Projeto Transferencial
Projeto Transferencial
Projeto Transferencial
PROJETO
TTRRAAN
NSSFFEERREEN
NCCIIAALL
UM CONCEITO PSICANALÍTICO EM CONSTRUÇÃO
UM CONCEITO PSICANALÍTICO EM CONSTRUÇÃO
PROJETO TRANSFERENCIAL: um
conceito psicanalítico em construção
Editora CRV
Curitiba – Brasil
2022
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem da capa: Gustavo Mello
Revisão: Os Autores
P962
Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-3016-3
ISBN Físico 978-65-251-3019-4
DOI 10.24824/978652513019.4
2022
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
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Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Edson Olivari de Castro (UNESP)
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Três de Febrero – Argentina) University, MMU, Grã-Bretanha)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
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Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Marcia Alves Tassinari (USU)
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Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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AGRADECIMENTOS
À
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes), cujo financiamento tornou possível esta publicação.
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPI), que
nos tem incentivado de muitas maneiras, inclusive com acesso à verba
de publicação.
Ao Departamento de Psicologia da UEM (DPI), que também nos
tem incentivado.
Aos pacientes que, de algum modo, nos “deram” a ideia de um pro-
jeto transferencial.
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Aos nossos alunos de mestrado e doutorado, que têm sido nossos com-
panheiros na pesquisa e na extensão.
A MI PROMO 78.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO������������������������������������������������������������������������������������������ 11
Viviana Carola Velasco Martinez
CAPÍTULO 1
PSICANÁLISE: a Clínica e o Projeto Transferencial������������������������������������� 27
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
CAPÍTULO 2
TRANSFERÊNCIA, CONTRATRANSFERÊNCIA,
PROJETO TRANSFERENCIAL�������������������������������������������������������������������� 39
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
CAPÍTULO 3
PROJETO TRANSFERENCIAL AINDA I����������������������������������������������������� 69
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
CAPÍTULO 4
PROJETO TRANSFERENCIAL AINDA II���������������������������������������������������� 87
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
CAPÍTULO 5
PROJETO TRANSFERENCIAL:
sobre o campo do amor e da demanda���������������������������������������������������������� 93
Maria Renata Taroco
PARTE I
PROJETO TRANSFERENCIAL: o domínio da clínica
CAPÍTULO 6
JÚLIO: desejo e flagelo�������������������������������������������������������������������������������� 105
Viviana Velasco Martinez
CAPÍTULO 7
O PROJETO TRANSFERENCIAL DOS PAIS
NA CLÍNICA COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES�������������������������������� 129
Aline Spaciari Matioli
Viviana Velasco Martínez
CAPÍTULO 8
“O PRESENTE DO AMANHECER”������������������������������������������������������������ 147
Emanuelly Martins
Viviana Velasco Martinez
PARTE II
O PROJETO TRANSFERENCIAL: um domínio intermediário
CAPÍTULO 9
O PROJETO CONTRATRANSFERENCIAL
DEFENSIVO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE
MENTAL: implicações na prática assistencial���������������������������������������������� 173
Silvia Marini
Viviana Velasco Martinez
CAPÍTULO 10
PROJETO TRANSFERENCIAL GRUPAL:
o grupo operativo como assistente de tradução������������������������������������������� 195
PARTE III
O PROJETO TRANSFERENCIAL: o domínio da vida em geral
CAPÍTULO 11
PROJETOS TRANSFERENCIAIS E SUAS
VICISSITUDES NOS TEMPLOS NEOPENTECOSTAIS�������������������������� 217
Maurício Cardoso da Silva Junior
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
CAPÍTULO 12
AMÉLIE NOTHOMB E SEU PROJETO TRANSFERENCIAL
ATRAVÉS DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA�������������������������������������������� 237
Francielle Sabatine
Viviana Velasco Martinez
CAPÍTULO 13
PROJETO TRANSFERENCIAL: morrer e ser imortal�������������������������������� 257
Luisa Gumiero Dias Gomes
Viviana Velasco Martinez
CAPÍTULO 14
NAZISMO – UM PROJETO TRANSFERENCIAL ALEMÃO��������������������� 283
Eduardo José Galli Berlofa
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
O
propósito deste livro é o de apresentar e divulgar o conceito de “pro-
jeto transferencial” e, desse modo, defini-lo e mostrar o seu uso.
Trata-se, pois, de uma ideia proposta por Mello Neto (2012,
2016a, 2022) como uma contribuição tanto para teorizar a psicanálise, como
para fazê-lo em relação à clínica e à cultura.
Mello Neto (2012) discute e propõe a ideia de haver, na análise ou na
terapia de base analítica, uma implicação do analista/terapeuta ou terapeuta
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(...) o analista é aquele que, juntamente com o analisando, vai fazer algo
que disparará um processo que é impossível saber que rumo tomará. O
analista é, então, um feiticeiro, quase aprendiz, que provoca um processo
e o faz através da sedução e, em seguida, porta-se estoicamente frente a
suas consequências. Esse portar-se estoicamente não diz respeito apenas
a suportar, mas também a interpretar, pois este é um substituto do agir.
Frente às forças pulsionais, o analista, tal como Freud o percebe, lança
mão da ciência, da sua ciência, no sentido mais antigo, que é o de sabe-
doria. Isso também é algo que faz o psicanalista: ciência. E o faz tanto
no sentido do seu trabalho, como de sua formação. Ele busca dominar as
próprias forças que convocou intervindo sabiamente sobre elas. Busca
anular algumas delas, reencaminhar outras, e mais frequentemente se limita
a apenas interpretar, nos vários sentidos que isso tem, acreditando que o
melhor acontecerá; isto é, que levado sob interpretação, esse processo
terá como destino a liberdade do sujeito. Ele ficará menos submetido aos
seus processos inconscientes já que agora não somente os liberou, como
os conheceu (p. 503).
1 Isto não quer dizer, e veremos mais adiante, que não haja um projeto transferencial posto em ação fansta-
maticamente em outros contextos que não sejam os de uma análise e com um outro narcísico.
12
Há, no entanto, até aqui, algo que está presente nas propostas freudianas,
mas não na intensidade que talvez devesse ou, talvez, na intensidade que
tomará depois de Freud e trata-se da presença do analista dentro da
análise. O analista aí se vê ultrapassado por forças que não domina intei-
O paciente, então, chega para a análise com algo mais ou menos cons-
ciente, mais ou menos inconsciente, um projeto transferencial a ser realizado,
mas que necessariamente envolve uma participação maior do analista/tera-
peuta. Não se trata apenas da expectativa de reedição, com o analista/terapeuta,
de um prazer já experimentado, embora isso não seja descartado pelo autor,
nem apenas, por exemplo, de uma reedição edípica, nos moldes estritos de
uma neurose de transferência.
Um projeto transferencial, diz o autor (2012, 2016a), é o que leva o
paciente para a análise, com o objetivo de dar uma solução. Trata-se de um
projeto pré-consciente que é atravessado pelo inconsciente e se materializa
de alguma maneira na relação transferencial, sendo o analista/terapeuta o
depositário de tal projeto, para ocupar diversos lugares psíquicos, mas em
torno do qual, ambos, analista/terapeuta e paciente, não têm clareza.
Talvez o que o diferencie, de fato, da transferência, seja a materialidade
que implica a consecução do projeto transferencial. Com materialidade estou
me referindo tanto à realidade psíquica, obviamente, mas também a um certo
tipo de realidade material, por exemplo, em torno de escolhas, ou, mesmo,
nas diversas manifestações sintomáticas, atuações, que tenham como objeto o
analista/terapeuta e exijam também sua intervenção para além do testemunho
– isto coloca um problema em relação à abstinência e, mesmo, estaria ainda
muito próximo da neurose de transferência, sendo fundamental diferenciá-las.
Podemos dizer que o Projeto Transferencial não foca o terapeuta e sua ação
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 13
só pode fazê-lo reproduzindo-o “em laboratório”. Não digo que isso lhe
seja claro, mas parece de algum modo estar presente. Desse modo, é pos-
sível pensar que a situação analítica, que é única para cada paciente, está
fundada não só num projeto racional, mas em elementos inconscientes
que fazem parte do projeto. Ela, a situação analítica resultaria, então, de
algo muito complexo, difícil de discernir, em que representações cons-
cientes e inconscientes se mesclariam produzindo algo semelhante a um
projeto, um projeto transferencial. Esse projeto, pois, teria que se manter
durante toda a análise e, ao mesmo tempo, ser interpretado (...) (Mello
Neto, 2012, p. 504).
Traduzir essa experiência, digamos ainda, é o que só pode ser feito a par-
tir da transferência em que se está implicado. É a essa materialidade a que me
14
Toda análise, nos parece, que seria necessariamente regida em parte pelo
projeto transferencial, levará tanto o analista/terapeuta, como o paciente, por
que nada, absolutamente nada poderá mudar, convidá-lo para ser um cúmplice
para a manutenção do conflito, pois junto com a defesa tem a satisfação. Ou,
mesmo, o projeto transferencial do paciente demande que o analista/terapeuta
ocupe um lugar ativo de passividade...
Por outro lado, temos os pacientes que revivem cenas dramáticas, por
exemplo, de espancamentos e abuso na infância, mas também não temos
como saber qual é o projeto transferencial que os guia. Precisamos entrar no
papel que, porventura, nos seja atribuído, para que o paciente seja consolado,
ou talvez, para que se sinta ainda agredido, para que sejamos seu duplo, seu
inimigo, seu amigo, sua vítima etc. Mesmo assim, somente após uma longa
jornada, talvez, possamos compreender com mais clareza o projeto transfe-
rencial, sobretudo porque ele só pode ser realizado com a participação do
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por Kogan (2014), com casais organicamente férteis, mas que, diante da
impossibilidade de engravidar, decidem adotar uma criança. O surpreendente é
que somente após a adoção de uma criança puderam gerar seus próprios filhos
biológicos. Por agora, não vamos adentrar nos territórios dessa pesquisa, mas
ela nos permite desdobrar alguns comentários em torno do projeto transfe-
rencial. O primeiro, diz respeito à impossibilidade, dessas pessoas, de gerar
o próprio filho, pois, talvez, o primeiro filho seja sempre, fantasmaticamente,
um filho edípico do pai ou, mesmo, da mãe. O segundo, diz respeito a um
projeto transferencial em torno do desejo de se gerar o próprio filho, fadado
ao fracasso pela fantasmática incestuosa, pois é necessário que entrem em
cena outros atores para propor outros arranjos. Vimos que é aí precisamente
onde o analista/terapeuta seria convocado, para atualizar o edípico e para
pelos pais que a abandonaram. Isso significa que haveria uma precariedade
decorrente, sobretudo, dos poucos recursos tradutivos que a criança adotiva
tem, para dar conta de tamanha demanda imposta, o que pode provocar mais
conflitos e sofrimento psíquico para todos. Contudo, isso não quer dizer que
o projeto transferencial que se persegue esteja fadado ao fracasso quando não
está dentro do espaço clínico, mas sim que é preciso do outro, porém, dentro
de uma relação mais simétrica, sobretudo para que a defesa possa atuar diante
da demanda fantasmática do outro.
Este tema, por outro lado, nos faz lembrar um caso atendido por um
colega. Trata-se de uma paciente grávida do seu primeiro filho, que se sente
angustiada, pois não consegue evitar pensar que o filho que espera é um filho
do seu pai. Os próprios argumentos que ela contrapõe a esse pensamento, por
exemplo, que isso seria impossível, pois nunca se deitou com ele, não foram
suficientes para aplacar sua angústia, uma vez que ao lado da interdição do
incesto estava seu desejo. Assim, o projeto transferencial dessa paciente passa-
ria necessariamente pela experiência fantasmática de ter se deitado com o pai,
e a prova disso é o filho que espera. O analista/terapeuta estará aí, tanto para
protagonizar, quanto para testemunhar tal cena primitiva e amparar e proteger
ambos, à paciente e a si próprio, de tal excesso. Isto se desenrola no espaço
analítico – ou nos casos de adoção vistos acima, no espaço familiar –, com
uma multiplicidade de personagens, numa espécie de cenário virtual, entre
a realidade psíquica e material, onde não se corre o risco de pagar caro por
um suposto gozo aniquilador. Embora seja imposta uma tarefa muito penosa
à criança, de ter que traduzir mais esse excesso, do enigmático da filiação.
A pesquisa de Schmidt (2013), Sequestro de meninas e Síndrome de Esto-
colmo: Cativeiro, trauma e tradução, também apresenta um material que, para
nós, pode ser significado, aprés-coup, em termos do projeto transferencial, e
será comentado por Mello Neto mais adiante (cf. p. 61). Trata-se também de
20
ela não consegue fugir antes da hora. Isso nos faz supor que tanto o sequestro
surgiu como uma oportunidade de encenar o Édipo, como também, pensar
que, frente à situação dada de sequestro, Natascha pode desenvolver esse
projeto, sobretudo porque o sequestrador, assim como um analista/terapeuta,
é apenas um representante, por exemplo, dos pais. Talvez, tenha sido isso que
a ajudou a sobreviver.
Estes dados nos permitem apontar para uma generalidade do fenômeno,
o que nos leva a supor que todos os indivíduos têm um [ou vários] projeto
transferencial, e que poderá ser realizado por caminhos mais ou menos tortuo-
sos, sempre com o auxílio do outro, numa espécie de reativação da sedução
generalizada. Isso significa que um projeto transferencial poderá, também,
estar truncado, talvez porque falte ativamente aquele que aceite entrar em cena.
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retorno ao próprio Freud, para fazer avançar a teoria, que deu lugar à Teoria
da Sedução Generalizada, com a qual Laplanche (1992) propõe os novos
fundamentos para a psicanálise.
É nesse sentido que analisar e testar a aplicabilidade e o alcance do
conceito Projeto Transferencial, dentro e fora da clínica, visa produzir uma
teorização em torno de um fenômeno que se constata e que pode contribuir
com a expansão da própria psicanálise. Uma possível contribuição, mesmo
pequena, e a sua explicitação na forma de uma teorização não deixa de ser
algo importante, sobretudo quando nos inspiramos no próprio Freud (1916-
7/1989, p. 225), que assim se expressa:
REFERÊNCIAS
Aristóteles (1993). Poética (S. Eudoro de. Trad). São Paulo: Ars Poética.
O
propósito deste texto diz respeito a tentar responder à questão “o que
faz um psicanalista?”, que nos foi colocada enquanto participante
de um certo evento, mas que, para além deste, nos aparece proposta
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2 Publicado originalmente na Revista Psicologia em Estudo (2012), 17(3), 499-505. Recuperado de https://
www.scielo.br/j/pe/a/wfbRfCfkVqDhTfYNp3DnqpP/?format=pdf&lang=pt
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Em Freud
Digo-lhe que não lhe é permitido dizer que não pode opinar, que [a recor-
dação] não é, por acaso, a procurada, a pertinente ou porque é desagradável
dizer. Nada de crítica, nem de reserva, provenham elas do afeto ou do
menosprezo. Afirmo-lhe que só assim poderemos encontrar o procurado
e que assim infalivelmente o acharemos. Em seguida, pressiono a testa
do enfermo (...) (Freud, 1895/1990, p. 277).
uma espécie de armadilha. O que Freud ainda não sabia é que, para além disso,
bastava sua simples presença, ela em si já era um oferecimento amoroso3.
Mas, façamos, agora, um salto cronológico, vamos aos anos 1913-1915,
aos chamados artigos técnicos de Freud.
Seguindo em ordem cronológica, encontramos A dinâmica da transfe-
rência (Freud, 1912/1990). A proposta aí é de mostrar que a transferência se
produz necessariamente na análise e se desenvolve a partir de vários fatores.
Um desses é a insatisfação, isto é, uma parte das moções pulsionais mantém-se
longe da consciência, como se escondendo aí, como as crianças se escondem
nos cantinhos, digamos, e só se manifesta nas fantasias, pois não encontra
saída na realidade material. O sujeito está, portanto, insatisfeito e é “normal”,
então, que ele tome o analista como objeto para a contenção dessa insatisfação
3 É o que diz Freud sobre a transferência, nos textos técnicos (1911-1915/1990), que não é preciso forçar a
transferência, o simples ouvir o paciente já é suficiente.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 31
Na sequência, Freud nos anuncia a solução que vê não como ideal, mas
como necessária em relação a esse combate transferencial. Trata-se da inter-
pretação e isso tem a ver com dizer para o paciente, seja de que modo for, que
suas tentativas amorosas têm a ver com a resistência e, por vezes, dizer que
há um desvio de objeto. Trata-se, então, de desmascarar e aí está outra coisa
que faz o analista, desmascara o paciente na sua tentativa de levar a análise
para um beco sem saída. Portanto, o analista é alguém que se coloca no lugar
do objeto, seduz, torna-se, assim, objeto de sedução e, quando isso chega a
um certo ponto, denuncia toda a situação. Quando, pois, a resistência/sedução
é denunciada, diz Freud, descolam-se da figura do analista seus elementos
inconscientes (da transferência) e o que fica, nem que seja por pouco tempo,
é uma transferência suportável, digamos, um bem querer ou, mesmo, uma
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Nessa última frase, tem-se que é preciso que o paciente viva a transfe-
rência, mas podemos interpretar que é preciso que ambos, paciente e analista,
a vivam, já que analista tem “que se deparar com as maiores dificuldades”
(p. 105). No entanto, vê-se que, a implicação do analista é aí bastante restrita,
não é mais que um incômodo, seguido de um esforço para suportar o que
vem do paciente.
32
4 Laplanche (1993), em A tina, diz algo interessante a esse respeito. Ao comentar as sessões de tempo vari-
ável, praticadas pelos lacanianos, se pergunta sobre como ter garantias de que a interrupção ou corte de
uma sessão não teria sido obra de algo inconsciente do analista e não se tratou de uma medida arbitrária.
A resposta que dá é que mais vale aí inserir a Lei, o terceiro, que nesse caso seriam as sessões de tempo
fixo, acordadas em contrato com o paciente e que ambos, analista e paciente devem respeitar.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 33
O psicoterapeuta tem, assim, que manter uma luta tripla: em seu interior,
contra os poderes que quereriam fazê-lo baixar do nível analítico; no
exterior, contra os oponentes que impugnam a significação das forças
pulsionais sexuais e o proíbem de servir-se delas em sua técnica científica;
e na análise, contra seus pacientes, que, no começo, comportam-se como
oponentes, mas que, logo, permitem conhecer a superestimação da vida
sexual que os domina e querem aprisionar o médico com seu enamora-
mento não dominado socialmente (Freud, 1915/1990c, p. 173).
5 Aliás, essa posição ética estoica é o que também vamos encontrar em Futuro de uma ilusão, quando Freud
(1927/1990d) propõe que nos dobremos ao destino.
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isso tem, acreditando que o melhor acontecerá; isto é, que levado sob inter-
pretação, esse processo terá como destino a liberdade do sujeito. Ele ficará
menos submetido aos seus processos inconscientes já que agora não somente
os liberou, como os conheceu.
Pois bem, do ponto de vista da formação, pode-se pensar que ela deve ou
pode se pautar pelo preparo do analista para que ele “saiba” colocar-se nesse
lugar, que é o da relação da ciência com as forças convocadas pela provocação,
e sustentar-se aí até o fim (ou, ao menos, muitas vezes) de maneira estoica.
Essa formação exige saber, pois se trata de ciência, mas também exige algo
semelhante ao estoicismo, que é uma experiência de imersão profunda de si
mesmo, de todo o seu ser. Para Freud e seu grupo, essa experiência seria uma
análise pessoal do analista – que, muitas vezes, era muito rápida, não sendo
6 É possível pensar que a preparação seja, sobretudo, a análise pessoal, mas creio que isso vai mais longe,
talvez seja uma espécie de transferência com a própria psicanálise, ou, mesmo, um mergulho sectário, que
não deixa de ser uma espécie de transferência.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 35
Só que com isso, temos muito pouco. Se nem o paciente consegue dizer
por que está fazendo tão grande mudança, como o saberemos nós? É possível
pensar que a finalidade seja a busca de um gozo, coisa que não descarto de
maneira alguma) estou convencido, sobretudo pela repetição desse fenômeno,
de que o paciente tem realmente um projeto e este é parte consciente, parte
inconsciente. E, evidentemente, trata-se de um projeto que inclui o analista e
o inclui necessariamente. É possível que isso seja algo ligado ao Édipo (num
sentido amplo)7 e talvez o sujeito busque reconstituí-lo; e no caso da mudança
de sexo do analista, reencene esse Édipo com um analista de cada vez, por
vezes indo, voltando e alternando entre os mesmos analistas, como se cada
uma dessas encenações fosse uma fase de uma única peça. E seja como for,
o analista está convidado a desempenhar um papel.
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Freud nos diz em seus textos técnicos que o paciente entra em tratamento
com muitas poucas representações objetivas a respeito do que fazer e do que
quer. Além da ideia de que espera se curar, não há muito mais que possa aliar-
-se ao terapeuta em sua árdua tarefa de “produzir” o inconsciente. Ora, isso
continua sendo verdade nos dias de hoje, no entanto, parece que há algo mais.
Um paciente que engendra, por exemplo, uma cena edípica x ou y para
seu tratamento possivelmente já o fez com muitas pessoas no decorrer de sua
vida. Quando, então, toma a decisão de levá-la (a cena) para uma análise é
porque intui de algum modo que quer resolver o seu enigma e só pode fazê-
-lo reproduzindo-o “em laboratório”. Não digo que isso lhe seja claro, mas
parece de alguma forma estar presente. Desse modo, é possível pensar que a
situação analítica, que é única para cada paciente, está fundada não só num
projeto racional de cura ou de melhora, mas em elementos inconscientes que
fazem parte do projeto. Ela, a situação analítica resultaria, então, de algo
muito complexo, difícil de discernir, em que representações conscientes e
inconscientes se mesclariam produzindo algo semelhante a um projeto, um
projeto transferencial. Esse projeto, pois, teria que se manter durante toda a
análise e, ao mesmo tempo, ser interpretado.
Pois bem, e o que faz o analista aí, cede à demanda do paciente? Fábio
Herrmann (1991) afirma que o analista, na sua posição de analista não cede
ao apelo amoroso do paciente, no entanto, ao falar de sexo com ele, de algum
modo está fazendo uma pequena concessão, mas sem que isso comprometa
a análise.
Ora, essa ideia parece aceitável; a interpretação, ao menos a freudiana,
pelo fato de seu objeto ser, sobretudo, sexual tem algo de gozo. Mas, não é
só isso, falar de sexo é apenas um incidente, algo menor, digamos. Quando
7 Freud (1931/1990e), em “A sexualidade feminina”, chega a propor que chamemos de complexo de Édipo a
toda relação que da criança com os pais.
36
pessoal (uma coisa não exclui a outra), podemos reunir neste conjunto esta
estranha sequência de termos – que não por ser estranha deixa de ser ver-
dadeira – descrevendo o que faz o analista: guarda a regra fundamental e o
setting; oferece-se como objeto sedutor e a ser seduzido; provoca; combate
(combate amoroso); desmascara; toma uma posição estoica; faz ciência; mas,
sobretudo, entra no campo transferencial e no “projeto” do analisando; traduz,
convida a traduzir e aceita ser o outro significativo do paciente, assim como
aceita ter de algum modo reeditado o seu próprio outro significativo na figura
do paciente (talvez esse seja o outro da sedução generalizada, aquele cuja
mensagem, parasitada por elementos sexuais, foi excessiva para a criança e,
para o adulto neurótico tornou-se enigma, que se expressa, por exemplo, em
seu sintoma).
