Axiologia e Ética 2022-2023 - Distinções Éticas - Ética Das Virtudes
Axiologia e Ética 2022-2023 - Distinções Éticas - Ética Das Virtudes
Axiologia e Ética 2022-2023 - Distinções Éticas - Ética Das Virtudes
Bruno Nobre, sj
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2. Sistemas Éticos
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2.1. Classificações éticas
Classificações éticas
Dois tipos de classificações
As distintas abordagens éticas podem ser classificadas: 1) de acordo
com o modo como estas concebem o objeto por excelência da
avaliação ética (um bem ou fim a ser alcançado ou a lei moral) e a
forma como entendem a correção moral de ações e normas; 2) de
acordo com a forma como concebem a justificação de proposições
normativas. Por agora, vamos cingir-nos ao primeiro tipo de
classificações; deixaremos o segundo tipo para a secção sobre
metaética.
Nota: as classificações éticas devem ser manuseadas com algum
cuidado, evitando, sobretudo, simplismos e reducionismos; “não se
classificam éticas como se fossem plantas ou mamíferos”. As
classificações éticas servem, sobretudo, para assinalar tendências.
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2.1. Classificações éticas
Éticas consequencialistas e éticas não consequencialistas
Éticas consequencialistas (teleologia): devemos agir por forma a
maximizar as consequências positivas a longo prazo.
Éticas não consequencialistas (deontologia): alguns tipos de ação,
como por exemplo quebrar uma promessa ou matar uma pessoa
inocente, são más em si mesmas e não apenas por causa das suas
consequências.
Ex. Suponha-se que um homem casado acabou de sair de uma consulta
médica na qual ficou a saber que tem cancro. Se este homem for um
consequencialistas, ponderará mentir à esposa sobre o diagnóstico que
acabou de receber, caso pense que esta opção será melhor para a sua
esposa. Caso o homem seja um não consequencialistas, pensará,
certamente, que mentir é em si errado e por isso dirá a verdade à sua
mulher porque ela tem o direito de saber o que se passa com o seu
marido. (Harry Gensler, Ethics: A Contemporary Introduction, pp. 174-175)
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2.1. Classificações éticas
Éticas teleológicas e éticas deontológicas
Éticas teleológicas
«‘Teleologia’ vem do grego telos, que significa ‘fim’ […]. A tarefa de
uma ética deste género consiste em determinar, justificadamente, o
que é o ‘bem’ do ponto de vista do ser humano, qual o fim último e
genérico para cuja realização devem contribuir todas as ações de uma
vida, ou mesmo de um conjunto de vidas, isto é, de uma comunidade
de pessoas» (José Manuel Santos, Introdução à Ética, p. 89).
«São éticas teleológicas as que se ocupam em discernir o que é o bem
não moral antes de determinar o dever, e consideram como
moralmente boa a maximização do bem não moral» (Adela Cortina,
Ética, p. 115). Ou seja, uma ação é ‘boa’ ou ‘má’ em função do telos
que se pretende alcançar.
Exs.: Eudemonismo (Aristóteles), Epicurismo (Epicuro); Utilitarismo
(Bentham, Stuart Mill).
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2.1. Classificações éticas
Éticas teleológicas e éticas deontológicas
Éticas deontológicas
«O termo que designa este tipo de éticas, deontologia, vem do grego
deon, que significa ‘dever’ ou ‘obrigação’. Daí que também se chame às
deontologias ‘éticas do dever’. A principal tarefa de uma ética
deontológica consistirá em explicitar ou ‘fundamentar’ a lei moral».
(José Manuel Santos, Introdução à Ética, p. 89). O critério para
determinar a correção de uma ação reside na conformidade desta
relativamente a um dever que se exprime sob a forma de princípio ou
lei moral.
«São éticas deontológicas as que determinam o âmbito do dever antes
de ocupar-se do bem, considerando boas apenas as ações que se
adequam ao dever» (Cortina, Ética. 115)». Ou seja, uma ação é ‘boa’
ou ‘má’ dependendo de ter sido ou não praticada por dever.
