Sobre As Proibições de Prova em Processo Penal.
Sobre As Proibições de Prova em Processo Penal.
Sobre As Proibições de Prova em Processo Penal.
SOBRE
AS PROIBIÇÕES DE PROVA
EM PROCESSO PENAL
•
3. A necessária e permanente referência ao caso concreto impõe
naturalmente balizas à reflexão sobre as proibições de prova e os prin-
cípios fundamentais do seu regime. Não pode, nomeadamente, aspi-
rar-se à definição de uma qualquer malha de enunciados normativos,
capazes de enquadrar, como premissas de um rígido programa condi-
cional, as pertinentes expressões da vida. Terá, pelo contrário, de
optar-se por um discurso marcado pela plasticidade e abertura à sur-
presa do caso concreto. Como HASSEMER pertinentemente enfatiza,
mais do que apostado em impor soluções por demonstração dedutiva, HORIZONTE POLÍTICO-CRIMINAL E NORMATIVO
este discurso há-de empenhar-se em apontar caminhos (<<weisendstatt DAS PROIBIÇÕES DE PROVA
beweisend») (84).
Isto explicará, por seu turno, o curso e desenvolvimento que a
§ 9. FUNDAMENTOS POLÍTICO-CRIMINAIS E AXIOLÓGICO-
partir daqui procuraremos imprimir ao nosso estudo. No essencial, -TELEOLÓGICOS
ele limitar-se-á à tentativa de pôr a descoberto alguns tópicos suscep-
tíveis de ajudar a demarcar o horizonte político-criminal, mate- 1. Como início de aproximação aos fundamentos materiais da
rial-axiológico e normativo do direito das proibições de prova. Desta figura e do regime das proibições de prova, nada mais indicado do
forma se procurando oferecer ao intérprete e aplicador do direito que a citação de duas formulações axiomáticas pedidas a outras tantas
alguns pontos de orientação e arrimo na abordagem e tratamento e marcantes decisões do BGH alemão, respectivamente, o caso do
dos casos concretos do quotidiano. À conta do mesmo propósito gravador (1960) e o (primeiro) caso do diário (1964). Segundo a pri-
- e como ilustração e explicitação daquele horizonte no sentido da meira: «não é nenhum princípio da ordenação processual que a ver-
concretização - deverão entender-se as referências finais a algumas dade tenha de ser investigada a todo o preço» (1). Nos termos da
das áreas problemáticas de mais ostensivo relevo dogmático e prático- segunda: «o objectivo do esclarecimento e punição dos crimes é,
-jurídico. Referências assumidas a título meramente exemplificativo seguramente, do mais elevado significado; mas ele não pode repre-
e, por isso, de forma intencionalmente sincopada. sentar sempre, nem sob todas as circunstâncias, o interesse prevale-
cente do Estado» (2).
Subjacente ao conceito e regime das proibições de prova está,
assim, a crença na existência de limites intransponíveis à prossecução
da verdade em processo penal. Que relevam de valores que, não
podendo reivindicar-se de qualquer representação cosmológica ou
jusnaturalista trans-histórica e sendo hoc sensu criações históricas,
não deixam de configurar valores de todo em todo indisponíveis. Na
expressiva formulação de HASSEMER, as proibições de prova prestam
homenagem à Rechtskultur do processo penal de um Estado de resse - se bem que, também ele legítimo e relevante do ponto de
Direito. Em causa estão, explicita o autor, «valores jurídicos que, vista do Estado de Direito - no eficaz funcionamento do sistema da
embora historicamente mutáveis, são hoje para nós irrenunciáveis. E justiça penal» (5).
que, não podendo deduzir-se more geometrico, caracterizam o hori-
zonte normativo do nosso sistema jurídico de tal modo que o seu 2. Como terá já ficado sugerido, as proibições de prova rele-
sacrifício ou funcionalização subverteria a nossa experiência histórica vam também da actualização da consciência de que o processo penal
e a nossa tradição no sentido do desenvolvimento de um direito - realizando interesses de inquestionável dignidade e estando preor-
justo» (3). denado à preservação dos bens jurídicos fundamentais da comuni-
É conhecido o longo e doloroso processo de génese e afirmação dade - redunda, não raro, na compressão e sacrifício drásticos de
desta «cultura» do processo penal. Que, no essencial, se confunde valores de não menor significado. Como observa PETERS,«preorde-
com o desenvolvimento histórico da superação dos modelos inquisitó- nado à tutela de valores, o processo penal traz também consigo o
rios e triunfo dos princípios basilares do processo de estrutura acusa- perigo da destruição de eminentes valores comunitários e
tória. E que acaba por se consumar ao mesmo tempo em que fazia a pessoais» (6).
