Atendimento Educacional Especializado de
Atendimento Educacional Especializado de
Atendimento Educacional Especializado de
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Deficiência Mental
S
ecretário de Educação a Distância
Ronaldo Mota Coordenação do Projeto de Aperfeiçoamento de
Professores dos Municípios-Polo do Programa
“Educação Inclusiva; direito à diversidade” em
Atendimento Educacional Especializado
D iretor do Departamento de Políticas de Educação a Distância
Helio Chaves Filho Cristina Abranches Mota Batista
Edilene Aparecida Ropoli
Maria Teresa Eglér Mantoan
C
oordenadora Geral de Avaliação e Normas em Educação a
Distância
Maria Suely de Carvalho Bento
Rita Vieira de Figueiredo
C
oordenação Geral de Articulação da Política de Inclusão
Denise de Oliveira Alves
R evisão
Adriana A. L. Scrok
I
mpressão e Acabamento
Gráfica e Editora Cromos - Curitiba - PR - 41 3021-5322
I
lustrações
Alunos da APAE de Contagem - Minas Gerais
P
ara entender a deficiência mental, temos de puxar diferentes fios e cruzá-los entre si,
buscando respostas e esclarecimentos que permitam compreendê-la.
O
s textos que aqui apresentamos
abordam essa limitação humana
nessa tessitura, com o cuidado
de não reduzi-la em seu entendimento.
Coordenação do Projeto.
SUM˘RIO
CAP¸TULO I
ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO EM DEFICI¯NCIA MENTAL ..................................... 13
1. A deficiência mental ................................................................................................................................................................ 13
2. A escola comum diante da deficiência mental.................................................................................................................. 16
3. O Atendimento Educacional Especializado para as pessoas com deficiência mental e a Educação Especial .... 20
3.1. Atendimento Educacional Especializado para a deficiência mental – O Conceito ...................................... 22
3.2. Atendimento Educacional Especializado para a deficiência mental – A Prática ........................................... 24
4. Relato de uma experiência em Atendimento Educacional Especializado .................................................................. 29
4.1. Experiência da APAE de Contagem ......................................................................................................................... 29
4.2. Produção de textos na SAT Livros e Filmes............................................................................................................ 32
4.3. A produção de uma história e de outras tantas..................................................................................................... 33
4.4. Projetos na SAT’s Arte ................................................................................................................................................. 39
CAP¸TULO II
A EMERG¯NCIA DA LEITURA E DA ESCRITA EM ALUNOS COM DEFICI¯NCIA MENTAL............................... 45
1. O que é ler?................................................................................................................................................................................ 45
2. A aprendizagem da leitura e da escrita por alunos com deficiência mental .............................................................. 47
2.1. Letramento ..................................................................................................................................................................... 47
2.2. Dimensão desejante...................................................................................................................................................... 48
2.3. Expectativas do entorno, ensino e interações escolares ....................................................................................... 49
3. A avaliação da aprendizagem da leitura e da escrita ........................................................................................................ 51
3.1. Relação entre desenho e texto.................................................................................................................................... 51
3.2. Estratégias de leitura .................................................................................................................................................... 57
4. Produção escrita........................................................................................................................................................................ 60
CAP¸TULO III
MEDIAÇ›ES DA APRENDIZAGEM DA L¸NGUA ESCRITA POR
ALUNOS COM DEFICI¯NCIA MENTAL.......................................................................................................... 71
1. Introdução ................................................................................................................................................................................. 71
2. Conceituando mediação......................................................................................................................................................... 72
3. Análise de um evento de mediação...................................................................................................................................... 74
3.1. O episódio...................................................................................................................................................................... 74
3.2. Análise do episódio...................................................................................................................................................... 75
4. Ampliando as concepções de mediação para além do “Modelo SSO” ....................................................................... 77
5. Considerações finais ................................................................................................................................................................ 80
Atendimento Educacional Especializado
em Deficiência Mental1
N
a procura de uma compreensão mais transformações deste ambiente para atender às suas
global das deficiências em geral, em necessidades.
1980, a OMS2 propôs três níveis para
esclarecer todas as deficiências, a saber: deficiência,
incapacidade e desvantagem social. Em 2001, essa 13
proposta, revista e reeditada, introduziu o
motivo da sua urgente transformação: considerar a bom aproveitamento escolar e com dificuldades de
aprendizagem e a construção do conhecimento seguir as normas disciplinares da escola. O
acadêmico como uma conquista individual e aparecimento de novas terminologias, como as
intransferível do aprendiz, que não cabe em padrões “necessidades educacionais especiais‰, aumentaram
e modelos idealizados. a confusão entre casos de deficiência mental e
outros que apenas apresentam problemas na
O aluno com deficiência mental tem
aprendizagem, por motivos que muitas vezes são
dificuldade de construir conhecimento como os
devidos às próprias práticas escolares.
demais e de demonstrar a sua capacidade cognitiva,
principalmente nas escolas que mantêm um modelo Se as escolas não se reorganizarem para
conservador de ensino e uma gestão autoritária e atender a todos os alunos, indistintamente, a
centralizadora. Essas escolas apenas acentuam a exclusão generalizada tenderá a aumentar,
deficiência, aumentam a inibição, reforçam os provocando cada vez mais queixas vazias e maior
sintomas existentes e agravam as dificuldades do distanciamento da escola comum dos alunos que
aluno com deficiência mental. Tal situação ilustra o supostamente não aprendem.
