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Do Monstro Ao Homem

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

CARLA DA SILVA

DO “MONSTRO” AO HOMEM:
MOTIVOS DE VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER

DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

São Paulo
2020
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

CARLA DA SILVA

DO “MONSTRO” AO HOMEM:
MOTIVOS DE VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Doutor em Serviço
Social, sob a orientação da Prof.ª. Dra. Maria Lucia
Rodrigues.

São Paulo
2020
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução
parcial ou total desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou
eletrônicos.

Carla da Silva
carla_servicosocial@yahoo.com.br

Sistema para Geração Automática de Ficha Catalográfica para Teses e


Dissertações com dados fornecidos pelo autor

da Silva, Carla
Do “monstro” ao homem: motivos de violências contra a mulher / Carla da
Silva
-- São Paulo: [s.n.], 2020.
131p; 21 X 29,7 cm.

Orientador: Maria Lucia Rodrigues.


Tese (Doutorado em Serviço Social) -- Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço
Social, 2020.

1. Violências. 2. Homem Autor de Violência. 3. Motivos. 4.


Objetividade. 5. Subjetividade. I. Rodrigues, Maria Lucia. II. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, Programa de Estudos Pós-Graduados
em Serviço Social. III. Título.
CDD
CARLA DA SILVA

DO “MONSTRO” AO HOMEM:
MOTIVOS DE VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Doutor em Serviço
Social, área de concentração Serviço Social.

Aprovado em: _______ /_______/_______

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________
Dra. Sandra Eloisa Paulino – FAPSS
______________________________________________
Dra. Patricia Krieger Grossi – PUC RS
______________________________________________
Dra. Vanessa Rombola – UEM
______________________________________________
Dra. Maria Carmelita Yasbek – PUC SP
______________________________________________
Dra. Nome Completo – Sigla da Instituição
DEDICATÓRIA

Ao meu amado Jesus e minha amada Maria


Ao meu pai Carlos que retornou a casa de
Deus. Te amo e estou com muitas saudades!
Aos meus amores: Alicia (Mãe) e Richard
(filho).
AGRADECIMENTO AO CNPQ

O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de


Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil (CNPq) – Código de
Financiamento 001.
This study was financed inpart by the National Council for Scientific and
Technological Development – Brasil (CNPq) – Finance Code 001.
Número de processo 140217/2018-5
AGRADECIMENTOS

Gratidão ao meu amado Deus, pela oportunidade de ter chegado tão longe,
pela concretização do impossível, e pelo carinho dedicado a mim nesse trajeto.
À minha mãe, Alicia; não seria possível chegar até aqui sem você, sem sua
visão de águia, sua perseverança, sua coragem e sua fé. Esses foram os elementos
que moveram o céu para que esse sonho se tornasse possível.
Ao meu filho Richard, que esteve ao meu lado todos os dias, acreditou e não
me deixou desistir.
Ao meu irmão Anderson, que compartilhou comigo as minhas angústias,
visualizou esse caminho e estendeu a sua mão para me ajudar.
Ao meu irmão Bruno e às duas grandes riquezas do meu coração – Davi e
Ana Alice (sobrinhos) –, que fizeram os meus dias mais alegres, e enxugaram
minhas lágrimas de exaustão.
À Professora Mirian Faury, pelo carinho, pela dedicação e principalmente por
acreditar em mim. Guardarei suas últimas palavras: “Não desista, você consegue,
você é capaz, eu acredito em você!”. Receba minha gratidão aí no céu.
À orientadora e amiga, Profa. Maria Lúcia Rodrigues, pelos ensinamentos
complexos, mas transmitido com simplicidade e afeto. Sou muito grata pelo seu
olhar, que atravessa as aparências e chega à minha alma.
À minha irmã de coração, Perla, que não mediu esforços para me ajudar,
alegrar e consolar. Choramos, literalmente juntas, e fomos consoladas pelo nosso
Deus. Peço a Ele que cuide de você e a esconda em Teu coração.
Aos meus amigos Adjane, Maria da Graça (Ninha), Maria da Glória (Dora),
Cleonice (Cleo), Sandra e Sergio, que rezaram, intercederam por mim, e acreditaram
no impossível.
À Sandra Paulino, que se tornou, para mim, o exemplo de profissional,
pesquisadora e amiga. Muito obrigada, pela paciência, pelo cuidado e pela
oportunidade de trabalhar com você.
À Profa. Virginia (China), que o tempo todo esteve comigo, nas alegrias e nas
tristezas, durante esse caminho.
À Silmara, que me incentivou desde o início, e vibrou comigo todas as minhas
conquistas. Muito obrigada, você mora em meu coração.
Às professoras e colegas de trabalho, Vânia, Jeanete, Fabiana e o Prof.
Duarcides, que compartilharam comigo seus conhecimentos. Muito obrigada.
Aos meus amigos e minhas amigas que mesmo longe torceram por mim;
vocês moram em meu coração.
Às minhas amigas de trabalho da Casa dos Sonhos, Larissa, Arlete, Tatinha,
Domingas, Cris, Gal, Otildes e, em especial, à Faty, que sempre estiveram ao meu
lado e acreditaram nesse trabalho. Gratidão
Aos queridos amigos que o NEMESS – PUC-SP – me presenteou, pelos
quais tenho muito carinho e que para sempre estarão guardadas em meu coração,
Nadja, Paola Cordeiro, Lucélia Silva, Marília, Aline, Manoel, Erivaldo, Fátima, Camile
e Thais.
Ao Grupo de Estudos sobre Violências, em especial à Dandara, Fabiana,
Fernanda, Livia e Milena, que não são somente alunas, mas professoras que, em
todos os encontros, me ensinam algo novo. Ao Renan e à Cindy que, assim como as
meninas, toparam a loucura de estudar a violência. A vocês, muito obrigada.
À Lívia e a Silmara que eram alunas e hoje são minhas amigas. Obrigada
pelas correções e, acima de tudo, por me incentivar a não desistir.
À todas e todos alunos que se alegraram e, também, “quase” choraram
comigo nesses quatros anos. Vocês me encorajam a não desistir nunca. Grata a
todos!
A todos os homens dessa pesquisa, que confiaram a mim suas histórias de
dor, e aos profissionais que acreditam e trabalham por um mundo igualitário.
A todos que lerem essa tese meu agradecimento, e lembrem-se que: “Viver é
um rasgar-se e remendar-se”. (Guimarães Rosa).
“Não sou nada; sou apenas um instrumento, um pequeno lápis nas mãos do Senhor,
com o qual ele escreve aquilo que deseja. Por mais imperfeitos que sejamos, ele
escreve magnificamente.” (Madre Teresa de Calcutá).
RESUMO

O objetivo desse estudo consiste em analisar e compreender as motivações que


conduzem os homens às práticas de violência contra a mulher no âmbito doméstico.
Tem como prioridade ouvir os homens, permitindo que eles contassem sua versão
dos fatos (das violências), seu contexto e realidade, bem como suas análises sobre
os motivos que o impulsionaram aos atos, e sua visão “geral” das violências
cometidas contra à mulher. Também, ouvimos os profissionais que atendem esse
público, com objetivo de refletir sobre o modo de intervenção praticado e sua
percepção sobre os motivos que levam os homens a cometerem violência contra a
mulher. Entendemos o homem como produto e produtor das relações, portanto,
assumimos, nesse trabalho, a terminologia “homem autor de violência", bem como a
desconstrução do homem agressor e dominador para a construção de um homem
comum. As experiências com as violências serão apresentadas na perspectiva
multidimensional, compreendendo que a realidade e o contexto social são dinâmicos
e diversos, assim como a complexidade humana, que transita entre o objetivo e o
subjetivo, entre o abstrato e o concreto, entre a razão e a emoção. Para tanto,
realizamos uma pesquisa qualitativa, centrada nos depoimentos dos homens autores
de violência contra a mulher, e dos profissionais que atuam com esses sujeitos. Os
resultados obtidos no estudo apontaram diversos motivos, inseridos no campo
objetivo – família tradicional; cultura machista; as histórias vivenciadas com as
violências e sua (re)produção – e no campo subjetivo – amor, ódio, ciúme,
descontrole –, e que juntos impulsionam os atos violentos, sendo a violência usada
como instrumento primeiro na ausência de recursos de afeto e diálogo. Os
profissionais apontaram que o grupo de reflexão e a escuta apresentam resultados
positivos no discurso dos homens; portanto, os autores de violência não podem ser
reduzidos somente aos fatos presentes no Boletim de Ocorrência. É preciso olhar
para além dos fatos, considerando o contexto social e os recursos subjetivos
envolvidos, e construindo estratégias de intervenção que contemplem os dois
campos, objetivo e subjetivo, com recursos não violentos.

Palavras-chave: Violências; Homem Autor de Violência; Motivos; Objetividade;


Subjetividade.
ABSTRACT

The objective of this study is to analyze and understand the motivations that lead
men to practices of violence against women in the domestic sphere. With the priority
of listening to men, allowing them to tell their version of the facts (of the violence),
their context and reality, as well as, their analysis of the reasons that drove them to
the acts and their “general” view of the violence committed against the woman. We
also listened to the professionals who serve this audience, with the aim of reflecting
on the mode of intervention practiced and their perception of the reasons that lead
men to commit violence against women. We understand man as a product and
producer of relationships, therefore, we assume in this work the terminology of the
author of violence, as well as the deconstruction of the aggressor and dominator for
an ordinary man. The experiences with violence will be presented in a
multidimensional perspective, understanding that reality and the social context are
dynamic and diverse, as well as the human complexity that moves between objective
and subjective, between abstract and concrete, between reason and emotion. To this
end, we conducted a qualitative research, centered on the testimonies of men who
committed violence against women and the professionals who work with these
subjects. The results obtained in the study pointed out several reasons, inserted in
the objective field: traditional family; macho culture; the stories experienced with
violence and its (re) production and, in the subjective field: love, hatred, jealousy, lack
of control, together drive violent acts, violence being used as an instrument first in the
absence of resources of affection and dialogue. The professionals pointed out that
the reflection group and listening, present positive results in the speech of men,
therefore, the perpetrators of violence cannot be reduced to the facts present in the
police report, but it is necessary to look beyond the facts, consider the social context
and the subjective resources involved. Building intervention strategies that address
both fields: objective and subjective, with non-violent resources.

Keywords: Violence; Male Author of Violence; Reasons; Objectivity; Subjectivity.


LISTA ABREVIATURAS

BDTD – Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações

BO – Boletim de Ocorrência

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CPMA – Central de Penas e Medidas Alternativas

DDM – Delegacia de Defesa da Mulher

GEVID – Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher

HAV – Homem Autor de Violência

OSC – Organização da Sociedade Civil

SOS AMF – SOS Ação Mulher e Família

SPA – Substâncias Psicoativas

TCE – Termo de Consentimento Livre Esclarecido

TEDE – Teses e Dissertações


LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Levantamento de trabalhos ......................................................................45


Quadro 2: Profissionais entrevistados........................................................................94
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 14
Referências Bibliográficas da Introdução ................................................................. 19

CAPÍTULO I: HOMEM COMUM E A BANALIDADE DO MAL ................................... 20


1.1. As Violências ...................................................................................................... 22
1.2. Os homens e as masculinidades........................................................................ 27
1.3. A Subjetividade Social: entre os motivos e as emoções .................................... 36
Referências Bibliográficas do Capítulo I ................................................................... 40

CAPÍTULO II: TRILHA METODOLÓGICA................................................................. 43


2.1. Pressupostos e objetivos .................................................................................. 43
2.2. Planejamento da pesquisa ................................................................................ 44
Referências Bibliográficas do Capítulo II .................................................................. 53

CAPÍTULO III: OS CAMINHOS, OS (DES)ENCONTROS E AS HISTÓRIAS .......... 54


3.1. Os caminhos e os desencontros ....................................................................... 54
3.2. O encontro dos Sujeitos .................................................................................... 56
3.3. O perfil dos Sujeitos .......................................................................................... 57
3.4. Apresentação dos Sujeitos ................................................................................. 58
Referências Bibliográficas do Capítulo III ................................................................. 71

CAPÍTULO IV: ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS .................................. 72


Referências Bibliográficas do Capítulo IV ................................................................ 92

CAPÍTULO V: OS PROFISSIONAIS E SUAS EXPERIÊNCIAS CONSTRUÍDAS COM


OS HOMENS AUTORES DE VIOLÊNCIA ................................................................ 93
5.1.O caminho e os Sujeitos .................................................................................... 93
5.2. Análise das entrevistas........................................................................................94
Referências Bibliográficas do Capítulo V ............................................................... 103

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 104

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 110

ANEXOS...................................................................................................................114
Anexo A: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......................................... 114
Anexo B: Parecer Consubstanciado do Conselho de Ética em Pesquisa – Plataforma
Brasil ...................................................................................................................... 116
Anexo C: Questionário 1 ......................................................................................... 120
Anexo D: Roteiro 1 .................................................................................................. 121
Anexo E: Questionário 2 ........................................................................................ 122
Anexo F: Roteiro 2 ................................................................................................. 123

APÊNDICE ............................................................................................................. 124


Memorial ................................................................................................................ 124
14

INTRODUÇÃO

Historicamente, apresentam-se, no cenário da vida, episódios de guerra e


paz. Experienciamos conflitos e consensos, retrocessos e avanços, tristezas e
alegrias, vinganças e reconciliações, dor e cura, amor e ódio. São muitas as cenas
que vivenciamos ao longo da nossa jornada na terra. Entretanto, às vezes,
permitindo ou não, situações nos arrebatam em razão das adversidades do
cotidiano; somos invadidos em nosso “íntimo” – lugar de refúgio –, assumindo
roteiros em nossas vidas, de longas metragem de suspense e terror, constatadas,
por exemplo, em histórias reais de famílias que convivem com agressões físicas,
psicológicas, estupros, opressão, maus tratos e assassinatos.
Contudo, muitas vezes é difícil compreender essa trama, em decorrência do
vínculo de afeto estabelecido entre os atores, e pela sutileza dos fatos. O “filme real”
deixa suas marcas nas vítimas, nas famílias, na comunidade, na sociedade e nos
autores dessas violências.
A violência é um instrumento e um recurso utilizado em diversos momentos,
ora para legitimar o poder nas microrrelações (pessoais e familiares) e nas
macrorrelações (Estado), ora empregado como recurso de descontrole das
emoções. Não é simples compreender essa trama, pois a violência é um fenômeno
multifacetado, que tem em seu bojo o poder, a dominação, as emoções e os
sentimentos, como raiva, vingança e ódio. A interação e a convivência são,
geralmente, fatores que permitem e facilitam os atos de violência, segundo os
diferentes depoimentos de homens autores de violência e sujeitos desta pesquisa.
O objetivo deste estudo consiste em analisar e compreender as motivações
que conduzem os homens às práticas de violência contra a mulheres no âmbito
doméstico. Nessa busca pelos motivos1, priorizamos ouvir os homens que
praticaram violência, permitindo que contassem sua versão dos fatos (das
violências), seu contexto e realidade, bem como suas análises sobre os motivos que
os impulsionaram aos atos violentos cometidos.
Nessa perspectiva, encontramos homens seres humanos; não encontramos

1
Entendemos motivo como uma formação de sentidos associados a uma ação que integra elementos
objetivos e subjetivos. (GONZÁLEZ REY, 2003)
15

agressores – dominadores, mas pessoas que por vários, e não por um único motivo,
usaram a violência como recurso e instrumento para os seus atos. Claro que os
motivos levantados estão associados à construção sócio-histórica e cultural do
sujeito, de suas condições objetivas e subjetivas, dos sentidos percebidos e das
responsabilidades esperadas e legitimadas pela sociedade, conforme o que é
considerado como constitutivo de um “homem de verdade”.
Todavia, para chegar nessa conclusão, precisamos retomar o caminho inicial
que trilhamos, para compreender essa tentativa de sistematização. Tentativa, pois
entendemos que nenhum conhecimento se esgota em si e nenhuma teoria é capaz
de compreender o todo. Portanto, esse estudo abre a possibilidade de reflexão e
análise, não de finalização.
Nossa motivação para a realização deste estudo tem seu início em 2008,
quando ocupávamos o cargo de assistente social na OSC SOS Ação Mulher e
Família2 e realizávamos o atendimento direto às mulheres em situação de violência.
Na medida em que o tempo passava, várias indagações surgiam, durante e após os
acolhimentos às mulheres, principalmente sobre as repercussões das intervenções
profissionais na vida das usuárias do serviço e em suas famílias. Essas inquietações
e o desejo de entender esse fenômeno nos impulsionaram a buscar respostas sobre
essa matéria, resultando na realização da dissertação de mestrado: “Uma realidade
em preto e branco: as mulheres vítimas de violência doméstica”3, defendida em 2011
pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC São Paulo.
No transcorrer da pesquisa, as mulheres entrevistadas mostraram forte
preocupação com a produção e a reprodução da violência doméstica, manifestando
apreensão em relação aos seus filhos e também aos homens/companheiros que
praticaram atos de violência contra elas. Do ponto de vista dessas mulheres existe
urgência em atendimentos dirigidos também aos homens autores de violência, como
estratégias de prevenção e de rompimento do ciclo da violência.
(...) minha opinião seria assim, de repente, se conseguisse expandir o
atendimento para o lado masculino, e conseguir adaptar uma coisa para
ajudar também os homens, que de repente estão em uma situação de vida
pior, embora não generalizando. Principalmente divulgar em palestras,
quando ele não vai, assim ele ouve, isso pode atingir ele, de repente se

2
Organização da Sociedade Civil (OSC) SOS Ação Mulher e Família – foi um dos SOS que nasceu
do movimento feminista, em 1980, e, desde então, atua e presta serviços no atendimento direito às
vítimas de violência, na cidade de Campinas, SP.
3
SILVA, Carla da. UMA REALIDADE EM PRETO E BRANCO: as mulheres vítimas de violência
doméstica. Dissertação de Mestrado, defendida em maio de 2011, pelo Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da PUC São Paulo. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/17503
16

disser ah, tem um SOS ou um grupo que pode ajudar. Porque o homem é
machista demais, ele pode tudo, meu neto pode ter namorada, mas minha
netinha não pode. Sabe, então a gente vai acompanhando e até na nossa
família a gente vê. Como os homens pensam na sua cabeça, na realidade
sobre homem e mulher, o homem manda. Acho que poderíamos sim
contribuir um pouco para mudar essa realidade deles sim, às vezes é
caráter, outros é a educação que é falha mesmo, que eleva o machão.
(Entrevistada: AZUL); (SILVA, 2011, p. 94)

(...) precisa ter um SOS para os homens, seria muito bom, iria mudar muita
coisa, principalmente para o casal que não quer se separar. O homem é tão
machista que, se tiver um SOS, será preciso que alguém chame assim, um
SOS. Seria bom, ia mudar muito a gente (mulher) e o atendimento.
(Entrevistada: BRANCA); (SILVA, 2011, p. 94)

(...) o homem tem que ter um suporte mesmo, mas a mulher teria quer ter
esse suporte também (...) sabe, está mudando essa mentalidade, acho que
a gente (mulher), bem estruturada, a gente conseguiria ajudá-lo (homem).
(Entrevistada: VERDE); (SILVA, 2011, p. 95)

Esses, entre outros depoimentos, nos incentivaram a estudar o campo das


masculinidades e aprofundar nossa compreensão sobre violências. Foi assim que a
instituição SOS de Campinas iniciou o atendimento aos homens autores de
violência, considerando tal serviço um suporte importante para a compreensão das
relações. No decorrer do tempo, e com os estudos e as experiências adquiridas no
acolhimento aos homens, pudemos desenhar a presente pesquisa, realizada através
de homens que compartilharam suas histórias e suas experiências, tecidas na
relação de amor, ódio e dor.
Assim, definimos como protagonista deste estudo o homem que comete
violência contra a mulher, procurando reconhecer seus motivos e contextos.
Entendemos o homem como fruto de um contexto histórico, social e cultural, que tem
como eixo uma sociedade organizada na masculinidade hegemônica, com a
capacidade de impor uma definição específica sobre outros tipos de masculinidade,
como “[...] projetos que envolvem encontros complexos com instituições (escolas e
mercados de trabalho) e com forças culturais (como a comunicação de massa, a
religião e o feminismo).” (CONNELL, 1995). Desse modo, a masculinidade
hegemônica está enraizada na esfera pública e também na esfera privada,
impulsionada pelo discurso de competição, de sucesso e de poder que, por sua vez,
é legitimado pela prova constante dessa masculinidade.
Portanto, o homem não nasce pronto para violentar uma mulher, não nasce
com “carimbo de agressor” em sua identidade social e individual, mas ao longo da
sua vida, aprende a ser “homem” e, nesse caminho, como sujeito singular, ativo e
17

histórico, altera, modifica ou constrói, ao mesmo tempo, determinado espaço que o


transforma, passando a ser, além de produto, também produtor da sociedade; e é
nesta relação imbricada e contraditória entre indivíduo e sociedade que se
constituem os elementos essenciais para o desenvolvimento humano (GONZÁLEZ
REY, 2003). Assim, optamos pela expressão “autor de violência”, compreendendo
que não há uma única explicação, mas diversas e diferentes resultado da articulação
de uma série de vetores pessoais, situacionais e sociais que conduzem à violência
(NASCIMENTO, 2001).
A partir desse ponto de vista, entendemos que a mulher faz parte dessa
relação, como sujeita singular, ativa e histórica, ou seja, produtora da sua história de
vida que, mesmo com dores, pode ultrapassar os determinismos sociais. Assim,
adotamos o conceito “mulher em situação de violência”, acompanhando a mesma
lógica de compreensão de contexto sócio-histórico do tema, que abrange a
complexidade das dinâmicas que envolvem a violência, sua diversidade de
significados, contextos, intensidades e personagens que ocupam esse quadro sócio-
analítico (SOARES, 2002).
O propósito desta tese consiste, ainda, em ouvirmos profissionais de diversas
áreas do conhecimento, que desenvolvem metodologias de trabalhos diversificadas
com homens autores de violência, para refletir sobre o modo de intervenção
praticado e sua percepção sobre os motivos que levam os homens a cometerem
violência contra a mulher. Organizamos, assim, o trabalho em quatro capítulos.
No primeiro capítulo, Homem Comum e a Banalidade do mal, inspirados pela
discussão do livro de Hannah Arendt, “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a
banalidade do mal”, estabelecemos certo paralelo sobre o julgamento moral e ético
entre a violência e os juízos de valor sociais. A proposta central desta tese consiste
em dar voz aos homens que cometeram essas violências, não justificando seus atos
ou colocando-os em um lugar de privilégio ou de vítima, mas compreendendo a sua
história, para “tentar” entender o contexto em que se inseriam e que, de algum
modo, favoreceu seu próprio ato. Optamos por não discutir a questão da violência
contra mulher neste momento, reservado à compreensão dos motivos masculinos e
seus efeitos.
Nessa perspectiva, trataremos em, Os homens e as Masculinidades, a
masculinidade hegemônica e a multiplicidade de masculinidades em Connell (1995),
18

assim como a crise da masculinidade em Nolasco (1997), e a perspectiva subjetiva,


apoiados em Gonzáles Rey (2003).
O segundo capítulo, O caminho metodológico da pesquisa, apresenta os
pressupostos, os objetivos, percurso metodológico e as etapas investigativas da
pesquisa de campo. Na primeira etapa, realizamos estudos bibliográficos acerca dos
temas: violências, gênero e masculinidades, relações de poder, subjetividades e
relações afetivas, humanas e sociais. Realizamos, também, um levantamento de
trabalhos e teses relacionados com o tema. Na segunda etapa, apresentamos a
contextualização das instituições participantes. A terceira etapa é composta pela
pesquisa de campo, realizada por meio da entrevista narrativas para coleta dos
depoimentos pessoais; e na quarta etapa expomos a análise de conteúdo.
O terceiro capítulo é tecido pelos Caminhos, os (des)encontros e as histórias
dos sujeitos. Nesse item preferimos trazer os depoimentos na íntegra, bem como a
narração dos desafios encontrados para localizar os sujeitos e realizar as
entrevistas.
O quarto capítulo, Análise e interpretação dos dados, incorpora as reflexões
dos homens autores de violência e dos profissionais. Nele apresentamos as análises
resultantes de todo o processo de estudo que empreendemos.
Finalizamos a tese com as considerações finais, apontando os desafios de
compreender o homem como produto e produtor das relações, elucidando os
caminhos apontados pelos sujeitos e pelos profissionais para a construção de
estratégias de intervenção no âmbito social, cultural, político e subjetivo, e o
necessário investimento em política pública para prevenir, proteger e minimizar os
incidentes de violência. Sinalizamos a ausência de estudos e pesquisas no Serviço
Social sobre essa temática e a necessidade de ampliar os estudos sobre a mesma
para além dos muros acadêmicos.
19

Referências Bibliográficas da Introdução

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do Mal.


Tradução: José Rubens Siqueira. 25ª edição. São Paulo: Companhia das letras,
1999.

CHAUÍ, Marilena. Sobre a violência. ITOKAZU, Ericka Mari.; BERLINCK, Luciana


Chauí (orgs). 1ª edição. Belo Horizonte, MG: Autêntica editora, 2018.

CONNELL Robert W. Políticas da Masculinidade. Revista: Educação e Realidade,


jul- dez, 1995.

GONZÁLEZ REY, Fernando Luis. Sujeito e Subjetividade: uma aproximação


histórico-cultural. Tradução: Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira
Thomson Learning, 2003.

MARTÍN-BARÓ, Ignacio. (1985/2012). Acción y ideologia: Psicología Social desde


Centroamérica (2ª ed.). San Salvador: UCA Editores.

NASCIMENTO, Marcos Antonio Ferreira do. Desaprendendo o silêncio: uma


experiência de trabalho com grupos de homens autores de violência contra a
mulher. Dissertação de Mestrado – Universidade do Estado do Rio de Janeiro –
UERJ, Rio de Janeiro, 2001.

RODRIGUES, Maria Lucia.; LIMENA, Maria Margarida Cavalcanti. (orgs).


Metodologias multidimensionais em ciências humanas. Brasília: Líber Livro,
2006.

SILVA, Carla da. Uma realidade em preto e branco: as mulheres vítimas de


violência doméstica. Dissertação de Mestrado - PUC São Paulo, São Paulo, 2011.

SOARES, Barbara Musumeci. A Antropologia no executivo: limites e perspectivas.


In: CORRÊA. Mariza, (org). Gênero & Cidadania. Coleção Encontros Pagu/Núcleo
de Estudos de Gênero UNICAMP, Campinas, 2002. p.31-46.
20

CAPÍTULO I
O HOMEM COMUM E A BANALIDADE DO MAL

Iniciamos esta reflexão remetendo-nos às contribuições de Hannah Arendt4,


especialmente a seu relato sobre a Banalidade do Mal, escrito derivado do
julgamento de Adolf do Eichmann5, ocorrido em Jerusalém em 1961. Arendt foi
convidada pela Revista The New Yorker para cobrir o julgamento e publicar o
relatório de suas análises.
Durante o julgamento Arendt observou que Eichmann dizia a verdade, quando
se defendeu como uma pessoa que estava cumprindo ordens e que considerava
desonesto não executar ordens, portanto, não poderia ser condenado pelo crime
contra humanidade e ser responsável pelo assassinato dos judeus durante a
segunda guerra.
A corte não o entendia: ele nunca tinha nutrido ódio aos judeus, e nunca
desejou a morte de seres humanos. Sua culpa provinha de sua obediência,
e a obediência é louvada como virtude. Sua virtude tinha sido abusada
pelos líderes nazistas. Mas ele não era membro da classe dominante, ele
era uma vítima. (...) “Não sou o monstro que fazem de mim”, Eichmann
disse: “Sou vítima de uma falácia”. (ARENDT, 1999, p. 269)

Os aspectos da personalidade de Eichmann levaram a autora a se convencer:


“ele não era um monstro”. Ao contrário, era um homem comum. E o mais
assustador: tão comum quanto muitos outros. O problema de Eichmann era
exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem

4
Hannah Arendt nasceu em uma família judia em Hanover, na Alemanha, no dia 14 de outubro de
1906. Cursou a universidade de Marburg, no curso de filosofia, e foi aluna do filósofo Martin
Heidegger. Em 1926, Arendt trocou de universidade, indo para Heidelberg, onde concluiu o
doutorado, em 1928. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo francês de Vichy
colaborou com os invasores alemães e, por ser judia, Hannah foi enviada a um campo de
concentração, em Gurs, como "estrangeira suspeita". Porém, conseguiu escapar e aportou em Nova
York, em maio de 1941. Exilada, ficou sem direitos políticos até 1951, quando conseguiu a cidadania
norte-americana. Então, começou realmente sua carreira acadêmica, que duraria até sua morte, em
1975.
5
Otto Adolf Eichmann nasceu em 1906, na Alemanha, casou-se com Veronika Liebl e teve 4 filhos.
Ingressou no partido Nacional Socialista em 1932. Em 1934, foi admitido pela SD, órgão criado para
funcionar como Serviço de Inteligência do Partido Socialista, no âmbito de atuação da SS
(Schutzstafeln); obteve inúmeras promoções dentro da repartição, chegando a chefe da Seção de
Assuntos Judaicos, sendo considerado um especialista na deportação da comunidade judaica da
Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia, para os campos de concentração. Ao final da Segunda Guerra,
fugiu para diversos países, sendo capturado na Argentina, no dia 11 de maio de 1960; foi acusado e
condenado de cometer crimes contra humanidade e de guerra. Seu julgamento se deu em Jerusalém,
em 1961, sendo enforcado em 1962.
21

sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais (Cf. Arendt,
1999, p. 299).
A normalidade a qual Eichmann se atribui em julgamento chamou atenção de
Arendt, que inicia, assim, uma busca por modelos que explicassem o mal, saindo do
determinismo histórico e da distorção ideológica do nazismo, negando as teorias que
expressavam o mal como patologia ou possessão demoníaca. “Por trás desta
expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina, muito embora
estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de
pensamento – literário, teológico ou filosófico – sobre o fenômeno do mal” (ARENDT,
1999, p. 5).
Para Arendt, o mal não pode ser explicado como uma fatalidade, mas, sim,
caracterizado como uma possibilidade da liberdade humana. Nesse sentido, ela
demonstra o descompasso entre a personalidade comum do réu e as dimensões
monstruosas do mal por ele perpetrado. Eichmann não era um monstro, ainda que
os resultados de suas ações fossem monstruosamente macabros. Segundo
psicólogos e sacerdotes que examinaram Eichmann, o seu comportamento não era
apenas normal, mas inteiramente desejável, um homem de ideias muito positivas
(ARENDT, 1999, p. 37). A percepção de que Eichmann era normal, um burocrata
medíocre, um pai de família e um irmão dedicado, deixou-a assustada, pois aquele
homem na cabine de vidro, que estava sendo julgado por crime contra a
humanidade, era um homem comum, de superficialidade e mediocridade aparentes.
A posição de Arendt frente ao julgamento de Eichmann desagradou a
comunidade judaica e até mesmo a científica, afetando seu vínculo de amizade com
o historiador judeu Gershom Scholem, que publicou uma carta aberta afirmando que
Arendt não possuía “amor pelo povo judeu”. Além disso, viveu certa perda de seu
prestígio intelectual na comunidade judaica, na Europa e nos Estados Unidos, o que
resultou em vários anos de silêncio e ausência de publicações da autora.
Assim como Arendt, que se impressionou mediante uma interpretação
bastante contraditória daquele que havia provocado tanto mal, este estudo busca
compreender os motivos que conduzem os homens à prática da violência contra as
mulheres. A apreciação mais genérica de que são homens monstruosos é uma
tendência socialmente dominante. Mas, se por outro lado, partirmos do pressuposto
de que são homens comuns, constituídos de valores morais e de normas definidas
pela sociedade, será necessário refletir que resultam dos grupos de poder que
22

legitimam a violência como instrumento, e da cultura que historicamente emana das


relações sociais. Assim como Arendt, a autora deste trabalho também pode não
agradar a uma grande parte da sociedade.

