OLIVEIRA, J. L. MUNIZ, F. J. O Estado de Direito e Os Direitos Da Personalidade
OLIVEIRA, J. L. MUNIZ, F. J. O Estado de Direito e Os Direitos Da Personalidade
OLIVEIRA, J. L. MUNIZ, F. J. O Estado de Direito e Os Direitos Da Personalidade
Sumário: 1. Dois exemplos históricos de passagem do típico para o atípico. 2. Direitos da perso-
nalidade, direitos do homem e a noção de pessoa. 3. O Estado de direito. 4. A realidade brasileira:
especificação exemplificativa.
1. Transcrição por Adroaldo Agner Rosa Neto, mestrando em Direito – Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Paraná – UFPR e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo,
do original publicado com esta referência: O Estado de direito e os direitos da personalidade.
Revista da Faculdade de Direito/Universidade do Paraná, v. 19, n. 19, p. 223-241, 1978/1980.
Todas as referências legislativas são do ano de 1980, especificamente ao Código Civil de 1916
e à Constituição Federal de 1967/1969. A grafia utilizada é também a original da época da
primeira publicação.
2. Tese apresentada na VII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.
3. LARENZ, Karl. Allgemeiner Teil des deutschen bürgerlichen Rechts. Beck: München, 1967.
p. 11, 23. Do mesmo autor: Einführung à edição do BGB do Deutscher Taschenbuch Verlag,
München, 1973. p. 11-14.
O fato, porém, é que, no ponto que nos vai interessar de modo particular, o BGB
representou alargamento da tipificação da tutela da personalidade. Seu § 823, al. 1,
considera obrigado a indenizar o dano quem, dolosa ou culposamente, lesa, de mo-
do contrário ao direito, a vida, a integridade corporal, a saúde e a liberdade. Essa enu-
meração de quatro bens da vida equiparados a direito subjetivos para a hipótese de
usa lesão4, representa, através da inclusão da menção à liberdade, entendida aqui em
sentido amplo e não meramente privatístico, a expressão de uma preocupação de de-
fesa do homem em face do Estado. Trata-se, portanto, de técnica em que não há ainda
a rígida separação entre os aspectos privatísticos e os publicísticos (com a exclusão
destes do texto dos códigos), que caracterizaria fase posterior da História do Direito,
antes que se chegasse à atual fase, de crise do dualismo público-privado.5 Essa tute-
la, porém, da personalidade, é concedida em perspectiva que Perlingieri considerou
“estranhamente patrimonial”, eis que “à violação de bem que pertence à categoria
do ser e à própria existência do homem é contraposta sanção que não diz respeito ao
ser, mas ao ter”.6
A verdade, porém, é que essa enumeração limitativa viria a se revelar amplamente
insuficiente. Com efeito, embora, em comparação com situações legislativas anterio-
res, tenha havido um alargamento, como já foi dito, a própria técnica de enumeração
tipificante leva a uma limitação na tutela da personalidade. Os progressos da técnica
moderna tornaram possíveis agressões à esfera privada da vida humana que não pode-
riam ter sido previstas pelo legislador do fim do século XIX. Pense-se apenas, e pa-
ra exemplificar, em toda a aparelhagem de gravação, de filmagem, de fotografia que
pode captar som e imagem de modo a caracterizar interferências injustificadas na vi-
da pessoal. Tudo isso levou o Tribunal Federal criado pela Lei Fundamental de 1949
(Bundesgerichtshof, por abreviação BGH) a, rompendo com a jurisprudência do antigo
Tribunal do Reich, criar, a partir de 1954, a doutrina segundo a qual existiria um assim
chamado direito geral de personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht). Com isso, a
jurisprudência alemã retomava com renovado vigor posição que era a de Gierke e de
Egger e que fora abandonada, sob o influxo da técnica tipificadora do BGB. Fun-
damento invocado pelo Tribunal Federal para a nova jurisprudência foi o princípio
consagrado pelos artigos 1º e 2º da Lei Fundamental (Grundgesetz), nome dado à Cons-
tituição de 1949, também conhecida como Constituição de Bonn. Segundo o art. 1º,
7. ESSER, Josef. Schuldrecht. Karlshure: ed. Müller, 1971. v. II, p. 400 e 401; PUGLIESE,
Giovani. Alcuni problemi sui diritti dela personalità (Giornate giuridiche ítalo-juguslave).
