Paleari & Gontijo
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Paleari & Gontijo
PENSAR e hermenêutica
gontijo.sandro@gmail.com
Recebido em: 09/08/2021
Aprovado em: 23/11/2021
Fenomenologia da culpa:
da crítica ao modelo metafísico a uma clínica da culpa
1.Introdução
Para o homem grego do século V a.C., a culpa era tida como coletiva, comunitária, já
que não havia, no mundo helênico, a noção de interioridade, tampouco a de subjetividade,
conforme a concepção moderna. Visto não existir a interioridade psíquica, o sentido de
culpa não se apresentava como uma moção contrita interior que acometia o indivíduo. A
própria ideia de um eu autônomo, responsável por si mesmo e individualizado, não estava
presente nas concepções daquele tempo. Em vez disso, os modos de agir que abrangessem
excesso ou ação desmedida eram designados como hamartia, que pressupõe desmesura,
falha ou desvio, pertencendo, porém, a toda a comunidade (FARIAS, 2016). Considerando,
ainda, que os deuses concediam atributos aos homens, a culpa, um desses atributos, não era
entendida, então, como um erro, mas como determinação do destino, ou erro por ignorân-
cia, algo cujos controle e domínio estavam fora do alcance do ser humano (FARIAS, 2016).
Diferentemente do homem moderno, o homem grego trágico desconhece a con-
cepção de liberdade, que implica agir com consciência própria. O grego não luta por sua
autonomia, não goza do livre-arbítrio, tampouco sabe o que é isso; do mesmo modo,
não possui leis próprias que o conduzem individualmente, característica que só seria
assumida, posteriormente, pelo homem medievo-cristão (FARIAS, 2016).
É a partir do processo histórico de interiorização do homem, concomitante ao
surgimento da consciência moral atrelada ao pensamento religioso cristão, que o fe-
nômeno da culpa se consolida. Com o cristianismo surge a cultura da culpa. Segundo
esse campo hermenêutico, foi com a transgressão de Adão e Eva que, biblicamente, se
passou a conhecer a culpa, a desobediência, a violação do que foi estabelecido, ou seja,
o pecado. Os autores diferem em alguns aspectos ao falarem sobre o tema, mas todos
nos levam ao mesmo ponto: uma visão histórica cristã, sob a qual a culpa é articulada a
uma dívida assumida perante uma lei maior (FARIAS, 2016).
Alicerçado no princípio de uma consciência moral que banaliza as possibilidades
de ser do homem, surge um novo medo, o medo de si mesmo. Afinal, quem sou eu que
desejo o que não deveria ser desejado? Através do discurso religioso predominante,
liga-se a culpa ao pecado, às punições coletivas enviadas por Deus e à ideia de que o
Diabo se faz sempre presente. Digno de castigo e amedrontado pelo Diabo, o homem
medievo-cristão se torna responsável por vigiar a si mesmo, tarefa inefável de que se
apropriou a partir do instante em que o mal alvorece no mundo, em seu desacordo com
a ordem divina. E, assim, com a difusão das religiões monoteístas, a noção de culpa toma
contornos mais concretos (SCLIAR, 2007). Todavia, uma
vez que o que é certo já está
determinado, o homem é conduzido a escolhê-lo através da consciência moral: se o faz,
de alguma forma será beneficiado, mas, caso escolha o erro, a culpa surgirá.
trata o ente como se fosse o próprio ser, de modo que este continua velado, não sendo
possível operarmos o desvelamento do ser das coisas (WEBBER, 2014). Quando o ser
é visto como ente, ele é restrito do aí, em outras palavras, é projetado e caracterizado
por algumas propriedades essenciais e assim, então, o ser é esquecido (HEIDEGGER,
2012). O que aparece, portanto, é a procura por compreendê-lo por meio de catego-
rias. Destarte, a metafísica tende a conduzir a interpretações puramente ônticas da
realidade (LOPARIK, 2008) e, como propõe o positivismo, somente a funcionalidade
dos entes é proposta (LOPARIK, 2008). Na fundamentação causal para a finalidade
do ôntico, se estabelece um referencial de busca em que o desconhecido não pode
ser verdadeiramente instituído, já que o ente é visto separadamente de sua interação
com o mundo, desconectado de seus correlatos e de seu campo de mostração.
