A Prova Dos Fatos Marina Gascón Abellán
A Prova Dos Fatos Marina Gascón Abellán
A Prova Dos Fatos Marina Gascón Abellán
A distinção entre as duas concepções da prova comentadas, pode ser analisada à luz das
relações entre os conceitos de verdade e prova.
Dizer que um enunciado fático é verdadeiro significa que os fatos descritos existiram ou
existem em um mundo independente; ou seja, que é correta -no sentido de que se
corresponde com a realidade- a descrição de fatos que formula. Dizer que um enunciado
fático está provado significa que sua verdade foi comprovada; ou seja, que o enunciado
foi confirmado pelas provas disponíveis2. Poderia dizer-se que enquanto o
cognoscitivismo separa ambos os conceitos, a concepção persuasiva os identifica: pela
perspectiva cognoscitivista a declaração de fatos provados da sentença pode ser falsa;
1
Vid. TARUFFO, M., <Modelli di prova e di procedimento probatório>, Rivista di Diritto Processuale,
XLV, 2, 1990, pp. 429 e ss.
2
Se bem que, quando um enunciado fático tenha sido confirmado pelas provas disponíveis costuma dizer-
se que <é verdadeiro>.
pela concepção persuasiva não tem sentido fazer tal afirmação, pois mesmo que, a rigor,
a verdade dos fatos, aqui não é algo que se deva perseguir, é evidente que na prática esta
posição descansa sobre um conceito de verdade em virtude do qual verdadeiro é o que
resulta provado no processo.
3
Como afirmam ALCHOURRÓN, C., e E. BULYGIN, poderá dizer-se que a verdade processual <é final
no sentido de que põe fim à controvérsia, (mas por fim à discussão sobre a verdade não torna verdadeiro o
enunciado!)>, <Os limites da lógica e o raciocínio jurídico>, Análise lógica e direito, CEC, Madrid, 1991,
p. 311.
4
FERRAJOLI, L., Direito e Razão, cit., p. 67.
fatos, de modo que o que imediatamente conhece, são enunciados sobre os fatos, cuja
verdade deve-se provar. Segundo, porque a verdade de tais enunciados deve ser obtida,
quase sempre, mediante um raciocínio indutivo a partir de outros enunciados fáticos
verdadeiros. Terceiro, porque a averiguação da verdade deverá fazer-se mediante
normas institucionais que muitas vezes atrapalham (e outras claramente impedem) a
obtenção desse objetivo. Agora nos ocuparemos do segundo aspecto
A verdade dos enunciados fáticos relevantes para a causa pode ser conhecida, em
alguns casos, mediante observação dos fatos a que fazem referência, isto é, mediante o
que se poderia denominar prova observacional, cujo grau de certeza pode considerar-se
absoluto. Por exemplo, o enunciado <queimaram-se vinte hectares de bosque> admite
prova observacional mediante a medição da superfície queimada; embora o caso
paradigmático deste tipo de prova é o reconhecimento judicial ou inspeção ocular. No
entanto, em geral o juiz não esteve presente quando aconteceram os fatos, de modo que
seu conhecimento sobre eles quase nunca é direto ou imediato, mas indireto ou mediato.
Isto é, as provas, nestes casos, não são o resultado direto da observação, porém de uma
inferência que se realiza a partir de outros enunciados, inferência que pode ser de
caráter dedutivo ou de caráter indutivo.
Agora, mesmo que possa parecer uma obviedade, é preciso insistir na necessidade de
separar nitidamente as questões lógicas das epistemológicas, a validez da verdade: a
validez de um argumento dedutivo não garante a verdade da conclusão, pois a conclusão
é verdadeira <a condição de que> as premissas sejam verdadeiras. Em outras palavras, o
uso de meios de prova dedutiva não garante, por si só, a infalibilidade dos resultados; e
não, obviamente, pelo caráter da inferência, mas sim pela qualidade epistemológica das
premissas, particularmente pelas constituídas de asserções sobre fatos singulares.
Além do mais, de outro lado, não todas as provas científicas podem perceber-se,
apesar de sua aparência, como provas dedutivas. Muitas delas –por exemplo a prova
positiva de DNA- são de natureza estatística, mesmo que tenham sido bem realizadas e
se tenha usado métodos cientificamente válidos, seus resultados podem ser considerados
dignos de toda confiança, razão pela qual costuma-se assimilá-las, do ponto de vista de
seu grau de certeza, às provas dedutivas.
As observações recém feitas são importantes, pois põem em evidência que, pese a
aura de infalibilidade que cerca as provas científicas e todas as de natureza dedutiva,
deve-se assumir como tese epistemológica geral, que o grau de conhecimento que
proporcionam, é somente o de probabilidade, por mais alta que esta possa ser.
Porém as inferências probatórias podem ser também de caráter indutivo, pois por
indução, em sentido amplo, entende-se todo aquele tipo de raciocínio em que as
premissas, mesmo sendo verdadeiras, não oferecem fundamentos conclusivos para a
verdade de seu resultado, mas sim que este segue aquelas com alguma probabilidade.
Falamos então de prova indutiva, que constitui, sem dúvida nenhuma, o tipo de
raciocínio probatório mais freqüente.
Na maioria das ocasiões, efetivamente, a prova judicial dos fatos relevantes para o
processo, exige lançar mão de leis ou regularidades empíricas que conectam as provas
existentes com uma hipótese sobre os fatos; isto é, leis que permitem estabelecer que, as
provas sendo corretas, a hipótese sobre os fatos também o será: pà h. É verdade que o
raciocínio que se desenvolve a partir dessas leis (que se pàh e é p, então é h) tem
aparência dedutiva, mas, a rigor, sua natureza é indutiva, e isso porque essas leis
empíricas às que se recorre, são leis probabilísticas; ou seja, somente estabelecem –de
acordo com nossa experiência passada- que se as provas são verdadeiras é provável que
também o seja a hipótese: se p, então é provável que h.
Por exemplo, leis do tipo: se alguém odiava outra pessoa que apareceu morta, e/ou
estava no lugar do crime momentos antes do mesmo, e/ou tinha motivos suficientes
para desejar sua morte, e/ou encontrou-se em sua casa a arma do crime, e/ou
encontrou-se sangue da vítima em sua roupa, então é provável que a tenha matado.
