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___________________________________________________________________

REVISTA DA ESCOLA NACIONAL DA


INSPEÇÃO DO TRABALHO

Rev. ENIT Brasília Ano. 04 p. 001 - 490 jan./dez. 2020

___________________________________________________________________
REVISTA DA ESCOLA NACIONAL DA
INSPEÇÃO DO TRABALHO

Brasília, 2020

___________________________________________________________________
Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho
Ano 4, (jan./dez. 2020) – Brasília: ENIT, 2020.

Anual
ISSN: 2594 - 8644
e-ISSN: 2594 - 8628

1. Direito – Periódicos. I. Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – ENIT.


CDD 340

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)

___________________________________________________________________
Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – ENIT
Ano 4, 2020.

Subsecretário de Inspeção do Trabalho


Romulo Machado e Silva

Coordenador-Geral de Fiscalização do Trabalho


Gerson Soares Pinto

Coordenador-Geral de Segurança e Saúde no Trabalho


Marcelo Naegele

Coordenador Geral de Integração Fiscal


Virgílio Pires de Miranda Junior

Coordenador da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho


Yan Koslovsky

Editor-Chefe
Felipe Macêdo Pires Sampaio

Comissão Editorial
Alexandre Antonio Bruno da Silva, Ministério da Economia.
Emerson Tyrone Mattje, Ministério da Economia.
Hélio Gustavo Alves, Faculdade de Direito Damásio de Jesus.
Jessé José Freire de Souza, Universidade Federal Fluminense.
João Carlos Relvão Caetano, Universidade Aberta de Lisboa.
José Affonso Dallegrave Neto, Faculdades Integradas Curitiba.
Juraci Mourão Lopes Filho, Procuradoria do Município de Fortaleza.
Leone Pereira da Silva Junior, Damásio Educacional.
Marcelo Fernando Borsio, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Marcelo Lima Guerra, Magistratura do Trabalho.
Margarida Barreto de Almeida, Ministério da Economia.
Ocelio de Jesus Carneiro de Morais, Magistratura do Trabalho.
Paulo César Baria de Castilho, Centro Universitário de Rio Preto.
Renata Albuquerque Lima, Centro Universitário Christus.
Renato Bignami, Ministério da Economia.
Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Robson Spinelli Gomes, Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do
Trabalho (FUNDACENTRO)
Rodolfo Mário Veiga Pamplona Filho, Magistratura do Trabalho.
Sonia Maria José Bombardi, Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do
Trabalho (FUNDACENTRO)
Tereza Luiza Ferreira dos Santos, Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina
do Trabalho (FUNDACENTRO)
Willis Santiago Guerra Filho, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.

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Equipe Técnica
Fernando Sergio Fabreti
Marina de Figueiredo Lemos

Capa e Identidade Visual


Felipe Macêdo Pires Sampaio

Imagem da Capa
Sergio Carvalho de Santana

Imagem da Seção de Artigos


João Roberto Ripper

Imagem da Seção de Boas Práticas


Sergio Carvalho de Santana

Correspondência
Escola Nacional da Inspeção do Trabalho
Esplanada dos Ministérios, Bloco “F” Anexo –
Ala B - 1º Andar – Sala 176 - CEP: 70.056-900
– Brasília – DF
Telefones: (61) 2031-6724
Email: revista.enit@mte.gov.br

Revista distribuída gratuitamente pela Inspeção do


Trabalho brasileira, por meio da Escola Nacional da
Inspeção do Trabalho - ENIT.
Para mais informações, acesse:
https://enit.trabalho.gov.br
ou
https://enit.trabalho.gov.br/revista

