O Silencio Da Alma - Sheila Guedes
O Silencio Da Alma - Sheila Guedes
O Silencio Da Alma - Sheila Guedes
Impossível não notar seu olhar. Seus olhos me seguem o tempo todo. Nossa,
como ele está lindo, constato.
Seus cabelos castanho-claros estão bem aparados na nuca e a parte da frente
bem maior, fica caindo em cima dos olhos castanhos, que agora me acompanham
o tempo todo. Ele é mais velho que eu, este é seu último ano do colégio. As
meninas comentaram que ele não vai conseguir concluir o ano, pois foi recrutado
para servir no exército. Só de imaginar esse gato vestido com o uniforme militar,
sinto um arrepio pelo corpo. Ele vai ficar perfeito — imagino sonhadora.
Estamos na festa à fantasia da escola. O evento é organizado todos os anos
pelos alunos concluintes para arrecadar fundos para a formatura.
Todo o colégio está presente. As meninas com suas minissaias curtíssimas e
com suas bocas pintadas de batom vermelho tentam chamar a atenção. Não
importa a fantasia, todas seguem o mesmo padrão de mostrar o máximo que
puder.
Olho com desgosto para minha túnica sem graça.
Estou fantasiada de Afrodite, segundo minha irmã mais velha. Ela é
apaixonada por História e todos os anos escolhe as deusas que vamos
representar. Meu cabelo cor de chocolate está trançado para o lado e uso uma
tiara com folhas minúsculas, que foram trançadas com habilidade por ela. Afinal,
toda deusa que se preze tem uma coroa de folhas, segundo a Bruna.
Com exceção dos meus braços magros, nada está de fora. A túnica desce
como um camisolão até meus tornozelos, e as sandálias de couro rasteiras,
deixam meu traje ainda mais sem graça. Mesmo assim, ele me observa e me
segue desde que entrei no salão acompanhada pela Mia e pela Ruth, minhas
melhores amigas. Minha irmã, como organizadora da festa, veio mais cedo, e
ainda não deu as caras.
Estou cursando a segunda série do Ensino Médio, e tenho apenas dezesseis
anos. Sou considerada pela minha turma a mascote bebê. Aquela que estuda
demais e está sempre pronta para ajudar todo mundo. Mas isso não me
incomoda. Minha timidez e a falta de habilidade social, formaram a fama de uma
CDF esquisitona. Acho que sou a única aluna que não namora. O que ninguém
sabe, é que tenho uma queda por ele. O gato mais cobiçado do colégio, e que
desde que cheguei me observa sem parar.
Fixo os olhos no copo de ponche que tenho nas mãos. Não sei do que isso é
feito, mas tem uma cor bonita — rosa — e uns pedaços de maçã flutuando.
Preciso me mexer. Estou parada feito um poste desde que cheguei. É como se
tivesse criado raízes, mas simplesmente não tenho coragem de passear de
camisolão pelo salão lotado de meninas seminuas. É constrangedor demais ser a
pária. Distraída com meus pensamentos, não noto sua aproximação e quando
vejo um par de coturnos pretos, pararem ao meu lado, fico paralisada de tensão.
Sem conseguir evitar, subo o olhar pelo par de pernas longas e musculosas para
o padrão dos meninos de dezessete anos. Sei muito bem de quem são essas
pernas. Meus olhos continuam subindo, sem pressa. Um peito largo e não tão
musculoso, um queixo perfeito com um furinho no meio que deixa esse cara
mais lindo ainda e, então, finalmente meus olhos passam bela boca que sorri
suavemente, pelo nariz um pouco torto, para parar nos olhos castanhos mais
incríveis que já vi. Nunca tinha chegado tão perto dele, e agora percebo que sua
íris tem uns fios dourados entrançados com o castanho quase verde. Lindo. Me
contenho para não soltar um suspiro ridiculamente apaixonado.
— Oi — ele me cumprimenta e fico meio tonta. Ele está realmente falando
comigo, penso aturdida. Tentando me controlar para não sair correndo, aperto o
copo plástico nas mãos trêmulas e respondo com voz rouca:
— Oi
— Bonito vestido. — Ele aponta para minha roupa ridícula com a cabeça. Por
um segundo, chego a pensar que vai cair um balde de piche na minha cabeça,
como naqueles filmes terríveis. Será uma pegadinha da turma?
— Obrigada — balbucio. — Bonito uniforme.
Ele sorri abertamente e uau... que lindo que ele é, meu Deus!
— Quero me acostumar desde já com o que me aguarda.
Assinto, porque todos os pensamentos escapam da minha cabeça e não sei o
que dizer.
— Então, Marina, não é?
Assinto novamente. Meu Deus, preciso me controlar para não ficar de boca
aberta. Ele deve achar que, além de me vestir como uma fugitiva do manicômio,
sou lerda.
— Sou o Pedro. — Ele estende a mão e eu olho para a mão dele com um
misto de alegria e tensão.
— Nina — respondo e aperto sua mão, que segura a minha com firmeza.
— Prefiro Marina
Dou de ombros e sorrio.
— Minha mãe também.
— Mulher inteligente.
— Sim, ela é.
Então ele solta minha mão, olhando para o salão que agora está lotado por
adolescentes enlouquecidos por hormônios malucos e descontrolados que gritam
e pulam ao som de uma música horrível, e pergunta:
— Quer dar uma volta?
Mais uma vez a sensação de estar participando de uma piada geral, me assola.
Será?
Ergo os olhos e encaro os dele que estão... ansiosos?
Será? Penso novamente. Então, decido correr o risco e assinto.
Ele sorri novamente e, mais uma vez, meu coração dá uma cambalhota dentro
do peito. O Pedro, o cara mais cobiçado da escola está com a mão em minhas
costas enquanto me acompanha para fora do salão lotado. Por onde passamos
todos os rostos se viram para nos observar. Tento enxergar nós dois pela ótica
dos outros e sinto vontade de sorrir. Não existe na face da Terra, algo mais
improvável. Ele gato, musculoso e cobiçado e eu baixinha, magrela e tímida
como uma porta.
A voz da minha avó Maria chega de mansinho e sussurra:
O que é nosso, é nosso. Aprenda, querida, o mundo não dá voltas. Dá
piruetas.
Ela tem razão. O meu mundo acabou de dar uma virada de 180º. É louco, mas
acompanho o Pedro com a certeza de que essa noite será inesquecível.
“Quando você é o ar que ergue o balão,
Mas que também é a corda que não deixa ele voar.”
Anelise Diniz
Dias atuais...
— Mãe, acorda.
Uma mão me sacode. É o Júnior. Meu filho mais velho. Ele tem quinze anos e
quer ser jogador de vôlei. Uma alma realmente pura e encantadora. Não conheço
pessoa mais gentil que ele.
Sem pôr a cabeça para fora das cobertas, digo:
— Estou acordada.
— Eu tô de saída. — Fico em silêncio. Ouço seu suspiro cansado e a pergunta
para a qual não tenho resposta.
— Cê tá bem?
— Sim, estou — respondo ainda sem mostrar o rosto. — Estou com uma
enxaqueca terrível e a claridade do sol está me incomodando — minto.
Ouço outro longo suspiro e sinto o colchão afundar ao meu lado. Gentilmente,
ele puxa o lençol e tento a todo custo esconder meu rosto do seu olhar atento.
— Mãezinha — ele sussurra e tem tanto pesar nessa única palavra que meu
coração se contrai de dor e vergonha. E se estilhaça em centenas de pedaços.
Engulo o choro e murmuro:
— Você vai se atrasar, filho.
— Como você permite que isso aconteça? Como? Por que não o denuncia? —
Outro suspiro. — Sinto tanta raiva de não poder fazer nada... tanta...
Sento imediatamente, esquecida do estado lastimável que meu rosto deve
estar.
Os olhos dele apertam quando me olha e eu me arrependo imediatamente de
me mostrar sem a proteção de camadas e camadas de maquiagem.
— Meu Deus, mãe...
— Eu tropecei quando estava subindo a escada — minto mesmo sabendo que
é inútil.
— Mãe...
— Estou bem, juro. — Ergo a mão e afago a lateral do seu rosto. — Não é o
que você está pensando, filho.
Ele fica de pé. Abre e fecha as mãos grandes demais para aquele braço ainda
em formação. Sei que está nervoso e com muita raiva. Seu rosto é um livro
aberto, sempre foi.
— Eu não entendo... eu realmente não entendo o que te leva a aguentar isso...
— diz apontando para o meu rosto.
— Não fale isso. Não aconteceu nada. Eu tropecei na escada. Você está
delirando!
— Delirando?!
— Sim.
— E essas manchas roxas nos seus braços? Essa marca de dedos? Foi o
tropeção também? Por favor, mãezinha, você precisa dar um basta nisso.
— Júnior, você está vendo coisas onde não existe. Eu caí da escada. Não
aconteceu nada.
Ele fecha os olhos por alguns segundos e quando abre, vejo a desilusão
estampada no seu rosto. E, apesar da dor física que estou sentindo, ver essa
expressão no rosto do meu filho, me desestrutura muito mais do que todos os
chutes e socos que levei na noite passada. Tento ficar impassível, não quero que
ele perceba o que estou sentindo e como me sinto tão absurdamente covarde.
— Você vai se atrasar — murmuro.
Ele assente, estende o braço e toca com a ponta do dedo a lateral do meu lábio
cortado. Seus olhos endurecem por alguns segundos, então ele inspira fundo,
pega a mochila, que só agora notei aos pés da cama, e sai sem dizer uma única
palavra.
Quando a porta do quarto se fecha, deixo vir à tona toda a vergonha e
humilhação que estou sentindo.
Quando foi que me tornei essa mulher?
A resposta vem rápido: quando deixei de me amar e acreditei que amar
alguém mais do que a mim mesma, era o suficiente para me preencher.
Aquela garota de dezoito anos que casou apaixonada foi soterrada por anos de
omissão e vergonha.
“A pessoa mais bacana do mundo também tem um lado perverso.
E a pessoa mais arrogante pode ter dentro de si um meigo [...]
A questão é perceber se a pessoa com quem você convive
ajuda você a revelar seu melhor ou seu pior.”
Paixão crônica – Martha Medeiros
Estou nervosa como nunca estive. Me olho pela milésima vez no pequeno
espelho do banheiro. Meu rosto está mais corado que o normal, e sei que a culpa
é da crise de ansiedade que estou sentindo.
— Estamos atrasadas, Nina! Anda! — Minha irmã grita do lado de dentro do
nosso quarto.
— Estou indo. Só um segundo!
— Estou saindo. Não demora ou vai ter que arranjar carona. Papai tá uma
pilha hoje.
Reviro os olhos. Grande novidade. Quando ele não está uma pilha?
Nosso pai é um típico homem de meia-idade estressado e inconformado com o
que a vida fez com ele. Trabalha em uma empresa de seguros, e odeia o que faz.
Diz que a vida dele teria sido muito diferente se não tivesse se apaixonado por
minha mãe. Foi seu amor por ela, que o fez desistir da carreira na Marinha.
Então, praticamente todos os dias, assistimos à guerra de palavras entre eles. Do
café da manhã à hora do jantar. Mas, apesar das inúmeras acusações, é nítido o
amor que sentem um pelo outro. É estranho perceber que o amor entre duas
pessoas, nem sempre é suficiente para a felicidade delas. Muitas e muitas vezes,
vejo no olhar da minha mãe sua infelicidade. É como se ela tivesse se
conformado com o que a vida lhe reservou, mas apesar desse conformismo, vez
ou outra vejo no seu olhar, quando ela está distraída cozinhando ou limpando a
casa, a vontade que tem de ser livre de todas as suas responsabilidades. Acho
que se ela entrasse em uma máquina do tempo, e tivesse a opção de refazer sua
vida, ela não teria casado com meu pai — seu primeiro e único namorado —
apesar de saber que ela o ama. Só que não é um amor como nos livros de
romances. O amor deles não tem nada de romântico ou impetuoso, é mais
parecido com o amor entre irmãos ou algo assim. Às vezes, tento imaginá-los
como os jovens apaixonados que já devem ter sido algum dia, mas simplesmente
não consigo.
— Anda, Nina! — grita do corredor.
Inspiro fundo, pego a mochila que está no corredor e saio de casa com o
coração aos pulos. As imagens da noite de sábado voltam como um tornado
furioso que bagunça tudo por onde passa.
Foi inacreditável o que aconteceu comigo. Eu dei o meu primeiro beijo no
cara mais lindo da escola. E se só isso, não fosse completamente surreal, ele
ainda passou o resto da festa me abraçando e me tocando com carinho como se
fôssemos namorados. Ele foi tão absurdamente gentil e atencioso, que durante
toda a noite eu esperei que algo ruim acontecesse para me provar que era uma
pegadinha. Mas nada aconteceu. Ficamos realmente juntos durante toda a festa, e
agora não tenho a mínima ideia de como vai ser reencontrá-lo na escola à luz do
dia.
— Desmancha essa cara de idiota, Nina — sussurra a chata da Bruna.
— Do que você está falando?
Ela revira os olhos e bufa de forma muito deselegante.
Entramos no carro em silêncio. Papai está com cara de poucos amigos, mas se
vira quando entramos e resmunga para nós duas:
— Vou chegar atrasado por culpa de vocês.
— Desculpa — respondemos em uníssono.
Durante todo o trajeto até a escola, um silêncio pesado impera dentro do carro.
É tão estranho quando nos sentimos desconfortáveis perto de pessoas que
amamos e que nos ama. O clima dentro da minha família é sempre assim: tenso e
silencioso e isso, sinceramente, é terrível. Não conversamos sobre absolutamente
nada. Nem as bobagens que geralmente adolescentes conversam, nem coisas
mais sérias. Nada. Dentro de casa, é só silêncio e troca de farpas. Sinto como se
uma nuvem negra tivesse se alojado em cima do telhado da minha casa, e todos
nós esperássemos ela desabar a qualquer momento.
Alguns minutos depois, ele estaciona em frente à escola. Eu salto do carro
primeiro, e a Bruna vem logo atrás. Não nos despedimos dele. Nunca nos
despedimos. Ele geralmente não fica o tempo além de fecharmos a porta do
carro.
Arrumo a mochila pesada no ombro e tento não olhar para nada em específico,
a Bruna claro, percebe.
— Então, está preparada?
Me faço de desentendida.
— Preparada? Para quê?
— Para ser o alvo de toda escola. Não foi isso que você fez? Colou um alvo
nas costas, no momento que ficou se agarrando com o Pedro no jardim.
Ignoro o sarcasmo das suas palavras, e retruco:
— Não sei do que você está falando, Bruna.
— Ah, não?
Nego com a cabeça e começo a me afastar.
— Nina? — chama minha irmã e algo no seu tom de voz me faz virar e olhar
para ela.
— Ele não é um cara legal.
Estaco surpresa.
— Do que você está falando?
Ela desvia os olhos dos meus e diz:
— Não se deixe enganar pela aparência. Tem muito lobo por aí, usando pele
de cordeiro.
— Você está com inveja? — murmuro. — É sério isso?
Ela arregala os olhos e me encarando enfurecida, murmura:
— Inveja? Daquele babaca presunçoso que se acha a última bolacha do pacote
e, ainda por cima, acredita piamente que mulheres são seres inferiores que só
devem obedecer ao seu amo e senhor? Inveja? — Balança a cabeça em negativa.
— Preferiria virar freira.
Com o dedo em riste, acuso:
— Você está mesmo com inveja!
— Não seja ridícula! — responde e começa a caminhar em direção à entrada
da escola.
— Você está saindo do colegial sem nunca ter ficado com ninguém e eu sou a
ridícula?
Ela fica lívida. Esse é um assunto delicado. Apesar de não saber dos detalhes,
sei que houve apenas um homem na sua vida. Na ocasião, vi muitas vezes minha
mãe conversando baixinho com ela, enquanto secava suas lágrimas. Elas sempre
foram muito próximas e, de certa forma, sempre me senti uma intrusa dentro
daquela casa.
— Vai se ferrar! — ela diz e sai pisando duro.
Imediatamente me arrependo. Apesar de tudo, sei que minha irmã me ama e
que já sofreu por amor. Talvez por isso, ela pense que todos os caras são iguais.
Mas não são — penso sonhadora. — o Pedro é simplesmente o cara.
Respiro fundo e me preparo para encarar os alunos que, com certeza, me
olharão hoje de forma esquisita. Com a cabeça encurvada, me dirijo para o
corredor onde fica minha sala. No entanto, meu caminho é bloqueado por um par
de tênis All Star pretos. Ergo os olhos para encontrar as duas poças de chocolate
quente com avelã, que são os olhos incríveis desse cara lindo de morrer que sorri
abertamente para mim às sete da manhã. Suspiro encantada.
— Oi — cumprimenta.
Muito surpresa, respondo nervosa:
— Oi
— Passou bem o domingo?
Assinto.
— Eu não — ele diz.
Encarando-o confusa, ele sorri timidamente e completa:
— Senti saudade do seu perfume.
Sei que meu rosto deve estar agora igual a um tomate maduro de tão
vermelho. Meu coração bate alucinado no peito e minha boca se rende e sorri
para ele.
— Também senti falta do seu — murmuro baixinho e baixo os olhos para o
meu próprio par de tênis.
Ele ergue meu queixo com a ponta dos dedos e eu, mais uma vez, me perco no
calor do seu olhar.
— Quero te ver mais tarde.
— Quer? — murmuro como uma perfeita idiota.
— Quero. Quero muito — repete.
— Tudo bem.
Ele sorri.
Olho para as pessoas que estão passando por nós sem conseguir desviar os
olhos. Aparentemente elas estão tão surpresas quanto eu. O sinal toca e então ele
dá um passo para trás e põe os dedos nos bolsos da calça jeans.
— Posso te esperar na saída?
O corredor já está quase vazio. Todos os alunos entraram nas suas respectivas
salas. Mas sinto como se estivesse sendo observada por milhões de pares de
olhos invisíveis.
— Pode. Saio ao meio-dia — informo.
Ele faz uma cara engraçada, coça a nuca e diz de um jeito completamente fofo
e encantador:
— Eu sei, olhei seu horário.
Completamente envaidecida, sorrio abertamente agora.
— Uau, linda — ele murmura — Esse seu sorriso é perfeito. — Estende o
braço e toca com a ponta do dedo meu lábio inferior. — Espero que guarde ele
só para mim.
E com isso, ele me dá uma piscada absolutamente perfeita e se afasta com um
sorriso me deixando completamente muda e radiante.
“Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo.
Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens,
além daquele que há em sua própria alma.
Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave.
Eu o ajudarei a tornar visível o seu próprio mundo, e isso é tudo.”
Hermann Hesse
Dias atuais...
Como a vida sem graça de uma pessoa pode transformar-se em algo tão
absolutamente fantástico? Penso enquanto me dirijo para a pracinha que fica a
alguns quarteirões da minha casa para encontrar-me com ele: o motivo de todos
os meus sorrisos no último mês.
Estamos namorando. Apesar de não termos assumido para nossos pais, na
escola, somos oficialmente um casal. Um casal totalmente apaixonado.
Não desgrudamos nem mesmo um minuto no último mês. Na escola, em todos
os momentos livres, sempre ficamos juntos. Ele não me deixa nem mesmo
frequentar a fila da cantina e, para meu maior encanto, alega que os caras sempre
tiram uma casquinha quando tem oportunidade. O ciúme dele me envaidece e só
me reafirma o quanto este cara maravilhoso me ama. Sim, ele assumiu em nosso
último encontro, entre beijos apaixonados e mãos que estão por todo lugar, que é
louco por mim. Me disse que estava completamente apaixonado e me fez
prometer que eu esperaria por ele o tempo que fosse necessário, já que ele estará
ingressando no exército em breve.
Como se fosse possível não esperá-lo, penso com um sorriso quando o vejo
sentado em nosso banco favorito.
Paro um segundo para contemplá-lo. Ele está com a cabeça apoiada no
encosto do banco de madeira, e seus olhos incríveis estão fechados absorvendo o
sol do fim de tarde. Suas pernas longas e musculosas estão estiradas e cruzadas e
seus braços estirados no encosto do velho banco. Um suspiro apaixonado escapa
dos meus lábios, e por um segundo me pergunto como esse cara fantástico se
apaixonou por mim. Logo eu que sou tão comum. As palavras da Bru, minha
irmã, irrompem meu pensamento: “você é cega ou o quê, Nina? Você é
estonteante. Todos os caras te olham embasbacados, e se você olhasse para os
lados, veria a admiração que causa em todos. Não pense nem por um segundo
que aquele lá está te fazendo um favor, é exatamente o contrário. Ele é um filho
da puta sortudo por te ter e te controlar totalmente. Você deveria se olhar mais
vezes no espelho, maninha”.
Sacudo a cabeça para espantar as palavras da minha irmã. Ela não gosta do
Pedro, e não faz nenhuma questão de esconder isso. Principalmente dele.
Como se sentisse minha presença, ele abre os olhos e senta-se ereto me
encarando com aquele sorriso que faz meu coração acelerar e as borboletas se
agitarem na minha barriga. Lindo, suspiro apaixonada enquanto me aproximo.
No entanto, quando chego mais perto, vejo seu sorriso morrer gradualmente e
uma ruga se instalar no meio da sua testa. Confusa, o encaro.
— Oi, amor — balbucio. — Desculpa o atraso.
Ele continua me encarando em silêncio.
Insegura, sento-me ao seu lado. Como ele continua em silêncio, e agora
respira pesadamente, eu tento puxar papo para descobrir o que está acontecendo.
— Aconteceu alguma coisa? — tento e estendo a mão pousando na sua coxa.
Posso sentir a tensão do seu músculo sob a palma da minha mão.
Ele fica um segundo a mais em silêncio, fecha os olhos e quando os abre, fico
confusa com o que vejo. Raiva?
— Oi. Marina, nós já não conversamos sobre isso?
Confusa o encaro.
— Sobre o quê?
— Isso — diz apontando para a minha saia plissada.
