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A Política Contra o Vírus

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Sumário

Introdução: A arte de recuar para avançar


1. costuras e assinaturas
2. a estratégia genocida
3. retratos do desgoverno
4. o tabuleiro de xadrez
5. no ringue da política nacional
6. a temperatura não para de subir
7. bacalhau e ópera-bufa
8. corações, mentes e likes
9. a política contra o vírus
Agradecimentos
Sobre os autores
Créditos
INTRODUÇÃO

a arte de recuar para avançar

“Randolfe, você sentaria a uma mesa com Flávio Bolsonaro?”,


perguntou Rodrigo Pacheco, à queima-roupa. À improvável
pergunta seguiu-se uma imediata e ainda mais improvável resposta:
“Sim”. Mas é preciso recuar um pouco para que o episódio ganhe
sentido. Afinal, no início de 2021, nossos parâmetros de
normalidade pareciam estar suspensos.
No dia 13 de fevereiro, sábado de Carnaval, o Recife acordou
sem os clarins do Galo da Madrugada. Em Macapá, na terça-feira,
dia 16, pela primeira vez em 56 anos, o povo não viu A Banda
passar. A maior festa popular do Brasil foi silenciada pelas medidas
de isolamento social adotadas por prefeituras municipais e governos
estaduais e pela marca de mais de 230 mil vidas que a covid-19 já
havia ceifado até então, segundo atestavam as contagens oficiais.
Naquele momento, a pandemia no país estava sem controle. A
insuficiência de vacinas e a lentidão na aplicação das poucas doses
disponíveis davam contornos desesperadores à situação. Do
cercadinho montado para apoiadores no Palácio da Alvorada,
ignorando a escalada assombrosa das mortes, o presidente da
República tratava a doença por “gripezinha” e fazia exercício ilegal
da medicina ao prescrever tratamento precoce e remédios
ineficazes no combate ao vírus.
A postura pessoal de Jair Bolsonaro foi logo transposta para a
administração pública. O governo federal, moldado à sua imagem e
semelhança, portava-se diante da grave crise sanitária com a mesma
irresponsabilidade com que o chefe do Executivo lidava com a
doença.
Seja por ações escandalosas, como a distribuição de vermífugos
para eliminar um vírus, seja pela inação deliberada, como a recusa
em adquirir vacinas, o Planalto deixava claro que não iria recorrer a
meios científicos e ortodoxos para tratar a questão. Norteado por
um curandeirismo obtuso e pela crença em teses fantasiosas
sustentadas por um gabinete paralelo ao corpo técnico do
Ministério da Saúde (ms), Bolsonaro deixava claro que o governo
tinha por meta fomentar a proliferação da covid na certeza de que a
contaminação em massa levaria à imunização dos brasileiros. “Eu
tive a melhor vacina: o vírus” era o entendimento que orientava o
presidente.
Assustados com a postura de Bolsonaro e com uma realidade
cada vez mais dramática, diversos setores da sociedade começaram
a buscar soluções não convencionais para o problema, como
pressionar o Congresso Nacional pela aprovação de leis que
permitissem a compra de vacinas por empresas, associações
profissionais e outras instituições privadas.
Muitas dessas propostas, contudo, escondiam, sob o manto da
boa ação, empresários que pretendiam vacinar antecipadamente
seus trabalhadores para a imediata volta à atividade das próprias
empresas, paralisadas pelas medidas de confinamento. Outras
aproveitavam o momento para tentar instituir novos marcos legais
que favorecessem lucros a determinados segmentos pela
comercialização de imunizantes. Eram medidas que, se aprovadas
da forma como foram pensadas, alargariam o fosso social brasileiro
em plena pandemia, privilegiando a vacinação de elites em
prejuízo dos mais pobres e vulneráveis.
Nem todo mundo, no entanto, compartilhava dessa visão estreita
e oportunista. Como muitos de nós no Congresso, figuras de relevo
na sociedade pensavam numa solução coletiva para o Brasil e
estavam empenhadas em propostas não excludentes, que pudessem
salvar os brasileiros como um todo daquela tragédia humanitária
sem precedentes na nossa história.
No começo da noite de 17 de fevereiro de 2021, Quarta-Feira de
Cinzas de um Carnaval que não houve, um surpreendente
telefonema sopraria os ventos de novos rumos na corrida por uma
ação decisiva do parlamento que pudesse ajudar o Brasil:
“Senador Randolfe? Aqui é Luiza Trajano. Precisamos encontrar
uma maneira de destravar o processo de vacinação da população.”

Desde o segundo semestre de 2020, muitos dos maiores


empresários brasileiros acompanhavam, preocupados, o fato de que
a negociação de grandes laboratórios para a venda de vacinas contra
a covid-19 estava emperrada no Ministério da Saúde. O governo
alegava que o ponto de maior conflito para a aquisição das vacinas
era a cláusula constante dos contratos que eximia juridicamente os
laboratórios de responsabilização civil ou criminal por efeitos
adversos dos imunizantes aplicados na população. Ou seja,
nenhum laboratório poderia ser acionado judicialmente caso
alguém, por exemplo, ficasse com sequelas ou mesmo morresse por
causas associadas à vacina.
Essa cláusula era comum a todos os contratos que laboratórios
como Pfizer/ BioNTech e Johnson & Johnson, produtora da vacina
Janssen, tinham realizado com diversos países, como Estados
Unidos, Inglaterra, Israel e membros da União Europeia.
O Ministério da Saúde classificava o dispositivo como “cláusula
draconiana” e dizia recusar a assinatura de contratos que o
contivessem. Mas, para a aquisição da vacina indiana Covaxin, a
mais cara entre todas as cotadas pela pasta, não houve obstáculo à
previsão do artigo num acordo assinado ainda em 2020, que jamais
chegou a ser cumprido porque revelou-se o epicentro de um
escândalo bilionário de corrupção.
Em sua cruzada negacionista e anticiência, Bolsonaro
aproveitava a divergência contratual sobre a não responsabilização
dos laboratórios para incutir medo no povo sobre a imunização. “Se
tomar vacina e virar jacaré, não tenho nada a ver com isso”, disse o
presidente em 17 de dezembro de 2020. “Se nascer barba em
alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles [os
laboratórios] não vão ter nada a ver com isso”, reforçou ele.
Poucos dias depois das investidas de Jair Bolsonaro contra as
vacinas, o Planalto enviou ao Congresso Nacional, em 6 de janeiro
de 2021, uma medida provisória regulamentando a compra de
imunizantes e insumos relacionados. O texto, aprovado em 23 de
fevereiro, foi relatado pelo deputado bolsonarista Pedro
Westphalen, do Progressistas gaúcho, e saiu na medida do que
queria o governo.
No começo de janeiro, estivemos com alguns membros do
Congresso em uma reunião com representantes da Janssen em que
a questão da cláusula foi abordada. Eles nos informaram que a
Pfizer também passava por dificuldades semelhantes na negociação
com o Ministério da Saúde. Entre as emendas que foram
apresentadas à chamada mp das Vacinas, havia uma que
contemplava justamente a aceitação da cláusula mencionada, o
que destravaria os contratos de compra das vacinas da Pfizer/
BioNTech e da Janssen. Por ser de autoria de um conhecido
membro da oposição ao governo — o senador da Rede que é
também um dos autores deste livro —, a emenda foi rejeitada pelo
relator.
Com isso, o Brasil ficaria de fora da compra de duas das
principais marcas de imunizantes, em um cenário mundial em que
a produção ainda era muito escassa e disputada. Para evitar que o
país fosse excluído do mercado e retardasse ainda mais a aquisição
de vacinas, restava apelar ao presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco, para que o assunto fosse tratado com mais interesse pela
Casa e no mais alto nível político. Eleito para o cargo também com
o apoio do Planalto, Pacheco era sensível ao tema, mas vivia se
equilibrando nas cordas para acomodar as demandas que recebia,
muitas delas conflitantes.

Aos setenta anos, Luiza Trajano é uma das mulheres mais ricas
do Brasil, com uma fortuna avaliada em 1,4 bilhão de dólares
segundo a revista Forbes. A Time a aponta como uma das cem
pessoas mais influentes do mundo. Presidente do Magazine Luiza,
ela comanda uma rede de quase mil lojas em todo o país, que
emprega mais de 47 mil pessoas, além de ter uma forte presença no
comércio eletrônico. Em 2021, ano mais trágico da pandemia, seu
patrimônio encolheu em dois terços com a queda de 70% no valor
das ações da gigante varejista.
Mas, no telefonema de 17 de fevereiro daquele ano, a
preocupação de Luiza Trajano era outra. A empresária estava
particularmente empenhada em saber o que poderia ser feito para
que o veto do relator da mp fosse contornado. Como Rodrigo
Pacheco levava o tema em banho-maria, Luiza Trajano chamou
para si a responsabilidade de aumentar a fervura para encontrar
uma solução que abrisse o Brasil à entrada expressiva de vacinas. A
paulista foi ao mineiro e pediu a ele que desse atenção à emenda de
Randolfe e o procurasse para uma conversa.
Poucos dias depois, em 22 de fevereiro, o redator da emenda foi
convidado para uma agenda na residência oficial do presidente do
Senado, que havia considerado o texto muito bom. Lá ocorreu uma
reunião virtual com representantes da Pfizer, da Janssen, da
Interfarma e do Sindusfarma.
Não era a primeira vez que se tentava uma articulação parecida.
Um convite anterior, feito em janeiro e sem a participação do
presidente do Senado, havia sido recusado pela Pfizer. Isso porque
a empresa avaliou que a negociação com o ms poderia se tornar
ainda mais difícil se um representante do laboratório aparecesse
junto a um senador de oposição. A realidade mostrava que eles não
poderiam estar mais certos.
Naquele 22 de fevereiro, durante a reunião na residência oficial
do presidente do Senado, houve uma convergência para a ideia de
que o meio mais seguro de garantir a aprovação do dispositivo era a
apresentação de um projeto de lei específico para esse fim, em vez
da proposta de uma emenda à mp. Pacheco ouviu a proposta e não
se opôs.
No final do encontro, ele abdicou de falar com a imprensa e
partiu para o Ministério da Saúde com a finalidade de tratar
diretamente do assunto e avisar que estava dando seu apoio político
e pessoal à iniciativa. Naquela mesma semana, técnicos da pasta e
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já haviam se
manifestado cobrando pressa por parte do governo na celebração
dos contratos de compra das vacinas.
Na época, o ministério era comandado por Eduardo Pazuello,
general de divisão da ativa, terceiro ministro a ocupar a pasta em
plena pandemia. Terminada a reunião, Pacheco conversou com
jornalistas ao lado do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente
e um dos articuladores políticos do governo, o que demonstrava
que o Planalto já havia encontrado uma maneira de interferir no
processo, mas nós, da oposição, ainda não sabíamos o que estava
em questão.
Os bastidores só vieram à luz no cair da tarde. Em uma conversa
no seu gabinete, Rodrigo Pacheco confidenciou a colegas que a
ideia do projeto de lei para expandir a vacinação causara “um
ciúme danado” no governo e em sua base política no Congresso,
sinalizando que, se a autoria fosse creditada a um senador da
oposição, o presidente da República trabalharia contra a sua
aprovação e, caso fosse aprovado, ele o vetaria.
Becos aparentemente sem saída como esse só podem ser
vencidos com política, negociação e a consciência de que, às vezes,
é preciso atrasar um pouco o passo para que o ganho seja maior
logo à frente. Recuar não é fugir.
Dada a gravidade da situação, era preciso tornar real o
impensável. Para não colocar em risco a aprovação do dispositivo, a
autoria do projeto foi oferecida ao próprio Rodrigo Pacheco. Foi
naquele contexto que o presidente do Senado propôs um encontro
entre Flávio Bolsonaro e um dos mais contundentes adversários do
governo. A reunião ocorreu na residência oficial do Senado, com a
participação de técnicos da Anvisa e do ms, de Elcio Franco, o
número dois da pasta, e do senador Flávio. Em clima de
cooperação e sem qualquer animosidade, o projeto foi revisado até
que estivesse pronto para ser apresentado ao plenário pelo
presidente da Casa.
No dia 24 de fevereiro, o projeto foi aprovado pelo Senado.
Aquele destravamento garantia ao país ao menos 100 milhões de
doses de vacinas para atender aos brasileiros.
Com a nova lei, o Congresso driblou a pesada investida de
grupos empresariais privados interessados na compra de vacinas
para aplicação exclusiva no seu quadro de funcionários, criando
ilhas de privilégios no Brasil e ferindo de morte o Sistema Único de
Saúde (sus). Tudo com o apoio entusiasmado de Bolsonaro, que,
sem querer desembolsar dinheiro do governo federal para
universalizar a imunização, chegou até mesmo a incentivar uma
proposta da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e
Equipamentos (Abimaq), um sindicato de patrões, para a compra
de 33 milhões de doses, enquanto o Ministério da Saúde dificultava
a realização dos contratos para a vacinação pública.
A postura de Luiza Trajano foi, além de republicana, uma marca
que a distinguiu de muitos empresários brasileiros. A
responsabilidade social e a altivez política com que agiu ao buscar
Rodrigo Pacheco surtiram um efeito imediato. Graças a esse
movimento, foi possível romper as resistências dentro do governo e,
certamente, assegurar a vida de milhões de brasileiros, salvos da
covid pela chegada das vacinas.
Nos dias em que estivemos na linha de frente da Comissão
Parlamentar de Inquérito (cpi) da Covid, desvendamos fatos
aterradores, revoltantes, tratativas não republicanas que se
refletiram na vida de cada cidadão e cidadã, mas também
presenciamos gestos de enorme grandeza, que, no final das contas,
são portas abertas para a boa política.
A intervenção da empresária Luiza Trajano em defesa das vacinas
não foi o único dos fatos extraordinários que vivemos em torno da
pandemia e da cpi. A própria comissão foi fruto de um arranjo de
contrários que só a política, que pressupõe diálogo e busca de
consenso mínimo, permitiria. Pela primeira vez na história, a cpi
teve ampla participação social, um trabalho parlamentar que
rompeu os limites do Congresso Nacional e foi transmitido, ao vivo,
para todo o país pelas televisões, rádios e especialmente pelas
mídias sociais, como Twitter e YouTube, por meio das quais as
atividades da comissão foram acompanhadas em tempo real.
A pandemia trouxe sofrimento ao mundo todo, mas nós,
brasileiros, tivemos que lidar com um vírus tão ou mais nocivo e
agressivo que o Sars-cov-2: o bolsonarismo. Enquanto laboratórios
no mundo inteiro trabalhavam para desenvolver vacinas e novas
formas de tratamento, nós, políticos brasileiros, enfrentávamos o
desafio de encontrar maneiras de nos opor eficazmente ao pior
governo de nossa história. Nas páginas que seguem, vamos tratar de
alguns dos episódios de maior relevo daquela que foi a maior e mais
importante articulação de uma frente republicana e democrática
contra o vírus que continua ameaçando a vida de nossos
concidadãos.
1. COSTURAS E ASSINATURAS

O requerimento para a realização da cpi sobre a covid-19 foi


apresentado no dia 18 de janeiro de 2021, quando 210299
brasileiros e brasileiras já tinham perdido a vida para o coronavírus.
A investigação seria feita sobre as “ações e omissões” do governo
federal no enfrentamento da pandemia.
O requerimento já mencionava que, àquela altura, mais de 32
milhões de pessoas haviam sido imunizadas no mundo inteiro por
até cinco vacinas diferentes, produzidas por grandes laboratórios, às
quais o acesso do Brasil era precário, quando não abertamente
sabotado pelo próprio presidente da República.
Em menos de um mês, alcançou-se o número mínimo de
assinaturas determinado pela Constituição Federal para a criação e
instalação da cpi. Mas, mesmo com o apoio de 27 dos 81
senadores, esse direito da minoria não estava sendo efetivado.
A presidência do Senado insistia na tese da inviabilidade do
funcionamento de uma cpi durante o período da pandemia, o que
criava algumas dificuldades para a instalação. Para cada passo
adiante, dávamos três para trás. Entre um passo e outro, um rastro
de tragédia.
No começo da tarde de 18 de março, recebemos a notícia de que
o Major Olímpio — senador pelo estado de São Paulo, eleito na
esteira do bolsonarismo e, ao longo do tempo, transformado em um
dos mais severos críticos do governo — havia tido declarada a sua
morte cerebral. Ele havia contraído covid-19 e morrido a dois dias
de completar 59 anos. Foi um choque. Internado desde fevereiro,
Olímpio chegou a participar, no dia 3 de março, de seu leito no
hospital, da sessão em que aprovamos o pagamento do novo auxílio
emergencial aos brasileiros.
Sua fala foi interrompida por uma forte crise de dispneia, o que o
obrigou a abandonar a reunião remota, deixando-nos a todos
fortemente apreensivos. Nunca mais o veríamos. Quando sua
morte foi confirmada, fomos tomados por pesar. Olímpio, no
entanto, não era o primeiro a tombar na Casa vítima da doença.
Em 13 de agosto de 2020, Carlos Alberto Pereira da Silva, de 63
anos, cinegrafista da tv Senado, uma carismática e carinhosa figura
por trás da câmera que nos filmava no Salão Azul, abriu o caminho
das perdas que teríamos ali. Em outubro, seria a vez do senador do
Rio de Janeiro Arolde Oliveira, de 83 anos. Em fevereiro, nos
despedimos do senador da Paraíba José Maranhão, aos 87 anos.
Também no começo de fevereiro, Sérgio Petecão, senador pelo
Acre, havia perdido dois assessores em uma semana, vítimas da
covid, assim como Omar Aziz, que viria a ser presidente da cpi,
enfrentara a morte do irmão, Walid, no mês anterior.
Na Câmara dos Deputados, mais de quinhentos funcionários e
assessores haviam contraído a doença desde o início da pandemia, e
as mortes passavam de vinte, a maioria em 2021. Cento e dois
deputados federais contraíram a doença no mesmo período. Muitos
dos que pereceram eram correligionários nossos das regiões Norte e
Nordeste, que pouco conseguimos socorrer.
O Brasil, que, na emergência da doença, chegou a pressionar a
Organização Mundial da Saúde (oms) para que a declarasse uma
pandemia, ficou pelo meio do caminho e se tornou, em dois meses,
o epicentro mundial da doença, um risco global. Fomos de um
caso diagnosticado no dia 26 de fevereiro de 2020 para mais de 200
mil mortos até o final do mesmo ano. Esse número cresceria para
além do triplo em 2021.
A notícia da morte do Major Olímpio — talvez por sua idade
não ser tão avançada ou pela proximidade de todos da situação —
causou muita comoção entre os senadores, que passaram a se
comunicar por meio de aplicativos de mensagens, trocando
impressões e cobranças entre si. “Precisamos fazer alguma coisa”
era o tom dominante nas conversas. Olímpio defendia ideias e
valores muito diferentes dos nossos, mas foi um dos primeiros a
assinar o pedido de instalação da cpi.
Uma fatídica reunião ocorrida no Senado, dez dias antes de ele
ser diagnosticado com a doença, ajudou a compor o clima de pavor
entre nós. O grupo denominado Muda Senado reuniu-se em uma
minúscula sala para debater questões relativas ao parlamento, com
a presença de Alessandro Vieira, Eduardo Girão, Lasier Martins,
Soraya Thronicke e o próprio Olímpio.
O encontro aconteceu na mesma semana da Marcha dos
Prefeitos, uma romaria que acontece anualmente, quando Brasília é
visitada por centenas de gestores municipais de todo o país que
batem às portas do governo federal e do Congresso em busca de
verbas orçamentárias, apoio para demandas locais e propostas
legislativas que possam beneficiar suas cidades. Muitos deles foram
recebidos por vários senadores.
Na reunião, em que foram servidos café e água, apenas um deles
recusou e se manteve de máscara no rosto, o senador Eduardo
Girão, do Ceará. Os demais dispensaram o uso da proteção. Dos
cinco presentes, três seriam internados em menos de uma semana
— um deles morreria e os outros dois, Alessandro e Lasier, teriam
importantes sequelas depois de um período de internação. Girão foi
salvo pela máscara.
A morte tinha chegado ao Senado de maneira impactante, mas o
vírus já estava espraiado por suas dependências e entre seus
servidores havia tempos. O risco tinha sido detectado no começo da
pandemia, quando as atividades legislativas presenciais foram
suspensas. Arquitetonicamente, o Congresso Nacional funciona
como uma espécie de caixa, onde a ventilação natural pouco é
utilizada e as salas são preenchidas com o ar que advém dos
condicionadores, tudo o que não se recomenda como parte da
profilaxia da doença.
À distância, o Senado manteve apenas as atividades mínimas. Até
mesmo a cpi das Fake News, que investigava a disseminação de
notícias falsas e discursos de ódio realizada por veículos e
internautas ligados a Bolsonaro desde a campanha de 2018, teve
seus trabalhos interrompidos. Não sabíamos ainda que essas linhas
se cruzariam e que, no trato criminoso que dispensou à pandemia
no Brasil, o governo havia lançado mão da mesma rede suja que
funcionara durante as eleições de 2018.
Desde o pleito, aliás, nós, da oposição, deparamos com inúmeras
dificuldades para encontrar a forma adequada de promover um
enfrentamento eficiente a um governo que, apesar de nitidamente
negligente, manteve durante quase todo o primeiro ano da
pandemia um bom percentual de apoio popular, garantindo um
quinhão de, pelo menos, um terço do eleitorado.
Elementos dessa percepção também nos chegavam pelas redes
sociais, onde o governo mantinha uma militância em ordem unida,
atuando como “blitzes” de narrativas e grupos de trolls,
disseminando todo tipo de desinformação e ações abertamente
contrárias à contenção do vírus, manipulando dados oficiais,
estudos médicos e até vídeos de entrevistas nossas.
É verdade que um dos cernes da atividade parlamentar foi
bastante prejudicado pela suspensão dos encontros presenciais. O
debate de ideias, o enfrentamento de contrários, as composições e a
cobrança vigilante ao Poder Executivo perderam muito com a
quarentena. Mas nos adaptamos. Aprendemos a usar novas
tecnologias, iniciamos uma série de lives, entrevistas, convidamos
especialistas para debater inúmeras questões, da saúde à economia
criativa, geramos conteúdo, engajamento e, aos poucos, sentimos
um retorno que não era comum nas redes dominadas pelo
bolsonarismo.
Ancorado no auxílio emergencial que havia sido demandado
pelo próprio Congresso e pelo qual originalmente se propôs a pagar
apenas um terço do que aprovamos, o governo Bolsonaro angariou
apoio nas classes sociais mais prejudicadas, capitalizando o
benefício garantido por nós. Foi uma batalha de comunicação que
perdemos: não conseguimos fazer o eleitor enxergar que, na
verdade, o governo tinha até atuado contra a medida. Mas os fatos,
no entanto, além de teimosos, eram trágicos, e logo começaram a
se sobrepor a essa situação.
Foi pelas redes sociais também que acompanhamos os primeiros
relatos de uma tragédia anunciada, afora a comoção e a pressão que
se seguiram: a segunda onda de covid-19 no Brasil, que começou
em Manaus, capital do Amazonas. Em 10 de dezembro de 2020,
Jair Bolsonaro havia declarado irresponsavelmente: “Estamos
vivendo um finalzinho de pandemia”. Nada até ali, a não ser a sua
postura de completa negação dos fatos, dava a entender que a
afirmação era verdadeira. Naquela semana, já havíamos passado dos
setecentos óbitos por dia, um número que, no começo da
pandemia, quando relatado por países da Europa, já nos deixava em
choque.
Depois de um repique de casos após as eleições municipais, em
novembro de 2020, e o afrouxamento das medidas de restrições no
final do ano, janeiro de 2021 chegou como uma onda de morte e
pavor. Em doze dias, as internações de vítimas graves da covid-19
em Manaus passaram de 2 mil, e o número de sepultamentos havia
aumentado em 450%, uma verdadeira tragédia.
No dia 14 de janeiro de 2021, o Brasil ganhou as manchetes do
mundo inteiro com o drama de pacientes morrendo nos hospitais
de Manaus por falta de oxigênio. As imagens pareciam as de uma
guerra civil. As casas de saúde fizeram uso de câmaras frias e
contêineres alugados para dar conta do armazenamento dos corpos.
Nos cemitérios públicos, havia filas para os sepultamentos, que
batiam seguidos recordes diários. As imagens de pessoas morrendo
por falta de oxigênio, médicos, equipamentos, leitos e remédios em
hospitais públicos e privados, culminando na inexistência de locais
suficientes para armazenamento de tantos corpos, chocaram o
Brasil e o mundo.