Acesse também o canal da ENIT no YouTube


clicando abaixo

ou pelo link:
https://www.youtube.com/c/ENIT-ESCOLA/

___________________________________________________________________
APRESENTAÇÃO

Caro leitor,
A proteção ao trabalho, objeto principal dos estudos publicados nesta Revista, é de
inegável importância para aquele que o presta com o objetivo de promover a sua subsistência
e ter acesso aos diversos direitos elencados na Constituição da República, nos tratados
internacionais e na legislação brasileira. Mas a sua importância não se restringe a uma única
face, já que essa proteção é importante também para a sociedade e para a manutenção de
uma economia saudável e sustentável.
A respectiva tutela tem o objetivo não só de promover o bem-estar do trabalhador, mas
de aumentar a produtividade, a geração de bens e serviços, além da arrecadação do Estado,
seja ela direta, como por meio do FGTS, imposto de renda e das contribuições sociais, ou
indireta, reduzindo-se a quantidade de acidentes de trabalho, doenças relacionadas ao trabalho
e a necessidade de concessão de benefícios previdenciários.
Nesse contexto, a Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho tem por objetivo
promover o debate acadêmico, além de fomentar os estudos e o diálogo com a sociedade.
Entre os temas tratados encontram-se as novidades doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas
no âmbito do Direito do Trabalho, do Direito Previdenciário, do Direito Tributário e da Inspeção
do Trabalho.
O conteúdo aqui tratado é eminentemente técnico. A tecnicidade de que se reveste essa
publicação científica é transparecida desde a escolha e avaliação dos artigos publicados. Isso
porque os trabalhos enviados por toda a comunidade acadêmica são submetidos ao sistema
de dupla avaliação cega (double blind review), na qual os dois avaliadores não sabem a
identidade do autor e analisam impessoalmente o mérito do trabalho. A adoção dessa
sistemática contribui também para a garantia da distinta qualidade dos trabalhos publicados.
Essa quarta edição dá especial importância aos estudos relacionados ao combate ao
trabalho escravo, tendo em vista os 25 anos da criação do Grupo Móvel de Combate ao
Trabalho Escravo no Brasil. Sendo assim, além das boas práticas e artigos relacionados aos
outros temas correlatos ao mundo o trabalho, são publicados nessa edição diversos trabalhos
relacionados ao combate ao trabalho escravo e análogo ao de escravo. Além do conhecimento
técnico relacionado ao tema, com abordagem internacional, constitucional, defesa dos direitos
fundamentais e respectivos reflexos previdenciários e tributários, os trabalhos são ricos em
experiências práticas de combate a esse tipo de exploração do ser humano.

___________________________________________________________________
A publicação é dividida em duas seções, sendo a primeira para os artigos e a segunda
para as boas práticas relacionadas à Inspeção do Trabalho. Espero que essa produção seja de
grande utilidade ao aperfeiçoamento da Inspeção do Trabalho brasileira, para a proteção ao
trabalho digno e para o desenvolvimento econômico e social do Brasil.
Desejo ao caro leitor uma excelente leitura e que a Revista seja um vetor de grande
aprendizado, disseminação do conhecimento aqui produzido e da experiência prática dos
autores.

Felipe Macêdo Pires Sampaio


Editor-Chefe da Revista da ENIT

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SUMÁRIO

SEÇÃO I – ARTIGOS

SISTEMATIZAÇÃO DAS AÇÕES FISCAIS PARA VERIFICAÇÃO DE SURTO DE


12 COVID-19: UMA PROPOSTA DE ROTEIRO AUXILIAR DE INSPEÇÃO
VISANDO À PROTEÇÃO DO AUDITOR FISCAL DO TRABALHO E A
OTIMIZAÇÃO DA AÇÃO FISCAL
Ana Luiza Caldas Horcades
Alexandre Paladino Ferreira da Silva

VIOLAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E VULNERABILIDADES DAS


28 PROFISSIONAIS DO SEXO: ASPECTOS VISIBILIZADOS PELA “OPERAÇÃO
CINDERELA”
André Esposito Roston
Bruna Carolina de Quadros

