(2016) Tese - Daniel Costa Gomes, UNB (A Imposição Do Alinhamento)
(2016) Tese - Daniel Costa Gomes, UNB (A Imposição Do Alinhamento)
(2016) Tese - Daniel Costa Gomes, UNB (A Imposição Do Alinhamento)
Universidade de Brasília
Instituto de Relações Internacionais
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
Mestrado em Relações Internacionais
A IMPOSIÇÃO DO ALINHAMENTO:
a política externa dos governos Dutra e Vargas (1946-1954)
Brasília
2016
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Universidade de Brasília
Instituto de Relações Internacionais
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
Mestrado em Relações Internacionais
A IMPOSIÇÃO DO ALINHAMENTO:
a política externa dos governos Dutra e Vargas (1946-1954)
Brasília
2016
AGRADECIMENTOS
A Tarsila, que contribuiu direta e indiretamente para a elaboração deste trabalho e que
me proporcionou apoio e incentivo incondicionais.
A Alfrêdo e Germana, que serviram de inspiração para essa trajetória e a quem sou
extremamente grato pela generosidade.
A Danilo, que me acompanha aonde for.
A Héctor, Iury, Giuliana, Cristina, Igor e Ianes, que enriqueceram essa jornada.
A Jaidir, Edilene, Elisana e Priscila, que me acolheram genuinamente.
A Daniel, Diego, François, Leonardo, Mateus, Rosana e Thaciano, cuja amizade nem o
tempo, nem a convivência conseguiram afastar.
A Alexandre Moreli, que lançou as primeiras luzes sobre este trabalho e, em nome de
quem, agradeço à Fundação Getúlio Vargas e, especificamente, ao Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil.
A Demétrio Weber, cujo humanismo é inspirador e, em nome de quem, agradeço à
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
A Sombra Saraiva, Pio Penna, Cristina Inoue, Vanessa Bottazzini, em nome de quem
agradeço à Universidade de Brasília e, especificamente, ao Instituto de Relações
Internacionais.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, que me
proporcionou uma bolsa de estudos.
A Antônio Carlos Lessa e Thiago Gehre Galvão, que me orientaram neste trabalho.
RESUMO
O presente trabalho analisa a política externa adotada pelos governos de Eurico Dutra
(1946-1950) e de Getúlio Vargas (1951-1954), valendo-se de fontes primárias e secundárias.
A hipótese defendida é a de que, durante esses dois governos, a política externa brasileira foi
caracterizada pela "imposição do alinhamento". Consequentemente, influenciada por forças
internas e externas, a política alinhada aos Estados Unidos impôs-se como a opção
efetivamente viável ao Brasil desses dois presidentes. No desenvolvimento dessa
caracterização, debatem-se os conceitos tradicionais para a interpretação da política externa
daqueles dois governos. As premissas desses conceitos são analisadas e interpretadas segundo
estudos recentes desenvolvidos no âmbito da História Mundial, da História do Brasil, da
História das Relações Internacionais, da História da Política Exterior do Brasil, da Economia
Mundial e da Economia Brasileira.
This paper analyzes the foreign policy adopted by the governments of Eurico Dutra
(1946-1950) and of Getúlio Vargas (1951-1954), resorting to primary and secondary sources.
The hypothesis it defends is that, during these two governments, Brazilian foreign policy was
characterized by the "imposition of alignment". Consequently, influenced by internal and
external forces, the policy of alignment to the United States imposed itself as the effectively
viable option to the Brazil of theses two presidents. Along the development of that
characterization, the traditional concepts to the interpretation of the foreign policy of those
two governments are debated. The premises of these concepts are analyzed and interpreted
according to recent studies developed in the field of World History, Brazilian History,
International Relations History, Brazilian Foreign Policy History, World Economy, and
Brazilian Economy.
Introdução 9
Conclusão 123
Bibliografia 128
Anexos 145
!9
INTRODUÇÃO
como Cervo (2007) e Bandeira (1973, 2003). Um dos sinais dessa subserviência seria o
suposto retorno à vocação agrícola como modelo econômico brasileiro (MOURA, 2012;
SKIDMORE, 1982; VISENTINI, 2013b).
Uma premissa partilhada, implícita ou explicitamente, pela maior parte dessas
interpretações é a de que haveria outras possibilidades de inserção internacional. Afinal, se há
um julgamento tão depreciativo é porque Dutra poderia ter feito outras escolhas. Assim, o
alinhamento teria sido uma opção deliberada de seu governo. A ideia de "imposição do
alinhamento", no entanto, procura debater essa premissa, propondo-se que, como não haveria
alternativas efetivamente exequíveis ao alinhamento, o papel de Dutra teria sido praticamente
irrelevante para a conformação dessa política. Assim, este trabalho desenvolve caminho
sugerido por Lima (2006, p. 46), que questiona "governo Dutra: alternativa equivocada ou
ausência de alternativas?".
Além disso, o conceito de "imposição do alinhamento" procura incorporar ao estudo
da História da Política Exterior do Brasil os avanços verificados na História Econômica do
Brasil. Afinal, vários estudos recentes (BASTOS, 2012; VIANNA, 2014; ABREU, 2013;
GONÇALVES, 2016) apontam para conclusões contrárias a premissas que balizam
interpretações da política externa de Dutra. Por exemplo, Abreu (2013, p. 205) registra que,
nesse governo, o PIB industrial cresceu a uma média anual de 11,4%, o que não parece
coerente com a ideia de retorno à vocação agrícola. Gonçalves (2016, p. 8), por sua vez,
informa que, com Dutra, a taxa média de crescimento econômico brasileiro foi de 7,6%,
índice que não aparenta refletir um governo subserviente, desprovido de autonomia decisória,
sem considerações com os interesses nacionais.
No caso de Vargas, apesar de a sua política externa também ter sido alinhada, a
caracterização é praticamente oposta. Nesse sentido, o retorno de Getúlio ao Catete teria
implicado a retomada do paradigma desenvolvimentista (CERVO, 2008a). Em consequência,
após o hiato liberal que teria definido o governo Dutra (BUENO; CERVO, 2012; CERVO,
2008a), o governo Vargas ter-se-ia caracterizado pela busca da barganha nacionalista
(VISENTINI, 1996; VISENTINI, 2013b).
A política externa brasileira, dessa forma, retomaria sua racionalidade, de modo que a
relação do país com as grandes potências, em especial com os Estados Unidos, voltaria a
apresentar caráter instrumental, visando ao desenvolvimento econômico nacional
!11
(PINHEIRO, 2004, p. 29). O alinhamento brasileiro, então, teria retomado seu formato
pragmático, segundo define Pinheiro (2004, p. 66-65).
Essa interpretação persiste, sendo ecoada em outras obras (CERVO, 2007; CERVO,
2008a; BANDEIRA, 1973; BANDEIRA, 2003), a despeito do reconhecimento de que, no
governo Vargas, o pragmatismo foi impossível (HIRST, 1990). Ainda, o retorno de Vargas à
Presidência continua a ser caracterizado pela retomada do desenvolvimentismo e apresentado
em oposição ao governo Dutra, embora as taxas médias anuais de crescimento econômico e
de expansão industrial deste tenham sido maiores (7,6% e 11,4%, respectivamente) que as de
Getúlio (6,2% e 7,3%, respectivamente). Igualmente, a política externa adotada por Vargas
permanece sendo conceituada como antítese da implementada por Dutra, a despeito de
admitir-se que, durante os anos desses dois governos, o alinhamento foi inevitável
(PINHEIRO, 2004, p. 27).
Diante desse cenário contraditório, a ideia de "imposição do alinhamento" procura
ressaltar as semelhanças entre essas duas presidências, derivando-lhes uma linha de
continuidade – nomeadamente, a política externa alinhada, que, argumenta-se, se teria
imposto independentemente do presidente à frente do Catete. Dessa forma, o objetivo deste
trabalho não é proceder-se a uma crítica da natureza do tipo de inserção internacional do
Brasil, nem dos impactos que tal tipo de inserção exerceu sobre o desenvolvimento
econômico nacional.
Objetiva-se, sim, analisar como se manifestou o alinhamento brasileiro aos Estados
Unidos no imediato pós-1945. Ante a semelhança desse alinhamento durante os governos
Dutra e Vargas, o conceito de "imposição do alinhamento" dá continuidade à hipótese de
Doratioto e Vidigal (2014, p. 71) de que, em seu segundo governo, "Vargas foi levado à
adoção de uma política externa que se aproximava mais daquela adotada por Dutra do que da
implementada da era Vargas (1930-1945)", quando se empreendeu a equidistância
pragmática (MOURA, 1980).
Para tentar comprová-lo, o presente trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro,
analisam-se as transformações que caracterizavam o Brasil e o mundo na primeira metade da
década de 1940. Como consequência, argumenta-se que essas transformações teriam resultado
em um "clamor liberal", que constituiria o fundamento do qual emanariam o governo e o
!12
próprio regime político brasileiros de 1946. Assim, o liberalismo1 seria a tônica a ser legada a
esse governo e regime.
No segundo capítulo, o governo Dutra é analisado, com vistas a analisar como se
materializou o "clamor liberal" que lhe havia sido legado e que lhe constituía a própria
justificativa. Diante de tal cenário, a "imposição do alinhamento" teria emergido como
consequência lógica para a política externa brasileira entre os anos 1946 e 1950. A propósito,
embora tenha durado até o dia 31 de janeiro de 1951, o governo Dutra é mencionado neste
trabalho como vigente entre 1946 e 1950; caso seja necessário referir-se à sua atuação como
presidente em 1951, isso é explicitado.
No terceiro capítulo, por fim, o objeto de análise é o governo Vargas, e o objetivo é
argumentar que a "imposição do alinhamento" também se teria verificado nesse período. A
propósito, neste trabalho, "governo Vargas" equivale à segunda passagem de Getúlio na
Presidência, entre 1951 e 1954; na eventualidade de ser necessário referir-se à primeira
passagem, isso é evidenciado.
Todos esses três capítulos são estruturados de modo a contemplar as esferas
internacional e nacional, pois, como dito, argumenta-se que a "imposição do alinhamento"
teria resultado de influências domésticas e estrangeiras. Na esfera nacional especificamente,
analisam-se os âmbitos político e econômico. No âmbito político, são investigadas iniciativas
de política doméstica e de política externa.
Essa estrutura perpassa os três capítulos, mas é fundamentalmente desenhada para o
segundo e o terceiro capítulos. Afinal, a justificativa primária desse arranjo é possibilitar a
comparação entre os governos Dutra e Vargas segundo parâmetros semelhantes. Sua
justificativa secundária é ilustrar que, em coerência com o "clamor liberal" do período, o
alinhamento se manifestou em diversos setores, como nas políticas doméstica, externa e
econômica. De tal forma, reforça-se a ideia de "imposição do alinhamento", que não seria
uma mera casualidade, mas uma orientação geral a guiar esses governos.
1 É difícil caracterizar o liberalismo, que pode assumir uma variedade extremamente ampla de significados. No
caso do Brasil do pós-1945, o liberalismo foi antes de tudo retórico, instrumental, utilizado como discurso
político. Além da dimensão retórica, esse liberalismo à brasileira assumiu contornos essencialmente econômicos,
de modo que não implicou necessariamente ganhos em termos de liberdades civis, direitos humanos, garantias
individuais. Inclusive, não é esse o objeto do presente trabalho, mas como se deu o alinhamento externo aos
Estados Unidos durante os governos Dutra e Vargas. De toda forma, pode-se argumentar que o liberalismo,
principalmente econômico, já se colocava sobre a política brasileira há bastante tempo – segundo alguns, desde a
própria fundação do Brasil. Assim, o liberalismo poderia ser interpretado como uma espécie de força profunda
(RENOUVIN, 1953; DUROSELLE; RENOUVIN, 1967) sobre a política brasileira.
!13
Por oportuno, registra-se que "orientação geral" não significa "orientação de sempre",
como se os governos Dutra e Vargas tivessem sido homogeneamente alinhados nas
respectivas iniciativas, políticas e atitudes. Dessa forma, este trabalho também é estruturado a
partir da premissa de que os dois governos foram complexos, de modo que a política externa
alinhada comportou nuances. Em ambas as presidências, houve, inclusive, iniciativas,
políticas e atitudes que estavam em desacordo com interesses norte-americanos. Mesmo
assim, apesar dessas manifestações pontuais de resistência ao alinhamento, a política externa
alinhada ter-se-ia imposto, reforçando a ideia de "imposição alinhamento".
Assim, para capturar essas complexidades e para evitar simplificações, a presente
dissertação procura elaborar uma interpretação abrangente acerca dos governos Dutra e
Vargas. São analisadas manifestações que ilustram tanto a orientação geral do alinhamento
quanto resistências pontuais a esse alinhamento. Naturalmente, não se pretende (nem se
conseguiria) esgotar essas manifestações, registrando-lhes todas neste trabalho. Objetiva-se,
sim, recorrer a essas manifestações na medida de sua utilidade para o desenvolvimento e a
corroboração do conceito de "imposição do alinhamento", capturando-lhe as nuances.
Em relação às fontes, por fim, o presente trabalho recorre a fontes secundárias. Nesse
sentido, são utilizados artigos e livros sobre história mundial, história brasileira, política
internacional, política externa brasileira, economia mundial, economia brasileira, direito
internacional público, direito constitucional brasileiro.
Também se recorre a fontes primárias. Assim, são utilizados jornais da época;
documentos pessoais presentes nos arquivos Eurico Dutra (ED), Getúlio Vargas (GV) e
Oswaldo Aranha (OA) constantes no Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV); correspondência
diplomática e relatórios oficiais constantes no Arquivo Histórico do Ministério das Relações
Exteriores (AHMRE, Brasília); correspondência diplomática e relatórios oficiais constantes
no Office of the Historian do Foreign Relations of the United States (FRUS); relatórios sobre
eleições, bem como programas e manifestos de partidos políticos constantes na Coordenaria
de Gestão Documental do Tribunal Superior Eleitoral (TSE); discursos políticos e mensagens
oficiais constantes na Biblioteca da Presidência da República [do Brasil], bem como nas
Truman Library e Eisenhower Library.
!14
Capítulo I
2Essa expressão é utilizada, originalmente, por Bueno e Cervo (2012, p. 394) para qualificar a política externa
do governo Castelo Branco. A utilização, no entanto, dessa expressão para a política externa de Dutra também é
possível, pois o próprio Cervo (2008a, p. 46) estabelece essa comparação.
3Expressão que entitula obra organizada por José Augusto Guilhon Albuquerque (1996), analisando a política
externa brasileira entre 1930 e 1990, que seria marcada pela tônica desenvolvimentista.
!15
4 Todas essas entidades eram formas de Estado semissoberano e que, por isso, têm autonomia e atuação
internacional restritas (MELLO, 2004, p. 381-385). Para definição mais abrangente de cada uma dessas
entidades, consultar Anexo 01.
!16
ao fascismo 5 e antipático aos Estado Unidos 6 teria optado por uma política externa liberal,
alinhada a esse país? A resposta a esse quase paradoxo é o argumento que se defende neste
capítulo: em 1946, não havia opção alternativa efetivamente viável ao liberalismo. Assim,
independentemente de quem ocupasse o Catete, as transformações que ocorriam nos cenários
nacional e internacional levariam à adoção de uma política externa liberal, alinhada aos
Estados Unidos. Por esse motivo, argumenta-se que houve a "imposição do alinhamento" à
política externa brasileira no imediato pós-Segunda Guerra Mundial.
5 As caracterizações de Dutra como inclinado ao fascismo são abundantes na literatura, embora sob diversos
formatos. Schwarcz e Starling (2015, p. 387) identificam Dutra como "próximo dos integralistas e notório
admirador da Alemanha nazista". Visentini (2013a, p. 19) refere-se a Dutra como "o condestável do regime
autoritário e ex-simpatizante do Eixo". Em linha similar, Svartman (2009, p. 8) registra que "tanto Dutra quanto
Góes Monteiro eram notórios simpatizantes do Eixo".
6Comentando sobre o fechamento, em agosto de 1944, da Sociedade Amigos da América, Boris Fausto (2013, p.
105) informa: "Dutra, com sua antipatia pelos Estados Unidos, deu cobertura à ação repressiva".
!19
Por mais de quatro séculos (FRANK; GIRAULT; THOBIE, 1993, p. 90), as relações
internacionais foram caracterizadas pelo que Watson (1992) conceituou de sociedade
internacional europeia. Como o próprio nome sugere, essa foi a época na qual a hegemonia
(coletiva ou individual) foi exercida por potências europeias. No século XIX, a sociedade
internacional europeia alcançou seu auge, tornando-se mundial. Pela primeira vez na história
da humanidade, todo o globo terrestre estava conectado por uma rede de relações econômicas
e estratégicas (WATSON, 1992, p. 265).
Essa ordem mundial começou a ruir a partir do fim da Primeira Guerra Mundial
(WATSON, 1992, p. 278). A Segunda Guerra Mundial, por sua vez, decretou seu colapso
definitivo. Assim, a sociedade internacional europeia foi substituída por uma nova ordem,
caracterizada como sociedade internacional global (WATSON, 1992).
A primeira manifestação dessa nova ordem mundial foi a era das superpotências,
nomeadamente Estados Unidos e União Soviética (WATSON, 1992). Esses dois países saíram
como os grandes vencedores da Segunda Guerra Mundial. Além de terem sido os que
empreenderam os maiores esforços para derrotar as forças do Eixo, também foram os que
melhor conseguiram instrumentalizar o conflito bélico como promotor do desenvolvimento
interno. Assim, União Soviética e Estados Unidos alçaram-se ao topo da hierarquia mundial.
Gradativamente, no entanto, as duas superpotências passaram de aliadas na Segunda
Guerra Mundial a rivais na nova ordem mundial. Em março 1946, em seu discurso Sinews of
Peace, proferido no Westminster College, nos Estados Unidos, o ex-primeiro ministro
britânico Winston Churchill anunciou a emergência de uma "cortina de ferro"7 "from Stettin in
the Baltic to Triest in the Adriatic"8. A partir de então, a Europa (e o mundo) passava a estar
separada entre "pró-soviéticos" e "democracias ocidentais"
Apesar de anunciada por Churchill, essa divisão bipolar só ganharia contornos efetivos
de rivalidade com a Doutrina Truman, lançada pelo discurso do presidente norte-americano
7Embora a expressão "cortina de ferro" tenha alcançado popularidade com Churchill, a partir do discurso Sinews
of Peace, sua origem é anterior. Mendes (2012), por exemplo, lembra que Joseph Goebbles havia empregado a
expressão em 1944. Antes mesmo dessa data, a expressão já tinha sido empregada várias vezes. Está presente,
por exemplo, no livro Through Bolshevik Russia, de Ethel Snowden, de 1920. Não é possível, no entanto,
precisar a origem exata da expressão, podendo ser, inclusive, muito anterior.