Um rubor sobe pelo meu pescoço. A saia, agora entendi. Ele me pediu para
não usar minissaias. Disse que fica louco de ciúmes quando vê algum carinha me
secando, e eu tinha prometido não usá-las, mas minha mãe me presenteou e
insistiu para que eu usasse, e afinal, não a achei tão curta assim.
Um sorriso de alívio surge no meu rosto quando entendo que as razões da sua
irritação é o ciúme que ele sente. Afinal, existe prova mais contundente de amor
do que uma crise de ciúmes? Só sentimos ciúmes daquilo que nos é importante,
não é?
— Amor, não fica assim. Minha mãe me presenteou e insistiu para que eu
usasse.
— Fica de pé — ele diz com voz dura.
Achando que ele estava brincando, me coloco de pé.
— Dá uma volta.
Sentindo-me ridícula, faço o que ele pede.
— Porra, Marina, se me abaixar um pouco posso ver sua calcinha, cacete!
— Não exagera, Pedro.
— Já te pedi para não usar essas coisas. O que custa você fazer isso? Por que
você gosta tanto de me provocar, porra?!
Estupefata, o encaro. A veia no seu pescoço está pulsando, e vejo realmente
que ele está muito irritado.
— Desculpa — murmuro sem saber ao certo o que falar.
Ele fecha os olhos com força por alguns segundos, então me puxa para seu
colo e encosta a boca no meu pescoço. Solto o ar aliviada. Não gosto que ele se
chateie comigo, principalmente por uma bobagem tão grande. Tomarei cuidado
para não usar mais estas roupas que o aborrecem tanto, afinal, amar é isso: abrir
mão de algumas coisas, em prol daqueles que amamos. E o que é uma minissaia
perto desse cara tão lindo e carinhoso?
Sua boca continua beijando meu pescoço, minha orelha e então sua voz
sussurrada murmura no meu ouvido:
— Prometa que você não vai mais sair assim. Prometa que esse corpo
maravilhoso será meu, só meu.
Meu coração acelera. Nunca falamos sobre sexo. Sou completamente
inexperiente e nem saberia o que falar sobre o assunto.
— Prometo — murmuro.
— Sou louco por você — continua murmurando. — Quando penso que um
dia vou te ter todinha só para mim...
Sinto algo quente escorrendo por dentro, sua voz continua e sinto a ponta da
sua língua tocando e lambendo meu pescoço enquanto ele diz:
— Não vejo a hora de te ter nua... gemendo e implorando por mim... só por
mim...
Solto um gemido baixinho. Nunca fiquei tão excitada na vida. Fecho as pernas
com força, para impedir a pulsação estranha que acontece lá. Mas ele não para.
Sua mão agora passeia pela minha coxa, por baixo da minha saia em uma carícia
tão íntima que sinto meu mundo girar.
— Ah, que delícia de pele... tão macia e perfumada — ele continua falando e
me tocando. Sua mão sobe mais um pouco e esbarra no tecido úmido da minha
calcinha. Sinto novamente um rubor tomar conta do meu rosto. Agora ele sabe o
que suas palavras e sua boca faz comigo, penso constrangida. Então, ele inspira
fundo e murmura: — Porra, amor, você tá tão molhadinha. E tudo isso é por
mim. — Outra lambida no pescoço e, então, ele pede: — Posso te tocar? Por
favor, preciso te tocar...
Assinto, porque simplesmente não consigo falar. O parque está vazio, e o
banco onde estamos é em um lugar protegido por uma densa vegetação, então,
não corremos risco de sermos flagrados, ao menos é isso que digo a mim mesma
quando seus dedos entram em baixo da minha calcinha, me tocando intimamente
pela primeira vez na vida. E é como se eu levasse um choque elétrico. Uma
sensação deliciosa toma conta quando os seus dedos começam a massagear meu
clitóris. Já li muitos livros com cenas de sexo, mas nunca imaginei que as
sensações descritas fossem tão maravilhosas. Como se percebesse o meu estado,
Pedro geme no meu ouvido e posso sentir sua poderosa ereção pressionando
minha coxa, quando ele continua me acariciando, cada vez mais e mais rápido,
criando uma espiral de prazer, e com ele gemendo no meu ouvido e sua língua
molhada tocando minha orelha, minha nuca, minha boca, ele me conduz para o
meu primeiro orgasmo.
“A vida é a variedade.
Assim como o paladar pede sabores diversos,
assim a alma exige novas impressões.”
Coelho Neto
Dias atuais...
Fevereiro de 2005
Dias atuais...
Março de 2005
Dias atuais...
Quase dois meses que o Pedro está fora. Nos falamos uma vez a cada quinze
dias, em ligações rápidas e instáveis. Ele tenta me poupar, mas sei que o que está
passando lá o está afetando profundamente. O conheço bem demais para notar
até as mudanças na sua nuance de voz.
Dois meses e tantas mudanças na minha vida. Estou bem mais independente,
já que tive que tomar as rédeas da casa. Tarefas simples do dia a dia, como levar
os filhos na escola, ou ir ao banco, que antes era feita quase sempre por ele,
agora executo com facilidade e muita satisfação.
Não tive coragem de contar ao Pedro, mas me inscrevi em um curso de
culinária. As aulas acontecerão duas vezes por semana, e serão ministradas por
um famoso chef paulista. Estou muito ansiosa para o início do curso. A princípio
rejeitei totalmente a ideia de voltar a estudar, mas o Júnior e a Bruna me
incentivaram tanto, que acabei não resistindo.
Minha relação com minha irmã não poderia estar melhor. Tem momentos que
até esqueço que passamos anos sem ao menos nos encontrar. Agora, é como se
ela quisesse recuperar o tempo perdido. Vive me convidando para absolutamente
tudo. O Fernando até brincou outro dia que foi jogado para a reserva. Na
ocasião, ela o beijou ardentemente e disse que o lugar dele ninguém ocuparia,
jamais.
Fomos juntas na mamãe contar sobre sua doença. Depois do choque inicial,
ela e o papai até que ficaram tranquilos. Talvez porque o otimismo e a certeza da
Bruna de que tudo sairá conforme o desejado, seja a razão para ninguém que
conviva diretamente com ela, imaginar que algo ruim possa acontecer.
Ela é a pessoa mais otimista e forte que conheço. Nada parece abalar a sua
confiança. E essa sua serenidade, apesar de tudo que está passando, nos
tranquiliza.
Pego a chave do carro — que agora dirijo com segurança e prazer — e vou até
o quarto da Helena avisá-la da minha saída. O Júnior hoje tem treino, e só
chegará em casa mais tarde.
Hoje será a cirurgia da Bruna.
Provavelmente estou muito mais nervosa que ela, e precisarei de toda minha
energia para que ela não perceba o quanto estou com medo.
— Helena, estou saindo. O almoço está no micro-ondas — aviso da porta do
seu quarto. — Não abra a porta para ninguém. O Pedro não vai demorar.
Ela retira o fone de um dos ouvidos, e ergue os olhos do celular.
— Fala para a tia Bru que vou mandar boas energias, para que tudo corra bem.
Emociono-me com as palavras da Helena. No último mês, a Bruna se
aproximou dos meus filhos. Sem o Pedro por perto, ela finalmente pôde mimá-
los como sempre desejou. Eles foram ao cinema, ao parque e saíram para
almoçar algumas vezes. Ela evita vir aqui em casa, então geralmente nos
encontramos na mamãe. Não sei como será quando o Pedro voltar de viagem.
Ele não vai gostar nada desta aproximação, mas creio que a saudade que deve
estar sentindo de todos nós, amenize seu rancor em relação à minha família.
Volto ao presente e respondo:
— Pode deixar, filha. Direi sim.
Ela assente e recoloca o fone no ouvido.
Fecho a casa e entro no carro. Antes de sair, mando uma mensagem para ela,
avisando que estou a caminho.
Combinamos de nos encontrar no Hospital. Ela responde a mensagem dizendo
que já está chegando. Pego a direção do hospital e no caminho faço uma oração
silenciosa a Deus para que tudo corra bem. Não posso nem mesmo cogitar a
hipótese de algo ruim acontecer a ela. Nossa reaproximação fortaleceu os laços
que sempre existiram entre nós, e agora, não posso nem mesmo pensar na
possibilidade destes laços serem rompidos. Nem por mim, nem por ela, nem pelo
Pedro e nem por ninguém mais a não ser Deus. Mas sei que Ele não fará tal coisa
conosco.
Em poucos minutos, entro no estacionamento amplo do hospital oncológico.
Estou nervosa e minhas mãos suam abundantemente. Olho-me no espelho
retrovisor, respiro fundo umas duas vezes, crio coragem e só então saio do carro
para encontrá-los.
Já faz mais de duas horas que a Bruna entrou no centro cirúrgico. Seu sorriso
otimista, não conseguiu esconder o pavor que estava sentindo. Nos abraçamos
fortemente, e estou muito orgulhosa por não ter caído em prantos nos braços
dela.
A despedida dela e do Fernando foi algo que jamais esquecerei. O amor deles
é tão forte e intenso, que palavras são desnecessárias. Qualquer pessoa que os
observa, entende na hora que a relação dos dois transcende o tempo.
Olho para ele que anda de um lado para o outro no largo corredor. Ele não
conseguiu passar nem mesmo um minutos sentado, desde que ela entrou em
cirurgia. Já fui duas vezes à cantina do hospital pegar um café para nós dois. E
nas duas vezes, ele segurou o copo com as duas mãos, como se o calor da bebida
fosse algo vital para aquecer sua alma.
Ele caminha mais uma vez de um lado para o outro, e fica de frente para mim:
— Marina, você também acha que está demorado muito?
Fico de pé e me aproximo dele. Coloco as mãos por cima das suas que estão
cruzadas no peito.
— Calma, Fernando, daqui a pouco poderemos vê-la.
— Mas você não acha que eles já deveriam ter vindo aqui nos dar alguma
notícia? Porra, será que eles não pensam em nós?
Sorrio. Ele não fala palavrão. Neste tempo todo em que tenho convivido com
eles, nunca o ouvi soltar nem mesmo um merda. Até brinquei com a Bruna, mas
ela me disse que ele tem trauma de infância. Seu pai uma vez, o puniu
severamente por ter xingado seu irmão com um palavrão. E vê-lo agora soltando
um porra, só comprova que ele está muito tenso e preocupado.
Como se soubesse do nosso estado de espírito, o Tadeu surge pela porta vai e
vem do bloco. Ele não é oncologista, mas como trabalha neste hospital, e por ser
amigo da Bruna, fez questão de participar da cirurgia. Quase não o reconheci
vestido com as roupas do hospital. A touca esconde seu cabelo encaracolado.
Seu rosto, no entanto, está tranquilo e imediatamente solto o ar aliviada.
O Fernando o alcança em poucas passadas, e ansioso pergunta:
— E aí, cara? Como foi? Como ela está?
— Calma, Nando, ela está bem. O Luiz disse que tudo estava conforme o
esperado.
— Mas ela está bem? Não teve nenhuma intercorrência?
— Não, cara, correu tudo bem. Relaxa, a Bru vai tirar essa de letra.
Ele assente e vejo como está tenso e preocupado.
— Ela vai ficar em observação por algumas horas, mas você poderá vê-la por
alguns minutos. Deixa apenas ela sair do bloco.
— Obrigado, cara. De verdade. Saber que você estava lá com ela me deixou
mais tranquilo.
— O Luiz é o melhor, Nando. Ela está em boas mãos.
— Eu sei, Tadeu. Mas, cara, não posso nem mesmo pensar na possibilidade de
perdê-la. Estou apavorado com tudo isso.
Tadeu estende o braço e coloca a mão no ombro do Nando em um gesto muito
masculino. E diz suavemente:
— Receber um diagnóstico de câncer nunca é fácil. Para ninguém. Mas a
Bruna tem vários fatores a seu favor. Descobriu precocemente. E o tipo de
câncer que ela tem, tem taxa de cura de quase 100%. Sei que bate um medo
terrível, mas relaxa que está tudo sob controle.
Só então o Tadeu desvia os olhos do Fernando e os pousa tranquilamente em
mim com um sorriso no rosto bonito.
— Como você está, Marina?
— Bem melhor agora sabendo que minha irmã está bem. Obrigada por nos dar
notícias e por ficar com ela neste momento tão difícil.
— Ela é como uma irmã para mim também. Esses dois são os melhores
amigos que um cara pode ter — diz com um sorriso.
— Tem toda razão. Eles são especiais.
O Fernando se aproxima mais um pouco, e me surpreendendo totalmente, põe
o braço por cima do meu ombro e diz:
— Como você também é. É inegável o bem que você fez para ela nestes
últimos dias. Esse recomeço de vocês foi fundamental para fortalecê-la para o
que ela está passando e para o que ainda vai passar.
Olho de soslaio para o braço por sobre os meus ombros e uma imagem antiga
volta à minha cabeça. O Pedro ainda no colégio, pegando um amigo meu pelo
colarinho da camisa, simplesmente por ele estar com o braço por sobre os meus
ombros. Então, uma onda de vergonha me assola, quando lembro de ter ficado
envaidecida com sua crise de ciúme.
Olho novamente para o braço e para os homens à minha frente que são amigos
e amam muito minha irmã. De forma saudável e sem neuroses, enquanto eles
conversam sobre as próximas etapas do tratamento, não consigo deixar de pensar
que, se na ocasião em que o Pedro bateu no Gustavo, eu tivesse me rebelado
contra sua atitude machista e infantil, minha vida hoje poderia ser outra. A
minha omissão tornou-o o homem que ele é hoje, e isso dói mais do que as
surras que ele me deu ao longo dos anos, penso com um pesar maior do que
palavras são capazes de expressar.
“[...] ser feliz deixou de ser um estado e se tornou um objetivo.
Rir um dia por vez, ou uma vez por dia, pelo menos,
passou a ser uma das minhas metas de vida [...]”
No meio do caminho tinha um amor – Matheus Rocha
Meus dias que antes era uma monotonia, de repente tornou-se algo vivo e
instigante. Pela primeira vez na vida, me sinto verdadeiramente útil e produtiva,
e isso tem me transformado em uma mulher que jamais pensei que poderia ser.
Deixo a Helena na escola e olho o relógio. Estou atrasada para o curso de
culinária que estou fazendo. Não consigo nem mesmo mensurar a alegria que
estas aulas têm trazido para meus dias. De repente, vejo todas as possibilidades
que podem se abrir para meu futuro, e isso tem me apavorado e fascinado numa
mistura de sentimentos que vem me transformando dia a dia em uma nova
mulher.
Pego a via que dá acesso à Oficina de cozinha onde o curso está sendo
ministrado, e em alguns minutos, estaciono. Algumas pessoas ainda conversam
na entrada e solto o ar aliviada por constatar que não estou atrasada.
Assim que me aproximo, sou saudada com entusiasmo pelos meus colegas de
turma. Pessoas de idades bem variadas, que estão aqui porque são apaixonadas
por uma única coisa: cozinhar.
É incrível como a afinidade une as pessoas. Ultimamente tenho pensado muito
nisso. No poder que tem a afinidade e o quão transformadora ela é nas relações
pessoais.
— Marina, sabia que hoje o chef escolherá um de nós para preparar um prato
para a próxima aula?
Encaro o Igor, um homem com cerca de vinte e cinco anos, apaixonado por
cozinha como eu.
— Sério? Espero que não seja eu — respondo com um sorriso.
Ele cruza os braços fortes e tatuados em frente ao peito e me encara com um
sorriso divertido.
— Ué, eu adoraria que fosse você — diz.
— Nem brinca, Igor! Quando o chef me olha com aquele olhar tipo: “eu sei o
que vocês fizeram no verão passado” chego a tremer nas bases — falo sorrindo.
A gargalhada dele é espalhafatosa como sua personalidade. Então, ele se
aproxima e num gesto comum, faz algo que ninguém fazia há anos, e que já
aconteceu duas vezes na última semana: põe a mão sobre os meus ombros
enquanto me empurra gentilmente para entrarmos no ateliê. Fico tensa e olho
para os lados em um gesto automático, então me lembro de que o Pedro está
longe e relaxo o corpo. Se ele percebe que fiquei paralisada momentaneamente,
ele não demonstra, continua conversando animadamente como se fôssemos
amigos de década.
Uma alegria momentânea toma conta de todo o meu ser, por me sentir normal
como não me sentia há anos.
— Ah, Marina, esta sua cara de intelectual deve esconder talentos magníficos
na cozinha. Você que não me engana!
Entramos na Oficina, onde uma cozinha industrial incrível, que foi montada
em um gigantesco espaço preparado especialmente para cursos de gastronomia e
eventos culinários, nos aguarda. Os alunos se posicionam nas proximidades e
aguardam o início da aula entre conversas animadas.
Olho ao redor e me sinto tão absurdamente feliz que meus olhos enchem-se de
lágrimas. Como posso ter aberto mão de tantos pequenos prazeres durante uma
vida inteira? Como deixei que minha vida tomasse um rumo tão vazio e
desolador?
Olhando para trás, para tudo que passei até aqui, pensando nas inúmeras
cidades em que já morei, e nas tantas oportunidades desperdiçadas, tomo uma
importante decisão: nunca mais permitirei que alguém assuma o comando da
minha vida.
Sei que, quando o Pedro voltar, teremos que acertar muitas coisas que ele não
concordará, mas agora sinto-me fortalecida ao ponto de lutar pelas minhas
escolhas e não apenas acatar sua opinião como verdade absoluta.
Se ele me ama como diz amar, terá antes de tudo, de aprender a respeitar esta
nova Marina. Ou ele entende que não posso mais ficar enclausurada na minha
torre de ouro, ou terei que dar um basta no nosso casamento. O que não vou
permitir é me deixar dominar novamente, ao ponto de não ter voz.
Minha alma quer falar. Cansou do silêncio. E eu estou muito disposta a ouvir.
Dias atuais...
Uma semana depois da ligação do Pedro, ainda não consegui esquecer seu
tom de voz. Ele ligou dois dias depois — algo totalmente fora dos padrões —,
mas optei por não falar com ele. Pedi ao Júnior para dizer que eu estava no
banho, e como ele não consegue conversar com as crianças mais do que alguns
minutos, a ligação foi encerrada com um Júnior monossilábico. É tão triste
constatar que a relação entre os dois não é amorosa. Não considero nem mesmo
saudável. O Pedro é muito machista e vive incitando o Júnior a arranjar
namorada. Como o Júnior é alguém que simplesmente ignora aquilo que não lhe
agrada, eles brigam muito. Já a relação dele com a Helena é algo mais próximo
de uma relação entre pai e filha. Ele não é exatamente alguém amoroso, mas
também não é rude quando fala com ela.
Entro na oficina para mais um dia de curso, e me surpreendo quando o chef
acena para mim. Sinto vontade de olhar apara os lados, apenas para me certificar.
Então ele sorri e me chama novamente.
Caminho ao seu encontro e não posso deixar de pensar que sentirei muita
saudade de conviver com essas pessoas. Todos aqui estão focados em melhorar
suas técnicas e habilidades, e isso permite que aprendamos tanto com o
professor, quanto com os colegas.
Infelizmente estamos na reta final do curso.
— Bom dia, Marina — ele me cumprimenta com um sorriso.
— Bom dia, Rodolfo.
— Eu gostaria de te parabenizar pela excelente torta de camarão que você fez
em nossa última aula.
Sinto-me ruborizar com esse elogio tão importante.
— Obrigada... apesar de já ter feito esta torta milhões de vezes, a técnica que
você ensinou para usarmos na massa, a deixou muito mais macia e deliciosa.
Ele cruza os braços sobre o peito largo. Sua expressão é de pura curiosidade, e
fico sem entender quando ele assente satisfeito e me encarando, pergunta:
— Você trabalha com isso?
Confusa, indago:
— Com isso o quê?
Vejo um sorriso brincando no seu rosto, e sinto-me uma perfeita idiota por
perguntar algo tão óbvio. Então, notando meu constrangimento, ele esclarece:
— Com comida. Trabalha com comida?
Sei que muitos que aqui estão, tem o objetivo de aperfeiçoar suas técnicas
para usá-las como aprofundamento na profissão, porém, jamais pensei em
trabalhar cozinhando para fora. Cozinhar é apenas um hobby.
Então, esclareço:
— Não, não trabalho. Cozinhar é um hobby.
Ele parece muito surpreso. Descruza os braços e coça a cabeça com um
sorriso enigmático pairando nos lábios. Vejo alguns alunos que começam a
entrar na cozinha, e pelo visto ele também percebe, porque baixa um pouco mais
o tom de voz, e indaga surpreso:
— Um hobby?
Assinto.
Ele então se aproxima um pouco mais e pegando alguns utensílios e
colocando-os em cima da bancada, onde costuma ministrar as aulas, ele diz:
— Você deveria transformar seu hobby em negócio. Você tem talento, Marina.
Com o canto do olho, vejo alguns alunos se aproximarem, e me afasto
discretamente para meu lugar, mas não antes de soltar um sorriso nervoso,
porque estou surpresa demais para falar. Elogios são tão raros na minha vida. As
pessoas que os fazem, geralmente são meus filhos e agora a Bruna e o Fernando.
Então, antes que me afaste completamente, ele me chama e seu olhar astuto
me intimida um pouco.
— Marina?
— Sim?
— Ministro este curso todos os anos, e em cada turma sempre encontro um
talento. Cozinhar é uma arte, Marina. E arte, nem todos conseguem fazer com
perfeição. Sabe por quê?
— Por quê?
— Porque requer paixão, inspiração e, principalmente, criatividade.
Fico em silêncio, observando-o. Ele continua:
— E é muito frustrante quando encontramos alguém que tem talento, e não
deixa as pessoas usufruírem dele. — Ele faz uma pausa, me olhando
atentamente. — Imagine um autor... um autor que você admira muito, mas que,
por timidez ou por não acreditar no seu talento, guarda seus textos só para si.
Quantas pessoas ficam órfãs de usufruir da arte deste autor... Assim é com quem
cozinha. Porque, querida Marina, comer é um dos prazeres da vida. Assim como
ler. E tanto livros, quanto pratos deliciosos, precisam ser degustados e
apreciados. Quando se tem um talento nato é quase uma obrigação compartilhá-
lo. Guardá-lo só pra si, é um delito grave — ele diz com um sorriso.