1.1. As Violências

As violências serão trabalhadas aqui numa perspectiva multidimensional,


compreendendo que a realidade e o contexto social são dinâmicos e diversos, bem
como que a complexidade humana transita entre o objetivo e o subjetivo, entre o
abstrato e o concreto, entre a razão e a emoção. Nesse entendimento, não há uma
única área do conhecimento que explique a totalidade da complexidade do cotidiano
da vida, mas é o conjunto de saberes das diversas áreas do conhecimento que se
complementam para compreender o todo (Cf. RODRIGUES, 2006, p.17). Nesse
contexto, a violência é observada como um fenômeno multifacetado e plural, ou seja,
como violências, entendendo que suas manifestações ocorrem na dinâmica da vida
coletiva e individual, no trânsito dos espaços públicos e privados, nas
macrorrelações e nas microrrelações das diversas configurações da vida humana e
social.
Etimologicamente, a palavra “violência” vem do latim vis, que significa força.
Chauí (2018) destaca cinco sentidos para a palavra violência e força: 1. Tudo o que
age usando a força para ir contra a natureza (desnaturar); 2. Contra a
espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (coagir, constranger, torturar,
brutalizar); 3. Todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa,
valorizada por uma sociedade (violar); 4. As transgressões que alguém ou uma
sociedade definem como justas e como um direito (espoliar ou a injustiça); 5. “A
violência é um ato de brutalidade sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém
e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão e pela
intimidação; pelo medo e pelo horror”. (p. 35)
A violência se opõe á ética, porque trata seres racionais e sensíveis,
dotados de linguagem e de liberdade, como se fosse coisas, isto é,
irracionais, insensíveis, mudos, inertes ou passivos, instrumentos para usos
de alguém. Na medida em que ética é inseparável da figura do sujeito
racional, voluntário, livre, e responsável, trata-lo como se fosse desprovido
de razão, vontade, liberdade e responsabilidade é tratá-lo não como
humanos e sim como coisa, fazendo-lhe violência nos cinco sentidos que
damos a essa palavra. (CHAUÍ, 2018, p. 254)
23

Para a autora, a violência é uma ação que rompe com a ética, entendida
como conjunto de noções ou valores que balizam um campo de ação que se
considera como ético, sendo este pensado e executado por um sujeito ético,
racional, que sabe o que faz, decide e escolhe o que faz, sendo um ser responsável,
que responde pelo que faz. A ação ética é balizada pelas ideias de bom e mau, justo
e injusto, sendo que esses valores e seus conteúdos variam de sociedade para
sociedade. Portanto, uma ação ética só e possível se realizada na natureza racional,
respeitando a racionalidade, liberdade e responsabilidade dos outros agentes,
porque a ética só existe pela e na ação dos sujeitos individuais e sociais, definidos
por ações e formas de sociabilidade criadas pela ação humana em condições
históricas determinadas (Cf. CHAUÍ, 2018, p. 251).
Porque uma ação nascida da força de impulsos, pulsões e paixões não é
racionalmente determinada (ainda que possamos compreendê-los e
compreendê-las); não é livre porque submete o agente a forças que ele não
domina e o dominam; e não é responsável porque não nasceu de uma
decisão autônoma (ainda que possamos responsabilizar alguém pelos
desatinos cometidos contra si mesmo ou contra outros, mas não se trata de
responsabilidade ética e sim psicológica, social e política). (Idem, p. 253)

Assim, a violência é uma ação de desigualdade presente nas criações


humanas de relações hierárquicas, de opressão, dominação e exploração, que anula
a racionalidade humana, a liberdade e a autonomia dos sujeitos, tratando-os como
coisas e não como sujeitos éticos.
Nos estudos de Martin-Baró (1985/2012):
A violência passa a ser definida enquanto um processo histórico, pois o ato
violento é efetivado pelo ser humano, cuja natureza é histórica e, portanto,
aberta a diversas e contraditórias possibilidades. Cada pessoa expressa os
marcos e as possibilidades de uma sociedade concreta A sua atividade é
parte e expressão de forças sociais que facilitam ou não a expressão e a
configuração da violência. Assim, a violência é um produto das relações
sociais de uma dada sociedade que expressa e canaliza forças e interesses
sociais concretos em um marco estrutural que é determinado por conflitos
de classes. (MARTÍN-BARÓ, 1985/2012, p. 365)

Para o autor, o fenômeno da violência é diferente da agressão, sendo esta


uma forma de violência; uma ação violenta não necessariamente precisa ter
intencionalidade e, por isso, é possível falar de uma estrutura social que é violenta e
cria condições sociais que forçam as pessoas a agirem de uma dada maneira. A
violência pode resultar na manutenção de uma ordem social, onde a minoria
comanda uma maioria por meio de um estado violento. A violência esta na estrutura
da sociedade, “constitutivas das instituições sociais, originando assim, todas as
formas de violência, inclusive a do oprimido, que tem sempre suas raízes nas
24

condições estruturais de injustiça e desigualdade.” (MARTINS; LACERDA, 2014, p.


577)
O autor aborda a violência de acordo com os processos sociais e as
circunstâncias históricas, e destaca quatro fatores constitutivos: 1. Estrutura formal –
“[...] violência é utilizada de modo instrumental ou como fim em si mesmo e, assim,
revela-se se um ato de violência é agressivo ou não.” 2. Aspectos pessoais –
características singulares do agressor, que refletem na ação violenta. Destaca-se
que é possível eliminar elementos pessoais por meio de mecanismos que
possibilitam a despersonalização do ato violento. Exemplo: as instituições militares
criam redes hierárquicas que convertem a violência em uma questão mais
administrativa do que individual, facilitando atos profundamente destrutivos, como a
tortura. Quando um soldado executa tal ato violento, cumpre uma parcela da
totalidade do ato, fazendo com que a “responsabilidade pessoal se limite à precisão
técnica”. “A violência só é enxergada pelo encadeamento de diferentes atos
específicos cuja relação não é imediatamente visível, fazendo com o executor do ato
violento não se sinta agente do ato.”; 3. Contexto possibilitador – contexto social,
incluindo seus valores, normas, que aceitam ou não a violência; 4. Fundo ideológico
– “[...] valores, processos de racionalização e interesses sociais constitutivos do ato
violento em uma realidade social configurada por conflitos de classes. Isto significa
que certas ações violentas podem ser justificadas de tal forma que podem ser vistas
como aceitáveis ou legítimas”. Exemplos ilustrativos sobre a relação entre violência
e a ideologia são a aceitação dos crimes em defesa da honra (assassinato de
mulheres acusadas de adultério), ou a agressividade exigida das pessoas no
mercado de trabalho. (MARTÍN-BARÓ, 1985/2012, p. 375)
O autor ancora suas análises na sociedade capitalista, sendo esta marcada
pela violência institucionalizada, que gera outros tipos de violência e de ações
necessárias para perpetuação do sistema capital. Sendo assim, a violência é usada
como instrumento, sobretudo da classe em conflito, devendo ser analisada pelo seu
produto, seu contexto, seu processo, e não pela intenção ou estrutura interna e
externa do ato. Por isso, nem toda violência produz desumanização ou
humanização.
Em uma linha diferente, Arendt (2019) entende a violência pautada em cinco
conceitos: poder, vigor, força, autoridade e violência. “O Poder corresponde a
habilidade humana não para apenas agir, mas para agir em concerto. O poder nunca
25

é de um indivíduo, mas de um grupo, que sua permanência só existe enquanto o


grupo se conserva unido.” O Vigor é singular, “uma entidade individual, pertence ao
seu caráter, podendo provar-se a si mesmo na relação com outras coisas ou
pessoas”. Força, frequentemente utilizada como sinônimo da “violência”, deveria ser
reservada na “linguagem terminológica, às forças da natureza, ou à força das
circunstâncias, indicando a “energia liberada pelos movimentos físicos e sociais”.
Autoridade é o “reconhecimento inquestionável daqueles a que se pede que
obedeçam. Nem coerção e nem persuasão são necessárias”. Violência se distingue
dos outros elementos pelo seu caráter “instrumental”, aproxima-se do vigor, posto
que os implementos da violência, “como todas as outras ferramentas, são
planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural, até o último
estágio de desenvolvimento”, podendo assim, “substituí-lo”. (p. 60-63)
Arendt distingue o poder da violência, colocando a violência como instrumento
do poder, ou seja: onde o poder é ameaçado a violência ocorre. Sendo assim, “a
violência não depende de números ou de opiniões, mas de implementos da
violência, como todas as ferramentas, amplificam e multiplicam o vigor humano.”
(idem, p. 69). A autora destaca que a violência pode ser justificada, mas nunca
legítima; o poder é legitimo, então, a violência não gera o poder, mas o poder usa a
violência como instrumento para a sua legitimação, criando assim, uma engrenagem
perfeita.
Em Foucault (1979/2014), a concepção de poder distingue-se da de Arendt,
pois compreende o poder não como algo tangível, que se poderia deter ou alcançar,
mas que funciona em cadeia, nunca estando localizado aqui ou ali e/ou nas mãos de
alguns; assim, o poder circula entre todos os indivíduos que estão em posição de
exercê-lo e de sofrer sua ação, uma vez que não se pode conceber um sujeito
apartado de relações de poder. Para ele, não existe ausência de poder; todos os
indivíduos possuem poder em medidas diferentes, portanto, o poder não parte de
uma centralidade, é pulverizado nas relações entre indivíduos e grupos. Por
conseguinte, o autor discorda do poder como dominação, pois entende que a
dominação é decorrente de um ponto fixo e mutável e, por isso, poderia estar detida
exclusivamente em alguns indivíduos e grupos. Assim, reduziria o poder a um lócus
central, mesmo compreendendo que há lugares onde o poder é sedimentado, como
exemplo, o Estado. Portanto, o poder não é apenas algo coercitivo e negativo, mas
também algo produtivo e positivo, produzido na efetividade de suas práticas e
26

estratégias de manutenção. As práticas para sua manutenção perpassam a


disciplinarização dos corpos, tornando-os dóceis e úteis, de acordo com a estratégia
de utilização do poder. Dessa forma, os sujeitos são produzidos e induzidos à
condutas e contracondutas, construídas pelas relações culturais, econômicas,
políticas e sociais que ditam os modos de ser e estar em sociedade, entendendo que
onde existe poder também encontramos resistência (Cf. FOUCAULT, 2018).
Cabe destacar que Foucault não discorreu sobre a violência, mas realizou
análises das relações pautadas no poder nas quais a violência se faz presente, não
como produtora do poder, mas como estratégia de manutenção presente nas
microrrelações e nas macrorrelações.
É inegável que, nos tempos atuais, as violências se estabelecem como uma
constante em nossas vidas, se adaptando e se comportando de diversas maneiras.
No entanto, é irônico perceber que existem poucos estudos que se dedicam a
pensar e discutir as violências como fenômeno histórico e em construção, tornando
um desafio a tarefa de apresentá-la, até porque, as violências são pensadas ora na
fundamentação do poder, como instrumento do poder, justificadas em determinadas
ações ou repudias em todas as circunstâncias; ora tratada como racional ou
irracional, individual ou como desequilíbrio mental, construída pela sociedade. São
muitos os caminhos possíveis de estudos e de compreensão, mas poucos trabalhos
que se debruçam a entender como fenômeno histórico e no processo histórico.
Arendt (2019) resume bem esse descompasso:
Ninguém que se tenha dedicado a pensar a história e a política pode
permanecer alheio ao enorme papel que a violência sempre desempenhou
nos negócios humanos, e, à primeira vista, é surpreendente que a violência
tenha sido raramente escolhida como objeto de consideração especial. (,,,)
a violência e sua arbitrariedade foram consideradas corriqueiras e, portanto
negligenciadas, ninguém questiona ou examina o que é obvio para todos,
aqueles que viram apenas a violência nos assuntos humanos, convencidos
de que eles eram “sempre fortuitos, nem sérios nem precisos”, ou de que
Deus sempre esteve com os maiores batalhões, nada mais tinham a dizer a
respeito da violência ou da história. (p.23)

O desafio posto neste trabalho, de trazer fundamentos para as violências,


perpassou pelas análises. A autora Chauí, que entende a violência presente nas
relações desiguais, sendo essas criações humanas que cerceiam a liberdade ética
dos sujeitos, tornando-os “coisa”. Isso implica em desconsiderar o sujeito da ação
como protagonista da sua história, excluindo a possibilidade de a pessoa repensar
individualmente suas ações e reconstruí-las, pois, para a autora, isso só seria
possível por meio da reformulação dos valores da sociedade. É legítima a
27

desigualdade presente nas relações, como fruto da construção da sociedade, mas


também é legítimo o sujeito como produto – protagonista da sua história e produtor –
da construção coletiva dos valores sociais. As duas dimensões não são excludentes,
são integradas e articuladas entre si.
Martin-Baró também entende a violência como fruto das desigualdades de
classe, mas avança, colocando a violência no campo psicossocial, que transita nas
duas dimensões – social e humana –, como co-produtoras das práticas violentas.
Contudo, o autor defende o uso da violência para libertação dos oprimidos,
colocando os sujeitos em ações violentas “justificadas” em nome da transformação
social. Já em Arendt, suas análises contribuem para o entendimento da violência
como instrumento do poder, não sendo capaz de gerá-lo, mas de destruí-lo.
Comunga com o autor Martin-Baró na questão da violência justificável, e entende
esse recurso como não legítimo. A autora também trabalha com o conceito de poder
pertencente a um grupo, de acordo com os interesses que os mantém unidos;
portanto, o poder nunca é de um indivíduo, mas de um grupo. Essa concepção difere
do conceito de Foucault, que entende que o poder circula pelas relações e, desse
modo, todos os sujeitos, em medidas diferentes, são munidos de parcelas de poder,
podendo ser agrupado em interesses comuns para sua manutenção.
O poder em Foucault perpassa todas as relações, permitindo, assim, resistir e
construir outros tipos de relação. Compreendemos que a violência é um mecanismo
do poder que transita nas relações desiguais, presentes nas macrorrelações e nas
microrrelações, e subjacente à subjetividade individual e social.

1.2. Os homens e as masculinidades

Pensar os homens e a construção das masculinidades leva-nos a uma


pergunta: o que é ser homem (gênero)? A primeira resposta a essa indagação seria
uma descrição das características construídas socialmente, tais como: ele é macho,
forte, másculo, viril; esses e muitos outros adjetivos seriam usados para narrar o que
é ser homem. Entretanto, a resposta não é adjetivada, muito menos fácil e simplista;
pelo contrário, é complicada e seus estudos são “relativamente novos”. Para ilustrar
a complexidade dessa resposta, podemos utilizar a celebre afirmação de Simone de
Beauvoir, quando afirma que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Essa
declaração colocou em “xeque” as determinações biológicas, e iluminou as
28

construções sociais impostas às mulheres. Assim, podemos pressupor que “ninguém


nasce homem, torna-se homem”; portanto, são construções sociais e o caminho dos
estudos sobre masculinidades consiste em desconstruir essa definição assentada
nos aspectos fixos, biológicos, de uma natureza masculina, seguindo uma tendência
epistemológica no campo dos estudos de gênero.
Quando nasce uma criança, existem diferenças anatômicas, físicas,
biológicas, psicológicas e passamos a identificá-las, inicialmente, como
menino/homem ou menina/mulher. A simples observação dos órgãos externos
determina a ocupação na organização social, construída nas diferenças sexuais
desiguais.
Nesse sentido, os corpos derivam de construções culturais e simbólicas,
através das quais aprendemos e “incorporamos, sob a forma de esquemas
inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem
masculina; arriscamo-nos, pois, a recorrer, para pensar a dominação masculina, a
modos de pensamento que são eles próprios produto da dominação.” (BOURDIEU,
1999, p. 15)
Para Bourdieu (1999), nossos corpos estão condicionados a pensar e agir sob
a visão masculina – androcêntrica -, como algo natural, que não necessita de
justificativa.
(O corpo e seus movimentos, matrizes de universais que estão submetidos
a um trabalho de construção social, não são nem completamente
determinados em sua significação, sobretudo sexual, nem totalmente
indeterminados, de modo que o simbolismo que lhes é atribuído é, ao
mesmo tempo, convencional e "motivado", e assim percebido como quase
natural.) Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a
diferença anatômica e que é esta diferença socialmente construída que se
torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que a
alicerça. (BOURDIEU, 1999, p. 20)

O autor destaca que a dominação masculina está em exercício e é universal


há séculos, inserida nas estruturas sociais, nas atividades produtivas e reprodutivas,
baseadas na divisão sexual e social do trabalho, na reprodução biológica e na
reprodução social, e conferindo ao homem a melhor parte.
(...) portanto objetivamente concordes, eles [homens] funcionam como
matrizes das percepções, dos pensamentos e das ações de todos os
membros da sociedade, como transcendentais históricos que, sendo
universalmente partilhados, impõem-se a cada agente como
transcendentes. Por conseguinte, a representação androcêntrica da
reprodução biológica e da reprodução social se vê investida da objetividade
do senso comum. (Idem, p. 45)
29

A dominação é um trabalho histórico, construído e reproduzido pelas


instituições família, Igreja e o Estado, como natural e universal, dificultando, assim, o
questionamento do senso prático, inibindo ao ser o processo de pensar seus atos e
de se afirmar como sujeito, como pessoa pensante.
O poder que a força simbólica tem sobre os corpos, diretamente, age como
uma magia que não se controla e paralisa o corpo, que fica sem nenhuma ação
diante do “sobrenatural”. Essa força abarca tanto os corpos masculinos como os
corpos femininos, ou seja, homens e mulheres são vítimas desse poder simbólico,
construído por meio do trabalho incessante da história e legitimado pelas
instituições, inculcados na prevalência do pensamento androcêntrico. Contudo, o
autor destaca, sutilmente, que a maneira de romper com essa estrutura está em
destruir suas raízes de pensamento individuais e coletivos, principalmente das
instituições que legitimam esse modo de viver e organizar a vida em sociedade Em
certa medida, o poder exige a cumplicidade do outro, como o autor evidencia na
violência simbólica, que para ser exercida precisa do reconhecimento do dominado,
isso é, do papel ativo do agente no processo, mesmo para aceitar o poder e a
dominação. (BOURDIEU, 1999)
Em Foucault, o poder é entendido como um mecanismo diluído, não é
tangível e que se exerce mais do que se possui. Portanto, o exercício do poder
sobre os corpos se dá por meio da disciplina, dos mecanismos de domínio sobre o
corpo, não para fazer o que se quer, mas para que operem como se quer.
O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de
retirar, tem como função maior “adestrar”. (...) a disciplina fabrica indivíduos;
ela é uma técnica de um poder que toma os “indivíduos” ao mesmo tempo
como objetos e como instrumentos de seu exercício. O sucesso do poder
disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: olhar
hierárquico; a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento
que lhe é especifico o exame. (FOUCAULT, 2011, p. 167)

A disciplina fabrica corpos submissos, corpos “dóceis”, moldados por


instituições como família, igreja, exército, escola, entre outras, que utilizam técnicas
para manter o poder e o controle.
O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológica”
da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia
especifica de poder que se chama “disciplina”. Temos que deixar de
descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”,
“reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade
o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais de
verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam
nessa produção. (FOUCAULT, 2018, p. 189)
30

O poder – simbólico e disciplinar – é proveniente de “(...) eficientes processos


de socialização geradora, no caso de Foucault, de almas disciplinadas e, no caso de
Bourdieu, de agentes portadores de um habitus6 adequado à sua posição social.”
(PERISSINOTO, 2007, p. 318). Segundo essa perspectiva, o corpo é construído pela
disciplina, dentro das relações de poder, de acordo com os interesses das
instituições, embora os indivíduos não sejam destituídos de poder nem
completamente submissos e dominados. Cabe-nos, então, avançar nos estudos de
gênero, para além da dominação masculina, mas como fruto da construção da
sociedade, tendo por suporte o poder relacional e institucional.
A ideia de gênero traz consigo um questionamento que deve ser feito à
sociedade: “como mulheres e homens estão sendo definidos, em relação ao outro?”
Essa pergunta sugere outras indagações: para quem e para quê, servem os
significados impostos sobre as diferenças físicas entre os sexos? Como os
indivíduos têm se imaginado, não se encaixando nessa categoria? Quem estabelece
as normas regulamentadoras? Como são aplicadas e para quais fins? Pensar
gênero “dessa maneira, como um conjunto de perguntas cujas respostas não
sabemos de antemão, [significa que] o gênero ainda é uma categoria útil de análise.”
(SCOTT, 2013, p.162).
Para Scott:
O termo "gênero", além de um substituto para o termo mulheres, é também
utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é
necessariamente informação sobre os homens, que um implica o estudo do
outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz parte
do mundo dos homens, que ele é criado nesse e por esse mundo
masculino. Além disso, o termo "gênero" também é utilizado para designar
as relações sociais entre os sexos. Seu uso rejeita explicitamente
explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador
comum, para diversas formas de subordinação feminina, nos fatos de que
as mulheres têm a capacidade para dar à luz e de que os homens têm uma
força muscular superior. Em vez disso, o termo "gênero" torna-se uma forma
de indicar "construções culturais" - a criação inteiramente social de idéias
sobre os papéis adequados aos homens e às mulheres. Trata-se de uma
forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades
subjetivas de homens e de mulheres. "Gênero" é, segundo esta definição,
uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. (1995, p.75)

6
Para Bourdieu, habitus é um “sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto
estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das
práticas e das ideologias características de um grupo de agentes.” (2007, p. 191). Como princípio
gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’ e
‘regulares’ sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a
intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e
coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente.” (ORTIZ, 1983,
p. 60).
31

Na análise da autora, percebem-se duas proposições que são eixos para a


compreensão de gênero. A primeira, que “gênero é constitutivo de relações sociais”;
e que há elementos que interferem na construção do gênero e do poder, sejam eles:
a cultura, a religião, a ciência, o sistema político, o mercado de trabalho, a economia,
a identidade subjetiva, entre outros (Idem, p. 86-87), mantendo-se em constante
movimento. A autora afirma que a realidade biológica não reflete o gênero, mas
constrói o sentido, ou seja, a sociedade constrói símbolos e significados que estão
baseados na percepção biológica, sendo mantidos por um conjunto de normas
jurídicas, morais e religiosas que acabam determinando e delimitando as práticas de
homens e mulheres em diversos contextos. As instituições e a organização social
também são influenciadas e mantedoras desses símbolos sexuais, principalmente
no campo da família, da educação, no mercado de trabalho, sistema político, entre
outros. Portanto, gênero está estabelecido como um conjunto de referências
simbólicas, percepções e relações de poder, que organizam a vida social, baseados
nas estruturas hierárquicas e nas generalizações das relações pretensamente
naturais entre o masculino e o feminino.
A segunda proposição está destacada na “expectativa” de superar o conceito
vazio de “homem” e “mulher”, considerando que:
A natureza desse processo, dos atores e das ações, só pode ser
determinada especificamente se situada no espaço e no tempo. Só
podemos escrever a história desse processo se reconhecermos que
“homem” e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e
transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado definitivo e
transcendentes; transbordantes porque, mesmo quando parecem fixadas,
elas contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas ou
reprimidas. (SCOTT, 1995, p. 93)

Pensar no poder relacional proposto pela autora nos remete ao caminhar na


direção da compreensão das masculinidades e feminilidades como construções
sociais de sujeitos históricos, que estão em movimento e que movimentam a vida.
Em afinidade com os estudos de gênero desenvolvidos por Scott,
compreendemos que “falar” de gênero não significa tirar o foco da “mulher” ou das
“mulheres”, mas tecer as relações entre homens e mulheres, tornando importante,
também, discutir o “homem” ou “homens” nessa trama. Como neste trabalho
estamos propondo uma leitura dos homens que cometeram atos violentos contra
suas companheiras, vamos centrar nossa atenção na masculinidade no campo
relacional de construção sócio-histórica.
32

Antes de adentrar nas masculinidades, cabe-nos elucidar que a categoria


gênero emergiu da reflexão feminista, na qual a atenção estava voltada,
inicialmente, ao polo feminino e, com o passar do tempo, foi se incorporando o
aspecto relacional – poder –, constructo social, incluindo, assim, o polo masculino
em suas investigações e ações. O início dessa mudança deu-se nos anos 1970,
pelas feministas que iniciaram os men’s studies7. Essas investigações estavam
pautadas nas especificidades do gênero masculino como contraponto ao gênero
feminino (COUTO; SCHRAIBER, 2005, p. 687). O avanço nas investigações e o
amadurecimento no campo relacional proporcionaram desenvolvimentos teóricos
próprios das masculinidades, em meados dos anos 1990, tendo como destaque aos
estudos de Kaufman (1995), Nolasco (1997), Connell (1995), Almeida (1996).
Para este estudo, entendemos masculinidades, segundo Connell8 (1995):
(...) uma configuração de prática em torno da posição dos homens na
estrutura das relações de gênero. Existe, normalmente, mais de uma
configuração desse tipo em qualquer ordem de gênero de uma sociedade.
Em reconhecimento desse fato, tem-se tornado comum falar de
"masculinidades". Existe o perigo, nesse uso, de que possamos pensar no
gênero simplesmente como um pout-pourri de identidades e estilos de vida
relacionados ao consumo. Por isso, é importante sempre lembrar as
relações de poder que estão aí envolvidas. (p. 185)

Para a autora, a configuração de prática é enfatizar “aquilo que de fato


fazemos e não aquilo que imaginamos”; portanto, as práticas são construídas no
campo da relação e com um significado histórico. Sendo assim, as masculinidades,
no plural, são construídas na relação sócio-histórica.
Falar de posição dos homens significa enfatizar que a masculinidade tem a
ver com relações sociais e também se refere a corpos - uma vez que
"homens" significa pessoas adultas com corpos masculinos. Não devemos
temer a biologia, nem devemos ser tão refinados ou engenhosos em nossa
teorização do gênero que não tenhamos lugar para corpos suados. O
gênero é, nos mais amplos termos, a forma pela qual as capacidades
reprodutivas e as diferenças sexuais dos corpos humanos são trazidas para
a prática social e tornadas parte do processo histórico. (CONNELL, 1995, p.
186)

Ao definir masculinidade como “uma configuração de prática”, Connell resgata


os aspectos dinâmico e histórico das relações de gênero, possibilitando contar a
história a partir de uma configuração que surge em interação com outras, permitindo

7
Para uma revisão da produção da área dos men’s studies, ver Conell (1995) e Oliveira (1998)
8
Raewyn Connell é uma mulher transexual, nascida Robert William Connell, em 1944. No livro
Masculinities (1995), a publicação aparece como RW Connell e os trabalhos posteriores estão
publicados como Raewyn Connell. A autora é australiana, com tradição clínica freudiana, como
aportes da psicologia social, bem como das ciências sociais: antropologia, história e sociologia.
33

compreender os critérios socialmente definidos para a construção da masculinidade.


Essa posição se aproxima à esboçada por Scott, que apresenta a masculinidade e a
feminilidade no campo relacional, construídos socialmente e historicamente.
Portanto, para Scott e para Connell, pensar a masculinidade significa pensar as
práticas dos homens inseridas nas relações de gênero e também nas relações
sociais (BENTO, 2015, p. 83)
A autora Connell levanta dois aspectos importantes para se pensar
masculinidade: o primeiro, que as diferentes masculinidades são produzidas num
mesmo contexto social, ou seja, no mesmo espaço há uma forma determinada e
hegemônica de masculinidade, em conjunto com outras masculinidades; segundo,
que a masculinidade é complexa e contraditória; há presença da feminilidade dentro
da personalidade dos homens, e há masculinidade dentro da personalidade das
mulheres.
O fato da contradição faz com que seja essencial ter uma definição de
masculinidade que não equacione gênero simplesmente com uma categoria
de pessoas. Se a "masculinidade" significasse simplesmente as
características dos homens, não poderíamos falar da feminilidade nos
homens ou da masculinidade nas mulheres (exceto como desvio) e
deixaríamos de compreender a dinâmica do gênero. O gênero é sempre
uma estrutura contraditória. É isso que torna possível sua dinâmica histórica
e impede que a história do gênero seja um eterno e repetitivo ciclo das
mesmas e imutáveis categorias. (CONNELL, 1995, p. 189)

Nessa linha, a autora utiliza o conceito de hegemonia9, referindo-se a essa


configuração de gênero, construída no contexto sócio-histórico, incorporada pelos
argumentos produzidos pelo patriarcado, e legitimados pela posição de dominante
do homem e da subordinação da mulher, como ideal de masculinidade hegemônica.
Connell (1995) reconhece e pontua que não são todos os homens que praticam esse
ideal de masculinidade, entretanto, eles usufruem dos benefícios dessa
masculinidade hegemônica.
O interesse dos homens na hierarquia do gênero, definida pelo dividendo
patriarcal, é real e grande; mas é internamente dividido e cruzado por
interesses relacionais partilhados com as mulheres. Qual desses interesses
é realmente perseguido por homens particulares é uma questão de política -
política no sentido bastante familiar de se organizar para a realização de um
determinado programa de objetivos. (p. 198)

A masculinidade hegemônica tem a capacidade de impor uma definição

9
O conceito “hegemonia” é de inspiração gramisciana. Para Gramsci, hegemonia é a capacidade de
um grupo exercer o poder sobre o conjunto da sociedade de forma legítima, sem resistência. Mas a
hegemonia é sempre provisória, à medida que um grupo que se encontra hegemonizado pode
reverter a correlação de forças. Fonte: Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Editado por
William Outhwaite & Tom Bottomore. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
34

específica sobre outros tipos de masculinidade, como “projetos que envolvem


encontros complexos com instituições (escolas e mercados de trabalho) e com
forças culturais (como a comunicação de massa, a religião e o feminismo).”
(CONNELL, 1995, p. 190). Desse modo, a masculinidade hegemônica está
enraizada na esfera pública e também na esfera privada, impulsionada pelo discurso
de competição, de sucesso e de poder, legitimado pela prova constante dessa
masculinidade.
Assim, a definição de masculinidade em nossa cultura constitui-se em
diversas histórias simultâneas: da busca individual do homem pela
acumulação daqueles símbolos culturais que denotam masculinidade, que
indicam que ele a alcançou efetivamente; daqueles padrões usados para se
evitar que as mulheres incluam-se na vida pública e que sejam remetidas
para uma esfera privada desvalorizada; do acesso diferenciado que os
diferentes tipos de homens têm aos recursos culturais que conferem
masculinidade e de como cada um desses grupos passa a desenvolver
modificações próprias para preservar e reivindicar sua masculinidade. Trata-
se do poder que estas definições por si só têm para a preservação do poder
efetivo que o homem exerce sobre a mulher e que alguns homens exercem
sobre outros homens. (BENTO, 2015, p. 91)

A masculinidade hegemônica pode ser caracterizada por um conjunto


coerente de ideias que procuram justificar, por meio de construções cognoscíveis e
discursivas, as práticas dos homens (CONNELL, 1995). Na nossa sociedade, a
masculinidade hegemônica define padrões de comportamento que devem ser
seguidos pelos homens, e se estrutura com base em relações assimétricas entre os
gêneros. Embora essas construções baseiem-se nos discursos de intenção de
subordinar a mulher e desvalorizar tudo o que se refere ao feminino, não são, em
seu todo, dirigidas exclusivamente para as mulheres; podem, também, dirigir-se para
outro homem, que se coloca como opositor a essa masculinidade (BENTO, 2015).
Connell traça outros tipos de masculinidades: subordinada; cúmplice e
marginalizada. A masculinidade subordinada, diz respeito à dominação entre grupos
de homens com outros grupos de homens, como é o caso de homens
heterossexuais que oprimem e subordinam os homossexuais. A masculinidade
cúmplice refere-se a homens que não fazem parte do tipo hegemônico, mas que se
aproveitam dos dividendos do patriarcalismo. Esse tipo de masculinidade ignora as
desigualdades sociais e se concentra nos problemas psicológicos, aceitando a
estrutura hierárquica das relações de gênero. A masculinidade marginalizada, refere-
se a uma masculinidade que está marginalizada devido à condição subordinada de
raça, etnia ou classe.
35

A tipologia apresentada pela autora revela a multiplicidade de masculinidade,


que pode coexistir no mesmo contexto social, onde ocorre a desconstrução da
representação “única” do homem como macho, viril, violento e dominador.
Uma nova política do gênero para os homens significa novos estilos de
pensamento, incluindo uma disposição a não ter certezas e uma abertura
para novas experiências e novas formas de efetivá-la. No dia em que
fotografias com homens carregando armas se tornarem raras e fotografias
com homens empurrando carrinhos de bebê se tornarem comuns, aí
saberemos que estamos realmente chegando a algum lugar. (CONNELL,
1995, p. 204)

O autor Nolasco (1997), apoia-se na compreensão de que a crise masculina


transcende uma abordagem individual e é também parte de uma crise de valores
sociais, que estão impressos na socialização, ajustados na formação de “homens de
verdade”. O autor realiza uma análise da sociedade contemporânea, assentada em
um “vácuo moral”; nessa perspectiva e de seu ponto de vista, valoriza-se:
 o materialismo (busca pelo reconhecimento pessoal, por meio do
dinheiro),
 o hedonismo (negação dos ideais e de sentido da vida),
 a permissividade (vale tudo, eliminando a possibilidade de luta por ideias
que estejam além do individualismo),
 o relativismo (que se articula com permissividade, predispondo à
existência de uma ética da subjetividade em que cada um pode criar sua
regra a cada momento), e
 o consumismo, como forma de representação da liberdade.
Essas transformações nos valores sociais têm impactado as relações
interpessoais, gerando um sentimento de impotência e, ao mesmo tempo, de
valorização do “homem de verdade”.
A crise da masculinidade se define diante dessa transição e pode ser
compreendida como uma tentativa, uma possibilidade para os homens
diferenciarem-se do padrão de masculinidade socialmente estabelecido
para eles. Essa crise representa a quebra do cinismo a respeito da
existência de um homem de verdade em torno do qual todo menino e
socializado. (NOLASCO, 1997, p. 16)

Para o autor, as relações interpessoais estão sendo mediadas pelo valor


material em detrimento do afetivo, sendo estas relações balizadas por jogos de
interesse e de poder; marcadas por um cotidiano de autossuficiência e
superficialidade, reforçadas pelo papel social de virilidade, conquistador, dominador,
violento, forte, herói. As instituições como família e escola reforçam esses papéis na
36

socialização, legitimados pela representação cultural do que é ser homem.


