Cult 209 - Marilena Chaui
Cult 209 - Marilena Chaui
Cult 209 - Marilena Chaui
literatura
Elegia do silêncio
Uma dramaturgia lírica e apaixonada
Quartos de despejo da história
Desde o início dos anos 1980, Marilena Chaui tem proposto como chave de leitura de nosso país a ideia
de que a sociedade brasileira é autoritária e violenta. Em obras como Cultura e democracia: o discurso
competente e outras falas, de 1981 (que será reeditado em seus Escritos, publicados pela Editora
Autêntica), a filósofa contraria a imagem de uma cultura nacional pretensamente formada pelo
acolhimento recíproco e pela cordialidade, revelando estruturas enraizadas de hierarquização e de
sedução pela autoridade.
Não se trata, porém, de considerar os brasileiros como individualmente violentos. Trata-se de
esclarecer as estruturas históricas que produzem uma vida social em que o espaço público e republicano
é minguado, transferindo-se ao Estado o papel de sujeito da cidadania e reproduzindo-se, no cotidiano,
relações de poder.
Essa chave de leitura permanece, aos olhos de Marilena Chaui, extremamente atual para analisar o
momento vivido pelo Brasil. Apesar dos percalços éticos, políticos e econômicos das duas últimas
décadas, o país tenta entrar na Modernidade, que exige necessariamente inclusão social. Essa mesma
inclusão, no entanto, desperta resistência. Se os auxílios financeiros para inserção econômica,
distribuídos por países como Alemanha e França às populações mais pobres, são considerados por lá
sinais de desenvolvimento, o Bolsa Família, no Brasil, é chamado de assistencialismo e de estratégia
eleitoreira. Se a ação do Estado no controle do mercado é vista como necessária em outras partes do
mundo, aqui ela é chamada de “ameaça comunista” e de inchaço da máquina pública.
O problema é que ainda não sabemos muito bem o que é o espaço público, porque não agimos como
sujeitos, transferindo a responsabilidade pela construção da cidadania aos aparelhos de governo.
Focamo-nos nas salvações que podem vir do poder e não obrigamos o poder público a representar de
fato todos os setores sociais. O resultado dessa prática (ou ausência de prática) é o fortalecimento da
violência e do autoritarismo, que atualmente se intensificam nas formas de controle policial, por
exemplo, e a falta de pensamento no jogo político (não somente de direita, mas também de esquerda!).
Chamar atenção para essa dinâmica perversa é o que faz Marilena Chaui na entrevista que concedeu à
CULT.
Como a senhora vê a situação política vivida pelo Brasil hoje?
É uma situação gravíssima. É gravíssima não por causa daquilo que a mídia apresenta como falência do
governo, mas pelo movimento conservador, reacionário, de extrema direita e protofascista que está
tomando conta da pauta política. Quando examinamos os pontos da pauta política discutidos de outubro
de 2015 até agora, vemos o poder dos grupos dos “3B”: o boi, a bala e a Bíblia. É uma regressão
sociopolítica fora do comum. É uma pauta regressiva, antidemocrática, de violação de todos os direitos
que foram conquistados ao longo dos últimos quinze anos. Todo o fundo reacionário protofascista que
existe no Brasil e que é alimentado pela classe média urbana brasileira veio à tona e pegou as esquerdas
completamente desprevenidas. As esquerdas tinham pautas como o antineoliberalismo, os direitos, a
questão da Palestina e do Oriente Médio, do surgimento do Estado Islâmico, enfim, pautas voltadas aos
problemas da democracia e do socialismo, e foi pega completamente despreparada por uma onda de
extrema direita que repôs para o Brasil os tópicos que estiveram em vigência no início dos anos 1960. É
uma ameaça de golpe para reverter o processo de consolidação dos direitos sociais obtidos nos últimos
anos e sustentada pela pauta “boi, bala e Bíblia”. Aliás, a atuação de grupos religiosos é muito
preocupante e vai além de uma questão propriamente política, porque, apesar de se manifestar na
representação política, ela é uma questão socioeconômica: é a maneira como as igrejas evangélicas
interiorizaram e reformularam a concepção neoliberal.
Como se dá essa interiorização e reformulação evangélica da concepção neoliberal?
Uma das características do neoliberalismo é a maneira como ele concebe o indivíduo, que não é
entendido nem como parte de uma classe social, nem como ser em formação que vai se relacionar com o
restante da sociedade. O indivíduo não é pensado nem como átomo nem como classe, mas como um
investimento. Na medida em que um indivíduo é um investimento, o salário não é entendido como
salário, mas como provento, como renda. Então, o ser humano é programado para ser rendoso e rentável.
A família, a escola e o emprego passam a ter por função a rentabilidade do indivíduo, porque ele é um
investimento. As igrejas evangélicas se apropriam desse ideário e o desenvolvem por meio de uma
teologia – a teologia da prosperidade, que considera cada indivíduo justamente como um investimento
ou uma empresa. Ele não é um empresário, mas uma empresa, e, como tal, precisa de uma série de
condições para funcionar. Então as igrejas, além de convencerem a pessoa de que ela nasceu para vencer
na vida e ser rentável, levam a ética calvinista ao máximo, explorando a crença de que ser rentável é um
sinal de salvação, porque é isso que Deus espera.
Como se sabe, a maior parte das igrejas evangélicas possui franquia. Elas se espalham no campo da
produção e do comércio e empregam todas as pessoas, fazendo com que elas provem que Deus as
escolheu e que são um investimento rendoso. Pouco a pouco, as pessoas se apropriam da franquia;
depois abrem outra e assim por diante. Há, portanto, um fenômeno de fortalecimento da ideologia
neoliberal e das concepções conservadoras da classe média por meio da maneira como as igrejas
evangélicas incorporam o neoliberalismo, com uma teologia para isso. Se você juntar o conservadorismo
com o reacionarismo da classe média urbana e a presença avassaladora das igrejas evangélicas, além de
toda a discussão sobre a vida no campo (a reforma agrária), vai entender por que politicamente se
exprime, de modo efetivo, nos grupos do “boi, bala e Bíblia”, a pauta ultraconservadora que está aí.
A minha preocupação é, evidentemente, por um lado, denunciar de todas as maneiras possíveis a
tentativa de golpe. Por outro, assegurar que governos voltados para os direitos sociais (e, desse ponto de
vista, com uma pauta antineoliberal) sejam garantidos. Ao lado disso, a minha preocupação é com a
sociedade, ou seja, com a ideologia. Depois de muito tempo, lá retorno eu à questão da ideologia. É
preciso refletir sobre como erguer um dique para impedir a entrada avassaladora da ideologia neoliberal
na sua forma teológica. Estamos vivendo um momento que vai fazer 1964 parecer uma coisa muito
simples. 1964 estava inserido na Guerra Fria, no poderio dos Estados Unidos sobre os países da América
Latina. Por causa do exemplo de Cuba, acreditava-se ser possível uma revolução socialista. Os
componentes eram muito óbvios. Havia uma clareza na compreensão do momento vivido. Agora não há
clareza. Tudo é muito difuso, muito opaco, obscuro, porque há fundo teológico.
A senhora acredita em um golpe militar?
Está fora de questão.
O que pode acontecer?
Se as coisas continuarem no ritmo em que estão e se o golpe dos 3B se concretizar, haverá uma
efervescência social enorme, porque todos aqueles cujos direitos foram garantidos pelo Estado depois da
era militar terão esses mesmos direitos cortados. E haverá ameaças: ameaça no campo, ameaça urbana,
uma situação de vigilância e intimidação em todas as instituições. Isso provocará reação, uma resposta
social enorme. É um risco que o PSDB não quer correr porque ele não tem condição de conter essas
reações; e esse risco também não interessa ao PMDB, porque o partido está dividido. Então, no fim das
contas, as forças que poderiam produzir um golpe não têm mais interesse que ele aconteça, porque a
convulsão que ele vai provocar, à direita e à esquerda, não pode ser controlada nem pelo PSDB e nem
pelo PMDB. Eles não têm quadros e condições institucionais para controlar convulsões sociais.
E o que daria as condições de governabilidade nesse possível contexto?
Se houver golpe, a prática será a pura intimidação e a violência. Aquilo que a gente viu com os Atos
Institucionais. Um Ato Institucional poderia concretizar, por meio da polícia – já que o Exército não se
misturará –, a intimidação e a violência.
Pensando na materialização da violência, que espaço resta ao diálogo nesse momento condicionado
à truculência?
Nenhum. Vamos tomar o caso de São Paulo como exemplo. Há uma coisa muito interessante: quase
ninguém se dá conta de que o estado de São Paulo – o único estado realmente capitalista no Brasil, já
que os outros são semicapitalistas – é governado desde o final dos anos 1980 por um único partido
político. Economicamente, São Paulo é um estado capitalista, mas politicamente é uma capitania
hereditária. Parece haver um contrassenso entre o conservadorismo político e o desenvolvimento
econômico. Mas é só na aparência que isso é contraditório, porque o conservadorismo político é a base
de sustentação desse tipo de desenvolvimento capitalista. Vejam o que acontece com o governador. Há o
problema da água, da luz, das escolas, da saúde – escândalos –, mas nada gruda no Geraldo Alckmin.
Escorre. Isso acontece porque ele representa o tipo de poder político do estado de São Paulo: forte e
autoritário. A juventude sai às ruas e faz uma manifestação? Polícia nos jovens, bate neles! O pessoal do
transporte sai para se manifestar? Polícia neles, bate neles! Isso é referendado pela sociedade paulista,
não só a paulistana, que está de acordo e espera que isso seja feito. Esperaríamos uma reação profunda,
mas não é o que acontece. Eu me lembro de ter visto pela televisão estudantes algemados durante a
ocupação das escolas. Eu disse, “Meu Deus, não se algema estudante!”. Eles não só foram algemados,
como isso foi dado pela mídia como algo natural; e pela sociedade, como uma coisa necessária.
Então nós temos a consagração, da maneira menos retórica possível, da violência estrutural da
sociedade brasileira. Não uma violência pontual, de modo que possamos falar em “ondas de violência”.
Não. Há uma violência estruturante. É a estruturação violenta de uma sociedade hierárquica, vertical,
oligárquica, conservadora, que defende os privilégios contra qualquer forma de direitos; é a mesma que
dá a sustentação ideológica e política para a manifestação da violência governamental. Essa violência
governamental é a expressão da violência não só paulista e paulistana, mas brasileira, e é ela que
legitima essas ações. Se consideramos todo o ideário da burguesia e da alta classe média brasileira,
vemos que qualquer contestação, qualquer revolta é uma “crise”. A noção de crise está identificada por
essa classe com a ideia de desordem e perigo. Ora, diante da desordem e do perigo, o que é que se pede?
Repressão. Cada vez que há uma luta por direitos contra privilégios, essa luta é vista como violenta e
precisa ser reprimida. Há, portanto, uma inversão ideológica fantástica no Brasil: a violência é vista
como ordem.
A senhora ainda acredita na desobediência civil?
Eu acho necessária! Outro dia um colega me disse: “Marilena, você tem que levar em conta que a
juventude que tinha 13, 14 anos em 2000 só conhece o PT como governo, não conhece a história do PT
como movimento social e sindical, como presença contestadora e de desobediência civil no interior da
ordem brasileira”. Isso quer dizer que a figura do PT se apagou e sobrou somente esse pedaço, esse triste
pedaço que é o PT no aparelho de Estado.
Seria preciso lembrar, por exemplo, a criação do CEDEC [Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea]. Existia no Brasil o CEBRAP [Centro Brasileiro de Análise e Planejamento], que era
dirigido pelo Fernando Henrique Cardoso. O Francisco Weffort, em 1976, disse que o CEBRAP era
muito economicista e que precisávamos de um centro que pensasse as questões políticas e sociais.
Reunimo-nos, então, o Francisco Weffort, o José Guilhon de Albuquerque, o José Álvaro Moisés, o
Lúcio Kowarick e eu, criamos o CEDEC. A Sociologia, a Ciência Política e a História explicavam (e
ainda explicam) o Brasil sempre a partir do aparelho de Estado. A História do Brasil era contada como
história das mudanças no aparelho de Estado e das decisões tomadas pelo Estado. O Estado aparecia
como o sujeito histórico, político e econômico, como se não existisse uma sociedade nem uma luta de
classes. O CEDEC propôs inverter esse processo e lembrar que a sociedade brasileira existe, com os
movimentos sociais e populares. Era o momento em que surgia o Movimento dos Sem Terra, o
movimento feminista, o movimento sindical. Os movimentos começavam a se organizar; os sindicatos
criam as comissões de fábrica no ABC e fazem as greves. É desse momento histórico que nasce o PT.
Nós surgimos da ideia de que a história do Brasil e a sociedade brasileira não são feitas pelo aparelho de
Estado e de que o Estado não é o sujeito social. Existe a luta de classes e é no interior do conflito que se
criam as bases da democracia. O PT se originou, então, de atos de desobediência civil. Mas isso os
jovens não sabem, porque eles só conhecem o PT como um partido institucionalmente posto, envolvido
nas questões do Estado e governamentais, como se isso desse conta de toda a história do PT.
É isso que permite entender também por que jovens de esquerda querem outras opções, em vez de
ligar-se ao PT. Proliferam os pequenos partidos de esquerda porque toda a história social e política ficou
encolhida nesses últimos quinze anos. Isso também explica o quanto nós do PT ficamos despreparados
na hora em que surgiu o atual golpe. Imagine o PT do qual eu venho, o PT dos anos 1980 e 1990... Ele
não teria aceitado minimamente aquilo que iria desencadear o golpe. Ele nem permitiria que isso sequer
aflorasse. Muito do que estamos vendo em termos de pauta conservadora na política está ligado ao
encolhimento de tudo aquilo que representa uma pauta de esquerda.
A esquerda tornou-se obediente?
Sim, claro. O PT ficou desarmado no momento em que teria de tomar uma posição pública e esclarecer
as coisas. Agora, de um lado temos o Eduardo Cunha, com as igrejas evangélicas, e, do outro, o
Alckmin, com a Opus Dei. É demais da conta! Eu venho de uma tradição em que a grande aliança era
sustentada pela Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Ver os cristãos perdidos
entre os evangélicos e a Opus Dei é demais; é insuportável para a minha cabeça porque eu vi a outra
experiência que o cristianismo é capaz de ter e que teve na América Latina inteira.
A senhora interpreta a frase “Meu partido é meu país”, comum nas manifestações de 2013, como a
manifestação de um desejo de algo novo ou como uma frase conservadora?
“Meu partido é meu país” é uma frase nazista. Ela nasceu na luta contra a social-democracia, sobretudo
quando o nazismo se opõe à República de Weimar e leva a pensar que os partidos políticos roubam ou
tomam para si as ações políticas que caberiam exclusivamente ao governante. O governante aparece,
então, como o chefe. É dele que deve emanar, transcendentemente, toda a decisão política. Desse ponto
de vista, se os partidos políticos usurpam uma função que não é deles, é preciso eliminá-los. Daí a ideia
de que “meu partido é meu país”.
Falando de encolhimento da pauta de esquerda, como a senhora interpreta a ação de setores do
movimento estudantil que consideram os docentes como inimigos ou representantes do capital? É
delicado tocar nesse ponto, porque não se trata de ser contra o movimento estudantil. Mas
entender a universidade como espaço de tensão entre estudantes, servidores (técnicos) e docentes
não é também uma forma de violência ou de exclusão de diferenças?
Há algo que marca com força a história da política de esquerda no Brasil: é o fato de que,
periodicamente, vindos da baixa classe média ou da classe média, há grupos que se apropriam do
marxismo e do leninismo e se apresentam como revolucionários. Na verdade, o encolhimento do espaço
público e de tudo o que ele representa alimenta pequenas formas privatizadas do pensamento de
esquerda, dando origem a pequenos movimentos e pequenos partidos. Não vou nomear nenhum deles,
mas estou apontando para a origem deles, a maneira pela qual eles privatizam um ideário. Isso significa,
em primeiro lugar, fazer com que esse ideário não apareça como um ideário em expansão, mas como um
ideário de exclusão. Esses partidos e movimentos se fecham sobre si mesmos, porque a condição de
sobrevivência deles está na recusa de qualquer inclusão e de qualquer ampliação. Eles se mantêm pela
sua pequeneza e pelo fato de que eles excluem tudo o que não se restrinja a uma pauta mínima produzida
por eles mesmos. É uma mescla da vulgata marxista, da vulgata leninista e do stalinismo puro, simples e
cru. É mais do que uma coisa reacionária, é uma vertente totalitária. E é por essa maneira totalitária,
privatizada e excludente de se organizar que esses grupos encaram todo o restante como inimigo que
precisa ser destruído. O outro não é inimigo por causa disso ou daquilo. Ele é inimigo porque
simplesmente é outro. É a mesma lógica de Carl Schmitt, incorporada por grupos pretensamente de
esquerda.
A senhora sabe que um curso seu, de leitura rigorosa da Ética de Espinosa, seria hoje considerado,
em alguns contextos, como um trabalho burguês, não sabe?
Eu sei!
Então, por que a cultura erudita ou o pensamento é associada por alguns movimentos a uma
prática burguesa?
O pensamento é associado à prática burguesa porque esses movimentos operam pela ausência de
pensamento. Estamos em uma situação aterradora: do lado da direita e da esquerda há ausência de
pensamento. Você conversa com alguém da direita e vê que ele é capaz de dizer quatro frases
contraditórias e sem perceber as contradições. Você conversa com alguém da extrema esquerda e vê o
totalitarismo que também opera com a ausência do pensamento. Então nós estamos ensanduichados entre
duas maneiras de recusar o pensamento. Lá onde o pensamento estiver se exercendo, ele receberá mil e
um nomes, e como para esse pessoal de esquerda xingar é chamar de burguês, eles tratam a cultura
erudita como coisa de burguês. Mas se você perguntar o que é a burguesia e o que é o capital, se pedir
uma explicação, verá que eles não sabem muita coisa; apenas repetem um chavão. Nesses grupos há uma
coisa muito parecida com o que acontece nas igrejas evangélicas: uma teologia e uma lavagem cerebral.
É um esvaziamento de qualquer capacidade de pensamento. Não é por acaso que dos dois lados o
exercício da violência é igual, e vai da violência verbal à física, à exigência de sangue. Quando o João
Grandino Rodas foi reitor da USP e houve a segunda ocupação da reitoria, nós, professores, fomos
negociar com os alunos e com a própria reitoria, e os alunos finalmente aceitaram desocupar. Veio então
um membro desses pequenos partidos de esquerda e disse: “Ninguém sai; nós queremos ver sangue”. Por
que ele queria ver sangue? Porque ele achava que ganharia poder pela destruição física do outro – uma
destruição que não é nem política, nem social.
Há um encolhimento da capacidade humana de refletir e fazer escolhas ponderadas? Tanto do
lado da polícia como do de certos grupos de esquerda...
Eu entendo isso com Espinosa. O que há nos seres humanos? Há paixões. A maneira como entendemos o
mundo, a nós mesmos e aos outros é dada pela maneira como o mundo e os outros nos afetam. Eles
causam em nós a sensação de perigo ou de aumento da nossa capacidade de viver. Se tudo o que se passa
em mim é produzido pela maneira como o que está fora age sobre mim, eu sou passiva e todos os meus
sentimentos são apenas paixões: o amor, a esperança, o ciúme, a misericórdia, a honra, a glória etc. O
que eu sinto é pura e simplesmente uma reação passiva ao que vem de fora.
Ao contrário, se eu tenho força interior para saber que eu posso ser a causa dos meus sentimentos e,
que se sinto raiva de você, não é por sua causa, mas por aquilo que eu sinto com relação ao que eu penso
a seu respeito, então me vejo como a causa da raiva que sinto por você, em função do modo como eu
penso em você ou percebo você. A partir do momento em que eu sou capaz de me reconhecer como
causa dos meus sentimentos, eu sou ativa e descubro que não tenho de responsabilizar os outros por
aquilo que se passa em mim. Se eu for passiva, nunca serei livre; tudo o que eu fizer será determinado
pelo que os outros exigem de mim; e, mesmo que eles não façam nenhuma exigência, eu sinto como uma
exigência. Então só obedeço ao que eu imagino que seja o desejo do outro. Ao contrário, se é o meu
desejo que determina o que eu vou fazer e como vou fazer, eu sou livre.
