Do Monstro Ao Homem
Do Monstro Ao Homem
Do Monstro Ao Homem
CARLA DA SILVA
DO “MONSTRO” AO HOMEM:
MOTIVOS DE VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER
São Paulo
2020
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
CARLA DA SILVA
DO “MONSTRO” AO HOMEM:
MOTIVOS DE VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER
São Paulo
2020
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução
parcial ou total desta Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou
eletrônicos.
Carla da Silva
carla_servicosocial@yahoo.com.br
da Silva, Carla
Do “monstro” ao homem: motivos de violências contra a mulher / Carla da
Silva
-- São Paulo: [s.n.], 2020.
131p; 21 X 29,7 cm.
DO “MONSTRO” AO HOMEM:
MOTIVOS DE VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Dra. Sandra Eloisa Paulino – FAPSS
______________________________________________
Dra. Patricia Krieger Grossi – PUC RS
______________________________________________
Dra. Vanessa Rombola – UEM
______________________________________________
Dra. Maria Carmelita Yasbek – PUC SP
______________________________________________
Dra. Nome Completo – Sigla da Instituição
DEDICATÓRIA
Gratidão ao meu amado Deus, pela oportunidade de ter chegado tão longe,
pela concretização do impossível, e pelo carinho dedicado a mim nesse trajeto.
À minha mãe, Alicia; não seria possível chegar até aqui sem você, sem sua
visão de águia, sua perseverança, sua coragem e sua fé. Esses foram os elementos
que moveram o céu para que esse sonho se tornasse possível.
Ao meu filho Richard, que esteve ao meu lado todos os dias, acreditou e não
me deixou desistir.
Ao meu irmão Anderson, que compartilhou comigo as minhas angústias,
visualizou esse caminho e estendeu a sua mão para me ajudar.
Ao meu irmão Bruno e às duas grandes riquezas do meu coração – Davi e
Ana Alice (sobrinhos) –, que fizeram os meus dias mais alegres, e enxugaram
minhas lágrimas de exaustão.
À Professora Mirian Faury, pelo carinho, pela dedicação e principalmente por
acreditar em mim. Guardarei suas últimas palavras: “Não desista, você consegue,
você é capaz, eu acredito em você!”. Receba minha gratidão aí no céu.
À orientadora e amiga, Profa. Maria Lúcia Rodrigues, pelos ensinamentos
complexos, mas transmitido com simplicidade e afeto. Sou muito grata pelo seu
olhar, que atravessa as aparências e chega à minha alma.
À minha irmã de coração, Perla, que não mediu esforços para me ajudar,
alegrar e consolar. Choramos, literalmente juntas, e fomos consoladas pelo nosso
Deus. Peço a Ele que cuide de você e a esconda em Teu coração.
Aos meus amigos Adjane, Maria da Graça (Ninha), Maria da Glória (Dora),
Cleonice (Cleo), Sandra e Sergio, que rezaram, intercederam por mim, e acreditaram
no impossível.
À Sandra Paulino, que se tornou, para mim, o exemplo de profissional,
pesquisadora e amiga. Muito obrigada, pela paciência, pelo cuidado e pela
oportunidade de trabalhar com você.
À Profa. Virginia (China), que o tempo todo esteve comigo, nas alegrias e nas
tristezas, durante esse caminho.
À Silmara, que me incentivou desde o início, e vibrou comigo todas as minhas
conquistas. Muito obrigada, você mora em meu coração.
Às professoras e colegas de trabalho, Vânia, Jeanete, Fabiana e o Prof.
Duarcides, que compartilharam comigo seus conhecimentos. Muito obrigada.
Aos meus amigos e minhas amigas que mesmo longe torceram por mim;
vocês moram em meu coração.
Às minhas amigas de trabalho da Casa dos Sonhos, Larissa, Arlete, Tatinha,
Domingas, Cris, Gal, Otildes e, em especial, à Faty, que sempre estiveram ao meu
lado e acreditaram nesse trabalho. Gratidão
Aos queridos amigos que o NEMESS – PUC-SP – me presenteou, pelos
quais tenho muito carinho e que para sempre estarão guardadas em meu coração,
Nadja, Paola Cordeiro, Lucélia Silva, Marília, Aline, Manoel, Erivaldo, Fátima, Camile
e Thais.
Ao Grupo de Estudos sobre Violências, em especial à Dandara, Fabiana,
Fernanda, Livia e Milena, que não são somente alunas, mas professoras que, em
todos os encontros, me ensinam algo novo. Ao Renan e à Cindy que, assim como as
meninas, toparam a loucura de estudar a violência. A vocês, muito obrigada.
À Lívia e a Silmara que eram alunas e hoje são minhas amigas. Obrigada
pelas correções e, acima de tudo, por me incentivar a não desistir.
À todas e todos alunos que se alegraram e, também, “quase” choraram
comigo nesses quatros anos. Vocês me encorajam a não desistir nunca. Grata a
todos!
A todos os homens dessa pesquisa, que confiaram a mim suas histórias de
dor, e aos profissionais que acreditam e trabalham por um mundo igualitário.
A todos que lerem essa tese meu agradecimento, e lembrem-se que: “Viver é
um rasgar-se e remendar-se”. (Guimarães Rosa).
“Não sou nada; sou apenas um instrumento, um pequeno lápis nas mãos do Senhor,
com o qual ele escreve aquilo que deseja. Por mais imperfeitos que sejamos, ele
escreve magnificamente.” (Madre Teresa de Calcutá).
RESUMO
The objective of this study is to analyze and understand the motivations that lead
men to practices of violence against women in the domestic sphere. With the priority
of listening to men, allowing them to tell their version of the facts (of the violence),
their context and reality, as well as, their analysis of the reasons that drove them to
the acts and their “general” view of the violence committed against the woman. We
also listened to the professionals who serve this audience, with the aim of reflecting
on the mode of intervention practiced and their perception of the reasons that lead
men to commit violence against women. We understand man as a product and
producer of relationships, therefore, we assume in this work the terminology of the
author of violence, as well as the deconstruction of the aggressor and dominator for
an ordinary man. The experiences with violence will be presented in a
multidimensional perspective, understanding that reality and the social context are
dynamic and diverse, as well as the human complexity that moves between objective
and subjective, between abstract and concrete, between reason and emotion. To this
end, we conducted a qualitative research, centered on the testimonies of men who
committed violence against women and the professionals who work with these
subjects. The results obtained in the study pointed out several reasons, inserted in
the objective field: traditional family; macho culture; the stories experienced with
violence and its (re) production and, in the subjective field: love, hatred, jealousy, lack
of control, together drive violent acts, violence being used as an instrument first in the
absence of resources of affection and dialogue. The professionals pointed out that
the reflection group and listening, present positive results in the speech of men,
therefore, the perpetrators of violence cannot be reduced to the facts present in the
police report, but it is necessary to look beyond the facts, consider the social context
and the subjective resources involved. Building intervention strategies that address
both fields: objective and subjective, with non-violent resources.
BO – Boletim de Ocorrência
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 14
Referências Bibliográficas da Introdução ................................................................. 19
ANEXOS...................................................................................................................114
Anexo A: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ......................................... 114
Anexo B: Parecer Consubstanciado do Conselho de Ética em Pesquisa – Plataforma
Brasil ...................................................................................................................... 116
Anexo C: Questionário 1 ......................................................................................... 120
Anexo D: Roteiro 1 .................................................................................................. 121
Anexo E: Questionário 2 ........................................................................................ 122
Anexo F: Roteiro 2 ................................................................................................. 123
INTRODUÇÃO
1
Entendemos motivo como uma formação de sentidos associados a uma ação que integra elementos
objetivos e subjetivos. (GONZÁLEZ REY, 2003)
15
agressores – dominadores, mas pessoas que por vários, e não por um único motivo,
usaram a violência como recurso e instrumento para os seus atos. Claro que os
motivos levantados estão associados à construção sócio-histórica e cultural do
sujeito, de suas condições objetivas e subjetivas, dos sentidos percebidos e das
responsabilidades esperadas e legitimadas pela sociedade, conforme o que é
considerado como constitutivo de um “homem de verdade”.
Todavia, para chegar nessa conclusão, precisamos retomar o caminho inicial
que trilhamos, para compreender essa tentativa de sistematização. Tentativa, pois
entendemos que nenhum conhecimento se esgota em si e nenhuma teoria é capaz
de compreender o todo. Portanto, esse estudo abre a possibilidade de reflexão e
análise, não de finalização.
Nossa motivação para a realização deste estudo tem seu início em 2008,
quando ocupávamos o cargo de assistente social na OSC SOS Ação Mulher e
Família2 e realizávamos o atendimento direto às mulheres em situação de violência.