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Por fim, não se pode encerrar este texto sem dizer que não há aqui uma
proposta de mais envolvimento do terapeuta/analista. Uma proposta dessas
não é necessária, pois já é o que o analista faz e o faz seguindo os conselhos
de Freud sobre o tratamento, seguindo a regra da abstinência e possibilitando
ao paciente a regra fundamental da psicanálise. Isso parece uma contradição,
mas não é. O analista, mesmo com todas as regras de Freud com as quais
concordamos, assume um lugar no projeto do paciente, já foi dito, mas assume
organizando-o com suas regras, com o arcabouço teórico da psicanálise e com
sua própria análise já feita. Pode-se até dizer que o projeto transferencial é
a única coisa que se tem para começar. Nele, o analista, introduz o arsenal
psicanalítico que o organiza. O mesmo talvez ocorra em outras linhas de
psicoterapia. Não parece ser disparatado dizer que uma psicoterapia é o pro-
duto de uma organização do projeto transferencial. Com isso, tem-se, enfim,
que o projeto transferencial não será realizado, no sentido de realização da
transferência. Esta última não é para ser realizada, mas, sim, interpretada. Se,
porém, a realização do projeto transferencial significa estabelecer uma espécie
determinada de transferência, na qual o analista tem um (ou mais) lugar, nem
mesmo assim há uma realização ou, ao menos, uma realização completa. É
que lá está o analista, o outro, que não se deixará ser inteiramente transportado
para o mundo fantasmático do paciente.
38
REFERÊNCIAS
Ferrater, J. M. (1969). Diccionário de filosofia. Buenos Aires: Sudamericana.
E
ste capítulo tem como objetivo discutir o projeto transferencial, como um
fenômeno dentro da especificidade da transferência/contratransferência.
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cunho edípico. Dora, diz Freud, deu-lhe um aviso prévio antes de abandonar
o tratamento, como castigo, tal como havia conseguido que o pai desse o
aviso prévio à governanta que a havia decepcionado, pois, como a Sra. K, o
seu interesse era também apenas pelo seu pai.
Destaquemos dois pontos do exposto. O primeiro, diz respeito ao fato
que, numa análise, o paciente exige que o analista ocupe um papel, o que já se
caracteriza como algo da ordem transferencial e fantasmática. E, o segundo,
refere-se à resistência, ou seja, se o analista não interpreta a transferência
fortalece-se a resistência do paciente, o que não faz avançar a análise – Dora
abandona o tratamento. Mas, o que o paciente exige do analista? Podemos
dizer que se trata de recriar um cenário onde a presença do analista, com
algo que ele promete – pelos menos fazer um bom tratamento – propicia a
o analista, embora tivesse clareza que o analista concreto não era o mesmo
das suas fantasias. Era, no dizer de Lagache (1980⁄1990), uma falsa conexão,
uma aliança desigual. Isso faz supor que, nesse contexto, é necessário que o
analista se preste para essa falsa conexão, e desempenhe o papel fantasmático
do pai, para a paciente desfrutar, também fantasmaticamente, de um namoro
e, talvez, uma lua de mel, mas com o objetivo da renúncia. Rapidamente a
paciente do nosso exemplo, centraliza a sua vida em torno da análise, e o mais
importante na sua vida é o dia do encontro. Encontro com quem?
Há de certa maneira, um encontro marcado, que faz parte do Projeto
Transferencial, do qual não se sabe o que se esperar – por isso uma aliança
desigual –, do lado do paciente porque não sabe que sabe, mas deseja, e,
do lado do analista porque se se recusa a ocupar de algum modo um papel
determinado pela fantasmática do paciente dentro da relação transferencial
não há análise. Mas o analista não vai totalmente desprovido de um saber, ele
é o guardião do método, diz Laplanche (1992b) e, ainda, se supõe que passou
pela sua própria análise, o que também lhe outorga um saber, pelo menos da
descoberta do seu próprio inconsciente.
Numa das sessões, continuemos com o exemplo, a paciente disse que
sentia como se algo houvesse sido prometido aí, na análise, e não cumprido,
pois ela havia feito o que dizia ter-lhe sido solicitado, mas não recebera o
prometido (voltaremos a esta cena mais adiante). Numa outra sessão, contou
todas as coisas que havia feito para agradar o pai, tudo aquilo que o pai con-
siderava que caracterizava uma boa mulher: cozinhar, arrumar a casa, tricotar,
ser perseverante8 e... e seu pai não casou com você!, disse-lhe o analista. Mas
para chegar a isso, foi necessário que se fizesse a promessa na análise9, porque
8 É muito interessante que efetivamente ela se torna perseverante, perseverante no seu desejo que se traduzia
numa angústia sem fim.
9 Não podemos afirmar se essa foi uma fantasia exclusivamente da paciente, ou se, de fato, o analista lhe
promete algo enigmaticamente porque é a ele que a paciente dirige as suas expectativas, a sua sedução.
44
Analisando e analista são dois amigos agora, mas logo após este é vivido
como um perigoso dominador daquele, ou é mesmo um assassino mental.
Ora estão enamorados, ora são pai e filho; ou a fantasia dominante é mais
crua, e talvez o paciente imagine esvair-se dentro do analista, como poça
d’água na areia, ou transforme-o fantasticamente num protetor possante,
em cuja sombra, tal qual sob uma árvore copada, encolhe-se confiado.
Numa palavra, paciente e terapeuta podem virar quase qualquer coisa na
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 47
Glover (citado por Lagache, 1980⁄1990), por sua vez, considera que o
paciente transfere massivamente, para o analista, “não só afetos e ideias, mas
tudo o que já aprendeu ou esqueceu em todo o seu desenvolvimento (...) e
deve incluir uma multiplicidade de fatores” (pp. 58-59)
Sharpe (citado por Lagache, 1980⁄1990,) também se refere aos afetos.
Acrescentemos aqui a ideia sobre a riqueza e a especificidade das emoções
analíticas e infantis: “Amor, ódio, horror, repulsa, culpa, medo, desconfiança,
necessidade de apoio, vergonha, arrependimento, orgulho, desejo, condenação,
que veiculam realmente uma significação” (pp. 54-55).
Todos esses aspectos tão importantes e decisivos, e cujo alcance não
pode ser determinado apenas com o termo transferência, consolida a proposta
do Projeto transferencial que implica tanto a procura de cura do paciente,
no seu aspecto mais consciente, como também o desenrolar de uma análise,
propiciado pela situação analítica, isto é, pelo inconsciente.
Outro autor interessante e cujas ideias podem contribuir para sustentar o
conceito de Projeto transferencial é Bergler (citado por Lagache, 1980⁄1990),
para quem a análise implica numa cooperação entre o paciente e o analista
(...) num trabalho que se realiza sobre uma espécie de fantasma; essa
cooperação tem a significação inconsciente de uma atividade sexual, oral,
10 Diferente dos pacientes que sofrem de histeria, pois estes não sabem o que querem e não têm nada claro
para eles.
48
Isto nos interessa porque o que se desenrola numa análise diz respeito
a lugares e fantasmáticas que o analista deverá ocupar para poder analisar o
fenômeno e as formas como este se manifesta na história do paciente, pois não
se espera que o analista apenas esteja presente na transferência para receber as
projeções, mas que participe dos conflitos infantis que o paciente traz como
parte da sua história. Para Lagache (1980⁄1990, p. 125):
Tais conflitos infantis, portanto, trazem uma história, marcada pelas fan-
tasias e pelos acontecimentos, portanto, referem-se à própria vida do paciente
de tal maneira que a análise diz respeito, como afirma Lagache (1980⁄1990), à
experiência vital que vai resolver o grande problema da existência. Exempli-
fica com o caso de uma paciente extremamente submissa ao analista, decor-
rente das suas vivências infantis pautadas pelo sentimento de culpa, medo e
rivalidade com o irmão, o que teria ficado recalcado. Há, aqui, um fragmento
da história da vida dessa paciente, marcada por uma ferida narcísica e, ainda,
se desenrolando novamente no cenário da análise. É nesse sentido, de algo
muito amplo e complexo da vida do paciente que se apresenta sob a forma
do projeto transferencial, um projeto também de vida. Lagache (1980⁄1990)
afirma ainda:
(...) algo tão estúpido quanto: “não sou sua mãe”, ou “não sou quem você
acha”? A rechaçar, portanto, em nome da realidade, fenômenos que recu-
sávamos que nos fossem destinados: marcas de transferência. “Não sou
quem você acha” ou “a situação não é como você pensa”: efetivamente, é
uma tentação pronunciar estas frases, sem mesmo nos lembrarmos que toda
denegação, como demonstra Freud, é um reconhecimento do inconsciente,
ou pelo menos se funda sobre um reconhecimento: “não sou” sem um
“sou” que é seu fundamento; isto pela razão capital de que o inconsciente
não conhece a negação (Laplanche, 1993, p. 18).
São suas pulsões mais domesticadas, para usar uma expressão de Freud
(1915/1990e), que lhe permitem suportar e interpretar a transferência para
acompanhar o paciente na formulação do seu projeto transferencial que, no
caso comentado, não só implica uma promessa de casamento com o pai, mas
a necessidade de renúncia a esses amores edípicos.
Nesse sentido, foi necessário que, num primeiro momento, se reconhe-
cesse o desejo, se vivesse um pouco esse desejo que presentificava objetos
e momentos de satisfação infantis. Necessário porque deu lugar ao tema da
renúncia, que se declarou, de algum modo, na fala do terapeuta: o pai não se
casou com você...
Mais adiante, a paciente vai revelando que no seu Projeto transferencial,
ainda buscava os meios para garantir a satisfação incestuosa, desta vez pelos
caminhos tortuosos da inocência infantil. A paciente declara-se veementemente
vítima de maus tratos, sobretudo diante da sedução e do sexual, se retirando
das cenas em que a sua sexualidade havia sido fortemente estimulada e bus-
cando, talvez, uma reparação precisamente através do casamento com o pai.
Tais fantasias se apoiam em solo firme, pois não se trata de um pai inocente:
estamos falando da etiologia do pai11 que, em duas ocasiões, toca a filha,
uma vez quando criança e, outra, quando adolescente. Isto a sufoca, pois não
somente o seu sintoma principal é a angústia constante, mas a falta de ar a
leva a associar com ter o pênis do pai entalado na garganta. A isso, o analista
responde com um “Que horror!” Responde com realidade a essa associa-
ção, se perdendo na transferência, não suportando por momentos o projeto
transferencial da menina mulher de reviver esses amores para um casamento
imaginário que solucionaria o mal infligido, num primeiro momento, e como
preparação para uma possível renúncia no futuro. Por outro lado, essa falta
11 No caso Emma Eckstein, Freud (citado por Masson, 1984) usa essa expressão para se referir à teoria
da sedução.
52
A maneira que essas mulheres arranjam para nos atrair com toda a per-
feição psíquica, até que atinjam o alvo, é um dos grandes espetáculos da
56
natureza. Uma vez que isso seja feito, ou o contrário se torne uma certeza,
a constelação muda espantosamente (Macguire, 1993, p. 254).
Continuemos com alguns artigos atuais. Vimos que Zambelli et al. (2013)
apontam para a descoberta de Freud da contratransferência, colocando o
inconsciente do analista na situação transferencial.
É assim que em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise,
Freud (1912, citado por Zambelli et al., 2013) destaca a importância do incons-
ciente do analista na relação transferencial, onde haveria uma comunicação
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 57
Não se trata, aqui de destacar tais ideias para falar das possíveis atuações
do analista, como o faz de maneira tão interessante o autor, mas de chamar a
atenção para a ideia de que efetivamente o paciente demanda que o analista
ocupe um lugar na sua fantasmática. Um papel, diz Racker, que o paciente
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deseja ver realizado pelo analista, um papel induzido pelo paciente e, embora
o autor recomende ao analista se calar, para melhor compreender a situação e
depois interpretar, nos interessa destacar que são precisamente essas deman-
das do paciente que dizem respeito ao seu Projeto transferencial para a sua
análise. Desse ponto de vista, é necessário que elas possam ser acolhidas,
em alguma medida pelo analista – o que não significa uma atuação – mas
acolhidas, vividas de certa maneira a dois, para poder traduzir o que está se
procurando realizar fanstamaticamente com essa análise e com o analista.
Seria o analista se deixar levar um pouco, experimentar um pouco, aquilo que
o paciente demanda, sem, no entanto, se perder numa atuação, numa rejeição
abstinente. Seria como Freud (1915 [1914]/1989d) indica, no texto Sobre o
amor de transferência, não aceitar a demanda erótica de uma paciente; também
não repreendê-la porque nos declara seu amor – vai contra a própria regra
de ouro–, mas falar um pouco mais sobre isso. Namorar um pouco, digamos
assim, essa paciente, para saber de que natureza é isso que vem na forma de
amor ou de outras formas como parte do seu projeto transferencial.
Dediquemos, também, algumas linhas às ideias de Paula Heimann (1950,
citado por Wolff & Falcke, 2011), que se refere à contratransferência como
algo do paciente provocando sentimentos no analista, o que, portanto, permi-
tiria a investigação dos processos inconscientes do paciente.
Em 1949, Heimann (citado por Geissmann, 2005) propõe a contratransfe-
rência como uma ferramenta a serviço do analista de investigação do incons-
ciente do paciente.
Segundo Ramos e Ramos (2016), Heimann chama a atenção para o
risco de emoções intensas como amor, ódio, apoio, raiva, levarem o analista
a uma atuação, o que poderia destruir o seu objeto. Também, não poderá se
considerar a contratransferência uma desculpa para as falhas do analista, pois
a sua análise pessoal deve lhe dar clareza quanto aos seus próprios aspectos
inconscientes discriminando do que é do paciente.
60
Notemos que isso está muito próximo das concepções que consideram
inseparável a transferência da contratransferência, por um lado, e por outro,
temos aí a filiação indireta às ideias de Ferenczi sobre a possibilidade de
ampliar a compreensão do analisando a partir da sensibilidade emocional
livre e desperta do analista, a empatia a que Ferenczi (1926/1993) se referia.
Indireta, porque foi M. Klein, de quem Heimann foi aluna, quem destacou os
aspectos comunicacionais na contratransferência, sobretudo com o conceito
de identificação projetiva, em 1949, segundo Geismann (2005).
Avancemos.
A partir década de 50, afirmam Wolff e Falcke (2011), não só a contra-
transferência ganhará destaque teórico, mas será tida como instrumento de
trabalho que considera a dupla analista e paciente. As autoras apresentam uma
revisão e a mencionamos rapidamente.
Assim, se discute a contratransferência e a sua relação com a transfe-
rência, formando um único processo pautado nas identificações do analista
com o paciente, isso já vimos com Racker (1958/1979). A contratransferência
implica tanto os sentimentos do analista, decorrente da transferência, mas
também a forma como o analista pode, com a sua subjetividade, perceber o
que se desenrola na sessão, tanto em relação ao que o paciente diz, quanto
ao que não manifesta (Zaslavsky & Santos, 2005, citado por Wolff & Falcke,
2011). Isto também nos interessa em particular, considerando que é a subje-
tividade do analista que pode perceber o projeto transferencial do paciente.
O que o paciente procura numa análise? Obviamente podemos responder que
um paciente procura dar soluções a determinadas formas de conflito, quer
melhorar, já dissemos, e isso num plano bastante consciente, contudo, se
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 61
pelo simples fato de haver uma relação humana. E dizemos drama porque
o paciente leva sempre para uma análise, uma demanda por satisfação, mas
também por uma solução, leva a sedução, mas também procura por uma tra-
dução mais organizadora. A pergunta é como poder silenciar uma das partes?
Tarefa impossível, pois embora o recalcamento seja uma defesa, o analista
é convocado para pôr em aberto a sedução, mas também para propiciar um
terreno rico em possibilidades tradutivas e retradutivas para além do sintoma.
Isso exige que ele mesmo esteja disposto a pôr em cena seus próprios fantas-
mas, seus enigmas e suas traduções/defesas numa dialética infernal, pois o
outro sempre será alvo do sexual.
Voltemos a Figueiredo e a sua menção a Searles (1973, citado por Figuei-
redo, 2003), que considera que desde os primeiros meses de vida a tendência
REFERÊNCIAS
Eagle, Morris (2000). A critical evaluation of current conceptions of transfe-
rence and countertransference. Psychoanalytic Psychology, 17, 24-37.
Zambelli, C. K., Tafuri, M. I., Viana, T. de C., & Lazzarini, E. R. (2013). Sobre
o conceito de contratransferência em Freud, Ferenczi e Heimann. Psic. Clin.
Rio de Janeiro, 25(1), 179-195. Recuperado de https://www.scielo.br/j/pc/a/
jc66LPDhThXxWbwbnZLV6wG/?format=pdf&lang=pt
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CAPÍTULO 3
PROJETO TRANSFERENCIAL AINDA I
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
H
á algum tempo, propusemos a ideia/conceito de projeto transferencial
(Mello Neto, 2012). Aqui, a proposta é continuar a desenvolver essa
noção, falar mais sobre ela. Comecemos trazendo um pouco do que
então expusemos.
Dissemos em artigo de 2012 que a experiência tinha-nos mostrado que
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coisa ou outra, sempre frases ambíguas, que sugerem quem ela é de fato. Aos
poucos, Hannold vai se dando conta de seu engano que, vejamos, é também
um acerto. Zoé acolhe a demanda de participar do projeto transferencial de
Hannold e,postada “dentro” desse projeto, vai convidando o “paciente” a
examinar outras “propostas”12. Pode-se objetar e dizer que se trata aí de um
caso delirante e nem todo caso é assim. Ora, respondemos: a transferência, a
nosso ver, é delirante, diz respeito a um delírio limitado, mas delírio.
A ideia de algo mais estruturado na formação da transferência, a que
estamos chamando projeto transferencial, não é inteiramente estranha à lite-
ratura psicanalítica. Lagache (1952, p. 97) ao falar de disposição à transfe-
rência, expressão que toma de Nunberg (1927, citado por Lagache, 1952,
p. 97) escreve:
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Isso parece ser algo bem semelhante ao que estamos propondo, mas não é
a mesma coisa. De interessante está que Lagache observa o mesmo fenômeno
que observamos, uma predisposição para a transferência numa forma que
lembra a ideia de projeto, mas o autor não desenvolve essa ideia, encerrando
o assunto com estas frases:
12 É possível pensar que, a partir do projeto do paciente, o terapeuta/analista desenvolve o que podemos
chamar aqui de projeto contratransferencial. A “Gradiva” também indica algo assim: Zoé também está
apaixonada e parece ter um projeto em relação a Hanold – no mínimo torná-lo seu marido. O transferencial/
contratransferencial em Zoé parece começar no “fato” de que seu pai é também um erudito, não arqueólogo,
como Hanold, mas catedrático em Zoologia, além disso, Zoé e Hanold tiveram uma amizade na infância
(Zoé/Gradiva pergunta a Hanold se ele não se lembrava de que havia 2000 anos haviam compartilhado
uma mesma refeição!).
É de se imaginar que o projeto contratransferencial contenha elementos fantasmáticos, mas isso tem que
ser controlado/limitado de várias formas, todas possivelmente ligadas ao eu. Uma dessas formas é a teoria.
Mas esta pode também estar dentro do projeto e ser usada como defesa, de forma que o analista/terapeuta
a utiliza como cama de Procusto contratransferencial, forçando o paciente, mal ou bem, a “se comportar”, a
caber dentro das ideias teóricas de seu terapeuta. Mas, além disso, devido ao fato de que o projeto trans-
ferencial do paciente pode ser sentido como perigoso, o projeto contratransferencial deve ter muito a ver
também com defesas, mas este é um ponto que ainda não pesquisamos mais detalhadamente.
72
Quando, porém, esse projeto teria sido “esboçado”? Uma criança o teria
“concebido” oito anos antes de fugir? Parece pouco provável que isso tenha
ocorrido, no entanto, Natascha, logo antes de ser sequestrada insistia em seu
desejo de, quando fizesse dezoito anos, sair da casa materna, porque as coisas
aí não iam muito bem. Além disso, a menina precisava ser alimentada, cui-
dada, educada, amar e ser amada; após o sequestro, é Priklopil quem será o
objeto desse amor e quem dispensará esses cuidados. Mas o mais interessante
está no fato de que Natascha foge justamente quando tinha dezoito anos. O
projeto transferencial, nesse caso, parece ser um projeto de desenvolvimento
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ou movido por este desenvolvimento cujo enlace seria a libertação, seja dos
pais, seja do sequestrador.
Um projeto transferencial, ademais, pode ser criado em qualquer
momento da terapia/análise ou da vida do sujeito. Cremos que ele é sempre
a longo prazo, embora possa se modificar rapidamente.
Outro exemplo está no trabalho de outra participante de nosso grupo,
Franciele Pitelli Sabatine (2013), que propõe, por meio da teoria da sedução
generalizada, de Jean Laplanche, uma discussão do assédio moral em empre-
sas, a partir da análise do romance autobiográfico de Amélie Nothomb (2001),
intitulado Medo e submissão (Stupeur et tremblement, 1999).
A escritora, belga, filha de pai diplomata, conta-nos, pois, que nasceu no
Japão e ali viveu até completar cinco anos. Já adulta, buscando recuperar de
alguma forma essa experiência, empregou-se numa grande empresa japonesa,
onde sofreu o que para nós ocidentais foi uma forte violência moral. Entrou
como tradutora, já que não só não esquecera o japonês, como o aperfeiçoara, e
terminou sua curta passagem pela empresa como limpadora de banheiros, sem
que, evidentemente, seu salário fosse diminuído. Durante esse período, sofreu
intensa perseguição de sua superiora imediata, para quem era “obrigada” a
muitas vezes “confessar” sua falta de inteligência. Entre outras coisas, essa
história tem algo de kafkiano, pois, até o fim, não se sabe qual é a razão do
assédio, se se devia ao fato de Amélie ser ocidental ou, talvez por isso mesmo,
por ter maneiras mais ousadas que das funcionárias orientais.
Como já foi dito, Sabatine propõe-se a interpretar essa situação inspiran-
do-se na ideia laplanchiana de sedução generalizada. Tal sedução tem a ver
com a completa dependência da criança em relação ao adulto. No trato coti-
diano, este último enviaria àquela, mensagem de natureza sexual – polimór-
fico-perversas – inconscientes para ele mesmo e, portanto, enigmáticas. Tais
mensagens não podem ser decodificadas inteiramente pela criança, devido à
sua falta de recursos simbólicos. Os elementos decodificados – ou decifrados,
78
Faz parte de seu projeto, ainda, dar conta do seu enigma que constante-
mente a interroga: “o que é ser uma mulher japonesa?”. De algum modo,
Fubuki provoca esse seu enigma, pois a gestora além de ser bela e bem-su-
cedida profissionalmente, é uma mulher japonesa. Talvez seja por isso que
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 79
15 Pensemos numa obra de artes plásticas – um quadro, uma escultura ou uma instalação – ou pensemos
num romance totalmente fictício. Haveria transferência aí? Se transferência é o deslocamento de afetos e de
modelos infantis e inconscientes de captação do outro e de relação com ele para algo que não é ele e que
é extemporâneo, sim, há transferência, ao menos num sentido amplo. Se não há transferência no sentido
clínico, ao menos há disposição para ela.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 81
não é um sonho, pois está mais próximo da ação. Mas, poder-se-ia pensar
que esse projeto e a transferência em si não têm grandes diferenças? Talvez,
mas também podemos pensar que a transferência não é um único fenômeno.
Digamos que (1) a hipnose, (2) a massa psicológica, (3) a transferência tal
como observada por Freud, (4) a disposição a transferir e o (5) projeto são
fenômenos transferenciais diferentes e não uma única coisa. O que nos leva a
pensar que o projeto seja um fenômeno separado é que ele nos aparece, como
dissemos, na forma de uma organização dada pelo eu a elementos diversos,
como conflitos inconscientes, traumas, aspirações, elementos egoicos de todo
tipo, elementos pulsionais etc. sob a égide do fantasma, marcada pelo aspecto
de realização no futuro ou, ainda, de intuito ou empreendimento. Contudo,
vejamos que não se trata de nenhum plano sofisticado, mas de um esboço, de
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16 Ora, é algo semelhante o que Freud (1900/1989c) atribui ao sonho – este reuniria elementos de todo tipo
numa figuração mais ou menos coerente e teria por motor o desejo inconsciente (embora nem sempre
inconsciente, como seria no sonho das crianças). Digamos que os fenômenos transferenciais têm grande
semelhança com o sonho e também não parecem irracionais quando os estamos vivendo. Na verdade, não
são sonhos, visto que estão marcados por elementos do eu da vida desperta; somente a hipnose nos faria
pensar em algo intermediário entre o sonho e a vida desperta.