O ideal de masculinidade presente no patriarcado empobrece o campo de
possibilidade de satisfação emocional que pode ser experimentado por um
homem. (...) A ideia de homem de verdade carrega em si a negação de
qualquer possibilidade de fracasso ou limitação. Fracassar sexualmente é
fracassar como homem. (NOLASCO, 1997, p. 25)

O fracasso como “homem” está presente nas relações de afetos para além da
relação sexual. O homem que não consegue “manter financeiramente” sua família,
por exemplo, é visto como um fracassado, e como o fracasso não é permitido, e a
todo tempo o homem precisa provar sua masculinidade, muitas vezes a violência é
utilizada como meio de legitimar a força e o poder; não o poder do fracassado, mas
o poder construído no imaginário do homem de verdade, mesmo que esse seja
inatingível.
(...) a masculinidade torna-se uma eterna busca para se demonstrar sua
conquista, para provar aos outros o impossível de se provar. O homem tem
medo de assumir inseguranças e dúvidas porque, se o fizer, pode ser
julgado como sendo um fraco. (BENTO, 2015, p. 96)

A construção de uma nova masculinidade passa pelo encontro da verdade


interna, para além dos genitais; essa verdade é marcada pela história pessoal, que
pode ser revelada por intermédio das relações de intimidade, cumplicidade,
solidariedade e amor (NOLASCO, 1997).
Entendemos as análises e críticas desenvolvidas sobre o conceito de
masculinidades hegemônicas, bem como a crise masculina; entretanto, elas
iluminam nossa reflexão sobre as práticas violentas que ocorrem no campo concreto
e no campo da subjetividade humana. Juntas, impulsionam os atos violentos; ou
seja, o homem que cometeu violência contra a sua companheira dentro da relação
de afeto (objeto de estudo deste trabalho) foi socializado para executar um conjunto
de comportamentos que exclui as emoções e os sentimentos da relação. Ao mesmo
tempo, a sociedade, em suas condições objetivas, legitima a masculinidade
hegemônica como modelo ideal, que deve ser perseguido a qualquer custo.

1.3. A Subjetividade Social: entre os motivos e as emoções

A subjetividade social não tem características estáticas universais; é um


conceito com suficiente maleabilidade e flexibilidade para caracterizar os processos
de produção, de sentidos e de significados, gerados nas diversas áreas da vida
social. Sendo assim, as configurações são, para o autor González Rey um conjunto
37

de experiências organizadas no processo de construção da personalidade de cada


sujeito singular e concreto; trata-se de um sistema gerador de sentidos subjetivos,
na medida em que o sujeito atribui sentido às ações desenvolvidas em dado
contexto histórico e social, de modo que, nessa complexa inter-relação, vão se
definindo novos sentidos.
Portanto, os processos de subjetividade social e individual não mantêm uma
relação de externalidade, mas se expressam como momentos contraditórios
que se integram de forma tensa na constituição complexa da subjetividade
humana, que é inseparável da condição social do homem. (GONZÁLEZ
REY, 2003, p. 206)

A ideia de sujeito, para o autor, recupera o caráter dialético e complexo do


homem que, de forma simultânea, representa em si uma singularidade e também
uma perspectiva do ser social, inclusive em sua generecidade (Marx, Heller, entre
outros). O autor revela que essa relação não é uma determinação externa, mas
trata-se de uma relação recursiva em que cada um está simultaneamente implicado
na configuração plurideterminada na qual se manifesta a ação do sujeito. A
concepção do sujeito é incompatível com o determinismo mecanicista, tendo vista
que sua ação é imprevisível. O autor reitera que, no entanto, "o momento atual é
constituinte da configuração subjetiva da ação que tem lugar neste momento"
(González Rey, 2003, p. 224).

O conceito de prática social é essencial para compreender a idéia do


sujeito. O sujeito é o indivíduo comprometido de forma permanente em uma
prática social complexa que o transcende, e diante disso tem de organizar
sua expressão pessoal, o que implica a construção de opções pelas quais
mantenha seu desenvolvimento e seus espaços pessoais dentro do
contexto dessas práticas. O sujeito tem uma função autorreguladora (Morin,
1980), que eu vejo não só na organização de sistemas de informação, mas
também na produção de sistemas de estratégias que lhe permitam integrar
zonas diferentes de suas práticas sociais, zonas estas que se expressam
em diferentes espaços sociais e que coexistem em tempos diferentes.
(Idem, 2003, p. 239)

Assim, o sujeito não é apenas produto do meio social, na medida em que sua
subjetividade só se define nas relações sociais do contexto histórico e cultural em
que está inserido; através de sua ação como sujeito singular, ativo e histórico, altera,
modifica e/ou constrói ao mesmo tempo, passando a ser, além de produto, também
produtor; e é nesta relação imbricada e contraditória entre indivíduo e sociedade que
se constituem os elementos essenciais ao desenvolvimento humano. (GONZÁLEZ
REY, 2003)
38

O sentido subjetivo está na relação inseparável dos processos emocionais e


simbólicos, produzidos nas mais diferentes esferas da sociedade e da vida, não
sendo reduzidas a uma causa única, mas à superação da visão linear e determinista
de causa e efeito.

O sentido subjetivo é a forma pela qual a multiplicidade de elementos


presentes na subjetividade social, assim como todas as condições objetivas
de vida do mundo social, se organizam numa dimensão emocional e
simbólica, possibilitando ao homem e a seus distintos espaços sociais
novas práticas que, em seus desdobramentos e nos processos emergentes
que vão se produzindo nesse caminho, constituem o desenvolvimento
humano em todos os seus aspectos, dentro dos novos contextos de
organização social que, por sua vez, participam da definição desses
processos e se transformam no curso dos mesmos. (GONZÁLEZ REY,
2007, p. 171)

Sendo assim, “as emoções são registros complexos que com o


desenvolvimento da condição cultural do homem passam a ser uma forma de
expressão humana ante situações de natureza cultural [...]” que aparecem nas
relações e nas práticas sociais. Porém, essa condição não exclui a capacidade de
registros somáticos e fisiológicos, mas, em relação com os anteriores, definem o “[...]
sentido subjetivo da emoção, que representa um momento essencial de sua
definição subjetiva.”. Logo o “[...] sentido subjetivo da emoção se manifesta pela
relação de uma emoção com outras em espaços simbolicamente organizados,
dentro dos quais as emoções transitam [...]”, sem que um desses momentos seja
reduzido ao outro, o simbólico e o emocional. Assim se define o sentido subjetivo.
(GONZÁLEZ REY, 2003, p. 243).
Nesse processo, o autor define ‘motivo’ como configurações subjetivas que
permitem compreender a razão, a causa da integração de sentidos subjetivos de
diferentes procedências, não como determinante intrapsíquico, mas como formação
psíquica geradora de sentido, presente em toda atividade humana. Essas atividades
não têm motivos específicos, universais, que atuam como causa; os próprios
motivos se organizam de uma forma única no contexto da atividade, fazendo parte
do processo de produção de sentido, que tem caráter plurimotivado.

Os motivos estão constituídos na personalidade e participam de maneira


direta ou indireta na formação de sentidos subjetivos que acompanham as
mais diversas atividades e práticas do sujeito. Os motivos apresentam
definições relativamente estáveis de sentidos subjetivos associados a certas
atividades, representações e sistemas de significação do
sujeito. (GONZÁLEZ REY, 2003, p. 247)
39

A partir dessa compreensão, podemos articular os motivos da violência


praticada pelos homens, sujeitos dessa pesquisa, contra suas companheiras. O
primeiro motivo está associado a um conjunto de elementos de sentidos subjetivos,
referentes à história individual de cada sujeito; o segundo, relacionado ao contexto
sociocultural.
Dessa forma, compõem os motivos a moral, o corpo, o gênero e os padrões
emocionais da relação. Todos se integram e definem o sentido subjetivo da violência
para o sujeito concreto. O motivo é inseparável dos elementos de sentido que se
geram pelas necessidades do sujeito dentro do contexto, do espaço de relação; ou
seja, a ação pode ser mudada mediante a construção de novos sentidos.
Pensando no processo de construção das múltiplas masculinidades, que
ocorrem mediadas pelo contexto social, cultural e histórico, é possível afirmar que os
processos de socialização, neste caso dos homens, ocorrem carregados de sentidos
subjetivos, que são refletidos na subjetividade individual, que geram um conjunto de
comportamentos e práticas, que podem ser mantidos ou transcendidos.
Assim, os sujeitos ora estão subordinados à realidade social, ora atuam sobre
ela; como indivíduos ativos, criam, questionam e geram alternativas sobre a vida
social dominante, produzem processos de socialização e novos conhecimentos. (Cf.
GONZÁLEZ REY, 2003)
Portanto, nossa concepção de sujeito acolhe a perspectiva da constante
inserção nos espaços da subjetividade social, na permanente tensão produzida
pelas contradições sociais e individuais; nossa concepção de emoção desdobra-se
desse eixo, como registro complexo de desenvolvimento da condição cultural,
histórica e afetiva que passam a ser uma forma de expressão humana; os motivos
ocorrem como configurações subjetivas, maneira direta ou indireta de produção dos
sentidos subjetivos que acompanham as mais diversas atividades e práticas do
sujeito. O desafio está em retirar toda essa compreensão da perspectiva disciplinar
para uma multivisão transdisciplinar, procurando ocultar o menos possível a
complexidade do real. (Cf. MORIN, 1997)
40

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41

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42

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43

CAPÍTULO II
TRILHA METODOLÓGICA

Os estudos sobre mulheres vítimas de situação de violência iniciados no


mestrado10 foram os geradores de novos e contundentes questionamentos em torno
da temática: o homem autor de violência se reconhece como agente que cometeu
violência? Tem ele clareza ou consciência do ato cometido? Como se percebe na
sociedade? Quais os motivos que o conduziram aos atos de violência? Como
compreende a mulher? Qual o entendimento de violência? Será que já a
experimentaram em sua vida? Há atendimento aos homens autores de violências?
Essas indagações abriram caminho para este estudo, estabelecendo como
objeto de pesquisa os motivos que conduzem os homens a praticar violência
doméstica. Inicialmente, realizamos vários diálogos com profissionais que trabalham
com homens autores de violência, professores e pesquisadores da área de
masculinidade e feminismo, visando maior aproximação com esse território ainda
pouco explorado por nós.

2.1. Pressupostos, objetivos e percurso metodológico.

Partindo do pressuposto de que as violências são fenômenos complexos e


multifacetados, percebemos que as motivações para os homens cometerem os atos
de violência contra as mulheres não estão pautadas somente na reprodução da
cultura machista, mas também nas relações sociais, humanas e afetivas.
Considerando a natureza de nossas indagações e da própria temática, a
pesquisa se pauta na abordagem qualitativa e crítica, de caráter multidimensional,
centrada nos depoimentos dos homens autores de violência contra a mulher e nos
depoimentos dos profissionais que atuam com esses sujeitos. Assim, estabelecemos
como objetivos:
- Geral: Analisar e compreender as motivações que conduzem os homens às
10
A dissertação, concluída em 2010, teve como título “Uma realidade em preto e branco: as mulheres
vítimas de violência doméstica”, e abordou a repercussão das ações desenvolvidas pelos serviços de
atenção OSC SOS Ação Mulher e Família e Centro de Referência e Apoio à Mulher – CEAMO –, na
dinâmica de vida da mulher vítima de violência doméstica. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/handle/handle/17503. Acesso em: abr. de 2020.
44

práticas de violência contra a mulher no âmbito doméstico.


- Específicos: Estudar o contexto de realidade dos homens que praticam
violência contra a mulher; conhecer os acontecimentos que podem gerar as
motivações para a violência; refletir sobre o modo de intervenção dos profissionais
que atuam com os homens autores de violência contra a mulher.
A abordagem qualitativa permite o contato direto e aprofundado do
pesquisador com o ambiente e ou situação investigada, centrando-se na apreensão
do contexto e das relações. Segundo Bogdan e Biklen (1994, p. 42), a investigação
qualitativa possui características que nos permitem acessibilidade à fonte direta de
dados e ao ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal; é
de natureza descritiva; importa ao pesquisador mais o processo do que
simplesmente os resultados ou produtos; as análises dos dados e das informações
ocorrem de forma indutiva e compreensiva; e o significado tem uma importância
primordial.
Essas características ajudam o pesquisador a compreender e a interpretar
criticamente o objeto em observação, realizar sua descrição e compreensão, com a
finalidade de entender seu contexto, significado, contradições, possibilidades;
também foca o caráter subjetivo do objeto analisado, permitindo uma análise mais
ampla.
Para a autora Minayo (2008), a abordagem qualitativa possibilita estudar e
ouvir as narrativas dos sujeitos no seu mais puro discurso, tornando suas falas
visíveis e concretas, sendo um meio de tornar pública suas experiências, as histórias
vivenciadas e construídas no bojo das relações, além de provocar, nos sujeitos,
entrevistados e leitores, novos questionamentos, reflexões e movimentos acerca do
tema estudado. A pesquisa qualitativa, através de narrativas dos integrantes do
estudo, permite aproximação ao significado e à intenção da ação dos sujeitos
investigados.
Deste modo, eleger a pesquisa qualitativa foi de extrema importância para
transitar entre o campo objetivo e subjetivo, com o propósito de compreender os
motivos que levaram os homens a cometer atos de violência contra as mulheres.

2.2. Planejamento da Pesquisa


45

Desenvolvemos a pesquisa em quatro etapas, construídas ao longo do


processo de investigação.

 Primeira Etapa
Realizamos um estudo bibliográfico acerca dos temas: violências; gênero;
masculinidades; relações de poder; subjetividades e relações afetivas, humanas
e sociais. Iniciamos com o levantamento de teses relacionadas ao tema,
defendidas entre 2008 e 2018, em território nacional. A pesquisa se concentrou
nas bases de publicações de Teses e Dissertações: TEDE11 (PUC SP);
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES12);
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD13); e no portal de
publicações científicas OASISBR14.
Quadro 1: Levantamento de trabalhos

Título da Tese Autora (o) Programa e Universidade Ano

NEM ANJOS, NEM Elizabeth Instituto de Filosofia e Ciências 2011


DEMÔNIOS: HOMENS Gómez Etayo Humanas/ UNICAMP
COMUNS: narrativas sobre
masculinidades e violência de
gênero.

OS DISCURSOS Valdonilso Antropologia/ Universidade Federal 2013


MASCULINOS SOBRE AS Barbosa dos de Pernambuco-UFPE
PRÁTICAS VIOLENTAS DE Santos
GÊNERO.

A PENA QUE VALE A PENA: Paula Licursi Programa de Pós- Graduação em 2013
alcances e limites de grupos Prates Ciências/ Universidade de São
reflexivos para homens Paulo
autores de violência contra a
mulher.

11
TEDE: Sistema de Publicação Eletrônica de Teses e Dissertações. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/
12
CAPES. Disponível em: http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/
13
BDTD. Disponível em: http://bdtd.ibict.br/vufind/
14
O Portal brasileiro de publicações científicas em acesso aberto – OASISBR – é um mecanismo de
busca multidisciplinar que permite o acesso gratuito à produção científica de autores vinculados a
universidades e institutos de pesquisa brasileiros. Disponível em: http://oasisbr.ibict.br/vufind/
46

HISTÓRIA DE VIDA E Gabriela Programa de Pós-Graduação em 2014


CARACTERÍSTICAS DE Quadros de Psicologia/ PUC Rio Grande Sul
PERSONALIDADE DE Lima Stenzel
AGRESSORES CONJUGAIS:
um olhar psicanalítico.

“ELA NÃO PRECISAVA Fabrício Programa de Pós-Graduação em 2015


CHAMAR A POLÍCIA...”: Lemos Psicológica Clinica Cultura/
anestesias relacionais e Guimarães Universidade de Brasília
duplo-vínculos na perspectiva
de homens autores de
violência conjugal.

“SE VOCÊ NÃO FOR MINHA, Mirela Marin Programa de Pós-Graduação em 2015
NÃO SERÁ DE MAIS Morgante História/ Universidade Federal do
NINGUÉM”: a violência de Espírito Santo
gênero denunciada na
DEAM/Vitória-ES (2002 a
2010).

VIOLÊNCIA CONJUGAL E A Gilvânia Programa de Pós-Graduação em 2016


EXPERIÊNCIA JURÍDICO- Patrícia do Enfermagem/ Universidade
POLICIAL: vivência de Nascimento Federal da Bahia
homens em processo criminal Paixão

COMO DIALOGAR COM Jan Staislan Faculdade de Medicina/ 2016


HOMENS AUTORES DE Joaquim Universidade de São Paulo
VIOLÊNCIA CONTRA Billand
MULHER? Etnografia de um
grupo de reflexão

“COM O DIABO NA Janaína Sociologia/ Universidade Federal 2016


CABEÇA”: um estudo sobre Sampaio do Ceará
as ressignificações do Zaranza
masculino e do feminino no
contexto da lei Maria da
Penha.

VIOLÊNCIA POR PARCEIRO Anne Programa de Pós-Graduação em 2016


ÍNTIMO: o acompanhamento Caroline Luz Saúde Coletiva da Universidade
ao homem autor de violência Grüdtner da Federal de Santa Catarina
Silva

“- MAS TEM GENTE QUE Vanessa Programa de Pós-Graduação em 2018


NÃO ENTENDE ASSIM.” // “- Arlésia de linguística/ Universidade Federal
É. É POR ISSO QUE A Souza de Santa Catarina
GENTE TÁ AQUI.”: a sessão Ferretti
de grupo socioeducativo para Soares
homens autores de violência
contra a mulher e a
(re)construção discursiva de
47

masculinidades.

CIVILIZAR A CULTURA: Marco Julián Programa de Pós-graduação em 2018


questões de modernização e a Martínez- Antropologia Social/ Universidade
afirmação da dignidade entre Moreno de Brasília
homens acusados de violência
doméstica e familiar contra a
mulher

A MASCULINIDADE NO Érica Verícia Programa de Pós-Graduação em 2018


BANCO DOS RÉUS: um Canuto De Ciências Sociais/ Universidade
estudo sobre gênero, sistema Oliveira Federal do Rio Grande do Norte
de justiça penal e a aplicação Veras
da lei Maria da Penha

Fonte: Elaborado pela autora.

Para essa consulta, utilizamos os códigos: homens autores de violência;


motivos das práticas violentas dos homens contra as mulheres; agressores de
violência contra mulher.
Percebemos que os estudos estão alocados nas áreas das ciências sociais e
humanas, e nos diversos campos do saber, mostrando que a temática é
interdisciplinar.
Analisando os trabalhos percebemos que os estudos se concentram nas
discussões grupais sobre a reprodução da cultura e das masculinidades, por meio
dos grupos de reflexão e de responsabilização, para homens autores de violência,
pautados na avaliação dessa técnica como mecanismo de mudança nos discursos e
na masculinidade hegemônica. Somente quatro teses estão pautadas nas narrativas
e nos discursos individuais dos homens autores de violência, e trazem suas análises
centradas no comportamento dos homens e na naturalização da violência.
Entretanto, esses trabalhos não abordam, especificamente, os motivos que levaram
os homens a cometer violência; esses aparecem nas discussões dos grupos e em
algumas narrativas, mas não são tratados com profundidade, apenas citados. Desse
modo, esse trabalho é único na especificidade de estudar e levantar os motivos,
concretos e subjetivos, que levaram os homens a cometer violência contra as
mulheres, avançando nas concepções culturais e comportamentais.

 Segunda Etapa: das Instituições aos sujeitos


48

Essa etapa foi construída ao longo do processo, sendo necessário um


levantamento das áreas e instituições que atuam com esse público, com essa
temática, seguido de um estudo dessas instituições quanto às suas distintas formas
de intervenção. O importante era verificar aquelas que nucleavam informações ou
ações pautadas nas motivações que conduziram os homens a praticar a violência.
Seguem as instituições relacionadas aos nossos objetivos.

a) Programa Tempo de Despertar: executado pelo Tribunal de Justiça de


Taboão da Serra/SP, o projeto “Tempo de Despertar” nasceu de uma iniciativa do
Núcleo de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GEVID), do
Ministério Público de Taboão da Serra, no ano de 2014. Devido aos excelentes
resultados, em janeiro de 2018 tornou-se programa do Tribunal de Justiça através da
Lei Nº 16.659, com o objetivo de “prevenir e combater a violência doméstica,
reduzindo a reincidência”, com a finalidade de “conscientizar os autores de violência
doméstica sobre a situação de violência contra a mulher” (Lei Nº 16.659, 2018).
O programa é destinado aos autores de violência contra a mulher que estejam
com inquérito policial, procedimento de medidas protetivas, de prisão em flagrante
e/ou processos criminais em andamento – com exceção de agressores que estejam
com sua liberdade cerceada; crimes sexuais; dependentes químicos com
comprometimento; portadores de transtornos psiquiátricos; e autores de crimes
dolosos contra a vida. Os homens são intimados pela Justiça, a pedido do Ministério
Público, e a frequência é obrigatória; como benefício, há a possibilidade de
atenuação da pena. São realizados oito encontros quinzenais, com palestras
proferidas por especialistas, seguida de roda de conversa, discussão, reflexão e
debates.
b) SOS Ação Mulher e Família: Organização Não Governamental – OSC. A
primeira instituição de Campinas e região a ofertar atendimento às mulheres em
situação de violência. O SOS iniciou suas atividades em 1980, com profissionais e
mulheres militantes do movimento feminista; desde então, atua e presta serviços no
atendimento às famílias em situação de violência. Atualmente compõe a rede de
proteção especial de média complexidade, na execução do SESF (Serviço
Especializado). Cabe destacar que inicialmente o SOS atuava somente com
mulheres em situação de violência, com a prestação de orientações jurídicas,
psicológica e social, mas, com o passar do tempo, o SOS observou a importância de
49

ofertar atendimento aos homens autores de violência, entendendo-os como parte da


relação violenta que precisa ser ouvida e cuidada. Hoje fornece atendimento
psicológico e terapia de casal aos homens autores de violência, e estão sendo
construídos métodos para atendimento grupal aos HAV.
c) Projeto Íntegra: tem como objetivo viabilizar uma política pública que gere
celeridade, efetividade e acesso à Justiça, através de metodologia de mediação
interdisciplinar, especialmente desenvolvida para a atuação em atmosferas de
relações afetivas continuadas. Atua no Fórum Regional de Santana, em São Paulo.
d) Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde: Organização Não
Governamental, que desenvolve, desde 1981, um trabalho com especial foco na
atenção primária à saúde das mulheres, a partir de uma perspectiva feminista e
humanizada. Desde 2006, atua com grupos reflexivos de homens, que têm como
objetivo conhecer, debater e possibilitar o aprendizado de masculinidades que
respeitem e promovam os direitos humanos das mulheres e dos homens.
e) Defensoria Pública: presta atendimento à população de “baixa renda”
quanto a processos jurídicos de competência da Vara da Família e da Vara do Foro
Central de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Para este estudo, a
defensoria participante está alocada no Complexo Judiciário Ministro Mario
Guimarães – Fórum Criminal da Barra Funda, SP.
f) Projeto Programa “E AGORA, JOSÉ?”: trabalha com grupos
socioeducativos, compostos por homens autores de violência doméstica contra as
mulheres, desenvolvido na cidade de Santo André, SP. Trata-se de uma parceria da
Secretaria de Políticas para as Mulheres com o Tribunal de Justiça – Comarca de
Santo André –, e a Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania da Secretaria
Estadual da Administração Penitenciária. O trabalho com cada grupo de homens se
da em 20 encontros, onde buscam questionar os papéis sociais de gênero, que têm
legitimado as desigualdades sociais e a violência contra as mulheres, por meio do
processo socioeducativo, de ações que propiciem a reflexão, e de uma pedagogia
que conduza à responsabilização do autor de violência15.
g) Rede Pessoal: integramos a Rede Intersetorial de Campinas e atuamos
por 10 anos na rede de atenção às mulheres em situação de violência; nessa
trajetória, mantemos alguns contatos com pessoas e famílias que vivenciaram ou

15
Disponível em: https://flaviourra.wordpress.com/masculinidade/programa-e-agora-jose/
50

vivenciam situações de violência, e que foram convidadas para compor a amostra da


pesquisa.

 Terceira Etapa: depoimentos


Para alcançar os homens autores de violência, optamos por realizar
entrevistas narrativas e, através de seus depoimentos pessoais, obter suas histórias,
procurando chegar aos motivos que possam ter gerado os atos violentos. O
importante na narrativa é procurar compreender a extensão do contexto e os fatores
que condicionaram tal atitude. O depoimento pessoal difere da história de vida como
técnica de pesquisa. Segundo Queiroz:
(...) difere da história de vida na forma específica de agir do pesquisador, o
qual, no depoimento pessoal, dirige diretamente o colóquio; concentrado
sobre um lapso de tempo mais reduzido, permite aprofundar o número de
informações e de detalhes a respeito desse espaço preciso. (1988, p.21)

No depoimento pessoal, o pesquisador conduz e orienta o narrador de acordo


com objetivo da pesquisa, retomando as experiências vivenciadas no tempo,
podendo ser coletada em um único encontro. Nessa técnica é possível conciliar com
outros instrumentos de coleta de dados para complementar a narração e as
informações pertinentes à pesquisa.
A entrevista narrativa consiste em um diálogo de troca entre pesquisador e
narrador, mediada por um roteiro de questões abertas de cunho social, objetivo e
subjetivo, individual e coletivo.
As entrevistas narrativas se caracterizam como ferramentas não
estruturadas, visando a profundidade, de aspectos específicos; (...) visa
encorajar e estimular o sujeito entrevistado (informante) a contar algo sobre
algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social. Tendo
como base a ideia de reconstruir acontecimentos sociais a partir do ponto
de vista dos informantes. (MUYLAERT; et al., 2014, p. 194)

A utilização da entrevista narrativa aliada ao depoimento pessoal, neste


trabalho, possibilitou aos pesquisados a liberdade para “narrar” suas experiências de
forma livre de pré-julgamentos. Para isso, construímos um roteiro (anexo) composto
por perguntas abertas, referentes a: trajetória de vida (da infância até a situação de
violência cometida); fatos ocorridos e de significado ao sujeito; visão dos papéis de
homem, de mulher e de “outros” autores de violência; e o sentimento despertado ao
falar sobre a sua história. Também utilizamos um questionário com perguntas
abertas e fechadas, direcionadas a traçar o perfil dos homens, contemplando: idade,
profissão, escolaridade, quantidade e tempo dos relacionamentos amorosos,
51

violências cometidas. Interessou, também, saber se respondem judicialmente pelos


atos.
A mesma técnica, depoimento pessoal em entrevista narrativa, foi utilizada
com os profissionais que atuam com homens autores de violência, em diversos
contextos e saberes. O roteiro foi direcionado aos motivos de violência que esses
profissionais puderam observar em suas experiências de intervenção profissional
com os homens autores de violência. O roteiro (anexo) continha perguntas abertas
referentes aos motivos, linha e repercussão do trabalho com os homens autores de
violência. O roteiro também foi composto por perguntas fechadas para traçar o perfil
relacionado a gênero, idade, profissão, instituição e/ou local de trabalho, tempo e
formas de abordagens (grupal ou individual) utilizadas com os homens autores de
violência.
A escolha dos sujeitos e os contextos em que as entrevistas foram realizadas
estão descritas no capítulo IV.

 Quarta Etapa: análise de conteúdo


Para interpretação dos depoimentos, utilizamos a análise de conteúdo,
procurando compreender as características, estruturas ou modelos que estão nas
mensagens e por trás dos fragmentos das mensagens.

A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das


comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de
descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não)
que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de
produção/recepção (variáveis) destas mensagens. (Bardin, 1977, p. 31)

O esforço para analisar é, então, duplo: entender o sentido (motivos) do que é


comunicado e, principalmente, desviar o olhar, buscando outra significação, outras
mensagens. A análise de conteúdo apresenta duas funções: uma que se refere à
verificação de hipóteses e/ou questões, através do conteúdo, das indagações
formuladas. A outra, diz respeito à descoberta do que está por trás dos conteúdos
manifestos, indo além das aparências do que está sendo comunicado. As duas
funções, na prática, se complementam e podem ser aplicadas a partir de princípios
da pesquisa quantitativa ou da qualitativa (MINAYO, 1994).
A análise de conteúdo ocorreu de acordo com a seguinte dinâmica:
transcrição das entrevistas e organização do material; exploração das narrativas
realizando leitura exaustiva e agrupando os conteúdos relacionados; novas leituras
52

para realizar a categorização dos conteúdos; interpretações e articulações dos


conteúdos obtidos.
53

Referências Bibliográficas do Capítulo II

BARDIN. C. Análise de Conteúdo. Rio de Janeiro: Edições 70. 1977

BOGDAN, Robert e BIKLEN, Sari. Investigação qualitativa em educação – uma


introdução à teoria e aos métodos. Coleção ciências da educação, Porto Editora,
Portugal, 1994.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa


qualitativa em saúde. 11ª Ed. São Paulo: Editora Hucitec. 2008.

MINAYO, Maria Cecília de Souza (Org.) Pesquisa Social – teoria, método e


criatividade. Coleção Temas Sociais, 21ª edição. Ed. Vozes: Rio de Janeiro, 1994.

QUEIROZ, M. I. P. Relatos orais: do "indizível" ao "dizível". In: SIMSO, O. M.


Experimentos com histórias de vida. São Paulo, Editora Vértice, 1988.

MUYLAERT C. J.; JÚNIOR V. S.; GALLO P. R.; NETO M. L. R.; REIS A. O. A..
Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. Revista da
Escola de Enfermagem da USP, 2014. p. 193-199. Disponível em:
www.ee.usp.br/reeusp/. Acesso em: 20 de jul. de 2020.
54

CAPÍTULO III
CAMINHOS, (DES)ENCONTROS E HISTÓRIAS

Neste capítulo apresentamos os caminhos que percorremos para encontrar os


homens autores de violências, compreender a ambiência vivida pelos sujeitos, bem
como obter as versões dos fatos, das histórias familiares, de suas motivações e seus
sentimentos com relação às violências cometidas.

3.1. Caminhos e Dificuldades

O processo de construção da pesquisa foi sendo desenhado ao longo de três


anos, sofrendo mudanças e se transformando conforme os desafios colocados. O
maior deles foi responder à questão: “como chegar aos homens autores de
violência?”. Pensamos inicialmente em coletar os dados no programa “Tempo de
Despertar”, executado pelo Tribunal de Justiça de Taboão da Serra/SP, destinado
aos autores de violência contra a mulher com processos julgados e/ou em fase de
inquérito. São intimados pela Justiça, a pedido do Ministério Público, para frequentar
os grupos de responsabilização ofertados pelo programa, com possibilidade de
atenuação da pena.
Com a definição do campo de pesquisa, a questão inicial estaria respondida e
a segunda providência seria somente delinear as estratégias de abordagem com
esses sujeitos. Entretanto, os contratempos institucionais com o programa “Tempo
de Despertar” e a necessidade de atender à sugestão da banca de qualificação para
alargar o universo da pesquisa com a escuta de homens autores de violência que
ainda não haviam recebido atendimento das instituições de atenção à violência,
dificultaram bastante o caminho para chegar aos homens autores de violência.
Nesse processo, vários foram os reveses nos contatos com a Vara de Violência
Doméstica de Campinas; os serviços de responsabilização de homens autores de
violência em São Paulo, Sorocaba e em outras cidades; o Centro de Referência
Especializado de Assistência Social – CREAS. Todas essas instituições mantêm
contato e/ou trabalham com os homens autores de violência, mas todos negaram
indicar ou mesmo “perguntar” aos homens se queriam participar da pesquisa.
55

Alegaram sigilo profissional e judicial aos seus usuários, além das diversas
exigências burocráticas, que inviabilizava a pesquisa.
Fizemos contato, também, com oito mulheres que viveram situações de
violências, atendidas e indicadas pelo SOS AMF16, com intuito de nos aproximarmos
dos homens que cometeram violências. Porém, as mulheres se recusaram a indica-
los, por medo ou por não terem mais relações com os autores de violência.
Para atender às sugestões da banca de qualificação, realizamos contato com
a Delegacia de Defesa da Mulher – DDM –, com a Central de Penas e Medidas
Alternativas – CPMA –, e com a Vara de Violência Doméstica, todos em Campinas.
Constatamos que a burocratização para acesso aos sujeitos tornaria a pesquisa
inviável.
Os caminhos foram possíveis mediante o contato com Defensoria Pública de
Campinas, que informou a impossibilidade de indicar os HAV17, devido à recente
implantação da Vara Especializada de Violência Doméstica de Campinas.
Entretanto, indicaram profissionais da Defensoria Pública na Vara da Violência
Doméstica de São Paulo18, um advogado de defesa, que explicou a rotina do serviço
no atendimento prestado às vítimas e aos autores de violência.
O contato com os sujeitos da ação muitas vezes ocorre minutos antes da
audiência, portanto não há vínculo institucional estabelecido. Diante dessa
informação, construímos uma estratégia junto ao defensor público, que liberou nosso
acesso às dependências do fórum, permitindo que aguardássemos a finalização das
audiências para, posteriormente, realizar a entrevista. Mediante a indicação e a
abordagem pré-estabelecida pelo defensor público, essa estratégia resultou em duas
entrevistas. As instituições SOS AMF, localizada em Campinas/SP; Programa
“Tempo de Despertar”19, em Taboão da Serra/SP; Projeto Íntegra20, em São

16
SOS Ação mulher e Família: Organização Não Governamental – OSC (SOS AMF). Presta
atendimento às mulheres e suas famílias em situação de violência. Oferta, também, atendimento
psicológico para os homens autores de violência. As informações sobre as instituições estão no item
“Contextualização das Instituições.”
17
HAV – Homens Autores de Violência
18
Defensoria Pública na Vara da Violência Doméstica de São Paulo, alocada no Complexo Judiciário
Ministro Mario Guimarães – Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo.
19
Programa “Tempo de Despertar”: é executado pelo Tribunal de Justiça de Taboão da Serra, SP. O
programa é destinado aos autores de violência contra a mulher que estejam com inquérito policial,
procedimento de medidas protetivas, de prisão em flagrante e/ou processos criminais em andamento.
Trabalha com grupos de responsabilização. As informações sobre as instituições estão no item
“Contextualização das Instituições”.
56

Paulo/SP; Coletivo Feminista21, em São Paulo/SP e, ainda, nossos contatos


pessoais possibilitaram a inclusão dos demais sujeitos da pesquisa.
Assim, e mesmo diante de muitas dificuldades, pudemos compor nosso
universo de pesquisa.