Na medida em que o tempo passava, várias indagações surgiam, durante e após os
acolhimentos às mulheres, principalmente sobre as repercussões das intervenções
profissionais na vida das usuárias do serviço e em suas famílias. Essas inquietações
e o desejo de entender esse fenômeno nos impulsionaram a buscar respostas sobre
essa matéria, resultando na realização da dissertação de mestrado: “Uma realidade
em preto e branco: as mulheres vítimas de violência doméstica”3, defendida em 2011
pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social da PUC São Paulo.
No transcorrer da pesquisa, as mulheres entrevistadas mostraram forte
preocupação com a produção e a reprodução da violência doméstica, manifestando
apreensão em relação aos seus filhos e também aos homens/companheiros que
praticaram atos de violência contra elas. Do ponto de vista dessas mulheres existe
urgência em atendimentos dirigidos também aos homens autores de violência, como
estratégias de prevenção e de rompimento do ciclo da violência.
(...) minha opinião seria assim, de repente, se conseguisse expandir o
atendimento para o lado masculino, e conseguir adaptar uma coisa para
ajudar também os homens, que de repente estão em uma situação de vida
pior, embora não generalizando. Principalmente divulgar em palestras,
quando ele não vai, assim ele ouve, isso pode atingir ele, de repente se
2
Organização da Sociedade Civil (OSC) SOS Ação Mulher e Família – foi um dos SOS que nasceu
do movimento feminista, em 1980, e, desde então, atua e presta serviços no atendimento direito às
vítimas de violência, na cidade de Campinas, SP.
3
SILVA, Carla da. UMA REALIDADE EM PRETO E BRANCO: as mulheres vítimas de violência
doméstica. Dissertação de Mestrado, defendida em maio de 2011, pelo Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da PUC São Paulo. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/17503
16
disser ah, tem um SOS ou um grupo que pode ajudar. Porque o homem é
machista demais, ele pode tudo, meu neto pode ter namorada, mas minha
netinha não pode. Sabe, então a gente vai acompanhando e até na nossa
família a gente vê. Como os homens pensam na sua cabeça, na realidade
sobre homem e mulher, o homem manda. Acho que poderíamos sim
contribuir um pouco para mudar essa realidade deles sim, às vezes é
caráter, outros é a educação que é falha mesmo, que eleva o machão.
(Entrevistada: AZUL); (SILVA, 2011, p. 94)
(...) precisa ter um SOS para os homens, seria muito bom, iria mudar muita
coisa, principalmente para o casal que não quer se separar. O homem é tão
machista que, se tiver um SOS, será preciso que alguém chame assim, um
SOS. Seria bom, ia mudar muito a gente (mulher) e o atendimento.
(Entrevistada: BRANCA); (SILVA, 2011, p. 94)
(...) o homem tem que ter um suporte mesmo, mas a mulher teria quer ter
esse suporte também (...) sabe, está mudando essa mentalidade, acho que
a gente (mulher), bem estruturada, a gente conseguiria ajudá-lo (homem).
(Entrevistada: VERDE); (SILVA, 2011, p. 95)
CAPÍTULO I
O HOMEM COMUM E A BANALIDADE DO MAL
4
Hannah Arendt nasceu em uma família judia em Hanover, na Alemanha, no dia 14 de outubro de
1906. Cursou a universidade de Marburg, no curso de filosofia, e foi aluna do filósofo Martin
Heidegger. Em 1926, Arendt trocou de universidade, indo para Heidelberg, onde concluiu o
doutorado, em 1928. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o governo francês de Vichy
colaborou com os invasores alemães e, por ser judia, Hannah foi enviada a um campo de
concentração, em Gurs, como "estrangeira suspeita". Porém, conseguiu escapar e aportou em Nova
York, em maio de 1941. Exilada, ficou sem direitos políticos até 1951, quando conseguiu a cidadania
norte-americana. Então, começou realmente sua carreira acadêmica, que duraria até sua morte, em
1975.
5
Otto Adolf Eichmann nasceu em 1906, na Alemanha, casou-se com Veronika Liebl e teve 4 filhos.
Ingressou no partido Nacional Socialista em 1932. Em 1934, foi admitido pela SD, órgão criado para
funcionar como Serviço de Inteligência do Partido Socialista, no âmbito de atuação da SS
(Schutzstafeln); obteve inúmeras promoções dentro da repartição, chegando a chefe da Seção de
Assuntos Judaicos, sendo considerado um especialista na deportação da comunidade judaica da
Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia, para os campos de concentração. Ao final da Segunda Guerra,
fugiu para diversos países, sendo capturado na Argentina, no dia 11 de maio de 1960; foi acusado e
condenado de cometer crimes contra humanidade e de guerra. Seu julgamento se deu em Jerusalém,
em 1961, sendo enforcado em 1962.
21
sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais (Cf. Arendt,
1999, p. 299).
A normalidade a qual Eichmann se atribui em julgamento chamou atenção de
Arendt, que inicia, assim, uma busca por modelos que explicassem o mal, saindo do
determinismo histórico e da distorção ideológica do nazismo, negando as teorias que
expressavam o mal como patologia ou possessão demoníaca. “Por trás desta
expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina, muito embora
estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de
pensamento – literário, teológico ou filosófico – sobre o fenômeno do mal” (ARENDT,
1999, p. 5).
Para Arendt, o mal não pode ser explicado como uma fatalidade, mas, sim,
caracterizado como uma possibilidade da liberdade humana. Nesse sentido, ela
demonstra o descompasso entre a personalidade comum do réu e as dimensões
monstruosas do mal por ele perpetrado. Eichmann não era um monstro, ainda que
os resultados de suas ações fossem monstruosamente macabros. Segundo
psicólogos e sacerdotes que examinaram Eichmann, o seu comportamento não era
apenas normal, mas inteiramente desejável, um homem de ideias muito positivas
(ARENDT, 1999, p. 37). A percepção de que Eichmann era normal, um burocrata
medíocre, um pai de família e um irmão dedicado, deixou-a assustada, pois aquele
homem na cabine de vidro, que estava sendo julgado por crime contra a
humanidade, era um homem comum, de superficialidade e mediocridade aparentes.
A posição de Arendt frente ao julgamento de Eichmann desagradou a
comunidade judaica e até mesmo a científica, afetando seu vínculo de amizade com
o historiador judeu Gershom Scholem, que publicou uma carta aberta afirmando que
Arendt não possuía “amor pelo povo judeu”. Além disso, viveu certa perda de seu
prestígio intelectual na comunidade judaica, na Europa e nos Estados Unidos, o que
resultou em vários anos de silêncio e ausência de publicações da autora.
Assim como Arendt, que se impressionou mediante uma interpretação
bastante contraditória daquele que havia provocado tanto mal, este estudo busca
compreender os motivos que conduzem os homens à prática da violência contra as
mulheres. A apreciação mais genérica de que são homens monstruosos é uma
tendência socialmente dominante. Mas, se por outro lado, partirmos do pressuposto
de que são homens comuns, constituídos de valores morais e de normas definidas
pela sociedade, será necessário refletir que resultam dos grupos de poder que
22
1.1. As Violências
Para a autora, a violência é uma ação que rompe com a ética, entendida
como conjunto de noções ou valores que balizam um campo de ação que se
considera como ético, sendo este pensado e executado por um sujeito ético,
racional, que sabe o que faz, decide e escolhe o que faz, sendo um ser responsável,
que responde pelo que faz. A ação ética é balizada pelas ideias de bom e mau, justo
e injusto, sendo que esses valores e seus conteúdos variam de sociedade para
sociedade. Portanto, uma ação ética só e possível se realizada na natureza racional,
respeitando a racionalidade, liberdade e responsabilidade dos outros agentes,
porque a ética só existe pela e na ação dos sujeitos individuais e sociais, definidos
por ações e formas de sociabilidade criadas pela ação humana em condições
históricas determinadas (Cf. CHAUÍ, 2018, p. 251).
Porque uma ação nascida da força de impulsos, pulsões e paixões não é
racionalmente determinada (ainda que possamos compreendê-los e
compreendê-las); não é livre porque submete o agente a forças que ele não
domina e o dominam; e não é responsável porque não nasceu de uma
decisão autônoma (ainda que possamos responsabilizar alguém pelos
desatinos cometidos contra si mesmo ou contra outros, mas não se trata de
responsabilidade ética e sim psicológica, social e política). (Idem, p. 253)
6
Para Bourdieu, habitus é um “sistema de disposições socialmente constituídas que, enquanto
estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das
práticas e das ideologias características de um grupo de agentes.” (2007, p. 191). Como princípio
gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’ e
‘regulares’ sem ser o produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a
intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e
coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente.” (ORTIZ, 1983,
p. 60).
