Senso Comum
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SENSO COMUM, 1
SAMBA E DISCURSO POPULAR
Ricardo Azevedo2
Resumo:
Em tempos de excessiva valorização do indivíduo e da “expressão individual e singular”, tempos
da “vanguarda”, da “última moda” e do “conhecimento de ponta”, a noção de “senso comum”
costuma ser sistematicamente desprezada e tratada como mera obviedade ou redundância. A
crença em tais premissas naturalmente resultam num certo discurso que poderia ser chamado de
“moderno, hegemônico e escolarizado”. Os objetivos desse artigo são: 1) colocar em discussão
essas premissas; 2) demonstrar que, ao contrário, o “senso comum” corresponde a um
insubstituível acervo de conhecimento humano; e 3) demonstrar, através de algumas letras de
samba, como o referido acervo pode ser visto como um verdadeiro recurso no âmbito do discurso
popular.
Abstract:
In modern times of excessive individualism and single expression valuation, times of "vanguard",
“new wave” and "updated knowledge", a notion as "common sense" has been put aside,
systematically, and has been seen as simple obviousness or redundancy. Naturally, the belief in
such assumptions has resulted in a certain discourse which could be called "modern, hegemonic
and schooled". The purposes of this article are: 1) to discuss these assumptions; 2) to
demonstrate, instead, that "common sense" represents an irreplaceable assemblage, a reserve of
human knowledge; and 3) based on some Samba lyrics, to demonstrate how said assemblage or
reserve can be seen as an important resource in popular discourse.
Keywords: Literary popular forms, Popular culture, Brazilian popular music – Orality –
Comparative Literature
A expressão senso comum costuma apresentar significados divergentes. Pode ser vista
como o resultante de uma “faculdade da alma” capaz de reunir e coordenar nossas sensações a
respeito de um mesmo fenômeno, determinando assim nossa percepção a respeito do mesmo.
Pode ser também “o conjunto das opiniões tão geralmente admitidas, numa dada época e
num dado meio, que as opiniões contrárias aparecem como aberrações individuais, inúteis de se
refutar...” (LALANDE, 1993, P.998), ou seja, um conjunto de paradigmas que implicam grande
consenso.
1
Publicado na “Boitatá” - Revista do GT de Literatura Oral e Popular ANPOLL www.uel.br/revistas/boitata nº5.
Este artigo corresponde ao sub-capítulo 6.12, páginas 559 a 578, da tese “Abençoado e danado do samba: as formas
literárias populares: o discurso da pessoa, das hierarquias, do contexto, da oralidade, da religiosidade, do senso
comum e da folia”, FFLCH área: Teoria Literária USP, defendida em 2004, ainda não publicada.
2
Escritor e doutor em Letras.
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Dizem Berger e Luckmann que entre as múltiplas realidades, uma se apresenta como
realidade por excelência: “a realidade da vida cotidiana. Sua posição privilegiada autoriza a dar-
lhe a designação de realidade predominante” (Idem, p.38).
E o que seria da “realidade da vida cotidiana” sem o senso comum?
Por exemplo, o que convencionamos chamar de “atitude natural” nada mais é do que
simplesmente a “… atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere a um
mundo que é comum a muitos homens. O conhecimento do senso comum é o conhecimento que
eu partilho com os outros nas rotinas normais, evidentes, da vida cotidiana” (Idem, p.40).
Nesse sentido, a realidade da vida cotidiana “é admitida como sendo a realidade. Não
requer maior verificação, que se estenda além de sua simples presença” (Idem).
Aliás, para Berger e Luckmann, interpretar significa principalmente inserir-se na ordem
do cotidiano ou da vida cotidiana, que, por sua vez, vive mergulhada no senso comum e
dominada por motivos concretos e pragmáticos.
Trata-se do oposto sugerido pela “interpretação” de um texto moderno ou erudito, criado
muitas vezes, como numa espécie de jogo, tendo em vista a “interpretabilidade”, ou seja, criado
para ser interpretado.
Note-se que para os dois sociólogos, a “atitude teórica” poderia ser descrita simplesmente
como a contestação da realidade cotidiana.
Por outro lado, a linguagem comum, popular e acessível, a “… linguagem comum de que
disponho para a objetivação de minhas experiências, funda-se na vida cotidiana e conserva-se
sempre apontando para ela mesmo quando a emprego para interpretar experiências em campos
delimitados de significação” (Idem, p.43).
