria pergunta:
- Significa que ele pode fazer tudo o que seja significativo,
tudo o que seja possível, tudo o que faça algum sentido. Deus
não pode fazer com que ele mesmo deixe de existir. Ele não
pode tornar o bem em mal.
- Desse modo - rebati, - existem algumas coisas que
ele não pode fazer muito embora seja todo-poderoso.
- Precisamente porque é todo-poderoso, ele não pode fa-
zer algumas coisas. Ele não pode cometer erros. Somente se-
res fracos e tolos cometem erros. Um desses erros seria tentar
criar uma contradição óbvia, como dois mais dois é igual a
cinco ou um quadrado redondo.
- Agora, a defesa clássica de Deus diante do problema do
mal é que não é logicamente possível se ter livre-arbítrio e
nenhuma possibilidade de maldade moral. Em outras pala-
vras, uma vez que Deus escolheu criar seres humanos com
livre-arbítrio, então dependia destes, e não de Deus, haver
pecado ou não. E" isso o que significa o livre-arbítrio. Embuti-
da na situação em que Deus decide criar seres humanos está a
possibilidade do mal e, conseqüentemente, o sofrimento que
daí decorre.
- Então Deus é o criador do mal.
- Não, ele criou a possibilidade do mal; as pessoas concre-
tizaram essa potencialidade. A fonte do mal não é o poder de
48 q EM DEFESA DA FÉ

Deus, mas a liberdade do homem. Até mesmo o Deus todo-


poderoso não poderia ter criado o mundo no qual as pessoas
tivessem genuína liberdade e, no entanto, não houvesse
potencialidade para o pecado, porque a nossa liberdade in-
clui a possibilidade do pecado strictu sensu. É uma contradi-
ção em si - um nada sem sentido - ter um mundo em que
existe verdadeira escolha e ao mesmo tempo nenhuma possi-
bilidade de escolher o mal. Perguntar por que Deus não criou
tal mundo é como perguntar por que Deus não criou uma cor
sem cor ou quadrados redondos.
- Então por que Deus não criou um mundo sem liberdade
humana?
- Porque esse teria sido um mundo sem seres humanos.
Teria sido um lugar sem ódio? Sim. Um lugar sem sofrimen-
to? Sim. Mas também teria sido um mundo sem amor, que é o
valor mais elevado do universo. Esse bem supremo jamais po-
deria ter sido experimentado. O amor verdadeiro - nosso amor
para com Deus e o amor de uns para com os outros - deve
envolver uma escolha. Porém, com a concessão dessa escolha
viria a possibilidade de que em vez disso as pessoas esco-
lhessem odiar.
- Veja o Gênesis - alertei. - Deus criou o mundo no qual
as pessoas eram livres e no entanto não havia pecado.
- Foi exatamente isso o que ele fez - disse Kreeft. -
Após a criação, ele declarou que o mundo era "bom". As
pessoas eram livres para escolher amar a Deus ou afastar-se dele.
No entanto, esse mundo necessariamente é o lugar em que o
pecado é livremente possível- e certamente essa potencialidade
para o pecado foi concretizada não por Deus, mas pelas pessoas.
A culpa em última análise pertence a nós. Ele fez a sua parte
com perfeição; fomos nós que criamos confusão.
- O rabino Harold Kushner chega a uma conclusão dife-
rente no seu livro campeão de vendas Quando coisas ruins
acontecem a pessoas boas - observei. - Ele diz que afinal
de contas Deus não é todo-poderoso - que ele gostaria de
ajudar, mas simplesmente não pode resolver todos os pro-

I .11 •• I •• i _ J". 1·1 I ~


Uma vez que o mal e o sofrimento existem... p 49

blemas do mundo. Escreveu: "Até Deus tem dificuldade em


manter o caos sob controle" .12
Kreeft levantou uma das sobrancelhas.
- Para um rabino, isso é difícil de entender, porque o
conceito peculiarmente judaico de Deus é o oposto disso -
falou. - Surpreendentemente - contra as evidências, me
parece - os judeus insistiram que existe um Deus que é todo-
poderoso e mesmo assim todo-bondoso.
- Ora, isso não parece tão razoável quanto o paganismo,
que diz que se existe. mal no mundo, então devem existir
muitos deuses, cada um deles menos que todo-poderoso, al-
guns deles bons, alguns deles maus, ou se existe um Deus,
então ele se defronta com forças que não pode controlar intei-
ramente. Até à revelação do verdadeiro Deus por meio do ju-
daísmo, essa era uma filosofia muito popular.
- Eu não me impressiono muito com o Deus de Kushner
- disse mais como afirmação que pergunta.
- Honestamente, não vale a pena crer nesse Deus. Teria
eu um grande irmão que estivesse fazendo o que pode, mas
não muito? Bem, quem se importa? - disse ele encolhen-
do os ombros. - Na prática, isso é o mesmo que ateísmo.
Dependa de si mesmo primeiro, e então talvez de Deus, tal-
vez não.
- Não, a evidência é que Deus é todo-poderoso. O pon-
to a lembrar é que criar o mundo no qual existe livre-arbí-
trio e nenhuma possibilidade de pecado é contradição - e
isso abre as portas para as pessoas escolherem o mal em
vez de Deus, tendo como conseqüência o sofrimento. A es-
magadora parcela de dor que existe no mundo é causada
pelas nossas escolhas de matar, caluniar, ser egoístas, des-
viar-nos sexualmente, quebrar as nossas promessas, ser in-
sensatos.

12New York: Schocken Books, 1981, p. 43.


5o q EM DEFESA DA FÉ

Atributo n. o 2: Deus é onisciente


Pedi que Kreeft passasse para a qualidade divina seguinte
- a onisciência de Deus. Empurrou para trás a cadeira a fim
de ficar mais confortável, olhou para o lado enquanto orde-
nava seus pensamentos uma vez mais.
- Vamos começar da seguinte maneira - disse. - Se ele é
inteiramente sábio, Deus conhece não somente o presente,
mas o futuro. E ele conhece não somente o bem e o mal pre-
sentes, mas o bem e o mal futuros. Se a sua sabedoria excede
em muito a nossa, como a do caçador excede a do urso, é pelo
menos possível - ao contrário da análise de Templeton -
que esse Deus amoroso possa deliberadamente tolerar coisas
horríveis como a inanição porque ele pode prever que a longo
prazo mais pessoas serão melhores e mais felizes que se ele
interviesse miraculosamente. Isso é pelo menos intelectual-
mente possível.
Meneei a cabeça. - Ainda é difícil aceitar - disse. - Pa-
rece uma fuga.
- Está bem. Então, vamos testá-la - Kreeft respondeu.
- Você sabe, Deus tem nos mostrado especificamente, de modo
muito claro, como isso pode funcionar. Ele demonstrou como a
pior coisa que já aconteceu na história do mundo acabou resul-
tando na melhor coisa que já aconteceu na história do mundo.
- O que o senhor quer dizer?
- Estou me referindo ao deicídio - respondeu. - A mor-
te do próprio Deus sobre a cruz. Naquela época, ninguém viu
como alguma coisa boa poderia resultar dessa tragédia. No
entanto, Deus previu que o resultado seria a abertura do céu
aos seres humanos. Assim, a pior tragédia da história resul-
tou no evento mais glorioso da história. E se aconteceu lá - o
mal supremo resultar no bem supremo - pode acontecer em
outros lugares, até mesmo em nossa vida individual. Aqui Deus
levanta a cortina e nos deixa ver. Em outro lugar ele simples-
mente diz: "Confie em mim".
- Tudo isso significa que a vida humana é incrivelmente
dramática, como uma história em que não se conhece o final

I .. .1 A.lIIi. I .. 11.,.1.1,1
Uma vez que o mal e o soirimento exístem... 9 51

em vez de uma fórmula científica. Com efeito, vamos seguir


esse enredo dramático por um minuto.
- Suponha que você é o Diabo. Você é o inimigo de Deus e
quer matá-lo, mas não pode. No entanto, ele tem essa ridícula
fraqueza de criar e amar seres humanos, os quais você pode
atingir. Aí está! Agora você tem reféns! Portanto, você sim-
plesmente desce ao mundo, corrompe os seres humanos e ar-
rasta alguns deles para o inferno. Quando Deus envia profe-
tas para iluminá-los, você mata os profetas.
- Deus faz então a coisa mais tola de todas - envia o
próprio Filho, o qual joga de acordo com as regras do mundo.
Você diz para si mesmo: "Eu não posso acreditar que ele seja
tão estúpido. O amor perturbou seu cérebro! Tudo o que te-
nho a fazer é inspirar alguns de meus agentes - Herodes,
Pilatos, Caifás, os soldados romanos - e fazer com que ele
seja crucificado". E é isso o que você faz.
Assim, lá está ele pendurado na cruz - desamparado pelos
homens e aparentemente por Deus, sangrando até a morte e
clamando: "Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?"
O que você sente agora como Diabo? Triunfo e vingança! Mas,
é claro, você não poderia estar mais enganado. Esse é o supre-
mo triunfo dele e sua suprema derrota. Ele enfiou o calcanhar
na sua boca, você o mordeu e o sangue destruiu você.
- Agora, se essa não é uma ocorrência anormal, mas um
paradigma da condição humana, quando sangramos e quando
sofremos, como ocorreu com Cristo, talvez o mesmo esteja acon-
tecendo. Talvez seja essa a maneira de Deus derrotar o Diabo.
"-
- A época da crucificação, os discípulos não puderam perce-
ber como algo de bom poderia resultar dessa ocorrência; de igual
modo, quando enfrentamos lutas, provações e sofrimento, por
vezes não podemos imaginar que isso possa resultar em algum
bem. Mas vimos como isso aconteceu no caso de Jesus e pode-
mos confiar que também acontecerá no nosso caso. Por exem-
plo, os maiores cristãos da história parecem dizer que os seus
sofrimentos acabaram por levá-los o mais perto possível de Deus
- assim, essa é a melhor coisa que poderia acontecer, não a pior.
52 q EM DEFESA DA FÉ

Atributo D. o 3: Deus é todo-bondoso


Fiquemos agora com o atributo da bondade de Deus.
- Bom é uma palavra notoriamente traiçoeira - Kreeft co-
meçou, - porque até mesmo nas questões humanas ela tem uma
amplitude considerável de significado. Porém, uma vez mais, a
diferença entre nós e Deus certamente é maior que a diferença
entre nós e os animais, e como o bem varia enormemente entre
nós e os animais, ele deve variar mais ainda entre nós e Deus.
- Concordo - disse. - Mas se eu ficasse sentado e não
fizesse nada caso meu filho fosse atropelado por um cami-
nhão, eu não seria bom em nenhum sentido da palavra. Seria
um mau pai se agisse assim. Deus faz o equivalente a isso. Ele
fica sentado e se recusa a realizar milagres para livrar-nos de
perigos ainda maiores que ser atropelado por um caminhão.
Isto posto, por que então ele não seria mau?
Kreeft assentiu. - Dá a impressão que ele é - disse. -
Mas o fato de que Deus deliberadamente permite certas coi-
sas que se nós permitíssemos nos transformaria em monstros,
não depõe necessariamente contra ele.
Eu não podia entender o seu raciocínio.
- O senhor terá de explicar por que é assim - insisti.
- Está bem, deixe-me apresentar-lhe uma analogia aos re-
lacionamentos humanos - respondeu. - Se eu dissesse ao
meu irmão, que tem mais ou menos a minha idade: "Posso
livrá-lo de um problema, mas não o farei", provavelmente eu
seria irresponsável e talvez cruel. Mas nós fazemos isso com
os nossos filhos o tempo todo. Nós não fazemos os deveres de
casa por eles. Nós não os colocamos dentro de uma bolha e os
protegemos de todos os males.
Eu me lembro quando uma de minhas filhas tinha cerca de
quatro ou cinco anos e estava tentando enfiar a linha no bura-
co da agulha. Isso era muito difícil para ela. Toda vez que
tentava, se feria no dedo, o qual por vezes sangrou. Eu a esta-
va observando, mas ela não me viu. Simplesmente continuou
tentando uma vez após a outra.
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... p 53

o meu primeiro desejo foi fazer por ela, assim que vi a


gota de sangue. Mas sabiamente me contive, dizendo para mim
mesmo: "Ela pode conseguir". Depois de uns cinco minutos,
finalmente foi bem sucedida. Saí de onde estava e ela excla-
mou: "Papai, papai - veja o que eu fiz! Veja o que eu fiz!". Ela
estava tão orgulhosa por ter enfiado a linha na agulha que
havia esquecido totalmente a dor.
Daquela vez a dor foi uma coisa boa para ela. Eu fui sábio o
suficiente para ter previsto que isso era bom para ela. Ora,
Deus certamente é muito mais sábio do que eu fui com a mi-
nha filha. Assim, pelo menos é possível que Deus seja sábio o
suficiente para prever que necessitamos de alguma dor por
razões que podemos não entender, mas que ele prevê como
necessária para algum bem eventual. Portanto, ele não está
sendo mau ao permitir que a dor exista.
Os dentistas, os treinadores esportivos, os professores e os
pais - todos eles sabem que às vezes ser bom não é ser gentil.
Certamente existem ocasiões em que Deus permite o sofri-
mento e nos priva do bem menor do prazer a fim de ajudar-
nos a alcançar o bem maior da educação moral e espiritual.
Até mesmo os antigos gregos acreditavam que os deuses ensi-
navam a sabedoria por intermédio do sofrimento. Ésquilo es-
creveu: "Dia após dia, hora após hora / A dor goteja sobre o
coração / Quando, contra a nossa vontade e mesmo a despeito
de nós / Vem a Sabedoria da temível graça de Deus".
Sabemos que o caráter moral é formado por meio de pro-
vações, da superação de obstáculos, e da perseverança diante
das dificuldades. A coragem, por exemplo, seria impossível
em um mundo sem dor. O apóstolo Paulo deu testemunho
dessa qualidade refinadora do sofrimento quando escreveu
que "a tribulação produz perseverança; a perseverança, cará-
ter; e o caráter, esperança" .13
Sejamos honestos: nós aprendemos com os erros que co-
metemos e o sofrimento que produzem. O universo é uma

13V Romanos 5.3,4.


54 q EM DEFESA DA FÉ

máquina modeladora da alma e parte desse processo consis-


te em aprender, amadurecer e crescer por meio de experiên-
cias difíceis, desafiadoras e dolorosas. A razão de ser de nos-
sa vida neste mundo não é a comodidade, mas o treinamento
e a preparação para a eternidade. As Escrituras nos dizem
que até mesmo Jesus "aprendeu a obedecer por aquilo que
sofreu"!' - e se isso foi verdadeiro para ele, por que não de-
veria ser ainda mais verdadeiro para nós?
Kreeft deixou a pergunta suspensa no ar por um momen-
to enquanto as suas engrenagens mentais giravam. E pros-
seguiu. - Suponha que nós não tivéssemos sofrimento al-
gum - acrescentou. - Suponha que tivéssemos remédios
para toda espécie de dor, entretenimento gratuito, amor li-
vre - tudo menos a dor. Nada de Shakespeare, nada de
Beethoven, nada de Boston Red Sox, nada de morte - nada
de sentido. Diabretes insuportavelmente mimados - é nis-
so que nos tornaríamos.
- É como aquele antigo programa de televisão, Além da
Imaginação, em que um bando de assaltantes de bancos leva
tiros e um deles acorda caminhando sobre nuvens macias no
portão dourado de uma cidade celestial. Um bondoso homem
de vestes brancas lhe oferece tudo o que ele quer. Mas ele
logo se aborrece com o ouro, pois tudo é de graça, e com as
garotas bonitas, que só riem quando tenta feri-las, pois ele
tem um pendor para o sadismo.
Desse modo, manda chamar a figura de são Pedro. "Deve
haver algum erro". "Não, nós não cometemos erros aqui".
"O senhor não pode me enviar de volta para a terra?" "Cla-
ro que não, você está morto". "Bem, então eu preciso ficar
com os meus amigos no Outro Lugar. Mande-me para lá".
"Oh, não, não podemos fazer isso. Regras, você sabe". "Que
lugar é este, então?" "É o lugar onde você recebe tudo o que
quer". "Mas eu achava que deveria gostar do céu" . "Céu?
Quem falou em céu? O céu é o Outro Lugar". A lição é que
14Hebreus 5.8: "Embora sendo Filho, ele aprendeu a obedecer por
meio daquilo que sofreu".

J, Ji, ,11 liI. I _ ~I. j ,. ~ I I


Uma vez que o mal e o sofrimento exístem... p 55

um mundo sem sofrimento se parece mais com o inferno


do que com o céu.
Isso parecia uma hipérbole.
- O senhor realmente acredita nisso? - perguntei.
- Sim, acredito. De fato, se você não acredita, então faça
de conta que você é Deus e tente criar um mundo melhor em
sua imaginação. Tente criar a utopia. Mas você tem de refletir
sobre as conseqüências de tudo o que tentar melhorar. Toda
vez que você usa a força para impedir o mal, você tira a liber-
dade. Para impedir todo o mal, você precisa remover toda a
liberdade e reduzir as pessoas a bonecos, o que significa que
elas então não teriam a capacidade de escolher livremente o
amor.
Você pode acabar criando um mundo preciso que um en-
genheiro poderia apreciar - talvez. Mas uma coisa é certa:
você perderá o tipo de mundo que um pai iria querer.

o megafone da dor
Pista após pista, Kreeft estava lançando mais e mais luz so-
bre o mistério do sofrimento. Mas cada nova percepção pare-
cia gerar novas perguntas.
- Pessoas más ferem os outros e se safam o tempo todo.
Certamente Deus não pode considerar isso justo - eu disse.
- Como ele pode ficar parado observando enquanto isso acon-
tece? Por que ele não intervém e dá um jeito em todo o mal
que há no mundo?
- As pessoas não estão se safando - Kreeft insistiu. -
Justiça tardia não é necessariamente justiça negada. Virá o
dia em que Deus ajustará contas e as pessoas serão
responsabilizadas pelo mal que cometeram e pelo sofrimento
que causaram. Criticar Deus por não agir exatamente agora é
como ler metade de um romance e criticar o autor por não ter
concluído o enredo. Deus fará o acerto de contas no momento
certo - de fato, a Bíblia diz que uma das razões pelas quais ele
o está adiando é que algumas pessoas continuam seguindo as
56 q EM DEFESA DA FÉ

pistas e ainda têm de encontrá-Io.:" Na realidade ele está


protelando o fim da história por causa do seu grande amor
pelas pessoas.
- Mas, nesse ínterim, simplesmente, a quantidade de so-
frimento que existe no mundo não incomoda o senhor? -
perguntei. - Deus não poderia eliminar pelo menos uma par-
te dos males mais horríveis? Um filósofo formulou um argu-
mento contra Deus da seguinte maneira: primeiro, não há ne-
nhuma razão que justifique Deus quando permite tanta mal-
dade; em segundo lugar, se Deus existe, então tal razão deve
existir; por conseguinte, em terceiro lugar, Deus não existe.
Kreeft mostrou-se simpático em relação ao problema, mas
não admitia esta solução.
- É como aceitar a racionalidade da crença em Deus quando
seis judeus morreram no Holocausto, e não sete. Ou 60 000,
mas não 60 001, ou 5 999 999, mas não 6 000 000 - afirmou. -
Quando você transforma a declaração geral "tanto mal" em exem-
plos particulares como esses, fica evidente quão absurda é. Não
pode haver uma linha divisória.
É verdade que existem alguns exemplos em que a quantidade
se torna qualidade. Por exemplo, água fervente: tão logo se chega
à temperatura de 1000, você obtém um novo estado - gás - e se
aplicam às leis dos gases, e não às leis dos líquidos. Mas o sofri-
mento não é assim. Em que ponto o sofrimento nega a existência
de Deus? Nenhum ponto como esse pode ser mostrado. Além
disso, porque não somos Deus, nós não podemos dizer quanto
sofrimento é necessário. Talvez cada um dos elementos de dor
no universo seja necessário. Como podemos saber?
Disfarcei uma risada.
- Suponho que uma pessoa pudesse dizer: "Se eu estou
sofrendo dor, então isto pode significar um grande sofrimento
para o mundo!"

15
2 Pedro 3.9: "O Senhor não demora em cumprir a sua promessa,
como julgam alguns. Ao contrário, ele é paciente com vocês, não queren-
do que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento".
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... p 51

Kreeft riu. - Sim,


,-
é claro! - , exclamou. - Esse é o "tanto
mal" subjetivo. E o caso clássico de antropomorfismo. Se eu
fosse Deus, eu não permitiria tanta dor assim; Deus certamen-
te não poderia discordar de mim; Deus permitiu essa dor; por-
tanto, Deus não existe.
- O senhor disse instantes atrás que alguma dor poderia
ser necessária. Isso indica que existe sentido no sofrimento -
concluí. - Se é assim, em que consiste?
- Ao longo da história um dos fins do sofrimento é que
ele conduz ao arrependimento - ponderou. - Somente de-
pois de sofrer, somente depois do desastre, o Israel do Anti-
go Testamento ressurgiu. Nações e indivíduos voltam para
Deus. Sejamos honestos: nós aprendemos da maneira mais
difícil. Para citar C. S. Lewis: "Deus sussurra em nossos pra-
zeres, fala em nossa consciência, mas grita em nossas do-
res. É o seu megafone para despertar um mundo sundo"!".
Evidentemente o arrependimento leva a algo maravilhoso
- a bem-aventurança, pois Deus é a fonte de toda a alegria
e de toda a vida. O resultado é bom - de fato, mais que
bom.
Em termos simples, creio que o sofrimento é compatível com
o amor de Deus se ele for terapêutico, corretivo e necessário;
isto é, se nós estamos muito doentes e precisamos desespera-
damente de cura. Esta é a nossa situação. Jesus disse: "Não são
os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes
[... ] Eu não vim chamar os justos, e sim os pecadores". 17
- Mas pessoas boas sofrem tanto - ou às vezes mais -
que as más - observei. - Isso é o que choca no título do
livro de Kushner: Quando coisas ruins acontecem a pessoas
boas. Como isso pode ser justo?
- Bem, a resposta é que não existem pessoas boas - Kreeft
respondeu.
- E o que dizer do velho ditado: "Deus não faz gente
imprestável"?
16The problem of pain, New York: Macmillan, 1962, p. 93.
17V: Mateus 9.12,13.
58 q EM DEFESA DA FÉ

- Sim, ontologicamente nós somos bons - ainda guar-


damos a imagem de Deus - , mas moralmente não somos. A
imagem divina em nós foi maculada. O profeta Jeremias dis-
se que "desde o menor até o maior, todos são gananciosos'?",
e o profeta Isaías disse: "Somos como o impuro - todos nós!
Todos os nossos atos de justiça são como trapo imundo". 19
Nossas boas ações estão contaminadas com o interesse pes-
soal e os nossos reclamos de justiça estão misturados com o
desejo de vingança. Ironicamente, são as melhores pessoas
que mais prontamente reconhecem e admitem suas defici-
ências e pecados.
- Nós somos um bom material que se estragou, uma obra
de arte mutilada, um filho rebelde. Lewis observou que nós
não somos simplesmente pessoas imperfeitas que precisam
melhorar, porém somos rebeldes que precisam depor as ar-
mas. Com freqüência a dor e o sofrimento são os meios pelos
quais nos tornamos motivados para finalmente nos render-
mos a Deus e buscarmos os cuidados de Cristo.
-É disso que necessitamos mais desesperadamente. É isso
o que nos levará à alegria suprema de conhecer Jesus. Qual-
quer sofrimento - os grandes cristãos da história lhe dirão -
vale o resultado.

Suportando a dor
Recostei-me na cadeira e refleti sobre o que Kreeft havia dito
até agora. Alguns de seus argumentos eram mais fortes que
outros, mas pelo menos não estava simplesmente oferecendo
explicações pré-fabricadas. As pistas pareciam estar levando
a algum lugar.
Decido perguntar-lhe a respeito de uma citação de Agosti-
nho, que diz: "Uma vez que Deus é o bem supremo, ele não
permitiria que qualquer mal existisse em suas obras, a menos
que sua onipotência e bondade fossem tais que pudessem tirar
18Jeremias 6.130.
"Tsaías 64.60.

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Uma vez que o mal e o sofrimento existem... p 59

o bem até mesmo do mal". Depois de citar essas palavras,


completei:
- Isso significa que o sofrimento e o mal contêm a predis-
posição para o bem?
- Sim, eu creio que todo sofrimento contém pelo menos a
oportunidade para o bem - foi a sua resposta, - mas nem
todos concretizam essa tendência. Nem todos aprendemos com
o sofrimento e dele nos beneficiamos; é aí que entra o livre-
arbítrio. Um prisioneiro de um campo de concentração vai
reagir de modo bastante diferente de outro, em virtude da es-
colha que cada um faz para reagir ao ambiente.
- Praticamente todo ser humano pode refletir sobre o
seu
...
passado e dizer: "Eu aprendi com aquela dificuldade .
A ocasião, não achei que aprenderia, mas sou uma pessoa
melhor por tê-la suportado agora e perseverado". Mesmo
pessoas sem fé religiosa estão cientes dessa dimensão do
sofrimento. E se nós podemos tirar o bem do mal mesmo
sem incluir Deus no cenário, você pode imaginar, com o
auxílio de Deus, quanto mais o mal pode contribuir para o
bem maior.
Contudo, incluir Deus no cenário levanta outra questão:
se ele ama as pessoas, como pode tolerar emocionalmente o
contínuo assédio de dor e sofrimento? Isso não deveria arrasá-
lo? Peguei o livro de Templeton e li a seguinte citação para
Kreeft:

Jesus disse: "Não se vendem cinco pardais por duas


moedinhas? Contudo, nenhum deles é esquecido por Deus
[... ] vocês valem muito mais do que muitos pardais". Mas
se Deus se entristece com a morte de um pardal, como po-
deria o seu espírito eterno suportar a enfermidade, sofri-
mento e morte dos incontáveis milhões de homens, mulhe-
res, crianças, animais, pássaros e outras criaturas sensíveis,
em todas as partes do mundo, em todos os séculos desde o
início dos tempos'r-"

2°Farewell to God, p. 201.


60 q EM DEFESA DA FÉ

- Eu acho que o sr. Templeton está usando um


antropomorfismo de Deus ao dizer "Eu não posso imaginar
como qualquer ser inteligente poderia suportar isso", Kreeft
disse. - Sim, ele está certo - nós não podemos imaginar.
Mas podemos crer. Deus de fato chora por cada pardal e se
entristece por cada mal e cada sofrimento. Assim, o sofri-
mento que Cristo suportou na cruz é literalmente
inimaginável. Não é simplesmente o que você e eu teríamos
experimentado em nossa agonia humana finita, física e men-
tal, mas todos os sofrimentos do mundo estavam lá.
- Voltemos à foto de Templeton mostrando a mãe faminta
na África - tudo de que ela necessitava era chuva. Onde está
Deus? Estava se envolvendo na agonia dela. Não apenas a
agonia física, mas a agonia moral. Onde está Deus? Por que ele
não envia a chuva? A resposta de Deus é a Encarnação. Ele
próprio esteve envolvido nessa agonia, ele próprio suportou
toda a dor deste mundo, e isto é inimaginável e devastador e
ainda mais impressionante que o poder divino de criar o mun-
do em primeiro lugar.
- Simplesmente imagine cada dor em particular na história
do mundo, tudo reunido em uma bola, comido por Deus, digeri-
do, plenamente experimentado, eternamente. No ato de criar o
mundo, Deus não somente disse que houvesse lindos coelhinhos,
flores e crepúsculos, mas também sangue, entranhas e moscas
zunindo em torno da cruz. Em certo sentido, Templeton está
correto. Deus está intimamente envolvido com o ato de criar um
mundo de sofrimento. Não foi ele quem o fez - nós o fizemos -
no entanto ele disse: "Que esse mundo exista".
- Se ele fizesse isso e depois simplesmente se sentasse e
dissesse: "Bem, afinal de contas, é culpa de vocês" - embora
tivesse plena justificativa em fazê-lo - eu não vejo como pode-
ríamos amá-lo. O fato de ter ultrapassado inacreditavelmente
a justiça, fê-lo tomar todo o sofrimento para si, e torna-o tão
fascinante que a resposta ao sofrimento é ... - Os olhos de
Kreeft moviam-se rapidamente pela sala enquanto buscava
as palavras certas. - A resposta - continuou, "é... como você

I .I. _LI ....


Uma vez que o mal e o sofrimento existem... P 61

poderia deixar de amar esse ser que andou "a segunda mi-
lha" * , que praticou mais do que pregou, que entrou em nosso
mundo, que sofreu as nossas dores, que se oferece a nós no
meio de nossas tristezas? O que mais ele poderia fazer?
Completei:
- Com efeito, então, a resposta à indagação de Templeton
acerca de como Deus poderia suportar todo aquele sofrimen-
to é - ele o suportou.
- Ele o suportou! - Kreeft .exclamou. - A resposta de
Deus ao sofrimento foi ao âmago do problema. Muitos cris-
tãos tentam tirar Deus da dificuldade no que tange ao sofri-
mento; Deus se colocou em dificuldade, por assim dizer - na
cruz. Portanto, a conclusão prática é que se queremos estar
com Deus, temos de estar com o sofrimento, não podemos
evitar a cruz, seja em pensamento seja de fato. Temos de ir
aonde ele está e a cruz é um dos lugares em que ele está. E
quando nos envia o nascer do sol, nós lhe agradecemos pelo
nascer do sol; quando ele nos envia o pôr-da-sol, morte, sofri-
mento e cruz, nós lhe agradecemos por isso.
Eu fiquei inquieto.
- E"' realmente possível agradecer a Deus pela dor que nos
sobrevém?
- Sim. No céu nós faremos exatamente isso. Nós diremos a
Deus: "Muito obrigado por esta pequena dor que não entendo
agora e por aquela pequena dor que não entendi à ocasião; agora
vejo que foram as coisas mais preciosas da minha vida."
- Mesmo que eu não me ache emocionalmente capaz de dizê-
lo neste instante, ainda que eu não possa honestamente dizer a
Deus em meio à dor "Deus, obrigado por esta dor", mas tenha de
rogar "Livra-me do mal", isso é perfeitamente correto e perfeita-
mente honesto - no entanto, creio que essa não é a última pala-
vra. As últimas palavras do pai-nosso não são "livra-nos do mal";
as últimas palavras são "teu é o poder e a glória".

*'~segunda milha" é referência às palavras de Jesus encontradas em


Mateus 5.41. (N. do E.)
62 q EM DEFESA DA FÉ

- Creio de verdade que qualquer cristão relativamente


maduro pode olhar para a sua vida e identificar algum mo-
mento de sofrimento que o colocou muito mais perto de Deus
do que jamais julgou possível. Antes de isso acontecer, teria
dito: "Eu realmente não vejo como isso pode produzir algum
bem", mas depois de sair do sofrimento ele diz: "Isso é incrí-
vel. Eu aprendi algo que nunca achei que poderia ter apren-
dido. Eu não achava que a minha vontade fraca e rebelde era
capaz de tal força, mas Deus, com a sua graça, deu-me força
por um momento". Não fosse o sofrimento, isso não teria
sido possível.
- A proximidade com Deus, a semelhança com Deus, a
conformidade com Deus, não somente a sensação de estar
perto de Deus, mas a proximidade ontológica e verdadeira com
Deus, a semelhança da alma com Deus, emerge do sofrimento
com notável eficiência.
- O senhor mencionou o céu - notei. - E a Bíblia de fato
fala sobre os nossos sofrimentos neste mundo como algo leve
e momentâneo em comparação com o que os seguidores de
Deus irão experimentar no céu. Como é que a questão do céu
se encaixa em toda essa história?
Os olhos de Kreeft se abriram.
- Não fosse por isso, dificilmente haveria uma história-
observou. - Retire do Novo Testamento todas as referências
ao céu e vai sobrar muito pouco. Teresa d'Ávila disse: "À luz
do céu, o pior sofrimento da terra, uma vida cheia das tortu-
ras mais atrozes sobre a terra, será vista como não mais séria
que uma noite em um hotel inconveniente". Essa é uma de-
claração desafiadora ou até mesmo chocante! Mas ela não fa-
10u como estando isolada em uma bolha em que tantos de nós
vivemos; falou do alto de uma vida cheia de sofrimento.
- O apóstolo Paulo utiliza outra palavra chocante em um
contexto parecido quando compara os prazeres terrenos com
o prazer de conhecer a Cristo. Afirmou que os privilégios da
cidadania romana, de ser um fariseu entre os fariseus, de ter
uma educação esmerada, de ser írrepreensível quanto a Lei
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... 9 63

- tudo isto, em comparação com Cristo, é "esterco". 21 Essa é


uma palavra bastante ousada!
- De igual modo, em comparação com conhecer a Deus
eternamente, comparado com a intimidade com Deus que as
Escrituras denominam casamento espiritual, nada mais tem
importância. Se o caminho para tanto é por meio da tortura,
,bem, a tortura não é nada comparada com isso. Sim, ela é
enorme em si mesma, mas comparada com isso, não é nada.
- Destarte, a resposta a Templeton é, sim, você está perfei-
tamente correto ao dizer que essa fotografia da mulher africa-
na é ofensiva. Essa falta de chuva, essa fome, certamente é
ofensiva em si mesma. E em certo sentido, a resposta é não
entender; uma resposta é olhar para o rosto de Deus e compa-
rar essas duas coisas.
- De um lado da balança, essa tortura ou todas as torturas
do mundo; do outro lado da balança, a face de Deus - o Deus
°
disponível a todos os que buscam no meio da sua dor. O bem
de Deus, a alegria de Deus, irá compensar infinitamente todos
os sofrimentos - e até mesmo as alegrias - deste mundo.

o poder da presença de Deus


Fiquei contente por Kreeft ter retomado o tema da mulher da
fotografia de Templeton. Eu não queria que a entrevista se
desviasse. Ela personificava o problema do sofrimento, uma
poderosa representante de um bilhão de pessoas carentes que
há no mundo.
- Se ela estivesse aqui exatamente agora - indaguei a
Kreeft - o que o senhor lhe diria?
Kreeft não hesitou. - Nada - retrucou curto e grosso.
Pisquei os olhos incrédulo. - Nada?
- Não, em princípio - respondeu. - Deixaria que ela se

21Filipenses 3.8: "Mais do que isso, considero tudo como perda,


comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Je-
sus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as considero
como esterco para poder ganhar Cristo".
64 q EM DEFESA DA FÉ

abrisse comigo. O fundador de uma organização para defici-


entes múltiplos diz que trabalha com os deficientes por uma
razão bastante egocêntrica: eles lhe ensinam algo muito mais
valioso do que ele jamais poderia ensinar-lhes. A saber, quem
ele é. Isto soa a sentimentalismo, mas é verdade.
- Um de meus quatro filhos tem uma deficiência modera-
da e tenho aprendido mais com ele que com os outros três. Eu
tenho aprendido que sou deficiente e que todos nós somos
deficientes, e ouvi-lo ajuda a que eu me entenda.
- Assim, a primeira coisa que teríamos de fazer com essa
mulher é ouvi-la. Prestar atenção nela. Ver a sua dor. Sentir a
sua dor. Nós vivemos em uma relativa bolha de conforto e
vemos a dor como observadores, como enigma filosófico ou
problema teológico. Essa é a maneira errada de olhar a dor. O
que se deve fazer com a dor é penetrar nela, conviver com ela,
e aí você aprende alguma coisa.
- De fato, é significativo que a maior parte das objeções à
existência de Deus devido ao problema do sofrimento venha
de observadores externos que se sentem bastante confortáveis,
ao passo que os que realmente sofrem com muita freqüência
tornam-se crentes mais fervorosos por causa do sofrimento.
Esse é um fenômeno que muitos escritores têm observado.
Depois de uma ampla pesquisa sobre o tema do sofrimento,
Philip Yancey escreveu: "À medida que visitava pessoas cuja
dor excedia em muito a minha própria [...] fiquei surpreso com
os seus efeitos. O sofrimento parecia ter tanta propensão para
reforçar a fé quanto para semear o agnostícísmo"." O teólogo
escocês [ames S. Stewart disse: "São das fileiras dos especta-
dores, as pessoas que estão do lado de fora olhando para a
tragédia, que vêm os céticos; não são os que de verdade estão
na arena e que conhecem o sofrimento pelo lado de dentro. Na
realidade, são os maiores sofredores do mundo que têm produ-
zido os exemplos mais cintilantes de uma fé invencível."23
22Deus sabe que sofremos, p. 255-6
23Warren W. WIERSBE, Classic sermons on suffering, Grand Rapids,
Michigan: Kregel Publications, 1984, p. 92.

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Uma vez que o mal e o sofrimento existem.i. p 65

- Por quê? - perguntei a Kreeft.


Sua resposta foi direta.
- Livre-arbítrio - disse. - Há uma história sobre dois rabi-
nos em um campo de concentração. Um deles havia perdido a fé
e dizia que Deus não existe; o outro havia mantido a fé e dizia:
"Deus vai nos salvar". Ambos estavam na fila para entrar nas
câmaras da morte. O crente olhou em volta e disse: "Deus vai
nos salvar", mas quando chegou a sua vez de entrar as suas últi-
mas palavras foram: 'Deus não existe'. Então o rabino incrédu-
lo, que havia constantemente questionado a fé do outro rabi-
no, entrou na câmara de gás com a oração Shetna' Ysra'el nos
lábios. Ele tornou-se crente. Livre-arbítrio, em ambas as dire-
ções. Por que algumas pessoas na África faminta ou nos cam-
pos de concentração se tornam crentes e algumas perdem a
fé? Esse é o mistério da imprevisibilidade humana.
- Vamos voltar à mulher - repliquei. - O senhor disse
que deveríamos ouvir e reagir a ela, o que parece uma boa
coisa. Mas deve haver algo mais.
- Sim - concordou. - Nós gostaríamos de ser como Je-
sus, orar por ela, consolá-la, acolhê-la, chorar com ela. O nos-
so amor - um reflexo do amor de Deus - deveria impelir-
nos a ajudá-la, bem como a outros que estão sofrendo.
Kreeft fez um gesto em direção ao corredor. - Na minha
porta existe um cartum de duas tartarugas. Uma delas diz:
"Às vezes eu gostaria de perguntar por que ele permite pobre-
za, fome e injustiça quando poderia fazer algo a respeito". A
outra tartaruga diz: "Eu tenho medo de que Deus me faça a
mesma pergunta". Os que têm o coração de Jesus em relação
aos sofredores precisam viver concretamente a sua fé, mino-
rando o sofrimento onde podem, fazendo a diferença,
encarnando o amor de Deus de maneira prática.
- Este cartum me lembra do jeito como Deus gosta de
devolver as perguntas - comentei.
- Sim, ele faz isso constantemente. Isso aconteceu com
Já. Ió estava imaginando quem era Deus, porque parecia que
Deus era um sádico cósmico. No final do livro de Já - o
66 q EM DEFESA DA FÉ

clássico de todos os tempos sobre o problema do sofrimen-


to- Deus finalmente aparece com a resposta - e a resposta é
uma pergunta. Ele diz a Ió: "Quem é você? Você é Deus? Você
escreveu esse roteiro? Você estava lá quando eu lancei os fun-
damentos da terra?" E Já percebe que a resposta é não e fica
satisfeito. Por quê? Porque ele vê Deus! Deus não lhe escreve
um livro. Ele poderia ter escrito o melhor de todos os livros
sobre o problema do mal. Em vez disso, mostra-se a Já.
- E isso o satisfez.
- Sim! Tem de satisfazer - isso é o que irá satisfazer-nos
para sempre no céu. Eu creio que [ó teve um antegozo do céu no
final do seu livro, porque ele se encontra com Deus. Se Deus lhe
desse apenas palavras, significaria que Já poderia dialogar e fa-
zer outra pergunta e Deus daria uma boa resposta e Já faria outra
pergunta no dia seguinte e no outro, porque Já era um filósofo
muito exigente. Essa toada continuaria para sempre e jamais ter-
minaria. O que podia pôr-lhe fim? A presença de Deus! Deus
não deixou Jó sofrer porque lhe faltava amor, mas porque ele
realmente amou, a fim de levar Já ao ponto de se encontrar
com Deus face a face, que é a suprema felicidade para toda a
humanidade. O sofrimento de Já cavou um grande vazio a fim
de que Deus e a alegria pudessem preenchê-lo.
- Quando olhamos para o relacionamento humano, ve-
mos que os amantes não querem explicações, mas presença.
E Deus é essencialmente presença - a doutrina da Trindade
diz que Deus reúne em si três pessoas que estão unidas umas
às outras em perfeito conhecimento e amor. Por isso Deus é
alegria infinita. E à medida que participamos dessa presença,
nós também temos alegria infinita. É isso o que Já recebe -
ainda no seu monte de esterco, ainda antes de receber de vol-
ta quaisquer dos seus bens terrenos - quando contempla
Deus face a face.
- Como eu disse, isso faz sentido até mesmo entre os seres
humanos. Digamos quem Romeu e Julieta têm um amor muito
mais profundo e mais maduro que na peça de Shakespeare.
Digamos que é Julieta que Romeu mais deseja. E digamos que
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... 9 67

ele perdeu todos os seus amigos e posses, está sangrando e


pensa que Julieta está morta. Então ele vê Julieta levantar-se e
dizer: "Romeu, onde você está? Eu não estou morta; você está?"
Estaria Romeu plenamente feliz? Sim. Completamente feliz?
Sim. Por acaso se importa de estar sangrando, esfarrapado e
pobre? De modo nenhum! Ele preferiria muito mais estar apai-
xonado no sul do Bronx do que divorciado em Honolulu.

Toda lágrima é uma lágrima dele


Obviamente estávamos nos encaminhando para o ponto alto
da nossa discussão. As pistas que Kreeft havia mencionado
no início da nossa entrevista estavam convergindo e eu podia
sentir uma paixão e convicção crescentes na sua voz. Queria
sentir mais do seu coração - e não ficaria desapontado.
- Desse modo, a resposta ao sofrimento - disse ao tentar
resumir até onde havíamos chegado, - simplesmente não é
uma resposta.
- Correto - acentuou, inclinando-se para a frente enquan-
to defendia a sua causa. - É Aquele que responde. É o pró-
prio Jesus. Não é um punhado de palavras; é a Palavra. Não é
um argumento filosófico bem costurado; é uma pessoa. A pes-
soa. A resposta ao sofrimento não pode ser simplesmente uma
idéia abstrata, porque essa não é uma questão abstrata; é uma
questão pessoal. Ela requer uma resposta pessoal. A resposta
deve ser alguém; não apenas algo, porque a questão envolve
alguém: "Deus, onde está você?".
Essa pergunta quase ecoou no seu pequeno escritório. Ela
exigia uma resposta. Para Kreeft, existe uma - uma muito
real. Uma Resposta viva.
- Jesus está lá, sentado ao nosso lado nos lugares mais
humildes - exclamou. - Estamos partidos? Ele foi partido,
como pão, por nós. Somos desprezados? Ele foi desprezado e
rejeitado pelos homens. Bradamos que não agüentamos mais?
Ele foi um homem de dores e experimentado no sofrimento.
As pessoas nos traem? Ele mesmo foi vendido pelo traidor.
68 q EM DEFESA DA FÉ

Nossos relacionamentos mais caros estão partidos? Ele tam-


bém amou e foi rejeitado. As pessoas se afastam de nós? Es-
conderam o rosto dele como o de um leproso. Desceria a to-
dos os nossos infernos? Sim, ele o fez. Das profundezas de um
campo de morte nazista, Corrie ten Boom escreveu: "Não im-
porta quão profundas sejam as nossas trevas, ele é ainda mais
profundo". Ele não somente ressurgiu dentre os mortos, mas
mudou o significado da morte e, portanto, de todas as peque-
nas mortes - os sofrimentos que antecipam a morte e fazem
parte dela. Ele foi morto a gás em Auschwitz. Escarnecido em
Soweto. Injuriado na Irlanda do Norte. Escravizado no Sudão.
É aquele que gostamos de odiar e que escolheu nos devolver
amor. Toda lágrima que derramamos se torna uma lágrima
dele. Ele pode não enxugá-las já, mas o fará.
Fez uma pausa, o tom confiante mudando para um tom
cauteloso. - Por fim, Deus nos tem dado somente explica-
ções parciais - disse vacilante e lentamente. - Talvez tenha
sido assim porque percebeu que uma explicação melhor não
teria sido boa para nós. Não sei por quê. Como filósofo, obvi-
amente sou curioso. Humanamente falando, eu gostaria que
ele tivesse nos dado mais informações.
Dito isto, fixou o seu olhar no meu.
- Sabia que Jesus era mais que uma explicação - disse
com firmeza. "Ele é o que realmente necessitamos. Se o seu
amigo está doente e à morte, a coisa mais importante que ele
quer não é uma explicação; quer que você se sente ao seu
lado. Mais que qualquer outra coisa, ele está apavorado de
ficar só. Deus não nos deixou sós.
Kreeft inclinou-se para trás e deixou-se relaxar. Havia so-
mente mais uma coisa que queria que eu soubesse.
- E por isso - concluiu - eu o amo.

Extrair o bem do mal


Cerca de uma hora mais tarde, havia silêncio no carro en-
quanto ele serpenteava pelas ruas de Boston, molhadas e

J -lo ,. I .• ~ . . I... ,L ~ l
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... P 69

escorregadias, no caminho de volta para o aeroporto. Meu


amigo Marc Harrienger, um antigo morador de Boston, havia
gentilmente se oferecido para me levar ao escritório de Kreeft
e me trazer de volta. Olhando distraidamente pela janela, re-
capitulava a entrevista em minha mente. Acima de tudo, es-
tava imaginando como aquela mulher africana teria respon-
dido às palavras sinceras do filósofo.
Marc tinha assistido à entrevista toda, ouvindo atenta-
mente sentado em uma cadeira de madeira encostada à pare-
de. Para ele, não era um assunto de especulação gratuita.
Marc rompeu o silêncio.
- E" verdade - exclamou.
- O que é verdade? - perguntei.
- O que Kreeft disse - é verdade. Eu sei. Eu experimentei.
Anos antes, Marc estava tirando a neve da entrada da ga-
ragem quando sua esposa disse que iria mover o carro e pe-
diu-lhe que vigiasse a filhinha. Quando o carro deu marcha à
ré, de repente viram-se jogados no maior pesadelo que os pais
podem imaginar: a pequerrucha havia sido esmagada por uma
roda.
Como a mulher africana, Mare já soube o que é segurar
uma criança agonizante nos braços. Embora não tenha podi-
do falar com aquela mãe aflita, com ele pude falar.
O desespero inicial de Marc foi tão profundo que teve de pe-
dir a Deus para ajudá-lo a respirar, ajudá-lo a comer, ajudá-lo a
funcionar no nível mais elementar. Estava paralisado pela dor
emocional. Contudo, cada vez mais sentia a presença de Deus,
a sua graça, o seu calor, o seu consolo, e muito lentamente, ao
longo do tempo, as suas feridas começaram a cicatrizar.
Tendo experimentado a realidade de Deus no momento de
maior necessidade, Marc emergiria dessa provação como uma
outra pessoa, ao abandonar a carreira nos negócios para fre-
qüentar o seminário. Pelo sofrimento - embora nunca o ti-
vesse escolhido, apesar de ter sido horrivelmente doloroso e
conquanto tenha abalado profundamente a sua vida - Marc
foi transformado em alguém que dedicaria o restante da sua
70 q EM DEFESA DA FÉ

vida para levar a compaixão de Deus a outros que estão sós


em seu desespero.
No púlpito pela primeira vez, Marc pôde apelar às própri-
as experiências com Deus nas profundezas da dor. As pessoas
ficaram cativadas porque a sua perda havia lhe dado percep-
ção, empatia e credibilidade especiais. No final, dezenas de-
las responderam dizendo que também queriam conhecer esse
Jesus, esse Deus de lágrimas. Outros corações estavam sendo
curados pelo fato de Marc ter sido atingido. Do desespero de
um casal emerge nova esperança para muitos.
- Às vezes os céticos escarnecem da Bíblia dizendo que
Deus pode fazer com que o bem resulte da nossa dor se cor-
rermos para ele em vez de nos afastarmos dele - disse Marc.
- Mas tenho visto isso acontecer na minha vida. Tenho expe-
rimentado a bondade de Deus em meio a profunda dor e ne-
nhum cético pode se contrapôr a isto. O Deus que o cético
nega é o mesmo Deus que segurou as nossas mãos nos lugares
profundos e escuros, que fortaleceu o nosso casamento, que
aprofundou a nossa fé, que aumentou a nossa dependência
dele, que nos deu outros dois filhos e que encheu nossa vida
com um novo propósito e significado, o que nos permite aju-
dar outras pessoas.
Perguntei delicadamente:
- Para começo de conversa, você gostaria de ter tido mais
respostas sobre a razão pela qual o sofrimento acontece?
-Nós vivemos em um mundo dilacerado; Jesus foi honesto
o bastante para nos dizer que teríamos provas e tribulações."
Claro, gostaria de entender melhor por quê. Mas a conclusão
de Kreeft estava certa - a resposta final é a presença de Jesus.
Eu sei que isso pode parecer tolo. Mas espere um pouco -
quando o seu mundo é abalado, você não quer filosofia ou teo-
logia, prefere a realidade de Cristo. Ele foi a resposta para mim.
Ele foi a própria resposta de que necessitávamos.
24Jesus disse em João 16.33: "Eu lhes disse essas coisas para que em
mim vocês tenham paz. Neste mundo vocês terão aflições; contudo,
tenham ânimo! Eu venci o mundo".
Uma vez que o mal e o sofrimento existem... p 71

A existência da dor e do sofrimento é uma poderosa acu-


sação contra Deus. A questão, todavia, é se as evidências
levam à condenação dele. Concluí que a hábil análise e as
analogias de Kreeft contribuíram bastante para solapar esse
formidável obstáculo à fé, mas permaneceram muitas outras
objeções. Esse foi só o início de uma longa jornada de desco-
berta e decidi suspender o meu veredicto final até que todos
os obstáculos à fé fossem enfrentados e todos os fatos esti-
vessem presentes.
Enquanto isso, o destacado pastor inglês [ohn Stott, que re-
conheceu ser o sofrimento"o maior desafio isolado à fé cristã" ,
chegou à sua conclusão:

Eu mesmo jamais poderia crer em Deus, se não fosse pela


cruz [... ] No mundo real da dor, como alguém poderia
adorar um Deus que fosse imune a ela? Já entrei em
muitos templos budistas em diferentes países da Ásia e
parei respeitosamente diante da estátua de Buda, as per-
nas e os braços cruzados, os olhos fechados, o fantasma
de um sorriso a brincar em torno dos lábios, um olhar
distante, isolado das agonias do mundo. Mas cada vez,
depois de algum tempo, tive de me virar. E, na imagina-
ção, voltei-me para aquela figura solitária, retorcida e
torturada na cruz, os cravos atravessando as mãos e os
pés, as costas laceradas, os membros deslocados, a fron-
te sangrando por causa dos espinhos, a boca intoleravel-
mente sedenta, lançada nas trevas do abandono de Deus.
Esse é o Deus! Para mim Ele deixou de lado a sua imuni-
dade à dor. Ele entrou em nosso mundo de carne e san-
gue, lágrimas e morte. Ele sofreu por nós. Nossos sofri-
mentos tornam-se mais manejáveis à luz dos seus. Ainda
há um ponto de interrogação contra o sofrimento huma-
no, mas em cima dele podemos estampar outra marca, a
cruz, que simboliza o sofrimento divino. "A cruz de Cris-
to [... ] é a única autojustificação de Deus em um mundo
como o nosso". 25

25A cruz de Cristo, p. 32.


Uma vez que omal eoso~mento existem... 973
Outras fontes de consulta
Mais recursos sobre esse tema

• KREEFr, Peter. Making sense oui of suffenng. Ann Arbor,


Michigan: Servant, 1986.
• PALAU, Luis Where is Cod when bad things happen?
New York: Doubleday, 1999.
• TADA, Joni Eareckson eESTES: Steven When Cod weeps ,
Grand Rapids Michigan: Zondervan, 1997.
l

• YANCEY Philip, Deus sabe que sofremos. Sâo Paulo: Vida,


1985.
Segunda objeção
Uma vez Cl1J.8 os milagres contradizem a
ciência. eles não podem ser verdadeiros

o nascimento virginal, a ressurreição de Cristo, a ressur-


reição de Lázaro, até mesmo os milagres do Antigo Testa-
mento, todos eles são livremente utilizados para propa-
ganda religiosa e são muito eficientes com uma audiên-
cia de pessoas não-sofisticadas e crianças.
Richard Dawkins, ateu 1

Não se trata somente de um rumor instigante de que Deus


agiu na história, mas um fato digno da nossa convicção
intelectual. Os milagres do cristianismo não são um em-
baraço para a cosmovisão cristã. Antes, são um testemu-
nho da compaixão de Deus por seres humanos enredados
pelo pecado e pelas circunstâncias.
Gary Habermas, cristão/

"r'lenho visto réus culpados se contorcerem e suarem no


banco das testemunhas ao sentirem o laço da justiça aper-
tar lentamente em torno do seu pescoço. Eles tentam safar-se
da difícil situação por meio da mentira. Forjam histórias im-
prováveis no fútil esforço de negar as evidências incrimina-
doras. Fabricam álibis claramente falsos; lançam a culpa em
pessoas inocentes; tentam desacreditar a polícia e os promo-
tores; reescrevem a história; negam, confundem e tentam en-
ganar o juiz e os jurados.

"Snake Oil and Holy Water. Disponível em: www.forbes.com/asap/99/


1004/235.htm. Acesso em 19 jun. 1999.
2In defense of miracles, Downers Grove, Illinois: InterVarsity Press,
1997, p. 280.
76 q EM DEFESA DA FÉ

Existe, porém, uma tática que nunca vi: o réu insistir no


motivo das suas impressões digitais aparecerem na arma do
crime é - de algum modo, por alguma razão inexplicável,
em decorrência de um ato de Deus, um acontecimento miste-
rioso, único e sobrenatural que fez as suas impressões digitais
aparecerem repentinamente em algo que nunca havia tocado.
Certa vez um réu tentou a "defesa do pãozinho recheado",
afirmando dubiamente que o seu elevado nível de açúcar foi de
algum modo responsável pelo comportamento criminoso, mas
nem mesmo o mais audacioso réu tentaria a "defesa do milagre".
Por quê? Porque ninguém acreditaria nele! Afinal, nós so-
mos pessoas modernas e científicas que vivem no terceiro
milênio. Nós não aceitamos superstições, bruxarias ou inter-
venções diretas vindas de alguma fonte divina invisível. Rei-
vindicar um milagre seria algo tão abertamente estúpido que
nem o réu mais desesperado apelaria para essa estratégia.
Certa vez assisti aos mágicos-comediantes Penn e Teller es-
colher na platéia um menino de dez anos chamado Isaías e
mostrar-lhe uma longa tira de poliéster. A seguir deram um nó
na fita e cortaram-no ao meio. Sacudiram o tecido ostensiva-
mente e - tchã, tchã, tchã, tchã! - ele estava inteiro outra vez.
- O que você acha? - Penn perguntou ao pequeno Isaías.
- Isso foi um milagre ou um truque de mágica?
Isaías não hesitou.
- Um truque de mágica - respondeu confiante.
Parece que uma simples criança é inteligente o suficiente para
saber que quando não conseguimos entender bem o que poderia
ter causado um acontecimento misterioso, ainda assim existe
sem dúvida uma explicação racional à parte do miraculoso.
Soube pela conversa com o agnóstico Charles Templeton
que ele havia abandonado a sua crença em milagres há mui-
tos anos. "Nossos antepassados buscavam interpretar os as-
pectos imponderáveis da vida dentro dos limites da sua expe-
riência, geralmente atribuindo o inexplicável à intervenção
de um ou mais deuses, semideuses e espíritos malignos", es-
creveu. "Mas seguramente [...] já é hora de nos desfazermos

J I. cl. ~ .... I ... j..;.l I < I


Uma vez que os milagres contradizem a ciência... 9 77

de especulações e superstições primitivas e encararmos a vida


em termos racionais."3
Existem cientistas que concordam, prevendo que a marcha
do conhecimento irá por fim esmagar a crença em eventos so-
brenaturais. Em 1937, o físico alemão Max Planck disse: "A fé
nos milagres deve ceder terreno, pouco a pouco, diante do avan-
ço firme e constante das forças da ciência, e indubitavelmente a
sua derrota total é urna simples questão de tempo."4
O ateu Richard Dawkins, professor de compreensão geral
da ciência na Universidade de Oxford e autor de The selfish
gene [O gene egoísta], crê que esse momento está chegando
rapidamente. "Nós estamos trabalhando em um [... ] entendi-
mento completo do universo e de tudo o que há nele", afir-
mou em entrevista pelo telefone."
Isso significa que, como aconteceu com a faixa magicamente
restaurada de Penn e Teller, não haveria necessidade de ape-
lar ao miraculoso para explicar o que anteriormente estivera
envolto em mistério.
Mas pode uma pessoa ser cientificamente sofisticada e ainda
assim crer na possibilidade de milagres? "A minha fé pode ser
resumida neste grande paradoxo: eu creio na ciência e eu creio
em Deus", disse o físico nuclear Hugh Siefken. "Eu pretendo
continuar a dar testemunho de ambos.?"
Ele e muitos outros cientistas não vêem qualquer conflito inato
entre a profissão e a conclusão de que um Deus que realiza mila-
gres é responsável pela criação e manutenção do universo.
Essa é uma forma de negação profissional? Pode uma pessoa
rejeitar duendes e fadas como fantasiosos e ao mesmo tempo

3Farewell to God, p. 21.


"Citado em Searching issues de Nick Gruble (Eastbourne, East Sussex,
Inglaterra: Kingsway Publícatíons. 1994), p. 9.
"Lnterviews, de Nicky Gruble. Disponível em: www.pbs.org/
faithandreason. Acesso em 21 novo 1999.
6Dale e Sandy LARSEN, Sete mitos sobre o cristianismo, São Paulo: Vida,
2001, p. 86.
78 q EM DEFESA DA FÉ

aceitar o maná do céu, o nascimento virginal e a Ressurreição


como eventos fidedignos da história? Se os milagres são vio-
lações diretas de leis naturais, como pode uma pessoa racio-
nal crer que possam ocorrer?
Sabia que William Lane Craig era uma pessoa racional. E
estava ciente que ele tem usado suas consideráveis habilidades
intelectuais para defender a idéia de que Deus tem intervindo
- e intervém - no mundo por intermédio de atos milagrosos.
Telefonei e lhe perguntei se estaria disposto a deixar-me
questioná-lo sobre esse assunto.
- Claro - afirmou. - Venha para cá.
Anotei uma longa lista de desafios e fiz a reserva de um
vôo para Atlanta. No avião, refleti que as pessoas primitivas
provavelmente teriam considerado viagens a jato como um
milagre. De que outra maneira cinqüenta toneladas de metal
poderiam ser mantidas no ar em uma aparente negação da lei
da gravidade? Certamente a mão invisível de Deus devia estar
sustentando o avião.
As pessoas de hoje sabem mais. Entendem de aerodinâmi-
ca e propulsão a jato. Mas o nosso conhecimento da ciência e
da tecnologia teria realmente tornado obsoleta a crença em
milagres? Ou Craig seria capaz de oferecer evidências convin-
centes de que uma pessoa pode ser sensata e perspicaz e ao
mesmo tempo manter a validade do milagroso?

Segunda entrevista: Willian Lane Craig, PH.D.

A minha reação inicial quando vi Bill Craig foi de incredu li-


dade. A suabarba, que por 23 anos lhe havia dado um ar sério
e erudito, havia desaparecido. Meu rosto deve ter expressado
o choque que senti.
- Completei 50 anos - explicou, - e comemorei o even-
to raspando a barba.
Craig me fez descer um lance de escadas, levando-me para
o seu escritório, uma sala bem organizada dominada por uma
escrivaninha de madeira escura e estantes do chão ao teto com

J • .1 I .... ~ -. ••• ;.J I, I


Uma vez que os milagres contradizem a ciência... 9 79

fileiras cuidadosamente dispostas de livros e periódicos aca-


dêmicos. Instalei-me em uma poltrona confortável enquanto
Craig desabava atrás da escrivaninha numa poltrona de cou-
ro que reagiu com forte guincho.
Craig escreveu amplamente sobre milagres, especialmente
a ressurreição de Jesus. Os seus livros incluem Reasonable
faith [Fé racional], Knowing the truth about the resurrection
[Conhecendo a verdade sobre a ressurreição], The historical
argument for the resurrection of Jesus [O argumento histórico
a favor da ressurreição de Jesus] e Assessing the New Testament
evidence for the historicity of the resurrection of Jesus [Avali-
ando as evidências do Novo Testamento acerca da historicidade
da ressurreição de Jesus] e contribuiu para In defence of
miracles [Em defesa dos milagres], Does Cod exist? [Deus exis-
te?], Jesus under fire [Jesus sob fogo] e The intellectuals speak
out about Cod [Os intelectuais falam de Deus].
É doutor em filosofia da Universidade de Birmingham, na
Inglaterra, e em teologia da Universidade de Munique, e atual-
mente é professor-pesquisador de filosofia na Escola de Teologia
Talbot. É membro de nove sociedades de profissionais, entre as
quais a Academia Americana de Religião, a Sociedade de Litera-
tura Bíblica e a Associação Filosófica Americana, e escreve arti-
gos para New Testament Studies, Jo um al for the Study ofthe New
Testament, Journal of lhe American Scientific Afftliation, Gospel
Perspectives, Philosophy e outras publicações acadêmicas.
Sem barba e usando jeans, Craig parecia dez anos mais
moço, penetrantes olhos azuis, cabelo castanho penteado in-
formalmente para o lado e um riso fácil e entusiasmado. Co-
çou o queixo - talvez inconscientemente, sentindo falta da
barba - enquanto ouvia com atenção a minha primeira per-
gunta, que reconhecidamente tinha um tom de desafio.
- Muito bem, dr. Craig, o senhor é um indivíduo inteli-
gente e culto - comecei. - Diga-me: como uma pessoa mo-
derna e racional pode ainda crer em bebês que nascem de
virgens, pessoas que caminham sobre a água e cadáveres que
saem vivos de túmulos?
8O q EM DEFESA DA FÉ

Craig sorriu.
- É engraçado que você pergunte especificamente sobre o
nascimento virginal- ressaltou, - poronc essa foi uma gran-
de objeção para que eu me tornasse cristão. Eu achava que era
totalmente absurdo.
- Verdade? - espantei-me. - O que aconteceu?
- Quando a mensagem cristã me foi comunicada pela pri-
meira vez na minha adolescência, eu já havia estudado biolo-
gia. Sabia que, para o nascimento virginal ser verdadeiro, um
cromossomo y tinha de ser criado do nada no óvulo de Maria,
porque Maria não possuía o material genético para produzir
um filho. Para mim, isso era totalmente fantástico. Simples-
mente não tinha sentido.
- O senhor não está sozinho - observei. - Outros céticos
também têm problemas com isso. Como o senhor prosseguiu?
Craig refletiu por um momento.
- Bem, coloquei essa questão de lado e me tornei um cris-
tão de qualquer maneira, muito embora não cresse realmente
no nascimento virginal. Depois de me tornar cristão, ocorreu-
me que se realmente creio em um Deus que criou o universo,
para ele criar um cromossomo y seria brincadeira!
Disse a Craig que achei interessante o fato de ele ter se
tornado cristão apesar das dúvidas sobre uma doutrina tão
significativa como o nascimento virginal.
- Acho que a autenticidade da pessoa de Jesus e a verda-
de da sua mensagem foram tão poderosas que elas simples-
mente suplantaram quaisquer dúvidas residuais que eu ti-
vesse - respondeu.
Pressionei, perguntando:
- O senhor não estava se jogando de cabeça em algo que
não aceitava totalmente?
- Não, eu acho que esse pode ter sido um bom procedi-
mento - retorquiu. Você não precisa ter respostas para todas
as suas perguntas para chegar à fé. Você simplesmente tem de
dizer: "O peso da evidência parece mostrar que isso é verda-
deiro; assim, embora eu não tenha respostas para todas as

~ i. ,I,J ..... I _ U . 1.,1 j • I


Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: p s1

minhas perguntas, vou acreditar e esperar pelas respostas


mais tarde". Foi o que aconteceu comigo.
- Uma pessoa tem de suspender o seu juízo crítico a fim
de crer em algo tão improvável como os milagres?
Craig aprumou-se na poltrona e levantou o dedo indicador
para dar ênfase ao argumento.
- Somente se você crê que Deus não existe! - acentuou.
- Aí eu concordaria - o miraculoso seria absurdo. Mas se
existe um Criador que concebeu e trouxe à existência o uni-
verso, que sustenta a sua continuidade, que é responsável pelas
próprias leis naturais que governam o mundo físico, então
certamente é racional acreditar que milagres são possíveis.

Milagres versus ciência


Estávamos já começando a entrevista, mas ainda não tínha-
mos parado para definir os termos. Antes de prosseguir, esta-
va convencido que era importante definirmos o que significa
"milagre".
- Utilizamos essa palavra de modo bastante aleatório -
disse. Lembrando de fatos ocorridos no dia, acrescentei:
- Por exemplo, eu poderia dizer: - Foi um milagre eu ter
feito um vôo até Atlanta" ou "E" um milagre eu ter achado a
sua casa". Seria tratar esta palavra de maneira muita vaga?
- Sim, acho incorreto falar dessas coisas como milagres
- concordou. São evidentemente acontecimentos naturais
com conseqüências naturais.
- Então, como o senhor define o termo?
Craig expôs sua definição de maneira precisa.
- No sentido apropriado - afirmou, - milagre é o acon-
tecimento que não pode ser produzido pelas causas naturais
que atuam no tempo e lugar em que o evento ocorre.
Enquanto ele a emitia, repeti silenciosamente a defini-
ção a fim de fixá-la na minha mente. Ponderei por alguns
instantes antes de partir para a pergunta seguinte, que eu
julgava lógica.
s2 q EM DEFESA DA FÉ

- Não haveria aí uma contradição entre ciência e mila-


gre? - perguntei. - O filósofo ateu Michael Ruse aponta:
"Os criacionistas crêem que o mundo começou
miraculosamente. Mas os milagres estão fora do âmbito da
ciência, que, por definição, trata do natural, do recorrente,
daquilo que é governado pela lei". 7
- Observe que Ruse não diz que os milagres são contradi-
tórios com a ciência - notou Craig. - Ele diz que os milagres
estão [ora do âmbito da ciência, e isso é bem distinto. Acho
que o cristão que crê em milagre concordaria com ele nesse
aspecto. Ele poderia dizer que os milagres, propriamente fa-
lando, estão fora âmbito da ciência natural - mas isso não
significa dizer que eles contradizem a ciência.
Tentei digerir a distinção.
- O senhor pode pensar em outro exemplo parecido?-
perguntei.
Craig pensou por instantes antes de responder.
- Bem, a ética, por exemplo, está fora do âmbito da ci-
ência - respondeu. - A ciência não faz julgamentos éti-
cos. Portanto, não objetaria necessariamente a afirmação
de Ruse. Ele está dizendo que o objetivo da ciência é bus-
car explicações naturais, portanto os milagres estão fora do
reino científico.
Antes que eu pudesse fazer outra pergunta, Craig continuou.
- Devo acrescentar, no entanto, que você pode elaborar urna
forma teísta de ciência. Por exemplo, existe toda uma corrente
de pessoas como o matemático William Dembski e o bioquímica
Michael Behe que inferem, por meios baseados em princípios,
que existe um Planejador Inteligente do universo e do mundo
biológico." Eles não estão sendo arbitrários - em uma pers-
pectiva racional e científica estão concluindo, a partir das
"Darwinistn defended, Londres: Addison-Wesley, 1982, p. 322.
av. The design inference, de William Dembski (Cambridge: Cambridge
University Press, 1998); Darwin's black box, de Michael Behe (New
Yark: The Free Press, 1996); e Intelligent design, de William Dernbski
& Michael Behe (Downers Grave, Illinois: InterVarsity Press, 1999).
Uma vez que os milagres contradizem a ciência... P s3

evidências, que deve haver um Criador inteligente.


- O senhor está discordando do grande cético David
Hume, que definiu os milagres como violações das leis da
natureza.
- Sim, com certeza. Esse é um entendimento inadequado
do milagre - disse. - Veja, as leis naturais têm condições
implícitas ceteris paribus - expressão latina que significa "to-
das as demais coisas sendo iguais". Em outras palavras, as
leis naturais pressupõem que nenhum outro fator natural ou
sobrenatural está interferindo na operação que a lei descreve.
- O senhor pode me fornecer um exemplo?
Os olhos de Craig varreram a sala em busca de uma ilus-
tração. Finalmente encontrou uma no próprio corpo.
- Bem, é uma lei da natureza que o oxigênio e o potássio
entrem em combustão quando combinados - explicou. - Mas
eu tenho oxigênio e potássio no meu corpo e, no entanto, não
estou entrando em combustão. Isso significa que se trata de um
milagre e que estaria violando as leis da natureza? Não, porque
a lei simplesmente declara o que acontece em condições ideais,
pressupondo que nenhum outro fator interfira. Neste caso, po-
rém, existem outros fatores que interferem na combustão, e des-
se modo ela não ocorre. Não se trata de uma violação da lei.
- De igual modo, se existe um agente sobrenatural que
está atuando no mundo natural, então as condições ideais des-
critas pela lei não mais estão atuando. A lei não está sendo
violada porque ela tem uma regra implícita de que nada possa
estar afetando as condições ideais.
Disse a Craig que a sua explicação me fez lembrar uma con-
versa que tive vários anos antes com J. P Moreland, o conheci-
do filósofo que escreveu Christianity and the nature of science
[O cristianismo e a natureza da ciência]. Ele usou uma ilus-
tração da lei da gravidade, que diz que se você soltar um objeto
ele cairá na terra. Porém, se uma maçã cair de uma árvore e
você estender a mão para apanhá-la antes que ela atinja o chão,
você não está violando ou negando a lei da gravidade; está sim-
plesmente intervindo.
84 q EM DEFESA DA FÉ

- Sim, é isso o que quero dizer com as condições ceteris


paribus - disse Craig. - A lei da gravidade declara o que irá
acontecer sob condições ideais, sem a intervenção de fatores
naturais ou sobrenaturais. Apanhar a maçã não subverte a lei.-
da gravidade nem requer a formulação de uma nova lei. E
simplesmente a intervenção de uma pessoa com livre-arbítrio
que sobrepuja as causas naturais que atuam naquela circuns-
tância particular. E é isso, essencialmente, o que Deus realiza
quando faz ocorrer um milagre.
Aquilo fazia sentido para mim. Eu sabia, no entanto, que
alguns cientistas ainda assim desprezariam o milagre como
mera superstição. Decidi prosseguir com essa linha de
questionamento.

Verdadeiros atos de Deus


Perguntei a Craig o que ele achava da predição do físico Max
Plank de que a fé no milagre cederia inevitavelmente terreno
ao avanço da ciência, e da observação do biólogo Richard
Dawkin de que os cientistas algum dia entenderiam o funcio-
namento do universo e assim eliminariam a necessidade de
explicações milagrosas. A reação de Craig me surpreendeu.
- Acho que eles estão certos - exclamou.
Levantei os olhos das minhas anotações, pensando que tal-
vez ele tivesse entendido mal a minha pergunta. - Como é
mesmo? - insisti.
- Realmente - reiterou, - acho que eles estão corretos
- na medida em que algumas pessoas supersticiosas usam o
milagre como desculpa para a ignorância e jogam a bola para
Deus toda vez que não conseguem explicar alguma coisa. Penso
que é bom que a ciência afaste esse tipo de pensamento
simplista.
- Contudo esses não são os milagres dos quais estou falan-
do. Estou me referindo a eventos por meio dos quais, em prin-
cípio, se pode inferir legitimamente que um agente sobrenatu-
ral interveio no processo. Esses milagres - verdadeiros atos
Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: P 85

de Deus - não serão afastados pelo avanço da ciência, por-


que não estão baseados no apelo à ignorância. São comprova-
dos pelo peso das evidências científicas e históricas.
- Michael Behe comporta-se assim no seu livro Dorwin's
black box [A caixa preta de Darwin]. Behe explora a "com-
plexidade irredutível" na natureza - organismos que não po-
deriam ter evoluído passo a passo através de um processo
darwinista gradual de seleção natural e mutação genética. Ora,
ele não está dizendo que isto é simplesmente inexpli-cável
cientificamente. Ele está apontando para uma inferência, ba-
seada em princípios, a um Planejador Inteligente, com base
no que as evidências demonstram. Isso é racional. As suas
conclusões são baseadas em sólida análise científica.
A argumentação de Craig sobre as evidências do milagre
levou-me a perguntar sobre outro argumento apresentado por
Hume, o cético escocês do século XVIII e o mais famoso questio-
nadar do milagre em toda a história.
- Hume disse que as evidências a favor da uniformidade
da natureza são tão conclusivas que quaisquer evidências fa-
voráveis ao milagre jamais seriam capazes de suplantá-las -
observei. - Por exemplo, considere a Ressurreição. Nós te-
mos milhares de anos de evidências uniformes de que pesso-
as mortas simplesmente não retornam dentre os mortos. Por
conseguinte, Hume diz que nenhuma quantidade de evidên-
cia seria capaz de suplantar essa tremenda pressuposição.
Craig abanou a cabeça.
- Não há contradição entre acreditar que os homens em
geral permanecem nos túmulos e que Jesus de Nazaré ressur-
giu dentre os mortos. De fato, os cristãos acreditam em am-
bos. O oposto da afirmação de que Jesus ressuscitou dentre os
mortos não é que todos os outros homens permaneceram nos
túmulos; é que Jesus de Nazaré permaneceu no seu túmulo.
- Com o fim de argumentar contra as evidências a fa-
vor da Ressurreição, é preciso apresentar evidências con-
tra a própria Ressurreição, e não evidências de que todas
as outras pessoas sempre permaneceram em seus túmulos.
86 q EM DEFESA DA FÉ

Assim, eu entendo que o argumento dele é simplesmente


falacioso.
- Agora, eu concordaria com Hume no sentido de que a
ressurreição natural de Jesus dentre os mortos, sem qualquer
tipo de intervenção divina, é tremendamente improvável. Mas
não é essa a hipótese. A hipótese é de que Deus ressuscitou
Jesus dentre os mortos. Isso não contradiz as leis da natureza:
homens mortos não retornam à vida naturalmente.

Evidências extraordinárias
Embora pudesse entender o argumento de Craig, queria in-
sistir nesse tópico.
- Alguns críticos dizem que a Ressurreição é um aconteci-
mento extraordinário e, portanto, requer evidências extraordi-
nárias - disse. - Essa afirmação não tem um certo atrativo?
- Sim, isso parece uma questão de bom senso - respon-
deu. - Mas posso demonstrar que é falsa.
- Como assim?
- Porque esse princípio o impediria de crer em todos os
tipos de acontecimentos que abraçamos racionalmente. Por
exemplo, você não acreditaria na informação do noticiário
vespertino de que os números sorteados na loteria da noite
passada foram 4,2,9,7,8 e 3, porque esse seria um evento de
extraordinária improbabilidade. As chances contra isso são
de milhões e milhões contra um e, portanto, você não deve
crer nessa informação quando o noticiário a transmite. Toda-
via, evidentemente nós cremos que somos racionais ao con-
cluir que a notícia é verdadeira. Como isso é possível?
- Bem, os teóricos da probabilidade dizem que se deve
pesar a improbabilidade da ocorrência do evento contra a pro-
babilidade de que as evidências seriam exatamente como são
se o evento não tivesse ocorrido.
Craig fez essa afirmação de modo tão rápido que tive dificulda-
de em assimilá-la. - Espere aí - interrompi, levantando a mão.
- O senhor vai ter de ir mais devagar e dar-me um exemplo.
U ma vez que os milagres contradizem a ciência... p 87

- Está bem, veja a coisa desse modo: se o noticiário ves-


pertino tem uma probabilidade muito alta de estar correto,
então é altamente improvável que ele informe incorretamen-
te os números sorteados na loteria. Isso contrabalança qual-
quer improbabilidade no sorteio daqueles números, de modo
que você é bastante racional ao crer nesse evento altamente
improvável.
- Da mesma maneira, qualquer improbabilidade que você
possa achar que existe na Ressurreição de Jesus é contraba-
lançada pela improbabilidade da ocorrência do túmulo vazio,
dos aparecimentos de Jesus após a Ressurreição e da mudan-
ça repentina dos primeiros discípulos se não houvesse esse
evento. Percebe o que eu quero dizer?
Este exemplo deixava claro o argumento. Por improvável
que a Ressurreição possa parecer aos céticos, isso deve ser
pesado contra quão improvável seria ter todas as diferentes
evidências históricas da sua ocorrência caso ela nunca tives-
se de fato ocorrido.
- Assim - concluiu Craig, - torna-se bastante racional
crer num acontecimento como a ressurreição miraculosa de
Jesus. Ademais, vejo a questão da seguinte maneira: se Deus
realmente existe, então em que sentido é improvável que ele
ressuscite Jesus dentre os mortos? Não me ocorre nenhum.
- O senhor já viu céticos que passaram a crer no cristia-
nismo por causa da qualidade e quantidade das evidências a
favor da Ressurreição? - perguntei.
Os olhos de Craig se abriram.
- Oh, sim, certamente! - disse. - Conheci recentemen-
te um indivíduo que se tornou cristão vindo do chamado
movimento do "livre pensamento". Estudou a Ressurreição
e concluiu, a partir das evidências, que Deus ressuscitou Je-
sus dentre os mortos. Evidentemente, os seus colegas do "li-
vre pensamento" o insultaram duramente. Ele disse: "Por que
eles são tão hostis? Eu simplesmente segui os princípios
do livre pensamento e foi a isso que a razão e as evidências
me conduziram!"
ss q EM DEFESA DA FÉ

Soltei uma gargalhada.


