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Bauman Ambivalencia e Ciencia

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Ciências Sociais Unisinos

ISSN: 1519-7050
periodicos@unisinos.br
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Brasil

Totaro, Paolo
A ambivalência da ciência em Zygmunt Bauman
Ciências Sociais Unisinos, vol. 42, núm. 3, setembro-dezembro, 2006, pp. 163-169
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
São Leopoldo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=93842302

Como citar este artigo


Número completo
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Ciências Sociais Unisinos
42(3):163-169, setembro/dezembro 2006
@ 2006 by Unisinos

A ambivalência da ciência em Zygmunt Bauman


The ambivalence of science in Zygmunt Bauman

Paolo Totaro1
paolototaro@libero.it

Resumo
Com este trabalho se pretende destacar a presença do fenômeno da ambivalência no
conceito de ciência apresentado por Bauman. Por isso, procede-se a uma exposição do
papel da ciência na modernização e de seu fracasso como instrumento para derrotar a
ambivalência. A exposição é acompanhada por um comentário final onde se salienta o
valor das teses de Bauman de uma perspectiva mais epistemológica que aquela,
sabidamente sociológica, assumida pelo autor.

Palavras-chave: Bauman, ambivalência, ciência moderna, crítica pós-moderna.

Abstract
This paper intends to emphasize the presence of the phenomenon of ambivalence in the
concept of science as presented by Bauman. Therefore, it discusses the role of science in
modernization and its failure as a tool designed to overcome ambivalence. The discussion
is followed by a final comment that highlights the value of Bauman’s theses from a
predominantly epistemological perspective rather than the sociological perspective
notoriously adopted by Bauman himself.

Key words: Bauman, ambivalence, modern science, post-modern critique.

Introdução

O ato de classificar gera ambivalência. Esse fenômeno, que representa o


desafio mais poderoso para a ciência, pode ser ilustrado através de um simples
exemplo. Tomemos o caso em que, para classificar seus pontos, dividimos uma
página branca em duas partes – que chamamos de A e B – por meio de uma linha
traçada com um lápis. O próprio ato de dividir a página para classificar os pontos
1
engendra uma área de ambivalência: os pontos que pertencem à linha do lápis são Mestre em Ciências Sociais Aplicadas,
UNISINOS, RS, Brasil. Professor de
classificáveis como pontos do subconjunto A ou do subconjunto B? Aparentemen- Matemática Aplicada, Ministero
te, um problema desse tipo pode ser solucionado aumentando o nível de abstração, Istruzione, Itália.
164 A AMBIVALÊNCIA DA CIÊNCIA EM ZYGMUNT BAUMAN

