Estudos e Pesquisas em Psicologia 1808-4281
Estudos e Pesquisas em Psicologia 1808-4281
Estudos e Pesquisas em Psicologia 1808-4281
E-ISSN: 1808-4281
revispsi@gmail.com
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro
Brasil
RESUMO
Neste artigo buscamos colocar em discussão a pesquisa-intervenção que
vem se constituindo com a Rede de Proteção ao Educando no ensino público
do Rio de Janeiro, abordando a formação dos trabalhadores sociais como um
processo instigador de novos conceitos e práticas institucionais na
perspectiva ético-estético-política. Para isso, damos visibilidade ao percurso
que compõe o território escolar nas suas múltiplas forças, remetendo à
reflexão sobre nossos atos, nossas implicações com as instituições em jogo
e favorecendo escolhas sobre a melhor forma de trabalhar e viver.
Concluímos, assumindo o desafio de (re)constituição de um campo de
intervenção, problematizador e crítico, intensificador de encontros.
Palavras-chave: Formação do psicólogo, Psicologia e educação, Pesquisa-
intervenção, Micropolítica.
ABSTRACT
In this paper we try to discuss an intervention-research that has been con-
stituted in the Student Protection Network in Rio de Janeiro public teaching,
approaching the formation of social workers as an instigating process of new
institutional concepts and practices in the ethic-esthetic-political perspective.
For this, we give visibility to the route that compounds the scholar territory
in its multiple forces, remitting to the reflection about our acts, our implica-
tions with the institutions at stake and favoring the choices about the better
ways of working and living. We conclude assuming the challenge of the
(re)constitution of a problematizing and critical encounter intensifier inter-
vention field.
Keywords: Psychologist formation, Psychology and education, Intervention-
research, Micro politics.
68
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
O meu plano é continuar nos intervalos...
V.W.
Introdução
Gostaríamos de abrir a apresentação desse artigo, num esforço de
delinear o campo de pesquisa e de intervenção no qual temos
empreendido nosso trabalho com as instituições de formação. A
aposta na pesquisa-intervenção, longe de se constituir em um abrigo
da complexidade contemporânea, tem favorecido uma aventura por
outras formas de pensar e fazer pesquisas, numa perspectiva ético-
estético-política a que pretendemos dar corpo no curso desta escrita.
Convém antecipar, no entanto, que tal perspectiva ganha
consistência na micropolítica de produção de modos de subjetivação,
um outro plano, dificilmente acessado nas políticas de saúde e
assistência ou nas geradas por movimentos que vêm sendo
denominados de críticos.
Diferentes caminhos poderiam nortear esse trabalho e não foi simples
encontrar uma porta através da qual pudéssemos dar passagem a
Félix Guattari e Gilles Deleuze para refletir sobre a subjetividade
como produção. Como pensar a vida ou os nossos trabalhos em
psicologia/educação pela micropolítica do cotidiano? Na perspectiva
deleuziana, qualquer entrada é boa, desde que as saídas sejam
múltiplas. Vamos arriscar um início através de alguns conceitos que
possam se constituir em intercessores, ou seja, que possam interferir
nesse processo a nosso favor, convidando-nos a caminhar por vias
que, ao refletir sobre as práticas de formação no contexto da
Educação, logrem um tríplice objetivo: (i) pensar a formação como
criação de percursos em meio a múltiplas forças; (ii) remeter à
reflexão sobre nossos atos, nossas implicações com as instituições
em jogo, favorecendo escolhas sobre a melhor forma de viver; (iii)
colocar o desafio de (re)constituição de um campo de intervenção,
problematizador e crítico, intensificador de encontros. Eis o que se
poderia denominar um paradigma ético-estético-político (GUATTARI,
1992).