- O senhor está dizendo que alguns sujeitos do "livre pen-
samento" não são tão livres-pensadores como gostariam que
as pessoas acreditassem?
- Sinceramente - respondeu, - acho que muitos céticos
têm a mente fechada."
Tendo sido cético, notei o mesmo fenômeno.
- O senhor está se referindo ao fato de que alguns deles
excluem desde o início até mesmo a possibilidade do mila-
gre? - perguntei.
- Exatamente. Os lógicos têm uma expressão: "dedução para
melhor explicação". Isso significa que você tem um grupo de
dados a serem explicados e um conjunto de opções concretas
ou diferentes explicações para esses dados. Você precisa esco-
lher que explicação desse conjunto, se verdadeira, melhor ex-
plicaria os dados observados. Alguns céticos não admitem que
as explicações sobrenaturais sequer integrem o conjunto de
opções concretas. Conseqüentemente, se não há uma explica-
ção natural para um evento, eles simplesmente ficam na igno-
rância. Isto é preconceito. A'" exceção de alguma demonstração
de ateísmo, não há qualquer justificativa para excluir as expli-
cações sobrenaturais de participar do conjunto de opções con-
cretas. Se você as incluir nesse conjunto, deve então ser um
investigador aberto e honesto para ver qual é a melhor explica-
ção de qualquer acontecimento.

Os milagres de Jesus
- Digamos que o senhor seja um investigador honesto - eu
disse, partindo do seu último pensamento. - O que o senhor
buscaria para convencê-lo de que alguma coisa miraculosa
aconteceu?
- Você teria um certo número de critérios. Teria de inves-
tigar para ver se algo não poderia ser explicado em termos
das forças naturais que atuavam naquele tempo e lugar. E bus-
caria um contexto histórico-religioso.
Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: P s9

Eu queria insistir nessa idéia de contexto. - Hume disse


que se os historiadores concordassem uniformemente que a
rainha da Inglaterra morreu e reapareceu viva um mês de-
pois, estaria inclinado a aceitar qualquer explicação que ex-
cluísse a realização de um milagre por parte de Deus. Pedi a
Craig que respondesse a isso.
- Eu concordaria que um milagre sem contexto é ineren-
temente ambíguo - Craig respondeu. - O contexto de um
milagre pode ajudar-nos a verificar se ele provém de Deus ou
não. Por exemplo, a revivificação da rainha careceria de qual-
quer contexto religioso e seria basicamente uma anomalia sem
explicação.
- Mas não é esse o caso de Jesus. Seus feitos sobrenaturais
ocorreram em um contexto carregado de significado religioso
porque realizou os seus milagres e exorcismos como sinais do
surgimento do Reino de Deus na história humana e eles servi-
ram como autenticação da sua mensagem. E sua ressurreição
ocorre como o ápice de sua vida e ministério sem paralelo e
de suas reivindicações radicais de autoridade divina que o
levaram a ser crucificado. É por isso que a Ressurreição nos
faz pensar, ao passo que o retorno da rainha somente nos dei-
xaria perplexos. Portanto, o contexto histórico-religioso é es-
sencial para o entendimento dos eventos milagrosos.
Insisti:
- Jesus realizou milagres? O que o convence disso?
- O fato é que a maior parte dos atuais críticos do Novo
Testamento admite que ele realizou o que nós chamaríamos
milagres. Concordo, pode ser que nem todos acreditem que
foram milagres genuínos, mas a idéia de Jesus de Nazaré como
operador de milagres e exorcista é parte do Jesus histórico
geralmente aceito pelos críticos atuais.
Craig girou a sua poltrona e retirou uma pasta da estante
atrás da sua escrivaninha. Folheou algumas páginas até que
achou a que estava buscando. - Deixe-me ler uma citação de
Rudolf Bultmann, que é reconhecido como um dos críticos
do Novo Testamento mais céticos do século xx:
90 q EM DEFESA DA FÉ

A comunidade cristã estava convencida de que Jesus havia


feito milagres e contava muitas histórias de seus milagres. A
maior parte dessas histórias, contidas nos evangelhos, é len-
dária ou pelo menos está revestida de lendas. Porém, não
pode haver dúvida de que Jesus realizou tais feitos, os quais
foram, no entendimento dele e dos seus contemporâneos,
milagres; ou seja, eventos que resultaram de causalidade
sobrenatural divina. Sem dúvida ele curou enfermos e ex-
pulsou demônios."

Craig fechou a pasta.


- Até mesrno Bu.ltrnarm diz que rrrilagres e exorcismos per-
tencem ao Jesus histórico. Ora, nos dias de Bultmann essas
histórias eram consideradas lendas por causa da suposta in-
fluência da mitologia greco-romana sobre os evangelhos, mas
hoje os estudiosos verificam que essa influência foi pratica-
mente nula. Agora crêem que o papel de Jesus como operador
de milagres deve ser entendido à luz do contexto do judaísmo
palestino do primeiro século, onde ele se encaixa perfeita-
mente.
- Na realidade - concluiu, - a única razão para duvidar
que foram milagres genuínos em vez de curas psicossomáticas
seria filosófica - você crê que tais eventos podem ocorrer ou
não? A historicidade dos eventos não está em dúvida.

Milagres e lendas
As conclusões desses estudiosos eram úteis, mas eu queria
mais do que isso.
- Quais são as evidências específicas de que Jesus reali-
zou milagres? - perguntei.
- Parte da resposta é que esses acontecimentos são en-
contrados em todos os estratos das fontes dos evangelhos.
Por exemplo, a milagre da alimentação dos cinco mil é en-
contrado nos quatro evangelhos, de modo que se tem uma
atestação independente e múltipla desses eventos. Não há
"[esus, Berlim, 1926, p. 159.
Uma vez que os milagres contradizem Q ciência... P 91

vestígio de um Jesus de Nazaré não-milagroso em qualquer


das fontes; portanto, é muito provável que isso pertença
ao Jesus histórico. Além disso, o fato se encaixa perfeita-
mente no ambiente judaico. Houve outros exorcistas e ope-
radores de milagres judeus que precederam Jesus.
Isso não era suficiente para mim.
- Só porque várias pessoas disseram que algo extraor-
dinário aconteceu - como a alimentação dos cinco mil -
não significa necessariamente que isso seja verdadeiro -
eu disse.
- Em certo sentido, é uma questão muito individual o que
você considera convincente - respondeu. - Acho que pode-
mos dizer com segurança que não há nenhuma razão para
duvidar dessas narrativas à exceção de razões filosóficas. Em
outras palavras, se você crê que Deus existe, então não há
uma boa razão para ser cético quanto a esses eventos.
- Todavia, deixe-me acrescentar o seguinte: quanto ao
milagre central do Novo Testamento - a Ressurreição -
há uma justificativa muito boa para concluir com seguran-
ça que, sim, esse é realmente um acontecimento histórico.
Veja, as evidências da Ressurreição são muito, muito mais
fortes que as evidências, digamos, de que Jesus operou o
milagre da cura do cego de João 9. Você tem uma grande
riqueza de dados acerca do túmulo vazio, dos aparecimen-
tos após a Ressurreição e da origem da crença dos discípu-
los na Ressurreição.
- Não seria mais provável que os relatos dos milagres de
Jesus fossem de fato lendas que se difundiram vários anos
após a sua vida? - perguntei. - O ateu George Smith diz:
"Quando se passa dos evangelhos mais antigos para os poste-
riores, alguns dos milagres se tornam mais exagerados.v '"
- Ele ilustra essa evolução da lenda comparando Marcos
1, que diz que todos foram levados a Jesus e muitos foram
curados, com Mateus 8, que diz que muitos foram levados a

lOAtheism: the case against God, p. 215.


92 q EM DEFESA DA FÉ

Jesus e todos foram curados, e com Lucas 4, que diz que todos
foram levados e todos foram curados. Como disse o historia-
dor Archibald Robertson: "Estamos testemunhando o cresci-
mento progressivo de uma lenda". 11
O rosto de Craig ficou crispado.
- Esse argumento é realmente um bocado fantasioso -
disse, "porque os autores dos evangelhos não empregam as
palavras "todos" ou "muitos" do mesmo modo que um relató-
rio policial.
Empurrou para o lado a pasta de Bultmann e apanhou a
sua Bíblia, abrindo-a no Novo Testamento, correndo o dedo
em uma das páginas. Encontrando Marcos 1.5, leu o versículo
em voz alta: "A ele vinha toda a região da Judéia e todo o povo
de Jerusalém. Confessando os seus pecados, eram batizados
por ele no rio Jordão.
- Muito bem, pense sobre isso - recomendou. - Diz
que João Batista estava batizando toda a Judéia e Jerusa-
lém. Seria verdade? Toda a Judéia? Toda Jerusalém? - dis-
se Craig, sua voz se elevando num tom de simulada surpre-
sa. - Toda a província foi esvaziada de pessoas que foram
para o rio Jordão e todas elas foram batizadas - todos os
bebês, cada ancião? Bem, obviamente que não. Essa não
era uma palavra que devia ser lida rigidamente como em
um relatório policial.
- Agora, voltando aos relatos que você mencionou antes
- qual é o fato principal que querem mostrar? Certamente,
que as multidões estavam indo a Jesus em busca de cura e
exorcismo, e isto está bem atestado. O fato é que todos esses
relatos concordam plenamente que houve milagres operados
por Jesus e que isso envolveu muitas pessoas.
Acrescentou
,-
mais um ponto:
- E importante lembrar que em relação ao maior dos
milagres, a Ressurreição, sabemos pelas pesquisas históricas

llThe origins o] Christianity, New York: International Publishers,


1954, p. 82.
Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: P 93
que simplesmente não houve tempo para que uma lenda ti-
vesse evoluído e eliminado uma sólida essência de verda-
de histórica.

Os "milagres" de Maomé
Supondo que existam evidências históricas de que Jesus re-
almente realizou feitos que as testemunhas oculares consi-
deraram milagrosos, o que dizer dos milagres de outras reli-
giões? Para o crítico Hume, os milagres de diferentes religi-
ões cancelam uns aos outros como evidências da verdade.
Por exemplo, a tradição islâmica diz que Maomé subiu ao
céu em uma mula, que curou a perna quebrada de um compa-
nheiro, que alimentou grandes grupos com pouco alimento,
que transformou um galho de árvore em uma espada de aço e
que foi responsável por outros feitos sobrenaturais.
- Se tanto ele como Jesus realizaram milagres semelhan-
tes - disse a Craig, - isso não dilui a singularidade de Jesus
e nega os milagres como evidências da sua verdade?
Craig franziu a sobrancelha.
- Acho que isso está baseado em uma falsa interpretação
do islã - disse um pouco hesitante. - Corrija-me se eu estiver
errado, mas quando leio o Alcorão basicamente não existe qual-
quer milagre, a não ser o suposto milagre do próprio Alcorão.
- Concordo - respondi. - À exceção de umas poucas
passagens contestadas, considero que os estudiosos em geral
interpretam o Alcorão dessa maneira. Mas eu disse que esses
milagres são mencionados na tradição islâmica, que é onde
eles realmente proliferam. 1 2
Craig pensou e se concentrou na questão.
- Ah, sim, correto - os milagres são mencionados na tradi-
ção chamada Hadith - disse. - E aqui está o que importa: essa
tradição islâmica aparece centenas de anos depois de Maomé

Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã, São


12

Paulo: Vida, 2002.


94 q EM DEFESA DA FÉ

e, portanto, não pode ser comparada com os evangelhos, que


foram registrados durante a primeira geração, quando as tes-
temunhas oculares ainda viviam.
- Por exemplo, em 1 Coríntios 15, os relatos dos apareci-
mentos de Jesus após a ressurreição remontam aos primeiros
cinco anos seguintes. Conseqüentemente, trata-se de dados
recentes que não poderiam ter resultado de uma elaboração
lendária. Simplesmente não se pode comparar com essas his-
tórias lendárias sobre Maomé que se acumularam muitíssi-
mos anos mais tarde na tradição islâmica.
- O senhor acha significativo o fato de que o próprio Al-
corão não dá ênfase a milagres de Maomé do modo como a
Bíblia o faz a respeito de Jesus?
"Talvez no sentido de que mais tarde a Hadith pareceu achar
necessário inventar milagres para Maomé. Ele nunca reivin-
dicou tais coisas para si mesmo. Essencialmente, essas histó-
rias ilustram como relatos não-históricos decorrem de influ-
ências lendárias ao longo dos séculos, em contraste com os
evangelhos, nos quais os relatos de milagres fazem parte dos
estratos mais antigos das fontes.
Ainda assim, percebia uma contradição. Se o imediatismo
do relato dos milagres é importante, então certamente o Livro
de Mórmon será aprovado no teste.
- Nele você encontra alegações de fatos miraculosos que
são relatadas logo após a sua suposta ocorrência; no entanto,
você não as aceitaria como verdadeiras - observei.
- Nesse caso, o que se vê é simplesmente o mais puro
charlatanismo de ]oseph Smith, que criou o mormonismo-
Craig respondeu. - É interessante que Smith e seu pai, quan-
do viviam em Nova York, estavam obcecados em achar o ouro
enterrado do capitão Kidd. Mais tarde, o que Smith afirma
ter encontrado? Placas de ouro do anjo Moroni. E então elas
desaparecem e supostamente são levadas para o céu e nunca
mais são vistas.
- O que se tem aqui é uma fraude elaborada, em com-
paração com os evangelhos, com a evidente sinceridade no
Uma vez que os milagres contradizem a ciência... p 95

relato das pessoas. O problema do mormonismo é basica-


mente de credibilidade, por causa da não-confiabilidade
de Joseph Smith e da gritante ausência de corroboração.
Ao contrário dos evangelhos, cuja credibilidade tem sido
gran-demente evidenciada pela arqueologia, as descober-
tas arqueológicas têm deixado repetidamente de compro-
var o Livro de Mórmon.

o lado pessoal dos milagres


Até então, a minha conversa com Craig havia sido estimulan-
te, mas permanecera exclusivamente no plano intelectual.
Queria torná-la mais pessoal, sondar a personalidade erudita
de Craig e relacionar a questão dos milagres com a sua vida
individual. Porém, hesitava.
Durante anos de relacionamento com Bill Craig, eu havia
percebido alguns desafios físicos que estava enfrentando. Por
exemplo, podia sentir quando apertávamos as mãos que a sua
mão direita era um pouco retorcida. Por uma questão de cor-
tesia, nunca havia tocado no assunto. Agora que estávamos
explorando esse tópico, sua aparente limitação levantava uma
questão incômoda que eu não mais podia ignorar: se Deus
pode realizar milagres, por que não curou alguém que lhe é
tão dedicado como Bill Craig?
Comecei paulatinamente.
- Veja, Bill - disse, - você crê que Deus ainda opera
milagres hoje, não crê?
- Eu não negaria que os milagres podem acontecer hoje
- expôs Craig. - Acrescentaria, porém, que não há razão
para esperar que sejam tão freqüentes ou evidentes como eram
com Jesus. Os milagres tendem a se concentrar em torno dos
grandes momentos da história da salvação, como o Êxodo ou
o ministério de Jesus, que considerou os seus milagres como
sinais ao povo do surgimento do reino de Deus e os seus
exorcismos como sinais da sua capacidade de destruir os
poderes das trevas.
96 q EM DEFESA DA FÉ

- Então me diga o seguinte - falei calmamente. - Se


Deus o ama e tem o poder de curá-lo, por que ele não faz
desaparecer suas aflições físicas?
Craig não pareceu ofender-se com a pergunta. Mexeu-se na
poltrona e em seguida inclinou-se para a frente, enquanto sua
voz mudava de um tom erudito para um tom mais suave e
pessoal.
- O apóstolo Paulo tinha o que ele chamava Hum espinho
na carne". Pediu três vezes que Deus o removesse - começou
Craig, - e a resposta de Deus foi que a sua graça lhe bastava e
que a sua força se aperfeiçoava na fraqueza. Essa passagem
tem sido confortadora para minha vida."
Olhou para o lado, decidindo o que mais devia dizer. Quan-
do voltou-se para mim, a intensidade aguda e penetrante dos
seus olhos azuis tornava-se mais suave em uma sinceridade
vulnerável.
- Não trato muito disso publicamente - disse, - mas eu
tenho uma enfermidade neuromuscular congênita que pro-
voca uma atrofia progressiva das extremidades. No meu caso
é bastante leve. Muitas pessoas com essa síndrome têm de
usar suportes de metal em suas pernas. Elas ficam completa-
mente aleijadas. Sinto-me bastante afortunado porque o meu
problema não é muito grave.
- O senhor pediu um milagre? - perguntei.
Ele assentiu.
- Quando jovem cristão, orei para que Deus me curasse.
Mas ele não o fez.
Muito embora eu pudesse perceber no seu tom sereno que
não estava em busca de piedade, o meu coração se comoveu.
- O senhor está decepcionado - observei, minhas palavras
saindo mais como observação que pergunta.
Um leve sorriso surgiu no seu rosto.
- Lee, você sabe o que tem me impressionado? - ele per-
guntou com um inconfundível ar de espanto. - Quando eu
olho para a minha vida, percebo que Deus tem usado essa
enfermidade de tantas maneiras extraordinárias para moldar
Uma vez que os milagres contradizem a ciência... p 97

a mim e a minha personalidade. Como não podia me dedicar


ao atletismo, a fim de triunfar em algo fui impelido para a
vida acadêmica. Devo realmente a minha existência como es-
tudioso ao fato de ter essa enfermidade. Foi o que me impulsi-
onou para a vida intelectual.
- A doença também afetou-me psicologicamente ao pro-
piciar um tremendo desejo de ser bem-sucedido. Fez com que
eu tivesse uma inclinação para objetivos e realizações que
tem me ajudado bastante. Desse modo, tenho realmente visto
acontecer muito pessoalmente o que Paulo disse - a força se
aperfeiçoa na fraqueza.
- Se o senhor pudesse ter sido curado, teria gostaria?
Soltou uma gargalhada.
- Bem, agora talvez fosse bom, tendo aprendido as lições!.
Deu em seguida uma resposta mais séria que reproduziu os
comentários anteriores de Peter Kreeft acerca do sofrimento.
- Por outro lado, já me acostumei bastante com isso. Ao olhar
para trás, posso dizer honestamente que estou contente porque
foi este o caminho pelo qual Deus direcionou a minha vida. Ele
pode usar até mesmo as coisas ruins da vida para revelar os seus
propósitos e fins supremos. Isso não significa que essas coisas
não são más - elas são realmente más. Mas todas elas estão
dentro da soberania de Deus. Até o bem pode resultar do mal.

Fé em um. Deus de milagres


Bill Craig não é um homem que vive no mundo das teorias; é
um homem cuja vida diária encarna a filosofia cristã. Mes-
mo quando se debate com a questão muito concreta da pró-
pria aflição, surge confirmando que as suas convicções estão
bem assentadas. Tudo é sustentado por uma suprema confi-
ança na racionalidade do cristianismo, uma religião cujo
sustentáculo é um milagre de proporções sem precedentes.
- O senhor deu a um de seus livros mais populares o
título Reasonable faith [Fé racional] - notei, - mas existem
céticos que veriam nele uma contradição.
98 q EM DEFESA DA FÉ

Abri a minha pasta e retirei um livro chamado Critiques


of God [Críticas de Deus], abrindo-o no capítulo intitulado
"Religião e razão". Foi escrito pelo ateu Richard Robinson, um
filósofo formado nas Universidades de Oxford e Cornell. Li
pata Craig uma citação que havia sublinhado anteriormente:

A fé cristã não é simplesmente a convicção de que existe


um deus. É a convicção de que existe um deus não importa
quais sejam as evidências sobre a questão. "Tenha fé", no
sentido cristão, significa "creia que existe um Deus inde-
pendentemente das evidências."13

Fechando o livro, olhei para Craig e perguntei:


- Como o senhor vê essa interação entre fé e razão? As
duas são realmente contraditórias como os críticos insistem?
Craig começou com uma definição.
- Fé é confiança ou compromisso com o que você acha
que é verdadeiro - respondeu. - O motivo pelo qual uma
pessoa pensa que o cristianismo é verdadeiro pode diferir de
um indivíduo para outro. Para uns, é porque Deus fala ao seu
coração e produz uma convicção autêntica. Certamente acre-
dito que isso é válido.
- Para outros, no entanto, pode ser que uma exploração
intelectual mais sóbria das evidências os leve à mesma con-
clusão. Mas ninguém chegará a crer até que se concretize
aquele ato de confiança ou compromisso com o que acha que
é verdadeiro. Quando você entende a fé nessas categorias,
poderá ver que ela é inteiramente compatível com a razão.
Quando pedi a Craig que acrescentasse detalhes a essa idéia,
pensou por um minuto e ofereceu uma ilustração extraída da
sua própria experiência:
- Há tempos, fiz uma cirurgia de transplante de córnea -
mas assim que as palavras saíram da sua boca soltou uma garga-
lhada. Um problema médico a mais parecia uma redundância à

13New York: Prometheus Books, 1997, p. 121.


Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: p 99

luz da nossa conversa anterior sobre a sua saúde. Craig enco-


lheu os ombros. - A minha esposa diz que eu sou um campo
de desgraça médica ambulante - sorriu, - mas a pessoa mais
saudável que ela conhece!
- De qualquer maneira, antes de deixar que qualquer
. pessoa operasse os meus olhos, [an e eu fizemos uma ampla
pesquisa para achar o melhor cirurgião de córnea do país.
Nós pesquisamos, examinamos as evidências, entramos em
contato com ele, e, finalmente, depois de me convencer, com
base nas evidências, que ele era o melhor, depositei nele a
minha confiança e o deixei operar os meus olhos. A minha
fé ou confiança estava baseada nas boas evidências que tive
sobre as suas qualificações e credibilidade. Do mesmo modo,
com respeito à fé em Deus ou em milagres, muitas pessoas
realizam esse ato de confiança ou compromisso depois que
se convencem através das evidências de que o cristianismo
é verdadeiro. Nem todos tomam esse caminho, mas certa-
mente existem pessoas que o fazem. E essa é uma aborda-
gem lógica e racional que utiliza a razão em vez de negá-la.
O assunto das evidências abriu a porta para uma questão fun-
damental que estava clamando por ser explorada. Repetidamen-
te, Craig havia se referido ao fato de que, se Deus existe, então é
razoável crer que o milagre é possível. Embora isso tenha senti-
do, para muitas pessoas depende de um "se" muito grande.
- Que evidências afirmativas o convencem de que esse
ser operador de milagres existe? - perguntei. - O senhor
pode dar-me algumas razões consistentes para crer em um
Criador divino e na validade do cristianismo?
Craig meneava a cabeça enquanto eu perguntava.
- Em 1986, ouvi uma palestra em que Alvin Plantinga apre-
sentou duas dúzias de razões para crer em Deus. Ele é o filó-
sofo cristão número um da atualidade e foi uma fantástica
apresentação de argumentos teístas", respondeu Craíg.!"
14Two Dozen (or so) Theistic Argurnents, palestra apresentada na
33. a Conferência Anual de Filosofia, Wheaton College, Illinois, de 23
a 25 outubro 1986.
100 q EM DEFESA DA FÉ

Olhei para o meu relógio.


- Que tal apontar os cinco argumentos principais? -
.
sugerr.
- Está bem - concordou, - vou repassar um conjunto de
argumentos a favor de Deus que se reforçam e acentuam;"
Arregaçando as mangas da camisa, Craig instalou-se na
poltrona. Como autor do livro The existence of Cod and the
beginning of the universe [A existência de Deus e o início
do universo] e co-autor de Theism, atheism, and big bang
cosmology [Teísmo, ateísmo e a cosmologia do big bang],
publicados pela Editora da Universidade de Oxford, Craig
iniciou os seus argumentos exatamente onde seria de se
esperar.

Razão n. o 1: Deus dá sentido à origem do universo


- Tanto filosófica quanto cientificamente - disse Craig,
- eu argumentaria que o universo e o próprio tempo tiveram
um princípio em algum ponto do passado finito. Porém, como
algo não pode simplesmente sair do nada, tem de haver uma
causa transcendente além do tempo e do espaço que trouxe o
universo à existência.
- E o universo passou a existir pelo que tem sido chama-
do big bang [Grande explosão]? - perguntei.
- Exatamente. Como disse Stephen Hawking: "Quase to-
dos agora acreditam que o universo, e o próprio tempo, tive-
ram início no bigbang" .16 É para isso que apontam as evidên-
cias científicas esmagadoras - para um evento aproximada-
mente catorze bilhões de anos atrás. Agora, isso representa
um enorme problema para os céticos. Como diz Anthony
Kenny, da Universidade de Oxford: HUm proponente da

15God, are you there?, de Willian Lane Craig [Norcross, Geórgia: Ravi
Zacharias International Ministries, 1999.
16The nature of space and time New Jersey: Princeton University
Press, 1996), p. 20.
Uma vez que os milagres contradizem a ciência... p 101
teoria do Big Bang, pelo menos se ele for ateu, deve crer que
o [... ] universo veio do nada e pelo nada" .17
Craig riu.
- Evidentemente, algo que vem do nada não tem sentido!
Lee, você tem citado bastante o famoso cético David Hume em
nossa entrevista. Bem, até ele disse: "Mas deixem-me dizer-lhes
que eu nunca afirmei uma proposição tão absurda como a de
que alguma coisa poderia surgir sem uma causa". 18 Os ateus re-
conhecem isso. Por exemplo, um dos ateus mais destacados da
filosofia contemporânea, Kai Nielsen, disse uma vez: "Suponha
que você repentinamente ouça uma forte explosão [...] e você me
pergunte: 'O que causou essa explosão?', e eu responda: 'Nada,
ela simplesmente aconteceu'. Você não aceitaria isso". 19 Ele está
absolutamente correto. No entanto, pense um pouco: se deve
haver uma causa para uma pequena explosão, não é lógico que
deve haver uma causa para uma grande explosão?
Era uma pergunta que parecia não precisar de resposta. -
Assim sendo, como o senhor resumiria esse argumento inici-
al? - perguntei.
A" medida que mencionava cada ponto, Craig agarrava um
dedo para contá-los.
- Primeiro, tudo o que começa a existir tem uma causa.
Segundo, o universo começou a existir. Terceiro, portanto, o
universo tem uma causa. Como escreveu o eminente cientista
sir Arthur Eddington: "O princípio parece apresentar dificul-
dades insuperáveis a menos que concordemos em encará-lo
como francamente sobrenatural'. 20
Interrompi.
- Está bem, isso aponta para um Criador, mas será que
nos diz muita coisa sobre Deus?
17The five ways: St. Thomas Aquinas' proofs of God's esistence, New
York: Schocken Books, 1969, p. 66.
18John S1EWART, The letters ofDavid Hume, Oxford: Clarendon Press, 1932,
vol. I, p. 187.
19Reason and practice, New Yark: Harper & Row, 1971, 48.
2üThe expanding universe, New York: Macrnillan, 1933, p. 124.
102 q EM DEFESA DA FÉ

- Na verdade, sim, ele o faz - Craig respondeu. - Nós


sabemos que essa causa sobrenatural deve ser um ser não-
causado, imutável, atemporal e imaterial.
- Qual é o fundamento de suas conclusões?
- Ele deve ser não-causado porque sabemos que não pode
haver um retrocesso infinito de causas. Deve ser atemporal e,
portanto, imutável, pelo menos sem o universo, porque foi o
criador do tempo. Além disso, porque ele também criou o es-
paço, deve transcender o espaço e, portanto, deve ter uma
natureza imaterial e não física.
Havia uma pergunta óbvia que tinha de ser feita.
- Se tudo deve ter uma causa, então quem ou o que cau-
sou Deus? - indaguei.
- Espere um pouco - nunca disse que tudo deve ter uma
causa - , Craig respondeu. - A premissa é que tudo o que
começa a existir deve ter uma causa. Em outras palavras, "o
ser" não pode vir do "não-ser". Como Deus nunca começou a
existir, ele não exige uma causa. Ele nunca passou a existir.
Disse-lhe que isso levantava a suspeita de que estaria abrin-
do uma exceção especial para Deus.
- Os próprios ateus costumavam se sentir muito à vonta-
de para sustentar que o universo é eterno e não-causado -
respondeu. "O problema é que eles não mais podem sustentar
essa posição por causa das modernas evidências de que o
universo começou com o big bang. Assim, eles não podem
objetar legitimamente quando faço a mesma asserção acerca
de Deus - ele é eterno e é não-causado.

Razão n. o 2: Deus dá sentido à complexidade do universo


- Nos últimos 35 anos - , explicou Craig, - os cientistas
ficaram impressionados ao descobrir que o big bang não foi um
acontecimento caótico, do começo dos tempos, mas antes um
evento altamente ordenado que exigiu uma enorme quantidade
de informações. De fato, desde o exato momento do seu
surgimento, o universo teve de ser ajustado com uma precisão
Uma vez que os milagres contradizem a ciência... p 103
inimaginável para permitir a existência da vida, como a nos-
sa. E isso aponta de modo muito convincente para a existên-
cia de um Planejador Inteligente.
- '~justado" é um termo subjetivo - observei. - Pode sig-
nificar um bocado de coisas. O que o senhor quer dizer com
isso?
- Deixe-me colocar dessa maneira - redarguiu. - Cien-
tificamente falando, é muito mais provável a existência de
um universo proibidor da vida de que um universo sustentador
da vida. A vida se equilibra no fio da navalha.
Como exemplo, citou os escritos de Hawking.
- Ele calculou que se a taxa da expansão do universo um
segundo após o big bang tivesse sido menor em até mesmo
uma parte de cem mil milhões de milhões, o universo teria
implodido em uma bola de fogo.>'
Craig passou rapidamente a fornecer uma lista de várias
outras estatísticas impressionantes para apoiar a sua conclu-
SãO. 2 2 Entre elas:

• O físico inglês P C. W. Davies concluiu que as chances


das condições iniciais serem inadequadas para a forma-
ção das estrelas - necessário para os planetas e, por-
tanto, para a vida - é o número um seguido de pelo
menos mil bilhões de bilhões de zeros."
• Davies também calculou que se a força da gravidade ou
da força fraca fosse alterada em somente uma parte de
dez seguido por cem zeros, a vida jamais poderia ter
surgído.:"
• Existem cerca de cinqüenta constantes e quantidades
- por exemplo, a quantidade de energia utilizável no

21Stephen W. HAWKING, A brief history of time, New York: Bantam


Books, 1988, p. 123.
22Para uma lista de exemplos, v. Universes, de [ohn Leslie (Londres:
Routledge, 1989).
230ther worlds, Londres: Dent, 1980, p. 160-1.
24Ibid., p. 168-9.
104 q EM DEFESA DA FÉ

universo, a diferença de massa entre prótons e nêu-


trons, as proporções das forças fundamentais da na-
tureza e a proporção da matéria em relação à antima-
téria - que devem ser balanceadas em um grau mate-
maticamente infinitesimal para que qualquer vida seja
possível. 25

- Tudo isso - informa Craig, - sustenta amplamente a con-


clusão de que existe uma inteligência por trás da criação. De
fato, as explicações alternativas simplesmente não satisfazem.
- Por exemplo, há uma teoria chamada "necessidade na-
tural", o que significa que existe alguma desconhecida Teoria
de tudo que explicaria a maneira como é o universo. Em ou-
tras palavras, alguma coisa na natureza tornou necessário que
as coisas saíssem da maneira como são. No entanto, esse con-
ceito desmorona quando você o estuda em profundidade. Pri-
meiramente, todo aquele que insiste que o universo deve per-
mitir a vida está fazendo uma afirmação radical que exige pro-
vas consistentes, mas essa alternativa é simplesmente uma
asserção. Segundo, existem outros modelos do universo que
são diferentes do nosso, assim deve ser possível que o univer-
so tenha sido diferente. Terceiro, mesmo que as leis da natu-
reza sejam necessárias, ainda assim é preciso ter condições
iniciais, incluídas no princípio, sob as quais essas leis pos-
sam atuar.
Todavia, essa não era a única alternativa possível. Eu inter-
rompi para apresentar um cenário diferente que parecia plau-
sível na superfície.
- Que dizer da possibilidade que o ajuste preciso do uni-
verso seja resultado do puro acaso? - perguntei. - Talvez
tudo isso seja simplesmente um grande acidente cósmico -
um colossal jogo de dados, por assim dizer."

2SY:The Anthropic PrincipIe, em Particle and Nuclear Physics, de


P C. W. Davies (1983), p. 28; e God: the evidence, de Patrick GIynn,
p. 29-31.
Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: p 105
Craig suspirou.
- Lee, vou lhe dizer o seguinte: a precisão é tão imensa-
mente fantástica, tão impressionante matematicamente, que
é simplesmente a mais pura tolice pensar que poderia ter sido
um acidente. Em especial pelo fato de que não estamos falan-
do somente de uma simples aposta, mas daquilo que os teóri-
cos chamam de 'probabilidade especificada', que elimina o
acaso acima de qualquer dúvida razoável.
Eu não estava pronto para abandonar a opção do acaso. -
Que tal se houvesse um número infinito de outros universos
existindo separadamente do nosso? - perguntei. - Seria pro-
vável que um deles tivesse as condições certas para sustentar
a vida - e é esse o caso do universo em que vivemos.
Craig já havia ouvido antes essa teoria.
- É chamada a Hipótese de Muitos Mundos - confir-
mou. - Hawking tem falado sobre esse conceito. O proble-
ma é o seguinte: esses outros universos teóricos são inacessí-
veis a nós e, portanto, não há nenhum meio possível de ofe-
recer qualquer evidência de que isso poderia ser verdade. É
simplesmente um conceito, uma idéia, sem prova científica.
O proeminente cientista e teólogo inglês John Polkinghorne a
denominou "pseudociência" e "adivinhação metafísica" .26
- E pense no seguinte: se isso fosse verdade, tornaria im-
possível a conduta racional da vida, porque se poderia justifi-
car qualquer coisa - não importa quão improvável - ao
postular um número infinito de outros universos.
Eu não estava seguindo muito bem essa linha de raciocínio.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntei.
- Por exemplo, se você estivesse dando as cartas em um
jogo de pôquer, toda vez que distribuísse a si mesmo quatro ás
você não poderia ser acusado de trapacear, não importa quão
improvável fosse a situação. Você poderia simplesmente ar-
gumentar que em um conjunto infinito de universos existirá

268erious talk: science and religion in dialogue. Londres: Trinity Press


International, 1995, p. 6.
106 q EM DEFESA DA FÉ

um universo em que, toda vez que uma pessoa dá as cartas,


ela dá quatro ás para si mesma e, portanto - sorte minha! -
acontece de eu estar nesse universo! Veja - isso é pura
metafísica. Não há nenhuma pessoa de verdade que acredite na
existência desses mundos paralelos. O próprio fato de que os
céticos têm de inventar uma teoria tão fantasiosa é porque o ajuste
preciso do universo aponta poderosamente para um Planejador
Inteligente - e algumas pessoas vão apresentar qualquer hipó-
tese para não chegar a essa conclusão.
Sabia que esse equilíbrio incrivelmente preciso do univer-
so foi um dos principais fatores que levaram Patrick Glynn, um
homem formado em Harvard, diretor associado e professor re-
sidente do Instituto de Estudos de Políticas Comunitárias da
Universidade George Washington, a abandonar o ateísmo e se
tornar cristão. Em seu livro God: the evidence [Deus: a evidên-
cia] , faz estragos em outras teorias alternativas tais como a
mecânica quântica e "universos bebês", chegando à seguinte
conclusão:

Hoje, os dados concretos apontam fortemente na direção


da hipótese de Deus [... ] Os que querem opor-se a ela não
têm nenhuma teoria testável para apresentar, somente es-
peculações sobre universos não vistos tecidas por uma fér-
til imaginação científica [...] Ironicamente, a imagem do uni-
verso legada a nós pela ciência mais avançada do século xx
está mais próxima em seu espírito da visão apresentada
pelo livro de Gênesis do que qualquer coisa oferecida pela
ciência desde Copérnico. 27

Razão n. o 3: Deus dá sentido aos valores morais objetivos


Craig resumiu de início o ponto seguinte:
- Um terceiro fator que aponta para Deus é a existência
de valores morais objetivos no universo. Se Deus não existe,
então não existem valores morais objetivos.
Isso, evidentemente, levantou a questão do que ele queria
Z7~ 53-4, 26.
Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: 9107

dizer com valores "objetivos". Craig acrescentou rapidamen-


te tanto uma definição quanto uma ilustração.
- Os valores morais objetivos são válidos e obrigatórios
independentemente de alguém acreditar neles ou não - ex-
plicou. - Por exemplo, rotular o Holocausto objetivamente
como errado significa dizer que ele foi errado ainda que os
nazistas achassem que fosse certo. E continuaria sendo erra-
do mesmo que os nazistas tivessem vencido a Segunda Guer-
ra Mundial e conseguido fazer uma lavagem cerebral ou ex-
terminar todos aqueles que discordassem deles. Agora, se Deus
não existe, então os valores morais não são objetivos.
Eu sacudia minha cabeça.
- Espere um momento - exclamei. - Se o senhor está di-
zendo que um ateu não pode ter valores morais ou viver de modo
essencialmente ético, então me deparo com um problema. Te-
nho um amigo que não acredita em Deus, mas é um indivíduo
tão gentil e atencioso como muitos cristãos que conheço.
- Não, eu não estou dizendo que uma pessoa deve acreditar
em Deus a fim de viver moralmente. A questão é: "Se Deus não
existe, existiriam valores morais objetivos?". E a resposta é "não".
- Por que não?
- Porque se Deus não existe, então os valores morais são sim-
plesmente produtos da evolução sócio-biológica. Na verdade, é
isso o que pensam muitos ateus. Segundo o filósofo Michael Ruse:
'~moralidadeé uma adaptação biológica não menos que as mãos,
os pés e os dentes" e a moralidade é "somente um auxílio para a
sobrevivência e a reprodução [... ] qualquer sentido mais pro-
fundo é ilusório"." Se Deus não existe, então a moralidade é
somente uma questão de gosto pessoal, semelhante a afirma-
ções como: "Os brócolis têm um bom sabor". Bem, ele tem um
bom sabor para algumas pessoas e um mau sabor para outras.
Não há qualquer verdade objetiva nisso; é uma questão subjeti-
va de gosto. E dizer que matar crianças inocentes é errado seria

28Evolutionary theory and Christian ethics, em The darwinian


paradigm, Londres: Routledge, 1989, p. 262, 269.
108 q EM DEFESA DA FÉ

simplesmente uma expressão de preferência, como ao dizer: "Eu


não gosto da morte de crianças inocentes".
- Como Ruse e o ateu Bertrand Russell - não vejo qual-
quer razão para pensar que, na ausência de Deus, a moralidade
desenvolvida pelo homo sapiens seja objetiva. Afinal de con-
tas, se Deus não existe, então o que há de tão especial nos
seres humanos? Eles são somente subprodutos acidentais da
natureza que apenas recentemente evoluíram a partir de um
minúsculo grãozinho de pó perdido em algum lugar de um
universo sem sentido e estão condenados a perecerem para
sempre em um período relativamente curto de tempo.
- Na concepção ateísta, algumas ações, como o estupro,
podem não ser socialmente vantajosas e, portanto, se torna-
ram tabus no decurso do desenvolvimento humano. Mas isso
não prova que o estupro é realmente errado. De fato, é conce-
bível que o estupro poderia ter evoluído como algo proveíto-.
so para a sobrevivência da espécie. Assim, sem Deus não existe
nenhum certo ou errado absoluto que se imponha sobre a nossa
consciência.
- Todavia, todos nós conhecemos em nosso íntimo que, de
fato, existem valores morais objetivos. Tudo o que temos a fazer
para perceber isso é simplesmente perguntar a nós mesmos:
"Torturar uma criança por prazer é realmente um ato moral-
mente neutro?". Eu estou convencido de que você diria: "Não,
isso não é moralmente neutro; é realmente errado fazer isso". E
você dirá isso plenamente consciente da teoria darwinista da
evolução e tudo mais. Uma boa ilustração disso é a carta para
levantamento de fundos enviada em 1991 por John Healey,
diretor executivo da Anistia Internacional, na qual adverte:
"Eu estou lhe escrevendo hoje porque acho que você compar-
tilha da minha profunda convicção de que certamente exis-
tem alguns absolutos morais. Quando se trata de tortura, de
assassinato sancionado por governos, de 'desaparecimentos'
[... ] todos esses são ultrajes contra todos nós". 29 Atos como o

29John HEALEY, carta para solicitação de contribuições, 1991.


Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: p 109
estupro e o abuso sexual de crianças não são simplesmente
comportamentos socialmente inaceitáveis - são claramente
abominações morais. Eles são objetivamente errados. E coi-
sas tais como amor, igualdade e auto-sacrifício realmente são
boas em um sentido objetivo. Todos sabemos dessas coisas
no nosso íntimo. Como esses valores morais objetivos não
podem existir sem Deus, e eles inquestionavelmente exis-
tem, então segue-se lógica e inevitavelmente que Deus existe.

Razão n. o 4: Deus dá sentido à ressurreição


Nesse ponto, Craig disse que iria mudar de marcha um pouco.
- Nós dissemos que se tivermos boas razões para crer em
Deus, então podemos crer em milagres - afirmou. - Eu tenho
oferecido razões que apontam para a existência de Deus. Mas
os próprios milagres também podem ser parte das evidências
cumulativas a favor de Deus. Isso é verdade, por exemplo, quan-
to à Ressurreição. Se Jesus de Nazaré realmente retornou den-
tre os mortos, então nós temos um milagre divino em nossas
mãos e, assim, uma evidência da existência de Deus.
Pedi a Craig para recapitular por que acredita nas evidên-
cias históricas que apontam para essa conclusão
-Mas - acentuei, - não pressuponha que o Novo Tes-
tamento é a palavra inspirada de Deus.
Ele concordou, por causa de sua resposta em considerar o
Novo Testamento simplesmente uma coleção de documen-
tos gregos do primeiro século que podem ser submetidos a
análise como quaisquer outros registros antigos.
- Existem pelo menos quatro fatos sobre o destino de Je-
sus que, a partir de uma perspectiva ampla, são largamente
aceitos pelos historiadores do Novo Testamento - começou
Craig - O primeiro é que, depois de ter sido crucificado,
Jesus foi sepultado num túmulo por José de Arimatéia. Isso
é importante, porque significa que a localização do túmulo
era igualmente conhecida pelos judeus, cristãos e romanos.
- Que evidências o senhor tem disso? - perguntei.
110 q EM DEFESA DA FÉ

- O sepultamento de Jesus é informado em relatos extre-


mamente antigos que Paulo incluiu na sua primeira carta à
igreja de Corintc.?? Esses relatos podem ser datados dentro
dos cinco anos posteriores à morte de Jesus, de modo que não
eram lendas. Além disso, a história do sepultamento é parte
do material muito antigo que Marcos utilizou para escrever
seu evangelho, e sua história carece de sinais de elaboração
lendária. Não há indícios de qualquer história concorrente
acerca do sepultamento. E mais, seria inexplicável que qual-
quer pessoa inventasse o envolvimento de José, uma vez que
ele era membro do Sinédrio que condenou Jesus.
- O segundo fato é que, no domingo posterior à crucifica-
ção, a sepultura de Jesus foi encontrada vazia por um grupo
de suas seguidoras. Isso está comprovado pelo antigo relato
de Paulo aos coríntios, que enfatiza o túmulo vazio, e pelo
material muito antigo das fontes de Marcos. Assim, nós temos
outra vez urna comprovação antiga e independente. E temos
muito mais. Por exemplo, a história do túmulo vazio não apre-
senta sinais de floreios lendários e a mais antiga reação judai-
ca conhecida à proclamação da ressurreição de Jesus pressu-
põe que a sepultura estava vazia. Além disso, está registrado
que foram mulheres que encontraram o túmulo vazio. Ora, o
testemunho de mulheres era considerado tão pouco fidedig-
no que não podiam testemunhar nos tribunais judaicos. A
única razão para incluir o detalhe altamente embaraçoso de
que mulheres descobriram o túmulo vazio é que os autores
dos evangelhos estavam registrando fielmente o que realmen-
te aconteceu.
- O terceiro fato é que, em muitas ocasiões e sob várias
circunstâncias, diferentes indivíduos e grupos de pessoas
presenciaram manifestações de Jesus ressurreto dentre os
mortos. Isso é quase universalmente reconhecido pelos es-
tudiosos do Novo Testamento por diversas razões. Por
exemplo, a lista das testemunhas oculares da ressurreição

30V. 1 Coríntios 15.4ss.


Uma vez que os milagres contradizem a ciência... p 111
de Jesus, dada por Paulo aos coríntios, garante que tais
acontecimentos ocorreram. Considerando-se a data remo-
ta das informações e a própria familiaridade de Paulo com
as pessoas envolvidas, tal fato não pode ser desprezado
como algo lendário. Além disso, as narrativas contadas nos
evangelhos oferecem comprovações múltiplas e indepen-
dentes dos indícios. Até o cético crítico do Novo Testa-
mento Gerd Lüdemann concluiu: "Pode-se considerar his-
toricamente correto que Pedro e os discípulos experimen-
taram situações, após a morte de Jesus, nas quais Jesus lhes
apareceu como o Cristo ressurreto."31
- O quarto fato é que os primeiros discípulos repentina e
sinceramente passaram a acreditar que Jesus foi ressuscitado
dentre os mortos, apesar da sua predisposição para o contrá-
rio. As crenças judaicas afastavam a idéia de que alguém pu-
desse ressurgir dos mortos antes da ressurreição geral no fim
do mundo. Mesmo assim, os primeiros discípulos subitamente
passaram a acreditar tão fortemente que Deus havia ressusci-
tado Jesus que estavam dispostos a morrer por essa crença. O
estudioso do Novo Testamento, Luke Johnson, escreveu: "Al-
gum tipo de experiência poderosa e transformadora é neces-
sário para gerar o tipo de movimento que foi o cristianismo
dos primórdios".32
- Está bem - disse, - então, qual o senhor acha que é a
melhor explicação para esses quatro fatos?
- Honestamente, não há em absoluto qualquer explicação
naturalista que se encaixe - respondeu. - Todas as antigas
teorias tais como "os discípulos roubaram o corpo" ou "Jesus
não estava morto realmente" foram universalmente rejeitadas
pelos estudos modernos. Pessoalmente, acho que a melhor
explicação é a dada pelas testemunhas oculares: que Deus res-
suscitou Jesus dentre os mortos. De fato, essa hipótese é apro-
vada facilmente nos seis testes utilizados pelos historiadores
31What really happened to Jesus?, Louisville, Kentucky: Westminster
John Knox Press, 1995, p. B.
3 Th e real Jesus, San Francisco: Harper San Francisco, 1996, p. 136.
2
112 q EM DEFESA DA FÉ

para averiguar qual é a melhor explicação para um determi-


nado conjunto de fatos h.istóricos.:"

Razão n. o 5: Deus pode ser experimentado imediatamente


Craig disse que este último ponto não era tanto um argu-
mento a favor da existência de Deus, - e sim a afirmação de
que se pode saber que Deus existe, inteiramente à parte dos
argumentos, ao se ter uma experiência imediata dele. Os filó-
sofos chamam isso uma 'convicção apropriadamente básica'.
Craig olhou diretamente para rnírn.
- Lee, deixe-me ilustrar esse conceito com 'uma pergunta
- adiantou. - Você pode provar que o rnurido externo existe?
A pergunta me pegou desprevenido. Tentei achar a resposta
e não consegui encontrar nenhuma seqüência lógica de argu-
mentos que comprovasse a assertiva de modo incontroverso.
- Eu não estou certo de como faria isso - admiti.
- Está certo - respondeu. - A sua crença na realidade
do mundo exterior é "apropriadamente básica". Você não
pode provar que o mundo exterior existe. Afinal, você pode-
ria ser apenas um cérebro em um tonel sendo estimulado
por eletrodos por um cientista louco, de modo a achar que
está vendo um mundo externo. Mas você teria de ser louco
para pensar assim. Desse modo, essa "crença apropriadamen-
te básica" no mundo exterior é inteiramente racional. Por
outras palavras, está apropriadamente fundamentada na sua
experiência. Da mesma maneira, no contexto de uma experi-
ência imediata de Deus, é racional crer em Deus de um modo
apropriadamente básico. E eu tenho essa experiência. Deus in-
vadiu a minha vida aos dezesseis anos e por mais de trinta
anos tenho caminhado com ele dia após dia, ano após ano,
como uma realidade viva na minha experiência.
33Para uma lista desses testes históricos, v. ]ustifying historical desctip-
tions, de C. Behan (Cambridge: Cambridge University Press, 1984), p.
19. Para ver como a Ressurreição satisfaz esses critérios, v. God, are you
there?, de William Lane Graig, p. 46-7.
Uma vez que os milagres contradizem a ciência.: P 113
- Na ausência de argumentos esmagadores a favor do
ateísmo, parece-me perfeitamente racional continuar a acre-
ditar na realidade dessa experiência. Era assim que as pes-
soas conheciam Deus nos tempos bíblicos. Como Iohn Hick
escreveu: "Para elas Deus não era uma proposição que fe-
chava um silogismo, ou uma idéia adotada mentalmente,
mas a realidade experimental que dava significado à sua
vida" .34
- Porém - exclamei, - como é que fica se um ateu disser
a mesma coisa - que ele tem uma "crença apropriadamente
básica" na ausência de Deus? Fica-se num impasse.
Craig respondeu:
- O filósofo William Alston diz que, nesse caso, o cristão
deve fazer tudo o que é possível para encontrar um terreno co-
mum, corno a lógica ou fatos empíricos, para demonstrar de um
modo não-circular que a concepção é correta. 35
- Foi isso o que tentei demonstrar nesses outros quatro
argumentos. Eu sei que Deus existe de um modo apropriada-
mente básico, e tentei provar que ele existe recorrendo aos
fatos comuns da ciência, da ética, da história e da filosofia.
Tomados em conjunto, constituem um argumento poderoso a
favor de Deus e do cristianismo.

Uma batida na porta


Fiquei observando Craig à medida que desfiava suas razões
para crer em Deus e notei que ele revelava uma serena confi-
ança no que estava dizendo. Antes de terminarmos, quis che-
gar ao âmago do que fundamentava esta convicção.
- Tão verdadeiro quanto você estar sentado aqui e agora,
o senhor tem a convicção do fundo da sua alma de que o cris-
tianismo é verdadeiro? - perguntei.
34Introduction, em The existence ofGod, New York: Macmillan, 1964,
p. 13-4. .
35\7: Religious diversity and perceptual knowledge of God, de William

Alston, em Faith and Philosophy 5 (1988), p. 433-48.


114 q EM DEFESA DA FÉ

Sem hesitar, ele respondeu:


- Sim, eu tenho.
- Em última análise, como o senhor tem essa certeza?
- Em última análise, a maneira pela qual o cristão real-
mente sabe que o cristianismo é verdadeiro se dá por meio do
testemunho autocomprobatório do Espírito de Deus - afir-
mou. - O Espírito Santo sussurra ao nosso espírito que per-
tencemos a Deus.P" Essa é uma de suas funções. Outras evi-
dências, ainda que válidas, são essencialmente confirmatórias.
Craig pensou por um momento e indagou:
- Você conhece Peter Grant, não conhece?
Respondi que sim, que era amigo desse pastor de Atlanta.
- Bem - prosseguiu Craig - , "ele criou uma expressiva
imagem de como isso funciona.
- Digamos que você esteja indo para o escritório para ver
se o seu patrão está lá. Vê o seu carro no estacionamento.
Pergunta à secretária se ele está e ela diz: "Sim, acabei de falar
com ele". Você vê luz na soleira da porta do seu escritório.
Ouve sua voz ao telefone. Com base em todas essas evidênci-
as, você tem boas razões para concluir que o seu patrão está
no escritório. Mas poderia fazer algo bem diferente. Você
poderia ir até a porta, bater e encontrar o patrão face a face.
Nessa altura, as evidências do carro no estacionamento, do
testemunho da secretária, da luz debaixo da porta e da voz ao
telefone - tudo isso ainda seria válido, mas assumiria um
papel secundário, porque agora você encontrou o patrão face
a face. Da mesma maneira, quando nos encontramos com Deus,
por assim dizer, face a face, todos os argumentos e evidências
a favor da sua existência - embora ainda perfeitamente váli-
dos - assumem um papel secundário. Eles agora se tornam
ratificadores do que o próprio Deus nos mostrou, de modo
sobrenatural, pelo testemunho do Espírito Santo em nosso
coração.

"Romanos 8.16: "O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito


que somos filhos de Deus".
116 q EM DEFESA DA FÉ

Se não, de que outra maneira você explicaria essas cin-


co categorias de evidências?
3. Craig orou para que Deus curasse milagrosamente seu
problema médico, mas ele não o fez. O que você acha da
sua reação? Você já orou para que Deus interferisse com
um milagre na sua vida? O que aconteceu? Como isso
tem afetado a sua atitude para com Deus? De que ma-
neira a reação de Craig à situação dele foi ou não útil
para você?

Outras fontes de consulta


Mais recursos sobre esse tema

• COVER, J. A. Miracles and Christian theism. Em Reason


for the hope within, org. Michael J. MURRAY, 345.. 74.
Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1999.
• CRAIG, William Lane. The problem af miracles. Em
Reasonable faith, p. 127-55. Wheaton, Illinois:
Crossway, 1994.
• GEISLER, Norman L. Miracles and the modern mind.
Grand Rapids, Michigan: Baker, 1992.
• GEIVETT, R. Dauglas e HABERMAS Gary R. , org. In Defense
ofmiracles. Downers Grave, Illinois: InterVarsity, 1997.
• LEWIS, C. S. Miraeles.' a preliminary study. New York:
Macmillan, 1947.
' •
',erceJ..ra
T O·:b' J· eçao
""
J\. evolução explica a origem da vida,
de modo Cl1J8 Deus Dão é necessário

Charles Darwin não quis assassinar Deus, como disse


certa vez. Mas ele o fez.
Revista Time 1

[A teoria da evolução] ainda é, como era na época de


Darwin, uma hipótese altamente especulativo inteira-
mente desprovida de apoio factual direto e muito dis-
tante do axioma autocomprobatário no qual alguns de
seus defensores mais agressivos gostariam que acreditás-
semos.
Michael Denton, biólogo molecular?

s investigadores policiais estavam buscando desespera-


damente algum elemento de evidência física que ligasse
o suspeito Ronald Keith Williamson ao brutal assassinato que
havia chocado a tranqüila cidade de Ada, Oklahoma, três anos
antes.
Tinham dificuldade em reunir provas sólidas contra
Williamson, que negava insistentemente ter estrangulado
Debra Sue Carter, de 21 anos. Até então, as únicas evidên-
cias consistiam em uma testemunha que havia visto
Williamson falando com Carter horas antes na noite em
que foi morta; o reconhecimento de Williamson que certa
vez sonhou que a havia matado e o testemunho de uma

"Iconoclast af the century, Charles Darwin (1809-1882), p. 31, Dec.


1999.
2Evolution: a theory in crisis, Chevy Chase, Maryland: AdIer & AdIer,
1986, p. 77.
118 q EM DEFESA DA FÉ

informante presa que afirmava tê-lo ouvido casualmente


falar sobre o crime. Evidentemente, a polícia necessitava
de mais provas se quisesse incriminá-lo. Finalmente, os
detetives apresentaram o argumento decisivo. Segundo
noticiou um jornal, um perito pegou quatro fios de cabelo
que haviam sido encontrados no corpo da vítima e em ou-
tros lugares da cena do crime, examinou-os em microscó-
pio e concluiu que combinavam com amostras tiradas de
Williamson. Estando o inquérito sustentado por evidências
científicas, os investigadores prenderam Williamson e o
levaram a julgamento.
Não levou muito tempo para o júri concluir pela culpa do
ex-jogador de beisebol da segunda divisão e despachá-lo para
o Corredor da Morte. Tendo sido o horrível crime finalmente
esclarecido, a população de Ada deu um suspiro coletivo de
alívio. A justiça tinha sido feita. O assassino iria pagar com a
vida.
Havia, porém, um grande problema: Williamson estava di-
zendo a verdade sobre a sua inocência. Depois que ele defi-
nhou na prisão por doze anos - nove deles aguardando a
execução - uma análise de DNA constatou que outra pessoa
havia cometido o assassinato. No dia 15 de abril de 1999,
Williamson finalmente foi solto."
Espere um momento - e quanto à evidência da compara-
ção dos fios de cabelo que apontou para a culpa de Williamson?
Se fios do seu cabelo foram encontrados na cena do crime,
isso não o implicava no assassinato? A resposta é descon-
certante: evidências ligadas aos cabelos com freqüência pre-
tendem provar mais do que realmente o fazem.
A notícia do jornal havia omitido alguns detalhes impor-
tantes. Os fios de cabelo da cena do crime não "combinaram"
realmente com o cabelo de Williamson. Um criminologista
havia meramente concluído que eles eram "consistentes" um

3V. DNA tests clear twa men in prison, de Charles T. Iones, publicado
em The Oklahoman, 16/4/1999.
A evolução explica a origem da vida... p 119
com o outro. Ou seja, sua cor, forma e textura pareciam seme-
lhantes. Assim, os fios de cabelo da cena do crime podiam ter
vindo de Williamson - ou talvez pudessem ter vindo de ou-
tra pessoa.
Longe de ser tão incriminadora como as impressões digitais,
a análise de fios de cabelo tem sido chamada "pseudo-ciência"
por alguns analistas jurídicos. Com freqüência os jurados ou-
vem testemunhos impressionantes sobre o que parece ser uma
prova cientificamente válida e concluem - incorretamente -
que ela demonstra a culpa do réu. Sabe-se que alguns promoto-
res, no calor da batalha judicial, têm até mesmo caracterizado
erroneamente ou exagerado sutilmente o valor da análise de ca-
belos no decorrer de seus argumentos finais."
No caso de Williamson, um juiz federal denominou a pro-
va do cabelo "não-confiável cientificamente" e disse que nun-
ca deveria ter sido utilizada contra o réu. O que é ainda mais
perturbador, nos últimos 25 anos a prova do cabelo havia sido
usada contra dezoito prisioneiros do Corredor da Morte que
posteriormente foram declarados inocentes."
O caso de Ronald Keith Williamson é um exemplo clamo-
roso de uma justiça equivocada. Sua condenação infundada
demonstra como é fácil que jurados tirem conclusões radicais
que não estão realmente alicerçadas em fatos científicos con-
cretos. E, em certo sentido, a história de Williamson estabele-
ceu um paralelo com a minha investigação de um dos mais
poderosos elementos de evidência científica que são comu-
mente usados contra a existência de Deus.

o feito de Darwin
Embora muitas coisas tenham contribuído, acho que poderia
dizer que perdi os últimos resquícios da minha fé em Deus

4V. Convicted by a haír, de Steven Mills e Ken Armstrong, publica-


do em The Chicago Tribune, 18/11/1999.
"Ibid.
120 q EM DEFESA DA FÉ

nas aulas de biologia do colégio. A experiência foi tão pro-


funda que me fez lembrar até da carteira em que me sentava
quando me ensinaram pela primeira vez que a teoria da evo-
lução explicava a origem e o desenvolvimento da vida. As
implicações eram claras: a teoria de Charles Darwin elimina-
va a necessidade de um Criador sobrenatural ao demonstrar
como processos naturais podiam explicar a crescente com-
plexidade e diversidade dos seres vivos.
A minha experiência não foi incomum. O estudioso Patrick
Glynn descreveu como ele enveredou por um caminho seme-
lhante e que terminou no ateísmo:

Abracei o ceticismo bem jovem, quando tomei conheci-


mento pela primeira vez da teoria de Darwin sobre a evo-
lução, imaginem só, em um colégio católico. Ocorreu-me
imediatamente que, ou a teoria de Darwin era verdadeira,
ou veraz era a história da criação no livro de Gênesis. As
duas não podiam ser verdadeiras, foi o que disse em aula à
pobre freira. Assim começou uma longa odisséia de afasta-
mento da fé sincera e prática religiosa, que havia caracteri-
zado a minha infância, em direção à perspectiva cada vez
mais secular e racionalista"

Na cultura popular, o caso, em favor da evolução, é geral-


mente considerado encerrado. "O darwinismo continua sen-
do uma das teorias científicas mais bem-sucedidas já publi-
cadas" , escreveu a revista Time em sua recapitulação do se-
gundo m ilêriio." Para Charles Templeton, está simplesmente
fora de questão que "qualquer vida é resultado de forças
evolucionárias imemoriais."8
O biólogo Francisco Ayala disse que "o maior feito" de Darwin
foi mostrar como o desenvolvimento da vida é "resultado de

"God: the evidence, de Patrick Glynn, p. 2-3.


"Icorrocl.ast of the Century, Charles Darwin (1809-1882). Dec. 1999,
p.31.
"Farewell to God, p. 232.
A evolução explica a origem da vida... p 121
um processo natural, a seleção natural, sem qualquer ne-
cessidade de apelar a um Cr-iador"." Michael Denton, bió-
logo e físico molecular australiano, concordou que o
darwinismo "rompeu a ligação do homem com Deus" e con-
seqüentemente "o deixou vagando no cosmo sem propósi-
.
to" .10 E acrescentou:

No que diz respeito ao cristianismo, o advento da teoria da


evolução [... ] foi catastrófico [... ] Provavelmente o declínio
da crença religiosa pode ser atribuído mais à propagação e
defesa da teoria darwinista da evolução pela comunidade
intelectual e científica do que a qualquer outro fator isola-
do.!'

Como declara o livro didático Evolutionary Biology [Biolo-


gia evolutiva]: '1\0 associar variações não-dirigidas e sem pro-
pósito com o processo cego e implacável da seleção natural,
Darwin tornou supérfluas as explicações teológicas ou espiri-
tuais dos processos da vida". 12 O biólogo inglês Richard
Dawkins falou em nome de muitos quando disse que Darwin
"tornou possível ao indivíduo ser um ateu intelectualmente
realizado.":"
Com efeito, o destacado evolucionista William Provine, da
Universidade CorneIl , admitiu honestamente que, se o
darwinismo for verdadeiro, existem então cinco implicações
inevitáveis: não existem evidências a favor de Deus; não exis-
te vida após a morte; não existe um fundamento absoluto para
o certo e o errado; não existe um sentido último para a vida; e
as pessoas realmente não têm Iívro-arbítrto.!"

"Creative evolution, NewYork: Iames and Bartlett, 1994, p. 4-5.


lOEvolution: a theory in crisis, p. 67.
llIbid., p. 66.
12Douglas FtmNAMA, Evoiutionary biology; Sunderland, Massachusetts:
Sinauer, 1986, p. 3.
13The blind watchmaker, New York: Norton, 1987, p. 6.
14Phillip E. JOHNSON, Darwin on trial, Downers Grove, Illinois:
InterVarsity Press, 1993, p. 126-7.
122 q EM DEFESA DA FÉ

Contudo, é o darwinismo verdadeiro? Encerrei minha


educação formal convencido que sim. Todavia, quando a
minha jornada espiritual começou a me levar para o âmbi-
to da ciência, comecei a ter um sentimento de crescente
inquietação. Do mesmo modo que a prova da comparação
de fios de cabelo no caso de Williamson, será que a prova a
favor da evolução significa provar mais do na verdade o
faz?
Quanto mais investigava o assunto, mais percebia como
havia subestimado certos detalhes significativos, num juízo
apressado que lembrava o julgamento do assassinato de
Oklahoma. Quando examinei a matéria meticulosamente, co-
mecei a questionar se as radicais conclusões dos darwinistas
são realmente justificadas por fatos científicos concretos. (A
propósito, uma viagem semelhante ajudou a levar Glynn de
volta à fé em Deus.)
Esse não é, logo descobri, um caso de religião versus ciên-
cia; é antes, uma questão de ciência versus ciência. Em anos
recentes, cada vez mais biólogos, bioquímicos e outros pes-
quisadores - não somente cristãos - têm levantado sérias
objeções à teoria da evolução, asseverando que as suas am-
plas conclusões às vezes estão baseadas em dados frágeis,
incompletos ou defeituosos.
O que à primeira vista parece uma prova científica acaba-
da a favor da evolução começa a se desfazer mediante um
exame mais detido. Novas descobertas feitas nos últimos trin-
ta anos têm levado um número cada vez maior de cientistas
a contradizer Darwin, concluindo que houve um Planejador
Inteligente por trás da criação e do surgimento da vida.
"O resultado desses esforços cumulativos no sentido de
investigar a célula - investigar a vida no plano molecular -
é um brado forte, claro e penetrante de 'desígnio!"', disse o
bioquímico Michael Behe, da Universidade Lehigh, na sua
crítica pioneira do d arwirrisrno.!" E prosseguiu:

15Darwin's black box, New York: The Free Press, 1996, p. 232.
A evolução explica a origem da vida... p 12}
A conclusão do desígnio inteligente flui naturalmente dos
próprios dados - não de livros sagrados ou crenças sectári-
as [... ] A hesitação da ciência em abraçar a conclusão do
desígnio inteligente [...] não tem um fundamento justificável
[... ] Muitas pessoas, inclusive muitos cientistas importantes
e respeitados, simplesmente não querem que exista algo além
da rratureza.t"

Essa última frase me tocou. Estava mais que feliz em me


agarrar ao darwinismo como desculpa para descartar a idéia de
Deus, de modo que eu pudesse pôr em prática descaradamente
a minha agenda de vida, sem restrições morais.
"No entanto, alguém que me conhece bem certa vez me
descreveu como um indivíduo 'ávido pela verdade' ."17 Mi-
nha formação em jornalismo e direito me impele a desencavar
opiniões, especulações e teorias, até chegar aos fundamentos
dos fatos concretos. Por mais que tentasse, não conseguia dar
as costas para as persistentes inconsistências que estavam
solapando as bases da teoria de Darwin.

Uma história de detetive dos primórdios


Todo mundo admite que a evolução é verdadeira até certo
ponto. Inegavelmente existem variações dentro de certas es-
pécies de animais e plantas, o que explica a existência de mais
de duzentas variedades diferentes de cães, a criação de vacas
que permitem melhor produção de leite e a adaptação e de-
senvolvimento das bactérias com imunidade contra os antibi-
óticos. Isso é denominado "microevolução".
Mas a teoria de Darwin vai muito além disso, insistindo que
a vida começou há milhões de anos com simples criaturas
unicelulares e depois desenvolveu-se através de mutações e
seleção natural no vasto conjunto de vida vegetal e animal que
povoa o planeta. Os seres humanos entraram em cena vindos
"Tbíd., p. 193, 251,243 (grifo do original).
"Tntrodução de Bill Hybels, em: Lee STROBEL, Inteligência espiritual,
2. ed., São Paulo: Vida, 2001.
124 q EM DEFESA DA FÉ

de um mesmo ancestral comum com o macaco. Os cientistas


chamam essa teoria mais controvertida de "macroevolução".
Inicialmente, pareceu-me perturbadora a pequena quanti-
dade de evidências fósseis para as transições entre diferentes
espécies de animais. O próprio Darwin admitiu que a falta
desses fósseis "é talvez a objeção mais óbvia e séria" contra a
sua teoria, embora tenha confiado de maneira plena que fu-
turas descobertas iriam prová-la.
Saltemos para 1979. David M. Raup, o curador do Museu
Field de História Natural, em Chicago, afirmou o seguinte:

Já se passaram cerca de cento e vinte anos desde Darwin e


o conhecimento do registro de fósseis expandiu-se enor-
memente. Temos agora um quarto de milhão de espécies
de fósseis, mas a situação não mudou muito [... ] Temos na
verdade menos exemplos de transição evolutiva que tínha-
mos na época de Darwin.!"

O que o registro de fósseis realmente mostra é que em ro-


chas que remontam a cerca de 570 milhões de anos ocorre o
súbito aparecimento de quase todas as divisões primárias do
reino animal, e elas aparecem plenamente formadas, "sem
vestígio dos ancestrais evolutivos que os darwinistas reivin-
dicam"."" É um fenômeno que aponta mais diretamente para
um Criador do que para o darwinismo.
Esse não é o único argumento contrário à evolução. No seu
livro Origem das espécies, Darwin também admitiu: "Se pu-
desse ser demonstrado que existiu qualquer órgão complexo
que não pudesse ter sido formado por numerosas, sucessivas
e ligeiras modificações, então a minha teoria cairia por terra
Inteiramente";" Aceitando esse desafio, o premiado livro de

18Conflicts between Darwin and paleontology, Bulletin, Field Museum


of Natural History, Jano 1979.
19Phillip E. JOHNSON, Darwin on trial, p. 54.
2°Charles DARWIN, Origin of species, New York: New York University
Press, 1988, p.154.
A evolução explica a origem da vida.: p lé?5
Behe, Darwin's black box [A caixa preta de Darwin], mos-
trou como algumas recentes descobertas bioquímicas têm en-
contrado numerosos exemplos exatamente desse tipo de "com-
plexidade irredutível".
Todavia, eu estava particularmente interessado em uma
questão mais fundamental. A evolução biológica somente pode
ocorrer depois de existir algum tipo de matéria viva que possa
reproduzir-se e em seguida tornar-se mais complexa por meio
de mutações e da sobrevivência dos mais aptos. Eu queria
retroceder ainda mais e levantar a questão angular da exis-
tência humana: a origem da vida.
A origem da vida tem intrigado por séculos tanto os teólo-
gos quanto os cientistas. "A coisa mais assombrosa para mim
é a própria existência", disse o cosmólogo Allan Sandage.
"Como é que a matéria inanimada pode organizar-se para
meditar em si mesma?"21
Realmente, como? A teoria de Darwin pressupõe que subs-
tâncias químicas inanimadas, se dispuserem de quantidade
certa de tempo e circunstâncias, podem transformar-se por si
mesmas em matéria viva. Inegavelmente, essa concepção tem
encontrado ampla aceitação popular ao longo dos anos. Mas
existiriam dados científicos para sustentar essa convicção? Ou
será que, como a evidência da comparação de cabelos no jul-
gamento de Oklahoma, essa análise é pródiga de especula-
ções mas carente de fatos concretos?
Sabia que, se os cientistas pudessem demonstrar de modo
convincente que a vida surgiu simplesmente por intermédio
de processos químicos naturais, então não haveria necessida-
de de Deus. Por outro lado, se as evidências apontam na outra
direção para um Planejador Inteligente, então todo o castelo
de cartas evolutivo de Darwin desabaria.
Essa história de detetive dos primórdios levou-me a uma
viagem a Houston, Texas, onde aluguei um carro e segui pelo

21George JOHNSON, Science and religion: bridging the great divide,


The New York Times, 30/6/1998.
126 q EM DEFESA DA FÉ

interior cortando fazendas de gado em direção à cidade de


College Station, sede da Universidade A & M do Texas. Cami-
nhando uma quadra a partir da escola, deparei-me com uma
modesta casa de dois pavimentos. Bati na porta de um dos
especialistas mais influentes de como surgiu a vida no primi-
tivo planeta terra.

A segunda entrevista: Walter L. Bradley, PH.D.


Walter L. Bradley causou sensação em 1984 quando publi-
cou em co-autoria o criativo livro The mystery of life's origin
[O mistério da origem da vida], uma análise demolidora das
teorias sobre a criação da matéria viva. Algumas sobrance-
lhas se ergueram porque o prefácio foi escrito pelo biólogo
Dean Kenyon, da Universidade Estadual de San Francisco,
cujo livro Biological predestination [Predestinação biológi-
ca] tinha defendido anteriormente que, sob condições apro-
priadas, os elementos químicos tinham a capacidade inata
de evoluir para células vivas. Chamando o livro de Bradley
"relevante, original e convincente", Kenyon concluiu: "Os
autores acreditam, e eu agora concordo, que existe um defei-
to fundamental em todas as atuais teorias das origens quími-
cas da vida."22
Desde então, Bradley tem escrito e falado amplamente
sobre o tema de como a vida começou. Ele contribuiu para
os livros Mere creation [Criação pura e simples] e Three
views of creation and evolution [Três perspectivas sobre cri-
ação e evolução], ao passo que ele e o químico Charles B.
Thaxton escreveram o ensaio "Information and the Origin
of Life" [Informação e a origem da vida] para o livro The
creation hypothesis [A hipótese da criação]. Seus artigos
mais técnicos são em co-autoria em "A statistical examina-
tion of self-ordering of amino acids in proteins" [Uma análise

22Charles B. THAXTDN, Walter L. BRADLEY e Roger L. OLSEN, The mystery


of Iife's origin, Dallas, Texas: Lewis and Stanley, 1984, contracapa.

L I". JI I, 11II, 1Ii,1.~ 11,.1 j liI "' I l .1'" I It II 1 i I, I


A evolução explica a origem da vida... 912'7

estatística da auto-ordenação dos aminoácidos nas prote-


ínas], publicado em Origins of life and evolution of the
biosphere [As origens da vida e a evolução da biosfera],
que reflete as suas pesquisas pessoais no campo da origem
da vida.
Bradley obteve o doutorado em ciência de materiais na Uni-
versidade do Texas, em Austin, e foi professor de engenharia
mecânica na Universidade A & M do Texas por 24 anos, traba-
lhando como chefe de departamento por quatro anos. Sendo
um especialista em polímeros e termodinâmica, ambos deci-
sivamente importantes na discussão sobre a origem da vida,
Bradley é diretor do Centro de Tecnologia de Polímeros, na
Universidade A&M, e recebeu dotações para pesquisa no valor
total de quatro milhões de dólares.
Tem sido consultor de corporações como Dow Chemical,
3M, B. F: Goodrich, General Dynamics, Boeing e Shell Oil, e
foi testemunha especializada em cerca de 75 processos judi-
ciais. Além disso, é membro do Centro para a Renovação da
Ciência e da Cultura, do Instituto Discovery, e foi eleito mem-
bro da Sociedade Americana de Materiais e da Associação
Científica Americana.
Bradley é um homem reservado e afável, que se expressa
no lento sotaque do Texas e é fortemente ligado à família. Seus
dois filhos e cinco netos moram todos perto uns dos outros
em College Station e se reúnem com freqüência. Sua esposa
Ann, a filha Sharon e os netos RacheI, Daniel e Elizabeth al-
moçaram conosco na mercearia local, depois da nossa entre-
vista.
Como um cientista preocupado com a precisão, Bradley
responde às perguntas com frases cuidadosas e comple-
tas, fazendo questão de reconhecer nuanças e de não exa-
gerar as suas conclusões. Ele fala de maneira respeitosa
dos evolucionistas com os quais tem debatido ao longo dos
anos, incluindo o renomado professor de química Robert
Shapiro, da Universidade de Nova York, que denominou
The mystery of life's origin [O mistério da origem da vida]
128 q EM DEFESA DA FÉ

"uma importante contribuição" que "reúne os principais


argumentos científicos que demonstram a inadequação das
atuais teor-ias.":"
Sentado à mesa da sala de jantar, Bradley, aos 56 anos,
apresentava-se descontraído e genial. Havia se aposentado
da Universidade A&M há apenas três meses. Estava conforta-
velmente vestido com uma camisa esporte azul-clara, jeans e
meias brancas sem sapatos. Ficou claro desde o início que ele
viera preparado para a nossa conversa: perto dele havia um
grande número de trabalhos de pesquisa cuidadosamente
empilhados. Como um eterno cientista, queria estar apto a
respaldar tudo o que dizia.
Estabelecendo um ponto de partida, iniciei a nossa con-
versa voltando ao próprio Darwin.
- Sua teoria da evolução procurou explicar como as for-
mas de vida puderam desenvolver-se por longos períodos de
tempo, tornando-se criaturas cada vez mais complexas - con-
firmei. - Mas isso ignora a importante questão da origem da
vida. Qual era a teoria de Darwin sobre isso?
Bradley apanhou um livro enquanto respondia.
- Bem, de fato ele não tinha uma idéia muito clara de corno
a vida surgiu - disse Bradley, colocando seus óculos de leitura
com aros de ouro. - Em 1871, escreveu uma carta em que fez
algumas especulações - não era sequer uma hipótese, somen-
te algumas idéias soltas. Bradley leu as palavras de Darwin:

Diz-se, com freqüência, que estão presentes agora todas as


condições que antes jamais poderiam ter estado, para a pri-
meira produção de um organismo vivo. Mas se (e oh!, que
enorme se!) pudéssemos imaginar que, em uma pequena la-
goa aquecida, com a presença de todos os tipos de amônia e
sais fosfóricos, luz, calor eletricidade, etc., fosse formado
quimicamente um composto de proteína, pronto para expe-
rimentar mudanças ainda mais complexas, essa matéria nos
dias atuais seria instantaneamente devorada ou absorvida, o

23The mistery of life's origin, contracapa.