31
7
Para uma revisão da produção da área dos men’s studies, ver Conell (1995) e Oliveira (1998)
8
Raewyn Connell é uma mulher transexual, nascida Robert William Connell, em 1944. No livro
Masculinities (1995), a publicação aparece como RW Connell e os trabalhos posteriores estão
publicados como Raewyn Connell. A autora é australiana, com tradição clínica freudiana, como
aportes da psicologia social, bem como das ciências sociais: antropologia, história e sociologia.
33
9
O conceito “hegemonia” é de inspiração gramisciana. Para Gramsci, hegemonia é a capacidade de
um grupo exercer o poder sobre o conjunto da sociedade de forma legítima, sem resistência. Mas a
hegemonia é sempre provisória, à medida que um grupo que se encontra hegemonizado pode
reverter a correlação de forças. Fonte: Dicionário do Pensamento Social do Século XX. Editado por
William Outhwaite & Tom Bottomore. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
34
O fracasso como “homem” está presente nas relações de afetos para além da
relação sexual. O homem que não consegue “manter financeiramente” sua família,
por exemplo, é visto como um fracassado, e como o fracasso não é permitido, e a
todo tempo o homem precisa provar sua masculinidade, muitas vezes a violência é
utilizada como meio de legitimar a força e o poder; não o poder do fracassado, mas
o poder construído no imaginário do homem de verdade, mesmo que esse seja
inatingível.
(...) a masculinidade torna-se uma eterna busca para se demonstrar sua
conquista, para provar aos outros o impossível de se provar. O homem tem
medo de assumir inseguranças e dúvidas porque, se o fizer, pode ser
julgado como sendo um fraco. (BENTO, 2015, p. 96)
Assim, o sujeito não é apenas produto do meio social, na medida em que sua
subjetividade só se define nas relações sociais do contexto histórico e cultural em
que está inserido; através de sua ação como sujeito singular, ativo e histórico, altera,
modifica e/ou constrói ao mesmo tempo, passando a ser, além de produto, também
produtor; e é nesta relação imbricada e contraditória entre indivíduo e sociedade que
se constituem os elementos essenciais ao desenvolvimento humano. (GONZÁLEZ
REY, 2003)
38
LEMOS, Fernanda. Entrevista com Joan Scott. Revista: Mandrágora, v.19. n. 19,
2013, p. 161-164. Tradução: Emmanuel Ramalho de Sá Rocha.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e
Realidade, Porto Alegre, RS. v. 20, n. 2, p. 133-184, jul./dez. 1995.
SCOTT, Joan. Entrevista com Joan Scott realizada por Fernanda Lemos. Revista
Mandrágora, São Paulo, v. 19, n. 19, p. 161-164, jan./dez. 2013.
42
CAPÍTULO II
TRILHA METODOLÓGICA
Primeira Etapa
Realizamos um estudo bibliográfico acerca dos temas: violências; gênero;
masculinidades; relações de poder; subjetividades e relações afetivas, humanas
e sociais. Iniciamos com o levantamento de teses relacionadas ao tema,
defendidas entre 2008 e 2018, em território nacional. A pesquisa se concentrou
nas bases de publicações de Teses e Dissertações: TEDE11 (PUC SP);
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES12);
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD13); e no portal de
publicações científicas OASISBR14.
Quadro 1: Levantamento de trabalhos
A PENA QUE VALE A PENA: Paula Licursi Programa de Pós- Graduação em 2013
alcances e limites de grupos Prates Ciências/ Universidade de São
reflexivos para homens Paulo
autores de violência contra a
mulher.
11
TEDE: Sistema de Publicação Eletrônica de Teses e Dissertações. Disponível em:
https://tede2.pucsp.br/
12
CAPES. Disponível em: http://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/
13
BDTD. Disponível em: http://bdtd.ibict.br/vufind/
14
O Portal brasileiro de publicações científicas em acesso aberto – OASISBR – é um mecanismo de
busca multidisciplinar que permite o acesso gratuito à produção científica de autores vinculados a
universidades e institutos de pesquisa brasileiros. Disponível em: http://oasisbr.ibict.br/vufind/
46
“SE VOCÊ NÃO FOR MINHA, Mirela Marin Programa de Pós-Graduação em 2015
NÃO SERÁ DE MAIS Morgante História/ Universidade Federal do
NINGUÉM”: a violência de Espírito Santo
gênero denunciada na
DEAM/Vitória-ES (2002 a
2010).
masculinidades.
15
Disponível em: https://flaviourra.wordpress.com/masculinidade/programa-e-agora-jose/
50
MUYLAERT C. J.; JÚNIOR V. S.; GALLO P. R.; NETO M. L. R.; REIS A. O. A..
Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. Revista da
Escola de Enfermagem da USP, 2014. p. 193-199. Disponível em:
www.ee.usp.br/reeusp/. Acesso em: 20 de jul. de 2020.
54
CAPÍTULO III
CAMINHOS, (DES)ENCONTROS E HISTÓRIAS
Alegaram sigilo profissional e judicial aos seus usuários, além das diversas
exigências burocráticas, que inviabilizava a pesquisa.
Fizemos contato, também, com oito mulheres que viveram situações de
violências, atendidas e indicadas pelo SOS AMF16, com intuito de nos aproximarmos
dos homens que cometeram violências. Porém, as mulheres se recusaram a indica-
los, por medo ou por não terem mais relações com os autores de violência.
Para atender às sugestões da banca de qualificação, realizamos contato com
a Delegacia de Defesa da Mulher – DDM –, com a Central de Penas e Medidas
Alternativas – CPMA –, e com a Vara de Violência Doméstica, todos em Campinas.
Constatamos que a burocratização para acesso aos sujeitos tornaria a pesquisa
inviável.
Os caminhos foram possíveis mediante o contato com Defensoria Pública de
Campinas, que informou a impossibilidade de indicar os HAV17, devido à recente
implantação da Vara Especializada de Violência Doméstica de Campinas.
Entretanto, indicaram profissionais da Defensoria Pública na Vara da Violência
Doméstica de São Paulo18, um advogado de defesa, que explicou a rotina do serviço
no atendimento prestado às vítimas e aos autores de violência.
O contato com os sujeitos da ação muitas vezes ocorre minutos antes da
audiência, portanto não há vínculo institucional estabelecido. Diante dessa
informação, construímos uma estratégia junto ao defensor público, que liberou nosso
acesso às dependências do fórum, permitindo que aguardássemos a finalização das
audiências para, posteriormente, realizar a entrevista. Mediante a indicação e a
abordagem pré-estabelecida pelo defensor público, essa estratégia resultou em duas
entrevistas. As instituições SOS AMF, localizada em Campinas/SP; Programa
“Tempo de Despertar”19, em Taboão da Serra/SP; Projeto Íntegra20, em São
16
SOS Ação mulher e Família: Organização Não Governamental – OSC (SOS AMF). Presta
atendimento às mulheres e suas famílias em situação de violência. Oferta, também, atendimento
psicológico para os homens autores de violência. As informações sobre as instituições estão no item
“Contextualização das Instituições.”
17
HAV – Homens Autores de Violência
18
Defensoria Pública na Vara da Violência Doméstica de São Paulo, alocada no Complexo Judiciário
Ministro Mario Guimarães – Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo.
19
Programa “Tempo de Despertar”: é executado pelo Tribunal de Justiça de Taboão da Serra, SP. O
programa é destinado aos autores de violência contra a mulher que estejam com inquérito policial,
procedimento de medidas protetivas, de prisão em flagrante e/ou processos criminais em andamento.
Trabalha com grupos de responsabilização. As informações sobre as instituições estão no item
“Contextualização das Instituições”.
56
20
Projeto Íntegra atua no Fórum Regional de Santana, na cidade de São Paulo. Oferta mediação
interdisciplinar desenvolvida nas relações afetivas continuadas. As informações sobre as instituições
estão no item “Contextualização das Instituições”.
21
Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde: Organização Não Governamental. Oferta grupos de
reflexão para homens autores de violência, encaminhados pela Vara de Violência Doméstica. As
informações sobre as instituições estão no item “Contextualização das Instituições”.
57
22
O tempo estabelecido de permanência no fórum, de 4 horas, deu-se pela pesquisadora, que reside
em outra cidade e precisava retornar à sua cidade dentro do horário comercial.
58
INÁCIO
Inácio tem 35 anos, cursou o Ensino Superior, trabalha como técnico e reside
em Guarulhos, SP. A entrevista se deu por Skype e foi uma indicação do Programa
“Tempo de Despertar”. No relato, informou que foi condenado por tentativa de
homicídio e que frequentou o grupo de responsabilização para homens autores de
violência do programa que o indicou.