Vale ainda evidenciar que esse artigo traz como referência as
experiências do trabalho que vimos desenvolvendo com a Rede de
Proteção ao Educando (RPE)1. Nesse encontro, psicólogos, assistentes
sociais e educadores mergulham nas correntezas das tradições
institucionais, nas políticas produtivistas, nos desejos por arejamento
e, entreatos, interferem nas vidas que fazem diferença no cotidiano
escolar, aceitando o desafio de construção de um outro lugar para os
trabalhadores sociais, problematizando fazeres implicados com a
produção social da existência.
69
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
Múltiplas forças que compõem os processos
Desde que iniciamos nossas incursões no campo da educação, temos
convivido com as constantes descontinuidades das políticas. A cada
governo, novas medidas, novas chefias, novas urgências. As
reiteradas mudanças ganharam, na comunidade escolar, a
denominação de pacotes e, com ela, o sentido de que as
determinações chegam sempre de cima, sem aviso prévio e sem
direito à contestação. Os efeitos também já são velhos conhecidos e
falam de desânimo, de falta de perspectiva, de insatisfações.
Nos últimos tempos, com o avanço das estratégias neoliberais, a
produtividade e a aceleração têm dado o tom do desmapeamento
gerador de perda de sentido dos processos, revelando que os
descontinuísmos, para além de apresentar algumas inovações,
parecem estar a serviço da manutenção e da reprodução dos hábitos
instituídos. Se não são criados dispositivos para as parcerias, para
abrir um tempo/espaço operador de processos de diferenciação, nos
agarramos às estacas da estrutura, da velha organização que as
políticas atuais dizem querer alterar. É voz corrente que muita coisa
muda para nada mudar. Os resultados, o quantitativo, as estatísticas
ganham o cotidiano da escola convocando a todos, de alguma forma,
como partícipes nas montagens dos sempre novos mecanismos de
monitoramento e de avaliação da produtividade. As resistências
construídas entre as exigências do gerenciamento e as exigências
colocadas pelo dia a dia de trabalho têm como desafio o
enfrentamento da produção de urgências. A pergunta comum é
“quem dá conta?”
A aceleração impressa nas ações urgentes, a solicitar respostas
rápidas e imediatas, favorece a busca de recursos afetivos e
cognitivos que habitam linhas duras de constituição do campo
educativo. Frente à ameaça da não resolução de problemas ou do
não cumprimento das tarefas solicitadas, o que aparece é a
recorrência a padrões já conhecidos, quase automatizados, expressos
em atitudes como: passar o problema adiante, encontrar culpados
pelas ocorrências, ignorar ou rechaçar qualquer estímulo frente à
impossibilidade de “dar conta de tudo”...
Tal como a paisagem vista de um trem em movimento, a cada
aceleração, o que pode ser visto são borrões, flashes de cores,
fragmentos de imagens e restos de objetos que incitam, de modo
mais pregnante, reconhecimentos e, na sequência, o mal estar e a
desistência de se ter qualquer acesso à paisagem. É que suspensa a
potência de interferir, mesmo considerando sua variabilidade tática,
as resistências acabam por ganhar formas que goram: investem
reativamente na negação das forças de contenção ou radicalmente se
dobram num movimento de ataque contra si mesmas. Acabam por
reafirmar a inoperância de seus investimentos e, confirmando seu
70
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
aparentemente sabido fracasso, no ápice de seu tensionamento,
produzem adoecimentos.
Em tempos neoliberais, voltamos nossa atenção para as práticas de
formação e, nos diálogos com a educação escolarizada, encontramos
novas políticas para antigos problemas (inclusão, acessibilidade,
infrequência, evasão, reprovação). Também encontramos outros
personagens e discursos a imprimir modulações e intensidades em
tensionamentos desde sempre pulsantes: conselho tutelar, teatro,
grêmio, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), drogas
moderadoras, periculosidade, música, prevenção, segurança pública,
jogos, risos, tráficos, especialistas... Entre eles, os especialistas na
questão social - assistentes sociais e psicólogos.