Dessa perspectiva, o que é a violência? É aquilo que se passa inteiramente no campo das paixões,
porque é lá que os desejos entram em conflito. Se eu me entregar a elas, faço o meu desejo valer
destruindo o desejo do outro; e o outro faz a mesma coisa: ele acha que, para existir, deve dobrar o meu
desejo, deve se apropriar de mim e me dominar física e psicologicamente, pela manipulação dos desejos
e sentimentos, pela ideologia, por um série de manipulações sociais, amorosas etc. Pense no caso da
violência policial: é a força física pura e simples. Um policial não é capaz de tomar uma decisão em que
ele enfrentaria uma ordem recebida, dizendo, por exemplo: “Puxa vida, um filho meu poderia estar entre
os manifestantes...”. Mas isso não acontece só porque ele recebeu uma ordem. É porque essa ordem
constitui o modo como ele é, pensa e opera. Ele encarna essa ordem, é o portador dela e opera em um
contexto de pura paixão. Essa é uma análise puramente psicológica. É preciso pensar também em termos
sociais: o policial encarna a repressão; ele a realiza em nome da ordem, da paz e da segurança.
Psicologicamente, ele não é capaz de deliberar sobre como poderia agir diante de manifestantes que
gritam por direitos e denunciam privilégios, porque ele é, naquele instante, pura paixão. Social e
institucionalmente, ele só existe como policial porque recebe, cumpre ou dá uma ordem. A polícia existe,
então, como instituição social garantidora de determinados privilégios de classe. Trata-se do embate
entre o direito e o privilégio. Esse embate se realiza, na sociedade brasileira, por meio da violência.
A senhora diria que o movimento de ocupação das escolas foi um bom uso político das paixões?
Um excelente uso...
E que diferença a senhora vê entre esse movimento e o das ruas de 2013?
Em 2013, o movimento foi algo inesperado. Pouco antes das manifestações, eu estava dando um
seminário na faculdade e ouvi um tambor pelos corredores. Me falaram: “É o movimento do Passe Livre,
que está convocando uma reunião”. Havia só uns 30, 40 gatos pingados. Até que eles puseram nas redes
sociais e aconteceu aquela movimentação toda. Mas na primeira manifestação tinha de tudo. Era um
evento com a motivação mais diversa possível. Não estou dizendo que era um movimento totalmente
despolitizado, mas que tinha um pequeno conteúdo determinado pelo grupo do Passe Livre, ao qual se
juntaram outras formas de descontentamento. Foi estarrecedor ver que, na segunda manifestação, quando
a juventude começou a comemorar, levando bandeiras do PT, do PSTU, do PSol, do movimento dos sem
teto, apareceram jovens embrulhados na bandeira do Brasil, atacando, espancando e ensaguentando os
manifestantes de esquerda. Assim, em lugar do conflito democrático, passou-se ao combate violento e à
agressão ao adversário. Mas algo curioso aconteceu: construiu-se um sentido político para toda aquela
movimentação. A própria mídia, que falava dos “vândalos” das primeiras manifestações, depois passou a
falar de “manifestantes”. Houve uma construção política de uma manifestação que não existiu realmente
como algo político. Ninguém prestou atenção nisso! Eu procurei falar do assunto e fui violentamente
agredida, mesmo pela esquerda. Disseram que eu não tinha entendido o momento histórico. Mas fizeram
mais: pegaram a afirmação que eu fiz sobre o caráter fascista dos jovens vestidos com a bandeira e
disseram que eu havia considerado todas as manifestações como fascistas. Na época das eleições, o
Fernando Gabeira chegou a escrever um artigo de uma página inteira no jornal O Globo contra mim,
afirmando que, na minha opinião, a presença do povo na rua era fascismo. O que eu tinha dito era: houve
um momento fascista nessas manifestações e ninguém está prestando atenção nisso. Aí, quando
começaram os panelaços de 2015, ficou evidente o que eu queria dizer. O que veio a seguir? Veio a
demanda de retorno da ditadura, a presença da TFP [Grupo de extrema direita intitulado Tradição,
Família e Propriedade] e a afirmação da pauta conservadora dos 3Bs.
Na verdade, em 2013, a senhora previu, em entrevista à CULT, que no Brasil iriam acontecer
panelaços parecidos com os da Argentina.
Fui a única. Eu não sei por que as pessoas – algumas delas inclusive feridas por 1964 e 1968 muito mais
do que eu, como o próprio Gabeira – não se deram conta do que estava vindo. Não sei se eu conseguia
ver porque presto muita atenção no Brasil como uma sociedade violenta e autoritária... Não sei se é por
isso, mas eu fiquei muito surpresa ao perceber que muita gente de esquerda não percebia o que estava se
montando e que junho de 2013 não era maio de 1968. Maio de 1968 foi a ocupação das escolas agora.
Isso foi maio de 68.
Por quê?
Porque, no caso da ocupação das escolas, há, em primeiro lugar, um movimento de inclusão e ampliação.
A marca dos movimentos realmente libertadores é sempre a inclusão e a ampliação. Em segundo lugar,
pelo fato de que ele foi se dando à maneira do que, no meu tempo, se conhecia como “greve pipoca”. Em
uma fábrica, por exemplo, às seis horas da manhã, um setor para por 40 minutos. Durante o tempo em
que ele parou, outros três ou quatro setores não conseguiram funcionar. Então, aquele primeiro setor
volta a funcionar, mas, daí, em outra ponta, outro setor para por 40 minutos. Tudo o que está em volta
não funciona. Assim, sobretudo quando a greve era proibida, ia pipocando paralisação, de modo que as
instituições (uma fábrica, uma escola etc.), mesmo sem parar, ficavam inteirinhas paralisadas. Nos
lugares estratégicos pipocava a paralisação. Foi assim que a ocupação das escolas seguiu o princípio da
greve pipoca. Quando os administradores da educação achavam que iam resolver a ocupação de uma
escola, começava na outra; quando eles iam resolver nessa outra, começava em outra. Ou seja, ela foi
pipocando até o instante em que parou tudo.
Além disso, a maior diferença entre a ocupação das escolas e o movimento de 2013 é que a
paralisação aconteceu no interior de uma instituição pública e social para a garantia do caráter público
dessa instituição. Não foi um evento em favor disso ou daquilo; foi uma ação coletiva de afirmação de
princípios políticos e sociais. Os dois grandes princípios foram, primeiro, o princípio republicano da
educação – a educação é pública; segundo, o princípio democrático da educação – a educação é um
direito. A ação dos estudantes e professores foi tão significativa porque eles disseram: “O espaço da
escola é nosso. Somos nós, alunos e professores, que somos a escola”. Então, foi a “integração de posse”
das escolas pelos alunos e professores. É gigantesco o fato de alguém no Brasil pensar que algo público é
nosso! É diferente das ocupações de reitorias, em que os estudantes dizem: “Nós somos contra isso que o
reitor fez...” Agora, os estudantes disseram: “Esse lugar, essa instituição é pública; ela é nossa e não
vamos sair daqui”. Eles se posicionaram contra algo típico do neoliberalismo – posto em prática, sob
certos aspectos, no decorrer da Ditadura e, depois, explicitamente nos governos Fernando Henrique
Cardoso: a ideia de que um direito social e político é aquilo que pode ser transformado em serviço e
comprado no mercado. As pessoas falam das privatizações como se elas fossem apenas a da Vale e das
grandes empresas... É isso também, mas o núcleo da privatização está em outro lugar, está na
transformação de um direito social em serviço que se compra e vende no mercado. Isso foi feito com a
educação, com a saúde, com o transporte, com todos os direitos sociais. E, em São Paulo, com grandes
baterias, isso foi feito. Os estudantes mostraram que a escola pública não é mercadoria; fizeram uma
ação republicana e democrática de um alcance incrível. Eu só vi algo parecido, em termos de
configuração social no Brasil, nas greves de 1978 e 1979 no ABC. Por quê? Não pela repercussão, mas
pelo sentido que elas tiveram.
Pensem no fato de que, durante as ocupações, só foram chamados para dar entrevistas cientistas
políticos, sociólogos, historiadores, mas nenhum professor ou estudante das escolas ocupadas! Nenhum
professor ou estudante foi considerado capaz de explicar o que se passava. Só se ouviu gente que estava
fora das salas de aula e que vinha explicar falando disparates. Quando a mídia entrevistava algum
estudante, só perguntava coisas do tipo: “O que você sente? Do que você gosta e não gosta? O que você
quer?”. Ou seja, ficava no nível puro e simples do sentimento, não do pensamento. Apesar disso, a
palavra deles chegou à sociedade por outras vias; e isso mostra o tamanho da ação que eles realizaram.
Houve uma solidariedade que há muitos e muitos anos não se via no estado de São Paulo inteiro. Por
fim, as ocupações deixaram claro o motivo de fechar as escolas. Em um país como o nosso, não se fecha
escola; se abre. Mas o governador de São Paulo queria os terrenos para uma exploração imobiliária
gigantesca. E para fazer o quê? Para fazer fundo de campanha. É claro que agora o Geraldo Alckmin vai
tentar fragmentar tudo e implantar devagarzinho o seu projeto. Hoje essa escola, amanhã aquela. Não sei
se ele vai conseguir, mas vai tentar. Como o Ensino Fundamental é praticamente todo municipal, o
Ensino Médio é estadual e, de um modo geral, o Ensino Universitário é responsabilidade federal, essas
instâncias operam de modo fragmentado; e isso permite tentativas de reestruturação como as de São
Paulo e de Goiás. De todo modo, os estudantes revelaram que a ideia de fechar uma escola não
significava fechar uma escola, significava vender um terreno. Portanto, eles denunciaram o caráter
corrupto da suposta política de reestruturação escolar.
Como a senhora vê o atual momento da economia brasileira?
No primeiro ministério montado pela presidente Dilma, enfatizou-se, por um lado, a crise internacional
em que o elemento financeiro é decisivo, e, por outro, o fato de haver, no Brasil, uma disputa entre a
indústria, o comércio e o setor agrário. A Dilma pôs representantes desses setores no governo e deu a
eles a responsabilidade de resolver o conflito. Um banqueiro junto com o agronegócio. Eles não
resolveram. Não sei se a presidente foi maquiaveliana, mas ela parecia prever que eles fracassariam e
que o fracasso mostraria para onde o barco deve ir. Então, o que ela está fazendo agora? Ao chamar o
principal assessor do Guido Mantega, ela sinaliza claramente que vai retomar a política de
desenvolvimento e crescimento econômico, a começar pelo aumento do salário mínimo.
É claro que há uma crise internacional gigantesca e que vai pegar os membros do BRIC. Já pegou a
China, está pegando a Índia; a situação vai complicar. Mas, de todo modo, a opção agora é a do
desenvolvimento. Sem desenvolvimento e crescimento não se faz, efetivamente, a política dos
programas sociais. Se não há mudança no mercado de trabalho com aumento do emprego e da
escolaridade, a manutenção dos programas sociais vira assistência.
Como a senhora entende a crítica da classe média alta e de alguns economistas que afirmam ser o
Brasil um país protecionista e que faz pouco investimento?
O grito contra o protecionismo é o grito da direita. São os republicanos nos EUA, o Le Pen na França, o
pessoal da Alemanha. O que eles entendem por fim do protecionismo? Um “liberou geral”, um
capitalismo “adulto”. A ideia de que o Estado intervenha é o que eles chamam de protecionismo. Mas se
o Estado não limitar a ação do capital, cai-se na barbárie. Com relação ao investimento, a gente sabe que
o Estado brasileiro investe. Há dados inacreditáveis. Na verdade, não são inacreditáveis se conhecermos
bem a burguesia brasileira. Vejam: o BNDES liberou todos os recursos possíveis para os empresários
brasileiros, mas eles não investiram; eles puseram tudo nos bancos, nas ilhas Cayman, em Miami, onde
quiseram. Em vez de investir no país, o dinheiro do BNDES foi parar no setor financeiro fora do Brasil.
E daí se diz que o país não investe! Eu adoro a burguesia brasileira. Quando ela disse “quero café”, foi
ótimo. No mundo inteiro, quem vai plantar café constrói estrada de ferro para levar o café até os pontos
de distribuição. Aqui no Brasil, porém, é o Estado que tem de construir estradas de ferro. A burguesia só
plantava o café. Se ela precisa de porto, no mundo inteiro ela constrói portos. Aqui não. É o Estado que
tem de construir o porto para a burguesia mandar o café. A burguesia quer industrializar, mas é o Estado
que tem de fornecer eletricidade. A burguesia brasileira mama nas tetas do Estado desde que ela nasceu.
E tem a ousadia de se colocar contra os programas sociais, quando ela depena o Estado
sistematicamente.
Recentemente, a senhora afirmou que o Bolsa Família fez pelas mulheres o que seis décadas de
feminismo no mundo não conseguiu...
Esses dados estão consagrados em um livro feito pela Walquíria Leão Rego sobre o Bolsa Família
(Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania, em coautoria com Alessandro Pinzani, Editora da
UNESP). O que ela mostrou? Primeira coisa: como o dinheiro vai para as mulheres, elas foram
transformadas em chefes de família. Na tradição brasileira, o dinheiro costuma ir para o homem, e só
uma parte vai para a família; a outra parte vai para os gastos pessoais dele. Com o Bolsa Família, quebra-
se o monopólio masculino sobre a administração da casa. Em segundo lugar, as mulheres passaram a
cuidar mais de si mesmas. Juntando o dinheiro do Bolsa Família com os serviços do SUS, por exemplo,
elas fizeram diminuir o número de doenças femininas. Finalmente, elas têm participado mais de
atividades públicas, filiaram-se a movimentos sociais e criaram cooperativas. Há uma quantidade
enorme de cooperativas criadas pelas mulheres com o que sobra do uso do dinheiro do Bolsa Família.
Qual seria o papel do Estado na promoção da igualdade e dos direitos das mulheres?
A função do Estado não é a de promover. Ele tem de reconhecer os direitos das mulheres e decretá-los.
Sua função é consignar na lei, institucionalmente, aquilo que os movimentos das mulheres exigem e
produzem, mas essa ação é social. A política se faz pela sociedade. O Estado brasileiro precisa parar de
agir como se não houvesse uma sociedade. A ele cabe salvaguardar tudo o que há de republicano e
democrático nas ações políticas da própria sociedade. Mais do que promover, o Estado tem de garantir.
dossiê Brasil: pátria educadora?
Apresentação
JUVENAL SAVIAN FILHO
Seria uma obviedade afirmar que se pode refletir sobre a educação de várias perspectivas, como, por
exemplo, a das relações sociais e de poder ou a dos objetivos do gesto educativo, dos métodos etc.
Porém, várias dessas perspectivas, senão todas, enfeixam-se na ótica do vínculo entre educação e cultura,
embora um dos maiores riscos dessa abordagem seja ceder ao desejo de definir os dois termos da relação
ou pretender sintetizar em fórmulas genéricas fenômenos e concepções díspares que a história da
humanidade associou a eles no decorrer dos séculos.
Ocorre que precisamente o exame de certos dados históricos hoje bastante assentados é o que talvez
permita um tratamento menos impróprio dessa correlação, esclarecendo alguns aspectos certamente
nucleares da atitude mental com que se costuma tratar a temática e iluminando a práxis educativa.
DAS CAVERNAS AOS QUANTA: ELABORAÇÃO E COMUNICAÇÃO DE SENTIDO
Não parece exagerado afirmar que os documentos históricos mais antigos já revelam intenções didáticas,
pois o gesto mesmo de registrar não se explica senão pelo objetivo de perenizar e transmitir um sentido
experienciado e elaborado por artistas, artesãos, literatos, filósofos ou outros autores. Isso vale não
apenas para os escritos poéticos, teatrais, filosóficos e sapienciais, mas também para os registros
pictóricos, esculturais, cerâmicos etc., como se observa em Chauvet, Blombos, Lascaux, Serra da
Capivara etc. Experiência e elaboração de sentido, comunicação social ou transmissão são preocupações
que se podem facilmente supor nesses registros, permitindo pensar que a produção cultural, característica
humana observável desde os primórdios da história, também se fazia acompanhar de um gesto educativo.
Com efeito, construindo-se como seres “capazes de sentido”, os humanos transcenderam o reino da
necessidade ou da determinação (Natureza) e inauguraram o reino da liberdade ou da intervenção
(História). Como afirmam inúmeros pesquisadores principalmente depois do surgimento da
Antropologia Cultural, a situação física dos indivíduos e grupos foi – e continua a ser – a matéria sobre a
qual opera o ato humano por excelência, quer dizer, a atividade espiritual ou o exercício de “sair de si,
permanecendo em si”: sair de si é ver a alteridade, distinguir-se da realidade circundante e aceitar que se
entra na vida por pura gratuidade; permanecer em si é constatar e assumir, em contraponto à alteridade, a
própria diferença. Todavia, esses mesmos sinais de experiência subjetiva testemunham uma atividade
também objetiva, a da expressão e comunicação do sentido elaborado. Nos registros mais antigos e
mesmo nos documentos mais enigmáticos que sobreviveram ao tempo, constata-se a atenção com a
escolha do melhor modo de exprimir e comunicar. Não se desenhava com qualquer coisa; não se
concebiam por acaso relações de proporção entre imagens; não se passou casualmente à melhor maneira
de produzir pergaminhos; também não se escrevia de qualquer jeito quando se percebeu que era possível
escrever de modo mais compreensível. Métodos, recursos adequados, meios propícios: eis que os
humanos pensavam no como registrar e comunicar; não apenas nos conteúdos de sentido elaborados.
Cultura e educação, portanto, nasceram imbricadas. Não se trata aqui, está claro, de entender a
cultura segundo o modo como se usa esse termo nas atuais sociedades de consumo, ou seja, como
referência à cultura ornamental, mas como o modo de ser propriamente humano; modo de existir de um
ente que cria objetivamente seu mundo ou seu espaço vital. Assim, cultura e educação nasceram
imbricadas tanto quanto se solicitavam entre si a elaboração de sentido, a consciência de si e do outro, a
expressão e a comunicação social; e, ainda que essa sucinta reconstrução ganhe ares de “história
idealizada”, ela permite, sem grande margem de erro, interpretar o evento humano como resultante de
um processo no qual a hominização se tornou humanização.
Esse processo atravessou a história da humanidade e é testemunhado nos quatro cantos da Terra. Para
citar somente as tradições ditas ocidentais, recomeçar pelos gregos é algo natural: o nascimento da
Filosofia e dos outros saberes mostra com clareza que os círculos pitagóricos, a Academia de Platão e o
Liceu de Aristóteles foram formas das primeiras “escolas” (nesses casos, escolas de nível superior),
assim como os variados grupos da era helenística, principalmente com a sofisticação lógica dos estoicos
e os debates afiados dos céticos, consagraram a atividade educativa como gesto de compreensão e
comunicação centrada na preocupação com o método. O período helenístico marcou-se, ainda, por uma
intenção de difundir os saberes, algo que se observará também na Idade Média, sobretudo com o afluxo
cultural dos três grandes monoteísmos, da Cabala, da Alquimia, da fundação das escolas catedralícias,
das universidades, dos centros de estudos islâmicos e judaicos, além de muitos outros fatores. Por sua
vez, a Modernidade, com seus novos modelos de ciência e sua pretensão a ser um momento “inaugural”,
pode comparar-se a um novo nascimento de cultura, ao qual seguiriam os séculos 18 e 19, sobretudo
com o Iluminismo. Este, em analogia com a era helenística e a Idade Média, pode ser caracterizado por
sua clara intenção de levar os saberes ao maior número possível de destinatários (ainda que com graves
limitações, como foi a situação das mulheres e dos pobres até o século 20). Enfim, o século 20
certamente merece ser considerado como outro novo nascimento cultural, sobretudo por causa do
paradigma aberto pela física quântica; e as décadas de 1950 até os dias atuais corresponderiam a uma
renovada tentativa de divulgar e democratizar a cultura.
Afaste-se desses parágrafos, no entanto, toda correlação com a crença de que no passar das diferentes
fases históricas houve sempre um progresso cultural. Não há dúvida de que os saberes e as ciências
progrediram em diversos aspectos, mas isso não permite dizer que a humanidade tenha, em uma fase
histórica posterior, desenvolvido a consciência de sua condição como produtora de sentido mais do que
pôde desenvolver em fases anteriores segundo os recursos então existentes. Se houvesse um progresso
desse tipo, o mundo atual seria a civilização do conhecimento (como, aliás, alguns profetizaram nos
séculos 18 e 19); e a humanidade perceberia, em maior escala, aquilo que é exigido para a
autorrealização livre dos indivíduos e grupos. É muito difícil, todavia, comprometer-se com a afirmação
segundo a qual a humanidade de hoje entrou na era do conhecimento. Não há dúvida de que saberes e
tecnologias melhoraram incomparavelmente a vida na Terra e formataram o cotidiano mais íntimo dos
humanos, mas isso não significa que entramos na era do conhecimento como percepção de nós mesmos e
da alteridade, num movimento de autoprodução consciente e aberto à realização responsável das
possibilidades de todos os humanos. Em outras palavras, não se entrou ainda numa era da cultura. Aliás,
o que hoje se designa por esse nome não passa, muitas vezes, da cultura ornamental, quer dizer, do
consumo de mercadorias de entretenimento ou repertórios de dados e práticas que não põem
necessariamente o tema do sentido no centro das atenções.
