Untitled
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A garota bem que tentou, mas não conseguiu escrever mais nem
uma palavra. Depois de todas as oportunidades perdidas entre os
dois, lhe pareceu algo terrivelmente insensível informar Nicolas por
carta que já havia tomado sua decisão. Não gostaria de ser
dispensada dessa maneira.
Amassou o bilhete e atirou no lixo. Em seguida, olhou mais uma
vez para o cartão enviado por Nicolas. Não se casaria com Nicolas,
mas poderia dar a ele um último encontro. Ela devia isso a ele.
22
Donatella
T ella sentia a terra preta debaixo das mãos e dos joelhos, mas
não sabia se estava seca, úmida ou cheia de grama e galhinhos
que pinicavam. E não sabia há quanto tempo estava ali, sem
conseguir se mexer. Só sabia que precisava se levantar. Precisava
continuar andando, precisava continuar fugindo, como Lenda havia
implorado em suas últimas palavras.
Quando tentou se levantar, um soluço sem lágrimas sacudiu seu
peito.
O Mestre do Caraval não estava morto para sempre. Não era a
mesma coisa que havia acontecido com a mãe da garota, que
Donatella jamais veria novamente. Ele voltaria à vida. Mas, por ora,
falecera.
Virou para trás para olhar os destroços do que, havia poucos
minutos, era o labirinto, mas Lenda não surgiu no meio da fumaça.
A confusão imperava naquele lugar que, havia poucas horas, era
pura magia e borboletas. Tella ouvia os ruídos das pessoas fugindo,
passos trôpegos e ofegantes de pessoas que não estavam
acostumadas a correr.
Ela se esforçou para ficar de pé. Sabia que precisava fugir. Lenda
lhe pedira para fugir, em suas últimas palavras. Mas o que
aconteceria com o corpo dele se Tella fosse embora? E se os
Arcanos tivessem descoberto que o futuro imperador, na verdade,
era Lenda? E se levassem o corpo dele, para que, quando voltasse
à vida, pudessem matá-lo inúmeras vezes?
Donatella voltou correndo para o meio da turba ensandecida.
– Saiam da cidade! – avisou para todo mundo que viu. – Saiam
daqui!
A garota não sabia se havia mais do que dois Arcanos por perto.
Mas, se tinham aparecido para matar o sucessor de Elantine, não
teriam medo de ser descobertos. Além disso, provavelmente,
atacariam o palácio em seguida. Que, ao contrário da área externa,
ainda estava iluminado e reluzente, intocado pela violência. Por ora.
Quando os Arcanos tomassem o palácio e, na sequência, o império,
os chafarizes se encheriam de sangue.
Uma mão tensa segurou o ombro de Tella.
– O que você pensa que está fazendo?
Ela ficou com o corpo tenso, preparado para a briga, por mais que
tenha reconhecido aquela voz: grave e retumbante, com um sotaque
arrastado e um pouquinho trêmula. Julian.
Era difícil enxergar o rosto dele no escuro. Mas o apertão
alarmado que deu no ombro de Donatella já revelava muito.
Julian já sabe do que acabou de acontecer.
– Precisamos voltar para o labirinto e resgatar o corpo dele –
disse Donatella.
– Tella… – Julian apertou ainda mais o ombro da garota. – Meu
irmão morreu.
– Mas ele vai voltar à vida… não vai?
Donatella tentou se sacudir para se desvencilhar da mão de
Julian. Ou, talvez, estivesse apenas tremendo.
– Ele é imortal. Vai voltar à vida.
– E por que você não está falando isso com mais convicção?
– Porque estou tentando salvar sua vida neste exato momento.
Meu irmão me fez jurar que, se alguma coisa desse tipo
acontecesse com ele, eu levaria você para um local seguro.
Julian, então, soltou o ombro de Tella, a pegou pelo braço e a
puxou na direção contrária do palácio.
– Espere… Espere aí – disse Donatella, toda ofegante. – E
Scarlett?
– Não está aqui. – Julian puxou a mão de Tella com mais força,
obrigando-a a enfrentar as nuvens de fumaça. – Ela não apareceu
no labirinto para me encontrar, como combinado. Fui procurá-la…
mas sua irmã não está no palácio.
– Onde é que ela está?
– Com o conde.
– Mas… mas… – balbuciou Tella. – Scarlett me disse que ia
cancelar a disputa.
– Bem que eu gostaria que ela tivesse feito isso – resmungou
Julian, com um tom aflito, pressionando Donatella para correr mais
rápido. – Quando entrei nos aposentos de sua irmã, encontrei um
cartão do conde, pedindo para encontrá-la novamente, hoje.
– Onde ele mora?
– Nos arredores da cidade, passando as ruínas mais abaixo do
Distrito dos Templos.
– Então é para lá que a gente vai.
Fez-se um silêncio, um silêncio repleto de nada a não ser a
respiração pesada dos dois. Julian poderia ter argumentado que
primeiro levaria Tella para um local seguro e depois, sozinho,
procuraria Scarlett. Mas, pelo jeito, o amor que o rapaz sentia pela
irmã de Donatella superou a promessa que fizera ao irmão.
Ou, talvez, Julian apenas soubesse que não adiantaria brigar com
Tella. Era por isso que a garota sempre gostou de Julian. Ele nunca
desistia de sua irmã mais velha.
Os dois atravessaram juntos a cidade na penumbra, fugindo
rapidamente. Mas não conseguiram ir mais rápido do que as
fofocas:
“O Príncipe Dante morreu: foi esmagado pelo próprio labirinto.”
“O antigo herdeiro do trono voltou e assassinou o Príncipe Dante.”
“O Príncipe Dante foi assassinado dentro do labirinto.”
“Invasores dominaram a cidade e decapitaram o Príncipe Dante.”
Algumas dessas alegações estavam mais próximas da verdade
do que outras. Mas todas tinham uma coisa em comum: Lenda
estava morto.
Tella ficou trôpega, mas não parou de correr. Pelo contrário:
correu ainda mais. Os Arcanos haviam vencido mais uma rodada.