A evolução explica a origem da vida.i, p 129
que não teria acontecido antes das criaturas vivas terem se
formado.>

Fechando o livro, Bradley reafirma:


- Darwin foi o primeiro a teorizar que a vida surgiu a par-
tir de substâncias químicas que reagiram em alguma "peque-
na lagoa aquecida".
- Parece bastante fácil - observei.
- Darwin pode ter subestimado o problema porque na-
quela época se imaginava amplamente que a vida se desen-
volvesse naturalmente em toda parte - respondeu. - As pes-
soas achavam que os vermes surgiriam espontaneamente da
carne em decomposição. Simultaneamente com a publicação
deA Origem das espécies, de Darwin, Francesco Redi demons-
trou que a carne, protegida das moscas, nunca produzia ver-
mes. Louis Pasteur então demonstrou que o ar contém
microorganismos que podem se multiplicar na água, dando a
ilusão da geração espontânea de vida. Anunciou na Sorbonne,
em Paris, que "a doutrina da geração espontânea nunca irá se
recuperar do golpe mortal deste simples experimento" .25
Bradley deixou esta declaração de Pasteur calar fundo em
mim antes de prosseguir.
-Na década de 1920, alguns cientistas disseram que con-
cordavam com Pasteur no sentido de que a geração espontâ-
nea não ocorre em um curto período de tempo. Porém,
teorizaram que, se você dispusesse de bilhões e bilhões de anos
- como o finado astrônomo Carl Sagan gostava de dizer - ,
então isso poderia afinal acontecer.
- E essa - concluí, - é a base da idéia que substâncias
químicas inanimadas podem combinar-se para formar célu-
las vivas, caso tenham tempo suficiente.
- Exatamente - confirmou.
24Francis DARWIN, The life and letters of Charles Darwin, New York:
D. Appleton, 1887, p. 202.
25R. V ALLERy-RADOT, The life of Pasteur, New York: Doubleday, 1920, p.
109.
130 q EM DEFESA DA FÉ

Os elementos básicos da vida


Contei a Bradley que no colégio e na faculdade me ensinaram
que a terra primitiva era coberta de lagos naturais de substân-
cias químicas e tinha uma atmosfera favorável para a forma-
ção da vida. Graças à energia proporcionada pelos relâmpa-
gos, as substâncias dessa "sopa pré-biótica" se uniram - num
período de bilhões de anos - e surgiu uma forma de vida
simples. A partir daí, entrou em cena a evolução.
- Quem concebeu esse cenário? - perguntei.
- O bioquímico russo Alexander Oparin propôs em 1924
que as combinações moleculares complexas e as funções
da matéria viva evoluíram a partir de moléculas mais sim-
ples que pré-existiam na terra original- disse. - Em 1928,
o biólogo inglês J.B.S. Haldane teorizou que a luz
ultravioleta, atuando na atmosfera primitiva da terra, fez
com que os açúcares e os aminoácidos se concentrassem
nos oceanos, e a vida então emergiu finalmente a partir desse
caldo original.
- Mais tarde, o ganhador do Prêmio Nobel Harold Urey
sugeriu que a atmosfera primitiva da terra teria favorecido o
surgimento de compostos orgânicos. Urey foi o orientador de
doutorado de Stanley Miller na Universidade de Chicago, e
Miller decidiu testar essa teoria experimentalmente.
O nome de Miller lembrou algo. Recordo-me de ter ouvido
na escola sobre a inédita experiência em que recriou em um
laboratório a atmosfera da terra primitiva e nela descarregou
eletricidade para simular os efeitos dos relâmpagos. Em pou-
co tempo ele descobriu que haviam sido criados aminoácidos
- os elementos básicos da vida. Posso recordar o meu profes-
sor de biologia narrando a experiência com entusiasmo
contagiante, sugerindo que ela provava conclusivamente que
a vida poderia ter surgido a partir de substâncias químicas
inanimadas.
- Esse experimento foi saudado como uma grande con-
quista naquela época, não foi? - perguntei.
A evolução explica a origem da vida... p 131
- Oh, com certeza! - Bradley declarou. - Sagan o denomi-
nou o passo isolado mais significativo no sentido de convencer
muitos cientistas de que a vida provavelmente é abundante no
cosmos." O químico William Day disse que o experimento de-
monstrou que esse primeiro passo na criação da vida não foi um
evento fortuito, mas inevitável;" O astrônomo Harlow Shapley
disse que Miller havia provado que "o surgimento da vida é em
essência um desdobramento bioquí-mico automático que ocor-
re naturalmente quando as condições físicas são apropriadas". 28
Esse fato certamente foi impressionante.
- Será que isso encerrou a questão? - perguntei.
- Longe disso - respondeu Bradley. - Por algum tempo,
os evolucionistas ficaram eufóricos. Mas houve um grande
problema com a experiência que invalidou os resultados.
Nunca ouvira na escola que o experimento de Miller tinha
um defeito fatal.
- Qual foi o problema? - perguntei.
- Miller e Oparin não tinham nenhuma prova concreta de
que a antiga atmosfera da terra era composta de amônia,
metano e hidrogênio, que Miller utilizou em sua experiência.
Basearam sua teoria na química física. Queriam obter uma
reação química favorável e assim sugeriram que a atmosfera
era rica nesses gases. Oparin era inteligente o suficiente para
saber que se começasse com gases inertes como o nitrogênio
e o dióxido de carbono, eles não reagiriam.
Arregalei os olhos. - Era uma crítica arrasadora do experi-
mento de Miller.
- O senhor está dizendo que o cenário foi preparado de
antemão para obter os resultados desejados? - indaguei com
um tom de incredulidade.

26Robert SHAPIRO,Origins, New York: Summit Baoks, 1986, p. 99.


27Genesis on planet Earth, East Lansing, Michigan: House of Talos,
1979, p. 7.
28Evolution after Darwin, Chicago: University of Chicago Press, 1960,
vol. 1, p. 57.
132 q EM DEFESA DA FÉ

- Essencialmente, sim - respondeu.


- Corno era o verdadeiro ambiente da terra original 7",
perguntei.
- A partir de 1980, os cientistas da NASA demonstraram
que a terra primitiva nunca teve metano, amônia ou hidrogê-
nio em quantidades consideráveis - informou. - Era com-
posta de água, dióxido de carbono e nitrogênio - e você sim-
plesmente não pode obter os mesmos resultados experimen-
tais com essa mistura. Simplesmente não vai funcionar. Ex-
periências mais recentes têm-no confirmado.
Afundei na poltrona, impressionado com as implicações do
que Bradley havia revelado. Lembrei-me imediatamente de meu
professor de biologia, que parecia absolutamente confiante de
que o experimento de Miller validava a evolução química da
vida. Certamente, era esse o pensamento dominante da época.
Agora, novas descobertas haviam mudado tudo - todavia, exis-
tem gerações de ex-estudantes que ainda vivem sob a impres-
são de que a questão da origem da vida já foi resolvida.
- Desse modo, hoje o valor científico do experimento de
Miller - principiei, levando Bradley a concluir a minha frase.
- é zero - completou. - Quando os livros escolares
descrevem o experimento de Miller, deveriam ser suficiente-
mente honestos para dizer que foi algo interessante do ponto
de vista histórico, mas não muito relevante para mostrar como
a vida de fato surgiu.:"
Assobiei levemente. A analogia com o julgamento de
Oklahoma provava-se ser ainda mais precisa do que eu havia
imaginado.

Compondo uma célula


Antes de prosseguirmos, achei que seria importante enten-
der alguns pontos fundamentais quanto à matéria viva para
29VOrigín of life and evolution in biology textbooks - a critique, de
Gordon C. Mills, Malcolm Lancaster & Walter L. Bradley, publicado em
The American Biology Teacher, Feb. 1993.
A evolução explica a origem da vida... p 133
verificar se é razoável crer que ela poderia ter sido produto
de reações químicas espontâneas.
- Vamos começar estabelecendo a diferença entre um sis-
tema vivo e um que não é vivo - disse a Bradley.
- Um sistema vivo precisa fazer pelo menos três coisas:
processar energia, armazenar informações e reproduzir-se -
informou. "Todos os sistemas vivos comportam-se assim. Os
seres humanos realizam essas três funções, embora as bacté-
rias as realizem de maneira muito mais rápida e eficiente. As
coisas inanimadas não as realizam.
Rememorando os dias de Darwin, perguntei:
- Darwin considerava que a matéria viva básica - diga-
mos, por exemplo, um organismo unicelular - era essencial-
mente simples?
- Sim, sem dúvida - foi a resposta. - Darwin provavel-
mente não achava que seria muito difícil criar vida a partir da
ausência de vida, pois a distância entre as duas não parecia
muito grande para ele. Em 1905, Ernst Haeckel descreveu as
células vivas simplesmente como "glóbulos homogêneos de
plasma";" Naquele tempo era impossível verificar a comple-
xidade que existe dentro da membrana celular. Mas a verdade
é que um organismo unicelular é mais complicado que qual-
quer coisa que tenhamos conseguido recriar por meio de
supercomputadores.
- Uma pessoa descreveu organismo unicelular de modo
muito criativo - mas bastante preciso - como uma indús-
tria de alta tecnologia, completada com linguagens artificiais
e sistemas de decodificação, bancos centrais de memória que
armazenam e localizam quantidades impressionantes de in-
formações, sistemas de controle de precisão que regulam a
montagem automática dos componentes, mecanismos de re-
visão e controle de qualidade que protegem contra erros, siste-
mas de montagem que utilizam princípios de pré-fabricação e
construção modular e um completo sistema de duplicação que

30Yhe wonders of life, Londres: Watts, 1905, p. 111.


134 q EM DEFESA DA FÉ

permite ao organismo reproduzir-se a uma velocidade es-


tonteante.
- Isso é extremamente impressionante - disse. - Mas
talvez os organismos unicelulares sejam mais complicados hoje
por terem se desenvolvido e evoluído ao longo das eras. Tal-
vez as primeiras células produzidas primitivamente no pla-
neta fossem muito mais elementares, portanto, mais fáceis de
.
errar,
- Vamos aceitar essa teoria - admitiu Bradley. - Mas
mesmo quando você tenta imaginar como teria sido a célula
viva mínima, ainda assim ela não é nada simples.
- O que entraria na formação de um organismo vivo?
- perguntei - e, antes que Bradley pudesse abrir a boca
para responder, acrescentei rapidamente: - E o manteria
simples.
- Bem - disse, limpando a garganta. - Essencialmente,
começa-se com os aminoácidos. Eles vêm em oitenta tipos di-
ferentes, mas somente vinte deles são encontrados em orga-
nismos vivos. O segredo, então, é isolar somente os
aminoácidos certos. Depois, os aminoácidos certos precisam
ser conectados na seqüência correta a fim de produzir molé-
culas de proteínas. Imagine aquelas formações desmontáveis
de plástico com as quais as crianças brincam - você precisa
montar os aminoácidos certos de maneira correta para final-
mente obter funções biológicas.
Imaginar crianças brincando com brinquedos de plástico
fazia esse processo parecer - bem, brincadeira.
- Isso não parece muito difícil - disse.
- Não seria se você estivesse aplicando seus conhecimentos
ao problema, selecionando intencionalmente e reunindo os
aminoácidos um de cada vez. Mas, lembre-se, essa é uma evolu-
ção química. Ela não seria dirigida por nenhum auxílio externo.
E existem muitos outros fatores complicadores a considerar.
- Tais como o quê?
"Por exemplo, outras moléculas tendem a reagir mais pron-
tamente com aminoácidos que os aminoácidos reagem uns
A evolução explica a origem da vida... p 135
com os outros. Agora você tem o problema de como eliminar
essas moléculas estranhas. Mesmo na experiência de Miller,
somente dois por cento do material produzido era composto
de aminoácidos, de modo que você teria muitos outros mate-
riais químicos a entravar o processo.
- Há ainda um outro fator complicador: existe um nú-
mero igual de aminoácidos destros e canhotos, e somente os
canhotos atuam na matéria viva. Agora, você precisa ter so-
mente esses aminoácidos seletos para interligar na seqüên-
cia correta. E você também precisa do tipo certo de ligações
químicas - a saber, as ligações de peptídeos - nos lugares
certos para que a proteína seja capaz de dobrar-se de um
modo tridimensional específico. De outro modo, ela não irá
funcionar.
- É mais ou menos como um linotipista que pinça letras
de um cesto e compõe as palavras, como se costumava fazer, à
mão. Se você conduzir o processo com sua inteligência, não
haverá problema. Mas se você simplesmente escolhesse as
letras ao acaso e as juntasse aleatoriamente - até de cabeça
para baixo e de trás para a frente - então qual seria a chance
de obter palavras, sentenças e parágrafos que tivessem senti-
do? É extremamente improvável.
- Da mesma maneira, talvez cem aminoácidos preci-
sem ser reunidos de maneira exatamente correta para fazer
uma molécula de proteína. E lembre-se que esse é somente
o primeiro passo. Criar uma molécula de proteína não sig-
nifica que você criou a vida. Agora é preciso reunir um
conjunto de moléculas de proteína - talvez duzentas de-
las - com as funções certas, para obter uma célula viva
típica.
Puxa! Agora eu estava começando a perceber a enormida-
de do desafio. Mesmo que Miller estivesse certo quanto à faci-
lidade com que os aminoácidos poderiam ser produzidos na
atmosfera da terra primitiva, contudo o processo de reuni-las
em moléculas de proteínas e depois associar estas últimas em
uma célula viva seria estarrecedor.
136 q EM DEFESA DA FÉ

- Nos 'sistemas vivos - prosseguiu Bradley, - a orienta-


ção necessária para juntar qualquer coisa vem do DNA. Cada
célula de cada planta e animal precisa ter uma molécula de
DNA. Pense nela como um pequeno microprocessador que con-
trola tudo. O DNA trabalha em estreita associação com o RNA
para dirigir a seqüência correta dos aminoácidos. Ele é capaz
de fazer isso através de instruções bioquímicas - isto é, in-
formações - que estão codificadas no DNA."
Isso levantava uma questão óbvia. HDe onde veio DNA?", °
indaguei.
- Fazer o DNA e o RNA seria um problema ainda maior do
que criar proteínas - respondeu. Eles são muito mais com-
plexos e existe uma série de problemas práticos. Por exem-
plo, a síntese dos elementos constitutivos básicos do DNA e
do RNA não foi feita com êxito, exceto sob condições muito
pouco plausíveis, sem qualquer semelhança com as da terra
primitiva. Klaus Dose, do Instituto de Bioquímica de Mainz,
na Alemanha, admitiu que as dificuldades para sintetizar o
DNA e o RNA "estão presentemente além da nossa imagina-
ção.":" Honestamente, a origem desse sistema sofisticado, que
é ao mesmo tempo rico de informações e capaz de se repro-
duzir, tem sido um enorme obstáculo para os cientistas da
origem da vida. Como disse o ganhador do Prêmio Nobel sir
Francis Crick: "A origem da vida parece ser quase um mila-
gre, tantas são as condições que teriam de ser satisfeitas para
torná-la uma realidade". 32
Mesmo assim, os cientistas têm tentado elaborar teorias
criativas que procuram explicar como os biopolímeros (tais
como as proteínas) foram montados precisamente com as
estruturas básicas certas (aminoácidos) e somente com os
isômeros corretos (aminoácidos canhotos), unidos somen-
te pelas ligações de peptídeos certas, somente na seqüência

31The origin of life: more questions than answers, Interdisciplinory


Science Revíews 13, 1988, p. 348.
32IJfe itself, New York: Simon and Schuster, 1981.
A evolução explica a origem da vida... p 137
correta. Eu resolvi pedir a Bradley uma análise das hipóte-
ses mais comuns que os cientistas têm proposto nos últi-
mos anos.

Teoria n. o 1: Acaso fortuito


Eu havia aprendido na escola que, se as substâncias quími-
cas tivessem uma grande quantidade de tempo para interagir
na "pequena lagoa aquecida" da terra nos primórdios, final-
mente o improvável se tornaria provável e a vida surgiria.
Porém, levando em conta a descrição feita por Bradley do que
teria de acontecer, pude ver por que essa teoria perdeu apoio
nos últimos anos.
- Antes os cientistas acreditavam na idéia de que o acaso
fortuito mais o tempo produzem a vida porque - igualmente
acreditavam na teoria do estado permanente do universo - ,
disse Bradley. - Isso significava que o universo era infinita-
mente antigo e quem sabe o que poderia acontecer se você
tivesse uma quantidade infinita de tempo? Porém, com a des-
coberta da radiação de fundo em 1965, a teoria do big-bang
veio a dominar a cosmologia. A má notícia para a teoria da
evolução foi que isso significava que o universo tinha somen-
te por volta de 14 bilhões de anos. Pesquisas mais recentes
constataram que a terra provavelmente tem meDOS de 5 bi-
lhões de anos.
- Ainda assim - exclamei - isso é muito tempo. Muita
coisa pode acontecer em 5 bilhões de anos.
- Na realidade, não é tanto tempo quanto você imagina. A
terra passou muito tempo esfriando até a temperatura em que
a vida pudesse ser mantida. Com base na descoberta de
microfósseis, os cientistas agora calculam que o período de
tempo transcorrido desde que a terra atingiu a temperatura
adequada até o primeiro surgimento da vida foi de apenas
400 milhões de anos. Isso não é muito tempo para a ocorrên-
cia da evolução química. De fato, Cyril Ponnamperuma, da
Universidade de Maryland, e Carl Woese, da Universidade de
138 q EM DEFESA DA FÉ

Illinois, sugeriram que a vida pode ser tão antiga quanto a


terra e que a sua origem pode ter praticamente coincidido com
o nascimento do plunota.:"
- E não somente o tempo foi curto demais, mas as pro-
babilidades matemáticas de se formar um organismo vivo
são tão astronômicas que ninguém ainda acredita que o
acaso fortuito explique a origem da vida. Mesmo que as con-
dições fossem ideais, isso não iria funcionar. Se você to-
masse todo o carbono que existe no universo e o colocasse
na face da terra, permitisse que ele reagisse quimicamente
no ritmo mais rápido possível e o deixasse ficar por um
bilhão de anos, a probabilidade de se criar uma só molécu-
la funcional de proteína seria de uma em 10 seguido de 60
zeros.
Essa probabilidade é tão infinitesimal que a mente huma-
na não pode compreendê-la.
- Comparado a isso, ganhar na loteria é quase uma certe-
za - brinquei.
- Certamente. Behe disse que a probabilidade de enca-
dear somente cem aminoácidos para criar uma molécula de
proteína por acaso seria o mesmo que um homem de olhos
vendados encontrar um grão de areia específico em algum
lugar da vastidão do Deserto do Saara - e fazê-lo não somen-
te uma vez, mas em três ocasiões d ifererrtes.:" Sir Frederick
Hoyle expressou isso de maneira jocosa quando disse que
esse cenário é tão provável quanto um furacão atingir um
ferro velho e montar acidentalmente um Boeing 747 plena-
mente funcional.
- Para todos os propósitos práticos a probabilidade é zero.
É por isso que, muito embora algumas pessoas não treinadas
nessa área ainda acreditem que a vida surgiu por acaso, os ci-
entistas simplesmente não mais crêem nisso.

33Haw did Iífo begin?, Newsweek, 6/8/1979.


34J. BUEll. & G. HEARN, eds., Darwinism: science ar philosophy?, Dallas,
Texas: Foundation for Thought and Ethícs, 1994, p.68-9.
A evolução explica a origem da vida... p 139
Teoria D. o 2: Afinidade química
Tendo sido o acaso fortuito firmemente rejeitado como expli-
cação para a origem da vida, os cientistas se voltaram para
outra teoria: a de que deve haver alguma atração inata que
faria com que os aminoácidos se ligassem espontaneamente
na seqüência correta para criar as moléculas de proteínas de
que são feitas as células vivas. Essa idéia foi popularizada em
um livro de 1969, tendo Kenyon como co-autor, ao argumen-
tar que o surgimento da vida de fato pode ter sido "predesti-
nado quimicamente" por causa dessas preferências de ligação
química. 35
De fato, os pesquisadores estudaram o Atlas of protein
sequence and structure [Atlas de seqüência e estrutura de
proteínas] para verificar se certos aminoácidos se posicio-
navam preferencialmente perto de um vizinho em particu-
lar. Eles observaram dez proteínas e realizaram um experi-
mento de apoio que parecia sugerir que havia mérito nessa
hipótese.
- Essa parece ser uma explicação plausível - disse a
Bradley. - O que há de errado com ela?
Embora não o soubesse naquele momento, estava fazendo
a pergunta ao cientista que fez parte da equipe que refutou
essa hipótese em 1986.
- Nós criamos um programa de computador para analisar
não apenas dez proteínas, mas cada uma das duzentas e cin-
qüenta proteínas do Atlas - Bradley respondeu. - Os resul-
tados demonstraram conclusivamente que a seqüência não
tinha nada a ver com preferências químicas. Conseqüente-
mente, essa teoria caiu por terr'a.ê" Até mesmo Kenyon, um de
seus maiores defensores, repudiou a idéia.

35V. Dean KENYüN & G. STEINMAN, Biological predestination de Dean


Kenyon e G. Steinman, New York: McGraw Hill, 1969.
36V. A statistical examination of self-ordering af amino acids in
prateins, de Randall A. Kok, John A. Taylar & Walter L. Bradley, publi-
cado em Origins of Life and Evolution ofthe Biosphere 18 (1988).
140 q EM DEFESA DA FÉ

Teoria n, o 3: Tendências auto-ordenatôrias


Essa teoria vem com um título intimidador: "termodinâmica
de não-equilíbrio". Basicamente, esse conceito diz que, sob
certas circunstâncias, se a energia atravessar um sistema em
uma velocidade consideravelmente elevada, o sistema se tor-
na instável e irá de fato reorganizar-se em uma forma alterna-
tiva e um tanto mais complexa.
Um exemplo disso é a água que escorre pelo ralo de uma
banheira. Inicialmente, as moléculas de água simplesmente
escoam aleatoriamente. Mas no fim, a saída se torna muito
mais ordenada à medida que as moléculas espontaneamente
formam um redemoinho.
- Alguns cientistas têm sugerido que essa tendência das
moléculas se tornarem mais ordenadas poderia ser uma ana-
logia de como a natureza se organiza espontaneamente sob
determinadas circunstâncias - disse a Bradley.
Ele estava plenamente familiarizado com essa hipótese.
- O problema é que o nível de organização de que você
está falando é bastante baixo. Até mesmo Ilya Prigogine, o
especialista em termodinâmica que especulou acerca dessa
teoria, admitiu recentemente que "ainda existe uma diferença
entre as estruturas mais complexas que podemos produzir em
situações de não-equilíbrio na química e a complexidade que
encontramos na biologia. "37
- Ele está certo. Compare o redemoinho de uma banheira
com a complexidade estonteante que descrevi na criação da maté-
ria viva e você verá que é uma diferença incrivelmente grande.
Outros cientistas têm apresentado a "termodinâmica do
equilíbrio" como outra possível solução. Por exemplo, se a
água é resfriada, transforma-se em gelo. As moléculas do gelo
são mais ordenadas que as moléculas aleatórias da água. Al-
gumas pessoas têm apontado para isso como outra maneira
pela qual a natureza se organiza.

37The end o] certainty: time, chaas, and the new laws af nature, New
Yark: The Free Press, 1997, p. 71.
A evolução explica a origem da vida... p 141
Mas Bradley desprezou essa teoria por uma razão seme-
lhante.
- Outra vez - afirmou, - você precisa de um nível mui-
to baixo de informação para criar cristais de gelo em compa-
ração com o elevado nível de informação necessário para or-
ganizar os aminoácidos com o fim de criar moléculas de pro-
teína. É por isso que essa teoria também não colou.
Bradley disse que há uma diferença significativa entre a
"ordem" encontrada em algumas coisas inanimadas e a "com-
plexidade específica" das células vivas.
- Os cristais de gelo exigem uma certa dose de ordem,
mas ela é simples, repetitiva e necessita de uma baixa quan-
tidade de informações, mais ou menos como preencher um
livro com as palavras "eu amo você, eu amo você" eu amo
você' muitas e muitas vezes. Em contraposição, o tipo de com-
plexidade que vemos na matéria viva tem um alto conteúdo
de informações que especificam como reunir os aminoácidos
na seqüência certa, a exemplo de livro que foi escrito com
frases de significado preciso e que contam uma história.
Inquestionavelmente, a energia pode criar padrões de ordem
simples. Por exemplo, você pode ver marcas na areia de uma
praia e saber que foram criadas pela ação das ondas. Mas se
você visse as palavras "João ama Maria" e um coração com
uma flecha, você saberia que a energia sozinha não criou aqui-
lo. E" por isso que o renomado teórico de informações H. P.
Yockey disse: "As tentativas de relacionar a idéia de ordem[... ]
com organização biológica[... ] devem ser consideradas um jogo
de palavras que não pode resistir a um exame cuidadoso.":"

Teoria n. o 4: Semeadura vinda do espaço


Frustrados com os obstáculos aparentemente intransponíveis
quanto à evolução química na terra, alguns cientistas - in-
cluindo Crick, um dos descobridores do DNA - propuseram
A calculation of the probability of spontaneaus biagenesis by infar-
38

rnatian Theary, Journal oftheoretical Biology 67, p. 380.


142 q EM DEFESA DA FÉ

que as estruturas básicas da vida viriam de algum outro lu-


gar do espaço. Hoyle e N. C. Wickramasinghe especularam
que partículas do tamanho de células vivas poderiam alcan-
çar a terra sem serem incineradas pela atmosfera. Enquanto
no espaço, uma fina camada de pó de grafite poderia protegê-
las dos raios destrutivos de luz ultravioleta.
Essa teoria foi amparada pela descoberta de aminoácidos
no famoso meteorito Murchison, que caiu na Austrália em
1969, bem como em outro meteorito que mergulhou na
Artártida há cerca de 3,8 bilhões de anos."?
Crick e Leslie Orgel foram ainda mais longe ao sugerir que
esporos de vida podem ter sido enviados intencionalmente
para a terra por uma civilização avançada, talvez, alguns têm
especulado, com a intenção de fazer da terra uma área de pre-
servação, um zoológico ou um depósito de lixo cósmlco.v'
- Tudo isso parece bastante bizarro - sugeri a Bradley. -
Mas, por outro lado, talvez não seja tão bizarro quanto a idéia
de que Deus criou tudo.
O rosto de Bradley transmitiu a sua insatisfação com esse
enfoque.
- O fato que os cientistas formulem esse tipo de propostas
grotescas demonstra que simplesmente não conseguem ima-
ginar nenhum modo pelo qual a vida poderia ter surgido na-
turalmente sobre a terra, e eles estão seguros disso - ressal-
tou. - Gosto da maneira como Phillip Johnson o expressou:
"Quando um cientista do calibre de Crick sente que precisa
invocar homens do espaço indetectáveis, é hora de conside-
rar se o campo da evolução pré-biológica não chegou a um
beco sem saída". 41
- O maior defeito dessa teoria é que ela não resolve o pro-
blema da origem da vida - explicou Bradley. - Pense no

39V. The mystery of Iife's origiti, de Charles B. Thaxton, Walter L.


Bradley & Roger L. Olsen p. 191-6.
4ülbid., 194.
41Darwin on trial, p. 111.
A evolução explica a origem da vida... p 143
seguinte: se você disser que a vida surgiu em algum outro
lugar, isso simplesmente transfere o problema para outro lo-
cal! Os mesmos obstáculos persistem.
Embora a observação de Bradley certamente fosse verda-
deira, insisti em outra possibilidade.
- Talvez outro planeta tivesse uma atmosfera de amônia,
metano e hidrogênio, mais propícia para a produção dos ele-
mentos básicos da vida - sugeri.
- Mesmo que fosse esse o caso - respondeu, - como foi
que esses aminoácidos e proteínas foram reunidos para formar
matéria viva? Esse é um problema de informação - como or-
denar a seqüência dos átomos da maneira certa - e esse pro-
blema independe de como é a atmosfera. Mesmo que meteoritos
tenham trazido aminoácidos para a terra, ainda se tem o pro-
blema da ordenação.
- Como disse A. Dauvillier em The photochemical origin
of life [A origem fotoquímica da vida], essa teoria "é uma hi-
pótese simplista, um subterfúgio que procura evitar o pro-
blema fundamental da origem da vida". 42 Até mesmo Stanley
Miller não vê utilidade nessa teoria. Disse à revista Discover:
"Matéria orgânica do espaço exterior - isso é realmente bes-
teira" .43
Bradley apanhou um relatório da conferência internacio-
nal de cientistas da origem da vida realizada em julho de 1999
e leu um trecho para mim: "Antes do final do segundo dia da
conferência, os pesquisadores tiveram de concordar que a trans-
ferência extraterrestre não poderia ter fornecido todas as molé-
culas pré-bióticas necessárias" .44 O relatório prosseguia dizen-
do que o evolucionista Shapiro tinha estudado o meteorito
Murchison e "demonstrado que reações colaterais impediriam
eficazmente que quaisquer moléculas pré-bióticas existentes

42New York: Academic Press, 1965, p. 2.


43Peter RADETSKY, How did life start?, Discover, N OVo 1992.
44Fazale R. RANA & HughRoss, Life from the heavens? Not this way,
Facts for Faith, Oet. 2000 (grifo do original).
144 q EM DEFESA DA FÉ

no meteorito jamais formassem espontaneamente moléculas


de vida.":"
- Enquanto isso - acrescentou Bradley, "Christopher
Chyba, um cientista planetário da NA8A, disse que, embora as
naves espaciais tenham confirmado alguns compostos orgâ-
nicos em cometas no espaço exterior, "nessas velocidades, pelo
menos 16 a 24 km por segundo, as temperaturas alcançadas
no impacto são tão elevadas que qualquer coisa acaba sendo
Incirierada't.v' Além disso, mesmo que tenham chegado à ter-
ra, você ainda tem o problema de como teriam sido reunidos
para formar matéria viva.

Teoria n, o 5: Respiradouros no oceano


Em 1977, cientistas a bordo do submarino de pesquisa Alvin,
oitocentos metros abaixo da superfície do Pacífico, a oeste do
Equador, descobriram exóticos respiradouros termais no leito
do oceano. Vermes tubulares, moluscos e bactérias, cuja fonte
primária de energia são os compostos de enxofre que saem
dos respiradouros, abundavam nas proximidades. Desde en-
tão, dezenas de outros respiradouros têm sido encontrados
em vários locais subaquáticos.
Isso levou Jack Corliss, um biólogo marinho que agora tra-
balha no Centro de Vôos Espaciais Goddard, da NASA, a suge-
rir que esses respiradouros poderiam ter criado o ambiente
onde teria sido produzido o início da vida.
"O importante acerca das fontes termais é que elas forne-
cem um processo bom, seguro e contínuo pelo qual se pode ir
desde moléculas muito simples até células vivas e bactérias
primitivas", disse à revista Discover:"
Alguns periódicos de divulgação científica, pródigos em espe-
culações, mas pobres em dados específicos, têm popularizado

45Facts for [aitb. (grifo do original).


46Peter RADETSKY, How did life start?, Discover, Nov, 1992.
"Tbid.
A evolução explica a origem da vida... p 145
esse conceito. Todavia, quando o escritor científico, Peter
Radetcky, indagou ao pesquisador da origem da vida, Miller,
sobre o respiradouro, deparou-se com aberta hostilidade. "A
hipótese do respiradouro é uma coisa simplesmente furada.
Não entendo por que temos ainda de discuti-la", retrucou um
irritado Mí ller.?"
Bradley também se mostrou cético quando mencionei
essa teoria.
- Tudo bem, os respiradouros poderiam constituir uma
fonte incomum de energia que poderia levar algumas subs-
tâncias químicas a se tornarem reagentes - consentiu. - Mas
eles simplesmente não abordam o problema da ordenação.
Essa teoria nada faz para resolver o problema de como mon-
tar os elementos básicos da vida na seqüência correta e com
as conexões corretas. Mais que isso, aduziu, algumas experi-
ências de Miller e Jeffrey Bada na Universidade da Califórnia,
em San Diego, sugeriram que as elevadas temperaturas des-
ses respiradouros superaquecidos destruiriam os compostos
orgânicos complexos, ao invés de criá-los.
Bradley explicou:
- Considera-se hoje em dia que toda a água do oceano é
reciclada periodicamente através desses respiradouros. Se você
finalmente obtivesse algumas moléculas que estavam por se
tornar maiores e mais complexas, elas seriam tão frágeis que
seriam destruídas pelo calor quando fossem recicladas. Isso
significa que a escala de tempo para a evolução química seria
encurtada de modo dramático. Os respiradouros fariam você
voltar e começar tudo de novo a intervalos bastante curtos -
e isso atuaria contra o desenvolvimento da vida.

Teoria D. o 6: Vida procedente da argila


Uma outra hipótese popularizada pela mídia nos últimos
anos foi a sugestão do químico escocês A. G. Cairns-Smith

48How did life start, Discover, Nov. 1992.


146 q EM DEFESA DA FÉ

de que a vida de algum modo surgiu de argilas cuja estru-


tura cristalina tinha suficiente complexidade para, de al-
gum modo, estimular as substâncias químicas pré-bióticas
a se jurrtarern.:"
- O que dizer dessa abordagem? - perguntei a Bradley.
"Em certo sentido, as argilas poderiam ajudar, porque as
moléculas não gostam de reagir na água e a superfície da
argila poderia dar-lhes um meio menos úmido - Bradley
respondeu. Mas como a argila seria capaz de transmitir as
informações necessárias para agrupar as substâncias quí-
micas de maneira correta? O melhor que a argila cristalina
pode fazer é fornecer informações de agrupamento de grau ;

muitíssimo baixo, e isso será muito repetitivo. E como o


livro de que falei há pouco, cheio de "Eu amo você, eu amo
;

você, eu amo você" muitas e muitas vezes. E algo ordena-


do? Sim. Tem muita informação? Não. O cristal é isso -
nada mais que informações redundantes. Está muitíssimo
aquém da complexidade específica de que a matéria viva
necessita. Até Cairns-Smith reconheceu os problemas sus-
citados por esta idéia. Ele admitiu em 1991: "Ninguém foi
capaz de induzir a argila a fazer qualquer coisa que se asse-
melhe à evolução em um laboratório e ninguém encontrou
na natureza qualquer coisa que se assemelhe a um organis-
mo baseado na argila". 50

A conclusão mais razoável


Tentativa após tentativa, os cientistas da origem da vida aca-
bam de mãos vazias quando tentam teorizar sobre como as
substâncias químicas poderiam evoluir até se tornarem maté-
ria viva. Recentemente, alguns deles têm utilizado modelos
de computador para tentar mostrar como as reações químicas

49V. Genetic takeover and the mineral origine o] life, New York:
Carnbridge University Press, 1982.
50Infarmation and the origin af life, The creation hypothesis, Dawners
Grave, Illinais: InterVarsity Press, 1994, p. 194.
A evolução explica a origem da vida.: P 141
poderiam ter ocorrido na terra primitiva, mas esses cenários
somente funcionam se o computador for programado para eli-
minar alguns dos obstáculos intransponíveis que as substân-
cias químicas teriam efetivamente encontrado no mundo real.
Quando um cientista do Instituto Santa Fé, onde algumas
simulações de computador têm sido feitas, comentou: "Se
Darwin tivesse um computador em sua mesa, quem sabe o que
ele poderia ter descoberto", comentou maldosamente o especi-
alista em origem da vida [ohn Horgan: "De fato, Charles Darwin
poderia ter descoberto muita coisa sobre computadores e mui-
to pouco sobre a natureza."51
Com tantas teorias se evaporando sob o crivo do exame
minucioso, pedi a Bradley sua avaliação pessoal do estado
das pesquisas sobre o surgimento da vida.
- Não há qualquer dúvida que a ciência, pelo menos nes-
te momento, está em um beco sem saída - respondeu. - O
otimismo dos anos 50 já se foi. O estado de ânimo na confe-
rência internacional de 1999 sobre a origem da vida foi des-
crito como sombrio - cheio de frustração, pessimismo e de-
sânímo." Ninguém faz de conta que qualquer alternativa ofe-
reça uma explicação racional de como a vida evoluiu espon-
taneamente desde as substâncias químicas simples até as pro-
teínas e daí até as formas básicas de vida.
Bradley apanhou um livro e localizou rapidamente a cita-
ção que buscava.
- Klaus Dose, o bioquímico que é considerado um dos
maiores especialistas na área, sintetizou muito bem a situa-
ção - disse Bradley, lendo as palavras dele:

Mais de trinta anos de experiências sobre a origem da vida


nos campos da evolução química e molecular levaram a
urna melhor percepção da imensidão do problema da ori-
gem da vida na terra, em vez da solução. Presentemente,

51William A. DEMBSKI, Mere creation, p. 46.


52Fazale R. RANA & Hugh Ross, Life from the heavens? Not this way,
Facts for Faith, 1. 0 trimestre, 2000.
148 q EM DEFESA DA FÉ

todas as discussões sobre teorias e experimentos de princí-


pios nessa área terminam em impasse ou em uma confis-
são de ígrrorâricia.P"

Bradley continuou:
- Shapiro argumenta incisivamente que todas as atuais
teorias estão falidas.v' Crick afirmou movido pela frustração:
"Toda vez que escrevo um trabalho sobre a origem da vida,
juro que nunca mais escreverei outro, porque existe um ex-
cesso de especulação correndo atrás de muito poucos fatos". 55
Mesmo Miller, cerca de quarenta anos após a famosa experi-
ência, declarou ao periódico Scientiftc American, minimizando
a questão: "O problema da origem da vida acabou sendo mui-
to mais difícil do que eu e a maior parte das pessoas havíamos
imaginado";"
Por coincidência, mais ou menos na mesma época da mi-
nha entrevista com Bradley, o loquaz evolucionista Stephen
Iay Gould, da Universidade Harvard, foi convidado a escre-
ver um ensaio para a revista Time respondendo se os cientis-
tas algum dia descobrirão como a vida começou. O resultado
foi um texto vago, equivocado e hesitante que nunca chegou
perto de sugerir uma única hipótese sequer para explicar como
a vida conseguiu surgir da matéria írianlmada.:"
- O que fazer com esse impasse científico? - perguntei a
Bradley.
- Isto depende bastante da metafísica - afirmou.
- Shapíro, a quem muito respeito, diz que devem existir
algumas leis físicas que ainda não descobrimos, que final-
mente nos mostrarão como a vida surgiu naturalmente.
Porém, não há nada na ciência que garanta uma explicação

53The origin of life: more questions than answers, Interdisciplinary


Science Review 13, 1998, p. 348.
54Robert SHAPIRO, Origins, p. 99.
55Francis CRICK, Life itself, p. 153.
56J. HORGAN, In the beginning... , Scientific American, Feb., 1991.
57\1: Will we figure out how life began?, Time, 10/4/2000.
A evolução explica a origem da vida... p 149
natural para o início da vida. A ciência é neutra com rela-
ção ao resultado. E" difícil imaginar novas leis naturais, por-
que elas terão características necessariamente consistentes
com as que já são conhecidas.
Perguntei então:
- Qual é a sua hipótese favorita?
Bradley não respondeu de imediato. Olhou para a pilha de
trabalhos de pesquisa, refletindo por instantes antes de olhar
novamente para mim. Quando os nossos olhos se encontra-
ram, prosseguru.
- Se não existe uma explicação natural e parece não ha-
ver a possibilidade de se encontrar, creio então que é apropri-
ado levar em conta urna explicação sobrenatural. Eu acho que
essa é a conclusão mais razoável com base nas evidências.
Parecia ser uma enorme concessão para alguém treinado
. .... .
em ciencia.
- O senhor não vê problema em dizer que a melhor expli-
cação parece ser um Planejador Inteligente?
- De maneira alguma. Acho que as pessoas que acreditam
que a vida surgiu de modo natural precisam ter muito mais fé
que as pessoas que concluem racionalmente que existe um
Planejador Inteligente.
- O que impede que mais cientistas cheguem a essa con-
clusão?
- Muitos já chegaram a essa conclusão. Porém, em alguns
casos, a filosofia atrapalha. Se eles estão persuadidos de ante-
mão que Deus não existe, então, não importa quão convin-
centes sejam as evidências, sempre negarão: "Aguarde e nós
encontraremos algo melhor no futuro". Mas esse é um argu-
mento metafísico. Os cientistas não são mais objetivos que
qualquer outra pessoa. Todos eles se aproximam de questões
como essa com idéias pré-concebidas.
Exclamei incontinenti:
- Sim, mas o senhor veio com a idéia pré-concebida de
que existe um Deus.
Bradleyassentiu.
150 q EM DEFESA DA FÉ

- Claro - admitiu. - Fiquei agradavelmente surpreso, por-


que um nível inferior de evidência provavelmente me teria satis-
feito. Mas o que achei é uma evidência absolutamente esmaga-
dora que aponta para um Planejador Inteligente.
- Então o senhor acha que os fatos apontam de modo con-
vincente para um Criador?
- Convincente é um termo muito leve - ele respondeu.
- As evidências são compulsórias. "Convincente" sugere que
é um pouco mais provável que improvável; "compulsório" tra-
duz que você realmente tem de se esforçar muito para não
chegar àquela conclusão.
- Mas isso parece tão ... - interrompi, hesitando um pou-
co enquanto procurava a palavra certa, - pouco científico -
disse finalmente.
- Ao contrário - Bradley respondeu, - é muito cientí-
fico. Nos últimos cento e cinqüenta anos, os cientistas têm
usado argumentos baseados em analogias com coisas que
não compreendemos para formular novas hipóteses em áre-
as emergentes de pesquisa científica. E é disso que estamos
falando.

Raciocínio por anologia


O método analógico foi descrito no século XIX pelo astrônomo
John F: W. Herschel, que escreveu: "Se a analogia de dois fe-
nômenos for muito próxima e marcante, embora, ao mesmo
tempo, a causa de um seja muito evidente, torna-se quase
impossível deixar de admitir a ação de uma causa análoga na
outra, embora a analogia não seja tão evidente.'?"
- Como isso se aplica à questão da origem da vida? -
perguntei a Bradley.
- Se virmos informação escrita pelo menos uma vez - seja
uma pintura na parede de uma caverna ou um romance do

5BPreliminary discourse on the study of natural philosophy, Londres:


Longman, Rees, Orrne, Brown & Green, 1831, p. 149.
A evolução explica a origem da vida.: 9151

Amazon.com - é porque existe uma inteligência por trás dela.


Isto também não seria verdadeiro em relação à própria nature-
za? - retrucou Bradley .
- Em outras palavras, o que está codificado no DNA de
cada célula de cada criatura viva é pura e simplesmente in-
formação escrita. Nós usamos em inglês um alfabeto de 26
letras; no DNA, existe um alfabeto químico de quatro letras
que se combinam em diferentes seqüências para formar pa-
lavras, frases e parágrafos. Elas compreendem todas as ins-
truções necessárias para ordenar o funcionamento da célu-
la. Expressam de forma codificada as instruções sobre como
uma célula produz proteínas. Isso funciona exatamente como
as seqüências de letras alfabéticas em nossa língua. Agora,
quando vemos uma linguagem escrita, podemos concluir, com
base em nossa experiência, que ela tem uma causa inteligen-
te. E podemos usar legitimamente o raciocínio analógico para
concluir que as notáveis seqüências de informações do DNA
também tiveram uma causa inteligente. Portanto, isso signifi-
ca que a vida na terra veio de "alguém", e não de "algo".
Inegavelmente, tratava-se de um argumento poderoso e
persuasivo. Bradley parecia refletir sobre ele por alguns mo-
mentos antes de oferecer uma ilustração que iria arrematar o
seu arrazoado.
- Você viu o filme Contatos imediatos de terceiro grau?
- Claro - eu disse. - Foi baseado no livro de Carl Sagan.
- Correto - respondeu. - No filme, os cientistas estão vas-
culhando o céu em busca de sinais de vida inteligente no espa-
ço. Os seus radiotelescópios só recebem estática - sons aleató-
rios do espaço. É razoável supor que não houvesse nenhuma
inteligência por trás dela. Certo dia eles começam a receber
uma transmissão de números primos, números que são divisí-
veis apenas por si mesmos e por um. Os cientistas raciocinam
que é muitíssimo improvável que houvesse uma causa natural
por trás de uma série de números como essa. Não se tratava de
mera estática não organizada; era informação, uma mensagem
com conteúdo. A partir disso, concluíram que havia uma causa
152 q EM DEFESA DA FÉ

inteligente por trás desse fato. Como o próprio Sagan disse


certa vez, "o recebimento de uma única mensagem do espaço"
seria suficiente para sabermos que existe uma inteligência lá
fora." Isso é raciocínio por analogia - nós sabemos que onde
existe comunicação inteligente, existe uma causa inteligente.
Os olhos de Bradley penetraram nos meus quando apre-
sentou sua conclusão.
- E se uma única mensagem do espaço é suficiente para
concluirmos que existe inteligência, então o que dizer da enor-
me quantidade de informações contidas no DNA de cada plan-
ta e animal vivos?", disse, crescentemente enfático. Cada cé-
lula do corpo humano contém mais informações que todos
os trinta volumes da Enciclopédia Britânica. Certamente é ra-
zoável chegar à conclusão que isso não é produto casual de
natureza espontânea, mas é o sinal inconfundível de um
Planejador Inteligente.
Era um argumento sem resposta.
- Então - eu disse, - a origem da vida é o calcanhar de
Aquiles da evolução.
- Exato. Como disse Phillip Johnson: "Se os darwinistas
quiserem manter o Criador fora da equação, terão de oferecer
uma explicação natural para a origem da vida. "60
- Lee, eles não conseguiram fazer isso. A despeito de to-
dos os seus esforços, nem mesmo apresentaram uma única
possibilidade que tenha sentido, ainda que remotamente. E
não há qualquer probabilidade de que o farão. De fato, tudo
está apontando na direção oposta - na inconfundível dire-
ção de Deus. Hoje é preciso bastante fé para ser um cientista
honesto e ao mesmo tempo ateu.

"Eu construo moléculas"


Por acaso, na cidade próxima de Houston, o cientista infini-
tesimal [ames Tour, professor do Departamento de Química

59Broca's brain, New York: Random House, 1979. p. 275.


ôODarwin on trial, p. 103.
A evolução explica a origem da vida... p 153
e do Centro de Ciência e Tecnologia em Escala Infinite-simal
da Universidade Rice, tinha acabado de pronunciar um dis-
curso.
Com um doutorado em química orgânica da Universidade
Purdue e estudos de pós-doutoramento na Universidade
Stanford e na Universidade de Wisconsin, Tour está na van-
guarda da pesquisa do mundo molecular. Ele escreveu mais
de cento e quarenta artigos técnicos de pesquisa e detém
dezessete patentes nos Estados Unidos.
- Construo moléculas como meio de vida - disse ao se
apresentar. - Mal posso lhes dizer como esse trabalho é difícil.
O propósito da sua palestra não era fascinar a audiência com
descrições de seus mais recentes esforços de alta tecnologia no
sentido de armazenar enormes quantidades de informações em
escala microscópica, substituindo os CHIPS de silício que são
grandes e difíceis de manejar. Queria mais era descrever algo
que ele descobriu quando mais profundamente sondava as im-
pressionantes maravilhas moleculares: as impressões digitais
de um Planejador Inteligente.
- Fico extasiado com Deus em virtude do que ele tem feito
por meio da sua criação - exclamou. - Somente um princi-
piante que nada sabe sobre ciência diria que a ciência preju-
dica a fé. Se você realmente estudar a ciência, ela o levará
para mais perto de Deus.?'
Que irônico, pensei. Outrora, um entendimento rudimentar
da ciência evolutiva me havia impelido para o ateísmo; agora,
uma crescente compreensão da ciência molecular estava cimen-
tando minha confiança em Deus. Como o caso de assassinato em
Oklahoma, o meu veredicto inicial havia se baseado em evidên-
cias falhas que produziram uma conclusão falsa.
A idéia de que processos espontâneos pudessem de algum
modo ser responsáveis por transformar substâncias químicas
inertes em toda a complexidade dos seres vivos certamente é,

61V. Leading nanoscientist builds big faíth, de Candece Adams, pu-


blicado em Baptist Standard, 15/3/2000.
154 q EM DEFESA DA FÉ

como observou o microbiologista Denton: "nada mais nada


menos que o grande mito cosmogênico" do nosso tempo.:"
A revista Time estava errada: Darwin não assassinou Deus.
Existem simplesmente muitíssimos indícios poderosos - es-
pecialmente na impressionante complexidade dos átomos in-
visíveis e na fantástica linguagem codificada na dupla hélice
do DNA - para comprovar que o Criador está vivo e passa bem.

Ponderações
Perguntas para reflexão ou estudo em grupo
;'" ,:;.;:.'C';-i ~:;;:; ;~;; ".';;; ~,; <n\,"': i:,~ ;aO~";", :",'"i ;3; ~.J""~: :;~; ,", ::-:-:' ~" :," ;<:~, ~; ;;;,;' F i~:! ~;'; \~, '" »rs-"',,:' i ?,~; ;~,;~: : ,,-;:;,:; c\~,-,,,,,~;;,,;:,, ~,",: '':o~«~; ,~~:" ,,;~: ;~;-,"" ,~: ;,; Y';: ~~ "t • ,~; '''; " .: <"",", ;h' ,~, d ;:;';~;.:.~~~~; :..'" ;.,~~~",\ ~ ,"-::,;~~';; t-i';' ;;,~:, -, ~;'; ;:

1. Descreva os ensinamentos que você recebeu da teoria


da evolução. De que maneira eles afetaram a sua pers-
pectiva acerca de Deus?
2. Antes de ler esta entrevista com Bradley, quão especifica-
mente você acreditava que a vida havia surgido na terra?
A entrevista mudou o seu ponto de vista? Como e por quê?
3. Com base nas evidências, você acredita que é racional
concluir por existência de um...
Planejador Inteligente? Por
que sim ou por que não? A luz dos fatos, você acredita
que seria necessário mais fé para crer que a vida surgiu
naturalmente ou através de uma causa inteligente?

Outra fontes de consulta


Mais recursos sobre esse tema

• DEMBSKI, William A. Mere creation. Downers Grave,


Illinois: InterVarsity Press, 1998.
• DENTON ,Michael. Evolution: A theory in crisis, Chevy
Chase, Maryland: Adler & Adler, 1986.
• HANEGRAAF, Hank. The face that demonstrates the force
of evolution. Nashville: Word, 1998.
• JOHNSON, Phillip E. Darwin on trial, 2d ed. Downers
Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1993.

62Evolution: a theory in crisis, p. 358.


Aevolurão exrlica aori~em aa ~iaa,,, 1"

• MOREIAND, JI P., or~, Tne creation nypo&esisI Downer~


Grove, Illinoi~: InterVar~i~ fte~~, 1~~41
• THA\10N, Cnarle~ RI BRAD~Y, Walter L&Ol~EN,Ro~er L
The mystery of life's ori~in. Dalla~: Lewi~ ana ~tanleYI
l~M,
qp.arta
Se Deus mata crianças inocentes.
ele não , digno de adoração

A Bíblia nos diz para sermos como Deus e, depois, página


após página, descreve Deus como um assassino em massa.
Robert A. Wilson!

Mas tu, Senhor, és Deus compassivo e misericordioso,


muito paciente, rico em amor e em fidelidade.
Rei Davi 2

uando passei pelos detectores de metal e pelos guardas


uniformizados, pude sentir uma atitude de expectativa
na asa Branca. Apesar do esforço em projetar uma imagem de
rotina, era claro que algo muito importante estava ocorrendo
por trás das aparências. O escândalo que envolveu Monica
Lewinsky vinha crescendo e aumentava a pressão para que o
Presidente Clinton se explicasse antes que o promotor especial
Kenneth Starr entregasse o relatório longamente esperado.
Clinton chegou meia hora atrasado para o café, sentando-
se diretamente na minha frente. Seu rosto estava tenso, seus
olhos cansados e inchados. Preocupado com a sua saúde, per-
guntei-lhe como estava se sentindo.
- Fiquei acordado até as 3 horas da manhã - respondeu
com um rouco sussurro.
Os jornalistas procuravam ruidosamente uma boa posição
no fundo da sala, com as câmeras a girar e os lápis e blocos

lCitado em Garry POOLE & Judson POLING, Tough questions 4, Grand


Rapids: Zondervan, 1998, p. 12.
2Salmos 86.15.
158 q EM DEFESA DA FÉ

preparados. Clinton se pôs de pé e deu alguns passos em


direção ao pódio. O silêncio tomou conta do ambiente. A lo-
quacidade usual do presidente havia desaparecido.
- Hoje eu poderei não ter tanta facilidade com as palavras
como tenho tido em anos passados - disse a um pequeno grupo
de líderes religiosos. - Fiquei acordado até bem tarde na noite
passada, meditando e orando sobre o que deveria dizer hoje.
Encaixou os óculos para poder ler o que estava escrito em
um pedaço de papel. O que se seguiu foi o pronunciamento
mais emotivo e dramático desde que a notícia do seu caso
amoroso repercutiu na mídia.
- Eu não creio que haja um meio elegante de dizer que
pequei - disse com os olhos marejados e uma expressão de
dor no rosto. - É importante para mim que todos os que fo-
ram feridos saibam que o pesar que eu sinto é genuíno - aci-
ma de tudo a minha família, e também os meus amigos, minha
equipe, meu Gabinete, Monica Lewinsky e sua família, e o povo
americano. Eu já pedi o perdão de todos. Estou arrependido...
preciso do auxílio de Deus para ser a pessoa que quero ser.
Ali estava ele, o indivíduo mais poderoso do mundo, di-
zendo que carregava um "espírito quebrantado" por causa da
sua conduta flagrantemente imoral com a ex-estagiária. Todas
as suas iniciativas na economia, todos os seus esforços em
política externa e os seus programas sociais haviam ficado em
segundo plano. O que estava no centro das atenções era a ques-
tão inflexível e comprometedora do caráter.
Espera-se que os políticos construam uma imagem pública
positiva, fazendo-a reluzir por meio de comunicados de im-
prensa marcados pela auto-promoção e por uma hábil camu-
flagem dos erros, mas o seu verdadeiro caráter se revela com
freqüência por meio de suas escolhas privadas, longe dos re-
fletores. Certamente, as decisões morais de uma pessoa por
trás dos bastidores - fidelidade conjugal e honestidade básica
nos relacionamentos - são reveladoras de como conduzirá os
negócios da população. Afinal de contas, elas põem à mostra o
verdadeiro ser.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 159
Quando era ateu, achava que os cristãos podiam ensinar
aos políticos alguns truques sobre como criar uma imagem
pública positiva. Os cristãos se concentravam incessantemente
em alguns aspectos atraentes do caráter de Deus - amor, gra-
ça, perdão, compaixão, misericórdia - , mas subestimavam
ou ignoravam as passagens bíblicas que pareciam revelar al-
guns aspectos mais perturbadores do seu caráter.
Quando se concentra a atenção em algumas histórias pou-
co conhecidas do Antigo Testamento que falam de massacres
e de outras atrocidades em larga escala, repentinamente Deus
passa a ser visto de uma perspectiva diferente. Como Clinton,
cuja imagem pública cuidadosamente trabalhada se esface-
lou tão logo foram documentadas algumas histórias verossí-
meis de aventuras extraconjugais, a imagem de Deus como
divindade amorosa e benevolente é questionada por histórias
de um comportamento aparentemente cruel e vingativo. Será
que esses relatos brutais revelam o verdadeiro caráter de Deus?
E se o fazem, ele merece ser venerado?
Charles Templeton tinha opinião própria. "O Deus do An-
tigo Testamento é totalmente diferente do Deus em que acre-
dita a maior parte dos cristãos praticantes", disse. "Sua justi-
ça é, segundo os padrões modernos, detestáveL .. Ele é
preconceituoso, queixoso, vingativo e cioso de suas prerroga-
tivas.?"
O ateu George H. Smith concorda. "O Deus do Antigo Tes-
tamento reuniu uma respeitável lista de atrocidades", afirmou.
"O próprio Javé apreciava exterminar pessoalmente um gran-
de número de pessoas, geralmente por meio de pestes ou fome,
amiúde por causa de crimes um tanto incomuns"." Smith gosta
de citar o ex-presidente Thomas Jefferson, segundo o qual os
relatos do Antigo Testamento revelam um Deus "cruel, vinga-
tivo, caprichoso e injusto."5

"Farewell to God, p. 71.


4Atheism: the case against God, p. 77.
5Ibid., p. 76.
160 q EM DEFESA DA FÉ

Esse problema já é perturbador o suficiente, mas além dis-


so existe uma questão colateral que exige ser explorada. Ao se
avaliar o caráter de Deus, tanto os críticos como os cristãos
citam a Bíblia como fonte de informações. Mas seria realmen-
te um livro fidedigno? Não estaria a Bíblia totalmente cheia
de contradições e inconsistências que solapam sua confiabi-
lidade? As referências à história não têm sido questionadas
pela arqueologia moderna? Não seria mais provável que seja
uma coleção de lendas fantasiosas que uma descrição fiel do
Criador do universo?
Essas duas questões - o caráter de Deus e a confiabilidade
do livro - constituíram-se em grandes obstáculos quando es-
tava procurando a verdade. Naquela ocasião, mergulhei em
livros e artigos para tentar chegar a algumas conclusões bem
fundamentadas. Gostaria de ter feito então o que estava por
fazer agora: sentar-me para entrevistar um estudioso, um dos
mais conhecidos e eficientes defensores do cristianismo em
todo o mundo.

A terceira entrevista: Norman L. Geisler, PH.D.

Norman Geisler pode ser um debatedor tenaz e intimidador


quando está compilando referências bíblicas, achados arque-
ológicos, descobertas científicas e eventos históricos para re-
futar alguém que esteja inclinado a desacreditar o cristianis-
mo. Sua memória enciclopédica e ágil argumentação têm as-
sustado muitos críticos ao longo dos anos.
No entanto, foi um Geisler de voz branda e atitude pater-
nal que me recebeu em seu escritório modesto, porém confor-
tável, no Seminário Evangélico do Sul, em Charlotte, Caroli-
na do Norte, do qual é presidente. Vestido de maneira infor-
mal com uma camisa azul de colarinho abotoado sob um
suéter multicolorido, estampava um sorriso fácil e um senso
de humor contundente.
Geisler, autor prodigioso e premiado, já escreveu, ajudou a
escrever ou editou mais de cinqüenta livros, incluindo-se obras
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 161
básicas como General introduction to the Bible [Introdução
geral à Bíblia], Inerrancy [Inerrância], Introduction to
Philosophy [Introdução à filosofia], Philosophy of Religion [Fi-
losofia da religião], When Skeptics Ask [Quando os céticos
perguntam], Manual popular de dúvidas, enigmas e "con-
tradições" da Bíblia e When Cultists Ask [Quando os adeptos
de seitas perguntam]. Um de seus volumes mais recentes é a
ambiciosa Enciclopédoa de apologética: respostas aos críti-
cos fé cristã, com mais de 800 páginas, que discute sistemati-
camente tópicos que vão acognosticismo ao zen-budismo.
Estudou no Wheaton College, na Universidade de Detroit,
na Universidade Estadual Wayne, no William Tyndale College
e na Universidade do Noroeste, tendo recebido o doutorado
em filosofia da Universidade Loyola, em Chicago. Foi cate-
drático de filosofia da religião na Trinity Evangelical
Divinity School, em Deerfield, Illinois, e professor ,de teo-
logia sistemática no Seminário Teológico de Dallas. E mem-
bro da Sociedade Filosófica Americana, da Associação Ci-
entífica Americana e da Academia Americana de Religião,
entre outras.
Geisler percorreu longas distâncias, viajando todos os cin-
qüenta estados norte-americanos e para vinte e cinco países
em seis continentes, dando palestras sobre as evidências a
favor do cristianismo e debatendo com céticos bem conheci-
dos, como o humanista Paul Kurtz. Conseqüentemente, sabia
que haveria pouca possibilidade de pegá-lo inteiramente de
surpresa. Entretanto, cheguei armado com algumas das per-
guntas mais difíceis.
Ao nos sentarmos frente a frente em poltronas de couro
avermelhadas, apanhei um pedaço de papel em que trans-
crevi as palavras mordazes de um estimado patriota america-
no cuja crítica ao cristianismo é proverbial.
- Em 1794 - comecei, - Thomas Paine escreveu em The
age ofreason [A idade da razão]: "Toda vez que lemos sobre a
histórias obscenas, as orgias voluptuosas, as execuções cruéis e
tormentosas e a incessante atitude de vingança que preenchem
162 q EM DEFESA DA FÉ

mais da metade da Bíblia, seria mais consistente que nós a


chamássemos a obra de um demônio e não a palavra de
Deus. fi
Fixei o olhar em Geisler a fim de ver se estava sobressal-
tado com a ferroada das palavras de Paine.
- Esse é um desafio muito duro - disse. - Como o se-
nhor lhe responderia se ele estivesse sentado aqui hoje?
Geisler ajustou os óculos de aros dourados e logo comen-
tou com uma risada: "Em primeiro lugar, eu diria que é uma
pena que ele não tivesse uma Bíblia. Quando escreveu a pri-
meira parte de A idade da razão, ele não a possuía. Além dis-
so, acho que ele está confundindo duas coisas: o que a Bíblia
registra e o que a Bíblia aprova.
- Dê-me alguns exemplos desta diferença - pedi.
- Por exemplo, a Bíblia registra mentiras as de Satanás
e o adultério de Davi, mas não os aprova - explicou. - É
verdade que existem muitas histórias chocantes na Bíblia.
O livro dos Juízes relata o estupro de uma mulher que, em
seguida, foi cortada em doze pedaços que foram enviados a
cada uma das tribos de Israel. 7 Mas a Bíblia certamente não
aprova isso. Em segundo lugar, acho que Paine está sim-
plesmente errado em termos factuais. A Bíblia não aponta
quaisquer execuções cruéis e torturantes que Deus tenha
ordenado.
Levantei a mão para protestar.
- Davi foi chamado um homem segundo o coração de Deus
e, no entanto, a Bíblia diz que ele torturou os seus inimigos -
observei. - A Bíblia diz que ele "os colocou debaixo de ser-
ras, e debaixo de machados ou ferros, e os fez passar pelos
fornos de tijolos"." Isso me parece cruel e tormentoso!
- Vamos devagar - Geisler advertiu. - Você está citando
a Versão do Rei Tiago de linguagem extremamente arcaica nesta

"Citado em George H. SMITH, Atheism: the case against God, p. 78.


7Juízes 19.25,29.
82 Samuel 12.31.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 163
passagem. A Nova Versão Internacional aclara a terminologia
hebraica original e diz que Davi "trouxe também os seus habi-
tantes, designando-lhes trabalhos com serras, picaretas e ma-
chados, além da fabricação de tijolos". Isso é trabalho - e não
tortura - e é bastante humano em comparação com as cruel-
dades que seus inimigos haviam perpetrado. Além disso, esse
é outro caso em que a Bíblia registra alguma coisa, mas não a
aprova necessariamente.
Eu me rendo, pensei comigo mesmo. Refazendo-me rapi-
damente, prossegui.
- Deixando de lado essa passagem, ainda assim existe um
bocado de carnificina no Antigo Testamento - comentei. -
Não está patente uma grande diferença entre o Deus cruel do
Antigo Testamento e o Deus amoroso do Novo Testamento?
Geisler sorriu.
- É interessante que você pergunte isso - respondeu, -
porque acabo de levantar quantas vezes a Bíblia usa a palavra
que a Versão do Rei Tiago traduz por "misericórdia". Descobri
que ela ocorre 261 vezes na Bíblia - 72% delas no Antigo
Testamento. Essa é uma proporção de três para UID. Depois eu
estudei a palavra "amor" e descobri que aparece 322 vezes na
Bíblia, cerca de metade em cada testamento. Portanto, tem-se
a mesma ênfase no amor em ambos.
- Ironicamente - acrescentou, - pode-se argumentar que
Deus é mais propenso a julgar no Novo Testamento que no
Antigo. Por exemplo, o Antigo Testamento fala muito pouco
sobre a punição eterna, mas o Novo Testamento o faz.
- Não há então uma evolução no caráter de Deus?
- Correto. Com efeito, diz a Bíblia: "Eu, o SENHOR, não
mudo"." Nos dois testamentos você tem um Deus idêntico,
imutável - aquele que é tão santo que não pode contemplar
o pecado e, no entanto, aquele cujo coração amoroso, miseri-
cordioso, bondoso e compassivo quer derramar o perdão so-
bre todos os que se arrependem.

"Malaquias 3. 6a.
164 q EM DEFESA DA FÉ

Compassivo? Pensei comigo mesmo. Misericordioso? Ha-


via chegado a hora de abordar o ponto crucial da questão do
caráter.

Deus ordena matar


Olhei atentamente para os olhos de Geisler. Minha voz dei-
xou transparecer sarcasmo quando apresentei a objeção mais
específica ao caráter de Deus.
- O senhor fala em compaixão e misericórdia - disse -
mas essas qualidades são difíceis de entender quando vemos
Deus ordenar o genocídio, dizendo aos israelitas em Deutero-
nômio 7 que "destruam totalmente" os cananeus e seis outras
nações, e "não tenham piedade delas".
Passei a apresentar uma lista.
- Esse não foi um incidente isolado - continuei, ganhan-
do ímpeto à medida que prosseguia. - Deus ordenou a exe-
cução de cada primogênito egípcio; enviou o dilúvio e matou
incontáveis milhares de pessoas; disse aos israelitas: "Agora
vão, ataquem os amalequitas e consagrem ao SENHOR para des-
truição tudo o que lhes pertence. Não os poupem; matem ho-
mens, mulheres, crianças, recém-nascidos, bois, ovelhas, ca-
melos e jumentos" .10 Isso mais parece um Deus violento e bru-
tal que um Deus amoroso. Como se pode esperar que as pes-
soas o adorem se ele ordena que crianças sejam massacradas?
A despeito da severidade da pergunta, Geisler manteve um
tom calmo e equilibrado.
- Isso mostra - disse - , que o caráter de Deus é absolu-
tamente santo e que ele tem de punir o pecado e a rebeldia. Ele
é um justo juiz; inquestionavelmente, isso é parte de sua es-
sência. Mas, em segundo lugar, o seu caráter também é miseri-
cordioso. Ouça: se alguém quer escapar, ele permite que o faça."
Geisler fez uma pausa. Minhas perguntas obviamente exigi-
am uma resposta mais longa.

1°1 Samuel 15.3.


Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 165
- Lee, você apresentou um bocado de boas perguntas e elas
merecem uma resposta consciente - redargüiu. - Você se
importa se analisarmos essas passagens com um pouco mais
de cuidado? Porque, se assim o fizermos, creio que veremos a
mesma postura, caso a caso.
Fiz um gesto para que prosseguisse.
- Por favor - eu disse - analise-as. Eu realmente quero
entender.
- Vamos começar pelos amalequitas - ele disse. - Ouça,
Lee, eles estavam longe de ser inocentes. Longe disso. Não
eram boas pessoas. Na verdade, eram absoluta e totalmente
depravados. Sua missão era destruir Israel. Em outras pala-
vras, cometer genocídio. Como se isso não fosse suficiente,
leve em conta o que estava pesando na balança. Os israelitas
eram o povo escolhido por quem Deus traria salvação ao mun-
do todo através de Jesus Cristo.
- Então, o senhor está dizendo que mereciam ser destruí-
dos? - perguntei.
- A destruição da nação foi uma exigência da gravidade
do pecado - disse Geisler. - Se um remanescente empeder-
nido tivesse sobrevivido, poderiam retomar sua agressão con-
tra os israelitas e o plano de Deus. Era um povo persistente,
cruel e belicoso. Para ilustrar como eram intoleráveis, havi-
am seguido os israelitas e massacrado covardemente as pes-
soas mais vulneráveis - os fracos, os idosos e os inválidos
que tinham ficado para trás.
- Eles queriam eliminar até o último dos israelitas da
face da terra. Deus podia ter lidado com eles por meio de
um desastre natural, como uma enchente, mas em vez dis-
so usou Israel como seu instrumento de juízo. Agiu não
somente por causa dos israelitas, mas também, em última
análise, em benefício de cada pessoa ao longo da história,
cuja salvação seria oferecida pelo Messias que haveria de
nascer entre eles.
- Mas as crianças - protestei. - Por que crianças ino-
centes tinham de ser mortas7"
166 q EM DEFESA DA FÉ

- Vamos ter em mente - disse, - que estritamente nin-


guém é de fato inocente. A Bíblia diz no salmo 51 que todos
nós nascemos em pecado, isto é, com a propensão para nos
rebelarmos e cometer transgressões. Além disso, precisamos
ter em mente a soberania de Deus sobre a vida. Certa vez, um
ateu levantou esse assunto em um debate e eu respondi di-
zendo: "Deus criou a vida e ele tem o direito de tirá-la. Se
você pode criar a vida, então você pode ter o direito de tirá-la.
Mas se você não pode criá-la, você não tem esse direito". E a
audiência aplaudiu. - As pessoas supõem que o que é errado
para nós é errado para Deus. No entanto, é errado que eu tire
a sua vida, porque não a fiz e não a possuo. Por exemplo, é
errado que eu entre no seu jardim e arranque os seus arbus-
tos, corte-os, mate-os, transplante-os ou mude-os de lugar. Eu
posso fazer isso no meu jardim, porque eu sou o dono dos
arbustos do meu jardim. - Pois bem, Deus é soberano sobre
toda a vida e tem o direito de tirá-la se o quiser. De fato, nós
temos a tendência de esquecer que Deus tira a vida de cada
ser humano. Isso é chamado morte. A única questão é quando
e como, coisas que devemos deixar para ele resolver.

E quanto às crianças?
Intelectualmente, poderia até aqui entender a resposta de
Geisler. Emocionalmente, todavia, ela não avançava o sufici-
ente. Eu continuava inquieto.
- Mas as crianças... - insisti.
Geisler, ele mesmo pai de seis filhos e avô de nove, simpa-
tizava com a idéia.
- Física e socialmente, o destino das crianças ao longo da
história sempre esteve ligado aos seus pais, seja para o bem
ou para o mal - observou.
- Lee, você precisa compreender a situação dos amale-
quitas. Naquela cultura inteiramente ímpia, violenta e depra-
vada, não havia esperança para aquelas crianças. Essa nação
estava tão corrompida quanto uma gangrena que estivesse se
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 167
apossando da perna de uma pessoa; Deus tinha de amputar a
perna, senão a gangrena se espalharia e não sobraria nada.
Em certo sentido, a ação de Deus foi um ato de misericórdia.
- Misericórdia? - espantei-me. - Como assim?
- De acordo com a Bíblia, toda criança que morre antes da
idade da razão vai para o céu a fim de passar a eternidade na
presença de Deus - respondeu. - Ora, se elas tivessem con-
tinuado a viver naquela sociedade horrível além da idade da
razão, certamente iriam se corromper e assim perder-se para
sempre.
- O que o faz pensar que as crianças vão para o céu quan-
do morrem? - indaguei.
- Isaías 7.16 fala de certa idade antes que a criança seja
moralmente responsável, antes que a criança "saiba rejeitar o
erro e escolher o que é certo". O rei Davi falou em estar com o
seu filho que morreu ao nascer. Jesus disse: "Deixem vir a
mim as crianças, não as impeçam; pois o Reino de Deus per-
tence aos que são semelhantes a elas", o que indica que elas
irão para o céu.!' Ainda existem muitas outras evidências
bíblicas em defesa dessa posição.
Apontei uma aparente inconsistência.
- Se, em última análise, foi melhor que aquelas crianças
morressem antes da idade da razão, porque assim elas iriam
para o céu, por que não se pode dizer o mesmo quanto a cri-
anças ainda não nascidas que são abortadas em nossos dias?
- perguntei. - Se elas forem abortadas, certamente irão para
o céu, mas se nascerem e crescerem poderão rebelar-se contra
Deus e acabar no inferno. Esse não é um forte argumento a
favor do aborto?
A resposta de Geisler veio rapidamente.
- Não, essa é uma falsa analogia - insistiu. - Primeiro,
Deus não ordena a ninguém que faça hoje em dia um aborto;
de fato, isso é contrário aos ensinamentos da Bíblia. Lembre-
se, ele é o único que pode decidir tirar uma vida porque ele é

l1Marcos 10.14.
168 q EM DEFESA DA FÉ

o autor último da vida. Segundo, não temos hoje uma cultura


que seja tão completamente corrompida como a sociedade
amalequita. Naquela cultura, não havia esperança; hoje, exis-
te esperança.
- Nesta ordem de idéias - disse, - o senhor não acha
que Deus estava sendo pouco razoável ao ordenar a destrui-
ção dos amalequitas.
- Você precisa lembrar que essas pessoas tiveram muitas
oportunidades para mudar seus caminhos e evitar tudo isto
- afirmou. - De fato, se você considerar todos os cananeus
junto com os amalequitas, tiveram quatrocentos anos para se
arrepender. Isso é muitíssimo tempo. Finalmente, depois de
esperar por séculos para dar-lhes a oportunidade de abando-
nar o caminho para a autodestruição, a natureza de Deus exi-
giu que ele cuidasse da maldade intencional dos amalequitas.
Certamente não agiu de modo precipitado. Agora, precisamos
ter em mente que os que quiseram sair dessa situação já o
tinham feito; tiveram amplas oportunidades ao longo dos anos.
Certamente aqueles que quiseram ser salvos da destruição
fugiram e foram poupados. Em Iosué 6, onde a Bíblia fala so-
bre a destruição de Jericó e dos cananeus, você tem o mesmo
modelo. Era uma cultura inteiramente má, tanto assim que a
Bíblia diz que dava náuseas a Deus. Estavam envolvidos na
brutalidade, crueldade, incesto, bestialidade, prostituição re-
ligiosa e até mesmo sacrifício de crianças na fogueira. Era
uma cultura agressiva que queria aniquilar os israelitas. No-
vamente, eis pessoas malignas que foram destruídas, exceto
os justos que viviam entre elas e foram salvos. Por exemplo,
Raabe, que protegeu os espiões israelitas, não foi julgada ao
lado de outras pessoas. E veja o que aconteceu com os corrup-
tos habitantes da cidade de Nínive. Deus iria julgá-los porque
mereciam, mas eles se arrependeram e Deus salvou todo mun-
do. Assim, a questão é a seguinte: Deus está disposto a salvar
a quem se arrepende. É importante lembrar disso.
- Veja, o propósito de Deus nesses exemplos foi destruir a
nação corrupta porque a estrutura nacional era inerentemente
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 169

má, e não destruir pessoas se elas estivessem dispostas a


se arrepender. Muitos versículos indicam que o principal
desejo de Deus era expulsar essas pessoas más da terra
pois sabiam que havia sido prometida há muito tempo a
Israel. Dessa maneira, Israel poderia entrar e ficar relativa-
mente livre da corrupção externa que poderia destruí-lo
como um câncer. Queria criar um ambiente em que o Mes-
sias poderia advir para o bem de milhões de pessoas ao
longo da história."
- A norma, portanto, era que as pessoas tiveram um bo-
cado de advertências? - perguntei.
- Certamente - respondeu. - E leve em conta o seguin-
te: a maior parte das mulheres e crianças teria fugido anteci-
padamente antes do início da luta propriamente dita, deixan-
do atrás de si os guerreiros para enfrentar os israelitas. Os
combatentes que permaneceram teriam sido os mais endure-
cidos, aqueles que se recusaram obstinadamente a partir, os
defensores da cultura corrupta. De qualquer maneira é bas-
tante questionável quantas mulheres e crianças poderiam es-
tar envolvidas nisso.
- Além disso, face as regras de conduta que Deus havia
estabelecido aos israelitas, sempre que entravam em uma ci-
dade inimiga, primeiro deviam propor ao povo uma oferta de
paz. O povo tinha uma escolha: podia aceitar a oferta, nesse
caso não seriam mortos, ou podiam rejeitar o oferecimento
por sua conta e risco. Isso é apropriado e justo.
Tive de admitir que essas considerações lançavam nova
luz sobre a situação, especialmente os comentários sobre as
muitas advertências que haviam sido dadas e a probabilida-
de de que as mulheres e crianças talvez tivessem deixado a
região antes de qualquer batalha. Por mais inquietantes que
sejam essas passagens, foi útil saber que Israel oferecia a paz
antes de travar um combate e que a norma bíblica é que as
pessoas arrependidas recebam a oportunidade de evitar o
julgamento.
- Deus não estaria sendo caprichoso?
170 q EM DEFESA DA FÉ

- Ele não é caprichoso, não é arbitrário, não é cruel. Toda-


via, Lee, preciso dizer-lhe uma coisa: ele é inegavelmente jus-
to. Sua natureza exige que trate das pessoas corruptas que, de
maneira obstinada e deliberada, persistem no mal. E não é isso
o que ele deveria fazer? Não é isso o que nós queremos - que a
justiça seja feita? Uma das principais coisas que devemos lem-
brar é que ao longo da história, para os que se arrependem e se
voltam para ele, Deus é compassivo, misericordioso, bondoso
e generoso. No final, todos nós assistiremos à sua justiça.
Ainda assim, havia outro episódio perturbador - outra vez
envolvendo crianças - que parecia questionar a opinião de
Geisler de que Deus não age de modo arbitrário. Isto consti-
tui-se num dos episódios mais estranhos de toda a Bíblia.

