Viagem Ao Ceu
Viagem Ao Ceu
Viagem Ao Ceu
O SÍTIO DO
PICA-PAU AMARELO
VIAGEM AO CÉU
e
O SACI
Vol. II
Digitalização e Revisão
Arlindo_San
VIAGEM AO CÉU
I
O Mês de Abril
Era em abril, o mês do dia de anos de Pedrinho e por todos considerado o melhor mês
do ano. Por quê? Porque não é frio nem quente e não é mês das águas nem de seca — tudo
na conta certa! E por causa disso inventaram lá no Sítio do Pica-Pau Amarelo uma grande
novidade: as férias-de-lagarto.
— Que história é essa?
Uma história muito interessante. Já que o mês de abril é o mais agradável de todos,
escolheram-no para o grande “repouso anual” — o mês inteiro sem fazer nada, parados,
cochilando como lagarto ao sol! Sem fazer nada é um modo de dizer, pois que eles
ficavam fazendo uma coisa agradabilíssima: vivendo! Só isso. Gozando o prazer de viver...
— Sim — dizia Dona Benta — porque a maior parte da vida nós a passamos
entretidos em tanta coisa, a fazer isto e aquilo, a pular daqui para ali, que não temos tempo
de gozar o prazer de viver. Vamos vivendo sem prestar atenção na vida e, portanto, sem
gozar o prazer de viver à moda dos lagartos. Já repararam como os lagartos ficam horas e
horas imóveis ao sol, de olhos fechados, vivendo, gozando o prazer de viver — só, sem
mistura?
E era muito engraçada a organização que davam ao mês de abril lá no sítio. Com
antecedência resolviam todos os casos que tinham de ser resolvidos, acumulavam coisas de
comer das que não precisam de fogão — queijo, fruta, biscoitos, etc, botavam um letreiro
na porteira do pasto:
1— Emília tinha palavras especiais para tudo, que ela mesma ia inventando. As coisinhas dela, os guardadinhos, as curiosidades do seu museu,
etc, eram os seus “bilongues”. Talvez essa palavra viesse do inglês “belonging”, que quer dizer propriedade, coisa que pertence a alguém.
E deixando os dois meninos ocupados na aposta de pelar laranjas sem feri-las, lá se
dirigiu para o quarto da boa negra, com o toco seguro nas duas mãos, como um círio bento.
II
O Visconde Novo
Estava um céu lindo, transparente como cristal. O assanhamento do brilho das estrelas
parecia os olhos dos meninos quando viam a bandeja de doces que o Coronel Teodorico
mandava no dia dos anos de Dona Benta. Antes de levantarem a toalha da bandeja, os
olhos de todos ali no sítio ficavam como as estrelas daquela noite.
Dona Benta tomou fôlego e falou, apontando para o céu: — Olhem lá aquelas quatro
formando uma cruz! É a constelação do Cruzeiro do Sul. Constelação quer dizer um grupo
de estrelas. Esta constelação do Cruzeiro é a de maior importância para os povos que
vivem do equador para o sul, como nós. Tem a mesma importância da célebre constelação
da Ursa Maior para os povos que vivem ao norte do equador, como os europeus e norte-
americanos. O Cruzeiro do Sul é o nosso relógio noturno. No dia 15 de maio de cada ano
essa constelação fica bem a prumo sobre as nossas cabeças, como o sol ao meio-dia, e
então sabemos que são exatamente nove horas da noite.
— Que engraçado! — exclamou Pedrinho. — Estamos em fins de abril. Logo
chegaremos ao 15 de maio — e eu vou acertar o nosso relógio da sala de jantar pelo
Cruzeiro do Sul. Que beleza, hein, vovó?
— Sim, meu filho. Saber é realmente uma beleza. Uma isquinha de ciência que você
aprendeu e já ficou tão contente. Imagine quando virar um verdadeiro astrônomo, como o
Flammarion!
— Aí, então, ele fica com cara de bobo, a rir o dia inteiro, só de gosto da ciência que
tem lá por dentro — disse Emília.
Dona Benta achou graça e continuou a falar do Cruzeiro.
— As quatro estrelas do Cruzeiro — disse ela — são designadas por meio de letras
gregas. Gama é a estrela do topo da cruz; alfa é a do pé da cruz; beta e delta formam os
braços.
— Mas por que essas estrelas são tão importantes? — quis saber Pedrinho.
— Por causa da disposição regular em forma de cruz, disposição que as torna de fácil
encontro no céu. Num instante a gente corre os olhos e encontra o Cruzeiro. Encontrar as
outras constelações já é mais difícil — exige prática; mas o Cruzeiro até a boba da Tia
Nastácia descobre no céu. Não há por aqui caboclo da roça, nem há negro da África, nem
atorrante da Argentina, nem gaúcho do Uruguai, nem índio de todas as repúblicas da
América do Sul, nem selvagem australiano, nem negro do Congo, Moçambique ou
Hotentótia, nem bôer da Colônia do Cabo, nem papua da Nova Guiné, que não conheça o
Cruzeiro.
— Então Robinson Crusoe também via o Cruzeiro, vovó! — lembrou Pedrinho. — A
ilha dele era a de Juan Fernández, que fica ao sul do equador, perto das costas do Chile.
— Exatamente, meu filho. Quantas vezes Robinson e o seu bom índio Sexta-Feira
não estiveram, como nós agora, a olhar para as quatro estrelas do Cruzeiro!...
— Estou vendo-as — disse Narizinho. — Duas estrelas maiores e duas menores... —
Sim, as maiores são a alfa e a gama e são também das mais brilhantes dos céus do sul.
— E qual é a mais brilhante de todas, vovó?
— Aqui nos céus do sul é uma da constelação do Centauro, que fica logo ao lado do
Cruzeiro.
— Qual é ela? — perguntou Pedrinho.
Dona Benta riscou o céu com o dedo, dizendo:
— Se você tirar uma linha que toque na delta e na beta do Cruzeiro e a prolongar
nesta direção (e o dedo de Dona Benta ia riscando), essa linha vai encontrar duas estrelas
da constelação do Centauro, justamente a alfa e a beta do Centauro — e pronto! Você terá
achado a constelação do Centauro, que é das maiores dos céus do sul. E nessa constelação
a estrela alfa é uma das mais conhecidas de todas. É a terceira em brilho de todo o céu e
uma das mais próximas de nós.
— E aquela mancha negra que estou vendo lá? — perguntou a menina, apontando.
— Pois aquilo é o célebre Saco de Carvão da Via-láctea. Repare na beleza da Via-
láctea, que fica atrás do Cruzeiro. Em certo ponto escurece. Isso quer dizer que naquele
ponto há uma nebulosa escura que tapa as estrelas — e por isso recebeu o nome de Saco de
Carvão.
Pedrinho não tirava os olhos das estrelas da constelação do Centauro.
— Por que, vovó, deram o nome de Centauro àquelas estrelas? Que relação há entre
elas e os monstros meio cavalos e meio homens da mitologia grega?
Dona Benta assoprou.
— Ah, meu filho, os astrônomos, que são homens de muita imaginação, acharam que
uma linha ligando todas as estrelas desse grupo lembra a forma dum Centauro.
— Mas lembra realmente?
— Olhe e decida por si mesmo — e Dona Benta indicou as principais estrelas da
constelação do Centauro. Pedrinho ligou-as com uma linha imaginária e não viu formar-se
centauro nenhum.
— Estou vendo, vovó, que os astrônomos possuem ainda mais imaginação do que a
Emília...
— E assim são as linhas que você tirar de todas as outras constelações — continuou
Dona Benta. — Umas dão uma vaga idéia de qualquer coisa; outras, só com muita força de
imaginação lembram as coisas indicadas pelo nome. Temos ali (e o seu dedo apontava) a
constelação do Pavão. E temos aquela ali que é a do Tucano... Ah, meus filhos, não há
nada mais poético do que a astronomia, ou ciência dos astros! Está aí uma aventura que
vocês podem realizar um dia: um passeio pelas constelações!... Que lindo! Podiam
começar pela estrela Polar, que nós não vemos daqui, mas que para as criaturas humanas é
a mais importante.
— Por que, vovó?
— Porque foi a bússola das mais antigas civilizações. Os egípcios, os babilônios, os
chineses, os hindus, todos os velhos povos ao norte do equador, guiavam-se por essa
estrela, que está sempre visível e marca o pólo. Fica bem em cima do pólo norte. E perto
dela ficam duas constelações muito célebres, a Ursa Menor e a Ursa Maior.
— Por que têm esses nomes? — quis saber Narizinho.
— Porque os mais antigos astrônomos lhes deram esses nomes. Não podiam dar o
nome de Tucano ou qualquer bicho das zonas quentes, próximas do equador. Deram-lhes o
nome do animal que gosta de viver nos gelos — o urso polar. Por essa estrela se guiavam
os navegantes do norte, no tempo em que não havia a bússola. Depois da bússola os
navegantes dispensaram as estrelas — a agulhinha da bússola está sempre voltada para o
norte.
— E as outras constelações?
— Ah, meu filho, há tantas... E inúmeras designadas por meio de nomes de animais,
como as do Escorpião, do Leão, do Cavalo, do Carneiro, dos Peixes, do Cisne, da Lebre, da
Hidra, do Corvo, do Peixe-Voador, da Abelha, da Ave-do-Paraíso, da Girafa, da Raposa,
do Lagarto, da Rena, do Gato...
— E a tal Cabeleira de Berenice, que a senhora falou tanto outro dia? — quis saber
Pedrinho.
— Ah, essa constelação tem um nome muito romântico. Trata-se duma história meio
compridinha...
— Conte, conte — pediram todos — e Dona Benta contou a história dos cabelos da
Princesa Berenice, esposa de Ptolomeu Evergete, rei do Egito.
— Este Ptolomeu — disse ela — havia partido à frente duma expedição guerreira
contra a Síria; e, tomada de medo, Berenice fez à deusa Vênus a promessa de cortar a sua
linda cabeleira e depositá-la no templo da deusa, caso Evergete voltasse vivo e vitorioso.
Ora, o rei voltou vivo e vitorioso e a rainha cumpriu o voto: cortou os cabelos e depositou-
os no templo da deusa. Mas aconteceu uma coisa inesperada: no dia seguinte a cabeleira
havia desaparecido do templo!... E vai então, um astrônomo da ilha de Samos, que acabava
de descobrir no céu uma nova constelação, mandou dizer ao rei que a cabeleira de Berenice
estava lá: eram as sete estrelas que ele havia descoberto entre as constelações do Leão e de
Arturus — e desde esse tempo o grupo das sete estrelas passou a ser conhecido sob o
poético nome de Cabeleira de Berenice.
— Que lindo! — exclamou a menina. — Quando eu tiver uma gatinha, vou botar-lhe
o nome de Berenice...
— Há constelações de nomes ainda mais curiosos — continuou Dona Benta — como
a da Coroa, da Lira, da Flecha, do Altar, da Balança, do Relógio, do Telescópio, da Oficina
Tipográfica, etc. E há as de nome poético, como essa da Cabeleira de Berenice, a da Pomba
de Noé, a dos Cães de Caça, a da Harpa de Jorge, a do Buril do Gravador, a do Escudo de
Sobieski, a do Coração de Carlos II, a da Cabeça de Medusa, a do Homem Ajoelhado, etc.
E há a de Sírio ou do Cão Maior, onde aparece a mais bela estrela do nosso céu,
afastadíssima de nós. Imaginem que Sírio está a mais de 81 trilhões de quilômetros de
distância — isto é, a 540.000 vezes a distância entre a Terra e o Sol...
— E qual é a distância entre a Terra e o Sol?
— É de mais de 150 milhões de quilômetros. Sírio está tão longe de nós que sua luz
gasta quase nove anos para chegar até aqui — e, no entanto, a velocidade da luz é uma
coisa louca. Vamos ver quem sabe qual é a velocidade da luz. Eu já contei.
Pedrinho lembrava-se.
— É de 300.000 quilômetros por segundo — disse ele.
— Por segundo? — admirou-se Narizinho. — Então enquanto eu pisco os olhos a luz
vai daqui até... até... Trezentos mil quilômetros é daqui até onde, vovó?
— É fora deste nosso mundinho, menina, porque você bem sabe que só com 40.000
quilômetros a gente já dá a volta em redor da Terra.
— Então quer dizer que, enquanto eu abro e fecho os olhos, a luz faz sete vezes e
meia a volta da Terra?
— Isso mesmo.
— Puxa! Já é ser apressadinha...
— É que a luz tem botas de 300.000 léguas — lembrou Emília. — Imaginem o
coitadinho do Pequeno Polegar, com suas botinhas de sete léguas, apostando corrida com a
luz! Enquanto ele dava um passo, a luz dava sete...
— Sete o quê, Emília?
— Sete voltas em redor da Terra. Maior danada não pode existir.
V
O telescópio
Por longo tempo lá ficaram na varanda ouvindo as histórias do céu. Dona Benta
parecia um Camilo Flammarion de saia. Esse Flammarion foi um sábio francês que
escreveu livros lindos e explicativos. “Quem não entender o que esse homem conta”,
costumava dizer Dona Benta, “é melhor que desista de tudo. Seus livros são poemas de
sabedoria, claríssimos como água.”
Quem mais se interessou por aqueles estudos foi Pedrinho. Sonhou a noite inteira
com astros e no dia seguinte pulou da cama com uma idéia na cabeça: construir um
telescópio! “Que é, afinal de contas, um telescópio?”, refletiu ele. “Um canudo com uns
tantos vidros de aumento dentro. Esses vidros aumentam o tamanho dos astros, de modo
que eles parecem ficar mais próximos — foi como disse vovó.”
E logo depois do café da manhã tratou de construir um telescópio. Canudos havia no
mato em quantidade — nas moitas de taquara; e vidros de aumento havia no binóculo da
vovó. Pedrinho serrou os canudos necessários, de grossuras bem calculadas, de modo que
uns se encaixassem nos outros, colocou lá dentro as lentes do binóculo de Dona Benta e fez
uma armação de pau onde aquilo pudesse ser manobrado com facilidade, ora apontando
para este lado, ora para aquele.
Enquanto ia construindo o telescópio, dava aos outros, reunidos em redor dele,
amostras da sua ciência.
— O telescópio saiu da luneta astronômica inventada por aquele italiano antigo, o tal
Galileu. Um danado! Inventou também o termômetro e mais coisas.
— Mas telescópio é invenção que até eu invento — disse Emília. — É só cortar
canudos de taquara e grudar uns monóculos dentro...
Pedrinho ia respondendo sem interromper o serviço.
— Parece fácil, e é fácil hoje que a coisa já está sabida. Mas o mundo passou milhões
de anos sem conhecer este meio tão simples de ver ao longe, até que Galileu o inventou.
Também para tomar a temperatura das coisas nada mais simples do que fazer um
termômetro — um pouco de mercúrio dentro dum tubinho de vidro, mas foi preciso que
Galileu o inventasse. Tudo na vida são “ovos de Colombo”.
Depois de pronto o telescópio, houve discussão quanto ao astro que veriam primeiro.
— Eu acho que o primeiro tem que ser o Sol, que é o pai de todos — disse Narizinho.
— E eu acho que deve ser a Grande Ursa, porque é um bicho raro — propôs Emília.
Pedrinho riu-se com superioridade.
— A Grande Ursa não pode, boba, porque fica nos céus do norte. Estes céus aqui são
os céus do sul. E o senhor que acha, Doutor Livingstone? — perguntou ele ao Visconde.
O Doutor Livingstone respondeu batendo na bibliazinha.
— Deus fez por último as estrelas, como diz aqui o Gênesis, mas Cristo disse que os
últimos serão os primeiros. Logo, temos de começar pelas estrelas.
Todos se admiraram daquela sabedoria, mas Pedrinho não se contentou. Quis também
consultar Tia Nastácia lá na cozinha.
— E você, Tia Nastácia, que acha? — perguntou-lhe.
A negra, que acabava de matar um frango, foi de opinião que o bonito seria começar
pela Lua, “onde São Jorge vive toda a vida matando um dragão com sua lança!”
A idéia foi recebida com palmas e berros.
— O dragão! O dragão! Viva São Jorge!... — exclamaram todos — e a lembrança de
Tia Nastácia foi vencedora. Uma linda lua cheia estava empalamando no céu. Pedrinho
apontou para ela o telescópio. Espiou e nada viu. Emília, porém, viu coisas tremendas.
— Estou vendo, sim! — gritou ela. — Estou vendo um dragão verde, tal qual lagarto,
com uma língua vermelha de fora. Língua de ponta de flecha. São Jorge, a cavalo, está
espetando a lança no pescoço do coitado...
— Será possível? — exclamou Pedrinho, afastando-a do telescópio para espiar de
novo — mas continuou a não ver nada.
— Você está sonhando, Emília. Não se vê nem a Lua, quanto mais o dragão.
— Pois eu vejo tudo com o maior “perfeiçume” — insistiu Emília voltando ao
telescópio. — Um dragão de escamas... Com unhas afiadas... Um rabo comprido dando
duas voltas.
Os meninos entreolharam-se. Verdade ou mentira? A boneca tinha fama de possuir
uns olhos verdadeiramente mágicos — mas quem podia jurar sobre o que ela afirmava? A
ânsia de ver coisas, porém, era maior que a dúvida, de modo que resolveram aceitar como
verdade as afirmações da Emília e nomeá-la a “olhadeira do telescópio”. Ela que fosse
vendo tudo e contando aos outros.
Emília começou. Depois de enumerar todas as coisas que viu na Lua, apontou o
telescópio para uma estrela qualquer.
— Xi — exclamou fazendo cara de espanto. — Como é peluda!... E tem dois ursinhos
ao colo... Está brincando com um de cara preta... Agora franziu a testa... Parece que
percebeu que estamos apontando para lá... Com certeza pensa que este telescópio é
espingarda... A Grande Ursa é enormíssima...
— A Grande Ursa não é estrela daqui, Emília. Vovó já disse. Você está nos bobeando
— gritou Pedrinho meio zangado.
Mas Emília continuou a ver coisas e a insistir que era realmente uma estrela Ursa.
“Com certeza cansou-se dos gelos polares e chegou cá a estes céus do sul para esquentar o
corpo...”
Pedrinho deu-lhe um peteleco.
VI
Viagem ao céu
Daquela brincadeira do telescópio nasceu uma idéia — a maior idéia que jamais
houve no mundo: uma viagem ao céu! A coisa parecia impossível, mas era simplicíssima,
porque ainda restava no bolso de Pedrinho um pouco daquele pó de pirlimpimpim que o
Peninha lhe dera na viagem ao País das Fábulas. A quantidade existente bastava para levar
seis pessoas.
— O bom seria irmos todos — propôs a menina. — Todos menos vovó, coitada.
Sofreu tanto lá com o Pássaro Roca, que bem merece um bom descanso-de-lagarto.
— Mas Tia Nastácia não há de querer ir — lembrou Pedrinho. — É a maior das
medrosas.
— Pois levemo-la à força — sugeriu Emília.
— Como?
— Muito fácil. Ninguém lhe diz nada dos nossos projetos. Na hora de partir,
Narizinho faz cara de santa e lhe dá uma pitada do pó dizendo que é rapé. Ela adora o
rapé...
— Não está mal pensado — disse Pedrinho. — E o Burro Falante? Vai ou fica?
— Vai — decidiu Narizinho. — Vamos ter muita necessidade dele na Lua. E se lá
vive o cavalo de São Jorge, pode muito bem viver um burro.
Tudo bem assentado, puseram-se a cuidar dos preparativos. Dessa vez Emília não
pensou em levar a sua canastrinha. Levou outra coisa — uma coisa que ninguém pôde
descobrir o que era. Um “bilongue” pequenininho, embrulhado em papel de seda e
amarrado com um fio de lã cor-de-rosa. Narizinho insistiu em saber o que era.
— Não digo, não! — respondeu a boneca. — Se eu disser vocês caçoam. É uma idéia
muito boa que eu tive...
No dia seguinte, bem cedo, levantaram-se na ponta dos pés e saíram para o terreiro,
enquanto Narizinho se dirigia ao quarto de Tia Nastácia. Tinha de enganá-la, mas como?
Pensou, pensou e afinal resolveu-se.
— Tia Nastácia! — gritou do lado de fora da janela. — Venha ver que manhã linda
está fazendo.
A negra estranhou a novidade. Levantarem-se cedo assim não era comum, e ainda
menos Narizinho convidá-la para “ver a manhã”, uma coisa tão à toa para uma negra que se
levanta sempre às cinco horas. Mas foi ao terreiro ver o que era, com aqueles resmungos de
sempre. Lá encontrou todos reunidos em redor do Burro Falante e a cochicharem baixinho:
— Hum! Temos novidade — murmurou a preta consigo, já na desconfiança. — Qual
é a “peça” de hoje, Pedrinho?
— Nada, boba! Que peça havia de ser? É que nos deu na cabeça levantarmos muito
cedo para assistirmos ao nascer do sol e agora estamos brincando de espirrar com este rapé
que arranjei na cidade.
— Rapé? Rapé? — repetiu a preta, que era doidinha por uma pitada de rapé. — Será
daquele que o Coronel Teodorico, compadre de Dona Benta, usa?
O Coronel Teodorico, fazendeiro vizinho de Dona Benta, aparecia por lá de vez em
quando a visitá-la. Era compadre de Dona Benta, homem dos bem antigos, dos que até rapé
ainda tomam. O tal rapé não passa de fumo torrado e moído; quem o aspira pelo nariz
espirra — e parece que o gosto é esse: espirrar... Napoleão foi um grande tomador de rapé.
Hoje pouca gente usa tal coisa, só os homens muito carrancas e conservadores, como
aquele compadre de Dona Benta.
— Pois quero experimentar, sim — disse a negra. — O coronel chupa esse rapé com
tanto gosto que sempre tive desejo de ver se a marca é boa — e assim falando tomou o pó
que o menino lhe apresentava e sem desconfiança nenhuma aspirou-o. Assim que a negra
fez isso, os outros fizeram o mesmo, inclusive o burro e... mais nada! Veio aquele fiunnn
no ouvido, e depois a tonteira própria do pó de pirlimpimpim, e todos perderam a
consciência. Estavam voando pelo espaço com a velocidade quase da luz.
Súbito, perceberam que haviam chegado. Começaram a abrir os olhos. No começo
nada viram. Tudo muito embaralhado. Por fim as coisas se foram aclarando e puderam
olhar em torno. Estavam numa terra esquisitíssima, sem gente, sem vida, toda cheia de
picos de montanhas em forma de crateras de vulcões extintos. Todos haviam voltado a si,
menos Nastácia. A pobre negra, que pela primeira vez naquele dia aspirava o pó de
pirlimpimpim, estava escarrapachada no chão, com os olhos arregaladíssimos — mas sem
ver nem sentir coisa nenhuma.
— Temos de esperar que ela acorde — disse Pedrinho. — Parece que a boba tomou
dose dupla...
Esperaram alguns minutos, até que a negra começou a dar mostras de estar voltando a
si. Passou a mão pela cara, esfregou os olhos e, correndo-os em torno, disse com voz
sumida:
— Que será que me aconteceu? Amode que caí num poço...
— Não caiu nada, bobona. Você está conosco num astro qualquer no céu.
— No céu?!... — repetiu a preta, arregalando ainda mais os olhos. — Deixem de
pulha. Para que enganar uma pobre velha como eu?
— Não estamos enganando ninguém, Nastácia — disse Pedrinho. — Estamos, sim,
no céu, num astro que ainda não sabemos qual é.
O assombro da negra foi tamanho que não achou palavra para dizer. Nem o seu
célebre “Credo!” ela murmurou. Quedou-se imóvel onde estava, a olhar ora para um, ora
para outro, de boca entreaberta.
— Eu acho que isto aqui é o Sol — declarou Emília. — Apenas estou estranhando
não ver nenhuma floresta de raios.
— O disparate está de bom tamanho! — caçoou Pedrinho. — Não sabe que o Sol é
mais quente que todos os fogos e que se estivéssemos no Sol já estávamos torrados até o
fundo da alma? Pelo que vovó nos explicou, isto está com cara de ser a Lua — mas não
tenho certeza. De longe é muito fácil conhecer a Lua — aquele queijo que passeia no céu.
Mas de perto é dificílimo. O melhor é mandarmos o Doutor Livingstone a um astro
próximo para de lá nos dizer se isto é mesmo a Lua ou o que é.
Uma pequena dose do pó de pirlimpimpim foi enfiada no nariz do antigo Visconde, o
qual imediatamente se sumiu no espaço. Emília deixou passar uns segundos e gritou para o
ar:
— É a Lua ou não, Doutor Livingstone?
Mas nada de resposta. A distância devia ser muito grande, de modo que a vozinha
rouca do Doutor Livingstone não podia chegar até eles.
— Que asneira fizemos! — exclamou Pedrinho. — Devíamos ter pensado nisso —
que era impossível que a vozinha do Visconde pudesse varar a imensidão do espaço. Além
disso, para onde será que ele se dirigiu? Em que astro foi parar? Há milhões e milhões de
astros por essa imensidade afora...
— Milhões e milhões, Pedrinho? Não acha meio muito? — duvidou a menina.