Exs.: Kant, Rawls, éticas discursivas, éticas jusnaturalistas, etc.
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2.1. Classificações éticas
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2.1. Classificações éticas
Vantagens e desvantagens das éticas deontológicas
Vantagens das éticas deontológicas: i) a universalidade dos princípios
morais permite dirimir conflitos interculturais; ii) a fixação de um
número restrito de princípios, ou mesmo de um só, deixa grande
espaço à liberdade individual na orientação de vida; na perspetiva de
uma cultura individualista, este «minimalismo» pode ser considerado
uma vantagem; iii) os princípios universais da deontologia podem ser
facilmente usados para fundamentar direitos fundamentais do ser
humano ou mesmo para regular conflitos entre estados (direito
internacional).
Desvantagens das éticas deontológicas: i) caráter abstrato de uma lei
moral, cuja fundamentação acaba por ser puramente formal, sem
conteúdo; ii) dificuldades de fundamentação do princípio universal; iii)
foco excessivo na adequação das ações a determinadas normas, e
desvalorização dos fins; dificuldade em motivar o sujeito.
José Manuel Santos, Introdução à Ética, pp. 93-94.10
2.1. Classificações éticas
Éticas de máximos e éticas de mínimos
Éticas de máximos ou da felicidade: procuram oferecer ideais de vida
boa, hierarquizando os bens disponíveis de modo a produzir a maior
felicidade possível. As éticas de máximos fazem uma proposta de
plenitude, mas não podem exigir que todos a sigam.
Éticas de mínimos ou da justiça: ocupam-se exclusivamente da
dimensão universalizável do fenómeno moral, ou seja, daqueles
deveres de justiça que são exigíveis a qualquer ser racional e que
constituem apenas exigências mínimas.
Esta distinção reconhece que a moralidade tem duas facetas: i) existem
juízos morais que exigem universalidade; ii) existe nas sociedades
atuais um pluralismo axiológico. A ética de mínimos exige que sejam
respeitados critérios mínimos de justiça que permitem a convivência
pacífica, deixando ao critério de cada um a escolha de uma conceção
de vida plena ou feliz. (Cortina, Ética, p. 118)
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2.1. Classificações éticas
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2.1. Classificações éticas
Éticas materiais e éticas formais (distinção foi introduzida por Kant)
Éticas materiais: as éticas materiais afirmam que o critério de
moralidade para avaliar ações ou normas morais pode explicitar-se
mediante enunciados com conteúdo, uma vez que estas éticas supõem
que existe um fim ou determinados valores na base da moral. Quer se
trate de um bem ontológico, teleológico, psicológico ou sociológico, a
primeira tarefa de uma ética deste tipo é descobrir o bem ou fim
supremo, definindo o seu conteúdo. A partir deste, é possível extrair os
critérios de moralidade.
As éticas materiais estão, de algum modo, subordinadas a disciplinas
distintas da própria ética, ou seja o fundamento último da ética está
fora da ética. Esta é a razão pela qual Kant é um crítico deste tipo de
abordagem. O objetivo de Kant é enfrentar o problema da variabilidade
dos conteúdos morais, e encontrar uma ética autónoma com respeito a
outras disciplinas.
Cortina, Ética, pp. 111-112
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2.1. Classificações éticas
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2.1. Classificações éticas
Éticas substancialistas e procedimentais
Éticas substancialistas: afirmam que não é possível falar da correção
das normas morais sem referência a alguma conceção partilhada de
vida boa. No âmbito da moral, o fundamental não é o discurso sobre
normas justas, mas os fins, os bens e as virtudes vividos
comunitariamente num contexto vital concreto. Os substancialistas
acusam os procedimentalistas de cair num formalismo abstrato e vazio.
(Ex. neo-aristotélicos e neo-hegelianos).