3.2. O encontro com os Sujeitos

Compreendemos, ao longo dessa trajetória, que mesmo com os contatos e as


indicações dos sujeitos, seria necessário ultrapassar as dificuldades da distância, da
disponibilidade de data, de horário dos sujeitos, entre outros. Realizamos, então, um
novo planejamento para a coleta de dados, utilizando recursos virtuais do WhatsApp
e do Skype para a concretização das entrevistas.
Os convites e o primeiro encontro se deram por mensagem de texto no
WhatsApp para nove homens. O conteúdo da mensagem destacava a possibilidade
de poderem contar a sua versão sobre as violências cometidas e pelas quais eram
julgados. Essa estratégia, de (re)contar sua trajetória, provocou grande motivação e
todos responderam positivamente sobre participar da entrevista. Apesar disso,
alguns homens não se sentiram confortáveis em falar sobre esse assunto
pessoalmente; para esses, propusemos a entrevista por WhatsApp e Skype. Essa
estratégia foi acolhida por quatro dos nove sujeitos, que indicaram a disponibilidade
de dia e horário. As entrevistas virtuais ocorreram, em sua maioria, aos finais de
semana e à noite, após as 22:00h. Todas as conversas virtuais foram gravadas,
mediante autorização dos sujeitos.
As entrevistas face a face ocorreram na cidade de Campinas/SP, em espaços
públicos: Museu Estação Cultural, OSC SOS AMF, e nas dependências da
Universidade PUC Campinas. Esses locais foram escolhidos por nós e pelos
sujeitos.
Para os encontros com os sujeitos na Defensoria Pública na Vara da Violência
Doméstica de São Paulo, foram necessários três dias alternados com uma espera

20
Projeto Íntegra atua no Fórum Regional de Santana, na cidade de São Paulo. Oferta mediação
interdisciplinar desenvolvida nas relações afetivas continuadas. As informações sobre as instituições
estão no item “Contextualização das Instituições”.
21
Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde: Organização Não Governamental. Oferta grupos de
reflexão para homens autores de violência, encaminhados pela Vara de Violência Doméstica. As
informações sobre as instituições estão no item “Contextualização das Instituições”.
57

de 4 horas22, resultando em duas entrevistas em dias diferentes. Nesses três dias


foram marcadas e realizadas sete audiências; três homens não compareceram, dois
não aceitaram participar e dois aceitaram. Os sujeitos entrevistados haviam acabado
de ser condenados e estavam muito emocionados, disponibilizando somente 30
minutos de entrevista; um deles não autorizou a gravação do áudio, mas permitiu as
anotações.
Todos os participantes foram orientados sobre os objetivos da pesquisa e
assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), autorizando as
entrevistas e as gravações em áudio (anexo). Para as instituições, foram
apresentadas a autorização do Comitê de Ética, emitida pela Plataforma Brasil.

3.3. Perfil dos Sujeitos

Para a realização das entrevistas, utilizamos um questionário composto de


perguntas semiestruturadas (anexo), entregue e preenchido livremente pelos
sujeitos. O questionário mantinha dois blocos temáticos.
Bloco A - Questões de perfil: idade, profissão, escolaridade, cidade ou
região de nascimento e de vivência quando criança e/ou adolescente. As questões
relativas à região de nascimento e de convivência tiveram como propósito perceber
as influências culturais que poderiam ser geradoras das violências cometidas. Entre
eles, seis nasceram, cresceram e viveram na mesma cidade; um na Bolívia, mas já
há dez anos no Brasil; dois não responderam. Também levantamos o atual estado
civil e a duração das relações com as parceiras: oito sujeitos declararam-se
casados, informando que foi essa relação amorosa que culminou em violência. Os
relacionamentos duraram entre 2 e 16 anos de convivência, e a separação se deu
em decorrência das violências. Todos os participantes que foram casados têm, em
média, dois filhos. Atualmente, cinco homens casaram-se novamente, e os outros
quatro declararam não manter relacionamento amoroso no momento.
Bloco B - Violências Cometidas: esse bloco compreende questões relativas
ao tipo de violência cometida e se esses sujeitos respondem ou responderam
judicialmente pelo ato de violência.

22
O tempo estabelecido de permanência no fórum, de 4 horas, deu-se pela pesquisadora, que reside
em outra cidade e precisava retornar à sua cidade dentro do horário comercial.
58

No primeiro contato com os participantes foi explicado que os dados obtidos


pela pesquisa não seriam confrontados com o histórico institucional ou com os
documentos oficiais (Boletins de Ocorrência, inquéritos policiais, processos judiciais,
etc.), assegurando-os que o objetivo principal consistia em conhecer a versão dos
fatos pelo seu autor.

3.4. Os Sujeitos e seus depoimentos

Para entender e compreender os motivos que conduziram esses homens a


cometerem violências contra suas companheiras, optamos em apresentar suas
narrativas na íntegra, respeitando sua versão dos fatos e a expressão dos
sentimentos envolvidos em suas histórias. Segundo Muylaert et al (2014), “as
narrativas combinam histórias de vida a contextos sócio–históricos”, ao mesmo
tempo, que “revelam experiências individuais e podem lançar luz sobre as
identidades dos indivíduos e as imagens que eles têm de si mesmo”, tendo como
objetivo não apenas reconstruir a história dos fatos, mas compreender os contextos
em que foram “construídas e os fatores que produzem mudanças e motivam as
ações dos informantes.” (p. 196)
Dentro desse contexto, o sujeito é um ser histórico, se constrói no cotidiano, é
produto e produtor de sua cultura familiar, social e econômica; portanto, seu relato
requer visibilidade, para podermos compreender a versão de seus motivos.
Como medida de proteção e sigilo dos depoentes, optamos por estabelecer
nomes fictícios, como meio de preservação de suas identidades.

 INÁCIO
Inácio tem 35 anos, cursou o Ensino Superior, trabalha como técnico e reside
em Guarulhos, SP. A entrevista se deu por Skype e foi uma indicação do Programa
“Tempo de Despertar”. No relato, informou que foi condenado por tentativa de
homicídio e que frequentou o grupo de responsabilização para homens autores de
violência do programa que o indicou.

Eu, na minha cabeça, tinha uma família tradicional. Minha mãe não sai de
casa para nada, mal vai ao mercado e na feira, ela é do lar. Meu pai sempre
foi o provedor da casa; essa era minha referência de família. Meus pais têm
70 anos e são de outra geração. Com 28 anos eu engravidei uma menina e
casei. Eu não tinha nenhum sentimento por ela, mas não poderia deixar
meu filho passar por humilhação. Os meus pais estão casados há 43 anos,
59

essa é a estrutura que eu tenho. Casei sem amor e foi um relacionamento


muito conturbado, tinha muitas brigas. Apesar do meu uso constante de
crack, eu nunca deixava faltar nada dentro de casa, achava que eu sendo o
provedor do lar eu tinha o direito de usar drogas. Ela começou a trabalhar e
nunca ajudou em casa, eu tinha que por tudo dentro de casa; aquilo me
irritava, porque se a pessoa não trabalha é uma coisa, agora, se trabalha é
para ajudar o companheiro, nossas brigas eram por causa disso. Fui
internado em uma clínica de tratamento para dependente químico e quando
saí, não lembro qual foi o motivo, começamos uma discussão; eu agredi ela,
coloquei fogo no colchão e nas roupas dela. Eu não me lembro de muita
coisa, tinha tomado muitos remédios, estava alcoolizado e tinha usado
drogas. As coisas que eu vou falar, eu sei por que estão no boletim de
ocorrência e no processo, porque não lembro. Segundo o relato dela, eu fui
para cima dela com uma faca, não para matá-la, mas para cortar o cabelo
dela; daí ela foi se defender e acabou machucando o braço, ferimento
pequeno. Ela chamou a polícia e eu fui preso em flagrante. Não nasci para
estar em uma cadeia, não tenho educação para estar em um lugar daquele
(prisão), mas foi ótimo porque eu consegui abrir meus olhos e largar as
drogas. Depois fui convidado para participar do Projeto Tempo de
23
Despertar , e hoje eu faço parte da equipe técnica. Eu acreditava
sinceramente que eu cometi violência porque usava drogas, mas durante o
grupo fui descobrindo que não era só o meu uso de droga, era o meu
comportamento, porque eu era machista. O principal motivo da violência
que eu cometi foi porque eu estava drogado, e a falta de conhecimento.
Tudo foi se acumulando e levou à agressão; fui condenado por isso, e achei
justo. Se você for ver, não foi só uma agressão física, foram 2 anos de
agressão psicológica. Ela tinha que aceitar o meu jeito, ela tinha que ser
submissa a mim; então a agressão física foi a gota que faltava para
transbordar o copo de água. A falta de conhecimento leva à violência, não é
desculpa isso, eu não justifico nada do que fiz, foi muito grave, eu paguei.
Acho assim, têm homens que tem vários fatores na vida deles, vários casos
de agressões e episódios de violência. No meu caso não, foi uma agressão,
foi um episódio e eu estava drogado. Eu poderia usar isso como desculpa,
mas, sei lá, eu não tinha conhecimento de tudo. Tem um peso grande tudo
isso, eu não consigo me enxergar como esse monstro, porque se você
pegar os meus processos, parece que é um monstro que está ali e eu não
sou aquele cara; é difícil. Ao mesmo tempo, eu gosto de estar participando
dos grupos (reflexão de autores de violência), para eu me sentir bem e
alertar os outros, para não chegar ao ponto que eu cheguei. Eu quero ver a
mudança na sociedade, quero que minha mulher possa ir no mercado, com
a roupa que ela quiser, e se sentir segura, sabendo que ninguém vai
assobiar ou vai fazer piadinha sem graça. Não por ciúmes, não é essa
questão, por respeito a ela. Na minha relação tem ciúmes, mas é
controlado, não é doentio, até porque, se não houvesse isso, não é amor.
Eu quero que o meu filho saiba que quando ele entrar em um
relacionamento precisa valorizar as coisas que eu não valorizava. Eu venho
buscando conversar com as pessoas, porque quero muito ver mudança na
sociedade. Não é só violência física ou psicológica, por exemplo, meu pai é
machista; eu sei que não vou desconstruir o meu pai e nem tem
necessidade, porque se meu pai deixar de ser quem ele é até minha mãe
vai achar estranho. Eu acho que falta um pouco de abordagem, porque na
rodinha de amigas-mulheres sempre tem um lado afetivo, desabafo; nas
rodas de homens não, porque o cara nunca quer se diminuir e ele não fala
do lado afetivo. O homem tem essa armadura e ele não pode tirar essa
armadura, mesmo com os amigos ele não vai falar: “olha, estou tendo umas
discussões com a minha mulher”, “olha, fico chateado porque as vezes eu
xingo ela”, homem não tem esse tipo de conversa, mas ele precisa

23
“Tempo de Despertar” é um programa do Tribunal de Justiça de Taboão da Serra/ SP, que
desenvolve grupos de atividades de responsabilização e reflexão aos homens autores de violência.
60

desabafar e não tem ninguém. Acho ruim que apenas esse tipo de assunto
só tem debate quando acontece o pior e é difícil convencer um homem a
participar dessa conversa. Hoje eu falo da minha experiência; por pior que
tenha sido, posso tirar um proveito para melhorar a sociedade, pelo menos
esses que estão ao meu redor, e se esses aprenderem alguma coisa,
repassar para os outros. Nós temos que fazer alguma coisa antes da
violência acontecer, esse é o caminho. Eu não tenho como criticar um
agressor, porque eu também fui um e cometi um crime, eu agredi as
mulheres, sou um deles. Não querendo me fazer de vítima, mas eu vejo
muito a culpa da criação que a gente tem, não por pai e mãe, mas da
sociedade, porque ela dita o comportamento. O homem não pode ser
submisso à mulher; homem tem que ser o machão em um relacionamento,
eu acho que é a sociedade. Agora eu também vejo a religião, extremamente
cruel. A bíblia é extremamente machista; eu acho que esse livro é tão
arcaico que legitima os agressores. Eu já vi e ouvi relatos de caras que
batiam nas mulheres para tirar o demônio do corpo, tem muita coisa que
precisa ser desconstruída na raiz, desde a criação dos nossos filhos até o
respeito às mulheres. Tem caras que falam que bateu na mulher porque a
mulher chifrou ele, se chifrou ele é porque o relacionamento não está bom.
Claro, no calor do momento falta controle, mas bater não! Hoje eu sei que
não tenho capacidade de bater em ninguém. Mas isso veio hoje. Agora,
quando eu estava com as minhas droguinhas e a cachaça na cabeça, eu
era agressivo. Hoje eu não bebo, sou uma pessoa totalmente diferente,
busquei essa melhora e qualidade de vida, então é meio complicado eu
falar, em um contexto geral, do agressor, porque cada um tem uma
desculpa, ou um motivo, ou uma justificativa, embora eu acredito que não
tem justificativa. A agressão verbal, tortura psicológica, pode até ser falta de
conhecimento; agora, agressão física é o calor do momento. Acho que cabe
aos dois ali conhecer o limite um do outro, sair fora quando a discussão fica
mais pesada, porque discutir é normal, precisa ter conhecimento para saber
o limite dela e dele.

 FRANCISCO
Hoje com 29 anos, Francisco cursou o ensino técnico e reside em
Campinas/SP. O contato veio da OSC SOS AMF, onde buscou e passou
voluntariamente por acompanhamento psicológico. A entrevista ocorreu no espaço
da instituição e presencialmente.

Minha infância foi assim: minha mãe se separou do meu pai eu não tinha
um ano, porque meu pai era alcoólatra crônico, ele chegou agredir minha
mãe e não levava nada para dentro de casa; minha mãe acabou largando
dele. Uma vez os vizinhos escutaram eu chorando e eles foram lá, e minha
mãe estava desmaiada de fome; eles nos levaram para a casa da minha
avó, ficamos morando lá. Quando eu tinha 2 anos minha mãe conheceu o
meu pai e é a pessoa que ela está casada até hoje. Ele que me criou, eu
tive a melhor educação possível e nunca passamos fome. Lembro que uma
vez teve uma agressão, eu era pequeno, estava brincando com minha mãe
e ela me derrubou sem querer, e ele bateu nela. Eu fui e dei um tapa nele, e
ele foi e me deu um tapa no meu rosto. Eles discutiram e minha mãe pegou
o carro e saiu comigo, e capotou o carro. Ela teve traumatismo craniano e
um pouco de perda de massa encefálica. Na escola eu era bastante
problemático, passei por psicólogo. Eu acho que pelo fato do meu pai beber
e eu era estranho. Eu lembro que ele (pai) foi uma vez na porta da casa da
minha avó, era 5:30 manhã; ele era açougueiro, meu padrasto tinha saído
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para comprar pão, ele ficou chamando minha mãe. Quando ela saiu, ele
estava bêbado, pegou o canivete e cortou a perna dela. Meu padrasto
chegou e bateu nele, isso meio que me traumatizou; toda vez que eu ia
visitá-lo ele estava bêbado, então parei de vê-lo quando tinha 15 anos. Logo
depois ele morreu de câncer e eu não fui vê-lo, porque estava com raiva e
ele bebia. Eu comecei a beber e usar drogas logo depois. Quando eu tinha
16 anos, casei com minha ex-esposa. Na época ela tinha 14 anos, temos 4
filhos juntos. Saí da casa da minha mãe e fui pagar aluguel, deixei de andar
de skate e fui trabalhar, ficamos juntos 10 anos. Desde 16 anos eu fumo
cigarro e bebo; aos 19 anos eu comecei a usar drogas, cocaína, eu fiquei
uns 6 anos fazendo isso, bebendo e usando droga, só que era normal,
porque eu não deixava de trabalhar, pagava o aluguel, fazia as coisas em
casa. Eu tinha me tornado o que o meu pai era. Larguei da cocaína e da
minha mulher, faz dois anos que eu conheci a mulher que eu sou casado
hoje. Na verdade, eu não fui casado no papel com a minha primeira mulher,
nada oficializado. Eu conheci minha atual mulher ainda estava junto com a
outra, mas eu não tinha mais nada com ela, fiquei na casa, porque ela
nunca tinha trabalhado e era eu que levava comida e as coisas. Depois eu
fui morar com minha mulher, em pouco tempo eu percebi que estava feliz,
ela me tratava muito bem, não existia briga e nunca passou pela minha
cabeça de chegar ao ponto de agredir ela. Eu não acredito no que eu fiz, eu
não entendi por que eu fiz aquilo, fiquei com medo porque, se eu tivesse
bêbado ou tivesse drogado, teria uma justificativa, mas não, eu não estava,
entendeu? Eu me descontrolei, saí do normal, mas não foi de graça, não
justifica o que eu fiz, mas explica um pouco. Eu cresci em um mundo onde
homem pega 10 mulheres e é o garanhão; a mulher fica com 10 e é puta.
Idiota da minha parte pensar assim; esse é o meio que eu cresci, não foram
minha mãe e meu pai, eles não me ensinaram isso, foi o meio pessoal que
eu cresci. Sei que foi uma atitude machista. No dia que tudo aconteceu, eu
cheguei em casa do trabalho, era meia noite e pouco, a gente começou a
discutir, ela estava dando ‘mama’ para o meu filho (filho desse novo
relacionamento), ele tinha 2 meses, ela ficou falando as coisas para mim, eu
falei que iria embora e ela pegou e falou assim: “vou arrumar outro mesmo,
vou dar pra outro mesmo, seu corno”. Nessa hora, eu não sei o que
aconteceu comigo, eu voltei e dei um soco nela, o queixo dela encostou na
testinha do bebê e afundou. Eu fiquei sem saber o que fazer, peguei e fui
para casa de uns amigos, na verdade eu queria até tirar minha vida, porque
eu estava acreditando no que eu tinha feito, eu tinha machucado o meu
filho. Hoje eu enxergo que foi o que ela falou, eu não traí ela, eu nunca
esperei escutar aquilo dela, eu não sei se foi isso que motivou, mas não
justifica o que eu fiz. Depois disso, ela não quis largar de mim, me
desculpou e voltamos. Não aconteceu nada com o meu filho, não teve que
fazer cirurgia e nem teve sequela, mas como foi uma agressão e envolveu
uma criança indefesa, o hospital comunicou algum órgão público e eles
tiraram o meu filho de mim e dela. Mandaram ele para uma família
acolhedora, ficou um mês e 20 dias nessa família. Esse foi o pior momento
da minha vida; eu tenho 6 filhos e nunca fiz isso, sei que não foi correto,
mas ela mesmo fala que causou isso, porque ela não deveria ter falado que
iria me trair. Depois disso, eu já bebia, ficou pior, porque comecei a beber
todos os dias até eu cair. Devolveram o meu filho e nunca mais teve uma
briga, eu parei de beber porque fiquei com medo disso acontecer de novo,
porque aconteceu isso e eu estava consciente, imagina se eu estivesse
bêbado, ou drogado, teria tomado uma proporção muito pior. Eu nunca tinha
parado para falar sobre isso, não me sentia à vontade em me expor, eu
tinha vergonha; não tem como eu apagar o que eu fiz, mas eu sei que eu
posso mudar o meu jeito, minha forma de pensar, de agir. Eu estou
buscando ajuda para isso acontecer. Alivia falar e, além disso, ajuda outros
caras, para não fazer nada, porque não é legal. Aos poucos eu estou
entendendo, que foi ela que me feriu, eu sou homem, tenho orgulho, eu não
queria escutar aquilo, eu não sabia que ela poderia me ferir sem colocar a
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mão em mim. Se ela falar aquilo novamente pode acontecer de novo, então
nós aprendemos, não vamos falar isso para ninguém. Jamais foi a minha
intenção fazer aquilo, por isso que eu estou procurando ajuda. As pessoas
falam que é uma doença, eu acho que não é doença (cometer violência), na
hora ali é falta de controle. Acho que a maioria das mulheres apanham por
ciúmes ou pelo cara achar que ela está traindo; isso é o que mais motiva e
leva os caras a matar a mulher. Eu sempre fui assim de falar para ela: "olha,
você pode fazer qualquer coisa pra mim, mas não me trai, porque esse seria
o único jeito de eu ter coragem de por a mão em você". Eu falava para ela
assim e eu acabei pondo a mão nela por outro motivo. Hoje, se ela me trair,
eu acho que não ponho a mão nela, eu pego minhas coisas e vou embora,
mas eu conto para família inteira dela. Agora, eu não sei se pegar no ato (da
traição), não sei minha reação. Tem muito nego que não é doente, o cara é
surtado mesmo, o cara tem ciúmes, mas eu acho que os caras que é desse
jeito... Eu vejo muita coisa. Esses dias o homem espancou a mulher com fio
e a criança também, por causa do ciúme; eu jamais teria coragem de fazer
isso. Às vezes é o cara que trai a mulher, e a mulher não traiu, mas ele fica
com aquilo, porque ele fez ela também vai fazer. Aí eles prendem a mulher,
não deixa ela sair com qualquer roupa e nem de casa. Eu nunca fiz isso
com ela; ela pode se vestir da forma como ela quiser, ela pode fazer o que
ela quiser, eu nunca falei nada referente a isso. No meu caso foi uma
questão de orgulho ferido. Ela me chamou de corno na minha cara e falou
que iria arrumar outro, acabei explodindo, foi coisa de momento, poderia ter
evitado, mas aconteceu; às vezes uma coisa acontece para você enxergar e
compreender. Se eu falar que minha vida melhorou, que não tem briga, é
mentira, eu sou um ser humano e ela também. Nós discutimos ao ponto de
um xingar o outro, mas é só isso, eu não deixo ir além disso, eu evito.

 AMBRÓSIO
Ambrósio tem 45 anos, completou o ensino superior e reside em
Campinas/SP. A OSC SOS AMF o indicou para entrevista, pois estava em
acompanhamento psicológico voluntário. A entrevista ocorreu em um espaço
público, na praça da cidade, presencialmente. No decorrer da conversa informou que
responde por ameaça e tentativa de homicídio.

Minha infância, não foi muito boa; meus pais brigavam e nessa época teve
uma separação e fomos morar na casa da minha avó. Eu fui o cara que
cuidava dos meus irmãos, para minha mãe trabalhar na colheita de café.
Passado um tempo, eles voltaram, meu pai bebia, saía com outras
mulheres, brigava e tinha muitos ciúmes da minha mãe, sempre achava que
ela estava traindo ele. Sofremos muito, e cresci no meio disso; eu fui o
primeiro que o enfrentou, ele bateu na minha mãe e eu a defendi, apanhei
dele e depois eu saí de casa. Ele continuou brigando e até pegou uma faca
para agredir ela e os meus irmãos. Depois ele teve um derrame e percebeu
que ninguém mais o respeitava como pai, e decidiu sair de casa. Logo
conheci a mulher dos meus filhos; não casamos, mas tivemos três filhos.
Antes de a minha filha nascer, a mãe dela me traiu e como gostava dela,
acabamos ficando juntos, mas acabei perdendo meu respeito por ela. Nessa
época eu morava com minha sogra e ela ficava mentindo para os meus
filhos, dizendo que eu estava traindo minha mulher; sabe, eu deixei de ser
fiel por causa dela, já que eu tinha sido traído e ela me acusava de traição,
eu traí. Conheci outra mulher, a que estou até hoje; nós ficamos juntos,
mesmo eu sendo casado. Quando meu segundo filho nasceu nos
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afastamos, e no terceiro ela me abandonou. Anos depois nos encontramos,


eu já tinha me separado e logo fomos morar juntos. Nós saíamos e eu
bebia, cheguei a usar drogas, cocaína, e nós dois não se respeitava;
brigamos e separamos várias vezes. Saímos juntos de novo, nisso ela abriu
o celular na minha frente, querendo mostrar alguma coisa, eu peguei o
celular dela e li as mensagens, os caras falando queria transar com ela.
Começamos a brigar, falei para ela que eu tinha me arrependido e queria
voltar. Nisso eu fui falar com o cara que ela estava saindo, fiz besteira, devia
não ter feito; o cara falou que não saiu com ela, mas eu não acreditei,
mandei a minha sobrinha olhar eles e a minha sobrinha viu ela com o cara.
Fui tirar satisfação e percebi que não era o mesmo que eu tinha falado, era
outro. Nesse dia não sei o pânico que o cara deu nela e no outro dia ela fez
medida protetiva contra mim, falou que eu queria matar ela e o cara; eu não
ameacei o cara. Quando eu vi o boletim de ocorrência eu fiquei até para
baixo, porque eu não esperava que ela fizesse um BO. Eu posso ter falado
tudo aquilo, mas nunca falei na maldade. Passado uma semana ela ficou
ligando para mim, chorando, arrependida, e nós voltamos. Eu gosto dela. As
pessoas falavam que eu tinha um sentimento de posse, mas não é verdade.
Nós brigamos e eu joguei meu tape na cara dela, ela foi e fez outro BO, mas
eu deveria ter ido fazer um BO também, porque ela me agrediu com
palavras; o homem erra, mas ele também é agredido, têm homens que não
estudam e se sentem envergonhado de ir na delegacia, porque não somos
ouvidos, e têm situações que a mulher força você encostar a mão nela;
ninguém aguenta elas falando. No primeiro (BO) eu havia feito noitada, não
dormi em casa, ela começou a me dar chutes e eu revidei com força; ela
ficou marcada, eu não fiquei marcado; ela fez esse BO, ela poderia ter
ficado quieta, eu podia ter me controlado; eu apanhei muito na cara, essas
coisas a sociedade não enxerga, não que eu fui santo, mas fui agredido e a
agressão foi para me defender e ninguém me ouviu. Pior foi ela ter colocado
no facebook que era feminicida, eu tinha essas coisinhas babacas de
ciúmes, mas não mataria. O importante para mim seria eu me amar e faz
tempo que eu estou lutando para isso. Isso evitaria não passar mais por
essas situações. No início da relação ela sabia que eu tinha um abismo, que
era o álcool, um abismo chama o outro; minha relação foi tumultuosa e
turbulenta, por causa do meu envolvimento com álcool e com as drogas.
Além disso, tinha uma competição entre eu e ela. Ela só pensava nela e eu
em mim, eu era totalmente dependente dela, eu peguei ela para ser minha
mãe e cheguei a acreditar nisso. Eu não sou mais dependente dela; hoje eu
trabalho, sei colocar minha roupa na máquina de lavar. Eu estava assistindo
televisão e saiu no noticiário que um cara tinha matado uma estudante aqui
no bairro, porque ele achou que ela estava traindo. Eu fiz um comentário
assim: “que cara babaca, porque ele vai atirar na mulher e depois se
matar?”. Eu estava me sentindo mal porque estava passando pela mesma
situação de traição. Era só ele ter largado dela e ter pego outra mulher,
pegaria poucos anos de cadeia. Falei essa merda eu fui muito julgado por
isso, fui condenado como feminicida. Não sou feminicida; só acho que ele
deveria pagar sofrendo e não se matando.

 JOÃO
Com 49 anos e pós-graduado em finanças e gestão, João reside em
Campinas/SP, e também foi indicado pela OSC SOS AMF, onde buscou
atendimento psicológico, desligando-se logo nos primeiros encontros. A
entrevista ocorreu pelo WhatsApp, por desejo do sujeito.
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Eu sou de uma família de cinco irmãos, tivemos vários problemas na


infância. Meu pai bebia e minha mãe teve muitos momentos difíceis para
nos criar. Tivemos algumas sequelas, mas já superamos. Hoje nós somos
todos formados, com os nossos esforços e somente depois de adulto,
porque nossos pais não tinham recursos, mas sobrevivemos. Hoje estou em
um relacionamento há trinta anos, tenho um filho de 17 anos; como todo
casamento, tem os seus momentos conturbados. A minha companheira é
uma menina explosiva ao excesso. Às vezes não agimos com a razão,
agimos com a emoção, e a emoção deixa você em uma temperatura alta, ao
ponto de você não saber o que você está fazendo. Perdemos totalmente o
controle; depois, quando cai a ficha, “porque que eu fiz isso?”. Bate um
arrependimento. Mas são vários fatores, a influência do desemprego, da
baixa da autoestima e de várias coisas. Dentro de casa não temos instrução
para mensurar esse tipo de problema, então qualquer assunto que não
temos conhecimento e disposição para cuidar gera conflito; são pequenas
coisas, e foi isso que aconteceu. Os conflitos viram violências, isso é muito
ruim. Eu fui militar e tive uma disciplina muito conservadora; eu vivi um
momento que eu falei assim: "não, preciso falar com alguém sobre isso, os
conflitos e as violências”. Busquei ajuda com profissionais para entender. Eu
não tenho amigos para desabafar, preciso conversar com profissionais para
me orientar a agir da maneira correta. Minha companheira é uma menina
muito vaidosa, desde quando eu conheci. Ela era uma pessoa gordinha,
tomava remédios para emagrecer e até fez bariátrica; depois fez plásticas e
as vaidades só aumentaram. Ela posta fotos nas redes sociais e faz lives o
tempo todo, e não fica com a família; esse distanciamento da casa, dos
procedimentos domésticos e o abandono, isso me pegou e isso me fez
buscar orientação. Penso que a violência é desnecessária, uma boa
conversa dura em uma temperatura alta pode haver, mas quando se parte
para o lado agressivo de um empurrão, eu acho desnecessário. Quando há
uma tentativa de ambos os lados, de agressão, é um sinal amarelo, porque
acontece uma vez, a segunda, a terceira, e vai aumentando; quando isso
acontece é melhor cessar, cada um para um lado, cada um vai cuidar da
sua vida. Eu acho que não temos preparo, é um despreparo em lidar com
algumas situações de conflitos.

 ANTÔNIO
Antônio tem 33 anos, completou o ensino fundamental, trabalha como
motorista de Uber e reside na cidade de São Paulo. A entrevista foi realizada
pessoalmente, no espaço da Defensoria Pública, no dia do julgamento e da
condenação pelos crimes de violência física e psicológica contra sua companheira.
Esse sujeito não passou por nenhum atendimento grupal, social ou psicológico.