Nesse momento da escrita nos damos conta de que essa poderia ser
a introdução para diferentes experimentações que hoje temos em
andamento. Essa primeira aproximação na constituição de um campo
precisa ganhar outros contornos, é necessário trazer mais elementos,
sinalizações, que avancem no traçado de um território e o acesso a
alguns planos, favorecendo a abordagem de subjetivações e
objetivações, como efeitos das práticas. Pensamos, então, na
demanda a nós endereçada pela coordenação da RPE e escolhemos,
ainda que sem tocar nos meandros de sua construção, trazer à cena
alguns analisadores que, na abertura do campo de análise, apontam
a criação de outros possíveis.
Vale lembrar que, pela porta da RPE, os psicólogos, há tempos
personae non gratae nas escolas do município do Rio de Janeiro,
voltam a ser convocados (re)acionando a velha aliança entre
psicologia e educação.
Nossa entrada em cena no apoio ao processo de formação daqueles
profissionais se dá a partir da solicitação por um “trabalho
institucional” e traz outras linhas no contorno desse território. Dentre
elas, a nossa inserção acadêmica, os vínculos anteriores com alguns
ex-alunos participantes da rede e as referências sobre nossos
trabalhos, por parte de vários psicólogos, têm funcionado
favorecendo as condições de um processo de formação analítico-
institucional. Além disso, na pactuação e análise permanentes dessas
condições, temos sustentado os tensionamentos, alguns inelutáveis,
que surgem no enfrentamento das problemáticas inerentes ao campo
em questão. No processamento das análises importa destacar, por
ora, a importância da construção de ferramentas que façam operar
deslocamentos das queixas para a elaboração de demandas, como
condição de emergência a funções de autonomia, tão caras à
pesquisa-intervenção (AGUIAR; ROCHA, 2007; LOURAU, 1993).
No caminho da elaboração, explicitação e análise das demandas, a
intensificação da produção de urgências aparece como um nó,
ganhando centralidade nas problemáticas apresentadas pelos
trabalhadores da educação, aqui incluídos psicólogos e assistentes
71
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
sociais, permeando e contaminando os fazeres no ‘chão da escola’. A
lista de situações críticas e a multiplicação de afazeres é crescente e
para ontem, impondo ligeireza e eficiência no cumprimento sob pena
de desqualificação profissional. Nesse caminho, a escola não favorece
histórias de vida em relação, mas a produção de casos, fraturando
processos e fechando cada um em si mesmo.
A referência à falta de sentido da escola na atualidade aparece com
insistência, ora como explicação para as dificuldades apresentadas
pelas crianças, ora como justificativa do encadeamento de atos
violentos que, diante da perplexidade de muitos, parecem
consentidos e naturalizados. A demanda implícita, aqui, é por mais
mecanismos de contenção e disciplinamento. Nos encontros de
formação, escutamos sobre a falta de sentido da escola de hoje nas
falas nostálgicas de uma escola do passado, nas falas de professores,
nas reclamações dos pais, nas indisciplinas das crianças, nas análises
de pesquisadores. Tais análises apontam as ambiguidades nas
relações entre os alunos e a escola como assento para a ausência de
referências que poderiam sustentar atribuições de novos sentidos
para a escolarização. O desinvestimento e desaparelhamento da
escola pública no contexto das políticas neoliberais (FRIGOTTO, 1995;
GENTILI, 1995) e o esgotamento da escolarização como recurso na
conquista da, ainda prometida e sempre adiada, mobilidade social
aparecem como fortes argumentos para a falta de alternativas a
serem atribuídas à importância da escola (SPOSITO, 1998).
Considerando a relevância dessas análises, queremos aqui dar ênfase
àquelas da escuta atenta ao “jogo de fabricação” que se espreita no
rebatimento das políticas no cotidiano das práticas (ALVES; GARCIA,
1999; SANTOS, 2006; VEIGA-NETO, 2005; MACHADO, 1994). Nesse
caminho, encontramos que a abertura da escola para todos, realizada
na ampliação e democratização do acesso, fez falar naquele espaço
outras vozes, vozes dissonantes, vozes de qualquer um. E o que a
partir daí parece se colocar como questão é a atualização, em atos,
de um impasse inaugural do liberalismo, qual seja: o de ter que aliar
a propalada igualdade cidadã e a diferença enquanto tensão imanente
à presença do popular.
