A Cosmopolitica Dos Animais
A Cosmopolitica Dos Animais
A Cosmopolitica Dos Animais
Tese de doutorado
Rio de Janeiro
Setembro de 2017
Juliana Fausto de Souza Coutinho
Ficha Catalográfica
CDD: 100
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 1312408/CA
Aos membros da banca, Eduardo Viveiros de Castro, Felipe Sussekind, Peter Pál
Pelbart e Rita Paixão, por considerarem este trabalho.
Aos animais com quem vivi e com os quais me constituí: Bú, Milady, Leonel,
Lady, Eleonora, Anabel, Michkin, Aliocha, Pingo, Bernadete, Nausicaa, Bruxo e
Batatinha; aos que conheci pessoalmente ou por leituras; aos que comi; a todos
aqueles que, mesmo em situações inimagináveis, lutam diariamente para fazer e
manter seus mundos, por me mostrarem o que significam fé e força.
Esta tese tem por objetivo investigar, desde um ponto de vista filosófico, a
vida política dos animais outros que humanos no contexto do Antropoceno. Entre
diversas configurações, a errância, o confinamento, a experimentação e a extinção
são privilegiadas como verdadeiras situações conceituais, cuja análise e
problematização requerem a abordagem conjunta da filosofia com diferentes
discursos, como a etologia, a biologia, a antropologia, a história e a literatura. O
primeiro passo consiste em uma exploração do lugar nos animais na pólis a partir
da confrontação de ideias clássicas e contemporâneas sobre política; em seguida
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Palavras-chave
Keywords
1 Introdução 11
2 Errantes 18
2.1. Pet Sounds 18
2.2. A velha dos gatos 23
2.3. “Expulsos do espaço urbano” 29
2.4. Indistinção e indiscernibilidade 36
2.5. Amizade e pastoreio 44
2.6. Razão do mestre versus saberes situados 51
2.7. Guerras felinas 62
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3 Confinados 83
3.1. De Monkey Islands e paradoxos 83
3.2. Soberania e patologia 93
3.3. “Algo que foi tornado absolutamente marginal” 98
3.4. “Tristes filósofos” 102
3.5. “Aberrificação” 109
3.6. “Donzellas... para pentear macaco” 115
3.7. E, ainda assim, brincaram 120
3.7.1. “Fair play” 121
3.7.2. “Proliferação louca de formas” 132
3.8. Política animal 141
4 Experimentais 148
4.1. Arte 148
4.1.1. Rotpeter e Consul 148
4.1.2. Literatura e povo 156
4.1.3. Devir-animal 163
4.1.4. Cosmoliteratura 171
4.1.5. “Think my way into the existence of a being” 176
4.1.6. Sultão 184
4.2. Ciência 189
4.2.1. Cabeça (de homem) 189
4.2.2. Bestial com as bestas 195
4.2.3. Cauda (de rato) 202
4.2.4. Kluger Hans 208
4.2.5. Parentesco como política 217
5 Desaparecidos 221
5.1. Fins do mundo 221
5.1.1. Homens 222
5.1.2. Ratos 229
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6 Conclusão 261
1
As traduções dos textos citados, quando não houver menção ao tradutor nas Referências
Bibliográficas, são de minha autoria.
12
liminares), de modo que se possa, segundo seus autores, travar relações realmente
políticas com eles (cf. Kymlicka e Donaldson, 2013). O segundo propõe que sair
da ética para a prática política requereria “a imposição oficial de regras legítimas e
legimitizadas, incluindo sanções, no todo da sociedade política” (Schlosberg e
Wissenburg, 2014, p. 1). Em um artigo de 2015, dois teóricos da política, Svenja
Ahlhaus e Peter Niesen, procuraram resumir as características da área de política
animal:
[Ela] diz respeito à sujeição política de humanos e animais [...] e à existência,
natureza e justificativa das reivindicações coercivas dos animais [...]. Discute a
inclusão dos animais nas políticas humanas e as reivindicações de coletivos
animais ‘soberanos’ [...]. A política animal desenvolve diretrizes normativas com
vistas à sua realização prática [...] e, finalmente, reflete sobre seu próprio status
como um corpo de discurso dentro de sociedades democráticas (Ahlhaus e Niesen,
2015, p. 10).
O caminho seguido por esta tese afasta-se dessa abordagem por não
acreditar que política indique apenas o âmbito das instituições políticas nas formas
Estado. Pelo contrário, o que se pretende com os capítulos a seguir é procurar
definições de política ou práticas políticas que envolvam os animais
criativamente, configurações políticas possíveis que sejam co-constituídas com os
animais. Não se deseja, com isso, abandonar o campo prático de ação, mas
13
2
Em Three Guineas, a escritora inglesa convocava as mulheres: “Pensar nós devemos.
Vamos pensar nos escritórios; nos ônibus; enquanto estamos plantadas na multidão assistindo a
Coroações e aos shows do Prefeito; vamos pensar enquanto passamos pelo Cenotáfio; e em
Whitehall; na galeria da Câmara dos Comuns; nos Tribunais de Justiça; vamos pensar nos
batismos, casamentos e funerais. Vamos nunca cessar de pensar – o que é esta ‘civilização’ na qual
nos encontramos? O que são essas cerimônias e por que deveríamos tomar parte nelas? O que são
14
Não tenho nenhuma ilusão quanto ao que posso fazer neste trabalho, algo
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Pretendo, assim, escapar àquilo que Jacques Derrida, em O animal que logo sou
chamava de o filosofema, o discurso que toma os animais outros que humanos
abstratamente, como uma imensa categoria de seres indistintos e que não se
essas profissões e por que deveríamos fazer dinheiro com elas? Para onde, em suma, ela está nos
levando, a procissão dos filhos de homens educados?” (Woolf, 2006, p. 1843-1851).
3
“Arts of Living on a Damaged Planet” foi o nome de um evento organizado por Tsing em
2014.
15
permite ser visto por eles, entrar em relação com eles. Pensar de modo diferente
não pode supor a elaboração do animal como “um teorema, uma coisa vista mas
que não vê” (Derrida, 2002, p. 33).
Para tanto, privilegiarei algumas configurações concretas da vida dos
animais no Antropoceno, como sua existência em cidades nas feições de pets e
errantes, o confinamento ao qual são submetidos em zoológicos, as
experimentações nas quais são parceiros ou cobaias, nas artes e nas ciências, e a
sua desaparição pelos processos acelerados de extinção. O método utilizado no
exame dessas situações envolveu a abordagem conjunta da filosofia com
diferentes discursos, como a etologia, a biologia, a antropologia, a história e a
literatura, na convicção de que o estudo das políticas animais exige um esforço
conceitual multidisciplinar.
O primeiro capítulo parte da exploração de uma situação pessoal, a minha
experiência com os gatos que passaram a viver comigo, para questionar o lugar
tradicionalmente conferido aos animais na pólis. Nele, ideias clássicas e
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2.1.
Pet Sounds
em uma dessas ocasiões, cheguei a imitar um miado para ele. Ele respondeu,
miando de volta. Dialogamos, eu sem saber o que dizia, até que, após alguns
minutos, ele resolveu se aproximar da comida que eu levara. Mesmo assim, era
impossível tocá-lo. Em conversa com um funcionário do condomínio, este me
explicou que o filhote tinha uma mãe e que, toda vez que a gata saía para procurar
comida, ele se afastava de onde ela o havia deixado e perambulava miando pela
área do condomínio. Fiquei aliviada ao saber que ele não estava sozinho no
mundo, tão pequeno que era. E a palavra correu: uma certa moradora gostava de
gatos.
Não demorou muito até que meu interfone tocou, uma senhora domiciliada
no prédio de trás do meu avisando que havia encontrado dois filhotes muito
novos, sem mãe, perguntando se eu não queria ficar com eles. A conversa
envolveu, como é usual nos assuntos envolvendo animais errantes, termos como
resgatar e adotar (a palavra resgatar, aliás, faz um jogo duplo no que tange aos
felinos, contendo nela o nome popular da espécie – os animais que se retiram das
ruas são muitas vezes chamados de resgatos, resgatinhos). Eu, que nunca havia
tido contato com outro morador do lugar até então, fui até a casa dela, e encontrei,
em um quarto, saindo de uma caixa própria para o transporte de gatos, duas
pequenas bolinhas de pelo. Mínimos, deviam ter cerca de 10 dias. Dois bebês-
19
Por mais de quinze dias não dormi uma noite inteira, completamente tomada
pelas tarefas que a sobrevivência daqueles dois bichinhos me exigia. A mamadeira
era preenchida por um leite que comprava em pó, um leite especial para gatos
produzido por uma empresa chamada Nutripharme, que em seu site oficial
descreve sua “missão” como sendo “a busca incessante de tecnologia e segurança
para melhoria de seus produtos com profissionalismo, de forma a estimular novas
técnicas e formatos para prevenção, tratamento e manutenção da saúde animal.4”
Entre os produtos anunciados, um dos mais recentemente desenvolvidos chama-se
AI-G, um suplemento vitamínico destinado a cachorros e produzido, segundo a
descrição, “com ovos desidratados na forma de pó, selecionados a partir de
galinhas White Leghorn que tiveram contato com antígenos de cães 5.” Embora a
espécie Gallus gallus domesticus seja originária da Ásia, a história da raça
Leghorn passa pela Toscana, na Itália, onde, segundo se diz, primeiro se
desenvolveram, tendo dali chegado até as Américas, ainda no século XIX, saindo
do porto de Livorno – donde seu nome atual, Leghorn, uma anglicização de
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Livorno. Estas galinhas são vastamente usadas hoje para produção de ovos no
mundo inteiro, na maior parte das vezes em baterias, isto é, conjuntos de gaiolas
cujo tamanho médio é de 432-555 cm2 e nas quais vivem entre 5 e 10 aves,
deixando, para cada animal, um espaço menor que a área de uma folha de papel
A4 – esta mesma na qual este trabalho foi impresso. Essas gaiolas impedem a
quase totalidade das expressões de comportamento das galinhas, tais como
“construir ninho, empoleirar, tomar banho de areia, ciscar, forragear, explorar seu
ambiente, correr, saltar, voar, alongar e bater as asas, e até mesmo caminhar
livremente.6” O site da Nutripharme, que afirma trabalhar “para a saúde e o bem-
estar animal”, não especifica o sistema de criação das galinhas cujos ovos são
usados para a produção do AI-G.
Voltando ao leite salvador da vida dos gatos que trouxe para viverem
comigo e que contém uma série de nutrientes essenciais para o desenvolvimento
deles, a Nutripharme não chega a detalhar sua origem. Sobre seu uso, ele é
indicado como
4
http://www.nutripharme.com.br/institucional.php?codigo=1.
5
http://www.nutripharme.com.br/produtos.php?categoria=AI-G.
6
Informações colhidas do site: http://www.confinamentoanimal.org.br/fique-por-
dentro/gaiola-em-bateria-galinhas.asp.
21
substituto do leite em casos de privação do leite materno, tais como: morte da mãe,
ausência de produção de leite (agalaxia), rejeição do filhote pela fêmea, neonatos
muito fracos que não conseguem amamentar sozinhos, ninhadas muito grandes em
que a mãe não produz leite suficiente, partos muito longos, etc.7
passarinhos, é verdade. Mas desconfio que não sejam só os gatos que entram
nessa categoria de pestes, que parece autorizar os seres humanos a dispor deles
http://www.nutripharme.com.br/produto.php?codigo=13&produto=SUPPORT%20MILK%20CAT
8
Segundo a ONU, um desaparecimento forçado ocorre quando “pessoas são presas, detidas
ou sequestradas contra sua vontade [...] por oficiais de diferentes setores ou níveis do governo ou
por grupos oficiais ou privados agindo em nome de, ou com o apoio, direto ou indireto,
consentimento ou aquiescência do governo, seguido de recusa em revelar o destino ou o paradeiros
das pessoas concernidas ou uma recusa de reconhecer a privação de sua liberdade, o que coloca
tais pessoas fora da proteção da lei” (em
http://www.un.org/en/events/disappearancesday/background.shtml). Embora não seja sempre o
caso, em muitos desaparecimentos forçados dão-se a morte e ao ocultamento do cadáver da vítima.
Essa é claramente a descrição de um procedimento de governos que envolve humanos e a
expressão é utilizada, no texto, de forma provocativa com a intenção de fazer vacilar o estatuto dos
animais em nossa sociedade.
9
Uma pesquisa do IBGE de 2013 calculou a existência de 22,1 milhões de gatos
domiciliados no país (cf. PNS, 2013, p. 26). Não há dados empíricos sobre o número de gatos
errantes no Brasil, mas uma informação replicada em diversos veículos de imprensa atribui à OMS
uma estimativa de cerca de 10 milhões (cf. por exemplo
https://www.ufpe.br/agencia/clipping/index.php?option=com_content&view=article&id=20367:ca
es-e-gatos-para-serem-adotados&catid=34&Itemid=122 e
https://anda.jusbrasil.com.br/noticias/100681698/brasil-tem-30-milhoes-de-animais-abandonados).
Grande parte dos centros de controle de zoonoses do Brasil pratica eutanásia, em animais doentes
e sadios. Além disso, embora os maus-tratos a animais sejam tipificados como crime no país
(Artigo 32 da Lei Federal de 12/02/1998), apenas em 2015 uma pessoa foi condenada à pena de
prisão por maus-tratos e morte de animais (cf. http://www.anda.jor.br/18/06/2015/sentenca-
historica-condena-matadora-animais-12-anos-prisao-brasil); sua prisão foi, entretanto, revogada
por um desembargador (cf. http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/06/condenada-por-morte-
de-caes-e-gatos-tem-prisao-revogada-em-sp.html). Embora não haja dados precisos, os envolvidos
em proteção animal no país são unânimes em denunciar os altos números de ações cruéis
praticadas contra animais errantes.
22
como bem entendem, e não falo apenas de ratos, por exemplo: o sumiço (para não
dizer abate ou assassinato) a que foram submetidos todos os gambás que viviam
no condomínio é uma pista da relação que muitas vezes se estabelece entre as
diferentes espécies de moradores de um mesmo espaço. A experiência leva então
a pensar que a gata-mãe pode ter sido morta – envenenada, atropelada – ou
capturada e despejada em algum lugar distante. De todo modo, não hesitaria em
classificar seu destino como um desaparecimento forçado.
Entendo que usar este último termo para me referir à situação de um animal
(um bem, segundo nosso código civil), ainda pior, de um animal errante (que não
pertence a ninguém), possa causar estranhamento e mesmo escândalo. Mas é
justamente esse lugar complicado e trabalhoso que gostaria de explorar.
Esclareço, em primeiro lugar, que não pretendo, ao usar uma expressão oriunda do
discurso de direitos humanos no contexto de crimes cometidos por organizações
políticas ou pelo Estado, apagar as diferenças e singularidades que existem entre
desaparecidos animais e desaparecidos humanos. Por outro lado, minha intenção é
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eles. Tudo isso não impede que sua situação se encaixe perfeitamente naquilo que
disse o escritor e artista plástico John Berger no ensaio “Why look at animals?”,
sobre o desaparecimento dos animais do mundo contemporâneo, no momento em
que ele fala dos animais de estimação, os pets:
A pequena unidade de habitação familiar carece de espaço, terra, outros animais,
estações, temperaturas naturais e assim por diante. O pet é ou esterilizado ou
sexualmente isolado, privado de quase qualquer outro contato animal e alimentado
com comidas artificiais. Este é o processo material que jaz por trás do truísmo de
que os pets vêm a se parecer com seus mestres ou mestras. Eles são criaturas do
modo de vida de seu dono (Berger, 2009, p. 24-25).
2.2.
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realizando as tarefas que sua mãe teria realizado caso estivesse com eles,
transformava-me a mim em gata ou transformava-os a eles em humanos?
Essas perguntas, sei que só as posso fazer de dentro de minha “pequena
unidade de habitação familiar”, onde vige uma assimetria entre mim e eles. Aqui,
posso mais que eles. Não quer dizer que eles não possam nada, mas que não
estamos diante uns dos outros em termos de igualdade total – o que seria isso,
aliás? Já no condomínio em que moramos, com sua área verde, há outros gatos,
parentes ou não de Bruxo e de Nausicaa. Ali, os termos de convivência são outros.
Há árvores, grama, passarinhos, havia gambás também. Há um estacionamento
repleto de carros dos outros condôminos. Há funcionários do condomínio e
condôminos, humanos que alimentam gatos, outros que os toleram e também os
que os envenenam ou pagam outras pessoas, geralmente de condição social
inferior, para capturá-los e os soltarem fora dali, longe, em outros condomínios ou
em terrenos baldios, quem sabe na periferia, para que se tornem “problema” de
outrem.
Para Deleuze e Guattari, como dito acima, podem-se distinguir três tipos de
animais; mas quantos tipos de humanos seríamos capazes de diferençar? Há
também o espaço fora do condomínio, nosso bairro, há a cidade. Nas vias públicas
a nosso redor, há carros que correm e cujos motoristas nem sempre desviam de
25
os movimentos do corpo. Isso de fato aconteceu e ele foi viver com a mulher que
me interfonou. Como ela mora no andar térreo, ele pode passear pelo jardim e
pelo bosque até voltar para casa pulando pela janela; tem acesso tanto ao
apartamento em que vive quanto à área do condomínio. Que eu saiba, não voltou a
se aventurar para fora da cerca. Será que aprendeu uma lição? Conjecturo que este
arranjo seja melhor para o gato do que o que posso negociar com Bruxo e
Nausicaa, mas nunca se tem todas as escolhas à disposição na vida.
Por causa dos perigos e perseguições a que estão sujeitos nos espaços da
cidade sem que haja contrapartida para eles, isto é, algum direito formal que lhes
seja assegurado – há alguma legislação a seu favor, é verdade, mas de aplicação
difícil e rara, sobretudo para esse tipo de animal citadino errante –, por vezes
imagino que os gatos que vivem comigo chegaram aqui um pouco como
refugiados políticos. Não gosto do termo resgatar nem do vocabulário
salvacionista que se costuma empregar para falar de comunidades como a nossa,
tampouco do termo adotar, embora por vezes o use por falta de alternativa melhor.
Não considero que salvei Bruxo e Nausicaa ao trazê-los para viver comigo; não os
“resgatei” das ruas, porque as ruas e a cidade não deveriam ser, necessariamente –
e às vezes não são de fato – um lugar de impossível coabitação multiespecífica.
26
continua Costello, “um gato não [seja] um conjunto de questões” (idem), não pude
me furtar a tentar compreender que experiência é essa que divido com eles, que
nos determina diariamente em nossa própria carne. Assim como Costello,
Não quero viver em um mundo em que um homem usando botas tira vantagem do
fato de que você está parindo, indefesa, incapaz de escapar, para pisoteá-la até a
morte. Tampouco quero viver em um mundo no qual meus filhos ou os filhos de
qualquer mãe sejam arrancados dela e afogados porque alguém decidiu que eles
são demais (idem, p. 23).
Por outro lado, diferentemente dela, esta para mim não é uma questão de
maternidade, de um sentimento atravessado e experimentado por fêmeas que têm
filhos. E, ainda que admire a sua pura resposta, uma resposta codificada, claro,
por sua condição de mãe, mas ainda assim uma resposta que, segundo Costello,
não vem do cálculo, e me reconheça tendo também respondido, não consigo não
deixar de pensar em meu caso particular, no tipo de relação que, após a resposta –
ou habitando-a mais demoradamente –, desenvolvi com Bruxo e Nausicaa. O
vocabulário da adoção não me parece suficiente pois o percebo contaminado por
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Nausicaa existimos como humana e gatos previamente, com tudo o que tais
categorias trazem consigo, com responsabilidades e capacidades distribuídas
previamente; mas é no fenômeno, ou melhor, em todos os fenômenos de que
fazemos parte que passamos a existir como entidades separadas com
competências e responsabilidades distintas e não-simétricas. Não há de antemão
nem um “eu” nem um “eles”, mas emaranhamentos dos quais podemos emergir
eu, Bruxo e Nausicaa em situações particulares segundo relações materiais-
semióticas. Somos ambos “sujeitos e objetos uns para os outros em intra-ação
fluente” (Haraway, 2008, p. 71).
Ademais, diz Haraway, “se esta estrutura de relações materiais-semióticas
se quebrar ou se não se permitir que ela nasça, então nada resta além da
objetificação e da opressão” (Haraway, 2008, p. 71). E, ainda que a frase anterior,
de When Species Meet, surja em um contexto referente a animais de laboratório e
cientistas, a filósofa sublinha que “animais em todos os seus mundos são respons-
áveis no mesmo sentido em que as pessoas o são” (idem). Isso vai de encontro à
infantilização dos animais e ao vocabulário da adoção. Em meu caso, respondi aos
gatos quando nos vimos pela primeira vez; mas, não menos importante, eles
também responderam a mim. Somos responsáveis diante uns dos outros, somos
outros uns para os outros, surgidos de emaranhamentos nos quais cortes são
29
2.3.
“Expulsos do espaço urbano”
outro: todos haviam encontrado humanos que os acolheram em suas casas. Todos
menos um: este filhotinho que ela me trazia, recusado por ser, em suas palavras,
“muito feio e antissocial.” Não posso deixar de comentar que, à guisa de
explicação do motivo da feiura do bichinho, ouvi insultos racistas que, dirigidos a
um gato de pelagem preta, deram a ver a perniciosidade e pervasividade, capazes
de atravessar barreiras específicas, da questão racial na sociedade em que
vivemos.
Chamamos esse gato, pequenino, barrigudinho e apavorado, de Batatinha.
Batatinha chegou aqui como o fruto de uma situação marcada por questões de
raça, classe e gênero, oriundo de uma família de gatos errantes que, tendo já
nascido pobres, não eram exatamente livres. Crianças andavam atirando pedras
contra a gata-mãe e seus filhotes, conforme fiquei sabendo, o que provocou a
pressa da vizinha e da veterinária em capturá-la, esterilizá-la e desfazer aquela
pequena e precária família na esperança de uma vida melhor para cada um deles.
Batatinha ficou por último, o mais ligado à mãe; misantropo, me disseram,
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limpando ao lado de Batatinha, que até ali não era muito cioso de higiene
corporal. Aos poucos o filhote passou a imitar o mais velho até mostrar o mesmo
cuidado com a limpeza. Nessa época, o mais impressionante no que dizia respeito
ao modo como se desenvolvia a relação dos três era a argúcia social de Batatinha.
Era como se ele se soubesse minoria, mais fraco, e tivesse lançado mão de uma
estratégia de submissão para conquistar os donos do território. Uma estratégia
tremendamente bem sucedida, é preciso frisar; de intruso alarmante passou
depressa a protegido.
Não pude deixar de pensar que ali se elaborava uma pequena política, com
nosso apartamento, o mundo deles, fazendo as vezes de palco de uma reduzida
cidade onde encontraram abrigo. A imagem do refugiado político então retorna. A
minha cidade, humana, é hostil à presença de animais errantes; há muito tempo
que, por diferentes processos civilizatórios, os animais tornaram-se presenças
indesejáveis nas ruas. A antropóloga Nádia Farage, em um artigo intitulado “No
collar, no master: workers and animals in the modernization of Rio de Janeiro
1903-1904,” conta que, no começo do século XX, epidemias e surtos de doenças
como varíola, febre amarela e peste bubônica castigavam o Rio de Janeiro,
causando enormes perdas humanas e materiais para a cidade, o que levou o
governo federal a apontar Oswaldo Cruz, que havia estudado no Instituto Pasteur,
32
Já havia, no Rio de Janeiro, pelo menos desde 1838, leis que regulavam e
proibiam a livre circulação de bichos pela cidade – estabelecendo ali a própria
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São o “sofrimento e a morte dos animais” eles mesmos que são escondidos “das
sensibilidades urbanas” (idem, p. 4).
Em Curitiba, embora a Câmara Municipal tenha ordenado ainda em 1864
que o abate de animais se realizasse em matadouros públicos ou particulares,
apenas em 1878 o primeiro matadouro foi inaugurado, conforme contam as
pesquisadoras Zulmara Clara Sauner Posse e Elizabeth Amorim Castro, autoras do
livro Os 75 anos do Matadouro Municipal de Guabirotuba. Arquitetura,
urbanização e higienismo. Por “estar classificado como estabelecimento
‘perigoso, insalubre e incômodo’” (Castro e Posse, 2015, p. 13; grifo meu), a
33
Não foram, porém, apenas os animais de criação o alvo das leis que
procuravam edificar um novo mundo: as espécies companheiras, gatos, mas
principalmente cachorros, também se tornaram ilegais. O recolhimento de cães e
gatos errantes com vistas à eutanásia vigorou, no Rio de Janeiro, pelo menos até
1997; em Curitiba, até 2005. É possível ler nos jornais do começo do século XX
notícias que exaltavam o trabalho das carrocinhas por livrarem as cidades de seus
indesejados invasores, como esta, de 2 de setembro de 1907: “A Câmara
Municipal continua a pega dos cães vagabundos que infestam as ruas de nossa
capital. Às 9 horas da manhã de hoje a carrocinha gaiola passou pela rua 15, já
quasi abarrotada de rafeiros” (A República, 02/09/1907, p. 2). Ataques políticos,
como o de Marins de Camargo a João Menezes Dória, que aparece em destaque
na primeira página de A República em dezembro de 1919, lançavam mão da
figura do cão errante como um bicho pestilento e agressivo, diante de quem se
deveria reagir com violência:
O que faria uma pessôa sensata e de responsabilidade que ao passar por uma rua ou
uma estrada fosse inopinadamente atacado por um cão surrado e lazarento?
Certamente continuaria o seu caminho sem voltar siquer o olhar para o mastim
nojento, enquanto este se limitasse a ladrar e a ganir. [...] Quando o rafeiro tem a
ousadia de querer nos morder os calcanhares, dá-se-lhe um ponta de pé na
focinheira asquerosa ou quebra-se-lhe uma bengala no sovado lombo (A República,
24/12/1919, p. 1).
34
normalização do saber” (Foucault, 2005, p. 291), mas também age no domínio das
“relações entre a espécie humana [...] e seu meio de existência [...] na medida em
que não é um meio natural e [na medida] em que repercute na população [...]; um
meio que foi criado por ela” (idem, p. 292). Foucault termina decretando: “Será
essencialmente o problema da cidade” (idem). Em um outro artigo de Farage,
pertencente ao mesmo projeto de “No Collar, No master”, intitulado “De ratos e
outros homens: resistência biopolítica no Brasil Moderno”, a autora se declara
inspirada pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha para realizar “uma
antropologia histórica que convida a contemplar o sentido em escolhas e projetos
políticos que, dissidentes ou mesmo derrotados, vivem nas entrelinhas das
histórias oficiais” (Farage, 2012, p. 2). É possível resumir a proposta de Farage
como uma tentativa de recuperação da situação dos animais nos projetos
biopolíticos que fundam a cidade moderna, especificamente o Rio de Janeiro, e
sua relação com as lutas populares – principalmente as situadas no movimento
anarquista de cunho naturista – no mesmo contexto.
Nos dois textos supracitados, a antropóloga traça as aproximações e
acoplagens multiespecíficas das resistências ao biopoder no momento em que a
cidade moderna é criada; em “No Collar, No Master”, o foco se encontra na
retirada dos animais dos espaços públicos conjuntamente ao bota-abaixo que
35
Acredito, assim, que ter respondido aos gatos ao trazê-los para viver comigo
foi um ato político. Significou, para eles, a possibilidade, não de uma vida
perfeita, não da melhor vida que poderiam ter absolutamente, entre todas as
possibilidades imagináveis, mas de uma mudança em sua condição dentro da
cidade. De pragas e strays tornaram-se companheiros meus. E, ainda que seja um
torção, não posso deixar de narrar aqui sua história como a de perseguidos
(bio)políticos refugiados em minha “pequena unidade familiar”, neste ínfimo
36
2.4.
Indistinção e indiscernibilidade
É possível que, para Agamben, a vida nua seja mesmo equivalente à vida
animal, mas apenas àquela parte animal presente no homem e não aos outros
viventes assim chamados. Logo no início de Homo Sacer. O Poder soberano e a
Vida Nua I, quando faz a distinção (segundo ele, oriunda do pensamento grego
antigo) entre zoé, a “vida natural”, compartilhada por homens, animais e deuses, e
bíos, a “vida qualificada”, fica claro que a segunda é prerrogativa dos humanos
(cf. Agamben, 2002). Sendo a raça humana a única que existe ao mesmo tempo
enquanto zoé e bíos, diz respeito apenas a ela o “conflito político decisivo, que
governa todos os demais conflitos” (Agamben, 2007, p. 146), que faz com que a
política ocidental seja “co-originariamente biopolítica”, a saber, o conflito “entre a
animalidade e a humanidade do homem" (idem; grifo meu), conforme explicitado
pelo autor em O Aberto. Isto é, para Agamben a biopolítica envolve a questão
animal apenas na medida em que os humanos participam deste tipo de vida.
Exclusiva possuidora de qualificadores, somente a vida humana, quando roubada
destes, tornar-se-ia vida nua. Que a vida dos animais outros que humanos seja
sempre zoé não poderia ser para eles nenhuma tragédia: ao contrário da
antropogênese – o “tornar-se humano do vivente”, que “completa e custodia a
superação da phýsis animal em direção à história humana” (idem, p. 145) –, não
37
exclusão e a inclusão: loup garou, lobisomem, ou seja, nem homem nem fera, que
habita paradoxalmente ambos os mundos sem pertencer a nenhum (idem, p. 112).
10
Agamben, na conclusão de Estado de exceção, afirma que este “hoje, atingiu exatamente
seu máximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim,
impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito
externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente,
pretende, no entanto, ainda aplicar o direito” (Agamben, 2004, p. 131). O USA Patriot Act, que se
seguiu aos atentados às Torres Gêmeas em 2001 e permite ao Estado deter estrangeiros suspeitos
de atividades consideradas um risco para a segurança nacional norte-americana, é um exemplo de
ordem que apaga o estatuto jurídico dos presos/acusados, lançando-os em uma zona de indistinção:
não têm garantidos nem seus direitos segundo o ordenamento jurídico norte-americano tampouco
aqueles dos prisioneiros de guerra segundo a Convenção de Genebra (cf. idem, p. 14). Nesse
sentido, Agamben concorda com a filósofa Judith Butler, para quem o detido de Guantánamo
constituiu “a vida nua em sua máxima indeterminação” (idem).
38
em lobo e lobo que se transforma em homem: vale dizer, banido, homo sacer”
(idem, 2002, p. 112). Em O Aberto, ao declarar que já não há mais tarefas
históricas destinadas ao homem, Agamben exprime a crença de que o que está em
jogo atualmente – o livro foi publicado em 2002 – é “assumir como tarefa a
própria existência fática dos povos, quer dizer, em última análise, sua vida nua”
(Agamben, 2007, p. 140; grifo meu), explicando em seguida a aporia em que nos
encontramos hoje, do seguinte modo:
[...] não há outra opção, para uma humanidade tornada novamente animal, que a
despolitização das sociedades humanas através do desenvolvimento
incondicionado da oikonomía, ou seja, a assunção da vida biológica mesma como
tarefa política (ou melhor, impolítica) suprema (idem, p. 140-141).
seu conceito de devir, sobretudo tal como ele aparece em Kafka, pour une
littérature mineur e Mille Plateaux. Devir é um tipo de relação intensiva,
“movimento que desterritorializa ambos os termos da relação que ele cria,
extraindo-os das relações que os definiam para associá-los através de uma nova
conexão parcial” (Viveiros de Castro, 2015, p. 184), “movimento instantâneo de
captura, simbiose, conexão transversal entre heterogêneos” (idem, p. 186),
“diferença na prática” (idem, p. 183), situada sobre “uma economia de afetos
transespecíficos que ignoram a ordem natural das espécies e suas sínteses
limitativas” (idem, p. 187), para usar as palavras do antropólogo Eduardo Viveiros
de Castro. Dizem os autores: “se o devir é um bloco (bloco-linha) é porque ele
constitui uma zona de vizinhança, de indiscernibilidade, um no man’s land [...]”
(Deleuze e Guattari, 2005, p. 91). Mas ali onde Agamben vê o maior perigo,
Deleuze e Guattari situam, de modo quase inverso, uma linha de fuga, aquele
“minúsculo riacho, sempre corre[ndo] entre os segmentos, escapando de sua
centralização, furtando-se à sua totalização” 11 (idem, 2004, p. 94): “uma fibra vai
11
Para os autores, o homem é segmentarizado “por todos os lados e em todas as direções”
(Deleuze e Guattari, 2004, p. 83). Eles então distinguem três tipos de linhas: as molares, duras e
binárias, sobrecodificadoras e nas quais opera o Estado; as moleculares, flexíveis, “de códigos e
territorialidades entrelaçados”; e as linhas de fuga, que decodificam e desterritorializam (cf. idem,
2004, p. 102). As três linhas existem conjuntamente em diferentes configurações, dependendo da
39
limiar, uma porta, um devir entre duas multiplicidades” (idem, p. 33). No livro
sobre o pintor Francis Bacon, ao tratar de seus retratos com cabeças “sem rosto”,
deformadas por “traços animais” produzidos por técnicas de limpeza e escovação,
Deleuze apresenta uma definição de zona de indiscernibilidade entre homem e
animal:
[...] as marcas ou traços da animalidade não são formas animais, mas antes os
espíritos que assombram as partes limpas, que puxam a cabeça, individualizando e
qualificando a cabeça sem um rosto [...] Acontece de a cabeça humana ser
substituída por uma animal; mas não é o animal como forma, é o animal como
traço – por exemplo, um traço trêmulo de um pássaro que gira em torno de si sobre
a parte limpa [...] Acontece de um animal, por um exemplo um cão, ser tratado
como a sombra de seu mestre; ou inversamente que a sombra de um homem tome
uma existência animal autônoma e indeterminada. A sombra escapa do corpo como
um animal que abrigamos. No lugar de correspondências formais, o que a pintura
de Bacon constitui é uma zona de indiscernibilidade, de indecidibilidade entre o
homem e o animal. [...] Não é jamais uma combinação de formas, é antes o fato
comum: o fato comum do homem e do animal (Deleuze, 2002, p. 27-28).
sociedade. Em relação aos centros de poder, as primeiras são sua “zona de potência”, as segundas,
de indiscernibilidade e as terceiras, sua “zona de impotência” (cf. idem, p. 108); o poder age nesta
zona de impotência procurando traduzir seus fluxos sobrecodificando-os em binarismos. Essas
linhas compõem ainda “estados simultâneos da Máquina abstrata” (idem, p. 104) – do lado molar,
seu polo sobrecodificador, onde está o aparelho de Estado; do lado das linhas de fuga, seu polo de
mutação. No meio, o “tecido molecular onde mergulha” (idem, p. 108) o agenciamento operado
pela máquina abstrata de sobrecodificação sobre os fluxos e quanta das linhas de fuga.
40
Estado de exceção, onde habita a vida nua, para Deleuze e Guattari é o meio de
uma política: “Há toda uma política dos devires-animais [...] [que] se elabora em
agenciamentos que não são nem os da família, nem os da religião, nem os do
Estado” (idem, 2005, p. 30). O homem-lobo, mas também “os homens de toda
animalidade”, escapam ao Estado, à filiação, formando alianças com o fora. O
tipo de devir-animal que se encontra em certos grupos africanos, eles dizem, não
são da ordem de “relações simbólicas homem-animal tal como aparecem nos
aparelhos de Estado” (idem, p. 24, n. 9). Talvez seja injusto com Agamben
aproximar a sua zona de indistinção, onde se urde a vida nua, desse tipo de relação
simbólica; mas há uma diferença fundamental entre o animal ou a animalidade tal
como concebida por ele e por Deleuze e Guattari. Para o primeiro, a animalidade é
um tipo de vida distinto da humanidade, cuja separação, parece, se liga à questão
da posse da linguagem. No capítulo “Máquina antropológica”, de O Aberto, a
linguagem surge como elemento naturalcultural que marca a fronteira entre
homens e animais12 e ao mesmo tempo cria a figura espúria do homem-animal. A
máquina antropológica, agindo através de oposições do tipo homem/animal, acaba
produzindo aí um “tipo de estado de exceção, uma zona de indeterminação” que,
12
Para um estudo sobre a relação entre humanidade, animalidade e linguagem em
Agamben, cf. Fausto, 2012.
41
(idem, p. 44).
que se pode dizer que “há mais diferença entre um cavalo de corrida e um cavalo
de trabalho do que entre um cavalo de trabalho e um boi” (idem).
Foi inspirada por esta afirmação de Deleuze que imaginei se não seria
possível “profanar” o conceito de vida nua de Agamben e empregá-lo em relação
aos animais. Como Farage, acreditava que a vida dos animais, de muitos animais,
era por demais assemelhada à vida nua, esta que se mantém nas bordas da política,
sendo excluída mas imediatamente capturada por ela, e sobre a qual o poder
soberano se exerce de maneira terrível. Isso seria uma torção do conceito, pois
suporia um deslocamento da ideia de zona de indistinção. Escrevi então um e-mail
ao próprio Agamben, na tentativa de verificar a possibilidade de uma vida política
dos animais e sua relação com o Estado. A troca se deu assim:
JF: […] há algo que realmente me intriga: há uma vida nua dos animais? Ou a vida
nua é um conceito que apenas se aplica a humanos? Penso, por exemplo, na
diferença entre cavalos selvagens e cavalos de carroça, ou na diferença entre
elefantes livres e elefantes de circo; estes últimos devem ser “quebrados” antes de
serem colocados para trabalhar. [...]
GA: [...] Obrigado por sua mensagem. A vida nua é algo produzido pelo poder e,
na sua perspectiva, deveríamos pensar em uma ação do poder sobre os animais, o
que é talvez concebível. Mas não existe uma vida política dos animais, então, nesse
sentido, a vida nua não parece possível para eles. [...] (Comunicação pessoal por e-
mail, datada de 12/05/2013. Tradução minha).
43
Tal resposta foi como um balde de água fria. Talvez, se não tivesse escrito,
insistido na pergunta, poderia ter feito uso do conceito com bons resultados, como
Farage. E mesmo depois da troca de e-mails, poderia ter mantido esse uso, apesar
do autor, explicando as suas e as minhas limitações e questões, articulando um
acesso possível. Teria sido um método válido, acredito. Mas preferi não fazê-lo. O
que essa troca deixou claro, como em um golpe, foi a recusa absoluta, mesmo por
parte de um autor contemporâneo e considerado sensível ao modo como a política,
a biopolítica, se exerce sobre populações minoritárias, à existência política dos
animais. Essa correspondência aconteceu em maio de 2013, quatro meses depois
de Bruxo e Nausicaa terem vindo morar comigo, oito meses antes da chegada de
Batatinha. Agamben me barrava, ou melhor, nos barrava, naquelas poucas linhas,
ao dizer “mas não existe vida política dos animais”, não existe uma relação
política. Afetiva, provavelmente, mas não política.
Talvez, pensei, ele estivesse certo, e toda a minha imaginação acerca dos
gatos que vivem comigo como refugiados políticos ou da gata-mãe de Bruxo e
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alguém como eu consideraria como pacientes do poder, mas jamais como sujeitos
ou agentes políticos.
2.5.
Amizade e pastoreio
Volto a olhar para os gatos que vivem comigo, Bruxo, Nausicaa e Batatinha,
para sua vida restrita em nosso apartamento. Penso nas causas dessa restrição. No
alimento que recebem aqui, produzido por uma multinacional especializada em
pets. Em seus corpos atléticos e mutilados – castrados. Na quantidade de pelo que
cai desses corpos e fez mudar o regime de limpeza da casa. No problema que
experimentam amigos alérgicos, que não podem passar muito tempo aqui. Nos
cigarros que procuramos acender longe deles – já há animais demais como
cobaias de experimentos realizados pela indústria do tabaco – e em seus protestos
ao serem retirados de algum dos cômodos, protestos por vezes bem sucedidos,
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fazendo-nos mudar de ideia e deixar que ali permaneçam. Na relação que travam
os gatos entre si, comigo e com meu companheiro. Nas suas e nossas preferências.
Nos rituais que criamos juntos, no repertório de gestos que aprendi, ensinei e co-
inventei. Na economia de afetos, ciúme, raiva, ternura. No modo como me
interpelam. Nos limites que cada um de nós encontra diante do corpo e da vontade
dos outros. Volto meus olhos mais uma vez para o apartamento no qual vivemos,
penso nos espaços que instauramos à base de negociações assimétricas.
Haraway lembra que “companheiro vem do latim cum panis, ‘com pão’.
Comensais à mesa são companheiros. Camaradas são companheiros políticos”
(Haraway, 2008, p. 17). Estaria ela se contrapondo aqui propositalmente a
Aristóteles, que, na Ética a Nicômaco, nega que, no caso dos homens, viver junto
(syzaō) seja comer no mesmo lugar, como no caso do gado (cf. Aristóteles, 1894,
1170b)? Comensalidade, responderia Aristóteles a Haraway, não constitui
comunidade ou companheirismo entre humanos – é possível mesmo que o
filósofo jamais tenha imaginado a estranha possibilidade de uma comunidade
multiespecífica. Para ele, viver junto entre homens diz respeito à amizade
específica; um pouco antes, na mesma passagem, o filósofo afirma que todas as
nossas ações são acompanhadas por um sentir (aisthánomai, idem, 1170a): sente-
se que se vê ao ver, sente-se que se pensa ao pensar, em suma, “ser é sentir e
45
pensar” (“τὸ γὰρ εἶναιἦν αἰσθάνεσθαι ἢ νοεῖν”, idem). Há um outro nível dessa
sensação ou percepção, entretanto, aquele em que se experimenta junto, a saber,
sentir junto ou com-sentir (synaisthánomai), algo que passa pela amizade:
“também para o amigo se deverá com-sentir que ele é e isso vem a ser no viver
junto e no compartilhar discurso e pensamento [κοινωνεῖν λόγων καὶ διανοίας]”
(idem, 1170b). Em outras palavras, sente-se o amigo em si ao conversar e pensar
conjuntamente e é isto que constitui o viver junto humano. É nesse sentido,
continua Aristóteles, que os homens convivem, diferentemente do gado, para
quem basta comer do mesmo pasto. Agamben, no ensaio “O amigo”, debruça-se
sobre esse mesmo trecho – é dele a tradução de synaisthánomai como com-sentir
– para apontar aí uma “base ontológica” (Agamben, 2009, p. 86) da amizade;
exclusivamente humana, ela consistiria como que numa extensão da sensação de
ser, a de com-sentir que o amigo é. Sentir ser diria respeito sempre a mais que um
e, seria, assim, dividido: “o ser mesmo é [...] não idêntico a si, e o eu e o amigo
são as duas faces – ou polos – dessa com-divisão” (idem, p. 89). Daí se segue,
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quer dizer qualquer outro. O amigo, então, como héteros autós é uma espécie de
parte constitutiva ou ligada ao mesmo (eu), aquele a partir de quem o mesmo é. A
filosofia, que traz o amigo em seu próprio nome, como gosta de lembrar
Agamben, e a “sinestesia política originária” (Agamben, 2009, p. 92) que vem ao
mundo pelo com-sentir de um outro mesmo em mim, excluiriam assim todos os
“quaisquer outros” – tudo aquilo que, para Agamben e talvez para Aristóteles,
constituem inimigos ou outros não binários. Não são só os animais que estariam
fora da política, mas todos os outros fora de relações de par, todos os que não são
meus amigos. Isto é, para Agamben, pode haver política entre amigos em Atenas;
mas e a relação com as outras cidades? Seria barbárie, administração, economia?
Por outro lado, o que se tornaria a filosofia diante dos outros?