NORMAS DA REPÚBLICA ARGENTINA SOBRE TRABALHO FORÇADO E


52 TRÁFICO DE PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO LABORAL: UMA ANÁLISE
COMPARATIVA SOB A ÓTICA DO PLANO REGIONAL DO MERCOSUL PARA
PREVENÇÃO E ERRADICAÇÃO DESSES CRIMES
Andréia Donin

ASPECTOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL 4.0 NAS RELAÇÕES DE TRABALHO:


90 A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR EM FACE DA AUTOMAÇÃO
Antônio Ivo Cavalcante Prudêncio

O TRABALHO ESCRAVO E A SUBORDINAÇÃO ESTRUTURAL NA CADEIA


115 PRODUTIVA DA CERA DA CARNAÚBA
Benedito de Lima e Silva Filho
Sérgio Carvalho de Santana

ANÁLISE SISTEMÁTICO-NORMATIVA DA SUBMISSÃO DE


140 TRABALHADORES MIGRANTES À NEOESCRAVIDÃO
Claiz Maria Pereira Gunça dos Santos
Felipe Macêdo Pires Sampaio

CONTRATO INTERMITENTE: IMPACTOS E CONSEQUÊNCIAS NAS


171 RELAÇÕES DE TRABALHO
Daniele de Oliveira Siqueira

TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO: SÉRIE HISTÓRICA DOS 25


197 ANOS DE GRUPO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO MÓVEL, NO BRASIL E NA
AMAZÔNIA LEGAL (1995-2019)
Emerson Victor Hugo Costa de Sá
Luly Rodrigues da Cunha Fischer
Valena Jacob Chaves Mesquita

A PERCEPÇÃO DOS AUDITORES-FISCAIS DO TRABALHO EM RELAÇÃO AO


234 TELETRABALHO EM TEMPOS DE PANDEMIA POR COVID-19
Eva Patrícia Gonçalo Pires Tormin
Sarah de Mattos Oliveira
Luiz Victorino

___________________________________________________________________
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PARA PREDIÇÃO DE ACIDENTES LABORAIS NO
273 BRASIL E SUA APLICAÇÃO PELA INSPEÇÃO DO TRABALHO
Jefferson M. Toledo
Robson D. A. Timoteo
Enadio da Silva Barbosa

CADASTRO DE EMPREGADORES: A LISTA SUJA COMO INSTRUMENTO DE


299 TRANSPARÊNCIA E COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO
Maurício Krepsky Fagundes

GESTÃO DE SEGURANÇA EM CALDEIRAS: IMPACTOS GERADOS PELAS


332 FALHAS E POSSIBILIDADES DE MELHORIAS
Rinaldo Angelo dos Santos
Marinilda Lima Souza
Alex Álisson Bandeira Santos
Diego Henrique de Andrade Santos Siqueri
Valvite José Alípio Junior

TRABALHO ESCRAVO: EFEITOS DA ABSOLVIÇÃO CRIMINAL NO


354 PROCESSO ADMINISTRATIVO E NA LISTA SUJA
Rosália Ferreira Pinto

ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE NO CRIME DE REDUÇÃO À


379 CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO E A SUA RELAÇÃO COM A TEORIA
DO DOMÍNIO DO FATO DE CLAUS ROXIN
Vitória Carvalho de Aquino

SEÇÃO II – BOAS PRÁTICAS

FISCALIZAÇÃO DE CASAS DE FARINHA EM ALAGOAS E PERNAMBUCO


409 PELO GRUPO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO MÓVEL
Joel Darcie
Otávio Morais Flor

MIGRANTES VENEZUELANOS E O GRUPO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO


434 MÓVEL NO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO:
PLANEJAMENTO E EXECUÇÃO DAS OPERAÇÕES NO ESTADO DE
RORAIMA
Marcela Nunes Tavares Correia