falando de superfícies e de linhas divisórias ideais que podem conseqüentes possibilidades de transformá-lo pela tecnologia e
escapar dos problemas acarretados pela corporeidade; com efei- pela ação legislativa, olhando rumo ao ideal de um homem livre
to, no mundo abstrato, para dividir uma superfície não é neces- da incerteza e da escassez de meios:
sário traçar linhas. Porém, a abstração se revela uma solução
ilusória. De fato, em última análise, a dificuldade reside em um A ciência moderna nasceu da esmagadora ambição de con-
conceito que vai acompanhar sempre o esforço de classificação, quistar a Natureza e subordiná-la às necessidades huma-
qualquer que seja o nível de abstração: o conceito de conjunto. nas. A louvada curiosidade científica que teria levado os
cientistas “aonde nenhum homem ousou ir ainda” nunca
Mas, como demonstra a própria história da fundamentação da
foi isenta da estimulante visão de controle e administração
teoria dos conjuntos e em particular a famosa antinomia de de fazer as coisas melhor do que são (isto é, mais flexíveis,
Russell, o conceito de conjunto não é definível; qualquer tenta- obedientes, desejosas de servir). Com efeito, Natureza aca-
tiva de fazê-lo engendra contradição (cf. Mangione, 1976, p. bou por significar algo que deve ser subordinado à vontade
e razão humanas (Bauman, 1999, p. 48).
417-419).
Bauman usa a ambivalência, essa irredutível área obscu-
ra indissoluvelmente ligada ao pensamento racional, como a Assim como havia uma engenharia que queria submeter
chave de volta para desenvolver sua teoria da civilização mo- as forças da natureza, existia também uma engenharia social
derna. Ele interpreta a idade da modernização, sua incessante que visava construir uma sociedade ideal. Para ambas o grande
tentativa de transformar o mundo natural em um mundo ordei- inimigo era a ambivalência. Se, com referência ao mundo físico,
ro, como uma idade na qual a sociedade ocidental foi escrava a ambivalência representava a incapacidade do homem de es-
da inexaurível dialética entre classificação e ambivalência, ca- gotar a natureza em uma classificação completa de seus fenô-
indo em uma dinâmica que acaba por se revelar perversa quan- menos que a tornasse totalmente determinável e previsível, com
do se pretende alcançar a primeira desconhecendo a segunda. referência à sociedade representava, antes de mais nada, a
A consciência dessa dialética e de sua inevitabilidade é, ao eliminação do estranho. O estranho é o elemento de indetermi-
contrário, para Bauman a característica marcante da cultura nação da classificação social, o elemento da imprevisibilidade.
social e científica pós-moderna. Na primeira seção do artigo, O elemento que pode colocar em crise a ordem social. Não é o
vamos percorrer, com Bauman, os elementos principais do dra- inimigo que melhor define a classificação dos amigos, não é o
ma do pensamento científico que levou a essa tomada de cons- outro Estado-Nação que se encontra além dos confins da Pátria
ciência no complexo da cultura social. Na segunda seção, va- que contribui à ordem dos Estados nacionais. É o sujeito que
mos considerar alguns elementos mais epistemológicos do que “está fisicamente próximo, mas permanece espiritualmente
aqueles sabidamente sociológicos escolhidos por Bauman para distante”. Como os excluídos e abandonados do mundo urba-
acompanhar o valor cultural desse processo. no. Ou como os que estão na comunidade nacional sem ser
nativos: membros do Estado sem ser membros da Nação, que
pertencem a uma Nação sem lugar, sem confins e sem Estado
Ciência e modernidade em Bauman (Bauman, 1999, p. 64-75).
O estranho é, de maneira mais geral, o sujeito que, de
Bauman encaixa a ciência em sua visão da modernida- qualquer forma, escapa da classificação, a recusa, não por von-
de: um projeto civilizador com a missão de derrotar a tade, mas por natureza; o sujeito que a sociedade não pode
ambivalência e a incerteza das condições naturais da vida hu- recuperar, assimilar rumo ao seu projeto de ordem perfeita e
mana. O grande esforço que a modernidade cumpriu para sub- solucionador das ânsias da humanidade (Bauman, 1999, p.
meter o mundo a uma ordem racional, criada pelo homem e, 44). A eugenia foi a ciência que melhor interpretou essas preo-
portanto, conhecida em seus princípios e em sua dinâmica, viu cupações modernas. A idéia do controle da raça, da cirurgia
a ciência como o referencial principal. Os filósofos modernos social se apoiava não em aberrações humanas extraordinárias
afirmaram a idéia de que é a razão que deve descobrir a ordem ou em fenômenos de loucura de massa. Ela cresceu e maturou
escondida por trás do aparente caos do mundo, só ela pode no coração cultural da modernidade. Ela era um objetivo legíti-
apontar os estáveis princípios universais nos quais se fundam o mo e compartilhado, que encontrava espaço nas mais altas ex-
ser e a existência, transcendendo o senso comum, constituído pressões da racionalidade moderna, na própria ciência. A idéia
de meras opiniões e crenças (Bauman, 1999, p. 29-35). Mas se representada pelo conceito de Estado jardineiro (p. 35-39), que
essa é a tarefa da razão, a ciência foi a forma, o método pelo qual deve extirpar a erva daninha e cuidar das plantas boas, não é
tal tarefa foi desenvolvida a respeito do mundo empírico. Tanto apenas uma metáfora usada pelos políticos, mas um objetivo
a natureza física quanto a natureza social foram objetos desse explicitamente declarado pela ciência. “O biólogo mundialmen-
esforço ordenador. Os resultados alcançados nesse sentido cons- te famoso Erwin Bauer”, seu douto colega Martin Stämmler,
tituíram a referência constante da ação administrativa da polí- Konrad Lorenz, “um dos mais eminentes e aclamados zoólogos
tica. O conhecimento do mundo físico nunca se desligou das de fama mundial e ganhador do prêmio Nobel de 1973”, fize-
PAOLO TOTARO
165