Deleuze e Guattari respondem a uma pergunta parecida em O que é a
filosofia?:
O não-filosófico está talvez mais no coração da filosofia que a própria filosofia, e
significa que a filosofia não pode contentar-se em ser compreendida somente de
maneira filosófica ou conceitual, mas que ela se endereça também, em sua
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Para os autores, a filosofia diz respeito, e mais que isso, fala a não-amigos (não-
filósofos): “A filosofia precisa de uma não-filosofia que a compreenda, ela precisa
de uma compreensão não-filosófica” (idem, p. 278). Essa não-filosofia, para usar
o vocabulário grego, é da ordem de um állos, não de um heteros, “não [...] de seu
negativo como começo, nem como fim no qual seriam chamadas a desaparecer
realizando-se, mas em cada instante de seu devir ou de seu desenvolvimento”
(idem). Não se trata, pois, de um negativo, de um par natural ou de um “outro
mesmo” mas, sendo da ordem do devir, “da intrusão de um fora” (Zourabichvili,
1997, p. 2), como o filósofo François Zourabichvili explica o encontro disparado
por um outro outro. Ele vai ainda além ao dizer que só se encontra em sentido
forte o que não se é, ou seja, o não-humano (cf. idem) e usa uma fórmula parecida
com a aristotélica, mas com termos diferentes, para explicar o movimento muito
diverso daquele que constituiu o viver junto humano, o do devir-animal deleuzo-
guattariano: “sentir como sentimos que [o animal] sente, [...] senti-lo sentir em
nós” (idem, p. 9). Uma tal possibilidade, a de talvez com-sentir com um animal,
não é sequer pressentida por Agamben em sua interpretação de Aristóteles. Há
uma divergência fundamental, portanto, entre Agamben e Deleuze e Guattari, que
repousa sobre a própria ideia do que constitui a filosofia. Ação entre amigos ou
47
relação constante com o fora? Mais uma vez, o conceito de devir abre uma
promessa de relação que não encerra a política nos confins da humanidade – ou de
sua amizade. Não parece mais tão impossível que comensais, companheiros ou
inimigos possam conviver filosófica e/ou politicamente.
Retornando a Agamben e sua aliança com Aristóteles, com quem o
italiano trava uma espécie de amizade atávica, fica claro que o primeiro não fazia
uma afirmação original ao dizer que não há vida política dos animais. Na verdade,
ele apenas se inscrevia numa longa linhagem, majoritária, da história da filosofia.
Sua recusa encontrava mais uma vez o grego, desta vez em uma célebre passagem
da Política, quando este associava política e linguagem para, ao recusar a segunda
aos animais, conferir um excedente da primeira aos homens13:
É óbvio por que o homem é um animal político em maior medida que qualquer
abelha ou outro animal de bando. A natureza [φύσις], como dizemos, não faz nada
em vão, e apenas o homem entre os animais possui o discurso [λόγον δὲ μόνον
ἄνθρωπος ἔχειτῶν ζῴων]. A voz [φωνὴ], é verdade, é um indicativo de prazer e
dor, e é por isso que os outros animais também a possuem; pois a natureza destes
se estende até aí, ter sensações de prazer e dor e indicá-las uns aos outros. O
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discurso, por outro lado, serve para deixar claro o que é benéfico e o que é
prejudicial, e assim também o que é justo e o que é injusto. Pois por contraste com
os outros animais o homem tem esse próprio: somente ele tem o sentido de bem e
mal, justo e injusto etc. Uma comunidade nestes assuntos faz uma casa e uma
cidade [ἡ δὲ τούτων κοινωνία ποιεῖ οἰκίαν καὶ πόλιν] (Aristóteles, 2002, 1253a;
tradução modificada).
13
O homem não é o único animal político para Aristóteles, embora seja aquele que, por
uma relação com o lógos, o é mais propriamente ou de modo mais pujante. Para outros animais
políticos, cf. Aristóteles, 1837. Para uma discussão sobre a diferença do caráter político humano e
de outros animais, cf. Depew, 1995.
48
dentro do povo espoliado, um favorito do povo que, “por provar carne humana”,
“torna-se lobo” [λύκῳ γενέσθαι] (cf. idem, 565d). Alguém que forma uma “facção
contra os possuidores de propriedades” (idem, 566a), o tirano deixa de ser homem
para se tornar animal; sua gênese é assim descrita por Sócrates:
Quando um líder do povo, tendo capturado a persuasão da multidão, não consegue
se abster do sangue de seus parentes; quando, por costumeiras acusações injustas,
leva ao tribunal e assassina, suprimindo a vida de um homem, e com uma língua e
uma boca ímpias que provam o sangue de parentes, exila e mata, insinuando a
redução das dívidas e uma nova partilha da terra, não é por conseguinte para um tal
uma necessidade e um destino ou morrer na mão de seus inimigos ou tornar-se
tirano e ser transformado de homem em lobo? [τυραννεῖν καὶ λύκῳ ἐξ ἀνθρώπου
γενέσθαι] (idem, 565e-566a).
O lobo antropófago é a figura oposta do filósofo, tão divino quanto pode ser
um homem, e rei no melhor dos governos possíveis, a aristocracia (cf. Platão,
1894, 445d, 473c, 500d). Entre um e outro interpõem-se os cães, a quem são
comparados, por seu temperamento, os guardiães e auxiliares da cidade: “os
auxiliares são como cães sujeitos aos governantes, que são como pastores da
cidade” (idem, 440d). O pior que pode acontecer a eles é que se assemelhem a
lobos, diz Sócrates, e ataquem o gado (idem, 416a) – a quem, obviamente,
corresponde o povo. Há todo um bestiário na República que marca diferenças de
tipo e instaura modelos de interação. É como se as relações na pólis já pudessem
49
de espécies como nossa biologia atual; mas é preciso ir um pouco mais fundo: a
este homem que já é anthropos na imagem animal da cidade corresponde um
homem quase divino na cidade atual (ou na cidade de lógos). É como se o
governante possuísse um excesso de humanidade que o aproxima dos deuses e lhe
permite controlar as modificações dos lobos – lobos-fieis/cães, lobos-
mansos/ovelhas –, evitando o surgimento do lobo antropófago. No limite, se essa
hipótese tem algum sentido, só há para Platão dois tipos principais: pastores e
lobos metamorfos. A divisão política fundamental se assentaria na diferença de
tipo entre humanidade e animalidade, lembrando ainda uma vez que a anarquia
“deve ser completamente removida da vida de todos os homens e dos bichos a
eles sujeitados.” É possível compreender, nesse sentido, que a consequência mais
perturbadora da liberdade democrática seja referente aos animais, pois é a
diferença entre animais e homens, na medida em que os primeiros estão
subjugados aos segundos, o fundamento da politéia.
14
O mito é narrado por diversas fontes; Pausânias, por exemplo, menciona uma crença
segundo a qual, após Licáon, alguém transformado em lobo, caso se abstivesse de carne humana
por nove anos, retornaria a ser homem (cf. Pausanias, 2002, p. 18). Ovídio conta o momento da
metamorfose, do ponto de vista de Zeus: “Ele [Licaón] foge e, aterrado, em campo silencioso,/
ulula, em vão tentando falar; ele próprio/ recolhe a raiva à boca e ávido de mortes/ volta-se contra
o gado e em sangue se compraz/ A veste se converte em pelo e braço em perna;/ faz-se lobo e
conserva algo da antiga forma:/ as mesmas cãs, o mesmo rosto violento,/ o mesmo olhar brilhante
e um furor idêntico” (Ovídio traduzido por Carvalho, 2010, p. 46).
50
ovelhas e bodes os mais comuns, mas também galinhas, bois, porcos, mulas,
asnos e cavalos, são considerados pelo filósofo como animais de bando,
comensais entre si mas não políticos. As abelhas, por sua vez, possuem aquele
caráter político que, na História dos Animais, era definido por uma “atividade
comum” [κοινόν ἔργον] e assim concedido a “homens, abelhas, vespas, formigas,
grous” (cf. Aristóteles, 1837, 488a). Embora Aristóteles dedique muitas páginas
às partes, modos de vida, reprodução e relação dos e entre os animais, inclusive
reconhecendo em alguns deles “uma certa phronesis [...], comunicação mútua,
ensinamento e aprendizado (com outros animais ou com homens), cuidado e a
faculdade de antecipação (EN 1141a26-28, HA 536b17-18, 608a14-19, GA
753a8ff, PA 660a35-b2)” (Aristóteles, 2002, p. 70), não encontrei nesta pesquisa
nenhuma passagem em que o filósofo se tenha dedicado a pensar que tipo de
diferenças poderiam emergir de relações multiespecíficas. Os animais domésticos,
afinal, vivem junto dos homens e trabalham para (ou com) estes; será que não
passariam assim a realizar uma atividade comum? Será que não estariam sendo
governados por um chefe humano? Ou essas relações multiespecíficas seriam
todas estritamente econômicas e incapazes de modificar os termos contidos nelas?
Se for assim, então os animais domésticos, que, pelo uso feito de seu corpo,
ajudavam no “fornecimento de necessidades”, apenas perambulavam como
51
outros por estarem totalmente fora dele. Isto é, a relação com o lógos não apenas
separa dois mundos, o da política mais alta e o “natural” (cuja política, se há, não
está no mesmo nível da outra), mas determina, dentro do ordenamento da pólis, o
lugar de cada um. O problema não é, portanto, simplesmente estar excluído da
política, mas o modo como se é imediatamente capturado por ela.
2.6.
Razão do mestre versus saberes situados
15
Latour, ao descrever sua Constituição Moderna, aproxima-se do filósofo Alfred North
Whitehead e seu conceito de “bifurcação da natureza.” Em O conceito de natureza, Whitehead
critica a tendência moderna de dividi-la em qualidades primárias e secundárias: “o alvo de meu
protesto é essencialmente a bifurcação da natureza em dois sistemas de realidade, os quais,
conquanto sejam reais, são reais em sentidos diferentes. Uma realidade seriam as entidades como
os elétrons, objeto de estudo da física especulativa. Essa seria a realidade oferecida ao
conhecimento, muito embora nessa teoria ela jamais seja conhecida. Isso porque o passível de
cognição é a outra espécie de realidade, a ação coadjuvante da mente. Existiriam, portanto, duas
naturezas: uma é a conjetura e a outra, o sonho” (Whitehead, p. 38). Segundo ele, ainda, “para a
filosofia natural, tudo quanto é percebido encontra-se na natureza [...] Para nós, o fulgor
avermelhado do poente deve ser parte tão integrante da natureza quanto o são as moléculas e ondas
elétricas por intermédio das quais os homens da ciência explicariam o fenômeno” (idem, p. 37).
Em seu livro sobre o filósofo, Isabelle Stengers nota que é imperativo para ele, de modo a evitar a
bifurcação, estabelecer uma pluralidade não hierárquica de objetos: objetos sensíveis (“o som, a
cor, o odor” Stengers, 2002, p. 102), científicos (“em princípio” “aquelas moléculas cujo
comportamento de conjunto explica a propagação disso que percebemos como som”, idem) e
perceptivos (“este pássaro que canta ali, sobre seu galho”, idem). Ela então explica que “afirmar ao
mesmo tempo os objetos ‘sensíveis’, ‘perceptivos’ e ‘científicos’ é recusar todo princípio de
classificação. Este pássaro, eu sei que é ele que canta: isso de que tenho a experiência não se
declara somente uma sucessão de sons mais ‘canto’, e esse canto é produzido por um ser vivo, não
por um corpo material vibrante, e esse ser habita, ele também, o mundo onde eu estou, eu o
percebo enquanto declaro que não estou só. Eu faço parte do mundo desse ser, como ele faz parte
do meu. Não se engana o poeta que celebra o canto do pássaro e o mundo que esse canto celebra.
E o etólogo testemunha contra a bifurcação da natureza quando confia em sua experiência e
procura exibir a significação do canto para o pássaro, chamado à sua fêmea, anúncio territorial,
‘esta é minha árvore’” (idem, p. 102-103).
53
linguagem dos sujeitos falantes de outro” (idem, 1994, p. 61), eles criariam então
uma “hiper-incomensurabilidade” (idem) capaz de neutralizar qualquer tensão ou
passagem entre esses dois mundos.
A filósofa ecofeminista Val Plumwood usa o mesmo prefixo em Feminism
and the Mastery of Nature ao falar em uma “hiperseparação” requerida pelos
dualismos que, segundo ela, “formaram tanto a paisagem política ocidental
moderna quanto a antiga” (Plumwood, 1993, p. 3). Sua análise do conceito de
dualismo dentro do mundo ocidental pode tornar a questão do lugar dos animais
na política mais visível. Um dualismo, Plumwood explica, não pode ser
confundido com uma simples dicotomia, pois o que ele cria é uma diferença
hierárquica: para a filósofa, o ocidente se constituiu segundo uma “lógica do
mestre”, que “inferioriza” os termos que lhe são subordinados “tanto individual
quanto culturalmente, os põe em segundo plano e desvaloriza suas obras, e os
define como a periferia do centro do mestre” (idem, p. 63), que pode ser
condensada no dualismo razão/natureza como uma perspectiva do poder. A partir
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inferior, ainda que esta seja essencial à manutenção do superior, por meio do
direcionamento da perspectiva, de modo que essa atividade apareça como mero
pano de fundo; 2. “a exclusão radical (hiperseparação)”, a escolha e extrapolação
de diferenças entre os termos para que elas se construam como de tipo e não de
grau, resultando em uma polarização incomensurável; 3. “a incorporação
(definição relacional)”, a premissa de que o termo superior é o padrão e o inferior
se define por falta ou negatividade diante dele; 4. “o instrumentalismo
(objetificação)”, a ideia de que o termo superior é um fim em si mesmo e o
inferior é um recurso, um meio, seus fins sendo os fins do termo superior; e 5. “a
homogeneização ou estereotipificação”, a indiferenciação de todos os membros do
termo inferior entre si. É importante observar que o dualismo não cria diferenças
onde elas não existem, mas opera exacerbando-as e interpretando-as de modo a
fixar uma única perspectiva: “O dualismo impõe um quadro que polariza e cinde
em duas ordens de ser aquilo que pode ser conceitualizado e tratado de modos
mais integrados e unificados” (idem, p. 55).
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16
Apesar de o substantivo razão ser feminino em português, mantive o termo masculino
super-herói, para seguir o pensamento de Plumwood (cf. Plumwood, 1994).
55
(idem).
Finalmente, na possibilidade da supressão, isto é, na existência de uma
premissa que não precisa ser enunciada, encontra-se o mecanismo pelo qual a
lógica clássica opera um backgrounding – “no qual se depende da contribuição do
outro para o resultado mas esta contribuição é denegada ou ignorada” (idem, p.
58). Sobre a “supressão da verdade”, Plumwood ainda nota que ela
está intimamente relacionada à outra característica da lógica clássica, a
permutabilidade de verdades, na qual qualquer verdade pode ser substituída por
qualquer outra verdade enquanto preservar propriedades de implicação. Está
também relacionada à característica de que a equivalência material como critério
de identidade preposicional produz apenas uma verdade e uma proposição falsa.
Essa permutabilidade de verdades pode ser vista de modo alternativo como
indicando que uma implicação material exprime um raciocínio instrumental ou
dirigido a um fim, no qual condições como meios são intercambiáveis desde que
elas produzam efeitos ou fins equivalentes (idem, grifo meu).
17
Para uma exposição do conceito de negação na lógica de relevância, bem como suas
diferenças em relação às lógicas clássicas, cf. Routley e Plumwood, 1985.
57
Para Haraway, entretanto, essa é uma solução fácil demais e que, além
disso, priva o feminismo de uma teoria da ciência. Desvelar os modos pelos quais
o conhecimento se constrói não é suficiente para se chegar a uma “melhor
explicação do mundo; não basta mostrar a contingência histórica radical e os
modos de construção de tudo” (idem, p. 187). É necessário, segundo ela, que o
feminismo seja capaz de urdir um
18
Uso aqui corporificado e não encarnado seguindo a própria Donna Haraway, que procura
com as variantes do primeiro termo um conceito de corpo que não se reduza à carne e possa ser
múltiplo, híbrido e sempre em construção.
58
projeto de ciência sucessora que ofereça um relato mais adequado, mais rico e
melhor de um mundo, de modo a nele viver bem e em relação reflexiva e crítica
tanto com as nossas próprias práticas de dominação quanto com as de outros e com
as partes desiguais de privilégio e opressão que compõem todas as posições (idem).
Uma tal “ativação” dos objetos e da natureza tem por consequência que a
objetividade feminista não se insere na “lógica da descoberta”, mas se relaciona
com o mundo por meio de conversações “carregada[s] de poder” (idem, p. 198). O
que Haraway chama de a lógica da descoberta é profundamente baseado em
noções de gênero, como mostrou a física e feminista Evelyn Fox Keller em
“Baconian Science: the Arts of Mastery and Obedience”; para ela, as imagens
usadas por Bacon para ilustrar sua filosofia revelam uma dialética de dominação
com tintas de gênero “que proveu a linguagem a partir da qual gerações
subsequentes de cientistas extraíram uma metáfora mais consistente da dominação
sexual legítima” (Keller, 2005, p. 34). Essas imagens, no que diz respeito à
Ciência, figuram uma união casta, sagrada e lícita entre Intelecto19 (masculino) e
Natureza (feminina), cabendo a cada parte o papel destinado ao gênero de
referência com vistas ao surgimento de uma prole de “heróis e super-homens” (cf.
Keller, 2005); se a Natureza por um lado fornece as regras pelas quais deve ser
dominada, ela é passiva, objetificada, cabendo ao Intelecto a ação que, por meio
19
Intelecto aqui traduz mind com o propósito de manter os marcadores de gênero.
60
20
A interpretação de Keller segue até chegar a uma imagem do Intelecto como
hermafrodita, começando feminino – pois passivo e limpo diante de Deus, que o engravida – até se
tornar efetivamente masculino diante da Natureza: “Nos tempos contemporâneos, o papel explícito
de Deus desapareceu e a fantasia científica tornou-se mais autocontida. Enquanto Bacon era capaz
de dividir os aspectos duais do intelecto científico atribuindo uma dessas funções à relação do
intelecto com Deus ou com a natureza divina, e a outra [função] à Natureza, os cientistas
contemporâneos não o são. Para a maioria dos cientistas hoje, há apenas uma Natureza e apenas
uma mente. O cientista ele mesmo assumiu a função procriadora reservada a Deus: sua mente é
agora uma única entidade, tanto falo como útero. Entretanto, seu parentesco com Bacon sobrevive
na simultânea apropriação e denegação do feminino” (Keller, 2005, p. 42).
21
Há um grande debate e muita disputa em torno dessa passagem e de sua tradução; Fox
Keller cita em seu livro a tradução do classicista Benjamin Farrington, que em The Philosophy of
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Francis Bacon: an Essay on its Developments from 1603 to 1609, with new Translations of
Fundamental Texts, verte o trecho assim: “Venho [...] levá-lo até a Natureza para curvá-la a seu
serviço e fazer dela sua escrava” (Farrington, 1964, p. 19). Críticos da interpretação de Fox Keller
(cf. Le Doeuff, p. 150; Matthews, s/p) costumam apontar um erro na tradução, preferindo termos
menos carregados como dar, recompensar ou ligar. A palavra que para Farrington tem o sentido de
escravidão, entretanto, é “mancipaturus”; mancipatio, em latim, significa “uma transferência de
propriedade [a making over], entregar, transferir de uma coisa a outra; um dos modos de adquirir
posses pela lei civil romana; portanto, também à venda” (Lewis e Short, 1958, p. 1106) e podia se
referir à compra e transferência de escravos, terra e gado (cf. Hunter, 1803, p. 261). O filósofo
Alan Soble, a respeito da mesma passagem, lembra que se trata de um fragmento não publicado e
exorta os leitores a “não levarem [as metáforas] de Bacon muito a sério como tentativas de
manipulação de sua audiência ou como sinais de fumaça de seu inconsciente em ebulição. Elas
são, de modo mais plausível, ‘embelezamentos literários’ antes que ‘uma parte substantiva da
ciência’” (Soble, 1995, p. 212). A filósofa ecofeminista Carolyn Merchant, outro alvo de objeções
por, entre outros, ter argumentado em The Death of Nature, que “muito do imaginário [que Bacon]
usava para delinear seus novos objetivos e métodos científicos são derivados do tribunal e, por
tratar a natureza como fêmea para ser torturada por meio de invenções mecânicas, sugere
fortemente os interrogatórios dos julgamentos de bruxas e os dispositivos mecânicos usados para
torturar bruxas” (Merchant apud Merchant, 2006, p. 518), respondeu aos críticos em “The
Scientific Revolution and The Death of Nature”, no qual conclui que: “os esforços de Bacon em
definir o método experimental foram sustentados por sua retórica e a essência mesma do método
experimental emergiu de técnicas de tortura humana transferidas à natureza. Tais técnicas eram
fundamentais para a dominação da natureza pela humanidade. O conceito de experimento de
Bacon, junto com uma visão mecanicista dos animais como autômatos, legitimou os experimentos
em animais vivos – experimentos que poderiam ser e mais tarde foram considerados tortura.
Através de seu uso de metáfora, retórica e mito, Francis Bacon desenvolveu a ideia do
experimento contido e controlado. Obviamente Bacon não pode ser responsabilizado sozinho pelas
implicações positivas ou negativas ou pelas aplicações de suas ideias. Ele utilizou tendências
existentes em sua cultura e suas ideias foram aumentadas por aqueles que seguiram sua direção. Se
Bacon vivesse hoje ele poderia ou não apoiar a engenharia genética, a produção industrial de
animais e a biotecnologia – em vez de rechear uma galinha com neve para ver se a putrefação
poderia ser interrompida – como métodos de interrogar a natureza. Não obstante, o
desenvolvimento do método científico ele mesmo foi fortemente influenciado pela retórica de
Bacon e por sua visão de interrogação e controle da natureza” (Merchant, 2006, p. 532-533).
61
22
Fudge argumenta que, na obra de Bacon, a passagem da infância até a maturidade e a
subsequente separação do homem da esfera da natureza nunca é completada a contento; ela
conclui que “dentro da lógica de suas ideias, enquanto estabelecia a possibilidade da perfeição
humana baseada na separação entre o homem e o mundo natural, Bacon foi incapaz de remover o
elo humano com esse mundo. Provar uma diferença satisfatória entre as espécies, um ideal
baconiano, era, então, quase impossível. A biformidade [a ideia de que o corpo da Natureza era
formado por uma parte superior e uma inferior, o que se poderia verificar em cada ente, composto
por uma parte mais baixa e uma mais alta – o homem assim teria algo de besta, as bestas algo de
vegetal e assim por diante, numa espécie de grande cadeia do ser] poderia significar um estado de
oposições binárias no universo, mas era também uma admissão da proximidade em relação à besta.
‘Chamar as criaturas por seus verdadeiros nomes’ era exercitar a razão e o domínio sobre eles e ser
inteiramente humano, mas chamar os humanos por seus verdadeiros nomes era reconhecer a
animalidade da humanidade. Finalmente, e de modo inescapável, o homem de Bacon, apesar de
todos os propósitos dentro de sua obra científica, seria sempre pelo menos em parte animal. A
fronteira que Bacon criou para separar o homem da besta por fim revela a inseparabilidade das
espécies” (Fudge, 1999, p. 106). Acredito que a hipótese do hermafroditismo dialético do intelecto
elaborada por Keller e seu acento no gênero talvez seja capaz de lançar alguma luz sobre essa
questão (cf. Keller, 2005).
62
2.7.
Guerras felinas
gatos errantes – aquela categoria que no Brasil, como dizia Farage, foi criada no
âmbito da biopolítica – devem ser erradicados. Os autores constroem seu caso
abrindo o livro com a história da extinção da cotovia-da-ilha-stephen (Traversia
lyalli), supostamente causada pela agência de uma única gata, chamada Tibbles,
que ali vivia com o faroleiro David Lyall. A narrativa desse capítulo tem ares
literários e é escrita em terceira pessoa, num discurso onisciente sobre as
motivações, intenções, sentimentos e estados de espírito de Lyall. A história do
faroleiro obedece a uma construção psicologizante: era um homem que desde
cedo em sua vida nutria um apreço pela ordem – o que o levou a seu amor pela
classificação do mundo natural –, gostava de solidão, era modesto, precisava do
salário que recebia e adorava os pássaros; a instalação do farol na ilha e a
mudança de Lyall para lá são contadas, por sua vez, como uma questão de
necessidade:
As angloexplorações da ilha começaram nos anos 1870, lideradas por oficiais da
marinha da Nova Zelândia que tinham determinado que a instalação de um farol
era necessária para garantir a passagem segura através de canais próximos. Várias
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dormir no colo ou fazer carinhos; como os de sua espécie, e com tanto espaço para
si, tornou-se selvagem muito depressa, bem como sua prole. Em um ano, e mal
tendo sido descoberta, a cotovia-da-ilha-Stephen havia sido extinta pelas garras e
presas de uma família. Mas nem tudo foi tragédia: o capítulo sobre a história de
Tibbles e suas cotovias termina com a notícia de que uma guerra aos gatos foi
declarada, chegando à marca de 100 animais abatidos a tiro em um período de dez
meses, até que, finalmente, em 1925, “a ilha foi finalmente declarada livre de
gatos” (idem, 178). A aventura de Tibbles na ilha Stephens é um conto moral: é
preciso tomar cuidado com os gatos, eles se espalham muito rapidamente e são
capazes de extinguir uma espécie inteira em matéria de meses. É preciso, “da
perspectiva de ecologia da conservação”, Marra e Santella concluem, “remover
todos os gatos livres da paisagem por quaisquer meios necessários” (idem, p.
2505).
Não há motivo para duvidar de que as intenções conservacionistas dos
autores sejam legítimas e fundadas na preocupação com a fauna silvestre a partir
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É preciso frear as soluções que parecem fáceis demais e nas quais a vida de
bilhões de outros estão em jogo. “Quaisquer meios necessários” não parece um
bom caminho para nenhuma prática, por melhores que sejam as intenções de
quem o sugere, por mais vidas, neste caso de aves, que se pretenda conservar. A
“proposta cosmopolítica” de Stengers não pretende construir um cosmos bom e
comum – isso seria, talvez, nas palavras de Haraway, o truque de Deus –, mas
justamente “desacelerar [a sua] construção, [...] criar um espaço de hesitação
diante do que significa dizer ‘bom’” (idem, p.48):
65
Exigir a supressão dos gatos errantes ou livres do mundo seria exigir que
nós, que cultivamos com eles uma relação de milhares de anos, tomássemos uma
decisão mortífera contra eles, como se fôssemos responsáveis diante das aves mas
não dos felinos – que, de fato, matam aves. Até onde se pode ver, entretanto, nem
os predadores nem as presas foram, no livro de Marra e Santella, chamados a dar
sua opinião. Mas, perguntar-se-á, como eles poderiam fazer isso? Stengers explica
que a cosmopolítica opera por meio da criação de uma inquietude entre as vozes
políticas que as faz sentirem “que a arena política é povoada pelas sombras do que
não tem, não pode ter ou não quer ter voz política” (idem). Seu primeiro exemplo
no artigo diz respeito justamente a animais, no caso os de laboratório, as cobaias;
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a autora pede que se deixe de lado as situações mais simples, de puro abuso –
digamos, cobaias de testes cosméticos –, para pensar aquelas outras em que não há
uma resposta simples ou nas quais não há espaço para qualquer resposta que se
pretenda definitiva, como no caso da luta contra uma epidemia. Nesse cenário há
uma miríade de atores com e sem voz diante de quem se deve pensar e frear a
tomada de decisões em nome do “mundo comum”. Não há mundo comum aí que
não se revele danoso a alguém. O que interessa, ela sublinha, não é a criação de
uma escala de interesses ou de seres, na qual uma espécie ou indivíduo valeria
mais que outro ou a urgência de um seria mais intensa que a de outro. Esse tipo de
“colocação em equivalência de tipo utilitarista”, Stengers lembra, “abre-se a todas
as vilanias: ela incita cada um a reenviar a uma conta comum a responsabilidade
das consequências de sua própria medida” (idem, p. 51).
É preciso então uma “ecologia de práticas” de caráter não policial, o que
Stengers chama de etoecologia: ao afirmar a inseparabilidade – mas não a
dependência funcional – entre ethos, o modo de habitar, e oikos, o lugar da
habitação, a autora aponta para uma ecologia política transformacional não
controlada de tipo alquímico. Um ethos não surge necessariamente de um oikos,
“ele será sempre aquele do ser que se revele capaz” (idem, p. 52), mas uma
mudança de oikos considerado como ambiente causa uma mudança imprevisível
66
no ethos: “O ambiente, poder-se-ia dizer, propõe, mas é o ser que dispõe dessa
proposição, que lhe dá ou lhe recusa uma significação ‘etológica’” (idem). Aquilo
a que Stengers convida é uma mudança de oikos com vistas ao surgimento de
novos ethoi: como agiriam os cientistas em um biotério se seus ethoi, que
“parecem ter necessidade de um ambiente asséptico” (idem, p. 52-53) fossem
confrontados com o povoamento deste ambiente pelas consequências que atingem
cada um dos animais utilizados? O que seria dessas práticas caso fosse necessário
levar em conta, a cada experimento, que o que se pratica não é “sacrifício” ou
“abate”, mas o assassinato de alguém? Isto não quer dizer que as experimentações
cessariam, mas talvez seu ritmo diminuísse. Ainda, o que aconteceria se os
animais de laboratório fossem nomeados, conhecidos, lembrados em datas
especiais, se em seu nome estátuas fossem erguidas24, se fossem considerados co-
autores dos fármacos que se produzem com eles, heróis responsáveis pela
erradicação ou controle de uma doença? Esse novo oikos certamente traria
consigo novos ethoi. É nesse sentido que a proposta de Stengers se diz “cósmica”
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(idem, p. 52).
De certa forma, essa proposição se aproxima daquela de Deleuze sobre os
cavalos de trabalho e de corrida e da questão de Spinoza sobre o que pode um
corpo. Em La sorcellerie capitaliste, livro escrito por Stengers com Philippe
Pignarre, eles explicam que
um etólogo digno do nome não tenta definir o animal estudado, dizer “o que é um
babuíno”, por exemplo, mas antes procura descrever e caracterizar aquilo de que
um babuíno é capaz em situações concretas, habituais ou inéditas (Pignarre e
Stengers, 2005, p. 35).
24
Na Rússia, no Instituto de Citologia e Genética da Universidade de Novosibirsk, foi
erigida em 2013 uma estátua em homenagem aos ratos que foram usados por/trabalharam
com/auxiliaram os cientistas em pesquisas genéticas. O escultor, Andrew Karkhevich, comentou a
respeito de sua obra, um rato antropomorfo tricotando espirais de DNA, que “ela combina a
imagem de um rato de laboratório e a de um cientista, pois ambos se interligam ao servir ao
mesmo caso.” (cf. http://boingboing.net/2014/01/17/a-monument-to-laboratory-rats.html e
http://politsib.ru/news/64989)
67
prática, de quê? Uma ciência prática de maneiras de ser. Então eu diria: a maneira
de ser é precisamente o estatuto dos seres, dos existentes, do ponto de vista de uma
ontologia pura (Deleuze, s/d, s/p).
Não se trata, assim, como já não era o caso nos outros autores comentados,
de um abandono ou uma dúvida acerca da ciência, mas de que os saberes não
podem se pretender descorporificados, fora de seu oikos, “independentes daquilo
que [...] [este] lhes impõe levar em conta ou lhes permite, pelo contrário, ignorar”
(Stengers, 2007, p. 53). Em suma, trata-se de sempre revelar e levar em conta as
situações ecológicas, etoecológicas, e de favorecer o surgimento de novas
éticas/etologias pela multiplicação de atores, práticas e consequências no
ambiente.
Para Stengers, evocando Latour, a cosmopolítica enquanto ecologia política
diz respeito não mais a matters of fact (matérias de fato), de cujas “razões
autorizadas” “a situação escapa” (idem, p. 54), mas a matters of concern (matéria
de preocupação), na medida em que as situações devem ser produzidas pela
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coleção “de todos aqueles que são ‘concernidos’” (idem). Não se trata de uma luta
do Bem contra o Mal ou da vitória dos bons, mas de indicar “por onde poderia
passar uma transformação que não deixasse ninguém ileso” (idem, p. 56). Pois
bem, talvez seja possível considerar a questão das “cat wars” em sua expressão na
ilha Stephens uma matter of concern que diz respeito à colonização, isto é, a
colonizadores e colonizados, a Tibbles, seus filhotes e seu faroleiro, às cotovias-
da-ilha-stephen, a Marra e Santella e a todo o povo dos gatos que, através dessa
narrativa, se vê diante de uma guerra de Estado contra si (não se deve esquecer
aqui das políticas públicas de eutanásia que vigoram por todo o globo). Ela se
aproxima da matter of concern que diz respeito aos três gatos que vivem comigo e
a sua situação de refugiados. Retorno então a essa questão, desta vez com o
“murmúrio do idiota” (cf. Stengers, 2007), procurando reimaginar o mundo e
contar outra história, no espírito da sexta das Teses sobre o conceito de história de
Benjamin, que adverte: “também os mortos não estarão em segurança se o inimigo
vencer.” Recomeço, então.
O que primeiro chamou a atenção na narrativa de Marra e Santella foi seu
total desinteresse pela questão colonial; eles omitem o fato de que a população
europeia na Nova Zelândia havia aumentado de 1.000 habitantes em 1831 para
500.000 em 1881. Não é preciso muita imaginação para concluir que a quantidade
68
Stephens que era inteiramente diferente de tudo até aqui conhecido” (Buller apud
Donald et alii, 2010, p. 112). Porque Buller demorou a publicar seu artigo,
aguardando ilustrações que viriam de Londres, e Lyall continuou vendendo os
corpos que sua gata lhe trazia para negociantes que movimentavam todo um
mercado de compra e transporte de animais vivos e mortos a preços altos em uma
corrida pelo status de possuí-los vivos ou pela honra da descrição de uma nova
espécie, foi Walter Rothschild quem, afinal, na posse de nove pequenos cadáveres
supostamente trazidos pela gata de Lyall, pôde anunciar em 1894, no British
Ornithologists’ Club, sociedade fundada um ano após a RSPB, a descoberta da
cotovia, por ele batizada de Traversia lyalli. Rothschild, um colecionador
naturalista e dono de um museu particular, era muito mais rico que Buller, e, por
isso, Henry H. Travers, que havia comprado os nove espécimes de Lyall, os
ofereceu a ele. Em carta datada de 9/10/1894, Travers explica a Rothschild o
motivo de ter oferecido todos os pássaros de uma vez: “As rock wrens são muitos
difíceis de se conseguir, e em pouco tempo não haverá mais nenhuma. Nunca vi
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muitas delas e penso que nunca foram muito comuns” (Travers apud Galbreath e
Brown, 2004, p. 194). Uma outra carta de Travers a Rothschild, escrita quase seis
meses depois, em 7/03/1895, ilustra a relação dos colecionadores e entusiastas
com a fauna nativa.
Espécimes vivos foram vistos apenas duas vezes e, em cada ocasião, a pessoa que
os viu não tinha arma; ela afirmou que [o pássaro] estava correndo por entre as
pedras como um rato, e era tão rápido em seus movimentos que ela não conseguiu
chegar perto o suficiente para golpeá-lo com um pau ou pedra (Travers apud
Galbreath e Brown, 2004, p. 195).
O filho do sr. Lyall me deu um espécime que foi encontrado vivo pelo dono do
gato que pegou os outros, e que seu pai havia colocado em espírito [colocado a ave
inteira em um recipiente cheio de álcool] (idem, p. 196).
homens, sem pensar, cortou o saco e deixou o gato sair. A ilha agora está repleta de
gatos (idem, p. 1999).
três décadas até seu extermínio total não chegou ali como um animal de
companhia, embora a relação de seu povo com o povo que a transportou até a ilha
fosse de cooperação ancestral. Transformar a sua história em uma história contra
os gatos e a favor da biodiversidade, quando houve tantos outros atores
envolvidos na extinção da cotovia, quando a gata sobreviveu por mera
contingência, quando era também a sua vida que estava em jogo é, no mínimo,
reducionista. E no entanto resta o problema: os gatos realmente parecem ter sido a
causa eficiente – ainda que talvez acidental – do desaparecimento dos pássaros.
Que se possa atribuir à colonização a causa final não os apaga enquanto agentes, o
que remete ao problema atual: é possível usar essa história para justificar a
eliminação dos gatos errantes?
Essa não é uma situação simples, mas uma daquelas em que qualquer
solução será danosa a alguém. Entretanto, em vez de aceitar ter que escolher entre
gatos e aves, é preferível hesitar, invocar mais uma vez o idiota. Em sua coluna no
site Psychology Today, o etólogo Marc Bekoff fez um apelo: “com diversas outras
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podem definir sua oposição nos termos fabricados pela alternativa” (idem, p. 41-
42). A falsa escolha é, portanto, fabricada de modo a promover a morte da
política. Não se deve, entretanto, para os autores, parar aí, na denúncia, mas é
preciso “recolocar na política isso que hoje se apresenta nos termos de uma
alternativa infernal” (idem, p. 42). Se é justo chamar a escolha entre pássaros e
gatos de alternativa infernal, então é necessário tratá-la de modo que ela retorne à
política. Isso significa, em primeiro lugar, compreender que não existe um povo
dos gatos, ou aliado dos gatos, contra um povo dos pássaros, ou aliado destes,
como os autores querem fazer parecer. Não há uma guerra nem entre humanos
nem entre gatos e aves para que alguns humanos – não todos, como sempre, mas
apenas aqueles qualificados – arbitrem. Pensar assim é aderir à razão do senhor e
ao saber descorporificado. Isso não significa que não haja problemas e que “o
lobo habita com o cordeiro”; significa pensar para além de políticas estatais de
extermínio de populações; significa pensar e agir de modo prático, reunindo
saberes diversos, diante de e com os animais em questão em cada situação
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2.8.
Habitar o problema
25
O release do livro pode ser encontrado no site da PUP
http://press.princeton.edu/titles/10809.html, bem como nos das lojas que o comercializam.
73
Para os autores e sua editora, as associações de amigos dos gatos, que eutanasiam
um número incontável de animais por ano mundo afora, além de promover
campanhas para que os gatos pets não tenham acesso à rua, para que se instalem
telas de segurança nas residências, que mantêm abrigos onde são acolhidos outro
sem número de gatos indesejados, que reabilitam animais antissociais, que os
esterilizam e imunizam, entre outras atividades, por não defenderem o extermínio
generalizado dos gatos livres, agem de maneira semelhante (inclusive com poder
e influência equivalentes) a corporações como as petroleiras e a indústria do
tabaco. E com os mesmos efeitos nocivos. Mais adiante, no capítulo 8, intitulado
“Uma paisagem com menos gatos livres: melhor para os gatos, melhor para as
aves, melhor para as pessoas”, o seguinte argumento é apresentado:
É abundantemente claro que gatos livres não são a ameaça principal ao futuro dos
pássaros e da vida selvagem. Tanto a destruição de habitat como a mudança
climática e a poluição exercem influência sobre o bem-estar [well-being] de
populações selvagens; se nós, como uma sociedade, esperamos manter essas
espécies para gerações futuras, precisamos agir em todas as frentes para estancar a
maré. Sob a mesma luz, devemos agir em muitas frentes diferentes para reduzir a
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26
Para uma exposição detalhada da prática e seus efeitos, cf. http://www.aspca.org/about-
us/aspca-policy-and-position-statements/position-statement-community-cats-and-community-cat.
74
número de ratos-pretos aumentou de tal forma que passou a ameaçar uma outra
espécie de ave, a andorinha-do-mar-escura (cf. Harper e Bunbury, 2015). Uma
história de como a manutenção da vida é mais complicada e frágil do que sugere
uma decisão régia da subtração de um povo. Mas essas informações não
desenham todo o quadro e a grande quantidade de fatores em questão transborda
do raciocínio apequenado das causalidades simples. Jim Reynolds, ornitólogo da
Universidade de Birminghan, em entrevista sobre o caso ao jornal The Telegraph,
explicou que o sucesso dos ratos diante das andorinhas tem por causa provável a
dieta pobre das aves, que as enfraquece e é causada pela diminuição dos cardumes
na região. A diretora de conservação e pesca do governo da ilha de Ascenção,
Judith Brown, afirmou na mesma matéria não haver dados suficientes para
responsabilizar os ratos pelo declínio do número de andorinhas; segundo ela, a
disponibilidade de peixe seria a causa mais provável. Quanto aos ratos, Brown
explicou que a mudança climática tem favorecido o aumento de espécies de
plantas invasivas que proveem comida e abrigo a eles. A matéria termina,
entretanto, com uma declaração da RSPB atestando já ter conduzido programas de
erradicação de ratos no passado (cf. Knapton, 2016). Mesmo reconhecendo o
fracasso de uma decisão pelo extermínio, retorna-se a ela pois a estrutura de
75
Uma bruxaria desse segundo tipo faz uma breve aparição em Cat Wars sob
a forma a aliança entre a Audubon Society of Portland, entidade conservacionista
cujo foco são pássaros, e a Feral Cat Coalition of Oregon, ainda que se estenda
apenas por uma página. No lugar da oposição propalada pelos autores entre "cat
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people", "bird people", gatos e aves, as duas entidades se uniram há cerca de dez
anos por acreditar que, juntas, poderiam fazer algo de que nenhuma das duas seria
capaz só. Em primeiro lugar, apostam que se trata de uma mesma luta e não de
lados antagônicos; é a partir daí que ficam claros os desafios nada fáceis de como
articular essa luta com os animais e a sociedade humana. A ASP e a FCCO
mantêm juntas o projeto “Cats Safe at Home”, que promove campanhas para
27
Pignarre e Stengers interpretam o capitalismo como um sistema de feitiçaria no qual está
em jogo “vender a alma, perder a alma, ter a alma capturada” (idem, p. 58); “se o capitalismo entra
em uma tal linhagem, é de um modo muito particular, aquele de um sistema de feitiçaria sem
feiticeiros que se pensam como tais, um sistema que opera em um mundo que julga que a feitiçaria
não é senão ‘uma simples crença’, uma superstição, e não necessita então de nenhum meio
adequado de proteção. E, desde esse momento, a relação com os ‘outros’, tomados como
supersticiosos, se encontra transformada. Pois pensar que não se tem necessidade de proteção
revela uma imprudência que para esses ‘outros’ reputados supersticiosos, se aparentaria à mais
assustadora ingenuidade: a seus olhos, o desastre se torna assim previsível. O risco pragmático é o
de aceitar a chance desse desastre, quer dizer, de constituir a questão de nossa vulnerabilidade e de
aprendizagem de precauções necessárias como problema crucial” (Pignarre e Stengers, 2005, p.
59). Uma outra relação entre capitalismo e feitiçaria ou, neste caso, bruxaria, é delineada pela
feminista Silvia Federici em Caliban and the Witch. Women, the Body and Primitive
Accumulation, livro no qual a autora faz uma “descrição da acumulação primitiva” que “inclui (i)
o desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho que subjuga o trabalho das mulheres e
a função reprodutiva das mulheres à reprodução da força de trabalho; (ii) a construção de uma
nova ordem patriarcal baseada na exclusão feminina do trabalho remunerado e sua subordinação
aos homens; (iii) a mecanização do corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres,
em uma máquina para a produção de novos trabalhadores. Mais importante, no centro de minha
análise sobre a acumulação primitiva situei a caça às bruxas dos séculos 16 e 17, argumentando
que a perseguição às bruxas, na Europa e no Novo Mundo, foi tão importante quanto a colonização
e a expropriação do campesinato de sua terra foram para o desenvolvimento do capitalismo”
(Federici, 2004, p. 12).
76
28
Informações sobre o projeto podem ser encontradas no site das duas entidades:
http://audubonportland.org/ e http://www.feralcats.com/; para o trabalho na ilha Hayden, cf. o
relatório de 2015 http://audubonportland.org/files/habitat/2014-hayden-island-cat-report.
77
retirou o projeto, mas não sem acrescentar que voltaria a tentar desenvolver a ilha,
“apenas não agora.29”
Dentre as falas em audiências públicas no decorrer do processo, é
interessante destacar duas, de representantes de dois povos indígenas, ambas
publicadas no site da ASP:
Esta ação impactaria recursos de pesca garantidos por tratados, assim como nossa
visão de restaurar a saúde e a produtividade do rio Columbia. Somos compelidos a
nos opor a esta ação por ela ser contrária aos interesses e esforços na Nação
Yakama de preservar, proteger e aprimorar os trust resource30s do tratado e os
direitos de pesca. As ações propostas por esta anexação fracassam em proteger
adequadamente os recursos do rio e esse é o pilar da oposição da Nação Yakama. O
dano causado a estes valiosos recursos não poderia depois ser desfeito. Os
benefícios ecológicos e valores que o ecossistema de West Hayden proporcionam
são insubstituíveis para a manutenção do funcionamento próprio do ecossistema do
rio Columbia31 (Roger Dick Jr).