Podemos perceber essa tradição metafísica encurtada em algumas proposições
contemporâneas sobre as noções de sentimento e de culpa. O conceito de sentimento
é trazido por Scliar (2007, p. 43-44) como “... estado da consciência, colorido pelo
afeto, desencadeado por estímulos externos ou por memórias que nos levam a um
cotejo da situação vivida com normas e ideais que previamente mantínhamos”. Para
Dalgalarrondo (2000), o sentimento é uma categoria afetiva, composto por estado e
configurações estáveis; além disso, é um dos cinco tipos básicos de vivências afetivas,
configurando o afeto como “dimensão afetiva que dá cor, brilho e calor a todas as
vivências humanas. Sem afetividade a vida mental torna-se vazia, sem sabor” (p. 279).
Acrescenta, ainda, que o sentimento se mostra como fenômeno mais mental que so-
mático e, portanto, está relacionado a atributos intelectuais, valores e representações
e, por isso, a codificação de cada afeto depende do contexto e da cultura em que a
pessoa está inserida.
A culpa, para Eisenberg e Valiente (2002), é um sentimento pertencente ao
homem, advindo da reparação das transgressões a normativas institucionais previa-
mente assumidas. Já Ros (2006) fala da culpa como falta de cumprimento dos valores
assumidos por uma pessoa. Sempre calcada no erro, na dívida, na transgressão, a culpa
é permeada por um sentimento faltoso, negativo, de acusação ou autoacusação por um
ato criminoso ou inadequado, real ou imaginário, como aponta Scliar (2007). Collins
(2004), por sua vez, toma a culpa como autocondenação do que a própria pessoa julga
como ação equivocada, ou quando deixa de fazer algo benéfico ao próximo. Maia
(2009), em seus estudos sobre antecedentes motivacionais da culpa e da vergonha,
caracteriza a culpa como um estado de apreensão diante de uma ação ou comporta-
mento, ao passo que a vergonha é a repercussão desse estado de apreensão.
Atrelada à culpa, está, pois, o sentimento da vergonha. De acordo com Scliar
(2007), quando se sente vergonha, o foco está no eu, pois “eu fiz algo que não deveria”;
já na culpa, o foco está naquilo que foi ou deixou de ser feito, “eu fiz algo que não
deveria”. A vergonha aparece quando a pessoa não é aquilo que gostaria de ser. Está
relacionada à visão, depende de uma avaliação alheia: alguém está vendo o que ela
fez de errado e é vergonhoso. Geralmente ocorre de maneira imediata e exige pro-
vidências. A culpa surge quando a pessoa não é como esperava ser. Está associada
a uma forma particular da audição, a audição da voz interior, que permanece com a
pessoa por onde quer que vá, não necessita de audiência. A culpa chega vagarosa e
cronicamente e nem sempre enseja uma ação (SCLIAR, 2007).
Conceitos como os apresentados acima, nos direcionam a uma compreensão
causal da culpa, bem como a um ente preestabelecido, e portanto, objetificado, como
institui a metafísica. Uma vez indicado e discutido o projeto de compreensão me-
tafísica da culpa, nosso próximo movimento é apresentar a proposta propriamente
fenomenológico-hermenêutica para abarcar o problema da culpa.
A hermenêutica teria por função tornar acessível esse caráter, ou, por assim dizer o
Wie, o “como” do Dasein, em seu ser ou, por outras palavras, a compreensão do ser
que lhe é inerente. Daí a interpretabilidade do Dasein como um pressuposto. Inter-
pretar significa explicitar a compreensão subjacente. Mas a explicitação dá-se numa
escala fenomenológica mediante o trabalho e o trabalho do método – que consiste
em fazer com que esse ente, o Dasein, se mostre por si mesmo. (NUNES, 2007, p. 55)
Por ser constitutiva do Dasein, a culpa na esfera ontológica não pode ser erradicada,
de modo que o Dasein, que está sempre sendo, tem que assumir essa responsabilidade.
Portanto, a falta acompanha o Dasein em todos os seus modos de ser, próprios ou
impróprios. Assim sendo, mesmo que o Dasein não tenha feito nada de errado, já há
algo “errado” com ele, uma vez que ser-aí não se autodetermina e não controla o que
lhe é solicitado (WEBBER, 2014).