Massacre cósmico?
O profeta Eliseu estava percorrendo a estrada para Betel quan-
do se encontrou com alguns meninos que o importunaram
fazendo graça da sua calvície. "Suma daqui, careca!", eles ca-
çoaram. "Suma daqui, careca!" Ele reagiu amaldiçoando-os
em nome de Deus. Então, em um impressionante ato de puni-
ção, duas ursas repentinamente saíram do bosque e despeda-
çaram 42 merrinos.P
- Dr. Geisler, o senhor insistiu que Deus não é caprichoso -
rebati. - Mas isso parece uma reação excessiva para uma ofensa
pequena e tola. Despedaçar 42 criancinhas inocentes só porque
fizeram troça de um indivíduo careca é rigoroso demais.
Geisler estava bem familiarizado com a questão.
- A pressuposição da sua pergunta está errada - respon-
deu. - Não se tratava de criancinhas inocentes.
Tendo previsto sua resposta, peguei uma fotocópia desta
passagem bíblica e a empurrei em sua direção.
- Sim, eram - retruquei. - Veja bem aí - disse apontan-
do para as palavras. - Diz "criancinhas".

12V 2 Reis 2.23-25.


Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração ? 171

Geisler olhou rapidamente para a folha, reconhecendo ime-


diatamente a fonte.
- Infelizmente, a VERSÃO DO REI TIAGO tem uma tradução
equivocada - disse. - Os estudiosos verificaram que o origi-
nal hebraico é melhor traduzido como "jovens". A NOVA VER-
SÃO INTERNACIONAL traduz a palavra como "meninos". Até onde
podemos saber, tratava-se de um bando violento de adoles-
centes perigosos, comparável a uma moderna gangue de rua.
A vida do profeta estava correndo perigo simplesmente pelo
grande número deles - se 42 foram despedaçados, quem sabe
quantos ao todo o estavam ameaçando?
- Ameaçando-o? - perguntei. - Tenha paciência! Eles
só estavam fazendo graça de sua calvície.
- Quando você entender o contexto, verá que era algo mui-
to mais sério que isso - Geisler respondeu. "Os comentaris-
tas têm observado que os escárnios visavam questionar a con-
dição de profeta de Eliseu. Em essência, estavam querendo
dizer: "Se você é um homem de Deus, por que não sobe para o
céu como fez o profeta Elias? Aparentemente, estavam zom-
bando da obra anterior de Deus quando levou Elias para o
céu. Desrespeitavam com sua incredulidade o que Deus havia
feito por intermédio desses dois profetas. E o comentário de
Eliseu ser calvo com toda a probabilidade era uma referência
ao fato de que os leprosos daqueles dias raspavam a cabeça.
Eles estavam injuriando Eliseu - um homem dotado de dig-
nidade e autoridade como profeta de Deus - como um pária
detestável e desprezível. Estavam lançando uma mancha não
somente sobre o caráter dele, mas também sobre o caráter de
Deus, uma vez que Eliseu era o representante de Deus.
- Ainda assim - reiterei - , não seria uma ofensa um
tanto pequena?
- Não no contexto daqueles dias - explicou. - Eliseu
com razão sentiu-se ameaçado pelo bando. A sua vida corria
perigo. Eles estavam, com efeito, atacando-o e a Deus. Foi
um tipo de golpe preventivo para infundir temor no cora-
ção de quem quisesse repetir o ato, que poderia ser um
172 q EM DEFESA DA FÉ

precedente perigoso. Se um bando ameaçador de adolescen-


tes saísse ileso e Deus não viesse em auxílio do profeta, pense
no efeito negativo que isso teria sobre a sociedade. Poderia
abrir as portas para outros ataques contra profetas e conse-
qüentemente o desprezo da mensagem urgente de Deus que
estavam tentando difundir. De fato, como disse um comen-
tarista, "em vez de demonstrar crueldade desenfreada, o ata-
que das ursas mostra como Deus tenta repetidamente trazer
o seu povo de volta por meio de juízos menores evitando
que o pecado do povo cresça demais e o juízo precise vir
com força total [... ] A desastrosa queda de Samaria teria sido
evitada caso o povo tivesse se arrependido após o ataque das
ursas" .13
- Por último - Geisler acrescentou, - eu diria uma vez
mais que precisamos considerar a soberania de Deus. Não foi
Eliseu que tirou a vida deles; foi Deus que os criou e deixou as
ursas à solta. Se ele criou a vida, tem todo o direito de tirá-la.
O ataque desse bando contra o profeta revelou a sua verda-
deira atitude para com Deus e quando alguém amaldiçoa ar-
rogantemente e se opõe obstinadamente a Deus sempre enve-
reda por um caminho perigoso que leva à destruição."
Dobrei a fotocópia.
- Então é uma leitura incorreta do texto original conside-
rar essas pessoas como simples crianças - disse.
- Certo - respondeu. - O termo hebraico usado para
descrevê-los [ne'ãrim] indica que muito provavelmente esta-
vam entre as idades de 12 e 30 anos. Com efeito, a mesma
palavra hebraica é usada em outro trecho para descrever ho-
mens do exércíto.!" Como você pode ver, quando tudo é colo-
cado em perspectiva se tem uma imagem muito diferente do
que se supunha originalmente.

13Walter C. lCAISER [r., Peter H. DAVIDS, F: E BRUCE & Manfred T. BRAUCH,


Hard sayings of the Bible, Downers Grave, Illinois: InterVarsity Press,
1996, p. 233-4.
14Ibid., V tb, 1 Reis 20.14,15.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração 9 173

A essa altura, as respostas de Geisler haviam esvaziado


boa parte dos argumentos contra o caráter de Deus, trazendo
algum equilíbrio e contexto para se entender a sua aparente
intenção nesses episódios controvertidos. Embora essas pas-
sagens ainda fossem questões não inteiramente resolvidas,
ver o outro lado tornava mais fácil dar a Deus o benefício da
dúvida, especialmente à luz da preponderância de outras evi-
dências de sua compaixão e amor.
Todavia, também havia uma questão correlata acerca do
caráter de Deus que preocupa a muitas pessoas nos dias de
hoje: como ele tratou os animais. Por que ele criou um mundo
em que os predadores constantemente espreitam as suas víti-
mas e no qual a morte violenta é uma parte integrante da vida?
Mais fundamentalmente, isso não revela algo inquietante so-
bre a atitude de Deus?

A dor dos animais


Charles Templeton levantou a questão do sofrimento no rei-
no animal quando escreveu em seu livro Farewell to God
[Adeus aDeus]:

A realidade terrível e inevitável é que toda vida implica


em morte. Toda criatura carnívora precisa matar e devorar
outras criaturas [... ] Como um Deus amoroso e onipotente
poderia criar tamanhos horrores? [... ] Certamente não esta-
ria além da competência de uma divindade onisciente cri-
ar um mundo animal que pudesse ser sustentado e perpe-
tuado sem sofrimento e morte.:"

- Que dizer disto? - perguntei a Geisler após ler a citação


de Templeton.
- Tem muito de verdade aí - Geisler respondeu.
Não era a resposta que estava esperando.
- O senhor acha? - perguntei.

15~ 197 (grifo suprimido), 198-9.


174 q EM DEFESA DA FÉ

- Sim - retrucou. - Infelizmente é como um copo de


água saudável com uma gota de arsênico. A água é boa, mas
está envenenada.
- Como assim?
- A água boa é, sim, que Deus pode criar o mesmo tipo de
animais. E o fato é que ele o fez. O paraíso original tinha esse
tipo de animais e o paraíso por vir - o paraíso restaurado -
terá esse tipo de animais. Com efeito, temos a informação de
que Deus originalriamente criou os animais e os seres huma-
nos para serem herbívoros.
Geisler estendeu a mão para baixo da poltrona e apanhou
uma Bíblia. Abriu-a no início; seus olhos percorreram a pági-
na até se deterem próximo do final do primeiro capítulo, len-
do o seguinte:

Disse Deus: "Eis que lhes dou todas as plantas que nascem
em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores
que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento
para vocês. E dou todos os vegetais como alimento a tudo o
que tem em si fôlego de vida; a todos os grandes animais
da terra, a todas as aves do céu e a todas as criaturas que se
movem rente ao chão". E assim foi. 16

Fechando o livro, Geisler continuou.


- Deus não determinou que os animais fossem comidos
no paraíso e que os animais comessem uns aos outros. O pro-
feta Isaías disse que um dia Deus irá criar "novos céus e nova
terra", nos quais "o lobo e o cordeiro comerão juntos e o leão
comerá feno, como o boi" .17 Em outras palavras, não haverá o
tipo de mortandade que ocorre agora. Em suma, tudo o que
Deus criou era bom. O que mudou as coisas foi a Queda. Quan-
do foi dito a Deus, com efeito, que ele se ausentasse, ele o fez

16Gênesis 1.29,30. Após o Dilúvio, Deus disse a Noé e seus filhos em


Gênesis 9.3: "Tudo o que vive e se move servirá de alimento para vocês.
Assim como lhes dei os vegetais, agora lhes dou todas as coisas".
17Isaías 65.17,25.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é dígno de adoração P 175
parcialmente. Romanos 8 diz que toda a criação foi afetada-
isso inclui a vida vegetal, os seres humanos, os animais, tudo.
Houve alterações genéticas fundamentais; vemos, por exem-
plo, como a duração da vida declinou rapidamente depois da
Queda. O plano de Deus não foi concebido para ser assim;
somente ficou assim por causa da pecado. No final isso será
corrigido.
- Mas ao instituir o sistema de sacrifícios de animais no
Antigo Testamento Deus não estava sendo cruel com os ani-
mais? - perguntei.
- A maneira pela qual esses animais eram mortos era bas-
tante humana. Era a maneira mais indolor de morrer. E não
havia desperdício. Os israelitas comiam a carne, usavam a
pele para fazer vestes, de modo que em essência eles estavam
criando animais. Não se tratava de uma tentativa de eliminar
uma espécie. E evidentemente havia uma razão importante
para os sacrifícios de animais - eles apontavam para o sacrifí-
cio supremo de Jesus Cristo, o cordeiro de Deus, na cruz, como
pagamento pelo nosso pecado."
- E quanto à dor toda que existe no mundo como resulta-
do dos animais caçarem e matarem outros animais? - per-
guntei. - A soma total de sofrimento que Deus permite é ab-
solutamente enorme.
- Acho que toda essa pressuposição está errada - reba-
teu. - Como disse C. S. Lewis, não existe uma soma total de
~

dor. E uma denominação imprópria. Nenhuma pessoa ou ani-


mal experimenta a soma total da dor. A rigor, nenhuma pes-
soa experimenta em dado momento a soma total da dor de
toda a sua vida. Se você tivesse trinta gramas de dor dispersas
ao longo de trinta anos, você teria apenas um grama por ano,
portanto, somente uma fração de grama por dia. No que diz
respeito aos animais, temos de lembrar que a Bíblia proíbe
claramente que eles sejam maltratados. Os cristãos devem se
opor a quaisquer maus tratos contra os animais. Todavia, eu
contesto a premissa do movimento pelos direitos dos animais
de que os animais têm direitos morais. Eles não são criaturas
176 q EM DEFESA DA FÉ

morais. Agora, pessoas morais podem fazer coisas imorais


aos animais, porém a Bíblia diz: "O justo cuida bem dos seus
rebarihos't.t" Eles devem servir-nos e ajudar-nos, e é moral-
mente errado sermos cruéis.

Pode-se confiar na Bíblia?


Ao avaliar o caráter de Deus, Geisler apoiava-se na Bíblia.
Tendo escrito um livro sobre a inerrância da Escritura, suas
opiniões são bem conhecidas: ele crê que a Bíblia é singular-
mente inspirada por Deus e real em tudo o que ensina e men-
ciona. Ainda assim, existiria algum motivo racional para se
acreditar que a Bíblia realmente revela de modo preciso a ver-
dade sobre Deus?
George H. Smith, o filósofo ateu, acha que não. "A Bíblia
não mostra qualquer vestígio de influência sobrenatural", es-
creveu. "Bem ao contrário, ela é obviamente produto de ho-
mens supersticiosos que, em algumas ocasiões, estiveram dis-
postos a enganar se isso pudesse promover as suas doutri-
rras ,"!"
Templeton educadamente rejeita a maior parte da Bíblia
como "contos populares floreados", acrescentando que "não é
mais possível que um homem ou uma mulher informados crei-
am que [00'] a Bíblia seja um documento fidedigno [00'] ou,
como insiste a igreja cristã, a infalível Palavra de Deus."20
Nos meus anos como ateu, zombava das histórias fantásti-
cas e da mitologia flagrante que, segundo acreditava, desquali-
ficavam a Bíblia como um livro divinamente inspirado - uma
opinião que, a propósito, me isentava comodamente de qual-
quer necessidade de seguir os seus ditames morais. Embora
nunca tivesse estudado a fundo seu conteúdo, rejeitava a Bí-
blia de pronto a fim de me sentir livre para viver um estilo de

18Provérbios 12.10.
19Atheism: the case against God, p. 210-1.
2°Farewell to God, p. 38.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 111
vida corrompido que estava em flagrante conflito com os seus
preceitos.
O tempo que passei com Geisler foi uma rara oportunidade
para ouvir em primeira mão a razão de ter chegado à conclu-
são oposta para defender tão zelosamente a Bíblia como um
livro fidedigno. Levantei-me para esticar as pernas, caminhan-
do até uma estante para passar uma vista de olhos informal-
mente nos títulos. Voltei-me e disse:
- Tudo depende de a Bíblia ser verdadeira. Qual é o seu
motivo para crer que ela o seja?
Com a segurança característica, Geisler respondeu:
- Existem mais evidências de que a Bíblia é uma fonte
confiável do que em qualquer outro livro do mundo antigo.
Para mim, no entanto, isso mais parecia uma conclusão
que uma evidência.
- O senhor terá de dar-me alguns fatos para sustentar isso
- disse, sentando-me na ponta da poltrona, antecipando-me
à resposta de Geisler.
- Existem muitas evidências das quais eu poderia falar",
começou. - Poderia falar da unidade da Bíblia - 66 livros
escritos em diferentes estilos literários por talvez quarenta
autores diferentes, com formação diferente, durante 1 500 anos,
e ainda assim a Bíblia apresenta de modo notável um drama
contínuo com uma mensagem central. Isso aponta para a exis-
tência da Mente divina que os escritores afirmaram tê-los ins-
pirado. Outra coisa é o poder transformador da Bíblia - des-
de o início ela tem renovado pessoas; tem-lhes dado esperan-
ça, coragem, propósito, sabedoria, direção e poder; e tem sido
uma âncora para a sua vida. Enquanto o islamismo em seu
início foi difundido pela espada, o cristianismo dos primórdios
se expandiu pelo Espírito, embora muitos cristãos estivessem
sendo mortos pelas espadas romanas.
- Contudo, creio que as evidências mais convincentes re-
pousam em duas categorias. Primeiro, existe confirmação ar-
queológica da sua confiabilidade e, em segundo lugar, existe
confirmação miraculosa da autoridade divina.
178 q EM DEFESA DA FÉ

Razão n. o 1: Confirmação pela arqueologia


Geisler iniciou a análise das evidências arqueológicas
citando as palavras de Jesus: "Eu lhes falei de coisas
terrenas e vocês não creram; como crerão se lhes falar de
coisas ce-lestiais ?"21
- Inversamente - disse Geisler, - se pudermos confiar
na Bíblia quando nos fala de coisas terrenas específicas que
podem ser verificadas, então poderemos confiar nela em áre-
as nas quais não podemos comprová-la diretamente de modo
empírico.
- Como é, então, que a Bíblia tem sido corroborada? - per-
guntei. Tendo investigado uma parte da confirmação arqueoló-
gica do Novo Testamento em meu livro anterior, Em defesa de
Cristo, estava especialmente interessado em arqueologia e no
Antigo Testamento, e pedi a Geisler que começasse deste ponto.
- Tem havido milhares - e não centenas - de achados
arqueológicos no Oriente Médio que confirmam o quadro apre-
sentado nos registros bíblicos. Há não muito tempo, houve
uma descoberta que confirmou a existência do rei Davi. Os
patriarcas - as narrativas sobre Abraão, Isaque e Jacó - fo-
ram outrora considerados lendários, mas, à medida que acha-
dos se tornam conhecidos, essas histórias vão ficando cada
vez mais confirmadas. A destruição de Sodoma e Camorra
era considerada mitológica até que foram descobertas evidên-
cias de que todas as cinco cidades mencionadas em Gênesis
estavam de fato situadas exatamente onde dizia o Antigo Tes-
tamento. No que se refere à sua destruição, o arqueólogo
Clifford Wilson disse que existem "evidências permanentes
da grande conflagração que ocorreu no passado longínquo" .22
- Ademais - Geisler acrescentou, - diferentes aspectos do
cativeiro judaico foram confirmados. Cada referência do An-
tigo Testamento a um rei assírio tem sido comprovada; uma

21João 3.12.
22\Z Rocks, relics and biblical relíability, de Clifford A. Wilson (Grand

Rapids, Michigan: Zondervan, 1977), p. 42.


Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração 9 179

escavação feita na década de 1960 confirmou que os israelitas


podiam de fato ter entrado em Jerusalém no reinado de Davi
através de um túnel; existem evidências de que o mundo real-
mente tinha um único idioma em certa época, como diz a Bí-
blia; o local do templo de Salomão está sendo escavado pre-
sentemente; e assim por diante. Muitas vezes, os arqueólogos
mostram-se céticos em relação ao Antigo Testamento, mesmo
quando novas descobertas corroboram o relato bíblico.
- Por exemplo... - solicitei.
- Por exemplo, Samuel diz que após a morte de Saul sua
armadura foi colocada no templo de Astarote, que era uma
deusa cananéia da fertilidade, em Bete-Seã, ao passo que Crô-
nicas relata que a sua cabeça foi colocada no templo de um
deus filisteu do milho chamado Dagom. Ora, os arqueólogos
achavam que devia haver um equívoco e que, portanto, a Bí-
blia não era fidedigna. Eles não achavam que inimigos teriam
tido templos no mesmo lugar ao mesmo tempo."
- O que descobriram os arqueólogos? - perguntei.
- Eles confirmaram por meio das escavações que havia
dois templos naquele local, um de Dagom e outro de Astarote.
Eram separados por um corredor. Acontece que os filisteus
aparentemente haviam adotado Astarote como uma de suas
deusas. A Bíblia estava certa, afinal. Esse tipo de fenômeno
tem ocorrido com freqüência. A Bíblia faz cerca de 36 referên-
cias aos hititas, mas os críticos costumavam acusar que não
havia evidências de que esse povo alguma vez tivesse existi-
do. Agora, alguns arqueólogos que estão escavando na mo-
derna Turquia descobriram os registros dos hititas. Como de-
clarou o grande arqueólogo William F: Albright: "Não pode
haver dúvida de que a arqueologia confirmou a historicidade
substancial da tradição do Antigo Testamento" .23
Pedi a Geisler que prosseguisse, fazendo um breve resumo
por que ele crê que a arqueologia corrobora o Novo Testamento.

23Archeology and lhe religion of Israel, Baltimore, Maryland: Johns


Hopkins Press, 1953, p. 176.
180 q EM DEFESA DA FÉ

o
respeitado historiador do período romano Colin J.
Hemer, em The book of acts in the setting ofhellenistic history
[O livro de Atos no contexto da história helenística], mostra
como a arqueologia confirmou, não dezenas, mas centenas e
centenas de detalhes do relato bíblico da igreja primitiva -
disse Geisler. - Até mesmo pequenos detalhes têm sido cor-
roborados, como a direção em que sopra o vento, qual a pro-
fundidade da água a certa distância da praia, que tipo de do-
ença existia em uma ilha em particular, os nomes dos funci-
onários locais e assim por diante. Ora, Atos foi escrito pelo
historiador Lucas. Hemer fornece mais de doze razões pelas
quais Atos tinha de ter sido escrito antes de 62 A.D., ou cerca
de trinta anos após a crucificação de Jesus. Ainda antes dis-
so, Lucas escreveu o seu evangelho, que é substancialmente
igual aos outros relatos bíblicos da vida de Jesus.
- Você tem aqui um historiador impecável, que demons-
trou estar correto em centenas de detalhes e nunca se com-
provou estar errado ao escrever toda a história de Jesus e da
igreja primitiva. E ela foi escrita no espaço de uma geração,
quando as testemunhas oculares ainda viviam e poderiam
tê-la contestado se fosse exagerada ou falsa. Você não tem
nada semelhante a isso em qualquer outro livro religioso do
mundo antígo.>
- Seria Hemer uma voz solitária? - perguntei.
- De modo algum - foi a resposta. - O destacado histo-
riador sir William Ramsay era inicialmente um cético, mas
depois de estudar o livro de Atos concluiu que "em distintos
detalhes a narrativa mostrou uma maravilhosa verdade". 25
O grande historiador clássico da Universidade de Oxford, A.
N. Sherwin-White, disse: "Quanto a Atos, a confirmação
da historicidade é esmagadora" e que "qualquer tentativa

24\1:Colin J. HEMER, The book ofActs in the setting ofhellenistic history;


Winona Lake: Eisenbrauns, 1990.
255t. Paul the traveler and the roman citizen, Grand Rapids, Michigan:
Baker, 1982, p. 8.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 1 s1

de rejeitar a sua historicidade básica deve agora parecer ab-


surda";" Mencionei anteriormente o arqueólogo William F.
Albright, que foi um líder da Escola Americana de Pesquisa
Oriental durante 40 anos. Começou como liberal, mas se tor-
nou mais e mais conservador à medida que estudava o regis-
tro arqueológico. Ele concluiu que os críticos radicais do
Novo Testamento são "pré-arqueológicos" e suas concepções,
"bastante antiquadas". 27
Reclinei-me na poltrona de couro enquanto refletia sobre
a enxurrada de fatos e citações apresentada por Geisler. O ar-
gumento era forte: se a arqueologia mostra que a Bíblia está
correta no que pode ser verificado, por que seria menos exa-
ta nos demais aspectos? O argumento arqueológico isolada-
mente já !comprova muito.
- Mesmo que a arqueologia confirme que a Bíblia é histo-
ricamente precisa, isso não significa que ela tem autoridade
divina - disse.
- Correto - confirmou Geisler, incisivo. - A única ra-
zão pela qual alguém deve aceitar a Bíblia como um livro
dotado de autoridade divina é o fato de que ela tem milagro-
sa confirmação.

Razão n. o 2: Evidências de origem divina


Geisler folheou sua Bíblia bastante gasta até chegar à sua sen-
tença inicial, colocando o livro aberto sobre as pernas.
- Tudo depende do primeiro versículo da Bíblia ser verda-
deiro quando afirma: "No princípio Deus criou os céus e a ter-
ra" - Geisler disse. - Eu creio que existem evidências cientí-
ficas esmagadoras de que é verdadeiro - tudo o que tem um
início tem um iniciador; o universo teve um início, portanto,

26Roman society and roman law in the New Testament, Oxford:


Clarendon Press, 1963, p. 189.
27\1: William F: ALBRIGHT, Retrospect and prospect in New Testament

archeology, em The teacher's yoke, Waco, Texas: Baylor University,


1964, p. 288ss.
182 q EM DEFESA DA FÉ,

teve um iniciador; o universo foi moldado e ordenado desde o


próprio momento da criação para o surgimento da vida; e as-
sim por diante.
Interrompi para informar que já havia entrevistado William
Lane Craig sobre as evidências que apontam para a origem
divina do universo.
- Que bom - disse. "O que as pessoas esquecem com fre-
qüência é que se esse primeiro versículo é verdadeiro, os mila-
gres não somente são possíveis, mas são uma realidade, porque
o maior milagre já aconteceu - fazer algo a partir do nada. O
que é mais difícil: Jesus transformar água em vinho ou pegar um
punhado de nada e fazer água? É muito mais difícil fazer água a
partir do nada que fazer vinho a partir da água. "Alguém disse-
me certa vez: "Eu não creio na Bíblia porque ela contempla mila-
gres". Desafiei: "Mostre um". Ele retrucou: "Transformar água
em vinho. Você acredita nisso?" Respondi: "Sim, acontece o tempo
todo". Ele: "O que você quer dizer?" Eu: "Bem, a chuva passa
pela videira, segue para a uva e a uva a transforma em vinho.
Tudo o que Jesus fez foi agilizar um pouco esse processo". A
questão é a seguinte: se você tem um Deus que pode fazer algo a
partir do nada, então ele pode fazer milagres. A única coisa que
temos de averiguar é que livro na história do mundo foi confir-
mado miraculosamente. Existe somente um, a Bíblia.
- Está bem - concedi. - Mostre-me como.
Geisler levantou dois dedos.
- De duas maneiras - explicou. "Primeiro, a Bíblia é confir-
mada miraculosamente através do cumprimento de profecias
preditas e, em segundo lugar, confirmada pelos milagres realiza-
dos por aqueles que alegaram estar falando em nome de Deus.

Confirmação pelas profecias


Geisler começou com uma sentença radical:
- A Bíblia é o único livro do mundo que contém predi-
ções específicas e precisas feitas com antecedência de cente-
nas de anos e que foram cumpridas literalmente.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração 9 1 s3

Apontando para um dos livros que enchiam as suas estan-


tes, prosseguiu dizendo:
- De acordo com Barton Payne's encyclopedia of biblical
prophecy [Enciclopédia de profecia bíblica de Barton Payne],
existem 191 predições no Antigo Testamento sobre a vinda de
Cristo, incluindo sua ascendência, a cidade em que iria nas-
cer, o fato de que nasceria de uma virgem, a época exata da
história em que morreria e assim por diante.
- De fato, o salmo 22.16 diz que suas mãos e pés seriam
perfurados, o versículo 14 diz que os seus ossos seriam des-
conjuntados; o versículo 18 fala como os guardas jogaram a
sorte para ganhar suas vestes; e Zacarias 12.10 diz que ele
seria traspassado, como Jesus o foi com uma lança. Obvia-
mente isso é uma imagem de sua crucificação - no entanto,
foi escrito antes mesmo da crucificação ser aplicada pelos ro-
manos como método de execução. Naquela época, os judeus
matavam as pessoas por apedrejamento. E, claro, Isaías 53.2- .
12 talvez tenha as predições mais impressionantes sobre Cris-
to em todo o Antigo Testamento. Esse texto prevê doze aspec-
tos da sua paixão que foram todos cumpridos - ele seria re-
jeitado, seria um homem de dores, teria uma vida de sofri-
mento, seria desprezado pelos outros, levaria as nossas dores,
seria ferido e afligido por Deus, seria traspassado por causa
de nossas transgressões, seria ferido por causa de nossos pe-
cados, sofreria como um cordeiro, morreria com os ímpios,
seria sem pecado e intercederia por outros.
Interrompi.
- Espere um momento - exclamei. - Se o senhor falar
com um rabino, ele lhe dirá que essa passagem se refere sim-
bolicamente a Israel, e não ao Messias.
Geisler sacudiu a cabeça.
- Na época do Antigo Testamento, os rabinos considera-
vam que esta era uma profecia referente ao Messias. Essa é a
opinião que de fato importa - refutou. Somente mais tarde,
depois que os cristãos comentaram que a profecia evidente-
mente se referia a Jesus, é que eles começaram a dizer que
184 q EM DEFESA DA FÉ

na verdade se referia à nação judaica sofredora. Mas isso


evidentemente está errado. Isaías se refere habitualmente
ao povo judeu na primeira pessoal do plural, como "nosso"
ou "nós", mas sempre se refere ao Messias na terceira pes-
soa do singular, como "ele" ou "lhe" - e foi isso o que ele
fez em Isaías 53. Além disso, qualquer pessoa que interpre-
te verá prontamente que se refere a Jesus. Talvez seja por
isso que essa passagem é geralmente omitida nas sinagogas
hoje em dia. Você tem aqui algumas predições incríveis que
foram cumpridas literalmente na vida de um homem, mui-
to embora não tivesse qualquer controle sobre a maior parte
delas. Por exemplo, ele não poderia ter providenciado sua
ascendência, a época do seu nascimento e assim por diante.
Essas profecias foram escritas com uma antecedência de du-
zentos a quatrocentos anos. Nenhum outro livro do mundo
tem isso. A Bíblia é o único livro confirmado sobrenatural-
mente dessa maneira.
Refleti sobre isso.
- Mas os profetas do Antigo Testamento não foram os
únicos da história que fizeram predições que se concretiza-
ram de modo surpreendente. Nostradamus, o médico e as-
trólogo que viveu no século XVI, ficou famoso por ter feito
previsões sobre o futuro. Ele não previu a ascensão de Hitler
e a Alemanha nazista? - insisti mais como uma afirma-
ção do que como uma pergunta. - Se ele pode fazer isto,
o que há de tão especial quanto às profecias preditas da
Bíblia?
- O problema de Nostradamus e de tantos outros chama-
dos videntes é que as suas predições freqüentemente são enig-
máticas, ambíguas e imprecisas - Geisler redarguiu.
- E quanto à predição sobre Hitler? - exigi. - Isso é bas-
tante específico.
- Na realidade, ela não foi nada específica - ele respondeu.
Geisler levantou-se e caminhou até a sua estante, pegando
um de seus livros e folheando-o até encontrar o que buscava.
Leu então as palavras da predição de Nostradamus:
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 185

Seguidores de seitas, grandes problemas estão reservados


para o Mensageiro. Uma besta sobre o teatro prepara a peça
cênica. O inventor daquele feito ímpio será famoso. O
mundo será confundido e dividido por seitas [... ] Bestas
loucas de fome irão cruzar rios a nado. A maior parte do
exército se voltará contra o baixo Danúbio [Hister sera]. O
grande será arrastado em uma gaiola de ferro quando o ir-
mão infante [de GermaÍn] nada observar. 28

Geisler continuou:
- Obviamente, essa não é uma referência a Adolf Hitler. A
palavra não é "Hitler", mas "Hister", e certamente não é uma
pessoa, mas um lugar. A expressão latina de Germain deve ser
interpretada como "irmão" ou "parente próximo", e não como
Germânia. Ele não cita quaisquer datas ou mesmo uma refe-
rência cronológica geral. Além disso, o que ele quer dizer com
"bestas" e 'gaiola de ferro"? É algo tão confuso que toda a pro-
fecia fica sem sentido. O que se nota é que as predições de
Nostradamus são muito ambíguas e poderiam se encaixar em
uma grande variedade de eventos. Os seus seguidores são in-
consistentes na maneira como interpretam o que ele disse. E
algumas de suas profecias foram demonstradas como falsas.
De fato, nem uma única predição de Nostradamus jamais foi
comprovada como genuína.
- Admito que muitos videntes, como Nostradamus, são va-
gos em suas predições - desafiei. - Mas o senhor tem de ad-
mitir que o mesmo se pode dizer de algumas profecias bíblicas.
- Concordo, nem todas as profecias bíblicas são nítidas -
Geisler respondeu. "Todavia, muitas profecias são bastante
específicas. Quão mais detalhado se podia ser que prever com
precisão quando Jesus iria morrer, como fez Daniel 9.24-26?
Quando você faz as contas, verifica que essa passagem espe-
cifica quando Jesus entraria na história humana. E que dizer
das predições do local do seu nascimento ou de como ele iria

28Norman L. GEISLER, Enciclopédia de apologética: respostas aos críti-


cos da fé cristã, São Paulo: Vida, 2002.
186 q EM DEFESA DA FÉ

sofrer e morrer? A especificidade é impressionante - e elas


invariavelmente demonstraram ser verdadeiras.
Rebati com o exemplo recente de uma vidente cujas predi-
ções muitas vezes foram bastante detalhadas.
- Em 1956, Jean Dixon predisse que um democrata ga-
nharia a eleição presidencial de 1960 e seria assassinado no
exercício do cargo. Isso se cumpriu em John F: Kennedy - e
essa é uma profecia bastante específica.
Geisler não se impressionou.
- Ela também predisse que as eleições de 1960 seriam
dominadas pelo movimento trabalhista, o que não ocorreu.
Mais tarde procurou se resguardar dizendo que Richard
Nixon iria ganhar, de modo que havia 100 % de possibilida-
de de que uma daquelas predições iria concretizar-se. No
que diz respeito ao assassinato, três dos dez presidentes do
século xx morreram no exercício do cargo e dois outros esta-
vam gravemente enfermos no final dos seus mandatos. A pos-
sibilidade de que ela errasse não era tão grande. Além disso,
ao contrário dos profetas bíblicos, ela fez numerosas predi-
ções que se mostraram falsas - que a China Vermelha mer-
gulharia o mundo em urna guerra por causa de Quemoy e
Matsu em 1958; que a Terceira Guerra Mundial começaria
em 1954; que Fidel Castro seria banido de Cuba em 1970. A
minha favorita é a predição feita por ela de que Jacqueline
Kennedy não tornaria a se casar - e logo no dia seguinte ela
se casou com Aristóteles Onassis! - disse disparando uma
gargalhada.
"Um estudo das profecias feitas por videntes em 1975,
incluindo as de Dixon, mostrou que estavam corretas ape-
nas 6% das vezes. Isso é insignificante! É provável que se
alguém se pusesse simplesmente a adivinhar obteria resul-
tados melhores que esse. Além disso, sabe-se que Dixon,
Nostradamus e outros videntes se envolvem comumente
com práticas ocultistas - por exemplo, ela usava uma bola
de cristal - e isso poderia explicar uma parte do que pre-
disseram.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 167
Como sou cético em relação aos videntes, não quis me ver
colocado na situação de tentar defendê-los. E Geisler havia dei-
xado claro o que pretendia: que eles são completamente dife-
rentes dos profetas bíblicos. Decidi avançar para uma crítica
mais contundente das profecias bíblicas, ou seja, a alegação
de que os cristãos as arrancam do seu contexto e afirmam que
elas predisseram a vinda de Jesus quando na verdade esta-
vam tratando de outra questão. Um exemplo disso estalou na
minha mente.
- O senhor se incomoda? - solicitei, enquanto estendia a
mão e pegava a Bíblia pertencente a Geisler. Abri em Mateus
2.14,15, que diz: "Então [José] se levantou, tomou o menino e
sua mãe durante a noite, e partiu para o Egito, onde ficou até
a morte de Herodes. E assim se cumpriu o que o Senhor tinha
dito pelo profeta: 'Do Egito chamei o meu filho'."
Isso é uma referência a Oséias 11.1. Eu achei esse versículo
e o li para Geisler: "Quando Israel era menino, eu o amei, e do
Egito chamei o meu filho." Fechando o livro e devolvendo-o a
Geisler, disse:
- Ora, obviamente essa passagem está falando da saída
dos filhos de Israel do Egito, no Êxodo. Não é sobre o Messias.
Isso não é arrancar uma profecia do seu contexto?
- Essa é uma boa pergunta - Geisler observou. - Todavia,
você precisa entender que nem todas as profecias são preditas.
- E isso significa o quê? - indaguei.
- É verdade que o Novo Testamento aplicou a Jesus certas
passagens do Antigo Testamento que não continham predi-
ções diretas sobre ele. Muitos estudiosos consideram essas
referências como "tipologicamente" cumpridas em Cristo, sem
ser rigorosamente preditas."
- O que o senhor está querendo dizer com isso?
- Em outras palavras, alguma verdade da passagem pode
ser adequadamente aplicada a Cristo, embora não contenha
uma predição específica a respeito dele. Outros estudiosos
dizem que existe um sentido genérico em certas passagens do
Antigo Testamento que se aplicam tanto a Israel quanto a Cristo,
188 q EM DEFESA DA FÉ

pois ambos foram chamados "filhos" de Deus. Isso às vezes


se chama "conceito de dupla referência" das profecias.
- Posso entrever o mérito de ambas as concepções. Con-
tudo, outra vez, essas passagens não eram diretamente predi-
tas e não as uso dessa maneira. Todavia, certamente existe
um número suficiente de exemplos de profecias claramente
preditas para estabelecer a autoridade divina da Bíblia. A ma-
temática demonstrou que não há qualquer possibilidade de
que pudessem ter se cumprido por mero acaso.

Confirmação por meio de milagres


Passando para outra fonte da autoridade divina da Bíblia,
Geisler disse que existe um meio seguro de determinar se
um profeta é verdadeiramente porta-voz de Deus ou charla-
tão que está tentando enganar as massas: poderia o profeta
realizar milagres comprovados? As três grandes religiões
monoteístas - cristianismo, judaísmo e islamismo - reco-
nhecem a validade dos milagres como meio para confirmar
uma mensagem vinda de Deus. Até o famoso cético Bertrand
Russell admitiu que os milagres dariam autenticidade a uma
afirmação da verdade. 29
- Na Bíblia - que já vimos ser historicamente confiável-
temos profetas que foram contestados, mas que depois realiza-
ram milagres para firmar as suas credenciais - disse Geisler.
- Por exemplo, Moisés disse em Êxodo 4.1: "E se eles não
acreditarem em mim nem quiserem me ouvir e disserem: ~O
SENHOR não lhe apareceu'?". Como Deus responde? Dizendo a
Moisés que jogue a sua vara no chão; ela transformou-se imedi-
atamente numa serpente. Ele disse que Moisés a pegasse pela
cauda; voltou a ser uma vara. Então Deus disse no versículo 5:
"Isso é para que eles acreditem que o Deus dos seus antepassa-
dos, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó, apare-
ceu a você".

29What is ao agnostic?, revista Look, 1953.


Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração 9 1 s9

- O mesmo aconteceu com Elias no monte Carmelo - ele


foi contestado e Deus enviou fogo do céu para confirmar que
era um profeta verdadeiro. Quanto a Jesus, na verdade veio e
disse: "Se eu não realizo as obras do meu Pai, não creiam em
mim";" E então as realizou. Até mesmo Nicodemos admitiu
isso quando disse a Jesus: "Mestre, sabemos que ensinas da
parte de Deus, pois ninguém pode realizar os sinais miracu-
losos que estás fazendo, se Deus não estiver com ele". 31 Isso
nunca aconteceu com Maomé. Na verdade, Maomé acredita-
va que Jesus era um profeta que realizou milagres, incluindo
o de ressuscitar os mortos. Os muçulmanos também crêem
que Moisés e Elias realizaram milagres. Isso é muito interes-
sante, porque no Alcorão, quando os descrentes desafiaram
Maomé a realizar um milagre, ele se recusou a fazê-lo. Sim-
plesmente disse que eles deviam ler um capítulo do Alcorão. 32
- Fez isto? - exclamei.
- Com certeza. No entanto, o próprio Maomé disse: "Allah
é capaz de enviar um sinal". 33 Chegou a afirmar: "Eles dirão:
'Dizem: Se lhes fosse revelado um sínal de seu Senhor... "'. 34
Ao contrário de Jesus, os milagres não eram um sinal do mi-
nistério de Maomé. Não foi senão 152 anos depois da sua morte
que os seus seguidores inventaram milagres e os atribuíram a
ele. Quando João Batista levantou a questão se Jesus era o
Messias, Jesus pôde responder confiante aos discípulos de João:
"Voltem e anunciem a João o que vocês viram e ouviram: os
cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são purificados,
os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e as boas novas
são pregadas aos pobres". 35
Geisler fez uma pausa enquanto avaliava o que ele estava
dizendo. Em seguida sintetizou seus argumentos:
3°João 10.37.
31João 3.2.
32\( surata 2.118; 3.181-184; 4.153; 6.8,9,37.
33S urata 6.37.
34Ibid.
35Lucas 7.22.
190 q EM DEFESA DA FÉ

- Quando você soma essas coisas - a confiahilídade his-


tórica da Bíblia, autenticada pela arqueologia, o cumprimen-
to miraculoso de profecias claras e a realização de milagres
documentados- você tem um livro confirmado sobrenatu-
ralmente como nenhum outro na história.
Desejava esclarecer algo.
- O senhor não está querendo dizer: "Creio que a Bíblia é
divinamente inspirada porque ela própria diz sei."
- Correto. Esse é um argumento circular. Não, o racíocí-
nio é o seguinte: a Bíblia afirma ser a Palavra de Deus e a
Bíblia prova ser a Palavra de Deus.
Esse poderia ser um conceito bastante bom - se a Bíblia
não contivesse tantas aparentes contradições. Mas como pode
a Bíblia ser realmente fidedigna se não consegue manter a
coerência de sua própria história? Como pode ser considera-
da divinamente inspirada se faz afirmações que simplesmente
não podem ser harmonizadas umas com as outras?

Enfrentando as contradições
Quando perguntei sobre as pretensas contradições da Bíblia,
Geisler se recostou na poltrona e sorriu. Essa era uma questão
que ele passara a vida toda estudando.
- Meu passatempo é colecionar alegadas discrepâncias,
imprecisões e afirmações conflitantes da Bíblia - explicou.
"Tenho uma lista de cerca de oitocentas. Há poucos anos fui
co-autor de um livro chamado Manual popular de dúvidas,
enigmas e "contradições" da Bíblia, que dedica quase 600 pá-
ginas ao esclarecimento dos fatos.:" Tudo o que posso lhe di-
zer é que, na minha experiência, quando os críticos levantam
essas objeções violam invariavelmente um dos dezessete prin-
cípios de interpretação da Escritura.
- Quais são eles? - perguntei.

36Norman GEISLER & Thomas HOWE, São Paulo: Mundo Cristão, 1999.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 191
- Por exemplo, supor que o não-explicado é inexplicável.
Estou certo que algum crítico mordaz poderia me interpelar:
"E quanto a essa questão?", embora eu tenha estudado estes
assuntos durante 42 anos, seria incapaz de responder-lhe. O
que isso prova - que a Bíblia contém erro ou que Geisler é
ignorante? Conferiria o benefício da dúvida à Bíblia, porque
entre as oitocentas objeções estudadas não encontrei um úni-
co erro na Bíblia, ao passo que localizei muitos erros cometi-
dos pelos críticos.
Ergui a cabeça.
- Será que isso é de fato razoável, dar à Bíblia o benefício
da dúvida?
- Sim, é - insistiu. - Quando um cientista se depara
com uma anomalia na natureza, ele abandona a ciência? Quan-
do a nossa sonda espacial encontrou anéis trançados em tor-
no de Júpiter, isso foi de encontro a todas as explicações cien-
tíficas. Você se lembra de algum cientista da NASA ter pedido
demissão porque não pôde explicar o fenômeno?
Sorri.
- Claro que não.
- Exatamente. Não desistiram. Persistiram: "Bem, deve ha-
ver uma explicação", e continuaram a pesquisar. Abordo a
Bíblia mesmo modo. Ela tem provado repetidamente estar
correta, mesmo quando inicialmente achei que não estava.
Por que não deveria conceder-lhe o benefício da dúvida ago-
ra? Nós precisamos tratar a Bíblia da maneira que alguém deve
ser tratado no tribunal: presunção de inocência até que seja
provada a culpa.
- Os críticos fazeram o oposto. Negaram que os hititas
do Antigo Testamento tivessem existido algum dia. Recen-
temente os arqueólogos descobriram a biblioteca hitita. Os
críticos dizem: "Bem, acho que a Bíblia estava certa nesse
versículo, mas não aceito o resto". Pois bem, quando de-
monstrou estar certa caso após caso, em centenas de deta-
lhes, o peso da prova deve recair sobre o crítico, e não sobre
a Bíblia.
192 q EM DEFESA DA FÉ

Pedi que Geisler descrevesse brevemente alguns dos ou-


tros princípios utilizados para resolver aparentes conflitos na
Escritura.
- Por exemplo - disse, - deixar de entender o contexto
da passagem. Esse é o erro mais comum cometido pelos crí-
ticos. Tirando as palavras do contexto, você pode até mesmo
fazer a Bíblia provar que Deus não existe. Afinal, o salmo
14.1 repentinamente diz: "Deus não existe". Porém, clara-
mente o contexto afirma: "Diz o tolo em seu coração: 'Deus
não existe'." Portanto, o contexto é muitíssimo importante, e
COIll m.uita freqüência os críticos são habilíssimos em arran-
car os versículos do contexto para criar uma suposta discre-
pância quando não existe. Outro erro é pressupor que um
relato parcial é um falso relato. Mateus registra que Pedro
disse a Jesus: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". Marcos
disse: "Tu és o Cristo". Lucas disse: "O Cristo de Deus". 37 Os
críticos dizem: "Viram? Erro!" Eu digo: "Onde está o erro?"
Mateus não disse: "Tu não és o Cristo", e Marcos: "Tu és".
Mateus deixa claro que isto não é um erro, e sim informa-
ção complementar. Outros erros consistem em deixar de
interpretar passagens difíceis à luz de passagens claras;
basear um ensino em uma passagem obscura; esquecer que
a Bíblia usa linguagem cotidiana, não-técnica; deixar de
lembrar que a Bíblia usa diferentes recursos literários; e
esquecer que a Bíblia é um livro humano com característi-
cas humanas.
- Seres humanos cometem erros - afirmei. - Se é um
livro humano, não seriam os erros inevitáveis?
- À exceção, digamos, dos Dez Mandamentos, a Bíblia
não foi ditada - respondeu Geisler. - Os .... que escreveram
não foram secretários do Espírito Santo. As vezes usaram
fontes humanas ou diferentes estilos literários ou redigi-
ram de diferentes perspectivas ou deram ênfase a distintos
interesses ou revelaram padrões humanos de pensamento

37Mateus 16.16; Marcos 8.29; Lucas 9.20.


Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 193
e emoção. Não há nenhum problema nisso. A exemplo de
Cristo, a Bíblia é integralmente humana, porém sem erro.
- No entanto - exclamei, - as pessoas levantam supos-
tas contradições o tempo todo.
- Como o quê, por exemplo? - apontou. - Quais são as
mais comuns que você tem ouvido?
Pensei por instantes.
- Mateus diz que havia um anjo no túmulo de Jesus; João
diz que havia dois. Os evangelhos dizem que Judas se enfor-
cou; Atos diz que das suas entranhas jorrou sangue.
- Você está certo; essas são citadas com freqüência",
respondeu. - Mas podem ser facilmente harmonizadas.
Quanto aos anjos, você já notou que sempre que se tem dois
de algo tem-se também um? Nunca falha. Mateus não dis-
se que havia apenas um. João estava dando mais detalhes
ao dizer que havia dois. Quanto ao suicídio de Judas, uma
pessoa se enforca em uma árvore ou na borda de um pe-
nhasco. Ia contra a lei tocar um corpo morto naqueles dias.
Assim, alguém veio depois, achou o seu corpo, cortou a
corda e o corpo intumescido caiu sobre as rochas. O que
aconteceu? As entranhas se arrebentaram, exatamente como
a Bíblia diz. Essas coisas não são contraditórias, mas com-
plementares.
Levando tudo em conta, tive de admitir que Geisler estava
certo. Lembro-me que, ainda ateu, bombardeava cristãos
despreparados com uma rajada de aparentes contradições e
discrepâncias bíblicas. Ficavam frustrados e constrangidos por-
que não podiam respondê-las e eu me afastava, presunçoso e
satisfeito.
O fato de não terem conseguido dissipá-las não significa
que não havia respostas. Como no caso dos trechos proble-
máticos sobre os cananeus e Eliseu, quanto mais mergu-
lhava nas evidências históricas e submetia as questões a
um minucioso exame, mais tendiam a desaparecer como
objeções.
194 q EM DEFESA DA FÉ

Por que é difícil crer?


Já era quase a hora do almoço e estava ficando com fome.
- O senhor gostaria de comer alguma coisa? - perguntei
a Geisler.
- Claro - exclamou. - Há uma lanchonete aqui perto."
Percorri minhas anotações. Pensei que tinha coberto tudo
o que queria discutir, mas detive-me numa citação que havia
trazido comigo. Era um sentimento que refletia a frustração
de muitas pessoas: Por que Deus torna tão difícil crer nele?
Não queria concluir a entrevista sem perguntar a Geisler so-
bre isso.
- Mais uma coisa antes de irmos - disse-lhe antes de ler
as palavras pitorescas de um peregrino espiritual frustrado:

Assim, se eu quiser evitar o inferno, supostamente tenho


de crer que uma serpente falou com Eva, que uma virgem
foi engravidada por Deus, que uma baleia engoliu um pro-
feta, que o mar Vermelho foi aberto e toda espécie de ma-
luquice. Bem, se Deus me quer tanto [... ] por que torna
quase [... ] impossível acreditar nele? [... ] Parece-me que o
Deus todo-poderoso poderia fazer um trabalho muito
melhor no sentido de convencer as pessoas da sua exis-
tência do que qualquer evangelizador... Basta escrever
no céu, com letras bonitas e grandes: "Eis a prova, Ed.
Creia em mim ou vá para o inferno! Atenciosamente, o
Todo-Poderoso";"

Olhando para Geisler, indaguei:


- E o senhor, o que diria a ele?
Geisler ficou um tanto desorientado.
- A minha resposta seria que Deus já fez algo assim - ele
respondeu. - Salmos 19.1 diz: "Os céus declaram a glória
de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos". De
fato, isso está escrito nos céus de maneira tão vívida que mais

3BGregory A. BoYD & Edward K. BoYD, Letters from a skeptic, Wheaton,


Illinois: Victor, 1994, p. 120.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração 9 195

e mais cientistas que perscrutam as estrelas estão se tornan-


do cristãos.
- O grande cosrnólogo Allan Sandage, que conquistou a
versão astronomia do Prêmio Nobel, concluiu que Deus é "a
explicação do milagre da existência". 39 Sir Fred Hoyle, que
formulou a teoria do estado permanente do universo que eli-
minaria a existência de Deus, finalmente veio a crer no
Planejador Inteligente do universo. O astrofísico Hugh Ross,
que recebeu o seu doutorado em astronomia da Universi-
dade de Toronto e fez pesquisas sobre quasars e galáxias,
disse que as evidências científicas e históricas "deitaram
raízes profundas em minha confiança na veracidade da Bí-
b l ia"."? Robert ] astrow, um agnóstico confesso, diretor do
Observatório do Monte Wilson e fundador do Instituto Es-
pacial Goddard, concluiu que o big bang aponta para Deus.
E gosto do que disse o físico matemático Robert Griffiths:
"Se precisarmos de um ateu para um debate, vou ao depar-
tamento de filosofia. O departamento de física não é de gran-
de utilidade".41 Lee, as evidências são bem claras.
Não para um cético como Bertrand Russell, observei.
- Ele disse que se algum dia comparecer diante de Deus e
lhe for perguntado por que nunca acreditou nele, dirá que
não teve evidências suficientes - lembrei a Geisler.
Geisler, para que um dos passatempos é colecionar citações
de ateus e agnósticos, lembrou algo mais que Russell disse.
- Foi-lhe perguntado em uma entrevista para a revista Look:
"Sob que condição o senhor acreditaria em Deus?", e ele res-
pondeu em essência: "Bem, se ouvisse uma voz do céu e ela
predissesse uma série de coisas e elas acontecessem, então

39John Noble WILFORD, Sizing up the cosmos: an astronomer's quest,


New York Times, 12/3/1991.
40Creator and the cosmos, p. 17.
41Robert JASTROW, The secret of the stars, New York Times Magazine,
25/6/1978.
196 q EM DEFESA DA FÉ

acho que teria de acreditar que existe algum tipo de ser


sobrenaturalv.v
À luz da nossa conversa sobre o cumprimento miraculoso
de profecias preditas na Bíblia, a ironia da declaração de
Russell era óbvia.
- Eu diria: "Sr. Russell, já houve uma voz que veio do céu;
ela predisse muitas coisas e nós vimos que vieram inegavel-
mente a ocorrer" - Geisler declarou.
- Então o senhor não acha que Deus está tornando difícil
que as pessoas acreditem?
- Ao contrário, as evidências estão aí se as pessoas estive-
rem dispostas a aceitá-las. Não é por falta de evidências que
as pessoas se afastam de Deus; é por causa do seu orgulho ou
da sua vontade. Deus não vai forçar ninguém a entrar no seu
aprisco. O amor nunca atua de modo coercivo. Age apenas de
modo persuasivo. E há um bocado de evidências persuasivas
por aí.
Senti-me na obrigação de revelar a identidade da pessoa
que citei como tendo perguntado por que Deus torna tão difí-
cil acreditar nele. Seu nome é Edward Boyd e fez essa obser-
vação para o seu filho, o filósofo cristão Gregory Boyd, quan-
do trocaram correspondência em que debateram as evidênci-
as do cristianismo. Em 1992, depois de avaliar pessoalmente
as evidências, o ex- cético Edward Boyd decidiu tornar-se um
seguidor de Jesus.43
Geisler sorril i com essa história. O tom se tornou pessoal,
até mesmo poético, ao terminar falando de sua fé pessoal.
- Quanto a mim, digo o mesmo que disse o apóstolo Pedro:
"Senhor, para quem iremos? Tu tens as palavras de vida eter-
na".44 Ele é o único que não somente afirmou ser Deus, mas
provou ser Deus. Quando eu comparo isto com todos os ou-
tros pretendentes de todas as outras religiões, é como o poeta
que disse ter a noite mil olhos e o dia somente um; a luz de
42V: Bertrand RUSSELL, What is an agnostic?, revista Look, 1953.
43Letters from a skeptic, p. 189.
44João 6.68.
Se Deus mata crianças inocentes, ele não é digno de adoração P 197
todo O mundo morre com o pôr-do-sol.
A voz de Geisler suavizou, porém manteve a intensida-
de. - Na noite escura da ignorância humana, existem mui-
tas luzes no céu. À luz do dia, há somente uma, que é Jesus
Cristo, a luz do mundo. Com base nas evidências de quem
ele foi, realmente não há concorrentes. Desse modo, mar-
cho com ele - não com aquele que protestou sabedoria,
Confúcio; ou com aquele que reivindicou claridade, Buda;
ou com aquele que alegou ser um profeta, Maomé; mas
com aquele que declarou ser Deus em carne humana. Aquele
que proclamou "Antes de Abraão nascer, Eu SOU!"45- e pro-
.
vou ISSO.

