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Milo 1

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MILO

Milo acordou quando os gritos ressoaram pelos seus ouvidos.

Sua reação foi imediata, antes mesmo dos seus pensamentos. Ele sentou-se
no mesmo instante, olhando ao redor até achar Reno e focar nele
exclusivamente. Engatinhou até onde o garoto estava desfalecido, de
barriga para cima.

A primeira coisa que Milo fez foi checar o pulso do irmão. Seu coração
batia. Uma onda de alívio abateu Milo, fazendo-o soltar uma respiração que
não sabia que segurava. Ele também parecia respirar bem e sua temperatura
havia caído. Reno estava bem. Milo se deixou sorrir, beijando a testa de
Reno com cuidado.

Agora ele precisava se preocupar com todo o resto.

Os gritos continuavam perfurando seus ouvidos. Milo decidiu focar neles a


princípio, seguindo a direção dos sons: Eddie. Milo nem pensou duas vezes
antes de correr para a figura que estava de costas para si, ajoelhada no chão
de terra batida. Ele se agachou ao lado de Eddie, vendo que lágrimas
grossas escorriam dos seus olhos.

- Eles foram embora! – Eddie exclamava completamente perdido no


próprio sofrimento. – Eles se foram... Eu os deixei ir... Eu os perdi...! – ele
engasgou, tamanha sendo a força que ele fazia para falar. O coração de
Milo se apertou com desespero ao ver aquela acena. Ele trouxe Eddie para
perto, abraçando-o para conseguir controlar os seus movimentos e impedir
que Eddie fizesse alguma besteira. Eddie agarrou a camisa branca de Milo,
começando a chorar nela. Ele continuava repetindo as mesmas frases de
forma desconexa, com a voz quebrada e uma expressão de agonia. O corpo
todo de Eddie tremia.

Ele estava explodindo.

Milo olhou ao redor nesse momento, e foi ai que ele entendeu: Acima da
sua cabeça havia a construção do viaduto que Eddie morara debaixo por
um ano e inteiro. Ao seu redor, o ar o castigava com uma ventania gélida e
forte, e o céu estava carregado de nuvens cinzentas, ameaçando uma chuva
torrencial. A neblina que os cobria dificultava discernir completamente
qualquer coisa ao seu redor.

Eles não estavam mais no Complexo.


Uma cadeia de imagens e informações invadiram a sua mente de uma vez,
fazendo Milo conseguir analisar a situação melhor. Ele possuía as
memórias de Eddie de quando ele teve que morar por ali com um grupo de
pessoas desabrigadas, e agora entendia o que ele queria dizer. Eddie não
havia os visto antes de ser sequestrado para o Complexo. Ele não fazia a
menor ideia de onde estava o grupo, e aquele sumiço era estranho. Não
havia nem um rastro que pessoas estiveram ali, como coisas que eles
poderiam ter deixados para trás.

Milo conseguiu entender completamente o desespero de Eddie.

Ele não soube dizer quanto tempo passou segurando Eddie, querendo
apoiá-lo o máximo que podia, e só acordou para a realidade novamente
quando ouviu outro grito.

Agora atrás de si e menos sofrido e sim mais assustado.

- PUTA QUE PARIU!

Milo já sabia que era Reno antes mesmo de olhar para trás.

- Que porra... Que porra... – Reno não havia nem se levantado ainda, com
os olhos cinzentos desesperados enquanto olhavam para todos os cantos
possíveis. Milo notou que ele ficou tonto. – Que porra de lugar...?! – a voz
dele estava falhando e as suas palavras o traíam.

Milo suspirou.

- Bem vindo ao mundo de fora, Reno.

- Você não pode estar falando sério! – Reno continuou a gritar, levantando-
se de forma desajeitada e correndo até Milo. – Não, não, não! Isso não pode
estar acontecendo! O que foi que houve?! Como é que...?! Não faz sentido!

- Você precisa se acalmar.

- Me acalmar?! ACALMAR-ME?! Você não entende a porra da gravidade


da situação?! Nós não estamos mais presos! Nós saímos! E EU NÃO
LEMBRO DE NADA!

- Eu posso te explicar se você calar a porra da boca e sentar, cacete! – Milo


elevou a voz para que Reno ouvisse alto e em bom som, porém não gritou.
Ele não tinha notado que estava perdendo a paciência até estourar dessa
forma. Reno tinha os olhos arregalados e o rosto pálido. Porém, Reno
fechou a boca e acabou sentando-se ao lado de Milo, encarando-o
completamente perdido e confuso.

- Eu nunca estive tão assustado antes. – Reno murmurou num fio de voz.
Milo se apiedou dele. Ele quis se aproximar do garoto e tocar nele para lhe
passar um pouco de segurança, porém estava preso por conta de Eddie.
Olhou para baixo e viu que o garoto havia desmaiado em meio ao seu
pânico, com os olhos inchados e a expressão conflitada de quem havia
dormido contra a própria vontade, exausto demais para continuar
consciente. Ele havia ido ao limite.

- Reno, me ajude a carregar Eddie. – Milo pediu, querendo ficar próximo à


parede, pois era mais confortável para todos e menos visível para quem
passava acima do viaduto. Reno o olhou de forma ultrajada, perdendo a
fragilidade por um instante.

- Oi?! Não! Eu não consigo, por que diabos eu teria que fazer isso?!

Milo o olhou de forma dura mais uma vez.

- Você quer ficar sem falar comigo, então?

Não teve muito argumento ali.

Reno mordeu o lábio, inflando as bochechas assim como uma criança


mimada faria. Depois de alguns segundos naquela briga de olhares, Reno
finalmente soltou o ar que ele segurava por dentro da boca. Ele começou a
se mover e, dessa forma, ele e Milo levaram Eddie consigo enquanto
sentavam-se de costas para uma das paredes que suportavam o viaduto,
podendo se apoiar nela, o que era cem vezes mais confortável. Mas ele fez
tudo resmungando e irritado, o que Milo prontamente ignorou.

Depois que eles já estavam arrumados, com Eddie ainda adormecido sobre
o colo de Milo, Milo soltou um suspiro. Suas mãos tremiam. Ele estava
agindo todo composto e controlado porque precisava, e não porque se
sentia assim. Ele ainda não podia acreditar que aquilo estava realmente
acontecendo. Que naquele exato momento, o vento batia em seu rosto e ele
sentia frio por não usar nenhuma blusa de frio, apenas com a camisa branca
fina de mangas longas. O ar poluído enchia seus pulmões, e de certa forma,
ainda era cem vezes melhor que o ar do Complexo. Havia algo de original
nele. Algo de novo e refrescante que o Complexo nunca iria ter.

Milo estava experimentando a liberdade pela a primeira vez em sua criação


toda.

- Por que diabos ele está desmaiado assim? – Reno chamou a sua atenção,
olhando feio para o garoto que havia acabado de carregar contra a sua
vontade. Milo suavizou a expressão.

- Ele morava aqui. – Milo respondeu. – Eddie morava aqui com um grupo
de desabrigados, e quando não os achou, ele liberou tudo que estava
guardando desde o Complexo.

Reno arregalou os olhos com a resposta, sendo abatido pela surpresa.

- Como...? Como paramos aqui...?

Então Milo começou a contar tudo que havia acontecido depois que ele
fizera Reno perder a consciência para que seu Elemento o protegesse contra
a temperatura alta da área dos Primórdios no Complexo. A expressão de
Reno só ia mudando conforme a história, até que ele finalmente se
pronunciou:

- Você quer dizer que uma explosão nos trouxe aqui?

- Não... Bem... Não exatamente. – Milo tinha uma mão nos cabelos de
Eddie enquanto falava, de forma muito distraída. Ele fazia carinho contra a
nuca de Eddie, com os dedos mergulhados nos cachos macios do garoto. –
Eu não estava muito consciente na hora, como eu te disse, mas eu consigo
ver as memórias de Eddie. Cassie fez algo quando pegou Mil. Meu... Meu
palpite é que ela tenha passado a energia dela para Mil, e ela entrou em
contrato com a energia de Eddie, causando aquela explosão. Cassie já sabia
que ele tinha essa capacidade... Eu não sei como, mas ela sabia que ele já
havia feito isso antes.

- Você está falando de...? – Reno franzia o cenho tentando acompanhar.

- De se telestranspotar pelas sombras. Ele não tem controle sobre isso. As


manifestações dele estão muito ligadas com o seu emocional. Quando ele
era criança, ele foi preso num cativeiro por um tempo de um ano, e ele só
saiu de lá por conta dessa manifestação. Depois disso ele parou aqui. –
apontou para cima, onde o viaduto se estendia sobre a cabeça dos dois. –
Isso só faz um ano.

Depois que ele terminou de explicar o que precisava, finalmente olhou para
Reno. Mas o olhou de verdade. Reno parecia tão perdido naquele momento
que doía, porque Milo não tinha a menor direção para lhe dar. Ele não fazia
ideia do que fazer ou como fazer também. Eram naquelas horas que eles
notavam como eram pequenos, e o Mundo continuava independente de
como se sentiam.

A cidade continuava lá em cima, desenvolvendo-se a cada segundo. Os


civis seguiam suas vidas, sem sequer imaginarem em toda aquela
conspiração que envolvia Milo, Reno e Eddie. O trio nunca iria fazer parte
deles novamente. Reno poderia tentar, e ele poderia até enganar, mas tudo
que ele havia visto e presenciado não iria mudar. Não iria desaparecer.
Seriam sempre sombras nas vidas dos três, escurecendo cada passo que eles
davam.

Era completamente assustador.

Para resumir, parecia que eles eram presas e o Mundo todo era um monstro
pronto para engoli-los.

- O que a gente faz agora? – Reno disse tão baixo que poderia ter sido
muito bem um pensamento seu. Mais uma vez, Milo se viu dolorosamente
sem respostas.

- Nós... Nós temos que esperar Eddie acordar, antes de qualquer coisa... –
Milo respondeu sem muita certeza ou apoio que pudesse oferecer para
Reno.

Nesse momento, Reno quebrou.

Lágrimas escorreram pelo seu rosto e ele abaixou o rosto, deixando a franja
tampar parte da sua expressão. As lágrimas ainda eram visíveis. Como se
em resposta à isso, as nuvens carregadas no céu começarem a liberar
chuva, e uma garoa ao redor deles rapidamente se tornou uma chuva
torrencial, molhando tudo que não estivesse por baixo do viaduto.

Milo não pensou duas vezes antes de puxar Reno para perto, abraçando-o
pelos ombros. Ele estava lhe oferecendo apoio e procurando um pouco para
si também. Só não chorava por não ser possível para si. Porém, por dentro,
ele gritava. Gritava tanto de medo quanto de confusão e ansiedade. Como
as coisas podiam ter mudado tanto em tão pouco tempo? Nenhum dos dois
irmãos tinha a menor esperança de saírem do Complexo, ou perspectivas
para o que fazer caso isso acontecesse, e ali estavam.

A margem de erro.

- Está tudo bem. – a voz de Milo era um tiro no escuro, soando contra o
barulho forte da chuva. – Vai ficar tudo bem. Vai dar tudo certo.

Reno apertou mais a sua camisa em resposta, sem conseguir pronunciar


nada. Os soluços que quebravam da sua boca eram sofridos, assim como as
lágrimas que não paravam de sair dos seus olhos. Ele estava explodindo
tanto quanto Eddie, e Milo eram torturado mentalmente enquanto assistia
as duas pessoas que ele queria proteger quebradas dessa forma. Ele não
podia fazer nada. De certa forma era culpa de Milo, mas agora não
adiantava pensar assim.

Não os levaria para lugar algum.

E eles precisavam andar. De uma forma ou de outra, eles tinham que andar.
Se não a morte de todos... Se não tudo que havia acontecido... Teria sido
tudo em vão. Milo não podia permitir isso. Ele nunca se perdoaria. Fazia
parte da sua responsabilidade. Por mais pesada que fosse Milo a aceitaria
completamente, e faria de tudo para manter Reno e Eddie seguros.

Ali, no frio e desprotegido, ele prometeu contra os barulhos dos soluços de


seu irmão mais velho.

xxx

O roxo escuro brilhou contra a escuridão quando Milo abriu os olhos


repentinamente.

Um alerta soou na mente de Milo, como se um aviso de perigo próximo.


Quando seus sentidos voltaram, demorando mais do que deveriam, ele
conseguiu ouvir passos próximos de onde ele estava junto com Reno e
Eddie. Estava muito escuro, e ainda cheio de neblina, porém as luzes que
vinham do viaduto iluminavam parcialmente o mundo ao redor de Milo.
Os outros dois apoiados em si ainda dormiam. Não havia muito que eles
podiam fazer, mesmo com o frio e o desconforto. Forçar Eddie a acordar e
andar com ele estava fora de cogitação. Mas o perigo não iria esperar
também. Eles haviam saído do Complexo, mesmo assim não significavam
que haviam saído do radar dos Primórdios. Tártaro ainda estava em algum
lugar, mesmo ele tendo desistido do Complexo deles, ele ainda tinha
outros. E ele ainda tinha planos. Enquanto Eddie e Milo estivessem vivos,
Tártaro ainda podia usá-los para qualquer coisa que quisesse.

E também... Milo não havia visto Cassie. A teoria é que ela tivesse saído
junto com eles, certo? Ele não sabia dizer quantas pessoas Eddie poderia
telestransportar, mas a explosão havia sido forte o suficiente para levar pelo
menos Cassie junto. E mesmo assim, naquela escuridão densa no meio da
noite, sozinho com os seus pensamentos, Milo ainda não a via.

Estava tudo caindo sobre ele como a chuva de mais cedo. Agora não chovia
mais, porém o vento havia ficado quatro vezes mais frio, sem piedade para
aqueles que não tinham uma casa para dormir naquela noite. Milo tentou se
focar no por que dele ter acordado: Nos passos. Ele não conseguia ver
ninguém se aproximando da área por baixo do viaduto, e o problema não
era o escuro. Os passos vinham de cima. Provavelmente era só alguém
voltando para casa à noite, ou qualquer motivo que fosse, mas os passos
pareceram esquisitos para Milo. Arrastados, barulhentos e lerdos,
completamente diferentes do que você espera de alguém andando tarde da
noite sozinho numa cidade perigosa. Como se a pessoa não tivesse pressa,
pelo contrário.

Milo parou a respiração, querendo diminuir a sua presença o máximo o


possível. Ele não podia colocar em palavras o quanto que ele não queria ser
pego novamente. Milo nunca usava essa palavra, mas não havia outra coisa
para explicar do que: Injusto. Seria muito injusto isso acontecer. Milo não
teria como fazer simplesmente nada caso eles fossem pegos novamente.
Não fazia ideia o que Tártaro queria agora, ou que ele queria desde o
começo. O Complexo tinha um motivo para existir, mas nunca havia sido o
motivo que ele usara até agora. Todos os Legados, todas as mortes, tudo
que havia acontecido seria usado por Tártaro de alguma forma. E ele
duvidava que seria para o bem do Mundo.
Os Primórdios eram um exemplo sólido de como o poder poderia
corromper os humanos, até os pontos que eles deixavam de se considerar
assim. A solução rápida que eles acharam era reiniciar o mundo, refazer
tudo do começo com a ciência super-desenvolvida que criaram e os poderes
que ganharam. Se essas ideias não fossem agressivas o suficiente, eles
ainda decidiam fazer isso com os CCL, os Centro de Controle de Legados,
ou simplesmente os Complexos. Mas era difícil até mesmo para Milo juntar
as peças do quebra cabeça e entender a imagem maior. Ele ainda não sabia
qual era o objetivo dos Primórdios seguindo suas ações, e era de se esperar,
porque faltavam muitas informações para isso. Dessa forma, era impossível
prever o que iria acontecer.

E Milo odiava não saber. Ele não estava acostumado a ficar no escuro, ser
comum como as outras pessoas e não conseguir entender ou deduzir. Ele
não estava acostumado a ter a desvantagem intelectual, o que era uma coisa
que todos os humanos experimentavam. Milo sempre soube que não era um
deles. Então o mínimo que deveria acontecer era não ser tratado assim, para
não se iludir. Tudo que Milo sabia era que ele precisava ir contra, ele
precisava fazer alguma coisa antes que fosse tarde demais.

E ele havia decidido que seria com Reno e com Eddie, já que era assim que
havia ficado no final.

Milo continuou acordado até os passos passarem completamente, e mais


um pouco depois disso, perdendo a contagem das horas enquanto elas
passavam. Ele só parou de prestar atenção quando seus sentidos
sucumbiram, deixando-o sozinho na inconsciência. Ou seja, Milo acabou
desmaiando.

- Milo!

Milo acordou num susto.

Ele virou o rosto e a primeira coisa que ele viu foi Eddie. Os olhos
castanhos lhe encaravam de forma preocupada e... Conflitados. Milo não
conseguia ler exatamente todos os sentimentos investidos naquele olhar.
Havia muita coisa acontecendo tanto para Eddie quanto para Milo, e ambos
se encontravam perdidos.

Já era outro dia e o tempo estava completamente diferente do dia anterior,


sem chuva ou neblina, e sim um calor fraco e morno, com o ar pesado e
úmido. Parecia que as estações ainda estavam em processo de troca, porém
isso era normal no Brasil. Chuva e Sol se misturavam de uma forma que
chegava a ser ridículo, principalmente nas grandes cidades onde o tempo
era quase totalmente alterado por conta da poluição ambiental.

- Que bom que você acordou. – Milo soou baixinho, com a voz um pouco
fraca e sonolenta por ter acabado de acordar. Ele não havia descansado
nada. Parecia que, no momento que conseguira pegar no sono, havia sido
acordado daquela forma. Ele nem precisava dizer que o mundo dos sonhos
parecia cem vezes mais atrativo do que a realidade.

- Eu que deveria estar dizendo isso. – Eddie rebateu, desviando o olhar de


Milo agora. – Você tem que acordar o Reno. Não podemos ficar aqui.

Milo queria perguntar. Ele estava se mordendo para saber o que havia
acontecido com Eddie enquanto dormia. O que ele havia pensado, quais
eram as suas conclusões, como estava sendo para si. Milo podia
simplesmente ler os pensamentos dele, mas não faria isso. Ele não iria
invadir a privacidade de Eddie, ou então Eddie nunca iria confiar em si.
Queria que Eddie sentisse que ele podia contar com Milo e, se ele achasse
necessário, falar sobre os seus sentimentos consigo.

Mas esperar isso acontecer naturalmente era frustrante. Parecia que, se


Eddie tivesse a oportunidade, ele iria guardar tudo para si para sempre. Isso
não podia ser saudável. Até mesmo Reno, que odiava ser sincero e falar
sobre o que sentia, abria-se mais com Milo do que Eddie. Milo queria
ajudar Eddie, mas não fazia a menor ideia como. Ou se podia. Talvez não
houvesse nada que ele pudesse fazer. Afinal, naquela vida que eles foram
jogados, seria uma decepção depois da outra, e por mais que você se
importe com alguém, não tem como evitar que essa pessoa se machuque.

Só que não parecia justo quando Milo já havia contado praticamente tudo
para Eddie. Coisas que ele não havia nem pensado em dizer para mais
ninguém além de Reno, que precisava saber que ele estava num ambiente
seguro para conseguir se sentir confortável, que era o seu irmão. Ele havia
falado sobre Fernanda, sobre Tártaro, sobre tudo, e ainda assim, Eddie não
estava falando exatamente nada de volta.

O que Milo esperava depois de ter mentido para ele por tanto tempo? Ele
bufou.

Isso chamou a atenção do cubano.

Milo o ignorou, focando-se em acordar Reno do seu sono pesado. Demorou


alguns minutos de chacoalhadas, insistência e a perca total da paciência de
Eddie (que não estava fazendo nada para acordá-lo, mas ainda se irritava)
para que Reno voltasse à vida com uma expressão emburrada digna de uma
criança que não queria ir para a escola de manhã. Milo o forçou se levantar
junto consigo, vendo-o se espreguiçar com a maior lerdeza no mundo. Ele
revirou os olhos.

- Onde nós vamos?

- Para a casa de Reno.

- OI?! – Reno praticamente berrou. – Não! Não, não, não! – Milo abriu a
boca, mas Reno sabia que ele iria falar, então se virou para ele quando
repetiu: - Não tem condições! Não! Eu não quero voltar para lá! E vocês
não podem me obrigar!

Do jeito que a expressão de Eddie estava fechando cada vez mais, e se


tornando sombria, a pouca paciência que ele tinha esgotara completamente
e aqueles dois iriam brigar mais uma vez. Milo começou a se irritar ao ver
que ele teria que intervir antes da discussão poder nascer. Às vezes parecia
que ele era mãe de ambos, e precisava racionalizar as brigas pelo controle
remoto.

- Reno, você é o único aqui que tem algum lugar para voltar. – Milo
começou de forma calma, forçando-o a prestar atenção no seu argumento. –
Todas as suas coisas ainda estão lá. Eu duvido que a sua família tenha se
mudado. Você tem roupas, comida, até mesmo internet se quiser pensar por
esse lado. A não ser que você tenha outra ideia brilhante, nós não temos
nenhum lugar para ir com esse tipo de coisa que vai ser bem útil.

Se olhar matasse, Reno já teria feito picadinho de Milo enquanto ele falava.
Apesar de sentir que esse argumento materialista o pegaria em cheio, e
Reno ficaria sem como ir contra, Eddie tinha que arruinar as coisas quando
ele abriu a boca:

- Você vai deixar a sua família sem saber que você está vivo e bem. – ele
acusou, com a voz dura carregada de remorso e raiva. – O quão egoísta
você consegue ser?

Reno rangeu os dentes.

Pronto, já era.

- Ah é, porque você entende muito que acontece entre mim e a minha


família!