82
em que tem para ela um “plano”, um cenário, uma estrutura. Entretanto, isso
não é um sentido para a existência do sujeito, pois é uma espécie de sentido
muito básico.
Muitos pacientes, como já foi dito, carecem de um sentido existencial;
talvez todos ou quase todos careçam; sabemos que depois de um trabalho
terapêutico bem-sucedido eles o recuperam.
Digamos que sua capacidade de atribuir sentidos a sua existência integral
está embargada pelo trauma e/ou pelo recalcamento. Além disso, a regressão
que ocorre nas patologias retira a atenção que o sujeito aplica no mundo em
que vive e constrói sua existência e a coloca no infantil, nas figuras edípicas.
Desse ponto de vista, então, o projeto transferencial é um projeto de sentido
futuro e, sendo assim, é uma solução de compromisso entre o infantil – e
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REFERÊNCIAS
Abbagnano, N. (1998). Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes.
uem.br/arquivos-para-links/teses-e-dissertacoes/2015/francielle-s
N
este pequeno texto, tento expor a ideia de projeto transferencial de
maneira breve e aproveito para responder algumas questões que não
haviam sido ainda respondidas. Faço-o, agora, depois de ter lido e
relido todos os textos que compõem este livro, isto é, o resultado de todas as
pesquisas feitas a partir dessa ideia, a de projeto transferencial.
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17 O uso da palavra roteiro parece que não foi muito boa, pois causou confusão em nosso grupo de pesquisa. Há
um exagero de minha parte em dizer que há pacientes que chegam ao consultório com verdadeiros roteiros
de trabalho, do tipo, “primeiro, eu vou trabalhar tal problema, depois este outro e, depois, este outro ainda”.
Se roteiro significa uma sequência de passos, de fato, nunca encontrei semelhante coisa. O que encontrei
algumas vezes foram algumas espécies de lista de problemas que certos pacientes usavam no decorrer
do trabalho e iam tentando ticar na medida em que acreditavam – não mais que acreditavam – que um e
outro problema ia sendo resolvido. Isso, aliás, não estava muito longe de algumas linhas terapêuticas, mas
não era o caso da psicanálise. Por outro lado, se se pensar em roteiros inconscientes, “scripts”, a palavra
“roteiro” se torna mais aceitável para a discussão do projeto transferencial. Um roteiro fantasmático, o
denomina Martinez na introdução deste livro.
88
19 A leitura de todo o material deste livro leva-me a pensar algo um pouco diferente do que disse até aqui e
a dar um pouco mais de destaque ao analista nesse processo. Maria Renata Taroco (infra) afirma que a
maioria de nossos pacientes não tem uma organização tal que se possa pensar que tenham alguma espécie
de projeto. Do mesmo modo, já disse aqui que muitos pacientes começam um trabalho terapêutico movidos
por algum tipo de pressão externa. Além disso, há muitos pacientes tão tomados pelo sintoma que se tornam
incapazes de fazer mesmo um projeto consciente de seja lá o que for. Pode-se juntar a isso o que já foi dito
neste capítulo, que não é de forma alguma destituída de realidade a ideia, tão repetida por Freud, de que
o inconsciente, incapaz de compreender, aceitar e formular a negação, não produz nenhuma espécie de
organização racional. Pois bem, quanto a esse último “porém”, já disse que o projeto transferencial está muito
mais do lado do eu do que id. No entanto, pensar que os pacientes cheguem organizados a ponto de ter um
projeto é algo um tanto quimérico. Proponho aqui a hipótese de que os pacientes, mesmo dominados pelo
sintoma, trazem consigo um “roteiro” fantasmático, por vezes consciente, como ocorre em certos momentos
de uma crise psicótica. Esse “roteiro”, já foi dito que não é nada comparável a um roteiro de cinema, sendo,
pois, algo vago, algo formado por algumas cenas. Trazem também a disposição à transferência, que é algo a
meu ver ainda muito misterioso. O projeto, de fato, talvez se constitua pela ação do analista. Por mais neutro
e especular que este seja, ele tem um objetivo, um escopo, nem que isso seja apenas “tornar consciente o
que é inconsciente”. É no encontro com o outro, com o analista, que o projeto talvez se constitua. Mas se
constitui, como já foi dito, atravessado pelo fantasma.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 91
de projeto transferencial.
É aí, pois, que creio que ela pode ser mais interessante. Mesmo que,
no final das contas não exista tal fenômeno, mas seja apenas uma ideia, essa
ideia tem servido de maneira ímpar para pensar meus atendimentos e que tem
ocorrido da mesma forma com outros profissionais do nosso grupo. No fundo,
pensar sobre um projeto transferencial, é pensar sobre o desejo e sobre como
o eu o “operacionaliza” em várias circunstâncias. Perguntar-se “o que quer
de mim esse paciente”, “o que ‘planejará’?” e pensar que é sujeito, sujeito
do inconsciente, e que esse seu querer e esse seu projeto, qual seja, está atra-
vessado pelo desejo tem sido algo muito organizador no entendimento não
só dos casos em tratamento, mas também de algumas situações extraclínicas.
Isso vai se ver na sequência do presente livro. Tem sido possível pensar no
projeto transferencial dos grupos terapêuticos e também de grandes grupos,
como, por exemplo, um povo numa dada situação de muito estresse e totalita-
rismo, ou uma organização de trabalho ou, ainda, uma igreja neopentecostal.
Tem sido interessante pensar no projeto transferencial do pintor e do escritor
diante de seu público invisível, ao qual ele dirige seu trabalho. Tem-se pensado
no projeto de morrer de um doente terminal. Tem-se pensado num projeto
contratransferencial, aquele a partir do qual o profissional reage ao projeto
do paciente. Tem-se discutido a psicose por esse prisma e a assim chamada
síndrome de Estocolmo. Pode-se discutir o projeto transferencial de Ferenczi
para Freud e também, de Freud para Fliess etc. Neste último caso, o projeto
transferencial, mesmo que abortado – os dois autores acabam se desenten-
dendo – deságua num projeto de vida, que é o que foi a psicanálise para Freud
e é o que ele começou em seu projeto com Breuer.
92
REFERÊNCIAS
Freud, S. (1912/1990b). Sobre la dinámica de la transferencia. In Obras Com-
pletas de Freud (Vol. XII, pp. 93-105). Buenos Aires: Amorrortu Editores.
Q
uando Mello Neto nos apresentou a ideia do Projeto Transferencial
surgiu a possibilidade de problematizar uma situação que, na nossa
prática clínica, em particular, não era escutada. Essa não escuta talvez
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Aquele que faz a doação se encontra no direito de pedir outra coisa, que
deve superar a importância da primeira. Aqueles que a recebem estão
condicionados a receber, a posteriori, algo de valor maior ou igual...
Aquilo que se troca é considerado, mais do que um bem econômico, um
instrumento de outro tipo de realidade: potência, poder, simpatia, status,
emoção (Ambertín, 2009, p. 66).
Pensemos nessa idealização, para além de tudo o que já foi dito pela
psicanálise sobre o lugar do analista, justamente porque a participação do
analista no projeto, como já dissemos, não se dá na realidade, mas sim no
espaço intersubjetivo, com a presença do fantasma, como um anteparo, uma
tela na qual o sujeito pode se arriscar, numa espécie de avaliação do seu
projeto, considerando que o tempo para a efetiva execução, ou finalização,
pertence ao futuro. Dito de outra forma, é uma espécie de gradação composta
no projeto, desde seu surgimento, depois uma realização pelo discurso na pre-
sença do analista para, no futuro, a vivencia propriamente dita. É importante
ressaltar que essa gradação temporal é tomada para fins didáticos, já que o
tempo em psicanálise se conta de outra forma. A referência ao futuro diz da
relação de cada sujeito com o tempo. Do futuro só pode ser dito do que pode
vir a acontecer, o que pode ser de muita angústia, pois se trata de lidar com o
desconhecido. Assim, o projeto transferencial coloca no presente da relação
transferencial o que ainda lhe é estranho, porque não vivido.
Se há relação de dom, onde estaria a relação de troca entre paciente e ana-
lista? É claro que não se trata da troca de objetos empíricos, o âmbito da troca
está no discurso, imbricada na reivindicação que se faz ao analista quando o
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 99
analisante oferece o seu sintoma, a sua queixa, enfim, algo que concerne ao
seu Eu em troca de uma resposta, em forma de saber, por parte do analista.
Pensemos, como exemplo, na queixa feminina direcionada ao analista de
nunca receber nada deste. Então, a troca não é uma exigência do ato em si,
mas está implícita nas diferentes formas de pedidos que se faz em análise.
satisfação e, por fim, autorizar-se a satisfações com outros objetos, para além
do analista. Ou seja, o paciente experimenta uma satisfação que sabe só se
realizará fantasmaticamente.
REFERÊNCIAS
Ambertín, M. G. (2009). Entre Dívidas e Culpas: Sacrifícios – crítica da
razão sacrificial. Rio de Janeiro: Cia. De Freud.
o domínio da clínica
Propomos testar a aplicabilidade e o alcance do conceito Projeto Transferencial
tanto na clínica, pois se trata de uma contribuição para o trabalho terapêutico,
quanto nos espaços extramuros, seja nas produções acadêmicas, seja nas pro-
duções da cultura. Com relação à clínica, e nos ocupamos dela neste item, os
dados que fundamentam a nossa discussão vieram do atendimento de pacien-
tes. São atendimentos clássicos e é nesse sentido que estamos entendendo
clínica aqui. Atendimentos de pacientes que efetuamos através do Projeto de
Extensão Atendimento psicológico de base psicanalítica e Projeto Transferen-
cial. E tanto a pesquisa quanto os atendimentos do projeto de Extensão estão
inseridos dentro do projeto mais amplo chamado “Laboratório de Estudo e
Pesquisa em Psicanálise e Civilização” – Leppsic, que reúne dois professores
e alunos do mestrado e doutorado em Psicologia. Do mesmo modo, alguns de
nossos alunos atendem pacientes em outras instituições e se dispõem a trazer
os dados para a pesquisa. É preciso dizer que todos os pacientes, cujos dados
de identificação foram mudados, para garantir o sigilo, assinaram um termo
de consentimento livre e esclarecido.
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CAPÍTULO 6
JÚLIO: desejo e flagelo
Viviana Velasco Martinez
A
proposta aqui é de mostrar o trabalho que fazemos com a ideia de
projeto transferencial (Mello Neto, 2012/2016 & Martinez, 2016). Já
discutimos teoricamente, agora vamos apontá-lo e interpretá-lo em
um caso clínico. Antes, porém, vejamos uma definição sucinta.
Como dissemos nos capítulos anteriores, a ideia de um projeto transfe-
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rencial nos veio da experiência clínica. Ali, notamos algumas vezes que certos
pacientes estabeleciam algumas metas para o seu tratamento. Por exemplo:
“primeiro, vou conseguir deixar de odiar minha irmã, depois vou tentar voltar
a me relacionar com meu pai” e assim por diante. São planos que numa tera-
pia psicanalítica não funcionam como tais, mas têm significados. Pensamos,
então, que não é um planejamento tão detalhado, mas uma espécie de projeto
acompanharia não só esses pacientes, mas todos, já que o homem é um ser
de projeto. E não seria um projeto racional, mas transferencial. Isso porque
o próprio plano de se submeter a uma psicoterapia, percorrer um caminho
terapêutico, acaba sendo atravessado pelo inconsciente.
O projeto transferencial, pois, se constitui de uma tendência à transferên-
cia, a uma certa transferência, que se soma à projetos vitais, tais como fazer
uma terapia – que é o mais óbvio ‒, e é negociado inconscientemente com o
terapeuta ou com outros objetos. O fato de haver nele uma tendência à trans-
ferência, de ser um fenômeno transferencial, significa que não é um projeto
racional ou completamente racional, mas que é atravessado pelo fantasma.
Trata-se, sobretudo, do complexo de Édipo e dos fantasmas que giram em
torno dele. É um fenômeno egoico, composto por representações-meta – coisas
a serem alcançadas, aspirações –, representações passadas e atuais de todo
tipo e de fantasias conscientes e inconscientes.
Se é um fenômeno, então, como ele aparece? – já que fenômeno é aquilo
que aparece. Na clínica, ele se mostra mais comumente como projeto de fazer
uma terapia, o que é observável, mas também e necessariamente como projeto
de cura através de uma vivência fantasmática, o que só é possível conhecer
através da interpretação psicanalítica.
Também é preciso dizer que estamos convencidos de que ele, o projeto
transferencial, se modifica e pode ser substituído por outro, em outro momento
da vida ou em outra terapia. A prática está nos levando a pensar que o projeto
106
Júlio
coincidência, sou uma mulher bem mais velha que ele. Trata-se de coincidên-
cia porque não foi ele quem me escolheu, mas essa escolha já está ocorrendo
nessa altura do trabalho.
Dessa experiência nasce uma criança, que Júlio duvida ser sua filha, no
entanto, a reconhece, e ainda tenta se reconciliar com a mulher, mas, diante
da decisão dos cunhados, de determinar o trabalho e a vida do casal, Júlio se
afasta de vez.
Com 18 anos, namora sem grandes compromissos uma mulher também
10 anos mais velha que ele. E, de repente, diz ele, já estavam casados. Mas
ele apenas a havia chamado para compartilhar um aluguel...
Dez anos se passaram, ele trabalha muito, se responsabiliza em parte
pelos filhos da esposa, até que conhece outra mulher, a mulher de sorriso
para não agredir a mulher e nem quebrar objetos. Esse era o prenúncio de
outras autoagressões e acidentes que passará a sofrer/provocar.
As sessões eram muito intensas, Júlio precisava falar, contar, chorar,
lembrar. Isso servia para acalmar, organizar, pensar nos seus afetos, para além
da dor inominável que sentia. Parecia, nesses primeiros tempos da análise,
que ele não conseguia pensar por conta própria, pois a dor era muito intensa.
Motivo pelo qual aumentei o atendimento para duas sessões.
De fato, o trato de importar-me com ele é respeitado. Vejamos que as
mulheres que cuidam dele se multiplicam no tempo e ao mesmo tempo. Mas
vejamos também que são mulheres pintadas como más, inclusive a mãe. A
terapeuta está, evidentemente, incluída no conjunto dessas mulheres, mas seria
ela também má? Nesse momento, passado esse tempo, seria difícil dizer. A
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interpretação psicanalítica não deixa de ser uma coisa que dói, uma fala má
– mal dita –, mas é mais provável que haja aí uma dissociação: a terapeuta
seria apenas ou predominantemente uma figura boa. Essa figura boa teria uma
ação de neutralização sobre as figuras más. Isso provavelmente faria parte
do projeto transferencial, seria condição para a terapia e para a transferência.
Num dos dias que seguiram ao aumento da frequência de sessões, algo
mais vai se revelar. Comentou que ouvira falar que quando a pessoa foi abu-
sada na infância, adoece mentalmente quando adulto. Disse-lhe que havia essa
possibilidade sim, e ele, então, relata uma experiência de abuso de quando
tinha apenas dois anos de idade. Aconteceu na casa de um amigo homos-
sexual da mãe, numa festa. Enquanto dormia num quarto, o amigo da mãe
teria entrado e tocado seu pênis. Aterrorizado, ele não sabia o que fazer, abrir
os olhos para que o homem soubesse que ele estava acordado ou fingir que
estava dormindo.
Também relata que perdeu a virgindade aos 11 anos de idade com uma
amiga da mãe. A mãe tinha um bar muito mal frequentado e, um dia, ela lhe
pediu que fizesse companhia a uma amiga no carro dela. Foram passear, a
amiga da mãe lhe serviu bebida e começou a tocá-lo, se excitando e gritando
de prazer, o que deixará Júlio bastante assustado, mas também excitado. Essa
experiência foi a primeira de várias outras em que teve relações sexuais com
mulheres mais velhas. Ele tem a impressão de que a mãe o havia jogado
nos braços dessas mulheres, algumas prostitutas, por medo que ele se tor-
nasse homossexual.
Vejamos novamente que a cena se repete muitas e muitas vezes, mesmo
no episódio do toque homoerótico. Lá está ele submetido passivamente seja
ao toque feminino, seja ao toque masculino. Apanhar muito da mãe também
não é algo muito diferente disso. Não é sem interesse saber se isso está no
projeto transferencial...
110
Por outro lado, o que marcava a relação com a mãe era a violência e um
constante sentimento de vergonha. Sofria com os espancamentos, principal-
mente quando a mãe voltava alcoolizada, já dissemos. Aliás, espancava os três
filhos e depois os beijava. Lembra-se que numa oportunidade ele perguntou
por que estava apanhando e a mãe disse não se lembrar, mas que com certeza
havia feito algo errado. Júlio não entendia também por que o beijava tanto
depois de espancá-lo dizendo que o amava. Também fala dos momentos de
descontrole em que precisamente batia nas suas orelhas, onde tanto doía. Ou
no dia em que ele serviu um prato muito cheio, na hora do almoço, e a mãe
cuspiu no prato e o obrigou a comer tudo.
Tudo isso deixava muito clara a sua tendência sadomasoquista, pois
assim como com a mãe, no seu último casamento, se submetia passivamente
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aos insultos e maus tratos da esposa, inclusive na frente dos funcionários. Ele
respondia simplesmente se sentando no chão e chorando, como uma criança.
E sempre se machucando, se agredindo.
Aliás, veremos mais adiante que, assim que se separa da última mulher,
começa a sofrer pequenos acidentes que terminam provocando lesões impor-
tantes no joelho.
O que podemos dizer até aqui, ao nos referirmos ao Projeto Transferen-
cial de Júlio? O mais óbvio é que queria ser castigado punido, maltratado,
numa repetição edípica da relação com a mãe, a esposa e eu que, como
a mãe, também o maltrataria e excitaria. Pergunta-me por que o atendia
gratuitamente. Explico que os atendimentos eram parte de um projeto de
Extensão da Universidade e eu era paga pela universidade para fazer meu
trabalho, incluindo os atendimentos. Mas insiste, quer saber por que, justa-
mente, havia escolhido essa atividade, posto que podia desenvolver qualquer
outro projeto. Mostra-se bastante desconfiado e inquieto, então, pergunto
por que mais seria que o atendo gratuitamente. Eu não sei, responde, como
sempre respondia.
Mais adiante, já perto do final do primeiro ano de atendimento, o paciente
diz ter lembrado de algo que aconteceu com ele, quando tinha cinco anos de
idade, algo que havia se lembrado com 21 anos, e que havia esquecido nova-
mente, para relembrar-se precisamente nessa ocasião. Tem muita dificuldade
para falar, mas relata que um dia, à tarde, quando estava dormindo na cama
com a mãe, acordou percebendo que a mãe tocava seu pênis. Quando a mãe
viu que ele havia acordado, retirou sua mão. Lembro-lhe que ele havia me dito,
no início do tratamento, que havia lido que um abuso na infância dava lugar
a sofrimentos na vida adulta, e que ele havia passado por duas experiências
semelhantes. Aliviado me diz que ainda bem que acreditei nele, pois quando
relatou para o psiquiatra, este lhe disse que isso não tinha acontecido e que,
112
como ele estava dormindo e era uma criança, na realidade teria sonhado ou
imaginado. Eis aí o célebre e não incomum desmentido ferencziano.
E, novamente, a cena se repete como num looping sem fim.
O relato dessa lembrança deixa-o angustiado e isso se soma ao fato de
que, nessa mesma época, aquele tio que teria abusado da sua mãe na adoles-
cência, havia chegado precisamente na casa dela, para ficar durante um tempo,
pois havia sido despejado e passava necessidade. A mãe o aceitou e quando
Júlio, furioso, foi conversar com a mãe, ela lhe disse que havia perdoado o
irmão. Mas Júlio não, ameaçou o tio de morte e deu-lhe 24 horas para desa-
parecer. Foi aí que começou a ter ideias homicidas, tanto em relação ao tio,
quanto em relação à mãe. Tentava desculpar a mãe, por assim dizer, porque ela
havia sido estuprada, mas não conseguia entender por que ela o havia tocado.
A ira aumenta, diz estar furioso e com vontade de matar o tio e a mãe.
Esse ato imaginário seria, como já foi dito, uma espécie de cena edípica se
realizando, mas está também do lado do recalcamento. É como se matando
os objetos, o desejo fosse ceifado na raiz. De fato, pode-se aceitar que o
objeto é a causa do desejo, mas este é inextinguível e o objeto não está na
realidade material.
Frente à possibilidade de uma atuação da fantasia, resolvo, então, acon-
selhar que viajasse, que saísse da cidade para a casa de algum parente, porque
a cidade onde residia era muito pequena e não seria difícil encontrar o tio ou
a mãe, embora o tio já houvesse desparecido. Nessa época ele havia parado
de trabalhar totalmente, a mulher o sustentava. A tristeza e a angústia o impe-
diam de retomar as atividades da pequena empresa e foi perdendo todos os
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quando uma amiga foi buscar a mãe para sair, mas, na realidade, era um
travesti. Assim, viu sair um homem vestido de mulher, com uma mulher
vestida de homem, uma mulher com pênis, um homem sem... o que teria lhe
causado uma certa confusão, a mesma, talvez, que o fazia acreditar que era
exclusivamente heterossexual mesmo penetrando os clientes homens. No final
das contas, não reconhecia haver aí um desejo, o que é muito curioso, pois a
sua preferência no coito com a esposa ou amantes era sempre pelo sexo anal.
Como dissemos acima, seu projeto transferencial era o de se colocar
passivo, num sentido sexual e, então ser transformado pela terapeuta. Aqui
podemos acrescentar que essa passividade era tanto homo como heterossexual
e a transformação que esperava era a de seu desejo. Talvez quisesse a cura de
sua passividade. Essa última, a nosso ver, era um problema e um gozo muito
mais importante que a homossexualidade. Esta, por sua vez, era possivelmente
derivada da primeira, e uma formação reativa contra ela, já que ele era o ativo
nas relações homoeróticas.
Várias cadeias associativas nos levam ao tema do projeto transferencial
em torno da sua (homo)sexualidade (ou seria apenas a sua passividade?).
Refere-se à vergonha que sentia quando a mãe o obrigava a fazer fila para
receber sopa, distribuída para os pobres, colocando-o numa passividade total.
A mesma vergonha que sentia quando viu sua mãe suplicar ao médico, que iria
operar seus ouvidos, por um desconto, pois ele suspeitava que ela estivesse
se oferecendo, pois, finalmente, a cirurgia foi gratuita.
O tema da vergonha é muito interessante, e vai aparecer mais vezes.
Vergonha dos ouvidos fedidos, vergonha da pobreza, talvez vergonha porque
o pai não o reconhecera, vergonha das brigas escandalosas da mãe com as
parceiras e, finalmente, vergonha que vai se manifestar como angústia intensa
e tem relação com seu corpo, como veremos mais adiante.
Falemos desta angústia. Quando Júlio chegou para ao seu primeiro
atendimento, havia tentado suicídio usando muita cocaína e, em seguida,
116
E cada vez falava mais de separação, de sair de casa, mas... não conseguia.
Chegava a todas as sessões dizendo que não havia conseguido se separar e,
num dos dias, cometeu um ato falho interessante: disse que o que mais queria
era não se separar!
Disse-lhe, então, que me dava a impressão que ele supunha que eu espe-
rava que ele se separasse e, como se fosse uma amante, estaria cobrando uma
separação. Surpreso e visivelmente contrariado me diz, “você não, em todo
caso uma namorada”.
Vale comentar que a resposta é interessante, pois ele consegue man-
ter muito bem o projeto transferencial no plano quase que apenas da reali-
dade psíquica.
