A Memoria Evanescente
A Memoria Evanescente
A Memoria Evanescente
A memória evanescente
Leandro Karnal
Flavia Galli Tatsch
10
A memória evanescente
11
O historiador e suas fontes
12
A memória evanescente
E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em
qualquer outra coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de
mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê,
mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que d’
Ela receberei muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza.7
13
O historiador e suas fontes
Um conceito em expansão
Apenas no século xix triunfou a ideia do Documento como “prova histó-
rica”, superando o termo mais usado até então: Monumento.10
Se a importância do documento com sentido de fonte para o historiador
foi amplamente aceita, a definição do que vem a ser um documento histórico foi
alvo de debates maiores. Um historiador da Escola Metódica do século xix teria
certeza de que o documento é, em essência, o texto escrito: a carta, o tratado
de paz, o testamento etc. Todo o debate estava em torno da autenticidade do
texto. Uma vez estabelecida essa autenticidade, o texto escrito brilhava aos
olhos do analista como a fonte por excelência.
Podemos tomar como exemplo um dos manuais mais difundidos do fim
do século xix: Introdução aos estudos históricos, de Langlois/Seignobos. Logo no
primeiro capítulo lemos: “A história se faz com documentos. Documentos são
os traços que deixaram os pensamentos e os atos dos homens do passado.”11
Para os autores da Escola Metódica, a questão central da História é a
heurística documental. A busca, seleção, crítica e classificação documental
constituem-se no eixo em torno do qual gira a atividade do historiador.12
Desde o século xix, o conceito e a abrangência do termo documento
histórico foram sendo ampliados. A Escola dos Annales, no século xx, colabo-
rou ainda mais para o alargamento da noção de fonte. Ao determinar que a
busca do historiador seria guiada por tudo o que fosse humano, Marc Bloch
demonstra que, ao mesmo tempo em que se amplia o campo do historiador,
amplia-se, necessariamente, a tipologia da sua fonte.13
A ascensão da História Quantitativa, da História do Cotidiano, da História
da Sexualidade, da História de Gênero e de tantos outros novos campos ao
longo do século xx trouxe, inexoravelmente, um esgarçamento quase abso-
luto do limite do termo “documento histórico”. A História Serial, por exem-
plo, redefine e inverte o método dos historiadores com documentos. “Preso
numa série, o documento deixa de existir sozinho, para só adquirir sentido
mediante relação com a série que o precede ou segue.”14 Desaparece, assim, o
documento único, para surgir a série documental, como certidões de batismo
ou testamentos. Sem lotes expressivos que mostrem oscilações importantes
ou repetições reveladoras, uma única certidão de batismo do século xvi é um
vazio desesperador.
14
A memória evanescente
15
O historiador e suas fontes
16
A memória evanescente
17
O historiador e suas fontes
indiciários são mais familiares ao historiador experiente do que uma clara infor
mação documental adaptada de forma harmônica a sua hipótese de trabalho.
18
A memória evanescente
19
O historiador e suas fontes
20
A memória evanescente
21
O historiador e suas fontes
22
A memória evanescente
23
O historiador e suas fontes
Por vezes, uma massa documental pode ser sufocada por postura ideológica.
O imperador tinha 10 anos quando estourou, na Bahia, o Movimento dos Malês.
O caso foi intensamente retratado na época, mas seu conteúdo negro e revolucio
nário foi sendo escamoteado nos livros de História brancos e conservadores.
Lendo o texto de João José Reis, de 1986,40 fica fácil supor porque os livros oficiais
preferiram retratar tanto outro movimento de 1835 – a Guerra dos Farrapos no
Rio Grande do Sul – e tentaram tanto ignorar os negros muçulmanos da Bahia.
Combinamos, nos dois últimos exemplos, o aleatório e o ideológico
consciente. A opção da condessa de Barral de contrariar a decisão de quei-
mar as cartas possibilitou conhecer bastante sobre o imperador; a decisão de
não tratar do Levante dos Malês por tantos anos revelou bastante do caráter
conservador e branco da historiografia oficial. A existência de um documento
é, em geral, uma combinação delicada da fortuna e da consciência. Nenhum
historiador decidiu que Vesúvio soterraria três cidades romanas no século
i e.c., mas muitos historiadores e arqueólogos decidiram ser importante
escavá-las e analisar os documentos encontrados. Nenhum historiador ou
arqueólogo tentou despistar ladrões de tumbas para que não encontrassem o
rico sarcófago de Tutancamon, mas a descoberta de Howard Carter e lorde de
Carnarvon foi fruto de uma busca deliberada e que trouxe muitas novidades
para os conhecimentos sobre o Egito. Todo documento que chega às mãos de
um analista é um duplo milagre.