- Não importa pelo menos você tem uma.

- Uma que não funciona! Grande merda! Eu não quero vê-los de novo
mesmo, e eu não sou obrigado. Eu não os considero minha família, e isso
são total culpa deles.

Eddie soltou um som baixo de raiva, algo que poderia ser considerado um
rosnado. Quanto tempo ele havia passado com Etherea? Milo sentiu medo
que ele partisse para cima de Reno, o que não parecia tão distante se você
olhasse bem para a expressão contorcida dele. Eddie estava fervendo em
raiva, e frustração e medo, e os humanos sempre procuravam um meio de
gastar os sentimentos negativos quando eles passavam do limite que
poderiam aguentar.

- Parem os dois! – Milo se viu exclamando novamente, como na primeira


vez que eles ficaram juntos. – Isso não vai nos ajudar agora! Pelo contrário,
quanto mais tempo passarmos parados, vai ser pior. Reno, - Milo se virou
para ele. – você não quer ver a sua família. Tudo bem. Nós vamos à sua
casa quando estiver vazia, pegamos o que precisamos e saímos. Pronto.

- E dai vamos para onde? – Eddie soou exasperado, cruzando os braços.

- Eu não sei, mas não precisamos sofrer por antecedência. – Milo foi rápido
em responder antes que Reno abrisse a boca novamente. Ele fechou ainda
mais o cenho, e Milo sabia que ele estava processando tudo enquanto eles
conversavam. – Nós não poderíamos ficar com o Reno na casa dele de
qualquer forma. A mãe dele não iria permitir. – Reno olhou para Milo
nessa hora, como se tentasse alertá-lo a manter a boca fechada e não falar
mais que o necessário. Milo o ignorou. Ele não se lembrava da última vez
que havia “falado demais” sobre um segredo. Só haviam descoberto suas
mentiras porque viram as memórias de Reno.

- Você está me dizendo, e quer que eu acredite que ela é uma louca desse
jeito?

- Quer fazer o teste? Você fica lá com ela, e eu e Milo vamos embora.

- Ninguém vai fazer teste nenhum! – Milo exclamou alto. Reno calou a
boca com isso, pelo menos. – Por favor... Por favor, vamos colaborar, só
por agora.

Pelo menos, dessa vez, eles pareceram entender e concordar. O silêncio


caiu pesado sobre o trio, e Milo demorou um pouco para perceber que
ambos não sabiam o que dizer, ou pelo menos, algo que não destruísse
completamente seus preciosos orgulhos. Milo respirou fundo e suspirou,
sem conseguir se irritar por muito tempo. E na teoria, ele era o mais novo
dali.

- Então, quando a gente vai?

Eddie piscou quando o assunto se reascendeu.

- Ah... Milo... – Eddie pareceu sem jeito de repente. Milo não conseguiu
compreender. – Você vai chamar muita atenção na rua.

- Oh.

Como ele não havia pensado nisso antes? As pessoas iriam olhar para si
para saberem qual era o seu gênero, e quando notassem seus olhos, poderia
acontecer até uma confusão. Milo sabia que o país que eles moravam não
era um lugar onde você colocava lentes nos olhos para deixa-los roxos e
saía impune com isso todos os dias, como se ninguém fosse se importar
com a sua vida. Aquilo era tão... Estranho. Milo nunca teve que se importar
com esse tipo de coisa antes, porque o Complexo estava cheio de
adolescentes com poderes, ter uma aparência “estranha” era o normal.

A vida real, com pessoas reais e ambientes reais, não funcionava assim.
Quanto mais diferente você fosse, quanto mais andrógino você fosse, mais
as pessoas reais iriam se incomodar. Agora Milo estava se sentindo
inseguro. O que ele deveria fazer, então? Quando olhou para Reno, ele já
havia colocado a toca do casaco sobre o rosto, e isso de certa forma deixou
Milo pior. Reno tinha como se esconder, por já saber como funcionava de
antemão, enquanto Milo continuava perdido.

- Toma.

Milo piscou ao notar que Eddie estava esticando o seu casaco militar para
ele. Ele tocou o tecido com as mãos trêmulas, olhando com olhos enormes
e confusos para Eddie, muito surpreso pelo gesto para falar. Sabia o quanto
o casaco era importante para si, e mesmo que fosse necessário, entregar
para outra pessoa era uma atitude muito forte. Milo não esperava, de
verdade.

- É só colocar a toca, como o Reno, e vai ficar folgado em você. Se você


olhar para baixo, as pessoas vão achar que é uma garota e não vão prestar
muita atenção.

Milo acabou torcendo o nariz de leve.

- Eu pareço tanto com uma garota assim?

Reno deu uma risada anasalada, obviamente debochando dele. Eddie coçou
a nuca e preferiu não responder. Milo não sabia quem culpar ou com quem
se irritar. Alex era feminino desde criança, mas Tártaro refez a sua
aparência depois que o clonou, e ele decidiu transformá-lo o mais parecido
consigo o possível. Mesmo que Milo parecesse muito com Alex, quase
como se os dois fossem irmãos, a culpa da sua aparência atual era de
Tártaro.

Parecer com uma garota não era um problema para si. Ele já havia dito
antes: Não era humano o suficiente para se sentir bem num gênero de
verdade. Alex era um garoto, então Milo seria um garoto, mas não passava
disso. Não havia apego pelo rótulo ou necessidade. O problema eram os
motivos de ele parecer uma garota, e os efeitos que isso causava nas
pessoas. Se ele parecesse uma garota porque havia nascido assim, como
Alex, não teria problemas. Se ele parecesse uma garota enquanto era
humano, realmente não teria problemas.

Depois que ele terminou de vestir o casaco, a sensação de calor que o


envolveu foi como uma carícia. Ele não havia notado que estava passando
frio até finalmente ter se protegido contra ele. Ainda assim Milo não
gostava muito do estilo militar do casaco, não combinava com ele e sim
com Eddie, porém a necessidade falava mais alto. Ele colocou a toca na
cabeça e a sombra que se formou em seu rosto escondeu-o parcialmente.
Apenas quem quisesse enxergar algo fora do normal que iria olhar por
muito tempo.

- Você sabe, pelo menos, onde fica o seu bairro, certo? – Eddie agora
estava se dirigindo a Reno. Reno grunhiu.

- Eu sei qual é o meu bairro. Não onde fica. Eu estou surpreso que nós dois
moramos na mesma cidade, para começo de conversa.

Antes que Eddie pudesse ler muito na frase de Reno, Milo interrompeu
com um pigarro:

- Eddie sabe andar por aqui, o que é a nossa sorte. Então nós vamos achar o
seu bairro, e depois você nos leva até a sua casa. Não vi dificuldade
nenhuma nesse plano para vocês dois brigarem, de novo.

Reno bufou. Ele soltou tanto ar pela boca que acabou atingindo a sua
franja, fazendo-a voar por um instante.

- Tá, tanto faz.

Aquilo era o melhor que eles iriam conseguir.

MILO
Milo estava recebendo mais informações do que conseguia processar em
tão pouco tempo. Depois que eles finalmente saíram da área do viaduto e
chegaram às avenidas, Milo começou a apertar a blusa de Eddie pela barra,
com um medo real de se perder ali naquele tanto de gente. Reno não estava
preocupado, diferentemente do que Milo havia pensado, e ele nem se
preocupava em apressar o passo, andando atrás de Milo, enquanto Eddie
estava na frente por ter que guiar o caminho.

Havia pessoas para todos os lados. De todas as formas. Elas tentavam não
encarar, mas de vez ou outra os olhares se cruzavam, e elas desviavam o
mais rápido o possível. Não com Milo, pois Milo tinha que se lembrar a
todo momento para deixar o rosto baixo, para que ninguém notasse a cor
dos seus olhos.

Não eram só as pessoas que Milo não estava acostumado. Ir contra o vento
dessa forma era novo. Olhar para o chão, e ver asfalto, sujeira, pedras e
árvores também era novo e esquisito, e olhar para os lados e ver lojas,
prédios comerciais, prédios residenciais, casas, também era novo. Ouvir o
latido dos cachorros, as vozes das pessoas, a música que repercutia das
lojas, de fones que não tinham uma boa contenção de som, das próprias
casas que não sabiam o significado do que era respeito aos vizinhos
também era muito novo. E chocante.

Milo havia nascido naquele país sem nunca mesmo ter visto um vislumbre
da realidade dele. Sabia que ainda não conhecia muita coisa. Aquele era o
centro, um dos polos mais comerciais do Brasil, e não dava para dizer que
todos os outros brasileiros tinham o mesmo estilo de vida que era vivido
por ali. Afina, o Brasil era uma mistura de coisas que era difícil de explicar
onde começava e por onde terminava.

Era rico. Uma riqueza que Milo nem imaginava ser possível, preso no
subsolo com Tártaro. Tinha tanta coisa para conhecer e ver. Ele sentia-se
admirado e extremamente assustado, com o mesmo pensamento de antes
sobre ser uma preza e o Mundo um monstro prestes a lhe engolir. Era tudo
tão grande comparado consigo, com a sua vida. Aquele mar de pessoas era
formado por individuais, cada um com um estilo de sentir diferente, um
estilo de vida, um estilo de pensamento. E todos eles precisavam de um
espaço seguro, todos eram merecedores de alguma coisa, e enquanto Milo
tentava medir todas essas informações, o cérebro dele explodia.

Mais importante: Provavelmente todas aquelas pessoas nem sabiam que ele
existia. Que ele e outras crianças, pelo mundo todo, haviam passado e
passavam por coisas terríveis. Aquelas pessoas viviam as suas vidas sem a
menor pista da sujeira que o Governo apoiava por debaixo dos seus pés, e
chegava a ser fisicamente doloroso para Milo não poder gritar em alto e
bom som para todos a verdade.

Ele notou que era basicamente o que Eddie havia sentido desde o começo.

A cidade parecia não ter fim. Sempre que Milo achava que haviam chegado
algum lugar, ainda tinha mais uma rua para atravessar, uma ladeira para
subir. As ruas pareciam ser todas iguais, principalmente as residenciais. As
casas tinham o mesmo estilo, e Milo ficou confuso pensando em como as
pessoas conseguiam se lembrar, corretamente, qual cara era a sua. Ele sabia
que havia números, mas eles também não significavam muita coisa. Eram
combinações sem o menor sentido.

Eddie não parecia ficar cansado. A caminhada não era nada para ele. Milo
não podia ficar fisicamente cansado, mas depois de algumas horas (e ele
tinha certeza que haviam passado horas), sua mente estava se esgotando.
Reno estava tanto fisicamente quanto mentalmente cansado, e ouvir os seus
resmungos era a pior parte. Aparentemente as ladeiras que os matavam, por
serem mais difíceis para subir, e quanto mais alto estivessem, menos ar
tinham. Milo notou que a cidade havia sido construída numa área de relevo,
ou seja, num planalto.

Não era uma boa ideia.

Milo notou que planejamento não era exatamente o forte dos humanos.
Havia muita construção pela cidade que ele podia apontar, pelo menos,
cinco erros antes de entrar em muito detalhe. Das ruas, dos caminhos, até
os prédios em si. Era como se eles tivessem tido pressa para terminar, e por
isso fizeram o que era mais fácil. Com certeza deveria ser um defeito
humano.

Milo tentou ficar mais perto de Eddie quando ele notou que estavam indo
por uma área comercial, e consequentemente isso significava mais pessoas.
Eles conseguiram atravessar sem problemas, mesmo com tanta coisa para
desviar e tanta informação a se entender, e logo chegaram a uma parte
unicamente residencial.

E ali o cenário mudara completamente.

O sol estava se pondo, o que significava que eles haviam andado por horas,
e era uma vitória, apesar de Reno estar parecendo derrotado. Ninguém
havia os abordado ou seguido, então estava tudo bem. Muito
provavelmente Milo havia cruzado a cidade no seu primeiro dia ali. O
bairro que eles entraram só tinha casas grandes ou casas bonitas,
distribuídas em ruas em direções diversas, e em ladeiras.

Era um bairro rico.

Milo parecia que estava em outro lugar, de repente. A diferença do bairro


residencial para o centro e outros que eles haviam entrado era enorme. As
casas haviam triplicado de tamanho, a decoração e a arquitetura melhoram
em cem vezes, e as ruas estavam completamente impecáveis. Ele olhou
confuso para Reno, e Reno bufou.

- É um dos bairros italianos. – Reno explicou de forma rabugenta. – Só tem


gente rica por aqui.

Anteriormente havia pouquíssimas casas com cores fortes. Porém, quanto


mais eles entravam naquele bairro, mais eles viam as construções pintadas
em vermelho vivo, em amarelo e em azul, e as poucas construções brancas
estavam cheias de desenhos. Até mesmo as placas pela área assumiam uma
postura obcecada, informando o nome do bairro em cada oportunidade.
“Cantina de Lugar Tal”, “Biblioteca do Lugar Tal”, “Bar do Lugar Tal” são
alguns exemplos que para ilustrar como funcionavam as placas.

Eles chegaram a uma parte especificamente residencial, com casas e não


prédios. A rua sem saída terminava com uma casinha azul escuro, a cor
reluzindo enquanto os raios solares batiam nela fortemente. Milo só podia
assumir, pela posição do Sol e a claridade, que o entardecer estava
chegando e logo o Sol iria se puser. A casa possuía um portão negro junto
com um muro cheio de trepadeiras, completamente verde. O musgo se
estendia e chegava até o ferro negro do portão, deixando-o esverdeado nas
pontas.
- Minha casa. – Reno anunciou baixinho. Milo tentou ler a expressão dele,
mas era praticamente impossível. Milo não podia imaginar como deveria
ser ficar parado bem ali, olhando para um lugar que estivera por quase toda
a sua vida, mas não lhe pertencia mais. – Nós não podemos entrar ainda.

- Por quê? – Eddie perguntou, ainda olhando para a casa com os olhos
sagazes. Milo quase podia ouvir as engrenagens na sua cabeça funcionando
enquanto ele pensava em formas de entrar e analisava a situação toda. Ele
era tão prático que chegava a ser assustador. Como alguém conseguia se
segurar tão bem? Milo sabia que a compostura de Eddie só durava
enquanto ele tivesse um objetivo em mente, mesmo assim, era
surpreendente de qualquer forma e Milo o admirava. Assim como admirava
Reno por, mesmo não querendo e estando extremamente contrariado, não
fugir e encarar aquilo tudo.

- Minha mãe ainda deve estar em casa, se ela mora aqui. – Reno respondeu
com a voz morta. – Ela começou a trabalhar durante a noite porque ela tem
insônia, então ela só sai às sete horas.

- E as suas irmãs? – Milo questionou.

- Minha irmã gêmea foi morar fora quando ela passou na faculdade, e as
outras duas já vivem sozinhas. – Reno respirou fundo ao responder. Eddie
franziu o cenho para ele.

- Você tem uma irmã gêmea?

- Foi o que eu disse, não foi?

- Quantos irmãos você tem, na verdade?

- Eddie. – Milo o alertou.

- Eu tinha quatro. Sobraram três demônios. – Reno olhou para si com um


olhar mortífero. – Mais alguma pergunta invasiva que vai me fazer pior,
Eddie?

Eddie abriu a boca, porém Milo o cortou antes:

- Você NÃO ouse continuar com isso! – Milo esbravejou finalmente


deixando a intriga dos dois estressar os seus nervos. Eddie teve a decência
de fechar a boca, mas ele pareceu extremamente enfezado com isso. – Nós
temos que esperar. Então é melhor para todo mundo se fizermos isso em
paz.

Em vez de continuar a conversa, Eddie começou a procurar em seus bolsos,


mas ele demorou um pouco até notar que o seu casaco estava com Milo.
Vendo isso, Milo decidiu lhe devolver o casaco para que ele pegasse o que
é que ele queria tudo silenciosamente. A rua que eles se encontravam
estava completamente vazia, e por isso Milo decidiu abaixar a guarda.

Não Eddie. Nem Reno

Eddie foi para trás e Reno o seguiu sem pestanejar, fazendo com que Milo
precisasse fazer o mesmo. Eles ficaram numa área que, praticamente, não
era possível vê-los se alguém não procurasse. Milo achou desnecessário,
porque não é como se eles estivessem fazendo nada ilegal, e quanto mais
abertamente cautelosos fossem, mais iriam chamar atenção. A melhor
forma de mentir era no aberto, agindo como se não tivesse nada a esconder,
até que começasse a acreditar nisso.

Milo tinha experiência nessa área.

Mesmo assim, ele não reclamou ou comentou sobre, entregando o casaco


para Eddie como ele queria. Eddie não perdeu tempo em vasculhar os
bolsos, retirando dali um objeto em forma de concha reluzindo em dourado,
pendurado numa corrente também de ouro. Parecia ser um objeto antigo,
obsoleto e... Então Eddie o abriu e Milo notou que era um relógio de bolso.

- Merda! Parou de funcionar! – Eddie pareceu muito frustrado ao chiar,


olhando o relógio por todos os ângulos possíveis. Milo notou que era
importante.

- Tudo debaixo do Complexo para de funcionar. – Reno explicou. – Só as


coisas criadas com ciência elementar que funcionavam.

- Até isso eles tiraram de mim. – Eddie grunhiu. Milo pensou que pelo
menos ele ainda tinha o relógio, mesmo que não pegasse, e quando Eddie
ergueu o rosto exatamente para lhe lançar um olhar revoltado, ele entendeu
que Eddie havia ouvido os seus pensamentos e não gostara nada deles.

- Sete horas são quando anoitece. – Milo decidiu falar de qualquer forma,
sem conseguir controlar o tom esperançoso. – Já está entardecendo. Não
deve demorar muito. Nós vamos poder ver o carro dela saindo também,
certo?

Reno assentiu, mas ele não olhou para Milo ou se preocupou com a
informação que estava dando. Milo nem conseguia se irritar, sabendo o que
ele estava passando no momento. Com certeza era a situação mais esquisita
da vida dos três, e não tinha muito que se fazer ali. Eles já estavam dando o
melhor de si.

Milo se deixou apoiar no muro de trepadeiras atrás de si, sem se preocupar


com as plantas que iriam acabar ficando presas no seu cabelo.

- E agora a gente espera. – ele murmurou numa respiração, olhando para o


nada. – Essas são as coisas que ninguém fala quando comentam sobre
liberdade.

- É, que tal sobre o fato de não existir nenhuma liberdade? – Reno disse,
chamando a atenção para si. – Não tem nenhuma escolha para tomarmos
aqui. Estamos na porra de um poço sem saída. Todo mundo... – Reno deu
uma pausa, provavelmente para tomar ar. Ele estava segurando-se com
tanta força para não entrar em pânico. – Todo mundo morreu por isso.

Milo e Eddie não tinham o que responder.

Aquela ferida estava aberta e eles não faziam ideia se iria cicatrizar. O
silêncio parecia um ferro esquentado sendo pressionado contra a ferida. Era
impossível não sentir culpa. Ele não sabia como Eddie estava naquele
momento, mas Milo sabia que suas costas pesavam com os acontecimentos
daquele mês. Era ultrajante que ele tentasse viver a sua vida normalmente,
como se tivesse esse direito, depois de tudo que havia causado e as mortes
que levaram para isso.

O fazia se questionar se os Primórdios haviam conseguido o que queriam


em transformá-los em máquinas assassinas. Em transformá-los como eles.

- Parece antinatural, não parece? – Reno retomou a falar, agora com a voz
embargada. – Como se nós deveríamos estar mortos com o resto.

- Foi a Cassie. – Eddie grunhiu. – Foi ela que decidiu que nós iríamos ficar
vivos e os outros não. Ela era a nossa vantagem desde o começo.
- Mais para maldição. – Milo comentou baixinho. – Ela decidiu nos deixar
vivos, mas não se importou se o resto fosse morrer junto com o Complexo.
E agora, onde ela está? Ela não pode estar morta também. Seria muito fácil
para a consciência dela.

- Como diabos ela faz isso? – Reno franziu o cenho.

- Primeiro Tártaro achou que ele tinha tudo sobre o controle e esse foi um
dos seus piores erros. Ele decidiu brincar conosco antes de destruir o lugar,
porque ele já havia conseguido o que queria, e manteve Cassie viva para
isso até que falhássemos. E nós teríamos falhado... Se não fosse por aquela
coisa que perseguiu o Eddie a soltando. O motivo de termos encontrado
Gaia no final foi porque Tártaro deixou o Complexo e o projeto no
momento que passamos a primeira fase. O resto foi tudo obra da mente
perturbada dela.

- E você sabe o que ele queria? – Eddie foi quem perguntou, olhando-o
para Milo da mesma forma que ele havia feito quando a verdade sobre si
havia sido revelada. Isso deixou Milo ligeiramente desconcertado. Reno
apenas o observava, esperando informações.

- Eu só sei que ele precisa de mim e de você. – Milo respondeu baixinho,


sem tanta autoconfiança nas palavras quanto antes. Ele foi se encolhendo,
deixando as costas rasparem no muro. – O Complexo era uma pesquisa
aguçada sobre os Legados. Mas então Tártaro o tornou num tipo de curso
para assassinos, para ver até onde nós poderíamos ir para sobreviver. Tudo
isso foi uma distração enquanto ele não podia usar dos seus poderes
comigo. Gaia precisava dos meus poderes e algo seu para tornar o filho
dela humano novamente. Tártaro se aproveitou dessa necessidade dela para
fazer o que queria. Mas eu não acho que ele chegou aos resultados que
precisava então isso quer dizer que não estamos livres deles ainda. Eles vão
vir atrás de nós em alguma hora.