8 Churchill (apud CHURCHILL, 2003, p. 420).
!20
A nova ordem mundial que emergiu a partir de 1945, caracterizada como sociedade
internacional global (WATSON, 1992), teve duas faces. A primeira, como visto, foi a
ascensão das duas superpotências mundiais, Estados Unidos e União Soviética. A segunda
face, a seu turno, foi, justamente, a decadência das antigas potências (europeias), substituídas
pelas novas superpotências (mundiais). Analisando a conjugação desses duas faces –
decadência das antigas potências europeias e emergência das novas superpotências mundiais
–, Vaïsse (2013, p. 5) afirma que o fim da Segunda Guerra Mundial levou a uma ruptura
9 Harry Truman, "Recommendation for assistance to Greece and Turkey" (12 de março de 1947).
!21
!
Outro modo de verificar a decadência econômica europeia é pela comparação
diacrônica da riqueza, medida pelo PIB. Nesse sentido, em 1939, o PIB das potências
europeias beligerantes, do Japão e da União Soviética correspondia ao dobro do PIB norte-
americano. Em 1946, o PIB norte-americano torno-se maior que o de todas aquelas
economias juntas (FRIEDEN, 2008, p. 284). Mesmo depois de cinco anos após o fim da
Segunda Guerra Mundial, o declínio europeu continuou evidente, conforme se verifica
comparando-se o PIB das antigas potências europeias com o da superpotência norte-
americana. Assim, em 1950, o PIB britânico correspondia a 22% do norte-americano; estando
o alemão e o francês em situação ainda pior, pois correspondiam, cada um, a apenas 14% do
PIB dos Estados Unidos (WYATT-WALTER, 2004, p. 139).
Esse quadro, naturalmente, contribuía para a conformação da política externa
brasileira, que também foi influenciada por outros aspectos da decadência europeia. Nesse
sentido, a capacidade do continente europeu de importar ficou reduzida a 1/3 do que fora em
1938. A frota de navios mercantes, por sua vez, estava reduzida à metade da americana em
1947, enquanto lhe era o triplo em 1939. Na produção de aço, tendência similar foi verificada.
Em 1946, a produção alemã, britânica e soviética, juntas, também ficou reduzida à metade dos
Estados Unidos, enquanto era 15% maior à deste país em 1939. Em termos de padrão de vida,
o índice de 1946 equivalia: na Itália e no Japão, ao de 1910; na Alemanha, ao de 1890; e na
Áustria, ao de 1870 (FRIEDEN, 2008, p. 283-284).
!23
10 Segundo Odd Westad (2010, p. 3), o termo Guerra Fria foi cunhado pelo escritor britânico George Orwell no
artigo "You and the atomic bomb", 19 de outubro de 1945. Com a expressão, Orwell retratou, de maneira
negativa, o estado de guerra não declarado entre Estados Unidos e União Soviética.
11Por regime, entende-se "sets of implicit or explicit principles, norms, rules, and decision-making procedures
around which actor's expectations converge in a given area of international relations" (KRASNER, 1982, p. 2).
!25
mencionar a aprovação pelos Estados Unidos da Lei dos Acordos Recíprocos de Comércio
(RTAA, na sigla em inglês), em 1934. A RTAA foi uma espécie de antecessora da figura atual
da Fast Track Authority (FTA), permitindo ao Executivo norte-americano a determinação das
tarifas aduaneiras sem consulta ao Congresso. Isso, por sua vez, possibilitou a reversão da
ultraprotecionista Tarifa Smoot-Hawley, de 1930 (IRWIN, 2008).
A RTAA não é registrada, nesta seção, pelo fato de ter permitido a expansão de
mercados para as manufaturas dos Estados Unidos, país que, já em 1936, seria responsável
por 32% da produção manufatureira mundial (POLLARD, 1997, p. 3). Ela é registrada, sim,
por revelar o pensamento de seu principal e mais incisivo patrocinador, o secretário de Estado
Cordell Hull. Comentando sobre o espírito da RTAA, Hull informou: "to me, unhampered
trade dovetailed with peace; high tariffs, trade barrier, and unfair economic competition, with
war" 12. Consequentemente, ao se alcançar um fluxo mundial de comércio mais livre – com
menos restrições –, "one country would not be deadly jealous of another and the living
standards of all countries might rise, thereby eliminating the economic dissatisfaction that
breeds war, we might have a reasonable chance for lasting peace".
Essa perspectiva é, claramente, filiada à tradição liberal clássica de que o livre-
comércio é promotor da paz. Com origens remotas em Montesquieu, Kant e Bentham, no
século XVIII, e em Stuart Mill e Richard Cobden, no século XIX, essa vertente teórica do
liberalismo clássico defende que o livre-comércio, ao promover o desenvolvimento nacional,
cria um interesse material concreto pela promoção e manutenção da paz. Paralelamente, o
livre-comércio tem uma função civilizadora, ao promover contato e tolerância entre diferentes
culturas (MESSARI; NOGUERIA, 2005, p. 62-63). Por um motivo ou por outro, o livre-
comércio estaria em relação positiva com a paz – mais comércio, mais paz.
O endosso de Hull a essa ideia foi evidente, mesmo após a Segunda Guerra Mundial,
quando o prestígio dessa perspectiva teórica ficou severamente abalado. Nesse sentido, em
resposta àqueles que argumentavam os tratados de livre-comércio não haviam impedido a
guerra total entre 1939 e 1945, Cordel Hull afirmou: "yes, war did come, despite trade
agreements. But it is a fact that war did not break out between the United States and any
country with which we had been able to negotiate a trade agreement" 13. Além disso, Hull
ressaltou que "with very few exceptions, the countries with which we signed trade agreements
joined together in resisting the Axis. The political line-up followed the economic line-up".
Verifica-se que essa crença na promoção da paz pelo comércio era profunda em Hull,
que a esposava desde muito cedo, como demonstram várias passagens de suas Memórias.
Mais que isso – e, talvez, por isso –, essa rationale iria guiar e pautar a atuação internacional
de Cordell Hull durante aquele que foi o mais longo mandato de um secretário de Estado na
história dos Estados Unidos – entre março de 1933 e novembro de 1944.
Em consequência, a longevidade de Hull na Secretaria de Estado e sua crença na
função pacificadora do livre-comércio teriam, ambas, impacto significativo na conformação
da ordem econômica ocidental do pós-guerra – e da política externa brasileira. Dessa forma,
durante o mandato de Hull, quanto mais o caráter de superpotência mundial dos Estados
Unidos se definia, mais o regime econômico do Ocidente se imbuía de liberalismo. Não à toa,
essa vertente teórica seria verificada em muitos dos instrumentos que conformariam esse
regime – e nos instrumentos que levariam a ele.
Em agosto de 1941, por exemplo, firmou-se a Carta do Atlântico – que, em 1942, seria
incorporada à Declaração das Nações Unidas14. Emanada como uma declaração conjunta de
Roosevelt e Churchill, a Carta do Atlântico continha "common principles in the national
policies of their respective countries on which they base their hopes for a better future for the
world". Assim, todos os seus oito princípios eram formas de se construir um mundo melhor –
o que, naquele momento, podia traduzir-se como alcançar a paz.
É com base nisso que se lhe interpretam o quarto e o quinto princípios como uma
homenagem à crença liberal clássica de que o comércio exerce função pacificadora entre as
nações. Nomeadamente, o quarto princípio prescreve que Estados Unidos e Reino Unido
iriam empenhar-se "to further the enjoyment by all States, great or small, victor or
vanquished, of access, on equal terms, to the trade and to the raw materials of the world
which are needed for their economic prosperity" 15. O quinto, a seu turno, registra o desejo
14 A Declaraçãodas Nações Unidas, de 1942, é, inclusive, uma das referências para o reconhecimento de um país
como membro fundador da Organização das Nações Unidas. Nesse sentido, lê-se no artigo 3 da Carta da ONU:
"os membros originais das Nações Unidas serão os Estados que, tendo participado da Conferência das Nações
Unidas sobre a Organização Internacional, realizada em São Francisco, ou tendo assinado previamente a
Declaração das Nações Unidas, de 1 de janeiro de 1942, assinarem a presente Carta, e a ratificarem, de acordo
com o Artigo 110."
15 UNITED NATIONS (1947, p. 2). Como se está analisando a construção da ordem econômica ocidental,
liberal, foram expostos, apenas, os princípios quarto e quinto. Toda a Carta, contudo, é uma defesa do
liberalismo sob diversas formas, como autodeterminação dos povos, liberdade individual, democracia.
!27
daqueles dois países "to bring about the fullest collaboration between all nations in the
economic field with the object of securing, for all, improved labour standards, economic
adjustment and social security".
Conforme apontado por Gardner (1956, p. 49), esses princípios foram interpretados, já
na época, como uma vitória dos pilares da política econômica internacional dos Estados
Unidos, como o reconhece o próprio subsecretário de Estado Summer Welles. Isso demonstra
a força crescente tanto dos Estados Unidos quanto do pensamento de Hull, que, assim, como
Roosevelt, via a Carta do Atlântico como princípios universais (GARDNER, 1956, p. 49;
SHERWOOD, 1998, p. 525). Assim, cada vez mais desde a década de 1930, o liberalismo (e,
especificamente, o livre-comércio) era identificado como um imperativo a todos os Estados,
sentimento que crescia inclusive no Brasil.
Outra demonstração dessa força crescente é o próprio Acordo Geral sobre Tarifas e
Comércio (GATT, na sigla em inglês). Apesar de ter sido estabelecido em 1947, após o
mandato de Hull à frente do Departamento de Estado, o GATT simbolizou o ápice da crença
no livre-comércio. Não só isso: como apontado por Dam (2005), os princípios gerais de
Cordell Hull em relação ao comércio insculpidos no RTAA, de 1934, foram a força motriz por
trás do GATT. Em relação a esses princípios, Dam (2005) destaca, especialmente, o princípio
da não discriminação e o princípio da cláusula incondicional de nação mais favorecida. Essa
seria a base do sistema multilateral de comércio do GATT e, posteriormente, da Organização
Mundial do Comércio (OMC), que eram, ambos, inspirados na ideia liberal da função
pacificadora do comércio.
Para além do livre-comércio – corporificado, a partir de 1947, pelo GATT – dois
outros elementos definiram a ordem econômica ocidental: a estabilidade monetária
internacional e a recuperação dos investimentos internacionais. Todos os três elementos
representavam esforços norte-americanos de construção da nova ordem do pós-guerra
(FRIEDEN, 2008, p. 276).
Se o pilar do livre-comércio só foi institucionalizado em 1947 – mesmo que de forma
provisória, sob o arcabouço do GATT –, os outros dois pilares foram erigidos ainda durante o
transcurso da Segunda Guerra Mundial. Tanto a estabilidade monetária internacional quanto a
recuperação dos investimentos internacionais ganharam caráter institucional pelos acordos de
Bretton Woods, de julho de 1944, aprovados com o endosso brasileiro. Quanto à estabilidade
!28
monetária, havia menos resistência nos atores responsáveis, em comparação com a política de
livre-comércio. Contra esta, emergiam muitas empresas e indústrias cujas elevadas margens
de lucro dependiam de barreiras comerciais.
Em relação a um sistema monetário internacional, a oposição era praticamente
inexistente. O que se colocava era como implementar esse sistema. Duas eram as vertentes
principais. A primeira defendia o retorno integral ao padrão ouro – posição dos financistas de
Wall Street, por exemplo. A segunda, por sua vez, reconhecia os méritos do padrão ouro, mas
opunha-se à inflexibilidade que caracterizava esse sistema, que anulava a possibilidade de se
fazer política monetária ativa. Assim, industriais e trabalhadores defendiam a retomada do
padrão ouro sob novas bases (FRIEDEN, 2008, p. 279).
Em Bretton Woods, John Maynard Keynes e Harry Dexter White, representantes do
Reino Unido e dos Estados Unidos, respectivamente, conciliaram essas duas vertentes, ao
instituírem o Fundo Monetário Internacional. (FMI). Por meio dessa instituição, obtinham-se
estabilidade monetária, flexibilidade e referência ao padrão ouro sem rigidez (FRIEDEN,
2008, p. 280). Fundava-se, então, o padrão ouro-dólar, que seria referência para o mundo
ocidental – e, naturalmente, o Brasil – até 1971, quando o presidente Richard Nixon,
unilateralmente, pôs fim à conversibilidade do dólar ao ouro.
Pelo sistema do FMI, os 45 países fundadores fixariam o valor de referência de
paridade entre suas moedas e o ouro. Com isso, objetivavam-se a estabilidade cambial, a livre
circulação das divisas e a conversibilidade entre as moedas (ALMEIDA, 1996, p. 178). Para
evitar que a liberdade de divisas causasse crises profundas na balança de pagamentos dos
países e que essas crises nacionais se convertessem em crises sistêmicas, o FMI também teria
a função de estabilizador do sistema monetário internacional. Especificamente, concederia
créditos de curto prazo para reverter crises no balanço de pagamento nacional.
Em relação aos investimentos internacionais, a solução para a recuperação desses
também foi encontrada em Bretton Woods. Tratou-se da criação do Banco Internacional para
a Reconstrução e o Desenvolvimento – o Banco Mundial. Como o próprio nome sugere, seu
objetivo era financiar a reconstrução dos países devastados pela guerra, bem como promover
o progresso econômico dos países menos desenvolvidos (ALMEIDA, 1996, p. 178). Essa
necessidade era posta à medida que o fim da Segunda Guerra Mundial se tornava mais claro
no horizonte. Essa necessidade, no entanto, defrontava-se com a relutância dos credores em
!29
financiar grandes projetos, cujo tempo de maturação era tão extenso que estes eram evitados
pelos investidores privados (FRIEDEN, 2008, p. 280-281).
A solução a esse impasse foi encontrada pela fundação do Banco Mundial. Por meio
dele, obtinham-se empréstimos a juros baixos junto à iniciativa privada, que se disponha a
oferecê-los devido às garantias ofertadas pelos governos fundadores do banco. Em posse
desses recursos, o Banco Mundial repassava-os a projetos de longo prazo que apresentassem
margens de lucro significativas e que facilitassem outros investimentos privados (FRIEDEN,
2008, p. 281). Assim, o Banco Mundial, com capital inicial de US$ 10 bilhões, era, em
essência, um intermediador financeiro entre países receptores de empréstimo e fornecedores
privados de capitais (POLLARD, 1997, p. 80).
Naturalmente, a reconstrução dos países europeus devastados pela guerra ganhou mais
atenção nos anos iniciais do Banco Mundial. Com o transcorrer do tempo, à medida que esses
países se reerguiam, ganhou mais evidência a função de promoção de desenvolvimento
econômico dos países de renda média. Nesse sentido, a partir de 1970, esse segundo grupo de
países passou a ser beneficiário de mais de 90% dos empréstimos concedidos pelo Banco
Mundial (POLLARD, 1997, p. 81).
Para o Ocidente, esse sistema tripartite – livre-comércio, estabilidade monetária
internacional, investimentos internacionais – teve dois significados inter-relacionados. O
primeiro foi a comprovação do ocaso das antigas potências europeias da póstuma sociedade
internacional europeia (WATSON, 1992), que davam vez à superpotência mundial ocidental
da nascente sociedade internacional global (WATSON, 1992).
Assim, as instituições que emergiram no período e que regulariam a ordem econômica
ocidental doravante foram, essencialmente, propostas norte-americanas (POLLARD, 1997. p.
77) – o que sugere a força do alinhamento que se imporia sobre o Brasil no pós-1945.
Inclusive, essa manifestação do poder estadunidense era sentida pelos negociadores em
Bretton Woods. O próprio Keynes assistia, ressentido, à transformação de seu projeto
econômico em instrumento político do poder norte-americano (FRIEDEN, 2008, p. 282).
O segundo significado foi a institucionalização, a nível mundial, do liberalismo norte-
americano (VIANNA, 2014, p. 105). Assim, a ordem econômica dos 25 anos posteriores à
Segunda Guerra Mundial (FRIEDEN, 2008, p. 283) foi instituída sob dois pilares: os
objetivos de desenvolvimento e as convicções da política econômica dos Estados Unidos.
!30
Para o Brasil, o sistema econômico que se elaborava a partir de Bretton Woods teve
impacto significativo. O país, como membro do mundo ocidental, encontrava-se inserido na
área de vigência desse sistema. Assim, estava submetido aos aspectos procedimental-
institucional (GATT, FMI, Banco Mundial) e ideológico (liberalismo) dessa nova ordem
econômica ocidental. Prova do primeiro aspecto é manifestada pela participação do Brasil em
Bretton Woods, onde esteve, por exemplo, o ministro da Fazenda de Vargas, Artur de Souza
Costa. Este, inclusive, presidiu um dos comitês da comissão relativa à fundação do FMI
(ALMEIDA, 1996, p. 177).
O segundo aspecto, o ideológico, iria ser mais um elemento a desestabilizar o governo
Vargas. Conforme será demonstrado nas seções seguintes, o liberalismo econômico serviu de
referência tanto para a oposição ao intervencionismo econômico de Vargas quanto para a
fundação de uma nova ordem econômica nacional no período posterior a 1945.
É nesse contexto que o governo seguinte ao de Vargas teve sua política econômica
inicial fundamentada na "ideia de um mundo organizado de acordo com os princípios liberais
de Bretton Woods" (VIANNA, 2014, p. 105). Afirmava-se, então, a força tanto do liberalismo
quanto dos Estados Unidos na política brasileira.
também pelo fato de ter sido Ministro da Educação e Saúde21 e, posteriormente, Ministro da
Justiça (FERNANDES, 2007). Notório, pois o jurista e político descreveu, de maneira
bastante clara e direta, o dilema do Brasil de 1945, caracterizado, nesta seção, como
dicotomia entre Estado e governo. Em entrevista concedida ao Correio da Manhã em 3 de
março de 1945, registrou: "não podemos, vitoriosos na guerra, deixar que subsistam motivos
para sermos colocados, do ponto de vista ideológico, no campo dos vencidos. Atualizemos as
nossas instituições políticas" 22. No mundo que emergia ao se delinear o fim da Segunda
Guerra Mundial, "não podemos ter o lugar que hoje nos compete se não comparecermos com
trajes que obedeçam aos padrões da propriedade e da decência, estabelecidos pelo comum
acordo das nações vitoriosas".
Outros responsáveis pela viabilização inicial do Estado Novo também partilhavam do
mesmo diagnóstico. Até no próprio aparato militar, essa opinião era encontrada. Disso são
exemplos apontados por Hilton (1987) os generais Renato Paquet, comandante da Vila Militar
do Rio de Janeiro; Ângelo de Morais, chefe da diretoria de pessoal do Exército (Diretoria de
Armas); Mário Ary Pires, comandante do Quinta Região Militar; Cristovão Barcelos, Chefe
do Estado-Maior do Exército; Góes Monteiro, ex-Chefe do Estado Maior (1937-1944) e então
representante brasileiro junto ao Comitê de Emergência e Defesa Política da América.
