A Política Contra o Vírus
A Política Contra o Vírus
A Política Contra o Vírus
Aos setenta anos, Luiza Trajano é uma das mulheres mais ricas
do Brasil, com uma fortuna avaliada em 1,4 bilhão de dólares
segundo a revista Forbes. A Time a aponta como uma das cem
pessoas mais influentes do mundo. Presidente do Magazine Luiza,
ela comanda uma rede de quase mil lojas em todo o país, que
emprega mais de 47 mil pessoas, além de ter uma forte presença no
comércio eletrônico. Em 2021, ano mais trágico da pandemia, seu
patrimônio encolheu em dois terços com a queda de 70% no valor
das ações da gigante varejista.
Mas, no telefonema de 17 de fevereiro daquele ano, a
preocupação de Luiza Trajano era outra. A empresária estava
particularmente empenhada em saber o que poderia ser feito para
que o veto do relator da mp fosse contornado. Como Rodrigo
Pacheco levava o tema em banho-maria, Luiza Trajano chamou
para si a responsabilidade de aumentar a fervura para encontrar
uma solução que abrisse o Brasil à entrada expressiva de vacinas. A
paulista foi ao mineiro e pediu a ele que desse atenção à emenda de
Randolfe e o procurasse para uma conversa.
Poucos dias depois, em 22 de fevereiro, o redator da emenda foi
convidado para uma agenda na residência oficial do presidente do
Senado, que havia considerado o texto muito bom. Lá ocorreu uma
reunião virtual com representantes da Pfizer, da Janssen, da
Interfarma e do Sindusfarma.
Não era a primeira vez que se tentava uma articulação parecida.
Um convite anterior, feito em janeiro e sem a participação do
presidente do Senado, havia sido recusado pela Pfizer. Isso porque
a empresa avaliou que a negociação com o ms poderia se tornar
ainda mais difícil se um representante do laboratório aparecesse
junto a um senador de oposição. A realidade mostrava que eles não
poderiam estar mais certos.
Naquele 22 de fevereiro, durante a reunião na residência oficial
do presidente do Senado, houve uma convergência para a ideia de
que o meio mais seguro de garantir a aprovação do dispositivo era a
apresentação de um projeto de lei específico para esse fim, em vez
da proposta de uma emenda à mp. Pacheco ouviu a proposta e não
se opôs.
No final do encontro, ele abdicou de falar com a imprensa e
partiu para o Ministério da Saúde com a finalidade de tratar
diretamente do assunto e avisar que estava dando seu apoio político
e pessoal à iniciativa. Naquela mesma semana, técnicos da pasta e
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já haviam se
manifestado cobrando pressa por parte do governo na celebração
dos contratos de compra das vacinas.
Na época, o ministério era comandado por Eduardo Pazuello,
general de divisão da ativa, terceiro ministro a ocupar a pasta em
plena pandemia. Terminada a reunião, Pacheco conversou com
jornalistas ao lado do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente
e um dos articuladores políticos do governo, o que demonstrava
que o Planalto já havia encontrado uma maneira de interferir no
processo, mas nós, da oposição, ainda não sabíamos o que estava
em questão.
Os bastidores só vieram à luz no cair da tarde. Em uma conversa
no seu gabinete, Rodrigo Pacheco confidenciou a colegas que a
ideia do projeto de lei para expandir a vacinação causara “um
ciúme danado” no governo e em sua base política no Congresso,
sinalizando que, se a autoria fosse creditada a um senador da
oposição, o presidente da República trabalharia contra a sua
aprovação e, caso fosse aprovado, ele o vetaria.
Becos aparentemente sem saída como esse só podem ser
vencidos com política, negociação e a consciência de que, às vezes,
é preciso atrasar um pouco o passo para que o ganho seja maior
logo à frente. Recuar não é fugir.