Se a isso se agrega que no discurso judicial a maioria destas regularidades são leis
sociais –portanto leis sobre a ação humana livre- e, principalmente, máximas de
experiência baseadas no id quod plerumque accidit5, então a natureza probabilística da
5
As máximas de experiência, na célebre definição de STEIN <são definições ou juízos hipotéticos de
conteúdo geral, desligados dos fatos concretos que são julgados no processo, procedentes da experiência,
mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram induzidos e que, acima desses casos,
pretende, ter validez para outros novos< (STEIN, O conhecimento privado do juiz, Madrid, 1990, p. 42).
implicação, mostra-se ainda mais clara, apesar da aparência dedutiva do raciocínio.
Talvez devido a essa aparência dedutiva, não tem sido raro que os juristas atribuam aos
resultados dessa inferência o valor de uma conseqüência necessária. Mas insistimos que
isso é um erro. Uma inferência desse tipo é um tipo de indução, e por isso, no sentido
estrito, o mais que se pode dizer, é que seu resultado é uma hipótese, isto é, um
enunciado que consideramos verdadeiro mesmo quando não sabemos se o é ou não. Isso
não significa, obviamente, que não se possam tratar as hipóteses como verdadeiras;
mais ainda, há boas razões para esperar que o resultado de uma indução rigorosa seja
fidedigno. Significa somente que, já que o conhecimento indutivo é somente provável, o
resultado da indução pode ser falso.
Pois bem, enquanto princípio metodológico negativo, a livre convicção não só não é,
mas também não impõe nenhum critério (positivo) de valoração; isto é, ainda não diz
como valorar, como determinar o grau de aceitabilidade de uma hipótese. Mas se a livre
convicção não diz nada, a concepção cognoscitiva da prova sim que proporciona
algumas chaves a respeito. Por uma parte, proscrevendo alguns critérios de valoração: a
valoração não pode ser entendida como uma convicção íntima, incomunicável,
intransferível, e por isso incontrolável e arbitrária, pois é óbvio que a íntima convicção,
por si mesma, não pode provar nada. Por outra, indicando o tipo de critérios que serão
usados: se valorar é avaliar a aceitabilidade dos resultados probatórios, e levando em
conta que estes se considerarão aceitáveis quando seu grau de probabilidade se
considere suficiente, os critérios (positivos) de valoração indicam quando uma hipótese
alcançou um grau de probabilidade suficiente e maior do que qualquer outra hipótese
alternativa sobre os mesmos fatos. Por isso, o objetivo dos modelos de valoração há de
ser prover esquemas racionais para determinar o grau de probabilidade das hipóteses7.
6
Vid. também FERRAJOLI, L., Direito e Razão, cit., p. 139.
7
Sobre os modelos de valoração racionel da prova, vid. TARUFFO, M., La prova dei fatti giuridici,
Giuffrè, Milan, 1992; e GASCÓN, M., Los hechos en el derecho. Bases argumentales de la prueba,
Marcial Pons, Madrid, 2ª edic., 2004.
embora também se enquadrem nessa linha o modelo das belief functions desenvolvido
por G. SHAFFER, ou o evidentiary value model, dos suecos P.O.EKELÖF, S.
HALLDÉN e M. EDMAN. No entanto, mesmo assim estes modelos apresentam sérias
deficiências ou dificuldades para fundar uma teoria geral da valoração da prova, o que
não impede que, em âmbitos específicos (por exemplo, na valoração das provas
científicas) possam ter utilidade.
1º Requisito da confirmação.
Uma hipótese (h) é confirmada por uma prova (p) se existe um nexo causal ou lógico
entre ambas (que é uma simples lei probabilística ou uma máxima de experiência) que
faz com que a existência desta última estabeleça uma razão para aceitar a primeira.
p--- h
----------- [é provável]
O fundamento desta afirmação também parece claro: se uma prova é fraca, o grau de
confirmação que atribui à hipótese não pode ser alto, por mais fundamentada que esteja
a regra que conecta a prova com a hipótese. Por exemplo, a hipótese <A matou a B>
poderia ser confirmada pelo resultado de uma prova de DNA que estabelecesse que <as
amostras de pele e cabelo encontradas entre as unhas da vítima pertencem a A>; ou
poderia ser confirmada pelo testemunho de X, um inimigo de A, que declarasse que, de
acordo com o que havia comentado a vítima, <A odiava a B e o tinha ameaçado de
morte>. Parece que o grau de certeza da primeira prova é maior que o da segunda, pelo
qual o grau de confirmação ou probabilidade conferido à hipótese <A matou B> será
também maior no primeiro caso do que no segundo.
(III) O número de passos inferenciais que separam a hipótese das provas que a
confirmam.
8
TARUFFO, M., La prova dei fatti, cit. P. 247.
provas que a confirmam, menor será a probabilidade. Assim, a hipótese <A comercia
com drogas> poderia ser confirmada pelo testemunho de X: <A vendeu droga várias
vezes no lugar L>; ou pelo testemunho de Y (a polícia): <A levava no carro uma
balança de precisão e na sua casa foi encontrada uma importante quantidade de dinheiro
e certa quantidade de droga>. O número de passos inferenciais que separam a hipótese
do testemunho de X é menor do que o número de passos que a separam do testemunho
de Y.
9
Mesmo com terminologia diferente, esta observação já está presente em BENTHAM, J., Tratado de las
pruebas judiciales,2 Vols., comp. De E. Dumont (1823), trad. de M. Osório, EJEA, Buenos Aires, 1971,
Vol. I, p. 365.
a observação da seguinte regra epistemológica: Não existem provas suficientes.
Qualquer prova relevante é necessária, e por isso deveria ser admitida.
2º Requisito da não-refutação.
Para aceitar uma hipótese é necessário que, além de confirmada, não seja refutada
pelas provas disponíveis; isto é, que estas não entrem em contradição com aquela. A
sujeição a refutação das hipóteses é por isso a <prova de fogo> para poder aceitá-las.