ANÁLISE DE ACIDENTE E CARACTERIZAÇÃO DE RISCO NA OPERAÇÃO DE


458 TELESCOPAGEM DE GRUA POR SISTEMA MECÂNICO DE
TRANSFERÊNCIA DE ESFORÇOS
Pedro Paulo Dantas de Souza Paiva

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SISTEMATIZAÇÃO DAS AÇÕES FISCAIS PARA VERIFICAÇÃO DE
SURTO DE COVID-19: UMA PROPOSTA DE ROTEIRO AUXILIAR DE
INSPEÇÃO VISANDO À PROTEÇÃO DO AUDITOR FISCAL DO
TRABALHO E A OTIMIZAÇÃO DA AÇÃO FISCAL

Ana Luiza Caldas Horcades1


Alexandre Paladino Ferreira da Silva2

1.Introdução, 2. Desenvolvimento da Sugestão Procedimental, 2.1. Versões


Disponíveis 2.2. Fase 1: Preparação, 2.3. Fase II: Pré-visita de inspeção, 2.4.
Fase III: Checklist, 2.5. 2.5. Fase IV: Resultados 3. Uso Prático do Protocolo
4. Considerações Finais. Referências.

RESUMO
As inspeções dirigidas para investigação de surto de COVID-19
apresentam inúmeras particularidades que as revestem de alto grau de
complexidade. Com o objetivo de subsidiar a equipe de Auditores-Fiscais
do Trabalho da Seção de Fiscalização do Trabalho (SFISC) da
Superintendência Regional do Trabalho do Estado do Rio de Janeiro, o
Comitê Técnico Operacional da SRTb/RJ desenvolveu uma proposta de
Roteiro de Análise de Viabilidade de Funcionamento para ser utilizado em
ações que visem a apurar denúncias de propagação do novo coronavírus
em estabelecimentos diversos, exceto para serviços de saúde. Essa
importante ferramenta pode ser utilizada em qualquer circunscrição e está
em constante atualização, a fim de se adequar às necessidades variáveis
encontradas pelos Auditores que optarem a utilizar o material, visando à
otimização dos resultados obtidos nas ações fiscais.

Palavras-chave: Sistematização. COVID-19. Inspeção do Trabalho.


Gerenciamento de Saúde e Segurança no Trabalho. Meio Ambiente
Laboral. Pandemia.

1 Auditora-Fiscal do Trabalho, Área de Segurança e Saúde do Trabalho, SEGUR - SRTb/RJ


Graduada em Fisioterapia, UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro; Pós Graduanda em
Higiene Ocupacional e Perícias Ambientais, UCAM – Universidade Cândido Mendes.
2 Auditor-Fiscal do Trabalho, Área de Segurança e Saúde do Trabalho, SEGUR - SRTb/RJ.

Especialização em Engenharia de Segurança do Trabalho, UFF – Universidade Federal Fluminense;


Mestrado em Polímeros, UFRJ – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; Bacharel em
Engenharia Química, UERJ - Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

12
1 INTRODUÇÃO

Em 3 de fevereiro de 2020, a o Ministério da Saúde declarou por meio da


Portaria MS nº 188, Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN)
em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (Sars-Cov-2). No mês
seguinte, apenas três meses após o registro oficial do primeiro caso de COVID-19
ocorrido na China, a Organização Mundial da Saúde definiu o surto da doença como
pandemia, confirmando a alta transmissibilidade do vírus e a consequente gravidade
da situação.
Até o dia 1º de julho de 2020, o Brasil registrou o segundo maior número de
casos confirmados da COVID-19 no mundo (1,4 milhões), com uma taxa de
mortalidade de 269/milhão de habitantes, ultrapassando, em 20 de setembro de 2020,
as 136.000 mortes notificadas3. A taxa de letalidade em nosso país foi de 4,2%, no
entanto, esta deve ser mais baixa ao admitir-se que, pelo menos, 40% dos casos são
assintomáticos e, portanto, devem configurar no denominador do indicador ao se
calcular essa taxa45.
Por conta disso, fez-se necessário que uma grande sorte de instrumentos
normativos fosse introduzida em nosso ordenamento jurídico de forma a proteger a
saúde e a integridade física da população, buscando mitigar os efeitos devastadores
da disseminação do agente nocivo no território brasileiro, com o intuito de “achatar a
curva” de contaminação e possibilitar a absorção dos casos graves da doença pelo
sistema de saúde nacional, a fim de evitar um grande número de mortes.
No período entre 2 de fevereiro e 19 de junho de 2020, mais de 300
instrumentos normativos foram criados6, apenas na esfera federal, a saber, decretos,