Fui uma pessoa bem-educada pelo pai e pela mãe, nunca levei um tapa do
meu pai, da minha mãe não posso falar, porque mãe é mãe. Minha mãe e
meu pai nunca brigaram dentro de casa; eu não tive irmão pelo motivo de
eu ser uma pessoa agressiva, mas brinquei bastante, minha infância foi de
uma criança normal. Quando jovem, conheci ela e logo fomos morar juntos,
passamos seis anos juntos. Nos últimos seis meses, as condições
financeiras pioraram; eu era taxista e, com a crise, estou fazendo Uber, mas
estava difícil financeiramente. Resolvemos cada um morar em uma casa,
“eu volto para casa da minha mãe e você volta pra casa da sua”; fomos
morar separados. Com o tempo a mãe dela começou a encher as
paciências dela, pediu para ela ajudar dentro de casa, porque tinha nossa
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filha. Eu ajudava no que eu podia. Ela pediu para eu ajudá-la a arrumar um


emprego, eu ajudei. O gerente da lanchonete, meu amigo, arrumou um
emprego para ela; eu levava e buscava, como um marido. Deixava ela em
casa, em segurança, e ela estava me traindo no serviço, e eu perdoei. O
gerente ficou sabendo e despediu, ela ficou um tempo sem falar comigo; ela
achou que eu que o mandei demiti-la. Passou um tempo, ela voltou a falar
comigo, pediu novamente para ajudar ela a arrumar um emprego. Consegui
um emprego para ela em uma padaria. Sempre fui um homem presente na
vida dela, até levei ela para abrir conta, por mais que a gente estava
morando separados, estávamos juntos. Menos de três meses, ela me traiu
novamente dentro da padaria, eu descobri. Eu levava ela para o serviço de
manhã, buscava a tarde, e depois eu ia trabalhar. Tudo começou quando
ela começou a querer ir de ônibus e brigar comigo; estranho a mulher ter
uma comodidade de ir sentada, dormindo, brigar para ir de ônibus.
Combinei com ela que não iria levá-la, mas fui até estação de trem para ver
como ela iria. Ela chegou lá e entrou no carro do cara; foi a hora que eu
peguei eles dois juntos. Eu não aguentei, xinguei ela, ele saiu correndo
achando que eu ia bater nele, mas não, ela veio pra cima de mim com o
celular e batendo o celular na minha cara, e eu segurei ela pelo pescoço,
mas foi isso, não foi nada de tirar sangue, não. Imagina: eu fui atrás de
emprego para ela, fiz tudo, e ela cometeu novamente o ato de traição?
Qualquer homem em sã consciência, no calor da emoção, acaba fazendo
besteira, como também tem muitos que não ouviram a história e julga sem
saber. Eu tenho uma filha com ela, foram seis anos juntos, fomos morar só
eu, ela e os colchões, conseguimos tudo trabalhando; éramos duas pessoas
unidas até o momento em que ela começou a virar a cabeça contra mim e
abandonou a família. Hoje ela largou a filha dela comigo e foi morar com o
marido dela no morro. Na verdade, não foi nem motivo de eu ser agressivo,
porque ela me traiu duas vezes. Hoje eu não gosto dela, mas no dia que
aconteceu os fatos, sim. Eu perdoei uma vez e na segunda vez eu não
aguentei, só isso. Eu não agredi ela. Mentiras e traição, o que mais me
motivou, e também ela ter vindo para cima de mim. Não foi o caso de ter
pego os dois juntos, até porque o rapaz falou que era casado e saiu de
perto, deixou ela lá. Eu queria agredir somente com palavras, porque, na
verdade, ela está errada. Se ela quisesse ficar com alguém, ela terminasse,
não ficasse me iludindo, ou ficasse fazendo com que eu amasse ela. É difícil
para qualquer ser humano amar e não ser correspondido. Você não quer
ser correspondido, sai de perto, vai viver sua vida, cada um vive a sua, não
fica traindo. É muito ruim falar sobre isso, porque eu me arrependo de tudo,
poderia muito bem ter virado as costas, saído andar, saído de lá e deixar
eles dois juntos. Não era isso que ela queria para vida dela? Acabar com a
família dela para ter um relacionamento passageiro? Porque ele era casado
e ela descobriu que ele era casado, então ela não se aprofundou na história
dele para depois querer ter algo com ele. Ela foi errada, eu fui errado e me
sinto culpado. Mas nada justifica o que eu fiz pra ela e nem o que ela fez
para mim, acabar com a família por causa de uma aventura, isso é ruim.
Hoje eu me arrependo, de verdade, porque ainda gosto dela, ela é mãe da
minha filha, ela é uma pessoa boa, não é uma pessoa ruim. Mas fazer o
que? Aconteceu. Eu deveria ter me segurado.

 AGOSTINHO
Com 30 anos, cursou o ensino fundamental, nasceu e viveu na Bolívia, faz 10
anos que chegou ao Brasil, atualmente reside na cidade de São Paulo. A entrevista
foi realizada pessoalmente no espaço da Defensoria Pública, no dia do julgamento e
da condenação pelos crimes de ameaça e tentativa de homicídio, cometidos contra
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sua esposa. Esse sujeito não passou por nenhum atendimento grupal, social ou
psicológico.
Meus pais nunca se separaram, vivem bem na Bolívia; tenho 8 irmãos.
Agora, a família dela, os pais são separados e os irmãos são divorciados.
Eu acho que isso é coisa de família, porque para mim casamento é para
sempre. Hoje é impossível ter família; a esposa tem igualdade, tem que
trabalhar e cuidar dos filhos, essa é sua obrigação. Faz 10 anos que
cheguei ao Brasil, para dar uma vida melhor para meus filhos. Faz um
tempo, consegui abrir um espaço para costurar e morar; eu trabalhava o
tempo todo e ela cuidava dos filhos. Para ela não estava bom morar na
fábrica, então mudamos e fomos pagar aluguel, e ela foi trabalhar comigo
na fábrica. O negócio ficou ruim, pensei que fossemos ganhar dinheiro e
não ganhamos, perdi tudo. Começamos a brigar, porque estava faltando as
coisas dentro de casa. Nesse momento eu peguei o celular dela e vi as
mensagens e as fotos nuas, enviadas para homens, e tinha conversas no
celular assim: “o que podemos fazer na noite?”. Ela saía com eles, bebia e
brigava. Fiquei com raiva e ciúmes. Ela tem 3 filhos, além disso, não estava
fazendo nada dentro de casa. Eu nunca bati nela, só a peguei forte pelos
braços e dei 2 tapas; eu nunca bati nela bêbado, eu não bebo. Ela só ficava
em casa, eu não quero uma esposa assim; ela tinha tudo, tinha uma vida
boa, eu trabalhava muito para ela ficar em casa. Ela não cuidava da casa,
fazia dois meses que estávamos brigando por causa disso; ela não fazia
minha marmita, ela não acordava mais cedo para arrumar o café para mim,
não lavava as minhas roupas, a casa estava bagunçada, essa é obrigação
dela. Eu não quero uma esposa assim, ela não se arrumava para mim;
agora, para os homens ela se arrumava, passava batom e saía bonita para
os outros. Eu via ela com outros homens, e minha casa abandonada e meus
filhos também. Foi só isso que aconteceu, ela saiu de casa com os meus
filhos e eu não posso vê-los. Eu perdi tudo.

 ANSELMO
Este entrevistado tem 30 anos e residia em São Paulo, mas mudou-se para
outro Estado. A entrevista ocorreu pelo WhatsApp e só foi possível por intermédio do
Projeto Íntegra, que o atendia juridicamente. O sujeito não passou por nenhum
atendimento grupal, social ou psicológico.

A relação com meus pais graças a Deus foi boa. Somos em 7 irmãos, duas
falecidas. Eu não tive infância, porque comecei a trabalhar aos 11 anos de
idade na carvoaria. Meus pais são vivos e estou na casa deles, nunca tive
problema nenhum com ninguém da família. Fui casado, não por muito
tempo, graças ao mesmo motivo que esse acabou: ciúmes. A pessoa via
coisa onde não existia; ninguém aguenta ser julgado por uma coisa que
você não cometeu e nem está cometendo. Talvez quem esteja do outro lado
me ouvindo vai falar que é para me defender, mas eu não consigo mentir.
Meus relacionamentos sempre foram assim: a pessoa quer me ter como ela
quer, não posso conversar com ninguém e sou a pior pessoa do mundo. A
gota d’água não foi uma vez, foi uma somatória. Eu aguentei tantas coisas
que me perguntava: “como eu aguentava viver assim?”. Cansei de falar que
não aguentaria, chegou num momento que eu não vi nada, não enxerguei
nada, cheguei num limite de humilhação, provocação, calúnia e coisa que
eu nem sei explicar. As pessoas falavam porque eu não saí antes de tudo
acontecer, mas o arrependimento só vem depois. Eu acabei perdendo tudo,
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perdendo a razão, perdendo minha liberdade, perdendo amizades,


perdendo meu lar, e o mais importante, ficando lOSCe da minha filha. Tem
aquele sentimento de arrependimento, coisa de um segundo que poderia ter
sido evitado para não estar nessa situação. Não tinha conversa, quando eu
ia conversar, falar a verdade, ela partia para o lado de ofensa, vinha com
ofensas pessoais e familiares, isso era um dos motivos; infelizmente, parece
que eu entrei na provocação. Ela começou a levar as coisas na delegacia,
coisa que nunca aconteceram; eu não aguentava mais, ficava imaginando o
que fiz pra merecer tudo isso. Agora para eu agredir psicologicamente uma
pessoa, colocar para baixo, isso nunca fiz, nunca foi meu forte, graças a
Deus. O irmão dela me falou: “cara, eu sei o que você está passando,
porque aquela ali (irmã dele) é a ovelha negra da família, sempre trouxe
problema para família”, ele falou com essas palavras. Ela não foi criada pela
família dela, pra mim ela confessou que já brigou com umas 3 tias dela e
que jogou uma tia no chão e bateu na cara dela. Ela queria ficar com a casa
e por isso fez vários BO contra mim. Teve um dia que eu e o meu vizinho
pegamos ela e levamos para hospital, porque ela tinha várias escoriações
pelo corpo, que ela fez. Depois ela fez um BO dizendo que fui eu que a
machuquei; não fui eu e o meu vizinho está de prova. Eu não aguentei mais,
eu machuquei ela, eu não lembro de nada; eu peguei a faca e agredi ela,
não lembro aonde eu agredi ela, sei que foram várias vezes. Eu aguentei
muito até esse momento, não sei por que eu fiz isso, infelizmente é a
realidade. Falar sobre isso é como tentar explicar para mim mesmo o que
eu fiz. Não tenho culpa sozinho; eu deveria ter me expressado, ter falado o
que eu estava vivendo antes de tudo. Se puxar meu histórico, de qualquer
lugar e de qualquer situação, você vai ver que não tenho histórico de má
convivência e nem de briga com ninguém, nem com a família, parente,
amigo, graças a Deus. Preciso desabafar, porque alguém que não me
conhecia antes pode olhar o que aconteceu e me culpar sozinho; não é só
minha culpa. Talvez você não acredite ou ache que estou falando somente
para me defender, para jogar a culpa nela, essa não é a verdade. Eu sei
pelo que eu tenho culpa, eu sei o que eu fiz, sou culpado sim. Falar sobre
isso me deixa mais aliviado, mas é difícil de explicar como me senti,
principalmente para quem me conhece. Agora, pra quem não me conhece
eu sou um assassino, um psicopata a sangue frio. Só que não me vejo
assim, não me sinto assim, só quem já passou sabe o sentimento; eu estou
arrependido. Tem umas pessoas que nascem para fazer o mau e tem outras
que nascem para fazer o bem. Às vezes aquelas que a gente mais faz o
bem são as que vão nos machucar. Quando eu vejo esse tipo de
reportagem de violência contra a mulher, eu não tenho a mesma opinião
que tinha antes. Hoje, não que eu acho certo, mas eu não vou condenar,
julgar os homens como fazia antes, aquele merece isso, aquele aquilo, isso
não é uma coisa de se fazer, porque nunca se sabe o que se passa dentro
de quatro paredes com uma pessoa, ou até fora de quatro paredes. Cada
um tem uma forma diferente de pensar e uma forma diferente de agir.

 GREGÓRIO
Este entrevistado tem 30 anos, completou o ensino superior e reside em
Santos/SP. Participou do grupo de reflexão para homens autores de violência, por
determinação judicial, na OSC Coletivo Feminista, e durante o grupo foi convidado
pelo técnico a participar da pesquisa pelo WhatsApp.

A minha infância foi normal, fui bem-criado, meus pais sempre trabalharam
e sempre fomos da classe média, não tenho do que reclamar. Me apaixonei
por ela na faculdade, namoramos 10 meses e separamos. Foi muito difícil,
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era muito apaixonado. Depois de um ano a gente voltou a se relacionar; na


época o meu pai estava com câncer e quando ela descobriu se afastou de
mim, quando ele morreu ela voltou. Percebi que quando ela não tinha
atenção dos outros ela procurava um ex-namorado e ela estava fazendo
isso comigo. Por causa disso a gente teve uma discussão, eu tentei ir
embora da casa dela, mas ela não deixou. Eu fui reativo, reagi às
agressões, tanto verbais quanto físicas, que ela estava fazendo na hora. Ela
era uma pessoa egoísta e eu também. Ela era uma feminista extremista; por
um lado isso foi positivo, ela me mostrou várias questões sobre o machismo
que não era claro para mim, embora a forma que ela propunha era meio
violenta, tanto o diálogo como a relação. Era uma guerra e eu me sentia um
pouco inimigo dela. Tenho um posicionamento igualitário, não consigo ver
elementos de machismo ou de misoginia em mim. Eu vi que eu estava
passando por um momento complicado e uma pessoa me levou ao extremo,
foi um momento de destempero, mesmo assim eu questiono a parte da
agressão, eu apenas estava me defendendo, eu usei mais da minha força,
Não estava tão equilibrado, e em qualquer outro momento da minha vida eu
não teria feito, mas qualquer pessoa que estivesse, naquele momento,
ouvindo o que foi dito, recebendo atos físicos, teria a mesma reação de
proteção. Pior foi ela se posicionar na mídia social, e isso me prejudicou
bastante, profissionalmente e socialmente. Eu não tenho nenhum histórico
de violência, muito pelo contrário, se você pegar todas as mulheres que se
envolveram comigo elas vão dizer que é um absurdo essa situação, mas
infelizmente aconteceu. O pior disso tudo foi ninguém me ouvir, fui
totalmente excluído, ninguém quer ouvir o cara. A própria Lei Maria da
Penha como é construída deixa o cara sozinho, sem nenhum auxílio, ele é
rotulado, julgado, excluído e recebe a sentença, independente se você foi
ouvido ou não sobre a sua parte na história. Nunca é fácil contar essa
história, porque ela remete a muita coisa, muita particularidade,
principalmente em relação à morte do meu pai e tudo que aconteceu depois,
a repercussão antes, durante e depois, é uma faca de dois gumes, meio
catártico e um pouco de liberação, é bom falar, é bom uma autorreflexão
24
para entender algumas coisas, acho necessário. O curso foi muito
importante, porque não focava somente nessa questão da violência; partia
do machismo, talvez o machismo seja o problema principal em muitos dos
casos, mas também não excluía outras coisas, como outros sentimentos e
ações que nos rodeiam, que precisam ser trabalhadas. Eu sempre acho que
a exclusão é o que mais acontece, é como se tivéssemos lepra e
precisássemos ser excluídos. Passar pelo grupo foi importante, porque tem
um movimento natural do homem e há um lugar meio misógino. Depois da
repercussão social que aconteceu comigo, eu me peguei tendo
pensamentos misóginos; não pensamentos práticos, mas do tipo: tratar as
mulheres como objeto, desqualificar a luta feminista e a luta pela igualdade,
isso era um processo natural de raiva e rancor, nisso o grupo me ajudou. Eu
não sou essa pessoa, eu apenas estou machucado e chateado, e ninguém
entende. Os homens precisam de um espaço onde possam falar, homem
com homem, falar sobre suas inseguranças, medos e das coisas que levam
o homem a tomar atitudes como essa, de violência. Então, não é só o
machismo, porque só isso fica raso e não resolve o problema, mas é o todo,
tudo que nos relaciona. Eu acho que é preciso ouvir o outro lado da história,
do homem, ninguém quer ouvir o cara, ninguém quer ouvir a versão do cara.
Há um lugar onde a violência é levada por um caso de misoginia e um caso
de machismo; eu discordo um pouco, porque, por exemplo, no meu caso em
específico, eu não me considero um feminista, porque eu acho que isso é
uma ideologia; eu ainda tenho minhas questões, e são várias vertentes, e
eu entendo que ainda existem muitas vertentes, então é difícil. Eu sou a
favor da igualdade.

24
O entrevistado remete-se ao grupo de reflexão para homens autores de violência, que participou na
OSC Coletivo Feminista, Sexualidade e Saúde, em São Paulo, SP.
69

 CIRILO
Com 44 anos, completou o ensino médio e reside em Campinas/SP.
Tínhamos conhecimento anterior desse sujeito, que aceitou nosso convite para
participar da pesquisa e marcou a entrevista pessoalmente em um local público.
Nunca passou por nenhum atendimento grupal, social, psicológico ou jurídico
especializado.

Minha infância foi muito legal. Morávamos no interior, na roça, e na roça


desde pequeno a gente já começa a ajudar os pais. Acho que tenho muito
dos meus pais, e essa convivência foi legal com os pais. Hoje a gente vê
muitos casos, que os pais nem podem reclamar com os filhos, que eles já
falam que vão ligar para a polícia. Os pais ficam muitos sigilosos, por conta
das próprias leis. Antigamente os pais corrigiam os filhos, dava uma surra
quando precisava e ninguém ficou diferente; pelo contrário, os pais
corrigiam da maneira correta. Hoje os pais que fizerem isso vão até presos.
Graças a Deus, meus pais vivem bem. Eu casei e tenho 4 filhos, vivemos
juntos há 16 anos, mas fazia tempo que a convivência com minha esposa
estava ruim, chegando ao ponto de estarmos separados dentro de casa.
Decidimos separar, só que ela queria que eu pagasse minhas coisas e
saísse de casa; não vou fazer isso, porque do mesmo jeito que a gente
casou, vamos separar na justiça. Ela queria me tirar de dentro de casa de
qualquer forma, eu sabendo das consequências, inclusive da Lei Maria da
Penha, eu evitava o máximo discutir com ela. Mas ela é uma pessoa muito
agressiva. O objetivo dela sempre foi conquistar a casa; daí houve um dia
que tivemos uma discussão, eu iria sair com a minha filha mais nova, ela
negou que a menina viesse comigo. Nesse dia houve uma quase disputa
corporal, porque a menina queria vir e eu queria trazer, e ela não queria
deixar a menina. Na disputa eu puxei a menina, ela puxou também, não
teve luta corporal, não teve nada disso. Passado alguns dias, chegou o
promotor de justiça em casa, com uma carta para eu sair de casa, e deu
alguns minutos para eu retirar minhas coisas e sair. Eu questionei o motivo,
ele disse que tinha um boletim da Lei Maria da Penha, por agressão física
contra a esposa e violência contra os filhos. Acho legal que exista a Lei
Maria da Penha para proteger as mulheres que realmente sofrem a
violência, mas não faz um exame de corpo delito, não pede uma
testemunha dos fatos, simplesmente ela foi lá, fez o BO e me tirou de casa.
Saí de casa e entrei com uma ação para provar que não houve essa
situação; acho complicada essa situação sobre a Lei Maria da Penha, que
não pede provas. Têm muitas mulheres que realmente sofrem violências,
mas tem homens que também sofrem violência das mulheres, mas que tem
vergonha de ir lá fazer o boletim de ocorrência. Ele sofre pressão
psicológica, ele sofre violências. Eu fui fazer um boletim de ocorrência
contra a minha esposa que me agrediu, o delegado tirou sarro da minha
cara: “o senhor está apanhando da mulher? O que é isso, homem apanhar
de mulher?”. A minha esposa pegou a faca para mim, colocou na minha
barriga e queria me furar, eu poderia ter botado fogo nela, mas meu Deus
do céu! Eu fico indignado porque não precisava me tirar de casa daquela
maneira covarde, através de uma mentira; ela aproveitou da situação e a Lei
Maria da Penha deu cobertura para a mentira. Hoje eu posso expor a minha
verdade, porque as pessoas passam por essas situações e não tem
oportunidade de falar, e às vezes eles não cometeram esse erro. Não sinto
pesar, eu pago pensão direitinho, tenho o direito de ficar com a minha filha
menor, porque os outros são maiores e não querem sair comigo. Mas a mãe
fica proibindo ela de sair comigo. Agora, se a guarda fosse minha e eu
proibisse, ela rapidamente faria alguma coisa contra mim. Tem essas
70

coisas, se a gente não tiver uma cabeça feita e não for positivo, acaba
fazendo besteira. Quando você me pergunta o que leva ao homem a
praticar a violência, há diversos motivos, eu acredito que há um descontrole.
Por exemplo, esse homem que colocou fogo na esposa e acabou morrendo
junto com ela, analisando essa pessoa, ela está muito distante de Deus. O
fato é que a pessoa desprovida de religião está sujeita a isso; ele perdeu a
cabeça. Porque, tipo assim, ele acha que não é filho de Deus, que aquilo
que ele está passando é o fim. Graças a Deus eu sou da igreja, e quando
uma pessoa tem uma religião, tem mais força e comunhão com Deus, ele
até pode passar por uma situação delicada e difícil, mas evita perder a
paciência e agredir a esposa.
71

Referências Bibliográficas do Capítulo III

BASTOS, Rodolpho Alexandre Santos Melo; NOGUEIRA, Joanna Ribeiro.


Estereótipos de gênero em contos de fada: uma abordagem histórico-pedagógica.
Revista Dimensões, v. 36, jan.-jun. 2016,p.12-30. Disponível em:
http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/ viewFile/13864/9817. Acesso em: 20
de mar. de 2020.

BUTLER, Judit. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução Renato Aguiar. 5. Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

SANTOS, Maria do Carmo G; Soares, GOMES, Amanda Teresinha. Era uma vez: os
contos de fadas e as relações de gênero na perspectiva das professoras. Revista
Debates Insubmissos, Caruaru, PE. Brasil, Ano 1, v.1, nº 3, set/dez. 2018.
Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/debatesinsubmissos/. Acesso em:
20 de mar. de 2020.
72

CAPÍTULO IV
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Formam-se a mente e o sentimento pelas


conversações; corrompem-se a mente e o
pensamento pelas conversações.
(BLAISE PASCAL)

Neste capítulo realizamos a análise e interpretação dos depoimentos a partir


das narrativas advindas do processo de entrevista, e da compreensão que fomos
construindo sobre o tema, especialmente sobre as dimensões subjetivas que
envolvem as experiências dos sujeitos. Dos estudos que realizamos sobre o tema e
de intensas leituras dos depoimentos, destacamos 4 tópicos que vão concentrar as
análises. São eles:

Violência cometida
Família
Motivos
Do outro lado da razão

Importante lembrar que o conteúdo analisado são versões dos sujeitos


autores da violência e podem não corresponder aos processos judiciais ou boletins
de ocorrência. Nosso propósito, como já indicamos, era ouvir o sujeito – homem que
cometeu atos de violência – em sua perspectiva social e humana, para além dos
rótulos herói e monstro, vítima e agressor, dominado e dominador.

 VIOLÊNCIAS COMETIDAS

Referem-se aos tipos de violências praticadas, bem como seus rebatimentos


na vida. Organizamos as violências cometidas por semelhanças e gravidade das
ações. O participante Inácio foi o único que, diretamente, declarou que, no ato de
violência, estava sob efeito de remédios controlados, drogas e álcool.
Não lembro qual foi o motivo, começamos uma discussão, eu a agredi,
coloquei fogo no colchão e nas roupas dela eu fui para cima dela com uma
faca, não para matar lá, mas para cortar o cabelo dela, daí ela foi se
defender e acabou machucando o braço, não foram só uma agressão física,
foram 2 anos de agressão psicológica. Agora quando eu estava com as
minhas droguinhas e a cachaça na cabeça eu era agressivo. (INÁCIO)
73

Percebemos, nesse relato, a gravidade da violência psicológica e física,


elevada até a tentativa de homicídio. Inácio foi preso em flagrante e respondeu
processo judicial; também participou do Grupo de Ressocialização para homens
autores de violência do Programa “Tempo de Despertar”. Hoje estão separados e
em um novo relacionamento conjugal.
A gente começou a discutir ela falou: “vou arrumar outro mesmo, vou dar
pra outro mesmo, seu corno” eu voltei e dei um soco nela e o seu queixo
encostou na testinha do bebê e afundou. Eu não acredito no que eu fiz e
fiquei com medo porque se eu tivesse bêbado ou tivesse drogado.
(FRANCISCO)

Francisco respondeu judicialmente ao processo, perdendo a guarda da


criança por dois meses. Fazia uso de substâncias psicoativas, mas declarou que na
hora da agressão não estava sob efeito de drogas ou álcool. Manteve
relacionamento durante e após o ocorrido, e seu filho retornou aos seus cuidados.
No período da coleta de dados (2019), encontrava-se em atendimento psicológico na
OSC SOS Ação Mulher e Família.
Começamos a brigar e ela fez medida protetiva contra mim, falando que eu
queria matar ela e o cara, eu posso ter falado tudo aquilo. Brigamos e eu
joguei meu tape na cara dela, ela começou a me dar chutes e eu revidei
com força, ela ficou marcada. Minha relação foi tumultuosa e turbulenta, por
causa do meu envolvimento com álcool e as com droga. (AMBRÓSIO)

Foram vários boletins de ocorrência de ameaças, agressão física, psicológica


e perseguição. Ambrósio não informou que respondeu ou responde judicialmente
pelos crimes. Atualmente, o casal mantém o relacionamento e ele estava em
acompanhamento psicológico na OSC SOS Ação Mulher e Família.
A gota d’água não foi uma vez foi uma somatória, eu aguentei tantas coisas,
eu machuquei ela, eu não lembro de nada, eu peguei a faca e agredi ela,
não lembro aonde eu agredi ela, sei que foram várias vezes. Agora para eu
agredir psicologicamente uma pessoa, colocar para baixo, isso nunca fiz.
(ANSELMO)

Anselmo responde por violências psicológica e física, elevadas à tentativa de


homicídio. Até o momento da entrevista (2019) não havia se apresentado à polícia e,
considerado “foragido”, estava recebendo orientação remotamente, pelo projeto
Íntegra.
(...) eu não aguentei, xinguei ela e veio pra cima de mim, com o celular e
batendo o celular na minha cara e eu segurei ela pelo pescoço, mas foi isso,
não foi nada de tirar sangue. Eu queria agredir somente com palavras,
porque na verdade ela está errada. (ANTÔNIO)
74

Antônio foi condenado pelo crime de atentado à vida e, até o final da


entrevista, não mantinha contato com a ex-companheira e sua filha. Antônio não
passou por nenhum acompanhamento psicossocial ou grupo de reflexão para
autores de violência, e recebeu somente orientação jurídica ofertado pela Defensoria
Pública do Estado de São Paulo. O encontro para a entrevista aconteceu no espaço
do Fórum da Barra Funda em São Paulo, logo após a audiência de condenação.
(...) eu peguei o celular dela e vi as mensagens e as fotos nuas, enviadas
para homens e as conversas no celular, ela saia com outros homens. Eu
nunca bati nela, só a peguei forte pelos braços e dei dois tapas, eu nunca
bati nela bêbado. (AGOSTINHO)

Esse sujeito respondeu criminalmente e foi condenado por violência física e


psicológica. Não vinha obtendo informações sobre sua ex-companheira e seus
filhos; não passou por nenhum acompanhamento psicossocial ou grupo de reflexão;
recebeu somente orientação jurídica pela Defensoria Pública do Estado de São
Paulo e no momento da entrevista estava saindo da audiência de condenação.
Quando ela não tinha atenção dos outros homens ela procurava um ex
namorado e ela estava fazendo isso comigo, por causa disso, gente teve
uma discussão, eu fui reativo, reagi às agressões, tanto verbais, quanto
físicas que ela estava fazendo na hora. (GREGÓRIO)

Respondeu criminalmente pelos crimes de injúria, difamação e agressão


física, todos cometidos contra sua namorada, o que, pela gravidade dos atos,
resultou em medida protetiva. Gregório participou do Grupo de Reflexão para
homens autores de violência na OSC Coletivo Feminista.
Ela queria me tirar de dentro de casa de qualquer forma, eu sabia das
consequências, daí houve um dia que tivemos uma discussão, eu iria sair
com a minha filha mais nova, ela negou que a menina viesse comigo, nesse
dia houve uma quase disputa corporal. Na disputa eu puxei a menina, ela
puxou também, não teve luta corporal, não teve nada disso. (CIRILO)

Cirilo nega a violência física e psicológica, entretanto, responde criminalmente


pelos atos, e sua ex-esposa tem medida protetiva contra ele. No momento da
entrevista, tramitava o pedido de divórcio em fase final. Cirilo não estava sendo
acompanhado por nenhum serviço público; seu advogado é particular.
Às vezes não agimos com a razão, agimos com a emoção e, a emoção
deixa você em uma temperatura alta ao ponto de você não saber o que
você está fazendo, uma boa conversa dura em uma temperatura alta é
necessária. (JOÃO)

João foi o único sujeito que não mencionou abertamente a violência cometida,
entretanto, percebemos que as violências psicológica e física eram presentes em
75

suas falas. O casal permanece junto; passou por atendimento psicológico, mas
abandonou o acompanhamento.
É possível perceber que, de modo geral, todos têm consciência das ações
violentas que praticaram, mas demonstram uma visão simplista e naturalizada de
seus atos, às vezes minimizando seus efeitos. A condição “homem de verdade”,
como cultura de imposição do poder, e o “desconto” pelos próprios fracassos
aparecem como estigma causado pela fragilidade de recursos para conter e lidar
com suas emoções e sentimentos.

 FAMÍLIA

Nessa categoria as análises são pautadas na construção do conceito de


família, no patriarcado presente no eixo das microrrelações, na cultura machista, as
violências sofridas, (re)produção e seus impactos nos relacionamentos familiares.
A família é a primeira instituição de socialização humana, que tem em suas
bases históricas a manutenção do poder, sobre as microrrelações (relações de
afeto) e sobre as macrorrelações (Estado, Territórios, entre outros). A família, como
instituição social, constitui-se eixo de organização social, religiosa, econômica,
política e cultural civilizatória. Ao longo do tempo, foi se desenhando e servindo aos
interesses de cada época, como núcleo de difusão de crenças religiosas, de
circulação patrimonial, de mão de obra, divisão sexual do trabalho, legitimação e
propagação do poder. Nos relatos, a referência da família como “tradicional” e
“nuclear” são recorrentes, inclusive como modelo “perfeito” de relação, sendo esse o
“ideal” construído pelos séculos.
O “pater famílias”, que confere ao homem o poder sobre sua casa, sua
esposa e seus filhos, é um conceito vem sendo difundido há séculos, como célula
única de família tradicional.
Minha família é tradicional, minha mãe, não sai de casa para nada, mal vai
ao mercado e na feira, ela é do lar. Meu pai sempre foi o provedor da casa,
essa era minha referência de família. (INÁCIO)

Inácio e Francisco destacam o exemplo obtido em casa de homem-


dominador, macho, viril e provedor; e a mulher submissa às tarefas domésticas e de
cuidado. Percebemos essa reprodução nas falas:
Hoje é impossível ter família, a esposa tem igualdade, tem que trabalhar e
cuidar dos filhos, essa é sua obrigação. (AGOSTINHO)
76

Ela posta fotos nas redes sociais e faz lives, o tempo todo, e não fica com a
família, esse distanciamento da casa, dos procedimentos domésticos e o
abandono. (JOÃO)

Nesse modelo de família, o poder conferido ao homem dá-lhe o “direito” de


fazer tudo o que lhe convém, desde que cumpra seu papel de provedor da casa.

