Anna Tsing - Capitulo 4
Anna Tsing - Capitulo 4
Anna Tsing - Capitulo 4
Edição
Thiago Mota Cardoso
Rafael Victorino Devos
Tradução
Thiago Mota Cardoso et al.
1a EDIÇÃO
BRASÍLIA 2019
CAPÍTULO 4
EM MEIO À PERTURBAÇÃO:
SIMBIOSE, COORDENAÇÃO,
HISTÓRIA E PAISAGEM 1
O que seria necessário para construir uma antropologia de habitabilidade mais que hu-
mana? Os termos no meu título têm sido ferramentas em minhas tentativas de respon-
der a esta questão. Cada termo tem suas próprias possibilidades. Começarei com sim-
biose, que então me levará ao que se pode chamar de “biologias substantivistas”. É o
que me permite tentar reviver a paisagem como uma protagonista. Isto é desafiador;
demanda novas convenções de gênero e este ensaio explora algumas. Na maior parte
deste ensaio, me deterei em paisagens animadas nas quais humanos são parte de mutu-
alismos que fazem muitas formas de vida prosperarem. Precisamos de mutualismos
multiespécies para sobreviver. Termino com os terrores de coordenações rompidas e
paisagens de não habitabilidade: isto se refere também à antropologia.
1 Original publicado em: In the midst of disturbance: symbiosis, coordination, history, landscape. In: Associa-
tion of Social Antrhopologists (Asa) Annual Conference 2015. 13-16 abr. 2015, University of Exeter.
mais convidativa. Estou dirigindo um programa envolvendo colaborações
EM MEIO À PERTURBAÇÃO: SIMBIOSE, COORDENAÇÃO, HISTÓRIA E PAISAGEM
Algo mais é a chave para simbiose. Uma vez que o mutualismo parece ser
tão bom, muitas pessoas que não se dedicaram a pensar nisso assumem
que seja fácil – como se Deus apenas pretendesse que as coisas fossem
assim. Na verdade, lidar com os outros, seja humano ou não humano, é
frequentemente brutal e hierárquico, ou ambos. Quando o mutualismo
se desenvolve, é um pequeno milagre e nada pode ser dado como certo.
Isso raramente é planejado. A simbiose se desenvolve em uma inesperada
conjuntura histórica; ela emerge da situação, à medida em que as partes
Niels Bohr Professorship & Project: Discovering the Potential of Unintentional Design on
Anthropogenic Landscapes (Nota dos Editores).
não planejadas estabelecem novas coordenações. É o “algo mais” que torna isso possí-
vel. Capacidades inesperadas se desenvolvem. Isso tem sido fundamental na evolução
das simbioses biológicas. Somos todos “algo mais” de bactérias, que brincaram com di-
versas formas de sobrevivência e se saíram bem como extensões simbióticas multicelu-
lares. É igualmente fundamental nas simbioses metafóricas que mencionei – colabora-
ções entre tradições de conhecimento, por um lado, e paisagens multiespécies
habitáveis, por outro.
Em meu projeto de reunir antropólogos e biólogos, não comecei com regras e planos,
mas sim com o “algo extra” que emerge – esporadicamente e em seu próprio ritmo –
de compromissos comuns e leituras comuns. Tanto os biólogos quanto os antropólogos
do grupo se preocupam com observações empíricas e trabalhos de campo, e isso faz
diferença. Por meio dessas técnicas, cada um de nós vai observando as coisas aconte-
cendo e, nessas observações, quando temos sorte, surgem preocupações mútuas.
O projeto surge da observação, não dos requisitos de uma filosofia unificada.
A conjuntura histórica que torna isso possível é nossa preocupação compartilhada com
a diminuição da habitabilidade da terra, que cada vez mais e mais é reduzida a recursos
para processos industriais e acumulação capitalista. Uma maneira de abordar essa sim-
plificação industrial mundial, com seus efeitos colaterais letais, é falar do Antropoceno, a
época proposta em que o impacto ambiental causado pelo homem excede o impacto
causado pelo recuo das geleiras, que identificou a época anterior, o Holoceno. Preocu-
pações sobre o Antropoceno possibilitam novas conversas entre pesquisadores das ci-
ências naturais e das humanidades, que podem interromper uma era anterior, em que as
portas entre as ciências e as humanidades eram fechadas. Eu entendo as preocupações
que fecharam essas portas. Fui formada nessa época e participei da crítica da ciência.
