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Nevasca 13 24

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aquilo era o mesmo comboio que antes nos ultrapassara.

A neve, exatamente como


antes, revoava com o movimento das rodas chiantes, das quais algumas nem rodavam;
exatamente como antes, as pessoas dormiam sob as esteiras; e exatamente do mesmo
modo, o malhado da frente, in�lando as ventas, farejava a estrada e apurava as orelhas.
– Veja só, volteamos, volteamos, e saímos de novo no rumo do comboio! – disse o
meu cocheiro, nada satisfeito. – Os cavalos do correio são bons: mas esse aí guia mal; e
os nossos desse jeito vão parar se a gente continuar andando assim a noite toda.
Ele pigarreou.
– Vamos voltar, senhor, fugir de uma desgraça.
– Por quê? A algum lugar chegaremos.
– Que lugar? Nós vamos é passar a noite na estepe. Que nevasca... Paizinho do céu!
Embora eu estivesse surpreso com o fato de que o cocheiro da frente, que visivel-
mente perdera a estrada e a direção, não descia para procurar o caminho e, em vez
disso, gritava alegremente, seguindo em frente a toda, eu já não queria me separar
deles.
– Atrás deles – disse eu.
O cocheiro foi, mas açulou os cavalos, ainda mais desgostoso do que antes, e não
conversou mais comigo.
IV

A nevasca tornava-se cada vez mais forte; de cima, caía uma neve seca e miúda; pelo
visto, começava a fazer mais frio: o nariz e a face congelavam, com mais frequência
corria sob o casaco de pele um �ilete de ar gelado e era preciso estreitar a roupa ao
corpo. De vez em quando os trenós batiam em alguma super�ície nua e congelada, da
qual a neve fora varrida. Uma vez que, sem pernoitar, eu já estava percorrendo a sexta
centena de verstas, apesar de ter muito interesse no resultado da nossa confusão, sem
querer eu fechava os olhos e cochilava. Certa vez, quando abri os olhos, impressionou--
me, como me pareceu num primeiro minuto, a luz clara que iluminava a planície
branca: o horizonte havia se ampliado signi�icativamente, o céu negro e baixo de re-
pente desaparecera, de todos os lados viam-se as linhas brancas transversais da neve
que caía; o contorno das troicas da frente mostrava-se claramente e, quando olhei para
cima, pareceu-me, num primeiro minuto, que as nuvens tinham se dispersado e que só
a neve encobria o céu. Enquanto eu cochilava, a lua surgiu e lançava a sua luz fria e
clara entre as nuvens difusas e a neve que caía. A única coisa que eu via com clareza
era o meu trenó, os cavalos, o cocheiro e as três troicas, que seguiam à frente: a primei-
ra, a do correio, em cuja boleia como antes estava sentado só o cocheiro, que tocava os
cavalos a toda; a segunda, na qual, tendo largado as rédeas e feito para si próprios um
resguardo com o armiak³ , estavam sentados os dois cocheiros que fumavam cachim-
bo sem parar, o que se via pelas faíscas brilhantes; e a terceira, na qual não se via nin-
guém e cujo cocheiro provavelmente dormia no meio dela. Entretanto, quando eu des-
pertei, o cocheiro da frente começou a parar os cavalos de vez em quando para procu-
rar a estrada. Então, assim que parávamos, ouvia-se mais fortemente o uivar do vento
e via-se melhor a enorme quantidade de neve que ele lançava ao alto. Aparecia-me a
�igura baixa do cocheiro, sob a luz da lua encoberta pela tempestade, com o cabo do
chicote na mão, com o qual ele sondava a neve diante de si, enquanto se movimentava
para trás e para frente pela treva iluminada, e de novo se aproximava do trenó, pulan-
do agilmente na boleia e de novo se ouviam, em meio ao monótono assobiar do vento,
gritos animados e sonoros e o retinir das sinetas. Quando o cocheiro da frente descia
da boleia para procurar sinais da estrada ou de medas, do segundo trenó toda vez se
ouvia a voz con�iante e animada de um dos cocheiros, que gritava ao da frente:
– Escute, Ignachka! Viramos demais à esquerda: pegue à direita, na direção do
vento. Ou: – Por que dá voltas, seu burro? Vá no sentido da neve, no rumo que a neve
se põe, pra lá é que deve ir. Ou: – Para a direita, para a direita, meu irmão! Veja, algo
escuro ali, um marco, eu acho. Ou: – Que confusão está fazendo! Que confusão! Desa-
trela o malhado, deixa que ele vá à frente, logo-logo ele volta pra estrada. É o melhor
negócio!
³Palavra da língua quirguiz que designa um casaco de inverno comprido, feito de lã grossa,
geralmente usado pela população rural.
Aquele mesmo que aconselhava, não só não desatrelava o cavalo lateral e não cami-
nhava pela neve em busca do caminho, como nem sequer tirava o nariz de dentro do
armiak e, quando o Ignachka da frente gritou, em resposta ao conselho de assumir a
dianteira, que, se sabia para onde ir, devia ele ir à frente, então o aconselhador respon-
deu que, se ele estivesse guiando a troica do correio, então iria e certamente acharia a
estrada.
– Mas, no turbilhão de neve, nossos cavalos não vão à frente – gritou ele, – não são
desse tipo.
– Então não meta a colher! – respondeu Ignachka, assoviando alegremente aos ca-
valos.
O outro cocheiro, sentado no trenó junto com o aconselhador, não retrucava e, em
geral, não se intrometia no negócio, embora ainda não dormisse, conclusão que tirei
pelo cachimbinho sempre aceso e pelo fato de que eu ouvia seu falar compassado e
ininterrupto quando parávamos. Ele estava contando uma estória. E apenas quando
Ignachka parou pela sexta ou sétima vez, pelo visto irritado por interromperem o
prazer da corrida, ele gritou:
– Ei, por que parou de novo? Vixe, quer achar a estrada! Olha a nevasca aí! Agora
nem o agrimensor, nem ele encontra essa estrada. Vá andando enquanto os cavalos
levam. E que não morra congelado... vamos, toca!
– Que nada! Dizem que no ano passado um carteiro morreu congelado! – replicou
meu cocheiro.
O cocheiro da terceira troica não acordava de jeito nenhum. Certa vez, durante uma
parada, o conselheiro gritou:
– Filipp! Ei, Filipp! – E, sem ter recebido resposta, observou: – Será que morreu con-
gelado? Você, Ignachka, olhe lá.
Ignachka, pau pra toda obra, aproximou-se do trenó e pôs-se a cutucar o adormecido.
– Vixe, a garra�inha desmontou o homem! Congelou? Diga aí! – disse Ignachka, ba-
lançando o outro.
O adormecido rosnou algo e praguejou.
– Está vivo, irmãos!– disse Ignachka e de novo correu para a frente; e nós partimos
de novo e até tão rapidamente que o baio lateral da minha troica, incessantemente
açoitado na cauda, mais de uma vez saltou num galope desengonçado.