Outro exemplo notório foi o então Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra. Ele,
conforme indica Hilton (1987, p. 11), em 23 de outubro de 1945, ao retornar de uma visita à
FEB, ressaltou a Vargas "the incongruity between Brazil's international and national
situations, i.e., the fact that the country was an active partner in the Allied coalitions doing
battle against fascism in Europe while being governed itself by a dictatorship".
Em consequência de seu diagnóstico, o general Dutra recomendava que Vargas
convocasse eleições antes mesmo do fim da guerra. Assim, lê-se em carta secreta enviada a
Getúlio Vargas em 27 de dezembro de 1944: "julgo perfeitamente aceitável o alvitre de se
promoverem as eleições e a normalização constitucional ainda antes que a guerra termine"23,
o que iria permitir "em melhores condições a consulta eleitoral ao povo, pois longe de nossas
21Francisco Campos, inclusive, foi o primeiro ministro do então recente "Ministério dos Negócios da Educação
e Saúde Pública" (FERNANDES, 2007), ministério criado pelo decreto federal nº 19.402, de 14 de novembro de
1930, pouco mais de um mês após a Revolução de 1930.
22 Correio da Manhã, edição de 03 de março de 1945, p. 1.
23 CPDOC, GV c 1944.12.27.
!34
fronteiras resta a guerra, e em plena tranquilidade o país, não mais ocorrendo no presente os
ponderosos motivos que inspiraram o adiamento dela em 1942".
Esses testemunhos, ao vocalizarem a dicotomia entre Estado e governo, denunciavam
e intensificavam a fragilidade da administração Vargas. Dessa forma, verifica-se que a
complexa dinâmica de inserção internacional do país em 1945 foi um elemento catalizador
para a deslegitimação de Getúlio. Como se demonstrou, elemento fulcral dessa
desestabilização era a defesa do liberalismo – posto em oposição ao regime autoritário do
Estado Novo. Assim, a "imposição do alinhamento" era gestada, ao que também contribuiu a
própria dinâmica interna de desgate generalizado do governo, conforme se passa a analisar.
última hora e "sem o menor entusiasmo" (FAUSTO, 2013, p. 106), algo que destoa da ideia
de continuísmo rigoroso. Terceiro, a formação de uma coalizão nacional entre PSD e UND
(uma frente ampla assumidamente liberal e antigetulista) após as eleições presidenciais de
1945 indica a existência de algum grau de comunhão política entre esses partidos – no caso, a
oposição àquele autoritarismo.
Esses fatos, a despeito da ressalva de que muitos dos quadros do vitorioso PSD
tenham servido ao governo Vargas, permitem defender o argumento de que a República
Liberal-Conservadora nasceu pela a oposição ao autoritarismo do regime varguista. A
importância desse argumento é que a ele está associado outro ainda mais relevante: a oposição
ao autoritarismo varguista tinha por fundamento retórico-ideacional o liberalismo.
A partir dessa referência, iniciou-se, no plano interno, a "imposição do alinhamento" à
política externa brasileira do pós-1945 – no plano externo, como visto, a referência foi "a
onda de liberalismo que acompanhava o fim da guerra e a consolidação da hegemonia norte-
americana no Ocidente" (MENDONÇA, 2000, p. 342). Verifica-se, então, que a "imposição
do alinhamento" está intimamente relacionada ao processo crescente de oposição ao regime
varguista. Por essa razão, é a esse processo de oposição que se passa a dedicar-se.
24No caso, entende-se por relação direta: se a economia prospera, o grau de governabilidade é alto; se há crise
econômica, a governabilidade se deteriora.
!36
de carne e algodão pelo Reino Unido. O terceiro foi a melhora dos preços do café, resultante
do Acordo Interamericano. Em termos de produto industrial, houve crescimento de 1,6% entre
1940 e 1942; e de 9,8%, entre 1943 e 1945. Quanto ao PIB, houve crescimento de 0,3% entre
1940 e 1942; e de 6,4% entre 1943 e 1945, não sendo ainda mais alto por causa do baixo
desempenho do produto agrícola (ABREU, 2014, p. 95-96).
Esses dados demonstram que a Segunda Guerra Mundial trouxe ganhos econômicos
para o Brasil, especialmente a partir de 1942. Isso, contudo, não impediu que, ao fim do
referido conflito, se desencadeasse uma escalada oposicionista contra Getúlio, levada a cabo
até mesmo pelos setores que haviam prosperado economicamente ao longo desse governo.
A Carta econômica de Teresópolis, de maio 1945, ilustra essa cisão entre o regime
varguista e as classes produtivas (que tiveram ganhos econômicos nesse período). Esse
documento foi o produto final da I Conferência Nacional das Classes Produtoras, promovida
pela Federação das Associações Comerciais do Brasil e da Confederação Nacional da
Indústria. Assim, sintetizava o diagnóstico político-econômico das principais entidades
produtivas do país. Seu contexto é descrito no próprio preâmbulo: "no momento em que, num
clima de profundas transformações mundiais de ordem econômica, social e política, o Brasil
se prepara para reestruturar suas instituições de governo"25. Assim, verifica-se a percepção
pelas "classes produtoras" de que o país – e o mundo – se encontrava em um momento
fundador de sua história.
Esse caráter originário de "reestruturação das instituições" brasileiras passava pelo
que, na Carta, se traduzia na defesa tanto da "democracia política" quanto da "democracia
econômica" (SARETTA, 1995). Nos termos da Carta, tem-se: "à democracia política, que é a
vocação dos brasileiros, deve corresponder uma verdadeira democracia econômica"26. Com
isso, pode-se depreender que uma das principais características a conduzir essa nova etapa na
história do país seria a maior abertura – tanto da sociedade quanto da economia.
Em termos político-ideológicos, essa maior abertura significava mais liberalismo.
Defendia-se, assim, maior protagonismo para o sujeito privado – seja o indivíduo, sejam as
empresas. Não à toa, o primeiro princípio quanto à ordem econômica brasileira era o de que
Para além do âmbito das forças produtivas, no âmbito da opinião pública em geral, a
dissolução do apoio ao regime varguista foi evidente. Assim apontam diversas manifestações
da sociedade civil organizada contrárias aos pilares político-institucionais do Estado Novo –
e, em sentido contrário, favoráveis a orientações liberais.
Nesse sentido, a posição da Igreja Católica apresentou uma trajetória bastante
representativa da ascensão e da queda do prestígio de Vargas. Se havia reticências católicas
quanto à Revolução de 1930, logo a hierarquia da Igreja se deu conta das vantagens que
poderiam advir da aceitação do novo regime. Vargas, igualmente, também logo compreendeu
os benefícios que seguiriam à aproximação com a Igreja, por seu caráter de defensora da
ordem e por seu potencial de atrair mais adeptos ao novo regime (FAUSTO, 2013, p. 94).
Dois fatos sinalizaram e efetivaram essa aproximação já no início da Era Vargas. O
primeiro foi o Decreto nº 19.941, de abril de 1931, que facultou "nos ensinos de instrução
primária, secundária e normal, o ensino da religião", cujos professores seriam "designados
pelas autoridades do culto"29. A possibilidade do ensino religioso era uma clara demonstração
de apoio à Igreja. Afinal, desde 1891, com a vigência da primeira Constituição republicana,
tinha de ser "leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos" 30, medida tomada em
meio a várias outras de laicização do Estado. Posteriormente, após o Decreto de 1931, essa
possibilidade de ensino religioso foi alçada à condição de garantia constitucional, quando se
converteu no artigo 153 da Constituição de 1934. Para além do novo status jurídico, isso
demonstrou a continuidade da parceria Vargas-Igreja Católica.
O segundo fato foi a grande festa de inauguração do monumento ao Cristo Redentor
(FAUSTO, 2013, p. 94). Localizada no morro do Corcovado, no Rio de Janeiro, sua
inauguração ocorreu em 12 de outubro de 1931, nove anos após o início de sua construção,
em 1922. O tamanho da festividade foi apreendido, por exemplo, por reportagem d'O Globo:
"assumiu grande imponência a solenidade de bênção do monumento a Cristo Redentor [...]. O
ato teve a presença do chefe da Nação, dos altos dignatários da Igreja, tendo à frente o cardeal
[Leme], dos ministros e representantes do mundo [...]. A montanha está apinhada" 31.
Na cerimônia, o cardeal Sebastião Leme foi direto: o "Cristo reina, impera e livrará o
Brasil de todos os males" 32. Nesse momento, uma grande dificuldade para a Igreja era a ainda
distância com o Estado, apesar de iniciativas como a troca de visitas recíprocas entre o cardeal
Leme e o presidente Vargas, em janeiro de 1931, e a autorização, em abril de 1931, do ensino
religioso em escolas públicas. Não à toa, o cardeal Sebastião Leme afirmou em seu discurso
no dia da inauguração:
1943, o presidente do Diretório, Hélio Mota, discursou com "morra Getúlio! Viva a
democracia" (CARONE, 1977, p. 107). Outra iniciativa do XI de Agosto, já em abril de 1944,
foi o lançamento do periódico clandestino chamado Resistência. No Programa dessa revista,
constava: "queremos um Brasil democrático que possa ombrear-se com as demais nações que
constituem a coligação democrática e que possa apresentar-se sem opróbrio no mundo de
após guerra", conforme registra Carone (1977).
A sociedade civil Amigos da América, por sua vez, é ainda mais eloquente em ilustrar
a oposição crescente ao regime varguista – e o "clamor liberal". Afinal, dela participavam
membros oriundos de diversos segmentos da sociedade civil com influência significativa
sobre a política nacional, como engenheiros, militares, professores, médicos, jornalistas,
advogados, funcionários públicos35. Essa diversidade demonstra a amplitude da frente que se
insurgia a favor da implantação da democracia no Brasil. Sua amplitude foi ainda maior ao se
considerar o apoio indireto – fornecido por entidades e pessoas outras que não os associados.
É o caso, por exemplo, da própria UNE, cujo presidente, Hélio de Almeida, se pronunciou da
seguinte forma em entrevista ao Jornal do Brasil: "com a fundação da Sociedade Amigos da
América, o Brasil ganhou uma de suas melhores e mais eficientes armas [...] para a vitória
completa sobre os escravizadores totalitários" 36.
Ressalva-se que a Sociedade Amigos da América foi fundada, em novembro de
194237, visando ao estímulo da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial, no bloco
aliado. Literalmente, conforme se lê no artigo 4º da ata de registro, seu objetivo era:
"congregar [...] todos os que desejarem prestar apoio efetivo [...] aos países americanos,
envolvidos na conflagração mundial, imposta pelos países Totalitários, e que põe em risco a
independência e liberdade dos seus povos".
35A diversidade social dessa organização pode ser constatada a partir da análise da profissão dos 30 fundadores.
Apesar da predominância de militares (11), havia engenheiros (4), médicos (4), advogados (3), professores (2),
funcionários públicos (2) e dentista (1). Havia, também, três pessoas sem profissão definida, que correspondiam
às mulheres presentes na lista de fundadores. Considerando que a sociedade foi fundada em 1942, a participação
de mulheres não deixa de ser, por si, outro indicador de diversidade (dados compilados a partir da ata de registro
oficial da Sociedade Amigos da América, publicada no Diário Oficial da União de 28 de novembro de 1942,
seção 1, p. 45-46; para lista completa dos nomes e das respectivas profissões, consultar Anexo 02).
36 Jornal do Brasil, edição de 29 de dezembro de 1942, p. 6.
37 Em relação à data precisa de fundação da sociedade, diferentes dias podem ser encontrados, a depender do
critério utilizado. Nesse sentido, a sociedade foi autorizada a funcionar pelo Ministro da Justiça e Negócios
Interiores em 4 de novembro de 1942. Essa autorização foi publicada no Diário Oficial, em 9 de novembro de
1942. A ata de registro oficial, por sua vez, foi publicada em 28 de novembro de 1942.
!41
38 CPDOC, GV c 1944.08.17.
39A ABDE nasceu da fundação da Sociedade dos Escritores Brasileiros, em março de 1942, em São Paulo. Sua
primeira diretoria foi eleita em 1943, cujos integrantes atestam a influência intelectual da entidade: Otávio
Tarquínio, Carlos Drummond de Andrade, Álvaro Lins, Dante Costa, Marques Rebelo, Manuel Bandeira,
Rodrigo Melo Franco de Andrade, José Lins do Rego, Astrojildo Pereira e Dinah Silveira de Queiroz (LUCA,
2008, p. 101-102).
40 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES apud LUCA, 2008, p. 106.
!42
em paralelo aos grupos de oposição, também havia grupos de apoio ao governo Vargas.
Nesses, destacavam-se os trabalhadores urbanos. Em relação a eles, Schwarcz e Starling
(2015, p 390) citam o episódio em que acadêmicos do XI de Agosto manifestavam contra o
Estado Novo na Praça da Sé, mas foram interrompidos e expulsos por uma multidão que
gritava "Viva Getúlio", "Nós queremos Getúlio", "Viva os trabalhadores".
A despeito do grupo "queremista", que defendia a permanência de Getúlio, o regime
varguista ruiu rapidamente, em 1945. Assim, antes mesmo de acabar a guerra, Vargas
convocou eleições para Presidente e para Assembleia Constituinte. O registro temporal "antes
de acabar a guerra" é importante, pois Vargas havia manifestado, em diversas ocasiões e a
diversos interlocutores41 , que convocaria novas eleições após o término da Segunda Guerra
Mundial. A antecipação do calendário é ilustrativa para demonstrar a força que havia atingido
o "clamor liberal" e o movimento pela dissolução do Estado Novo.
41
O que é registrado, entre outros, por Batista Luzardo (CPDOC, GV c 1944.09.08/1), Eurico Dutra (CPDOC,
GV c 1944.12.27), Skidmore (1982, p. 72).
42Na terminologia do Direito Constitucional brasileiro atual, a Lei Constitucional equivale à Emenda
Constitucional. No caso, a Lei Constitucional nº 9 emendava a Constituição Federal de 1937.
43 Lei Constitucional nº 9, de 28 de fevereiro de 1945, preâmbulo.
!43
Além disso, pela mesma lei, os partidos políticos eram recriados, mas, agora, sob
bases nacionais. Isso implicava uma diferença fundamental em relação a todo o período da
Primeira República, quando os partidos políticos tinham, essencialmente, bases regionais. As
poucas tentativas de partidos nacionais, entre 1889 e 1930, haviam sido efêmeras e pontuais,
pois visavam, normalmente, à consecução de um único objetivo, após o que se desfaziam.
Para viabilizar a consulta às urnas prevista por esses dispositivos legais, emergiram os
três partidos políticos mais importantes dos anos da República Liberal-Conservadora. Assim,
em 16 de agosto de 1945, foi registrado junto à Justiça Eleitoral44 o Partido Social
Democrático (PSD), que lançou o general Eurico Dutra como candidato à Presidência. Em 19
de setembro de 1945, foi a União Democrática Nacional (UDN), lançando como candidato o
brigadeiro Eduardo Gomes. Em 26 de março de 1945, foi o Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB), que não lançou candidato próprio à Presidência, apoiando Dutra 45.
Em 29 outubro de 1945, foi dado o desfecho final ao Estado Novo, com a destituição
de Getúlio Vargas. Naturalmente, esse ato representou o auge do processo de contestação ao
regime varguista – e a consolidação do "clamor liberal". Chama-se atenção, no entanto, para a
forma por meio da qual Vargas foi deposto: um golpe militar – forma considerada
"importantíssima" por Skidmore (1982, p. 78). Ela demonstra a perda de mais uma e, talvez, a
mais importante das bases que haviam sustentado o regime desde 1930, os militares.
Essa trajetória ascendente de oposição ao autoritarismo varguista seria um elemento
fundamental para a conformação da "imposição do alinhamento". Dessa forma, teria impacto
significativo para a formulação da política externa brasileira do pós-1945.
Como apresentado na seção anterior, o período final do primeiro governo Vargas foi
caracterizado por um processo composto por duas forças. Por um lado, havia um "clamor
liberal" pela abertura do regime que, gradativamente, ganhava mais ímpeto. Por outro lado, o
44A Justiça Eleitoral foi recriada em 1945, no processo de abertura do Estado Novo. Precisamente, foi a própria
Lei Agamenon Magalhães que regulamentou e que reintroduziu a Justiça Eleitoral.
45 Como dito, esses três partidos (PSD, UDN e PTB) foram os principais durante a República Liberal-
Conservadora. Isso, no entanto, não significa que foram os únicos. Exemplos de outros partidos foram: Partido
Comunista do Brasil, Partido Socialista do Brasil, Partido Democrático Progressista, Partido Democrata Cristão,
Partido Republicano, Partido Socialista Cristão, Partido Nacional Evolucionista, Partido de Representação
Popular, Partido Libertador, Partido Industrial Agrícola Democrata (ver: www.tse.jus.br).
!44
governo Vargas perdia sua base de sustentação política em uma espiral de insustentabilidade
cada vez mais aguda. Naturalmente, essa divisão é, acima de tudo, analítica, uma vez que
essas duas forças eram duas faces do mesmo fenômeno de transição política no país.
Nesse contexto, a emergência dos partidos políticos, em 1945, representou mais que
uma mera etapa dessa dupla trajetória – "clamor liberal", insustentabilidade varguista. A
recriação das agremiação políticas, após seu banimento durante o Estado Novo, significou a
institucionalização de um novo e diferente projeto político para o Brasil. Afinal, com sua
criação, os partidos políticos institucionalizavam um projeto de nação em seus Programas ou
Estatutos, que constituíam verdadeiros manifestos políticos.
A análise e a comparação desses diferentes programas ou estatutos torna ainda mais
evidente o movimento de diferenciação ante a Era Vargas, no sentido de mais abertura do
regime – ou, em termos político-ideológicos, de mais liberalismo. Nesse sentido, passa-se a
analisar comparativamente os manifestos políticos, em sentido amplo, dos três principais
partidos políticos do período, nomeadamente UDN, PSD e PTB 46.
Antes mesmo de se analisar esses programas diretamente, o que se destaca é a
determinação da Justiça Eleitoral de que, para obterem registro eleitoral, os partidos políticos
deveriam firmar uma carta de compromisso padrão. Nesta, as agremiações políticas
comprometiam-se "ao respeito integral dos princípios democráticos e dos direitos
fundamentais do homem"47. Esse compromisso com a liberdade democrática e individual era,
por si, um testemunho do "clamor liberal" que seria legado ao novo governo e do ocaso do
Estado Novo (ainda em curso), marcado pelo autoritarismo.
Essa tônica liberalizante era verificada, igualmente, nos manifestos políticos dos
partidos. De maneira direta, já no primeiro ponto de seu programa, a UDN registrou o
objetivo de "atingir a realidade democrática [...] pelo exercício efetivo das liberdades que lhe
são inerentes – de pensamento em todas as suas formas de manifestação, de reunião, de
associação, de ensino, de religião e de culto e de organização partidária e sindical".
