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Axiologia e Ética 2022-2023 - Distinções Éticas - Ética Das Virtudes

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Axiologia e Ética

Ano Letivo 2022-2023


1.º semestre

Bruno Nobre, sj

1
2. Sistemas Éticos

2
3
4
2.1. Classificações éticas

Classificações éticas
Dois tipos de classificações
As distintas abordagens éticas podem ser classificadas: 1) de acordo
com o modo como estas concebem o objeto por excelência da
avaliação ética (um bem ou fim a ser alcançado ou a lei moral) e a
forma como entendem a correção moral de ações e normas; 2) de
acordo com a forma como concebem a justificação de proposições
normativas. Por agora, vamos cingir-nos ao primeiro tipo de
classificações; deixaremos o segundo tipo para a secção sobre
metaética.
Nota: as classificações éticas devem ser manuseadas com algum
cuidado, evitando, sobretudo, simplismos e reducionismos; “não se
classificam éticas como se fossem plantas ou mamíferos”. As
classificações éticas servem, sobretudo, para assinalar tendências.
5
2.1. Classificações éticas
Éticas consequencialistas e éticas não consequencialistas
Éticas consequencialistas (teleologia): devemos agir por forma a
maximizar as consequências positivas a longo prazo.
Éticas não consequencialistas (deontologia): alguns tipos de ação,
como por exemplo quebrar uma promessa ou matar uma pessoa
inocente, são más em si mesmas e não apenas por causa das suas
consequências.
Ex. Suponha-se que um homem casado acabou de sair de uma consulta
médica na qual ficou a saber que tem cancro. Se este homem for um
consequencialistas, ponderará mentir à esposa sobre o diagnóstico que
acabou de receber, caso pense que esta opção será melhor para a sua
esposa. Caso o homem seja um não consequencialistas, pensará,
certamente, que mentir é em si errado e por isso dirá a verdade à sua
mulher porque ela tem o direito de saber o que se passa com o seu
marido. (Harry Gensler, Ethics: A Contemporary Introduction, pp. 174-175)
6
2.1. Classificações éticas
Éticas teleológicas e éticas deontológicas
Éticas teleológicas
«‘Teleologia’ vem do grego telos, que significa ‘fim’ […]. A tarefa de
uma ética deste género consiste em determinar, justificadamente, o
que é o ‘bem’ do ponto de vista do ser humano, qual o fim último e
genérico para cuja realização devem contribuir todas as ações de uma
vida, ou mesmo de um conjunto de vidas, isto é, de uma comunidade
de pessoas» (José Manuel Santos, Introdução à Ética, p. 89).
«São éticas teleológicas as que se ocupam em discernir o que é o bem
não moral antes de determinar o dever, e consideram como
moralmente boa a maximização do bem não moral» (Adela Cortina,
Ética, p. 115). Ou seja, uma ação é ‘boa’ ou ‘má’ em função do telos
que se pretende alcançar.
Exs.: Eudemonismo (Aristóteles), Epicurismo (Epicuro); Utilitarismo
(Bentham, Stuart Mill).
7
2.1. Classificações éticas
Éticas teleológicas e éticas deontológicas
Éticas deontológicas
«O termo que designa este tipo de éticas, deontologia, vem do grego
deon, que significa ‘dever’ ou ‘obrigação’. Daí que também se chame às
deontologias ‘éticas do dever’. A principal tarefa de uma ética
deontológica consistirá em explicitar ou ‘fundamentar’ a lei moral».
(José Manuel Santos, Introdução à Ética, p. 89). O critério para
determinar a correção de uma ação reside na conformidade desta
relativamente a um dever que se exprime sob a forma de princípio ou
lei moral.
«São éticas deontológicas as que determinam o âmbito do dever antes
de ocupar-se do bem, considerando boas apenas as ações que se
adequam ao dever» (Cortina, Ética. 115)». Ou seja, uma ação é ‘boa’
ou ‘má’ dependendo de ter sido ou não praticada por dever.
Exs.: Kant, Rawls, éticas discursivas, éticas jusnaturalistas, etc.
8
2.1. Classificações éticas

Vantagens e desvantagens das éticas teleológicas


Vantagens das éticas teleológicas: i) motivação do sujeito; ii)
valorização do concreto e dos conteúdos particulares; iii) algumas
éticas teleológicas conseguem dar conta da complexidade da vida
moral.
Desvantagens das éticas teleológicas: i) algumas éticas teleológicas
partem de uma conceção «essencialista» do ser humano, o que é em
grande medida incompatível com o acento moderno na autonomia da
razão (o que não é necessariamente uma desvantagem); ii) relativismo:
está geralmente implícita uma conceção de vida boa, a qual está
dependente de uma determinada antropologia; iii) a possibilidade de
se usarem meios «maus» para atingir um fim «bom».
José Manuel Santos, Introdução à Ética, pp. 104-106.

9
2.1. Classificações éticas
Vantagens e desvantagens das éticas deontológicas
Vantagens das éticas deontológicas: i) a universalidade dos princípios
morais permite dirimir conflitos interculturais; ii) a fixação de um
número restrito de princípios, ou mesmo de um só, deixa grande
espaço à liberdade individual na orientação de vida; na perspetiva de
uma cultura individualista, este «minimalismo» pode ser considerado
uma vantagem; iii) os princípios universais da deontologia podem ser
facilmente usados para fundamentar direitos fundamentais do ser
humano ou mesmo para regular conflitos entre estados (direito
internacional).
Desvantagens das éticas deontológicas: i) caráter abstrato de uma lei
moral, cuja fundamentação acaba por ser puramente formal, sem
conteúdo; ii) dificuldades de fundamentação do princípio universal; iii)
foco excessivo na adequação das ações a determinadas normas, e
desvalorização dos fins; dificuldade em motivar o sujeito.
José Manuel Santos, Introdução à Ética, pp. 93-94.10
2.1. Classificações éticas
Éticas de máximos e éticas de mínimos
Éticas de máximos ou da felicidade: procuram oferecer ideais de vida
boa, hierarquizando os bens disponíveis de modo a produzir a maior
felicidade possível. As éticas de máximos fazem uma proposta de
plenitude, mas não podem exigir que todos a sigam.
Éticas de mínimos ou da justiça: ocupam-se exclusivamente da
dimensão universalizável do fenómeno moral, ou seja, daqueles
deveres de justiça que são exigíveis a qualquer ser racional e que
constituem apenas exigências mínimas.
Esta distinção reconhece que a moralidade tem duas facetas: i) existem
juízos morais que exigem universalidade; ii) existe nas sociedades
atuais um pluralismo axiológico. A ética de mínimos exige que sejam
respeitados critérios mínimos de justiça que permitem a convivência
pacífica, deixando ao critério de cada um a escolha de uma conceção
de vida plena ou feliz. (Cortina, Ética, p. 118)
11
2.1. Classificações éticas

Ética da convicção e ética da responsabilidade


(M. Weber, “A política como vocação”, 1919)
Ética da convicção: ética absoluta, incondicionada, a qual coloca a
ênfase na convicção interna e na pureza da intenção. Mais do que as
consequências, importa a conformidade com princípios e máximas
associadas a determinada religião ou cosmovisão. O principal aspeto
negativo desta visão ética tem que ver com as possíveis consequências
negativas de uma ação bem-intencionada.
Ética da responsabilidade: a ética da responsabilidade tem em conta os
efeitos das suas ações, ou seja, procura agir com responsabilidade. O
principal defeito desta visão ética é a possibilidade de aceitação de um
mal como meio para atingir um fim.