A tribo Nez Perce tem trabalhado incansavelmente por muitos anos para proteger e
restaurar as populações de salmão do rio Columbia. A West Hayden Island provê
um habitat importante para o salmão e outras espécies ameaçadas, ameaçadas de
extinção e sensíveis, incluindo a lampreia-do-pacífico. Os habitats como as águas
rasas, a planície de inundação, os pantanais, as pradarias, a praia e a floresta
merecem todos proteção permanente em vez de um desenvolvimento industrial de
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larga escala. A cidade de Portland deveria estar trabalhando para transformar a ilha
em uma área de proteção natural, não para apoiar um terminal marinho para o qual
há pouca demanda. Os prováveis impactos ao salmão, à lampreia e a outras
espécies de importância tribal são simplesmente grandes demais para justificar a
anexação e o zoneamento industrial da ilha32” (Silas Whitman).
29
http://www.oregonlive.com/business/index.ssf/2014/01/port_of_portland_shelves_plans.html.
30
“O termo ‘trust resources tribais’ diz respeito aos recursos naturais, dentro ou fora de
terras indígenas, retidos ou reservados por ou para tribos indígenas por meio de tratados, estatutos,
decisões judiciais e ordens executivas que estão protegidos por uma obrigação fiduciária por parte
dos Estados Unidos” (https://www.fws.gov/endangered/what-we-do/tribal-secretarial-order.html)
31
http://audubonportland.org/issues/habitat/urban/hayden/blog/may18-2013.
32
http://audubonportland.org/issues/habitat/urban/hayden/blog/may17-2013/.
78
ASP e a FCCO, assim como seu trabalho na ilha de Hayden, parece uma história
desse tipo. Sallinger, em entrevista a Marra, discorda dos detratores que acusam a
ASP de, ao abraçar a estratégia de C.E.D., ter “cedido” aos gatos (é curioso
imaginar se o entrevistador não teria acreditado que seu entrevistado fora
enfeitiçado pela gataria internacional que age como as petroleiras e a indústria do
tabaco):
Acredito que estejamos trabalhando diretamente no problema. Não estou dizendo
que sabemos o melhor modo de lidar com o problema da predação felina aqui em
Portland. Mas estamos tentando algo diferente ao colaborar com a FCCO de um
modo totalmente transparente (Sallinger apud Marra e Santella, 2016, p. 2583).
33
“Companheiros não precedem a relação; o mundo é um verbo, ou pelo menos um
gerúndio; mundificação é a dinâmica da intra-ação [...] e intra-paciência, o dar e o receber da
modelação, até o fim, com consequências para quem vive e para quem morre e como” (Haraway,
2011, p. 10).
79
2.9.
Fim de uma colônia
apoio; e durante uma semana, mais ou menos, fui diariamente até a casa levar
água e comida àqueles bichinhos que ali viviam sitiados.
À medida que os dias passavam, mais pessoas acabaram se envolvendo,
curiosamente uma maioria de mulheres. Uma vizinha se compadeceu dos animais
34
A aproximação entre gatos e bruxas é tão pervasiva que chega ao ponto do clichê.
Federici comenta sobre os diabretes ou familiares, animais que seriam ligados a elas, que esse
avizinhamento “sugere que as mulheres estavam em uma (escorregadia) encruzilhada entre
homens e animais, e que não apenas a sexualidade feminina, mas a feminilidade ela mesma
assemelhava-se à animalidade. Para selar esta equação, as bruxas eram muitas vezes acusadas de
mudar suas formas e metamorfosear-se em animais” (Federici, 2004, p. 194). Em The Great Cat
Massacre, o historiador Robert Darnton diz, a respeito das torturas a que os gatos eram submetidos
no começo da modernidade na Europa que, “antes de tudo, gatos sugerem bruxaria. Cruzar com
um à noite em virtualmente qualquer esquina da França era se arriscar a se deparar com o demônio
ou um de seus agentes ou com uma bruxa em um desígnio maligno [...] Bruxas transformavam-se
em gatos de modo a jogar feitiços em suas vítimas. Às vezes, especialmente durante o Mardi Gras,
elas se encontravam em hediondos sabás à noite. Uivavam, brigavam e copulavam horrivelmente
sob a direção do próprio diabo na forma de um enorme gato. Para se proteger da feitiçaria dos
gatos, havia um remédio clássico: mutilar um gato. Ao arrancar seu rabo, cortar suas orelhas,
esmagar uma de suas pernas, arrancar ou atear fogo a seu pelo, quebrar-se-ia seu poder
malevolente. Um gato mutilado não poderia ir a um sabá ou deambular para lançar feitiços.
Camponeses frequentemente golpeavam gatos que cruzavam seu caminho à noite e descobriam no
dia seguinte que machucados haviam aparecido em mulheres que se acreditava serem bruxas – ou
pelo menos era isso que dizia a tradição em seu vilarejo. Aldeões também contavam histórias de
criadores que encontravam gatos estranhos no celeiro e quebravam seus membros para salvar o
gado. Invariavelmente um membro quebrado aparecia em uma mulher suspeita na manhã
seguinte” (Darnton, 1999, p. 92-94). De certo modo essa associação perdura atualmente na figura
popular da crazy catlady, a mulher louca cheia gatos, bruxa velha que vive só e rodeada por
felinos.
80
e passou a alimentá-los nos dias em que minha amiga, já de volta, não podia. Uma
outra mulher, também veterinária e com conexões no setor da prefeitura que dizia
respeito aos animais, passou a nos ajudar. Queríamos, todas, auxílio para capturá-
los e castrá-los e para tanto precisávamos de alguma assistência oficial – afinal, a
casa era propriedade privada. Mas logo surgiu um complicador: uma obra
começou a ser feita ali, anunciando que o lugar voltaria a ser habitado por
humanos. Enquanto isso, nós frequentávamos a calçada diante da casa, onde
passávamos algum tempo todos os dias brincando com os gatos e alimentando-os,
e não demorou para conhecermos a proprietária: ela nos disse que não tinha nem
queria ter nada a ver com os gatos, que os queria fora dali, mas não quis cooperar
permitindo que arapucas (“gatoeiras”) fossem colocadas em sua propriedade.
Depois de um tempo, sequer nos atendia.
Eu e minha amiga conseguimos capturar a gatinha mais sociável de toda a
colônia, a primeira que sempre vinha receber as pessoas que lhes levavam
alimento. Ela era de pelagem preta, parecia ter cerca de seis meses de idade, uma
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A gatinha preta viveu em dois hospitais diferentes e passou por uma série de
procedimentos de ordem respiratória e bucal até ser adotada pela veterinária que
tinha contatos na prefeitura. Hoje vive com ela, o namorado e mais dois gatos. Há
alguns meses foi diagnosticada com FELV, leucemia viral felina. Nunca fui capaz
de responder definitivamente a nenhuma daquelas perguntas que eu própria me
fazia.
Enquanto isso, os gatos permaneciam na casa, a obra chegava perto do fim e
a prefeitura não tinha como ajudar. Um dia, um funcionário realmente dedicado
mas também resignado me explicou que mal havia verba e interesse político ou
social para cuidar dos humanos em situação de rua e me pediu para imaginar
como seria a situação de recursos para animais que não eram sequer silvestres. Ele
então nos emprestou uma gatoeira e isso foi tudo o que conseguimos com essas
negociações. A saída da gatinha da casa realmente causara um rearranjo ali, mas,
além disso, o estresse da obra e outros fatores desconhecidos por nós faziam com
que a colônia diminuísse. Dois ou três filhotes bem pequenos um dia pararam de
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dos errantes mas também alegre de poder ter respondido a esses três. Eles, como
sempre, depois de um tempo, protestavam contra os abraços; preferem tomar a
iniciativa do contato, não gostam de ter seus movimentos restringidos.
Aquiescendo, eu os soltava. À noite, então, subiam em minha cama, aninhavam-se
próximos de mim e caíamos juntos no sono, cada um povoado por seus próprios
sonhos.
***
3.1.
De Monkey Islands e paradoxos
35
Schubert dedicava-se a estudos de comportamento judicial e, no fim dos anos 1970,
realizou pesquisas em laboratórios de zoologia para encontrar o que supunha ser sua base
biológica. Em 1991 ele editou, com Roger D. Masters, o livro Primate Politics, com textos de de
Waal, Jane Goodall, Thelma Rowell, Shirley Strum e Bruno Latour, entre outros. Em seu artigo,
Schubert argumenta que, assim como o comportamento familiar não é estudado por cientistas
políticos, mas por sociólogos, só seria possível falar em um começo de política primata “quando as
unidades de estrutura social tornam-se grandes o suficiente para abranger muitas subunidades
consanguíneas (família estendida) em cooperação ou competição umas com as outras pelo controle
das políticas [policies] que são importantes para o grupo em geral” (Schubert e Masters, 1991, p.
52). Nesse sentido, o autor parece se aproximar de Aristóteles, que diferenciava economia de
política, a primeira dizendo respeito à casa e a segunda, ao Estado – o que, estranhamente, situa a
escravidão fora da esfera política. Ele também adere a uma ideia evolucionista (e primitivista,
além de etnocêntrica, por não considerar diferentes sociedades humanas) de política que vai do
bando até o Estado; o “nível” de complexidade das sociedades primatas, segundo essa
classificação, seria então o mesmo dos humanos de 100 mil anos atrás. A questão do primitivismo
será tratada mais adiante. Schubert conclui com uma exortação do exame comparativo
interespécies, tomando o comportamento político humano como modelo e ápice: “é mais provável
que primatólogos e cientistas políticos descubram um solo comum para seu interesse mútuo na
gênese – e epigênese [...] – do comportamento político através do uso mais consciente da teoria da
evolução, de modo a manter suas observações etológicas em uma perspectiva melhor” (idem, p.
56).
84
depois, “política” passa a ser definida nos termos do cientista político Harold
Lasswell, como “um processo social que determina ‘quem obtém o quê, quando e
como”, o que, tanto em humanos como em “seus parentes mais próximos [...],
envolve blefe, coalizões e táticas de isolamento” (idem, p. 16,1). Chimpanzee
Politics foi escrito a partir das observações do primatólogo a respeito da colônia
de chimpanzés do zoológico de Burgers. O espaço desta colônia, estabelecida em
1971,37 compreende uma ilha de 0.7 hectare rodeada por um fosso – chimpanzés
36
O cientista político John Rodman cunhou o termo “imperativo diferencial” para
descrever esta tendência comportamental: “Todas as variações sobre o tema da virtude humana –
seja ela articulada como a habilidade de pensar, falar, conhecer a justiça, escolher, conhecer e
adorar Deus ou (muito mais tarde) de criar tecnologias – estão enraizadas na pressuposição formal
de que, pelo menos no nível da espécie, alguém torna-se melhor ao maximizar as differentia
espécie-específicas. Para dizê-lo de modo mais forte, as diferenças entre espécies devem ser
maximizadas, e o humano mais virtuoso é aquele que de modo mais completo transcende sua
natureza animal e vegetativa. A existência de uma pressuposição paradigmática de status
axiomático é demonstrada pela tendência quase universal dos autores clássicos mainstream, tanto
pagãos como cristãos, de presumir o Imperativo Diferencial como autoevidente [...]” (Rodman,
1980, p. 54).
37
A famosa colônia foi parar nos noticiários mundiais em 2015 quando uma das fêmeas,
Tushi, nascida ali em 1992, derrubou com um pedaço de pau um drone que filmava a ilha. Um
estudo identificou o uso de 13 ferramentas pelos chimpanzés de Arnhem, sem que isso jamais lhes
tenha sido ensinado – ainda que pudessem observar de longe os humanos que visitam o zoológico,
além de seus funcionários. Um filme de 1984, The family of chimps, mostra os animais atirando
pedras em um falso leopardo colocado lá para testar sua reação, além de usando um toco de
madeira para alcançar as folhas mais altas de uma árvore. O filme foi mostrado aos chimpanzés no
ano seguinte e, segundo o site do zoológico, “todos os chimpanzés assistiram às imagens em
silêncio completo. Pareciam muito interessados. Alguns tinham suas orelhas eretas. Quando, no
85
filme, uma fêmea foi atacada por machos púberes, muitos guinchos [barks] indignados foram
ouvidos, mas era impossível dizer se os chimpanzés de fato reconheceram os atores. Isto mudou
quando Nikkie, que havia morrido um ano antes, apareceu. O macho adulto Dandy imediatamente
mostrou seus dentes em um riso nervoso e correu gritando para o macho adulto Yeroen, seu maior
rival à época. Ele abraçou Yeroen e literalmente sentou em seu colo. Yeroen também tinha um
sorriso incerto em seu rosto. Não houve dúvidas de que os machos haviam reconhecido seu antigo
líder e que a ‘ressurreição’ de Nikkie havia temporariamente transformado os rivais em parceiros
de coalizão novamente” (http://chimpansee.homestead.com/Film.html). Sobre o golpe de Tushi no
drone, cujo vídeo conta com mais de 3 milhões de visualizações no Youtube, van Hoof e Lukenaar
sugerem que foi motivado por curiosidade – de fato, em seguida à queda, com a câmera ainda
funcionando, é possível observar chimpanzés não identificados inspecionando-o por um tempo,
antes de abandoná-lo no chão: “Há uma careta momentânea logo antes e durante o ato do golpe. O
rosto está tenso, os dentes à mostra, mas não há retração dos cantos da boca como em uma cara de
‘medo’, o que teria sugerido que se tratava de um reflexo agonisticamente motivado. A
coincidência precisa da careta facial com o golpe sugere que se trata tanto de um assertivo quanto
determinado empenho de força, homólogo ao que humanos fazem em situações comparáveis” (van
Hoof e Lukenaar, 2015, p. 291).
38
http://chimpansee.homestead.com/arnhemzoo.html.
86
relacionais, parte das quais ocorre em árvores ou mata fechada, longe do olhar dos
primatólogos de campo: “eles não deixarão de notar os resultados das mudanças
sociais, mas muitas vezes irão ignorar suas causas” (de Waal, 1989, p. 21,7). Por
outro lado, em “condições degradantes” como jaulas menores e sem estímulos,
como ocorre em grande parte dos zoológicos, os animais não fariam quase nada
além de “ficar deitados se masturbando entediadamente, andando de um lado para
o outro ou batendo suas costas ou mesmo suas cabeças ritmicamente contra a
parede de sua jaula” (idem, p. 23,8). Confinados em sua ilha, com alguma
inspiração e pouca interação humana – além de uma proporção maior de fêmeas –,
os chimpanzés de Arnhem proveram a matéria necessária para que de Waal
pudesse com sucesso descrever e interpretar seu comportamento como político.
Foi também em um zoológico, e diante de primatas outros que humanos,
que Gregory Bateson foi procurar, para a pesquisa que veio a se tornar o artigo “A
Theory of Play and Fantasy”, de meados dos anos 1950, “os critérios
comportamentais que indicariam se um dado organismo está ou não apto a
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reconhecer que os signos [signs] emitidos por ele e por outros membros da espécie
são sinais [signals]” (Bateson, 2000, p. 179). Bateson estava interessado na
questão da comunicação verbal humana e postulava a possibilidade de ela sempre
ocorrer em níveis abstratos contrastantes, dos quais dois são apresentadas logo no
início do artigo a partir da análise da simples frase denotativa “‘o gato está no
tapete’”: o primeiro, metalinguística, do tipo “‘a palavra gato não tem pelo nem
morde’”, e o segundo, metacomunicativo, como em “‘eu lhe dizer onde estava o
gato foi um ato amistoso’ ou “isto é brincadeira’” (idem, p. 178). A
metalinguística teria como objeto a própria linguagem; a metacomunicativa, a
relação entre os interlocutores. Para Bateson, o reconhecimento de que “signos de
humor” [mood-signs] podem ser sinais – e assim, passíveis de ser “objetos de
confiança ou desconfiança, falsificação, denegação, correção e assim
sucessivamente” (idem) – foi um passo fundamental na evolução da comunicação,
ainda que não tenha se completado sequer entre os humanos, que muitas vezes
respondem automaticamente, por exemplo, “a manchetes de jornal, como se esses
estímulos fossem indicações-objetuais diretas de eventos em nosso ambiente em
vez de sinais arranjados e transmitidos por criaturas tão complexamente
motivadas como nós mesmos” (idem). Seguir-se-ia daí não apenas a invenção da
linguagem entre os humanos, “mas também todas as complexidades de empatia,
87
havia 6 anos, não contava com esse número de indivíduos; segundo Klein e Klein
(1971), em 1966, eram 45. Assim como uma série de outros animais, incluindo
humanos e diversas espécies de insetos (cf. Couzin, 2006; Couzin e Laidre, 2009),
as sociedades atelíneas são de tipo fissão-fusão, isto é, nelas grupos grandes
dividem-se em subgrupos, sendo mais próximas, em termos de fluidez na
formação e manutenção desses subgrupos, daquela dos chimpanzés (cf. Chapman;
Wrangham e Chapman, 1995), a espécie observada por de Waal em Chimpanzee
Politics. Embora pareça exagerado afirmar que os macacos-aranha do zoológico
de São Francisco vivessem em “condições degradantes” como as encontradas em
jaulas, podemos sugerir que, tomando como padrão seu comportamento no habitat
natural e aquilo de que seus corpos de membros longos são capazes, a conjuntura
da Monkey Island estava longe de lhes permitir a melhor expressão de seu modo
de vida. Mesmo assim, Bateson pôde observá-los brincando39:
39
No artigo “Problems in Cetaceans and Other Mammalian Communication”, de 1966,
Bateson narra uma conversa que teve com F.G. Wood Jr. (então diretor do Marine Studios na
Flórida, um oceanário no qual até hoje se pode nadar com golfinhos e onde os animais ainda
vivem em piscinas), a respeito do comportamento de animais confinados em condições
degradantes. Referindo-se a uma fêmea do gênero Tursiops que se mantinha por muito tempo
imóvel ainda que machos a golpeassem pelo lado com suas nadadeiras, Wood Jr. disse acreditar
“que uma das razões pelas quais eles [os cetáceos] não fazem muita coisa em cativeiro é estarem
mortos de tédio a maior parte do tempo. Não há nada de muito interesse em seu ambiente no
tanque, e eu gostaria de sugerir que temos que manipular seu cativeiro de modo muito mais hábil
89
Para o autor, as ações dos animais que brincavam se mordendo mas sem que
suas mordidas significassem [stand for] mordidas de combate e cujos gestos eram
de briga mas sem que estivessem brigando eram uma evidência da existência de
metacomunicação entre eles, isto é, “da troca de sinais que carregariam a
mensagem ‘isto é uma brincadeira’” (idem). To stand for, ele argumenta, é “um
sinônimo próximo de denotar” (idem, p. 180), a brincadeira podendo assim ser
definida: “Estas ações em que agora nos engajamos não denotam aquilo que as
ações que elas significariam denotariam” (idem). Ou, de modo menos abstrato, “a
mordiscada lúdica [playful] denota a mordida, mas não denota o que seria
denotado pela mordida” (idem). Também a relação mapa-território, tal como
formulada pelo semanticista Alfred Korzibski – a saber, “o fato de que uma
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mensagem, de qualquer tipo, não consiste dos objetos que ela denota”, sendo antes
similar à relação que um mapa tem com seu território –, passaria, diz Bateson,
pelo ato da brincadeira (idem). A originalidade desta interpretação está na
postulação de que a “metacomunicação e/ou a metalinguagem” encontrariam na
brincadeira40 um nível pré-verbal, um “importante passo em [sua] evolução”
(idem). A mordiscada lúdica, ainda, ao denotar uma mordida, é, nas palavras de
Bateson, “ficcional41”: “não apenas os animais que brincam não significam [quite
mean] aquilo que estão dizendo, mas também estão usualmente comunicando a
respeito de algo que não existe” (idem, p. 182).
do que fazemos. [...] Cetáceos cativos são como macacos em jaulas. São altamente inteligentes e
altamente desenvolvidos e entediados” (Bateson, 2000, p. 377). Para imagens e uma discussão
sobre o comportamento catatônico de cetáceos confinados, cf. o filme Blackfish (Cowperthwaite,
2013).
40
Bateson fala também na ameaça (em que certos gestos denotam uma ação em um futuro
possível, mas não no momento em que são realizados) e no comportamento histriônico ou no
embuste (a imitação de um signo de humor, por exemplo) como formando, junto à brincadeira, um
“complexo único total de fenômenos” relacionados à “ocorrência primitiva da diferenciação mapa-
território” (Bateson, 2000, p. 181). Em um nível que o autor defere à humanidade, certos rituais
também são localizados neste “campo geral no qual a discriminação é traçada, mas não
completamente, entre ação denotativa e aquilo que é denotado” (idem, p. 182).
41
Brian Massumi afirma, neste mesmo sentido, que a linguagem humana “seria
essencialmente animal, do ponto de vista das capacidades lúdicas que carrega, tão intimamente
vinculada com seus poderes metalinguísticos [...] Deleuze e Guattari não insistiam que é na escrita
que o homem ‘devém-animal’ de modo mais intenso, isto é, entra mais intensamente em uma zona
de indiscernibilidade com sua própria animalidade?” (Massumi, 2014, p. 8). A relação entre
animalidade e literatura e o devir-animal serão tratadas no capítulo 4.
90
falso, ainda resta a possibilidade de que algum dos outros também o seja. Isto
porque, da falsidade de “Todos os enunciados dentro deste quadrado são
inverdades” pode tanto se seguir que “Nenhum dos enunciados é falso”, ou seja,
“ambos são verdadeiros”, como que “Algum dos enunciados não é falso”, ou seja,
“um é falso e o outro é verdadeiro” – compreensão possibilitada pela distinção
entre “alguns” e “todos”, além de “nenhum” e “nem todos” que, segundo o autor,
pareceria impossível para o “pensamento inconsciente ou ‘[de] processo-
primário’” (idem), ocorrendo apenas em “processos mentais mais elevados ou
mais conscientes, que servem no indivíduo não-psicótico para corrigir o
pensamento em branco e preto dos níveis mais baixos” (idem). O pensamento
primário, entretanto, continuaria sempre operando, sendo inclusive o responsável
pela “validade psicológica do enquadre paradoxal da brincadeira” (idem, p. 185).
Mas Bateson é categórico: embora esse processo primário siga operando, a
diferenciação entre brincadeira e não-brincadeira é “uma função do processo
secundário, ou ‘ego’” (idem): “nos processos primários, mapa e território são
equiparados; nos processos secundários, podem ser discriminados. Na brincadeira,
ambos são equiparados e discriminados” (idem). A brincadeira, assim, marca um
“passo adiante na evolução da comunicação” (idem).
91
Retornando aos animais, Bateson conclui dessa discussão que há três tipos
de mensagens em seu comportamento: i. sinais de humor; ii. “mensagens que
simulam sinais de humor” (idem); e iii. “mensagens que permitem ao receptor
discriminar entre sinais de humor e aqueles outros sinais que se parecem com
eles” (idem). A mensagem contida na brincadeira pertenceria a este último tipo e
possibilitaria o surgimento de paradoxos na medida em que “é uma tentativa de
discriminar ou desenhar uma linha entre categorias de diferentes tipos lógicos”
(idem, p. 190). Mas, para ele, ao contrário do que pensa Russell, tais paradoxos
não constituem erros de comunicação, sendo antes os motores mesmos de seu
desenvolvimento:
[...] acreditamos que os paradoxos da abstração devem manifestar-se em todas as
comunicações mais complexas que aquelas dos sinais de humor e que, sem estes
paradoxos, a evolução da comunicação chegaria ao fim. A vida seria então um
interminável intercâmbio de mensagens estilizadas, um jogo com regras rígidas,
sem nenhum alívio trazido pela mudança ou pelo humor (idem, p. 193).
42
Assim, “‘a salada de palavras’ da esquizofrenia pode ser descrita em termos do fracasso
do paciente em reconhecer a natureza metafórica de suas fantasias. No que deveriam ser
constelações triádicas de mensagens, a mensagem que estabelece o enquadre (por exemplo, na
frase, ‘como se’) é omitida, e a metáfora da fantasia é narrada e realizada de uma maneira que
seria apropriada se a fantasia fosse uma mensagem de um tipo mais direto. [...] Com a perda da
habilidade de estabelecer enquadres metacomunicativos, há também uma perda da habilidade de
alcançar a mensagem mais primária ou primitiva. A metáfora é tratada como uma mensagem de
primeiro tipo” (Bateson, 2000, p. 190-191).
93
3.2.
Soberania e patologia
43
Massumi dedica uma longa nota às estratégias anticorrelacionistas de Quentin
Meillassoux e Graham Harman; sobre o primeiro, a ideia de que “o pensamento tem um acesso
direto especulativo ao real” é vista como uma volta a um entendimento “altamente tradicional da
filosofia”, que atribui ao “raciocínio lógico-matemático” “uma vocação universal” (Massumi,
2014, p. 113); sobre Harman, o alvo da crítica é a recuperação de uma outra noção tradicional, a
distinção entre qualidades primárias e secundárias, e sua subsequente atribuição das últimas,
historicamente pertencentes aos sujeitos, aos objetos. Ao criar, por essa manobra, objetos-em-si
em perpétuo duelo com suas “múltiplas qualidades” mantidas no lugar por uma espécie de “‘cola’
mágica [...] que mantém o universo unido” (idem), chamada metáfora, Harman se veria imerso em
uma série sem fim de problemas causados em última análise pelas “pressuposições fundantes do
[seu] empreendimento: a necessidade de uma ontologia baseada na substância e a ideia de que o
objeto é essencialmente retirado [withdrawn]” (idem, p. 114). Massumi segue criticando o projeto
da Ontologia Orientada a Objetos com base na questão da posição: “A falsidade dos problemas é
traída pelo uso conspícuo do ‘nós’ quando se trata de dar conta da percepção e da relação. Que
‘nós’ é esse? O ‘nós’ permanece genérico. O ‘nós’ genérico é sempre um sinal certo de um sujeito
implícito: uma colocação entre parênteses do ato de pensamento à medida que ele ocorre.
Devemos ‘nós’ realmente acreditar que chegar por caminhos intrincadamente tortuosos de volta ao
sujeito genérico humano, agora apoiando a retórica de uma metafísica orientada-ao-objeto, é um
avanço filosófico? Devemos ‘nós’, sujeitos implícitos, hipotecar nossa atividade de pensamento-
ação à metáfora? Anestesiar com éter [etherize] nossos devires relacionais? Que política é essa?”
(idem).
94
autores que teriam sido capazes de “dar conta da presença do humano e ao mesmo
tempo respeitar a autonomia ontogenética do não-humano, reconhecendo a
realidade plena do que jaz para além do humano”. Massumi postula que “o
problema não é pensar o objeto sem o humano”, mas pensar a “implicação do
humano em uma realidade que por natureza o ultrapassa. O problema é o mais-
que-humano [...]” (idem, p. 114).
Por princípio, Massumi localiza a humanidade em um “continuum animal”
(idem, p. 3) no qual a grande questão seria a da “inclusão mútua” dos termos, “a
articulação do modo de inclusão do humano no animal e do animal no humano”
(idem, p. 65). Mas o autor aponta também a possível arbitrariedade na escolha
desse continuum animal como foco ou meio por onde sua pesquisa se movimenta,
quando nem a animalidade nem a vida em geral “podem ser estritamente
diferenciadas do não-orgânico44” (Massumi, 2014, p. 52) e a “lógica da inclusão
mútua” não permitiria excluir todos esses outros universos. Ele figura essa decisão
como uma espécie de “começo pelo meio”, ao modo de Deleuze e Guattari: se na
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44
Para uma discussão acerca da oposição entre vida e não-vida e suas consequências
biopolíticas, cf. Povinelli, 2016. A antropóloga Elizabeth Povinelli nota como há uma articulação
entre ciências humanas e naturais que têm consequências diretas para a vida de povos indígenas
cujas cosmologias não contêm a oposição entre orgânico e inorgânico – principalmente em sua
relação com os Estados nacionais em termos políticos, como, por exemplo, nas decisões sobre
quais entes importam ou não na demarcação e conservação de terras ou nas relações entre
populações e territórios: “o Imaginário do Carbono é o espaço homólogo criado quando os
conceitos de nascimento, crescimento/reprodução e morte são revestidos em conceitos de evento,
conatus/affectus e finitude [...]. Ele procura, itera e dramatiza o fosso entre Vida e aquilo que é
concebido como anterior ou sem Vida” (Povinelli, 2016, p. 760).
95
uma emergência contínua de variação” (idem, p. 52-53). Mas por que então o
continuum animal? Por um motivo “simples e crucial” (idem, p. 52): ele permite
que a discussão se dê muito facilmente em torno da questão da brincadeira, que
vai ser fundamental para o encadeamento de certos conceitos com vistas a uma
discussão política.
Retornando ao evento do zoológico, Bateson, como sugere Massumi, teria
deixado de considerar a natureza dos enquadres em jogo e sua posição neles
enquanto observador. Ao olhar os macacos enjaulados – ou, como vimos mais
acima, em ilhas de macacos – a partir da posição de observador não-implicado, ao
situar-se fora e além de qualquer relação com aqueles animais, o autor
inadvertidamente reforçaria uma “operação rigidamente excludente” (idem, p. 65).
Os enquadres, ele dizia, são mutuamente exclusivos e inclusivos e funcionam
como premissas metacomunicativas. Ora, o desafio que Massumi coloca é o de
levar adiante a teoria de Bateson e aplicá-la à própria experiência desencadeadora
de seu pensamento sobre a brincadeira, qual seja, a (não)-relação entre humanos-
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que a vida e sua evolução criativa são uma só, a política humana é anti-vida”
(idem).
A aproximação entre a teoria da brincadeira de Bateson e a da soberania de
Agamben permitem ainda a Massumi desenvolver conceitualmente os caracteres
anti-devir e anti-vida da política humana como patologias:
Todos os três componentes da política humana – a figura do humano, o fundo
animal contra o qual ela se destaca e a zona de indiferença explorada pelo estado
de exceção através do qual esta diferença estrutural é suspensa – podem ser
considerados patológicos de acordo com os critérios de Bateson (Massumi, 2014,
p. 69).
na forma de uma projeção humana sobre a vida dos animais cativos dotados de
características antropomorfas de um mau tipo. Em outras palavras, os animais
tornam-se “pessoas” no zoológico por uma operação na qual suas especificidades
comportamentais e fisiológicas são negadas em favor de uma identificação com
instituições humanas: romances, celebração de feriados, aniversários, nascimentos
e também de substituições de animais mortos como se fossem novos parentes em
alegre visita. Trata-se assim de uma indiferenciação que nega a agência dos
animais, seu estado de cativos e as particularidades de cada espécie em favor de
uma identificação que é uma imposição ao mesmo tempo psicótica (uma confusão
indistinta entre animais e humanos) e neurótica (a determinação de categorias
inflexíveis: o romance, o aniversário, o feriado, os comportamentos adequados)
(cf. Massumi, 2014).
3.3.
“Algo que foi tornado absolutamente marginal”
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John Berger afirmou, sobre as visitas a zoológicos, que durante elas “você
está olhando para algo que foi tornado absolutamente marginal” (Berger, 2009,
p. 34) e que nessas instalações os animais não são senão “monumentos vivos de
seu próprio desaparecimento” (idem, p. 36). Ao zoológico, ele diz, vai-se só: o
animal não olha de volta, roubado da centralidade de sua vida. Os recintos, por
melhores que sejam, não fazem senão emular de modo pobre e em espaço
reduzido, além de esvaziado de outras espécies, aquilo que seria o seu território;
subtraídos de seu mundo e com o mundo subtraído de si, sem recursos ou agência,
os animais tornam-se dependentes de seus cuidadores e constituem-se como
criaturas eternamente à espera do que sucederá a eles: alimentação, visitas
médicas, a algazarra de visitantes diante dos quais passam a vida expostos. O
autor afirma ainda que, apesar de não querer fazer dos zoológicos um símbolo,
eles “têm algo em comum” com “todos os sítios de marginalização forçada –
guetos, favelas, prisões, manicômios, campos de concentração” (Berger, 2009, p.
36).
O ensaio aqui citado, “Why look at animals?”, publicado em 1980, é
dedicado a Gilles Aillaud, um dos principais pintores da chamada Nova
Figuração, movimento surgido no começo dos anos 1960, centrado na
99
inferior da tela, com apenas um pouco mais que a cabeça visível, olha para fora de
sua cela árida em direção ao espectador (ou ao espaço livre, o aberto?) enquanto
segura as barras de metal com sua mão esquerda. A pose parece reforçar sua
posição de cativo e se assemelha à de presos humanos pelo gesto manual. Os
historiadores Éric Baratay e Élisabeth Hardouin-Fugier comentam, em Zoos:
Histoire des jardins zoologiques en Occident (XVI-XX siècle), a propósito de
Piscine Vide, mas também de Serpent, porte et mosaique (1972), na qual uma
serpente no fundo de seu recinto se confunde com a textura da parede, e de Lion
(1971), onde “o leão é uma rocha” (Baratay e Hardouin-Fugier, 1998, p. 238), que
Aillaud “apresenta os animais reduzidos a elementos de decoração” (idem).
Os dois historiadores situam o pintor em uma onda crítica aos jardins
zoológicos surgida durante os anos 1960 no contexto de lutas anticapitalistas,
anticolonialistas e contra o confinamento, da qual fizeram parte também o biólogo
inglês Desmond Morris, o psicanalista canadense Henri Ellenberger e o jornalista
italiano especializado em prisões e etologia Emilio Sanna, entre outros. Para
Morris, os zoológicos eram condenáveis como uma versão reduzida da própria
cidade: em ambos os espaços, haveria epidemias de patologias nervosas causadas
pela alienação. Ellenberger vê nos zoológicos uma versão do hospital psiquiátrico;
Sanna os considera como “um elemento do universo concentracionário (com as
100
45
Baratay e Hardouin-Fugier comentam que, por uma “especificidade intelectual francesa”,
a questão encontrou pouco eco no país e que mesmo “um Michel Foucault, filósofo das prisões, da
clínica e da loucura, não se interroga sobre o zoológico” (idem, p. 237). Na verdade, embora não
participe da crítica aos zoológicos, Foucault faz uma menção, em Surveiller et Punir, que, apesar
de breve, é poderosa, ao insinuar uma relação entre o panóptico e as coleções reais de animais:
“Bentham não diz se foi inspirado, em seu projeto, pela ménagerie que Le Vaux construíra em
Versalhes, primeira ménagerie na qual os diferentes elementos não são, como era tradição,
disseminados em um parque: no centro, um pavilhão octogonal que, no primeiro estágio, incluía
apenas uma peça, o salão do rei; todos os lados se abriam por grandes janelas sobre sete jaulas (o
último lado era reservado à entrada) onde estavam presas diferentes espécies de animais. Na época
de Bentham, essa ménagerie não existia mais. Mas encontramos no programa do Panóptico o
cuidado análogo da observação individualizante, da caracterização e da classificação, do
ordenamento analítico do espaço. O Panóptico é uma ménagerie real; o animal é substituído pelo
homem, o agrupamento específico pela distribuição individual e o rei pelo maquinário de um
poder furtivo” (Foucault, 1975, p. 204-205). Há ainda uma outra aparição dos jardins zoológicos,
mais enigmática, na obra foucaultiana; em “Des espaces autres”, conferência de 1967, o filósofo
dá como um exemplo de heterotopia lugares que são “espécies de contraposicionamentos [...] nas
quais os posicionamentos reais [...] estão ao mesmo tempo representados, contestados e
invertidos” (Foucault, 2001, p. 1574). Os jardins surgem aí como um dos tipos mais antigos de
heterotopia: “o jardim é a menor parcela do mundo e também a totalidade do mundo. O jardim é,
desde o fundo da Antiguidade, um tipo de heterotopia feliz e universalizante (donde nossos jardins
zoológicos)” (idem, p. 1578). Não fica claro, na passagem, o sujeito dessa felicidade. Embora o
filósofo tenha feito referência a zoológicos essas duas vezes, no fim das contas ele realmente não
voltou sua atenção aos animais lá expostos. A ménagerie não é senão matriz do Panóptico e o
verdadeiro problema está no encarceramento, controle e punição dos homens.
101
46
O primeiro jardim zoológico do Brasil foi inaugurado em 1888, mesmo ano da abolição
da escravidão, no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Era propriedade do Barão Drummond
que, na petição inicial enviada à Câmara Municipal da Corte, em 1884, afirmava desejar “dotar
esta capital com um Jardim zoológico, há muito reclamado como necessidade à capital do Império
não só como motivo de embelezamento, mas principalmente pelos elementos de estudo que tal
estabelecimento proporcionará” (Drummond apud Magalhães, 2005, p. 24), e fazia a requisição de
30 anos de monopólio, além de isenção de impostos. A Câmara lhe concedeu as isenções e 25 anos
de privilégio, fazendo algumas requisições, entre elas, que os animais fossem distribuídos e
instalados de acordo “com as prescrições higiênicas aconselhadas pela ciência” (Magalhães, 2005,
p. 27). O Barão Drummond viria ainda a, em 1892, inventar o jogo do bicho: os bilhetes de entrada
ao jardim podiam conter 25 figuras de bichos estampados. Diariamente, uma caixa posicionada a
três metros de altura na entrada do zoológico era aberta e o bicho vencedor anunciado: aqueles que
possuíam um bilhete com a mesma figura eram contemplados com um prêmio em dinheiro. Diz-se
que o jogo do bicho causou um grande frisson social antes de sair do zoológico para as ruas em
1895, quando foi posto na ilegalidade. O primeiro bicho sorteado, em 3 de julho de 1892, foi a
avestruz (cf. Magalhães, 2005).
102
3.4.
“Tristes filósofos”
47
Os historiadores observam que não foi senão em 1948 que dois zoológicos, o de Anvers e
o de Copenhagen, começaram a transportar animais por via aérea (cf. idem, p. 138). Quanto à
mortalidade, Jean Yves Domalain, captor de animais atuante na segunda metade do século XX e
autor do livro de memórias Fui traficante de feras, estima em “dez o número de animais mortos
para cada um visível no zoológico”; Baratay e Hardouin-Fugier lembram ainda que “entre 1988 e
1991 a taxa de mortalidade [...] para os babuínos e os Macaca fasciculares [espécie muito usada
em laboratórios de pesquisa] da África [foi] de 10 a 37%; das Filipinas, em torno de 10%; da
Indonésia, de 18 a 54%” (idem, p. 139).
103
48
Esses estudos de campo com primatas outros que humanos foram feitos sobretudo por
mulheres, primeiramente as chamadas “trimatas” de Louis Leakey, Jane Goodall, Dian Fossey e
Birutė Galdikas, e depois levados adiante por outras primatólogas de destaque, como Barbara
Smuts, Shirley Strum e Thelma Rowell, entre outras. Pelo que está em jogo nas pesquisas, além da
mudança na abordagem e a revolução causada nas narrativas sobre primatas com a entrada de
mulheres no campo, Haraway afirma que a primatologia pode ser considerada um gênero de teoria
feminista (cf. Haraway, 1991): “Em uma irônica reviravolta na lógica da vida e das ciências
humanas, os corpos marcados tornam-se os corpos autoativadores: corpos
fêmeas/colonizados/trabalhadores/animais tornam-se cidadãos e o escândalo requer transformação
de teoria e práticas” (Haraway, 1991, p. 287); “Meu argumento tem vários fios. Primeiro, o
feminismo europeu e euro-americano e a primatologia são ambos discursos ocidentais e
sexualizados que herdam a estrutura lógica da apropriação hierárquica própria à autoformação do
‘humano’ (o ‘homem’ do ocidente). Segundo, teoria feminista e primatologia estão de modo
sinergético profundamente implicadas na produção de biologia e antropologia, aqueles discursos
nos quais tanto mulheres como homens foram objetos de conhecimento natural-técnicos cruciais.
Terceiro, reconstruir as histórias técnicas e populares da primatologia é uma forma séria de prática
feminista, e histórias são reconstruídas em elaboração com muitos tipos de apostas e práticas na
vida social. E, finalmente, a primatologia muda os significados possíveis de muitos feminismos.
Nem todas as práticas de mulheres são feministas e a prática de homens pode ser feminista. [...]
Feminismo e primatologia são ambos ciência e política, produtoras de fato e ficção, disciplinas
sociais e técnicas. São ambos práticas sociais para escrever histórias sobre quem ‘nós’ somos e
para controlar fronteiras e estruturar campos para a aquisição de identidades” (idem).
49
Não há como não lembrar, a respeito do gemido hibridamente humano e animal do gorila
assassinado por du Chaillu, da observação feita por Hegel em lições de 1805-1806 e que constam
do parágrafo 350 de sua enciclopédia, citada por Agamben em A linguagem e a morte: “Todo
animal tem na morte violenta [im gewaltsamen Tode] uma voz, exprime a si mesmo como o si
mesmo suprimido (als aufgehobenes Selbst)” (Hegel apud Agamben, 2006, p. 66). Sobre esta
passagem, comentei em minha dissertação de mestrado, a respeito da leitura de Agamben, que
“para Hegel, a voz animal, vazia, só deixa de sê-lo na morte violenta [...] Nenhum som, proferido
por nenhum animal, em momento nenhum de sua vida, se aparenta[ria] a uma voz (um ‘puro si’)
[...]. Mas, em sua morte (somente a violenta, é destacado), aquele grito e somente aquele seria uma
expressão de si mesmo. A voz humana, ‘voz da consciência’, por sua vez, só poderia então
começar aí. O animal, ao morrer, exprime um puro si suprimido; o humano, possuidor de uma
linguagem articulada, guardaria então nela o traço do grito desse outro [...]. ‘A linguagem humana
105
back at us]” (idem, p. 3); seus olhos são descritos como “brilhantes” e “lançados
nervosamente sob pesadas sobrancelhas sobre nós como se procurasse nos
identificar como amigos familiares ou possíveis inimigos” (idem). Quando o livro
foi publicado, contavam-se cerca de 4000 gorilas na natureza, dos quais 240 das
montanhas. A pesquisadora refere-se à drástica queda na população desses
animais – metade em menos de dez anos – causada pela caça e pela diminuição de
seu habitat, “apropriado para propósitos de cultivo” (idem, p. xviii), e explica que
o argumento da conservação vinha sendo usado pelos defensores da manutenção
de gorilas em zoológicos. Ela pondera então que, “por causa dos fortes laços de
parentesco entre famílias de gorilas, a captura de um jovem gorila pode envolver a
morte de muitos do seu grupo familiar” (idem, p. xviii), além do que “certamente
nem todo animal capturado chega a seu destino vivo” (idem). Fossey prossegue
argumentando que “três vezes mais gorilas foram retirados da natureza do que
nasceram em cativeiro e [que] as mortes de gorilas em confinamento continuam
ultrapassando os nascimentos” (idem). Em seguida ela sustenta, em nome da
conservação, a necessidade de preservação dos habitats, elencando em seguida
(...) é a tumba da voz animal, que custodia e mantém fixa a sua essência mais própria (...): ‘o
Morto’’ (idem, p. 67). O humano começa onde o animal morre (violentamente)” (Fausto, 2012, p.
50). Nesse sentido, o assassinato do gorila por du Chaillu, o primeiro homem branco a realizar tal
façanha, pode ser interpretado como uma cena fundante.
106
cercas afiadas que separam o fosso do público, muitas vezes em busca de lanches
ou outras oferendas, e assim se ferirem, tropeçarem e até morrerem, como em um
caso ocorrido em Lyon em 1998 (cf. Baratay e Hardouin-Fugier, 1998, p. 253).
No caso de animais que não sabem nadar, como muitos primatas, o fosso
representa o perigo de afogamento.