Uma semana antes, e disso só saberíamos à medida que as


investigações e os depoimentos na cpi ocorressem, a White
Martins, fornecedora de oxigênio dos hospitais públicos de
Manaus, havia informado ao Ministério da Saúde a iminente falta
do produto diante do assustador aumento da demanda. No dia 11
de janeiro, outra correspondência eletrônica pedia “apoio logístico
imediato” para transporte de oxigênio à cidade.
Em meio à crise no abastecimento de oxigênio no Amazonas em
decorrência da explosão de casos da covid-19, os Estados Unidos
ofereceram ao governo de Jair Bolsonaro o aluguel de um avião
militar para o transporte do insumo. O Ministério da Saúde, no
entanto, não aceitou a negociação, por entender que os “esforços
nacionais” já eram suficientes.
A cpi revelou que, dez dias antes da falta de oxigênio, o governo
Bolsonaro fora alertado sobre o risco de colapso do sistema de
saúde em Manaus por um documento produzido pelo Ministério
da Saúde datado de 4 de janeiro.
Nesse período, a pasta, sob o comando do general Eduardo
Pazuello, armou uma força-tarefa na capital amazonense
estimulando a adoção do chamado “tratamento precoce”, com o
uso de medicamentos como cloroquina e ivermectina, conhecidos
havia muito como ineficazes contra a doença. A respeito do
oxigênio, Pazuello declarou em entrevista: “O que você vai fazer?
Nada”.
O governo federal não respondeu ao pedido de cilindros de
oxigênio feito no dia 7 de janeiro pelo então secretário de Saúde do
Amazonas. Mas um telefonema do embaixador da Venezuela no
Brasil, Alberto Castelar, acendeu uma luz de esperança nas trevas
que pairavam sobre Manaus. As imagens tinham chocado os
telespectadores do lado de lá da fronteira, e o embaixador nos
sondou como poderia ajudar o estado do Amazonas, pois havia
disponibilidade de cilindros de oxigênio no país vizinho.
Em menos de 48 horas essas conversas deram frutos, e 60 mil
metros cúbicos de oxigênio foram enviados para a capital do
Amazonas. Na mesma semana, artistas brasileiros como a cantora
Anitta e os humoristas Whindersson Nunes e Paulo Gustavo (este
posteriormente vitimado pela própria covid) realizaram um mutirão
entre os seus colegas para arrecadar dinheiro ou realizar a compra
direta de cilindros de oxigênio.
No auge da crise em Manaus, o governo que tanto temia que o
Brasil virasse uma Venezuela foi socorrido justamente pelo governo
de Nicolás Maduro. O episódio não apenas deixava à mostra a
generosidade do governo venezuelano e dos artistas brasileiros,
mas, acima de tudo, o completo desinteresse do governo federal,
que, mesmo dispondo de uma máquina operacional e de recursos
muito superiores àquilo que se conseguiu articular junto à
sociedade civil, nada fez para sanar o problema. Para efeito de
comparação, um dia depois que o secretário de Saúde estadual
alertou para a possível falta de oxigênio nos dias seguintes, o
governo enviou, via Forças Armadas (ffaa), meros 3 mil metros
cúbicos de oxigênio para o estado.

Tanto o Amapá como Pernambuco, estados pelos quais fomos


eleitos, já haviam enfrentado a duras penas as consequências da
primeira onda, e sabíamos que era questão de tempo até a segunda
nos alcançar. A tragédia amazonense começou a fragilizar a
narrativa do governo federal, que, na pessoa do presidente, havia até
mesmo se pronunciado contra o fechamento do comércio na
capital em dezembro, quando decretado o lockdown pelo
governador Wilson Lima.
Parlamentares bolsonaristas, como Bia Kicis, Carla Zambelli e
Eduardo Bolsonaro, incitaram de forma orquestrada e sistemática a
população a não seguir as regras de proteção, a protestar contra o
lockdown e a desafiar a pandemia. Aliado de Bolsonaro, Lima
voltou atrás. A colheita da má decisão foi trágica.
A partir daquele caos, o pedido de instalação da cpi tornara-se
uma necessidade, e urgia que fosse subscrito pelo maior número
possível de senadores. Isso, no entanto, demandaria tempo e muita
costura política. Até então, a oposição ao governo era vocalizada
quase que exclusivamente pelos partidos à esquerda e por
movimentos sociais, ainda que esporadicamente surgissem
iniciativas políticas coletivas que uniam contrários em prol de uma
saída para a maior crise sanitária da nossa história. A força da
política e o interesse da sociedade precisavam se sobrepor a todos os
obstáculos.
2. A ESTRATÉGIA GENOCIDA

Dias antes da tragédia manauara, em 10 de dezembro de 2020,


em uma de suas inúmeras falas negacionistas e atentatórias à saúde
pública, dirigida a seguidores radicalizados, o presidente Jair
Bolsonaro anunciou: “Estamos vivendo um finalzinho de
pandemia”. Dezembro, no entanto, fecharia o ano com o índice
recorde de mortos: mais de 195 mil vidas de brasileiros ceifadas
pela covid-19.
Àquela altura, a estratégia claramente adotada pelo governo
Bolsonaro para o enfrentamento da pandemia era alcançar a
imunidade natural coletiva contra o coronavírus pela sua
transmissão rápida e intensa (também chamada imunidade de
rebanho). Esse objetivo deveria ser atingido sem a necessidade de
vacinação, independentemente das trágicas consequências desse
plano.
O estudo “A linha do tempo da estratégia federal de
disseminação da covid-19” iria confirmar a estratégia criminosa de
Bolsonaro. Produzido pelo Centro de Estudos e Pesquisas de
Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública (fsp)
da Universidade de São Paulo (usp) e pela entidade Conectas
Direitos Humanos, o estudo foi assinado pelas professoras Deisy
Ventura, titular da usp, e Rossana Reis, do Departamento de
Ciência Política da usp, além do professor Fernando Aith, da
mesma universidade. O artigo foi resultado de uma ampla pesquisa
que analisou 3049 normas federais relacionadas à covid-19 em 2020
e mais de seiscentas em 2021, entre decretos, portarias, projetos de
lei, medidas provisórias, ações judiciais patrocinadas pelo governo,
vetos a leis importantes aprovadas pelo Congresso Nacional, além
do discurso do presidente Bolsonaro e de diversos integrantes do
governo e de seus apoiadores no parlamento e na sociedade. Os
autores elaboraram uma robusta linha do tempo que, de forma
factual, demonstrou que os equívocos do governo federal no
enfrentamento da pandemia não decorreram simplesmente de
erros ou omissões. A conclusão do trabalho foi que o governo
federal adotou como estratégia de enfrentamento da pandemia de
covid-19 o estímulo intencional à disseminação do coronavírus para
que o maior número possível de pessoas fosse acometido pela
doença.
Na visão do governo, isso levaria ao desenvolvimento de uma
imunidade natural nas pessoas e, com o tempo, o vírus não
encontraria mais indivíduos suscetíveis à contaminação, deixaria de
circular e a pandemia seria controlada sem a necessidade de
vacinação. Não importaria o número de mortes, quadros graves ou
sequelas que atingissem os brasileiros. A estratégia incluía também
a divulgação de estimativas infundadas do número de óbitos e da
data do término da pandemia.
O termo “imunidade de rebanho” vem da medicina veterinária e
representa o processo final de controle de uma doença que
acomete rebanhos, que é enfrentada por meio de vacinas. Após a
imunização de um percentual elevado de animais, há uma queda
importante do número de indivíduos suscetíveis à infecção pelo
vírus, que, assim, perde a sua capacidade de se reproduzir. Ou seja,
nem na verdadeira imunidade de rebanho a vacinação é dispensada
como queria Bolsonaro.
Segundo os autores do estudo, o método aplicado pelo presidente
da República consistiu em um tripé: a) plano de comunicação e
propaganda ostensiva contra a saúde pública e seu aparato; b)
combate às iniciativas dos entes subnacionais, incluindo ações e
vetos em âmbito jurídico; e c) incidência negativa em atos
normativos e em normas infralegais para propiciar a disseminação
do vírus.
No início, foi muito difícil acreditar que um governante pudesse
ser capaz de aplicar uma política tão desumana à sua própria
população. Mas, à medida que analisávamos o estudo realizado
com maior rigor científico, fomos nos convencendo de que a tese
era absolutamente plausível. O senador Rogério Carvalho foi um
dos membros da comissão que denunciou a estratégia criminosa do
governo, e o grupo de senadores que formou a maioria para garantir
a governabilidade da cpi (conhecido como G-7) se identificou com
a tese.
A cpi, posteriormente, pôde desvendar a existência de um
gabinete paralelo, formado por pessoas alheias ao serviço público,
que agiam como consultores para o governo federal, em
contraponto às atitudes e ações dos técnicos dos governos
municipais, estaduais e do próprio Ministério da Saúde. Dois
ministros não resistiram à pressão do negacionismo do governo e
desses conselheiros: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich.
Vários nomes apareceram como defensores da tese da imunidade
coletiva, sem vacinação, como a dra. Nise Yamaguchi e o médico
Anthony Wong, que morreu em decorrência da covid em um dos
hospitais do grupo Prevent Senior.
Vários outros médicos, inacreditavelmente, aderiram a essa tese
da imunidade de rebanho e passaram a defender a prevenção e o
tratamento da doença por meio do denominado kit covid, formado
por medicamentos comprovadamente ineficazes contra o vírus,
dando às pessoas uma falsa segurança de que a vida poderia seguir
com tranquilidade, sem o necessário isolamento. Um grupo de
profissionais, organizados na Associação Médicos pela Vida,
terminou por assumir um estranho protagonismo nessa questão,
chegando a publicar, em vários jornais de circulação nacional, a
defesa da autonomia do médico em prescrever o kit. A cpi acabou
desvendando que esses anúncios haviam sido pagos por uma
companhia farmacêutica que produzia um desses medicamentos,
em um claro conflito de interesses. O enredo era tenebroso: não
parar a economia, vender milhões desses remédios e não gastar com
vacinas.
Essa tese, defendida por vários protagonistas do negacionismo,
entre eles o ex-ministro de Bolsonaro Osmar Terra, na realidade
tinha produzido no Brasil uma verdadeira carnificina. Para
completar, havia uma deliberação do governo federal contrária à
iniciativa do governo paulista de produzir vacinas em parceria com
a China, uma das saídas mais baratas e eficientes para a superação
da pandemia e o retorno seguro às atividades econômicas.
Bolsonaro priorizava, assim, suas ambições e seus mesquinhos
interesses políticos, expressos na disputa com o governador João
Doria, em prejuízo das urgentes questões de saúde pública e da
salvação de milhares de vidas. Era a má política aliando-se ao vírus.
No dia anterior àquela previsão irresponsável do presidente da
República, a boa política produziu um importante fato que
demonstrou ser possível uma ampla frente antibolsonaro, ainda que
conjuntural. Uma articulação encabeçada pelos ex-ministros da
Saúde Alexandre Padilha, Arthur Chioro e José Gomes Temporão
produziu o manifesto “Vacina para todos já!”, que cobrava do
governo federal urgência na compra de imunizantes e uma
campanha de vacinação subsequente que fosse universal, pública e
gratuita. Publicado no jornal Folha de S.Paulo e replicado por
outros periódicos e pelas redes sociais, o manifesto foi assinado por
onze ex-titulares da área — dois deles ex-integrantes do governo
Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Completaram
a lista Chioro, Padilha, Temporão, José Serra, Barjas Negri, Saraiva
Felipe, Agenor Álvares, Marcelo Castro, além de um dos autores
deste livro. O titular da Saúde do governo Temer, Ricardo Barros,
então líder do governo, não assinou e, mais tarde, viria a ser um dos
investigados pela cpi da Covid.
A expertise do sus em campanhas nacionais de vacinação estava
à mão; o que havia era pura e simples sabotagem. O próprio
ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, deu mostras
evidentes desse boicote quando veio a público no mesmo período
indagar: “Para quê essa ansiedade, essa angústia [em relação às
vacinas]?”. Os milhares de mortos não estavam entre as motivações
do intendente.
Ao manifesto por vacinas seguiram-se outros atos reunindo ex-
ministros, personalidades e intelectuais de várias áreas, como
educação, meio ambiente, justiça, cultura, relações exteriores,
ciência e tecnologia e economia de diferentes governos. De Itamar
Franco, passando por Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva,
Dilma Rousseff, chegando até mesmo a ex-auxiliares de Michel
Temer e Bolsonaro. Pessoas das mais diferentes matrizes ideológicas
uniram-se para denunciar crimes, abusos e omissões do governo na
implementação das mais diversas políticas de Estado.
Respondendo a uma ação do partido Rede Sustentabilidade, o
Supremo Tribunal Federal determinou que o governo apresentasse
um plano nacional de vacinação. No dia 11 de dezembro, o
governo, forçado pelo stf, apresentou o Plano Nacional de
Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, em que listava
dois laboratórios dos quais teria reservado cerca de 300 milhões de
doses de vacina. Eram eles a Pfizer/ BioNTech e o consórcio
Fiocruz/ AstraZeneca, além das doses reservadas pela iniciativa
Covax da oms — não se tratava da Covaxin, vacina de origem
indiana cuja negociação, a cpi revelaria depois, estava eivada de
vícios e corrupção. Até hoje não contamos com nenhum avanço
quanto à vacina que mais despendeu esforços do governo.
O plano, além de conter inúmeras imperfeições e fragilidades,
gerou grande polêmica ao incluir, como autores, pesquisadores que
não tiveram conhecimento prévio do texto encaminhado ao stf e
tampouco concordaram com seu conteúdo final.

O pedido de cpi foi assunto de algumas reuniões entre os


senadores da bancada do pt. Havia um sentimento geral de que era
preciso agir mais unificadamente com outras forças políticas, sem,
no entanto, abrir mão de iniciativas próprias da bancada como as
que havíamos impetrado na Justiça ao longo da pandemia,
cobrando do governo transparência e responsabilidade.
Para ilustrar as renitentes sabotagens do governo e do presidente
diante da tragédia, dois fatos desse mesmo período são destacáveis:
no dia 11 de agosto de 2020, durante a cerimônia de abertura dos
cursos de formação da Polícia Federal, o presidente retirou a
máscara que usava, alegando que “todos vão pegar covid um dia” —
era a tese mortal da imunidade de rebanho proferida de forma
cristalina.
No dia 20 seguinte, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
denunciou que a organização internacional Médicos Sem
Fronteiras, que atua em centenas de países, sobretudo em
momentos de crises sanitárias e guerras, fora proibida pelo
Ministério da Saúde de entrar em aldeias indígenas a fim de prestar
atendimento médico. A decisão foi expedida pela Secretaria
Especial de Saúde Indígena do ministério, presidida por um militar
da reserva. Que a finalidade dessa política era exterminar os povos
indígenas, para nós já estava bastante claro.

Quanto à cpi, não tínhamos uma posição unânime na bancada


do pt sobre o que fazer. Senadores como Paulo Paim (rs), que tem
por princípio assinar todos os pedidos de cpi que lhe apresentam,
inclusive nos nossos governos, e Jean Paul Prates (rn), já
convencidos de que a comissão era viável e necessária, apressaram-
se em subscrever o pedido.
Os demais ainda tinham dúvidas: teríamos condições de obter o
número mínimo de assinaturas em um Senado fortemente
bolsonarista? Quais os efeitos políticos de um insucesso nessa
tarefa? Conseguiríamos obter uma presença oposicionista
importante na cpi que pudesse produzir resultados consistentes? O
governo Bolsonaro não conseguiria inverter o jogo e usar uma
eventual maioria na comissão para perseguir governos estaduais e
prefeituras que tivessem adotado condutas opostas às dele no
enfrentamento da pandemia? Isso já não estava acontecendo na
prática com as operações da Polícia Federal contra prefeitos e
governadores de oposição?
Foram questões que tivemos que enfrentar no debate interno.
Éramos todos parlamentares experientes na atuação política no
Congresso Nacional, já tendo participado de cpis como
oposicionistas e como integrantes do governo, e nunca esquecemos
as sábias palavras de Ulysses Guimarães: “cpi a gente sabe como
começa, mas não sabe como termina”.
Contudo, mesmo diante dessas dúvidas, a bancada do pt decidiu
assinar em bloco o pedido de cpi, inclusive com a participação da
senadora Zenaide Maia, do Pros-rn, que sempre atuou em bloco
conosco no Senado. A única exceção ficou por conta do senador
Jaques Wagner (ba).
Parlamentar experiente, ex-ministro de várias pastas de governo,
ex-governador de seu estado por duas vezes, Wagner sempre teve
posição crítica em relação a Comissões Parlamentares de Inquérito
por considerá-las muito mais espaços de disputa política do que
fonte de resultados concretos. Entendemos sua posição e a
respeitamos integralmente naquele momento. Mas a cpi da Covid
cumpriu um papel tão importante e inesperado que o próprio
Wagner se renderia a essa relevância: foi um dos primeiros a assinar
o seu pedido de prorrogação três meses depois.
Além das dúvidas que resolvemos enfrentar, sabíamos do
desacordo por parte do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(psd-mg), com a ideia da instalação de uma cpi naquele momento,
e estávamos cientes de que, pelo seu poder como presidente da
Casa, poderia criar muitos percalços no nosso caminho para a
conquista desse objetivo. Como veremos adiante, foi o que
aconteceu.
Sentindo o crescimento do apelo social por uma cpi da Covid e o
aumento do número de signatários do requerimento pela sua
instalação, parlamentares da base do governo no Senado iniciaram
um movimento para mudar ou ampliar o objeto das investigações
da futura comissão, focado nas ações e omissões do governo federal
no enfrentamento da pandemia. Eles procuravam desviar a
apuração para supostas ações de corrupção de governos estaduais e
prefeituras com recursos transferidos pela União para o
enfrentamento da pandemia em estados e municípios.
A perseguição do governo Bolsonaro a governadores e prefeitos
de oposição nunca cessou. Um de seus alvos principais era o
Consórcio Nordeste, formado pelos estados da região, todos
dirigidos por políticos predominantemente de oposição. O aparato
repressivo do governo federal investiu contra o consórcio, alegando
atos de corrupção na compra de equipamentos hospitalares com
recursos federais.
Esses atos, investigados pelas autoridades dos estados, não se
confirmaram e encontram-se no âmbito do Poder Judiciário, e as
compras questionadas não utilizaram recursos federais transferidos
voluntariamente pela União. No entanto, essas acusações, mesmo
sem esclarecimento pleno, foram utilizadas como instrumento de
intimidação pública e de ataques políticos. A verdadeira obsessão
do senador Eduardo Girão (Podemos-ce) pelo tema do Consórcio
Nordeste seria uma das principais marcas da estratégia governista
na cpi.
Quanto aos temores que tínhamos de que o governo pudesse ter
ampla maioria na cpi, as circunstâncias políticas determinaram um
outro cenário, e sobre elas comentaremos adiante.
Ao mesmo tempo em que se dava a busca pelo número mínimo
de assinaturas de senadores exigido pela Constituição para que
fosse criada uma cpi (um terço dos membros da Casa), havia a
movimentação do governo para impedir que ela se formasse.
De um lado, o governo procurava se sustentar no apoio de sua
base mais fiel para impedir uma adesão maior à ideia de uma cpi.
Para isso, valia tudo. Cargos no governo, emendas, benesses. Do
outro, havia a confiança na condução do presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco, do psd, que, na expectativa de Bolsonaro,
impediria a realização da cpi.
Nos bastidores do Senado, comentava-se que o ex-presidente da
Casa Davi Alcolumbre, padrinho da candidatura de Pacheco à sua
sucessão, teria garantido ao presidente da República que seu aliado
não só não lhe criaria problemas como impediria constrangimentos
maiores ao governo, entre eles a criação de uma cpi para investigar
a postura do governo em relação à pandemia.
Ouvia-se nos corredores do Senado que a comissão “não daria
em nada”, que Davi e Pacheco “matariam no peito”. E que, se fosse
instalada, haveria uma operação pesada dos apoiadores do governo
para que fosse inviabilizada — “se coletar não instala, se instalar
não funciona” era o que ouvíamos enquanto computávamos o
número de rubricas.
Não se sabe da completude desse acordo, mas se sabe que
Bolsonaro apoiou a eleição de Pacheco, assim como muitos de nós.
Sabe-se também que o presidente do Senado sempre relutou em
instalar a cpi, ainda que o pedido para a sua criação tivesse
cumprido todos os ritos constitucionais.
Sua principal alegação era a inviabilidade de fazer funcionar
remotamente uma cpi em plena pandemia. Falava-se em instalá-la
depois do arrefecimento da covid-19.Mas ela perderia força e não
conseguiria exercer pressão para que o governo fizesse uma forte
inflexão na sua postura de enfrentamento da pandemia, em
especial no descaso quanto à aquisição de vacinas.
Temos hoje absoluta convicção de que o governo subestimou o
apelo social, com forte influência sobre a posição dos
parlamentares, da criação da cpi da Covid. Talvez tenha depositado
expectativas exageradas no suposto acordo com Alcolumbre.
Na saga pela viabilização da cpi, as assinaturas do bloco de
oposição à esquerda já estavam garantidas. Mas o pedido só
ganharia robustez se fosse endossado por parlamentares
independentes ou pontualmente alinhados ao governo, como
Eduardo Braga, do mdb do Amazonas, ex-líder do governo Dilma
Rousseff no Senado, mas que mantinha boas relações com o
governo Bolsonaro; ou Simone Tebet, do mdb do Mato Grosso do
Sul, ou até mesmo Otto Alencar, do psd da Bahia, cuja posição
sempre foi predominantemente de oposição, embora, em alguns
temas econômicos esporádicos, concordasse com algumas ideias do
governo. Eles foram chegando aos poucos, trazidos em grande parte
por Renan Calheiros.