Milão: Giuffré, 1964. p. 5; CASTRO, Frederido de. Los llamados derechos de la persona-
lidade. Anuario de Derecho Civil, t. XII, fasc. IV, p. 1252 e nota 62, 1958; GIAMPICCOLO,
Giorgio. La tutela giuridica della persona umana e il c.d. diritto alla riservatezza, Riv. Trim.,
dir. proc. Civ., 1958, p. 470; LARENZ, Karl. El derecho general de la personalidade em la
jurisprudência alemana. Revista de derecho privado, p. 644, 1963.
8. Herwing Roggermann, “Das Zivilgesetzbuch der DDR von 1975”, in Neue Juristiche
Wochenschrift, 1976, cad. 10, p. 395.
Que sentido tem, no conjunto deste trabalho, a análise dos dois exemplos que
vem de ser feita? Que lições podem ser extraídas, que permitem dar um passo em
direção a uma segunda etapa de exposição?
Extrairemos duas lições fundamentais, em plano doutrinário, e de cada uma delas
será possível retirar uma lição no plano técnico-jurídico.
Em primeiro lugar, a experiência dessas duas Nações demonstra o carácter ab-
solutamente insatisfatório de uma proteção fracionada, fragmentária, de direitos da
personalidade, enumerados e tipificados. A tipologia que se pretende exaustiva não
exaure a realidade e camufla o sentido único de toda a problemática. Dessa primei-
ra lição, pode ser extraído o corolário da extrema dificuldade de uma adequada tute-
la jurisdicional da personalidade humana sem a introdução no Direito legislado de
uma cláusula geral apta a, através da concreção, fornecer a base de uma jurisprudên-
cia coerente, mas suficientemente sensível para a solução das mais variadas hipóte-
ses de lesão aos direitos da personalidade.13 Só assim encontra o Direito justificação
em termos de uma vinculação com a vida real.
Em segundo lugar, o exemplo serve para demonstrar a impossibilidade de uma
construção doutrinária que busque construir essa cláusula geral e se feche dentro
do campo do Direito Civil, ignorando os fundamentais princípios que asseguram o
respeito à dignidade da pessoa humana. No plano doutrinário, isso significa que só
através do entendimento da ordem jurídica como um todo, que tem por base uma
hierarquia de valores dentro da qual ocupa lugar primacial a noção de que o ser hu-
mano é pessoa, dotada de inalienável e inviolável dignidade, é possível dar à noção
de direitos da personalidade toda a sua real amplitude. Para tal, é necessário vincu-
lar a noção de direitos da personalidade à noção de direitos do homem. É verdade que a
doutrina distingue tradicionalmente as duas noções. A distinção, porém, costuma
assentar em dois pontos de vista principais. De um lado, a dicotomia patrimonial –
não patrimonial. Assim, o direito de propriedade seria direito do homem, mas não o
direito da personalidade. Para o ponto que nos interessa, essa distinção é irrelevante.
Pois o que procuramos demonstrar é que a tutela jurídica da personalidade humana
exige a aceitação de noções prévias e fundamentais – de um modo especial, a noção
de pessoa humana – que estão na base da noção de direitos do homem e que servem de
GIAMPICCOLO, Giorgio, op. cit., p. 469 e 471; PERLINGIERI, P., op. cit., p. 183, 188.
Veja-se referência jurisprudencial de forma a demonstrar o reconhecimento, pela Corte di
Cassazione, de um “complexo de direito da personalidade”, no trabalho já citado de BRICO-
LA, op. cit., p. 1095, nota 63.