Encarando-o, agradeço com um pequeno sorriso:
— Não sei se tenho este talento que você fala, mas fico muito lisonjeada com
o elogio.
Ele me encara, e muito sério diz:
— Tenho algo para te propor, Marina.
Confusa, apenas o encaro em silêncio.
— Tenho uma cliente muito especial, que fará aniversário daqui alguns dias...
Sempre me prontifico a cozinhar nestas ocasiões. Sou muito grato a ela por tudo
que fez por mim quando eu ainda era um moleque sonhador — conta com um
sorriso nostálgico. — Bem, dessa vez, não poderei atendê-la. O que acha de
pegar esta encomenda? É algo simples e para poucas pessoas.
Muito surpresa, o encaro estupefata.
— Eu? — pergunto chocada.
Ele continua arrumando a bancada, como se não tivesse feito a proposta mais
louca dos últimos tempos. Então, depois de organizar parte do material, ele me
encara e diz enfático:
— Sim, você Marina. Os pratos que ela costuma escolher para o cardápio são
basicamente sua especialidade, pelo que observei.
Desconcertada pela oferta, retruco debilmente:
— Não tenho condições de aceitar uma encomenda de uma cliente sua,
Rodolfo — enfatizo mostrando todo o material organizado à minha frente.
Ele apenas continua organizando tudo e abrindo os ingredientes que usará na
aula. E para dar mais ênfase a minha fala, completo:
— Não tenho condições de pegar uma encomenda de ninguém, aliás.
Ele segura a travessa enorme que tem entre as mãos, cheia de maçãs picadas, e
colocando-a cuidadosamente em cima do balcão, pergunta:.
— E por que não?
Faço um gesto abrangente com as mãos, querendo ilustrar que não se cozinha
sem o material adequado e emendo nervosa:
— Porque não, ué. Olhe para todo esse material? E além do mais, nem sei
como um buffet trabalha. Não tenho ninguém para me ajudar. Não tenho nem
mesmo como cozinhar um jantar na minha cozinha simples.
Ele sorri condescendente e diz calmamente:
— Marina, em primeiro lugar, isso — diz apontando para as travessas e
ingredientes dispostos de forma organizada na ampla bancada — são apenas
travessas e utensílios domésticos. — Sorri. — E eu sei que não tem ainda nada
pronto para abrir um buffet. Mas sei também que o jantar da Olga é algo simples
e em uma quantidade razoável que dá tranquilamente para uma pessoa só fazer.
Sorrio nervosa. Ele enlouqueceu, só pode.
— Rodolfo... — começo a contestar e ele me interrompe, erguendo a mão
enorme:
— Façamos assim, Marina. Vou conversar com a Olga e explicar a ela que não
terei como atendê-la este ano. Vou indicar teu nome e esclarecer que nunca fez
nada parecido. E caso ela aceite minha sugestão de te contratar, você vai e
combina com ela os detalhes. — E completa: — Posso te dar uma mão em como
calcular os pratos pela quantidade de pessoas, e podemos elaborar o cardápio
juntos. Posso até te ajudar a montar o orçamento. O que acha?
Surpresa o encaro, e vejo que ele está falando realmente muito sério.
— Acho que você enlouqueceu — murmuro.
Ele ergue a sobrancelha grossa, e com um sorrisinho no canto da boca, indaga:
— Então sua resposta é um sim?
Nego com a cabeça.
— Um não?
Nego novamente. Ele sorri e ergue uma sobrancelha novamente.
— Vou pensar — falo surpresa com minhas palavras. — Enquanto isso —
emendo rapidamente —, você comunica a dona Olga que não fará seu jantar.
Primeiro vamos ver se ela aceitaria entregar um momento tão importante nas
mãos de uma novata desconhecida. Duvido muito — confesso.
Ele sorri mais aberto ainda. Então, estende a mão e aperta a minha.
— Fechado — diz confiante. — Ela confia cegamente em mim, Marina. Eu a
amo como uma mãe. Ela sabe que jamais entregaria seu aniversário a alguém
que não fosse atender às suas expectativas. Confie em mim, ela aceitará sem
titubear.
Reviro os olhos em descrença.
— Ok, enquanto você fala com ela, eu vou pensar no assunto.
Ele sorri e assente.
— Não vai se arrepender, Marina. Tenho certeza de que, um dia, ainda vai
olhar para trás e vai se lembrar que quase desistiu de brilhar. Quase, porque
tenho certeza de que você vai aceitar e vai arrebentar.
Estalo a língua, em um gesto que deixa claro que não acredito que alguém
apostaria um evento tão importante a uma novata, mas mesmo sabendo que ele
quis apenas me ajudar, não posso deixar de me sentir lisonjeada com o convite,
então agradeço emocionada:
— Fico realmente lisonjeada pela confiança que tem em mim.
Ele dá de ombros e diz simplesmente:
— Sei quando me deparo com mãos habilidosas. E você, Marina, você tem
mãos muito habilidosas.
Os outros alunos começam a chegar e nos despedimos com um aceno de
cabeça. Vou para o meu lugar, e observo ele iniciar sua aula com sua receita de
uma torta especial de maçã chamada strudel, só que usando técnicas totalmente
inovadoras e, durante toda a próxima hora, esqueço completamente a proposta
maluca que ele me fez.
Dois dias depois, ele me liga para avisar que dona Olga aceitou e está ansiosa
para me conhecer.
E assim, pela primeira vez na vida, ganhei meu próprio dinheiro com o meu
trabalho e de quebra ainda usufruí da sensação maravilhosa de desempenhar algo
com tamanho amor e dedicação.
“Maturidade é ser indispensável justamente
por deixar a porta aberta.”
Felicidade incurável – Carpinejar
Depois de chorar por horas após a ligação do Pedro, decido dar um basta no
meu sofrimento. Tenho muita coisa para fazer, e não ficarei sentada no sofá
chorando por algo que nem sei se irá acontecer.
Amanhã será um dia muito importante para mim. É o maior jantar que já
organizei até agora, e estou muito tensa para que tudo corra bem.
Subo as escadas e entro no banheiro do meu quarto. Tiro a camisola que uso
para dormir e entro embaixo do chuveiro. A água fria quase me faz soltar um
grito, mas é necessário para que eu espante todo o sentimento de culpa que está
me inundando agora.
Nunca agi assim com o Pedro, ele tem toda razão de ficar irritado com o meu
comportamento.
Esses sentimentos contraditórios duelam ferozmente dentro de mim. Sinto que
preciso realmente me firmar. Não quero ter que abrir mão do meu trabalho e da
minha liberdade, mas não sei como conseguirei conciliar isso com meu
casamento.
Saio do chuveiro, e me encaro no enorme espelho do banheiro.
Só desta vez, deixarei esse problema de lado. Preciso realmente me desligar
do Pedro ou não conseguirei dar conta de todo o trabalho que tenho pela frente.
E, encarando o meu reflexo no espelho, prometo que assim que passar este
jantar, abrirei o jogo com ele.
“Na leveza de um poema
Hoje cobro consciência.
[...] Seja no corpo ou na alma
Que transforme agito em calma.
Seja amor. Seja paixão [...]
Entre homem e mulher
só quem bate é o coração.”
Poesia que transforma – Braúlio Bessa
Passado
Dias atuais...
O mês que se seguiu, foi uma verdadeira maratona. A cada evento que eu
concluía, outro surgia. Nunca imaginei, nem no meu mais remoto sonho, que um
dia seria tão requisitada. Mas as coisas foram tomando impulso através da
propaganda boca a boca. Cheguei, inclusive, a recusar um jantar, por não ter
tempo de prepará-lo. Fui cada dia mais me apaixonando por tudo que acontecia
ao meu redor. Nina’s Buffet era oficialmente real.
Nunca pensei que seria possível minha vida mudar tanto em apenas cinco
meses. Estou me sentindo plenamente feliz como não me sentia em muitos anos.
Estava terminando de organizar meu cronograma do mês quando a porta da
frente se abriu abruptamente. Pensando ser o Júnior, não ergui os olhos das
planilhas que estava preenchendo sentada na mesa da minha cozinha — que
tinha se modificado para atender a demanda de comida que costumo cozinhar.
— Já está em casa, filho? Não teve treino hoje? — indago distraída ainda sem
olhar.
Então o silêncio veio e com ele a certeza de que não era o Júnior que me
observava.
— Sou eu, esposa...
Meu coração deu um salto no peito e então ergui meus olhos para encarar os
do homem que olha para tudo atentamente, com a testa franzida e os braços
musculosos cruzados em frente ao peito definido.
Uma das suas sobrancelhas está erguida. Mas não há humor na sua expressão.
Nem saudade. Só raiva... uma raiva silenciosamente camuflada por uma ilusória
aparência perfeita.
Olho para ele que tem uma beleza quase surreal. Sua pele está mais bronzeada
que nunca, e seu cabelo cortado rente à nuca deixa seu rosto de traços perfeitos
mais evidente ainda. Seu corpo parece mais forte, mais rijo. O uniforme do
exército está amarrotado, algo incomum. Sinto vontade de fechar os olhos, mas
não o faço. Inspiro fundo para me acalmar, e então ele sorri ironicamente e diz
mansamente:
— É assim que recebe seu marido após mais de cinco meses?
Sua voz é baixa, mas não feliz. Um arrepio sobe pela minha espinha e então
eu sei.
A mulher independente e arrojada acabou de desaparecer sob o domínio
daqueles olhos que um dia tanto amei.
Sua alma silenciou novamente.
Observo atentamente o Pedro devorar o almoço. Ele não falou muito desde
que chegou. Perguntou pelos meninos, e por que mudei a cozinha. Desconversei,
ele assentiu e continuou calado.
Então, disse que precisava de um banho e perguntou se tinha algo para comer.
Quando disse que o almoço estava pronto, ele apenas assentiu.
— Pode esquentar para mim, enquanto tomo um banho? Estou imundo —
pediu enquanto segurava firmemente sua mochila estilo militar. Notei que os nós
dos seus dedos estavam brancos e senti um tremor involuntário me percorrer.
Ele me cumprimentou com um aceno e subiu para o quarto. O nosso quarto.
Nenhum abraço. Nenhum beijo ou declaração de saudade. Sua expressão era
completamente neutra, e com horror percebi que a minha também.
Distraída com meus pensamentos, não vi quando ele se recostou na cadeira e
cruzou os braços atrás da nuca.
Seus olhos me escrutinam, eu enrubesço. Conheço-o bem demais para saber
que ele me quer. Aqui. Agora.
— Que horas as crianças chegam?
— Daqui a umas duas horas. O Júnior tem treino e a Helena tem inglês.
Ele assente e continua me olhando atentamente.
— Você está diferente, Marina...
Encaro-o.
— Você também.
Ele assente novamente e então sorri. Sorri daquela forma encantadora que eu
sempre amei. Sua voz é quase suave quando diz:
— Senti sua falta, esposa... — E sem desviar os olhos dos meus, chama: —
Vem cá.
Minhas pernas estão trêmulas quando caminho até onde ele está. Ele então,
afasta a cadeira para trás e pede:
— Senta aqui.
— Estamos na cozinha, Pedro — tento argumentar.
— Eu sei. Senta aqui — diz me chamando para seu colo.
Sento-me e ele então encosta seu nariz no meu pescoço, causando-me
arrepios. Suas mãos acariciam a lateral do meu rosto e seu polegar roça de forma
possessiva meu lábio inferior que está trêmulo.
— Sabe, Marina... em muitas noites, sozinho no acampamento, cercado por
um bando de homens, eu imaginei seu corpo. Fechava os olhos e imaginava essa
sua boca deliciosa...
Sua mão desce mais um pouco e então chega ao meu pescoço. Ele se inclina e
passa a língua na veia pulsante que lateja sem parar denunciando meu
nervosismo.
— Você acredita que, mesmo estando cercado por dezenas de homens, ainda
conseguia sentir seu perfume?
Então ele cheira meu pescoço, inspirando profundamente.
— Você tem cheiro de tentação, Marina... como uma maçã suculenta que
precisa ser mordida e saboreada...
— Pedro, as crianças...
— Shhh... — Ele leva o dedo indicador aos meus lábios e repete: — Shhh...
Então sua mão continua descendo pela lateral do meu corpo e esbarra no meu
seio. Ele abre a mão e, espalmando-o, geme baixinho...
Mesmo estando com muito medo do que possa acontecer mais tarde, não
consigo impedir meu corpo de corresponder ao seu toque. Fecho os olhos e ele
percebe que estou ficando excitada.
Ele solta meu seio e desce até minha cintura.
— Você está mais magra... mais gostosa... — murmura com a mão sob minha
barriga coberta por um vestido leve de verão.
Ele lambe meu pescoço mais uma vez e mordisca minha orelha.
Sua mão sai da minha barriga e vai até a barra do meu vestido, puxando-o
para cima.
Sua palma calejada, toca minha coxa e escorrega para dentro da minha virilha.
É uma carícia tão íntima, que estremeço. Com as costas das mãos, ele continua
acariciando a minha virilha e então esbarra na minha calcinha que está úmida de
desejo.
— Vamos ver se sentiu minha falta tanto quanto senti a sua, esposa...
Então seus dedos afastam a minha calcinha e começam a me acariciar
lentamente. Uma onda de prazer me varre e eu gemo lentamente. Sinto seu
sorriso no meu pescoço quando ele diz:
— Tão molhada... caralho, que saudade de você, esposa... geme pra mim,
porra.
E seus dedos começam a entrar e sair espalhando minha umidade por toda
parte. Sinto a fricção se intensificar e meu corpo reagir com uma fome brutal.
Quando estou perto de atingir o clímax, ele para abruptamente.
Abro os olhos e ele me olha fixamente.
— Sentiu minha falta, esposa?
Assinto.
Ele sorri cético e repete:
— Quero ouvi-la...
— Sim...
Seus dedos voltam a me tocar e, então com a boca colada no meu ouvido, ele
diz:
— Vou te foder tanto, mas tanto, Marina, que não vai sobrar nenhum resquício
de saudade. — E intensificando os movimentos, começa a criar uma espiral de
prazer incontrolável. — Você é minha. Toda minha. Só minha e apenas minha.
E antes que eu desfaleça em um gozo monumental, ele retira os dedos e me
ergue do seu colo, me colocando de pé.
— Assim não, esposa... — diz ofegante. — Seu primeiro gozo depois de tanto
tempo, será comigo enterrado profundamente dentro de você. Dentro de você,
onde é o meu lugar — murmura enquanto me leva para o quarto e cumpre à risca
o que prometeu.
“Com o passar do tempo,
começamos a reconhecer
quem estará aqui para sempre,
para até logo ou até
a próxima necessidade.”
Pressa de ser feliz – Matheus Rocha
Ouço a porta da sala abrir e fechar. Sei que deve ser o Júnior. Olho para o
homem desmaiado ao meu lado depois de uma longa tarde de prazer. Não posso
negar que meu corpo reagiu a cada toque, a cada gemido e a cada palavra
murmurada no ápice da paixão.
Perdi a conta de quantas vezes ele me levou ao paraíso. Sempre me olhando
nos olhos, sempre reafirmando que sou dele, que meu corpo pertence a ele e a
mais ninguém. Era como se estivesse repetindo um mantra. E depois, ele apagou
completamente exausto e agora dorme profundamente.
Saio da cama o mais silenciosamente possível. Pego o vestido amarrotado no
chão do quarto, juntamente com a calcinha e dirijo-me ao banheiro. Fecho a
porta e me encosto nela. Meu Deus, o que farei? Como vou explicar ao Pedro
tudo que aconteceu nos últimos meses? Como farei com que ele entenda que
minha vida tomou uma direção e agora tem um sentido? Como vou convencê-lo
a não impedir minha convivência com a minha irmã, que tornou-se ao longo
destes últimos meses meu porto seguro, minha melhor amiga?
Tomo uma ducha rápida, para tirar o cheiro de suor e sexo que está
impregnado no meu corpo, e me visto rapidamente. Preciso preparar o Júnior
para o retorno do pai. Ele anda agitado com isso, e preciso que ele entenda, que
não pode enfrentá-lo, caso ele se descontrole quando descobrir tudo que
aconteceu nos últimos dias.
Saio do banheiro de forma silenciosa, vou até o closet, retiro de lá um vestido
e uma calcinha limpa, e visto. Meus olhos percorrem a figura completamente
apagada na minha cama. Nossa cama, corrijo-me. Ele dorme profundamente,
para meu alívio.
Saio do quarto e fecho a porta silenciosamente.
Desço as escadas e encontro o Júnior parado no meio da cozinha. Seus ombros
estão tensos, e quando meu olhar encontra o dele, sei que ele já sabe.
— Onde ele está?
— Dormindo — respondo e desvio os olhos dos dele.
— Ele já sabe?
— Não, não contei a ele sobre nada.
Ele solta um suspiro de derrota, e baixa a cabeça. Então, alguns segundos
depois, se aproxima de mim, e eu vejo o quanto meu filho cresceu nos últimos
meses. Seu corpo não é mais de um adolescente desajeitado, o treino e a
academia que frequenta estão transformando seu corpo magro, em um corpo
musculoso e definido. Absolutamente lindo como o pai.
— E agora? — ele indaga e me encara. — Como você vai fazer agora, mãe?
Me abraço e sinto um tremor me percorrer.
— Vou contar para ele. Desde o começo.
Ele sorri sem nenhum humor.
— E você espera que ele aceite de boa?
— Seu pai quer me ver feliz, filho.
— O caralho que quer! — explode.
— Júnior! Olha como fala! — repreendo-o.
Ele inspira fundo e passa as mãos no rosto.
— Desculpe, mãe.
Estendo a mão e seguro a dele, que está um pouco trêmula.
— Vai dar tudo certo — minto. — Você vai ver.
Ele então me puxa para um abraço, e com surpresa, percebo que seu abraço
não é mais desajeitado. Me aconchego no seu peito e sinto meus olhos
encherem-se de lágrimas ao perceber que meu menino tornou-se um homem.
Já é noite, quando finalmente ele acorda. Vestindo sua costumeira calça de
moletom, ele desce as escadas preguiçosamente. Estou sentada na mesa da
cozinha, com a agenda aberta, sem conseguir me concentrar. Preciso organizar
os eventos que tenho, mas simplesmente não consigo pensar em mais nada além
do homem que dorme profundamente lá em cima.
Meu coração bate acelerado.
Não posso mais adiar a nossa conversa. Tenho que contar a ele tudo que
aconteceu nos últimos meses, e tem que ser agora.
Ele se aproxima de onde estou, se inclina e beija meu pescoço. Inspira meu
cheiro e diz:
— Se você soubesse o quanto senti falta do seu cheiro à minha volta...
Ergo os olhos para encontrar os dele, e digo:
— Pedro, precisamos conversar.
Ele trava os olhos nos meus e me escrutina com aqueles olhos absolutamente
lindos.
Cruza os braços na frente do peito largo e diz:
— Sou todo ouvidos, Marina.
Fico de pé e o convido a me acompanhar com um gesto. Ele ergue uma
sobrancelha e me segue até a sala de estar.
Minhas mãos estão úmidas, e meu coração acelerado. Sei que ele pode sentir
minha tensão, mas ele não facilita as coisas. Continua me olhando atentamente.
— Pedro, antes de te contar algumas coisas, quero que saiba, que nada do que
aconteceu foi premeditado.
Ele nem mesmo pisca. Seu rosto é uma máscara de indiferença e é impossível
descobrir o que se passa por sua cabeça.
— E o que aconteceu, Marina?
Engulo em seco, e resolvo contar de uma vez:
— Fundei um buffet.
Uma rápida expressão de surpresa escapa da sua indiferença. Me apresso em
explicar:
— Quando você viajou, me senti muito só — começo. — E de forma
inesperada, surgiu a oportunidade de fazer um curso de culinária. Você sabe o
quanto gosto de cozinhar, não é?
Ele apenas me olha. Uma veia pulsa no seu pescoço, e eu estremeço
involuntariamente.
Já vi essa expressão dezenas de vezes ao longo de todos os anos. Sei que ele
passará as mãos várias vezes na cabeça, em uma tentativa inútil para se acalmar.
Ele começa a andar de um lado para o outro, e eu sinto a velha onda de pânico se
aproximando em uma velocidade assustadora. Mas, mesmo morrendo de medo
do que acontecerá quando essa onda arrebentar, eu continuo:
— Então, eu fiz o curso...
Ele estaca no meio da sala e me olha atentamente. Seus olhos são apenas duas
fendas. Ele então me encara. Estremeço de pavor.
— E durante todo este tempo, você nunca cogitou a possibilidade de me
contar?
Sinto uma vontade terrível de sair correndo. Mas não farei isso. Tenho
consciência que esconder dele durante meses a verdade não foi correto. A culpa
começa a me dominar.
Baixo a cabeça envergonhada.
Ele se aproxima um pouco mais e sua voz é falsamente mansa quando diz:
— Continue, Marina. Sinto que você tem muito mais coisas para me dizer.
Institivamente, recuo um passo. Ele ergue a sobrancelha daquela forma
arrogante. E é como se sua expressão corporal falasse mais do que milhões de
palavras. Ele está puto. Mesmo assim, não tenho como voltar atrás. Então,
inspiro fundo e tento não deixá-lo me intimidar.
Ele precisa saber de absolutamente tudo.
Minha voz soa vacilante até para meus ouvidos. Outro passo dele em minha
direção. Estremeço e ele percebe.
— Confesso que errei ao não te contar... — E criando coragem, olhando-o nos
olhos, concluo: — Tive medo da sua reação.
Ele ergue a sobrancelha irônico.
— Sei, e por medo da minha reação você simplesmente mentiu para mim por
meses a fio?
Angustiada, confesso num murmúrio:
— Sim.
Outro passo. E mais outro. E agora seu corpo está praticamente colado ao
meu. Posso ver a veia do seu pescoço pulsando.
— Sobre o que mais você mentiu, Marina?
Desesperada, tento manter a calma.
— Eu comecei o curso, e lá surgiu a oportunidade de fazer um jantar. No
começo, pensei que não conseguiria, mas daí a Bru...