EDUCAÇÃO E CULTURA NO BRASIL
Os caminhos da história mostram que os humanos podem regredir ou estacionar no movimento de
humanização, continuando apenas a hominização. É precisamente esse risco que conduz ao núcleo do
tema das relações entre educação e cultura, pois ou a educação configura-se como prática efetivamente
cultural, ou ela se reduz a uma transmissão de aspectos do patrimônio intelectual objetivo, deixando
minguar o senso de responsabilidade de indivíduos e grupos na construção da existência.
Essa problemática ganhou destaque nos anos 1950, quando grande parte dos países viu-se diante da
necessidade de corresponder às dimensões nunca antes vistas de demanda por acesso à educação. Falava-
se mesmo de um fenômeno positivo e necessário de massificação educacional. No entanto, como
alertava Karl Mannheim (1893-1943) no livro Liberdade, poder e planificação democrática, publicado
em 1950, fazia-se urgente refletir sobre a educação e reservar-lhe um lugar essencial na construção de
um horizonte de cultura que integrasse a função humanizadora da técnica e afastasse o risco da incultura
tecnocrática com a barbárie do seu poder. Esse era o destino de qualquer sociedade que pretendesse
estabelecer, nos quadros de uma estrutura democrática, a correlação entre saber e poder. Era preciso,
sim, alterar a pirâmide do poder cultural, fazendo com que as massas adentrassem nas esferas dos poucos
que podiam frequentar escolas e universidades; mas buscando atender, por um lado, à quantidade maior
de estudantes e, por outro, às exigências dos novos tipos de mercado, havia o risco de transmitir-se
apenas uma formação técnica e alienada do mundo da cultura.
O Brasil, na passagem da primeira à segunda metade do século 20, também vivenciou preocupações
semelhantes, mas seu caso tinha agravantes: a necessidade de aumentar o acesso à educação era maior
aqui do que em muitas outras partes do mundo; vivia-se, nos anos 1930-1960, a preocupação acentuada
com uma “educação para o desenvolvimento”; buscava-se também sair de um modelo educacional
considerado colonialista, excessivamente europeu-ibérico, e reforçar elementos da identidade nacional;
por fim, observava-se uma violência organizada de classes sociais contrárias à educação em grande
escala, sobretudo em nível superior. O filósofo mineiro Henrique Claudio de Lima Vaz (1921-2000) –
que o presente artigo gostaria de homenagear e a quem deve algumas das ideias aqui exploradas –
escreveu, nos inícios da Ditadura Militar, que a educação brasileira merecia pensar com realismo uma
solução do desafio histórico no terreno da comunicação social do saber e de um humanismo cultural.
Essa solução, situando-se como de direito, deveria referir-se às condições globais de mudança da
sociedade brasileira, pondo em descrédito a cultura ornamental e fazendo o rigoroso planejamento de
uma “educação para o desenvolvimento” que não fosse apenas preparação de quadros técnicos, mas que
permitisse a todos os brasileiros participar efetivamente da crítica à violência organizada de uma
estrutura social hostil à promoção cultural das massas, à sua libertação econômica e à sua ascensão social
(cf. LIMA VAZ, Cultura e universidade, Editora Vozes, 1966, p. 37).
No entanto, os governos da Ditadura Militar, ainda que tenham aumentado o acesso à educação,
foram deletérios para o vínculo dela com a cultura. Já são conhecidos (talvez não suficientemente!) os
prejuízos educacionais dos anos 1964-1985: controle ideológico, sucateamento da escola pública,
esquecimento quase total de algumas regiões do país, fortalecimento dos padrões oligárquicos,
instrumentalização política, concepção do gesto educativo como mera transmissão de dados “cultos” etc.
Mesmo com relação à “massificação” do acesso à escola, as iniciativas foram insuficientes. Só durante o
governo Lula, por exemplo, abriram-se novas universidades e expandiram-se as antigas (embora,
curiosamente, as últimas universidades fundadas antes da era Lula venham da Ditadura Militar).
Agrava esse quadro o fato de professores e estudantes nem sempre se encontrarem como
subjetividades produtoras de sentido. Muitos preocupam-se com os exames que dão acesso às
universidades e esquecem que só há educação humanizadora quando se estabelece uma relação de
pessoa a pessoa, num posicionamento comum diante do mundo dos valores. No limite, a educação é uma
criação e um treinamento de hábitos. Não há segredo nesse aspecto, que foi intuído já pelos primeiros
indivíduos que cruzaram a fronteira da irracionalidade e iniciaram o processo hominizador e
humanizador. Há que se perguntar, portanto, que tipo de hábitos pretende-se desenvolver na educação
brasileira.
Em outra frente, visando suprir a carência cultural e mesmo fazer dos ambientes educativos lugares
de emancipação, os “decididores” de políticas educacionais (em geral, ex-professores que, quando
deixam a sala de aula, parecem esquecer-se de que um dia nela estiveram) apegam-se ainda a um resto
de mentalidade pretensamente anticolonialista e não hesitam em falar de identidade nacional, nutrindo,
por exemplo, uma desconfiança azeda com relação à transmissão de conteúdos clássicos ou com relação
à cultura que se costuma chamar de erudita (aquela que requer iniciação e treinamento). Sem autocrítica
e em nome da justiça social, terminam por privar os estudantes do contato com formas tradicionais do
saber, como se fosse possível construir a subjetividade ativa sem elaborar o conjunto objetivo de dados
que foram legados pelos antepassados. Cai-se na falácia de opor cultura erudita e cultura popular,
valorizando-se regionalismos e elementos imediatos que, embora mereçam, por si mesmos, ser
assumidos e desenvolvidos, não podem resultar no fechamento das mentes aos valores e conteúdos
universais a que os estudantes têm o direito de aceder. A cultura “erudita” ou “clássica” é, tanto quanto a
cultura “popular”, a matéria sobre a qual se aplica o espírito humano. Na contrapartida, tanto a cultura
popular como a erudita, se não desenvolverem nos indivíduos e grupos a consciência da condição
humana capaz da consciência de si e do outro, da intervenção na realidade circundante e da comunicação
social, tornam-se ornamentais e fatores de manipulação autoritária, alienando as pessoas de si mesmas.
Mais do que nunca, o momento histórico brasileiro requer, hoje, a reposição da pergunta pelos
vínculos entre educação e cultura. Avanços enormes na democratização do acesso à educação formal já
foram feitos, mesmo que ainda falte muito nesse quesito. Não parece conveniente, portanto, continuar a
repetir que o problema por aqui é a oferta de vagas. Se se efetivar o improvável “fracasso” do Brasil,
profetizado por conservadores neoliberais que, diante da perda de privilégios, começam a dizer que o
país ruma para o caos, tal “fracasso” não será resultado da falta de tentativa de oferecer educação para
todos. Por outro lado, há que se refletir sobre o sentido mesmo de pôr as pessoas nos bancos escolares.
Fala-se de educá-las com qualidade; resta saber, porém, se qualidade é sinônimo de preparação para o
vestibular, inseminando nas mentes o engodo de que os cidadãos somente serão completos e plenamente
preparados para a vida se frequentarem as universidades. Enquadrar as pessoas em regimes educacionais
não faz delas agentes de sua própria existência. Vários países já aprenderam isso. O século 20,
infelizmente, testemunha que educar não significa trazer bem-estar; pode mesmo trazer destruições e
holocaustos. Muitas das propostas de educação que se apresentam nas feiras ideológicas contemporâneas
não passam de estratégias de manipulação e controle, por um lado, ou de ressentimento e revanchismo,
por outro. Pouco se fala de colaboração; prefere-se apostar na concorrência.
Seja como for, educação sem vida cultural é apenas hominização. O sistema educacional brasileiro
merece ser fecundado com cultura, garantindo-se o direito de as crianças, jovens e adultos acederem não
apenas ao patrimônio multifacetado que a humanidade construiu, mas sobretudo ao exercício de
perguntar pelo porquê da existência individual e grupal. Nesse contexto, é preocupante a redução das
aulas de filosofia e ciências humanas no Ensino Médio, seja ele profissionalizante ou não. Enquanto
algumas escolas privadas oferecem práticas filosófico-lógicas já para as crianças (embora também haja
prestigiados colégios paulistanos que vergonhosamente reservam duas aulas semestrais para Filosofia!),
o sistema público reduz as humanidades ao mínimo necessário para cumprir as exigências do MEC. É
também desalentador ver a falta de interesse pela vivência cultural da parte de professores e estudantes
(seja por causa da escassez de oportunidades, como bons cinemas, bons teatros, livros com preços
acessíveis etc., seja da mera falta de hábito, devida ao divórcio entre educação e bens de cultura e à
redução desses bens a simples meios de entretenimento).
Tampouco a condição humana ocidental contemporânea facilita equacionar educação e cultura. Além
dos conhecidos problemas estruturais de desigualdade, diferentes sociedades têm lamentado o aumento
de práticas identitárias que enfraquecem sentimentos cosmopolitas e, contraditoriamente, relativizam o
respeito incondicional pelas diferenças. Isso não vale apenas para países do Oriente Médio ou os Estados
Unidos, mas também para a cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, com a perseguição de mães de santo
por traficantes evangélicos, ou para os programas de televisão brasileiro que incitam o ódio entre grupos
sociais, políticos, religiosos, torcidas de times de futebol etc. A crer nas estatísticas, outros fenômenos
inquietantes têm aumentado assustadoramente mesmo em países com “bons índices” educacionais: o
sofrimento pessoal, o consumo como forma de autorrealização, a alienação política, o fanatismo, a
violência, a rarefação das amizades, o individualismo, a recusa da ciência, a insensibilidade com o
sofrimento alheio etc. O mundo vive uma estupenda facilidade na circulação de ideias, teorias, opiniões;
o intercâmbio de dados aumentou de maneira considerável; entretanto, paradoxalmente, as pessoas têm
perdido densidade de pensamento e de formas de comunicação. O ritmo alucinado das solicitações e
informações, o nível raso das relações interpessoais e o tédio da vida cotidiana têm feito a existência
humana pesar sobremaneira, com resultados assustadores em termos de dissociação psíquica. Não se
deve acreditar que a humanidade conheceu, algum dia, uma fase áurea quando a dor pessoal era menor.
Cada tempo tem o seu fardo. Porém, um enriquecimento cultural permitiria, não há dúvida, evitar muitos
desses sofrimentos, mesmo sem extirpar o desassossego típico do ato de existir.
O Brasil, justamente por ainda estar “em construção”, pode explorar certas vantagens e reverter
dificuldades em seu benefício. A aposta na cultura pode ser uma de suas alavancas. Se a regulação das
violências sociais foi inaugurada com o reino da educação e da cultura, a educação brasileira tem o papel
histórico de varrer do país a violência das estruturas de privilégio e de instrumentalização do outro. Mas
essa varredura somente terá sucesso se for aberto o caminho para o humano. O acesso à educação não
faz crescer proporcionalmente a cultura do espírito; mas é dessa cultura que pode provir alguma luz
humanizadora e não apenas hominizadora.
A nova reforma do Ensino Médio e o debate sobre suas finalidades
MARIA RITA DE ALMEIDA TOLEDO
Por seus resultados catastróficos, o Ensino Médio público tem sido uma das etapas mais problemáticas
da educação básica no Brasil. Constatações como o alto índice de evasão e de distorção idade-série, bem
como o fato de muitos jovens saírem dessa fase sem nada saber, marcam o debate sobre o que fazer com
as escolas e sua qualidade.
A crise vem seguramente do tempo em que a então chamada Escola Média era organizada em ginásio
e colegial (anos 1970). Em 1996 foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB
9.394/96), que regulamenta até hoje o sistema educacional brasileiro público e privado, transpondo para
a forma da lei os princípios educacionais registrados na Constituição Federal de 1988. Mas a crise não se
resolveu com a LDB 9.394/96; além disso, novos elementos de crise apareceram. Em 2011, após debater
o cenário educacional brasileiro, o Conselho Nacional de Educação estabeleceu as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCEM), dando ocasião à Câmara dos Deputados Federais
para formar, em 2012, uma Comissão Especial que reformulasse a LDB 9.394/96. Com um Projeto de
Lei publicado no ano seguinte (PL 6.840/2013), a Comissão pretendia aumentar significativamente o
tempo de permanência dos alunos nas instituições escolares e reformar o currículo. Buscava deslocar a
organização disciplinar para áreas de conhecimento que pudessem melhor atender aos interesses dos
jovens.
O Ensino Médio diurno passaria a ser o único oferecido aos alunos em idade escolar regular, com
tempo integral de sete horas durante três anos de 200 dias letivos. O tempo de formação passaria de
2.400 para 4.200 horas e o acesso ao ensino noturno seria proibido a menores de 17 anos. O ensino
noturno seria destinado apenas a estudantes fora da idade escolar, com a mesma duração de 4.200 horas
e jornada diária mínima de três horas ao longo de quatro anos.
O PL 6.840/2013 propunha distribuir as disciplinas em quatro áreas de conhecimento: Linguagens,
Matemática, Ciências da Natureza e Humanas, com prioridade para Língua Portuguesa e Matemática. Na
visão dos proponentes, isso garantiria a interdisciplinaridade e desoneraria o currículo, aumentando o
interesse e facilitando a formação do estudante, que no terceiro ano deveria escolher uma dessas áreas
para o aprofundamento de seus estudos e direcionamento da carreira profissional. O ensino
profissionalizante de nível médio seria realizado em um quarto ano, articulado às opções dos estudantes
no terceiro ano. Todo o currículo deveria obrigatoriamente incluir os temas transversais −
empreendedorismo, prevenção ao uso de drogas, educação ambiental, sexual, de trânsito, cultura da paz,
código do consumidor e noções sobre a Constituição Federal. Por fim, as avaliações e processos
seletivos que dariam acesso ao Ensino Superior seriam feitos com base na opção formativa do aluno. Os
docentes deveriam ser formados não mais em disciplinas acadêmicas, mas nas áreas do conhecimento
estabelecidas pelo currículo do Ensino Médio. Qualquer introdução de matérias ou conteúdos no
currículo só ocorreria mediante autorização do Ministério da Educação.
Composto por mais de dez entidades do campo educacional, desencadeou-se o Movimento Nacional
pelo Ensino Médio, com o objetivo de alterar os conteúdos do PL 6.840/2013, reformulando as
principais proposições com base nas DCEM. O Movimento alertava: o projeto cerceava o acesso à
escola (sobretudo aos alunos trabalhadores), simplificava um currículo já muito semelhante ao adotado
durante a Ditadura Militar e requentava as diretrizes curriculares dos anos 2000 ao retomar os temas
transversais. Além disso, incluir a opção pela formação profissional do estudante no último ano do
Ensino Médio contrariava o disposto na LDB 9.394/96 e desconsiderava a modalidade de Ensino Médio
Integrado à Educação Profissional, mais próxima da concepção proposta nas DCNEM e já em prática
nas redes estaduais e federal.
A pressão resultou num substitutivo que alterou sobremaneira o PL 6.840/2013 quanto à
obrigatoriedade do Ensino Médio integral, à proibição do acesso dos jovens menores de 17 anos ao
período noturno e ao desenho obrigatório do currículo em áreas do conhecimento e temas transversais.
Nessa direção, o substitutivo aproximou-se das DCEM, mantendo as áreas de conhecimento e
descrevendo os componentes curriculares que cada uma dessas áreas deve conter: Linguagens (Língua
Portuguesa, Língua Materna para as populações indígenas, Língua Estrangeira Moderna, Arte, Educação
Física), Matemática, Ciências da Natureza (Biologia, Física, Química), Ciências Humanas (História,
Geografia, Filosofia, Sociologia). A formação docente voltaria a se dar nas disciplinas acadêmicas e não
mais em áreas do conhecimento.
DA ESCOLA SECUNDÁRIA AO ENSINO MÉDIO
Para explicitar as raízes desse debate, convém lembrar que entre 1946 e 1961 havia pelo menos três
posições distintas a respeito da educação brasileira. Por um lado, elas concordavam que havia uma crise
no nível secundário de ensino mas, por outro, elas analisavam os termos dessa crise com cores diversas.
A primeira posição pode ser observada nas Leis Orgânicas do Ensino, assinadas entre 1942 e 1946
pelo ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema. No conjunto dessas leis, o Ensino Médio era
composto pelos ramos Propedêutico, Técnico e Normal. Para o Propedêutico, conhecido como Escola
Secundária (com dois ciclos formativos, o ginásio, de quatro anos, e o colégio, de três), atribuiu-se a
finalidade da “formação das individualidades condutoras do país”, oferecendo-se uma formação literária,
científica ou filosófica, “portadoras das concepções e atitudes espirituais que deveriam infundir nas
massas”. Permitia-se aos estudantes transitar por todos os outros ramos, garantindo também acesso a
qualquer dos cursos em nível superior pretendido pelos seus egressos. Os demais se conectavam ao
Ensino Superior somente nos cursos afins com a formação específica; por exemplo, os cursos industriais
às engenharias ou o normal às licenciaturas e à Pedagogia. Daí o prestígio adquirido pelo Propedêutico e
a hierarquia cultural estabelecida entre este e os ramos Técnico e Normal. O acesso ao Secundário se
dava por meio da aprovação dos estudantes nos exames de admissão, propostos pelas diferentes
instituições do nível médio, o que excluía grande parte dos estudantes. Tal organização estabelecia uma
dualidade de ensino entre as escolas públicas: a de formação das elites no Ensino Normal e a das classes
desprivilegiadas no Ensino Técnico.
As Leis Orgânicas tiveram vigência até o estabelecimento das Leis de Diretrizes e Bases de 1961.
Estas últimas demoraram mais de dez anos para ser publicadas. Para educadores como Anísio Teixeira
(1900-1971), era iminente a necessidade de transformação do ensino propedêutico, dada a transformação
de sua clientela. O ramo do Ensino Médio mais procurado pela população a fim de prolongar sua
escolarização e alcançar o Ensino Superior deveria converter-se em “escola de formação básica”,
racional e científica, associada às tecnologias e técnicas, para formar todos os adolescentes. A nova
Escola Secundária não deveria ser técnico-profissionalizante nem preparatória para o Ensino Superior.
Para os intelectuais ligados ao desenvolvimentismo econômico dos anos 1950, a inoperância da Escola
Secundária se devia ao seu descompasso com o processo de industrialização e urbanização vivido pelo
país. A educação deveria ser uma das molas de transformação da nação em direção ao desenvolvimento
econômico para formar mão-de-obra capaz de operar as novas tecnologias do progresso, preparando o
jovem para a nova etapa industrial. Tanto os ginásios como os colégios deveriam se organizar com um
núcleo de disciplinas comuns e uma parte diversificada que encaminhassem todos os jovens à
profissionalização, levando-se da mentalidade das elites, “livresca e atrasada”, como se dizia, à
mentalidade das outras camadas sociais que passariam a ser efetivamente preparadas na escola. Nos dois
modelos, a mudança deveria alcançar todos os jovens, com a oferta de uma escola pública de qualidade.
As representações coincidiam, contudo, na avaliação de que mudanças profundas no Ensino Médio
(ginásio e colégio) dependiam da opção pelo investimento de ampliação da escola pública no lugar de
incentivar a expansão do ensino privado, como se fazia desde o Ministério Capanema. A escola pública
deveria ser para todos, constituindo uma cultura comum entre todas as classes sociais.
Para um terceiro grupo, o problema da crise do Ensino Secundário, público ou privado, residia
justamente no fato de o ramo propedêutico não preparar os jovens para o nível superior. Na opinião do
educador Almeida Júnior, por exemplo, o problema estava na formação dos docentes destinados a essa
escola, nos currículos e no baixo aproveitamento do programa de estudos. A solução estaria num maior
controle dos processos de organização das escolas públicas, com rigoroso acompanhamento da formação
dos docentes (realizada somente em universidades públicas) e de suas práticas em sala de aula. Para esse
grupo de críticos, a escola propedêutica deveria preparar para a cultura científica. A desconexão entre
Ensino Médio e Superior deveria ser superada pela rearticulação dos programas, da formação docente e
das práticas formativas engendradas na escola secundária.