Nesse meio tempo, ele continuou se queixando de que a esposa não queria
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mais sexo com ele e só reclamava e só o criticava, mas ele ainda queria tentar
uma reconciliação. É nessa época que se lembrou do toque da mãe, toque de
seu pênis, que o fez acordar da sesta, aos cinco anos de idade. Resolveu, então,
compartilhar essa lembrança com a esposa, que ficou chocada e detestando a
sogra, inclusive, não quis mais falar com ela. Entretanto, na medida em que
passou o tempo, e a relação do casal foi piorando, ela foi se aproximando cada
vez mais da sogra. Júlio não quis falar com a mãe, não ainda.
Num desses dias, a mãe passou mal e foi internada. Tinha uma saúde
precária, péssima alimentação e ingestão frequente de álcool. Dias depois, se
recuperou e saiu do hospital. A esposa ficou ainda mais próxima da sogra. Até
que, numa das brigas, a esposa diz a Júlio que havia contado tudo à sua mãe,
sobre o toque, por que acreditava que era tudo inventado por ele. Júlio ficou
muito chateado, pois não queria que a mãe soubesse disso, até ele decidir o
que iria fazer, inclusive cogitara a possibilidade de nada fazer.
Esse era um momento muito difícil. Júlio estava preso entre dizer à mãe,
que ele lembrava que ela o havia tocado, e nada dizer. No primeiro caso, acre-
ditava que a mãe iria negar tudo e ele, então, se sentiria culpado. No segundo,
nada dizer, significava, de certa maneira, preservar a mãe de uma situação
constrangedora. Isso significava, contudo que ele é que teria que arcar com a
sua própria revolta e a excitação experimentada, o excesso.
Veio outra briga e a esposa o deixou novamente, mas desta vez ela
começou a trabalhar o que era inédito, e alugou um pequeno apartamento.
Júlio, por sua vez, resolveu trabalhar em outro ramo, não suportava a
ideia de retomar a sua profissão, pois teria que começar do zero, havia per-
dido todos os clientes. Pretendia abrir uma pequena quitanda, mas para isso
precisava de dinheiro, então, comprava alguns alimentos e os revendia na rua.
Também resolveu ir de casa em casa para oferecer ovos, legumes, verduras.
E é aqui que começou uma angústia intensa. Deu-se conta de que oferecer
118
produtos era algo que o angustiava, que o deixava muito mal. No entanto,
precisava vender, pois havia investido aí até seu último centavo.
Quando, então, peço que associe em torno desse mal-estar, diz não saber,
fala de sentir muita vergonha, uma vergonha angustiante. Somente depois
consegue falar e o faz com a lembrança da época em que se prostituía e que,
em duas ocasiões, sentiu-se muito mal, pois parecia estar ocupando o lugar
de uma mulher na relação. Numa delas, depois de ter penetrado o cliente,
este se vira e ejacula, espalhando gotas nas coxas de Júlio. Lembra-se disso
com repugnância, e diz que isso é o que faz um homem com uma mulher. Se
pensarmos na formação reativa, é um momento quando Júlio parece expressar
a sua excitação com a cena, mas descaracteriza defensivamente a sua própria
excitação, – a sua inesperada posição passiva – ao pensar que ele mesmo se
sentir pavor de uma possível relação. Este tema de poder se relacionar com
uma mulher mais jovem ou da idade dele voltará mais adiante, quando pensa,
pela primeira vez, em constituir uma família. Isto é muito interessante porque
a esposa não podia ter filhos e, portanto, estava provavelmente pensando numa
mulher jovem o suficiente para ter filhos.
Também relata que um dia foi, a pedido de sua mãe, cobrar uma dívida
de uma cliente. Ela o convidou a entrar na cozinha e lhe ofereceu um café
e, entre risadas e brincadeiras, eles terminaram fazendo sexo. Relaciona isso
novamente com a preocupação que acredita que a mãe tinha com ele: era
muito novinho e, portanto, nada garantia que se tornaria um homem. Também
relata que, quando fazia aulas de jiu-jitsu, então com quinze anos de idade,
a mãe um dia lhe disse que ficasse atento porque tinha percebido que o pro-
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uma mulher. E, ainda, na prostituição, mesmo ele tendo optado por ser sempre
o ativo, isso não impediu que surgissem situações em que ele penetrava outro
homem e, mesmo assim, sentia-se como uma mulher. Estávamos falando da
sua sexualidade e interrogando se o fato de fazer sexo com outro homem,
sexo ativo, não questionava a sua masculinidade.
Novamente justifica-se, dizendo que consegue penetrar os clientes porque
um pênis reage sempre com qualquer estimulação... e complemento, estimu-
lação visual de um ânus?
Parece se acalmar. Nos dias que se seguem, consegue vender e recuperar
o dinheiro, que é muito pouco.
Separado há algumas semanas, ele começou a sair com uma das amigas,
havia lembrado dos telefones. Rapidamente, a relação se torna constante com
na casa que era dos dois. A amante exige que Júlio decida – ele não sabe o
que fazer com a briga das suas mulheres, mas finalmente confirma que voltou
com a esposa e a amante se retira. Júlio está radiante, nunca duas mulheres
haviam se enfrentado por ele. Mas duvida, Júlio duvida das intenções da
esposa, pois pensa que por trás dessa volta podia haver a intenção de fazê-lo
sair da casa, que ela acreditava ser só dela. Apesar dessa reflexão, o que está
em jogo é seu gozo em se fazer maltratar por essas mulheres, por todas elas
na sua vida, e que fossem mais velhas que ele. Sou uma dessas mulheres, mas
também sou uma espectadora do que se desenrola, do incestuoso, o proibido
e da sua sedução.
A relação com a mãe continua tensa nesse meio tempo. Também pio-
ram rapidamente as coisas em casa, tudo volta ao normal, brigas, as ofensas
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da esposa que lhe diz que ninguém acredita nele e, o mais surpreendente, é
que sua fala ecoa fortemente em Júlio. A esposa fala, inclusive, que a filha
não gosta dele, mesmo não tendo contato com a adolescente de quem Júlio
havia se aproximado recentemente. Foi nessa época também que a esposa me
mandou uma mensagem gravada com fotos, onde afirma querer conversar
comigo, porque Júlio “não era esse bonzinho que eu achava que fosse” e,
junto à mensagem, vieram umas imagens do que pareciam ser seus braços
com pequenas manchinhas roxas. Chamou a minha atenção que na foto não
era possível reconhecer a pessoa cujos braços apresentam tais manchas, pois
ela aparecia loira numa outra imagem completa, mas a dos braços mostravam
uma mulher com cabelo castanho escuro.
Respondo a mensagem, dizendo que se gostaria de falar comigo podía-
mos marcar um horário para que, junto com Júlio, pudéssemos conversar.
Explico que Júlio teria que concordar, já que ele era meu paciente. Ela desiste.
Segundo Júlio, ela teria dito que eu era muito fiel a ele. Não é a primeira vez
que recebo uma mensagem, principalmente de uma esposa, que parece pre-
cisar retomar o controle da situação com o marido que supõe tê-lo perdido
para mim. Isso, talvez, porque o projeto transferencial que estava em anda-
mento se desdobra em mais caminhos, um deles em direção à renúncia dos
prazeres sadomasoquistas e, portanto, para fazer mudanças consistentes na
sua vida. Nesse contexto, senti que, de alguma maneira, devia preservá-lo da
intromissão da esposa na análise, pois ficava cada vez mais claro que Júlio
já considerava uma separação definitiva como um projeto plausível. Isto é,
tratava-se de um vislumbre, de uma possibilidade de deixar de ser maltratado.
Um projeto mais claramente definido para o ego, mas ainda muito frágil. Um
projeto já quase não transferencial, mas vital.
A situação com a mãe não foi diferente, ele passou a evitá-la sempre que
possível, até que um dia ela resolveu visitá-lo, para saber como ele está e para
122
perguntar por que não queria mais levá-la de moto etc. E Júlio descreveu,
então, uma cena, para ele repugnante, em que a mãe abriu a geladeira, pegou
uma sobremesa e enfiou o dedo para experimentar e lambeu esse dedo... Ele
pensava que se tratava de absoluta falta de educação e ficou chocado com
isso, sobretudo, porque a mãe sempre se alimenta muito mal. Nunca havia
alimentos saudáveis em sua casa e, entre escolher comida ou pinga, dizia, ela
ficava sem comer para beber umas doses. Na verdade, as grandes bebedeiras
já haviam cessado há muito tempo. Isso ocorrera desde que Júlio a havia
retirado praticamente das ruas e alugado uma pequena casa para ela viver.
Mas sempre guardava um dinheiro, dizia Júlio, para beber esporadicamente.
Contudo, podemos supor que tal cena provocou algo em Júlio, que ele chamou
de repugnante, mas que podemos situar do lado dos prazeres orais. Eis uma
tempo. Tenta fazer alguns trabalhos retomando a sua profissão, mas isso é
difícil, pois havia perdido toda a clientela. Mesmo assim, vai fazendo pequenos
trabalhos que o ajudam a se sustentar, enquanto resolve os detalhes da viagem.
A relação com a mulher era, segundo dizia, insuportável, ela continuava
ofendendo-o, humilhando-o e, ainda, culpando-o explicitamente pela morte
da mãe. A raiva de Júlio cresce, mas tem clareza de que a esposa quer levá-lo
a perder o controle e chamar a polícia.
Pode-se pensar que também tenho um papel aí também. Além das inter-
pretações e assinalamentos, que o ajudam a amadurecer o suficiente para sair
de uma relação que o destrói, sou posta, no lugar do objeto. Com esse lugar
ocupado, o paciente sente-se mais confortável para operar separações neces-
sárias. São separações de pessoas que foram colocadas nesse mesmo lugar
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mínimo Júlio era bissexual. Isso o perturba. Volta uma angústia, volta um
incomodo, uma vergonha. O paciente teria dito a verdade? No final das contas,
como havíamos dito acima, o sexo anal, que era sua preferência, implicava
uma certa indiferenciação, um não reconhecimento da diferença anatômica.
Sente-se profundamente atingido e decide deixar a prostituição de vez.
Resolve trabalhar na sua profissão, em casa, e com preços mais acessíveis
em relação ao mercado. Passa por dificuldades econômicas, tem vergonha de
pedir ajuda às instituições que distribuem cestas básicas durante a pandemia,
talvez fantasie que tem que pagar, pagar com seu corpo apassivado.
Nessa época, Júlio passa a esquecer com muita frequência a sessão,
que então era semanal. Um dia, depois de ter esquecido a última sessão e de
ter se desculpado, negocia novo dia e data, que também esqueceu... Nunca
mais Julio fez contato. A última coisa que me havia relatado, porém, é que
começara a se relacionar com uma mulher dois anos mais velha que ele, que
havia sido uma cliente, e começou a namorar. Contou sobre ela algo que disse
estar adiando. Adicta à cocaína, essa mulher fazia questão de apresentá-lo
como namorado, pois tinha filhos que estavam com o ex-marido. Havia con-
seguido, na justiça, muitas vantagens econômicas do ex-marido que, ainda,
se encarregava das crianças que ela visitava esporadicamente. Também tinha
um relacionamento complicado com um homem casado, de tal maneira que
apresentar um namorado dissipava qualquer suspeita em torno dessa relação.
Gostava, diz ele, de sexo sem limites, pedia para ser espancada e se entregava
aos prazeres do sexo, bebida e cocaína sem muitos limites.
Depois dessa última sessão, fiquei me perguntando o que, desta vez, Júlio
estava preparando para si mesmo. Como estrangeiro sem documentos e, ainda
envolvido com uma mulher com tantos apetites... Entretanto, ele disse querer
muito se entregar a esses prazeres; muitos deles, disse nunca ter experimen-
tado, e que depois procuraria uma menina mais jovem, daquelas para se casar,
126
e formar uma família. Nesse momento, porém, iria aproveitar essa experiência
com muito sexo anal e espancamentos... Fiquei, pois, me perguntando se de
fato nunca havia experimentado tais prazeres. Tinha em mente o fato de que
sua mãe também se drogava – com álcool – e o surrava muito.
A impressão que tenho dessa que seria a última conversa, é que o projeto
transferencial havia tomado a forma de uma demanda perversa, talvez por
limites, em que eu ocuparia o lugar do pai da horda primitiva, como Mello
Neto (2016) sustenta, para castrá-lo, impedi-lo. O que o aprisionaria entre o
primeiro aspecto do seu projeto transferencial, o aspecto sadomasoquista, e
um segundo aspecto desse projeto, algo em torno da assunção de sua homos-
sexualidade, e seria precisamente a castração. Minha tarefa seria castrá-lo,
mas, se o castrasse ficaria na homossexualidade, um beco sem saída. Assim,
REFERÊNCIAS
Martinez, V. C. V. (2016). Projeto de pesquisa: o projeto transferencial (Iné-
dito). Leppsic, UEM, Departamento de Psicologia, Maringá.
E
ste capítulo compõe uma série de estudos sobre um novo conceito
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e faz ciência, mas também, ser aquele que se permite fazer parte do assim
denominado projeto transferencial:
O que nos leva a pensar que o projeto seja um fenômeno separado [da
transferência] é que ele nos aparece, como dissemos, na forma de uma
organização dada pelo eu a elementos diversos, como conflitos inconscien-
tes, traumas, aspirações, elementos egóicos de todo tipo, elementos pulsio-
nais etc. sob a égide do fantasma, marcada pelo aspecto de realização no
futuro ou, ainda, de intuito ou empreendimento (Mello Neto, 2016, p. 5).
20 A clínica com pacientes severamente traumatizados inspirou Ferenczi a desenvolver sua teoria do trauma
desestruturante, além de conceitos importantes como a cisão psíquica, a identificação ao agressor, o terro-
rismo do sofrimento, os elementos órficos, dentre outros. Foi também com Elizabeth Severn que experimentou
a mais polêmica de suas inovações técnicas: a análise mútua.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 133
como um espelho, seus próprios ideais, para só depois, quem sabe, descons-
truí-los, superá-los ou criar novos.
Em seu artigo, Mello Neto (2012) apresenta a ideia do projeto transferen-
cial aplicado nos atendimentos clássicos, bipessoais, protagonizados pelo ana-
lista e seu paciente, um adulto que por si só procurou uma análise na esperança
de reduzir ou dar fim ao sofrimento psíquico. Pouco tempo depois, Sabatine
(2013) e Schmitt (2013) exploraram uma nova aplicabilidade do conceito e o
utilizam para interpretar obras literárias21. Esta utilização extramuros foi pro-
posta por Martínez (cit. por Schmitt, 2013). Em trabalho posterior, Martínez
(2016) sustenta sua relevância para a leitura de fenômenos culturais e sociais,
assim explica a autora: “trata-se de um fenômeno, o Projeto transferencial,
que se constata também fora da clínica, e que também demanda sempre uma
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relação com o outro, mediante a qual poderá se realizar tal projeto” (p. 16).
Neste capítulo procuramos analisar a possibilidade de outro tipo de pro-
jeto, concernente a um campo intermediário, como sugere Martínez (2016),
pois não pertence diretamente ao paciente. Este é o caso do projeto transfe-
rencial dos pais quando demandam uma análise para o filho, todavia também
pode estar presente nas análises sob encomenda, aquelas feitas a pedido da
justiça, instituições ou de um terceiro. Na clínica com crianças, e com fre-
quência na clínica com adolescentes, o demandante da análise não é o pró-
prio paciente, mas seus responsáveis, o que implica em mais de um projeto
transferencial em cena, os quais podem estar relacionados, sobrepostos ou
ser antagônicos entre si.
Para discutirmos esta ideia tomamos como material de análise um caso
clínico apresentado na dissertação de mestrado de Matioli (2011), uma das
autoras, intitulada Um estudo psicanalítico da separação conjugal: as men-
sagens enigmáticas de pais separados dirigidas aos seus filhos22. Dentre os
casos ali expostos elegemos para esta discussão o da família Silva, no qual
foi possível perceber, no après coup, a existência de uma espécie de projeto
transferencial dos pais.
21 Tomando o livro de Amélie Nothomb Medo e Submissão (2011) como o discurso de um paciente, Sabatine
(2013) buscou desvendar o projeto transferencial da autora, filha de um embaixador belga nascida no Jasão,
atuado na relação com sua superior imediata, Fubuki, em torno do seu enigma pessoal: “o que é ser uma
mulher japonesa?” (p. 100). Também com base em um livro, Schmit (2013) analisa o projeto transferencial de
Natascha Kampsuh, uma jovem austríaca que permaneceu em cativeiro por “3096 dias” – de obra homônima,
2010 – cujo projeto envolvia estabelecer uma relação afetiva com seu sequestrador até que pudesse dele
se libertar.
22 A dissertação teve como objetivo analisar a relação estabelecida entre o ex-casal parental pós-separação,
os arranjos em torno da sexualidade desligada após o fim do enlace que afetavam não apenas um e outro,
mas também os filhos, produzindo grande sofrimento psíquico. O método dessa pesquisa consistiu no
atendimento clínico dos filhos, porém as principais fontes de dados foram as entrevistas com os pais. Parte
dessa discussão foi publicada no artigo “Enfim sós: um estudo psicanalítico da separação conjugal” (Matioli
& Martínez, 2012).
134
Já na entrevista inicial a mãe diz: “tenho que ligar para o Marcos, para
que ele venha ver o Pedro mais vezes, mas quase sempre discutimos ao tele-
fone, muitas vezes na frente do Pedro, que chora”. Para Susana, essas ligações
tinham o objetivo de aproximar pai e filho, pois Pedro sentia muita falta do
pai após a separação. Além desse objetivo manifesto, havia o desejo de poder
ver Marcos, o ex, quando ele fosse a sua casa para ver o filho. Este duplo
desejo, digamos assim, ficava mais evidente quando Pedro ia mal na escola,
pois, assim, Susana podia ligar imediatamente para o ex a fim de que ele aju-
dasse o filho com os deveres. Estas visitas costumavam ser muito agradáveis,
contava Marcos, pois Susana mostrava-se “simpática e receptiva”, diferente
do comportamento habitual quando casados. Nessas visitas ele costumava
dormir na casa da ex e mantinha com ela relações sexuais.
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definiu – ainda assim o queria de volta, seja para amar, seja para maltratar.
Não obstante estava em cena também o desejo paterno de se encontrar com a
ex, “simpática e receptiva”. Há uma troca na comunicação do ex-casal, onde
o filho está no meio. A mãe quer que o ex-marido esteja junto, inclusive para
castigá-lo, o filho chorando será seu pretexto; por outro lado, esse choro será
um incômodo para o pai, por remetê-lo ao sentimento de culpa pelo sofri-
mento infligido ao filho. Nesse fogo cruzado, só resta a Pedro se angustiar,
pois é incompreensível decodificar o enigmático que vem dos pais: o que
querem de mim?
Após a separação, Pedro passou a dormir com a mãe, segundo ela por
“medo de dormir sozinho”, ou “de ficar sozinho em qualquer cômodo da
casa”. Interessante que antes da separação Pedro dormia sozinho, não tinha
suposição nossa, era a única a atuar sua fantasia de retaliação pelo fim da
relação, afetando a todos, o ex-marido e também os filhos.
Apesar da guarda ter ficado com a mãe, Pedro tinha liberdade para visitar
o pai durante a semana, nessas ocasiões pedia para dormir no mesmo quarto.
Sorrindo contou que o pai dormia de “boca aberta” e o imitou roncando.
Porém, quando o pai começou a namorar sua atenção ficou dividida, além de
não poder dormir mais no mesmo quarto, as visitas diminuíram, “só sobra-
ram os domingos”, pois, segundo Pedro, o pai “não sai mais da casa da
namorada”. Em uma das sessões conta ter dito ao pai: “você me trocou pela
sua namorada”, mas que estava com medo do pai ter “achado ruim”, assim
como tinha medo de pedir para vê-lo mais vezes e ele ficar “bravo” ou com
“raiva”. Para tentar minimizar o sofrimento do filho, o pai dividiu o final de
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Quando falo que ela [a namorada do pai] não estava, é porque ela não
estava lá [na casa do pai]. Mas minha mãe acha que estou escondendo as
coisas dela (...) às vezes ela [a mãe] diz que eu gosto mais da namorada
do meu pai do que dela, mas não tem como a gente ficar num lugar e não
conversar com a pessoa!
O pai, por sua vez, começou a pensar que a ex-esposa estivesse “usando
os meninos como instrumento” para estragar seu relacionamento. Todas essas
cenas nos levaram a pensar que Susana tinha uma espécie de projeto trans-
ferencial na época em que procurou ajuda terapêutica para o filho, projeto
que envolvia Pedro e seu sintoma e, de alguma maneira, também a analista.
relações sexuais casuais. Sempre tivemos uma afinidade boa e parece que
ficou melhor depois da separação. Gostaria que tivesse sido assim antes”,
diz Marcos em tom nostálgico. Neste momento da separação, os sintomas do
filho eram necessários para a sustentação deste novo arranjo entre o ex-casal,
em que Marcos, autorizado pela intenção da visita e de estudar com o filho,
oferecia a oportunidade do reencontro, ocasião em que Susana o seduzia.
Porém, logo as visitas se tornam escassas e a relação entre ambos se altera
após o início de um envolvimento afetivo de Marcos. É justamente quando
entra em cena a nova namorada do ex que Susana endereça o seguinte pedido
à analista do filho: “não sei se você pode, mas se puder, fale para o Marcos
vim ver o Pedro mais vezes, porque ele sente falta do pai, e eu já cansei de
pedir”. Ela justifica seu pedido dizendo que Pedro estava “revoltado” e com
medo do pai trocá-lo pela namorada. Cansada de tentar seduzir o ex-marido,
ela solicita a intervenção da analista nessa tarefa, para não somente tornar mais
frequentes as visitas do pai ao filho, mas também para trazê-lo novamente para
mais perto de si, pois quem se mostrava revoltada e preterida era Susana, ao
criticar a namorada “jovem demais” e que logo iria largar seu ex-marido. Há,
portanto, uma demanda concreta em seu projeto transferencial, que implica
a participação ativa da analista por meio de uma ação específica no real, cuja
intenção manifesta, aproximar pai e filho, recobre o desejo de reconquistar o
ex, o que cria um impasse pela impossibilidade de atender a demanda materna.
Isto não quer dizer que Susana estava consciente deste projeto que envolvia
a analista do filho, mas de alguma forma ele se presentifica nesse pedido
explícito de ajuda que me tornaria cúmplice e aliada das suas estratégias
para recuperar, de alguma maneira, esse marido, nem que fosse apenas para
continuar agredindo-o.
Vimos acima, que não foi apenas a analista do filho que se recusou a
ocupar este papel de aliada da mãe na reconquista do ex, mas também o filho
140
à analista, como um objeto substituto provisório até que ele pudesse encontrar
um novo. Talvez, Pedro precisasse de uma analista-mãe capaz de tolerar sua
hostilidade sem retaliá-lo, assim como de suportar dividir sua atenção afetuosa
sem se sentir traída, abandona ou preterida.
nesta história era Pedro e não sua mãe. É por esta razão, que não podemos
nos aprofundar mais em seu projeto transferencial, projeto que só tivemos
contato nas entrelinhas no discurso, nas sessões de acompanhamento com os
pais, e nas atuações da mãe.
Nosso intuito com esta análise foi chamar a atenção para a interrupção
do processo terapêutico do filho decorrente do fracasso do projeto transfe-
rencial materno por essas vias. Isto nos faz pensar que os pais levam para a
clínica com adolescentes e crianças seus próprios projetos transferenciais que
envolvem, em maior ou menor grau, o analista, porém, por vezes, tais projetos
estarão na contramão do processo terapêutico. Assim, supomos que as sessões
com Pedro foram interrompidas quando o projeto transferencial materno, que
atravessava sua análise, não encontrou ressonâncias nem em Pedro, tampouco
em sua analista. Caberia, talvez, aos analistas de crianças desvendarem algo
mais deste projeto transferencial dos pais, não para ocupar o papel por eles
designado – pois não é uma escolha consciente aceitar ou não o fazer –, mas
para interpretá-lo, ao menos, parcialmente, de forma a evitar uma atuação
que possa prejudicar ou até mesmo encerrar precocemente a análise infantil.