A necessidade de encontrar soluções Aprender é uma ação humana criativa,
imediatas para resolver a premência da observância individual, heterogênea e regulada pelo sujeito da
do direito de todos à educação fez com que algumas aprendizagem, independentemente de sua condição
escolas procurassem saídas paliativas, envolvendo intelectual ser mais ou ser menos privilegiada. São
todo tipo de adaptação: de currículos, de atividades, as diferentes idéias, opiniões, níveis de compreensão
de avaliação, de atendimento em sala de aula que se que enriquecem o processo escolar e clareiam o
destinam unicamente aos alunos com deficiência. entendimento dos alunos e professores. Essa
Essas soluções continuam reforçando o caráter diversidade deriva das formas singulares de nos
substitutivo da Educação Especial, especialmente adaptarmos cognitivamente a um dado conteúdo e
quando se trata de alunos com deficiência mental. da possibilidade de nos expressarmos abertamente
Tais práticas adaptativas funcionam como sobre ele.
um regulador externo da aprendizagem e estão Ensinar é um ato coletivo, no qual o
baseadas nos propósitos e procedimentos de ensino professor disponibiliza a todos alunos, sem exceção,
que decidem o que falta ao aluno de uma turma de um mesmo conhecimento.
escola comum. Em outras palavras, ao adaptar
Ao invés de adaptar e individualizar/
currículos, selecionar atividades e formular provas 17
diferenciar o ensino para alguns, a escola comum
diferentes para alunos com deficiência e/ou
precisa recriar suas práticas, mudar suas concepções,
daquelas que habitualmente encontramos nas salas podem aderir a qualquer grupo de colegas, sem
de aula, nas quais o professor escolhe e determina formar um grupo à parte, constituído apenas de
uma tarefa para todos os alunos realizarem alunos com deficiência e/ou problemas na
individualmente e uniformemente, sendo que para aprendizagem.
os alunos com deficiência mental ele oferece uma Para conseguir trabalhar dentro de uma
outra atividade facilitada sobre o mesmo assunto proposta educacional inclusiva, o professor comum
ou até mesmo sobre outro completamente precisa contar com o respaldo de uma direção
diferente. Contraditoriamente, esta tem sido a escolar e de especialistas (orientadores, supervisores
solução adotada pelos professores para impedir a educacionais e outros), que adotam um modo de
„exclusão na inclusão‰. Utilizando como exemplo gestão escolar, verdadeiramente participativa e
esse mesmo conteúdo - o ensino dos planetas do descentralizada. Muitas vezes o professor tem idéias
sistema solar - é comum o professor selecionar novas para colocar em ação em sua sala de aula,
uma atividade de leitura e interpretação de textos mas não é bem recebido pelos colegas e pelos demais
membros da escola, devido ao descompasso entre o planejamento todo o grupo pode tomar decisões
que está propondo e o que a escola tem o hábito de com relação às atividades e aos grupos a serem
fazer para o mesmo fim. formados para realizá-las. Num segundo momento,
A receptividade à inovação anima a escola as atividades são realizadas conforme o plano
a criar e a ter liberdade para experimentar alternativas estabelecido. Finalmente a jornada de trabalho é
de ensino. Sua autonomia para criar e experimentar reconstituída na última parte dessa rotina, com a
coisas novas se estenderá aos alunos com ou sem participação de todos os alunos. Eles então
deficiência e assim os alunos com deficiência mental socializam o que aprenderam e avaliam a produção
serão naturalmente valorizados e reconhecidos por realizada no dia. O aluno com deficiência mental,
suas capacidades e respeitados em suas limitações. como os demais, participa igualmente de todos
esses momentos: planejamento, execução, avaliação
A liberdade do professor e dos alunos, de e socialização dos conhecimentos produzidos.
criarem as melhores condições de ensino e de
aprendizagem, não dispensa um bom planejamento A avaliação dos alunos com deficiência
de trabalho, seja ele anual, mensal, quinzenal ou mental visa ao conhecimento de seus avanços no
mesmo diário. Ser livre para aprender e ensinar não entendimento dos conteúdos curriculares durante o
ano letivo de trabalho, seja ele organizado por série 19
implica em uma falta de limites e regras ou, ainda,
em cair num espontaneismo de atuação. O ano ou ciclos. O mesmo vale para os outros alunos da
produção. Na sala onde ela é realizada de forma que ocorre na escola comum, não é determinado
mecânica, o mural reproduzirá um modo seriado, por metas a serem atingidas em uma determinada
estereotipado de agir; que reflete o desenho do série, ou ciclo, ou mesmo etapas de níveis de
professor. Na outra, o mesmo mural revelará as ensino ou de desenvolvimento.
infinitas possibilidades da criação, ou seja, do
O processo de construção do
trabalho cognitivo dos alunos, ao aprender e da
conhecimento, no Atendimento Educacional
professora, ao ensinar.
Especializado, não é ordenado de fora, e não é
O Atendimento Educacional Especializado possível ser planejado sistematicamente,
não deve ser uma atividade que tenha como obedecendo a uma seqüência rígida e predefinida
objetivo o ensino escolar especial adaptado para de conteúdos a serem assimilados. E assim
desenvolver conteúdos acadêmicos, tais como a sendo, não persegue a promoção escolar, mesmo
Língua Portuguesa, a Matemática, entre outros. porque esse aluno já está incluído.
Na escola comum, o aluno constrói um importante para o progresso escolar do aluno
conhecimento necessário e exigido socialmente com deficiência mental.
e que depende de uma aprovação e
Aqui é importante salientar que a
reconhecimento da aquisição desse conhecimento
„socialização‰ justificada, como único objetivo
por um outro, seja ele o professor, pais,
da entrada desses alunos na escola comum,
autoridades escolares, exames e avaliações
especialmente para os casos mais graves, não
institucionais.
permite essa complementação e muito menos
No Atendimento Educacional significa que está havendo uma inclusão escolar.
Especializado, o aluno constrói conhecimento A verdadeira socialização, em todos os seus
para si mesmo, o que é fundamental para que níveis, exige construções cognitivas e compreensão
consiga alcançar o conhecimento acadêmico. da relação com o outro. O que tem acontecido,
Aqui, ele não depende de uma avaliação externa, em nome dessa suposta socialização, é uma
calcada na evolução do conhecimento acadêmico, espécie de tolerância da presença do aluno em
mas de novos parâmetros relativos as suas sala de aula e o que decorre dessa situação é a
conquistas diante do desafio da construção do perpetuação da segregação, mesmo que o aluno 27
conhecimento. esteja freqüentando um ambiente escolar
comum.
EM UMA
MA MONTANHA PERTO
DA CIDADE, HAVIA UM CASTELO
ASSOMBRADO. NELE MORAVA UM
HOMEM QUE TINHA O ROSTO
MARCADO POR CICATRIZES, TRÊS
OLHOS, UM RABO DE MACACO. ELE
NÃO TINHA NOME, MAS TODOS NA
CIDADE O CHAMAVAM “BIRUTO DA
MEIA-NOITE” POR CAUSA DO BARULHO
QUE ELE FAZIA À MEIA-NOITE. TODOS
OS DIAS ELE UIVAVA DE NOITE PARA 35
ASSUSTAR AS PESSOAS E AFASTÁ-LAS
escrita. A produção nessa SAT é muito significativa colegas e artistas, por meio da observação e da
por demonstrar capacidades muitas vezes ocultas leitura de obras de arte em exposições,
e desacreditadas desses alunos. catálogos, livros etc.