- O que nós estávamos falando mesmo de liberdade? – Reno soou


extremamente sarcástico. – Eu não estou nem surpreso. Então vamos fazer
o quê? Ir para onde? Como e quando?! – ele começou a se exaltar no meio
da fala, aumentando o tom de voz. – Urgh! Eu não vejo sentido em viver
desse jeito!
- É muito cedo para pensarmos em tudo isso ainda. – surpreendentemente,
quem disse isso foi Eddie, não Milo. – Eu já estive na mesma situação,
acho que uma dúzia de vezes. A única resposta para todas as perguntas é
bem amarga.

- Que é? – Reno grunhiu com grosseria.

- Continuar vivo. – Eddie foi simplista. – Continuar vivo o máximo que


der.

- Para quê?! Para sermos perseguidos, massacrados, usados?! Mal


compreendidos, acusados, torturados?! Eu estou cansado dessa merda toda!
Cansado!

- Reno... – Milo soou de coração quebrado por ele. Ele tinha razão naquela
loucura. Ele tinha motivo. Milo queria ajuda-lo, mas não tinha como.
Quando eles estavam parados contra o tempo dessa forma, todas as agonias
do mundo vinham lhe assombrar e tocar em sua pele, para torna-la cada vez
mais gelada. – Todos nós estamos.

Reno fungou.

- Estúpido. – ele resmungou contra o choro. – Estúpido garotinho que não


morreu na hora certa. Não existe faca nenhuma que alivie o que você está
sentindo agora.

- Você prefere sentir tudo isso aqui fora ou dentro do Complexo? – Eddie
questionou com o tom sério, baixo, completamente controlado. Milo quase
teve um troço ao ouvi-lo falando dessa forma com um Reno tão fragilizado.

- Eu prefiro sentir essa merda toda num espaço pequeno, onde eu não tenho
tanto perigo de morrer, porra.

- Esse espaço pequeno é você mesmo. – isso chamou a atenção dos dois.
Ambos olharam para Eddie. – O único lugar que você realmente tem, e vai
sempre ter, é o seu corpo. Você precisa aprender a viver nele. E não era do
jeito que estava vivendo dentro do inferno do Complexo.

A voz de Eddie soou como barulho de tempestade, que você não pode fugir
ou ignorar. Quem estava do lado de fora iria se molhar e Milo e Reno
encontravam-se incrivelmente molhados. As palavras afundaram em suas
mentes enquanto eles esperavam o tempo passar, sem reações preparadas
para aquele momento. O crepúsculo chegou, e com ele o choque de
realidade dura que se estabelecia na vida do trio. Não havia o que se fazer
contra a realidade. Você podia alterar a sua direção, personalizar a sua
aparência, mas não mudar a sua essência. Ela seria o que tinha que ser, para
todo mundo.

Pelo menos eles estavam juntos naquele poço sem fundo. Milo nem
imaginava como deveria ser difícil lidar com tudo aquilo sozinho, como
Eddie já havia feito, ou até mesmo Alex. Ele tinha sorte. Uma terrível sorte
que queria poder sair distribuindo para todos que amava. Em vez disso,
tudo que podia oferecer era a sua companhia e ansiar que fosse bem vinda.
Enquanto ele tivesse Reno ou Eddie, ele iria dar o máximo de si para ficar
bem.

E era isso que deveria importar, no momento.

xxx

Eddie conseguiu abrir o portão de Reno em menos de um minuto.

Após o carro sair da propriedade, muito provavelmente da mãe de Reno,


Eddie nem perdeu seu tempo pensando em pular o muro. Ele possuía
pontas de estacas de metal para dificultar o pulo, e Eddie sabia que, mesmo
que fosse um muro fácil, Reno não conseguiria pular nada. Por isso, ele foi
até o cadeado do portão e o abriu, fazendo o mesmo com a fechadura em
seguida. Ele destrancou com tanta facilidade que foi difícil de acreditar.
Mas o portão ficara aberto para que passassem.

Milo só foi depois de Reno.

Havia espaço até a entrada da casa, demonstrando que o terreno era grande.
Milo viu fantasmas de um antigo quintal na área da frente, mas agora a
terra se encontrava mal cuidada e infértil, sem o menor sinal de plantas.
Apesar de a casa ser bonita e limpa, havia um ar sério de abandono e
tristeza ao redor dela. Milo não sabia se era sua impressão, por saber a
história do que havia acontecido ali, ou se realmente estava assim
. Eddie abriu mais uma fechadura, agora a da porta da frente, e então eles
estavam dentro dali. Eddie e Milo pela primeira vez, enquanto Reno pela a
última.

Reno deu passos pequenos, inseguros, para dentro da casa. O primeiro


cômodo era pintado em azul escuro e branco, com o chão de madeira de
uma cor brilhante, tão limpa que era possível ver o seu reflexo sobre ela.
Havia um pequeno corredor separado os espaços. Se você virasse à
esquerda, haveria dois degraus que levavam a um nível superior onde se
encontrava a sala de estar: Cheia de sofás de cor marrom, uma mesinha de
centro de vidro, e uma televisão de tela plana que parecia ser de última
geração apoiada por dentro de uma estante. A estante estava cheia de coisas
como quadros de recordação, decorações, um telefone e consoles de
videogame e jogos. Eram de Reno, logo de cara Milo poderia reconhecer.

A sala de estar chamou muito a sua atenção por conta das fotos. Ele viu,
logo de cara, a mãe de Reno: Uma mulher gorducha como o filho, com
sardas e cabelos ruivos. Ela sorria na foto ao lado de uma das filhas, e seus
traços se tornavam menores quando fazia isso. A garota ao seu lado era
mais alta que si, mais alta que Reno provavelmente, com cabelos também
ruivos. Então havia fotos das outras irmãs, todas parecidas por terem a
mesma cor de pele de Reno e da mãe, e os cabelos ruivos e as sardas.
Nenhuma delas parecia com Reno. Havia apenas uma foto de si, só que era
muito antiga: Da época em que Reno era criança, com pouca qualidade. Ele
tinha os cabelos pretos lisos cortados num corte de tigela, e a boca bem
aberta num sorriso bobo cheio de dentinhos tortos, no colo do seu irmão
mais velho: Rex. Rex era como uma versão bem mais velha e musculosa de
Reno, com o cabelo cortado bem curto num topete e um sorriso malicioso.

Era gritante o quanto a vida de Reno parecia melhor quando ele ainda
estava lá.

À direita, sem degraus dessa vez, havia a cozinha junto com uma área de
jantar com a mesa de madeira clara e, pelo menos, seis assentos ao redor
dela. Exatamente à frente deles havia uma escada para o segundo andar, e
no fim do corredor, desviando da escada, haviam duas portas fechadas. As
portas eram de madeira branca.

Reno não olhou duas vezes para nada. Ele correu pelas escadas para o
segundo andar, como se houvesse alguma coisa lhe esperando ali em cima.
Milo e Eddie trocaram um olhar rápido antes de seguirem atrás dele, sem
outra escolha.

Havia um corredor longo no segundo andar, e só uma das portas estava


aberta. Eddie e Milo seguiram para ela, achando Reno dentro de um quarto
espaçoso. As paredes estavam cobertas por pôsteres, mas era possível ver
algumas partes delas, como o fato de serem pintadas de azul também.
Havia outra porta dentro do quarto, demonstrando que era uma suíte. Havia
uma cama de casal, uma cômoda, um armário, uma escrivaninha e duas
estantes todas feitos da mesma madeira marrom escura, e o chão estava
forrado com um carpete cinza. O quarto estava limpo e perfeitamente
arrumado, parecendo vazio e intocado por anos. As estantes aguentavam
livros pesados que não tinham um traço de poeira, mostrando que alguém
tinha a preocupação de ir ali sempre para limpar.

Aquele era o quarto de Reno.

- É a cara dele. – Eddie murmurou. Milo lhe deu uma cotovelada. – Ouch.
O que eu disse?

- Reno... – Milo lhe chamou com cautela. O garoto parecia petrificado em


sua frente. – Você quer... Um tempo sozinho?

Ele demorou alguns instantes para responder.

- Não.

Aquele foi o tom mais duro que Milo viu Reno tomar desde o começo da
relação deles.

- Nós não temos tempo para perder. Mas... – Reno vacilou. – Eu preciso
fazer uma coisa antes. – e com isso, ele nem esperou a resposta dos dois
antes de correr para porta dentro do quarto, entrando no banheiro e se
trancando ali dentro em seguida.

- Um digno garoto adolescente revoltado. – Eddie assoviou. – Só faltou


bater a porta.

O olhar de Milo foi o suficiente para Eddie erguer as mãos no ar:

- Hey, é mais forte que eu. Foi mal.

Milo suspirou.
- Nós precisamos de mochilas, roupas e comida. – Milo começou a
trabalhar racionalmente, olhando ao redor do quarto para saber onde teria
que ir primeiro.

- Ele não... Ele não se importa?

- Ele não pode se importar. Nós viemos aqui sós por conta disso. – Milo
respondeu de forma distraída, indo até o armário e o abrindo. Como
esperavam, as roupas de Reno continuavam ali. E Reno havia lhe contado
uma vez que ele havia pegado várias coisas de Rex para si e colocado ali.
Então Milo pretendia dar uma roupa de Rex para Eddie, que provavelmente
iria lhe servir, e pegar uma dele.

- Então... Não rola um banho, né?

Milo olhou para ele mais uma vez.

- Não vamos ficar aqui por muito tempo. – ele não acreditava que tinha que
vocalizar aquilo, ainda mais para Eddie, mas estava dizendo do mesmo
jeito. – Não vai ser bom para ninguém.

- Eu sei. – Eddie suspirou.

Milo continuou procurando, e achou uma mochila preta que deveria ter
sido de Rex. Ele já havia avistado a mochila que Reno descrevera para si
como sua por debaixo da escrivaninha. Duas deveriam ser o suficiente. A
mochila era espaçosa por dentro, apesar de pequena, e Milo já começou a
contar a quantidade de roupas ou coisas em geral que poderiam caber ali
dentro, considerando tamanhos e quantidades.

Mas Eddie nervoso atrás de si estava o distraindo demais.

- Hey, eu vou vestir uma roupa. – Milo anunciou, jogando a mochila sobre
a cama de casal de Reno. Eddie olhou para ele com olhos arregalados. Milo
percebeu que ele havia perdido totalmente a compostura séria e objetiva de
antes, e por isso estava nervoso e agitado. Isso o fez suavizar com ele mais
uma vez. – Em outro quarto... – ele continuou, sem saber por que era
necessário falar disso.

Os dois se encontravam vermelhos e desconfortáveis.

Milo decidiu que não iria mais prolongar aquele momento, então ele levou
a blusa que havia escolhido consigo para fora dali, passando por Eddie.
Talvez não fosse bom deixa-lo sozinho naquele momento, porém ainda
havia um clima estranho entre os dois, e talvez ficasse para sempre. Milo
não queria ficar pensando demais naquilo. Eles já tinham problemas
demais, e o seu relacionamento falho com Eddie não deveria ser um deles.
No momento, era praticamente a única coisa que mantinha os três juntos, e
duvidava que eles conseguissem sobreviver separados naquele momento.
Era uma questão de necessidade.

Não era questão de amizade. Não, Milo nunca experimentou algo do tipo.
Com Fernanda era medo de ficar sozinho, e com Reno sempre foi parceria.
Os dois eram irmãos, confidentes, não amigos. Milo não se sente bem
chamando Reno assim. Reno, na verdade, era a única pessoa que ele tinha
um contato real e sincero, e Milo aparentemente não merecia envolver mais
alguma outra pessoa em sua bagunça.

Só era triste para Alex.

“Se eu começar a pensar demais nele, eu vou enlouquecer.”

Milo balançou a cabeça, querendo espantar os pensamentos ruins na marra.


Nessa hora, Mil se tornou visível para ele, sendo a segunda vez. Milo sorriu
para a esfera, deixando-a se aproximar do seu rosto como se lhe fizesse um
carinho. Milo deixou de se perder em pensamentos nesse momento e
prestou atenção nas outras portas fechadas. Ele não tinha muito o que fazer
além de entrar em qualquer uma para se trocar, pois fazer isso no corredor
não era exatamente confortável (olha lá, ele agindo como humano), e por
isso entrou na primeira que viu.

Surpreendentemente não estava trancada.

Mil o seguia o tempo todo, provavelmente carente por ter sido separada
dele e tendo que ficar invisível por todo o tempo em que ele, Eddie e Reno
andaram pela cidade. A primeira coisa que Milo percebeu foi que ele
entrara no maior quarto, de tonalidades marrons com preto, e um papel de
parede florido. Havia um espelho largo embutido na parede sobre uma
cômoda de madeira negra, e a cama parecia tão confortável e grande que
Milo ficou tentado a deitar nela. Também era uma suíte, e o banheiro tinha
banheira.

Reno nunca comentava o quão rico ele era, mas Milo estava começando a
ter uma ideia. Não tão rico quanto Alex fora, mas ainda assim, mais rico do
que Milo e Eddie jamais vão ser durante a vida toda. Era um pouco triste
pensar dessa forma.

Milo terminou de colocar a camiseta de Reno, sendo uma cinza que não
possuía desenhos e tinha mangas curtas. Ela havia ficado larga em si, mas
não grande. Milo notou que os as mangas caíram em seus ombros,
deixando sua clavícula à vista. Ele se virou de frente para uma penteadeira
com espelho, olhando para essa área. Milo nunca havia notado como seus
ossos eram saltados e como ele era magro. A imagem lhe deu aflição.
Causou um gosto ruim na boca, como se não estivesse certo. Como se Milo
não estivesse certo.

Ele se aproximou da penteadeira, como se estivesse hipnotizado pela


própria imagem que não conhecia. Seu cabelo se encontrava armado e
cheio de pontinhos verdes – folhas. Sujeira. Terra. Ele não se lembrava da
última vez que... Como se chamava? O escovara. Era isso. Sabia que
cabelos formavam nós, e os seus deveria ser um ninho desses naquele
momento.

Seus olhos eram tão fundos, rodeados por manchas escuras na área abaixo
deles. Olheiras. As íris eram maiores que o tamanho normal, e sua retina
estava repleta de veias roxas, que com certeza deveriam chamar atenção na
sua pele pálida como giz branco. Ele parecia algum tipo de boneca doente.
Milo sabia que era isso que Tártaro havia feito consigo, mas ele nunca...
Ele nunca realmente entendera, como estava entendendo naquele
momento.

Seus olhos se abaixaram e acharam uma foto sobre a penteadeira. Ele


pegou o pedaço de papel, observando a imagem de quem só poderia ser o
pai de Reno. Ele estava sorrindo na foto com os dentes tortos e amarelos, a
pele branca reluzindo contra a luz solar às suas costas, num tipo de campo.
Ele tinha os mesmos cabelos lisos negros de Reno, as bochechas gordas e
também era gordo. Usava óculos, só que menores e mais discretos que os
de Reno, e mesmo assim era possível notar como seus olhos eram cinzentos
numa cor clara, chamativa.

Essa foto foi tirada muito tempo antes dele enlouquecer. Aquele só podia
ser o quarto da mãe de Reno.

Ele ergueu os olhos novamente.


Dessa vez não viu seu reflexo no espelho, e sim o de Alex, sorrindo de
forma ingênua para si. Os cabelos negros só chegavam até a nuca, sendo
repicados e parcialmente presos num tipo de penteado, sua pele era
saudável, um tipo de branco mais escuro, e seus olhos brilhantes cinzentos
eram cheios de vida e encantadores de se ver.

Milo pulou do banquinho que sentara com o susto.

Ele segurou a respiração com brutalidade nesse momento, tendo que ter
muita calma para voltar a fazer os pulmões funcionarem corretamente. Se
ele tivesse um coração, tinha certeza que ele estaria dando saltos mortais
naquela hora. Mil pareceu preocupada consigo, flutuando ao redor dele
com movimentos nervosos. Aquilo era o suficiente. Milo não deveria
passar um segundo a mais naquela casa. Ele não pertencia ali, e quanto
mais cedo aceitasse isso, melhor seria.

Saiu do quarto e fechou a porta atrás de si, indo direto para o quarto de
Reno. Porém, acabou não conseguindo entrar quando ouviu uma conversa.

- Você cortou o cabelo?

- Eu o odiava longo.

Nem Eddie e nem Reno notaram Milo na entrada do quarto. Reno estava de
costas para Eddie, olhando para dentro do seu guarda roupa exatamente
como Milo fizera mais cedo. Eddie havia se sentado na cama, ficando de
costas para a entrada do quarto.

- Milo já pegou algo para ele vestir?

- Algum problema com isso?

- Por que eu teria? – Reno se virou nessa hora. Por algum motivo idiota que
Milo não soube apontar qual, ele se escondeu atrás da parede, sem ser
percebido pelos dois ali dentro. O que ele estava fazendo? – Você deveria
pegar algo para você também.

- Olha, eu não quero soar rude, mas eu não acho que você tem algo do meu
tamanho.

Milo praticamente pode sentir o revirar de olhos de Reno. Houve uma


pausa, e então:
- Eram as roupas do meu irmão. Você é do tamanho dele.

Houve outra pausa.

- Ele tinha quantos anos? – Eddie soou baixinho. Milo sentiu o coração
derreter pelo tom empático que ele assumira.

- Vinte. Prestes a fazer vinte e um. – Reno também abaixou a voz. – Eu não
sei se ele morreu, aliás. Ele simplesmente desapareceu.

- Eles... Nunca acharam o corpo?

- Nope. Mas eles desistiram rápido. Quer dizer, minha mãe desistiu rápido.

- Por quê...? – Eddie parecia inseguro sobre pressionar, porém ele acabava
fazendo de qualquer jeito, muito curioso para se assegurar. Milo ouviu
Reno suspirar.

- Ele queria desaparecer. Ele conseguiu. Minha mãe também é um ser


humano, apesar dela acreditar fielmente que eu não sabia disso, então eu
entendo ela ter raiva.

- Por acaso... Por acaso ele também era...?

- Não. – Reno respondeu rapidamente.

Mais silêncio por demorados segundos.

- Por que você está me contando isso? – Eddie perguntou.

- Por que não? – Reno rebateu. – Você já viu tudo. Não tem como
esconder. E eu também não quero que complique Milo depois com essas
perguntas, porque eu sei que ele não vai te responder e vai se sentir mal por
isso. E... E um rádio quebrado continua falando até que ele pife
completamente... E eu tenho certeza que eu estou muito quebrado nesse
momento.

- Eu... Eu acho que... – Eddie fungou. Ele não estava chorando, mas a sua
voz se encontrava entrecortada e desconexa, como se as palavras
estivessem lhe deixando naquele momento. – Mesmo que a última casa que
eu tivesse morado com a minha madre fosse boa, eu não voltaria para ela.
Então... Então eu acho que te devo desculpas.

Milo ouviu uma risada anasalada cheia de miséria da parte de Reno.


- Isso aqui não é uma casa, Eddie. É um manicômio.

- Sua família ainda está aqui.

- Não, eles não estão. Eles quebraram quando o meu pai quebrou. Não
restou ninguém, e minha mãe mantém essa... Essa casa monstro por
dependência. É uma doença. Eu não sou o único que está a deixando, eu só
estou indo em condições diferentes.

- Você não acha que ela merece saber? Você não acha que... Depois do seu
irmão... Ela não merecia algo melhor?

- Eu não sei. – Reno respondeu sincero. – Eu fui tão vítima quanto ela,
então eu não sei. Sinceramente não sei. Eu não vou assumir a culpa porque
eu me machuquei mais do que todo mundo, e é assim que as coisas são na
minha cabeça. Eu não posso mudar isso agora.

- Reno...

- Não tem nada que me prenda aqui. Nada, Eddie. Eu poderia ficar. Eu
poderia recomeçar a relação horrível que eu tinha com a minha mãe. Eu
poderia me esconder nesse quarto pelo resto da minha vida, com o meu
próprio mundinho. Eu nunca iria me encaixar. Eu nunca iria me sentir bem.
Eu não ia saber o que aconteceu com vocês dois, e eu iria esperar pela a
morte. Não parece muito diferente do Complexo, certo? Agora você sabe
por que eu me adaptei tão bem lá. Isso não é certo. Eu não consigo aceitar.
Para quê eu continuei vivo até esse momento, para quê eu falhei em todas
às vezes em me suicidar, para terminar assim? Não é exatamente isso que
os Primórdios querem? A minha raiva por eles sempre foi maior que a
minha miséria, e eu não aceito ir às condições que eles criaram. É o único
motivo de eu estar vivo até agora. Eu quero uma morte limpa da influência
deles. E é só isso que eu me preocupo.

Milo decidiu que era hora de parar de ouvir. Ele não quis saber a resposta
de Eddie. Se Eddie falasse a coisa errada, Milo iria se decepcionar. Se
Eddie dissesse a coisa certa, Milo iria se apegar. Então era melhor não
saber.

Milo desceu as escadas para o segundo andar, indo preparar as coisas que
eles poderiam levar. Precisava focar no que iria caber na mochila, não
sendo alarmante para a mãe de Reno, e algo importante ao mesmo tempo.
Ele poderia pegar a mochila depois. Tinha memória fotográfica, não era
problema. Só não queria entrar naquele quarto por enquanto. Milo estava
sentindo-se extremamente mal.

Como se ele só tivesse perdido até ali.

xxx

Milo já tinha separado um montante considerável de alimentos que iriam


caber nas mochilas quando Reno e Eddie desceram. O rosto, o cabelo e a
nuca de Eddie se encontravam molhados. Ele usava uma regata longa e
negra onde estava escrito “Los Fudidos” em um estilo de branco como se
fosse pichado. Ainda usava as jeans que havia ganhado no Complexo, e sua
jaqueta militar se encontrava em suas mãos. Os cachinhos dele brilhavam
contra a luz da cozinha molhados como se encontravam. Era um pouco
hipnotizante a forma que eles se encontravam completamente redondos e
fechados. Fazia parecer que o cabelo de Eddie era o mais macio de todos,
como um grande e agressivo algodão doce.