— Pois é o que dizem os astrônomos. O espaço é infinito. Sabe o que é ser infinito? É
não ter fim, nunca, nunca, nunca. Quem sair voando em linha reta por essa imensidade não
volta jamais ao mesmo ponto. Fica a voar eternamente.
Emília interrompeu-o:
— Achei um jeito de resolver o caso de saber que astro é este. Basta fazermos uma
votação. Se a maioria votar que isto é a Lua, fica sendo a Lua. É assim que os homens lá na
Terra decidem a escolha dos presidentes: pela contagem dos narizes.
Não havendo outro meio de saírem daquela incerteza, fizeram a votação. Pedrinho foi
tomando os votos.
— Você, Narizinho?
— Lua!
— E você, Emília?
— Luíssima!
— Eu, Pedrinho, também Lua. E você, Tia Nastácia?
A negra, ainda tonta, olhou para o menino com expressão idiotizada e respondeu:
— Para mim, nós estamos na Terra mesmo; e tudo que está acontecendo não passa de
um sonho de fadas.
— Três narizes a favor da Lua e um a favor da Terra! — gritou Pedrinho. — A Lua
ganhou. Estamos na Lua. Viva a Lua!...
A negra sentiu um calafrio. Se a maioria tinha decidido que estavam na Lua, então
estavam mesmo na Lua. E isso de estar na Lua parecia-lhe um enorme perigo. A única
coisa que Tia Nastácia sabia da Lua era que lá morava São Jorge a cavalo, sempre ocupado
em espetar na sua lança o dragão. Com São Jorge, que era um santo, ela poderia arranjar-
se. Mas que fazer com o dragão? E a pobre negra pôs-se a tremer.
— Meu Deus! — suspirou ela. — Tudo é possível neste mundo...
— Como sabe? — perguntou Emília espevitadamente.
— Se você nunca esteve neste mundo, como sabe que nele tudo é possível?
— Quando eu digo este mundo, falo do meu mundo, do mundo onde nasci e sempre
morei — explicou a preta.
— Bom. Se você se refere ao mundo em que nasceu e sempre morou, deve dizer
naquele mundo, porque este mundo é a Lua, e neste mundo da Lua não sabemos se tudo é
possível.
Enquanto Emília argumentava com a preta, Pedrinho afastou-se para examinar a
paisagem. Sim, tudo exatamente como Dona Benta dissera. Aparentemente, nada de água
e, portanto, nada de vegetação e vida animal como na Terra. Sem água não há vida. Todas
as vidas são filhas da água. E o número de crateras não tinha fim.
Pedrinho ia levando o burro pelo cabresto e com ele trocava impressões.
— Se não há água neste astro, então também não há capim — dizia o pobre animal.
— Não haver capim!... Que absurdo! O capim é o maior encanto da natureza. É uma coisa
que me comove mais que um poema.
— E qual é a sua opinião, burro, sobre a formação da Lua? Há várias hipóteses.
— Sim. Uns sábios acham que a Lua foi um pedaço da Terra que se desprendeu no
tempo em que a Terra ainda estava incandescente. Outros acham que o planeta Saturno foi
vítima duma tremenda explosão causada pelo choque dum astro errante. Fragmentos de
Saturno ficaram soltos no céu, atraídos por este ou aquele astro. Um dos fragmentos foi
atraído pela Terra e ficou a girar em seu redor.
— E sabe que tamanho tem a Lua?
— O volume da Lua é 49 vezes menor que o da Terra. A superfície é treze vezes
menor. A superfície da Lua é de 38 milhões de quilômetros quadrados — mais que as
superfícies da Rússia, dos Estados Unidos e do Brasil somadas.
Pedrinho admirou-se da ciência do burro. Não havia lido astronomia nenhuma e
estava mais afiado que ele, que era um Flammarionzinho... Mas não querendo ficar atrás,
disse:
— Pois eu também sei uma coisa da Lua que quero ver se é certa. O peso de tudo aqui
é mais de seis vezes menor que lá na Terra. Um quilo lá da Terra pesa aqui 154 gramas.
Eu, por exemplo, que lá em casa peso 46 quilos, aqui devo pesar 7 quilos!... É pena não
termos uma balança para verificar isso.
— Há um jeito — lembrou o burro. — Dê um pulo e veja se pula seis vezes mais
longe que lá no sítio.
Pedrinho achou excelente a idéia. Os melhores pulos que ele havia dado no sítio
foram: pulo de altura, 1 metro e 20; e de distância, 5 metros. Se ali na Lua ele pulasse seis
vezes e pouco mais longe que no sítio, então estavam certos os cálculos dos astrônomos.
Pedrinho amarrou o burro numa ponta de pedra, marcou um lugar no chão, deu uma
carreira e pulou — e foi parar exatamente a 33 metros de distância, mais de seis vezes o
seu pulo recorde lá no sítio! E no pulo de altura alcançou mais de 8 metros. Um
assombro!...
Depois de feitas as medições, Pedrinho ficou radiante.
— É verdade, sim! — gritou ele. — Aqui na Lua eu pulo melhor que qualquer
gafanhoto da Terra — e começou a brincar de pular. Deu vinte pulos de altura; e depois em
cinco pulos chegou ao ponto onde estavam os outros — uma distância total de 165 metros.
— Que é isso, Pedrinho? — exclamou a menina. — Virou pulga?
— Aqui toda gente vira pulga — respondeu ele. — Experimente pular. Veja que
gostosura.
Narizinho pulou e viu que estava levíssima. Emília também pulou como um grilo. E
ainda estavam entretidos naquele pula-puía, quando Tia Nastácia apareceu, muito aflita,
com a pacuera batendo.
— Um bufo! — exclamou a pobre preta, toda sem fôlego. — Ouvi um bufo! Há de
ser do dragão...
Pedrinho riu-se.
— Dragão nada, boba. Isso de dragão é lenda. Como poderia um dragão vir da Terra
até aqui, se na Terra não há dragões? Tudo é fábula. E se acaso pudesse um dragão vir da
Terra até aqui, como viver num astro que não tem água nem vegetação? Isso de dragão na
Lua não passa de caraminhola de negra velha...
Apesar dessas palavras, novo bufo soou. Todos voltaram-se na direção do som e com
o maior dos assombros viram sair de dentro duma das crateras a monstruosa cabeça do
dragão de São Jorge.
— Lá está o malvado! — berrou Emília. — Enxergou o burro e vem comê-lo.
Tia Nastácia ia dando um berro de pavor, que Narizinho teve tempo de evitar
tapando-lhe a boca. “Louca! Se você grita, ele ouve e vem devorar-nos. Por enquanto só
viu o burro. Temos de esconder-nos numa das crateras.”
O dragão ia lentamente saindo de sua toca. Breve puderam vê-lo todo de fora — um
comprido corpo de lagarto recoberto de escamas verdes e com uma enorme cauda de serra
com ponta de flecha no fim. Tal qual Emília o descrevera ao telescópio. A língua também,
muito vermelha, terminava em ponta de flecha.
Todos se encolheram dentro dum buraco próximo e ficaram a espiar por uma
rachadura da pedra. Falavam aos cochichos.
— Ele está na Lua há séculos — sussurrou Pedrinho — e há séculos que não come
coisa nenhuma. Agora viu o burro. Sua fome despertou. Olhem como está lambendo os
beiços com aquela língua de flecha...
— Mas não podemos deixar que coma o nosso burro — murmurou Narizinho. —
Vovó ficaria danada. Temos de salvá-lo...
— Como?
— Indo procurar São Jorge. Se existe o dragão, há de existir também São Jorge.
— Sim, mas onde morará ele? Nalguma cratera também? O dragão aproximava-se
cada vez mais, embora muito lentamente. Parece que com os séculos de imobilidade
passados ali seus músculos tinham enferrujado.
— E o burro está amarrado pelo cabresto a uma ponta de pedra. Não pode fugir! Que
estupidez a minha, amarrar um burro daqueles...
— Pois é desamarrá-lo — sussurrou Emília. — Não vejo outro jeito.
— E quem vai fazer isso?
— Eu, que sou de pano — e sem mais discussão Emília saiu do buraco e correu na
direção do burro, o qual já estava dando visíveis sinais de terror.
O que valeu foi o emperramento dos músculos do dragão. Vinha vindo como fita em
câmera lenta. Emília num instante alcançou a ponta de pedra, desfez o nó do cabresto e
gritou para o burro: “Fuja, senão está perdido para sempre! Esse dragão há séculos que não
come coisa nenhuma”.
Com grande surpresa, porém, Emília viu que o pobre burro, paralisado pelo terror,
não se mexia do lugar.
— Vamos! — gritava ela. — Mova-se! Raciocine e fuja...
E o burro imóvel, paralisado de movimentos, não conseguia nem raciocinar, quanto
mais fugir!
O dragão vinha vindo, vinha vindo, balançando a língua de ponta de flecha para a
direita e para a esquerda. Mais uns segundos e chegava — e adeus, Burro Falante!...
Na sua aflição Emília teve uma grande idéia. Correu a buscar com Pedrinho uma
pitada de pó — e de volta assoprou-o nas ventas do pobre burro paralisado. Isso exatinho
no momento em que a ponta da língua do dragão já se armava para fisgar. Ouviu-se um
fiunnn e o burro lá se foi pelos espaços, que nem um cometa.
Vendo-se logrado, o dragão desferiu um urro medonho, ao mesmo tempo que jatos de
fogo espirraram de seus olhos.
Nem de propósito. São Jorge, que estava cochilando longe dali, ouviu o estranho urro,
pulou no cavalo e veio de galope.
Assim que o viu chegar, o dragão baixou a cabeça com grande humildade e foi
tratando de recolher-se à sua cratera.
— Já, já para a toca, seu malandro! — gritou São Jorge sacudindo no ar a lança.
Depois, vendo por ali aquela boneca, abriu a boca, espantadíssimo.
VII
Coisas da Lua
— Mas o mais bonito da Lua — disse depois São Jorge — é a Terra, a nossa Terra
que daqui vemos perpetuamente no céu, girando sobre si mesma. Olhe como está linda!
Parece incrível, mas só naquele momento os meninos ergueram os olhos para o céu e
lá viram a Terra. Tão entretidos desde a chegada estiveram com as coisas do chão, que só
naquele instante deram com o espetáculo mais belo da Lua — a Terra vista de lá.
— Que beleza! — exclamou Narizinho. — Só para ver este espetáculo vale a pena vir
à Lua...
A Terra é a lua da Lua. Mora permanentemente no céu da Lua, sempre girando sobre
si mesma e a mostrar os seus continentes e mares. Um verdadeiro relógio. Quem quer saber
das horas é só olhar para a Terra em seu giro sem fim e ver que continentes vão
aparecendo.
Naquele momento a face que a Terra exibia estava completamente escura, porque era
dia de eclipse do Sol. Mas depois de findo o eclipse, quando o Sol voltou a iluminar a
Terra, os meninos se regalaram. Lá estava bem visível, como num mapa, o continente
americano, composto de dois grandes “VV”, um em cima do outro. No alto do V de cima
aparecia uma brancura vivíssima — as terras de gelo do pólo norte; e igual brancura
aparecia embaixo do segundo V — as terras de gelo do pólo sul. E apareciam umas
imensidades escuras — os oceanos. E também grandes zonas de verdura.
— Aquela verdura enorme — disse Pedrinho — é o Brasil e os países que ficam perto
dele — Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Peru, Bolívia, etc. Está vendo aquelas
minhocas que varam o continente de ponta a ponta, com brancura em certos trechos do
dorso? Pois são os Andes, a grande cordilheira cheia de picos de neves eternas, e a
cordilheira do México e as montanhas Rochosas. E lá em cima estão o Canadá, os Estados
Unidos, o México e a América Central... Aqueles pontinhos de outra cor na imensidão do
mar são as ilhas — Cuba e tantas outras...
São Jorge não estava entendendo coisa nenhuma, porque todos aqueles nomes lhe
eram novidade.
— Meu Deus! — exclamou em certo momento. — Será possível que haja no mundo
tantos países novos que eu não conheça?
— Se há! — exclamou Pedrinho. — Isso de países é como broto de árvore. Uns
secam, apodrecem e caem — e surgem brotos novos. Quais eram os países do seu tempo?
São Jorge suspirou.
— Ah, no meu tempo o mundo era bem menor. Havia Roma, a grande Roma, cabeça
do Império Romano — e o Império Romano era tudo. Quase todos os povos da Europa
estavam dominados pelos romanos — como a Espanha, a Aquitânia, a Bretanha, a
Macedônia, a Grécia, a Trácia, a Panônia, a Arábia Petréia, a Galácia, a Cilícia, a
Mauritânia lá na costa da África...
— E a tal Capadócia onde o senhor nasceu? — perguntou a menina.
— A minha Capadócia ficava entre um país de nome Ponto e outro de nome Cilícia
— junto da Mesopotâmia.
Pedrinho contou que estava tudo muito mudado. O tal Império Romano já não existia;
em vez dele surgira o Império Britânico, cuja cabeça era a Grã-Bretanha.
Ao ouvir falar em Grã-Bretanha São Jorge arregalou os olhos. Percebeu que era a
mesma Bretanha do seu tempo, um país que na era dos romanos não valia nada. E também
muito se admirou quando Pedrinho se referiu à Rússia como o maior país do mundo, e à
China, e à índia e ao Japão.
— Onde fica a tal Rússia? — perguntou ele.
Pedrinho explicou como pôde, e por fim São Jorge descobriu que a famosa Rússia
devia ser numas terras muito desconhecidas dos romanos e às quais vagamente eles
chamavam Sarmácia. Da China e do Japão o santo não tinha a mais leve idéia.
— Como tudo está mudado! — exclamou ele. — Se eu voltar à Terra, não
reconhecerei coisa nenhuma.
— Também acho — concordou Pedrinho. — Há continentes inteiros que no seu
tempo eram totalmente ignorados, como as Américas e o continente australiano. As
Américas foram descobertas mais ou menos ali em redor do ano 1.500, e a Austrália em
redor do ano 1.800.
— Onde fica essa Austrália?
— Nos confins do Judas! — berrou Emília. — Nem queira saber. Existem lá uns tais
cangurus que carregam os filhotes numa bolsa da barriga. E há o boomerang, que a gente
joga e ele volta para cima da gente.
A ignorância de São Jorge era natural, visto como vivera no tempo de Diocleciano,
cujo reinado fora entre os anos 284 e 313. De modo que fez muitas perguntas a Pedrinho,
grandemente se assombrando com as respostas.
Emília estava com cara de quem quer dizer uma coisa, mas não se atreve. Por fim
afastou-se de Narizinho (para evitar o beliscão) e de repente disse:
— Santo, desculpe o meu intrometimento — mas lá no sítio, quando alguém quer
dizer que um gajo não presta, e é vadio ou malandro, sabe como diz? Diz que é um
capadócio!...
Narizinho fuzilou-a com os olhos, mas São Jorge não se zangou, até sorriu, e foi
suspirando que explicou:
— Meus patrícios lá da Capadócia sempre tiveram má fama — e fama exatamente
disso, de mandriões, de fanfarrões, de mentirosos. Mas o que admira é que apesar de tantos
séculos, a palavra “capadócio” ainda esteja em uso até num país que nem existia no meu
tempo...
— Pois existe — continuou Emília sempre com o olho em Narizinho — e acho que o
senhor não deve andar dizendo que é um capadócio, porque não há o que desmoralize
mais...
— Emília!... — gritou a menina ameaçando-a com um tapa. Mas São Jorge acalmou-a
e, chamando Emília para o seu colo, alisou-lhe a cabeça.
— Vou seguir o seu conselho, bonequinha. Não contarei nem ao dragão que sou um
capadócio...
IX
Tia Nastácia
Enquanto conversavam, Tia Nastácia, sempre à distância, rezava, e volta e meia fazia
um pelo-sinal.
— Como deram com ela aqui? — perguntou São Jorge, pondo os olhos na pobre
negra.
Foi Emília quem respondeu.
— Ah, santo, Tia Nastácia é a rainha das bobas. Veio conosco enganada. Cheirou o
pirlimpimpim pensando que era rapé...
São Jorge quis saber o que era rapé e pirlimpimpim, e muito se admirou das
prodigiosas virtudes do pó mágico. Depois fez sinal à Tia Nastácia para que se
aproximasse.
— Venha, boba! — animou Emília. -— Ele não espeta você com lança. É um santo.
Tia Nastácia fez três pelo-sinais todos errados, e foi se aproximando, trêmula e
ressabiada. Estava ainda completamente tonta de tantas coisas maravilhosas que vinham
acontecendo. O dragão, o sumiço que levaram o Visconde e o burro, aquele prodigioso
santo vestido de armadura de ferro, com capacete na cabeça, escudo no braço e “espeto”
em punho — e lá no céu aquela enorme “lua” quatro vezes do tamanho do Sol — tudo isso
era mais que bastante para transtornar a sua cabeça pelo resto da vida.
Mesmo assim veio toda a tremer, com os beiços pálidos como de defunto.
— Não tenha medo — disse-lhe Narizinho. — São Jorge não come gente. É um
grande amigo nosso e muito boa pessoa.
Tia Nastácia afinal chegou-se — mas embaraçadíssima. Tinha as mãos cruzadas no
peito e os olhos baixos, sem coragem de erguê-los para o santo. Estar diante dum santo
daqueles, tão majestoso na sua armadura de ferro, era coisa que a punha fora de si.
— Não tenha medo de mim — disse São Jorge sorrindo. — Diga-me: está gostando
deste passeio à Lua?
O tom bondoso da pergunta fez que a pobre negra se animasse a falar.
— São Jorge me perdoe — disse ela com a voz atrapalhada. — Sou uma pobre negra
que nunca fez outra coisa na vida senão trabalhar na cozinha para Dona Benta e estes seus
netos, que são as crianças mais reinadeiras do mundo. Eles me enganaram com uma
história de rapé do Coronel Teodorico, o compadre lá de Sinhá Benta, e me fizeram cheirar
um pó que mais parece arte do canhoto. Agora a pobre de mim está aqui nesta Lua tão
perigosa, sem saber o que fazer nem o que pensar. Minha cabeça está que nem roda de
moinho, virando, virando. Por isso rogo a São Jorge que me perdoe se minhas humildes
respostas não forem da competência e da fisolustria dum santo da corte celeste de tanta
prepotência...
Todos riram-se. A pobre preta achava que diante dos poderosos era de bom-tom
“falar difícil”, e sempre que queria falar difícil vinha com aquelas três palavras,
“competência”, “prepotência” e “fisolustria”. Ela ignorava o significado dessas coisas, mas
considerava-as uns enfeites obrigatórios na “linguagem difícil”, como a cartola e as luvas
de pelica que os homens importantes usam em certas solenidades.
— Fale simples, como se você estivesse na cozinha lá de casa — disse Narizinho. —
Do contrário encrenca, e São Jorge até pode pensar que você lhe está dizendo desaforos...
— Credo, sinhazinha! — exclamou Tia Nastácia benzendo-se com a mão esquerda.
— Quem é a pobre de mim para dizer algum desaforo a um ente da corte celeste? Até de
pensar nisso meu coração já esfria...
São Jorge teve dó dela. Viu que se tratava duma criatura excelente, mas muito
ignorante — e deu-lhe umas palmadinhas no ombro.
— Sossegue, minha boa velha. Não se constranja comigo. Vejo que sua profissão na
vida tem sido uma só — cuidar do estômago de sua patroa e dos netos dela. Quer ficar aqui
na Lua cozinhando para mim?
Aquela inesperada proposta atrapalhou completamente a pobre negra. Ficar na Lua
ela não queria por coisa nenhuma do mundo, não só de medo do dragão como de dó de
Dona Benta, que não sabia comer comidas feitas por outra cozinheira. Mas recusar um
convite feito por um santo ela não podia, porque onde se viu uma simples negra velha
recusar um convite feito por um ente da corte celeste? E Tia Nastácia gaguejou na resposta.
Vendo aquela atrapalhação, Narizinho respondeu em seu nome.
— Tia Nastácia fica, São Jorge — mas só por uns tempos. Nosso plano não é passear
apenas na Lua. A viagem vai ser também pelas outras terras do céu. Queremos conhecer
alguns planetas, como Marte, Vênus, Netuno, Saturno, Júpiter, e também dar um pulo à
Via-láctea. Em vista disso, acho que podemos fazer uma combinação. Tia Nastácia fica
cozinhando para o senhor enquanto durar a nossa viagem. Quando tivermos de voltar para
a Terra, portaremos de novo aqui e a levaremos. Não fica bem assim?
— Ótimo! — exclamou o santo. — Está tudo assentado. Durante o passeio que vocês
pretendem fazer, Tia Nastácia ficará sob minha guarda, cozinhando para mim. Quanto ao
dragão, ela que descanse. O meu dragão está muito velho e inofensivo. Lá na Terra comia
até filhas de reis — mas aqui vive só de brisas. Não haverá perigo de nada.
Depois de tudo bem assentado, São Jorge foi mostrar à pobre preta onde era a
cozinha, deixando-a lá com as panelas. E foi desse modo que à medrosa Tia Nastácia
aconteceu a aventura mais prodigiosa do mundo: ficar como cozinheira dum grande santo,
lá no fundo duma cratera da Lua...
X
Mais vistas da Terra
Horas depois a vista daquela enorme Terra pendurada no céu já estava completamente
mudada, e Pedrinho retomou as suas lições de geografia a São Jorge.
— Lá está o continente europeu! — disse ele. — Aquelas ilhas naquele ponto (e
apontava) são as ilhas Britânicas, ou Grã-Bretanha — a tal Bretanha sem nenhuma
importância no tempo do seu amigo Diocleciano. Mais adiante temos a Noruega com os
seus fiordes...
— E suas sardinhas também — acrescentou Emília. — As sardinhas da Noruega
viajam pelo mundo inteiro nuns barquinhos, chamados “latas”.
São Jorge não entendeu, porque no seu tempo não havia latas. Pedrinho continuou:
— A tal Rússia, que o senhor queria saber onde ficava, lá está — aquele país grandão.
É a terra dos russos barbudos, dos cossacos, do caviar, das danças lindas e dos sovietes. Foi
onde Napoleão levou a breca.
— Quem é esse leão? — perguntou o santo.
— Um grande matador de gente — explicou Pedrinho. — Depois de matar milhões
de criaturas na Europa, resolveu matar russos, e invadiu a Rússia com um exército de
600.000 homens. Chegou até Moscou, que era a capital. Mas sabe o que os russos fizeram?
Assim que Napoleão foi se aproximando, tocaram fogo nas casas e retiraram-se — e o
pobre Napoleão, em vez de conquistar uma cidade, conquistou uma fogueira.
— Bem feito! — exclamou Emília.
— Em vista disso -— continuou Pedrinho — o conquistador não teve outro remédio
senão voltar para a França com o seu exército. Essa França era a Aquitânia do tempo de
Diocleciano. Mas o inverno russo estava bravo; e os dois, o inverno russo e o exército
russo, caíram em cima dos franceses, fazendo uma horrorosa matança. Só vinte e tantos mil
homens, dos 600.000, conseguiram atravessar a fronteira, imagine! Vovó conta a história
de Napoleão na Rússia dum modo que até arrepia os cabelos da gente.
São Jorge sacudia a cabeça, pensativo. Tudo lhe eram novidades.
— E lá aquela bota, Pedrinho? — perguntou Emília, apontando.
— Pois é a Itália dos italianos. Lá é que ficava a tal Roma do tal Diocleciano, amigo
cá do nosso São Jorge. Repare que a bota italiana está dando um pontapé numa ilha — a
Sicília.
— Bem feito! — exclamou a boneca.
— E aquelas duas ilhas perto do cano da bota? — perguntou Narizinho.
— A maior é a ilha da Sardenha ou Sardinha, e a menor é a ilha da Córsega, onde
nasceu o tal Napoleão.
— Que desaforo, a ilha da Sardinha ser maior que a de Napoleão! — exclamou
Emília. — Para que quer uma sardinha uma ilha tão grande assim? Eu, se fosse fazer o
mundo...
— Já sei — interrompeu a menina — dava a ilha maior a Napoleão e a menor à
sardinha, não é isso?
— Não! — gritou a boneca. — Dava as duas para Napoleão e à sardinha dava uma
lata. As sardinhas precisam muito mais de latas do que de ilhas.
Todos riram-se, menos São Jorge, que não entendeu aquele negócio de latas.
— E aquela terra grandalhona embaixo da Europa? — perguntou Narizinho,
apontando.
— Pois lá é a África, não vê? Dentro fica o deserto do Saara, com os seus oásis tão
lindos, as caravanas de camelos, as palmeiras que dão tâmaras gostosas.
— E a terra dos bôeres que fizeram guerra aos ingleses? Onde fica?
— Essa é bem no fim da África, naquela pontinha. Lá existe a Cidade do Cabo, que é
a capital.
Emília deu uma risada gostosa.
— Um cabo que tem cidade, ora vejam! — exclamou. — E depois dizem que a
asneirenta sou eu... Onde se viu um cabo com cidade na ponta?
— É um modo de dizer — explicou Pedrinho. — Chama-se Cidade do Cabo porque
fica perto do famoso cabo da Boa Esperança, que o navegador português Vasco da Gama
dobrou pela primeira vez.