Éticas procedimentais: estas éticas consideram-se herdeiras do
formalismo kantiano, mas substituem os aspetos mais frágeis desta
abordagem – como, por exemplo, a insistência na consciência
individual – por novos elementos teóricos, insistindo numa conceção
dialógica de racionalidade. Segundo esta perspetiva, a tarefa da ética
não é recomendar conteúdos morais concretos, mas propor
procedimentos que permitam legitimar as normas que presidem à vida
quotidiana. (Cortina, Ética, pp. 113-114). 15
2.1. Classificações éticas
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2.1. Classificações éticas
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2.3. Ética das Virtudes
Alma (psychê)
Parte irracional Parte racional
Parte vegetativa Parte apetitiva Parte calculadora Parte científica
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2.3. Ética das Virtudes
Aquisição das excelências
As excelências não nascem connosco por natureza. Existe no ser
humano uma potencialidade (condição de possibilidade) para
desenvolver as excelências.
Excelências teóricas: adquirem-se através do ensino e por isso
requerem experiência e tempo. (1103a15; p. 47)
Excelências éticas: adquirem-se através de um processo de
habituação. (1103a15; p. 47)
Adequação às circunstâncias
«Não se deve enunciar isto apenas na sua generalidade, é necessário
também procurar adequar os enunciados às circunstâncias
particulares. Isto é, de facto, os enunciados proferidos
universalmente acerca das ações são mais abrangentes, mas o que
proferidos acerca das ações concretas que cada vez se constituem
particularmente são mais reveladores da verdade» (p. 58).
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2.3. Ética das Virtudes
Definição de Excelência
«A excelência é, portanto, uma disposição do caráter escolhida
antecipadamente. Ela está situada no meio e é definida
relativamente a nós pelo sentido orientador, princípio segundo o qual
também o sensato a definirá para si próprio. A situação do meio
existe entre duas perversões: a do excesso e do defeito» (p. 57).
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Virtudes teóricas
Atividades
Subparte da alma racional Virtudes teóricas correspondentes Modos ou tipos de saber Objeto do saber
próprias
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2.3. Ética das Virtudes
«A sensatez não abre apenas para coisas gerais, mas deve reconhecer as
situações particulares e singulares, porque a sensatez inere na dimensão
da ação humana e a ação humana é a respeito das situações particulares
em que de cada vez nos encontramos…. De resto, os mais sensatos a
respeito da ação são também os mais experimentados nas
circunstâncias particulares em que de cada vez nos encontramos» (p.
154).
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2.3. Ética das Virtudes
Tipos de sensatez:
A que diz respeito a si próprio na sua individualidade; a que diz
respeito à economia doméstica e à polis (sensatez deliberativa e
judicial).
Aquisição da sensatez:
A sensatez adquire-se pela experiência, razão pela qual é difícil que
os jovens sejam sensatos. «É preciso muito tempo para ter
experiência» (p. 155). É mais fácil os jovens serem bons geómetras
do que serem sensatos.
«Se alguém tiver como única excelência a sensatez, logo terá presente
nele todas as restantes [virtudes éticas]» (p. 164).
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2.3. Ética das Virtudes
Sensatez e esperteza:
«Há uma certa capacidade a que damos o nome de esperteza. Ela é
de tal espécie que é capaz de realizar as ações que supostamente
tendem de modo concomitante para o fim tido em vista e assim
atingi-lo. Ora, quando se trata de um fim magnífico, esta capacidade
é louvável; mas se for mau, é pura malícia. É por esse motivo que
dizemos que tanto os sensatos como os maldosos são espertos. Ora,
esse poder não é sensatez, mas a sensatez não existe sem esperteza»
(p. 162).
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2.3. Ética das Virtudes
Nota:
Mais do que saber o que é a sensatez, importa agir sensatamente.
«Não nos tornamos mais saudáveis, ou com uma melhor condição física,
apenas por sabermos a que estados correspondem, mas pelo efetivo
domínio da perícia que os produz, pois não nos tornamos mais
saudáveis nem vigorosos apenas por percebermos [teoricamente] de
medicina ou de teoria do treino. Se, por outro lado, não se pode dizer
que a sensatez seja útil para sabermos o que são atos sensatos, mas
antes é útil para nos tornarmos sensatos, nessa altura ela não terá
préstimo para os que já são sérios» (p. 161).