Reno, porém, conseguia chamar mais atenção por ter cortado o cabelo.
Antes, seus fios super lisos iam até os ombros, e agora eles só chegaram até
o final do rosto, antes mesmo do queixo. Sua franja havia ficado mais
pesada por conta disso, escondendo completamente as suas sobrancelhas.
Ele estava com os mesmos óculos do Complexo de aros grossos,
quadrados, pretos. Só que ele tinha mudado completamente de roupa,
saindo do padrão branco e azul que eles eram obrigados a usar no
Complexo. Agora ele usava uma calça jeans negra, coturnos, uma blusa
listrada branco com preto de manga longa que ficava larga nele, e um
colete também preto por cima.

Era possível ouvir os passos deles no corredor de cima onde Milo se


localizava, atrás de uma copa que separava a área de cozinhar com a área
de jantar. A cozinha da casa de Reno era espaçosa, e os armários se
encontravam todos cheios. Era a primeira vez que Milo entrava na cozinha
de alguém. A sensação familiar era pesada, quase fazendo Milo sentir que
ele não pertencia ao ambiente. Era tudo tão normal e bonito. Os armários
eram negros de um material que lembrava vidro, e as estantes eram
brancas. Haviam dezenas de marcas super comuns na cidade, que Milo
reconhecia por ter herdado um conhecimento geral de Alex, mas que ele
nunca entrara em contato de verdade.

Reno se aproximou da copa, observando o que Milo estava separando.

- Isso tudo tem que caber nas mochilas? - ele olhou para os alimentos
diversos sobre a copa.

- Eu memorizei o quanto as mochilas aguentam, então sim, isso tudo vai


caber nelas.

- Alguém tem que ir pegá-las agora. - Reno soou falsamente casual,


olhando diretamente para Eddie. Quando o cubano notou o olhar de Reno
sobre si, ele grunhiu.

- Só porquê eu ganhei uma camisa que eu gostei. - ele resmungou, indo


realmente buscar as mochilas para eles. Milo quase sorriu. Depois ele olhou
para Reno novamente, e a vontade de sorrir morreu. Ele estava tão pálido e
seus olhos se encontravam vermelhos. Ele não estava bem.

- Seu cabelo fica bonito curto. - Milo murmurou sem jeito, sentindo que era
preciso falar alguma coisa, qualquer coisa, sobre aquilo. Reno não o
respondeu. Em vez disso, ele atravessou a copa e foi para trás de Milo.
Demorou um pouco, porém Milo acabou notando que ele estava passando a
mão no seu cabelo surtado. Provavelmente tirando as folhas, ou a sujeira
em geral, e tentando controlar o volume, pelo menos um pouco.

- Você não quer cortar o seu? - Reno murmurou, sem ter terminado a tarefa
ainda. Milo teve que respirar fundo.

- Eu não posso. Por que não é meu.

- Milo...

Milo não o deixou continuar.

Ele se virou e o abraçou, tendo que se inclinar para esse movimento.


Apoiou o lado do rosto sobre o ombro de Reno, deixando as mãos
descansar em suas costas. Milo sabia o quanto o conforto era importante
para os humanos. O toque físico podia servir até como um remédio
psicológico em certos casos. Apesar de ter emoções, ele não deveria
precisar de conforto humano. Suas emoções ficavam – ou deveriam ficar –
em segundo plano, e nunca iriam se sobressair sobre a sua racionalidade.
Logo, não tinha motivos para ceder sobre pressão. Ele não podia ceder.

Porém não era isso que estava acontecendo desde que usara seu poder em
Eddie e era isso que o assustava desde o começo. Não tinha como mentir
para si mesmo e ignorar o que acontecia. Milo só tinha como lidar, e lidar
sozinho. Ninguém realmente entendia o que ele estava passando, e isso era
esperado, já que ele não deveria estar passando por essa situação desde o
começo.

Milo lembrava-se de confortar Fernanda. Ela corrompera o conforto físico


e o transformara num vicio. Não era mais para cura, era mais um bote salva
vidas a impedindo de afundar. Ele confortava Reno, apesar de que em
poucas vezes, já que Reno não permitia que as pessoas tivessem esse
contato. Mas Reno só começara a confortar Milo, pois Milo começara a
precisar disso, depois que ele conheceu Eddie e usou o Controle. Depois
que eles entraram naquela confusão que parecia não ter saída ou fim. E
supreendentemente, Reno estava lá por ele da mesma forma que Milo
esteve por si.

Reno era realmente seu irmão e isso o consolava. Mesmo que Reno tivesse
começado a se relacionar com Milo por conta de Alex, ele ficou por Milo.
Ser muito racional deixa isso claro para Milo, apesar de que acreditar
completamente ainda o machuca. É difícil se abrir e se apoiar nas pessoas.
Era melhor quando ele não precisava fazer isso, quando ele não se sentia
tão derrubado, tão triste, tão sozinho de forma aguda. Antes era como uma
dor fantasma. Agora a dor era real. Questionava-se a sua ligação com Eddie
aumentara os seus sentimentos, se os sentimentos de Eddie haviam passado
para si.

Ou então era o contexto que mudava tudo.

Agora ele não era mais um traidor. Um boneco de Tártaro. Agora ele não
tinha um espaço delimitado onde poderia ir e não tinha um montante
pequeno de coisas que poderia fazer ou falar. Não tinha as pessoas que
normalmente faziam parte da sua convivência. Agora parecia que Milo
estava vendo o mundo de ponta a cabeça e, ou ele se acostumava com a
visão invertida, ou virava ela de volta.
Só não sabia como fazer nenhum dos dois. Por isso, quando se encontrava
exatamente sem ideia alguma, seus impulsos sentimentais tomavam forma
nas suas atitudes. Eles agiam porque Milo não podia ficar sem fazer nada.
E era assim que Milo ia ficando cada vez mais frágil, cada vez mais
diferente, cada vez mais... Humano. Só que ele não sabia quem culpar. Ou
o quê culpar.

Depois de alguns momentos assim entre Reno e Milo, os dois ouviram os


passos de Eddie na escada. Eles se afastaram quando Milo se ergueu para
ver Eddie, e Eddie levou as duas mochilas que haviam pedido até o balcão.
Uma era menor que a outra. Milo reconheceu a menor como a de Reno, e a
maior deveria ser de Rex. As duas eram pretas. Já era bom o suficiente.
Muitas mochilas possuem a tendência de aparecerem pequenas, mas serem
grandes por dentro.

Eddie apoiou as mãos no balcão, observando ambos em silêncio. Milo


sentiu o corpo pesado, com os movimentos comprometidos por conta desse
peso imaginário extra que ganhara. Mesmo assim, ele não se demorou mais
para começar a trabalhar em colocar as coisas dentro das devidas mochilas,
considerando peso, tamanho e ordem. Duas mochilas seria o suficiente. Ele
poderia carregar uma e Eddie a outra. Não iria se iludir pensando em
revisar com Reno, porque o que Reno puder evitar fazer, ele vai evitar à
vontade.

- Então, será que agora a gente pode falar sobre o que vamos fazer? – Reno
resmungou, sentando-se num banco enquanto observava Milo, guardando
as coisas, e Eddie que se encontrava em pé vendo Milo guardar tudo. – Ou
ainda não é uma boa hora?

- A gente pode, mas você não vai gostar da conversa.

Reno bufou.

- Não temos para onde ir, temos?

- Não. – Eddie foi bem sincero. – Uma coisa é verdade, mesmo que você
ficasse na sua casa, eu e Milo não teríamos para onde ir. Isso se Milo
quisesse continuar comigo. – Eddie adicionou a última parte rapidamente,
abaixando o rosto para não ter que olhar para Milo. Porém Milo notou a
vergonha do menino no momento. – A questão é: Eu sou imigrante ilegal,
então se eu vou para qualquer lugar em que eles precisem do meu histórico,
eu corro o risco de ser deportado ou levado para uma prisão de menores.
Por isso, fiquei na rua.

- Você não nasceu aqui? – Reno franziu o cenho.

Eddie suspirou.

- Nasci. Eu sou brasileiro. Mas a minha mãe não. E como ela era ilegal, eu
também vou ser. Por isso ela não me registrou no cartório. Existe uma
questão de falsidade ideológica no meio.

- Nós não poderíamos parar num lugar só, de qualquer forma. – Milo
finalmente entrou na conversa, ainda guardando as coisas. – Nós saímos do
Complexo, mas isso não quer que estamos livres dos Primórdios. Tártaro
ainda está em algum lugar, e ele vai vir atrás de nós.

- É... Eu me lembro de ter sido perseguido nesse um ano que fiquei na rua.
Mas eu não era pego até o momento que fui levado para o Complexo. Eu
não entendia o porquê, eu só não questionava.

- Você não foi o único. – Reno suspirou. Eddie olhou estranho para ele. – O
quê?

Milo suspirou.

- Reno quis dizer que existem outros Legados que passaram pela a mesma
coisa. Os Primórdios nos rondam até termos idade o suficiente para
reproduzir. E isso pode ser interpretado de muitas formas, mas o que eles
fazem é nos levar antes que a tal da reprodução aconteça. Muitos outros
Legados são sequestrados de última hora. Varia.

A expressão de Eddie fechou tanto que pareceu que uma sombra passou
pelas feições dele.

- Como é que eles conseguem? Como eles podem estar em todos os lugares
e em lugar nenhum ao mesmo tempo? – ele grunhiu. Milo olhou
preocupado para o garoto.

- É fácil que se tem um acordo com o Governo. – Reno respondeu. – Civis


normais não sabem nem 7% do que realmente acontece de ruim no país.

- Tártaro adora o Complexo no Brasil porque o país é corrompido o


suficiente para que os Primórdios tenham mais liberdade. – Milo comentou.
– Mas os Primórdios são uma organização antiga, pelo mundo todo. Então
é preciso se questionar o que eles não podem fazer.

- Então é isso? Estamos condenados pelo tempo que vivermos?

- Basicamente. – Reno respondeu seco. Milo olhou feio para si.

- Nós podemos fugir. É um processo lento e não momentâneo, mas nós


precisamos tentar, pelo menos. – Milo respondeu com a voz firme. – Tem
muita coisa que precisamos considerar aqui. Primeiro Cassie. Se as suas
sombras conseguiram nos trazer, supostamente elas deveriam conseguir
trazê-la também.

- Você acha que ela é um problema? – Eddie perguntou. Reno observava


Milo, também parecendo confuso e interessado nessa parte. Milo suspirou.

- Eu não sei. – ele ergueu as mãos para o alto. – Mas ela não é confiável.
Nada é confiável. Ela disse que queria destruir o Complexo, e ela
conseguiu. Só que ela não se importou se isso significava matar todos os
Legados lá dentro. – a temperatura do cômodo caiu quando Milo disse isso,
e desconforto foi geral e mortífero.

- E por que ela nos deixou vivos? – Reno questionou. Milo deu de ombros.

- Até essa parte eu não sei dizer. Mas não é por acaso. Todos nós temos
uma coisa em comum, e é uma conexão forte.

- O fato de não termos matado ninguém. – Reno confirmou. Milo assentiu.


– Somos a margem de erro.

- Sobre isso... – Eddie murmurou, meio inseguro.

- Você não matou ninguém. Não foi a sua culpa. – Milo interviu sem perder
tempo. – Eu vi o que você fez na sua luta dos Jogos da Meia Noite. Você
machucou aquele garoto de forma letal, e ele perdeu o olho dele, porém ele
não morreu. Ele ficou desacordado tempo o suficiente para ser dado como
morto, mas depois descobriram que ele estava vivo. Então... Não se culpe.

Eddie abaixou o rosto e simplesmente assentiu como se tivesse perdido as


forças para fazer qualquer coisa. Milo respirou fundo. Queria tanto fazer
algo por ele... Qualquer coisa... Mas não podia tirar seus sentimentos, e
nem senti-los por Eddie. E não se atreveria à tocá-lo agora. Não deveria
estar tão preocupado, mas estava. Queria ver Eddie bem do mesmo jeito
que queria ver Reno bem.

Depois Milo olhou para Reno e continuou:

- E sim, somos a margem de erro. Mas não representamos perigo até Cassie
chegar. Foi ela que mudou tudo. – Milo comentou mais uma vez. – Ela
sabia onde os Primórdios ficavam e ela tinha como te levar ao trocar a
temperatura do seu corpo. Foi ela que destruiu os planos de Tártaro, e
parece completamente possível para mim que ele tenha saído antes do
barco afundar e ter deixado tudo para Gaia lidar. Ele usou a Gaia desde o
começo e depois a largou. – Milo suspirou. – Não me surpreende que ela
tenha se tornado louca. Eu não me tornei louco porque eu sou o Legado da
Sabedoria. Uma coisa... Uma coisa é estar preso no Complexo, outra coisa
é... – Milo engoliu a seco, desviando o olhar deles. – Outra coisa é fazer
parte do Complexo.

Milo não se atreveu a erguer o rosto. Ele não queria ter aquela conversa
ainda. Estava morrendo de medo de Eddie não o aceita-lo mais uma vez.
Seria horrível se Eddie não o perdoasse e, mesmo assim, eles ficassem
presos um com o outro. Seria completamente compreensível da parte de
Eddie, mas Milo ainda não queria. Não conseguia aceitar que seria assim.

Ele não tinha mais Tártaro para lhe dizer o que fazer Gaia para ensinar
como fazer, e não tinha mais os outros Legados lhe pressionando ou
questionando. Não tinha mais as paredes do Complexo o confinando, os
corredores o delimitando, e as mentiras para torturar sua mente lentamente.
Milo estava... Livre. E era a coisa mais assustadora possível. A última coisa
que ele conseguiria lidar agora seria ficar sozinho.

- Não adianta se preocupar sobre a Cassie. – Eddie chamou a atenção ao


falar, com a voz neutra. Ele parecia resignado. Obviamente não estava
aceitando tudo ainda, mas o efeito que Milo causara mais cedo deveria
estar agindo ainda, pois ele parecia o mais controlável o possível. – Quando
ela aparecer, vamos lidar com ela. Por enquanto, não podemos ficar muito
tempo aqui. Se não... Esse lugar vai ficar marcado.

- Não vai fazer diferença. – Reno balançou a cabeça. – Eles não mexem
com as famílias, só em casos raros. E mesmo assim, não iriam machucar a
minha mãe. É tudo invisível. Como se fosse uma força do além.
Eddie franziu o cenho. Milo não precisou ler a mente dele para saber o que
ele estava pensando. Ele estava confuso, pois de certa forma o que Reno
falava fazia sentido e Eddie poderia confiar nele facilmente, o problema é
que ia contra o que ele estava pensando anteriormente sobre a sua própria
família. Isso abria outro buraco que Eddie não sabia preencher. Milo sentiu
preocupação e simpatia, mas não havia nada que pudesse fazer.

- Mas Eddie tem razão sobre não ficarmos parados num lugar só por muito
tempo. – Milo continuou. – Por isso vamos rápido. Já temos tudo que
precisamos, quanto mais rápido sairmos daqui mais rápido podemos pensar
em algum lugar para passar as noites. Vamos ter que andar por alguns dias.

Reno fuzilou Milo com o olhar.

- Yay. Que alegria. – Reno disse o mais seco possível, realmente


incomodado e contrariado. Eddie soltou uma risada nasal.

- Você não viu nada ainda, riquinho. – Eddie jogou um papel que estava
sobre o balcão em Reno, recebendo um xingamento alto por isso em
seguida. Milo quase não podia acreditar na cena. Parecia a vida de outra
pessoa. A vida de qualquer um menos a sua.

Ele teria que se adaptar com o tempo.

Depois de uma hora e meia resolvendo o que eles iriam levar e o que não
iam, tanto de roupa quanto de utilidade básica, o trio de Legados saíram da
casa de Reno pela frente, deixando o portão destrancado, mas a porta da
frente trancada. Se havia chances da mãe de Reno não notar antes, agora
elas não existia mais. Fazia Milo sentir-se culpado, porém era um
sentimento que ele conhecia bem e já sabia lidar. Ele havia passado desde o
começo da sua existência até agora mentindo e sendo culpado por tudo,
então essa área deveria ser o seu departamento.

Sempre um infiltrado.

De qualquer forma, esse era um problema de Reno e por isso Milo não
podia se intrometer. Não podia até o momento em que Reno lhe desse
permissão para isso, e Milo sabia que iria acontecer uma hora ou outra.
Eles teriam tempo. Muito tempo. Milo tinha a esperança que as coisas
iriam se resolver com o tempo, que o caminho iria ficar claro. Afinal, eles
possuíam sorte. Milo sabia disso com clareza: Não estavam vivos se não
fosse pela sorte. O problema da sorte é que ela se manifesta de muitas
formas, e às vezes é uma forma tão estranha ou tão pequena, que parece
que você não possui nenhuma.

Mas Milo acredita que todo mundo tem um pouquinho de sorte e que ela
cresce com o tempo. Isso é uma questão de fé que ele desenvolveu, como
uma criança acreditando em contos de fadas ou em Papai Noel,
completamente antinatural se for pensar na criação de Milo e no seu
Elemento.

E ele conseguia manter do mesmo jeito, e isso o deixava secretamente


orgulhoso. Nunca havia falado de tal coisa com ninguém, porque ainda
havia muitas camadas suas que não queria demonstrar. Não seria assim se
não tivesse sido um traidor forçado por Tártaro, mas era tarde para se
reclamar sobre isso. Eddie e Reno foram os únicos que aprenderam pontos
grandes e importantes de si, e Milo ainda não sabia explicar como isso
havia ocorrido de fato. Com detalhes. Com detalhes que façam sentido.

O trio da margem de erro do Complexo havia acabado de sair da área


residencial onde a família de Reno morava, a pé, no meio da madrugada. O
vento era gélido e forte, e Milo agradeceu a si mesmo por ter pegado um
dos casacos pesados de Reno para si. Eles ficavam curtos, porém eram tão
largos no seu corpo que se tornava uma proteção gostosa contra o fio.
Eddie parecia bem com o seu casaco militar, e estava com o zíper aberto,
como se nem estivesse ventando diretamente no seu peito.

Milo entendia que ele havia se adaptado ao clima à força. Uma hora seria
assim para si e para Reno também. Não havia ninguém na rua naquele
horário, porém Milo deduziu que era por eles estarem numa parte de alta
classe e não ser um dia festivo, digamos assim. Não seria assim por todo o
caminho, e Milo tentava não ficar paranoico pensando em cada possível
que eles podem correr enquanto estiverem nas ruas da cidade.

Quanto mais longe estiverem do centro, melhor vai ser. Havia tantas
alternativas e oportunidades que Milo não sabia o que considerar e analisar
primeiro. Sua mente super inteligente estava confusa, e não era uma
sensação boa. Era como ter tudo e ter exatamente nada ao mesmo tempo.
Eles tinham muitas oportunidades, porém também tinham muitas
desvantagens. Para caírem na desgraça novamente, seria rápido.
Só que Milo não esperava ser tão rápido quanto foi.

Eles haviam acabado de chegar numa avenida de centro comercial, ainda


no bairro italiano, e precisavam atravessar a rua quando uma mão tampou a
boca de Milo e se agarrou ao redor do seu rosto. Milo não teve tempo para
reagir ou compreender o que estava acontecendo, porque no mesmo
momento que sentiu a mão fria no agarre bruto, seus olhos foram tampados
também e em questão de segundos, ele perdeu a consciência.

Milo foi abatido como um cordeiro no inverno. Não conseguiu nem ter
resistência.

Agora as coisas haviam realmente começado.


RENO

Rex costumava fazer carinho no rosto de Reno para acordá-lo. Mais


especificamente pela a área da sua franja até o começo da sua nuca. Reno
costumava relacionar o contato como um colete salva vidas o puxando de
volta para a superfície – a realidade em que ele vivia. A água era o seu
mundinho perfeito dos sonhos que, em sua infância, costumava ser um
lugar vívido cem vezes melhor que o mundo real.

Depois que ele cresceu, o mundo dos sonhos o desertou e Reno nunca mais
o achou. Ele não sonhava. Ou, pelo menos, não deveria sonhar.

Mas agora Reno se encontrava naquele estado de sonho lúcido, um pouco


antes de acordar de verdade, que você começa a ter noção do mundo ao seu
redor, mas não voltou para ele ainda. E era naquele momento que ele sentia
um afago parecido com o de Rex na mesma área da sua franja, porém o
afago descia pelo seu rosto, contornando seus traços moles por conta do
sono pesado que possuísse no momento. Mesmo com a percepção
comprometida de alguém que havia acabado de acordar, Reno conseguia
distinguir o fato que aquele não era o contato de Rex. Era um contato
estranho.

Porém, mesmo sendo estranho, o contato em si ativou a memória de Rex,


anos atrás, acordando lhe de manhã para a escola da forma mais afável
possível, tão diferente dos outros irmãos mais velhos. Reno costumava
pensar que ele tinha ganhado na loteria de irmãos por ter Rex, mas agora
esse tipo de linha de raciocínio lhe causa raiva e ânsia. Tanto de si mesmo
quando pequeno quanto de todos os outros membros da sua família que lhe
destruíram.

Reno não havia ficado dessa forma sozinho.

Assim que a memória perdeu seu gosto, começando a ficar fraca na sua
mente, como um filme num projetor que começava a falhar por maus
cuidados, Reno sentiu-se realmente o acordar. Suas pálpebras pesavam uma
tonelada, sua garganta encontrava-se fechada e a sua bexiga estava inchada,
gritando por alívio. Reno não havia acordado tão mal assim nem mesmo
quando acordara debaixo do viaduto, de volta ao mundo real depois de
tanto tempo. O toque, que não parava por um segundo, começou a lhe
incomodar. Não parecia certo. Ficava cada vez mais estranho para si, e frio.
Seu corpo todo entrou num estado de proteção, e ele começou a pensar que
precisava acordar logo de uma vez e se afastar do que é que estivesse
acontecendo no momento, de qualquer forma.