Emília abriu a torneirinha.
— Que danado! — exclamou arregalando os olhos. — Dobrar sem mais nem menos
um cabo assim deve ser coisa difícil. Esse Vasco, ou tinha a força de dois elefantes ou o tal
cabo era como o daquela caçarola de alumínio de Dona Benta, tão mole que até eu dobro
quando quero.
Narizinho cochichou ao ouvido de São Jorge que Emília estava com a torneirinha
aberta. “Que torneirinha?”, perguntou o santo. “A torneirinha de asneiras que ela tem no
cérebro. Quando Emília abre essa torneirinha, ninguém pode com a sua vida.”
Depois que Emília parou de asneirar São Jorge pôs-se a dizer onde ficavam as terras
conquistadas pelos romanos do seu tempo. Mostrou tudo, até o lugarzinho onde era a sua
Capadócia e o ponto onde existiu Cartago, a república africana rival de Roma e por esta
destruída depois de várias guerras. E contou tantas histórias do tempo de Diocleciano que
as crianças, já cansadas, adormeceram.
XI
Continua a viagem
O que lá no sítio Pedrinho ouvira de Dona Benta a respeito de Marte estava bem
fresco em sua lembrança.
— Marte é um planeta de volume seis vezes menor que o da Terra — havia dito a boa
senhora. — No dia em que houver facilidades de comunicação entre os mundos, Marte há
de ser uma estação balneária da Terra. Os homens irão passar lá férias ou temporadas. É
pertíssimo.
— A que distância fica?
— A 56 milhões de quilômetros.
— Só? — admirou-se Pedrinho, que já andava tonto com as tremendíssimas
distâncias entre a Terra e as estrelas. — Esses 56 milhões de quilômetros a luz vence em 2
minutos e 6 segundos. Sabe, vovó, que a velocidade do nosso pó de pirlimpimpim é a
mesma da luz? A Emília até diz que o pirlimpimpim é luz em pó...
Dona Benta riu-se da asneirinha e continuou a falar de Marte.
— As estações lá — disse ela — correspondem às daqui, com as mesmas
temperaturas. As condições de Marte assemelham-se muito às nossas, mas o ano de lá tem
687 dias.
— Que “anão”! — exclamou Pedrinho admirado. — E o peso?
— Menor que aqui. Um quilo nosso pesa 374 gramas em Marte.
— Ótimo! Quem vai para Marte deve sentir-se leve como rolha. Para corridas e pulos
deve ser o planeta ideal.
Houve um ponto em que Dona Benta muito insistiu: os canais que através dos
telescópios os astrônomos enxergam nesse planeta. E disse:
— Os astrônomos distinguem em Marte uma verdadeira rede de canais, em linhas
retas e curvas, ligando mares; mas não são coisas naturais — parecem artificiais, ou feitas
pelos homens de lá.
— Como sabem? — duvidou Pedrinho.
— Porque parecem traçados a compasso e régua, que são invenções dos homens. A
natureza tem o bom gosto de não usar esses instrumentos. Já reparou que ela nada faz
perfeitamente reto ou perfeitamente curvo, como as linhas e círculos traçados pela régua e
o compasso?
— Isso não, vovó! — contestou o menino. — Certas palmeiras têm o tronco em linha
reta, e o maracujá e outras frutas são bem redondinhos.
— Se com a régua e o compasso você conferir a linha reta duma palmeira ou o
redondo de qualquer fruta, verificará que são mais ou menos — nunca exatamente. A
natureza tem horror à precisão da régua e do compasso.
— Eu sei — disse Pedrinho pensativo. — O instrumento que a natureza usa é o
mesmo daquele Zé Caolho que esteve consertando a casa do Elias Turco: o olhômetro! O
Zé Caolho mede tudo com aquele olho torto, a que Emília deu o nome de “olhômetro”. Ele
não usa régua, nem compasso, nem trena, nem nível, nem prumo. É tudo ali na “batata do
olhômetro”, como diz a Emília.
— Pois a natureza é assim, meu filho. Parece que tem horror à geometria. Faz tudo
mais ou menos — e por isso são tão belas as coisas naturais. Se você mandar a geometria
fazer uma árvore, ela faz uma árvore toda cheia de linhas retas e curvas, de elipses, espirais
e triângulos, tudo de uma “precisão geométrica” — e fica a feiúra das feiúras. Mas com o
seu olhômetro a natureza produz belezas como aquela — e apontou para o cedrão do pasto.
— Veja. Não há naquela árvore nenhuma regularidade geométrica, e vem daí a beleza do
nosso velho cedro. Pois os canais de Marte são assim — são duma regularidade que não é
própria da natureza. Ora, se não são naturais, são artificiais.
Pedrinho admirava-se duma coisa — que os canais de Marte fossem avistados da
Terra.
— Graças a Galileu, meu filho. Graças ao telescópio, filho da luneta que Galileu
inventou, nós daqui enxergamos até os canais de Marte, uma coisa que está a 56 milhões de
quilômetros de distância... Não é maravilhoso?
— Que quer dizer telescópio, vovó?
— Tele em grego é “longe” e skopeo é “eu examino”. Telescópio quer dizer “eu
examino ao longe”.
— Que beleza o grego, hein, vovó? É batatal... Dona Benta estranhou aquele “batatal”
que volta e meia vinha à boca de seu neto.
— Que história é essa de batata pra aqui, batata pra ali, que vocês vivem usando
agora? Eu já ando abatatada de tanta batata que rola por esta casa.
— É a Emília, vovó — explicou Pedrinho. — Ela inventou a coisa e nós, sem querer,
pegamos na mania. Eu bem não quero falar assim, mas sai. Emília inventou até um tal
“batatalífero” que é batatal. E também usa o “batatalino”.
— Mas donde veio isso?
— Não sei, vovó. Essas coisas vêm do ar, como os resfriados. Parece que a gente
enjoa das velhas palavras e precisa de novas — e vai inventando. Batatal quer dizer ótimo,
otimíssimo, bis-ótimo. Mas se a gente diz “isto é ótimo” fica sem força. Parece que essa
palavra está muito gasta. E Emília então diz: “Isto é batatal ou batatalino” e a gente
arregala o olho.
Dona Benta filosofou sobre o pitoresco da gíria e depois voltou ao planeta Marte.
— O diâmetro de Marte é de 6.870 quilômetros. E o da Terra? Vamos ver se não
esqueceu.
— É quase o dobro, vovó.
— Isso mesmo. E a circunferência de Marte também é mais ou menos metade da da
Terra. Qual a circunferência da Terra, Senhor Flammarionzinho?
— Quarenta mil quilômetros! — berrou o menino — e Dona Benta deu-lhe grau 10
pela boa memória.
Em seguida contou que Marte era mais velho que a Terra.
— Esse planeta destacou-se do Sol milhões de séculos antes da Terra, de modo que
tudo está lá muito mais evoluído que aqui. A vida em Marte deve ser como vai ser a daqui
no futuro. Nós nem podemos fazer idéia dos animais de Marte, e muito menos do homem
de Marte — o marciano.
— Marciano quer dizer habitante de Marte?
— Sim. E esses marcianos têm o gosto de ver em seu céu duas luas, em vez duma só,
como nós aqui.
— Duas luas? Que engraçado...
— Dois satélites, sim, meu filho, aos quais os astrônomos deram os nomes de Deimos
(Terror) e Fobos (Medo).
— Por quê? Que é que o Terror e o Medo têm a ver com dois astros do céu?
— Ah, isso é uma recordação duns versos de Homero na llíada. Existe nesse poema
um pedacinho assim: Ao Terror e ao Medo ele ordena que atrelem meus corcéis Enquanto
de suas cintilantes armas vai se vestindo.
— Mas que têm esses versos com as luas de Marte?
— Nada, meu filho. O astrônomo que deu esses nomes às luas de Marte devia ter lido
na véspera a llíada de Homero e estava com as palavras Deimos e Fobos na cabeça. Só
isso.
— E essas luas aparecem no céu de Marte do tamanho da nossa Lua aqui?
-— São muito menores. Deimos tem apenas 12 quilômetros de diâmetro.
— Só 12? — admirou-se o menino. — Isso é do tamanho duma cidade como Paris,
Buenos Aires, São Paulo...
— Exatamente; mas como Deimos está apenas a 6.000 quilômetros de Marte, aparece
grandinho no céu — assim da quarta parte do tamanho da nossa Lua.
— E Fobos?
— Esse está a 20.000 quilômetros de distância e é várias vezes menor que Deimos.
Isso era tudo quanto Pedrinho sabia do planeta Marte, segundo as informações
recebidas de sua avó no sítio. Agora que voava para Marte levado pelo pó de pirlimpimpim
iria ter ocasião de verificar se aquilo estava certo ou não. O caso dos canais de Marte e dos
marcianos era o que mais o interessava.
Logo que chegaram e abriram os olhos, os três aventureiros celestes sentiram-se
desnorteados. Tudo muito diferente do que tinham visto na Lua e do que era na Terra.
Canais não viram nenhum, porque coisas grandes como canais só são avistáveis de longe.
É como quem está dentro duma floresta: só vê galharada e folharada, não vê a floresta em
seu conjunto. Eles puseram-se a prestar atenção às coisas próximas — mas não as
entendiam.
— Isto aqui devem ser plantas — disse Narizinho. — Só que estou estranhando as
formas e a cor.
— Pelo que disse vovó — informou Pedrinho — as plantas daqui são evoluidíssimas
— são como vão ser as plantas da Terra daqui a milhões de anos.
Era uma vegetação amarela e avermelhada. Não havia verdes, e as formas não
lembravam as plantas da Terra.
— E gente? E bichos? — indagou a menina. — Não vejo nada mexer-se. Será que
Marte é desabitado?
Pedrinho também desapontou. Por mais que olhasse e reolhasse, não percebia traço de
vida animal. E estavam caminhando por ali, a olharem para a direita e a esquerda, quando
Emília os agarrou pelas mãos e os puxou para um lado com toda a força.
— Que há? — perguntaram os dois meninos assustados. A boneca respondeu levando
o dedinho à boca em sinal de “bico calado!” e fez que ambos se escondessem atrás duma
pedra.
— Agachem-se e não se mexam. Depois explico.
Emília olhava como se estivesse vendo coisas e mais coisas. E assim esteve muito
atenta e quietinha, imóvel atrás da pedra, até que afinal desembuchou.
— Uff! Que susto!... — exclamou ela erguendo-se. — Acabamos de passar por um
grande perigo. Este astro é mais que habitado — é habitadíssimo. Aquele puxão que dei em
vocês foi porque um grupo de marcianos vinha vindo em nossa direção.
Os habitantes de Marte eram invisíveis para os olhos dos meninos, mas visibilíssimos
para os olhos da Emília. Ela os tinha decorado e passou a descrevê-los.
— São esquisitíssimos! Parecem grandes morcegos brancos. Em vez de caminharem
com dois pés, como nós, deslizam pelo chão e erguem-se nos ares quando querem. O corpo
é oval e cheio de crocotós, isto é, de coisas esquisitas que não entendo bem. Parecem ter
uma porção de braços e mãos, maiores e menores; e no lugar em que devia ser a cara, há
mais crocotós — tudo muito diferente das criaturas da Terra. Nós temos olhos, nariz, boca
e orelhas — eles devem ter tudo isso, mas de formas diferentes. São uns seres absurdos...
— E falam?
— Devem falar, mas sem sons, sem palavras, dum modo muito diverso do nosso.
Bem no meio da tal coisa que deve ser a cara existe um chicotinho flexível que eles
manejam com grande rapidez.
— Antenas, como nos insetos?
— Talvez. É com os movimentos desses chicotinhos no ar que eles se entendem.
Pedrinho e Narizinho ficaram apavorados com a descrição e ansiosos por fugirem
daquele misterioso planeta. Pelo que informava a Emília, os marcianos não tinham dado
pela presença deles ali. Era provável que não pudessem vê-los. Mas seria realmente assim?
Às vezes uma coisa parece, mas não é. Tornava-se indispensável verificar esse ponto —
mas como? Emília tomou uma resolução.
— Vou tirar a limpo esse ponto — disse ela. — Se me acontecer qualquer coisa, se
eles me pegarem e me comerem, não faz mal. Não sinto dor, sou boneca — e, além disso,
Tia Nastácia faz outra ainda melhor que eu... Fiquem caladinhos aqui atrás da pedra. Não
se mexam até que eu volte — e foi tirar a limpo aquele ponto.
XIII
Proezas da Emília em Marte
XIV
A Via-láctea
Aquilo até parecia fábula. Estarem montados num cometa, a voarem com velocidade
de cavalos-luz, era coisa que quando fosse contada aos povos da Terra havia de provocar
sorrisos de incredulidade.
— É o que me aborrece — ia dizendo Pedrinho. — Quando contarmos esta proeza,
ninguém na Terra vai acreditar...
— Vovó acredita, juro! — disse Narizinho. — Vovó está tão treinada em nossas
maravilhas que não há nada em que não acredite. E Tia Nastácia também.
— Isso sei eu — mas os outros? Todos os outros adultos hão de dizer que é fantasia
nossa.
— Ora os adultos! — exclamou Narizinho com ar de pouco-caso. — Não há maior
sem-gracismo do que ser adulto.
Bem razão tinha Peter Pan em não querer crescer, em não querer nunca virar gente
grande — ou “adulto”, como eles dizem com todo o pedantismo. A tal gente grande não
sabe fazer a única coisa interessante que há na vida...
— Que é, Narizinho?
— Ora que é! Brincar, bobo. Tirando o brinquedo, que é que resta na vida? As gentes
grandes arrumam a casa, varrem, lavam roupa, guiam bondes nas ruas, entregam pão nas
portas, constroem navios, escrevem livros, jogam no bicho, guerreiam — fazem tudo,
menos a grande coisa que é brincar, brincar, brincar até arrebentar, como nós...
— É verdade — concordou o menino. — Mas por que será que os adultos não
brincam?
— De medo de parecerem crianças. Eles morrem de medo de parecer crianças, como
se não fosse dez vezes mais importante ser criança do que ser uns homões de bigodes feito
taturanas debaixo do nariz, ou umas mulheronas gordas, cheias de rugas na cara, sardas e
pés-de-galinha.
— É como eu penso — volveu Emília lá da garupa. — Se em vez de boneca eu
tivesse nascido gente grande, sabem o que fazia? Suicidava-me com um tiro de canhão na
orelha.
Enquanto isso o cometinha voava pelos espaços com uma velocidade incrível. Quanto
tempo durou aquela corrida? Impossível calcular.
— Estamos devorando anos e mais anos-luz — dizia Pedrinho.
E na corrida louca passavam perto de quantas constelações existem pelos céus.
— Lá está a Grande Ursa — explicava Pedrinho. — E agora vamos nos aproximando
da constelação de Cassiopeia e da constelação da Girafa...
Todos se admiravam da sabedoria de Pedrinho. Parece que sabia de cor todas as
estrelas do céu. Em certo ponto Emília pediu:
— Não se esqueça de me chamar a atenção quando passarmos perto da Cabeleira de
Berenice. Fiz aquela promessa a São Jorge e tenho de cumprir.
— E aquela lá longe é a constelação da Lira — continuou Pedrinho. — Recebeu esse
nome porque lembra a forma de vaso duma lira.
— Isso não! — contestou a boneca. — A lira sempre foi redonda.
— Redonda? Você está sonhando, Emília.
— Sim, sim — insistiu a bobinha. — Dona Benta tem várias moedas na gaveta e
entre elas uma lira bem redonda.
Pedrinho deu uma gargalhada.
— Boba! A lira dessa constelação não é a lira moeda da Itália — é a lira grega, um
instrumento de música dos antigos, quando não havia violão nem piano. Os poetas até hoje
falam muito em lira. Eles vivem “tangendo a lira...”
— E não se pode dizer “tocando a lira”? — quis saber a boneca.
— Não — respondeu Pedrinho. — A lira tange-se, não se toca. Tocar é para sino,
viola ou piano.
— E para frango também — acrescentou Emília. — Tia Nastácia vive tocando os
frangos que entram na cozinha.
Emília quis saber a forma da lira, quantas cordas tinha e de que modo era “tangida”. E
Pedrinho estava a explicar tudo isso minuciosamente, com muitos gestos e micagens,
quando, de repente, perdeu o equilíbrio e caiu do cometa abaixo, exatinho como quem cai
dum cavalo xucro — e lá rodou pelos espaços infinitos.
— Acudam! — berrou Narizinho na maior aflição. — Pedrinho caiu no éter.
A situação era na verdade gravíssima. Dos três viajantes só Pedrinho era astrônomo e,
além disso, só em seu bolso havia o maravilhoso pó de pirlimpimpim. Sem Pedrinho e sem
o pó, como se arrumariam — como voltariam para casa? E Narizinho começou a sentir
todas as angústias do terror.
— E agora? — gemia ela. — E agora, Emília, que vai ser de nós, largadas sozinhas
nestes desertos infinitos? Gritar não adianta. Chorar, ainda menos. Que havemos de fazer,
Emília?
A boneca não se apertou.
— O que temos a fazer, Narizinho, é não fazer coisa nenhuma. É ficarmos
agarradinhas a este cometa e deixarmos que ele corra pelo espaço até que se canse e pare.
Depois veremos.
A calma da boneca não sossegou a menina; mas ao lembrar-se de que muitas vezes se
vira em aperturas tremendas e tudo acabou bem, resolveu sossegar — e foi sossegando. A
falta de Pedrinho, entretanto, era enorme. Só ele sabia a ciência do céu, o nome das estrelas
e planetas, de modo que sem ele um vôo pelos espaços de nada adiantava — iam passando
perto das mais lindas constelações sem saber como se chamavam.
E assim rodaram as duas em silêncio durante minutos e minutos. A velocidade do
cometa parecia cada vez maior. Se Dona Benta pudesse prever por onde elas andavam...
Súbito, Emília deu voz de alarma.
— Um cometão! — gritou. — Um cometão enorme vem vindo ao nosso encontro.
Narizinho, que estava de cabeça baixa, pensativa, ergueu os olhos e viu. Viu
realmente um cometa de enormíssima cauda avançando na direção do delas. Pelo jeito os
dois iam encontrar-se e chocar-se — e ai do pequenino! Narizinho lembrou-se da conversa
de Dona Benta sobre a atração que os astros exercem uns sobre os outros, e viu que a força
de atração do cometa grande estava puxando para si o cometinha. Era talvez por isso que a
velocidade aumentava tanto. E a conseqüência seria fatal: o grande engoliria o pequeno.
— Vamos ficar sem cavalo, Emília! O cometa grande está atraindo o nosso...
— E que tem isso? — foi a resposta da boneca. — Se o cometa grande atrair o nosso,
apenas mudaremos de cavalo. Em vez de montadas num cavalinho, iremos devorar o éter
num verdadeiro cavalão de Tróia.
O cometa grande rapidamente crescia de vulto. Foi ficando imenso, imensíssimo, até
que...
Bum!... os dois se chocaram com horrível estrondo. Narizinho e Emília perderam os
sentidos.
XVI
Aparece o burro
Por mais agradável que fosse ficarem boiando naquela cauda de cometa, entretidos
em conversar com o maravilhoso anjinho, era preciso pensar na viagem.
— A fome está chegando — disse Pedrinho. — Temos de concluir a nossa viagem
celeste e voltar para casa à hora da ceia. Podemos ficar por aqui ainda algum tempo — mas
não sei para onde ir agora. É tão grande o universo que até enjoa...
— Que tal uma chegadinha ao planeta Vênus? — lembrou a menina. — É o mais
simpático de todos.
— Também acho — concordou Pedrinho — mas Vênus é como uma irmã gêmea da
Terra. Assemelham-se em quase tudo, no tamanho, nas estações — só que Vênus está
muito mais perto do Sol e, portanto, deve ser muito mais quente. Vênus está a 108 milhões
de quilômetros do Sol. Está, portanto, 42 milhões de quilômetros mais perto do terrível
fogareiro do que a Terra.
— E se formos ao planeta Mercúrio?
— Nem pense nisso, Narizinho! O tal Mercúrio, além de ser o planeta menor de
todos, está a apenas 58 milhões de quilômetros do Sol. O calor de Mercúrio deve ser de
derreter pedras. Ir a Júpiter, sim, vale a pena. Júpiter é o rei dos planetas — colossal! Gira a
780 milhões de quilômetros do Sol, tem quatro luas formidáveis e um ano igual a onze
anos e tanto dos nossos. Júpiter é enorme. Tem 1.390 vezes o volume da Terra!
— E os outros planetas?
— Há o tal Saturno, com dez luas, a 1.400 milhões de quilômetros do Sol e de
volume oitocentas vezes o da Terra.
— E que comprimento tem o ano em Saturno?
— Vinte e nove anos dos nossos. O ano de Saturno até desanima a gente. Você lá
seria uma criancinha de pouco mais de quatro meses...
— E os outros?
— Há ainda o tal Urano e o tal Netuno. Urano gira longíssimo do Sol a 2.872 milhões
de quilômetros, veja que colosso! Tem um ano horrivelmente longo, igual a 84 anos da
Terra. Vovó lá estaria apenas com dez meses de idade. E o tal Netuno, então? Esse fica no
fim do nosso sistema planetário, quase nas fronteiras. É o antepenúltimo. O último é
Plutão.
— A que distância do Sol?
— A 4.500 milhões de quilômetros... E tem um ano que não acaba mais. Imagine que
o ano de Netuno corresponde a 165 anos dos nossos lá da Terra...
— Quer dizer que se vovó nascesse em Netuno estaria com cinco meses de idade —
mamando ainda, coitadinha... e o tamanho?
— Netuno tem 78 vezes o volume da Terra.
— E os outros planetas, aqueles planetóides de que vovó falou?
— Ah, esses não contam. Existem em número incalculável. São quireras de planetas.
São guaruzinhos das águas do céu. Para ser planeta verdadeiro é preciso ter o tamanho de
lambari para cima. Guaru não conta.
— E o tal que usa anéis? — quis saber Emília.
— Esse é o planeta Saturno. Está aí uma idéia! Podemos ir a Saturno ver como são os
seus anéis...
Todos aprovaram. Uma visita a Saturno era da mais absoluta novidade. Criatura
nenhuma da Terra jamais pensara nisso. Se eles dessem um passeio pelo planeta Saturno
haviam de ficar imortais — a maçada é que quando lá na Terra contassem a proeza nenhum
adulto acreditaria...
Ficou assentado irem para Saturno, mas antes disso Narizinho pediu que o pequeno
Flammarion contasse tudo quanto Dona Benta lhe havia dito sobre o maravilhoso planeta
dos anéis.
— Esse planeta — disse Pedrinho com a maior importância — está a 1.400 milhões
de quilômetros do Sol...
— Espere! — interrompeu Narizinho. — Antes de mais nada eu quero saber uma
coisa. Como é que os homens descobriram que tais e tais astros são estrelas, e tais e tais
outros são planetas? Numa noite estrelada a gente olha para o céu e vê tudo igual — as
estrelas e os planetas. Tudo são pontinhos luminosos e mais nada. Responda a isso, se é
capaz.
Pedrinho deu uma risada gostosa.
— Nada mais fácil, menina. A mesma pergunta fiz a vovó e ela respondeu
imediatamente. Aquela vovó é uma danada! Não há o que não saiba.
— Então explique.
— O caso é simples. Desde os começos da humanidade os homens viam à noite o céu
cheio de estrelas, mas de tanto olhar para o céu foram percebendo uma coisa: que certos
astros apareciam sempre no mesmo ponto e outros variavam.
— Como sabiam que eles variavam de lugar?
— Muito simples. Eles viam que em certa noite esses astros estavam perto de certas
constelações; na noite seguinte estavam um pouquinho mais adiante, e mais adiante na
terceira noite, etc. Viam perfeitamente que esses astros eram móveis, isto é, caminhavam
em certas direções. E também observaram que depois de certo tempo eles voltavam. E
assim passavam a vida, indo e vindo, indo e vindo — ao passo que as estrelas permaneciam
fixas, sempre firmes no mesmo ponto. Depois notaram que esses astros móveis
caminhavam numa direção durante um certo número de meses e voltavam em igual tempo.
Um ia e vinha em sete meses e meio — era Vênus. Outro ia e vinha em um ano e 332 dias
— era Marte. Outro ia e vinha em onze anos e 314 dias — era Júpiter, e assim por diante.
Entendeu?
— Entendi — declarou Narizinho — e era verdade, pois havia entendido mesmo.
Pedrinho continuou:
— Mas não pense que as estrelas são realmente fixas. Elas também andam girando
pelo espaço. Mas como estão longíssimas, parecem fixas.
E voltando a Saturno:
— Quando vovó começa a falar desse planeta até fica que nem a Emília. Diz que é o
maior do céu, uma beleza que nem em sonhos podemos imaginar. É um planeta bem
grande, oitocentas vezes o volume da Terra e com dez luas.
— Dez? — admirou-se a menina.
— Dez, sim, e três delas mais próximas do que a nossa Lua o é da Terra. E eu tenho
aqui em meu caderninho o nome das dez luas saturninas. Saturnino quer dizer de Saturno.