Imediatamente me arrependo de falar da Bruna, mas já é tarde demais. Sua
expressão muda completamente e, então, todo o controle que tenta manter se
esvai e a raiva agora é latente e gritante.
— A Bruna? É sério isso? — Sua voz é apenas um sussurro.
Retorço as mãos de forma nervosa. Ele precisa ouvir toda a história, penso
com desespero.
— Ela ficou doente... teve câncer... — Minha voz é baixa e eu titubeio.
Ele nem se abala com a revelação. Sua veia continua pulsando, e por alguns
segundos, meu olhar fica preso naquele pequeno ponto que fala tão alto. Sua voz
baixa e contida, me desperta:
— E você virou enfermeira? Desde quando, porra?
— Pedro...
E aí ele explode.
Ele segura meu queixo com força, e sinto meus olhos encherem-se de
lágrimas com a dor que seu aperto me causa.
— Responde! Você virou a porra de uma enfermeira?
Puxo meu rosto com força para me livrar do aperto. Uma força que não sei de
onde brota, surge e, então, pela primeira em quase dezenove anos de casamento,
espanto o medo da minha alma, e reajo.
Me afasto bruscamente do seu aperto que machuca meu rosto. Surpreso, ele
me olha e estreita mais ainda os olhos. Não me intimido, agora é tudo ou nada.
— Não, não sou enfermeira. Sou a irmã dela. A única irmã. E nem você e nem
ninguém me impediria de ajudá-la em um momento tão terrível.
Eu estremeço, mas não de medo.
— E sim, fui a enfermeira dela. Sim, eu a ajudei. E sim, eu a ajudarei todas as
vezes que ela precisar de mim.
Ele fica em silêncio me olhando. A veia pulsa insistentemente, mas ele não diz
nada.
— Eu não voltarei atrás, Pedro. Eu te amo, mas eu não voltarei atrás. Nem em
relação a Bruna, nem em relação ao meu trabalho.
— Seu trabalho? — debocha.
Empino o queixo, e repito:
— Meu trabalho. Agora eu tenho um trabalho. E tenho a minha família de
volta.
Então, como um perigoso felino, ele se aproxima mais ainda rapidamente. Sua
voz é quase um sussurro:
— Sua família?
Ergo mais ainda o queixo, e não desvio os olhos dos dele quando digo:
— Minha família. A Bruna é minha família. Eu a amo, e a quero perto. Não
vou mais afastá-la da minha vida.
Então ele se descontrola de vez. Ergue o braço e segura meu cabelo com muita
força. Meus olhos se enchem de lágrimas, e me preparo para o que eu sei que
virá:
Ele puxa meu cabelo mais ainda e sua voz é um silvo de ódio. Baixo e mortal,
como o guizo de uma cobra:
— Você é minha mulher, caralho. Minha mulher. Você faz o que eu quero.
O puxão é mais forte, e as lágrimas descem. Apesar da dor física, eu
murmuro:
— Não mais.
Então ele me bate. Bate com muita força. Seus golpes são impiedosos.
Murros, socos e pontapés machucam meu corpo de uma forma brutal. Mas a
cada gemido e soluço de dor que engulo, eu sinto a libertação me consumir. Eu
não peço socorro. Não grito. Eu apenas aceito o que ele tem para me dar com a
certeza de que será a última vez. O sangue toca minha língua, e apenas engulo.
Engulo os gritos.
Engulo os soluços.
E engulo a dor.
Será a última vez.
Ele cansa, e me olha. Vejo nitidamente o horror estampado em seu rosto. Ele
dá um passo para trás. Depois outro e outro até sair da sala. Fico lá, jogada no
sofá, com todo o meu corpo em frangalhos, mas sentindo pela primeira vez em
muito, muito tempo, que estou livre.
E no meio de tudo isso, eu me reencontro como pessoa e minha alma
silenciosa finalmente desperta.
Tudo está silencioso, mas sei que ele está em casa. Sua camisa está jogada no
sofá da sala, e as suas chaves e sua carteira, estão na mesinha de centro. Uma
onda de pavor tenta me dominar, mas inspiro fundo e tento me acalmar.
Vou até a cozinha e tudo está exatamente como deixei. Tremendo muito, crio
coragem para ir até o quarto, quando ele surge inesperadamente à minha frente.
Sinto vontade de me encolher de medo. Mas fecho as mãos em punho e busco
forças onde talvez nem tenha mais. Preciso enfrentar esse medo, ou serei
consumida por ele.
Seus olhos estão chocados, enquanto me observa atentamente.
— Marina... — balbucia. — Meu Deus, o que foi que eu fiz?
Ele então leva as duas mãos à cabeça e, para meu mais absoluto assombro, cai
de joelhos na minha frente, chorando. O Pedro está chorando de joelhos à minha
frente, e nada, absolutamente nada me preparou para isso.
Estou tão chocada, que fico paralisada achando que isso é uma ilusão de ótica.
Alguns minutos se passam e eu continuo imóvel. Tenho medo de me mover e
ele me tocar. Não quero que ele me toque. Nunca mais.
Então ele finalmente ergue os olhos e seu olhar atormentado encontra o meu.
— Me perdoa, Marina... Me perdoa... — pede
Permaneço em silêncio. Não consigo emitir nenhum único som. Estou com
medo, mas agora, neste momento, o medo vai dando lugar a uma outra
sensação...
Desilusão.
Uma profunda sensação de desilusão.
Por mim, por ele e por tudo que não faremos mais.
— Você me perdoa? Por favor, diz que me perdoa... eu... eu não sei o que deu
em mim... — ele fica balbuciando as mesmas coisas de sempre.
Por um momento, meus olhos viajam para longe dele. Para a minha casa.
Minhas coisas e por tudo que poderíamos ter vivido. Por um momento, sinto um
gosto amargo travar minha garganta e uma profunda tristeza me assola... Como
pude permitir que chegássemos a este ponto? Como deixei que o amor profundo
e intenso que um dia senti por ele, me anulasse de forma tão contundente? Por
que não dei um basta na primeira vez que ele simplesmente me empurrou?
Porque o desculpei tantas e tantas vezes por tantas agressões físicas e
psicológicas?
— Marina — ele diz ficando de pé e dando um passo em minha direção.
Imediatamente recuo um passo. Ele percebe e passa novamente as mãos na
cabeça e tenta mais uma vez. — Eu juro que nunca mais isso acontecerá,
Marina... Pelo amor de Deus, me perdoa... Eu não sei o que deu em mim... Eu
perdi o controle... Eu...
Então o interrompo. E, para minha surpresa, minha voz soa firme e
determinada:
— Quero que você saia dessa casa imediatamente.
Ele me olha como se eu estivesse falando grego.
— O quê?
Não recuo. Inspiro fundo e falo com mais firmeza:
— Quero que você saia desta casa imediatamente. Nosso casamento acabou.
Ele se aproxima rapidamente e segura meus ombros machucados. Me encolho
de dor, mas não de medo.
— Me solta! — exijo.
Ele olha para suas mãos e olha para mim. Recua um passo, tira as mãos dos
meus ombros e diz:
— Nosso casamento não acabou.
— Acabou.
Vejo seus olhos turvarem-se. Raiva e Medo duelam ferozmente dentro dele.
— Não. Não vou aceitar isso — diz e vejo nitidamente que ele está confuso.
Então, não sei como me agiganto diante dele, e uma coragem que não sei de
onde vem, surge. Respondo de forma dura e firme:
— O problema é seu!
Quem me visse agora, jamais imaginaria o pavor que estou sentindo.
— O caralho que é! — ele diz nervoso e me encara. — Vamos conversar,
Marina.
Nego com a cabeça e murmuro:
— Não quero conversar. Quero apenas que você saia desta casa. Ela é minha e
dos meus filhos. E se você não sair vou até a delegacia exigir isso.
— Como é que é?
Então ele se aproxima e, dessa vez, tão rápido que não tenho tempo de
processar. Suas mãos estão novamente em mim, e eu me encolho de dor e o
velho pavor volta com força total espantando para longe a leve brisa da coragem.
Fecho os olhos com força enquanto ele me sacode cada vez com mais
violência. Estou tremendo, e sei que ele sente meu medo.
— Você não vai me deixar, porra! Nem hoje e nem nunca! — grita
descontrolado.
Me encolho mais um pouco. Sou incapaz de reagir. As lembranças das
agressões ainda estão muito vividas na minha lembrança.
— Foi a vadia da sua irmã que colocou essas ideias na sua cabeça! — grita
cada vez mais alto. — O que mais ela te incentivou a fazer?! Você saiu com
alguém? Vamos, caralho, responde!
Uma onda de pânico me assola de forma violenta e eu simplesmente me
encolho cada vez mais. É quando ouço um barulho intenso na porta da frente,
que se abre de súbito.
— Tire as mãos dela, seu canalha! — grita a Bruna entrando
intempestivamente e pegando-o de surpresa. Ele se vira com os olhos brilhando
da mais completa e absoluta fúria, me larga de forma tão abrupta que cambaleio.
Quando penso que ele vai partir para cima da Bruna, o Fernando entra
repentinamente na sala e, pela primeira vez, eu o vejo descontrolado.
— Encoste nela, seu covarde filho da puta, que eu mesmo acabo com sua
raça! — grita o Fernando.
O Pedro simplesmente ri. Com o mais profundo deboche e desprezo. Então o
Fernando se descontrola e parte para cima do Pedro e os dois trocam socos
violentos.
— Parem! — grita a Bruna desesperada já ligando para a polícia. — Parem!
Eles continuam se agredindo violentamente. O Fernando acerta um potente
soco no queixo do Pedro, que nitidamente se surpreende com a força. Logo em
seguida, o Fernando o segura pelo pescoço com muita, muita força, e cospe as
palavras na cara de um Pedro completamente irado e surpreso com o ataque
inesperado:
— Seu covarde filho de uma puta! Por que não bate em alguém do seu
tamanho?
Então com um safanão o Pedro se liberta e parte para cima do Fernando. Ele
curva o braço e lança o punho cerrado direto no nariz do Fernando. Um filete de
sangue escorre. Mas isso não impede do Fernando avançar furiosamente para
cima do Pedro, pegando-o de surpresa. Então, como em um filme em câmera
lenta, o Fernando distribui socos continuamente, e quando achei que não
suportaria mais olhar, o Pedro cai no chão desmaiado.
Olho para o lado e vejo a Bruna chorando com as mãos na boca,
completamente assustada e surpresa. Acho que ela nunca viu seu marido agir
assim.
Então, ele põe as duas mãos nos joelhos, inclinando-se e inspirando profunda
e rapidamente. Quando ergue o rosto para nos olhar, vejo o hematoma arroxeado
no canto esquerdo da sua boca, e o lábio inferior cortado. Seu nariz também foi
atingido, e tem sangue saindo de lá. Mas, quando nossos olhos se cruzam, eu
vejo nitidamente o que ele fez: ele se vingou por mim.
Sinto vontade de fechar os olhos e me encolher com tamanha violência. Mas,
então, a Bruna acorda do seu transe, e corre ao encontro dele, chorando e
abraçando-o.
— Shhh... calma, amor... está tudo bem — ele murmura retribuindo
fortemente o abraço.
— Nunca vi você bater em ninguém... como... como você sabe lutar assim?
Ele dá um sorriso fraco e murmura:
— Participava de lutas clandestinas de vale-tudo na universidade. Eu e o
Ricardo.
Ela chora mais um pouco e beija sua boca machucada.
— Precisamos sair daqui — diz a Bruna com uma nova urgência na voz. —
Nina, precisamos sair daqui imediatamente.
Assinto em choque olhando fixamente para o Pedro desacordado. Seu rosto
está completamente machucado.
— Preciso chamar uma ambulância — murmuro. — Ele... Ele... — balbucio.
O Fernando se aproxima de onde estou e diz mansamente:
— Vão para casa. Eu espero a polícia chegar e vou chamar uma ambulância.
Acordando da letargia de pavor que tomou conta de todo o meu ser, eu rejeito
a oferta e falo com firmeza:
— Não, eu vou ficar. Vou denunciá-lo.
— Não aqui — diz o Fernando. — Vá para casa com a Bruna, que de lá levo
você à delegacia da mulher.
O Pedro começa a despertar e a gemer.
— Não. — Inspiro fundo e tento soar mais firme: — Vou ficar. Vou esperar a
polícia e vou denunciá-lo agora.
— Já chamei a polícia e a ambulância, Marina — diz o Fernando. — Vamos
esperar a ambulância. Tem alguém que você queira ligar para avisar sobre ele. —
Aponta para o homem ainda meio desacordado no chão.
Assinto.
Vou até a mesa, e pego meu celular. Com dedos trêmulos, faço a ligação que
colocará um ponto final na minha relação.
O telefone toca uma, duas vezes e meu coração bate acelerado quando a voz
firme e inflexível do outro lado responde:
— Marina.
Sinto vontade de desligar. Mas inspiro fundo e falo de uma única vez:
— Coronel...
— Por que está me ligando? — diz antipático.
É o estopim que faltava. Endureço a voz, e respondo:
— Seu filho está desmaiado na nossa sala.
— O quê? — ele retruca do outro lado da linha. Posso sentir o pavor na sua
voz.
— Ele me agrediu ontem e meu cunhado evitou que ele me agredisse
novamente hoje. Estou saindo para a delegacia para denunciá-lo. — Tomo
apenas um segundo de fôlego e antes que perca a coragem, falo: — Sugiro que o
senhor venha buscá-lo para acompanhá-lo ao hospital.
— O quê? — repete atônito. — Do que você está falando, Marina?
Enlouqueceu? — diz com a sua costumeira arrogância.
Sinto um frio descer pela minha espinha. Mas repito com a voz mais firme
que consigo:
— É isso mesmo que o senhor ouviu. E quero que o senhor saiba, que espero
ele nunca mais me procure.
— Você enlouqueceu? Do que você está falando?
— A polícia já está a caminho. Adeus, coronel — retruco e desligo.
As lágrimas agora descem abundantes pelo meu rosto. A Bruna se aproxima e
põe um braço por sobre meu ombro. Saio de casa com a certeza de que agora
minha vida será outra.
Tenho que abrir minhas asas definitivamente para o desconhecido. A minha
gaiola dourada vai se perdendo de vista, quando entro no carro e a Bruna me
leva direto para a delegacia da mulher.
Chegou a hora de voar com minhas próprias asas. Apesar do medo paralisante
de como será minha vida a partir de agora, no meu íntimo vai surgindo uma
sensação de liberdade que há anos não sentia. E, pouco há pouco, um alívio
tremendo por ter deixado aquela Marina para trás me invade.
“Dentro da alegria mais genuína, mais intensa,
mora a sombra da tristeza.
A tristeza só existe em função da alegria.
É o medo de perder a felicidade que
faz com que você se esforce para mantê-la.”
Felicidade incurável – Carpinejar
Olho através da pequena abertura de vidro, da porta vai e vem que separa a
cozinha do salão. Hoje é oficialmente nossa inauguração, e apesar de saber que
poucas pessoas comparecerão, já que abriremos apenas para alguns amigos e
familiares mais próximos, não deixa de ser uma nova etapa na minha vida.
O nosso buffet, está dia a dia se solidificando no mercado. Praticamente todos
os finais de semana, conseguimos um contrato de um jantar ou almoço para
alguém que é indicado por um cliente. E assim, pouco a pouco, o Nina’s Buffet
vai deixando de ser uma empresa familiar, para tornar-se algo mais profissional.
Abrir o restaurante em sociedade com a Bruna, torna o nosso negócio mais
sólido.
Contratamos quatro pessoas para nos ajudar e eu sinto que esta etapa da minha
vida será fundamental para as mudanças que desejo no meu futuro. Distraída
com meus pensamentos, não ouço o Júnior entrar pela porta de serviço.
— Está nervosa, mãe?
— Só um pouco — minto.
Ele me abraça por trás e, encostando o queixo no topo da minha cabeça, diz:
— Você nunca foi uma boa mentirosa, mãezinha.
Sorrio.
— A tia Bruna está radiante. Já chegaram o pessoal da banda, vovó e vovô. —
Então ele fica em silêncio, e me inclino para olhá-lo nos olhos.
— O que foi?
— A vó Dália está aqui também.
Muito surpresa, me desvencilho do seu abraço e o encaro.
— Sua vó Dália? Tem certeza, Júnior?
Ele assente nervoso.
— Tia Bruna pediu para que eu viesse te avisar. Para você se preparar.
— O que ela está fazendo aqui?
Ele dá de ombros e responde:
— Ela disse que veio te prestigiar.
Confusa vou até a janela de vidro e observo a senhora elegante sentada de
forma ereta em uma das mesas, com a Helena sentada ao seu lado em uma
conversa animada.
A mãe do Pedro e eu nunca tivemos problemas de convivência. Na verdade,
durante os dezoito anos de casamento, foram poucas as oportunidades de
ficarmos a sós por muito tempo. Ela é uma mulher extremamente reservada e
séria, e nunca deixa transparecer o que sente. Seu semblante é sempre muito
neutro, e até hoje, nunca descobri o que ela achou de toda a situação que
envolveu meu divórcio com o seu filho. Sei que o coronel foi absolutamente
contra e tentou mais de uma vez, me intimidar e me fazer voltar atrás, mas ela
não. Ela nunca me procurou. E vê-la sentada em uma das mesas do meu
restaurante, conversando relaxadamente com minha filha, é no mínimo algo
inusitado.
— Será que ele vem? — indaga o Júnior, nitidamente nervoso.
— Seu pai?
Ele assente.
— Não, ele não vem. Ele sabe que não pode se aproximar.
Ele desvia os olhos dos meus, e com a cabeça aponta para um enorme buquê
de flores coloridas, que foi posto no balcão da cozinha.
— Ele mandou isso — diz o Júnior com uma ruga de preocupação entre os
olhos.
Estupefata, encaro as flores.
— Foi a vovó que trouxe — conta. — Ela pediu para te entregar, e disse que
tem um cartão aí pra você, mas avisou que a gentileza não era dela, era dele.
Sem saber o que pensar, dirijo-me até o balcão onde o Júnior deixou as flores
ao entrar, e seguro o lindo buquê com os dedos trêmulos.
O minúsculo cartão está preso entre as flores coloridas. Reconheço
imediatamente sua caligrafia tão masculina.
“Você pode não acreditar, mas torço para que sua noite seja um sucesso,
Marina.
Pedro”
Sinto meus olhos encherem-se de lágrimas. Não sei bem o que estou sentido.
O Mauro, que tornou-se nosso funcionário, entra esbaforido e com um enorme
sorriso no rosto.
— O salão está lotado, dona Marina.
— Marina, Mauro — repito no automático. — Me chame apenas de Marina
— respondo distraída.
— Sua irmã está chamando — avisa confuso, com minha expressão distante.
Nos damos muito bem, e geralmente brincamos muito. Ele é um aprendiz de
cozinha dedicado e curioso, e tenho ensinado tudo que posso a ele que devora
minhas dicas com um apetite voraz e feliz.
Assinto e falo:
— Avisa que já estou indo, Mauro, por favor?
Ele assente sai da cozinha, e o Júnior indaga:
— Você está bem, mãe?
Assinto e devolvo o cartão que ainda está entre meus dedos ao buquê.
— Avise a sua tia que já estou saindo. Vou apenas checar se já está tudo em
ordem.
— Ok, mãe — ele diz sem fazer mais perguntas e sai.
Alguns minutos depois, ainda estou parada no meio da cozinha, sem saber ao
certo o que fazer.
O Igor, que vai me ajudar diretamente na cozinha, entra e imediatamente tento
me recompor. Nos conhecemos no curso de culinária, e nos tornamos amigos,
mas ele não sabe praticamente nada da minha vida.
— Hum, recebeu flores! — diz com um sorriso.
— Pois é — respondo de forma lacônica e distraída.
Ele percebe e pergunta:
— Tá tudo bem, Marina?
— Está, Igor — tento disfarçar. — Só estou nervosa.
Ele assente, e vejo que ele não acreditou na minha desculpa. Então, ele diz se
afastando:
— Vou adiantar as coisas. Ao que parece, todos os convidados vão
comparecer.
— O almoço já está praticamente concluído — falo e desvio meus olhos dos
dele, que me olha com perspicácia.
Ele assente e se afasta. Neste momento, a Bruna entra e vejo que ela já sabe
do cartão.
— Igor, você pode segurar as pontas por aqui? — indaga e fica de frente para
mim. — Nina, vamos lá na frente. Nossos convidados já estão aqui, e você não
vai ficar enfiada na cozinha, em nossa estreia.
— Sou a cozinha — respondo no automático. — Meu lugar é exatamente
aqui.
Ela solta um palavrão e se aproxima.
—Não seja ridícula! — esbraveja e se aproxima dizendo baixando a voz para
que só eu ouça: — Vai deixar que ele a nocauteie dessa maneira? Porque, você
sabe que aquele babaca queria fazer exatamente isso que está fazendo, não é?
Confusa, a encaro. Ela continua:
— Te tirar de campo. Te deixar nervosa.
— O que ela está fazendo aqui, Bruna?
— Veio te vigiar. Veio ser os olhos daquele otário.
Fecho os olhos com força.
— Nina... você precisa mostrar para eles que você já virou está página. Ele
precisa saber que você não se sente mais intimidada por essa corja.
— Não sei se consigo encará-la...
— Está louca? É claro que você consegue, cacete!
Nego e me abraço. O início de uma onda de pânico se aproxima. Sinto meu
coração disparado no peito e minhas mãos suando frio.
Ela se aproxima, e me puxa para um abraço apertado.
— Não fique assim. Não deixe que ele estrague sua noite.
Assinto.
— Vem comigo — chama me soltando e segurando a minha mão. — Vamos
mostrar a esta família de merda que você não vai se deixar abater tão facilmente.
Sorrio fracamente. Minha irmã é uma alma tão generosa e especial, que
muitas e muitas vezes me pergunto o que fiz de bom para tê-la ao meu lado.
— Você tem razão — murmuro e, inspirando fundo, tento sorrir.