Foi o que aconteceu com Nikkie, um dos chimpanzés observados por de
Waal em Chimpanzee Politics, comprado pelo zoológico aos dez anos de idade,
até ali exibido em um espetáculo do tipo Holiday on Ice por seus donos anteriores,
que se tornou o líder da colônia em 1977 por meio de uma coalizão com Yeoren,
outro macho, e a mais velha das fêmeas, Mama, e morreu afogado em 1984 depois
de perder seu posto. O chimpanzé, referido por de Waal como “extremamente
brilhante” e “o mais rápido e acrobático do grupo” (de Waal, 1998, p. 103,4),
perdeu o apoio de seu aliado Yeoren, que se associou a outro macho, Dandy,
contra ele; provavelmente com medo de um ataque fatal – quatro anos antes, o
próprio Nikkie, em conluio com Yeoren, havia assassinado um outro contendor ao
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lugar de líder, Luit –, ele tentou pular o fosso, feito que havia realizado com êxito
“quase exatamente um ano antes” devido a “uma fina camada de gelo” (idem, p.
363,5), mas desta vez afundou na água, afogando-se. O etólogo Otto Adang, autor
de um livro sobre a colônia chamado De machtigste chimpansee van Nederland
(O Chimpanzé mais poderoso da Holanda), narrou em seu diário o dia da morte de
Nikkie:
Março de 1984. Chego mais tarde do que costumo. Está estranhamente calmo.
Nikkie não está com o resto do grupo no salão. Os estudantes não sabem me dizer
onde ele se encontra. Quando vou procurá-lo, vejo a cuidadora Jacky Holmes
andando pela ilha. Ela está toda molhada. “Ele está morto”, ela soluça, e demora
um tempo até eu compreender o que havia acontecido.
A manhã havia se tornado fria demais para que os chimpanzés saíssem, então Jacky
os colocara em um dos salões. Nikkie recusara-se a entrar. Permaneceu no
corredor, aparentemente ávido por acasalar com a fêmea sexualmente atraente
Krom. O interesse ciumento por seu inchaço já havia causado muita agitação nos
dias anteriores. Jacky decidiu deixar Krom em sua jaula noturna para lhe permitir
algum descanso. Nikkie esperou em vão, mas recusou-se a entrar no salão ou a
voltar para sua jaula. Quando, algumas horas depois, o sol começou a brilhar,
Jacky resolveu deixar Nikkie sair e puxou a porta de correr do recinto.
Imediatamente Nikkie correu para fora com toda a velocidade. Sem parar, de modo
silencioso, cruzou toda a extensão da ilha, cerca de cem metros. Quando chegou ao
fosso, pulou. Apesar de sua velocidade e da força de seu pulo, não conseguiu
chegar ao outro lado. Afundou como um tijolo. Quando Jacky, em choque,
corajosamente o puxou para fora do fosso alguns minutos depois, ele já havia
morrido. Em vão, ela tentou fazer respiração boca a boca. Apenas para termos
108
certeza, andamos em torno do corpo sem vida de Nikkie. Não há dúvida possível: o
chimpanzé mais poderoso da Holanda está morto.
O resto do grupo ainda está dentro e não pôde ver o pulo fatal de Nikkie. Ainda
assim, eles permanecem singularmente silenciosos. Os estudantes, que não sabiam
sobre o destino de Nikkie, também perceberam. Nenhum som era ouvido, nem
mesmo o grito de uma criança. De um modo ou de outro, eles haviam notado que
algo peculiar acontecera. Claro que eles tinham escutado o som da porta de correr e
de Nikkie saindo. Depois disso, devem ter escutado pessoas na ilha e sabiam que
nunca havia pessoas e chimpanzés no recinto ao mesmo tempo. [...] Repetidas
vezes explico o que realmente aconteceu. Um macho alfa, que só poderia ser o
mais dominante cooperando com outro macho. Nada especial no que diz respeito a
chimpanzés. Uma aliança que é quebrada. Nada especial também. Um rival
conspirando com um antigo aliado. Até aqui uma história familiar. Na África, um
macho alfa destronado evitaria seus rivais por um tempo e se retiraria para a
periferia da área de sua comunidade. Isto não é possível em Arnhem, mas o
passado mostrou que um antigo líder pode se adaptar à nova situação e permanecer
no grupo sem problemas. Uma coincidência infeliz levou à situação na qual Nikkie
deve ter se sentido extremamente ameaçado. A essa altura ele não procurou refúgio
em uma árvore, como normalmente teria feito. Acho que, em um momento de
pânico, ele tentou pular o fosso. Um ano antes tinha conseguido, então por que
falharia desta vez? Quando Nikkie saiu, deve ter pensado que o resto do grupo o
seguiria e poderia atacá-lo. Não há razão para supor que Nikkie tenha querido
morrer. Ele não cometeu suicídio, mas realizou um pulo apavorado e desesperado.
Queria chegar do outro lado, mas fracassou (Adang, 2016, s/p).
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Nikkie não se suicidou, não quis morrer. Tinha medo, desejou ir embora, o
que era proibido até no mais “naturalista” e cuidadoso dos zoológicos. É claro que
ele poderia ter sido morto por outros chimpanzés se não vivesse em confinamento,
mas foi este o detalhe definidor do seu destino, exemplo do que significa ser o
animal mais poderoso no contexto de um jardim zoológico50. Do lado da ciência e
da relação entre humanos e primatas outros que humanos, por sua vez, foi a
observação rigorosa também da vida de Nikkie, seu comportamento, relações,
alianças e traições, levada a cabo graças ao modelo ilha da colônia que habitou, o
que permitiu a de Waal afirmar que os chimpanzés possuíam uma política,
avançando questões sobre humanidade e animalidade, além de concorrer para uma
transformação enriquecedora da imagem desses símios, com consequências para o
modo como são percebidos e tratados.51
50
A reação da colônia ao ver a imagem de Nikkie no filme The family of chimps é descrita
na nota 1 deste capítulo.
51
Alguns grupos de direitos animais têm lutado pelos direitos de grandes primatas, como
sua soltura de zoológicos por habeas corpus. Em 2014, na Argentina, a orangotanga Sandra, então
com 28 anos, conseguiu esse direito, mas a dificuldade de seu traslado e preocupações com sua
adaptação impediram sua soltura, de modo que ela aparentemente segue vivendo sozinha em sua
jaula (cf. http://www.infobae.com/sociedad/2017/03/23/la-orangutana-sandra-esta-deprimida-y-
aconsejan-trasladarla-a-brasil/). Em novembro de 2016, um outro habeas corpus foi concedido em
favor de uma chimpanzé, desta vez, Cecilia, de cerca de 30 anos, que chegou ao santuário do braço
brasileiro do GAP (Great Ape Project) em abril de 2017 (cf.
109
3.5.
“Aberrificação”
Antes dos fossos, antes da revolução que transformou a vida dos animais em
um espetáculo observável por todos os lados e pouco mais de cem anos antes da
morte de Nikkie, em 1875, a cerca de 400 km de Arnhem na direção nordeste,
Carl Hagenbeck estreava sua primeira exibição de humanos em Hamburgo. É bem
verdade que esse tipo de exposição já havia ocorrido em muitas outras épocas e
lugares, como durante o Império Romano, e havia se intensificado pelo menos
desde a invasão da América. Montaigne mesmo teve a chance de conversar com
tupinambás levados à França ainda no século XVI, encontro que resultou em seu
célebre ensaio “Dos canibais.” O trânsito era tamanho que “no meio do século
XVI, os ‘índios’ ‘haviam se tornado a maior atração de teatros e procissões’”
(Rothfels, 2002, p. 87). Entre as pessoas exibidas, havia aquelas que eram
capturadas e levadas à força, como diversos inuit aprisionados pelo militar Martin
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Froshbier durante o século XVII e referidos por um de seus homens como “suas
novas presas” (idem). Por todo o período do século XVIII ao XIX os espetáculos
continuaram, o que levanta a pergunta sobre o interesse, quando exibições de
humanos são referidas, por aquelas produzidas por Hagenbeck. Onde jazeriam as
diferenças e peculiaridades dessas exibições? Rothfels levanta a hipótese da
verossimilhança de costumes: os shows de Hagenbeck não mostrariam apenas
pessoas, mas culturas, isto é, apresentariam comunidades em seu estado
“autêntico”, “puro”, com artefatos e animais “legítimos”; comunidades que,
segundo o relato do então produtor, sequer sabiam que eram matéria de
espetáculo. Isto é, diferentemente de outras exibições anteriores e
contemporâneas, Hagenbeck se destacaria por não enganar seu público com um
falso embelezamento dos modos dos povos que oferecia como atração ou com
aquela que singularmente teria alcançado uma maturidade racional suficiente para
o conhecimento sobre a própria história em sua universalidade. A publicação,
ainda, em 1859, de On the Origin of Species, de Charles Darwin, que postulava,
entre outras coisas, uma continuidade animal hierarquizada, terminou por
estabelecer o contexto diante do qual as exibições de comunidades humanas
primitivas “autênticas” em zoológicos e feiras puderam ser recebidas com
entusiasmo na Europa, inclusive pela comunidade científica. Os espetáculos de
Hagenbeck não se destinavam apenas aos espectadores ávidos por exotismo ou
uma visão do passado, mas favoreciam o estudo de povos primitivos in loco, sem
que fosse preciso se deslocar. O então presidente da Sociedade Berlinense de
Antropologia, Etnologia e Pré-História, Rudolf Virchow, tornou-se um grande
entusiasta do trabalho de Hagenbeck e chegou a referir-se a uma exibição de inuits
em 1878 como “uma das cenas etnológicas mais interessantes que se desdobra
diante de nossos olhos” (Virchow apud Rothfels, 2002, p. 92). As visitas que o
jovem Franz Boas fez à exposição dos bellacoola (nuxalk) vindos do Canadá em
1886 renderam-lhe pelo menos três artigos publicados no mesmo ano (cf.
Rothfels, 2002, p. 231).
111
52
Reprodução do folheto disponível em
https://en.wikipedia.org/wiki/Krao_Farini#/media/File:Krao_-
_The_Missing_Link_Wellcome_L0047972.jpg
112
selvagem em sua terra nativa não sentirá muita vergonha se forçado a admitir que o
sangue de uma criatura muito mais humilde flui em suas veias. De minha parte, eu
preferiria ser descendente daquele pequeno macaco heroico que enfrentou seu
temido inimigo para salvar a vida de seu cuidador; ou daquele velho babuíno que,
descendo das montanhas, carregava em triunfo seu pequeno camarada para longe
de uma multidão de cachorros espantados – do que de um selvagem que se delicia
em torturar seus inimigos, oferece sacrifícios sangrentos, pratica infanticídio sem
remorso, trata suas mulheres como escravas, não conhece nenhuma decência e é
assombrado pelas superstições mais grosseiras.
É desculpável que o homem sinta algum orgulho de ter se erguido, ainda que não
através de seus próprios esforços, até o cume da escala orgânica; e o fato de ter
assim se erguido, em vez ter sido nela primitivamente colocado, pode dar-lhe
esperanças de um destino ainda mais alto no futuro distante. Mas não estamos aqui
preocupados com esperanças ou medos, apenas com a verdade na medida em que a
nossa razão nos permite descobri-la. Reuni quantas evidências pude; e devemos
admitir, como me parece, que o homem, com todas as suas nobres qualidades, com
a simpatia que sente pelos mais degradados, com a benevolência que estende não
apenas a outros homens, mas à mais humilde criatura viva, com seu intelecto
divino que tem penetrado nos movimentos e constituição do sistema solar – o
Homem ainda carrega em sua estrutura corpórea o selo indelével de sua baixa
origem (Darwin, 1871, vol. 2 p. 404-405).
em Quand le loup habitera avec l’agneau ao discutir justamente o modo pelo qual
Darwin pôde adequar os animais e selvagens vitorianos à narrativa histórica da
evolução. O que Despret explica é que havia, à época de Darwin, numerosos
relatos de viajantes e naturalistas, entre outros, a respeito de animais encontrados
na natureza e nos jardins zoológicos, nos quais atitudes consideradas honradas e
morais tinham sido observadas; nos parágrafos acima citados, dois primatas vêm
dar testemunho de sua elevação “espiritual”, aquele que defendeu seu cuidador de
um inimigo perigoso e o que salvou um filhote de uma matilha. Por todo o
percurso de The Descent of Man... é possível encontrar exemplos desse tipo de
animal virtuoso, em quem se chega a reconhecer por vezes o germe de um
sentimento tão civilizado como o da vergonha (cf. Despret, 2002, p. 49). Através
desses relatos, a continuidade entre primatas morais e homens civilizados poderia
ser facilmente estabelecida, o que o naturalista afirma aliás desejar (“De minha
parte, eu preferiria ser descendente..."), mas há uma pedra no meio do caminho, a
saber, os povos humanos primitivos, que deveriam se encontrar entre o polo da
natureza (animais) e o da cultura (homens civilizados), e sobre quem a percepção
vitoriana era de imoralidade, para dizer o mínimo. Os primitivos, na infância da
história humana, seu exemplar mais próximo da natureza, não possuíam ni foi ni
roi ni loi e, mais, eram considerados degenerados, infanticidas, escravistas,
114
virtude que faria com que os machos protegessem suas fêmeas e prole. Deste
modo, o caminho até a moralidade humana não teria passado por coragem ou
bravura, mas viria pelo contínuo do ciúme – modo encontrado por Darwin para
explicar a “regulação da competição em torno das fêmeas” (idem). A seleção
natural, ele postulava, dava-se pela via sexual através da escolha de parceiros para
o acasalamento; mas, diferentemente de outras espécies, sobretudo pássaros, cujos
machos, na competição pelas fêmeas, fariam grandes demonstrações de sua
beleza, dança ou canto, entre os primatas outros que humanos os machos não
pareciam se importar com isso – além do mais, como nota Despret, Darwin os
considerava muito feios. Em seu caso, era o combate pelo poder motivado pelo
ciúme que proveria uma explicação a contento para o comportamento de todos os
grandes mamíferos. Lutando uns contra os outros através dos séculos, os machos
primatas – semianimais e selvagens – garantiriam a posse das fêmeas e a
continuação de sua prole. Assim, pela prática de guerra por ciúme no início de sua
história (entre os civilizados “cessada há muito tempo” – Darwin, 1781, p. 326),
Darwin era capaz de introduzir os primitivos em sua narrativa evolutiva.
A escolha do combate por ciúme como motor da evolução, por outro lado,
expulsou os macacos virtuosos da História para a marginalidade das anedotas; se
era fato que tal ou tal indivíduo havia se portado de modo moral, isso deixou de
115
3.6.
“Donzellas... para pentear macaco”
53
Despret procura responder a esta pergunta através do exame da obra de Kropotkin (cf.
Despret, 2002), anarquista russo autor de Ajuda mútua: um fator da evolução, de 1902. Tanto
Darwin quanto Kropotkin convocam primatas e selvagens para dar conta da teoria da evolução,
mas o segundo, que acreditava na cooperação e na socialidade como forças evolutivas muito mais
fortes que a competição, denuncia o que Despret chama de “dupla falta de cortesia, que consiste
em desqualificar o animal para melhor injuriar os selvagens” (Despret, 2002, p. 60). Realmente,
tanto os selvagens quanto os animais vêm, na obra de Kropotkin, dar testemunho da eficácia da
cooperação como operador evolutivo mais difundido que a competição. Para a luminar
interpretação acerca das diferenças entre Kropotkin e Darwin, cf. Despret, 2002.
116
acerca do que se passava por detrás dos muros dos laboratórios” (idem). Se, como
observavam Baratay e Hardouin-Fugier, a domesticação era um dos modos de
apropriação dos animais pelo império desde o advento do zoológico, a revolução
darwinista veio radicalizar a prática por fazer supor ser possível a realização de
um grande sonho de domínio da natureza: operar a passagem entre natureza e
cultura, isto é, civilizar grandes primatas. Um dos exemplos da “singular
cumplicidade” entre ciência e colonialismo vigentes encontra-se em notícias de
jornais de 1924 sobre “Pastoria” (de Pasteur), “um posto colonial do Instituto
Pasteur em Kindia, na Guiné Francesa” (idem), que, segundo matéria do Chicago
Tribune Ocean Times reproduzida por Haraway, anunciava que os franceses
“estabeleceriam uma aldeia modelo e escolas para grandes primatas nas quais se
testarão experimentos civilizatórios” (idem, manchete do jornal). Outra notícia, do
International Feature Service, Inc., também presente em Primate Visions, é ainda
mais exagerada: “uma universidade de macacos para tornar os chimpanzés
humanos” (idem).
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Os planos de Calmette para um laboratório a ser instalado em Paris são ainda mais
generosos em relação aos primatas. Os aposentos deveriam contar com
aquecimento e fonte d’água para banho, sendo construídos de modo a “imitar a
arquitetura de ‘palácio’ ou ‘rotundas’ de nossos jardins zoológicos” (idem). O
cuidado com os filhotes é referido com minúcias que certamente encheram os
olhos daqueles que acreditavam na possibilidade de civilizar os animais: eles
seriam “nutridos através de mamadeiras ou por colher com leite esterilizado” e
uma “infusão de cereais sempre frescos” (idem), até que se habituassem a comer
“arroz branco adoçado, biscoitos, um pouco de carne de frango cozido e a beber
chá açucarado” (idem, p. 261).
Uma pesquisa não exaustiva em periódicos brasileiros de grande circulação
da época revelou uma recepção tardia e de caráter jocoso do laboratório de
Calmette; na Revista da Semana, em 1925, lia-se que “não é muito fácil criar um
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3.7.
E, ainda assim, brincaram
pode ser resumida em uma frase: “por que Derrida não examinou as práticas de
comunicação fora das tecnologias sobre as quais ele sabia falar?” (Haraway, 2008,
p. 21).
Para ela, não ter percorrido essa via deixou o filósofo sem outra escolha
exceto, diante do olhar de sua gata, voltar-se à questão que ele considera “prévia e
decisiva”, cuja “forma muda tudo” (Derrida, 2002, p. 54): “Eles podem sofrer?,
perguntava simplesmente e tão profundamente Bentham54” (idem). Nem Haraway
(cf. Haraway, 2008, p. 22) nem a presente tese, é claro, pretendem desmerecer a
questão do sofrimento animal – como, espera-se, fica claro pela sequência
argumentativa que deságua neste momento. A “guerra à piedade” mencionada no
primeiro capítulo desenha um espaço de pensamento e atuação não apenas da
maior importância, mas riquíssimo de questões e problemas: “pensar começa
talvez aí” (Derrida, 2002, p. 57). E, de fato, depois da pequena discussão travada
aqui acerca da história dos zoológicos, é o sofrimento dos animais que primeiro
salta aos olhos; reconhecer esse sofrimento, reconhecer a guerra que se impõe
contra eles e começar daí é um passo mais do que justificado. Mas este não é o
54
Quis o destino, ironicamente, que o inventor do Panóptico – talvez influenciado pela
ménagerie real –, também tivesse proferido este lema de muitos teóricos e ativistas dos direitos
animais.
121
3.7.1.
“Fair play”
Que a brincadeira seja “sem propósito”, Bekoff observa, não quer dizer que ela
não tenha funções; essas funções, entretanto, são variadas, dependendo não apenas
da espécie, mas dos grupos em questão, e podem envolver o desenvolvimento de
“força física, resistência, habilidade”, “regula[r] taxas desenvolvimentais”,
“reproduzir[r] informações específicas”, “desenvolve[r] habilidades cognitivas
necessárias para a adaptabilidade comportamental, flexibilidade, inventividade ou
versatilidade”, constituir “um conjunto de táticas comportamentais usadas na
competição intraespecífica”, “estabelece[r] ou reforça[r] laços sociais em uma
díade ou coesão social em grupo” e funcionar como um “treinamento cognitivo”
(idem, p. 231). Bekoff vem se concentrando, desde então e cada vez com mais
convicção (advinda de pesquisas de etologia cognitiva, neurociência e etologia
narrativa, entre outras), na relação entre brincadeira e justiça – ou moralidade,
como costuma dizer. Se em 1984 a hipótese era sugerida com muito cuidado, em
1998, o subtítulo de outro artigo seu, “Social play behavior – cooperation,
fairness, trust and the evolution of morality”, demonstra a direção tomada por seu
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55
A moralidade é definida pelos autores “como um conjunto de comportamentos inter-
relacionados que dizem respeito aos outros e regulam interações complexas dentro de grupos
sociais. Esses comportamentos se relacionam a bem-estar e prejuízo, e normas de certo e errado se
anexam a muitos deles. A moralidade é essencialmente um fenômeno social, emergindo das
interações entre animais individuais, e existe como um emaranhado de fios que mantém unida uma
tapeçaria complicada e variável de relações sociais. A moralidade neste sentido age como uma
cola social” (Bekoff e Pierce, 2009, p. 7).
56
Apesar de tratarem da moralidade performada na brincadeira apenas em mamíferos
sociais – inclusive porque nessa caso a evidência científica lhes permite realizar a articulação de
modo mais embasado –, a brincadeira é um comportamento encontrado em muitos outros grupos
filogenéticos, como “aves e mesmo crustáceos” (Bekoff e Pierce, 2009, p. 117). Quanto aos
sentidos morais nesses outros animais, vale a pena seguir o credo científico que afirma que
ausência de evidência não é evidência de ausência.
124
consideração moral dos animais como pacientes mas não como agentes morais
(cf. por exemplo Regan, 1983; Singer, 2002; e Francione, 2008). Nada indica que
Bekoff e Pierce sejam avessos à proposição de que os animais devam possuir
direitos – pelo contrário – mas, ao afirmar a sua vida moral, a questão poderia
extrapolar a esfera do direito na qual essa discussão costuma se encerrar. Isto é,
seria possível interpretar a asserção de uma moralidade animal como escapando
das regiões dominadas pelo direito e entrando na esfera política de ação e
pensamento; se há tantas formas de moralidade como há mundos, como isso
modificaria o modo de também os humanos habitá-los? Essa questão seria capaz
de transformar o problema moral em problema político, na medida em que
passaria a dizer respeito à coabitação por diferentes entes de diferentes mundos
que no entanto se encontram e superpõem. Não é este, porém, o caminho que os
autores seguem. Eles dedicam parte da conclusão de seu livro ao conceito de
agência, afirmando que a dualidade agente/paciente não é promissora e deve ser
abandonada – nem animais agiriam inteiramente levados pelo instinto nem os
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podem e não vão” (de Waal, 2006, p. 77). O autor holandês não explicita que
sociedade é essa, mas provavelmente se refere àquela de que faz parte, a mesma
que, por exemplo, garantia liberdade a seus cidadãos ao mesmo tempo que
desempenhou um papel de destaque no tráfico de escravos pelo Atlântico entre os
séculos XVII e XIX, mantendo colônias na África, na América e na Ásia até o
século XX. Não há como negar que as marcas de animalização são codificadas em
corpos negros em uma zona de indistinção onde se criam escravos pela
hiperseparação entre humanidade própria e animalidade. A condição de
possibilidade da escravidão (e do racismo) é a animalização de determinados
humanos, desde a ideia aristotélica de que os escravos, por natureza, não possuíam
lógos, até discussões sobre a existência ou inexistência de alma em povos
diferentemente humanos, passando pela confusão entre primatas e povos nativos
em contextos evolutivos.
De Waal diz ainda que “apesar de muitos animais sociais terem
desenvolvido tendências altruísticas e afetivas, eles raramente, se é que o fazem,
as direcionam a outras espécies” (idem, p. 77), dando como exemplo “o modo
como o guepardo trata a gazela” (idem), e contrapondo a esse comportamento o
de sua própria espécie, Homo sapiens, “a primeira a aplicar tendências que
evoluíram dentro do grupo a um círculo maior de humanidade” (idem) – em uma
126
afirmação que parece colocar entre parênteses não só toda a história de sua
sociedade como o mundo mesmo em que atualmente vive, pleno de desigualdades
intraespecíficas. Mais uma vez, pode-se replicar que nunca se ouviu falar de um
guepardo mantendo gazelas confinadas em gaiolas nas quais elas não têm espaço
para se mover, como fazemos com as galinhas, ou as reproduzindo em baias que
não lhes permitem sequer se virar, como no caso de porcas. Para de Waal,
“direitos são parte de um contrato social que não tem sentido sem
responsabilidades” (idem). O autor não se dá sequer ao trabalho de enunciar por
que animais não podem assumir essas responsabilidades. Ora, como as sociedades
animais poderiam sequer existir sem a assunção de “responsabilidades” tais como
forragear, proteger filhotes etc.? Ou, ainda, não será claro que os animais de
criação, sobretudo em relações menos assimétricas de poder, como quando vivem
com pequenos produtores, trabalham? E como poderiam fazer isso sem um
sentido de responsabilidade do modo como o próprio de Waal o determina? (cf.
Despret e Porcher, 2007; Despret, 2014). É essa tendência de elevação da
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O próprio de Waal considera que devemos mudar nossas atitudes em relação aos
símios e já exprimiu contrariedade diante dos atuais modos de produção de
carne57, preocupações diferentes para diferentes espécies – ou melhor,
preocupações diferentes para diferentes práticas.
O jurista Daniel Braga Lourenço analisou em artigo as propostas atualmente
em tramitação no Congresso Nacional Brasileiro que têm por objetivo alterar o
estatuto jurídico dos animais (Lourenço, 2016), notando que, diferentemente dos
projetos de outros países, no Brasil a tendência não é procurar uma terceira
categoria para os animais, entre coisa e pessoa, mas que
Dos quatro projetos que temos a respeito deste tema, três preferem realizar o
enquadramento dos animais como sujeitos de direitos, seja personalizando-os, seja
tratando-os como entes despersonalizados, ou mantendo-se omissos quanto a este
ponto (Lourenço, 2016, p. 831)
O direito penal, por sua vez, trabalha com a concepção de que deixar atos cruéis
impunes poderia colaborar para o embrutecimento do homem em relação ao seu
próprio semelhante. Esta tese recebe o nome de “transbordamento moral”, pois seu
fundamento está em afirmar que aquele que reiteradamente pratica o mal para com
os animais poderá, ao menos potencialmente, tornar-se insensível ao sofrimento
humano. Portanto, quando a legislação penal, regulamentando a norma
constitucional que veda a crueldade, estabelece tipos penais associados aos maus
tratos, como é o caso paradigmático do art. 32 da Lei n. 9.605/98, estaria em
realidade tutelando a própria humanidade e não os animais, que não seriam vistos
como vítimas ou sujeitos passivos das condutas abusivas e sim meros objetos
materiais do tipo penal, tal como ocorre, por exemplo, com uma cadeira ou um
telefone celular, no crime de dano previsto no art. 163 do Código Penal. É como se
houvesse uma projeção de atentado à dignidade humana na violação perpetrada
diretamente contra o animal. Podemos exemplificar esta colocação com o caso de
danos corporais impingidos aos animais. O entendimento predominante é de que a
mutilação meramente recreativa de um animal deve ser punida em função deste ser
vivo refletir a vida e a integridade físico-psíquico humanas e, por tal razão, tal
atentado ao animal atingiria reflexamente a própria dignidade humana e não a
integridade e a dignidade existencial do próprio animal (idem, p. 819-820).
57
“Eu mesmo gosto de carne e como, mas as práticas da agroindústria de carne me
incomodam por razões éticas, e eu ficaria muito feliz se pudéssemos mudar essas práticas ou criar
carne na ausência de um sistema nervoso. Refiro-me a fábricas de cultivo de carne, nas quais os
músculos crescem sem que o animal inteiro cresça, de modo que o sofrimento possa ser excluído.
Esta possibilidade parece estar se aproximando e removeria o dilema ético para mim.”
(http://wonderlancer.com/socialogue/frans-de-waal-the-age-of-empathy/)
128
dessas vertentes era a relação entre razão e fins (últimos). Para os primeiros, os
fins são sempre naturais. Para os segundos, transcendentes. O que Kant
estabelecia, originalmente, é que os fins supremos são sempre fins da razão (cf.
Deleuze, 1987). A razão é, assim, a única e própria juíza de si mesma. A
implicação dessa concepção para a ética, o direito e os animais é que, segundo ela,
só os entes finitos e racionais podem ser fins em si mesmos – opondo-se assim às
coisas, simples meios. Quando diz “entes finitos e racionais” em vez de
“humanidade”, o filósofo está abrindo a possibilidade de que haja outros entes
finitos e racionais além do homem, mas não nos enganemos: não se trata da
abertura para que algum animal desta terra possa ocupar tal lugar, senão da chance
de que, por exemplo, extraterrestres existam (cf. Kant, p. 215 e ss.) Ainda que
cada coisa na natureza, para Kant, aja segundo leis, somente os entes racionais
têm a capacidade de derivar, pela razão, ações a partir dessas leis, possuindo
assim uma vontade. E o filósofo é incisivo: os entes racionais nunca podem ser
meros meios para o uso de uma vontade, eles são fins em si mesmos. São pessoas.
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como propósito a utilidade, tendência esta que prepararia para a moralidade. Isto
é, que os homens só tenham obrigações morais para com eles mesmos não
significa que as coisas não possam estar contidas, como meios que são, nestas
obrigações. E é assim em relação aos animais; tratá-los de forma cruel é contrário
ao dever do homem para consigo mesmo pois assim ele enfraquece uma
disposição natural a ser moral com outros homens. Segue-se daí uma lista de
prescrições sobre o tratamento que deve ser dispensado aos animais:
[...] o homem [está] autorizado a matá-los de modo rápido (sem infligir agonia),
bem como ao seu trabalho árduo, mas não além de suas forças (ao qual os homens
também têm de se submeter). Mas experimentos físicos agonizantes a serviço da
mera especulação, quando o objetivo almejado poderia também ser atingido os
dispensando, são abomináveis. A própria gratidão pelos serviços prestados durante
longo tempo por um velho cavalo ou um velho cão (como se fossem membros da
casa) pertence indiretamente ao dever do homem, a saber, em relação a estes
animais, mas considerado diretamente é apenas um dever do homem para consigo
mesmo (Kant, 2013, 510,6; tradução modificada).
que não coisas, parece ter uma posição que hoje poderíamos até considerar bem-
estarista. Mas o que significa, no fundo, que esses deveres sejam todos indiretos e
ao cabo e ao fim só os homens importem? O que significa, para os animais, que
sejam coisas com direitos, ou mais precisamente, coisas em relação às quais temos
deveres? Parece que a resposta é: Kant é um gentil senhor de escravos.
A ideia de direitos animais universais apresenta ainda uma dificuldade que
podemos aproximar da crítica que Deleuze e Guattari faziam aos direitos
humanos: são abstratos demais, não dizem respeito a situações específicas, a
povos e questões situados, “não dizem nada sobre os modos imanentes de
existência do homem provido de direitos” (Deleuze e Guattari, 2009, p. 140).
Além disso, os direitos humanos “podem coexistir no mercado com muitos outros
axiomas, especialmente na segurança da propriedade, que os ignoram ou ainda os
suspendem, mais do que os contradizem” (Deleuze e Guattari, p. 139). No caso
dos animais, isso aparece de modo muito concreto nas mencionadas propostas de
mudança de seu estatuto jurídico: como transformá-los, em nossa atual legislação,
de bens em sujeitos de direito, universalmente? Os animais de produção não
poderiam mais ser mortos, as cobaias deveriam ser libertadas, o que por si só já
mudaria toda a configuração atual de nossa sociedade, mas também os insetos,
como mosquitos vetores de doenças, teriam o mesmo direito à vida. A questão dos
130
58
https://www.forbes.com/sites/michaeltobias/2012/05/21/the-hearts-and-minds-of-
animals-a-discussion-with-dr-marc-bekoff/#3e6a0424cb8d
131
O animal que logo sou, Derrida fala sobre a “lógica imperturbável, ao mesmo
tempo prometeica e adâmica, ao mesmo tempo grega e abraâmica (judeu-cristã-
islâmica)” (Derrida, 2002, p. 44), da superioridade “incondicional e sacrificial”
(idem) do homem sobre o animal. Ela é sacrificial porque o animal é o “bode
expiatório” do homem, aquele que pode ser morto, que é um bom substituto para
o corpo humano. “Perguntem pois ao asno ou ao carneiro de Abraão ou aos
viventes que Abel soube oferecer a Deus: eles sabem o que lhes ocorre quando os
homens dizem ‘eis-me aqui’ a Deus, depois aceitam sacrificar-se, sacrificar seu
sacrifício ou perdoar-se” (idem, p. 59). Somos, ou pensamos ser, capazes de
respeitar o mandamento “não matarás” apenas se houver uma infinidade de
vítimas cujas mortes não se configurem como mortes próprias. O que a lógica do
sacrifício, que pretende eximir a humanidade de seus crimes, cria é uma
multiplicidade de seres matáveis. O autor questiona: “Dever-se-ia aceitar dizer
que todo assassinato, toda transgressão do ‘Não matarás’, só pode visar ao homem
[...], e que em suma só há crime ‘contra a humanidade’?” (idem, p. 88).
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em qualquer configuração que se exprima, não faça vítimas ou que seja justificado
– isso significaria adentrar uma zona de indistinção, um achatamento e confusão
de responsabilidades. A questão, outra, é: como viver em um mundo em que
matar é necessário? A necessidade aí deve ser tomada com muito cuidado;
quando, como, o que é necessário? A saída encontrada por Haraway passa por
uma mudança do mandamento bíblico: e se, em vez de “não matarás”, nos
guiássemos pela injunção “não tornarás matável” (idem)? Em primeiro lugar,
assassinatos em massa ou a transformação de qualquer espécie, povo ou grupo em
matáveis seriam o verdadeiro interdito, um dos primeiros princípios. Isso não
significaria que deveríamos deixar completamente de matar, mas poderia
constituir uma saída para o exterminismo: por um lado, lobos e guepardos não
seriam mais culpados e populações indígenas caçadoras não seriam perseguidas
por seu modo de vida; por outro, o sistema de produção animal, a indústria de
cobaias farmacêuticas, o tráfico desmesurado de animais e outras práticas
certamente se tornariam moralmente insustentáveis. Os verdadeiros imorais
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viriam à luz59.
3.7.2.
“Proliferação louca de formas”
59
Esclareço que este trabalho não tem a intenção de fazer uma crítica aos defensores dos
direitos animais, responsáveis por muitas conquistas, tampouco a ninguém que dedique sua vida à
causa da melhoria do tratamento dispensado aos animais. A breve discussão meramente ensejada
aqui tem como objetivo apenas complicar certos argumentos e oferecer talvez um outro quadro
conceitual possível no qual essas questões podem ser tratadas.
133
o que se faz não é aquilo que é denotado, no qual o combate, que seria seu modelo
e guia, aparece sempre de forma levemente alterada. Isto é, a brincadeira faz com
que seus participantes entrem em uma zona de indiscernibilidade – não de
indistinção – na qual as diferenças entre ela e o combate passariam de um a outro
sem se apagar: “fundidas sem se tornarem confundidas” (idem, p. 6). Além disso,
a alegria contida no modo análogo de ação constitui, segundo o filósofo, um
excesso, um “afeto de vitalidade” (idem, p. 9); a mordiscada que denota a mordida
– talvez a troca de olhares que convida e anima – em uma atividade sem propósito
a não ser ela mesma seria pura expressão desse afeto. A brincadeira, assim,
pertenceria “instintivamente à dimensão estética” (idem, p. 10).
Além disso, ainda que haja na brincadeira aprendizado e toda a série de
funções anteriormente mencionadas, Massumi valoriza nela principalmente a
variação e seu caráter de invenção e improviso. Mesmo que a brincadeira tenha
por modelo o combate, é nela que o combate se inventa, refina, transforma-se.
Quanto mais se brinca, mais se inventa; quanto mais se inventa, mais apto ao
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improviso se é tornado, ou seja, mais apto à vida mesma. A vida, assim, “se
beneficia do valor excedente da vida produzido pela brincadeira, convertido em
valor de sobrevivência” (idem, p. 12). Este seria um modo de a vida produzir a si
mesma pelo excesso expressivo e não pela mera adaptação ao dado; a brincadeira,
que imita o combate, é anterior a ele e o modifica. A abundância estética e não a
adequação à penúria constituiriam o modo pelo qual a vida opera e se reproduz.
Massumi vê esse poder de improviso contido na brincadeira como fazendo
parte do instinto. Ele parafraseia Raymond Ruyer: “se o ato instintivo fosse como
é reputado ser – uma sequência estereotipada de ações pré-modeladas executadas
por reflexo à maneira de um automatismo – então o instinto seria incapaz de
responder às mudanças casuais no ambiente” (idem, p. 13). As variações
ambientais devem encontrar variações comportamentais, ou seja, é inconcebível
que o instinto seja uma reação e não uma resposta, plástica e criadora. Massumi
chama esse poder do instinto de variar e responder de “poder de abstração” (idem,
p. 14), uma reflexividade não ligada ao cérebro – estudos mostram que amebas
têm memória e podem antecipar o futuro, e platelmintos, uma vez decapitados,
continuam a se lembrar de tarefas aprendidas antes. Seria este “poder da
mentalidade expressiva” (idem) o motor da evolução – uma ideia que Massumi
credita a Bergson, Bateson e Ruyer – na medida em que qualquer mudança,
134
mesmo uma provocada pelo acaso, encontra uma resposta criativa na forma de
reconfiguração dos entes em conexão com aquilo que mudou. O instinto, assim,
sempre superaria o dado, “sendo animado por um ímpeto imanente em direção ao
supernormal” (idem, p. 15), conceito tomado emprestado do etólogo Nikolaas
“Niko” Tinbergen.
Tinbergen, ao estudar a relação entre estímulo e comportamento, percebeu
nos animais uma preferência pelo “supernormal”, isto é, pela exacerbação do
signo-estímulo direcionado a determinado comportamento. Seu exemplo-padrão
veio de pesquisas com gaivotas prateadas (Larus argentatus), cujos filhotes, ao
bicarem os bicos dos pais, os estimulam a regurgitar comida, alimentando-os. O
bico das gaivotas adultas possui um pequeno círculo vermelho na parte inferior, e
Tinbergen percebeu que era isso o que atraía os pequenos. Ele então conduziu
uma série de experimentos nos quais usava modelos de cabeças de gaivotas,
trocando a cor do círculo, e constatou que os filhotes eram mais atraídos por
contraste e cor. Ou seja, confrontados com bicos contendo círculos pretos e
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60
Em 2009, o biólogo comportamental Carel ten Cate replicou e incrementou os
experimentos de Tinbergen por suspeitar que suas inferências não estivessem de acordo com os
métodos e resultados, e concluiu que “apesar de sua abordagem ser questionável, as intuições de
Tinbergen mostraram-se certas e seus dados, corrigidos, apresentam uma correspondência razoável
ao que um experimento real teria provido” (ten Cate, 2009b, p. 802; cf. também ten Cate, 2009a).
135
mariposas cujas asas imitam não apenas um, mas dois pares de olhos: “para os
pássaros que os predam este arranjo supernormal pode ser mais apavorante que
um conjunto normal de olhos” (idem).
Massumi interpreta essa preferência pela intensificação como uma
“topologia da experiência na qual diversos elementos em jogo são arrastados
conjuntamente em direção à sua própria variação integral, em um estado dinâmico
de inclusão mútua” (Massumi, 2014, p. 16). Embora Tinbergen tenha feito tal
descoberta, diz o filósofo, isso não foi suficiente para fazê-lo abandonar as
comparações entre animais e máquinas. Ele exprime entretanto uma ponta de
frustração ao notar a própria incapacidade de explicar totalmente suas complexas
máquinas; a supernormalidade, que envolve estímulos “relacionais” e
“configuracionais”, parece “ser mais a regra que a exceção” e, embora “até hoje
ninguém tenha sido capaz de analisar esses assuntos; ainda assim, de alguma
forma [somehow] eles são realizados” (Tinbergen, 1985, p. 68). Para Massumi,
que cita essa frase de Tinbergen, “é precisamente o ‘de alguma forma’ desta
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61
O tipo de mentalidade a que Massumi se refere neste ponto inspira-se na interpretação
deleuziana de Hume, além de Ruyer e de Whitehead (cf. Massumi, 2014, p. 102-103).
62
Em O que é a filosofia?, os autores explicam que aquilo que denominam blocos de
sensação diz respeito à arte, que é a “linguagem das sensações” e que não tem “opinião”, o que
“desfaz a tríplice organização das percepções, afecções e opiniões, substituindo-as por um
monumento composto de perceptos, de afectos e de blocos de sensações que fazem as vezes de
linguagem” (Deleuze e Guattari, 2009, p. 228). A arte, ainda, segundo os autores, “começa talvez
no animal” (idem, p. 237): “O Scenopoietes dentirostris, pássaro das florestas chuvosas da
Austrália, faz cair da árvore as folhas que corta cada manhã, vira-as para que sua face interna mais
pálida contraste com a terra, constrói para si assim uma cena como um ready-made, e canta
exatamente em cima, sobre um cipó ou um galho, um canto complexo composto de suas próprias
notas e das de outros pássaros, que imita nos intervalos, mostrando a raiz amarela das plumas sob
seu bico: é um artista completo. Não são as sinestesias em plena carne, são estes blocos de
sensações no território, cores, posturas e sons, que esboçam uma obra de arte total” (idem, p. 238).
136
excesso e paixão (os pássaros amam dar de comer aos filhotes de cucos63). Longe
de poder ser descrito em termos mecânicos, o supernormal leva a experiência,
cada experiência, para além de si mesma, a seu limite – e assim a uma nova
experiência: a preferência dos filhotes de gaivota pelo hiperbólico pode
efetivamente transformar e criar novas relações com seus pais. Isto é, a tendência
supernormal é parte criativa da evolução; a adaptação é um jogo experimental
entre condições dadas, ou melhor, co-criadas por outros entes64, e apetites pelo
supernormal, o que explicaria a “proliferação louca de formas tão férteis que
desafiam a imaginação humana” (idem, p. 21). Lynn Margulis e Dorion Sagan,
em O que é vida?, respondem à pergunta do título de muitos modos. Um deles é
que a vida é “a matéria desenfreada [matter gone wild], capaz de escolher sua
própria direção para prevenir indefinidamente o momento inevitável do equilíbrio
termodinâmico – a morte” (Margulis e Sagan, 2002, p. 66). “Louca” e “selvagem”
são dois adjetivos, nesse sentido, capazes de exprimir os modos pelos quais a vida
se co-inventa e mantém.
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63
Massumi aí se aproxima do que Whitehead chamava apetição, conceito por sua vez
inspirado na monadologia leibniziana: “Toda experiência física é acompanhada por um apetite por
ou contra sua continuidade: um exemplo é a apetição da autopreservação. Mas a origem da
preensão conceitual da novidade deve ser levada em conta. A sede é um apetite em direção a uma
diferença – em direção a algo relevante, algo largamente idêntico mas com uma novidade definida.
Este é um exemplo de baixo nível que mostra o germe de uma imaginação livre” (Whitehead,
1978, p. 32).
64
De acordo com a teoria de Gaia, de James Lovelock, em coautoria com Lynn Margulis,
“logo depois que a vida começou, tomou controle do ambiente planetário e [...] essa homeostase de
e pela biosfera persiste desde então” (Lovelock e Margulis, 1974, p. 2); “a temperatura do planeta,
o estado de oxidação e outras químicas de todos os gases da baixa atmosfera (exceto o hélio, o
argônio e os não reativos) são produzidos e mantidos pela soma da vida” (Margulis, 1996, p. 139),
isto é, as condições da vida são dadas pela própria vida em um grande sistema biogeofísico – em
suas múltiplas formas. Trata-se da “atmosfera como artifício” (Lovelock e Margulis, 1974, p. 5).
Pensando a partir de Gaia, então, mesmo as condições dadas para a adaptação da vida são, em
alguma medida, produzidas pela vida.
137
65
“Território existencial” é um conceito de Guattari a que ele se dedica sobretudo em
Caosmose, mas também em As três ecologias e em uma série de artigos e entrevistas (cf. Guattari,
1995; 2009; 2011). Massumi o define como “mais abrangente que o de território no sentido estrito.
Refere-se ao território no sentido físico mas também toma formas dinâmicas, formas de atividade
que usam o território como fonte de devir. Inclui ainda as relações mentais entre territórios em
jogo [in play] e entre as formas dinâmicas que o território hospeda. O território existencial é um
bloco de espaço-tempo vivido no qual a vida se pensa a si mesma à medida que desempenha a
variação [as it plays variation]. O conceito de território existencial também, e de modo específico,
refere-se à composição estilística de atividades vitais, incluindo os vaivéns entre arenas díspares,
efetuando uma modulação recíproca dessas arenas, de modo a potencialmente prolongá-las
evolutivamente” (Massumi, 2014, p. 24).