Eu, na minha cabeça, tinha uma família tradicional. Minha mãe não sai de
casa para nada, mal vai ao mercado e na feira, ela é do lar. Meu pai sempre
foi o provedor da casa; essa era minha referência de família. Meus pais têm
70 anos e são de outra geração. Com 28 anos eu engravidei uma menina e
casei. Eu não tinha nenhum sentimento por ela, mas não poderia deixar
meu filho passar por humilhação. Os meus pais estão casados há 43 anos,
59
23
“Tempo de Despertar” é um programa do Tribunal de Justiça de Taboão da Serra/ SP, que
desenvolve grupos de atividades de responsabilização e reflexão aos homens autores de violência.
60
desabafar e não tem ninguém. Acho ruim que apenas esse tipo de assunto
só tem debate quando acontece o pior e é difícil convencer um homem a
participar dessa conversa. Hoje eu falo da minha experiência; por pior que
tenha sido, posso tirar um proveito para melhorar a sociedade, pelo menos
esses que estão ao meu redor, e se esses aprenderem alguma coisa,
repassar para os outros. Nós temos que fazer alguma coisa antes da
violência acontecer, esse é o caminho. Eu não tenho como criticar um
agressor, porque eu também fui um e cometi um crime, eu agredi as
mulheres, sou um deles. Não querendo me fazer de vítima, mas eu vejo
muito a culpa da criação que a gente tem, não por pai e mãe, mas da
sociedade, porque ela dita o comportamento. O homem não pode ser
submisso à mulher; homem tem que ser o machão em um relacionamento,
eu acho que é a sociedade. Agora eu também vejo a religião, extremamente
cruel. A bíblia é extremamente machista; eu acho que esse livro é tão
arcaico que legitima os agressores. Eu já vi e ouvi relatos de caras que
batiam nas mulheres para tirar o demônio do corpo, tem muita coisa que
precisa ser desconstruída na raiz, desde a criação dos nossos filhos até o
respeito às mulheres. Tem caras que falam que bateu na mulher porque a
mulher chifrou ele, se chifrou ele é porque o relacionamento não está bom.
Claro, no calor do momento falta controle, mas bater não! Hoje eu sei que
não tenho capacidade de bater em ninguém. Mas isso veio hoje. Agora,
quando eu estava com as minhas droguinhas e a cachaça na cabeça, eu
era agressivo. Hoje eu não bebo, sou uma pessoa totalmente diferente,
busquei essa melhora e qualidade de vida, então é meio complicado eu
falar, em um contexto geral, do agressor, porque cada um tem uma
desculpa, ou um motivo, ou uma justificativa, embora eu acredito que não
tem justificativa. A agressão verbal, tortura psicológica, pode até ser falta de
conhecimento; agora, agressão física é o calor do momento. Acho que cabe
aos dois ali conhecer o limite um do outro, sair fora quando a discussão fica
mais pesada, porque discutir é normal, precisa ter conhecimento para saber
o limite dela e dele.
FRANCISCO
Hoje com 29 anos, Francisco cursou o ensino técnico e reside em
Campinas/SP. O contato veio da OSC SOS AMF, onde buscou e passou
voluntariamente por acompanhamento psicológico. A entrevista ocorreu no espaço
da instituição e presencialmente.
Minha infância foi assim: minha mãe se separou do meu pai eu não tinha
um ano, porque meu pai era alcoólatra crônico, ele chegou agredir minha
mãe e não levava nada para dentro de casa; minha mãe acabou largando
dele. Uma vez os vizinhos escutaram eu chorando e eles foram lá, e minha
mãe estava desmaiada de fome; eles nos levaram para a casa da minha
avó, ficamos morando lá. Quando eu tinha 2 anos minha mãe conheceu o
meu pai e é a pessoa que ela está casada até hoje. Ele que me criou, eu
tive a melhor educação possível e nunca passamos fome. Lembro que uma
vez teve uma agressão, eu era pequeno, estava brincando com minha mãe
e ela me derrubou sem querer, e ele bateu nela. Eu fui e dei um tapa nele, e
ele foi e me deu um tapa no meu rosto. Eles discutiram e minha mãe pegou
o carro e saiu comigo, e capotou o carro. Ela teve traumatismo craniano e
um pouco de perda de massa encefálica. Na escola eu era bastante
problemático, passei por psicólogo. Eu acho que pelo fato do meu pai beber
e eu era estranho. Eu lembro que ele (pai) foi uma vez na porta da casa da
minha avó, era 5:30 manhã; ele era açougueiro, meu padrasto tinha saído
61
para comprar pão, ele ficou chamando minha mãe. Quando ela saiu, ele
estava bêbado, pegou o canivete e cortou a perna dela. Meu padrasto
chegou e bateu nele, isso meio que me traumatizou; toda vez que eu ia
visitá-lo ele estava bêbado, então parei de vê-lo quando tinha 15 anos. Logo
depois ele morreu de câncer e eu não fui vê-lo, porque estava com raiva e
ele bebia. Eu comecei a beber e usar drogas logo depois. Quando eu tinha
16 anos, casei com minha ex-esposa. Na época ela tinha 14 anos, temos 4
filhos juntos. Saí da casa da minha mãe e fui pagar aluguel, deixei de andar
de skate e fui trabalhar, ficamos juntos 10 anos. Desde 16 anos eu fumo
cigarro e bebo; aos 19 anos eu comecei a usar drogas, cocaína, eu fiquei
uns 6 anos fazendo isso, bebendo e usando droga, só que era normal,
porque eu não deixava de trabalhar, pagava o aluguel, fazia as coisas em
casa. Eu tinha me tornado o que o meu pai era. Larguei da cocaína e da
minha mulher, faz dois anos que eu conheci a mulher que eu sou casado
hoje. Na verdade, eu não fui casado no papel com a minha primeira mulher,
nada oficializado. Eu conheci minha atual mulher ainda estava junto com a
outra, mas eu não tinha mais nada com ela, fiquei na casa, porque ela
nunca tinha trabalhado e era eu que levava comida e as coisas. Depois eu
fui morar com minha mulher, em pouco tempo eu percebi que estava feliz,
ela me tratava muito bem, não existia briga e nunca passou pela minha
cabeça de chegar ao ponto de agredir ela. Eu não acredito no que eu fiz, eu
não entendi por que eu fiz aquilo, fiquei com medo porque, se eu tivesse
bêbado ou tivesse drogado, teria uma justificativa, mas não, eu não estava,
entendeu? Eu me descontrolei, saí do normal, mas não foi de graça, não
justifica o que eu fiz, mas explica um pouco. Eu cresci em um mundo onde
homem pega 10 mulheres e é o garanhão; a mulher fica com 10 e é puta.