Então Reno finalmente abriu os olhos.

Havia pouca luz no ambiente que ele se encontrava, que nem de longe
Reno conseguiu reconhecer logo de cara. Ele não teve muito tempo para
isso, pois assim que sua visão se estabilizou, a primeira imagem que viu
não era a de Rex: Era um homem notoriamente mais velho que ele e Rex,
branco, de cabelos e olhos castanhos, com uma fisionomia que você
poderia achar várias vezes na rua durante o dia a dia. Não era assustador. E
não seria assustador se ele não estivesse extremamente próximo do rosto de
Reno, com a mão afundada em seus cabelos.

A primeira reação de Reno foi gritar e ir para trás.

Reno tentou se afastar, tentou se livrar do contato que o homem perseguia


consigo, porém seus movimentos estavam prejudicados pela sensação
letárgica que tomara o seu corpo, e com certeza não era um resultado só de
um sono normal, e por isso ele não conseguiu fazer muito antes de ser
imobilizado. O mundo todo girou por um instante de agonia, e quando
Reno notou ele estava, agora, deitado de barriga para baixo sobre um
acolchoado macio, que só depois iria descobrir que se tratava de um sofá.

O homem se colocou sobre ele agora, forçando seu peso sobre o garoto
para que ele não conseguisse fugir. E Reno ainda se debatia. Ele se debateu
até seus ossos começarem a queimar, e alertarem de estarem prestes a
travar pela situação incomum que haviam sido colocados. Reno teve que
desistir por pura e livre pressão. Tudo que ele podia ouvir naquele
momento esquisito era a respiração pesada do homem e seus grunhidos
para contê-lo. Reno notou que estava sem os seus óculos, e por ter um grau
alto de miopia, não conseguia enxergar muito pelo cômodo sem ser o que
estava perto de si.
Só conseguia olhar para o chão sujo.

- Se você ficar quietinho eu não vou ter que te machucar, boneca. – o


homem finalmente falou, com uma voz irritantemente debochada. Como se
a situação fosse divertida para si. Reno grunhiu em resposta,
automaticamente o relacionando com Tártaro. Agora ele estava começando
a sentir sentimentos mais pesados, como a indignação e a raiva aquecendo
seu sangue. Que porra era aquela? Que porra que estava acontecendo? Que
porra era aquele cara e porque ele estava sobre si, agindo daquela forma? –
Não adianta reclamar. Você não vai conseguir nada pela força. Afinal, você
nem tem. – e deu uma risadinha ao final da frase.

O homem já havia ganhado um lugar especial na lista negra de Reno de


pessoas que ele adoraria matar com a devida oportunidade. Extremamente
contrariado, Reno obedeceu. Ele ficou quieto. Foi tão instintivo que Reno
sentiu vontade de se odiar, mas não era hora de se focar nisso. Tinha muitas
coisas a fazer, e Reno não podia ficar restringido por conta daquele cara.
Cuidaria dele uma hora ou outra. Por hora, teria que aguentar aquele toque
invasivo e pesado, queimando sua pele.

O homem riu.

- Você aprende rápido. – ele soou animado. Reno controlou outro som de
nojo vindo diretamente da sua garganta. – Você vai ver. Colaborar comigo
vai ser a melhor coisa que você vai ter feito na sua vida toda. – Reno quis
muito gritar uma resposta malcriada, mas ele estava se controlando tanto
para simplesmente ficar ali, parado e imóvel como uma boneca quebrada,
que na sua mente já estava se dando um prêmio de resistência. Com certeza
Milo ficaria orgulhoso depois. – Você deve estar curioso. Já que está sendo
tão bonzinho, eu vou esclarecer as suas dúvidas. Vê como é fácil? Se
continuarmos assim, vamos ter uma ótima relação. Meu nome é Deimos, e
eu sou um Primórdio. Surpreso? Acho que não. – ele riu como se estivesse
contando alguma piada. Realmente, Reno não estava. Do que ele havia
aprendido sobre mitologia grega, e ele não fazia a menor ideia por que os
Primórdios se renomeavam com nomes gregos da mitologia, Deimos era a
personificação do pânico. E Tártaro, só para ficar claro, era o deus
primordial que personificava o Inferno na visão grega, onde residiam todos
os monstros. De certa forma, eram referências que combinavam com os
Primórdios. E que não eram nada boas para Reno, especialmente na atual
posição. – Eu sei que você não vai acreditar, mas eu me considero um
democrata. É por isso que eu vou te soltar por agora, mas eu preciso que
você seja sensato e escolha a coisa certa. Você tem o direito de tentar fugir,
e eu tenho o direito de te matar nesse caso. Então vai ser mais viável para
nós dois se você simplesmente colaborar. Eu acredito que você seja
inteligente o suficiente para entender o que eu estou te dizendo, certo,
Legado do Sono?

Reno queria que ele enfiasse a metodologia perturbada dele no cu, porém
ele não tinha esse poder no momento. Reno também queria ganhar um
milhão de reais toda vez que se deparava com algum demônio em casca
humana tentando lhe controlar como se fosse uma propriedade a ser
vencida.

Quando ele havia achado que estava livre de Tártaro... Uma cópia dele
aparecera para lhe torturar mais um pouco. Ótimo. Incrivelmente
maravilhoso. Reno estava realmente pedindo para sair, mas ele não tinha
nem mesmo esse luxo. Agora o melhor que podia fazer era dar o que o
filho da puta queria. Até mesmo alguém como Reno conseguia entender
isso. Se fosse Eddie, talvez o garoto fosse realmente morto pela sua
incapacidade de ceder para sobreviver. Reno não estaria ali se não fosse
pela tal incapacidade de Eddie.

Reno já teria morrido.

Reno moveu a cabeça da forma mais restringida o possível, esfregando a


bochecha úmida contra o estofado do sofá enquanto assentia com o que
Deimos havia acabado de falar. Isso roubou mais risadas de Deimos, e era
simplesmente nojento o quanto ele estava se divertindo e aproveitando o
momento em sua posição privilegiada de algoz. Filho da puta perturbado.
Reno realmente estava cansado daqueles caras.

Assim como Deimos havia dito, ele realmente soltou Reno, saindo de cima
do garoto em seguida. Reno demorou um pouco para conseguir se mexer de
fato. Seu corpo todo doía e agora o italiano notara o quanto se travara ao
ser pego de surpresa. Ele suava frio, de puro medo, e seu cabelo negro
encontrava-se grudado contra a pele da sua cabeça. Reno não sabia como
não havia se mijado de medo, porém ele não iria reclamar sobre isso. Já
estava se sentindo nojento e traumatizado o suficiente.
Tremendo e sem forças, Reno finalmente colocou-se sentado. Quando ele
conseguiu segurar o rosto numa direção só, como um bebê ainda sem
pescoço firme, Deimos invadiu sua visão mais uma vez. Ele tinha um
sorriso cheio de dentes de orelha a orelha, seus dentes brancos reluzindo
contra a luz fraca do cômodo. Reno sentiu um impulso louco de morder o
nariz dele fora.

Mais uma vez, ele se controlou.

Deimos levou as mãos ao rosto de Reno e, antes que Reno conseguisse


desviar do contato mais uma vez, Deimos conseguiu o que ele queria:
Colocar os óculos de Reno de volta no lugar. Reno odiava contato físico até
mesmo com quem ele gostava como Milo, imagine aquele filho da puta.
Ele ainda não havia se recuperado do choque que havia tido com Electra.
Outra filha da puta também.

Reno começou a enxergar novamente, mas ele ainda não gostava do que
via.

- Diga o seu nome.

Deimos claramente mandou, mesmo com o tom baixo e mansinho de


alguém que estava tendo uma conversa casual. Reno quis fazer tantas
coisas. Gritar, chorar, cuspir nele... Mesmo assim, seu corpo todo só teve
uma reação:

- Reno.

Sua voz parecia ser de outra pessoa. O rosto de Reno caiu e ao enxergar as
suas mãos, elas não pareciam ser suas. Todos os seus dedos tremiam
violentamente. Suas pernas chacoalhavam. Pingos de suor escorriam pela a
sua pele. Sua cabeça parecia mais leve, como se sua mente não pesasse
nada e se encontrasse flutuando naquele momento, cortada do seu córtex
cerebral. Agora ele só era um corpo frio.

Não havia para onde olhar ou o que fazer. O cômodo parecia vazio a não
ser por aquele sofá em que Reno se encontrava, e por Deimos o observando
naquele momento. Perguntas começaram a ser formadas. Ele estava em
outro Complexo? Onde estava Milo e Eddie? O que estava acontecendo de
verdade? Ele não se lembrava de muita coisa depois de ter saído da sua
casa...
Era completamente desesperador ficar vulnerável da forma que Reno
estava no momento. Literalmente nas mãos daquele estranho transtornado,
que não iria fazer bom uso do poder. Ele esperava que, pelo menos, quando
ele saísse do Complexo não tivesse que ser colocado nessa posição
novamente.

Estava redondamente enganado.

- Pois bem, Reno. – Deimos riu ao chamar a sua atenção. – Olhe só para
você. Eu preciso admitir que eu gosto dessa expressão de medo que você
tem. Seus olhos ficam grandes. É bonito, para se dizer no mínimo. –
Deimos tocou-lhe mais uma vez, parecendo incapaz de parar. Reno não
conseguiu evitar ir para trás para tentar evitar o contato de alguma forma,
porém Deimos o segurou pelo rosto do mesmo jeito e forçou um carinho
contra a sua pele úmida. Reno engoliu a seco, cerrando os olhos com força,
pensando que se ele não encarasse a situação ela terminaria rápido. Seu
pescoço estava esticado, e seu rosto pendia para trás. Eram tentativas
inúteis de ganhar um pouco de espaço, de controle sobre o próprio corpo,
de não ser completamente dominado. – Aaah, gatinho assustado... Tsc, - ele
estralou os lábios. – eu odeio esse tipo. Mas vou abrir uma exceção para
você, por que seu rostinho é muito bonito para eu me irritar com ele.

Com certeza não era assim que Reno queria ganhar um elogio.

- Onde diabos eu estou? – Reno acabou grunhindo, pois o autocontrole dele


nunca havia sido tão bom e todo mundo tem um limite. Deimos riu mais
uma vez. Agora ele segurou o rosto de Reno com agressividade, baixando-
o e forçando a encará-lo nos olhos, próximo demais. Os dois estavam
compartilhando a respiração agora.

- Aqui está. Um pouco de personalidade. É mais divertido assim. – Deimos


balançou o rosto de Reno vagarosamente, brincando com ele. – Você quer
saber, huh? Quer saber mesmo?

Demorou a Reno notar que Deimos esperava uma resposta. Ele estava
tendo uma conversa ali, que rude de Reno não correspondê-lo.

- Quero. – Reno murmurou tão baixo que foi como se ele nunca tivesse
falado. Deimos voltou a sorrir, parecendo satisfeito. Reno queria vomitar
nas feições dele. Mas ele não podia fazer mais nada além de esperar para
ver o que iria acontecer.
- Então nós vamos fazer assim, Reno, eu vou te mostrar. Eu vou te mostrar
tudo que você quiser ver, mas se você tentar fugir... – Deimos levou a mão
até a nuca de Reno num movimento rápido, apertando-o com força. Reno
sentiu um choque pelo corpo, e deu um pulo em reação, desesperado para
se afastar do agarre. Em resposta, Deimos apertou mais forte ainda, o que
forçou Reno se controlar para não gemer em dor. – Não vai acabar bem
para você. Precisa entender o que eu estou pondo em jogo por ti aqui. Eu
realmente gostei de você, Reno. E eu tenho certeza que você vai gostar de
mim de volta, só precisamos de mais tempo. Você vai colaborar, e a sua
mente vai se abrir para as oportunidades que irá ganhar.

Deimos empurrou o corpo de Reno contra o sofá, mas não o soltou por
muito tempo. Logo ele estava agarrando o moreno novamente, virando-o
de costas com agressividade, juntando suas mãos em um entrelaço nas suas
costas, amarrando seus pulsos com uma corda que estava no chão ao lado
do seu corpo. Reno sentia-se como uma boneca sendo trocada para sair. Ele
não tinha opinião, vontade ou livre arbitro. Estava, literalmente, nas mãos
daquele Primórdio.

Pelo menos no Complexo não era um ataque tão direto.

Os olhos de Reno arderam por conta das lágrimas que queriam sair. Reno
se negou a chorar. Deimos veria isso, e se Reno pudesse preservar qualquer
coisa de um Primórdio, por menor que fosse ele preservaria. Deimos queria
comer seus sentimentos. Reno tinha uma vasta experiência no Complexo
com Primórdios para poder julgar aquele comportamento: Deimos queria
clamar Reno para si, mas não apenas fisicamente. Fisicamente era muito
fácil. Ele queria Reno por inteiro, mas tudo que Reno havia lhe dado até
agora havia sido uma boneca vazia.

Reno estava determinado a não passar disso. Deimos iria se frustrar. Isso
não era seguro, na verdade era a ideia mais idiota que poderia ter, mas
Reno não estava voltando atrás. Ele não iria ceder. Não sabia de onde
estava tirando a força mental, talvez dos anos de experiência em fingir que
não existia, mas não iria articular muito sobre. Ele não tinha tempo para
isso. Não fazia a menor ideia do que iria fazer como fazer, mas precisava
começar a se preocupar agora.

Deimos o colocou de pé, posicionando-se atrás de si para segurar na corda


ao redor dos seus pulsos. Era desconfortável como o inferno, mas Reno não
esperava outra coisa. Se não fosse por Deimos, ele teria caído diretamente
no chão no momento que movesse as pernas. Agora elas tentavam arranjar
forças na situação forçada, Reno querendo evitar a situação horrível que
seria cair enquanto Deimos o segurava pela corda. O lugar que estava era
incrivelmente nulo. Era um cômodo sujo, pequeno, com teto baixo e
paredes e chão sem pintura. Realmente não havia muito mais além do sofá
e da lâmpada que balançava sobre a cabeça dos dois, sendo a única fonte de
iluminação.

Havia uma porta exatamente na direção de Reno, e foi para lá que Deimos
o levou, forçando-o a andar num ritmo esquisito por conta da tontura e da
pressão. Era como se estivesse utilizando um corpo desconhecido, de tão
fora de si que Reno estava. Deimos abriu a porta, e eles saíram num
pequeno corredor.

Deimos não se pronunciou pelo trajeto todo. O corredor era amplo, com
paredes completamente pichadas de tal forma que não era possível ver a
pintura, iluminado porcamente por lâmpadas amareladas que já estavam
fracas de tanto uso. Era uma realidade completamente diferente do
Complexo, que lhe permitia esquecer que estava debaixo da terra, e Reno
não fazia a menor ideia onde estava.

Apenas após eles terminarem a extensão do corredor, virarem à direita e


chegarem numa porta dupla ampla, que Deimos decidiu falar com Reno,
que mal conseguia enxergar naquele escuro parcial do espaço. Ele estava
andando na frente, porém dependia completamente de Deimos. E se isso
não lhe fazia queimar em ódio, nada mais seria ódio.

Deimos abriu a porta, e o que Reno viu do outro lado lhe causou vertigem.

Eles estavam numa plataforma alta e havia uma escada a sua frente para
descer e andar pelas passarelas sustentadas no alto. Reno viu um labirinto
de caminhos diferentes pelas passarelas, as plataformas levando à
corredores, cabines e outros lugares. Era difícil ver o chão realmente.

- Seja bem vindo. – Deimos sussurrou no seu ouvido. Reno sentiu que iria
cair, mas infelizmente Deimos estava o segurando forte demais para isso.
Aquela construção só podia ter sido uma indústria mineira abandonada.
Reno não fazia ideia se existia no Brasil. Se eles ainda estavam no Brasil.
Reno nunca se sentiu tão assustado antes.
Deimos o forçou a descer as escadas, e eles não foram pelo labirinto de
passarelas, e sim continuaram descendo. Reno viu outros homens, todos
com uma expressão e uma aura parecida com a de Deimos, parecendo
estarem trabalhando. Reno só não conseguia entender completamente no
quê. Ele não conseguiu entender... Até terminar de descer junto com
Deimos.

A respiração de Reno ficou presa na sua garganta, e ele começou a querer


voltar para trás, sentindo todos os poros do seu corpo gritando contra o que
estava vendo. Havia pessoas no espaço térreo, mas não eram empregados
de Deimos e isso era óbvio: Eram mercadoria. Deimos o forçou a ficar
parado, tendo que chacoalhar Reno no processo, chamando atenção dos
outros homens que estavam por perto.

Haviam pessoas de todo tipo com coleiras de couro ao redor do pescoço,


usando nada mais que trapos, sendo levadas em filas, sendo chutadas,
arrastadas ou até mesmo deixadas soltas. Havia muitas. Reno não poderia
conta-las. Ele notou que os homens tinham a tarefa de fazer todas caberem
em dois caminhões, e ambos já se encontravam cheios. Ainda havia muitas
outras para entrarem ali.

Reno sentiu um pânico tão grande que ele começou a gritar e se debater de
verdade.

- Shhh, shhh, shh gato assustado! – Deimos exclamou com agressividade,


forçando Reno contra o seu corpo para que ele parasse de se mover e
tampando a sua boca, querendo calar os seus gritos. Reno ficou enojado ao
ter tanto contato com o homem, e num impulso desesperado acabou
mordendo a mão dele. – Argh!

Por um instante Reno viu vermelho e essa foi à deixa que ele teve. O
pânico se apoderou do seu corpo, fundiu-se com a loucura e logo Reno não
tinha mais controle sobre nada que acontecia. Ele se afastou de Deimos e
começou a correr, mesmo com as mãos ainda presas nas costas,
surpreendendo todos pelo espaço. Reno simplesmente correu. Ele teve uma
instante surpresa de vantagem, e de alguma forma que não soube descrever,
conseguiu se afastar de Deimos.

Reno continuou correndo.


A velocidade parecia ser a resposta certa para a dose absurda de adrenalina
e medo no seu sangue. Reno virou e se desviou de pilares, máquinas, outras
pessoas mercadoria. As luzes iam diminuindo para onde ele se locomovia,
mas a escuridão parcial não era mais assustadora do que todas as
possibilidades inundando sua mente e o impedindo de raciocinar. Ele
precisava achar Milo, precisava sair dali, precisava...

Precisava continuar correndo.

Quando notou, parecia que estava no mesmo corredor que atravessara com
Deimos. Isso não o fez parar. Tudo doía. Sua cabeça latejava fortemente,
sua visão embaçava, seus músculos ardiam com total desconforto, dor e
calor, seus pulmões estavam falhando de tanto trabalhar. Seu coração
esmurrava as suas costelas por segundo, causando dor em seu peito a cada
batida.

O gatilho havia sido tão forte que Reno sentia que estava correndo de mais
coisas do que apenas aquele lugar. Reno estava correndo do Complexo, dos
Primórdios, da dor que eles haviam infligido em si desde o momento em
que Michael morrera, eles estava correndo da sua relação com Milo e para
Milo, do seu medo sobre não sobreviver, de Electra, dos Legados do Sono,
de Cassie e do Complexo sendo destruído, de Gaia, de Tártaro, da sua mãe,
das suas irmãs, do seu pai...

Da sua doença. Das facas. Das parasitas. Das ilusões. Dos pesadelos. Do
suicídio que ele não tinha coragem de cometer.

Porém o corredor não parecia acabar nunca.

Reno não conseguia chegar ao final. Do outro lado. Não importasse o


quanto ele corresse ou se esforçasse, não era o suficiente. Reno não era o
suficiente.

Quando Reno finalmente parou, uma campainha alta começou a soar pelo
seu cérebro. Reno acabou caindo no chão pelo choque do ruído agudo,
desnorteando-o completamente. O mundo pareceu virar por um instante e,
quando Reno abriu os olhos novamente, ele estava sendo enforcado.

- Chefe, você vai mata-lo! – alguém exclamava, soando acima de Reno,


distante, distante...
Reno não soube explicar o porquê, mas seu organismo entorpecido
começou a lutar contra a asfixia. A sua busca por ar foi tão intensa que seus
sentidos aguçaram por um segundo, como se ele estivesse prestes à morrer
e começava a se lembrar de todos os seus momentos, e por isso conseguiu
enxergar e entender o que estava acontecendo: Deimos o derrubara no chão
e, pela falta de resposta de Reno, ele começou a enforca-lo.

Reno não podia morrer ali.

Reno não estava pensando ativamente. Não sabia dizer, como sempre, de
onde vinha a sua vontade de viver, mas a falta de ar a efetivou o suficiente
para que fosse ela quem mandasse naquele momento. Com muita
dificuldade, suas mãos se ergueram no ar, na direção da imagem borrada e
agressiva de Deimos sobre si com a expressão cerrada, decidido a mata-lo.

Ele abriu suas palmas e tocou o rosto de Deimos, tão, tão ligeiramente.
Seus dedos contornaram os traços que já odiava, que queria torcer e torturar
enquanto deformava, e terminaram em seu pescoço, alisando-o de forma
carinhosa enquanto Reno pensava em quartas formas diferentes poderia
torcê-lo, não enforca-lo como Deimos fazia, mas sim torcê-lo. Virá-lo no
ângulo contrário, ao ponto que ele quebrasse. Ou então, cortar a parte
superior da garganta, mas costura-la de volta, só que do lado contrário do
que o normal.