Mas, quando ela encontrasse a irmã – e Lenda voltasse à vida –,
todos iriam juntos ao Mercado Desaparecido. Descobririam uma
maneira de destruir a Estrela Caída. E, aí, também conseguiriam
deter os demais Arcanos.
Os sapatinhos da garota já estavam esburacados quando ela e
Julian passaram dos limites da cidade, ao amanhecer. O nascer do
sol foi de um vermelho-sangue reluzente: parecia que alguém tinha
esfaqueado as nuvens e, em vez de cair chuva, brotaram ondas
enevoadas de vermelho. Em qualquer outra manhã, isso pareceria
errado. Mas, naquele dia específico, parecia apropriado até o céu
ter uma aparência violenta.
Havia um trecho de gramado seco e amarelado entre a cidade e o
palacete do conde. O latido triste de um cachorro era o único som
que se ouvia, além do arrastar dos pés cansados de Tella e dos
passos de Julian.
A jovem tentou recuperar o fôlego, já que eles tinham diminuído o
ritmo. Respirou fundo, mas o ar tinha um gosto sujo, das partes
mais fétidas da cidade, e não de um trecho de campo e ar fresco. À
medida que se aproximavam do palacete do conde, o fedor foi
ficando mais forte, e os uivos tristes do cachorro, mais altos.
Tella abraçou o próprio corpo, e Julian foi andando ao lado dela.
A residência do conde mais parecia o começo de um conto de
fadas, mas antes de a magia acontecer. Os jardins eram repletos de
flores curiosas e bem cuidadas, que pareciam ter sido plantadas
com carinho. Mas a casa em si estava com a pintura descascada;
as janelas estavam limpas, mas eram cheias de rachaduras; e as
chaminés caindo aos pedaços pareciam precisar urgentemente de
consertos. Até o caminho comprido que levava até a casa estava
cheio de rachaduras.
– Pensei que a residência do conde seria mais ajeitada –
comentou Tella. – Pelo jeito que Scarlett descreveu, era muito
melhor.
– Acho que ela não viu a casa como realmente era quando
estivemos aqui. Acho que estava preocupada demais porque ia
conhecer o conde pessoalmente. E não tinha esse fedor.
Dito isso, Julian tapou o nariz e a boca com a mão.
Tella fez a mesma coisa, e uma nova onda de nervosismo
embrulhou seu estômago. O fedor era tão pútrido que ela ficou com
ânsia de vômito quando chegaram à entrada da casa. A porta
estava entreaberta, exalando ainda mais daquele odor maldito.
O cachorro latiu de novo, um ganido longo e sentido.
Donatella parou bem na hora que a porta se escancarou de vez:
um zumbido terrível e incessante acompanhou os uivos angustiados
do cão.
Mais tarde ela não se lembraria de ter entrado na casa, mas iria
se arrepender de ter posto os pés ali. Não apareceu nenhum criado
para lhes dar as boas-vindas ou mandá-los embora. Só se ouviam o
uivo interminável do cão, o zumbido das moscas e as preces
silenciosas de Donatella.
Não permita que minha irmã esteja morta.
Não permita que minha irmã esteja morta.
Porque alguém, com certeza, estava morto. O fedor mórbido ficou
pior quando ela e Julian, por fim, passaram do vestíbulo e chegaram
à biblioteca aberta.
Tella ficou balançando, parada, ao ver o cadáver do conde. Ou o
que ela pensou ser o cadáver do conde. Ele estava na biblioteca do
segundo andar, sentado em uma poltrona enorme, atrás da
escrivaninha, e parecia que alguém havia queimado toda a pele de
seu corpo.
O cachorro, ao lado dele, uivou de novo e ficou sacudindo o
focinho triste, tentando impedir os vermes e as moscas de se
banquetearem nos restos mortais do dono.
Donatella tentou desviar o olhar do corpo carbonizado: já vira
mortes demais naquela semana. Não precisava olhar o Ceifador nos
olhos novamente. Nunca vira um cadáver esfolado a fogo – e
gostaria de não estar vendo um naquele exato momento. Mas não
conseguia desviar o olhar da cena macabra diante dela. Aquilo era
impossível. Se d’Arcy tivesse sido queimado vivo, outras partes da
biblioteca também teriam pegado fogo. Parecia que alguém instruíra
as chamas, dizendo para queimarem apenas a pele de Nicolas.
A garota cambaleou para trás porque algo que Jacks havia dito
lhe veio à cabeça.
“Pelo menos ele a matou com uma facada e não a queimou com
seus poderes… O fogo é a maneira mais dolorosa de morrer.”
– Acho que sei quem fez isso – disse Tella. – Acho que a Estrela
Caída esteve aqui à procura de Scarlett.
As feições de Julian perderam completamente a cor.
– O que ele poderia querer com Carmim?
– Por causa da nossa mãe. Antes de matá-la, a Estrela Caída
disse que Paloma o obrigou a voltar para o Baralho do Destino
amaldiçoado: ele já deve ter vivido em liberdade antes, e nossa mãe
o aprisionou novamente. Pelo jeito, não bastou matar apenas ela:
agora esse Arcano vai atrás das filhas.
O que também explicaria por que o apartamento delas tinha
ficado de pernas para o ar.
Tella torcia para estar enganada. Não podia perder a irmã do
mesmo jeito que perdera a mãe. Mas não conseguia imaginar mais
ninguém fazendo aquilo nem por que alguém faria uma coisa
daquelas. Nunca gostou de Nicolas, mas o fato de ele, visivelmente,
ter sido torturado até a morte a fez pensar que d’Arcy não entregaria
a irmã – ou, pelo menos, não facilmente.
Talvez Scarlett tivesse conseguido fugir. Pelo jeito, todos os
criados tinham fugido. Então, havia a possibilidade de a irmã mais
velha de Donatella ter ido com eles. Ou ela dera um jeito de se
esconder, e os dois só precisavam encontrá-la.
Julian tentou tirar o cachorro da biblioteca quando foram procurar
Scarlett. Mas o animal não queria sair dali: continuou de guarda ao
lado do dono morto, ganindo, enquanto Tella e Julian reviravam
cada lúgubre centímetro do palacete, à procura de Scarlett.