Idiota da minha parte pensar assim; esse é o meio que eu cresci, não foram
minha mãe e meu pai, eles não me ensinaram isso, foi o meio pessoal que
eu cresci. Sei que foi uma atitude machista. No dia que tudo aconteceu, eu
cheguei em casa do trabalho, era meia noite e pouco, a gente começou a
discutir, ela estava dando ‘mama’ para o meu filho (filho desse novo
relacionamento), ele tinha 2 meses, ela ficou falando as coisas para mim, eu
falei que iria embora e ela pegou e falou assim: “vou arrumar outro mesmo,
vou dar pra outro mesmo, seu corno”. Nessa hora, eu não sei o que
aconteceu comigo, eu voltei e dei um soco nela, o queixo dela encostou na
testinha do bebê e afundou. Eu fiquei sem saber o que fazer, peguei e fui
para casa de uns amigos, na verdade eu queria até tirar minha vida, porque
eu estava acreditando no que eu tinha feito, eu tinha machucado o meu
filho. Hoje eu enxergo que foi o que ela falou, eu não traí ela, eu nunca
esperei escutar aquilo dela, eu não sei se foi isso que motivou, mas não
justifica o que eu fiz. Depois disso, ela não quis largar de mim, me
desculpou e voltamos. Não aconteceu nada com o meu filho, não teve que
fazer cirurgia e nem teve sequela, mas como foi uma agressão e envolveu
uma criança indefesa, o hospital comunicou algum órgão público e eles
tiraram o meu filho de mim e dela. Mandaram ele para uma família
acolhedora, ficou um mês e 20 dias nessa família. Esse foi o pior momento
da minha vida; eu tenho 6 filhos e nunca fiz isso, sei que não foi correto,
mas ela mesmo fala que causou isso, porque ela não deveria ter falado que
iria me trair. Depois disso, eu já bebia, ficou pior, porque comecei a beber
todos os dias até eu cair. Devolveram o meu filho e nunca mais teve uma
briga, eu parei de beber porque fiquei com medo disso acontecer de novo,
porque aconteceu isso e eu estava consciente, imagina se eu estivesse
bêbado, ou drogado, teria tomado uma proporção muito pior. Eu nunca tinha
parado para falar sobre isso, não me sentia à vontade em me expor, eu
tinha vergonha; não tem como eu apagar o que eu fiz, mas eu sei que eu
posso mudar o meu jeito, minha forma de pensar, de agir. Eu estou
buscando ajuda para isso acontecer. Alivia falar e, além disso, ajuda outros
caras, para não fazer nada, porque não é legal. Aos poucos eu estou
entendendo, que foi ela que me feriu, eu sou homem, tenho orgulho, eu não
queria escutar aquilo, eu não sabia que ela poderia me ferir sem colocar a
62
mão em mim. Se ela falar aquilo novamente pode acontecer de novo, então
nós aprendemos, não vamos falar isso para ninguém. Jamais foi a minha
intenção fazer aquilo, por isso que eu estou procurando ajuda. As pessoas
falam que é uma doença, eu acho que não é doença (cometer violência), na
hora ali é falta de controle. Acho que a maioria das mulheres apanham por
ciúmes ou pelo cara achar que ela está traindo; isso é o que mais motiva e
leva os caras a matar a mulher. Eu sempre fui assim de falar para ela: "olha,
você pode fazer qualquer coisa pra mim, mas não me trai, porque esse seria
o único jeito de eu ter coragem de por a mão em você". Eu falava para ela
assim e eu acabei pondo a mão nela por outro motivo. Hoje, se ela me trair,
eu acho que não ponho a mão nela, eu pego minhas coisas e vou embora,
mas eu conto para família inteira dela. Agora, eu não sei se pegar no ato (da
traição), não sei minha reação. Tem muito nego que não é doente, o cara é
surtado mesmo, o cara tem ciúmes, mas eu acho que os caras que é desse
jeito... Eu vejo muita coisa. Esses dias o homem espancou a mulher com fio
e a criança também, por causa do ciúme; eu jamais teria coragem de fazer
isso. Às vezes é o cara que trai a mulher, e a mulher não traiu, mas ele fica
com aquilo, porque ele fez ela também vai fazer. Aí eles prendem a mulher,
não deixa ela sair com qualquer roupa e nem de casa. Eu nunca fiz isso
com ela; ela pode se vestir da forma como ela quiser, ela pode fazer o que
ela quiser, eu nunca falei nada referente a isso. No meu caso foi uma
questão de orgulho ferido. Ela me chamou de corno na minha cara e falou
que iria arrumar outro, acabei explodindo, foi coisa de momento, poderia ter
evitado, mas aconteceu; às vezes uma coisa acontece para você enxergar e
compreender. Se eu falar que minha vida melhorou, que não tem briga, é
mentira, eu sou um ser humano e ela também. Nós discutimos ao ponto de
um xingar o outro, mas é só isso, eu não deixo ir além disso, eu evito.
AMBRÓSIO
Ambrósio tem 45 anos, completou o ensino superior e reside em
Campinas/SP. A OSC SOS AMF o indicou para entrevista, pois estava em
acompanhamento psicológico voluntário. A entrevista ocorreu em um espaço
público, na praça da cidade, presencialmente. No decorrer da conversa informou que
responde por ameaça e tentativa de homicídio.
Minha infância, não foi muito boa; meus pais brigavam e nessa época teve
uma separação e fomos morar na casa da minha avó. Eu fui o cara que
cuidava dos meus irmãos, para minha mãe trabalhar na colheita de café.
Passado um tempo, eles voltaram, meu pai bebia, saía com outras
mulheres, brigava e tinha muitos ciúmes da minha mãe, sempre achava que
ela estava traindo ele. Sofremos muito, e cresci no meio disso; eu fui o
primeiro que o enfrentou, ele bateu na minha mãe e eu a defendi, apanhei
dele e depois eu saí de casa. Ele continuou brigando e até pegou uma faca
para agredir ela e os meus irmãos. Depois ele teve um derrame e percebeu
que ninguém mais o respeitava como pai, e decidiu sair de casa. Logo
conheci a mulher dos meus filhos; não casamos, mas tivemos três filhos.
Antes de a minha filha nascer, a mãe dela me traiu e como gostava dela,
acabamos ficando juntos, mas acabei perdendo meu respeito por ela. Nessa
época eu morava com minha sogra e ela ficava mentindo para os meus
filhos, dizendo que eu estava traindo minha mulher; sabe, eu deixei de ser
fiel por causa dela, já que eu tinha sido traído e ela me acusava de traição,
eu traí. Conheci outra mulher, a que estou até hoje; nós ficamos juntos,
mesmo eu sendo casado. Quando meu segundo filho nasceu nos
63
JOÃO
Com 49 anos e pós-graduado em finanças e gestão, João reside em
Campinas/SP, e também foi indicado pela OSC SOS AMF, onde buscou
atendimento psicológico, desligando-se logo nos primeiros encontros. A
entrevista ocorreu pelo WhatsApp, por desejo do sujeito.
64
ANTÔNIO
Antônio tem 33 anos, completou o ensino fundamental, trabalha como
motorista de Uber e reside na cidade de São Paulo. A entrevista foi realizada
pessoalmente, no espaço da Defensoria Pública, no dia do julgamento e da
condenação pelos crimes de violência física e psicológica contra sua companheira.
Esse sujeito não passou por nenhum atendimento grupal, social ou psicológico.
Fui uma pessoa bem-educada pelo pai e pela mãe, nunca levei um tapa do
meu pai, da minha mãe não posso falar, porque mãe é mãe. Minha mãe e
meu pai nunca brigaram dentro de casa; eu não tive irmão pelo motivo de
eu ser uma pessoa agressiva, mas brinquei bastante, minha infância foi de
uma criança normal. Quando jovem, conheci ela e logo fomos morar juntos,
passamos seis anos juntos. Nos últimos seis meses, as condições
financeiras pioraram; eu era taxista e, com a crise, estou fazendo Uber, mas
estava difícil financeiramente. Resolvemos cada um morar em uma casa,
“eu volto para casa da minha mãe e você volta pra casa da sua”; fomos
morar separados. Com o tempo a mãe dela começou a encher as
paciências dela, pediu para ela ajudar dentro de casa, porque tinha nossa
65
AGOSTINHO
Com 30 anos, cursou o ensino fundamental, nasceu e viveu na Bolívia, faz 10
anos que chegou ao Brasil, atualmente reside na cidade de São Paulo. A entrevista
foi realizada pessoalmente no espaço da Defensoria Pública, no dia do julgamento e
da condenação pelos crimes de ameaça e tentativa de homicídio, cometidos contra
66
sua esposa. Esse sujeito não passou por nenhum atendimento grupal, social ou
psicológico.
Meus pais nunca se separaram, vivem bem na Bolívia; tenho 8 irmãos.
Agora, a família dela, os pais são separados e os irmãos são divorciados.
Eu acho que isso é coisa de família, porque para mim casamento é para
sempre. Hoje é impossível ter família; a esposa tem igualdade, tem que
trabalhar e cuidar dos filhos, essa é sua obrigação. Faz 10 anos que
cheguei ao Brasil, para dar uma vida melhor para meus filhos. Faz um
tempo, consegui abrir um espaço para costurar e morar; eu trabalhava o
tempo todo e ela cuidava dos filhos. Para ela não estava bom morar na
fábrica, então mudamos e fomos pagar aluguel, e ela foi trabalhar comigo
na fábrica. O negócio ficou ruim, pensei que fossemos ganhar dinheiro e
não ganhamos, perdi tudo. Começamos a brigar, porque estava faltando as
coisas dentro de casa. Nesse momento eu peguei o celular dela e vi as
mensagens e as fotos nuas, enviadas para homens, e tinha conversas no
celular assim: “o que podemos fazer na noite?”. Ela saía com eles, bebia e
brigava. Fiquei com raiva e ciúmes. Ela tem 3 filhos, além disso, não estava
fazendo nada dentro de casa. Eu nunca bati nela, só a peguei forte pelos
braços e dei 2 tapas; eu nunca bati nela bêbado, eu não bebo. Ela só ficava
em casa, eu não quero uma esposa assim; ela tinha tudo, tinha uma vida
boa, eu trabalhava muito para ela ficar em casa. Ela não cuidava da casa,
fazia dois meses que estávamos brigando por causa disso; ela não fazia
minha marmita, ela não acordava mais cedo para arrumar o café para mim,
não lavava as minhas roupas, a casa estava bagunçada, essa é obrigação
dela. Eu não quero uma esposa assim, ela não se arrumava para mim;
agora, para os homens ela se arrumava, passava batom e saía bonita para
os outros. Eu via ela com outros homens, e minha casa abandonada e meus
filhos também. Foi só isso que aconteceu, ela saiu de casa com os meus
filhos e eu não posso vê-los. Eu perdi tudo.