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2.2. Ética das Virtudes
S. Tomás de Aquino 1225-1274.
A ética tomista, cujo impacto na cultura ocidental
é difícil de exagerar, resulta, fundamentalmente,
da síntese entre o pensamento Aristotélico e a
tradição cristã. Tal como Aristóteles, Epicuro ou
Santo Agostinho, S. Tomás reflete sobre a
felicidade. A sua ética tem um alcance vasto e
inclui temas como: as virtudes, a consciência
moral, a ação moral ou a lei natural.
«A operação própria de qualquer coisa é o seu fim, que é a sua perfeição. Por isso,
aquilo que perfeitamente corresponde a uma operação chama-se virtuoso e bom. Ora,
a inteleção é a operação própria da substância intelectual, e é o seu fim. Por isso, o que
é perfeitíssimo nesta operação é o fim último, sobretudo nas operações que não se
ordenam a efeitos exteriores, como são os conhecimentos sensitivo e intelectivo. Ora,
como essas operações recebem a especificidade dos objetos, pelos quais são também
conhecidas, é necessário que tanto mais perfeito seja uma delas, quanto mais perfeito
é o objeto. Por isso, entender o inteligível perfeitíssimo, que é Deus, é o que há de
mais perfeito na operação de conhecimento intelectivo. Logo, conhecer a Deus
intelectualmente é o fim último da substância intelectual.» (SG III, 25)
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2.2. Ética das Virtudes
A felicidade não consiste:
Num ato da vontade: sendo a felicidade o bem próprio da
natureza intelectual, é necessário que seja conforme com aquilo
que lhe é próprio. Ora, o apetite não é próprio da natureza
intelectual. A felicidade consiste, sobretudo, num ato do intelecto.
(SG III, 26)
Nos deleites da carne: o prazer está associado ao sexo e à
alimentação, e estes não são o fim último do ser humano.
«Além disso, a felicidade é um bem próprio do homem, pois os animais não
podem ser ditos felizes a não ser impropriamente. Ora, os deleites mencionados
acima são comuns aos homens e aos animais. Logo, neles não se pode colocar a
felicidade.» (SG III, 27)
Nem nas honras nem na glória (ou fama): a honra não consiste
na operação de um homem, mas na de um outro, em relação a ele,
ao lhe mostrar reverência (SG III, 28). A fama é procurada por causa
da honra, e se a honra não é o fim, menos o será a fama. (SG III, 29)
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2.2. Ética das Virtudes
A felicidade não consiste:
Nas riquezas: as riquezas são desejadas por causa de outra coisa,
pois por si mesmas não trazem bem algum; usamo-las para sustento
do corpo e coisas afins. Ora, o sumo bem é desejado por si mesmo e
não por outra coisa. As riquezas são destinadas ao homem e não o
homem às riquezas. (SG III, 30)
No poder mundano: a felicidade não pode consistir na posse de
poderes mundanos porque estes dependem da sorte, são instáveis e
não totalmente dependentes da vontade humana. (SG III, 31)
nos bens corpóreos nem na parte sensitiva: «depreende-se, por
analogia, do exposto que o sumo bem não está nos bens corpóreos,
como são a saúde, a beleza e a robustez. Ora, essas coisas são
comuns aos bons e aos maus; são instáveis e não se subordinam à
vontade. […] Além disso, os bens corpóreos são comuns aos homens
e aos animais. Ora, o bem da felicidade é próprio do homem….» (SG
III, 32-33) 43
2.2. Ética das Virtudes
A felicidade não consiste:
Nas virtudes morais nem no ato da prudência: «Se o último fim for
a felicidade, ela não se ordena a outro fim. Ora, todas as virtudes
morais estão ordenadas para outra coisa» (SG III, 34). «O ato da
prudência refere-se apenas ao que pertence às virtudes morais. Ora,
a felicidade última do homem não está nas virtudes morais. Logo,
nem no ato da prudência.» (SG III, 35)
Na atividade artística: a felicidade também não se encontra na
atividade artística, uma vez que esta não é o fim último do ser
humano. (SG III, 36)
«Fica também claro que a felicidade não está na atividade artística, porque o
conhecimento artístico é também conhecimento prático. Assim sendo, ordena-se
para o fim e não constitui o fim último. Além disso, o fim das atividades artísticas são
as obras de arte. Ora, estas não podem ser o fim último da vida humana, até porque
nós é que somos o fim delas, sendo todas feitas para o uso do homem. Logo, a
felicidade última não pode estar na atividade artística.» (SG III,36)
44
2.2. Ética das Virtudes
A felicidade consiste:
No bem último do ser humano e na atividade que lhe é própria e
que o diferencia de todas as outras criaturas materiais. Ou seja, a
felicidade consiste na contemplação da Verdade, e a Verdade é Deus.