Seus braços caíram, tendo usado todas as suas forças nesse gesto e, antes de
perder completamente a consciência, ele viu Deimos parar. Ele viu Deimos
deixa-lo viver, por qualquer motivo que fosse.

E Reno viveu. Pois ele desmaiou, mas iria acordar mais tarde.
RENO

Reno não abriu os olhos. Por esse motivo, ele acreditou que estava morto.
Seu corpo sofreu espasmos de pânico, mas logo Reno paralisou ao notar
que estava preso. Sua cabeça, seus pulsos e seus tornozelos estavam
pesadamente restringidos. Reno estava preso. Ele sentia uma banda fria e
pesada de ferro ao redor dos seus olhos, tirando-lhe a visão. Sua garganta
estava seca, porém seu corpo tremia em frio.

Ele nunca havia sentido tanto frio na vida.

Reno reconheceu que se encontrava no chão, sem roupas além de uma


blusa cinza longa. Provavelmente o mesmo trapo que as mercadorias
estavam usando ao serem transportadas. Era como acordar em outro
mundo, outra realidade. Porém, isso era ingenuidade da parte de Reno, pois
essa sempre foi a sua realidade.

A diferença era que seu algoz e suas amarras eram invisíveis antes. Reno
não tinha forças para se debater contra. Ele ainda se encontrava
desnorteado, fraco, oprimido. Reno foi se encolhendo, naturalmente em
uma bolinha, querendo apenas desaparecer. Mais do que qualquer outro
momento da sua vida, Reno quis não ter mais o peso de existir.

Ele não conseguia pensar. Sabia que, naquele momento, o melhor que
podia fazer era começar a articular. Mas não era Milo. Oh, Milo. A palavra
lhe machucava. Onde ele estava? A probabilidade de perdê-lo era
assustadora demais para Reno lidar. Reno não teria nada após isso.
Literalmente nada.

Reno não era nada e Deimos só estava se certificando que ele soubesse
disso.

Sem a visão, seus outros sentidos pareciam mais afiados. Por conta disso
ele ouviu os passos alegóricos que se aproximaram do cômodo que estava,
e depois disso ouviu o ranger da porta ao ser aberta, junto com mais passos,
agora vindo diretamente em sua direção, tão próximos que se tornavam
opressores. Era como se Reno só pudesse ouvir a manada de búfalos que
vinham lhe atropelarem. Era perturbador demais para que ele conseguisse
reagir. Seu choque era tão grande, que Reno tinha certeza que havia
quebrado. Que algum parafuso havia caído e não poderia mais ser
recolocado ou substituído.

- Não adianta se fingir de morto. – a voz de Deimos cortou sua audição


como uma lâmina, afiado o bastante para fazê-lo tremer. Reno não tinha
para onde correr, não dessa vez. – Eu tive bastante certeza em te deixar
vivo, apesar de você não merecer.

Para enfatizar o que dizia, e chamar a sua atenção, Deimos agarrou Reno
pelo cabelo. Reno soltou um gemido de dor, com lágrimas descendo pelo
rosto. Ele ouviu sua risada em seguida, podendo sentir sua satisfação com a
posição de poder que se encontrava. Como uma revanche contra Renos,
que havia ousado fugir. Que havia ousado correr e tentar escapar de si, do
seu estranho e endiabrado fascínio por si.

- Você acha que eu sou bonzinho com todo mundo? – Deimos disse mais
baixo, de forma ameaçadora, para que seu ponto fosse bem entendido. –
Você tem tanta sorte e não compreende isso. Você viu garoto. Isso aqui é
um comércio de peixe grande, e quem não sabe nadar não sobrevive. Mas
você... Você foi pescado pelo melhor de todos, e você ainda quer fugir.
Tsc. – ele soltou o cabelo de Reno ao estralar a língua, fazendo seu rosto
cair no chão como se fosse uma bola. – Eu não sabia o quanto Tártaro
sofria com vocês. Veja bem, não temos só Legados aqui. Alguns vão para o
Complexo, outros vão para os confins da terra. – Deimos riu como se
tivesse contado uma piada. – Pode me considerar um Encarregador. Eu só
levo as encomendas que me pedem. E a sua sorte, gatinho, foi que não me
deram instrução nenhuma sobre você e os dois fudidos te acompanhando.

Isso atingiu Reno. Como se tivesse acabado de tomar um choque elétrico,


Reno reagiu de forma brusca, mas não conseguiu fazer muito por estar
severamente restringido. Era a única palavra que fazia sentido na sua
mente: Milo. E tudo relacionado a ela conseguia trazê-lo de volta, ou pelo
menos fazê-lo tentar voltar.

- Aonde... Aonde... Aonde ele está...? – Reno se engasgou, sua boca se


encheu de água, sua língua tremeu e as palavras desapareceram da mente.
Ele nunca teve tanta dificuldade antes.
Em resposta, Deimos fez Reno deitar de barriga para cima e pairou sobre si
como um peso morto. Reno foi virado com força, batendo suas costas
contra o chão. Por trás da escuridão da banda de ferro, ele sentiu a luz de
segunda mão em seu rosto. Iluminando a sua desgraça. O que é que estava
acontecendo. O que é que estava acontecendo.

- Escuta aqui, seu merdinha, - Deimos falava exatamente sobre o seu rosto,
fazendo Reno se encolher, fazendo Reno sentir tanto medo que ele não
conseguia se mover. – você não tem o direito de pedir ou questionar nada,
entendeu? Que parte do: “Eu te comprei, você é meu”, você ainda não
entendeu? Seus amiguinhos tem o próprio destino, e você tem esse aqui. –
ele deu um soco no chão ao lado da cabeça de Reno, fazendo um barulho
alto, e o impacto reverberou até o corpo do garoto. – Eu não sei por que eu
estou gastando tanta energia em você, sinceramente. Até mesmo um
rostinho bonito tem limites. – ele agarrou as bochechas de Reno com os
dedos, pressionando-o sobre a pele a ponto que seus lábios saltaram, tudo
com força desmedida. Nesse processo, o maxilar de Reno trancou, e seu
queixo se tornou imóvel. – Mas quanto mais você for contra mim, mais eu
vou ter vontade de te educar, ouviu? – quando Reno não fez nada, ele
repetiu: - OUVIU?! – Reno assentiu com desespero, sentindo um filete de
baba escapar dos lábios por conta do agarre. – É o mínimo que você pode
fazer. Eu não vou ser bonzinho para sempre, então não pense que essa
desobediência vai ser comum. Estou fazendo demais por você. Demais. Eu
ainda vou, acredite se quiser, - ele deu uma risada miserável. – te dar um
tempo para você se acostumar. Então por agora, não passa de um corpo
inútil que eu tenho que manter vivo. – Deimos o soltou, tendo o cuidado de
bater a cabeça de Reno contra o chão mais uma vez, roubando outra
exclamação de dor do garoto. Isso fez Deimos rir com deleite. – Mas nem
pense em morrer. Nem pense em tentar fugir, porque não tem escapatória.
Você é mais meu do que seu, e vai acabar entendendo isso, por bem ou por
mal.

Reno só conseguia se perguntar: O que ele havia feito para merecer isso.

Sua mente era um redemoinho de coisas. Nada fazia sentido. Tudo era dor
e brutalidade. Tudo poderia ferir Reno, nada era confiável. Reno sentiu-se
desmanchar em lágrimas, sem poder expelir mais nada do seu corpo frágil
e, como Deimos havia dito inútil. Reno não podia sangrar, Reno não podia
se desmantelar. Reno estava inteiro, ali, preso como uma âncora fadada à
afundar.

Ele realmente se considerada no fundo do oceano, e durante a sua vida toda


havia considerado o fundo do oceano como o abismo que guardava todos
os seus medos. O tártaro. Dentro daquela agonia, Reno se encolheu e rolou,
tentando achar alguma coisa, qualquer coisa que o pudesse ajudar a sair.

Deimos não demorou mais tempo com Reno, deixando-o sozinho com seu
martírio após ter certeza que seu recado estava bem dado. Reno queria
engasgar em morrer, porém nem passar mal ele estava conseguindo.
Simplesmente não se movia, parte nenhuma do seu corpo.

Então ele decidiu dormir. Fugir da realidade.

E, apesar do seu medo mortal dos seus pesadelos, Reno os considerou


ainda melhores do que a realidade atual. Então ele entrou num estado de
coma induzindo, desmaiando repentinamente, forçando o sono no cérebro e
os sonhos na mente.

Não sabia por quanto tempo iria dormir, mas não iria contar.

Não demorou muito e Reno estava acordando como outra pessoa.

xxx

Milo sentiu uma corrente elétrica passando por todo o seu corpo,
acordando-o num tipo de sobressalto. Seus sentidos literalmente se
ativaram, e sua visão se abriu para o mundo ao redor de si. Milo abriu a
boca para puxar ar, demorando a entender que não precisava de tal coisa.
Seus dedos moveram-se lentamente enquanto Milo voltava a senti-los,
deixando de ser débil.

Ele não fazia ideia por quanto tempo ficara desacordado. Ou se iria acordar
sozinho alguma hora.
Milo moveu a cabeça lentamente, tentando reconhecer onde estava. Ele se
encontrava deitado num chão sujo e duro, e por isso sentia dores
musculares que o deixavam rígido. Havia cheiros fortes que invadiam a sua
narina, e eram difíceis de distingui-los quando eles se unificaram. Parecia
urina com enxofre e ferro.

O cheiro de um cativeiro.

O ambiente era amplo, e por isso não havia nenhum outro corpo perto de
Milo. Porém ele sentiu a presença, notando que não estava sozinho. Longe
disso. Conseguindo mover-se, mesmo que aos poucos, ele teve a chance de
realmente distinguir os arredores. Haviam algumas lâmpadas de pouca
qualidade do outro lado das barras que delimitavam o espaço, iluminando-o
parcialmente.

Barras.

Milo estava dentro de uma cela.

Junto com mais de vinte pessoas diferentes, entre elas crianças,


adolescentes, adultos e idosos. Eles se encontravam amontoados em cantos,
preferindo ficarem perto das paredes, completamente transtornados e
débeis. Era muita gente. A cela era estupidamente grande, e apenas por isso
havia ainda espaço.

Era uma visão assustadora, para se disser no mínimo. Principalmente


porque não fazia a menor ideia de onde estava. Não possuía nenhuma
informação concreta na mente que pudesse lhe ajudar nesse momento.
Reconhecia que ainda estava grogue de alguma substância que deve ter
ingerido ao ter sido sequestrado, substância essa que era responsável por
lhe deixar em coma pelo tempo necessário.

Mas Milo havia acordado antes.

Isso o fez lembrar automaticamente de Eddie. Ele começou a procurar pelo


espaço com os olhos pela a figura do garoto e, para a sua sorte, ele estava
desmaiado próximo de si. Milo foi até com dificuldades, sentindo o corpo
pesar uma tonelada, mas não desistiu mesmo quando praticamente se
arrastou por não conseguir erguer o corpo.

Ele precisava acordar Eddie da mesma forma que Reno lhe acordara.
Milo tocou em Eddie, deixando sua manifestação fazer o resto. Não foi um
processo menos doloroso do que das primeiras vezes, na verdade Milo
poderia considerar aquele momento como o pior, pois era difícil se
concentrar ainda sobre efeitos da droga e por ter acordado há tão pouco
tempo.

Ele sentiu as barreiras que a manifestação de Eddie reconstruiu ao redor do


seu Legado o machucando diretamente, querendo expulsar o Controle de
Milo por completo. Ao mesmo tempo, ele sentiu também os efeitos da
droga sobre Eddie, que eram cem vezes mais pesados e eficazes nele, por
ser um humano. Milo tinha que combater tudo isso para trazer a
consciência de Eddie de volta, e era como nadar num lago congelado
precisando ir até o fundo.

Apesar da dor e da dificuldade, Milo não se permitiu desistir, segurando-se


com tudo que podia e não podia. Era Eddie e sua saúde que importava, e
por isso Milo não se permitiu perder. Era como se a sua energia vital
também estivesse sendo puxada no processo, e Milo sentia os músculos
cada vez mais moles, distantes do seu próprio controle, como se ele
estivesse num corpo desconhecido, presente apenas de mente.

Quando notou, sua cabeça havia caído sobre o peito de Eddie, e ele
literalmente não conseguia respirar. Nem por querer, ou por não querer,
Milo simplesmente não conseguia manter o próprio corpo vivo, fazer o ar
entrar e sair como deveria, ou então não precisar de forma nenhuma. Milo
sentia que estava afogando.

- Urrrghhh... – Eddie grunhiu abaixo de si, reagindo. – Puta que pariu...


Que dor... – a voz dele saiu super arrastada e baixa, expressando realmente
o que dizia. Milo não conseguiu se mover. Era ele que não conseguia reagir
agora.

Milo sentiu a mão de Eddie em seu braço. Nesse momento, ele não soube
mais quanto tempo havia passado. Houve um espaço em branco que Milo
nunca iria conseguir preencher. Ele conseguiu, pelo menos, virar o rosto
agora, e pode enxergar a expressão de Eddie, ainda deitado por conta de
Milo estar o travando.
- Você está bem? – Eddie murmurou, parecendo meio preocupado, meio
com dor e totalmente irritado. Milo grunhiu, forçando-se além da conta
para sair de cima de Eddie.

- Não. – ele respondeu com a garganta seca. – Não estamos.

Eddie suspirou em resposta. Milo se arrastou até a parede mais próxima,


sem conseguir aguentar manter a própria postura. O caminho era tortura,
mas ele não podia fazer mais nada além de aguentar. O escuro da cela era
um pouco confortante. Milo podia fingir que não conseguia enxergar a
silhueta das pessoas que estavam esperando para serem vendidas no
mercado negro, Milo podia fingir que ele não estava ali e que ele não
entendia o que acontecia.

- Você acha que ele está vivo...? – Eddie chamou a sua atenção,
conseguindo ficar em pé. A resistência dele era impressionante. Milo
acabou demorando um pouco para entender do que ele falava, até olhar
para onde Eddie olhava.

Havia um corpo do seu lado.

Era o corpo de uma criança extremamente desnutrida. Era difícil de dizer se


era um bebê ou uma criança de verdade. A criança tinha a pele de um tom
rico de escuro, e cabelos negros lisos cheios sobre a cabeça, mas que não
passavam do meio da nuca. Depois de certo tempo, ela acabou notando o
movimento ao seu redor e, tudo que conseguiu fazer em movimentos
letárgicos, ergueu o rosto, mostrando uma expressão marcada por sardas
negras e olhos verdes brilhantes.

- Não por muito tempo. – Milo respondeu em choque. Eddie se agachou na


sua frente, ainda olhando para o garotinho que os observava. – Ele é um
Legado. Ele se parece com...

- Laz. – Eddie disse, voltando a olhar para o rosto de Milo. Milo trancou o
maxilar, deixando a cabeça cair para trás. Ele não sabia nem por onde
começar. – Onde nós estamos?

- Eu não sei. – Milo foi cem por cento sincero, balançando a cabeça para
um lado e para o outro. – Parece um cativeiro, e essas pessoas se parecem
vítimas do mercado negro, mas eu nunca ouvi sobre esse tipo de negócio
pela boca de Tártaro. Eu não sei se todos aqui são Legados, não sei se eles
vão para o Complexo... – Milo conseguiu voltar a respirar e, após respirar
fundo, disse: - Eu não sei.

- E o Reno? – Eddie estava começando a ficar ansioso, e não demoraria


muito para a agitação e a impulsividade aparecessem. Milo franziu o cenho,
sem a menor ideia do que fazer ali. Iria enlouquecer procurando pelo plano
perfeito ou pela a resposta certa. Ele não iria conseguir impedir Eddie
naquele momento, e não seria bom para eles. Milo não confiava que tinham
uma chance de fazer algo bom.

- Ele não está aqui. Ele nos salvou de certa forma. Ele tem uma conexão
comigo por ser um Legado do Sono, e me procurou por essa conexão. Por
conta disso, eu acordei do coma induzido de uma droga que nos deram. E
dai eu acordei você. Se não fosse por ele, Eddie, nós só iríamos acordar
quando já estivéssemos condenados. Ou então, não acordaríamos.

- Não tem como você achar ele? Tipo, sentir onde ele está?

- Mesmo que eu faça isso. – Milo se inclinou para se aproximar de Eddie,


abaixando o tom de voz. – Nós temos como chegar lá? Como fugir com ele
no final? Eu realmente não sei o que fazer Eddie.

- Milo...

Antes mesmo de Eddie poder dizer alguma coisa, um barulho por fora da
cela os surpreendeu. Eram passos altos, porém lentos. O grupo dentro da
cela se tornou silencioso ao ouvi-los, e Milo pode notar a tensão no ar que
se instalou rapidamente. Ele se focou em ver o que estava por fora da cela,
e Eddie o acompanhou.

Milo não podia distinguir muito além de um espaço igualmente sujo, pouco
iluminado como a cela, e um corredor. Os passos pertenciam a três homens.
Um deles estava passando seus dedos pelas barras enquanto andava,
encarando diretamente o grupo por dentro da cela. Milo notou que era ele
que causava a tensão entre os cativos, era ele que intimidava. Mesmo
assim, Milo não conseguia definir muito da sua aparência.

E também não importava.

Mas o que Milo tinha certeza era que o homem estava sorrindo enquanto
olhava para o grupo de almas torturadas.
- Eles estão de guarda. – Milo se aproximou de Eddie para dizer,
começando a se apoiar nos seus joelhos. Eddie estava com o rosto franzido
enquanto também observava os homens. – Não tem como sairmos com eles
ali.

- E provavelmente não tem outra saída pela porra dessa jaula.

- E, - Milo fez Eddie olhar para si nesse momento. – provavelmente


também não podemos cavar um buraco. Nós estamos presos até o momento
que eles decidirem fazer algo conosco.

Eddie não podia se mostrar mais descontente com aquela ideia. Milo já
esperava isso.

- Não podemos deixar Reno sozinho. – Eddie soou perdido e dolorido. –


Não dá para esperarmos a sorte acontecer. Mesmo que não conseguimos
escapar, nós precisamos salvá-lo se ele ainda está vivo.

Milo se surpreendeu ao ouvir isso da boca de Eddie. Era bom vê-lo


preocupado com outra pessoa além de si mesmo, de qualquer forma. Ele
provavelmente havia aprendido a sua lição no Complexo. Havia sido da
forma mais difícil, mas pelo menos havia acontecido.

No entanto Milo não precisava ouvir isso da boca de Eddie. Ele já sabia,
melhor do que ninguém.

- Isso é lindo, mas só a teoria. – Milo abaixou o rosto. – Eles nos pegaram
de novo.

- Hey. – Eddie chamou Milo, soando perto. Milo ergueu o rosto novamente
apenas por instinto, sendo encarado pelos olhos cor de mel do cubano ao
seu lado. – Não desista ainda. Pense sobre o Reno.

- Eu estou. – Milo retrucou num murmúrio. – E é por isso que eu estou tão
preocupado. Existem coisas sobre os poderes de Reno que nem ele entende,
e por isso eu não posso me reconectar. Eu não faço a menor ideia de onde
ele esteja.

Milo sentiu alguém agarrar o tecido da sua calça logo após de afirmar isso.
Ele olhou para trás, sendo encarado por grandes olhos verdes novamente. O
garotinho estava se erguendo com dificuldades no chão, mas dessa forma
foi possível notar que os trapos que usava estavam completamente
manchados de vermelho na área da sua cintura. Ele estava ferido e
sangrando. A imagem fez algo em Milo estralar, como se tivesse levado um
choque. Talvez o garotinho tenha tentado se aproximar por todo aquele
tempo que eles conversavam entre si, muito ferido para conseguir. Ele
estava pedindo ajuda.

- Ele tá ferido! – Eddie acabou exclamando, pronto para se inclinar sobre


Milo e pegar o garoto. Milo o impediu. – Milo!

- Não faça movimentos bruscos. – Milo foi duro, lutando contra o seu
próprio tumor interno. Tinha algo acontecendo, e Milo precisava entender.
Eddie continuou falando, mas Milo deixou de ouvi-lo. Ele começou a
prestar atenção na cela e no grupo em vez disso.

Milo ouviu os choros, as tossidas, os resmungos e as lamúrias de dor. O ar


era denso, úmido, e o grupo parecia derrubado por eles. Os cativos não se
movimentavam muito, ou conversavam entre si. Milo nem podia dizer se
eles haviam percebido que Eddie e ele estavam acordados, especialmente
com tantas pessoas presas ali dentro.

Então Milo acabou entendendo.

- Pegá-lo pode piorar o machucado dele. – Milo finalmente voltou a se


direcionar a Eddie. O garotinho estava completamente agarrado a sua perna
agora, respirando como ainda conseguia. Ele não iria durar muito. – Esse
lugar é uma cova. Todas essas pessoas são mercadoria estragada. Eles estão
aqui para morrer lentamente. Nós teríamos o mesmo destino se Reno não
tivesse nos acordado.

Eddie pensou rápido enquanto piscava, agora sem se debater mais,


finalmente compreendendo as atitudes de Milo. Ele pareceu considerar
tudo que Milo havia acabado de fazer, e quando terminou, sua expressão
mudou drasticamente.

- Então nós não deveríamos estar acordados.

Milo balançou o rosto negativamente.

- Seja lá o que eles queriam fazer com os nossos corpos, não era enquanto
estávamos vivos.
- Mas Reno não. – Eddie voltou a olhar para Milo. – Você realmente não
pode acha-lo? Ver o que estão fazendo com ele?

Milo simplesmente encarou Eddie por um instante. Ele quis sentir raiva,
mas não conseguia por conta do tom de Eddie. Ele estava genuinamente
preocupado e só queria ajudar. Não tinha noção de como estava soando. E
como dava vontade para Milo socar o seu rosto.