12
2.1. Classificações éticas
Éticas materiais e éticas formais (distinção foi introduzida por Kant)
Éticas materiais: as éticas materiais afirmam que o critério de
moralidade para avaliar ações ou normas morais pode explicitar-se
mediante enunciados com conteúdo, uma vez que estas éticas supõem
que existe um fim ou determinados valores na base da moral. Quer se
trate de um bem ontológico, teleológico, psicológico ou sociológico, a
primeira tarefa de uma ética deste tipo é descobrir o bem ou fim
supremo, definindo o seu conteúdo. A partir deste, é possível extrair os
critérios de moralidade.
As éticas materiais estão, de algum modo, subordinadas a disciplinas
distintas da própria ética, ou seja o fundamento último da ética está
fora da ética. Esta é a razão pela qual Kant é um crítico deste tipo de
abordagem. O objetivo de Kant é enfrentar o problema da variabilidade
dos conteúdos morais, e encontrar uma ética autónoma com respeito a
outras disciplinas.
Cortina, Ética, pp. 111-112
13
2.1. Classificações éticas

Éticas formais: nas éticas formais, o bem moral não depende do


conteúdo das ações ou das normas, mas sim da forma das normas,
máximas ou princípios. Para Kant, a forma racional das normas
descobre-se quando adotamos a perspetiva da igualdade e da
universalidade

Para autores como Kohlberg, as éticas materiais pertencem a uma


etapa precoce do desenvolvimento da consciência moral. Para
Habermas, esta etapa foi ultrapassada pelo estádio formal-
procedimental em que nos encontramos.
Cortina, Ética, p. 112.

14
2.1. Classificações éticas
Éticas substancialistas e procedimentais
Éticas substancialistas: afirmam que não é possível falar da correção
das normas morais sem referência a alguma conceção partilhada de
vida boa. No âmbito da moral, o fundamental não é o discurso sobre
normas justas, mas os fins, os bens e as virtudes vividos
comunitariamente num contexto vital concreto. Os substancialistas
acusam os procedimentalistas de cair num formalismo abstrato e vazio.
(Ex. neo-aristotélicos e neo-hegelianos).
Éticas procedimentais: estas éticas consideram-se herdeiras do
formalismo kantiano, mas substituem os aspetos mais frágeis desta
abordagem – como, por exemplo, a insistência na consciência
individual – por novos elementos teóricos, insistindo numa conceção
dialógica de racionalidade. Segundo esta perspetiva, a tarefa da ética
não é recomendar conteúdos morais concretos, mas propor
procedimentos que permitam legitimar as normas que presidem à vida
quotidiana. (Cortina, Ética, pp. 113-114). 15
2.1. Classificações éticas

Éticas de bens e éticas de fins


A norma de conduta é, para ambas as abordagens, a natureza humana,
entendida, no entanto de formas distintas.
Éticas de bens: o bem consiste na realização de um bem subjetivo, quer
dizer, na realização de um bem desejado. Algumas destas éticas
outorgam prioridade aos bens sensíveis no seu conjunto, enquanto que
outras valorizam apenas alguns deles, como resultado de uma seleção
efetuada a partir de algum critério. Abordagem de timbre mais
empirista (ex.: epicurismo, utilitarismo e outras abordagens
hedonistas). Principal problema: o subjetivismo; falácia naturalista.
Cortina, Ética, pp. 109

16
2.1. Classificações éticas

Éticas de fins: o bem moral reside no cumprimento de um objetivo


independentemente do desejo do sujeito. Tal objetivo pode consistir
não num desejo subjetivo de alcançar determinado bem, mas na
perfeição do indivíduo ou na perfeição progressiva da sociedade.
Partindo da consideração da verdadeira natureza do ser humano,
podemos descobrir como ele deve agir. O acesso à natureza não é
empírico, portanto, mas de natureza metafísica. O ponto de partida é a
antropologia filosófica abordada desde uma perspetiva metafísica e
não empírica. Neste sentido, para estas éticas, o fim a atingir é objetivo
e universal. (exs.: Platão, Aristóteles, estoicismo). (Cortina, Ética, pp.
11-112)

17
2.3. Ética das Virtudes

A ética de Aristóteles (384-322 a.C.)


Ética como ciência prática: para
Aristóteles, a ética é uma das ciências
práticas (os saberes dividem-se em
saberes teóricos, poiéticos e práticos). A
ética é distinta da política, mas
intimamente relacionada com ela: o ser
humano não pode alcançar a felicidade
fora de uma comunidade política.
Abordagem teleológica: a problemática
ética é sistematizada a partir da questão
do «bem», naturalmente desejado pelo
sujeito para ter uma vida satisfatória,
bem-sucedida.
18
2.3. Ética das Virtudes
O que é a felicidade?
1. A felicidade é o bem supremo para o ser humano. Todos os outros
bens estão em função deste. O bem supremo, ou felicidade, é
completo e autossuficiente.
2. A felicidade tem que ver com o funcionamento excelente da
função (ergon) própria do ser humano: «o bem humano é uma
atividade da alma conformada por uma excelência e, se houver
muitas excelências, será conformada pela melhor e mais completa»
(Ética a Nicómaco, p. 33).
3. Para ser feliz, o ser humano precisa de bens exteriores. Os que
estão privados destes bens exteriores, ou sujeitos à desventura, não
podem ser felizes.
4. É feliz quem pratica a excelência e tem os bens exteriores
necessários durante todo o tempo da vida. (Ética a Nicómaco, p. 33)
19
2.3. Ética das Virtudes
O que é a excelência (virtude)?
Existe na alma humana uma dimensão que é incapaz de uma relação
com a razão, como por exemplo as capacidades associadas às
funções do crescimento e da nutrição. Estas capacidades não são
exclusivas do ser humano. As excelências autenticamente humanas
têm que ver com a parte racional da alma. Neste sentido, a
excelência é uma atividade da alma, mas mais especificamente das
dimensões da alma que são racionais ou que estão em relação com a
razão. (Ética a Nicómaco, pp. 44-45).

«Há uma dimensão da alma que é, de algum modo, capaz de tomar


parte na razão. A possibilidade de autodomínio resulta, efetivamente, da
obediência ao comando da razão, mas são as disposições fundamentais
do sensato e do corajoso que melhor permitem escutá-la e obedecer-
lhe. Tudo neles resulta ressoa em uníssono com a razão.» (p. 44)
20
2.3. Ética das Virtudes
Dois tipos de excelências
 Excelências teóricas (intelectuais ou também dianoéticas): são
disposições da parte racional da alma. As excelências teóricas são a
sabedoria, o entendimento e a sensatez.
 Excelências éticas: são disposições de uma subparte da alma que,
embora não sendo racional, é capaz, de algum modo, de obedecer à
razão. (p. 45)

«A capacidade de razão diz-se de duas maneiras, em primeiro lugar, em


sentido estrito e de forma absoluta; em segundo lugar, no sentido em
que temos a possibilidade de escutar um pai. A possibilidade de
excelência será também dividida em conformidade com esta
experiência. Dizemos que umas excelências são teóricas e outras éticas.
A sabedoria, o entendimento e a sensatez são disposições teóricas; a
generosidade e a temperança são disposições éticas» (p. 45).
21
2.2. Ética das Virtudes

Partes da Alma e Respetivas Virtudes

Alma (psychê)
Parte irracional Parte racional
Parte vegetativa Parte apetitiva Parte calculadora Parte científica

«Virtudes» do Virtudes éticas Virtudes dianoéticas: Virtudes dianoéticas:


crescimento e da 1) sensatez ou 2) Sabedoria teórica
nutrição prudência (phronesis) (sophia)

22
2.3. Ética das Virtudes
Aquisição das excelências
As excelências não nascem connosco por natureza. Existe no ser
humano uma potencialidade (condição de possibilidade) para
desenvolver as excelências.
Excelências teóricas: adquirem-se através do ensino e por isso
requerem experiência e tempo. (1103a15; p. 47)
Excelências éticas: adquirem-se através de um processo de
habituação. (1103a15; p. 47)