– Carmim! – gritou Julian, e Tella poderia jurar que ele estava com
os olhos cheios de lágrimas. Não estava chorando, mas quase. –
Carmim!
– Scarlett! – berrou Donatella na mesma hora.
E continuou repetindo o nome da irmã até ficar com a garganta
dolorida. À medida que esquadrinhava armários, adegas e cômodos
empoeirados, cheios de móveis cobertos por tecidos, foi ficando
com a visão borrada. Quando ela e Julian terminaram a busca, Tella
estava com as pernas tremendo, toda suja de poeira e não havia
encontrado nenhum sinal de que Scarlett estivera ali um dia.
Julian também estava imundo, todo suado. Com o cabelo grudado
na testa e a camisa grudada no peito. Os dois saíram da mansão se
arrastando e foram para os estábulos vazios. Era o único lugar do
palacete que não fedia a morte.
Mas Tella não queria descansar. Não queria se encolher no feno e
comer o lanche que Julian pegara na cozinha. Não queria reviver
horror nenhum nem ficar sentada em silêncio enquanto seus piores
medos se tornavam realidade. Já tinha perdido a mãe e Lenda. Não
podia perder a irmã.
Sentiu um aperto no peito. E, por um instante de desespero,
desejou que Jacks estivesse ali para tirar aquela dor de dentro dela.
26
Scarlett
S carlett fingiu que não estava apavorada. Fingiu que não estava
aprisionada no Zoológico Místico. Fingiu que, em vez dos tons
de ameixa petrificados, seus sentimentos tinham nuances tranquilas
de cor-de-rosa que combinavam com a cama diáfana em forma de
meia-lua, onde se obrigou a deitar.
Teve vontade de usar a Chave de Devaneio no mesmo instante
em que a Estrela Caída saiu do recinto. Só que a Dama Prisioneira
não tirou os olhos cor de lavanda de Scarlett. Por causa da gaiola,
Anissa não poderia impedir a garota de ir embora, mas ela não
queria que a Dama Prisioneira gritasse e avisasse um dos guardas
antes que desse tempo de fugir. Seria mais seguro sair de fininho,
depois que o Arcano pegasse no sono.
– Não sei qual é o seu plano, mas pode confiar em mim.
A Dama Prisioneira pulou delicadamente do poleiro, foi até a
beirada da gaiola, e ficou observando Scarlett pelos vãos entre as
grades de ouro. Seu sorriso era bem mais convincente do que o
sorriso da Estrela Caída. Mas ela era um Arcano e, apesar de estar
aprisionada, dera a impressão de ser muito leal à Estrela Caída
antes de Gavriel ir embora.
Marcello, o outro pai de Scarlett, tinha guardas assim, mais
jovens, a quem ordenara para serem simpáticos com as filhas, com
o objetivo de se aproximarem das garotas e ficar bem de olho nelas.
– Não estou planejando nada – disse Scarlett.
– É claro que está – retrucou Anissa.
– Está falando isso por causa do seu poder? – Scarlett continuava
sem confiar no Arcano aprisionado, mas tinha curiosidade a respeito
de Anissa. Recordava o que a carta da Dama Prisioneira
representava, mais ainda não se lembrara de quais eram suas
habilidades. – Quando seus olhos ficaram brancos, há pouco, você
estava vendo o futuro?
– Eu enxergava o futuro, lindinha. Antes de vir parar nesta gaiola,
eu era amada pelos meus talentos. As pessoas tinham medo dos
outros Arcanos, mas me adoravam. E sabiam que podiam confiar
em mim porque não consigo mentir. Esta gaiola sufocou meus
talentos. Agora só consigo ter pequenos vislumbres de coisas que
vão acontecer. De vez em quando, tenho palpites de quais são as
melhores decisões a tomar ou o que não se deve fazer. Mas o único
de meus talentos que ainda realmente tenho é minha incapacidade
de mentir.
O Arcano começou a passar os dedos nas grades da gaiola, e
Scarlett ficou observando com ar de incredulidade. O que a Dama
Prisioneira disse, a respeito de não conseguir mentir, não lhe era
estranho, mas nem por isso confiou nela.
– Você continua olhando para mim como se eu fosse sua inimiga.
Mas estou muito mais encurralada do que você. Por acaso sabe
como é horrível ser feita de bicho de estimação?
Não. Mas Scarlett tinha a sensação de que, se não saísse logo
dali, iria descobrir.
– Por que ele colocou você nessa gaiola?
– Não foi só ele. Outro Arcano também participou: o Boticário. Ele
pode movimentar metais e pedras com a força do pensamento. O
Boticário criou a gaiola, e Gavriel a selou com fogo, tornando-a
impenetrável para todos, menos para ele. Fez a mesma coisa com a
Morte Donzela: pediu para o Boticário colocar uma gaiola de pérolas
na cabeça dela. Como a Morte Donzela, só poderei ser livre quando
a Estrela Caída tiver morrido de verdade.
Os olhos violeta de Anissa se encheram de tristeza, mas Scarlett
estava vendo fios de um roxo violento rodopiando em volta dela. A
Dama Prisioneira não era leal a Estrela Caída. Mas isso não queria
dizer que seria leal a Scarlett. A Dama Prisioneira só queria sair
daquela gaiola.
– Gavriel sente prazer em aplicar castigos. Se você for esperta,
me dará ouvidos. Assim que ele usurpar a coroa do Império
Meridiano, dará início a uma dinastia de terror. O único motivo para
a Estrela Caída não estar sentado no trono neste exato momento é
que ele adorar brincar com os seres humanos e querer que seus
súditos o adorem antes que comecem a odiá-lo.
– Ele não vai sair impune – garantiu Scarlett.
A garota não era muito fã de Lenda, mas o Mestre do Caraval
faria tudo que estivesse ao seu alcance para permanecer no trono.
– Ah, querida – disse a Dama Prisioneira, com um suspiro. – Ele
já está saindo impune. Enquanto você dormia, feito uma donzela em
perigo, Gavriel enviou alguns de seus leais Arcanos para assassinar
o futuro imperador.
– Como assim?