Em 1971, viria a resposta ao debate, impondo pela força da lei e da repressão um único modelo de
escola para todo o Brasil. Com a Reforma do Ensino instituída pela lei 5.694/71, o ginásio desaparece
como nível de ensino e é integrado à escola primária, formando a Escola de 1º Grau. O colégio converte-
se no Ensino de 2º Grau.
O 1º Grau deveria desempenhar a função de “agência homogeneizadora”, criando uma “base comum
de comportamentos, que refletiriam os valores da sociedade e propiciariam o desenvolvimento de
vocações profissionais”. Saem as disciplinas, entram as matérias, estabelecendo um núcleo comum
obrigatório e outro diversificado, proposto pelos planos das diferentes instituições escolares. A nova
configuração do núcleo comum organiza-se em Comunicação e Expressão (Língua Portuguesa); Estudos
Sociais (História, Geografia, Organização Social e Política do Brasil, Educação Moral e Cívica);
Ciências (Matemática, Ciências Físicas e Biológicas).
A eliminação dos exames de admissão franqueia o acesso de um público até então excluído. O
ginásio transforma-se no prolongamento do primário e da escolarização obrigatória para todos. Tal
mudança implica a primarização do ensino secundário, pelas finalidades políticas atribuídas à escola de
1º Grau, pela admissão de um novo público de alunos ou ainda pela forma como se dava a organização
curricular, adequada a esse novo público.
Ao 2º Grau, agora compulsoriamente voltado para o mercado de trabalho, é atribuída a função de
escola terminal. Fica assim desarticulado do Ensino Superior e da responsabilidade de ser a ponte que
deveria levar os estudantes a esse grau de ensino. Os ramos da escola média são fundidos na escola de 2º
Grau. O processo de massificação da escola pública secundária é acompanhado por um intenso
crescimento do ensino privado, que passa a receber os filhos das classes médias, em busca da antiga
qualidade de ensino e da distinção que a escola pública aberta não era mais capaz de oferecer por não
preparar adequadamente para o Ensino Superior. Esse fenômeno reorganiza a dualidade econômica do
ensino: uma escola pública para as classes desprivilegiadas, preparadora para a atividade profissional;
uma escola privada cujos currículos continuavam propedêuticos, pelas apropriações possibilitadas pela
lei.
DEMOCRATIZAÇÃO E SILENCIAMENTO
Esses mecanismos de reprodução das desigualdades ainda são reforçados pelas políticas de formação
docente. Com a Lei 5.694/71 e a Reforma Universitária de 1968, a ditadura rompe com a perspectiva que
articulava os ensinos secundário e superior, afirmando a distinção entre bacharelado e licenciatura. Os
docentes do ensino de 1º Grau passam a ser diplomados em processos paralelos aos dos
“cientistas/intelectuais”, sobretudo com licenciaturas curtas.
Na prática, os professores tornam-se transmissores do conhecimento, alienados dos processos de sua
produção (reservados então à pesquisa realizada pelos matriculados no bacharelado). Isso vem
acompanhado da expansão do Ensino Superior por meio das instituições privadas, responsáveis por
implementar licenciaturas curtas em todo o país e depois oferecer cursos de formação docente a “custo
mais baixo” (com mensalidades acessíveis e tempo menor de permanência dos formandos na
instituição). Tal proletarização explicita-se ainda pela reorganização do regime de trabalho do docente
“especialista”, que deixa de ser professor catedrático (efetivo, estável) para se converter no professor
hora-aulista, com jornadas de trabalho variadas segundo as necessidades de composição de renda,
multiplicação dos vínculos com diversas escolas e número crescente de alunos.
Após a democratização vinda com a LDB 9.394/96, ficam mantidas as mesmas estruturas
administrativas e as dinâmicas de distribuição, de origem da formação e de remuneração de docentes,
assim como a organização do tempo escolar em hora/aula. Desaparece a discussão sobre a necessidade
da escola pública para todos e se naturaliza o princípio de que a escola privada deve ocupar fundamental
posição nos processos de socialização da infância e da juventude.
Por isso, o que está em jogo hoje (embora o debate seja silenciado) é a formação do aluno da escola
pública, do aluno economicamente desfavorecido. As escolas privadas conseguem, como se viu durante
a Ditadura, adequar a lei a suas culturas. Fazem coincidir os termos da lei com aquilo que já realizam:
preparar seus estudantes para o Ensino Superior.
Nessa seara, as políticas, sobretudo as conformadas pelo PL 6.840/2013, mantêm uma representação
do jovem que se quer educar na escola pública, sem que se saiba quem é ele. Ao prescrever o aumento
significativo de horas de permanência do jovem das classes desfavorecidas na escola, propõe
necessariamente retirá-lo de outros espaços, como a rua ou a casa, não controláveis pelo Estado e por
suas autoridades educativas. Sob a disciplina da escola, o jovem permaneceria (res)guardado da
violência ou das influências desfavoráveis à sua formação. Paralelemente, viria a simplificação
curricular para evitar o desinteresse e a fuga da escola. Eis aí uma representação da juventude: a evasão
se dá porque o jovem pobre não consegue aprender do mesmo modo como o estudante de classes mais
favorecidas; o seu “interesse” não é pelo conteúdo da cultura letrada, de elite, que leva ao Ensino
Superior, mas sempre instrumental, visando entrar ainda na vida social, enquanto outros já podem entrar
na universidade pública e de qualidade. Na mesma direção, dispensa-se a formação complexa dos
docentes, que devem se limitar àquilo que será ensinado na escola. A profissionalização no terceiro ano,
acrescido de mais um, reforça o princípio da ordem disciplinar, treinada pela grande permanência em
instituições de vigilância, como a escola. É o adestramento para a continuidade de seu lugar na sociedade
“democrática”.
Longe de tocar no cerne das heranças políticas deixadas pela Ditadura Militar, o discurso genérico da
reforma do Ensino Médio reafirma o papel da escola pública destinado à vigilância e ao controle.
Esvaziam-se os mecanismos, sobretudo curriculares, de ser instrumento da promoção da equidade
cultural entre os oriundos de diferentes estratos. Enquanto isso, no silêncio, a escola privada permanece
como a preparação da elite.
Fica definitivamente de lado a questão de fundo: a política explícita de constituir uma escola comum
a todos os brasileiros, que ofereça equidade cultural para garantir a liberdade de escolha das trajetórias
futuras.
Pátria falastrona
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
Para combater as desigualdades sociais e econômicas no Brasil é necessário criar riquezas e educar.
Também é preciso, pois, educar para que se possa criar riqueza e saber distribuí-la da forma mais justa
possível.
Até a metade do século 20, fazia sentido imaginar que, superando o modo de produção capitalista
(aquele em que a busca da riqueza se faz em vista de seu crescimento contínuo), venceríamos um tipo
tradicional de dominação para entrar numa era cujas liberdades seriam muito mais amplas que no
passado. Nenhuma das revoluções desse período cumpriu essa promessa. Ao contrário, reforçaram o
capitalismo de Estado e instalaram sistemas políticos autoritários.
Fazer política hoje implica, no fundo, enfrentar uma contradição: a criação e a distribuição mais justa
da riqueza econômica dependem da produção capitalista, que por si mesma cria mais riqueza produzindo
enormes diferenças de renda. Daí um novo sentido a ser conferido ao Estado: cabe-lhe assegurar as
condições da produção capitalista, assim como intervir na sua distribuição marginal visando implementar
justiça social. Até agora isso foi feito alternando-se períodos de desenvolvimento econômico e de
estagnação, ambos no plano da economia e da política. Não haveria como sair dessa alternância
perversa?
Mesmo sem mudar suas categorias elementares, o capitalismo do nosso tempo é muito diferente
daquele do século 19. Desde David Ricardo e Marx sabe-se que os processos capitalistas de trabalho,
porque são abstraídos para poder visar a uma taxa média de produtividade, dependem do progresso
tecnológico. Progresso que deu saltos inacreditáveis nos últimos anos. Se os países que agora logram sair
da crise de 2008 o fazem mediante revoluções tecnológicas, é porque o próprio desenvolvimento atual
depende dessas revoluções. Não se pode cair na ilusão do capital financeiro e imaginar ser possível
investir nos ramos produtivos sem visar a novas tecnologias que assegurem novas posições no mercado.
A extraordinária expansão do ensino que ocorreu nos últimos anos no Brasil por certo o
democratizou, mas deixou de lado as agruras da formação técnica. Às vezes beira o ensino falastrão.
Hoje se volta a valorizar o ensino técnico, mas a pesquisa tecnológica está desorganizada, a despeito de
contarmos com grandes centros de excelência. Essa pesquisa abandonou a universidade, voltada
sobretudo para promover ascensão social. Quantas vezes se ouve nos campi que a universidade não deve
colaborar com o capital? Mas onde buscar a riqueza para socorrer a população mais pobre?
Acentuar a pesquisa científica e tecnológica implica criar diferentes programas, aproveitando as
diferenças naturais de talento. Isso não pecaria por cair num execrável elitismo? Sem matizarmos nossas
expectativas e nossos pensamentos, sem uma grande revolução no ensino, nosso desenvolvimento
apenas se arrastará. E a integração social que ainda promove se tornará ilusão cinzenta. A pátria somente
será educadora se for menos falastrona.
Língua claudicante
WELINGTON ANDRADE
Há muitos anos uma realidade se repete no país e ninguém se ocupa de querer modificá-la. Alunos saem
do Ensino Médio e entram nas universidades sem privar da mínima intimidade com o uso da variante
escrita culta formal da Língua Portuguesa, em sentido estrito, e com o emprego das inúmeras
possibilidades de expressão afetiva e intelectual dessa mesma língua, em caráter mais amplo. Ela é
encarada quase sempre como um código estranho, cujo domínio somente é dado a conhecer a um restrito
número de usuários privilegiados.
Observe-se a grande quantidade de títulos que o mercado editorial despeja regularmente nas livrarias
com o objetivo de colocar um “português sem mistérios” ao alcance do cidadão médio. Tentativa tão
inócua quanto a oferta regular de cursos de “atualização gramatical” e de “técnicas de redação”
ministrados aqui e ali, nos quais o ato de escrever bem costuma ser abordado por meio de uma
fraseologia-padrão de curta memória e ampla superficialidade. Não sem motivo, as ações desse rentável
“mercado paralinguístico” tendem a redundar em fracasso, uma vez que ler e escrever demandam uma
longa e profunda prospecção de natureza cultural e linguística, infensa naturalmente a maneirismos
pseudopedagógicos.
Movidos por idêntico automatismo, os indivíduos deixam para trás suas formações universitárias e
ingressam no mercado de trabalho com as mesmas dificuldades que os acompanharam durante toda a
vida escolar, expressando-se, agora profissionalmente, por meio de uma língua precária, limitada,
limitadora e inóspita. Esse é o registro linguístico empregado por grande parte dos veículos de
comunicação, inúmeros políticos e representantes do poder público, os mais variados setores
empresariais, diversos integrantes da indústria cultural. Tragicamente, é dele que começa a fazer uso
também, com regularidade, um numeroso contingente de profissionais da arte, da cultura e da educação.
A responsabilidade pela pouca proficiência que o cidadão brasileiro demonstra no uso diário da
Língua Portuguesa é de todos nós. Empunhamos as mais variadas bandeiras em nossa militância cívica,
mas jamais figura entre elas a da educação de qualidade, verdadeiramente inclusiva e de ação duradoura
no tempo. Além de a escola precisar reaver seu papel central na educação linguística e cultural do
cidadão (responsabilidade de toda a sociedade civil, embora nossa consciência política terceirize o
problema e o impute exclusivamente a um “governo” que parece sempre mais distante de nós), seria
necessário desenvolver também, seja pela via da educação formal, seja pela da ação cultural, amplos
projetos de formação continuada em Língua Portuguesa, baseados em uma meta inequívoca: a
consistente qualificação de nosso público-leitor, hoje dividido entre o analfabetismo funcional e uma
alfabetização insuficiente para levá-lo à plena autonomia intelectual.
No tocante à norma culta, talvez seja o caso de preparar educadores e professores para lidar com
conceito tão complexo. É possível conferir a ele um tipo de inflexão que, não lhe sendo totalmente
alheio, garante-nos maior espaço para deslocamentos dentro de seu próprio alcance. Em relação às
quatro variedades discursivas de base da língua escrita (formadas pelos pares culto/inculto,
formal/informal), é inegável que seja missão da escola levar o aluno à plena proficiência no uso da
variante mais complexa: a escrita culta formal. Entretanto, compete à instituição escolar reexaminar os
conceitos de cultura e de formalidade aqui implícitos, não somente explorando com necessária
inventividade os saberes tradicionais de que ela se faz honrosa guardiã, mas também sem se esquecer
jamais dos conhecimentos que circulam diariamente na esfera da realidade circundante.
Sob tal ponto de vista, entende-se cultura como um processo essencialmente ativo por meio do qual
determinados fatos e ocorrências que antecederam ao sujeito no tempo (aos quais também se pode
chamar de dados da tradição) relacionam-se com o seu eu-aqui-agora. O encontro dessas temporalidades
díspares constitui um poderoso instrumento para que o sujeito tenha condições de avaliar,
intransitivamente, o que é ser e estar no mundo. Do mesmo modo, a formalidade pode ser entendida
como o resultado de uma ação que empenhou o tempo e o rigor necessários para garantir a fruição e a
intelecção plenas de um determinado objeto. Assim, em vez de submeter escritores do passado aos
modismos linguísticos do momento, a fim de tornar seu código original inofensivo ao leitor médio de
hoje, deve-se procurar estudar justamente a natureza “ofensiva” da prosa daqueles escritores, levando os
jovens a querer investigar por que à cultura compete mais desestabilizar do que conservar pensamentos e
convicções, como também por que paradoxalmente muitas dessas prosas conseguem estabelecer
inúmeros pontos de contato, seja com as manifestações culturais produzidas nas periferias brasileiras,
seja com aquelas concebidas nas instâncias de centralidade mais previsível. O exercício da cultura
formal é tornar Sófocles, Tchekhov e Machado de Assis nossos contemporâneos; é ainda converter o
teatro do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, o cinema de Eduardo Coutinho e o rap de Mano Brown,
Criolo e Emicida, por exemplo, em contemporâneos daqueles homens de cultura. Sem intimidades
falaciosas, tampouco com solenidades castradoras. Nesse aspecto, talvez falte a professores e educadores
uma formação intelectual e estética ampla, que os leve a atuar propriamente como agentes culturais
responsáveis por mediações sempre muito atentas e dinâmicas entre o aluno e a sociedade, entre a
palavra escrita e a irrefreável inventividade da cultura, a imaginação individual e a memória social. Sem
tais mediações, a ideia de uma cultura normativa se revela obsoleta e anacrônica; e a de uma língua
pautada por ela, esvaziada de sentido.
No âmbito do avançado estágio da sociedade informacional em que vivemos, atravessamos um
momento de complexas transformações no tocante aos usos das línguas naturais como meios de
comunicação e expressão, o que evidencia a necessidade de constantes estudos e pesquisas a respeito de
como os campos da tecnologia e das mídias contemporâneas têm exercido profundo impacto no modo
pelo qual utilizamos nossas línguas maternas para dar plasticidade aos chamados conteúdos da
consciência, isto é, àquela miríade de ideias e sentimentos que garantem aos indivíduos da espécie
humana sua ainda irrestrita cota de humanidade.
AMBIVALÊNCIA DA CRISE
Seria preciso compreender de fato um tema que assombra o mundo da educação, qual seja, as
metamorfoses sofridas pela palavra na sociedade da informação, examinando com muito cuidado o
processo de reconfiguração pelo qual vem passando a formação linguística de crianças e jovens
submetidos todo o tempo a novos regimes de percepção e intelecção, orientados por elementos de
inequívoca disrupção em relação à maneira clássica de atuação da escola: descontinuidade, desatenção,
fragmentação e celeridade. Só assim se poderá evitar reduzir o problema à velha e surrada dicotomia que
confronta, pura e simplesmente, de um lado, os apologistas da modernidade e, de outro, os cultores da
tradição.
Muitos entusiastas da sociedade em rede apontam para a ideia de que o surgimento constante de
novos aparatos técnicos tem levado crianças e jovens a comunicar muito mais e, por conseguinte, a
aumentar potencialmente sua produção escrita, o que, por si só, garantiria o aperfeiçoamento contínuo de
seus recursos linguísticos. Entretanto, se a quantidade de textos postados diariamente nas mais diversas
mídias sociais revela um apetite irrefreável para a expressão pessoal, a qualidade de tais escritos não
deixa dúvidas: a vontade de estabelecer uma comunicação meramente fática é que orienta sua produção;
não há compromisso algum com o exercício estético, a capacidade crítica ou o poder de invenção tão
próprios da singular fruição que o estudo aprofundado de uma língua é capaz de proporcionar.
É preciso imputar ao mundo organizado em torno da comunicação de massa e da indústria cultural –
que cinicamente atribui às mídias sociais um potencial educativo que não lhes é próprio – um modus
operandi do qual ele não consegue absolutamente se desvencilhar: estereótipo, repetição e senso comum.
É preocupante constatar que certas esferas pedagógicas, acadêmicas e intelectuais já há um bom tempo
sentem-se naturalmente integradas a esse universo. A língua por meio da qual muitos intelectuais se
expressam é uma forma estereotipada; a língua em que boa parte dos trabalhos acadêmicos é vazada, seja
em nível de graduação, seja em nível de mestrado ou doutorado, é uma “instituição repetidora” (de
acordo com a definição de Roland Barthes). A língua utilizada por professores e educadores Brasil afora
é uma estrutura que raramente escapa à produção do senso comum. Sobre tal aspecto recomenda-se a
leitura de 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono, escrito pelo professor de história da arte Jonathan
Crary, e de A geração superficial: o que a Internet está fazendo com os nossos cérebros, do jornalista
Nicholas Carr. O fato de ambos serem norte-americanos revela que a mesma sociedade que trata a
tecnologia como panaceia é capaz de produzir críticas muito consistentes a ela. Diante dessas críticas,
naturalmente, não nos cabe reagir de modo abstrato, lamentando a conjuntura. Há muitos projetos de
resistência à aparente naturalidade do que está aí e que competem à escola desenvolver.
Sem assumir a indigência linguística que grassa de norte a sul do país como responsabilidade de
todos; sem desemaranhar os intrincados fios de que são feitos os vínculos entre língua, literatura, cultura
e educação; e, por fim, sem resistir ao processo gradual de embotamento da percepção e da intelecção
conduzido pelos mais variados mecanismos de suporte à cultura digital na qual estamos mergulhados,
não será possível remexer na língua agonizante de que fazemos uso, procurando atiçar suas cinzas e
delas ver nascer alguns lampejos de criatividade intelectual, ousadia estética e prontidão crítica. Há um
estado de ambivalência na crise que atravessamos. É possível à educação servir-se dela de forma
fecunda, em vez de somente lastimar sua existência.
Apagão de Professores na Pátria Educadora
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
O segundo pior crime da Ditadura Militar foi não ter alfabetizado o Brasil. Apesar de Anísio Teixeira
(1900-1971), Paulo Freire (1921-1997) e Darcy Ribeiro (1922-1997), a formação de um sistema
educacional nunca esteve entranhada à constituição do Estado brasileiro nem a uma política que o
definisse ao menos por uma temporada.
Isso representa um contraste vivo com países contíguos como a Argentina, do presidente Domingo
Sarmiento (1868-1874), que estabeleceu uma ligação intrínseca entre o projeto republicano e a educação
universal, pública e gratuita. Nós, nesse período, expulsávamos jesuítas; nossos republicanos,
positivistas, alegorizavam o saber como uma espécie de fetiche religioso para iniciados. Nosso parque
universitário é tardio, nossos sistemas de avaliação recentíssimos, a ideia de fazer do Brasil um país
voltado para a educação surgiu anteontem. Guardadas as proporções de nosso complexo de
renascimento, ignoramos soluções e erros encontrados em tentativas anteriores, fazendo valer apenas o
último capítulo da história, cuja lembrança do processo pode ser assim economizada. É também daí que
procede nosso espírito de comparação com países como a Finlândia, com grandes centros notáveis de
saber, contabilizados por Nobéis, ou com experiências de excelência no ensino, medidos por ideias
geniais. Há um soberbo desconhecimento do tamanho do problema brasileiro. Isso torna bizarro nos
compararmos com países com populações menores do que o estado de São Paulo, intuir ideias
revolucionárias sobre currículo e tecnologia e nutrir a retórica dos grandes líderes na matéria. Na
verdade, a educação, em vez de ser território de todos, passou a ser tratada como terra de ninguém.
