Depressão Sem Tristeza, Com Tristeza e Melancólica
Depressão Sem Tristeza, Com Tristeza e Melancólica
Depressão Sem Tristeza, Com Tristeza e Melancólica
Marion Minerbo2
Resumo: Este estudo psicanalítico das depressões parte do pressuposto de que esse
quadro é sintoma da atividade de um núcleo inconsciente que se organiza em res-
posta a modos específicos de presença do objeto primário: 1) operatório, 2) em
codependência, e 3) por desinvestimento ou por investimento negativo do sujeito.
Essa compreensão permite reconhecer as características do campo transferencial-
-contratransferencial e conduzir as análises em cada caso.
Palavras-chave: psicopatologia, depressão sem tristeza, depressão com tristeza,
depressão melancólica
Introdução
Clinicamente, a depressão é um quadro mais ou menos típico de infeli-
cidade e falta de prazer com a vida. Muitas vezes há também um rebaixamento
da autoestima e a certeza de ser indigno do amor do outro. Mas o que melhor
caracteriza o estado depressivo é a falta de esperança e a vivência de futuro blo-
queado (Bleichmar, 1983). Entretanto, assim como a febre é apenas sintoma de
uma infecção, a depressão é a manifestação sintomática de processos psíquicos
inconscientes.3 Da mesma forma que febres diferentes remetem a processos
infecciosos distintos, podemos reconhecer infelicidades diferentes produzidas
por núcleos inconscientes distintos. Estes irão se manifestar na transferência
com características próprias e exigirão estratégias terapêuticas específicas.
1 Agradeço a Alexandre Maduenho, Daniel Delouya e Perla Klautau pelas sugestões que ajuda-
ram a melhorar este texto.
2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (sbpsp).
3 No recorte proposto não vou me referir a elementos socioculturais ligados às depressões.
Entendo que o sistema simbólico no qual nos constituímos determina em grande parte as
representações de si e do mundo que formam o pano de fundo da vida psíquica.
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essencial ou sem tristeza foi proposto por Marty (1968) para caracterizar o
funcionamento psíquico encontrado em muitos quadros psicossomáticos. A
tristeza está ausente porque o sujeito se cortou de sua vida psíquica, e o sofri-
mento foi “solucionado” pela via somática.
Proponho ampliar essa ideia para os quadros em que a pessoa também
se amputou de sua vida psíquica, mas em vez de somatizar, usou defesas com-
portamentais: adições, compulsões, transtornos alimentares, hiperatividade,
violência, perversões. Essas pessoas não procuram análise por estarem depri-
midas, mas por causa dos sintomas mencionados. De modo geral, sentem que
“algo” não vai bem em sua vida, e descrevem, à sua maneira, o que chamei de
infelicidade difusa. Reconhecemos aí a angústia branca descrita por Green.
depressiva, que estão tamponados pelo modo de vida descrito. Por isso é uma
depressão sem tristeza. Mas a ameaça depressiva está lá, e se anuncia quando
diz “Se eu paro, estou perdida”, e “Antes acabar com ela [a vida] do que ter essa
comilança como única companheira”.
Descreve um modo de vida organizado pelas lógicas de evacuação. Isso
indica a falta de recursos psíquicos, em especial da função simbolizante, o que
torna impossível tolerar qualquer tensão psíquica e a obriga a descarregar pela
via do comportamento (trabalhar até tarde, malhar até ficar exausta, seduzir
um homem atrás do outro, comer e vomitar). Graças a essas defesas, consegue
funcionar, trabalhar, ser produtiva, ter amigos e sair. Mas esse frágil equilí-
brio fica ameaçado com a possibilidade de um relacionamento sério com um
homem.
Vimos na introdução que na origem de cada tipo de depressão podemos
reconhecer um modo de presença do objeto primário – o qual, nesse caso, não
permitiu a instalação suficiente da função simbolizante. Como todos sabem,
Bion e Winnicott trouxeram contribuições fundamentais sobre o modo de pre-
sença necessário para a instalação da função simbolizante: respectivamente,
função alfa e função espelho da mãe.
Partindo dessas duas contribuições, Roussillon (2008b, 2012) propõe
uma espécie de microscopia desses dois processos – uma metapsicologia do
processo de simbolização –, ressaltando a dimensão pulsional envolvida na
relação intersubjetiva. Por um lado, enfatiza a participação da mãe e do bebê (e
não só da mãe) na constituição da função simbolizante. O símbolo, por defini-
ção, se constitui na e pela junção de duas partes, uma que vem do bebê e outra
que vem da mãe. O processo de simbolização se dá na intersubjetividade, com
a participação de dois sujeitos – dois psiquismos.