«Tornamo-nos justos praticando ações justas, temperados, agindo com


temperança e, finalmente, tornamo-nos corajosos realizando atos de
coragem» (1103b; p. 48). «Assim, numa palavra, as disposições
permanentes do caráter constituem-se através de ações levadas à
prática em situações que podem ter resultados opostos» (1103b20; p.
49).
23
2.3. Ética das Virtudes
As excelências são disposições
Na alma surgem três tipos de fenómenos:
1) as afeções: paixões, emoções, tais como por exemplo o desejo, a
ira, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, a
saudade, o ciúme, a compaixão e, em geral, tudo o que vem
acompanhado por prazer e ou sofrimento;
2) as capacidades, que são condições de possibilidade para sermos
afetáveis por afeções;
3) as disposições, ou seja, géneros de fenómenos de acordo com os
quais nos comportamos bem ou mal relativamente às afeções e às
ações (p. 54).
«Toda a excelência é capaz de desenvolver plenamente o potencial do
ente que o detém, ao restituir-lhe assim a sua função específica de
modo correto» (p. 55).
24
2.3. Ética das Virtudes

Por que razão dizemos que as excelências são disposições?


a) Somos louvados pelas excelências, mas não pelas afeções: não é
pelas afeções que somos louvados ou repreendidos; «louvamos ou
censuramos alguém de acordo com as excelências e as perversões»
(p. 54);
b) Apenas as disposições exigem uma decisão prévia: «zangamo-nos
ou sentimos medo sem qualquer decisão prévia, enquanto as
excelências resultam de certas decisões que tomamos de antemão,
ou, pelo menos, não existem sem uma tomada de decisão» (p. 54);
c) As excelências não são capacidades, uma vez que não dizemos que
somos autênticos ou perversos por sermos ou não sermos capazes
de sofrer, nem somos louvados ou repreendidos por isso; o
tornarmo-nos bons ou maus não acontece por natureza, mas exige a
prática (p. 55).
25
2.3. Ética das Virtudes
A excelência consiste numa mediania entre dois extremos.
 Mediania não significa, aqui, o ponto que se mantém a uma
distância igual de cada um dos extremos, o qual é um e o mesmo
para todas as coisas, ou seja, não é a média aritmética (p. 56).
 «O meio relativamente a nós […] é a medida que não tem a mais
nem a menos. Uma tal medida não é a mesma para todos» (p. 56).
«O meio procurado não é o meio absoluto da coisa em si, mas o meio
da coisa relativamente a cada um» (p. 56).
«A excelência, tal como a natureza, é mais rigorosa e melhor do que toda a
perícia, por que é sempre hábil a atingir o meio. […] Por exemplo, sentir medo
do audaz, estar de desejos, ficar irritado, ter compaixão e, em geral, ter prazer
ou sentir sofrimento, admitem um mais e um menos. Quer dizer, admitem
modos errados [de nos relacionarmos com eles]. Mas o sentir isto no tempo em
que se deve, nas ocasiões em que se deve, relativamente às pessoas que se
deve e do modo como se deve, isso é o meio e o melhor de tudo, ou seja, o
meio e o melhor de tudo é a medida da excelência» (p. 56).
26
2.3. Ética das Virtudes

Adequação às circunstâncias
«Não se deve enunciar isto apenas na sua generalidade, é necessário
também procurar adequar os enunciados às circunstâncias
particulares. Isto é, de facto, os enunciados proferidos
universalmente acerca das ações são mais abrangentes, mas o que
proferidos acerca das ações concretas que cada vez se constituem
particularmente são mais reveladores da verdade» (p. 58).

27
2.3. Ética das Virtudes

Definição de Excelência
«A excelência é, portanto, uma disposição do caráter escolhida
antecipadamente. Ela está situada no meio e é definida
relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual
também o sensato a definirá para si próprio. A situação do meio
existe entre duas perversões: a do excesso e do defeito» (p. 57).

«Foi então dito de modo suficiente que 1) a excelência ética é uma


disposição intermédia e de que modo assim é; 2) depois, também,
que a disposição intermédia está entre duas disposições perversas,
uma segundo o excesso, outra segundo o defeito; 3) finalmente, que
a disposição intermédia é assim por visar alcançar o meio tanto nas
afeções como nas ações» (p. 63).

28
Virtudes teóricas

Atividades
Subparte da alma racional Virtudes teóricas correspondentes Modos ou tipos de saber Objeto do saber
próprias

Conhecimento obtido por


Conhecimento científico raciocínio silogístico (inferência
necessária)
Alcançar
conhecimento
Apreensão (intuitiva) dos Entes eternos e
científico: visa
Razão teórica: Poder de compreensão «primeiros princípios de tudo» (por necessários (ex.: o
descobrir a
Consideração teórica de indução) primeiro motor e
verdade teórica, a
entes que não podem ser entidades
verdade sobre as
doutra maneira matemáticas,
coisas que não
natureza);
podem ser doutra Apreensão dos primeiros princípios
maneira Sabedoria
+ inferência necessária; o mais
Conhecimento científico +
rigoroso dos conhecimentos
Poder de compreensão
científicos

Saber fazer (poesis); transforma Produção de coisas


Perícia: disposição produtora
coisas naturais em utensílios; que podem ser ou
segundo um princípio verdadeiro
obtém-se através da experiência não ser
Deliberar e
calcular; visa Sensatez (prudência): disposição Deliberar corretamente acerca
Razão prática:
deliberar e prática em conformidade com o daquelas coisas que são boas e O bem humano em
Consideração teórica de
calcular de forma bem orientador em vista do bem vantajosas para si próprio, não de geral:
entes que podem ser
correta sobre o para o ser humano um modo particular, mas de todas respeitante à vida do
doutra maneira
bem para o ser aquelas qualidades que dizem indivíduo, da família
humano respeito ao viver bem em geral; ou da polis (sensatez
saber do agente sobre si próprio política); a obra do
agente é a sua
própria vida29
Medo
Coragem A coragem diz-se a respeito do medo.
Audácia
Insensibilidade
A temperança diz-se a respeito dos prazeres do corpo; é a posição
Temperança
intermédia em relação ao prazer.
Devassidão
Avareza
É a posição do meio relativamente à riqueza; tem a ver com o dar e
Generosidade
o receber, mas mais com o dar.
Esbanjamento
Mesquinhez A magnificência diz respeito às despesas gastas. A respeito destas
Magnificência excede a generosidade quanto à grandeza da dimensão. É um gasto
Vulgaridade apropriado à grandeza
Pusilânime
Magnanimidade Magnânimo é quem se julga ter um grande valor e tem-no de facto.
Vaidoso
Fleuma
Gentileza É a posição do meio a respeito da irritação
30
Irascibilidade
2.3. Ética das Virtudes

A sensatez (ou virtude da prudência)


 A sensatez diz respeito ao bem para o ser humano, sobre o qual é
possível deliberar-se (p. 154).
 A sensatez é «uma disposição prática conforme a um sentido
orientador e capaz de pôr a descoberto o bem humano» (p. 151).
 O homem sensato é capaz de ver as coisas que são boas para si
próprio e para os homens em geral (p. 151).
 «Tem sensatez aquele que é capaz de ter em vista de um modo
correto as circunstâncias particulares em que de cada vez se encontra
a respeito de si próprio» (p. 153).

31
2.3. Ética das Virtudes

«A sensatez não abre apenas para coisas gerais, mas deve reconhecer as
situações particulares e singulares, porque a sensatez inere na dimensão
da ação humana e a ação humana é a respeito das situações particulares
em que de cada vez nos encontramos…. De resto, os mais sensatos a
respeito da ação são também os mais experimentados nas
circunstâncias particulares em que de cada vez nos encontramos» (p.
154).

«A sensatez é uma disposição atuante sobre o horizonte prático, de tal


forma que se deve possuir ambas as formas de saber (o universal e o
particular), mas mais do particular do que do universal» (p. 154).