Em síntese, documento histórico é qualquer fonte sobre o passado,
conservado por acidente ou deliberadamente, analisado a partir do presente e
estabelecendo diálogos entre a subjetividade atual e a subjetividade pretérita.
Levando-se em conta tudo o que foi dito antes, seria importante ressaltar
que, atrás de cada documento conservado, há milhares destruídos. Podemos
supor que o grande limite da função do historiador seja o limite do documento.
Dócil ao arbítrio quase absoluto, o documento é, igualmente, senhor de quem
o quer submeter. Na sobreposição de centenas de subjetividades e acasos, ele
encerra a chave de acesso ao conhecimento do passado. Reafirmando seu
senhorio dialético, criador/criatura, o documento, em si, torna-se uma per-
sonagem histórica, com a beleza da contradição e da imprevisibilidade, com
as marcas do humano.
[Uma versão anterior deste texto foi publicada no catálogo da exposição A escrita da memória organi-
zado por Leandro Karnal e por José Alves de Freitas para o Instituto Cultural Banco Santos em 2004.]
24
A memória evanescente
Notas
1
Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial: 1500-1800, Rio de Janeiro/Brasília, Civilização
Brasileira/inl, 1976. O caso é narrado por José Honório Rodrigues na Introdução aos Capítulos de
História Colonial, a partir de uma carta de Capistrano ao Barão de Studart. O objetivo do curioso
gesto foi expresso na frase: “[...] quando quiserem estudar História do Brasil hão de recorrer às
minhas obras.”
2
Não queremos entrar no debate de escolas filosóficas que trazem à arena a questão da existência
depender da percepção ou do choque entre Platão/Aristóteles ou Hume/Descartes. Apenas vamos
reafirmar: para um historiador saber sobre uma civilização, ele necessita de documentos.
3
Observável na maioria dos historiadores dos séculos xix e xx: Fustel de Coulanges, Saraman,
Langlois/Seignobos, Lefebvre e outros. A ideia foi sintetizada por Coulanges: “pas de documents,
pas d’Histoire” (“sem documentos, sem História”).
4
Ver a Carta de Pero Vaz de Caminha, em Catálogo da Mostra de Redescobrimento, São Paulo, Associação
Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000. Em especial, o texto de Paulo Roberto Pereira: “A Carta de
Caminha e a Utopia do Brasil”, pp. 36-49.
5
Megaexposição comemorativa dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, realizada em São Paulo,
no ano 2000.
6
Carta de Pero Vaz de Caminha, Catálogo da Mostra de Redescobrimento, São Paulo, Associação Brasil
500 anos Artes Visuais, 2000, p. 86.
7
ldem.
8
Um documento pode ser lentamente esquecido numa memória oficial ou familiar (como uma carta de
amor zelosamente guardada pela avó, guardada com certa indiferença pela filha e, enfim, queimada
pela neta) ou pode ser vítima de um ato deliberado e violento de eliminação de memória, como as
preciosas Torás que os nazistas usaram para forrar sapatos durante o Holocausto.
9
Georges Duby, O domingo de Bouvines, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1993.
10
Jacques Le Goff, História e memória, 4. ed., Campinas, Unicamp, 1996, p. 536 ss. O termo documento
(documentum), segundo o mesmo verbete, deriva de docere, ensinar, e transformou-se primeiro para
o sentido jurídico de “prova” e, posteriormente, de texto histórico.
11
Ch. V. Langlois; Ch. Seignobos, Introdução aos estudos históricos, São Paulo, Renascença, 1946, p. 15.
O original francês começou a ser redigido em 1896 e foi publicado em 1898. O livro i, que trata de
documentos, foi escrito por Langlois. Para observar que a essência dessa ideia permanece atual,
basta consultar obras que buscam a precisão de termos da pesquisa histórica. O Vocabulário, de
Gustavo de Freitas, define documento como um escrito servindo de prova de algum ato ou fato;
em sentido lato, os vestígios que ficaram do passado: monumentos, obras de arte, utensílios etc. e,
principalmente, textos escritos ou impressos. Gustavo de Freitas, Vocabulário de História, Lisboa,
Plátano, s.d., p. 101. O Dicionário das ciências históricas conclui: “Escreve-se a história com docu
mentos, afirma com razão o positivismo triunfante”. André Burguière (org.), Dicionário de ciências
históricas, Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 243. A conceituação mais ampla pode ser encontrada no
Dicionário breve de História, que define documento como “todo e qualquer tipo de vestígio que
nos chegou do passado e que testemunha a presença e actividade dos homens de outras épocas,
permitindo ao historiador reconstituir a vida desses períodos”. António Domingues de Almeida (et
al.), Dicionário breve de História, Lisboa, Presença, 1996, p. 72. Assim, cem anos depois de Langlois/
Seignobos, continua a ênfase sobre o documento como base do fazer histórico, ainda que se amplie
seu conceito.