— Não precisava explicar. Quem não adivinha semelhante coisa?
Pedrinho tirou do bolso o caderno de notas e leu o nome das luas de Saturno.
— Mimas, Encelado, Tétis, Dione, Réia, Titã, Têmis, Hiperion, Jápeto e Febo.
— Então Mimas, Encelado e Tétis são as “pertinhas”! — adivinhou Emília, que
estava com o anjo adormecido no colo.
— Sim. São as que ficam mais próximas de Saturno do que a Lua o é da Terra —
confirmou Pedrinho. — Que beleza não deve ser, hein? Uma lua no céu da noite já é tão
bonito, imaginem dez!... Os habitantes de Saturno devem viver enjoados de luas. E como
se isso fosse pouco, ainda tem no céu, permanentemente, a maravilha das maravilhas que
são os anéis.
— Conte o que vovó disse dos anéis — pediu a menina.
— Ah, vovó explicou tudo muito bem. Como ela sabe! Esses anéis são três, ou um só
dividido em três faixas distintas, sempre iluminadíssimas pela luz do Sol. Eu até fico tonto
ao imaginar a beleza que devem ser!
— E que tamanho têm os anéis?
— A palavra anel atrapalha a gente — disse Pedrinho.
— O melhor é dizer “disco”, porque aquilo é na realidade um disco de milhões de
fragmentos de astros a girarem em redor do planeta. E para você ter idéia do tamanho, é
preciso primeiro que saiba duma coisa: que o diâmetro de Saturno tem 120.000
quilômetros. Muito maior que o da Terra. Pois bem: a largura do disco de Saturno tem
64.000 quilômetros...
— E a grossura?
— É de apenas 60 quilômetros.
— Só? — admirou-se a menina. — Então, então, então...
— Eu sei o que você quer dizer, Narizinho. Você quer dizer que o disco é da finura
duma folha de papelão para a folha inteira do papelão, não é isso? Pois está muito
enganada. Suponha um disco de papelão de 1 metro de diâmetro por 1 milímetro de
espessura. Pois nessa proporção, sabe qual seria a espessura do disco de Saturno? Seria de
426 quilômetros — vovó já fez a conta. Mas a espessura do disco de Saturno é só de 60
quilômetros. Logo, o disco é proporcionalmente muito mais fino que o papelão.
— Da finura dum papel de seda para uma folha inteira de papel de seda?
— Exatamente. O diâmetro do disco de Saturno está para a sua espessura como o
tamanho duma folha de papel de seda está para a finura do papel de seda. Compreendeu?
— Isso até o anjinho compreenderia — berrou a boneca — se estivesse acordado e
soubesse o que é papel de seda — e pôs-se a alisar os lindos cabelos da criaturinha
adormecida em seu colo.
O pequeno Flammarion continuou a expor o que sabia de Saturno.
— O mais interessante que vovó me contou — disse ele — foi o que os sábios
imaginam da vida em Saturno. Tudo é diferentíssimo de lá da Terra.
— Por quê?
— Porque as condições de Saturno são diferentes. O ano de Saturno é enormíssimo
(ano você sabe o que é: o tempo que um planeta gasta para dar uma volta em redor do Sol).
O ano de Saturno tem 29 anos dos nossos lá da Terra! E os dias são de apenas dez horas.
Dia você sabe o que é...
— Sei. Os planetas giram em redor do Sol e também giram em redor de si mesmos.
Quando giram em redor de si mesmos, há sempre uma parte que fica dando para o Sol e
outra que fica no escuro. Temos aí o dia e a noite. Certo?
— Exatinho. Você está ficando tão boa quanto eu na ciência da astronomia...
— Gabola!... Mas continue. Como são os habitantes de Saturno?
-— Ninguém sabe ao certo, mas os homens de ciência imaginam. Acham que devem
ser umas criaturas tão diferentes de nós que nem podemos compreendê-las. Uns seres
gelatinosos, transparentes, adiantadíssimos, com órgãos diferentes. Devem alimentar-se de
fluidos e não de coisas líquidas ou sólidas, como nós. E terão muitos mais órgãos dos
sentidos do que nós. Nós não passamos de uns coitadinhos. Só temos cinco sentidos.
Cinco, imagine que pobreza! Eles lá devem ter dez, vinte, cem... Para saber as coisas, nós
precisamos estudar. Eles vibram no ar o “órgão da ciência” e já ficam sabendo.
Emília meteu o bedelho.
— Isso quer dizer que os saturninos ainda têm mais crocotós que os marcianos.
— Não creio — duvidou Pedrinho. — Crocotó dá idéia de coisa dura e eles são
gelatinosos.
— Há também crocotó do mole — resolveu Emília.
— Pois então — continuou Pedrinho — o que pode acontecer é o seguinte: quando
eles querem “sentir” qualquer coisa, espicham lá de dentro da gelatina um crocotó do mole,
e esse órgão “detecta” o que é preciso. Se um saturnino, por exemplo, quer saber que horas
são, espicha para fora o “crocotó do tempo” e detecta a hora no ar... E se quer saber se a
Terra é habitada, espicha para fora o “crocotó da distância...”
— O telecrocotó! — lembrou Emília.
— ...e vê tudo lá na Terra como se estivesse pertinho.
Emília assustou-se.
— Então já me viram aqui com o anjinho e são capazes de qualquer coisa — e cobriu
o anjinho com o avental.
— Será possível que eles espiem tudo quanto fazemos lá no sítio? — imaginou a
menina. — Ah, meu Deus! Não existe sossego neste universo. A gente pensa que faz coisas
escondidas — e esses diabos de Saturno estão vendo! Imaginem como não se divertem
com essas espiações por meio do “crocotó da distância...”
— Os outros astros devem ser o cinema lá deles — sugeriu Pedrinho. — Eu, por mim,
já estou cansado da Terra. Queria ser saturnino. Delícia maior não há. O dia inteiro com o
cinema do universo diante de nós! O dia inteiro a espiarmos as reinações de todos os seres
que existem...
XVIII
No planeta maravilhoso
Depois de muita imaginação resolveram partir para Saturno; mas antes disso
consultaram o Burro Falante.
A gravidade daquele burro já vinha de muito tempo impressionando a boneca, de
modo que ao ouvi-lo responder tão “sentenciosamente” (falar sentenciosamente quer dizer
falar como aquele animal falava), Emília bateu na testa e disse:
— Heureca! Achei um nome para o Burro Falante: Conselheiro! ... Tudo que ele diz
parece um conselho de velho — e é sempre um conselho muito bom. Viva o
Conselheiro!...
E a partir daquele momento o Burro Falante passou a chamar-se Conselheiro.
Resolvido aquele ponto, Pedrinho distribuiu as pitadas de pirlimpimpim e contou —
um... dois... e três! O fiunnn foi tremendo — e os cinco viajantes (inclusive o anjinho)
foram despertar bem em cima dos anéis de Saturno.
Que maravilha! Os tais anéis, ou discos, eram uma planície sem fim de luz, como o
arco-íris — uma lisura luminosa que rodeava o imenso planeta. Pedrinho explicou que a
força de atração de Saturno era em certo ponto neutralizada pela força de atração do disco,
de modo que naquela zona os seres perdiam o peso — ficavam parados no ar, flutuando na
maior das gostosuras. E eles estavam justamente nessa zona onde não havia peso!
Começaram, pois, a flutuar, a flutuar...
— Parece um sonho! — dizia a menina. — Estou boiando como num mar de delícias.
Oh, gosto dos gostos! Oh, fenômeno!...
E boiaram, boiaram, viraram-se em todas as posições, como se estivessem sobre um
invisível colchão de paina solta. O Conselheiro, coitado, sentia-se atrapalhadíssimo,
porque, como boiava como os demais, ora se via com as quatro patas para cima, ora para
baixo, ora para os lados. Emília jogava o anjinho no ar e ele ficava boiando sem cair.
Estiveram naquela zona um tempo enorme, brincando duma coisa que nenhuma criança da
Terra nem sequer imagina — brincando de boiar num fluido luminoso e deliciosíssimo.
— É uma gostosura que até enjoa a gente — disse Pedrinho num momento em que
estava de pernas para cima, segurando o Conselheiro pelo rabo. — Tudo sem peso! Só
agora compreendo a estupidez que é o tal peso lá na Terra. A gente vai fazer qualquer coisa
e cansa, por quê? Por causa do peso...
— Mas ter um pesinho é bom — disse a menina, já com saudades dos seus quarenta
quilos. — Estou tão acostumada a ter peso que isto aqui me dá a idéia de que estou aleijada
— de que está me faltando um pedaço. O peso é um verdadeiro pedaço da gente...
Pedrinho explicou que se conseguissem sair daquela zona chegariam a outra em que o
peso volta.
— Então vamos para lá — propôs a menina.
E lá se foram, arrastando-se como puderam. Deu certo. Na segunda zona começaram
a sentir um pouco de peso, e com isso a sensação tornou-se-lhes ainda mais agradável.
Podiam andar como na Terra, mas com muito cuidado, porque o esforço exigido para cada
passo era mínimo. Pareciam em câmara lenta. Tiveram de aprender a andar ali. No começo
faziam força demais e com um passo iam parar longe. Por fim acertaram o jogo.
Súbito, Emília gritou:
— Estou vendo uma coisa que deve ser um saturnino — e apontou em certa direção.
Era verdade. Um ser esquisitíssimo vinha na direção deles, exatinho como Dona
Benta dissera — todo gelatino e transparente; mas sem forma definida — ia mudando de
forma segundo as necessidades. O mais assombroso, porém, foi que o estranho saturnino
parou diante deles e falou do modo mais claro e natural possível. Falou, sabem como?
Falou espichando lá de dentro da gelatina o “crocotó que falava” — um crocotó que
parecia uma dessas águas-vivas que há no mar.
— Bem-vindos sejam aos nossos domínios — disse ele. — Temos acompanhado a
viagem de vocês através dos espaços. Sabemos tudo. Ouvimos tudo que vocês,
conversaram com São Jorge lá na Lua.
— Então daqui enxergam até a Lua, que é uma isca de satélite? — perguntou
Pedrinho muito admirado.
— Sim, para nós não há distâncias. Temos sentidos que vocês não podem
compreender. Acompanhamos a vida de todos os seres em todos os astros dos céus.
Aqueles pobres telescópios dos astrônomos da Terra fazem-nos sorrir de piedade. São
puras “cegueiras” em comparação dos nossos teleolhos.
— Eu bem disse! — gritou Emília. — Eu bem disse que eles tinham telecrocotós. São
os tais teleolhos...
— Sim, são os nossos olhos de ver a qualquer distância por maior que seja. E o nosso
principal divertimento é esse: ver, ver tudo quanto se passa no universo. Sabemos de toda a
vidinha de vocês lá no sítio. Assistimos à morte do Visconde quando caiu no mar. Vimos o
tiro com que o Barão de Munchausen cortou o cabresto do burro. Rimo-nos do susto de
Dona Benta ao perceber que estivera sentada no dedo do Pássaro Roca, julgando que fosse
raiz de árvore.
— Não viu também aquele murro que dei no olho do barão? — perguntou Pedrinho.
— Perfeitamente — e achamos muita graça na idéia.
O assombro dos meninos não tinha limites. A boneca pediu:
— Diga então o que Dona Benta está fazendo lá no sítio.
O saturnino virou o telecrocotó em certo rumo e respondeu:
— Está sentada na redinha da sala de jantar, chorando...
— Chorando? — repetiu a menina, admirada. — Por quê?
— Porque é uma avó muito boa e não sabe por onde andam os seus netos. Meu
conselho é que voltem o quanto antes.
Pedrinho fez cara de choro.
— Voltar, justamente agora que encontramos o planeta dos nossos sonhos? Isso é
doloroso...
— Concordo, mas vocês têm de admitir que é um crime deixarem uma tão boa
criatura largada sozinha naquele planeta feio e triste. A Terra é um dos planetas mais
atrasados e grosseiros do nosso sistema solar. Voltem. Tenham dó da velhinha. Um dia
poderão dar novo pulo até aqui e trazê-la. Já sabem o jeito.
Os dois meninos concordaram, depois de um longo suspiro. Sim, tinham de voltar
para aquele sem-gracismo da Terra, onde os homens não sabem fazer outra coisa senão
matar-se uns aos outros.
— Não há dúvida — fungou Pedrinho. — Volto; depois venho cá de novo me
naturalizar saturnino. Mas será possível semelhante coisa? Temos a nossa forma, temos só
cinco sentidos e estes braços e estas pernas. Aqui em Saturno todas as coisas são
diferentes...
— Isso não quer dizer nada. Nós enxertaremos em vocês todos os nossos crocotós,
com licença ali da Senhorita Emília.
Aquela conversa com o saturnino foi o maior dos assombros. O que ele disse, o que
contou do universo, o que falou a respeito de Sírio e outras estrelas famosas, tudo era da
mais absoluta novidade — e um encanto! Os meninos não cessavam de fazer perguntas,
que ele respondia com a maior clareza. Quando Pedrinho indagou do que comiam, a
resposta foi:
— Nós nos alimentamos de fluidos aéreos. Lá na Terra vocês vivem indiretamente da
luz do Sol. A luz do Sol cria as plantas e vocês não passam de praguinhas das plantas, de
animais que vivem das folhas das plantas, das sementes das plantas, das raízes das plantas.
E como a planta é uma criação da luz do Sol, vocês vivem da luz do Sol — mas
indiretamente. Aqui é o contrário. Vivemos diretamente da luz do Sol. Nosso corpo
embebe-se da luz solar e vive — e vive muito mais que vocês lá na Terra. Vivemos trinta
vezes mais. Dona Benta, por exemplo, não viverá na Terra mais que oitenta ou noventa
anos — anos lá de vocês. Aqui ela viveria trinta vezes isso — ou sejam 2.400 ou 2.700
anos...
— E não ficam doentes?
— Não há doenças em Saturno. Isso de doenças quer dizer “imperfeição adaptativa”.
Vocês lá na Terra são seres ainda muito pouco evoluídos, seres bastante rudimentares. Não
passam de “experiências biológicas”. Seres que ainda vivem de plantas são seres que ainda
estão engatinhando na estrada larga da evolução.
Os meninos piscavam os olhos no esforço de entender o que o saturnino dizia.
— Bom, brinquem mais um pouco e voltem para a Terra. Dona Benta está dando
suspiros cada vez maiores...
Disse e afastou-se gelatinosamente.
Assim que se viram sozinhos, os três tiveram uma idéia para a despedida: brincarem
de patinar nos anéis de Saturno. Com o pouco peso que sentiam, a coisa seria facílima e
deliciosa — e puseram-se a patinar, todos, até o anjinho. Todos, menos o Burro Falante. O
pobre animal ficou de lado, vendo a linda brincadeira.
Numa das voltas que Emília estava dando aconteceu passar rentinho dele.
— Venha também! — gritou-lhe a boneca. — Aproveite!
O burro sentiu uma vontade imensa de aceitar o convite. Nunca havia brincado em
toda a sua vida e a ocasião era ótima.
Não havia por perto “gente grande” para “reparar”. Mesmo assim se conteve. Ele era
o Conselheiro, um personagem austero e grave. Precisava respeitar o título — e continuou
imóvel onde estava, com as orelhas ainda mais murchas e o olhar ainda mais triste. Jamais
brincara em criança — e também não brincaria naquele momento. Seu destino era passar a
vida inteira sem regalar-se com as delícias do brincar. E o Conselheiro deu um suspiro
arrancado do fundo do coração.
Os meninos por fim cansaram-se daquilo. Cansaram-se de patinar nos anéis de
Saturno e pararam.
— Chega — disse Pedrinho. — Estou com remorso. A coitada da vovó chorando lá
na rede. Isso é judiação.
E tratou de voltar à Terra. Antes, porém, tinham de portar na Lua para pegar Tia
Nastácia.
XIX
De novo na Lua
Terminado o fiunnn que os levou de Saturno à Lua, viram-se bem em cima duma
cratera.
— Onde será que mora São Jorge? — disse Pedrinho sondando os horizontes. -— Só
vejo crateras e mais crateras. Casa nenhuma. Nenhum castelo...
— O meio de descobrir onde ele mora é um só — sugeriu a menina. — Como é hora
do lanche, Tia Nastácia deve estar no fogão. Procure uma fumaça. Onde houver fumaça, lá
mora São Jorge.
Pedrinho achou boa a idéia e pôs-se a procurar a fumacinha. Todos fizeram o mesmo.
Quem primeiro a descobriu foi o Conselheiro.
— Ou muito me engano — disse ele — ou aquele fio de “fumo” que aparece a
sudoeste indica a residência do Senhor São Jorge.
Todos correram naquela direção. De longe já avistaram o santo sentadinho num
rochedo, com a lança ao colo.
— Viva! Viva! — gritou-lhe a boneca, que seguia adiante dos outros puxando o
anjinho pela mão. — Aqui estamos, São Jorge, com o nosso Conselheiro encontrado na
cauda dum cometa e este anjinho que descobri na Via-láctea — e foi contando
atropeladamente as principais peripécias da grande aventura.
São Jorge não se espantou de coisa nenhuma, porque já não se espantava de nada,
tantas e tantas coisas maravilhosas havia visto. Só estranhou o passeio pela Via-láctea. Sua
idéia sobre as nebulosas era a mesma dos astrônomos — que aquilo era um imenso
aglomerado de estrelas em certas direções do céu. Mas deixou passar. Estava com preguiça
de discutir.
— E Tia Nastácia? — perguntou Narizinho. — Como vai ela?
— Mal, coitada! — respondeu o santo. — Não se acostuma aqui. Continua tão boba
como no primeiro dia. E não consegue dominar o medo que tem do dragão. Já lhe expliquei
que o meu dragão é o que há de inofensivo, mas de nada adiantou. Cada vez que ele urra
ela fica de pernas moles no fundo daquele buraco.
Narizinho foi correndo à cratera que o santo indicava. Encontrou a pobre negra
fritando bolinhos, mas com o ar mais desconsolado desta vida. De seu peito brotavam
suspiros de cortar o coração.
Ao ver a menina, o rosto de Tia Nastácia iluminou-se como um sol de alegria.
— Meu Deus do céu! Será verdade o que estou vendo? Não será sonho?
— Não é sonho, não, boba! Sou eu mesma que voltei dos espaços infinitos com
Pedrinho, Emília, o Conselheiro e o anjo — e agora vamos seguir para a Terra.
— Conselheiro? Anjo? — repetiu a negra, tonta. — Que história é essa, menina? Não
estou entendendo nada...
— Conselheiro é o nome que Emília pôs no Burro Falante. E o anjo... ah, o anjo é
uma coisa que só vendo. Um anjinho de verdade que Emília achou na Via-láctea. De asa
quebrada, o coitadinho. A esquerda... o ente mais galante do mundo, Nastácia! Vovó vai
abrir a boca. Nunca houve anjo de verdade na Terra, como você não ignora. O nosso vai
ser o primeiro. E gulosinho, sabe? Chupou uma bala puxa-puxa que Emília lhe deu e
gostou, apesar de nunca haver chupado bala em toda a sua vida.
— Credo! — exclamou a preta.
— E o dragão? Como se tem arrumado com ele?
— Nem fale, Narizinho! — exclamou a negra fazendo o pelo-sinal. — Não sei por
que São Jorge não mata duma vez esse horrendo bicho. Dá cada urro que meu coração pula
dentro do peito que nem cabritinho novo...
— Dragão que urra não morde, bobona! — disse a menina. — São Jorge afirma que é
mais manso que um cordeiro.
— Essa não engulo! — rosnou a preta. — Cada vez que o estupor me vê lambe os
beiços e põe de fora uma língua vermelha deste tamanho! Não come gente? É boa!... Pois
não ia comendo o burro?
— Mas burro não é gente, Nastácia. Há uma diferença.
— Diferença? Qual é a diferença que há entre gente e aquele burro que fala e diz cada
coisa tão certa que até eu me benzo com as duas mãos?
Conversaram sobre mil coisas, inclusive as comidinhas que ela havia feito para São
Jorge.
— Coitado! — suspirou a negra. — Santo bom está ali. E é um bom garfo, sabe?
Comeu uma panqueca que eu fiz e lambeu os beiços que nem o dragão. E para comer
bolinhos não há outro. É dos tais como o Coronel Teodorico: não deixa nem um no prato
para remédio.
— Que pena! — exclamou a menina. — Se ele houvesse deixado algum, seria para
mim um regalo. Estou com uma fome danada...
Saindo dali a menina foi ter com os outros. Encontrou Emília contando com todo o
espevitamento mil coisas a São Jorge, algumas já bastante aumentadas.
— E o meu presente? — perguntou o santo. —, Esqueceu-se?
Eles não haviam passado perto da Cabeleira de Berenice e, portanto Emília não
pudera arrancar o fio de cabelo que havia prometido ao santo. Mas não se deu por achada.
Respondeu com o maior cinismo:
— Não me esqueci, não. Vou buscá-lo.
E saindo dali sabem onde foi? Foi conferenciar com o Burro Falante. Ninguém ouviu
o que disseram, mas o caso é que Emília voltou com um embrulhinho muito malfeito.
— Aqui está! — disse ela com todo o desplante, entregando a São Jorge o
embrulhinho. — Em vez dum fio só, como prometi, eu trouxe três...
Se alguém fosse contar os cabelos da cauda do Burro Falante, era muito possível que
encontrasse a falta de três fios...
XX
A aflição dos astrônomos
Certa vez, lá no sítio, Dona Benta explicou aos meninos o que era “sistema
planetário”. Parecia um bicho-de-sete-cabeças, mas a boa velha costumava explicar as
coisas mais difíceis de um modo que até um gato entendia.
— Sistema — disse ela — é um conjunto de coisas ligadas entre si. E sistema
planetário é um conjunto de planetas ligados entre si e o Sol, em torno do qual giram. Este
sítio, por exemplo, é um pequeno sistema...
— Sistema de quê? — perguntou Pedrinho. — Planetário não é, porque nós não
somos planetas.
— Não somos aqui no sítio um sistema planetário, mas somos um sistema de gentes e
coisas. Eu sou o centro, a dona das terras e da casa e das coisas que há por aqui. Vocês são
meus netos. Tia Nastácia é minha cozinheira. O Tio Barnabé é meu agregado, isto é, mora
em minhas terras com meu consentimento. Há aqui estes objetos caseiros — a mesa, as
cadeiras, as camas, o relógio da parede...
— O guarda-chuva grande, os travesseiros de paina, o pote d’água — ajudou Emília.
— Sim, há todos os objetos que nos rodeiam. E lá fora há os animais, a Vaca Mocha,
o Burro Falante, o Senhor Marquês de Rabicó, o pangaré de Pedrinho. São entes vivos e
coisas inanimadas que giram em redor de mim. São os meus planetas. Eu sou o Sol de tudo
isso. Se eu morrer, tudo isso se dispersa. Um vai para cá e outro para lá. Os objetos mudam
de dono. Alguém é até capaz de comer o Rabicó assado e de botar o Burro Falante numa
carroça. Mas enquanto eu estiver viva e aqui no meu posto de dona, tudo permanece como
está e me obedece. Isto quer dizer que formamos aqui um “sistema familial”, em que todas
as pessoas e coisas se relacionam à minha pessoa.
— Compreendo, vovó — disse Pedrinho. — As cadeiras e o pote do seu compadre
Teodorico, a negra velha que cozinha para ele, as vacas e cavalos da fazenda dele, tudo que
há lá não pertence ao nosso sistema aqui — pertence ao outro sistema — ao sistema
familial do Coronel Teodorico — não é isso?
Dona Benta sorriu de gosto diante da esperteza do neto.
— Exatamente, meu filho. Gosto de ver como você compreende depressa.
— E eu também não compreendo depressa? — reclamou a menina em tom queixoso.
Dona Benta abraçou-a e botou-a no colo.
— Sim, Narizinho. Em matéria de inteligência você é em tudo igual a Pedrinho. Eu
tenho a honra de ser avó de dois netos que são dois amores.
Foi a vez de Emília enciumar-se.
— E eu? E eu? — gritou ela.
— Você também, está claro, porque nunca houve no mundo uma boneca mais viva,
mais esperta e inteligente.
Emília derreteu-se toda.
— Pois é isso — volveu a boa senhora retornando ao assunto. — Formamos aqui no
sítio o nosso “sistema de pessoas, animais e coisas”. Ali adiante o Coronel Teodorico é o
centro de outro sistema do mesmo gênero. O Elias Turco é centro dum terceiro sistema. O
próprio Tio Barnabé, que faz parte do nosso sistema, também é centro dum sistemazinho lá
dele, composto da mulher, dos filhos e dos cacarecos que possui no casebre — aquele pote
d’água, aquelas esteiras, aquelas panelas de barro tão velhas...
— E aquele cachorro sarnento também, o Merimbico — lembrou Emília.
— Sim, tudo isso forma um sistemazinho ligado ao nosso sistema familial. Pois com
os astros do céu se dá a mesma coisa. Há pelo éter infinito milhões de sistemas planetários
em que certo número de astros giram em redor dum sol, como vocês giram em redor de
mim. Vem daí o nome de “sistema planetário”, porque os astros que giram em redor de um
sol são os planetas desse sol.