É verdade que era de se esperar uma afirmação tão categórica do partido percebido (e
declarado) como mais opositor à herança varguista. A questão é que esse tipo de afirmação
46Todas as fontes primárias mencionadas nesta seção foram obtidas junto ao Tribunal Superior Eleitoral, seja por
meio de consulta ao sítio eletrônico (ver: www.tse.jus.br), para os documentos referentes à UDN e ao PSD; seja
por meio de requisição direta ao órgão, para os documentos referentes ao PTB.
47 Letra d, § 2º do Art. 2º das "Instruções sobre partidos políticos", Diário da Justiça, 10 de julho de 1945.
!45
não ficou restrita à UDN. Manifestações similares foram pronunciadas tanto pelo PSD quanto
pelo PTB, partidos que Fausto (2013, p. 106) caracteriza como vertentes do getulismo.
Nesse sentido, em relação à abertura do regime, o PSD defendia, já no primeiro ponto
de seu programa, a "revisão da Constituição, consubstanciando os princípios de regime
democrático, social e federativo". Era igualmente claro quanto às liberdades individuais,
conforme se depreende do segundo ponto do programa: "a Constituição deverá assegurar [...]
a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, ao domicílio, [...] à segurança
individual e à propriedade, nos termos da tradição constitucional brasileira".
Mesmo o PTB, ainda que de maneira mais tímida, pronunciou-se de modo similar. No
ponto 2 de seus "princípios e objetivos", defendeu a "unidade nacional sob regime
democrático, com voto direto e universal". Apesar disso, a questão da topografia do artigo –
colocado em segundo lugar – evidenciava que havia uma preocupação maior, registrada em
seu ponto 1: "reexame da Constituição sem que sejam reduzidos os direitos por ela
assegurados aos trabalhadores". Apesar disso, mesmo o relutante PTB, para quem a prioridade
eram os direitos sociais e não os individuais, teve de se render ao "clamor liberal" de seu
período, que demandava, entre outras coisas, a abertura do regime.
No tocante à nova organização econômica do Estado, encontra-se nos programas dos
partidos políticos postura muito próxima à verificada na Carta de Teresópolis, no sentido de
que a "democracia política" deveria estar acompanhada da "democracia econômica". De
maneira similar, defendiam maior protagonismo privado e menor atuação estatal.
Quase copiando os termos da Carta das classes produtoras, o PSD defendeu a "ação
do Estado no setor econômico, para, em princípio, orientar e estimular a iniciativa privada e
manter ambiente propício ao seu desenvolvimento". À semelhança da Carta, consagrava-se o
caráter subsidiário da atuação estatal. Quanto aos capitais estrangeiros, posicionava-se pelo
estímulo à segurança conferida a eles, postura que se coadunava com a dos investidores
internacionais. Em relação à política alfandegária, verifica-se uma posição mais ambígua, que
tentava conciliar a "defesa da economia, principalmente no período de sua consolidação" e o
"interesse do consumidor nacional".
Nesse aspecto, o programa da UDN, como era de se esperar, subiu mais na escada do
liberalismo – embora, como se demonstrará, não adotou uma postura liberal extremada.
Primeiramente, defendia o apelo ao "capital estrangeiro, necessário para os empreendimentos
!46
como liberdade individual, política, religiosa etc. Por outro lado, o registro à "comunidade das
Nações americanas" pode ser interpretado como uma referência cifrada, mas praticamente
explícita, ao desejo de maior aproximação com os Estados Unidos, dada a relativa
desimportância efetiva dos outros países do continente para o Brasil. Em seu conjunto, essas
prescrições quanto à política externa eram coerentes com o perfil político da UDN.
A segunda particularidade, por sua vez, é verificada no programa do PTB. Trata-se do
princípio da "ação permanente para que o totalitarismo, sob qualquer aspecto, não possa
reaparecer sobre a terra, considerando qualquer regime de força como um atentado à
dignidade humana". Esse preceito traz interpretações interessantes, devido ao fato de ter sido
emanado pelo partido que acolheu o antigo ditador Getúlio Vargas. Primeiramente, pode ser
lido como uma afirmação de que o Estado Novo não havia sido um regime totalitário – o que
encontra eco na literatura, que interpreta esse governo como um regime autoritário, e não
totalitário (FAUSTO, 1999). Igualmente, estar-se-ia negando que o Estado Novo teria sido um
regime de força. Independentemente da interpretação, esse princípio apresenta, de maneira
incisiva, aproximação com os ideais liberais, algo que seria muito mais coerente de se
encontrar no programa da UDN que no do PTB. Constitui, dessa forma, mais uma concessão
ao inevitável liberalismo da época.
A partir do exposto, verifica-se que a análise dos programas, dos estatutos e dos
manifestos dos três principais partidos do período (PSD, UDB e PTB) demonstra a existência
de uma manifesta, deliberada e institucionalizada diferenciação ante o regime que se
aproximava de seus últimos dias, o Estado Novo. Em consequência, esses documentos
apontavam para a emergência de um regime mais aberto, sob o influxo inescapável do
liberalismo. Afinal, mesmo os mais relutantes, de alguma maneira e em alguma medida,
acabavam cedendo ao fato inescapável da marcha rumo à abertura do regime – nos âmbitos
social, político e econômico. Dessa forma, as três agremiações políticas atestavam a corrente
liberalizante que impactava o Brasil e o mundo ocidental nesse período.
foram postos à época e que contribuíram para formação da política externa brasileira do
pós-1945. É, assim, uma tentativa de empreender trajetória inversa a muitos estudos
contemporâneos, que analisam essa política externa retrospectivamente, com os olhos de hoje.
Não se quer negar o alinhamento dessa política externa brasileira do pós-1945.
Procura-se, sim, argumentar que o esse alinhamento foi resultante do pleno exercício do poder
soberano nacional, que não esteve submetido ao jugo de nenhuma potência imperial
estrangeira. Tratou-se de uma escolha decorrente da autonomia decisória nacional ante os
fatores internos e externos que se colocavam ao país.
No plano externo, os principais fatores foram o fim da Segunda Guerra Mundial, com
a vitória das forças Aliadas, que se colocavam contra os regimes totalitários; a emergência da
sociedade internacional mundial, que punha fim à sociedade internacional europeia
(WATSON, 1992); o surgimento das duas superpotências mundiais, Estados Unidos e União
Soviética, que, gradativamente, constituíam uma ordem bipolar que cobrava filiação dos
outros países; o ocaso das antigas potências europeias e as várias consequências correlatas.
No plano nacional, os principais fatores foram a escalada tanto das forças liberais
quanto da contestação ao regime varguista, que unia uma ampla frente de forças heterogêneas
congregadas, essencialmente, pela oposição ao autoritarismo; a emergência da República
Liberal-Conservadora, símbolo maior dessa trajetória interna fundadora.
Em termos político-ideológicos, esses fatores podem ser traduzidos como uma
afirmação do liberalismo. Desse modo, o fim do primeiro governo Vargas foi marcado por um
ambiente interno, recebendo influxos também do ambiente externo, em que a principal
característica foi o "clamor liberal". A magnitude desse clamor foi não apenas registrada, mas
também institucionalizada nos programas dos três principais partidos políticos da República
Liberal-Conservadora: PSD, UDN e PTB. Mesmo este, cujo principal líder era o próprio ex-
presidente Getúlio Vargas, teve de fazer concessões à trajetória que se impunha ao país de
abertura política, econômica, social – ou, em outros termos, de "clamor liberal".
Esse compromisso – oficial, inclusive – com a abertura do regime foi o marco de
referência fundamental entre esses dois períodos da história do Brasil. Antes dele, havia o
autoritarismo do Estado Novo varguista. Depois dele, emergiu a República Liberal-
Conservadora em negação ao passado imediato. Essa negação era o elemento que conferia ao
novo regime a justificativa político-ideológica para sua fundação.
!49
Capítulo II
Por oportuno, registra-se que essa divisão analítica, apesar de dicotômica, comporta
um gradiente bastante amplo de matizes. Assim, na perspectiva positiva, encontram-se
comportamentos com graus diversos de alinhamento; enquanto, na perspectiva negativa, há a
mesma variação em relação ao grau de resistência dos comportamentos apresentados.
Por meio da análise desses comportamentos, objetiva-se discutir se, durante o governo
do general Eurico Dutra (1946-1950), a política externa brasileira teria sido caracterizada por
uma espécie de "imposição do alinhamento". Para tanto, a análise está decomposta em três
partes. A primeira é a derivação dos elementos do cenário internacional que contribuíram para
a formação da política externa brasileira. A segunda é a identificação de episódios de adoção
do alinhamento, em variados níveis, aos Estados Unidos (perspectiva positiva). Por fim, a
terceira é a investigação de episódios de resistência, em graus diversos, a esse alinhamento
(perspetiva negativa). Com isso, procura-se evidenciar como as opções à inserção
internacional do Brasil naquela época foram restringidas. Como será visto, o alinhamento
impôs-se – por fatores tanto internos quanto externos.
!51
Apesar de rivais, essas ideologias tinham, pelos menos, duas características comuns
(ENGERMAN, 2010, p. 31-32). A primeira é apresentarem natureza universalista, messiânica
e determinista. Assim, cada bloco via a si como a encarnação do fim da história49, como o
destino inexorável e final da humanidade – o que era reverberado por lideranças no Brasil.
Isso pode ser depreendido, por exemplo, em discursos dos respectivos líderes das duas
superpotências. Assim, em 11 de outubro de 1948, Truman identificou a república norte-
americana como "the greatest in history, the greatest that the sun has ever shone upon"50.
Semelhantemente, em 9 de fevereiro de 1946, Stalin afirmo já ter sido provada a viabilidade
do sistema soviético, de modo que o que se punha então era "that the Soviet social system has
proved to be more viable than the non-Soviet social system, that the Soviet social system is a
better form of organization of society than any non-Soviet social system"51.
A segunda característica em comum é o fato de que cada bloco identificava o rival
como uma ameaça. Assim, para os norte-americanos, a União Soviética seria um perigo, pois
era totalitária (STEPHANSON, 2005, p. 58). Paralelamente, para os soviéticos, os Estados
Unidos eram ameaçadores, pois o regime econômico que adotavam, o capitalismo, tinha
como consequência lógica o fascismo (KENNAN, 1947, p. 566).
48 Entende-se ideologia como "sistemas de crenças explícitas, integradas e coerentes, que justificam o exercício
do poder, explicam o que é bom e o que é mau em política, definem as relações entre política e outros campos de
atividade, e fornecem uma orientação para a ação" (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 587).
49 Expressão que ganhou notoriedade com as obras homônimas de Fukuyama (1989, 1992).
50 Harry Truman, "Rear platform and other informal remarks in Ohio" (11 de outubro de 1948).
51 Stalin (1954, p. 27).
!54
Diante dessa caracterização de Frank, Girault e Thobie (1993), duas observações são
levantadas. Primeira, ainda que ela seja adotada, não há alterações significativas para a
situação da política externa brasileira. Afinal, as armas "atômica" e "econômica" norte-
americanas só confirmariam a restrição das possibilidades para o Brasil. Este, situado no
continente da superpotência ocidental, ver-se-ia cooptado pela pujança econômica dos
Estados Unidos e oprimido e/ou defendido pela força atômica destes.
Segunda, em que pese a coerência dessa narrativa, argumenta-se que a dicotomia
dólar-ideologia (FRANK; GIRAULT; THOBIE, 1993, p. 90-92) é apenas aparente, pois o
dólar não era neutro ideologicamente. Assim, seu uso também tinha valor diplomático-
ideológico para os Estados Unidos, na mesma medida em que o rublo, para a União Soviética.
A economia, nesse sentido, foi um dos elementos do conflito entre ideologias, utilizada para
demonstrar a superioridade de seus modelos (ENGERMAN, 2010, p. 41), baseados,
respectivamente, na economia de mercado e na planificação estatal (MAIER, 2010, p. 46).
É assim que êxitos econômicos no Japão e na República Federal da Alemanha, de um
lado, e na Índia e no Egito, de outro, foram apresentados como índices de sucesso (ou de
"comprovação da veracidade") das ideologias em disputa (ENGERMAN, 2010, p. 41). Do
mesmo modo, foi nesse contexto que se inseriram medidas como o Plano Marshall, de 1947, e
o Conselho para a Assistência Econômica Mútua, de 1949.
Dessa forma, a força do dólar (ou do rublo) estava intimamente associada à força da
ideologia capitalista (ou comunista). Portanto, o dólar era mais um dos elementos dicotômicos
da bipolaridade da Guerra Fria – Estados Unidos x União Soviética, capitalismo x
comunismo, Ocidente x Oriente, liberdade de mercado x planificação – em relação aos quais
cabia o Brasil posicionar-se.
Ainda, há de se considerar que as medidas tomadas por norte-americanos e soviéticos
não se restringiam ao objetivo único de promover o desenvolvimento em outros países como
instrumento persuasão. Assim, apresentavam, também, forte caráter pragmático, servindo ao
próprio desenvolvido dos Estados Unidos e da União Soviética. Especificamente ao primeiro,
Saraiva (2008, p. 200) informa que a Guerra Fria atendia a interesses da indústria e do
comércio norte-americanos, pois permitia a continuidade ao "impulso desenvolvimentista"
verificado na Segunda Guerra Mundial.
!56
54Hobsbawm (1995), inclusive, prefere referir-se à paz fria, em oposição à guerra quente. McMahon (2003), a
exemplo de outros autores, prefere caracterizar a Guerra Fria por momentos quentes e frios.
55Conforme se analisará no próximo capítulo, Gaddis (2005a, p. 60) apõe ressalvas à ideia de que não teria
havido confronto direto entre Estados Unidos e União Soviética, durante a Guerra Fria. De toda forma, é
possível admitir essa ideia como, pelo menos, uma característica geral da Guerra Fria.
56 Na definição técnica oferecida pelo Direito Internacional, terra nullius é uma expressão latina, originária do
Direito Romano, que significa "terra de ninguém". Como não tem dono, essa terra está sujeita à "conquista", que
já foi um modo legítimo de aquisição de território (MARTIN, 2002, p. 154).
!57
acreditava-se que, se uma das superpotências iniciasse um ataque direto contra a outra,
haveria retaliação imediata, de modo que, ao final, ambas sairiam destruídas (CORTEZ;
LOBO, 2015, p. 43). Essa ideia adquiriu contornos concretos a partir de 1949, quando a
União Soviética alcançou sua bomba atômica; e, no final do governo Kennedy, a dissuasão
mútua – forma de evitar a MAD – tornou-se "doutrina oficial", na esteira da Crise dos
Mísseis, de 1962 (MCMAHON, 2010, p. 310). Nesse sentido, o discurso de despedida de
Truman, de 1953, é ilustrativo quanto à percepção do potencial destrutivo de uma nova
guerra, no qual informa que "a third world war might dig the grave not only of our
Communist opponents but also of our own society, our world as well as theirs"57.
Assim, verifica-se o temor quanto à emergência de uma eventual Terceira Guerra
Mundial. Cria-se que, se houvesse um novo conflito entre as potências, ele seria o último,
pondo cabo às civilizações ou até à própria humanidade.
É oportuno registrar que esse temor foi uma constante no imaginário político já a
partir do imediato pós-Segunda Guerra Mundial. Isso é constatado, por exemplo, no
comunicado de renúncia do cargo de embaixador dos Estados Unidos na China que Patrick
Hurley enviou ao presidente Harry Truman, em 26 de novembro de 1945: "there is a third
world war in the making. In diplomacy today we are permitting ourselves to be sucked into a
power bloc on the side of colonial imperialism against Communist imperialism"58.
Nesse contexto de destruição mútua assegurada e de ameaça constante do fantasma
da Terceira Guerra Mundial, o "conflito indireto" emergiu como modus operandi tácito. Dessa
forma, seguiram-se as intervenções estadunidenses e soviéticas em diversas áreas do globo –
um elemento a mais a contribuir na formação da política externa brasileira do pós-1945.
Essas intervenções não se fizeram tardar, surgiram logo após o fim da Segunda Guerra
Mundial. Especificamente em relação às norte-americanas, elas já se verificaram em outubro
de 1945, quando os Estados Unidos enviaram 50 mil marines para a China – onde já havia um
contingente de aproximadamente 60 mil fuzileiros navais –, com vistas a robustecer as forças
de Jiang Jieshi, do Kuomitang (GRIMMETT, 2010, p. 11). A partir de 1945 também, houve
intervenções norte-americanas na política doméstica italiana, onde apoiaram a Democracia
Cristã, como exemplifica o empréstimo de US$ 100 milhões concedido por Truman a De
57 Harry Truman, "The president's farewell address to the American people" (15 de janeiro de 1953).
58 FRUS, "123 Hurley, Patrick" (25 de novembro de 1945).
!58
Gasperi, na viagem deste aos Estados Unidos, em janeiro de 1947 (MARTINEZ OLIVA,
2007, p. 10). Ainda nesse momento inicial, teve destaque o caso das Filipinas, onde os
Estados Unidos, após conceder-lhe a independência em 1946, atuaram para fazer frente ao
desafio comunista posto pelos Huks, que iniciaram uma escalada revolucionária (HUNT;
LEVINE, 2005, p. 255-257).
Esses ataques iniciais serviram de ensaio para a formação da estratégia de contenção
norte-americana, cujo ideólogo principal nessa época foi George Kennan. Foi ele que, no
artigo The sources of Soviet conduct, publicado na Foreign Affairs, em 1947, levou ao mundo
o conceito de contenção (GADDIS, 2005b, p. 25). A estratégia de contenção também
contribuiu para reduzir as opções de atuação internacional do Brasil. Afinal, como o próprio
nome sugere, essa estratégia visava a reforçar as barreiras entre os dois mundos, o capitalista
e o comunista (GADDIS, 2005b).
Como visto no capítulo anterior, a estratégia de contenção foi desencadeada, de modo
imediato, para conter a expansão da influência soviética sobre o Mediterrâneo oriental,
especificamente sobre a Grécia e a Turquia. Na Grécia, vivia-se uma guerra civil entre grupos
comunistas (principalmente, o Partido Comunista Grego) e anticomunistas (forças leais ao rei
Georgios Papandreou), após a expulsão do exército alemão (RAJAK, 2010, p. 203). Na
Turquia, Stalin pressionava pelo domínio partilhado do Estreito de Bósforo (RAJAK, 2010, p.
207), passagem que se inseria entre os objetivos geopolíticos russos desde, pelo menos, a
Guerra da Crimeia (1853-1856). Ante a incapacidade do Reino Unido de continuar apoiando
as forças aliadas nesses dois países (SARAIVA, 2008, p. 200), coube aos Estados Unidos a
defesa dos interesses ocidentais nos Balcãs.