Frente a essa figuração que desafia os procedimentos pedagógicos, a
linguagem e as estratégias de disciplinamento, o acolhimento de
todos se fará numa busca constante de redução das tensões e das
desestabilizações produzidas nos encontros. Na densificação da
questão da diferença, o que ganha forma é “o diferente”. Herdeira
das injunções da modernidade, a escola atualiza a dicotomia homem
x mundo, professor que ensina x aluno que aprende, professor x
especialista, saúde x loucura. Ela se apresenta habitada por um
conjunto de pessoas, cada uma trazendo “em si” suas condições de
existência e seus problemas. Os sujeitos são tomados isoladamente e
a tentativa de compreendê-los gera classificações que fortalecem a
72
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
lógica binária: a criança é lenta ou acelerada demais; é apática ou
violenta; qual o diagnóstico?
Com o propósito de dar atenção a cada um, a tendência é a dos
profissionais afirmarem o modelo que serve de crivo avaliativo do que
se passa “nas pessoas”, do que falta às pessoas frente ao padrão.
Nos corpos isolados, o que pulsa e que poderia acessar a produção de
sentido, tem sempre grandes chances de virar lamento e
culpabilização. É para responder a esse campo problemático que o
psicólogo, como especialista, é chamado: para afirmar a lógica das
cenas, do que faz sentido, de quem faz sentido, atribuindo e/ou
ratificando significado aos personagens.
75
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
O desejo permeia o campo social tanto em práticas
imediatas, quanto em projetos muito ambiciosos. Por não
querer me atrapalhar com definições complicadas, eu
proporia denominar desejo a todas as formas de vontade de
viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade
de inventar uma outra sociedade, outra percepção do
mundo, outros sistemas de valores [...]. O desejo é sempre o
modo de produção de algo, o desejo é sempre o modo de
construção de algo. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 215-216)
76
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
intervenção, em permanente recriação, que é permeado por fluxos,
materiais e imateriais (SANTOS, 1997a), advindos das escolas e
atualizados nos encontros – e, por outros, próprios da singularização
da experiência, no entre-nós.
Para tanto, o convite que fazemos é o de uma aproximação e atenção
apurada ao cotidiano do trabalho, escutando suas reverberações.
Como já discutimos em outro momento (ROCHA; AGUIAR, 2003) e
em consonância com outros autores (HELLER, 1970, DE CERTEAU
1994, LEFEBVRE,1991, PENIN 1995, KOWARICK, 2000), podemos
dizer que duas lógicas se enredam no cotidiano.
Uma primeira lógica é aquela que traz a equivalência entre o
cotidiano e o vivido, traduz-se na rotina que faz a repetição de nossas
vidas. Entendida como uma totalidade fechada, a cotidianidade é um
sistema previsível, estável; num tempo linear, o futuro, contido no
presente, é determinado pelo passado. O que aparece como
pregnante são as constâncias e, com elas, a tendência à unidade
imediata entre ação e pensamento, gerando o automatismo das
atividades em que o útil ganha estatuto de verdade. Uma tendência
econômica funcional a um sistema social dado que perpetua
tradições, favorecendo estereotipias e preconceitos (PATTO, 1993).
Uma outra lógica do enredamento, que força a complexificação do
cotidiano, se produz pela ruptura da rotina, por acontecimentos
portadores de imprevisibilidade. A surpresa desconcertando nossas
expectativas e nos obrigando a pensar, a inventar. A aceitação e o
acolhimento da desestabilização pode favorecer o encontro com a
alteridade, do outro-em-nós, como um estranho que nos inquieta e
ao qual vamos tentar dar um significado (ROLNIK, 1995).