De fato, a linguagem popular, pública, compartilhável e acessível, pode ser de grande
utilidade para lidar com assuntos especiais. Um tema complexo tratado através de um discurso
prolixo estará fatalmente condenado à obscuridade, à ambigüidade, à relação não-dialógica.
Quanto ao pressuposto erudito e moderno de que um tema complexo demanda
necessariamente uma linguagem complexa – até porque ambos na realidade seriam
indissociáveis, postura curiosa para um modelo que se propõe “analítico” –, trata-se, a meu ver,
apenas de uma visão cultural, baseada num certo modelo de pensamento que, por vezes, é
apresentado como “o” modelo. Tal padrão pode ser adotado pensamento oficial, hegemônico e
escolarizado mas não deve, nem de longe, ser identificada com a postura popular.
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Na prática, a referida visão deveria, isso sim, ser mais discutida. É comum, no âmbito dos
estudos universitários, encontrar autores que abordam temas complexos de forma bastante
acessível. Ótimos exemplos são Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Louis Dumont e Antônio
Cândido. O inverso, infelizmente, também é verdadeiro.
Volta e meia, penso nas palavras irônicas de Fritz Perls. Segundo ele, “um texto
complicado” pode servir “à tríplice função de confundir o leitor, aumentar a auto-estima do
escritor e obscurecer pontos que supostamente deveriam ser esclarecidos” (PERLS, 1981, p. 17).
Na verdade, como lembram Berger e Luckmann “mesmo especialistas como mágicos e
cientistas” – a provocação é deles – “vivem em uma ‘realidade’ compartilhada e (...) não só a
vida cotidiana, a vida concreta, vive mergulhada no senso comum e dominada por motivos
pragmáticos, como “uma grande parte do acervo cultural do conhecimento consiste em receitas
para atender a problemas de rotina” (BERGER; LUCKMANN, 2002, p. 65).
Os dois sociólogos observam a situação relacional e social humana, independentemente
dos modelos de consciência construídos socialmente, afinal “[u]m elemento importante de meu
conhecimento da vida cotidiana é o conhecimento das estruturas que têm importância para os
outros.” (Idem).
E como as instituições são a realidade exterior, “o indivíduo não as pode entender por
introspecção. Tem de ‘sair de si’ e aprender o que elas são, assim como tem de aprender o que diz
respeito à natureza”. (Idem, p. 86).
Como se vê, são idéias e concepções que ampliam e valorizam em muito a necessidade de
discutir o senso comum, a meu ver o pano de fundo do discurso popular.
A partir delas pode-se sugerir que a “introspecção”, a “autoconsciência” e a
“reflexividade” – elementos constituintes e paradigmas do chamado pensamento crítico –
possivelmente tenham sofrido uma valorização exagerada na sociedade moderna e tal valorização
parece ter impregnado seu discurso.
Para o antropólogo Clifford Geertz, saber que a chuva molha, que o fogo queima, que a
pedra é dura, que a morte vem, que tudo passa etc. acaba formando um sistema que se expande
“até abranger um território gigantesco de coisas que são consideradas como certas e inegáveis,
um catálogo de realidades básicas da natureza”, acessíveis a todos e, note-se, quase sempre
independentemente de culturas. A chuva molha, a pedra é dura e a morte vem em todas a culturas
conhecidas.
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3
Para Goody (1988, p. 142), provérbios são “concentrados da sabedoria coletiva”.
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O que é, o que é?
Quanto mais cresce menos se vê
Quanto mais se tira maior fica
Sempre se quebra quando se fala
Quanto mais se perde mais se tem?
R. a escuridão, o buraco, o segredo ou o silêncio e o sono
O que é, o que é?
Deus dá na primeira vez
Na segunda vez Deus dá
Na terceira quem quiser
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O que é, o que é?
Essa coisa é invisível
Quem compra nunca quer ter
É roupa que mulher veste
Mas o marido não vê?
R. o luto
O que é, o que é?
Separa as coisas do mundo
Na terra manda e desmanda
Sobe morro, desce morro
Vive parada e não anda?