Mas agora, penso eu, outra coisa é possível: uma nova mutualidade baseada em interes-
ses comuns na habitabilidade.
Para desenvolver esse mutualismo, no entanto, nós antropólogos talvez tenhamos de de-
sistir de nossa justificada defensiva ao lidar com cientistas naturais. Estamos acostumados
a rejeitar a ciência natural por seus erros filosóficos ou, alternativamente, observá-la como
um inseto sob o vidro. Nós nos esquecemos de como encontrar aliados. Quando se trata
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de cientistas ambientais, nós apontamos nossos dedos para eles: “Vocês são apenas
apocalípticos!”, dizemos. No processo de nos distinguirmos dos cientistas naturais, nos
EM MEIO À PERTURBAÇÃO: SIMBIOSE, COORDENAÇÃO, HISTÓRIA E PAISAGEM
Paisagem: na maioria das vezes usamos esse termo para imaginar um pano de fundo para
a ação humana. Se nos preocupamos com a habitabilidade, no entanto, teremos que
descobrir como tornar as paisagens animadas, protagonistas de nossas histórias. O pro-
blema não é apenas a chamada agência de não humanos. Essa formulação geralmente
leva a histórias de díades humanos/não humanos. Até aqui tudo bem, mas nenhuma
díade humana/não humana vai longe o suficiente ao fazer a habitabilidade mútua de
todo um conjunto de organismos que precisamos para sobreviver. Precisamos de paisa-
CAPÍTULO 4
Mais um termo antes de passar para outra história: perturbação. Humanistas, entre os quais
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Eu trago essa linha de pensamento não para desafiá-la, mas para usá-la para mostrar um
debate paralelo que está energizando o campo da biologia. Ninguém o chama de “de-
bate formalista-substancialista”, mas os paralelos estão aí – e eles podem nos ajudar en-
quanto antropólogos a apreciar esse campo além da rejeição estereotipada da “ciência”
como um objeto unificado. Se quisermos encontrar aliados, precisamos conhecer os
debates. Considere primeiro os formalistas: em biologia, eles são chamados neo-darwi-
nistas. Essa perspectiva surgiu no século XX, a partir da fusão da teoria evolucionária de
Darwin e do dispositivo da herança genética. Lembre-se de que Darwin não conhecia a
genética. Foi necessária a redescoberta dos experimentos de ervilha de Mendel do co-
CAPÍTULO 4
Essa foi a linha hegemônica na biologia durante a maior parte do século XX. No século
XXI, no entanto, várias abordagens contrastantes foram sugeridas, e elas caminham para
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fazer o que eu creio que posso chamar de uma intervenção “substantivista”. Assim, gra-
dativamente, os biólogos do desenvolvimento descobriram que os organismos
individuais não são autônomos. A princípio, eles pensaram que eram apenas alguns or-
ganismos – mas cada vez mais se está percebendo que é como se todos os organismos
precisassem de outros organismos para seu próprio desenvolvimento e, em muitos ca-
sos, organismos de outras espécies. A lula bobtail havaiana tem sido um exemplo dessa
abordagem, porque desenvolve um órgão luminoso que ajuda a evitar os predadores
(McFall-Ngai, 2008). Mas o órgão da luz só existe quando a lula encontra um tipo parti-
cular de bactéria na água do mar; as bactérias e a lula, trabalhando juntas, desenvolvem
o órgão da luz. Quanto mais os biólogos observam, mais comuns parecem ser os mutu-
alismos necessários. A grande borboleta azul na Inglaterra exige formigas para criar suas
larvas (Strickland, 2009). Mesmo os seres humanos, antes tão orgulhosamente indepen-
dentes da “natureza”, são agora entendidos como parceiros simbióticos de bactérias
que permitem processos corporais humanos, como a digestão. Como disse um grupo
de biólogos do desenvolvimento, “jamais fomos indivíduos” (Gilbert, Sapp e Tauber,
2012). Eles argumentam que a evolução seleciona relacionamentos, não unidades individu-
ais, em qualquer escala. A simbiose não é uma aberração estranha da natureza, mas uma
característica básica do processo evolutivo. Esta é uma biologia substantivista porque
nos mostra organismos emergindo de relações, em vez de preexistentes como indivíduos
autônomos com interesses próprios. Esses biólogos estão cientes de que estão atacan-
do as premissas básicas da síntese moderna do século XX e do neodarwinismo. Seu
ponto de partida, no entanto, não é cosmologia, mas as descobertas empíricas de como
os organismos se desenvolvem. Sua abordagem é “eco-evo-devo”: biologia ecológica,
evolucionária e do desenvolvimento4 (Gilbert e Epel, 2008).