25
O historiador e suas fontes
12
“É preciso escolher, deliberadamente e com pleno conhecimento de causa, certos assuntos históricos
de preferência a outros, tendo sempre em conta os seguintes fatores: a existência ou não de repertório
de documentos ou repertórios bibliográficos; o fato de gostarmos ou não do trabalho de gabinete ou
do trabalho de exploração nos depósitos; de podermos ou não frequentar com comodidade certos
depósitos.” Ch. V. Langlois; Ch. Seignobos, op. cit., p. 30.
13
“Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem, os artefatos ou as máquinas, por trás dos
escritos aparentemente mais insípidos e as instituições mais desligadas daqueles que as criaram,
são os homens que a História quer capturar. Quem não conseguir isso será apenas, no máximo,
um serviçal da erudição. Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne
humana, sabe que ali está sua caça.” Marc Bloch, Apologia da História ou o ofício de historiador, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2001, p. 54. Como todos sabem, a obra referida foi deixada inacabada por Bloch,
fuzilado pelos nazistas a 16 de junho de 1944. O próprio Bloch foi um exemplo vivo da utilização de
novas fontes documentais, como a paisagem rural francesa que ele demonstrou ser muito antiga e
o registro de milagres reais como fonte para conhecer as concepções históricas sobre poder político.
14
André Burguière (org.), op. cit., p. 244.
15
Dominique G. Laporte, Histoire de la Merde. Paris, Christian Bourgeois Editeur, 1978.
16
Simon R. Charsley, Wedding Cakes and Cultural History, London, Routledge Press, 1992.
17
O autor observa que, lentamente, a partir do século xix, a noiva passa a cortar o bolo (dispensando
empregados da tarefa) e ela distribui aos familiares, mostrando, com isso, um aumento do
papel da mulher como participante ativa no processo do casamento. Simon R. Charsley, op. cit.,
pp. 139-40.
18
Ver, por exemplo, a crítica de François Dosse, A História em migalhas: dos Annales à Nova História,
Bauru, Edusc, 2003. Em outro texto, Ronaldo Vainfas destaca que existiriam três variantes de
História das Mentalidades. A primeira seria herdeira direta de Febvre, a segunda seria a História
das Mentalidades com perspectiva marxista e a terceira, para qual o autor reserva a crítica mais
feroz, seria a meramente narrativa, preocupada com microtemas como o “imaginário do onanismo”.
Ronaldo Vainfas, “História das Mentalidades e História Cultural”, em Ciro Flammarion Cardoso e
Ronaldo Vainfas (orgs.), Domínios da História, 4. ed., Rio de Janeiro, Campus, 1997, p. 144.
19
Peter Burke (org.), A escrita da História: novas perspectivas, São Paulo, Unesp, 1992, p. 11. “[...] a Nova
História começou a se interessar por virtualmente toda atividade humana.”
20
Veja-se, por exemplo, o texto de Robert W. Slenes, Na senzala, uma flor, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.
21
Mas toda comparação é perigosa. Aqui se corre o risco de associar a Escola Positivista com a referência
neoclássica das artes, como se o positivismo fosse para a História o que Ingres é para a pintura e que
o marxismo representaria o que Courbet representou para as artes plásticas, ou que a Nova História
seria um novo “pontilhismo” ao enfatizar a forma a partir de pontos agrupados. Todas essas ilações
seriam muito exóticas.
22
Epopeia mesopotâmica descoberta no século xix.
23
Poema maia que narra a criação do mundo.
24
Jacques Le Goff, Pour un autre Moyen Âge, Paris, Gallimard, 1977, p. 121. A perda de instrumentos de
trabalho é equiparada, na Regra de São Bento, a um sacrilégio similar ao extravio de objetos sacros.