Lá pela meia-noite, acho, o velhinho e Vassili galoparam em nossa direção, com os


cavalos fugidos. Tinham encontrado os cavalos e ainda nos acharam e alcançaram;
mas, de que modo �izeram isso sob a nevasca escura e ofuscante, no meio da estepe
nua, nunca conseguirei compreender. O velhinho, balançando cotovelos e pernas,
vinha a galope no cavalo do meio (os outros dois cavalos estavam amarrados à coalhei-
ra: numa nevasca, não devem �icar soltos). Ao se emparelhar comigo, ele de novo co-
meçou a xingar o meu cocheiro:
– Vixe, diabo vesgo! Francamente...
– Ei, tio Mitritch – gritou o contador de estórias do segundo trenó, – está vivo? Vem
pra cá.
Mas o velho não respondeu, continuou a xingar. Quando lhe pareceu su�iciente, ele
se aproximou do segundo trenó.
– Pegou todos? – perguntaram-lhe lá de dentro.
– E como não!
No trote, a sua pequena �igura aproximou o peito do dorso do cavalo, depois, sem
parar, saltou sobre a neve, sem parar, correu atrás do trenó, jogou-se sobre ele com o
corpo todo, lançando as pernas por cima do arco lateral. Assim como antes, o alto Vas-
sili continuou sentado em silêncio no trenó da frente com Ignachka e os dois começa
ram a procurar a estrada.
– Vixe, xingador... Senhor-pai! – balbuciou o meu cocheiro.
Depois disso, seguimos sem parar, longamente, pelo deserto branco, sob a luz fria,
límpida e oscilante da nevasca. Abro os olhos – o mesmo gorro desajeitado e as
mesmas costas cobertas de neve estão plantadas diante de mim; o mesmo arco baixo,
sob o qual, entre as retesadas correias de couro do freio, sempre a uma mesma distân-
cia, desaparece a cabeça do cavalo do meio, com a crina preta um pouco jogada para o
lado pelo vento; vejo, do lado de lá das costas do cocheiro, o mesmo baiozinho lateral à
direita, com a cauda presa encurtada e o varal que, de vez em quando, bate na entre-
casca do trenó. Olho para baixo – a mesma neve solta e leve revolvida pelas lâminas, e
o vento obstinadamente ergue e carrega tudo numa única direção. À frente, a uma
mesma distância, correm as troicas da frente; à direita, à esquerda, tudo branqueja e se
confunde. Em vão os olhos buscam um objeto novo: nem marcos de distância, nem
medas, nem cercas – não se vê nada. Por toda parte, só o branco, o branco fugidiço: ora
o horizonte parece extremamente distante; ora se comprime a dois passos em todas as
direções; ora de repente, à direita, cresce uma parede branca alta, que corre ao lado
dos trenós; ora ela desaparece de repente, depois surge de novo à frente e corre ao
longe até desaparecer outra vez. Quando olho para cima – parece claro num primeiro
minuto, parece que vejo estrelinhas através do nevoeiro; mas as estrelinhas fogem da
vista e sobem mais alto e mais alto, e então vejo apenas a neve que, diante dos olhos,
cai sobre o meu rosto, sobre a gola do meu casaco de pele; o céu ao redor é igualmente
claro, igualmente branco, sem colorido, uniforme e constantemente fugidiço. O vento
parece mudar: ora sopra contra nós e faz a neve colar nos olhos; ora irritantemente
lança a gola do casaco sobre a minha cabeça e zombeteiramente faz a gola bater no
meu rosto; ora uiva de trás, para dentro de alguma abertura. Ouve-se o crepitar fraco e
contínuo dos cascos e das lâminas sobre a neve e o tinido amortecido das sinetas
quando passamos por uma camada de neve profunda. Apenas raramente, quando se-
guimos contra o vento e por uma super�ície nua e congelada, chega claramente até os
ouvidos o assobiar enérgico de Ignat e o tinido ainda mais modulado de sua sinetinha,
numa quinta estridente e, de repente, esses sons quebram agradavelmente o caráter
sombrio do deserto, mas depois voltam a soar monótonos, com insuportável precisão,
tocando sempre o mesmo motivo, que eu, involuntariamente, reproduzo na memória.
O meu pé começou a congelar e, quando me virei para me cobrir melhor, a neve pousa-
da na gola e no gorro escorreu pelo pescoço e provocou um calafrio; mas, em geral, eu
ainda estava aquecido no meu casaco de pele quente e fui levado a cochilar.