Na parte “eco-evo” deste universo, mas sem o “devo”, outra abordagem é mais popu-
lar: a teoria de construção de nicho (Odling-Smee et al. 2013). A teoria da construção
de nichos argumenta que os organismos funcionam como engenheiros de ecossiste-
mas, ou seja, mudam seus hábitats para torná-los mais vantajosos. Os castores constro-
em represas e alojamentos, redirecionando a água e a terra. As minhocas perturbam o
solo e reciclam seus componentes. Quase todos os organismos, ao que parece, trans-
formam os hábitats à sua volta. Esses mundos redesenhados, por sua vez, tornam-se os
habitats em que tanto os membros de uma mesma espécie quanto de outras espécies
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Com e além de Firth, estou argumentando que a biologia substantivista produz bons
aliados para antropólogos sociais e culturais. Enquanto estivermos abertos a incluir
relações multiespécies nos mundos sociais e culturais que estudamos, temos muito
em comum. Tanto o eco-evo como o eco-evo-devo têm sido ótimos para ampliar
minha pesquisa e meu pensamento. Para ilustrar as possibilidades de aliança, então,
deixe-me passar para os fungos – e as florestas que eles ajudam a fazer. Eu tenho es-
tudado um membro do grande grupo dos fungos, que faz conexões especiais com as
raízes das árvores. Os fungos ectomicorrízicos se enrolam nas bainhas ao redor das
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raízes das árvores receptivas e enviam suas hifas entre as células da raiz. Juntos, árvore
e hifa formam um novo órgão, distinto por sua colaboração, o qual é chamado de
rede de Hartig, e não é nem árvore nem fungo, mas ambos. Árvore e fungo transfe-
rem nutrientes pela rede de Hartig; além disso, o fungo pode estender sua transferên-
cia de nutrientes por várias árvores separadas umas das outras. Algumas árvores,
como os pinheiros, têm raízes especiais que só se desenvolvem quando encontram
fungos apropriados. Este é um exemplo clássico de simbiose biológica. Organismos
tornam-se apenas em relação.
Os seres humanos podem fazer parte das relações multiespécies nas florestas. (E aqui,
com toda a estranheza de uma norte-americana escrevendo para um público inglês,
mudo de terminologia. Até agora usei a palavra forest, floresta, para me referir a ecossiste-
mas baseados em árvores e fungos. Agora eu vou usar a palavra woodland, mata, para me
referir a paisagens que incluem árvores. Para os norte-americanos, qualquer coisa com
árvores é uma “floresta”, mas a floresta inglesa significa algo diferente; envolve direitos. Eu
opto por mata então). Até a introdução de fertilizantes químicos, os agricultores huma-
nos dependiam das matas para fornecer nutrientes para seus campos, seja deixando os
animais pastarem nas matas e transferindo esterco para os campos, como na Europa, ou
usando estrume verde ou carvão diretamente nos campos, como em várias partes da
Ásia. As matas também eram fontes de muitos itens de subsistência, incluindo lenha, fru-
tas e nozes, como acabei de mencionar. Os camponeses estavam preocupados em man-
ter as florestas e os campos em um relacionamento. Mas parece-me menos preciso dizer
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que os camponeses produziam matas sustentáveis do que dizer que as matas produziam
camponeses sustentáveis. A contínua regeneração das matas permitia aos camponeses
cultivar, alimentar seus rebanhos e encontrar coisas de que precisavam. Quando os cam-
EM MEIO À PERTURBAÇÃO: SIMBIOSE, COORDENAÇÃO, HISTÓRIA E PAISAGEM
Volto ao meu título: “No meio da perturbação: simbiose, coordenação, história, paisa-
gem”. Eu trabalharei os três tipos de simbiose que são o tópico deste artigo: primeiro, a
simbiose biológica, aqui entre raízes de árvores e fungos; segundo, o pensamento cola-
borativo entre ciências naturais e humanas, aqui em histórias humanas e não humanas
entrelaçadas; e, terceiro, o surgimento de paisagens de habitabilidade multiespécie.