— Já sei — gritou Pedrinho. — E dentro desse sistema planetário do sol, há outros
sistemazinhos menores, como aqui o do Tio Barnabé. Os satélites.
— Exatamente — concordou a velha. — Temos o nosso Sol como a Dona Benta
celeste. Em redor do Sol giram os planetas Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter,
Saturno, Netuno e também grande número de planetóides.
— Se a senhora é o Sol — lembrou a menina — Emília é Mercúrio — o planeta
menor. E eu sou Vênus, o mais bonito.
— Olha a gabola!
— E você, Pedrinho, é Marte, o mais valente. E Tia Nastácia é Júpiter — o mais
gordo de todos. E Saturno é a Vaca Mocha — sempre lá fora, já mais longe aqui do
centro...
— E Urano, que é longíssimo? — perguntou Pedrinho.
— Urano é aquele cedrão do pasto. E Netuno é o Tio Barnabé que mora nas divisas
do sítio.
— Muito bem — aprovou Dona Benta. — Nós moramos no sistema planetário do
Sol. Mas cada estrelinha do céu visível a olho nu ou graças ao telescópio, é também um sol
com, talvez, o seu sistema planetário.
Emília interrompeu-a com uma das suas.
— Dona Benta, olho nu não é indecente? — perguntou ela com a maior simplicidade,
fazendo que todos rissem.
A boa velha achou que não valia a pena responder e prosseguiu:
— Deve haver milhões de sistemas planetários por esse universo infinito. Nós
vivemos num deles. O Sol é o pai de todos nós aqui — nós planetas; nós plantas; nós
bichões ou bichinhos. Se o Sol desaparecer, todos nós levaremos a breca. Os planetas
rolarão pelo espaço, desgovernados e tontos, até se escangalharem, e nós aqui, bichinhos
da Terra, morreremos de frio e horror...
Essa conversa fora dias antes do passeio dos meninos pelo céu e muito contribuíra
para que eles se animassem a tentar a grande aventura, com o fim de ver com os próprios
olhos como eram as coisas por lá.
Mas o sistema planetário do Sol é uma coisa muito bem arranjadinha, tal qual
o.maquinismo dum relógio. Um relógio só funciona bem quando tudo está em seu lugar —
todas as rodinhas e pecinhas. Se alguma delas se desarranja, ou se cai entre elas um grão de
poeira, o relógio pára, ou começa a “reinar” — a atrasar-se ou adiantar-se.
Foi o que se deu com o sistema planetário do Sol durante a reinação celeste dos
meninos. Esse sistema sempre vivera quieto, bem arrumadinho, sem perturbações, até o dia
em que eles começaram a atrapalhar tudo. E tais coisas fizeram lá por cima, que até
produziram um satélite novo: lá estava o Doutor Livingstone girando em redor da Lua
como um satelitezinho pernudo!...
Ora, os astrônomos são uns sábios admiráveis aos quais não escapa coisa nenhuma do
céu. Sempre a espiarem pelos seus telescópios, vão vendo tudo, tomando nota de tudo e
fazendo cálculos. Logo que os meninos chegaram à Lua, começaram os astrônomos a
observar “perturbações inexplicáveis”, e de repente perceberam um satélite da Lua, coisa
que nunca tinham visto antes — e um satélite diferente de todos os satélites conhecidos —
em vez de redondo, tinha perninhas, braços e chapéu de explorador africano, com fitinha
atrás! Em seguida observaram uma grande perturbação na cauda do cometa de Halley,
como se um burro andasse pastando por lá. E depois deram com manchas nos anéis de
Saturno, como se alguém andasse patinando por lá.
Essas perturbações, jamais observadas, causaram a maior sensação no mundo da
ciência. Numerosos artigos foram publicados na imprensa, e o povo ignorante tremeu de
medo, julgando que fossem sinais de “fim do mundo”.
Infelizmente os telescópios ainda não eram bastante poderosos para que os sábios
pudessem ver os meninos reinando no espaço; eles verificavam as perturbações, mas não
descobriam a causa — e começaram a formular hipóteses. E ainda estavam nisso, quando
foi inaugurado o gigantesco telescópio de Palomar, na Califórnia, que custou 6 milhões de
dólares e tinha uma lente de 5 metros e meio de diâmetro. Por meio desse potentíssimo
óculo de alcance puderam eles descobrir o mistério das perturbações celestes: os famosos
netos de Dona Benta andavam reinando por lá!
E enquanto isso, a pobre vovó suspirava sentidamente lá em sua redinha da sala de
jantar. Seus amados netos haviam desaparecido misteriosamente, e Tia Nastácia também, e
o Burro Falante e o Doutor Livingstone. Por onde andariam? Dona Benta mandou procurá-
los por toda parte, pelos vizinhos e pela vida — chegou até a dar parte à polícia e pôr aviso
nos jornais. Tudo inútil. Ninguém dava a menor notícia das crianças — e ela suspirava
tristemente em sua redinha da sala de jantar.
Mas assim que os astrônomos descobriram a causa das perturbações celestes, trataram
imediatamente de pedir providências à avó dos “perturbadores” e vieram em comissão ao
sítio de Dona Benta.
Isso foi por uma linda tarde de abril. Dona Benta havia acabado de dar um profundo
suspiro quando ouviu barulho na porteira. Estavam batendo palmas e gritando, “ó de casa!”
Ela ergueu-se da redinha e foi espiar.
— Que será, meu Deus do céu! — murmurou, vendo parados na porteira uma porção
de homens esquisitíssimos, de cartola, grandes barbas e óculos.
— Dá licença? — gritou o maioral do grupo assim que a avistou.
— Entrem! — respondeu a boa velha. — A casa é de Vossas Excelências.
Mas notou que os tais homens vacilavam, como se estivessem com medo de entrar e
gritou de novo: “Entrem. Não façam cerimônias”.
Os homens barbudos e cartoludos pareciam sem ânimo de abrir a porteira — e Dona
Benta percebeu a razão: a Vaca Mocha estava deitada no caminho, mascando umas palhas
de milho. Tamanhos homens com medo de vaca, imaginem!
— Entrem sem susto! — gritou ela de novo. — A Mocha é mansíssima. Nunca
chifrou ninguém.
Criando coragem, os sábios abriram a porteira e, arrepanhando as sobrecasacas como
se fossem saias, deram uma cautelosa volta por trás da Mocha, a qual nem se mexeu. O
pacífico bovino não ligava a menor importância a astrônomos.
Aproximaram-se todos da varanda e pararam, com o maioral à frente. Era o mais
barbudo e de óculos mais fortes que os outros.
— Minha senhora — disse ele tirando o chapéu — viemos aqui em comissão pedir o
apoio de Vossa Excelência num caso que muito nos está preocupando. Somos astrônomos.
Dona Benta estremeceu. Astrônomos? Que queriam com ela aqueles astrônomos tão
importantes? E convidou-os a subir. Os astrônomos subiram os sete degraus da varanda e
apertaram a mão da boa velha, um depois do outro. O maioral tossiu o pigarro e disse:
— Minha senhora, as perturbações que temos observado em nosso sistema planetário
nos induziram a vir aqui em comissão pedir enérgicas providências...
Dona Benta estranhou aquelas palavras. Se havia perturbações no sistema planetário,
que tinha ela com isso? E como também fosse uma excelente astrônoma, interrompeu o
discurso do maioral para dizer:
— Se tem havido perturbações em nosso sistema planetário, com certeza será devido
a alguma nova mancha do Sol recentemente aparecida. Tenho aqui a obra do Padre Secchi
sobre o Sol, e sei das terríveis influências que tais manchas exercem sobre o nosso planeta.
Os sábios entreolharam-se. Ouvir aquela velhinha, ali naquele sítio, falar em manchas
do Sol e no Padre Secchi, era um estranho fenômeno. Mas aceitaram o estranho fenômeno
e o chefe prosseguiu:
— Não, minha senhora. Desta vez a causa das perturbações não decorre das manchas
do Sol e sim de dois meninos, uma boneca, um burro e um sabugo de cartola que andam a
fazer estrepolias no éter. Foi o que o telescópio de Palomar nos fez ver — e aqui estamos
para pedir a preciosa intervenção de Vossa Excelência.
— Será possível? — exclamou Dona Benta tirando os óculos. — Será possível que
meus netos andem pelo éter?... Há já vários dias que desapareceram daqui, e também a
minha cozinheira, o Burro Falante e o Doutor Livingstone — mas nem por sombras me
passou pela cabeça que tivessem ido para o céu. Parece incrível!...
— A nós também, minha senhora. Muita dor de cabeça tivemos para decifrar o
enigma, mas hoje estamos seguros do que afirmamos. A causa de vários transtornos
observados na “harmonia universal” são as reinações de seus netos lá em cima.
— Meus senhores — respondeu Dona Benta botando de novo os óculos — muito
sinto o que está acontecendo, e quando eles aparecerem hei de passar-lhes um bom pito.
Podem ficar sossegados que outra não acontecerá. Vou chamá-los.
Os astrônomos abriram a boca diante daquele “Vou chamá-los”.
— Mas... mas como vai Vossa Excelência comunicar-se com eles? — perguntou o
maioral.
— Nada mais simples. Desde que sei onde estão, é só chamá-los com um bom berro.
Disse e, chegando ao gradil da varanda, levou à boca as mãos em forma de concha e
com toda a força dos pulmões gritou:
— Pedrinho! Narizinho! Emília! Desçam já daí, cambada!
E voltando-se para os astrônomos:
— Pronto, meus senhores. Posso garantir a Vossas Excelências que daqui a pouco
estão de volta — e mortinhos de fome, como sempre acontece no fim de cada aventura.
Em seguida ofereceu-lhes café.
— Estou sem cozinheira. Sentem-se por aqui enquanto vou eu mesma preparar um
café com bolinhos. Não façam cerimônias.
Os astrônomos sentaram-se por ali e a boa senhora foi para a cozinha preparar o café.
O maioral, que era um sueco de mais de dois metros de altura, ocupou justamente a
banquetinha de pernas serradas de Dona Benta — e ficou um perfeito N invertido — assim:
И — com os joelhos à altura do queixo...
XXI
O grito de Dona Benta
Enquanto isso, os meninos lá na Lua contavam a São Jorge como eram as coisas em
Saturno.
— Gostosura maior não pode haver! — dizia Narizinho. — A gente boiava, boiava
como peixe na lagoa — e aquele saturnino de geléia ali a conversar como se fosse um
amigo velho. Eles têm uns crocotós que saem de dentro da gelatina — são os órgãos lá
deles.
São Jorge não sabia o significado de “crocotó” e a menina teve de explicar que era
uma das melhores palavras do vocabulário da boneca.
— A Emília gosta de usar termos de sua invenção e às vezes saem coisas bem boas.
Esse crocotó é ótimo.
— Mas afinal de contas que é crocotó? — indagou o santo.
— Crocotó é uma coisa que a gente não sabe bem o que é. Crocotó é tudo que sai
para fora de qualquer coisa lisa. O seu nariz, por exemplo, é um crocotó da sua cara — mas
como sabemos que nariz é nariz, não dizemos crocotó. Mas se nunca tivéssemos visto o
seu nariz, nem soubéssemos o que é nariz, então poderíamos dizer que o seu nariz era um
crocotó... São Jorge franziu a testa no esforço de entender aquilo — e se não entendeu
fingiu que entendeu e passou adiante. Pôs-se a contar a história do dragão, nos tempos da
sua mocidade na Terra. Falou do rei da Líbia e da bela princesa que o dragão quase havia
devorado.
— Mas apareci de repente — disse ele — e dei um grande brado: “Sus! Sus!” O
dragão, que já estava com a boca aberta e a língua de fora, entreparou e virou a horrenda
cabeça para meu lado — e eu então, zás! Fisguei-o com a lança.
— Esta mesma? — quis saber Emília, apontando para a lança no colo do santo.
— Sim — respondeu São Jorge. — Fisguei-o, e ele, então...
Foi exatamente nesse “então” que o berro de Dona Benta chegou até lá — “Pedrinho!
Narizinho! Emília! Desçam já daí, cambada!”
O santo capadócio interrompeu a frase e todos puseram-se de ouvido alerta.
— Lá está vovó nos chamando! — disse Pedrinho. — Como será que descobriu que
estamos aqui?
— E temos de voltar já, numa voada — acrescentou a menina. — Mas... e o Doutor
Livingstone? — Como deixá-lo perdido por estas imensidades infinitas?...
Pedrinho andava com uma hipótese na cabeça.
— Para mim — disse ele — o Doutor Livingstone está girando em redor da Lua
como um satélite. Está na zona neutra — na zona em que a força de atração da Terra
equilibra-se com a força de atração da Lua, e por causa disso não cai nem na Terra nem na
Lua — fica girando eternamente em redor da Lua. Temos de passar por essa zona e agarrá-
lo por uma perna.
Mas como arrancar o Doutor Livingstone de sua órbita? Era um problema dos mais
difíceis. No vôo para a Terra eles iriam cortar a órbita do novo satélite da Lua, isso era
evidente: mas o satélite podia estar muito distante do ponto da órbita que eles cortariam.
Como fazer para cortar a órbita exatamente no ponto em que estivesse o satélite-
Livingstone?
— Só fazendo cálculos astronômicos — lembrou a menina. — Os astrônomos
descobrem no céu tudo quanto querem por meio de cálculos. Lembra-se do que vovó
contou do tal astrônomo Halley?
São Jorge quis saber o que era. Narizinho tentou explicar.
— Pois esse Halley previu que um grande cometa ia passar pelo nosso céu em... em...
em que ano mesmo, Pedrinho?
Pedrinho, que sabia aquilo na ponta da língua, gritou:
— Em 1.758! Halley previu isso por meio de cálculos. Mas não pôde ver se seus
cálculos deram certo, porque morreu em 1.742.
São Jorge estava de boca aberta, admirado da ciência do menino.
— Pois bem — continuou Pedrinho — dezessete anos depois da morte de Halley o tal
cometa apareceu de novo, exatinho no ponto indicado e no ano que ele disse — 1.758. Só
que em vez de aparecer em meados de abril, como Halley previra, apareceu a 12 de março
— menos de um mês de diferença. Era um errinho insignificante para um cometa que só
aparece de setenta e tantos em setenta e tantos anos.
— Mas isso é estupendo! — exclamou São Jorge sacudindo a lança no ar de tanto
entusiasmo. — Prever por meio de cálculos que um cometa vai aparecer em tal ponto do
céu, em tal mês e tal ano, parece-me o assombro dos assombros!...
— Pois é para ver! — tornou Pedrinho. — A matemática é o que há de batatal, como
diz a Emília, e esse Halley era batatalino na matemática. Depois de 1.758 outros
astrônomos calcularam que o cometa ia aparecer de novo em 1.834 e a 24 de maio de
1.910.
— E apareceu?
— Apareceu, sim. Vovó o viu muito bem quando apareceu em 1.910, no dia 6 de
maio. O erro foi ainda menor — só de dezoito dias. Batatalífero, não?
São Jorge ficava tonto com as batatalidades daquele menino...
— Pois é isso, Pedrinho — disse a menina. — Você também é astrônomo. Faça os
cálculos e marque o momento e o ponto em que o Doutor Livingstone vai passar, e nós
cheiraremos o pó nesse momento exato.
A boca de São Jorge não se fechava. Aquelas crianças falavam que nem um livro
aberto...
Mas Pedrinho, com medo de errar nos cálculos e desmoralizar a astronomia, veio com
uma desculpa.
— Não posso fazer os cálculos porque não tenho papel nem lápis.
— Isso é o de menos! — gritou Emília. — Papel eu tenho aqui no bolso — o
papelzinho da bala puxa-puxa, e lápis Tia Nastácia tem no fogão — um pedacinho de
carvão serve — e correu a buscar o “lápis” depois de entregar ao menino o papel da bala.
O pequeno Flammarion não teve remédio senão fazer todos os cálculos — e foi com
base nesses cálculos que marcou o instante da partida, dizendo:
— Neste momento exato o Doutor Livingstone deve estar passando no ponto X de
sua órbita. Partiremos então daqui e de passagem o agarraremos por uma perna.
E assim foi. Depois das comoventes despedidas do santo, o qual deu um beijo na
Emília e outro no anjinho, os aventureiros celestes sorveram o pó de pirlimpimpim na
horinha indicada pelas contas do jovem Flammarion.
Fiunnn!...
Tudo deu certissimamente certo. Eles cruzaram a órbita do satélite-Livingstone no
momento exato em que o sabugo de cartola ia passando. Pedrinho agarrou-o pelo pé e lá se
foram todos para a Terra.
XXII
O café dos astrônomos
XXIII
As impressões de Tia Nastácia
Os meninos tinham tanta coisa a contar, que depois de tomado o café ainda ficaram
na mesa até tarde.
— Que beleza, vovó! — dizia Narizinho. — Se a senhora pudesse imaginar o que é a
Via-láctea, vendia este sítio e mudava-se para lá. Uma verdadeira horta cósmica de estrelas
e cometas novinhos, calcule! E, por falar nisso, onde estão as estrelinhas que você trouxe,
Emília?
— Aqui! — respondeu a boneca tirando do bolso do avental um punhado de astros do
tamanho de grãos de ervilha, que espalhou sobre a mesa.
Que assombro! Aquelas ovas de estrelas brilhavam mais que diamantes — brilhavam
tanto que Dona Benta teve de tapar os olhos com as mãos.
— E que vai fazer com elas, Emília? — perguntou Pedrinho. — Quer trocar três por
um cometa? — e com grande espanto da vovó também tirou do bolso mais estrelas —
estrelas não: cometas! Como estivessem com as caudinhas enroladas sobre os núcleos, à
primeira vista pareciam estrelas.
— Estrelas! Cometas!... Mas isto é demais, meus filhos! Nunca imaginei uma coisa
semelhante. E ainda há o anjinho. Onde anda ele?
Todos saíram correndo em procura do anjinho, que havia fugido dali e estava na
cozinha conversando com Tia Nastácia e provando um bolinho de frigideira. A negra,
plantada diante dele, babava-se de gosto.
— Este mundo está perdido! — dizia ela. — Quando eu havia de pensar que até os
santos e os anjos haviam de comer os meus bolos fritos? Credo...
Nisto a voz de Dona Benta soou lá na sala, chamando-a.
— Já vou, sinhá! — respondeu a preta, e depois de lavar as mãos na bica foi ver o que
a patroa desejava.
— Escute, Nastácia — disse Dona Benta. — Você ainda não me contou as suas
impressões. Estou curiosa de saber como se arranjou lá por cima.
A boa negra botou as mãos como quem reza e revirou os olhos para o céu.
— Nem queira saber, sinhá! Credo! De manhãzinha, naquele dia, os meninos me
empulharam — me deram para cheirar o tal pó mágico dizendo que era rapé. Eu, muito
boba, cheirei, e no mesmo instante perdi os sentidos — e quando abri os olhos estava num
lugar esquisito, que a votação disse que era a Lua.
— Parece incrível! — exclamou Dona Benta. — Não foi à toa que os astrônomos não
acreditaram em coisa nenhuma e lá se foram danados com a Emília. Mas continue. E
depois?
— Depois? Ah, nem queira saber, sinhá!... Depois apareceu aquele estupor do dragão
que São Jorge vive matando com a lança lá na Lua — um bicho horrendo, sinhá, que a
Emília diz que é mestiço de lagarto com flecha de índio.
— Por quê?
— Porque tem a língua e o rabo em ponta de flecha. Mas o tal bicho, que era verde,
adiantou-se para o burro, lambendo os beiços, imagine! E então Emília, que é uma danada,
avançou sem medo e esfregou o tal pó mágico no nariz do burro. E o coitado, vupt!... — se
sumiu da Lua, ventando. Narizinho disse que ele tinha caído no “ete...”.
— É espantoso o que você me conta, Nastácia, e difícil de acreditar. Pobres dos
astrônomos! Como poderiam engolir tudo isto? E depois?
— Depois, quer saber quem apareceu? Apareceu São Jorge em pessoa, sinhá, vivinho,
com uma espécie de pratão de ferro — prato-travessa — no braço...
— Devia ser o escudo, Nastácia.
— ...e um pau comprido de ponta pontuda na mão...
— Devia ser a lança, Nastácia.
— ...e os meninos, sem medo nenhum, garraram a falar com ele como se falassem
com Tio Barnabé lá na casinha da ponte. E o santo respondia com a maior delicadeza. Foi
uma conversa que não tinha fim. Depois São Jorge me chamou e perguntou se eu queria
ficar cozinhando para ele. Eu me atrapalhei toda na resposta; e então Narizinho respondeu
e disse que eu ficava só por uns dias — e fiquei, sinhá, fiquei feito cozinheira de São Jorge,
eu, uma pobre de mim, e ele aquele santo tão prepotente, com a fisolustria de escudo e
espeto, numa correspondência da corte celeste...
A pobre negra estava outra vez falando difícil. Dona Benta fê-la voltar ao simples e
perguntou:
— E você lá ficou a cozinhar? ...
— Que remédio, sinhá? Fiquei, apesar do medo que tinha do dragão. Que bicho feio,
credo! Dava cada zurro de se ouvir nas estrelas. Acho que é por isso que elas piscam
tanto...
— E onde mais estiveram os meninos?
— Não sei, sinhá. Eles que contem. É uma embrulhada que não entendo. Estiveram
até num tal mundo que tem anéis do dedo — será possível?
— Sim, o planeta Saturno.
— Mas sinhá acredita que tenha anéis? — Eu... eu não sei. Eu acredito e desacredito
tudo, porque acho tudo possível e impossível. Mas os meninos dizem que tem. E depois
eles andaram galopando pelo “ete...”
— Éter, Nastácia.
— ...montados num cometa xucro, sinhá, de rabo dum tamanho sem fim.
— E onde acharam o anjinho?
— Eles dizem que foi na via de leite, que não sei o que é.
— Por falar no anjinho, Nastácia, como vai ser ele aqui? — perguntou Dona Benta.
— Vai ser muito bem, sinhá. Além da galanteza que é, não pode haver pessoinha
mais bem-comportada e boa.
— Está claro. Desde que é anjo, tem que ser bom e bem-comportado.
— Podia ser anjo mau, sinhá — filho daquele tal Lúcifer... Mas sinhá pode ficar
sossegada. Hei de tomar conta dele direitinho.
Nesse momento soou uma gritaria no pomar.
— Corra, Nastácia! Vá ver o que aconteceu — disse Dona Benta assustada.
A negra disparou na direção do barulho. Minutos depois reapareceu furiosa.
— Não foi nada de grave, sinhá — disse ela. — Foi o frango sura que deu outro pega
no Doutor “Livinsto” e comeu o resto dos milhos que ele tinha no peito. Hoje mesmo esse
frango vai para a panela. O diabo me paga...
* * *
* *
*
O Saci
I
Em férias
Quando naquela tarde Pedrinho voltou da escola e disse a Dona Tonica que as férias
iam começar dali a uma semana, a boa senhora perguntou:
— E onde quer passar as férias deste ano, meu filho?
O menino riu-se.
— Que pergunta, mamãe! Pois onde mais, senão no sítio de vovó.
Pedrinho não podia compreender férias passadas em outro lugar que não fosse no
Sítio do Pica-Pau Amarelo, em companhia de Narizinho, do Marquês de Rabicó, do
Visconde de Sabugosa e da Emília. E tinha de ser assim mesmo, porque Dona Benta era a
melhor das vovós; Narizinho, a mais galante das primas; Emília, a mais maluquinha de
todas as bonecas; o Marquês de Rabicó, o mais rabicó de todos os marqueses; e o Visconde
de Sabugosa, o mais “cômodo” de todos os viscondes. E havia ainda Tia Nastácia, a
melhor quituteira deste e de todos os mundos que existem. Quem comia uma vez os seus
bolinhos de polvilho não podia nem sequer sentir o cheiro de bolos feitos por outras
cozinheiras.
Pedrinho tinha recebido carta de sua prima, dizendo: “Nosso grupo vai este ano
completar século e meio de idade e é preciso que você não deixe de vir pelas férias a fim de
comemorarmos o grande acontecimento”.
Esse século e meio de idade era contado assim: Dona Benta, 64 anos; Tia Nastácia,
66; Narizinho, oito; Pedrinho, nove. Emília, o Marquês e o Visconde, um cada um. Ora, 64
mais 66 mais oito mais nove mais um mais um mais um, fazem 150 anos, ou seja, um
século e meio.
Logo que recebeu essa carta, Pedrinho fez a conta num papel para ver se a pilhava em
erro; mas não pilhou.
— É uma danada aquela Narizinho! — disse ele. — Não há meio de errar em contas.
II
O sítio de Dona Benta
O sítio de Dona Benta ficava num lugar muito bonito. A casa era das antigas, de
cômodos espaçosos e frescos. Havia o quarto de Dona Benta, o maior de todos, e junto o de
Narizinho, que morava com sua avó. Havia ainda o “quarto de Pedrinho”, que lá passava as
férias todos os anos; e o da Tia Nastácia, a cozinheira e o faz-tudo da casa. Emília e o
Visconde não tinham quartos; moravam num cantinho do escritório, onde ficavam as três
estantes de livros e a mesa de estudo da menina.