Desse modo, consolidou-se, definitivamente, o término da sociedade internacional
europeia (WATSON, 1992). Afinal, em 1947, com sua saída da Grécia e da Turquia e com o
reconhecimento das independências da Índia e do Paquistão, os britânicos renunciavam à
primazia militar que haviam exercido sobre as relações internacionais desde a Revolução
Industrial. Assim, o Reino Unido perdia espaço no próprio entorno imediato, a Europa,
cimentando tendência que, na América, ocorria desde o pós-Primeira Guerra Mundial
(GARCIA, 2002), nomeadamente sua substituição como centro de poder pelos Estados
Unidos. Este país, consequentemente, consolidou sua liderança sobre bloco ocidental no
contexto da era das superpotências (WATSON, 1992).
!59
59 Harry Truman, "Recommendation for assistance to Greece and Turkey" (12 de março de 1947).
!60
do comunismo era levantada por europeus como forma de tentar atar os Estados Unidos ao
continente (IKENBERRY, 2001, p. 193) – em termos políticos, militares e econômicos.
Esse quadro permite o seguinte questionamento: se até as antigas potências europeias
estavam em situação de tamanha dependência em relação aos Estados Unidos, o que se
deveria esperar dos outros integrantes do bloco ocidental, em especial na América Latina (e
no Brasil)? A resposta a esse questionamento parece evidente: em especial na América Latina
(e no Brasil), região tida como área de influência natural dos norte-americanos (SARAIVA,
2008, p. 208), não havia alternativa factível ao alinhamento aos Estados Unidos.
Nesse sentido, mesmo ensaios de autonomia mais incisivos perante os Estados Unidos
apresentaram limites. O caso mais notório disso foi o da Argentina do general Juan Domingo
Perón (1946-1955). Com viés mais autonomista, Perón declarou que sua política externa seria
caracterizada pela Tercera Posición, na qual estaria superada a oposição entre os blocos
capitalista e comunista (SANCHÍS MUÑOZ, 2010, p. 327). Apesar disso, Perón também
declarou que, em caso de conflito entre Estados Unidos e União Soviética, apoiaria os norte-
americanos (PUNTIGLIANO, 2015, p. 89).
Assim, se mesmo para as antigas potências europeias, o exercício de autonomia pleno
ante os Estados Unidos era inviável, não era de se esperar algo diferente para os países da
América Latina (e para o Brasil), entorno geográfico estadunidense. Não foi, no entanto,
apenas o fato de estar na hinterlândia norte-americana que justificou o alinhamento dos latino-
americanos (e dos brasileiros) aos Estados Unidos. Houve, igualmente, interesse material para
isso: a expectativa, principalmente no imediato pós-guerra, de que os Estados Unidos
continuariam ou mesmo aumentariam o fornecimento de capitais de longo prazo para a região
(BETHELL; ROXBOROUGH, 2005, p. 313).
Contra essa expectativa, no entanto, pesou o fato de que a Europa Ocidental e a
América Latina saíram em situação bastante distinta da guerra, o que implicou tratamento
diferente às duas regiões pelos Estados Unidos. Nomeadamente, os países da América Latina
não foram arrasados por aquela guerra total (SARAIVA, 2008, p. 207) e, em consequência,
não necessitavam de financiamentos para sua reconstrução interna. Assim, como visto no
primeiro capítulo, foram os europeus que, nesse período, drenaram os recursos do Banco
Mundial (POLLARD, 1997, p. 81) – cujo nome oficial era Banco Internacional para a
Reconstrução e o Desenvolvimento, o que é ilustrativo para demonstrar seu objetivo inicial.
!63
Além disso, contrariamente ao que ocorria na Europa e na Ásia, não havia ameaça
soviética na América Latina. Afinal, nessa época, a União Soviética não tinha nem bomba
atômica, nem força aérea de longo alcance, nem marinha eficiente (BETHELL;
ROXBOROUGH, 2005, p. 310). Não surpreende, então, que a América Latina tenha tido
baixa prioridade estratégica para a política norte-americana do imediato pós-guerra, apesar de
iniciativas como o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, de 1947, e a
Organização dos Estados Americanos, de 1948.
Essa negligência traduziu-se em números. Assim, dos US$ 1,3 bilhões concedidos pela
Lei de Assistência Mútua para a Defesa, de 1949, nada foi destinado para a América Latina
(BETHELL; ROXBOROUGH, 2005, p. 310). Ainda, enquanto a Europa Ocidental recebeu
US$ 19 bilhões em ajuda externa dos Estados Unidos entre 1945 e 1950, a América Latina
recebeu apenas US$ 400 milhões – quantia menor que a recebida por Luxemburgo ou
Bélgica, individualmente (BETHELL; ROXBOROUGH, 2005, p. 314).
Houve, ainda, um terceiro elemento que justificou o alinhamento latino-americano (e
brasileiro) aos Estados Unidos na Guerra Fria. Como visto no primeiro capítulo, uma das
consequências da vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial foi a abertura política para
regimes democráticos. Essa abertura trouxe consigo o acirramento do conflito político-social,
uma vez que grupos antes proscritos ou estritamente controlados – como socialistas,
comunistas, sindicalistas, entre outros – passaram a disputar o voto popular, com relativo
sucesso. Isso assustou grupos conservadores dirigentes na América Latina, que, em reação, se
valeram do arcabouço ideológico-discursivo da Guerra Fria para perseguir aqueles grupos de
esquerda, rotulados "subversivos", "títeres de Moscou", "antidemocráticos" (BETHELL;
ROXBOROUGH, 2005, p. 301-309). Desse modo, o alinhamento ao bloco ocidental foi
instrumentalizado, de maneira pragmática, por dirigentes latino-americanos (e brasileiros) na
disputa política doméstica.
Por fim, pode-se registrar um quarto elemento para a inserção da América Latina (e do
Brasil) na esfera de influência norte-americana. Trata-se, nomeadamente, da tradição
histórico-cultural do pan-americanismo, que se fazia sentir, pelo menos, desde o final do
século XIX (LE CHAFFOTEC; MORELI, 2015, p. 2). Assim, o alinhamento aos Estados
Unidos constituiu mais uma continuidade que uma ruptura na história da região.
!64
Depois do estudo acerca da nova ordem econômica ocidental (BIRD, FMI, GATT)
efetuado no primeiro capítulo e após a análise tanto da disputa ideológica da Guerra Fria
quanto do bloco ocidental empreendida neste capítulo, tem-se como demonstrado que o
liberalismo era a base ideacional que amalgamava a ampla área de influência dos Estados
Unidos. Por isso, nesta seção, não se pretende retomar todo esse vasto conjunto de iniciativas
que institucionalizaram a crença liberal norte-americana no Ocidente. Pretende-se, sim, fazer
uma breve ressalva quanto à natureza do liberalismo que emergiu no pós-1945.
Como lembra Ian Clark (2005, p. 132), após 1945, o mundo ocidental passou a ter sua
legitimidade internacional fundada sobre uma nova forma de liberalismo, nomeadamente o
embedded liberalism (RUGGIE, 1982). Ele constituía uma nova forma, pois, contrariamente
ao liberalismo clássico do padrão ouro e do livre comércio, o embedded liberalism convivia
com a intervenção estatal na economia nacional (RUGGIE, 1982, p. 393). Não significava, no
entanto, o retorno ao nacionalismo econômico da década de 1930, pois, no embedded
liberalism, a ordem econômica seguia diretrizes multilaterais (RUGGIE, 1982, p. 393).
Essa nova forma de liberalismo constituiu, assim, a solução de compromisso entre
duas tendências opostas que se verificavam em meados da década de 1940. Por um lado, os
defensores da ortodoxia liberal internacionalista, abundantes entre os financistas de Wall
Street; por outro, os que rejeitavam a liberdade econômica irrestrita, rejeição essa que era
quase universal para além dos Estados Unidos (RUGGIE, 1982, p. 393).
Para se alcançar esse novo liberalismo, foi necessária a passagem da ideia do livre
mercado para a da abertura administrada, segundo caracterização de Ikenberry (2001, p.
185). Isso era indispensável para que os norte-americanos alcançassem um acordo quanto à
ordem econômica do pós-guerra com os europeus, que estavam mais preocupados com a
reconstrução nacional e o desemprego do que com o livre comércio. A solução, então, foi a
abertura administrada, fundada sobre uma "barganha social" que buscava equilibrar abertura
econômica com seguridade e estabilidade domésticas (IKENBERRY, 2001, p. 185).
Com isso, Ian Clark (2005, p. 140) argumenta que a sociedade internacional se
reinventou, pois o embedded liberalism (RUGGIE, 1982) tornou-se elemento central da
ordem ocidental. Afinal, ao se difundir, o embedded liberalism (RUGGIE, 1982) incutiu não
!65
apenas a crença no livre comércio ou mesmo na democracia, mas também uma série de
valores, preceitos, instituições, princípios nos países, como o Brasil, integrantes da zona de
influência norte-americana.
Assim, liberalismo transmutou-se em ocidentalismo, por meio do qual o pensamento e
a prática do Ocidente foram desterritorializados e passaram a ser apresentados como verdades
universais, aplicáveis e benéficas a todo e qualquer ser humano (ACHARY; BUZAN, 2010, p.
6-8). Diante desse processo, o liberalismo tornou-se uma força ainda mais premente, o que
ajuda a compreender o quadro da "imposição do alinhamento" no Brasil.
americano. Segundo, de acordo com Lundestad (1986), esse império tinha uma característica
específica, nomeadamente: ser um império por convite (empire by invitation). Dessa forma, a
influência norte-americana gozava de tal magnitude pelo fato de que seus mecanismos de
controle serem mais coerentes com os aspectos das populações locais e, principalmente,
porque muitos dos países integrantes do império americano demandavam a presença dos
Estados Unidos (LUNDESTAD, 1986, p. 263-264). Isso foi verificado nos casos da Europa,
da Ásia e da América Latina – e do Brasil. Nesse contexto, é de se imaginar, primeiro, que o
grau de liberdade dos que estão inseridos em um império é limitado; segundo, essa limitação é
ainda maior quando se forma o império por convite (LUNDESTAD, 1986).
A terceira característica, finalmente, beneficia-se das anteriores e sintetiza a análise
quanto ao grau de liberdade dos países ocidentais. Vale-se da tipologia elaborada por Hedley
Bull (2002), pela qual a preponderância pode assumir três formas: dominância, hegemonia e
primazia. Na dominância, há o emprego habitual da força pela grande potência contra os
Estados menores no seu entorno geográfico, bem como o desrespeito mais que o habitual às
regras do Direito Internacional (BULL, 2002, p. 244). Na hegemonia, o uso da força ou sua
ameaça é ocasional e com relutância (BULL, 2002, p. 246). Na primazia, a preponderância,
considerada justificada pelos outros membros, exerce-se sem o uso da força e sem maiores
desrespeitos ao Direito Internacional (BULL, 2002, p. 245-246).
A partir dessas definições, Bull (2002, p. 246-248) informa que, durante a Guerra Fria,
as relações dos Estados Unidos com a América Central e o Caribe foram caracterizadas pela
hegemonia, enquanto com a Europa Ocidental, pela primazia. A relação dos Estados Unidos
com a América do Sul foi caracterizada de maneira negativa por Bull (2002, p. 248): não foi
de hegemonia. Pelo contexto, pode-se depreender, então, que, na América do Sul, os norte-
americanos exerceram primazia.
Essa caracterização é coerente com os argumentos apresentados ao longo deste
capítulo. Assim, reitera e ideia de que o Brasil esteve alinhado aos Estados Unidos na Guerra
Fria. Registra, igualmente, a falta de possibilidades alternativas exequíveis a esse
alinhamento, que se impunha até sobre as antigas potências europeias (relação de primazia).
Por fim, endossa o argumento de que o Brasil – juntamente com a América do Sul, a Europa
Ocidental e o Canadá – conservou sua autonomia decisória, uma vez que sua relação com os
Estados Unidos não era nem de dominância, nem de hegemonia (BULL, 2002).
!67
O "clamor liberal" foi convertido em votos nas eleições de 1945. Afinal, houve uma
clara inclinação do pêndulo político para o espectro ideológico mais liberal. Para afirmá-lo,
está-se considerando que, entre as três agremiações políticas mais importantes na República
Liberal-Conservadora, se verificava a seguinte ordem crescente quanto à adoção do
liberalismo: PTB, PSD e UDN. É verdade que, dentro do PSD, havia um matiz variado de
convicções ideológicas. De toda forma, conforme verificado pela análise do programa do
partido, havia uma inclinação geral mais favorável que contrária em relação ao liberalismo, de
modo que é legítimo situar o PSD em meio ao amplo espectro ideológico liberal.
Essa inclinação do pêndulo político para o espectro liberal é ilustrada pela análise da
proporção obtida pelos partidos nas eleições de 1945 para o Senado Federal62 e para a Câmara
dos Deputados63 (tabela 2). Nesse sentido, o PSD e a UDN obtiveram, juntos, mais de 90%
das cadeiras em disputa no Senado Federal e quase 82%, na Câmara dos Deputados. A seu
turno, o PTB alcançou participação de 4,8% e 7,7%, respectivamente.
62TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Dados estatísticos: eleições federal, estadual e municipal realizadas
no Brasil a partir de 1945. v. 1. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1950, p. 15.
63 Ibidem, p. 20.
!68
!
Naturalmente, tal configuração do Congresso Nacional, além de ser um indicativo do
ambiente político do período, seria uma variável inescapável na arena político-partidária
nacional entre 1946 e 1950. Assim, teria significativa influência sobre o tom da orientação
política adotada pelo Poder Executivo nesses anos.
No âmbito do Poder Executivo, as eleições de dezembro de 1945 também
repercutiram o "clamor liberal" do período. Afinal, saiu-se vencedor o candidato do PSD, o
general Eurico Gaspar Dutra, que foi o único presidente eleito com mais de 50% dos votos,
em toda a República Liberal-Conservadora. Especificamente, Dutra obteve cerca de 55,4%
dos votos apurados – 3.251.507 de 5.870.66764.
Argumenta-se que a vitória de Dutra endossou o "clamor liberal", pois os resultados
eleitorais são interpretados conjuntamente e em paralelo às medidas que se seguiram à
instalação do novo governo. Assim, embora a candidatura do ex-ministro da Guerra também
tenha sido apoiada pelo PTB, é possível depreender que a grande maioria dos votos foi obtida
pelo PSD, partido mais próximo ao liberalismo que o PTB. Essa interpretação é apoiada pelos
resultados das eleições legislativas de 1945, que consagraram o PSD, e não o PTB.
A esse cenário há de se acrescentar outros dois elementos relativos às eleições.
Primeiro, a quantidade de votos obtidos pela UDN (brigadeiro Eduardo Gomes) na eleição
presidencial – 2.039.341, o que equivalia a cerca de 34,7%65. Segundo, a não desprezível
participação dos udenistas tanto no Senado (28,6%) quanto na Câmara (29%).
64TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Dados estatísticos: eleições federal, estadual e municipal realizadas
no Brasil a partir de 1945. v. 1. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1950, p. 11.
65 Ibidem.
!69
O novo chanceler, do PSD, cultivava relação profunda e antiga com Vargas. Não à toa,
antes de assumir a chefia do Itamaraty, João Neves consultou-se com Getúlio, pedindo-lhe
"beneplácito e franco apoio" em carta de 12 dezembro de 1945. Uma semana após, em 19 de
dezembro, Vargas manifestou "não só [...] apoio como [...] aplauso". Ambas as comunicações
são, respectivamente, apresentadas a seguir:
Sei que o General Dutra deseja que eu faça parte do governo na pasta das Relações Exteriores.
Isso comunicou ao Agamenon e ao Macedo, mas ainda nada me disse. Como bem deves
compreender, meu ideal é ir de novo barra afora. [...] Não posso, entretanto servir ao governo
dele senão com o teu beneplácito e franco apoio, empregando todos os esforços por uma
cooperação proveitosa e leal entre ti e o Dutra.67
Tua entrada para o governo, como ministro das Relações Exteriores, tem não só meu apoio
como meu aplauso. Quanto vieste de Portugal, pensei em convidar-te para essa função, não para
fazer-te uma distinção, mas por sentir que teus serviços ser-me-iam necessários. É essa minha
maior homenagem. Não levei avante meu propósito para não truncar tua carreira, estando eu já
em fim de governo. 68
Dessa forma, o presidente Dutra iniciou seu mandato com um chanceler deferente a
Vargas, em cujo governo havia servido em diferentes funções, desde a Revolução de 1930.
Essa nomeação, em consequência, poderia indicar a continuidade de uma lógica varguista na
política externa brasileira. Isso, no entanto, não foi o que ocorreu.
No contexto do "clamor liberal", operou-se a "imposição do alinhamento" à política
externa brasileira. Uma das formas para que isso ocorresse na gestão do novo chanceler foi a
assimilação da ideologia liberal ao alinhamento com os Estados Unidos. Em termos bastante
claros e diretos, foi o próprio João Neves da Fontoura que afirmou esse alinhamento, quando,
na posse do presente Dutra, informou ao representante norte-americano: "o Brasil seguirá a
política exterior dos Estados Unidos"69.
67 CPDOC, GV c 1945.12.12/2.
68 CPDOC, GV c 1945.12.19/1.
69 La Guardia a Truman, 13.fev.46, HTL/OF (MOURA, 1996, p. 165).
!71
Conferência de Paz de Paris: "meu entendimento com Byrnes [secretário de Estado norte-
americano] sobre os múltiplos assuntos é completo" 70.
Em dezembro de 1946, João Neves da Fontoura deixou a chefia do Itamaraty. Pediu
demissão em protesto contra o acordo interpartidário que aproximava PSD e UDN
(LOURENÇO NETO, 2012). O ex-chanceler, todavia, não se distanciou do Ministério. Ainda
no governo Dutra, representou o Brasil na IX Conferência Internacional Americana, em 1948.
70 CPDOC, OA cp 1946.08.12.
71Entre outros postos, Raul Fernandes foi plenipotenciário do Brasil junto à Conferência de Paz de Paris, de
1919; delegado nas Assembleias da Sociedade das Nações de 1919, 1920, 1921, 1924 e 1925; membro do
Comitê de Juristas, de 1920, para elaboração do Estatuto da Corte Permanente de Justiça Internacional; consultor
Jurídico do Corte Permanente de Justiça Internacional de Haia, em 1926; embaixador na Bélgica, em 1926;
presidente da delegação brasileira na 6ª Conferência das Repúblicas Americanas, em 1928 (PECHMAN, 1984).
!73
país é agora objeto de uma conspiração internacional de que posso falar abertamente, pois não
constitui nenhum segredo, manifestada como é, todos os dias, pela imprensa, pelo rádio e por
outros meios de difusão.
Creio, por isso, que é dever de todos os americanos cerrar fileiras dentro do continente em torno
do irmão mais velho e mais forte. Ele assumiu nobres e graves responsabilidades na política
mundial para a preservação da paz, da justiça e da liberdade; se não triunfarem estes ideais, e,
com eles, a causa da democracia, a noite da civilização baixará sobre os homens. 72
grau, derivações dos perfis apresentados. Essa ilação é ainda mais válida quando se considera
que tanto os chanceleres quanto as medidas estão inseridos no mesmo contexto de "clamor
liberal", analisado neste capítulo e no anterior. Considerando, assim, essa relação com a regra
geral, passa-se a examinar as medidas específicas.