O Dasein oscila entre os modos próprio e impróprio de ser na sua existência. De
início, e na maioria das vezes, encontra-se no modo impróprio de ser. Nesta condição,
busca a familiaridade doada pelo mundo, tomando para si os sentidos pressupostos
de um cotidiano impessoal (Das man), revelando a condição decadência (Verfallen) –
condição existencial ontológica do ser-aí fático, no qual o falatório, a ambiguidade e a
curiosidade aparecem como os momentos de queda, de não proximidade do homem
com seu ser-próprio, desresponsabilizando-se de si.
É no modo impessoal (impróprio) de ser que o Dasein obscurece a si, já que se
coloca numa posição niveladora em relação ao mundo. Em vez de ir ao encontro de
sua abertura, experimenta o fechamento. Apesar disso, é na impessoalidade que o
Dasein mantém a tranquilidade, mesmo que alienadora, já que foge de seu ser-mais-
-próprio, e as possibilidades estão ocupadas pelos discursos impróprios. Dito isso,
a culpa experimentada a partir do impessoal (Das man) tira a responsabilidade do
Dasein de ter que ser si mesmo a cada vez. Ela é remetida ao âmbito do pensamento
metafísico, apesar de ainda aparecer interpretada e vivenciada como algo incômodo: ao
ser ontificada, passa a ser passível de categorização e aparece de modo relativamente
tranquilizador do ponto de vista existencial.
Feitas essas considerações e estabelecida a análise da culpa a partir da estrutura
do Dasein, podemos nos voltar para a investigação da condição humana revelada
pela culpa e, também, para a perspectiva da compreensão e atuação clínica. Para isso,
partimos de algumas ponderações de Alice Holzhey-Kunz e de Medard Boss, que
consideramos fundamentais para compreensão da culpa em seu modo de mostração
na experiência clínica.
4. Sentimentos de culpa:
contribuições de Alice Holzhey-Kunz e Medard Boss
De acordo com Holzhey-Kunz (2018), o homem, inserido num contexto cul-
tural, social e mesmo individual, vive em busca da “redenção dos pecados”, do que
consigo mesmo. Desse modo, o homem sempre é falta de algo, ele se deve a todo
momento: a criança “deve” ser obediente aos pais, o jovem “deve” cumprir seus afazeres,
o adulto “deve” ser produtivo e eficaz... e, o fiel também “deve” cumprir os preceitos
religiosos, na falta dos quais sente culpa e tem medo do castigo (BOSS, 1977). Boss
(1977) já dizia que o homem está totalmente enfermo frente a seus relacionamentos
com o mundo, frente a si mesmo, às coisas e a seus próximos.
5. A culpa patológica
O que deseja, então, o neurótico? Será que ele também gostaria de se ver livre de seus
sintomas manifestos de sofrimento? Nós nos deparamos aqui com a mais profunda
paradoxia no sofrimento psíquico. Pois a resposta só pode ser sim e não. Sim, na
medida em que ele se sente restrito por seus sintomas e, por isso, tem o desejo de poder
levar uma vida normal, não sobrecarregada por seus sintomas; não, em contrapartida,
na medida em que ele é resgatado em meio a esses sintomas de uma experiência
ontológica, que para ele é tão intangível quanto insuportável e contra a qual ele se
revolta justamente contra esses sintomas. (2018, p. 173)
Ser em meio a riscos é algo complexo e nem sempre vivido pelo ser humano
de modo saudável e suportável. Dessa maneira, pode-se dizer que os sintomas nada
mais são do que uma forma de preservação de si, e todo comportamento, uma forma
de responder às perguntas existenciais, assim como, em termos heideggerianos, toda
ocupação é uma forma de cuidado com o próprio ser. O sofrimento neurótico procura
afastar toda negatividade do cotidiano que favorece a angústia. Para que essa fantasia
se sustente, esse modo de cuidado busca a redução do perigo da existência, preten-
dendo alcançar uma dominação do espaço (ASSIS, 2018). Ainda segundo Assis
(2018), à medida que o modo de ser neurótico suprime a angústia, o paciente acaba
se aproximando da impessoalidade, já que há uma fuga de si mesmo, ocorrendo, aí,
um comportamento de esquiva da condição fundamental, que o faz não assumir a
responsabilidade de ter de lidar com sua existência e, assim, transferi-la para o mundo.
6. Desdobramentos Clínicos
7. Considerações finais
hermenêutica busca se afastar das determinações e abrir caminhos para que o que
vier a cada vez possa ser recebido com liberdade e desprovido de determinações, a
fim de que a culpa ôntica possa ser reconduzida à culpa ontological e ser assumida
como simples constituinte do Dasein.
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