A sala de jantar era bem espaçosa, com janelas dando para o jardim, depois vinha a
copa e a cozinha.
— E sala de visitas? Tinha?
— Como não? Uma sala de visitas com piano, sofá de cabiúna, de palhinha tão bem
esticada que “cantava” quando Pedrinho batia-lhe tapas. Duas poltronas do mesmo estilo e
seis cadeiras. A mesa do centro era de mármore e pés também de cabiúna. Encostadas às
paredes havia duas meias mesas, também de mármore, cheias de enfeites: três casais de
içás vestidos, vários caramujos e estrelas-do-mar, duas redomas com velas dentro, tudo
colocado sobre os “pertences” de miçangas feitos por Narizinho. Hoje ninguém mais sabe
o que é isso. Pertences eram umas rodelas de crochê que havia em todas as casas, para
botar bibelôs em cima; para o lavatório de Dona Benta, Narizinho fizera pertences de
crochê; e para a sala de visitas fizera aqueles de miçanga de várias cores da bem miudinha.
Antes da sala de visitas havia a sala de espera, com chão de grandes ladrilhos
quadrados, “cor de chita cor-de-rosa desbotada”. A sala de espera abria para a varanda.
Que varanda gostosa! Cercada dum gradil de madeira muito singelo, pintado de azul-claro.
Da varanda descia-se para o terreiro por uma escadinha de seis degraus. Nas férias do ano
anterior Pedrinho havia plantado em cada canto da varanda um pé de “cortina japonesa”,
uma trepadeira que dá uns fios avermelhados da grossura dum barbante, que depois ficam
amarelos e descem até quase ao chão, formando uma verdadeira cortina viva. Aquela
varanda estava se transformando em jardim, tantas eram as orquídeas que o menino
pendurara lá e os vasos de avenca da miúda que ele foi colocando junto à grade.
O jardim ficava nos fundos da sala de jantar, um verdadeiro amor de jardim, só de
plantas antigas e fora da moda. Flores do tempo da mocidade de Dona Benta: esporinhas,
damas-entre-verdes, suspiros, orelhas-de-macaco, dois pés de jasmim-do-cabo, e outro,
muito velho, de jasmim-manga. Plantado na calçada e a subir pela parede, o velhíssimo pé
de flor-de-cera, planta que os modernos já não plantam porque custa muito a crescer. Até
cravo-de-defunto havia lá, flor com que Narizinho se implicava por ter “cheiro de
cemitério”. Bem no centro do jardim havia um tanque redondo com uma cegonha de louça,
toda esverdeada de limo a esguichar água pelo bico, Mas a cegonha já estava sem cabeça,
em conseqüência das pelotadas do bodoque de Pedrinho. Um velho regador verde morava
perto do tanque, porque era com a água do tanque que Tia Nastácia regava as plantas no
tempo da seca.
— E o pomar?
— O pomar ficava nos fundos da casa, depois do “quintal da cozinha”, onde havia um
galinheiro, um tanque de lavar roupa e o puxado da lenha. O poço velho fora fechado
depois que Dona Benta mandou encanar a agüinha do morro.
Passado o quintal vinha o pomar — aquela delícia de pomar!
— Por que delícia?
— Porque as árvores eram muito velhas, e árvore quanto mais velha melhor para a
beleza e a frescura da sombra. Árvore nova pode ser muito boa para dar frutas bonitas,
baixinhas e fáceis de apanhar. Mas para a beleza não há como uma árvore bem velha, bem
craquenta, com os galhos revestidos de musgos, liquens e parasites. Certas árvores do
pomar tinham donos. Havia a célebre pitangueira da Emília, as três jabuticabeiras de
Pedrinho, a mangueira de manga-espada de Narizinho e os pés de mamão de Tia Nastácia.
Até o Visconde tinha sua árvore — um pezinho de romã muito feio e raquítico. O resto das
árvores não era de ninguém — era de todos. E quantas! Cambucazeiros, duas jaqueiras, os
pés de cabeluda e grumixama, os três pés de sapotis e aquele de fruta-de-conde que “não ia
por diante”.
Era tão antigo aquele pomar que os vizinhos até caçoavam. Viviam dizendo: “O
pomar de Dona Benta está tão velho que qualquer dia se põe a caducar. As jaqueiras
começam a dar mangas e as mangueiras a dar laranjas”. Mas Dona Benta não fazia caso.
Não admitia que se cortasse uma só árvore — nem o pobre pé de fruta-de-conde
encarangado. Dizia que cada uma delas lembrava qualquer coisa da sua meninice ou
mocidade.
— Este pé de laranja-baiana — costumava dizer — foi o primeiro que tivemos aqui, e
dele saíram os enxertos dos outros. Naquele tempo laranja-baiana era uma grande
novidade. A muda foi presente do defunto Zé das Bichas, um português muito trabalhador
que morava numa chácara perto da vila.
Impossível haver no mundo lugar mais sossegado e fresco, e mais cheio de
passarinhos, abelhas e borboletas. Como Dona Benta nunca admitiu por ali nenhum
menino de estilingue, a passarinhada se sentia à vontade e fazia seus ninhos como se
estivessem na ilha da Segurança. O próprio bodoque de Pedrinho não funcionava no
pomar.
— E que passarinhos havia?
— Oh, tantos!... No tempo das laranjas o pomar enchia-se de sabiás de peito
vermelho, amigos de cantar a célebre música-do-sabiá que os pais vão ensinando aos
filhotes, sempre igualzinha, sem a menor mudança. E havia os sanhaços cor de cinza clara.
E as saíras azuis. E as graúnas pretíssimas. E muito canário-da-terra, muito papa-capim,
tiziu, pintassilgo, rolinha, corruíra...
As corruíras eram o encanto da menina, que vivia a observar o jeitinho delas no
constante escarafunchamento dos muros carunchados em busca de pequenas aranhas e
outros bichinhos moles. Bichinho duro corruíra não quer. E sempre com as penas da cauda
erguidas, ninguém sabe por quê. Corruíras cor de telha e mansíssima. Há também a linda
corruíra-do-brejo, que faz aqueles enormes ninhos espinhentos — mas essas nunca
apareciam no pomar. Moravam nos brejos.
Às vezes pousavam lá, de passagem, um ou outro tié-sangue, o passarinho mais
lindamente vermelho que existe. Mas não se demoravam. Eram arisquíssimos.
— Por que, vovó, justamente os passarinhos mais bonitos são os mais ariscos? —
perguntou certa vez a menina.
— Justamente por serem bonitos, minha filha. Os homens perseguem os passarinhos
bonitos porque são bonitos — quem quer saber de passarinho feio? Os tico-ticos, por
exemplo: vivem na maior paz em todos os terreiros justamente porque ninguém os
persegue. São feinhos, os coitados. Mas apareça aqui um tié-sangue, ou uma saíra daquelas
lindas: todos se põem atrás deles, querendo apanhá-los vivos ou mortos. Para a felicidade
neste nosso mundo, minha filha, não há como ser tico-tico, isto é, feinho e insignificante...
Mas o rei do pomar era o joão-de-barro. Na paineira grande, bem lá no fundo,
moravam dois, num ninho feito de argila, em. forma de forno de assar pão. Era o casal
mais amigo possível. Não se largavam nunca. Onde estava um, também estava por perto o
outro. E se por acaso um se afastava um pouco mais, volta e meia soltava uns gritos como
quem pergunta: “Onde você está” — e o outro respondia: “Estou aqui”. E de vez em
quando cantavam juntos aquele terrível dueto que mais parece uma série de marteladas
estridentes e alegres.
— Que coisa interessante, vovó! — disse Pedrinho um dia. — Repare que eles
sempre cantam ou gritam juntos. Um faz uma parte e outro faz o acompanhamento, como
no piano...
E era assim mesmo. São tão amigos que até para cantar “cantam a duas mãos”, como
dizia a boneca.
Certo ano o casal resolveu construir um ninho novo em outro galho da paineira, e
durante quinze dias o divertimento dos meninos foi acompanhar de longe aquele trabalho.
Os dois passarinhos traziam da beira do ribeirão um pelote de barro no bico e ficavam ali a
colocar aquela massa no lugar próprio, e a bicá-la cem vezes para que ficasse bem
ligadinha. Enquanto um se ocupava naquilo, o outro voava em busca de mais barro. Nunca
estavam os dois no mesmo serviço; revezavam-se. À tardinha interrompiam o trabalho,
cantavam o dueto com toda a força e depois se acomodavam no ninho velho. Tia Nastácia
vivia dizendo que nos domingos eles não trabalhavam, mas infelizmente os meninos não
puderam tirar a prova duma coisa tão linda.
O mais curioso foi que, depois de acabado o ninho novo, eles, em vez de se mudarem,
resolveram fazer um segundo ninho em cima daquele. Quem primeiro notou isso foi o
Visconde, que foi, todo assanhado, contar a Dona Benta.
— Venham ver — disse o sabuguinho. — Eles terminaram ontem a construção do
ninho novo, mas não se mudaram do velho, em vez disso estão a construir um segundo
ninho sobre o novo — uma espécie de segundo andar.
Dona Benta foi com os meninos e viu.
— Por que será, vovó? — quis saber Pedrinho.
— Não sei, meu filho, mas eles devem ter lá as suas razões.
— Eu sei — berrou Emília. — É para alugar!...
Todos riram-se.
— Eu acho — disse Narizinho — que é para acomodar os filhotes quando chegarem
ao ponto de voar.
— Isso não — observou Dona Benta. — Porque se os pais construíssem casas para os
filhos, estes não aprenderiam a arte da construção e essa arte perder-se-ia. É fazendo que se
aprende, já disse o velho Camões.
— Mas então esses passarinhos raciocinam, vovó — têm inteligência...
— Está claro que têm, meu filho. A inteligência é uma faculdade que aparece em
todos os seres, não só no homem. Até as plantas revelam inteligência. O que há é que a
inteligência varia muito de grau. É pequeniníssima nas galinhas e nos perus, mas já bem
desenvolvida no joão-de-barro — e é um colosso num homem como Isaac Newton, aquele
que descobriu a Lei da Gravitação Universal.
No terreiro do sítio, em frente à varanda, havia sempre um mastro de São João, que
Pedrinho fincava na véspera do dia desse santo, a 24 de junho, quando vinha pelas férias.
Ele mesmo cortava o pau no mato, ele mesmo o descascava e pintava inteirinho, com
arabescos vermelhos, amarelos e azuis. No topo do mastro colocava a “bandeira de São
João”, que era um quadrado de sarrafo, espécie de moldura, na qual pregava com tachinhas
um retrato de São João meninote com um cordeirinho no braço. Essas bandeiras,
estampadas em morim, custavam R$ 1,50 na venda do Elias Turco, lá na estrada.
O terreiro era vedado por uma cerca de paus-a-pique — rachões de guarantã. Bem no
centro ficava a porteira. Para lá da porteira era o pasto, onde havia um célebre cupim de
metro e meio de altura; e mais adiante, um velho cedro ainda do tempo da mata virgem.
Através do pasto seguia o “caminho” — ou a estrada que ia ter à vila, a légua e meia dali.
No fim do pasto, perto da ponte, apareciam a casinha do Tio Barnabé e a figueira grande; e
bem lá adiante, o Capoeirão dos Tucanos, uma verdadeira mata virgem onde até onça,
macacos e jacus havia.
E que mais? Ah, sim, o ribeirão que passava pela casa do Tio Barnabé cortava o pasto
e vinha fazer as divisas do pomar com as terras de plantação. Impossível haver no mundo
um ribeirão mais lindo, de água mais limpa, com tantas pedrinhas roliças de todas as cores
no fundo. Em certos pontos viam-se pequenas praias de areia branca. Nas curvas a água
quase que parava, formando os célebres “poços” onde Pedrinho pescava lambaris e bagres.
As beiras de água rasa eram a zona dos guarus — o peixinho menor que existe.
Aos domingos Tia Nastácia saía a mariscar de peneira. Os meninos davam pulos de
alegria. A boa negra metia-se na água até à cintura e ia descendo o ribeirão, com eles a
acompanhá-la da margem, aos gritos.
— Aqui, Nastácia, aqui nestes capinzinhos...
A negra, muito cautelosamente, mergulhava a peneira por baixo dos capinzinhos
boiantes e suspendia-a de repente, de surpresa. A água escoava-se pelos furos e na peneira
aparecia uma porção de vidinhas aquáticas, a saltar e espernear: guarus barrigudinhos,
lambarizinhos novos, pequeninas traíras e, de vez em quando, um baratão-d’água muito
casquento e feio. E outros bichinhos ainda, incompreensíveis e sem nome. Certo dia a
peneira trouxe uma cobra-d’água verde, que a negra jogou sobre o capim da margem. Foi
uma gritaria e uma correria das crianças.
— Não tenham medo que não é venenosa! — disse a negra rindo-se com toda a
gengivada vermelha de fora.
Mas os meninos não quiseram saber de nada. Ficaram a espiar de longe. A cobra-
verde foi coleando por entre os capins e se sumiu de novo na água.
O mais importante daquelas mariscagens eram os camarõezinhos de água doce, moles
e transparentes, que Tia Nastácia acanhava em quantidade. A carregadeira do samburá (a
cestinha redonda que os mariscadores usam para recolher o peixe) era sempre Narizinho. A
menina ia passando os camarões da peneira para o samburá, com muito medo de ser
mordida. Só os agarrava pelos fios da barba. Pedrinho ria-se: “Boba! Onde se viu camarão
morder?” E ela: “A gente nunca sabe...”
No jantar daqueles domingos, quando aparecia na mesa o prato-travessa cheio de
camarõezinhos fritos, bem pururucas e vermelhos, as crianças até sapateavam de gosto. E
se com os camarõezinhos vinha alguma pequena traíra ou bagre, a disputa era certa.
— A traíra é minha! — berrava um.
— É minha, é minha! — gritava outro.
O remédio era sempre uma das célebres sentenças de Salomão de Dona Benta.
— Como vocês são dois e a traíra e uma só, eu como a traíra e vocês repartem os
camarões.
Cessava incontinenti a disputa, e a travessa de camarão ia diminuindo, diminuindo,
até não ficar nem um fio de barba.
III
Medo do saci
Pedrinho, naqueles tempos, costumava passar as férias no sítio de Dona Benta, onde
brincava de tudo, como está nas Reinações e na Viagem ao céu. Só não está contado o que
lhe aconteceu antes da famosa viagem ao céu, quando andava com a cabeça cheia de sacis.
A coisa foi assim. Estava ele na varanda com os olhos no horizonte, postos lá onde
aparecia o verde-escuro do Capoeirão dos Tucanos, a mata virgem do sítio. De repente,
disse:
— Vovó, eu ando com idéias de ir caçar na mata virgem.
Dona Benta, ali na sua cadeirinha de pernas cotós, entretida no tricô, ergueu os óculos
para a testa.
— Não sabe que naquela mata há onças? — disse com ar sério. — Certa vez uma
onça-pintada veio de lá, invadiu aqui o pasto e pegou um lindo novilho da Vaca Mocha.
— Mas eu não tenho medo de onça, vovó! — exclamou Pedrinho fazendo o mais belo
ar de desprezo.
Dona Benta riu-se de tanta coragem.
— Olhem o valentão! Quem foi que naquela tarde entrou aqui berrando com uma
ferrotoada de vespa na ponta do nariz?
— Sim, vovó, de vespa eu tenho medo, não nego — mas de onça, não! Se ela vier do
meu lado, prego-lhe uma pelotada do meu bodoque novo no olho esquerdo; e outra bem no
meio do focinho e outra...
— Chega! — interrompeu Dona Benta, com medo de levar também uma pelotada. —
Mas além de onças existem cobras. Dizem que até urutus há naquele mato.
— Cobra? — e Pedrinho fez outra cara de pouco-caso ainda maior. — Cobra mata-se
com um pedaço de pau, vovó. Cobra!... Como se eu lá tivesse medo de cobra...
Dona Benta começou a admirar a coragem do neto, mas disse ainda:
— E há aranhas-caranguejeiras, daquelas peludas, enormes, que devoram até filhotes
de passarinho.
O menino cuspiu de lado com desprezo e esfregou o pé em cima.
— Aranha mata-se assim, vovó — e seu pé parecia mesmo estar esmagando várias
aranhas-caranguejeiras.
— E também há sacis — rematou Dona Benta. Pedrinho calou-se. Embora nunca o
houvesse confessado a ninguém, percebia-se que tinha medo de saci. Nesse ponto não
havia nenhuma diferença entre ele, que era da cidade, e os demais meninos nascidos e
crescidos na roça. Todos tinham medo de saci, tais eram as histórias correntes a respeito do
endiabrado moleque duma perna só.
Desde esse dia ficou Pedrinho com o saci na cabeça. Vivia falando em saci e tomando
informações a respeito. Quando consultou Tia Nastácia, a resposta da negra foi, depois de
fazer o pelo-sinal e dizer “Credo!”:
— Pois saci, Pedrinho, é uma coisa que branco da cidade nega, diz que não há — mas
há. Não existe negro velho por aí, desses que nascem e morrem no meio do mato, que não
jure ter visto saci. Nunca vi nenhum, mas sei quem viu.
— Quem?
— O Tio Barnabé. Fale com ele. Negro sabido está ali! Entende de todas as
feitiçarias, e de saci, e de mula-sem-cabeça, de lobisomem — de tudo
Pedrinho ficou pensativo.
IV
Tio Barnabé
Tio Barnabé era um negro de mais de oitenta anos que morava no rancho coberto de
sapê lá junto da ponte. Pedrinho não disse nada a ninguém e foi vê-lo. Encontrou-o
sentado, com o pé direito num toco de pau, à porta de sua casinha, aquentando sol.
— Tio Barnabé, eu vivo querendo saber duma coisa e ninguém me conta direito.
Sobre o saci. Será mesmo que existe saci?
O negro deu uma risada gostosa e, depois de encher de fumo picado o velho pito,
começou a falar.
— Pois, Seu Pedrinho, saci é uma coisa que eu juro que “exéste”. Gente da cidade
não acredita — mas “exéste”. A primeira vez que vi saci eu tinha assim a sua idade. Isso
foi no tempo da escravidão, na Fazenda do Passo Fundo, que era do defunto Major
Teotônio, pai desse Coronel Teodorico, compadre de sua avó Dona Benta. Foi lá que vi o
primeiro saci. Depois disso, quantos e quantos!...
— Conte, então, direitinho, o que é saci. Bem Tia Nastácia me disse que o senhor
sabia — que o senhor sabe tudo...
— Como não hei de saber tudo, menino, se já tenho mais de oitenta anos? Quem
muito “véve” muito sabe...
— Então conte. Que é, afinal de contas, o tal saci? E o negro contou tudo direitinho.
— O saci — começou ele — é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo
mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre
na boca um pitinho aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na
carapuça, como a força de Sansão estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a
carapuça de um saci fica por toda vida senhor de um pequeno escravo.
— Mas que reinações ele faz? — indagou o menino.
— Quantas pode — respondeu o negro. — Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas,
esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras
cair nos buracos, bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das
ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do
primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Não
contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os
cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não faz maldade grande, mas não há
maldade pequenina que não faça.
— E a gente consegue ver o saci?
— Como não? Eu, por exemplo, já vi muitos. Ainda no mês passado andou por aqui
um saci mexendo comigo — por sinal que lhe dei uma lição de mestre...
— Como foi? Conte... Tio Barnabé contou.
— Tinha anoitecido e eu estava sozinho em casa, rezando as minhas rezas. Rezei, e
depois me deu vontade de comer pipoca. Fui ali no fumeiro e escolhi uma espiga de milho
bem seca. Debulhei o milho numa caçarola, pus a caçarola no fogo e vim para este canto
picar fumo pro pito. Nisto ouvi no terreiro um barulhinho que não me engana. “Vai ver que
é saci!” — pensei comigo. E era mesmo. Dali a pouco um saci preto que nem carvão, de
carapuça vermelha e pitinho na boca, apareceu na janela. Eu imediatamente me encolhi no
meu canto e fingi que estava dormindo. Ele espiou de um lado e de outro e por fim pulou
para dentro. Veio vindo, chegou pertinho de mim, escutou os meus roncos e convenceu-se
de que eu estava mesmo dormindo. Então começou a reinar na casa. Remexeu tudo, que
nem mulher velha, sempre farejando o ar com o seu narizinho muito aceso. Nisto o milho
começou a chiar na caçarola e ele dirigiu-se para o fogão. Ficou de cócoras no cabo da
caçarola, fazendo micagens. Estava “rezando” o milho, como se diz. E adeus pipoca! Cada
grão que o saci reza não rebenta mais, vira piruá.
Dali saiu para bulir numa ninhada de ovos que a minha carijó calçuda estava
chocando num balaio velho, naquele canto. A pobre galinha quase que morreu de susto.
Fez cró, cró, cró... e voou do ninho feito uma louca, mais arrepiada que um ouriço-
cacheiro. Resultado: o saci rezou os ovos e todos goraram.
Em seguida pôs-se a procurar o meu pito de barro. Achou o pito naquela mesa, pôs
uma brasinha dentro e paque, paque, paque... tirou justamente sete fumaçadas. O saci gosta
muito do número 7.
Eu disse cá comigo: “Deixe estar, coisa-ruinzinho, que eu ainda apronto uma boa para
você. Você há de voltar outro dia e eu te curo”.
E assim aconteceu. Depois de muito virar e mexer, o sacizinho foi-se embora e eu
fiquei armando o meu plano para assim que ele voltasse.
— E voltou? — inquiriu Pedrinho.
— Como não? Na sexta-feira seguinte apareceu aqui outra vez às mesmas horas.
Espiou da janela, ouviu os meus roncos fingidos, pulou para dentro. Remexeu em tudo,
como da primeira vez, e depois foi atrás do pito que eu tinha guardado no mesmo lugar.
Pôs o pito na boca e foi ao fogão buscar uma brasinha, que trouxe dançando nas mãos.
— É verdade que ele tem as mãos furadas?
— É, sim. Tem as mãos furadinhas bem no centro da palma; quando carrega brasa,
vem brincando com ela, fazendo ela passar de uma para a outra mão pelo furo. Trouxe a
brasa, pôs a brasa no pito e sentou-se de pernas cruzadas para fumar com todo o seu
sossego.
— Como? — exclamou Pedrinho, arregalando os olhos. — Como cruzou as pernas,
se saci tem uma perna só?
— Ah, menino, mecê não imagina como saci é arteiro!... Tem uma perna só, sim, mas
quando quer cruza as pernas como se tivesse duas! São coisas que só ele entende e
ninguém pode explicar. Cruzou as pernas e começou a tirar baforadas, uma atrás da outra,
muito satisfeito da vida. Mas de repente, puf! Aquele estouro e aquela fumaceira!... O saci
deu tamanho pinote que foi parar lá longe, e saiu ventando pela janela fora.
Pedrinho fez cara de quem não entende.
— Mas que puf foi esse? — perguntou. — Não estou entendendo...
— É que eu tinha socado pólvora no fundo do pito — exclamou Tio Barnabé, dando
uma risada gostosa. — A pólvora explodiu justamente quando ele estava tirando a
fumaçada número 7, e o saci, com a cara toda sapecada, raspou-se para nunca mais voltar.
— Que pena! — exclamou Pedrinho. — Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse
saci...
— Mas não há só um saci no mundo, menino. Esse lá se foi e nunca mais aparece por
estas bandas, mas quantos outros não andam por aí? Ainda na semana passada apareceu um
no pasto de Seu Quincas Teixeira e chupou o sangue daquela égua baia que tem uma
estrela na testa.
— Como é que ele chupa o sangue dos animais?
— Muito bem. Faz um estribo na crina, isto é, dá uma laçada na crina do animal de
modo que possa enfiar o pé e manter-se em posição de ferrar os dentes numa das veias do
pescoço e chupar o sangue, como fazem os morcegos. O pobre animal assusta-se e sai
pelos campos na disparada, correndo até não poder mais. O único meio de evitar isso é
botar bentinho no pescoço dos animais.
— Bentinho é bom?
— É um porrete. Dando com cruz ou bentinho pela frente, saci fede enxofre e foge
com botas-de-sete-léguas.
V
Pedrinho pega um saci
Tão impressionado ficou Pedrinho com esta conversa que dali por diante só pensava
em saci, e até começou a enxergar sacis por toda parte. Dona Benta caçoou, dizendo:
— Cuidado! Já vi contar a história de um menino que de tanto pensar em saci acabou
virando saci...
Pedrinho não fez caso da história, e um dia, enchendo-se de coragem, resolveu pegar
um. Foi de novo em procura do Tio Barnabé.
— Estou resolvido a pegar um saci — disse ele — e quero que o senhor me ensine o
melhor meio.
Tio Barnabé riu-se daquela valentia.
— Gosto de ver um menino assim. Bem mostra que é neto do defunto sinhô velho,
um homem que não tinha medo nem de mula-sem-cabeça. Há muitos jeitos de pegar saci,
mas o melhor é o de peneira. Arranja-se uma peneira de cruzeta...
— Peneira de cruzeta? — interrompeu o menino. — Que é isso?