77Monthly Report of Activities of the JBUSMC, 2 January, 1947, RG 333 Record of the international Military
Agencies. JBUSMC, 1946-1952, box 7, NARA (SVARTMAN, 2014b, p. 95).
!76
58% e 61% nas importações feitas pelo Brasil em, respectivamente, 1946 e 194778 (tabela 3).
Igualmente, os Estados Unidos – praticamente o único país a ter abundância de divisas no
pós-guerra – constituíam o mercado para, aproximadamente, 42% e 39% das exportações
brasileiras em 1946 e 194779, respectivamente (tabela 3).
!
Ainda referindo-se ao liberalismo econômico do governo Dutra, dois outros grupos de
medidas merecem menção. Primeiro, as importantes reformas administrativas que implicaram
diminuição e desregulamentação do Estado, uma vez que foram fechados órgãos de atuação
estatal na economia (SARETTA, 1995, p. 116). Segundo, a via ortodoxa de combate à
inflação, na medida em que foram adotadas políticas fiscais e monetárias fortemente
contracionistas (VIANNA, 2014, p. 107). Em conjunto, todas essas medidas confirmavam a
incorporação do liberalismo – neste caso, na política econômica brasileira.
Por fim, o alinhamento aos Estados Unidos também foi verificado no âmbito político –
em suas duas dimensões, mundial e regional. No tocante à política mundial, o reconhecimento
de governo e Estado foi um dos instrumentos utilizados pelo Brasil para demonstrar sua
filiação ao bloco ocidental. Assim, por exemplo, em 1948, com a divisão da península coreana
entre Sul e Norte, o Brasil reconheceu, apenas, a Coreia do Sul (GARCIA, 2005, p. 166),
patrocinada pelos Estados Unidos. Situação similar foi verificada no caso da China. Afinal,
com a Revolução Comunista de 1949, as relações diplomáticas com a China continental
foram rompidas, e o Brasil não só não reconheceu a República Popular da China (RAMOS,
2006), como também fechou o consulado 80 (BUENO; CERVO, 2012, p. 293).
Para além da comprovação da instrumentalização do reconhecimento de governo e
Estado, o caso chinês foi significativo por dois outros motivos. O primeiro foi que a ruptura
de relações diplomáticas com China continental demonstrou, claramente, o posicionamento
do Brasil diante da guerra civil chinesa (1945-1949) – que punha em disputa nacionalistas e
comunistas, forças que, durante a Segunda Guerra Mundial, estiveram unidas pelo esforço
comum contra a ameaça japonesa (MORENO, 1995).
Por oportuno, registra-se que o apoio brasileiro às forças nacionalistas de Jiang Jieshi
se manifestou antes mesmo desse rompimento, conforme demonstra a assinatura do Decreto
Legislativo nº 8 em 1948 (GOMES, 2016). Afinal, com essa medida, adotada em plena guerra
civil chinesa, ratificava-se o Convênio Cultural firmado entre o Brasil e a República da China,
em 1946, em cujo preâmbulo os dois países reconheciam "as vantagens que podem advir de
uma maior aproximação espiritual" (SENADO FEDERAL, 1974, p. 128).
O segundo motivo, a seu turno, foi a demonstração, na prática, de dois princípios
gerais que, segundo Moura (1990, p. 26), pautavam a atuação da delegação brasileira na
ONU. Eles eram o acompanhamento da orientação norte-americana e a oposição às iniciativas
soviéticas ou de seus satélites (MOURA, 1990, p. 26). Nesse sentido, quando foi colocada a
questão do ingresso da República Popular da China na ONU, o Brasil seguiu o voto norte-
americano, que se opôs a essa possibilidade (BUENO; CERVO, 2012, p. 272-273).
No tocante à política regional, muitas das medidas que ilustram a afirmação do
alinhamento brasileiro à esfera de influência norte-americana já foram analisadas. Esse é o
caso, por exemplo, do TIAR, que implicou a incorporação do Brasil ao sistema de segurança
coletiva regional (LIGIÉRIO, 2011); e da OEA, que institucionalizou o sistema
interamericano e, consequentemente, consolidou o poder dos Estados Unidos no continente
(PINHEIRO, 2013, p. 162).
Em relação a este país, além do que já foi registrado, ainda merece menção a troca de
visitas entre os dois presidentes. Especificamente, em 1947, Harry Truman veio ao Brasil e,
em 1949, Eurico Dutra foi aos Estados Unidos. Neste caso, inclusive, tratou-se da primeira
visita oficial de um chefe de Estado brasileiro aos Estados Unidos (GARCIA, 2005, p. 167), o
que é bastante ilustrativo do alinhamento verificado no período.
Ainda em referência ao âmbito político regional, há, por fim, a Argentina. Nesse caso,
a emergência da Guerra Fria levou ao gradativo abandono da orientação cooperativa, em
vigor entre 1930 e 1945, entre a Casa Rosada e o Catete (CERVO, 2007). Afinal, as posições
de Dutra e Perón eram antagônicas em quase tudo, como na relação com os Estados Unidos
(PINHEIRO, 2013, p. 163).
!78
81João Neves da Fontoura a João Batista Luzardo, telegrama, Rio de Janeiro, 15 jun. 1946, AHMRE-B, 600(41),
Cx. 216, Maços Temáticos Secretos.
!79
tendência já começou a ser questionada no capítulo anterior, no qual foi investigado o "clamor
liberal" que se impunha ao Brasil do pós-1945. Assim, com o foco nos elementos postos à
época, verificou-se que havia fatores internos e externos que tornavam o liberalismo uma
força praticamente inescapável ao governo que se seguiria ao Estado Novo.
Nesta seção, dar-se-á continuidade a esse questionamento. Duas "ilusões" da governo
Dutra (CERVO, 2008a, p. 130) serão abordadas: a "ilusão" quanto à expectativa de que o
Brasil teria "relações especiais" com os Estados Unidos no pós-guerra e a "ilusão" quanto à
política econômica liberal. Essa primeira etapa é uma espécie de introdução para a análise da
vertente negativa da imposição. Afinal, o fornecimento de justificativas para essas "ilusões"
permite empreender a investigação da resistência ao alinhamento a partir de uma discussão
mais avançada, deixando para trás o debate quanto à liberalidade e à falta de propósito e
autonomia decisória das políticas interna e externa do governo Dutra.
A segunda etapa, por fim, analisa manifestações de resistência ao alinhamento. Assim,
visa a enfrentar o terceiro aspecto da caracterização tradicional da política externa do general
Dutra: a tendência de as análises quanto a esse governo aterem-se à perspectiva positiva da
imposição. Com isso, objetiva-se complementar essas análises por meio da incorporação da
vertente negativa (resistência ao alinhamento) da imposição.
82Já se viu que é impreciso falar em "opção", uma vez que não havia alternativas viáveis à época, o que é,
comumente, ignorado pelos críticos das políticas interna e externa do governo Dutra.
!80
postos à época, explicitando a racionalidade das políticas de Dutra, sem, com isso, deixar de
registrar que os resultados esperados pelo governo não se concretizaram. É com o objetivo de
se juntar a essa literatura que se propõe a analisar, nas próximas duas subseções, justificativas
para o alinhamento externo aos Estados Unidos e para o liberalismo econômico.
Nesse sentido, na época, não era uma "ilusão" considerar a continuidade desse
relacionamento especial, que rendera ao Brasil volumosos investimentos durante a Segunda
83 Instituída em julho de 1941 e extinta em julho de 1946, a Proclaimed List of Blocked Nationals, popularmente
conhecida como "Lista Negra", visava a bloquear, em nome da defesa nacional, ativos de indivíduos e empresas
relacionados aos países do Eixo (QUINTANEIRO, 2005, p. 79).
84 FRUS, "Telegrama 740.32112A/5-846" (8 de maio de 1946).
!81
Guerra Mundial e que lhe cortejara um assento permanente no Conselho de Segurança das
Nações Unidos (GARCIA, 2011). Havia, sim, elementos para se acreditar nisso.
85 Segundo definição encontrada em Houaiss e Villar (2001, p. 2628), subserviente significa: "1: consente em
servir a outro de maneira humilhante; que se presta às vontades de outrem servilmente; servil; 2: condescendente
em demasia; que atende às vontades alheias com demasia".
86 IBGE, 1987, p. 312.
87 Ibidem, p. 525.
!82
Isso, inclusive, foi o próprio Dutra que disse na Mensagem ao Congresso Nacional em
1947. Assim, para combater o desequilíbrio econômico-financeiro, o governo recorreria a
"medidas de duas espécies: umas, de natureza financeira, para estancar a corrente emissiva
avolumadora do meio circulante; outras, de natureza econômica, com o objetivo de aumentar
a produção interna e, subsidiariamente, a importação dos artigos de maior carência"88. O
governo, nesse contexto, deveria priorizar "a melhoria econômica da produção", de modo a
"intensificar, direta ou indiretamente, os empreendimento que visem à entrega dos produtos
mais reclamados pelos consumidores". Ainda, em relação ao "revigoramento da economia
nacional", dever-se-ia proceder ao "equipamento industrial das atividades de base, incluindo
energia elétrica, indústrias carbonífera e petrolífera, grande indústria química e mecânica e
metalurgia de metais leves".
Esses excertos da Mensagem ao Congresso Nacional de 1947 oferecem outro
benefício analítico, além de confirmar que o liberalismo econômico não era subserviente, mas
atendia a interesses nacionais. Trata-se da refutação de outro argumento comumente utilizado
para qualificar o governo Dutra como entreguista (VISENTINI, 2013b). Afinal, um dos
pilares dessa qualificação é que a política econômica do imediato pós-1945 teria sido anti-
industrialista, objetivando o retorno à suposta vocação agrícola do Brasil (MOURA, 2012;
SKIDMORE, 1982; VISENTINI, 2013b).
Como demonstrado, no entanto, esse não era o objetivo da política econômica de
Dutra (BASTOS, 2012; SARETTA, 1995; VIANNA, 2014). Não à toa, ao longo desse
período, o PIB industrial apresentou taxa média de crescimento anual superior ao agrícola,
respectivamente: 11,4% e 4,4% (ABREU, 2013, p. 205).
Nos mesmos excertos, é possível encontrar a quarta e última razão para a política
econômica liberal do governo Dutra: o combate à inflação, traduzido em "estancar a corrente
emissiva avolumadora do meio circulante". Afinal, a partir de 1941, a inflação acelerou,
passando de 6,7% em 1940 para 20,6% em 1944 89. Assim, cruzeiro valorizado e maior
liberdade de circulação de mercadorias atuariam como "âncora cambial" (GREMAUD;
VASCONCELLOS; TONETO JÚNIOR, 2010, p. 452).
Às 18h30 de hoje foi recebida em audiência especial, pelo presidente da República, uma
comissão de representantes da Câmara dos Deputados. [...] Esses deputados, pertencentes a
diferentes agremiações partidárias, [...] manifestaram a sua excelência o apoio incondicional de
seus pares, que veem, na determinação do governo, um gesto desassobrado ditado pelo poder
nacional ofendido pelas injúrias assacadas contra nossas instituições, nosso povo e nosso
primeiro magistrado por publicações soviéticas. 91
Essas manifestações são coerentes com o argumento de que a ruptura foi tomada em
consonância com os valores da sociedade brasileira. Em sentido contrário, elas atestam que a
cisão com os soviéticos não visava a atender interesses de outrem.
Isso fica ainda mais evidente quanto se verifica que os Estados Unidos, o principal
terceiro envolvido, além de não terem qualquer participação nessa ruptura, explicitaram ao
Itamaraty que seguiriam posição distinta. É o que se constata em telegrama do encarregado de
negócios David Key ao secretário de Estado em exercício Robert Lovett no qual relata
diálogo com o chanceler Raul Fernandes: "I took occasion to inquire whether there was any
truth to rumors which have appeared in local press that Brazil may soon break relations with
Russia. [...] He realized, of course, that our position was different"92. Key, inclusive,
ponderou para Fernandes que, em situação similar, os Estados Unidos não tomaram nenhuma
medida drástica [leia-se, ruptura] "following Molotov's rebuff to our protest against similarly
venomous Soviet press articles about President Truman recently".
Além do mais, se, incialmente, os norte-americanos se abstiveram quanto a essa
questão – "this [a ruptura entre Brasil e União Soviética] is a matter which only Brazil can
90FOLHA DE SÃO PAULO. Repercussão do rompimento das relações diplomáticas entre o Brasil e a Rússia.
Folha da Manhã. São Paulo, p. 3, 22 out. 1947.
91 FOLHA DA MANHÃ. Solidariedade de deputados ao presidente da República. Folha da Manhã. São Paulo,
p. 3, 22 out. 1947.
92 FRUS, "Telegrama 732.61/10-947" (9 de outubro de 1947).
!85
decide"93, respondeu Lovett a Key –; posteriormente, eles intervieram para evitar a ruptura.
Assim autuaram, por exemplo, o secretário de Estado George Marshall junto à delegação
brasileira na ONU94 e um diplomata norte-americano no Rio de Janeiro junto ao Itamaraty 95.
heterodoxa (RUIZ, 2015). Afinal, sua política econômica apresentou duas características
desse conceito. Por um lado, o Brasil aceitou a liderança da potência dominante. Por outro, o
modelo de desenvolvimento interno ensaiado por aquelas medidas não coincidiu com as
expectativas e as preferências do poder hegemônico, os Estados Unidos (RUIZ, 2015, p. 37).
Assim, a adoção da ideologia liberal – e a "opção" pelo alinhamento – não foi uma
liberalidade nem uma atitude subserviente. Ao contrário, representou uma via para o
desenvolvimento nacional. Tanto é assim que, quando julgado necessário, o Brasil adotou
políticas que contrariaram (vertente negativa da imposição) o liberalismo político-econômico,
o alinhamento aos Estados Unidos.
A "imposição do alinhamento" durante o governo Dutra não significou, portanto, a
renúncia aos interesses nacionais. Embora imposta por fatores externos e internos, a política
alinhada visava, naturalmente, ao desenvolvimento do país por meio dos instrumentos
considerados adequados pelo processo decisório brasileiro.
!90
Capítulo III
À primeira vista, o esforço de elaborar uma unidade analítica que compreenda tanto o
governo Dutra quanto o Vargas pode causar estranheza. Afinal, eles são, normalmente,
apresentados como antípodas.
Assim, foi Vargas que, em seu primeiro governo (1930-1945), inaugurou o paradigma
desenvolvimentista (CERVO, 2008a, p. 71), que vigoraria, grosso modo, durante os sessenta
anos seguintes (ALBUQUERQUE, 1996). Diz-se grosso modo, pois foi justamente o governo
Dutra – e o Castelo Branco – o momento em que não se teria verificado o paradigma
desenvolvimentista, de forma que a presidência do ex-ministro da Guerra constituiu, por isso,
um passo fora da cadência (CERVO, 2008a, p. 46; BUENO; CERVO, 2012, p. 394).
Essa estranheza, todavia, não deve persistir após a segunda vista. Afinal, ha de se
considerar que não se pode comparar o primeiro governo Vargas (1930-1945) com o segundo
(1951-1954), pois os contextos nacional e internacional eram bastante distintos entre esses
dois períodos. Além disso, mesmo que se considere o primeiro governo Vargas (1930-1945)
apenas, há de se recordar que a equidistância pragmática foi rompida em 1942, de modo que
o Brasil, ainda sob Getúlio, se alinhou aos Estados Unidos (MOURA, 1980). Assim, não seria
de se esperar que, imediatamente após essa data, a política externa brasileira retornasse – seja
com Dutra, seja com Vargas – ao pragmatismo anterior, ainda mais em um momento em que
os Estados Unidos se tornaram superpotência global.
Outro argumento a dirimir aquela estranheza inicial é o fato de que a própria literatura
existente já aproxima os dois governos, ainda que se valendo de categorias analíticas distintas.
Isso é o que se depreende dos conceitos que, tradicionalmente, caracterizam a política externa
das presidências Dutra (1946-1950) e Vargas (1951-1954), respectivamente: alinhamento sem
recompensas (MOURA, 1991) e pragmatismo impossível (HIRST, 1990).
!92
Afinal, se o pragmatismo não foi possível no governo Vargas, isso implica que houve
alinhamento, à semelhança do governo Dutra. Além disso, nos dois governos, a
marginalização da América Latina em termos de prioridade para os Estados Unidos levou à
falta de recompensas para o Brasil, que as demandava em nome das relações especiais que
julgava ter com os norte-americanos.
Assim, é possível concluir que o período entre 1946 e 1954 foi, ele todo, um momento
de pragmatismo impossível (HIRST, 1990) e de alinhamento sem recompensas (MOURA,
1991), independentemente do personagem à frente do Catete. Não à toa, Doratioto e Vidigal
(2014, p. 71) informam que, em termos de política externa, o segundo governo Vargas
(1951-1954) está mais próximo ao governo Dutra (1946-1950) que ao primeiro governo
Vargas (1930-1945).
Nesse sentido, o conceito de "imposição do alinhamento" explicita a semelhança
analítica entre a política externa desses dois governos. Faz isso sem pretender negar o
pragmatismo impossível (HIRST, 1990) e o alinhamento sem recompensas (MOURA, 1991).
Justamente o contrário, a "imposição do alinhamento" afirma-os. Reconhece-lhes relevância e
precisão explicativa, pois são capazes de identificar elementos relevantes do período. Tão
relevantes que não se restringem apenas aos governos destinatários desses conceitos, mas
apreendem o espírito de uma época, caracterizado por este trabalho como "imposição do
alinhamento".
Iniciada em junho de 1950, com a invasão da Coreia do Sul por tropas norte-coreanas
(GARCIA, 2005, p. 168), a Guerra da Coreia acrescentou tensão ao que Ikenberry (2001)
caracterizou como arranjo bipolar – a relação entre os blocos capitalista e comunista. Foi o
local e o momento nos quais as duas superpotências, direta e indiretamente, "jogaram todos os
seus esforços na demonstração de poder mundial" (SARAIVA, 2008, p. 210).
Essa é a historiografia mais recente acerca do assunto, derivada, por exemplo, de
trabalhos seminais como os de Gaddis (2005a, 2005b). Até recentemente, conforme registra
Weathersby (2005, p. 267), argumentava-se que a Guerra da Coreia teria sido uma guerra
civil, e não uma conflito entre as duas superpotências. Para tanto, contribuía o fato, inclusive,
de que, supostamente, não teria havido participação direta soviética no conflito. Afinal, pelo
bloco comunista, o principal beligerante teria sido a República Popular da China – recém
saída da revolução de 1949 – que agira em defesa da Coreia do Norte.