VI

Lembranças e sensações sobrepunham-se com acelerada rapidez na minha imagi-


nação. “O conselheiro que �ica gritando o tempo todo no segundo trenó, que tipo de
mujique será ele? Provavelmente é ruivo, troncudo, de pernas curtas”, penso eu, “pare-
cido com Fiódor Filippitch, o nosso antigo copeiro”. E eis que vejo a escada de nossa
casa grande e cinco criados que, com di�iculdade, arrastam um piano colocado sobre
toalhas, tirado da casa anexa; vejo Fiódor Filippitch com as mangas da casaca de nan-
quim dobradas, ele carrega um pedal, corre à frente, abre os ferrolhos, puxa a maçane-
ta, empurra algo aqui, aperta-se entre as pernas dos outros, atrapalha todo mundo e,
com voz de pessoa atarefada, grita sem parar:
– Segure aí, vocês, da frente, da frente! Olhem aí, a cauda para cima, para cima, para
cima, pela porta! Assim!
– Ah, deixa disso, Fiódor Filippitch! Melhor sozinhos – observa humildemente o jar-
dineiro, apertado contra o corrimão, todo vermelho do esforço, segurando um dos
cantos do piano no limite da própria força.
Mas Fiódor Filippitch não sossega.
“O que será isso?”, raciocinava eu, “Ele se julga útil, imprescindível para o negócio
todo ou simplesmente está contente porque Deus lhe deu essa retórica segura, convin-
cente, e é com prazer que ele a utiliza? Deve ser isso”. E, não sei por que, eu vejo o
açude, os criados cansados, que, com água até os joelhos, jogam a rede, e de novo
Fiódor Filippitch com o regador, gritando a todos; ele corre pela margem e apenas de
vez em quando se aproxima da água para, segurando peixinhos dourados na mão, des-
pejar a água turva e pegar água limpa. Mas eis um meio-dia em julho. Eu caminho pelo
mato recém-cortado do jardim, sob os raios diretos e ardentes do sol, sem saber para
onde. Ainda sou muito jovem, falta-me algo, sinto necessidade de algo. Caminho na di-
reção do açude, do meu lugar preferido, entre canteiros de rosas-caninas e aleias de
bétulas, e deito-me para dormir. Revivo a sensação de estar ali, deitado, e de ver, atra-
vés dos ramos vermelhos e espinhosos das rosas-caninas, a terra negra e ressequida
em grãozinhos e o espelho d’água azul claro do açude banhado de sol. Era uma sensa-
ção de autossatisfação ingênua e de tristeza. Tudo ao meu redor era tão maravilhoso e
essa beleza agia sobre mim com tanta força que me parecia que eu próprio era bonito
e a única coisa que me incomodava era o fato de ninguém se surpreender com isso.
Está muito quente. Tento pegar no sono para me consolar, mas as moscas, as insupor-
táveis moscas não me deixam em paz nem aqui, começam a se juntar ao meu redor e
insistentemente, com a�inco, como carocinhos, pulam da testa às mãos. Uma abelha
zumbe perto de mim, bem ao sol; borboletas de asas amarelas, parecendo esmoreci-
das, volteiam de folha em folha. Olho para cima; machuca os olhos – o sol brilha
demais através da folhagem radiante da bétula frondosa que balança os seus galhos
bem alto, mas de mansinho, sobre mim. Eu cubro o rosto com o lenço; �ica abafado e
parece que as moscas grudam-se em minhas mãos, onde brota o suor. Pardais fazem
festa na rosa-canina, no meio do mato. Um deles pulou para o chão, perto de mim, fez
que bicava a terra umas duas vezes, energicamente, depois, estalando galhos e pipilan-