— Nunca reparou que certas peneiras têm duas taquaras mais largas que se cruzam
bem no meio e servem para reforço? Olhe aqui — e Tio Barnabé mostrou ao menino uma
das tais peneiras que estava ali num canto. — Pois bem, arranja-se uma peneira destas e
fica-se esperando um dia de vento bem forte, em que haja rodamoinho de poeira e folhas
secas. Chegada essa ocasião, vai-se com todo o cuidado para o rodamoinho e zás! — joga-
se a peneira em cima. Em todos os rodamoinhos há saci dentro, porque fazer rodamoinhos
é justamente a principal ocupação dos sacis neste mundo.
— E depois?
— Depois, se a peneira foi bem atirada e o saci ficou preso, é só dar jeito de botar ele
dentro de uma garrafa e arrolhar muito bem. Não esquecer de riscar uma cruzinha na rolha,
porque o que prende o saci na garrafa não é a rolha e sim a cruzinha riscada nela. É preciso
ainda tomar a carapucinha dele e a esconder bem escondida. Saci sem carapuça é como
cachimbo sem fumo. Eu já tive um saci na garrafa, que me prestava muitos bons serviços.
Mas veio aqui um dia aquela mulatinha sapeca que mora na casa do compadre Bastião e
tanto lidou com a garrafa que a quebrou. Bateu logo um cheirinho de enxofre.
O perneta pulou em cima da sua carapuça, que estava ali naquele prego, e “até logo,
Tio Barnabé!”
Depois de tudo ouvir com a maior atenção, Pedrinho voltou para casa decidido a
pegar um saci, custasse o que custasse. Contou o seu projeto a Narizinho e longamente
discutiu com ela sobre o que faria no caso de escravizar um daqueles terríveis capetinhas.
Depois de arranjar uma boa peneira de cruzeta, ficou à espera do dia de São Bartolomeu,
que é o mais ventoso do ano.
Custou a chegar esse dia, tal era sua impaciência, mas afinal chegou, e desde muito
cedo Pedrinho foi postar-se no terreiro, de peneira em punho, à espera de rodamoinhos.
Não esperou muito tempo. Um forte rodamoinho formou-se no pasto e veio caminhando
para o terreiro.
— É hora! — disse Narizinho. — Aquele que vem vindo está com muito jeito de ter
saci dentro.
Pedrinho foi se aproximando pé ante pé e de repente, zás! — jogou a peneira em
cima.
— Peguei! — gritou no auge da emoção, debruçando-se com todo o peso do corpo
sobre a peneira emborcada. — Peguei o saci!...
A menina correu a ajudá-lo.
— Peguei o saci! — repetiu o menino vitoriosamente.
— Corra, Narizinho, e traga-me aquela garrafa escura que deixei na varanda.
Depressa!
A menina foi num pé e voltou noutro.
— Enfie a garrafa dentro da peneira — ordenou Pedrinho — enquanto eu cerco os
lados. Assim! Isso!...
A menina fez como ele mandava e com muito jeito a garrafa foi introduzida dentro da
peneira.
— Agora tire do meu bolso a rolha que tem uma cruz riscada em cima — continuou
Pedrinho. — Essa mesma. Dê cá.
Pela informação do Tio Barnabé, logo que a gente põe a garrafa dentro da peneira o
saci por si mesmo entra dentro dela, porque, como todos os filhos das trevas, tem a
tendência de procurar sempre o lugar mais escuro. De modo que Pedrinho o mais que tinha
a fazer era arrolhar a garrafa e erguer a peneira. Assim fez, e foi com o ar de vitória de
quem houvesse conquistado um império que levantou no ar a garrafa para examiná-la
contra a luz.
Mas a garrafa estava tão vazia como antes. Nem sombra de saci dentro...
A menina deu-lhe uma vaia e Pedrinho, muito desapontado, foi contar o caso ao Tio
Barnabé.
— É assim mesmo — explicou o negro velho. — Saci na garrafa é invisível. A gente
só sabe que ele está lá dentro quando a gente cai na modorra. Num dia bem quente, quando
os olhos da gente começam a piscar de sono, o saci pega a tomar forma, até que fica
perfeitamente visível. É desse momento em diante que a gente faz dele o que quer. Guarde
a garrafa bem fechada, que garanto que o saci está dentro dela.
Pedrinho voltou para casa orgulhosíssimo com a sua façanha.
— O saci está aqui dentro, sim — disse ele a Narizinho. — Mas está invisível, como
me explicou Tio Barnabé. Para a gente ver o capetinha é preciso cair na modorra — e
repetiu as palavras que o negro lhe dissera.
Quem não gostou da brincadeira foi a pobre Tia Nastácia. Como tinha um medo
horrível de tudo quanto era mistério, nunca mais chegou nem na porta do quarto de
Pedrinho.
— Deus me livre de entrar num quarto onde há garrafa com saci dentro! Credo! Nem
sei como Dona Benta consente semelhante coisa em sua casa. Não parece ato de cristão...
VI
A modorra
Um dia Pedrinho enganou Dona Benta que ia visitar o Tio Barnabé, mas em vez disso
tomou o rumo da mata virgem de seus sonhos. Nem o bodoque levou consigo. “Para que
bodoque, se levo o saci na garrafa e ele é uma arma melhor do que quanto canhão ou
metralhadora existe?”
Que beleza! Pedrinho nunca supôs que uma floresta virgem fosse tão imponente.
Aquelas árvores enormes, velhíssimas, barbadas de musgos e orquídeas; aquelas raízes de
fora dando idéia de monstruosas sucuris; aqueles cipós torcidos como se fossem redes;
aquela galharada, aquela folharada e sobretudo aquele ambiente de umidade e sombra lhe
causaram uma impressão que nunca mais se apagou.
Volta e meia ouvia um rumor estranho, de inambu ou jacu a esvoaçar por entre a
folhagem, ou então de algum galho podre que tombava do alto e vinha num estardalhaço
— brah, ah, ah... — esborrachar-se no chão.
E quantas borboletas, das azuis, como cauda de pavão; das cinzentas, como casca de
pau; das amarelas, cor de gema de ovo!
E pássaros! Ora um enorme tucano de bico maior que o corpo e lindo papo amarelo.
Ora um pica-pau, que interrompia o seu trabalho de bicar a madeira de um tronco para
atentar no menino com interrogativa curiosidade.
Até um bando de macaquinhos ele viu, pulando de galho em galho com incrível
agilidade e balançando-se, pendurados pela cauda, como pêndulos de relógios.
Pedrinho foi caminhando pela mata adentro até alcançar um ponto onde havia uma
água muito límpida, que corria, cheia de barulhinhos mexeriqueiros, por entre velhas
pedras verdoengas de limo. Em redor erguiam-se os esbeltos samambaiaçus, esses fetos
enormes que parecem palmeiras. E quanta avenca de folhagem mimosa, e quanto musgo
pelo chão!
Encantado com a beleza daquele sítio, o menino parou para descansar. Juntou um
monte de folhas caídas; fez cama; deitou-se de barriga para o ar e mãos cruzadas na nuca.
E ali ficou num enlevo que nunca sentira antes, pensando em mil coisas em que nunca
pensara antes, seguindo o vôo silencioso das grandes borboletas azuis, embalando-se com o
chiar das cigarras.
De repente notou que o saci dentro da garrafa fazia gestos de quem quer dizer alguma
coisa.
Pedrinho não se admirou daquilo. Era tão natural que o capetinha afinal aparecesse...
— Que aconteceu que está assim inquieto, meu caro saci? — perguntou-lhe em tom
brincalhão.
— Aconteceu que este lugar é o mais perigoso da floresta; e que se a noite pilhar você
aqui era uma vez o neto de Dona Benta...
Pedrinho sentiu um arrepio correr-lhe pelo fio da espinha.
— Por quê? — perguntou, olhando ressabiadamente para todos os lados.
— Porque é justamente aqui o coração da mata, ponto de reunião de sacis,
lobisomens, bruxas, caiporas e até da mula-sem-cabeça. Sem meu socorro você estará
perdido, porque não há mais tempo de voltar para casa, nem você sabe o caminho. Mas o
meu auxílio eu só darei sob uma condição...
-— Já sei, restituir a carapuça! — adiantou Pedrinho.
— Isso mesmo. Restituir-me a carapuça e com ela a liberdade. Aceita?
— Que remédio!
Pedrinho sentia muito ver-se obrigado a perder um saci que tanto lhe custara a
apanhar, mas como não tinha outro remédio senão ceder, jurou que o libertaria se o saci o
livrasse dos perigos da noite e pela manhã o reconduzisse, são e salvo, à casa de Dona
Benta.
— Muito bem — disse o saci. — Mas nesse caso você tem de abrir a garrafa e me
soltar. Terei assim mais facilidade de ação. Você jurou que me liberta; eu dou minha
palavra de saci que mesmo solto o ajudarei em tudo. Depois o acompanharei até o sítio
para receber minha carapuça e despedir-me de todos.
Pedrinho soltou o saci e durante o resto da aventura tratou-o mais como um velho
camarada do que como um escravo. Assim que se viu fora da garrafa, o capeta pôs-se a
dançar e a fazer cabriolas com tanto prazer que o menino ficou arrependido de por tantos
dias ter conservado presa uma criaturinha tão irrequieta e amiga da liberdade.
— Vou revelar os segredos da mata virgem — disse-lhe o saci — e talvez seja você a
primeira criatura humana a conhecer tais segredos. Para começar, temos de ir ao
“sacizeiro” onde nasci, onde nasceram meus irmãos e onde todos os sacis se escondem
durante o dia, enquanto o sol está de fora. O sol é o nosso maior inimigo. Seus raios
espantam-nos para as tocas escuras. Somos os eternos namorados da lua. É por isso que os
poetas nos chamam de filhos das trevas. Sabe o que é trevas?
— Sei. O escuro, a escuridão.
— Pois é isso. Somos filhos das trevas, como os beija-flores, os sabiás e as abelhas
são filhos do sol.
Assim falando, o saci levou o menino para uma cerrada moita de taquaruçus existente
num dos pontos mais espessos da floresta.
Pedrinho assombrou-se diante das dimensões daqueles gomos quase da sua altura e
grossos que nem uma laranja de umbigo.
VII
A sacizada
— É aqui, dentro destes gomos, que se geram e crescem meus irmãos de uma perna
só — disse o saci. — Quando chegam em idade de correr mundo, furam os gomos e saltam
fora. Repare quantos gomos furados. De cada um deles já saiu um saci.
Pedrinho viu que era exato o que ele dizia e mostrou desejos de abrir um gomo para
espiar um sacizinho novo ainda preso lá dentro.
— Vou satisfazer a sua curiosidade, Pedrinho, mas não posso revelar o segredo de
furar os gomos; portanto, vire-se de costas.
O menino virou-se de costas, assim ficando até que o saci dissesse — “Pronto!” Só
então desvirou-se e com grande admiração viu aberta num gomo uma perfeita janelinha.
— Posso espiar? — perguntou.
— Espie, mas com um olho só — respondeu o saci. — Se espiar com os dois o
sacizinho acorda e joga nos seus olhos a brasa do pitinho.
O menino assim fez. Espiou com um olho só e viu um sacizinho do tamanho de um
camundongo, já de pitinho aceso na boca e carapucinha na cabeça. Estava todo encolhido
no fundo do gomo.
— Que galanteza! — exclamou Pedrinho. — Que pena o povo lá de casa não estar
aqui para ver essa maravilha!
— Esse sacizinho ainda fica aí durante quatro anos. A conta da nossa vida dentro dos
gomos é de sete anos. Depois saímos para viver no mundo setenta e sete anos justos.
Alcançando essa idade, viramos cogumelos venenosos, ou orelhas-de-pau.
Pedrinho regalou-se de contemplar o sacizete adormecido e ali ficaria horas se o saci
o não puxasse pela manga.
— Chega — disse ele. — Vire-se de costas outra vez, que é tempo de fechar a
janelinha.
Pedrinho obedeceu, e quando de novo olhou não conseguiu perceber no gomo do
taquaruçu o menor sinal da janelinha.
Justamente nesse instante um formidável miado de gato feriu os seus ouvidos.
— É o jaguar! — exclamou o saci. — Trepemos depressa numa árvore, porque ele
vem vindo nesta direção.
Pedrinho, tomado de pânico, fez gesto de subir na primeira árvore que viu à sua
frente, um velho jacarandá coberto de barbas-de-pau.
— Nessa, não! — berrou o saci. — É muito grossa; o jaguar treparia atrás de nós.
Temos que escolher uma de casca bem lisa e tronco esguio. Aquele guarantã ali está ótimo
— concluiu, apontando para uma árvore bastante alta e magrinha de tronco, que se via à
esquerda.
Subiram — e nunca em sua vida Pedrinho subiu tão depressa em uma árvore! Tinha a
impressão de que o terrível tigre dos sertões estava atrás dele, já de boca aberta para o
engolir vivo. Mas era ilusão apenas, filha do medo, pois a fera miou outra vez e o saci
calculou pelo som que ainda deveria estar a cem metros dali. Pedrinho ajeitou-se como
pôde numa forquilha da árvore, lá ficando quietinho ao lado do saci.
Preparou-se para ver uma fera sobre a qual vivia falando, mas sem ter a respeito idéia
justa. Ia ver a famosa onça-pintada, esse gatão que muito lembra a pantera das matas da
índia.
VIII
A onça
O miado soou de novo, desta vez bem perto, e logo depois surgiu por entre as folhas a
cabeça de uma formidável onça-pintada. Era um animal de extrema beleza, quase tão
grande como o tigre de Bengala. Parou; farejou o ar. Depois ergueu os olhos para a árvore.
Dando com o menino e o saci lá em cima, soltou um rugido de satisfação, como quem diz:
“Achei o meu jantar!” E tentou subir à árvore. Vendo que isso lhe era impossível, sacudiu
o tronco tão violentamente que por um triz Pedrinho não veio abaixo, como se fosse jaca
madura. Mas não caiu, e a onça, desanimada, resolveu esperar que ele descesse. Sentou-se
nas patas traseiras e ali ficou quieta, só movendo a cauda e passando de quando em quando
a língua pelos beiços.
— Ela é capaz de permanecer nessa posição três dias e três noites — disse o saci. —
Temos que inventar um meio de afugentá-la.
Olhou em redor, examinando as árvores como quem está com uma idéia na cabeça.
Depois saltou para a mais próxima e foi de copa em copa até uma que estava cheia de
vagens. Escolheu meia dúzia das mais secas e voltou para junto do menino.
— Apare nas mãos o pó que vou deixar cair destas vagens. — disse ele, abrindo com
os dentes uma delas.
Pedrinho estendeu as mãos em forma de cuia e o saci sacudiu dentro um pó
amarelado. O mesmo foi feito com as outras vagens.
— Bem. Agora derrame este pó bem a prumo, de modo que vá cair sobre a cara da
onça.
Pedrinho colocou-se em linha vertical com a fera e derramou de um jato o pó
amarelo.
Foi uma beleza aquilo! Quando o pó caiu sobre os olhos da onça, ela deu tamanho
pinote que foi parar a cinco metros de distância, sumindo-se em seguida pelo mato adentro,
a urrar de dor e a esfregar os olhos como se quisesse arrancá-los.
Pedrinho deu uma risada gostosa.
— Que diabo de pó é este, amigo saci? — perguntou. — Vejo que vale mais que uma
boa carabina...
— Isso se chama pó-de-mico. Arde nos olhos como pimenta e dá na pele uma tal
coceira que a vítima até se cocará com um ralo de ralar coco, se o tiver ao alcance da mão.
Pedrinho escorregou da árvore abaixo, ainda a rir-se da pobre onça. Mas não se riu
por muito tempo. Mal tinha dado alguns passos, recuou espavorido.
IX
A sucuri
— Pois assim é — continuou o saci. — A lei da floresta é a lei de quem pode mais —
ou por ter mais força, ou por ser mais ágil, ou por ser mais astuto. A astúcia,
principalmente, é uma grande coisa na floresta. Está vendo ali aquele galhinho seco?
— Sim. Um galhinho como outro qualquer — respondeu o menino.
— Pois está muito enganado — replicou o saci. — Não é galho nenhum, sim um
bichinho que finge de galho seco para não ser atacado pelos inimigos.
Pedrinho não quis acreditar, mas cutucando o galhinho viu que ele se mexia. Ficou
assombrado da esperteza.
— Bem diz vovó que a mata é perigosa! Um que não sabe há de levar cada logro
aqui...
— E aquilo? — perguntou o saci apontando para uma folha. — Que parece a você
que aquilo é?
Pedrinho olhou; viu bem que era uma folha de árvore; mas como já estava ficando
sabido nas traições da floresta, piscou para o saci e disse:
— Desta vez não caio na esparrela. Parece que é uma folha, mas com certeza é outro
bichinho que se disfarça em folha.
E cutucou-a para ver se se mexia. A folha, porém, não se mexeu.
— É folha mesmo, bobinho! — disse o saci dando uma risada. — Inda é muito cedo
para você “ler” a mata. Isto é livro que só nós, que aqui nascemos e vivemos toda vida,
somos capazes de interpretar. Um menino da cidade, como você, entende tanto da natureza
como eu entendo de grego.
— Realmente, saci! Estou vendo que aqui na mata sou um perfeito bobinho. Mas
deixe estar que ainda ficarei tão sabido como você.
— Sim, com o tempo e muita observação. Quem observa e estuda acaba sabendo.
Aqui, porém, nós não precisamos estudar. Nascemos sabendo. Temos o instinto de tudo.
Qualquer desses bichinhos que você vê, mal sai dos casulos e já se mostra espertíssimo,
não precisando dos conselhos dos pais. Bem consideradas as coisas, Pedrinho, parece que
não há animal mais estúpido e lerdo para aprender do que o homem, não acha?
O orgulho do menino ofendeu-se com aquela observação. Um miserável saci a fazer
pouco-caso do rei dos animais! Era só o que faltava...
— O que você está dizendo — replicou Pedrinho — é tolice pura sem mistura. O
homem é o rei dos animais. Só o homem tem inteligência. Só ele sabe construir casas de
todo jeito, e máquinas, pontes, e aeroplanos, e tudo quanto há. Ah, o homem! Você não
sabe o que o homem é, saci! Era preciso que tivesse lido os livros que eu li em casa da
vovó..
XI
Discussão
XIII
Novas discussões
XIV
O medo
— Eu ouço falar na Iara e no Boitatá. Será que poderei ver um deles hoje? —
perguntou Pedrinho.
— A Iara pode — respondeu o saci — porque há uma que mora por aqui, em certo
ponto do rio; mas Boitatá, não. Só existe lá pelo sul.
— Como é?
— Pois o Boitatá é um monstro muito interessante. Quase que só tem olhos — uns
olhos enormes, de fogo. De noite vê tudo. De dia não enxerga nada — tal qual as corujas.
Dizem que certa vez houve um grande dilúvio em que as águas cobriram todos os campos
do sul, e o Boitatá, então, subiu ao ponto mais alto de todos. Lá fez um grande buraco e se
escondeu durante todo o tempo do dilúvio. E tantos anos passou no buraco escuro que seu
corpo foi diminuindo e os olhos crescendo — e ficou como é hoje, quase que só olhos.
Afinal as águas do dilúvio baixaram e o Boitatá pôde sair do buraco, e desde esse tempo
não faz outra coisa senão passear pelos campos onde há carniça de animais mortos. Dizem
que às vezes toma a forma de cobra, com aqueles grandes olhos em lugar de cabeça. Uma
cobra de fogo que persegue os gaúchos que andam a cavalo de noite.
— Eu sei dessa história. É o fogo-fátuo. Vovó já nos explicou que esses fogos são
fosforescências emitidas pelas podridões. No sul também existe a célebre história do
Negrinho do Pastorejo. Conhece? Não será uma espécie de saci dos Pampas?
— Não. Trata-se de coisa muito diferente. Esse negrinho foi apenas um mártir. Sofreu
os maiores horrores dum senhor de escravos muito cruel; morreu e virou santinho.
— Conte a história dele. E o saci contou.
XVI
O negrinho
— Havia um fazendeiro, ou estancieiro, como se diz lá no sul, que era muito mau
para os escravos — isso foi no tempo em que havia escravidão neste país. Uma vez
comprou uma ponta de novilhos para engordar em seus pastos. Era inverno, um dos piores
invernos que por lá houve, de tanto frio que fazia.
— Negrinho — disse o estancieiro para um molecote da fazenda, que andava por ali.
— Estes novilhos precisam acostumar-se nos meus pastos, por isso você vai tomar conta
deles. Todas as tardes tem de tocar a ponta inteira para o curral, onde dormirão fechados,
depois de contados por mim. Tome muito tento, hein? Se faltar na contagem um só que
seja, você me paga.
O pobre molecote só tinha catorze anos de idade; mesmo assim não teve remédio
senão ir para o campo tomar conta do gado. Era gado arisco, ainda não querenciado
naquela fazenda, de modo que, para começar, logo no primeiro dia um dos novilhos faltou
na contagem.
O estancieiro não quis saber de explicações. Vendo que o número não estava certo,
botou o cavalo em que estava montado para cima do negrinho e deu-lhe uma tremenda
sova de chicote. Depois disse:
— E agora é ir procurar o novilho que falta. Se não me der conta dele, eu dou conta
de você, seu grandessíssimo patife!
E lept! — outra lambada por despedida.
O moleque, com as costas lanhadas e em sangue, montou no seu cavalinho e saiu
pelos campos atrás do novilho. Depois de muito procurar, encontrou por fim o fujão,
escondido numa moita.
“E agora?”, pensou consigo. “Tenho de laçar este novilho, mas meu laço está que não
vale nada, de tão velho, e eu estou tão escangalhado pela sova que ainda valho menos que
o laço. Mas não há remédio. Tenho que ir até o fim...”
E, aproximando-se com muito jeito, laçou o novilho.
Se fosse só laçar, estaria tudo muito bem. Mas tinha de trazer o boizinho por diante,
até o curral. Teria ele forças para isso? O laço agüentaria?
Não agüentou. Com meia dúzia de sacões o novilho desembaraçou-se do laço,
arrebentando-o, e lá se foi pelos campos afora na volada.
E agora? Voltar para casa sem novilho e sem laço? O furor do estancieiro iria
explodir como bomba.
Voltou.
— Que é do novilho? — indagou o patrão assim que o negrinho apareceu no terreiro.
— Escapou, patrão. Lacei ele, mas o laço estava podre e não agüentou, como sinhô
pode ver por este pedaço.
Se o estancieiro não fosse um monstro de maldade, convencer-se-ia logo, vendo, pela
ponta do laço, que o negrinho andara direito. Quando o laço arrebenta, a culpa da presa
escapar não é do laçador, sim do laço. Não pode haver nada mais claro no mundo. Mas o
estancieiro, que tinha comido cobra naquele dia, em vez de dar-se por convencido, mais
colérico ainda ficou.
— Cachorro! — exclamou, espumando de raiva. — Você vai ter o castigo que
merece.
O dito, o feito. Agarrou o negrinho, amarrou-o pelos pés com a ponta do laço e depois
de bater nele com o cabo do relho até cansar, teve uma idéia diabólica: botá-lo num
formigueiro para ser devorado vivo pelas formigas.
Assim fez. Arrastou-o para um sítio onde existia um enorme formigueiro de formigas
carnívoras, arrancou as roupas do coitadinho e deixou-o amarrado lá.
No dia seguinte foi ver a vítima, com a idéia de continuar o castigo, caso o grande
criminoso não estivesse morto e bem morto. Chegando ao formigueiro, levou um grande
susto. Em vez do negrinho, viu uma nuvem que se erguia da terra e logo se sumiu nos ares.
A notícia desse acontecimento correu mundo. Os homens daquelas bandas
começaram a considerar o negrinho como um mártir que tinha ido direito para o céu.
Com o tempo virou um verdadeiro santo. Quem quer qualquer coisa, na campanha do
Rio Grande, antes de pedi-la a Santo Antônio ou a outro santo qualquer, pede logo ao
Negrinho do Pastorejo.
— E ele faz?
— Está claro que faz — sempre que pode. Como sofreu muito, sabe avaliar os apertos
dos outros e ajuda-os no possível.
XVII
Meia-noite
XVIII
Saída dos sacis
Nem em sonhos Pedrinho jamais esperou que pudesse observar um quadro mais
curioso. Aqueles minúsculos capetinhas eram as mais travessas e irrequietas criaturas que
se possam imaginar. Não paravam um só instante. Cabriolavam nos musgos do chão,
pulavam como pulgas, dançavam, inventavam mil travessuras. E tudo faziam sem por um
só instante tirarem o pitinho da boca.
Deram-se cenas muito engraçadas. Três deles ficaram muito atentos, de narizinho
para o ar, observando um morcego que despreocupadamente comia frutinhas de uma
enorme figueira. Depois de cochicharem entre si, treparam à figueira, com todas as cautelas
para não assustar o morcego. Foram por trás dele e, de repente — zás!... pularam-lhe ao
lombo, como perfeitos cowboys! O morcego levou um grande susto e começou a corcovear
no ar, em vôos tontos, enquanto os três cavaleiros, firmes na sela como carrapatos, davam
assobios agudíssimos num grande contentamento.