sua entrada na história o moderno Estado de Direito, trazendo consigo E foi precisamente esta experiência, recorda GRÜNWALD, que fez
uma nova ordenação constitucional assente nos - e orientada para ganhar corpo à exigência de que «para além da ordenação da perse-
os - direitos fundamentais, maxime a intangível dignidade da pessoa guição penal, o direito processual penal se constitua também em seu
humana e a liberdade fundamental de acção. Que são erigidos em limite» (7). Limite imposto tanto em nome dos valores ou direitos
complexidade irredutível do discurso da criminalização, tanto no pessoais - subjectivados, v. g., pelo arguido, ofendido, testemunhas,
plano substantivo como processual. «Os custos dos artigos 1.0 etc. - como em nome dos próprios interesses (maxime a realização
e 2.° da Lei Fundamental - refere nesta linha AMELUNG- para o da justiça e a restauração da paz jurídica) que ao processo penal cabe
sistema social consistem no facto de os princípios fundamentais neles promover. Como GÓSSELassinala, às proibições de prova cabe a
consagrados estreitarem o espectro das soluções possíveis: o sistema importante tarefa de «prevenir que o imperativo da realização da jus-
não pode superar os seus problemas à custa do desrespeito do valor tiça material que dimana do Estado de Direito redunde precisamente
autónomo da pessoa. Nessa medida, os princípios funcionam como no seu contrário». Como sucederá sempre que a verdade material
limites do pensamento da danosidade social em direito penal» (4). seja lograda à custa de «atentado à dignidade humana ou da violação
Como, em sentido convergente, assinala FIGUEIREDO DIAS: «Quando, de outros princípios do Estado de Direito» (8). É que, precisa GÓSSEL
em qualquer ponto do sistema ou da regulamentação processual «do princípio do Estado de Direito decorre o dever de averiguar a ver-
penal, esteja em causa a garantia da dignidade da pessoa - em regra dade e, ao mesmo tempo, a delimitação dessa averiguação» (9).
do arguido, mas também de outra pessoa, inclusive da vítima -,
nenhuma transacção é possível. A uma tal garantia deve ser con-
ferida predominância absoluta em qualquer conflito com o inte- (5) FIGUEIREDODIAS, «Para uma Reforma», pág. 207.
(6) PETERS, Strafprozess, pág. 219. No mesmo sentido, ROXIN, Strafver-
fahrensrecht, pág. 147.
(3) HASSEMER,Maihofer-Fs., pág. 200. (7) GRÜNWALD,JZ 1966, pág. 489.
(4) AMELUNG,Rechtsgüterschutz, pág. 385. Sobre a compreensão dos direitos (8) GÓSSEL, Bockelmann-Fs., pág. 809. No mesmo sentido, OTTO,
fundamentais como custos e limites à racionalidade teleológico-funcional do sistema Kleinknecht-Fs., pág. 330.
social, cfr., desenvolvidamente, ob. cit., págs. 385 e segs. (9) GÓSSEL,BFDC 1983, pág. 262.
Dito com HASSEMER,trata-se fundamentalmente de evitar que o trito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa.
«Estado se inflija a si próprio a perda de dignidade, distanciação e Implica, noutros termos, que tenha de se garantir ao arguido a oportu-
superioridade (Verlust an Würde und überlegener Distanz) ( ... ) que nidade efectiva de se pronunciar contra os factos que lhe são imputa-
encurta a diferença ética entre a perseguição do crime e o próprio dos, em ordem a infirmar as suspeitas ou acusações que lhe são dirigi-
crime» (10). Pela positiva e com HABERMAS:«terão de institucionali- das. Pela negativa, a liberdade de declaração do arguido ganha a
zar-se processos jurídicos de decisão permeáveis ao discurso moral». estrutura de um autêntico Abwehrreeht contra o Estado, vedando
S6 assim se preservará a necessária legitimidade material que a legali- todas as tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coacção,
dade não logra só por si produzir (11). O que, de algum modo, aponta de declarações auto-incriminatórias. É precisamente nesta última
para o modelo contrafáctico de um processo comunicativo apenas dimensão, associada ao brocardo latino nemo tenetur se ipsum
aberto «à força coactiva do melhor argumento» (12). aeeusare (ou prodere) - que presta homenagem à lei talmúdica
hebraica - que a liberdade de declaração do arguido assume mais
directa relevância em matéria de proibições de prova.