Diz uma antiga anedota muito presente nas rodas políticas que,
se um político perspicaz e resiliente como Renan pular do oitavo
andar de um prédio sem nenhum tipo de paraquedas, podemos
pular em seguida sem medo, pois alguma coisa boa encontraremos
ao final da queda. Para uns é um modo de ressaltar seu faro
político; para outros, uma maneira de salientar seu senso de
oportunidade. Renan é um sobrevivente da política e, mesmo
tendo atravessado períodos muito turbulentos nos seus anos de vida
pública, tem conseguido se reerguer como uma verdadeira fênix. A
cpi foi um desses momentos.
Em vários episódios da nossa história política, por razões
diferentes, nós ou nossos partidos estivemos em lados opostos ao de
Renan. Em outros, nos somamos para a defesa de pontos comuns,
na maioria das vezes relacionados à independência do Congresso
Nacional e à defesa das instituições e da democracia.
É preciso reconhecer que o peso do seu protagonismo político o
transformou no alvo predileto de seus adversários, da grande mídia
e de instituições de controle público. Em um de seus mandatos
como presidente do Senado, viu-se obrigado a renunciar diante da
repercussão de denúncias que lhe foram imputadas, mas conseguiu
não apenas reeleger-se seguidamente como voltar a presidir o
Congresso Nacional.
Em outro desses mandatos de presidente do Senado, no ano de
2016, coube a ele dirigir a derradeira parte do processo de
impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Em 31 agosto de 2016, apresentamos a proposta de Randolfe de
que a presidenta pudesse manter seus direitos políticos, mesmo
derrotada no processo de impeachment. Humberto e o pt
endossaram a ideia, Renan não apresentou resistência e passou a
trabalhar discretamente pela proposição. Entendemos que essa era
uma decisão interna do Senado amparada pela lei 1079, de 1950,
que previa o tal “fatiamento”. Ao final, o então presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, aceitou
o destaque da inabilitação, que foi votado em separado e aprovado,
preservando os direitos políticos de Dilma. A aproximação com
Renan Calheiros aconteceu sem sobressaltos, e o compromisso dele
foi importante para que a proposição se sustentasse.
Passado esse período, Renan conseguiu fazer Eunício Oliveira,
do mdb do Ceará, seu sucessor na presidência do Senado. Já era o
tempo da Operação Lava Jato, e Renan viria a ser um dos alvos
prediletos dela, especialmente do então procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, que abriu vários processos contra ele e
outros integrantes do mdb, muitos dos quais viriam a ser arquivados
pelo Supremo Tribunal Federal (stf) mais tarde.
A eleição para a presidência do Senado deixou marcas
importantes para Renan. A Casa havia passado por um processo de
mudança muito grande na correlação de forças políticas nas
eleições de 2018. Poucos senadores conseguiram a reeleição. Boa
parte dos eleitos veio na onda bolsonarista ou no bojo da
antipolítica, alimentada pela mídia e pelas ações da Lava Jato,
especialmente do ex-juiz Sergio Moro.
Várias medidas judiciais foram tomadas para impedir que Renan
fosse candidato. Até membros do Ministério Público na Lava Jato se
manifestaram contra o alagoano, que, por seu lado, também
recorreu à Justiça para fazer valerem seus interesses. A mídia mais
uma vez alimentava a onda contra Renan, e as redes sociais,
predominantemente controladas pelos bolsonaristas, moviam uma
ação inesgotável para impedir a eleição do emedebista.
O pt apoiou a candidatura do senador alagoano por entender
que era um nome capaz de defender a independência do Poder
Legislativo diante do autoritarismo de Jair Bolsonaro. Já a Rede
declarou apoio a Alcolumbre, que se sagrou vitorioso em meio a
uma eleição turbulenta. Renan abandonou a disputa antes mesmo
da contabilização do último voto, deixando atordoados os senadores
que o haviam apoiado.
Aquele que, nos últimos anos, havia contado com o apoio da
grande maioria dos parlamentares da Casa acabara de sofrer uma
derrota com a qual não contava e da qual demoraria a se recuperar.
Após o insucesso eleitoral interno, Renan se recolheu por um bom
período. Aos poucos foi retornando à cena política, procurando se
situar no debate nacional.
Oito meses depois de perder a eleição para Alcolumbre, Renan
elogiou em público o adversário no plenário do Senado por ter
assumido um papel fundamental na rejeição pelo Congresso
Nacional de dezoito vetos da Presidência da República apostos à
Lei de Abuso de Autoridade, de autoria do alagoano. Depois da
guerra, os acenos de paz.
Os tempos não foram fáceis para Renan após a eleição perdida.
Segundo informações de bastidores, ele tentou ser líder do mdb no
Senado, mas não reuniu apoio da bancada. Almejou ocupar a
presidência da principal comissão permanente do Senado, a de
Constituição e Justiça, mas também não obteve sucesso. A volta por
cima de Renan viria com o pedido de instalação da cpi. Estávamos
próximos de obter as 27 assinaturas necessárias à criação da
comissão.
Renan não hesitou um segundo quando o procuramos para pedir
sua assinatura: “Essa cpi tem que sair. Entre outras coisas, porque
ela é o caminho para o parlamento retomar a posição de quem
investiga o Executivo e que, com a Lava Jato, se perdeu para o
Ministério Público e a magistratura”. Sua reação deixava claro que
ele imaginava vir a ter um papel relevante no processo da cpi.
Ciente de que estávamos próximos da obtenção do número
mínimo de assinaturas necessário, Renan usou da sua experiência:
“Precisamos de uma margem de segurança maior. Temos que
coletar mais cinco ou seis além do mínimo para termos um espaço
de manobra, pois o governo certamente vai operar para retirar
algumas”. Não deu outra. Tivemos, por exemplo, o caso do senador
de Roraima, Chico Rodrigues, que chegou a assinar o
requerimento e retirou a assinatura quando estávamos prestes a
instalá-la.
E assim Renan Calheiros entrou no jogo, telefonando para
dezenas de senadores e fazendo uma espécie de prospecção,
mantendo a conversa acesa, sentindo para onde cada vento soprava,
até que nos avisava: “Pode procurar fulano, ele — ou ela — vai
assinar”.

Quando, no dia 3 de março, anunciamos que tínhamos 33


assinaturas, seis a mais do que o mínimo necessário para a criação
da cpi, houve uma injeção de ânimo, mas sempre com um travo:
naquele dia, o número de mortes alcançou quase 260 mil. Daí até o
dia da leitura do requerimento pelo presidente do Senado, em 13
de abril, foram outros 100 mil mortos. O tempo se contava também
pelo relatório diário de mortes e casos confirmados.
Até se chegar à instalação definitiva da comissão por ordem
judicial, muitos fatos políticos e jurídicos impulsionaram nossa
causa. Vários percalços também tiveram que ser superados. Mas,
em alguns casos, o que poderia servir para esvaziar a proposta e o
trabalho da cpi terminou cumprindo um papel no enfrentamento
da pandemia.
Um exemplo foi a criação de uma comissão temporária interna
para o acompanhamento da crise da covid-19 no Senado. Proposta
pelo senador Eduardo Braga (mdb-am) em 4 de fevereiro, foi
instalada no mesmo dia em que alcançamos o número de rubricas
e tinha como justificativa acompanhar o desenrolar da pandemia e
as ações do governo no seu enfrentamento, bem como debater
propostas e sugestões para superar a emergência sanitária.
Não tinha poder de investigação como uma cpi e teria
funcionamento remoto, reforçando o argumento da presidência do
Senado quanto à inviabilidade do funcionamento da comissão de
inquérito. Para nós soava claramente como uma manobra
diversionista em relação à cpi, uma tentativa de esvaziar as futuras
investigações e fazer tabela institucional com o governo federal.
A comissão foi oficializada e, diferentemente do que esperava o
governo, terminou por cumprir um papel. Promoveu debates sobre
a condução da pandemia, ouviu a comunidade acadêmica (ainda
que também tenha dado ouvidos a pseudocientistas negacionistas),
pressionou a Anvisa para a aprovação mais célere de vacinas, entre
outras coisas. Acabou causando alguma dor de cabeça ao governo,
mas muito longe do que a cpi viria a dar.

O lance político mais relevante naquele momento foi, sem


dúvida, a inesperada ação impetrada no dia 11 de março de 2021
junto ao Supremo Tribunal Federal pelos senadores Alessandro
Vieira e Jorge Kajuru, pedindo à Suprema Corte que determinasse
ao presidente do Senado Federal a imediata instalação da Comissão
Parlamentar de Inquérito para investigar as ações e omissões do
governo federal no enfrentamento da pandemia da covid-19.
O pedido deixava claro que se tratava de um direito das minorias,
que todos os requisitos constitucionais para sua criação haviam sido
cumpridos, e citava a jurisprudência já existente para casos
semelhantes no passado. Consideramos inesperada porque, apesar
de ter sido cogitada pelo grupo que estava mais à frente na
articulação pela instalação da cpi, não era ainda uma decisão
tomada.
Alessandro e Kajuru terminaram por assumir a decisão mais
importante para a viabilização da cpi. A demanda, por sorteio, seria
analisada liminarmente pelo ministro Luís Roberto Barroso, mas a
resposta ao pedido dos senadores ainda demoraria mais de três
semanas.
Kajuru, internado à época por complicações do diabetes,
subscreveu a ação do leito hospitalar. Alessandro Vieira também
estava hospitalizado em decorrência da covid. Em verdade, o
mentor da petição foi o ex-deputado federal Roberto Freire,
presidente do Cidadania, partido ao qual também pertenciam
Kajuru e Alessandro Vieira. Os dois foram autores de medidas que
mudariam definitivamente o quadro político nacional. Mas disso
nem suspeitávamos, muito menos eles.
A peça foi apresentada ao Supremo em tintas fortes. Qualificava
como “ato omissivo inconstitucional” a recusa da presidência do
Senado em instalar a comissão e mencionava diretamente “a
ausência de oxigênio para os pacientes internados” em Manaus
como um dos motivos pelos quais não se poderia mais postergar a
investigação.
O pedido se ancorou em farta jurisprudência da corte superior,
que, desde 2004, vinha determinando a instalação de cpis no
Congresso Nacional, sempre que cumpridos os requisitos
constitucionais do pedido de investigação. O mandado de
segurança expunha os dois meses de espera pela leitura do
requerimento, configurando-se assim uma “manifesta ilegalidade e
abuso de poder, que podem ser corrigidos por via judicial”.
O ministro Luís Roberto Barroso, por suas posições mais liberais
em relação à pauta de costumes, sempre despertou os piores
instintos de Jair Bolsonaro. Também o contrariou bastante com
várias decisões que tomou a respeito da condução da pandemia. O
presidente, dominado por um ódio irracional contra o ministro,
chegou ao cúmulo de acusá-lo de ser favorável à pedofilia, absurdo
que parece nunca ter chegado aos ouvidos do procurador-geral da
República, Augusto Aras, que, de resto, também era surdo a outros
abusos de Bolsonaro.
3. RETRATOS DO DESGOVERNO

O presidente continuava em sua cruzada insana em favor da


proliferação descontrolada do vírus. Chegou a mover uma ação no
stf solicitando a suspensão de medidas preventivas propostas pelos
governadores da Bahia, do Rio Grande do Sul e do Distrito Federal.
No Ceará, estado governado pelo oposicionista Camilo Santana,
do pt, Bolsonaro provocou aglomerações e ameaçou os gestores
que determinassem a suspensão do funcionamento do comércio e
outras atividades econômicas de terem que arcar com o pagamento
do auxílio emergencial. Pura bravata, mas parte de uma perversa
disputa política.
As cenas e as palavras grotescas do presidente fisgaram um nervo
do senador cearense Tasso Jereissati. A forte declaração de Tasso,
uma voz sempre muito respeitada no Senado, dada em entrevista
ao Estadão, de que “É preciso parar esse cara [Bolsonaro]”*, foi
recebida com algum espanto e funcionou como uma injeção de
ânimo para muitos senadores que ainda estavam mergulhados na
apatia diante da tragédia.
O psdb, seu partido, se não apoiava abertamente o governo de
Jair Bolsonaro, mantinha-se alinhado à pauta ultraliberal que
agravava ainda mais a já precária situação do trabalhador brasileiro
com as reformas propostas pelo ministro da Economia Paulo
Guedes.
Do nosso lado, uma luz de alerta se acendeu: o assunto tinha
tomado corpo em uma parte importante do Senado, cujo apoio
seria importante para convencer mais parlamentares quanto à
necessidade da cpi.
Enquanto isso, na Casa ao lado, a Câmara dos Deputados, o
presidente Arthur Lira, do pp de Alagoas, desafeto do senador
Renan Calheiros e aliado do governo Bolsonaro, contribuía com a
disseminação do coronavírus ao respaldar a ida a Brasília de uma
imensa caravana de prefeitos que já procuravam se aninhar naquilo
que viria a ser conhecido como “orçamento secreto”, inspiração
maior do deputado alagoano. Lira chegou a dar uma festa para
trezentas pessoas para comemorar sua eleição à presidência da
Câmara. Depois disso, os casos de covid no Congresso explodiram
em tal magnitude que os funcionários apelidaram a Câmara de
“covidário”. Lira seria cúmplice e parceiro do governo em
inúmeras omissões até hoje.

No mesmo dia da declaração de Jereissati, Pacheco afirmou que


era “um direito dos senadores” requerer a cpi e que, em algum
momento, avaliaria a sua pertinência.
Para tentar superar as resistências do presidente, chegamos a
propor que a cpi funcionasse em esquema semipresencial, ao modo
do plenário. Não houve concordância. Propusemos então um
modelo híbrido, em que os depoimentos de testemunhas fossem
feitos presencialmente a membros da comissão também presentes e
outros tipos de audiências pudessem acontecer remotamente. A
resposta permaneceu vaga e inconclusiva.
Enquanto isso, a ação que tramitava no Supremo era objeto de
permanente discussão entre nós. Apesar de suas posições firmes
contra o negacionismo ao julgar temas relativos à pandemia, apenas
nossos desejos e esperanças indicavam que a decisão do ministro
Barroso poderia favorecer a instalação da cpi.
Em paralelo, outros sinais passaram a nos indicar que a direção
do vento poderia estar mudando a nosso favor. Um deles veio pela
tv, em uma madrugada da primeira semana de abril. A
contundência de Renata Lo Prete, no Jornal da Globo, defendendo
a pertinência de uma cpi como a que havia sido requerida no
Senado, era um indício de que a opinião pública estava do nosso
lado. O teor de sua fala estava alguns tons acima da forma como o
assunto tinha sido abordado desde janeiro na grande mídia.
O interesse da grande imprensa e das redes sociais pelo assunto
aumentou sensivelmente, com especulações sobre a sua futura
composição, eventuais maiorias, possíveis presidente e relator e até
mesmo o título da comissão de investigação — um jornalista do
portal O Antagonista especulou sobre o sugestivo nome de “cpi do
Genocídio”. Algo se movia para além dos nossos olhos.

Desde o início da pandemia, outros importantes atores políticos


se organizavam para enfrentar os enormes desafios que se
impunham ao país — e que se agravavam pela inação ou, pior
ainda, pela ação nociva do governo federal. Enquanto a pandemia
ficava inteiramente fora de controle pela incompetência e pelo
negacionismo, que bem poderiam ser descritos como uma política
do governo federal, a sociedade — desde a imprensa, passando pela
comunidade acadêmica e chegando aos movimentos sociais —
começou a entender a necessidade de iniciativas para além do
governo, que buscassem superar a tragédia em curso, ou ao menos
minimizá-la, a partir de uma forte pressão sobre as instituições do
Estado.
Ainda em 2020, no primeiro semestre, várias organizações da
sociedade, preocupadas com os deslizes do governo no
enfrentamento da pandemia, iniciaram um amplo movimento que
ficou conhecido como Frente pela Vida. Em maio, o projeto foi
lançado oficialmente reunindo entidades relevantes, como a
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (sbpc), a
Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (cnbb), o Conselho Nacional de
Saúde (cns), a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes), a Associação Brasileira de
Imprensa (abi), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a
Sociedade Brasileira de Bioética (sbb) e a Rede Unida, entre outras.
A frente política antibolsonaro se fortalecia no âmbito da sociedade
civil.
Em julho, diante da inexistência de um processo organizado pelo
governo para fazer face ao coronavírus, um grupo de entidades da
área da saúde vinculadas à Frente pela Vida produziu o Plano
Nacional de Enfrentamento à Pandemia da Covid-19, contendo
críticas, sugestões e medidas encaminhadas às autoridades dos três
níveis de governo para a superação da tragédia sanitária.
Durante meses, a Frente cumpriu o importante papel de
denunciar o descalabro governamental com a covid, mobilizar a
sociedade civil na luta por medidas de prevenção, testes, insumos
diversos, leitos hospitalares e vacinas. Ao mesmo tempo, cobrava
dos poderes Judiciário e Legislativo a investigação e a
responsabilização daqueles que, por omissão ou por ações,
permitiram que se instalasse aquela situação caótica. O grupo
engajou-se fortemente, no início de 2021, na luta pela instalação da
cpi da Covid, que obteria em pouco tempo as assinaturas
necessárias à sua implementação.
Em março, os senadores do pt se reuniram com representantes
da mesa diretora do Conselho Nacional de Saúde (cns) — órgão
que tem um importante papel de fiscalização e controle social
sobre o Sistema Único de Saúde e que capitaneava esse movimento
— para pedir o apoio da sociedade organizada na mobilização para
instalar a cpi da Covid. E assim aconteceu. Várias instituições
organizaram uma campanha denominada “cpi da Pandemia Já”
com o objetivo de pressionar os parlamentares para que fosse
realizada uma ampla investigação sobre as ações e omissões do
governo Bolsonaro no enfrentamento da covid-19. Qualquer pessoa
podia participar enviando e-mails e mensagens aos deputados e
senadores, além de compartilhar conteúdos sobre o tema nas redes
sociais.
Em abril, o movimento intensificou sua mobilização pregando a
“União para Salvar Vidas” e, no dia 6, organizou um expressivo
evento dirigido ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal
Federal. Na oportunidade, foi lançado um manifesto com vários
pontos e uma forte conclamação: “A Justiça e o Parlamento
precisam agir agora! Diante da maior calamidade sanitária de nossa
história, a Frente pela Vida apela aos ministros do Supremo
Tribunal Federal e aos membros do Congresso Nacional para que
ajam, com a urgência que a situação requer, para unir a Nação e
salvar vidas!”.
Nesse mesmo mês, a Frente pela Vida e o cns reuniram-se com
o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux,
demandando da Suprema Corte que, ao ser questionada por
membros do Congresso Nacional ou pela sociedade civil,
respondesse de pronto a esses eventuais apelos pela instalação da
cpi.
Logo em seguida, conseguimos um encontro da Frente com o
presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, senador
Rodrigo Pacheco, em que as entidades fizeram um dramático apelo
para a adoção urgente de medidas de enfrentamento da pandemia
pelo parlamento, entre elas a imediata instalação da cpi.
Ainda no mesmo período, o jornal Folha de S.Paulo publicou um
importante artigo de autoria de renomados professores da usp
intitulado: “Propagação da covid-19 no Brasil foi intencional”.
Nele, os autores e autoras provavam cientificamente que o governo
havia adotado a estratégia de buscar a denominada imunidade de
rebanho como plano de enfrentamento da pandemia. A
repercussão do estudo junto à comunidade científica foi enorme e
influenciou decisivamente na formação ou na mudança de opinião
de vários senadores quanto à condução governamental no combate
à pandemia.
O cerco ao governo se fechava.
E veio o 8 de abril de 2021, dia em que se bateu um triste
recorde: em 24 horas, mais de 4200 brasileiros perderam a vida por
causa da pandemia. Era comecinho de noite quando a notícia
correu: o ministro Luís Roberto Barroso tinha concedido
liminarmente o pedido de instalação imediata da cpi da Covid-19,
seguindo o ordenamento constitucional.
Em sua decisão liminar, Barroso reforçava as condições
constitucionais necessárias para a instalação de uma cpi: a) o
requerimento de um terço dos membros das casas legislativas, b) a
indicação de fato determinado a ser apurado e c) a definição de
prazo certo para a sua duração. Alegava também que a cpi não
podia “ser obstada pela vontade da maioria”.
A decisão não saíra sem a oposição expressa do próprio Senado,
que, em resposta à provocação da corte dias antes da decisão
liminar, alegou por intermédio de sua advocacia que a decisão de
abrir ou não a cpi era da estrita competência da presidência da
Casa, que a cpi não contribuiria em nada no combate à pandemia
e que não havia “compatibilidade técnica” para o funcionamento
de uma comissão parlamentar remota.
Os queixumes contra a instalação da cpi chancelada pelo stf
começaram no mesmo dia. O senador cearense Eduardo Girão, do
Podemos, classificou a decisão como “uma afronta” e disse que o
“freio” para o stf seria uma discussão no Senado sobre o
impeachment de alguns de seus membros. A respeito da
mortandade de brasileiros, nada.
O senador pernambucano Fernando Bezerra, então líder do
governo, chamou de “inoportuna” a medida liminar. A base
bolsonarista entrou em polvorosa e vociferou em uníssono contra o
que chamou de “quebra da autonomia e independência entre os
poderes”. Até mesmo alguns senadores independentes, como Omar
Aziz, futuro presidente da cpi, embora apoiassem a investigação,
questionaram a “interferência” do stf.
Renan Calheiros tratou de prestar apoio à decisão, seguido pelo
senador paranaense Alvaro Dias, do Podemos, e por dezenas de
outros senadores que defendiam a cpi, entre os quais nós, os autores
deste livro. Defendemos a posição da Suprema Corte, apontamos
os antecedentes de decisões semelhantes do stf durante os
governos do pt e cobramos que a comissão fosse instalada
imediatamente.
Ao determinar liminarmente a instalação da cpi, o ministro
autorizava o envio da querela à discussão no plenário. A maré tinha
virado. A imprensa se voltou inteiramente para o assunto, que
ganhou as ruas aos poucos e as redes sociais de imediato.