PROFECIA: HAVERÁ UM APAGÃO DE PROFESSORES NO BRASIL!
Em meio à série confusa e divergente de diagnósticos que já há algum tempo tem caracterizado a
preocupação fundamental do Brasil nessa matéria, há uma profecia que se torna cada vez mais real:
haverá um apagão de professores no país.
Depois de anos de condominização à guisa de regulamentação ou avaliação e de décadas de
reciclagem de fórmulas morais, chegou a conta da nossa imprevidência.
Para a psicanálise, esse momento (em que estamos diante de um sintoma) é também a ocasião em que
a estrutura do problema se apresenta de modo mais claro. O desaparecimento de interessados em formar-
se em certas disciplinas não pode ser atribuído apenas aos salários, muito menos à confusão reinante em
nossos modelos de formação. Ele é sintoma de que a educação transformou-se em outra experiência. Não
é mais a transmissão de um saber, movida pelo desejo do professor e oferecida para aqueles que já se
interrogam sobre o mundo, sobre suas letras e sua lógica muito antes dessa transmissão. Não. A
educação virou outra coisa.
O metodologismo, representado tanto pela confiança em técnicas de aprendizagem como pelo
sistema de individualização ou patologização do fracasso escolar, tornou-se um obstáculo para que a
escola seja uma escola aprendente e para que o professor sustente aquele que seria seu desejo no ofício.
Uma escola aprendente é aquela que coloca entre seus fins e no centro de suas relações a disposição ao
saber, transferindo essa disposição não apenas a professores e estudantes interessados, mas também aos
seus funcionários, aos pais, à sua comunidade e – o mais difícil – aos seus administradores. Uma pátria
educadora deveria ser, antes de tudo, uma pátria aprendente.
As pesquisas de Maria Cristina Kupfer, Rinaldo Voltolini e Leandro de Lajonquière mostram, já há
algum tempo, que a relação de aprendizagem está sobredeterminada pelo que a psicanálise chama de
transferência. É assim desde o começo, quando os pais e a família transferem o encargo e a autoridade
do cuidado e do ensino da criança. É assim também quando o universitário ou pesquisador formado
transfere e retorna o que pode descobrir e aprender para a comunidade e para a sociedade que nele
deposita um mandato simbólico. A transferência é um processo que convida continuamente a reconhecer
o sujeito (referido ao saber) numa relação de suposição. Quando Paulo Freire chamou a atenção para a
importância dos contextos, das suposições e dos saberes daqueles que entram no processo de
aprendizagem, destacava a importância da transferência, sobretudo, a importância do bom uso da
transferência para uma educação que não se queira apenas reprodutora de opressões. Um verdadeiro
professor não transmite conhecimentos ou conteúdos que ele aprendeu e domina, mas a relação que ele
tem com o saber do qual também se torna autor ao tornar seu o que lhe foi legado. Isso não tem a ver,
necessariamente, com vocação, paixão ou gosto, mas com certo empenho do desejo naquilo que se faz.
Professores disciplinados transmitem disciplina; professores críticos transmitem perguntas; professores
amorosos transmitem sua capacidade de amar; e há tantos tipos de professores quanto modos de
relacionar desejo e saber. Contudo, ao apagão de professores corresponde a emergência de um novo tipo
social na escola brasileira: o não professor. O não professor não é o que deixou a sala da aula, mas
aquele que se tornou um gestor ou um síndico de processos educativos. Exatamente como um bom
vendedor de bananas, ele não entende nada de bananas, ele apenas agencia ou administra um processo
em torno delas.
O grande combate hoje em curso no que restou de nossas escolas e universidades se dá entre os que
estão interessados na circulação do saber e os que estão voltados para leis, normas e regulamentos
pedagógicos. Há uma inversão simples entre meios e fins: a educação baseia-se em métricas, resultados e
parâmetros. Ela rapidamente produz escolas que selecionam ou segregam alunos para o ENEM, tendo
em vista a criação de aparências de resultados para atrair consumidores. Essa corrupção dentro da lei é o
que se ensina ao final do processo; e, como tal, é o mesmo princípio que nos leva ao ensino apostilado,
às matérias pré-fabricadas, aos professores recicláveis, aos cursos e faculdades para inglês ver. Uma
simples operacionalização metodológica (útil para comparar práticas, orientar intervenções pedagógicas
e formar políticas públicas) bastou para criarmos um intervalo infinito entre o educar e a sua cópia
imperfeita, a quase educação praticada por seu parasita, o não professor.
PATOLOGIAS SOCIOPEDAGÓGICAS
Uma inversão desse tipo é o suficiente para que o desejo se transforme em outra coisa. A transferência
de desejo, que caracteriza a educação, torna-se então a identificação com maneirismos verbais, máximas
de doutrina e defesa de personagens. A identificação com discursos sobre a educação em vez de
discursos educativos retira nosso interesse do objeto, do mundo e do outro, e promove uma
intrassubjetivação da experiência de aprendizagem. Do lado do aluno, isso cria uma espécie de
pragmatismo administrado, que tipicamente se observa nesse pacto de mediocridade chamado “trabalho
feito em grupo”, na cronificação do professor particular ou, ainda pior, na indústria médica do doping de
resultados ou da retórica psicopedagógica do fracasso escolar. Do lado do professor, isso traz uma
permanente experiência de déficit em relação às idealizações que são mobilizadas para mantê-lo
engajado em sua própria profissão. Desconhecendo as razões estruturais que cercam a real
impossibilidade de educar alguém, ele poderá se identificar ao discurso da fé na técnica educativa, na
onipotência do amor ou na suprema individualização de seus limites.
A segunda patologia social, que está na raiz de nosso vindouro apagão de professores, é a degradação
do desejo em demanda. Ensinar tornou-se um horizonte infinito de preparações, dividido entre o
cumprimento de tarefas e a pressão contínua dos coordenadores e administradores escolares por mais
produtividade. Um desejo se transforma em demanda quando seu objeto pode ser todo
“operacionalizável”: estabelece-se uma gramática de recusas, de resistências, de discordâncias, que
favorece a ampla desapropriação do sujeito em relação ao desejo que o move. Toda iniciativa por parte
dos professores em prosseguir sua própria experiência de saber, levar adiante sua formação e integrar-se
ao universo maior da cultura é tratada como algo de sua inteira responsabilidade privada. Em outras
palavras, não há nenhuma política que incentive estruturalmente (por exemplo, com financiamentos) a
vida cultural dos professores, sua formação contínua, o investimento de seu desejo em cultura. Muito ao
contrário, o desejo dos professores é tratado como demanda. O sistema educacional brasileiro resiste
firmemente à formação cultural de seus professores. Por exemplo, no ensino universitário privado, os
professores têm cargas de trinta ou quarenta horas semanais e sofrem com a intolerância de seus patrões
quando pensam em fazer algum curso de pós-graduação ou extensão. Incentivo financeiro para formação
é um assunto que pode dar demissão em boa parte das instituições privadas de ensino. Na universidade
pública, essa patologia engendra o produtivismo pelo qual o professor é avaliado segundo o número de
artigos que publica, nunca pela qualidade dos alunos que forma.
A terceira e talvez pior patologia indutora da demissão do ato de educar está na transformação do
desejo em mera experiência de satisfação. A expectativa e o imperativo de que a educação seja
comandada pela lei do conforto, da felicidade e da gratificação barata, aumenta assustadoramente
quando se adota na escola a mentalidade do consumidor. Tomados de soberba, os pais entendem a escola
(principalmente privada) como uma extensão de seu narcisismo. Nessa extensão, não vigora a lei
impessoal do espaço comum para o qual transferimos nossa autoridade de pais, mas a lei caprichosa e
particular da família interessada em expandir privilégios e exceções. Na escola pública especificamente,
esse gozo se exerce ainda pelas mãos do Estado interessado em produzir números que justifiquem o
injustificável, seja com programas de aprovação automática, seja com inclusão social desprovida das
estruturas necessárias para a permanência qualitativamente significativa dos incluídos na escola. Nesse
caso, o desejo é secundado pelo gozo dos direitos de todos contra todos e dos interesses de grupos contra
grupos.
O não professor é aquele para quem o desejo de educar apagou-se. O desejo evadiu-se, deixando
como substituto e impostor a identificação, a demanda e o gozo.
Slavoj Zizek (1949-) argumentou que a política propriamente dita está sendo substituída por outras
práticas que se parecem com ela, mas não são como ela: por exemplo, a parapolítica das comunidades
orgânicas ou a metapolítica dos gestores e administradores públicos. Assim também a educação está
sendo substituída por outras práticas que se parecem com ela, mas não são como ela: discursos
pedagógicos sobre educação, normas e regulamentos de síndicos educacionais, diagnósticos psicológicos
ou demográficos, cursos e experiências de desenvolvimento pessoal, testes homogêneos e em larga
escala etc. O não professor não é o professor sem recursos, sem formação ou mal pago, mas aquele que
desconhece o apelo universal do desejo que constitui a sua prática. O desejo não é a vontade
individualizada ou a paixão pessoal, que serão sempre bem-vindas, ainda que sejam usadas pelos cínicos
de ocasião para desvalorizar quem delas padece. O desejo não é a força de pensamento, nem a
persistência em um ideal, ainda que a eles sejamos gratos. O desejo é essa experiência coletiva que se
transmite no presente, segundo a história dos desejos desejados dos que nos precederam, abrindo-nos um
futuro indefinido e num mundo de comum pertencimento. O grande desafio para uma pátria que se quer
educadora é utilizar sua força e seus meios institucionais, econômicos e jurídicos de modo que não sejam
contrários aos seus fins. Em vez de apagar o professor, pague-o na moeda do reconhecimento de seu
desejo.
Professores, escolas integrais e currículo mínimo
VLADIMIR SAFATLE
As respostas aos desafios educacionais brasileiros passam por um tripé incontornável. Somos um dos
países em que se fala de educação a todo momento. Responsabilizamos a ela a raiz de boa parte de nosso
atraso; no entanto, os resultados das políticas educacionais até agora são limitados. Diria que tal
limitação vem do fato de fazermos de tudo para não encarar o que, no fundo, todos sabem que deve ser
feito.
Primeiro, há de se insistir que o que faz a qualidade da educação é a qualidade de seus professores.
Não é um bom coordenador, um bom espaço físico ou um bom projeto que fazem uma boa escola, mas
pura e simplesmente bons professores. No entanto, não é possível ter professores de qualidade se os
melhores alunos de nossas universidades não querem mais ser professores. Recusa facilmente explicável,
já que se trata de uma carreira brutalmente desvalorizada. Mesmo no interior do serviço público,
professores do Ensino Fundamental e do Ensino Médio ganham normalmente menos do que
profissionais com o mesmo nível de formação universitária. Não há absolutamente nada a fazer enquanto
tal realidade não for modificada. Fala-se muito, por exemplo, das qualidades do ensino coreano.
Devíamos começar por lembrar que um professor coreano ganha, em média, quatro vezes mais do que
seus colegas brasileiros. Além disso, no ano passado, professores paulistas entraram em greve por
melhores salários e planos decentes de carreira, não ganhando, porém, nenhuma atenção sensível da dita
opinião pública para esse fato.
Segundo, não é possível ter ensino de qualidade se a federação não investe em um sistema de escolas
integrais. A mais bem acabada tentativa nesse sentido em terra pátria, feita de maneira minimamente
séria, foram os CIEPs idealizados no Rio de Janeiro por Darcy Ribeiro na época do primeiro governo
Leonel Brizola. Eles punham em pauta a necessidade de uma educação extensiva com oito horas diárias
de estudos, permitindo o desenvolvimento de uma formação capaz de cobrir um amplo espectro de
atividades. O governo federal poderia começar a fazer algo parecido a partir do Ensino Médio,
ampliando suas escolas para além do perfil de escolas técnicas. No entanto, nos últimos anos, foi
exatamente a limitação do perfil de escolas técnicas que imperou.
Por fim, o governo federal deveria implementar um sistema de currículo mínimo a ser ensinado em
todas as escolas da federação. O argumento da diversidade regional não pode servir para mascarar a
incapacidade de estabelecer um currículo mínimo. Conhecer as causas da Segunda Guerra ou saber fazer
equações de segundo grau é algo tão importante para um aluno do Rio Grande Sul quanto do Amapá. No
entanto, vemos atualmente o uso do argumento de que devemos respeitar “características locais” para
abrir as portas à adaptação de nossas escolas aos interesses de agentes econômicos da região.
Pode-se, finalmente, se perguntar de onde viria o dinheiro para tais investimentos. Se você nunca
acreditou no conto dos royalties do pré-sal, melhor seria lutar por impostos que possam taxar grandes
fortunas, rentistas e lucros bancários a fim de financiar a educação nacional. Ou ainda algo como uma
CPMF da educação.
Razão mercantil e mediocridade na educação
DANIEL CARA
Por muitos anos não soube compreender minha primeira reação ao clipe da canção “Another brick in the
wall” (Mais um tijolo no muro), um dos tantos clássicos do Pink Floyd.
O ano era 1993. Eu cursava Processamento de Dados na Escola Técnica Estadual de São Paulo
(ETESP), tinha 15 anos e era um adolescente normal: sofria com espinhas, odiava meu aparelho
dentário, gostava de música, jogava futebol e programava no meu PC com monitor de fósforo verde,
comprado após muitos bicos, daqueles que hoje se chamam “frilas”.
Nascido em Pirituba e crescido no Jaraguá, a escola foi minha redenção. Cruzava São Paulo e
passava o dia todo na ETESP da Praça Coronel Fernando Prestes, no campus da Fatec, em uma das
saídas do Metrô Tiradentes. Na época, o curso técnico era vinculado ao regular, composto por matérias
profissionalizantes e disciplinas regulares. Contudo, havia cursos adicionais como lógica, história da
arte, literatura, contabilidade, gestão de empresas, além de debates sistemáticos sobre filosofia,
sociologia e política.
A partir dessa experiência, o estranhamento se justificava... O clipe do Pink Floyd, com aquele
professor autoritário e a esteira rolante em que os alunos passavam por uma máquina e saíam sem rosto,
sentados em uma carteira escolar, não tinha respaldo em minha experiência educacional, embora eu
soubesse que vivia uma exceção. A ETESP, mesmo distante de ser perfeita, era uma experiência
libertadora. Tal como a Bahia para Gilberto Gil na música “Aquele abraço”, foi a ETESP que me deu
régua e compasso em termos educacionais. Apesar da distorção causada pela seleção do alunado por
meio de um concorrido vestibulinho (na época, com 27 alunos por vaga), a qualidade daquela escola
também estava alicerçada em um consistente projeto político-pedagógico.
A BUSCA DE ATALHOS
A narrativa está desgastada, mas continua válida: o Brasil permanece um país capaz de expandir
matrículas, mas incapaz de democratizar o acesso a escolas públicas de qualidade como a ETESP, às
“escolas de aplicação” das universidades públicas ou às escolas federais.
Consagrar o direito à educação é tarefa complexa. Grande parte das escolas públicas brasileiras
possui graves carências de infraestrutura, alimentação e transporte escolar. Os cursos superiores de
licenciaturas são fracos e não recuperam as deficiências de formação oriundas da educação básica; os
salários dos profissionais da educação são baixos; as redes públicas perdem diariamente bons
professores; alunos abandonam as escolas; há deficiências sérias na gestão das políticas educacionais,
inclusive causadas pelo subfinanciamento.
Diante do gigantismo do desafio educacional brasileiro e da falta de coragem para encará-lo, muitos
agentes políticos e gestores públicos partem para buscar atalhos ou soluções rápidas, em geral no intuito
de resolver o “problema da educação” com o menor esforço, como se isso fosse possível. Enredados em
um conjunto enorme de interesses, terceirizam a organização e a concepção pedagógica de redes
públicas inteiras, contratando “consultores” ou “especialistas” em educação que muitas vezes nunca
pisaram em uma escola pública. Quando buscam soluções institucionais, são seduzidos pelo canto das
sereias de fundações e movimentos empresariais, muitas vezes dedicados a transpor à educação a lógica
do mundo dos negócios. Mas, verdade seja dita, o problema não é apenas brasileiro.
O CASO ESTADUNIDENSE
Em Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de
mercado ameaçam a educação (Editora Sulina, 2011), a historiadora da educação Diane Ravitch (1938-)
advoga a necessidade de um currículo enraizado na cultura, nas artes e nas ciências, que leve os
estudantes à busca pelo conhecimento. O objetivo é preparar para a cidadania plena. Um cidadão precisa
refletir e ter capacidade de tomar decisões sobre sua própria vida. A escola deve colaborar com sua
preparação para isso.
Ravitch é uma autora reconhecida na área da educação. Sua principal contribuição está em criticar as
reformas ocorridas nos Estados Unidos e que impuseram a lógica do mercado às escolas e sistemas
escolares. Sua autoridade vem de sua própria experiência. Tendo colaborado com a implementação das
reformas empresariais nos EUA, a autora percebeu, porém, o quanto elas foram danosas ao direito à
educação. No seu dizer, o sucesso das escolas depende de múltiplos fatores, principalmente da definição
de um currículo sólido, professores bem preparados, infraestrutura adequada, estudantes dispostos, pais
participativos e a interação entre a política educacional e outras políticas sociais, como saúde e
assistência social.
Consonante com Diane Ravitch, Vitor Henrique Paro, em Educação como exercício de poder
(Cortez, 2010), verdadeiro libelo contra o tradicionalismo pedagógico, define a educação como
“apropriação da cultura” baseada em uma ampla revisão bibliográfica de autores clássicos. A cultura,
compreendida de forma ampla, envolve conhecimentos, informações, valores, ciência, arte, tecnologia,
direito, costumes, tradições, tudo enfim que o humano produz e que dá sentido a sua vida. No senso
comum ou no tradicionalismo pedagógico, a educação é tratada como simples transmissão de
conhecimento e informações de “quem sabe” para “quem não sabe”. O papel do professor é
automatizado, descontextualizado; e isso se radicaliza com a implantação dos testes de larga escala, os
mais perniciosos veículos para a transposição da razão mercantil na política educacional.
OS TESTES DE LARGA ESCALA
Quando surgiram entre as décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos, os testes de larga escala tinham
uma demanda clara: aumentar o controle social sobre as políticas de educação. A sociedade
estadunidense queria saber o que acontecia em suas escolas públicas e nas salas de aula. Nada mais justo.
Porém, esses testes automatizaram, aos poucos, o processo de ensino e aprendizagem.
Hoje, embora avaliem o desempenho do alunado em ciências da natureza e ciências humanas, além
de leitura e matemática, os sistemas avaliativos (como a Prova Brasil, em nosso país, ou Programa para
Avaliação Internacional de Estudantes, ao redor do mundo) foram sobrevalorizados. Mal utilizados, eles
desconstituíram o processo de ensino e aprendizagem.
A partir dessa mentalidade avaliativa, grandes linhas de negócio surgiram, com o objetivo de treinar
professores para melhorar os resultados de seus alunos nos testes de larga escala. Isso passou a ser
sinônimo de sucesso na gestão pública educacional. Os currículos foram reduzidos e as políticas
educativas passaram a ser sinônimo de avaliação, em um estranho modelo no qual a última parte do
processo de gestão, a avaliação, passou a agir como medida de todo o seu desenrolar. Não foi à toa que
Michael Lewis, ensaísta pop da economia estadunidense, argumentou em seu livro O jogo da mentira
(Editora Best Business, 1989) que as regulações da bolsa de valores americana deram as bases para a
própria especulação desde a década de 1980, determinando regras do jogo adequadas ao ganho fácil e
irresponsável. Na educação, os testes de larga escala permitiram o mesmo: novos negócios puderam ser
desenvolvidos, desvinculados do objetivo primordial da educação, o de formar cidadãos plenos.
Diane Ravitch tem razão, no entanto, quando diz ser um equívoco pretender acabar com a existência
das avaliações padronizadas. Mas, como ela mesma defende, os testes devem ser contextualizados e sua
importância precisa ser redimensionada. Além disso, é necessário assumir que eles não “medem”
qualidade, mas apenas algumas dimensões do aprendizado. A qualidade da educação está relacionada
diretamente à apropriação da cultura e à formação cidadã. Como efeito colateral danoso, o péssimo uso
dos testes de larga escala fez correr água no moinho da pior tradição pedagógica em termos de
concepção de ensino.