ANSELMO
Este entrevistado tem 30 anos e residia em São Paulo, mas mudou-se para
outro Estado. A entrevista ocorreu pelo WhatsApp e só foi possível por intermédio do
Projeto Íntegra, que o atendia juridicamente. O sujeito não passou por nenhum
atendimento grupal, social ou psicológico.
A relação com meus pais graças a Deus foi boa. Somos em 7 irmãos, duas
falecidas. Eu não tive infância, porque comecei a trabalhar aos 11 anos de
idade na carvoaria. Meus pais são vivos e estou na casa deles, nunca tive
problema nenhum com ninguém da família. Fui casado, não por muito
tempo, graças ao mesmo motivo que esse acabou: ciúmes. A pessoa via
coisa onde não existia; ninguém aguenta ser julgado por uma coisa que
você não cometeu e nem está cometendo. Talvez quem esteja do outro lado
me ouvindo vai falar que é para me defender, mas eu não consigo mentir.
Meus relacionamentos sempre foram assim: a pessoa quer me ter como ela
quer, não posso conversar com ninguém e sou a pior pessoa do mundo. A
gota d’água não foi uma vez, foi uma somatória. Eu aguentei tantas coisas
que me perguntava: “como eu aguentava viver assim?”. Cansei de falar que
não aguentaria, chegou num momento que eu não vi nada, não enxerguei
nada, cheguei num limite de humilhação, provocação, calúnia e coisa que
eu nem sei explicar. As pessoas falavam porque eu não saí antes de tudo
acontecer, mas o arrependimento só vem depois. Eu acabei perdendo tudo,
67
GREGÓRIO
Este entrevistado tem 30 anos, completou o ensino superior e reside em
Santos/SP. Participou do grupo de reflexão para homens autores de violência, por
determinação judicial, na OSC Coletivo Feminista, e durante o grupo foi convidado
pelo técnico a participar da pesquisa pelo WhatsApp.
A minha infância foi normal, fui bem-criado, meus pais sempre trabalharam
e sempre fomos da classe média, não tenho do que reclamar. Me apaixonei
por ela na faculdade, namoramos 10 meses e separamos. Foi muito difícil,
68
24
O entrevistado remete-se ao grupo de reflexão para homens autores de violência, que participou na
OSC Coletivo Feminista, Sexualidade e Saúde, em São Paulo, SP.
69
CIRILO
Com 44 anos, completou o ensino médio e reside em Campinas/SP.
Tínhamos conhecimento anterior desse sujeito, que aceitou nosso convite para
participar da pesquisa e marcou a entrevista pessoalmente em um local público.
Nunca passou por nenhum atendimento grupal, social, psicológico ou jurídico
especializado.
coisas, se a gente não tiver uma cabeça feita e não for positivo, acaba
fazendo besteira. Quando você me pergunta o que leva ao homem a
praticar a violência, há diversos motivos, eu acredito que há um descontrole.
Por exemplo, esse homem que colocou fogo na esposa e acabou morrendo
junto com ela, analisando essa pessoa, ela está muito distante de Deus. O
fato é que a pessoa desprovida de religião está sujeita a isso; ele perdeu a
cabeça. Porque, tipo assim, ele acha que não é filho de Deus, que aquilo
que ele está passando é o fim. Graças a Deus eu sou da igreja, e quando
uma pessoa tem uma religião, tem mais força e comunhão com Deus, ele
até pode passar por uma situação delicada e difícil, mas evita perder a
paciência e agredir a esposa.
71
SANTOS, Maria do Carmo G; Soares, GOMES, Amanda Teresinha. Era uma vez: os
contos de fadas e as relações de gênero na perspectiva das professoras. Revista
Debates Insubmissos, Caruaru, PE. Brasil, Ano 1, v.1, nº 3, set/dez. 2018.
Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/debatesinsubmissos/. Acesso em:
20 de mar. de 2020.
72
CAPÍTULO IV
ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS
Violência cometida
Família
Motivos
Do outro lado da razão
VIOLÊNCIAS COMETIDAS
João foi o único sujeito que não mencionou abertamente a violência cometida,
entretanto, percebemos que as violências psicológica e física eram presentes em
75
suas falas. O casal permanece junto; passou por atendimento psicológico, mas
abandonou o acompanhamento.
É possível perceber que, de modo geral, todos têm consciência das ações
violentas que praticaram, mas demonstram uma visão simplista e naturalizada de
seus atos, às vezes minimizando seus efeitos. A condição “homem de verdade”,
como cultura de imposição do poder, e o “desconto” pelos próprios fracassos
aparecem como estigma causado pela fragilidade de recursos para conter e lidar
com suas emoções e sentimentos.
FAMÍLIA
Ela posta fotos nas redes sociais e faz lives, o tempo todo, e não fica com a
família, esse distanciamento da casa, dos procedimentos domésticos e o
abandono. (JOÃO)
Apesar do meu uso constante de crack, eu nunca deixava faltar nada dentro
de casa, achava que eu sendo o provedor do lar eu tinha o direito de usar
drogas. (INÁCIO)
Minha infância foi assim, minha mãe se separou do meu pai, porque meu
pai era alcoólatra crônico, ele chegou agredir minha mãe e não levava nada
para dentro de casa, minha mãe acabou largando dele e casou com outro
que é meu pai (padrasto). (FRANCISCO)
(...) ela saiu de casa com os meus filhos e eu não posso vê-los, eu perdi
tudo. (AGOSTINHO)
para conter suas emoções e sentimentos. Novamente lembramos que nada justifica
atos de violência, mas é imprescindível estudar e analisar tal fenômeno de modo
multifacetado, presente na dinâmica da vida coletiva e individual, nos espaços
privados e públicos, nas relações de afetos e na sociedade.
MOTIVOS
- Cultura Machista
relatos de caras que batiam nas mulheres para tirar o demônio do corpo,
tem muita coisa que precisa ser desconstruída desde a raiz, da criação dos
nossos filhos ao respeito às mulheres. (INÁCIO)
- O ciúme e a traição
No meu caso foi uma questão de orgulho ferido. Ela me chamou de corno
na minha cara e falou que iria arrumar outro, acabei explodindo; as
mulheres apanham por ciúmes ou pelo cara achar que ela está traindo isso
é o que mais motiva e leva os caras a matar as mulheres. (FRANCISCO)
Às vezes a gente não age com a razão, age com a emoção e a emoção
deixa você em uma temperatura alta a ponto de você não saber o que você
está fazendo em um total descontrole. (JOÃO)
As pessoas falam que é uma doença eu acho que não é doença (cometer
violência), na hora ali e falta de controle. (FRANCISCO)
(...) se a gente não tiver uma cabeça feita e não for positivo, acaba fazendo
besteira. Quando você me pergunta o que leva ao homem a praticar a
violência, há diversos motivos, mas eu acredito que há um descontrole.
(CIRILO)
25
MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira. A complexidade das relações
entre drogas, álcool e violência. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, 14(1):35-42, jan-mar, 1998.
Disponível: https://www.scielosp.org/article/csp/1998.v14n1/35-42/ Acesso em: 14 de abr. de 2020.
ROSA, Antonio Gomes. et al. A Violência Conjugal Contra a Mulher a Partir da Ótica do Homem Autor
da Violência. Saúde Soc. São Paulo, v.17, n.3, p.152-160, 2008. Disponível:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902008000300015. Acesso em: 14 de
abr. de 2020.
84
“Quem é ferido com ferro, com ferro ferirá”, uma nova leitura do ditado popular
“Quem com ferro fere, com ferro será ferido”. Essa frase retrata as histórias de vida
dos sujeitos, marcadas pelas experiências de violências sofridas, do abandono
afetivo e material de outros homens, causando traumas e “abismos”. Esses traumas,
nomeados por eles, acarretaram dificuldades de aprendizagem, de interação com os
amigos e, principalmente, dificuldades para estabelecer vínculos afetivos com suas
companheiras e seus filhos.