— É isso aí, garota! — ela diz com seu costumeiro sorriso. — Agora vamos lá
receber nossos amigos.
Assinto e a sigo para o salão do nosso pequeno e aconchegante restaurante.
Quando atravessamos a porta, uma salva de palmas, seguidas por assobios e a
gritos entusiasmados de estamos com fome nos saúdam animadamente.
Sorrindo, a Bruna e eu seguimos para cumprimentar nossos amigos que
vieram nos prestigiar.
Aqui estão meus pais, a Ana e o marido, e para minha surpresa, a Olga. O
Rodolfo está sentado na mesa da Olga e fico muito surpresa por encontrá-lo.
Enviei o convite, mas nunca imaginei que ele conseguiria comparecer. Depois de
cumprimentar todos, vou até a mesa onde o pessoal da Soul Rock nos aguarda
entusiasmados. Assim que me aproximo, o Tadeu me puxa para um abraço e diz
que nem acredita que agora poderá comer minha torta de camarão sempre que
tiver vontade. Todos riem. O Marcos, com a esposa lindíssima sentada ao seu
lado, fica de pé e também me abraça apertado e, em seguida, nos apresenta. Laís
é uma oftalmologista renomada, segundo a Bruna me contou. Imediatamente
gosto dela. Seu sorriso é fácil e sincero. E para fechar o grupo, sentado com um
enorme sorriso nos lábios, e me encarando daquela maneira mansa, está aquele
que tem roubado meu sono.
Ricardo.
Ricardo e seu sorriso fácil.
Ricardo e sua gentileza.
Nos últimos dias, nos encontramos algumas vezes na ONG. Ele nunca forçou
uma aproximação, e isso de certa forma, me tranquiliza. Não estou preparada
para encarar uma nova relação. E eu sinto que, no fundo, ele sabe disso. O que
nós dois estamos construindo, de forma lenta e gradual, não tem nenhuma
conotação sexual. Estamos nos tornando amigos. Ele gosta muito de conversar, e
eu também. Além disso, ele é bem-humorado e adora me fazer sorrir. Nunca vivi
uma relação de amizade como a nossa está se desenvolvendo. Uma amizade
madura, e sem complicações. Gostamos da companhia um do outro, e isso é bem
reconfortante.
— Isso aqui ficou lindo demais — ele comenta enquanto me cumprimenta
com um abraço rápido, e dois beijos um de cada lado do rosto.
Sem nenhuma razão especifica, enrubesço.
— Obrigada — murmuro. — Fico feliz que tenha vindo.
— Não perderia o seu grande momento por nada.
— O que ele quer dizer exatamente — interrompe o Tadeu — é que ele jamais
perderia a oportunidade de comer a sua comida e ainda desfrutar da sua adorável
presença, Marina.
— Exatamente como você — ele retruca com um sorriso cúmplice para o
amigo.
Tadeu ergue a taça de vinho e repete:
— Exatamente.
— Fico feliz que todos tenham vindo — diz a Bruna —, mesmo sabendo que
não perderiam a oportunidade de comer a comida da Nina por nada!
— Desmarquei até uma cirurgia — brinca o Tadeu.
Reviro os olhos, e ele sorri.
— Mas, sério — continua o Tadeu —, vocês estão de parabéns. Ficou muito
show isso aqui.
Então assinto e deixo meus olhos passear pelo nosso pequeno restaurante. As
mesas — quinze ao total — estão dispostas um pouco afastadas uma das outras,
para dar privacidade as pessoas para conversarem.
As toalhas que a Bruna escolheu para a nossa estreia é de um bege suave. Em
cima de cada uma delas, tem um pequeno arranjo feito com pequenas
margaridas, que foi presente da Ana. Talheres e louças de boa qualidade, mas
sem exagero. As paredes estão cobertas por um papel de parede discreto que
torna o lugar bem aconchegante. Nada de cores gritantes. Um pequeno balcão na
entrada, com taças e garrafas de vinhos, faz as vezes de bar e recepção, para
aqueles que desejam apenas algo rápido.
Um suspiro de felicidade escapa por entre meus lábios. A Bruna entrou com a
grana, e eu entrarei com o trabalho. Sei que o que ela pretende, no fundo, é me
ajudar, mas não posso deixar de pensar que temos um negócio juntas. É
maravilhosa a sensação de estar recomeçando a vida e de uma maneira tão
especial: com a companhia da minha irmã e melhor amiga.
Depois de cumprimentar o pessoal da banda, sigo um pouco trêmula para a
mesa onde minha filha ainda conversa animada com sua avó. Senti os olhos dela
sobre mim o tempo todo, enquanto ia de mesa em mesa, dando boas-vindas a
nossos amigos.
Fico de pé ao lado da mesa delas, e a Helena me encara com um sorriso
tímido. Sei que ela sente meu desconforto.
— Como vai, Dália? — cumprimento educadamente. — É uma surpresa
encontrá-la aqui.
Ela me olha atentamente e só então abre um discreto sorriso e responde:
— Sei que não fomos convidados por você, mas minha netinha linda me
convidou.
Olho para a Helena e vejo suas bochechas adquirirem um suave tom de rosa.
Ela fica em silêncio e desvia os olhos dos meus em um silencioso pedido de
desculpas. Sei que ela não se conforma com a minha separação. Apesar de ter
ficado ao meu lado, ela nunca escondeu que sente muita falta do seu pai. Como
ela não tem conhecimento de toda gravidade do que aconteceu, eu prefiro não
contar. O que o Pedro fez foi comigo, e não com eles. Não quero ser responsável
ou contribuir para afetar a relação entre eles, por essa razão, entendo o que a
Helena tentou fazer.
Helena fica de pé, e pede licença, informando que vai ao banheiro e deixando
nós duas a sós.
— Não tem problema, Dália — retruco. — Seja bem-vinda, de qualquer
forma.
Ela assente.
— Gostou das flores? — indaga.
Então, perco a compostura e respondo:
— Gostei, mas elas são desnecessárias. De qualquer forma, é melhor recebê-
las viva do que tê-las no meu velório, não acha?
— Meu filho não é um monstro — rebate.
— Sim, ele é.
— Me admira que você tenha convivido com o monstro durante quase vinte
anos, e só quando ele se afasta por alguns meses, que você tome conhecimento
disso. — Então seus olhos passeiam pelo salão e se detém na mesa onde a Bruna
conversa animada com o pessoal da banda. — Na verdade, se olharmos bem,
nem é tão estranho assim — diz voltando seus olhos falsamente suaves em
minha direção.
— O que você veio fazer aqui?
— Prestigiar o seu sucesso, Marina. O que mais seria?
Travo meus olhos nos dela e falo de forma bastante segura, até para minha
surpresa:
— Já testemunhou e espero, sinceramente, que seja a primeira e última vez.
Não quero e jamais tentarei impedir que vocês convivam com meus filhos. Vocês
são a família deles, mas eu exijo que se mantenham todos distantes de mim.
Estou sendo clara?
Ela sorri com desdém e circulando a borda do copo com o dedo, retruca:
— Ora, ora... pelo visto, a florzinha finalmente desabrochou. E vejam só, ela
tem espinhos!
Me empertigo. Que ódio! Como essa mulher se atreve a vir até aqui em um
momento tão especial e, ainda por cima, me alfinetar?
— Não só espinhos, Dália. Posso ser bem tóxica também. Não se iluda, aquela
Marina que seu filho humilhou e agrediu durante anos morreu. E mortos não
falam nem sentem medo. Essa Marina aqui — falo apontando para meu peito —
aprendeu como se defender. Então, diga ao Pedro que nunca mais me mande
nada. Nem flores, nem mensagens, nada! E avise a ele, que se ele tentar qualquer
tipo de aproximação, eu vou chamar a polícia.
— Você é uma cobra! — ela cospe as palavras com ódio.
— E você uma pobre coitada que passou a vida inteira se sujeitando aos
desmandos do seu marido, ao ponto de achar que isso é normal. Agora, se já fez
o que desejava fazer, por gentileza: dê o fora! — Aponto para a saída.
Devo ter erguido um pouco a voz, porque imediatamente a Bruna se coloca de
pé ao meu lado. Sua expressão é de muita raiva quando pergunta:
— Algum problema, Nina?
A Dália se põe de pé e me olha com a mesma expressão que eu vi tantas vezes
no rosto do Pedro. Uma raiva contida que faz com que seu rosto endureça e
mude completamente. Um arrepio desce pela minha espinha e devo ter
estremecido, porque sinto a mão da Bruna imediatamente pousar nas minhas
costas num gesto de conforto e força.
— Nenhum problema — ela diz segurando a bolsa. — Eu já disse a meu filho
que certas coisas a gente não perde, a gente se livra, mas ele é um estúpido. Até
nunca mais, Marina. Diga a Helena que não poderei ficar.
E antes que ela se afaste da mesa, a Bruna a interrompe dizendo:
— De todas as coisas absurdas que você poderia ter dito, talvez esta seja a
mais absoluta verdade. Diga ao cretino do seu filho que deixe a Nina em paz.
Ela ri com deboche e, antes de sair, diz:
— Pobre, Marina... Deixou de ser uma pessoa com uma vida própria, para
tornar-se uma marionete. Adeus!
E sai antes de nos dar a oportunidade para uma resposta. Vejo a Bruna
tremendo de raiva, e antes de pedir a ela para se acalmar, e voltarmos ao nosso
momento, não posso deixar de pensar que o recado que o Pedro me enviou foi
bem entregue: ele nunca se afastará tanto, ao ponto de que eu possa esquecê-lo
ou o que ele me fez.
Enquanto volto para a cozinha, com o coração agora um pouco apertado e
triste, meus olhos esbarram nos do Ricardo que estão fixos em mim. Sua postura
ereta e tensa, e a maneira como ele segura o copo que está entre seus dedos,
deixa claro que ele fez um tremendo esforço, para não se levantar e me defender.
E quando nossos olhos se esbarram, eu recebo o recado dele: eu sempre estarei
aqui. De perto ou de longe, para ser o suporte ou o amigo que você precisa.
Confusa e, agora, um pouco mais aliviada, vou para a cozinha para mandar
servir o almoço. Hoje é nosso dia. Não posso deixar que meu passado se infiltre
no meu presente, estragando-o. Essa página da minha vida, eu já virei.
“Tente.
Levante sua mão sedenta e recomece a andar.
Não pense que a cabeça aguenta se você parar.
Tente outra vez.”
Raul Seixas
Um sorriso apaixonado está colado no meu rosto, e meu coração ainda bate
acelerado lembrando dos momentos que passei nos braços do Ricardo.
Depois do nosso primeiro beijo, ele me puxou para o minúsculo sofá e me
sentou no seu colo. Então, ele me devorou com beijos intensos. Meu corpo todo
correspondeu à intensidade da nossa paixão. Passamos muito tempo, apenas nos
beijando e nos acariciando. Não falamos muito, mas nossos corpos falaram uma
linguagem mais antiga que tudo no mundo.
Apesar de ter dito sim, ele não foi mais além. Então, quando o Mauro bateu na
porta, dei um pulo e saí do colo dele. Ele baixou a cabeça e sorriu enquanto eu
voltei correndo para sentar atrás da mesa como uma adolescente pega no flagra
pelos pais.
A porta se abriu, e um Mauro encabulado colocou a cabeça na fresta e avisou
que já estavam saindo e que a cozinha já estava toda organizada.
Troquei algumas palavras com ele e, após cumprimentar o Ricardo, ele se
despediu e saiu fechando a porta às nossas costas.
Então, o Ricardo se ergueu e caminhou até a minha mesa, colocou as duas
mãos sobre ela e, inclinando-se, disse:
— Quero namorar você, Marina...
Surpresa, o encarei.
— Eu sei que você não está pronta ainda para um relacionamento, mas me
deixa namorar você...
— Ricardo... — tento responder, mas ele estende a mão e coloca na minha
boca impedindo-me de continuar.
— Não, não precisa responder agora... Não precisa nem mesmo responder se
não quiser... Eu só quero que você saiba o que eu sinto, o que eu desejo... e eu
desejo namorar você.
Sorrio e baixo a cabeça.
Ele ergue a minha cabeça com a ponta dos dedos e diz suavemente:
— Se um dia sua resposta for sim, basta me procurar... estarei esperando...
Dizendo isso, ele se inclinou e beijou meus lábios suavemente. Então, ergueu
um pouco a boca e beijou minha testa com um carinho infinito e, quando se
afastou, eu simplesmente desejei que ele não parasse nunca.
Mas ele parou.
Caminhou até a porta e, antes de abri-la, me olhou e disse:
— Você é uma mulher fantástica.
E saiu sem me dar chance de responder. Não que eu tivesse resposta para algo
assim, porque sinceramente não tinha.
Muito tempo depois da sua saída, fiquei contemplando a porta fechada e, pela
primeira vez, senti vontade de abri-la e seguir meu coração. Mas os anos de
submissão acabaram me impedindo de agir por impulso. Então, tentei voltar ao
trabalho.
Volto ao presente e olho para o relógio de parede. Quase três horas da manhã.
Levanto-me, desligo o computador onde digitei todo o menu do dia, e as
compras que precisarei fazer. Pego minha bolsa, apago a luz e saio pela porta dos
fundos para a noite escura.
Ando rapidamente para o carro estacionado no outro lado da rua. Aciono o
alarme e coloco minha bolsa no banco da frente ao meu lado. Coloco a chave na
ignição e, antes de dar partida, algo chama minha atenção. Meu coração acelera,
quando percebo na rua quase deserta um carro conhecido.
Ligo o carro e me atrapalho toda. Minhas mãos estão suadas e olho
repetidamente pelo retrovisor. O carro continua totalmente escuro, mas sinto o
olhar de alguém. Não, de alguém não. Sinto o olhar dele. Do Pedro. Ele está
aqui, do lado de fora, me espreitando. Um arrepio de medo desce pela minha
espinha, então eu finalmente consigo sair do estacionamento. Olho o tempo todo
para o retrovisor, mas não o vejo. Ele não está me seguindo, o que já me causa
um tremendo alívio.
Quando entro em casa, coloco todas as trancas de segurança que mandei
instalar, e fico de pé na sala escura, espreitando pela janela. Porém, nenhum sinal
dele.
Aliviada, subo as escadas e, antes de ir para meu quarto, vou até o quarto dos
meninos que dormem tranquilamente. Provavelmente o meu pai os deixou em
casa mais cedo.
Fecho as portas, e vou para o meu quarto. Depois uma rápida chuveirada,
coloco a camiseta que uso para dormir e me acomodo sob as cobertas. Está tudo
silencioso, mas, na minha cabeça, sentimentos duelam ferozmente. O desejo pelo
Ricardo. A emoção pela sua confissão. O pedido inusitado que ele me fez. E o
Pedro me espreitando do outro lado da rua.
Fecho os olhos com força e tento tirar todos os pensamentos da cabeça, e
antes do sono finalmente me levar, é o medo do Pedro que assume o controle e,
pela primeira vez em muitos meses, tenho os terríveis pesadelos.
“Uma vez dobrada muitas vezes,
uma folha de papel guardará para
sempre as marcas das dobraduras...
Assim é a alma humana.”
Sheila Guedes
Saio da garagem com um sorriso bobo no rosto, com toda a tensão do café da
manhã amenizada. Meus filhos compreenderão e ficarão do meu lado. Eles só
precisam de um tempo para assimilar a ideia.
Com esse pensamento na cabeça, saio para a rua tranquila do bairro onde
moro, e não percebo o carro que me segue a alguns metros de distância.
“A vida pode florescer
numa existência inteira.
Mas tem que ser buscada,
tem que ser conquistada.”
Perdas & Ganhos – Lya Luft
Nem nos meus mais loucos sonhos imaginei que um dia teria um restaurante e
que, na segunda noite, teríamos fila de espera na porta. Novamente!
É quase surreal. Penso enquanto agilizo a finalização de dois pratos. Estou
cansada, mas muito feliz. O almoço foi tranquilo e o movimento menor que o
esperado. Mas o restaurante está lotado desde que abrimos para o jantar. Por
sorte, tínhamos quase tudo adiantado e os pratos só precisavam das finalizações.
A ideia da especialidade do dia, também foi uma ideia genial. Adianta bastante o
trabalho e hoje nossa salada de bacalhau com frutos secos foi um estrondoso
sucesso.
Uma Bruna esbaforida entra na cozinha e contenho um sorriso.
— Então, como anda os pedidos da mesa oito e doze?
Checo as comandas e falo sem desviar a atenção do acabamento requintado
que faço no salmão.
— Estão saindo. Mais dois minutos. Três no máximo.
— Ótimo! — E se aproximando de onde estou diz: — Puta merda, não dá nem
vontade de comer de tão lindo que está!
Sorrio e ergo os olhos dizendo:
— A ideia é justamente o contrário, Bruna! O que desejo é que o cliente não
veja a hora de saborear essa belezura aqui.
— Tem razão — diz sorrindo. — Chegou mais um cliente.
Ergo uma sobrancelha e, em seguida, olho o relógio na parede acima da
cabeça da Bruna.
— A esta hora?
Ela assente.
— Achei que estes seriam os últimos da noite.
— Infelizmente, não tive como negar. O pedido dele é supersimples, e sei que
já tem pronto.
— Ah, é?
Ela assente sorrindo.
— Ele quer ver a chef e, se não for pedir muito, quer um pedaço da famosa
torta de camarão.
Sinto um rubor cobrir minhas faces.
— Prontinho, chefas, os pratos das mesas oito e doze estão ok — diz o Igor.
A Cris surge e diz:
— Posso levar, Igor?
— Claro que sim, gata, está lindo e gostoso! — Pisca para ela, que fica
ruborizada.
Aproveitando a deixa, a Bruna abre a porta de passagem da cozinha para o
salão para a Cris passar e diz:
— Quando a torta de camarão estiver ok, por gentileza, pode servir ao
cavalheiro que encontra-se sentado no balcão... e ele parece... ansioso — diz me
olhando com um sorriso travesso.
— Sem problemas — respondo e resolvo entrar na brincadeira. — Como irei
reconhecê-lo?
Então ela abre o sorriso e diz:
— Essa é fácil, é só olhar e procurar um homem gato, maduro e apaixonado, e
tcharam! — Pisca o olho e sai me deixando com o rosto ruborizado e o coração
acelerado.
Estou no banheiro feminino há tempo suficiente para que todo o estádio seja
esvaziado. Não consegui me concentrar no jogo. O medo que me dominou foi
maior que tudo.
O time do Júnior ganhou para nossa alegria, e, então, enquanto todos saíam do
estádio e as famílias iam aguardar seus atletas na área reservada, eu vim me
esconder. E estou agora tentando criar coragem para deixar a segurança desse
cubículo. Uma batida na porta me causa um sobressalto.
— Mãe? Tá tudo bem? — Ouço a voz da Helena do outro lado da porta.
— Está, filha, já estou saindo.
Então, tento me recompor, e para disfarçar puxo a descarga do vaso sanitário.
Abro a porta e vejo uma Helena com o semblante tomado pela apreensão.
— Mãe, o que você tem? Tem um tempão que se trancou aqui dentro.
— Foi um enjoo repentino. Devo ter exagerado no cachorro-quente.
Ela revira os olhos.
— Mãe, você mal tocou no lanche! — Então me olha atentamente e indaga:
— Foi o papai? O que ele te disse? Você estava muito estranha durante o jogo.
Tento sorrir. Estico a mão e acaricio a lateral do seu rosto.
— Não, querida, seu pai não tem nada a ver com isso — minto. — É que
juntou a emoção do jogo, com o nervosismo de ter deixado o restaurante nas
mãos da sua tia maluca... — tento distraí-la.
— Ok, mãe, vou fingir que acredito — diz cética. — Vamos? Todos já foram.
Sei que o todos dela refere-se ao Pedro. Agradeço com um aceno a
informação.
— Conseguiu tirar as fotos com o time? — pergunto.
— O babaca do Júnior não deixou! Disse que era um vexame ter uma irmã
pentelha insistindo com os caras para gravar stories para o perfil do Instagram. É
um ridículo mesmo.
— Não fale assim do seu irmão — repreendo suavemente enquanto saímos do
banheiro para encontrá-lo na sala reservada a imprensa e que hoje ficou
destinada para as famílias dos jogadores.
Assim que entramos, o Júnior vem apressado ao meu encontro. Vejo seus
olhos nublados de preocupação e, pela milésima vez na noite, sou invadida por
uma tristeza infinita por roubar a alegria do meu filho em um momento tão
especial para ele. Mas não consegui ficar nem mais um segundo com o Pedro
por perto.
— Mãezinha, como cê tá?
Estico a mão e acaricio seu rosto.
— Você foi brilhante hoje, meu filho — tento desconversar —, senti muito
orgulho de você.
Ele assente distraído e repete a pergunta:
— O que ele fez?
— Nada, meu amor. Ele não fez nada — minto descaradamente. — Só não
achei conveniente ficarmos no mesmo espaço sem mantermos nenhuma
conversa. As pessoas iam comentar.
— Não pude impedir que ele viesse, mãe.
— Meu filho, deixe de bobagem. Ele é seu pai e tem tanto direito de estar aqui
quanto eu.
Ele assente e diz triste:
— Eu queria que as coisas fossem diferentes...
— E sei que sim. Mas as coisas são como são.
E me virando para os dois, tento manter uma voz animada quando falo:
— Então, prontos para comemorarmos?
A Helena bate palmas animada, e o Júnior sorri timidamente.
— Aonde vamos mãe? — pergunta eufórica Helena.
— Seu irmão hoje escolhe. Afinal, a estrela da noite foi ele!
Saímos do estádio, e a discussão entre os dois sobre o local do nosso jantar foi
um bálsamo para o meu estado de espírito.
Depois de muita briga, finalmente entraram em consenso e escolheram uma
hambúrgueria famosa para nosso jantar especial.
Entramos no carro e saímos para a noite fria. Dirigi distraída pela conversa
dos meninos, mas sem conseguir realmente me concentrar no que eles falavam.
Jantamos em um clima de camaradagem, como há muito tempo não fazíamos,
e quando estacionei o carro em nossa garagem muito tempo depois, o pavor que
senti tinha sido amenizado consideravelmente.