S. Tomás vai mostrar que a felicidade não consiste no conhecimento
geral que muitos têm de Deus, no conhecimento de Deus proveniente
da demonstração ou mesmo da fé. Dado que nesta vida só podemos
ter um conhecimento imperfeito de Deus, «a felicidade do homem
não está nesta vida.» (SG III, 48)
«Se, pois, a felicidade última do homem não consiste nas coisas exteriores ditas nem
da fortuna, nem nos bens corpóreos, nem nos bens da parte sensitiva da alma, nem
na parte intelectiva referente às virtudes morais, nem nas virtudes morais ativas, a
saber na prudência e na arte; de tudo isto resulta que a felicidade última do homem
está na contemplação da verdade. Aliás, essa é a única atividade própria do homem,
e dela de nenhum modo outro animal participa. Esta atividade não se ordena a coisa
alguma como fim, porque a contemplação da verdade é procurada por si mesma. Por
esta operação o homem se une por semelhança aos seres superiores, porque, entre
as atividades humanas, ela é a única que se encontra em Deus e nas substâncias
separadas.» (SG III, 37) 45
2.2. Ética das Virtudes
46
2.2. Ética das Virtudes
S. Tomás e as virtudes
Segundo a perspetiva de S. Tomás, o nosso agir é guiado pela razão: a
synderesis permite-nos conhecer os princípios morais, que através da
consciência aplicamos aos casos particulares. Contudo, para o
Aquinate, como para Aristóteles, o uso da razão não é suficiente para
assegurar uma vida moral boa. Para isso, precisamos também das
virtudes (S.T. I-II, 55 ss.).
As virtudes morais
As virtudes morais são hábitos das potências apetitivas e dispõem-nos
para agir bem. O conhecimento intelectual, por si só, não faz de nós
pessoas boas ou completamente virtuosas.
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
As virtudes cardeais
As virtudes cardeais têm um quádruplo sujeito: o racional por essência,
que a prudência aperfeiçoa e o racional por participação, que comporta
tríplice divisão: a vontade, sujeito da justiça, o concupiscível, sujeito da
temperança; e o irascível, sujeito da fortaleza (S.T. I-II, 61, 2).
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2.2. Ética das Virtudes
As quatro virtudes cardeais
«Toda a virtude que faz o bem, levando em conta a consideração da
razão, chama-se prudência.»
«Toda a [virtude] que, nos seus atos, observa o bem no atinente ao
devido e ao reto, chama-se justiça.»
«Toda a [virtude] que coíbe as paixões e as reprime chama-se
temperança.»
«Toda a [virtude] que dá firmeza ao ânimo contra quaisquer paixões se
chama fortaleza.»
«O filósofo diz que a virtude exige: primeiro, a ciência; depois a eleição de uma obra, em
si mesma considerada; e terceiro, uma disposição firme e imutável. Ora, a primeira
destas condições pertence à prudência, que é a razão reta dos nossos atos, a segunda,
i.e., eleger, à temperança, que nos faz refletir não apaixonada, mas refletidamente,
refreadas as paixões; a terceira, i. e., para o fim devido, implica, de um lado, a retidão,
que pertence à justiça e, de outro, a firmeza e a imobilidade, que pertence à fortaleza.»