Daí deriva outra regra epistemológica importante (ou garantia de verdade) que exige a
oportunidade de um momento contraditório no processo para poder refutar as hipóteses
(requisito da contradição). Precisamente por isso, o processo inquisitório, onde a busca
da verdade é confiada somente à confirmação da hipótese por parte do juiz, sem dar
10
Deve-se dizer que na jurisprudência muitas vezes se alude ao binômio relevância/necessidade com os
termos penitencia/relevância ou necessidade.
possibilidade para as partes (mediante um contraditório) de defender a própria hipótese
demonstrando o infundado da contrária, é um processo afetado por um defeito
epistemológico importante.
11
MacCORMICK, N., <Coherence in Legal Justification> (1984), agora recolhido em M. BESSONE e R.
GUASTINI, (coords.), Materiali per um corso di analisi della giurisprudenza, CEDAM, Padova, 1994,
pp. 115 e ss.
de qual hipótese há de se orientar a solução. O in dúbio pro reo no processo penal e, em
geral, as regras sobre a carga da prova representam exemplos das mesmas.
Considerações críticas
Entre as muitas distinções doutrinais sobre a prova tem especial importância àquela
que distingue entre prova direta e prova indireta ou indiciária, pois algumas
conseqüências importantes associam-se a ela, como a distinção entre níveis de valoração
e entre exigências de motivação. Vale a pena examinar brevemente esta distinção com a
finalidade de examinar os acríticos postulados na qual se fundamenta, assim como
também o catálogo de requisitos que habitualmente se exige à denominada prova
indireta ou indiciária.
Embora não exista unanimidade sobre o critério que fundamenta esta distinção, pode-
se dizer que a concepção <canônica> da mesma, por ser normalmente usada pela
doutrina e, principalmente, pela jurisprudência, entende por ambos os tipos de prova o
seguinte.
Prova direta, cujos casos típicos são a testemunhal e a documental, é aquela que versa
diretamente sobre o fato que se pretende provar, pelo qual –diz-se- a convicção judicial
sobre esse fato surge direta e espontaneamente, sem nenhuma mediação nem
necessidade de raciocínio, do meio ou fonte de prova.
São passíveis de prova direta aqueles nos quais <a demonstração do fato ajuizado
surge de modo direto e imediato através do meio de prova utilizado; documentos,
testemunhas, etc. Sua valoração não apresenta as dificuldades próprias da prova
indiciária, porque a conseqüência ou apreciação vem determinada, sem ser
necessário fazer uso de operações mentais complexas, isto é, por ser de certo modo
tarefa matizada de objetividade. O problema, a dificuldade e o perigo surgem com
a prova indireta... Nela entra a subjetividade do juiz, enquanto, mentalmente,
realiza o encadeamento entre o fato base e o fato conseqüência> (STC 169/1986,
FFJJ 1º e 2º).
Com a distinção prova direta-prova indireta parece querer indicar-se, pois, a ausência
ou presença de raciocínios e inferências, dependendo de que a prova verse ou não sobre
o fato que se pretende provar. A prova direta, por versar diretamente sobre o fato que se
quer provar, o provaria <espontaneamente>, <sem necessidade de raciocínio>. A prova
indireta ou indiciária, ao contrário, por não versar diretamente sobre o fato que se
pretende provar, mas, somente sobre um fato circunstancial, para dar crédito àquele
precisaria do raciocínio, da inferência. Além do mais, e conectado com o anterior,
parece que a espontaneidade em um caso, e, a necessidade de raciocinar no outro
acarreta também uma diferente qualidade epistemológica (e, portanto um valor
diferente ou força probatória) dos resultados de ambos os tipos de prova: maior no
primeiro caso, <por ser, de certo modo, tarefa mais matizada de objetividade e, portanto
de imparcialidade>; menor no segundo, porque <entra nela a subjetividade do juiz
enquanto, mentalmente, realiza o encadeamento entre o fato base e o fato conseqüência.
Essa distinção, no entanto, não parece aceitável, pois se fundamenta em uma acrítica
percepção da chamada prova direta. Analisada rigorosamente, a declaração da
testemunha Ta: <vi A atirar em B e este cair morto>, exemplo de prova direta, não
prova por si só (direta e espontaneamente, sem necessidade de raciocínio) o fato que se
pretende provar (que A matou B); o único que esta declaração prova por si só é que <a
testemunha Ta diz que viu A atirar em B e este cair morto>. A declaração de Ta provará
que <A matou B> somente se A diz a verdade (isto é, se não mente, nem cometeu um
erro de percepção, nem agora sofre de lapsos de memória); mas esse dado (que Ta diz a
verdade) é o resultado de uma inferência do mesmo tipo da que define a prova indireta.
Então, do ponto de vista do raciocínio não há nenhuma diferença essencial entre a
chamada prova direta e a indireta, pois em ambos os casos, estão presentes inferências
da mesma classe (indutivas, na verdade) e, em conseqüência, tão <matizada de
subjetividade> podem estar tanto a primeira quanto a segunda. A idéia de que a prova
direta é a que menos pode conduzir a erro judicial, deve ser posta em quarentena.