§ 10. LIBERDADE DE DECLARAÇÃO E DEPOIMENTO - NEMO TENE· Neste sentido e resumidamente, o arguido não pode ser frau-
TUR SE ]PSUM ACCUSARE dulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua condena-
ção, se., a carrear ou oferecer meios de prova contra a sua defesa.
1. Uma mais detida menção da liberdade de declaração e depoi- Quer no que toca aos factos relevantes para a chamada questão da
mento (Aussagefreiheit) ajudará a compreender melhor alguns dos «culpabilidade» quer no que respeita aos atinentes à medida da pena.
enunciados que nos permitiram caracterizar o horizonte político-cri- Em ambos os domínios, não impende sobre o arguido um dever de
minal e axiológico-material das proibições de prova. colaboração nem sequer um dever de verdade. E isto posta entre
Como projecção normativa e prático-jurídica dos dispositivos parênteses a vexata quaestio sobre se pode ou não falar-se com pro-
constitucionais atinentes aos Auffanggrundrechte da dignidade priedade de um autêntico direito do arguido à mentira (14). Seja
humana, da liberdade geral de acção ou do direito ao livre desenvol- como for quanto a este ponto, não cremos que possa questionar-se a
vimento, a liberdade de declaração não é um exclusivo do arguido. asserção de CASTANHEIRA NEVEs: «O que ninguém hoje exige, supera-
Com maior ou menor amplitude e consistência, ela assiste igualmente das que foram as atitudes degradantes do processo inquisitório (a
a outros sujeitos processuais, nomeadamente a vítima ou as testemu- recusar ao réu a qualidade de sujeito do processo e a vê-Io apenas
nhas. Por razões óbvias, é, todavia, do lado do arguido que ela como meio e objecto de investigação), é o heroísmo de dizer a ver-
assume maior. relevo. O que justificará o privilégio que, nesta sede e
dade auto-incriminadora» (15).
com propósitos meramente exemplificativos, concederemos à liber-
O que aqui está fundamentalmente em jogo é garantir que
dade de declaração do arguido.
qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posi-
Como ESER assinala (13), esta liberdade analisa-se numa dupla ção, seja uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabilidade.
dimensão ou função. Pela positiva, ela abre ao arguido o mais irres- Na liberdade de declaração espelha-se, assim, o estatuto do arguido
(10) HASSEMER, Maihofer-Fs., pág. 204. (14) Cfr., por todos, FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual, págs. 449 e segs.,
(11) HABERMAS, KJ 1987, pág. 13. e EMJ Dez. 1979 (291), págs. 163 e segs.; RÜPING, JR 1974, págs. 138 e segs.; PuPPE,
(12) lbidem. GA 1978, págs. 302 e segs.
(13) EsER, ZStW 1967, págs. 571 e segs. (15) CASTANHEIRA NEVES, Sumários, pág. 176.
como autêntico sujeito processual. Na verdade, «só pode falar-se de Por seu turno, também o processo penal nacional-socialista e
um sujeito processual, com legitimidade para intervir com eficácia socialista sacrificam, cada um a seu modo, a prevalecentes valores
conformadora sobre o processo, quando o arguido persiste, por força transpersonalistas, que colidem abertamente com o princípio nemo
da sua liberdade e responsabilidade, senhor das suas declarações, tenetur. Isto sobretudo depois de a ideia de autonomia pessoal de ins-
decidindo à margem de toda a coerção sobre se e como quer pronun- piração kantiana ter emprestado a este princípio uma conotação acen-
ciar-se» (16). tuadamente individualista e, por isso, uma tensão centrífuga e impro-
gramável. Como PUPPE refere, «é uma das características das
2. a) O princípio nemo tenetur se ipsum accusare ganha, assim,
modernas ditaduras da atitude moral (Gesinnungsdiktaturen) partir do
o significado de uma decisiva pedra de toque, imprimindo carácter e
primado de um sublimado ideal de pertinência ao partido ou à comu-
extremando entre si os modelos concretos de estrutura processual.