Scarlett sentiu que todo o sangue se esvaiu de seu rosto. Lenda
não podia estar morto. Lenda era imortal. Imortais não morrem. Mas
sabia, melhor do que ninguém, que Lenda poderia morrer – vira o
cadáver dele durante o primeiro Caraval do qual participara. Ele
voltaria à vida, uma hora ou outra. Mas, se realmente estivesse
morto, o que teria acontecido com Julian e Tella?
Quando Scarlett saiu do palácio para se encontrar com Nicolas,
tanto Tella quanto Julian estavam lá. Donatella sabia a hora de fugir.
Mas Julian gostava de brigar: era irmão de Lenda, fazia parte dos
joguinhos dele e da corte do irmão. E, ao contrário de Lenda, Julian
era mortal. Se morresse fora do período do Caraval, não voltaria à
vida.
Scarlett ficou com a boca seca. Precisava muito sair dali e
encontrar Julian e a irmã.
– Fico feliz por você, finalmente, acreditar em algo que eu disse.
O Rei Assassinado e a Rainha Morta-Viva estão no comando. Os
seus livros de história contam que os dois foram nossos
governantes, mas ambos eram subordinados de Gavriel. Ele deu
ordens para aterrorizar todos ao máximo, até a cidade inteira ficar
apavorada. E é aí que Gavriel vai surgir, no papel de salvador do
império, e se apossar do trono. Até lá, as pessoas vão estar prontas
para acreditar em qualquer mentira que ele contar. A menos que
você resolva detê-lo.
Anissa, então, se segurou nas grades da gaiola e ficou olhando
para Scarlett, do outro lado do cômodo.
– Você precisa se tornar o que ele mais quer. Você é a única que
tem o poder de derrotá-lo.
Os olhos da Dama Prisioneira mudaram de cor, passando de
lavanda para um branco leitoso. E aí seus ombros se encolheram.
Ela soltou as grades, voltou para o poleiro, fechou os olhos e pegou
no sono de novo, como se não tivesse acabado de dizer para
Scarlett que o fim do mundo estava próximo e cabia à garota salvá-
lo.
Só que Scarlett só conseguia pensar em salvar duas pessoas:
Tella e Julian. Precisava fugir dali e se certificar de que os dois
estavam bem.
Sentou-se na cama baixa e ficou balançando as pernas: não
conseguia mais fingir que não estava apavorada. Pelo jeito, Anissa
estava dormindo, mas ela esperou até a respiração do Arcano ficar
mais parecida com uma série de roncos suaves.
Scarlett levantou da cama com todo o cuidado e deu um passo.
Anissa continuou roncando.
Scarlett deu mais um passo.
Depois, mais um.
E mais outro. E aí, sem ter a intenção, estava correndo até a porta
principal e enfiando a Chave de Devaneio na fechadura.
Julian. Julian. Julian.
Pensar no nome dele enquanto girava a chave na fechadura foi a
decisão mais rápida que Scarlett já tomara na vida. Se Julian
estivesse vivo, ela precisava…
Seus pensamentos foram interrompidos quando atravessou a
porta e se encontrou de pé, debaixo de uma estrutura de madeira
meio bamba, olhando para um mar de palha e feno, com um rapaz
bonito e cansado bem no meio.
Perdera a casaca, estava com as mangas da camisa
arregaçadas, as calças rasgadas, e o coração de Scarlett foi parar
na boca no mesmo instante em que o viu.
Os olhos cor de âmbar de Julian se arregalaram ao vê-la e,
provavelmente, ao ver o vestido dela, que havia se transformado em
um traje de baile cintilante, com uma saia volumosa, totalmente
coberta de rubis. Era difícil correr com aquele vestido, mas isso não
impediu Scarlett de se atirar para a frente e abraçá-lo.
Julian tinha cheiro de terra, de lágrimas e de perfeição. E a jovem
decidiu que nunca, jamais, o soltaria. Gostaria que houvesse uma
maneira de amarrar o próprio coração ao dele. Para que, mesmo
quando estivessem separados, permanecessem ligados. Existiam
coisas no mundo das quais Scarlett realmente deveria ter medo.
Mas amar Julian não era uma delas.
– Estou tão feliz por você estar vivo! Quando fiquei sabendo o que
aconteceu com Lenda, fiquei apavorada, achando que você também
poderia estar ferido.
– Estou bem. Estou bem. – Julian abraçou Scarlett mais apertado,
como se também nunca mais quisesse soltá-la. – Eu só fiquei
preocupado com você. Como conseguiu chegar aqui?
– Usei a chave. – Scarlett se afastou um pouquinho, só para
poder olhar Julian nos olhos. – Precisava encontrar vocês.
Antes que desse tempo para ele responder, Scarlett inclinou o
corpo para a frente e o beijou com todas as suas forças.
No instante em que Scarlett encostou os lábios nos de Julian, ele
enroscou os dedos no cabelo dela e a devorou com a língua,
ocupando cada centímetro da boca da jovem.
Normalmente, ele era terno quando a beijava, a adorava com os
lábios e acariciava seu corpo delicadamente. Mas não havia ternura
nenhuma naquele beijo. Era um beijo desesperado e devorador. Um
beijo com dentes e garras, como se os dois precisassem ficar
unidos não apenas com as mãos. As costas do vestido de Scarlett
sumiram e as mãos de Julian percorreram a pele que ficou à mostra.
Ela sabia que deveriam falar de outros assuntos, mais prementes.
Mas nada parecia ser mais urgente do que aquilo. Se os últimos
dias haviam provado alguma coisa, era que o mundo poderia mudar
de uma hora para a outra, de um jeito doloroso. Pessoas morriam.
Pessoas eram sequestradas. Pessoas se revelavam bem diferentes
do que Scarlett imaginava.
Mas ela sabia quem Julian era. Tinha seus defeitos, era
imperfeito, imprudente e impulsivo. E também era apaixonado, leal e
amoroso – e era ele que a garota queria. Era a mão de Julian que
Scarlett queria segurar. A voz dele era o som que queria ouvir, e o
sorriso dele não era apenas algo que ela queria ver: queria ser o
motivo para Julian sorrir.
Aquele rapaz jamais seria perfeito: já havia dito isso para Scarlett.