Na realidade, o único que a distinção entre prova direta e indireta pode indicar, é que
uma prova é direta se versa diretamente sobre o fato principal que se pretende provar e
do qual depende a decisão judicial, e indireta no caso contrário, sem outras
considerações. Por exemplo, imaginemos que com o sujeito B se apreende uma
pequena quantidade de droga e suspeita-se que seu destino seja o comércio e não o
consumo próprio. Se o fato que se quer provar, é se B comercia drogas, o que foi
declarado pela testemunha Ta: <vi B vender droga em várias ocasiões no lugar L>
constituiria (uma vez confirmado) uma prova direta do enunciado <B comercia com
drogas>. Enquanto que o declarado pela testemunha Tb (por exemplo, a polícia): <B
levava no carro uma balança de precisão> e <em sua casa encontrou-se uma importante
quantidade de dinheiro e certa quantidade de droga> seria (uma vez confirmado)
somente provas indiretas ou indiciárias de que <B comercia drogas>. Insistimos em que
a distinção, assim interpretada, não assinala uma diferença entre as provas em relação à
presença ou não de raciocínios e inferências, porém em relação a que versem ou não
diretamente sobre o fato principal do qual depende a decisão. Outra coisa é se pode
afirmar-se –como acontece freqüentemente- que o valor probatório da prova direta é
muito grande, e o da indireta é sempre pequeno ou em todo caso inferior àquele, ao
ponto de sustentar que uma prova direta, por si só, é apta para fundamentar a decisão do
juiz sobre o fato que se pretende provar, enquanto que uma prova indireta, por si só, não
é apta para fundamentar essa decisão, porém que opera como um elemento a mais, que
permite ao juiz inferir uma hipótese sobre aquele fato. Pode-se dizer a esse respeito que,
certamente, o valor probatório da prova direta (uma asserção verificada sobre o fato
principal que se pretende provar) tende a ser maior que o da indireta (uma asserção
verificada sobre um fato circunstancial), porque a prova direta não requer nenhuma
inferência a mais para provar o fato principal, enquanto que provar este fato com uma
prova indireta, exige sempre inferências suplementares. Mas só como tendência, pois o
valor probatório de uma prova (seja esta direta ou indireta) não depende só deste dado,
mas também –como é evidente- de sua qualidade epistemológica, isto é, de seu grau de
certeza.
Por exemplo, um jovem é encontrado morto no banheiro de uma discoteca. Existe a
declaração de uma testemunha, amigo da vítima, que diz ter presenciado como o
segurança da discoteca lhe deu uma surra mortal. Existe outra prova: entre as unhas
da vítima foi encontrado restos de pele e sangue pertencentes ao amigo. O primeiro
caso constitui uma prova direta; o segundo uma prova circunstancial ou indiciária.
No entanto, a qualidade epistemológica (e, portanto o valor probatório) da segunda
é maior do que o da primeira, por ser o resultado de uma prova dedutiva.
Mesmo que os termos: prova indireta ou prova indiciária costumem ser reservados
para o âmbito penal, sua estrutura é a mesma que a denominada, no âmbito civil, prova
presumida ou presunções simples.
Com este requisito se quer excluir que as meras suspeitas ou intuições do juiz, possam
fundamentar a prova do indício, e neste sentido não há o que objetar, pois é evidente de
que uma simples suspeita, intuição ou pressentimento, não pode ser prova de nada.
Agora, sob o requisito da certeza dos indícios, costuma excluir-se também a
possibilidade de usar como indícios aqueles fatos dos quais só caiba predicar sua
probabilidade e não sua certeza inquestionável. Precisamente esta segunda exclusão é a
base da rejeição aos chamados indícios mediatos, isto é, aqueles que foram provados,
por sua vez, mediante prova indiciária a partir de outros indícios, e cuja certeza,
portanto, não se pode considerar absolutamente fora de dívida. Mais concretamente, o
que se defende é que o indício deve estar provado por prova direta.
Esta segunda exclusão, no entanto, resulta criticável, e isso por várias razões.
1º) Excluir os indícios mediatos (provados por prova indiciária) e aceitar os imediatos
(provados por prova direta) revela uma injustificada subvalorização da prova
indiciária, assim como uma má compreensão e uma injustificada supervalorização da
prova direta. O primeiro porque a prova indiciária, indireta ou presumida, apesar de não
ser um argumento demonstrativo, se realizada com rigor pode conduzir a resultados
confiáveis. O segundo porque a prova direta é do ponto de vista de sua estrutura
probatória, exatamente igual à prova indireta; só o que a separa desta última é seu
menor número de passos inferenciais.
2º) Além do mais, a exclusão dos indícios mediatos, levada às suas últimas
conseqüências, conduz a resultados absurdos, inaceitáveis: ao se rechaçar um indício
mediato por considerar que tem um baixíssimo ou nenhum grau de solidez
epistemológica, está se pondo em questão a própria validez do procedimento indiciário,
que foi o que conduziu à prova desse indício; portanto, deveria renunciar-se ao uso do
procedimento indiciário em todos os casos, e não somente quando se usa para provar
um indício. Esta conclusão, no entanto, é inaceitável, porque o procedimento
característico da prova judicial é o da prova indireta ou indiciária, razão pela qual
renunciar ao mesmo, equivaleria a renunciar à possibilidade de prova.
Outro dos requisitos que, segundo uma opinião clássica, deve possuir o indício é a
precisão ou univocidade: o indício é unívoco ou preciso quando conduz
necessariamente ao fato desconhecido; é, pelo contrário, equívoco ou contingente,
12
Este dado já o assinalava BENTHAM, ao falar da admissibilidade do indício mediato: <Não se deve
excluir nem rechaçar nada daquilo que possa servir ou que se possa oferecer com o caráter de prova
circunstancial; em particular não se pode excluir nada por razão de que se o supõe carente de força
probatória. Por que se deveria excluir? Se causar um efeito, é útil; se não o causa, é inócuo>. Outra coisa
é que <em uma corrente de provas composta por um grande número de elos, quantos mais elos
intermediários haja entre o primeiro fato circunstancial e o fato principal, menor será com relação a este
sua força probatória>, Tratado de las pruebas judiciales, cit., Vol. I, pp. 363 e 365.
quando pode ser devido a muitas causas, ou ser causa de muitos efeitos. Esta distinção
projeta-se sobre a teoria da prova exigindo eliminar a equivocidade dos segundos, para
poder ser usados como elementos de prova.
Que o processo tenha uma finalidade prática significa que tem como objetivo
primário a resolução de um conflito: o conhecimento dos fatos do passado que
originaram o conflito não é o objetivo último e primordial da atuação do juiz, mas
somente um passo prévio à decisão que deve adotar. Por isso, para resolver o conflito, o
juiz está obrigado inescusavelmente a alcançar uma certeza oficial, e, daí, deriva uma
exigência: a busca da verdade sobre esses fatos não pode prolongar-se indefinidamente;
devem existir regras ou expedientes processuais que permitam fixar a verdade quando
esta não possa ser descoberta com facilidade; e tem que chegar o momento em que a
verdade, processualmente declarada, seja aceita como verdade final. Claro é, que esta
<verdade final> não será infalível, mas será final, no sentido de que porá fim ao conflito
autorizadamente. As regras de limitação temporal, as formas de justiça negociada e
algumas presunções (as que se dirigem a prover uma resposta judicial em caso de
incerteza) são exemplos dessas regras.