- Eu não posso. E eu gostaria de não criar ansiedade por isso. Mais do que
já possuo.

Eddie pareceu tão frustrado quanto Milo ao ouvir isso. Milo se focou no
garoto apoiando-se sobre as suas pernas, ouvindo pequenos gemidos de dor
saírem dos seus lábios enquanto ele morria aos poucos. Ele era tão
pequeno. Tão pequeno, tão jovem, tão inocente. Ele só queria ajuda. Ele só
queria vida.

Talvez se Destroya estivesse viva, ela teria a idade do garotinho.

O que havia o feito sangrar dessa forma? Quem tivera coragem de


machucar um corpo tão pequeno? Porque todas aquelas pessoas haviam
sido jogadas fora? E, pensando nisso, qual era o ponto de Milo e Eddie
estarem ali? Milo precisava desesperadamente se reconectar com Reno, ele
sabia disso, porém Reno estava muito fraco agora. E Reno já possuía um
bloqueio natural para todas as pessoas ao seu redor, e nem mesmo Milo
podia passa-lo.

- Milo. – Eddie lhe chamou a atenção. – Eu preciso que você me escute


agora.

Milo piscou várias vezes.

- O que você quer fazer?

- Você vai ter que confiar em mim. – Eddie olhou seriamente nos olhos de
Milo, e Milo reconhecia aquela postura: Ele estava determinado a
sobreviver não importasse como. Mas, dessa vez, estava oferecendo a Milo
a vir consigo. A acompanha-lo.

Milo achava que nunca teria isso novamente.

- E você vai ter que me contar como. – Milo retrucou após engolir a seco.
- Você não vai gostar muito dos meus métodos. – Eddie pareceu
ligeiramente nervoso. – Você poderia me dizer qual o nível de insanidade
deles?

Milo entendeu no mesmo momento o que Eddie queria. Ele observava as


celas enquanto falava atento para ter certeza que os homens do outro lado
não haviam os notado acordados ainda. Com sorte, eles estavam longe do
início da cela, e havia pessoas o suficiente para cobrir suas figuras.

Agora tudo dependia se Milo aceitava aquele plano ou não.

Sinceramente, naquele momento, ele não conseguia pensar em outro meio


melhor. E quantos mais demorassem, mais diminuiriam as suas chances de
conseguir de verdade, se as tivessem. Era tudo ou nada. E disso, pelo
menos, Eddie parecia entender. Ele havia feito tudo errado, mas ainda
assim, de uma forma não completamente espontânea e autoral, havia tirado
tanto Reno quanto Milo do Complexo.

E matado todos os outros Legados. Ele já sabia como era usar uma maioria
para ajudar a minoria. Milo não podia mais tentar manter um tipo de moral
àquela altura, enlameado em tudo que havia acontecido para leva-lo até
aquele momento.

- As doenças físicas os deixam mais transtornados do que um Legado, por


exemplo. – Milo respondeu baixinho. – Eles estão delirando, sofrendo
fisicamente e emocionalmente, completamente desolados. Isso aqui é o
fundo do poço para eles. O que quer dizer que não vai ser fácil causar
histeria.

Eddie arregalou os olhos ao perceber que Milo já sabia o seu plano.

- Então o que eu faço? – ele acabou perguntando.

- Confie em mim. Quando eu te der um sinal, você pode fazer o que está
pensando.

Eddie e Milo trocaram um olhar longo enquanto Eddie considerava isso, e


Milo sabia que naquele momento ele não iria negar. Não para sobreviver.
Mas isso não significava que os dois tinham uma relação novamente. Não,
Milo sabia que não merecia isso, não por tudo que havia feito a Eddie e a
todos os outros Legados.
Mas agora eles eram igualmente algozes do Complexo, se Milo parasse
para pensar.

- Okay. Mas eu... – Eddie pausou por um instante, procurando palavras. –


Eu quero levar o garoto.

Milo inclinou o rosto em negação.

- Eddie...

- Eu sei. – Eddie o cortou com impaciência, deixando transbordar o quanto


estava nervoso. – Eu sei, eu sei, eu sei. Mas eu não quero deixa-lo para
morrer aqui.

- Qual a diferença entre ele e todas essas pessoas? Porque você pode
machucar um grupo e não um individuo?

- Eu não sei. – quando Eddie respondeu com a voz embargada e falha, Milo
sentiu uma pontada de culpa e ódio por si mesmo por ter dito isso dessa
forma. Onde estava a sua tão clamada sensibilidade? Eddie ainda era uma
criança, e ele obviamente não sabia lidar com tudo. Não era o momento
para Milo destruir a mente já aos pedaços do garoto. – Eu... – Eddie não
conseguia dizer mais.

Milo não queria tortura-lo mais. Quem era ele para questionar algo do tipo?
Milo não estava sendo perceptivo o suficiente. Se fosse Destroya sangrando
em sua perna, ele não a levaria de volta? Ele não mataria quem precisava
para isso? E como isso era diferente do que Eddie queria?

- Okay. – Milo balançou a cabeça negativamente, fazendo Eddie o encarar


praticamente mesmerizado. – Fique com ele enquanto isso, mas o pegue
por debaixo das axilas. – Milo guiou Eddie, com os seus movimentos
lerdos por não estar acreditando completamente que aquilo estava
acontecendo, para que ele estivesse na direção certa. Assim poderia pegar o
garotinho sem chamar a atenção dos guardas lá fora.

O garotinho estava muito fraco para reagir. Suas últimas forças foram
gastadas ao se aproximar de Milo. Seria um milagre se eles conseguissem
salvá-lo com vida. Eddie precisava ter em mente que, se ele realmente
queria levar o garoto, seria apenas um corpo para enterrar em outro lugar. E
sua mente precisava estar preparada para isso.
Eddie acabou conseguindo pegar o garotinho de Milo. Milo ficou livre para
se mover. Ele deitou-se no chão e começou a se arrastar entre a sujeira,
sentindo o cimento seco machucar a pele das suas mãos e suas articulações,
mesmo revestidas pela roupa que usava. Fez um sinal para Eddie esperar no
mesmo lugar, pois se os dois se movessem juntos chamariam muita
atenção, principalmente com o garotinho entre si.

Milo não pretendia ir longe. Ele chegou numa garota que estava deitada em
posição fetal, tremendo muito. Pela a cor da sua pele e pela a forma que
suava, Milo deduziu que ela tinha febre amarela. Seu cabelo loiro havia
virado uma palha cinzenta, grudado sobre o crânio, e seus olhos eram
fundos e dilatados, completamente vazios enquanto ela olhava para o
abismo da morte.

Milo sentiu-se mal por ter que ser ela. Mas não havia que poderia fazer. Ele
precisava se concentrar, e era só isso que tinha que pensar. Ele não tinha
como curar doenças humanas, mesmo em Legados. Milo se ergueu
ligeiramente, apenas para estar numa posição decente enquanto usasse o
Controle, que já exigia muito de si.

Então Milo a tocou.

Sua teoria se provou real, como sempre: Ela também era um Legado.
Noventa e nove daquelas pessoas eram Legados sendo traficados no
mercado negro. Foi a primeira vez que Milo começou a considerar que
havia lugares piores que o Complexo. O Complexo era uma prisão invisível
e que te deitava sobre uma cama de morte, mas confortável. Aquilo ali era
a entrada para o terror, a real tortura e o Inferno.

E Milo, Reno e Eddie precisavam escapar se realmente queriam ficar livres.


Não passava de uma prova do quanto eles desejavam a verdadeira
liberdade.

A manifestação dela era quase inexistente. Era como se eles tivessem a


usado até o fim da utilidade do seu Legado, esgotando a pobre garota e
deixando uma carcaça para trás. Ela deveria ter sido uma das ratas de
laboratório dos Primórdios. Milo estava deduzindo, pois desviava o
máximo o possível das memórias dela, mesmo as sensitivas. Tornava o
processo mais difícil, e doloroso, como tentar achar veias para enfiar a
agulha em áreas que elas não apareciam.
Tudo isso fez Milo perceber que não era só uma cova, e também um lixão.
Muitos daqueles Legados já haviam ido para algum lugar e tinham sido
mandados de volta, exatamente como você fazia com objetos que passaram
da sua validade ou simplesmente não servem mais com o tempo. Era só
isso que todos os Legados eram: Objetos.

Milo entendia bem.

Depois de mais tempo do que gostaria, Milo finalmente conseguiu se


conectar à garota, tomando controle do que havia sobrado do Legado dela.
Agora ela o obedeceria a independente do que Milo quisesse que fizesse.
Milo se esforçou ao máximo para achar a mente dela sem se envolver com
a garota ao mesmo tempo, e isso sugou quase todas as suas forças. Não
importasse quantas vezes fizesse, e os níveis que queria atingir, era um
processo doloso e maçante da mesma forma. Isso após ele ter treinado
durante toda a sua existência até conhecer Eddie.

Mas Milo tinha que ficar mais resistente a cada vez que usava.

Milo usou o Controle para criar imagens da mente da garota, começando a


ver reações físicas da parte dela. Seu corpo se movia lentamente, quase sem
forças, e à medida que as imagens cresciam de tamanho ou de
profundidade, mais ele conseguia reações dela. Era um resquício do fato de
ter sido um Legado do Sono. A partir do momento que tivesse o Legado,
ele podia fazer com que visse, sentisse ou fizesse o que julgasse melhor,
sem deixar que o Legado tivesse algum tipo de resposta para lutar contra.

O Legado se tornava de Milo no momento que ele o controlasse. Se não era


um poder perigoso, nada mais seria. Os Legados do Sono possuíam essa
capacidade numa escala muito menor, podendo controlar apenas uma parte
da mente das pessoas. A parte ligada ao seu Elemento. O que havia
acontecido com Milo, ao ser criado, foi que sua capacidade foi aumentada.
Seu Elemento se tornou outro por evolução, pelo caminho criado pela
ciência elementar.

Milo praticamente agarrou a mente da garota, e continuou apertando e


apertando com imagens até que ela cedesse. Finalmente, ela inspirou
profundamente o ar sujo da cela e, como se ressuscitasse pelo pânico e o
desespero, sentou-se num solavanco, afastando-se de Milo no processo.

Não demorou muito para que começasse a gritar.


Os gritos chamaram a atenção letárgica dos os que estavam na cela. Os
guardas, na frente dela, também tiveram a atenção voltada para os gritos.
Um deles começou a bater na cela, achando que com esse e o método do
grito violento faria a garota parar de gritar. Essa mistura de ruídos
agressivos apenas tornou o ambiente mais tenso, e outros doentes
começaram a se mover e acordar para conseguirem entender o que estava
acontecendo.

A garota, presa no Controle, não conseguia parar de gritar. Seus gritos já


estavam se tornando estridentes, assim que sua voz começava a falhar, por
conta de não usá-la a tanto tempo e sua garganta não deveria estar na
melhor das condições. Ela parecia estar sofrendo fisicamente por gritar.
Esse comportamento histérico assustou os outros dentro da cela e irritou
ainda mais os guardas do lado de fora.

Então Milo a mandou correr.

Milo olhou para Eddie, assentindo com a cabeça. Ele sabia que o garoto iria
entender o sinal, pela ligação que os dois tinham. Em menos de cinco
minutos depois, o fundo da cela começou a escurecer. Foi como se as
sombras andassem, cobrindo todo o espaço que não era seu. As sombras,
juntas, formando uma onda de escuridão que avançou rapidamente,
chegando até onde os outros doentes estavam.

A histeria que a garota havia criado contagiou os outros.

No momento que as sombras apareceram, a garota saiu correndo, pisando


por cima de quem estava no seu caminho e quem não estava também. Ela
chegou até a grade da cela, dando de cara com os guardas e gritando na
direção deles. Quando os doentes notaram, os que podiam se levantar
tiveram a mesma reação, se jogando na mesma direção que a da garota, que
era o único espaço que não estava coberto pelas sombras.

Era um breu total. Um breu maior até que Milo viu quando teve que salvar
Eddie no teste dele. Ele agradeceu por poder enxergar no escuro, senão
aquela escuridão seria sufocante de tão assustadora, e facilmente causava
histeria. A sensação de não poder enxergar, e de não saber o porquê, era
completamente desesperadora.

Os guardas exclamaram do outro lado, sem entender praticamente nada do


que estava acontecendo. A falta de entender rapidamente causou pânico e
alarme, assim que os doentes se amontoaram contra a grade da cela para
fugirem contra a escuridão, e Milo praticamente podia sentir o medo
irradiando deles em ondas. Esses eram os pontos positivos que Milo e
Eddie podiam aproveitar para fugir: Eles estavam quebrados o suficiente
para se tornarem bombas relógio.

Milo se ergueu ainda no breu, e foi até Eddie. Os olhos do garoto


brilhavam em dourado vivo ao vê-lo. E então, para a surpresa dos dois, o
garotinho ferido que Eddie segurava tinha os olhos abertos, e os dele
brilhavam num verde ácido muito parecido com o de Gaia. Ele não estava
só vivo, como acordado.

- Ele é um Legado. – Milo comentou enquanto o observava. Eddie recebeu


protestos do garoto, tanto físicos quanto vocais, porém ele o arrumou em
seus braços de uma forma que pudesse carrega-lo. Depois disso, ele se
levantou.

- E é por isso que ele vai com a gente.

Milo não teve tempo de retrucar a estupidez que havia acabado de sair da
boca de Eddie, porque as coisas continuavam acontecendo ao redor deles, e
como eles queriam: Os doentes se amontoaram tanto nas grades da cela de
forma que eles se espremeram na direção dela, forçando os canos de ferro
com o peso da multidão, e metade dos guardas que estavam do outro lado
saíram para chamar reforços.

Não iria adiantar nada.

Porque os doentes conseguiram quebrar três canos, e isso foi o suficiente


para que eles estivessem espaço para passarem, atropelando uns aos outros
e cortando-se no processo, pintando o chão, quem estava próximo e o
próprio ferro de vermelho e pele. Os guardas que ficaram foram
derrubados, sem muita chance de defesa contra a onda de gente que veio de
uma vez, mesmo quem estava armado.

Milo e Eddie só precisaram trocar um olhar para saber que era o momento
que eles deveriam sair. Eles seguiram pelo espaço que foi aberto entre a
grade, passando com cuidado agora que era possível. Os doentes se
dispersaram rápido, porém Milo pode ver vários deles em cima dos
guardas, mordendo-os como... Como se quisessem comê-los.
Nesse momento Milo percebeu que muitos dos doentes estavam morrendo
de fome.

- Vem. – Eddie puxou Milo, trazendo-o de volta para a realidade. Eles


correram pelo corredor que se seguia para a direita, sem nada para trás.
Havia outras celas com mais quinhentas ou seiscentas pessoas presas, isso
por toda a extensão do corredor. Milo não pode evitar se questionar quanto
tempo levaria para que a histeria os abatesse e os fizesse sair.

Quando o corredor começou a criar mais direções que poderiam ser


seguidas, Eddie puxou Milo quando ele percebeu um tipo de comoção. Eles
entraram numa ramificação, que era estreita e levava apenas a uma parede
de metal. A comoção eram dois guardas que foram abordados pelos
doentes que saíram das celas, os abatendo com armas e facas. Eram armas
normais, e não Elementais. Aqueles homens não possuíam uniformes ou
tecnologia, eles eram o que mais se assemelhavam à descrição de bandidos
de verdade.

Milo sabia que não havia como se envolver, e era melhor que não tentasse.

Ele seguiu Eddie pelo corredor estreito, e Eddie olhou para Milo quando os
dois chegaram até a porta reforçada de metal. Ela possuía uma tranca
tecnológica. Milo resolveu isso da forma antiga: Ele colocou a mão sobre a
tranca, querendo sugar as informações da máquina. Depois que conseguiu,
e nesse momento Milo teve a certeza que ele estava exausto com o seu
poder e provavelmente não iria conseguir utilizá-lo mais, colocou a senha o
mais rápido o possível e a porta se abriu.

Eles passaram e Milo apertou para que a porta se fechasse de novo. Depois,
ele deu um soco na tranca tecnológica do outro lado. Ela quebrou na hora.

- Você trancou a gente. – Eddie comentou de forma débil. Milo olhou feio
para ele.

- Eu nos coloquei num lugar seguro.

Depois disso, Milo passou por Eddie, sem querer estender àquela conversa.
Eles pareciam estar em algum andar no subsolo, cheio de máquinas
quebradas empoeiradas e grandes, fios e painéis de controle. Aquela
construção só podia ter sido algum tipo de indústria que se encontrava
abandonada há muito tempo. Porém, não era possível o quanto já era da
indústria e o quanto havia sido adicionado.

Pela a arquitetura do subsolo ele não parecia ter sido bem planejado. Era
um espaço apenas para os presos? O que explicava todas aquelas máquinas
fora de uso? Será que elas haviam sido realocadas para liberar espaço?
Milo realmente queria compreender, mas estava comprometido com a falta
de informações.

Ele e Eddie estavam próximos. Eddie segurava o garotinho que eles haviam
pegado com firmeza, determinado a carrega-lo. Ele não parecia pesado. O
garotinho pouco se movia com o corpo, apenas os seus traços faciais,
provavelmente sentindo dor. Ele tinha dificuldades em respirar e se
esforçava para isso, lutando contra a morte. Era de cortar o coração ver um
ser tão jovem tão machucado. Milo entendia porque Eddie queria ajuda-lo,
mas ainda assim...

Não fazia diferença.

Então eles ouviram vozes. Milo apontou para Eddie se esconder atrás de
um contentor de metal enferrujado, e Milo se agachou atrás da máquina
mais próxima. Nenhum dos dois, felizmente, foi percebido pelas vozes.

- A entrega de hoje já saiu. – uma voz masculina comentou, parecendo


irritado. – Só esse setor de merda que não consegue nada.

- Caralho Rodrigo, você só reclama, reclama, reclama. Vai fazer algo útil,
cara. – outro homem rebateu que Milo não podia ver.

- Fazer o quê, cara?! Não vê que nós estamos condenados aqui?! A gente
fica preso aqui em baixo, catando sucata, abrindo buraco enquanto os caras
fazem coisas grandes lá em cima e recebem o suficiente para isso.

- Olha, - o homem deu uma pausa, soando em tom de aviso. – ‘Tu não
virou um Caçador, problema seu. Eu ‘to aqui porque alguém tem que fazer
o serviço, e eu faço direito. Se estiver tão insatisfeito, é só falar com
Deimos.

- Vai se fuder, Nando, você é um bosta mesmo. – o tal de Rodrigo grunhiu


em resposta. – Você não vê? Fobos enlouqueceu depois da morte da Têmis!
Ela ‘tá punindo a gente quando nos coloca nessas tarefas de bundão. E eu
fui o filho da puta que ficou preso com você dessa vez.
Milo arregalou os olhos ao ouvir o nome de Têmis.

- Vai ter um dia que você e todos os filhos da puta do Deimos vão engolir
as palavras de vocês. E eu vou estar lá, para rir da cara de cada um.

- Ah tá, no dia que descobrimos a tal da Cidade dos Mortos. Muito bom,
parabéns! Você já passou no curso anual de maior trouxa do mundo!

Antes de o tal Nando poder responder, Milo ouviu um ruído de rádio.


Nando deve ter atendido o seu comunicador pelos barulhos que se
seguiram, e logo Milo pode ouvir uma terceira voz com estática e com
qualidade péssima, porém, sendo um Legado da Sabedoria ele conseguiu
distinguir as palavras de qualquer forma.

- Nando, Rodrigo, o bicho tá comendo aqui! Os prisioneiros da ala de vocês


conseguiram se soltar que nem uns bichos de manada, e os outros estão
fazendo o mesmo! Vocês precisam subir imediatamente!

Milo pode ver de onde estava, que os dois homens trocaram um olhar tenso
de pura confusão.

- Entendido. Nós já estamos indo. – Nando foi quem respondeu, desligando


o comunicador. Eddie trocou olhares com Milo nesse momento, sem se
mover de onde ele estava.

Porém, os dois homens começaram a andar. Eles eram os únicos naquela


área espaçosa. Quando Milo percebeu que eles passariam ao lado da
máquina que estava escondido, muito provavelmente seguindo para a porta
que Milo havia acabado de trancar, o clone pensou e reagiu rápido. Ele
correu até o esconderijo de Eddie abaixo, da forma que fizesse menos
barulho o possível.

Os dois homens estavam agitados para sair e, ainda assim, longes da


presença de Milo. Por isso eles não notaram o movimento. Milo e Eddie
circundaram o contentor, completamente seguros de serem notados pelos
homens, mas por pouco tempo. Eles iriam chegar até a porta, e quando
chegassem...

- Como nós vamos sair? – Eddie murmurou para Milo. Milo tentou
processar todas as informações o mais rápido o possível, para criar uma
solução.
- Deve haver outra porta por aqui. – Milo começou. – Mas... Nós não
podemos ser pegos.

- Isso parece impossível.

- Vamos nos separar...

- Milo—

Eddie começou a protestar.

- É o único jeito. Se tivermos que lutar, vai ser melhor que afastemos os
dois. Vamos nos esconder, e depois que nos livrarmos deles, vamos
procurar a outra porta.

- Não é mais fácil simplesmente atacarmos agora?

Como sempre. Milo esperava aquela pergunta dele.

- Não se eles estiverem armados. E não quando temos esse garoto


dependendo da gente. Procure pela a outra porta. Se você achar, só precisa
pensar sobre isso que eu vou saber.

Antes de Eddie poder protestar mais um pouco, como ele costumava a


fazer, Milo se levantou e se afastou dele, emaranhando-se em outra área
daquele subsolo, podendo observar de perto as máquinas nesse momento.
Elas estavam abertas. Eram como corpos que haviam sido abertos para a
necropsia, mas que nunca foram fechados. Não havia nada por dentro
delas, nada que Milo pudesse ver.