É justamente isso o que recomenda Mello Neto (2012), apesar de imerso no
projeto transferencial do paciente, o analista precisará sair dele e fazer uma
interpretação, um assinalamento ou até mesmo uma exclamação, algo que
seja capaz de traduzir em palavras esta experiência.
Embora seu corpo teórico-clínico seja robusto, a psicanálise é uma ciên-
cia em movimento, e isto desde Freud25 e também depois dele, pois suas
fronteiras são expandidas em resposta aos desafios constantemente postos pela
25 Na Conferência XVI, Psicanálise e Psiquiatria, Freud (1916/1996b) reconhece publicamente que por
diversas vezes modificou, substituiu e aprofundou conceitos e que assim o faria quantas vezes a expe-
riência o exigisse.
144
clínica e pela cultura. É por esta razão que continuam vigentes as modestas
palavras de seu criador, que aqui tomamos de empréstimo por expressar nosso
compromisso com este saber.
REFERÊNCIAS
Ferenczi, S. (1932/1990). Diário clínico. Tradução de Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes.
E
ste capítulo tem como objetivo apresentar um caso clínico para discutir
o Projeto Transferencial que ali se constrói. Trata-se do caso de Amélia,
uma jovem de 24 anos, que, aos 15 anos, teve um diagnóstico de esqui-
zofrenia leve, após um episódio de surto, confirmado, podemos dizer, com um
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segundo e último surto. Entretanto, neste capítulo, discutimos o seu caso como
sendo de histeria grave, conforme a psicodinâmica que pudemos observar.
A paciente foi atendida durante dois anos, por meio de uma parceria entre o
Laboratório de Estudos e Pesquisa em Psicanálise e Civilização (Leppsic),
da UEM, e o Centro de Atendimento Psicossocial (CAPs) de uma cidade do
Paraná. As sessões ocorreram semanalmente nas instalações da universidade.
Em razão do grande número de poemas levados pela paciente às sessões,
adotamos como título deste capítulo um deles, que nos pareceu muito signi-
ficativo para o setting analítico, pois este poema, em particular, foi dado de
presente pela paciente. Veremos, na sequência, a sua importância.
Amélia, em sua primeira sessão falou sobre o motivo pelo qual estava
ali: “tenho esquizofrenia, esquizo quer dizer dividido”. Na sequência, contou
que aos 15 anos teve seu primeiro episódio de surto na escola, ficou cata-
tônica, “não dizia nada, nem me movia, parecia uma estátua, mas não me
lembro direito do restante e meus pais nunca me contam o que aconteceu”,
foi internada no hospital psiquiátrico e lá diagnosticada com esquizofrenia
leve (já havia casos na família materna e paterna com o mesmo diagnóstico).
Na época, passou a tomar medicamentos sem saber a razão para tal, não lhe
disseram o que ela tinha e desde o início do uso medicamentoso se queixava
de náuseas, dores de cabeça e tonturas. Suas primeiras sessões foram marcadas
pela fala acerca de seu diagnóstico, tinha algum conhecimento das caracte-
rísticas da esquizofrenia, o que descobriu praticamente por si mesma através
de uma novela que retratava um personagem esquizofrênico, por perceber
traços comuns entre ela e o personagem e se identificar com o ele. Disse, um
148
dia, aos seus pais: “é isto que eu tenho, não é?” Eles, então, confirmaram a
sua suspeita.
Os pais, após este episódio, assumiram uma postura superprotetora e, por
decisão deles, a adolescente concluiu o ensino médio em casa, com a ajuda
de uma professora. Cinco anos depois do primeiro surto, teve outro, desta vez
dentro de casa. Ouvia vozes que a obrigavam cometer alguns atos: quebrar
objetos em casa, pintar o muro do vizinho, pintar a árvore de sua casa e, de
fato, realizou todas estas ações. Ainda, devido à agitação motora, sua cachorra
mordeu seu rosto, próximo aos lábios, o que gerou uma cicatriz que mostrou
em sua primeira sessão. Ficou novamente internada por um mês e voltou para
casa. A partir desse momento passou por sessões de psicoterapia num CAPs,
durante dois anos, mas, devido à alta demanda do serviço, seus atendimentos
com a doença, a partir de sua primeira crise, e dos medicamentos, por outro
lado, parecia transmitir uma mensagem romântica, pois em suas entrelinhas
falava sobre um amor não correspondido. Voltaremos a este tema, ao analisar
um de seus poemas.
Com o avançar dos encontros e instalada a transferência, a jovem levou
doces à sessão, balas de goma. Ela disse que gostava muito daquelas balas e
me deu duas, então, disse-lhe que ficasse à vontade para comê-las se desejasse,
mas pareceu ficar acanhada, segurou firmemente a bolsa em seu colo como
se aquilo pudesse protegê-la. Perguntei se ela se importava que eu chupasse
uma bala e ela disse que não, ao me ver fazê-lo, timidamente tirou um saco
com mais balas da bolsa e começou a chupá-las, cinco balas sequencialmente,
enquanto falava sobre os novos sabores de bombons que ela havia criado
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a falta que sentia do jovem e de seu desejo de tê-lo mais próximo. Relata
que, numa ocasião, ela havia pintado o muro da casa ao lado, a casa desse
vizinho, durante um surto, e imaginava que como a família do rapaz soube da
situação, talvez ele a evitasse por pensar que fosse louca. Mesmo assim, ela o
observava constantemente. Espiava-o pela janela ou se punha a escutá-lo de
sua casa, sabia de seus horários, sabia com quem se relacionava, o que fazia
e mostrava certo encantamento com o som de sua risada, dizia ser um som
estranho, mas que a fazia rir também. Seu irmão, por vezes, a incitava dizendo
“vai lá, se declara para ele”, embora não respondesse ao irmão diante de tal
sugestão, relatava nas sessões que jamais o faria, pois o vizinho nem mesmo
falava mais com ela. Em outros momentos, contava sobre a atração que sentia
por um dos profissionais do CAPs
vezes ele demorava mais de um mês para fazer as reposições, isso me levava
a supor uma espécie de tentativa (consciente ou não) de boicotar a filha em
seus novos avanços e pequenas conquistas para mantê-la no contexto familiar,
escondida. No mesmo período mostrou entusiasmo ao conseguir ir sozinha ao
Centro de Referência da Assistência Social – CRAS – de sua cidade para se
informar se tinha direito a receber o Benefício de Prestação Continuada para
pessoas com doenças ou deficiências impeditivas de executar trabalho formal.
O vínculo entre pai e filha era bastante intenso, o pai levava a paciente
em todas as sessões, e quando não podia, mesmo estando disponível a mãe
para levá-la, Amélia preferia não ir à psicoterapia, dizia que sua mãe não sabia
guiá-la corretamente até a UEM, que não sabia bem o percurso. Além disso,
em um de seus retornos à sua casa, na companhia de seu pai, a paciente esbar-
rou em um homem no terminal rodoviário e, então, teve uma crise somática:
seus olhos começaram a virar para cima em piscadas rápidas impedindo-a
de enxergar. Ficou tão abalada com tal situação que ficou três sessões sem
comparecer, me ligava com antecedência para avisar que não iria e justifi-
cava não se sentir bem com a medicação, mas quando compareceu à sessão,
confessou que o motivo das faltas era devido ao evento ocorrido, que havia
ficado com muito medo de que a cena se repetisse, perguntei o que ela havia
sentido quando o homem estranho teve este contato com ela, ficou olhando
para o chão e não respondeu, mudou de assunto, conforme fazia quando eu
indagava acerca de suas emoções diante dos fatos que relatava em nossos
encontros. Talvez fosse difícil olhar para seu mundo interno, para suas emo-
ções reprimidas; estas, quando tocadas, geravam extrema excitação, o que
provocaria a movimentação acelerada de em seus olhos, com o globo ocular
voltado para cima e piscadas muito rápidas. Estas manifestações podem nos
levar à ideia de se tratar de uma jovem cuja sexualidade parece ter como
única via de expressão o sintoma que camufla seu interesse pelos homens
152
atendimento, logo no início, ele optou pela segunda-feira, por ser um dia que
não trabalhava e podia acompanhar a filha. Com este impedimento, Amélia se
mostrou bastante resistente e desmarcou as sessões em que não poderia ir com
o pai. Numa das vezes em que me ligou para desmarcar o horário, perguntei
se não seria possível ir com sua mãe, que estava disponível para levá-la, mas
a paciente insistia na ideia de que a mãe não saberia conduzi-la até o local em
que nos encontrávamos. Usei como argumento a possibilidade de ela fazer
apenas uma tentativa naquele dia, e depois de pensar mais um pouco aceitou
a ideia e foi com a genitora. Pela primeira vez conheci sua mãe, ela entrou
na sala e me disse que correu tudo bem. Diferente do que havia imaginado,
perguntei o que ela achava que poderia acontecer e ela informou temer que
a mãe não soubesse protegê-la (dos esbarrões, dos homens, dos olhares, da
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Poesia em análise
Pessoa, admirava suas composições, mas o que mais lhe atraía no poeta era
o fato dele assinar suas produções com heterônimos. Ela usava um único
pseudônimo, misturando as letras de seu próprio nome, pois não queria que
as pessoas soubessem que eram poemas seus. Talvez este outro nome ser-
visse como defesa para que Amélia se distanciasse, pela clivagem, daquilo
que também fazia parte dela, a sua sexualidade e o seu desejo, do edípico...
diferente da atração sentida e dita pelo vizinho, pelo funcionário do CAPS e
pelo médico. Assim, esta fragmentação permitiria olhar-se em terceira pessoa,
tornava tolerável o ato de falar sobre algo tão doloroso que dividiu seu mundo
psíquico e seu mundo externo.
As poesias da paciente pareciam construídas por meio de enigmas, pois
ao mesmo tempo em que alguns trechos passavam a ideia de relatos sobre sua
Segundo Gullar (1993), por meio das criações o ser humano torna-se
capaz de compartilhar com os outros seus medos e encantamentos, a atividade
criativa fornece um canal de expressão emocional, de comunicação. A arte,
então, seria um instrumento pelo qual a paciente tenta buscar o sentido de suas
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 157
O presente do amanhecer
sem imaginar
que muitos bichos ali iria encontrar
a salamandra apareceu tão curiosa,
foi também invejosa
Pois no lugar da primeira anágua
se colocou
A serpente apareceu de repente
em joia de valor se transformou
A libélula veio junto aos raios de sol
e nos cabelos dela pousou
Ela voltou à aldeia
suas jóias tornaram-se o assunto dali
A notícia chegou até o chefe da polícia
que ordenou que a prendessem
mas ela fugiu!
Não voltou ao rio,
sem jóias, sem nada
ela foi encontrada e queimada
mas de madrugada,
ressuscitada.
26 Tratar-se-ia do dito poético da loucura, a que Laplanche (1991) se refere na sua análise sobre o poeta
Hölderlin? (Com as devidas distâncias respeitadas em termos de inspiração) O poeta que teria sido tocado
pela pena de Apolo antes de perder a razão?
158
onde passava, usou como pretexto para chegar até lá a necessidade de lavar
sua anágua. É muito interessante pensar na Idade Média, como um tempo do
passado que esconde lembranças esquecidas e será precisamente um rio que
a leva a elas. E relata que um ano antes de ter sido internada, a sua turma da
escola foi visitar um parque que tinha rio. Nessa ocasião, fazia muito calor
e alguns garotos de sua sala queriam tomar banho de rio, mas a professora
os impediu, pois era apenas um passeio escolar. Amélia disse que também
sentiu muito calor neste dia, mas que não entraria no rio por sentir vergonha
de mostrar seu corpo, um corpo que cobria, ainda, com roupas infantis, como
vimos. Sobre os animais, disse que os conhecia por meio dos livros de biologia
da escola, nunca havia visto qualquer um deles, mas que achava a salamandra
um animal “nojento, uma coisa mole e molhada, imagina?! Não gosto nem
(...) num mesmo sujeito há o trauma, que impele para a sua elaboração,
há os conflitos recalcados (que também são traumáticos), que necessitam
solução, há desenvolvimento interrompido, que “busca continuidade”,
há aspirações não realizadas de toda espécie, que buscam realização, há
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 159
E, ainda,
(...) é possível pensar que a situação analítica, que é única para cada
paciente, está fundada não só num projeto racional, mas em elementos
inconscientes que fazem parte do projeto. Ela, a situação analítica resul-
taria, então, de algo muito complexo, difícil de discernir, em que repre-
sentações conscientes e inconscientes se mesclariam produzindo algo
semelhante a um projeto, um projeto transferencial. Esse projeto, pois,
teria que se manter durante toda a análise e, ao mesmo tempo, ser inter-
pretado (...). Quando o analista é convocado para ocupar um papel no
projeto transferencial do sujeito, não há como não o fazer e isso porque
é a condição que o paciente está colocando (...) mesmo que com todas as
reservas bem conhecidas, ele aceita fazer parte do campo transferencial
que está se formando (Mello Neto, 2012, p. 504).
E, ainda:
Às vezes eu choro quando saio do psiquiatra (...) acho que os médicos não
dão muita importância para o que eu falo, porque eu já aprontei muito,
pintei o muro dos outros quando tive um surto (...). O psiquiatra dá mais
importância ao que meus pais dizem. A doutora não, ela me ouve, me
trata como uma pessoa normal (...) eu queria ser psiquiatra para ouvir
as pessoas e tratar elas bem, eu faria muitos exames antes de dar um
remédio e tentaria achar um que a pessoa não se sentisse mal.
poema?”, ela olhava para o canto da sala por alguns segundos e depois retor-
nava o contato visual com um assunto acerca de seu animal de estimação.
Quanto mais eu manifestava gostar de suas produções, mais ela se apro-
priava do momento da psicoterapia, decidindo previamente sobre o que seria
dito por meio dos poemas. Entretanto, tudo se passava de maneira ambígua.
Ao mesmo tempo em que apresentava suas produções, me desafiava a desco-
bri-la nas entrelinhas das palavras não ditas de suas obras e na psicoterapia,
pois dizia gostar muito de falar sobre como construía as mesmas e sobre os
elementos citados nos poemas, mas, quando eu a indagava acerca dos sen-
timentos, a única resposta era um silêncio duradouro acompanhado de um
olhar que se distanciava e me evitava. Sobre esta dualidade podemos entender
que o analista:
[...] talvez seja preciso pensar que o analista tem que dar mais e é justa-
mente o que faz. Ao aceitar ocupar um lugar no projeto transferencial do
paciente, mesmo que com todas as reservas bem conhecidas, ele aceita
fazer parte do campo transferencial que está se formando (Mello Neto,
2012, p. 504).
166
(...) uma blogueira falou que existem vários caminhos para seguir a vida,
que é como um bolo, cada um faz de um jeito e mesmo se duas pessoas
usarem os mesmos ingredientes, vai sair algo diferente... sempre tem uma
voz lá no fundo de mim que diz que é melhor desistir porque não vai dar
certo, às vezes eu tenho vontade de fazer algo, mas desanimo.
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REFERÊNCIAS
Freud, S. (1905/1996). Um Caso de Histeria. In Edição Standard Brasi-
leira das Obras Completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 5-127). Rio de
Janeiro: Imago.
PARTE II
O PROJETO TRANSFERENCIAL:
um domínio intermediário
Sob esse título agrupamos textos advindos de atendimentos não clássicos, isto
é, que não são bi pessoais, em que não se trata de – ou apenas de – associações
livres e exploração do inconsciente, em que os sujeitos não são diretamente
os pacientes.
São resultados de pesquisas, muitas delas enfocando diretamente o Pro-
jeto transferencial, outras se inspirando nele para criar e debater ideias, e
outras, ainda, são pesquisas anteriores a nossa proposta, mas que foram lidas
après-coup e reinterpretadas com o auxílio do conceito que propomos.
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CAPÍTULO 9
O PROJETO CONTRATRANSFERENCIAL
DEFENSIVO DOS PROFISSIONAIS
DE SAÚDE MENTAL: implicações
na prática assistencial27
Silvia Marini
Viviana Velasco Martinez
N
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27 Parte deste capítulo foi publicado originalmente no livro: A contratransferência no cuidado do paciente
psicótico – do horror e inveja à indiferença, Editora CRV, 2022.
28 A análise das fantasias e afetos mobilizados contratransferencialmente nos profissionais de saúde mental no
cuidado do paciente psicótico foi o objeto da nossa tese intitulada A Contratransferência no Cuidado do Psicótico:
da Angústia, ao Horror e à Inveja iniciada em 2015 e defendida em 2019, no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, doutorado – linha de pesquisa Psicanálise e Civilização –, da Universidade Estadual de Maringá.
29 Os Centros de Atenção Psicossocialsão a estratégia central da Rede de Atenção Psicossocial brasileira,
criada no interior da política pública de saúde mental, para garantir a superação da lógica manicomial e a
inserção ou permanência do usuário em seu território. Os CAPS oferecem um atendimento interdisciplinar,
composto por uma equipe multiprofissional que reúne médicos, assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras,
enfermeiros, entre outros especialistas. São os serviços extra hospitalares de atenção secundária de maior
cobertura e eficácia de atendimento e podem ser diferenciados em quatro modalidades considerando-se o
nível de complexidade assistencial: CAPS I; CAPS II; CAPS III; CAPS i; e CAPS AD.
174
(...) é possível pensar que a situação analítica, que é única para cada
paciente, está fundada não só num projeto racional, mas em elementos
inconscientes que fazem parte do projeto. Ela, a situação analítica, resul-
taria, então, de algo muito complexo, difícil de discernir, em que repre-
sentações conscientes e inconscientes se mesclariam produzindo algo
Para o autor, portanto, somos, todos nós, afetados pelo que nos comu-
nicam os outros com os quais nos relacionamos desde o nascimento. A con-
tratransferência primordial é uma disposição psíquica universal e básica
de “servir como suporte para as transferências alheias, como destinatário e
depositário de seus afetos e como coadjuvante de suas encenações” (Figuei-
redo, 2003, p. 60).
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relatados por Freud como neuroses, nesse momento, hoje, facilmente seriam
diagnosticados como psicoses.
Já, no segundo período, marcado, sobretudo, pelo distanciamento de
Jung e pelo desenvolvimento do conceito de narcisismo, Freud acredita na
impossibilidade do tratamento analítico das psicoses, uma vez que os pacientes
seriam incapazes de transferir e quando o faziam, imperava uma poderosa
transferência negativa (Bocchi, Mendes & Oliveira, 2011).
O terceiro período é caracterizado por uma visão mais otimista, embora
Freud reconheça as limitações da aplicação da técnica psicanalítica, tal como
utilizada nas neuroses, para o tratamento das psicoses. Segundo Bocchi, Men-
des e Oliveira (2011), Freud considera aqui a possibilidade do desenvolvi-
mento de novas técnicas e recursos, inclusive a utilização da transferência
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(...) toda pessoa normal é apenas normal na média. Seu ego aproxima-se
do ego do psicótico num lugar ou noutro e em maior ou menor extensão,
e o grau de seu afastamento de determinada extremidade da série e de sua
proximidade da outra nos fornecerá uma medida provisória daquilo que
tão indefinidamente denominamos de “alteração do ego”.
tamanho da cama. Se fossem mais altas, Procusto lhes cortava os pés, se fos-
sem menores, esticava-as. Esse fenômeno, sem dúvida, levaria o analista a
desenvolver uma defesa também na forma de um projeto contratransferencial
(Mello Neto, 2016, p. 3).
Assim afirma o autor:
32 “Should the analyst show love he will surely at the same moment kill the patient” (Winnicott, 1994, p. 351).
33 “He excites her but frustrates-she mustn’t eat him or trade in sex with him” (p. 355).
186
34 “If we are to become able to be the analysts of psychotic patients we must have reached down to very
primitive things in ourselves, and this is but another example of the fact that the answer to many obscure
problems of psycho-analytic practice lies in further analysis of the analyst” (Wnnicott, 1994, p. 351).
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 187
Mannoni (1981) nos diz que, com muita frequência, são os próprios
médicos quem, de forma inconsciente, bloqueiam o movimento dialético do
sujeito diante do seu sofrimento. Para a autora, a sociedade sempre previu
lugares para seus loucos, sendo que os modelos produzidos de loucura e ins-
titucionalmente legitimados servem para protegê-la das diferentes expressões
do inconsciente.
Desse modo, a psicose – a loucura – é combatida e temida porque encarna
o inconsciente universal e desafia o poder e as estratégias para combatê-lo.
Já que não é possível curar, o recurso possível, para parte dos profissionais,
seria silenciar o inconsciente por meio do silenciamento e da indiferença
diante do psicótico35 41.
O Projeto Contratransferencial Defensivo ao se tornar o modus operandi
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35 Durante a pesquisa do doutorado, foi possível identificar que ações mais radicais de silenciamento e indife-
rença eram realizadas por profissionais que não escolheram atuar na saúde mental. Ou seja, profissionais
que realizaram concurso público geral e foram designados para os serviços de saúde mental. Tais profis-
sionais se apresentaram sem formação e sem desejo de trabalhar com a psicose, o que, em muitos casos,
levou ao pedido de transferência para outros serviços. Já os profissionais que escolheram atuar na área,
apresentaram maiores recursos psíquicos e técnicos para lidar com os pacientes. Assim, mesmo mobilizados
contratransferencialmente pelas fantasias e afetos analisados aqui, conseguiam realizar práticas significativas
para si mesmos e mais adequadas para os pacientes.
192
REFERÊNCIAS
Bocchi, J., Menendez, J. G., Oliveira, L. E. P. de. (2011). Freud e a Transfe-
rência dos Psicóticos. Psic. Clin., 2(23), 233-248. Recuperado de https://www.
scielo.br/j/pc/a/WSfXbRdV7xSj3mW57K4B8Jy/abstract/?lang=pt
de http://repositorio.uem.br:8080/jspui/bitstream/1/3180/1/000199863.pdf
Pessotti, I. (1995). A Loucura e as Épocas (2nd ed.). Rio de Janeiro: Ed. 34.
A
experiência com grupos operativos, em Unidades Básicas de Saúde,
nos mostra continuamente que o grupo traz alívio ao sofrimento psí-
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(...) é possível pensar que a situação analítica, que é única para cada
paciente, está fundada não só num projeto racional e dura ou de melhora,
mas em elementos inconscientes que fazem parte do projeto. Ela, a situação
analítica resultaria, então, de algo muito complexo, difícil de discernir, em
que representações conscientes e inconscientes se mesclariam produzindo
algo semelhante a um projeto, um projeto transferencial. Esse projeto,
pois, teria que se manter durante toda a análise e, ao mesmo tempo, ser
interpretado (...). Quando o analista é convocado para ocupar um papel no
projeto transferencial do sujeito, não há como não fazê-lo e isso porque
é a condição que o paciente está colocando... mesmo que com todas as
reservas bem conhecidas, ele aceita fazer parte do campo transferencial
que está se formando (Mello Neto, 2012, p. 504).
36 Isto não quer dizer que o grupo não possa promover também o sofrimento psíquico, pois nem sempre ele
funciona como assistente de tradução. Contudo, neste capítulo, optamos apenas por abordar os aspectos
mais organizadores e terapêuticos do grupo.
198
Trata-se de algo fantasmático que, embora esteja até certo ponto intuído
pelo eu, será posto em cena na análise. O analista, por sua vez, não é total-
mente passivo ao ser tomado como objeto da pulsão não satisfeita do paciente,
aceitando participar desse projeto transferencial do paciente, antes mesmo de
saber do que se trata, aliás, ele provoca no paciente este movimento de ser
tomado como objeto de desejo e colocado dentro da transferência.
Isso estaria presente numa análise, mas não unicamente aí. Martinez
(2016) propõe que em todo encontro com a alteridade temos o território pro-
pício para que o projeto transferencial se manifeste inclusive fora do contexto
de uma análise, que nos faz supor a existência de um Projeto Transferencial
que também se formula nas terapias de grupo, e que chamamos de Projeto
Transferencial Grupal.