A casa de Titico
Para saber mais...
O
presente texto analisa o processo de 1. O que é ler?
aquisição da leitura em alunos com
deficiência mental.
Mudanças filosóficas no campo da leitura
e da escrita vêm permitindo significativa evolução
no que se refere ao entendimento do processo de
A aquisição da linguagem escrita é alfabetização. Os resultados dos estudos realizados 45
compreendida como uma evolução conceitual por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky deram
Duas concepções sobre leitura podem texto. Assim, ler é interpretar o que o outro nos quer
fundamentar a prática dos professores. Elas são dizer (Curto et al, 2000). Esse conceito extrapola a
antagônicas e divergem quanto à metodologia de noção da relação direta entre leitura e decodificação.
ensino. Na concepção denominada tradicional, a Qualquer professor pode reconhecer alunos que
leitura se caracteriza como um conjunto de decifram corretamente e não conseguem compreender
mecanismos que envolvem percepção e memória. o significado do que acabaram de ler. Entretanto, na
Nessa abordagem, a decodificação precede a medida em que o aluno ler de forma ativa, fazendo
compreensão leitora, sendo a soletração de palavras apelo às informações do contexto, ele é capaz de
isoladas um caminho utilizado para que o aluno se antecipar interpretações, reconhecer significados e
torne leitor. As atividades de leitura caracterizam-se ainda identificar erros de leitura (Curto et al, 2000).
pela repetição, sendo organizadas normalmente de Desse modo, embora a decodificação seja necessária,
forma linear: primeiro as letras, em seguida as ela não é o instrumento que promove a compreensão
sílabas e assim por diante (Cellis, 1998). do texto.
2. A aprendizagem da leitura e da quer para o indivíduo que aprenda a usá-la
escrita por alunos com deficiência (1998: 17).
mental
A escola é o mais importante espaço social
de letramento. No entanto, nem sempre ela oferece
Os processos de aprendizagem da leitura e
variadas formas de práticas sociais de leitura. Sua
da escrita por alunos com deficiência mental são
ênfase é na alfabetização como processo de aquisição
semelhantes aos daqueles considerados normais sob
de códigos (alfabéticos e números), processo
muitos aspectos. Esses aspectos dizem respeito ao
geralmente concebido em termos de uma
letramento, à dimensão desejante, às expectativas
competência individual necessária para o sucesso e
do entorno, ao ensino e às interações escolares.
promoção na escola (Kleiman, 1995). No estudo
realizado por Gomes (2001) identificou-se a
2.1. Letramento importância das experiências vivenciadas no âmbito
sociocultural, familiar e escolar para a aprendizagem
da leitura e da escrita em alunos com síndrome de
O letramento pode ser definido como um Down. As experiências familiares de contar histórias, 47
conjunto de práticas sociais que usam a escrita formar rodas de leitura e proporcionar acesso a
gravuras. Dentre essas atividades a escrita do nome Nas atividades de leitura e escrita se observa
próprio e a escrita de bilhete foram as que propiciaram forte motivação quando o aluno se envolve
maior motivação. Por outro lado, a escrita de histórias espontaneamente. Nestas ocasiões eles demonstram
e a escrita de listas de compras foram as atividades que prazer e entusiasmo pela tarefa. Entretanto, alguns
obtiveram menor índice de motivação dos alunos. alunos não apresentam essa motivação espontaneamente,
Escrever bilhetes ou escrever o próprio nome necessitando da mediação do professor para se envolver
parecia ter uma funcionalidade imediata vinculada ao com a atividade. A mediação pedagógica consiste nas
prazer e à importância atribuída ao fato de saber ler e intervenções feitas pelo professor no sentido de apoiar
escrever o próprio nome, bem como, a autonomia de passo a passo o aluno no desenvolvimento de uma
poder comunicar um fato ou solicitar algo, no caso atividade, quando ele demonstra dificuldade na
da escrita de bilhetes. O grau de dificuldade realização da mesma ou, ainda, estimulá-lo no sentido
experimentado pelos alunos na escrita com base em de despertar seu interesse quando esse se mostra
história talvez responda pelo baixo índice de motivação
desmotivado para sua realização.
dessa atividade. Observou-se que as tarefas com maior
O exemplo a seguir ilustra a mediação de 2.3. Expectativas do entorno, ensino e
uma professora dando suporte a um aluno (12 anos, interações escolares
com deficiência mental) que estava escrevendo palavras
com base em figuras.
As expectativas positivas dos familiares e
dos professores interferem na aprendizagem dos
Ednardo: Surfista começa com su? alunos. Essas expectativas se manifestam nas
Professora: Sim, começa com su. diversas situações de interações sociofamiliares e
escolares. Embora possam existir diferenças no
Ednardo escreve: AUAOO.
desenvolvimento das crianças, é importante ter
Professora: A palavra surfista termina com qual letra? consciência de que elas podem se beneficiar de
Ednardo: A. (Acrescenta a letra A na pauta escrita que diferentes experiências no contexto familiar e
fica: AUAOOA) escolar. Desejar que todos aprendam igualmente é
Professora: Qual letra você escreveu no começo da uma tarefa impossível, mesmo em se tratando de
palavra surfista? pessoas ditas normais. Essa compreensão
possibilita uma educação pautada no respeito aos 49
Ednardo: S.
ritmos e às potencialidades individuais. O trecho
A criança responde que em ambos os Professora: O que está escrito aqui? (apontando a
cartões está escrita a mesma palavra, mesmo quando palavra pato sobre a figura de um pato)
ela reconhece que as letras que compõem as duas Criança: Pato.
palavras são diferentes. Esse tipo de resposta indica
Professora: E o que está escrito aqui? (apontando a
que a criança se orienta exclusivamente na imagem
palavra bola sobre a figura de um pato)
para interpretar o que está escrito.
Criança: Pato.
Professora: Esta palavra é igual a esta? (apontando as
Reconhece a diferença e atribui nova palavras pato e bola cada uma sobre a figura pato)
interpretação à gravura. Criança: É.
