CORPO DESDOBRADOviviane
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CORPO DESDOBRADOviviane
Viviane Matesco
A relação entre corpo e arte tem sido objeto de muitos estudos nos últimos
anos, devido à própria relevância que o tema assumiu nas discussões contem-
porâneas. Por outro lado, parte dos debates e pesquisas se tem restringido a
aspectos específicos, sobretudo às performances. Objetivamos lançar aqui um
olhar mais amplo a partir das várias facetas que a questão corpo/arte pode
assumir. Se no início do século XX a arte moderna subverte a tradição do
nu, mediante a fragmentação e deformação do corpo, na segunda metade do
século essa crise da outrora equilibrada visão antropocêntrica é ainda mais
acentuada, uma vez que passam a ser exploradas a matéria, a animalidade e a
crueza. Dessa maneira, profana-se a antiga imagem de um corpo idealizado
por meio do reconhecimento da corporalidade humana. Do rebaixamento
à supervalorização, o corpo é focalizado em happenings, ações, performances
e fragmentos orgânicos, o que afirmaria a noção de um corpo literal como
singularidade da arte contemporânea. Nosso intuito é compreender como
essa noção se impôs a partir da década de 1960 e também propor outra abor-
dagem para os trabalhos que envolvem o corpo. Para tanto, focalizaremos os
1
No Rio de Janeiro, a partir do neoconcretismo, desenvolveu-se um conceito original de subje-
tividade partindo do corpo e colocando em questão dualidades como sujeito e objeto. Ao consi-
derar a obra de arte um quase corpo, opõe essa noção orgânica àquela do objeto: a obra de arte
seria um prolongamento da corporalidade. Nos anos 1960, Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia
Pape ampliam essa questão ao diluir a separação entre arte e audiência mediante modelos partici-
pativos. Ao contrário do corpo ativista e contestatório do happening, da body art e da performance,
as propostas desses artistas supõem um modelo fenomenológico no qual a consciência do corpo
interfere na percepção da obra com estímulos que envolvem o participante. São vivências que
dependem exclusivamente da interação com o sujeito e por isso não têm caráter de espetáculo. A
ênfase na vivência corporal destaca a subjetividade nessas experiências e estabelece um paradigma
que distingue a arte brasileira da cena internacional.
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No Japão, os artistas do grupo Gutai pintavam os quadros com seus próprios corpos. Seus
trabalhos caracterizam-se por teatralidade inspirada na improvisação do meio, como em Lama
provocante (1955), de Kazuo Shiraga, ação realizada em uma piscina de lama na qual produziu uma
pintura a partir das impressões de seu corpo. Vestido elétrico (1956) é um quimono tecnológico
pelo qual Atsuko Tanaka estabelece conexão entre a eletrificação e os sistemas fisiológicos do cor-
po humano; a artista construiu planos para a fiação tal qual um tecido do sistema nervoso coberto
com luzes que, movimentadas acesas, formavam uma pintura em ação. Aqui o corpo assume o
papel de objeto e, paralelamente, o objeto desempenha as funções do corpo. Ver SCHIMMEL,
Paul. Out of actions: between performance and the object — 1949-1979. Los Angeles: The Museum of
Contemporary Art, 1998.
3
KAPROW, Allan. L’héritage de Jackson Pollock (1958). In: KELLEY, Jeff (Org.). L’art et la vie
confondus. Paris: Éditions du Centre Pompidou, 1996. p. 32-39.
4
BANNES, Sally. O corpo no poder. In: ______. Greenwich Village 1963. Rio de Janeiro: Rocco,
1999. Ver também WARR, Tracey. The artist’s body. Londres: Phaidon Press, 2000.
8
Dirigida por Bataille de 1929 a 1930. BATAILLE, Georges. Documents. Paris: Mercure de
France/Gallimard, 1968.