138
existência do terceiro incluído” (Massumi, 2014, p. 35). É todo este complexo que
se efetua quando pelo menos dois animais brincam.
Este arcabouço conceitual possibilitaria a criação de um “paradigma ético-
estético de política natural” (idem, p. 38), diz Massumi, tomando emprestado um
termo de Guattari, ou ainda, em suas próprias palavras, uma política animal. Ele,
então, delineia quatorze diretrizes – “preliminares, a serem completadas de acordo
com o apetite” (idem) que lhe permitem urdir uma ideia de política: 1º) que
devolve o humano ao contínuo da vida como animal com instinto; 2º) que não
pode ser normativa, tendo que sempre superar o dado em cada situação; 3º) que
não opõe o sério ao frívolo pois compreende que mesmo o que não tem função,
como a brincadeira, é parte do processo pelo qual a vida cria e se transforma; 4º)
que não é representacional, mas performativa; 5º) que abandona o conceito de
agência em favor de processos de devir transindividuais; 6º) cujo critério ético-
estético é afetivo e se encontra na inclusão mútua do não ainda expresso e do que
já o é, assim como na brincadeira; 7º) que é sempre relacional – o afeto se dá
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sempre entre pelo menos dois – e transindividual, ou seja, que abraça o terceiro
incluído; 8º) que é totalmente situada sem ser contextualizada – ou seja, que
singular e não particular –, in-formando (formando-se por dentro) em vez de
conformar-se (aplicar o particular ao geral); 9º) que diz respeito ao gesto não-
verbal da brincadeira e faz a linguagem brincar, usando-a instintivamente; 10º e
11º) que abraça a inclusão mútua especulativa e pragmaticamente; 12º) que é uma
política do devir; 13º) que não teme o antropomorfismo baseado em múltiplas
diferenciações mas sem abraçar o grande divisor humanidade/animalidade e é
“animocentrada” (idem, p. 52); 14º) e, finalmente, que “não teme o instinto”
(idem, p. 54).
A política proposta por Massumi é menos uma política com os animais que
uma política que devolve o humano ao continuum da vida enquanto um animal –
não é por acaso que seu livro se intitula O que os animais podem nos ensinar
sobre política. O pronome “nos” insere a humanidade na vida como um lugar em
que trocas são possíveis (e até mesmo ensinamentos), ao mesmo tempo em que
diferencia humanos de animais. Nesse sentido, não se trata, para ele, de abolir as
duplas natureza-cultura / humanidade-animalidade, mas de sair de seu dualismo
em direção à intensificação de seu contínuo, “para inventar movimentos
139
de modo situado, não podendo postular portanto regras de ação, mas apenas
diretrizes – sempre incompletas, como ele lembra. Mas talvez por isso mesmo
pareça fora de tom a invocação da democracia como finalidade – ainda que
revolucionária, o que poderia ser interpretado como em devir, ou seja, jamais
pronta, antes como “geografia, [...] orientações, direções, entradas e saídas”
(Deleuze e Parnet, 1998, p. 2)67. O filósofo poderia, quem sabe, ter falado em
66
Em Jamais fomos modernos, Latour propõe, como um dos “herdeiros das Luzes”
(Latour, 1994, p. 140) que as deseja “sem a modernidade” (idem, p. 17), este Parlamento, uma
“democracia estendida às coisas” (idem), criada pela recomposição da “continuidade do coletivo”
(idem, p. 142) como substituto da Constituição bicameral moderna que separa natureza de
sociedade: “Não há mais verdades nuas, mas também não há mais cidadãos nus. Os mediadores
dispõem de todo o espaço. As Luzes encontraram enfim seu lugar. As naturezas estão presentes,
mas com seus representantes, os cientistas, que falam em seu nome. As sociedades estão presentes,
mas com os objetos que as sustentam desde sempre” (idem, p. 142). O caminho até esse
parlamento tem um caráter não revolucionário, mas de reforma: “Não teremos que criar este
Parlamento passo a passo, apelando para mais uma revolução. Temos simplesmente que
homologar aquilo que todos nós fazemos desde sempre, contanto que repensemos nosso passado,
que sejamos capazes de compreender retrospectivamente o quanto nós jamais fomos modernos, e
que juntemos as duas metades deste símbolo partido [a política, partida entre as ciências e técnicas,
e a sociedade]” (idem), afirmando deixar a outros a composição deste parlamento.
67
Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari afirmam que “as democracias são maiorias,
mas um devir é por natureza o que se subtrai sempre à maioria” (Deleuze e Guattari, 2009, p. 140-
141), e a criticam em sua forma Estado: “Quem pode manter e gerar a miséria e a
desterritorialização-reterritorialização das favelas, salvo polícias e exércitos poderosos que
coexistem com as democracias? Que social-democracia não dá a ordem de atirar quando a miséria
sai de seu território ou gueto?” (idem, p. 138); mas aventam a possibilidade de “um devir-
democrático que não se confunde com o que são os Estados de direito” (idem, p. 145).
140
encontra fora, mas que nunca houve o propriamente humano – além de fazer parte
da animalidade, a humanidade é, em sua constituição, mais- ou outra-que-humana:
Pense apenas no modo pelo qual o “cérebro intestino” do sistema nervoso entérico
modula experiência consciente, ou nas inflexões de fundo do afeto pelos
hormônios, ou na orientação fluente da experiência pelo sistema proprioceptivo ou
na aprendizagem do que é chamado “memória muscular” ou, mais no ponto deste
ensaio, no instinto (idem, p. 93).
3.8.
Política animal
Embora não se sinta capaz de conjecturar acerca dos processos que levaram a esse
tipo de relação entre formigas, ele afirma que “não vê dificuldade em a seleção
natural aumentar e modificar o instinto – supondo que cada modificação deva ser
útil para a espécie – até que uma formiga se tenha tornado abjetamente
dependente de seus escravos” (idem, p. 224).
Das quase 15 mil espécies de formigas conhecidas, a dulose (do
grego δοῦλος, servo, escravo) foi observada e descrita em apenas 50 delas
aproximadamente (cf. Sekhar, 2015), sendo por isso considerada “uma das
relações interespecíficas mais incomuns no mundo animal” (Czechowski e
Godzinska, 2015, p. 9). Ainda assim, as formigas costumam figurar como
exemplos de tirania entre os animais, de sua imoralidade ou da brutalidade do
mundo natural. Uma série de estudos recentes mostra que as formigas cativas
desenvolvem uma coleção de estratégias contra suas hospedeiras, como agressão
física, tentativa de reprodução dentro da colônia, sabotagem contra ovos e pupas,
que podem chegar a uma mortalidade de mais de 70%, e mesmo emancipação (cf.
Achenbach e Foitzik, 2009; Pamminger et alii, 2012; Czechowski e Godzinska,
2015), complicando os modos pelos quais essas relações são compreendidas. Na
conclusão de “Enslaved ants: not as helpless as they were thought to be”,
Czechowski e Godzinska exprimem a “esperança” de terem “demonstrado de
142
modo convincente que as formigas escravizadas não são tão indefesas como se
pensava e podem se defender contra a exploração das escravizadoras de muitos
modos diferentes” (Czechowski e Godzinska, 2015, p. 19).
A zoóloga Joan M. Herbers, que por muitos anos estudou evolução social de
formigas, manifestou em 2007 um desagrado em relação à linguagem usada para
se referir à dulose; diversas vezes, conta, ela foi questionada sobre a ligação entre
a escravidão entre formigas e a escravidão humana, como se a primeira de algum
modo informasse a segunda, um tipo de rudimento natural que explicaria a prática
na humanidade; como se a existência de escravidão entre formigas, na medida em
que estas são formas mais primitivas de vida e totalmente inseridas na natureza,
justificasse a escravização como algo natural, um instinto no sentido de
mecanismo originário latente. Ademais, ela prossegue, a imagem da escravidão
para descrever o comportamento de determinadas espécies de formigas levou à
criação e ao uso do termo racista “negro ant” em referência à Formica Fusca, em
uma operação de naturalização e indistinção que apaga tanto as diferenças entre
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De Waal comenta que, no caso de uma família tão distante dos humanos quanto a
Formicidae, chamar as formigas que habitam uma colônia de rainhas, soldados,
trabalhadoras – ou escravas – não é senão uma “estenografia antropomórfica”, isto
é, quase um código resumido destinado a significar outra coisa. Esta não é uma
crítica ao antropomorfismo, de que de Waal na verdade é um defensor, mas ao
143
Nesse caso, ele continua, não chamar de risada o que esses primatas fazem só
seria possível caso se pudesse demonstrar que, ao gargalhar, os animais estariam
em um estado mental diferente dos humanos, invertendo o fardo da prova
comumente usado em seu prejuízo. Para ele, “ausente a evidência”, seguindo o
lema da ciência experimental, “riso me parece a melhor denominação para
ambos” (idem):
Barreiras linguísticas injustificadas fragmentam a unidade que a natureza nos
apresenta. Humanos e macacos [apes] não tiveram tempo suficiente para
desenvolverem um comportamento tão surpreendentemente similar como o contato
labial para saudação ou respiração ruidosa em resposta a cócegas. Nossa
terminologia deve honrar as óbvias conexões evolutivas (idem, p. 26).
144
68
É possível que de Waal discordasse desta afirmação, considerando que as formigas estão
muito distantes dos humanos para que se as dote de uma política; por outro lado, a sua intensa
socialidade talvez tornasse irresistível, para o primatólogo, a atribuição a elas de uma política. De
todo modo, as formigas só costumam aparecer em sua obra nas narrativas sobre as técnicas
desenvolvidas por primatas para apanhá-las.
145
questão, eram chefiadas por um macho alfa e uma fêmea alfa. Porém, depois de
13 anos (de 1986 a 1998) observando no campo a mesma alcateia, a Ellesmere
Island pack, ele percebeu algo assombroso: que os lobos, afinal, não eram
dominados por indivíduos cuja agressividade e força superior os mantinham, por
meio de lutas, em seu posto, mas que seus líderes eram simplesmente aqueles que
se reproduzem, ou seja, os pais e as mães da alcateia. Acontece que até ali
nenhum trabalho extenso de observação do mesmo grupo em seu território havia
sido feito e todos os dados disponíveis vinham de lobos em cativeiros, ou seja,
animais que não possuíam laços de parentesco, restando-lhes a agressividade
como estratégia organizacional. Em seu habitat, sem as restrições espaciais e o
convívio forçado do confinamento, o que os lobos mostraram a Mech foi
que a alcateia típica [...] deve ser vista como uma família, com os pais adultos
guiando as atividades do grupo e compartilhando a liderança do grupo em um
sistema de divisão de trabalho no qual a fêmea predomina primariamente em
atividades como cuidado dos filhotes e defesa e o macho primariamente
forrageando, provendo comida e as viagens associadas a elas (Mech, 1999, p.
1202).
Os termos “macho alfa” e “fêmea alfa” deram então lugar a outros como
“progenitor”, “progenitora”, “macho reprodutivo” e “fêmea reprodutiva”. O
biólogo explica que “o ponto aqui não é tanto a terminologia, mas o que a
146
Quando Shirley Strum partiu para o Quênia em 1972, ela conta, interessava-
se pela continuidade entre humanos e primatas outros que humanos. Muitos
cientistas da época, segundo ela, acreditavam possuir já a chave da evolução e
sustentavam o credo de que éramos os bisnetos de espécies agressivas que viviam
em grupos pequenos e coesos, dominados por machos em constante e violenta
disputa pela liderança, e cujas fêmeas resignavam-se em ser sua parte passiva,
cuidando de bebês, sem a necessidade, portanto, de “habilidades políticas
masculinas” (idem, p. 7). Embora nenhum de nossos ancestrais vivesse então na
África, tínhamos ali parentes bem próximos que serviam para esse tipo de
pesquisa, e Strum foi estudar os babuínos-anúbis (Papio anubis), que, assim como
os primeiros humanos, habitam savanas – algo muito incomum entre primatas. A
primatóloga carregava consigo a esperança de observar melhor as fêmeas e
crianças do bando, até ali negligenciadas, segundo sua opinião; talvez elas fossem
mais interessantes do que a literatura tradicional até ali supunha; talvez os
babuínos não fossem tão violentos.
Quando o trabalho de fato começou e Strum foi levada até a gangue, foi
aconselhada a observá-los apenas à distância, através de binóculos, como seus
colegas: “tinha o sinistro sentimento de ser uma Peeping Tom” (idem, p. 18), ela
comenta. Aos poucos e sozinha, finalmente conseguiu se aproximar dos babuínos
147
a ponto de caminhar por entre eles – mas sem jamais tocá-los, mantendo-se fora
de seu círculo social. O que o seu trabalho de campo, que hoje é provavelmente o
mais longevo do tipo, contando com mais de 40 anos, revelou foi quase o avesso
do modelo patriarcal e sanguinário: babuínos são matrilineares e seus grupos
construídos em torno das fêmeas – os machos vêm e vão –, as negociações,
inclusive sobre a natureza do grupo, são intensas (Strum menciona uma fusão
entre grupos cuja negociação durou dois anos), a amizade entre machos e fêmeas
e entre machos e filhotes é cultivada e desempenha importante papel na resolução
de conflitos e na cooperação, não há chefe individual, mas a influência de um
indivíduo varia segundo características suas (idade, tamanho, conhecimento,
força) e o contexto, e a agressão é incomum – de fato, segundo Strum, os
babuínos que se agridem o fazem de modo quase coreografado, como em uma
dança, e ao fim desses combates não costumam estar muito machucados (cf.
Strum, 1987; 1998; 2012). Ela também os observou brincar. Como notou Strum,
essa atividade é acompanhada de uma “cara de brincadeira”, que exprime “a
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***
4.1.
Arte
4.1.1.
Rotpeter e Consul
Logo nas primeiras páginas de Kafka: Pour une littérature mineur, Deleuze
e Guattari informam ao leitor que não pretendem tratar da obra do escritor em
termos interpretativos ou procurando encontrar nela arquétipos ou estruturas, e
expõem uma espécie de declaração de princípios que os guiará em sua leitura:
Não cremos senão em uma política de Kafka, que não é nem imaginária nem
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simbólica. Não cremos senão em uma ou mais máquinas de Kafka, que não são
nem estrutura nem fantasma. Não cremos senão em uma experimentação de Kafka,
sem interpretação nem significado, mas somente protocolos de experiência
(Deleuze e Guattari, 1975, p. 14).
Em seguida, para reforçar ou ilustrar tais crenças, os autores citam uma passagem
de “Relatório a uma academia”, conto de Kafka no qual o narrador, um ex-
macaco, encerra sua exposição alegando não querer o “julgamento dos homens”,
satisfazendo-se em “difundir conhecimentos” e relatar (Kafka, 1994, p.67). É
Rotpeter, ou Pedro Vermelho na tradução de Modesto Carone, quem fala, e é ele
que, além de prover Deleuze e Guattari com talvez o próprio método por meio do
qual adentrar a obra de Kafka, vai enunciar um dos conceitos mais importantes do
livro, o de saída (issue, em francês): “a possibilidade de uma saída por onde
escapar, uma linha de fuga” (Deleuze e Guattari, 1975, p. 23). Um dos sentidos da
política na literatura de Kafka diz respeito à possibilidade fazer fugir ou escapar
uma situação, não de uma situação; em lugar de compreender a obra do escritor
como crítica, que para os autores se encontraria no nível da representação – do
lado de fora ou de dentro, no sentido de uma crítica do mundo ou de uma
autocrítica (cf. idem, p. 85) –, para eles “Kafka não fugia para ‘fora do mundo’,
era antes o mundo e a sua representação que ele fazia vazar (no sentido de um
cano que vaza) e que ele enredava nessas linhas” (idem). Em “Micropolítica e
149
69
Cf. primeiro capítulo, nota 8.
150
Essa saída que Pedro Vermelho percebe não existir é a saída molar: “em
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linha reta ela não existia”; o que ele precisa fazer então é sair intensivamente,
tornar-se capaz, e mudar a situação por meio desse movimento. Mas por que
Pedro estava sem saída? No conto, ele já se encontra, no momento em que
enuncia essas palavras, diante de um auditório acadêmico, com o objetivo de
relatar o modo pelo qual havia deixado de ser macaco para tornar-se homem – sua
saída. Para tanto, precisa também narrar a seus ouvintes o que precipitou a
necessidade de se transformar, o que faz seu relato recuar até a infância. Ele conta
que nasceu na Costa do Ouro, região da África ocidental, atualmente parte de
Gana, que começou a ser colonizada pelos europeus ainda no século XV e cuja
história envolve a importação de escravos para trabalhar nas minas auríferas que
deram nome ao lugar – pelo menos 10 mil foram levados para lá durante a
primeira metade do século XVI (cf. Ferreira, 2010) – além, mais tarde, do envio
forçado de pessoas para as Américas: “entre 1662 e 1700, as exportações
britânicas de escravos [...] chegariam a 55.288 cativos e os holandeses
embarcariam 9.263 escravos para as Américas” (Ferreira, 2010, p. 485).
Pedro Vermelho também é alguém que, durante o domínio do Império
Britânico da área (1867-1957), fora capturado e transportado contra a sua vontade.
Sua história pertence àquela da colonização e do capitalismo, que incluía o
comércio de animais selvagens com o objetivo de um fornecimento sem fim de
151
quem sabe, animais peçonhentos que o matassem ou, caso nada disso acontecesse,
o afogamento certo no oceano – um afogamento que se pareceria com aquele de
Nikkie, o chimpanzé mais poderoso da Holanda, que justamente procurou escapar
para fora. Pedro Vermelho pondera: “Se eu fosse um adepto da já referida
liberdade, teria com certeza preferido o oceano a essa saída que se mostrava no
turvo olhar daqueles homens” (idem, p. 63). Talvez Nikkie, do alto de seus
poderes, tenha preferido a liberdade.
A saída de Pedro Vermelho precisou então ser intensiva: como uma
infiltração que produz ranhuras em um cano antes de ele vazar, ele tomou a
decisão de criar linhas possíveis pelas quais seguir: resolveu tornar-se humano. De
início ele o conseguiu extensivamente, pela imitação – o macaco imitava os
homens do navio bebendo e fumando, os macaqueava –, mas essa imitação foi
apenas a estratégia encontrada por ele para efetuar sua fuga intensiva, qual seja,
“produzir um contínuo de intensidades em uma evolução a-paralela e não
simétrica na qual o homem não devém menos macaco que o macaco devém
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Em outra passagem, esse duplo devir fica ainda mais claro: Pedro Vermelho, ao
falar sobre sua vida de artista, conta que seu “empresário está sentado na
antessala; se toco a campainha ele vem” (Kafka, 1994, p. 67). Em uma inversão
do que reza o behaviorismo de Pavlov, é o humano que reage ao animal pelo
toque de uma campainha; o devir-humano do macaco arrasta consigo o homem
em um devir-macaco, em um devir-animal. No começo de sua narrativa, Pedro
Vermelho, em uma provocação darwinista, adverte os ouvintes: “Falando
francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si
153
algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está
distante de mim” (idem, p. 58). O ex-macaco, assim, desafia a crença em uma
história arborescente da evolução, que situa os animais antes do homem e a
natureza fora da cultura; ao resistir a se fixar no início da humanidade, a ser seu
antepassado, ele se constitui como um outro.
Pedro Vermelho faz, ainda, no começo do relato, uma descrição a respeito
de sua vida símia e livre que lembra aquelas de Sokolowsky sobre a psiquê dos
gorilas confinados que se apegavam à lembrança do sentimento de liberdade e por
isso pereciam, sendo posteriormente encontrados imóveis em suas jaulas com os
rostos virados para baixo. Seu feito, sua saída, a possibilidade de sobrevivência,
tornar-se homem, diz Pedro Vermelho, “teria sido impossível se eu tivesse
querido me apegar com teimosia à minha origem e às lembranças de juventude”
(idem, p. 57); antes desta decisão, entretanto, sobre seus primeiros dias no navio à
vapor Hagenbeck, ele comenta que “a princípio eu provavelmente não queria ver
ninguém e desejava estar sempre no escuro” (idem, p. 59). Mas, diferentemente
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dos tristes filósofos de Sokolowsky, sem saída e por isso mortos poucos dias
depois de terem chegado ao zoológico, Pedro Vermelho encontrou uma saída no e
pelo conto kafkiano. Fora do conto, sua história ressoa a da vida de Consul, um
chimpanzé que viveu no zoológico de Belle Vue, em Manchester, no final do
século XIX, e cuja biografia Baratay escreveu.
Consul, que recebeu seu nome em homenagem ao cônsul britânico de Serra
Leoa, nasceu não muito longe de Pedro Vermelho e, como tantos outros animais
na mesma situação, ao ser capturado, teve sua mãe assassinada, após o que passou
a viver entre serviçais indígenas em uma casa de donos europeus, onde chamava a
atenção por participar de jogos que envolviam ferramentas, como pequenas
lanças, até que finalmente, em 1893, foi vendido ao zoológico de Belle Vue. Ali,
foi treinado para se apresentar ao público tomando chá, totalmente vestido e
manejando xícaras, prato, garfo e colher com destreza; ao final do repasto, devia
recolher os utensílios, mostrando hábitos humanizados ou, como observa Baratay,
ocidentalizados. O que tornou o chimpanzé famoso, observa o autor, foi sua
“recusa de uma simples vida de animal de zoológico e sua insistência em se
inserir no mundo humano” (Baratay, 2017, p. 1678):
Desde a sua chegada, Consul devia se exibir três vezes por dia em público, às 9h,
às 12h e às 17h para o chá. Moldado por Webb [seu treinador], ele aprendeu pouco
154
por mais tempo. Começou a ser levado pela mão para observar os outros animais
enjaulados e jamais se assustava ou agia inesperadamente; pelo contrário, tendo
compreendido que tipo de comportamento lhe permitia estar fora, ele o cultivava:
Experimentava modos humanos nessas ocasiões; começava pela máquina de
chocolate na frente de sua jaula, cujo manuseio ele deve ter espiado; prosseguia até
a panificação, abria e fechava as gavetas, monitorava as operações, aprendeu
sozinho a equilibrar a balança com os pesos; alhures, examinava atentamente e
manipulava ferramentas, compreendia frequentemente seus fins; molhava os cantos
do piso ainda secos com um cano, pintava o pedaço do muro ainda sujo com o
pincel, levantava as tampas com o cinzel do carpinteiro, encontrava mesmo uma
‘fonte de prazer’ em abrir caixas cuidadosamente pregadas que preparavam para
ele. Consul imitava, não macaqueando, mas observando, compreendia, aprendia
[...] (idem, p. 1818).
Assim como Pedro Vermelho, Consul não macaqueava, mas observava e imitava
com o objetivo de sair, sair da jaula, fazer o que fosse preciso para passar mais
tempo fora. À certa altura, conforme conta Baratay, ele começou a frequentar o
bar à noite, onde bebia e fumava com os outros frequentadores, apontando para
suas garrafas favoritas. Como aconteceu com Pedro, o consumo “civilizado” de
álcool e tabaco também foi uma porta de entrada para o mundo humano (de saída
do mundo dos animais de zoológico). Em 1894, entretanto e infelizmente, o
chimpanzé caiu doente, uma enfermidade de causa desconhecida – que o
historiador aventa ter sido contraída pelas centenas de apertos de mão que Consul
155
Consul, talvez o primeiro chimpanzé a ter encontrado uma saída ao mundo dos
zoológicos, por meio de um esforço monumental no sentido de aprender como era
preciso agir para ser aceito entre os homens, pereceu depois de menos de dois
anos de sucesso. Depois de sua morte, seus feitos eram tão bem vistos e seu caso
considerado como tão bem sucedido que houve quem lamentasse pelos
chimpanzés selvagens “que não tiveram ‘jamais as vantagens da sociedade
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4.1.2.
Literatura e povo
idem, p. 13), para o filósofo a literatura é uma questão de saúde, de liberação das
enfermidades: “Qual saúde bastaria para libertar a vida em toda parte onde esteja
aprisionada pelo homem e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior
deles?” (idem, p. 14). Essa saúde, ele responde em seguida, diz respeito a
“inventar um povo que falta” (idem): “Compete à função fabuladora inventar um
povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a
origem ou a destinação coletiva de um povo por vir ainda enterrado em suas
traições e renegações” (idem). Para compreender como é possível criar ou invocar
um povo – um povo que falta – por meio da escrita, é preciso delinear a relação
entre enunciação e coletividade. Em Kafka, pour une littérature mineur, lê-se que
“a enunciação literária mais individual é um caso particular de enunciação
coletiva” (Deleuze e Guattari, 1975, p. 150). Isso não quer dizer, entretanto, que o
sujeito que escreve seja o povo ele mesmo, ou que o povo seja o objeto da escrita:
o escritor “atual e a comunidade virtual – todos os dois reais – são as peças de um
agenciamento coletivo” (idem). Em Diálogos, esse nexo fica mais claro:
É sempre um agenciamento que produz os enunciados. Os enunciados não têm por
causa um sujeito que agiria como sujeito da enunciação, tampouco não se referem a
sujeitos como sujeitos de enunciado. O enunciado é o produto de um
agenciamento, sempre coletivo, que põe em jogo, em nós e fora de nós,
populações, multiplicidades, territórios, devires, afetos, acontecimentos. O nome
próprio não designa um sujeito, mas alguma coisa que se passa ao menos entre dois
158
termos que não são sujeitos, mas agentes, elementos. Os nomes próprios não são
nomes de pessoa, mas de povos e de tribos, de faunas e de floras, de operações
militares ou de tufões, de coletivos, de sociedades anônimas e de escritórios de
produção (Deleuze e Parnet, 1998, p. 43).
Isto é, o povo que falta, esse que é invocado e ao qual os artistas podem
fazer apelo, pode ser compreendido desde uma questão de perspectiva: o povo que
falta é o povo denegado pelo mestre, pelo colonizador, por aquilo que é maior e
padrão. A cada vez que um ministro de Estado sugere que a Amazônia é apenas
uma coleção de árvores ou um grupo de pessoas; que rios são barrados para a
construção de hidrelétricas; que se conduz fraturamento hidráulico em um terreno;
que uma floresta é derrubada para monocultura; que se declara guerra a uma
espécie, seja ela de mosquitos ou gatos e em tantas outras ocasiões, é o povo –
todas aquelas multiplicidades que, humanas e também outras que humanas, fazem
aí seus mundos – que falta. Falta e se inventa, falta e é chamado, falta e não falta.
O povo que falta não é uma questão de messianismo – não se trata de um povo
eleito ou emancipado, exclusivo ou universal70– mas de devir:
O artista ou o filósofo são bem incapazes de criar um povo, só podem invocá-lo,
com todas as suas forças. Um povo só pode ser criado em sofrimentos
abomináveis, e tampouco pode cuidar de arte ou de filosofia. Mas os livros de
filosofia e as obras de arte contêm também sua soma inimaginável de sofrimento
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Faltam e não faltam os povos dos animais de trabalho, dos confinados, caçados,
cobaias, indesejáveis, não-amados, não-queridos, das pestes e pragas – todos
aqueles que não se constituem como fins em si mesmos, que não têm dignidade
mas apenas preço, como dizia Kant em sua Metafísica dos Costumes (cf. Kant,
2013). Quem faz apelo a eles?
Na literatura, o povo que falta muita vezes se exprime na forma de povos
animais. Em entrevista a Antonio Negri, Deleuze disse que “o povo é sempre uma
minoria criadora, e que permanece como tal, mesmo quando conquista uma
maioria: as duas coisas podem coexistir pois não vivem no mesmo plano”
(Deleuze, 2004, p. 231) – molaridade e molecularidade. Embora um povo possa
requerer maioria para sua sobrevivência na forma da luta por direitos
reconhecidos por um Estado, por exemplo, ele permanece sempre menor, pois sua
potência jaz na invenção, na criação, em suas linhas de fuga; essas invenções
podem ser traduzidas para o modelo, mas nunca deixam de continuar acontecendo
70
Sobre o “caso Heidegger”, “um grande filósofo [que] se reterritorializ[ou] sobre o
nazismo”, Deleuze e Guattari explicam que ele “ele se enganou de povo, de terra, de sangue. Pois
a raça invocada pela arte ou a filosofia não é a que se pretende pura” (Deleuze e Guattari, 2009, p.
141); na sequência do texto, fazem referência a Kant, que por sua vez invocou um povo “saído [...]
de sua menoridade” (cf. Kant, 2005, p. 63), excluindo da comunidade esclarecida todos aqueles
que não querem ou não podem sair dela.
160
abnegada e sem artistas, explica que ela não é uma salvadora: de modo muito
menos teleológico e profundamente político, ela, com seu canto, invoca um povo:
Esse assobio, que se eleva onde o silêncio se impõe a todos os outros, chega ao
indivíduo quase como uma mensagem do povo; seu assobio fino, em meio às
decisões difíceis, é quase como a existência miserável de nosso povo em meio ao
tumulto do mundo hostil (idem, p. 47).
Kafka invoca Josefina que faz apelo a um povo. Segundo Max Brod em sua
biografia do escritor, a nomeação deste conto foi um dos últimos atos de sua vida
e ele lhe teria passado um bilhete no qual se lia: “Ao conto é preciso dar um título
novo: ‘Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos.’ Um título com ou não é
muito belo, mas talvez tenha um significado particular. Recorda um pouco o
equilíbrio” (Kafka apud Brod, 1956, p. 231-232). Singularidade e coletividade.
Deleuze dizia que Kafka apresentava a literatura “como a enunciação coletiva de
um povo menor, de todos os povos menores que só encontram expressão no
escritor e através dele” (Deleuze, 1994, p. 14). E, de fato, quem canta o povo dos
ratos? Primeiramente é Josefina, que, vocalizando uma estranha música, um
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(idem, p. 8792). Mais uma vez, o que está em jogo é uma singularidade, esta
formiga que deixou uma mensagem, e uma coletividade – o povo das formigas,
sua enunciação. Tal característica da língua Formiga torna o gênero da escrita nas
sementes indiscernível entre “uma autobiografia ou um manifesto” (idem, p.
8742). Não indistintos, mas avizinhados, em comunicação, em devir; esse é o
modo singular e impessoal pelo qual as formigas habitam ou expressam seu
mundo:
A máquina literária substitui assim uma máquina revolucionária por vir, de modo
algum por razões ideológicas, mas porque apenas ela está determinada a preencher
as condições de uma enunciação coletiva que falta por todo o canto neste meio: a
literatura é questão do povo (Deleuze e Guattari, 1975, p. 32).
autor-narrador explica que há quem entenda essa exortação como oriunda de uma
fêmea trabalhadora e portanto estéril, que sonha em ser macho para poder voar
com a rainha em núpcias para uma nova colônia. Mas há uma outra possibilidade,
ele lembra, menos “etnocêntrica” (idem, p. 8756): costuma-se interpretar a
exortação “para o alto!” de modo positivo porque em nosso mundo acostumamo-
nos a relacionar a altura ou o céu com a bem-aventurança; as formigas, por sua
vez, são criaturas subterrâneas. O alto para elas certamente é de onde vem a
comida, mas pode significar principalmente o “sol escaldante; a noite congelante;
nenhum abrigo nos amados túneis; exílio; morte” (idem). Esse caminho de
compreensão encontraria uma solução de tradução mais apropriada para o
entendimento humano em “Abaixo a rainha!”, “a máxima blasfêmia concebível
para uma formiga” (idem). O artigo conclui com a informação de que aquele
formigueiro fora destruído em guerra com outro, algum tempo depois do
assassinato por decapitação da autora das sementes de acácia. Uma traidora?
Conspiradora? Anarquista? Poeta? Uma rebelde, como aquelas que resistem aos
trabalhos forçados impostos por outras espécies?
O tradutor – ou tradutora, o conto não deixa claro – precisa entrar em um
devir-formiga para compreender aquelas sementes. As mensagens deixadas
obrigam quem quer que deseje entendê-las a se deixar arrastar até um contínuo
163
4.1.3.
Devir-animal
senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como
designação de identidades fixas” (idem, p. 3).
Um dos trechos citados por Deleuze para ilustrar a “identidade infinita” que
é o paradoxo mesmo do puro devir envolve uma espécie de confusão (ou confusão
de espécie) experimentada por Alice quando, ao perseguir o coelho, no começo de
sua aventura, cai em um buraco profundo: “‘Será que os gatos comem os
morcegos?’ é o mesmo que ‘será que os morcegos comem os gatos?’” (idem). No
texto de Lewis Carroll, no entanto, a confusão parece ainda maior:
Para baixo, para baixo, para baixo. Não havia nada mais a fazer, então Alice logo
começou a falar de novo. “Dinah vai sentir muito a minha falta, eu acho!” (Dinah
era a gata). “Espero que se lembrem de seu pires de leite na hora do chá. Dinah,
minha querida! Queria que você estivesse aqui embaixo comigo! Não há ratos no
ar, desconfio, mas você poderia pegar um morcego, que é muito semelhante a um
rato, sabe. Mas será que gatos comem morcegos, eu me pergunto.” E aqui Alice
começou a ficar com muito sono, e continuou dizendo a si mesma, meio sonhando:
‘Gatos comem morcegos? Gatos comem morcegos?” e, às vezes, “Morcegos
comem gatos?”, pois, percebam, como ela não conseguia responder à nenhuma das
questões, não importava muito a ordem em que as punha. Ela sentiu que estava
adormecendo e tinha começado a sonhar que estava andando de mãos dadas com
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Dinah, e lhe dizia de modo muito franco: “Agora, Dinah, diga-me a verdade: você
já comeu um morcego?”, quando, de repente, cataploft!, caiu em cima de um
amontoado de gravetos e folhas secas e a queda tinha terminado (Carroll, 1998, p.
4-5).
Dinah, a gata, certamente gosta de caçar ratos – mas não há ratos no buraco. Há,
por outro lado, morcegos, que são muito parecidos (very like) com ratos, Alice
pensa. Então, se gatos comem ratos e ratos são muito parecidos com morcegos,
será que gatos comem morcegos? Ou será que morcegos comem gatos? Para
Deleuze, segundo o paradoxo do devir, como vimos, as duas perguntas tornam-se
indistinguíveis, pois o devir “não se detém nunca, nos dois sentidos ao mesmo
tempo, sempre furtando-se ao presente, fazendo coincidir não só passado e futuro,
mais e menos” (Deleuze, 2003b, p. 1), mas também causa e consequência. O que
se segue daí é a perda da identidade pessoal, que precisa de um ponto fixo, de
“uma permanência” (idem, p. 3).
O devir, como vimos nessa breve análise, é “devir puro”, “devir louco”.
Mas na obra subsequente de Deleuze o conceito retorna diferente, hifenizado:
devir-animal, devir-mulher, devir-índio, devir-intenso, devir-imperceptível.
Iremos nos deter na primeira dessas modalizações, o devir-animal..
Na verdade, talvez seja possível começar a pensar o devir-animal, antes
sequer de sua primeira aparição – no livro sobre Kafka – a partir de um outro
165
Neste ponto, Alice tem no colo uma criatura que não é nem mais bebê-humano
nem ainda porco (“era impossível distinguir”); nos dois parágrafos seguintes a
transformação se completa e o bichinho vai-se embora trotando bosque adentro.
Wonderland, o reino do acontecimento, não faz apenas com que Alice possa se
tornar maior e menor ao mesmo tempo, perdendo sua identidade; também causa
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malvada. Gregor Samsa tornara-se inseto para escapar de ser burocrata; do bebê
sabemos pouco, talvez tenha se tornado porco para escapar aos maus-tratos.
Talvez tenha se tornado porco para não chegar a ser capturado pelo mundo da
nobreza ou mesmo para escapar de ser homem. O que sabemos de fato é que ele
escapa para dentro do bosque tão logo Alice o tira do castelo.
Em uma conferência intitulada “Qu’est-ce qu’un devenir, pour Gilles
Deleuze?”, de 1997, François Zourabichvili procura “expor”, ainda que sob a
forma de um esboço, o conceito de devir. Devir, ele diz, é antes de mais nada
mudar:
é não mais se comportar nem sentir as coisas da mesma maneira; não fazer mais as
mesmas avaliações. (...) “devir” significa que os dados mais familiares da vida
mudaram de sentido, ou que nós não mantemos mais as mesmas relações com os
elementos habituais de nossa existência: o conjunto todo é reencenado de outra
maneira (Zourabichvili, 1997, p. 2).
Para que essa mudança aconteça, como vimos no primeiro capítulo, é necessária
“a intrusão de um fora” (idem), que deve ser um fora total, uma “outra coisa que
si mesmo”, isto é, o não-humano. “... é preciso admitir que não encontramos em
sentido forte senão o não-humano, o inumano” (idem, p. 3) – ainda que se trate de
outro humano; se há um encontro entre dois humanos, o que se encontra no outro
deve ser a sua não-humanidade. Um devir é, assim, uma relação entre termos
167
Para Zourabichvili, o devir será, assim, uma “identificação sem identidade, uma
comunicação sem nada comum” (p. 5). Os dois termos que se encontram,
irredutivelmente diferentes, entram em uma relação que se bifurca em duas, uma
para cada um em direção ao outro, e essa relação “modifica a economia interna de
cada um dos termos. (...) A relação se estabelece menos entre um termo e outro
que entre cada termo e aquilo que ele capta do outro” (idem). A palavra que ele
usa é “ressonância” (idem, p. 9).
Quer dizer, de acordo com Zourabichvili, para um homem em devir-rato, o
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71
“Pode ser que o animal sinta de uma maneira inimaginável (ao ponto que a questão da
diferença entre uma sensação animal e uma sensação humana não tem nem sentido, pois uma
sensibilidade só é sensível no contato efetivo de uma outra), a sensibilidade que se torna a nossa
com o seu contato e que nós não podemos senão lhe atribuir não é menos objetivamente uma outra
maneira de sentir pela qual nós devimos-animal” (Zourabichvili, 1997, p. 9).
168
Afirmar que o devir-animal não é uma metáfora poderia parecer indicar que existe
um sentido próprio dos termos no devir; não é o caso, no entanto, pois “já não há
homem nem animal.” Zourabichvili explica, a esse respeito, que
[Deleuze] contesta a dualidade sobre a qual se construiu, desde sempre, o conceito
de metáfora: a utilização de um termo em seu domínio próprio e a utilização desse
mesmo termo fora de seu domínio. Ele critica essa dualidade por subordinar o
pensamento à ordem da mímesis, como se pode ver em Aristóteles: o conceito de
metáfora supõe a classificação natural, e o ato humano de classificar aparece, na
melhor das hipóteses, como uma duplicação. Ora, a experiência não justifica
absolutamente tal divisão natural das significações (Zourabichvili, 2005, p. 1314).
Para ele, a relação entre dois termos deve ser pensada “na ausência de
qualquer atribuição prévia e, consequentemente, para além da divisão entre a
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utilização própria das palavras e a sua utilização figurada” (idem, p. 1315). Dito
de outro modo, já não possuindo um sentido próprio, os termos em relação
adquirem sentido pela própria relação. Como Deleuze destacou diversas vezes,
trata-se da conjunção E no lugar do É. Em uma proposição tal como a de que
Zourabichvili faz uso, “o cérebro é uma erva”, temos então dois termos, cérebro e
erva; e, antes de querer dizer que o cérebro, este termo portador de um sentido
próprio e prévio, é como uma erva, palavra que também possui um sentido
anterior e próprio, mas que aqui passaria a assumir um sentido figurado, causando
no termo próprio cérebro a invasão desse sentido figurado, erva (não poderia se
tratar, segundo esse modo de pensamento, de uma erva em sentido próprio, é
claro), o que temos são cérebro e erva em uma relação que cria o seu sentido.
“Não existe sentido ou experiência a não ser na base de uma relação” (idem, p.
1316). No que diz respeito ao devir, isso fica ainda mais claro, já que ambos os
termos encontram-se desterritorializados72; o privilégio da relação sobre o sentido
72
A respeito das novelas animalistas de Kafka, Deleuze e Guattari dizem: “1º) Não há mais
lugar para distinguir o caso no qual o animal é considerado por si mesmo e o caso no qual há
metamorfose; tudo no animal é metamorfose, e a metamorfose está em um mesmo circuito devir-
homem do animal e devir-animal do homem; 2º) a metamorfose é como a conjunção de duas
desterritorializações, aquela que o homem impõe ao animal forçando-o a fugir ou o escravizando,
mas também aquela que o animal propõe ao homem, indicando-lhe saídas ou meios de fuga nos
quais o homem jamais teria pensado sozinho (a fuga esquizo); cada uma das duas
desterritorializações é imanente à outra, precipita a outra, e a faz atravessar um limiar; 3º) o que
169
Gregor Samsa tornando-se inseto para não virar burocrata). Trata-se do encontro
de duas heterogeneidades criando uma linha de fuga, do sujeito para o
agenciamento coletivo de enunciação. No devir-animal encontra-se a
possibilidade mesma do processo de individuação sem sujeito, isto é, de uma
hecceidade. O encontro com o animal – que é sempre um bando do qual se
escolhe aquele que vive à borda, o anômalo (sem nomos, e não anormal, que
supõe uma normalidade), quer dizer, de tipos como Josefina, a cantora do povo
dos camundongos – possibilita a relação de aliança em vez da de filiação, uma
“aliança demoníaca”, que desterritorializa o homem (“já não há homem nem
animal”).
Na seção “Lembranças de um feiticeiro”, do platô “Devir-intenso, devir-
animal, devir-imperceptível”, de Mil Platôs, Deleuze e Guattari explicitam o que
conta então não é de jeito nenhum a lentidão relativa do devir-animal; pois, por mais lento que seja
e quanto mais lento for, ele constitui nada menos que uma desterritorialização absoluta do
homem, por oposição às desterritorializações relativas que o homem opera sobre si mesmo ao se
deslocar, viajando; o devir-animal é uma viagem imóvel e no mesmo lugar, que não se pode viver
ou compreender senão em intensidade (atravessar os limiares de intensidade). O devir-animal não
tem nada de metafórico. Nenhum simbolismo, nenhuma alegoria. Também não é o resultado de
uma culpa ou de uma maldição, o efeito de uma culpabilidade. Como diz Mélville a propósito do
devir-baleia do capitão Achab, é um ‘panorama’, não um ‘evangelho.’ [...] o devir-animal não
deixa nada subsistir da dualidade de um sujeito de enunciação e um sujeito do enunciado, mas
constitui um único e mesmo processo, um único e mesmo processo que substitui a subjetividade”
(Deleuze e Guattari, 1975, p. 64-65).
170
famílias, enquanto que as famílias terão que conquistar contra eles o direito de
ajustar suas próprias alianças, de determiná-las segundo relações de dependência
complementar e de domesticar essa potência desenfreada da aliança (Deleuze e
Guattari, 2005, p. 30).
Ou seja, é possível que os animais não sejam assim tão heterogêneos, que
sua não-humanidade contenha ainda alguma humanidade. Nesse caso, corre-se o
171
risco de não se conseguir seguir a saída que surge no devir-animal até o fim. No
capítulo sobre devir-animal, esse perigo é descrito assim:
Então, evidentemente, a política dos devires-animais permanece extremamente
ambígua, pois as sociedades, mesmo primitivas, não deixarão de apropriar-se
desses devires para caçá-los e reduzi-los a relações de correspondência totêmica ou
simbólica. Os Estados não deixarão de apropriar-se da máquina de guerra, sob
forma de exércitos nacionais que limitam estritamente os devires do guerreiro. A
Igreja não deixará de queimar os feiticeiros, ou então de reintegrar os anacoretas na
imagem abrandada de uma série de santos que não têm mais com o animal senão
uma relação estranhamente familiar, doméstica. As Famílias não deixarão de
conjurar o Aliado demoníaco que as corrói, para ajustar as alianças convenientes
entre si. Ver-se-á os feiticeiros servirem aos chefes, colocarem-se a serviço do
despotismo, fazerem uma contra-feitiçaria de exorcismo, passar para o lado da
família e da dependência. Mas será também a morte do feiticeiro, como aquela do
devir. Ver-se-á o devir parir apenas um grande cachorro doméstico, como na
danação de Miller ("era melhor simular, fazer-se de animal, de cachorro, por
exemplo, agarrar o osso que jogariam para mim de tempos em tempos") ou a de
Fitzgerald ("tentarei ser um animal tão correto quanto possível, e se você me jogar
um osso com bastante carne por cima, talvez serei até capaz de lamber sua mão").