Professora: E aqui? (apontando a palavra bola sobre
a figura de um pato)
Nesse tipo de resposta, a criança reconhece
Criança: É.
a diferença na escrita e justifica essa diferença
56 atribuindo nova interpretação à gravura. Essa nova Professora: Esta palavra (mostrando a palavra bola)
interpretação normalmente é vinculada ao gênero tem as mesmas letrinhas que essa outra? (palavra pato)
Elas são iguais?
Atendimento Educacional Especializado para Alunos com Deficiência Mental
Esse tipo de estratégia se caracteriza pelo uso O aluno quando utiliza esse tipo de
de conhecimentos anteriores na tentativa de interpretar estratégia, compara letras ou palavras do texto com
o texto escrito. Os alunos que utilizam essa estratégia aquelas do seu vocabulário. A tentativa de ler uma
mobilizam seus conhecimentos de acordo com as palavra apoiando-se unicamente em letras de seu
ilustrações, o tipo de texto e as suas experiências sociais repertório indica que o aluno está fazendo uma
com a linguagem escrita. O seguinte exemplo ilustra o leitura global, orientando-se pelo reconhecimento de
uso desse tipo de estratégia. letras isoladas, sem atribuir importância ao conjunto
e às particularidades dos caracteres que compõem a
palavra. Nessa situação o aluno ainda não opera com
Professor: Eu vou mostrar para você alguns rótulos.
as regras de funcionamento da escrita alfabética. Para
Vamos ver se você consegue ler? Você sabe o que
ilustrar essa estratégia, apresentamos uma atividade
está escrito aqui?
realizada por um professor, que consistiu no uso de
Ricardo: É o OMO.
crachás para identificação do nome próprio. Nessa
58 Professor: E como é que você sabe que é OMO? atividade, o professor distribuiu aleatoriamente os
Ricardo: Ah tia, eu sei. crachás com todos os nomes dos presentes, incluindo
Atendimento Educacional Especializado para Alunos com Deficiência Mental
Professor: E você sabe para que serve OMO? outros nomes de pessoas ausentes.
Ricardo: É para lavar roupa tia. Professora: Agora cada um pode pegar o seu nome.
Nesse exemplo, Ricardo mobiliza (Todos os alunos pegam corretamente o próprio nome)
conhecimentos anteriores para interpretar o que lhe Professora: E estes nomes aqui, de quem são? (aponta
é proposto, sua experiência anterior permite que ele para os nomes: Paola, Manuella e Conceição)
realize uma leitura global do texto, apesar de não Ricardo: Este é da Conceição e este é da Manuella.
ter se apropriado de estratégias específicas de (apontando os nomes corretamente)
decodificação. A mobilização do conhecimento
Professora: E este de quem é? (aponta para o nome
prévio é de extrema importância para a aprendizagem
Paola)
da leitura, logo o professor precisa estar atento para
Ricardo: Tem o P. É da Paulinha.
orientar o uso desse tipo de estratégia.
Professora: Tem certeza?
Ricardo: Tenho.
Na situação descrita, Ricardo associa a palavra. A intervenção, a seguir, realizada com uma
letra P ao nome de uma colega (Paulinha), cuja letra aluna com síndrome de Down, demonstra o uso
inicial é a mesma do nome Paola. O aluno foi capaz desse tipo de estratégia:
de mobilizar conhecimentos anteriores, no caso o
conhecimento da letra em questão, para dar
significado ao texto escrito. A letra inicial, de um Professora: O que está escrito aqui? (Aponta o título
nome já conhecido, foi a pista utilizada para atender da história na capa de um livro: Fogo no céu)
ao apelo da professora.
Elisabeth: Fo...go...no...céu.
Professora: E o que esta frase diz?
Estratégia de decodificação.
Elisabeth: (Silêncio).
Professora: O que significa isso?
Usando esse tipo de estratégia, o aluno
Elisabeth: (Silêncio).
realiza a leitura a partir das unidades lingüísticas,
isto é, faz análise e síntese das letras que compõem Professora: E esta palavra aqui? (aponta para a
cada sílaba das palavras. Normalmente os alunos palavra fogo)
apresentam dois tipos de estratégias de decodificação: 59
Elisabeth: fo-go.
um com compreensão e o outro sem compreensão
a palavra pata)
Professora: Muito bem, é isso mesmo.
Apesar de alguns professores do ensino regular
Miguel: Falou com a pata...
afirmarem que não estão preparados para receber alunos
Professora: Falou o quê? com deficiência mental em suas salas de aula, pesquisas
Miguel: Falou que o céu pegou fogo! recentes (Moura, 1997; Martins, 1996; Alves, 1987;
Figueiredo Boneti,1995, 1996, 1999a, 1999b; Gomes,
Professora: Quem disse isso? 2001) vêm indicando que esses alunos vivenciam
Miguel: O rato falou para a pata que o céu pegou processos cognitivos semelhantes aos das crianças ditas
fogo. normais, no que se refere ao aprendizado da leitura e da
escrita. Embora o ritmo de aprendizagem dos alunos
com deficiência se diferencie por requerer um período
Nessa situação, o controle e as ações mais longo para a aquisição da língua escrita, as
desenvolvidas por Miguel de modo autônomo estratégias de ensino para esses alunos podem ser as
asseguram a eficiência de várias estratégias de leitura, mesmas utilizadas com os alunos ditos normais.
No decorrer do processo de construção da Nível 3: Tentativa de dar um valor sonoro a
escrita, as crianças descobrem as propriedades do sistema cada uma das letras que compõe uma escrita; é superada
alfabético e, a partir da compreensão de como funciona a etapa de correspondência global; as exigências de
o signo lingüístico, elas aprendem a ler e escrever. variedade e quantidade mínima de caracteres pode
Segundo Ferreiro e Teberosky (1986), no decorrer desse desaparecer momentaneamente; para resolver o
processo a criança passa por diferentes níveis, os quais problema de falta de quantidade mínima para a grafia
apresentaremos a seguir. de alguma palavra, um elemento coringa poderá ser
utilizado; a hipótese silábica se caracteriza pela noção
de que cada sílaba corresponde a uma letra. Essa noção
Nível 1: Escrever é reproduzir os traços pode acontecer com ou sem valor sonoro. Na escrita de
típicos da escrita que a criança identifica como sendo a uma frase, a criança utiliza uma letra para cada
forma básica da escrita; a intenção subjetiva do escritor palavra.