13. Nesse sentido, salientando a importância, nesse particular, de um método de concreção,
sensível e sem o mecanismo de uma simples subsunção do caso específico à norma geral,
abstrata, OSSENBÜHL, Fritz Die Interpretation der Grundrechte in der Rechtsprechung des
Bundesverfassungsgerichts, Neue Juristische Wichenschrift, cad. 46, 1976, p. 2105.
guia diretiva – como os dois exemplos demonstram – para a concretização das várias
aplicações da noção de direito geral da personalidade e para a própria formulação
dessa noção. De resto, mesmo no plano da noção estrita de direitos da personalidade,
afirma-se cada vez mais a tendência no sentido de um superamento da dicotomia pa-
trimonial – não patrimonial, de modo a abranger a noção de direito da personalidade
direitos de indiscutíveis consequências patrimoniais, como por exemplo o direito ao
trabalho.14 Ademais, a própria pretensão de ressarcimento do dano (embora não seja
a única que pode emergir da lesão ao direito da personalidade) cuja admissão é fun-
damental para que não resulte platônica a tutela dos direitos da personalidade, de-
monstra a impossibilidade de aferramento à rígida separação entre o patrimonial e o
não patrimonial. É a superação dessa visão que explica toda a evolução sofrida pelo
Direito em matéria de dano moral. De outro lado, a distinção direitos do homem – di-
reitos da personalidade é habitualmente assentada sobre a distinção público-privado.
Assim, segundo os Mazeaud, quando se examinam os direitos da personalidade, na
maior parte das vezes, estaria o jurista diante dos mesmos direitos do homem vistos
sob o ângulo das relações entre particulares; tratar-se-ia “de defender esses direitos
não mais contra o poder da autoridade, mas contra os atentados dos particulares”.15
Mesmo vista sob tal ângulo, tal distinção não pode ser rígida. Existe o princípio da
responsabilidade civil do Estado, que interessa ao Direito Público e ao Direito Ci-
vil, e essa responsabilidade pode surgir de uma lesão a direito da personalidade. No
fundo, e sem enfrentar aqui o problema da distinção público-privada, o que estamos
procurando sustentar é a necessidade de um superamento da separação entre duas
concepções unilaterais do direito da personalidade, uma exclusivamente privatística
e outra exclusivamente publicística.16
Daí decorre a importância de que o problema seja analisado à luz dos grandes
princípios constitucionais, que fornecem inclusive critérios de valor e que devem
inspirar uma releitura do próprio texto da lei ordinária à luz dessa inspiração global
que a Constituição acolhe.17
O que vem de ser dito – apesar da utilização do exemplo alemão e do italiano – não
tem valor restrito só aos ordenamentos de Direito Privado que se tenham limitado a
uma tipificação de casos específicos de direito da personalidade.
14. PUGLIESI, Giovanni. Aspetti civilistici della tutela del diritto da personalità nell’ordinamen-
to italiano. Alcuni problemi sui diritto della personalità. Milão: Giuffré, 1964, p. 12. Também
nesse sentido, MAZEAUD, Henri, Léon e Jean. Leçons de Droit Civil. Paris: Montchrestiens,
1955. t. 1º, p. 636, n. 641: “sucedâneo do direito à vida, tem seu lugar entre os direitos da per-
sonalidade”.
15. MAZEAUD, op. cit., p. 629, n. 624.
16. Nesse sentido, PERLINGIERI, P., op. cit., p. 15.
17. Veja-se PERLINGIERI, op. cit., p. 15-16, 18-19 e OSSENBÜHL, op. cit., p. 2101/2103.
18. Veja-se, a respeito, WEILL, Alex. Droit Civil. Paris: Dalloz, 1972, t. I, v. 2º, p. 20.
19. SIMONIUS. Rapport sui le probleme em Droit suisse. Travaux de l’Association Henri Capitant.
Paris: Dalloz, 1974. p. 306.
20. GUSSEN, Jacques-Michel. Les personnes physiques. Traité de Droit Suisse. Suíça: Edições
Universitárias de Friburgo, 1974. t. II, 2, p. 79. Nosso grifo.
direitos do Homem) só podem ser entendidas à luz de uma noção de pessoa que su-
pere o esvaziamento a que tal noção foi submetida pela carga histórica de uma edu-
cação jurídica positivista a pesar sobre sucessivas gerações de cultores do Direito.
Na verdade, só uma noção pré-normativa de pessoa permite entender toda a ri-
queza da noção e amplitude de suas possíveis aplicações em matéria pública. Um
contraste útil como visualização pode ser estabelecido entre a noção clássica de
Boetio, que via na pessoa a rationalis naturae individua substantia e a concepção
de Kelsen, destinada a reduzir a pessoa a mero ponto de imputação, Zurechnugispinkt.