Inverter a fórmula de Fausto: então era isso, a forma do Estudante ambulante? um
reles cachorrinho! (idem, 2005, p. 30-32).
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4.1.4.
Cosmoliteratura
73
Eliane Martin-Haag encerra assim seu artigo: “Do ponto de vista que nos interessa, pode-
se dizer que a obra de Kafka marca, segundo Deleuze, o momento em que o devir-animal não é
mais suficiente para nos livrar dos agenciamentos do poder, a menos que se acelere a sua fuga e se
devenha uma máquina que nos faça imperceptíveis, indiscerníveis e impessoais. É preciso então
anunciar a morte do homem e a boa nova da imanência a fim de que cada um aspire a uma
individuação impessoal que exclua toda a hierarquia política e ontológica dos graus de ser”
(Martin-Haag, 2008, p. 16).
172
passado a juventude caçando todo tipo de bicho a que tinha acesso, seu interesse
pelos animais, mantendo-se sempre forte, mudou: “Eu me acusava de perturbar
suas vidas. Comecei a olhar para eles, vejam bem, a partir de seu próprio ponto de
vista” (idem, 1982, p. 16). Ver do ponto de vista do outro ou “senti-lo sentir em
nós” são algumas das maneiras de descrever o processo pelo qual o escritor é
atravessado por afetos não-humanos, pelo qual a escrita pode, de alguma forma,
encontrar um canal de comunicação intermundos. Hughes chega a afirmar, ao
descrever o processo de criação de um poema, que, ao fim dele, “você lerá o que
escreveu e vai ter um choque. Você terá capturado um espírito, uma criatura”
(idem, p. 19). Um de seus poemas mais famosos, “The Thought-Fox” (O
pensamento raposa), de 1955, funciona como um tipo de meta-poema:
The Thought-Fox
I imagine this midnight moment's forest:
Something else is alive
Beside the clock's loneliness
And this blank page where my fingers move.
Este poema não tem algo que facilmente se poderia chamar de um sentido. É sobre
uma raposa, obviamente, mas uma raposa que é uma raposa e não é ao mesmo
tempo. Que tipo de raposa é essa que pode pisar direto dentro da minha cabeça
onde presumivelmente ainda está... rindo para si mesma enquanto os cães latem. É
tanto uma raposa quanto um espírito. É uma raposa real; à medida que leio o
poema eu a vejo se mover, deixar suas pegadas, vejo sua sombra passar por sobre a
superfície irregular da neve. As palavras me mostram tudo isso, trazendo-a para
cada vez mais perto. É muito real para mim. As palavras fizeram um corpo para ela
e a deram por onde andar (idem, p. 20).
Do modo como é, cada vez que eu leio o poema, a raposa vem de novo da
escuridão e pisa dentro da minha cabeça. E suponho que muito depois de eu ter-me
ido, enquanto uma cópia do poema existir, a cada vez que alguém o ler, a raposa
74
Uma tradução literal e rudimentar deste poema resulta em algo do tipo: “Imagino a
floresta deste momento à meia-noite/Alguma outra coisa está viva/Além da solidão do relógio/E
desta página vazia em que meus dedos se movem//Através da janela não vejo estrelas:/Algo mais
próximo/Apesar de profundamente dentro da escuridão/Está entrando na solidão//Frio,
delicadamente como a neve escura/ Um nariz de raposa toca ramos, folhas/Dois olhos servem um
momento, aquele agora/e agora de novo, e agora e agora//Imprime pegadas nítidas na neve/Entre
árvores, e cautelosamente uma manca/sombra é atrasada por tocos e em oco/de um corpo que é
audaz por passar//Por entre clareiras, um olho,/Um amplo profundo verdor/Brilhantemente,
concentradamente/Cuidando de seus afazeres próprios//Até que, com um súbito forte quente fedor
de raposa/Entra no buraco negro da cabeça/A janela continua sem estrelas; o relógio
tiquetaqueia,/A página está impressa.”
174
levantar-se-á de algum lugar de dentro da escuridão e virá andando até ele ou ela
(idem, p. 16).
literaturas são sobras [...] Outras ordens de seres têm suas próprias literaturas. No
mundo dos cervos, a narrativa é uma trilha de odores que é transmitida de cervo
para cervo, com uma arte de interpretação instintiva. Uma literatura de manchas de
sangue, um pouco de urina, um cheiro de estro, um toque de cio, um arranhão
numa árvore jovem, e o desejo que se foi. E deve haver uma “teoria da narrativa”
desses outros seres – pode ser que ruminem sobre “intersexualidade”, ou “crítica da
composição” (Snyder, 2005, p. 266).
Le Guin, em “The Author of the Acacia Seeds”, também trabalha com essa
possibilidade; é, mais uma vez, o encontro entre escritores e animais
transformando ambos e transformando o que se entende por literatura. No conto,
alguns dos excertos da Revista de Terolinguística que se seguem à tradução das
sementes de acácia tratam de literaturas golfinho, pinguim (imperais e de adélia) e
mesmo de literaturas vegetais.
O pinguim-imperador, “um pássaro social” mas de “colônias menores e
muito mais quietas que as dos de adélia”, e cujos “laços [...] são mais pessoais ou
sociais”, sendo um “individualista”, produziria uma literatura de “autores
singulares em vez de corais”, uma “literatura cinética, mas quão diferente da
escrita marinha espacialmente extensiva, rápida e de coros múltiplos” (Le Guin,
2014, p. 8799). O script, roteiro, o meio e o repertório pelo qual a literatura desses
“escritores marinhos” que voam pelas águas vem ao mundo é “quase inteiramente
escrito em asas, pescoço e ar” (idem, p. 8771). O proponente do estudo sobre a
175
“The Author of the Acacia Seeds” possui três partes: a tradução das sementes, a
proposta de estudo da poesia do pinguim-imperador e um editorial que lança a
possibilidade da compreensão de literaturas vegetais. Le Guin assim alarga a
compreensão de literatura, devolve-a ao mundo, aos seres do e no mundo,
transformando-a em cosmoliteratura; aquela que é recrutada sempre como uma
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humanidade, seu lugar de dominação dos outros entes. Ela, ao encontrar animais,
ao ser transformada e transformá-los (por exemplo, ao postular a sua literatura),
constitui um mundo mais rico, de mais seres e pontos de vista que precisam, a
partir deste momento, ser levados em consideração. Ela opera, nas palavras de
Stengers, uma mudança cósmica; se o oikos muda pela entrada nele de outros
modos e sentidos de habitá-lo, novos ethoi são convidados a surgir. A literatura na
sua relação com os animais – com os extra-humanos – é, assim, cosmopolítica, e
as questões que ela nos coloca são urgentes: como endereçar esses outros povos?
O que eles têm a nos dizer sobre nosso modo vida, sobre nossa relação com eles?
Que mundo é esse que será perdido para sempre, aquele do povo poeta dos
pinguins-imperadores, com o degelo das calotas polares? Como ficaria a
Monsanto caso pudéssemos ler Berinjela?
4.1.5.
“Think my way into the existence of a being”
O poema de Rilke fala de um lugar específico: “no jardim das plantas”, isto
é, no jardim fundado em 1626 por um decreto real e que ganhou o nome atual
depois da Revolução Francesa. A pantera que ele canta, portanto, é uma pantera
moradora de um zoológico real de Paris e que provavelmente foi observada pelo
poeta. Há na revista francesa L’Illustration, em edição de 1902, cinco anos antes
da escrita do poema, uma gravura que mostra animais, justamente grandes felinos,
e artistas no jardim. O que se vê são um par de leões e um tigre em minúsculas
celas áridas, separados por grades de pessoas que enchem o lado de fora com seus
cavaletes de desenho, inclusive uma mulher, além de um homem que procura
chamar a atenção do tigre – ou provocá-lo – brandindo um pequeno lenço de pano
bem perto de sua cabeça. Será que Rilke, a certa altura, compôs esse cortejo quase
multitudinário formado por artistas e curiosos? Ou será que os observou sozinho,
em algum momento em que o zoológico estava mais vazio? Não foi possível
encontrar nenhuma informação a respeito da pantera ou panteras, onde nasceram,
de onde e como foram transportadas, a que espécie e subespécie pertenciam, se
tinham nomes, quanto tempo ali viveram, em que condições etc. Críticos e
estudiosos não costumam se interessar por essas questões e, assim, a musa de
178
Rilke permanece misteriosa. De todo modo, sobre essa pantera que não se sabe se
jaguar ou leopardo, os dois animais normalmente referidos por essa designação,
ele escreveu:
A Pantera
No Jardin des Plantes, Paris
Agora é possível imaginar: naquela pequena cela, de frente a uma tropa de artistas
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Em seguida ela deixa claro que não pretende, ao criticar “A pantera” enaltecendo
“O jaguar”, entrar “no aspecto ético de se enjaular animais de grande porte”
179
(idem). Mas a lembrança de que se trata de uma cena no Jardin des Plantes não
pode deixar dúvida: trata-se da pantera contida, encarcerada, sem refúgio, forçada
a ser vista o tempo todo. Talvez a questão diga respeito justamente ao aspecto de
se enjaular animais. O poema de Rilke pode ser lido de muitos modos, é claro,
mas um deles é aquele da captura de um momento da zona de indistinção na qual
a patológica política humana encerra os animais. “A pantera” é certamente uma
imagem desse mundo. O poeta e tradutor Augusto de Campos não entra nesse
aspecto, mas louva o poema porque “mais do que descreve, se introscreve nos
outros”, fazendo com que “o eu desapareça para que, através da captação da
figuralidade essencial do outro, com um mínimo de adjetivação e um máximo de
concretude, aflore uma dramaticidade imanente, insuspeitada” (Campos, 2001, p.
29). “A pantera”, segundo essa leitura, é um poema que se poderia inscrever no
tipo dos poemas de devir-animal, no qual Rilke, “o poeta, se pantera” (idem).
Panterizar-se aí, como costuma ser o caso em um devir, não diz respeito às
panteras em geral, mas àquela pantera e seu pequeno e miserável mundo. Uma
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– no que poderia parecer quase uma retomada de “A pantera” (“nossos olhos [...] à
volta dela como armadilhas, em círculo à volta de sua saída livre”) –, o que está
em jogo na verdade é o modo como o homem consegue se posicionar fora do
mundo, algo de que as “criaturas” seriam incapazes, paradoxalmente presas no
aberto para todo o sempre. Retrospectivamente, então, e ainda tomando essa
elegia como chave de leitura, um dos modos pelos quais “A pantera” poderia ser
lido é justamente como a descrição de um animal preso, no sentido de que todos
os animais o são. Seguindo com a oitava elegia, nela se lê ainda que o animal é
“livre da morte” (idem), encontra-se fora do tempo e completamente encerrado na
natureza: “Ó ventura da pequena criatura que fica sempre no seio que a gerou”
(idem, p. 218). Só os humanos, o que é de certa forma lamentado pelo poeta,
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habitam essa espécie de dobra ou viragem (“quem é que assim nos virou?”, idem)
que os torna “espectadores” (idem), isto é, sujeitos e juízes. Pode-se dizer que o
animal rilkeano é sublime, quase uma presença angelical no mundo. Ele chega a
experimentar “uma grande melancolia”, a saber, “a lembrança,/ como se aquilo
para que tendemos já alguma vez/ tivesse estado mais perto, mais fiel, e a ligação
a ele/ infindamente terna” (idem, p. 217-218). Saudade do Éden.
Heidegger comenta o poema: “O ‘no’ [“o animal está no mundo”] significa:
inseridos obscuramente na rede de feixes da conexão pura” (Heidegger, 2002, p.
329). E se o filósofo critica Rilke, afirmando que sua poesia ficou “na sombra da
metafísica atenuada de Nietzsche” (Heidegger, 2002, p. 329), insinuando que o
poeta nada mais teria feito além de inverter a metafísica platônica, ele também
aprisiona o animal, desta vez fora do aberto entendido como a clareira do ser. E o
faz, nesse caso, por outro tipo de inversão, agora do próprio Rilke – uma
“transformação essencial”, como a nomeia Agamben (Agamben, 2007, p. 107),
que continua, fazendo referência aos animais angelicais do poeta: “É precisamente
esta relação de inversão hierárquica entre o homem e o animal que Heidegger põe
em questão” (idem, p. 108), Como se sabe, para Heidegger o homem não pode ser
definido como “animal rationale”, como costuma alegar a metafísica, mas deve
181
ser pensado em direção à sua humanitas (cf. Heidegger, 1990). E o animal, pobre
de mundo, justamente, é quem não pode jamais ver o aberto – que, para
Heidegger, é outro nome para alétheia compreendida como o “velamento-
desvelamento do ser” (idem). “O homem é o pastor do ser” (Heidegger, 1990, p.
88).
Poderíamos perseguir esse vasto caminho, mas já sabemos aonde ele leva75.
Por ora, fiquemos com Agamben, que, ainda procurando conciliar a vida e a
existência dos animais com a filosofia de seu mestre, dirá, em O aberto:
Enquanto o animal não conhece ente nem não ente, aberto nem fechado, ele está
fora do ser, em uma exterioridade mais externa que todo o aberto e dentro em uma
intimidade mais interior que todo o fechamento. Deixar ser o animal significará
então: deixá-lo ser fora do ser. A zona de não-conhecimento – ou de ignoscência –
aqui em questão está além tanto do conhecer quanto do não-conhecer, tanto do
desvelar quanto do velar, tanto do ser quanto do nada. Mas o que é assim deixado
fora do ser não é, por isto, negado ou removido; não é por isso não existente. É um
existente, um real, que foi mais além da diferença entre o ser e o ente (idem, p.
166-167).
Mas ali onde Agamben propõe que se deixe ser ou estar o animal fora do
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ser, meio à moda do “Let it be” que Lennon e McCartney consideravam “palavras
de sabedoria”, Elizabeth Costello prefere explorar “um diferente modo de ser-no-
mundo” (Coetzee, 2009, p. 66) – a escritora não está pronta para baixar suas
armas. E, para tanto, de modo a chegar a esses diversos modos de ser-no-mundo,
ela aciona o conceito de “imaginação simpática”, descrito como um “penetrar com
o pensamento na existência [think my way into the existence of]” (idem, p. 43) de
outrem. Sendo uma escritora, ela explica, seu ofício mesmo baseia-se em adentrar
com o pensamento na existência de outros seres que jamais existiram; se é
possível imaginar alguém que jamais foi de fato, personagens em romances,
contos e outros, entrar nessas existências de modo simpático, ela conclui, há de
ser factível que se faça o mesmo com “qualquer ser que participe comigo do
substrato da vida” (idem). O conceito costelliano de imaginação simpática, assim
descrito, faz ressoar a discussão encetada em nosso segundo capítulo acerca do
instinto criador, sobretudo quando comentávamos que Massumi traz Bergson à
baila para dizer, junto com ele, que haveria um “esforço de intuição” e “uma
espécie de simpatia” na intenção artística que tornaria possível penetrar o “interior
do objeto” (Bergson, 1909, p. 192) – um exemplo do “modo de existência do
75
Para a relação entre o pensamento de Heidegger e os animais, cf. Heidegger, 1997;
Buchanan, 2008; Romano, 2009; Bailey, 2011; Valentim, 2013.
182
terceiro incluído” (Massumi, 2014, p. 35). Além disso, Massumi lembra Bergson
mais uma vez ao citá-lo dizendo que instinto é simpatia. Costello, então, se
seguirmos essa pista, ao reclamar a simpatia como uma “faculdade [...] que, às
vezes, nos permite partilhar o ser do outro” (Coetzee, 2009, p. 43), estaria, assim,
situando a literatura no âmbito do instinto – aquele tipo de resposta criadora, que
sempre supera o dado e se constitui como uma faculdade plástica da vida.
É Ted Hughes o sujeito da imaginação simpática que Costello vê tateando
em direção a (“feeling his way toward”) um outro tipo de ser-no-mundo quando
escreve um poema como “O jaguar”:
Macacos se espreguiçam cultuando pulgas ao sol.
Guincham os papagaios, como ardendo, ou gingam
Feito putas a fim de atenção e amendoim.
Fatigados pela indolência, o tigre e o leão
chão de sua cela se derramam os horizontes.” Enquanto a pantera talvez não esteja
ainda derrotada, a possibilidade da derrota ou da entrega não existe para o jaguar.
Costello vê no poema um jaguar-corpo em vez de uma pantera-abstração,
pantera-movimento, como era o caso do poema de Rilke. O poema, ela diz, “pede
para nos imaginarmos naquele jeito de se mover, nos pede para habitar aquele
corpo” (Coetzee, 2009, p. 60). Estamos mais uma vez no terreno dos animais –
inclusive o humano – definidos por aquilo que eles podem, pelas possibilidades de
seus corpos. O poema de Hughes convida a um devir-jaguar na medida em que
transporta a escrita para o corpo do animal; é o poema que pulsa, se inflama. “Em
Hughes”, a escritora continua, “não se trata, insisto, de habitar outra mente, mas
de habitar outro corpo” (idem, p. 61). Em lugar de uma abstração, penetrar com o
pensamento a existência de outro significa conduzir-se até seu corpo,
experimentar sua perspectiva. Trata-se, assim, “de uma poesia que não tenta achar
uma ideia no animal, que não é sobre o animal, mas sim, ao contrário, o registro
de um compromisso com ele” (idem, grifo meu). Talvez mais que escrever “diante
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Usando as palavras do escritor, a cada vez que o poema é lido, o jaguar se ergue
de algum lugar – talvez a jaula que para ele não existe – e mais uma nos conduz
até seu corpo.
“Aulas de poesia”, Costello admite para seu filho mais tarde na novela, não
são capazes de “fechar os matadouros” (idem, p. 69), mas ela não quer – não pode
– “ficar sentada, calada” (idem, p. 71). A escritora, como Derrida, acredita que
vivemos em guerra contra os animais, uma guerra travada por toda a história e que
para ela tem sido vencida pelos humanos que inventaram as armas de fogo. Mas,
embora ela, e Coetzee, por ela, não acreditem que o ensino de poesia pode fechar
184
4.1.6.
Sultão
caíram ao bater no anel. Mas Köhler acreditava que a solução mais fácil teria sido
desamarrar a corda para soltar a cesta e que, portanto, “as condições desse
experimento eram complicadas demais para asseverar o que causou o
comportamento observado, e então ele continuou a estudar situações mais
simples” (Ruiz e Sanchez, 2014, p. 7). Essas “condições [...] complicadas”, por
outro lado, significavam que o sujeito experimentado tinha a possibilidade de
escolher que decisão tomar, mesmo diante de um problema que envolvia a
privação de comida. Köhler passou depois disso a desenvolver dispositivos com
apenas um tipo de solução: apanhar as frutas subindo em caixotes, movendo-os ou
usando um pedaço de pau para balançar algo, de modo cada vez mais complicado,
mas não no sentido de que o chimpanzé pudesse escolher o que fazer, e sim que
fosse necessário cumprir vários desses passos até ter acesso às frutas. Diversos
desses experimentos foram filmados e até hoje estão disponíveis, por exemplo, na
internet. Em um deles, um indivíduo que se presume ser Sultão, localizado sob
uma espécie de lona de circo, sobre um chão de terra batida, levanta um caixote e
o põe em cima de outro, depois de algumas tentativas e erros, até alcançar a fruta
pendurada no teto. Em um segundo, ele ou outro chimpanzé encaixa um pedaço
de pau em outro, formando uma espécie de lança comprida, com a qual move
frutas que se encontram entre ele e uma grade. Em um terceiro, ainda, diversos
186
problema dele, que conceito errado ele faz de mim que o leva a acreditar que é
mais fácil para mim chegar até uma penca de bananas pendurada num fio do que
pegar as bananas do chão? –, até isso está errado. O pensamento certo é: como usar
os caixotes para chegar às bananas?
“Sultão arrasta os caixotes até posicioná-los sob as bananas, empilha um em cima
do outro, sobe na torre que construiu e pega as bananas. Pensa: será que agora ele
vai parar de me castigar?
“A resposta é: não. No dia seguinte, o homem pendura outra penca de bananas no
fio, mas também enche os caixotes de pedras, de forma que fiquem pesados demais
para arrastar. O que se deve pensar não é: por que ele enche os caixotes de pedras?
O que se tem de pensar é: como se faz para usar os caixotes para pegar as bananas,
apesar de estarem cheios de pedras?
“Dá para começar a entender como funciona a cabeça do homem.
“Sultão remove as pedras de dentro dos caixotes, constrói uma torre com os
caixotes, sobe na torre, pega as bananas.
“Enquanto Sultão continuar tendo os pensamentos errados, passará fome. Até a sua
fome ser tão intensa, tão avassaladora, que ele se veja forçado a ter o pensamento
correto, isto é, como conseguir pegar as bananas. Assim são testadas até o limite as
capacidades do chimpanzé.
“O homem põe uma penca de bananas um metro para fora da malha de arame do
cerrado. Joga uma vara para dentro do cerrado. O pensamento errado é: por que ele
parou de pendurar as bananas no fio? O pensamento errado (o pensamento errado-
correto, todavia) é: como usar os três caixotes para pegar as bananas? O
pensamento correto é: como usar a vara para pegar as bananas?
“A cada vez, Sultão é levado a ter o pensamento menos interessante. Da pureza da
especulação – por que os homens se comportam assim? – ele é impiedosamente
impelido ao raciocínio mais baixo, prático, instrumental – como usar isto para
conseguir aquilo? – e assim à aceitação de si mesmo primordialmente como um
organismo com um apetite a ser satisfeito. Embora toda a sua história, desde o
momento em que sua mãe foi morta e ele foi capturado, passando pela viagem
187
numa jaula até a prisão neste campo, desta ilha, e os jogos sádicos que ali se
realizam com a comida, tudo o leva a questionar a justiça do universo e o lugar que
nele ocupa esta colônia penal, na qual um regime psicológico cuidadosamente
planejado o leva para longe da ética e da metafísica em direção ao humilde
domínio da razão prática. E de alguma forma, ao palmilhar esse labirinto de
constrangimento, manipulação e duplicidade, ele tem de entender que de jeito
nenhum pode ousar desistir, porque em seus ombros repousa a responsabilidade de
representar a essência macacal. O destino de seus irmãos e irmãs pode ser
determinado pelos resultados que ele obtiver (idem, 34-36).
paciente que agente – ele passa sua vida aguardando aquilo que lhe será imposto –
, que se urdirá o destino de seu povo. Se ele não for bem-sucedido, é sobre toda a
chimpanzidade que cairão as consequências; é cada chimpanzé, desde Sultão, que
vai se tornar desinteressante ou interessante, inteligente ou não, distante ou
próximo da humanidade etc. a partir dali. Mas em seu íntimo, Costello imagina,
embora ele diligentemente, com fome e sem saída, realize os desafios que lhe são
impostos, em seu coração mesmo, Sultão pensa diferentemente:
No seu ser mais profundo, Sultão não está interessado no problema da banana. Só a
mente do experimentador, obsessivamente voltada para o problema, é que o força a
se concentrar nele. A questão que realmente o ocupa, como ocupa o rato e o gato e
qualquer outro animal aprisionado no inferno de um laboratório ou de um
zoológico, é a seguinte: onde está a minha casa e como chego lá? (idem, p. 36).
A essa pergunta ele nunca encontrará resposta, jamais tendo voltado para casa.
Sua vida, como a de Pedro Vermelho e a de Consul, foi profundamente mudada,
irreversivelmente, a partir do instante em que foram encontrados por homens que
se chamavam a si mesmos de cientistas.
“Dá para começar a entender a cabeça do homem” é um outro pensamento
que a escritora capta do animal. E a cabeça do homem, ali, sob o signo do que ele
ancestralmente considera ser a razão, é pouco imaginativa, além de pouco
compassiva. Cruel, poderíamos dizer. A respeito da razão, Costello guarda ainda
188
Alguns instantes antes, ela declarava que, se o melhor que a filosofia pode
oferecer como pensamento sobre os animais é que eles não entendem a morte,
“preferia ir viver entre cavalos” (idem, p. 78). A escritora é a primeira da série de
autores convocados nesta tese a assumir uma posição contrária à da razão em vez
de procurar nela uma saída; ela parece mesmo preparada, diante dos limites da
racionalidade, a abandoná-la. Se a razão é o fundamento espiritual da auto-
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4.2.
Ciência
4.2.1.
Cabeça (de homem)
Diante das objeções que Costello faz à razão, e de modo a que não pareçam
levianas, é interessante situá-las naquele que é um dos momentos cruciais de sua
história, a saber, o momento no qual Descartes, também em nome dessa
faculdade, retira o homem do continuum da vida e transforma os animais em
máquinas. Essa história pode começar com a famosa anedota sobre Fontenelle
segundo a qual este, em uma visita a Malebranche, teria gritado de compaixão ao
presenciar o padre-filósofo chutar o ventre da cadela grávida que buscava conforto
a seus pés. Malebranche, então, teria lhe respondido “friamente”: “O quê, você
não sabe que isso não sente nada?” (Trublet apud Ribard, 2003, p. 141).
O horror de Fontenelle refere-se, claro, à aplicação ao cotidiano, por
Malebranche, da tese cartesiana das bestas-máquinas76. Conforme testemunhos do
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76
Embora a tradução de bêtes para animais ou bichos seja mais natural à língua portuguesa,
manterei o termo bestas-máquinas por dois motivos: primeiro porque, não tendo almas, falar em
animais-máquinas é um oximoro; segundo, para apontar a proximidade entre os conceitos de
bestas, besteira e bestialidade (bêtes, bêtise e bestialité), tratados profundamente por Derrida em A
besta e o soberano. Derrida aponta para a peculiaridade de que a palavra bête não suscitou na
língua francesa um substantivo que designasse o ser ou a condição das bestas (bichos), o que ficou
a cargo da palavra animal, da qual se originou “animalidade”. O correspondente para o termo
bestas seria, talvez, bêteté (bestidade), do qual a palavra mais próxima em português é
“bestialidade”, substantivo que jamais designaria a condição de um animal, mas apenas de certos
humanos; o mesmo se vê quando o substantivo besta torna-se adjetivo: nenhum animal pode ser
“besta”: “O que é próprio à besta, se isso existe, não é nem a besteira nem a bestialidade. Nem
besteira nem bestialidade, a qual [a besteira], se acreditarmos naquilo sobre o qual a filosofia mais
faz barulho, é o que é próprio do homem, como o bom senso, a coisa mais bem distribuída no
mundo entre humanos” (Derrida, 2009, p. 192).
190
77
O final do Timeu, nesse sentido, é exemplar ao expor um tipo de “teoria da evolução
reversa”, na qual o homem, o vivente mais perfeito, vai dando lugar a formas de vida inferiores – a
primeira delas, a mulher: "Dos homens nascidos, os que se revelaram pusilânimes ou durante
a vida só praticaram injustiças, com toda a probabilidade foram transformados em mulheres na
segunda geração […] A tribo dos pássaros provém da mudança de forma, com o nascimento de
penas em lugar de cabelos, desses indivíduos inofensivos porém frívolos, e dados ao estudo das
coisas celestes, e que em sua simplicidade chegam a imaginar que as mais seguras provas em
tais assuntos são alcançadas por meio da vista. Os animais ferozes da terra provêm dos homens
que nunca se ocuparam com a filosofia nem nada compreenderam da natureza do céu, por não
fazerem uso algum das revoluções que se operam na cabeça, só se deixando guiar pelas partes da
alma residentes no peito. Em decorrência desses hábitos, os membros anteriores e a cabeça
foram atraídos pela terra, em virtude da afinidade existente entre eles, e nela se apoiaram; o crânio
alongou-se e adquiriu as mais variadas formas, à medida que os círculos da alma se deformavam
pela ociosidade. Essa raça nasceu com quatro ou mais pés, pela seguinte razão: é que a divindade
proveu os menos inteligentes com maior número de bases de sustentação, para que fossem
arrastados ainda mais para a terra. Porém os mais atrasados dentre eles, que estendem na terra o
corpo em toda a sua extensão, visto já não necessitarem de pés, os deuses os fizeram sem esse
segmento, permitindo que rastejassem no solo. O quarto gênero, que vive na água, provém dos
mais estúpidos e ignorantes de todos. As divindades que os metamorfosearam não os consideram
dignos nem mesmo de respirar o ar puro, por terem as almas contaminadas por toda sorte de faltas;
em lugar de deixá-los respirar um ar leve e puro, afundaram-nos na água, para que só aspirassem a
água lodosa da profundidade” (Platão, 2001, 91a-92b).
191
78
É importante notar que embora houvesse uma continuidade de vida, isto é, que tudo o
que é vivo fizesse parte de um contínuo, para os estoicos e que o seu automatismo fosse de ordem
psíquica, o seu princípio (arkhé, initium) de justiça estava fundado na oikeiôsis, que no caso
humano só se estenderia aos seres racionais, isto é, aos outros homens e aos deuses. Aos animais é
concedido que estendam a oikeiôsis à sua prole. Tal exclusão dos animais significa que é possível
fazer com eles o que se bem entenda sem que isso constitua uma injustiça ou maldade. Tem-se,
portanto, uma elaborada teoria que exime os humanos da responsabilidade pelo que quer que
venham a fazer com os animais, isto é, que retira os animais dos problemas éticos. Esse ponto é
valioso para nós, pois discutiremos, em seguida, se a tese cartesiana das bestas-máquinas autorizou
práticas consideradas cruéis contra os animais. Para uma discussão aprofundada acerca do
pensamento estoico no que concerne aos animais, cf. Sorabji, 1993, especialmente o capítulo 10,
“Oikeiôsis and bonding between rational beings.” Ainda segundo Sorabji, havia uma vertente do
estoicismo que recomendava a abstinência do consumo de carne, mas por motivos ascéticos que
não diziam respeito aos animais: “Apesar de os estoicos terem nos inundado com manuais sobre
todos os tipos de questões de ética prática […], até onde eu saiba, eles não dedicaram nenhum à
necessidade de tratar bem os animais. De fato, é difícil ver como alguém poderia ter uma atitude
benevolente dirigida aos animais se, como Crisipo, visse os porcos como tendo uma alma apenas
como conservante culinário” (Sorabji, 1993, p. 125) – o autor refere-se a essa passagem de
Porfírio: “Mas, claro, é convincente aquele dito de Crisipo, segundo o qual os deuses nos fizeram
para eles e para manter relações mútuas e os animais para nós, isto é, os cavalos para nos ajudar na
guerra, os leopardos, ursos e leões para que sirvam de exercício a nosso valor. E quanto ao porco
[…] não nasceu senão para ser sacrificado e a divindade mesclou a alma à sua carne, como se se
tratasse de sal, trazendo-nos um bom prato de fiambre” (Porfirio, 1984, 3.20, p. 165-166). Na
versão em espanhol do De Abstinentia, o tradutor adverte que “não se trata da alma em sentido
racional, mas da faculdade de não-putrefação da carne” (idem, nota 82, p. 166). Ele também faz
referência ao segundo livro do De Natura Deorum, de Cícero, no qual se lê: “Quanto ao porco, o
que tem além de alimento? Ao qual certamente, para não entrar em putrefação, Crisipo diz ter sido
dada uma alma exatamente como o sal; e do que esse animal, porque era apropriado para servir de
alimento aos homens, a natureza não criou nada mais fecundo” (Vendemiatti, 2003, 2.160, p. 104).
A problematização das almas animais segundo os estoicos requereria um estudo por si, o que não
farei aqui; vale notar, no entanto, que essas almas, embora possam significar, como no caso do
porco, apenas que sua carne não apodrece, podem variar dependendo da espécie. Isto é, ainda que
os animais sejam viventes de segunda ordem por não participarem da oikeiôsis humana e da
justiça, há uma alma diferente para cada espécie animal.
192
79
Em uma carta de 23/11/1646, coligida por Bridoux na apresentação do Traité, Descartes
afirma que “... há já 12 ou 13 anos que descrevi todas as funções do corpo humano, ou do animal
[...]” (Descartes apud Bridoux, 2004, p. 805).
193
seus espíritos80, agitados pelo calor do fogo que arde continuamente em seu
coração e que não é de outra natureza que todos os fogos que estão nos corpos
inanimados (Descartes, 2004, p. 873).
80
Não confundir esses “espíritos” com algum tipo de alma: trata-se do que na quinta parte
do Discurso do Método é chamado de “espíritos animais”, “um desses fogos sem luz” (Descartes,
1973, p. 63), que excita os corpos em seu coração, “um vento muito sutil [..] que, subindo
continuamente em grande abundância do coração ao cérebro, dirige-se daí, pelos nervos, para os
músculos e imprime movimento a todos os membros; sem que seja preciso imaginar outra causa
[...] segundo as regras da Mecânica, que são as mesmas da natureza” (idem, p. 67).
81
Este mesmo princípio é ainda amplamente difundido em práticas científicas que
pretendem estudar o comportamento dos animais; Konrad Lorenz, um dos pais da etologia, por
exemplo, afirma em seu Os fundamentos da etologia, de 1981, não apenas que “qualquer animal é
completamente capaz, por meio de comportamento variável orientado a um objetivo, de se esforçar
para alcançar uma finalidade, mas que esta finalidade, ao contrário do que supuseram os
psicólogos finalistas, pode não ser a mesma que a execução da função teleonômica do
comportamento. A finalidade que o animal, como sujeito, está se esforçando por alcançar é
simplesmente uma descarga daquele tipo de comportamento inato que [...] agora chamamos de ato
consumatório redutor do acionamento” (Lorenz, 1995, p. 22), mas, prescindindo de uma alma
imortal e da referência a Deus, sustenta, de um modo que talvez agradasse a Descartes, que “já que
cada passo importante na evolução cria características sistemáticas não precedentes”, a diferença
entre humanos e animais é “de essência, não de grau” (idem, p. 432, grifo meu) e que, portanto,
“Não é exagero afirmar que o pensamento conceitual – acompanhado pela linguagem sintática – é
um novo tipo de vida” (idem, p. 434). Lorenz diverge de si mesmo em suas práticas de pesquisa,
que serão mencionadas em outra seção, e é possível que a linguagem usada por ele em seu livro
fosse assim dura com o objetivo de estabelecer a etologia como ciência.
194
mecanicamente capaz além de pensar, o que está intimamente ligado a falar com
sentido, e como o filósofo jamais observou uma besta se comunicando com seus
companheiros, ainda que algumas possuíssem os órgãos necessários para isso82,
fica provado que elas não têm alma.
O terrível corolário desta tese é que os animais, não tendo alma de qualquer
ordem, não pensam e portanto não sentem dor (ou prazer etc.). De acordo com as
respostas às Sextas objeções, há três tipos de sensação: as físicas, mero resultado
de estímulos diretos aos órgãos; as conscientes (percepções) e as autoconscientes
(juízos). Em um artigo chamado “Animais, homens e sensações”, a filósofa Ethel
Rocha explica que:
O primeiro grau de sensação seria, portanto, puramente mecânico, não constituindo
em sensação propriamente dita, mas sim apenas no movimento de partícula dos
órgãos e na mudança de forma e posição que resulta desse movimento. Esse grau
de sensação Descartes admite ser comum a todo animal, seja humano ou não. O
segundo, na medida em que se trata de uma percepção, envolveria consciência e
seria resultante do fato de que a mente está de tal modo intimamente unida ao
corpo que é afetada pelos movimentos que ocorrem nele; e o terceiro seria
pensamento puro e consistiria no juízo que fazemos, resultante do fato de sermos
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afetados por uma sensação e dependente apenas do intelecto (Rocha, 2004, p. 354).
82
Um dos animais mais presentes nos textos de Descartes como exemplo daqueles que
possuem os órgãos necessários mas são incapazes de falar é, naturalmente, o papagaio. Não posso
deixar de me referir a uma observação da filósofa e treinadora Vicki Hearne, citada por Vinciane
Despret: “os filósofos humanos tendem a falar de maneira estranha quando surge o tópico dos
papagaios, como se eles acreditassem que seu estatuto dependesse do estatuto diminuído dos
papagaios [...]. Porque o problema dos papagaios é que eles precisam controlar as trocas. Você
quer travar uma conversa, uma conversa que rapidamente toma a aparência de um teste de QI e
você se encontra desencaminhado por um hábito comum de todos os papagaios falantes: sua
recusa de deixar que outro indivíduo escolha o assunto da conversa. Você chega para um papagaio,
e provavelmente ele está em uma gaiola e você não, então você se sente bem superior, talvez você
até pense que pode sentir pena do papagaio, e você pergunta ao papagaio como ele está e ele diz
algo gnômico como ‘é o seu avô’ ou ‘quão belas e roxas são as andorinhas do fim do verão’. Então
o papagaio olha para você de um modo realmente interessado e expectante para ver se você vai
jogar a bola de volta. Você começa a tentar descobrir o que o papagaio quis dizer com aquilo, e é
isso. Você não tem a menor chance de reintroduzir qualquer assunto que tinha em mente. É por
isso que os filósofos seguem negando que os papagaios podem falar, claro, porque um filósofo
realmente gosta de ter o controle da conversa” (Hearne apud Despret, 2008, p. 124). Para um
amplo e inovador estudo sobre as capacidades cognitivas, especificamente do papagaio-cinzento
(Psittacus erithacus), cf. The Alex Studies: Cognitive and Communicative Abilities of Grey
Parrots, de Irene Pepperberg, especialmente o capítulo “Can a parrot learn referential use of
English speech?” Para além dos experimentos em que Alex mostrou-se capaz de entender
conceitos como o da permanência de um objeto, o de igual e o de diferente, o papagaio chegou a
desenvolver um conceito parecido com o de zero (“Ele então seria perguntado 'O que é diferente?’
ou ‘O que é igual?’. A resposta correta seria ‘nenhum’ [none] ou a indicação da categoria
apropriada, não a cor, forma ou marcador material específico que representava a resposta correta
(ex. ‘cor’ e não ‘amarelo’). Para estar correto, Alex teria, como antes, que (1) atentar para
múltiplos aspectos dos diferentes objetos; (2) determinar, a partir de uma pergunta vocal, se a
resposta deveria se basear em ‘igualdade' e ‘diferença'; (3) determinar, ao olhar para os itens, qual,
se algum, era ‘igual' ou ‘diferente’ (ex. eram ambos azuis, triangulares ou feitos de madeira?) e
então (4) produzir, vocalmente, a marca da categoria apropriada ou a resposta ‘nenhum’"
(Pepperberg, 2002, p. 85). A porcentagem de acerto de Alex ficou entre 88.9 e 92%.
195
As expressões dos animais, sejam elas gestos ou sons, não são senão meros
reflexos. Em carta a Mersenne de 11 de junho de 1640, Descartes diz ao amigo
que
Eu não explico sem a alma o sentimento da dor; pois, de acordo comigo, a dor não
está senão no entendimento; mas explico todos os movimentos exteriores que
acompanham em nós esses sentimento, os quais são os únicos que se encontram
nas bestas, e não a dor propriamente dita (AT, III, p. 85).
4.2.2.
Bestial com as bestas
nunca tenha estado completamente à vontade com o dualismo estrito, por mais
que o afirmasse enfaticamente” e que “no fim das contas, Descartes talvez não
fosse completamente consistente, mas pelo menos não foi de todo bestial com as
bestas” (idem, p. 559, grifo meu).
Sua argumentação apoia-se principalmente em duas passagens. A primeira é
uma carta a Newcastle, na qual o filósofo diz que “todas as coisas que ensinamos
[qu’on fait faire] cachorros, cavalos e macacos a fazer não são senão os
movimentos de seu medo, de sua esperança ou de sua alegria, de modo que eles o
podem fazer sem nenhum pensamento” (Descartes apud Cottingham, 1978, p.
557), o que o comentador interpreta como uma evidência do atrapalhamento de
Descartes, pois que tais sensações não poderiam se realizar sem pensamento. Sua
segunda evidência é colhida no artigo 190 do livro IV dos Princípios, e mostra
Descartes produzindo o que Cottingham considera uma quimera, o termo “alegria
animal” (laetitia animalis), diferente da “alegria intelectual” (gaudium
intellectuale). Para ele, tal expressão, alegria animal, demonstraria mais uma vez
que o filósofo teria considerado a possibilidade de uma sensação tendo lugar
apenas no corpo. Cottingham constrói então seu caso sugerindo que Descartes
vacilava e se embaralhava acerca de suas próprias ideias. A dificuldade,
196
diferente de afirmar em silêncio para si mesmo que se vê” (Descartes apud Rocha,
p. 360). Ter sensações propriamente ditas, para Descartes, significa ser consciente
delas. As bestas-máquinas, pura res extensa, não têm consciência e, assim, não
podem ter sensações. É como se, para sofrer, fosse necessário um pensamento
conceitual sobre a dor – ou, pelo menos, a atitude “compreendo que sinto dor
agora e isso é verdade”, coisa de que as bestas seriam incapazes.
Além de omitir, em sua interpretação, as respostas às Sextas objeções nas
quais os três tipos de sensação são explicados, Cottingham esquece de mencionar
a carta a Mersenne em que o filósofo afirma expressamente que os animais não
sentem dor (“não explico sem a alma o sentimento da dor...”). O comentador
parece preferir declarar que Descartes “se atrapalhou”, com o intuito talvez de
criar uma “dúvida razoável” de modo a não comprometê-lo com o que considera
uma tese “bestial”, escolhendo cuidadosamente algumas passagens em detrimento
de outras, além de simplesmente negligenciar o envolvimento do filósofo com
certas práticas científicas, como por exemplo a vivissecção.
Mas é Pierre Bayle quem leva a tese de Descartes a seu limite. Autor dos
artigos que melhor mapeiam a querela das almas animais no século XVII,
“Pereira” e “Rorarius”, em seu Dicionário histórico e crítico, Bayle não se furtou
197
criancinhas estão submetidas, colapsam assim que se supõe que os animais têm
sensações. Eles estão sujeitos tanto à dor quanto à morte. Eles, entretanto, nunca
pecaram […] Se as bestas tivessem uma alma cognoscente, “segue-se (1) que Deus
não se ama, (2) que ele não é constante, (3) que ele é cruel e injusto.” Ele não
amaria a si pois teria criado “almas capazes de conhecimento e amor sem obrigá-
las a amá-lo e conhecê-lo.” […] De acordo com a opinião comum, as almas das
bestas retornam para o nada no instante em que as bestas cessam de viver. Onde
então está a constância de Deus? Ele cria almas e logo as destrói, mas não faz a
mesma coisa no que diz respeito à matéria, pois nunca a aniquila. Portanto, Deus
conserva as substâncias menos perfeitas e destrói a mais perfeita. Isso é coisa de
um agente sábio? A alma das bestas não pecou, e ainda assim está sujeita à dor e à
miséria. Está sujeita a todos os desejos irregulares de criaturas que pecaram. Como
tratamos as bestas? Fazemo-las se despedaçarem umas às outras para o nosso
prazer. Matamo-las para nos nutrir. Dissecamos suas entranhas enquanto ainda
estão vivas para satisfazer nossa curiosidade, e fazemos tudo isso como resultado
do domínio que Deus nos deu sobre as bestas. A quanta desordem a criatura
inocente é assujeitada pela criatura criminosa! Nenhum casuísta acredita que
alguém peca ao fazer touros lutarem contra cães, e assim por diante, e ao empregar
milhares de artimanhas e meios violentos para destruir animais na caça, pesca e
afins, ou por se divertir matando moscas, como o fazia Domiciano. Ora, não é cruel
e injusto submeter uma alma inocente a tantos males? Livramo-nos de todas essas
dificuldades pelo dogma de Descartes (…) (Bayle, 1730, Nota C, p. 87).
83
À primeira vista, o único a sair ileso é Leibniz, com quem Bayle trava uma longa
conversa. Montaigne, no entanto, é um caso curioso, pois seu nome aparece em uma das notas
sem, inusitadamente, nenhuma objeção às suas ideias. No verbete “Pereira”, porém, é consenso
que, quando Bayle diz que “as opiniões sobre esse assunto [a alma das bestas] são ou absurdas ou
muito perigosas”, (Bayle, 1730, tome 3, p. 652), o perigo seria uma referência a Montaigne, para
quem “há mais diferença de tal homem a tal homem que de tal animal a tal homem” (Montaigne,
1965, p. 368).