ram uso dessa metáfora para apontar os objetivos de suas disci- simultaneamente em vários países europeus; como em muitas
plinas. Nenhum deles a usou enquanto ideologicamente moti- outras áreas da atividade intelectual moderna, os acadêmicos
vados. Tratava-se apenas de uma maneira simples para ilustrar ingleses disputavam com seus colegas alemães o orgulho da pri-
um ideal científico. De fato, havia também cientistas “judeus oridade” (Bauman, 1999, p. 41). Os eugenistas de todo o mundo
entre os mais vociferantes pregadores acadêmicos da jardina- expressavam publicamente a vontade de tentar extirpar os tra-
gem” e das técnicas médicas na engenharia social: ços hereditários indesejados da mesma forma que os geneticistas
mendelianos haviam aprendido a extirpar a ferrugem do trigo.
Os cientistas citados eram guiados unicamente por uma
compreensão adequada e incontestada do papel e da missão
Conceitos como “gado magro e atrofiado” (cunhado por
da ciência – e por um sentimento de dever face à visão da
Wethams em 1911), “raça degenerada”, “sub-homens”, “ti-
boa sociedade, uma sociedade sadia, ordeira. Em especial,
pos de baixa categoria” e “biologicamente inaptos” tornaram-
eram guiados pela convicção nada idiossincrática e tipica-
se figuras centrais do debate culto, enquanto em 1909 o
mente moderna de que o caminho para essa sociedade pas-
tremendamente influente Karl Pearson soou o alarme que
sa pela domesticação final das forças naturais inerentemen-
abalou o público leitor e debatedor: “a sobrevivência dos inap-
te caóticas e pela execução sistemática, se necessário,
tos é uma característica marcante da vida urbana moderna”
impiedosa, de um plano racional cientificamente concebido
[...] Em anotação no seu diário em 16 de janeiro de 1903, a
(Bauman, 1999, p. 37-38).
gentil e humana Beatrice Webb observou que a reprodução
humana “é a mais importante de todas as questões, a repro-
dução do tipo certo de homem” (Bauman, 1999, p. 42).
Os genocídios do século XX, “os casos mais documenta-
dos de engenharia social global na história moderna (aqueles
presididos por Hitler e Stalin)”, não foram aberrações O mito iluminista da Razão, como suprema força humana
extemporâneas ou “explosões de barbarismo ainda não plena- capaz de esclarecer os fundamentos universais do ser e da
mente extintas pela nova ordem racional da civilização”, mas existência e de controlar seus fenômenos e sua dinâmica, está
foram “um produto legítimo do espírito moderno”. Seus ideais na base da engenharia social. A própria crítica socialista operou
não foram “utopias alheias ao espírito da modernidade”, mas no sentido de apontar os atrasos na realização da promessa dos
atuações coerentes, até suas últimas conseqüências, com os ideais iluministas. O programa socialista era uma versão extre-
planejamentos da ciência e da política modernas. ma do projeto da modernidade, e a culpa do capitalismo era
aquela de se constituir em um fardo, um obstáculo rumo a esse
A visão nazista de uma sociedade harmoniosa, ordeira, sem sonho. Para os socialistas, a sociedade da eliminação do medo
desvios extraía sua legitimidade e atração dessas visões e e da pobreza, através do domínio sobre a natureza e o planeja-
crenças já firmemente arraigadas na mente do público ao mento racional,
longo do século e meio de história pós-iluminista, repleta de
propaganda cientista e exibição visual da assombrosa potên-
cia da tecnologia moderna (Bauman, 1999, p. 38). estava para ser construída. Deveria ser artificialmente pro-
jetada e montada [...] pondo fins à dependência humana
face aos limitados recursos naturais, subordinando a mes-
A cirurgia social não era uma ambição apenas germânica. quinha natureza às necessidades humanas – e forçando-a a
A eugenia, a “ciência da hereditariedade e arte da criação hu- dar mais com a ajuda da vontade política, da ciência e da
mana”, nasceu fora da Alemanha: tecnologia trabalhando em uníssono para maximizar as for-
ças produtivas humanas. [...] O que o socialismo fazia era
reconfirmar os objetivos como dignos de perseguir e os mei-
Não foi ninguém mais que o eminente chefe do laborató- os como válidos, lançando a culpa pelas “pobres realizações
rio de Cold Spring Harbor, o professor C. B. Davenport, quem até aqui” nas costas dos administradores capitalistas da
deu a honraria e benção pública ao principal especialista modernidade [...] A modernidade sob administração capita-
alemão em criação de animais humanos, o professor E. Fischer, lista era acusada de subdesempenho e ineficiência (Bauman,
ao indicá-lo seu sucessor na presidência da Federação Inter- 1999, p. 279).
nacional de Organizações Eugênicas. O grandioso plano ale-
mão de colocar a reprodução da sociedade em bases científi-
cas e eliminar as forças até então não equipadas (e portanto O comunismo, “o irmão mais novo do socialismo”, sepa-
fortuitas) da hereditariedade e seleção era simplesmente uma rou definitivamente o projeto moderno daquele do capitalismo.
expressão radical das ambições universais inerentes à menta- Uma vez que se conheçam os objetivos do projeto moderno e os
lidade moderna (Bauman, 1999, p. 40-41).
meios para alcançá-los, torna-se evidente que os capitalistas em
nenhuma maneira são necessários; não se precisa chegar ao
A perspectiva era controlar cientificamente a extirpe hu- socialismo através da critica à sociedade burguesa, nem é ne-
mana e era compartilhada pela maioria dos ambientes acadêmi- cessária uma fase obrigatória de transição histórica que passe
cos do chamado mundo civilizado. “A eugenia foi defendida pelo capitalismo antes de alcançar a nova sociedade socialista.
166 A AMBIVALÊNCIA DA CIÊNCIA EM ZYGMUNT BAUMAN