Na primeira visão, expressão do jusnaturalismo cristão, o ser humano é reconheci-
do como indivíduo, mas não apenas indivíduo: substância também, isto é, ser que
existe por si mesmo; e de natureza racional. Dessa noção decorre a dignidade da pes-
soa humana, dado anterior e superior à ordem legislada. É exatamente por que a
pessoa jurídica (as associações, sociedades, fundações, o próprio Estado) não é ser
que exista por si mesmo, mas através dos homens e em função destes, que a pessoa
jurídica, embora não exprima uma ficção, mas uma realidade, é pessoa por analo-
gia ao ser humana e não é portanto dotada da dignidade essencial reconhecida ao ser
humano. Em uma visão positivista, normativista, formalista, da pessoa e da própria
ordem jurídica, ao contrário, termina-se por reduzir a noção de pessoa a um centro
de imputação de direitos e deveres, e a atribuir-se sentido idêntico às noções de pes-
soa e de sujeito de direitos. Em uma visão personalista, o ordenamento jurídico, ao
construir dentro do sistema, a noção de personalidade, assume uma noção pré-nor-
mativa, a noção de pessoa humana, faz de tal noção uma noção aceita pela ordem
positiva. Não a assume nem a aceita porém no mesmo sentido de dura aceitação da
realidade externa com que aceita e assume a qualidade de objetos, de coisas, que têm
uma árvore ou um animal. É que, no caso do ser humano, o dado pré-existente à or-
dem legislada não é um dado apenas ontológico, que radique no plano do ser; ele é
também axiológico. E ser e valor estão intimamente ligados, em síntese indissolú-
vel, eis que o valor está, no caso, inserido no ser. O homem vale, tem a excepcional
e primacial dignidade de que estamos a falar, porque é. E é inconcebível que um ser
humano seja sem valer. Por isso mesmo, a personalidade é uma noção insuscetível
de gradações ou restrições. A capacidade de direito, ao contrário, pode sofrer restri-
ções ou limitações por parte da ordem positiva. Como a noção de personalidade só
pode ser construída, em uma ordem jurídica digna desse nome, sobre a afirmação da
fundamental dignidade de todos os seres humanos, daí decorre evidente corolário
de igualdade essencial entre todos os homens. E daí decorre, também, indispensável
atitude crítica do jurista em face do ordenamento no caso de restrições ou limitações
à capacidade dos seres humanos que firam esse princípio de igualdade. Daí decorre,
ainda, o caráter chocante que tem a afirmativa, tão corrente em juristas de formação
positivista e segundo a qual a prova de um caráter puramente positivo da noção de
pessoa seria dada pela escravidão do mundo antigo. A escravidão demonstra apenas
Oliveira, José Lamartine Corrêa de; Muniz, Francisco José Ferreira.
O Estado de Direito e os direitos da personalidade.
Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 24. ano 7. p. 349-368. São Paulo: Ed. RT, jul.-set./2020.
358 Revista de Direito Civil Contemporâneo 2020 • RDCC 24
21. No sentido essencial do que vem dito no texto: CASTRO Y BRAVO, Federico. Compendio de
Derecho Civil. Madrid, 1970. p. 162-163; LARENZ, Karl. Allg. Teil cit., p. 57-61, do mesmo
autor Methodenlehre der Rechtswissenschaft. Springer, Berlim-Heidelberg. New York, 1975,
p. 436-437 (3. ed. alemã); na edição espanhola Metodologia de la Ciencia dek Derecho, Barce-
lona: Ed. Ariel, 1966. p. 372-374 (tradução da ed. Alemã de 1960); CARVALHO, Orlando de.
Les droits de l’homme dans le droit civil portugais. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra,
v. XLIX, 1973, p. 7 e seguintes.