do alegremente, voou para fora dos canteiros; outro também saltou para o chão, esti-
cou o rabinho, olhou ao redor e, exatamente como uma seta,voou, pipilando atrás do
primeiro. No açude, ouvem-se os golpes do pau de bater roupa nos lençóis molhados, e
esses golpes parecem soar e propagar-se baixo, ao longo do açude. Ouvem-se risos,
ruídos de vozes e o respingar de água dos banhistas. Uma rajada de vento rumorejou a
copa das bétulas ao longe; eis que ouço como, mais perto, ele remexeu o mato; eis que
as folhas dos canteiros de rosa-canina começaram a oscilar, a bater em seus galhos; eis
que chega até mim uma corrente de vento fresco, erguendo a ponta do lenço e fazendo
cócegas no rosto suado. Pela abertura do lenço erguido uma mosca entrou voando e
bateu assustada perto da boca úmida. Um galho seco espeta minhas costas. Não, não
consigo �icar deitado: vou me banhar. Mas eis que, perto dos canteiros, ouço passos
apressados e uma voz assustada de mulher:
– Ai, meu pai! Que coisa! E não há homens por aqui!
– O que foi, o quê? – pergunto eu, saindo às pressas ao sol, na direção da criada, que,
gritando, passa correndo diante de mim. Ela apenas olha ao redor, agita os braços e
corre ainda mais. Mas eis que, na direção do açude, vem correndo a velha Matriona,
com 105 anos de idade, segurando com a mão o lenço que escorrega da cabeça, aos
pulinhos, arrastando um pé calçado numa meia de lã. Duas meninas correm de mãos
dadas, e um menininho de dez anos de idade, usando a casaca do pai, vem correndo
atrás, segurando-se na saia de cânhamo de uma delas.
– O que aconteceu? – pergunto-lhes.
– Um mujique se afogou.
– Onde?
– No açude.
– Quem? Dos nossos?
– Não, viajante.
O cocheiro Ivan, sacolejando as botas grandes pelo mato recém-cortado, e o gordo
administrador Iakov, respirando com di�iculdade, correm na direção do açude, e eu
corro atrás deles.
Lembro-me do sentimento que me dizia: “Agora se jogue na água, puxe e salve o mu-
jique, e todos �icarão admirados com você”, e era exatamente isso que eu queria.
– Mas onde, onde? – pergunto eu à multidão de criados que se juntou na margem.
– Lá longe, no redemoinho, na outra margem, quase na sauna – diz a lavadeira, en-
quanto recolhe os lençóis molhados nos baldes pendurados em cada ponta da vara. –
Eu estava olhando, ele afundou, mas apareceu de novo um pouquinho, e sumiu de
novo, apareceu outra vez e ainda gritou: “Estou me afogando, irmãos!” e foi para baixo
de novo, e apareceram só bolhas. Aí entendi que o mujique estava se afogando. Logo
chamei: “Um mujique se afogando, irmãos!”.
Ela jogou a vara dos baldes sobre o ombro, cambaleou, e foi embora pela trilha, para
longe do açude.
– Vixe, que desgraça! – diz Iakov Ivanov, o administrador, em desespero – Agora te-
remos confusão com o conselho local, na certa.
Um mujique com uma foice abriu caminho com di�iculdade entre a multidão de mu-
lheres, crianças e velhos amontoados naquela margem e, depois de pendurar a foice
em um galho de salgueiro, começou a tirar os sapatos lentamente.
– Onde, onde foi que ele se afogou? – continuo perguntando, no desejo de me lançar
lá e fazer algo extraordinário.
Mas apontam-me a super�ície lisa do açude, que de raro em raro o vento encrespa.

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