Por outro lado, resgata a importância do prazer compartilhado no
vínculo primário. Primeiro, como condição para criar as reservas narcísicas
necessárias para que o bebê se torne progressivamente mais e mais capaz de
tolerar frustrações. Sem essas reservas, a excitação produzida pelas experiên-
cias emocionais desprazerosas não poderá ser retida no interior do aparelho
psíquico e terá que ser descarregada. Segundo, como condição para investir
libidinalmente a própria função simbolizante. O bebê vem ao mundo com o
potencial para simbolizar, mas este só se torna efetivo quando investido po-
sitivamente por seu próprio psiquismo. E isso só acontece se aquela atividade
tiver sido fonte de prazer compartilhado no vínculo intersubjetivo. Somente
então a atividade de simbolizar – ou qualquer outra função psíquica – pode
ser retomada internamente sem a ajuda do objeto.
Qual é o tipo de prazer que precisa ser compartilhado no vínculo pri-
mário? Além do prazer de matar a fome e de sugar, Roussillon (2008b, 2012)
enfatiza o prazer ligado a uma comunicação bem-sucedida entre a mãe e o
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bebê. O autor fala em pulsão mensageira. Para ele, a pulsão não busca apenas
a descarga. Busca também a comunicação com o objeto, que ele chama de
conversação primitiva.
O que seria essa conversação primitiva? O choro do bebê e toda a sua
linguagem corporal significam potencialmente alguma coisa. Mas a comuni-
cação só se torna efetiva, inaugurando o processo de simbolização, se houver
alguém capaz de decodificar e responder a essas mensagens. As demandas, os
apelos e a comunicação de estados emocionais precisam ser bem interpretados
para que sejam atendidos de forma suficientemente adequada. Isso depende
da capacidade empática da mãe, isto é, de sua capacidade de se identificar aos
estados emocionais do bebê.
O primeiro “assunto” da comunicação primitiva são as sensações do
bebê. Quando um movimento/demanda corporal encontra uma resposta ade-
quada por parte da mãe, essas duas partes “se encaixam”. Esse encaixe forma o
protossímbolo, graças ao qual a sensação corporal pode se descolar do corpo.
Ela deixa de ser uma “coisa em si” e passa a ter uma protorrepresentação. A
experiência corporal/sensorial/emocional pode, então, ser integrada.
Com a ampliação progressiva de seu repertório simbólico, o bebê se
torna cada vez mais capaz de tolerar frustrações e reter excitações. O salto
qualitativo acontece quando o trabalho psíquico de dar sentido às experiências
emocionais passa a ser fonte de prazer para o bebê. A função simbolizante será
investida positivamente. Teremos, então, o que Bion chamou de vínculo +K.
Mas quando a mãe sofre de “daltonismo emocional”, ela não consegue
reconhecer mensagens ligadas à vida psíquica. Por isso, irá traduzi-las sempre
no plano concreto: frio, fome, sono, dor de barriga, doenças etc. Dizemos,
então, que o objeto tem um modo de presença operatório.
A inadequação sistemática desse tipo de resposta por parte da mãe con-
figura uma forma específica de trauma precoce e produz sofrimento psíquico
por dois motivos. O primeiro é que as necessidades emocionais não são aten-
didas. O segundo é que se instala uma condição de incomunicabilidade: o
sofrimento não pode ser compartilhado e é vivido como agonia.
Além disso, como os apelos emocionais da criança caem no vazio, o
bom encaixe entre os apelos do bebê e a resposta da mãe não acontece. A
capacidade de comunicação simbólica, que era um potencial inato da criança,
degenera (Roussillon, 2010). A função simbolizante não será instalada de
modo suficiente. Ou pior, será investida negativamente. Pois quando o vínculo
primário produz dor em vez de prazer, o psiquismo irá se organizar contra o
objeto e contra a simbolização. Teremos o que Bion chamou de vínculo –K.
Voltando a Leonora. Vimos que ela construiu uma vida organizada
pelas lógicas de evacuação. Está o tempo todo engajada em diversas formas de
agir. Foi a solução defensiva encontrada para descarregar as tensões ligadas à
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Quando a mãe começa a retomar sua vida, a criança frustrada irá ex-
pressar sua raiva. Ela tem o “direito” de atacar a mãe. Como sabemos, cabe a
esta o trabalho psíquico de sobreviver a esses ataques. Entretanto, parece-me
que não se enfatizou o suficiente que não basta a mãe sobreviver aos ataques
explícitos da criança frustrada; é importante que ela sobreviva aos seus peque-
nos momentos de autonomia, que implicam também alguma “agressividade”,
ou pelo menos podem ser interpretados assim. Por exemplo, os movimentos
de retração autoerótica em que a criança lhe sinaliza que necessita estar a sós
consigo mesma. A mãe deve sobreviver aos mil micromovimentos “agressivos”
em que a criança diz: “Agora não preciso de você, me deixa em paz”.