Ao contrário do irmão mais velho, [o comunismo] não confia- siva completude de tais sistemas, pela sua capacidade de expli-
va na história para encontrar o caminho da felicidade. Nem
car sempre mais casos do que a teoria anterior conseguia expli-
estava preparado para esperar até a história provar que essa
desconfiança era um erro. Seu grito de guerra era: “O Reina- car. Essa primeira maneira de colocar a dúvida científica
do da Razão – agora!” [...] A redefinição da revolução socialis-
ta por Lenin como uma substituição, em vez de uma continu-
não solapa a autoridade da ciência. Ao contrário, transfor-
ação, da revolução burguesa foi o ato fundador do comunis-
mando o ideal de verdade no “alvo imaginário” das investi-
mo. De acordo com o novo credo, o capitalismo era um tumor
gações produtoras de conhecimento, no horizonte do terri-
cancerígeno no corpo sadio do progresso moderno, não mais
tório que agora se atravessa (um horizonte que sempre re-
um estágio necessário no caminho para uma sociedade que
cua, sempre ilusório, portanto sempre além do alcance do
encarnaria os sonhos modernos (Bauman, 1999, p. 281-282).
teste prático), efetivamente protege a autoridade da ciência
contra o descrédito. De fato, ela torna o conhecimento en-
quanto tal [...] imune ao questionamento [...] Ela garante a
A força ideal do comunismo aumentava “à medida que o
imortalidade do conhecimento como empresa conquistado-
sucesso espetacular e a crescente autoridade da ciência moderna ra da verdade tornando-o independente das vicissitudes de
faziam o projeto parecer cada vez mais plausível” (Bauman, 1999, cada verdade específica que gera (Bauman, 1999, p. 256).
p. 45), assim como, uma vez que o comunismo foi chamado para
guiar a sociedade, os extermínios de massa de Stalin eram justifi-
O segundo tipo de dúvida coloca o problema da indetermi-
cados pela necessidade de eliminar qualquer resistência à grande
nação e da incompletude do conhecimento teórico como um fato
obra de engenharia social que devia ser cumprida.
e nada mais. Não há para ele um progresso da ciência rumo a um
Mas esta sinergia entre política e ciência, rumo aos ideais
objetivo último. Há apenas teorias parciais e incompletas que são
iluministas, que constituiu o eixo de toda a ação modernizadora
preferidas a outras por uma escolha com base na cultura e na
desde o capitalismo até o comunismo, sofreu “a vingança da
história dos grupos humanos. Este segundo tipo de dúvida vai
ambivalência”. A tentativa de reduzir a natureza física e social
direto ao coração do mito da ciência. Por ele não se pode mais
a um sistema administrado de classificação racional fracassou.
distinguir, de maneira clara, entre a crença e a verdade, o mito e
Tornou-se claro que é a própria classificação que produz a
a razão, a necessidade e a contingência. Ele solapa a base ideoló-
ambivalência. “Classificar consiste no ato de incluir e excluir”,
gica da idéia da onipotência da ciência e da tecnologia, da exis-
mas a “operação de inclusão/exclusão é um ato de violência
tência de verdades e leis absolutas e invariáveis:
perpetrado contra o mundo”, contra sua fluidez que não se
deixa encaixar em categorias fixas. Tomou-se consciência de
que a ambivalência é “um subproduto do trabalho de classifica- O segundo tipo de dúvida é tudo, menos inócuo. Ele fere
ção” (Bauman, 1999, p. 11), que é engendrada pela própria onde mais dói: solapa a confiança de que, seja o que estiver
tentativa da classificação ao cumprir sua tarefa. sendo dito pela ciência em dado momento, é o melhor que
se pode dizer naquele momento. Ele questiona o mais sagra-
Se no campo político isso ficou claro pelo fracasso de to- do – o credo da superioridade do conhecimento científico
dos os projetos de engenharia social, no campo científico se sobre qualquer outro conhecimento. Além disso, desafia o
apresentou através do fracasso de qualquer tentativa de alcan- direito da ciência validar e invalidar, legitimar e deslegitimar
çar as verdades teóricas absolutas. Se, de um lado, a moderni- – em suma, de traçar a linha divisória entre conhecimento
e ignorância, transparência e escuridão, lógica e incongru-
dade tomou consciência que a do estranho é uma presença que
ência. Indiretamente, torna pensável a mais herética das
não pode ser eliminada, que deve ser aceita, tolerada, por outro heresias: a de que, em vez de ser um galante cavaleiro
lado, a ciência se deu conta do irredutível permanecer da inde- empenhado em cortar, uma a uma, as muitas cabeças do
terminação e da incompletude nos sistemas teóricos. Mas tam- dragão da superstição, a ciência é apenas uma dentre mui-
bém essa nova consciência moderna, que muitos chamam de tas histórias, que evoca um pré-julgamento frágil dentre
muitos (Bauman, 1999, p. 257).
pós-moderna, é vítima, ela mesma, da ambivalência.
Assim como a tolerância pode tanto tender à indiferença
quanto à solidariedade (Bauman, 1999, p. 248-251), da mesma Este tipo de dúvida esteve sempre presente na ciência
maneira a ciência coloca suas dúvidas conforme duas perspecti- moderna, desde seu começo. O desafio por ele representado foi a
vas completamente diferentes. O primeiro tipo de dúvida se en- força motriz que impulsionou os pensadores a procurar os funda-
caixa em uma visão da ciência que é aquela de uma empresa que mentos das certezas absolutas e estáveis. Sua irredutível presen-
percorre um caminho que, embora seja interminável, se aproxi- ça, seu obstinado repropor a área cinzenta da indeterminação,
ma sempre mais de um patrimônio absoluto de certeza e regula- da ambivalência, da imprevisibilidade, evocou sempre novas ten-
ridade. Ainda que a verdade absoluta não possa ser alcançada, tativas de determinar, afirmar univocamente, prever. Era uma
ela representa a direção rumo à qual a ciência deve progredir. Se presença inoportuna, mas temporária. Inoportuna, enquanto su-
os sistemas científicos são sempre incompletos, se os casos nega- java a consciência do saber moderno – determinado e completo,
tivos – aqueles que escapam às leis da teoria – sempre existirão, unívoco e capaz de controle total do mundo. Temporária, porque
ainda assim o progresso científico está representado pela progres- era, ou melhor, se esperava que fosse uma área residual, algo
PAOLO TOTARO
167