nidade, para sacrificar, humilhar e punir arbitrariamente o cidadão
Bem podendo, por isso, figurar como critério seguro de demarcação e
porque não logra satisfazer tão elevadas exigências» (18). Na mesma
de fronteira entre o processo de estrutura acusatória e as manifesta-
linha, e reportando-se concretamente à experiência nacional-socialista
ções de processo inquisitório. Não devendo, pois, estranhar-se que as
acentua RÜPING:«o valor central da comunidade transcende os inte-
grandes linhas de clivagem e de afrontamento que marcaram a evolu-
resses conflituantes no processo e obriga os participantes a colaborar
ção histórica das instituições processuais penais se tenham invariavel-
no fim comum do processo, a descoberta da verdade. Os direitos dos
mente repercutido neste tópico (17).
participantes esgotam-se na sua funcionalidade para este fim, devendo
Resumidamente, se a consagração mais ou menos explícita do
consequentemente converter-se em deveres: quer deveres de declara-
princípio configura uma das marcas irrenunciáveis do processo penal
ção, quer, opinião também sustentada, deveres de realização de tare-
de estrutura acusatória, já a sua denegação anda incindivelmente asso-
fas conformes à verdade» (19). Um modelo semelhante de processo,
ciada às concretizações históricas do processo inquisitório. Tanto do
prossegue o autor, é oferecido «pelo direito vigente na DDR: o fim
processo pré-moderno como das manifestações atávicas e mais recen-
do processo, que se sobrepõe ao antagonismo das partes, reside na
tes de inquisitório, de que oferecem exemplos expressivos quer a
promoção da legalidade socialista. Uma colaboração dos parti-
legislação processual penal de obediência nacional-socialista quer o
cipantes tem o sentido de um contributo para a descoberta da verdade.
direito processual penal dos estados socialistas.
Da vinculação à sociedade socialista emerge o dever de um comporta-
O processo penal pré-reformado assentava consabidamente no
mento adequado» (20).
dogma do dever de verdade que, acima de tudo, impenderia sobre o
arguido. Uma concepção a que as representações escatológicas da b) Já referenciável nas representações subjacentes à Magna
teologia crist~, nomeadamente os ensinamentos de S. TOMÁS,empres- Charta, o princípio nemo tenetur viria a triunfar definitivamente no
tavam plausibilidade. E que encontrou expressão paradigmática na direito inglês a partir de 1679 (21). No seu texto original, a Consti-
Constitutio Criminalis Carolina (1532) cujo artigo 58.0 prescrevia o tuição dos Estados Unidos da América era omissa quanto ao pro-
recurso à tortura como forma de assegurar adimplemento, através da
confissão, àquele dever.
(18) PlJpPE,GA 1978, pág. 298.
(19) RÜPING,JR 1974, págs. 13617. onde pode igualmente colher-se uma refe-
(16) EsER, ZStW 1967, págs. 570/1. rência desenvolvida à bibliografia de obediência nacional-socialista
(17) Para uma síntese histórica e comparatística, RÜPING,JR 1974, págs. 136 (20) RÜPING,ob. cit., pág. 137.
e segs.; DINGELDEY, JA 1984, págs. 407 e segs.; ESER,ZStW 1967, págs. 565 e segs.; (21) Desenvolvidamente, ROGALL,Der Beschuidigte ais Beweismittel, págs. 72
ROGALL,Der Beschuidigte ais Beweismittei, págs. 67 e segs. e segs.
blema. o V Amendment (1791) viria. porém, a dar expressão positiva tiva fundamentação e sancionamento. Assim, a jurisprudência, tanto
a um irrestrito e consistente privilege against self-incrimination. constitucional como ordinária, propende para reconduzir o princípio à
A partir de então a Constituição americana passa a proclamar expres- exigência fundamental, e conatural ao Estado de Direito, de respeito
samente: «No person (... ) shall be compelled in any criminal case to pela dignidade humana, proclamada no artigo 1.°, n. ° I, da Lei
be witness against himself». Princípio que seria complementado Fundamental (<<DieWürde des Menschen ist unantastbar») (25).