Dada a gravidade da situação, era preciso tornar real o
impensável. Para não colocar em risco a aprovação do dispositivo, a
autoria do projeto foi oferecida ao próprio Rodrigo Pacheco. Foi
naquele contexto que o presidente do Senado propôs um encontro
entre Flávio Bolsonaro e um dos mais contundentes adversários do
governo. A reunião ocorreu na residência oficial do Senado, com a
participação de técnicos da Anvisa e do ms, de Elcio Franco, o
número dois da pasta, e do senador Flávio. Em clima de
cooperação e sem qualquer animosidade, o projeto foi revisado até
que estivesse pronto para ser apresentado ao plenário pelo
presidente da Casa.
No dia 24 de fevereiro, o projeto foi aprovado pelo Senado.
Aquele destravamento garantia ao país ao menos 100 milhões de
doses de vacinas para atender aos brasileiros.
Com a nova lei, o Congresso driblou a pesada investida de
grupos empresariais privados interessados na compra de vacinas
para aplicação exclusiva no seu quadro de funcionários, criando
ilhas de privilégios no Brasil e ferindo de morte o Sistema Único de
Saúde (sus). Tudo com o apoio entusiasmado de Bolsonaro, que,
sem querer desembolsar dinheiro do governo federal para
universalizar a imunização, chegou até mesmo a incentivar uma
proposta da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e
Equipamentos (Abimaq), um sindicato de patrões, para a compra
de 33 milhões de doses, enquanto o Ministério da Saúde dificultava
a realização dos contratos para a vacinação pública.
A postura de Luiza Trajano foi, além de republicana, uma marca
que a distinguiu de muitos empresários brasileiros. A
responsabilidade social e a altivez política com que agiu ao buscar
Rodrigo Pacheco surtiram um efeito imediato. Graças a esse
movimento, foi possível romper as resistências dentro do governo e,
certamente, assegurar a vida de milhões de brasileiros, salvos da
covid pela chegada das vacinas.
Nos dias em que estivemos na linha de frente da Comissão
Parlamentar de Inquérito (cpi) da Covid, desvendamos fatos
aterradores, revoltantes, tratativas não republicanas que se
refletiram na vida de cada cidadão e cidadã, mas também
presenciamos gestos de enorme grandeza, que, no final das contas,
são portas abertas para a boa política.
A intervenção da empresária Luiza Trajano em defesa das vacinas
não foi o único dos fatos extraordinários que vivemos em torno da
pandemia e da cpi. A própria comissão foi fruto de um arranjo de
contrários que só a política, que pressupõe diálogo e busca de
consenso mínimo, permitiria. Pela primeira vez na história, a cpi
teve ampla participação social, um trabalho parlamentar que
rompeu os limites do Congresso Nacional e foi transmitido, ao vivo,
para todo o país pelas televisões, rádios e especialmente pelas
mídias sociais, como Twitter e YouTube, por meio das quais as
atividades da comissão foram acompanhadas em tempo real.
A pandemia trouxe sofrimento ao mundo todo, mas nós,
brasileiros, tivemos que lidar com um vírus tão ou mais nocivo e
agressivo que o Sars-cov-2: o bolsonarismo. Enquanto laboratórios
no mundo inteiro trabalhavam para desenvolver vacinas e novas
formas de tratamento, nós, políticos brasileiros, enfrentávamos o
desafio de encontrar maneiras de nos opor eficazmente ao pior
governo de nossa história. Nas páginas que seguem, vamos tratar de
alguns dos episódios de maior relevo daquela que foi a maior e mais
importante articulação de uma frente republicana e democrática
contra o vírus que continua ameaçando a vida de nossos
concidadãos.