198
a quem bastaria dizer que, conforme mostrava o filósofo francês, nossos animais
não sentem nada. O intrigante é que essas pessoas, que faziam experimentos
cotidianamente com animais, isto é, que estavam em sua companhia grande parte
do tempo (e a quem deviam grande parte de seus sucessos intelectuais),
produziam um discurso bem diverso ao se comunicarem entre si: Hooke escreveu
a Boyle em 1664:
O outro Experimento (que dificilmente, confesso, farei de novo, pois foi cruel) foi
com um cachorro, o qual, por meio de um par de foles com os quais enchi seus
84
Método aliás usado até hoje, ainda que com anestesia. Segundo uma pesquisa
encomendada pela National Anti-vivisection Society em 2014, por exemplo, 84% dos professores
de ciências de nível pré-universitário afirmaram praticar vivissecção em sala de aula nos EUA
(http://www.navs.org/education/dissection-in-the-classroom). Para um estudo sobre o uso de
animais no Brasil, inclusive no Ensino Médio, além de suas alternativas, cf. Bones, 2012. A autora
explica que “animais de laboratório são utilizados em diversas áreas, como pesquisa, produção
de medicamentos, testes de cosméticos e outros produtos, diagnóstico de doenças, assim
como no ensino. Por mais que existam inúmeras alternativas disponíveis para substituir o
uso de animais no ensino, a prática ainda é comum em diversos cursos de ensino superior,
porém ainda não existem informações acuradas sobre o número de animais usados pois o
controle oficial brasileiro [...] encontra-se em construção. As únicas informações disponíveis são
provenientes de estudos estimando o número de animais usados em pesquisa [..]. Neste sentido,
Silla e colaboradores [...] investigaram o uso de animais por meio do método de amostragem
bibliográfica a partir de periódicos científicos publicados no estado do Paraná em 2006;
os resultados mostram um total conservador de 3.497.653 animais usados, sendo que
216.223 foram vertebrados. De forma semelhante, Taylor e colaboradores (2008), com
base em artigos científicos publicados internacionalmente, estimaram que foi usado 1,16
milhão de animais vertebrados no Brasil em 2005. Estes números certamente são
subestimados” (Bones, 2012, p. 9).
200
Steno, em carta de 1661 a seu mestre Thomas Bartholin, confessou que “não
é sem repugnância que os torturo com uma dor tão prolongada”, completando que
“os cartesianos se orgulham muito da verdade de seu sistema filosófico, mas
gostaria que me convencessem do fato de que animais não têm alma!” (Steno
apud Guerrini, 1989, p. 406). Nenhum desses cientistas abandonou a prática da
vivissecção, porém – Hooke foi inclusive persuadido, três anos depois, a realizar
mais uma vez o experimento de tórax aberto com o cão. Isto é, ainda que
conhecessem a doutrina de Descartes e pudessem fazer uso dela para se isentarem
do risco de estar sendo cruéis, parte dos cientistas não apelou a ela.
Em um artigo de 1989, a historiadora da ciência Anita Guerrini mapeou a
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85 A historiadora Lisa Jardine ressalta a comparação desta carta, um registro pessoal, com
o frio relatório oficial da experiência: “Um Cão foi dissecado e, por meio de um par de foles e um
tipo de Tubo empurrado pela Traqueia da Criatura, o coração continuou a bater por muito tempo
depois de todo o Tórax... ter sido aberto” (Jardine apud Shannon, p. 260, n.96). É interessante
observar a assepsia do discurso científico, de onde as questões de ordem política, pessoal etc. são
retiradas. Sobre a divisão natureza/política, ver Shapin e Schaffer (1985) e Latour (1994).
86 A disputa em torno do lugar do homem em relação à criação, qual seja, a de guardião ou
mestre, costuma recorrer ao Gênesis 1, 28, quando Deus diz ao homem e à mulher, que acabara de
criar à sua imagem e semelhança: “Deus os bendisse, dizendo-lhes: frutificai, multiplicai, enchei a
terra e a dominai. Submetei os peixes do mar, os pássaros e todos os animais da terra.” O que está
em jogo aí é a interpretação desses dois verbos, dominar e submeter. Segundo o teólogo Sebastian
Doane, trata-se de dois verbos hebraicos, kabash e radah. O primeiro, que diz respeito à terra,
segundo ele é “empregado 14 vezes na Bíblia. Encontramo-lo em um contexto de violência ou de
luta como meio de conquista da terra prometida”. Ele também “descreve a responsabilidade do rei
diante das nações que domina.” O segundo, radah, que tem mais 21 recorrências na Bíblia, surge
sempre em contextos estritamente humanos, sobretudo na relação do rei com seus súditos. Para
Doane, conquistar a terra diz respeito a trabalhá-la para que se possa “viver pacificamente nela”;
ele argumenta ainda que os deveres do rei para com seus súditos, conforme a Bíblia, são de
“serviço e respeito aos outros” e que a o termo “submeter” não é uma boa tradução, apontando que
há “certos biblistas ingleses” que propõem a palavra “administrador” (steward, intendant) como
solução. A explicação de Doane encontra-se em
http://www.interbible.org/interBible/source/lampe/2008/lampe_081024.html.
201
4.2.3.
Cauda (de rato)
Mesmo que não tenha sido o modelo mecanicista apropriado pelos filósofos
naturais, talvez seja possível compreender o lugar das bestas-máquinas como um
lugar ideal, um norte civilizacional; elas não estariam no começo da história,
portanto, mas viriam a ser assim produzidas. Essa história, para atingir seu cume,
precisou de condições materiais de possibilidade que não foram alcançadas senão
no século XX; ela passa então pela chamada Revolução verde do pós-Segunda
Guerra, com a intensificação da produção e a aproximação de animais a plantas
pelo uso de técnicas similares, que negligenciam a sua capacidade/necessidade de
locomoção, confinando-os a espaços cada vez mais exíguos. Passa também pela
seleção artificial com vistas apenas à máxima produção, o que cria povos inteiros
cujos corpos, a caminho de se tornar mas não ainda totalmente puras máquinas,
carregam um sofrimento contínuo – não é sem razão que o livro de Ruth Harrison
publicado em 1964, que constitui o marco da exposição da realidade do
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Mas isso não é tudo. O que Descartes, com seu mundo habitado por
autômatos, parece pretender, como fica dito na carta a More e como já dissemos, é
livrar o homem da suspeição de crime. Um pensamento bem parecido habitava as
justificativas da experimentação – o homem, como administrador da criação, pode
escolher tratar os animais como bem entende. Aqui caberiam os mesmos
argumentos levantados no Capítulo 2 diante da discussão com os proponentes de
uma ética inocente, o argumento de Derrida sobre a lógica do sacrifício (cf.
Derrida, 2002) e o de Haraway a respeito do mandamento “não matarás”
tornando-se “não tornarás matável” (cf. Haraway, 2008). Se cada modo de alguém
viver, como dizia a filósofa, implica um modo diferente de outrem morrer, isto é,
se não há inocência possível, o mínimo que podemos fazer é estar à altura do
sofrimento imposto àqueles que vivem e morrem conosco, mas sempre
entendendo profundamente que, por mais que o justifiquemos, nada vai nos
redimir.
Tomemos o exemplo de um ciborgue particular, OncoRato™87, o primeiro
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Criar e matar OncoRato™, para Haraway, pode ser justificado de muitas maneiras
– quem negaria a importância de pesquisas que podem aliviar o sofrimento do
câncer? –, mas apenas por razões mundanas, isto é, aquele tipo de razão que pode
trazer coisas boas para o mundo ao mesmo tempo que faz maldades. O que não
87
Embora a patente tenha expirado em 2005, o nome OncoMouse™ ainda é uma marca
registrada de propriedade da DuPont.
205
4.2.4.
Kluger Hans
haveria uma vida anímica dos grandes primatas. Foi nesse “clima de divisão e
desconfiança” (Ruiz e Sanches, 2014, p. 6) que Köhler preparou-se para investigar
uma possível inteligência dos chimpanzés em Tenerife.
Despret dedicou um profundo estudo ao caso de Hans e Pfungst que
resultou em um livro, Hans, le cheval qui savait compter (2004) e pelo menos um
artigo, “The Body We Care For: Figures of Anthropo-zoo-genesis” (2004). Ela
conta que, em 1904, Hans, com então 4 anos, causava espécie em Berlim como
um animal inteligente, capaz de responder a perguntas de aritmética e mesmo de
geografia; às questões que lhe eram colocadas, Hans batia um determinado
número de vezes com um dos cascos no chão e quase sempre acertava o resultado.
Diante desse mistério e da possibilidade de sua inteligência estar fundada em
algum truque ou engano hábil desenvolvido por seu dono, von Osten, um grupo
de especialistas, entre eles Stumpf, reuniu-se para observar a cena e o cavalo.
Estupefatos, o grupo de sábios formado por um professor, um veterinário, o
diretor de um zoológico, um aristocrata, um militar aposentado e um empresário
de circo, entre outros, concluiu que não havia nenhum ardil: Hans era mesmo
esperto e podia responder às perguntas longe da presença de seu dono-treinador.
Um cavalo genial, alguns pensaram. Mas Pfungst, que era então assistente de
209
devir não é descrito como “um devir-brancura de Moby Dick ao mesmo tempo
que um devir-baleia de Ahab”, ou “um devir-cor do pássaro ao mesmo tempo que
um devir-pássaro do pintor”, com os termos invertidos, o devir do pássaro ou de
Moby Dick precipitando o devir no pintor e em Ahab. Ademais, Moby Dick pelo
menos não é um animal “deste mundo”; o pássaro pode ser, assim como o cavalo
que o pequeno Hans, o menino atendido por Freud por cujo caso os autores se
interessam, vê na rua, e que provoca nele um devir-cavalo. Mas esse pássaro visto
pelo pintor ou o cavalo que sofre um acidente, esses animais particulares, o que se
passou com eles? Não há nenhuma evidência de que aquele pássaro ou aquele
cavalo tenham experimentado um devir; no caso do cavalo acidentado, aliás, é
muito provável que ele tenha apenas morrido. Há exceções no repertório dos
devires que os autores elencam, como o caso da vespa e da orquídea: a vespa
devém orquídea, mas a orquídea por sua vez devém vespa – isto é, ambas devêm
juntas.88 Mas há também o momento exemplar no qual eles defendem, com
Lawrence, que o animal pode não ser real se o devir o é:
88
Para uma interpretação desse devir que articula o conceito de Deleuze e Guattari com as
ciências naturais, cf. o artigo “Involutionary Momentum: Affective Ecologies and the Sciences of
Plant/Insect Encounters”, no qual Carla Hustak e Natasha Meyers tratam o encontro como um
fenômeno intra-ativo e um bloco de devir, oferecendo uma “leitura que amplifica os relatos das
práticas criativas, improvisacionais e fugazes através das quais plantas e insetos se envolvem nas
212
Para Lawrence, o devir-tartaruga no qual ele entra não tem nada a ver com uma
relação sentimental e doméstica. [...] Mas, justamente, recrimina-se a Lawrence:
“Suas tartarugas não são reais!” E ele responde: é possível, mas meu devir o é, meu
devir é real, inclusive e sobretudo se vocês não podem julgá-lo, porque vocês são
cachorrinhos domésticos... (idem, p. 26; grifo meu).
Além disso, o animal com o qual se entra em devir deve ser “um indivíduo
excepcional”, ser o “anômalo” do bando (idem, p. 25), não podendo jamais se
confundir com um “indivíduo preferido, doméstico e psicanalítico” (idem, p. 26).
Devir e devir-com são, portanto, dois conceitos que se aplicam a situações
distintas. Quando Despret, por sua vez, fala em devir-com, ela quer dizer com isso
que há pelo menos dois “deste mundo” envolvidos: um etólogo e um ganso, uma
senhora e um cão, um criador e uma vaca, que devém um com o outro – o etólogo
ou a senhora não se tornam ganso ou cão, mas se tornam com, isto é,
conjuntamente e à medida em que o ganso ou cão tornam-se com eles. A senhora
torna-se com-cão-com-senhora, o cão, com-senhora-com-cão, e assim
sucessivamente. Trata-se, além disso, de quaisquer dois, sem a necessidade da
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vidas uns dos outros” (Hustak e Meyers, 2002, p. 77). Sob esta perspectiva, o devir da vespa e da
orquídea pode ser considerado também um devir-com.
213
composta por ratos inteligentes (vindos de Berkeley) e outra por ratos burros, que
teriam se tornado assim por serem de grupos resultantes de um longo processo de
reprodução. Os estudantes, tendo estudado os ratos como lhes havia pedido o
mestre, concluíram sem surpresa que os inteligentes se saíam muito melhor que os
burros, confirmando que pertenciam a classes distintas, como lhes havia dito seu
professor – mas o ardil do mestre estava em que todos os ratos eram na verdade
iguais e ordinários, vindos do mesmo criadouro. A lição, então, não dizia respeito
aos ratos, mas a como estudantes com ideias pré-concebidas podiam influenciar
seus objetos de pesquisa, o que provava que deviam perseguir a neutralidade.
Despret discorda da conclusão tirada pelo autor do experimento e propõe uma
outra, que seja capaz de conferir peso à realidade, ao contrário das interpretações
tipo subjetividade versus objetividade, nas quais ou bem os termos se opõem e é
preciso buscar a única realidade, objetiva, do mundo, ou há apenas subjetividades
e nenhuma objetividade, o que leva a um esvaziamento ontológico. Se o mundo
ou a realidade são da ordem do processo e da produção conjunta, ela diz, então é
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89
A ideia de resistência ou recalcitrância é haurida por Despret da série Cosmopolitiques,
de Isabelle Stengers, bem como do artigo “Des sujets récalcitrants” de Latour, no qual ele glosa a
obra de Stengers: “O melhor modo de imitar as ciências naturais é se dar sujeitos recalcitrantes,
capazes, justamente, como os objetos da ciências exatas, de recusar as exigências do pesquisador e
lhe impor novas obrigações. Um sociólogo que vai a uma casa para fazer um questionário a uma
mãe solteira não produzirá senão ciência repetitiva pois a entrevistada lhe obedecerá passivamente,
assinalando as respostas em ordem, obediente à excelência no papel de sujeito sondado. Mas se o
mesmo sociólogo interroga uma feminista militante que lhe recusa suas perguntas, lhe coloca
outras, inverte o sentido da prova e finalmente o manda embora, então ele poderá fazer ciência!
Ele terá esbarrado em um sujeito recalcitrante. Terá exigido respostas, mas será obrigado dali em
diante a colocar outras. Tendo corrido um risco, seu discurso poderá se tornar científico” (Latour,
2006, p. 188). O que Despret sugere, por sua vez, é a ideia de um sujeito animal recalcitrante.
215
Konrad Lorenz, célebre por ter sido um dos fundadores da etologia e pelo
seu envolvimento com o partido nazista na Alemanha, realizou alguns dos
experimentos que Despret considera interessantes e que, por lidarem com
questões sobre maternidade, funcionam como um bom contraponto às torturas de
Harlow. Suas pesquisas sobre imprinting – o fenômeno supra-individual que leva
os animais, após seu nascimento, a seguirem o primeiro ser que virem em
movimento – contam o que se passou depois que o etólogo resolveu ficar por
algumas horas com uma pequena fêmea de ganso logo que ela saiu do ovo.
Marina, como ele a nomeou, depois de ter passado esse tempo com o cientista,
recusou os cuidados do ganso domesticado que cuidaria dela e “dirigiu a Lorenz
um ‘chamado de abandono’” (idem, p. 129). Ele respondeu ao chamado, passando
a se comportar “exatamente como se a tivesse adotado, fingindo ignorar que tinha
sido ela a me adotar” (Lorenz apud Despret, 2004b, p. 129). O dispositivo
desenvolvido por Lorenz, explica Despret, construiu
as condições práticas que permitiram a cada um deles trazer à existência novas
possibilidades, novas disponibilidades: o ganso adquire um comportamento
flexível e surpreende Lorenz ao adotá-lo. Lorenz se torna pronto a se tornar uma
mãe de ganso e pode assim talvez adicionar a seu repertório científico novas
questões sobre imprinting, novas questões sobre vínculos, novos modos de coletar
dados, novas competências e novos modos de levar sua prática científica (Despret,
2004b, p. 130).
216
90
Despret e sua parceira, a socióloga Jocelyne Porcher, em seu livro Être bête, explicam o
devir-com a partir do discurso dos pequenos criadores com quem conversaram e de acordo com o
modo pelo qual estes descreveram a relação com seus animais: “Trata-se mais precisamente de
viver como seus animais vivem, de transformar o tempo em duração [...] Não se trata de
identidades ‘idênticas’, mas de colocações em relação, de fronteiras e de sua passagem [...] Pode-
se partilhar o mesmo mundo, não um mundo idêntico” (Despret e Porcher, 2007, p. 85).
217
4.2.5.
Parentesco como política
sempre uma teia relacional que se abre a passados, presentes e futuros não-
euclidianos” (idem, p. 32).
Podemos, claro, e atualmente parecemos especialistas nisso, recusar o jogo e
a dança multiespecíficos, criando mundos pobres por valorizarmos aquela “razão
do desconhecimento”. Por outro lado, e há testemunhos disso na arte e na ciência,
podemos nos engajar na “dança enlameada com muitos parceiros emanada das
espécies entrelaçadas e nelas” (idem). É uma questão de enlamear também a
filosofia, o pensamento e as ações em geral, fincar-lhe os pés no chão e
permanecer ali para ver o que acontece: “Trata-se hoje de construir esse ‘devir-
com’ com outros seres, não mais sob o modo esgotado das analogias – o modo
mesmo que permitiu aos filósofos manter o mundo à distância –, mas sob aquele
do respeito e da resposta” (Despret, 2009, p. 750).
E, ainda que Deleuze e Guattari temessem com todas as suas forças as
reterritorializações edipianas, há talvez, em uma outra ideia de parentesco, a
promessa de emaranhamentos que resultem, não em uma prisão ou na
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91
Os autores defendem que, “durante a última década, a análise do ácido nucleico,
especialmente o sequenciamento de genoma e técnicas de alto rendimento de RNA [encontraram]
interações significantes de animais e plantas com micro-organismos simbióticos que desfazem as
fronteiras que até hoje caracterizaram o indivíduo biológico. Animais não podem ser considerados
indivíduos segundo critérios anatômicos ou fisiológicos porque uma diversidade de simbiontes
estão presentes e funcionais na completação de vias metabólicas e servindo outras funções
fisiológicas. De modo similar, esses novos estudos mostraram que o desenvolvimento animal é
incompleto sem simbiontes. Simbiontes também constituem um segundo modo de herança
genética, provendo variação genética selecionável para a seleção natural. O sistema imunológico
se desenvolve, em parte, em diálogo com simbiontes e assim funciona como um mecanismo para
integrar micróbios na comunidade animal-célula” (Gilbert et alii, 2012, p. 325).
219
***
5.1.
Fins do mundo
Diz-se que Brasília foi erguida sobre o sangue dos candangos. Os ratos que são
epônimos destes últimos nunca mais foram vistos desde aquela primeira vez, nos
canteiros de obra. Foram declarados extintos, a causa sendo a perda de seu habitat:
Brasília e o desenvolvimentismo não comportam nenhuma espécie de candango.
E, se desenvolvimento é um dos motores do Antropoceno, então o massacre de
populações sub-humanas e não-humanas é seu combustível. Dos operários
assassinados não se encontraram os corpos; dos ratos, os oito espécimes descritos
em 1965 por Moojen encontram-se empalhados no Museu Nacional/UFRJ. Os
outros, que compunham todo um povo, jazem anônimos com seus operários sob o
solo de nossa capital. São seus fantasmas.
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5.1.1.
Homens
92
Este gênero conheceu uma retomada, com foco ecológico, nos anos 1970: “desde o
favorito de Deleuze, Calafrio (Willard, 1971), que dizem ter sido o filme que alavancou a onda, a
fitas como A invasão das rãs (Frogs, 1972), Tubarão (Jaws, 1975), Grizzly, a força assassina
(Grizzly, 1976), A fúria das feras atômicas (The Food of the Gods, 1976), Orca, a baleia assassina
(Orca, de 1977), Animais em fúria (Day of the Animals, 1977) e Um longo fim de semana (Long
Weekend, 1978), entre muitas outras. A premissa era sempre mais ou menos a mesma: a
humanidade vai longe demais no trato com a natureza – seja por meio de experimentos, os
nucleares sendo ainda os favoritos da época, mas também pela objetificação; enfim, pela hybris
humana, embora possa acontecer só de alguém ter ido aonde não foi chamado – e sofrer as
consequências. É a terra tornada inóspita, contra os homens; a natureza contra a cultura na forma
de guerra de destruição” (Fausto, 2016, p. 127).
224
93
Ainda que em número reduzido, houve, ainda antes de 1950, fitas que abordavam o fim
do mundo: a dinamarquesa Verdens Undergang (1916) e a francesa O fim do mundo (La fin du
monde, 1931) utilizaram a passagem do cometa Halley em 1910 para imaginar um outro cometa
que causaria destruição em massa; na norte-americana Dilúvio (Deluge, 1933), uma série de
desastres naturais, como terremotos e tsunamis, destroem cidades inteiras. Daqui a cem anos
(Things to come, 1936), com roteiro de H. G. Wells, encena uma Segunda Guerra Mundial com
início em 1939 e duração de quase um século, ao fim da qual uma nova civilização, mais racional,
mas ainda plena de tensões, emerge. À exceção de Dilúvio, que abre com uma citação bíblica, os
outros filmes endereçam um mal-estar em relação à guerra – a Primeira Guerra Mundial ou o
prenúncio da Segunda – que já carregava então a atmosfera social.
225
Essa observação ecoa aquela de Anders sobre “o tempo do fim versus o fim do
tempo” (Anders, 2013, p. 1-2), a época que começa com a explosão das bombas
atômicas:
Portanto, por sua natureza mesma, essa era é uma “suspensão”, e nosso “modo de
ser” nessa era deve ser definido como “ainda não sendo inexistentes”, “ainda não
exatamente sendo inexistentes”. Assim, a questão moral básica de épocas
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A espécie humana, dizia o filósofo, deixara de ser composta por mortais para se
tornar ela mesma mortal (cf. Anders, p. 11 e ss), causando uma mudança em
“nosso estatuto metafísico” (idem, p. 12); tal mudança viria a se refletir, no
contexto norte-americano do pós-guerra, isto é, dentro do país que primeiro
detonou uma bomba atômica e a usou para destruir cidades estrangeiras, através
de sua grande máquina de criação de mitos contemporâneos, Hollywood, sob a
forma de uma infinidade de filmes de ficção científica. O Japão, alvo das bombas
americanas Little Boy e Fat Man94, também produziu sua cota de fitas do gênero,
94
Em The History and Science of the Manhattan Project, o físico Bruce Cameron Reed
nota que existe até hoje um debate acerca da origem dos apelidos das bombas, com pelo menos
duas versões. Uma delas encontra-se na autobiografia do físico Robert Serber, ex-aluno de
Oppenheimer, além de parte da equipe do Projeto Manhattan em Los Alamos, que “alega ter
nomeado as bombas, com Thin Man tendo sido tirado do romance de detetive de Dashiell
Hammett, de 1934 [também o título de um filme do mesmo ano], e Fat Man referindo-se ao papel
do ator Sydney Greenstreet no filme O falcão maltês, de 1941, estrelado por Humphrey Bogart”
(Reed, 2014, p. 294-295). Little Boy, ainda, teria surgido mais tarde a partir de Thin Man. Mesmo
226
que seja matéria de disputa, a versão sustentada por Serber é amplamente conhecida e mostra a
extensão da influência de Hollywood.
95
A partir de meados dos anos 1960, com Ghidrah, o monstro tricéfalo (San Daikaijū:
Chikyū Saidai no Kessen, 1964), Godzilla deixa de ser uma ameaça para se tornar cada vez mais
amigável; neste filme, ele começa como inimigo, mas termina a se juntar a dois outros kaiju,
monstros gigantes, Mothra e Rodan, para ajudar o governo japonês em sua luta contra Ghidrah, um
dragão marciano gigante de três cabeças.
96
Podunk não é uma cidade real, mas um nome usado para designar uma localidade
longínqua e pequena qualquer. Uma tradução adaptada que desse conta do sentido da frase seria
algo do tipo “da capital até onde Judas perdeu as botas.”
227
Por outro lado, como observa Bidinski, a maioria dos filmes não se posicionava
contra a cultura. O esquema “Nós contra os Outros” identificava o outro antes
como aquilo que estava fora da cultura:
228
processo.
Há, então, uma série de elementos no cinema de ficção científica da aurora
da era atômica que podem, de modo mais ou menos grosseiro, ser resumidos
assim: o medo do fim, a esperança na Ciência e no Estado diante desses eventos
catastróficos e a elaboração do desastre na forma de Nós contra Eles – Eles na
escala individual sendo identificados a máquinas e, na social, como a natureza.
Mas o que tudo isso tem a ver com aquele momento específico quando, no
carnaval de 1959, em um país subdesenvolvido e ao sul, em uma cidade ainda não
construída, um homem chamado Geraldo, junto de diversos outros operários,
sentado em um precário cinema enquanto assistia a O mundo em perigo, viu a
projeção interrompida por tiros que sinalizavam um massacre cometido por uma
polícia indistintamente privada e pública contra mais de uma centena de
97
O termo “agronegócio” foi cunhado em 1957 por John H. Davis e Ray A. Goldberg, por
diferença a agricultura ou cultivo (farming), que os autores consideravam não mais capazes de
nomear o novo conjunto de práticas delineado desde o fim dos anos 1940. Agronegócio diria
respeito à “soma total de todas as operações envolvidas na manufatura e distribuição de
suprimentos agrícolas; operações de produção na fazenda; e o estoque, processamento e
distribuição de mercadorias agrícolas e itens feitos a partir deles. Assim, agronegócio
essencialmente abrange hoje as funções que o termo agricultura denotava há 150 anos” (Davis e
Golbderg apud Rust, 1957, p. 1043). No lugar de políticas agrícolas, os autores asseveravam que,
diante do novo modelo, eram necessárias políticas públicas para o agronegócio, que dessem conta
de todos os processos que envolviam fazendas, indústria e mercado.
229
eram contidos por meio de armas, desta vez empunhadas por agentes
promiscuamente a serviço de empreiteiras e do governo. Quem eram Eles e quem
era Nós do ponto de vista dos candangos? Interrompida por tiros, a sessão de
cinema não chegou a seu final. Em lugar dele, em vez de formigas radioativas
gigantes sendo dizimadas por guardas, os operários-espectadores assistiram ao
assassinato de seus companheiros no alojamento da Pacheco Fernandes Dantas.
Esse amargo arremedo de conclusão reverbera as mais terríveis analogias.
5.1.2.
Ratos
terra, com aquela terra, com outras espécies, as quais comiam ou pelas quais eram
comidos, cavando pequenos buracos onde faziam seus ninhos.
Talvez os ratos-candangos tenham experimentado uma sensação parecida
com aquela da criatura de “A construção”, de Kafka; mas enquanto nesta última
não era certo se havia de fato uma ameaça externa, os ratos em Brasília
encontravam-se realmente diante de sua desaparição iminente. No conto, escrito
entre 1923 e 1924, um vivente de hábitos fossoriais habita uma elaborada
construção subterrânea e, à medida que o tempo passa, começa a temer um perigo
que se mostra a ele como um barulho longínquo, que às vezes se assemelha a um
animal cavando. No conto, a criatura não consegue distinguir, afinal, de onde esse
barulho vem ou por quem ele é produzido, o que deixa aberta a possibilidade de
que se trate apenas de sua imaginação. “A construção” costuma ser interpretado
como uma espécie de metáfora para a situação do próprio escritor, sua “grande
ficção autobiográfica” (Carone, 2002, p. 113); constrangido de fora pela ascensão
do nazismo, visto que à época de sua escrita morava em Berlim, e de dentro, pela
tuberculose que lhe afligia e viria a lhe tirar a vida, Kafka teria figurado no conto
essa dupla condição. É possível, no entanto, encontrar outros sentidos nela; se
levarmos a sério, por exemplo, a condição subterrânea do animal, a descrição de
seu focinho, de suas patas que cavam, talvez seja possível ler a história de outro
231
cada vez mais próximo, de máquinas e homens que escavavam a terra para cravar
nela as fundações de uma nova cidade? No conto, a criatura imagina que o som
que a incomoda pode ser “produzido pelas escavações de certos animais
insignificantes, que utilizaram de forma infame o tempo de minha ausência”,
concluindo poder ser, ele mesmo, para o propósito desses animais, apenas uma
baixa colateral: “seja como for, estão longe de uma intenção dirigida contra mim,
ocupam-se apenas com a sua obra e, enquanto não encontram um obstáculo no
caminho, mantêm a direção já tomada” (idem, p. 90). Não há indício algum de
que a extinção do Juscelinomys candango tenha sido intencional; tudo o que se
sabe é que eles estavam no caminho de Brasília: hora e lugar errados.
De outra feita, a criatura quimeriza: o som a lhe torturar pode não vir de
muitos pequenos animais, mas de um animal enorme, único: “Só resta a hipótese
da existência do animal grande, sobretudo porque as coisas que parecem
contradizer esta suposição são as que tornam o bicho, não impossível, mas sim
perigoso além do concebível” (idem, p. 100). O terrível gigante, que possuiria
uma “capacidade de trabalhar sem descanso” (idem, p. 103), “trabalha[ria]
furiosamente”, “cava[ria] o chão tão célere como alguém que passeia ao ar livre.”
A própria terra sofreria com sua ação, “treme[ndo] com a escavação mesmo
232
isso era imposto a elas. “Talvez eu esteja em alguma construção alheia e o dono
agora cave o seu caminho até mim” (idem, p. 103), fantasia o bicho do conto. Os
ratos de Brasília, inesperadamente, encontraram-se nesta precisa condição. Por
sobre, em volta, por todos os lados, de uma hora para outra, eles se perceberam
parte da construção de outrem; não exatamente dos operários, mas daqueles para
quem eles trabalhavam.
Talvez todo esse paralelo entre o destino do Juscelinomys candango e a
criatura de Kafka talvez não seja senão um devaneio. Mas fica a questão sobre
como os pequenos bichos que habitavam o solo do que se tornaria a capital do
Brasil viveram o seu fim. Seu mundo efetivamente acabou ali, levando-os
consigo, incapazes que eram de habitar aquele outro que se erguia. A história da
modernização está repleta de histórias de extinção – de modos de vida, de
relações, de possibilidades. Em Espinosa – Filosofia prática, Deleuze, a propósito
dos conceitos de bom-mau presentes na Ética, explicava que ambos são “dois
sentidos da variação da potência de agir: a diminuição desta potência (tristeza) é
má, seu aumento (alegria) é bom” (Deleuze, 2003c, p. 74). A potência de agir,
além de ser aquilo que “mantém a relação de movimento e repouso que
caracteriza o corpo”, é “aquilo que abre o poder de ser afetado ao maior número
de coisas, é bom ‘aquilo que dispõe o corpo de modo que possa ser afetado do
233
maior número de modos’” (idem, p. 74-75). Não se deve, entretanto, ele continua,
confundir bom e mau com Bem e Mal, acreditando que “o Mal não é nada e o
Bem faz ser e agir” – é preciso sempre levar em consideração que “o bom se diz
em relação a um modo existente e em relação a uma potência de agir variável e
não ainda possuída” (idem, p. 75). Ele não é nunca total, do mesmo modo que o
que é mau não o é. Mais tarde, no Abécédaire, para o verbete J comme Joie
(alegria), o filósofo explicou, a respeito da distinção entre alegria e tristeza:
Não há potências más [...] o que é mau, é preciso dizer, é o grau mais baixo da
potência. E o grau mais baixo da potência é o poder. Quero dizer, a maldade, o que
é? É impedir alguém de fazer aquilo que pode [...], de efetuar sua potência.
Portanto não há potências ruins, há poderes maus. [...] Eu diria, todo poder é triste.
Sim, mesmo se aqueles que têm o poder se alegrem muito por tê-lo, é uma alegria
triste, é, há alegrias tristes. [...] Por outro lado, a alegria é a efetuação de uma
potência. Mais uma vez, não conheço potências que sejam malvadas. O tufão é
uma potência, ele deve se alegrar em sua alma, mas não é por derrubar casas que
ele se alegra, é por ser. Alegrar-se, é alegrar-se de ser o que se é, quer dizer, de ter
chegado aí onde se é. Mas não é a alegria de si mesmo, isso não é uma alegria, não
é estar satisfeito consigo, a alegria, de modo algum, é o prazer de estar satisfeito
consigo mesmo. É, é o prazer da conquista, como dizia Nietzsche. Mas a conquista
não consiste em escravizar pessoas. A conquista é, por exemplo, para um pintor,
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conquistar a cor. Sim, isso, sim, isso é uma conquista. Sim. Eis a alegria (Deleuze,
1996).
98
Há uma série de relatos de naturalistas no século XIX a respeito da quantidade enorme de
pombos-passageiros que havia então. Alexander Wilson, por exemplo, contou que estava no
Kentucky quando “fui subitamente surpreendido por um assombro diante de uma acelerada
234
grito de um pequenino que se sente abandonado. Tudo isso não existe mais. A
humanidade pode fazer luto pelo pombo-passageiro. Mas é o mundo que se rompe
(idem, p. 3777-4275).
Ela cita, como imagem dessa perda, um trecho do romance Sans l’orang-outan, de
Éric Chevillard, no qual é descrita a morte do último dos orangotangos:
O ponto de vista do orangotango, que não significou pouca coisa na invenção do
mundo e que segurava o ar no globo terráqueo, com suas frutas carnudas, seus
cupins e seus elefantes, esse ponto de vista único ao qual se deve a percepção dos
trinados de tantos pássaros cantores e aquela das primeiras gotas de orvalho sobre
as folhas, esse ponto de vista não existe mais, você se dá conta […] o mundo de
repente encolheu [...]. É todo um aspecto da realidade que colapsou, uma
descarga estrondosa sucedida por escuridão instantânea [...] Tomei aquilo por um tornado em vias
de arrasar a casa e destruir tudo em volta” (Wilson apud Barrow, 2009, p. 2103). O bando
demorou mais de quatro horas para passar e Wilson calculou que deveria haver mais de 2,2 bilhões
de aves.
235
concepção completa e articulada dos fenômenos que fará falta doravante à nossa
filosofia” (Chevillard, 2007, p. 18).
O que o mundo perdeu com o fim dos ratos-candangos? Eles nunca foram
tantos quanto os pombos-passageiros e viviam em apenas uma localidade; não
migravam, não causavam eclipses com asas. Viviam em seu território, um
território imaginado em conjunto com a terra, confiavam nela para construir seus
ninhos, dentro dela, e aí proteger suas crias. Se ser um, como dizia Haraway, é
uma questão de tornar-se com muitos, então todos aqueles que se tornavam com
os ratos tornaram-se mais pobres, capazes de menos coisas. A terra ela mesma,
que nunca mais experimentou-se escavada pelas pequenas patas que depositavam
nela a esperança de seu futuro, seus filhotes, pode-se dizer, ficou triste. Talvez a
alegria possa ser compreendida na escala de uma espécie como o conjunto de
invenções expressivas co-criadas por ela e pelos outros que a co-constituem e que
ela co-constitui. Talvez a alegria, nesse contexto, seja a invenção de um povo, e a
tristeza, por outro lado, aquilo que separa um povo de seu mundo. Cada extinção,
assim, é um evento triste, que diminui a potência de tantos que compõem e fazem
mundos de ser afetados, que diminui a potência do próprio universo, jamais
afetado do mesmo modo novamente. É o fim de conquistas e de devires. O fim de
uma alegria.
236
5.2.
Casa mal-assombrada
Dito de outro modo, a tristeza de cada extinção costuma ser contrabalançada pela
alegria do surgimento de novas espécies, novos povos, novas e outras formas de
mundificação. A vida, esse devir desenfreado da matéria decidindo seu sentido,
como diziam Margulis e Sagan, procede assim, por experimentação, em um ciclo
contínuo de criação, adaptação e morte. Por cinco vezes, entretanto, e por motivos
99
Os pombos-passageiros passaram de bilhões a zero em uma questão de décadas; os
estimados 3 a 5 bilhões deles que viviam na América do Norte em meados do século XIX haviam
desaparecido completamente em 1914 quando a última sobrevivente, uma fêmea chamada Martha
(em homenagem à primeira dama Martha Washington), faleceu de causas naturais em sua gaiola
no Zoológico de Cincinnatti (cf. Barrow, 2009). Por quatro anos, desde que seu último
companheiro, George, perecera, Martha viveu como a última remanescente de sua espécie.
Embora houvesse alguma esperança de que o casal procriasse, eles se recusaram; nas palavras de
Despret, “os dois tinham sido a última chance da espécie. Declinaram. Preferiram não deixar
nenhum descendente. Imagino que ela, Martha, deva ter fechado seus olhos, tranquila. Ela
completara sua primeira migração e a última para todos aqueles cuja existência ela prolongou por
diversos anos. Ou o que é chamado de uma existência – um longo momento de abstração, uma
existência sem céu. Uma má aposta existencial. Martha deixou de existir em um mundo que não
era mais o que havia sido. Deixe o mundo seguir sem nós. Ela se juntou a seu parceiro e a seu
gênero. Deixe toda essa história terminar…” (Despret, 2017, p. 3734).
237
tão diversos quanto mudanças atmosféricas e colisões, mais de 75% das espécies
foram varridas do planeta, eventos de extinção em massa conhecidos como as
“Cinco Grandes”. E, a não ser no caso do bólide que se acredita ter se chocado
com a Terra durante o Cretáceo, impulsionando uma redução de 76% no número
de espécies em menos de um ano, os outros tomaram um período de tempo que
variou de centenas de milhares a milhões de anos100:
A extinção em massa, no sentido paleontológico, se dá quando a taxa de extinção
se acelera e relação às taxas de originação, de modo que mais de 75% das espécies
desaparecem em um intervalo geológico curto – tipicamente menos de 2 milhões
de anos, em alguns casos muito menos (idem, p. 52).
estimativas mais conservadoras apontam para uma taxa de extinção cem vezes
maior que a fundo, e há estudos indicando que ela chegaria a mil vezes, podendo
alcançar dez mil proximamente (cf. Ceballos et al, 2011; de Vos et al, 2015).
Mesmo que ainda haja um debate sobre a legitimidade do termo “extinção em
massa” para designar o evento, com autores afirmando que “a recente perda de
espécies é dramática e séria mas ainda não se qualifica [...] no sentido
paleontológico das Cinco Grandes”, havendo “muito da biodiversidade do mundo
para salvar” (Barnosky et alii, 2011, p. 56) e sendo “ainda possível, através de
esforços de conservação intensificados”, evitar a perda de serviços ecossistêmicos
(Ceballos et alii, 2015, p. 1); mesmo que ainda se possa acreditar que “é cedo
demais para dizer que as proporções das Cinco Grandes serão alcançadas”
(Kolbert, 2014, p. 8,7), o fato é que “a janela de oportunidade está se fechando
rapidamente” (Ceballos et alii, 2015, p. 1), o cenário é “desanimador”, as
“ameaças, terríveis e progressivas” (Barnosky et alii, 2011, p. 56); “as taxas
disparam, muda a textura da vida” (Kolbert, 2014, p. 8,7).
Talvez a maior dificuldade na definição da Sexta Extinção como um evento
massivo resida no desconhecimento do número de espécies que habitam a Terra
100
Mesmo a estimativa a respeito da duração da Grande Extinção do Cretáceo varia entre
menos de um ano até dois milhões e meio de anos (cf. Barnosky et al, 2011).
238
amplo processo, que envolve as extinções, pelo qual passa a biota terrestre,
“pressionada por implacáveis processos de perda de habitat, exploração direta e
mudança climática, entre outros” (Rose, van Dooren e Chrulew, 2017, p. 217).
Trata-se de uma ocorrência de extermínio da vida, seja em espécies inteiras ou em
populações – povos, poderíamos dizer. Nesse sentido, seria possível sugerir que a
Sexta Extinção consiste em um estado de genocídio generalizado, de escopo
planetário. Assim, se pensarmos o Antropoceno, não apenas sob o modo de uma
época geológica, mas como um sistema de governo, este seria um regime de
exceção. Subversivos pelo desacordo entre seu modo de vida e aquele aceito pelo
poder que se impõe sobre eles, inumeráveis povos animais sucumbem
diariamente, caçados direta ou indiretamente – por “conversão de habitats,
distúrbio do clima, superexploração, toxificação, invasão de espécies, doença”
(Ceballos et al, 2017, p. 7). São os desaparecidos do Antropoceno. Desaparecidos
políticos, criminosos radicais na monocultura civilizacional.
Tal regime genocida traz consigo macabras consequências: causar a
desaparição de uma parte enorme dessa que é considerada a “biota terrestre mais
rica de todos os tempos” (idem) enfraquece também a chance de continuidade da
vida humana no planeta:
239
5.3.
Zumbis
conexões que formava determinado ecossistema é rompida, ainda que haja poucas
ou nenhuma extinção imediata, ocorre um “débito de extinção101”, um tipo de
desaparição anunciada: mesmo que ainda sobrevivam por um tempo, a perda de
articulações necessárias à continuidade de determinadas espécies as condena à
morte102. Isto é, ainda que essas espécies continuem existindo, não há mais
esperança para elas; é como se entrassem em uma existência suplementar, como
quando depois de uma frenagem brusca as rodas de um veículo continuam
deslizando por um tempo ou quando, segundo se conta, depois de uma
decapitação por guilhotina, a cabeça separada do corpo ainda pisca algumas vezes.
São espécies e populações mortas andando103.
101
Débito de extinção refere-se a “o número ou proporção de espécies extantes especialistas
do habitat focal que se espera em algum momento tornarem-se extintas à medida que a
comunidade [ecológica] alcança um novo equilíbrio depois de perturbações ambientais tais como
destruição de habitat, mudança climática ou invasão de novas espécies. Em espécies individuais, o
número ou proporção de populações que se espera tornarem-se extintas depois de mudança de
habitat” (Kuussaari et al, 2009, p. 564). Para discussões aprofundada sobre o conceito de débito de
extinção, cf. Tilman et al, 1994; Vellend et al, 2006; Kuussaari, 2009.
102
“Cada espécie é um fio em um tecido [...] espécies são modos em evolução de vida,
como linhas entrelaçadas de movimento intergeracional através da história profunda. Nesse
contexto, a extinção toma sempre a forma de um desemaranhamento de modos de vida co-
formados e em co-formação, um desemaranhamento que começa muito antes da morte do último
indivíduo e continua a ecoar muito depois” (van Dooren, 2017, p. 3329).
103
O geofísico David Jablonski cunhou em 2002 o termo “Clado Morto Andando”, em
referência ao romance Dead Man Walking, de 1993, escrito por Helen Prejean e cuja adaptação
240
desde o óbito e o estado do corpo são essenciais para que ainda haja “alguma
meia-vida residual”, conforme explica von Vogelsang, sócio de um dos
moratórios nos quais é oferecido o serviço. No caso do débito de extinção, o
tempo até a primeira extinção é importante, pois ele indica o começo do chamado
período de relaxamento, a partir do qual as espécies começam a desaparecer;
quando se chega à meia-vida, isso significa que metade da vida residual já se
dissipou. Ele marca “um importante limiar” em qualquer esforço conservacionista
que se preocupe em evitar ou desacelerar o processo das extinções “através do
reestabelecimento da conectividade entre habitats remanescentes ou da
recuperação da terra degradada” (Halley et al, 2016, p. 4). Em Ubik, a esposa do
narrador, Ella, encontra-se no estado de meia-vida; à certa altura, quando seu
discurso começa a ficar confuso, sinal de que o tempo dela estaria próximo do
fim, o narrador reflete:
No fone de ouvido, palavras lentas e incertas se formavam: pensamentos circulares
sem importância, fragmentos dos sonhos misteriosos que ela, agora, habitava. Qual
para o cinema em 1995 foi dirigida por Tim Robbins; “homem morto andando”, a tradução do
título, foi uma expressão usada no sistema prisional norte-americano para designar a última
caminhada de um prisioneiro no corredor da morte. “Como muitos sobreviventes de extinções em
massa não participam das diversificações pós-recuperação, e portanto caem em um padrão que
pode ser chamado Clado Morto Andando (CMA), os efeitos das extinções em massa se estendem
para além das perdas observadas durante o evento ele mesmo” (Jablonski, 2002, p. 8139).