Mas, quando a casa foi engolida pelo silêncio da madrugada e minha única
companhia eram meus pensamentos conflitantes, a sensação de estar em perigo
novamente se alojou lentamente dentro do meu peito e, pela primeira vez em
muito, muito tempo, eu temi fechar os olhos para dormir, pois tinha certeza
absoluta de que os terríveis pesadelos estavam apenas me espreitando.
E mais uma vez, eu estava certa.
“O que faz andar o barco não é a vela enfunada,
Mas o vento que não se vê.”
Platão.
Olho o relógio e suspiro aliviada por constatar que ainda tenho um tempinho
para voltar ao restaurante. Como sempre, o movimento durante o almoço foi
mais ameno, e os preparativos para o jantar, só começam por volta das dezessete
horas.
Estaciono no shopping próximo ao restaurante e aproveito para dar uma volta.
É incrível como isso agora é algo tão comum. Sair sem precisar dar satisfação
dos meus passos para ninguém.
Estou concentrada olhando uma vitrine, quando ouço um pigarro às minhas
costas. Viro-me e dou de cara com o Ricardo, com os braços cheios de sacolas.
Confusa, o encaro e vejo seu sorriso torto se abrir.
— Não é o que você está pensando — ele diz de chofre. — São da minha
irmã. — E indica a moça loira com um bebê no colo no interior da loja.
Sorrio para ele e ele sorri de volta. E ficamos assim. Por alguns segundos, nos
olhando nos olhos e o sorriso vai morrendo lentamente quando nossos corpos
reagem tão naturalmente a presença um do outro. Sinto algo estranho acontecer
dentro de mim, uma emoção e uma excitação que não sei de onde vem. Nossos
olhos travam-se um no outro e eu vejo que o que sinto é totalmente recíproco.
Então, a verdade surge: estou apaixonada por esse homem.
— Marina... seria muito estranho se eu dissesse que não conseguirei passar
nem mais um segundo sem te beijar?
Baixo a cabeça e sorrio.
Ele pigarreia de novo.
— Meu Deus, tem horas que me sinto patético!
— Patético?
Ele assente e emenda:
— De tão apaixonado que estou.
Então, dou um passo em sua direção e ficando na ponta dos pés, encosto
minha boca na dele. Era para ser apenas um selinho, mas, então, com a mão
livre, ele segura minha nuca e me beija verdadeiramente na frente de todos.
Ainda com as pernas trêmulas, me afasto constrangida. Sei que estou
ruborizada, e o Ricardo parece feliz como alguém que acabou de ganhar um
presente muito valioso.
— Acho que precisamos nos controlar. Estamos parecendo dois adolescentes
apaixonados — falo com um sorriso que se recusa a sair dos meus lábios.
— Não sei você, Marina, mas é exatamente assim que me sinto.
Nunca fui boa de falar de sentimentos. Declarações de amor e gestos de
carinhos são algo raro nos meus dias. Por um momento, tento absorver toda a
diferença que é esta relação que estou iniciando com a que tive durante
praticamente toda a minha vida. Depois que nos casamos, o Pedro nunca,
absolutamente nunca, se declarou para mim. Durante o sexo, ele até costumava
ser mais carinhoso, mas declarações de amor não eram definitivamente uma
constante. Então, ver o Ricardo admitir calmamente que está apaixonado por
mim, sem nenhum pudor ou reserva, faz com que algo brote do fundo da minha
alma: gratidão à vida por me proporcionar viver isso.
Para disfarçar a emoção, eu resolvo agir por impulso e faço um convite
especial:
— Então, tem planos para hoje à noite?
Ele ergue a sobrancelha e sorri.
— Na verdade, tenho.
Tento não demonstrar a decepção que sinto, então sorrio brevemente e desvio
os olhos dos dele.
— Não quer saber qual o compromisso?
Dou de ombros.
— Não gosto de parecer curiosa.
— Mas você está?
Assinto e mordo o lábio inferior. Estou sentindo-me meio ridícula. Como se os
sentimentos que sinto por ele me deixasse, como foi mesmo que ele disse...
patética. Sorrio com o pensamento.
— Ah, como eu gostaria de ter o poder de ler mentes — ouço ele falar e
inspirar fundo.
— Ah, é?
Ele assente e diz:
— Você é uma incógnita, Marina. Nunca sei o que está pensando. E quando
você fica ruborizada como agora, eu queria muito mesmo saber o que se passa
por essa cabeça linda.
Ergo o rosto e falo de chofre:
— Queria saber o que você vai fazer hoje à noite. Queria saber o que você
acharia se eu te convidasse para jantar, e principalmente queria te dizer sim.
Ele me olha. Olha mesmo, e eu sinto todo o meu corpo reagir àquele olhar de
desejo. Sinto a energia fluindo entre nós dois de uma forma totalmente louca e
linda. Não é aquele tipo de paixão juvenil. É algo mais potente e infinitamente
mais intenso. É a certeza de que eu quero esse homem e que ele me quer. Me
quer de verdade. Não apenas para satisfazer seu ego ou o desejo do seu corpo.
Ele me quer completa. Inteira. Não com posse. É como se estivéssemos prestes a
viver algo lindo e intenso.
— Hoje à noite vou jantar no seu restaurante. O convite para jantar já está
mais que aceito, mas a sua resposta... ah, Marina, a sua resposta...
Então ele me beija novamente. E sinto que estamos em sintonia completa.
Corpo, coração e alma.
Quando nos afastamos, ele recua um passo e diz:
— Deus, preciso me controlar.
Sorrindo envaidecida, murmuro:
— Nos encontramos à noite?
— Sim.
Assinto e, quando faço menção de me afastar, a irmã dele se aproxima, com
um enorme sorriso no rosto praticamente idêntico ao dele e diz:
— Nossa, Dado, acho que se você não estivesse segurando minhas sacolas,
nem te reconheceria!
De uma forma realmente inusitada, vejo-o enrubescer.
Então, ela abre mais ainda o sorriso, e apoiando melhor o bebê em um dos
braços, estende a mão e se apresenta:
— Oi, sou a Ruth.
Aperto sua mão e imediatamente me identifico com essa mulher linda e
sorridente.
— Marina.
— Marina... já ouvi muito falar de você!
— Ruth! — repreende o Ricardo com um sorriso.
— Sério, ele só fala de você, da sua comida, do quanto precisamos visitar seu
restaurante, do quanto você é talentosa, e blá-blá-blá e, como conheço a Bruna
muito bem, sei quem é você desde que o mundo é mundo — diz com um largo
sorriso.
Enrubesço novamente e sorrio.
— Eu espero que minha irmã tenha dito coisas boas a meu respeito, e se o
Ricardo gostar de mim como gosta da minha torta de camarão, então eu
realmente devo estar com uma boa imagem.
Ela ergue a sobrancelha bem feita, aninha o bebê que está meio adormecido
no seu colo e diz:
— Você não faz ideia, Marina... — E pisca de forma cúmplice para mim.
Então se vira para o irmão e diz: — Te espero no carro, não tem pressa... vou dar
de mamar para essa coisinha gulosa. — Desvia o olhar do bebê e me olha. — Foi
realmente um prazer finalmente conhecê-la, Marina. Espero que tenhamos a
oportunidade de conversarmos novamente.
— Vou te levar no restaurante dela, para você entender que minha opinião não
é apenas porque estou apaixonado por ela — ele diz e então sorri encabulado
quando percebe o que falou. A Ruth pisca para mim.
— Viu? Te falei que ele só fala em você! Até a próxima, Marina.
— Até, Ruth, foi realmente um prazer conhecê-la... apareça no restaurante,
será um grande prazer recebê-la.
— Irei sim, pode ter certeza.
Então ela se despede e sai nos deixando a sós.
— Desculpa a Ruth... ela é meio sem noção.
Sorrio e me sentindo mais leve do que um balão, retruco:
— Então ela mentiu?
Ele dá um passo novamente em minha direção, estende a mão e acaricia a
lateral do meu rosto. Seus olhos são chamas acesas, que me queimam e faz com
que meu corpo deseje mais que apenas um toque. É constrangedor a forma como
o desejo, penso aturdida.
— Não, Marina, ela não mentiu...
— Ricardo...
Ele dá mais um passo. Sei que estamos chamando a atenção das pessoas que
passam, mas simplesmente não consigo me afastar.
— Oi...
— Eu quero você...
Ele inspira profundamente. Fecha os olhos por alguns segundos e então toma
minha boca em um beijo apaixonado.
Quando nos afastamos, ele recua e diz:
— Se você soubesse há quanto tempo desejo ouvir isso... o quanto te desejo...
Sorrio envaidecida.
— Hoje às nove?
Ele assente e recua um passo e então diz:
— Podemos sair um pouco depois que você encerrar as coisas por lá?
Meu coração bate acelerado. Pensei que ele nunca perguntaria isso.
— Claro — respondo.
E então, ele sorri. Um sorriso que brota nos olhos e se estende para seu rosto
másculo e lindo. Como pode alguém ser tão absurdamente charmoso? Me
pergunto abismada.
— Ótimo — ele recua outro passo. — Até daqui a pouco, Marina.
— Até — murmuro.
Ele se aproxima rapidamente e me beija de forma suave e rápida. Então, se
afasta e vai embora me deixando com o corpo em chamas e o coração acelerado
como uma adolescente pateticamente apaixonada.
“O meu passado é tudo quanto não consegui ser.
Nem as sensações de momentos idos me são saudosas:
o que se sente exige o momento; passado este,
há um virar de página e a história continua, mas não o texto.”
Livro do desassossego – Fernando pessoa
Olho para o relógio e tenho certeza absoluta de que irei me atrasar. Mas,
depois do meu encontro com o Ricardo no shopping, precisei passar em casa e
tomar um banho e, claro, me arrumar um pouco melhor.
Hoje será meu primeiro encontro com outro homem. Nunca tive encontros
com ninguém além do Pedro, então, dizer que estou nervosa é subestimar o que
estou sentindo.
Depois de tomar um banho rápido, escolhi com cuidado uma lingerie e me
perfumei inteira. Não importa se os aromas da cozinha onde trabalharei pelas
próximas horas, anulem meu perfume, eu simplesmente precisava me sentir
limpa.
Um rubor intenso percorre meu rosto, quando lembro do que aconteceu
durante o banho.
Nunca tive problemas com o sexo, mas também nunca tive o hábito de me
tocar. Mas hoje, depois do nosso encontro, cheguei em casa muito excitada... e
debaixo da água quente, pensando nas promessas silenciosas que os olhos
daquele homem me fizeram, me masturbei de forma deliciosa.
Foi algo tão instintivo.
Inevitável.
Meu corpo simplesmente precisava ser saciado. Minhas mãos subiram quase
que automaticamente para meus seios, em uma carícia suave, fechei os olhos e
imaginei as mãos dele me tocando, me beijando... então, como se tivesse
vontade própria, uma das minhas mãos escorregou pela minha barriga, e se
alojou entre minhas pernas... arfando e gemendo, com os olhos fechados atingi o
clímax de forma intensa. Me senti envergonhada pelo meu comportamento
juvenil, mas sei que esse constrangimento é fruto de uma vida inteira de
castração e o hábito de sempre abdicar do meu prazer em prol do prazer do
outro.
Muitas e muitas vezes, transei com o Pedro sem a mínima vontade. Quantas e
quantas vezes, fingi orgasmos mirabolantes para aplacar seu ego que precisava
ser inflado. Muitas. O sexo entre nós dois sempre foi bom, mas teve dias,
principalmente depois de brigas mais violentas que ele me queria de qualquer
forma, que eu simplesmente fingia.
Fingia que também o queria para alegrá-lo. Fingia que gozava para satisfazê-
lo. Fingia e fingia.
Nunca mais farei isso por ninguém.
Desço do Uber em frente ao restaurante. Como sairei para jantar, optei por não
ir dirigindo. Sei que as coisas já estão bem encaminhadas, porque liguei para
avisar que me atrasaria.
Para meu alívio, hoje a Helena tem uma festinha na casa da sua amiga Mila e
dormirá por lá, e o Júnior também dormirá na casa de um amigo do time.
Aliso o vestido justo — mais do que o que costumo usar — e me olho
rapidamente pelo retrovisor do carro. Estou nervosa. Não sei porque, mas algo
me diz que hoje será uma noite muito especial.
Entro no restaurante e sou saudada por uma Bruna radiante. Só de olhar para
minha irmã, sei que ela está tramando algo.
— Boa noite, Bru, desculpe o atraso.
Ela sorri e pisca.
— Está linda hoje, hein?
Baixo os olhos para meu vestido e sei que estou arrumada demais para uma
noite de trabalho, mas não me importo. Dou de ombros e sigo para o nosso
pequeno escritório.
Ela cochicha algo para a Cris, que me cumprimenta também de forma
sorridente e misteriosa, e me segue.
Quando abro a porta, estaco.
O Ricardo, mais lindo que nunca, está me aguardando com os dedos enfiados
nos bolsos do jeans escuro e um sorriso incerto nos lábios.
— Já chegou?
Ele assente e coça a nuca. Então eu entro na sala e a Bruna chega em seguida
dizendo:
— Já adiantamos tudo, Nina. Pode ir tranquila aproveitar sua noite.
— Ir? Não, Bruna, nós jantaremos aqui mesmo.
É a vez do Ricardo se aproximar e, como se me pedisse autorização, ele
estende uma mão e toca a lateral do meu rosto. Enrubesço. Nunca trocamos
gestos de carinho na frente de outras pessoas; apesar de todos saberem que
estamos nos conhecendo melhor, ainda não nos expomos.
— Você aceita sair para jantar comigo em outro lugar? — ele indaga. — A
Bruna me garantiu que isso não seria um problema.
Olho para a Bruna, que sorri satisfeita.
— É sério, já está tudo ok. Vá aproveitar sua noite. Seguro as pontas aqui com
o pessoal.
— Tem certeza, Bru?
— Absoluta. Sua falta de fé em mim é algo realmente ofensivo — ela
responde com um revirar cômico de olhos.
— Boba. — Sorrio. — Sabe que não é falta de fé em você, mas nos seus dotes
culinários, que, vamos combinar, não é lá essas coisas.
— Prometo ficar longe da cozinha. — E dirigindo-se para a porta diz antes de
sair: — Agora vá curtir um pouco. Você merece. — E olhando para seu amigo
querido emenda: — Vocês merecem.
Então, ela sai do escritório nos deixando a sós.
— Não quero te causar problemas... — ele diz.
Olhando-o vejo o quanto eu quero ficar com ele. Então, caminho até onde ele
está, coloco as duas mãos no seu peito largo e falo suavemente:
— Não vai causar problema algum. Se a Bruna diz que está tudo sob controle,
é porque está... e eu adoraria sair para jantar com você.
Então ele se inclina e beija suavemente minha boca. Apenas um selinho e
sinto os pelos do meu corpo se eriçar.
Ele inspira fundo e diz:
— Deus, como eu te quero, Marina. Tanto que chega a doer.
— Eu também quero você. Quero muito — murmuro.
Ele me beija. Um beijo que deixa claro que ele não está brincando. Nunca fui
beijada assim. Nunca. É como se ele ao mesmo tempo que quisesse me devorar,
quisesse me proteger. Deliciosamente intenso e doce.
Quando nossas bocas se afastam, ele sorri.
— Vamos, ou não conseguiremos sair daqui.
Assinto sorrindo.
— Vou dar uma passada rápida na cozinha, e te encontro lá fora, ok?
Ele me dá um selinho e sai. Quando estou saindo para ir até a cozinha, a
Bruna entra no escritório com um largo sorriso no rosto.
— Estou feliz por você, maninha — ela diz. — Ninguém merece mais ser
feliz do que vocês dois. O Dado é um cara legal. Sempre foi. E sempre te
admirou demais, sabe?
— Eu gosto dele — confesso. — Na verdade, acho que estou apaixonada.
Ela revira os olhos.
— Até a porta sabe que vocês estão apaixonados um pelo outro. Basta olhar.
— E apontando para a saída, diz: — Agora vai. Vá curtir sua noite.
Assinto emocionada.
— Obrigada, Bru... por tudo.
— Vai logo! Não se deixa um gato daqueles esperando! — Pisca e eu saio sem
nem ao menos dar a passada na cozinha.
A caminhonete dele está parada um pouco mais atrás da entrada do
restaurante, e ele me espera de pé do lado do carona. Quando me aproximo, ele
abre a porta, mas, antes que eu suba, uma mão segura meu ombro firmemente.
Assustada, viro-me e vejo o Pedro com o rosto tomado pela mais completa
fúria.
Antes que eu reaja, ouço a voz baixa e irada do Ricardo:
— Tire imediatamente as mãos dela!
O aperto no meu ombro se intensifica, e sinto vontade de me encolher de dor,
mas faço o contrário, sacudo o braço violentamente para me livrar do toque.
Nunca mais deixarei que ele me assuste.
—O que pensa que está fazendo, Marina? — diz o Pedro ignorando
totalmente o Ricardo. — Para onde você pensa que vai? — E olhando para o
Ricardo, fala entredentes: — Se afaste dela agora, seu filho da puta! — ele cospe
as palavras.
Ricardo então se interpõe entre nós dois e encarando o Pedro com muita,
muita raiva brilhando nos seus olhos, diz:
— Ou você dá o fora imediatamente, seu canalha, ou eu mesmo vou te botar
pra correr. Vamos ver se você é tão valente com um homem quanto é com uma
mulher.
— Você não vai sair com esse cara, Marina. Não vai! — diz o Pedro
ignorando mais uma vez o Ricardo.
Então, algo brota do meu íntimo. Uma voz intensa, que tenta escapar pela
minha garganta e eu me ouço sem acreditar que sou eu mesmo que estou
falando:
— Se afaste de mim, seu covarde! Nunca mais, ouviu bem, nunca mais eu
quero ouvir sua voz. Não sou nada sua. Você morreu para mim. Então, a menos
que você queira que eu chame a polícia, eu exijo que você me deixe em paz de
uma vez por todas. Porque, eu juro por Deus, se você ousar encostar um dedo em
mim, eu vou foder com a sua vida de uma maneira como ninguém nunca fez. E
você vai me pagar por cada soco e pontapé que me deu ao longo de toda uma
vida!
Virando-me para o Ricardo, coloco a mão sobre seu braço e digo:
— Vamos, não vale a pena.
Acho que tanto o Pedro quanto o Ricardo ficaram surpresos com meu
discurso, porque ambos me olharam de forma diferente.
O Ricardo com orgulho e o Pedro com raiva... muita, muita raiva. Mas, para
minha surpresa, ele dá um passo para trás, depois outro, mas antes de se virar e
sumir de vista ele me ameaça:
— Isso não vai ficar assim! Você é minha!
— Não sou de ninguém! Sou minha, seu canalha!
Então ele sorri com escárnio, e se afasta na escuridão da noite.
Inspiro fundo e sinto os conhecidos tremores me percorrerem. É como se toda
a energia tivesse sido drenada do meu corpo. Minha garganta trava e sinto o
gosto salgado de uma lágrima traiçoeira que escapa pelo meu rosto e, então, um
braço forte me puxa para o aconchego de um abraço reconfortante e eu choro.
“Não interessa quem tu amas,
onde é que amas, porque é que amas,
quando é que amas ou como é que amas,
o que interessa é que amas.”
John Lennon
Eu nunca precisei tanto exercer meu autocontrole quanto hoje à noite, penso
enquanto termino de preparar uma massa para o nosso jantar. Meus olhos vagam
até o meu sofá na sala onde ela está deitada com os olhos fechados.
Os planos do nosso jantar romântico foram arruinados por aquele filho da
puta, então resolvemos comer aqui em casa mesmo. Ela insistiu em cozinhar, eu
não deixei.
Então, estou terminando o nosso jantar, enquanto ela relaxa um pouco.
Desligo o fogo, e encho duas taças de vinho.
Vou até onde ela está deitada e sento no chão ao lado do sofá. Pouso as taças
ao meu lado, e ergo a mão para acariciar a lateral do seu rosto. Depois da crise
de choro que ela teve em meus braços, foi como se ela erguesse uma barreira
entre nós dois. Uma barreira que eu tento desesperadamente baixar.
— Está melhor?
Ela assente e abre os olhos.
Virando-se para mim, ela diz:
— Desculpa por tudo isso... arruinei nossa noite.
— Shhh... nunca mais peça desculpas por algo que definitivamente você não
tem culpa. — Ergo a taça. — E nossa noite não foi arruinada... vou poder te
mostrar que, além de ser um bom cantor, seu estômago está a salvo comigo
também.
Ela sorri e senta. Refaz o coque, e parece se dar conta de que a maquiagem
deve estar toda borrada. Se ela soubesse como é linda, não se incomodaria com
um detalhe tão bobo. Olho para ela como se fosse a coisa mais linda que já vi,
porque, para mim, é assim que a vejo.
Solto o ar quando sinto a calma ir tomando conta das suas feições. Dou um
longo gole no vinho delicioso e para descontrair, falo:
— Espero que esteja com fome...
— O cheiro está bom. — Ela dá um pequeno sorriso.
Fingindo estar ofendido, falo:
— Eu aposto que você não confia nos meus dotes culinários, não é?
Ela nega.
— Confio, você tem cara daquelas pessoas que tudo que se propõe a fazer faz
bem feito.
Dou de ombros e bebo mais um gole. Ela observa atentamente o movimento
da minha boca, e sinto mais uma vez aquele calor gostoso me aquecer.
Como se tivesse dado conta que estava me observando com algo parecido com
desejo, ela leva a taça aos lábios e toma um gole do vinho e baixa os olhos para
suas mãos que seguram firmemente a taça.
Para quebrar a tensão que se formou entre nós, falo suavemente:
— Não sei viver nada mais ou menos, Marina.
Ela ergue os olhos e me encara.
— Eu sei — murmura.
— Quer conversar?
Ela nega com a cabeça.
— Comer?
Mais uma negativa. Começo a achar que ela vai me pedir para levá-la para
casa. Então, sua voz sai baixa, porém firme:
— Eu quero você...