Aqui, o cotidiano contempla, ao mesmo tempo, constâncias e
mutações, constituindo-se por/nas práticas atravessadas pelos
valores, pelos princípios, pelas formas de ser/fazer/pensar possíveis
em uma época da sociedade. O que evidencia que, para além de
atualizações do paradigma cientificista hegemônico, vivemos
experiências e agenciamos modos singulares de produzir ações,
conceitos, formas de educar, práticas sociais...
O que importa é reafirmar que o cotidiano como paradoxo se constitui
em uma idéia-chave em nossos percursos (AGUIAR; ROCHA, 2008).
A depender dos agenciamentos que se efetuam nos processos, o
cotidiano pode ganhar densidade pela experiência que provoca o
pensamento, nos fazendo criar o tempo produtor de novos conceitos,
de outras práticas, de uma certa singularidade – cada um de nós é
um modo único de expressar a multiplicidade que compõe o campo
de forças que denominamos de social. “O múltiplo é não só o que tem
muitas partes, mas o que é dobrado de muitas maneiras”, afirma
Deleuze (1991, p.14).
Mas o que encontramos, e que tem retornado com insistência, é a
figura produzida na tradição filosófica ocidental, fruto da
77
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
supervalorização do sujeito do racionalismo cartesiano, a que
chamamos indivíduo. Nela, a subjetividade se apresenta ao mesmo
tempo como universal (natureza humana) e interiorizada
(particularidade x totalidade). O indivíduo nos remete às idéias de
indiviso, essência e se ancora em dicotomias: subjetividade e
objetividade, homem e meio, social e psiquismo.
No encadeamento dessas imagens, premido pelas urgências, pelos
problemas e pelos casos que lhe são encaminhados, o psicólogo fecha
seu foco na mediação de relações: entre professores, destes com o
trabalho e com a comunidade, entre a família e a escola, etc.
Poderíamos dizer, neste caso, que o psicólogo faz sua entrada, no
campo, pelo plano das formas e que, fixando sua atenção nas
extremidades das relações (por exemplo: professor x aluno),
favorece o aprisionamento das análises nos corpos, expandindo a
privatização dos conflitos e a contração do espaço público. Um outro
fator que também não contribui para a coletivização das práticas está
no entendimento de que é no consenso (conformidade, concordância,
unanimidade) que se dá o avanço do entendimento e dos
desdobramentos das ações, sendo seu contrário, a discórdia,
dissolução, decomposição. É importante perceber que quando
reduzimos as margens dos embates da vida às relações de consenso
e seu contrário, o que escapa é o dissenso (dissidência), condição de
polêmica e de singularização de experiências.
Queremos dar relevo às relações de convivência enquanto desafio de
criação de sempre novas normas, negociações que avançam e
retrocedem no cotidiano como paradoxo: plano das forças em tensão
que se compõe no entre-nós e plano das formas nos acordos
possíveis a cada vez, expresso por nossas proposições. Esse é o
caminho que fortalece a publicização das idéias e a dimensão de
público como experimentação, plano do em comum. E, diverso do
que tradicionalmente se possa pensar, tal plano é muito concreto, a
abstração habita o todos, quem são todos? É em aliança com Pelbart
(2008) que trazemos nosso entendimento para a existência do plano
das afecções, do em comum
78
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
compartilhado, feito de multiplicidade e singularidade, do que
como uma unidade atual compartida, mais como uma
virtualidade já real do que como uma unidade ideal perdida
ou futura. (PELBART, 2008, p.4)
79
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
foco da atenção necessária aos processos de escolarização
(MONTEIRO, 2006). Os medicamentos que operam o controle redutor
do campo de atenção das crianças, utilizados como solução ao que
escapa do planejado, também funciona como obliterando o campo de
análise dos profissionais, dos estudantes e das famílias.
A hiperatividade das práticas sociais, cada vez mais aceleradas para
atingir os escores de produtividade, o bombardeio de informações e
de atividades na vida das crianças e jovens, dentro e fora da escola,
são dimensões de análise e de intervenção que vêm escapando da(s)
ritalina(s) ao gosto dos laboratórios que prestam ‘bons serviços’.