conta mais que as diferenças objetivas no resultado;
podem aparecer tentativas de correspondência entre a
escrita e o objeto referido; desenhar pode ser encarado Nível 4: Passagem da hipótese silábica para a
como uma tentativa de escrever, embora possa identificar alfabética. Esse é um momento de conflito, pois a
desenho e escrita do adulto ou, ainda, servir como apoio criança precisa negar a lógica da hipótese silábica. Nesse
à escrita para garantir o seu significado; as grafias são momento o valor sonoro torna-se imperioso, a criança 61
variadas e a quantidade de grafias é constante; a leitura começa a acrescentar letras especialmente na primeira
uma forma de representação. Os registros das crianças letras móveis, fichas com palavras e frases escritas, jogos
se caracterizam por formas circulares sem a utilização pedagógicos e livros de literatura infantil, são
de sinais gráficos convencionais e sem intenção de instrumentos que podem auxiliar o professor no seu
representação. trabalho com esses alunos. Para superar as dificuldades
de organização espacial e na coordenação motora fina,
Em nossa intervenção pedagógica com alunos
o professor pode fazer uso de recursos variados que
com deficiência mental, aqueles que se encontravam
permitam em alguns momentos a criança exercitar
nesse nível de representação não conseguiam interpretar
livremente sua expressão gráfica, como o uso do desenho
as suas produções, mesmo quando estavam em um
livre, e em outros escrever em espaços delimitados1.
contexto preciso. A dificuldade de atribuir significado à
escrita se manifestava em diferentes atividades nas quais 1 Esse espaço pode ser delimitado com canudinhos, palitos de
as crianças eram solicitadas a interagir com o universo picolé ou outro material que permita ao professor ajudar seu
aluno na organização de sua escrita. Entretanto, é preciso ter
gráfico. Em determinadas situações a criança não muito cuidado para não inibir a criança na sua produção
conseguia expressar o que estava desenhando ou que espontânea. A delimitação do espaço só pode ser utilizada
havia escrito. Ela olhava para o conjunto de linhas retas quando o aluno já estiver suficientemente motivado para
produzir textos e familiarizado com a escrita espontânea.
Em nossos estudos os alunos que Escrita com valor representativo.
apresentam esse tipo de respostas são justamente
aqueles cujo comportamento se caracteriza por
A consciência de que para ler coisas
constantes dispersões, agitação e desinteresse por
diferentes deve haver uma diferença objetiva nas
atividades que implicam em simbolismo, tais escritas, conforme Ferreiro e Teberosky (1986)
como desenho, pintura e modelagem. Entretanto, identificaram em sujeitos normais, também aparece
a análise do desempenho desses alunos deve nos alunos com deficiência mental. O texto, a
contemplar não somente os avanços na escrita, seguir, ilustra a produção de uma criança com
mas também os ganhos na aquisição de atitudes, deficiência mental no nível pré-silábico da escrita.
tais como: cooperação, participação e interação A professora leu a história Aladim e a lâmpada
maravilhosa e solicitou que os alunos escrevessem o
no grupo, bem como maior interesse por
que haviam compreendido da história.
atividades relacionadas à leitura e à escrita:
leitura e contação de histórias, registros orais e
escritos, desenho, modelagem e escrita do nome
Texto produzido: Texto lido:
próprio. À medida que as crianças avançam nas
atitudes que favorecem a aquisição da escrita, Era uma vez um
63
AOUUARDO
elas começam a produzir registros utilizando-se Aladim.
exemplo, em uma classe de alfabetização, uma Seu comportamento evidencia a escrita silábica,
aluna com deficiência mental foi solicitada a com um caractere para cada sílaba (na palavra
reproduzir a parte que mais gostou de uma história vaca ele acrescenta a letra A para fazer a
lida pela professora. Essa aluna escreveu o seguinte adequação sonora da última sílaba) e ainda a
texto: SANRGATE. Quando a professora solicitou utilização do RDO como elemento coringa da
que ela interpretasse a sua produção, ela leu fazendo escrita. Esse elemento coringa é geralmente
correspondência entre as unidades das palavras e a utilizado quando a criança entra no conflito
seqüência das letras escritas: Ela (SA) comeu (NRG) entre a hipótese silábica e o critério de quantidade
bastante (ATE). Na pauta escrita pela criança não mínima de caracteres. Para resolver esse conflito,
há evidência da relação fonema-grafema, assim a criança introduz uma ou mais letras. No caso
como não há segmentação das palavras. Entretanto, da palavra VACA, Eduardo utiliza dois elementos
sua interpretação de escrita indica uma orientação coringas: a letra A e a terminação RDO que
silábica. corresponde à terminação de seu nome,
compondo a pauta: AUARDO. Na medida em fragilidades em selecionar, controlar e organizar
que a criança avança conceitualmente, o suas idéias com coerência. Nessas produções, a
elemento coringa desaparece dos seus registros. qualidade dos textos está relacionada com o gênero
Para que essa evolução ocorra, o professor deve textual. Na reescrita de textos narrativos muitos
mediar a escrita dos seus alunos com ênfase nas alunos expressam dificuldades na recomposição
unidades sonoras das palavras. Para que a do sentido global dos eventos narrativos, enquanto
produção se aproxime da escrita convencional, que nas produções de textos com uso de imagens
é necessário também fazer associações e na escrita de bilhetes, eles demonstram maior
fonéticas. facilidade. Provavelmente as dificuldades se
O primeiro indício de progresso para o acentuam na reescrita de textos narrativos porque
nível silábico ocorre com o surgimento da esses textos apresentam um grau elevado de
segmentação de palavras. Uma aluna com complexidade e, conseqüentemente, devem exigir
deficiência mental, ao ser solicitada a escrever maior elaboração em termos de funcionamento
algumas palavras e frases, na ausência de um cognitivo. Para auxiliar o aluno na superação
modelo de escrita convencional, ela escreveu: dessa dificuldade, o professor pode orientá-lo na
utilização de algumas estratégias, tais como a 65
LONUBRATA, ARUANUATA para representar
mobilização de conhecimentos anteriores, a
Carlos.
síndrome de Down: relações entre fala, gestos e produção
CELLIS, Glória Inostroza de. Aprender a formar crianças
gráfica. São Carlos, 1996. Dissertação (Mestrado em
leitoras e escritoras. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
Educação). Universidade Federal de São Carlos.