Só que ela não queria alguém perfeito – só queria Julian. E
começou a desabotoar a camisa dele.
– Calminha aí, Carmim… – Nessa hora, Julian segurou
delicadamente os pulsos de Scarlett e completou: – Por mais que eu
esteja adorando, precisamos parar.
Com todo o cuidado, ele tirou as mãos dela da camisa. Quando
fez isso, ela viu um relevo vermelho no braço dele, onde antes havia
um curativo. A atadura de tecido tinha sumido e, em seu lugar, na
parte de baixo do braço, havia uma tatuagem de estrela, preenchida
com um tom bem forte de vermelho.
Na mesma hora, lágrimas se acumularam nos cantos dos olhos
de Scarlett.
– É escarlate – comentou, com um suspiro.
Julian deu um sorriso tímido e corrigiu:
– Na verdade, é carmim.
– Mas… mas… – gaguejou a garota, sem saber direito o que
dizer. Julian fizera aquela tatuagem quando os dois não estavam
nem se falando e não tinha nenhuma garantia que continuariam
juntos.
– Eu não quis esperar – explicou o rapaz, lendo os pensamentos
dela com toda a facilidade, pela cara que Scarlett fez. – Eu sabia
que, se voltasse de viagem e as coisas não dessem certo, me
arrependeria de ter perdido você. Mas jamais me arrependeria de
ter em mim algo que lembrasse você.
– Te amo, Julian.
O sorriso que o rapaz deu poderia salvar o mundo.
– Graças aos defuntos santos! Eu estava esperando você me
dizer isso faz muito tempo.
Ele grudou os lábios nos dela, devorando-a com um beijo mais
uma vez.
– Eu devia ter dito isso antes – falou Scarlett, pronunciando essas
palavras entre um beijo e outro, sem conseguir se segurar. – Eu
deveria ter dito isso no instante em que saímos do palacete de
Nicolas e me dei conta de que o jogo que inventei era um erro. Eu
escolho você, Julian, e prometo que sempre vou escolher você e
sempre vou te amar. Vou te amar com cada osso do meu corpo,
para que, mesmo depois que meu coração parar de bater, uma
parte de mim continue amando você para sempre.
Julian lhe deu mais um beijo, mais terno dessa vez, com lábios
atenciosos e macios, sussurrando, encostado nos lábios dela:
– Te amo desde aquela noite em que você apareceu na praia, lá
em Trisda, achando que conseguiria me subornar para eu ir embora
sozinho. Vi o quanto você estava apavorada quando apareci, mas
você não se intimidou.
– E aí você me sequestrou.
O sorriso de Julian se tornou lupino.
– Isso aí foi ideia da sua irmã. Mas tenho tentado roubar você
desde então.
Julian massageou as costas de Scarlett, a puxou para perto de si
e lhe deu mais um beijo.
Só que Scarlett se assustou porque ouviu um ruído, vindo de
cima.
Ela desviou o olhar e deu de cara com Tella, que observava os
dois, do mezanino do celeiro. Pelo jeito, havia acabado de acordar
de um sono muito pouco satisfatório. Estava com o cabelo cheio de
feno, os olhos vermelhos, e os lábios formavam uma careta.
29
Scarlett
L enda estava ali e estava vivo. Tão vivo que, só de vê-lo, Tella
sorriu até suas bochechas ficarem doendo.
– Você voltou.
A garota disse essas palavras com um tom ofegante, mas nem
ligou.
Já passara do ponto de tentar fingir que o ver não a deixava sem
ar. Lenda parecia um desejo realizado que acabara de despertar.
Seus olhos estavam cheios de estrelas, sua pele cor de bronze tinha
um brilho sutil, e o cabelo castanho-escuro estava um pouco
bagunçado. Não usava lenço no pescoço, e os primeiros botões de
sua camisa preta estavam abertos: parecia ter se vestido com
pressa para sair de casa – para encontrar com ela.
Se o sorriso de Donatella já não estivesse espichado ao máximo,
ela poderia ter dado um sorriso ainda mais largo.
– Por acaso você achou que eu não ia voltar?
O Mestre do Caraval olhou a garota nos olhos e retorceu o canto
do lábio, dando aquele esgar arrogante que Tella tanto adorava.
– Eu…
Donatella deixou a frase no ar. As palavras “estava preocupada”
ficaram entaladas em sua garganta. Só havia um motivo para ter se
preocupado com aquele homem.
Engoliu as palavras e se esforçou para continuar sorrindo. Lenda
estava vivo. Estava vivo e bem ali. Nada mais importava. Ele estava
vivo. A garota jamais superaria se o Mestre do Caraval tivesse
morrido porque a amava. E também foi tão dolorido se dar conta de
que Lenda só estava ali, parado, parecendo um sonho que se
tornou realidade, porque não a amava, ao passo que Tella o amava
desesperadamente.
– Hãn-hãn – disse a mais velha das irmãs. – Caso vocês dois
tenham se esquecido, o tempo aqui passa de um jeito diferente, e
eu estava falando.
Lenda apertou os lábios e virou para a mulher, espremendo os
olhos de leve, como se quisesse ter criado uma ilusão que a fizesse
sumir. Talvez estivesse tentando fazer isso, mas sua magia não
funcionava direito dentro daquele local místico.
O que foi bom, porque Tella precisava daquele lugar e daquela
mulher.
– Você estava dizendo que terei uma filha – disse a garota.
– Sim. O pai de sua filha possuirá magia – prosseguiu a mulher. –
Ela vai nascer com um talento muito poderoso. Mas a criança terá
uma fraqueza fatal. Em troca do segredo mais bem guardado da
Estrela Caída, queremos que você descubra a fraqueza secreta de
sua filha e volte aqui para nos dar essa informação.
– Tem certeza de que vocês não querem nenhum dos meus
segredos?
Tella ainda não havia digerido o fato de ter uma filha. Nem que
visitaria aquele mercado de novo, no futuro, o que a fez pensar que
sobreviveria a tudo aquilo. Mas odiava ter que pensar que aquela
era a única maneira.
– Você ainda não nos contou quem será o pai – disse Lenda,
indolente, apoiando os ombros largos em uma das estacas da
barraca.