Apesar do meu uso constante de crack, eu nunca deixava faltar nada dentro
de casa, achava que eu sendo o provedor do lar eu tinha o direito de usar
drogas. (INÁCIO)

Desde 16 anos eu fumo cigarro e bebo, aos 19 anos eu comecei usar


drogas, cocaína, só que era normal, porque eu não deixava de trabalhar,
pagava o aluguel, fazia as coisas em casa, nada faltava em casa.
(FRANCISCO)

Os relatos reforçam os argumentos produzidos e legitimados pelo patriarcado,


garantindo a posição dominante do homem e a subordinação da mulher como ideal
hegemônico de masculinidade. (CONNELL, 1995)

(...) ela não foi criada pela família dela. (ANSELMO)

Agora a família dela os pais são separados e os irmãos são divorciados, eu


acho que isso e coisa de família. (AGOSTINHO)

As falas evidenciam o poder e a presença, ainda, da instituição familiar


patriarcal, que justifica o uso da violência como forma de correção e manutenção
desse modelo familiar. Significa que, em pleno século XIX, o modelo de família
patriarcal está arraigado em nossas vidas e na sociedade.
É sabido que, nas últimas décadas, a família foi se organizando de diversas
maneiras, com algumas configurações mais igualitárias e justas, em relação à
posição e ao poder conferido a seus membros. Todavia, não podemos considera-la
como única responsável pela violência ou como uma unidade isolada do contexto.
Ao contrário, outras instituições e outras experiências são formadas ao longo da
vida, e também utilizam a violência como instrumento. Por exemplo, marcas
deixadas pelo trabalho infantil e pela violência dos próprios pais, na criação de seus
filhos:
Eu não tive infância, porque comecei a trabalhar aos 11 anos de idade na
carvoaria. (ANSELMO)

Na roça desde pequeno a gente já começa a ajudar os pais. (CIRILO)

Eu sou de uma família de cinco irmãos, tivemos vários problemas na


infância, meu pai bebia e minha mãe teve muitos momentos difíceis para
nos criar. Tivemos algumas sequelas. (JOÃO)
77

Minha infância foi assim, minha mãe se separou do meu pai, porque meu
pai era alcoólatra crônico, ele chegou agredir minha mãe e não levava nada
para dentro de casa, minha mãe acabou largando dele e casou com outro
que é meu pai (padrasto). (FRANCISCO)

A violência sofrida e aprendida de algum modo acarretou marcas profundas e


suficientes para esquecer a dor sentida e reproduzi-las com outros, com suas
companheiras. O casamento é apontado, também, como um contrato que autoriza o
poder masculino “porque para mim casamento é para sempre” (AGOSTINHO), e
legitima a construção da família. Atualmente, João mantém-se no primeiro
casamento; Inácio, Francisco e Ambrósio estão no segundo casamento; os outros
não mencionaram seu estado civil.
Notamos nos relatos que a família, o casamento e o trabalho feminino são
interpretados como mecanismos de dominação e poder; contudo, são utilizados
como meio para justificar as violências e esconder as inseguranças geradas pela
perda do controle, pela carência de afeto desde de muito cedo. Como consequência,
seguem a descrença em si mesmos, a perda de autoestima, a desvalorização da
família, o abandono efetivo.
Eu acabei perdendo tudo, perdendo a razão, perdendo minha liberdade,
perdendo amizades, perdendo meu lar e o mais importante, ficando longe
da minha filha. (ANSELMO)

Acabar com a família dela para ter outro relacionamento e abandonar a


família. (ANTÔNIO)

(...) ela saiu de casa com os meus filhos e eu não posso vê-los, eu perdi
tudo. (AGOSTINHO)

Em outras palavras, a família perfeita, apontada e perseguida pelos sujeitos


como um modelo de representação social, de poder e de masculinidade, e
reconhecida por eles como inatingível se desfaz, deixa de ter sentido.
Ressaltamos que em nenhum momento os atos e a violência se justificam,
mas, nos depoimentos, evidenciamos que as marcas causadas pela violência
(re)produzida em suas famílias geraram inseguranças que os afetaram em sua
relação conjugal e de afetos. Como sujeitos, mas também como construtores de
suas próprias histórias, esses homens são resultado de um contexto e do conjunto
de relações que se tramam nessa trajetória, que articulam trabalho,
responsabilidades, respeito, valores, entre outros. Se essa trama relacional e de
socialização consistir em dominação e violência, provavelmente pode significar o
aniquilamento dos afetos, gerando uma ausência de conhecimento e de recurso
78

para conter suas emoções e sentimentos. Novamente lembramos que nada justifica
atos de violência, mas é imprescindível estudar e analisar tal fenômeno de modo
multifacetado, presente na dinâmica da vida coletiva e individual, nos espaços
privados e públicos, nas relações de afetos e na sociedade.

 MOTIVOS

Os motivos mais apontados pelos sujeitos referem-se ao álcool e drogas, às


agressões sofridas, dificuldades financeiras, falta de alto controle, seguidos de
arrependimentos.
Entender as motivações das violências cometidas pelos homens contra as
mulheres é uma tarefa difícil e complexa, pois envolve relações de afetos
(subjetivas) e relações sócio estruturais (objetivas). As conexões entre elas
potencializam ou podem intensificar a violência, e falar sobre isso expõe os sujeitos
a mostrar inseguranças geradas na intimidade familiar, às quais que nem sempre
gostariam de dar visibilidade ou demonstrar.
Os sujeitos desenharam o caminho das ações violentas, falando sobre a
agressividade, o poder a eles atribuídos, o reconhecimento como autor dos fatos e,
imediatamente, a tentativa de justificação, o arrependimento e as marcas
ocasionadas pelo ocorrido.

- Cultura Machista

As relações entre homem e mulher são permeadas pela construção social e


cultural do que é ser homem e ser mulher; imprimem valores e atribuições relativo
aos lugares ocupados no campo do privado (doméstico e do cuidado atribuído à
mulher) e do público (espaço externo a casa e conferido aos homens). Essa divisão
produtora da desigualdade de gênero em si mesma já motiva as práticas violentas,
uma vez que se coloca como forma de coerção e perpetuação desse modelo. Essa
concepção ampla e determinante da cultura machista é presente no relato do Inácio.
(...) mas eu vejo muito a culpa da criação que a gente tem, não por pai e
mãe, mas da sociedade, porque ela dita o comportamento. O homem não
pode ser submisso à mulher; homem tem que ser o machão em um
relacionamento, isso é a sociedade. No meu caso ela tinha que aceitar o
meu jeito, tinha que ser submissa a mim, então a agressão física foi a gota
que faltava para transbordar o copo de água. Agora eu também vejo a
religião, extremamente cruel. A bíblia é extremamente machista, eu acho
que esse livro e tão arcaico que legitima os agressores. Eu já vi e ouvi
79

relatos de caras que batiam nas mulheres para tirar o demônio do corpo,
tem muita coisa que precisa ser desconstruída desde a raiz, da criação dos
nossos filhos ao respeito às mulheres. (INÁCIO)

A menção à religião como reprodutora da cultura machista reforça e revela a


força do patriarcado, presente há milênios em nosso modelo de organização de
social.
Talvez o machismo seja o problema principal em muitos dos casos, mas
também não excluía outras coisas, como outros sentimentos e ações que
nos rodeiam que precisam ser trabalhadas. (GREGÓRIO)

Importante destacar que Inácio e Gregório participaram do grupo para


homens autores de violência, portanto, as faces da cultura machista e suas
implicações foram discutidas e são presentes em suas reflexões.
Eu cresci em um mundo, onde homem pega 10 mulheres e é o garanhão,
agora a mulher fica com 10 e é puta; idiota da minha parte pensar assim,
mas esse é o meio em que eu cresci, não foram minha mãe e meu pai, eles
não me ensinaram isso, foi o meio pessoal em que eu cresci, sei que foi
uma atitude machista (violência cometida). (FRANCISCO)

Francisco não frequentou os grupos de reflexão, mas estava em


acompanhamento psicológico. Percebe-se, em sua fala, uma compreensão do
machismo e as repercussões em sua vida, mas ele é o único sujeito que reconhece
o território e o meio social como influenciadores e propagadores de uma cultura que,
consequentemente, desencadeia a violência.
Ela não cuidava da casa; fazia dois meses que estávamos brigando por
causa disso, ela não fazia minha marmita, ela não acordava mais cedo para
arrumar o café para mim, não lavava as minhas roupas, a casa estava
bagunçada, essa é obrigação dela. Eu não quero uma esposa assim, ela
não se arrumava para mim. (AGOSTINHO)

No discurso de Agostinho percebemos forte relação de dominador e


dominada, justificando a violência como punição pelo não cumprimento das
atividades de “esposa”; o trabalho doméstico conferido às mulheres pode ser um
desencadeador de práticas violentas. Percebemos certa frieza, certa necessidade de
vingança na fala de Agostinho, que é boliviano e está no Brasil a trabalho, tornou-se
empresário e fracassou; além disso, foi traído pela esposa. Ele busca apoio na
violência, como forma de punir a mulher pelo seu fracasso como “homem de
verdade” e provedor da casa. Ao mesmo tempo, revela sua dependência quase que
total da esposa, pois não sabe preparar seu café sozinho e requer muita atenção.
Observamos em sua fala que a dominação gerou a dependência, sendo
imperceptível para Agostinho, mas evidente no discurso.
80

A falta de conhecimento sobre si e sobre o outro, e das possibilidades de


estabelecer outras relações não violentas, foram levantadas como motivos, por
entender que o acesso ao conhecimento sobre a relação de dominação e da cultura
machista evitaria que os conflitos, inerente aos seres humanos, se tornassem palco
de violência.
Influência do desemprego, da baixa da autoestima e de várias coisas que
ocorre dentro de casa e que não temos instrução para mensurar,
conhecimento e disposição para cuidar gera conflito, são pequenas coisas e
foi isso que aconteceu, os conflitos viram violências. (JOÃO)

A questão do autocuidado e da saúde metal da relação são levantadas como


estratégias de intervenções contra a violência. Nessa perspectiva, a educação de
gênero nas escolas, as discussões sobre masculinidade e feminismo, são caminhos
que poderiam incentivar a propagação de relações mais saudáveis e igualitárias.

- O ciúme e a traição

A infidelidade conjugal aparece nos relatos de Francisco, Ambrósio, Antônio e


Agostinho como motivadores da violência cometida. Um relacionamento baseado em
contrato de fidelidade apresenta dois ângulos: o direito exclusivo à propriedade do
corpo da mulher, e os afetos necessários para estabelecer um “mínimo” de relação.
A rescisão desse contrato pela mulher, com a “quebra” da fidelidade, expõe a
virilidade do homem, sua autoridade e suas inseguranças na gerência da “sua
propriedade”.
A imagem construída sobre o papel da mulher alimenta uma idealização do
feminino, dividindo-as naquelas que são para casar e aquelas para a diversão. As
mulheres casadas têm que ser “feias” esteticamente, para afastar predadores do seu
território; assim, a gerência fica mais dócil. Esse ideal aparece nos relatos de João e
de Agostinho: “Ela não se arrumava para mim, agora para os homens ela se
arrumava, passava batom e saia bonita para os outros, fiquei com raiva e ciúmes.”
(AGOSTINHO)
Minha companheira é uma menina muito vaidosa, desde quando eu
conheci. Ela era uma pessoa gordinha, tomava remédios para emagrecer e
até fez bariátrica, depois fez plásticas e as vaidades só aumentaram. Ela
posta fotos nas redes sociais e faz lives o tempo todo, e não fica com a
família, esse distanciamento da casa, dos procedimentos domésticos e o
abandono, isso me pegou. (JOÃO)
81

O João não cita claramente as violências cometidas; entretanto, em suas falas


percebemos que ele se sentiu traído pela companheira, porque a escolheu para
casar e não para se divertir. Portanto, seu comportamento não condiz com o papel
de esposa, do lar e não atraente para os outros. Sendo assim, o corpo exclusivo do
seu “dono” precisa sofrer para entender qual é seu lugar na sociedade.
Pelo relato de Ambrósio notamos que em seu primeiro relacionamento a
traição de sua companheira levou-o a perder o respeito por ela e o motivou a traí-la
também, como forma de lhe causar dor, tal como ela causou para ele. A quebra do
contrato de fidelidade, por ambos os lados, abre um caminho de dor, inseguranças,
fúrias, que tendem à violência.
Peguei o celular e vi as mensagens do “cara falando queria transar com
ela”. Começamos a brigar, depois eu fui falar com o cara que ela estava
saindo, fiz besteira, devia não ter feito, o cara falou que não saiu com ela,
mas eu não acreditei, mandei a minha sobrinha olhar eles e a minha
sobrinha viu ela com o cara, fui tirar satisfação e percebi que não era o
mesmo que eu tinha falado era outro. (AMBRÓSIO)

Uma ameaça ao homem viril pode ser uma declaração de guerra de


“território”, sendo a mulher a propriedade em disputa. Entretanto, percebemos que o
ameaçador – homem –, não é repreendido, somente recebe uma intimação de
guerra, com as consequências caso ultrapasse os limites. Ao contrário da mulher,
que recebe a condenação sem julgamento, e é declarada culpada, simplesmente
porque rompeu os limites, “pulou a cerca”, sendo sua punição a correção
psicológica, física e até pena de morte.
No relato do Antônio percebemos uma exagerada perseguição e controle total
sobre a vida da sua companheira, estabelecendo até uma rotina para ela cumprir,
como meio de vigiá-la para que não escapasse. A constatação do fato, por duas
vezes, conduz ao “extremo” da humilhação permitida pela sociedade; então, as
ações de correção entram em execução. Nesse caso, há um fator relevante: ele
estava separado dela, portanto, seu posto dentro da hierarquia de poder não existia,
podendo ser ocupado por outra pessoa. Mas, a fantasia do poder permanece
intrínseca ao homem. Infelizmente, a não aceitação do rompimento intensificou a
busca pela traição, como forma de justificar a saída do seu lugar de dominação,
imaginando: “agora eu saio dessa relação porque ela me traiu e não porque ela
acabou com a relação.”
No caso do Francisco, houve apenas uma fala suficiente para sua
condenação.
82

No meu caso foi uma questão de orgulho ferido. Ela me chamou de corno
na minha cara e falou que iria arrumar outro, acabei explodindo; as
mulheres apanham por ciúmes ou pelo cara achar que ela está traindo isso
é o que mais motiva e leva os caras a matar as mulheres. (FRANCISCO)

A fantasia da infidelidade pode ceifar uma vida real, em nome da manutenção


do orgulho e da honra masculina, que são construções fantasiosas do “homem de
verdade”, como ser único, perfeito, dono de tudo e de todos, com o poder, muitas
vezes, de decidir quem vive e quem morre.
O segundo ponto, relativo aos afetos que circundam essa relação de
dominação, é retratada direta e indiretamente pelos homens que foram traídos. O
amor e o gostar de suas companheiras infiéis estão presentes em suas falas,
quando se referem à perda irreparável e inconsciente, o sofrimento da desilusão e a
dor, sentimentos expostos nos relatos como algo proibido, que precisa ser
escondido, omitido, por desnudar suas fragilidades, que envolvem o sentir amor,
sentir raiva, ódio e dor, sendo estes sentimentos conferidos a pessoas fracas. A
traição dos afetos, realizada pela mulher, rompe com o contrato de dominação e do
amor eterno. Em decorrências dessa traição, a violência torna-se o único recurso
para impor e restabelecer o poder e a honra perdida. Ajuda, também, a mascarar a
dor e as inseguranças de um dominador que fracassou em suas responsabilidades,
e perdeu a luta para outro homem mais forte. Concluímos, então, que a perda do
corpo, ou melhor, do corpo como propriedade, significa a perda da utilização de
posse e do afeto. Para superar a dor e a perda do poder utilizam sempre práticas
violentas, para esconder suas inseguranças e para legitimar seu poder na
sociedade.

- A perda do controle no calor do momento

Quando o homem enfrenta monstros, luta e vence para salvar a donzela,


sendo aclamado como herói, realiza a proteção legitimada pela sociedade. Mas,
quando ocorre o inverso, o herói é o monstro que coloca em risco a proteção da
donzela. O que fazer com esse herói que fracassou em sua missão? Esse herói que
não controla sua raiva, seu ódio, sua força e suas ações? Esse homem que acredita
e alimenta dentro de si ser um herói, aprende uma única matéria: dominar e provar
que é bom para manter o poder sobre tudo e sobre todas, não havendo margem
para o erro e o fracasso. “Eu acho que não temos preparo, é um despreparo em lidar
83

com algumas situações de conflitos.” (JOÃO). A ideia do macho perfeito esbarra na


imperfeição dos seres humanos, que desnudam as deficiências da dominação nas
relações sociais e afetivas.
Ela me levou ao extremo, foi um momento de destempero. (GREGÓRIO)

Cheguei num limite de humilhação, provocação, calunia e coisa que eu nem


sei explicar. (ANSELMO)

Agressão verbal, tortura psicológica, pode até ser falta de conhecimento,


agora agressão física é o calor do momento. (INÁCIO)

Ela poderia ter ficado quieta, eu podia ter me controlado. (AMBRÓSIO)

Às vezes a gente não age com a razão, age com a emoção e a emoção
deixa você em uma temperatura alta a ponto de você não saber o que você
está fazendo em um total descontrole. (JOÃO)

As pessoas falam que é uma doença eu acho que não é doença (cometer
violência), na hora ali e falta de controle. (FRANCISCO)

(...) se a gente não tiver uma cabeça feita e não for positivo, acaba fazendo
besteira. Quando você me pergunta o que leva ao homem a praticar a
violência, há diversos motivos, mas eu acredito que há um descontrole.
(CIRILO)

A negação do fracasso fragiliza os homens, levando-os a utilizar o único


recurso permitido para impor sua força ou o seu poder: a prática da violência.

- O uso de substâncias psicoativas (SPA)

O uso de substâncias psicoativas (SPA) ocorre desde os primórdios da


história da humanidade, sendo utilizadas de diversas maneiras, tanto para cura de
doenças como para proporcionar alegria. Entretanto, o álcool e droga atuam no
organismo como desinibidor, mas os estimulantes, como cocaína, crack e
anfetaminas, reduzem a capacidade de controle dos impulsos, aumentando, assim,
as sensações de persecutoriedade25. Não podemos pensar no uso das SPA
descolado da realidade; aliás, são o contexto e o momento, somados ao uso de
SPA, que provocam as ações violentas. Percebemos que os sujeitos atribuem o uso

25
MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira. A complexidade das relações
entre drogas, álcool e violência. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998.
Disponível: https://www.scielosp.org/article/csp/1998.v14n1/35-42/ Acesso em: 14 de abr. de 2020.
ROSA, Antonio Gomes. et al. A Violência Conjugal Contra a Mulher a Partir da Ótica do Homem Autor
da Violência. Saúde Soc. São Paulo, v.17, n.3, p.152-160, 2008. Disponível:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902008000300015. Acesso em: 14 de
abr. de 2020.
84

de substâncias psicoativas como um dos motivos para as violências cometidas,


compreendendo que esse uso justificaria concretamente seus atos.
É sabido que o uso de SPA é algo concreto, facilmente aceito pela sociedade
como “causa” da violência, porque gera, temporariamente, alterações físicas e
psicológicas. Entretanto, observamos nos depoimentos que a citação do uso de SPA
é utilizada como subterfúgio para esconder suas inseguranças, que não são visíveis,
nem para eles, nem para a sociedade.
Eu tinha um abismo, que era o álcool, um abismo chama o outro.
(AMBRÓSIO)

(...) agressão, foi um episódio e eu estava drogado. (INÁCIO)

(...) aconteceu isso e eu estava consciente, imagina se eu estivesse


bêbado, ou drogado. (FRANCISCO)

Constatamos que o uso de SPA está ligado a traumas vivenciados muitas


vezes na infância, mas não podem ser manifestados, porque ninguém está
interessado em ouvi-los; então, usar as drogas como pretexto é legítimo e aceitável
para a sociedade, que trata as SPA como “únicas” causas da violência.

- Violência sofrida e reproduzida

“Quem é ferido com ferro, com ferro ferirá”, uma nova leitura do ditado popular
“Quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Essa frase retrata as histórias de vida
dos sujeitos, marcadas pelas experiências de violências sofridas, do abandono
afetivo e material de outros homens, causando traumas e “abismos”. Esses traumas,
nomeados por eles, acarretaram dificuldades de aprendizagem, de interação com os
amigos e, principalmente, dificuldades para estabelecer vínculos afetivos com suas
companheiras e seus filhos.
Quando ela (mãe) saiu, ele (pai) estava bêbado, pegou o canivete e cortou
a perna dela, isso meio que me traumatizou, ele morreu eu não fui vê-lo
porque estava com raiva e ele bebia. Eu comecei a beber e usar drogas
logo depois. (FRANCISCO)

Tratam-se de experiências exercitadas por seus pais e padrastos violentos; o


uso abusivo de álcool ocorre como “causa” desse sofrimento. O abandono material e
afetivo forçou os sujeitos a deixarem suas casas e suas mães para caminharem
sozinhos e formar suas próprias famílias. Mas, as marcas ficam e rasgam a vida
desses homens, causando a repetição dos atos de violências e o uso abusivo de
álcool e drogas. “Eu tinha me tornado o que o meu pai era.” (FRANCISCO)
85

Meu pai bebia, saia com outras mulheres, brigava e tinha muitos ciúmes da
minha mãe. (...) eu bebia, cheguei a usar drogas, trai e tenho muitos
ciúmes. (AMBRÓSIO)

Meu pai bebia e minha mãe teve muitos momentos difíceis para nos criar,
tivemos algumas sequelas. (...) minha companheira é vaidosa e não fica
com a família, esse distanciamento da casa, dos procedimentos domésticos
e o abandono me pegaram. (JOÃO)

Como sabemos,
(...) o cotidiano dos homens não é constituído de estimulação, contato e
expressão imediata do que sentem mas, ao contrário, da disciplinarização
do sentir e do condicionamento a comportamentos estereotipados viris e
agressivos. Este aprendizado de postura diante da vida começa na infância,
determinando para um homem adulto sua incapacidade em contatar as
próprias emoções e demandas afetivas. Parte dessa incapacidade é por nós
conhecida sob o aspecto da violência e da agressividade masculina.
(NOLASCO,1993, p. 46)

 Do outro lado da razão

Essa categoria refere-se aos sentimentos dos sujeitos frente às violências


cometidas, e as possibilidades de refletirem sobre suas ações, pensando na
reconstrução de suas histórias.
Nasceu das respostas dos entrevistados sobre o sentimento que tiveram ao
contar a sua versão da história. O espanto e a surpresa com tal questão foi unânime.
Perguntaram: Porque você quer saber sobre mim? Ninguém nunca me perguntou
isso! Você está perguntando para um homem que é agressor o que ele está
sentindo, isso é novo! Não sei como começar, nunca pensei nisso! Você quer me
ouvir? Ninguém quis me ouvir, ninguém se importa comigo! Essas colocações e
questões foram realizadas com muito espanto e estranheza; entretanto, quando
confirmávamos que queríamos ouvi-los, a postura deles mudava, o tom da voz se
amansava, ficavam mais tranquilos e a conversa fluía melhor.
Hoje eu posso expor a minha verdade, porque as pessoas passam por
essas situações e não tem oportunidade de falar, e às vezes eles não
cometeram esse erro. (CIRILO)

Eu nunca tinha parado para falar sobre isso, não me sentia a vontade em
me expor eu tinha vergonha. Alivia falar e, além disso, ajuda outros caras,
para não fazer nada, porque não é legal. (FRANCISCO)

Falar sobre isso e como tentar explicar para mim mesmo o que eu fiz.
(ANSELMO)

É muito ruim falar sobre isso, porque eu me arrependo de tudo, poderia


muito bem ter virado as costas, saído de lá. (ANTÔNIO)
86

(...) não, preciso falar com ninguém sobre isso, dos conflitos e das
violências, mas depois, busquei ajuda com profissionais para entender.
(JOÃO)

Acho ruim que apenas esse tipo de assunto só tem debate, quando
acontece o pior e é difícil. (INÁCIO)

O pior disso tudo foi ninguém me ouvir, fui totalmente excluído, ninguém
quer ouvir o cara. (GREGÓRIO)

É evidente que a sociedade silencia os autores de violência, para não revelar


as fissuras da masculinidade hegemônica e da subjetividade social.
Ao longo dos discursos, houveram momentos em que os sujeitos
questionaram o modo de ser homem imposto pela sociedade que os abandonou na
“dificuldade” e os excluíram. Passaram a ser vistos como monstros, psicopatas,
doentes e feminicidas; deixaram o posto de “salvador” da donzela, quem caça o
monstro, para ser o monstro que caça a donzela. Podemos fazer uma analogia com
a lenda do lobisomem, homem que vira lobo.
É sabido que a lenda do lobisomem é muito antiga, presente na Grécia
Antiga, no mito de Lycaon, que fixou a palavra “licantropo” como sinônimo de
lobisomem e ajudou a espalhar a ideia do monstro meio humano. A lenda se
intensificou no fim da Idade Média e início da Idade Moderna, com o advento da
caça às bruxas, onde muitos homens foram executados por licantropia26. A lenda é
ligada a um homem que, em algumas noites determinadas, se transformava em uma
mistura de humano com lobo, irracional e sanguinário. Logo, ao amanhecer, retorna
a sua forma humana, mas não se lembra dos fatos cometidos durante a noite.
Correlacionando os relatos dos homens com a lenda do lobisomem, o lobo é
um monstro com força física que impõe medo e espalha o pavor por meio das
práticas violentas, sendo temido por homens e mulheres. Essa dualidade é vivida
pelos sujeitos que vão à caça e, para isso, precisam ser viris, fortes, valentes,
destemidos, sem emoções e sentimentos. O caminho é conflituoso, estressante e
desgastante, então os caçadores sentem medo, insegurança, raiva, ódio, e por não
estarem preparados para lidar e controlar suas emoções, se transformam em
lobisomens, que caçam os outros homens e mulheres que ousam cruzar a sua frente
ou avançar em seu território, tornando-se, assim, temidos pelos outros.

26
Licantropia: forma de loucura através da qual um indivíduo pensa transformar-se em lobo ou em
outro animal selvagem. Disponível em: https://www.dicio.com.br/licantropia/. Acesso em: 20 de abr.
de 2020.
87

Ao retornar a forma humana, os lobisomens retomam a consciência e se


arrependem dos atos cometidos. Todos os sujeitos, exceto o Agostinho, demonstram
arrependimento pela violência; entretanto, buscaram justificativas para o
injustificável. As justificativas passaram pelo resgate histórico de “bom” rapaz.
Se puxar meu histórico, de qualquer lugar e de qualquer situação, você vai
ver que não tenho histórico de má convivência e nem de briga com
ninguém, nem com a família, parente, amigo. Preciso desabafar, porque
alguém que não me conhecia antes pode olhar o que aconteceu e me culpar
sozinho, não é só minha culpa. Não estou falando isso, para me defender e
jogar a culpa nela. Eu sei pelo o que eu tenho culpa, eu sei o que eu fiz, sou
culpado sim. (ANSELMO)

Eu não tenho nenhum histórico de violência, muito pelo contrário, se você


pegar todas as mulheres que se envolveram comigo elas vão dizer que é
um absurdo essa situação, mas infelizmente aconteceu. (GREGÓRIO)

Também utilizaram exemplos de episódios de violência cometidos por outros


homens para explicar os seus atos, ou para esconder suas inseguranças em se ver
enquanto autores de violência.
Eu estava assistindo televisão e saiu no noticiário que um cara tinha matado
uma estudante aqui no bairro, porque ele achou que ela estava traindo, eu
fiz um comentário assim, “que cara babaca, porque ele vai atirar na mulher
e depois se matar”. Era só ele ter largado dela e ter pego outra mulher,
pegaria poucos anos de cadeia. Não sou feminicida só acho que ele deveria
pagar sofrendo e não se matando. (AMBRÓSIO)

Eu vejo muita coisa, esses dias o homem espancou a mulher com fio e a
criança também, por causa do ciúme, eu jamais teria coragem de fazer isso.
Ela mesma falou que causou isso, porque ela não deveria ter falado que iria
me trair. (FRANCISCO)

Nos relatos percebemos a dificuldade em se aceitar ou se reconhecer como


autores de violência. O uso dos exemplos de outros homens “agressores” evita o
contato consigo mesmo, pois os fatos narrados nos exemplos são suas próprias
histórias, das quais são os protagonistas, os “agressores”, ou seja, o lobisomem. A
dificuldade levou a maioria dos sujeitos a culpabilizar a mulher pela prática violenta,
como maneira de esconder-se da autoria da violência. “Ela foi errada, eu fui errado e
me sinto culpado. Mas nada justifica o que eu fiz pra ela e nem o que ela fez para
mim.” (ANTÔNIO)
A reação ao ataque também é usada para justificar os atos de agressão.
(...) foi um momento de destempero, mesmo assim eu questiono a parte da
agressão, eu apenas estava me defendendo, eu usei mais da minha força.
(GREGÓRIO)

(...) falar a verdade, ela partia para o lado de ofensa, vinha com ofensas
pessoais e familiares, isso era um dos motivos. (ANSELMO)
88

Eu perdoei uma vez e na segunda vez eu não aguentei só isso eu não


agredi ela. (ANTÔNIO)

(...) ela poderia ter ficado quieta, eu podia ter me controlado, eu apanhei
muito na cara, essas coisas a sociedade não enxerga, não que eu fui santo,
mas fui agredido e a agressão foi para me defender e ninguém me ouviu.
(AMBRÓSIO)

Aos poucos eu estou entendendo, que foi ela que me feriu, eu sou homem,
tenho orgulho, eu não queria escutar aquilo, eu não sabia que ela poderia
me ferir sem colocar a mão em mim. (FRANCISCO)

O conflito relacional sem conhecimento do seu limite e do limite do outro gera


a violência como manifestação mais aprendida e rápida. “Ataco para me defender,
uso e potencializo os recursos que tenho, transformando-os em armas de defesa.” O
lobo (animal) só ataca quando é ameaçado e está com medo, exceto para a sua
sobrevivência. O “homem de verdade” ataca quando tem o seu poder ameaçado,
quando não sabe o que fazer e está com medo. O lobo aprende a se defender,
assim como o homem. A diferença está em o lobo ser irracional e o homem racional;
e sua defesa é aceita pela sociedade, que legitima o ataque animal e despreza o
lado humano nessa relação.
Na relação conjugal violenta, tanto o homem como as mulheres, em medidas
diferentes, sofrem suas consequências, pois são sujeitos históricos, sociais e
culturais. Nessa esteira, a sociedade dos “homens de verdade” (dominadores) e das
“mulheres de verdade” (submissas) desconsidera os homens como pessoas que
sentem e agem, e os direciona a serem violentos e defenderem sua honra de
“homem de verdade”. As “mulheres de verdade” são submissas a essa dominação,
sem ter o poder de se defender do laço do caçador. As mulheres que ousam romper
com essa lógica são as bruxas que pervertem o verdadeiro homem; já os “homens
não verdadeiros” são os elos fracos, desprezados e excluídos do grupo verdadeiro.
A relação de afeto coloca em evidência que todas as pessoas são capazes de
sentir, amar e cuidar. Esses sentimentos e emoções estão presentes nas relações
conjugais, ou seja, existem nos homens e nas mulheres, mas a sociedade dos
“homens de verdade” os destrói, coloca esses sentimentos em segundo plano, como
algo inferior e descartável aos homens. Para isso, as práticas violentas são
utilizadas como instrumento de retomada do poder e de ausência de recursos
afetivos para lidar consigo e com os outros.
Como os afetos estão em segundo plano, Cirilo, Ambrósio e Antônio narraram
que foram vítimas de violências em decorrência do desgaste da relação de afeto,
89

mas não foram ouvidos, em nenhum momento; pelo contrário, foram coagidos a
voltar para o seu papel de dominador, utilizando-se da violência.
(...) deveria ter ido fazer um BO também, porque ela me agrediu com
palavras, o homem erra, mas ele também é agredido, tem homens que não
estudam e se sente envergonhado de ir na delegacia, porque não somos
ouvidos e tem situações que a mulher força você encostar a mão nela,
ninguém aguenta elas falando. (AMBRÓSIO)

(...) têm muitas mulheres que realmente sofrem violências, mas tem homens
que também sofre violência das mulheres, mas que tem vergonha de ir lá
fazer o boletim de ocorrência, ele sofre pressão psicológica, ele sofre
violências. Eu fui fazer um boletim de ocorrência, contra a minha esposa
que me agrediu, o delegado tirou sarro da minha cara. “O senhor está
apanhando da mulher, o que é isso, homem apanhar de mulher”. A minha
esposa pegou a faca para mim, colocou na minha barriga e queria me furar,
eu poderia ter botado fogo nela. (CIRILO)

O medo da “condenação” levou alguns sujeitos a pontuarem as brechas e a


negligência da Lei Maria da Penha, tais como a ausência da versão dos fatos pelo
autor do crime e o abandono do Estado para prevenir novas ações de violências.
A Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha – em seu artigo 35, inciso V, prevê
que o Distrito Federal, os Estados e os Municípios poderão criar e promover serviços
especializados, entre eles “centros de educação e de reabilitação para agressores”,
alterando, assim, o artigo 152 da lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 (lei de
execução penal), que passa a vigorar com a seguinte redação: Parágrafo único.
“Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o Juiz poderá determinar o
comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e
reeducação”. É previsto na lei o acompanhamento dos homens autores de violência;
entretanto, não há o cumprimento deste artigo. Em alguns Estados existe a presença
de grupos liderados pelo Ministério Público, e instituições do terceiro setor que
atuam com esse público. Portanto, a queixa trazida pelos sujeitos da pesquisa é
válida e desvela a ineficiência do Estado no cumprimento da lei e na prevenção à
violência. Vale ressaltar que as poucas iniciativas existentes de trabalho com grupos
de reflexão para homens autores de violência têm apresentado resultados
excelentes na prevenção e na mudança de postura dos homens frente à
masculinidade e a violência.
(...) fui convidado para participar do projeto tempo de despertar e hoje eu
faço parte da equipe técnica. Eu acreditava sinceramente que eu cometi
violência porque usava drogas, mas durante o grupo fui descobrindo que
não era só o meu uso de droga, era o meu comportamento, porque eu era
machista. (INÁCIO)

O curso foi muito importante, porque não focava somente nessa questão da
violência, partia do machismo, talvez o machismo seja o problema principal
90

em muitos dos casos, mas também não excluía outras coisas, como outros
sentimentos e ações que nos rodeiam que precisam ser trabalhadas. Passar
pelo grupo foi importante, porque tem um movimento natural do homem e
há um lugar meio misógino. (GREGÓRIO)

Esses dois sujeitos passaram pelos grupos previstos na Lei Maria da Penha:
Inácio pelo programa “Tempo de Despertar”, executado pelo Tribunal de Justiça de
Taboão da Serra/ SP; e Gregório pela OSC Coletivo Feminista, Sexualidade e
Saúde, em São Paulo. Notamos a diferença nos discursos dos homens que
passaram pelos grupos e nos relatos dos sujeitos que não passaram por
atendimento. A principal diferença está na responsabilização pelos atos cometidos,
presente em seus relatos, bem como na indicação de caminhos possíveis para a
difusão do conhecimento sobre a perversidade da cultura machista e das
subjetividades envolvidas nas relações, sendo esta uma estratégia de transformação
de valores pautados na igualdade de gênero.
Os homens precisam de um espaço onde possam falar, homem com
homem, falar sobre suas inseguranças, medos e das coisas que leva o
homem a tomar atitudes como essa de violência, então não é só o
machismo, porque só isso fica raso e não resolve o problema, mas é o todo,
tudo que nos relaciona. (GREGÓRIO)

 Caminho possível...