Por outro lado, na busca da verdade, os atuais ordenamentos jurídicos têm que
preservar outros valores que se considerem merecedores de proteção. Isto acontece
certamente no processo penal, onde a ideologia do garantismo impõe-se com força,
exigindo que durante a averiguação da verdade sejam protegidos, em todo caso,
determinados bens, particularmente a liberdade e a dignidade das pessoas. Algumas
limitações e proibições de prova e a presunção de inocência são exemplos de regras
que se instituem no processo probatório para preservar estes valores.
Resumindo, a investigação judicial dos fatos não é uma atividade livre, mas que se
desenrola em um marco institucionalizado de regras, que condicionam a obtenção do
conhecimento e que se encaminham, tanto a garantir uma resposta mais ou menos
rápida que em algum momento ponha fim ao conflito, quanto a garantir outros valores
que, em conjunto com a obtenção da verdade, se considerem dignos de proteção.
As presunções iuris tantum são normas jurídicas que, para garantir determinados
valores, forçam a reconhecer uma situação como verdadeira em circunstâncias
específicas e ausência de prova em contrário. Mais exatamente, instauram uma regra de
juízo ou de decisão que indica ao juiz qual deve ser o conteúdo de sua sentença, quando
não possua provas suficientes para formar sua convicção sobre os fatos litigiosos. Sua
peculiaridade frente ao resto de normas apóia-se em que estas presunções garantem
esses valores regulando o ônus da prova, o que pode concretizar-se em eximir àqueles
em cujo benefício funciona o ônus de provar os fatos litigiosos (assim acontece nas
presunções formais, por exemplo, o de inocência13) ou em modificar o objeto da prova
para o beneficiário da presunção, que terá então o ônus de provar logo, não os fatos
litigiosos, mas outros fatos ou estado de coisas que se conectam àqueles (assim acontece
nas presunções materiais, por exemplo, o da paternidade 14).
A constatação de que as presunções são normas jurídicas que instauram uma regra de
juízo, acrescenta uma importância crucial, pois significa que a conclusão da presunção
não pode ser tratada como uma correta descrição da realidade. O erro de conceber estas
presunções como correta descrição da realidade, no caso de consentir que o legislador,
quando estabelece presunções (principalmente, presunções materiais de fato), costuma
fazê-lo muitas vezes, apoiando-se em dados científico-técnicos e em regras de
experiência. Por exemplo, na presunção de paternidade matrimonial, a experiência
indica que o normal é que o casal coabite, e, que as crianças nascidas no casamento
sejam filhas do marido. Mas este é um conhecimento somente provável, e o legislador,
quando estabelece a norma de presunção, sabe que a conclusão pode ser falsa. Se não
houve prova em contrário, empiricamente somente pode-se constatar a dúvida, não que
a presunção seja certa.
As presunções iuris et de iuri, por seu lado, são também normas que, para a proteção
de certos valores e na presença de determinadas circunstâncias, estabelecem o singular
efeito jurídico de dar como verdadeiros certos fatos e de não transigirem com nenhuma
exceção não prevista. Por isso nesse tipo de presunções, com mais razão do que na iuris
tantum, podem adquirir valor de verdade, asserções que são empiricamente falsas.
(I) Formariam uma primeira classe aquelas limitações probatórias que, fundadas no
interesse cognoscitivo do processo, contribuem para a averiguação da verdade,
desprezando ou subvalorizando provas com baixo valor gnosiológico; por exemplo, o
escrito anônimo ou o testemunho de referência, apesar de que o caso mais claro talvez
seja a proibição da tortura, pois, mesmo que se dirija diretamente a garantir a vida e a
dignidade humana, não resta dúvida de que contribui também a evitar a possível
obtenção de uma verdade <distorcida>.
(II) Formariam uma segunda classe aquelas limitações probatórias que, fundadas na
proteção de outros valores, claramente entorpecem (ou não ajudam) a investigação da
verdade; isto é, produzem (ou têm a capacidade de produzir) um menosprezo na
qualidade do conhecimento alcançado. Trata-se de regras que, dirigindo-se
15
FORNER, J. P., Discurso sobre la tortura (1792), edição de S. Mollfulleda, Barcelona, Crítica, 1990, p.
182.
primeiramente à tutela de determinados valores extraprocessuais que se consideram
relevantes (o interesse público, a privacidade de certas relações, a dignidade humana, as
liberdades e direitos), os fazem prevalecer frente às exigências processuais de
averiguação da verdade. Encontramos entre essas regras a proibição, sob <segredo de
Estado>, de usar como provas certos documentos que possam afetar à segurança do
Estado; ou as que dispensam ou excluem do dever de declarar por razões de parentesco,
ou para proteger o segredo das relações advogado/cliente, ou dos ministros de um culto,
ou dos funcionários públicos. Mas talvez o caso mais significativo, constitui a proibição
de (admitir e) valorar a prova ilicitamente obtida, que merece um comentário particular.
A prova ilícita è um caso singular de prova nula, porque nula pode ser também a
prova obtida violentando as regras institucionais de aquisição de prova. È prova ilícita, a
que se obtém com vulneração de garantias constitucionais (como a inviolabilidade de
domicílio ou o segredo das comunicações: por exemplo, a ata de entrada e registro
praticado fora dos casos permitidos por lei, ou a transcrição de escutas telefônicas
ilegais); ou lesando direitos constitucionais (como o direito à defesa: por exemplo, a
declaração do imputado sem ter sido informado de seus direitos); ou através de meios
que a Constituição proíbe (por exemplo, a confissão arrancada perante hipnose ou soros
da verdade, proscrita para a proteção da integridade moral e a proibição de tratamentos
degradantes, ou uma coação para obter declarações sobre <ideologia, religião ou
crenças>, proscrita para a tutela da liberdade ideológica e religiosa). Finalmente, e para
simplificar, é ilícita a prova obtida com a violação dos direitos fundamentais; estamos
falando, portanto, de um tipo de prova inconstitucional. Por isso, a proibição de prova
ilícita não requer regulamentação expressa, pois deriva da posição preferente dos
direitos constitucionais no ordenamento e de sua condição de <invioláveis>.