- Essa porra tá quebrada! – Milo pode ouvir a voz de um dos homens


gritando pelo recinto. Ele se escondeu nesse momento, embrenhando-se ao
máximo no breu. – Eu não acredito nisso. ‘Tava funcionando normal
quando entramos.

- Isso não pode ter quebrado desse jeito sozinho. Até o vidro quebrou. Eu já
vi isso antes. Parece que alguém socou o negócio.

- Não vem me acusar dessa porra não, Nando! – o tal de Rodrigo exclamou
ofendido, andando ao lado de Nando.
- Eu não estou. – Nando foi objetivo na resposta, olhando ao redor. Ele era
perceptivo. Milo teve que se convencer que Eddie havia se escondido
direito. – Tem mais alguém aqui.

- Tá maluco? Como é que iriam entrar sem a gente saber?! Cala a porra da
boca e ‘vamo dar a volta, vai. Eu não acredito que essa merda tá
acontecendo, logo hoje.

Milo podia ver que o Rodrigo passou a andar na direção contrária a que ele
estava nesse momento, porém Nando hesitou. Ele demorou em seguir o
outro. Ele estava desconfiado e isso era visível. Milo tateou pelo chão ao
redor de si, porém não achou nada de útil.

Nada de útil até ver uma alavanca de metal jogada próxima à máquina ao
lado. Iria servir muito bem. Ele foi até ela, pegando-a do chão em seguida,
ainda dentro do escuro favorável daquela parte. Nesse momento, uma tosse
sofrida e infantil ressoou pelo local, chamando a atenção ao cortar o
silêncio anterior. Milo arregalou os olhos. Era o garoto. Ele deveria estar
tossindo sangue.

Ah não.

- Você ouviu isso? – Nando exclamou, e agora Milo só podia ouvir as suas
vezes. – Tem alguém aqui.

- Não, cara, puta que pariu!

Milo só pode reconhecer um par de passos vindo à direção em que ele


estava. Merda! Ele e Eddie estavam próximos! Milo precisava fazer alguma
coisa, pois ele possuía mais vantagem do que Eddie. Seus dedos haviam se
apertado ao redor da superfície da alavanca quando ele começou, pelos
lados, seguir a direção do som dos passos, aproximando-se gradualmente
fazendo o máximo que ele podia para não fazer barulho.

Ainda havia apenas um par de passos. Isso era bom. Milo podia lidar com
apenas um homem facilmente. Ele se colocou atrás de uma máquina de
porte menor, e pode ver a silhueta do homem que deveria ser Nando, sobre
a luz. Ele era alto, branco e tinha cabelo longo castanho. Ele estava de
costas para Milo, olhando para os lados desconfiado. Seguia reto,
parecendo ter um caminho em mente.
Como se já tivesse visto o quê fazia barulho e ia à direção disso. Todos os
alarmes soaram na cabeça de Milo nesse momento, e ele não perdeu tempo.
Passou pelas máquinas com uma velocidade maior, agora correndo alto
risco de causar barulho. Ele precisava arriscar. Pelo menos sabia que Eddie
estava ali para o ajudar se precisasse – e pelos seus cálculos, o outro
homem, Rodrigo, demoraria mais para chegar até onde ele estava do que
Eddie demoraria para pegá-lo. Isso contando com os poderes dele.

Nando o ouviu. Ele se virou para ver a causa do barulho, mas era tarde
demais. Milo já havia chegado até onde ele estava, e não pensou duas vezes
antes de erguer o braço no ar e o descer, utilizando de toda a pressão, a
gravidade e a força para conseguir descer seu braço na direção do crânio do
homem e acertá-lo em cheio. Um barulho alto de osso quebrando pode ser
ouvido quando Milo o acertou. Milo precisava ter certeza de que ele não
iria se mover depois daquela batida.

Não pretendia mata-lo, apenas causar danos sérios.

Milo ergueu o braço novamente, agora numa distância menor, pois tinha
que ser mais rápido do que uma suposta reação do homem, e bateu
novamente com a mesma força. Essa foi o suficiente: Ele finalmente caiu
no chão, perdendo a consciência logo em seguida.

Milo pode olhar na direção em que ele estava anteriormente.

Havia uma porta de metal e automática na sua frente, sem trava eletrônica.

Eu consegui passar por uma porta!

Quando Milo ouviu esse pensamento de Eddie, ele não pensou duas vezes
antes de correr para aquela porta e passa-la. Foi só quando a porta fechou
atrás de si com um barulho alto de metal sendo fixado após ser movido, que
Milo notou que parecia ter entrado num tipo de túnel e que, por sorte,
Eddie não estava ali.

Que... Porta?

A porta em que o cara 1, que falava para cacete, estava parado na frente.

Oh ótimo. Então realmente havia como sair. Não só por uma porta, mas por
duas. E Eddie havia acabado de dar a volta e ir pela a outra.

Eles estavam separados.


Quase que imediatamente Milo se virou na direção da porta para sair
daquele caminho que não parecia ser nada seguro. Porém, a porta não se
abria mais. Milo bateu nela, mesmo sabendo que não adiantaria nada. Ele
estava preso, e tinha total certeza que não era porque a porta estava com
defeito.

Algo estava o prendendo ali.

Milo?

Eddie soou na sua cabeça. Milo realmente havia ficado sem palavras
naquele momento. Sentia o sangue ferver em raiva, uma raiva pura que ele
nunca sentiu antes, e ao mesmo tempo teve que controlar o corpo para não
tremer em medo, e controlar a mente para não fraquejar. Nenhum desses
sentimentos podiam o atrapalhar de fazer o que ele precisava fazer para
continuar.

Parar ali não adiantaria de nada. O problema era que seus sentimentos
pareciam ter crescido duas vezes mais do que antigamente, e realmente
estavam intervindo em seu pensamento lógico. Era mais que agoniante. Era
uma tortura, quase.

Tinham duas portas.

Milo respondeu Eddie mentalmente.

E eu entrei na errada. E por acaso estou preso.

Eddie gritou em resposta. Milo esperava a resposta, mas a cabeça dele doeu
do mesmo jeito. Eu não posso parar. Milo virou-se na direção do corredor
pelo túnel à sua frente, com luzes vermelhas e esverdeadas que se
misturavam no ambiente pequeno. Em tudo isso, a única certeza de Milo
era que ele odiava lugares pequenos com todas as suas forças, e se pudesse
só ficaria em espaços abertos.

Estava cansado de se sentir preso e encurralado.

Milo seguiu pelo túnel claustrofóbico, tateando pelas paredes para ter
certeza que elas eram reais. Até agora, não haviam se dobrado ou se
aproximado para esmaga-lo. Milo não podia acreditar. Muito menos
abaixar a guarda. Ele conhecia aquele tipo de movimento, e sempre
significava uma só coisa.

Um só tipo de influência de um só tipo de entidade.

Milo não achou seguro correr logo de primeira. Ele não confiava em nada,
nem em si mesmo. Estava numa armadilha, e realmente não podia pisar em
falso. Ele não fazia ideia para onde Eddie havia ido, para onde estava indo,
ou se iria sequer chegar a algum lugar. Era desesperador o suficiente. Por
sorte, Milo não se alterada pela temperatura do túnel ou pelo ar viciado e
corrompido, assim que seu corpo se adaptava à temperatura do ambiente
que estava e não precisava respirar.

Ele era quase um réptil, sim. Mais do que humano, de qualquer forma.

As paredes do túnel eram lisas. Lembrava Milo de túneis de escape durante


as guerras, ou os bunkers em si. Mas ele tinha certeza que aqueles túneis
não foram feitos para se levar refugiados, mesmo que não soubesse para
quê servia os túneis realmente.

Aquilo era nojento, de certa forma.

Era nojento o jeito que Milo estava acostumado com o tipo de situação,
mesmo odiando. Para ele seria muito mais estranho, e difícil de lidar, se ele
estivesse do lado de fora da indústria. Se fosse jogado novamente no mar
de pessoas na cidade grande. Aquela vida real e mundana realmente não o
pertencia.

O que o pertencia eram aqueles tipos de situações em que ele já estava


familiarizado com todo o sofrimento, com toda a luta para sobreviver e o
fato de ser preso. Era fácil compará-lo com um animal que nasceu em
cativeiro, e repentinamente era jogado na vida selvagem novamente.
Nesse momento, Milo estava lidando com algo que ele já conhecia. Quando
ele estava livre, livre como Eddie queria estar, Milo estava afogando em
águas que ele era ignorante sobre, não por querer. Não por conta própria.

E todo esse pensamento causava asco em Milo. Asco dele mesmo, da


aberração que ele era e os problemas que causava.

Milo conseguia entender porque os três haviam parado ali. Aquele era um
dos negócios dos Primórdios, além do Complexo. Era uma indústria de
entrega e busca para o Mercado Negro. Milo só não sabia o que era o
principal: A entrega de mercadoria ou a busca de mercadoria. Legados
demoravam mais para morrer, porém eles ainda eram humanos e sofriam
de doenças como os outros. Milo só não entendia porque eles simplesmente
não os matavam em vez de mantê-los presos.

Talvez eles fossem reutilizados depois, tanto como mortos ou vivos. Milo
não tinha como saber. Aquele muito poderia ser o serviço de entrega que os
Primórdios tinham para sequestrar e espiar Legados, mas Milo estaria
sendo ingênuo se achasse que fosse apenas isso. Ele tinha muita
experiência com os Primórdios para saber que eles não se contentam ao
receber um resultado, e sim todos os resultados de todas as variantes
possíveis. Expansão é a alma do negócio, por isso que existem tantos
Complexos pelo mundo.

Porém, de uma coisa Milo tinha certeza: Os Legados eram o maior


comércio dos Primórdios.

Milo não tinha previsão de quando ele poderia parar de andar. O túnel
estava começando a mostrar indícios de caminhos diferentes, mas ainda
faltava para Milo conseguir virar em alguma direção. A essa altura, era
mais que óbvio que Milo não iria se deparar com uma armadilha mortal, e
por isso ele apressou o passo.

Ele só queria sair dali o mais rápido possível.

Milo ainda tinha a alavanca em mãos. Obviamente não iria se desfizer do


único item que o proveria um pouco mais de segurança. Um pouco mais
que nada, mas era o que Milo poderia ter no momento. Além do Controle,
suas manifestações não eram ofensivas e por isso Milo não podia se
arriscar muito em combates corpo à corpo como havia feito da última vez.
Porém, Milo estava preso às circunstâncias, que nunca estavam do seu
lado.

Milo possuía o Controle, que era uma manifestação muito forte, mas nesse
momento ele tinha certeza que não conseguiria utilizá-lo mais. E para
conseguir isso, ele precisava se aproximar da vítima e ter certeza que ela
não iria quebrar o contato. Naquele tipo de situação, era uma manifestação
inútil e Milo tinha plena consciência disso.

Ele usaria de outros meios, afinal não era super inteligente à toa.

Surpreendentemente, Milo não teve nenhuma visão que o faria duvidar seu
conhecimento de realidade como achou que teria durante toda a caminhada.
Ele chegou à primeira curva que o túnel fazia depois de muito tempo ali
dentro, e virou à direita. Era a segunda vez que ele virava à direita. Porém,
sentiu-se mais inclinado a fazer isso, e obedeceu afinal alguém que deveria
chutar certeiro deveria ser um Legado da Sabedoria.

Dessa vez a caminhada foi mais rápida. Milo pode ver uma porta no final
de um curto corredor após ter virado à direita, e foi para lá que ele foi.
Correu até a porta, vendo outra trava tecnológica. Leu o conhecimento por
dentro da máquina, e digitou a senha correta em seguida. A porta abriu-se
vagarosamente, como se estivesse enferrujada após anos de uso.

Milo saiu em um corredor. Era igual ao que estava antes, ao sair da cela. A
confusão que sentiu foi extrema. Realmente não sabia como se localizar ali
dentro. Havia dado à volta? Não tinha como saber. Era até pior que o
Complexo. Reno, provavelmente, iria querer fazer alguma tese sobre o fato
dos Primórdios sentirem fetiche por corredores.

Pensar nisso fez o coração de Milo doer ao se lembrar de que Reno estava
preso em algum lugar daquela construção horrível e estava correndo perigo.
Não que Milo tivesse esquecido, apenas tornara mais evidente do que já
estava.

Estar sozinho naquele corredor aberto rendeu um senso de perigo dez vezes
maior para Milo do que no túnel. Não havia diferença nenhuma entre os
lugares, e ainda assim. Milo não fazia a menor ideia se ainda iria conseguir
encontrar Eddie, mas pelo menos ainda estava na indústria. Ou pelo menos
parecia estar na indústria.
Não haviam curvas a se tomar naquele corredor, ele era amplo e seguia
reto. Por isso, Milo não teve para onde correr quando um homem apareceu
no seu campo de visão.

Ele paralisou onde estava.

- Ei! – o homem exclamou. Ele possuía uma arma entre os dedos, apontada
na direção de Milo. – Que merda ‘cê acha que tá fazendo aqui, garota?!
Você fugiu da cela, não fugiu?!

Milo teve que pensar muito rápido.

- Por favor, não me machuque. – Milo apenas não chorou porque ele não
produzia lágrimas, porém a sua expressão era mais sofrida do que a de
choro. Sua voz quebrou e saiu no meio de uma respiração, como se ele
estivesse com tanto medo que não conseguia nem arranjar forças para falar.

Ou melhor, ela.

O homem arregalou os olhos em reação. Levou um instante inteiro de


silêncio para que ele conseguisse digerir a ilusão à sua frente. Milo pode
notar como os dedos dele dançaram, perdendo a firmeza de antes, ao redor
do metal da arma. Era algo imperceptível, mas causou um sorriso interno
ao clone.

Ele já sabia que aquilo seria fácil.

- Você não deveria estar aqui. – o homem vociferou, tentando cobrir a sua
recente alteração. A arma ainda estava apontada para Milo. – Derruba essa
porra que você tem na mão. Eu não sou idiota. Eu atiro em você se fizer
alguma gracinha!

Milo continuou no personagem de pura garota assustada, colocando a


alavanca no chão. Ele precisava fazer mais para convencer, e sabia disso.
Era um jogo de tudo ou nada. Por isso, de forma arriscada, ele abaixou o
rosto, deixando o cabelo cair para frente, cobrindo parcialmente o seu
rosto.

- Merda! – o homem exclamou, e ele já parecia ligeiramente mais perto. –


Me responda caralho!

- Por favor, não me mate! – Milo exclamou baixo. Ele tampou o rosto com
as mãos, fazendo seus ombros tremerem junto com os dedos. – Eu só
queria... Eu só quero... Por favor, não me leve de volta, moço... – Milo
afastou as mãos do rosto, mas não o suficiente. Ele forçou um soluço,
mesmo que nenhuma lágrima estivesse rolando no rosto. Se ele fingisse o
sofrimento bem o suficiente, o cérebro humano do homem iria
automaticamente acreditar que o rosto dele estava úmido. – Eu não estou
doente...

O homem pareceu ter sido ainda mais atingido do que antes.

- Você... Você... Você não está doente... – o homem hesitou. – Puta merda!
Por que diabos você se parece com a boneca nova do filho da puta do
Deimos?

Milo teve que ter todo o autocontrole do mundo para não mudar de
expressão e quebrar o seu teatro quando entendeu a frase do homem. Não
havia dúvida. A “boneca” que o homem acabou de se referir era Reno. Por
isso Milo se parecia com ele. Milo sentiu a raiva crescer ainda mais,
quando achava que era impossível, ao considerar a ideia de Reno ter sido
envolvido num tráfico de, literalmente, bonecas sexuais.

Alguém iria morrer por isso.

- Foda-se essa merda. – o homem grunhiu, ainda com a arma apontada para
Milo. – Você vem comigo. Sem gracinhas. Eu vou te levar para Deimos, e
ele sabe o que fazer com você.

- Não! – Milo sabia que esse o momento em que mostrava um pouco de


resistência. Antes de o homem ter tempo de oprimi-lo, Milo continuou: -
Por favor, me pegue para você.

- O quê?!

- Ajude-me! Por favor, fique comigo! Eu estou com muito medo. – Milo
fungou. – Por favor, fique só comigo. Eu não quero ir para mais ninguém...

- Garota, e o que te garante que eu não vou explodir seus miolos, sua
louca?

Heh. Ele estava interessado.

- Você não me matou até agora... – Milo murmurou. Ele pode notar como o
homem se aproximava lentamente, como se estivesse sendo atraído. Ele
estava. – Eu preciso confiar em alguém... Por favor, eu só quero que fique
comigo... Nós não precisamos fugir... Mas eu preciso de alguém...

O homem ficou ofegante. Ele era o significado do conflito interno nesse


momento. Milo era persuasivo. Isso era um fato, causado por Tártaro. A
sua aparência também entrava nisso. Ele era uma estratégia de Tártaro para
vencer de forma mais fácil, um método mais rápido. Milo sabia de tudo
isso, e sabia bem que, quando utilizava dessa habilidade, estava fazendo
exatamente o que Tártaro queria para si.

Estava seguindo os passos do seu criador.

O homem estava tremendo quando colocou a arma contra a têmpora de


Milo, muito próximo de si para isso, tendo a mesma altura que o garoto. A
respiração erradica dele bateu no rosto de Milo, o enojando. Ele parecia
engolir a imagem de Milo com os olhos, como se não conseguisse acreditar
cem por cento que Milo existia. Ele estava fascinado.

E perdido.

Milo sentiu a textura fria da arma contra as mechas negras do seu cabelo,
chegando de forma firme à sua pele. Um movimento súbito e o homem
atiraria em seu ponto fraco. Porém, nesse momento, Milo não sentia medo.
Ele não sentiu o senso de perigo de antes, e nem o desespero de conseguir
resolver aquela situação rápido.

Milo era como água gelada.

- Eu vou te pegar para mim então.

Milo sorriu.

Foi um momento muito rápido. Ele levou uma mão até o rosto do homem,
e depois disso o homem perdeu a consciência. Milo teve que dar um passo
para o lado para não ter que segurar o corpo, deixando-o cair com um
barulho alto. Os olhos dele se encontravam brancos: Pura retina, sem mais
nada.

Ele parecia morto. Como se a vida dele tivesse sido sugada.

- Milo?!
Milo arregalou os olhos ao ver Eddie no mesmo corredor, completamente
assustado com a cena. Isso o forçou a voltar à realidade. Milo olhou de
Eddie para o corpo caído ao seu lado, e foi como se o mundo estivesse
girando ao seu redor de câmera lenta. O tipo de exaustão que ele sentiu em
seguida não poderia ser explicado. Como se a vida dele também tivesse
sido sugada.

Milo ficou tão desnorteado, que ele muito provavelmente perdeu alguns
instantes da sua vida.

Porque, quando ele voltou, Eddie estava o segurando, sendo a única coisa
que o impedia de encontrar o chão.

- Que porra que você acabou de fazer? – Eddie questionou, soando super
preocupado. Milo nunca achou que iria se sentir tão feliz apenas por poder
olhar para o rosto dele de novo. Era como se Milo estivesse vendo a sua
humanidade novamente. – Você matou esse cara? Eu cheguei ‘na última
parte e eu não entendi bulhufas.

Milo soltou uma risada quebrada. Oh céus. Histeria. Quando ele a


reconheceu, fechou a cara na hora, se auto repreendendo. Não iria perder
todo o seu valorizado autocontrole. Lutou muito para consegui-lo e se
recusava quebra-lo tão cedo. Eddie parecia desesperado por respostas. Tão
desesperado, que ele parecia estar sentindo dor.

- Eu dei sorte. – Milo murmurou, tentando, ao menos, sentar sozinho. É.


Seus ossos ainda eram gelatina para esse tipo de movimento. Eddie não o
soltou nem por um segundo. – Eu dei sorte porque esse cara era um Legado
do Crescimento. – Milo dizia contra a respiração. – Então eu o fiz se
aproximar o suficiente para que eu pudesse usar o Controle nele. Eu não o
matei. – Milo ergueu os olhos para o rosto de Eddie ao dizer isso, movendo
os lábios lentamente. Ele realmente não tinha muito controle sobre o
próprio corpo nesse momento. – Eu só o sobrecarreguei com trauma
mental. Ele vai ser uma ameba para sempre. – Milo se remexeu. – Melhor
uma ameba do que um estuprador no mundo.

- Okaaay... – Eddie disse. – Eu não sei se eu concordo com os seus métodos


ainda. Mas eu fico feliz que você está bem. E que eu te encontrei.

Milo sentiu-se ridicularmente feliz ao ouvir isso. Era o efeito da histeria. A


exaustão estava o fazendo perder a linha do que era correto e o incorreto, e
tudo estava se tornando uma coisa só. Seus filtros, que o ajudam a manter
na realidade, pifaram nesse momento.

- Conte-me uma notícia boa. – Milo pediu, por conta da histeria.

- Na verdade, é eu tenho notícias boas. – Eddie parecia uma criança de tão


inocente ao contar. – Tipo a notícia que aquele cara deveria ser o último
desse andar, e que eu entrei num tipo de escritório e consegui um mapa. E o
garoto está lá, aliás. Então temos que voltar pegar o garoto e o mapa e dai
podemos... Resgatar o Reno seja lá onde ele esteja. Ok. Não são boas
notícias. Eu repensei todo o meu conceito de “boas notícias” enquanto
falava agora.

Milo ergueu a cabeça do peito de Eddie para poder olhá-lo nos olhos:

- Você achou um mapa?

- Eu achei um mapa.

Milo grunhiu de forma fraca.

- Bom, tá. Mesmo que você não tivesse um mapa, eu iria te seguir. Então
foda-se a essa altura.

Eddie não respondeu. Ele se engasgou com a própria vergonha.

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