1. COSTURAS E ASSINATURAS
Diz uma antiga anedota muito presente nas rodas políticas que,
se um político perspicaz e resiliente como Renan pular do oitavo
andar de um prédio sem nenhum tipo de paraquedas, podemos
pular em seguida sem medo, pois alguma coisa boa encontraremos
ao final da queda. Para uns é um modo de ressaltar seu faro
político; para outros, uma maneira de salientar seu senso de
oportunidade. Renan é um sobrevivente da política e, mesmo
tendo atravessado períodos muito turbulentos nos seus anos de vida
pública, tem conseguido se reerguer como uma verdadeira fênix. A
cpi foi um desses momentos.
Em vários episódios da nossa história política, por razões
diferentes, nós ou nossos partidos estivemos em lados opostos ao de
Renan. Em outros, nos somamos para a defesa de pontos comuns,
na maioria das vezes relacionados à independência do Congresso
Nacional e à defesa das instituições e da democracia.
É preciso reconhecer que o peso do seu protagonismo político o
transformou no alvo predileto de seus adversários, da grande mídia
e de instituições de controle público. Em um de seus mandatos
como presidente do Senado, viu-se obrigado a renunciar diante da
repercussão de denúncias que lhe foram imputadas, mas conseguiu
não apenas reeleger-se seguidamente como voltar a presidir o
Congresso Nacional.
Em outro desses mandatos de presidente do Senado, no ano de
2016, coube a ele dirigir a derradeira parte do processo de
impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff.
Em 31 agosto de 2016, apresentamos a proposta de Randolfe de
que a presidenta pudesse manter seus direitos políticos, mesmo
derrotada no processo de impeachment. Humberto e o pt
endossaram a ideia, Renan não apresentou resistência e passou a
trabalhar discretamente pela proposição. Entendemos que essa era
uma decisão interna do Senado amparada pela lei 1079, de 1950,
que previa o tal “fatiamento”. Ao final, o então presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, aceitou
o destaque da inabilitação, que foi votado em separado e aprovado,
preservando os direitos políticos de Dilma. A aproximação com
Renan Calheiros aconteceu sem sobressaltos, e o compromisso dele
foi importante para que a proposição se sustentasse.
Passado esse período, Renan conseguiu fazer Eunício Oliveira,
do mdb do Ceará, seu sucessor na presidência do Senado. Já era o
tempo da Operação Lava Jato, e Renan viria a ser um dos alvos
prediletos dela, especialmente do então procurador-geral da
República, Rodrigo Janot, que abriu vários processos contra ele e
outros integrantes do mdb, muitos dos quais viriam a ser arquivados
pelo Supremo Tribunal Federal (stf) mais tarde.
A eleição para a presidência do Senado deixou marcas
importantes para Renan. A Casa havia passado por um processo de
mudança muito grande na correlação de forças políticas nas
eleições de 2018. Poucos senadores conseguiram a reeleição. Boa
parte dos eleitos veio na onda bolsonarista ou no bojo da
antipolítica, alimentada pela mídia e pelas ações da Lava Jato,
especialmente do ex-juiz Sergio Moro.
Várias medidas judiciais foram tomadas para impedir que Renan
fosse candidato. Até membros do Ministério Público na Lava Jato se
manifestaram contra o alagoano, que, por seu lado, também
recorreu à Justiça para fazer valerem seus interesses. A mídia mais
uma vez alimentava a onda contra Renan, e as redes sociais,
predominantemente controladas pelos bolsonaristas, moviam uma
ação inesgotável para impedir a eleição do emedebista.
O pt apoiou a candidatura do senador alagoano por entender
que era um nome capaz de defender a independência do Poder
Legislativo diante do autoritarismo de Jair Bolsonaro. Já a Rede
declarou apoio a Alcolumbre, que se sagrou vitorioso em meio a
uma eleição turbulenta. Renan abandonou a disputa antes mesmo
da contabilização do último voto, deixando atordoados os senadores
que o haviam apoiado.
Aquele que, nos últimos anos, havia contado com o apoio da
grande maioria dos parlamentares da Casa acabara de sofrer uma
derrota com a qual não contava e da qual demoraria a se recuperar.