Para sobreviver a esses micromovimentos, a mãe também precisa aguen-
tar ficar só na presença da criança. Como a relação mãe-bebê é uma relação
entre dois sujeitos, para que a criança conquiste sua autonomia em relação
à mãe, é importante que esta tenha autonomia em relação à criança. Mas
há situações em que, em virtude de sua própria fragilidade narcísica, a mãe
sentirá necessidade de usar a criança como muro de arrimo. Ela mesma não
conquistou a separação sujeito-objeto, nem conseguiu fazer o luto pela perda
de seu próprio objeto (Klautau & Damous, 2015). Inconscientemente, viverá
os movimentos de autonomia da criança como rejeição e/ou abandono, e não
conseguirá sobreviver a eles. A dialética presença-ausência se interrompe, e
a criança ficará impedida de prosseguir em seu movimento de separação em
relação à mãe. Com sua autonomia assim sequestrada, ficará desempoderada
e dependente de seu objeto.
Na origem desses quadros reconhecemos um modo de presença do
objeto primário em codependência com a criança. Nessa relação intersubjetiva
a criança depende da mãe e a mãe depende da criança. A melhor imagem
não é a do muro de arrimo, mas a de duas cartas de baralho que, para ficar
de pé, precisam do apoio uma da outra. Numa relação de codependência, se
qualquer uma delas sair, a outra cai. Elas não podem se separar porque ambas
correm o risco de desmoronamento narcísico.
Parece ter sido o caso de Manuela. Ela conta que sua mãe foi separada
da própria mãe quando a irmã nasceu. Foi enviada para a casa da avó, numa
cidade do interior. Por isso, quando Manuela nasceu, “não quis outro filho
durante cinco anos para poder curti-la plenamente”. Esse material pode ser es-
cutado como representação de uma mãe que se agarra à filha para compensar
o buraco deixado pela relação insuficiente com a própria mãe. Reconhecemos
aí o que estou chamando de codependência no vínculo primário.
Esses pacientes passam a vida lutando para não perder o objeto. Como se
sentem desempoderados, vivem submetidos, com medo de perdê-lo e desmo-
ronar. Ao mesmo tempo passam a vida lutando para se desvencilhar do objeto
que se apoia/se agarra neles para não desmoronar. Por isso, quando tentam
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Depressão melancólica
Bárbara tem 30 anos, é solteira e mora com os pais. Procura análise por
uma “depressão crônica”. Sempre foi difícil começar o dia. Não tem energia
para investir nas atividades, ou então desanima logo. A vida é pesada e sem
graça. Tem poucos amigos. Não gosta de sair com eles. “Prefiro ficar em casa
vendo séries.” Investigando um pouco, descobrimos que se esconde do mundo
porque não se sente suficientemente interessante. Pelo mesmo motivo, acabou
se isolando profissionalmente.
Pergunto o que seria ser suficientemente interessante. Responde que
teria que entender de arte, literatura, cinema, política. Ela se ofende e se retira
quando percebe que sua conversa “não repercute”. Pergunto o que seria reper-
cutir. Responde que seria “virar assunto no grupo”. Sua amiga garante que as
pessoas curtiram o que disse, mas Bárbara não acredita.
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bárbara: Levei meu cachorro no veterinário. Na fila havia uma senhora com um
cachorro que não tinha uma perna. Achei incrível perceber que mesmo assim ela
amava o cachorro! Eu não seria capaz disso.
Mesmo que Bárbara diga que não seria capaz disso, reconhece que é
possível amar um cachorro sem uma pata. Não é preciso ser perfeito para
merecer o amor do objeto.
As transformações se sucedem, embora sempre sujeitas a retrocessos.
Começa a perceber a mãe sob outra luz. No lugar de uma pessoa má e mes-
quinha, surge uma mulher infantilizada e assustada com a vida. Diz que vem
estranhando o mundo e a si mesma.
Fui num jantar e levei uma sobremesa. No dia seguinte minha amiga ligou para
dizer que adorou e que queria a receita.
marion: Quer dizer que sua sobremesa repercutiu?!
bárbara: [Ri.] Sim, repercutiu. Antes, se me pedissem a receita, eu teria certeza
de que a pessoa só estava sendo gentil. Mas dessa vez eu acreditei. Ela realmente
tinha gostado, e realmente queria a receita. É isso que está tão diferente.
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marionminerbo@gmail.com