241
essa época cheia de mortos que caminham sobre a Terra. A respeito da relação
entre zumbis e extinção, a antropóloga Genese Sodikoff comentou que:
A adoção, por parte dos biólogos conservacionistas, da metáfora do zumbi (...) e a
imensa popularidade dos temas apocalípticos e de zumbi nas TVs europeia e
americana diz algo sobre a experiência subjetiva da mudança planetária no Norte
do globo e sobre os modos como projetamos a forma das coisas que virão. “Este é
nosso evento de extinção”, diz um personagem na série de zumbis The Walking
Dead (Sodikoff, 2013, p. 142).
Além desses, é também necessário decidir quais critérios devem ser usados para
definir as espécies a serem objetos de ressurreição. Em 2014, usando como
modelo as Diretrizes para reintroduções e outras translocações para fins de
conservação, da IUCN, um grupo de estudiosos desenvolveu um quadro de
perguntas a serem levadas em consideração nessas decisões. Algumas dessas
perguntas incluem:
1. As causas passadas e futuras da extinção podem ser identificadas e abordadas?
[...] 4. Há uma área suficiente de habitat adequado e apropriadamente administrado
disponível agora e no futuro? [...] 6. As circunstâncias socioeconômicas, as atitudes
das comunidades, os valores, as motivações, as expectativas e os benefícios e
custos antecipados têm uma probabilidade razoável de serem aceitos pelas
comunidades humanas dentro e no entorno da área de soltura? 7. Há algum risco de
impacto negativo sobre as espécies, comunidades ou sobre o ecossistema da área
que vai recebê-las? [...] 9. Há risco aceitável de um impacto nocivo para os
humanos? 10. Será possível remover ou destruir indivíduos translocados e/ou sua
prole da área de soltura ou de uma área mais ampla na eventualidade de impactos
ecológicos e socioeconômicos inaceitáveis? (Seddon, Moehrenschlager e Ewen,
2014, p. 142-144).
deles; pois como tratar das causas da extinção se são essas causas mesmas o
sustentáculo da civilização de crescimento contínuo?
É como se o Antropoceno enquanto época geológica e sistema de governo
fosse terrivelmente eficaz em tornar concebível neste mundo aquele do horror e da
ficção científica. Senão, como explicar que pareça menos incrível satisfazer todos
os critérios para a zumbificação dos extintos do que habitar o mundo imaginado
por Philip K. Dick em Androides sonham com ovelhas elétricas?? No romance, a
Guerra Mundial Terminus exterminou a tremenda maioria dos animais, e possuir
um deles, coisa raríssima, é sinal de distinção tal que se desenvolveu todo um
mercado de réplicas eletrônicas, compradas pelos mais pobres. Isto é, a categoria
de animalidade, ainda que transfigurada por componentes eletrônicos, é
convocada para que a humanidade possa se conceber como domínio autônomo.
Esses animais-máquinas, numa atualização distópica do delírio de Descartes,
infestam a Terra pós-catástrofe e reasseguram os sobreviventes de seu status
existencial – a empatia que se sente por eles é prova de pertencimento à espécie
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As criaturas sugadoras de vida que nos fascinam na tela e nas páginas dramatizam
e invertem a relação entre humanos e não-humanos. Do ponto de vista, digamos, de
um carneiro-da-Barbária, de um trilho de Guam ou de um membro de qualquer das
espécies que foram extintas na natureza, os humanos são os monstros a serem
temidos (Sodikoff, 2012, p. 11).
isso, para a manutenção do que se alega querer salvar, são aniquilados diariamente
muitos mundos e pontos de vista. De súbito, todos os fantasmas se levantam,
apontam para nós e as perspectivas embaralhadas encontram seu lugar. Damo-nos
conta de que não temos o que temer. Somos nós os zumbis.
5.4.
Histórias de vivos e de fantasmas
Não há condição, aqui, de abordar tal questão, para a qual, ademais, “antropologia
empírica ou a teoria etnográfica está muito mais bem preparada.” O objetivo,
muito mais modesto, é tentar delinear quem é referido quando se define a extinção
em massa como sendo “de origem antropogênica.” A civilização baseada na
queima de combustíveis fósseis, explicou Haraway, é aquela comprometida com a
produção acelerada de novos fósseis (cf. Haraway, 2016b, p. 46). Queimando
fósseis antigos, não se para de criar novos fósseis. Entretanto, se é possível
apontar a civilização – o modo de vida –, ainda assim não se pode afirmar que
todos aqueles que a compõem são igualmente responsáveis (ou irresponsáveis, no
sentido que a filósofa dá a esse termo). Isto porque nem todas as agências se
equivalem nesta civilização e, além do mais, as redes e estruturas que a compõem
hoje são tão pervasivas que sequer permitem traçar a linha exata onde ela começa
e termina. Ou seja, não só o poder de ação não é equivalente, como não se tem as
mesmas escolhas – a ponto de muitas vezes não ser possível decidir tomar ou não
parte nela. As alternativas infernais capitalistas de que falava Stengers proliferam
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ele “não tem que ser a última época geológica biodiversa que inclui a nossa
espécie. Ainda há muitas histórias boas para serem contadas [...] e não só por
seres humanos” (idem). Ora, que ainda haja histórias boas parece-me indubitável;
menos certo é que essa época não precise “ser a última...”, Ou antes, mesmo que
não “precise”, há a possibilidade real de que seja – se a temperatura aumentar
demais ou se houver uma guerra nuclear, por exemplo. A possibilidade, aliás, de o
clima continuar mudando depende apenas da manutenção ou não das atuais taxas
de emissão de gases de efeito estufa. A espécie humana, toda ela, já habita um
mundo com cada vez menos biodiversidade; mas nem ela nem a biodiversidade
estão ainda acabadas. Aquilo para que a filósofa aponta, com seu lampejo de
otimismo, “não tem que ser”, é a contingência. Em A insustentável leveza do ser,
o escritor Milan Kundera compara as anotações de Beethoven em seu “Quarteto
de cordas n. 16”, “Muß es sein? Es muß sein!” – “Deve ser assim? Deve ser
assim!”, à constatação de um dos personagens em relação à natureza de seu
104
Conforme ele explicou: “o Capitaloceno não denota o capitalismo como um sistema
econômico e social.[...] Antes, o Capitaloceno significa capitalismo como um modo de organizar a
natureza – como uma ecologia-mundial multiespecífica, situada e capitalista. [...] Tem havido
muitos outros jogos de palavras - Antrobsceno (Parikka 2014), econoceno (Norgaard 2013),
tecnoceno (Hornborg 2015) [...] Todos são úteis. Mas nenhum captura o padrão histórico básico da
história mundial como ‘Era do Capital’ – e a era do capitalismo como uma ecologia-mundial de
poder, capital e natureza (Moore, 2016, p. 6).
249
primeiro amor: “Tomas [...] chegou à conclusão de que sua história de amor
exemplificava não ‘Es muß sein!’, mas antes ‘Es könnte auch anders sein’
(poderia também ter sido de outro modo)” (Kundera, 1985, p. 35). Assim como o
romance de Tomas, o Antropoceno é no e do mundo; tem-se então o direito de, à
pergunta “deve ser assim?”, responder que “não deve ser assim!” Por outro lado,
não há uma janela tão grande para que ainda possa ser “de outro modo.” Haraway
sabe disso, e não é ingênua a ponto de sustentar a viabilidade de uma salvação – já
se foi longe demais na destruição, já há muito débito de extinção – ou de um
retorno à Inocência e ao Éden, mas aquela mais humilde, e no entanto ainda
fervilhante, “de recuperação parcial e prosseguimento em conjunto [getting on
together]” (Haraway, 2016b, p. 10) que jaz no esforço de continuidade de
produção e manutenção de conexões em um mundo cada vez mais danificado.
Um dos modos do cultivo de continuidade e recuperações privilegiados pela
autora é o da prática de multiplicação de narrativas ou histórias [storytelling]. Não
se trata, obviamente, dos “fatos alternativos” que hoje em dia intoxicam os
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105
A expressão foi cunhada por Kellyanne Conway, conselheira do presidente norte-
americano Donald Trump, em janeiro de 2017, para justificar uma afirmação falsa cometida por
ela em relação ao número de participantes na posse de Trump. Desde então, o termo vem sendo
usado criticamente para se referir aos abundantes discursos que deturpam e adulteram dados e
fatos sobretudo com o propósito de propaganda ideológica, de um modo parecido com o da
“novafala” do romance distópico 1984, de George Orwell (cf. Seaton, Crook e Taylor, 2017, s/p):
“O objetivo da Novafala não era somente fornecer um meio de expressão compatível com a visão
de mundo e os hábitos mentais dos adeptos do Socing [o partido político no poder], mas também
inviabilizar todas as outras formas de pensamento. A ideia era que, uma vez definitivamente
adotada a Novafala e esquecida a Velhafala, um pensamento herege — isto é, um pensamento que
divergisse dos princípios do Socing — fosse literalmente impensável, ao menos na medida em que
pensamentos dependem de palavras para ser formulados” (Orwell, 2009, p. 348). A ideia de fatos
alternativos se aproxima daquilo que Latour chama de “relativismo absoluto”: “O relativismo
absoluto supõe culturas separadas e incomensuráveis” (Latour, 1993, p. 102), metafisicamente
isoladas; nesse sentido, eles rompem com qualquer articulação, não só com aquilo que se chama
realidade, como com qualquer outra perspectiva. Trata-se, afinal, de um ponto de vista
desconectado e totalitário que pretende erigir, de modo imperial, um mundo sem mais ninguém.
250
morte, porque ela compõe a vida, sendo necessária para a sua continuidade. As
extinções pervertem a morte na medida em que roubam seu sentido, devolvendo à
vida uma versão da morte incapaz de fazer a conexão entre espécies e gerações:
corpos mortos cedo demais, envenenados demais, inábeis para reproduzir e
recompor. Margulis e Sagan, em algumas das respostas à questão “o que é vida?”,
de seu livro homônimo, diziam que ela é “um padrão intricado de crescimento e
morte, pressa e recuo, transformação e decadência” (Margulis e Sagan, 2002, p.
66); que ela, “preservando o passado e estabelecendo uma diferença entre o
passado e o presente, [...] vincula o tempo ampliando a complexidade e criando
novos problemas para si mesma” (idem, p. 97). O que a extinção em massa barra é
essa mestria vinculadora; em vez de um “caos artístico controlado” (idem, p. 44),
a vida se torna serva de um tempo único e veloz que não comporta mais a duração
de suas experiências.
Abrir as portas para a emergência de narrativas cujas temporalidades não se
confundam com o acelerado tempo do fim, mas que irrompam por dentro dele e
criem sensibilidades e conexões, fazendo despontar novos passados, presentes e
futuros, pode ser um modo de freá-lo ou, pelo menos, de honrar os mundos
perdidos. Isso pode parecer muito pouco – contar histórias – “à sombra de toda
essa morte” (cf. Rose, 2013), mas só seria o caso se as histórias fossem
251
que a autora toma emprestado da cineasta e teórica Trinh T. Min-ha (cf. Haraway,
1992):
A frase de Trinh refere-se ao posicionamento histórico daqueles que não podem
adotar a máscara de “si mesmo” [self] nem a de “outro” oferecida pelas
previamente dominantes narrativas ocidentais de identidade e política. Ser
impróprio/inapropriado não significa “não estar em relação com”, i.e., estar em
uma reserva especial com o estatuto de autêntico, intocado, na consideração
alotópica e alocrônica da inocência. Antes, ser um “outro impróprio/inapropriado”
significa estar em relacionalidade desconstrutiva, crítica, em uma difração [...]
como meio de fazer conexões potentes que excedam a dominação. [...] Trinh
procurava um modo de figurar a “diferença” como uma “diferença crítica dentro”
[...] (Haraway, 1992, p. 299).
106
A expressão “Os mil nomes” faz referência ao Colóquio Internacional Os Mil Nomes de
Gaia – Do Antropoceno à Idade da Terra, que aconteceu no Rio de Janeiro em 2014: “Os
antropólogos e filósofos Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski exorcizam noções
prolongadas de que Gaia está confinada aos gregos antigos e às subsequentes euroculturas em suas
refigurações das urgências de nossos tempos na conferência pós-eurocêntrica ‘Os Mil Nomes de
Gaia’. Nomes, não rostos, não mutações do mesmo, alguma outra coisa, mil outras coisas, ainda
contando sobre mundificações e remundificações fluentes, articuladas e gerativas nessa idade da
terra. Precisamos de outra figura, mil nomes de outra coisa, para explodir para fora do
Antropoceno em uma outra história, grande o suficiente” (Haraway, 2016b, p. 52)
253
humano Ender, após ter exercido um papel fundamental na derrota das Formics,
espécie alienígena similar às formigas, escreve um tipo de eulogia contando a
história desse povo sob o pseudônimo de “orador dos mortos.” A publicação dessa
obra faz com que os humanos deixem de sentir ódio pela espécie destruída e
passem a experimentar a tristeza e o luto do que compreendem ter sido um
“zenocídio” (a aniquilação de uma espécie alienígena) –, o que transforma Ender
de salvador dos humanos em zenocida. Ender, entretanto, mantém um segredo:
carrega consigo uma rainha dormente, que ele em algum momento leva até um
planeta determinado de modo a dar àquele povo a chance de uma nova vida. Falar
dos mortos leva a uma metamorfose de Ender e do mundo: de Ender, porque ele
deixa de ser o herói destruidor não apenas diante da opinião pública, mas para si
mesmo, distanciando-se de seu passado militar – abandonando inclusive o apelido
Ender para se referir a si mesmo como Andrew; do mundo, pois se deixa de
considerar o assassinato de uma espécie como uma vitória, passando a
experimentá-la como zenocídio. Nestas histórias, tanto Ender quanto as Formics
ganham uma nova oportunidade de vida, ele como Andrew, elas em outro planeta.
Talvez a humanidade investida na extinção também consiga se transformar em
humanidade investida na continuação; para as espécies desaparecidas, por outro
lado, essa possibilidade não existe mais. O ato de falar dos mortos e diante deles,
254
entretanto, pode ser transformativo; dos mortos, com quem se faz aliança, e que
passam a ser compreendidos como vítimas de um ataque, por exemplo; dos vivos
presentes que, articulando-se com esses novos passados, têm a chance de agir
diferentemente; dos possíveis vivos futuros, cuja existência depende de
compromissos firmados em seu passado. Não é pouca coisa a promessa de
prosseguimento que essa prática encerra, e parece que é aí que Haraway aposta
suas fichas com suas “Camille stories”, que se beneficiam de imaginações
literárias e do arcabouço teórico de Haraway corporificado em personagens. Nesse
sentido, elas são um exercício de trazer ao presente um outro futuro possível,
tornar este presente o passado de um futuro no qual o mundo, ainda que
deteriorado, continua a ser o resultado de experimentações de devir-com
multiespecíficas.
Van Dooren escreveu o artigo “Spectral Crows in Hawai’i” depois de visitar
a maior ilha do arquipélago homônimo no Pacífico com o objetivo de conhecer os
projetos de conservação do Corvus hawaiiensis, corvo-havaiano ou alala. Esta
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Esse talvez seja um modo de habitar o problema – criar uma nova história que
traga consigo histórias antigas aspirando a fluentes e articulados futuros. Van
Dooren encerra o texto fazendo uma exortação que valoriza o papel das histórias
criadoras e sustentadoras de mundos durante a Sexta Extinção:
O nosso tempo é um de extinções em massa, um tempo de colonização contínua de
uma diversidade de vidas humanas e não-humanas. Mas também é um tempo que
mantém a promessa de muitas frágeis formas de descolonização e esperanças em
uma justiça ambiental duradoura. Aqui, o trabalho de manter aberto o futuro e
herdar responsavelmente o passado requer novas formas de atenção a diversidades
bioculturais e seus muitos fantasmas. Mas para além de simplesmente ouvir,
também requer assumir o trabalho carregado – nunca terminado, nunca inocente –
de tecer novas histórias dessa multiplicidade. Histórias dentro de histórias que
reúnam a diversidade de vozes necessárias para habitar responsavelmente os ricos
padrões de herança entrelaçada que constituem nosso mundo (idem, p. 3563).
5.5.
Sangue e vísceras
Rose costuma contar uma história que lhe foi transmitida por um aborígene
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na Austrália, Old Tim Yilngayarri: “Havia um homem que atirava em cães e ele
está morto agora” (Old Tim Yilngayarri apud Rose, 2011 p. 201,3). Os
“cachorros” a que o velho Tim se referia são dingos, os caninos selvagens que
vivem na Austrália há cerca de quatro ou cinco mil anos, mantêm relação com
povos locais e encontram-se sob a classificação de espécie vulnerável na lista da
IUCN, com suas populações em tendência decrescente, mas contra os quais
Estado e agronegócio declararam guerra, sob a justificativa de que eles predam o
gado. Além da prática, ainda em voga, de recompensas por suas cabeças e do
lançamento, por aviões, em iniciativa governamentais, de iscas envenenadas
contra eles, existe no país uma cerca “anti-dingo” de 5.400 km, “um Muro de
Berlim ecológico comparável à Grande Muralha da China” (Woodford apud Rose,
2011, 157,7). Assim como não são apenas os dingos que morrem envenenados
pelas iscas, mas todos aqueles que as ingerem ou se alimentam dos corpos mortos
pelo veneno, a cerca também impede a passagem de muitas outras espécies
animais, como cangurus, emus e camelos, que perecem – de sede, por exemplo –,
por não conseguir atravessá-la. Outra prática consiste em pendurar na cerca carne
envenenada, muitas vezes a carne dessas vítimas colaterais, ou, alternativamente,
expor as carcaças dos próprios dingos mortos, também ao longo da cerca ou em
“porteiras, árvores e postes” (Rose, 2011, p. 160,5). Rose relata ainda a existência
257
mendigos devem tê-los reproduzido desde a última vez. Ele levantou seu rifle e
avistou as figuras que fugiam.
Aí foi um pandemônio. Enquanto as balas voavam, as mulheres gritavam de medo,
arrastando seus animais ainda mais rapidamente atrás delas. Um cachorro ganiu
subitamente, pulou no ar e rolou chutando na poeira. Outro se seguiu, e outro. Um,
coxeando ferido no ombro, era um alvo fácil; seu corpo caindo na coleira,
atrasando sua chorosa dona por um segundo antes de ela largar a guia e fugir
ofegante...
Um grupo de velhas se agachou atrás de um arbusto, com um precioso kangaroo
dog escondido entre elas debaixo de um cobertor. Mas os policiais sabiam tudo
sobre esses truques. Sua bala varou o cobertor até a vítima, chamuscando o cabelo
branco de uma de suas guardiãs, de modo que elas se espalharam com um terror
cheio de gritos...[...]
Cachorros trotavam em todas a direções para fora do campo. Bons, ruins e
indiferentes, aqueles que eram valiosos para a caça, aqueles que eram só
medíocres, e aqueles que eram um incômodo de fato; não fazia diferença. Eram
todos cães, e todos igualmente deveriam cair ante a chuva de balas.
Finalmente, ele baixou seu rifle e olhou ao redor. Nenhum cachorro no campo
agora, só um bando de crioulos [niggers] borrados de medo. Faz bem a eles,
mostrar-lhes o que um policial pode fazer se quiser: bando de inúteis imprestáveis
(Berndt apud Rose, 2011, p. 64,4).
“Para gente que já tinha sido submetida a massacres, atirar em cães era uma clara
mensagem sobre o direito de matar com impunidade”, comenta Rose (Rose, 2011,
p. 65,9), lembrando ainda da “porosidade da fronteira humano-animal no
Ocidente”, que opera a animalização de populações para que elas possam ser
assassinadas sem que se cometa um crime – sem contar o fato de que, além de
espécies animais, a destruição atual também se estende a línguas, povos e modos
258
de vida humanos. Segundo ela, entretanto, quando o velho Tim, que testemunhou
massacres como esse, contava a história sobre o homem que atirava em cães e
morreu, ele não exprimia um desejo de vingança, senão uma mera constatação: se
você faz isso, então aquilo se sucederá. Se você destrói as conexões que amparam
a vida, não pode esperar mais nada além de morte para si e para os seus.
Lévi-Strauss, em um artigo chamado “A lição de sabedoria das vacas
loucas”, refletiu sobre a epidemia de Encefalopatia Espongiforme Bovina, surgida
devido ao canibalismo a que o gado é forçado ao receber como alimento uma
ração composta de, entre outras coisas, carne, ossos, sangue e vísceras de outros
animais da mesma espécie. Ele sugeriu que a expansão da população humana –
que só em seu período de vida passou de 1,65 bilhão para 6,7 bilhões – tornaria
impossível a continuação do consumo de carne no mesmo nível que se observava
em 1996, época da escrita do artigo. Uma alimentação quase vegetariana, que
ocupa menos espaço e requer muito menos recursos que a produção de carne, viria
a se tornar a regra, a carne se tornando, segundo ele, artigo de luxo. Com esse
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Uma civilização baseada em uma expansão sem limites não tem futuro em um
planeta finito. O autor provavelmente estava sendo muito otimista ao acreditar na
história de que o colapso teria por consequência a criação do novo e o
reestabelecimento do reino da diversidade, tanto mais que a indústria da carne
parece empenhada em destruir até o último ecossistema para criar áreas de pasto e
monocultura para alimentação do gado. É muito mais possível que, continuando
no mesmo passo, o futuro nos107 reserve, contrariamente, um reino de
107
Ainda que tenha nomeado as agências da destruição, fazendo questão de não
responsabilizar toda a humanidade pelo Antropoceno, é irresistível, de dentro de minha pequena
unidade de habitação familiar, diante do mundo domesticado que me cerca, dizer “nós”. Sem a
259
No caso dessas pessoas, não sobrar ninguém queria dizer que todos teriam sido
mortos, todos com quem eles haviam constituído mundos. No daqueles que os
colocaram, junto com uma imensidade de outros seres, em uma situação de
vulnerabilidade enquanto alimentavam delírios de singularidade, o que se passa é
outra coisa. Como vaticinou Despret, “nenhuma espécie fará luto por nós –
podemos ter certeza disso – e, de fato, essa deve ser a nossa única reivindicação
de excepcionalismo” (Despret, 2013, s/p).
intenção, contudo, de arrastar outros para esse grupo, fica a cargo do leitor a decisão de se
identificar ou não com este uso da primeira pessoa do plural.
260
Quanto aos que por tanto tempo cultivaram e inventaram modos de habitar a
terra, com ela e uns com os outros, agentes da exuberância e da continuidade
iterativamente diferente – hoje extintos, assassinados, massacrados e aviltados –,
que se repita, diante deles e sem jamais esquecê-los, à guisa de oração fúnebre, a
mensagem da criatura de Kafka: o teu “sangue se infiltra neste chão e não se
perde” (Kafka, 2002, p. 83).
***
Então, o que é política? É o desejo da vida, em suas aventuras e
experiências de diferença, mistura, morte, descontinuidade e continuidade; é
contar, herdar, abandonar e criar histórias que articulam passados, presentes e
futuros novos; é um espaço cheio de sangue e fantasmas; é aliança e fluência por
entre escombros; é a invenção e a sustentação do mundo por seus seres; não é a
barragem de fluxos; não é a uniformização do planeta; não é, definitivamente,
provocar o desaparecimento em massa de outros povos e espécies. A extinção é o
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seu aniquilamento.
6
Conclusão
A mudança necessária é de tal forma profunda que se diz que ela é impossível. De
tal forma profunda que se diz que ela é inimaginável. Mas o impossível está por
vir. E o inimaginável nos é devido. O que era mais impossível e mais inimaginável,
a escravidão ou o fim da escravidão? O tempo do animalismo é aquele do
impossível e do inimaginável. Ele é o nosso tempo: o único que nos resta.
Paul B. Preciado, “Le féminisme n’est pas um humanisme”
O que a biota terrestre está fazendo quando, por sua interação entre si e com entes
físicos, constitui o sistema biogeofísico conhecido como Gaia? O que os
chimpanzés no zoológico de Burgers estão fazendo quando se aliam ou se traem?
O que fazem os lobos quando brincam entre si, inventando, negociando e
262
e possibilidades materiais.
Costello, que considera a relação entre animais humanos e outros que
humanos como uma de guerra dos primeiros contra os segundos, escravizados
como prisioneiros, lembra que esta configuração é recebida multiplamente. Há,
por exemplo, mesmo no seio da domesticação uniformizante, os bichos que
resistem:
Mas ainda existem animais que odiamos, como os ratos, que não se renderam. Eles
reagem, se organizam em unidades subterrâneas em nossos esgotos. Não estão
vencendo, mas também não estão perdendo. Sem falar dos insetos e micróbios, que
podem nos vencer e certamente sobreviverão a nós (Coetzee, 2009, p. 71).
ações, sua habilidade de afetar e atrair aqueles que, por sua vez, se abrem a eles);
há também os bandos de cães, como aqueles que, abandonados na Floresta da
Tijuca, no Rio de Janeiro, deixaram de ser pets e descobriram juntos uma
sociedade sem humanos, constituindo-se em grupos “ferais” (cf. Azevedo, 2016);
há mesmo a rede dos corvos-do-havaí, que se recusaram a abandonar a sua
floresta, preferindo desaparecer com ela a se adaptar à civilização; e muitas
outras, em espaços urbanos, rurais e selvagens. Na guerra que certos humanos
declararam contra eles, os animais e seus aliados não cessam de rexistir.
Rose, em artigo sobre as quatro principais espécies de raposas-voadoras que
vivem na Austrália (Pteropus alecto, P. poliocephalus, P. scapulatus, P.
conspicillatus), conta parte das histórias em que elas se encontram emaranhadas
(cf. Rose, 2011a). Esses morcegos, que se alimentam de frutas e são importantes
dispersores de sementes, têm apenas um filho por ano e são altamente sociáveis,
enfrentam uma miríade de ameaças de origem antropocênica, como perseguições,
eventos climáticos extremos que os matam de sede e degradação de seus habitats
– que os levam a procurar alimento em áreas mais próximas do solo, tornando-os
vulneráveis à paralisia do carrapato, os matam envenenados por chumbo ou os
conduzem até áreas urbanas onde podem ser assassinados a tiro ou em cercas
eletrificadas, entre outros perigos. Em 1929, a antropóloga conta, o biólogo
265
De acordo com essa disposição militar, ele também avaliou os métodos utilizados
no controle e extermínio dos morcegos, elencando-os segundo sua eficácia, além
de sugerir modificações em práticas correntes com vistas ao sucesso da campanha
contra esses animais:
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conflito no qual um terceiro termo se elevasse com esse feitio é considerado caso
de polícia. A guerra, por sua vez, seria o
confronto estritamente imanente, sem possibilidade de intervenção de um árbitro
externo ou de uma autoridade superior, no qual é preciso confrontar o inimigo em
um cenário onde a aniquilação física (a “negação existencial”) do outro é uma
possibilidade real (idem).
É preciso explicitar que, para o pensador francês, a guerra que deve ser declarada
é aquela travada entre Humanos, os agentes do Antropoceno, e Terranos, difícil
conceito que apontaria para o “povo de Gaia”108, em suas configurações guerra em
Gaia (entre Humanos e Terranos) ou guerra contra Gaia (Humanos contra Gaia e
os Terranos). Em ambas as feições, está em jogo a compatibilidade ou
incompatibilidade de mundos ou modos de existência; é a incompatibilidade entre
os modos de habitação de Gaia por Humanos e Terranos que pode ser chamada de
guerra109. Constatando, entretanto, a impossibilidade da reprodução infinita das
práticas que culminaram na catástrofe, Danowski e Viveiros de Castro asseveram,
sobre essa guerra, que ela já está decidida: “reconheçamos que, de qualquer
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108
Para uma discussão acerca dos entes e povos que constituiriam esse povo, cf. Costa,
2017 e Danowski e Viveiros de Castro, 2017 (p. 111-130): “Por vezes [...] são concebidos como
uma rede emergente de cientistas latourianos independentes (em oposição aos cientistas
modernistas e seus patrões corporativos), praticantes de uma ciência ‘plenamente encarnada’,
dinâmica, politizada e orientada para nosso mundo sublunar; [...] Outras vezes, os Terranos
aparecem como o nome de uma causa comum, que concerne a todos os coletivos do planeta, mas
que só pode se consolidar se os futuros ex-Modernos fizerem seu ansiosamente aguardado voto de
humildade e abrirem o espaço de interlocução cosmopolítica” (Danowski e Viveiros de Castro,
2017, p. 128); esses autores propõem ainda a sua interpretação acerca dos Terranos: “[...] é difícil
conceber o povo de Gaia como uma Maioria, como a universalização de uma boa consciência
‘europeia’; os Terranos não podem não ser um povo ‘irremediavelmente menor’ (por mais
numerosos que venham a ser), um povo que jamais confundiria o território com a Terra. Eles se
parecem assim [...] com aquele povo que falta de que falam Deleuze e Guattari, o povo menor de
Kafka e Melville, a raça inferior de Rimbaud, o Índio que o filósofo devém (‘talvez ‘para que’ o
índio que é índio se torne ele mesmo outra coisa e se arranque de sua agonia’) – o povo por vir,
capaz de opor uma ‘resistência ao presente’ e de assim criar ‘uma nova terra’, o mundo por vir
(Deleuze e Guattari 1991: 104-05)” (idem, p. 130). Para uma articulação entre o conceito de
Terranos e aquele de “povo que falta” deleuziano com foco no animais, cf. Fausto, 2013. Nesse
sentido, mesmo que o povo de Gaia não seja identificado aos povos animais, estes últimos povos
fariam parte dele.
109
Agradeço à Déborah Danowski pela formulação, em comunicação pessoal, desta guerra
em termos de compatibilidade e incompatibilidade.
267
mito fundador é aquele da agressão, tal como encenado pelo cineasta Stanley
Kubrick em 2001 – Uma odisseia no espaço (2001: A Space Odissey):
Onde está aquela coisa maravilhosa, grande, longa, dura, um osso, eu acho, com
que o Homem Macaco primeiro esmagou alguém no filme, e então, grunhindo em
êxtase por ter conquistado o primeiro assassinato próprio, lançou para o céu, e
rodopiando ali tornou-se uma nave espacial penetrando seu caminho até o cosmos
para fertilizá-lo e produzir ao fim do filme um feto adorável, um menino, claro, à
deriva pela Via Láctea sem (estranhamente) nenhum útero, nenhum tipo de matriz?
Eu não sei. Nem me importo. Não estou contando essa história. Nós já a ouvimos,
já ouvimos tudo sobre paus e lanças e espadas, as coisas de esmagar e espetar e de
bater, as coisas longas e duras, mas não ouvimos a respeito da coisa de por coisas
dentro, do recipiente para a coisa contida. Essa é uma história nova (idem, p. 166-
167).
A história que Le Guin pretende contar no lugar da do herói, aquela das bolsas
que guardam, transportam e são constantemente rearranjadas – da qual fazem
parte “mitos de criação e transformação, histórias de trickster, contos populares,
piadas, romances...” (idem, p. 168) –, a autora explica, é nova apenas na medida
em que foi historicamente abafada pela história de “como o mamute caiu sobre
Boob e como Caim caiu sobre Abel e como a bomba caiu sobre Nagasaki e como
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a geleia ardente caiu sobre os aldeões e como os mísseis cairão sobre o Império do
Mal e todos os outros passos da Ascensão do Homem” (idem, p. 167-168); sua
origem, na verdade, seria muito antiga, sendo ela a “história da vida” (idem, p.
167), com suas invenções de composição conjunta nas quais pode haver conflitos
sem que eles sejam entretanto o sentido principal –, mas tecem relações tensas e
contingentes uns com os outros em processos que não buscam “nem a resolução
nem a estase” (idem, p. 169). São histórias, poder-se-ia dizer, de povos menores –
que não engendram projetos de dominação, mas resistem criativamente – nas
quais o que está em jogo é a continuidade renovada. É claro que não se guiar pelo
conflito, como esclarece Le Guin, não significa não entrar em combates; esses
combates, entretanto, são de outra natureza em relação aos do Herói:
Não, que se diga de uma vez, [não sou] um ser humano não agressivo e não
combativo. Eu sou uma mulher brava que envelhece, deambulando altivamente
com minha bolsa de mão, lutando contra bandidos. Entretanto nem eu nem
ninguém me considera heroica por fazer isso. Essa é só uma daquelas malditas
coisas que você tem que fazer para continuar coletando aveias selvagens e
contando histórias (idem, p. 168).
Essa luta “contra bandidos”, como ela deixa claro, é aquilo que lhe permite
continuar vivendo e contando “a história da vida”, não o motor da vida. Haraway,
que percebe na obra da escritora uma “sabedoria situada, mortal e germinal da
270
que diz respeito em suas pessoas aos grandes princípios de Justiça e Igualdade e
Liberdade’” (idem). Primeiro pelo motivo óbvio de que os animais não fazem
parte da meta, mas também porque os “grandes princípios” invocados pela autora,
sobretudo em sua versão maiusculizada, revelam, diante das populações menores,
uma face monstruosa. Deixemos isso de lado, no entanto, pois o que interessa em
sua formulação é a ideia de que é melhor procurar novas palavras, novos métodos
do lado de fora da sociedade dos homens. Woolf não fala de todos os lugares ou
em nome de todas as mulheres; ela se coloca como parte da classe das “filhas dos
homens educados” (idem, p. 916). A sociedade que essas mulheres poderiam
encontrar fora daquela “procissão dos filhos dos homens educados”, na qual elas
trabalhariam “em sua própria classe – como de fato podem trabalhar em alguma
outra?” (idem, p. 2533), ela explica a seu interlocutor masculino, é uma outra:
Em primeiro lugar, esta nova sociedade, você ficará aliviado em saber, não teria
tesoureiro honorário, pois não precisaria de fundos. Não teria escritório, nem
comitê nem secretária; não convocaria reuniões; não organizaria conferências. Se
um nome ela tiver de ter, chamar-se-ia Sociedade de Outsiders (idem).
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Essa sociedade, “anônima e secreta” (p. 2597), na qual se age situadamente desde
o lado de fora da sociedade maior, masculina e da guerra, talvez seja uma
figuração mais de acordo com as ações de resistência e criação dos animais e seus
aliados. Em vez de uma grande e única Sociedade de Outsiders, quem sabe
poderíamos pensar em incontáveis sociedades desse tipo, nas quais as diferenças
de perspectiva são multiespecífica e emaranhadamente performadas e
transformadas em devires-com. Não se trataria, é claro, de uma sociedade edênica
e inocente, mas responsável diante dos entrelaçamentos que compreendem vida,
morte, continuidade e descontinuidade, como vimos mostrando durante o percurso
desta tese – diferentemente daquela composta pela “procissão dos filhos de
homens educados”, agitada pela grande história heroica e trágica da Ascensão do
Homem. No lugar de princípios grandiosos e demasiadamente humanos, essas
sociedades guiar-se-iam pelo desejo de manutenção e criação dos nós ecológicos
que multiplicam a vida em suas diferentes configurações. Prevenir a guerra não é
mais uma possibilidade, mas ainda é possível recusá-la e resistir a ela, com o
objetivo de, habitando responsavelmente os problemas por meio de arranjos
multiespecíficos, adiar o fim das histórias.
Rose encerra seu artigo sobre as raposas-voadoras insistindo que
“compreender-se como parte de uma comunidade de vida é aceitar
272
A guerra do Antropoceno não é a guerra dos animais, mas contra os animais. Isso
não significa que com eles e diante deles não serão encontrados os entraves mais
terríveis, violentos, cruéis – incompatibilidades entre seus modos de habitação e
aquele dos Humanos, o que suscitará combates por rexistência. Mas esses
combates não são a finalidade de sua política, muito menos o modo pelo qual ela
se exprime: eles são “aquelas malditas coisas que você tem que fazer para
continuar coletando aveias selvagens e contando histórias”, como dizia Le Guin.
Para além da guerra e contra ela, há todas as histórias de “indução recíproca”,
devir e devir-com, para enunciar algumas. Diferentemente do que dizia Woolf, no
caso dos animais, seu país é o mundo todo apenas se os considerarmos como essa
grande categoria, povoada por uma multiplicidade distinta de seres; mas cada
povo animal possui seu país, não aquele delimitado por fronteiras imaginárias ou
muros reais, senão aquele país-mundo que é criado e ativado por eles e seus
parentes multiespecíficos. Nestes países, que às vezes se estendem por espaços
geográficos enormes e atravessam oceanos e no entanto são sempre multiplamente
274
com o apelo à matança desses animais – se até uma mulher pode matar um símio
desses, onde estaria a emoção de fazê-lo?110
A certa altura, cansada dos homens, caminhando nua pelo mato para evitar
fazer barulho, ela chega a empunhar uma arma contra um gorila macho, que
repousava tranquilamente com algumas fêmeas: “O macho estava sentado em um
campo de cenouras selvagens, puxando-as e as comendo sem ardor particular. Eu
podia ver o seu perfil e o cinza em seu pelo. Ele contraía os dedos um pouco,
como um homem escutando música” (Fowler, 2010, p. 2400). “Como um
homem” é, para ela, o pecado do gorila:
No couro de sua face vi surpresa, curiosidade, cautela. Algo mais, também. Algo
tão humano que me fez sentir como uma velha sem roupas. Eu podia ter atirado
nele só por isso, mas sabia que não era certo – matá-lo só porque ele era mais
humano do que eu havia antecipado (idem).
O que a narradora vê no gorila é algo parecido com aquilo que Paul du Chaillu, o
primeiro branco a matar um gorila, descreveu: uma humanidade desconfortável.
Ela, entretanto, não atira. Caso o fizesse, por outro lado, não seria para abater uma
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“criatura de sonhos infernais”, híbrido monstruoso que deve ser submetido, mas
justamente por ter reconhecido no gorila um homem; ela fantasia em “poupar as
mulheres, libertar as mulheres” (idem, p. 2417), referindo-se às companheiras do
animal, mas recua por não “conseguir ver que elas queriam a liberdade.” Mais
tarde, a outra fêmea do grupo humano, uma garota jovem, desaparece na floresta e
fervilham boatos de que um gorila poderia tê-la levado (por oposição a hipóteses
mais prováveis, como ter sido morta pelos carregadores nativos com os quais as
relações dos aventureiros não eram nada boas; ter se perdido na floresta depois de
um passeio inconsequente, e sido morta por algum bicho ou em um acidente; ou
mesmo fugido). Os dias passam sem que Beverly, a moça, retorne. A expedição
acaba. Apenas anos mais tarde o marido da narradora lhe revela o que realmente
110
Uma tal empreitada foi de fato arquitetada nos anos 1920, com a mãe de James Tiptree
Jr./Alice Sheldon como uma das participantes. Fowler explicou, em entrevista, que descobriu isso
ao ler um texto de Haraway constante em Primate Visions: “eu li um ensaio de Donna Haraway
que fazia uma afirmação bastante surpreendente [...] de que, no começo dos anos 1920, um grupo
fora levado até a floresta pelo homem que dirigia o Museu de História Natural de Nova York, e
que seu propósito era fazer com que uma das mulheres matasse um gorila. Seu argumento era o de
que os gorilas eram cada vez mais vistos como uma caça excitante e perigosa, e que eles na
verdade eram muito gentis, e se uma mulher matasse um, a emoção se esvairia. Então o plano dele
era proteger os gorilas ao fazer com que matá-los parecesse algo que qualquer garota pudesse
fazer. Eu fiquei mesmerizada (e estupefata) com isso, e um parágrafo depois, fiquei extremamente
surpresa ao ler que uma das mulheres que havia ido a essa expedição, uma das mulheres escolhidas
por ele para representar esse papel, era a mãe de James Tiptree” (Fowler, 2004, s/p).
276
aconteceu, o que ela não viu por ser mulher: a vingança sangrenta dos homens
contra os gorilas que lhe teriam tomado uma fêmea: “Senti como se fosse
assassinato”, o homem confessa, “Exatamente como assassinato” (idem, p. 2447).
A história, escrita muito tempo depois do acontecido, é o relato de uma mulher
idosa que durante seu período de vida viu a percepção sobre os gorilas mudar por
meio de estudos de campo. “Finalmente estão começando a realmente ver como
eles vivem” (idem, p. 2463), ela avalia, declarando que gosta de ler artigos sobre
primatologia, e que neles:
Minha atenção é levada até essas jovens mulheres que preferem viver na floresta
com os chimpanzés ou com os orangotangos ou com os grandes gorilas das
montanhas. Essas mulheres que livremente escolheram isso – as Goodalls e as
Galdikases e as Fosseys. E penso comigo mesma que não há nada de novo sob o
sol, e talvez todas aquelas mulheres raptadas por gorilas nas histórias antigas
tenham todas escolhido livremente ir (idem, p. 2474).
O lobo de Homo homini lupus só existe como um delírio Humano sobre os clãs
lupinos. Isso não quer dizer que não haja eventos de agressão entre animais e
mesmo práticas que podem ser chamadas, por analogia, de guerra ou guerrilha;
uma afirmação desse tipo seria injusta por muitos motivos, o primeiro deles sendo
a diferença específica e populacional. Chimpanzés podem atacar e matar membros
de outros grupos e anexar territórios, formigas conduzem batidas a colônias de
outras espécies. Mas a verdade é que não é nenhum grupo animal outro que
humano o causador da catástrofe de dimensões planetárias na qual nos
encontramos. Nas histórias citadas, mulheres infiéis desertam da comunidade que
parece desejar a guerra de todos contra todos e partem para viver com outros,
alienígenas e animais, formando tentáculos ou aldeamentos das Sociedades de
Outsiders. São essas comunidades e agenciamentos multiespecíficos e infiéis à
história da “Ascensão do Homem” que precisam ser cultivados:
Precisamos de algum modo fazer a transmissão [make the relay], herdar o
problema e inventar condições para o florescimento multiespecífico, não apenas
em uma época de guerras humanas e genocídios incessantes, mas em uma época de
extinções em massa impulsionadas por humanos e genocídios multiespecíficos que
varrem gente e criaturas para o vórtice. Precisamos “ousar’ ‘fazer’ a transmissão;
isto é, criar, fabular, para não desesperar. De modo a induzir a transformação,
talvez, mas sem a lealdade artificial que se pareceria com um ‘em nome de uma
causa’, não importa o quão nobre ela possa ser (Haraway, 2016b, p. 130).
277
Nesta tese, ao final de cada capítulo, foram propostos enunciados que, diante dos
cenários discutidos, pudessem dar conta de alguns modos animais e com animais
de fazer política, como composições provisórias e situadas, brincadeira inventiva,
imaginação simpática, interesse, parentesco estranho e invenção de mundos. Se
fosse preciso reduzir essas políticas a seus pontos fundamentais – e o lugar mais
adequado para isso é esta conclusão –, os dois conceitos capazes de reunir e
apontar para todos os outros poderiam ser criação de oddkin e brincadeira.
Experimentando-nos animais entre os animais em temporalidades e relações
diversas, multiespecificamente laterais, farejando-nos cuidadosamente e
convidando-nos a brincar, talvez sejamos capazes de criar novas histórias e herdar
responsavelmente aquelas nas quais florescemos juntos, de modo a que as
histórias – não mais uma História única – e suas criaturas tenham chance.
***
A primeira seção do capítulo que abre este trabalho chama-se Pet Sounds,
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Não fiz outra coisa até aqui senão falar – escrevendo. Gostaria, contudo, que esse
trabalho de composição de discursos em torno à cosmopolítica dos animais
pudesse fazer, como Wilson, Louie e Banana, um movimento do lógos até a
phoné, da excepcionalidade humana à animalidade compartilhada, movimento
capaz de (re)inserir o lógos no mundo, tornando-se, para além de toda escrita, uma
voz entre vozes. Um desejo de difícil realização, dir-se-ia mesmo impossível –
278
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