destinado a desaparecer progressivamente pelo progresso do co- verificam quando os corpos se movem com velocidade próxima
nhecimento. A passagem da cultura moderna à pós-moderna à da luz, implicando, com isso, uma deformação da dimensão
está, propriamente, no desaparecer dessa dúvida enquanto dúvi- espaço-tempo, mas em todos os outros casos, quando os corpos
da. Está no colocá-la como o limite natural de qualquer conheci- se movem a uma velocidade baixa em relação à da luz, as duas
mento e como a maior riqueza da realidade. teorias chegam às mesmas conclusões. Por isso, a teoria de
Einstein pode ser entendida como uma ampliação da mecâni-
A epistemologia da ambivalência ca clássica (ou, esta última, uma restrição da primeira) e não
uma reviravolta da sistematização newtoniana. A ortodoxia
É inevitável que as duas dúvidas da ciência, apontadas científica sistematiza dessa maneira a relação entre as duas
por Bauman, evoquem por um lado as teses de Popper como teorias, e assim a encontramos nos livros de ensino da física.
expressão do primeiro tipo de dúvida e, por outro, a virada pós- Essa sistematização se baseia na justificativa epistemológica
empirista de Kuhn, Lakatos e Feyerabend como expressão do proporcionada pelo principio de refutação de Popper (1975), a
segundo tipo. Porém, a visão de Bauman não se coloca como saber, pela cultura do primeiro tipo de dúvida apontado por
epistemológica, mas como sociológica. Um elemento que mar- Bauman. Grande parte do sucesso da teoria de Popper está
ca essa diferença pode ser encontrado na própria apresentação mesmo na reunificação, que ela permite, da velha teoria
das duas dúvidas, feita não através de teorias da filosofia da newtoniana com a nova de Einstein como etapas de uma evo-
ciência, mas através de dois filmes (O exorcista, de William lução linear do progresso científico rumo ao horizonte da verda-
Peter Blatty, e O presságio, de David Seltzer). Com isso, as duas de absoluta, a qual, enquanto horizonte, fica inalcançável, mas
dúvidas são destacadas como fenômenos sociais, como expres- fornece a rota do caminho da ciência.
sões da cultura contemporânea. Essa postura, justamente soci- Mas há uma outra interpretação dessa relação que é a
ológica, consente a Bauman de não escolher entre as duas proporcionada, em primeiro lugar, por Kuhn (1978). Ele defen-
concepções, mas de considerá-las como elementos sempre pre- de que não se pode pensar na mecânica clássica como derivável
sentes na cultura cientifica e, em geral, na cultura da nossa da relativística, ou seja, na primeira como apenas um caso par-
sociedade. Ele as coloca da mesma forma como apresenta to- ticular da segunda. Não se pode dizer que sob algumas condi-
das as outras forças antagônicas da modernidade, que desem- ções restritivas as duas teorias coincidem. O mundo newtoniano
bocaram, ao final, na consciência pós-moderna: assim como a é, de qualquer forma, diferente do mundo de Einstein, os obje-
cultura moderna foi a consciência crítica da modernidade, apon- tos aos quais as duas teorias se referem não são os mesmos.
tando para essa os objetivos não alcançados de sua promessa e Explica Kuhn que, se chamarmos Ei o conjunto das leis
induzindo-a, dessa maneira, a persegui-los mais obsessivamen- einsteinianas e Ni o conjunto de leis pseudonewtonianas que
te (Bauman, 1999, p. 18-19); assim como o socialismo foi a resultam da aplicação das condições restritivas acima,
contracultura da modernidade, acusando-a de se atrasar no
cumprimento de sua tarefa por ficar vítima dos egoísmos capita- as variáveis e os parâmetros que nas Ei da teoria einsteiniana
listas; da mesma maneira o segundo tipo de dúvida represen- representavam a posição no espaço, o tempo, a massa, etc.,
estão ainda presentes nas Ni; e nessas últimas eles represen-
tou o medo permanente de não conseguir derrotar a ignorância
tam ainda o espaço, o tempo e a massa einsteinianas. Mas as
e tornar o mundo conhecível e objetivo, foi a força mais potente referências físicas desses conceitos einsteinianos não são,
que impulsionou a ciência a renovar, com sempre mais vigor, as de nenhuma maneira, idênticas aos conceitos newtonianos
tentativas, regularmente fracassadas, de submeter todos os fe- que têm o mesmo nome. (A massa newtoniana se conserva
imutável; a einsteiniana é convertível em energia. Apenas
nômenos às regras dos sistemas teóricos.
com baixas velocidades relativas, as duas massas podem ser
Todos esses antagonismos se esgotaram na consciência medidas na mesma maneira, mas também nesse caso não
da inevitabilidade da contingência, da persistência de elemen- devem ser concebidas como fossem a mesma coisa). Se não
tos de caos, de indeterminação e de imprevisibilidade. Ter isso mudarmos as definições das variáveis presentes nas Ni, os
enunciados que derivamos das Ei não são newtonianos. Por
sempre presente é a marca característica da cultura pós-moder- outro lado, se os modificarmos, não é correto dizer que
na. Para gerá-la contribuíram não apenas acontecimentos polí- derivamos as leis de Newton, pelo menos conforme o senti-
tico-sociais, ligados ao fracasso da engenharia social, mas tam- do que hoje geralmente se atribui ao termo “derivar” (Kuhn,
bém acontecimentos científicos de tipo técnico. O primeiro des- 1978, p. 130).