ALUNOS NÃO SÃO COPOS, PROFESSORES NÃO SÃO JARRAS
Alicerçados pelo tradicionalismo pedagógico e fortalecidos pela panaceia dos testes, muitos
“especialistas em educação”, “consultores independentes” ou fundações e movimentos empresariais –
nem todos são iguais, vale lembrar – veem as alunas e os alunos como copos.
Alguns deles vão dizer que, no mínimo, é justo colocar em cada recipiente (aluna ou aluno) o
fundamental. Propõem que todos os copos devam ser completados até a metade com água, pois se trata
do líquido essencial. Como se sabe, é desejável que a água seja límpida e inodora, podendo ser avaliada
em testes padronizados de larga escala em seu grau de qualidade. Esse fundamental seria, na educação,
sinônimo da habilidade testável em leitura e matemática. Outros vão além. Dirão que é justo encher
completamente o copo de água. Por que apenas o mínimo? Afinal de contas, copos cheios também
podem ser testados em seu grau de pureza.
Nesse momento, alguns discordarão em parte. Argumentarão que, além da metade de água, é preciso
incluir outras habilidades. Talvez uma determinada quantidade de suco, talvez do néctar de uma fruta
local, pois o mundo é diverso e o Brasil é muito grande. Mas reforçam: a água é essencial; contudo é
bom dar um pouquinho mais. Ademais, ampliados os parâmetros, a mistura também pode ser avaliada.
Surgem, então, novas polêmicas. Alguns acusarão que determinadas escolas e determinados governos
querem encher os copos com suco de clorofila, outros com refrigerante, denotando ideologização do
ensino. Alguns religiosos defenderão a essencialidade de um pouco de água benta ou ungida. E por aí
vai.
O problema é que essa perspectiva está completamente equivocada. Os alunos e as alunas não são
copos; professores não são jarras; sistemas públicos de ensino não devem ser centrais de distribuição de
líquidos. O objetivo da educação não é verificar o quanto e como foi ou não enchido um recipiente. A
missão da educação não é a avaliação da aprendizagem, mas, sim, a própria aprendizagem na perspectiva
da formação integral do cidadão.
É cientificamente sabido que todo ser humano tem infinita capacidade de aprender; copos e jarras,
por sua vez, transbordam. Docentes e estudantes não são recipientes inertes. Cultura e conhecimento não
são matéria que se transfere: não se tira de um para dar a outro. Alunos e professores vivenciam
processos pedagógicos diversos. Um bom professor é aquele que é capaz de apresentar e construir
caminhos para a aprendizagem dos alunos e das alunas, de preferência quando pode considerar cada
estudante em sua especificidade. Ambos são sujeitos no processo pedagógico.
O IMPACTO DA LÓGICA MERCANTIL NA EDUCAÇÃO
O uso equivocado dos testes padronizados e o tradicionalismo pedagógico estão matando o vigoroso
sistema de ensino dos Estados Unidos, mas também colaboram para a mediocrização da incipiente
educação brasileira.
Como é oneroso ao fundo público enfrentar os problemas reais do sistema de ensino do país, os
mercadores de soluções ditas eficientes possuem acesso facilitado aos tomadores de decisão nas políticas
públicas. Com um discurso falacioso calcado na meritocracia, vendem suas soluções de sistemas
apostilados, organização pedagógica, cursos de formação de professores etc. A depender do caso,
quando contrata um serviço de uma instituição de base empresarial dedicada à educação, o gestor
público ainda ganha assessoria de imprensa, com a garantia de matérias elogiosas na grande mídia.
A questão em jogo não é educativa. O objetivo dessa perspectiva é a eficiência, pela qual
supostamente se faz mais com menos. Não se entra no debate do processo pedagógico, do papel do
professor, da formação integral dos alunos. Tudo é avaliado pela prova padronizada, aplicada em todo o
território nacional. É a ditadura do resultado, embora ele permaneça ruim e distante do que preconiza a
Constituição Federal em seu artigo 205: a missão da educação é o “pleno desenvolvimento da pessoa,
seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
Os estudantes brasileiros pouco aprendem. Os professores, que possuem formação frágil e planos de
carreira pífios, enfrentam condições de trabalho as mais adversas e acabam sendo responsabilizados pelo
fracasso pedagógico. Tratados como vítimas ou como heróis – quando tiram leite de pedra –, nunca são
reconhecidos como profissionais.
A realidade é que a cada dia o sistema de ensino brasileiro mais se aproxima da linha de montagem
que desfigura e padroniza os alunos no clipe de “Another brick in the wall”, do Pink Floyd. Mesmo as
boas escolas públicas começam a ceder à mediocridade imposta pela lógica mercantil. É um caminho
mais fácil, muita gente ganha dinheiro e estamos cada vez mais distantes de consagrar o direito à
educação.
Entrevista: contra o espírito do tempo
JUVENAL SAVIAN FILHO
A FILÓSOFA OLGÁRIA MATOS E O TEÓLOGO FRANCISCO CATÃO FALAM SOBRE EDUCAÇÃO, CULTURA,
MERCADO E RELIGIÃO
A sociedade civil tem manifestado preocupação com as ingerências de grupos religiosos em debates
públicos. O poder religioso é realmente uma ameaça à política brasileira e à formação dos
cidadãos ou haveria alguma possibilidade de aliar religiosidade, democracia e educação?
FRANCISCO CATÃO: Há essa segunda possibilidade se se entender por democracia um regime de
governo em que a sociedade, as associações e as pessoas atuam em instituições estrutural e efetivamente
ordenadas ao bem público, na liberdade e na fraternidade. Não vejo objeção a que se possa aliar com a
democracia a busca individual e/ou comunitária do sentido transcendente de toda vida humana, pessoal e
social, a que devem visar toda cultura e religião dignas desses nomes. Nessa perspectiva, a educação,
tirocínio e espelho da cultura, nada mais é do que o conjunto de meios empregados na consecução desse
mesmo objetivo: a capacidade e a disposição de pessoas e grupos para viver em sintonia com o que dá
sentido à vida. Por outro lado, a educação não pode ser considerada uma simples questão ética, embora
envolva ineludíveis princípios éticos. Na sua base antropológica e nos seus processos, ela diz respeito ao
conjunto da vida humana, pessoal e social. O Estado laico, a fim de garantir o direito de todos, precisa
reconhecer isso, ainda que negativamente, não interferindo senão subsidiariamente nessa esfera da vida
pessoal e social que o transcende por transcender a própria vida terrestre.
OLGÁRIA MATOS: O poder religioso só é uma ameaça à vida democrática quando tem força sobre
populações precarizadas intelectualmente, quer dizer, vulneráveis a manipulações, o que, por sua vez,
decorre da pseudoeducação (aquela simplificadora, anti-intelectual, que proscreve os saberes literários,
filosóficos e artísticos) baseada em resultados imediatos, na adaptação a um suposto mercado de trabalho
e esvaziadora do prazer de aprender. Quando, sob a Reforma Protestante, a Igreja separou-se do Estado,
ela perdeu seu lugar no espaço público e ficou confinada na esfera da vida privada, como se as religiões
(penso aqui nas grandes religiões, como as “religiões do Livro”, que souberam dar explicações não
histéricas às angústias e medos por meio de grandes obras filosóficas, históricas, literárias etc.) não
tivessem nenhuma relação com o fortalecimento dos laços sociais. Isso resultou naquilo que Gilles Kepel
denominou A revanche de Deus, que dá título ao seu livro publicado no Brasil em 1992 pela Editora
Siciliano. A religião toma hoje uma centralidade de que não desfrutava quando a educação fortalecia a
faculdade de discernimento de valores e compreensão do mundo. O islamista Abdelwahab Meddeb
enfatiza a “formação” dos líderes terroristas, chamando a atenção para a indigência intelectual deles,
bem como a daqueles “formados” na cultura tecnocentrada, simplificadora dos conflitos, aquela, por
exemplo, que fala em “conflito de civilizações”. Assim, no nosso caso brasileiro, se a religião não
tivesse também sido impregnada pela indústria da cultura, ela poderia desempenhar sua função mais
essencial, a do reconhecimento de forças de ultrapassamento de nossa finitude e imperfeição,
recomendando menos arrogância e mais prudência em tudo. Mas acontece que as pessoas formadas pela
televisão precisam mais de crenças do que de fé; daí a existência de um mercado religioso.
As igrejas cristãs têm marcado posições claras em debates relacionados a temas como o aborto, a
união homoafetiva, a retirada de menções religiosas em documentos públicos etc. O cristianismo,
com sua história bimilenar, deve ser visto como uma religião que não pode chegar a consensos em
matérias éticas?
FRANCISCO CATÃO: O foco da fé cristã é a confissão de que Jesus de Nazaré ressuscitou. Ele está
vivo. Essa é a razão pela qual nós, cristãos, o reconhecemos como filho de Deus e nos “sentimos”
chamados a participar de sua vida, o que se traduz concretamente pela fidelidade a seus ensinamentos.
As formas, porém, como tais ensinamentos se exprimem através dos tempos e das culturas evoluem em
sintonia com o mundo em que vicejam, guardando, é claro, uma continuidade de ordem espiritual, que
nem sempre é facilmente perceptível para os próprios cristãos. Como todas as religiões, também o
cristianismo tende a se apegar às formas históricas que pratica. As igrejas cristãs não escapam às
contingências históricas; e precisam estar sempre voltando ao Espírito de Jesus, reformando-se. Em
temas públicos que envolvem práticas contrárias a princípios cristãos – e exigem, porém, que também se
garantam direitos de cidadãos não cristãos ou cristãos externos aos grupos eclesiais –, a laicidade ajuda a
encontrar soluções satisfatórias, distinguindo-se bem a ordenação jurídica do Estado e os princípios
éticos que regem a vida pessoal e familiar. Para cristãos “sem fronteiras” e abertos ao diálogo, é possível
encontrar soluções a problemas desse tipo recorrendo à misericórdia, que transcende a justiça graças à
onipotência divina e da qual não pode ser jamais separada.
O permanente “problema da educação”, de que tanto se fala, tem sido analisado com base em
hipóteses que separam cultura erudita e cultura popular. Qual o sentido dessa separação? Em que
ela é importante para as concepções educacionais?
OLGÁRIA MATOS: A separação entre cultura de elite e cultura popular foi produzida pela indústria da
cultura, a mesma que institui as categorias de “elitismo” e “populismo”. Mas, todo elitismo é
desconhecer o que significa uma “elite” (que supõe grande exigência intelectual e moral porque se baseia
na ideia da excelência e da perfeição), assim como todo populismo ignora o que é um “povo” (com suas
exigências de racionalidade e institucionalidade). A indústria cultural bloqueou o trânsito entre a Arte
que requer iniciação formal e aquela cuja criação vem de um saber vernacular, criando, como escreveu
Adorno, uma “barbárie estilizada”. Assim, Mozart em ritmo de samba não é nem Mozart nem samba.
Como a indústria cultural requer a facilidade para manter o mercado da cultura em funcionamento, esse
protocolo invadiu a educação que se esforça por ser entretenimento. Tal concepção pedagógica supõe
que, se o aprender for “divertido”, a educação como entretenimento poderá evitar a evasão escolar e o
“fracasso”. Muitos terminam por associar diversão e entretenimento com um caráter “popular” e “anti-
elite”, considerando certos conteúdos tradicionais como elitistas e rechaçando-os como sisudos e
desprazerosos. Mas a educação formal não é entretenimento; ela é aquela cujos saberes exigem iniciação
(como aprender a ler e aprender a ler uma obra de arte; aprender o que é a ciência biológica e a natureza
dos oceanos e do corpo humano); ela não é nem de elite nem popular; e o prazer pode muito bem vir do
próprio ato de aprender, sem a necessidade de transformar tudo em “diversão”. A educação, quando
possuía uma formação humanista, não buscava a adaptação a um bairro, a uma etnia, a uma religião ou a
uma classe social, mas tinha o sentido de retirar a criança de suas condições contingentes para “elevá-
las” a um mundo que transcende essas determinações. Não por acaso, o professor da escola fundamental,
na França, é chamado de instituteur; e o aluno, élève: o professor “institui” a vida do espírito e “eleva” a
sociedade.
A economia de mercado e o sistema financeiro continuam sendo as causas mais importantes do
empobrecimento cultural?
OLGÁRIA MATOS: Sim, mas é preciso ver que economia de mercado, hoje, é algo que vem
acompanhado da produção pela produção, do fetichismo do crescimento econômico sem sentido nem
direção, do sistema financeiro, da fabricação do endividamento generalizado (entre indivíduos e
indivíduos; entre indivíduos e bancos; entre instituições; entre blocos políticos etc.), da indústria das
inovações e da obsolescência do gosto etc. Tudo isso perverte a educação, pois ela passa a submeter-se
às modas tecnológicas e ao “espírito do tempo”, fazendo ingressar na escola o que está nas mídias. Por
exemplo, há (des)educadores que consideram uma boa prática de alfabetização introduzir a publicidade
de Ajax na sala de aula para ensinar a letra A; ou ainda tomam histórias em quadrinhos para todas as
disciplinas, sem diferenciar entre o que é entretenimento e o que não é. Tudo se transforma em tédio na
escola, até mesmo o brincar. O empobrecimento cultural alimenta e é alimentado pela crise
antigenealógica do presente que não reconhece sua dívida simbólica para com o patrimônio cultural dos
que nos antecederam.
Na qualidade de homem de fé e de teólogo cristão, como o senhor vê o momento atual do
cristianismo brasileiro?
FRANCISCO CATÃO: O cristianismo atravessa, nesses últimos dois séculos, profundas
transformações. As fronteiras confessionais se fragilizam, e se põe em questão sua complexa relação
com a modernidade, dando lugar às mais diversas tendências. Há cinquenta anos, o Concílio Ecumênico
Vaticano II encarou esse problema (de que tratei, naquela ocasião, num pequeno ensaio intitulado
precisamente A Igreja sem fronteiras, Editora Duas Cidades, 1966). Caminhamos no diálogo com o
mundo moderno, embora muito lentamente. Hoje, o papa Francisco insiste no diálogo, única forma de
conviver num mundo plural e diversificado como o nosso, sem fronteiras. Somos todos chamados a nos
empenhar em favor de uma educação feita no diálogo e para o diálogo.
Para que a escola continue a ser escola
SILVIO CARNEIRO
“Os alunos estão ocupando as escolas para que elas continuem sendo escolas.” Certamente essa
consideração do filósofo Paulo Arantes apreende uma faceta privilegiada do sentido dos dias das escolas
ocupadas em São Paulo e Goiás. Os estudantes respondem à máquina neoliberal de produzir reformas e
choques de gestão. Na resistência, sublinham o signo da educação, que deixa de ser apenas um slogan
governamental e passa a ser objeto político privilegiado.
Há que se perguntar: “Por que só agora?”. Afinal de contas, não é de hoje a soma de fracassos
escolares. Reformas vão e vêm, e as ruínas da instituição escolar continuam, bem como permanecem os
índices de avaliação desoladores. Mas algo recente fez dos estudantes porta-vozes de um acontecimento
político. Decerto, é uma geração forjada nas manifestações de junho de 2013 e nos levantes de
ocupações urbanas desse início de década. Mas para compreender a configuração propriamente
estudantil dos protestos nas escolas, é preciso antes compreender como, em 2015, o terreno educacional
se mostrou movediço e ofereceu possibilidades de análise mais crítica.
2015: UM ANO EDUCADOR?
Lançada com pompa e circunstância, a marca da Pátria Educadora viu contrastar com inúmeras lutas,
desde o início, seu receituário neoliberal do valor agregado pelo capital humano da pesquisa e o
desenvolvimento. Algo escapou da estratégia traçada pelo ex-secretário Mangabeira Unger em colocar a
educação como fator central para o Brasil tornar-se um gigante do ringue econômico. Lembre-se de
como eram conturbados os corredores do MEC, com a queda de três ministros diante dos desafios das
metas e estratégias alavancadas pelo Plano Nacional de Educação e suas ramificações estaduais,
municipais e regionais. Projetos ousados demais para a gramática dos ajustes fiscais.
Para além dos corredores do Estado e dos inúmeros interesses das consultorias privadas de educação,
algo saiu da curva. Professores foram às ruas e alunos ocuparam as escolas, movimento que evidenciou o
caráter progressivo da educação em nossas sociedades: a formação por meio da contestação. A tensão,
dessa vez, não está nas linhas dos decretos oficiais ou nas mensurações avaliativas de desempenho e suas
reformas, mas no “chão da escola”, na relação entre professor e aluno, no embate próprio à produção de
conhecimento no dia a dia que envolve famílias e profissionais e faz da escola um centro maior de
convivência, uma “necessidade vital”.
Nesse sentido, houve em 2015 uma convergência entre os professores em greve no Paraná e os
professores e estudantes de São Paulo e Goiás. Convergem na oposição não apenas ao gás lacrimogênio
com que o Estado “dialoga”, mas sobretudo àquilo que bloqueia a vitalidade das relações educacionais: a
gestão escolar, sempre mais próxima das metas de financiamento, mérito e punição, e mais distante da
realidade da sala de aula.
DE REPENTE, A “REORGANIZAÇÃO”...
Em um terreno minado como esse, o que leva um governo a declarar o ato insano de uma
“reorganização” que altera a vida de tanta gente? É preciso estar “muito à vontade” para realizar tal
intervenção. Sem os protestos, o decreto paulista da reorganização, assim como o Plano Estadual de
Educação, passaria incólume pelas diversas instâncias e pelos fóruns esvaziados de debates. Estratégia
comum em São Paulo, sobretudo quando são nomeados para o Conselho Estadual de Educação –
responsável pela avaliação das propostas político-pedagógicas da rede de ensino – grupos
representativos de instituições privadas de ensino, em aliança com gestores administrativos alinhados ao
partido do governador. Com um projeto da envergadura da “reorganização”, é grave o silêncio do
próprio Conselho quanto aos planos do governador e sintomática a resposta da conselheira Rose
Neubauer, que justifica tal silêncio considerando a “reorganização” uma medida meramente
administrativa.
Na visão do governo de São Paulo, o momento é propício para reformas radicais. As entidades
federativas estão mobilizadas pelas metas e estratégias do Plano Nacional de Educação e pelas primeiras
estruturas de um possível e tardio Sistema Nacional de Ensino das redes públicas e privadas. Passam a
ser fundamentais questões sobre os modos de financiar a educação, bem como as estratégias de avaliação
institucional e de desempenho dos estudantes. O plano de “reorganização” das escolas procura, assim,
responder a esse momento, mas a seco, sem diálogo, afetando 340 mil estudantes, segundo dados da
própria Secretaria de Educação do Estado.
O governo paulista constrói a ficção do modelo de gestão escolar perfeito, baseado no recorte
pedagógico por ciclos exclusivos de ensino (separação entre escolas do Ensino Fundamental e escolas do
Ensino Médio). Algumas escolas seriam fechadas, outras aprofundariam projetos de Ensino Técnico,
outras ainda receberiam alunos realocados para preencher vagas ociosas. Esse recorte, porém, é
altamente questionável sob vários ângulos: seja pelo efeito financeiro (os custos do Ensino Fundamental
ficariam com os municípios), seja pelo efeito pedagógico (há contraprovas de escolas com ciclos não
exclusivos e de bom desempenho nas avaliações), seja, enfim, pelo efeito administrativo (sem clareza
democrática sobre o modo como as comunidades seriam envolvidas na “reorganização” e como se
realizariam os projetos educativos). A intenção de dividir as escolas por ciclos baseia-se em uma
justificativa que, no limite, é falaciosa. Em vez de pensar estratégias de reforma na rede escolar,
providenciam-se mudanças “escola por escola”. Atomizadas e pressionadas por medidas de mérito e
metas, algumas delas passariam a seguir a regra mercantil das vantagens comparativas, extraindo da
competição o melhor possível e deixando às demais os bagaços do orçamento.
Nesse sentido, é sintomático que o estudo produzido pela CIMA (Coordenadoria de Monitoramento,
Informação e Avaliação Educativa da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo) justifique a
“reorganização” sem nenhuma menção séria ao plano de carreira docente (salvo a formação continuada
que, na verdade, pode ser interpretada como uma medida de “reciclagem” dos professores segundo as
últimas modas educativas, e não como um incentivo à pesquisa e à produção de conhecimento). Não se
leva em consideração o chão da sala de aula; busca-se o gerenciamento econômico dos aparatos
escolares, impondo à comunidade educativa padrões de sucesso e fracasso segundo a faixa etária dos
estudantes.