- a partir da marcante decisão do Supreme Court sobre o caso A doutrina dominante privilegia, pelo contrário, a liberdade geral de
Miranda v. State of Arizona (1966) - com deveres particularmente acção ou o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, cons-
exigentes de esclarecimento e advertência sobre os correspondentes tante do artigo 2.°, n.o I, da mesma Lei Fundamental (<<Todostêm
direitos dos arguidos (22). direito ao livre desenvolvimento da sua personalidade»). Este direito
Vigente na ordenação jurídico-processual dos modernos Estados fundamental, argumenta, por exemplo, DINGELDEY,garante «que o
de Direito, o princípio nemo tenetur viria a ser igualmente inscrito na indivíduo não será reduzido a mero objecto da actividade estadual e
generalidade dos documentos internacionais de protecção dos direitos visa realizar uma protecção completa da liberdade individual de cada
do Homem. Com destaque para o Pacto Internacional de Direitos cidadão. Ora, esta liberdade é posta em perigo quando o arguido é
Cívicos e Políticos (1966), cujo artigo 14.°, m, aI. g), dispõe: «ln the convertido em meio de prova contra si próprio. Só quando se reco-
determination of any criminal charge against him, everyone shall be nhece ao indivíduo um direito completo ao silêncio no processo
entitled to the following minimum guarantees, in full equality: not to penal, se lhe assegura aquela área intocável de liberdade humana, em
be compelled to testify against himself, or to confess guilt». absoluto subtraída à intervenção do poder estadual» (26). Numa posi-
No plano comparatístico merecerá citação a mais recente expe- ção deliberadamente compromissória e ecléctica sustenta, por seu
riência jurídica germânica. A Lei Fundamental não consagra expres- turno, RÜPING,que «o artigo 2.°, n.o I, da Lei Fundamental protege o
sis verbis o princípio nemo tenetur. Mas isto não tem impedido a direito de autodeterminação também do arguido e do acusado e está
doutrina e a jurisprudência germânicas de sustentarem, de forma pra- em íntima conexão com a doutrina da dignidade humana segundo o
ticamente unânime, que aquele princípio configura verdadeiro arquétipo do conceito kantiano da autonomia» (27).
«direito constitucional não escrito» (23). Nesta linha, é já possível
contar com um conjunto significativo de decisões do Tribunal Consti- 3. No que ao direito processual penal português especificamente
tucional Federal, sistematicamente fiéis ao entendimento de que o concerne, a vigência do princípio, nemo tenetur se ipsum accusare
princípio goza hoje, na ordem jurídica alemã, de autêntica dignidade afigura-se-nos unívoca.
constitucional (24). Decisiva, desde logo, a tutela jurídico-constitucional de valores
As hesitações e desencontro a este propósito sobrantes circuns- ou direitos fundamentais como a dignidade humana, a liberdade de
crevem-se à identificação da sede jurídico-constitucional da respec- acção e a presunção de inocência, em geral referenciados como a
matriz jurídico-constitucional do princípio. Ainda no plano constitu-
(22) Sobre a evolução histórica e a vigência do princípio na experiência proces- (25) Neste sentido, por exemplo, a citada decisão de 31.1.1981 do Tribunal
sual-penal americana, SCHMID,Das amerikanische Strafverfahren, págs. 22 e segs.; Constitucional Federal. Em sentido abertamente crítico, GÜNTHER, JuS 1978,
LaFAVF1ISRAEL,Criminal Procedure, págs. 479 e segs. págs. 195 e segs.
(23) GRÜNWALD,StV 1987, pág. 453. Em sentido convergente, GóssEl, (26) DINGELDEY,JA 1984, pág. 409. Em sentido convergente, WOLFSLAST,
GA 1991, pág. 501. NStZ 1987, pág. 104.