Apenas três palavras e todo o meu mundo começa a girar. Meu coração bate
acelerado, e eu sinto o quanto é difícil para ela verbalizar o que sente. Então,
sinto-me um filho da puta sortudo. Estendo a mão e acaricio a sua, que ainda
segura a taça entre os dedos trêmulos.
— Não precisamos fazer isso hoje... eu sei que...
Ela estende a mão e toca meus lábios, então, me encarando com uma
determinação que já vi outras vezes no seu olhar, repete:
— Eu quero você... hoje... agora.
Então, tudo mais desaparece e eu só penso no quanto desejo e amo esta
mulher. Ela se infiltrou em meus pensamentos, e esteve lá, quieta durante todos
esses anos desde que a conheci no casamento da Bruna. Nunca consegui
esquecê-la, e nunca entendi a razão disso.
Até agora.
Agora eu sei que fui feito para ela, e ela foi feita para mim. Seus olhos estão
tranquilos, apesar de senti-la tensa.
Fico de joelhos na sua frente, e com as duas mãos, seguro seu rosto. Encosto a
testa na dela e falo com toda a verdade do meu coração exultante:
— E eu quero você. Quero você mais que tudo na vida.
Desço a boca e encosto meus lábios nos seus que estão entreabertos. O hálito
quente me recebe, e seu gosto me embriaga.
Eu a beijo com toda a paixão que sinto. Com todo o meu corpo e minha alma.
Eu quero que ela sinta a emoção que estou sentindo. Quero que ela veja que
estou nervoso também, quero que perceba que este momento é muito, muito
especial para mim.
E, principalmente, quero que ela entenda que estamos juntos nessa.
Juntos.
Ansiosos, nervosos e muito envolvidos um pelo outro.
Sem segredos ou joguinhos.
Juntos.
E no que depender de mim, para sempre.
“A gente erra ao pensar que o amor é permanecer,
suportar absolutamente tudo e ficar,
independente de qualquer coisa.”
Onde não reciprocidade, não se demore – Iandê Albuquerque
Não sei o que deu em mim. Depois de tudo que passamos, eu deveria estar em
casa, debaixo das cobertas, apavorada.
Mas aqui estou eu entrando no quarto do Ricardo, com nossas mãos
entrelaçadas.
O que me trouxe até aqui?
O que me faz querer tanto esse homem, mesmo sabendo que corremos riscos?
Porque eu não consigo deixar de desejar que suas mãos me toquem. Que sua
boca conheça cada pedaço do meu corpo.
Eu o desejo com uma fome que nunca senti ou imaginei sentir.
E talvez, por isso, eu tenha tomado a iniciativa.
Ou talvez seja apenas porque eu preciso sentir verdadeiramente que minha
vida e minhas decisões me pertencem e apenas a mim.
Ele está tremendo. E isso me acalma.
Então, ele acende a luz e ficamos de frente um para o outro.
— Marina...
Ergo os olhos para encontrar os dele que estão sérios e muito intensos.
Sua mão se ergue lentamente e com uma carícia suave ele contorna a lateral
do meu rosto com as pontas dos dedos.
— Você é perfeita...
Inclinando-se, ele encosta a boca na minha. Sem nenhuma pressa, sua boca
vai saboreando e engolindo cada suspiro que deixo escapar. Nossas línguas se
enroscam e nossos corpos se colam. Ergo a mão e enrosco meus dedos nos
cabelos da sua nuca. O toque suave das suas mãos nas minhas costas, não exige
nada, apenas me deixa notar sua presença. É como se ele soubesse que preciso
de calma e suavidade para liberar algo mais profundo e íntimo. Enquanto uma
das suas mãos segura minhas costas, a outra sobe lentamente para minha nuca e
solta meu cabelo, que cai em ondas suaves até meus ombros. Ele desprende
nossas bocas, e se afasta um pouco para me olhar. Há tanta suavidade no gesto,
que sinto minhas pernas fraquejarem.
— Você é tão linda, Marina... — diz e, então, eu finalmente tenho a certeza de
que este homem quer algo que vai além do meu corpo.
Mesmo no ápice da nossa paixão, sinto o controle férreo que ele exerce para
me preservar. É como se ele soubesse que eu percorri um longo caminho para
chegar até aqui, e que dissesse sem palavras que respeita meu tempo e meu
momento. E que absolutamente nada é mais importante para ele do que eu.
Nos afastamos e sorrimos um para o outro. E, neste momento, eu vejo o
quanto estamos apaixonados. É totalmente recíproco o que sentimos, e posso
sentir com cada fibra do meu ser, que ele está tão envolvido por mim, quanto
estou por ele. Então, sem desviar os olhos dos dele, abro o zíper na lateral do
meu vestido, e deixo que ele escorregue e se amontoe aos meus pés. Os olhos
dele me observam com intensidade e sinto imediatamente meu corpo reagir. Ele
abre a camisa, botão a botão, sem nunca desviar nossos olhos. Fica apenas de
jeans.
— Linda... — ele murmura e se aproxima.
Nosso beijo agora é íntimo e profundo.
Ele tira meu sutiã, e eu abro seu jeans. Ele descalça os sapatos, e eu desço do
salto. Sempre nos beijando e nos olhando. Sempre sorrindo um para o outro.
Delicadamente ele me leva até a cama, e nos deitamos. O cheiro dele está
impregnado nos lençóis e travesseiro.
E quando ele me beija novamente, tudo o que eu quero é que ele não pare.
E ele não para.
Seus dedos acariciam meus seios, sem nenhuma pressa. Cada toque suave,
cada encostar de lábios na minha pele quente é uma pequena demonstração de
cuidado e amor.
Sua voz rouca de uma emoção, que faz eco na minha, sussurra no meu ouvido:
— Quero ser o motivo dos teus sorrisos e suspiros, Marina... Quero ser teu
amigo... ser teu amante... quero ser tudo que você permitir que eu seja...
— Me beija — peço num sussurro emocionado.
Então, sua boca encontra a minha em mais um beijo intenso, e ele vai
descendo o corpo pelo meu, seus lábios dão lugar as suas mãos, e quando ele
acaricia meus seios, e encosta a língua no mamilo túrgido, eu solto um longo
gemido de puro prazer. Ele não tem pressa alguma. Sua língua brinca com meu
mamilo, enquanto seus dedos acariciam suavemente o outro seio. Ele beija o
outro seio antes de descer sua boca pela minha barriga. Beijos suaves são
espalhados por todo o meu corpo, é uma tortura deliciosa vê-lo me saboreando
com tanta calma e prazer.
Quando ele chega no âmago do meu prazer, ainda estou vestida com a
calcinha, agora totalmente úmida, ele mordisca minha virilha e suas mãos
descem minha calcinha pelas minhas pernas trêmulas.
Seu olhar é intenso e apaixonado, é como se ele desfrutasse de algo muito
precioso e, antes mesmo dele encostar a sua língua em mim, eu solto um gemido
de antecipação pelo que estar por vir.
Então ele começa a me saborear, como se eu fosse uma iguaria rara e deliciosa
e eu perco realmente o controle do meu corpo e tudo é prazer, que se irradia por
cada poro. Sua língua, ora intensa, ora suave, me conduz rapidamente para um
orgasmo violento e delicioso.
Ouço ele tirar o jeans e sinto um prazer intenso em observá-lo subir
novamente pelo meu corpo. É delicioso sentir nossos corpos completamente
alinhados. Pele contra pele.
Sua boca procura a minha, e sinto o meu gosto na ponta da sua língua. Isso me
excita novamente. Então, é minha vez de beijá-lo com a paixão. Uma paixão que
extrapola o controle rígido das emoções que mantive sob controle por toda
minha vida.
Desço uma das mãos pelas suas costas, arranhando-o suavemente com as
unhas, e ele geme com a boca de encontro a minha. Sua ereção faz uma pressão
deliciosa, e eu desejo, mais que tudo, ver esse homem completamente fora de si,
então, o empurro suavemente e sento em cima dele, que me olha com os olhos
turvos de paixão.
— Camisinha? — indago.
Ele estende a mão e abre a gaveta da cabeceira da cama, retirando de lá uma
embalagem.
Coloco ao lado do corpo dele, e exatamente como ele fez, desço meu corpo
pelo seu lambendo e mordiscando cada pedaço de pele desse homem
maravilhoso. Quando minha língua toca seu mamilo, ele geme deliciado, e eu
me vejo completamente louca para tê-lo inteiro dentro de mim.
Segurando-o com ambas das mãos, eu olho para ele, que tem os olhos
fechados.
Encosto a ponta da língua e o gemido que sai da sua boca é algo tão forte e
delicioso, que, imediatamente, perco a vontade de provocá-lo lentamente,
consumida pela urgência de sentir seu gosto. Quando o coloco dentro da boca,
seu gemido é profundo e seus olhos se abrem para me olhar. E há tanto cuidado e
amor brilhando nos seus olhos que, sem aviso, uma emoção intensa me assola.
— Linda... você é linda, Marina — ele murmura entre um gemido e outro.
Quando me afasto e abro o preservativo sinto uma ponta de constrangimento
me assolar. Como se soubesse que não tenho nenhuma prática em colocar
preservativo, ele se prontifica a me ajudar.
Um pouco constrangida com minha falta de experiência, ele parece ler minha
mente:
— Quero muito você... muito mesmo...
Então, esqueço o constrangimento e sorrindo sedutora para ele, engatinho por
sobre seu corpo, sob seu olhar atento, e segurando-o sento lentamente sentindo-o
me preencher totalmente. É enlouquecedor o prazer que sinto.
Como se lesse minha mente, ele diz:
— Que delícia... por favor, Marina... eu preciso...
Não deixo que ele conclua, começo a cavalgá-lo e sinto sua mão acariciar meu
clitóris e, então, tudo é prazer e nada mais importa. Apenas a vontade louca de
ser consumida por essa onda de paixão que toma conta de todo o meu ser.
Quando intensifico os movimentos, eu o vejo no limite das forças. Então, me
sentindo a mulher mais poderosa do mundo, eu nos conduzo para um orgasmo
violento que nos faz estremecer deliciosamente e gemer em uníssono no mais
intenso ápice de prazer.
“Tal como às vezes digo que, em vez da felicidade,
eu acredito na harmonia,
penso que o amor é o encontro da harmonia com o outro.”
La Jornada – José Saramago
O toque gentil me acorda de um sono sem sonhos. Ela segura meu braço e,
como faz todos os dias, cantarola uma música suave enquanto aplica algo dentro
do que eu suponho ser um soro.
Agora passo mais tempo acordada que dormindo, mas ainda não consigo abrir
os olhos. É como se minhas pálpebras estivessem coladas.
— Vamos, doçura, se esforce só mais um pouquinho... sei que pode me ouvir
— murmura a voz.
Tento concentrar minhas forças e forçar meus olhos a se abrirem. Meus cílios
tremulam, e quase posso ouvir a pessoa ao meu lado prender a respiração.
Esperando.
— Só mais um pouco e você consegue... vamos lá...
Então, uma fresta de luz entra por entre minhas pálpebras semicerradas.
— É isso aí, garota! — diz a voz e soltando meu braço, ela se estica sobre
meu corpo.
Tento mais uma vez e finalmente consigo entreabrir os olhos.
Uma senhora de meia-idade, com um largo sorriso no rosto, me olha
atentamente.
— Não se esforce, já chamei o médico para dar uma olhada em você. É muito
bom finalmente conhecê-la, Marina.
Tento abrir a boca para falar, mas nenhum som sai. Tento virar minha cabeça,
mas não consigo.
— Sou a Maria, e estava muito ansiosa para conhecer alguém que é tão amada
quanto você é.
Mais uma vez, tento falar. Não consigo.
A porta do quarto se abre e alguém se aproxima apressado.
— Ora, ora, seja muito bem-vinda, Marina. — diz um homem jovem, que eu
suponho que seja o médico. Olhando para a senhora, ele indaga: — Checou os
sinais vitais, Maria?
— Tudo em ordem, doutor.
Então, olhos inteligentes fixam-se aos meus e ele diz:
— Sou o Gustavo, seu neurocirurgião. Você sofreu um acidente de carro. É
natural que se sinta confusa, mas não tenha pressa. Seu cérebro passou quase
vinte dias dormindo e agora ele precisa de um tempo para se readaptar.
Ele sorri satisfeito, e a mulher que eu suponho ser a enfermeira, corresponde
ao seu sorriso.
Fecho os olhos por um segundo e tento lembrar do que houve. Nada. O buraco
negro continua intacto.
Ele disse que sofri um acidente de carro e que fiquei desacordada por vinte
dias?
Acho que apaguei novamente. O quarto está silencioso, mas posso sentir a
presença de alguém. Mais uma vez, faço um tremendo esforço para abrir meus
olhos. Não consigo abri-los completamente, ainda estão muito pesados. Uma
penumbra suave envolve o ambiente, e eu suponho que já seja noite. Tento
lembrar o sonho estranho que estava tendo, mas não consigo. Algo está
prendendo meu dedo, e sinto o meu braço dolorido. Tento mexer a cabeça para o
lado, mas não consigo. Devo ter feito algum movimento, porque sinto o toque
suave de dedos sob minha mão.
— Oi... — diz uma voz masculina suave.
A voz. Conheço essa voz. Mais uma vez, tento abrir os olhos e então, como
em um borrão, a figura do Ricardo vai se desenhando à minha frente.
O que ele está fazendo aqui?
O que aconteceu?
— Calma, está tudo bem, Marina... por favor, não se esforce.
Minha garganta está seca, e tento umedecer meus lábios ressecados. Preciso
entender o que está acontecendo.
— Ricardo? — murmuro baixinho. Surpreendo-me com a rouquidão da minha
voz.
Ele sorri, e vejo seus olhos encherem-se de lágrimas.
— Sou eu sim... — Ele ergue uma mão e enxuga uma lágrima que escorre.
Sua outra mão continua acariciando a minha que está sob os lençóis.
— O que aconteceu? — consigo perguntar.
Então, seu rosto endurece um pouco, e eu vejo a força que ele faz para
continuar sereno.
— Você sofreu um grave acidente de carro.
— Acidente?
Ele assente.
Fecho os olhos. Estou tão cansada. Então, as palavras do médico que esteve
no meu quarto mais cedo voltam à minha cabeça. Acidente. Passei alguns dias
desacordada. Forço a memória, mas nada vem. Só um grande buraco negro.
— Marina... — ele chama baixinho.
Abro os olhos e encaro os dele, que estão novamente emocionados.
— Eu amo você... — ele diz baixinho.
Sinto vontade de confessar o meu amor também, mas minha voz não sai. E o
cansaço vem com força total. Sono... sinto tanto sono. Quero pedir para ele ficar
comigo. Quero saber onde estão as crianças... mas minha voz se recusa a sair e,
mais uma vez, sou engolida pela escuridão.
“Um dia vai deixar de haver amanhã.
Um dia vais acordar e já não podes acordar.
É bom que acordes antes desse dia.”
Pedro Chagas Freitas
Meu olhar distraído vaga pela cozinha enquanto termino de preparar um bolo.
Acordei muito cedo e, pela primeira vez desde que saí do hospital, senti vontade
de cozinhar.
Com certeza, os meninos ficarão felizes. Nos últimos dias, o café da manhã
tem se restringido a torrada com ovos ou geleia.
Volto meu olhar para a casa silenciosa. Minha casa. Foi difícil sair do hospital
e encarar tudo e todos. Meus filhos principalmente. Sinto o costumeiro bolo na
garganta quando lembro da dor nos olhos deles. Principalmente da Helena. Ela
perdeu o pai de forma trágica, e eu sei o quanto está sofrendo. O Júnior também,
apesar de ser mais contido e de não ter uma relação muito próxima com o pai, eu
vejo o quando dói a perda do Pedro. Mas o pior de tudo, é esconder deles
realmente o que aconteceu naquela noite. Não contei absolutamente nada a
ninguém. A Bruna insistiu muito. Mas não contei.
Só consegui falar sobre tudo com o terapeuta. Contei tudo. Cada detalhe
daquela noite terrível, e mesmo revivendo tudo aquilo não consegui derramar
uma única lágrima. Isso tem me incomodado. Eu queria que as lágrimas fluíssem
e fizesse brotar no meu íntimo toda a culpa que eu deveria sentir e não sinto.
É isso que não está certo. É como se eu tivesse perdido a capacidade de sentir.
Eu não sinto nada. Não sinto arrependimento. Não sinto culpa e também não
sinto medo que descubram que fui a responsável pela morte do meu ex-marido e
pai dos meus filhos. Não é o medo que me paralisa e me impede de assumir para
todos o que eu fiz. O que tem realmente tirado meu sono é o alívio tremendo que
sinto toda vez que eu penso que aquele monstro se foi para sempre. O monstro
que era o pai dos meus filhos. Se foi porque eu o matei.
Solto um longo suspiro, e coloco o bolo no forno. Vou até a cafeteira e encho
uma xícara de café. Preciso retomar minha vida. Preciso voltar a trabalhar. Estou
realmente estagnada dentro dos meus pensamentos que correm em círculos
dentro da minha cabeça.
O pessoal do restaurante veio me visitar dois dias depois que recebi alta.
Muito emocionados, eles estavam muito felizes por eu ter escapado praticamente
ilesa. Me contaram como o esquema foi rearranjado na minha ausência. Estou
feliz que as coisas não ficaram paradas. Apesar de já ter sido liberada pelos
médicos para voltar ao trabalho, eu não sinto vontade. Não sinto vontade de
fazer absolutamente nada. Fico horas sentada olhando para o vazio. É estranho
como meus pensamentos somem da minha cabeça. É como se eu ficasse
dormindo de olhos abertos. Vivendo um sono sem sonhos.
A Bruna vem me ver religiosamente todos os dias. Nós conversamos sobre o
restaurante, sobre o trabalho dela, sobre as crianças, mas não falamos sobre o
que aconteceu. Outro assunto proibido é o Ricardo. Desde o dia em que ele
esteve no hospital e eu fingi dormir, ele se afastou. Me manda mensagens
diárias, mas não forçou nenhuma aproximação. Em uma das inúmeras
mensagens, ele disse que ficaria distante e que entendia que eu precisava de
espaço nesse momento. E enfatizou que, quando eu quisesse vê-lo, ele viria até
mim.
Eu não o chamei.
Eu sinto sua falta. Sinto muito a sua falta. Mas não estou preparada ainda para
reencontrá-lo.
O barulho de passos na escada me tira do meu devaneio. É o Júnior. De todas
as pessoas, ele é o que me traz mais paz. Eu sei que ele entende verdadeiramente
meu silêncio. Eu só vejo amor nos seus olhos. Nenhuma espécie de cobrança por
explicação. Nada. Ele simplesmente está feliz demais por me ter de volta. Seu
amor é profundo e não necessitamos de palavras para nos comunicarmos.
— Bom dia, mãezinha — diz se aproximando e beijando o topo da minha
cabeça.
— Bom dia, querido.
— Que cheiro maravilhoso é esse?
— Bolo de laranja. Seu preferido.
O sorriso que brota no rosto dele faz meu coração se apertar de gratidão pela
pessoa maravilhosa que ele é.
— E hoje tem panquecas para o café. Nada de torrada com ovos — conto com
um pequeno sorriso.
— Não me incomodo de comer torrada com ovos, mas estou feliz demais em
saber que matarei a saudade do seu bolo de laranja. — Então, ele deixa a
mochila no chão e vai até à mesa da cozinha onde já deixei o café da manhã
preparado para eles.
— Nossa, isso aqui está muito bom — diz alguns minutos depois, referindo-se
à panqueca.
Neste momento, ouvimos passos e a Helena entra na cozinha. Seu rosto está
triste e seu olhar anda meio apagado. Sei que ela tem tido noites difíceis com
pesadelos. Já procurei ajuda psicológica para ela, e estou confiante.
— Bom dia — cumprimenta eu e o Júnior e senta à mesa.
Ela começa a se servir, sem dar importância à comida que está na mesa. Para
quebrar o silêncio que se instaurou, o Júnior comenta:
— Está sentindo o cheiro, Lena?
Ela assente sem desviar os olhos do prato.
— Não me responsabilizo se você chegar da escola e não tiver sobrado
nenhuma mísera fatia, ok?
— Laranja é o seu bolo favorito, não o meu.
Ele me olha rapidamente e diz:
— Que eu saiba você come tanto quanto eu.
— O fato de comer não significa que adoro. Bem, mas quem se importa, não
é?
Ele me olha e eu me aproximo.
— Eu me importo, filha — digo e coloco as mãos nos seus ombros que estão
tensos —, e prometo pra você que farei o seu favorito amanhã. Não fiz hoje
porque não tenho todos os ingredientes em casa.
Ela continua comendo em silêncio.
— A propósito, preciso passar no mercado.
— Posso faltar à escola hoje e te acompanhar? — se oferece o Júnior.
— Nem pensar — retruco. — Vou só. Não precisa se preocupar, chamo um
Uber. Será rapidinho.
— Você deveria chamar a tia Bruna para te acompanhar, mãezinha.
— Não é preciso — respondo.
— Mesmo assim, acho que não deveria ir só — ele insiste.
Então, para nossa surpresa, Helena fica de pé e, antes de sair da mesa com seu
café quase intocado, diz:
— Foi o papai que morreu e não ela! — Sinto a dor borbulhando em cada
sílaba e sei que sua intenção não é me ferir... ela só está sofrendo. Então me
mantenho em silêncio e ela continua: — Ela está viva e precisa retomar sua
rotina. Ela pode retomar a sua rotina. Ela está viva! Vida que segue. — Eu
entendo o que suas palavras significam. Sei que a dor da perda de alguém que
amamos é terrível.
Inspiro fundo e faço um sinal para o Júnior que tenta intervir.
— É, amor, vida que segue — retruco. — Vida que nem sempre é como
gostaríamos que fosse, mas é a vida. Vida que muitas vezes nos machuca e nos
modifica, mas é a vida. Vida que queremos muitas vezes não encarar, mas é a
vida. Eu estou viva, e preciso realmente voltar a viver.