R. a cerca
Poderia citar frases feitas conhecidas de todos, mas nem por isso menos interessantes,
como “dar nó em pingo d’água” ou “trocar seis por meia dúzia” ou “chutar cachorro morto” ou
“mijar pra trás”; trocadilhos, como “bife ali na mesa”, “transmimento de pensação” ou “faca de
dois legumes”; trava-línguas, como “quem paca cara compra, cara paca pagará” ou “um sapo
dentro do saco/ o saco com o sapo dentro/ o sapo batendo papo/ o papo cheio de vento”,
parlendas e outras saborosas e instigantes brincadeiras com palavras inventadas a partir do
modelo de consciência popular, mas paro por aqui. A cultura popular é extraordinariamente rica
mas agora vamos falar de samba. Nele o senso comum, a sabedoria concreta, pragmática e lúdica
do povo, é uma presença constante.
Muitos temas recorrentes no samba – família, hierarquia, contexto, solidariedade, festa,
comida, malandragem e religiosidade, entre outros – são fundados no imenso, precioso e vital
acervo do senso comum.
A recorrência de ditados e frases feitas, representações e reafirmações do senso comum, é
evidente em numerosos sambas. Não creio que seja necessário colocar as letras por inteiro.
Selecionei apenas os trechos em que ditados ou quadras são utilizados.
Aviso ao leitor que as letras de samba não serão apresentadas em ordem cronológica mas
sim alfabética. O recurso, como sabemos, é típico de manifestações da cultura escrita e se
caracteriza pela descontextualização. Faço isso propositalmente pois quero ressaltar a recorrência
de certos temas e procedimentos independentemente de períodos e recortes históricos datados.
Começo com “Água e azeite” de Monsueto:
Quis tapar o sol com a peneira
Agora está na hora de chorar
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Concluo com “Tim tim por tim tim” de Haroldo Barbosa e Geraldo Jacques:
Morreu um rei
Salve o rei que vai chegar
Não sei sofrer, não sei chorar
Só sei me conformar
(JOÃO GILBERTO, 1977).
O senso comum evidentemente não se reduz ao provérbio. Ditos populares propõem, isso sim,
noções que devem ser associadas ao imenso universo constituído pelo senso comum. Vejo tal universo
como o pano de fundo, o lugar a partir do qual o discurso popular é construído, pelo menos, o discurso
do samba.
Não pretendo com esses exemplos afirmar que ditados, frases feitas ou quadras populares não
sejam utilizados pelos compositores da moderna música brasileira (de um modo geral, compositores
mais vinculados ao modelo oficial, hegemônico e escolarizado). Ao contrário, creio que esses recursos
estão disseminados em quase todas as canções. Quero ressaltar, isso sim, que são traço importante e
caracterizador do samba e de um discurso que poderia ser considerado“popular”.
Gostaria de comentar o caso de “Bom conselho”, obra de Chico Buarque:
Ouça um bom conselho
Que eu te dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado
Quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes
Antes de pensar
Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
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Eu semeio vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade
(CHICO BUARQUE, 1997, p. 99).
Vale lembrar o samba-toada “Tempo ê” de Zé Luiz e Nelson Rufino. Nele a voz que canta
acredita em dar tempo ao tempo. Conta a história de um amigo que buscava a glória de forma
apressada e esqueceu que o tempo tem “lugar e hora marcada”. Resultado: teve que esperar
sentado e assim aprendeu mais. Segundo o samba amor, trabalho, vida cotidiana e saudade, cada
um tem seu tempo. E conclui
Pois bem, acredito que obras criadas a partir do modelo de consciência popular, baseado
na voz pessoal, nas hierarquias e no senso comum, também nascem de um “pensamento crítico”,
tenham “autoconsciência” e “reflexividade”.
Ocorre que seu pano de fundo, o substrato para a atuação de tais recursos, corresponde a
um modelo que valoriza a pessoa (oposta a “indivíduo” como ensinou Dumont) e a relação entre
pessoas, a pessoa e sua relação com um contexto concreto e, em vez de “idéias”, “teorias” e
“informações”, a “sabedoria”, ou seja, o conhecimento construído a partir da experiência prática
de vida. Sua representação é o discurso-nós, que pressupõe, naturalmente, um “pensamento
crítico-nós”, uma “autoconsciência-nós” e uma “reflexividade-nós”.
Em outras palavras, enquanto o processo criativo moderno é individualizado, livre e
autônomo, pressupõe a reflexividade e a auto-reflexão e, ainda, tende à abordagem distanciada e
crítica, ou analítica e verticalmente profunda, baseada em “idéias”, “teorias” e “informações”, o
processo popular parece ser relacional por excelência, constrói-se necessariamente a partir da
relação com o outro e da relação com o contexto imediato.