Ponderações
Perguntas para reflexão ou estudo em grupo
~~~;,i;4!!:8:@d;o:;;;#~~~~~--;m ~\EIiI$!t$!~V ;r~. '{mUi mrwm%~,:"-";W'f'''jM). nu .'.I!~

1. Avalie o desempenho de Geisler ao tratar das questões


problemáticas de como Deus lidou com os amalequitas,
os cananeus e o bando que ameaçou o profeta Eliseu.
Qual foi a parte mais forte da sua explicação? A questão
do caráter de Deus é um "ponto de desgaste" na sua jor-
nada espiritual? Por que sim ou por que não?
2. As normas de Geisler para a interpretação da Escritura
fazem sentido para você? Quais delas você já viu serem
violadas pelos críticos? Você concorda que é razoável
dar à Bíblia o benefício da dúvida com base no fato de
que ela já provou ser confiável em numerosos exemplos?
Por que sim ou por que não?
3. Qual foi a sua reação à citação do ex-cético Edward Boyd?
Você acredita que Deus tornou difícil crermos nele? Qual
é o seu maior obstáculo em direção à fé? Que passos es-
pecíficos você poderia dar para superar esse obstáculo?
4. Você já ficou perplexo diante de uma aparente discre-
pância ou contradição da Bíblia? Caso positivo, o que

45João 8.58.
198 q EM DEFESA DA FÉ
você faria para buscar uma resposta? Tente formular a
sua pergunta de modo tão sucinto quanto puder e faça
uso de recursos da internet ou de bibliotecas, inclusive
os livros listados abaixo, e veja se há uma explicação
que possa satisfazê-lo.

Outras fontes de consulta


Mais recursos sobre esse tema

• ARCHER, Gleason L. Manual de temas bíblicos. 2? ed. São


Paulo, Vida, 2002.
Walter C. KAISER JR., DAVIDS, Peter H. BRUCE, F: F. & BRAUCH,
Manfred T. Hard sayings Df the Bible. Downers Grave,
Illinois, InterVarsity Press, 1996.
• GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética: respostas
aos críticos da fé cristã. São Paulo, Vida, 2002.
• & Ronald Brooks, When skeptics osk. Wheaton,
Illinois: Victor, 1990.
• & Howe, Thomas Manual popular de dúvidas,
enigmas e "contradições" da Bíblia. São Paulo: Mundo
Cristão, 1999.
~inta objeção
E-- ofens i vo afirmar qp.e Jesus
é o único caminho para Deus

Sou absolutamente contrário a qualquer religião que diga


que uma fé é superior a outra. E não vejo como isso pode
ser em nada diferente de um racismo espiritual. E um
modo de dizer que nós estamos mais perto de Deus do
que você, e é isso que leva ao ódio.
Schmuley Boteach! rabino

Moisés pôde ser o mediador da lei; Maomé pôde brandir


uma espada; Buda pôde dar conselhos; Confúcio pôde
proferir frases sábias; mas nenhum desses homens estava
qualificado para oferecer satisfação pelos pecados do
mundo... Somente Cristo é digno de devoção e culto ili-
mitados.
R. C. Sproul." teólogo

alter Chaplinsky tinha opiniões fortes sobre religião e


não se sentia constrangido em expressá-las. Em 1940,
ele causou escândalo em Rochester, New Hampshire, ao de-
nunciar ruidosamente a religião organizada como "trapaça" e
condenar várias ordens cristãs pelo nome. Resultado: foi pre-
so e sentenciado com base em uma lei estadual que conside-
rava crime pronunciar "qualquer palavra ofensiva, zombetei-
ra ou irritante a qualquer pessoa que esteja legalmente em
qualquer rua ou outro local público."

-Dí.sporrível em: http://cnn.com/Transcripts/0001/12/1kl.OO.html.


Acesso em: 13 jan. 2000.
2Razão para crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986.
200 q EM DEFESA DA FÉ

Crendo que o seu direito de livre expressão estava sendo


violado, Chaplinsky apelou da sentença até chegar à Supre-
ma Corte dos Estados Unidos. Todavia, em 1942 os magistra-
dos confirmaram unanimemente sua condenação, dizendo que
"palavras hostis" como as que ele proferiu ficavam fora da
proteção da Primeira Emenda." Trinta anos mais tarde, a alta
corte aclarou a sua definição de "palavras hostis" denominan-
do-as "epítetos pessoalmente abusivos" que comportam "ten-
dência inata de provocar ação violenta". 4
As "palavras hostis" despertam uma reação visceral nas pes-
soas, fazendo o seu estômago revirar, transformando suas mãos
em punhos. Essa linguagem ofensiva atinge as pessoas profun-
damente ao atacar as convicções mais caras, provocando a reta-
liação. Para algumas pessoas, são assim interpretadas as ousadas
palavras de Jesus Cristo: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida.
Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim"."
Muitas pessoas consideram arrogante, estreita e preconcei-
tuosa a insistência dos cristãos de que o único caminho para
Deus deve passar por Jesus de Nazaré. Em uma época de
pluralismo e tolerância religiosa, essa reiteração de exclusivi-
dade é politicamente incorreta, um tapa verbal na face de ou-
tros sistemas de fé. A pluralista Rosemary Radford Ruether a
rotulou "absurdo chauvinismo religioso", 6 ao passo que um ra-
bino a chamou "ditadura espiritual" que alimenta o tipo de ati-
tude complacente e superior que pode levar ao ódio e à violên-
cia contra pessoas que crêem de modo diferente. 7

3\1: Robert J. WAGMAN, The First Amendment book, New York: Pharos
Books, 1991, p. 106. \1: tb. Chaplinsky versus New Hampshire, 315
U.S.,568 (1942).
4\1: Cohen versus Califórnia, 403 U.S., 15 (1971).
5João 14.6.
6\1. The myth of Christiati uniqueness, (Londres: seM Press, 1987), p.
141.
"Dis porrível em: http://cnn.com/transcripts/OOO 1/12/lkl. OO.htrnl.
Acesso em: 13 jan. 2000.
É ofensivo aiirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 201

Uma abordagem como a que foi expressa pelo filósofo in-


diano Swami Vivekenanda certamente é muito mais aceitável
hoje em dia: "Nós [hindus] aceitamos que todas as religiões
são verdadeiras", disse ao Parlamento Mundial de Religiões
em 1893. O verdadeiro pecado, salientou, é chamar outro in-
divíduo de pecador,"
Esse tipo de mente aberta e liberalidade se adapta muito
bem à nossa atual cultura de relativismo, na qual nenhum
"fato" é considerado universalmente verdadeiro em todas as
épocas, em todos os lugares, para todas as pessoas e em todas
as culturas. Na verdade, atualmente dois terços dos america-
nos negam que exista algo absoluto como a verdade."
Quando era ateu, ficava indignado com as afirmações fei-
tas por cristãos de que eles detinham o monopólio do enfoque
correto da religião. "Quem eles pensam que são?", costumava
resmungar. "Quem são eles para julgar os demais? Onde está
o amor de Jesus nisso?"
Charles Templeton denominou "presunção Insuportável"?
o fato de a Bíblia afirmar que, além de Jesus, "debaixo do céu
não há nenhum outro nome [... ] pelo qual devamos ser sal-
VOS".l1 Templeton acrescentou:

Os cristãos são uma pequena minoria no mundo. Aproxi-


madamente quatro de cada cinco pessoas na face da terra
crêem em outros deuses que não o Deus cristão. Os mais
de cinco bilhões de pessoas que vivem na terra reverenci-
am ou cultuam mais de trezentos deuses. Se incluirmos
as religiões tribais ou animistas, o número sobe para mais
de três mil. Devemos crer que somente os cristãos estão
certosí"?

"Citadc em Paul COPAN, True for you, but not for me, p. 34.
"Ravi ZACHARIAS, Pode o homem viver sem Deus?, São Paulo: Mundo
Cristão, 1995, na introdução escrita por Charles Colson, IX.
l°Farewell to God, p. 27.
l1Atos 4.12.
12Farewell to God, p. 27, (ênfase minha).
202 q EM DEFESA DA FÉ

Apesar do lamentável erro de cálculo para menos cometi-


do por Templeton quanto ao número de deuses adorados no
mundo, o ponto levantado procede. A afirmação de exclusivi-
dade de Jesus está entre os maiores obstáculos com que se
deparam os investigadores espirituais nos nossos dias. Tra-
tando-se de tema tão volátil assim, sabia que precisava falar
com um especialista que tivesse uma mente aberta e analíti-
ca, uma sólida formação filosófica e larga experiência com
uma ampla variedade de religiões mundiais. Esses critérios
me levaram a um subúrbio de Atlanta, Geórgia, ao escritório
de Ravi Zacharias, que nasceu e foi criado na Índia.

A quinta entrevista: Ravi Zacharias, D.D., LL.D.

- Existe um velho ditado indiano que diz haver duas manei-


ras de tocar o nariz - contou Ravi Zacharias enquanto tirava
o paletó preto e se sentava à mesa circular de madeira do
escritório.
- Existe esta maneira - mostrou, apontando diretamente
para o seu nariz. Em seguida estendeu o braço em torno da
nuca e tocou o nariz pelo outro lado. - E existe esta maneira
- completou, exibindo um sorriso.
Isto é, os indianos às vezes preferem seguir um caminho
longo e sinuoso para dar uma resposta ao invés de chegar à
conclusão mais rapidamente. Por vezes isso ocorre com
Zacharias, que ganhou a reputação de estar entre os mais
astutos e articulados defensores do cristianismo em todo o
mundo.
Espírito tranqüilo, dotado de intelecto aguçado, Zacharias
foi descrito por Billy Graham como "um homem de grande
percepção espiritual e integridade intelectual" .13 Ele já dis-
correu sobre cristianismo, filosofia, seitas e religiões mun-
diais em cinqüenta países e numerosas universidades. Seus
livros incluem o premiado Pode o homem viver sem Deus?,

13Citado em Ravi Zacharias, Pode o homem viver sem Deus?, contracapa.


É ofensivo aiirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 203

baseado em parte numa série de penetrantes conferências


que fez na Universidade Harvard; A shattered visage: the real
face of atheism [Um rosto despedaçado: a verdadeira face do
ateísmo]; Deliver us from evil [Livra-nos do mal]; Cries ofthe
heart [Clamores do coração]; e Jesus among other gods Uesus
entre outros deuses]. Seu primeiro livro para crianças, The
merchant and the thief [O mercador e o ladrão], foi lançado
em 1999.
Zacharias estudou na Evangelical Divinity Trinity School,
onde obteve o grau de mestre em religião" e é professor visi-
tante na Universidade de Cambridge. Foi homenageado com
a concessão do grau de doutor em teologia pela Houghton
College e pela Faculdade e Seminário Tyndale, bem como de
grau de doutor em direito pela Asbury College. Foi catedráti-
co do evangelização e pensamento contemporâneo no Semi-
nário Teológico Alliance.
Atualmente, Zacharias dirige a organização Ministérios
Internacionais Ravi Zacharias, com escritórios nos Estados
~

Unidos, Canadá, India e Inglaterra. Ele e sua esposa Margaret


têm três filhos.
Zacharias é uma figura imponente com sorriso de meni-
no. A pele morena contrasta com o cabelo, que de tão bran-
co chega a ser quase luminoso. Fala com uma voz mansa e
nasalada e tem o sotaque e a cadência indiana característica.
Habitualmente educado e hospitaleiro, mostrou-se generoso
no uso do tempo e concentrou-se inteiramente na nossa en-
trevista, embora nos bastidores a sua equipe estivesse en-
volvida febrilmente nos preparativos para mais uma viagem
internaciona1.
Tinha vindo para questioná-lo sobre a afirmação de Je-
sus ser o único caminho para Deus, declaração que havia
feito ao discípulo Tomé. De acordo com a tradição, o então
incrédulo Tomé, vendo agora sua fé fortalecida pelo en-
contro com o Cristo ressurreto, embrenhou-se mais tarde
no coração da Índia para comunicar a mensagem cristã, sen-
do finalmente morto perto de Madras. Zacharias nasceu a
204 q EM DEFESA DA FÉ

apenas 10 km do memorial erigido para comemorar o mar-


tírio do apóstolo.
Em certo sentido, a jornada espiritual de Zacharias lem-
bra a de Tomé. Depois de passar os primeiros anos como cris-
tão de maneira apenas formal, Zacharias esperimentou uma
iniciação de fé aos dezessete anos, após ouvir um evangelista
americano pregar em uma campanha. Mais tarde, depois de
tentar matar-se por faltar sentido na sua vida, acabou no hos-
pital, em um episódio que o fez tornar-se um seguidor de Je-
"
sus radicalmente comprometido e um missionário da India
para vários lugares ao redor do mundo.
Sabia que a sua experiência naquele ambiente multicultural
e multirreligioso, em que cresceu, entre muçulmanos, hindus
e siques, enriqueceria sua perspectiva acerca dessa inquie-
tante questão da exclusividade de Cristo. Enquanto tomava
chá quente, tirei meu caderno de anotações da pasta e me
concentrei imediatamente no tópico principal.

A arrogância do cristianismo
- Perdoe-me por ser tão direto - exclamei ao introduzir a
minha pergunta - , mas não seria muito arrogante da parte
dos cristãos insistir que Jesus é o único e exclusivo caminho
para Deus? Por que os cristãos imaginam ter direito de asse-
verar que estão certos e o resto do mundo está errado?
Apesar do sotaque de Zacharias e de seu traje executivo
conservador - camisa branca engomada e gravata sóbria -
lhe dessem um ar formal, comportou-se de modo entusiásti-
co, caloroso e simpático em suas respostas.
- Lee, eu tenho ouvido tantas vezes essa pergunta, especi-
almente no Oriente - disse com voz animada e com olhos
que pareciam sinceros e preocupados. - A primeira coisa que
procuro fazer é tentar lidar com as informações errôneas que
são inerentes à indagação.
- Informações errôneas? - perguntei. - Como o quê?
- Primeiro - rebateu - é importante entender que o
É ofensivo afirmar que Jesus é o único caminho para Deus P 205
cristianismo não é a única religião que manifesta exclusivi-
dade. Por exemplo, os muçulmanos reivindicam exclusivi-
dade de modo radical - não só teologicamente, mas tam-
bém lingüisticamente. Os muçulmanos acreditam que o úni-
co, suficiente e consumado milagre do islã é o Alcorão. Di-
zem, contudo, que só é inteligível em árabe, e que qualquer
tradução o dessacraliza. E não se exige apenas uma noção
elementar do árabe, mas o conhecimento sofisticado dessa
língua. Quanto ao budismo, surgiu quando Gautama Buda re-
jeitou duas afirmações fundamentais do hinduísmo - a auto-
ridade última dos Vedas, que são as suas escrituras, e o siste-
ma de castas. O próprio hinduísmo é absolutamente intransi-
gente em duas ou três questões: a lei do carma (que é a lei de
causa e efeito moral, de modo que todo nascimento é um
renascimento que recompensa a vida anterior), a autoridade
dos Vedas e a reencarnação.
Interrompi.
- Mas ouvi alguns hindus dizerem com muita nobreza
que o hinduísmo é uma fé muito tolerante - insisti, pensan-
do em afirmações como a que foi feita por Swami Vivekenanda
na parte inicial deste capítulo.
Ele sorriu.
- Toda vez que você ouvir essa afirmação, não a enten-
da no seu sentido aparente - explanou. - O que realmen-
te significa é que o hinduísmo lhe permite praticar a sua
religião contanto que ela aceite a noção hinduísta de ver-
dade, que é sincretista. O sincretismo é a tentativa de mis-
turar crenças diferentes ou até mesmo opostas. Quanto ao
siquismo - continuou - , surgiu como um desafio tanto ao
hinduísmo quanto ao budismo. Depois existem os ateus -
rejeitam os pontos de vista dos que crêem em Deus. E até
mesmo o hahaísmo, que afirma ser um abraço cósmico de
todas as religiões, acaba excluindo os exclusivistas! Portan-
to, a afirmação de que os cristãos são arrogantes por reivin-
dicarem exclusividade ignora a realidade de que todas as
outras grandes religiões fazem o mesmo. Assim, quando as
206 q EM DEFESA DA FÉ

pessoas falam em arrogância, não estão fazendo uma acu-


sação lógica.
Comecei a formular a pergunta seguinte, mas Zacharias
previu-a e interveio para completar a sentença.
- O senhor acredita que toda verdade... - comecei.
- É, por definição, exclusiva - concluiu. - Sim, sim, eu
acredito. Se a verdade não exclui, então não se está fazendo
nenhuma afirmação da verdade; somente se está expondo uma
opinião. Toda vez que você faz uma asserção da verdade, você
quer dizer que algo contrário a ela é falso. A verdade exclui o
seu oposto.
- Existem os que negam isso - observei.
- Sim, mas pense no seguinte: negar a natureza exclusiva
da verdade é fazer uma afirmação da verdade, e isso não torna-
ria essa pessoa também arrogante? Esse é o efeito bumerangue
que o crítico muitas vezes não se detém para analisar. As cla-
ras implicações do fato de Jesus dizer que ele é o caminho, a
verdade e a vida são que, em primeiro lugar, a verdade é abso-
luta e, em segundo lugar, que a verdade pode ser conhecida.
Sua reivindicação de exclusividade significa categoricamente
que qualquer coisa que contradiga o que ele diz é falsa por
definição.
- Uma coisa é os cristãos crerem nisso - respondi. - Ou-
tra coisa é comunicar essa verdade sem parecer orgulhoso ou
superior. Mas os cristãos com freqüência acabam fazendo isso.
Zacharias suspirou. Era uma acusação que ouvia com muita
freqüência.
- Sim, se a verdade não for sustentada pelo amor, torna o
detentor dessa verdade odioso e a verdade repulsiva - aduziu.
- Fui criado na Índia e convivi com amigos hindus, muçul-
manos, budistas e siques enquanto crescia, posso entender
algumas das críticas contra os cristãos. A história do cristia-
nismo tem algumas explicações a dar quanto à sua metodo-
logia. Violência, antagonismo e hostilidade são contrárias ao
amor de Cristo. Não se pode comunicar o amor de Cristo em
termos não-amorosos.
É ofensivo afinnar que Jesus é o único caminho para Deus P 207
- Na Índia temos um provérbio que diz: uma vez que você
tenha cortado o nariz de uma pessoa, não há sentido em dar-
lhe uma rosa para cheirar - prosseguiu. - Se a arrogância de
um cristão ofende alguém, essa pessoa não estará receptiva à
mensagem cristã. Mahatma Gandi dizia: "Gosto do seu Cristo,
mas não gosto dos seus cristãos". Friedrich Nietzsche: "Passarei
a acreditar no Redentor quando o cristão parecer um pouco
mais redimido". Estes argumentos precisam ser ouvidos.
- No entanto - acrescentou, - é possível afirmar verda-
des exclusivas de modo afável, assim como um cientista pode
dizer gentilmente: "Essa é a segunda lei da termodinâmica",
sem acrescentar: "Agora, vamos votar sobre quantos de nós
podemos cooperar com ela ou não?".
- Então as críticas feitas aos cristãos muitas vezes são
válidas?
- Sim, às vezes nós nos metemos em dificuldades por causa
das sensibilidades culturais. Ao mesmo tempo, porém, as re-
ligiões orientais têm muito exame introspectivo a fazer nesse
aspecto em nossos dias. À exceção de conflitos étnicos e polí-
ticos, não sei de nenhum país cristianizado em que a vida
esteja em perigo porque se tem outra fé. Mas hoje existem
muitos países no mundo - como o Paquistão, a Arábia Saudita
e o Irã - nos quais tornar-se um seguidor de Cristo é pôr em
risco a própria vida e a de sua família.
Eu havia lido suficientes reportagens de jornais em anos
recentes para saber que isso era verdade, mesmo na terra na-
tal de Zacharias, onde vários cristãos foram mortos por mili-
tantes hindus nos últimos anos. Por vezes não é a maneira
pela qual os cristãos tentam difundir sua fé que é ofensiva.
Com freqüência, as pessoas simplesmente reagem contra a
, .
proprra mensagem.
- Mesmo aquele cuja vida foi vivida da maneira mais per-
feita acabou em uma cruz hindus observou Zacharias. - A
resistência à verdade pode ser tão forte que é capaz de gerar
violência e ódio mesmo quando a pessoa não fez absoluta-
mente nada de errado.
208 q EM DEFESA DA FÉ

Origem, significado, moralidade, destino


Qualquer pessoa pode afirmar que é o único caminho para
Deus. De fato, muitos indivíduos excêntricos fizeram essa
asserção ao longo da história. A verdadeira questão é por que
alguém deve crer que Jesus estava dizendo a verdade quando
fez essa afirmação.
- Baseado em que fato o senhor acredita ser verdadeira
essa afirmação de Jesus? - perguntei a Zacharias.
- Ah, sim, esse é o cerne da questão - respondeu en-
quanto assentia com a cabeça. - Por um lado, pode-se dizer
que a ressurreição de Jesus comprovou ser ele o Filho de Deus.
Se isso é verdade, então todos os outros sistemas religiosos
não podem ser verdadeiros, porque cada um deles afirma algo
que é contrário à sua divindade. E, evidentemente, o testemu-
nho histórico acerca da Ressurreição é muito convincente. Por
outro lado, pode-se abordar esse assunto considerando as qua-
tro questões fundamentais que toda religião procura elucidar:
origem, significado, moralidade e destino. Creio que somente
as respostas de Jesus correspondem à realidade. Existe uma
coerência nas suas respostas que difere das respostas de qual-
quer outra religião.
Essa foi uma declaração ousada.
- O senhor pode respaldá-la com exemplos de como ou-
tras religiões fracassam nesses testes?"
- Considere o budismo - respondeu. - A resposta de
Buda acerca da questão da moralidade não é coerente com a
sua resposta sobre as origens. Observe, tecnicamente o budis-
mo é não-teísta, quando não ateu. Mas se não houve um Cria-
dor, a partir de que se chega à lei moral? Ou considere a ver-
são hindu da reencarnação. Se todo nascimento é um renas-
cimento e se toda vida paga a vida anterior, então o que você
estava pagando no seu primeiro nascimento? A incoerência
predomina.
Acrescentou de pronto que não estava tentando infamar
essas religiões.
É ofensivo aiirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 2U9

- Grandes estudiosos irão dizer-lhe que existe incoerên-


cia - prosseguiu. - Até Gandi falou que, se tivesse oportuni-
dade, eliminaria algumas das escrituras do hinduísmo, por-
que são muito contraditórias entre si. Em contraposição, Jesus
oferece respostas para essas quatro questões fundamentais da
vida que correspondem à realidade e tem consistência interna,
ao contrário de qualquer outro sistema religioso.
Essa afirmação convidava a um desafio.
- Examine-as uma a uma - pedi - e me diga como.
- Perfeitamente - respondeu. - Quanto às origens, a Bíblia
diz que não somos idênticos a Deus - ao contrário da afirmação
hindu - , mas distintos dele. Em outras palavras, nós não demos
existência a nós mesmos, mas somos uma criação de Deus. Uma
vez que fomos criados à sua imagem, isso explica o fato de os
seres humanos terem um ponto de referência moral. Nenhum
sistema consegue explicar isso, a não ser os sistemas monoteístas.
Mesmo os naturalistas não dispõem de uma explicação para a
estrutura moral da humanidade. Entretanto, essa estrutura mo-
ral corresponde à realidade da experiência humana. Além disso,
o cristianismo diz que nós rejeitamos a vontade divina. O tenta-
dor disse no Jardim do Éden que se comessem daquele fruto se
tornariam deuses, conhecendo o bem e o mal. O humanismo
nasceu exatamente ali; o homem tornou-se a medida de todas as
coisas. Essa rebelião e rejeição deliberada de Deus corresponde à
realidade. Como disse Malcolm Muggeridge, a depravação hu-
mana é ao mesmo tempo a realidade mais verificável
empiricamente, mas também a mais resistente filosoficamente.
A seguir, a questão do significado. Aqui outra vez a fé cristã não
tem paralelo. A maneira mais simples de descrevê-lo é que Deus
não nos chama ao significado pedindo-nos para sermos boas
pessoas. Ele não nos chama ao significado simplesmente dizen-
do-nos para amarmos uns aos outros. É somente na experiência
do culto que o significado passa a existir. Somente algo maior
que o prazer pode proporcionar significado, ou seja, a perpé-
tua novidade do próprio Deus no culto. A Bíblia nos instrui a
amar o Senhor, nosso Deus, de todo o nosso coração, alma e
210 q EM DEFESA DA FÉ

entendimento, e somente quando fazemos isso podemos come-


çar a amar o nosso próximo como a nós mesmos. Isso também
corresponde à nossa experiência. Em seguida, o cristianismo
diz que a moralidade não é baseada na cultura, e sim resulta do
próprio caráter de Deus. De outro modo, você irá acabar no dile-
ma da filosofia antiga: a lei moral está acima e sobre você, ou a
lei moral está sujeita a você? Se ela está acima, onde então você
encontra as suas raízes? A única maneira de explicar isso é
encontrá-la no Deus eterno, moral, onipotente e infinito que é
inseparável do seu caráter. Assim, o cristianismo explica a
moralidade de uma maneira coerente. Firialrne.nte, o destino está
fundamentado na ressurreição de Jesus Cristo, o acontecimento
histórico que provou a sua divindade e que abriu a porta dos
céus para todos os que o seguem. Em que outro lugar você en-
contra algo que chegue perto de afirmar isto?
- Billy Graham certa vez falou do seu encontro com Konrad
Adenauer, o prefeito de Colônia que foi preso por Hitler por se
opor ao regime nazista e que mais tarde se tornou o conceituado
chanceler da Alemanha Ocidental de 1949 a 1963. Adenauer
olhou Graham nos olhos e perguntou: "O senhor crê na ressur-
reição de Jesus Cristo dentre os mortos?". Graham disse: "Claro
que creio". Ao que Adenauer respondeu: "Sr. Graham, fora da
ressurreição de Jesus, eu não conheço nenhuma outra esperança
para este mundo". Estava certo. Porque a Ressurreição é um acon-
tecimento histórico real, nós podemos ser perdoados, reconcili-
ados com Deus, passar a eternidade com ele e confiar que os
ensinamentos de Jesus provêm de Deus. Um de meus amigos era
um muçulmano convertido que depois foi martirizado. Eu me
lembro de tê-lo visitado no hospital depois que as suas pernas
foram arrancadas por uma explosão. Ele disse: "Quanto mais
conheço o que outros têm afirmado e ensinado, mais belo Jesus
Cristo se parece para mim". Nunca me esqueci disso e creio que
é absolutamente verdadeiro. Nenhum homem falou como Jesus.
Ninguém jamais respondeu essas questões da maneira como ele
as respondeu, não só emitindo asserções, mas também em sua
pessoa. Podemos testar isso existencialmente. Podemos testá-lo
É ofensivo afirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 211

empiricamente. A Bíblia não é somente um livro de misticismo


ou espiritualidade; é um livro que também transmite verdades
geográficas e verdades históricas. Se você for um cético honesto,
ela não o está atraindo meramente para um sentimento; ela o
está chamando para uma pessoa verdadeira. Foi por isso que o
apóstolo Pedro disse: "De fato, não seguimos fábulas engenhosa-
mente inventadas, quando lhes falamos a respeito do poder e da
vinda de nosso Senhor Jesus Cristo; ao contrário, nós fomos tes-
temunhas oculares da sua majestade";" Ele está dizendo: "Isso é
verdade. Isso é realidade. Pode-se confiar nisso". E, sim, essa
verdade exclui o que lhe é contrário.

Sobre os elefantes e a fé
Mesmo que Zacharias estivesse certo a respeito do cristianis-
mo, isto significaria necessariamente que todas as outras reli-
giões são falsas ? Talvez no fundo todas elas ensinem as mes-
mas verdades fundamentais utilizando uma linguagem dife-
rente, imagens distintas e tradições diversas para comunicar
convicções essencialmente idênticas.
- Algumas pessoas dizem que, quando se retiram os as-
pectos secundários, todas as religiões mundiais ensinam em
essência a paternidade universal de Deus e a fraternidade
universal da humanidade - disse. - Isso significaria que to-
dos os sistemas religiosos do mundo são igualmente válidos.
Zacharias balançou a cabeça, expressando desaprovação
em seu rosto:
- Somente quem não compreende as religiões mundiais
afirmaria que elas basicamente ensinam a mesma coisa -
retrucou.
- O que elas querem dizer com paternidade universal de
Deus quando o budismo nem mesmo insiste que haja um
Deus? O que queremos dizer com a paternidade de Deus
quando Shankara, um dos mais respeitados filósofos hindus,

14
2 Pedro 1.16.
212 q EM DEFESA DA FÊ

disse que o teísmo é apenas uma maneira infantil de chegar


finalmente do alto, onde se descobre que Deus não é distinto,
de você? O que, então, significa a paternidade de Deus? E
uma ilusão. Essa paternidade de Deus não é uma doutrina
transreligiosa. Em segundo lugar, a fraternidade da humani-
dade: sim, nos somos irmãos e irmãs como seres humanos,
mas a única razão para isso é o fato de termos sido criados por
Deus. Tão logo você tire esse fundamento - prosseguiu, sor-
rindo - a fraternidade acaba ficando com mais "idade" do
que com "fraterno"! Em suma, o islamismo, o budismo, o
hinduísmo e o cristianismo não dizem a mesma coisa. Trata-
se de doutrinas religiosas distintas e mutuamente excludentes.
Elas todas não podem ser verdadeiras a um só tempo.
Eu não havia esgotado a tentativa de harmonizá-las.
- Talvez as diferentes religiões tenham cada qual uma fa-
tia da verdade - sugeri. - O teólogo John Hick disse que as
religiões mundiais são diferentes respostas culturalmente con-
dicionadas à "realidade última" ou Deus. 15 Isso não seria se-
melhante à velha história dos três cegos que apalpavam o ele-
fante: cada religião é uma tentativa sincera, porém inadequa-
da, de explicar o mistério de Deus, e assim cada uma é válida
à sua própria maneira?
Zacharias introduziu um pouco do jogo filosófico.
- Ou Hick é produto da própria cultura ou ele transcen-
deu sua cultura ao fazer essa afirmação - reagiu. - E se ele
transcendeu a sua cultura, por que ninguém mais transcen-
deu a cultura? Isso parece muito sofisticado academicamen-
te, mas tem problemas em demasia no seu âmago.
- Como o quê? - perguntei.
- Por exemplo, o ateu tem um pedaço da verdade ou ele
fica marginalizado? Se o ateu tem um pedaço da verdade, que
pedaço é esse, já que a doutrina fundamental do ateísmo é a
negação da própria existência de Deus?

15V.The exclusivism of religiaus p luralisrn, em Paul COPAN, True for


you, but notfor me, p. 71-7.
É ofensivo afirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 213

Fez uma pausa, deixando a pergunta responder por si


mesma. Em seguida aduziu:
- Eu direi o seguinte: existem aspectos de verdade em
quase todas as grandes religiões. Elas contêm alguns grandes
pensamentos e idéias. A leitura dos notáveis filósofos orien-
tais é muitíssimo estimulante. Mas não é como se fôssemos
cegos que examinam o elefante, uma pessoa apalpando a per-
na e achando que é uma árvore, outra apalpando a tromba e
achando que é uma corda e a terceira apalpando a orelha e
achando que é um abanador. A questão é esta: - disse ele,
elevando a voz para dar ênfase - a parábola já deixou
transparecer o fato de que se trata, realmente, de um elefante!
O cego pode lhe dizer que é uma árvore, mas ele está errado.
Não é uma árvore, nem uma corda, nem um abanador. O ho-
mem que vê sabe que se trata de um elefante. Ele conhece a
verdade; a sua visão a revelou a ele. E Jesus Cristo deixou
claro que as verdades eternas de Deus podem ser conhecidas.
Jesus Cristo é o centro do evangelho. Nele, toda a verdade se
concentrou. Assim, embora possa haver aspectos de verdade
em outros lugares, a soma total da verdade está em Cristo. A
explicação de Hick ignora a possibilidade que Deus se revele
e que, portanto, nós podemos conhecer quem ele é. Em vez
disso, Hick tornou supremas a cultura e a intuição. Mas a Bí-
blia diz que Deus de fato se revelou: "No princípio era aquele
que é a Palavra. Ele estava com Deus, e era Deus [... ] Aquele
que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua
glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça
e de verdade". 16

Redenção, justiça, culto


O comediante Quentin Crisp contou certa feita: "Quando eu
disse às pessoas da Irlanda do Norte que era ateu, uma mu-
lher que estava no auditório levantou-se e interpelou-me: 'Sim,

16João 1.1,14.
214 q EM DEFESA DA FÉ

mas é o Deus dos católicos ou o Deus dos protestantes em


quem você não crê?"'.
Na realidade, seu humor foi um triste comentário sobre a
profundidade da luta sectária que ocorre naquele país. Ao lon-
go dos séculos, o mundo tem visto muita acrimônia e violên-
cia por causa das diferentes concepções das pessoas a respei-
to de Deus. Desgostosas com as disputas religiosas, algumas
pessoas levantam as mãos para o céu e dizem que o mundo
seria um lugar muito melhor se as pessoas simplesmente pa-
rassem de discutir por causa de suas diferenças doutrinárias
e em vez disso se dedicassem a viver em paz umas com as
outras.
- Existem muçulmanos, judeus, cristãos, mórmons e
hindus que vivem de maneira ética - observei a Zacharias.
- O modo como uma pessoa vive e trata o seu semelhante
não seria mais importante que aquilo em que acredita teolo-
gicamente?
- Como uma pessoa vive e como trata o próximo é muito
importante - foi a resposta. - Mas não é mais importante que
aquilo em que ela crê, porque a maneira pela qual vive é um
reflexo do que ela crê. Independentemente de ter ou não assina-
do uma declaração doutrinária, no que ela real e verdadeiramente
crê é o que ela irá viver em última análise. Mas essa pergunta
pressupõe que a moralidade é tudo o que importa na vida.
- Se a vida nada tem que ver com a moralidade - redar-
güi - , ela diz respeito a quê?
- Jesus Cristo nada veio a este mundo para transformar
pessoas más em boas - explicou. - Ele veio a este mundo
para transformar pessoas mortas em pessoas vivas. Ele veio
para que os que estão mortos para Deus possam ser vivifica-
dos para Deus. Se esta vida fosse apenas uma questão de
moralidade, então a maneira como se vive seria a coisa mais
importante, embora ainda estivesse relacionada com o que
você acredita. Mas isto é uma compreensão errônea do con-
ceito cristão, segundo o qual, não importa quão bem vivamos,
não podemos viver à altura dos padrões e do caráter de Deus.
É ofensivo ajirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 215

A palavra "pecado" significa errar o alvo. E se essa é uma defi-


nição correta, então a graça de Deus se torna a verdade mais
importante. Sem ele, não podemos nem mesmo crer no que é
certo, quanto mais viver de maneira correta. Assim, viver uma
vida indulgente e moralmente boa é importante, ao menos por
uma questão de sobrevivência. Mas os filósofos, desde Sócrates,
Platão e Aristóteles até pensadores do iluminismo como
Immanuel Kant, foram incapazes de simplesmente definir o
que é moralidade. Em última análise, eles somente puderam
dizer-nos o que a moralidade fez pela sociedade.
- Quando eu fiz um estudo das opções que as pessoas têm
no sentido de viver de maneira positiva, cheguei a seis ou
sete, tais como a ética situacional de Joseph Fletcher, o
humanismo egocêntrico de Ayn Rand, a idéia do dever de Kant
e assim por diante. Porém, elas se contradiziam fortemente
entre si, e o motivo disso é que não havia uma razão moral
transcendente, persuasiva. Tudo estava reduzido à mera so-
brevivência. Por isso, creio que a bondade ou a maldade é um
ponto de partida errado. A vida e a morte, espiritualmente
falando, é por onde você deve começar.
- Mas, como o senhor mesmo admitiu, é importante veri-
ficar como as pessoas vivem - disse. - As pessoas relatam
que Gandhi viveu uma vida mais virtuosa que a maior parte
dos cristãos. Por que deveria ser mandado para o inferno sim-
plesmente por não ter sido um seguidor de Jesus?
- Eis uma questão difícil. Quando me fazem esta per-
gunta diante de um grande auditório, tenho vontade de fa-
zer um bom intervalo! - disse sorrindo. - Mas a Bíblia
nos dá alguma orientação para responder. Antes de mais
nada, é importante ter em mente que nenhum ser humano
manda ninguém para o céu ou para o inferno. Com efeito, o
próprio Deus não manda ninguém para o céu ou para o in-
ferno; a pessoa escolhe corresponder à graça de Deus ou
rejeitar a graça de Deus, embora mesmo essa decisão esteja
habilitada pela graça. Abraão perguntou a Deus, no caso de
Sodoma e Gomorra, se ele iria deixar os justos morrerem
216 q EM DEFESA DA FÉ

com os injustos, e foi maravilhoso como Abraão respon-


deu à própria pergunta. Ele disse: "Não agirá com justiça o
Juiz de toda a terra?" .17 Isso significa que podemos estar
absolutamente confiantes de que, não importa o que Deus
faça no caso de Gandhi ou de qualquer outra pessoa, fará o
que é certo. Pense no seguinte: a Bíblia diz que toda pessoa
que passar a eternidade no céu com Deus lá estará devido
à graça e à provisão de Jesus Cristo, que dele recebeu e em
que confiou. Se a pessoa rejeitou a graça, tal pessoa era boa
ou má? Essa é uma questão interessante, porque a Escritu-
ra nos diz que ninguém é realmente bom até que tenha sido
primeiramente redimido.
- Desenvolva essa idéia - solicitei.
- O modelo observado no Êxodo é tríplice: Deus tirou o
povo do Egito, lhes deu a lei moral e, em seguida, o tabernáculo.
Em outras palavras, redenção, justiça e culto. Você nunca pode
violar essa seqüência. A menos que seja redimido, você não
pode ser justo. A menos que você seja redimido e justo, você
não pode cultuar, pois "quem poderá subir o monte do Se-
nhor", senão "aquele que tem as mãos limpas e o coração
puro"?18 A redenção é o passo mais importante em direção à
justiça. Se eu tentar me esforçar para alcançar a justiça, esta-
rei dizendo essencialmente que não preciso ser redimido por
Deus. Eu sou o meu redentor. Qualquer pessoa, boa ou má aos
nossos olhos, que diz assim, está violando um princípio fun-
damental da revelação de Deus, o princípio de que a redenção
é o primeiro passo.

E quanto a Gandhi?
Ainda assim, a minha mente estava voltada para Gandhi.
- Ele não seguiu Jesus - alertei. - Portanto, suponho
que o senhor diria que não foi redimido.

17Gênesis 18.25c.
18~ Salmos 24.3,4.
É ofensivo aiirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 217

- Isso é algo que será determinado por Deus - respon-


deu Zacharias. - No entanto, em que Gandhi acreditava? Ele
o resumiu em uma frase: "Deus é a verdade e a verdade é
Deus". Minha pergunta a ele seria: "O que isso quer dizer?".
Nós estamos sentados em uma sala; esta é uma afirmação
verdadeira. O que isso tem que ver com o fato desta sala ser
boa ou má? Nada. Somente corresponde à afirmação que aca-
bei de fazer. Deus existe: essa é uma afirmação verdadeira?
Se é uma afirmação verdadeira, quem é esse Deus?
Interrompi.
- Você tem aqui uma pessoa como Gandhi, que aos olhos
da maioria das pessoas viveu corretamente, ao passo que um
assassino em série como David Berkowitz, o Filho de Sam,
matou várias pessoas inocentes e agora diz que fez uma prece
e se converteu em cristão. Os cristãos diriam que Berkowitz
vai para o céu, mas Gandhi não. Onde está a eqüidade nisto?
- Pelo fato de sermos seres morais, nós desejamos eqüida-
de. Mas quando reduzimos a eqüidade ao problema de quem
se comportou de tal ou qual maneira durante determinado
período de tempo, perdemos de vista todo o conceito de eqüi-
dade. Estamos julgando as coisas do ponto de vista do nosso
sistema. Se Deus verdadeiramente nos desse o que cada um
de nós merecia, ninguém chegaria ao céu.
- Existe aquela anedota sobre dois irmãos que viviam vi-
das escandalosas, e quando um deles morreu repentinamen-
te, o irmão sobrevivente foi a um pastor e perguntou se pode-
ria pregar no funeral do seu irmão e acrescentou: "Só tenho
um pedido: que o senhor se refira a meu irmão como um san-
to". O pastor disse que faria o melhor que pudesse para atendê-
lo. Chegou o funeral e o pastor estava elogiando o falecido.
Quero que vocês saibam que esse homem foi um vigarista,
um mentiroso, um trapaceiro e um ladrão", disse. "Mas, com-
parado com o seu irmão, era um santo!"
- Agora, existe um aspecto contundente nessa história. Nós
tentamos desesperadamente dizer que somos bons compa-
rando-nos com outras pessoas. David Berkowitz pode dizer:
218 q EM DEFESA DA FÉ

"Espere um pouco; eu não sou Hitler! Eu não matei milhões,


eu só matei alguns". Ou: "Eu não sou Jeffrey Dahmer; não
comi as minhas vítimas". Temos a tendência de estabelecer
comparações em que sempre nos mostramos melhores do que
outrem, e nos consideramos bons. Porém, de acordo com o
perfeito padrão moral de Deus, nós todos fracassamos. To-
dos nós carecemos do perdão e da graça de Deus. O que David
Berkowitz fez foi algo reconhecidamente violento e mau. Não
há dúvida quanto a isso. Todavia, temos de examinar essa
questão dentro de todo o contexto do plano de Deus. Observe,
existem coisas piores do que a morte ou o assassinato.
- Por exemplo? - indaguei.
- Embora seja difícil de compreender - respondeu - , a
pior coisa é dizer a Deus que você não precisa dele. Por quê?
Porque uma pessoa morta pode ter a sua vida restaurada por
Deus; uma pessoa enlutada pode receber a paz de Deus; uma
pessoa que foi violentada pode achar sustento e força da parte
de Deus e até mesmo contemplar a vitória de Deus através
do sombrio mistério do mal. Em outras palavras, existem sa-
ídas em meio às atrocidades e tragédias. Porém, para uma
pessoa que diz não necessitar de Deus, qual é a saída? Ne-
nhuma. A questão não é se eu sou um David Berkowitz, um
Mahatma Gandhi, um Adolph Hitler ou uma madre Teresa.
A questão é: "Já compreendi que estou aquém do padrão per-
feito de Deus e que, portanto, sem a graça de Deus, teria a
possibilidade de estar com ele no céu?". Sinceramente, se eu
tenho vivido de modo tão bom que é tão boa que eu não
precise de Deus, então ironicamente Berkowitz terá encon-
trado a verdade última diante da qual minha arrogância e
confiança me cegaram. O que é o inferno senão a ausência
de Deus? E viver minha vida sem a presença de Deus já é
estar a caminho do inferno.
- É justo que um assassino como Berkowitz fique comple-
tamente impune? - protestei.
- Não estou certo de que ele tenha ficado - disse Zacharias.
- Sim, Deus o perdoou se ele confessou, se arrependeu e buscou
É ofensivo afirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 219

a misericórdia divina. Porém, quanto mais estiver em sintonia


com quem Cristo é, mais profunda será a sua dor pelo que fez.
Deixe-me dar-lhe um exemplo. Suponha que esteja dirigindo e
você se distraia por um momento. De repente, uma criança
atravessa na sua frente e você a atropela. Quanto mais estiver
ligado a essa tragédia, maior será o seu pesar pelo restante da
vida. Nunca conseguirá olhar o rosto de outra criança sem
pensar: "O que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?". Você pode
achar que Berkowitz se safou no sentido de que não foi para o
patíbulo, mas existe uma coisa que é o patíbulo do coração. O
seu coração pode estar muito sintonizado com o inferno que
desencadeou. Não creio que uma pessoa verdadeiramente con-
vertida ficaria sentada em sua cela, pensando: "Bem, eu co-
nheci Cristo, portanto, estou livre dessa". Não. Às vezes o in-
ferno do coração interior pode ser muito profundo e doloroso.
Creio que existe um inferno na salvação adiada, porque as lá-
grimas que correm são lágrimas devido ao que foi perdido an-
tes de alguém conhecer Deus. Ele perdoa o seu passado? Sim,
mas às vezes você não consegue esquecê-lo.
Zacharias fez uma pausa e recostou-se na poltrona. Ao re-
tomar, disse:
- Toda vez que a graça é mal-compreendida, sempre produz
comparações, ciúme, insatisfação e acusações de falta de eqüi-
dade. É interessante que Jesus aborda exatamente essa questão.
Em uma de suas parábolas, os trabalhadores que trabalharam
todo o dia ficaram frustrados porque os que tinham chegado no
último momento também haviam recebido a graça do proprietá-
rio. 19 Uma das verdades mais impressionantes das Escrituras é
compreender que não conquistamos o caminho para o céu. Tam-
bém lemos na Bíblia a história da mulher de má reputação que
foi recebida por Jesus. O fariseu olhou por cima do nariz cheio
de méritos e escarneceu da misericórdia de Deus." As obras têm
o seu lugar, mas como a demonstração de que foi recebido o

t9v. Mateus 20.1-16.


20v. Lucas 7.36-50.
220 q EM DEFESA DA FÉ

perdão de Deus, não como um distintivo de mérito por havê-lo


conquistado.

E quanto aos que não ouviram?


O assassino em série David Berkowitz é afortunado. Vive em
um país em que as pessoas falam livremente sobre o cristia-
nismo. Alguém lhe falou da oferta de perdão feita por Cristo,
e dizem que confessou suas ofensas e depositou sua fé em
Cristo. Mas que dizer das pessoas que vivem em lugares em
que o evangelho não é anunciado rotineiramente ou sua di-
vulgação é de fato proibida?
- Não seria injusto condená-las quando nunca ouviram
de Jesus e simplesmente seguiram as tradições religiosas de
seus pais? - perguntei.
Zacharias estendeu a mão para pegar a Bíblia. Enquanto a
abria e procurava o livro de Atos, vi de relance muitas passagens
em que versículos importantes foram destacados em amarelo.
- Acima de tudo, a Bíblia diz que ninguém estará na pre-
sença de Deus, à parte do fato de que a pessoa e a obra de Cristo
tornaram isso possível. Esse foi o preço: a morte de Cristo na
cruz em nosso lugar, pagando a pena que merecíamos pagar.
Agora, algumas pessoas convivem em uma cultura ou outra,
mas o apóstolo Paulo disse algo muito interessante sobre isto
quando falou aos atenienses.
Zacharias tirou do bolso seus óculos de leitura e os colo-
cou. Leu parte de uma passagem em que Paulo debatia com
alguns filósofos gregos:

De um só fez ele todos os povos, para que povoassem toda


a terra, tendo determinado os tempos anteriormente esta-
belecidos e os lugares exatos em que deveriam habitar. Deus
fez isso para que os homens o buscassem e talvez, tateando,
pudessem encontrá-lo, embora não esteja longe de cada
um de nós.v'

21Atos 17.26,27.
É ofensivo afirmar que Jesus é o único caminho para Deus P 221
Tirando os óculos, Zacharias voltou-se para mim.
- Isso é importante - disse - porque mostra que existe
um plano soberano na criação em que se atribuiu a cada pes-
soa um lugar de nascimento. Deus sabe onde iremos nascer e
crescer, e nos coloca em uma posição em que poderemos buscá-
lo. É-nos dito claramente que, onde quer que vivamos, em
qualquer cultura, em qualquer nação, ele está ao alcance de
cada um de nós. Sempre existe a possibilidade de uma pessoa
clamar de joelhos: "Deus, ajude-me", e se isso acontecer exis-
tem meios que estão além da nossa compreensão pelos quais
Deus pode servi-la.
- Por exemplo?
- Por exemplo, poderia enviar alguém para partilhar o evan-
gelho com eles. Deixe-me dizer o que aconteceu com uma mu-
çulmana que trabalhava para uma instituição muito conhecida
do seu país. Ela me disse que estava saindo do escritório no
final de uma jornada de trabalho e se sentia muito infeliz. En-
quanto caminhava, murmurou: "Não sei por que estou tão va-
zia", e em seguida, sem mais nem menos, disse: "Jesus, podes
ajudar-me?". Ela parou na calçada e disse para si mesma: "Por
que mencionei o nome dele?". Bem, essa mulher acabou tor-
nando-se cristã. No caso dela, acho que Deus viu um coração
faminto por ele, mas não sabia como alcançá-lo no claustro da
sua existência. Acho que nesse caso Deus estava rompendo as
barreiras do ambiente dela porque ela já estava rompendo as
barreiras da sua vida interior, buscando por ele. Desse modo,
Deus pode estender-se em qualquer cultura, para responder a
alguém que queira conhecê-lo. Outra maneira de encarar essa
questão vem de Romanos, em que Paulo diz que a divindade e o
poder infinito de Deus são revelados a todos através da criação."
Paulo afirma que Deus colocou a lei no nosso coração e na nossa
consciência para que possamos buscá-lo;" E ele fala sobre a pa-
lavra de Cristo, que é necessária para que uma pessoa venha a

22Romanos 1.20.
23Romanos 2.14,15.
222 q EM DEFESA DA FÉ

conhecê-lo." Eu creio mais e mais que essa palavra de Cristo


se manifesta dentro da estrutura de diferentes culturas.
- O que o senhor quer dizer com isso?
- Tenho me pronunciado em muitos países islâmicos,
nos quais é difícil falar de Jesus. Quase todo muçulmano
que se tornou seguidor de Cristo o fez, primeiro, por causa
do amor de Cristo expresso por intermédio de um cristão,
ou, em segundo lugar, devido a uma visão, um sonho ou al-
guma outra intervenção sobrenatural. Agora, nenhuma reli-
gião tem uma doutrina mais complexa sobre anjos e visões
que ° islamismo, e acho extraordinário que Deus use essa
sensibilidade para com o mundo sobrenatural que fala de
visões e sonhos e se revela a si mesmo. Um dos mais notá-
veis convertidos da Índia foi um sique, Sundar Singh, que
conheceu a Cristo, quando certa noite ele apareceu no seu
quarto em sonhos. Esse fato causou-lhe um tremendo im-
pacto e ele se tornou cristão. Assim, existem meios pelos
quais Deus pode revelar-se e que vão muito além da nossa
compreensão. Se Deus é capaz de comunicar a palavra de
Cristo em diferentes situações, de sorte que não alcançamos
compreender e se ele não está longe de nós onde quer que
estejamos, se ele é capaz de falar por meio da revelação ge-
ral da criação e da nossa consciência, então devemos acei-
tar que não há escusas. Todos os seres humanos conhecem a
verdade o suficiente, de modo que, se corresponderem à ver-
dade conhecida, Deus revelará mais coisas. Isto significaria
que têm de conhecer tanta verdade quanto alguém que está
em outro contexto? Acho que não.
Tentei resumir o seu ponto de vista.
- O senhor está dizendo que, independentemente do lu-
gar em que a pessoa habita, da cultura em que vive, todo aquele
que corresponde ao entendimento que já possui e sinceramente
busca a Deus irá de algum modo ter a chance de ser sensível a
ele?

24Romanos 10.14,15.
É ofensivo afirmar que Jesus é o único caminho para Deus » 223

Enquanto falava, Zacharias analisava cuidadosamente as


minhas palavras.
- Creio que sim - concordou. - Temos de ser muito cui-
dadosos nesse ponto, mas acredito que se uma pessoa busca a
Deus, genuína e sinceramente, haverá algum meio que permi-
ta a essa pessoa prestar atenção nele. Se essa pessoa, sob qual-
quer circunstância, não responder a Deus, então talvez nada
saberá de Deus. Mas todas as pessoas conhecem o suficiente
para condená-las; elas não precisam ouvir João 3.16 a fim de
se perderem. Elas estão perdidas porque já rejeitaram o que
Deus lhes falou por meio da criação, da consciência e de ou-
tras maneiras. Por causa disso, todos nós teremos de lhe pres-
tar contas.
- Então a sinceridade é importante?
- Sinceridade não é salvação - foi a resposta dele.
Mas creio que a sinceridade cria a possibilidade para Deus se
revelar a você. Alguns podem parecer sinceros, mas quando
Cristo lhes é apresentado o rejeitam. Serão reprovados no tes-
te da verdade.
Eu disse:
- O senhor acredita, então, que a quantidade de informa-
ções que uma pessoa necessita ter acerca de Cristo pode va-
riar amplamente?
- Sim, acredito. O perigo da perspectiva do mundo oci-
dental é pensar que se algo não tem uma bonita embala-
gem, não é bom. Infelizmente alguns cristãos ocidentais
acham que a menos que uma pessoa siga o credo exata-
mente como preconizam, ela não conhecerá Deus. Contu-
do, o que um bebê sabe a respeito da sua mãe? Sabe que o
alimenta, que troca as suas fraldas, que o abraça e beija.
Ela deve ser uma amiga. Essa criança não conhece a sua
mãe tão bem quanto a conhecerá quando tiver dezoito anos,
mas a conhece o suficiente para amá-la. Eu creio que, à
medida que Deus se revela, existem níveis de compreensão
. - varrar,
que rrao .
224 q EM DEFESA DA Ff:

Por que não Jesus?


Se Jesus é a verdade, por que tantas pessoas o rejeitam? Se o
cristianismo é verdadeiro, não deveria finalmente triunfar?
Todavia, não é isso o que mostram as estatísticas. O cristianis-
mo está fazendo relativamente pouco progresso no sentido de
conquistar adeptos de outras grandes religiões mundiais. Ba-
sicamente, as pessoas ao redor do mundo inclinam-se a ado-
tar a religião dos pais.
Indaguei de Zacharias a respeito e ele respondeu que essas
questões o inquietam na sua condição de defensor do cristia-
nismo. Existem, todavia, algumas explicações.
- Olhando essa questão de uma perspectiva diferente,
por que o budismo é tão popular nos Estados Unidos atual-
mente? - perguntou. - A minha resposta é simples: por-
que você pode ser bom sem ter Deus. Se você pode ter uma
bela pequena dose de espiritualidade das três às cinco da
tarde e a partir daí dicotomizar sua vida uma vez mais e
viver como lhe aprazo Bem, por que não? Uma religião as-
sim exerce muita atração. Por que o islamismo é atraente
para alguns? Devido a considerações geopolíticas. O que
torna atraente a fé hindu? Ela é rica em filosofia e a sua
doutrina de tratar a terra com reverência exerce certa atra-
ção hoje em dia.
- Por que não Cristo? - perguntei.
- Porque ele conclama você a morrer para si mesmo -
explicou. - Toda vez que a verdade envolve o compromisso
total em que você é levado à completa humildade, à rendição
da vontade, haverá resistências. Cristo agride nosso poder e
nossa autonomia. Ele nos desafia na área da pureza. João Ba-
tista veio trazendo a lei e as pessoas não gostaram. Jesus veio
trazendo a mensagem da graça e elas disseram: "Por que o
senhor não nos dá a firmeza da lei?". Seja o que Cristo traga
para a cultura, a cultura irá querer mudar. No âmago da rejei-
ção reside a resistência ao que ele afirma ser. O budismo e
outros sistemas religiosos dizem essencialmente às pessoas
como elas podem levantar a si mesmas pelos seus cordões de
É ofensivo afirmar que Jesus é o único caminho para Deus 9 225

sapato éticos. Nunca tive problema de saber o que é certo e o


que é errado na maior parte das situações;
,. o que me falta é a
vontade de fazer o que é certo. E aí que entra a pessoa de
Cristo. Ele diz que se você trouxer todo o seu ser a ele, ele não
somente lhe dará a vida eterna, mas mudará o que você quer
fazer nesta vida.
Tendo em vista o nível de compromisso exigido pelo cristia-
nismo, fiquei curioso em saber o que levou Zacharias a res-
ponder positivamente à mensagem de Jesus.
- Conte-me um pouco da sua história - pedi.
Baixou os olhos por instantes, removendo uma migalha da
manga da camisa. Ergueu sua xícara de chá e tomou um gole
antes de responder.
,.
- Na Indía, você é como você nasceu - ele começou. -
Os meus pais eram cristãos só de nome; na verdade, eram
cristãos simplesmente porque não eram budistas, muçulma-
nos ou hindus. Não me lembro de alguma vez ter ouvido o
evangelho pregado em minha igreja, que era bastante liberal.
Um pouco antes do meu encontro com Cristo, minhas irmãs
conheceram o evangelho e assumiram o compromisso. Vim a
crer em Jesus em duas etapas. A primeira etapa foi quando
ouvi o evangelho proclamado publicamente em um auditório
quando tinha dezessete anos. Disse a mim mesmo: "Algo nis-
so é verdadeiro e é isso o que quero". Atendi ao apelo e recebi
aconselhamento, mas não o entendi em toda a extensão. A
bagagem era excessiva. Naquela época, estava debaixo de muita
pressão em uma cultura em que o desempenho acadêmico
era de suprema importância. Se você não está entre os pri-
meiros da turma, então não será bem-sucedido. Não consegui
lidar com isso. Também tinha um pai muito rigoroso e me
debatia com isso. Recebi muita punição física. Assim, alguns
meses mais tarde decidi pôr fim à minha vida. Não estava de-
primido; meus amigos teriam ficado chocados em saber que eu
estava pensando em suicídio. Mas a vida não tinha sentido ou
propósito para mim. Certo dia fui para a escola e usei as cha-
ves do laboratório de ciências para examinar alguns venenos.
226 q EM DEFESA DA FÉ

Eu os coloquei em um copo d'água, bebi tudo e desmaiei de


joelhos.
Fixei meu olhar nele, incrédulo. Sendo Zacharias tão sofis-
ticado, tão erudito, tão articulado e tão influente como é hoje,
era-me impossível vislumbrá-lo como um adolescente confu-
so e sedento de esperança, caído no chão, lutando para respi-
rar enquanto as toxinas circulavam por suas veias.
- O meu criado levou-me correndo para o hospital; se ele
não estivesse ali, hoje estaria morto - continuou. -
Desintoxicaram-me dos venenos. Estava ainda de cama, quan-
do um amigo visitou-me levando o Novo Testamento e mos-
trou-me o capítulo 14 de João. Eu não conseguia segurar o li-
vro; meu corpo estava muito desidratado. Minha mãe teve de
lê-lo para mim. Ali estava ela, lendo a passagem em que Jesus
falava com Tomé e dizia: "Eu sou o caminho, a verdade e a
vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim". Chegou no
versículo 19, onde Jesus diz aos seus discípulos: "Porque eu
vivo, vocês também viverão". Aquele versículo tocou a minha
alma. Disse em uma oração: "Jesus, eu não sei muito quem tu
és, mas estás me dizendo que és o autor da verdadeira vida". Eu
não compreendia o conceito do pecado. Naquela cultura, não
poderia ter compreendido. Mas o que eu compreendia era que
ele estava se oferecendo a mim para dar-me vida. Aí eu disse:
"Se tu me tirares deste quarto de hospital, eu não medirei esfor-
ços na busca da verdade". Tive alta cinco dias depois como um
homem inteiramente novo. Comecei a estudar a Bíblia e ela
mudou a minha vida dramaticamente. Depois os meus irmãos
tornaram-se seguidores de Jesus, bem como meus pais antes de
morrer. Mas foi naquele quarto de hospital que Cristo me disse,
sem que ninguém explicasse para mim, que poderia dar-me o
que a vida realmente devia ser. Nunca olhei para trás. Muitos
anos de estudo apenas confirmaram a minha decisão de segui-
lo. Cursei algumas matérias de filosofia em Cambridge com um
ateu renomado e lembro-me de, perplexo, ter pensado: "São
esses os melhores argumentos que os ateus defendem?". Eles
somente confirmam a veracidade da Escritura.
É ofensivo afirmar que Jesus é o único caminho para Deus P 227
- Hoje o senhor se relaciona com muitos que buscam a
verdade - ressaltei. - O que o senhor lhes diz?
- A Bíblia registra: "Vocês me procurarão e me acharão
quando me procurarem de todo o coração't." Pense nisso, é
uma promessa surpreendente. Eu os incentivo a colocar cora-
ção e mente em uma atitude receptiva e a não poupar o inte-
lecto no sentido de testar a verdade da Bíblia. Alguém autên-
tico que tenha uma visão sem preconceitos. Não vejo como
poderá reagir a não ser dizendo que não existe nada assim na
face da terra. Tenho viajado por todo o mundo. Tenho investi-
gado de alto a baixo. Não achei nada que satisfaça a minha
mente, o meu coração e os anseios mais profundos da minha
alma como Jesus o faz. Ele não é somente o caminho, a verda-
de e a vida; ele é algo pessoal para mim. Ele é o meu caminho,
a minha verdade e a minha vida, exatamente como ele pode
ser para qualquer um que busque. Lembre-se do que Paulo °
disse aos atenienses: "Ele não está longe de cada um de nós".

Ponderações
Perguntas para reflexão ou estudo em grupo ..->;,,;;";;::;.:;~";;;;;;::;;o;;-;t;'o:,,":;;);:;):,,t::;~;:6:;t';;;;';;:-.,.j;;.:;t<:;ol~~;t:;;:::I:;;t;;;l~u';;%~l.id~;.;t,ilt;d:2l'~;:':::-'oi~~:;;:\1.;;;d;:;.ui.,~mri;l;.;:;:i!:!1i~~;~ii~u;:iúiin.iól;1i~l.~w0
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1. Qual foi a sua reação emocional ao ouvir pela primeira


vez a afirmação de que Jesus é o único caminho para
Deus? Seu ponto de vista mudou desde que leu a entre-
vista com Ravi Zacharias? Caso positivo, corno?
2. Zacharias disse: "As implicações claras do fato de Jesus
dizer que ele é o caminho, a verdade e a vida são, em
primeiro lugar, que a verdade é absoluta e, em segundo
Iugar, que a verdade pode ser conhecida." Você crê nes-
sas duas afirmações acerca da verdade? Por que sim ou
por que não?
3. Quanto você acredita que o cristianismo trata das qua-
tro questões fundamentais da vida: origem, significado,
moralidade e destino? O ensino da Bíblia sobre esses

25Jeremias 29.13.
228 q EM DEFESA DA FÉ

tópicos corresponde à sua experiência?


4. Você já levou pessoalmente em consideração alguma
outra das religiões mundiais? Caso positivo, o que o
atraiu? Quais aspectos do cristianismo o atraem e quais
o afastam?
5. ABíblia diz acerca de Deus: "Vocês me procurarão e me
acharão quando me procurarem de todo o coração".
Quais são as três sugestões práticas que você daria a um
amigo que quer saber como ele pode buscar aDeus? Você
mesmo já deu esses passos? Quais foram os resultados
até agora?

Outras fontes de consulta


Mais recursos sobre esse tema

• BECKWITH, Frank & KOUKL, Gregory. Relativism: feet firmly


planted inmid-air. Grand Rapids, Michigan: Baker, 1998.
• COPAN, Paul. True for you, but not for me. Minneapolis:
Bethany House, 1998.
• ERICKSON, Millard J. How shall they be saved? Grand
Rapids, Michigan: Baker, 1996.
• ZACHARIAS, Ravi. Jesus among othergods. Nashville: Word,
2000.
Sexta obj eção c

Um Deus amoroso j ama ia


torturaria pessoas no inferno

No meu entendimento, existe um defeito muito sério no


caráter moral de Cristo, que é acreditar no inferno. Eu
não acho que uma pessoa que seja profundamente hu-
mana possa crer na punição eterna.
Bertrand Russell, ateu 1

o inferno é o grande cumprimento que Deus presta à


realidade da liberdade humana e à dignidade da escolha
humana.
G. K. Chesterton, cristão?

juiz Cortland A. Mathers estava em dificuldade. Acha-


va-se diante dele uma ré culpada por desempenhar um
papel secundário em um processo relacionado com drogas.
Tratava-se de uma mãe pobre de 31 anos, com filhos peque-
nos. Estava arrependida do seu crime. Na opinião do juiz,
merecia uma segunda oportunidade. A justiça seria aplicada
mediante a suspensão condicional da pena.
Havia um problema: se Mathers a achasse culpada da acusa-
ção, não teria outra escolha de acordo com a lei de Massachusetts
senão sentenciá-la a seis anos de reclusão. Sabia que a prisão a
marcaria para sempre. Com muita probabilidade, essa experiên-
cia destruiria sua frágil família e a deixaria amargurada, irada,
desempregada e destinada a ter novos problemas.
"Por que não sou cristão e outros ensaios sobre religião e assuntos
correlatos, São Paulo: Exposição do Livro, 1960, p. 22.
2Citado em Cliffe KNECHTLE, Give me an answer, Downers Grave, Illinois:
InverVarsity Press, 1986, p. 42.
230 q EM DEFESA DA FÉ

Esse é um sistema denominado "condenação compulsó-


ria", que afasta o arbítrio dos juízes no encaminhamento de
certos tipos de casos. O aspecto positivo é que os juízes são
impedidos de serem excessivamente tolerantes. Mas a con-
seqüência negativa é que em alguns casos a condenação auto-
mática pode ser rígida demais - como neste caso, em que a
ré estava sujeita a passar mais tempo atrás das grades que a
maior parte dos condenados por roubo a mão armada.
Mathers não era conhecido por ser um juiz que evitava con-
denar criminosos a longas penas de reclusão se as circunstân-
cias o justificassem. Porém, neste caso ele considerou que a
condenação compulsória - sem possibilidade de liberdade
condicional - seria um "absoluto erro judiciário."
Mathers fez a escolha: "Desobedecer a lei a fim de ser jus-
to". Ele a declarou culpada de uma infração menor que não
exigia uma duração pré-determinada e a sentenciou a cinco
anos de suspensão condicional da pena com exigência de
aconselhamento.
"Se um juiz não é capaz disso, então não merece estar no
tribunal", disse Mathers ao jornal Boston Globe em uma reporta-
gem sobre condenação compulsória. "Ou o juiz é um autômato,
que carimba sentenças, ou é movido pelo senso de justíça.?"
Estava pensando nesse caso quando meu avião aterrissava
no Aeroporto Internacional de Los Angeles em uma abafada
manhã de setembro. Como é irônico, refleti, que uma lei des-
tinada a fazer justiça ameaçasse subvertê-la. Podia entender o
senso de eqüidade que levou Mathers a pôr de lado uma con-
denação padronizada, impondo em seu lugar uma punição
que se ajustasse melhor ao crime.
Por muito tempo durante a minha busca espiritual, vi o meu
senso de justiça sentir-se ofendido com o ensinamento cristão

3Essa história, incluindo a entrevista com o juiz Cortland A. Mathers, foi


relatada em uma excelente reportagem sobre condenação compulsória fei-
ta pela Equipe Spotlight do The Boston Globe. V. A judgment on sentences:
some judges balk at present penalties, de Dick Lehr & Bruce Butterfield,
publicado em The Boston Globe, 27/9/1995.
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno P 231
acerca do inferno, que considerava muito mais injusto que
uma pena compulsória no processo sob os cuidados de
Mathers. Essa doutrina me parecia um massacre cósmico, uma
condenação automática e inapelável à eternidade de tortura e
tormento. Era a condenação compulsória levada ao extremo:
todos sofrem as mesmas conseqüências, independentemente
das circunstâncias. Saia da linha com Deus - mesmo que
seja um pouquinho, mesmo que inadvertidamente - e você
será atingido com uma reclusão interminável em um lugar
que faz o presídio de Leavenworth * parecer com a Disneylândia.
Onde está a justiça nisso? Onde está a proporcionalidade
entre o crime e o castigo? Que tipo de Deus é este que gosta de
ver as suas criaturas se contorcerem para sempre -sem espe-
rança, sem possibilidade de redenção- em uma câmara de
torturas que em cada detalhe é tão horrenda e bárbara como
um campo de concentração nazista? O ateu B. C. Johnson não
estaria certo quando acusou que a idéia do inferno é moral-
H

mente absurda?". 4
Essas são questões difíceis e de forte conteúdo emocional.
Precisava das respostas de uma autoridade firme, de alguém
que não recuasse diante de desafios honestos. Olhava pela
janela do avião enquanto os subúrbios de Los Angeles passa-
vam rápido, reluzindo ao sol brilhante. Estava ansioso para
ter o meu encontro pessoal com um filósofo respeitado que
tem se debatido longamente com a perturbadora doutrina da
condenação eterna.

Sexta entrevista: J. R Moreland, PH.D.

Não levei muito tempo para alugar um carro e seguir para a


residência de J. P Moreland, localizada não muito longe da

"Antiga penitenciária federal localizada no Estado de Kansas; o mes-


mo município tem uma prisão militar e uma prisão estadual. (N. do T.)
"Tbe atheist debater's handbook, Buffalo, New York: Prometheus,
1979, p. 237.
23 2 q EM DEFESA DA FÉ

Escola de Teologia Talhot, onde leciona no curso de mestrado


em filosofia e ética.
O livro de Moreland, Beyond death: exploring the evidence
for immortality [Além da morte: explorando as evidências da
imortalidade], mostrou que havia refletido profundamente e
feito uma introspecção muito pessoal quanto à doutrina do
inferno. Ele e o seu co-autor Gary Habermas mergulharam
também na natureza da alma, nas experiências de quase-mor-
te, na reencarnação e na teologia do céu.
Escolhi Moreland devido a sua formação abrangente. Estu-
dou ciência, diplomando-se em química na Universidade de
Missouri, detém conhecimento completo da teologia, com grau
de mestrado do Seminário Teológico Dallas e é um filósofo
altamente respeitado, tendo conquistado o doutorado na Uni-
versidade do Sul da Califórnia.
Escreveu mais de doze livros, entre os quais Scaling the
secular city [Atacando a cidade secular]; Christianity and the
nature ofscience [O cristianismo e a natureza da ciência]; Does
God exist? [Deus existe?] (um debate com Kai Nielsen); The
creation hypothesis [A hipótese da criação]; Body and soul [Cor-
po e alma]; Love your God with alI your mind [Ame o seu Deus
com toda a sua mente]; e o premiado Jesus under fire Uesus
sob fogo]. Tudo isto e ele tem apenas 51 anos. Vestindo infor-
malmente uma camisa de mangas curtas, bermudas e sapa-
tos-esporte sem meias, Moreland saudou-me na entrada da
garagem de sua casa em estilo rural. Saudei-o e lhe apresen-
tei minhas condolências. Sabia que tinha viajado a San Diego
na noite anterior e assistido a sua querida equipe dos "Kansas
City Chiefs" ser humilhada pelo inexpressivo "Chargers", Es-
tava ainda usando um boné de beisebol com ° nome do seu
time.
Dentro de casa, depois de trocar algumas amenidades,
deixei-me cair no sofá da sua sala de estar e suspirei. O tema
do inferno era grande, pesado, controvertido, o ápice para os
céticos na área espiritual. Pensei detidamente sobre como
começar.
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno 9 2'33
Finalmente decidi simplesmente ser honesto.
- Não estou certo por onde devo começar - confessei.
- Como devemos abordar o tema do inferno?
Moreland meditou por um momento e em seguida se re-
costou na poltrona verde de almofadas. - Talvez - sugeriu
- devamos fazer uma distinção entre gostar ou não gostar de
alguma coisa e julgar se é correto levá-la a cabo.
- O que o senhor quer dizer?
- Muitas vezes algo de que gostamos não é a coisa certa a
fazer - explicou. - Algumas pessoas dizem que o adultério
é agradável, mas a maior parte das pessoas concordaria que é
errado. E muitas vezes fazer a coisa certa não é agradável.
Dizer a alguém uma dura verdade que precisa ouvir ou despe-
dir alguém que não está fazendo um bom trabalho, pode ser
muito desagradável.
Exclamei:
- E o inferno desperta uma resposta visceral. As pessoas
reagem fortemente contra a sua simples idéia.
- Correto. Elas tendem a avaliar se o inferno é adequado
com base nos seus sentimentos ou na reação emocional.
- Como podemos superar o dilema?
- Acho que as pessoas deviam tentar pôr de lado os seus
sentimentos - disse. - A base da avaliação deve ser se o
inferno é uma condição moralmente justa ou moralmente cer-
ta, e não se elas gostam ou não gostam desse conceito.
Moreland fez uma pausa antes de continuar.
- É importante compreender que, se o Deus do cristianis-
mo é real, ele odeia o inferno e odeia que as pessoas tenham
que ir para lá - acrescentou. - A Bíblia é muito clara: Deus
diz que não tem prazer na morte dos ímpios."
Talvez, mas mesmo assim eles acabam passando a eterni-
dade em um lugar de absoluto horror e abjeto desespero. Eu

"Ezeqtriel 33.11: "Diga-lhes: Juro pela minha vida, palavra do Sobe-


rano, o SENHOR, que não tenho prazer na morte dos ímpios, antes te-
nho prazer em que eles se desviem dos seus caminhos e vivam".
234 q EM DEFESA DA FÉ

me lembrei da minha entrevista com Charles Templeton, o


evangelista que se tornou cético. Certamente ele tem senti-
mentos muito fortes com relação ao inferno, mas parecem ser
alimentados de modo legítimo por uma justa indignação e um
ressentimento moral.
Honestamente, estava um pouco hesitante em separar com-
pletamente a discussão do inferno da nossa resposta emocio-
nal - afinal, elas pareciam estar fatalmente entrelaçadas.

Enfrentando o desafio de Templeton


Embora entenda o argumento de Moreland de que a
moralidade ou imoralidade do inferno independe dos senti-
mentos em relação ao assunto, decidi que a minha melhor
tática seria colocar Moreland diante das objeções de Templeton
- com as emoções e tudo o mais.
Limpei a garganta e me sentei ereto, voltando-me para
encarar Moreland mais diretamente.
- Observe, dr. Moreland - comecei, com a voz aumen-
tando de intensidade - , entrevistei Charles Templeton sobre
esta questão e ele foi muito inflexível. Disse-me: "Eu não po-
deria manter a mão de alguém no fogo por um só momento.
Nem por um instante! Como poderia um Deus amoroso, só
porque você não o obedece ou faz o que ele quer, torturá-lo
para sempre, não permitindo que você morra, mas permane-
ça com aquela dor por toda a eternidade 7".
Proferi as últimas palavras de Templeton com o mesmo tom
de repugnância que ele havia usado ao falar comigo:
- Não existe criminoso que seja capaz de fazer isto.
O desafio pareceu reverberar pela sala. A tensão subiu rapi-
damente. Então, afigurando-me mais como acusador que
entrevistador, complementei a pergunta com uma exigência:
- Dr. Moreland, o que o senhor tem a dizer em resposta a isso7
Chega da idéia de ir além dos sentimentos.
É preciso entender algo a respeito de J. P Moreland. Ele é
um filósofo. Um pensador. É friamente racional. Nada parece
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno p 2] 5
abalar sua posição. Apesar do meu tom exaltlado, que pare-
cia indicar que ele era pessoalmente responsável pela criação
do inferno, Moreland não se ofendeu. Em vez disso, o seu
enfoque desviou-se rapidamente para o cerne da questão.
- A chave para responder a Templeton reside nas próprias
palavras dele - começou Moreland. - Carregou de tal modo
na pergunta que seria o mesmo que indagar: "Quando você pa-
rou de espancar a esposa?". Não importa como responda, você
estará perdido desde o início se aceitar as suas palavras.
- Então a premissa dele está errada? - interpelei. - Como
assim?
- Bem, para começar, o inferno não é uma câmara de tortura.
Minhas sobrancelhas se ergueram. Certamente essa seria
uma novidade para muitas gerações de crianças da escola
dominical que têm se assustado a ponto de ter pesadelos por
causa das horríveis descrições das agonias flamejantes que
são eternamente infligidas no Hades.
- Não é? - perguntei.
Moreland meneou a cabeça.
- Deus não tortura pessoas no inferno; Templeton está total-
mente errado - prosseguiu. - Templeton também dá a impres-
são que Deus é uma criança mimada que diz às pessoas: "Olhem,
se vocês não quiserem obedecer às minhas regras arbitrárias en-
tão eu vou condená-los por isso. Vocês precisam saber que as
minhas regras são as minhas regras, e se as coisas não saírem do
meu modo vou fazê-los pagar". Bem, evidentemente, se Deus é
somente uma criança com regras arbitrárias, então seria capri-
cho da parte dele condenar as pessoas. Mas isso não acontece de
modo algum. Deus é o ser mais generoso, amoroso, maravi-
lhoso e atraente do cosmo. Ele nos fez valendo-se do livre-
arbítrio e nos fez com um propósito: nos relacionarmos amo-
rosamente com ele e com os outros. Não somos acidentes, não
somos macacos modificados, não somos equívocos aleatórios.
E se nós repetidamente deixarmos de viver segundo o propó-
sito para o qual fomos criados (propósito que, diga-se de pas-
sagem, nos permite prosperar muito mais que se vivêssemos
236 q EM DEFESA DA FÉ

de qualquer outro modo), Deus certamente não terá outra es-


colha senão dar-nos o que pedimos durante toda a vida, que é
nos afastarmos dele.
- E isso é o inferno...
- Sim, isso é o inferno. Mais um aspecto: erramos ao achar
que Deus é simplesmente um ser amoroso, especialmente se
você entender "amoroso" no sentido em que muitos america-
nos usam essa palavra hoje em dia. Sim, Deus é um ser com-
passivo, mas ele é também um ser justo, moral e puro. Assim,
as decisões de Deus não estão baseadas no moderno senti-
mentalismo americano. Essa é uma das razões pelas quais,
até os tempos atuais, as pessoas nunca tiveram dificuldade
de assimilar a idéia do inferno. As pessoas de hoje inclinam-
se a se preocupar somente com as virtudes mais suaves como
o amor e a ternura, ao passo que se esqueceram das virtudes
fortes como a santidade, a eqüidade e a justiça. Assim, nas
palavras da sua pergunta, Templeton nos apresentou um ser
malévolo que impõe essas regras injustas e arbitrárias e que
finalmente bate os pés e diz: "Se as coisas não saírem a meu
modo, eu vou torturá-los para sempre".
Os intensos olhos cinza-azulados de Moreland se fixaram
nos meus.
- Nada - acentuou - poderia estar mais longe da verdade.

o plano reserva de Deus


- Está bem - eu disse enquanto me acomodava no sofá. -
Aqui está a sua oportunidade de esclarecer as coisas. Vamos
lançar alguns fundamentos e aclarar as nossas definições. O
senhor disse que o inferno não é uma câmara de tortura.
Então o que é?
- A essência do inferno é de relações - retrucou. - O
cristianismo diz que as pessoas são as criaturas mais va-
liosas de toda a criação. Se as pessoas são importantes,
então o relacionamento é importante, e o inferno é essen-
cialmente relacional.
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno p 237
- Na Bíblia, o inferno é separação ou banimento para lon-
ge do ser mais belo do mundo: o próprio Deus. É a exclusão
de tudo o que importa, de tudo o que vale, não somente de
Deus, mas também dos que vieram a conhecê-lo e amá-lo.
Estava confuso quanto a uma coisa.
- O inferno é uma punição pela quebra dos padrões de
Deus? - perguntei. - Ou seria a conseqüência natural das
pessoas viverem uma vida em que dizem "Não me importo se
estou separado de Deus, quero fazer as coisas à minha manei-
ra", e receberem então em troca por toda a eternidade o que
plantaram, ao ficarem separadas de Deus para sempre?
- As duas coisas - disse. - Não tenha dúvida: o infer-
no é punição, mas não é um ato de punir, não é tortura. A
punição do inferno é a separação de Deus, que traz vergo-
nha, angústia e pesar. E como teremos tanto corpo quanto
alma na ressurreição, a miséria experimentada pode ser tan-
to mental quanto física. Mas a dor sofrida será resultante
da tristeza causada pelo banimento final, definitivo e
infindável da presença de Deus, do seu Reino e da vida fe-
liz para a qual, em primeiro lugar, fomos criados. No infer-
no, as pessoas lamentação profundamente tudo o que per-
deram. O inferno é a sentença final que diz que alguém se
recusou sistematicamente a viver segundo o propósito para
o qual foi criado, e a única alternativa é condenar essa pes-
soa por toda a eternidade. Portanto, é punição. Mas é tam-
bém a conseqüência natural de uma vida que foi vivida em
certa direção.
- De acordo com Gênesis, quando Deus criou todas as
coisas, ele declarou que tudo era "bom" - observei. - Obvia-
mente, Deus criou o inferno. Mas como ele poderia pensar
que o inferno é bom? Isso não levanta dúvidas sobre o seu
caráter?
- Na realidade - respondeu Moreland - , o inferno não
fazia parte da criação original. O inferno é o "plano reserva"
de Deus. É algo que Deus foi forçado a fazer porque as pesso-
as decidiram rebelar-se contra ele e voltar-se contra o que era
23 8 q EM DEFESA DA FÉ

melhor para elas e contra o propósito para o qual foram cria-


das. Quando as pessoas fundaram os Estados Unidos, elas
não começaram criando prisões. Preferiram uma sociedade
sem prisões. Mas foram forçadas a criá-las porque certos in-
divíduos não quiseram cooperar. O mesmo se pode dizer do
inferno.
- O inferno é um lugar físico?
- Sim e não. Quando as pessoas morrem, a alma delas
deixa o corpo e elas não mais têm uma natureza física. A Bí-
blia diz que quando as pessoas, que afinal vão para o inferno,
morrem antes do retorno de Cristo, ficam separadas da pre-
sença de Deus, mas não estão em um lugar físico, porque não
têm a natureza física. Nesse sentido, o inferno provavelmente
.-
não é um lugar, mas é uma parte real do universo. E como
passar por uma porta para um outro tipo de existência.
- Parece com uma experiência de quase-morte - brinquei.