CURTO, Maruny Lluís, MORILLO, Ministral Maribel,
MOURA, Vera. O Poder do saber: relato e construção de
TEIXIDÓ, Miralles Manuel. Escrever e ler: como as
uma experiência em alfabetização. Porto Alegre: Kuarup,
crianças aprendem e como o professor pode ensiná-las a
1997.
escrever e a ler. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros -
FERREIRO & TEBEROSKY. A psicogênese da língua
Belo Horizonte: Autêntica, 1998, p. 69.
escrita. Porto Alegre: Artes Médicas: 1986.
VYGOTSKY, L.S. A Formação social da mente. Traduzido
FIGUEIREDO, Rita Vieira. NOTER pour Penser.
por Jefferson Luiz Camargo - São Paulo: Martins Fontes,
Trabalho apresentado do Coloque Internacional Noter
1995.
pour Penser, Angers (Fr) 26 a 28 de janeiro, 2006.
_______________. VYGOTSKY, L.S. Fundamentos da
FIGUEIREDO, Rita Vieira & Gomes, Limaverde L.
Defectologia. Espanha: Editorial Pueblo y Educacion,
Adriana. A emergência das estratégias de leitura em sujeitos
1986.
com deficiência mental. Anais Anped. Poços de Caldas,
2003.
Mediações da aprendizagem da língua escrita por
alunos com deficiência mental*
E
ste trabalho é resultado de uma pesquisa Os procedimentos da pesquisa constaram de:
que teve como objetivo investigar quais
estratégias de leitura são desenvolvidas por
71
1) Avaliação inicial da evolução dos
alunos com deficiência mental em atividades de
Capítulo III - Mediações da aprendizagem da língua escrita por alunos com deficiência mental
sujeitos em relação à linguagem escrita
leitura e escrita e ao tentar compreender as regras de
e suas estratégias de leitura.
funcionamento da escrita alfabética.
2) Sessões semanais de intervenção
O estudo, de caráter longitudinal, pedagógica com duração de
fundamenta-se numa abordagem sociohistórica de aproximadamente duas horas e meia.
educação e desenvolvimento humano. A investigação 3) Avaliação final dos progressos obtidos
foi desenvolvida por intermédio de sessões de por cada sujeito ao longo do período
intervenção e avaliação pedagógicas realizadas com de intervenção pedagógica.
alunos com deficiência mental, visando
proporcionar-lhes experiências que contribuam O estudo foi desenvolvido com 10 alunos
para a aquisição da linguagem escrita, assim como com idade entre 12 a 20 anos, 2 dos alunos pertencem
a uma família de classe média, enquanto os outros
* Publicado no livro Linguagem e Educação da Criança.
Organizado por Silvia Helena Vieira Cruz e Mônica 8 pertencem a famílias de meio socioeconômico
Petralanda de Holanda, editora da UFC, 2004 desfavorecido, 3 dos quais residem em uma
instituição filantrópica para crianças abandonadas. Antes de passarmos à análise do episódio a
Quanto ao desenvolvimento da linguagem escrita, que nos referimos, consideramos necessária uma
4 (Miguel, Alice, Lya e Elizabeth) atingiram o nível breve apresentação das noções de mediação que
alfabético e os demais se encontram nos níveis pré- orientam nosso trabalho – tarefa a que nos dedicamos
silábico (Tomás, Pedro Paulo, Sâmio e Joyce) e na primeira sessão. Em seguida, na segunda sessão,
silábico (Ricardo e Eduardo) de aquisição da escrita. apresentamos e analisamos um evento extraído de
Desses alunos, 4 (Elizabeth, Joyce, Sâmio e Pedro sessões de mediação e avaliação pedagógicas dos
Paulo) estudam na APAE (Associação de Pais e sujeitos. Outras considerações sobre as múltiplas
Amigos dos Excepcionais), 1 (Lya) estuda em uma mediações que fazem parte da aprendizagem dos
escola de educação especial, 1 (Alice) cursa a 2º série sujeitos do estudo serão apresentadas na terceira
de escola particular de classe média, e os demais seção do texto e nas considerações finais.
(Eduardo, Ricardo, Miguel e Tomás) estudam em
salas especiais de escolas públicas estaduais.
Nesse texto, analisamos um episódio de
mediação pedagógica extraído da transcrição de uma 2. Conceituando mediação
72 sessão de avaliação registrada em fita de vídeo, na
qual pode-se observar o papel do mediador ao ajudar
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um sujeito a se engajar em tarefas de leitura e/ou A partir da década de 80, com a crescente
escrita. Assim, nosso principal foco de análise são as popularização dos estudos sociohistóricos, observamos,
interações/diálogos entre o Mediador (professor), com uma freqüência cada vez maior, tanto no espaço
Sujeito Cognoscente (aluno) e Objeto de escolar quanto em publicações educacionais, o emprego
Conhecimento (a linguagem escrita), realizados no da expressão mediação pedagógica e do termo mediador
contexto de atividades de leitura e produção escrita como sinônimos de ensino e professor, respectivamente.
desenvolvidas em sessões de intervenção e avaliação A despeito da constância de sua utilização e da infinidade
pedagógicas. Não temos a pretensão de demonstrar o de contextos teóricos e práticos em que essas expressões
desenvolvimento psicogenético de um conceito ou são empregadas, a natureza e as características dos
habilidade em particular. Nosso propósito é processos de mediação do ensino-aprendizagem são
evidenciar/exemplificar como os alunos que ainda pouco conhecidas. Esse conhecimento, entretanto,
participaram deste estudo se beneficiam da mediação é indispensável à tarefa de instrumentalizar as análises
teóricas e o trabalho pedagógico.
pedagógica ao tentar compreender a língua escrita.
Afinal, o que é mediação?1 que pode ser representado pela fórmula
simples S Æ R). Por outro lado, a estrutura
Vejamos o que dizem os dicionários. das operações com signo requer um elo
intermediário entre o estímulo e a resposta.