32
2.3. Ética das Virtudes
Tipos de sensatez:
 A que diz respeito a si próprio na sua individualidade; a que diz
respeito à economia doméstica e à polis (sensatez deliberativa e
judicial).

Aquisição da sensatez:
A sensatez adquire-se pela experiência, razão pela qual é difícil que
os jovens sejam sensatos. «É preciso muito tempo para ter
experiência» (p. 155). É mais fácil os jovens serem bons geómetras
do que serem sensatos.

«Deve-se prestar atenção às declarações e às opiniões indemonstráveis


de quem tem experiência de vida, dos que são mais velhos e são
sensatos, não menos do que a prestada a declarações e opiniões
demonstradas. É como se aqueles tivessem obtido através da
experiência um olho com o qual veem corretamente» (p. 160).
33
2.3. Ética das Virtudes
Deliberação dos meios
 A sensatez diz respeito à deliberação dos meios adequados para
alcançar determinados fins. Deliberar bem é próprio dos sensatos e a
boa deliberação é a «correção da deliberação a respeito do que é
conveniente como um meio para o fim, do qual a sensatez tem uma
conceção verdadeira» (p. 158).
 A sensatez tem uma função de comando a respeito do que se deve
ou não fazer. Os fins em vista dos quais o homem deve realizar as
suas ações são a justiça, a beleza e a bondade (p. 161).

 A excelência faz do fim um fim correto, e a sensatez abre para o


encaminhamento nessa direção (p. 162). «A excelência faz a decisão
ser uma decisão correta; por outro lado, o que pode ser feito de
modo natural para pôr uma decisão em prática não diz respeito já à
excelência, mas a um outro poder» (p. 162).
34
2.3. Ética das Virtudes

A sensatez coopera na constituição das excelências éticas.


As excelências não são formas de sensatez, mas nenhuma delas se
constitui sem sensatez (p. 164). A excelência existe de acordo com o
sentido orientador, e o sentido orientador é o «sentido que projeta
de acordo com a sensatez» (p. 164).

«Se alguém tiver como única excelência a sensatez, logo terá presente
nele todas as restantes [virtudes éticas]» (p. 164).

35
2.3. Ética das Virtudes

Sensatez e esperteza:
«Há uma certa capacidade a que damos o nome de esperteza. Ela é
de tal espécie que é capaz de realizar as ações que supostamente
tendem de modo concomitante para o fim tido em vista e assim
atingi-lo. Ora, quando se trata de um fim magnífico, esta capacidade
é louvável; mas se for mau, é pura malícia. É por esse motivo que
dizemos que tanto os sensatos como os maldosos são espertos. Ora,
esse poder não é sensatez, mas a sensatez não existe sem esperteza»
(p. 162).

36
2.3. Ética das Virtudes

Nota:
Mais do que saber o que é a sensatez, importa agir sensatamente.
«Não nos tornamos mais saudáveis, ou com uma melhor condição física,
apenas por sabermos a que estados correspondem, mas pelo efetivo
domínio da perícia que os produz, pois não nos tornamos mais
saudáveis nem vigorosos apenas por percebermos [teoricamente] de
medicina ou de teoria do treino. Se, por outro lado, não se pode dizer
que a sensatez seja útil para sabermos o que são atos sensatos, mas
antes é útil para nos tornarmos sensatos, nessa altura ela não terá
préstimo para os que já são sérios» (p. 161).

37
2.2. Ética das Virtudes
S. Tomás de Aquino 1225-1274.
A ética tomista, cujo impacto na cultura ocidental
é difícil de exagerar, resulta, fundamentalmente,
da síntese entre o pensamento Aristotélico e a
tradição cristã. Tal como Aristóteles, Epicuro ou
Santo Agostinho, S. Tomás reflete sobre a
felicidade. A sua ética tem um alcance vasto e
inclui temas como: as virtudes, a consciência
moral, a ação moral ou a lei natural.

Para S. Tomás, os seres humanos, criaturas dotadas de inteligência e


vontade, são atraídos, pelo seu desejo natural, para aquilo que
contribui para a sua perfeição e realização. Este é o fundamento da vida
moral. Para S. Tomás, a perfeição, a realização humana e o bem
coincidem com a felicidade, conceito que não se confunde, como
sabemos, com um sentimento de bem-estar passageiro.
38
2.2. Ética das Virtudes
 O fim das coisas
 De acordo com S. Tomás, todo o agente opera não só em função
de um fim, mas também em função de um bem, ou seja, «todo o
agente tende para determinada meta. […] Todo o agente opera
visando ao bem. Logo, toda a ação e todo o movimento visam ao
bem» (SG III, 2). Tendem para o bem mesmo as coisas que não têm
conhecimento (SG III, 24).
«Se, conforme se provou, todo o agente opera por causa do bem, resulta
ulteriormente que o bem é o fim de todos os entes.» (SG III, 16)

 De acordo com S. Tomás, as coisas ordenam-se, todas elas, para


um só fim, que é Deus. Além disso, todas as coisas tendem para a
semelhança com Deus.
«Com efeito, se nenhuma coisa tende para algo como para seu fim senão enquanto
este é bom, necessariamente o bem enquanto bem identifica-se com o fim. Por
conseguinte, o que é o sumo bem será o fim supremo de todas as coisas. Ora, o
sumo bem é um só, que é Deus […]. Logo, todas as coisas se ordenam, como para
seu fim, para um só bem, que é Deus.» (SG III, 17) 39
2.2. Ética das Virtudes
 As coisas ordenam-se diversamente para os seus fins, de acordo
com as operações que lhes são próprias.
«As coisas que somente são movidas ou feitas, sem que se movam ou operem, tendem
para a semelhança divina quanto ao serem perfeitas em si mesmas. As que operam e
movem tendem para a semelhança divina ao serem causa de outras. As que movem
porque são movidas buscam a semelhança divina segundo as duas maneiras
anteriores.» (SG III, 22)

 O fim de toda a substância intelectual é conhecer a Deus.


Argumento semelhante ao argumento do ergon de Aristóteles. A
função mais excelente de uma substância intelectual consiste em
conhecer a Deus.
«Como, no entanto, todas as criaturas, até as destituídas de intelecto, ordenam-se
para Deus como para seu fim último, todas elas atingem este fim enquanto participam
da semelhança divina. Mas as criaturas intelectuais atingem a Deus de modo mais
especial, a saber, conhecendo-o pela operação que lhes é própria. Donde ser
necessário que o fim da criatura intelectual seja conhecer a Deus pela inteligência.»
(SG III, 25)
40
2.2. Ética das Virtudes

«A operação própria de qualquer coisa é o seu fim, que é a sua perfeição. Por isso,
aquilo que perfeitamente corresponde a uma operação chama-se virtuoso e bom. Ora,
a inteleção é a operação própria da substância intelectual, e é o seu fim. Por isso, o que
é perfeitíssimo nesta operação é o fim último, sobretudo nas operações que não se
ordenam a efeitos exteriores, como são os conhecimentos sensitivo e intelectivo. Ora,
como essas operações recebem a especificidade dos objetos, pelos quais são também
conhecidas, é necessário que tanto mais perfeito seja uma delas, quanto mais perfeito
é o objeto. Por isso, entender o inteligível perfeitíssimo, que é Deus, é o que há de
mais perfeito na operação de conhecimento intelectivo. Logo, conhecer a Deus
intelectualmente é o fim último da substância intelectual.» (SG III, 25)