- Bem, acho que as experiências de quase-morte demons-
traram acima de qualquer dúvida que quando as pessoas mor-
rem ainda assim podem estar conscientes - Moreland res-
pondeu.
E prosseguiu:
- No juízo final, o nosso corpo será ressuscitado e a nossa
alma será unida a ele. Nessa altura, acho que haverá uma par-
te do universo para onde as pessoas serão enviadas, ao serem
excluídas do lugar principal em que a atividade de Deus e do
seu povo se manifesta. Tem sentido falar no inferno como um
lugar, mas não será uma câmara de tortura ou qualquer coisa
parecida.

Chamas, vermes e ranger de dentes


Lá estava novamente o imaginário da "câmara de torturas".
- Não é de admirar que essa seja uma visão popular do
inferno - disse. - Quando tinha cerca de dez anos, fui leva-
do à escola dominical, onde o professor acendeu uma vela e
disse: "Você sabe o quanto dói queimar o dedo? Bem, imagine
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno p 239
todo O seu corpo ficando em meio ao fogo para sempre. Isso é
o inferno".
Moreland acenou com a cabeça como se tivesse ouvido esse
tipo de história antes.
- Bem, alguns garotos ficaram assustados - acrescentei.
- Fiquei simplesmente ressentido com o fato de que esse in-
divíduo estava tentando me manipular. Eu acho que muitas
pessoas tiveram esse tipo de experiência. Você deve admitir
que quando se trata de falar do inferno, a Bíblia certamente
tende a se referir a chamas.
- É verdade - respondeu Moreland - , mas as chamas
são uma figura de linguagem.
Levantei a mão.
_.- Epa, espere um momento! - protestei. - Sempre
achei que o senhor fosse um acadêmico conservador. O se-
nhor está tentando suavizar a idéia do inferno para torná-
la mais aceitável?
- De modo algum - foi a sua resposta. - Eu só quero ser
biblicamente correto. Sabemos que as referências a labaredas
são figuradas porque se tentamos entendê-las literalmente não
fazem sentido. Por exemplo, o inferno é descrito como um
lugar de trevas totais e, no entanto, também existem chamas.
Como isso pode acontecer? As chamas iluminariam as coisas.
Além disso, nos é dito que Cristo voltará envolto em chamas e
que haverá uma grande espada que sai da sua boca. Mas nin-
guém acha que Cristo seja incapaz de dizer alguma coisa por
estar sufocado por uma espada. A figura da espada representa
a Palavra de Deus no juízo. As chamas representam a vinda
de Cristo em juízo. Em Hebreus 12.29, Deus é denominado
"um fogo consumidor". No entanto, ninguém pensa que Deus
é um maçarico cósmico. O uso da imagem das chamas é um
modo de dizer que ele é um Deus de juízo.
- E quanto ao inferno ser um lugar em que os vermes co-
mem incessantemente a carne das pessoas? - perguntei.
- Nos dias de Jesus, milhares de animais eram sacrifica-
dos semanalmente no Templo, e havia um sistema de esgoto
240 q EM DEFESA DA FÉ

que drenava para fora o sangue e a gordura, que se acumula-


vam em um tanque. Havia vermes que ingeriam aquilo sem
parar. Era um lugar muito feio - Moreland disse. - Quando
Jesus estava ensinando, usou essa metáfora para dizer que o
inferno é pior que aquele lugar repugnante fora da cidade.
- Também existe a expressão "ranger de dentes" para des-
crever aqueles que estão no inferno - aduzi. - Isso não se
refere à reação das pessoas diante da dor da tortura?
- Mais precisamente, essa expressão visa descrever um
estado de ira ou de percepção de uma grande perda - disse
Moreland. - E'" uma expressão de fúria pela consciência de
que se cometeu um enorme erro. Se você já esteve perto de
pessoas que são egocêntricas e altamente narcisistas, elas fi-
cam iradas quando não conseguem o que querem. Eu creio
que o ranger de dentes é uma expressão do tipo de personali-
dade das pessoas que estarão no inferno.
- Sem chamas, sem vermes, sem ranger de dentes por causa
de tortura: talvez o inferno não seja tão mau como pensávamos
- interrompi num esforço de injetar um pouco de humor.
Moreland respondeu imediatamente:
- Seria um erro pensar assim - disse ele com firmeza. -
Toda figura de linguagem tem um aspecto literal. O que é fi-
gurado é a chama de fogo; literal é que esse é um lugar de
profunda tristeza. É a perda de tudo e representa o fato de que
o inferno é a pior situação possível que jamais poderia ocor-
rer a uma pessoa.
- O senhor mencionou pessoas que estão no inferno e são
egocêntricas e narcisistas, pessoas que rejeitaram a Deus du-
rante toda a sua vida - disse. - É possível que, para esse
tipo de pessoas, o céu fosse um inferno?
- Deixe-me colocar nestes termos - insistiu. - Você já
esteve perto de um indivíduo que tinha muito boa aparência,
era extremamente atraente e muito mais inteligente que você?
Quando você está em uma atividade social, as pessoas que-
rem dar atenção a ele, e não a você. Suponha que você não se
importe com esse indivíduo, mas seja mantido em uma sala
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno P 2-41
com ele vinte e quatro horas por dia, durante trinta anos. Essa
seria uma experiência incrivelmente difícil. Agora multipli-
que essas qualidades dez mil vezes e isso será um pouquinho
do que Deus é. Ele é muito, muito inteligente. Ele é muito
atraente. Ele é muito mais puro moralmente do que nós. E se
as pessoas não se apaixonarem profundamente por ele, forçá-
las a ficar perto dele para sempre (fazendo os tipos de coisas
que as pessoas que o amam iriam querer fazer) seria total-
mente desconfortável. Você precisa entender que o caráter das
pessoas não é formado por decisões tomadas todas de uma
vez, mas por milhares de pequenas escolhas que se fazem to-
dos os dias, mesmo sem o saber. Cotidianamente estamos nos
preparando para ficar com Deus e o seu povo e valorizar as
coisas que ele valoriza, ou optando por não nos envolver com
essas coisas. Portanto, o inferno é essencialmente o lugar para
pessoas que não gostariam de ir para o céu.
- O senhor está dizendo que as pessoas escolhem o infer-
no conscientemente?
- Não, eu não quero dizer que elas conscientemente rejei-
tam o céu e escolhem o inferno. Mas elas, sim, escolhem por
não se preocupar com os valores que estarão presentes no céu
todos os dias.
Acrescentei:
- Com efeito, pela maneira como vivemos a nossa vida
nós nos preparamos para estar na presença de Deus e desfrutá-
lo por toda a eternidade, ou estamos nos preparando para a
existência na qual tentamos fazer de nós mesmos o centro do
universo e não temos nenhum interesse em estar com Deus
ou com as pessoas que o amam.
Moreland assentiu.
- Isso está absolutamente correto. Assim, o inferno não é
simplesmente a condenação. Ele é isso, mas é também o fim
de um caminho que é escolhido, até certo ponto, nesta vida,
aqui e agora, dia a dia.
Mesmo assim, existem aspectos do inferno que parecem vio-
lar o nosso senso de justiça. Pelo menos, foi assim que senti no
242 q EM DEFESA DA FÉ

passado. Aproveitei uma pausa em nossa conversa para abrir a


minha pasta e apanhar uma lista que havia preparado no avião.
- Que tal se pedir a sua resposta para cada uma dessas
questões? - propus a Moreland. - O meu objetivo não é co-
meçar uma discussão com o senhor. Eu só quero que o senhor
expresse a sua perspectiva e então, no final, avaliarei se acho
que o senhor está dando respostas adequadas e se, em geral, a
doutrina do inferno resiste ao exame aprofundado.
- Parece razoável - respondeu.
Examinei a lista e decidi começar por uma das objeções
mais carregadas emocionalmente dentre todas.

Objeção n, o 1: Como Deus pode mandar crianças


para o inferno?
As pessoas ficam chocadas com a idéia de crianças defi-
nhando no inferno. De fato, alguns ateus gostam de insultar
os cristãos desenterrando escritos de evangelistas do século
XIX que utilizaram uma linguagem horrível para descrever as
pavorosas experiências de crianças no inferno. Por exemplo,
um sacerdote inglês alcunhado "o apóstolo das crianças" es-
creveu estas palavras horripilantes:

Uma criancinha está nesse forno superaquecido. Ouça como


grita para sair! Veja como se revira e se contorce no fogo!
Bate a cabeça contra o teto do forno. Bate os pezinhos no
piso. Você pode ver no rosto dessa criancinha o que vê nos
rostos de todos os que estão no inferno - desespero, de-
sespero e horror."

- A idéia de crianças no inferno ... bem, é demais! - exal-


tei-me com Moreland. - Como pode haver um Deus de amor
se crianças estão sujeitas ao inferno?
Estava interessado em ver se a resposta de Moreland seria
consistente com a avaliação anterior do estudioso Norman
Geisler sobre esse assunto.

6George H. SMITH, Atheism: the case against God, p. 300.


Um Deus amoroso [amais torturaria pessoas no inferno P 243
- Lembre-se - Moreland advertiu à luz da citação sobre
a criança no forno - , a linguagem bíblica a respeito de fogo e
labaredas é figurada.
- Sim, está bem, mas insisto: haverá crianças no inferno?
Moreland, que é pai de duas filhas, inclinou-se para a fren-
te enquanto discorria.
- Você precisa entender que, no além, a nossa personali-
dade refletirá uma situação de vida adulta, de modo que po-
demos dizer com certeza que não haverá crianças no inferno
- redargüiu. E certamente não haverá ninguém no inferno
que, se tivesse a oportunidade de chegar à vida adulta, teria
escolhido ir para o céu. Ninguém irá para o inferno simples-
mente porque tudo o que necessitava era um pouco mais de
tempo, e morreu prematuramente.
Moreland estendeu a mão para apanhar sobre a mesa sua
Bíblia com capa de couro.
- Além disso, na Bíblia as crianças são vistas universal-
mente como figuras de linguagem para a salvação. Em todos
os textos em que se fala de crianças com relação ao além, elas
são usadas como figuras de salvação. Não há nenhum caso
em que crianças são usadas como figuras de condenação.
Folheou o Antigo Testamento até se deter em 2 Samuel.
- Aqui está um bom exemplo - acentuou. - A criança que
o rei Davi gerou no relacionamento adúltero com Bate-Seba mor-
reu, e Davi diz em 2 SamueI12.23: "Eu irei até ela, mas ela não
voltará para mim". Davi estava expressando a verdade que o seu
filho estaria no céu e que um dia eles estariam juntos. Assim,
essa é outra evidência de que não haverá crianças no inferno.

Objeção n. o 2: Por que todos sofrem o mesmo no inferno?


Enquanto formulava a pergunta seguinte levantei-me do
sofá e caminhei em direção à janela da frente, detendo-me em
um feixe de luz do sol que dançava sobre o tapete. O caso de
Massachusetts relacionado com o juiz Mathers permanecia
no fundo da minha lembrança.
244 q EM DEFESA DA FÉ

- O nosso senso de justiça exige que as pessoas más sejam


responsabilizadas pela maneira como prejudicaram a outrem -
expus. - Nesse caso o inferno poderia ser um castigo apropria-
do para alguns. No entanto, o fato de Adolf Hitler experimentar a
mesma punição eterna que alguém que viveu uma vida bastante
correta pelos nossos padrões, mas que tomou a decisão de não
seguir a Deus, violenta o nosso senso de eqüidade.
Moreland ouvia atentamente.
- Parece injusto que todos estejam sujeitos às mesmas con-
seqüências - disse. - É isso o que você está dizendo?"
- Sim, correto. Isto não o incomoda?
Moreland abriu a Bíblia no Novo Testamento.
- Na realidade - explicou - , nem todos experimentam o
inferno da mesma maneira. A Bíblia ensina que existem dife-
rentes graus de sofrimento e punição.
Deteve-se em Mateus 11 e percorreu com o dedo indicador
até parar nos versículos 20 a 24, os quais leu em voz alta:

Então Jesus começou a denunciar as cidades em que havia


sido realizada a maioria dos seus milagres, porque não se
arrependeram. "Ai de você, Corazim! Ai de você, Betsaida!
Porque se os milagres que foram realizados entre vocês ti-
vessem sido realizados em Tiro e Sidom, há muito tempo
elas se teriam arrependido, vestindo roupas de saco e co-
brindo-se de cinzas. Mas eu lhes afirmo que no dia do juízo
haverá menor rigor para Tiro e Sidom do que para vocês. E
você, Cafarnaum, será elevada até ao céu? Não, você des-
cerá até o Hades! Se os milagres que em você foram reali-
zados tivessem sido realizados em Sodoma, ela teria per-
manecido até hoje. Mas eu lhe afirmo que no dia do juízo
haverá menor rigor para Sodoma do que para você".

Moreland fechou o livro.


- Jesus está dizendo que as pessoas serão condenadas de
acordo com as suas ações - afirmou.
- Não será uma coisa padronizada? - perguntei. - A jus-
tiça seria aplicada à realidade de cada indivíduo?

I t"'l I .i.i ~ lia ll • . ,~ I , I


Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno P z·45
- Exatamente. Haverá graus de separação, isolamento e
vazio no inferno. Acho que isso é significativo porque acen-
tua que a justiça de Deus é proporcional. Não há exatamente a
mesma justiça para todos os que recusam a misericórdia de
Deus.
- Lembre-se, se Deus realmente deixa as pessoas molda-
rem o seu próprio caráter por intermédio das milhares de es-
colhas que fazem, também permitirá que elas sofram as con-
seqüências naturais do caráter que escolheram ter. E os que
estão em pior estado pessoal experimentarão maior grau de
vazio e isolamento.

Objeção n. o 3: Por que as pessoas são punidas infini-


tamente por crimes finitos?
Como pode qualquer delito que tenhamos cometido nesta
vida merecer a punição eterna? Não é injusto dizer que uma
vida finita de pecado justifica uma punição infinita? Onde
está a justiça nisso?
- Um Deus amoroso não faria a punição ser proporcional
ao crime, não permitindo que o inferno durasse para sempre?
- perguntei enquanto voltava a sentar à beira do sofá. - É
possível praticar algo nesta vida que justifique tortura eterna?
- Lembre-se, não é tortura - Moreland observou. - A
terminologia é fundamental. Não é uma eterna tortura consci-
ente; é um eterno sofrimento consciente por estar condenado
a ficar longe de Deus.
- Está bem - concordei. - Mas isso não responde à
pergunta.
- Não, não responde, mas deixe-me tentar. Primeiro, to-
dos nós sabemos que a gradação do castigo de uma pessoa
não é proporcional ao tempo necessário para cometer um cri-
me. Por exemplo, um assassinato pode levar dez segundos para
ser cometido; roubar a Enciclopédia Britânica de alguém po-
deria durar meio dia se arrombar a casa levasse muito tempo.
O que quero dizer é que o grau da justa punição de alguém
246 q EM DEFESA DA FÉ

não é proporcional ao tempo que levou para cometer a ação;


antes, é proporcional à própria gravidade do ato. E isto leva
ao segundo ponto. Qual é a coisa mais abominável que al-
guém pode praticar nesta vida? A maioria das pessoas, por-
que não se importa muito com Deus, dirá que é maltratar ani-
mais, destruir o meio ambiente ou prejudicar outra pessoa.
Sem dúvida, todas essas coisas são horríveis. Mas empalide-
cem à luz da pior coisa que uma pessoa pode fazer, que é
escarnecer, desonrar e recusar-se a amar a pessoa à qual deve-
mos absolutamente tudo, o nosso Criador, o próprio Deus. Você
precisa entender que Deus é infinitamente maior que qual-
quer outro ser em sua bondade, santidade, benignidade e jus-
tiça. Pensar que uma pessoa possa passar a vida toda ignoran-
do-o invariavelmente, zombando dele constantemente pelo
estilo de vida escolhido, sem a presença de Deus, ao dizer:
"Eu não ligo a mínima para o propósito pelo qual fui colocado
aqui; não ligo a mínima para os seus valores e para a morte do
seu Filho por mim; vou ignorar tudo isso". Esse é o pecado
supremo. E a única punição digna disso é a punição supre-
ma, que é a eterna separação de Deus. Como Alan Gomes
observou, a natureza do objeto contra o qual o pecado é co-
metido, bem como a natureza do próprio pecado, devem ser
levadas em consideração ao se averiguar o grau de hedion-
dez."
A resposta de Moreland me fez pensar no incidente em que
um perito na lei perguntou a Jesus qual era o maior mandamen-
to. Jesus lhe disse: 'Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu
coração, de toda a sua alma, de todas as suas forças e de todo o
seu entendimento, e ame o seu próximo como a si mesmo"."
Nos Estados Unidos, o crime mais grave - o assassinato
- é punido com o castigo mais rigoroso, que é ficar separado
da sociedade perpetuamente, na prisão. E parecia haver uma

7V Evangelicals and the annihilation of hell, Part rr, de Alan Gomes,


publicado em Cbristian Research journal, (Summer 1991), p. 8-13.
"Lucas 10.27.
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno p 247
certa lógica em dizer que a violação deliberada da lei supre-
ma de Deus deve acarretar o castigo supremo, que é ficar se-
parado de Deus e do seu povo por toda a eternidade.

Objeção D. o 4: Deus não poderia obrigar todas as pes-


soas a ir para o céu?
- Deixe-me voltar a um tema que o senhor destacou no
início - disse a Moreland. - O senhor disse que Deus se
entristece com a necessidade do inferno.
- Sim, certo.
- Então por que ele não pode simplesmente obrigar todo
mundo a ir para o céu? Essa parece ser uma solução simples.
- Porque isso seria imoral - respondeu Moreland.
- Imoral? - surpreendi-me. - Mais imoral que o inferno?
- Sim, imoral. Acompanhe meu argumento: existe uma
diferença entre valor intrínseco e valor instrumentai. Algo
tem valor intrínseco se é valioso e bom em si mesmo; algo
tem valor instrumental se é valioso como meio para um de-
terminado fim. Por exemplo, salvar vidas é intrinsecamente
bom. Dirigir do lado direito da rua é um valor instrumental;
só é bom porque ajuda a manter a ordem. Se a sociedade
decidisse que todos deviam dirigir do lado esquerdo, isso
seria correto. O objetivo é preservar a ordem e salvar vidas.
Agora, quando você trata as pessoas como instrumentalmente
valiosas, ou somente como meio para determinado fim, você
as desumaniza, e isso é errado. Quando você trata as pessoas
simplesmente como meios para um fim, você as está tratan-
do como coisas. Você somente respeita as pessoas quando as
trata como possuidoras de valor intrínseco.
- E qual é a relação disso com obrigar as pessoas a ir para
o céu? - perguntei.
- Se você forçasse as pessoas a fazer algo contra a sua livre
escolha, você as estaria desumanizando. Estaria dizendo que o
bem que você quer fazer é mais valioso que respeitar a escolha
das pessoas, e assim estaria tratando-as como meio para um
248 q EM DEFESA DA FÉ

determinado fim, exigindo que elas façam algo que não que-
rem. É isso o que aconteceria se Deus obrigasse todas as pesso-
as a ir para o céu. Se Deus concedeu livre-arbítrio às pessoas,
Lee, então não há nenhuma garantia de que todos preferirão
cooperar com ele. A opção de obrigar todo mundo a ir para o
céu é imoral, porque é desumanizante; priva-as da dignidade
de tomar a própria decisão; nega a liberdade de escolha; e os
trata como meio para um determinado fim. Deus não pode for-
mar o caráter das pessoas em seu lugar, e as pessoas que fazem
o mal ou cultivam falsas crenças iniciam um afastamento de
Deus que finalmente acabará no inferno. Deus respeita a liber-
dade humana. De fato, seria cruel, uma espécie de estupro di-
vino, obrigar as pessoas a aceitar o céu e Deus se realmente
não os quisessem. Quando Deus permite que as pessoas digam
"não" a ele, na verdade as está respeitando e dignificando.

Objeção n. o 5: Por que Deus simplesmente não des-


trói as pessoas?
Outro aspecto do inferno especialmente perturbador é que
sua duração é eterna. Se o inferno não durasse para sempre?
Que tal se Deus aniquilasse as pessoas - isto é, acabasse
com a sua existência - em vez de obrigá-las a ficar conscien-
temente separadas dele para todo o sempre?
- Certamente - opinei a Moreland - isso seria mais hu-
mano que a eternidade de pesar e remorso.
- Acredite se quiser, a separação eterna de Deus é moral-
mente superior à aniquilação - contestou. - Por que Deus
estaria moralmente justificado em destruir alguém? O único
aspecto positivo disso seria o resultado final, impedir que as
pessoas experimentassem a separação consciente de Deus
para sempre. Bem, desse modo você está tratando as pessoas
como meio para um determinado fim. É como obrigar as
pessoas a ir para o céu. O que você está dizendo é o seguin-
te: '~ coisa que realmente importa é que as pessoas não mais
sofram conscientemente; vou acabar com a sua existência

I lI .. j I I-:Ii I ... JI. J I ~ L.


Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno p 2-49
buscando alcançar esse fim". Você vê? Isso é tratar a pessoa
como meio para um determinado fim. O inferno reconhece
que as pessoas têm valor intrínseco. Se Deus ama o valor
intrínseco, então ele tem de amparar as pessoas, porque isso
significa que ele ampara o valor intrínseco. Ele se recusa a
destruir uma criatura que foi feita à sua imagem. Assim, em
última análise, o inferno é a única opção moralmente legíti-
ma. Deus não gosta disso, mas ele as põe de quarentena. Isso
honra a liberdade de escolha. Ele só não quer revogar esta
liberdade. Deus considera as pessoas tão valiosas intrinse-
camente que enviou o seu Filho, Jesus Cristo, para sofrer e
morrer, de sorte que elas possam, caso queiram, passar a eter-
nidade com ele nos céus.
Alguns teólogos afirmam que a aniquilação é o que as Es-
crituras ensinam. Dizem que a Bíblia sustenta que, embora a
punição do inferno seja eterna, o punir não é eterno.
Os aniquilacionistas citam o salmo 37, que diz que os ímpios
"não mais existirão", "desvanecerão como fumaça" e "todos os
rebeldes serão destruídos". E apontam para Salmos 145.20, onde
Davi diz: "O SENHOR cuida de todos os que o amam, mas a todos
os ímpios destruirá", e para Isaías 1.28: "Mas os rebeldes e os
pecadores serão destruídos, e os que abandonam o SENHOR pe-
recerão". Afirmam também que as metáforas usadas por Jesus
são evidências do aniquilacionismo: os ímpios são "amarrados
em feixes para serem queimados", os "peixes ruins são lança-
dos fora" e as "plantas danosas são arrancadas". 9
Perguntei a Moreland:
- Isso não significaria que o aniquilacionismo é compa-
tível com a Escritura e, portanto, um meio razoável de har-
monizar a justiça de Deus com a doutrina do inferno?
Moreland permaneceu firme.
- Não, não é o ensinamento bíblico - insistiu. - Sem-
pre que você tenta entender o que um autor está sustentando,

9V Hell: does it have an end?, de Samuele Bacchiocchi, publicado


em agosto de 1999, Signs of the times, p. 8-10.
250 q EJI\il DEFESA DA FÉ

deve-se começar por passagens claras que tratam daquela


questão, passando em seguida para os trechos menos cla-
ros que podem não estar destinados a cuidar daquele assun-
to. Deixe-me ilustrar. Existem passagens na Bíblia que di-
zem que Jesus Cristo morreu por todos. Também existe
Gálatas 2.20, em que o apóstolo Paulo: "Cristo morreu por
mim". Pois bem, devo supor com base nessa passagem que
Cristo morreu somente por Paulo? Não, mas por que não?
Porque existem passagens nítidas que ensinam que Cristo
morreu por todos. Assim, quando chegamos à afirmação de
Paulo nós dizemos que é óbvio que ele não quis dizer que
Jesus morreu somente por Paulo, porque interpretamos as
passagens obscuras à luz das claras. Pois bem, e quanto aos
fragmentos a respeito do inferno? O Antigo Testamento tem
passagens claras que dizem que o inferno é eterno. Daniel
12.2 diz que no final dos tempos os justos serão ressuscita-
dos para a vida eterna e os injustos para a punição eterna.!"
A mesma palavra hebraica traduzida por eterna é usada em
ambos os casos. Se vamos dizer que as pessoas são aniquila-
das no inferno, devíamos dizer que serão aniquiladas no céu.
Você não pode ter uma coisa e ficar sem a outra. Esta passa-
gem se destina claramente a elucidar a questão. No Novo
Testamento, em Mateus 25, Jesus apresenta um claro
ensinamento em que pretende abordar a questão do estado
eterno do céu e do inferno, e utiliza a mesma palavra eterno
para referir-se a ambos.
- Assim, nós partimos dessas passagens claras para o
ensino ambíguo que fala em "eliminar". Todo o discurso
sobre "ser destruído" e "ser eliminado" no Antigo Testa-
mento geralmente significa que as pessoas são eliminadas
de Israel e da terra. A maior parte dessas passagens tem

lODaniel12.2: "Multidões que dormem no pó da terra acordarão: uns


para a vida eterna, outros para a vergonha, para o desprezo eterno".

I ..-i i .. l1li l _ ~ • • . .I.l, L


Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno p 251
pouco OU nada que ver com a vida eterna; dizem respeito
ao ser eliminado nesta vida das promessas que Abraão deu
ao povo na terra.
- Porém - observei - os aniquilacionistas também ci-
tam a linguagem bíblica do fogo como uma evidência que as
pessoas são destruídas em vez de definhar no inferno para
sempre. Como disse o respeitado pastor inglês John Stott: "O
fogo em si mesmo é denominado 'eterno' e 'inextinguível', mas
seria muito estranho se o que nele é lançado se mostrasse
indestrutível. A nossa expectativa seria o oposto: o que é lan-
çado seria consumido para sempre, e não atormentado para
sempre" .11
Moreland permaneceu irredutível.
- A linguagem das chamas é figurada - repetiu. - Em
Apocalipse, somos informados que o inferno e a morte são
lançados no lago de fogo. Ora, o inferno não é algo que pos-
sa queimar. É um reino. É o mesmo que dizer que o céu
poderia ser queimado. O céu não é um tipo de coisa que
queima. Como você pode queimar a morte? A morte não é
algo em que se possa encostar uma tocha e queimar. Por-
tanto, é óbvio que o lago de fogo tem a finalidade de repre-
sentar o juízo. Quando se diz que põe fim ao inferno, a pa-
lavra "inferno" se refere ao estado temporário dos que es-
tão entre a morte e a ressurreição final. Nesse momento,
eles receberão novamente o seu corpo e ficarão localizados
longe de Deus. A morte chega ao fim porque não mais ha-
verá morte. Assim, a linguagem das chamas do lago de fogo
visa claramente ser uma figura de linguagem para o juízo,
não uma queima literal.

Objeção n, o 6: Como o inferno pode coexistir com o céu?


- Se o céu deve ser um lugar sem lágrimas, então como pode
haver um inferno eterno coexistindo? - perguntei. - Os que

l1Essentials: a Iiberal-evangelical dialogue, Londres: 1988, p. 316.


252 q EM DEFESA DA FÉ

estiverem no céu não chorariam por aqueles que estão so-


frendo para sempre no inferno?
- Em primeiro lugar, acho que as pessoas que estiverem
no céu compreenderão que o inferno é um meio de honrar
as pessoas como criaturas intrinsecamente valiosas feitas à
imagem de Deus - disse Moreland. - Em segundo lugar,
muitas vezes a capacidade que uma pessoa tem de desfru-
tar alguma coisa decorre do avanço dos anos e da obtenção
de uma perspectiva mais amadurecida. Quando as minhas
filhas eram pequenas, uma delas não era capaz de desfru-
tar um presente se a outra recebesse algo que achasse que
era um pouco melhor. Quando cresceram, tornaram-se ca-
pazes de usufruir o presente, independentemente do pre-
sente da outra. De fato, se ficassem se preocupando com o
que a outra recebeu, estariam permitindo que outrem as
viesse controlar. C. S. Lewis disse que o inferno não tem
poder de veto sobre o céu. Quis dizer que as pessoas que
estão no céu não negarão às pessoas que estão no inferno o
privilégio de desfrutar a vida simplesmente porque estão
conscientes acerca do inferno. Se não pudessem fazê-lo, en-
tão o inferno teria um poder de veto sobre o céu. Você pre-
cisa lembrar que a alma é grande o bastante para abrigar
um sentido imperturbável de alegria, bem-estar, amor e fe-
licidade e ao mesmo tempo um sentido de pesar e tristeza
em relação a outras pessoas. Esses não são estados incon-
sistentes na vida de um indivíduo, e o fato de que uma pes-
soa pode estar envolvida por estes estados de alma simul-
taneamente é um sinal do seu caráter e maturidade.

Objeção n, o 7: Por que Deus não criou somente os que


sabia que iriam segui-lo?
- Se Deus conhece o futuro, por que criou pessoas que
sabia que nunca se voltariam para ele e que, portanto, acaba-
riam no inferno? - perguntei. - Ele não poderia ter criado
somente os que sabia que o seguiriam e simplesmente não ter
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno 9 253
criado aqueles que sabia que iriam rejeitá-lo? Essa opção pa-
rece ser muito mais humana do que o inferno.
- Depende do objetivo de Deus - alertou Moreland. -
Se Deus tivesse escolhido criar só um punhado de quatro,
seis ou sete pessoas, talvez pudesse ter criado somente as
que iriam para o céu. O problema é que, tão logo Deus come-
ça a criar mais pessoas, torna-se mais difícil criar somente
as que o iriam escolher e não criar as pessoas que não o es-
colheriam.
- Em que sentido?
- Porque uma das razões pelas quais Deus nos coloca aqui
é dar-nos uma oportunidade de influenciar outras pessoas.
Moreland pensou por instantes antes de apresentar um caso
análogo.
- Você se lembra dos filmes De volta para o futuro? -
perguntou. - Lembra-se de como eles voltaram no tempo,
modificaram um pequeno detalhe e então, quando voltaram
para o futuro, toda a cidade estava completamente mudada?
Penso que há um elemento de verdade nisso. A realidade
pura e simples é que nós sofremos impacto ao observarmos
outras pessoas. Suponha, por exemplo, que quando eu era
um garotinho Deus tivesse dado aos meus pais a opção de se
mudarem para Illinois em vez de ficar em Missouri. Diga-
mos que houvesse um vizinho cristão que era um hipócrita
e eu observasse esse homem e, por causa de seu comporta-
mento, eu escolhesse dizer "não" ao evangelho pelo resto da
vida. Agora suponha que as pessoas no meu trabalho me jul-
gassem detestável e cinco delas se tornassem seguidoras de
Cristo devido ao meu mau exemplo de vida não-cristã. Bem,
se tivéssemos ido para Illinois, teríamos uma pessoa perdi-
da (eu) porém cinco pessoas estariam redimidas. Por outro
lado, suponha que Deus tivesse escolhido não dar o novo em-
prego ao meu pai e nós ficássemos em Missouri. Poderia ter um
treinador esportivo cristão que investisse em mim e eu acaba-
ria por escolher seguir a Deus. Mas, como a minha vida cristã
não é realmente o que deveria ser, cinco pessoas seriam afasta-
das de Cristo. Você percebe? É um cenário de De volta para o
futuro. Quando Deus escolhe criar alguém, essa pessoa causa
25 4 q EM DEFESA DA FÉ

impacto nas escolhas de outras pessoas e pode ser que elas


causem um impacto na sua decisão de confiar em Cristo ou
não. Existe outro aspecto nisto, que tem a ver com a maneira
como a alma é criada. Existe um entendimento de que a alma
passa a existir na concepção e é, de algum modo, transmitida
pelos pais. Em outras palavras, o óvulo e o esperma dos pais
contém potencialidades referentes à alma. Isso se chama
traducianismo. Significa que os meus pais criaram a minha
alma no ato da reprodução. Conseqüentemente, eu não pode-
ria ter tido pais diferentes, que a única maneira pela qual Deus
poderia ter-me feito é se toda a minha linhagem ancestral ti-
vesse me precedido, porque avós diferentes significam pais
diferentes e, por conseguinte, diferentes materiais para a alma.
E aqui está a implicação do traducionismo para a nossa ques-
tão: Deus tem de considerar cadeias genealógicas inteiramente
diferentes em sua totalidade. Ele não pode considerar somente
pessoas individuais. Assim, pode ser que Deus permita que
se formem algumas cadeias, com alguns indivíduos nelas que
rejeitam a Cristo (digamos, meu tataravô), mas que permitem
o nascimento de outros que confiam em Cristo. Em outras
palavras, Deus estaria pesando cadeias alternativas e não so-
mente pessoas alternativas. Quando Deus faz esses julgamen-
tos, o seu propósito não era manter tantas pessoas fora do
inferno quanto possível. O seu objetivo é levar tantas pesso-
as para o céu quanto possível. E pode ser, por triste que pare-
ça, que terá de permitir que sejam criadas mais algumas pes-
soas que escolherão ir para o inferno a fim de obter um nú-
mero maior de pessoas que escolherão ir para o céu.

Objeção n. o 8: Por que Deus não dá às pessoas uma


segunda oportunidade?
A Bíblia diz explicitamente que as pessoas estão destina-
das a morrer uma vez e então enfrentar o juízo." No entanto,

12V. Hebreus 9.27.

1 lI.~ L .. ~ • j j • I.' I j ~
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno p 255
se Deus é realmente amoroso, por que não daria uma segun-
da oportunidade às pessoas após a morte no sentido de to-
marem a decisão de segui-lo e irem para o céu?
- Se as pessoas experimentassem o inferno, isso não
lhes daria uma forte motivação para mudarem de idéia? -
perguntei.
- Essa pergunta pressupõe que Deus não fez tudo o que
podia antes de as pessoas morrerem, e eu rejeito isso - ex-
clamou Moreland. - Deus faz tudo o que pode no sentido
de dar uma oportunidade às pessoas, e não haverá uma úni-
ca pessoa que poderá dizer a Deus: "Se o senhor simples-
mente não tivesse permitido que eu morresse prematuramen-
te, se o senhor tivesse me dado mais doze meses, eu sei que
teria tomado a decisão de segui-lo". A Bíblia nos diz que Deus
está protelando o retorno de Cristo à terra para dar a todos o
tempo necessário a fim de que se acheguem a ele. 1 3 Se tudo
que uma pessoa precisasse um pouco mais de tempo para ir
a Cristo, então Deus estenderia o seu tempo de vida na terra
para dar-lhe essa oportunidade. Assim, não há ninguém que
apenas precise de um pouco mais de tempo ou que tenha
morrido prematuramente e que teria respondido a outra opor-
tunidade de receber a Cristo. Deus é justo. Ele não está ten-
tando tornar as coisas difíceis para as pessoas. Creio que cer-
tamente é possível que os que respondem à luz da natureza
que lhes foi dada receberão a mensagem do evangelho, ou
então pode ser que Deus os julgue com base no conhecimen-
to do que eles teriam feito caso tivessem a oportunidade de
ouvir o evangelho. O fato puro e simples é que Deus recom-
pensa os que o huscam.!"
Tratava-se somente de parte da questão.
- Espere um pouco - pedi. - A morte e a consciência da
presença ou da ausência de Deus após a morte não seria algo
muito motivador para as pessoas?

2 Pedro 3.9.
13\1:

14V Hebreus 11.6.


256 q EM DEFESA DA FÉ

- Sim, seria, mas de modo negativo. Primeiro, você pre-


cisa compreender que quanto mais as pessoas vivem separa-
das de Deus, menor é a probabilidade
,-
de que possam exercer
a livre escolha e confiar nele. E por isso que a maioria das
pessoas que vão a Cristo o fazem quando são jovens. Quanto
mais tempo você vive com um mau hábito, mais difícil é
modificar esse hábito. Não é impossível, mas é mais difícil.
Assim, o que faria as pessoas pensarem que, digamos, um
período de incubação de dez anos de separação de Deus iria
chamar a sua atenção? Ademais, isso tornaria a vida antes da
morte inteiramente irrelevante. A questão seria então: por que
Deus não criou as pessoas desde o início com o período de
incubação? Por que as criou na terra por 75 anos e as deixou
morrer e só então as colocou no período de incubação se era
desse período de incubação que elas realmente necessitavam
afinal? Lee, a verdade é a seguinte: esta vida é o período de
incubação! A próxima coisa que você precisa ter em mente é
que, se as pessoas vissem o trono do julgamento de Deus após
a morte, isto seria tão coercitivo que não mais teriam a possi-
bilidade da livre escolha. Qualquer "decisão" que tomassem
não seria uma livre escolha real e genuína; seria totalmente
forçada. Seria como se eu ameaçasse minha filha com uma
vara e dissesse: "Você terá de dizer à sua irmã que sente mui-
to por ter usado o vestido dela sem pedir permissão". Qual-
quer pedido de desculpas não seria verdadeiro, seria só um
meio de evitar o castigo. E as pessoas que "escolhessem" na
segunda oportunidade não estariam realmente escolhendo
Deus, o seu Reino e os seus caminhos nem estariam habilita-
das para a vida no seu Reino. Elas estariam fazendo uma "es-
colha" prudente só para evitar o juízo. Quero sugerir mais
uma coisa. Deus mantém um equilíbrio delicado entre man-
ter a sua existência suficientemente evidente a fim de que as
pessoas saibam que ele está presente e, ao mesmo tempo, ocul-
tar a sua presença o bastante para que as pessoas que quei-
ram optar por ignorá-lo possam fazê-lo. Desse modo, a esco-
lha do seu destino é realmente livre.
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno P 257
Objeção n. o 9: A reencarnação não é mais racional
que o inferno?
Os hindus rejeitam a idéia do inferno. Eles crêem na reen-
carnação, segundo a qual as pessoas retornam a este mundo
de outra forma após a morte e têm outra oportunidade para
desvencilhar-se do carma negativo que produziram na vida
anterior e prosseguir para o aperfeiçoamento.
- A reencarnação não seria o meio racional pelo qual o
Deus amoroso daria às pessoas um novo começo, de modo
que elas pudessem arrepender-se da próxima vez e ele não
tivesse de mandá-las para o inferno? - perguntei. - Isso não
seria preferível ao inferno?
- Lembre-se, nós não dectdimos o que é verdadeiro com
base no que gostamos ou não. Temos de considerar as evidên-
cias. Eu não conheço qualquer outro meio de decidir se algo é
verdadeiro a não ser pela análise das evidências - foi a res-
posta de Moreland.
- Sim - concordei - , mas não existiriam evidências a
favor da reencarnação, especialmente em indivíduos que têm
lembranças de vidas passadas ou mesmo que falam idiomas
que de outro modo não conheceriam?
- Acho que as evidências a favor da reencarnação são fra-
cas por várias razões - ponderou. - Por exemplo, ela é inco-
erente. Deixe-me dar uma ilustração a respeito. O número dois
é em essência um número par. Se você me dissesse que consi-
dera o número dois um número ímpar, eu lhe diria: "Você
pode estar pensando no três ou no cinco, mas não pode estar
pensando no dois, porque vou mostrar algo que é de sua es-
sência, ser um número par". Agora, não é algo essencial que
eu tenha um metro e setenta de altura. Não é algo essencial
que eu pese 75 quilos. Mas é essencial em mim que eu seja
humano. Se você dissesse: "J. P Moreland está na outra sala e
ele perdeu dois quilos", a maioria das pessoas diria: "Que bom
para ele". Que tal se você dissesse: "J. P Moreland está na
outra sala e sabe da maior? Ele é um cubo de gelo". A maioria
258 q EM DEFESA DA FÉ

das pessoas diria: "Não pode ser J. P Moreland, porque sei


que ele é humano. Ele não é um cubo de gelo". Bem, a reen-
carnação diz que poderia voltar como um cão, como uma
ameba. (Caramba! Por que não poderia voltar como um cubo
de gelo?) Se isso é verdade, qual é a diferença entre ser J. P
Moreland e ser qualquer outra coisa? Não há nada que seja
essencial a mim. Exatamente como ser par é da essência do
número dois, ser humano é essencial a mim... e a reencarna-
ção diz que o que é essencial a mim não é realmente essencial
afinal de contas.
- Portanto - exclamei - é incoerente!
- Exatamente - disse Moreland. - Outra razão pela qual
não creio na reencarnação é que grande parte dessas evidên-
cias sugeridas por você (coisas como supostas lembranças de
vidas passadas) pode ser melhor explicada por outros meios.
- Pode haver explicações psicológicas - as pessoas pa-
recem lembrar-se de certos detalhes, mas são suposições
vagas ou coincidentes, ou pode haver explicações demonía-
cas para uma parte dessa atividade. Na realidade, quando
você examina cuidadosamente as pesquisas, descobre que
elas deixam de apoiar a reericarnação ." Finalmente, não
creio na reencarnação porque existe um especialista nessa
questão, que é Jesus de Nazaré. Ele é a única pessoa da his-
tória que morreu, ressurgiu dentre os mortos e falou com
autoridade sobre esse assunto. Jesus diz que a reencarna-
ção é falsa, que há somente uma morte e depois disso vem
o juízo. Os seus apóstolos, a quem instruiu cuidadosamen-
te, reiteraram o seu ensinamento.
Em vez disso, Jesus ensinou a realidade do inferno. Com
efeito, tratou desse assunto mais que qualquer outro na Bíblia.

15Para outras análises das evidências acerca da reencarnação ,v. Beyond


death: exploring the evidetice for immortality, de Gary R. Habermas e J.
P Moreland (Wheaton, Illinois: Crossway, 1998), p. 237-53; e Reen-
carnação, de Norman L. Geisler e J. Yutaka Amano (São Paulo: Mun-
do Cristão, 1992).
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno P 259
- É irônico - observei - que muitos ateus abracem Je-
sus como um grande mestre e, no entanto, foi ele quem mais
teve o que dizer a respeito do inferno.
- Sim - disse Moreland - e lembre-se do seguinte: as
evidências indicam que Jesus e seus seguidores eram pes-
soas virtuosas. Se você quer saber como encarar os pobres,
pergunte a alguém como madre Teresa. Nunca pergunte a
Hugh Hefner' por que uma pessoa como madre Teresa tem
mais caráter que ele. Se você quer saber se o inferno em úl-
tima análise é justo, pergunte a Jesus. E aqui está o que im-
porta: ele não via nenhum problema nessa doutrina. Penso
que estamos assumindo riscos quando comparamos os nos-
sos sentimentos e intuições morais com os de Jesus. Estamos
dizendo que temos melhor percepção que ele sobre o que é
justo e o que não é. Julgo que esta não é a arena em que deve-
mos entrar.

A verdade sobre o inferno


Recostei-me no sofá e parei para pensar. Moreland havia res-
pondido de modo competente as objeções mais difíceis quan-
to à questão do inferno. Tive de admiti-lo. Quando reunia to-
das as suas respostas, elas pareciam fornecer uma justificati-
va razoável para essa doutrina.
No entanto, isto não eliminou o meu desconforto. E estava
em boa companhia. C. S. Lewis disse certa vez que a doutrina
do inferno é "uma das principais razões pelas quais o cristia-
nismo é atacado como algo bárbaro e a bondade de Deus é
impugnada" .16
Moreland havia falado como filósofo e teólogo, mas estava
curioso em conhecer a sua reação pessoal a esse assunto.
- E quanto a J. P Moreland? - perguntei. - O senhor
teceu alguns argumentos convincentes a favor da doutrina,

'Fundador da revista Playboy (N. do T.).


16The Problem of Pain, Glasgow: William Collins Sons, 1983, p. 107.
260 q EM DEFESA DA FÉ

mas seja honesto: não existem ocasiões em que o senhor se


sente terrivelmente desconfortável quanto à existência do in-
ferno?
Moreland tirou os óculos de aros prateados e esfregou os
olhos antes de falar.
- Com toda a certeza - assentiu. - Não há dúvida. Porém,
de novo, sentir-se pouco à vontade diante de um tema não é o
mesmo que emitir um juízo racional e ponderado sobre ele.
Creio que o inferno é moralmente justificável, mas não me sin-
to confortável porque é algo triste.
Fez uma pausa e então continuou.
- Tenha em mente que Deus também não se sente à von-
tade com o inferno. Deus não go.sta dele. Assim, qual é a
reação apropriada a esse sentimento de desconforto? Não é
tentar criar uma idéia da vida futura que não me permita
sentir desconfortável. Essa é urna maneira terrível de acer-
car-se da verdade. A co isaaproprfada a fazer é admitir que o
inferno é real e permitir que os nossos sentimentos de des-
conforto nos motivem a agir. Para os que não conhecem a
Cristo, o inferno deve motivá-los a redobrar os seus esforços
no sentido de buscá-lo e encontrá-lo. Para aqueles de nós
que o conhecemos, essa doutrina deve levar-nos a redobrar
os nossos esforços para levar a sua mensagem de misericór-
dia e graça a quem dela necessita. Precisamos manter a pers-
pectiva correta diante disso tudo. Lembre-se que o inferno
será para sempre um monumento,-
à dignidade humana e ao
valor da escolha humana. E uma quarentena em que Deus
diz duas coisas importantes: "Meu respeito à liberdade de
escolha é tal que não vou coagir as pessoas, e eu valorizo
tanto os que têm a minha imagem que não vou destruí-los".
- O senhor percebe como a doutrina do inferno pode ser
um entrave para os investigadores espirituais?
- Sim, percebo, e gostaria de acrescentar algo a respeito.
Sempre que se tenta iniciar urna amizade nova, você não sabe
tudo a respeito do novo amigo e não concorda ou necessaria-
mente se sente bem com todas as idéias que esposa. Mas você
Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno p 2-61
tem de perguntar, depois da avaliação, se confia na pessoa o
suficiente para manter a amizade.
- O mesmo se aplica a Jesus. Não devemos esperar resol-
ver cada questão antes de estabelecer um relacionamento com
ele. Mas o problema central é: depois de avaliar poderia con-
fiar nele? Exorto a quem busca a verdade a ler o evangelho de
João e então perguntar: "Posso confiar em Jesus?" Penso que a
resposta é sim. E creio que, com o tempo, à medida que de-
senvolvermos o nosso relacionamento com ele, chegaremos a
confiar nele mesmo nas áreas das quais carecemos agora de
compreensão plena.

"O que Deus deve fazer?"


Deixei as palavras de Moreland penetrarem por instantes an-
tes de me levantar e agradecer pelo tempo dispensado e suas
reflexões.
- Esse foi um tópico difícil - notei. - Agradeço a sua
disposição em tratar desse assunto.
Acenou com a cabeça e sorriu.
- Tudo bem. - Espero que tenha sido útil.
Levou-me para fora, apertamos as mãos, entrei no carro e
segui para o aeroporto. O tráfego intenso não me incomodou;
dispunha de bastante tempo antes do vôo. Na verdade, gostei
dos minutos gastos no trânsito, porque me deu a oportunida-
de de refletir sobre a entrevista.
O inferno era a única opção que Deus tinha? Ele é justo e
moral? A doutrina é logicamente consistente? Obviamente,
Jesus achava que sim. E eu concluí que, em geral, a análise de
Moreland foi suficiente para derrubar a idéia de que o inferno
é um obstáculo.
Isso não significava que eu me sentia inteiramente à vonta-
de com cada detalhe dos pontos enumerados. Porém, signifi-
cava que as suas explicações, vistas como um todo, eram sufi-
cientemente sólidas para evitar que essa questão interrom-
pesse a minha jornada espiritual.
262 q EM DEFESA DA FÉ

Preso ainda no inevitável engarrafamento de Los Angeles,


abri a minha pasta e revirei os materiais de pesquisa que ha-
via compilado na preparação da conversa com Moreland. Fi-
nalmente, consegui achar a fita de uma entrevista anterior
sobre o inferno que eu havia mantido com o renomado teólo-
go D. A. Carson.
Colocando-a no toca-fitas, localizei algumas observações que
pareceram ser uma conclusão apropriada para aquela tarde:

o inferno não é um lugar em que as pessoas estão confina-


das porque eram gente boa, mas simplesmente não acredi-
taram nas coisas certas. Estão confinadas, antes de mais
nada, porque desprezam o seu Criador e querem estar no
centro do universo. O inferno não está cheio de pessoas
que já se arrependeram, mas Deus não é amável o suficien-
te ou bom o suficiente para deixá-las sair. O inferno está
cheio de pessoas que, por toda a eternidade, ainda querem
ser o centro do universo e persistem na sua rebeldia desa-
fiadora contra Deus.
O que Deus devia fazer a respeito? Se disser que não se
importa, não será mais um Deus a ser adorado. Ele seria
amoral ou positivamente medroso. Agir de qualquer outra
maneira face a uma rebeldia tão ostensiva seria diminuir o
próprio De'us.!"

Ponderações
Perguntas para reflexão ou estudo em grupo
'~~:i~~i" ,~' 'c; c__ ,- ".0 - ,--." .'. < ~~~~~~:i~;';';' ":,,, ':'~'~~;~;~ _" ;>," '.':''.. _;,', ~ >,~ u' '_OH ,. - _... c;;"" ;~~;: ~".-.~,"~:;:::;"''~"'"i'""-~~~:~~l ,::·i-;·i~~:~3:~2""',";';; ;;.;i:'~~'--;;:;;~:;~~~~~~·~~ ~ V"":~'~;i:; o:: ;"?'.; '" ;'"'~;,~;"'" i""":'~;'i~:~;~~;~"~~~ ~\; ~~; c~

1. Qual era a sua idéia do inferno antes de ler este capítu-


lo? Como é que a análise de Moreland reforçou ou desa-
fiou suas convicções?
2. Mark Twain certa vez satirizou: "O céu por causa do cli-
ma; o inferno por causa das companhias". À luz da des-
crição do inferno feita por Moreland, como você res-
ponderia a esse comentário?

17V. Em defesa de Cristo, de Lee Strobel, p. 219-20.


Um Deus amoroso jamais torturaria pessoas no inferno P263
3. A doutrina do inferno tem sido um entrave para você
como alguém que busca a verdade ou já é cristão? De
que modo específico Moreland abordou as preocupa..
ções que formaram um obstáculo na sua jornada espiri-
tual?

Outras fontes de consulta


Mais recursos sobre esse tema

• CROCKETT, William v., org. Four views on heIl. Grand


Rapids, Michigan: Zondervan, 1996.
• HABERMAS, Gary H. e MORELAND, J. P. Beyond death:
exploring the evidence for immortality. Wheaton,
Illinois: Crossway, 1998.
tMuRRAY, Michael J. Heaven and HelI. Em Reason for the
hope within, erl, por Michael [. Murray, 287-317. Grand
Rapids, Michigan: Eerdmans, 1999.
Sétima
hist6ria da igrej a está
Â
repleta de opressão e violência

o cristianismo tem sido usado (por certas pessoas) ao


longo da história como desculpa para algumas das atro-
cidades mais brutais, cruéis e insensíveis conhecidas pela
humanidade. Os exemplos históricos não são difíceis de
evocar: as cruzadas, as inquisições, as queimas de feiti-
ceiras, o Holocausto ... Não vi muitas coisas no cristia-
nismo que valessem a pena.
Ken Schei, ateu 1

O cristianismo tem sido uma bênção para a humanidade


[e] tem tido um efeito benéfico sobre a raça humana... A
maioria das pessoas de nossos dias que vivem em um
ambiente ostensivamente cristão, marcado pela ética cris-
tã, não percebe o quanto devemos a Jesus de Nazaré
[...] A bondade e misericórdia que existem neste mundo
vieram em grande parte dele.
D. James Kermedy, cristão/

W ay n e W. Olson foi sempre um tipo animado. Juiz im-


ponente, amigável, claros olhos azuis e uma coroa de
cabelos brancos, Olson divertia a todos com histórias hila-
riantes de suas experiências muitas vezes estranhas no
Fórum Criminal do Condado de Cook. Tinha uma mente
muito perspicaz, uma capacidade prodigiosa para ingerir

lWhat is an atheist for Jesus? Disponível em: www.atheists-for-


Jesus.com/about.htm. Acesso em: 10 jan. 2000.
2VVhy I believe, Dallas: Word, 1980, p. 118, 121.
2'66 q EM DEFESA DA FÉ

bebidas alcoólicas e a afabilidade de um antigo conselheiro


municipal de Chicago.
Olson era um jurista sem destaque, mas parecia ser consci-
encioso. Gostava em especial de ver o seu nome estampado no
jornal, de modo que amiúde me passava histórias quando eu
era repórter do Chicago Tribune no Edifício dos Fóruns Crimi-
nais, na Zona Oeste de Chicago.
No final do dia, freqüentemente matávamos o tempo no
seu gabinete e contávamos piadas. Vez por outra, dávamos
boas risadas enquanto bebíamos no Iean's, um bar muito fre-
qüentado das proximidades, onde costumava entreter as pes-
soas com histórias sobre como pagou os seus estudos de direi-
to trabalhando como baterista de uma banda de polca. Extro-
vertido, inveterado, não suportava ficar sozinho.
Certa vez telefonou para a sala da imprensa e me convidou
para um casamento. Subi ao seu gabinete e encontrei um Olson
jovial oficiando o casamento improvisado de um arrombador
algemado - a quem acabara de condenar a três anos de pri-
são - e sua namorada visivelmente grávida. Olson designou-
me de pronto como padrinho.
- Lamento - disse, sorrindo, enquanto os guardas leva-
vam o noivo após a cerimônia que durou não mais de dois mi-
nutos. - Não haverá lua-de-mel.
Como juiz da área de narcóticos, tratava de casos crimi-
nais de rotina. Olson não estava em situação que lhe per-
mitisse abrir novos caminhos na esfera judicial. Pelo me-
nos, não deliberadamente. Contudo, no fim de semana do
feriado de Ação de Graças de 1980, Olson sem querer en-
volveu-se em um incidente sem precedentes na jurispru-
dência americana.
Depois que Olson deixou o tribunal em seu automóvel,
antecipando um acalentado feriado de quatro dias, uma equi-
pe de agentes do FBI entrou secretamente em seu gabinete às
escuras e colocou um aparelho de escuta, ação aprovada pelo
judiciário. Esse fato marcou a primeira vez na história dos
Estados Unidos em que investigadores federais colocaram
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 267
uma escuta no gabinete de um juiz em exercício - honra
que Olson, caso tivesse sabido, teria tido prazer em transfe-
rir a outra pessoa.
Terrence Hake, o promotor designado para trabalhar no tri-
bunal de Olson, era na realidade um agente secreto que parti-
cipava de uma investigação clandestina do governo denomi-
nada "Operação Greylord". Depois que Olson retornou do fe-
riado, sempre que alguém sob vigilância entrava no seu gabi-
nete, Hake utilizava um transmissor oculto para enviar men-
sagem codificada a um agente do FBI que estava em um carro
estacionado em frente ao prédio. O agente dava o sinal para
que outro investigador acionasse a escuta, de modo que pu-
dessem ouvir o que transpirava atrás das portas."
Ao todo, mais de 250 horas de diálogos foram gravadas
secretamente - e confirmaram as suspeitas do governo de
que o juiz estava levando uma vida dupla. O simpático e tran-
qüilo Olson - líder de popularidade no fórum distrital -
revelou ser um extorsionário totalmente corrupto que cinica-
mente vendia a justiça para o maior licitante.
A atitude de Olson ficou registrada para sempre nas grava-
ções recebendo propina de advogados, pervertendo a justiça
continuadamente. A certa altura, foi ouvido dizendo: "Eu adoro
pessoas que recebem grana, porque sabe-se exatamente onde
está pisando". 4 De fato, poucos dias depois que a escuta foi
instalada, os agentes ouviram espantados quando Olson des-
caradamente acertou com um advogado corrupto um proces-
so que envolvia narcóticos:

Olson: - Eu sou um colecionador de moedas.


Advogado: - Duas [duzentos dólares] são suficientes, juiz?
Eu liberei setecentos e sessenta e cinco [dólares] para hoje.
Olson: - Bem, eu fiz um negócio com outra pessoa, mas

3Court hears how FBl agents bugged judge, de Maurice Possley, pu-
blicado em The Chicago Tribune, 26/4/1985.
4Judge liked "people who take dough", Greylord file shows, de Maurice
Possley, publicado em The Chicago Tribune, 27/4/1985.
268 q EM DEFESA DA FÉ

prefiro entregá-lo a você; você faria um melhor trabalho.


Advogado: - Eu lhe dou uma dupla [duzentos dólares]. Se
não for suficiente, simplesmente me diga. Seja qual for o
negócio ...
Olson: - Gosto de sujeito que me dá a metade do... que rece-
be... Só que em determinados dias eu não recebo nada. É uma
pena que um indivíduo venha até aqui e não tenha nada."

Eu já havia deixado o Tribune para ser editor de outro jor-


nal quando a notícia estarrecedora foi divulgada: Olson havia
sido indiciado em 55 acusações de suborno, concussão e ex-
torsão. Sacudi a cabeça. Ele havia enganado a mim, aos seus
colegas e ao público por tantos anos. Sentia-me traído e indig-
nado com a incrível violação das leis que havia jurado cum-
prir. Foi uma terrível reviravolta - o juiz que outrora havia
decidido regiamente sobre o destino de outras pessoas agora
se via condenado a doze anos de reclusão em uma penitenci-
ária federal.
Não foi sozinho para a prisão. Dezenas de juízes e advoga-
dos desonestos também foram apanhados pelas redes da Ope-
ração Greylord, a mais bem-sucedida investigação secreta da
história dos tribunais do Condado de Cook - uma investiga-
ção que levantou questões relevantes, por analogia, para o
cristianismo.

Corrupto até a alma?


Uma das questões que vieram à tona por meio da Operação
Greylord foi a seguinte: quando a história de Chicago for escri-
ta, os crimes de Wayne Olson e de outros funcionários corrup-
tos da justiça serão vistos como anormalidades dentro de um
sistema judicial honesto em outros aspectos? Em outras pala-
vras, o aparato da justiça criminal é essencialmente íntegro e

"Records charge de ais by judge; "We can make $1,000 a week",


Olson quoted, de Maurice Possley, publicado em The Chicago Tribune,
21/2/1985.
A histeria da igreja está repleta de opressão e violência P 2·69
imparcial, exceto quanto a essas raras manchas ocorridas
quando um juiz desonesto tenta se enriquecer?
Ou será que Olson e seus comparsas são sintomáticos de
uma corrupção generalizada e sistemática que corroeu o pró-
prio DNA da justiça no Condado de Cook? Estaria o sistema de
tribunais comprometido até a alma pela extorsão e pelo favo-
ritismo, de modo que o caso de Olson foi na realidade uma
janela a exibir os "negócios de praxe" do judiciário local?
As mesmas perguntas poderiam essencialmente ser feitas
com relação ao cristianismo. Os cristãos tendem a considerar
os exemplos de abuso e violência eclesiástica ao longo dos
séculos como anomalias em uma instituição que é positiva
em outros aspectos. Todavia, os críticos estão mais inclinados
a representações negativas como as Cruzadas, a Inquisição e
os julgamentos das feiticeiras de Salem como ilustrativas de
um problema mais profundo: que o próprio cristianismo está
manchado até o âmago pelo desejo irrefreável de poder no
sentido de impor a sua vontade a outrem - mesmo que seja
por meio da violência e da exploração, se necessário. Um dos
ateus mais famosos da história moderna, Bertrand Russell,
disse que isso era inevitável:

Supondo-se que a verdade absoluta está contida nas afirma-


ções de certo homem, surge imediatamente um corpo de
especialistas para interpretá-las, e esses especialistas infali-
velmente adquirem poder, uma vez que possuem a chave da
verdade. Como qualquer outra casta privilegiada, eles utili-
zam o poder em benefício próprio [... ) Tornam-se necessa-
riamente oposítores de todo progresso intelectual e moral."

As atrocidades cometidas em nome de Jesus certamente


têm sido um pára-raios para os opositores da fé. O físico
Steven Weinberg, um ganhador do Prêmio Nobel, disse o
seguinte: "Com ou sem religião, existiriam pessoas boas

"Porque não sou cristão e outros ensaios sobre religião e assuntos


correlatos, São Paulo: Exposição do livro, 1960, p. 22.
27 O q EM DEFESA DA FÉ

fazendo coisas boas e pessoas más fazendo coisas más. Po-


rém, para que pessoas boas façam coisas más, é preciso a
religião.!"
Os abusos cometidos pela igreja foram um dos fatores que
levaram Ken Schei a tomar a iniciativa paradoxal de fundar
uma organização chamada "Ateus para Jesus", que endossa o
que denomina "a mensagem de amor e bondade" de Jesus,
sem abraçá-lo como Deus ou a igreja como instituição.
O desprazer de Charles Templeton com relação a grande
parte do que tem acontecido com a participação das igrejas
ficou evidente na conversa que tivemos, bem como em seus
textos. Embora reconheça que a religião organizada tem feito
"um bem incomensurável", cobrou por "raramente ter mos-
trado o que possui de melhor. Com muita freqüência ela tem
tido uma influência negativa [... ] Ao longo dos séculos e em
todos os continentes, os cristãos - os seguidores do Príncipe
da Paz - têm sido causa de conflitos e neles têm se envolvi-
do"." Por exemplo, ele comparou a igreja da Idade Média a
"uma organização terrorista."9
Seria tal avaliação sustentada por dados históricos? Os cris-
tãos têm como se defender da brutal carnificina das Cruzadas
ou das cruéis torturas da Inquisição? Esses exemplos de vio-
lência e exploração em seu benefício representariam um pa-
drão consistente de comportamento que deveria, por justa
razão, levar os que aspiram à vida espiritual a se manter longe
da religião organizada?
Estas perguntas são perturbadoras, mas felizmente não
tive de viajar muito para obter algumas respostas. Um dos
principais historiadores do cristianismo residia a menos de
uma hora de minha casa quando vivia em um subúrbio de
Chicago.

'Why are we here: the great debate, lnternational Herald Tribune,


26/4/1999.
"Farewell to God, 127, p. 129.
9Ibid., p. 154.
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 271
Sétima entrevista: John D. Woodbrige, PH.D.
Depois de obter o mestrado em história da Universidade Es-
tadual de Michigan, Woodbridge, que é bilíngüe, obteve o
doutorado na Universidade de Toulouse, na França. Recebeu
a bolsa Fulbright Fellowship e subvenções do Fundo Nacio-
nal para as Humanidades e do Conselho Americano de Soci-
edades Cultas. Tem lecionado em diversas universidades se-
culares, incluindo-se a divisão de religião da Escala de Altos
Estudos, Sorbonne, Paris. Atualmente, é professor-pesquisa-
dor de história da igreja na Trinity Evangelical Divinity School,
em Deerfield, Illinois.
Entre os numerosos livros de Woodbridge relacionados com
história constam obras técnicas como Revolt in pre-revolutionary
France: the prince de Conti's conspiracy against Louis xv, 1755-
1757 [Revolta na França pré-revolucionária: a conspiração do
príncipe de Conti contra Luís xv], publicada pela editora da
Universidade Johns Hopkins, e obras mais populares como
Creat leaders ofthe Christian Church [Grandes líderes da.igre-
ja cristã], More than vonquerors [Mais que vencedores] e
Ambassadors for Christ [Embaixadores de Cristo]. Escreveu
também livros sobre teologia e estudos bíblicos, tais como
Hermeneutics, authority and canon [Hermenêutica, autoridade
e cânon] e Scripture and truth [A Escritura e a verdade], ambos
escritos em conjunto comD. A. Carson, e Biblical authority [Au-
toridade bíblica]. Além disso, trabalhou por dois anos como
editor-chefe da revista Christianity Today.
Woodbridge é membro de várias sociedades históricas im-
portantes dos Estados Unidos e da França, como a Associação
Histórica Católica Americana, a Sociedade Americana de His-
tória da Igreja, a Sociedade Americana de Estudos do século
XVIII, a Sociedade Francesa do século XII e a Sociedade de His-
tória Moderna e Contemporânea.
Quando me encontrei com Woodbridge em sua casa estilo
coloniallholandês decorada tipicamente, experimentei a sen-
sação de estar vendo alguém conhecido. Só depois percebi
272 q EM DEFESA DA FÉ

que ele tem uma misteriosa semelhança com o ator Peter Boyle,
Esse homem de 59 anos, parcialmente calvo e pais de três
filhos, usava um suéter branco tipo rede de pescador sobre
uma camisa azul. Nós nos sentamos frente a frente junto à
sua mesa de jantar, coberta de papéis com anotações para um
livro que estava escrevendo em seu período sabático.
Não havia jeito de entrar de leve na nossa conversa. Não com
este tema. Embora a nossa entrevista tenha ocorrido poucos meses
antes de o papa João Paulo II ter feito a histórica confissão públi-
ca pedindo perdão a Deus pelos pecados cometidos ou tolerados
pela Igreja Católica Romana durante seus dois milênios de exis-
tência.?" eu peguei um recorte de jornal em que se noticiava um
reconhecimento anterior de culpa por parte do papa e apontei
para a matéria ao lançar o meu primeiro desafio.

Confessando os pecados da igreja


- Já em 1994 - comecei, - o papa João Paulo 11 conclamou a
igreja a reconhecer "o lado escuro da sua história", dizendo:
"Como ficar calado diante das muitas formas de violência
perpetradas em nome da fé - guerras religiosas, tribunais da
Inquisição e outras formas de violação dos direitos das pesso-
as?" ,lI Não é verdade que a igreja ao longo dos séculos escon-
deu intencionalmente esses exemplos de abuso?
Enquanto ouvia, Woodbridge apoiava os cotovelos na mesa,
as mãos entrelaçadas à frente. Ele analisou a minha pergunta
por alguns momentos antes de responder.
- Acho que a declaração do papa é corajosa - afirmou,
- porque é o reconhecimento de que a Igreja Católica Roma-
na mascarou alguns atos que foram feitos em nome de Cristo
e que obviamente dão munição aos críticos do cristianismo

10V.Pope apologizes for catholic sins past and present, de Richard


Boudreaux, publicado em The Los Angeles Times, 13/3/2000.
llPapal state: despite his recent lls, pope John Paul II is focused on
í

the future, de Peggy Polk, publicado em The Chicago Tribune, 5/6/1995.


A história da igreja está repleta de opressão e violência P 213
em geral. No entanto, eu acrescentaria de pronto que deve-
mos ter cuidado ao usar a expressão "a igreja", porque isso dá
a impressão que há apenas uma instituição representativa do
cristianismo. Traçaria uma nítida linha demarcatória entre
pessoas que são parte da "igreja" - ovelhas que ouvem a voz
do pastor e querem ser cristãos verdadeiros - e as igrejas
institucionais - disse, enfatizando o plural dessas últimas
palavras. - Ora, é evidente - acrescentou, - existem mui-
tíssimos cristãos verdadeiros que estão nas igrejas organiza-
das, mas só porque uma pessoa é parte de uma igreja não sig-
nifica que, necessariamente, seja um seguidor de Jesus. Al-
guns são cristãos nominais, mas não cristãos autênticos.
Apertei os olhos demonstrando ceticismo.
- Isso não é um pouco de revisionismo do século xx? -
perguntei. - Esse argumento torna bastante fácil olhar para
trás e dizer que todas as atrocidades cometidas em nome do
cristianismo foram na realidade perpetradas por quem que
dizia ser cristão, mas não era realmente. Isso parece uma vál-
vula de escape muito cômoda.
- Oh, não, essa distinção não é nova - insistiu. - Na
verdade, remonta ao próprio Jesus. Apanhou a Bíblia, que es-
tava escondida atrás de papéis dispersos, e leu as palavras de
Jesus no evangelho de Mateus:

Nem todo aquele que me diz: "Senhor, Senhor", entrará no


Reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai
que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: "Senhor,
Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não
expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?'
Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afas-
tem-se de mim vocês, que praticam o mal l"

Erguendo os olhos, Woodbridge explicou:


- Jesus falou dessa distinção há dois milênios. E certa-
mente muita coisa foi feita ao longo dos séculos em nome do

12Mateus 7.21-23.
274 q EM DEFESA DA FÉ

cristianismo que não reflete seus ensinamentos. Por exem-


pio, Adolph Hitler tentou dar uma coloração cristã ao seu
movimento, mas ele não representava o que Jesus ensinou.
Quando pediram ao teólogo Karl Barth para iniciar uma pa-
lestra na Alemanha exclamando "Hei] Hitler", ele retrucou:
"É bastante difícil dizer 'Heil Hitler' um pouco antes de fazer
a exegese do Sermão da Monte!" Essas duas coisas simples-
mente não combinam. Desse modo, se aceitarmos a distin-
ção, poderemos analisar com maior precisão algumas coisas
que têm sido atribuídas à fé cristã.
Permaneci em dúvida.
- Portanto, o senhor está dizendo que se algo de mau foi
cometido ao longo da história, não pode ter sido praticado
por cristãos autênticos?
- Não, não, eu não estou sugerindo isso - Woodbridge
respondeu. - A Bíblia deixa claro que, devido à nossa natu-
reza pecaminosa, continuamos a praticar atos que como cris-
tãos não deveríamos cometer. Nós não somos perfeitos neste
mundo e infelizmente algumas das más ações cometidas na
história certamente podem ter sido cometidas por cristãos.
Quando isso aconteceu, agiram de modo contrário aos
ensinamentos de Jesus. Ao mesmo tempo, devemos reconhe-
cer que com freqüência havia vozes minoritárias que falaram
contra os abusos que certas igrejas institucionais perpetraram.
Por exemplo, acabei de ler esta manhã que, durante a coloni-
zação espanhola da América Latina, alguns católicos roma-
nos ficaram horrorizados pela maneira como os povos nati-
vos estavam sendo explorados com fins econômicos em nome
de Cristo. Eles disseram: "Não, vocês não podem fazer isso!"
Esses cristãos estavam dispostos a clamar contra os abusos
dos representantes do Estado ou da igreja.
- Voltemos à declaração do papa - insisti. - É apropria-
do a esta altura da história ficar confessando os pecados pas-
sados da igreja?
- Sim, é inteiramente apropriado admitir que algumas coi-
sas que os cristãos fizeram são realmente pecados. A Bíblia nos
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 275
diz que devemos confessar os nossos pecados. A confissão deve
ser uma das marcas dos cristãos - a disposição de admitir er-
ros, buscar o perdão e esforçar-nos para mudar as nossas ações
no futuro. Na realidade, não é só o papa que está fazendo isso.
Na Convenção Batista do Sul houve uma iniciativa recente no
sentido de reconhecer que os antigos batistas do sul erraram
gravemente no que concerne à escravidão, e há poucos anos
um grupo luterano canadense pediu desculpas aos judeus pelo
anti-semitismo dos escritos de Martinho Lutero.
- Como historiador, o senhor pode perceber por que os
céticos utilizam os abusos históricos da igreja como argu-
mento contra o cristianismo ou como um meio de atacar a
fe.
~ ?

- Oh, sim, eu posso entender isso - replicou. - Infeliz-


mente, certos incidentes da história provocaram cinismo em
algumas pessoas com relação ao cristianismo. Ao mesmo tem-
po, existe um certo número de estereótipos enganosos acerca
do que os cristãos fizeram e não fizeram. Alguns críticos têm
atacado o cristianismo nominal, deixando de compreender
que não se trata de um cristianismo autêntico. Esse tem sido
um de nossos problemas há séculos. Voltaire foi um impor-
tante crítico do cristianismo; no entanto, quando foi para a
Inglaterra, deparou-se com alguns cristãos quacres e
presbiterianos e ficou muito impressionado com a fé deles.
Assim, pode haver uma forma institucional de cristianismo
que às vezes repele as pessoas, ao passo que expressões au-
tênticas de fé podem ser bastante atraentes quando não-cris-
tãos se encontram com elas. Com esse pano de fundo, decidi
retornar ao surgimento do cristianismo e então avançar atra-
vés da história, destacando alguns dos episódios mais
perturbadores atribuídos à fé.

Por que o cristianismo se propagou


Há muito tempo os historiadores têm-se maravilhado - e
teorizado a respeito - com a incrível velocidade com que o
276 q EM DEFESA DA FÉ

cristianismo se difundiu em todo o império romano apesar de


brutais perseguições. Pedi que Woodbridge avaliasse os comen-
tários feitos por Patrick Glynn, um ateu que se tornou cristão:

Parte da razão da rápida difusão do cristianismo, como os


historiadores têm observado, foi simplesmente o fato de que
os primeiros cristãos eram pessoas formidáveis. A própria
bondade dos cristãos e a sua assistência aos pobres e opri-
midos atraiu novos adeptos. "Os cristãos impressionaram os
antigos com a sua caridade", como disse um historiador."

Woodbridge acenou com a cabeça, concordando.


- Sim, acho que a referência feita por Glynn à rápida difu-
são do cristianismo é correta - assentiu. - Tertuliano escre-
veu no final do segundo século: "Nós começamos apenas on-
tem e já enchemos as cidades, a ilha, seu palácio, senado e
fórum; somente lhes deixamos os seus templos". Assim, em
150 anos o cristianismo se difundiu de maneira muitíssimo
rápida. Uma explicação para o seu rápido crescimento, como
Glynn indicou, é o fato de que muitos cristãos não cuidavam
somente dos seus, mas dos seus vizinhos, dos pobres, das viú-
vas, dos aflitos, e eram essencialmente muito amorosos. De-
monstravam compaixão pelas crianças, que muitas vezes eram
tratadas de modo muito insensível ao nascer pelos romanos e
gregos, especialmente os bebês do sexo feminino. O estilo de
vida dos cristãos se harmonizava com os seus ensinamentos,
de sorte que muitos dos primeiros cristãos não tinham medo
de dizer: "Imitem-nos como nós imitamos a Cristo".
Após a explicação, Woodbrige acrescentou constrangido:
- Infelizmente, na evangelização contemporânea às vezes as
pessoas dizem: "Não olhem para nós, olhem para Cristo", por-
que estão preocupados com o que as pessoas vão encontrar se
a nossa vida for investigada. Isso não acontecia com muitos
dos primeiros cristãos - havia consistência entre as suas con-
vicções e o seu comportamento.

13God: lhe evidence, p. 157.


A história da igreja está repleta de opressão e violência P 277
Woodbridge apanhou um pedaço de papel.
- Nós também podemos entender melhor a razão pela qual
o cristianismo cresceu de maneira tão rápida se levarmos em
conta alguns antigos não-cristãos - disse para em seguida ler
em voz alta as observações de Luciano, um satírico grego e
crítico do cristianismo que viveu no século 11:

Essas criaturas mal-orientadas começam com a convicção


geral de que são imortais para sempre, o que explica o des-
prezo pela morte e a consagração voluntária, que são tão
comuns entre eles; também foi inculcado neles por seu le-
gislador original que são todos irmãos, desde o momento
em que se convertem e negam os deuses da Grécia, adoram
o sábio crucificado e vivem segundo as suas leis. Tudo isso
eles aceitam pela fé, tendo como resultado o desdém pelos
bens mundanos, considerando-os meramente como pro-
priedade comurn.':'

Luciano confirma que os cristãos tratavam-se como irmãos


e compartilhavam livremente entre si as suas posses. Acres-
cente-se outro importante fator: os cristãos acreditavam que
morrer é estar com Cristo. Justino Mártir diz na Primeira apo-
logia [2] : "Vós podeis matar-nos, mas não condenar-nos" .15
Quase todos nós pensamos que matar é um dano enorme, mas
do ponto de vista deles morrer não importava muito. Como
Paulo disse: "Para mim o viver é Cristo e o morrer é ganho". 16
Quando levamos em consideração a destemida dedicação dos
primeiros cristãos à sua fé, a disposição de dar testemunho da
verdade de Cristo por meio do próprio martírio, estilo de vida
humilde e compassivo, cuidado de uns para com os outros e
dos elementos desamparados, aflitos e marginalizados da co-
munidade, o compromisso com a oração e o poder concedido
14The works of Lucian of Samosata, Oxford: The Clarendan Press,
1949, vol. 4; p. 11-3.
15Justino de Roma: I e II apologias; Diálogo com Trifão, São Paulo: Paulus,
1995 (Patrística vaI. 3).
16Fili penses 1.21.
278 q EM DEFESA DA FÉ

pelo Espírito Santo, começamos a entender porque a fé se


difundiu tão celeremente.
- Em última análise - perguntei, - foi bom ou mau para o
cristianismo ser adotado como a religião oficial dos romanos?
- Por um lado, foi ótimo assistir ao fim das perseguições.
Isto foi uma coisa boa - disse Woodbridge sorrindo. - Mas à
medida que a igreja foi ficando estreitamente relacionada com
o Estado, começou a usar O estado como instrumento de per-
seguição, e isso se tornou algo muito ruim. Ademais, o munda-
nismo invadiu a igreja.
- Como assim? - indaguei.
- Correu o rumor de que Constantino teria prometido que,
se alguém se tornasse cristão, ganharia uma bela túnica e al-
gumas peças de ouro. Bem, esses não são motivos muito bons
para se tornar cristão. Permitiu que se abrisse amplamente a
porta para pessoas que podem ter professado a fé cristã, mas
que não abraçaram de fato a Jesus.
- Em outras palavras, cristãos nominais ao invés de se-
guidores autênticos de Jesus?
- Exatamente - redargüiu.
Estabelecidos os fundamentos sobre o cristianismo anti-
go, virei a página na minha lista de perguntas e comecei a
me concentrar nas cinco grandes manchas da história cris-
tã que mais me inquietaram quando eu era um cético - as
Cruzadas, a Inquisição, os julgamentos das feiticeiras de
Salem, a exploração praticada por missionários e o anti-
semitismo. Sem dúvida, tratava-se de uma arenga repulsi-
va e profana.

Pecado D. o 1: As Cruzadas
- Vamos em frente - propus a Woodbridge. - Os cruza-
dos cristãos durante dois séculos tentaram expulsar os mu-
çulmanos da Terra Santa.
Abri um livro de história e o folheei até achar a citação cor-
reta. - Um relato horripilante descreveu da seguinte maneira
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 279
a entrada dos cruzados em Jerusalém na Primeira Cruzada -
iniciei, lendo para Woodbridge a seguinte descrição de uma
testemunha ocular:

Alguns de nossos homens [... ] cortaram a cabeça dos seus


inimigos; outros os traspassaram com flechas, vendo-os ca-
írem das torres; outros os torturaram por mais tempo lan-
çando-os às chamas... Para encontrar o caminho, fazia-se
necessário desviar cuidadosamente dos corpos de homens
e cavalos. Mas esses fatos eram triviais comparados com o
que aconteceu no Templo de Salomão (onde) [...] os homens
cavalgaram com sangue pelos joelhos, chegando a atingir as
rédeas. Certamente foi um justo e esplêndido juízo de Deus
que esse lugar ficasse cheio do sangue dos incrédulos, uma
vez que sofrera tanto devido às suas blasfêmias."?

Batendo o livro ruidosamente e demonstrando repulsa, olhei


para Woodbridge e perguntei com voz carregada de sarcasmo:
- O senhor concorda que as Cruzadas foram "justas e es-
plêndidas?"
Woodbridge franziu os lábios.
- Esse tipo de carnificina é repugnante e abominável -
interveio e com firmeza. Isso aconteceu? Sim, aconteceu. É
algo doloroso de contemplar? Sim, é. Não vou tentar desculpar
ou racionalizar estes episódios. Entretanto, sua pergunta - se
as Cruzadas foram justas ou não - exige resposta dupla, e jul-
go que seria melhor expô-las em um contexto um pouco mais
amplo.
Recostei-me na poltrona.
- Continue - pedi.
- O papa Urbano 11 lançou a primeira cruzada em 1095,
quando pregou um sermão muito famoso e as multidões res-
ponderam exclamando "Deus quer que isto aconteça!" - co-
meçou Woodbridge. - As Cruzadas continuaram até a perda

I7Bruce L. SHELLEY, Church history in plain language, Dallas, Texas:


Word, 1995, 2. a edição atualizada, p. 189.
28 O q EM DEFESA DA FÉ

da última cidadela cristã na Terra Santa, em 1291, quando


uma cidade chamada Acre foi retomada pelos muçulmanos.
Jerusalém já havia voltado às mãos dos muçulmanos em 1187.
O papa convocou barões e outros indivíduos para marchar à
Terra Santa e recuperá-la dos muçulmanos que a ocupavam e
eram considerados inimigos de Cristo. Assim, se nos colocar-
mos no lugar dos antigos cruzados, podemos perceber que
eles achavam estar fazendo algo grandioso por Cristo. Porém,
quando se estuda os detalhes do que realmente aconteceu,
fica-se profundamente perturbado. De fato, na Quarta Cruza-
da, os participantes nem chegaram a ir à Terra Santa. Foram
até Constantinopla, tomaram-na e ali estabeleceram o seu rei-