Demanda, portanto, a horizontalidade, uma reflexão essencialmente dialógica, uma
reflexão “com” o outro, uma “reflexão-nós”, sempre baseada na “sabedoria” da existência
concreta e situada. Por ser limitado pelo horizonte do “nós”, tal processo pode ser considerado,
sem dúvida, menos “profundo” ou “singular”, menos “especializado” e “tópico”, mas ganha em
abrangência, como representação de um ethos e um pathos coletivo, cujo potencial de
compartilhamento e identificação é imenso.
Acreditar, com convicção, que a “verdade”, o “melhor” ou a “arte” sejam originárias,
necessariamente, de um “dentro-de-si”, e não de um “dentro-de-nós”, faz parte do modelo de
consciência oficial proposto pela modernidade individualista, crítica e hegemônica. Se tal
presunção corresponde à “realidade”, parece ser pura ideologia, que costuma se manifestar,
segundo Berger e Luckmann, a partir do momento em que “… uma particular definição da
realidade chega a se ligar a um interesse concreto de poder”.
Para Norbert Elias, na ideologia, o exigido e o desejado fundem-se, na consciência, com o
que existe observavelmente. O pensamento ideológico é permeado por fantasias afetivas e de
falta de rigor na reflexão sobre esses acontecimentos (ELIAS, 1994, p. 74).
Para Wander Nunes Frota, note-se, a modernidade tende a evitar o rural simplesmente por
serem suas metas incompatíveis com as coisas do campo e não por qualquer outra razão
(FROTA, 2003, p.172).
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Ao que parece, a cultura popular, seus padrões, procedimentos e sua lógica não
escolarizada tem sido desprezada, considerada “atrasada” por não se coadunar e até contradizer
os paradigmas oficiais.
Enquanto a estrutura de consciência moderna está umbilical e ontologicamente vinculada
à cultura escrita, a estrutura mental popular tem como pressuposto essencial o senso comum e a
oralidade.
Referências:
BENJAMIN, Walter. “O narrador”, in Magia e técnica, arte e política – Obras escolhidas.
5ª Trad. Sérgio Rouanet. São Paulo:Brasiliense, 1993.
BERGER, Peter L. e LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 21ª
ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. São Paulo: Brasiliense, 1982.
CHICO BUARQUE. Letra e música 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
CUVILLIER, Armand. Pequeno dicionário da Língua Filosófica. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1961.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Trad. Vera Bueno. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1994.
FROTA, Wander Nunes. Auxílio luxuoso – Samba símbolo nacional, geração Noel Rosa e
indústria cultural. São Paulo: Anna Blume, 2003.
GEERTZ, Clifford. O saber local. 7ª ed. Trad. Vera Mello Joscelyne. Petrópolis:Vozes,
1999.
_______. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
GOODY, Jack. Domesticação do pensamento selvagem. Trad. Nuno Luís Madureira.
Lisboa:Editorial Presença, 1988.
JOLLES, André. Formas simples. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976.
LALANDE, André.Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 1993.
PERLS, Fritz. A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. Rio de Janeiro:
Psyche/Zahar Editores, 1981.
SEARLE, John R. Mente, cérebro e ciência. Lisboa:Edições 70, 1984.
Fontes Sonoras:
ADONIRAN BARBOSA, Adoniran Barbosa. Série Reviva, São Paulo, Som Livre, 2002.
ARACY DE ALMEIDA. Os grandes sambas da história. vol.11, São Paulo, BMG Brasil,
1997, gravado em 1942.
ARLINDO CRUZ. Pagode do Arlindo. Ao vivo. WEA Music, 2003.
ATAULFO ALVES. A você. Vol. 2. Paraná, Revivendo, RVCD 112, s/d, gravado em 1941.
_______. Saudade da professorinha… Paraná, Revivendo, RVCD 133, s/d, gravado
em 1966.
BETH CARVALHO. Beth Carvalho. Coleção 100 anos de música RCA, CD Duplo, RCA,
São Paulo, 2001, gravado em 1986.
_______. Pérolas do pagode, Globo Polydor, São Paulo, 1998.
BEZERRA DA SILVA. Grandes sucessos de Bezerra da Silva. Vol 2, Rio de Janeiro, Cid,
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