Só que Donatella teve a impressão de que viu um músculo do
maxilar dele se repuxar.
– Não temos permissão para passar esta informação – disse a
mais velha das irmãs. – E não é bom saber demais do futuro.
Tella concordava. A carta do Aráculo, que havia lhe mostrado
relances do futuro, quase a matara. E, apesar disso, não resistiu e
perguntou:
– Você não pode só me dizer se ele é o pai?
– Quem mais poderia ser o pai? – vociferou Lenda.
– Não fique bravo comigo! – disparou a garota. – Foi você que
perguntou primeiro.
E você não me ama, disseram os olhos dela.
As partículas de ouro dos olhos de Lenda brilharam. E, de
repente, o Mestre do Caraval estava dentro da barraca, bem na
frente de Donatella, olhando para ela com aquele rosto lindo, que
Tella temera tanto jamais voltar a ver.
– Eu bem que te pedi para deixar que eu te transformasse em
imortal.
Então Lenda passou uma mão quente, forte e firme na cintura de
Donatella e pôs a outra mão na nuca da garota. Em seguida, a
puxou mais para perto de si, com um sorriso demoníaco.
Tella ficou sem ar e perguntou:
– O que você acha que está fazendo?
– Pedindo de novo.
Dito isso, o Mestre do Caraval a beijou, um beijo apressado, bruto
e um tanto selvagem. Tella entreabriu os lábios, mas foi só o que
conseguiu fazer. A mão que segurava a cintura da garota a
mantinha apertada contra o corpo de Lenda, que abriu os dedos que
estavam no pescoço dela, tapando a garganta e levando a cabeça
de Donatella para trás, assumindo total controle e intensificando o
beijo. Lenda estava tomando posse de Tella a cada vez que
movimentava a língua e pressionava os lábios, falando, sem
palavras – mais uma vez – que desejava que a garota fosse sua
para sempre. Não a beijou como se simplesmente tivesse acabado
de voltar à vida. Lenda a beijou como se tivesse morrido, sido
enterrado e saído da cova tirando a terra com as próprias mãos, só
para voltar a ficar do lado dela.
Donatella nunca havia sentido nada tão inebriante na vida. Lenda
podia até não a amar, mas Julian tinha razão quando disse que o
irmão sabia como fazer alguém se sentir desejado.
– É só dizer “sim” – insistiu ele, com os lábios encostados nos
dela. – Deixe que eu te faça imortal.
– Você está jogando sujo – murmurou Tella.
– Nunca neguei isso e vou jogar sujo desta vez. – Ele acariciou a
nuca sensível da garota. – Você é importante demais, Tella.
Mas você não me ama.
Por mais doloroso que fosse saber que Lenda não a amava,
Donatella também sabia que, se ele a amasse, não estaria vivo
naquele exato momento.
– Hãn-hãn – pigarreou a mais velha das irmãs. – Se vocês
querem começar a fazer essa filha neste exato momento, receio que
este não seja o local mais apropriado.
Tella deu um pulo, afastando-se de Lenda, e voltou, de supetão, à
terrível realidade. Nunca na vida ficara tão corada de vergonha.
– Agora sugiro darmos prosseguimento – prosseguiu a mais velha
das irmãs. – Se vocês dois continuarem fazendo o que estão
fazendo, semanas terão passado no seu mundo quando saírem do
nosso.
Santos miseráveis. Donatella realmente havia se esquecido do
tempo. Não ouvira nenhum sino tocar, mas imaginou que já devia ter
se passado mais de uma hora, talvez até mais. Ou seja: no mínimo
um dia inteiro havia se passado no mundo dela. Mais um dia em que
a irmã ficava em cativeiro, aprisionada pelo Arcano que assassinara
a mãe das duas. Mais um dia que o povo de Valenda sofria horrores
inenarráveis, porque outros Arcanos brincavam com elas como se
fossem brinquedos que queriam quebrar.
E ela, ali, beijando Lenda.
Tella olhou para o baú de jaspe vermelho que a mulher mais velha
segurava. Ela estava ali para isso – descobrir um segredo que
poderia salvar a vida de todos – e precisava daquele baú, seja lá
qual fosse o preço.
– Aceito. Vou fazer a troca.
– Tella, você não precisa fazer isso. – Lenda, então, se dirigiu à
mais velha das irmãs, inclinou a cabeça e deu um sorriso que teria
feito a maioria das damas desmaiar. – Pode ficar com um dos meus
segredos.
A mulher apertou os lábios e respondeu:
– Não estamos interessadas.
Uma ruga se formou entre as sobrancelhas castanho-escuras de
Lenda: ele ficou ofendido.
– Então deve ter alguma outra coisa que vocês queiram.
Do lado de fora, o sol ainda lançava sua luz verde-limão no
mundo, mas nenhum raio chegava ao interior da barraca. Estava
ficando mais frio, e nuvens pesadas, de uma névoa azul prateada,
se alastravam.
– Lenda… – Tella pôs a mão no braço dele, antes que a névoa se
tornasse tão densa que não desse mais para enxergar. – Não tem
problema, você não precisa me salvar. Sei o que estou fazendo.
– Mas não é certo você ter que fazer isso.
O Mestre do Caraval se virou para a garota de novo e, apesar de
não ter dito mais nem uma palavra, ficou com um olhar terno, que
pedia desculpas. E Donatella teve certeza de que não eram
desculpas por suas atitudes ou por seus segredos.
Lenda estava pensando na única coisa em que Tella não queria
pensar. Ou melhor: na única pessoa em que ela não queria pensar –
a mãe.
Quando Paloma possuía o Baralho do Destino que aprisionava os
Arcanos, o Templo das Estrelas queria que entregasse Scarlett para
eles, em troca de esconder o Baralho do Destino amaldiçoado. A
mãe se recusou a fazer isso, mas não teve nenhuma dificuldade de
oferecer a filha mais nova para o templo. E Donatella sentiu que
essa era pior das traições, algo muito parecido com o que estava
fazendo naquele momento.
– Você não precisa fazer isso – insistiu Lenda.
Só que Tella não conseguia enxergar uma alternativa e sabia que
não podia correr o risco de desperdiçar mais tempo tentando
encontrar uma.