tes é a Teoria da Relatividade de Einstein. Essa se coloca, com


respeito às duas dúvidas, de maneira ambivalente. Sua desco- Portanto, a descoberta de Einstein pode ser considera-
berta pode ser coerente com o primeiro tipo de dúvida enquan- da como a passagem de uma física para uma outra, como uma
to a consideramos como um desenvolvimento da mecânica reviravolta completa da dinâmica. As duas teorias físicas cons-
clássica, uma teoria que explica mais coisas que esta última, tituiriam representações do mundo ligadas à cultura das co-
apenas pela introdução do tempo como quarta dimensão: os munidades científicas e das sociedades nas quais essas co-
casos não explicados pela mecânica clássica são aqueles que se munidades operam. Por essa concepção, as teorias sucedem
168 A AMBIVALÊNCIA DA CIÊNCIA EM ZYGMUNT BAUMAN

uma a outra não como etapas de um caminho de conheci- a sua derrota representada pela axiomática hilbertiana. Ou
mento objetivo e progressivo, mas como escolhas contingen- seja, com Hilbert se chega à conclusão que não se pode
tes ao momento histórico; nenhuma delas está marcada por reduzir o fenômeno mental da numeração a um único con-
uma superioridade objetiva sobre a outra, mas apenas por uma ceito primitivo formalmente definido e que, portanto, é preci-
maior coerência com a visão do mundo que a história so reduzir as pretensões da reflexão metamatemática. A única
sociocultural vai proporcionando. Trata-se da afirmação do via possível para reproduzir formalmente todas as proprieda-
segundo tipo de dúvida de Bauman, que assim sai da sombra des da teoria intuitiva dos números parece estar numa gran-
onde a ciência moderna a tinha confinado para tornar-se guia de concessão ao não formal, a saber, no aceitar como verda-
e apoio de um novo ideal científico. deiro um conjunto de enunciados não demonstrados, isto é,
Um segundo acontecimento de tipo técnico que viabilizou os axiomas (cf. Mangione, 1976, p. 404-426). O valor do
o reconhecimento oficial dessa dúvida e a tornou um patrimônio teorema de Gödel está no estabelecer que, apesar das limita-
da ciência foi o princípio de indeterminação de Heisenberg. ções impostas pela teoria axiomática, o objetivo não pode ser
Por este princípio não se pode, simultaneamente, conhecer a alcançado. Com efeito, qualquer que seja o conjunto dos
posição e a velocidade de uma partícula subatômica. Se se esta- axiomas escolhidos, existe sempre uma verdade intuitiva
belece sua posição, pode-se apontar apenas a probabilidade na teoria dos números que sua formalização axiomática não
que essa tenha uma determinada velocidade e, inversamente, consegue demonstrar. Existe sempre um enunciado (enun-
fixando a velocidade, tem-se apenas a probabilidade que ela se ciado não decidível) intuitivamente verdadeiro que não con-
encontre em uma determinada posição2. Essa descoberta pro- segue ser demonstrado através da teoria axiomática. Por
vocou a crise do ideal determinista. Agora não é mais verdadei- isso, essa última é sempre incompleta. Se buscarmos
ro que a incerteza, a ausência de controle diminui com o pro- completá-la, inserindo no conjunto de seus axiomas o enun-
gredir da precisão. Ao contrário, mais precisão de um lado en- ciado que não conseguimos demonstrar como seu teorema