“não é estático mas de natureza sempre dinâmica: deve continuamente ser realizado
de novo de modo a atingir a si mesmo; não é direito já feito, mas direito em contínuo
devir”.22 Não é relevante aqui empreender uma análise de conjunto do pensamen-
to dos autores citados, nem está aqui implícita qualquer aceitação da totalidade de
suas teses. O que importa é salientar algumas ideias centrais. Uma delas é a do lugar
central que em todas essas concepções assume a pessoa. Nesse sentido, apenas duas
citações: a primeira diz respeito ao pensamento de Maihofer, para quem a grande per-
gunta que se coloca ao jurista é a pergunta sobre o sentido da existência humana e de
sua ordem razoável em um mundo inumano. Para ele, em verdade, ao falar em Direi-
to Natural, natureza das coisas ou natureza do homem, está presente a ideia de um
projeto da missão essencial e histórica do homem em relação com os demais, a rea-
lizar um incessante esforço comum, dando tradução histórica à vontade de alterar o
mundo, de corrigi-lo, melhorá-lo, fazê-lo digno do homem e valioso para a vida.23 A
outra é de COING, para o qual “o núcleo do jusnaturalismo moderno são os direitos
do homem”. Esses se baseiam na exigência moral de respeitar a dignidade do homem
como pessoa moral, exigência contida na ideia de direito. O direito ao respeito que
resulta para a continuidade jurídica e sua ordem constitui o direito geral da persona-
lidade e é o fundamento da necessidade de reconhecer direitos subjetivos em geral.24
Na verdade, a negação do direito subjetivo assinala o começo do esvaziamento
da noção da pessoa, em uma evolução que vai de Duguit a Kelsen, como entre nós
demonstrou Mata-Machado.25 Esse conteúdo, sobre o qual o direito civil, em parti-
cular, foi e permanece construído26, noção fundamental do direito privado contem-
porâneo27, responde a sentimentos muito profundos, dentre os quais o do respeito à
pessoa humana.28
22. KAUFMANN, Arthur. La struttura ontológica del Diritto. Revista Internazionale di Filosofia
del Diritto, p. 576, set.-out. 1962. Analogamente, WOLF, Erik. Carattere problemático e neces-
sário della scienza del diritto. na edição italiana. Milão: Giuffrè, 1964, que agrupou o estudo
de Wolf e um de von Kirchmann sob o título geral Il valores scientifico della giurisprudenza,
p. 230-231.
23. MAIHOFER, Werner. El Derecho natural como derecho existencial. Ciencia Juridica, Sim-
posio do Instituto de Filosofia del Derecho y Sociologia, La Plata: Universidad Nacio de La
Plata, 1970. p. 230-231.
24. COING, Helmut. Fundamentos de Filosofia del Derecho. Barcelona: Ariel, p. 180.
25. MATA-MACHADO, Edgar de Godoi. Contribuição ao personalismo jurídico. Rio de Janeiro:
Forense, 1954. p. 50-52.
26. CARBONNIER, Jean. Droit Civil. Paris: Presses Universitaires de France, 1955. v. 1, p. 179.
27. G. MICHAÉLIDES-NOVARos, L’évolution recente de la notion de droit subjectif. Révue Tri-
mestrielle de Droit Civil, p. 216, abr.-jun. 1966.
28. WEILL, Alex. Droit Civil. Introduction. Paris: Dalloz, 1973. p. 28.
3. O Estado de direito
Chegamos agora a um ponto do trabalho em que as considerações anteriormente
desenvolvidas permitirão melhor entender a ampla ligação do tema direitos da perso-
nalidade com o tema Estado de direito. Com efeito, vimos não ser possível conceber-se
tutela efetiva dos direitos da personalidade fora do contexto de uma tutela aos direi-
tos do homem. Veremos agora que só no Estado de direito essa tutela alcança real efe-
tivação. E, reciprocamente, que só há Estado de direito se existir uma ordem jurídica
baseada na proclamação de tais direitos e em sua efetiva proteção.