Acreditamos que para a elaboração do Projeto Transferencial Grupal,
a presença do analista/psicoterapeuta também é essencial. Aliás, tal projeto
seria o que garantiria a manutenção de um grupo. Isso não quer dizer que
cada protagonista não tenha seu próprio projeto transferencial, mas que para
a formação do grupo e a sua manutenção é necessário que certos anseios se
202
juntem em torno de um projeto comum, tanto nos seus aspectos mais organi-
zados, mais conscientes – como a formação do grupo em torno da temática da
morte e do luto –, quanto nos fantasmáticos vinculados ao enigmático, neste
caso proveniente do morto.
É preciso que as condições de identificação do analista e dos pacien-
tes estejam, de certa forma, em sintonia. O Projeto Transferencial Grupal
seria, então, a união de diversos Projetos Transferenciais individuais, e o elo
dessa diversidade seria, precisamente, o que pode ser comum, em termos do
psiquismo humano e, ainda, que possa ser suportado, aceito, assumido pelo
grupo e seu coordenador. Significa que ele esteja disposto a aceitar os lugares
fantasmáticos onde possa ser convocado, para o qual criaria, graças ao seu
método e técnicas, o que chamamos de canal transferencial.
a contar o que sentem, muitos falam das suas revoltas, outros falam dos seus
medos, outros escutam e dizem aprender e diminuem muito os casos em que
os participantes me procuravam em particular, antes ou depois dos encontros
do grupo, para contar o que poderia ser dito no grupo.
Ao longo do tempo, o grupo operativo, enquanto um espaço com cultura
própria atuando como assistente de tradução, sofre alterações conforme as
pessoas entravam e saiam. Isso significa que o canal transferencial estava cons-
tantemente sendo atualizado, mas mantendo a sua função de integrar as novas
demandas e, consequentemente, o Projeto Transferencial Grupal também.
representação seria recalcada, vindo à tona como culpa. Por este motivo é
marcante no luto o sentimento de culpa. Vamos para algumas narrativas.
Uma das pacientes, que chamarei aqui de Antônia, começou a participar
do Grupo Cuidar devido ao falecimento do filho em um acidente de carro,
indo do trabalho para casa. O filho, na época de sua morte tinha aproximada-
mente 30 anos de idade. Antônia e seu esposo souberam do falecimento do
filho através de um colega de trabalho que foi até a casa deles para avisá-los.
O filho não era casado e vivia com os pais.
Outra paciente enlutada era Selma, 45 anos, que havia perdido sua mãe.
A mãe de Selma, já idosa, havia falecido de câncer, ficando hospitalizada por
poucos dias até o dia de sua morte. Selma e seus dois irmãos se revezavam
nos cuidados hospitalares. Mas, os irmãos, ao contrário de Selma, diz ela,
É neste sentido que o grupo permite que a dor possa ser expressa, e que
todo sofrimento causado pela morte do ente querido possa ser vivenciado,
ao menos naquele contexto e, sobretudo, validado pelos pares, ao final das
contas esse é um dos aspectos do projeto transferencial, onde o outro – neste
caso o grupo – é testemunha, coautor, cúmplice, podemos dizer – do que
fanstasmaticamente se desenrola.
Por outro lado, podemos supor que a mensagem enigmática do morto,
neste caso de Antônia, passa pela equação do pênis/filho, cuja perda pre-
sentifica a angústia de castração. A morte do filho, afirma numa sessão,
era como se uma parte dela tivesse sido arrancada, o que a fez perder a
alegria de viver, pois Antônia não conseguia mais usufruir dos praze-
res diários. E agora, para dar conta desta castração, precisava encontrar
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atividades que antes lhe eram tão rotineiras. E diz no grupo que, após a
morte da mãe, não conseguia fazer mais nada, pois não sentia vontade
de viver sua própria vida. Isto é muito interessante, porque a perda da
mãe a fazia sentir como uma criança abandonada e que efetivamente não
conseguiria dar conta nem da sua autoconservação. Selma é, assim, uma
criança tentando decifrar o que ficou da mãe, e, sobretudo, o que perdeu
dela. É como se Selma, sem a mãe, também estivesse morta. E, uma vez
morta, identificada à mãe, não conseguiria reagir frente ao enigmático da
morta. Vimos com Hage (2005) que, a identificação com o morto é um
dos caminhos possíveis para idealizar e engrandecer o morto, um morto
que desperta os aspectos persecutórios do enlutado, que permanece como
culpado. Daí a fantasia de Selma se sentir morta como a mãe, ou, ao menos,
lho, embora fosse, agora, seu único filho. Falava abertamente para o grupo
sobre esses seus sentimentos tão claros aparentemente, expressando a sua
decepção diante da morte do seu caçula, para quem ela dirigia muito amor e
reconhecimento. Por que não morreu o mais velho no lugar do mais novo?
– se perguntava.
Este engrandecimento do morto, vimos com Hage, faz parte tanto das
tentativas de tradução da mensagem enigmática do morto, quanto do pro-
cesso de luto em curso. Contudo, o engrandecimento nos leva a idealizações.
Laplanche (1996) considera que a partir do momento em que há um morto, e
através das projeções que os vivos fazem, ele pode adquirir as características
que o vivo lhe designa, ocorrendo uma transformação do morto em algo ou
alguém que se deseja que ele se torne. Esta transformação que se passa com
o objeto perdido é possível, pois os mortos, ao não estarem mais presentes,
passam a pertencer a um status de criação do homem.
É possível então, que Lucia, tenha transformado o filho perdido em tudo
aquilo que desejava que ele fosse: o filho perfeito, que a ama e é amado.
Estamos diante de uma grande ferida narcísica da mãe, o filho mais novo lhe
indicava a sua grandiosidade como mãe, como ela era bem-sucedida na sua
função materna, o que aliás, o outro filho negava, então, por que não morria
no lugar do filho idealizado? – idealizado pela sua morte. Por outro lado, não
podemos deixar de mencionar a problemática edípica dessas relações entre a
mãe e seus filhos – é muito curioso que Selma não se refere ao pai dos filhos
em nenhum momento. Mas tal separação feita por Selma, do afeto entre seus
dois filhos, um vivo e outro morto, talvez seja uma saída tradutiva para garantir
a si mesma – e também ao filho morto – que ninguém ocupará o seu lugar. E,
ainda, uma saída para a problemática da raiva e da culpa. A raiva fica para o
filho mais velho, dissipando sua culpa, pois ele mereceria sua rejeição. Esta,
talvez, seja a resposta para o enigma do morto.
210
tem ligação sanguínea. E se ofereceu para cuidar de Lucia, caso ela ficasse
hospitalizada novamente. Este arranjo, acolhedor para Lúcia, era também
fruto de uma nova configuração do projeto transferencial grupal. Talvez no
primeiro momento não foi possível escutar que também Lúcia pedia ajuda,
o canal transferencial estava bloqueado pela defesa do grupo, que não foi
capaz de aceitar que, nesse momento, Lúcia não podia fazer nada além de
dizer corajosamente que preferiria que o filho mais velho tivesse morrido, no
lugar do mais novo. Desejar a morte do outro, sabemos, é algo interditado pela
cultura, mas era essa a tradução possível de Lúcia para o enigma do morto,
idealizado e engrandecido através da diminuição do outro.
E para finalizar...
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REFERÊNCIAS
Ferenczi, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança (pp.
97-106). In: Ferenczi, S. Psicanálise IV. São Paulo: Martins Fontes.
O PROJETO TRANSFERENCIAL:
o domínio da vida em geral
Neste item nos referimos, num sentido muito amplo, ao que diz respeito à
vida em geral, onde cabem todos os dados que não se podem agrupar nos
capítulos anteriores. É um campo que se constitui por exclusão. Trata-se da
cultura e dos grupos sociais. Trata-se também da vida, uma vez que sabemos
que o projeto transferencial não é projeto existencial, mas podemos encontrar
também neste último, subjacente, um projeto transferencial e podemos tentar
fazê-lo com relação a muitas outras coisas da vida, como, por exemplo, as
escolhas que faz uma pessoa (e talvez também um grupo). Para esta pesquisa,
contudo, não iremos ampliar tanto. Trabalharemos com elementos da cultura,
sobretudo textos de literatura, biografias, relatos autobiográficos, o que já é
bastante amplo.
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CAPÍTULO 11
PROJETOS TRANSFERENCIAIS
E SUAS VICISSITUDES NOS
TEMPLOS NEOPENTECOSTAIS
Maurício Cardoso da Silva Junior
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
Eu queria mudar, eu sabia que tinha alguma coisa errada, eu não queria
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A
s palavras do piedoso testemunham a força com que seu encontro
com o que denomina de Espírito Santo39 foi capaz de operar em seu
psiquismo. Para uma vida antes caótica, desorganizada, em uma série
repetitiva de sofrimentos, este sujeito passa, agora, a seguir uma determinação
superior que lhe garante sentido, amparo, mesmo que, como evidente em sua
fala, à custa de sua autonomia – sem esta prescrição, este indivíduo se vê
desnorteado, sob o risco de retornar à sua condição anterior de desamparo.
Seu depoimento, apesar das particularidades inerentes à sua história de
vida, não é excepcional. O leitor pode facilmente encontrar falas como essa
frequentando cultos evangélicos, assistindo a transmissões televisivas reli-
giosas ou visitando sites de igrejas. São histórias que, com poucas variações,
repetem um mesmo script: uma pessoa com uma história de vida penosa,
37 Nesse trabalho, o/a leitor/a encontrará a palavra “deus” iniciada tanto por minúscula quanto por maiúscula.
Adotamos tal distinção para diferenciar quando estamos fazendo menção à divindade cristã, bíblica, nomeada
como Deus (substantivo próprio), e quando estamos nos referindo à divindade de uma forma geral (como
substantivo comum).
38 Igreja Universal. Fábio: "eu entendi que somente deus poderia me ajudar!". Youtube, 25 out. 2019. Recuperado
em 11 nov. 2019 de https://www.youtube.com/watch?v=oYiaGT6MLMw.
39 Segundo Rivas (2001), o Espírito Santo seria, em síntese, uma espécie de força vinda de fora, que atua no
indivíduo como um plus, um algo a mais que está além do próprio sujeito que é tomado pelo Espírito de Deus.
218
tem de ser pensado como fruto da relação entre os sistemas psíquicos, e não
como se estivesse formado no inconsciente, à espera de sua revelação ou
tradução simultânea40.
O projeto transferencial seria, então, o resultado de um trabalho do eu
sobre vários níveis (conscientes, pré-conscientes e inconscientes) do aparelho
psíquico. Como uma espécie de derivado do inconsciente, o projeto transfe-
rencial ocuparia, neste ponto de vista, zonas do inconsciente e do consciente,
mas, sobretudo, ligações em cadeia pré-conscientes. Portanto, o conteúdo
manifesto do projeto transferencial traria, por um lado, as marcas de regis-
tros mais arcaicos que tiveram recusado seu acesso à consciência e, de outro,
sua correspondência no ideal do eu, enquanto meta ou objetivos que o eu se
esforça por alcançar, cumprir, satisfazer (Freud, 1923/1996).
O projeto transferencial está para além da pura repetição dos clichês
estereotípicos de que nos fala Freud (1912/1996b): para Mello Neto (2016),
o paciente investe o analista em uma de suas séries psíquicas (transferência),
mas no contexto de um esboço de roteiro a ser vivenciado (que não é total-
mente consciente) como um caminho necessário para a cura. O autor nos fala
que se trata de uma tendência, como se o paciente soubesse que necessita
colocar seu fantasma em relação (no caso, com o terapeuta) para a resolução
de seu conflito.
Se há no paciente essa tendência à convocação do outro como veí-
culo para a sua própria reestruturação, isso parece remeter às origens da
constituição do sujeito que, para Laplanche (1996), se fundamenta no que
40 A autora desenvolve esta concepção de inconsciente a partir do trabalho de Laplanche (1992b) na sua
releitura de O inconsciente, de 1915, de Freud: nesta releitura, o autor recupera a ideia de que o inconsciente
não se caracteriza como um sentido oculto a ser desvelado, não é um subtexto que acompanha o manifesto,
não é o desejo do outro... o estatuto do inconsciente é a perda de referência, como resto do que não pôde
ser traduzido pelo aparelho psíquico, não sendo regido pelas leis da linguagem.
220
41 Segundo Rivas (2001), o Espírito Santo seria, em síntese, uma espécie de força vinda de fora, que atua no
indivíduo como um plus, um algo a mais que está além do próprio sujeito que é tomado pelo Espírito de Deus.
42 Esta narrativa está em Atos dos Apóstolos. A festa de Pentecostes, de acordo com Rivas (2001), tem origem
agrária, em comemoração às colheitas. Incorporada pela religião, passou a celebrar a aliança estabelecida
entre Deus e Noé: Deus não mais provocaria outro dilúvio sobre a Terra, desde que todo ano fosse realizada
uma festa, a Festa das Semanas. Tal festa significaria, segundo o autor, a renovação desta aliança. Na
época pós-exílica, transformou-se na festa da doação da lei, quando as tábuas dos Dez Mandamentos foram
entregues a Moisés. Em Ato dos Apóstolos, reatualiza a aliança pelo arrebatamento de centenas de pessoas
pelo Espírito Santo. A lei, antes escrita nas tábuas, agora, estava inscrita no coração dos homens. Por ser
comemorada cinquenta dias após a Páscoa, a festa recebeu o nome pentecostes (quinquagésimo dia).
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 225
43 Rosana: "Um abuso desencadeou uma vida de sofrimento" – Igreja Universal. 24 out. 2019. 1 vídeo (6 min.
27 seg.). Publicado no canal Igreja Universal. Recuperado em 14 nov. 2019 de https://www.youtube.com/
watch?v=3qlywd1gvki.
44 Janderson: "Comia no lixão, era humilhante, mas era tudo o que tinha" – Igreja Universal. 28 out.
2019. Publicado no canal Igreja Universal. Recuperado em 16 nov. 2019 de https://www.youtube.com/
watch?v=h10a1q75kj4.
45 Laplanche (1992a) discute a passividade inicial da criança a partir das ideias de filósofos como Leibniz.
Para este, a relação entre criatura e criador (Deus) se caracteriza pelo desnível entre um ser perfeito e um
ser imperfeito, o primeiro agindo e sendo a razão de agir/existir do segundo.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 227
46 “Muitos propósitos há no coração do homem, porém o conselho do Senhor permanecerá” (Provérbios 19:21,
Bíblia Sagrada, 1997).
47 Trata-se, afirma Martinez (2011), das razões ocultíssimas de deus, segundo Santo Agostinho, que não
permitem ser questionadas quanto aos seus desígnios, como por exemplo, o fato de ter criado o homem
sabendo que seria um pecador.
48 A Teologia da Prosperidade, afirma Mariano (1999), tem suas raízes nos anos 40, mesclando uma série de
cultos, seitas e práticas que valorizavam as curas divinas, transes, possessões, profecias, contatos com o
sobrenatural, esoterismo e metafísica. Seu principal precursor é o pregador (de origem batista) estadunidense
Kenneth Hagin. Em suma, suas pregações giram em torno da promessa de uma vida feliz – sem doenças,
sem sofrimento e com abundância material – com a condição de o fiel obedecer às leis bíblicas.
228
permitindo que o fiel cobre e exija este direito. Como contrapartida, o fiel,
com fé e uma conduta cristã, deve cumprir uma regra fundamental para ter
acesso à graça divina: o pagamento do dízimo.
Na visão de R.R. Soares (1998), fundador da Igreja Internacional da
Graça, essa é a parte mínima que se deve a Deus, os dez por cento dos
ganhos; se trata de uma lei espiritual. Assemelhasse a uma espécie de imposto
cobrado, previsto em lei. Porém, o dízimo não passa de uma obrigação, pois
apenas se devolve o que já é propriedade divina. Ancorada principalmente
em Malaquias (3. 10-12, citado por Soarez, 1998)49, a igreja considera que
as ofertas espontâneas de dinheiro, para além do dízimo, consistem em sinais
de desprendimento e sacrifício que agradam a Deus. Oferecer dinheiro nos
templos neopentecostais se configura como sinal de fé, obediência e busca
49 “Levai todos os vossos dízimos ao meu celeiro, e haja mantimento na minha casa, e depois disso fazei
prova de mim, diz o Senhor. Se não vos abrir eu as cataratas do céu, e se não derramar eu a minha bênção
sobre vós em abundância. E para vos fazer benefício increparei aos insetos devoradores das novidades,
e eles não estragarão o fruto da vossa terra nem haverá nos campos vinhas estéreis, diz o Senhor dos
exércitos. E todas as gentes vos chamarão ditosos: porque vós sereis uma terra de delícias, diz o Senhor
dos exércitos”.
50 “Quando você dá o seu dízimo e contribui com suas ofertas para com a Igreja, você está dando um golpe
poderoso nas ‘portas do inferno’. Satanás e seus demônios gemem a cada contribuição dos filhos de Deus.
Eles sabem que isso significa a sua derrota” (Soares, 1998, p. 37).
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 229
bem como um limite ao narcisismo do fiel, para que saia do gozo autoerótico
e invista seu amor socialmente (dar ao outro).
Ao mesmo tempo, o dinheiro ofertado parece carregar um significado
fálico. Isto é, de certa forma, explicitado como uma das finalidades do paga-
mento a Deus: busca de sucesso, prosperidade financeira, certo status em seu
meio social – tal como podemos encontrar em muitas lideranças do meio. O
poder também é fálico, inclusive o poder contra o demônio. Poder que também
se exerce a partir do pagamento, fazendo com que a dívida, antes do fiel, se
inverta e passe a ser, temporariamente, de Deus para com o crente.
Não importa que estejamos negociando com Deus. Não há ninguém
melhor para se negociar: “Ele é justo, bondoso e quer o melhor para nós.
Ele não visa apenas lucros ‘pessoais’ e sempre cumpre a Sua Palavra. Pense
bem o leitor se há alguém melhor com quem possamos ‘negociar’” (Soares,
1998, p. 82).
Porém, esta dívida é fluida, transita constantemente entre o par; se num
breve momento é de Deus, logo volta ao fiel. Isto porque não basta o paga-
mento do dízimo: este deve ser feito com alegria e fé. Além disso, o piedoso
deve observar as divinas leis, ter conduta cristã. Mas, mesmo sendo dizi-
mista, ofertando com alegria, desprendimento e fé e sendo cristão exemplar,
a prosperidade só virá se ele tiver habilidade nos negócios, souber aproveitar
as oportunidades que Deus oferece em sua vida. Nesse sentido, o pagamento
ao Pai pode ser considerado como uma forma de investimento libidinal, que
engrandece e mantém vivo o vínculo com a figura protetora – alimentando
um circuito de troca, onde também há o engrandecimento egoico do próprio
crente. Tais fiéis permanecem eternos investidores, não somente de capital
financeiro, mas, sobretudo, de capital libidinal. E tal condição parece advir
da mensagem divina.
Além do dinheiro, outro princípio inserido pela fé neopentecostal consiste
na Teologia do Domínio. Os neopentecostais concebem o mundo humano
230
Porém, como sabemos, todo recalcamento deixa restos, restos não meta-
bolizados da sexualidade do outro, que poderão vir a irromper em possessões
demoníacas ou em novas formas de sofrimento. Estabelece-se, assim, um
círculo vicioso, demandando do fiel constante investimento para manutenção
do recalcamento.
Esses são, a nosso ver, alguns dos destinos dos projetos transferenciais
quando receptados pelas igrejas neopentecostais, trazendo traduções que não
necessariamente vencem a patologia ao ponto de possibilitar uma historizica-
ção mais saudável, pois as traduções estão dadas e são rígidas e, ainda, não
foram produzidas pelo fiel. Assim, o fiel estará sempre à beira do inferno,
pois vendeu sua alma a Deus.
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Considerações finais
51 A propósito, Hitler (Fest, 2005) dizia que a massa era uma mulher; pois bem, parece que era bem isso que
ele procurava, uma fusão com a mãe e foi o que ele encontrou: a morte.
234
REFERÊNCIAS
Almeida, R. (2009). A Igreja Universal e seus demônios. São Paulo: Editora
Terceiro Nome.
Aires: Amorrortu.
E
ste capítulo é um recorte da nossa pesquisa de mestrado, intitulada
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O analisando, por sua vez, atua intensamente para dar conta do seu
projeto no decorrer da análise. Embora esse projeto seja enigmático para o
próprio analisando, ele constrói, juntamente com o analista, suas metas, sejam
elas conscientes – a cura, por exemplo –, sejam elas as inconscientes, recons-
truir a cena edípica, para traduzir ou destraduzir seus enigmas. O analista é
convocado, justamente, para efetivar esse projeto.
Exposto brevemente o conceito de projeto transferencial, passaremos a
discuti-lo no âmbito extramuros, ou seja, trabalhar um conceito psicanalítico
para além do setting analítico. Laplanche (1992) propõe que “a psicanálise é
um imenso movimento cultural e, nesse sentido, é o conjunto da psicanálise
que se dirige para fora-dos-muros” (p. 12).
240
que sentido orientar este vetor? Sem dúvida a pesquisa, como a criação,
vem do indivíduo e neste sentido é centrífuga. Entretanto, a incita e a
orienta um vetor que vem do outro. Para Leonardo, “o olho é a janela da
alma”, o que designa uma abertura e até uma exposição da alma ao trauma
do outro (Laplanche, 1999, p. 89).
A Srta. Mori media pelo menos um metro e oitenta, altura que poucos
homens japoneses atingem. Era encantadoramente longilínea e graciosa,
apesar da rigidez nipônica a que tinha de submeter-se. Mas o que me
deixara petrificada era o esplendor de seu rosto. (...) Dois metros a minha
frente, o espetáculo de seu rosto era cativante. Suas pálpebras abaixadas
para os números impediam-na de ver que eu a observava. Tinha ela o mais
belo nariz do mundo, o nariz japonês, esse nariz inimitável, de narinas
delicadas e reconhecíveis entre mil outras. Nem todos têm este nariz, mas
quem o tem só pode ser de origem nipônica (2001, pp. 10-11).
pois supõe que Amélie estava pleiteando uma promoção em tão pouco tempo
de trabalho, enquanto ela mesma havia lutado por longo tempo até alcançar
sua posição atual. Assim, sua principal arma era a origem ocidental de Amélie,
inferior aos japoneses, segundo os preceitos daquela organização.
O fato mais inusitado relatado pela autora é a sua última função na
Yumimoto. A trama se inicia quando o vice-presidente da Yumimoto, Sr.
Omochi, descrito como um homem rude, nojento e sem escrúpulos, humilha
Fubuki diante de todos os funcionários. Tratou-se, uma humilhação que, aos
olhos de Amélie, assemelhava-se a um estupro, o que fez com que Fubuki
fosse se refugiar no banheiro do departamento. Amélie, por sua vez, a segue
ao banheiro com a intenção de consolar sua admirada torturadora. Contudo,
Fubuki sente-se ainda mais humilhada com a presença de Amélie e, ao dia
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seguinte, como vingança, destina-a para uma nova função: limpadora de latri-
nas. Ao receber a notícia de sua nova atividade, Amélie fala de seus sonhos
e de suas ambições.
Essas ações, definidas como ijime, que segundo Roberts (2014) é o termo
em japonês equivalente ao assédio moral, estavam institucionalizadas e até
mesmo naturalizadas na cultura nipônica. Essa mentalidade ainda permanece
em muitos espaços entre a população asiática, sobretudo nos ambientes orga-
nizacionais, onde a hierarquia é marcante e se acredita que o chefe, análogo
à figura do imperador, tem o direito de ser rude com os funcionários, e estes,
como fiéis cidadãos nipônicos, têm o dever de respeitar, acima de tudo, a figura
que detém o poder. Talvez, por isso, as humilhações entre os funcionários na
Yumimoto eram contínuas e, apesar da aparente sensação de mal-estar entre
eles, ninguém manifestava nenhuma opinião contrária à do gestor/agressor
ou se opunha às degradações sofridas entre todos os escalões da empresa.