(24) Cfr.,v. g.,adecisãode31.1.1981 (NJWI98I,pág.1431). (27) RÜPING,JR 1974, pág. 137. No mesmo sentido, KÜHL, JuS 1986, pág. 117.
cional não deve desatender-se o significado de um preceito como o da memória ou da capacidade de avaliação, ou meios enganosos
artigo 32.°, n.o 4, que prescreve a nulidade de «todas as provas obti- (art. 126.°).
das mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral A ordem jurídica portuguesa leva, de resto, a tutela da liber-
da pessoa ... ». Pois, a não caírem sob a censura directa da tortura ou dade de declaração e depoimento, subjacente ao princípio nemo tene-
coacção, as provas obtidas em contravenção do princípio nemo tene- tur, ao ponto de fazer intervir aqui o próprio direito penal substantivo,
tur, configurarão inescapavelmente um atentado à integridade moral ultima ratio da política criminal. Fá-Io, concretamente, através do
da pessoa. E um atentado particularmente qualificado na medida em artigo 412.° do CP (Extorsão de depoimento), votado à incrirninação
que redunda na degradação da pessoa em mero objecto ou instru- das formas mais intoleráveis de afronta àquela liberdade.
mento contra si própria numa área onde cabe assegurar a expressão da
plena liberdade e autorresponsabilidade (28). 4. Hoje não é tanto o reconhecimento do princípio nemo tenetur
Para além disso, a lei processual penal portuguesa contém uma quanto e sobretudo a definição da sua compreensão e alcance, sC., a
malha desenvolvida e articulada de normas através das quais se asse- precisa demarcação da respectiva área de tutela que suscita dificul-
gura acolhimento expresso às mais significativas exigências do prin- dades.
cípio nemo tenetur. A começar, e em se tratando de factos pertinentes a) Dificuldades que sobem de tom à medida que nos afastamos
à culpabilidade ou medida da pena, o Código de Processo Penal da consideração abstracta dos problemas e nos aproximamos das
garante ao arguido um total e absoluto direito ao silêncio (art. 61.°, constelações típicas situadas na zona de fronteira e concorrência entre
n.o 1, alo c). Um direito em relação ao qual o legislador quis delibe- o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu estatuto como
radamente prevenir a possibilidade de se converter num indesejável e objecto de medidas de coacção ou meio de prova (30). Nesta zona
perverso privilegium odiosum, proibindo a sua valoração contra o cinzenta deparam-se não raro situações em que não é fácil decidir:
arguido. E tanto em se tratando de silêncio total (art. 343.°, n.o 1) quando se está ainda no âmbito de um exame, revista, acareacção ou
como em se tratando de silêncio parcial (art. 345.°, n.o 1). Para reconhecimento, admissíveis mesmo se coactivamente impostos; ou
garantir a eficácia e reforçar a consistência do conteúdo material do quando, inversamente, se invade já o campo da inadmissível auto-
princípio nemo tenetur, a lei portuguesa impõe, já o vimos, às autori- -incriminação coerciva.
dades judiciárias ou órgãos de polícia criminal, perante os quais o Uma área problemática onde o critério tradicionalmente reconhe-
arguido é chamado a prestar declarações, o dever de esclarecimento cido para apartar as águas - a distinção entre uma actividade ou
ou advertência sobre os direitos decorrentes daquele princípio (cfr., acção positiva e o mero tolerar passivo de uma actividade de ter-
v. g., arts. 58.°, n.o 2; 61.°, n.o 1, aI. g); 141.°, n.o 4; 343.°, n.o 1). ceiro - acaba por revelar comprometedoras limitações (31). Como
Normas cuja eficácia é, por seu turno, contrafacticamente assegurada WOLFSLAST acentua, «não se é apenas instrumento da própria conde-
através da drástica sanção da proibição de valoração (art. 58.°, nação quando se colabora mediante uma conduta activa, querida e
n.o 3) (29). A mesma sanção está prevista para as provas auto-incrimi- livre, mas também quando ( ... ) contra a vontade, uma pessoa tem de
nadoras obtidas à custa de tortura, coacção, ameaças, perturbações
tolerar que o próprio corpo seja utilizado como meio de prova». silêncio meramente parcial (34). «Se - explicita KÜHL - o arguido
De resto, acrescenta, será difícil discemir porque é que a dignidade exerce o seu direito ao silêncio, ele renuncia (faculdade que lhe é
humana do arguido só é atingida quando forçado a uma acção e reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a matéria em dis-
não já quando compelido a ter de tolerar uma acção. «O tor- cussão, nessa medida vinculando o tribunal à valoração exclusiva dos
mento, a humilhação de ter de ser instrumento contra si próprio demais meios de prova disponíveis no processo. Para efeitos de valo-
podem, em caso de passividade forçada e verificadas certas circuns- ração de prova, o silêncio figura, assim, como um nullum jurídico
tâncias, ser maiores do que em caso de colaboração activa». A autora (rechtliches Nullum)>>(35).