Daí decorre que de nenhum modo podemos fazer nossa uma concepção posi-
tivista de Estado de direito. O positivismo, que esvazia a noção de pessoa, e esvazia
a noção de Direito, esvazia a noção de Estado de Direito. O Estado de Direito, visto
pelo ângulo meramente formalista do positivismo jurídico, nada mais é que mero
Estado de legalidade. Existe a preocupação de delimitar os órgãos competentes para
a promulgação das leis, sua elaboração, sua aplicação. Há, em tese, o controle da
legalidade dos atos administrativos pelos tribunais. Mas os direitos individuais são
apenas aqueles concedidos pelo Estado. O Direito tem por fonte o Estado. E se o Es-
tado negar os direitos do homem, estes não mais existirão nem nada haverá a fazer
senão acatar a lei. Essa concepção, levada a sua mais alta expressão, coincide com o
pensamento de Kelsen. Em tal pensamento, é inconcebível o conflito entre o Estado
e o Direito, ou a limitação do Estado pelo Direito, ou a subordinação da lei ao Direi-
to. Todas essas questões são inconcebíveis em um sistema de pensamento que, assu-
mindo uma pretensa neutralidade em face das escalas de valores, em face do mundo,
da vida, do Homem (pois, todas essas questões seriam metajurídicas) termina, em
verdade, por padecer da falta de uma opção axiológica. Não se está com isso preten-
dendo negar o necessário neutralismo do Estado democrático em face do pluralismo
ideológico. O que se está querendo é afirmar o impossível neutralismo do Estado de
direito em face dos valores fundamentais à ordem jurídica, o mais importante dos
quais o da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, Castanheira Neves teve
ocasião de precisar que o sentido puramente formal de Estado de Direito (ou seja, a
noção de Estado de legalidade), que se contenta com a existência de uma forma legal
e do respeito ao princípio da separação de poderes, está hoje superado. Em verdade,
só se poderá falar em Estado de direito na medida em que o Estado reconheça de mo-
do absoluto os “direitos fundamentais”.29
O ilustre professor de Coimbra vai, porém, ainda além. Com efeito, sabemos que
o legislador não é onipotente. Sua tarefa encontra limites na natureza das coisas e
nos valores superiores constitucionalmente consagrados. Na verdade, nem mesmo
o constituinte é onipotente. “Pelo que se fala hoje da possível inconstitucionalidade
de leis constitucionais, no reconhecimento, pois, de uma axiologia transpositiva que
não está na absoluta disponibilidade do positivo constitucional ou de que não é titu-
lar em limites o poder constituinte”.32 Na mesma linha de preocupações, entre nós, o
professor Ary Florencio Guimarães salienta que as liberdades fundamentais da pes-
soa humana “especificam uma solene autoridade dos direitos naturais e inalienáveis
do homem, não decorrentes, como já se demonstrou, das normas positivas ou jurí-
dicas consagradas pelo Estado”, pois que “pré-existem ao nascimento do próprio
Estado”.33 Só nessa dimensão é possível superar a distinção entre o mero Estado de
legalidade e o Estado direito, sem o qual não cabe falar em democracia. No dizer lapi-
dar de Castanheira Neves,
O que vem de ser dito explica o sentido mais profundo do princípio da separa-
ção de poderes. Um mero Estado de legalidade contenta-se com a rígida obediência
a uma discriminação de competências entre as esferas do Executivo, do Legislativo e
do Judiciário. Retrata o Estado de direito formal. Uma concepção de Estado de Direi-
to em sentido substancial ou material vai, porém, muito mais longe.
No que tange ao Judiciário, a exigência de magistrados realmente independentes
para a realização autônoma do Direito radica na fundamental missão do Juiz na con-
creta realização histórica do Direito. O juiz, em sua tarefa de dizer o Direito, deve ser
capaz de dizê-lo, se necessário, em contradição com as próprias razões de Estado, na
defesa da pessoa. Ele há de ser um servidor do Homem muito mais que um servidor
do Estado. Ao interpretar e aplicar o Direito, o juiz procurará realizar, no caso con-
creto, a intenção fundamental do Direito: a de tornar a vida humana, em todas as suas
dimensões, mais capaz de realizar as finalidades do ser humano e da sociedade hu-
mana. O juiz, em face dos direitos do homem, não pode ser neutro.
Quanto ao Legislativo, a colocação em suas mãos da possibilidade de modifi-
cação do Direito Positivo – sem delegações às tecnocracias – é fundamental: pois é
o Poder mais diretamente vinculado ao povo, pela sua origem. Assim, a origem po-
pular do Legislativo pelo voto direto e secreto se destina a dar expressão (sem pre-
juízo de outras formas de manifestação de tal direito, fora da esfera parlamentar) ao
“direito de participar ativamente da vida pública e de trazer assim a sua contribuição
pessoa ao bem comum dos cidadãos”, decorrência da dignidade da pessoa, como
salienta João XXII.35
A realização do Estado de Direito exige, portanto, um Judiciário independente
e um Legislativo escolhido pelo povo. De fato, trata-se de um Estado que “implica a
submissão do Estado-governo ao Estado-sociedade, em lugar da subordinação deste
a aquele”, ao contrário do Estado absoluto, em que “o governante é o monopolizador
do poder; o governo, destinatário”.36
O Estado de Direito é Estado subordinado ao Direito. A sociedade toda colabora
na tarefa de realização do Direito. Esse não se confunde com a vontade do Chefe, nem
a do Presidente, nem a dos tecnocratas, nem a de um Grupo, nem a de um Partido.