Quando ela (mãe) saiu, ele (pai) estava bêbado, pegou o canivete e cortou
a perna dela, isso meio que me traumatizou, ele morreu eu não fui vê-lo
porque estava com raiva e ele bebia. Eu comecei a beber e usar drogas
logo depois. (FRANCISCO)
Meu pai bebia, saia com outras mulheres, brigava e tinha muitos ciúmes da
minha mãe. (...) eu bebia, cheguei a usar drogas, trai e tenho muitos
ciúmes. (AMBRÓSIO)
Meu pai bebia e minha mãe teve muitos momentos difíceis para nos criar,
tivemos algumas sequelas. (...) minha companheira é vaidosa e não fica
com a família, esse distanciamento da casa, dos procedimentos domésticos
e o abandono me pegaram. (JOÃO)
Como sabemos,
(...) o cotidiano dos homens não é constituído de estimulação, contato e
expressão imediata do que sentem mas, ao contrário, da disciplinarização
do sentir e do condicionamento a comportamentos estereotipados viris e
agressivos. Este aprendizado de postura diante da vida começa na infância,
determinando para um homem adulto sua incapacidade em contatar as
próprias emoções e demandas afetivas. Parte dessa incapacidade é por nós
conhecida sob o aspecto da violência e da agressividade masculina.
(NOLASCO,1993, p. 46)
Eu nunca tinha parado para falar sobre isso, não me sentia a vontade em
me expor eu tinha vergonha. Alivia falar e, além disso, ajuda outros caras,
para não fazer nada, porque não é legal. (FRANCISCO)
Falar sobre isso e como tentar explicar para mim mesmo o que eu fiz.
(ANSELMO)
(...) não, preciso falar com ninguém sobre isso, dos conflitos e das
violências, mas depois, busquei ajuda com profissionais para entender.
(JOÃO)
Acho ruim que apenas esse tipo de assunto só tem debate, quando
acontece o pior e é difícil. (INÁCIO)
O pior disso tudo foi ninguém me ouvir, fui totalmente excluído, ninguém
quer ouvir o cara. (GREGÓRIO)
26
Licantropia: forma de loucura através da qual um indivíduo pensa transformar-se em lobo ou em
outro animal selvagem. Disponível em: https://www.dicio.com.br/licantropia/. Acesso em: 20 de abr.
de 2020.
87
Eu vejo muita coisa, esses dias o homem espancou a mulher com fio e a
criança também, por causa do ciúme, eu jamais teria coragem de fazer isso.
Ela mesma falou que causou isso, porque ela não deveria ter falado que iria
me trair. (FRANCISCO)
(...) falar a verdade, ela partia para o lado de ofensa, vinha com ofensas
pessoais e familiares, isso era um dos motivos. (ANSELMO)
88
(...) ela poderia ter ficado quieta, eu podia ter me controlado, eu apanhei
muito na cara, essas coisas a sociedade não enxerga, não que eu fui santo,
mas fui agredido e a agressão foi para me defender e ninguém me ouviu.
(AMBRÓSIO)
Aos poucos eu estou entendendo, que foi ela que me feriu, eu sou homem,
tenho orgulho, eu não queria escutar aquilo, eu não sabia que ela poderia
me ferir sem colocar a mão em mim. (FRANCISCO)
mas não foram ouvidos, em nenhum momento; pelo contrário, foram coagidos a
voltar para o seu papel de dominador, utilizando-se da violência.
(...) deveria ter ido fazer um BO também, porque ela me agrediu com
palavras, o homem erra, mas ele também é agredido, tem homens que não
estudam e se sente envergonhado de ir na delegacia, porque não somos
ouvidos e tem situações que a mulher força você encostar a mão nela,
ninguém aguenta elas falando. (AMBRÓSIO)
(...) têm muitas mulheres que realmente sofrem violências, mas tem homens
que também sofre violência das mulheres, mas que tem vergonha de ir lá
fazer o boletim de ocorrência, ele sofre pressão psicológica, ele sofre
violências. Eu fui fazer um boletim de ocorrência, contra a minha esposa
que me agrediu, o delegado tirou sarro da minha cara. “O senhor está
apanhando da mulher, o que é isso, homem apanhar de mulher”. A minha
esposa pegou a faca para mim, colocou na minha barriga e queria me furar,
eu poderia ter botado fogo nela. (CIRILO)
O curso foi muito importante, porque não focava somente nessa questão da
violência, partia do machismo, talvez o machismo seja o problema principal
90
em muitos dos casos, mas também não excluía outras coisas, como outros
sentimentos e ações que nos rodeiam que precisam ser trabalhadas. Passar
pelo grupo foi importante, porque tem um movimento natural do homem e
há um lugar meio misógino. (GREGÓRIO)
Esses dois sujeitos passaram pelos grupos previstos na Lei Maria da Penha:
Inácio pelo programa “Tempo de Despertar”, executado pelo Tribunal de Justiça de
Taboão da Serra/ SP; e Gregório pela OSC Coletivo Feminista, Sexualidade e
Saúde, em São Paulo. Notamos a diferença nos discursos dos homens que
passaram pelos grupos e nos relatos dos sujeitos que não passaram por
atendimento. A principal diferença está na responsabilização pelos atos cometidos,
presente em seus relatos, bem como na indicação de caminhos possíveis para a
difusão do conhecimento sobre a perversidade da cultura machista e das
subjetividades envolvidas nas relações, sendo esta uma estratégia de transformação
de valores pautados na igualdade de gênero.
Os homens precisam de um espaço onde possam falar, homem com
homem, falar sobre suas inseguranças, medos e das coisas que leva o
homem a tomar atitudes como essa de violência, então não é só o
machismo, porque só isso fica raso e não resolve o problema, mas é o todo,
tudo que nos relaciona. (GREGÓRIO)
Caminho possível...
Só que não me vejo assim, não me sinto assim, só quem já passou sabe o
sentimento, eu estou arrependido. Tem umas pessoas que nasce para fazer
o mau e tem outras que nasce para fazer o bem. Às vezes aquelas que a
gente mais faz o bem são as que vão nos machucar. (ANSELMO)
O importante para mim seria eu me amar e faz tempo que eu estou lutando
para isso, isso evitaria não passar mais por essas situações. Além disso,
tinha uma competição entre mim e ela, ela só pensava nela e eu em mim,
eu era totalmente dependente dela, peguei ela para ser minha mãe e
cheguei a acreditar nisso. Eu não sou mais dependente dela. (AMBRÓSIO)
91
CAPÍTULO V
OS PROFISSIONAIS E SUAS EXPERIÊNCIAS COM OS HOMENS
AUTORES DE VIOLÊNCIA
27
Todos os participantes foram orientados sobre os objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de
Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), autorizando as entrevistas e as gravações em áudio
(anexo).
28
HAV – Homens Autores de Violência.
95
(...) a gente tem percebido que nós, na nossa construção de homens, nessa
sociedade que é machista e patriarcal, a gente é ensinado ao machismo,
ensinado a violência desde muito novos, então o perfil daquilo que é
esperado por um homem na sociedade é um perfil machista, isso que é
considerado ser homem na nossa cultura é isso. O modelo é aquele homem
forte, corajoso, que resolve tudo, que enfrenta riscos, espécie daquele
guerreiro medieval. Nós homens somos preparados para exercer violência
desde sempre, na nossa infância, nos jogos, nas brincadeiras infantis;
modelos de brincadeira privilegia aquele homem que é mais esperto, que é
mais falador, que é mais líder, as nossas brincadeiras são sempre de
competição, tempo todo estimulado a exercer a violência e nós exercemos
violência não é só contra mulher, em uma forma geral, um jeito de ser
violento, a gente vê nas condutas do dia a dia. Todo o nosso contato é
violento, então não é permitido para nós termos uma relação afetuosa, de
um afeto positivo, a meu ver é isso que causa violência contra a mulher, é
esse machismo que está estabelecido entre as relações entre os homens.
(AFONSO)
29
SPA: Substância Psicoativas.
99
masculinidades e, ainda, outras que podem ser construídas fora dos padrões de
masculinidade hegemônica. (Cf. CONNELL,1995)
Muitas das motivações, dos homens autores de violência, que eu entendo,
que eu observo é o que eu escuto deles está relacionada a uma dificuldade
que eles tem de convívio familiar, anterior a famílias que eles constituíram,
então estou falando de dificuldade de relacionamento com o pai, dificuldade
de relacionamento com a mãe. Muitos deles sofreram abusos de todos os
tipos com o pai ou com mãe, negligências de vários tipos, tem uma questão
histórica anterior, que faz com que nesse momento eles ajam com violência,
seja contra mulher, seja contra criança, adolescente ou qualquer outro tipo
de pessoa, então está relacionado a questões familiares antigas e famílias
bastante disfuncionais. (ALBERTO)
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e
Realidade, Porto Alegre, RS. v. 20, n. 2, p. 133-184, jul./dez. 1995.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
culturais (Cf. González Rey, 2003). O homem age como sujeito singular e coletivo,
constrói, altera ou modifica determinado espaço, e é produto e produtor dessas
relações. É nesse contexto complexo, diversificado e contraditório entre indivíduo e
sociedade que vão se constituindo como sujeitos reais da história humana.