As redes sociais romperam o domínio bolsonarista da máquina de


trolls e de narrativas falseadas, trazendo o assunto à baila com
vídeos, relatos, áudios de centenas de casos de falta de assistência
básica às pessoas com covid, enquanto o governo federal ora
deliberadamente se eximia de suas responsabilidades, ora atuava
contra as medidas preventivas.
Um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, realizado em
agosto de 2021, mostrou como, a partir da decisão do stf a favor da
cpi, a pregação bolsonarista em defesa do “tratamento precoce” e
do “kit covid” — a criminosa indicação de remédios
comprovadamente sem eficácia contra a doença — foi perdendo
espaço até ser coberta por outros dois assuntos: cpi e vacinação.
Tínhamos saído das cordas.
Hoje, quando pensamos no dia da decisão do Supremo, nos vem
mais uma sensação de alívio do que de euforia. À época, estávamos
acabrunhados e impotentes diante do que acontecia no país. A
notícia vinda da Suprema Corte era animadora, mas, até a sua
plena materialização, ainda teríamos pela frente um grande
temporal a atravessar.
A decisão do Supremo abalou a certeza do governo de que não
seria investigado pelos seus atos e omissões cometidos durante a
pandemia. Jair Bolsonaro havia declarado guerra ao tribunal desde
o começo da emergência sanitária, quando mentirosamente alegou
que o stf havia retirado seus poderes de agir no combate à doença.
Em verdade, a corte reconheceu a estados e municípios o direito
de adotar medidas preventivas contra a covid, entre elas a restrição
da circulação de pessoas e do funcionamento de atividades
econômicas, o que já era uma garantia da própria Constituição. A
inexistência de qualquer plano nacional do governo federal para
enfrentar a doença mais do que justificava a decisão judicial.
Nos jornais, as especulações políticas tratavam da possibilidade
de formação de uma frente ampla contra o bolsonarismo
envolvendo partidos, movimentos sociais e sociedade civil que, por
falta de unidade política, não havia se concretizado. A cpi,
começávamos a ver, era um esboço real dessa frente, reunindo
desde a esquerda, passando pelo centro liberal e chegando até a
centro-direita no Senado.

A cpi estava começando a virar um assunto das ruas e das redes


sociais. Para se ter uma ideia dessa dimensão, o volume de buscas
pelo assunto “cpi da covid” no Google em abril de 2021 foi trinta
vezes maior do que no mês anterior. Cresceu enormemente o
interesse dos jornalistas pelo tema e também cresceram os temores
do Palácio do Planalto. Um sinal desse receio nos deixou bastante
surpresos.
A noite já tinha caído em Brasília, era começo da última semana
de abril de 2021, quando o ex-presidente José Sarney recebeu um
telefonema de Jair Bolsonaro. O presidente perguntou de súbito se
os dois poderiam ter uma conversa reservada; Sarney assentiu e
disse que estava à disposição, que poderiam marcar dia e hora. Qual
não foi o seu espanto quando Bolsonaro respondeu: “Eu vou hoje,
agora. Estou indo aí”.
Menos de meia hora depois, o comboio de carros da Presidência
chegou à casa do ex-presidente Sarney, à beira do lago Paranoá.
Bolsonaro queria fazer uma sondagem junto ao experiente político
do mdb, partido de maior bancada no Senado: seria possível conter
o apoio da legenda à cpi na Casa? Sarney poderia ajudá-lo a
construir uma ponte com os senadores da agremiação? Segundo
informações de bastidores, o capitão-presidente teria relatado a
Sarney sua insatisfação com o ex-presidente do Senado, Davi
Alcolumbre — do mesmo Amapá por onde Sarney foi senador por
24 anos, de 1991 a 2015 —, que o teria “deixado na mão” depois de
lhe prometer que “mataria essa no peito e agora sumiu no mato,
fica fugindo de mim e eu não consigo falar”.
O ex-presidente José Sarney mais ouviu do que falou, disse que
estava à disposição para desobstruir os contatos do presidente junto
ao partido, sem dar garantias de sucesso na empreitada — não
prometeu mais do que poderia dar. Nessa investida solitária e
improvisada, Bolsonaro se revelou um presidente sem articulação e
sem anteparos no Senado. Era a busca por um pacto desesperado
com a “velha política” que ele tanto dizia abominar.
Com esse gesto, Bolsonaro demonstrou que havia entendido,
ainda que tarde, que o flanco do governo fora definitivamente
aberto e procurou um cacique com influência reconhecida para
tentar minimizar os danos. Ao mesmo tempo, deixou evidente que
não tinha mais controle sobre a situação e que não dispunha de
uma bancada preparada para assumir a defesa das ações realizadas
pelo governo durante a pandemia.

Outro sinal de sua falta de controle sobre a situação evidenciou-


se no áudio, divulgado pela rádio BandNews, de uma conversa
telefônica entre o presidente e o senador Jorge Kajuru, um dos
signatários do mandado de segurança ao stf demandando a
instalação da cpi.
Na gravação da conversa entre os dois e, segundo Kajuru,
divulgada sem que houvesse oposição do presidente, em meio a um
amontoado de palavras incompatíveis com o decoro do cargo que
ocupa, Bolsonaro revelava contrariedade por ter de encarar a
investigação futura. Disse a Kajuru, sugerindo sua participação na
cpi: “Se você não participa, daí a canalhada lá do Randolfe
Rodrigues vai participar”. Em seguida ameaçou: “Daí, vou ter que
sair na porrada com um bosta desses”.
A menção à possível agressão física trouxe à tona um episódio de
2013 que expusera os traços de caráter do então deputado federal
Jair Bolsonaro. Como suporte à Comissão da Verdade, instalada
pelo governo Dilma Rousseff para trazer à luz fatos relativos à
violação dos direitos humanos durante a ditadura militar, a
Comissão de Direitos Humanos do Senado criou uma subcomissão
para ajudar nas investigações. Uma das atividades da subcomissão
era visitar locais em que possivelmente haviam sido praticados
torturas e/ou assassinatos contra oponentes da ditadura.
Um dos lugares a serem vistoriados era a antiga sede do doi-Codi
no Rio de Janeiro. No dia da visita, ainda cedo, lá estava o
deputado Jair Bolsonaro, com o intuito claro de produzir tumulto e
impedir a visita. O então senador João Capiberibe (psb-ap)
levantou a possibilidade de cancelar o evento, entendendo que o
objetivo de Bolsonaro era criar um fato político e até mesmo
produzir cenas de violência contra os senadores. Mas a subcomissão
seguiu adiante.
Colérico, Bolsonaro tentava bloquear a entrada aos berros,
dizendo que a visita era “coisa de vagabundo”. Ao ser confrontado,
armou um soco por baixo, que só não atingiu o estômago de um
dos autores deste livro porque a esquiva foi mais rápida — e ele
ainda tomou um empurrão, o que aumentou o tumulto. Um soco
por baixo — exemplo perfeito da pusilanimidade do personagem
que ascenderia ao mais alto posto da República.

* Daniel Weterman, “‘É preciso parar esse cara’, diz Tasso Jereissati ao defender
cpi da Covid, O Estado de S. Paulo, Política, 1o mar. 2021. Disponível em:
<https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,e-preciso-parar-esse-
cara,70003632533>. Acesso em: 25 jul. 2022.
4. O TABULEIRO DE XADREZ

Numa última tentativa de controlar a situação no Senado — a


essa altura Davi Alcolumbre já não tinha como dar qualquer
esperança a Bolsonaro de impedir a cpi —, o presidente chegou a
procurar o senador Renan Calheiros. Não diretamente — o fez por
intermédio do senador pernambucano Fernando Bezerra, então
líder do governo no Senado, do mesmo mdb de Renan. Numa
conversa com o colega alagoano, Bezerra o sondou sobre uma
possível ligação telefônica do presidente. Renan consentiu, não
colocou empecilho.
Bolsonaro, no entanto, fez um movimento que se revelou
desastroso: ligou para Renan Filho, governador de Alagoas e filho
mais velho de Calheiros. Errático na conversa, mais sondando do
que disposto a falar, o presidente foi alertado pelo governador de
que aquele não era o canal adequado para tratar de assuntos como a
cpi da Covid. Se quisesse falar com o pai, que o fizesse
diretamente, pois como governador aquilo lhe dizia respeito. O
telefonema teve efeito inverso e soou como uma ameaça a todos os
gestores estaduais — era ponto pacífico entre a tropa de choque do
governo no Senado que qualquer cpi que fosse instalada deveria
investigar também prefeitos e governadores, atribuição que, de
acordo com a Constituição, não é da competência do Congresso
Nacional. Contra Renan Calheiros, diretamente, ele agiria poucos
dias depois.
Renan traçaria ali uma linha definitiva de separação entre o
governo e ele. Ao revelar a ligação do presidente a um governador,
coincidentemente seu filho, expôs a insegurança de Bolsonaro e o
desespero da ameaça velada.
As ações do presidente para impedir a cpi ou minimizar seus
danos mostravam que ele já se dera conta de que precisava de
defesas. Porém, Bolsonaro era traído por sua natureza belicista, que
transformava arroubos conciliatórios, como o movimento de
construir uma ponte com Renan via Fernando Bezerra, em mais
conflitos. Nesse caso, terminou em uma reprimenda
desmoralizante de um jovem governador a um presidente da
República.

A decisão do ministro Barroso, determinando ao Senado a


abertura dos trabalhos da comissão, incomodou o presidente da
Casa, o mineiro Rodrigo Pacheco. Como dissemos, Pacheco
alegava desde janeiro que o momento “não era oportuno”, mas
agregava também o argumento de que “a cpi iria se transformar em
palanque político para 2022”. Como se Bolsonaro não estivesse
inteiramente mergulhado no campo da disputa política e com o
olhar voltado à eleição. Quando sabotava as medidas de prevenção
à covid, estava preocupado, única e exclusivamente, com as
repercussões políticas sobre sua candidatura de um eventual
agravamento da situação econômica.
É óbvio que todas as forças políticas também miravam 2022. No
entanto, nossa função parlamentar por excelência era expor o que
estava oculto na condução criminosa do governo no enfrentamento
da pandemia, investigar os fatos e comprovar a responsabilidade,
direta e indireta, do governo no seu trágico resultado. Esse era o
sentimento da sociedade e o desejo de dezenas de senadores,
muitos de vertentes quase opostas às nossas: lavajatistas,
emedebistas históricos, tucanos, gente de todo o espectro político
que constava da lista de assinaturas da cpi.
Do Palácio do Planalto, Bolsonaro disparou contra o stf,
especificamente na pessoa do ministro Barroso, acusando-o de ser
desprovido de “coragem moral”. Escreveu em seu Twitter que o
ministro se omitia “ao não determinar ao Senado a instalação de
processos de impeachment contra ministros do Supremo”, o
assunto preferido da pauta dos fanáticos.
À época, noticiou-se também que mesmo alguns ministros do stf
estariam incomodados com a decisão liminar de Barroso. Segundo
os críticos, ela deveria ter sido levada à discussão no plenário, pois
teria grande impacto ao interferir em outro poder da República. A
questão foi sanada no dia 14 de abril, quando o plenário ratificou a
decisão liminar do ministro Luís Barroso.
O Supremo, enfim, dava cabo ao protelamento que durava já três
meses, período em que a escala da morte foi ampliada por mais 152
mil brasileiros levados pela covid-19.

Por um dever de justiça, cabe ressaltar que, após a decisão do


stf, o presidente Rodrigo Pacheco rechaçou outras medidas
protelatórias solicitadas pela base bolsonarista e garantiu as
prerrogativas da comissão durante todo o seu funcionamento.
Depois de vários debates sobre o modelo de funcionamento da
comissão, no dia 19 de abril foi assinado o ato da mesa do Senado
que autorizou que a cpi iniciasse seus trabalhos de forma
presencial, sequencialmente à eleição da mesa diretora dos
trabalhos, que seria composta de presidência e vice-presidência.
No dia 27 ela foi instalada. A escolha do relator cabe ao
presidente eleito, embora, na prática, sempre seja resultado de
acordo entre os parlamentares que formam a maioria da comissão.
Seus integrantes são designados pelos líderes de cada partido em
número proporcional ao tamanho de cada bancada.
O habitual é que sua composição reflita a correlação de forças
existentes entre governo e oposição. A cpi da Covid fugiu a essa
regra por várias circunstâncias, e isso fez com que a oposição e os
independentes tivessem a maioria entre seus dezoito integrantes
(onze titulares e sete suplentes). Ali, ao nosso ver, se formaria o
embrião da única frente ampla que, até então, havia sido possível
construir contra Bolsonaro.
O psd, liderado pelo senador Nelsinho Trad, possuía a segunda
maior bancada do Senado e mantinha relações de proximidade
com o governo. Tinha entre seus membros o senador oposicionista
Otto Alencar, da Bahia, que, além de ser médico, tinha participado
da luta pela criação da cpi. Não havia como o líder negar sua
indicação. Por outro lado, o senador Omar Aziz, independente em
relação ao governo, era originário do estado do Amazonas, onde
ocorrera a maior tragédia de toda a pandemia. Teria que ser
indicado como titular da comissão.
No mdb, as circunstâncias também conspiraram a favor da
oposição. Renan Calheiros, além do importante papel que teve na
busca por novas assinaturas para a cpi, tinha sido preterido em
várias escolhas de sua bancada para a ocupação de espaços
estratégicos no Senado depois de sua derrota na eleição à
presidência da Casa em 2019, como já relatamos. Além disso, o
partido sozinho teria direito a duas vagas de titulares. Como negar a
Renan a prerrogativa de ocupar uma delas?
A outra vaga seria ocupada pelo líder do mdb, Eduardo Braga,
também representante do Amazonas e aliado pontual do governo.
O partido formava ainda um bloco parlamentar com o psl e o
Progressistas, a quem caberia uma vaga, para a qual foi indicado o
senador governista Ciro Nogueira, do Piauí, que inicialmente
liderava a tropa de choque bolsonarista da cpi e, no decorrer dos
trabalhos do colegiado, foi alçado ao comando da Casa Civil do
governo.
O psdb, liderado pelo senador Izalci Lucas, com direito a uma
vaga de titular, não tinha como não indicar o nome de Tasso
Jereissati para representar o partido na cpi. Ele tivera um papel
crucial na denúncia da trágica condução do governo no
enfrentamento da pandemia.
Nós, os dois autores deste livro, completávamos o time dos
oposicionistas titulares da comissão. Dependendo dos arranjos
internos que fizéssemos entre os membros, poderíamos construir
uma maioria de sete oposicionistas e independentes contra quatro
governistas. Foi o que afinal prevaleceu e gerou o chamado G-7,
que, se não tivéssemos habilidade em lidar com as eventuais
divergências que surgiriam, poderia, aqui e ali, transformar-se em
G-6, G-5 e até G-4, dependendo do tema que estivesse em votação.
Felizmente, conseguimos administrar essas situações e, por meio de
concessões mútuas, preservamos a unidade do grupo.
Compunham ainda o grupo de titulares os senadores governistas
Eduardo Girão, do Podemos, Jorginho Mello, do pl, Marcos
Rogério, do dem, e Luis Carlos Heinze, do Progressistas, que
assumiu a titularidade em substituição a Ciro Nogueira.
A construção dessa unidade política foi muito bem-feita. Tudo
teria que começar pela eleição da mesa (presidente e vice) e pela
escolha do relator da cpi. A tradição do Senado brasileiro é de que
essas posições sejam preenchidas pelas maiores bancadas,
alternando-se governo e oposição na ocupação das principais
posições (ainda que não haja uma definição rigorosa no Regimento
Interno da Casa nesse sentido).
Outra tradição observada é de que o autor do requerimento de
criação da cpi possa ocupar a presidência da comissão, não
importando o tamanho de sua bancada. Tudo isso “em condições
normais de temperatura e pressão”. Em uma cpi com a relevância
que essa poderia ter, os critérios de tradição não eram os mais
importantes.
Como dissemos, as circunstâncias políticas nos levaram a ter
maioria na comissão, e nós queríamos exercê-la em sua plenitude.
Para isso precisaríamos construir um acordo político que atendesse
a todos do G-7.
Era natural que o senador responsável pela iniciativa de colher as
assinaturas para a criação da comissão de inquérito viesse a ser
escolhido como presidente. Mas ganância, vaidade ou
inflexibilidade são vícios particularmente nocivos para quem quer
fazer política. Era fundamental que pudéssemos compor um grupo
heterogêneo o suficiente para fortalecer a legitimidade e a
capacidade de incidência da cpi. Se contássemos com um nome
como o de Eduardo Braga, do mdb, que, apesar da interlocução
que mantinha com o Planalto, havia-se como independente, não
estaríamos mal.
Definidos os membros da comissão, indicados pelos respectivos
partidos, fomos para os votos. Foi quando soubemos que Omar
Aziz, que tinha interesse direto na investigação da atuação do
governo federal no trato da pandemia no Amazonas, seu estado de
origem, começara a se articular para ocupar a presidência da cpi. A
própria presença de seu conterrâneo Eduardo Braga na comissão
era mais um motivo a justificar o seu pleito.
Tivemos essa informação na primeira reunião do grupo que
viraria o G-7. Omar não participou do encontro. Dessa primeira
reunião participaram também Alessandro Vieira, do Cidadania, e
Rogério Carvalho, do pt, que viriam a ser ativos suplentes da
comissão. Três nomes foram cogitados para a função de presidente:
Tasso Jereissati, Otto Alencar e Randolfe Rodrigues. Os dois
primeiros declinaram da indicação, alegando inclusive razões de
saúde. Otto informou ainda que teria dificuldades de não votar em
Omar, seu companheiro de partido, caso ele se apresentasse como
candidato. O mdb desde o início revelou seu interesse na relatoria
da cpi.
O nome de Omar para a presidência estava longe de ser uma
unanimidade. A condução da cpi seria muito difícil, e para alguns
de nós melhor seria que tivéssemos alguém mais flexível e maleável
do que Omar. Além disso, embora ele apoiasse a cpi havia algum
tempo, seu discurso no dia seguinte à decisão do Supremo que
mandou instalar a comissão, denunciando a interferência do
Judiciário no Legislativo, deixava dúvidas quanto à firmeza do seu
apoio. No entanto, os acontecimentos mostrariam que a escolha
havia sido acertada. Omar teve uma atuação firme na presidência, e
o sucesso da cpi deveu-se em parte por sua atuação.
Otto Alencar reafirmou seu compromisso de votar em Omar Aziz
e assegurou que não faltaria com a palavra dada ao representante
do Amazonas. Enquanto isso, os governistas começavam a cortejar
Omar prometendo apoio à sua candidatura em troca de espaços
estratégicos na comissão. Mantida a posição de Otto, poderíamos
sofrer um importante desfalque no G-7.
A unidade do nosso grupo estava em risco. Manter a candidatura
de Randolfe, apoiada por Humberto e pelo pt, poderia colocar a
unidade do grupo de oposição e independentes em risco. Mais uma
vez, o recuo foi a melhor estratégia para o ataque, e aceitar a vice-
presidência em nome de um projeto maior se mostrou uma opção
acertada.
No debate sobre a relatoria, as disputas internas do mdb
fervilhavam, até porque na bancada havia vários senadores da base
de apoio de Bolsonaro, inclusive o líder do governo no Senado,
Fernando Bezerra Coelho, de Pernambuco, e o líder do governo no
Congresso Nacional, Eduardo Gomes, do Tocantins. Além disso, o
próprio senador Eduardo Braga, líder da bancada, almejava o posto
de relator.
O nome de Renan Calheiros como relator nos pareceu logo uma
boa alternativa. Independentemente de nossas muitas divergências,
sabíamos que Renan era uma pessoa de posições firmes e que
honrava compromissos. Era também muito experiente na vida
parlamentar, tendo acompanhado o desenrolar de várias cpis. Não
era dado a extremos, tinha uma postura clara de oposição ao
governo, mas sempre foi aberto ao diálogo. Além disso,
acreditávamos que seu partido, o mdb, não faria ressalvas a sua
indicação, e não obstante tenhamos nos enganado quanto a haver
um consenso emedebista — Renan enfrentou uma série de
resistências internas —, o partido enfim chancelou sua indicação.
A composição, no entanto, revelava uma falha grave nossa e dos
nossos partidos: não havia nenhuma senadora entre os
participantes, titulares ou suplentes. Ao que cinco de nossas colegas
prontamente reagiram, formando um grupo que funcionaria
durante a cpi em uma espécie de rodízio para a arguição dos
depoentes.
Eram elas a maranhense Eliziane Gama, a brasiliense Leila
Barros, as sul-mato-grossenses Simone Tebet e Soraya Thronicke e
a representante do Rio Grande do Norte Zenaide Maia. Por uma
decisão acertada do presidente Omar Aziz, adquiriram
informalmente o direito de inscrever uma delas a cada sessão como
se titular fosse e ainda ocupar espaços entre os suplentes e não
membros que desejassem questionar os convocados. A tropa de
choque bolsonarista tentou impedir essa participação, alegando
questões regimentais, mas sofreu um forte rechaço e já despertou
de início uma enorme antipatia à postura do governo.
O grupo se revelaria em alguns momentos uma pequena
fortaleza dentro da cpi, ajudando a emparedar muitas testemunhas
com firmeza, tecnicidade e clareza nas perguntas. A senadora
Simone Tebet cumpriu um papel importante ao conseguir que o
deputado Luis Miranda (dem-df) revelasse que o presidente da
República teria feito referência ao deputado Ricardo Barros
(Progressistas-pr) como um dos possíveis envolvidos na compra
superfaturada da vacina indiana Covaxin. Ao lado da senadora
Soraya Thronicke, avançou para uma postura frontalmente oposta
às ações do governo durante a pandemia.
A senadora Eliziane Gama teve também um papel de grande
destaque — preparada, firme em seus argumentos, conhecedora e
estudiosa dos assuntos a que se dedicou na cpi. Foi também uma
das mais assíduas e pontuais.
Leila Barros protagonizou um episódio muito forte na comissão
durante o depoimento do ministro da Controladoria-Geral da
União (cgu), Wagner Rosário, que havia se dirigido com deboche à
senadora Simone Tebet. A sessão teve que ser suspensa e só
retornou após um pedido de desculpas do ministro, exigência firme
de Leila.
A senadora Zenaide Maia (Pros-rn) era sempre uma das últimas
a falar, mas suas colocações eram certeiras, firmes e ricas de
conhecimento médico, ela própria uma infectologista.