CAPÍTULO 4
Pelo fato de satoyama ser um conceito para mobilização e restauração, há certo essen-
cialismo estratégico em seu coração. Seus defensores comparam as paisagens arboriza-
das reais ao satoyama ideal e trabalham para restaurar as características dessa paisagem
ideal. Há algo como um diagrama em satoyama – isto é, um esboço simplificado com
partes que se encaixam. É essa característica de satoyama que me inspirou a trabalhar
com a Elaine Gan para representar as coordenações por meio de uma série de desenhos
a nanquim. Para Gan, o uso do diagrama baseia-se em sua leitura do filósofo Gilles De-
leuze. Nós duas pensamos que o diagrama poderia ajudar a transmitir a vivacidade das
assembleias mostrando satoyama como um conjunto de elementos móveis, cada um
criando possibilidades de viver para os outros.
Poderíamos começar com qualquer um, mas começamos com o pinheiro, tomando-o
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como o primeiro violino na nossa fuga. No Japão central, os pinheiros são seres de
espaços florestais perturbados. Eles exigem sol e solo mineral para germinarem, e não se
dão bem em florestas latifoliadas de dossel fechados. Eles prosperam com perturbações
humanas, com o fogo, limpeza e até erosão. Quando a madeira é cortada, deixando as
colinas “carecas”, o pinheiro é a primeira árvore a repovoar essas colinas. Mas o pinheiro
só pode fazer seu trabalho associado aos fungos, que ajudam a árvore a encontrar água
e nutrientes mesmo em solos descobertos.
FIGURA 3 – As micorrizas são órgãos articulares do fungo e da árvore. Mudas de pinus com
micorrizas são mais bem-sucedidas. Desenho de Elaine Gan.
Isso é uma simbiose biológica no sentido estrito do termo. Os pinheiros formam estru-
turas de raízes especiais chamadas “raízes curtas” para fungos micorrízicos; se não en-
contrarem os fungos, as raízes curtas são mortas. Os fungos precisam das árvores como
fonte de alimento. Juntos, pinheiros e fungos definem-se e fortalecem-se mutuamente
e tornam possível a expansão da floresta em espaços abertos.
celo da minha fuga. Os matsutake crescem com pinheiros nas matas camponesas. Mat-
sutake secretam ácidos fortes que dissolvem os minerais e, assim, ajudam os pinheiros
em sua nutrição. Na região central do Japão, especialmente onde os humanos cortam
EM MEIO À PERTURBAÇÃO: SIMBIOSE, COORDENAÇÃO, HISTÓRIA E PAISAGEM
Os agricultores humanos também são atores fundamentais para tornar possível essa as-
sembleia ecológica. Os pinheiros desapareceriam dos bosques centrais do Japão se não
fosse a perturbação humana. Sem os animais que são fonte de esterco para os campo-
neses europeus, até meados do século XX, os agricultores japoneses usavam os nutrien-
tes das florestas para fertilizar seus campos. Eles cortavam pequenas árvores, eras e er-
vas e recolhiam o húmus, usando esse adubo verde em seus campos. Ao limpar e arejar
a mata, favoreciam os pinheiros e seu parceiro matsutake. Juntos, fazendeiros, pinheiros
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juntos para formar as florestas de satoyama; eles são os dois violinos na minha fuga.
EM MEIO À PERTURBAÇÃO: SIMBIOSE, COORDENAÇÃO, HISTÓRIA E PAISAGEM
perturbação anteriores.
As florestas mudaram. Os carvalhos e louros persistentes cresceram densamente, uma
vez que os carvalhos decíduos não eram mais talhados. O bambu-moso, que era cuida-
dosamente colhido todos os anos em virtude de seus saborosos brotos de bambu, tor-
nou-se uma planta invasora. A mata aberta e iluminada de satoyama tornou-se densa e
sombria; nem pinheiro nem matsutake poderiam sobreviver. Sem carvalhos, pinheiros,
matsutake e fazendeiros, todo um conjunto de plantas e animais começou a desapare-
cer, de aves e flores de sub-bosque a sapos e formigas.