OCUPAR E RESISTIR
Nesse tabuleiro, os estudantes apresentam novas estratégias e assumem um protagonismo que anima
toda uma rede de educadores que já se viam vencidos nas batalhas contra cada choque de gestão.
A juventude não está desinteressada pelos estudos e pela escola, como muitos pensavam.
Organizados em comandos de luta, conferem à agenda escolar o sentido fundamental de reflexão sobre
os modos como a vida e o aprendizado caminham juntos. Na realidade, as ocupações reabriram canais
que sempre estavam ali: nos prédios, os ocupantes tentaram melhorar tudo quanto podiam; em rodas de
conversa e assembleias, inúmeras foram as ocasiões para discutir os problemas da vida escolar e
maneiras de superá-los; reabriram-se as portas aos professores, para produzir conhecimento dialogando
com os estudantes. O protagonismo estudantil acompanha outros grupos, como os Comitês de Pais e
Mães em Luta e os professores que, a despeito da dificuldade de organização decorrente da precarização
de sua carreira, passam a organizar suas demandas não apenas junto ao sindicato, mas também a outros
grupos e comunidades formados durante os processos de greve.
Tudo isso torna minúscula a palavra “gestão”, propagada nas reformas educacionais e propícia às
gramáticas empresariais. Com o cenário da ocupação, a escola, muitas vezes propensa à formação de
subjetividades docilizadas (como diria Michel Foucault), mostra-se capaz de escapar aos moldes de
gerenciamento e readquire o caráter de espaço público, com as disputas que o caracterizam. Não é por
acaso que a desocupação das escolas vem respeitando um ritual comum: são abertas com melhorias
estruturais e salas reorganizadas de fato, com as carteiras postas em círculos, demonstrando a vontade de
diálogo e uma nova possibilidade de conhecimento. O recado está dado. Com tal experiência organizada,
os termos do debate serão certamente outros em 2016.
Tradução Cadu Ortolan
literatura
Elegia do silêncio
LAÍS MODELLI
Federico García Lorca nasceu na Espanha, no dia 5 de junho de 1898, em Fuente Vaqueros, província de
Granada. Filho da professora primária Vicenta Lorca, aprendeu cedo a ler e escrever. Publicou seu
primeiro livro, Impresiones y paisajes, em 1918, aos 19 anos. Foi precoce em tudo o que se propôs a
fazer ao longo da curta vida que teve: na música, como pianista; nas artes plásticas, como desenhista; nas
letras, como poeta, e no teatro, como ator e dramaturgo. Adulto, também foi palestrante e conferencista
aclamado.
Em 1918, Lorca mudou-se para Madri para cursar Direito, mas sem vocação para as leis. Passou
também pelos cursos de Letras e Filosofia. Viveu por dez anos na Residência de Estudantes de Madri,
onde dividiu o quarto com o amigo e futuro cineasta Luis Buñuel e foi vizinho do pintor Salvador Dalí.
O livro Querido salvador, querido Lorquito, de Vítor Fernández, reúne cartas que detalham o
relacionamento, com altos e baixos, entre Dalí e Lorca, de 1923 a 1936. O relacionamento não chegou a
ser revelado, principalmente por causa do conservadorismo de uma Espanha pré-franquista, mas também
porque o pintor negava a homossexualidade. Da relação, nasceram desenhos de Dalí dedicados a Lorca e
o cenário da peça Mariana Pineda, escrita em 1925, durante a época da faculdade.
“Lorca admirava muito Dalí, mas do ponto de vista artístico, ele influenciou mais Dalí do que o
contrário. O poeta já era famoso quando os dois se conheceram, na República dos Estudantes. É o Lorca
quem abre caminho para Dalí, apresentando-o às rodas de artistas da Espanha”, explica Syntia Pereira
Alves, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP com a tese Teatro de Garcia Lorca: a arte que se
levanta da vida. Convencido por Buñuel a trabalhar em Paris, Salvador Dalí deixa a Residência de
Estudantes de Madri em 1927 e passa a rejeitar o poeta, que se muda para Nova York, onde viveu como
estudante na Universidade de Columbia de 1929 a 1930. Do intercâmbio, publicou os poemas de O
poeta en Nueva York, uma de suas obras mais conhecidas. Seis anos após regressar à Espanha, Lorca foi
brutalmente assassinado, na região de Granada, no dia 19 de agosto de 1936. Na ocasião, o poeta foi
retirado à força da casa de amigos, em uma grande operação do Governo Civil que cercou todo o
quarteirão, foi detido e fuzilado junto a três outros homens. Era o início da Guerra Civil Espanhola
(1936-1939), o acontecimento europeu mais dramático antes da Segunda Guerra. Até hoje não se sabe o
paradeiro do corpo do poeta.
Mesmo com o fim trágico e ainda sem ponto final, Lorca costuma ser lembrado pela genialidade. “A
poesia lorquina cheira a flor de laranjeira”, defende Ático Vilas-Boas da Mota na apresentação de Obra
poética completa de Federico García Lorca, publicada pela editora Martins Fontes. A verdade é que o
poeta era contra a poesia dura e descritiva; contrapôs-se a tal frieza por meio da construção de metáforas
– principalmente nos poemas do famoso Romancero gitano (1924-1927), em que a lua, “lúbrica y pura”,
atrai a atenção de ciganos por exibir “sus senos de duro estaño”– e da inspiração nos costumes e canções
populares da Espanha do início de século – presentes nos versos do Poema do “Cante Jondo” (1921),
com os sinos de Córdoba e de Granada ouvidos por “todas las muchachas que lloram a la tierna/ soleá
enlutada. Las muchachas de Andalucía/ la alta y la baja/ Las ninãs de España/ de pie menudo y
temblorosas faldas”.
A força da obra de Lorca, segundo a professora Margareth dos Santos, da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), não reside propriamente em
seus temas, mas no modo como os trabalha. “O poeta, como poucos, soube reunir em seus textos, teatrais
ou poéticos, uma impressionante condensação simbólica aliada à intensidade dramática. Não é à toa que
em sua obra a anedota, sempre presente de forma fragmentária, se dilua em palavras, sons, cores e
paisagens que ganham a dimensão de símbolos na medida em que evocam significados múltiplos, que
transcendem a fábula que nos é contada de maneira entrecortada”, pontua Margareth. A omissão do
contexto narrativo em Lorca é um convite ao leitor a preencher tal espaço com sua própria imaginação,
“a partir das pistas que vão além do eixo metonímico da descrição e alcançam a transcendência das
inúmeras metáforas e símbolos que vão se acumulando ao longo de seus versos ou dramas”, explica.
Mas imaginação não basta para entender o mundo poético e dramático de Lorca. Entender o contexto
político e social da Espanha de fim de século também se faz imprescindível. “Lorca, de fato, foi um
grande escritor, no entanto, creio que para compreender o que a crítica designa como genialidade, é
preciso pensar as bases que esse conceito pressupõe. É preciso situá-lo em seu contexto político, social e
literário, com especial atenção para sua obra crítica”, explica Margareth. “Podemos observar uma
articulação frequente entre uma dimensão intelectiva e um trato afetivo da linguagem poética. A partir
desse entrelaçamento, estaria a formulação de um conflito básico em toda sua obra: a contradição entre
opressão e liberdade. Desse núcleo conflitivo preliminar, poderíamos dizer que confluem questões
universais, como o amor (quase sempre impossível), a morte (frequentemente violenta), a espera e o
desejo, para citar alguns exemplos.” A presença do fim brutal, retratado principalmente na peça Mariana
Pineda, e o pavor que o poeta tinha da morte, levou o escritor Ian Gibson a refletir no fim de Federico
García Lorca, a biografia, publicada no Brasil pela Editora Globo: “Teria ele percebido a semelhança
quase sobrenatural entre seu destino e o de sua heroína Mariana Pineda?”.
Depois de vinte anos censurado na Espanha de Franco (1939-1975), a obra do escritor, desenhista e
dramaturgo Federico García Lorca entra em domínio público a partir de agosto de 2016.
O POETA SEM CORPO
A monarquia espanhola durou até 1931, ano em que foi proclamada a República. Cinco anos depois
iniciava-se a Guerra Civil. A Europa vivia o embate entre o Fascismo, iniciado na Itália em 1922, e o
comunismo, impulsionado pela Revolução Russa de 1917. O conservadorismo na Espanha do início de
século unia Igreja e Exército contra o avanço de socialistas, comunistas, anarquistas e democratas
liberais no país. É nesse contexto que se desenvolve a obra lorquiana.
Segundo Margareth, “Lorca identificou-se profundamente com o projeto educativo e cultural da
República, no qual atuou diretamente como diretor do grupo teatral de estudantes La Barraca, que, entre
1932 e 1936, percorreu 64 cidades e povoados da Espanha, levando o teatro ao povo em mais de cem
representações de 13 peças do repertório clássico espanhol, em especial do Siglo de Oro. Essa
participação nos ajuda a vê-lo não apenas como um homem de teatro polivalente e completo (ator,
diretor, cenógrafo, figurinista, sonoplasta), mas também como um indivíduo que se dedicou a uma
contundente ação política, não como simples reflexo da realidade circundante, mas como reflexão sobre
esta e suas mazelas”. Apesar de nunca ter se filiado a nenhum partido político, Lorca explorou as
questões sociais em sua obra.
O ano de 1936 é o mais engajado politicamente do escritor; não coincidentemente, é nele que ocorre
seu assassinato. “Ao longo do primeiro semestre daquele ano, García Lorca explicita suas ideias sobre o
teatro e a cultura espanhola, seu posicionamento político e seu apoio à República em uma série de ações:
um pouco antes das eleições, participará de atos em apoio à Frente Popular; em março, assinará o
telegrama enviado a Getúlio Vargas, pedindo a liberdade de Luís Carlos Prestes; em uma entrevista
publicada no jornal madrileno La Voz, denunciará a profanação que significa o uso do município de
Alhambra para ritos cristãos; em maio, ao mesmo tempo em que anuncia estar trabalhando numa nova
peça teatral sobre a fome, participará das comemorações do primeiro de maio e da organização de um
jantar oferecido aos escritores franceses André Malraux, Henri-René Lenormand e Jean Cassou, que
estavam em Madri como representantes da Frente Popular francesa e, por fim, em junho, na que seria sua
última entrevista, publicada no jornal El Sol, condenará a ocupação de Granada pelos reis católicos, em
1492, que taxará como um desastre para a história e cultura espanholas”, continua Margareth. Nessa
última entrevista, disse Lorca: “Yo soy español integral, y me sería imposible vivir fuera de mis límites
geográficos; odio al que es español por ser español nada más”, “pero antes que esto soy hombre de
mundo y hermano de todos. Desde luego, no creo en la frontera política”.
No contexto de sua morte, Lorca se transformou imediatamente em símbolo de luta social na Europa.
“Houve consternação em todo o mundo de língua espanhola, e a imprensa europeia também noticiou o
assunto. Quase da noite para o dia Lorca tornou-se um mártir republicano”, escreve Ian Gibson na
biografia do poeta. Mas de acordo com Syntia Pereira Alves, a imagem de Lorca tem perdido espaço na
discussão política na Espanha atual. “Os estrangeiros se interessam mais por Lorca que a própria
Espanha. Isso é um resquício da Guerra Civil”, afirma Syntia, após ter vivido um ano no país como parte
da pesquisa de campo para o seu doutorado sobre a obra de Lorca. Segundo a estudiosa, os livros
escolares não explicam a causa da morte do poeta granadino. “A geração atual não sabe da importância
de Lorca. Na Festa de Federico [festa anual em homenagem a Lorca na cidade de Fuente Vaqueros], eu
perguntava às crianças e jovens quem havia sido o poeta e como ele morreu. Eles sabem quem ele foi,
mas não sabem que há uma figura de resistência associada a ele”, conta. Na década de 1960, com a
liberdade sexual em pauta em diversos países, Lorca foi associado prontamente à causa da sexualidade.
Syntia explica que “Na época, ele foi considerado o Oscar Wilde da Espanha”. A relação da figura do
poeta com o movimento das liberdades sexuais se deu em razão da justificativa de seu assassinato na
Espanha: o homossexualismo. Com a década de 1970, o escritor passa a ser associado também a
questões políticas e sociais na América Latina, especialmente em países que passaram por ditaduras.
A causa da morte e o corpo nunca encontrado são assuntos que ainda reviram o passado sombrio da
Espanha. Segundo Ian Gibson, o documento da morte de Lorca foi efetuado no Registro Civil espanhol
quase que um ano após o fuzilamento. “O documento declarava que Lorca morreu ‘no mês de agosto de
1936 em consequência de ferimentos de guerra’. Para o mundo, dava a impressão de que o poeta tinha
sido vítima de uma bala perdida”, retrata o escritor na biografia do poeta. Documentos abertos
recentemente apontam para uma morte por questões políticas e não para uma ferida de guerra. “Não foi à
toa que Lorca foi assassinado junto de dois homens que eram anarquistas”, defende Syntia. No momento
da prisão de Lorca, relatos históricos afirmam que um dos guardas teria justificado a ação com a frase:
“Ele fez mais estragos com a caneta que outros fizeram com a arma”. A versão acrescenta um episódio a
mais para a história mais conhecida, que diz que foram disparadas “duas balas no rabo por ser bicha”,
segundo retratou Ian Gibson. Em defesa da justificativa política, Syntia explica que Lorca nunca revelou
abertamente sua opção sexual e, em sua obra, apenas deu pistas da homossexualidade na peça El público
e na coletânea de poemas publicada postumamente, Sonetos del amor oscuro. “Esses sonetos tiveram sua
primeira publicação de forma clandestina, diga-se de passagem, em 1983. Neles, Lorca expressa seu
amor por outro homem e a angústia do amor que ele considerava ‘estéril’.”
Sobre o desaparecimento do corpo, Syntia conta que “hoje restam ainda cerca de 130 mil pessoas
cujos restos mortais não foram encontrados. A família de Lorca defende que todos sejam encontrados, e
não só o dele, por isso não fazem questão da busca. Acontece que Lorca foi fuzilado com outras três
pessoas e a família desses desaparecidos é que reivindicam os corpos”. “Até a década de 1980, não se
buscava nada na Espanha sobre o corpo de Lorca. Somente em 2000 é que o governo assumiu a
responsabilidade pelo fato.” A primeira escavação se deu somente em 2009, com base nas pesquisas de
Ian Gibson. O local escolhido foi o Parque García Lorca, localizado na cidade natal do poeta. A segunda
escavação aconteceu em 2013 e 2014, em uma região próxima às cidades de Viznar e Alfacar, também
localizadas na província de Granada. Após declarar que não havia encontrado vestígio algum, o governo
foi criticado por diversos ativistas, que lançaram um crowdfunding – financiamento coletivo na internet
– para que se possa realizar uma segunda escavação na mesma região, mas em um novo lugar, proposto
pelo historiador Miguel Caballero. Se as pistas de Caballero estiverem certas, neste ano – que marca os
oitenta anos de sua morte –, o corpo do poeta poderá finalmente ser sepultado com dignidade.
AS MULHERES DE FEDERICO
Nove das doze peças escritas por Lorca em sua maturidade artística são protagonizadas por mulheres.
“Ele nunca deu uma justificativa”, explica Margareth. Para a professora, “A figura feminina surge como
aquela que é a mais oprimida, não apenas por sua condição social, mas também pelas premissas oriundas
do ponto de vista masculino. Daí que as mulheres de suas peças não apareçam simplesmente como
vítimas, mas também como cúmplices de sua própria destruição ou como algozes de outras mulheres.
Esses perfis estão claramente expostos em três grandes obras do autor: Bodas de sangre, Yerma e La
casa de Bernarda Alba”. Margareth diz se impressionar com o modo “como García Lorca maneja com
contundência e destreza uma constante que estará presente na produção literária espanhola do pós-
Guerra Civil: o estreitamento do horizonte narrativo, pois no espaço asfixiante de La casa de Bernarda
Alba, todos os conflitos se centram no espaço doméstico, entre quatro paredes fechadas a cal e canto”,
explica. “Em Bernarda Alba, Lorca denuncia os valores que poderíamos chamar de valores da Espanha
eterna: como honra, ordem patriarcal e a repressão dos instintos ou de toda e qualquer ação que possa
representar a desestabilização da ordem social. Nesta obra, como em Bodas de sangre, esses elementos
colidem com o desejo de liberdade dos protagonistas, que aqui, estão representadas por mulheres.”
Fazendo um contraponto a isso, o ator e diretor de teatro Rodrigo Mercadante, que já encarnou no
palco o próprio poeta andaluz, conta que “Os homens aparecem como algo sedutor: o sujeito que passa a
cavalo na porta, o ex-namorado que vem acabar com o casamento porque é um homem cheio de desejo;
o cigano assassinado. Eu tenho a impressão de que a relação dele com os homens é mais erotizada”.
Para a atriz Lilian Lima, que viveu três personagens lorquianos no teatro, cada mulher na dramaturgia
de Lorca representa um problema social. “Tem a Noiva de Bodas de sangre, que está absolutamente
apaixonada pelo noivo, prestes a se casar, mas planeja tudo para fugir com um homem que foi um ex-
namorado da adolescência e vive isso até as últimas consequências. Há a Martírio, de Bernarda Alba,
que vive rodeada de mulheres e por isso se sente sufocada; é angustiada, invejosa em relação à irmã,
personagem parecida com a Noiva por querer mudar o ruma da história e fugir com um homem. E existe
a Mariana Pineda, que existiu na vida real, mas que, sem dúvida, foi romanceada pelo autor, aparecendo
na peça com a força de um amor por um homem e por uma causa”, explica a atriz. “Ele tinha admiração
pelo universo feminino. A prova disse é que o herói da sua infância foi uma mulher, a heroína Mariana
Pineda.”
LORCA E BRASIL
Em 1968, publicar poemas de Lorca no Brasil e montar suas peças nos grandes centros urbanos do país
significava desafiar, mesmo que indiretamente, a Ditadura Militar. “Lorca se transforma em uma
bandeira de luta. Existem relatos de pessoas declamando seus poemas em lugares públicos.
Declamavam: ‘Verde que te quero verde’, e outros poemas aparentemente não políticos, interpretados
como libelos contra a opressão pela forma como Lorca foi assassinado, como um mártir na luta pela
República”, conta Rodrigo.
Nesse mesmo ano, cidadãos espanhóis exilados no Brasil, membros do Centro Cultural García Lorca,
convidaram o escultor e arquiteto Flávio de Carvalho a fazer uma escultura em homenagem ao poeta. No
dia primeiro de outubro de 1968, com a presença do poeta Pablo Neruda, a obra foi inaugurada, na Praça
das Guianas, no Jardim Paulista, em São Paulo. Uma exposição na Biblioteca Mário de Andrade e um
espetáculo no Theatro Municipal, com a participação de artistas como Chico Buarque e Geraldo Vandré,
completaram as homenagens. No dia 20 de junho de 1969, contudo, a escultura amanheceu em destroços
e cercada de panfletos onde se lia: “comunista e homossexual”. O atentado foi atribuído ao CCC, o
Comando de Caça aos Comunistas, mas os culpados nunca foram nomeados. Os jornais, que haviam
noticiado durante todo o ano de 1968 assuntos ligados a Lorca, demoraram quase uma semana para
retratar o atentado. A escultura foi levada para o depósito da Prefeitura e lá permaneceu até 1971,
quando Flávio de Carvalho a restaurou, por conta própria, com o intuito de integrá-la à Bienal de Arte de
São Paulo, mas foi impedido de entrar com a obra no pavilhão. De volta ao depósito da Prefeitura, a obra
permaneceu relegada ao esquecimento até 1979, quando alunos da Escola de Comunicações e Artes e da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade de São Paulo, roubaram a peça e a instalaram
no vão livre do Museu de Arte de São Paulo (MASP), no dia em que o prefeito Olavo Setúbal
participaria de um evento no local. Dois dias depois, a escultura foi recolocada em seu lugar de origem,
onde permanece até hoje.
Em 2013, a Cia. do Tijolo jogou luz sobre a memória da Ditadura Militar brasileira ao montar o
espetáculo Cantata para um bastidor de utopias, com base no texto de Mariana Pineda. “Fizemos uma
brincadeira: na porta do teatro é encontrado um corpo morto. Os artistas chegam a esse corpo, reavivam-
no, e descobrem que é o do próprio poeta desaparecido. O corpo, desaparecido desde 1936, é encontrado
na porta de um teatro no Brasil. Então o Lorca entra para o teatro para ajudar a contar a história da
Mariana Pineda. Ao longo dessa cantata, a gente vai descobrindo que os personagens são desaparecidos
políticos durante os ‘anos de chumbo’ do Brasil”, conta o ator e diretor da montagem, Rodrigo
Mercadante. “A atriz Heleny Guariba é uma das personagens que aparecem para contar a história da
Mariana Pineda.” Quando a protagonista é enforcada, a peça é suspensa e todo o público é convidado a
se sentar em volta de uma grande mesa para ouvir o depoimentos de ex-presos e ex-exilados políticos.