no. Seguiu-se tremenda carnificina. "Cristãos" ocidentais ma-
taram cristãos orientais. Além da violência, outro grande pro-
blema foi a motivação de alguns participantes. Em 1215, o
papa Inocêncio IH chegou a instruir as pessoas a que, se parti-
cipassem das Cruzadas, poderiam com isto alcançar a salva-
ção. E se mandassem alguém para lutar no seu lugar, também
ganharia a salvação. Esse conselho foi uma evidente distorção
do verdadeiro cristianismo. Escarnece os ensinamentos da
Bíblia e de modo algum pode harmonizar-se com as convic-
ções cristãs históricas. As motivações dos cruzados se tornam
mais difíceis de avaliar depois que os muçulmanos retoma-
ram Jerusalém. As últimas Cruzadas envolveram cristãos que
foram para a Terra Santa na tentativa de salvar outros cris-
tãos em situação deses-peradora. De modo geral, no entanto,
é correto dizer que, apesar das intenções, a avareza e mortan-
dade gerais associadas às Cruzadas, criaram uma feia mancha
na reputação da fé cristã. E essa avaliação não parte apenas
de uma perspectiva liberal do século XXI. No início do sécu-
lo XIII, muitos cristãos diziam a mesma coisa. Uma das ra-
zões pelas quais o ideal das Cruzadas se desintegrou foram
as suas imensas distorções . Nos séculos posteriores, alguns
papas tentaram lançar cruzadas, mas não conseguiram obter
apoio político e popular. A grande discrepância entre o cris-
tianismo autêntico e os relatos das cruzadas contribuíram para
A história da igreja está repleta de opressão e violência P a81
essa perda de interesse ou entusiasmo por novas cruzadas.
Isso nos leva de volta à distinção entre as coisas feitas em nome
de Cristo e as que realmente representam os ensinamentos de
Jesus. Quando se tenta misturar os ensinamentos de Jesus
com a mortandade das Cruzadas - bem, não há como eles
possam ser harmonizados.
Perguntei:
- O que o senhor diria a um não-cristão cuja opinião é
que as Cruzadas simplesmente demonstram que os cristãos
querem oprimir os outros e são tão violentos como quaisquer
outras pessoas?
Woodbridge ponderou por instantes antes de responder.
- Eu diria que existe algo de verdade nessa afirmação no
que diz respeito às Cruzadas - explicou. - Existem pesso-
as que praticaram atos em nome de Cristo que jamais deveri-
am ter feito. Eu observaria que nem tudo o que é feito em
nome de Cristo deve realmente ser atribuído ao cristianis-
mo. Porém, tentaria não fugir da realidade de coisas terrí-
veis que ocorreram durante as Cruzadas. Precisam ser de-
nunciadas como algo totalmente contrário aos ensinamentos
daquele
,-
a quem os cruzados supostamente estavam seguin-
do. E importante lembrar que os ensinos de Jesus não são os
culpados; são as ações dos que, por quaisquer razões, afasta-
ram-se enormemente do que ele ensinou tão claramente: de-
vemos amar os nossos inimigos. A teoria da 'guerra justa'
deve interagir com este princípio. Ninguém falou com mais
franqueza contra a hipocrisia e a crueldade do que Jesus.
Conseqüentemente, se os críticos acreditam que certos as-
pectos das Cruzadas devem ser denunciados como hipócri-
tas e violentos - bem, eles teriam um aliado em Cristo. Es-
tariam concordando com ele.

Pecado D. o 2: A Inquisição
A Inquisição começou em 1163 quando o papa Alexandre l i
instruiu os bispos a buscar provas de heresia e a tomar medidas
282 q EM DEFESA DA FÉ

contra os hereges. O que se seguiu foi uma campanha de ter-


ror, procedimentos judiciais secretos, inquisidores investi-
dos da autoridade suprema e uma completa ausência do ne-
cessário processo legal, em que os acusados não sabiam o
nome dos seus acusadores, não havia advogados de defesa e
utilizava-se a tortura para obter confissões. Os que se recusa-
vam ao arrependimento eram entregues ao governo para se-
rem queimados na fogueira.
- O que desencadeou a Inquisição? - perguntei. - E, o
mais importante, como foi que cristãos autênticos puderam
participar de tamanhas atrocidades?
- As raízes da Inquisição remontam à profunda preocu-
pação do papado com o problema da heresia, especialmente
no sul da França entre os albigenses - explicou Woodbridge.
- Na verdade, não há dúvida que os albigenses eram propo-
nentes de ensinamentos e práticas heréticos. Os meios tradi-
cionais de persuasão - por exemplo, o envio de missionários
- não funcionaram. A Inquisição foi uma abordagem ou táti-
ca alternativa para tentar impedir a difusão dessa heresia. E
também havia a influência de fatores políticos - os france-
ses do norte estavam procurando uma desculpa para intervir
nas províncias do sul.
- Foi essa a primeira fase da Inquisição? - perguntei.
- Sim, foi - respondeu. - Basicamente, houve três on-
das de inquisições. Primeiro, a que acabei de mencionar. A
segunda começou em 1472, quando Isabel e Fernando ajuda-
ram a criar a Inquisição Espanhola, que também tinha por
trás a autoridade do papa.:" A terceira onda começou em 1542,
quando o papa Paulo 111 dispôs-se a caçar os protestantes, es-
pecialmente os calvinistas.

18"À medida que se aproximava o terceiro milênio, sacerdotes e frei-


ras espanhóis pediram perdão publicamente por 'aqueles obreiros reli-
giosos que trabalharam estreitamente com a Inquisição e os monges
que foram soldados'," V Catholic clerics apologize for past cruelties,
The Chicago Tribuno, 4/11/1999,
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 215 3
- Assim - emendei, - temos católicos que se denominam
cristãos perseguindo protestantes que se denominam cristãos.
- Isto mostra mais uma vez que não se pode realmente
falar em "uma igreja" - respondeu. - E as coisas ficam mais
complicadas porque as pessoas à época muitas vezes identi-
ficavam heresia com sedição política. Se uma pessoa fosse
considerada herege, também era considerada politicamente
rebelde. Por exemplo, no julgamento de Miguel de Serveto,
foi o Estado que finalmente o executou. Uma das acusações
foi que ele era um herege. Qual seria possivelmente o gran-
de temor do Estado? O de que ele também fosse politica-
mente rebelde. A religião e a política estavam estreitamente
unidas.
- Seria possível que alguns cristãos autênticos tenham sido
na verdade vítimas da Inquisição? Normalmente pensamos
em cristãos como os que perpetraram o terror e ficamos a ima-
ginar como é que cristãos verdadeiros podiam torturar alguém.
Porém, não poderia ocorrer que os cristãos verdadeiros fos-
sem realmente os que estavam sendo mortos?
- Sim, é muito possível - concordou. - Nós não conhe-
cemos a identidade de todos os que morreram, mas é prová-
vel que muitos deles sustentassem a fé verdadeira. Certamen-
te existem evidências de que a Igreja Católica perdeu o rumo
ao lançar essas inquisições. Por vezes os protestantes também
utilizaram táticas impróprias para suprimir as heresias.
- A Inquisição foi uma anomalia ou teria sido parte de um
modelo mais amplo de abuso e opressão por parte das igrejas
ao longo da história?
- Julgo que a Inquisição é uma tragédia da qual os cristãos
não podem escapar. Porém, não acho que seja representativa
da história das igrejas cristãs. É uma extrapolação muito gran-
de dizer que esse tipo de atividade odiosa é parte de uma pos-
tura. Na maior parte da sua existência, muitas igrejas cristãs
têm estado em posição minoritária e, portanto, sem condições
de perseguir alguém. Na verdade, por falar em perseguição,
milhões de cristãos têm sido vítimas de perseguições brutais
284 q EM DEFESA DA FÉ

ao longo do tempo, até o presente em alguns lugares. Aparen-


temente houve um maior número de mártires cristãos no sé-
culo xx do que em qualquer outro século. Até o dia de hoje,
cristãos estão sendo mortos em todo o mundo devido à fé. A
Inquisição é certamente uma exceção na história da igreja, e
não a regra.
As observações de Woodbridge me fizeram lembrar de uma
coluna de revista que dizia os cristãos estavam do lado de
quem sofre a perseguição, não do que a pratica. Embora a maior
parte das pessoas pense no cristão médio de hoje como um
morador dos Estados Unidos que vive longe de qualquer peri-
go para a sua fé, o jornalista David Neff restabeleceu a verda-
de dos fatos.
- O cristão típico - escreveu, - vive em um país em de-
senvolvimento, fala uma língua não-européia e está sob cons-
tante ameaça de perseguição - assassinato, encarceramento,
tortura ou estupro.!?

Pecado n. o 3: Os julgmnentos das feiticeiras de Solem


Os julgamentos das feiticeiras de Salem" no final do século
XVII são citados freqüentemente como um tipo de histeria cris-
tã. Ao todo, dezenove pessoas foram enforcadas e outra foi morta
por esmagamento por recusar-se a testemunhar. 20
- Não é esse um outro exemplo de como as convicções
cristãs podem resultar no pisoteamento dos direitos de outras
pessoas? - perguntei.
- Sim, é um exemplo - se de fato o cristianismo verda-
deiro está envolvido nesse episódio. Quando se desvendam
os episódios que levaram aos julgamentos, descobre-se que

"Cidade do Estado de Massachusetts, nas proximidades de Boston.


(N. do T.)
19David NEFF, Our extended, persecuted family, Christianity Today,
29/6/1996. p. 14.
2°Mark A. NOLL, A history of Christianity in the United States and
Canada, Grand Rapids: Eerdrnans, 1992, p. 51.
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 2135
existem muitos fatores que os precipitaram. Existem ques-
tões referentes a pessoas que tramaram para tomar terras de
outros; existem questões referentes a histeria; existem ques-
tões de crença em aparições astrais, pelas quais as pessoas
testemunhavam que alguém fez alguma coisa ainda que se
encontrasse em outro lugar. Quando se estuda o contexto le-
gal dos julgamentos, existem variáveis que levam a questões
não relacionadas com o cristianismo.
- O senhor está dizendo que as igrejas eram inocentes?
- Pode não ser uma total excusa da influência do cristia-
nismo nos julgamentos, contudo os historiadores que traba-
lham com questões dessa natureza sabem que não se deve
procurar uma única causa para explicar tais acontecimen-
tos. A vida é mais complexa do que simplesmente dizer que
"o cristianismo" foi o culpado. Embora houvesse julgamen-
tos de feiticeiras na Europa, isso foi uma aberração e não
parte de um modelo mais amplo nas colônias. É preciso ques-
tionar o equilíbrio psicológico de algumas das pessoas en-
volvidas nos julgamentos de feiticeiras e levar em conta os
relatos falsos de certos acontecimentos. De novo, temos de
enfatizar que os julgamentos das feiticeiras de Salem consti-
tuíram um terrível episódio. Não estou tentando minimizar
sua gravidade. Mas os historiadores reconhecem que o enre-
do é muito mais complexo do que simplesmente culpar as
. .
Igrejas.
- Uma das pressuposições da época era que existiam feiti-
ceiras - observei. - E quanto ao senhor? Acredita que exis-
tem feiticeiras?
- Sim - creio que elas existem - replicou. - Na realida-
de, há alguns anos estava assistindo à televisão francesa quan-
do Robert Mandrou, um historiador muito conceituado, opi-
nou que, quando as pessoas se tornam esclarecidas, não mais
acreditam em feiticeiras. Neste momento uma mulher telefo-
nou para dizer: "Sr. Mandrou, estou muito impressionada com
tudo o que o senhor disse, mas só quero lhe dizer que eu sou
uma feiticeira". Na realidade, a feitiçaria é praticada na França,
2:86 q EM DEFESA DA FÉ

nos Estados Unidos e em outros lugares. Quando se trata dos


julgamentos de Salem, parte do problema é a suposição que
tudo foi uma farsa, que não existem coisas como feiticeiras e
feitiçaria. A realidade é que elas existem; até mesmo não-cris-
tãos o reconhecem. Isso justificaria o que aconteceu em Salem?
Não, evidentemente não. Mas quando se analisam as comple-
xidades, não se pode simplesmente considerar a situação
como um exemplo de cristianismo desvairado. A vida - e a
história - não são tão simples assim.
- O que pôs fim aos julgamentos? - perguntei.
- Não se sabe ao certo - disse, - mas foi um cristão que
desempenhou o papel principal. Um líder puritano chamado
Increase Mather clamou vigorosamente contra o que estava
acontecendo e esse foi o princípio do fim. Ironicamente, foi
uma voz cristã que silenciou a loucura.

Pecado D .. o 4: Exploração por parte de missionários


Os missionários chegam sem ser convidados. Apesar das
nobres intenções, desconhecem o lugar em que para onde irão
e mostram-se indiferentes aos sentimentos e valores das pes-
soas que pretensamente querem ajudar. Intrometem-se em coi-
sas que não lhes dizem respeito. Pressupõem que a espiritua-
lidade tradicional dos nativos é deficiente e mesmo demoní-
aca. Subornam ou coagem as pessoas a abandonar os costu-
mes tradicionais, até que, no processo de tentar "salvar" as
pessoas, acabam por destruí-Ias;"
Li essa acusação para Woodbridge, perguntando-lhe:
- Ao longo da história, os missionários teriam contribuí-
do para a ruína das culturas autóctones? Não acabaram ex-
plorando as próprias pessoas que afirmavam querer ajudar?
Levando tudo em consideração, os missionários não causa-
ram mais mal do que bem?

21Dale & Sandy LARSEN, Sete mitos sobre o cristianismo, São Paulo:
Vida, 2000.
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 287
Essa questão falou de perto a Woodbridge, cuja família tem
uma longa tradição de serviço missionário. Porém, pareceu
não receber esse desafio em termos pessoais, respondendo com
o equilíbrio e imparcialidade característicos.
- Deixe-me começar com o exemplo da incursão espanhola
na América Latina, porque ilustra como essa questão pode se
tornar complicada - observou.
Acenei com a cabeça concordando, e ele continuou.
- Houve exploração e abuso da população nativa daquela
região? Sim, infelizmente houve. Mas teria sido conseqüên-
cia dos missionários? Bem, a história nos diz que o movimen-
to missionário muitas vezes esteve associado à política eco-
nômica das potências coloniais conhecida por mercantilismo.
- O senhor poderia definir isso?
- O mercantilismo era a crença de que o país que possuís-
se mais ouro seria o mais poderoso. Considerava-se que o equi-
líbrio do poder político na Europa era determinado em parte
pelo país que explorasse com êxito a América Latina e outras
regiões. Em conseqüência, motivações mercantilistas infeliz-
mente se mesclaram com certos empreendimentos missioná-
rios. Certamente é verdade que os espanhóis fizeram coisas
horríveis na América Latina, porém grande parte do que acon-
teceu foi instigado por aventureiros e indivíduos mercanti-
listas, ao passo que muitos missionários fizeram coisas lou-
váveis.
Woodbridge abriu um livro que estava por perto.
- Com efeito, o historiador Anthony Grafton, da Uni-
versidade de Princeton, fala sobre atos apreciáveis que os
missionários praticaram - ressaltou, passando a ler um
excerto do livro New worlds, ancient text [Novos mundos, texto
antigo]:

A Igreja Romana insistiu na condição de ser humano dos


índios e um grande número de missionários começou a
chegar - especialmente membros idealistas das ordens
mendicantes desejosos de levar Cristo a entes conside-
28 s q EM DEFESA DA FÉ

rados simples e honestos do Novo Mundo. Edificaram


igrejas e comunidades religiosas. 2 2

- Ora, Grafton não é evangélico - continuou Woodbridge,


- mas estudou cuidadosamente o movimento missionário e
reconhece o bem imenso produzido pelos missionários. In-
felizmente, os missionários como grupo são vistos como agen-
tes do mercantilismo e muitas vezes culpados por algumas
das coisas horríveis que os espanhóis cometeram na Améri-
ca Latina. - Como observei anteriormente, no século XVI de-
bateu-se na Espanha se o que estava acontecendo na Améri-
ca Latina era cristão. Houve grandes defensores dos índios
insistindo que eles não deviam ser explorados. A persona-
gem central, Bartolomeu de las Casas, foi impelido à sua ati-
tude reformadora após ler uma passagem do livro de Eclesi-
ástico em uma versão bíblica católica romana que diz o se-
guinte: 'O pão do necessitado é a sua vida. Quem o priva do
mesmo é um homem de sangue'v'" Ele e outros católicos
romanos se opuseram aos atos malévolos que ocorriam na
América Latina.
Os comentários me fizeram lembrar de ter visto há alguns
anos uma estátua defronte ao edifício das Nações Unidas, em
Nova York. Agora passei a entender os antecedentes: Francis-
co de Vitória, o fundador do direito internacional, tinha sido
um dos teólogos que haviam defendido a plena dignidade dos
índios do Novo Mundo os quais tinham protestado destemi-
damente junto à corte espanhola contra a sua exploração.
- Embora seja certamente verdade que por vezes a "civi-
lização cristã" tenha praticado atos apontados anteriormen-
te por você, também houve milhares de atos de caridade que

22Cambridge, Massachusetts: Belknap Press, 1992, p. 132.


23 Eclesiástico ou Sirácida não é considerado pelos protestantes Escri-

tura divinamente inspirada; todavia parte do cânon aceito pelos católi-


cos romanos e do ortodoxos orientais. Também é conhecido por "Sabe-
doria de Jesus, filho de Siraque", conforme o nome do autor, um estudi-
oso que aparentemente escreveu esse livro entre 195 e 171 a.C.
A história da igreja está repleta de opressão e violência »
289

honraram a Deus. A Igreja Católica teve uma notável histó-


ria de socorro aos necessitados durante a Idade Média. Na
Califórnia, suas missões ao longo do litoral deram assistên-
cia às pessoas. Quando se lêem os diários de muitos missio-
nários protestantes que foram para outras terras, é muito di-
fícil chegar à conclusão de que estavam conscientemente in-
teressados em oprimir ou destruir todos os aspectos das cul-
turas nativas.
Embora a resposta de Woodbridge fornecesse alguma cla-
reza para a questão, eu queria pressioná-lo a dar uma resposta
mais pessoal.
- Em sua família havia missionários - suscitei. - Qual
foi a experiência deles?
- Bem, li o diário do meu avô, que foi um dos primeiros
missionários protestantes na China. Certamente não tive a
impressão de que ele tenha agido conforme você mencio-
nou há pouco. Em vez disso, tinha o desejo ardente de que o
povo chinês viesse a conhecer a Cristo e se preocupava mui-
to com a pobreza daquele povo e com algumas de suas práti-
cas muito prejudiciais para a condição de ser humano dos
indivíduos. Respeitou certos aspectos da cultura e ocasio-
nalmente usava um rabo-de-cavalo (no estilo local) para ser
aceito. É preciso destacar que às vezes os críticos dos missi-
onários defendem um idealismo quase do tipo de Rousseau,
no sentido de que os povos nativos sempre foram felizes e
viveram perfeitamente, e que não havia nenhum espiritismo
demoníaco ou negativo em suas culturas. Porém, quando se
lê os relatos de pessoas que viajaram para certas regiões,
percebe-se que alguns desses povos nativos encontravam-se
em terríveis circunstâncias físicas e espirituais, e que os
missionários muito os ajudaram. Também li cartas escritas
por minha mãe, que, solteira, trabalhou como missionária
'"
na Africa. Embrenhava-se na selva com sua motocicleta, vi-
sitando vila após vila. Trabalhou em uma colônia de lepro-
sos, cuidando dos doentes. Pretendia mostrar-lhes o amor de
Cristo, servi-los e vê-los curados. Trabalhou mesmo correndo
29 O q EM DEFESA DA FÉ

grande risco pessoal devido à malária e outros perigos as-


sociados à vida na selva. Portanto pode ocorrer a transfor-
mação de uma cultura, mas com freqüência essa transfor-
mação produz algum bem. Quando os povos autóctones
se tornam cristãos, experimentam o amor e a alegria de Cris-
to. Isso é algo maravilhoso. Quando outras motivações se
insinuam na mente daqueles que buscam transformar uma
cultura, tais como a busca de lucro econômico ou um sen-
so distorcido de superioridade racial, é que ocorrem coisas
terríveis.
- Talvez - observei, - alguns críticos dos missionários não
vejam nenhum valor na mensagem cristã e, portanto, nenhum
benefício para as pessoas que se tornam seguidoras de Jesus.
- Correto! - exclamou. - Muitas vezes é essa a pressu-
posição subjacente. Porém, se uma pessoa tem consciência
que o evangelho é o poder de Deus para a salvação, então o
benefício auferido pelas diferentes culturas que ouvem o evan-
gelho é incalculável. Tenho um colega que é um importante
teólogo africano. Ele tem lutado contra certos textos que di-
zem ser o cristianismo urna ideologia imperialista ocidental
determinada a destruir as religiões africanas. Seu ponto de I

vista é bastante diferente. Percebe as maravilhosas contribui-


ções que o cristianismo deu às sociedades africanas. Tem tra-
zido esperança, tem trazido redenção, e incontáveis africanos
estão muito gratos pelo evangelho. Ao mesmo tempo, ele não
nega que às vezes os portadores da mensagem cristã não se
comportaram à altura dos ensinamentos de Cristo em seu re-
lacionamento com os africanos.

Pecado n, o 5: Anti-semitismo
Uma das manchas mais feias da história cristã tem sido o
anti-semitismo - uma circunstância certamente irônica, uma
vez que Jesus era judeu e afirmou ser o longamente esperado
Messias de Israel e do mundo. Os seus discípulos eram ju-
deus e foram judeus que escreveram todo o Novo Testamento,
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 2"91
à exceção de Atos e do terceiro evangelho, que foram escritos
pelo médico não judeu Lucas.
Em 1998, a Igreja Católica Romana pediu desculpas pe-
los "erros e falhas" de alguns católicos por não terem auxili-
ado os judeus durante o Holocausto, ao passo que o cardeal
Iohn O'Cormor, de Nova York, expressou "profunda triste-
za" devido ao anti-semitismo existente nas igrejas ao longo
dos anos, dizendo: "Nós queremos sinceramente iniciar uma
nova era. "24
Woodbridge admitiu de pronto que, lamentavelmente, o
anti-semitismo maculou a história cristã. A questão principal
é por que isso afinal aconteceu.
- Um dos fatores foi o seguinte: a maioria dos judeus
achava que Jesus não era o Messias. A recusa dos judeus em
aceitá-lo muitas vezes os transformava, na mente de alguns
cristãos, em inimigos de Cristo - afirmou. - Acrescente-se a
isso o fato de que os judeus eram considerados os responsá-
veis pela crucificação de Jesus e você terá dois poderosos com-
ponentes do anti-semitismo "cristão".
Não foi o suficiente para mim.
- Tem de haver algo mais do que isso - insisti.
- Sim, acredito que há - respondeu. - Heiko Oberman,
o conceituado historiador da Universidade do Arizona, tem
tentado identificar alguns outros fatores. Por exemplo, quan-
do se chega à Idade Média e à Reforma, havia um grande nú-
mero de falsos rumores acerca dos judeus que lançavam mais
lenha nas fogueiras anti-semitas.
- Que tipo de rumores?
- De que tinham se envolvido no envenenamento de po-
ços na época da Peste Negra de 1348, que profanavam os sacra-
mentos cristãos sempre que podiam, realizavam sacrifícios
humanos secretamente, adulteravam as Escrituras cristãs, e
assim por diante. Tenha em mente que essas acusações eram

24Cardinal's Yom Kippur letter seeks atonement for church anti-


sernitism, The Chicago Tribune, 21/9/1999.
292 q EM DEFESA DA FÉ

falsas. No entanto, alimentavam sentimentos de ira e res-


sentimento.
Parece que isso não satisfez Woodbridge. Olhou para o lado
como se estivesse buscando outra explicação e por fim vol-
tou-se para mim revelando uma irrefutável frustração.
- Parece-me que isso não resolve a questão adequadamente
- prosseguiu. - Seria de pensar - devo dizer, seria de se
esperar - que os cristãos da Idade Média até os dias de
Martinho Lutero tivessem percebido que os ensinamentos de
Jesus os proibiam totalmente de fazer e dizer algumas das coi-
sas que foram ditas e feitas em seu nome.
- O senhor mencionou Lutero - notei. - O anti-semitismo
dele está bem documentado. De onde se originou?
- Obviamente, Lutero conhecia alguns dos rumores que
circulavam a respeito dos judeus. Não obstante, no início da
sua vida aparentemente foi um filo-semita - alguém que ama-
va os judeus - e por causa desse amor esperava que haveria
uma conversão em massa em que abraçariam a Jesus como o
seu Messias. Como isto não aconteceu, à medida que Lutero
se tornou mais irritadiço, disse algumas coisas terríveis sobre
os judeus, com o correr dos anos.
A resposta me intrigou.
- Tinha a impressão que seu anti-semitismo foi um sen-
timento que durou toda a vida - insisti.
- Alguns estudiosos entendem que há uma continuidade
nas suas idéias acerca do povo judeu durante toda a vida, mas
eu argumentaria que as declarações de hostilidade mais vio-
lentas de Lutero surgem no final de sua existência. Talvez as
tenha expressado devido a uma profunda frustração pelo fato
de não terem seguido a Cristo. Algumas de suas afirmações
são tão horrendas que é inteiramente apropriado que os
luteranos as repudiem e que todos os cristãos as rejeitem to-
talmente. Os cristãos simplesmente não podem ser anti-
semitas. Isso seria impensável para qualquer seguidor de Je-
sus. Hoje, em contrapartida, os cristãos evangélicos muitas
vezes têm sido os maiores amigos de Israel. E a atitude geral
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 2"93
que percebo atualmente em muitas igrejas em relação ao povo
judeu é uma atitude de respeito.
- O que o senhor diria a um judeu que lhe confessasse
jamais poder levar em consideração o cristianismo devido à
sua história anti-semita?
Woodbridge acenou de leve com a cabeça.
- Já fui alvejado por essa pergunta antes - confirmou
com tristeza na voz. - Estava lecionando em uma univer-
sidade secular e uma jovem estudante judia me interpelou:
"Quero fazer um trabalho sobre Lutero. A minha avó me
disse que ele odiava os judeus. Isso é verdade?" Respondi:
"Provavelmente , mas vá em frente e faça o' trabalho". Vol-
tou com uma pesquisa que simplesmente me fez chorar.
Encontrou coisas que eu nem sabia que Lutero havia dito; é
realmente ruim.
- O que o senhor poderia dizer a alguém como ela?
- Que sinto muitíssimo pelo que Lutero pregou; essas coi-
sas são inteiramente incompatíveis com os ensinamentos de
Cristo e esse é um dos problemas que nós, cristãos, enfrenta-
mos - nem sempre vivemos à altura dos ideais de Jesus. E
acrescentaria: Compreendo que é difícil, mas espero que você
reflita sobre o que Jesus pregou e fez e examine o cristianismo
com base nos pontos positivos que realmente ensina.
Woodbridge tentou ser mais explícito, mas aparentemente
não encontrou nada de útil para acrescentar.
- Temo que isso não seja muito elegante - admitiu. ~_.- Mas
é o que eu diria de coração.
- Alguns judeus acreditam que Hitler era cristão... - co-
mecei, mas Woodbridge, ato contínuo, me interrompeu.
- Oh, sim, exatamente - disse. - De novo temos de fa-
zer a distinção entre cristianismo nominal e cristianismo au-
têntico. Durante a ascensão dos nazistas, Hitler tentou asso-
ciar-se ao cristianismo e a Martinho Lutero. Foi um inteli-
gente truque ideológico. Porém, críticos cristãos, como Karl
Barth e outros, não engoliram por um só momento que Hitler
representava o cristianismo ortodoxo. Deixe-me dar-lhe outra
294 q EM DEFESA DA FÉ

ilustração histórica. Em 1665 e 1666, muitos judeus passa-


ram a acreditar que um certo indivíduo era o Messias. Ele se
converteu ao islamismo, o que destruiu as aspirações de
muitos de seus admiradores. Agora, se indagasse a um his-
toriador judeu de hoje: "Você identifica esse homem como o
Messias?", objetaria: "Claro que não. Ele foi uma fraude". Bem,
de igual modo, nós cristãos diríamos que Hitler não foi ne-
nhum tipo de Messias cristão. As pessoas muitas vezes afir-
mam coisas que são falsas. Ele foi uma fraude, um indivíduo
maligno que nunca poderia ter sido um cristão autêntico,
muito menos um representante dos verdadeiros ensinamentos
cristãos.

Um retrato do cristianismo
Poderíamos continuar analisando outras manchas históricas
do cristianismo, incluindo a opressão às mulheres, que tem
ocorrido a despeito da atitude contracultural de Jesus com
relação a elas, e a maneira pela qual muitas pessoas do sul
dos Estados Unidos outrora citavam a Bíblia na tentativa
distorcida de justificar o racismo e a escravidão. Mas já passa-
ra bastante tempo interrogando Woodbridge. Sem tentar de-
fender o indefensável, procurou fornecer algum esclarecimen-
to e explicações. A fim de averigüar se tais episódios eram
exceções ou a regra do cristianismo, era hora de explorar o
outro lado da história cristã.
~ Levando em conta tudo o que analisamos - disse, -
qual é a conclusão? O mundo está em melhor ou pior situação
com o cristianismo?
Woodbridge endireitou-se na poltrona.
~ Em melhor situação - ponderou. - Não há dúvida
quanto a isso. Esses são exemplos históricos lamentáveis que
não devem ser varridos para baixo do tapete. Devemos nos
desculpar por eles e fazer um esforço para assegurar que não
voltem a ocorrer. Ao mesmo tempo, porém, a vasta amplitude
da história cristã tem sido muito benéfica para o mundo.
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 295
- Suponho que seja fácil, ao mencionar os pecados do cris-
tianismo, esquecer o papel do ateísmo no desrespeito aos direi-
tos humanos - observei. Peguei um livro e li para Woodbridge
alguns comentários feitos pelo destacado cristão Luis Palau:

o choque sísmico do ateísmo radical produziu ondas gigantes-


cas na Europa e em outros lugares, sendo diretamente respon-
sável pela aniquilação e massacre de mais de cem milhões de
pessoas somente no último século. A humanidade pagou um
altíssimo e horrível preço pelas terríveis experíêncías de
antiteísrno deliberado levadas a cabo por Lênin, Hitler, Stalin,
Mao Tse-Tung e outros - cada um deles profundamente influ-
enciado pelos textos dos apóstolos do ateísmo [...] Depois de
observar a proliferação do ateísmo [...] está mais claro do que
nunca que [...] sem Deus, estamos perdidos."

- Concordo que sem Deus estamos perdidos - atestou


Woodbridge. - Isso não significa dizer que um ateu jamais
poderia governar bem, porque, do ponto de vista cristão, o ateu
se beneficia da graça comum de Deus. Porém, em virtude da
falta de uma estrutura no ateísmo para se tomar decisões mo-
rais, é fácil ver por que o mundo tem experimentado os horro-
res desses regimes. Onde não existe um padrão moral absolu-
to, o poder puro e simples freqüente-mente prevalece.
- Na sua opinião, quais são as maneiras positivas pelas
quais o cristianismo tem contribuído para a civilização?
Woodbridge acomodou-se na poltrona. Repensou minha
pergunta por alguns momentos e em seguida respondeu com
uma voz cuja sinceridade, admiração e entusiasmo expressa-
ram o seu profundo amor pela igreja.
- Vejo a influência do cristianismo como um mural resplan-
decente composto de muitas cenas, cada qual pintada em cores
claras, brilhantes e belas - afirmou. - Sem o cristianismo,

25God is relevant, New York: Doubleday, 1997, p. 23, 82.


296 q EM DEFESA DA FÉ

haveria uma enorme quantidade de cinza e somente umas


poucas linhas espalhadas e desconectadas, aqui e acolá, ex-
primindo algum sentido. Porém, o cristianismo acrescenta
ao quadro tanto significado, quanto esperança, beleza e ri-
queza.
Intrigado com essas imagens, perguntei:
- O que essa pintura exporia?
- A cena central representaria a história de Jesus e a re-
denção dos nossos pecados. Ele tratou das questões da nossa
culpa, da nossa solidão e da nossa alienação de Deus. Por in-
termédio da sua expiação e ressurreição, abriu os céus para
todos que o seguem. Essa é a maior contribuição que o cristi-
anismo jamais poderia ter dado. Está sintetizada em João 3.16:
"Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho
unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas te-
nha a vida eterna." Além disso, o cristianismo nos fornece
uma revelação do sentido da vida e da existência da moralidade
universal. Sem essa revelação, é muito difícil ter qualquer
senso do que é significado. Acaba-se como Albert Camus, que
disse no parágrafo de abertura de O mito de Sísifo: "Por que eu
ou qualquer pessoa não deveria cometer suicídio?" Bem, o
cristianismo explica por que não. Ele nos dá um quadro de
referência para vivermos, para seguirmos um caminho moral,
para nos relacionarmos com Deus e com os outros de um modo
saudável e profundamente significativo. As pinceladas do
quadro representariam cenas reveladoras dos vastos impul-
sos humanitários que têm sido inspirados pela vida e
ensinamentos de Cristo. Católicos romanos, ortodoxos e pro-
testantes - todos têm se envolvido profundamente no socor-
ro aos pobres, excluídos, marginalizados. Eles se colocam à
disposição para trabalhar até contra os seus próprios interes-
ses pessoais a fim de servir a outrem. Perder tudo isto - toda
a obra missionária, todos os hospitais, os albergues para
desabrigados, os programas de reabilitação, os orfanatos, as
organizações assistenciais, os serviços altruístas que fornecem
alimento aos famintos, roupas aos pobres e encorajamento aos
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 297
enfermos - seria um golpe devastador para o mundo. Além
disso, o impacto do pensamento cristão acrescenta outras ce-
nas e proporciona contrastes, nuanças e profundidade à pin-
tura. Os cristãos têm consagrado seu cérebro a Deus, e as con-
tribuições literárias, musicais, arquitetônicas, científicas e
artísticas, se eliminadas, tornariam o mundo muito mais va-
zio e melancólico. Pense em todas as grandes instituições edu-
cacionais fundadas por cristãos, inclusive Harvard, Yale e
Princeton, que originalmente foram concebidas e edificadas
para promover o evangelho. Finalmente, existe o poder do
Espírito Santo, que dá cores positivas a tudo. Você pode ima-
ginar como seria o mundo se o Espírito Santo fosse retirado?
Quero dizer, pense em um espetáculo de horrores! Já é ruim o
bastante do jeito que as coisas são, mas se o poder refreador
do Espírito Santo não estivesse presente, o lado horrível da
vida viria
...
à tona de modo ainda mais vívido do que já ocorre.
- A medida que observa esse quadro da história - per-
guntei - julgaria o senhor que os aspectos positivos do cris-
tianismo suplantariam os exemplos negativos que discuti-
mos antes?
- Sim, julgo - disse sem hesitar. - Sinto uma dor no
coração devido aos acontecimentos da época que nós, como
cristãos, não vivemos de acordo com os ensinamentos de Je-
sus, criando barreiras à nossa fé. Do mesmo modo, sou grato
aos homens e mulheres anônimos que humilde e corajosa-
mente sustentaram a fé no decorrer dos séculos, serviram na
obscuridade, deram a sua vida para ajudar os outros, deixa-
ram o mundo um lugar muito melhor, e se esforçaram para
fazer o que é certo, a despeito da enorme pressão no sentido
de agir de maneira oposta. Quando penso na história cristã
- concluiu - são os primeiros que me vêm à mente. São os
heróis esquecidos de sempre.
Calou-se. Em seguida, com um sorriso sonhador, prestou-
lhes seu maior tributo:
- Eles são o que Jesus imaginou.
2-98 q EM DEFESA DA FÉ

As dádivas do cristianismo
As palavras apaixonadas de Woodbridge ainda ressoavam na
minha mente quando cheguei de volta em casa, exausto com
aquele longo dia. Deixei-me cair na poltrona favorita e apa-
nhei uma revista para folhear. Nela, por muita coincidência,
encontrei um artigo em que vários estudiosos, escrevendo nos
últimos dias do século xx, especulavam sobre onde estaria a
civilização sem o cristianismo. Suas observações retomaram
a discussão exatamente no ponto em que Woodbridge havia
parado.:"
Michael Novak exaltou a dádiva da dignidade existente
no cristianismo. "Tanto Platão como Aristóteles sustenta-
ram que a maior parte dos seres humanos é, por natureza,
servil e própria para a escravidão", escreveu. "A maioria
não tem a natureza digna da liberdade. Os gregos aplica-
vam o termo "dignidade" somente a uns poucos seres hu-
manos, e não a todos. Em contrapartida, o cristianismo in-
sistiu que cada ser humano é amado pelo Criador, foi feito
à imagem do Criador e está destinado a uma eterna amiza-
de e comunhão com ele."
Novak apontou as idéias civilizadoras de liberdade, cons-
ciência e verdade que podem ser atribuídas ao cristianismo.
"Sem os fundamentos cristãos a nós oferecidos na alta Idade
Média e novamente no século XVI, a nossa vida econômica e
política em seu conjunto não somente seria muito mais po-
bre", insistiu, "mas também muito mais brutal."
David N. Livingstone, professor da Escola de Geociências
da Queen's University, em Belfast, Irlanda do Norte, concen-
trou-se na dádiva cristã da ciência. "A idéia de que o cristia-
nismo e a ciência estão constantemente em conflito é uma gros-
seira distorção do testemunho histórico", escreveu. "Na ver-
dade, Robert Boyle, o grande químico inglês, acreditava que os

Where would civilization be without Christianity?, de Michael


26V.

Novak, David N. Livingstone & David Lyle Jeffrey, publicado em


Christianity Today, 6/12/1999, p. 50-9.
A história da igreja está repleta de opressão e violência P 2'99
cientistas, mais que quaisquer outros, glorificavam a Deus na
realização das suas tarefas porque lhes foi dado investigar a
criação de Deus."
Observou que os participantes da Reforma" acreditavam
que Deus se revelou à humanidade de duas maneiras - na
Escritura e na natureza. Isto possibilitou que os seres huma-
nos se empenhassem na investigação científica do mundo
natural." O resultado tem sido a enorme contribuição de cien-
tistas incentivados pela sua fé cristã.
David Lyle [effrey, professor de literatura inglesa na Uni-
versidade de Ottawa, descreveu a dádiva cristã da cultura li-
terária: "Não seria exagero.. dizer que a cultura literária da Eu-
ropa, de grande parte da Africa e das Américas é inseparável
do poder culturalmente transformador do cristianismo", . afir-
mou. "Na maior parte da Europa, assim como na Africa, na
América do Sul e em muitas outras partes do mundo, o
surgimento da cultura literária e da literatura coincide essen-
cialmente, não acidentalmente, com a chegada de missionári-
os cristãos."
Contudo, talvez a reflexão mais cativante de todas tenha
sido a do historiador Mark NoU sobre a dádiva cristã da hu-
mildade, contribuição pouco observada que teve relevância
especial à luz da minha entrevista com Woodbridge sobre o
lado desagradável da história cristã. N 011 escreveu:

No longo transcurso da história cristã, a coisa mais depri-


mente - porque repetida com muita freqüência - tem
sido o quanto nós, cristãos comuns, com tanta regularida-
de temos ficado tragicamente distantes dos ideais cristãos.
N o longo transcurso da história cristã, a coisa mais extraor-
dinária - porque é um tão grande milagre da graça - é a
freqüência com que os crentes têm agido contra a soberba da
vida para honrar a Cristo. De todos esses "sinais de contra-
dição", os mais plenamente semelhantes a Cristo têm sido
momentos em que cristãos que são fortes - devido a sua
riqueza, formação, poder político, cultura superior ou posi-
ção privilegiada - têm se voltado para os desprezados, os
300 q EM DEFESA DA FÉ

desamparados, os abandonados, os perdidos, os insignifi-


cantes ou os fracos.:"

"O poder", ensinou, "alimenta a idolatria do eu. Corrompe e


quase nunca pede desculpas". Noll passa a narrar vários episó-
dios da história em que pessoas poderosas, no todo ou em par-
te devido à fé cristã, voluntariamente se humilharam em arre-
pendimento público pelo abuso de poder - um testemunho
duradouro e contracultural acerca do poder do evangelho.
Uma história despertou o meu interesse de modo especial,
porque dizia respeito a um incidente obscuro, porém
esclarecedor, ocorrido na conclusão de um episódio que
Woodbridge e eu havíamos discutido: os julgamentos das fei-
ticeiras de Salem.
Um dos juízes, um destacado puritano chamado Sarriuel
Sewall, de Boston, ficou terrivelmente angustiado devido ao
papel desempenhado naquela tragédia. Sua consciência cris-
tã finalmente o impulsionou a agir quando ouviu Seu filho
recitar uma passagem bíblica familiar: "Se vocês soubessem o
que significam essas palavras: 'Desejo misericórdia, não sa-
crifícios', não teriam condenado inocentes". 28 Tais palavras
partiram o coração de Sewall.
Nos cultos do dia 14 de janeiro de 1697, deu ao seu pastor
uma declaração para ser lida ao mesmo tempo em que se pos-
tava contrito e envergonhado diante da congregação. A decla-
ração confessava a culpa de Sewall por grande parte do que
havia acontecido, dizendo que ele "desejava assumir a culpa e
a vergonha pelo ocorrido, pedindo o perdão dos homens e es-
pecialmente desejando orações para que Deus, que tem autori-
dade ilimitada, perdoasse aquele pecado e todos os outros pe-
cados". Seu ato humilde de tristeza e arrependimento levou
vários outros jurados a também confessarem suas faltas.
Fechei a revista e a joguei sobre a mesa do café. Este, pensei com
meus botões, talvez seja um dos legados mais impressionantes

27Ahistory of Christianity in the United States and Canada, p. 56.


28Mateus 12.7.
A história da igreja está repleta de opressão e violência 9 301
do cristianismo - a disposição dos poderosos de dobrar os
joelhos em arrependimento quando cometem injustiças. Foi
mais outro lembrete do poder da fé para mudar vidas - e a
história - para melhor.

Ponderações
Perguntas para reflexão ou estudo em grupo
~~,·~M~!.':Wit.,.~,~k
.. t. 0.0 1J..Wó.;.,,'! ..!:.l
•• "~'O B#.i:W:i*;i;!~''';!;!,i,mlll~1Hl;ij?U ~1t\lítmw~~~~~lt!'ij.t:<l,M:.mjJ;ij~~

1. Antes de ler este capítulo, que aspecto da história cristã


mais o incomodava? Se esse aspecto foi abordado por
Woodbridge, ele tratou bem da questão? Sua opinião so-
bre esse episódio continua a mesma ou é diferente agora?
2. Você acha que os pecados históricos discutidos por
Woodbridge são anomalias na história da igreja ou re-
fletem algo terrivelmente errado na própria essência da
fé? Que fatos o ajudaram a formar a sua opinião?
3. O mundo tem sido melhor devido ao cristianismo? Por
que sim ou por que não? Levando-se tudo em conside-
ração, as contribuições do ateísmo têm sido positivas
ou negativas para a humanidade?

Outras fontes de consulta


Mais recursos sobre esse tema

• KENNEDY, D. [ames e NEwcoMB, [erry What if Jesus had


never been born? Nashville: Nelson, 1994.
• NOLL, Mark A. A history ofChristianity in lhe United States
and Canudo. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1992.
• SHELLEY, Bruce L. Church history in plain language.
Dallas: Word, 1982, 1995, 2. a edição revista.
• STARK, Rodney. The rise oj Christianity. Princeton, New
Jersey: Princeton University Press, 1996.
Oi tava obj ação,
Eu ainda tenho dúvidas t

portanto não posso tornar-me cristão

Nos seus pensamentos mais íntimos, até mesmo os cris-


tãos mais devotos sabem que existe algo ilegítimo quanto
à crença. Debaixo da sua profissão de fé está o gigante
adormecido da dúvida [...] Na minha experiência, a
melhor maneira de vencer a dúvida é ceder a ela.
Dan Barker, pastor que se tornou ateu 1

Os que acham que crêem em Deus, porém sem paixão no


coração, sem aflição de mente, sem incerteza, sem dúvida
e até mesmo, às vezes, sem desespero, crêem somente na
idéia de Deus, e não no próprio Deus.
Madeleine L'Engle, cristã?

advogado tinha um palpite para mim - uma história de


interesse humano, informou. A história de um mem-
bro de gangue regenerado. A crônica inspiradora de um ex-
terrorista de rua que havia encontrado a religião e mudado
de vida. Será reconfortante, prometeu. Uma boa leitura para
o domingo.
Eu virei os olhos. A história parecia açucarada demais.
Estava em busca de algo agressivo, intenso, que me colocasse
na primeira página do Tribune do fim de semana. Não estava
interessado em um ingênuo conto de fadas sobre um excên-
trico fugitivo nascido de novo.

"Losing faith in faith, Madison, Wisconsin: Freedom from Religion


Foundation, 1992, p. 106, 109.
2Citado em Lynn ANDERSON, lf I really believe, why do I have these
doubts?, Minneapolis, Minnesota: Bethany House, 1992.
304 q EM DEFESA DA FÉ

Mas o fim de semana estava se aproximando rapidamente


e as pistas das histórias que estava seguindo não me haviam
levado a nada a não ser a becos sem saída. Anotei com relu-
tância o palpite do advogado. Quem sabe, pensei, talvez pos-
sa expor a história inverídica desse bandido e conseguir o tipo
de artigo que estava procurando.
Peguei o telefone e passei a chamar as minhas fontes na
polícia. Alguém já ouvira falar desse tal Ron Bronski? Real-
mente, meus contatos na unidade de crimes de gangues esta-
vam bem familiarizados com ele. Era um indivíduo endureci-
do pela vida nas ruas, o segundo na cadeia de comando dos
Belaires, uma gangue que aterrorizava parte da região noroes-
te de Chicago. Ele era perigoso e violento, disseram. Tinha
um temperamento explosivo, um grande apetite para drogas
ilícitas e uma ficha criminal enciclopédica.
- O sujeito é um sociopata, disse um investigador.
Outro rosnou quando mencionei o nome dele e demons-
trou o seu desprezo com uma única palavra: "Lixo". Disse-
ram-me que havia um mandado de prisão contra ele sob a
acusação de lesões corporais qualificadas, pelo fato de haver
atirado em um membro da gangue rival pelas costas. Rabis-
quei na minha caderneta a palavra covarde.
- Não vemos há bastante tempo - um policial à paisana
me contou. - Achamos que ele fugiu da cidade. A verdade é
que não nos importamos com o seu paradeiro, contanto que
não esteja por aqui.
Telefonei para alguns líderes eclesiásticos de Portland,
Oregon, onde o advogado me disse que Bronski havia residi-
do nos últimos anos. Quando trabalhava em uma metalúrgica,
conhecera alguns cristãos e supostamente tinha abandonado
a vida criminosa, casara-se com a namorada com quem vivia
e tornara-se um devoto seguidor de Jesus.
- Ron é uma das pessoas mais bonitas e amorosas que
conheço - , disse-me o seu pastor. - Ele está totalmente com-
prometido com Cristo. Nós oramos juntos várias vezes por
semana e está sempre fazendo algo como visitar os enfermos
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tornar-me cristão p 3 05
e orar com eles, e utilizar o seu conhecimento de rua para
pregar aos garotos problemáticos. Considero que as pessoas
poderiam chamá-lo 'um fanático por Jesus'.
Ele disse que Bronski havia se reconciliado com Deus, mas
não com a sociedade. - Bronski sabia que ainda havia um man-
dado de prisão contra ele - disse o pastor, - por isso economi-
zou dinheiro e pegou o trem para Chicago a fim de se entregar.
Isso despertou a minha curiosidade. Um reconhecimento
de culpa por lesões corporais qualificadas poderia resultar em
vinte anos de clusão. Decidi que meu próximo passo na pes-
quisa seria entrevistar Bronski tão logo seu advogado pudesse
providenciar um encontro.
Naquela noite estava sentado à mesa da cozinha, refletin-
do sobre as descrições conflitantes que a polícia e o pastor
haviam feito de Bronski.
- A" primeira vista, parece uma transformação miraculosa
- comentei com Leslie, que estava junto ao fogão preparando
o chá da noite.
- A" primeira vista? - surpreendeu-se.
- Sim - rebati. - Quando eu cavar mais fundo, desco-
brirei o golpe.
Leslie sentou-se na cadeira à minha frente e tomou um gole
de chá.
- A polícia não o estava procurando, mas ele se entregou de
qualquer maneira. O que o teria motivado a agir assim?
- E"" o que vou descobrir - afirmei. - Provavelmente está
fingindo que se regenerou a fim de receber uma sentença mais
branda. Ou seu advogado está tentando fazer algum tipo de
acordo com o promotor. Ou ele sabe que as testemunhas estão
todas mortas e não podem condená-lo de alguma maneira. Ou
espera receber alguma publicidade favorável para influenciar
o juiz. Ou está preparando uma defesa por insanidade...
Fui em frente, as minhas hipóteses ficando mais fantasiosas
à medida que especulava sobre a verdadeira razão pela qual
Bronski estava se entregando. Pesei cada possibilidade malu-
ca - exceto que a sua vida tinha mudado legitimamente e
306 q EM DEFESA DA FÉ

que havia decidido fazer a coisa certa ao se deparar com as


conseqüências do seu crime.
Por fim, Leslie levantou a mão.
- Alto lá - exclamou. - Essas teorias são bastante estra-
nhas - Depositou sua xícara na mesa e me olhou nos olhos. -
Diga-me uma coisa - pediu com um tom insistente na voz. -
Você está tentando encontrar furos na história dele porque re-
almente pensa que é um bandido? Ou você está levantando
objeções porque não quer que a história seja verdadeira?
Fiquei na defensiva.
- Espere aí - devolvi, - é minha função ser cético!
Mas ela havia tocado no ponto nevrálgico. Para ser hones-
to, eu não queria acreditar que o cristianismo podia transfor-
mar radicalmente o caráter e os valores de uma pessoa. Era
muito mais fácil levantar dúvidas e fabricar objeções que le-
var em conta a possibilidade de que Deus realmente pudesse
provocar uma mudança revolucionária em uma vida depra-
vada e degenerada como aquela.

Rompendo a corina de fumaça


Acontece que Ron Bronski sobreviveu às minhas tentativas
de distorcer a sua história. Com sua experiência de rua, os
detetives policiais estavam absolutamente convictos de que
as mudanças ocorridas na sua vida eram autênticas. O pro-
motor também. Depois de ouvir as provas, o juiz concordou
com eles e, em vez de condená-lo à reclusão, o colocou em
liberdade condicional. "Vá para casa e fique com sua famí-
lia", disse ele a um Bronski surpreso e agradecido.
Hoje, mais de vinte anos depois, Bronski ainda é um mi-
nistro junto aos jovens de rua na região central de Portland-
e continua meu amigo."

3Y: Reformed Hood comes back to pay his dues, de Lee Strobel, publi-
cado em The Chicago Tribune, 27/10/1977 e do mesmo autor, God's
outrageous claims, Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1997, p. 63-7.
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 307
A minha atitude inicial em relação a ele lembra as dúvidas
que havia levantado quando era um cético espiritual. Inicial-
mente, expressei objeções sinceras e conscientes quanto à fé
cristã. Porém, com o passar do tempo, depois que comecei a
encontrar respostas adequadas para essas questões, passei a
levantar outros desafios, cada vez mais secundários.
Certo dia lembrei-me do comentário de Leslie sobre Ron
Bronski e imaginei como ela poderia confrontar-me novamente
com palavras semelhantes: "Lee, você está tentando encon-
trar buracos no cristianismo porque realmente pensa que é
uma ilusão - ou você está levantando objeções porque não
quer que ele seja verdadeiro?"
Aquilo machucou. Quando era ateu, certamente tinha
muitas motivações para encontrar defeitos no cristianismo.
Sabia que meu estilo de vida beberrão, imoral e egocêntrico
teria de mudar se me tornasse um seguidor de Jesus, e não
estava certo de que queria abandonar essas coisas. Afinal, era
tudo o que eu conhecia. Conseqüentemente, em vez de tentar
encontrar a verdade, me vi tentado a afastar a verdade com
dúvidas fabricadas e objeções forjadas.
Não acho que estou sozinho nisto. Muitos que buscam a ver-
dade têm perguntas legítimas acerca do cristianismo e precisam
encontrar respostas que satisfarão o seu coração e a sua alma.
Todavia, acho que alguns aspirantes à verdade chegam ao ponto
em que, inconscientemente, levantam cortinas de fumaça para
disfarçar suas profundas motivações para rejeitar a fé.
O mesmo se pode dizer dos cristãos que se tornam presa de
dúvidas sobre suas convicções. Com freqüência, fazem
irromper um surto de dúvidas sinceras sobre algum aspecto
da sua fé; outras vezes, porém, as alegadas dúvidas da reali-
dade podem ser um sutil mecanismo de defesa. Podem achar
que estão presos à certa objeção a alguma parte do cristianis-
mo, quando na realidade estão apenas buscando uma descul-
pa - qualquer desculpa - para não levar Jesus mais a sério.
Para muitos cristãos, simplesmente ter dúvidas de qual-
quer tipo pode ser assustador. Ficam imaginando se os seus
3 0 8 O EM DEFESA DA FÉ

questionamentos os desqualificam a serem seguidores de Cris-


to. Eles se sentem inseguros porque não sabem se é permitido
mostrar incertezas a respeito de Deus, de Jesus ou da Bíblia.
Desse modo, guardam as perguntas para si mesmos - e no
seu íntimo, sem respostas, crescem, deterioram-se e se
avolumam até que finalmente acontece de asfixiar a fé.
"Não é vergonhoso que as pessoas tenham dúvidas", es-
creveu Os Guinness certa vez, "e sim que se envergonhem
delas."4
Muitos cristãos têm, ao mesmo tempo, uma perspectiva
corrrpletarnerrte diferente. Acreditarn que ter dúvidas não é
uma evidência de ausência de fé; ao contrário, eles as consi-
deram a própria essência da fé. "Lutar com Deus não é falta de
fé", disse André Resner. "É fé!"5
Teriam os que buscam a verdade de resolver cada uma
de suas dúvidas antes que possam seguir a Jesus? Uma pes-
soa pode ser cristã e não obstante ter reservas ou dúvidas?
O que as pessoas podem fazer se desejam acreditar em Cristo
- como Charles Templeton na nossa entrevista confessou
querer - mas sentem que certas reservas sobre o cristia-
nismo estão bloqueando o seu caminho? Haveria um pro-
cesso para dirimir essas dúvidas quando surgem? E existi-
ria esperança para aqueles cuja personalidade melancólica
parece atraí-los inexoravelmente para a incerteza em maté-
ria de fé?
Os estudiosos têm lutado por anos com essas questões,
mas não gostaria de conversar com algum professor cujo inte-
resse pelas dúvidas fosse apenas antisséptico e acadêmico. De-
sejaria receber respostas de alguém que tivesse conhecido
pessoalmente a confusão, a culpa e a frustrante ambigüidade
da incerteza - e isso me levou a Dallas para entrevistar um
41n two minds, Dowrrers Grove, Illinois: InterVarsity, 1976, p. 61.
sGrief and faith - three profiles of struggle in lhe face of Loss, Confe-
rências Anuais, Universidade Pepperdine, 19/4/1989, citado em Lynn
ANnERSON, If I really believe, why do 1 have these doubts?, p. 78 (grifos
do original).
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão 9 3 09
líder cristão cuja jornada de fé o levou repetidas vezes a per-
correr desvios angustiantes no vale da sombra da dúvida.

Oitava entrevista: Lynn Anderson, D. MIN.

Lynn Anderson trabalha em um aconchegante escritório


erigido em cima da garagem, colado à sua casa construída
em 1929, repleta de antigas máquinas de escrever, estranhos
telefones em forma de castiçal e outras antigüidades daque-
la época. Sua área de trabalho tem um aspecto rústico, com
obras de arte indianas e ocidentais nas paredes, estantes de
madeira do chão ao teto e uma fotografia da cabana em que
nasceu há 63 anos em Saskatchewan. Não havia eletricida-
de na fazenda em que ele cresceu, apenas um querido rádio
alimentado por baterias que mantinha a família ligada ao
mundo exterior.
Anderson tem um charme descontraído de vaqueiro que
dissimula o seu profundo intelecto e suas notáveis realiza-
ções. É titular de um diploma de mestrado da Escola Pós-
Graduada de Religião Harding e de um diploma de doutor
em ministério da Universidade Cristã de Abilene, onde é pro-
fessor adjunto há mais de duas décadas.· Foi pastor titular de
igrejas no Canadá e nos Estados Unidos durante 30 anos, dei-
xando o púlpito em 1996 para fundar os Ministérios Rede de
Esperança, através dos quais treina, supervisiona e equipa
líderes de igrejas.
Escreveu diversos livros, entre os quais Navigating the
winds of change [Navegando pelos ventos de mudança],
Heaven came down [O céu desceu], In search of wonder [Em
busca do encantamento], The shepherd's song [A canção do
pastor] e They smelllike sheep [Eles têm o odor de ovelhas].
No entanto, o livro que chamou a minha atenção de ma-
neira especial tem um título instigante: lf I really believe,
why do I have these doubts? [Se realmente creio, por que te-
nho essas dúvidas?]. Foi esse livro honesto e perspicaz que
310 q EM DEFESA DA FÉ

revelou as incessantes lutas pessoais de Anderson com as


incertezas.
Depois de conversarmos por algum tempo a fim de nos
conhecermos, Anderson e eu nos sentamos em cadeiras co-
muns junto a uma austera mesa de madeira, tendo por cima
um ventilador de teto que nos banhava suavemente com ar
refrescante. Anderson tem urna aparência agradável e ro-
busta, cabelos ruivos, compleição robusta e óculos com aros
dourados.
É efusivo quando fala, gesticulando por vezes para mani-
festar compreensão e ênfase. A sua voz, dotada de vigorosa
honestidade e sinceridade, diminui ocasionalmente para um
áspero sussurro, como se estivesse me confidenciando algum
segredo embaraçoso.
Minhas primeiras perguntas levaram Anderson de volta às
experiências de infância na região rural do oeste do Canadá,
enquanto eu buscava a gênese de suas incertezas crônicas.
Suspeitei que muitos dos que se vêem às voltas com dúvidas
poderiam identificar-se com a sua história.

As raízes da dúvida
Os pais de Anderson eram cristãos comprometidos que per-
tenciam a uma igreja pequena, porém coesa, localizada em
uma região onde havia poucos cristãos. Conta que herdou
sua identidade e senso de valor da família e da igreja, mas
mesmo assim as dúvidas acerca do cristianismo começa-
ram cedo.
- Ainda garoto, tinha uma personalidade triste e contem-
plativa - começou. - Refletia bastante. Estava sempre exa-
minando o lado complicado das coisas, não aceitando nada
de imediato, sempre questionando, sempre sondando um ní-
vel mais profundo. Nunca consegui desvencilhar-me totalmen-
te disso.
Eu sorri. Também tenho sido acusado muitas vezes de fa-
zer perguntas demais.
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 311
- Quando o senhor se tornou cristão? - indaguei.
- Fiz profissão de fé em um acampamento de verão quan-
do tinha onze anos, mas me senti espiritualmente mal de-
pois. Esperava-se que eu tivesse entregue minha vida a Jesus,
mas nem mesmo estava certo de que havia um Jesus. Eu me
senti induzido em erro.
- O senhor mencionou os seus sentimentos a alguém?
- Falei com um pastor, mas pareceu não me entender - ,
redargüiu. - Porém, evidentemente ainda orava por cer-
tas coisas. Lembro-me de orar muito para ganhar uma bici-
cleta e jamais ganhei. Isso me fez sentir como se Deus não
estivesse ligado a mim. Pensei: "Vamos ser honestos. Quan-
do a gente ora, não existe nada no alto a não ser o céu azul".
Perguntei se apenas tinha dúvidas ou se houve época em
que a fé floresceu.
- Às vezes realmente sentia a presença de Deus - con-
fiou-me. - Eu cavalgava da escola para casa sob uma tempes-
tade de neve, ao anoitecer, cantando hinos e me sentindo nas
mãos de Deus. Porém, na maior parte do tempo não acredita-
va nele - pelo menos não da maneira como os meus colegas
da igreja acreditavam.
- O senhor tinha medo de que eles pudessem descobrir?
- Com certeza, porque eu tinha uma imensa necessidade
de ser amado e aceito e conquistar uma posição naquela co-
munidade de fé. Tinha muito medo que achassem que eu era
mau; ficariam zangados, pensariam que os meus pais eram
fracassados espirituais. Temia que os meus pais ficassem de-
sapontados ou envergonhados.
É claro, os pais podem desempenhar um papel significati-
vo na formação da idéia que a criança tem de Deus. Na reali-
dade, um estudo mostrou que a maioria dos ateus mais famo-
sos da história - entre eles Bertrand Russell, Jean Paul Sartre,
Friedrich Nietzsche, Albert Camus, Sigmund Freud, Madalyn
Murray O'Hair e Karl Marx - tiveram um relacionamento di-
fícil com o pai ou o pai morreu cedo ou os abandonou em
tenra idade, criando dificuldades para que eles acreditassem
312 q EM DEFESA DA FÉ

em um Pai Celestial. 6 Assim, decidi investigar essa área jun-


to a Anderson.
- Conte-me algo sobre seus pais - hesitei, esperando não
estar entrando em uma questão muito pessoal.
Anderson tirou os óculos e os colocou sobre a Bíblia aber-
ta à sua frente.
- Em retrospecto - relembrou, - acho que algumas das
minhas dúvidas podem ter resultado da maneira como fui cri-
ado pela minha mãe. Ela me amava mais que a própria vida,
mas não possuía recursos emocionais para demonstrar. O seu
jeito de me fazer melhorar era mostrar o que tinha feito de
errado. Ela aprendeu que as mães não devem demonstrar afe-
to físico pelos filhos homens porque isso pode torná-los ho-
mossexuais, e que não se deve fazer elogios porque isso pode
torná-los presunçosos.
- Isso afetou a sua idéia de Deus?
- Como você sabe, as pessoas comumente vêem Deus
como a imagem de um dos pais. E com boas razões - a Bí-
blia o chama de pai e às vezes até mesmo de mãe. Assim,
uma parte da distância que sentia de Deus pode ter sido a
distância que sentia da minha mãe. Por outro lado, o meu
pai era um homem extrovertido, afetuoso e incentivador, mas
acho que existe algo em nossa natureza pecaminosa que ouve
primeiramente as más notícias em vez de as boas.
- Qual foi a mensagem cristã básica que o senhor recebeu
nos seus primeiros anos? - perguntei.
- Foi: "Se você não satisfizer esse padrão, estará perdido
- mas ninguém pode satisfazer esse padrão, especialmente
você". Por conseguinte, quanto mais perto eu chegava de Deus
- quando começava a crer e a pensar seriamente em ter uma
ligação com ele - mais desanimado me sentia por não poder
satisfazer as suas expectativas. Então pensava: 'Isso é doen-
tio! Por que iria acreditar em algo que vai me condenar não

6\7. The psychology of atheism, 1RUIH: de Paul C. Vitz, publicado em An


Intemational Interdisciplinary ]ournal of Christian Thought I (1958), p. 29.
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão 9 313
importa o que faça? Com certeza, se existe um Deus, ele não
pode ser assim. Algum monstro inventou isso.
- O senhor achava que iria superar isso?
- Esperava que isto fizesse parte da meninice. Porém, na
faculdade, as dúvidas passaram da área emocional para a área
intelectual. Defrontei-me com perguntas a respeito da Bíblia e
ficava imaginando por que existe tanto sofrimento no mundo.
Ele sorriu enquanto lembrava a história.
- Recordo-me que certo dia um estudante levantou um
monumental dilema bíblico. O professor não conseguiu res-
ponder. Por fim, depois de gaguejar seguidamente, o profes-
sor afirmou: "Quando todos os fatos forem conhecidos, vere-
mos que eles sustentam a credibilidade da Bíblia".
Anderson soltou uma risada.
- Lembro-me de ter pensado: "Oh, não! Esse sujeito tam-
bém está esperando que seja verdade! Se você cavocar debai-
xo da superfície, verá que ele está tão assustado quanto eu!"

Espécies de dúvida
Anderson já se descreveu como um "questionador nato" ou
alguém que está sempre perguntando: "Que tal se?" Como
advogados e contadores que são treinados para identificar o
que poderia dar errado, os questionadores natos são atraídos
como ímãs para incertezas e indagações. Podem estar ansio-
sos e preocupados ou portar uma personalidade tristonha. Para
eles, a fé não acorre naturalmente.
Mas esta é só uma espécie de dúvida. Pedi a Anderson para
me dar exemplos de outros tipos.
Recostou-se na cadeira, inclinando-a levemente para trás,
balançando-a suavemente para cá e para lá.
- Oh, existem muitos tipos diferentes - agregou. - Al-
guns céticos são rebeldes, muito embora possam não conside-
rar-se assim. Exibem aquela atitude: "Eu não vou deixar que
alguém dirija a minha vida ou pense por mim". Isso pode as-
sumir a forma de um orgulho arrogante. Às vezes, um jovem
314 q EM DEFESA DA FÉ~

quer rebelar-se contra os pais e um meio de fazê-lo é rebe-


lar-se contra o Deus em que acreditam. Depois, existem pes-
soas cujas dúvidas derivam do seu desapontamento com
Deus. Como a menina que visitei ontem. Deus diz: "Busquem
e peçam", mas ela pediu e não recebeu. Daí passou a travar
luta com a incerteza. Deus estava falando sério? Será que ele
estava ali? Outros têm feridas pessoais ou familiares. Falei
há poucas semanas com uma senhora que sofreu maus tra-
tos dos seus pais que eram profundamente religiosos - fazi-
am-na ajoelhar-se ao lado da cama e orar, e depois a agredi-
am. Entendo perfeitamente por quê tem um problema com
Deus! Outros ficaram pessoalmente magoados no sentido de
serem rejeitados por um companheiro ou o seu negócio teve
problemas ou a saúde se deteriorou. Ficam imaginando: "Se
Deus existe, por que isso está acontecendo?" Depois existem
as dúvidas intelectuais. Esse era o meu problema. Estava fa-
zendo o máximo para sustentar a minha fé intelectualmen-
te, mas havia pessoas muito mais inteligentes que não acre-
ditavam em Deus. Raciocinei: "A fé é somente para os seres
brilhantes? Como a fé pode ser tão importante para Deus e,
no entanto, é necessário ter um QI de 197 para agarrar-se a
ela?"
Fiquei imaginando se existem alguns fatores que podem
potencializar as dúvidas nas pessoas. Perguntei a Anderson:
- Que coisas contribuem para as dúvidas, ainda que a pes-
soa não esteja consciente delas?
- As diferentes épocas da vida podem fazer uma grande di-
ferença - respondeu. - Às vezes as pessoas são grandes cren-
tes quando estão na faculdade, mas quando tornam-se pais jo-
vens com o seu segundo bebê, trabalham 68 horas por semana, a
esposa está doente o tempo todo e o patrão não dá folga - sim-
plesmente não têm tempo para refletir. E não creio que a fé possa
se desenvolver sem algum lapso contemplativo. Se eles não abri-
rem espaço para isso, a fé deles não irá crescer e as dúvidas vão
se insinuar. Outro possível fator é estabelecer comparações com
a fé dos outros. Eu conheci uma jovem que disse: "Eu odeio ir à
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 315
igreja porque ouço todas essas afirmações que não estou
vivenciando. Eu creio, estudo a Bíblia, oro, trabalho com tanta
intensidade no ministério como qualquer um deles, mas não te-
nho essa alegria, não tenho respostas para as minhas orações,
não tenho uma grande sensação de paz, não sinto que estou nas
mãos de um Deus que está me guiando pelo caminho e vai cui-
dar de mim". Pessoas como essa começam a pensar: "O que há
de errado com Deus que ele não me concede essas coisas?"
Fiquei curioso em saber como Anderson tratou da situação
dela.
- O que o senhor lhe disse? - perguntei.
- Eu a incentivei a ler os salmos, porque isso alterar a
sua perspectiva de como é uma fé normal. Nós gostamos de
nos concentrar nos salmos otimistas, mas 60% deles consti-
tuem-se em lamentos quando as pessoas bradam: "Deus, onde
você está?" Normalmente a fé permite bater no peito de Deus
.
e se queixar.
- Existe muito medo de assumir compromissos em nossa
cultura - observei. - Isso afetaria a disposição da pessoa de
ter fé em Deus?
- Sim, pode afetar - retrucou. - Neste país narcisista,
nossa definição de liberdade é liberdade para conseguir o que
eu quero e manter abertas as minhas opções. Alguns jovens
têm medo de se casar porque é um compromisso para toda a
vida. Bem, o compromisso supremo é com Deus. Nós temos
uma cultura hedonista em que a condenação mais temida se-
ria passar a vida sem opções. Creio que isso contribui para
que as pessoas tenham medo de se comprometer com Cristo.

o que a fé não é
Sabia que idéias errôneas a respeito da fé com freqüência
abrem portas para as dúvidas, porque podem criar falsas
expectativas ou incompreensões sobre a natureza de Deus.
Por exemplo, se as pessoas pensarem equivocadamente que
Deus prometeu curar a todos ou tornar todos ricos se apenas
316 q EM DEFESA DA FÉ

demonstrarem suficiente fé, poderão tornar-se presa de dú-


vidas quando a enfermidade chegar ou a ruína financeira sur-
gir no horizonte. A fim de ter uma idéia correta da fé, decidi
primeiramente limpar o terreno definindo o que a fé não é.
- Quais são alguns dos equívocos mais comuns a respeito
da fé? - perguntei.
- As pessoas misturam fé e sentimentos - Anderson res-
pondeu. - Por exemplo, algumas pessoas associam a fé com
uma perene empolgação religiosa. Quando essa empolgação
diminui, como inevitavelmente acontece, começam a duvi-
dar se realmente têm fé.
Interrompi.
- O senhor está dizendo que não há ligação entre senti-
mentos e fé?
- Não - exclamou. - Os sentimentos estão ligados a al-
gumas dimensões da fé, mas grande parte disso diz respeito
ao temperamento das pessoas. Alguns indivíduos simplesmen-
te não têm estrutura para alimentar sentimentos, embora pos-
sam ter sólidos valores e convicções.
- Qual é o seu caso? - perguntei.
Ele riu.
- Tenho tendência de oscilar emocionalmente. Levou anos
para eu entender que isso não é uma flutuação da fé. Portanto,
temos de ser cuidadosos quanto aos nossos sentimentos - eles
podem ser mutáveis. Deixe-me dar um exemplo. Um sujeito
me disse certa vez: "Eu não gosto mais da minha esposa". A
minha resposta foi dizer-lhe: "Vá para casa e a ame". Retrucou:
"O senhor não entende, eu não sinto mais nada por ela". Insis-
ti: "Eu não estou lhe perguntando como você se sente. Estou
dizendo: "Vá para casa e a ame". Ele então explicou: "Seria
emocionalmente desonesto se tratasse a minha esposa dessa
maneira se não sinto amor." Indaguei: '~sua mãe o ama?" Isso
lhe pareceu um insulto. No entanto respondeu: "Sim, claro".
Voltei à carga: "Cerca de três semanas depois que ela o trouxe
da maternidade, você estava berrando, as fraldas sujas, e ela
teve de levantar-se morrendo de cansada e pisar descalça no
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 317
chão frio, limpar suas horríveis fraldas e lhe dar a mamadeira
- você acredita que ela realmente achou isso o máximo?" Con-
sentiu: "Não". Por fim, acrescentei: "Bem, então acho que a sua
mãe estava sendo emocionalmente desonesta." Era isso o que
eu queria mostrar: a prova do seu amor não estava no fato de
que se sentia bem em trocar as fraldas, mas no fato de que
estava disposta a fazê-lo mesmo quando não se sentia parti-
cularmente feliz com isso. Acho que precisamos aprender o
mesmo com relação à fé. A fé nem sempre implica ter senti-
mentos positivos quanto a Deus ou a vida.
- Está bem, esse é um equívoco - assenti. - O que dizer
da idéia de que a fé é a ausência de dúvidas?
- Algumas pessoas acham que a fé significa a ausência
de dúvidas, mas isso não é verdade - observou. - Um de
meus textos bíblicos prediletos é sobre o homem que vai a
Jesus com o seu filho possuído pelo demônio, esperando que
o menino seja curado. Jesus diz que tudo é possível para aque-
les que acreditam. E a resposta do homem é tão poderosa! Ele
diz: "Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidadcl'"
Anderson deu um tapa no joelho.
- Caramba! - exclamou. - Eu realmente me identifico
com isso!
- Quer dizer que a dúvida e a fé podem coexistir? - per-
guntei.
- Sim, significa que você pode ter dúvidas mesmo quando
acredita. Isso aconteceu até mesmo com Abraão. Ele certamen-
te acreditava, mas ao mesmo tempo carregava dúvidas. Você
pode atestar a partir do que fez e do que disse. Agora, eu não sei
onde se atravessa a fronteira para a dúvida corrosiva,
desagregadora, negativa, mas creio que onde não existe absolu-
tamente nenhuma dúvida provavelmente não existe uma fé
saudável.
- Portanto, na verdade, a dúvida, poderia desempenhar
um papel positivo?

7V. Marcos 9.14-27.


318 q EM DEFESA DA FÉ

- Acho que sim. Sempre fico um pouco nervoso com o


que chamo a mentalidade do "crente verdadeiro" - pesso-
as com sorrisos radiantes e olhos cintilantes que nunca têm
dúvida, sempre acham que tudo é maravilhoso, tudo é óti-
mo. Não creio que circulem no mesmo mundo que eu. Temo
o que irá lhes acontecer quando ocorrer alguma coisa ruim.
Por exemplo, conheço um médico cujo filho de quatro anos
foi acometido de câncer. Lembro-me das muitas noites em
que quarenta ou cinqüenta pessoas se acotovelavam em uma
casa para orar fervorosamente por aquela criança. Algumas
delas pensaram: 'É claro que ele vai ser curado porque nós
oramos". Corno isto não aconteceu, ficaram arrasadas. A
teologia dessas pessoas era equivocada e não-refletida.
Nunca havia sido desafiada por dúvidas ou questões séri-
as. As dúvidas poderiam tê-las ajudado a desenvolver uma
fé mais substancial e realista - a confiar em Deus em face
da morte e não apenas em face da cura. Os olhos de
Anderson se fixaram em mim como que para dar ênfase às
palavras seguintes.
- Veja - acentuou, - a fé que é desafiada pela adversida-
de, por perguntas difíceis ou pela contemplação, o mais das
vezes será, afinal de contas, mais consolidada.

Investigando sob a superfíce


Reconhecidamente as dúvidas, às vezes, têm um propósito
positivo. Porém, aprendi no correr dos anos que pode ser
enganoso aceitar todas as dúvidas pelo que aparentam ser.
Como a minha primeira reação à história de Ron Bronski,
certas vezes o ceticismo pode ser usado sutilmente corno um
escudo para manter as pessoas afastadas de motivações mais
profundas. Eu não queria invalidar a legitimidade das pes-
soas que buscam respostas para os seus obstáculos sinceros
em relação a Deus, mas precisava chegar à raiz do por que
alguns indivíduos levantam certas questões que não passam
de cortinas de fumaça.
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 319
- Pela sua experiência - suscitei a Anderson, - teriam
algumas pessoas afirmado apresentar objeções intelectuais em-
bora as suas dúvidas tenham uma outra fonte oculta?
- Sim, certamente isso é verdade - disse meneando a
cabeça e recolocando firmemente no chão as pernas diantei-
ras da cadeira. - Na realidade, entendo pessoalmente que
toda incredulidade em última análise tem alguma razão ocul-
ta. Às vezes uma pessoa pode crer honestamente que o seu
problema é intelectual, mas de fato não se examinou o sufici-
ente para explorar outras possibilidades.
- O senhor pode me dar um exemplo? - insisti.
Em um segundo encontrou o primeiro.
- Quando eu era jovem, um brilhante romancista- um
ateu de família atéia e comunista - foi à nossa pequena cida-
de no Canadá para conferir cor local ao livro que estava escre-
vendo. Certo dia ele estava visitando a nossa família e se pôs
bastante sério. Indagou: "Posso fazer algumas perguntas so-
bre a sua religião?". Embora viesse enfrentando dúvidas de tem-
pos em tempos, disse que sim. Ele perguntou: "Você realmente
acredita que existe um Deus que saiba o meu nome?". Rebati:
"Sim, creio nisso". Voltou à carga: "Você acredita que a Bíblia
é verdadeira? Bebês que nascem de virgens, gente morta que
sai do cemitério?". Tornei a afirmar: "Sim, creio nisso". Ex-
clamou então com grande emoção: "Eu daria qualquer coisa
para acreditar dessa maneira, porque viajei por todo o mun-
do e vi que a maioria das pessoas são infelizes. As únicas
pessoas que realmente parecem estar usufruindo a vida são
aquelas que dizem crer no que você crê. Mas eu simplesmen-
te não consigo crer, porque a minha cabeça não deixa!".
Os olhos de Anderson se arregalaram.
- Lee, fiquei estupefato. Eu não sabia o que dizer, porque
a cabeça dele era muito mais inteligente que a minha!
Anderson inclinou-se para perto de mim.
- Porém, em retrospecto, não acho que o verdadeiro pro-
blema era a cabeça dele - opinou. - Comecei a pensar no
que ele iria perder se seguisse a Jesus. Era membro de uma
320 q EM DEFESA DA FÉ

liga de escritores brilhantes que achavam a religião uma com-


pleta bobagem. Na verdade acredito que o seu orgulho profis-
sional e a rejeição dos seus pares teria sido um preço grande
demais para ele pagar.
Ele deixou a história calar.
- Deixe-me dar-lhe outro exemplo - propôs. - Certa vez
eu estava falando com um ex-fuzileiro naval, que me contou:
"Estou infeliz. Tenho esposa e filhos, ganho mais dinheiro do
que posso gastar com as duas mãos, estou dormindo com to-
das as mulheres da cidade - e me odeio. Você precisa me
ajudar, mas não me venha com aquela conversa sobre Deus
porque eu não acredito nisso." Falamos por horas. Finalmen-
te, argumentei: "Talvez você ache que está sendo honesto co-
migo, mas eu não tenho essa certeza. Não creio que o seu pro-
blema seja que você não consegue acreditar; creio que o fato
é que você não quer acreditar, porque tem medo de abando-
nar as coisas que o ajudam a varar a noite". Pensou por um
momento e disparou: "Sim, acho que é verdade. Não consigo
me imaginar dormindo só com uma mulher. Não consigo me
imaginar tendo menos dinheiro do que ganho - o que eu teria
de fazer, porque tenho de mentir para consegui-lo". Finalmen-
te ele estava tentando ser honesto.
A voz de Anderson baixou para um sussurro um pouco mais
forte. - Eis o que quero mostrar - ressaltou. - Esse homem
poderia argumentar por horas e horas sobre suas dúvidas inte-
lectuais. Ele iria convencer as pessoas que não podia crer por-
que tinha objeções intelectuais em demasia. Mas eram somen-
te uma cortina de fumaça, apenas um nevoeiro que usava para
obscurecer as suas verdadeiras hesitações a respeito de Deus.
Anderson se recostou na cadeira.
- Falei com uma outra moça que havia sofrido abuso
sexual - continuou. - Seus pais lhe haviam feito a repre-
sentação de Deus sob a ótica de suas convicções religiosas,
de diversas maneiras, todas elas horríveis. Não a culpo por
ter dificuldade em crer. Mas os argumentos dela pairavam
sempre na esfera intelectual. Quando se tentava ir mais
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 321
fundo para chegar aos verdadeiros obstáculos, ela não que-
ria passar pela dor de enfrentá-los. Usava as dúvidas inte-
lectuais para afastar as pessoas.
- Certa ocasião falei a respeito de Deus com um sujeito
do noroeste, na costa do Pacífico. Levantou toda espécie de
questões intelectuais. Porém, quando chegamos mais fundo,
verificou-se que não queria acreditar em Deus porque não
estava disposto a vender o seu bar em que mulheres seminu-
as se apresentavam. O lucro era excelente e ele estava se di-
vertindo muito.
- A minha experiência é a seguinte - resumiu Anderson. -
Quando se cavoca embaixo da superfície, ou existe a vontade de