Vivenciamos, na realização desta pesquisa, um caminho desafiador e
conflituoso; estudar o homem autor de violência não é fácil, pois chegar até eles,
ouvir a pessoa que humilhou, ameaçou e “quase matou” sua companheira requer o
exercício de desnudar-se de pré-conceitos e julgamentos, elevar a visão para uma
dimensão que transcenda os fatos imediatos, para um maior contexto social, familiar,
histórico, cultural, moral. Sofremos também nesse processo, pois a atividade
investigativa e de trabalho gera efeitos subjetivos. Em nossa trajetória profissional
estudávamos a violência contra mulher na perspectiva “única” da dominação e da
submissão, da mulher como vítima e do homem como agressor. O tempo e as
experiências adquiridas no decorrer dos quatro anos do doutorado colocaram em
xeque nossos pontos de vista e conhecimentos, muitas vezes tomados como
verdades, e nos projetaram a um outro patamar de compreensão sobre a realidade
das relações sociais, humanas e afetivas. O homem é sujeito de uma cultura
masculina hegemônica, socializado para dominar, e a violência vigora quando a
agressão se torna um instrumento para lidar com o fracasso, com a fragilidade de
poder. E, nesse contexto, a mulher é também produtora e reprodutora de violência e
dos processos de subjetivação humana.
As desconstruções e novas construções de conhecimento não minimizam as
violências cometidas pelos homens contra as mulheres, tampouco os colocam em
um lugar de vítima da sociedade, mas nos alertam como profissionais,
pesquisadores, pais, mães, filhas(os), amigas(os), etc., no sentido de questionar o
modo vigente e construir novos padrões de comportamentos e de masculinidades,
pautados na reconstrução da pessoa humana.
A cultura machista é levantada pelos homens sujeitos desta pesquisa e pelos
profissionais como sendo um motivo para a violência. Concordamos com os dizeres
do profissional Afonso quanto ao machismo:
cascas duras e revelaram a pessoa que sente, chora, se arrepende, faz coisas
erradas, age sem pensar, machuca pessoas, se machuca, não sabe de tudo e não
tem poder absoluto; uma pessoa do gênero masculino; um ser humano. Claro que a
madeira nua apodrece em exposição ao tempo e ao clima, por isso, precisa ser
envernizada com várias camadas para resistir. Podemos (homens, mulheres,
profissionais, pesquisadores) desenvolver e construir vernizes de uma educação
igualitária; novas masculinidades; relações de afetos pautadas no diálogo e em
sentimentos verdadeiros.
Dentro dessa proposta, os profissionais mostraram que o grupo reflexivo
(mesmo dentro de seus limites) pode ser uma estratégia de “remoção das cascas” e,
em contato com outras possibilidades de “ser homem”, vão construindo novas
relações, primeiramente entre eles (membros do grupo), depois entre os outros,
externos ao grupo. Percebemos um início de mudança nas falas dos sujeitos que
passaram pelos grupos. Seus discursos diferenciam-se, em alguns aspectos, dos
outros, principalmente na compreensão da cultura machista e suas implicações; na
leitura dos atos de violência como ato de descontrole; na ausência de conhecimento
para lidar com as situações e nas possibilidades de “prevenção” à violência. Um dos
sujeitos, inclusive, trabalha com outros homens autores de violência, depois que
passou pelo grupo de reflexão, divulgando suas experiências ruins e como, a partir
delas, aprendeu e adquiriu outros sentidos para a vida. Os sujeitos que não
passaram por nenhum atendimento demonstram em seus discursos raiva, ódio e um
sentimento de vingança; demonstram desespero frente à situação, ficando explícito
em suas falas que “perderam tudo”, como derrota social e individual.
Percebemos, nos discursos, mesmo diferentes e em níveis de reflexão
distintos, um resultado mínimo de mudança entre eles, reforçando o caminho trilhado
pelos profissionais que atuam com intervenções pautadas no coletivo, como espaço
de escuta e de fala na construção de novas masculinidades e de novas relações.
Não justificamos os atos de violência e nem colocamos os homens autores de
violência como vítimas; não minimizamos as mulheres em situação de violência e
nem as vidas ceifadas por alguns desses homens. A gravidade dessa questão põe
em pauta a urgência das políticas de atenção às mulheres, tanto na proteção como
108
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Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Fórum Brasileiro de Segurança Pública; pg.108-110.
Disponível em: www.forumseguranca.org.br. Acesso em: 10 de fev. de 2020.
109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2013, p. 161-164. Tradução: Emmanuel Ramalho de Sá Rocha.
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do Homem Autor da Violência. Saúde Soc. São Paulo, v.17, n.3, p.152-160, 2008.
Disponível: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
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SANTOS, Maria do Carmo G; Soares, GOMES, Amanda Teresinha. Era uma vez: os
contos de fadas e as relações de gênero na perspectiva das professoras. Revista
Debates Insubmissos, Caruaru, PE. Brasil, Ano 1, v.1, nº 3, set/dez. 2018.
Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/debatesinsubmissos/. Acesso em:
20 de mar. de 2020.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e
Realidade, Porto Alegre, RS. v. 20, n. 2, p. 133-184, jul./dez. 1995.
SCOTT, Joan. Entrevista com Joan Scott realizada por Fernanda Lemos. Revista
Mandrágora, São Paulo, SP. v. 19, n. 19, p. 161-164, jan./dez. 2013.
ANEXOS
medidas serão tomadas para sua redução, tais como: minimizar desconfortos,
garantindo local reservado e liberdade para não responder questões
constrangedoras; estar atento aos sinais verbais e não verbais de desconforto; e
assegurar a confidencialidade e a privacidade, a proteção da imagem e a não
estigmatização, garantindo a não utilização das informações em prejuízo das
pessoas e/ou das comunidades, inclusive em termos de autoestima, de prestígio
e/ou econômico – financeiro.
Todos os procedimentos estão de acordo com os princípios éticos que regem
atividades vinculadas a pesquisa, atendendo à Resolução 196/96 e 466/12 e
complementares do Conselho Nacional de Saúde, que trata de pesquisa com seres
humanos.
Eu, ____________________________________________________________, RG.
_________________________________, fui informada/o dos objetivos da pesquisa
acima de maneira clara e detalhada e esclareci minhas dúvidas. Sei que em
qualquer momento poderei solicitar novas informações e motivar minha decisão se
assim o desejar. A pesquisadora certifica-me que todos os dados desta pesquisa
serão confidenciais. Também sei que caso existam gastos adicionais, estes serão
absorvidos pelo orçamento da pesquisa; caso eu tenha qualquer despesa decorrente
da participação na pesquisa, tais como transporte, alimentação entre outros, estes
serão absorvidos e de inteira responsabilidade da pesquisadora. De igual maneira,
caso ocorra algum dano decorrente da minha participação no estudo, serei
devidamente indenizado, conforme determina a lei.
Declaro que concordo em participar desse estudo. Declaro ainda que recebi uma
cópia deste termo de consentimento livre e esclarecido e que me foi dada a
oportunidade de ler e esclarecer as minhas dúvidas.
Alguns dados:
Idade:
Profissão:
Escolaridade:
Violência cometida:
Conte um pouco da sua família, da sua infância, dos seus pais e/ou cuidadores;
Conte um pouco da sua historia com a violência; como que foi; o que aconteceu;
qual foi gota d’água; como você se sentiu;
Alguns dados:
Gênero:
Idade:
Profissão:
Instituição e ou Local de trabalho:
Do seu ponto de vista, como profissional que atende esse publico qual os motivos
desses homens a praticar a violência?
APÊNDICE
MEMORIAL
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OSC SOS Ação Mulher e Família – presta serviço às mulheres e suas famílias em situação de
violência, desde 1982.
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32
Alinhavado: ponto falso na costura, que facilita o desmancho.
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morte, muitas vezes ceifada por outras pessoas.. Essa aproximação com as vítimas
de violência ocasionou mudanças na minha colcha de retalhos, despertando uma
ânsia por repostas frente aos motivos da violência, da intolerância, do ódio, das
histórias de vida das vítimas e dos agressores. A questão da violência começa a se
cruzar com os retalhos da minha vida.
das profissionais; das professoras Maria Lucia Rodrigues (orientadora); Mirian Faury
(co-orientadora); Maria Lucia Martinelli e das muitas amigas e amigos que deixaram
um pedacinho de retalho colorido.
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Disponível em: https://www.pensador.com/autor/cris_pizzimenti/ acessado em: 01/08/2018