concessões setoriais, de todo ineficazes, pois a todo tempo retiráveis se não se exclui
o próprio princípio do arbítrio e da onipotência do Executivo, que o Ato instituiu.
Como disse, com extrema felicidade o professor Josaphat Marinho:
“Proclamar direitos e instituir garantias nos textos, para anulá-los na prática, sob
a invocação permanente ou prolongada de razões de Estado, é forma lavrada de
exercitar a ditadura. Esse procedimento sinuoso intimida o indivíduo, mutilando-
-lhe a personalidade e autonomia, e o deseduca, porque desperta nele a descrença
no valor das leis”.39
As reflexões que acabam de ser feitas guardam íntima coerência com as opções
axiológicas anteriormente feitas: constituem análise crítica desenvolvida à luz de
tais opções.
Se percorrêssemos analiticamente a “Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos” das Nações Unidas, seria longa a enumeração das incontáveis violações a esses
direitos praticadas no Brasil em decorrência do tipo de ordem arbitrária vigente e da
falta de uma adequada proteção à segurança jurídica do cidadão. A demonstração
é feita de modo cabal por Heleno Cláudio Fragoso.40 Limitamo-nos – para não inci-
dirmos em repetição – à análise das violações do princípio da igualdade, consagrado
pelos artigos I e VII da mencionada Declaração.
O princípio da igualdade é objeto de ampla análise por parte dos pesquisadores
do “Centre Philosophie du Droit de l’Université Libre de Bruxelles”, e de um modo
especial por parte de Ch. Perelman e Paul Foriers. Em tais trabalhos, foi desenvolvi-
da importante distinção entre dois aspectos da igualdade: a igualdade perante a lei.
Se utilizarmos a síntese feita por Petzold, jurista venezuelano discípulo de Foriers
e Perelman, essa distinção será tornada bastante clara. “A igualdade perante a lei
responde à obrigação de aplicação das normas jurídicas gerais aos casos concretos,
em conformidade com o que elas estabeleçam, ainda que daí resulte uma discrimi-
nação”. Quanto à igualdade na lei, ela exige que a norma não contenha distinções
fundadas em critérios que conflitem com as normas constitucionais, com a lei, com
os costumes, ou com os princípios jurídicos superiores ao direito positivo. Em de-
corrência, “a igualdade perante a lei é uma exigência feita a todos os que aplicam as
normas jurídicas gerais aos casos concretos, enquanto que a igualdade na lei é uma
exigência dirigida tanto aos que criam as normas jurídicas gerais quanto aos que as
39. MARINHO, Josaphat. Dos direitos humanos e suas garantias. As tendências atuais do Direito
Público – Estudos em homenagem ao professor Afonso Arinos. Rio de Janeiro: Forense,
1976. p. 180.
40. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Direito penal e direitos humanos. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
p. 136 e seguintes.
41. PETZOLD, Hermann. Le príncipe de l’égalité devant la loi dans le droit de certains États
d’Amérique Latine. L’Égalit. Bruxelas: Bruylant, 1971. v. I, p. 100 e 101.
42. Idem, p. 147.
43. O esquema básico encontra-se na La discrimination en matère d’emploi et de profession dans
les pays membres de la Communanté Économique Européeme. Revue Internationale de Droit
compare, p. 9.
44. La condition juridique des handicapés mentaux, colóquio de 24 de abril de 1972, Georg, Gene-
bra, 1872, p. 28-29, 38, 43 e 64.
45. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Advocacia: Igualdade e desigualdade na administração da jus-
tiça. Anais da VI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Salvador, 1976.
p. 124-125.
Pesquisas do Editorial