Na escola, poderíamos apontar para um devir professor-pesquisador,
cuja gestão da atividade educacional é um movimento inventivo nos
diferentes processos e aprendizagens em curso no ambiente escolar.
Não se trata de abrir mão de uma formação consistente; trata-se de
um outro sentido de consistência, não referido à acumulação de
informações, mas ao manejo de dispositivos que sustentem um
campo de indagação. Este devir mestre-aprendiz aponta um outro
lugar para o professor, no qual autonomia é um exercício diário ético-
estético e político na prática profissional.
Isso não significa que não existam cronificações institucionalizadas
em meio às forças hegemônicas de uma época, de uma sociedade.
Somos também personagens: “o psicótico”, “o hiperativo”, “o bom
professor”, “a mulher”, “a mulher casada”, uma infinidade de os, as,
de artigos definidores dos sucessivos cortes já feitos em nossa
cultura, em nossa sociedade, mas somos também forças em tensão
(MACHADO, 1994). Mais ou menos em tensão, dependendo da
situação e do quanto ela coloca em xeque a resistência de nossas
carapaças, de nossas armaduras, fazendo, como diz Rolnik (1995) o
corpo vibrar. “Louco ou são?” – perguntaríamos, recorrendo, aqui, a
um binarismo frequente nas práticas psis. A resposta depende das
situações e das questões que compõem nossas experiências a cada
momento, aproximando-nos mais ou menos da loucura ou da
sanidade. “Louco ou são?”. Bem, diríamos “os dois”, louco e são:
existência que se faz entre as extremidades.
Chamamos mais uma vez Guattari e Rolnik (1986) em uma fala que
expressa de forma interessante a questão de como ir além dos
dualismos, particularmente entre sujeito e sociedade:
80
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
mergulhado em tudo o que foi a história da pintura, em tudo
o que a pintura é em torno dele e, no entanto, ele a retoma
de um modo singular. Isso é uma coisa. Outra é a maneira
como essa existência, esse processo criativo será depois
identificado em coordenadas sócio-históricas [...]. O que
interessa à subjetividade capitalística, não é o processo de
singularização, mas justamente esse resultado do processo,
resultado de sua circunscrição a modos de identificação
dessa subjetividade dominante. (GUATTARI; ROLNIK ,1986,
p.69)
Referências Bibliográficas
AGUIAR, K.; ROCHA, M.L. Micropolítica e o exercício da pesquisa-
intervenção: referenciais e dispositivos em análise. Psicologia
Ciência e Profissão, Brasília, n. 4, ano 27, p. 648-663, 2007.
____ . A inclusão do conflito como estratégia de intervenção na
escola. In: BOGAMINO, I. S.; TONDIN,C. F.; BRUXEL,K. (Orgs.). As
práticas da psicologia social com(o) movimentos de
resistência e criação. Porto Alegre: Abrapso Sul, 2008, p.35-45.
ALVES, N.; GARCIA, R.L. Atravessando fronteiras e descobrindo (mais
uma vez) a complexidade do mundo In: _____. O sentido da
escola. Rio de Janeiro: DP&A, 1999, p. 81-110.
BOCK A. M. B. (Org.). Psicologia e o compromisso social. São
Paulo: Cortez, 2003.
DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. 5.ed. Petrópolis: Vozes,
1994.
81
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
DELEUZE, G. Le bergsonisme. Paris: PUF, 1966.
____. A dobra. Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991.
FERREIRA NETO, J.L. A formação do psicólogo – clínica, social e
mercado. São Paulo: Escuta, 2004.
FRIGOTTO, G. Os delírios da razão. Crise do capital e metamorfose
conceitual no campo educacional. In: GENTILI, P. (Org.). Pedagogia
da exclusão e crítica ao neoliberalismo em educação.