A proibição de prova ilícita não supõe somente a exclusão das provas diretamente
obtidas a partir de ato que fere direitos fundamentais (por exemplo, a declaração dos
policiais que fazem um registro que lesa o direito à inviolabilidade do domicílio, ou a
transcrição de conversas telefônicas interceptadas, lesando o direito ao segredo das
comunicações), mas tem, além do mais, um efeito reflexo: são também ilícitas as provas
indiretamente obtidas com a lesão de um direito fundamental, o que acabou
denominando-se prova ilícita indireta (por exemplo, a transcrição de conversas
telefônicas interceptadas –cumprindo com todos os requisitos- como resultado da
informação obtida em um registro que lesa a inviolabilidade do domicílio; ou a
declaração do policial que apreendeu uma partida de droga, cuja existência conheceu
como resultado da lesão ao direito fundamental ao segredo das comunicações). Trata-se,
na realidade, de uma manifestação daquilo que a doutrina norte-americana denominou
de teoria dos frutos da árvore venenosa (the fruit of the poisonous tree doctrine), que
expressa a nulidade de tudo que forma causa de um ato nulo.
Em todo caso, é evidente que esta importante regra de exclusão de prova diminui as
possibilidades de averiguação da verdade no processo. De fato, a exclusão de prova
ilícita é o reflexo de uma ideologia jurídica comprometida com os direitos
fundamentais, e, em virtude da qual, – como se costuma dizer-- <a verdade não pode ser
obtida a qualquer preço>.
(III) Por último, formariam uma terceira categoria aquelas limitações probatórias que,
não se orientando à proteção de nenhum valor extraprocessual, são contrárias ao
interesse cognoscitivo do processo; isto é, não protegem absolutamente e além do mais
entorpecem (ou não ajudam a) a averiguação da verdade.
Assim acontece, por exemplo, quando uma regra estabelece taxativamente um numerus
clausus de meios de prova admissíveis em um determinado sistema; isto é, quando não
se reconhecem com caráter geral, outros meios de prova além dos expressamente
regulados pela lei. É verdade que nessa regulação legal taxativa, a maioria dos sistemas
probatórios contempla todos os meios de prova tradicionais, pelo qual, nesse sentido,
não parece que problemas particulares sejam colocados. Se a limitação tem importância
é, principalmente, porque entorpece a incorporação dos novos avanços probatórios, que
não teriam lugar em uma interpretação restritiva da norma. De qualquer modo, a opção
pelo numerus clausus de meios de prova, não é um obstáculo intransponível, pois quase
sempre é possível fazer uma interpretação extensiva dos meios de prova tradicionais
legalmente aceitos que permita a inclusão neles desses novos avanços probatórios
(assim, por exemplo, o aporte de fitas magnéticas de áudio pode ser introduzido como
documento). Maiores dificuldades acontecem quando o que se estabelece, é que não se
poderão provar certos fatos, a não ser com determinados meios de prova prefixados por
lei, pois nestes casos é certamente difícil fazer uma interpretação expansiva da norma
legal, que permita evitar a restrição em favor do interesse cognoscitivo do processo.
Por exemplo, quando a lei estabelece que o erro de fato de um tribunal de instância,
só pode provar-se em cassação por meio dos documentos que constem nos autos.
Ou quando se estabelece que o pagamento do preço estipulado, no juízo de
despejo, somente se poderá provar por confissão judicial ou por documento que
certifique o pagamento. Ou quando na apelação penal, a única prova admissível é a
documental.
Resumindo, a necessidade de assegurar uma resposta mais ou menos rápida, que em
algum momento ponha fim ao conflito de modo definitivo e a necessidade de
preservar certos valores considerados merecedores de proteção, faz com que o
conhecimento processual de fatos, deva se desenrolar em um ambiente
institucionalizado de regras que substituem os próprios critérios da livre aquisição do
conhecimento por outros autorizados juridicamente. Algumas dessas regras
contribuem para a averiguação da verdade, porém outras (a maioria) entorpecem ou
minimizam esse objetivo. Por isso, a institucionalização não deve conduzir a divinizar
acriticamente a verdade alcançada. Ao contrário: a verdade obtida processualmente (a
verdade processual) pode ser diferente (de maior, mas também de menor qualidade)
do que a alcançada com outros esquemas de conhecimento, que não tenham os
entraves ou limitações processuais.
Além do mais, não todas as regras institucionais são garantias de algum valor
jurídico (prático ou ideológico) ou simplesmente garantias de verdade. Há numerosas
regras processuais, que não são mais que uma soma de formalidades, ritos e liturgias
que o único que fazem é dilatar o procedimento, tornando complicado o que é
simples, assim que, ao abusar delas, corre-se o perigo de converter a justiça no
angustiante labirinto que KAFKA tinha denunciado. Mas não é só isso. A existência
de um ritual excessivo, ao fazer do processo um maquinário pesado ao que custa
muito mover-se, não só não propicia, como inclusive obstaculiza a averiguação da
verdade. Isto já o tinha denunciado insistentemente BENTHAM, mas parece que seus
ensinamentos têm tido escassa repercussão nas legislações processuais. Além do mais,
a solução para o problema do ritualismo processual excessivo, somente parece residir
--com excessão, naturalmente, das possíveis reformas institucionais--- na atitude do
juiz. Impor-se-ia, de uma parte, uma chamada a sua prudência na condução e
instrução do processo, para esquivar seu aspecto patológico; de outra parte, uma
chamada a sua atitude vigilante, a fim de que esgote todas as possibilidades para o
esclarecimento da verdade e não se respalde na cômoda e simples aplicação dos ritos
processuais.
De tudo o que foi dito até aqui, percebem-se algumas conseqüências importantes. A
primeira é que a hipótese (ou seja, a reconstrução dos fatos litigiosos da sentença)
deve justificar-se, mostrando que as provas disponíveis a tornam provável; ainda
mais, que a tornam mais provável do que qualquer das hipóteses alternativas
concordantes com essas mesmas provas. A segunda é que, não obstante apresentar-se
como justificada, o status epistemológico de uma hipótese sempre é somente a
probabilidade, portanto, salvo exigências institucionais de maior peso, deveria estar
sujeita a revisão se surgissem novas provas.