(S.T. I-II 61, 4). 55
2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
As virtudes teologais
A virtude aperfeiçoa o ser humano para os atos pelos quais se ordena
para a felicidade.
A felicidade ou beatitude do ser humano é dupla: uma, proporcionada
à natureza, pode obtê-la pelos princípios desta; outra que excede a
natureza e só pode ser alcançada pelo auxílio divino, por participação da
natureza divina.
Portanto, é necessário lhe sejam acrescentados, por Deus, certos
princípios pelos quais se ordene à beatitude sobrenatural, assim como,
pelos princípios naturais, se ordena a um fim que lhe é conatural; mas,
isso não é possível o auxílio divino.
«Ora, esses princípios se chamam virtudes teologais, quer por terem Deus
como objeto, enquanto nos ordenam retamente para ele; quer por nos
serem infundidos só por Deus; quer por nos serem essas virtudes
conhecidas só pela divina revelação, na Sagrada Escritura» (S.T. I-II, 57, 2).
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
CARIDADE: «por uma como que união espiritual, pela qual, de certo
modo, se transforma nesse fim, o que se realiza pela caridade. Pois, o
apetite de cada ser move-se naturalmente e tende para o seu fim
conatural, e esse movimento procede de certa conformidade da coisa
com o seu fim.»
(S.T. I-II, 58, 2).
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2.2. Ética das Virtudes
Definição de virtude I:
«Uma virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e
exercício tende a fazer-nos capazes de alcançar os bens internos às
práticas e cuja ausência nos impede efetivamente de alcançar esses
bens.» (Tras la virtud, p. 237)
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2.2. Ética das Virtudes
Virtudes chave:
Existe um conjunto de virtudes chave, transversais a qualquer prática,
sem as quais não poderemos ter acesso a bens internos às práticas.
Estas virtudes são: a justiça, a coragem e a honestidade.
Justiça: precisamos aprender a distinguir os méritos de cada um e a
monitorizar o progresso alcançado.
Coragem: precisamos estar dispostos a enfrentar os riscos e
dificuldades que se atravessarem no nosso caminho.
Honestidade/verdade: precisamos aprender a reconhecer as nossas
insuficiências, escutando cuidadosamente as críticas.
2. A não ser que exista um telos que transcenda os bens limitados das
práticas e constitua o bem da vida humana completa concebido como
uma unidade, a vida moral é invadida por uma certa arbitrariedade.
3. Existe pelo menos uma virtude reconhecida pela tradição que não
pode especificar-se a não ser por referência à totalidade da vida
humana: é a virtude da «integridade».