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Apesar de Amélie afirmar que não deixaria seu trabalho por honra, sua
ligação erótica com Fubuki foi um dos fatores que, a nosso ver, a fez supor-
tar a contínua degradação em seu trabalho, mas se trata de uma erotização
sintomática, pois atende à defesa e à satisfação. Em princípio, pensamos a
figura de Fubuki como assistente de tradução, pois a autora, quando humilhada
pelos outros gestores, contava com o olhar, com o sorriso e com as palavras
de apoio de sua superiora, numa franca transferência materna.
Por outro lado, devemos considerar, também, que a beleza de Fubuki, tão
admirada pela autora, dava-lhe elementos para elaborar a perda do Japão de
sua infância, um lugar nostálgico onde quisera voltar desde seus cinco anos
de idade. Assim, podemos supor que desde o retorno de Amélie ao Japão, ao
entrar na empresa, diversas mensagens não traduzidas entraram em movi-
mento, demandando novas traduções. As mensagens atualizadas après-coup
na empresa e que dizem respeito à infância de Amélie, possibilitaram, talvez,
que ela não adoecesse na empresa, pois encontrou nelas elementos para a
tradução do enigmático. Ou seja, o que seria traumatizante, em termos de
assédio moral, em Amélie se transforma num meio para a tradução de outras
mensagens atualizadas. O movimento das mensagens enigmáticas nos parece
ter ficado ainda mais intenso com a presença de Fubuki, levando-nos a supor
que o encontro com a figura japonesa despertou na autora o sexual/pulsional
ou, ainda, que Fubuki mobilizou em Amélie sentimentos que estavam sub-
jugados pela força do inconsciente desde sua tenra infância, ainda quando
vivia em solo japonês.
O encontro entre Amélie e Fubuki despertou o processo tradutivo em
ambas as personagens, possibilitando novos destinos às mensagens que ainda
estavam à espera de traduções. Quanto a Amélie, temos a impressão de que
246
ao ver a beleza do Japão bem a sua frente, objeto de amor perdido, erotiza
sua relação com Fubuki, talvez, como uma forma de dominar o excesso que
aquela figura lhe causou, realizando assim, traduções. O erotismo presente
nos relatos da autora sobre Fubuki se apresentam como uma modalidade de
satisfação sexual, desejos homossexuais que ganham força diante da beleza,
da origem nipônica e do sucesso profissional de Fubuki, excitando Amélie
e levando-a a contemplar, incessantemente, a figura da sua superiora. Isso,
provavelmente tem relação com a sedução durante o cuidado, pois, talvez,
atrás de Fubuki, esteja a babá Nishio-san. Vejamos uma cena em que a ero-
tização é bem marcante.
Não demorava muito para que, entre duas somas, eu erguesse a cabeça
Por outro lado, a presença de Amélie para Fubuki é muito excitante, tal
qual a presença da criança é para o adulto na SAF, pois entendemos que a
desvantagem de Amélie diante de Fubuki, reatualiza fantasias sexuais, tal-
vez da ordem da crueldade, da dominação e do sadismo. De certa forma,
ambas estabelecem uma relação sadomasoquista, própria de uma organiza-
ção com hierarquia marcante, como a japonesa. Laplanche (2003), no artigo
Três acepções da palavra “inconsciente” no quadro da Teoria da Sedução
Generalizada, afirma que o inconsciente sexual do adulto é reativado na
comunicação dissimétrica adulto-infans e, ao deslocarmos essa dissimetria
para a dupla Fubuki-Amélie, podemos supor que Fubuki tenta dominar o
sexual despertado, que lhe escapa na forma de agressividade contra Amélie,
caracterizando, assim, o assédio moral.
Foi a partir do momento em que Amélie despertou a admiração do Sr.
Tenshi, demonstrando suas capacidades, que Fubuki lhe impôs situações
humilhantes como uma tentativa de desqualificá-la diante dos chefes. Isso
é levado ao extremo quando castiga Amélie – como se fosse uma irmã mais
nova que chega para roubar o amor dos pais –, impondo-lhe a obrigação de
lavar os banheiros do quadragésimo quarto andar da Yumimoto. Ato extremo,
podemos dizer, de ijime.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 247
Para nós, o banheiro também tem um tom sexual nessa trama, uma
analidade exacerbada que perpassa toda a cena em torno dele. Além da
sujeira, das fezes, do pecado e da passividade a que a analidade nos remete,
há também o prazer. O banheiro também foi o refúgio para Fubuki, quando
terrivelmente humilhada, vimos, foi se esconder nele. E é aí mesmo onde
Amélie tenta consolá-la, por ser solidária, afirma, quando, na realidade,
podemos interpretar como um ato de vingança impregnado de muito prazer,
pois, de certa forma, ela sabia que Fubuki se sentiria ainda mais humilhada
ao ser vista chorando por uma rival, subordinada e, além de tudo, uma oci-
dental. É no banheiro também onde Amélie, talvez, estivesse tentando dar
conta do seu próprio enigma, que podemos traduzi-lo com a interrogação
“o que é ser uma mulher japonesa”? De todas as maneiras, é em torno do
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Não demorou nada para que eu fizesse a minha opção: entre pais que me
tratavam como os outros e uma governanta que me divinizava, não havia
como hesitar.
Eu seria uma japonesa.
Aos dois anos e meio, na província de Kansai, ser japonesa consistia em
viver no centro da beleza e da adoração. (...) Aos dois anos e meio, ser
japonesa significava ser a eleita de Nishio-san. A qualquer momento, se
eu pedisse, ela deixava de lado suas atividades para tomar-me nos braços,
mimar-me, cantar para mim canções que falavam de gatinhos e cerejeiras
em flor (2000, p. 53).
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 249
O jardim da casa era tomado pela escritora como seu templo. Assim como
Deus escolheu um jardim para simbolizar a felicidade terrestre, a autora elegeu
o jardim nipônico de sua casa, que envolto por grandes muros, permitia-lhe
se esquivar dos olhares de “leigos”, para, então, contemplar seu santuário.
A autora nos conta, também nesse livro, um importante acontecimento em
sua vida. A trama se inicia quando, ao saber de sua mãe que provavelmente,
em dois anos, deixariam o Japão, a pequena menina Amélie sentiu uma inex-
plicável tristeza. – “Eu não posso ir embora! Tenho de viver aqui! É o meu
país! É a minha casa!” (2000, p. 112). Amélie passou horas pulando sobre
a caixa de areia repetindo: “Tens de lembrar-te sempre! Tens de lembrar-te
sempre!” (2000, p. 115).
O pai de Amélie, Patrick Nothomb, era cônsul da Bélgica, então, quando
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solicitado, a família tinha que se mudar. A autora assinala que o Japão tam-
bém se tornara a paixão do jovem diplomata de trinta anos. Durante os cinco
anos que passaram no Japão, o pai de Amélie foi um aluno exemplar nas
aulas de nô, um estilo de cântico tradicional da cultura nipônica. “Como era
o único estrangeiro do mundo dotado daquele talento, ficou célebre no Japão
pela designação que não mais o largaria: ‘O cantor de nô de olhos azuis’”
(2000, p. 86).
Sobre a mãe, Danielle Nothomb, pouco sabemos. No livro em questão,
temos a impressão de que a mãe é uma intrusa na relação entre Amélie e
seu pai e entre Nishio-san. Todos os cuidados maternos vêm da governanta.
Contudo, nos parece que há muita ambiguidade na relação entre Amélie e a
mãe, pois embora a palavra mamãe tenha sido a primeira palavra eleita pela
autora para ser pronunciada, expressão de máxima afetividade, segundo ela
mesma, a afetividade maternal é investida em Nishio-san. Danielle é a figura
que salva Amélie das águas (uma cena que Amélie relata, que ao entrar no
mar, ainda muito pequena, estava se afogando e foi a mãe quem a salvou) e,
também, a que pronuncia o “Apocalipse” para Amélie:
Outra cena relatada é sobre sua tentativa de suicídio, aos três anos de
idade, enquanto alimentava as carpas (era seu dever) no lago de pedra do
250
jardim da casa. Um mal-estar tomou conta dela ao ver as carpas, e uma voz
lhe disse:
Trate então de olhar. Olhe com todos os olhos. A vida é o que você está
vendo: membranas, tripas, um buraco sem fundo que exige ser enchido.
A vida é este cano que engole e continua vazio. (...) Entre a vida – bocas
de carpas que engolem – e a morte – vegetais em lenta putrefação – que
vais escolher? Que é que te dá menos vontade de vomitar? Parei de pen-
sar. Estou tremendo. Meus olhos voltam a cair em direção às goelas dos
animais. Estou com frio. Sinto uma náusea. Minhas pernas já não me
sustentam. Deixo de lutar. Hipnotizada, deixo-me cair no lago.
Minha cabeça bate no fundo da pedra. A dor do choque desaparece quase
imediatamente. Meu corpo, já agora independente de minhas vontades,
Sentia que estava horas submersa, mas subitamente sentiu uma mão
agarrando-a, era Nishiosan tirando-a da água. “Às vezes, pergunto-me se não
sonhei, se aquela aventura fundadora não é uma fantasia. Vou então olhar-me
no espelho e vejo, em minha têmpora esquerda, uma cicatriz de admirável
eloquência” (2000, p. 142).
para seus próprios enigmas, relatando com detalhes e intimidade suas expe-
riências de quando viveu no Japão ou de sua primeira infância, rememorando
e reconstruindo a sua história, reinterpretando-a ao longo das suas obras, de
tal forma que o traumático se torna matéria de inspiração e sublimação.
Assim, podemos supor que Amélie é duplamente autora, das suas próprias
vivências e do que escreve sobre elas impelida por seus enigmas, das tradu-
ções que resultam na produção de um livro anualmente. Essa produção nos
leva a supor que seus milhares de leitores, e de diversos lugares do mundo,
também a influenciam a partir de uma certa posição de passividade à espera
da próxima produção-tradução. E isso é muito interessante, pois se aproxima
da relação do fiel com a Igreja, a que Cardoso e Mello Neto fazem menção,
no capítulo 8, neste mesmo livro.
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Por outro lado, apesar dessa certa passividade do leitor, ele não deixa
de ser interpretado pela escrita de Amélie, pois sua literatura também lança
enigmas, mas é no próprio livro que a escritora oferece a tradução, por isso a
repercussão expressiva que suas obras têm sobre seus fiéis leitores. Quanto a
nós, podemos dizer que a escrita de Amélie despertou nossos enigmas, envol-
vendo-nos em seu projeto transferencial, nos fazendo cúmplices do mesmo
e, por isso, nos adjudicamos a tarefa de interpretá-la, através das suas obras,
implicadas como estamos.
Tomamos o relato autobiográfico de Amélie como um conjunto de fan-
tasias, que vão ganhando forma na medida em nos deixamos levar pela sua
escrita, da mesma forma que analisamos os sonhos de nossos pacientes no
setting analítico.
Penetremos mais fundo no seu projeto transferencial, mas delimitando-o
ao contexto do trabalho na Yumimoto, no seu livro Medo e submissão (2001).
Primeiro, diremos que Amélie elegeu a Yumimoto como seu segundo
templo, um espaço de reedição de suas cenas edípicas. O primeiro templo, o
jardim de sua casa no Japão – espaço das suas fantasias edípicas –, foi esco-
lhido aos três anos de idade, como já dissemos. Acreditamos que Amélie, ao
retornar ao Japão e se envolver na intensa trama dentro da empresa, reedita
a cena da infância – a cena edípica.
Mesmo diante de todas as humilhações sofridas, busca, na verdade,
reencontrar a mamãe Nishio-san, que foi abandonada quando a autora, ainda
criança, se muda para a China com a família. Lembremos que, ao descobrir
que em pouco tempo deixariam o Japão, Amélie repete: “Tens de lembrar-te
sempre! Tens de lembrar-te sempre!” (p. 115). É isso, nos parece, que ela
pretende ao retornar ao Japão: reviver a pequena Amélie tratada como deus,
amada por sua governanta Nishio-san. Até seus cinco anos vivenciou suas
fantasias edipianas, e numa tentativa de sair desse mundo infantil, aos vinte
252
52 O título original deste livro, tal como aponta Mello Neto, no capítulo 3 deste livro, é Estupor e Tremor, pois
aí está implícita a figura do imperador, diante da qual, os súditos, que não podiam olhá-lo diretamente aos
olhos, tremiam diante da sua passagem, ou mesmo, diante da internalização marcante dessa figura divina
na cultura nipônica, fortemente marcada pela hierarquia.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 253
mulher japonesa. Talvez seja por isso que Amélie contemple sua torturadora,
a olhe sistematicamente, buscando, ali na própria Yumimoto, respostas para
aquilo que ainda está sem sentido. Fubuki tenta, numa espécie de jogo sádico,
mostrar a Amélie o que é ser uma mulher japonesa. Assim, quando supõe que
Amélie fez um bom relatório, porque ambiciona uma ascensão na empresa
Fubuki, além de sentir raiva e inveja, mostra que não será simples, pois todas
as mulheres japonesas precisam sofrer para, posteriormente, ser reconhecidas.
Esse foi o percurso de Fubuki e esse seria o percurso de uma mulher japonesa,
em destaque, mas não de Amélie, uma estrangeira.
Por outro lado, experimentar ser mulher japonesa ultrapassa os espaços
de trabalho e se estende para as relações afetivas de Amélie. Já falamos de
Fubuki e as governantas, mas também encontramos, em Nem de Eva, nem
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de Adão (2007), outra volta à sua infância. Nesse livro, a escritora se refere
a Rinri, um personagem japonês, mas com quem ela se relacionou, de fato,
enquanto trabalhava na empresa. A autora relata que Rinri sempre a buscava
num belo carro e a levava para ver o velho Japão. Certo dia, numa reunião
de amigos, Rinri e seu amigo Masa, perguntaram à Amélie se ela tinha nacio-
nalidade japonesa e rapidamente ela respondeu que nascer no Japão não era
suficiente, pois a nacionalidade japonesa era muito difícil de se conseguir.
Durante o jantar, o cheiro da comida a fez viajar dezesseis anos atrás, quando
sua governanta Nishio-san preparava seus pratos orientais prediletos. É como
se ela, escreve a autora, ainda tivesse cinco anos, apreciando a comida feita por
Rinri e seus amigos; de certo modo, parecia estar na presença de Nishio-san.
Amélie nos conta que todas as vezes que dormia com Rinri, sentia uma
enorme alegria, o que lhe causava uma intensa necessidade de escrever. Con-
tudo, em certo momento do livro, ela relata que o jovem japonês a pediu em
casamento e por uma confusão entre as línguas (japonês e francês), o rapaz
entendeu que ela aceitara o pedido e começou a fazer planos para o enlace,
enquanto Amélie, na verdade, gostaria de dizer que não queria se casar. Eles
ficaram noivos por um tempo, mas o noivado terminou de maneira súbita,
com o retorno da autora a Bélgica.
Temos a impressão de que o relacionamento de Amélie e Rinri é secun-
dário diante do propósito do livro em questão, pois é o passado japonês de
Amélie que toma conta da narrativa – um retorno ao velho Japão, adulta, para
reviver uma infância deixada há tempos de forma tão sofrida, para, talvez,
mais uma vez, tentar se desligar dessa infância nipônica que a persegue.
Outro aspecto do projeto transferencial de Amélie diz respeito a se tornar
uma escritora. Com o término de contrato de trabalho com a Yumimoto, o
fim de seu romance com Rinri e sua volta a Bélgica, Amélie se prepara para,
talvez, a maior e mais bem-sucedida tradução do seu enigma em torno da sua
254
origem – ser japonesa – e em torno da sua feminilidade. Disso vai resultar seu
primeiro livro, Higiene do assassino (1992), inaugurando a sua carreira como
escritora. E, podemos supor, a cada livro, a autora produz o movimento sem
fim – prerrogativa do ser humano – de traduzir, destraduzir e retraduzir os
enigmas. Daí decorre a sua marca que é a construção de histórias ficcionais
a partir de dados autobiográficos, ou de histórias autobiográficas convertidas
em ficção, traduzidas, simbolizadas.
É dessa maneira que podemos considerar que se tornar escritora é o
resultado da transformação de seu projeto transferencial num projeto de vida.
Enquanto no projeto transferencial temos composições mais fantasmáticas,
no projeto de vida há algo mais organizado e saudável, onde o outro, sempre
provocador do enigmático, está representado por seus leitores.
REFERÊNCIAS
Azzi, C. F., Moraes, M. J. (2008). “Je est un autre”: Amélie Nothomb e a
escrita autobiográfica. Revista Palimpsesto, UERJ. Recuperado em 11 abr.
2014 em http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/num7/estudos/Artigo_Cris-
tineFerreiraAzziMarceloJacquesdeMoraes.pdf
E
ste capítulo busca compreender como o diagnóstico de uma doença
oncológica sem cura, o que implica na possibilidade concreta da pro-
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todas as suas ações de cuidado dirigida a ela. E isso é enigmático, tanto para
a criança que é a receptora de tais mensagens e não tem condições de fazer
uma metabolização de tal excesso, quanto para o próprio adulto, pois se trata
do seu inconsciente.
A isso, Laplanche chama de sedução, e podemos transportá-la para a
relação do paciente com seu cuidador, considerando que o paciente encontra-
-se numa posição de passividade – igual à da criança na SAF – dependendo
totalmente dos cuidados do outro, o que instala uma relação assimétrica. E
isto terá importantes consequências para o desenrolar do projeto transferencial
do paciente. Voltaremos a este tema um pouco mais adiante.
Tal assimetria se desdobra da própria doença, uma vez que ela acarreta
uma sucessão de perdas: saúde, autonomia, independência, entre outras, e
fato de ter sido estimulado, pela sucção, seu seio, que é um órgão sexual. Com
isso, transmite-se, simultaneamente aos cuidados, esse algo a mais, um plus
de prazer na forma de excesso, que é traumático para o pequeno. Entretanto,
junto com essa ação de cuidado o adulto também comunica elementos organi-
zadores – os assistentes de tradução –, dizemos, que amenizam e possibilitam
traduções para o excesso.
Nesse sentido, propomos uma discussão sobre o diagnóstico na con-
dição de terminalidade, e, tudo o que ele implica, em termos de assistência
humana e ações paliativas ofertadas às pessoas com câncer, que operariam
como assistentes de tradução para organizar o psiquismo invadido pelo enig-
mático, proveniente da assimetria originária reeditada no anúncio da morte
próxima, se sobrepondo aos aspectos da sedução. Ou seja, damos destaque
Caso Jorge
falava que gostaria de começar logo um tratamento e poder ir para sua casa,
Jorge parecia não ter assimilado a gravidade do que lhe estava acontecendo,
demonstrava dificuldades em aceitar que precisaria de ajuda para seus cuida-
dos, pois com a metástase nos ossos o médico determinou restrições de vários
movimentos, inclusive andar. Nesse momento, ele não aceitava a realidade
de que não conseguiria morar sozinho na propriedade rural e dizia que não
ficaria na casa da cidade e que precisava voltar logo ao trabalhar.
O impacto emocional causado, não somente pelo diagnóstico de uma
doença grave, mas também pela necessidade de deixar a propriedade rural e
suas atividades, provocou intenso sofrimento, e foi o principal assunto dos pri-
meiros atendimentos. Estava claro que não se tratava apenas de uma mudança
para a casa na cidade, mas de alguma forma significava também abandonar
que se casou.
Pontuamos este atendimento em especial, considerando que Jorge, diante
de uma psicóloga mulher e na presença de sua filha, busca dar novos signifi-
cados à sua relação com as figuras femininas e representantes dessa mãe que
ele não visitou mais.
Falar dessas mulheres na sua vida também o leva a pensar na sua irmã,
com quem também estava há anos sem falar, e decide mandar uma mensagem
pelo celular. Durante este atendimento, em específico, o paciente ficou muito
ansioso e com sudorese, ao término, parecia estar mais calmo e aliviado. Esse
foi o único atendimento em que a filha permaneceu no quarto, ainda que em
silêncio, nos outros atendimentos em que ela estava de acompanhante, o
paciente pedia para que ela se retirasse do quarto.
À medida que sua internação se prolongava, os filhos também foram se
aproximando. Durante a semana revezavam a nora e a esposa, especificamente
para dormir no hospital com Jorge. Ficou muito clara a aproximação entre o
paciente e os filhos e, entre os próprios filhos, tanto que o paciente passou a
fazer planos de viajar com eles, numa possibilidade de alta hospitalar entre
as internações.
Destacamos mais um atendimento, referente à segunda internação de
Jorge, realizado por solicitação do próprio paciente, pois se sentia angustiado.
Nesse atendimento, Jorge estava inquieto, relatou que na última noite sua
esposa havia passado com ele no hospital e ele teve a iniciativa de conversar
com ela relembrando situações do passado, falaram de seus sentimentos e
das vivências juntos, mas também contou sobre a sua namorada, disse para a
esposa que estava num relacionamento com outra pessoa, e que embora não
morassem juntos, viam-se com frequência e que entendia que o casamento
deles já havia acabado há algum tempo. Relatou que ela o ouviu atentamente
e reagiu compreendendo seus argumentos de forma pacífica. Ao término desse
268
manda ar para os pulmões fazendo pressão negativa) por uma hora, de duas
a três vezes ao dia, impossibilitando que conversasse durante o uso.
Muitas pessoas foram visitá-lo no hospital. Também seus filhos fica-
ram mais presentes e a esposa passou a dormir todas as noites no hospi-
tal, acompanhando-o.
Logo após essa piora clínica, o paciente começou a apresentar melhoras.
Durante um atendimento, Jorge falou que era “uma melhora para depois pio-
rar” (sic.), o que popularmente se denomina de melhora da morte, que seria
quando um doente, já desenganado e em seu último dia de vida, apresenta
subitamente uma melhora clínica de seu estado geral, sem explicação. Assim,
podemos dizer que, de alguma forma, ele sentia que estava perto o momento
de sua morte e conseguia se preparar para esse momento através da resignação.
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Foi nessa situação que o suporte clínico domiciliar foi requisitado para uma
desospitalização depois de 32 dias de internação. Assim, o paciente teve alta
hospitalar para continuar com os cuidados na casa da esposa.
Mas, depois de três semanas, o paciente foi novamente hospitalizado.
Retomamos seu atendimento, nesta ocasião Jorge estava calmo e se preocu-
pava com a possibilidade da sua internação ser tão longa como a anterior,
porém, permaneceu no hospital apenas quatro dias para ajuste de medicação
analgésica. Nesse momento da evolução clínica do câncer sentia muitas dores.
Após mais uma semana em casa, retornou ao hospital e com uma situação
clínica pior. Apresentava dificuldades na fala, enrolando a língua ao falar e
não conseguindo pronunciar as palavras adequadamente. Nesse momento as
lesões no sistema nervoso central, e, em especial cerebrais, estavam maiores
e ocasionando momentos de confusão mental, além da disfunção orgânica. Os
procedimentos médico hospitalares adotados neste momento foram intensificar
a máscara de oxigênio, pois nem o paciente e nem sua família concordavam
com a intubação oro traqueal, gradativamente administrar sedativos a fim de
conforto respiratório e alívio de dor e deixar o paciente acomodado em um
quarto sem outros pacientes para que a família pudesse ficar mais presente
neste momento e com mais privacidade
Quatro dias após esse atendimento, Jorge foi a óbito no hospital. O último
atendimento realizado foi na véspera, Jorge estava sonolento e muito agitado,
apresentando confusão mental, não conseguia falar e emitia apenas gemi-
dos. Ele estava no quarto acompanhado pelos três filhos, nora e esposa, pois
estava agonizando, cumprimentaram o paciente e a família; nesse momento
a filha, segurando a mão do paciente, disse que todos ficariam com Jorge até
seu último suspiro. Mais tarde, a nora nos disse que a namorada dele, nesse
mesmo dia, havia estado no hospital – com consentimento da esposa – para
se despedir dele. Foi nessa madrugada que Jorge morreu.