5 A motivação da Prova
Bem, como é evidente que as impressões recebidas pelo juiz na imediação com o
material probatório (e sobre as que se fundamenta a convicção) não podem ser
comunicadas, o que se vem a sustentar é que no âmbito da imediação o juiz é dono
de sua valoração. A livre convicção se entende então como valoração livre,
subjetiva e essencialmente incomunicável e incontrolável, como uma espécie de
momento íntimo (e quase místico) capaz de permitir a valoração discricionária e
não discutível da prova17. Em outras palavras, o princípio da livre valoração,
interpretado com o tamis da imediação, é carregado de irracionalidade e
subjetivismo e anula completamente a possibilidade de motivar. E se a convicção do
juiz é o resultado de sua exposição direta ao material probatório (através do qual se
dá conta se a testemunha treme ou titubeia, se se turba ou se surpreende, se sua ou
fica inteiro, e ---através de tudo isso--- se diz a verdade ou se mente18), então essa
convicção não é susceptível de exteriorização nem, por conseguinte de motivação
ou controle. Esta interpretação da livre convicção em relação à imediação instaura
assim uma zona opaca ao controle racional que contradiz profundamente a cultura
da motivação, pelo fato de que as intuições e impressões existam e talvez sejam
inevitáveis, não significa que possam ser usadas como desculpa para a não
justificação.
16
<Quanto mais livremente se valorize a prova –pode –se ler em um tratado de direito processual –mais
necessária é a percepção direta do juiz. Somente ouvindo a testemunha responder às perguntas e
reperguntas (...) poderá o julgador valorar seu testemunho>, GÓMEZ ORBANEJA, E., Derecho procesal
civil, I, p. 297. É imprescindível que <toda prova desfile perante a quem há de julgar>, pois de outra
forma seria incompreensível o princípio de livre apreciação, escreve RUIZ VADILLO, E., El derecho
penal sustantivo y el proceso penal, p. 72.
17
Esta interpretação da livre convicção está muito arraigada na ideologia dos juristas e chegou inclusive a
ser definida como a convicção adquirida com a prova dos autos, sem a prova dos autos e ainda contra a
prova dos autos; vid. COUTURE, E.J., <Las reglas de la sana crítica>, Estúdios de Derecho Procesal
Civil, Buenos Aires, 1949, II, p. 221.
18
Esta é uma tese defendida tranqüilamente na doutrina e na jurisprudência.
tribunal de instância. As conseqüências que advém para a motivação desta
distinção de níveis de valoração são claras: Somente se insiste na necessidade de
motivar a chamada prova indireta (por participar nesta o raciocínio do juiz),
enquanto que se aliviam (até quase anular-se) as exigências de motivação da prova
direta (pois esta prova, por versar diretamente sobre o fato que se pretende dar
credibilidade, não precisa do raciocínio e ficaria protegida ela toda pelo <guarda-
chuva da imediação>, e portanto da convicção libérrima, subjetiva e
incomunicável). Neste sentido ---esclarece ainda mais esta doutrina--- a questão da
credibilidade das testemunhas, que cai no âmbito da imediação, fica fora das
exigências de motivação e das possibilidades de revisão.
Tomando o exemplo de Hamlet: o fantasma revelou a Hamlet que seu pai não
morreu de morte natural, mas que foi assassinado pelo marido de sua mãe. Hamlet
obtém essa informação, porque o fantasma lhe revelou, porém agora ele tem que
justificar que isto foi assim; isto é, tem que justificar a hipótese h (‘O pai de
Hamlet foi assassinado pelo marido de sua mãe’), e para isso terá que se apoiar nas
provas, por exemplo, em p1, p2 e p3.
p1: ‘O marido da mãe de Hamlet tinha motivos para matar o pai de Hamlet
(tornar-se rei da Dinamarca)’.
20
FASSONE, E., <Questio facti>, Materiali per um corso di analisi della giurisprudenza, cit. P. 319.
não é suscetível de justificação; por que, em resumo, a motivação se tem mostrado
como uma operação impossível.
Certamente, esta confusão entre justificação e iter decisório, é também o que faz com
que alguns continuem vislumbrando como impossível (ou muito difícil) uma rigorosa
motivação da prova, porque impossível (ou muito difícil) é a explicitação e subseqüente
controle de todo o processo mental que tenha levado à decisão. E, do mesmo modo,
sustentar que em um órgão colegiado não é exigível (e que em todo o caso é impossível)
uma motivação exaustiva, porque não se imagina como se redigiria a sentença, tendo
em conta que os diferentes membros do colégio possam ter chegado à conclusão por
caminhos diferentes, obedece novamente a que se está identificando entre motivação e
reprodução do iter mental21. Quando se diferencia, entretanto, ambos os conceitos
desaparece qualquer diferença essencial entre a motivação de um juiz unipessoal e a de
um juiz colegiado: o foro íntimo de cada um dos juízes do colegiado se expressará no
debate anterior à sentença, e não na própria sentença.
Concluindo, o juiz não pode descobrir uma verdade, que depois não tenha condições
de justificar mediante padrões de racionalidade, e para isso, necessariamente, terá que
fazer uso de tais padrões no próprio processo de investigação da verdade. Mas, por seu
lado, a motivação pode não coincidir exatamente com a descoberta, porque nesta podem
aparecer elementos irracionais dos quais não pode encarregar-se aquela. A motivação
assume, pois, uma tarefa depuradora sobre a atividade cognoscitiva que exige do juiz
uma reconsideração de suas convicções iniciais à luz dos argumentos racionais, que são
os únicos que inevitavelmente terá de usar para fundamentar sua decisão.
21
Afirma o mesmo IGARTUA, J., em Valoración de la prueba, motivación y control em el proceso
penal, Valencia, Tirant lo Blanch, 1995, p. 150.