Há narrativas sobre intervenções taumatúrgicas em função de objetos de artesanato e uma atuação
sagrada em função da perda de um instrumento de ferro no fundo de um poço. Assim, temos claro
que o olhar do historiador para o documento pode variar em função das perguntas e necessidades
do historiador naquele momento. Uma mesma fonte pode dar muitas respostas.
26
A memória evanescente
25
Essa seria, segundo A. H M. Jones, uma “ignominieuse vérité” (uma “verdade vergonhosa ou
constrangedora”). A expressão é citada por Moses I. Finley num artigo da Revista Annales. Moses
I. Finley, “Le Document et I’Histoire Economique de l’Antiquité”, em Annales Économies Sociétés
Civilisations, 37e année n. 5/6 septembre/décembre 1982, pp. 697-711, Paris, Armand Collin, 1982.
26
Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
27
O autor Carlo Ginzburg desenvolveu a ideia de que a escrita e a pesquisa históricas estão
profundamente associadas a certas intuições que se aproximam das do médico, por exemplo. Essa
ideia está desenvolvida em Carlo Ginzburg, Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e História, São Paulo,
Companhia das Letras, 1989. O texto em particular é o capitulo: “Sinais - Raízes de um paradigma
indiciário” (pp. 143-79), no qual os métodos de Morelli, de Freud e da personagem Sherlock Holmes
são desenvolvidos em forma comparativa com o método do historiador.
28
Trabalharemos, neste item, com a ideia de autenticidade de documentos escritos tradicionais, mas
poderíamos pensar, igualmente, que a pedra aguenta qualquer inscrição, que a tela sofre qualquer
pintura e a fotografia presta-se a quaisquer manipulações anteriores e posteriores. Todo tipo de
documento histórico é passível de falsificação.
29
cf. Jacques Le Goff, História e memória, cit., 1966, p. 543.
30
André Burguière (org.), op. cit.
31
Grupo de estudiosos que procurava construir a narrativa sobre a vida de santos em bases menos
fantasiosas, especialmente Daniel Papenbrochen, que atacou famosos documentos da abadia de
Saint-Denis.
32
Especialmente Armand Jean Bouthiliers, que acreditava na restauração do espírito trapista (ordem
particularmente rigorosa) e na recusa dos estudos que afastavam do sagrado e buscavam a glória
da erudição terrena.
33
“O De Re Diplomatica provava que, numa história impossível de reduzir-se ao uso exclusivo das fontes
narrativas, a verdade pode ser distinguida do erro, se a apoiarmos em regras objetivas e desde que
se utilize razoavelmente a dúvida metódica. [...] O ano de 1681, portanto, não corresponde apenas à
fundação de uma de nossas ‘ciências auxiliares’, mas representa, também, este ‘momento decisivo’
na história do método critico, como já o reconheceu Marc Bloch.” Jean Glénisson, Iniciação aos estudos
históricos, Rio de Janeiro/São Paulo, Difel, 1977, pp. 92-3.
34
Entendida aqui como o estudo sobre a elaboração e forma dos documentos legais e administrativos.
35
A seguinte opinião do Manual de Langlois/Seignobos não poderia ser um elogio a Mabillon? “A
opinião brutal dos que menosprezam as análises minuciosas da critica externa e delas escarnecem,
não merece, sequer, refutação. Só há um argumento para firmar a legitimidade dos exaustivos
trabalhos da erudição e torná-los dignos de respeito, mas este, sendo um só, é decisivo: eles são
indispensáveis.” Ch. V. Langlois; Ch. Seignobos, op. cit., p. 80.
36
Veja-se um exemplo curioso: um obscuro assinante da Declaração de Independência dos eua teve
seu simples autógrafo leiloado, em 1929, por US$ 51 mil, que, atualizado, estaria próximo da casa
de um milhão de dólares. Caso narrado por Pedro Corrêa do Lago, Documentos autógrafos brasileiros
na Coleção Pedra Corrêa do Lago, Rio de Janeiro, Sextante Artes, 1997, p. 13.
37
Natalie Zemon Davis, O retorno de Martin Guerre, São Paulo, Paz e Terra, 1987.
38
Keith Jenkins, A História repensada, São Paulo, Contexto, 2001, p. 79.
39
A condessa de Barral foi amante de D. Pedro ii. A longa correspondência deles conteve uma promessa
de destruição das cartas, o que ele teria feito e ela nunca fez. Assim, conhecemos as cartas de
D. Pedro a ela e não sabemos das dela para ele.
40
O livro foi republicado com acréscimos: João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante
dos Malês em 1835, São Paulo, Companhia das Letras, 2003.
27