gendra mais indeterminação por outro. A mecânica quântica (aproveitando o fato que os axiomas pertencem à teoria sem
oferece vários exemplos disso, além do próprio princípio de in- precisar de demonstração), isso modificará o conjunto dos
determinação (cf. Lyotard, 1981). Mas se a indeterminação é axiomas iniciais, e, por isso, toda a teoria mudará, gerando
um limite que a ciência deve por hora aceitar, se colocarmos o um novo enunciado não decidível (cf. Mendelson, 1981, p.
problema da perspectiva proporcionada pelo primeiro tipo de 177). O enunciado não decidível, apontado pelo Teorema
dúvida, ela pode ser olhada como um limite temporário. As de Gödel, é a representação mais firme do conceito de
contradições da mecânica quântica, suas diferenças do mundo ambivalência de Bauman. Tal enunciado não é nem verda-
perfeitamente ordenado da mecânica relativística, podem ser deiro, nem falso pela teoria axiomática; sobre ele a teoria não
ultrapassadas. O próprio Einstein nunca aceitou os limites alea- pode dizer nada, não consegue classificá-lo. Sua ambivalência
tórios impostos pela teoria dos quantos. “Deus não brinca com não pode ser eliminada: a tentativa de assimilá-lo só compor-
os dados”, ele disse, e grande parte dos esforços teóricos da ta um novo enunciado não decidível, uma nova ambivalência.
física contemporânea são dirigidos para “unificar os campos”, Os três resultados científicos acima tratados parecem nos
para reduzir a mecânica quântica à “elegante teoria geométri- dizer que há ambivalência em cada coisa, até no instrumento
ca de Einstein” (cf. Kaku, 2002). mais potente que os homens criaram para derrotá-la, a saber,
O terceiro acontecimento técnico pode ser considera- até na própria ciência. Ainda que se tente fundar qualquer tipo
do o mais atordoante, porque não aponta um limite ao co- de conhecimento sobre uma base estável, sobre uma origem
nhecimento sobre a natureza, sobre o mundo externo ao última, o próprio conhecimento se rebela, parece inevitavel-
sujeito conhecedor, mas é um limite que diz respeito ao mente apontar seu limite, como se isso fosse, em última análise,
mundo interno ao próprio pensamento, às criações mais pu- o verdadeiro objetivo de sua obra. Mas a própria ambivalência
ras do sujeito, sem as interferências geradas pelos dados da pode ser a salvação do abismo do relativismo absoluto por ela
corporeidade: é o limite dos sistemas formais apontado pelo aberto frente aos homens. Se nada é certo, estável e completo,
Teorema de Gödel. A história da lógica formal entre os sécu- também nada é absolutamente incerto, instável e incompleto.
los XIX e XX é a história da tentativa de reduzir as verdades Neste limite entre uma e outra verdade, entre as duas dúvidas
intuitivas representadas pela matemática, ou melhor, pelas de Bauman, a ciência deve mergulhar, procurando os elemen-
relações implicadas pelos números, a algo de mais primitivo tos de certeza a partir dos quais fundar uma visão do mundo,
e racionalmente fixado numa clara definição. Esse esforço, mas com a consciência de que será ela mesma a negá-los, quais-
começado com a teoria dos conjuntos de Frege, termina com quer que sejam eles.