Ainda no começo dos trabalhos, logo após o anúncio da eleição


da mesa da comissão, houve mais um gesto do governo Bolsonaro
para tumultuar a cpi. Dessa feita por intermédio da deputada
federal Carla Zambelli, bolsonarista histórica paulistana, que
entrou com uma ação e conseguiu, junto à Justiça Federal em
Brasília, uma liminar que sustava a indicação do senador Renan
Calheiros como relator da comissão.
A mesa do Senado recorreu da decisão e contestou as alegações
de Zambelli de que, entre outras coisas, o senador não poderia
ocupar a relatoria da comissão por força de investigações em curso
contra ele nas cortes superiores. A decisão seria derrubada pouco
depois pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região. Mais uma vez
Bolsonaro se mostrava com uma articulação falha no Senado,
dependendo da ação isolada de uma deputada federal para tentar
conter a previsível sangria.
O mandado de segurança cruzado parecia despropositado. Mas
se prestava à permanente disputa de narrativas patrocinada pelos
grupos bolsonaristas. Contrapor-se ao senador Renan Calheiros
alegando denúncias de corrupção e até suspeição porque tinha um
filho governador era uma maneira de tentar desmoralizar a cpi e
reafirmar o discurso de que a comissão tinha apenas o objetivo
político de prejudicar o governo. A milícia digital era mantida no
ataque, embora essa força virtual contra a cpi já desse sinais de que
não era mais hegemônica.
Pouco depois de aberta a cpi, o governo deu outro bote. Foi
quando o senador piauiense Ciro Nogueira alegou “vício
insuperável” da comissão por ter entre seus membros senadores que
atuavam em outras cpis da Casa. À questão não foi dado
prosseguimento. O movimento não chegava a ser nenhum grande
arroubo por parte de Nogueira, mas podia indicar que talvez a
defesa do governo estivesse se organizando.
O roteiro da cpi começava a ser desenhado à medida que
juntávamos requerimentos e pedidos de informação. De partida
tínhamos 115 pedidos, que foram expedidos para os mais diversos
órgãos de controle, ministérios, agências ligadas à saúde pública,
especialistas e membros do governo federal. Essa rede que
lançamos traria muitos detalhes importantes para a comissão, por
exemplo, o que descobrimos quando questionamos o governo
federal a respeito de vacinas.
5. NO RINGUE DA POLÍTICA
NACIONAL

Durante meses a cpi mobilizou a atenção do país com


denúncias, debates acalorados e depoimentos reveladores do
descalabro da atuação do governo no enfrentamento da pandemia.
Alguns desses depoimentos foram marcantes pela importância das
informações que trouxeram; outros, pela forma como os depoentes
conseguiram, digamos, cumprir determinados papéis ou tumultuar,
sem que pudéssemos rebater como imaginávamos que fosse
possível. Sublinhamos três casos que consideramos muito positivos
e outros três em que nos cabe reconhecer que a cpi não foi tão
bem. Houve aqueles que chegaram a ressuscitar a comissão em
momentos críticos, outros que quase a fizeram adernar.
Um dos mais longos e esclarecedores depoimentos aconteceu no
dia 13 de maio, dado pelo executivo da Pfizer, sr. Carlos Murillo.
Ele revelou que, entre maio e dezembro de 2020, o laboratório
enviou mais de sessenta e-mails ao Ministério da Saúde priorizando
a venda de vacinas para o Brasil, todos sem resposta. Nas poucas
interações diretas que o Ministério da Saúde chegou a ter com a
empresa, apresentou como pretexto para a não continuidade das
negociações a existência da já citada cláusula de imunidade
jurídica, que protegeria a empresa de responsabilidades quanto a
intercorrências no uso da vacina.
Só depois de aprovado o projeto de lei que autorizava a adoção
daquela cláusula o governo se decidiu a comprar a vacina. Em 19
de março de 2021, o governo federal firmou o primeiro contrato de
compra de vacinas com a Pfizer. O fato que Carlos Murillo trouxe à
cpi foi aterrador: a primeira oferta da farmacêutica ao governo
brasileiro acontecera em agosto de 2020.
A primeira proposta foi enviada no dia 14 e não obteve resposta.
Perderia a validade em quinze dias a partir daquela data e previa o
acesso a mais de 70 milhões de doses entre dezembro de 2020 e o
último trimestre de 2021. Uma segunda proposta, enviada no dia
18, aumentava a quantidade de doses inicialmente ofertadas para
2020, indo de 500 mil a 1,5 milhão.
Na correspondência enviada pela empresa com data de 12 de
setembro de 2020, dirigida ao presidente Bolsonaro, ao seu vice e a
vários de seus ministros, a Pfizer cobrava uma posição do governo
alegando que, com a experiência de centenas de campanhas de
vacinação, o sistema público de saúde do Brasil poderia se tornar
um modelo de imunização global. Não houve resposta. Carlos
Murillo relatou à cpi o envio de seis propostas ao longo desse
período em que foram oferecidas pelo menos 70 milhões de doses
ao governo federal.
A ida do representante da Pfizer à cpi já estava confirmada, mas
cresceu em importância quando, na quarta-feira, 12 de maio de
2021, o ex-secretário de Comunicação do governo, o publicitário
paulistano Fabio Wajngarten, confirmou à cpi ter tomado
conhecimento, no dia 9 de novembro de 2020, de que as
correspondências da Pfizer dirigidas ao governo federal se
acumulavam sem resposta.
Essa informação, revelada por ele em uma entrevista à revista
Veja, seria por ele negada na cpi e confirmada ao vivo pela própria
revista, que publicou em seu portal os áudios da entrevista ainda
durante o depoimento. A informação lhe teria sido repassada por
um executivo de tv. Ou seja, o tratamento dado pelo governo ao
assunto era considerado tão absurdo que rompera o círculo
governamental e causava espanto entre executivos de grandes
empresas no eixo Rio-São Paulo. Tínhamos alguém que havia feito
parte do governo admitindo ao vivo que, por mais de dois meses, o
governo deliberadamente não respondera às propostas de venda de
vacina da Pfizer.
A cpi também demandava o compartilhamento de documentos,
quebras de sigilo e oficiamentos a órgãos públicos e de investigação,
como a Polícia Federal e o Ministério Público, a fim de esclarecer
questões e sugerir investigações mais aprofundadas. Uma delas
aconteceu por acaso, quando uma das equipes de trabalho
começou a analisar parte dos documentos enviados pelo Ministério
da Saúde, assim como os requisitados pela cpi ao ex-secretário de
comunicação Fabio Wajngarten e ao executivo da Pfizer, Carlos
Murillo, e se deparou com 36 correspondências adicionais enviadas
pela Pfizer ao governo federal sem que tenha havido uma resposta
sequer.
Enquanto isso, naqueles últimos seis meses, segundo relataria
depois uma reportagem do jornal americano The New York Times, o
então premiê israelense Benjamin Netanyahu, um direitista que
abraça políticas radicais e foi dos poucos líderes mundiais a
comparecer à posse de Bolsonaro, já havia ele próprio procurado a
farmacêutica 36 vezes a fim de acompanhar o máximo possível o
desenvolvimento da vacina. Israel seria um dos primeiros países a
atingir a vacinação plena meses depois.

Não fosse esse um governo em tudo anômalo e belicoso, os


passos normais do assunto seriam a anuência do Poder Executivo
junto ao Ministério da Saúde para a inclusão da União como
responsável jurídica em caso de ocorrências de eventos adversos
pelo uso da vacina, até hoje ínfimos em número. Estariam
derrubadas as barreiras para a aquisição de imunizantes, insumos e
serviços necessários à vacinação pública, estaria autorizada a
aquisição desses itens por dispensa de licitação, ampliando o acesso
a outros laboratórios produtores de vacinas, e os parâmetros
técnicos da Anvisa seriam equiparados aos de outras agências de
vigilância sanitária estrangeiras, como as de Israel, Índia e Rússia.
Se o governo Bolsonaro tivesse respondido à proposta da Pfizer
ainda em agosto de 2020 e tratado o assunto com a devida
urgência, é certo que teríamos contratado as vacinas no segundo
semestre, mesmo período em que outros 69 países acertaram a
compra do imunizante junto à farmacêutica. Essa intenção
inexistia. A omissão do governo era planejada e tinha como
resultado direto o aumento do número de vidas perdidas que
poderiam ter sido salvas com a chegada da vacina. De fato,
assistimos a uma queda expressiva do número de óbitos a partir de
abril de 2021, após o início da vacinação. Acumulamos pelo menos
quatro meses de atraso para o início da campanha.
Dias depois da passagem do executivo da Pfizer pela cpi,
precisamente em 27 de maio de 2021, tivemos a participação do
diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas. Seu depoimento foi,
do início ao fim, demolidor para o governo Bolsonaro. Ele afirmou
que o Brasil poderia ter sido o primeiro país do mundo a aplicar
uma vacina contra a covid-19 se o governo federal tivesse
cooperado seriamente com o instituto vinculado ao governo de São
Paulo. Dimas revelou que o acordo firmado entre a instituição e a
empresa chinesa Sinovac Biotech, responsável pela vacina
CoronaVac, permitiria que o Brasil produzisse 60 milhões de doses
do imunizante ainda em 2020. Para isso, necessitava da garantia do
Ministério da Saúde de que adquiriria toda a produção do
Butantan e de que contribuiria com os investimentos necessários à
adaptação da planta industrial para a fabricação da vacina. O
governo federal não deu essa garantia.
A posição do governo Bolsonaro novamente era de omissão,
inércia e sabotagem aos esforços para a obtenção de vacinas. Se, no
caso das grandes companhias privadas, o pretexto de Bolsonaro e do
ministro Pazuello para não negociarem a compra de imunizantes
eram as chamadas “cláusulas draconianas”, no caso das vacinas do
Butantan era a sua origem chinesa, o que, na visão difundida pelos
bolsonaristas, colocava em dúvida sua eficácia e segurança. Essa
postura xenofóbica tinha como pano de fundo posições políticas da
chamada “ala ideológica” do governo contra a China, país que
acusavam de ter criado o vírus da covid-19 e controlado a sua
disseminação com o objetivo de destruir a economia ocidental e
exercer uma hegemonia absoluta sobre o mundo. O discurso ainda
incluía a visão de que os chineses seriam beneficiados pela
pandemia criada por eles próprios ao venderem insumos diversos
(vacinas em especial) para a prevenção e o tratamento da covid-19.
Essa narrativa inundava as redes bolsonaristas sob a forma de
memes e fake news.
Como consequência dessa “sinofobia”, estados, municípios e o
próprio governo federal tiveram dificuldades para adquirir insumos
e equipamentos necessários ao enfrentamento da pandemia, a
maior parte deles produzida na China. A cada declaração contra a
China do então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo,
ou do deputado federal Eduardo Bolsonaro, instituições como a
Fundação Oswaldo Cruz, produtora da AstraZeneca, e o Instituto
Butantan enfrentavam problemas para obter insumos necessários à
produção dos imunizantes. As falas de Bolsonaro e seus apoiadores
na Câmara e no Senado lançando suspeitas contra a CoronaVac
dificultaram o recrutamento de voluntários para o processo de
testagem da vacina, tamanha a desinformação que as hostes
bolsonaristas patrocinavam nas redes sociais.
Mas, em verdade, o que estava em jogo, além da visão
anticiência do governo, era uma mesquinha disputa política de
Bolsonaro contra o então governador de São Paulo, João Doria, do
psdb, que havia sido seu aliado nas eleições de 2018 e acabou
transformado em seu arqui-inimigo político a partir do momento
em que revelou sua pretensão de disputar a Presidência em 2022.
Correndo por uma faixa do eleitorado comum ao presidente, um
eventual sucesso de Doria na produção de vacinas para o Brasil
poderia trazer-lhe grande prestígio político e aumentar as suas
chances eleitorais. Esse cenário provocava insônia em Bolsonaro e,
portanto, teria que ser evitado a todo custo, mesmo que isso
impedisse o acesso da população a vacinas contra a covid.
Dimas desnudou, numa fala amparada por documentos, como o
primeiro ofício enviado ao ministro Pazuello no dia 30 de julho de
2020, propondo a parceria para a produção da CoronaVac, ficou
sem resposta. Ainda que houvesse uma forte pressão social por
vacinas e uma enorme expectativa de governadores e prefeitos pelo
sucesso do projeto Butantan/Sinovac, Bolsonaro sabotou o quanto
pôde todas as tentativas de negociação com o governo paulista.
Numa fala do presidente exibida pelo relator da cpi, Renan
Calheiros, durante o depoimento de Dimas, o “Messias” aparecia
ameaçando Doria: “Eu que sou governo, o dinheiro não é meu, é
do povo, não vai comprar tua vacina também”. O presidente
tomava para si o controle de algo que era um bem de interesse
público, e sua fala, ao coincidir com uma sinalização de compra
que partira do próprio Pazuello, travou novamente as negociações,
conforme Dimas confirmaria em sua oitiva.
As omissões nas respostas ou o prolongamento de discussões
improdutivas para impedir a celebração dos contratos de compra
representavam para os laboratórios a mudança em cronogramas de
fabricação e de entrega, alterações logísticas e o crescimento da
demanda de outros países interessados nos insumos ou na própria
vacina. Ou seja, o Brasil ficava para trás num assunto em que
poderia ser exemplo global.
Aquela fala de Bolsonaro aconteceu em 29 de outubro de 2020,
dias depois de um anúncio pomposo de Pazuello de que iria
adquirir para o sus as vacinas produzidas pelo Butantan. Dimas
Covas relatou durante o seu depoimento que, pouco antes de ser
desautorizado publicamente por Bolsonaro, Pazuello chegou a
tratar a CoronaVac como “a vacina do Brasil”.
Dias antes do desmentido público de Bolsonaro, havíamos
assistido a um dos episódios mais constrangedores da história
política brasileira. Em um vídeo ao lado de Bolsonaro, o ministro
negaria a compra anunciada por ele próprio, respaldaria a decisão
do presidente e produziria uma das maiores pérolas da
subserviência política já vistas em nosso país ao proferir a célebre
frase: “Um manda, o outro obedece”. Naquele mês de outubro, o
Butantan havia aumentado de 60 milhões para 100 milhões a
oferta de doses ao governo federal. Mas, de 21 de outubro até 7 de
janeiro de 2021, o governo federal se manteve inerte. Foram mais
de dois meses e milhares de vítimas da covid-19.
As dificuldades do Butantan, porém, não se restringiam à compra
das vacinas pelo governo. O instituto, ainda em agosto de 2020,
havia requerido ao Ministério da Saúde 80 milhões de reais para
custear parte da pesquisa científica, das melhorias dos laboratórios e
da planta de produção de vacinas — essas reformas mais que
dobrariam a capacidade do instituto de fornecer imunizantes ao
país. Não houve resposta. E, quando houve, no início de 2021, o
instituto já tinha assegurado os recursos para o investimento a partir
da manifestação de intenção de compra de vacinas por dezessete
estados da federação. Ou o governo Bolsonaro não chegava quando
chamado ou chegava tarde demais.
6. A TEMPERATURA NÃO PARA DE
SUBIR

Diante de milhões de brasileiros e brasileiras que acompanhavam


a cpi, as provas contra Bolsonaro e seu governo se avolumavam,
mas o ritmo da comissão nem sempre correspondia à expectativa
gerada pelos depoimentos mais concorridos.
A coleta de informações era rápida, outro sinal de mudança dos
tempos. Documentos ou pedidos de informação que, em cpis
anteriores, poderiam levar semanas para chegar até nós, eram
obtidos agora mediante alguns cliques, em parte enviados até
mesmo por perfis de redes sociais. Ao mesmo tempo, o gigantesco
rol de informações de que dispúnhamos dificultava o seu rápido
processamento. A audiência da cpi na internet e nos meios de
comunicação tradicionais variava de acordo com a expectativa de
informações explosivas para serem compartilhadas. E nem sempre
nós as tínhamos.
Em meados de junho, já ouvíamos aqui e ali nos corredores do
Senado ou na conversa com a imprensa, durante o cafezinho, que
“era hora de acabar a cpi”, que não havia muito mais o que
descobrir, que a comissão tinha que terminar seus trabalhos em
alta. Havia o receio da perda de relevância da cpi e, em
consequência, o aumento da contrapressão por parte do governo.
Foi quando apareceram os irmãos Miranda.
Os rumores de que um deputado bolsonarista dispunha de
informações que comprometeriam Bolsonaro no trato da compra
de vacinas começaram a circular na segunda quinzena de junho e
caíram como uma bomba entre nós, gerando novo ânimo na
comissão. Luis Miranda, deputado federal pelo então dem-df, tido
e havido como bolsonarista, com inúmeros registros nas redes
sociais ao lado do presidente, fez chegar à cpi a informação de que
dispunha de provas de prevaricação do presidente. Bolsonaro, ao ser
informado a respeito de possível ato de corrupção na compra da
vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde, não teria agido
para contê-lo. A convocação de Miranda foi aprovada sem
dificuldades.
Já na cpi, ao lado do irmão, Luis Ricardo, funcionário de carreira
do Ministério da Saúde e membro da divisão de importação do
órgão, Miranda contou, em consonância com o que alegaria o
irmão durante todo o depoimento, que em 20 de março de 2021
alertou o presidente Bolsonaro de que a compra da vacina Covaxin,
intermediada pela empresa Precisa junto ao ms, continha vícios de
origem que indicavam corrupção. Foi quando, segundo Miranda,
Bolsonaro ligou o assunto espontaneamente ao então líder do
governo na Câmara dos Deputados, Ricardo Barros (pp-pr), como
se fosse algo conhecido ou esperado.
Além de denunciar vícios de origem no processo de compra da
Covaxin, como a inclusão de documentos falsificados, divergentes
ou adulterados, o irmão do deputado relatou ter sofrido uma
pressão incomum para a assinatura do contrato junto ao Ministério
da Saúde. De uma só vez, tínhamos descortinado uma série de
interesses e possíveis crimes partindo de pessoas ligadas ao governo,
como advocacia administrativa por parte do líder do governo na
Câmara, além de prevaricação por parte de Bolsonaro, que, diante
da informação, nada fez para cessar o contrato.
Foi somente com a pressão que se seguiu ao depoimento dos
irmãos à cpi que o Ministério da Saúde anunciou o rompimento do
contrato com a Precisa, empresa responsável pela intermediação da
compra de milhões de doses de Covaxin, àquela altura com as
entregas de doses iniciais já atrasadas. A tropa de choque
bolsonarista tratou de disseminar a falsa informação de que o
presidente havia demandado ao Ministério da Saúde a investigação
do tal contrato, ato que não constou em nenhum registro oficial
desde que o processo de análise do documento deu entrada no
órgão.
No cômputo geral, portanto, o depoimento dos irmãos serviu
para dar um fôlego enorme à cpi, que recuperou naquela tarde
parte da atenção que começava a se dispersar, do interesse da
imprensa tradicional, da relevância junto à população que nos
assistia, além de render inúmeros pedidos de procedimentos que
ainda descansam nas gavetas da Procuradoria-Geral da República.
Além do negacionismo do governo durante todo o enfrentamento
da pandemia, constatamos fortes evidências de crimes de corrupção
nesse episódio e em outros, como as denúncias contra vtcLog, fib
Bank, Belcher, Precisa Medicamentos, Global etc.