Weathersby (2005, p. 267), no entanto, ressalta que a pesquisa documental nos
arquivos soviéticos demonstrou que a União Soviética exercia rígido controle sobre a Coreia
do Norte, seu Estado satélite na península. Assim, não surpreende que Gaddis (2005a, p. 60)
tenha concluído que a Guerra da Coreia fora iniciada por Stalin. Verificou-se, inclusive, que
houve confronto direto entre forças militares soviéticas e norte-americanas, a primeira e única
vez que isso ocorreu durante toda a Guerra Fria (GADDIS, 2005a, p. 60), caracterizada, como
visto, pela natureza indireta dos conflitos entre as duas superpotências.
!94
Assim, é lícito concluir que a Guerra da Coreia (1950-1953) foi um conflito entre os
Estados Unidos e a União Soviética – entre suas respectivas visões de mundo e esferas de
influência. Foi, inclusive, "o maior conflito armado desde a Segunda Guerra
Mundial" (SARAIVA, 2008, p. 211). Essa interpretação é corroborada pelo número de vítimas
fatais decorrentes dos anos de conflito militar direto entre as duas Coreias, entre 1950 e 1953.
De acordo com Gaddis (2005a, p. 50), foram 36.586 baixas norte-americanas, 600.000
chinesas e mais de dois milhões coreanas, cifras que a humanidade não imaginava rever em
um espaço de tempo tão curto após a Segunda Guerra Mundial.
Na política externa brasileira, o impacto da Guerra da Coreia (1950-1953) foi o
recrudescimento da "imposição do alinhamento". Afinal, diante do conflito direto entre as
duas ideologias naquela península e mesmo ante a perspectiva de uma nova guerra mundial
(CERVO, 2007, p. 123), a bipolaridade cobrava seu preço sobre o arranjo ocidental
(IKENBERRY, 2001). Exigia dos integrantes do bloco demonstração de filiação.
Na América, essa demonstração foi manifestada de maneira categórica, na IV Reunião
de Consulta dos Chanceleres Americanos98, no início de 1951. Nela, os Estados Unidos
objetivavam "restabelecer a solidariedade continental que se alcançara durante a Segunda
Guerra Mundial" (CERVO, 2007, p. 124). Conseguiram-no, embora o envio de tropas à
Península da Coreia só tenha sido obtido da Colômbia (CERVO, 2007, p. 72).
A filiação brasileira foi declarada de maneira incisiva, inclusive com a sugestão pelo
chanceler João Neves da Fontoura de que o Brasil forneceria colaboração militar (BUENO;
CERVO, 2012, p. 302), o que foi impossibilitado por divergências no governo, no Congresso
e na sociedade (HIRST, 1990). De toda forma, o Brasil demonstrou seu alinhamento,
repudiando a "agressão soviética"99 e atuando em favor da posição norte-americana sobre a
questão na ONU. Neste caso, por exemplo, o voto brasileiro foi um dos favoráveis100 à
Resolução 377 (Uniting for Peace), que, aprovada graças ao alinhamento da Europa Ocidental
e da América Latina aos Estados Unidos, legitimou a intervenção militar norte-americana na
Península da Coreia (CORRÊA, 2007, p. 68).
Assim, na esteira da Guerra da Coreia (1950-1953), que desencadeou intenso processo
de armamento e insegurança, os Estados Unidos reforçaram sua influência sobre o bloco
ocidental (STUECK, 2010, p. 287). Dessa forma, o impacto da Guerra da Coreia sobre a
política externa brasileira foi, como dito, o recrudescimento da "imposição do alinhamento".
101Após a morte de Joseph Stalin em março 1953, Nikita Kruschev foi nomeado Primeiro Secretário do Comitê
Central do Partido Comunista em setembro de 1953, mas sua liderança sobre a União Soviética ainda estaria em
cheque até 1955, data em que seu rival, Geórgiy Malenkov, seria destituído do cargo de Primeiro Ministro
(RAJAK, 2010, p. 217; GADDIS, 2005a, p. 69).
!96
102 FRUS, "S/S-NSC files, lot 63 D 251, NSC 162" (30 de outubro de 1953).
!97
"the real problem is to build the defense with wisdom and efficiency. We must achieve both
security and solvency. In fact, the foundation of military strength is economic strength. A
bankrupt America is more the Soviet goal than an America conquered on the field of
battle"103.
A obsessão de Eisenhower com a situação fiscal do país decorria da percepção de que
a maior ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos era, principalmente, o excessivo
gasto público (MCMAHON, 2010, p. 289). Assim, não surpreende que o NSC 162/2 tenha se
iniciado com as seguintes considerações: "Basic problems of national security policy: 1.a. To
meet the Soviet threat to U.S. security; b. In doing so, to avoid seriously weakening the U.S.
economy" 104.
Para o Brasil, esse aspecto da reorientação da política de defesa norte-americana
implicou o abandono de projetos de cooperação pelos Estados Unidos. O exemplo mais
simbólico disso foi o encerramento unilateral pela administração Eisenhower da Comissão
Mista Brasil – Estado Unidos, questão que será retomada em seção posterior.
O país foi igualmente afetado por outro aspecto da política do New Look, de
Eisenhower. Em consequência do esforço de contenção de gastos, a nova política de defesa
norte-americana valorizou sobremaneira o aparelho estatal de inteligência e informação. Por
exemplo, ganhou destaque a Central Intelligence Agency (CIA), que seria chefiada por Allen
Dulles, irmão do secretário de Estado (MCMAHON, 2010, p. 294).
Dessa forma, seguiram-se operações secretas no exterior, como as que contribuíram
para a derrubada de governos identificados como de esquerda105 no Irã, em 1953 e na
Guatemala, em 1954 (BRADLEY, 2010, p. 477-479). Essas situações reclamaram, direta ou
indiretamente, posicionamento brasileiro ante ao alinhamento, o que foi verificado
especialmente no caso guatemalteco, conforme se analisará posteriormente.
Também em decorrência da valorização do aparelho estatal de inteligência e
informação, em junho de 1953, foi criada a United States Information Agency (USIA), que
trabalhou ativamente na formulação e na distribuição de notícias. No Brasil, a atuação dessa
nova agência contribuiu para o recrudescimento da "imposição do alinhamento", ainda que de
maneira indireta. Afinal, conforme apontado por Cattai (2011, p. 42), a USIA difundiu
conteúdo anticomunista e pró-americano em jornais brasileiros, nomeadamente Correio da
Manhã e Tribuna da Imprensa. No ano de 1953 apenas, "a agência de informação e
propaganda veiculou com crédito, aproximadamente, sessenta e uma notícias" (CATTAI,
2011, p. 43). Dessa forma, também por meio da USIA, a nova política de defesa dos Estados
Unidos, New Look, contribuiu para alimentar o anticomunismo e o alinhamento da polarizada
e tensionada sociedade brasileira do período (BARBOSA, 2003).
a uma tentativa de obter maiores ganhos no cenário internacional marcado pela rigidez da
bipolaridade. Verificou-se, principalmente, em países em desenvolvimento da Ásia, da África
e da América Latina, que constituíam, juntos, o que Alfred Sauvy (1952) conceituou como
terceiro mundo.
Esse movimento nacionalista do terceiro mundo (SAUVY, 1952) ganhava densidade e
iria desembocar na Conferência de Bandung, em abril de 1955 (BRADLEY, 2010, p. 479),
sob a liderança de Sukarno, Nehru e Nasser. Nela, esboçou-se o "não alinhamento", segundo o
qual os países não se comprometiam com nenhum dos lados da Guerra Fria, mas deixavam
aberta a possibilidade de fazê-lo (GADDIS, 2005a, p. 124). Tratava-se, assim, de uma espécie
de barganha que países menores tentavam empreender por meio da ameaça de se aliarem à
superpotência rival.
Essa onda nacionalista atingia até países que se alinhavam aos blocos capitalista ou
comunista. Inclusive, Gaddis (2005a, p. 124) aponta que essa tentativa de barganha teria sido
iniciada pela Iugoslávia de Tito, inserida na zona de influência soviética. No mundo ocidental
esse fenômeno também se verificou, como exemplifica o Brasil do governo Vargas, que
procurou pautar sua política externa por uma barganha nacionalista (VISENTINI, 1996), o
que pode ser interpretado como uma atenuação da "imposição do alinhamento"107.
Outro fenômeno que merece atenção foi a recuperação econômica da Europa
Ocidental (HITCHCOCK, 2010) e do Japão (GUTHRIE-SHIMIZU, 2010). Isso criava novos
polos de poder, ampliando, por exemplo, as possibilidades de parcerias comerciais para o
Brasil108. Como exemplo, podem-se citar a organização, em 1953, da Comissão Mista Brasil –
Alemanha de Desenvolvimento Econômico e o fato de que a RFA já ser, então, o segundo
maior exportador para o Brasil, superado só pelos Estados Unidos (GARCIA, 2005, p. 172).
Dessa forma, com a emergência de novos polos de poder, tendia-se ao abrandamento
da "imposição do alinhamento". Por um lado, a onda nacionalista que percorria o terceiro
mundo (SAUVY, 1952) e mesmo os mundos capitalista e comunista buscava extrair maiores
ganhos da ordem bipolar. Por outro, com a recuperação econômica da Europa Ocidental e do
Japão, diminuía-se, potencialmente, a dependência brasileira ante os Estados Unidos.
107A onda nacionalista sobre a política brasileira e a barganha nacionalista (VISENTINI, 1996) serão objeto de
estudo em seção posterior.
108O surgimento desses novos polos, particularmente no caso europeu, também criaria desafios para o Brasil,
como o posto pela formação do Mercado Comum Europeu (BUENO; CERVO, 2012, p. 319). Para os fins desta
seção, optou-se, todavia, por ressaltar as oportunidades advindas para o governo Vargas (1951-1954).
!100
Em 1951, Getúlio Vargas retornou à Presidência – pela primeira vez por meio do voto
popular (FAUSTO, 2013). Vargas creditou sua vitória aos ideais "da liberdade, da garantia e
da legitimidade do voto popular"109.
Iniciou o mandato tentando reeditar o papel que desempenhara de "árbitro diante das
diferentes forças sociais" (FAUSTO, 2009, p. 406). Dois fatores principais, contudo,
impediam isso. O primeiro era o antigetulismo, que crescera significativamente, como
demonstrou a tentativa da oposição de impugnar a eleição pela falta de maioria absoluta
(tabela 4), embora a Constituição Federal de 1946 não o exigisse. A propósito, nenhum outro
presidente fora Dutra iria alcançar maioria absoluta nas eleições presidenciais durante o resto
da República Liberal-Conservadora.
!
O segundo fator, a seu turno, era a divisão profunda da sociedade brasileira. Para isso
contribuiu um processo igualmente acentuado de complexificação social por que passava o
Brasil da época (BARBOSA, 2003). Assim, como novos grupos emergiram – ou, pelo menos,
ganharam mais visibilidade –, a arena política brasileira tornou-se mais segmentada.
A divisão social brasileira era agudizada também pelo próprio retorno de Vargas ao
poder. Afinal, sua destituição em 1945 justificara um golpe de Estado e a instituição de um
novo regime político, fundado em oposição ao Estado Novo varguista. Desse modo, o retorno
de Getúlio apenas cinco anos após sua queda produziu inconformação em muitos dos que
109
Getúlio Vargas, "Discurso pronunciado ao receber, no Tribunal Superior Eleitoral, o diploma de Presidente da
República" (27 de janeiro de 1951).
!101
haviam patrocinado aquele golpe de Estado (FERREIRA, 2003, p. 306). Não à toa, havia
mesmo quem, objetivando impedir que esse retorno ocorresse, defendesse que a Justiça
Eleitoral não concedesse registro à candidatura de Getúlio Vargas (DELGADO, 2006, p. 78).
Assim, por exemplo, Carlos Lacerda defendeu em seu jornal, Tribuna da Imprensa, em 14 de
junho de 1950:
O regime democrático tem o direito de se defender dos seus inimigos, prevenindo antes que
remediando, em face de perigos evidentes.
A candidatura de um líder totalitário viria pôr em perigo a estrutura do regime e, na hipótese de
vir a ser vitoriosa, importaria na destruição do regime democrático com as próprias armas que
este faculta aos que desejam colaborar para a sua manutenção e aperfeiçoamento.
Se é legal cancelar o registro de um partido político por ser de natureza contrária ao espírito da
Constituição e à essência do regime, como foi o caso do Partido Comunista, ainda mais evidente
é a possibilidade de simplesmente negar registro a uma candidatura cujo sentido, pelos
antecedentes e pela conduta do candidato, é inequivocamente totalitário. 110
!
A análise comparativa entre as eleições de 1945 (tabela 2, capítulo 01) e as de 1950
(tabela 5) evidencia um crescimento do nacionalismo no espectro político nacional. Afinal,
avaliando-se as três principais agremiações políticas, o partido que mais cresceu nesse
período foi o PTB, cuja participação na Câmara dos Deputados passou de 7,69% para 16,78%
(tabela 6). Esse aumento operou-se em detrimento de partidos mais identificados no amplo
espectro liberal. Assim, no mesmo período, o PSD viu sua participação diminuir de 52,80%
para 37,17%, enquanto a UDN, de 29,02% para 26,64%.
Caso se considerem os valores referente ao Senado Federal, o movimento de
nacionalização da política brasileira foi ainda mais evidente. Isso é o que demonstra a análise
da proporção dos assentos em disputa obtida pelos partidos. É verdade, no entanto, que o
número de vagas em disputa foi distinto, de modo que a comparação entre as duas eleições
deve ser vista com ressalvas. Isso posto, também se verificou um notável crescimento do
PTB, que ganhou 4,76% dos assentos em disputa em 1945 e 22,72% em 1950. Da mesma
forma que na Câmara dos Deputados, o crescimento petebista no Senado foi alcançado às
custas do PSD e da UDN (tabela 6).
!103
!
Em termos de política interna, esses números indicam, como dito, uma nacionalização
no jogo de forças brasileiro. Em termos de política externa, o crescimento das forças
nacionalistas aponta, conforme registra Gelson Fonseca (2001), para o fortalecimento das
aspirações por autonomia. Não à toa, Visentini (1996) informa que a volta de Vargas ao Catete
foi marcada pela busca da barganha nacionalista. Essa caracterização é endossada por outros
autores, como Amado Cervo (2007, 2008a) e Moniz Bandeira (1973, 2003). O contraponto
seria a política externa entreguista de Dutra (VISENTINI, 2013b), em cujo governo grupos
pertencentes ao amplo espectro liberal exerceram influência.
A conversão de forças nacionalistas domésticas em política externa autônoma – e
angariadora de recompensas –, no entanto, não ocorreu. Assim, a despeito do movimento de
nacionalização da política interna brasileira após as eleições de 1950, a inserção internacional
do país não conseguiu escapar ao alinhamento, conforme se verá em sessões seguintes. Dessa
forma pragmatismo foi impossível (HIRST, 1990) no governo Vargas (1951-1954) – do
mesmo modo que o fora no governo Dutra (1946-1950).
Esse cenário corrobora a ideia de "imposição do alinhamento". Afinal, a política
externa alinhada impôs-se mesmo com a volta de Vargas, quem inaugurara o paradigma
desenvolvimentista (CERVO, 2008a); e com o fortalecimento dos grupos nacionalistas, que
pressionariam por uma inserção internacional autonomista (FONSECA, 2001).
Com isso, reforçam-se duas hipóteses levantadas ao longo deste trabalho. A primeira é
a possibilidade de estender ao governo Vargas (1951-1954) a aplicação do conceito de
"imposição do alinhamento". Em consequência, reforça-se a segunda hipótese: o alinhamento
aos Estados Unidos foi muito mais uma imposição dos fatores internos e externos do período
que uma opção do governo Dutra (1946-1950). Assim, entre os anos de 1946 e 1954, o
alinhamento impôs-se, independentemente do personagem à frente do Catete.
!104
Sob o impulso das forças nacionalistas vencedoras nas eleições de 1950, Getúlio
Vargas teria iniciado seu segundo mandato presidencial sob o signo da busca de autonomia.
Por isso, é pela vertente negativa – medidas que, em graus variados, objetivaram revisões no
!105
112 CPDOC, GV rem.s 1950.01.28 (arquivo que reúne diversos discursos emitidos entre 28/01 e 02/08/1950).
!106
não se esgote a OEA apenas em fórmulas eloquentes, mas que se concretize em obras de
cooperação mútua, no terreno espiritual, cultural e econômico"113.
O tom da barganha nacionalista (VISENTINI, 1996) estava dado. Seus ecos
alcançavam, inclusive, o Departamento de Estado norte-americano. Assim, em memorando
enviado ao presidente Harry Truman, o secretário de Estado Dean Acheson informou que, se
eleito, "Vargas undoubtedly would make aggressive and persistent claims upon the United
States for financial and other types of assistance"114.
Com a vitória de Vargas em outubro de 1950, esse diagnóstico concretizou-se. Nesse
sentido, ainda como presidente eleito, encaminhou, em 13 de janeiro de 1951, por meio de
João Neves da Fontoura, um memorando à embaixada norte-americana. Nesse documento,
conhecido como "documento Vargas", apresentou sua barganha nacionalista (VISENTINI,
1996): "the Brazilian government requires the positive support of the North American
Government so that orders of materials needed for the establishment of basic industries and
the execution of public works will move forward quickly and have priority of delivery"115.
O pedido de auxílio abrangia iniciativas diversas em várias áreas. Previam-se
construção de hidrelétricas, ampliação da capacidade de refino de petróleo, ampliação da
usina de Volta Redonda, construção de indústrias de nitrato sintético e álcalis, melhoramento e
ampliação das linhas férreas e das instalações portuárias, exploração de carvão e de outras
matérias-primas, suprimento de equipamentos para manutenção da aviação, financiamento
para transporte e estabelecimento de imigrantes italianos. "These points, listed as examples
[...], represent in synthesis the cooperation that the government of Brazil expects from the US
for the realization of an unpostponable economic development program".
Pela amplitude das iniciativas e pela literalidade do documento, verifica-se, assim, que
o apoio solicitado aos Estados Unidos pelo governo Vargas não se referia a uma cooperação
pontual, mas a um verdadeiro "programa de desenvolvimento econômico". Diante desse
cenário, o subsecretário de Estado Edward Miller ponderou junto ao secretário Dean Acheson
que: "it is imperative for the future of our relations with Brazil that we give a positive
response to the proposals of President Vargas, even though the realization of the entire
program is obviously not a short-term possibility". Dessa forma, os Estados Unidos deveriam,
em sua opinião, "express a willingness to begin to lay plans for the ultimate realization of the
program and to proceed immediately with the highest priority items" 116.