crer ou existe a vontade de não crer. Esse é o âmago da questão.
Cofiei o queixo enquanto pensava.
- O senhor está dizendo enfim que a fé é uma escolha -
observei.
Anderson acenou com a cabeça, concordando.
- Exatamente - respondeu. - É uma escolha.

A decisão de crer
Quando pedi que Anderson falasse mais sobre o papel da fé e
da vontade, ele imediatamente trouxe à tona, à guisa de ilus-
tração, o personagem do Antigo Testamento, Abraão.
- Ele foi chamado o "pai da fé" - lembrou Anderson, -
mas isso não significa que nunca teve dúvida, que sempre fez a
coisa certa, que os seus motivos sempre foram puros. Abraão
falhou nesses três aspectos. Mas ouça - Abraão nunca aban-
donou a sua vontade de seguir a Deus. Dizia: "Eu vou confiar
nele - não faria o rei de toda a terra o que é certo7". Ele não
desistiu de Deus. Uma definição de fé é a vontade de crer. É a
decisão de seguir a melhor luz que se tem a respeito de Deus e
não desistir. A idéia da escolha percorre toda a Escritura. Ob-
serve [osué, Ele diz que você deve escolher hoje a quem irá
servir, mas que ele e a sua casa servirão ao Senhor. Assim, a fé,
na sua raiz mais profunda, é uma decisão da vontade.
322 q EM DEFESA DA FÉ

Levantei a mão para interrompê-lo.


- Não haveria também um sentido em que a fé é dom de
Deus? - perguntei.
- Sim - admitiu, - e isto levanta um grande mistério
sobre eleição e livre-arbítrio. No entanto vejo essa questão
como a direção hidráulica de um carro. É muito difícil movi-
mentar as rodas do carro sem ela. Mas você pode fornecer o
impulso com apenas um dedo e a direção hidráulica lhe per-
mitirá girar facilmente o volante. Da mesma maneira, a nossa
vontade é que determina que coloquemos nossa confiança em
Cristo, e Deus nos habilitará.
Anderson se inclinou para pegar os óculos pousados sobre
a Bíblia. Colocou-os e passou a folhear as finas páginas do
livro até que chegou ao evangelho de João.
- Ouça João 7.17 - advertiu, limpando a garganta. - Jesus
diz: "Se alguém decidir fazer a vontade de Deus, descobrirá se
o meu ensinamento vem de Deus ou se falo por mim mesmo".
Assim, de algum modo, se você tem vontade de crer, Deus con-
firma que Jesus veio da parte de Deus.
Virou algumas páginas até chegar em João 12.37.
- A Bíblia desenvolve essa idéia quando diz: "Mesmo de-
pois que Jesus fez todos aqueles sinais miraculosos, não cre-
ram nele". Dois versículos depois, ela diz: "Por esta razão eles
não podiam crer."8
Em outras palavras, tomaram uma decisão da vontade no
sentido de negar a mensagem dos milagres - a evidência de
que Jesus é Deus - porque não queriam pagar o preço, que
seria a subversão de todo o seu sistema religioso - explicou.
- E haviam tomado a decisão de não acreditar durante tanto
tempo, que haviam destruído a capacidade de acreditar. Con-
seqüentemente, em essência, a fé é uma decisão da vontade
que seguidamente tomamos, mas essa opção nos é dada pela
graça de Deus. Estamos habilitados pelo seu Espírito para con-
tinuar tomando.

8 Grifo do autor.
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 323
- É uma escolha que devemos fazer sem ter em mãos as
informações completas que gostaríamos de ter - observei.
- Correto. Do contrário, oque teríamos seria conhecimen-
to, e não fé.
- Fale sobre esta diferença.
Anderson colocou a Bíblia de volta sobre a mesa e percor-
reu a sala com o olhar em busca de urna ilustração improvisa-
da. Aparentemente sem ter achado o auxílio procurado, en-
fiou a mão no bolso e a puxou. - Bem - disse - estou segu-
rando algo. Você sabe o quê?
- Uma moeda - tentei adivinhar.
- Mas você não tem certeza - retrucou. - Essa é a sua
opinião. A nossa fé não é a nossa opinião. Digo que tenho um
quarto de dólar na mão. Você acredita nisso?
- Claro - rebati.
- Estou lhe dizendo que é verdade, mas você não a viu. Isso
é fé. Hebreus diz que a fé é a prova das coisas que não vemos.
Anderson sorriu.
- Observe como destruo completamente a sua fé. Abriu a
mão e mostrou um quarto de dólar.
- Agora não é mais fé; é conhecimento. Jogou a moeda
sobre a mesa. - Às vezes as pessoas acham que ter fé é saber
que alguma coisa é verdadeira acima de qualquer dúvida, e as-
sim procuram provar a fé através de evidências empíricas -
sentenciou. - Mas essa é uma abordagem incorreta.
Apontou para a moeda.
- Você pode ver e tocar a moeda; portanto, não necessita
de fé. Deus, por suas próprias razões, não se sujeitou a esse
tipo de prova.
- Em vez disso, as pessoas deviam fazer o que você fez no
livro Em defesa de Cristo - você se apoiou em evidências
corroborativas. Você mostrou como diferentes conjuntos de
evidências apontam de modo convincente para Deus. E isso
constrói algo muito importante- abre espaço para fazer uma
escolha ao darmos um passo de fé na direção que as evidênci-
as apontam.
324 q EM DEFESA DA FÉ

Lidando com as dúvidas


A tarde caia lentamente, mas eu não queria terminar a nossa
conversa sem ouvir alguns conselhos de Anderson sobre como
as pessoas podem lidar com as suas aflitivas dúvidas. Sabia
que não há uma fórmula simples para superar a incerteza; ao
mesmo tempo, as pessoas podem dar alguns passos no senti-
do de aplacar as suas dúvidas. E tudo começa com a vontade.
- Quando o senhor ensina sobre esse tópico, o senhor diz
às pessoas que inicialmente têm de decidir se realmente que-
rem ou não querem crer - avaliei. - Por que o senhor come-
ça nesse ponto?
- Algumas pessoas dizem que querem acreditar, quando de
fato não querem. Como disse anteriormente, levantam motivos
intelectuais, quando estão simplesmente tentando desviar a aten-
ção das razões pelas quais realmente não querem crer. Por exem-
plo, uma universitária me disse: "Acho que toda essa bobagem
cristã foi inventada por gente que tem a necessidade psicológica
de crer." A minha resposta foi afirmativa, as pessoas têm a ne-
cessidade psicológica de crer - exatamente como algumas pes-
soas têm a necessidade psicológica de não crer. Eu lhe indaguei:
"Por que você não quer crer? Será porque não deseja a responsa-
bilidade que a fé carrega consigo? Será devido ao desespero que
sente por ser uma incorrigível? Ou será porque não quer abrir
mão dos prazeres?" Ela levou um susto e reagiu: "Quem lhe dis-
-'
se isso? E um pouco de todos os três". Está bem, ela tem razões
emocionais para não querer crer. Outras pessoas têm razões di-
ferentes. Mas as pessoas realmente precisam decidir por que
querem crer. Seria porque viram alguma evidência que o cristi-
anismo é verdadeiro? Ou porque se sentem desesperadas sem
Deus? E se não querem crer, por que não?
- Se têm dúvidas intelectuais, tudo bem, mas não parem
aí. Precisam ir mais fundo para descobrir o que realmente pode
estar afastando-as de Deus. Há dez anos venho visitando uma
moça cuja família havia sido ofensiva e por fim acabou de
admitir que não é com Deus que ela tem dificuldades, não é
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 325
com seus questionamentos - são as suas cicatrizes, as emo-
ções. Ela precisa começar desse ponto.
- Supondo que uma pessoa queira crer - sugeri, - qual
o próximo passo que o senhor recomenda?
- Proponho que ela vá aonde existe fé. Se você quer culti-
var rosas, você não compra meio hectare no Pólo Norte. Você
vai aonde as rosas podem vicejar. Se você quer exercitar a fé,
provavelmente não irá filiar-se à Associação dos Ateus Ame-
ricanos. Aproxime-se de pessoas que você respeita pela vida,
mente, caráter e fé, e aprenda com elas. Observe a vida dessas
pessoas. E incentivo as pessoas a colocar em sua cabeça coi-
sas que edificam a fé. Refiro-me a livros, fitas e músicas que
compõem uma forte motivação para a fé, que esclarecem a
natureza de Deus, que examinam as evidências pró e contra,
que abordam com inteligência as críticas da fé, que lhe dão a
esperança de poder relacionar-se com Deus, que lhe dão ins-
trumentos para desenvolver a espiritualidade.
As sugestões pareciam sensatas. Mas algo estava faltando.
- A fé pela fé não tem sentido - afirmei. - Não seria impor-
tante determinar onde exatamente está se depositando a fé?
- Este é o próximo passo: entender bem o objeto da sua fé
- respondeu Anderson. Nós, canadenses, sabemos que exis-
tem dois tipos de gelo: grosso e fino. Pode-se ter muito pouca
fé no gelo grosso e ele vai agüentá-lo muito bem; pode-se ter
uma enorme fé no gelo fino e poderá vir a se afogar. Não é o
volume de fé que se pode reunir de início que importa. Ela
pode ser minúscula como um grão de mostarda, mas deve ser
investida em algo sólido.
- As pessoas precisam aclarar as suas razões para crer.
Por que devem crer em Jesus em vez de Maharishi?* Por que
crêem em cristais ou no misticismo oriental? Onde está a subs-
tância? - Anderson apontou para a Bíblia encadernada em

*Mahashi Mahesh Yogi foi um guru indiano que pregava a libertação


da alma por meio de sua filosofia religiosa denominada Meditação
Transcendental. (N. do E.)
326 q EM DEFESA DA FÉ

couro sobre a mesa. - Obviamente, eu sou cristão, - afir-


mou, - mas quando chegamos ao fundo do problema, o úni-
co objeto da fé, solidamente sustentado por evidências da his-
tória, da arqueologia, da literatura e da experiência, é Jesus."

o exercício da fé
Decidir acreditar, ir aonde a fé se encontra, utilizar recursos que
edificam a fé, esclarecer o objeto da fé - todas essas recomen-
dações certamente eram boas. Mas algo ainda parecia faltar.
- Em algum momento, a jornada da fé precisa começar -
repisei. - Como isso pode acontecer?
- Ficar sentado e refletir a respeito da fé e da dúvida nun-
ca fará de ninguém um crente - foi a resposta de Anderson.
- Nem o fará a leitura de todos os livros certos ou a compa-
nhia das pessoas certas ou até mesmo a tomada da decisão de
crer. Em última análise, você precisa iniciar o exercício da fé
fazendo o que a fé faria. Jesus disse que se permanecermos
firmes na sua Palavra - isto é, continuarmos a fazer o que ele
diz - seremos verdadeiramente seus discípulos." Ser discí-
pulo significa que você é um "seguidor aprendiz". E se for um
seguidor aprendiz, você conhecerá a verdade e a verdade o
libertará. Conhecer a verdade não significa encher a sua cabe-
ça de conhecimentos; trata-se de "conhecer" em hebraico, que
não é reunir informações. É conhecimento experimental. Como
Adão e Eva - ele simplesmente não sabia o nome e endereço
dela; ele a experimentou. Para exercitar a verdade e ser liber-
to, você precisa ser um seguidor aprendiz. Em outras pala-
vras, faça o que Jesus diz e você experimentará a validade de
suas palavras. É mais ou menos como andar de bicicleta. Não
dá para aprender assistindo a um vídeo ou lendo um livro;
você precisa montar na bicicleta e sentir como é.

9João 8.31,32: Disse Jesus aos judeus que haviam crido nele: "Se
vocês permanecerem firmes na minha palavra, verdadeiramente serão
meus discípulos. E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará".
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 327
- E como uma pessoa deve agir? - perguntei.
- Você diz: - Ouvi algumas coisas que Jesus ensinou. Pare-
cem boas idéias, mas não sei se são verdadeiras. Por exemplo,
ouvi Jesus dizer que mais bem-aventurado é dar que receber.
Como posso saber se isso é verdade?' Bem, mil debates não irão
prová-lo. Mas quando você se tornar generoso, compreenderá
que é verdade. Você poderia dizer: "Oh, talvez Jesus tenha adivi-
nhado isso por acaso". Então continue exercitando. Você ficará
surpreso em ver quantas vezes Jesus "adivinhou" corretamente!
Eu peguei a Bíblia de Anderson, folheando-a até chegar a
salmos 34.8.
- O rei Davi declarou: "Provem, e vejam como o SENHOR é
bom - disse. - E-- disso que o senhor está falando?
- Essa é a idéia. Quanto mais você fizer isso - enfatizou,
- mais você será fortalecido experimentalmente pela evidên-
cia da fé."
Esperava que Anderson explicasse melhor, mas ele estan-
cou com esse comentário. Olhou de lado enquanto punha em
ordem suas idéias. Passou a falar comovidamente sobre exer-
cício da fé.

A fé como verbo
- Eu sei, Lee, que você é um ex-ateu - disse Anderson. -
Provavelmente, você poderia levantar uma centena de per-
guntas a respeito de Deus que eu não saberia responder. Mas
sabe de uma coisa? Isso não importa, porque eu descobri que
essas coisas são verdadeiras. Eu não desenvolvi um sorriso
abobalhado e olhar sem brilho. Descobri que é mais abençoa-
do dar que receber. Tenho convivido com isso. Toda vez que
descubro uma nova idéia, toda vez que Jesus fala comigo pes-
soalmente do jeito que nem sei reproduzir, toda vez que prati-
co os seus ensinos e experimento os resultados - bem, de-
pois de algum tempo não me importo quantas perguntas inte-
lectuais você pode formular, querendo demonstrar por que
isso não pode ser verdade. Eu sei que é verdade.
32-8 q EM DEFESA DA FÉ

- É como você diz: "Prove-me que um arco-íris é bonito".


Eu digo: "Bem, ele é vermelho e verde". Mas você diz: "Eu não
gosto de verde e vermelho juntos". Eu diria: "Mas do jeito que
eles estão no arco-íris, é bonito!" Eu nunca ouvi alguém dizer
que o arco-íris é feio. Quando você consegue observá-lo pes-
soalmente, não precisa dizer mais nada. Você o viu, você o
experimentou e você sabe que é bonito. Acho que a fé é assim.
Afinal, você terá de sair e fazer algo. A propósito, no evange-
lho de João a fé nunca é um substantivo; ela é sempre um
verbo. Fé é ação; nunca apenas consentimento mental. É uma
direção de vida. Desse modo, quando você começa a praticar
a fé, Deus começa a validá-la. E quanto mais prosseguirmos
na jornada, mais nos convenceremos que é verdadeira.
Embora a sua análise fosse convincente, havia uma apa-
rente lacuna.
- Se a fé é experimental, então você poderia se envol-
ver com o budismo e descobrir que a meditação diminui a
sua pressão sangüínea e faz você se sentir bem - observei.
- Mas isso não significa necessariamente que o budismo é
verdadeiro.
- Lembre-se que a experiência é somente uma linha de evi-
dência - advertiu. - Você também precisa esclarecer o objeto
. da sua fé, para averiguar se existem razões válidas para crer
que é verdadeiro. Porém, o teste final do pudim está em comê-
lo. O budismo funciona para algumas coisas; o ateísmo funcio-
na para algumas coisas. Mas se você percorrer toda a jornada
com Jesus, descobrirá que os seus ensinamentos funcionam con-
sistentemente porque são verdadeiros. O cristianismo não é ver-
dadeiro porque funciona; ele funciona porque é verdadeiro.
Sorri. - Parece que o senhor está falando por experiência.
- Bem, vou lhe dizer uma coisa - a minha fé está um
bocado melhor que há trinta anos. Isto poderia significar que
entendo tudo? Seria forçar a barra. Estou tão mais tranqüilo
com quem Deus é, tão mais confiante porque estou nos seus
braços, e creio que ele aceita as minhas humildes tentativas
de glorificá-lo com a minha vida.
Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 32"9
- Existem ocasiões em que o senhor ainda duvida? - per-
guntei.
- Oh, sim! - exclamou. Debato-me por não fazer pro-
gressos no sentido de superar meus pecados de estimação.
Certamente isto não pode ser culpa de Deus - mas, por ou-
tro lado, por que ele torna essas coisas tão difíceis? Tenho
este tipo de dúvida. Eu me debato com os fatos horríveis,.. que
estão acontecendo em Kosovo, Indonésia e partes da Africa,
onde povos inteiros estão sendo dizimados - em parte por
causa da religião. Por que o Deus amoroso não resolve essas
questões? Eu não estou dizendo que não creio nele. Estou
dizendo que não tenho a resposta final e completa para essa
pergunta.
- Existe esperança para os que têm duvidas congênitas
como o senhor?
Anderson foi incisivo.
- Sim, sim - insistiu. Com toda a certeza. Quando digo
que me debato com as minhas dúvidas e pecados, não quero
parecer como alguém derrotado ou sem esperança. Alguém
da minha igreja leu o meu livro sobre as dúvidas e disse: "Oh,
não! Você quer dizer que realmente não acredita?" Respondi-
lhe: "Não, eu realmente creio - mas você poderia me ajudar
na minha incredulidade?" Nestes dias, estou experimentando
a realidade de Deus mais que nunca. Posso ver a graça de Deus
até mesmo naquelas ocasiões em que parece ausente de mim,
como vejo as qualidades da minha esposa parecerem mais reais
quando estou longe dela, porque sinto a sua falta. Eu oro mais
nestes dias e sinto mais respostas de Deus à oração do que
nunca. Tenho menos necessidade de controlar outras pessoas
ou resultados, porque sei que Deus está no controle. Ironica-
mente, sinto-me menos preparado para responder a todas as
objeções que procedem de céticos brilhantes. Mas sabe de uma
coisa? Isso não importa para mim como importava antes. Por-
que sei que essas coisas são verdadeiras. Eu percebo. Eu o
vejo na minha vida, o vejo no meu casamento, o vejo nos meus
filhos, o vejo nos meus relacionamentos, o vejo na vida de
330 q EM DEFESA DA FÉ

outras pessoas quando elas mudam pelo poder de Deus, quan-


do são reabilitadas por ele, quando são libertadas pela sua
verdade.
A voz de Anderson transmitia um tom de autoridade confi-
ante. Então, com um toque definitivo, declarou:
- Lee, eu provei. Estou lhe dizendo - eu provei! E vi que o
Senhor é bom.
Minha memória voltou à imagem do jovem rural canaden-
se angustiado com as suas dúvidas, buscando desesperada-
mente um sólido fundamento espiritual sobre o qual cons-
truir a sua vida. E agora -não a despeito das dúvidas, mas
por causa delas- ele o encontrou. Sua experiência pessoal
com Deus confirma repetidamente o que nenhuma experiên-
cia empírica jamais poderia provar.
Estendi a mão e desliguei o gravador.
- Lynn - disse, - obrigado por ser tão honesto.

Tendo fé na dúvida
Voando de volta para Chicago naquela mesma noite, o avião
semi-vazio, reproduzi mentalmente a entrevista com Ander-
sono Descobri que concordava com a sua avaliação sobre o
papel da dúvida. Embora possa ser desconcertante e eventu-
almente tornar-se destrutiva se deixada sem solução, a dúvi-
da certamente pode trazer benefícios. Identifiquei-me com a
posição de Gary Parker no seu livro The gift of doubt [O dom
da dúvida]:

Se a fé nunca se confrontar com a dúvida, se a verdade


°
nunca se debater com o erro, se bem nunca entrar em
conflito com o mal, como a fé poderá conhecer o seu pró-
prio poder? Na minha peregrinação, se eu tiver de escolher
entre uma fé que olhou a dúvida nos olhos e a fez piscar ou
uma fé ingênua que nunca conheceu a linha de fogo da
dúvida, escolherei a primeira invariavelmente. lO

lOS an Francisco: Harper & Row, 1990, p. 69.


Eu ainda tenho dúvidas, portanto não posso tomar-me cristão p 331
Eu também escolheria. Sabia que a minha confiança essen-
cial em Jesus seria mais forte, mais segura, mais confiante, mais
firme, porque havia sido refinada pelo fogo purificador da dú-
vida. No fim, apesar das perguntas, desafios e obstáculos, mi-
nha fé não somente iria sobreviver, mas também crescer.
Meus pensamentos voltaram-se para Charles Templeton.
Teriam sido suas objeções intelectuais contra Deus realmente
responsáveis pela erosão da sua fé ou havia algo se ocultando
debaixo daquelas dúvidas, alguma motivação não-menciona-
da, subterrânea que estava secretamente alimentando os de-
safios lançados contra o cristianismo? Não havia como ter
certeza. Eu não tinha qualquer desejo de bisbilhotar sua vida
privada para tentar desvendar. Nessa altura, o melhor que
podia fazer seria continuar a encarar as suas objeções pelo
que aparentavam ser.
Houve uma outra implicação importante na entrevista com
Anderson. Se a dúvida e a fé podem coexistir, significa que
as pessoas não precisam remover totalmente cada um dos
obstáculos que existem entre elas e Deus, a fim de abraçar a
fé autêntica.
Em outras palavras, quando a preponderância de todas as
evidências se inclina de modo decisivo a favor de Deus e en-
tão a pessoa faz a escolha racional de depositar nele sua con-
fiança, pode perfeitamente manter algumas de suas objeções
mais periféricas sob tensão, até que chegue o dia em que se-
rão resolvidas.
Enquanto isso, ainda assim podem fazer a escolha de acre-
ditar e pedir que Deus ajude as pessoas a vencer a sua incre-
dulidade.

Ponderações
Perguntas para reflexão
i', """
ou
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estudo
i., ,i:,
em grupo ;.:;, i ;,~~:;;m,;; ,~;";:::,,,:::~ i;;
'~.~.l.;.~~~i:i;:;J~<i"\~W i~~;"\;"\~~~~~~~~\'::"\x;~p,a,-;n~~~~::::;;, ;~:; H "'~i.~; ~".;;-;.,' ";.::,.;;~,.,,,;., ,;;r<-i; ; ;~,.r;,.,:;':',>.;~;;:;;ri; ";.;~;.;~;., ,;:0.,; ";+<C, ;~; ''i':'''i;'':';~":'i''; ~'.:i'~;';~i."'G.' ,; ;~i:;~;';'i:"fJ~f"r;i:'!-!'::~:'~ ii:~;i:~F:; ;;'"'" ;;,=;-; ",1"., ,+i~+~'::,~ ,,.i.;f?il-i .'' "';::i<-!'i:'!-i''

1. Com que parte da história de Anderson você pôde se


identificar de maneira especial? De que maneira a sua
jornada espiritual é diferente ou semelhante à dele?
33 2 q EM DEFESA DA FÉ
,;

2. Com que tipo de dúvidas você se debate? E possível


que elas sejam alimentadas por uma motivação de não
crer? Se for o caso, você pode indicar especificamente
por que está relutante em buscar a fé em Cristo?
3. Como a sua imagem de Deus foi afetada pela família na
qual cresceu ou pela igreja que freqüentou quando cri..
ança? Em retrospecto, você cresceu com uma idéia bi-
blicamente correta a respeito de Deus?
4. Anderson deu várias sugestões para sair do ponto mor-
to na sua jornada espiritual - tomar a decisão de crer,
ir aonde existe fé, utilizar instrumentos que edificam a
fé, esclarecer o objeto da sua fé e experimentar seguir os
ensinamentos de Jesus. Quais desses passos você acre..
dita que lhe seriam mais úteis e por quê?

Outras fontes de consulta


Mais recursos sobre esse tema

• ANDERSON,Lynn. lf I really believe, why do I have these


doubts? 2 ed. West Monroe, Louisiana: Howard, 2000.
• GUINNESS, Os. In two minds. Downers Grave, Illinois:
InterVarsity, 1976.
• HABERMAS, Gary R. The Thomas factor. Nashville:
Broadman & Holman, 1999.
• PARKER, Gary E. The gift Df doubt. San Francisco: Harper
& Row, 1990.
o poder da fi

Que alguém, em algum lugar, me ame!


Palavras encontradas muitas vezes no diário
da atéia Madalyn Murray O'Hair!

Um homem rejeita a Deus não por causa de exigências


intelectuais nem por causa da escassez de evidências. Um
homem rejeita a Deus por causa de uma resistência mo-
ral que recusa admitir a sua necessidade de Deus.
Ravi Zacharias, cristão/

inha gasto um dia inteiro para voltar da entrevista no


Texas. O meu vôo atrasou devido ao mau tempo e em
seguida foi cancelado por problemas mecânicos. Tive de mu-
dar o itinerário, passando por duas outras cidades antes de
chegar em casa. Os vôos estavam cheios e enfrentaram turbu-
lências. Fisicamente, estava exausto mas a minha cabeça fa-
zia horas extras.
Por fim, havia terminado de recapitular e ampliar minha
jornada espiritual original ao entrevistar especialistas a res-
peito das "oito grandes" objeções contra o cristianismo. Uma
vez mais, a Fé havia olhado fixamente nos olhos da dúvida.
HABERMAS e a única pergunta era qual das duas iria piscar.
Afundei-me na poltrona predileta de grosso estofamento
enquanto a cabeça girava tentando assimilar todos os dados,
opiniões e evidências que eu havia reunido no ano preceden-
te. Tinha preenchido uma pilha de blocos de papel com as

-Citado na revista Leadership, Spring 1999, p. 75.


2Citado na revista Servant, Spring 1999. p. 8.
334 q EM DEFESA DA FÉ

minhas pesquisas. A coleção de fitas das entrevistas mal ca-


bia em duas caixas de sapatos. O escritório estava abarrotado
de livros.
Os oito obstáculos à fé levantavam questões inquietantes.
Todavia, os especialistas que entrevistei haviam sido muito
competentes no sentido de oferecer respostas satisfatórias.
Em vários aspectos conseguiram apresentar explicações cla-
ras que resolveram definitivamente a questão. Alguns as-
suntos que não se prestaram a esse tipo de solução decisiva,
os estudiosos conseguiram diluir o poder das objeções ao ofere-
cerem importantes percepções e informações contextuais.
Muitos equívocos foram afastados, obteve-se maior clareza
e no final a força de cada objeção havia sido atenuada com
êxito.
Para mim, pessoalmente, dois dos obstáculos - a existên-
cia do sofrimento e a doutrina do inferno - provaram ser os
mais inquietantes. Quando mais os investigava, mais me via
sob o risco de perder a perspectiva. Quando fechei os olhos e
ponderei sobre a investigação, procurando alguns temas
abrangentes que me ajudariam a entender melhor toda essa
questão, três cenas distintas me vieram à mente, começando
com uma breve análise com a qual J. P Moreland me ajudara
a recuperar o equilíbrio.

Cena n.01: Ganhando perspectiva


Eu estava prestes a deixar a casa de Moreland no dia da nossa
entrevista sobre a doutrina do inferno. Sabia que ele precisa-
va ir para o seminário, agradeci o tempo que me concedeu e
comecei a guardar o meu equipamento de gravação. Mas algo
ainda o estava incomodando. Ao nos levantarmos, perguntou
se podia acrescentar mais um argumento.
- Lee, existe algo mais que preciso mencionar - disse
ao buscar na sua mente a maneira correta de dizê-lo. Suspi-
rou, aparentemente frustrado de como iria resumir. Eu me
apoiava no batente da porta e ouvia atentamente, quando
Conclusão: o poder da fé }) 335

descreveu uma analogia que produziu em mim um momento


de descoberta.
- Quando se tenta tomar uma decisão sobre algo e pe-
sar as evidências pró e contra, é importante considerar to-
das as evidências e não somente uma pequena parte delas -
começou.
Fazia sentido, no entanto perguntei por que ele se sentia
levado a dizê-lo.
- Porque - explicou, - nós temos abordado uma obje-
ção recorrente ao cristianismo, a saber, a existência do infer-
no. Contudo, se você se concentrar em apenas um obstácu-
lo, perde de vista o contexto maior, mais amplo. Deixe-me
dar um exemplo: Suponha que tenha visto a minha esposa
de mãos dadas com outro homem no shopping. Seria razoá-
vel concluir que ela estivesse me traindo? Bem, depende da
evidência que levar em consideração. Se a única prova a
levar em conta for o que vi no shopping, diria a mim mesmo:
"Não consigo ver nada a indicar que ela não esteja traindo".
Mas isto deixa algo de fora, não deixa? Deixa de lado um
enorme conjunto de evidências que não tem nada que ver
com a situação do shopping, mas que tem tudo a ver com os
últimos 25 anos que estamos casados. Eu a conheci o sufici-
ente, dia após dia, para ter certeza de que ela nunca poderia
me trair desse jeito. Assim, se eu pudesse incluir essa evi-
dência mais ampla, diria: À primeira vista parece algo es-
H

tranho, mas simplesmente não pode ser verdade que ela es-
teja me traindo. Tem de haver outra explicação." Suponha
agora que, sem eu saber, ela tenha recebido um telefonema
de um homem que a ajudou a tornar-se um cristão há vinte
anos. Ele estava na cidade e ela não o via há duas décadas;
encontraram-se no shopping e estavam mostrando fotos das
famílias, contando reminiscências. Ele estava se preparando
para viajar para outro país e talvez ela nunca mais o visse.
Desse modo, como irmão e irmã, inocentemente seguraram
as mãos um do outro e assim foram vistos. Bem, isto é seme-
lhante à análise da racionalidade do inferno. Você pode estar
336 q EM DEFESA DA FÉ

perguntando a si mesmo: "Será que eu aceito o inferno ou


não?" Se os prós e contras do inferno forem as únicas evi-
dências que você está levando em conta na decisão, isso é o
mesmo que deliberar sobre a situação da minha esposa e
somente aceitar a evidência pró e contra do que se viu no
shopping. Gostaria de submeter a exame que existem mui-
tas outras evidências que se deveria considerar e que não
têm nada que ver com o inferno em si, mas são relevantes.
Quais são? Todas as evidências de que existe um Deus, que
ele nos criou, que o Novo Testamento é historicamente fide-
digno, que Jesus realizou milagres e ressurgiu dentre os mor-
tos, que Deus quer passar a eternidade conosco no céu. Jun-
tando tudo isso, poderá dizer a si mesmo: "Muito embora eu
possa não ter uma explicação totalmente satisfatória a esta
altura para a existência do inferno, sei que ele deve existir
porque tenho muitas evidências de que Jesus Cristo é o Fi-
lho de Deus e ele ensinou sobre o inferno. Confio nele e no
seu profundo amor pelas pessoas - demonstrado em sua
morte por nós na cruz - posso ter a certeza de que o infer-
no finalmente fará sentido, que verei a sua justiça e que por
fim reconhecerei que é a melhor alternativa moral.

Uma lista de evidências


O exemplo simples de Moreland foi extremamente útil. Os
obstáculos mais problemáticos à fé tendiam a se mostrar tão rele-
vantes na minha cabeça que expulsavam outras informações im-
portantes. Talvez, focando uma questão particularmente inquie-
tante para o seu cérebro, o mesmo fenômeno tenha ocorrido.
Desmascarar o cristianismo exige mais do que simples-
mente tentar torná-lo vulnerável por meio de uma objeção. A
razão é que existe um lastro de evidências relevantes que cri-
am uma forte proprensão a favor da fé em Jesus Cristo. Mera-
mente examinar desafios individuais não é suficiente; esse
vasto conjunto de evidências precisa ser lembrado à medida
que cada objeção individual é considerada.
Conclusão: o poder da fé P 337

Que tipos de evidências? As entrevistas com os estudiosos


levantaram convincentes fatos que apontam poderosamente
para a existência de Deus e do seu Filho único, Jesus Cristo:

• O big bang. William Lane Craig, co-autor do livro Theism,


atheism, and big bang cosmology, publicado pela editora
da Universidade de Oxford, mostrou que o universo e o
próprio tempo tiveram início em algum ponto do passado
finito. Os cientistas se referem a isso como o big-bang. Craig
argumentou que tudo o que começa a existir tem uma cau-
sa, o universo começou a existir e, portanto, o universo
tem uma causa - isto é, um Criador que é não-causado,
imutável, atemporal e imaterial. Até mesmo o renomado
ateu Kai Nielsen disse certa vez: "Suponha que você re-
pentinamente ouça um grande estrondo[...] e me pergun-
te: 'o que causou esse estrondo?', e eu responda: 'Nada,
simplesmente aconteceu'. Você não aceitaria". Comentan-
do a tese, Craig notou que se obviamente existe causa para
uma pequena explosão, não faria também sentido que haja
uma Causa para uma grande explosão (big-bang)?
• O universo ajustado. Nos últimos 35 anos, os cientistas
ficaram surpresos ao descobrir como a vida no universo
se equilibra de modo impressionante sobre o fio de uma
navalha. O big-bang foi na realidade um acontecimento
altamente organizado que exigiu uma enorme quanti-
dade de informações 8, desde o princípio, o universo foi
ajustado com incrível precisão para a existência de vida
como a nossa. Uma diferença infinitesimal na taxa da
expansão inicial do universo, da força da gravidade ou
da força fraca ou de dezenas de outras constantes e quan-
tidades teriam criado um universo aniquilados da vida
e não um universo sustentador da vida. Tudo isso con-
tribui para a conclusão de que existe um Planejador In-
teligente por trás da criação.
• A lei moral. Sem Deus, a moralidade é simplesmente
um produto da evolução sociobiológica e constitui-se
338 q EM DEFESA DA FÉ

basicamente em uma questão de gosto ou preferência


pessoal. Por exemplo, o estupro pode se tornar um tabu
no decurso do desenvolvimento humano porque não é
socialmente vantajoso, mas também é concebível que
poderia ter evoluído como algo benéfico para a sobrevi-
vência da espécie. Em outras palavras, sem Deus não há
a noção absoluta de certo e errado que se imponha à
nossa consciência. Todavia, sabemos em nosso íntimo
que existem valores morais objetivos - certos atos como
o estupro e a tortura de crianças, por exemplo, são abo-
minações morais universais - e, por conseguinte, apon-
tam para a existência de Deus.
• A origem da vida. O darwinismo não pôde oferecer ne-
nhuma teoria aceitável sobre como a vida poderia ter emer-
gido naturalmente a partir de elementos químicos ina-
nimados. A atmosfera original da terra teria bloqueado
o desenvolvimento das estruturas básicas da vida, e for-
mar até a matéria viva mais primitiva seria tão incrivel-
mente difícil que de modo algum poderia ter sido pro-
duto de processos não-dirigidos ou aleatórios. Ao con-
trário, a imensa quantidade de informações específicas
contidas em cada célula viva - codificadas no alfabeto
. químico de quatro letras do DNA - confirma fortemente
a evidência de um Planejador Inteligente que estava por
trás da miraculosa criação da vida.
• A credibilidade da Bíblia. O estudioso Norman Geisler ar-
gumentou de modo convincente que existem mais evidên-
cias de que a Bíblia é uma fonte confiável do que qualquer
outro livro do mundo antigo. Sua fidedignidade essencial
tem sido corroborada repetidamente pelas descobertas ar-
queológicas, "e se podemos confiar na Bíblia quando ela
nos fala sobre coisas terrenas concretas que podem ser
verificadas, então podemos confiar nela em áreas que
não podemos comprovar diretamente de modo
empírico", escreveu. Além disso, a origem divina da Bí-
blia tem sido comprovada de duas maneiras. Primeiro,
Conclusão: o poder da fé }) 339

desafiando todas as probabilidades matemáticas, dezenas


de profecias antigas sobre o Messias - incluindo a estru-
tura cronológica precisa em que ele iria aparecer - foram
cumpridas miraculosamente em apenas uma pessoa em
toda a história: Jesus de Nazaré. Em segundo lugar, os pro-
fetas bíblicos realizaram milagres para confirmar a sua au-
toridade divina. Os milagres de Jesus foram reconhecidos
até meSITlO por seus inimigos. Em contraposição, no Alco-
rão, quando os incrédulos desafiaram Maomé a realizar
um milagre, ele se recusou e simplesmente lhes disse que
lessem um capítulo do Alcorão, embora admitisse: "Deus
certamente tem poder para enviar um sinal."
• A ressurreição de Jesus. Craig formulou uma argumenta-
ção convincente no sentido de que Jesus Cristo ressurgiu
dentre os mortos como autenticação definitiva da sua afir-
mação de ser divino. Apresentou quatro fatos aceitos am-
piamente por um vasto espectro de historiadores do Novo
Testamento. Em primeiro lugar, depois de ser crucificado,
Jesus foi sepultado em um túmulo por José de Arimatéia.
Isso significa que a sua localização era igualmente conhe-
cida por judeus, cristãos e romanos. Em segundo lugar, no
domingo posterior à crucificação, o túmulo foi encontrado
vazio por um grupo de mulheres, suas seguidoras. Na rea-
lidade, ninguém afirmou que o túmulo não estivesse va-
zio. Em terceiro lugar, em múltiplas ocasiões e sob dife-
rentes circunstâncias, distintos indivíduos e grupos pre-
senciaram aparecimentos de Jesus revivido dentre os mor-
tos. Isso não pode ser descartado como lenda devido à
data extremamente antiga desses relatos. Em quarto lu-
gar, os discípulos originais repentina e sinceramente pas-
saram a acreditar que Jesus havia ressuscitado dentre os
mortos, a despeito de sua inclinação em sentido contrá-
rio. Estavam dispostos a enfrentar a morte proclamando
que Jesus havia ressuscitado e assim provaram que ele
era o Filho de Deus - e ninguém morre por uma menti-
ra, consciente e voluntariamente.
340 q EM DEFESA DA FÉ

Além disso, os treze estudiosos e especialistas que entre-


vistei para o meu livro anterior, Em defesa de Cristo, demons-
traram que as biografias de Jesus existentes no Novo Testa-
mento resistem a um minucioso exame intelectual; que elas
nos foram transmitidas de modo confiável ao longo da histó-
ria; que existem evidências confirmatórias fora da Bíblia so-
bre Jesus; que Jesus não estava desequilibrado psicologica-
mente quando afirmou ser Deus; e que ele cumpriu todos os
atributos da divindade. [Para uma visão geral dessas conclu-
sões, queira ver o Apêndice: "Síntese de Em defesa de Cristo",
no final deste livro.]

Explicando as evidências
Cada uma das "oito grandes" objeções precisa ser avaliada
à luz dessas esmagadoras evidências positivas a favor da exis-
tência de Deus e da divindade de Jesus Cristo. Por exemplo,
como Peter Kreeft admitiu em nossa entrevista, o sofrimento
que há no mundo representa uma certa evidência contrária à
existência de Deus - mas no fim ele é soterrado por uma
avalanche de outras evidências de que Deus existe, que ele
nos ama e que até pode redimir o nosso sofrimento e extrair
dele o bem. Essa montanha de evidências pode nos dar a cer-
teza que, muito embora possamos não entender plenamente
a razão da existência do sofrimento ou do inferno, podemos
confiar que Deus é justo, que ele age de modo apropriado e
que um dia teremos uma explicação mais profunda.
Embora cada um dos oito obstáculos seja sério, nenhum
deles foi capaz de suplantar os outros dados que apontam de
modo persuasivo para a veracidade do cristianismo. Quando
era ateu, percebi que precisaria fazer mais do que simples-
mente levantar objeções ao acaso a fim de invalidar o cristia-
nismo; teria de apresentar um cenário não-teísta que iria in-
cluir todos os fatos que acabei de relacionar. Mas o ateísmo
não pode explicar de maneira crível o big-bang, o ajuste preci-
so do universo, o surgimento da vida, a existência de leis
Conclusão: o poder da fé }) 341

morais, a confirmação sobrenatural da Bíblia e a Ressurrei-


ção. A única hipótese que explica todas elas é que existe um
Criador divino cujo Filho único é Jesus de Nazaré.
Tinha estudado o mérito de cada obstáculo, entrevistando
especialistas que foram capazes de oferecer explicações e aná-
lises satisfatórias. Avaliei cada uma dessas objeções no con-
texto das evidências convincentes de que o cristianismo é ver-
dadeiro e que, portanto, Deus é absolutamente fidedigno e
nos ama profundamente.
A minha conclusão é que o cristianismo emergiu incólu-
me. Depois de passar um ano investigando as "Oito Grandes"
objeções, continuei plenamente convencido que o passo mais
lógico e racional que as pessoas podem dar é investir a sua fé
em Jesus de Nazaré.

Cena ri. o 2: Fazendo uma escolha


Na Universidade do Sul da Califórnia, em um edifício de tijolos
vermelhos, com as palavras '~ verdade vos libertará" gravadas
na fachada, Leslie e eu estávamos sentados em um escritório
que parecia um estacionamento de trailers atingido por um ci-
clone. Ao nosso redor - na escrivaninha, no chão e nas cadeiras
- havia grandes pilhas de papéis. As estantes estavam a ponto
de se romper com pesados livros, periódicos com as pontas do-
bradas e uma grande variedade de objetos. Sentado serenamen-
te no meio de tudo isso estava o filósofo Dallas Willard, um dos
pensadores cristãos mais influentes dos nossos dias.
Foi uma oportunidade rara para falar com o autor de dois
dos mais aclamados livros cristãos das últimas décadas: The
spirit of the disciplines [O espírito das disciplinas] e A cons-
piração divina. Nossa conversa com esse professor de filoso-
fia, que exibe cabelos grisalhos e usa óculos, versou sobre
como a fé é exercida por meio da oração.
A certa altura, à medida que analisávamos como as pes-
soas respondem a Deus, Willard fez uma observação espe-
cialmente interessante:
342 q EM DEFESA DA FÉ

- A questão é: o que nós queremos? A Bíblia diz que se


você buscar a Deus de todo o coração, certamente o encontra-
rá. Certamente o encontrará. É à pessoa que quer conhecer a
Deus que Deus se revela. E se uma pessoa não quer conhecer
a Deus - bem, Deus criou o mundo e a mente humana de
sorte que ela não esteja obrigada a conhecer.
Ele remexeu uma pilha de papéis na escrivaninha, pegan-
do uma única folha. "Essa é uma folha que distribuí aos alu-
nos da minha classe", informou. Apanhei o papel e li :

Na próxima quinta-feira, de manhã, logo após o café, to-


dos nós deste mundo seremos colocados de joelhos por
uma trovoada ribombante e ensurdecedora. A neve faz
redemoinhos, as folhas caem das árvores, a terra se des-
loca e se curva, edifícios caem e torres desabam. O céu
está iluminado por uma sinistra luz prateada; e então,
enquanto todas as pessoas do mundo olham para o alto,
os céus se abrem e as nuvens se apartam, revelando uma
figura incrivelmente radiosa e imensa, semelhante a
Zeus, elevando-se sobre nós como cem picos Everest.
Ele franze o cenho de modo sombrio, enquanto os re-
lâmpagos se projetam sobre os traços do seu rosto como
que esculpido por Miquelângelo, e então aponta para
baixo, para mim, e explica para que todo homem, mu-
lher e criança possa ouvir: "Estou cheio de sua lógica
engenhosa que manipula as palavras em questões teoló-
gicas. Saiba com certeza, Norwood Russell Hanson, que
eu certamente existo!':"

- Assim - contou Willard, - perguntei aos alunos: "Se


isso realmente acontecesse, como Hanson responderia?"
- O senhor acha que ele iria racionalizar - redargüi.
- Com certeza! - retrucou Willard. - É lamentável,
mas acho que ele iria racionalizar. Nós precisamos estar

3Do ensaio What I Do Nat Believe, de Russell Hanson, citado em


William A. DEMBSKI, Intelligent design, Downers Grave, Illinois:
InterVarsity Press, 1999, p. 27 (grifo do autor).
Conclusão: o poder da fé P 343

alertas que em quase todos os casos imagináveis, as ora-


ções respondidas
,. podem ser explicadas de outro modo caso
queira. E isso o que as pessoas geralmente fazem. Dizem:
"Bem, sou muito esperto; eu não posso ser enganado por
todas essas coisas."
Identifiquei-me com esta opinião. Falei a Willard sobre o
ocorrido com minha filha recém-nascida, levada às pressas
para a UTI devido a uma doença misteriosa que ameaçava a
sua vida. Os médicos não conseguiram diagnosticá-la. Embo-
ra fosse ateu, estava tão desesperado que orei e implorei a
Deus - caso ele existisse - que a curasse. Pouco tempo de-
pois, ela surpreendeu a todos melhorando repentinamente.
Os médicos ficaram coçando a cabeça. - A minha resposta
- disse a Willard, - foi minimizar: "Que coincidência! Ela
deve ter sido contaminada por alguma bactéria ou vírus que
desapareceu espontaneamente". Não quis sequer considerar
a possibilidade de que Deus tivesse interferido. Permaneci no
meu ateísmo.
Willard riu dessa história.
- Eu não pretendo diagnosticar o caso na sua presença
- disse gentilmente, - mas será que o seu orgulho falou
mais alto? Você era inteligente demais, não iria se deixar le-
var por isso! Que se enganem todas as velhinhas, mas não
você. Enquanto a pessoa mantiver esta atitude, a reação será
idêntica.
Bingo! Acertou na mosca. Mesmo que houvesse uma
avalhanche de evidências corroborativas de que Deus tinha
interferido, eu teria inventado qualquer explicação - não im-
porta quão bizarra ou absurda - que não a possibilidade de
que ele tivesse respondido à minha oração. Era orgulhoso de-
mais para dobrar os joelhos diante de quem quer fosse e esta-
va enredado demais no meu estilo de vida imoral sem dispo-
sição para deixá-lo.
- Eu lhe garanto - continuou Willard - que não levaria
cinco minutos para subestimar um milagre tão claro como
o fogo que desceu do céu para consumir o altar no caso de
344 q EM DEFESA DA FÉ

Elias, no Antigo Testamento. E sabe de uma coisa? As pes-


soas subestimaram o milagre! Se não o tivessem feito, a his-
tória de Israel teria sido muito diferente. Deus ordenou a
oração de tal maneira que, se você quiser racionalizar e
minimizá-la, poderá fazê-lo. A mente humana é assim. Deus
a dispôs desse modo pela seguinte razão: Deus determinou
que as pessoas sejam governadas em última análise pelo
que elas querem.

A vontade de crer
A reflexão de Willard chegou ao cerne da minha jornada
espiritual. Se quisesse, poderia continuar tentando subesti-
mar a palavra dos especialistas entrevistados, não importa
quão bizarros ou detalhistas meus argumentos eventualmen-
te tivessem sido. E, creia-me, a minha mente é plenamente
capaz de forjar todos os tipos de réplicas, desculpas e contra-
argumentos - mesmo em face de uma verdade evidente.
Em última análise, no entanto, a fé não consiste em ter
respostas perfeitas e completas para cada uma das "Oito
Grandes" objeções. Afinal, nós não exigimos esse nível de
prova conclusiva em qualquer outra área da existência. O
ponto principal é que certamente temos evidências sufici-
entes sobre Deus com base em que devemos agir. No fim,
essa é a questão. A fé diz respeito a uma escolha, um passo
adiante da vontade, uma decisão de querer conhecer a Deus
pessoalmente. Significa dizer: "Eu creio, por favor, ajude-
..-
me na minha incredulidade!". Como disse Willard: "E à pes-
soa que quer conhecer a Deus que Deus se revela". Ou como
Lynn Anderson me disse: "Quando se cava debaixo da su-
perfície, ou sobrexiste a vontade de crer ou a vontade de
não crer. Esse é o âmago da questão".
Estava grato por não ter de jogar fora o meu intelecto para
me tornar um cristão. As evidências positivas de que Jesus é
o Filho de Deus, único, e as respostas convincentes às "oito
Conclusão: o poder da fé 9 345

grandes" objeções aplainaram o caminho para que eu desse


esse passo. Porém, tive de superar o meu orgulho. Eu tive de
cravar uma estaca no egoísmo e na arrogância que ameaça-
vam me manietar. Eu tive de superar o interesse próprio e a
auto-adulação que mantinham o meu coração estritamente
fechado contra Deus.
Aplicando as palavras de Willard a mim mesmo, a ques-
tão central se resumia em: "O que eu queria7" Queria co-
nhecer a Deus pessoalmente - experimentar a libertação
da culpa, viver do modo como foi planejado para eu viver,
buscar os propósitos dele para a minha vida, recorrer ao
seu poder para a vida diária, ter comunhão com ele nesta
existência e eternamente na vida futura? Enfim, havia mui-
tas evidências sobre as quais basear uma decisão racional
de dizer "sim" a ele.
Dependia só de mim, assim como depende de você. Como
William Craig Lane o expressou:

Se Deus não existe, então a vida é fútil. Se o Deus da Bíblia


existe, então a vida é significativa. Somente a segunda des-
sas duas alternativas nos habilita a viver de modo feliz e
consistente. Portanto, parece-me que mesmo que as evi-
dências a favor dessas duas opções fossem absolutamente
iguais, a pessoa racional deveria escolher o cristianismo
bíblico. Parece-me positivamente irracional preferir a mor-
te, a futilidade e a destruição da vida, do significado e da
felicidade. Como disse [Blaise] Pascal, nós não temos nada
a perder e uma infinidade a ganhar."

Cena n," 3: Transformando uma vida


Este terceiro episódio ocorreu após a minha entrevista com
Craig, em Atlanta, sobre a questão dos milagres. Peguei o car-
ro alugado e fiz uma viagem sem pressa pela Rodovia Inte-
restadual 75 até Rome, na Geórgia. A manhã do dia seguinte

"Heasonable faith, Wheaton: Crossway, 1984, p. 72.


346 q EM DEFESA DA FÉ

estava fria, porém ensolarada. Vesti-me e fui a uma igreja para


o culto dominical.
Do lado de fora, saudando educadamente com um aperto
de mão todos que chegavam, estava William Neal Moore, mui-
to elegante em seu terno marrom claro com listas escuras, ca-
misa branca e gravata marrom. O seu rosto era avermelhado,
seu cabelo escuro estava cortado bem curto. O que mais me
chamou a atenção era o seu sorriso: a um tempo tímido e calo-
roso, gentil e sincero, cativante e amável. Fez-me sentir.
"Louvado seja Deus, irmão Moore!", exclamou uma senhora
idosa, ao apertar ligeiramente a sua mão, entrando em seguida.
Moore é o pastor daquela igreja, espremida entre dois con-
juntos habitacionais de um bairro racialmente misto. É um
pai carinhoso, marido dedicado, fiel provedor, funcionário
diligente, homem de compaixão e oração que gasta o tempo
livre ajudando pessoas sofredoras esquecidas pelos demais.
Em suma, um cidadão exemplar. ,
Recuemos no tempo a maio de 1984. A época, Moore esta-
va trancafiado na cela de condenados à morte da Penitenciá-
ria Estadual da Geórgia, no corredor da morte, e sua vida de-
veria ser eliminada na cadeira elétrica em menos de 72 horas.
Não se tratava de alguém inocente sendo mandado à prisão
sob falso pretexto pelo sistema judicial. Moore era inquestio-
navelmente um assassino. Tinha confessado. Depois de uma
infância pobre e delitos ocasionais, ingressou no exército, ten-
do mais tarde caído em depressão devido a problemas conju-
gais e financeiros. Certa noite, embriagado, arrombou a casa de
Fredger Stapleton, de 77 anos, que, segundo se sabia, guardava
uma grande quantidade de dinheiro no quarto.
De trás da porta, Stapleton disparou a espingarda e Moore
revidou com uma pistola. Stapleton morreu instantaneamente
e em poucos minutos Moore fugiu com 5 600 dólares. Um
informante avisou a polícia e na manhã seguinte ele foi
preso no seu trailer perto da cidade. Apanhado com o pro-
duto do crime, Moore admitiu a sua culpa e foi condena-
do à morte. Havia desperdiçado sua vida e se voltado para
Conclusão: o poder da fé p 347

a violência, e agora ele mesmo iria enfrentar um fim vio-


lento.
Porém, aquele William Neal Moore, que contava as horas
que faltavam para a sua execução, não era a mesma pessoa
que havia assassinado Fredger Stapleton. Logo após ser pre-
so, dois líderes cristãos o visitaram a pedido de sua mãe.
Eles lhe falaram da misericórdia e esperança que poderiam
ser alcançadas por intermédio de Jesus Cristo.
- Ninguém jamais me havia falado que Jesus me ama e
morreu por mim - explicou Moore durante a minha visita à
Geórgia. - Era um amor que eu podia sentir. Era um amor
que eu queria. Era um amor que necessitava.
Naquele dia, Moore disse sim à dádiva gratuita de perdão
e vida eterna em Cristo, e foi prontamente batizado em uma
pequena banheira usada pelos presos de bom comportamen-
to. Nunca mais seria o mesmo.
Durante dezesseis anos no Corredor da Morte, Moore foi
um missionário entre os outros reclusos. Ele dirigia estu-
dos bíblicos e conduzia reuniões de oração. Aconselhava pri-
sioneiros e levou muitos deles à fé em Jesus Cristo. Algu-
mas igrejas chegaram a mandar pessoas ao Corredor da Morte
para serem aconselhadas por ele. Fez dezenas de cursos bí-
blicos por correspondência. Ganhou o perdão da família de
sua vítima. Tornou-se conhecido como "O pacificador", por-
que o seu pavilhão, ocupado em grande parte por detentos
que se haviam tornado cristãos pela sua influência, era sem-
pre o mais seguro, o mais silencioso e o mais ordeiro.
Paulatinamente, o dia da execução de Moore se aproxima-
va. Juridicamente, era um caso sem esperança e uma vez que
havia confessado, não havia praticamente nenhum recurso
legal em que se apegar para livrar-se da cadeira elétrica.
Reiteradamente, os tribunais confirmaram a pena máxima.

nAlguém santo"
Contudo, a transformação de Moore foi tão profunda que
as pessoas começaram a prestar atenção. Madre Teresa e outras
348 q EM DEFESA DA FÉ

pessoas deram início a uma campanha para salvar a sua vida.


"Billy não é mais o que ele foi", disse um ex-detento que co-
nhecera Moore na prisão. "Se vocês o matarem hoje, estarão
matando um corpo, mas um corpo com uma mente diferente.
Seria como executar o homem errado.">
Louvando-o não somente por estar reabilitado, mas tam-
bém por ser "um agente da reabilitação de outros", um edito-
rial do jornal Atlanta [ourtial and Constitution estampou: "Aos
olhos de muitos, ele é alguém santo". 6
Poucas horas antes de Moore ser amarrado à cadeira elétri-
ca, pouco antes de sua cabeça e perna esquerda serem rapa-
das para a fixação dos eletrodos letais, o tribunal surpreen-
deu a todos ao anunciar a suspensão temporária da execução.
De maneira ainda mais surpreendente, a Corte de Indultos e
Livramento Condicional da Geórgia decidiu por unanimidade
poupar a sua vida comutando a sentença para prisão perpétua.
Foi realmente espantoso -de fato, sem precedentes na moder-
na história da Geórgia- que a Corte de Indultos e Livramento
Condicional tenha decidido que Moore, um assaltante à mão
armada e assassino confesso e condenado, deveria ser liberta-
do. Ele foi solto no dia 8 de novembro de 1991.
Entrevistando Moore em sua casa com vista para uma pai-
sagem de pinheiros verdejantes, acabei perguntando sobre a
origem da impressionante metamorfose.
- Foi o sistema de reabilitação prisional que fez isso, não
foi? - indaguei.
Moore riu. - Não, não foi isso - respondeu.
- Então foi um programa de auto-ajuda ou uma atitude
mental positiva - sugeri.
Ele balançou a cabeça enfaticamente. - Não, também não
foi isso.

5U. S. Supremo Court halts execution: even victim's family pleaded


for mercy, de Bill Montgomery, publicado em The Atlanta Journal and
Constitution, 21/8/1990.
6When Mercy Becomes Mandatory, The Atlanta Journal and Consti-
tution, 16/8/1990.
Conclusão: o poder da fé p 349

- Prozac? Meditação Transcendental? Aconselhamento psi-


cológico?
- Vamos lá, Lee - encorajou. - Você sabe que não foi nada
disso.
Ele estava certo. Eu desconfiava da verdadeira razão. Só
queria ouvir de sua boca:
-A que se deve então a transformação de Billy Moore? -
indaguei.
- Em poucas palavras: foi Jesus Cristo - declarou convic-
to. "Ele me transformou de tal modo que sozinho jamais pode-
ria ter mudado. Ele me deu uma razão para viver. Ajudou-me a
fazer as coisas certas. Fez-me interessar pelos outros. Salvou a
minha alma.
Esse. é o poder da fé em transformar a vida humana. "Por-
tanto", escreveu o apóstolo Paulo, "se alguém está em Cristo,
é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgi-
ram coisas novas!" 7
Billy Moore, o cristão, não é o mesmo que Billy Moore, o
assassino. Deus interveio com perdão, sua misericórdia, seu
poder, com a presença constante do seu Espírito. Esta mesma
espécie de graça transformadora está disponível a todo aquele
que age com base nas amplas evidências a favor de Jesus Cris-
to, ao tomar a decisão de afastar-se do pecado e abraçá-lo como
aquele que o perdoa e o conduz.
Todos os que disserem sim a Deus e aos seus caminhos
podem esperar por isto.

Reafirmando a fé
Essas três cenas sintetizaram a minha procura por respos-
tas para as "Oito Grandes" questões, ao longo de um ano. A
primeira cena enfatiza a magnitude do argumento geral a favor
de Cristo e a disponibilidade de respostas sólidas às pergun-
tas mais difíceis sobre a fé cristã. Em outras palavras, existe

72 Coríntios 5.17.
350 q EM DEFESA DA FÉ

forte justificativa para que uma pessoa pensante deposite a


sua confiança em Jesus. A segunda cena destaca a nossa ten-
dência humana de subestimar essa evidência devido ao orgu-
lho ou interesse próprio. Afinal, a fé é um passo adiante da
vontade; Deus nos dará o que queremos. A terceira cena utili-
za um exemplo radical para ilustrar a disposição de Deus em
transformar as vidas daqueles que respondem às evidências,
superam o seu orgulho e abrem o coração a ele.
Tudo isso pode ser resumido numa sucessão de três pala-
vras - investigação ... decisão ... transformação - que expe-
rimentei na minha jornada espiritual. Foi em 1981 que res-
pondi pela primeira vez às evidências, decidindo abando-
nar o ateísmo e me apegar a Cristo. Como Moore, jamais fui
o mesmo. Abrindo cada vez mais a minha vida a Deus e aos
seus caminhos, descobri que os meus valores, o meu caráter,
as minhas prioridades, as minhas atitudes, os meus relacio-
namentos e os meus desejos mudaram ao longo do tempo -
para melhor.
Hoje, ao repetir a investigação original, minha confiança
naquela decisão de 1981 foi reforçada. O fato de fazer pergun-
tas desconfortáveis não diminuiu a minha fé, mas a fortale-
ceu. Sondar os "pontos vulneráveis" do cristianismo reafir-
mou, uma vez mais, a solidez fundamental e a integridade
lógica da fé. Refinada pelos rigores do minucioso exame inte-
lectual, a fé emergiu mais rica, mais resistente e mais certa
que nunca.
Reclinando-me na poltrona da minha sala, repassava
mentalmente a minha investigação e percebi que a tarefa
ainda não estava concluída. Charles Templeton, o pregador
que se havia tornado cético e negava resolutamente a exis-
tência de um Deus de amor, mas que chorou de saudades
de Jesus, proporcionou grande parte do ímpeto para a re-
alização desta série de entrevistas sobre os "oito grandes"
obstáculos à fé.
A intenção da pesquisa foi obter respostas para as questões
que mais me haviam inquietado na minha jornada espiritual,
Conclusão: o poder da fé p 351

e não tentar elaborar uma refutação ponto por ponto a


Templeton e seus textos. Porém, havia uma considerável co-
incidência entre as questões que bloquearam o seu caminho
para a fé e os tópicos que me inquietaram quando eu estava
buscando a verdade.
Imaginei como Templeton teria reagido às minhas entre-
vistas com esses oito especialistas. Teria ficado receptivo às
evidências e argumentos apresentados por eles? Ou o avanço
inexorável do mal de Alzheimer já o teria privado da capaci-
dade de reconsiderar as questões espirituais?

Uma nota de esperança


Era uma tarde de um claro dia de primavera no Condado
de Orange, na Califórnia, para onde Leslie e eu havíamos nos
mudado recentemente. Tinha acabado de imprimir as quase
quinhentas páginas do manuscrito deste livro e colocava-as
numa caixa quando Leslie apareceu no escritório.
- O que você está fazendo? - perguntou.
Apontei para o manuscrito.
- Há uma pessoa para quem quero mandar isto - respondi.
Leslie baixou a xícara de chá e se aproximou para colocar
o braço no meu ombro. - Chuck Templeton, certo? - inda-
gou. - Penso nele de vez em quando. Na realidade, tenho
orado por ele.
Não me surpreendi. - Orado o quê? - perguntei.
- Que ainda esteja forte o suficiente para reconsiderar as
suas conclusões sobre Deus. Que ele esteja aberto para as
explanações que você recebeu dos especialistas. Que ele pos-
sa corresponder àquele impulso interior que parece empurrá-
lo para Jesus.
Assenti. Eu também vinha orando. - Falei com a esposa
dele por telefone há poucos minutos - informei. - Disse-
me que o mal de Alzheimer não tem sido muito gentil com
Chuck e que está passando por alguns outros problemas de
saúde. Quando deu para falar com Chuck e lhe perguntar como
352 q EM DEFESA DA FÉ

estava, respondeu numa só palavra com voz muito desani-


mada: "Devastador".
- Oh, sinto muito - disse Leslie suavemente.
- Eu também - suspirei. - É muito triste. Coloquei mais
algumas folhas na caixa. - Ela também disse que Billy Graham
foi visitar Chuck há poucos meses.
Os olhos de Leslie se arregalaram.
- Verdade? - exclamou. - O que aconteceu?
- Eles não se viam há um bom tempo. Ela disse que
quando Chuck o reconheceu, foi como se um calafrio o per-
corresse; começou a chorar e abraçou Billy. Ela não tinha
palavras para dizer como Billy foi gentil e amoroso. Con-
versaram por algum tempo e comeram juntos. Billy orou
antes da refeição Ela disse: "Essa foi a primeira vez que se
fez uma oração na nossa mesa". Antes de partir, Billy orou
por Chuck.
Notei que os olhos de Leslie estavam marejados.
- Estou tão contente por eles terem tido a oportunidade de
passar alguns momentos juntos - disse. - Talvez algo de bom
resultará disso.
Concordei para em seguida voltar a empacotar o manuscrito.
- Madeleine avisou que estava ansiosa para ver o meu
livro e prometeu lê-lo para Chuck - informei. - Eu só espe-
ro não ter demorado em demasia e que a sua mente esteja
lúcida o suficiente para entender o que os estudiosos disse-
ram. Sinto apenas que preciso enviá-lo - caso ajude.
Sentei-me para escrever uma carta, desejando-lhe felicida-
des e incentivando-o, da melhor maneira, a manter a mente
aberta e a levar em conta novamente as evidências a favor de
Jesus. Assinei e coloquei a caneta de lado, porém hesitei em
dobrar a carta. Queria escrever algo mais; só não estava segu-
ro do que ainda faltava dizer.
Olhei pela janela. A montanha Saddleback mostrava-se
majestosa contra o céu de azul profundo. Fiquei imerso em
meus pensamentos por alguns instantes. De repente, as
palavras inundaram a minha mente. Empunhei a caneta e,
Conclusão: opoder da fé 9353
enquanto Leslie espiava sobre omeu ombro, adicionei rapi·
damente este pós-escrito:

Chuck, espero que você considereseriamenteoque dizPro·


vérbios 2,3-5: "Se clamar por entendimento epor discer-
nimento gritar bem alto; se procurar asabedoria como se
procura aprata ebuscá-la como quem busca um tesouro
escondido, entáo você entenderá oque étemer oSENHOR e
acharáoconhecimento de Deus" I

Coloquei obilhete em um envelope, joguei-o na caixa e


apanhei as chaves do carro.
"Vamos colocar isso no correio,"
.Apêndice
Sintese de li1m defesa de Cristo

No livro Em defesa de Cristo, recapitulei e comentei a mi-


nha passagem do ateísmo para o cristianismo, ocorrida em
1980-1981, entrevistando treze destacados especialistas
acerca das evidências históricas a favor de Jesus Cristo. A
seguir apresento uma síntese das respostas às questões que
investiguei.

Seriam as biografias de Jesus fidedignas?


Eu pensava anteriormente que os evangelhos eram somen-
te propaganda religiosa, contaminados inapelavelmente por
uma imaginação fértil e zelo evangelístico. Todavia, Craig
Blomberg, do Seminário de Denver, uma das principais au-
toridades americanas a respeito das biografias de Jesus,
apresentou uma argumentação convincente no sentido de
que elas refletem testemunhos oculares e apresentam ca-
racterísticas inconfundíveis de relatos fidedignos. Esses
relatos da vida de Jesus são tão antigos que não podem ser
explicados como invenções lendárias. "Dentro de dois anos
após a morte de Jesus", disse Blomberg, "um grande nú-
mero de seus seguidores parece ter formulado uma doutri-
na da expiação, estava convencido de que ele havia ressur-
gido dentre os mortos em forma corpórea, associava Jesus
com Deus, e acreditava encontrar apoio para todas essas
convicções no Antigo Testamento". Um estudo indica que
simplesmente não houve tempo suficiente para o
surgimento de uma lenda e para que esta eliminasse um
sólido núcleo de verdade histórica.
356 q EM DEFESA DA FÉ

As biografias de Jesus resistiriam ao exame minucioso?


Blomberg argumentou de modo persuasivo que os autores
dos evangelhos pretenderam preservar uma história confiável,
conseguiram fazê-lo, eram honestos e estavam prontos a in-
cluir matérias de difícil explicação e não permitiram que su-
posições afetassem indevidamente seus relatos. A harmonia
existente entre os evangelhos quanto aos fatos essenciais, as-
sociada às divergências em alguns detalhes incidentais, con-
fere credibilidade histórica às narrativas. Mais que isso, a igreja
primitiva não poderia ter lançado raízes e florescido ali mes-
mo em Jerusalém se estivesse ensinando fatos sobre Jesus que
os contemporâneos dele pudessem desmascarar como exage-
rados ou falsos. Em suma, os evangelhos conseguiram ser apro-
vados em todos os oito testes de evidências, demonstrando
sua fidedignidade básica como registro histórico.

As biografias de Jesus foram preservadas até os


nossos dias de modo fidedigno?
O mundialmente estudioso afamado Bruce Metzger, professor
emérito do Seminário Teológico de Princeton, disse que, em
contraposição com outros documentos antigos, existe um nú-
mero sem precedentes de manuscritos do Novo Testamento e
eles têm data extremamente próxima dos escritos originais. O
Novo Testamento moderno está 99,5% livre de discrepâncias
textuais, não colocando em dúvida quaisquer das principais
doutrinas cristãs. Os critérios utilizados pela igreja primitiva
para determinar que livros deviam ser considerados normativos
asseguraram que tivéssemos os melhores registros acerca de
Jesus.

Existiriam evidências aceitáveis sobre Jesus fora de


suas biografias?
"Dispomos de melhor documentação histórica a respeito
de Jesus do que a respeito do fundador de qualquer outra
Apêndice: Sintese de Em defesa de Cristo 9 357

religião antiga", disse Edwin Yamauchi, da Universidade


de Miami, um destacado especialista em história antiga.
Fontes externas à Bíblia corroboram que muitas pessoas
acreditavam que Jesus realizara curas e era o Messias, que
ele fora crucificado, e que, apesar da sua morte ignomini-
osa, os seus seguidores acreditavam que ele continuava
vivo e o adoravam como Deus. Um perito documentou 39
fontes antigas que corroboram mais de cem fatos referen-
tes à vida, ensinamentos, crucificação e ressurreição de
Jesus. Sete fontes seculares e vários credos cristãos anti-
gos se referem à divindade de Jesus, uma doutrina "clara-
mente presente na igreja mais antiga", segundo o dr. Gary
Habermas, o estudioso que escreveu The historical Jesus
[O Jesus histórico].

A arqueologia confirma ou contradiz as biografias


de Jesus?
John McRay, um professor de arqueologia há mais de quin-
ze anos e autor de Archeology and the New Testament [A
arqueologia e o Novo Testamento], disse não haver dúvida
de que os achados arqueológicos reforçaram a credibilidade
do Novo Testamento. Nenhuma descoberta jamais contes-
tou qualquer referência bíblica. Além disso, a arqueologia
comprovou que Lucas, que escreveu cerca de um quarto do
Novo Testamento, era um historiador particularmente cui-
dadoso. Um especialista concluiu: "Se Lucas foi tão rigoro-
samente preciso na descrição histórica [de pequenos deta-
lhes], com que base lógica podemos supor que ele foi cré-
dulo ou impreciso na descrição de episódios muito mais
importantes, não somente para ele, mas também para ou-
tros?" Como, por exemplo, a ressurreição de Jesus - acon-
tecimento que autenticou sua afirmação de ser o Filho úni-
co de Deus.
35 s q EM DEFESA DA FÉ

o Jesus da história é o Jesus da fé?


Gregory Boyd, um estudioso formado em Yale e Princeton
que escreveu a premiada obra Cynic Sage ar Son of God [Sá-
bio cínico ou Filho de Deus], fez uma crítica demolidora do
Seminário Jesus, um grupo que questiona se Jesus disse ou
fez a maior parte das coisas que lhe são atribuídas. Identifi-
cou o Seminário como "um número extremamente pequeno
de estudiosos radicais que se situam na extrema esquerda da
reflexão sobre o Novo Testamento". O Seminário excluiu de
início a possibilidade dos milagres, utilizou critérios
questionáveis e alguns dos seus participantes elogiaram do-
cumentos que estão eivados de mitos e têm uma qualidade
extremamente duvidosa. Ademais, a idéia de que as histórias
sobre Jesus derivam-se da mitologia não resiste ao exame
minucioso. Disse Boyd: "As evidências de que Jesus é o que
os discípulos disseram que ele era[ ... ] simplesmente estão
anos-luz à frente das razões que tenho para achar que a erudi-
ção de esquerda do Seminário sobre Jesus está correta". Em
suma, o Jesus da fé é o Jesus da história.

Estaria Jesus realmente convencido que era o Filho


de Deus?
Retrocedendo às tradições mais antigas, que inquestio-
navelmente estão isentas de elaborações lendárias, Ben
Witherington IH, autor da obra The christology of Jesus [A
cristologia de Jesus], conseguiu demonstrar que Jesus ti-
nha uma autoconsciência suprema e transcendente. Com
base nas evidências, Witherington indagou: "Acreditava Je-
sus que era o Filho de Deus, o ungido de Deus? A resposta
é sim. Via a si mesmo como o Filho do Homem? A resposta
é sim. Via a si mesmo como o Messias final? Sim, era as-
sim que se via. Acreditava que alguém menor que Deus
poderia salvar o mundo? Não, eu não creio que ele o fi-
zesse". Os estudiosos disseram que as repetidas referên-
Apêndice: Sintese de Em defesa de Cristo P 359
cias de Jesus a si mesmo como o Filho do Homem não eram
declarações de sua humanidade, mas uma referência a
Daniel 7.13,14, onde o Filho do Homem é visto como al-
guém que possui autoridade universal e domínio eterno, e
recebe o culto de todas as nações. Disse um erudito: "As-
sim, a afirmação de ser o Filho do Homem seria, com efei-
to, a confirmação de sua divindade."

Jesus estaria louco quando afirmou ser o Filho


de Deus?
Gary Collins, professor de psicologia há vinte anos e autor
de 45 livros sobre tópicos relacionados à psicologia, disse
que Jesus não exibiu quaisquer emoções inadequadas, esta-
va em contato com a realidade, era brilhante, tinha notáveis
percepções sobre a natureza humana, cultivava relaciona-
mentos profundos e duradouros. "Simplesmente não vejo
sinais que Jesus estivesse sofrendo de qualquer doença men-
tal", de concluiu. Além disso, Jesus sustentou a afirmação
de ser Deus por meio de feitos miraculosos de cura, estupen-
das demonstrações de poder sobre a natureza, ensinamentos
incomparáveis, compreensão divina das pessoas e com a sua
própria ressurreição, que foi a evidência definitiva da sua
divindade.

Jesus preencheu os requisitos da divindade?


Embora a Encarnação - Deus tornando-se homem, o infini-
to tornando-se finito - ultrapasse a nossa imaginação, o des-
tacado teólogo D. A. Carson observou que existem muitas
evidências que Jesus exibiu as características da divindade.
Com base em Filipenses 2, muitos teólogos crêem que, en-
quanto realizava a sua missão de redenção humana, Jesus
voluntariamente eximiu-se do uso independente de seus atri-
butos divinos. Mesmo assim, o Novo Testamento confirma
especificamente que Jesus em última análise possuía todas
360 q EM DEFESA DA FÉ

as qualificações da divindade, entre as quais onisciência,


onipresença, onipotência, eternidade e imutabilidade.

Jesus correspondeu - e Jesus somente - à identidade


do Messias?
Centenas de anos antes de Jesus nascer, os profetas predisse-
ram a vinda do Messias ou "Ungido", que iria redimir o povo
de Deus. Com efeito, dezenas dessas profecias do Antigo Testa-
mento criaram marcas que somente o Messias verdadeiro po-
deria ter. Isso deu a Israel um meio de afastar os impostores e
validar as credenciais do Messias autêntico. Contra gigantes-
cas probabilidades - uma chance em um trilhão, trilhão,
trilhão, trilhão, trilhão, trilhão, trilhão, trilhão, trilhão, trilhão,
trilhão, trilhão, trilhão - Jesus, e somente Jesus em toda a his-
tória, pode ser identificado com estas impressões digitais pro-
féticas. Isso confirma a identidade de Jesus com um inegrável
grau de certeza. O especialista que entrevistei a propósito deste
tópico, Louis Lapides, é um exemplo de alguém que foi criado
em um lar judeu conservador e passou a acreditar que Jesus é o
Messias, após o estudo sistemático das profecias. Hoje, é pastor
de uma igreja na Califórnia e ex-presidente de uma rede nacio-
nal de quinze congregações messiânicas.

Teria sido a morte de Jesus um logro e a sua ressurreição


um embuste?
Analisando dados médicos e históricos, o dr. Alexander
Metherell, médico também formado em engenharia, concluiu
que Jesus não poderia ter sobrevivido aos terríveis rigores da
crucificação e muito menos à ferida aberta que perfurou o seu
pulmão e o seu coração. Na realidade, ainda mesmo antes da
crucificação ele já apresentava uma condição entre séria e críti-
ca, sofrendo dum choque hipovolêmico como resultado do
açoitamento que sofreu. A idéia que ele de algum modo desmaiou
na cruz e fingiu estar morto carece de qualquer fundamento
Apêndice: Síntese de Em defesa de Cristo P 361
comprobatório. Os carrascos romanos eram terrivelmente efici-
entes, e saberiam que enfrentariam a morte se qualquer de suas
vítimas descesse viva da cruz. Mesmo que Jesus tivesse de algum
modo sobrevivido a essas torturas, a sua pavorosa situação ja-
mais poderia ter inspirado um movimento mundial baseado na
premissa de que ele havia triunfado gloriosamente sobre o túmulo.

o corpo de Jesus estaria realmente ausente do seu


túmulo?
William Craig Lane, que obteve dois doutorados e escreveu vá-
rios livros sobre a Ressurreição, apresentou extraordinárias evi-
dências de que o símbolo duradouro da Páscoa - o túmulo
vazio - foi uma realidade histórica. O túmulo vazio é mencio-
nado ou subentendido em fontes extremamente antigas - o
evangelho de Marcos e um credo em 1 Coríntios 15 - que têm
data tão próxima do evento que não poderiam ter sido produto
de lenda. O fato de os evangelhos informarem que foram mu-
lheres que descobriram o túmulo vazio apóia a autenticidade
dessa história, porque o testemunho de mulheres carecia de
credibilidade no primeiro século e assim não teria havido ne-
nhuma razão para relatar que encontraram o túmulo vazio se
não fosse verdade. O local do túmulo de Jesus era conhecido
dos cristãos, judeus e romanos, de modo que poderia ter sido
examinado pelos céticos. Na realidade, ninguém - nem mes-
mo as autoridades romanas ou os líderes judeus - jamais afir-
mou que o túmulo ainda continha o corpo de Jesus. Em vez
disso, eles foram forçados a inventar a história absurda de que
os discípulos, apesar de não terem nenhum motivo ou oportu-
nidade, haviam roubado o corpo - uma teoria que não é aceita
hoje em dia nem mesmo pelos críticos mais céticos.

Teria Jesus sido visto vivo após a sua morte na cruz?


As evidências das manifestações de Jesus após a ressurreição
não se desenvolveram gradualmente ao longo dos anos como
362 q EM DEFESA DA FÉ

memórias de sua vida, distorcidas pela mitologia. Antes, disse


o renomado especialista na Ressurreição, Gary Habermas, sua
ressurreição foi "a proclamação central da igreja primitiva des-
de o princípio". A antiga crença de 1 Coríntios 15 menciona
indivíduos específicos que se encontraram com o Cristo
ressurreto e Paulo chegou a desafiar os céticos do primeiro sé-
culo a falarem pessoalmente com esses indivíduos para verifi-
car por si mesmos a veracidade dessa questão. O livro de Atos
dos Apóstolos está repleto de afirmações extremamente antigas
acerca da ressurreição de Jesus, ao passo que os evangelhos des-
crevem com detalhes numerosos encontros. O teólogo inglês
Michael Green concluiu: "Os aparecimentos de Jesus são tão
bem atestados quanto qualquer outro acontecimento da Anti-
güidade[ ...] Não pode haver nenhuma dúvida razoável de que
ocorreram."

Existiriam quaisquer fatos comprobatórios que


apontam para a ressurreição?
O professor J. P Moreland apresentou evidências circunstan-
ciadas que ofereceram uma forte documentação a favor da Res-
surreição. Em primeiro lugar, os discípulos se achavam em
uma situação especial para saber se a Ressurreição aconteceu,
e eles foram para a morte proclamando que a Ressurreição era
uma realidade. Ninguém morre consciente e voluntariamente
por uma mentira. Em segundo lugar, à parte da Ressurreição,
não existe uma boa razão pela qual certos céticos como Paulo e
Tiago teriam se convertido e teriam morrido por sua fé. Em
terceiro lugar, algumas semanas após a Ressurreição, milhares
de judeus se convenceram que Jesus era o Filho de Deus e co-
meçaram a segui-lo, abandonando certas práticas sociais im-
portantes que haviam tido grande importância sociológica e
religiosa por séculos. Acreditavam que estariam sujeitos à con-
denação se estivessem errados. Em quarto lugar, os antigos sa-
cramentos da Santa Ceia e do batismo afirmavam a ressurrei-
ção e a divindade de Jesus. E em quinto lugar, o surgimento
miraculoso da igreja em face a brutais perseguições romanas
Apêndice: Síntese de Em defesa de Cristo p) 6)

"produzum grande buraco na história, umburaco comotama·


n
nho eaforma da Ressurreição , como escreveu C. F. D. Moule,

Concluí que esse testemunho especializado, visto em seu


conjunto, constitui-se evidência convincente que Jesus
Cristo era quem afirmava ser - oúnico Filho de Deus, O
ateísmo que eu havia abraçado por tanto tempo cedeu sob
opeso da verdade histórica,

Queira consultar Em Defesa de Cristo para ver os detalhes


que sustentam essa síntese,
Este Guia é mais um dos recursos disponibilizados pela
Editora Vida, por meio da EKKLESIA. A EKKLESIA é fruto da par-
ceria da Igreja Batista Central de Fortaleza com a Willow Creek
Association, que reúne igrejas de diversas denominações em
todo o país com o objetivo de equipar e encorajar líderes a
desenvolver igrejas que prevalecem.
No Brasil, a Igreja Batista Central de Fortaleza, através da
EKKLESIA, oferece a seus membros os seguintes benefícios:

• Descontos de 20% na compra de qualquer material


produzido pela EKKLESIA.
• Descontos de 20% na compra de qualquer material
produzido pela Igreja Batista Central de Fortaleza.
• Descontos de 20% na compra de qualquer material da
Editora Vida, por meio da EKKLESIA.
• Uma fita bimestral da série Impacto, um audiojornal,
em português, para pastores e líderes.
• Uma assinatura anual do jornal Netfax, produzido pela
Leadership Network.
• Uma fita mensal da série Defining Moments, um audio-
jornal, em inglês, para pastores e líderes, produzido
pela Willow Creek Association.
• Um jornal bimestral, WCA News, produzido pela Willow
Creek Association.

Também podemos servir às igrejas associadas:

• Facilitando o treinamento de líderes.


• Auxiliando a desenvolver a Rede Ministerial, Grupos
Pequenos e demais ferramentas que Deus nos tem dado.
• Catalizando e implementando mudanças.
• Promovendo o intercâmbio de experiências entre as
igrejas filiadas.
Sobre o livro

Categoria • Teologia I Apologética

Fim da execução _ outubro de 2002


Data de publicação. outubro de 2002
l :" edição _ 2002

Tiragem Ano
123456789 09 08 07 06 05 04 03 02

Formato. 14 x 21 em
Mancha _ 11,5 x 17,5 em
Tipo e corpo/entrelinha _ ZapfElliPtBt 11113 (texto),
10/12 (citações), 7/8,4 (cabeçalho ímpar),
10/14,2 (texto em destaque);
Oprima 20/20,4 (títulos);
ZapfElliPtBt 12/14,2 (subtítulos) e
Equipe de realização 7/8,4 (cabeçalho par)
Papel. Off-Set 75 g/m 2 (miolo),
Produção gráfica Cartão Supremo 250 g/m 2 (capa)

Supervisão Tiragem _ 4 mil exemplares


SANDRA LEITE
Impressão _ Imprensa da Fé
Fotolito
IMPRENSA DA FÉ Impresso no Brasil I Printed in Brazil


Produção editorial
Coordenação
ROGÉRIO PORTELLA

Edição de texto
MAXALTMAN

Revisão de provas
REGINALDO DE SOUZA

Projeto grdfico
DOUGLAS LUCAS

Diagramação
IMPRENSA DA FÉ

Capa
DOUGLAS LUCAS

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