No Novo Dicionário Aurélio,
(...) O termo 'colocado' indica que o
encontramos sete acepções para o termo mediação.
indivíduo deve estar ativamente engajado
Destacamos as que definem mediação como 1. Ato
neste elo de ligação (pp. 44-45).
ou efeito de mediar; 2. Intervenção, intercessão,
intermédiz (Ferreira, 1986, p. 1.109). O Dicionário
de Filosofia de Abbagnano define mediação como Oliveira (1993, p. 26) define mediação
a função que relaciona dois termos ou dois objetos como o processo de intervenção de um elemento
em geral (1982, p. 627). De acordo com o Dicionário intermediário numa relação. De forma semelhante,
de Psicologia de E. Dorin, mediação é: 1 - O meio Pino (1991), afirma que mediação é toda intervenção
utilizado pelo indivíduo (ser humano ou animal) de um terceiro ÂelementoÊ que possibilita a interação
para vencer obstáculos e atingir um objetivo (...); 2 dos ÂtermosÊ de uma relação (p. 33).
- Processo geralmente verbal que serve como elo,
Em todas essas definições, a mediação é
como ligação entre estímulos e respostas (Dorin,
compreendida e explicada como um esquema
73
1978, p. 173).
triádico cuja representação – tomando-se como
Capítulo III - Mediações da aprendizagem da língua escrita por alunos com deficiência mental
A natureza mediada das atividades humanas modelo a fórmula da atividade direta proposta por
é esclarecida por Vygotsky (1991), ao analisar a Vygotsky – seria: S Æ X Æ R. Neste caso, um
estrutura das operações com signos. Ele apresenta a elemento intermediário (X) constitui o elo mediador
mediação semiótica como a característica que da relação entre um estímulo (S) e uma resposta (R).
distingue os comportamentos elementares das Assim, segundo Góes (1997, p. 11), a abordagem
funções psicológicas superiores argumentando que: histórico cultural em psicologia (...) requer que se
conceba o conhecer como processo que se realiza
na relação entre Sujeito Cognoscente, Sujeito
Toda forma elementar de comportamento
Mediador e Objeto de Conhecimento, esquema por
pressupõe uma relação direta à situação-
ela denominado modelo SSO.
problema defrontada pelo organismo (o
Quando empregado para a análise de
1 Uma análise mais ampla da noção de mediação pode ser relações de ensino-aprendizagem fundamentadas na
encontrada em nosso trabalho anterior (Rocha e Salustiano,
1999), do qual foi extraído e adaptado o próximo parágrafo desta
psicologia sociohistórica, esse esquema relaciona um
sessão, e ao qual remetemos o leitor interessado neste tema.
sujeito da aprendizagem (o aluno, o aprendiz), o 3.1. O episódio
objeto do conhecimento (os conteúdos específicos) e
um sujeito ou instrumento mediador (cujas funções
podem ser desempenhadas por um professor, por 1. Pesquisadora - O que está escrito aqui?
alguém que desempenhe um papel equivalente ou, (FIGURA: um menino soltando pipa.
ainda, por uma ferramenta cultural). TEXTO: Juca solta pipa)
27. Pesquisadora – E o que o Juca está fazendo? 45. Pesquisadora – Muito bem, muito obrigada!
46. Elizabeth - De nada.
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28. Elizabeth – Ta... tá... (parece procurar
Capítulo III - Mediações da aprendizagem da língua escrita por alunos com deficiência mental
lembrar a palavra adequada para essa
ação)
29. Pesquisadora – Como é o nome que a gente
chama? 3.2 Análise do episódio
30. Elizabeth – (Pensa)
Na tentativa de efetuar a leitura, percebe-se,
31. Pesquisadora – O que ele está fazendo? Tu
sabes? primeiramente, que Elizabeth se baseia na análise da
relação fonema-grafema, embora tenha lido a palavra
32. Elizabeth – Eu acho que ele está botando a “SOLTA” como: “SOL-DA”, (turno 2), “SO-DA”
pipa pra voar, não é?
(turno 4), “CHO-TA” (turno 14) e “CHOL-TA”
33. Pesquisadora – Exatamente! Mas tu sabes (turno 18). Essas tentativas indicam que a
como é que a gente chama isso? decodificação parece ser a única estratégia empregada
34. Elizabeth – Sei não. por Elizabeth para ler o texto e a gravura que o
ilustra. Ao perguntar: “JUCA SODA PIPA?” (turno
35. Pesquisadora – Então leia só mais uma vez
5), a pesquisadora reproduz para Elizabeth o resultado A importância desse tipo de mediação também
da sua leitura e demonstra, através do tom pode ser avaliada com base na análise dos progressos
interrogativo, que esta não corresponde à leitura obtidos por Elizabeth ao longo do tempo em que
convencional. Enquanto permanece centrada na participou deste estudo, alguns dos quais comentamos
decodificação, Elizabeth parece não perceber seu brevemente, apenas a título de exemplo.
erro, como indicam os turnos 6, 10, 14 e 18. De agosto de 1999 a maio de 2002, período
Considerando a permanência deste raciocínio, em que fez parte da pesquisa, Elizabeth obteve grandes
a mediadora adota outra estratégia de mediação: em vez progressos na compreensão da língua escrita. Quando
de enfatizar apenas a decodificação (turno 3, 13, 15 e iniciou sua participação na pesquisa, ela já havia
17) ou a leitura do contexto (19, 21, 27), passa a fazer adquirido a compreensão de que a escrita constitui um
apelo às experiências (23) e aos conhecimentos prévios meio de representação da fala e de registro de eventos,
da aluna (turno 25, 29, 31, 33), alternadamente. embora ainda não compreendesse os mecanismos de
É interessante observar que nos turnos 35, funcionamento da escrita alfabética.