Petrópolis: Vozes, 1995, p.77-108.
GENTILI, P. Adeus à escola pública. A desordem neoliberal, a
violência do mercado e o destino da educação das maiorias. In:
_____. Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em
educação.Petrópolis: Vozes, 1995, p. 228-252.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica. Cartografias do desejo.
Petrópolis: Vozes, 1986.
GUATTARI, F. Caosmose. Um novo paradigma estético. São Paulo:
34, 1992.
HELLER, A. O cotidiano e a história. São Paulo: Paz e Terra, 1970.
KASTRUP, V. A invenção de si e do mundo. Campinas: Papirus,
1999.
KOWARICK, L. Escritos urbanos. São Paulo: 34, 2000.
LEFEBVRE, H. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo:
Ática, 1991.
LOURAU, R. Análise institucional e práticas de pesquisa. Rio de
Janeiro: EdUERJ, 1993.
MACHADO, A. M. Crianças de classe especial. Efeitos do
encontro da saúde com a educação. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1994.
MACHADO, A. M.; SOUZA, M.P.R. (Orgs.). Psicologia escolar: em
busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
MONTEIRO, H. R. A medicalização da vida escolar. 2006. 114f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, Rio de
Janeiro.
MOYSÉS, M. A. A. A institucionalização invisível: crianças que
não aprendem na escola. São Paulo: Editora Mercado das Letras,
2001.
NAFFAH NETO, A. O inconsciente. um estudo crítico. São Paulo:
Ática, 1985.
PATTO, M.H.S. A produção do fracasso escolar. São Paulo:
Queiroz, 1993.
PELBART, P. P. Elementos para uma cartografia da grupalidade. In:
SAADI, F; GARCIA, S. (Orgs.). Próximo ato: Questões da
Teatralidade Contemporânea. São Paulo: Itaú Cultural, 2008, p.
33-37.
PENIN, S. Cotidiano e escola. A obra em construção. São Paulo:
Cortez, 1995.
82
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
ROCHA, M. L. Contexto do adolescente. In : CONTINI, M. L. et al
(Orgs.). Adolescência & Psicologia. Concepções, práticas e
reflexões críticas. Brasília: CFP, 2002, p. 25-32.
ROCHA, M. L.; AGUIAR, K. Práticas universitárias e a formação sócio-
política. Anuário do Laboratório de Subjetividade e Política. v.
3/4, Niterói, p. 97-112, 1997.
ROCHA, M. L,; AGUIAR, K. Pesquisa-intervenção e a produção de
novas análises. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, n. 4, ano
23, p.64-73, 2003.
ROCHA, M. L.; UZIEL, A. P. Pesquisa-intervenção e novas análises no
encontro da psicologia com as instituições de formação In: CASTRO,
L R.; BESSET, V. L. (Orgs.). Pesquisa-intervenção na infância e
juventude. Rio de Janeiro: NAU Editora/FAPERJ, 2008, p.532-556.
ROLNIK, S. À sombra da cidadania: alteridade, homem da ética e
reinvenção da democracia. In: MAGALHÃES, C. R. (Org.). Na
sombra da cidade. São Paulo: Escuta, 1995, p. 143-170.
SAIDON, O. Clínica y sociedad. Esquizoanálisis. Buenos
Aires/México: Grupo Editorial Lumen, 2002.
SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. 5.ed. São Paulo:
Hucitec, 1997a.
____. A natureza do espaço. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1997b.
SANTOS, N. I. S. Escola Pública e Comunidade: Relações em D’obras.
Vivência, Natal, v. 31, p. 62-77, 2006.
SPOSITO, M. P. A instituição escolar e a violência. Cadernos de
Pesquisa da Fundação Carlos Chagas, São Paulo, v. 104, p.58-75,
1998.
VEIGA-NETO, A. Quando a inclusão pode ser uma forma de exclusão.
In: MACHADO, A. D. et al (Orgs.). Educação Inclusiva. Direitos
Humanos na Escola. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005, p. 55-70.