Afora o que revelaram por si, os três depoimentos nos parecem


hoje momentos em que estivemos muito afinados: o G-7, os
suplentes do grupo e as senadoras que formaram o coletivo. A lista
de perguntas de que dispúnhamos não dava nem ideia do processo
exaustivo que havia por trás nos nossos gabinetes para a sua
produção. Pilhas de documentos, centenas de ofícios, denúncias,
notas técnicas, informações passadas por jornalistas e internautas
precisaram ser destrinchadas para que flancos não ficassem abertos,
especialmente nas sessões de inquirições. No entanto, muitas vezes
não conseguimos manter essa coesão e, por vezes, o que tínhamos
em mãos não era o suficiente para o questionamento mais profundo
dos elementos-chave da política do governo durante a pandemia.
Houve depoimentos difíceis, como os do então ministro da
Saúde, Eduardo Pazuello, e do líder do governo, Ricardo Barros.
Outros, como o do empresário Luciano Hang, sempre achamos
que não deveriam sequer ter acontecido.
No fim de abril de 2021 nos chegaram informações sobre pessoas
ligadas a uma empresa de media training de Brasília dando conta
de um suposto mau desempenho do ministro Pazuello durante as
sessões de preparação para o seu depoimento à cpi, inicialmente
marcado para o dia 5 de maio. O ministro demonstrava
impaciência, irascibilidade e teria chegado a dizer muitas vezes
que, do modo como a inquirição se encaminhava — e poderia ser
ainda pior na cpi —, ele estaria exposto e seria responsabilizado por
tudo sozinho. Alegando contato com pessoas diagnosticadas com
covid-19, Pazuello conseguiu adiar por catorze dias a sua fala à cpi,
que só ocorreria em 19 de maio.
Sabíamos, no entanto, que o real motivo da ausência era o
despreparo do ministro, necessitado de maior atenção e
treinamento. Para o adiamento, ele contou também com a mão
generosa do presidente da cpi, Omar Aziz, que tendia a afastar
conflitos entre a cpi e os militares da ativa.
Aziz, por exemplo, era contrário à convocação do ministro Braga
Netto — coordenador principal da equipe ministerial responsável
pelas medidas de enfrentamento da covid durante o período em
que foi chefe da Casa Civil — e manteve esse veto por todo o
período em que perdurou a cpi. Para isso, Aziz contou com o apoio
da maioria dos senadores do G-7, entre os quais Tasso Jereissati,
Otto Alencar e Eduardo Braga. Eles defendiam que era prudente
manter a cpi a uma distância razoável de certas figuras da caserna,
como sinal de respeito às Forças Armadas. O próprio Jereissati
afirmava, em reuniões internas do G-7, que não poderíamos correr
o disco de “galvanizar nas Forças Armadas um oponente da cpi”. A
partir do dia 7 de julho, quando se contavam 527 mil mortos, esse
quadro mudaria em parte. Aziz se deu conta de que o cuidado que
ele tinha na relação da cpi com as Forças Armadas poderia não ser
recíproco.
Quando a cpi descobriu que, nas negociações para a compra de
vacinas e insumos afins, existia no Ministério da Saúde uma série
de lobbies em torno dos contratos, grande parte administrados por
militares levados para a pasta pelo ministro Pazuello, Aziz
caracterizou a existência do que chamou de uma “banda podre” da
caserna atuando no ministério. Longe de generalizar o
comportamento dessas pessoas à instituição das Forças Armadas,
Aziz se referia a determinados indivíduos envolvidos em
negociações suspeitas que ocupavam posições de mando no
ministério. A seriedade das denúncias e a força dos indícios ensejou
a primeira ordem de prisão dada pela cpi, contra o ex-diretor de
logística do ms Roberto Dias. Mesmo assim, os militares reagiram
ouriçados.
Em nota oficial, os comandantes das três Forças Armadas
reagiram como se as acusações tivessem sido dirigidas às
instituições. Não deixaram a crítica circunscrita aos militares
supostamente envolvidos em corrupção, mas, ao contrário,
afirmaram que não iriam aceitar “qualquer ataque leviano às
instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo
brasileiro”. A respeito das denúncias de corrupção, nenhuma linha
sequer.
Naquela tarde, quando tomamos conhecimento da nota das
ffaa, um rebuliço tomou conta do plenário do Senado. “O que
faremos?” era a pergunta mais ouvida entre os senadores ali
presentes, dentre eles Davi Alcolumbre, que opinou ser gravíssima
a nota, mas que não tinha certeza de que o melhor caminho para o
Senado seria partir para o confronto. Muitos de nós argumentamos
que era hora de falar, e que calar só daria razão ao absurdo que era
a publicação da nota, já que, nem de longe, as ffaa foram atacadas
pela cpi.
Não surpreende que senadores de oposição, como nós,
condenássemos a nota com veemência. Fizemos nosso papel. Tão
ou mais importante foi o fato de que uma figura como Omar Aziz
fosse ainda mais enfática. Ele disse que poderiam fazer cinquenta
notas iguais que não o intimidariam, e que os bons das Forças
Armadas deveriam estar muito envergonhados pelo teor do que
havia chegado a público. Aziz cobrou de Pacheco uma declaração
firme da Casa contra o que considerava uma provocação dos chefes
militares. O presidente, com seu espírito excessivamente
conciliador, saiu-se com um discurso sem força alguma de que era
preciso solidariedade e união. O episódio, no entanto, deu mais
coesão naquele momento à cpi. Os senadores entendiam que a
nota das ffaa era, no mínimo, desmedida para a ocasião. Vários
senadores se manifestaram em solidariedade a Aziz e contrários às
ameaças.
Quanto ao depoimento de Pazuello, na nova data agendada ele
chegou à cpi mais seguro do que esperávamos, embora a aparente
segurança não fosse suficiente para esconder as contradições e
inverdades de suas declarações. Muitas delas nos seriam úteis mais
à frente, inclusive nos depoimentos dos irmãos Miranda, que
confirmaram à comissão que a dose da Covaxin chegara a ser
negociada com o governo pelo preço de quinze dólares, bem mais
que a oferta inicial da Pfizer, em agosto de 2020, que era em torno
de dez dólares. Segundo o ministro, o “alto preço” cobrado pela
empresa norte-americana teria sido o principal entrave para a
continuidade das negociações do governo com a farmacêutica. Ou
seja, mentira.
Nesse mesmo período, para agravar ainda mais a situação do
governo, o laboratório responsável pela vacina indiana não havia
apresentado à Anvisa nem sequer os protocolos da segunda fase de
testes em seu país de origem, ao passo que a Pfizer já se encontrava
na última etapa e alcançara o percentual de 95% de proteção
contra as variantes então conhecidas da covid-19. Não era questão
de apenas pagar mais caro, mas pagar mais por um produto de pior
qualidade ou, no mínimo, de qualidade e segurança incertas. E o
ministro tinha informações claras a esse respeito.
O treinamento de mídia, que se estendeu por duas semanas além
do inicialmente esperado, foi eficaz o bastante para que Pazuello
mentisse, omitisse fatos e tomasse para si responsabilidades que
eram do seu chefe, Bolsonaro. Ainda que oscilando, muitas vezes,
entre o nervosismo e a impaciência, o fez de forma contundente, o
que serviu à falsa narrativa das redes bolsonaristas de que ele nos
havia deixado nas cordas.
Perguntado, por exemplo, sobre a ocasião em que, alquebrado
pela covid-19, confirmara a desistência da compra da CoronaVac
pelo ms e se submetera à humilhação imposta por Bolsonaro de
responder com o famoso “um manda e o outro obedece”, Pazuello
disse à cpi que se tratava de “um jargão militar, apenas uma posição
de internet”. Apesar de confirmar o teor da fala do presidente,
ativamente contrária à compra das vacinas, era incapaz de admitir
sua responsabilidade e a de Bolsonaro sobre os efeitos da decisão,
reduzindo o discurso de ódio a uma encenação teatral, como se não
existissem consequências das falas da maior autoridade da
República.
A respeito da tragédia em Manaus, o hoje ex-ministro cobriu-se
de contradições e cinismo. Afirmou que só teria tomado
conhecimento do risco de colapso na noite do dia 10, mentira que
sustentou alegando que havia conversado com o secretário de
Saúde do Amazonas por telefone no dia 7 de janeiro sem que ele
tivesse mencionado a questão.
No entanto, Marcellus Campêlo, então secretário estadual de
Saúde, não só confirmou que tratara da iminente falta de oxigênio
como divulgou o ofício enviado ao ms no dia 7, em que dava conta
da situação crítica. Outro ofício, enviado pela Advocacia-Geral da
União ao Supremo Tribunal Federal ainda em janeiro, informou
que o governo tinha conhecimento do risco pelo menos dez dias
antes de se iniciar a tragédia que matou mais de 3 mil pessoas no
Amazonas.
Pazuello insistiu ainda que a resposta do governo teria sido
marcada pela presteza e pelo senso de urgência, e que no dia 13 de
janeiro o fornecimento de oxigênio já havia sido regularizado. A
afirmação foi veementemente rebatida pelo senador Eduardo
Braga, do mdb do Amazonas, que testemunhou o caos que só
começou a ser estancado depois do dia 20, quando, de fato, as
remessas de cilindros de oxigênio tiveram seu curso retomado e só
aos poucos normalizado.
Mesmo diante de todos os fatos expostos, Pazuello seguiu em sua
cruzada de bom soldado, cumpridor de missões impossíveis, como
a que se desenrolava ali, ao chamar para si as responsabilidades que
poderiam ser divididas entre ele e Jair Bolsonaro. Ao fim do
depoimento, perguntado sobre o que sentia após ter deixado o
ministério e um rastro de 426 mil mortes, ele escolheu a expressão
“missão cumprida”, provocando em todas as pessoas de bom senso
um gosto amargo de revolta e frustração e a referência involuntária
à banalização do mal de quem alega que cumpriu ordens, mesmo
que elas tenham resultado na morte de milhares de pessoas.
Pazuello seria premiado por Bolsonaro no fim de semana
seguinte à data de seu depoimento com uma participação especial
em um ato político de apoio ao presidente no Aterro do Flamengo,
no Rio de Janeiro. O general, descumpridor da lei tal qual seu
chefe — outrora expulso das Forças Armadas, entre outras condutas
criminosas, por um plano para explodir bombas-relógio em
unidades militares do Rio, segundo relatório produzido à época por
três coronéis responsáveis pela investigação —, foi ovacionado pelos
presentes.
A partir dali, numa demonstração inacreditável de escárnio, seu
nome passaria a ser cotado como candidato a governador do Rio de
Janeiro com o apoio ostensivo do presidente da República.* Sua
participação, como general de divisão que ostentava três estrelas,
em um ato de caráter deliberadamente político-partidário, foi um
ataque frontal ao Código Penal Militar e ao Regulamento
Disciplinar do Exército, que veda esse tipo de conduta a militares
da ativa.
Diante da flagrante agressão à lei, o Comando do Exército abriu
um procedimento administrativo para apurar a conduta de Eduardo
Pazuello. Mas, por pressão de Bolsonaro e em articulação com
outros generais do governo, o então comandante da força, Paulo
Sérgio Nogueira de Oliveira, empastelou, de maneira silenciosa, a
apuração e livrou a cara do colega. Em uma nota lacônica, o
Exército comunicou em seu site que
o comandante [...] analisou e acolheu os argumentos apresentados por escrito
e sustentados oralmente pelo referido oficial-general. Desta forma, não restou
caracterizada a prática de transgressão disciplinar por parte do general
Pazuello. Em consequência, arquivou-se o procedimento administrativo que
havia sido instaurado.

Ato contínuo, o Comando do Exército, por determinação do


Planalto, presenteou o testa de ferro de Bolsonaro que operou a
imunidade de rebanho e demais práticas obscurantistas que
levaram à morte milhares de brasileiros com a blindagem de cem
anos de sigilo sobre o processo que o isentou de responsabilidade
na participação do ato político-partidário.

Logo após ser mencionado pelos irmãos Miranda — quando


relataram que o próprio presidente, ao saber das suspeitas de
corrupção na compra das vacinas indianas, alegara que “isso é coisa
do Barros” —, Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, raposa
velha do pp e ex-ministro da Saúde do governo Michel Temer,
passou a insistir na sua convocação para a cpi. Essa pressão veio de
diversas direções e formas, como telefonemas do próprio Ricardo
Barros, a quem respondemos algumas vezes que não entendíamos
tamanha pressa, já que quem definia a data dos depoimentos era
quem investigava, não quem deveria ser investigado.
Omar Aziz também não estava livre do lobby e recebeu
telefonemas constrangedores de Barros, assim como de Arthur Lira,
presidente da Câmara, forçando a convocação. Era começo de
agosto de 2021 e, aos poucos, a pressão começava a fazer efeito. O
primeiro a se convencer de que a convocação deveria ser apressada
foi Aziz. Ele também alegava que, estando num daqueles
momentos de baixa audiência, a cpi poderia retomar o
protagonismo no noticiário daqueles dias. Na nossa opinião, a
pressão que Barros fazia indicava que ele tentaria utilizar o
depoimento a seu favor, promovendo uma encenação teatral. E foi
o que aconteceu no dia 12 de agosto.
Antes, naquela semana, o programa Profissão Repórter, da Rede
Globo, exibiu uma extensa matéria a respeito de um escândalo de
saúde no Paraná, armado por uma empresa denominada Global,
que intermediava a venda a órgãos públicos de insumos de saúde
que nunca eram entregues e que, de acordo com investigações do
mpf e da Polícia Federal, tinham os recursos desviados por um
grupo supostamente liderado por Ricardo Barros.
A cada indagação e contradição exposta durante seu depoimento
à cpi, o deputado dobrava a aposta com mais manipulação e
negativas. Negou qualquer participação na negociação para a
compra da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde e
atribuiu essa acusação a um imenso “mal-entendido”, que incluía o
fato de Luis Miranda ter levado ao presidente uma foto sua numa
reportagem que abordava o escândalo da Global.
Esse era o nível de desfaçatez a que estávamos submetidos
naquele depoimento. Mas, graças a seu atrevimento e seu talento
retórico, Ricardo Barros produziu tamanho tumulto na cpi que, ao
final, consideramos a sua participação uma derrota para nós. O
auge da nossa revolta foi ter ouvido do depoente que nosso trabalho
estaria afastando laboratórios interessados em negociar vacinas com
o Brasil (leia-se Bharat Biotech/ Covaxin) e gerando insegurança
jurídica para potenciais investidores. A acusação soou ainda mais
grave porque os esforços da cpi sempre se concentraram em
denunciar e eliminar as dificuldades criadas pelo governo para
adquirir vacinas dos grandes laboratórios internacionais. Foi o
bastante para que aquele espetáculo grotesco fosse encerrado sob
protestos de toda a mesa.
Omar suspendera a reunião por alguns minutos para acalmar os
ânimos e, numa conversa à parte no auditório, numa formação que
lembrava a de um time de futebol antes de entrar em campo, disse
que era hora de demonstrarmos união, aproveitarmos o intervalo
para nos recompor e tentarmos organizar as perguntas para serem
mais incisivas. A sugestão foi aceita também sob o argumento de
Renan Calheiros de que, àquela altura, o que mais poderia
incriminar Ricardo Barros era deixá-lo falar. Foi o que fizemos até o
limite demarcado por Barros, quando deixou a comissão.
Foi no grito e na trapaça, mas foi uma vitória da narrativa
governista de que ele tinha colocado a cpi nas cordas do ringue.
Nos dias seguintes, recortes de trechos da participação de Barros na
cpi, retirados do contexto ou incompletos de sentido, foram
bastante divulgados pelas redes sociais bolsonaristas, levantando um
ânimo que andava muito em baixa desde, pelo menos, o
depoimento de Pazuello, recebido com bons olhos pelas hostes
governistas.

* Pazuello concorreu a deputado federal pelo pl, mesmo partido de Bolsonaro,


nas eleições de 2022.
7. BACALHAU E ÓPERA-BUFA

No decorrer das atividades da comissão, muitas negociações a


respeito de convocações, quebras de sigilo e requisição de
documentos eram definidas na casa do presidente, Omar Aziz,
onde acontecia toda semana, em geral às segundas, a Bacalhoada
do Omar, prato-chefe do senador do Amazonas.
Foi num desses jantares que, ainda em agosto, Renan Calheiros
sugeriu a convocação do empresário Luciano Hang, notório
apoiador do presidente e supostamente identificado como um dos
principais financiadores da rede de desinformação e militância do
bolsonarismo. Essa informação é corrente desde o início dos
trabalhos da cpi Mista das Fake News. Renan argumentava que a
atuação de Hang, se desnudada pela cpi, poderia apontar uma
ligação direta do empresário com a Presidência da República e sua
participação ativa na sabotagem ao combate à pandemia no âmbito
privado.
Nós ignoramos e mudamos de assunto o quanto pudemos sempre
que o nome de Hang vinha à tona. Achávamos que, assim como
Barros, o chamado “Véio” da Havan poderia produzir na cpi um
enorme tumulto e novamente armar os fanáticos de argumentos
contra a comissão. O personagem, no entanto, despertava o
interesse de alguns senadores que, como ele, defendiam o uso de
tratamentos comprovadamente ineficazes contra a covid e viam na
sua presença uma oportunidade de propagação dessas ideias.
Outros senadores ansiavam por fazer o oposto: contestá-lo por
suas bizarras posições e responder aos frequentes ataques que fazia
à cpi, à ciência e às medidas de prevenção contra o coronavírus.
O senador Otto Alencar chegou a dizer, numa das bacalhoadas,
que iria providenciar uma gaiola do tamanho de Hang a fim de
prendê-lo com aquela fantasia verde e amarela que o fazia lembrar
um imenso papagaio. Aziz, influenciado por Renan, alegava que
não havia o que temer, que ele próprio seria duríssimo e que o
empresário não teria como “crescer” para cima do senador.
O requerimento de convocação de Hang foi apresentado por
Renan Calheiros e aprovado em tempo recorde por Aziz, numa
sessão em que havíamos nos demorado um pouco mais que o
normal para chegar ao auditório. Fomos pegos de surpresa, e a
preocupação logo nos dominou, mas não havia o que ser feito a não
ser protelar o depoimento. Fizemos vários apelos a Omar Aziz no
sentido de não fazermos a oitiva ou, no mínimo, adiá-la sem
previsão de data para a sua realização. Aziz inicialmente pareceu
concordar com nossa ponderação, mas depois voltou à carga e
manteve o pedido de Renan Calheiros.
Então, em 29 de setembro abrimos o púlpito da cpi ao
espetáculo grotesco de mentiras e manipulação do empresário
catarinense Luciano Hang. Ao contrário do que esperavam e
prometiam, os senadores Renan Calheiros e Otto Alencar não
conseguiram se contrapor ao depoente, muito menos extrair dele
declarações que nos fossem úteis. Houve diversos conflitos no início
da reunião envolvendo senadores de nosso grupo, como Rogério
Carvalho e Jean Paul Prates contra Hang, seus advogados e vários
senadores e deputados que vieram prestar solidariedade ao grotesco
personagem e tentar desmoralizar a cpi.
Nosso companheiro Otto Alencar, além de não trazer a citada
gaiola para prender o clone do personagem Louro José, do
programa global de Ana Maria Braga, indignou-se com Omar Aziz
por ele ter autorizado a apresentação de um vídeo institucional da
empresa Havan, de propriedade do depoente. Irritado, deixou a
sessão, que teve que ser interrompida depois de um sério confronto
entre o senador Rogério Carvalho e um dos advogados do
empresário que insistia em debochar dos senadores e da cpi. A
reunião só viria a ser retomada depois que o causídico apresentou
suas desculpas ao parlamentar.
Diferentemente do que prometera, Aziz não conseguiu impedir
que Hang “crescesse” e demorou muito mais do que de costume
para reassumir a presidência. Alguns senadores do G-7 e seus
suplentes, bem como nós, os autores deste livro, ainda tentamos
impor limites ao histrionismo do personagem. Em vão.
Desde o início, fomos contra a convocação de Hang. Ele é um
ator de ópera-bufa, com uma retórica de vendedor que, mesmo ao
confessar, respondendo a uma inquirição da senadora Eliziane
Gama, que havia contribuído financeiramente para a compra de
milhares de “kits covid” distribuídos em Santa Catarina, o fazia
com a segurança de quem tinha praticado um ato legal, ou pior, de
alguém que tinha a convicção de que estava resguardado pela
impunidade típica. Exalou idêntico cinismo quando admitiu fazer
campanha aberta contra a vacinação, dando como exemplo a si
próprio por já ter pego covid-19. Ao mesmo tempo, confirmou
haver procurado o Ministério da Saúde para assuntar, como já
registramos aqui, a possibilidade de empresas particulares
adquirirem lotes de vacina, algo proibido por lei.
Assim como nos depoimentos de Pazuello e de Ricardo Barros, as
redes bolsonaristas deram vazão, nos dias seguintes ao depoimento,
a dezenas de recortes da fala do empresário, retiradas de seu
contexto original e que serviram de bucha para os canhões de
Bolsonaro nas redes sociais.
Nas sessões consideradas importantes pelo governo, geralmente
pela presença de militantes bolsonaristas, empresários ricos e
influentes ou membros do Poder Executivo, havia um
engrossamento da tropa do governo na cpi, que contava com a
chegada sempre tumultuosa do senador Flávio Bolsonaro e mesmo
do deputado Eduardo Bolsonaro, filhos do presidente, que atuavam
provocando, desrespeitando senadores e assumindo a defesa
integral dos inquiridos. Tanto Barros como Pazuello e Hang
tiveram esse anteparo, que jogava uma espécie de cortina de
fumaça na nossa busca pela verdade.
Revendo os depoimentos hoje é mais fácil achar pontos que
deveriam ter sido mais bem explorados e debatidos, mas que, no
calor extenuante dos fatos, terminavam por se perder na enorme
confusão. Nem sempre foi possível manter a organização e a coesão
nas nossas ações com esse objetivo. Esses momentos menos
brilhantes da trajetória da cpi, no entanto, não tiraram a força com
que nosso conjunto de investigadores expôs o retrato de um
governo filiado à morte. Apesar de a improvisação e a
informalidade predominarem em muitos momentos, a cpi deu
certo como se estivesse predestinada a mudar a história de nosso
país. Aos que questionam de modo pessimista “em que deu a cpi?”,
respondemos com convicção: deu em vacinas e revelou uma face
desconhecida desse governo. Sem essas revelações, dificilmente
mudaríamos a trágica cruzada histórica atual.
8. CORAÇÕES, MENTES E LIKES

Apesar de separados por uma geração, nós, autores deste livro,


tivemos um começo em comum na política e usamos ferramentas
similares na nossa militância. Ambos temos dupla formação
superior — um médico e jornalista pernambucano, o outro
historiador e advogado amapaense —, e a nossa luta na esquerda
começou em casa, se estendeu para a escola e daí para a vida. Para
o primeiro, o marco político da juventude foi o congresso da une
no período da ditadura, em 1979. Para outro, a campanha Fora
Collor, em 1992.
Até 2010, a política aconteceu para nós dois de forma muito
analógica, digamos assim, gastando sola de sapato e saliva em
assembleias estudantis, comícios, discursos em plenários e nas ruas,
protestos, reuniões de sindicatos, distribuição de panfletos e
santinhos. Ganhar corações e mentes com militância na rua e
conversa olho no olho é algo que, hoje, parece arcaico, mas por
muitos anos perdurou, junto com a televisão, como a forma mais
eficaz de promover uma campanha política. Já em 2010, muitos
setores da esquerda foram pioneiros em criar ações de militância
em ambientes virtuais, com maior ou menor sucesso.
A campanha de 2018 serviu para nos mostrar, no entanto, que a
esquerda havia perdido a narrativa nas ruas e nas redes sociais. Foi
acachapante e inesperada a predominância que o sentimento de
oposição alcançou nas redes sociais de 2013 até desembocar no
bolsonarismo. E foram essas mesmas redes que, a partir da
instalação da cpi, nos permitiram enfrentar o governo pela primeira
vez de igual para igual no ambiente virtual, de maneira orgânica,
como se diz no meio, para denotar crescimento sem intervenções
externas na quantidade de seguidores e no engajamento de
determinado assunto.