(Tras la virtud, p. 249-251)
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2.2. Ética das Virtudes
Ordem narrativa
As nossas ações, e as dos outros, fazem sentido no contexto de uma
narrativa mais ampla, fora da qual se tornam ininteligíveis. Um ato
torna-se inteligível na medida em que encontra o seu lugar numa
narrativa. (Tras la virtud, pp. 258-259)
O ser humano, nas suas ações e práticas, é essencialmente um
animal que conta histórias. Sou capaz de dar sentido às minhas ações
na medida em que sou capaz de identificar a história ou histórias de
que faço parte. Não há forma de entender uma sociedade, incluindo a
nossa, que não passe pela identificação das narrativas que constituem
os seus recursos dramáticos básicos. (Tras la virtud, p. 266)
A unidade da vida humana é a unidade de um relato de busca,
orientado por uma determinada conceção de bem último ou final, que
se vai ajustando ao longo da «viagem». (Tras la virtud, p. 270)
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
Tradição
A busca do bem e o exercício das virtudes não acontece no vazio:
«sou herdeiro do passado da minha família, da minha cidade, da
minha tribo, da minha nação, de uma variedade de heranças,
expetativas e obrigações. Elas constituem os dados prévios da minha
vida, o meu ponto de partida moral». (Tras la virtud, p. 271)
A história da minha vida está embebida na história daquelas
comunidades das quais derivo a minha identidade. Ou seja, a minha
identidade tem sempre como ponto de referência a tradição a que
pertenço. Tentar escapar à particularidade é sempre uma ilusão. (Tras la
virtud, p. 272)
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
Funcionamento
Funcionamento: um funcionamento é a realização ativa de uma ou
mais capacidades. Ou seja, os funcionamentos são os produtos ou
materializações das capacidades. (M. Nussbaum, Crear capacidades, p. 44)
Funcionamento fértil: é aquele que tende a favorecer, também,
outras capacidades com ele relacionadas. Por exemplo, o acesso ao
crédito bancário é uma capacidade fértil, uma vez que possibilita a
promoção de muitas outras possibilidades. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, p. 64)
Capacidades centrais
O enfoque das capacidades centra-se na proteção de âmbitos de
liberdade tão cruciais que a sua supressão faz com que uma vida
humana não seja humanamente digna. O mínimo que se exige de uma
vida humana para que seja digna é que ela supere um limiar mínimo
no que diz respeito a dez capacidades centrais. (M. Nussbaum, Crear
capacidades, pp. 52-53)
1. Vida: poder viver uma vida com duração normal: não morrer de
forma prematura ou antes que a duração da vida se veja tão reduzida
que não mereça a pena ser vivida.
2. Saúde física: poder manter uma boa saúde, incluindo a saúde
reprodutiva; receber uma alimentação adequada; dispor de um lugar
apropriado para viver.
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
5. Emoções: poder sentir afetos por coisas e pessoas externas nós
próprios; poder amar aqueles que nos amam e se preocupam
connosco, e sentir dor pela sua ausência; em geral, poder amar, sentir
compaixão, gratidão e indignação justificada. Que o nosso
desenvolvimento emocional não seja impedido por causa do medo e
da ansiedade.
6. Razão prática: poder formar uma conceção de bem e poder refletir
acerca da planificação da própria vida.
7. Afiliação: a) poder viver com e para os outros, poder reconhecer e
mostrar interesse por outros seres humanos, poder participar em
formas diversas de interação social; b) dispor das bases sociais
necessárias para que não nos sintamos humilhados; ser tratado como
ser humano com um valor igual ao dos demais. Isto supõe introduzir
disposições que combatam a descriminação com base na raça, sexo,
orientação sexual, etnia, casta, religião ou nacionalidade. (M. Nussbaum,
Crear capacidades, p. 54)
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2.2. Ética das Virtudes
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2.2. Ética das Virtudes
Complexidade da vida: a conceção de uma «vida boa» é demasiado
complexa para permitir a formulação de princípios sistemáticos de
«bom» comportamento e «fundamentação» rigorosa de tais
princípios.
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2.2. Ética das Virtudes
2. Aspetos positivos:
Motivação: a ética das virtudes tem em conta o ponto de vista do
sujeito, a perspetiva da primeira pessoa, e a sua necessidade de
orientação de vida.
Importância do concreto e dos conteúdos particulares: a reflexão
sobre o bem tem em conta os múltiplos aspetos e facetas do bem
humano, ou seja, toda a riqueza da vida humana, não o reduzindo a
um conceito esquemático, estreito e formalista como o do «bem
moral» ou o do «justo» da deontologia.
Maior amplitude da esfera ética. Sentido da vida: o ponto anterior
implica, igualmente, que a ética das virtudes alarga a esfera da reflexão
ética para além da estrita questão da moral ou do dever. Integra na
reflexão ética a questão do sentido da vida.
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2.2. Ética das Virtudes
Complexidade da vida e virtude: as virtudes permitem fazer face a
situações problemáticas da vida. Os conceitos de virtude, de
disposição ou capacidade são plásticos.
José Manuel Santos, Introdução à Ética, pp. 105-106.
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