invoca a propósito as hipóteses em que, para se reconhecer o arguido, É ainda apelando para a distinção entre colaboração activa e
este é fisicamente obrigado a manter a cabeça erguida ou assumir mera passividade que na Alemanha se vem entendendo que o arguido
uma dada expressão facial. Tudo «casos que demonstram clara- não pode ser obrigado a «soprar» nos testes de controlo de a1coolé-
mente a inexistência de uma distinção qualitativa entre a acção e a mia. Como se entende outrossim que não é admissível gravar sem o
omissão» (32). conhecimento ou consentimento do arguido uma sua conversa mesmo
que apenas para fins de peritagem fonético-lin~u~stica e~ ordem .a
b) As coisas são particularmente óbvias - e o critério da distin- identificar, v. g., a voz captada numa escuta telefomca. ASSIm o deCI-
ção entre colaboração activa e tolerância passiva relativamente diu o BGH, recentemente chamado a pronunciar-se sobre o problema
seguro - quando se trata de obter, por coacção ou meios enganosos, (decisão de 9.4.1986) no contexto do caso Schleyer (36).
declarações auto-criminadoras do arguido. Ou quando, reversa-
mente, se questiona o direito do arguido ao silêncio e o significado do c) Tudo é já mais controverso em matéria de identificação e
seu exercício. reconhecimento compulsivos de pessoas, tema particularmente agi-
Aqui parece consensual a tese que: por um lado, coloca as decla- tado na doutrina e jurisprudência alemãs (37).
rações do arguido a coberto de invencível proibição de valoração; e, a) Não dispondo o direito positivo germânico de norma corres-
por outro lado e complementarmente, proibe que o silêncio do pondente ao artigo 147.° da codificação portuguesa (Reconhe~imento
arguido possa de qualquer forma ser valorado contra ele. Hoje não de pessoas), não faltam vozes a sustentar (38) não ser pura e SImples-
encontraria seguidores a opinião sustentada por Luís OSÓRIO:«pode o mente admissível compelir o arguido a enfrentar uma testemunha para
réu ficar calado ou mesmo recusar-se a responder; mas não pode evi- efeitos de identificação e, muito menos, proceder ao reconhecimento
tar que o juiz tire do silêncio ou da recusa as conclusões que esse do arguido por pessoa que ele não pode ver (cfr. art. 147.°, n.o~,
comportamento do réu pode autorizar» (33). O silêncio deve, por isso, do CPP). As dificuldades e desencontros de opinião ganham amplt-
ser tomado como a ausência pura e simples de resposta, não podendo,
enquanto tal, ser levado à livre apreciação da prova. E isto, já o
vimos, quer se trate de silêncio total quer, na parte pertinente, de (34) Neste sentido e no que especificamente conceme aos problemas do si~ên.
cio parcial, RÜPING,JR 1974, págs. 137 e segs.; EsER, ZStW 1967, pág. 576; KÜHL,
JuS 1968, págs. 118 e segs.
(35) KÜHL,ob. cit., pág. 118.
(32) WOLFSLAST,ob. cit., pág. 104. (36) Cfr. NJW 1986, pág. 2261.
(33) LuIs OSÓRIO,Comentário, IV, pág. 158. Em sentido contrário, já no con- (37) Desenvolvidamente sobre o tema, WOLFSLAST,NStZ 1987, págs. 103 e
texto do direito anteriormente vigente, FIGUEIREOODIAS, Direito Processual, segs.; GRÜNWALD, JZ 1981, págs. 423 e segs.; DING~DEY, JA 1984, págs. 412 e segs.
págs. 448 e segs. (38) Cfr., neste sentido, GRÜNWALD, ob. loco clt.
Horizonte político-criminal e normativo
o
DIREITO PORTUGUÊS
FACE AOS MODELOS AMERICANO E ALEMÃO