– Minha irmã… A Estrela Caída está com ela. Scarlett só deixará
de correr perigo depois que o Arcano morrer.
– Eu sei. Julian me contou, pouco antes de eu vir aqui te procurar.
– Então você deve saber que preciso fazer isso. – Donatella deu
as costas para ele antes que sua consciência tentasse convencê-la
a mudar de ideia. – Fechado.
– Ótimo – disse a mais velha das irmãs. – Só precisamos selar
sua promessa. Se você não conseguir descobrir qual é a fraqueza
secreta de sua filha até ela completar 17 anos, ou resolver não a
contar para nós, pagará com sua vida.
E, antes que desse tempo de alguém protestar, a mais nova das
irmãs encostou um bastão de ferro largo na parte de baixo do pulso
de Donatella.
Ela gritou a plenos pulmões.
Lenda se aproximou correndo e segurou a outra mão da garota.
– Olhe para mim, Tella.
O Mestre do Caraval segurava a mão dela com firmeza,
tranquilizando-a, mas estava longe de distraí-la da dor e da tristeza.
Tanta tristeza…
Tella sabia como era se sentir com o coração partido, mas aquele
era o tipo de dor que se sente por ter machucado o coração de outra
pessoa. Um coração frágil. Um coração de criança. Um coração de
filha.
Donatella fechou os olhos para conter as lágrimas.
A mais jovem das duas irmãs tirou o ferro do pulso dela. Onde
antes a pele era perfeita, agora havia uma fina cicatriz branca, um
cadeado formado por espinhos. E não doía mais. A dor sumiu
instantaneamente, assim que a marca surgiu. Mas, apesar de Tella
não sentir mais dor nem tristeza, tampouco se sentia a mesma de
antes.
Pensou na mãe e no que tinha visto no templo, a cena em que
Paloma a oferecia para o Templo das Estrelas. Donatella jamais
saberia por que a mãe tomara tais decisões. Mas, naquele
momento, Tella acreditou que ela não havia feito aquilo porque não
se importava com a filha. Ao contrário: tinha feito o que fez porque
se importava. Paloma se importava com as filhas ao ponto de fazer
o que precisava ser feito. Talvez fosse por isso que optara por
entregar Tella e não Scarlett. Scarlett se sacrificaria – se destruiria –
de livre e espontânea vontade, se achasse que essa era a coisa
certa a fazer. Donatella era mais parecida com Paloma, disposta a
fazer o que fosse preciso, mesmo que fosse errado, se isso a
fizesse conseguir o que precisava. Talvez Paloma tivesse oferecido
Tella porque sabia que isso não iria destruí-la.
Mas, em pensamento, a garota jurou que faria de tudo para que a
filha nunca tivesse que tomar tal tipo de decisão na vida. Quando
tudo aquilo terminasse, Donatella encontraria um jeito de remediar
aquilo, custasse o que custasse.
Tella segurou o baú de jaspe vermelho com uma mão e deu a outra
para Lenda. O Mestre do Caraval não a soltara desde que pegara
na mão dela, lá dentro da barraca. Quando voltaram para a saída,
desviando das pessoas que estavam no movimentado mercado,
continuou com os dedos pesados bem entrelaçados nos de
Donatella, mantendo a garota na lateral do seu corpo. Não tentou
beijá-la novamente. Mas, às vezes, quando Tella olhava para Lenda,
via um sorriso satisfeito. Tinha vontade de espiar o que havia na
caixa, tinha vontade de saber qual era o segredo pelo qual
prometera pagar um preço tão alto. Mas não queria ficar ali por mais
tempo do que o necessário. Imaginava ter passado uma ou duas
horas no mercado, mas talvez fosse mais. Talvez ela e Lenda
tivessem perdido três ou quatro dias e não apenas um ou dois.
Quando passaram pela galeria que os levou de volta a Valenda, o
céu estava azul-noite, tornando impossível saber que horas eram ou
quanto tempo havia passado.
O Mestre do Caraval dispunha de residências por toda a cidade.
Supostamente, Julian estava esperando por eles na Casa Estreita,
que ficava no Bairro das Especiarias. De todos os seus artistas,
Aiko, Nigel, Caspar e Jovan eram os únicos que sabiam o endereço.
Dirigir-se para lá deveria ter dado uma sensação de segurança
maior do que ficar perambulando pelas ruas acidentadas de
Valenda: não demorara muito para a escória se reunir depois que
que a monarquia fora ameaçada. Tella não avistou nenhum Arcano,
mas detectou a presença deletéria deles fixando residência onde,
antes, os amantes da noite se encontravam.
O baú de jaspe ficou mais pesado em sua mão. Ela teve o ímpeto
de abri-lo naquele exato momento, mas já estavam quase chegando
na entrada da Casa Estreita, que realmente era uma construção
exígua. À primeira vista, parecia ser pouco mais larga do que uma
porta e era tão torta quanto as demais casas daquela parte da
cidade. Mas, quanto mais se aproximavam, mais larga ficava.
Donatella ficou observando janelas arqueadas decorativas
aparecerem dos dois lados da porta. Debaixo delas, se
esparramavam floreiras cheias de dedaleiras brancas – Tella tinha
certeza de que não estavam ali poucos instantes antes.
A casa poderia ser curiosamente convidativa se a garota não
tivesse olhado para cima e visto a Morte Donzela. Estava parada, no
meio da janela do segundo andar, dando um sorriso macabro por
trás de sua gaiola de pérolas.
Lenda apertou a mão de Tella com mais força.
Nos Baralhos do Destino, a carta da Morte Donzela indica a perda
de alguém amado ou de um ente querido. E foi essa carta que
previu que Donatella perderia a mãe, na primeira vez que isso
aconteceu.
O ar ao redor da garota crepitou e, uma fração de segundo
depois, um vulto encapuzado se materializou no meio de Tella e de
Lenda.
Donatella congelou. Não conseguia enxergar o rosto do vulto, que
estava escondido pelo capuz da capa que usava. Mas nem
precisava. Só havia um Arcano com a habilidade de viajar através
do tempo e do espaço e se materializar onde bem entendesse: o
Assassino. Que, de acordo com Jacks, também era demente.