Aqui é onde matsutake faz uma nova aparição. Os defensores de satoyama querem que as
paisagens que revitalizam sejam espaços de trabalho e subsistência – não apenas de esté-
tica passiva. Os altos preços do matsutake compensam a revitalização de satoyama. Apesar
dos milhões de ienes já investidos em tentativas, ninguém sabe como cultivar o matsutake.
CAPÍTULO 4
O melhor que se pode fazer é estimular o tipo de floresta em que o matsutake gosta de
crescer. Voluntários, como os militantes matsutake de Kyoto, fazem exatamente isso. Revi-
talizar satoyama traz de volta a fuga de carvalhos, pinheiros, matsutake e humanos.
5 Mais informações sobre essa ação estão disponíveis no site da iniciativa: http://satoyama-initiative.org
desaparecem nesta parte de Yunnan sem perturbação humana. Uma dife-
EM MEIO À PERTURBAÇÃO: SIMBIOSE, COORDENAÇÃO, HISTÓRIA E PAISAGEM
Foi difícil para mim aprender a apreciar essa ecologia. Quando via o pasto e o corte em
talhadia, eu via bagunça, desordem e sujeira. Levei algum tempo para apreciar a mutualida-
de multiespécie na qual os humanos fazem parte do regime de perturbação. O que me
convenceu foi a alternativa: uma pequena reserva cercada foi criada para que pesquisado-
res visitantes pudessem ver o matsutake crescendo na floresta. Uma passarela mantém os
visitantes fora do chão da floresta. Por quinze anos, ninguém cortou árvores ou removeu o
material orgânico. A entrada de cabras não é permitida. As árvores cresceram altas e som-
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Deixe-me voltar ao Japão central. Tenho mostrado histórias que produzem as matas
camponesas, em suas simbioses de habitabilidade, e também histórias que quebram
as coordenações que mantêm essas matas no lugar. Até agora, tenho me limitado a
exemplos históricos nos quais a revitalização parece possível. Um conjunto diferente
de plantas, animais e fungos prospera quando a mata é cercada ou abandonada; no
entanto, um movimento voluntário é capaz de trazer de volta o conjunto anterior.
Essa é a resiliência ecológica da qual passamos a depender. A crise de habitabilidade
de nossos tempos, entretanto, é algo diferente – e é essa diferença que é sinalizada no
termo Antropoceno. O Antropoceno não marca a aurora da perturbação humana.
Como venho mostrando, a perturbação humana pode fazer parte dos ecossistemas
resilientes do Holoceno, como as matas camponesas. O Antropoceno marca, em vez
disso, uma quebra nas coordenações, algo que é muito mais difícil de corrigir. Somos
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empurrados para novas ecologias de proliferação da morte. Minha seção final acena
para esse problema.
QUARTO: ALGUMAS ECOLOGIAS HUMANAS QUEBRAM AS
COORDENAÇÕES NECESSÁRIAS PARA A HABITABILIDADE
Volte novamente à Figura 9: um diagrama da paisagem de satoyama, incluindo não ape-
nas florestas, mas habitação e cultivo humanos. Foi a beleza e o carisma desse tipo de
paisagem que inspirou a Iniciativa Global Satoyama do Japão (Japan’s Global Satoyama
Initiative) em 2010. Esta seria a projeção do Japão para o mundo, uma iniciativa de con-
servação com valores culturais em seu coração. Seu primeiro grande evento foi realiza-
do de 10 a 11 de março de 2011.6 Mas, em 11 de março, ninguém estava ouvindo essa
história de natureza valorizada. Um tsunami atingira a cidade de Fukushima e os reatores
nucleares racharam e derreteram.
A radiação se espalhou pela região. Pior ainda, as autoridades japonesas decidiram ajudar a
região exigindo que os municípios do Japão aceitassem alimentos cultivados em Fukushi-
ma. Aterros sanitários em todo o Japão agora carregam radiação de Fukushima.7 Assim
também as matas, embora de forma desigual. A Prefeitura de Iwate, perto de Fukushima,
possui algumas das florestas de matsutake mais famosas do país. Mas os cogumelos acu-
mulam radiação. Os valiosos matsutake de Iwate de repente se tornaram venenosos.