41
2.2. Ética das Virtudes
 A felicidade não consiste:
 Num ato da vontade: sendo a felicidade o bem próprio da
natureza intelectual, é necessário que seja conforme com aquilo
que lhe é próprio. Ora, o apetite não é próprio da natureza
intelectual. A felicidade consiste, sobretudo, num ato do intelecto.
(SG III, 26)
 Nos deleites da carne: o prazer está associado ao sexo e à
alimentação, e estes não são o fim último do ser humano.
«Além disso, a felicidade é um bem próprio do homem, pois os animais não
podem ser ditos felizes a não ser impropriamente. Ora, os deleites mencionados
acima são comuns aos homens e aos animais. Logo, neles não se pode colocar a
felicidade.» (SG III, 27)

 Nem nas honras nem na glória (ou fama): a honra não consiste
na operação de um homem, mas na de um outro, em relação a ele,
ao lhe mostrar reverência (SG III, 28). A fama é procurada por causa
da honra, e se a honra não é o fim, menos o será a fama. (SG III, 29)
42
2.2. Ética das Virtudes
 A felicidade não consiste:
 Nas riquezas: as riquezas são desejadas por causa de outra coisa,
pois por si mesmas não trazem bem algum; usamo-las para sustento
do corpo e coisas afins. Ora, o sumo bem é desejado por si mesmo e
não por outra coisa. As riquezas são destinadas ao homem e não o
homem às riquezas. (SG III, 30)
 No poder mundano: a felicidade não pode consistir na posse de
poderes mundanos porque estes dependem da sorte, são instáveis e
não totalmente dependentes da vontade humana. (SG III, 31)
 nos bens corpóreos nem na parte sensitiva: «depreende-se, por
analogia, do exposto que o sumo bem não está nos bens corpóreos,
como são a saúde, a beleza e a robustez. Ora, essas coisas são
comuns aos bons e aos maus; são instáveis e não se subordinam à
vontade. […] Além disso, os bens corpóreos são comuns aos homens
e aos animais. Ora, o bem da felicidade é próprio do homem….» (SG
III, 32-33) 43
2.2. Ética das Virtudes
 A felicidade não consiste:
 Nas virtudes morais nem no ato da prudência: «Se o último fim for
a felicidade, ela não se ordena a outro fim. Ora, todas as virtudes
morais estão ordenadas para outra coisa» (SG III, 34). «O ato da
prudência refere-se apenas ao que pertence às virtudes morais. Ora,
a felicidade última do homem não está nas virtudes morais. Logo,
nem no ato da prudência.» (SG III, 35)
 Na atividade artística: a felicidade também não se encontra na
atividade artística, uma vez que esta não é o fim último do ser
humano. (SG III, 36)
«Fica também claro que a felicidade não está na atividade artística, porque o
conhecimento artístico é também conhecimento prático. Assim sendo, ordena-se
para o fim e não constitui o fim último. Além disso, o fim das atividades artísticas são
as obras de arte. Ora, estas não podem ser o fim último da vida humana, até porque
nós é que somos o fim delas, sendo todas feitas para o uso do homem. Logo, a
felicidade última não pode estar na atividade artística.» (SG III,36)
44
2.2. Ética das Virtudes
 A felicidade consiste:
 No bem último do ser humano e na atividade que lhe é própria e
que o diferencia de todas as outras criaturas materiais. Ou seja, a
felicidade consiste na contemplação da Verdade, e a Verdade é Deus.
S. Tomás vai mostrar que a felicidade não consiste no conhecimento
geral que muitos têm de Deus, no conhecimento de Deus proveniente
da demonstração ou mesmo da fé. Dado que nesta vida só podemos
ter um conhecimento imperfeito de Deus, «a felicidade do homem
não está nesta vida.» (SG III, 48)
«Se, pois, a felicidade última do homem não consiste nas coisas exteriores ditas nem
da fortuna, nem nos bens corpóreos, nem nos bens da parte sensitiva da alma, nem
na parte intelectiva referente às virtudes morais, nem nas virtudes morais ativas, a
saber na prudência e na arte; de tudo isto resulta que a felicidade última do homem
está na contemplação da verdade. Aliás, essa é a única atividade própria do homem,
e dela de nenhum modo outro animal participa. Esta atividade não se ordena a coisa
alguma como fim, porque a contemplação da verdade é procurada por si mesma. Por
esta operação o homem se une por semelhança aos seres superiores, porque, entre
as atividades humanas, ela é a única que se encontra em Deus e nas substâncias
separadas.» (SG III, 37) 45
2.2. Ética das Virtudes

 A felicidade nesta vida


 A felicidade perfeita consiste na contemplação amorosa de Deus e
só pode alcançar-se na vida eterna. No entanto, mediante o uso das
capacidades naturais, é possível alcançar uma felicidade imperfeita
nesta vida. S. Tomás segue Aristóteles muito de perto: o ser humano
consegue ser feliz nesta vida na medida em que as capacidades que
lhe são próprias funcionam de forma excelente. Na medida em que
vivemos em harmonia com a nossa natureza, somos capazes de uma
felicidade imperfeita ainda nesta vida. (Brian Davies, The Thought of Thomas
Aquinas, p. 231)

46
2.2. Ética das Virtudes

 S. Tomás e as virtudes
Segundo a perspetiva de S. Tomás, o nosso agir é guiado pela razão: a
synderesis permite-nos conhecer os princípios morais, que através da
consciência aplicamos aos casos particulares. Contudo, para o
Aquinate, como para Aristóteles, o uso da razão não é suficiente para
assegurar uma vida moral boa. Para isso, precisamos também das
virtudes (S.T. I-II, 55 ss.).

 As virtudes em geral. De acordo com S. Tomás, que neste ponto


segue de perto Aristóteles, as virtudes são hábitos (ou disposições)
bons, orientados para a ação, ou seja, operativos, e que implicam a
perfeição de determinada potência ou faculdade (ou seja, a virtude é
uma excelência). As virtudes correspondem ao funcionamento
excelente de determinada disposição ou potência, por exemplo o
apetite concupiscível. (S. T. I-II, 55, 1-3)
47
2.2. Ética das Virtudes
 Tipos de virtudes
S. Tomás distingue três tipos de virtudes: as virtudes intelectuais, as
virtudes morais e as virtudes teologais. As virtudes intelectuais têm
que ver com o reconhecimento do bem e da verdade. As virtudes
morais dizem respeito à faculdade apetitiva e ajudam-nos a escolher
o que nos aparece como bom. As virtudes teologais (fé, esperança e
caridade) são infundidas diretamente por Deus.

Para agirmos retamente é necessário não só a razão estar bem disposta


pelo hábito da virtude intelectual, mas também a potência apetitiva o
estar pelo hábito da virtude moral. Portanto, assim como o apetite se
distingue da razão, a virtude moral se distingue da virtude intelectual
(S.T. I-II, 58, 2). Os atos humanos só têm dois princípios: o intelecto, ou
razão, e o apetite. São estes os dois princípios motores do homem. Toda
a virtude humana é perfetiva de um destes princípios. Se o for do
intelecto especulativo ou prático, a virtude será intelectual; e moral, se
da parte apetitiva (S.T. I-II, 59, 3). 48
2.2. Ética das Virtudes

Virtudes intelectuais especulativas:


(i) A sapiência ou sabedoria: julga e ordena convenientemente
todas as coisas; considera as coisas altíssimas; aperfeiçoa o que é
último em relação ao conhecimento humano total; a sapiência é
uma só.
(ii) A ciência: aperfeiçoa o intelecto para o que é último num
determinado género de cognoscíveis; existem várias ciências.
(iii) O intelecto: hábito dos princípios; conhecimento intuitivo dos
princípios gerais do conhecimento. «É pela virtude intelectual
especulativa que o intelecto especulativo se aperfeiçoa para
considerar a verdade, pois nisto consiste a retidão da sua
atividade.»
(S.T. I-II, 57,2)
49
2.2. Ética das Virtudes
Virtudes intelectuais práticas (têm em vista a ação):
(i) A arte: é a razão reta que nos dirige naquilo que produzimos.
«A arte não é mais do que a razão reta de acordo com a qual
fazemos certas obras. E a bondade destas não consiste em o
apetite humano se comportar de um determinado modo, mas
em ser boa, em si mesma, a obra feita» (S.T. III, 57, 3).