Nos depoimentos existem contradições dos sujeitos: ora são narradores de


uma história, ora são homens que julgam outros homens; ora percebem que são
autores de violência, ora são vítimas, ora se arrependem da “besteira” feita; ora
deixam vir à tona os medos e suas fragilidades, ora pedem ajuda; ora apontam
caminhos para prevenir a violência, ora não enxergam alternativas.
As contradições perpassam pela reflexão dos atos de violência como
possibilidade de autoconhecimento.
(...) não tem como eu apagar o que eu fiz, mas eu sei que eu posso mudar o
meu jeito, minha forma de pensar, de agir, eu estou buscando ajuda para
isso acontecer; Poderia ter evitado, mas aconteceu às vezes uma coisa
acontece para você enxergar e compreender. (FRANCISCO)

Só que não me vejo assim, não me sinto assim, só quem já passou sabe o
sentimento, eu estou arrependido. Tem umas pessoas que nasce para fazer
o mau e tem outras que nasce para fazer o bem. Às vezes aquelas que a
gente mais faz o bem são as que vão nos machucar. (ANSELMO)

O importante para mim seria eu me amar e faz tempo que eu estou lutando
para isso, isso evitaria não passar mais por essas situações. Além disso,
tinha uma competição entre mim e ela, ela só pensava nela e eu em mim,
eu era totalmente dependente dela, peguei ela para ser minha mãe e
cheguei a acreditar nisso. Eu não sou mais dependente dela. (AMBRÓSIO)
91

Os caminhos para a reconstrução dos novos relacionamentos precisam ser


reconhecidos, para a esperança poder ressurgir.
Quando há uma tentativa de ambos os lados, de agressão, é um sinal
amarelo, porque acontece uma vez, a segunda, a terceira, e vai
aumentando; quando isso acontece é melhor cessar, cada um para um lado,
cada vai cuidar da sua vida. Eu acho que não temos preparo, é um
despreparo em lidar com algumas situações de conflitos. (JOÃO)

(...) acho que falta um pouco de abordagem, porque na rodinha de amigas-


mulheres sempre tem um lado afetivo, desabafo, nas rodas de homens não,
porque o cara nunca quer se diminuir e ele não fala do lado afetivo. O
homem tem essa armadura e ele não pode tirar essa armadura, mesmo
com os amigos ele não vai falar. (INÁCIO)

A crítica ao machismo, nas falas de Inácio, Gregório e Francisco, ratifica a


perversidade da masculinidade hegemônica que os oprime e determina as relações.
Contudo, Inácio indica a possibilidade de um caminho de transformação.
(...) homem não tem esse tipo de conversa, mas ele precisa desabafar e
não tem ninguém. Acho ruim que apenas esse tipo de assunto só tem
debate, quando acontece o pior e é difícil convencer um homem a participar
dessa conversa. Hoje eu falo da minha experiência, por pior que tenha sido,
posso tirar um proveito para melhorar a sociedade, pelo menos esses que
estão ao meu redor e se estes aprender alguma coisa repassar para os
outros. Nós temos que fazer alguma coisa antes da violência acontecer,
esse é o caminho. (INÁCIO)

Ao longo dessas análises, construímos uma linha de pensamento que retira o


homem – autor de violência –, do lugar “natural” de agressor, e os coloca no lugar de
uma pessoa do gênero masculino que cometeu um ou vários atos de violência com
agravos. Sem minimizar a violência e nem os traumas deixados nas vítimas de
ambos os lados – homens e mulheres –, é necessário rever e valorizar um trabalho
profissional com estes homens, visando o reaprendizado de valores sociais capazes
de reconduzir atenção e cuidados com estes sujeitos. É possível reconstruir outros
sentidos, outras masculinidades, outra socialização que não tenha a violência como
único recurso possível para lidar com as questões objetivas e subjetivas do cotidiano
da vida.
92

Referências Bibliográficas do Capítulo IV

BRASIL, Presidência da República. Lei 11.340/2006, de 7 de agosto de 2006.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
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Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm . Acessado em:10
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histórico-cultural. Tradução: Raquel Souza Lobo Guzzo. São Paulo: Pioneira
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MARIOTTI, Humberto. A razão do coração e o coração da razão (Blaise Pascal e


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MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira. A complexidade


das relações entre drogas, álcool e violência. Cadernos Saúde Pública, Rio de
Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998. Disponível em:
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NOLASCO, Socrates. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

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Ótica do Homem Autor da Violência. Saúde Soc. São Paulo, v.17, n.3, p.152-160,
2008. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
12902008000300015. Acesso em: 14 de abr. de 2020.
93

CAPÍTULO V
OS PROFISSIONAIS E SUAS EXPERIÊNCIAS COM OS HOMENS
AUTORES DE VIOLÊNCIA

Neste capítulo focamos a análise e a interpretação dos dados obtidos a partir


de entrevista com profissionais que atuam com os homens autores de violência e
que se dispuseram a integrar a presente pesquisa. Com esses profissionais nossos
objetivos consistiram em: refletir sobre os motivos pelos quais esses homens
cometeram atos de violência; e conhecer suas experiências, modos de intervenção e
o que vivenciaram com esses homens.

5.1. O caminho e os Sujeitos

A escolha dos participantes ocorreu de duas maneiras: nosso acesso e


proximidade com alguns dos profissionais da rede de atenção, e por meio dos
contatos realizados pelas instituições, para indicação dos homens autores de
violência.
Todos os participantes aceitaram o convite, mas enfrentamos as mesmas
barreiras relacionadas à distância e tempo que tivemos na etapa anterior, com os
homens. Sendo assim, utilizamos da mesma estratégia, ou seja, o uso dos recursos
tecnológicos para a realização das entrevistas. Contamos com a participação de
cinco profissionais que atuam com homens autores de violência, de áreas do
conhecimento diferentes e com exercícios de intervenção diversificados.
Para essa etapa, realizamos entrevistas narrativas, mantendo o caráter
multidimensional da pesquisa. Utilizamos também um questionário com perguntas
fechadas, para obtenção de certo perfil dos profissionais. Os dados foram
organizados em um quadro, com a apresentação dos sujeitos; a modalidade em que
a entrevista foi executada; suas profissões; o perfil dos atendimentos; tempo de
trabalho com homens autores de violência; as instituições em que trabalham e a
cidade. Para preservar o sigilo dos profissionais, os nomes utilizados são fictícios e
por nós escolhidos.
O perfil dos profissionais será apresentado em formato de tabela.
94

Quadro 2: Profissionais entrevistados

Entrevista Profissão Atendimento Tempo Instituição/ Cidade


projeto

Catarina Face a face Psicóloga Individual e 10 anos OSC SOS Campinas/


casal AMF SP

Alberto Face a face Mediador Facilita grupo 2 anos Grupo de Campinas/


de de reflexão homens SP
conflitos particular

Lourenço Skype Psicólogo Coordena os 8 anos OSC São Paulo


grupos de Coletivo
homens feminista
Sexualidade
e Saúde

Teresa Face a face Advogada Coordena o 22 anos Projeto São Paulo


e projeto e Íntegra
mediadora realiza
atendimento
individual e
grupal

Afonso Skype Psicólogo Coordena 20 anos Programa: E Santo


grupos de agora José? André/SP
homens e o
programa

Fonte: Elaborada pela autora.

A maioria das entrevistas foi realizada presencialmente, com duas


profissionais do sexo feminino e três do masculino. Todos/as27 reúnem anos de
experiência com homens autores de violência (com uma exceção), e residem no
Estado de São Paulo. Na dinâmica das entrevistas, destacamos duas categorias
para análise:
- os motivos da violência cometida pelos homens;
- as ações desenvolvidas e a repercussão do trabalho com os HAV28;

5.2. Análise das entrevistas

27
Todos os participantes foram orientados sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de
Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), autorizando as entrevistas e as gravações em áudio
(anexo).
28
HAV – Homens Autores de Violência.
95

A maioria é da área da psicologia, pois tivemos dificuldades para encontrar


profissionais de outras áreas do conhecimento que atuassem com HAV. Nos relatos,
somente o profissional Afonso revelou que trabalhava com uma equipe formada por
assistente social, sociólogo, advogado e educador social; os outros não deram essa
informação. Um dos profissionais, Alberto, comentou a ausência de profissionais que
trabalham na linha das “práticas integrativas e complementares, com renascimento,
constelação familiar, com justiça restaurativa, com direito sistêmico, profissionais
que trabalham em linhas terapêuticas”. Catarina e o profissional Lourenço também
destacaram a carência de equipes interdisciplinares na atuação direta com os
agentes de violência.
O relato da profissional Teresa nos surpreendeu, pela ênfase dada à ausência
de profissional do Serviço Social em sua equipe de trabalho.
Nós tínhamos assistentes sociais e por incrível que pareça o assistente
social é o primeiro profissional que sai na hora que o projeto não tem
dinheiro. A primeira categoria que saiu do projeto foi o assistente social,
passamos mais ou menos uns dez, doze anos trabalhando juntos, então a
importância de rede, de fomento de rede, de construção, uma série de
informações a gente acabou adquirindo. Conseguimos beber um pouco
disso, desse saber e desse fazer do serviço social. (TERESA)

Esse relato soa como um alerta aos profissionais de Serviço Social.


Compreendemos que nenhum saber é único e de domínio de uma única profissão;
entretanto, essa ausência é preenchida por profissionais de outras áreas, mesmo
quando é sabida a contribuição que os assistentes sociais podem oferecer.
Somente depois do término da entrevista com o profissional Afonso, quando
descreveu a composição da sua equipe com um assistente social, tivemos
conhecimento da existência desse profissional e acesso a seu contato. Ainda assim,
por desencontros de agendas e pouco tempo para concluir a pesquisa, não tivemos
a oportunidade de entrevistá-lo.
A carência de políticas públicas e de financiamento aos projetos e programas
foi destacada por quatro profissionais entrevistados, que trabalhavam
voluntariamente. Preocupante esse fato, uma vez que a Lei Maria da Penha e suas
diferentes alterações propõe a criação de programas e de serviços especializados
para, entre outros, coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Especialmente pelo fato, também, de que a lei n° 7.210 (execução penal), de 11 de
julho de 1984, em seu artigo 152, parágrafo único, define: “Nos casos de violência
96

doméstica contra a mulher, o Juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório


do agressor a programas de recuperação e reeducação”.
O descumprimento das leis demonstra certo descaso, pré-conceito e pré-
julgamento com essa população; mostra, também, a ausência de conhecimento
sobre o fenômeno da violência, que em suas análises prevê a intervenção com as
vítimas e seus autores, uma vez que esse autor estabelecerá uma nova relação e
poderá perpetuar a violência.
Apresentaremos em seguida os motivos, que levam os homens a cometer
violência, na percepção dos profissionais.

 Os motivos da violência cometida pelos homens, na percepção


dos profissionais:

Nessa categoria, os sujeitos sobressaltaram os motivos relacionados às


questões psiquiátricas, comportamentais e culturais. Todavia, teceram explicações
sobre suas colocações e, em respeito, optamos em manter os relatos na íntegra,
valorizando suas percepções.
Esses três relatos foram agrupados, pelo alinhamento no conteúdo
expressado.

(...) eu acho que a questão da violência doméstica é muito permeada pelos


aspectos culturais, que envolvem tanto o perpetrador da violência quanto
quem sobre a violência, em relações continuadas. O boletim de ocorrência,
é a fotografia de um momento escalado de violência e, só por ele não dá pra
você perceber em que contexto essa violência aconteceu, então, você
precisa entender o contexto, entender um pouco a história de vida das duas
pessoas ou das três pessoas ou dessas pessoas que estão convivendo
nesse contexto; Em violências as situações não são tão palpáveis, os
perpetradores não entendem que aquilo seja violência, então, por exemplo,
quando é, abuso de poder econômico, violências morais, psicológicas, eles
não percebem, por outro lado, quando à violência física, tem duas situações
que tendencialmente eu vejo, uma pessoa não lembra do que aconteceu e
ou tem um remorso absoluto, que o faz tentar identificar uma causa para
aquilo e muitas vezes um pedido absurdo de perdão, associando aquela
violência a uma exceção, porque é uma pessoa honesta, uma pessoa
trabalhadora, então isso é um corte na minha visão, por isso, precisa
entender o contexto e a história de todos os envolvidos. Tem alguns fatores
incidentes como: alcoolismo, adições á drogas, ansiedades, paixões; alguns
aspectos de ordem psiquiátrica e existem também, os sentimentos, as
paixões e outros fatores, mas esses fatores, não são para justificar a
violência é para entender esses padrões. Não podemos ficar presos no
boletim de ocorrência que é somente a ponta do iceberg, precisamos ter um
panorama mais amplo do contexto que não seja só o ato da violência em si.
(TERESA)
97

(..) se fosse no início, quando eu comecei a trabalhar, eu responderia que o


motivo é o machismo, é óbvio que é, é, ainda é, mas hoje eu completo, são
as intersecções. Penso que são essas articulações de todos esses campos
da vida: raça, gênero, classe, dentre outros marcadores. Muitos nos
perguntam assim "ah, qual é o perfil do homem que passa no grupo?" não
existe um perfil, essa pergunta é bem ingênua, porque o que define os
homens do grupo para os homens de fora do grupo é somente um boletim
de ocorrência, as referências são as mesmas, entre os homens da minha
família, dos homens que são meus amigos, em termos de referência, às
vezes acaba não mudando muito do dos homens dentro do grupo. As
referências de masculinidade, não acompanharam as mudanças do mundo,
dos movimentos feministas, dos movimentos LGBT, as referências de
masculinidade pararam no tempo. Então a gente entende a violência como
uma tentativa de retomar esse poder, quando esse poder está sendo
ameaçado é, à ameaça da hegemonia masculina. O homem não sabe
conversar e com a falta de um repertório, é muito fácil passar para a
violência. A violência que deveria ser um dos últimos recursos, acaba sendo
como um dos primeiros, porque ele acaba não tendo outros recursos
simbólicos para lidar com tudo que ele sente. (LOURENÇO)

(...) a gente tem percebido que nós, na nossa construção de homens, nessa
sociedade que é machista e patriarcal, a gente é ensinado ao machismo,
ensinado a violência desde muito novos, então o perfil daquilo que é
esperado por um homem na sociedade é um perfil machista, isso que é
considerado ser homem na nossa cultura é isso. O modelo é aquele homem
forte, corajoso, que resolve tudo, que enfrenta riscos, espécie daquele
guerreiro medieval. Nós homens somos preparados para exercer violência
desde sempre, na nossa infância, nos jogos, nas brincadeiras infantis;
modelos de brincadeira privilegia aquele homem que é mais esperto, que é
mais falador, que é mais líder, as nossas brincadeiras são sempre de
competição, tempo todo estimulado a exercer a violência e nós exercemos
violência não é só contra mulher, em uma forma geral, um jeito de ser
violento, a gente vê nas condutas do dia a dia. Todo o nosso contato é
violento, então não é permitido para nós termos uma relação afetuosa, de
um afeto positivo, a meu ver é isso que causa violência contra a mulher, é
esse machismo que está estabelecido entre as relações entre os homens.
(AFONSO)

Esses três profissionais trabalham com HAV em grupos reflexivos e possuem


larga experiência. Percebemos esse acúmulo em seus relatos acerca das relações
violentas, bem como nos apontamentos dos motivos. Todos entendem o homem
como fruto de uma cultura machista, e de mecanismos de socialização e de
convivência que incentivam e privilegiam a violência.
A cultura machista foi apontada principalmente quanto aos recursos violentos
para aprender a “ser homem”, viril e macho. Referem-se ainda à ausência de
recursos simbólicos afetivos como motivos impulsionadores dos atos violentos.
Lembremos que os HAV também se manifestaram a esse respeito. Parece-nos que
as condições objetivas do “homem de verdade” e dominador tem na ausência de
recursos afetivos o disparador dos atos de violência. Esses apontamentos não
colocam os homens como vítima de si e da sociedade, mas levantam os
98

aprisionamentos internos e externos que denotam o uso da violência como


instrumento.
Nessa mesma linha, o uso de substâncias psicoativas foi levantado como um
potencializador da violência, conforme afirmado pelos homens sujeitos da pesquisa
Inácio, Ambrósio e Francisco.
Quando refletimos sobre essas narrativas percebemos com certa clareza as
“causas” da violência, e as simplificamos. No entanto, e como mencionado pelos
profissionais, o uso de SPA29 é somente a ponta do icerberg, uma vez que esse uso
está sempre associado às diversas situações históricas, sociais, culturais e afetivas.
Concordamos com os profissionais quando afirmam que o uso de SPA é um
potencializador para a violência.
Para a profissional Catarina, os motivos estão pautados nas frustrações do
ego, no tipo de orientação que recebeu no convívio familiar e que é legitimada pela
cultura.
Frustração, acho que esse seria talvez o maior dos motivos, frustração e
ego frágil, essas duas coisas, a frustração é no sentido de que ele não é
capaz de lidar com um "não", ele não consegue lidar com isto e a resposta é
muito regredida, regressiva, então, ele reage num nível instintivo, parece
que essa parte do córtex cerebral não predomina, essa é a parte mais
evoluída do ser humano, só que isso fica lá num cantinho e ele retoma a
parte instintiva, os impulsos, ele explode de raiva, ele grita, ele berra, é mais
ou menos parecido com isso. Sabe o argumento de que fulano matou
porque estava sobre forte emoção, acho que ele tem base nesse tipo de
coisa. A frustração meio que toma conta da pessoa e não consegue agir de
outro jeito, mas ele tem algo que se soma a esse comportamento que é a
cultura, Ele é um macho, ele é um homem, ele é que manda, ele é o dono
da mulher, são conceitos que também são muito arraigados no psiquismo.
(...) Ele cresceu se sentindo o centro do universo, o sol, não sendo favorável
ao que ele pensa, ao que ele deseja, ele reage dessa maneira, reage
agredindo, reage quebrando tudo, então eu acho que a cultura não ajudou a
lapidar seus instintos, acho que a cultura favorece esse ego exaltado, dá
muito valor para essa postura dominadora. (CATARINA)

Compreendemos que o ideal de masculinidade patriarcal exalta “o homem de


verdade” como aquele que é dominador de si e dos outros, mas, quando essa
masculinidade é ameaçada, ele – homem – reage muitas vezes com violência.
Como destacou o profissional Lourenço “o homem não tem recursos” para lidar com
fracasso e, como já mencionado, nossa cultura permite e legitima essa
masculinidade, colocando-a como padrão a ser alcançado a qualquer preço.
Contudo, não são todos os homens que seguem essa “cartilha”; existem outras

29
SPA: Substância Psicoativas.
99

masculinidades e, ainda, outras que podem ser construídas fora dos padrões de
masculinidade hegemônica. (Cf. CONNELL,1995)
Muitas das motivações, dos homens autores de violência, que eu entendo,
que eu observo é o que eu escuto deles está relacionada a uma dificuldade
que eles tem de convívio familiar, anterior a famílias que eles constituíram,
então estou falando de dificuldade de relacionamento com o pai, dificuldade
de relacionamento com a mãe. Muitos deles sofreram abusos de todos os
tipos com o pai ou com mãe, negligências de vários tipos, tem uma questão
histórica anterior, que faz com que nesse momento eles ajam com violência,
seja contra mulher, seja contra criança, adolescente ou qualquer outro tipo
de pessoa, então está relacionado a questões familiares antigas e famílias
bastante disfuncionais. (ALBERTO)

É sabido que a família é o primeiro núcleo de socialização, responsável pela


organização e construção de sentidos e de experiências que afetam os processos da
vida social. Inácio, Ambrósio e João sofreram e vivenciaram situações de violência,
principalmente contra suas mães, e essas experiências deixaram marcas profundas,
que o tempo não foi capaz de cicatrizar, pelo contrário: feridos que foram, feriram e
deixaram marcas em outra pessoa; (re)produziram, assim, as experiências violentas.
Todavia, a família não pode ser considerada a única responsável por tudo, ou
como uma unidade isolada do contexto; ao contrário, outras instituições e outras
experiências se produzem ao longo da vida, capazes de reconstruir outros sentidos,
outras masculinidades, outras socialidades que não projetem a violência como único
recurso possível para lidar com os fracassos individuais e coletivos.

 Repercussão do trabalho com os homens autores de violência:

Os três relatos que se seguem foram agrupados pelo alinhamento do


conteúdo que apresentam. Percebemos que existe, nos profissionais, uma
perspectiva de positividade quanto ao trabalho que realizam, que podem melhorar
muito, recriar alternativas. E, de certa forma, esse tipo de esperança profissional
reforça a possibilidade do espírito humano, em um determinado lugar, em um
determinado tempo, descobrir que pode regenerar-se, superando as forças de
destruição. (Cf. Morin, 2003)
Eu sou mediador de conflitos, trabalho com a linha da psicologia, humanista,
fenomenológica, existencial, trabalho com comunicação não violenta,
costumo fazer trabalhos em grupos e crio um ambiente onde eles possam
ser eles mesmos, trazer seus medos, traumas, preocupações do universo
masculino, sendo esse universo hoje muito difícil onde possa ser homem,
homem no sentido masculino mesmo, independente de orientação sexual.
Eu consigo ver a repercussão, a partir da fala deles, eles chegam com uma
baixa autoestima muito grande, com um nível de agressividade muito alto de
raiva, mas ao final do grupo, sai com um nível de conscientização e
100

entendendo que pode ser um homem diferente e eu ouço falas deles de


agradecimento, então é essa forma que eu tenho de retorno, um feedback.
(ALBERTO)

A gente leva com a teoria de gênero, da Joan Scott, com a teoria de


ideologia com John Thompson, trabalha um pouco com essa noção de
construção social, então buscando entender de que forma que o machismo
foi construído socialmente, de que forma que ele se reproduz e também
com as análises de discurso. (...) a gente faz um curso de gênero e
masculinidade para homens se tornarem multiplicadores, facilitadores desse
trabalho, no “E agora José? nós estamos em dez facilitadores, são homens
replicando esse trabalho e modelo. Agora está bem interessante porque já
faz mais de um ano que eu mesmo já não faço mais o grupo no "E agora
José?" os facilitadores vão pra salas, eu fico recebendo os homens novos
que chegam, fico entrevistando aqueles que já acabaram o processo,
quando eu vou conversar com eles no final, quando ele passou já pelo
processo, e ai fico vendo essa devolutiva deles, vendo as mudanças de
discurso. (AFONSO)

A gente trabalha com a perspectiva de gênero, pensando em outros moldes


de socialização masculina, divisões de mundo, de maneiras de ver o
mundo. A gente tem uma formação em gênero, estudamos autores, autoras
de gênero, feminismo e as teorias de masculinidade, não temos uma
metodologia por si só, a gente é muito mais pautado em princípios e
pressupostos, porque o homem, até como disse Simone Beauvoir "não se
nasce mulher, se faz uma mulher" o homem é a mesma coisa, o homem é
socializado para ser homem, tem referências, que são papéis, ele aprende a
relação do trabalho, aprende a ser pai, aprende a reagir, a ser homem é ser
violento, ser homem é ser viril. Pensamos como uma construção histórica,
fugindo, do ideal patriarcal e do viés patológico, a gente vê como um viés
estrutural, de uma socialização masculina, o nosso viés é: pensar outras
formas da socialização masculina. Tem repercussão, sim, exemplo, quando
o grupo acaba, os homens ficam do lado de fora conversando, olha são
duas horas de grupo, e eles continuam conversando, a gente percebe que a
linguagem muda, a maneira de ver os fenômenos muda, os
comportamentos, as concepções, a narrativa muda, eles chegam vomitando
minha mulher e as mulheres não prestam”, “a polícia não presta”, “a justiça
não presta”, “Lei Maria da Penha, é a Lei mais absurda do mundo”, “eu não
fiz nada”, essas falas são quase uma regra, mas depois eles vão se
responsabilizando, porque eles passam a ter um espaço para falar, eles
elaboram as questões, você vê que eles estão mais propensos ao diálogo,
ao invés de partir logo para o ato, para a violência, você percebe que é uma
tremenda falta de recurso. Não temos estatísticas oficiais, mas a juíza que
encaminha os homens para o grupo, fez um levantamento e constatou que
somente 6% dos nossos homens reincidiu, ou seja, eles tendem a reincidir
menos. Tem muitos homens que entram machistas e saem machistas, sim,
acho que todos, mas tem uns que ao menos fazem uso do instrumental do
grupo, para pensar. (LOURENÇO)

Todos os profissionais são homens trabalhando com homens, que confirmam


a possibilidade de construir outra socialização, outras masculinidades, outros
“homens”. Realizam grupos reflexivos de HAV com inquérito policial, procedimento
de medidas protetivas e/ou processos criminais em andamento, que são
encaminhados às instituições em parceria estabelecida com os Tribunais de Justiça.
Apenas o profissional Alberto presta serviços a várias instituições.
101

Os profissionais mencionaram de maneira veemente que os espaços de


escuta são importantes para trabalhar a desconstrução dos “padrões” estabelecidos
pela sociedade, e gerar uma reflexão sobre si mesmo, os outros, o contexto e a
sociedade. Essa necessidade nos faz lembrar do primeiro contato que tivemos com
os homens autores de violência participantes desta pesquisa, quando inicialmente
indagaram: “Ninguém quer nos ouvir, porque você quer?” “Posso falar a minha
versão da história?”. A maioria afirmou que em nenhum momento, antes, durante e
após aos fatos, eles foram ouvidos ou alguém perguntou a sua versão dos fatos, e
quando isso foi possível, estavam em julgamento de condenação. Queixavam-se
que os espaços de escuta são importantes não para justificar os fatos, mas para
serem ouvidos como pessoas, e também para se ouvirem.
Embora a repercussão do trabalho ocorra através da discussão e reflexão em
pequenos grupos, essa estratégia acaba se tornando importante, pois favorece a
continuidade do diálogo entre eles mesmos. Como afirmou Lourenço, "não se nasce
mulher, se faz uma mulher; o homem é a mesma coisa, torna-se homem” (Simone
Beauvoir). Os espaços de formação, de escuta, de fala, de relação e de reflexão,
baseados em outras possibilidades de conhecimentos e de comportamentos,
constroem novos homens.
Estamos aprimorando a metodologia de trabalho em grupos, grupos
reflexivos, justamente por conta dessa cultura e também, a psicoterapia
breve. Eu atendi um caso por cinco anos, eu consegui, vislumbrar essa
repercussão e mudanças na relação com o parceiro, a pessoa em questão,
não tinha muito autocontrole, ele se exacerbava com facilidade, também
eles tinham um problema de comunicação a parceira também era
autoritária. Então eu pude observar mudanças na relação do casal e até nas
tendências de personalidade dessa pessoa. Você (profissional) acaba tendo
que se adaptar e tendo que aprender a olhar com os olhos deles.
(CATARINA)

Mesmo com estratégia diferente dos demais entrevistados, Catarina afirma a


importância do acompanhamento a longo prazo para vislumbrar mudanças, partindo
da escuta, da comunicação e da reflexão.
No projeto eu trabalho com a mediação interdisciplinar, entendendo o sujeito
no contexto social e na relação; entender o sujeito que sofre a violência, ele
sujeito que prática e todos atores é trabalhar esse todo. Fazemos grupos
pré-mediação, separando o perpetrador, de quem sofreu, então fazemos
grupos mistos, homens e mulheres, vítimas e agressores, supostamente
vítimas e agressores; depois passamos para os grupos de psicoterapia
breve individual e caso precise com a família. Trabalhamos com a mediação
com suporte também jurídico, caminhamos para tentar, em um primeiro
momento organizar, as questões de família, as questões empresariais, e
outras questões que não são só da ordem do processo crime. São em
média dez sessões de mediação de duas horas de duração, tirando as
sessões de suporte psicoterapia que duram de três a quatro meses. O
102

processo todo dura no mínimo, de sete meses a um ano. Trabalhamos o


processo de comunicação, de organização e o acompanhamento como um
suporte para uma transformação. Temos várias pesquisas feitas, de
mestrado e doutorado sobre o nosso trabalho. Um dos indicadores de
mudança é que a gente acaba sendo referência para eles. (...) costumamos
usar um método que chama termômetro de emoções, são reações físicas
na hipótese de uma escalada, exemplo, você vai tratar de um assunto que é
conflituoso, você mapeia suas reações em seu corpo, assim, você consegue
perceber quando vai escalar, antes de chegar ao ponto de explodir e ter o
episódio de violência, isso funciona super bem, mas isso é um contensor,
mudança de primeira ordem, não é transformador. Os instrumentos
reflexivos, instrumentos psicoterapêuticos, instrumentos de ordem social,
onde as pessoas consigam se situar de uma maneira diferente no mundo e
ver o mundo de uma maneira diferente, isso são mudanças de segunda
ordem. (TERESA)

Teresa e Afonso descrevem brevemente a formação dos grupos, o processo e


o tempo; ambos ressaltam o acompanhamento mais estendido, assim como
Catarina, como fundamental para observar as mudanças.
Assim, como observado pelas diferentes narrativas dos profissionais, os
homens autores de violência não podem ser reduzidos somente ao que consta dos
boletins de ocorrência; é necessário menos preconceito, olhar além dos fatos, ouvi-
los, considerar o contexto social e os recursos subjetivos que envolveram tais
sujeitos desde a infância. Os motivos elucidados pelos profissionais dialogam com
os levantados pelos homens, e as estratégias de intervenção contribuem, mas não
bastam. A necessidade de políticas de atenção social e jurídica torna-se primordial;
políticas e investimentos públicos, redes de atenção, meios de comunicação
comprometidos com a desconstrução dos padrões e, principalmente, investimentos
em educação igualitária.
Esse caminho corrobora com o traçado pelos profissionais e pontuado pelos
homens sujeitos dessa pesquisa. Abre-se a possibilidade de sair do fatalismo e do
pré-julgamento. O trabalho com esses homens é desafio constante, suscita um
diferencial profissional porque exige que mudemos nossa maneira de conhecer e de
pensar para poder agir. Ademais, exige uma ética de responsabilidade e de
solidariedade, uma ética intersubjetiva direcionadas a outro patamar de
compreensão sobre a condição humana.
103

Referências Bibliográficas do Capítulo V

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Ed.


Nova Fronteira, 1980.

BRASIL, Presidência da República. Lei 11.340/2006, de 7 de agosto de 2006.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 10 de mar. de 2018.

BRASIL, Presidência da República. Lei n. 7.210 de 11 de julho de 1984. isponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm . Acessado em:10 de mar. de
2020

CONNELL Robert W. Políticas da Masculinidade. Revista: Educação e Realidade,


Porto Alegre, RS, jul- dez, 1995.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e
Realidade, Porto Alegre, RS. v. 20, n. 2, p. 133-184, jul./dez. 1995.

MORIN Edgar. Cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento.