Outro havia trepado a um arbusto e descoberto um ninho de beija-flor com três
ovinhos. Imediatamente deu brado de alarma, chamando os companheiros. Reuniu-se um
bando em redor do ninho, cujos ovos foram retirados e levados para o chão. Lá acenderam
uma minúscula fogueirinha e assaram os ovos e os comeram com grande alegria e
gulodice.
E quantas outras travessuras não observou Pedrinho! Os que agarraram um pobre
caramujo pelos chifrinhos e fizeram prodígios para arrancá-lo da casca. Os que se
divertiam em caçar vaga-lumes, matá-los e esfregar pelo corpo a substância fosforescente
que os torna luminosos. Os que cavavam a terra descobriam minhocas, emendavam três e
quatro para fazer uma corda de pular...
Pedrinho estava completamente absorvido naquele curioso espetáculo; e assim
passaria a noite se em certo momento o saci não o puxasse para o fundo do oco.
— Cuidado! — disse ele. — Estou sentindo catinga de lobisomem. Meu faro nunca se
engana...
XIX
Lobisomem
Nem bem acabara o saci de pronunciar estas palavras e Pedrinho notou grande
rebuliço entre os sacizinhos. Parece que também pressentiram qualquer coisa, pois
largaram das brincadeiras e desapareceram na floresta, como por encanto.
Era tempo. O mato começou a estalar como se algum animalão por ele viesse
rompendo, e por fim surgiu na clareira a carantonha sinistra de um lobisomem. Parou,
farejou o ar como se estivesse sentindo cheiro de carne humana. O saci, porém, tivera a
precaução de emitir um certo cheirinho a enxofre, e isso iludiu o lobisomem, que continuou
o seu caminho e passou. O cheiro a enxofre disfarça o da carne humana, explicou mais
tarde o saci.
Apesar do medo que sentira, Pedrinho pôde notar que o monstro tinha a pele virada,
isto é, o pêlo para dentro e a carne para fora — uma coisa horrível! No mais, era um
perfeito lobo, embora de dimensões muito mais avantajadas.
Assim que o lobisomem deixou a clareira, o menino respirou um ah! de alívio e pediu
ao saci que lhe contasse alguma coisa desses monstros.
— Dizem — respondeu o saci — que quando uma mulher tem sete filhos machos, o
sétimo vira lobisomem na noite das sextas-feiras. Sai então pelos campos, invade os
galinheiros (onde come um produto das galinhas que não é o ovo) e também assalta e
devora os cães e as crianças que encontra pelo caminho. Se alguém ataca um lobisomem e
corta-lhe uma das patas, ele vira imediatamente no homem que é — e esse homem fica por
toda a vida aleijado do membro correspondente à pata cortada.
Pedrinho não resistiu à tentação de ver de perto as pegadas do monstro e apesar das
advertências do saci saiu do oco para examiná-las à luz de um vaga-lume. Mas não teve
tempo. Assim que saiu do oco, ouviu um estranho rumor ao longe, seguido do agudo
assobio do saci chamando-o. Voltou precipitadamente.
— Que há? — indagou.
O saci, que também parecia amedrontado, puxou-o bem para o fundo do esconderijo,
murmurando: — A mula-sem-cabeça!
XX
A mula-sem-cabeça
A mula-sem-cabeça!
Pedrinho estremeceu. Nenhum duende das florestas o apavorava mais que esse
estranho e incompreensível monstro, a mula-sem-cabeça que vomita jogo pelas ventas!
Muitas histórias a seu respeito tinha ouvido aos caboclos do sertão e aos negros velhos,
embora Dona Benta vivesse dizendo que tudo não passava de crendice.
A galopada aproximava-se; já se ouvia o estalar dos arbustos que em seu desenfreado
galopar a mula-sem-cabeça vinha quebrando. Súbito, parou.
— Vai mudar de rumo! — murmurou o saci, com cara mais alegre.
E de fato foi assim. A mula retomou a galopada, mas em outra direção, embora
passasse por perto não chegou ao alcance dos olhos do menino.
— Que pena! — exclamou ele. — Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse
monstro...
— Que pena? — repetiu o saci. — Que felicidade, deve você dizer! A mula-sem-
cabeça é o mais sinistro duende que há no mundo; tem o dom de transtornar a razão de
todos que a vêem. Por isso é que tive medo — não por mim, mas por você...
— Mas qual é a origem dessa mula?
— Uma história muito velha. Dizem que antigamente houve um rei cuja esposa tinha
o misterioso hábito de passear certas noites pelo cemitério, não consentindo que ninguém a
acompanhasse. O rei incomodou-se com isso e certa noite resolveu segui-la sem que ela o
percebesse. No cemitério deu com uma coisa horrenda: a rainha estava comendo o cadáver
de uma criança enterrada na véspera e que por suas próprias mãos cheias de anéis havia
desenterrado! O rei deu um grito. Vendo-se pilhada, a rainha deu outro grito ainda maior
— e imediatamente virou nessa mula-sem-cabeça, que desde aquele momento nunca mais
parou de galopar pelo mundo, sempre vomitando fogo pelas ventas.
E foi assim que Pedrinho perdeu a única oportunidade que teve de ficar conhecendo
pessoalmente o estranho monstro que tanto impressiona a imaginação dos nossos
sertanejos.
Ela corre sem cessar, espalhando a loucura por onde passa. Não existe criatura, seja
bicho do mato ou gente, que não prefira ver o Diabo em pessoa a ver a tal mula-sem-
cabeça. É horrenda!
— Mas como será que vomita fogo pelas ventas, se as ventas estão na cabeça e ela
não tem cabeça?
— Também não entendo; mas é assim — disse o saci.
XXI
Más notícias
Lembrava-se que ouvindo essa cantiga sentia uma ponta de medo e fechava os olhos e
logo dormia. Depois que cresceu nunca mais ouviu falar na Cuca, a não ser minutos antes,
quando o saci lhe contou que a Cuca era a Rainha das Coisas Feias. Seria verdade?
Verdade ou não, tinha de voltar ao sítio incontinenti e de qualquer maneira.
— Vamos embora, saci! Precisamos chegar ao sítio o quanto antes, para saber com
certeza o que há. Pode ser que a coruja esteja mentindo, mas também pode ser verdade.
— Mentira não é — disse o saci. — Minha coruja não mente. Mas pode ser que a
menina tenha sido raptada por outro duende que não a Cuca. É o ponto que temos de
verificar.
— E se for a Cuca mesmo? Que havemos de fazer?
— Não sei. Tenho de pensar nisso. A Cuca é bastante poderosa, e má como ela só.
Mas havemos de dar um jeito. Tenho cá uma idéia. Venha comigo.
Saíram do oco da peroba e tomaram o caminho do sítio de Dona Benta. A escuridão
da noite não embaraçava em nada ao saci que, como filho das trevas, enxergava no escuro
ainda melhor do que ao sol. Mas o pobre Pedrinho padeceu um bocado. Só podia guiar-se
pela brasa do cachimbo do saci, de modo que tropeçou em muito cipó e toco de pau podre,
afundando os pés em formigueiros e buracos de tatu, espinhando-se na cara e nos braços.
Mas era tal a sua ânsia de chegar que nem sequer a dor das arranhaduras sentiu.
— Nesta andadura chegaremos tarde — disse de repente o saci. — Se você é bom
cavaleiro, poderemos ir montados num porco-do-mato.
— Sou. Já montei até num garrote bem taludo, que deu os maiores corcovos do
mundo sem conseguir derrubar-me.
— Pois então, tudo está resolvido. Olhe! Lá vem em nosso rumo uma vara de porcos.
Suba a esta árvore; assim que eu der sinal, atire-se de perna aberta para cima do lombo do
que vem na frente. Eu irei na garupa.
Assim fizeram. Subiram os dois a uma árvore baixa; logo que o porco chefe passou
por debaixo da árvore, Pedrinho e o saci atiraram-se sobre ele, agarrando-se aos compridos
pêlos do congote. Assustado com aquela manobra, o pobre porco disparou numa galopada
louca pela mata afora, na direção desejada pelo saci. Este habilíssimo duendezinho tinha
jeito para tudo, inclusive dirigir porcos-do-mato como se os trouxesse seguros por um bom
par de rédeas. Pedrinho não percebeu de que modo o saci conseguia isso, nem teve tempo
de o perguntar. Todas as suas energias eram poucas para manter-se firme no lombo da
cavalgadura de nova espécie. Aquela corrida com o saci dentro da noite iria constituir a
mais arrojada aventura da sua vida. Por mais anos que se passassem, ele jamais poderia
esquecer-se dela.
XXII
Chegam ao sítio
XXIII
A Cuca
XXIV
O novelo de cipós
Cortado o cipó, trouxeram-no em dois grandes rolos, e sem receio nenhum, pois os
roncos da Cuca mostravam que ela estava a dormir como quem não dormia há sete anos,
começaram a amarrá-la dos pés à cabeça.
Mais uma vez teve Pedrinho de reconhecer como era hábil e arteiro o seu amigo saci.
Amarrar parece coisa fácil, mas não é. Se Pedrinho houvesse amarrado a Cuca, o mais
certo era que com dois safanões a bruxa se livrasse da cipoada num minuto. Mas com o
saci deu-se coisa diferente. O diabinho parecia nunca ter feito outra coisa na vida.
Amarrou-a com a mesma ciência com que as aranhas amarram as moscas nas suas teias,
sem deixar um ponto fraco. O segredo, explicou ele, era estudar a amarração de modo que
ao despertar a Cuca não pudesse fazer o menor movimento. Porque se a criatura amarrada
puder fazer um pequeno movimento, por menor que seja, afrouxará um ponto no
amarrilho; e depois afrouxará outro ponto — e assim irá até libertar-se duma vez.
Terminada a obra, em vez de Cuca viu-se no chão um verdadeiro carretel de cipó.
— Sim, senhor! — exclamou Pedrinho. — Aprendi mais hoje do que em toda a
minha vida. Esta diaba pode ter a força de cem elefantes, mas duvido que escape da
“nossa” amarração.
O saci sorriu daquele “nossa”, mas calou-se. Limitou-se a enxugar o suor da testa.
— Temos agora de acordá-la — disse depois.
— Deixe esse ponto comigo — pediu o menino. — Com um bom pau de guatambu,
eu acordo-a bem acordada.
— Nada de paus! Você não conhece a Cuca. Um monstro de três mil anos, como ela,
havia de rir-se das pauladas dum menino como você. À força, é impossível lutar com ela.
Temos de usar da astúcia. A arma a empregar vai ser o pingo d’água.
— Lá vem o pingo d’água outra vez! — exclamou o menino. — Até parece caçoada,
querer com um pobre pingo d’água dominar uma bruxa destas...
— Pois fique sabendo que é o único meio.
Pedrinho não entendeu, ficando de boca aberta a ver as manobras do saci. A
engenhosa criaturinha trepou que nem macaco pelas estalactites gotejantes da gruta até
alcançar a que ficava bem a prumo sobre a cabeça da Cuca. E lá, então, encaminhou um
fiozinho d’água de modo que gotejasse lentamente bem no meio da testa da Cuca.
— Basta isso — disse ele. — No começo ela nem sente; mas com a continuação a dor
vai ficando tamanha que há de dar-se por vencida.
— Sim, senhor! — murmurou o menino. — Está aí uma invenção que nunca
imaginei, mas agora me lembro que vovó nos contou uma história assim...
— Pois é — disse o saci. — Ambos ouvimos essa história; mas só eu prestei atenção
e já estou tirando partido do que aprendi. Sou dez vezes mais esperto que você, Pedrinho.
Não acha?
O menino não teve remédio senão achar que era mesmo. Os pingos começaram a cair.
Os cem primeiros nenhuma impressão fizeram na bruxa, cujo sono parecia dos mais
gostosos. Daí por diante já esse sono não pareceu mais tão calmo. Começou a fazer caretas,
como se estivesse sonhando algum sonho horrível. Por fim abriu um olho e depois o outro.
Por vários minutos permaneceu apatetada, vendo diante de si aquelas duas criaturas
de mãos na cintura, a olharem para ela sem dizer coisa nenhuma. Depois a sua inteligência
foi acordando e notou o pingo a lhe cair na testa. Quis mudar de posição. Não pôde. Só
nesse momento viu que estava amarradinha como se fosse um carretel e condenada à mais
absoluta imobilidade.
XXV
O pingo d’água
A cólera da Cuca foi medonha. Deu um urro de ouvir-se a dez léguas dali, tamanho e
tão horrendo que por um triz Pedrinho não disparou na corrida. E outro urro, e outro, e
mais de cem.
— Berre, demônio! — gritou o saci. — Berre até rebentar. Pingo d’água não tem
ouvidos, nem tem pressa. Esse que botei pingando nessa horrenda caraça vai divertir-se em
pingar no mesmo lugarzinho por cem anos, se for preciso. Sei que Cuca é bicho duro, mas
quero ver se pode com um pingo d’água que não tem pressa nenhuma, nem tem outra coisa
a fazer na vida senão pingar, pingar, pingar...
A dor que a queda de um pingo atrás do outro já estava causando nos miolos da bruxa
começava a crescer ponto por ponto. Cada novo pingo era um ponto mais de dor. Naquele
andar ela não suportaria o suplício nem um mês, quanto mais os cem anos com que a
ameaçara o saci.
— Parem com esse pingo d’água! — berrou a bruxa.
O saci deu uma risada de escárnio.
— Parar? Tinha graça! Se estamos apenas começando, como quer você que paremos?
Já arrumei tudo, de modo que o pingo pingue durante cem anos, e se não for suficiente,
arranjarei as coisas de modo que depois desses cem anos pingue outros cem. Duzentos
anos de pingo na testa parece-me uma boa conta, não acha?
A Cuca ainda urrou como cem mil onças feridas, e espumou de cólera, e ameaçou
céus e terras. Por fim viu que estava fazendo papel de boba, pois havia encontrado afinal
um adversário mais inteligente do que ela; e disse:
— Parem com este pingo que já está me pondo louca! Tenham dó duma pobre velha...
— Pobre velha! A coitadinha... Quem não a conhece que a compre, bruxa duma figa!
Só pararemos com a água se você nos contar o que fez de Narizinho.
— Hum! — exclamou a bruxa, percebendo afinal a causa de tudo aquilo. — Já sei...
— Pois se sabe, desembuche. Do contrário, a sua sina está escrita; há de morrer no
maior suplício que existe. E nada de tentar enganar-nos. É ir dizendo onde está a menina, o
mais depressa possível.
— Farei o que quiserem, mas primeiro hão de desviar de minha testa este maldito
pingo que me está deixando louca.
— Assim será feito — disse o saci trepando de novo às estalactites e desviando o
fiozinho d’água para um lado.
A Cuca deu um suspiro de alívio. Tomou fôlego, descansou um bocado; depois disse:
— Encantei essa menina que vocês procuram, mas só poderei romper o encanto se
vocês me trouxerem um fio de cabelo da Iara. Sem isso é impossível.
— Não seja essa a dúvida — respondeu o saci. — Iremos buscar o fio de cabelo da
Iara. Mas, se ao voltarmos, você não quebrar o encanto, juro que deixarei o pingo a pingar
nessa testa horrenda, não cem anos, mas cem mil anos, está ouvindo?
E dizendo isto, tomou Pedrinho pela mão e retirou-se com ele da caverna.
XXVI
A Iara
— Vamos à cachoeira onde mora a Iara — disse. — Essa rainha das águas costuma
aparecer sobre as pedras nas noites de lua. É muito possível que possamos surpreendê-la a
pentear os seus lindos cabelos verdes com o pente de ouro que usa.
— Dizem que é criatura muito perigosa — murmurou Pedrinho.
— Perigosíssima — declarou o saci. — Todo cuidado é pouco. A beleza da Iara dói
tanto na vista dos homens que os cega e os puxa para o fundo d’água. A Iara tem a mesma
beleza venenosa das sereias. Você vai fazer tudo direitinho como eu mandar. Do contrário,
era uma vez o neto de Dona Benta!...
Pedrinho prometeu obedecer cegamente. Andaram, andaram, andaram. Por fim
chegaram a uma grande cachoeira cujo ruído já vinham ouvindo de longe.
— É ali — disse o perneta, apontando. — É ali que ela costuma vir pentear-se ao luar.
Mas você não pode vê-la. Tem de ficar bem quietinho, escondido aqui atrás desta pedra e
sem licença de pôr os olhos na Iara. Se não fizer assim, há de arrepender-se amargamente.
O menos que poderá acontecer é ficar cego.
Pedrinho prometeu, e de medo de não cumprir o prometido foi logo tapando os olhos
com as mãos.
O saci partiu, saltando de pedra em pedra, para logo desaparecer por entre as moitas
de samambaias e begônias silvestres.
Vendo-se só, Pedrinho arrependeu-se de haver prometido conservar-se de olhos
fechados. Já tinha visto o Lobisomem, o Caipora, o Curupira, a Cuca. Por que não havia de
ver a Iara também? O que diziam do poder fatal dos seus encantos certamente que era
exagero. Além disso, poderia usar um recurso: espiar com um olho só. O gosto de contar a
toda gente que tinha visto a famosa Iara valia bem um olho.
Assim pensando, e não podendo por mais tempo resistir à tentação, fez como o saci:
foi pulando de pedra em pedra, seguindo o mesmo caminho por ele seguido.
Súbito, estacou, como fulminado pelo raio. Ao galgar uma pedra mais alta do que as
outras, viu, a cinqüenta metros de distância, uma ninfa de deslumbrante beleza, em repouso
numa pedra verde de limo, a pentear com um pente de ouro os longos cabelos verdes cor
do mar. Mirava-se no espelho das águas, que naquele ponto formavam uma bacia de
superfície parada. Em torno dela centenas de vaga-lumes descreviam círculos no ar; eram a
coroa viva da rainha das águas. Jóia bela assim, pensou Pedrinho, nenhuma rainha da terra
jamais possuiu. A tonteira que a vista da Iara causa nos mortais tomou conta dele.
Esqueceu até do seu plano de olhar com um olho só. Olhava com os dois, arregaladíssimos,
e cem olhos que tivesse, com todos os cem olharia.
Enquanto isso, ia o saci se aproximando da Mãe-d’Água, cautelosamente, com
infinitos de astúcia para que ela nada percebesse. Quando chegou a poucos metros de
distância, deu um pulo de gato e nhoque! Furtou-lhe um fio de cabelo.
O susto da Iara foi grande. Desferiu um grito e precipitou-se nas águas,
desaparecendo.
O saci não esperou por mais. Com espantosa agilidade de macaco, aos pinotes,
saltando as pedras de duas em duas, de três em três, num momento se achou no ponto onde
Pedrinho, ainda no deslumbramento da beleza, jazia de olhos arregalados, imóvel, feito
uma estátua.
— Louco! — exclamou o saci, lançando-se a ele e esfregando-lhe nos olhos um
punhado de folhas colhidas no momento.
— Não fosse o acaso ter posto aqui ao meu alcance esta planta maravilhosa e você
estaria perdido para sempre. Louco, dez vezes louco, louquíssimo que você é, Pedrinho!
Por que me desobedeceu?
— Não pude resistir — respondeu o menino logo que a fala lhe voltou. — Era tão
linda, tão linda, tão linda, que me considerei feliz de perder até os dois olhos em troca do
encantamento de contemplá-la por uns segundos.
— Pois saiba que cometeu uma grande falta. Não devia pensar unicamente em si, mas
também na pobre Dona Benta, que é tão boa, e na sua mãe e em Narizinho. Eu, apesar de
um simples saci, tenho melhor cabeça do que você, pelo que estou vendo...
Aquelas palavras calaram no menino, que nada teve a dizer, achando que realmente o
saci tinha toda razão.
— Bem — continuou o duendezinho — agora que o perigo já passou, tratemos de
voltar à caverna da Cuca. E depressa, antes que amanheça. Lembre-se que prometemos a
Dona Benta estar no sítio com a menina sumida logo ao romper da manhã.
XXVII
Na caverna da Cuca
* * *
* *
*
** Fim do Volume II **
O AUTOR E SUA OBRA
A elegante bengala do pai fascinava o menino José Renato Monteiro Lobato. Mas
como poderia usá-la se as iniciais eram JBML? E não havia jeito de apagá-las sem
estragar a beleza de um objeto tão querido. Resolve, então, o dilema com uma solução
simples e inventiva: passa a assinar-se José Bento Monteiro Lobato, nome que conservará
até o fim.
Monteiro Lobato nasceu a 18 de abril de 1.882 nos arredores de Taubaté, numa
chácara que era a residência da cidade de seu avô, o visconde de Tremembé. Duas coisas
encantavam o menino: a vida ao ar livre com os brinquedos feitos de mamão verde,
chuchus, etc, e a biblioteca de seu avô. Alfabetizado por sua mãe, teve depois um professor
particular e, aos sete anos, entrou para um colégio de Taubaté.
Logo demonstra sua vocação: escreve crônicas, poemas, contos e também faz
desenhos para o jornalzinho colegial “O Guarani”. Em 1.900, quando termina o
secundário, Lobato quer desenvolver seu talento para o desenho na Escola dê Belas-Artes.
Mas o avô impõe uma carreira ao jovem de dezoito anos: o direito. Aos vinte e dois anos,
já formado, vai para Areias, onde se casa. Para superar o tédio da cidade sem atrativos e
parada no tempo, escreve artigos para jornais do vale do Paraíba.
Em 1.911, morre o visconde de Tremembé, e Monteiro Lobato herda suas terras.
Entrega-se à modernização de sua fazenda, mas esbarra na velha estrutura rural do país.
Abandonados, sem higiene e alimentação, sem nenhuma orientação que os torne
produtivos, os caboclos continuam praticando as queimadas que aprenderam com os avós.
Assim nasce o Jeca Tatu, célebre símbolo do caipira brasileiro. Mas Lobato adverte:
“Jeca não é assim. Está assim”.
Volta-se com seu dinamismo para a atividade cultural e editorial. Compra a famosa
“Revista do Brasil” e lança “Urupês” (1.918), reunião de contos regionalistas. Junto com
“Cidades mortas” (1.919), “Negrinha” (1.920), “Onda verde” (1.921), “O choque das
raças ou o presidente negro” (1.926), forma parte do conjunto de suas obras para adultos.
Depois do fracasso de sua primeira editora, funda a Companhia Editora Nacional
(1.925). Sua última investida nesse campo será a fundação da Editora Brasiliense (1.945),
com Caio Prado Jr. e Artur Neves. Outra de suas grandes lutas consiste na campanha pela
exploração do ferro (para fabricar máquinas) e petróleo (para movê-las). O Brasil possui
esses dois elementos: por que os brasileiros não os exploram e combatem os interesses
estrangeiros? A campanha nacionalista de Lobato, apesar dos desgostos, divergências
com soluções adotadas e até da prisão por seis meses, em 1.941, daria frutos positivos.
Mas voltemos no tempo: em 1.920, Lobato elabora o conto infantil “A história do
peixinho que morreu afogado”. Resolve ampliá-lo e introduz cenas de sua infância,
publicando-o em 1.921 com o nome de “Narizinho arrebitado”. É o ponto de partida para
a criação de uma série de aventuras no Sítio do Pica-Pau Amarelo, onde fica o Reino das
Águas Claras.
Entre seus felizes habitantes, estão Emília, a boneca de pano que diz tudo o que lhe
passa na cabeça; o Visconde de Sabugosa, o sábio de espiga de milho; Pedrinho e
Narizinho, eternas crianças sempre abertas a tudo; Dona Benta, avó dos meninos,
contadora de histórias que aceita a imaginação das crianças e admite as novidades que
mudam o mundo; Nastácia, a empregada que fez Emília, suas crendices e seus quitutes.
Nesse mundo, um pozinho mágico (pirlimpimpim) rompe os limites do espaço e do
tempo, levando suas personagens a viverem as mais incríveis façanhas. Essas maravilhas
narrativas, às quais não falta a preocupação de informar e educar, têm encantado
gerações e gerações de crianças brasileiras. Recentemente, sua obra foi transformada
numa série de televisão, “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, mas nada substitui o prazer e o
estímulo à imaginação originados da leitura da obra infantil de Monteiro Lobato.
Depois da eleição do marechal Dutra para a presidência da República, o escritor,
desiludido, resolve exilar-se voluntariamente na Argentina, onde funda a Editorial Acteón.
Publicadas em espanhol, suas obras conhecem o mesmo sucesso que haviam conquistado
no Brasil, Em 1.947, volta à pátria e morre no dia 4 de julho de 1.948, após ter sofrido um
espasmo vascular.
Sua obra original para crianças e jovens consiste em: “Reinações de Narizinho”,
“Viagem ao céu”, “O saci”, “Caçadas de Pedrinho”, “Hans Staden”, “História do
mundo para as crianças”, “Memórias da Emília”, “Peter Pan”, “Emília no País da
Gramática”, “Aritmética da Emília”, “Geografia de Dona Benta”, “História das
invenções”, “Serões de Dona Benta”, “Dom Quixote das crianças”, “O poço do
Visconde”, “Histórias de Tia Nastácia”, “O Pica-Pau Amarelo”, “A reforma da
natureza”, “O Minotauro”, “A chave do tamanho”, “Fábulas”, “Histórias diversas”,
“Os doze trabalhos de Hércules”.