9
Ao analisar a montagem figurativa da revista, Didi-Huberman discute como o “informe” não se
refere a um tema nem a uma substância, nem mesmo a um conceito. A operação batailliana de-
sarranja a interdição da récita judaico-cristã, na qual a semelhança se exprime hierarquicamente;
o homem é criado à imagem e semelhança de Deus, e o inverso não se deve jamais dizer, pois
isso desclassificaria a própria relação de semelhança. Bataille inverte a hierarquia do modelo e da
cópia, embaralha todas as relações do alto e do baixo e com isso despedaça o tabu do tocar, sob o
qual todo o mito cristão da semelhança parecia construir-se. Quando nos dizem que duas coisas
ou duas pessoas se assemelham, supomos, normalmente, que elas não se tocam e permanecem
num distanciamento material. O retrato assemelha-se ao retratado, e a cópia a seu modelo, jus-
tamente porque o retrato não tem a substância do retratado, ou seja, a conformidade ideal exige
qualquer coisa como a recíproca de uma não comaterialidade: a matéria não deve tocar a forma.
Ver DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille.
Paris: Macula, 1995.
10
BATAILLE, Georges. Lascaux ou La naissance de l’art. Laussane: Skira, 1955.
11
BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo: Arx, 2004.
12
DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance informe ou le gai savoir visuel selon Georges Bataille,
op. cit.
13
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.
14
Freud descreve um menino que agarrava e atirava um carretel para longe e, enquanto o fazia,
emitia um longo e arrastado “o-o-o-ó” acompanhado por expressão de interesse e satisfação. Sua
mão interpretava a palavra alemã fort, que significa ir embora. Depois ele puxava o carretel para
si novamente e o saudava com a expressão da (ali), momento de maior prazer. FREUD, Sigmund.
Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p.18-22.
15
Sigo aqui a análise de DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha, op. cit., p. 80-87.
16
Idem, p. 97.
17
DOCTORS, Marcio. Exorbitando a pureza. In: CANONGIA, Ligia (Org.). Ivens Machado, o
engenheiro de fábulas. Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2001, p. 95.
18
DUARTE, Paulo Sergio. Brutal pureza. In: CANONGIA, Ligia (Org.). Ivens Machado, o enge-
nheiro de fábulas, op. cit, p. 17.
19
DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image ouverte. Paris: Gallimard, 2007, p. 25.
20
BASUALDO, Carlos. Uma vanguarda viperina. In: ______. Tunga: 1977-1997. Nova York:
Bart College, 1998.
21
Ver LAGNADO, Lisette. A instauração: um conceito entre instalação e performance. In: BAS-
BAUM, Ricardo (Org.). Arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Contracapa, 2001, p. 371-376.
22
ROLNIK, Suely. Instaurações de mundos. In: BASUALDO, Carlos. Tunga, op. cit, p. 115-136.
23
BRETT, Guy. Tudo simultaneamente presente. In MACIEL, Katia (Org.). Brasil experimental
arte/vida: proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.
24
Ver NAVES, Rodrigo. Metafísicas por um fio. Folha de S.Paulo, São Paulo, 11 dez. 1987.
25
Bataille distingue dois polos estruturais: de um lado, o homogêneo, ou campo da sociedade
produtiva, e, de outro, o heterogêneo, lugar de irrupção do impossível. Em vez da homogenei-
dade (identidade), que subsume os elementos do mundo a uma representação, a hetereologia
procede invertendo o processo filosófico; de um instrumento de apropriação, passa à excreção.
BATAILLE, Georges. Dossier hétérologie. In: ______. Œuvres completes II: écrits posthumes —
1922-1940. Paris: Gallimard, 1970, p. 167-178.
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ROLNIK, Suely. An occasional experimentalist in unstable equilibrium. In: ADAMS, Beverly
(Org.). Constructing a poetic universe: the Diane and Bruce Halle collection of Latin American art. Hous-
ton: The Museum of Fine Arts, 2007.