270
E, continua,
Um paciente que tiver tido tempo necessário (isto é, que não tiver tido uma
morte súbita e inesperada) e tiver recebido alguma ajuda para superar tudo
conforme descrevemos anteriormente atingirá um estágio em que não mais
sentirá depressão nem raiva quanto ao seu ‘destino’. Terá podido externar
seus sentimentos, sua inveja pelos vivos e sadios e sua raiva por aqueles
que não são obrigados a enfrentar a morte tão cedo. Terá lamentado a perda
iminente de pessoas e lugares queridos e contemplará seu fim próximo
com um certo grau de tranquilidade expectativa (p. 117).
seus últimos momentos junto a sua família. Disse, ainda, que gostaria de ir
à propriedade rural mais uma vez para se despedir, e que preferiria morrer
no hospital, pois sabia que assim teria uma morte sem dor e sem sofrimento.
Depois que falou sobre suas vontades, conseguiu comunicá-las também aos
seus filhos e à médica.
Este atendimento ocorreu durante a penúltima internação do paciente,
ocasião em que se deu mais um sucesso importante. Desde antes da morte de
sua mãe, que morreu depois de seu pai, o paciente, como já foi dito, estava
brigado com sua irmã, não se falavam, porém, a esposa de Jorge mantinha
contato com ela e lhe contou que ele estava morrendo. Com isso, quando ele
ligou para a irmã, puderam conversar e, um dia antes da alta dessa penúltima
internação, a irmã foi até o hospital visitá-lo, foi um momento de reconciliação
de apreço, ele abdica de seus desejos e volta sua libido para si mesmo, num
movimento narcísico para se santificar, assegurar para si a sua bondade e
imortalidade. Neste sentido, não só haveria um engrandecimento do ego, para
suportar o que mais se teme, a morte, mas, também porque a busca por morrer
em paz passa pelo recalcamento dos fantasmas, do polimórfico perverso para
poder sonhar com o céu.
Dito isso, vamos ao nosso segundo questionamento norteador: como é
dada a travessia do fantasma? Para Berlofa (2019), o Projeto Transferencial
diz respeito ao fantasma do sujeito e a sua travessia, considerando que a tra-
vessia do fantasma é poder se haver com seus desejos e responsabilizar-se por
eles, ou seja, entrar em contato com conteúdos inconscientes e se apropriar
deles. No caso de pacientes com prognóstico de pouco tempo de vida, parece
no hospital, sob cuidados e sem dor. Com a família, Jorge também estabelece
relações transferenciais, revivendo os cuidados maternos infantis com a esposa
e também com a nora, que foram as duas principais figuras de cuidado em
suas internações e, com a filha, a quem revela as suas fraquezas.
Podemos dizer que foi no encontro, de alguém angustiado frente a sua
terminalidade, e alguém disposto a acolher, ouvir e suportar o desespero
que pode se desenrolar o Projeto Transferencial. Assim, fomos ocupando
diversos papéis, de cuidadora, confidente, juíza em alguns momentos, que o
absolve e, finalmente, dissemos, a personificação da morte. Mas, junto com
essa fantasmática, a nossa intervenção se materializou na forma de assistentes
de tradução que o acalmavam e o ajudavam a se organizar.
Isto é, nos oferecemos como objeto na relação transferencial para a
Considerações finais
REFERÊNCIAS
Angerami-Camon, V. A. & Gaspar, K. C. (Org.). (2013). Psicologia e câncer.
São Paulo: Casa do Psicólogo.
A
compreensão do nazismo, em profundidade, é extremamente difí-
cil. As consequências deste regime, sua relação com os judeus, o
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Para Santner (1997), o pai de Schreber era mais pai que os pais
comuns, em virtude de seu excesso de poder, influência e autoridade,
290
falo. O que nos permite dizer que o afeto que justamente move Schreber em
suas elaborações ainda é o medo.
Sobre esta lógica binária, Melman (2008) diz ser a paranoia uma tenta-
tiva de cura da esquizofrenia, por isolar um lugar Um de onde isso lhe fala e
põe o próprio paranoico em um lugar Um, de forma que a multiplicidade de
sentidos se organiza nessa unicidade monótona que é a do paranoico. O que
para nós é entendido como uma forma fálica, influenciada pelo medo, para
lidar com a pluralidade do Outro. Dentro desta lógica, o paranoico encontra
um modo de saída da esquizofrenia, o que de fato acontece com Schreber:
ele sai da esquizofrenia pela adoção de uma posição paranoica, e, a partir
do momento em que ele a assume, se sente indiscutivelmente muito melhor.
E por fim, um último ponto da história de vida de Schreber em que tam-
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relação entre Schreber e o corpo político alemão. Podemos dizer que o povo
alemão viveu intensamente a face negativa do desamparo, assim como Schre-
ber, e que estas vivências podem ter impulsionado formas diferentes de sub-
jetivação como veremos a seguir.
mundo interno que externo, mais voltado a um eu ideal, que a uma busca
de um narcisismo secundário a partir de um ideal de eu. No nosso enten-
dimento, é neste ponto que se estabelece uma perpetuação deste modelo
dentro da família autoritária, uma vez que os pais também narcísicos não
conseguiam amparar os próprios filhos, e pelo contrário, os desamparavam
com seus próprios excessos.
No entanto, vale a ressalva de que esta organização não se manifesta para
todos os indivíduos em todos os momentos, entendemos que esta organização
narcísica é estimulada em massa principalmente nos momentos de revivência
de um certo desamparo. A defesa narcísica parece se estabelecer enquanto
grande característica dentro do habitus e dos fantasmas alemães, e quando
da necessidade de se sustentar, ela é requisitada.
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Os fantasmas alemães
Podemos dizer que o grau de satisfação do povo com seu Estado depende
do tipo de execução do projeto transferencial no plano da realidade, da qua-
lidade, como veremos abaixo, das formações de compromisso feitas pelo
Estado na direção da realização dos desejos inconscientes, fantasmáticos
do projeto transferencial, ou ainda, no quanto o Estado ou seu representante
foram ativos na reedição deste projeto, possibilitando mudanças nestes desejos
inconscientes, aproximando-os da realidade, sem a necessidade de realizá-los,
mas os alterando. Portanto, assim como em uma análise, através da coautoria
do analista, se busca que o analisando faça o atravessamento de seu fantasma,
se espera que o Estado enquanto receptor e coautor, possa promover políticas
também neste mesmo sentido.
54 Isso diz respeito às relações europeias do Estado britânico. Mas, tem que ser limitado. A Grã-Bretanha criou
um império colonial que subsistiu até há pouco tempo e deixou como herança em suas colônias, além da
língua, que hoje é universal, um apartheid muito evidente. É isso que pudemos ver ocorrer na África do Sul,
no Canadá (apartheid branco) e ainda ocorre nos Estados Unidos, todos antigas colônias britânicas. Eis aí,
pois, algo muito narcísico. É provável, contudo, que foi graças a esse narcisismo que o império sobreviveu
até o século XX e seus funcionários puderam manter a rédea curta em relação aos povos colonizados
e/ou escravizados.
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 301
Hitler se mostra como um grande exemplo. Uma das ideias centrais de Freud
é que o pai primevo, enquanto figura de autoridade, funda um lugar de exce-
ção, a partir do qual seu ocupante pode se colocar, ao mesmo tempo fora da
lei (dotado de força suficiente para impor a própria vontade) e dentro da lei
(enquanto fiador desta). Uma relação quase caricata do nazismo.
Cromberg (2015 apud Marques, 2017) resume esta relação pela via da
idealização, dizendo que as leis rígidas do nazismo estão no plano de abuso
de autoridade e do pai – em referência ao pai da horda primitiva como objeto
idealizado – cujas ideias delirantes excluem a alteridade e mantém o povo
hipnotizado e submisso a uma Alemanha-mãe, que oferece uma proteção
ilimitada, que o povo, por sua vez, deve proteger.
No governo de Hitler, a forma de política adotada foi muito diferente da
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Nazi Deutschland55
plo acima pode ser entendido como tal, vejamos. A forma de identificação
apresentada por Loewenstein (1968) nos mostra claramente uma organiza-
ção subjetiva a partir de um eu ideal, assim como apontamos em relação à
população alemã.
Desta forma, é curiosa também a hostilidade deste paciente dirigida ao
analista judeu. O analista aqui parece apenas propor para o paciente uma
saída de seus ideais ilusórios, o que é visto como grande ameaça. Talvez,
generalizando esse caso, e transpondo-o para o nazismo, podemos pensar
que os judeus passem uma mensagem de subjetivação a partir do desamparo
para além de uma saída a partir do narcisismo, o que é fortemente repelido
por um corpo político com este tipo de organização. Muitas são as passagens
em que o próprio Hitler, em Mein Kampf (1925/2016), critica a pluralidade
dos judeus, sua universalidade, sua saída do desamparo por outras vias, em
nosso entendimento.
E ainda, outra coisa que podemos apontar no caso analisado Loewens-
tein (1968) diz sobre as fantasias desse paciente, de ser enfraquecido, des-
virilizado, ou mudado em mulher. Essas fantasias, do nosso ponto de vista,
se apresentam muito próximas das de Schreber. Schreber talvez não tenha
conseguido organizar seu mundo pulsional a partir de um delírio onde seria
o próprio Deus, por não encontrar formas de deslocar o temor da castração
para fora de si, assim como o nazismo o fez, na direção dos judeus. E, por
outro lado, ele encontra na posição castrada sua redenção, mas como já dito,
não uma castração simbólica de seus ideais ilusórios, mas uma castração
concreta, característica da linguagem psicótica. Portanto, podemos supor que
um corpo político judeu se organiza por um circuito de afetos onde o medo
não ocupa um lugar central, pelo menos, não na mesma intensidade, uma vez
que se apresenta com mais condições de sustentar seu próprio desamparo,
contrariamente a um corpo político alemão. Esta mudança pode ser vista em
308
Schreber para antes e depois de sua redenção, quando o medo cessa a partir
desta nova organização de seu delírio.
Nesse sentido, pensamos que talvez o deslocamento dos afetos, advindos
do nazismo em direção aos judeus, somada às razões histórias, traz também
forte relação com a fantasmática do povo alemão, e logo, parte constitutiva do
Projeto Transferencial Alemão. De um ponto de vista psicanalítico, é possível
pensar que a perseguição aos judeus pode ter colaborado na tentativa, do povo
alemão, de sair do desamparo pelo narcisismo, no período nazista. Há aí uma
satisfação narcísica, mas como ela se dava na prática? A partir, pois, de uma
relação sadomasoquista, vejamos.
Erich Fromm (1941/1983), em texto intitulado Psicologia do nazismo,
afirma que o autoritarismo pode ser compreendido como a presença, nas
A travessia do fantasma
possível. Com o fim do nazismo e a queda do pai, podemos pensar que para
os indivíduos que colocaram Hitler no lugar de seu ideal de eu (ou mesmo
seu eu ideal) tiveram de alguma forma que se defrontar com a morte desse
pai. Se este superego era muito severo no passado, após a morte de Hitler e o
fracasso do nazismo, podemos pensar em uma castração do pai? A castração
de um pai interno, do próprio superego?
Desta forma, se assim o for, a falência do nazismo joga novamente a
povo alemão no desamparo, mas agora, com a morte do pai, dá-se a castra-
ção também de ideais ilusórios. Isso permite a esse povo uma postura outra
frente ao desamparo, que agora, com menos exigência, pode ser sustentado,
afirmado. Segundo Safatle (2016), não é tão evidente que um afeto da natu-
reza do desamparo poderia ter uma função tão política. Mas seria este o
caminho, de afirmação frente a ele, que levaria a emancipação social. Uma
posição desafiante, de trilhar outra via, de compreender o desamparo como
condição para o desenvolvimento. Portanto, de coragem afirmativa diante da
violência provocada pela natureza despossessiva das relações intersubjetivas,
que seria estar diante de situações que não podem ser lidas como atualizações
de nossos possíveis, “(...) situações dessa natureza podem tanto produzir o
colapso da capacidade de reação e a paralisia quanto o engajamento diante da
transfiguração dos impossíveis em possíveis através do abandono da fixação
à situação anterior” (Safatle, 2016, p. 54).
Portanto, atravessar a fantasmática alemã, para nós, significa a produção
de novos corpos políticos, que subjetivamente consigam se sustentar frente ao
desamparo, sem a necessidade de saídas narcísicas a partir de ideais ilusórios,
ou comportamentos sádicos e masoquistas. Talvez, a conclusão acima possa
ser compreendida como o real desejo do povo alemão, dentro de um Projeto
Transferencial Alemão, impossível de ser posto em palavras antes do nazismo,
ou pelo menos, não traduzível. E por fim, sobre este desejo, se nos atentarmos
314
que é justamente a grande ênfase dada à economia nos dias atuais, subvalo-
rizando outras vivências, o que enrijece a sociedade atual, levando, segundo
Safatle (2016), a uma constituição moderna do indivíduo como potencialmente
autoritária e narcísica.
Safatle (2016) nos diz, ainda, que nunca conseguiremos pensar novos
sujeitos políticos sem nos perguntarmos sobre como produzir estes outros
corpos. Que não será com os mesmos corpos construídos por afetos que até
agora sedimentaram nossa subserviência que conseguiremos criar realidades
políticas ainda impensadas. O autor afirma de forma clara que nunca haverá
nova política com os mesmos sentimentos de sempre.
Neste sentido, para indicar pelo menos um caminho que nos é mostrado
pela clínica na atualidade, talvez, novos corpos possam se iniciar em um
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REFERÊNCIAS
Askofaré, S. (2009). Da subjetividade contemporânea. A Peste: revista de
psicanálise e sociedade e filosofia, 1(1), 65-175. Recuperado em 26 de mar.
2019 em https://revistas.pucsp.br/index.php/apeste/article/view/2705/174.
Hitler, A. (2016). Minha luta: mein kampf. (Von Punchen, K., Trad.). São
Paulo, SP: Centauro. (Trabalho original publicado em 1925).
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231, 235, 238, 239, 241, 252, 259, 277, 285, 300, 306, 307
Angústia 15, 19, 26, 36, 43, 44, 51, 58, 73, 94, 98, 113, 115, 117, 118, 119,
125, 134, 135, 136, 139, 142, 173, 181, 185, 186, 188, 189, 202, 210, 232,
250, 263, 268, 285, 287, 311, 312, 313
Antiguidade 53
Antissemitismo 304, 305
Aspectos narcísicos 21, 275
Assédio 39, 77, 85, 146, 237, 238, 244, 245, 246
Assistente de tradução 10, 64, 195, 196, 197, 200, 204, 207, 208, 245, 257,
271, 280
Autotransferencial 21
C
Campo transferencial 13, 15, 16, 30, 36, 37, 70, 89, 96, 97, 100, 130, 161,
164, 165, 176, 197, 239, 240
Catártico 28, 29
Civilização 24, 103, 141, 147, 173, 210, 234, 278, 280, 302, 310, 312,
327, 328
Conflitos 18, 19, 30, 47, 48, 60, 61, 71, 72, 81, 93, 94, 130, 158, 164, 176,
199, 201, 202, 262, 271, 285, 288, 289, 293, 301
Consciente 12, 16, 17, 29, 34, 35, 40, 43, 47, 58, 60, 64, 70, 73, 78, 87, 88,
90, 95, 97, 101, 130, 131, 132, 139, 143, 151, 162, 176, 186, 191, 219, 220,
222, 224, 239, 258, 260, 261, 270, 275, 278, 285, 309, 312
Contratransferência 9, 14, 39, 44, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 62, 63, 64,
66, 67, 173, 175, 177, 178, 179, 180, 184, 185, 188, 193, 199
320
Cultura 11, 17, 22, 23, 24, 62, 64, 103, 144, 160, 187, 188, 195, 199, 204,
205, 208, 211, 212, 215, 218, 231, 245, 249, 252, 255, 261, 262, 271, 279,
284, 287, 302, 304
D
Delírio 13, 36, 38, 70, 71, 80, 181, 239, 290, 303, 306, 307, 308, 311
Desamparo 63, 73, 179, 217, 224, 229, 231, 232, 233, 240, 257, 260, 266,
271, 280, 284, 287, 289, 290, 292, 294, 295, 296, 298, 300, 306, 307, 308,
310, 311, 313, 314, 317, 318
Desejos 46, 55, 126, 137, 140, 141, 150, 152, 154, 155, 156, 158, 160, 164,
180, 182, 185, 221, 226, 241, 244, 246, 252, 262, 276, 285, 300, 303, 307
F
Família 107, 119, 120, 125, 126, 132, 133, 134, 136, 138, 147, 150, 166, 206,
209, 210, 218, 230, 242, 247, 248, 249, 251, 258, 262, 263, 264, 265, 266,
268, 269, 270, 274, 275, 278, 295, 298, 299
Fantasias 30, 36, 39, 43, 44, 46, 48, 51, 57, 105, 110, 118, 135, 140, 153,
155, 156, 160, 165, 167, 173, 175, 180, 186, 187, 189, 190, 191, 208, 211,
239, 240, 246, 251, 252, 288, 294, 295, 296, 301, 306, 307, 311
Fantasma 18, 29, 44, 47, 69, 70, 72, 74, 81, 88, 89, 90, 98, 101, 105, 106,
114, 130, 131, 141, 143, 183, 201, 219, 276, 284, 285, 286, 295, 296, 297,
300, 308, 309, 310, 311
Fantasmáticos 15, 41, 46, 47, 53, 61, 64, 71, 183, 196, 202, 204, 211, 277,
278, 300, 301, 303
Freud 11, 12, 13, 14, 15, 22, 23, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35,
36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 46, 49, 50, 51, 52, 54, 55, 56, 57, 58, 59,
PROJETO TRANSFERENCIAL: um conceito psicanalítico em construção 321
64, 65, 66, 67, 70, 74, 75, 80, 81, 84, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 99, 102, 130,
143, 144, 145, 152, 154, 155, 156, 160, 167, 168, 177, 178, 180, 181, 182,
190, 192, 193, 196, 203, 213, 218, 219, 222, 224, 225, 226, 227, 233, 234,
238, 239, 258, 275, 276, 277, 280, 287, 289, 290, 296, 298, 300, 301, 302,
303, 308, 309, 310, 311, 316, 317, 318
H
Hipóteses 16, 45, 61, 69
Humanidade 28, 53, 73, 155, 187, 188, 189, 274
I
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J
Judeus 82, 283, 304, 306, 307, 308, 310, 314
M
Medo e submissão 77, 78, 80, 85, 133, 237, 238, 242, 251, 254, 255
Método psicanalítico 29, 56
Mitos 53
Motivações 49, 284
N
Nazismo 10, 82, 83, 280, 283, 284, 286, 289, 291, 297, 303, 304, 305, 307,
308, 310, 311, 312, 313, 314, 316, 317
Neurose 12, 31, 46, 52, 76, 83, 90, 130, 183, 296, 306, 307, 317
Neurospsicoses 42
Nothomb 10, 77, 78, 79, 81, 82, 85, 133, 146, 237, 241, 244, 249, 255, 256
322
P
Paciente 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 22, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36,
37, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58,
59, 60, 61, 62, 63, 69, 71, 74, 75, 76, 83, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 96, 97, 98,
99, 100, 101, 106, 107, 108, 111, 112, 121, 123, 125, 129, 130, 131, 132, 133,
141, 142, 143, 147, 148, 149, 151, 153, 154, 156, 158, 161, 162, 163, 164,
165, 166, 173, 175, 176, 177, 178, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188,
189, 190, 193, 196, 197, 198, 199, 201, 203, 206, 207, 208, 210, 211, 212,
219, 221, 222, 225, 231, 238, 239, 257, 258, 259, 262, 263, 264, 265, 266,
267, 269, 270, 271, 272, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 280, 284, 285, 306, 307
Passividade 13, 17, 19, 20, 30, 64, 78, 110, 112, 115, 118, 119, 124, 126, 205,
220, 225, 226, 233, 237, 247, 251, 258, 283
R
Recalcamento 22, 30, 42, 46, 48, 57, 63, 64, 83, 113, 131, 136, 197, 200,
201, 203, 212, 220, 230, 231, 232, 261, 273, 274, 276, 309
Relações 17, 22, 42, 64, 76, 79, 80, 95, 96, 97, 98, 109, 110, 115, 116, 120,
126, 135, 139, 148, 150, 158, 174, 180, 182, 186, 189, 198, 200, 209, 222,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
240, 241, 253, 260, 264, 271, 273, 277, 278, 283, 284, 287, 294, 297, 298,
299, 300, 301, 308, 313
Representações conscientes 13, 35, 161, 176, 197
Resistência 16, 28, 29, 30, 31, 32, 40, 42, 49, 54, 55, 57, 129, 164, 177, 178,
180, 186, 188, 283
S
Sadismo 246, 308
Sadomasoquista 111, 112, 113, 126, 246, 308
Satisfação 12, 17, 21, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 49, 51, 61, 63, 99, 101, 131,
136, 152, 156, 160, 161, 165, 167, 173, 179, 180, 185, 186, 187, 188, 189, 190,
197, 200, 201, 205, 222, 232, 245, 246, 258, 285, 300, 301, 303, 308, 309, 310
Satisfação narcísica 42, 308
Saúde mental 173, 174, 175, 180, 182, 184, 185, 188, 189, 190, 191, 193,
327, 328
Setting 16, 20, 37, 142, 147, 163, 177, 221, 222, 223, 238, 239, 251, 286
Sexualidade 16, 35, 41, 51, 53, 66, 74, 114, 115, 118, 120, 133, 134, 149,
151, 152, 153, 154, 156, 159, 160, 162, 165, 166, 167, 174, 185, 186, 187,
190, 192, 199, 200, 205, 220, 224, 231, 235, 257, 260
Sintoma 16, 21, 29, 37, 41, 43, 51, 58, 64, 90, 96, 99, 131, 135, 138, 141,
151, 152, 169, 303
Sofrimento 14, 16, 17, 19, 21, 40, 43, 44, 47, 62, 87, 93, 106, 131, 132, 133,
134, 136, 137, 140, 142, 143, 153, 156, 173, 174, 175, 179, 190, 195, 197,
200, 202, 203, 205, 207, 210, 212, 213, 218, 224, 226, 227, 230, 231, 258,
263, 265, 266, 270, 271, 274
Subjetivação 169, 284, 287, 288, 289, 292, 294, 297, 298, 299, 306, 307,
314, 315
324
Submissão 77, 78, 80, 85, 133, 190, 227, 232, 237, 238, 242, 244, 251, 254,
255, 312
Superego 22, 47, 74, 313
T
Teoria da sedução generalizada 23, 27, 63, 77, 195, 199, 213, 220, 237, 246,
255, 257, 259, 280
Terapeuta 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 21, 28, 29, 34, 35, 37, 46, 51, 56,
61, 62, 69, 70, 71, 74, 75, 80, 82, 87, 89, 105, 106, 109, 112, 114, 115, 119,
126, 131, 140, 162, 183, 186, 198, 199, 219, 221, 222, 284, 285
Transferência 9, 12, 13, 22, 25, 27, 29, 30, 31, 32, 34, 37, 38, 39, 40, 41, 42,
Emanuelly Martins
Graduada pela Universidade Estadual de Maringá (UEM); estudou Saúde
Mental e Psicopatologia Infantil na Université Lumière Lyon 2 (Lyon, França);
doutoranda na linha Psicanálise e Civilização pela Universidade Estadual de
Maringá (UEM). Atua como psicóloga clínica e como psicóloga social na
Prefeitura Municipal de Maringá desde 2012.
Silvia Marini
Doutora em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá, na linha de
pesquisa Psicanálise e Civilização (2019). Graduação em Psicologia (2008).
Especialização em Saúde Mental e Intervenção Psicológica (2010). Mestrado
em Ciências Sociais (2012) pela Universidade Estadual de Maringá. Docente
em cursos de graduação e pós-graduação e experiência técnica especializada
na área da Psicologia Social e em Políticas Públicas de Assistência Social.
Atualmente é psicóloga clínica, pesquisadora do Laboratório de Estudo e
Pesquisa em Psicanálise e Civilização – Leppsic da Universidade Estadual
de Maringá e docente da Unespar – Paranavaí.