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Exatamente, o princípio de indeterminação de Heisenberg estabelece que, quanto maior é a precisão com a qual se determina a posição de uma
partícula subatômica, menor é a probabilidade de apontar com exatidão sua velocidade. Isso é expresso pela fórmula Δs ⋅ Δp ≥ h , em que
representa a indeterminação da posição, a indeterminação na quantidade de movimento, e h a constante de Planck.
PAOLO TOTARO
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Referências

BAUMAN, Z. 1999. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro,


Jorge Zahar Editor, 334 p.
KAKU, M. 2002. Iperspazio. Diegaro di Cesena (FC), Macro Edizioni, 506 p.
KUHN, Th.S. 1978. La struttura delle rivoluzioni scientifiche. Torino,
Einaudi, 251 p.
LYOTARD, J.F. 1981. La condizione postmoderna. Milano, Feltrinelli, 123 p.
MANGIONE, C. 1976. Logica e problema dei fondamenti nella seconda
metà dell’Ottocento. In: L. GEYMONAT (org.), Storia del pensiero
filosofico e scientifico. Vol. VI, Milano, Garzanti, p. 353-419.
MENDELSON, E. 1981. Introduzione alla logica matematica. Torino,
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POPPER, K.R. 1975. Conoscenza congetturale: la mia soluzione del
problema dell’induzione. In: K.R. POPPER, Conoscenza oggettiva.
Roma, Armando Editore, p. 19-56.

Submetido em: 23/10/2006


Aceito em: 23/10/2006

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