Após o insucesso eleitoral interno, Renan se recolheu por um bom
período. Aos poucos foi retornando à cena política, procurando se
situar no debate nacional.
Oito meses depois de perder a eleição para Alcolumbre, Renan
elogiou em público o adversário no plenário do Senado por ter
assumido um papel fundamental na rejeição pelo Congresso
Nacional de dezoito vetos da Presidência da República apostos à
Lei de Abuso de Autoridade, de autoria do alagoano. Depois da
guerra, os acenos de paz.
Os tempos não foram fáceis para Renan após a eleição perdida.
Segundo informações de bastidores, ele tentou ser líder do mdb no
Senado, mas não reuniu apoio da bancada. Almejou ocupar a
presidência da principal comissão permanente do Senado, a de
Constituição e Justiça, mas também não obteve sucesso. A volta por
cima de Renan viria com o pedido de instalação da cpi. Estávamos
próximos de obter as 27 assinaturas necessárias à criação da
comissão.
Renan não hesitou um segundo quando o procuramos para pedir
sua assinatura: “Essa cpi tem que sair. Entre outras coisas, porque
ela é o caminho para o parlamento retomar a posição de quem
investiga o Executivo e que, com a Lava Jato, se perdeu para o
Ministério Público e a magistratura”. Sua reação deixava claro que
ele imaginava vir a ter um papel relevante no processo da cpi.
Ciente de que estávamos próximos da obtenção do número
mínimo de assinaturas necessário, Renan usou da sua experiência:
“Precisamos de uma margem de segurança maior. Temos que
coletar mais cinco ou seis além do mínimo para termos um espaço
de manobra, pois o governo certamente vai operar para retirar
algumas”. Não deu outra. Tivemos, por exemplo, o caso do senador
de Roraima, Chico Rodrigues, que chegou a assinar o
requerimento e retirou a assinatura quando estávamos prestes a
instalá-la.
E assim Renan Calheiros entrou no jogo, telefonando para
dezenas de senadores e fazendo uma espécie de prospecção,
mantendo a conversa acesa, sentindo para onde cada vento soprava,
até que nos avisava: “Pode procurar fulano, ele — ou ela — vai
assinar”.
* Daniel Weterman, “‘É preciso parar esse cara’, diz Tasso Jereissati ao defender
cpi da Covid, O Estado de S. Paulo, Política, 1o mar. 2021. Disponível em:
<https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,e-preciso-parar-esse-
cara,70003632533>. Acesso em: 25 jul. 2022.
4. O TABULEIRO DE XADREZ
Julho de 2022
AGRADECIMENTOS
Este livro não existiria sem a cpi, e esta não teria acontecido sem
o engajamento de milhões de brasileiras e brasileiros que apoiaram
o funcionamento da comissão aberta pelo Senado para apurar a
política de morte deliberadamente adotada pelo presidente da
República durante a pandemia da covid-19. A todas essas cidadãs e
a todos esses cidadãos, muitos dos quais não sobreviveram para ver a
conclusão dos trabalhos da cpi, nossos sinceros agradecimentos.
Agradecemos também aos colegas assessores Alberto Lima, Ana
Cristina Barros, Ana Paula Menezes, Ilano Barreto, Marcos Rogério
de Souza e Silvana Pereira por não deixarem que fatos importantes
ficassem escondidos em nossa memória e acabassem de fora do
livro. Somos gratos também por todo o auxílio que prestaram no
aprofundamento da pesquisa e na composição do texto, e sobretudo
por afirmarem o caráter documental desta obra — que legamos ao
povo brasileiro para que os crimes contra a dignidade humana,
cometidos por agentes do estado e a mando do chefe do Poder
Executivo durante a pandemia de covid-19, nunca se repitam.
renato parada
Preparação
Mariana Donner
Revisão
Bonie Santos
Versão digital
Rafael Alt
isbn 978-65-5782-687-4
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