Tradução Eloá Jacobina. 8ªed.; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
104

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] a aventura científica é uma aventura complexa


na qual a obstinação empírica das observações,
questionamentos, experimentações, finalmente
elevou ao primeiro plano o que ela havia banido
por princípio: a complexidade.
(Edgar Morin)

O propósito inicial deste estudo, dirigido à compreensão dos motivos que


conduziram homens a cometerem violências contra mulheres, nos projetou a um
campo de conhecimentos maior do que pensávamos em princípio. Há anos
estudamos a temática da violência vinculada a seus autores, e nessa trajetória, até o
momento fomos percebendo que os motivos que geram violência nunca aparecem
de modo isolado, mas sempre interligados e em interação com as condições
objetivas e subjetivas da vida desses homens. Nessa perspectiva, procuramos
referenciais teóricos que dialogassem com essas dimensões, no intuito de
compreender a forte relação entre a parte e o todo.
A escolha da abordagem multidimensional para estudar a temática possibilitou
maior aproximação à dinâmica da realidade e seus contextos sociais, e a reavaliar a
complexidade humana na articulação entre objetivo e o subjetivo, entre o abstrato e
o concreto, entre razão e emoção.
Compreendemos a violência como fenômeno multifacetado, ou seja, em sua
pluralidade dimensional que se manifesta na vida coletiva e individual, nos espaços
públicos e privados, nas macrorrelações e nas microrrelações, nas diversas
configurações da vida humana. Para isso, fomos a Arendt (1999) que nos auxiliou a
deslocar um pensamento arraigado de homem agressor como condição “natural” do
“homem comum”. Socializado através das práticas masculinas, são elas que
afirmam os padrões de masculinidade incorporados e legitimados pelo patriarcado,
que garantem a posição de dominante do homem e a de subordinação da mulher
(CONELL, 1995). Nesse sentido, concordamos com Nolasco (1997), quando destaca
a expressão “homem de verdade” para definir esse padrão hegemônico de homem,
esperado e legitimado pela sociedade.
O sujeito não é só um produto do meio social, mas resulta da subjetividade
construída e produzida no contexto das relações sociais, históricas, econômicas e
105

culturais (Cf. González Rey, 2003). O homem age como sujeito singular e coletivo,
constrói, altera ou modifica determinado espaço, e é produto e produtor dessas
relações. É nesse contexto complexo, diversificado e contraditório entre indivíduo e
sociedade que vão se constituindo como sujeitos reais da história humana.
Vivenciamos, na realização desta pesquisa, um caminho desafiador e
conflituoso; estudar o homem autor de violência não é fácil, pois chegar até eles,
ouvir a pessoa que humilhou, ameaçou e “quase matou” sua companheira requer o
exercício de desnudar-se de pré-conceitos e julgamentos, elevar a visão para uma
dimensão que transcenda os fatos imediatos, para um maior contexto social, familiar,
histórico, cultural, moral. Sofremos também nesse processo, pois a atividade
investigativa e de trabalho gera efeitos subjetivos. Em nossa trajetória profissional
estudávamos a violência contra mulher na perspectiva “única” da dominação e da
submissão, da mulher como vítima e do homem como agressor. O tempo e as
experiências adquiridas no decorrer dos quatro anos do doutorado colocaram em
xeque nossos pontos de vista e conhecimentos, muitas vezes tomados como
verdades, e nos projetaram a um outro patamar de compreensão sobre a realidade
das relações sociais, humanas e afetivas. O homem é sujeito de uma cultura
masculina hegemônica, socializado para dominar, e a violência vigora quando a
agressão se torna um instrumento para lidar com o fracasso, com a fragilidade de
poder. E, nesse contexto, a mulher é também produtora e reprodutora de violência e
dos processos de subjetivação humana.
As desconstruções e novas construções de conhecimento não minimizam as
violências cometidas pelos homens contra as mulheres, tampouco os colocam em
um lugar de vítima da sociedade, mas nos alertam como profissionais,
pesquisadores, pais, mães, filhas(os), amigas(os), etc., no sentido de questionar o
modo vigente e construir novos padrões de comportamentos e de masculinidades,
pautados na reconstrução da pessoa humana.
A cultura machista é levantada pelos homens sujeitos desta pesquisa e pelos
profissionais como sendo um motivo para a violência. Concordamos com os dizeres
do profissional Afonso quanto ao machismo:

(...) a sociedade que é machista e patriarcal, a gente é ensinado ao


machismo, ensinado a violência desde muito novos, então o perfil daquilo
que é esperado por um homem na sociedade é um perfil machista, isso que
é considerado ser homem na nossa cultura é isso. O modelo é aquele
homem forte, corajoso, que resolve tudo, que enfrenta riscos, espécie
106

daquele guerreiro medieval. Nós homens somos preparados para exercer


violência desde sempre, na nossa infância, nos jogos, nas brincadeiras
infantis; modelos de brincadeira privilegia aquele homem que é mais
esperto, (...) tempo todo estimulado a exercer a violência e nós exercemos
violência não é só contra mulher, em uma forma geral, um jeito de ser
violento, a gente vê nas condutas do dia a dia. Todo o nosso contato é
violento, então não é permitido para nós termos uma relação afetuosa.

É importante destacar que a família também é considerada como núcleo de


reprodução da violência e de comportamento que privilegia o “ideal” patriarcal como
natural e perfeito. A manutenção desse modelo ideal foi levada às últimas
consequências, utilizando violências para a permanência ou correção da
“desorganização” familiar, mantendo o casamento como um contrato de fidelidade
para sempre. O modelo de família e a expressão “unidos para sempre” é colocada
pelos homens autores de violência como modelo intangível.
O rompimento do contrato de fidelidade e o ciúme foram destacados como
motivos significativos para a violência contra a mulher. Através dos depoimentos,
percebemos que a traição é inaceitável e a simples suspeita ou fala que revele
alguma ameaça desperta no homem a “raiva” por ter fracassado como “homem de
verdade”, por ter perdido para outro homem, ter sido traído em seus sentimentos.
Consequentemente, a “punição” para minimizar o sentimento de fracasso, corrigir o
erro, retomar o poder como macho dominante, descontar suas emoções – tudo isso
ocorreu junto e em uma fração de segundo –, gerou o descontrole e, na ausência de
outros recursos, a violência foi usada como instrumento para punir as mulheres.
Depois, quando tomam consciência, se arrependem e relatam que foi um momento
de descontrole e de ausência de outras possibilidades para contornar a situação.
Fica nítido que a dor gerada pela traição abalou sua masculinidade e motivou a
violência.
A categoria “do outro lado da razão”, aqui trabalhada, trouxe aspectos únicos
e reveladores; numa imagem simbólica, foi como tirar a casca de um tronco de
árvore: no início é dura e impossível, mas em contato com o sol, a casca seca e se
desprende da madeira. Mesmo assim, em alguns lugares a casca continua grossa e
grudada, precisa ser arrancada e, às vezes, fere a madeira. Ao final desse trabalho,
aquele pedaço de madeira, antes feio e inútil, revela seu verdadeiro conteúdo, com
cor e formato diferentes, podendo, agora, ser usado de diversas formas, desde
banco até peças de decoração. Essa imagem revela um pouco os homens sujeitos
da pesquisa que, quando estimulados a falar das suas histórias, deixaram cair suas
107

cascas duras e revelaram a pessoa que sente, chora, se arrepende, faz coisas
erradas, age sem pensar, machuca pessoas, se machuca, não sabe de tudo e não
tem poder absoluto; uma pessoa do gênero masculino; um ser humano. Claro que a
madeira nua apodrece em exposição ao tempo e ao clima, por isso, precisa ser
envernizada com várias camadas para resistir. Podemos (homens, mulheres,
profissionais, pesquisadores) desenvolver e construir vernizes de uma educação
igualitária; novas masculinidades; relações de afetos pautadas no diálogo e em
sentimentos verdadeiros.
Dentro dessa proposta, os profissionais mostraram que o grupo reflexivo
(mesmo dentro de seus limites) pode ser uma estratégia de “remoção das cascas” e,
em contato com outras possibilidades de “ser homem”, vão construindo novas
relações, primeiramente entre eles (membros do grupo), depois entre os outros,
externos ao grupo. Percebemos um início de mudança nas falas dos sujeitos que
passaram pelos grupos. Seus discursos diferenciam-se, em alguns aspectos, dos
outros, principalmente na compreensão da cultura machista e suas implicações; na
leitura dos atos de violência como ato de descontrole; na ausência de conhecimento
para lidar com as situações e nas possibilidades de “prevenção” à violência. Um dos
sujeitos, inclusive, trabalha com outros homens autores de violência, depois que
passou pelo grupo de reflexão, divulgando suas experiências ruins e como, a partir
delas, aprendeu e adquiriu outros sentidos para a vida. Os sujeitos que não
passaram por nenhum atendimento demonstram em seus discursos raiva, ódio e um
sentimento de vingança; demonstram desespero frente à situação, ficando explícito
em suas falas que “perderam tudo”, como derrota social e individual.
Percebemos, nos discursos, mesmo diferentes e em níveis de reflexão
distintos, um resultado mínimo de mudança entre eles, reforçando o caminho trilhado
pelos profissionais que atuam com intervenções pautadas no coletivo, como espaço
de escuta e de fala na construção de novas masculinidades e de novas relações.
Não justificamos os atos de violência e nem colocamos os homens autores de
violência como vítimas; não minimizamos as mulheres em situação de violência e
nem as vidas ceifadas por alguns desses homens. A gravidade dessa questão põe
em pauta a urgência das políticas de atenção às mulheres, tanto na proteção como
108

na prevenção. Não é admissível que 1.959 mulheres (2019)30 continuem sendo


assassinadas por crime de feminicídio, e 263.067 mulheres vítimas de lesão corporal
dolosa (2018). Entre janeiro e julho de 2019, 844 homens foram presos em flagrante
por violência doméstica, uma média de 4 prisões por dia (Secretaria Estadual de
Segurança Pública de SP). Sabemos que somente o trabalho com as mulheres não
é suficiente para previr e diminuir os impactos da violência, e observamos neste
estudo que os homens também são acometidos de violências, e que o trabalho com
eles é tão necessário quanto com as mulheres.
O trabalho com os autores de violência requer profissionais capacitados, que
os enxerguem como sujeitos de direitos, que devem ser ouvidos e atendidos na
esfera das políticas públicas de saúde, assistência social, educação, bem como por
profissionais de Serviço Social, Psicologia, Direito e outras áreas que se fizerem
necessárias. A ausência de políticas, serviços e programas de atendimento ao
homem autor de violências e principalmente de profissionais de Serviço Social
trabalhando com esses sujeitos causa estranhamento e surpresa, uma vez que se
trata de uma profissão que atua nas expressões da questão social e na luta pelos
direitos sociais e humanos.
Parece que o Serviço Social não se apropriou do debate sobre a
masculinidade e as relações afetivas que envolvem a temática, tanto objetivas
quanto subjetivas e familiares. É uma necessidade e um desafio que nos
aproximemos de outros campos do saber que tenham acumulado experiências
teóricas e práticas com essa população para, assim, construir mecanismos de
intervenção junto aos homens autores de violência, uma vez que é ele sujeito de
direitos.
Findamos este estudo com mais perguntas do que aquelas que o suscitaram
em seu início, e com a sensação de que apenas arranhamos esse assunto.
Trabalhar com essa questão exige mudanças, e mudanças trazem inseguranças,
diferentes medos, como de reformular nossas relações; ver o outro como igual;
mudar nosso cotidiano e nosso olhar; sentir amor e compaixão; relacionar-se com
nossos monstros internos e externos. Estamos, sempre e ainda, muito presos à
certezas e verdades absolutas.

30
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública; pg.108-110.
Disponível em: www.forumseguranca.org.br. Acesso em: 10 de fev. de 2020.
109

Superar dificuldades sociais e políticas que envolvem essa temática significa


resistir ao que há de impiedoso também na política e nas relações entre os seres
humanos. É preciso discernir hoje uma resistência mais profunda, primordial à
crueldade do mundo. (Cf. Morin,1997, p. 274).
110

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114

ANEXOS

Anexo A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Você está sendo convidada/o como voluntário a participar da pesquisa: práticas


violentas contra mulheres e os motivos de seus autores.
Este termo é um instrumento para obter seu consentimento de participar desta
pesquisa, coordenada pela pesquisadora Carla da Silva, aluna do Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
– PUC SP (Doutorado).
Como voluntário, você tem o direito de interromper sua participação a qualquer
momento se assim o desejar. Na pesquisa trataremos de compreender as
motivações que os conduziu às práticas de violência contra a mulher. Nesse
processo garantimos o sigilo e fidelidade às suas informações.
As entrevistas serão gravadas em áudio se for de seu consentimento. Você não
será identificado e uma cópia deste consentimento informado será arquivada e outra
será fornecida a você.
Nosso propósito nesta investigação consiste em analisar e compreender as
motivações que conduzem os homens às práticas de violência contra a mulher. Para
tanto, definimos como objeto desta pesquisa, as motivações que conduzem os
homens às práticas de violência contra a mulher.
Como procedimento para coleta de material utilizaremos a entrevista aprofundada,
com o suporte de gravação de áudio para registro das informações As entrevistas
podem durar mais ou menos 1:30hs dependendo do protagonista e terão como
estratégia para início do encontro entre pesquisador e entrevistado, alguns itens
norteadores.
Fui alertado de que, da pesquisa a se realizar, não resultará em nenhum benefício
valorativo e que é possível que aconteçam os seguintes desconfortos ou riscos
como: invasão de privacidade; tomar o tempo do sujeito ao responder a entrevista;
responder a questões sensíveis, tais como atos ilegais e violência. Dos quais
115

medidas serão tomadas para sua redução, tais como: minimizar desconfortos,
garantindo local reservado e liberdade para não responder questões
constrangedoras; estar atento aos sinais verbais e não verbais de desconforto; e
assegurar a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não
estigmatização, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das
pessoas e/ou das comunidades, inclusive em termos de autoestima, de prestígio
e/ou econômico – financeiro.
Todos os procedimentos estão de acordo com os princípios éticos que regem
atividades vinculadas a pesquisa, atendendo à Resolução 196/96 e 466/12 e
complementares do Conselho Nacional de Saúde, que trata de pesquisa com seres
humanos.
Eu, ____________________________________________________________, RG.
_________________________________, fui informada/o dos objetivos da pesquisa
acima de maneira clara e detalhada e esclareci minhas dúvidas. Sei que em
qualquer momento poderei solicitar novas informações e motivar minha decisão se
assim o desejar. A pesquisadora certifica-me que todos os dados desta pesquisa
serão confidenciais. Também sei que caso existam gastos adicionais, estes serão
absorvidos pelo orçamento da pesquisa; caso eu tenha qualquer despesa decorrente
da participação na pesquisa, tais como transporte, alimentação entre outros, estes
serão absorvidos e de inteira responsabilidade da pesquisadora. De igual maneira,
caso ocorra algum dano decorrente da minha participação no estudo, serei
devidamente indenizado, conforme determina a lei.
Declaro que concordo em participar desse estudo. Declaro ainda que recebi uma
cópia deste termo de consentimento livre e esclarecido e que me foi dada a
oportunidade de ler e esclarecer as minhas dúvidas.

Campinas, ____ de ____________ de 2019.

Nome: ___________________ Nome: Carla da Silva


Assinatura do Participante Assinatura do Pesquisador
116

Anexo B – Parecer do Comitê Ética


117
118
119
120

Anexo C – Questionário (1)

Público Alvo: Homens Autores de Violência

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL


DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Pesquisa: Práticas Violentas Contra Mulheres e os Motivos de Seus Autores


Pesquisadora: Carla da Silva
Orientadora: Maria Lucia Rodrigues

Alguns dados:
Idade:
Profissão:
Escolaridade:

Quantos relacionamentos amorosos, vc teve? E o tempo de cada relacionamento


(aproximadamente):

Violência cometida:

Respondeu ou responde judicialmente pelo ato de violência:


121

Anexo D – Roteiro (1)

Público Alvo: Homens Autores de Violência

Roteiro para orientar a entrevista:

Conte um pouco da sua família, da sua infância, dos seus pais e/ou cuidadores;

Como foram os primeiros relacionamentos;

Para você como é ser homem e ser mulher na nossa sociedade;

Quando você vê as pessoas que cometeram violência contra as mulheres o que


você pensa?

Você consegue identificar os motivos?

Conte um pouco da sua historia com a violência; como que foi; o que aconteceu;
qual foi gota d’água; como você se sentiu;

Como foi para vc falar sobre tudo isso?


122

Anexo E – Questionário (2)

Público Alvo: Profissionais que atuam com Homens Autores de Violência

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL


DOUTORADO EM SERVIÇO SOCIAL

Pesquisa: Práticas Violentas Contra Mulheres e os Motivos de Seus Autores


Pesquisadora: Carla da Silva
Orientadora: Maria Lucia Rodrigues

Alguns dados:
Gênero:
Idade:
Profissão:
Instituição e ou Local de trabalho:

Tempo de trabalho com Homens Autores de Violência:

O seu trabalho com os homens autores de violência é:


( ) individual ( ) grupal ( ) outros _____________________________
123

Anexo F – Roteiro (2)

Público Alvo: Profissionais que atuam com Homens Autores de Violência

Roteiro para orientar a entrevista:

Do seu ponto de vista, como profissional que atende esse publico qual os motivos
desses homens a praticar a violência?

Qual seria linha do seu trabalho?

Você consegue visualizar se há repercussão do seu trabalho, na vida dos homens


atendidos?

Você sente falta de mais profissionais para trabalhar nessa área?


124

APÊNDICE

MEMORIAL

Relembrar a sua própria história é caminhar por trechos iluminados e escuros,


coloridos e monocromáticos. Nesse breve percurso da minha vida, conhecei
pessoas em momentos escuros, sempre atenuados pela esperança, o que me
ensinou a ter fé na vida e realizar o impossível. Destas pessoas, que são muitas,
destaco uma costureira, humilde, semianalfabeta, que ampliou minha visão sobre
como é formada a vida, ou melhor, como ela é tecida todos os dias, com a
simplicidade da união de pequenos retalhos que, costurados juntos, formam uma
colcha.
Minha costureira é uma mulher de 45 anos que sofria, há décadas, com a
violência física, psicológica e sexual, de seu companheiro e seu filho. Em 2009
trabalhava como Assistente Social na ONG SOS Ação Mulher e Família 31, e numa
manhã a costureira chegou para o atendimento, machucada e chorando. A acolhi e
ouvi sua história, desde a sua infância até aquele dia e, no final de seu relato, ela
compartilhou sua sabedoria comigo: “sabe, a nossa vida é igual a uma colcha de
retalhos; somos costureiras da nossa vida. Ora costuramos com linha forte, ora com
linha fraca, porque não temos força para reforçar a linha. Ora colocamos retalhos
estampados, coloridos, muitas vezes acinzentados e pretos; retalhos grandes e
pequenos, porque é assim a vida, uma colcha de retalhos, costurada de acordo com
a nossa passagem no mundo. Vivemos momentos felizes, sempre por um tempo
curto, e muito tempo de momentos pretos e cinzas. Mas o mais importante é que eu
quem decido o tamanho e a cor do retalho, então posso, no meio de uma sequência
de tecidos pretos que a vida me deu, colocar um pedaço, mesmo que pequeno, de
estampa. Este fará toda a diferença na colcha. Hoje criei coragem e reuni todos os
pedaços estampados de esperança que restaram na minha vida e estou costurando
ao lado de uma sequência de cores escuras e manchadas por dor, sangue e
lágrimas. Hoje eu quero iniciar um novo pedaço da colcha de retalhos da minha vida,

31
OSC SOS Ação Mulher e Família – presta serviço às mulheres e suas famílias em situação de
violência, desde 1982.
125

colorido e somente alinhavado32, porque se eu não gostar, eu desmancho e começo


de novo”.
Não existem palavras para descrever tamanha sabedoria, somente constatar
que a luta pelo tecido mais colorido é ter esperança com fé que tudo pode ser
mudado ao longo do nosso caminho e que nada e para sempre. Tudo passa.
Posso assegurar que a costureira daquela manhã no SOS colocou um
enorme retalho colorido na minha colcha, e eu alinhavei um pedacinho de estampa
de listras na sua, porque são muitos os caminhos e todos nos unem no grande
tecido da vida.

 Os primeiros retalhos: família

Meus pais são verdadeiros engenheiros da vida, realizaram e realizam o


impossível para costurar a colcha de retalhos da nossa família. Sou a primogênita de
dois irmãos. Meu pai trabalhou por 35 anos como motorista de ônibus, depois
continuou trabalhando na construção civil, mas em dezembro de 2019 foi acometido
com um tumor cerebral muito agressivo. No dia 18 de março de 2020, meu pai
descansou na eternidade. Ele acompanhou até a etapa final desse trabalho, mas
não viu sua conclusão. Ele deixou seu grande pedaço colorido em minha vida e uma
saudade imensa, tenho certeza que lá do céu ele esta feliz em ver sua filha
concluindo o doutorado, em ver o impossível acontecer. Minha mãe foi costureira,
doceira, confeiteira e decoradora, hoje continua fazendo tudo isso e muito mais.
Ambos possuem apenas o Ensino Fundamental incompleto, mas detêm uma
sabedoria colorida esplendorosa. Ensinaram os filhos a lutar pelos sonhos e pela
educação, que é o mais coloridos dos retalhos da vida. Hoje, no lugar dos meus
pais, tento repassar ao meu presente, meu filho de coração Richard que não
podemos perder a fé em tempos de escuridão, porque é possível colorir o mundo e
sermos agentes da transformação por meio da educação.

 A aventura de aprender a costurar: educação

32
Alinhavado: ponto falso na costura, que facilita o desmancho.
126

Com dois anos de idade, durante a educação infantil, comecei a alinhavar a


busca pelo saber, e até a 3ª série do Ensino Fundamental frequentei a escola
pública. A partir da 4ª série fui transferida para o SESI - Serviço Social da Indústria -
onde conclui o Ensino Fundamental.
Retornei à escola pública no Ensino Médio e, confesso, foi um desafio,
principalmente estudar à noite e trabalhar durante o dia. Além disso, no último ano
senti a necessidade de intensificar meus estudos, pois o desejo de cursar uma
faculdade aumentava. Na época a UNICAMP ofertava cursinho pré–vestibular aos
sábados. Embarquei nessa loucura e, para minha surpresa, deu certo! Passei no
vestibular da Universidade do Estado de São Paulo – UNESP no curso de Relações
Públicas. Mas o curso é ofertado em Bauru, há 280 Km da minha casa, para isso,
necessitava sair da casa dos meus pais e morar sozinha, sendo uma adolescente.
Além disso, não tínhamos recursos financeiros para arcar com todas as despesas,
então meus pais decidiram não me matricular e buscar alternativas. Hoje admito que
esse tecido cinza que meus pais costuraram na minha colcha harmonizou o conjunto
todo.
Após um ano refleti e decidi prestar Serviço Social na PUC Campinas 33.
Influenciada pela minha mãe, que é vicentina34 e auxilia às famílias em situações de
vulnerabilidade. Na época eu ajudava e acompanhava algumas situações, isso
gerou vários questionamentos sem respostas coerentes, então resolvi buscá-las no
Serviço Social.
Ingressei na faculdade em 2001, com muitos desafios, principalmente
financeiros. Mesmo trabalhando, o salário não era suficiente para as mensalidades,
transporte e alimentação. Mas naquele ano houve uma alteração na arrecadação e
na isenção de impostos às instituições filantrópicas, obrigando-as a destinar parte
dos seus recursos recebidos aos alunos, em forma de bolsas de estudos, incentivos
à pesquisa e projetos de extensão. Como estava com dificuldades financeiras e
prestes a desistir da faculdade, entrei para o programa de bolsa e permaneci até o
final do curso.
33
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
34
Vicentinos: A Sociedade de São Vicente de Paulo (SSVP) é uma organização civil de leigos,
homens e mulheres, dedicada ao trabalho cristão de Caridade. Foi criada em 23 de abril de 1833, em
Paris, na França, com o objetivo de aliviar o sofrimento das pessoas vulneráveis e fortalecer a fé de
seus membros. Rapidamente a Sociedade espalhou-se pelo mundo e já está presente em 150
países. Internacionalmente, a Sociedade de São Vicente de Paulo é membro da Organização das
Nações Unidas, participando do Conselho Econômico e Social (Ecosoc). Disponível em:
http://www.ssvpbrasil.org.br/a-ssvp/ Acessado: 26/07/2018
127

O desafio de conciliar a vida, o trabalho, os estudos e o estágio foi uma


verdadeira montanha russa de descobertas, reflexões e de muitas concessões.
Meu primeiro estágio foi, aos sábados e domingos, no Comitê para
Democratização da Informática (CDI), que tem como objetivo a inclusão digital,
atrelada à educação social, para adolescentes e jovens. O segundo campo de
estágio foi no projeto piloto de assistência às pessoas em situação de rua da cidade
de Itatiba (interior de São Paulo), executado pela Secretaria de Ação Social. A
experiência me proporcionou um entendimento do universo da rua: me ensinou a
decodificar o emaranhado de linhas e tecidos de cada sujeito, e suas histórias de
vida abriram uma janela na minha concepção de mundo “perfeito”. Aprendi a
valorizar cada ser humano como indivíduo singular e coletivo.
Em janeiro de 2005 ingressei em um novo campo de estágio: Centro
Comunitário da Capela, da Secretaria de Assistência Social, em Vinhedo/SP. Agora
no atendimento às famílias beneficiadas pelos programas de transferência de renda.
No último semestre da graduação, optei em terminar essa jornada na Pastoral
Carcerária de Campinas.
Destaco duas experiências acadêmicas que trouxeram cores novas a minha
colcha de retalhos: o movimento estudantil abriu um leque de cores vibrantes, com
possibilidades e saberes desconhecidos. A segunda experiência foi participar da
Iniciação Científica no projeto de pesquisa: Serviço Social e as Políticas Públicas na
Área de Gênero: Formação Profissional, coordenado pela Profª. Drª. Mirian Faury.
As linhas se cruzaram entre as inquietações e as (possíveis) respostas. O
cruzamento causou um encantamento pelo tema (gênero) e pela investigação,
provocando uma costura nova, com a união dos retalhos de experiências: dos
estágios, do movimento estudantil, da formação profissional e de gênero, o que
resultou no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) “Formação Profissional, Estágio
e Gênero: aspecto da questão”.
Motivada com a conquista da graduação, resolvi continuar. Ingressei no
Programa de Aprimoramento para Não Médicos da Faculdade de Ciências Médicas
(FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no Hospital das Clínicas,
com a especialidade em Violência Urbana, Saúde e Serviço Social. O mundo
colorido começava a se mostrar em faixas cinza e pretas na vida das pessoas. No
período de um ano, aprendi a lidar com vidas biológica, psicológica e socialmente
fragilizadas. Aprendi, também, a lidar com o fim da colcha de retalhos de cada um, a
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morte, muitas vezes ceifada por outras pessoas.. Essa aproximação com as vítimas
de violência ocasionou mudanças na minha colcha de retalhos, despertando uma
ânsia por repostas frente aos motivos da violência, da intolerância, do ódio, das
histórias de vida das vítimas e dos agressores. A questão da violência começa a se
cruzar com os retalhos da minha vida.

 Os caminhos da pesquisa se entrelaçam com a vida profissional: o início


da colcha de retalhos em preto e branco

Com a finalização do aprimoramento, comecei a trabalhar em uma instituição


de acolhimento de crianças e adolescentes – ONG Casa da Criança e do
Adolescente. Nessa instituição trabalhei por dois anos, nos quais adquiri experiência
e vivência no trato às consequências da violência na vida das crianças, dos
adolescentes e das famílias. No inicio de 2008 conciliei o trabalho no abrigo e na
ONG SOS Ação Mulher e Família, que atua no atendimento à mulher e famílias em
situação de violências de gênero, doméstica e intrafamiliar.
Ao me aproximar das pessoas em situação de violência percebi que era
constante a busca por respostas à dor gerada por aqueles de maior proximidade
afetiva.
As mulheres chegavam ao SOS com suas colchas de retalhos na cor preta
(sem saída) e branca (vazia). Conforme os atendimentos avançavam, aos poucos
percebia que esse tecido ganhava cor e estampas; logo surgia um pedaço colorido,
costurado com linhas frágeis, mas que se fortificava a cada dia. Apesar da dor, certa
beleza surgia como resultado da intervenção profissional nos impactos e
repercussões da violência na vida das mulheres. Os acompanhamentos
possibilitavam a quebra do ciclo da violência? Essas inquietações levaram-me ao
mestrado na PUC São Paulo, em 2009. Esse período foi o mais intenso e produtivo.
Aprendi novos pontos de costura, realizados com muitas lágrimas e superação. O
produto final mostrou um caminho possível para romper as amarras da violência.
Alertou que precisamos abrir novos caminhos de cuidado para com os profissionais
que atuam com essas situações e (re)pensar a organização da sociedade. O
trabalho está intitulado: Uma Realidade em Preto e Branco: as mulheres vítimas de
violência doméstica.
Este trabalho foi costurado pelas mãos das mulheres (sujeitas da pesquisa);
129

das profissionais; das professoras Maria Lucia Rodrigues (orientadora); Mirian Faury
(co-orientadora); Maria Lucia Martinelli e das muitas amigas e amigos que deixaram
um pedacinho de retalho colorido.

 As linhas embaralhadas da estampa da docência

No último semestre do mestrado apresentaram-me uma nova trilha: a


docência. Esse caminho não foi meu objetivo; o mestrado era a busca pelas
respostas, não o início de um novo jeito de costurar, mas aceitei o desafio. Iniciei a
docência em 2010, no curso de Serviço Social da UNIFIA (Amparo/SP); depois
passei pelas Faculdades de Serviço Social: Instituto Superior de Ciências Aplicadas
ISCA (Limeira/SP);Universidade Paulista (UNIP) (Campinas/SP); e, atualmente, na
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCC). Ministrei várias disciplinas e
em diversos cursos e faculdades. Atualmente leciono: Administração e Gestão
Social, Trabalho e Questão Social, Planejamento Social, e acompanho as práticas
profissionais (estágio). No ano passado assumi uma das disciplinas mais polêmicas
da faculdade, Gênero e Serviço Social, idealizada pela profª. Mirian Faury, em 1988,
que iniciou uma luta contra o Conselho da Universidade, de base Católica, e com os
professores moralistas. A vitoria chegou em 1990, com a permissão para incluir a
disciplina de gênero na grade curricular da Faculdade de Serviço Social da PUCC.
Durante 27 anos a Profª. Mirian ministrou a disciplina. Em meados de 2017 precisou
se afastar da faculdade por motivos de doença, e faleceu em janeiro de 2018. A
minha eterna professora Mirian Faury deixou muitos tecidos coloridos ao longo da
minha vida. O primeiro pedaço foi mostrar que homens e mulheres são pessoas –
iguais - e nada mais. Também me ensinou a escrever academicamente, me
apresentou a pesquisa cientifica, o poder da militância estudantil e, depois, do
movimento feminista; orientou meu TCC, co-orientou minha monografia do
Aprimoramento, minha dissertação de mestrado, inclusive foi banca, e auxiliou com
a construção desse projeto de doutorado. Por anos foi minha coordenadora no SOS,
minha professora e minha amiga. Hoje assumo a disciplina de gênero, com medo e
alegria em saber que sua idealizadora confiou a mim tal incumbência. Mirian Faury,
sempre presente em minha vida.

 O colorido da prática profissional: a busca por linhas de costura firmes


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Enquanto Assistente Social trabalhei na Casa da Criança e do Adolescente


(acolhimento institucional), permaneci por 6 anos no SOS, passei pelo Centro de
Reabilitação Lucy Montoro e, por fim, no Centro de Convivência Casa dos Sonhos.
Esse último resgatou uma indagação que estava adormecida, iniciada no SOS em
2010. Durante a pesquisa da dissertação de mestrado, muitas sujeitas levantaram
que os homens – autores de violência, não nascem para agredir ou matar, e que é
necessário entender o que motivou as agressões para, assim, planejar mecanismos
de atuação junto a esses homens. No Centro de Convivência acompanhei muitas
situações de violência grave e os homens que as cometiam. Muitos frequentavam a
instituição, acabavam expondo suas fragilidades e, muitas vezes, os adoecimentos
causados pela pressão da sociedade. As usuárias que foram vítimas de violência
evidenciavam as mesmas indagações que as mulheres atendidas no SOS em 2010:
quais os motivos levavam os homens a cometerem atos violentos? Como eles
enxergam a violência? Como podemos ajuda-los? Esses questionamentos
novamente estavam sendo feitos para mim. Queria fugir dessas questões, mas
como? Não havia outra solução que não encontrar respostas, porque as mulheres
merecem saber os motivos que levam os príncipes, seres humanos, a virarem sapos
e depois monstros.

 A nova colcha de retalhos...

Com essas indagações fervendo, peguei minha colcha de retalhos e


embarquei no tecido do doutorado, em busca das respostas. A jornada iniciou-se no
segundo semestre de 2016 e, ao longo de quatro anos, reunimos tecidos de texturas
e cores diferentes, aprendemos pontos novos e ousamos costura-los, ao término,
percebemos que a tese se transformou em uma nova colcha de retalhos com mais
perguntas do que respostas, ou seja, a busca continua, pois sou uma eterna
estudante da escola de costura da vida. Aprendendo que sou feita de retalhos e de:
Pedacinhos coloridos de cada vida que passa pela minha e que vou
costurando na alma. Nem sempre bonitos, nem sempre felizes, mas me
acrescentam e me fazem ser quem eu sou. Em cada encontro, em cada
contato, vou ficando maior… Em cada retalho, uma vida, uma lição, um
carinho, uma saudade… Que me tornam mais pessoa, mais humana, mais
completa. E penso que é assim mesmo que a vida se faz: de pedaços de
outras gentes que vão se tornando parte da gente também. E a melhor parte
é que nunca estaremos prontos, finalizados… Haverá sempre um retalho
novo para adicionar à alma. Portanto, obrigada a cada um de vocês, que
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fazem parte da minha vida e que me permitem engrandecer minha história


com os retalhos deixados em mim. Que eu também possa deixar
pedacinhos de mim pelos caminhos e que eles possam ser parte das suas
histórias. E que assim, de retalho em retalho, possamos nos tornar, um dia,
35
um imenso bordado de ‘nós’. (CRIS PIZZIMENT)

35
Disponível em: https://www.pensador.com/autor/cris_pizzimenti/ acessado em: 01/08/2018

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