22
Estes dois grandes estilos se corresponderiam com os dois grandes métodos (analítico e holista) de
decisão sobre os fatos. Para uma análise mais detalhada cfr. TWINING, W, Theories of Evidence:
Bentham and Wigmore, London, Weidenfeld & Nicolson, 1985, pp. 183 ss.
conjunta dos fatos, em um relato, em uma história que os põe em conexão em uma
estrutura narrativa. A celebrada e tão aplaudida coerência narrativa é o melhor apoio
teórico desta maneira de agir.
Pelo que já foi dito, se a motivação, enquanto atividade justificadora quer ser
assumida de maneira cabal, a técnica do relato deve ser substituída pela analítica,
consistente na exposição e valoração individual e ordenada por todas as provas
efetuadas. Mais exatamente, a motivação deve consistir <em deixar constância dos atos
23
ANDRÉS, P., <Acerca de la motivación de los hechos en la sentencia penal>, Doxa, 12, 1992, p. 288.
de prova produzidos, dos critérios de valoração utilizados e do resultado dessa
valoração. Tudo isso com a precisão analítica necessária, prévia a uma avaliação do
material probatório em seu conjunto>24. Este é o único estilo de motivação que
permitiria (I) controlar exaustivamente a entrada na sentença de elementos probatórios
inaceitáveis ou insuficientemente justificados; e (II) controlar todas as inferências que
compõem a cadeia da justificação. E a esse respeito, três precisões:
A primeira tem a ver com o papel da valoração conjunta neste estilo de motivação. A
valoração conjunta, tão vinculada à técnica do relato, não representa por si só
justificação alguma; pelo contrário, é uma prática que eventualmente camufla decisões
injustificáveis ou em qualquer caso injustificadas. No entanto, a técnica analítica não
despreza ou prescinde da valoração conjunta; somente a priva de valor justificador se
não é precedida pela exposição e valoração individualizada das provas efetuadas que,
depois, valoram-se conjuntamente25. E mais, a valoração conjunta não somente não é
desprezada senão que faz sentido plenamente, ao se levar em conta que a justificação
dos fatos dista, geralmente, de ser algo simples. Na maioria das vezes, são muitos os
elementos probatórios de diversos tipos que concorrem a favor ou contra uma hipótese,
e não todos têm o mesmo valor probatório e, portanto, justificador; a justificação da
hipótese deve fundamentar-se então na valoração conjunta de todos esses elementos.
Mas é que, além do mais, em muitas ocasiões os mesmos dados probatórios permitem
justificar hipóteses ou histórias diferentes; nesses casos devem-se confrontar essas
hipóteses dando razões do porque de se optar por uma em detrimento de outras, e este
exercício de confrontação, requer justamente uma valoração conjunta de todos os dados
probatórios. Resumindo, no estilo analítico, a valoração conjunta cumpre seu papel,
quando já se justificou individualmente a valoração de cada prova relevante efetuada, e,
traduz, na realidade, a exigência de ponderar, frente à justificação final, o valor
probatório de todas essas provas conjuntamente consideradas.
A segunda precisão é mais uma insistência. A motivação –já foi dito—deve consistir
na exposição e valoração individual e ordenada de todas as provas efetuadas. Mas --
note-se—de todas as provas efetuadas. Portanto, não somente daquelas que versam
diretamente sobre um fato principal, mas stambém das que têm relação com a
24
ANDRÉS, P., <De nuevo sobre la motivación de los hechos>, Jueces para la democracia, 1994, p. 87.
25
Neste sentido IGARTUA, J: <a valoração conjunta não vem em lugar, porém depois da valoração
singularizada pelos meios da prova>, em Discrecionalidad técnica, motivación y control jurisdicional,
Madrid, Civitas, 1998, p. 143.
comprovação de um fato secundário, quando este constitua uma premissa para
estabelecer a verdade de um fato principal. E (principalmente) não somente daquelas
que se considerem condutoras à decisão, mas também daquelas outras, que, se fossem
aceitas, conduziriam a uma decisão diferente. Esta última insistência não é
insignificante, pois é muito fácil para um juiz, excluir na motivação aquelas provas
relevantes cujos resultados não coincidam ou contrastem com a reconstrução dos fatos
que pretende justificar. Por isso, se não se quer escamotear à motivação seu sentido
justificador, não se deve diminuir a exigência de examinar e valorar todas as provas
relevantes, e, por conseguinte também (ou principalmente) as que não avalizam a
reconstrução dos fatos que se justifica: a justificação não será completa se não se
justifica também por que não foram levadas em conta essas provas.
Porém a exigência de motivação exaustiva, não pode ser confundida (nem, portanto,
entender-se como cumprida) com uma motivação simplesmente abundante. Não se trata
de auspiciar motivações extensas, prolixas, intermináveis. Além do que, algumas
motivações extensas, repletas de malabarismos argumentativos e meandros dialéticos,
não somente são pouco compreensíveis e (pelo menos neste sentido) pouco racionais,
podendo além do mais servir como um biombo que possa encobrir alguma
arbitrariedade. Trata-se, na verdade, de adotar um estilo de motivação que fuja dos
argumentos ad pompam ou ad abundantiam e que se restrinja aos elementos precisos
para tornar racionalmente justificada e controlável a decisão. Como afirma TARUFFO,
<a justificação que segue rigorosos cânones de racionalidade é mais completa, mas
também mais simples e linear>27.
26
Com estas palavras se expressa a (nisto excepcional) STS 333/2001, Sala Penal, de 7 de março, FJ
primeiro (Ponente Perfecto ANDRÉS).
27
TARUFFO, M., Il vértice ambíguo, Il Mulino, Bologna, 1991, p. 150.
5.4. Resumo: regras sobre a motivação
O fato de não ter reparado que a chamada habitualmente prova direta é também,
como a indiciária, uma prova de tipo indutivo, tem conduzido a um relaxamento
ostensivo das exigências de controle. Assim, o Supremo Tribunal espanhol assinala
que <o não cumprimento do dever de motivação na prova direta, mesmo supondo
uma irregularidade formal, não causa falta de defesa, nem a nulidade do
correspondente ato judicial. Ao contrário do que acontece na prova indireta ou
indiciária, onde se exige que o correspondente raciocínio se expresse>.