No começo de junho de 2021, um esquete de humor produzido


pelo perfil @essemenino, no Instagram, então relativamente
desconhecido, desafiou os níveis de contágio do mal que assolava o
Brasil: viralizou por todo o país.
O vídeo dramatizava a informação recém-divulgada por nós de
que o laboratório Pfizer já acumulara 31 e-mails enviados ao
governo brasileiro com o objetivo de adiantar as negociações para a
compra de imunizantes contra a covid-19, sem no entanto receber
qualquer resposta. Mais tarde, durante a triagem de documentos
que nos foram enviados pelo Ministério da Saúde para atender a
requerimentos aprovados pela cpi, descobriríamos que, na verdade,
o número de correspondências oficiais passou de oitenta.
À escalada de e-mails, @essemenino, personagem do roteirista e
humorista mineiro Rafael Chalub, de 26 anos, conferia um tom de
revolta à fala da Pfizer, espantada com a falta de resposta do
governo Bolsonaro a uma questão tão urgente.
O tuíte que serviu de base para o esquete de humor viralizou.
Hoje, já está na marca de 5 milhões de visualizações únicas, um
número espantoso que, tradicionalmente, sem o apoio de grandes
veículos de mídia, dificilmente seria alcançado pela conta de um
senador da República, amapaense ou de qualquer estado da
federação. Não é fácil dar alcance à informação e, no caminho até
o interlocutor, ela está sujeita a mil vieses e reveses. Essa
amplitude, somada a um simples esquete de humor — os romanos
estavam certos, castigat ridendo mores, é rindo que se corrigem os
hábitos —, nos pôs diante de mudanças radicais na comunicação
que impactaram sobremaneira o andamento da cpi.
O esquete nos dizia, de modo subliminar, que tínhamos furado
uma bolha. A maneira debochada como @essemenino atuava no
vídeo tratando de um assunto tão árido na verdade mastigava a
informação o máximo possível e endossava a revolta pela postura
silente do governo, tornando a situação toda de fácil compreensão,
coisa que nem sempre conseguíamos em entrevistas coletivas ou
mesmo em falas individuais. Além disso, indicava que um público
jovem e politicamente engajado tinha se voltado de vez para a cpi.
Os primeiros sinais disso já podiam ser medidos em março de
2021, quando os assuntos “cpi” e “vacina” começavam uma curva
ascendente de buscas na internet, dobrando a maré de narrativas
divulgadas pelo governo Bolsonaro, eivada de fake news. Com um
mês de atividades da comissão parlamentar, os temas da cpi
começaram a aparecer entre os assuntos mais mencionados nas
redes sociais. Primeiro, competindo com o reality show Big Brother
Brasil, da Rede Globo; depois, herdando parte do seu público e, o
principal, do engajamento de plateia: no final de maio de 2021, já
registrávamos canais de Telegram que tinham como foco as edições
do BBB mudando a pauta completamente para acompanhar os
depoimentos iniciais da comissão, por exemplo.
Quando recebemos os primeiros folders com a escalação dos
depoentes na comissão como se fossem cartazes de um festival de
música, com uma linguagem política bem-humorada e disruptiva,
produzidos pelo perfil @jairmearrependi no Twitter, percebemos
que o interesse pela cpi tinha ensejado uma rede de comunicação,
de pressão e colaboração política expressa em memes, gifs,
montagens — elementos novos para nós dois, que atuamos em
comissões parlamentares de inquérito desde o começo de nossas
carreiras políticas, num tempo em que não existiam reality shows e
a política tampouco era acompanhada como se fosse um produto
midiático dessa natureza.
Sempre soubemos que, no debate público, era preciso ganhar
corações e mentes — e foi para isso que nos preparamos. Mais
recentemente, percebemos que a tarefa se ampliara: agora era
também preciso ganhar likes.
À medida que os temas eram debatidos na cpi, os depoentes e a
própria comissão se tornavam o assunto mais comentado nas redes
sociais. A audiência dos interrogatórios na internet crescia de forma
explosiva, até premiar o canal do Senado no YouTube, no começo
de julho de 2021, com o recorde de visualizações desde a sua
criação e o alcance de 1 milhão de seguidores. Atualmente, vinte
dos trinta vídeos mais vistos no canal são de depoimentos à cpi da
covid.
Perfis como @luide e @AnarcoFino, em lives analíticas
veiculadas na Twitch, um ambiente gamer que nos era
desconhecido até então, chegavam a reunir 30 mil espectadores
acompanhando as sessões. Outras vezes eram os perfis
@jairmearrependi, @bolsoregrets, @camarotedacpi,
@desmentindobozo, @tesoureiros, @medoedeliriobr, entre outros,
que coletavam e nos enviavam vídeos e documentos públicos que
provavam a ação ou a omissão do governo Bolsonaro, tanto do
próprio presidente como dos seus ministros e assessores, no trato da
pandemia. Esse material, por vezes, embasaria perguntas,
requerimentos e até indiciamentos na cpi, sendo fundamental para
darmos celeridade a muitos processos que, até bem pouco tempo
antes, levariam semanas, até meses, para ser encaminhados.
Um tuíte do perfil @tesoureiros, que demonstrava a falta de
atuação do Itamaraty na busca por vacinas junto a outros países,
serviu de base para questionamentos feitos ao ex-ministro das
Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Sem essa rede de colaboração,
que incluía outros perfis, a maioria anônimos, como
@jairmearrependi, além de internautas individuais, é provável que
a cpi tivesse mantido por menos tempo o engajamento público, à
medida que a cobertura ia dando espaço a outros acontecimentos
no noticiário tradicional da grande mídia.
Em alguns momentos, quando as cobranças pelo fim da cpi já
podiam ser ouvidas no cafezinho do Senado ou nas conversas com
jornalistas que cobrem o Congresso, foram as redes sociais que
deram novo fôlego à comissão. Por exemplo, na semana do
depoimento dos irmãos Miranda a respeito do contrato do governo
Bolsonaro para a aquisição superfaturada da vacina indiana
Covaxin, a partir de uma fagulha que podia ser acesa pelo Twitter,
dava-se o efeito cascata de cobertura da mídia.
Ao mesmo tempo, em que pese todo o poder de mobilização das
redes sociais, é importante ressaltar o papel da imprensa tradicional,
que realizou algo restrito ao jornalismo: reportagens de longo
alcance e investigações profundas. Muitos dos temas cobertos pela
cpi nos foram sinalizados por jornalistas que, dando seguimento às
suas investigações, precisavam confirmar informações conosco ou
nos revelavam outros escândalos ou indícios que vinham apurando.
O contrário também aconteceu muitas vezes, quando levávamos à
imprensa informações preliminares e denúncias que, sozinhos, não
teríamos condições de investigar, mas que despertavam nos
jornalistas o interesse por uma apuração mais aprofundada.

Um importante exemplo do papel da grande mídia na definição


das pautas da cpi foram as matérias produzidas pelo jornalista
Guilherme Balza, da GloboNews, sobre o caso Prevent Senior. A
comissão já havia recebido muitas denúncias sobre o
comportamento de várias empresas de planos de saúde ou de
hospitais privados que estariam administrando tratamentos
inadequados aos seus pacientes acometidos pela covid, em especial
os medicamentos do chamado kit covid. Esses remédios
(cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e outros)
já tinham sido objeto de vários estudos científicos rigorosos, que
provaram sua absoluta ineficácia no tratamento da covid-19 e os
graves efeitos colaterais que poderiam causar aos pacientes.
Vários integrantes da cpi resistiam muito a investigar essas
empresas que, abertamente, faziam lobby para não serem
convocadas. Algumas usaram esses medicamentos durante o
período inicial da pandemia, quando não havia estudos conclusivos
sobre sua eficácia, e depois os abandonaram. Outras não só
continuaram usando como ampliaram o número de medicamentos
do kit. As denúncias cresciam. Porém, a falta de provas ou de
pessoas que assumissem em público as denúncias fez com que os
fatos não entrassem no radar da comissão. Seria necessário um fato
bombástico para que isso acontecesse.
Já havia algum tempo, Balza vinha produzindo matérias sobre
denúncias relativas ao comportamento do grupo Prevent Senior,
um dos maiores planos de saúde do estado de São Paulo, que
oferecia mensalidades a preços mais baixos para uma clientela
predominantemente mais idosa. O modelo adotado pelo plano era
o da verticalização: a empresa vendia o plano e ela mesma prestava
assistência por meio de uma rede própria de hospitais, ambulatórios
e outros serviços. Entre as denúncias estava o assédio moral a
profissionais médicos que se recusassem a prescrever o kit covid, a
falsificação de atestados de óbito para produzir estatísticas
favoráveis ao tratamento e até mesmo a realização de “estudos
científicos” em pacientes, sem conhecimento ou autorização dos
próprios ou dos familiares. Muitas vezes o jornalista insistiu com
integrantes da comissão para que atentassem para a gravidade do
tema. Chegou até a produzir matérias em que os profissionais, sem
exibir o rosto e com a voz alterada por efeitos especiais,
confirmavam as denúncias. Ainda assim, importantes integrantes da
cpi cobravam que alguém com nome e sobrenome assumisse a
autoria das denúncias para que a cpi entrasse no assunto. Até que
uma corajosa advogada, Bruna Morato, nos enviou um documento
contendo as denúncias e as provas coletadas pelos médicos que ela
representava.
As denúncias indicavam que a operadora praticava os mais
incríveis absurdos. O chamado kit covid era enviado para a casa dos
beneficiários do plano e os médicos eram obrigados a fornecer os
medicamentos para todos os pacientes com sintomas da doença.
Quanto mais notícias eram veiculadas, mais conversas realizadas,
mais provas apresentadas, maior veracidade ganhava a denúncia. A
partir daí começamos o processo de convencimento do G-7 sobre a
necessidade de o tema ser abordado pela cpi.
No dia 7 de setembro, alguns médicos aceitaram se reunir
conosco e com assessores de outros senadores. Na reunião, todas as
informações foram confirmadas e, pela primeira vez, houve a
constatação de que esses médicos de fato existiam.
Havia resistência, em especial de Omar Aziz, a dar visibilidade a
essa denúncia, pois, em sua visão, não era razoável confiar em
médicos que denunciavam anonimamente. Mas eram tantas as
provas e evidências que um dos médicos e a própria dra. Bruna se
sentiram confiantes em comparecer a uma reunião presencial com
o G-7. Essa reunião ocorreu no gabinete de Aziz, e o relato foi
chocante. Ao mesmo tempo, o assunto foi tema de nova matéria no
Fantástico, aumentando a repercussão nacional do caso. Denúncias
de pacientes também começaram a aparecer. Tudo isso tornou
inevitável que a cpi abordasse o tema. Naquele momento, eram
muitas as vozes que pediam o fim da comissão. O caso da Prevent
Senior deu vida nova às investigações.
Agendado o depoimento do executivo da Prevent, a testemunha
não compareceu e foi em busca de um habeas corpus do stf que o
eximia de participar da cpi. Porém a manobra se voltou contra ele
próprio. A GloboNews transmitiu ao vivo uma matéria em que o
jornalista Guilherme Balza esmiuçava a denúncia com mais de
cem páginas de provas. Um tiro no pé da Prevent.
Agendada nova data, ocorreu a oitiva do executivo, que nada
esclareceu ou explicou, o que apenas piorou a situação da empresa.
Em seguida, compareceram uma vítima da Prevent, a advogada dos
profissionais e um dos médicos que ela representava. Todos foram
muito convincentes, e suas falas foram emocionantes. As provas
foram apresentadas, ao vivo e em cores, em rede nacional.
Conseguimos, assim, graças à coragem de uma jovem advogada,
de um médico consciente da necessidade de agir de acordo com a
ética profissional e de um paciente que foi salvo da morte pela
perseverança e força de suas filhas, revelar ao Brasil uma pequena
amostra dos horrores que muitos devem ter vivido. Em um
momento em que a cpi estava novamente perdendo força, aprovar
a convocação dessas pessoas foi crucial para o trabalho da comissão.
Os senadores Otto Alencar e Rogério Carvalho entendiam a
necessidade de apuração daquelas denúncias e foram fundamentais
no convencimento dos integrantes do G-7.
O caso Prevent Senior se tornou um episódio importante. A
audiência com uma das vítimas foi um dos momentos mais tristes e
emocionantes da cpi. Foi um tema que sensibilizou a categoria
médica paulista e até mesmo integrantes da base governista, como
a senadora Soraya Thronicke. O episódio da fraude no atestado de
óbito da genitora do empresário Luciano Hang foi mais uma
demonstração de quanto essa pandemia não foi levada a sério pelo
governo e por alguns empresários da saúde que querem apenas
lucrar em qualquer situação.
O tema foi tão sensível que levou até mesmo à instalação de uma
cpi na Câmara de Vereadores do município de São Paulo, que foi
concluída com o indiciamento de vinte pessoas.

A construção do relatório final da cpi representou uma vitória da


política sobre o vírus. Isso porque, apesar de posições muito díspares
sobre o que deveria constar do documento final, prevaleceu a
unidade para aprovar um documento contundente, que expressasse
grande parte dos abusos e omissões cometidos pelo governo durante
a pandemia.
Mas essa construção não foi simples.
A par das diferenças partidárias, regionais e de convicções
pessoais entre os membros da cpi, havia muitas divergências sobre o
que deveria, enfim, ser objeto da investigação e,
consequentemente, do relatório final.
O relator, político experiente, resolveu transformar o relatório
num repositório das denúncias recebidas e investigadas pela cpi,
ainda que não tivessem sido objeto de tomada de depoimentos.
Mais que isso, o relator buscou transformar seu texto no libelo das
vítimas, dos críticos, dos que defendiam vidas. A peça não se
destinava apenas ao palco das refregas políticas, mas à história,
verdadeiro juiz dos fatos.
Trazer nas conclusões a análise de todos os elementos abordados
pela cpi fazia sentido, já que as investigações parlamentares, como
é típico de inquéritos, não se resumem àquelas postas em
depoimentos e reuniões públicas, transmitidas pela tv. Os
documentos recebidos fazem parte da investigação, e grande parte
do trabalho é silenciosa, elaborada por diversos profissionais
vinculados à relatoria, à presidência e aos gabinetes dos integrantes
da comissão.
Esse trabalho hercúleo nem sempre se expressava nos
depoimentos. Era comum olhar nos olhos do pessoal da assessoria e
sentir a frustração com o fato de que questões importantes não
tinham sido abordadas nos míseros quinze minutos que cada
senador tinha para inquirir, à exceção do relator (cujo tempo é
livre).
Os roteiros de cada depoimento eram enormes, com dezenas de
páginas de perguntas e análises. Esse trabalho todo não poderia ser
descartado. Pelo contrário, eram insumos para outras oitivas e, mais
que isso, eram matérias lapidadas que deveriam ser aproveitadas no
momento oportuno, qual seja, no relatório final.
É importante registrar que a equipe técnica de cada senador e
sobretudo a equipe da relatoria eram compostas por profissionais
altamente capacitados, de diversas áreas, cujos saberes se
complementavam de forma transdisciplinar. Consultores,
advogados, médicos, jornalistas, gestores, delegados, agentes,
procuradores, enfim, diversos profissionais a serviço da investigação.
O rigor técnico de algumas análises, fosse no campo da saúde
pública ou do direito, muitas vezes não considerava o contexto
político. Era nosso dever, enquanto senadores, apreender a
tecnicidade das questões, traduzi-las para a população e colocá-las a
serviço da boa política.
Foi assim que o material produzido em cada depoimento,
somado às investigações realizadas sobre cada denúncia, deu forma
ao documento final do relator. E Renan soube aproveitar o melhor
do que foi produzido por cada senador. O trabalho conjunto foi
decisivo para se conseguir analisar todo o material. Isso porque o
volume de documentos recebidos pela cpi da Pandemia foi mais de
dez vezes superior ao recebido pela cpi que mais havia recebido
documentos na história do parlamento brasileiro. Podemos dizer
que o texto final, com todas as contradições que possa apresentar,
expressa, em grande medida, o pensamento médio do chamado G-
7.
Nas semanas que antecederam o final da cpi, as tensões estavam
voltadas para o texto do relator. Em reunião do G-7 no início de
outubro, Renan solicitou que os senadores integrantes do grupo
encaminhassem sugestões ao texto final. Dez dias depois,
apresentou uma prévia do documento, permitindo que os
senadores, novamente, sugerissem mudanças.
Nossas equipes — lideranças do pt e da Rede — elaboraram
grandes emendas de texto que, salvo um caso ou outro, foram
incorporadas ao documento final. Pela dinâmica das audiências
para depoimentos de testemunhas e investigados, os temas centrais
do relatório final estavam claros: gabinete paralelo, imunidade de
rebanho, tratamento precoce, medicamentos ineficazes, recusa na
aquisição de vacinas, corrupção no Ministério da Saúde, entre
outros.
Alguns assuntos, ainda que sua presença no relatório final fosse
inevitável, guardavam divergências sobre qual o melhor
encaminhamento que a cpi poderia lhes dar. No caso da crise do
estado do Amazonas, o relator destacou a responsabilidade do
governo federal, mas incluiu um capítulo sobre a atuação do
governo estadual. As conclusões, porém, não agradaram
integralmente aos senadores pelo Amazonas Omar Aziz e Eduardo
Braga. Aziz valia-se da poderosa posição de presidente para exigir o
indiciamento de um deputado estadual que havia relatado uma cpi
na Assembleia Legislativa do Amazonas que isentava o governo de
qualquer responsabilidade. Braga e Renan não aceitavam esse
indiciamento. O episódio gerou muita tensão. Ao final, Renan
fincou o pé e sua posição prevaleceu sobre a de Aziz.
Outro tema em torno do qual não houve consenso foi o capítulo
que tratava da atuação dos planos de saúde. Nós dois defendíamos
que, dado o vasto material recebido, deveriam ao menos constar no
relatório informações que a cpi havia recebido sobre várias
operadoras que utilizaram o chamado tratamento precoce e só o
abandonaram após o início da cpi. O consenso foi o de se relatar
apenas o caso Prevent Senior.
Outros temas não eram tão óbvios assim para constar do relatório
final e causaram muita polêmica. Seja porque não foram tratados
nas reuniões públicas da comissão, seja porque havia divergências
internas. A questão das fake news, a responsabilidade dos militares
na pandemia e o impacto das políticas do governo federal sobre os
povos indígenas somente figuraram no documento final porque o
relator fez uma aliança tática importante com diversos membros do
G-7.
No caso da desinformação ou das fake news na pandemia, a cpi
fez um trabalho de grande importância histórica e prática. As mais
de duzentas páginas dedicadas ao tema desvelam o modus operandi
da indústria de notícias falsas e de discursos de ódio existente no
Brasil e que tem no presidente Jair Bolsonaro o seu epicentro.
Além dos documentos recebidos pela cpi, Renan trabalhou com
diversos senadores, entre eles nós, autores deste livro, e contou
ainda com a colaboração da relatoria da cpmi das Fake News —
suspensa durante a pandemia — para chegar à conclusão de que
existe uma organização, estruturada em núcleos, que produz e
dissemina desinformação na área da saúde e em todos os demais
campos de interesse do governo. São milícias digitais, para usar a
expressão do ministro do stf Alexandre de Moraes, que espalham
mentiras e destroem a honra de todos aqueles que ousam divergir
de Bolsonaro.
Essa organização, segundo o relatório final, é formada por, ao
menos, cinco núcleos articulados entre si, a saber: o núcleo de
comando (1), que interage diretamente com o núcleo formulador
(2), o núcleo político (3), o núcleo de produção e disseminação das
fake news (4) e o núcleo de financiamento (5). O Gabinete do
Ódio, que funciona na própria Presidência da República, é um dos
braços operacionais desses milicianos. O documento concluiu pelo
indiciamento de políticos, influencers, empresários e agentes
públicos.
Sem medo de errar, o Relatório Final da cpi da Pandemia
representa um dos mais completos e contundentes documentos
sobre a indústria de desinformação já produzidos por um órgão
público brasileiro. Denunciamos o quanto isso vem contaminando
nossa democracia com mentiras e ameaças às instituições da
República, especialmente o stf.
No momento da votação, diversos senadores da base do governo
questionaram o capítulo das fake news no relatório final, dizendo
que o tema não havia sido discutido. A objeção, porém, sequer foi
considerada, já que as conclusões do relatório estavam lastreadas
em provas recebidas pela própria comissão. Além disso, havia
relativo consenso no G-7 — e, por que não dizer, no próprio
Senado — sobre a gravidade dessa questão, a necessidade de
responsabilizar os culpados e a importância de instituir uma
regulação mais efetiva sobre o tema.
No que tange à regulação, a bancada do pt na cpi fez pressão
sobre o relator para que ele abandonasse o projeto de lei sobre o
tema trazido no relatório, cuja redação nos parece equivocada. Para
nós, o pl no 2630/2019, já aprovado pelo Senado e em tramitação
na Câmara, apesar dos limites, é mais adequado. Renan, porém,
bateu o pé. Diante de sua intransigência, deixamos claro para ele
que não tínhamos o compromisso de apoiar o projeto durante sua
tramitação.
Menos consensual foi o tema da responsabilidade dos militares
na pandemia. O Brasil inteiro sabe que a estratégia de Jair
Bolsonaro frente à pandemia somente foi implementada porque
contou com beneplácito de alguns setores da cúpula das Forças
Armadas. Tanto é assim que o principal operador da política foi o
general Pazuello, nomeado ministro da Saúde para ressoar as
sandices presidenciais no que tange à promoção de medicamentos
sem eficácia e rejeição à compra de vacinas. Ademais, o governo
federal mobilizou os laboratórios das Forças Armadas para produzir
cloroquina e hidroxicloroquina, medicamentos sem eficácia e
rejeitados pela Organização Mundial da Saúde para o tratamento
da covid.
A responsabilidade desses militares — que, evidentemente,
representam uma minoria nas Forças Armadas — não foi
aprofundada em decorrência de um bloqueio produzido por
diversos integrantes da comissão. Os senadores do G-7 que
consideravam importante a investigação não esticaram a corda em
nome da unidade do grupo.
A corda foi esticada, porém, no caso do tratamento conferido aos
indígenas pelo governo federal durante a pandemia. Os coautores
deste livro e demais senadores estavam preocupados porque o
impacto da pandemia sobre os povos originários foi grave e
desproporcional. Medidas mitigatórias de suma importância foram
deliberadamente recusadas ou negligenciadas. O auxílio sob a
forma de serviços de saúde e alimentos, missões de assistência e
barreiras sanitárias foi implementado em alguns casos, sobretudo
por meio do stf (adpf no 709). Mas a ajuda prestada foi
insuficiente e descontínua. Ademais, graves ameaças pairavam — e
ainda pairam — sobre a vida e os territórios ocupados por povos
indígenas, que, em muitos casos, estão submetidos ao risco efetivo
de genocídio.
O governo federal, que pode e deve proteger os indígenas, passou
a perseguir comunidades ou quedou-se inerte, violando seu dever
de cuidado. Mais que isso, conforme aponta o relatório, diversas
ações da Funai e do Ministério da Saúde tiveram a intenção de
submeter esse grupo específico da população ao risco de contágio.
A primeira versão do documento final fazia o enquadramento das
ações e omissões dolosas do governo federal junto aos indígenas
como genocídio, nos termos previstos no artigo 6o do Estatuto de
Roma, tese essa defendida pelos diversos movimentos que militam
na área de proteção aos indígenas. Alguns senadores, porém, não
aceitavam o enquadramento de Bolsonaro e seu governo nessa
modalidade de crime e ameaçavam rejeitar o relatório. Alegavam
que os indígenas, mesmo a contragosto do governo ou protegidos
por ações do parlamento ou do Supremo Tribunal Federal, teriam
tido a devida atenção ao longo da pandemia, inclusive quanto ao
acesso às vacinas. O relator, expressando a opinião de vários outros
integrantes, não abria mão de seu texto original.
Mais uma vez a boa política se fez presente, e o relator
concordou em desclassificar a acusação de genocídio para
transformar a conduta do governo federal em crime contra a
humanidade, também previsto no Estatuto de Roma, nas
modalidades extermínio, perseguição a grupo étnico e outros atos
desumanos (artigo 7o, 1, b, h e k).
Assim como no caso das fake news, a resposta da cpi foi
contundente no sentido de reconhecer a responsabilidade do
governo federal na questão indígena. Ademais, não nos parece que
a mudança de classificação tenha alterado a gravidade do crime.
A construção do relatório final — como, de resto, todo o trabalho
de investigação — foi enriquecida pela colaboração da sociedade.
Estamos no parlamento há muitos anos e nunca tínhamos visto
tamanha participação em uma cpi. Grupos organizados, entidades
de defesa das vítimas — como a Associação Vida e Justiça —,
conselhos de saúde — especialmente o Conselho Nacional de
Secretários de Saúde (Conass) —, acadêmicos, ativistas de redes
sociais — como Sleeping Giants —, entre muitos outros,
auxiliaram os senadores e o relator. Foi essa força viva, aliada ao
importante trabalho da imprensa, que criou as condições para que a
cpi da Pandemia fosse inscrita na galeria das mais importantes
investigações parlamentares já realizadas no Brasil.
Em síntese, nas 1287 páginas do relatório da cpi poderemos
encontrar algumas contradições. Se questionados individualmente,
estamos certos de que os integrantes do G-7 divergem de diversos
pontos. Algumas diferenças são de fundo e jamais seriam relevadas
durante uma discussão normal de matérias no parlamento.
Mas a política venceu. Todos os senadores compreenderam seu
papel histórico. Os sete votos contra quatro que aprovaram o
Relatório Final representam uma inequívoca prova de que é
possível construir unidades, mesmo em ambientes polarizados. E
de que a boa política é capaz de vencer os maiores inimigos, ainda
que sejam invisíveis como o coronavírus.
9. A POLÍTICA CONTRA O VÍRUS