Uma lágrima sorrateira escorre pelo rosto dela. Enxuga-a e me olhando diz:
— Desculpa, mãe. Não quero te magoar, eu só não estou...
Não deixo ela concluir. Me aproximo e a puxo para dentro dos meus braços. E
então, de forma inesperada, o choro dela desperta dentro de mim algo muito
doído e profundo e eu finalmente deixo as lágrimas fluírem. O Júnior se
aproxima de nós duas e nos abraça. E ficamos os três abraçados, chorando
copiosamente.
Cada um com sua dor.
Cada um com seu motivo.
Mas todos unidos por algo maior. O amor que sentimos uns pelos outros. E
pela primeira vez, desde que tudo aconteceu, eu sinto verdadeiramente uma
fresta de luz entrar no escuro onde estava a minha alma. E choro ainda mais. E é
bom.
“Quem voa depois da morte?
É a folha da árvore.”
Mia Couto
Estou nervosa igual ao meu primeiro dia. Quase dois meses que não venho
aqui. Desço do táxi, e olho a fachada que tanto amo. Sinto um sorriso brotar do
fundo da minha alma.
Abro a bolsa e retiro de lá a minha chave. Ainda é muito cedo, e o restaurante
está vazio.
Desde que eu e meus filhos nos entregamos à dor da perda e vivemos o luto
por tudo que aconteceu — cada um à sua maneira — que eu tenho me
fortalecido. Dia a dia, nossa relação em casa tem se solidificado e nossos laços
estão cada vez mais fortes.
Os sorrisos agora são mais frequentes entre nós. A Helena começou na terapia
e sua mudança é nítida. Ela precisava externar a dor da perda, e eu não poderia
ajudá-la, simplesmente porque eu tenho as minhas próprias dores para serem
expurgadas.
A minha relação com a Bruna retornou ao patamar antes do acidente. Ela me
visita quase que diariamente, e me deixa por dentro das coisas referentes ao
restaurante, mas deixou muito claro que eu só deveria voltar quando me sentisse
pronta.
E aqui estou.
A única lacuna da minha vida, que ainda está em branco é a minha relação
com o Ricardo. Sinto muita saudade dele. Cada dia mais. A cada mensagem de
bom dia que ele me envia e a cada momento que ele se faz presente sem estar.
Ele me arranca sorriso bobos, mesmo estando a dezenas de quilômetros. Não me
pressionou nem uma única vez para encontrá-lo. Apesar de saber que isso é
proposital, a saudade que sinto dia a dia está me consumindo.
Entro no restaurante silencioso, e vou direto para a cozinha. Tudo está
exatamente como deixei. Passo a mão pelo imenso balcão de mármore
limpíssimo. Sinto meu coração pulsar forte. Olho para as panelas reluzentes
penduradas em seus devidos lugares, as louças limpas empilhadas e sinto que
chegou a hora de voltar.
Saio da cozinha e vou direto para o meu escritório. Dou a volta na mesa, e
sento-me. Ligo o computador para preparar o cardápio da próxima semana e,
pela primeira vez, me sinto verdadeiramente feliz.
Com o violão apoiado na perna, eu tento compor uma melodia, para uma nova
música.
Hoje não tenho plantão na clínica e nenhum paciente marcado, então resolvi
ficar em casa e tentar compor alguma coisa. Almocei uma lasanha congelada e
sem nenhuma vontade de sair, apesar da insistência do pessoal da banda. Eles
combinaram de almoçar no restaurante das meninas, mas eu preferi não ir.
Fiquei superfeliz quando soube que ela voltou a trabalhar. Meu primeiro
impulso foi ir até lá com a desculpa de almoçar ou jantar e fingir que não sabia
do seu retorno. Fiquei realmente tentado a surpreendê-la e matar um pouco da
saudade que sinto de vê-la. Mas isso não seria justo com ela, que impôs um
distanciamento silencioso entre nós dois. Na verdade, ela não falou
absolutamente nada. No dia que a mãe dela contou detalhes sobre o acidente, eu
passei a tarde inteira lá, esperando pacientemente que ela parasse de fingir que
dormia, mas isso não aconteceu. Então compreendi da forma mais dolorosa
possível, que ela não me queria por perto, e conforme já tinha prometido a ela
em outra ocasião, que sempre respeitaria sua vontade — mesmo que isso doesse
pra caralho, como é o caso. Mas me manter afastado não significa que desisti de
tê-la. Isso nunca. Eu apenas estou respeitando o tempo que ela precisa para se
reestruturar emocionalmente do grande trauma que sofreu.
Por mais que ninguém tenha falado sobre isso abertamente, eu sei que o
cafajeste do marido dela a obrigou a estar naquela estrada àquela hora da noite.
E para ser sincero, procuro não pensar muito no que deve ter acontecido, para ele
ter conseguido obrigar a Marina a dirigir até lá. Quando penso no tanto de
agressão e violência que ela deve ter sido submetida, fico com vontade de matá-
lo novamente.
Então, vou esperar ela se recuperar.
Acredito na história que estávamos construindo, e sei que, quando tudo isso
passar, conseguiremos nos entender. Não tenho pressa. Ela vale a pena toda a
espera do mundo. Mesmo assim, ainda dói muito sua rejeição. Eu envio
mensagens diárias, mas ela nunca retorna. Apenas visualiza imediatamente, o
que cria a esperança de que ela fica ansiosa esperando minhas mensagens. Só
esse simples e quase insignificante sinal, já me acalma diariamente.
Tento me concentrar na melodia que está rondando minha cabeça quando a
campainha toca. Com um suspiro, fico de pé para atender a porta e tenho certeza
absoluta de que o Tadeu estará do outro lado, pronto para me convencer a
acompanhá-lo ao restaurante. E só por ter tanta certeza, não verifiquei antes
quem era. Abro a porta de supetão dizendo:
— Desiste, cara, eu não vou...
Nada me preparou para encontrá-la parada do outro lado da porta, segurando a
bolsa como alguém que se agarra a um bote salva-vidas.
— Oi — ela me cumprimenta mordiscando o lábio inferior.
— Oi — murmuro em resposta, meio atordoado e feliz.
— Posso entrar?
— Claro, por favor, entra.
Ela entra e vejo a insegurança brilhando nos seus olhos tempestuosos.
— Não quero atrapalhar... — ela diz olhando atentamente tudo à sua volta.
— Você não atrapalha nunca — digo e enfiando as mãos no bolso do jeans
para me impedir de tocá-la. Ela está bem mais magra. Mas, apesar de ainda
enxergar o sofrimento por tudo que passou estampado em seu rosto, eu vejo
claramente que a Marina que conheço está submergindo.
— Senta. — Aponto para o sofá.
— Estava compondo? — ela pergunta indicando com a cabeça o violão.
— Tentando. — Sorrio. — Mas a concentração não está colaborando.
Ela assente com um pequeno sorriso.
— Quer beber alguma coisa? Um café? Chá? Água?
Ela nega e eu me sento ao sofá com o cuidado de manter um distanciamento.
Não quero que ela se sinta pressionada.
— Vim pedir desculpas...
— Não...
Ela não me deixa continuar. Olhando fixamente, diz:
— Por favor, me deixa falar... eu quero muito conversar com você, Ricardo.
Assinto. Ela toma fôlego.
— Preciso contar para alguém o que aconteceu. Sei que o que vou fazer é uma
crueldade com você, mas ao mesmo tempo... — fecha os olhos com força e
continua: — sei que você é a única pessoa que pode entender e...
— Marina?
Ela me olha.
— Sou seu amigo. Antes de qualquer coisa, sou seu amigo. Estou aqui. Fale.
Você pode confiar em mim.
Então ela ergue para mim aqueles olhos sofridos, e começa a contar tudo que
aconteceu.
Não a interrompo.
Em parte, porque, caralho, estou com tanta... tanta raiva daquele crápula... e
em parte porque eu sei que ela precisa pôr pra fora... Então eu a deixo falar, e
escondo dela a vontade insana que estou sentindo de tomá-la nos braços e fazê-la
esquecer tudo pelo que passou...
Porque, neste momento, ela precisa muito mais de mim como amigo do que
qualquer outra coisa. E eu serei para ela o que ela quiser que eu seja.
Já faz algum tempo que ela terminou seu relato de horror. Ela não chorou
durante toda a narrativa, o que me surpreendeu. Estou na cozinha preparando um
café para nós dois, e daqui posso observá-la sentada no sofá, com os olhos
fechados. Observando-a de soslaio, eu sinto crescer dentro de mim um orgulho
gigantesco da mulher que ela se tornou. Só alguém muito forte conseguiria
sobreviver sã a acontecimentos tão terríveis.
Seguro as xícaras com o líquido fumegante, e vou até onde ela está, ainda de
olhos fechados. Ela é espetacular. E não é apenas sua beleza física impactante
que me atordoa. É sua força interior que me atrai como nenhum outro atributo
físico poderia me atrair.
Sentindo o cheiro do café, ela abre os olhos e se senta mais ereta. Estende as
mãos e segura a xícara com ambas.
Sento-me ao seu lado e, por alguns segundos, ficamos em completo silêncio
degustando nosso café. Apesar de tudo, o silêncio entre nós não é incômodo ou
opressor. É um silêncio de pausa. De descanso. Um silêncio respeitoso por tudo
que foi dito e ouvido.
Algum tempo depois, ela diz com a voz muito baixa:
— Não tenho coragem de contar aos meus filhos, Ricardo... Não consigo
contar que eu fui a responsável pelo acidente de forma proposital... Apesar de
tudo, isso os destruiria...
Penso no que responder. O meu lado profissional grita para que eu a incentive
a falar. A expurgar de uma vez por todas essas lembranças que estão
atormentando seus pensamentos e causando dor. No entanto, com ela eu não sou
apenas o Ricardo que é terapeuta. Eu sou o homem que a ama e que sabe que
essa mulher já pagou sua cota de sofrimento. Inspiro fundo e falo:
— Você consegue se perdoar?
Ela me olha e vejo a surpresa no seu olhar. Então, ela inspira fundo e
responde:
— Eu não me arrependo. Se voltasse para aquele momento, e só tivesse esta
opção, eu faria tudo novamente... portanto, sim... eu consigo sim me perdoar.
— Então não precisa falar sobre isso com ninguém mais. Não precisa causar
mais dor aos seus filhos. Nada do que você disser, vai fazer com que ele viva
novamente, então se consegue superar o que aconteceu, vire essa página e tente
deletar da sua memória o que aconteceu. Tudo o que aconteceu. Você é uma
mulher incrível. Ama seus filhos. Ama seu trabalho, seus amigos e só exala
bondade. Não se martirize para fazer sempre o que esperam que você faça. Faça
o que deseja realmente fazer. Viva sua vida à sua maneira. Seus segredos são
seus. E não cabe a ninguém julgá-la. Só você pode se perdoar e se você, assim
como eu, acredita que não tem do que se arrepender, então apenas retome sua
vida exatamente do ponto onde ela parou. Arranque este capítulo da sua história,
e jogue no fogo do esquecimento. Nunca falarei sobre isso com ninguém. Você
tem a minha palavra.
Ela continua me olhando, com os olhos marejados.
— Eu te admiro agora mais do que antes. Você é uma mulher incrível. Nunca
se esqueça disso.
Ela assente e, pela primeira vez, um pequeno sorriso surge nos seus lábios.
— E só para complementar — continuo agora com um pequeno sorriso. — Eu
quero que saiba que amo você. Amo você mais do que antes. E estou com muita,
muita saudade de você, Marina.
Então, ela se aproxima de mim, estende a mão e toca a lateral do meu rosto
dizendo:
— E eu amo você. Muito mesmo.
Meu coração está batendo acelerado. Estou feliz demais. Estou tão
absurdamente feliz em tê-la aqui me tocando e dizendo que me ama, que parece
que vou explodir.
Então eu a beijo e tudo volta ao seu devido lugar. O meu coração e o dela
juntos, batendo acelerado por algo mais forte que a paixão inconsequente. O que
nos une e nos faz ser consumidos por uma gigantesca sensação de completude é
a certeza de que, finalmente, minha alma e a dela estão cantando em uníssono. E
isso sim, é o que os poetas de todos os tempos chamam de amor.
Um ano depois...
— Bora, mãe!
— Deixa de ser chata, pentelha! Deixa a mãe em paz! Hoje é o grande dia
dela e ela tem o direito de chegar atrasada!
— Você é idiota mesmo! É justamente por ser o dia dela, que ela não pode
chegar atrasada, seu mané!
Eles continuam se xingando e eu desço a escadas da nossa casa com um
sorriso nos lábios. Eu amo até mesma as brigas deles dois, penso com um
sorriso. Sentirei muita falta disso quando eles tomarem seus caminhos na vida.
— Crianças, por favor, hoje não!
Helena revira os olhos com indignação e diz:
— Mãe, nós não somos crianças!
Me aproximo dela e aperto a ponta do seu nariz maquiado. Ela está lindíssima.
Não parece de forma alguma como uma menina de quatorze anos. O Júnior, que
não para de crescer, se aproxima e eu vejo como o meu filho está se tornando um
homem. Rápido demais para meu gosto. Ele está lindo também. Seu jeans escuro
contrasta com a camisa social preta, com as mangas dobradas até os cotovelos.
— Vocês estão lindos — falo emocionada. — E eu sou a mulher mais feliz
desse mundo por tê-los como filhos e como meus amigos. Os melhores que uma
garota como eu poderia ter.
Helena sorri e eu vejo a emoção brilhando nos seus olhos expressivos, mas ela
diz:
— Garota? Mãe, pelo amor de Deus, né?
— E ela é o quê, pentelha? Um garoto? — emenda o Júnior.
Ela revira os olhos para ele e diz:
— Uma mulher, seu idiota! A mais linda de todas, mas uma mulher! Não uma
estúpida garota!
Sorrio para ela e ele me acompanha no sorriso.
— Vamos? — chamo pegando minha bolsa.
— Está nervosa, mãe?
Olho para a minha pequena guerreira, e penso na resposta adequada para a sua
pergunta.
— Orgulhosa, filha. Estou muito orgulhosa.
— E tem todos os motivos do mundo para isso! — diz o Júnior emocionado.
Ele assente e ambos concordam em algo pela primeira vez em muito, muito
tempo.
O carro que vem nos buscar, buzina e saímos os três de braços dados para uma
noite linda. É como se o universo conspirasse para que tudo fosse perfeito.
Algum tempo depois, o carro estaciona no casarão antigo que foi reformado e
que agora brilha reluzente coberto por milhares de luzes minúsculas. O Natal se
aproxima e todo o casarão está devidamente ornamentado para a festa mais
esperada do ano.
Meus filhos descem do carro, e eu os acompanho. Tento me equilibrar nos
saltos mais altos do que tenho costume de usar. Aliso o vestido azul-turquesa que
comprei especialmente para a ocasião e não contenho um suspiro emocionado.
Caminhamos os três até a entrada, então, ambos me beijam no rosto e se
apressam para os seus lugares.
Com o coração acelerado como nunca esteve, caminho lentamente para a
entrada do grande salão. A cerimonialista que a Bruna contratou me olha com
admiração brilhando nos olhos, e por um momento fico constrangida por ser o
centro das atenções.
Então, ela pergunta se estou preparada, e eu assinto.
Ela abre as portas do grande salão repleto de pessoas que são importantes na
minha vida e, lentamente, caminho pelo tapete vermelho que foi colocado ali em
minha homenagem. Estou tremendo, mas meus passos são firmes quando sigo
em direção ao pequeno palco.
Subo as escadas laterais com a ajuda de outro cerimonialista, que me entrega
um microfone.
Então, com as mãos trêmulas e o coração transbordando de felicidade, eu
encaro as pessoas que me olham com expectativa e muito, muito orgulho.
— Boa noite a todos — saúdo, e um coro me responde. — Em primeiro lugar,
gostaria de agradecer sinceramente a presença de todos vocês.
Então meus olhos vagam para a primeira mesa onde estão sentados os meus
filhos, ao lado do Ricardo e do filho dele. A Bruna e o Fernando, o Tadeu e o
Marcos acompanhados por suas lindas esposas e, para minha surpresa, meus
pais.
Sinto minha garganta travar. Inspiro fundo e continuo:
— Todos aqui devem saber que, durante muitos anos, sofri alguns tipos de
violência. Físicas e psicológicas.
Vejo Helena baixar os olhos, e minha mãe também. Não me intimido.
Continuo firme:
— Durante anos, acreditei que o amor pelo outro era a coisa mais importante
que alguém poderia ter... e em nome desse amor, tudo era permitido... — Faço
uma pausa. — Aprendi da forma mais dolorosa que não é.
O silêncio é total. Então continuo:
— Aprendi que precisamos falar. Que não devemos aceitar que nada nem
ninguém nos trate com violência. Que nos desrespeite... — Tomo fôlego e
continuo: — Aprendi que não existe amor onde existe abuso. Que precisamos
denunciar, falar, pedir ajuda... uma duas... mil vezes até sermos ouvidas. Nós só
não podemos nos calar e aceitar. Não cometam o mesmo erro que cometi. Não
subestime seu algoz. Não acredite na sua mudança e na sua transformação.
Quem comete abuso, geralmente não sente culpa por fazê-lo, então, mesmo que
as coisas estejam sob controle, a qualquer sinal de ameaça, de intimidação,
denuncie novamente. Só não se cale. Isso nunca. Nunca é tarde para dar um
basta!
Um silêncio profundo toma conta de todo o ambiente. Ninguém esperava que
abrisse a solenidade, abrindo meu coração e expondo minha intimidade. Mas eu
sei o quanto isso é necessário. O quanto é importante as pessoas saberem que
não estão sós nas suas dores e angústias.
— Eu dei o meu basta! Dei um basta em tudo aquilo que eu conhecia como
vida... não foi fácil... nunca é... mas é necessário, vital. Procurei ajuda e
recomecei. Reencontrei-me.
Olho para a minha mãe, que enxuga uma lágrima.
— E foi aí que conheci a ONG que deu origem a tudo isso... — falo
apontando para o grande casarão, que agora é uma Fundação. A Fundação
Sakura. Em homenagem a flor de cerejeira que representa o renascimento, a
renovação. — Como sabem, fiquei viúva há mais ou menos um ano e o meu ex-
marido tinha feito um seguro de vida quando nos casamos em meu nome...
Um murmúrio baixo percorre o ambiente.
— Então, quando recebi o dinheiro deste seguro, pensei em usá-lo para ajudar
mulheres que durante dias, meses ou anos sofrem ameaças dos seus maridos,
companheiros ou familiares... mulheres que são submetidas a algum tipo de
violência física ou psicológica e que, no decorrer do processo, acreditam que são
menos do que realmente são. Mulheres como eu fui um dia.
Olho para a mesa grande onde estão as pessoas mais importantes da minha
vida. Meus filhos. Meu namorado. Meus pais e meus melhores amigos. Tomo
fôlego e continuo:
— Essas mulheres terão nesta fundação, abrigo, qualificação, oportunidade de
emprego, segurança e, acima de tudo, amor. Vamos acolhê-las e ensiná-las que o
amor mais importante e fundamental para a vida de qualquer um de nós é o amor
por nós mesmos.
Ouço um monte de gritos e assobios emocionados. Eu sorrio, e sinto uma
lágrima de felicidade escorrer pelo meu rosto.
— Então, eu declaro oficialmente inaugurado a nossa Fundação Sakura!
Vamos todos dar as mãos e fazer deste lugar um abrigo feliz para que as almas,
que foram por anos silenciadas, cantem de alegria e paz. Muito obrigada a todos!
Então, todos ficam de pé e me aplaudem efusivamente. O Ricardo sobe as
escadas para me ajudar a descer e me beija ternamente. Mais assobios e
aplausos. Meus filhos me abraçam e minha irmã chora copiosamente. Todos me
cumprimentam e minha mãe se aproxima com um raro sorriso no rosto e diz:
— Estou muito orgulhosa de você, Marina.
Assinto muito emocionada, e vou para a mesa onde o jantar servido pelas
primeiras cinquenta mulheres acolhidas é servido com elegância. A Fundação
abrigará um curso de culinária de padrão internacional, além de formar todos os
tipos de profissionais especialistas em cerimoniais. Um mercado que agora eu
domino e entendo.
Todos começam a comer a comida deliciosa, e eu observo com o peito
transbordando de orgulho e gratidão pela oportunidade que tive de retomar
minha vida e com isso, ajudar dezenas de pessoas a retomarem as suas.
Pego o talher elegante e começo a saborear junto com a comida uma iguaria
que não tem preço: o orgulho de ser quem sou.
FIM
Para denunciar:
Quando a mulher sofre algum tipo de violência pode ligar para a Central de
Atendimento à Mulher (ligue 180), ou pelo aplicativo Clique 180. A denúncia é
anônima e gratuita, disponível 24 horas, em todo o país. Por meio do telefone, a
mulher receberá apoio e orientações sobre os próximos passos para resolver o
problema. A denúncia é distribuída para uma entidade local, como a Delegacias
de Defesa da Mulher (DDM) ou Delegacia Especial de Atendimento à Mulher
(DEAM), conforme o Estado.
Se você sofre, ou conhece alguém que é vítima de violência doméstica, não se
cale. Denuncie! Sua denúncia pode salvar vidas.
Fontes:
https://exame.abril.com.br/brasil/os-numeros-da-violencia-contra-mulheres-
no-brasil/
https://www.mulheresbemresolvidas.com.br/violencia-contra-a-mulher/
Essa paraibana é pedagoga e historiadora por profissão, mas escritora por
paixão. Casada com seu melhor amigo, mãe de três filhos e leitora compulsiva.
Chocólatra assumida, ama viajar, fotografar e passar seu tempo livre na
companhia da sua família e seus cachorros. Acredita que as palavras têm o dom
de transformar vidas, e só gosta de ler livros com finais felizes.
Autora da Série Destinos, de Sereia Urbana e Game Over, seu quinto
romance.
SITE:
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FACEBOOK:
www.facebook.com/sheila.guedes.7
INSTAGRAM:
@sheilaguedes7
Table of Contents
Folha de Rosto
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 2
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Epílogo
Agradecimentos
Nota da autora
Biografia
Obras