Para Rodrigo, tanto a Ditadura brasileira quanto o assassinato de Lorca “São histórias muito brutais, que
as pessoas acham que já foram contadas, mas elas não foram contadas. Não, pelo menos, do jeito que
deveriam ser”.
Rodrigo se recorda do desafio de dar vida ao personagem de Lorca. “Ele era um homem de um
carisma incomum. Passa um ano em Nova York e não consegue aprender inglês, então ele se sentava ao
piano e recitava poemas em espanhol mesmo, cantava canções da Andaluzia e se tornava o centro das
festas. Assim também era quando fazia teatro de bonecos. Somos acostumados a vê-lo como um
dramaturgo muito escuro, no sentido do luto, mas Lorca é filho do teatro popular. Sua primeira grande
paixão são os teatros de bonecos nas praças. Ele era, em uma comparação, se me permite, o
mamulengueiro do Nordeste no Brasil.”
Uma dramaturgia lírica e apaixonada
WELINGTON ANDRADE
De 1919, quando deu à luz El maleficio de la mariposa, a 1936, ano em que concluiu La casa de
Bernarda Alba, Federico García Lorca escreveu treze peças de teatro, que podem ser reunidas em cinco
grupos distintos quanto aos gêneros sob os quais foram forjadas, segundo o filólogo espanhol Miguel
García-Posada, responsável por editar a poesia e o teatro completos do escritor andaluz. Da categoria
“dramas modernistas” fazem parte Mariana Pineda e El maleficio de la mariposa, que Posada classifica
como um drama modernista de tipo simbólico. (Vale notar que o especialista não integra El maleficio...
tampouco as demais peças juvenis do autor à publicação do teatro completo). As “farsas” são cinco, três
para guiñol – Tragicomedia de don Cristóbal, Retablill de don Cristóbal e La niña que riega la albahaca
y el príncipe preguntón (desaparecida) – e duas para pessoas: La zapatera prodigiosa e Amor de Don
Perlimplín. Duas peças são classificadas de “comédias impossíveis”: El público e Así que pasen cinco
años. Outras duas inserem-se na categoria “tragédia”: Bodas de sangre e Yerma. Por fim, há os dramas
Doña Rosita la soltera e La casa de Bernarda Alba.
Visto panoramicamente, trata-se de um conjunto de espécimes teatrais raros, cujo sopro de
originalidade incorpora e ultrapassa sua filiação às formas populares de cultura, em caráter geral, e, em
aspecto restrito, à dramaturgia do Século de Ouro espanhol, tendo merecido, assim, a atenção dos mais
notáveis críticos de literatura e de teatro, alguns deles destacados a seguir. O professor e ensaísta norte-
americano John Gassner (1903-1967) tendia a concordar com aqueles especialistas que defendiam a
ideia de que o poeta andaluz Federico García Lorca havia atingido sua maturidade como dramaturgo em
A casa de Bernarda Alba, último drama escrito por ele, justamente em 1936, quando forças leais ao
general Franco o executaram barbaramente na cidade de Granada. “Este drama sensível e intenso, que
mostra a frustração das filhas solteiras de uma altiva matriarca espanhola, é um estudo penetrante e
sincero, crescendo em tensão à medida que se aproxima do suicídio de uma das filhas e desenvolve a
angústia contida de suas irmãs”, afirma o autor de Mestres do teatro, sem deixar de considerar
extremamente positivo o propalado lirismo do dramaturgo, que alguns homens de teatro – seja no campo
da teoria ou da encenação – até hoje veem com ressalvas: “Lorca utilizou eficientemente as sugestões
poéticas. A peça é banhada numa atmosfera sombria que se ilumina com os lampejos de rebelião da filha
que ama o noivo de sua irmã mais velha. Para um dramaturgo que não contava mais de 36 anos na época
de sua morte, Bernarda Alba, subtitulada ‘Um drama sobre as mulheres nos vilarejos da Espanha’, foi
uma realização notável e uma promessa de obras-primas vindouras”, conclui Gassner, para quem a
grande qualidade da derradeira peça de García Lorca era a combinação do exercício de realismo, vazado
num misto de prosa-poesia naturalista, ao colorido da cultura espanhola.
Não obstante tal consideração, outros dois textos teatrais, dos mais de dez que concebeu, figuram
igualmente como obras de qualidade inatacável. São eles: Bodas de sangre (1933) e Yerma (1934), que
granjearam grande fama ao autor, já então internacionalmente conhecido por seus poemas e baladas. Em
Bodas de sangre (cuja adaptação cinematográfica por Carlos Saura, com os bailarinos Antonio Gades e
Cristina Hoyos, constitui uma das mais bem-sucedidas interlocuções entre as linguagens da poesia, do
teatro, da dança, da música e do cinema de que se tem notícia), a narrativa clássica do triângulo amoroso
entrelaça a fatalidade à tragédia. Sedimentada por uma tragicidade de tipo rústico, a peça faz uso de uma
elaborada estilização da vida camponesa. Para o poeta espanhol Pedro Salinas (1892-1951), a poesia
“primitiva” e “popular” de García Lorca não era popular, tampouco primitiva, constituindo mais
propriamente uma filosofia do homem natural, cujo mais perfeito representante seria o cigano. Daí Lorca
ter convertido aquela filosofia na musicalidade de sua poesia, interessando-se vivamente, para dar
sustentação a esse processo, pelo trabalho de adaptação do folclore musical dos ciganos empreendido por
seu amigo Manuel de Falla. Em sua monumental História da literatura ocidental, na qual alia as
observações de Salinas às suas próprias, Otto Maria Carpeaux (1900-1978) empreende uma acurada
análise da mais passional tragédia lorquiana: “Os homens primitivos, nos versos e nas peças de Lorca,
não são só os camponeses e ciganos da Andaluzia. Lembrou-se, a propósito de Bodas de sangre, uma
outra tragédia rústica: Riders to the sea, de Synge; o ambiente poético é o mesmo. O estilo é aparentado.
Synge falara da combinação de elementos naturalistas e elementos simbolistas na arte moderna.
Naturalista, na peça de Synge e na peça de García Lorca, é o fatalismo sombrio; mas é justamente este
que, no espanhol, se reveste de expressões não naturalistas e nada regionalistas, expressões simbólicas e
às vezes herméticas”. Se para alguns críticos a angústia trágica de Lorca ecoava longinquamente a
catástrofe de 1898, para Carpeaux, “com igual ou maior razão podem suas tragédias ser interpretadas
com profecias da tragédia espanhola de 1936, da grande Tragédia Espanhola de ódio e sangue”.
Sangue e exuberância dramática foi o que vislumbrou Décio de Almeida Prado (1917-2000) na
encenação de Yerma dirigida por Antunes Filho em São Paulo para o Teatro Brasileiro de Comédia (o
emblemático TBC), em 1962, que além do elenco bastante talentoso – do qual faziam parte, entre outros,
Cleyde Yáconis, Berta Zemel, Lélia Abramo e Raul Cortez – contava com cenários e figurinos da artista
plástica Maria Bonomi e direção musical do maestro Diogo Pacheco. Ao analisar a peça que trata de
uma mulher cuja obsessão para conceber um filho acaba por levá-la ao assassinato do próprio marido,
que vinha lhe negando tal “direito”, Décio filia o trabalho do autor da obra a uma longeva tradição:
“Garcia Lorca não fez cerimônia em repetir, no século XX, a atmosfera e os processos do teatro
seiscentista inglês e setecentista espanhol (aparentados na medida em que se prendem ainda às origens
medievais). Os clássicos franceses, pertencentes já a outro momento histórico, diziam que é possível
fugir às regras para alcançar um efeito maior. Como homem de teatro, essa é a única regra que Lorca
conhece e pratica. Quando esperamos que os problemas propostos, em rápidas cenas sucessivas, venham
a se armar, a se articular, dando margem a uma discussão mais cerrada de ideias ou a um
desenvolvimento dramático uno e contínuo, eis que o poeta, valendo-se de suas prerrogativas, dissolve a
trama em poesia, resolve tudo com uma canção ou com o ambiente carregado de primitivismo e crendice
das festas populares”.
A marca do primitivismo, para o crítico, havia saltado do texto diretamente para a encenação
conduzida com muita criatividade por Antunes Filho, que instaurava em cena a ficção de uma
companhia ambulante a se apresentar em uma pequena aldeia espanhola, evocando a própria experiência
de García Lorca com o grupo de teatro universitário itinerante La Barraca, que ele ajudou a criar em
1931 e do qual foi o primeiro diretor artístico. Entusiasmado pela “inspiradíssima” direção de Antunes, o
crítico concluía sua avaliação confessando uma esperança cuja base era o encantamento poético da peça
de Lorca: “Yerma, como representação, tem uma derradeira virtude: abre novas perspectivas para o
teatro brasileiro. Ao casar tão harmoniosamente ação e dança, texto e música, sugere-nos a possibilidade
de realizarmos um ‘musical’ brasileiro, a exemplo do norte-americano. E ao enfrentar com tanto
destemor, a peito descoberto, as ousadias do lirismo lorquiano (Lorca é original não por intenção, mas
por fatalidade de temperamento, por não se parecer com ninguém), ergue perante nós uma possibilidade
ainda mais perturbadora: a de podermos encenar, em dia não remoto, uma comédia de Shakespeare”.
Menos conhecido do que Yerma, mas tão potente quanto ela, é o drama Mariana Pineda. O autor
terminou de escrevê-lo em janeiro de 1925, mas a obra somente seria encenada um pouco mais tarde, por
iniciativa da atriz Margarita Xirgu, que estreou, no dia 24 de junho de 1927, em Barcelona, uma
montagem do texto cuja ambientação cenográfica esteve a cargo de Salvador Dalí. Não era uma peça de
vanguarda, como seriam depois La zapatera prodigiosa ou Amor de don Perlimplín. Ao contrário, nela
Lorca parecia querer adotar o cânone do drama histórico, cortejando um teatro de viés mais comercial
que, se por um lado, frustrava o apetite que o poeta e dramaturgo andaluz vinha cultivando pela
experimentação, por outro, atribuía a ele a imagem de um autor sério, o que naquele momento era bem-
visto e esperado por sua família. Única peça da maturidade artística de Lorca composta integralmente em
versos, Mariana Pineda priva dos mesmos elementos musicais, plásticos e coreográficos que
caracterizam a riquíssima teatralidade presente nas outras obras para teatro que ele escreveu. Ao recusar
a prosa, o dramaturgo refuta também o naturalismo linguístico que não lhe permitiria exercitar a série de
metáforas, alusões, hipérboles, ironias e outros recursos conotativos por meio dos quais seu simbolismo
sui generis invade a cena. A linguagem vazada em versos relaciona-se não somente com as canções, em
caráter estrito, como também com o halo da musicalidade que exala do texto de modo geral, evocando,
por sua vez, uma gestualidade de acento tão particular. Não estamos longe do conceito de espetáculo
total; tampouco deixamos de nos lembrar do teatro de Lope, Calderón e Valle-Inclán.
Mariana Pineda é a jovem heroína da cidade de Granada que viveu no início do século 19 e se
insurgiu contra o absolutismo de Don Fernando VII, sendo condenada à morte por traição à monarquia
espanhola. Sobre ela o ensaísta Miguel Garcia Posada declarou: “La inteligencia del poeta evitó el
tratamiento político de la protagonista para acercarse a ella como a una víctima del amor, ‘Julieta sin
Romeo’ la llamó. Mariana muere por amor a don Pedro de Sotomayor, no por sus ideas políticas: ‘Yo
soy la Libertad porque el amor lo quiso!’, exclamará dirigiéndose al sacrificio. Es heroína ya muy
lorquiana, ‘mujer pasional hasta sus propios polos, una posesa, un caso de amor magnifico de andaluza
en un ambiente extremamente político’, agregaba él”.
A dramaturgia de Lorca tem um vínculo profundo com a vida do homem comum, com sua força
instintiva e seus impulsos mais naturais, o que levou Ian Gibson, autor de uma belíssima biografia do
poeta, a destacar a força das imagens telúricas como um dos fios condutores de toda a obra lorquiana: “O
próprio Lorca gostava da palavra ‘telúrico’, tinha perfeita consciência de possuir uma visão primitiva,
mítica, profundamente enraizada nas velhas culturas e religiões do Mediterrâneo”. O grande desafio do
teatro contemporâneo é saber se relacionar criativamente com esse espírito telúrico e popular, sem
contrariar sua vitalidade, tampouco deixando de investigar o que ele tem a dizer ao espectador do século
21.
Quartos de despejo da história
BERENICE BENTO
Durante o período em que eu morei em Nova York, um dos meus momentos mais felizes era quando
participava dos cultos das igrejas do Harlem. Era ali, geralmente, que eu escutava alguma fala mais
politizada. Eu sabia que os/as reverendos/as teriam uma palavra de conforto para minha alma ateia,
cansada de assistir ao exuberante espetáculo do individualismo nova-iorquino. No dia do Thanksgiving
(Dia de Ação de Graças), o reverendo lembrou a biografia de sua família. Compartilhou a história do seu
bisavô, escravo nas plantações de algodão do sul dos Estados Unidos. E, nesse mergulho em sua
memória, alertava: não estamos sozinhos, temos uma história, temos um passado. Precisamos contá-lo.
É dele que devemos tirar nossas forças para lutar contra todas as formas de preconceito e exclusão.
A memória testemunhada tem uma força enorme de transformação. Qual a história que merece ser
contada? Como contar uma história? Pouco conhecemos as histórias de vida de pessoas sem importância
para a história oficial. Conforme aponta Mia Couto, temos um passado, que nos foi dado. Um passado
que é uma construção, uma ficção autorizada e que conta uma história única daqueles que estavam no
poder e que apagaram outras versões.
Nesse trabalho de visibilizar o esquecido, deveríamos agir como um arqueólogo. O que faz uma
arqueóloga? Junta caquinhos, os limpa, cola-os, tenta conferir coerência aos fragmentos. Às vezes, a
reconstrução do artefato é completa; outras, no entanto, fica a cargo de nossa imaginação completar o
vaso sem alça e a estátua sem braço. Daí a importância do projeto de Foucault em habilitar histórias das
pessoas infames esquecidas nos arquivos. Lançar luzes em áreas obscurecidas. Tentar conferir sentidos
às descontinuidades é o desafio que temos diante de histórias como Herculine Barbin, Pierre Rivière e
outros “anormais” narrados por Foucault.
Nesse projeto de reescrita da história e reinvenção de genealogias, os escritos produzidos pela “ralé”
(sexual, gênero, racial, classe) são fundamentais. O termo “ralé” foi lançado à categoria sociológica por
Jessé Souza e, aqui, ouso dilatá-lo da dimensão exclusivamente de classe social para outras esferas da
vida social. São muitos corpos que compõem o corpo da “ralé nacional”, os corpos que não importam,
que não contam para a história. São as bichas, as sapas, as travestis e as pessoas trans, as pessoas negras
e os miseráveis. Quando algum membro dessa ralé ousa usar a arma dos donos da história, a escrita, para
contar sua história, um fogo de artifício é lançado e seus efeitos são inesperados. Carolina Maria de Jesus
produziu um potente fogo de artifício com seu livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (QD).
Sabemos que livro bom é aquele que oferece pistas e múltiplas possibilidades interpretativas. E aqui
eu gostaria de oferecer uma interpretação desse livro-diário. Quarto de despejo foi um dos textos
feministas mais potentes que já li, embora a autora não reivindicasse tal identidade política para si. Entre
os anos de 1955 e 1960, a catadora de lixo Carolina de Jesus, negra, mãe solteira de três filhos, relata sua
vida de moradora da favela Canindé, zona norte de São Paulo. O fio condutor da obra é, sem dúvida, a
batalha pela sobrevivência. E, nessa luta, ela nos abre a possibilidade de conhecer o cotidiano da favela,
as disputas dos vizinhos, as relações de gênero, a importância da fofoca como mecanismo de controle
social. Gênero, classe social, região, raça/etnia, sexualidade são acionados e cruzados a cada página do
seu diário e, com essa metodologia de escrita, a autora nos possibilita conhecer o contexto mais amplo
onde sua história acontece.
Ela dirá que tem pavor das mulheres da favela, pois tudo querem saber. E as “línguas delas é como os
pés de galinha. Tudo espalha”. Até o aumento de peso de Dona Binidita, uma moradora da favela de 82
anos, foi tido como uma gravidez. Embora não poupe de crítica a vida de escravas que essas mesmas
mulheres levam, dizia que “Enquanto os esposos quebram as tábuas do barracão, eu e meus filhos
dormimos sossegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas”.
Não há romantismo ou qualquer visão “cor de rosa” (para lembrar a favela idílica das músicas de
Cartola) na descrição do ambiente. Ali, é cada um por si. As disputas acontecem nas mínimas coisas. O
lugar na fila da torneira para conseguir água, a cobiça por um pedaço de carne do porco que o vizinho
está matando são pequenos exemplos que desenham o ambiente belicoso da favela. As disputas narradas
faziam minha imaginação viajar para as cenas descritas por Primo Levi (É isto um homem?). A posição
que se ocupava na fila para obtenção da sopa no campo de concentração nazista era estratégica. Os
primeiros recebiam sopa rala. Os últimos arriscavam-se a não receber nada (assim como os últimos na
fila da água em Canindé certamente não iriam conseguir encher seus latões). Portanto, o melhor era estar
entre os últimos; assim, nos conta Primo Levi, haveria a certeza de receber uma quantidade mais
generosa dos vegetais que repousavam no fundo dos panelões.
Em É isto um homem? e Quarto de despejo descobrimos que a medida da solidariedade humana é
proporcional à fome. Nesses dois cenários marcados pela miserabilidade, os seres esfomeados jogam
suas poucas energias vitais para obtenção de um pedaço de pão a fim de assegurar mais algumas horas
de vida. Com fome, ninguém é solidário.
Carolina não era casada, mas não abria mão de ter seus namorados. Ela decidia quando queria a visita
do namorado e a hora em que ele deveria partir. Enfrentava com altivez os preconceitos. Em
determinado momento, aparece na favela um charmoso cigano que a perturba, “Mas eu vou dominar esta
simpatia. [...] Parece que este cigano quer hospedar-se no meu coração”. Carolina de Jesus era assim,
dominava sua vida.
No dia 13 de maio de 1958, a negra Carolina olhou pela janela do seu barraco e viu que a chuva
anunciava mais um dia de fome.
“Continua chovendo. E eu tenho só feijão e sal. A chuva está forte. Catar lixo chovendo? Impossível.
No dia da libertação dos escravos eu lutava contra a escravatura atual – a fome! [...]. Atualmente, somos
escravos do custo de vida. A tontura da fome é pior do que a do álcool.”
A autora também anuncia os dilemas da sua condição feminina. Revela que desejou mudar de gênero
quando criança. Sonhou em se tornar homem, não porque quisesse mudar o corpo, mas por saber que sua
condição feminina lhe interditava a realização de um sonho: entrar para o exército para defender a Pátria.
Pergunta à mãe:
“– Porque a senhora não faz eu virar homem?”
A mãe respondia:
“– Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.”
[...] “O arco-íris foge de mim”.
Se ela nutriu desejos por mudar de gênero, o mesmo não acontecia com a sua cor. Carolina antecipa o
grito de Victoria Santa Cruz (“Me gritaram negra. Negra sou!”). Não tinha vergonha, mas orgulho de sua
cor. “Eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico.” Mas ela sabia que “o mundo é como o
branco quer”.
Assim como o reverendo do Harlem, Carolina Maria de Jesus ousou contar sua história. E este talvez
seja o seu ato de maior rebeldia. Com seu texto, ela atuou, tomou sua vida em suas mãos e nos disse:
“Minha vida importa”.
colaboraram nesta edição
Berenice Bento é professora adjunta do departamento de ciências sociais da ufrn e pesquisadora do cnpq
Bob Sousa é fotógrafo e mestre em artes cênicas pela unesp
Christian Ingo Lenz Dunker é professor livre-docente do instituto de psicologia da usp
José Arthur Giannotti é professor titular emérito do departamento de filosofia da usp