-conference-of-ipsi-3/
7 Informação pessoal fornecida por Daisuke Naito.
A ideia de Elaine Gan para representar essa mudança sem precedentes nas coordena-
EM MEIO À PERTURBAÇÃO: SIMBIOSE, COORDENAÇÃO, HISTÓRIA E PAISAGEM
ções era inverter a fotografia, como a ilustração que você acabou de ver. Agora o pre-
to é branco. As coordenações foram alteradas. O matsutake pulsa com os ritmos do
césio radioativo. Não apenas os humanos, mas também outros animais comem cogu-
melos, e eles carregam a radioatividade por toda parte. Em Chernobyl, os ecologistas
fizeram a descoberta surpreendente de que os níveis de césio na paisagem não esta-
vam diminuindo do mesmo modo como no laboratório (Madrigal, 2009). O solo de
Chernobyl é quase tão radioativo agora quanto em 1986, quando a usina se rompeu.
Enquanto isso, o javali come cogumelos e os leva por longas distâncias. Os gourmets
alemães que apreciavam o javali descobriram que suas refeições eram venenosas. No
meio da perturbação: simbiose, coordenação, história, paisagens. Essas relações ainda
são válidas. Mas o Antropoceno assinala novos terrores na falta de habitabilidade. Não
é apenas a radioatividade que está envolvida. A transferência global de organismos
em escala industrial tem contribuído para criar novos patógenos virulentos para hu-
manos e outras espécies. As contaminações químicas e a disseminação de fertilizantes
químicos prejudicam as ecologias de água doce. A mudança climática interrompe as
CAPÍTULO 4
A primeira tarefa desse projeto é aprender algo sobre outras espécies, incluindo espé-
cies selvagens, que realizam um imenso trabalho invisível para possibilitar a sobrevi-
vência dos humanos. Humanos não podem viver sem outras espécies. Isso não é só
porque nós os comemos. Paisagens multiespécies são cenários de habitabilidade. Pre-
cisamos dessas coordenações para nos mantermos vivos. Em todas as escalas, desde
os nossos intestinos até o nosso planeta, precisamos de paisagens de habitabilidade
comum, alcançadas por meio de simbiose e coordenação.
No entanto, para aprender algo sobre não humanos, novos tipos de colaborações se-
rão necessárias. Tenho sugerido que podemos encontrar aliados das ciências naturais
prestando atenção a discussões e debates entre diferentes formas de ciência natural.
Não é útil imaginar a ciência como um monólito. Isso não significa que devemos nos
calar diante das falhas nas experiências científicas e as consequências políticas dos
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Mas isso esclarece algumas questões teóricas que os antropólogos estão fazendo atu-
almente, incluindo o papel da simbiose – biologicamente, como colaboração e, mais
generosamente, como formação de paisagem. A simbiose metafórica da colaboração
envolve mais do que observarmos os outros fazerem o que fazemos. É preciso apren-
der o suficiente para procurar emergências produtivas – talvez naquelas arenas de
“algo extra” que a percepção fornece através da especialização disciplinar.
Mas a paisagem ainda parece passiva, até mesmo morta, para a maioria das pessoas,
incluindo antropólogos. Paisagens são panos de fundo para uma ação empolgante.
Precisamos dar vida às paisagens e torná-las protagonistas de nossas histórias. Precisa-
mos nos animar para aprender o que acontece em seguida. Desenvolver um novo
gênero de contar histórias é sempre arriscado. Até que o público aprenda a ouvir o
novo gênero, ele é enfraquecido. Teria sido mais fácil capturar sua atenção contando
histórias coloridas de forrageadores de cogumelos humanos e suas travessuras. Mas
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eu tentei mostrar paisagens ativas, paisagens tendo aventuras através das simbioses e
coordenações que as formam e reformam. Eu tentei tornar essa atividade mais clara
apontando para os diversos participantes da mistura, especialmente para o carvalho,
o pinheiro, os cogumelos matsutake e os agricultores humanos. Para evidenciar seus
papéis, Elaine Gan e eu usamos o diagrama para apresentá-los, uma partitura musical,
um roteiro para uma peça em constante mudança. Juntos, eles contam uma história
– e uma história que precisamos conhecer. Eu ainda estou numa fase de incertezas, e
preciso de suas sugestões sobre como tornar as façanhas da paisagem mais convin-
centes. Mas este é o novo animismo de que precisamos – não limitado a animais sin-
gulares, em seus paralelos com os humanos, mas distribuído entre paisagens de habi-
tabilidade. Em meio a perturbações, simbioses, coordenações, histórias, as paisagens
oferecem o inesperado.
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