– A Morte Donzela está aqui para falar com vocês dois – declarou
o Arcano.
34
Donatella
Donatella perdeu a conta de quantas vezes releu o bilhete antes
de, por fim, entregá-lo para Jovan, que o levaria para Scarlett na
manhã daquele mesmo dia, porque já passava da meia-noite.
Estava mais do que cansada. Mas, mesmo depois de se deitar na
cama, demorou a pegar no sono, porque não queria encarar o que
poderia estar à espera dela – ou melhor: o que não estaria à espera
dela – quando sonhasse.
36
Donatella
De jeito nenhum, por todos os infernos. Tella não queria acreditar.
Mas um lado seu sentia. Se fosse realmente sincera, sentia desde
aquela noite, quando resolveu ficar e dormir ao lado do Arcano.
Também sentiu quando voltou, no dia seguinte, pedindo ajuda. E a
forma como ela reagiu quando Jacks quase a matou: além de brava,
sentiu-se traída e magoada, quando seria mais lógico ter só ficado
enfurecida.
Se tivesse sido um casamento humano, ela simplesmente teria
fechado o livro e fingido que nunca aconteceu. Só que isso não era
uma coisa que dava para ignorar e fingir que não existia.
Era um elo imortal que uniria sua alma à de Jacks para sempre.
44
Donatella
– D acoleira
próxima vez que encontrar com meu irmão, vou pôr uma
nele.
Lenda falou baixo, mas Tella teve a impressão de que os quadros
do corredor se assustaram.
Depois de achar o bilhete deixado por Julian, Donatella foi acordar
Lenda. Pelo jeito, o Mestre do Caraval não dormira muito depois do
encontro deles na noite anterior. A porta estava aberta, e ele estava
logo na entrada do quarto, usando uma camisa preta amarrotada,
que devia ter acabado de vestir. O cabelo castanho-escuro estava
todo emaranhado, os olhos exibiam olheiras em forma de meia-lua,
e seus movimentos não pareciam tão precisos quanto costumavam
ser.
– Eu sabia que Julian ia acabar morrendo por causa daquela
garota – resmungou.
– Scarlett não é apenas aquela garota! É minha irmã e está
arriscando a própria vida para consertar um erro que nós dois
cometemos.
O Mestre do Caraval passou a mão no rosto e disse:
– Desculpe, Tella.
Então olhou de novo para ela, e suas olheiras tinham
desaparecido. Só que Donatella sabia que ainda estavam ali,
escondidas sob uma das ilusões do Mestre do Caraval. Lenda se
preocupava com o irmão. Julian até podia não se dar conta disso,
mas Tella não só já vira essa preocupação como conseguiu
perceber pelo tom que Lenda falou:
– Vou encontrar os dois.
– Vamos encontrar os dois – corrigiu Tella. Scarlett era irmã dela.
Ela havia concordado que Scarlett voltasse para a casa da Estrela
Caída e pedira para a irmã roubar sangue do Arcano, para que
pudesse acessar o Ruscica. E aquilo foi, claramente, uma
incumbência impossível. – Antes que você me diga que é perigoso
demais, fique sabendo que vou procurar minha irmã e Julian
independentemente do que você disser. Se não quiser me levar com
você, conheço alguém que levará.
Ela então mostrou as moedas sem sorte que havia encontrado
quando acordou.
Lenda olhou feio para os discos de metal, e eles desapareceram.
– Pode já desfazer isso que você fez! Sei que ainda estão aqui, só
não consigo sentir.
– E o que você vai fazer com essas coisas? – resmungou o
Mestre do Caraval.
– Vou entrar em contato com o Assassino e pedir ajuda para
resgatar minha irmã. Ele pode fazer Scarlett entrar e sair daquelas
ruínas em um piscar de olhos.
– Você mesma falou que o Assassino é louco.
– A Estrela Caída é bem pior. E não vou ficar aqui, parada,
enquanto minha irmã está em perigo. Não adoro essa ideia, mas
acho que a Morte Donzela e o Assassino podem ser nossa melhor
opção para conseguir tirar seu irmão e minha irmã de perto da
Estrela Caída.
Lenda ficou mexendo o maxilar, e Tella se preparou para mais
uma briga.
– Se realmente fizermos isso, você entra com o Assassino, pega
sua irmã e sai de lá imediatamente.
– Por acaso você está mesmo concordando comigo?
As moedas reapareceram na mão da garota. Mas, pela cara que
fez, o Mestre do Caraval já estava arrependido dessa decisão. Os
músculos do pescoço dele estavam tensos.
– Continuo sem gostar nem um pouco de tudo isso. Mas Aiko e
Nigel não viram a Morte Donzela nem o Assassino no palácio. Jovan
não os viu nas ruínas, e Caspar não ouviu nenhum boato de que
eles estão mancomunados com a Estrela Caída. Não quero confiar
nesses dois. Mas, apesar de eu ter poder suficiente para entrar com
você nas ruínas, se além de Scarlett Julian também estiver lá, será
um desafio conseguir tirar nós quatro do Zoológico sem que
ninguém perceba. Apenas prometa que, se fizermos isso, você não
correrá nenhum risco desnecessário, Tella.
Lenda, então, encarou Donatella – as olheiras tinham voltado.
Durou apenas um segundo. Mas, naquele instante, ficou parecendo
mais humano.
50
Scarlett
O mundo Grisha corre perigo. E seis fora da lei vão ter que unir
forças e mudar as regras do jogo para salvá-lo. Tudo começa
quando Kaz, o maior trapaceiro de Ketterdam, é contratado para
liderar o roubo de jurda parem, uma droga destruidora que está na
Corte do Gelo. Para isso, ele precisa formar uma equipe improvável
com outros cinco fora da lei. Se triunfarem, terão uma fortuna para
repartir, mas se falharem... eles podem morrer. Além disso, as
forças sombrias que se abatem sobre Ketterdam trazem velhos
rivais e novos inimigos à tona – o que também os coloca em risco.
Será que os membros do Clube do Corvo serão capazes de
enfrentar seus próprios demônios e se manterem fiéis uns aos
outros?