Em 26 de outubro de 2021 ocorreu a votação do relatório final, e


a cpi, oficialmente, encerraria as suas atividades — mas o nosso
trabalho, assim como a pandemia, ainda estava longe de acabar. No
dia seguinte, fizemos a entrega do relatório ao presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco, e a intenção era também levar o
documento ao presidente da Câmara, Arthur Lira, mas essa ideia
foi abandonada. Afinal, se ele não tinha disposição para analisar os
incontáveis pedidos de impeachment já apresentados, não iria
analisar o relatório da cpi com a seriedade devida. A Lira restou
receber mais um pedido de impedimento de Bolsonaro, elaborado
pelo professor Miguel Reale Júnior, com base no relatório final da
cpi.
Além disso, o presidente da Câmara já tinha tecido críticas ao
indiciamento de deputados, como aqueles que o relator da cpi
enquadrou por incitação ao crime diante da difusão de
desinformação sobre a pandemia. E havia, também, o caso de
Ricardo Barros, líder do governo na Câmara e do mesmo partido de
Lira, indiciado por incitação ao crime, advocacia administrativa,
improbidade administrativa e formação de organização criminosa.
No dia seguinte à apresentação do relatório, fizemos a entrega da
peça ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que falou em
“avançar” com as investigações. Tínhamos uma avaliação de que,
talvez, isso fosse possível, dependendo do andamento da indicação
de André Mendonça ao cargo de ministro do stf, vaga também
cobiçada por Aras. Ocorre que, mesmo com a vitória de André
Mendonça, Aras se manteve fiel a Bolsonaro, que o conduziu por
duas vezes ao cargo e fez o que foi possível para atrapalhar o curso
das investigações.
No mesmo dia, fomos ao Supremo Tribunal Federal para fazer a
entrega do relatório ao ministro Alexandre de Moraes. Achávamos
importante a nossa colaboração, sobretudo quanto ao inquérito das
fake news, presidido por Moraes, já que a cpi tinha desvendado
uma rede para difusão de informações falsas sobre a pandemia e até
mesmo o patrocínio de empresas produtoras do kit covid para um
grupo de médicos entusiastas do tratamento precoce. Na conversa,
Moraes avaliou que a cpi havia obrigado os bolsonaristas e o
próprio presidente a direcionarem seus ataques à comissão,
reduzindo sensivelmente, ainda que por pouco tempo, o cerco e a
pressão impostos à Suprema Corte, sobretudo após o recente 7 de
Setembro de caráter golpista. O relatório também foi entregue ao
presidente do stf, Luiz Fux, causando, aliás, ciúmes em alguns
ministros que não pudemos visitar.
Entregamos também o documento à Procuradoria da República
no Distrito Federal, responsável por investigar fatos citados no
relatório praticados por pessoas que não possuíam foro privilegiado.
O Tribunal de Contas da União (tcu) recebeu as conclusões da
cpi pelas mãos de sua presidente, a ministra Ana Arraes, cabendo à
instituição aprofundar as investigações nos casos da vtcLog, da
Precisa Medicamentos, do relatório da Conitec sobre tratamento
precoce e das denúncias do ex-governador do Rio de Janeiro,
Wilson Witzel, sobre a existência de um “dono” controlando os
recursos dos hospitais federais naquele estado.
Criamos a Frente Parlamentar Observatório da Pandemia, cujo
objetivo é o acompanhamento permanente dos trabalhos nos
órgãos responsáveis pelos desdobramentos das investigações, bem
como a fiscalização da atuação do governo até o final da pandemia.
Aprovado pelo Senado, o Observatório realizou uma série de
agendas para a entrega do relatório a diversos outros agentes
competentes, bem como para demonstrar vigilância quanto às
providências a serem tomadas pelos órgãos diretamente
responsáveis por esses encaminhamentos.
Fomos a São Paulo dias depois, em 10 de novembro, quando
entregamos o relatório a Reale Júnior, cujo pedido de
impeachment de Bolsonaro, elaborado com base nas investigações,
substituiu nossa visita a Arthur Lira. Receberam também o
documento o Ministério Público do Estado de São Paulo, a
Câmara de Vereadores da capital e o Ministério Público do
Trabalho.
Como desdobramento das denúncias da cpi, a Câmara
Municipal de São Paulo decidiu investigar as ações da Prevent
Senior, que, durante a pandemia da covid-19, obrigou profissionais
de saúde a trabalharem infectados pelo coronavírus, forçou
médicos a receitarem medicamentos sem eficácia, ameaçou
funcionários e ocultou mortes em estudos experimentais com
hidroxicloroquina e outros medicamentos. O relatório dessa cpi
municipal foi entregue em 4 de abril de 2022.
O Ministério Público estadual do Rio de Janeiro e a Procuradoria
Regional da República da 2a Região receberam o relatório no dia
seguinte, mas não deixaram transparecer muito interesse pelo
aprofundamento do caso.
Em Manaus, os membros do Observatório foram recebidos pelo
Ministério Público Federal e pelo Ministério Público estadual do
Amazonas, aos quais fizeram uma forte cobrança por justiça aos
familiares das vítimas mortas por falta de oxigênio, a mais chocante
das tragédias coletivas ocorridas na pandemia no Brasil.
Em meio a todas essas visitas e entregas de relatórios, estávamos
travando uma verdadeira batalha com a inerte Procuradoria-Geral
da República para que as investigações tivessem andamento.
No início de novembro, mais especificamente no dia 3, a
Secretaria de Comissões do Senado, após assinatura de um termo
de sigilo, encaminhou um link à pgr para tornar possível o
download dos documentos confidenciais. A Procuradoria-Geral da
República, ao contrário de todos os demais órgãos que receberam o
relatório, informou não ter conseguido concluir o download e
enviou à cpi um hd para que os documentos pudessem ser
transferidos por esse meio. No dia 9 de novembro, o hd foi
entregue à pgr com a documentação individualizada por nome de
cada indiciado.
Duas semanas depois, a Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa do Senado Federal aprovou requerimento
de nossa autoria convidando Augusto Aras para explicar quais ações
estavam sendo tomadas com base no relatório final da cpi. O pgr
declinou do convite. Ao que nos consta, por não ter nada a
apresentar. Um dos primeiros a receber uma cópia do documento,
Aras restaurava a vergonhosa figura do engavetador-geral da
República, evitando tomar decisões que pudessem fustigar seus
protegidos políticos. Começávamos uma nova batalha.
No dia 25 de novembro, a pgr protocolou petições junto ao stf
solicitando ao Senado Federal o envio de um anexo. Identificamos
ali um claro ânimo protelatório do procurador-geral, uma vez que o
pedido poderia ter sido feito direta e imediatamente ao Senado.
Com a intermediação da Suprema Corte, os pedidos só chegaram
ao parlamento vinte dias depois, em 15 de dezembro.
Em menos de uma semana, o diretor de Comissões do Senado
encaminhou o anexo do relatório, que era tão somente uma
listagem de documentos já entregues desde 9 de novembro ao
próprio Aras. Seguimos então nessa celeuma por mais de um mês,
sem que nenhum encaminhamento fosse dado pela pgr.
No dia 8 de fevereiro de 2022, o vice-procurador-geral Humberto
Jacques solicitou uma reunião com a cpi para tratar do assunto. Ele
argumentou que eram muitos os documentos e sugeriu que
pedíssemos apoio à Polícia Federal, como já tínhamos feito durante
os trabalhos da cpi. O pedido causava estranheza: por que a própria
pgr não requisitaria o trabalho da pf? A resposta foi perturbadora,
mas diz muito sobre o atual estado de disfunção de nossas
instituições: “Se requisitássemos, teríamos que abrir um inquérito”.
Naquele momento, ficou claro que o recado do procurador-geral
Augusto Aras era que ele não determinaria a abertura de inquérito
para investigar os fatos narrados pela cpi e, na nossa interpretação,
para não contrariar o presidente Bolsonaro e colocar em risco uma
eventual indicação de seu nome a uma futura vaga no stf. Ficava
evidente que, apesar de termos feito um trabalho profundo e
minucioso e envidado todos os esforços para que as investigações
realizadas pela cpi fossem levadas até as últimas consequências,
havia quem não estivesse disposto a cumprir seu papel para que
esse objetivo fosse atingido.
No mesmo dia e local, uma equipe de técnicos da pgr participou
de uma outra reunião, dessa feita também com a presença dos
senadores Omar Aziz e Renan Calheiros. Ali se confirmou a
intenção do pgr de não abrir nenhum inquérito sobre o tema. Os
procuradores apresentaram as ideias mais absurdas para que não
fosse da pgr o primeiro passo nas investigações. Chegaram a pedir
que a Advocacia do Senado solicitasse ao stf que reclassificasse as
petições feitas pela cpi como inquérito, com a alegação de que o
trabalho da Procuradoria seria uma extensão daquele feito pela cpi,
que, na visão da pgr, já se tratava de inquérito.
O senador Renan Calheiros se indignou e disse: “Ele tem três
opções: pedir diligências à pf, abrir inquérito ou arquivar as
investigações. Uma atitude ele tem que tomar!”. O senador Omar
Aziz também não estava satisfeito com as queixas dos técnicos em
relação à dificuldade de analisar os documentos: “Então, deixa eu
ver se entendi: a gente já mastigou tudo para vocês, agora vocês
querem que a gente dê na boca?!”.
A indignação dos dois tinha razão de ser: a Procuradoria-Geral da
República estava se esquivando de fazer o seu trabalho, mesmo
com uma enorme estrutura à sua disposição. Para nós, era um
absurdo: a cpi conseguiu fazer um trabalho ao qual, para a
poderosa pgr, parecia impossível dar continuidade?
Vale ressaltar que, no dia 4 de janeiro, em meio à inapetência
investigativa do procurador Augusto Aras, o Ministério Público
Federal no Distrito Federal, munido do mesmo relatório e do
mesmo conjunto probatório que foi entregue à pgr, decidiu abrir
doze investigações preliminares para aprofundar os fatos listados
pela cpi que não envolviam autoridades com foro privilegiado. Da
mesma forma, o Ministério Público de São Paulo nos encaminhou
um relatório com as providências adotadas com relação ao relatório
final da cpi da covid. Eles dividiram os casos em treze notícias de
fato e encaminharam para as promotorias competentes.
A pgr seguiu se furtando de fazer o seu trabalho e, no dia 20 de
abril, o stf determinou a remessa do conjunto de provas colhidas
pela cpi para a Polícia Federal, exatamente o que havíamos
sugerido em fevereiro.
É um dever do parlamento e de toda a sociedade brasileira exigir
o aprofundamento das investigações iniciadas pela cpi do Senado,
criada para averiguar as ações e omissões do governo federal no
enfrentamento da pandemia da covid-19. Nesse sentido, exerce
papel fundamental a Procuradoria-Geral da República, a quem
cabe investigar e processar as autoridades que têm foro especial, em
particular o presidente da República, ministros e parlamentares.
À esquerda, ao centro ou à direita, qualquer representante do
povo deve ter em mente que há situações em que seu alinhamento
político e ideológico não pode se sobrepor às exigências do
momento. Como membros do Congresso há várias décadas,
conhecemos inúmeros exemplos de articulações produtivas entre
figuras que compartilham pouco ou nada em termos de ideologia
ou simpatia partidária. Pode-se dizer muita coisa ruim sobre alguns
de nossos parlamentares, mas é preciso reconhecer os momentos
em nossa experiência histórica em que a noção de responsabilidade
política viabiliza alianças estratégicas entre agentes dos vários
campos.
A novidade do bolsonarismo é jogar no lixo qualquer ideia de
convivência democrática e bem comum. Foi contra isso que a cpi
se insurgiu — e foi por seu caráter de frente ampla republicana que
ela se tornou um espaço de resistência com tanta reverberação.
Infelizmente, tudo indica que nos próximos anos seguiremos
enfrentando novas variantes dos terríveis vírus que assolam o país —
sejam eles o Sars-cov-2 ou o bolsonarismo. Derrotá-los é uma
tarefa maior do que quaisquer interesses pessoais, ideológicos ou
partidários. Lutar contra eles é um imperativo ético que se
apresenta a cada um de nós, todos os dias.

É dever de todo parlamento e de toda a sociedade brasileira


exigir o aprofundamento das investigações iniciadas pela cpi do
Senado. Exerce papel fundamental nesse sentido a Procuradoria-
Geral da República, a quem cabe investigar e processar as
autoridades com foro especial, em particular o presidente da
República, ministros e parlamentares.
A despeito do rol de indícios e provas que a cpi apresentou ao
órgão em seu relatório, em 25 de julho de 2022, a Procuradoria-
Geral da República, na figura da vice-procuradora Lindôra Araújo,
pediu ao Supremo Tribunal Federal o arquivamento de sete
apurações preliminares para investigar a responsabilidade do
presidente em diversos atos atentatórios contra a saúde pública no
decorrer da pandemia. Das sete, cinco delas pediam o indiciamento
do mandatário: crime de charlatanismo, prevaricação, emprego
irregular de verbas ou rendas públicas, epidemia com resultado de
morte e infração de medida sanitária preventiva.
Segundo relatório da vice-procuradora, houve “ausência de
indícios mínimos para se afirmar que o presidente da República Jair
Messias Bolsonaro teria incorrido em qualquer prática delitiva no
contexto em questão, não se verifica a existência do interesse de
agir apto a ensejar a continuidade deste processo”.
Por mais que conhecêssemos o grau de servilismo da
Procuradoria-Geral da República sob Augusto Aras, não
acreditávamos que o órgão chegaria ao desatino de pedir o
arquivamento de crimes obviamente cometidos momentos antes do
começo da campanha eleitoral de 2022, para que isso funcionasse
como um atestado de inocência de Jair Bolsonaro.
Protestaremos, recorreremos às instâncias cabíveis, faremos o
possível para que essas investigações sejam realmente levadas a
cabo, pois acreditamos que sem elas e a subsequente
responsabilização do governo federal, não poderão descansar em
paz as mais de 675 mil vítimas fatais da covid nem poderão
desfrutar do sentimento de justiça seus entes queridos.

Julho de 2022
AGRADECIMENTOS

Este livro não existiria sem a cpi, e esta não teria acontecido sem
o engajamento de milhões de brasileiras e brasileiros que apoiaram
o funcionamento da comissão aberta pelo Senado para apurar a
política de morte deliberadamente adotada pelo presidente da
República durante a pandemia da covid-19. A todas essas cidadãs e
a todos esses cidadãos, muitos dos quais não sobreviveram para ver a
conclusão dos trabalhos da cpi, nossos sinceros agradecimentos.
Agradecemos também aos colegas assessores Alberto Lima, Ana
Cristina Barros, Ana Paula Menezes, Ilano Barreto, Marcos Rogério
de Souza e Silvana Pereira por não deixarem que fatos importantes
ficassem escondidos em nossa memória e acabassem de fora do
livro. Somos gratos também por todo o auxílio que prestaram no
aprofundamento da pesquisa e na composição do texto, e sobretudo
por afirmarem o caráter documental desta obra — que legamos ao
povo brasileiro para que os crimes contra a dignidade humana,
cometidos por agentes do estado e a mando do chefe do Poder
Executivo durante a pandemia de covid-19, nunca se repitam.
renato parada

randolfe rodrigues é advogado e historiador. Foi deputado


estadual e, desde 2011, é senador da República pela Rede
Sustentabilidade do Amapá.

humberto costa é médico e jornalista. Foi vereador, deputado


estadual, deputado federal e ministro da Saúde do primeiro
governo Lula. Desde 2011, é senador da República pelo PT de
Pernambuco.
Copyright © 2022 by Randolfe Rodrigues, Humberto Costa

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Capa

Alceu Chiesorin Nunes

Preparação

Mariana Donner

Revisão

Ana Maria Barbosa

Bonie Santos

Versão digital

Rafael Alt

isbn 978-65-5782-687-4

Todos os direitos desta edição reservados à

editora schwarcz s.a.

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