(ii) A prudência: é a razão que nos dirige quando agimos; ajuda-nos


a encontrar os meios adequados aos fins. «A prudência está para
os atos humanos, consistentes no uso das potências e dos
hábitos, como a arte está para o que produzimos
exteriormente…. A prudência, que é a razão reta, que nos guia
nas nossas ações, exige que estejamos bem dispostos em
relação aos fins, o que se dá pelo apetite reto; e, portanto, ela
também supõe a virtude moral, que torna reto o apetite» (S.T. I-
II, 57,4).
50
2.2. Ética das Virtudes

As virtudes morais
As virtudes morais são hábitos das potências apetitivas e dispõem-nos
para agir bem. O conhecimento intelectual, por si só, não faz de nós
pessoas boas ou completamente virtuosas.

«Para agirmos retamente é necessário, não só a razão estar bem


disposta pelo hábito da virtude intelectual, mas também a potência
apetitiva o estar pelo hábito da virtude moral. Portanto, assim como o
apetite se distingue da razão, a virtude moral se distingue da
intelectual.» (S.T. I-II, 58, 2).

51
2.2. Ética das Virtudes

Relação entre as virtudes morais e intelectuais


As virtudes morais têm uma ligação especial à virtude da prudência (S.T.
I-II, 58, 4-5) e distinguem-se de acordo com as faculdades ou objetos a
que estão associadas. Algumas têm a ver com as obras (justiça) outras
com as paixões (temperança, fortaleza, mansidão, etc.). (S.T. I-II, 59, 2).

As virtudes morais podem existir sem certas virtudes intelectuais, como


sejam a sabedoria, a ciência e a arte. Mas não podem existir sem o
intelecto e a prudência. (S.T. I-II, 59, 4)

52
2.2. Ética das Virtudes

«A prudência é virtude soberanamente necessária à vida humana. Pois,


viver bem consiste em obrar bem. Ora para obrarmos bem é necessário
levarmos em conta não só o que façamos mais ainda como o façamos; i. é,
devemos obrar segundo uma eleição reta e não só pelo ímpeto ou pela
paixão. Ora, como a eleição visa os meios, a sua retidão exige dois
elementos: o fim devido e o que convenientemente se lhe ordena. Ora, ao
fim devido o homem se dispõe convenientemente pela virtude, que
aperfeiçoa a parte apetitiva da alma, cujo objeto é o bem e o fim. E para
que o homem se ordene retamente ao fim devido é preciso seja
diretamente disposto pelo hábito racional, pois aconselhar e eleger, que
dizem respeito aos meios, são atos da razão. E, portanto, é necessário
haver nesta alguma virtude intelectual, que aperfeiçoe a razão, pela qual
ela proceda acertadamente em relação aos meios. E tal virtude é a
prudência, que portanto é uma virtude necessária a bem viver.» (S.T. I-II,
57, 5)

53
2.2. Ética das Virtudes

As virtudes cardeais
As virtudes cardeais têm um quádruplo sujeito: o racional por essência,
que a prudência aperfeiçoa e o racional por participação, que comporta
tríplice divisão: a vontade, sujeito da justiça, o concupiscível, sujeito da
temperança; e o irascível, sujeito da fortaleza (S.T. I-II, 61, 2).

Toda virtude que faz o bem, levando em conta a consideração da razão,


chama-se prudência; toda a que, nos seus atos, observa o bem no atinente
ao devido e ao reto, chama-se justiça; toda a que coíbe as paixões e as
reprime chama-se temperança; toda a que dá a firmeza de ânimo contra
quaisquer paixões se chama fortaleza» (S.T. I-II, 61, 3).

54
2.2. Ética das Virtudes
As quatro virtudes cardeais
 «Toda a virtude que faz o bem, levando em conta a consideração da
razão, chama-se prudência.»
 «Toda a [virtude] que, nos seus atos, observa o bem no atinente ao
devido e ao reto, chama-se justiça.»
 «Toda a [virtude] que coíbe as paixões e as reprime chama-se
temperança.»
 «Toda a [virtude] que dá firmeza ao ânimo contra quaisquer paixões se
chama fortaleza.»
«O filósofo diz que a virtude exige: primeiro, a ciência; depois a eleição de uma obra, em
si mesma considerada; e terceiro, uma disposição firme e imutável. Ora, a primeira
destas condições pertence à prudência, que é a razão reta dos nossos atos, a segunda,
i.e., eleger, à temperança, que nos faz refletir não apaixonada, mas refletidamente,
refreadas as paixões; a terceira, i. e., para o fim devido, implica, de um lado, a retidão,
que pertence à justiça e, de outro, a firmeza e a imobilidade, que pertence à fortaleza.»
(S.T. I-II 61, 4). 55
2.2. Ética das Virtudes

56
2.2. Ética das Virtudes

57
2.2. Ética das Virtudes
As virtudes teologais
 A virtude aperfeiçoa o ser humano para os atos pelos quais se ordena
para a felicidade.
 A felicidade ou beatitude do ser humano é dupla: uma, proporcionada
à natureza, pode obtê-la pelos princípios desta; outra que excede a
natureza e só pode ser alcançada pelo auxílio divino, por participação da
natureza divina.
 Portanto, é necessário lhe sejam acrescentados, por Deus, certos
princípios pelos quais se ordene à beatitude sobrenatural, assim como,
pelos princípios naturais, se ordena a um fim que lhe é conatural; mas,
isso não é possível o auxílio divino.
«Ora, esses princípios se chamam virtudes teologais, quer por terem Deus
como objeto, enquanto nos ordenam retamente para ele; quer por nos
serem infundidos só por Deus; quer por nos serem essas virtudes
conhecidas só pela divina revelação, na Sagrada Escritura» (S.T. I-II, 57, 2).
58
2.2. Ética das Virtudes

59
2.2. Ética das Virtudes

 FÉ: «primeiramente ao intelecto se lhe acrescentam certos


princípios sobrenaturais apreendidos pela iluminação divina, e que são
os princípios da crença, objeto da fé.»

 ESPERANÇA: «a vontade ordena-se para o fim sobrenatural pelo


movimento intencional, tendendo para ele, como o que é possível de
conseguir, o que pertence à esperança.»

 CARIDADE: «por uma como que união espiritual, pela qual, de certo
modo, se transforma nesse fim, o que se realiza pela caridade. Pois, o
apetite de cada ser move-se naturalmente e tende para o seu fim
conatural, e esse movimento procede de certa conformidade da coisa
com o seu fim.»
(S.T. I-II, 58, 2).

60
2.2. Ética das Virtudes

Alasdair MacIntryre (1929-)


 É um dos pioneiros, juntamento com
autores como Michael Sandel ou Charles
Taylor, da perspetiva filosófica conhecida
como comunitarismo.

 MacIntyre defende que não existe


moral em abstrato. Existem morais
concretas, situadas em tempos e espaços
determinados: a filosofia moral não é
uma disciplina separada da história, da
antropologia ou da sociologia; consiste,
sobretudo, em mores, costumes, e estes
são incompreensíveis se separados das
suas circunstâncias.
61
2.2. Ética das Virtudes
 O diagnóstico que MacIntyre faz da moral no mundo
contemporâneo é desalentador: o ethos configurado pela
modernidade deixou de ser credível e o projeto do iluminismo foi um
fracasso; é inútil a busca de uma racionalidade e de uma moral
universais. Vivemos numa época «pós-virtuosa».

 No que diz respeito à moral, o nosso mundo é desordenado, uma


mescla de doutrinas, ideias e teorias que provêm de épocas
longínquas e distintas.