41 e 43 a mediadora volta a solicitar o mesmo recurso A evolução de Elizabeth na leitura indica
da decodificação que Elizabeth já havia empregado uma progressiva utilização de estratégias de leitura
76 no início do evento. Entretanto, o resultado, agora, que foram sendo empregadas de forma cada vez mais
(turnos 36, 42, 44) é diverso dos anteriores. Esse complexa. No início do estudo, ela realizava apenas
resultado pode ser explicado pelo fato de a mediadora
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Capítulo III - Mediações da aprendizagem da língua escrita por alunos com deficiência mental
cada situação-problema. qual o elemento mediador e em função de quais
Embora esse comportamento não esteja objetivos se dá a mediação. Dessa forma, é possível
presente no exemplo analisado, observamos sua examinar detalhadamente as relações entre o sujeito
ocorrência em outras situações de mediação em diversos da aprendizagem, o objeto de conhecimento e o
sujeitos da nossa pesquisa. Mostrar como os alunos mediador (indivíduo ou instrumento cultural)
com deficiência mental internalizam, de modo crescente, implicados em um evento específico de ensino-
as estratégias pedagógicas empregadas por um mediador aprendizagem.
em atividades de leitura e escrita constitui uma
importante contribuição para os educadores que lidam Entretanto, não podemos compreender o
com esses alunos. crescimento pessoal e intelectual dos sujeitos desta
pesquisa, assim como dos demais seres humanos,
apenas com base na análise de seus processos
cognitivos ou nas suas relações de ensino-
aprendizagem. Como sujeitos sociais, eles se
beneficiam (ou não) das inúmeras mediações que evento de mediação não deve se restringir apenas
caracterizam as relações sociais e interpessoais que aos aspectos cognitivos do modelo SSO, mas
se estabelecem no espaço escolar, as quais são considerar que em situações reais de ensino-
marcadas também pelos conflitos e contradições da aprendizagem ou nas interações interpessoais é
vida em sociedade. Diversos autores (Góes, 1997; possível haver uma variedade de combinações dos
Rocha e Salustiano, 1999; Figueiredo, 2002; Wertsc, elementos mediados e mediadores, resultando em
1998) têm chamado a atenção para a importância diferentes unidades triádicas, cada uma de caráter
das múltiplas formas de mediação presentes nos diverso, determinado pela natureza das interações
espaço escolar e nas relações de ensino- focalizadas. Nesse sentido, a análise das mediações
aprendizagem. – necessariamente no plural – não deve recair,
De acordo com Góes (1997), o emprego exclusivamente, sobre aspectos lingüísticos,
do modelo SSO por pesquisadores que fundamentam cognitivos, políticos ou pedagógicos das situações
seus estudos na abordagem sociohistórica resulta de ensino-aprendizagem.
numa tendência para analisar eventos de mediação Figueiredo (2002) chamou a atenção para
78 característicos de situações de ensino-aprendizagem o papel da escola como mediadora da construção
escolar como situações pacíficas, cooperativas e de relações afetivas, sociais e cognitivas, ressaltando
dialógicas, nas quais os interesses e as perspectivas que a convivência entre os alunos com deficiência
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de professores e alunos convergem para a construção mental e aqueles ditos normais resulta em benefícios
do conhecimento. Segundo essa autora, esse modelo mútuos do ponto de vista do desenvolvimento
de análise é restritivo porque deixa de considerar as afetivo e social. A escola se constitui, assim, um
diferenças de perspectiva e os possíveis conflitos espaço de convivência e de enfrentamento do
presentes no contexto educacional. múltiplo e do diverso, no qual, pela via de variadas
Rocha e Salustiano (1999), argumentaram formas de mediação, ocorre a aquisição de
que as restrições oferecidas pelo modelo SSO, instrumentos culturais legados de gerações anteriores
apontadas por Góes (1997), poderiam ser reduzidas (2002, p. 70).
se considerássemos que os processos de construção Estudando o papel do professor enquanto
de conhecimento implicam múltiplas mediações e mediador das relações interpessoais entre alunos
não apenas aquelas orientadas por objetivos ditos normais e com deficiências em salas de aula
cognitivos ou pedagógicos. Assim, a análise de um regulares da rede particular de ensino de Fortaleza,
Araújo e Figueiredo (2001) observaram que o dificuldades e possibilidades de sucesso (suas e de
professor tanto pode facilitar quanto dificultar o seus alunos) conforme estivessem orientados pelo
estabelecimento de relações favoráveis à criação de preceito da realidade ou pelo princípio do
um ambiente de respeito mútuo e interação social preconceito. Quando guiado pelo preceito da
entre os alunos de sua sala de aula. Segundo realidade, o professor orientava suas ações com base
Figueiredo (2002, p. 72) os professores nas reais dificuldades e possibilidades que enxergava
na sala de aula. Quando se orientava pelo (princípio
do) preconceito, suas ações eram:
identificados como representantes
legítimos do mundo adulto, e de quem a
aprovação social importa muito para as pautadas em concepções e em idéias
crianças, têm um papel fundamental na preconcebidas sobre as possibilidades de
constituição do grupo-classe, podendo aprendizagem e de desenvolvimento das
influir para neste fundar relações de pessoas com deficiência. Antes mesmo de
cooperação, respeito e solidariedade. No tentar estabelecer uma mediação com esse
entanto, o inverso também é verdadeiro, aluno, e de tentar favorecer o 79
como no caso em que o próprio professor estabelecimento de vínculos dele com o
Capítulo III - Mediações da aprendizagem da língua escrita por alunos com deficiência mental
camufla sob um falso discurso integrador grupo de classe, o professor alega
a rejeição ou o descrédito pelas dificuldades, não investe nessa possibilidade
possibilidades de integração do grupo. (...) (Figueiredo, 2002, p. 76).
Capítulo III - Mediações da aprendizagem da língua escrita por alunos com deficiência mental
em CD-ROM). Salvador: quarteto, 1999.
GÓES, M. C. R. As relações intersubjetivas na construção
de conhecimentos. In: GÓES, M. C. R. & SMOLKA, A. SMOLKA, A. L. B. A prática discursiva na sala de aula:
L. B. (Orgs.). A significação nos espaços educacionais – uma perspectiva teórica e um esboço de análise. In:
interação social e subjetivação. Campinas-SP: Papirus, Cadernos CEDES 24 – Pensamento e linguagem: estudos
1997, pp. 11-28. na perspectiva da psicologia soviética. Campinas, São
Paulo: Papirus, 1991, pp. 51-65.
LUSTOSA, F. G. Concepções de deficiência mental e
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o
prática pedagógica: contexto que nega e evidencia a
desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.
diversidade. Fortaleza: 2002 (dissertação de mestrado).
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
LUSTOSA, F. G. e FIGUEIREDO, R. V. Inclusão: o
WERTSCH, V. J.; DEL RIO, P. e ALVAREZ, A. Estudos
desafio de conviver com a diferença na sala de aula. I
socioculturais: história, ação e mediação. In: WERTSCH,
congresso latino-americano sobre educação inclusiva.
V. J.; DEL RIO, P. e ALVAREZ, A. (Orgs.). Estudos
João Pessoa, nov., 2001.
socioculturais da mente. Porto Alegre: ArtMed, 1998.