WOLF, V. Entre os atos. São Paulo: Novo Século Editora, 2008.
83
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf
Notas
* Pesquisadora CNPq, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/SP
**Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP
1
O primeiro contato com a Rede de Proteção ao Educando (RPE), um Projeto macro
funcional entre as Secretarias Municipais de Educação (SME) e Assistência Social
(SMAS), composto por psicólogos e assistentes sociais, aconteceu no final de 2007,
quando as coordenadoras responsáveis pelas ações da psicologia trouxeram a
solicitação de apoio no sentido da construção de uma abordagem institucional para
o trabalho do psicólogo. Ao longo de 2007, muitas tentativas de desenvolvimento
de práticas integradas com os profissionais da assistência e com os educadores não
se efetivaram, pois, segundo a coordenação, a formação de grande parte do grupo
de psis, concursados para a clínica assistencial dos serviços de saúde municipais e
os encaminhamentos/tratamentos cobrados pelas direções das escolas, nas
tradições das expectativas do trabalho do psicólogo, dificultavam o avanço no
sentido da viabilização de uma proposta interdisciplinar. Os 57 psicólogos que
originalmente constituíram a equipe, embora concursados para atuar na Secretaria
Municipal de Saúde (SMS), foram nomeados e lotados na SME para desenvolver e
implementar a RPE. Num primeiro momento, esses profissionais foram lotados nos
Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e Pólos de Atendimento Extra-
escolar (PAEE), sendo mais tarde vinculados diretamente às Coordenadorias
Regionais de Educação (CREs). O procedimento instituído para o funcionamento,
desde o início, se circunscrevia ao Plano de Ação desenvolvido por cada equipe de
psicólogos/ assistentes sociais por CRE, além de encaminhamentos de alunos em
situações de diversas ordens: indisciplina, dificuldade de aprendizagem, violência
nas mais adversas expressões, uso abusivo de drogas, gravidez na adolescência e
situações de risco e vulnerabilidade social. Para cada equipe de profissionais da
RPE, é estabelecido um grupo de escolas, no formato de territórios, de maneira que
todas as escolas da rede possam estar referidas a uma equipe de profissionais. O
acompanhamento dessas escolas se dá pela elaboração de um plano de trabalho a
partir do foco estabelecido pela CRE, destacando um grupo de escolas prioritárias
de acordo com as demandas, objetivos e estratégias do trabalho a ser realizado.
Frente a essa organização, nossas propostas com os psicólogos vêm se constituindo
através de textos enviados previamente para serem lidos e debatidos entre eles,
levando em consideração o trabalho que realizavam e, nos nossos encontros, a
proposta é a de discussão coletiva e problematização das práticas, a partir de cenas
do cotidiano. Com as coordenadoras realizamos reuniões com a perspectiva de
contribuir para a escrita de um outro plano de ação com passagem na Secretaria
Municipal de Educação (SME), tornando oficial um deslocamento dos lugares
estabelecidos pelas demandas tradicionais de assistência, quem sabe em uma
perspectiva transdisciplinar. Elas, por sua vez, também realizam reuniões com os
psicólogos a fim de construir os planos de trabalhos locais e a negociação com as
coordenadorias das CREs de um trabalho institucional. Durante 2008, realizamos
encontros mensais com os psicólogos e, em alguns deles, contamos também com
profissionais da educação lotados nas CREs. Ao final de 2008, mais 56 psicólogos,
advindos de outro concurso também da SMS, foram nomeados e lotados na SME,
perfazendo um total 112 psicólogos na RPE. Em 2009, esse coletivo agregou em
sua composição, mais assistentes sociais e representantes da Gerência de Serviço
Social na Educação.
84
ISSN: 1808-4281
ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICOLOGIA, UERJ, RJ, ANO 10, N.1, P. 68-84, 1° QUADRIMESTE DE 2010
http://www.revispsi.uerj.br/v10n1/artigos/pdf/v10n1a06.pdf