 Como neoaristotélico que é, MacIntyre defende que é possível uma


ética das virtudes nos dias de hoje, com a condição de renunciarmos a
fazê-la universal. As virtudes aristotélicas tiveram origem numa
comunidade concreta: a democracia ateniense. O que hoje precisamos
são novas formas de comunidade.
Victoria Camps, «Prefácio à la nueva edición», in Tras la virtud.
62
2.2. Ética das Virtudes

Três conceções distintas de virtude:


 Virtude como qualidade que permite a um indivíduo desempenhar
bem o seu papel social  Homero.
 Virtude como qualidade que permite a um indivíduo alcançar o telos
especificamente humano, natural ou sobrenatural  Aristóteles, Novo
Testamento, S. Tomás de Aquino.
 Virtude como qualidade útil para alcançar êxito nesta vida ou na
vida futura  Benjamin Franklin.
Questão: será possível encontrar um conceito unitário e central de
virtude que englobe as distintas conceções de virtude? MacIntyre
oferece uma definição unitária de virtude com base em três outros
conceitos: prática, ordem narrativa e tradição moral.
MacIntyre, Tras da virtud
63
2.2. Ética das Virtudes
Prática e bens internos
Prática: «por ‘prática’ entenderemos qualquer forma coerente e
complexa de atividade humana cooperativa, estabelecida socialmente,
mediante a qual se realizam os bens inerentes à mesma e se tentam
alcançar os modelos de excelência que são apropriados para essa
forma de atividade.» (Tras la virtud, p. 233) Exemplos de práticas:
xadrez, a agricultura, investigação em física ou em química, etc. As
práticas não são instituições, embora sejam sustentadas por estas. (Tras
la virtud, p. 233)

Bens internos e bens externos a uma prática: os bens internos a uma


prática não podem obter-se a não ser através da prática e só podem
identificar-se e reconhecer-se participando na prática em questão; os
bens externos podem ser alcançados de outras formas. Os bens
externos, quando se alcançam, são sempre propriedade de um
indivíduo; em geral, quanto mais tem um menos têm os outros. Os
bens internos, pelo contrário, beneficiam também a comunidade que
participa na prática. (Tras la virtud, pp. 234-235) 64
2.2. Ética das Virtudes

Definição de virtude I:
«Uma virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e
exercício tende a fazer-nos capazes de alcançar os bens internos às
práticas e cuja ausência nos impede efetivamente de alcançar esses
bens.» (Tras la virtud, p. 237)

65
2.2. Ética das Virtudes
Virtudes chave:
Existe um conjunto de virtudes chave, transversais a qualquer prática,
sem as quais não poderemos ter acesso a bens internos às práticas.
Estas virtudes são: a justiça, a coragem e a honestidade.
Justiça: precisamos aprender a distinguir os méritos de cada um e a
monitorizar o progresso alcançado.
Coragem: precisamos estar dispostos a enfrentar os riscos e
dificuldades que se atravessarem no nosso caminho.
Honestidade/verdade: precisamos aprender a reconhecer as nossas
insuficiências, escutando cuidadosamente as críticas.

Ao mesmo tempo que são indispensáveis para alcançar os bens


internos a uma prática, as virtudes podem impedir-nos de alcançar
certos bens externos. (Tras la virtud, p. 238)
66
2.2. Ética das Virtudes

Incompletude da primeira definição de virtude:


1. Se estivesse informada apenas pelo conceito de virtude até agora
esboçado, a vida humana estaria invadida por um excesso de conflitos
e de arbitrariedade.

2. A não ser que exista um telos que transcenda os bens limitados das
práticas e constitua o bem da vida humana completa concebido como
uma unidade, a vida moral é invadida por uma certa arbitrariedade.

3. Existe pelo menos uma virtude reconhecida pela tradição que não
pode especificar-se a não ser por referência à totalidade da vida
humana: é a virtude da «integridade».
(Tras la virtud, p. 249-251)

67
2.2. Ética das Virtudes
Ordem narrativa
 As nossas ações, e as dos outros, fazem sentido no contexto de uma
narrativa mais ampla, fora da qual se tornam ininteligíveis. Um ato
torna-se inteligível na medida em que encontra o seu lugar numa
narrativa. (Tras la virtud, pp. 258-259)
 O ser humano, nas suas ações e práticas, é essencialmente um
animal que conta histórias. Sou capaz de dar sentido às minhas ações
na medida em que sou capaz de identificar a história ou histórias de
que faço parte. Não há forma de entender uma sociedade, incluindo a
nossa, que não passe pela identificação das narrativas que constituem
os seus recursos dramáticos básicos. (Tras la virtud, p. 266)
 A unidade da vida humana é a unidade de um relato de busca,
orientado por uma determinada conceção de bem último ou final, que
se vai ajustando ao longo da «viagem». (Tras la virtud, p. 270)
68
2.2. Ética das Virtudes

Definição de virtude II:


«As virtudes são aquelas disposições que, além de manterem as
práticas e nos capacitarem para alcançar os seus bens internos,
também nos sustentam na nossa busca do bem, ajudando-nos a
vencer os riscos, perigos, tentações e distrações com que nos
depararmos e oferecendo-nos um conhecimento cada vez maior de
nós próprios e do bem para nós.» (Tras la virtud, p. 270)

69
2.2. Ética das Virtudes

Tradição
 A busca do bem e o exercício das virtudes não acontece no vazio:
«sou herdeiro do passado da minha família, da minha cidade, da
minha tribo, da minha nação, de uma variedade de heranças,
expetativas e obrigações. Elas constituem os dados prévios da minha
vida, o meu ponto de partida moral». (Tras la virtud, p. 271)
 A história da minha vida está embebida na história daquelas
comunidades das quais derivo a minha identidade. Ou seja, a minha
identidade tem sempre como ponto de referência a tradição a que
pertenço. Tentar escapar à particularidade é sempre uma ilusão. (Tras la
virtud, p. 272)

70
2.2. Ética das Virtudes

Definição de virtude III:


«As virtudes encontram o seu fim e propósito, não só em promover as
condições necessárias para que possam alcançar-se os bens internos
às práticas, e não só em sustentar a forma de vida individual na qual o
indivíduo pode buscar o bem enquanto bem da sua vida inteira, mas
também no sustento das tradições que proporcionam, tanto às
práticas como às virtudes, o seu necessário contexto.» (Tras la virtud, p.
274)

71
2.2. Ética das Virtudes

Martha Nussbaum (1947-)


 Filósofa americana, especializada na
antiguidade grega, em filosofia da Roma
Antiga, em filosofia política, em ética e
em estudos sul-asiáticos. É professora de
Filosofia na Universidade de Chicago.

 Durante os anos 1980 colaborou com o


economista Amartya Sen em temas
relacionados com o desenvolvimento
humano e a ética. Em 2011, publicou um
volume sobre esta temática, intitulado
Creating Capabilities. Trata-se de uma
abordagem no âmbito da ética das
virtudes.
72
2.2. Ética das Virtudes

O enfoque das capacidades


 O enfoque das capacidades trata-se de uma abordagem ao
problema do desenvolvimento humano que concebe cada pessoa
como um fim em si mesmo. A pergunta central é: «o que é capaz de
ser e de fazer cada pessoa?»

 Este enfoque está centrado na liberdade de cada pessoa, e defende


que as sociedades devem promover um conjunto de oportunidades
para cada sujeito. Trata-se de um enfoque comprometido com o
respeito pela autodeterminação das pessoas.

 Em vez de centrar-se no aumento do PIB, o enfoque das


capacidades toma como referência os relatos de vida de pessoas reais,
procurando promover para cada uma um conjunto de oportunidades.
M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 38.
73
2.2. Ética das Virtudes

O que são as capacidades?