Nesse contexto, a política externa brasileira parecia escapar à "imposição do
alinhamento" no governo Vargas, que ainda não tinha nem começado. Afinal, a barganha
nacionalista (VISENTINI, 1996) aparentava alvissareira, embora faltasse-lhe um palco onde
pudesse ser desenvolvida plenamente e um meio para concretizá-la. Ambos seriam providos,
ao que tudo indicava, ainda em 1951, com, respectivamente, a IV Reunião de Consulta dos
Chanceleres Americanos e a Comissão Mista Brasil – Estados Unidos para o
Desenvolvimento Econômico (CMBEU).
Nesse sentido, para o Brasil, a Guerra da Coreia seria uma moeda de troca, como o
fora a Segunda Guerra Mundial. Assim, vislumbrava-se o momento adequado para resgatar o
alinhamento negociado (DORATIOTO; VIDIGAL, 2014, p. 70-71) e, consequentemente, a
política externa dos anos 1942-1945, objetivos, como visto, explicitamente manifestados por
Vargas em seus discursos de campanha. Desse modo, mais uma vez, Getúlio tentaria associar
concessões brasileiras no âmbito militar a investimentos norte-americanos no âmbito
produtivo (PINHEIRO, 2004, p. 29).
Essa tentativa de revisar o relacionamento com os Estados Unidos – uma manifestação
de resistência à "imposição do alinhamento" – era operacionalizada por uma estratégia já
utilizada na época por países da Europa Ocidental. Tratou-se, nomeadamente, do fantasma da
ameaça do comunismo (IKENBERRY, 2001, p. 193).
No caso europeu, como visto, a "ameaça comunista" referia-se à expansão da esfera de
influência soviética em um território disputado entre as duas superpotências no qual governos
comunistas já se faziam presentes. No caso americano – e, especificamente, brasileiro –, a
"ameaça comunista" era utilizada em território considerado domínio natural dos Estados
Unidos, no qual o comunismo não teria acesso às chefias de governo.
Essas diferenças implicaram, em consequência, opções distintas para fazer frente à
"ameaça comunista" nos dois locais. Na Europa Ocidental, dominou a estratégia de
contenção, cujas diretrizes foram tributárias das ideias de Kennan (1947). Assim, nesse
continente, a Guerra Fria foi operacionalizada em plenitude, de modo que a disputa ideológica
incorporou elementos psicológicos, bélico-militares, econômico-financeiros (GADDIS,
2005b), conforme analisado no capítulo anterior.
Na América, justamente por ser considerada integrante natural da esfera influência
norte-americana, aqueles elementos da Guerra Fria apresentaram formas atenuadas. É
verdade, no entanto, que o elemento bélico-militar foi largamente utilizado pelos Estados
Unidos na América Central (BULL, 2002, p. 246-248). Apesar disso, de maneira geral, a
América foi negligenciada pela estratégia de contenção norte-americana, especialmente no
elemento econômico-financeiro, como visto no capítulo anterior.
Foi diante desse cenário que o governo brasileiro, na Conferência de Washington,
procurou associar o comunismo ao subdesenvolvimento econômico. Era uma postura
reivindicatória – de resistência à "imposição do alinhamento" – fundada sobre o argumento de
!109
que a América Latina, por seu subdesenvolvimento, também sofria ameaça direta e imediata
do comunismo. Assim, tentava-se obter auxílio dos EUA ao desenvolvimento nacional,
ponderando que a miséria era o maior risco à democracia, de modo que, ao promover-se o
desenvolvimento econômico latino-americano, combatia-se o comunismo na região (DALIO;
MIYAMOTO, 2009; BUENO; CERVO, 2012).
A estratégia brasileira foi ecoada pelos outros países latino-americanos. Ganhou
respaldo e fez-se presente na ata final da Reunião de Consulta. Nela, foi consagrado o
princípio de que "o desenvolvimento econômico dos países insuficientemente desenvolvidos é
considerado como elemento essencial sob o ponto de vista da defesa do continente"119. Foi
uma vitória da estratégia do Brasil, um esforço de revisão no relacionamento com os Estados
Unidos, uma manifestação de resistência à "imposição do alinhamento".
Em julho de 1951, foi instalada a Comissão Mista Brasil – Estados Unidos para o
Desenvolvimento Econômico (CMBEU), que fora criada em dezembro de 1950, ainda no
governo Dutra (LEOPOLDI, 1994). O Brasil forneceria matérias-primas estratégicas,
principalmente manganês e areias monazíticas (HIRST, 1990, p. 8). Os EUA ofereceriam
assistência técnica para "identificar projetos preponderantemente de desenvolvimento da
infraestrutura", os quais serviriam "de base para os pleitos brasileiros de financiamento em
Washington" (ABREU, 2013, p. 205).
Dessa forma, a CMBEU parecia concretizar a barganha nacionalista (VISENTINI,
1996). Afinal, o pleito brasileiro, reiterado constantemente após a Segunda Guerra Mundial,
de financiamento governamental para projetos de desenvolvimento nacional aparentava
contemplado. A política externa brasileira parecia ter conseguido distanciar-se do padrão de
alinhamento sem recompensas (MOURA, 1990), do governo Dutra. O contraste com este
governo foi, inclusive, explícito, conforme se lê em carta da João Neves da Fontoura a
Getúlio Vargas: "não julgo desprezível a quantia de 250 milhões de dólares (o Dutra não
arranjou um centavo dos americanos durante 5 anos!)"120.
No capítulo anterior, a análise das medidas que afirmaram o alinhamento do Brasil aos
Estados Unidos durante o governo Dutra (1946-1950) foi iniciada pelo estudo dos perfis dos
dois chanceleres desse período. Esse estudo demonstrou que tanto João Neves da Fontoura
(PSD) quanto Raul Fernandes (UDN) eram fervorosos defensores, no discurso e na prática, da
política externa alinhada aos norte-americanos.
Nesse sentido, Silva (1995, p. 108) caracterizou o primeiro chanceler como "típico
representante do americanismo excessivamente ideológico", enquanto Lourenço Neto (2012)
argumentou que a assunção do segundo chanceler implicou a intensificação do alinhamento.
Diante desse quadro, não surpreende que Pinheiro (2004) tenha conceituado a política externa
do governo Dutra (1946-1950) como americanismo ideológico; e Cervo (2008a), como
alinhamento ideológico.
Prezando-se pela coerência analítica, investiga-se a política externa do governo Vargas
também segundo o perfil dos chanceleres. Tal abordagem traz um ganho analítico
significativo, pois poucos critérios seriam tão expressivamente eloquentes para testemunhar a
!114
[...] A nação brasileira nasceu sob o signo da Santa Cruz e a Igreja lhe acompanhou e
acompanha a formação e o desenvolvimento.
[...] A história da Igreja no Brasil como que se confunde com a nossa própria história. Assim
sucede, assim pode suceder, porque a Igreja, a par de seus ensinamentos espirituais, ministra o
mais acendrado ensino cívico e que que o bom cristão também seja um bom patriota. 131
De maneira ainda mais clara, foi também o próprio Vicente Rao que expôs seu
anticomunismo:
Ou nós ou eles! Não há meio termo possível! Enquanto nós queremos a ordem jurídica, o
regime da liberdade, não há, para eles, recurso em seus esforços diabólicos de destruição e
anarquia! A violência, que nos causa sobressalto e horror, que violenta nossa consciência
jurídica é para eles meio doutrinário e prático da vitória. 132
Verifica-se, assim, que a política externa alinhada não se restringiu ao governo Dutra
(1946-1950), mas persistiu na década seguinte, a despeito do que seria de esperar-se do
retorno de Vargas ao Catete e da nacionalização da política doméstica. A análise dos perfis
dos chanceleres do período aponta a continuidade, no governo Vargas (1951-1954), de
diretrizes político-ideológicas bastante similares às verificadas no governo Dutra
(1946-1950). Houve, inclusive, a continuidade do próprio chanceler João Neves da Fontoura.
Com isso, é legítimo argumentar que a "imposição do alinhamento" também se
manifestou na primeira metade da década de 1950. Nas próximas seções, serão analisadas
outras manifestações da vertente positiva (exercício) do alinhamento, amparada sobre a ideia
de pragmatismo impossível (HIRST, 1990).
persistent claims upon the United States for financial and other types of assistance"134, a
"ilusão" política também o é. Afinal, na mesma análise, Acheson apresentou a justificativa
para o pleito varguista: "in recognition of Brazil's contribution during the recent war and the
generally held opinion that Brazil has a right to the position as the leading South American
country, the United States' "traditional ally" [grifo dele]".
Em tom similar, o chanceler João Neves da Fontoura ponderou junto ao subsecretário
de Estado Edward Miller: "eu não podia [...] deixar de mencionar que os Estados Unidos,
depois de 1945, não cooperaram conosco, como era do interesse de ambos os países e como
era natural depois do nosso esforço de guerra desde 1942"135. A "ilusão" política persistia.
Pode-se, mesmo, argumentar que nutrir tal "ilusão" seria ainda mais grave no governo
Vargas. Afinal, já se haviam passado cinco anos sem que a expectativa de "aliança especial"
se concretizasse. Ao longo desses anos, gradativamente, esse estado de ânimos foi alterando-
se (MALAN, 1995), levando à "reversão das expectativas no governo Dutra" (GARCIA,
2012, p. 286). Não à toa, no final desse governo, o Brasil manifestou sua insatisfação com os
Estados Unidos por meio do Memorando da Frustração, de Raul Fernandes (MOURA, 1990).
Dessa forma, confirmava-se o que, já em 1947, Oswaldo Aranha havia antecipado a
Raul Fernandes (GOMES, 2016). Em memorando ao chanceler, o então chefe da
representação brasileira na ONU alertou: "a memória norte-americana é muito fraca, ou
melhor, a necessidade e o interesse atuais fazem com que procurem esquecer a nossa
solidariedade e os nossos sacrifícios"136, de modo que o Brasil não poderia, "por algum
tempo, contar com este país" e que "seria cegueira pintar-lhe um quadro diferente".
De toda forma, argumenta-se, como feito no capítulo anterior, que mais razoável que
condenar essa "ilusão" retrospectivamente é admiti-la como uma possibilidade plausível na
época, em ambos os governos – ainda que, no governo Vargas, acreditar nela fosse mais
difícil. O importante, acima de tudo, é manter a coerência analítica, e não condenar essa
expectativa em Dutra, mas negligenciá-la em Vargas, como é feito muitas vezes.
verificada na IV Reunião de Consulta dos Chanceleres Americanos, que, como visto, também
foi palco para a barganha nacionalista (VISENTINI, 1996). Afinal, nela, também se afirmou
"o apoio das Repúblicas americanas à ação das Nações unidas para reprimir a agressão
soviética na Coreia e em qualquer outro ponto onde ela se manifeste" 137. Ao subscrever essa
resolução, o Brasil reafirmava sua filiação ao bloco ocidental, no mesmo palco em que
tentava reeditar a barganha nacionalista (VISENTINI, 1996), uma situação aparentemente
contraditória, mas que corresponde às duas vertentes da "imposição do alinhamento".
Igualmente ilustrativa foi a compra de centrífugas para enriquecimento de urânio. O
acordo foi firmado entre a empresa Sertorious Werk AG, da República Federal da Alemanha, e
o presidente do recém-criado Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq), almirante Álvaro
Alberto (ANDRADE; SANTOS, 2013). "No entanto, antes que os três protótipos para
enriquecimento de urânio fossem embarcados no porto de Hamburgo com destino ao Rio de
Janeiro, o Military Board of Security, dos EUA, apreendeu o carregamento" (ANDRADE;
SANTOS, 2013, p. 124). Em consequência, o Brasil não chegou a receber a encomenda. O
alinhamento impunha-se, e sem recompensas.
O mesmo pode-se dizer em relação ao ensaio de um novo Pacto ABC, discutido em
segredo entre Vargas e Perón. Essa cooperação, ensaiada desde a campanha presidencial de
1950, viu-se inviabilizada pelo "clamor liberal" do período. É verdade que, na literatura, há
diferentes interpretações acerca do significado desse "clamor liberal" no caso concreto.
Assim, por exemplo, Reckziegel (2007) argumenta que o Pacto ABC foi bloqueado
porque contrariava a noção de sistema continental defendida pelos Estados Unidos e por
causa da significativa rivalidade social da política doméstica. Hirst (1990, p. 35) aponta que o
governo argentino considerava culpados o Parlamento, a imprensa e o Itamaraty, eximindo
Vargas de qualquer responsabilidade pelo bloqueio da aproximação bilateral. Bandeira (2003,
p. 258-261), a seu turno, ressalta que o peronismo contrariava o sistema pan-americano
defendido pelos chanceleres João Neves da Fontoura e Vicente Rao, pelos setores dominantes
das Forças Armadas, pela imprensa conservadora e pela UDN. Fausto (2009) chama atenção
para a forma como o Pacto ABC veio a público: denunciado, em 1954, pelo ex-chanceler João
Neves da Fontoura como uma tentativa de afastar o Brasil dos Estados Unidos e de instalar
uma república sindicalista, nos moldes argentinos.
CONCLUSÃO
em outubro do mesmo ano, de Getúlio Vargas. Com isso, haveria de nascer um novo regime
político e um novo governo no Brasil, cujo fundamento seriam uma referência negativa (o
autoritarismo do período anterior) e uma referência positiva (o liberalismo à brasileira, em
diversas frentes e em graus variados).
Assim, diante dos contextos internacional e nacional, o "clamor liberal" era uma força
que se colocava sobre o governo (e o regime) que assumiria o Brasil em 1946, de modo
praticamente independente de quem ocupasse o cargo de Presidente da República. Pode-se
argumentar que o liberalismo se impunha, conforme ilustram os programas dos principais
partidos políticos que disputaram as eleições de dezembro de 1945.
Sob o impulso do "clamor liberal", elegeu-se um Congresso Nacional e formularam-se
medidas nos âmbitos político e econômico e mesmo uma Constituição Federal. Na política
externa, isso traduziu-se em alinhamento aos Estados Unidos, país que encarnava – na prática
ou na retórica – os valores liberais. Assim, a República Liberal-Conservadora (1946-1964)
nasceu sob a influência inescapável do liberalismo (à brasileira).
A magnitude do "clamor liberal" foi tão intensa que, sintomaticamente, a política
externa alinhada se operou justamente durante o governo de um general do Exército que fora
ex-ministro da Guerra de Vargas e que se distinguia por ser simpatizante dos países do Eixo e
antipático aos Estados Unidos. Tal aparente paradoxo explica-se, naturalmente, por seu
contexto, caracterizado pela "imposição do alinhamento".
Em testemunho dessa imposição, até as antigas potências europeias que haviam
exercido hegemonia individual ou coletivamente sobre as relações internacionais por quatro
séculos alinharam-se aos Estados Unidos no pós-1945. Assim, a França rebaixou-se à posição
de "pedinte", como descrevera Georges Bidault; o Reino Unido decaiu de banco do mundo
para mutuário dos Estados Unidos; a Alemanha e a Áustria tiveram seus territórios ocupados.
Diante de tal cenário, a "imposição do alinhamento" sobre o Brasil foi reforçada, pois
diminuíram as opções para o país, em termos de cooperação e comércio internacionais.
O mesmo resultado adveio da consolidação da Guerra Fria, uma vez que a disputa
ideológica – que não se furtava em recorrer a dinheiro e armas – também reforçou a
"imposição do alinhamento". A divisão bipolar do mundo restringia as possibilidades
brasileiras de cooperação e comércio com Estados comunistas. A América Latina, nessa
divisão, era considerada domínio por excelência dos norte-americanos, que não hesitavam em
!125
exercer seu poder na região. A ampla rede de instituições fundadas em torno de uma nova e
mais difusa forma de liberalismo naturalizou valores, objetivos e princípios norte-americanos,
ao ponto de confundi-los com a própria noção de Ocidente, modernidade, progresso.
A "imposição do alinhamento", no entanto, também decorria, como dito, de interesses
brasileiros. Nesse sentido, o anticomunismo era um sentimento profundo e difundido na
sociedade nacional. Era, inclusive, instrumentalizado por elites políticas conservadoras, que
rotulavam manifestações de insatisfação e reivindicação social como comunistas, reprimindo-
as. Em oposição, o americanismo era um sentimento integrante da tradição histórico-cultural
da República brasileira. Ainda, havia a expectativa, razoável à época, de que o país teria
"relações especiais" com os Estados Unidos no pós-guerra, o que se traduziria em auxílio
norte-americano no desenvolvimento econômico brasileiro.
Esse quadro geral de alinhamento aplicou-se tanto ao governo Dutra (1946-1950)
quanto ao Vargas (1951-1954), pois, em ambos, a política externa esteve associada aos
Estados Unidos, em decorrência das razões expostas. O próprio perfil dos chanceleres
escolhidos pelos dois presidentes sugere-o. Nesse sentido, houve, inclusive, coincidência
quanto ao personagem, pois João Neves da Fontoura, identificado como grande entusiasta do
americanismo, esteve à frente do Itamaraty em ambos os governos. Um sinal claro de
continuidade, assim como o fato de que, nos dois casos, a João Neves sucedeu um udenista:
Raul Fernandes, com Dutra (1946-1950); Vicente Rao, com Vargas (1951-1954).
Além do perfil dos chanceleres, outros elementos revelam o alinhamento nos dois
governos. Associação militar: a criação do Estado-Maior das Forças Armadas e da Escola
Superior de Guerra em moldes norte-americanos, a celebração do Acordo Militar de 1953.
Filiação política: endosso às propostas de interesse dos Estados Unidos na ONU, ruptura de
relações diplomáticas com a República Popular da China e posterior instalação de embaixada
brasileira em Taipei. Medidas econômicas: liberalização da remessa de lucros.
Em conjunto, esse cenário faz mais que apontar a política externa alinhada nos dois
governos. Nomeadamente, ele endossa a ideia de "imposição do alinhamento". Afinal, o
alinhamento manifestou-se, por fatores internos e externos, independentemente de quem
ocupasse o Catete. Assim, a política externa alinhada foi implementada por Dutra, comumente
associado a predicativos como subserviente, entreguista, liberal; e também por Vargas,
frequentemente identificado como negociador, autonomista, nacionalista.
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Estado vassalo
Protetorado
Estado cliente
Estado satélite
Estado associado
NOME PROFISSÃO
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A. Marlins Viana Estigarribia engenheiro
Augusto Tasso Fragoso militar: General de Divisão
Antônio Bastos militar: Major
Cândido Mariano da Silva Rondou militar: General de Divisão
Delso Mendes da Fonseca militar: Tenente-Coronel
Esther de Viveiros profissão não identificada
Fransisca Xavier Rondon profissão não identificada
Fernando de Melo Viana advogado
Heloísa Alberto Torres profissão não identificada
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João Marinho médico
João Marques dos Reis advogado
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Jefferson de Lemos médico
Joaquim B. Cavalcanti dentista
Ignácio Azevedo Amaral professor, matemático, militar honorário
Lafayette Cortes professor
Mario M. Fabião médico
Manoel Rabello militar: General de Divisão
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Odilon Braga advogado
Pedro Renault Castanheira funcionário público
Raymundo Sampaio militar: General de Brigada
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