 As capacidades são a resposta à questão: «o que é capaz de fazer e
de ser esta pessoa?». As capacidades são «liberdades substanciais», ou
seja, um conjunto de oportunidades para escolher e atuar.

 Uma capacidade é uma espécie de liberdade. Além das habilidades


residentes no interior da pessoa, as capacidades incluem também as
liberdades e oportunidades criadas pela combinação dessas faculdades
pessoais com o meio político, social e económico. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, p. 40)

 Dito de outro modo, uma capacidade é uma «liberdade para


escolher». Promover capacidades significa promover áreas de
liberdade. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 45)

74
2.2. Ética das Virtudes

Capacidades básicas, internas e combinadas


 Capacidades básicas: trata-se do «equipamento inato» da pessoa,
ou seja, as faculdades inatas da pessoa que tornam possível o seu
posterior desenvolvimento e formação. Estas capacidades nascem com
a pessoa, mas para se desenvolverem precisam de um meio favorável.
O desenvolvimento destas capacidades, ainda antes do nascimento,
depende das condições de vida da mãe. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p.
43)

 Capacidades internas: aptidões que se adquirem através da


aprendizagem e da prática, em interação com o meio social,
económico e político. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 41)
 Capacidades combinadas: soma das capacidades internas com as
condições sociais, políticas e económicas que possibilitam o real
funcionamento daquelas. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 42)
75
2.2. Ética das Virtudes

Funcionamento
 Funcionamento: um funcionamento é a realização ativa de uma ou
mais capacidades. Ou seja, os funcionamentos são os produtos ou
materializações das capacidades. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 44)
 Funcionamento fértil: é aquele que tende a favorecer, também,
outras capacidades com ele relacionadas. Por exemplo, o acesso ao
crédito bancário é uma capacidade fértil, uma vez que possibilita a
promoção de muitas outras possibilidades. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, p. 64)

 Desvantagens corrosivas: são, na prática, o contrário dos


funcionamento férteis. Trata-se de privações que têm efeitos
significativos em várias áreas da vida. Exemplo: sujeição a violência
doméstica. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 65)
76
2.2. Ética das Virtudes

Capacidades centrais
O enfoque das capacidades centra-se na proteção de âmbitos de
liberdade tão cruciais que a sua supressão faz com que uma vida
humana não seja humanamente digna. O mínimo que se exige de uma
vida humana para que seja digna é que ela supere um limiar mínimo
no que diz respeito a dez capacidades centrais. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, pp. 52-53)

1. Vida: poder viver uma vida com duração normal: não morrer de
forma prematura ou antes que a duração da vida se veja tão reduzida
que não mereça a pena ser vivida.
2. Saúde física: poder manter uma boa saúde, incluindo a saúde
reprodutiva; receber uma alimentação adequada; dispor de um lugar
apropriado para viver.
77
2.2. Ética das Virtudes

3. Integridade física: poder deslocar-se livremente de um lugar para o


outro; estar protegido de ataques violentos, incluindo agressões
sexuais e violência doméstica; dispor de oportunidades para satisfazer
a satisfação sexual e poder escolher em matéria de reprodução.

4. Sentidos, imaginação e pensamento: poder utilizar os sentidos, a


imaginação, o pensamento e a capacidade de pensar, e fazê-lo de
modo «verdadeiramente humano», formado e cultivado por uma
educação adequada que inclua a alfabetização e a formação
matemática e científica básica. Poder usar a imaginação para fazer
experiências e para a produção de obras e atos religiosos, literários,
musicais ou outros, segundo a própria escolha.
(M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 53)

78
2.2. Ética das Virtudes
5. Emoções: poder sentir afetos por coisas e pessoas externas nós
próprios; poder amar aqueles que nos amam e se preocupam
connosco, e sentir dor pela sua ausência; em geral, poder amar, sentir
compaixão, gratidão e indignação justificada. Que o nosso
desenvolvimento emocional não seja impedido por causa do medo e
da ansiedade.
6. Razão prática: poder formar uma conceção de bem e poder refletir
acerca da planificação da própria vida.
7. Afiliação: a) poder viver com e para os outros, poder reconhecer e
mostrar interesse por outros seres humanos, poder participar em
formas diversas de interação social; b) dispor das bases sociais
necessárias para que não nos sintamos humilhados; ser tratado como
ser humano com um valor igual ao dos demais. Isto supõe introduzir
disposições que combatam a descriminação com base na raça, sexo,
orientação sexual, etnia, casta, religião ou nacionalidade. (M. Nussbaum,
Crear capacidades, p. 54)
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2.2. Ética das Virtudes

8. Relação com as outras espécies: poder viver numa relação próxima


e respeitosa com os animais, plantas e o mundo natural.
9. Lazer: poder rir, divertir-se e desfrutar de atividades recreativas.
10. Controlo sobre o meio: a) político: poder participar de forma
efetiva nas decisões políticas que governam a nossa vida; ter direito à
participação política e à proteção da liberdade de expressão e de
associação; b) poder possuir propriedade (tanto móvel como imóvel) e
ser detentor de direitos de propriedade em igualdade com os demais;
ter direito a procurar trabalho num plano de igualdade com os demais;
estar legalmente protegido face a detenções que não contem com a
devida autorização judicial; no contexto laboral, ser capazes de
trabalhar como seres humanos, exercendo a razão prática e mantendo
relações valiosas e positivas de reconhecimento mútuo com outros
trabalhadores e trabalhadoras. (M. Nussbaum, Crear capacidades, pp. 54-55)
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2.2. Ética das Virtudes

Ética das virtudes - avaliação


1. Críticas:

 Essencialismo: a ética das virtudes parte de uma conceção de


«essência» do ser humano cuja justificação teórica é sempre
problemática e dependente de uma antropologia filosófica ou de uma
metafísica. Esta perspetiva essencialista colide com a ideia moderna de
autonomia da razão.

 Relativismo: a conceção de «vida boa» implica uma descrição de


conteúdos substanciais ou de ideias de bem necessariamente
particulares e contingentes, oriundos de uma ou várias culturas
particulares e locais. Tal abordagem tem dificuldade em dar conta da
dimensão universal da ética.

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2.2. Ética das Virtudes
 Complexidade da vida: a conceção de uma «vida boa» é demasiado
complexa para permitir a formulação de princípios sistemáticos de
«bom» comportamento e «fundamentação» rigorosa de tais
princípios.

 Comunitarismo: sendo a ética das virtudes uma ética


«maximalista» (ou ética de máximos), na prática só pode ser aplicada a
pequenas comunidades que sejam culturalmente homogéneas.
Acontece, porém, que o mundo moderno já não é formado por
pequenas comunidades. Vivemos num mundo global e necessitamos
de normas e valores universalmente aceites.
José Manuel Santos, Introdução à Ética, pp. 104-105.

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2.2. Ética das Virtudes

2. Aspetos positivos:
 Motivação: a ética das virtudes tem em conta o ponto de vista do
sujeito, a perspetiva da primeira pessoa, e a sua necessidade de
orientação de vida.
 Importância do concreto e dos conteúdos particulares: a reflexão
sobre o bem tem em conta os múltiplos aspetos e facetas do bem
humano, ou seja, toda a riqueza da vida humana, não o reduzindo a
um conceito esquemático, estreito e formalista como o do «bem
moral» ou o do «justo» da deontologia.
 Maior amplitude da esfera ética. Sentido da vida: o ponto anterior
implica, igualmente, que a ética das virtudes alarga a esfera da reflexão
ética para além da estrita questão da moral ou do dever. Integra na
reflexão ética a questão do sentido da vida.

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2.2. Ética das Virtudes
 Complexidade da vida e virtude: as virtudes permitem fazer face a
situações problemáticas da vida. Os conceitos de virtude, de
disposição ou capacidade são plásticos.
José Manuel Santos, Introdução à Ética, pp. 105-106.

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