3 WORLDOMETER. COVID-19 Coronavirus Pandemic. Disponível em:<


https://www.worldometers.info/coronavirus/>. Acesso em: 20 set. 2020.
4 PENNA, Gerson Oliveira et al. PNAD COVID-19: um novo e poderoso instrumento para Vigilância

em Saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, nº 09, Rio de Janeiro, set. 2020. Disponível
em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232020000903567&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 20 set. 2020.
5 FRANÇA, Elisabeth Barboza et al. Óbitos por Covid-19 no Brasil: quantos e quais estamos

identificando? Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 23, Rio de Janeiro, jun. 2020. Disponível em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
790X2020000100203&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 20 set. 2020.
6 BRASIL. Legislação COVID-19. Disponível em Planalto <

http://www4.planalto.gov.br/legislacao/portal-legis/legislacao-covid-19>. Acesso em: 19 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

13
resoluções, portarias, medidas provisórias, além de notas técnicas, entre outros,
tratando dos mais diversos temas, muitos deles afeitos, direta ou indiretamente, à
fiscalização trabalhista, conforme pode ser verificado no sítio eletrônico do Governo
Federal. Soma-se a isso o fato de que, desde 2017, com o advento da reforma
trabalhista imposta pela Lei 13467, acrescida da Lei no 13.429 e da Reforma
Trabalhista, imposta pela Lei nº. 13.467, modificações, ainda vigentes, vêm sendo
promovidas em parte substancial da legislação trabalhista com reduzido tempo de
discussão com a sociedade, e ainda segue a produzir efeitos, o que tornou a atividade
de fiscalização das relações de trabalho ainda mais sensível e complexa, exigindo do
agente público que se dedique e estude a fundo tais alterações, sob pena de estar
sempre desatualizado e exigir o cumprimento de medidas equivocadas ou
ultrapassadas em suas ações fiscais.
Neste sentido, a atuação do Auditor-Fiscal do Trabalho já foi acrescida de
vultosa complexidade. No entanto, a pandemia trouxe determinados obstáculos ainda
maiores, pois os riscos a que estão expostos os trabalhadores, nos mais diversos
ambientes de trabalho, foram radicalmente alterados com a inserção do risco biológico
causado pela presença do novo coronavírus, cuja transmissão comunitária foi
declarada, em todo o território nacional, em 20 de março de 2020, através da Portaria
MS Nº 454.
Com o objetivo de ilustrar a complexidade da atuação do Auditor-Fiscal do
Trabalho atualmente, pode ser citada a legislação de Saúde e Segurança no Trabalho,
em grande parte representada pelas normas regulamentadoras, cujas alterações,
apenas nos últimos dezoito meses, atingiram grande parte dos preceitos basilares,
modificando, inclusive, a metodologia para caracterização de embargos e interdições,
motivo pelo qual é imperioso o desenvolvimento de capacitações nos mais variados
temas das relações do trabalho para o corpo fiscal.
Desta forma, o Auditor-Fiscal que não se dedique habitualmente à higiene
ocupacional e à saúde coletiva, mesmo que seja um especialista na área de saúde e
segurança do trabalho, terá que rever toda a sua metodologia de trabalho e alterar o
enfoque de sua ação fiscal de forma a apurar a efetividade da gestão do empregador
no combate à disseminação da doença em seu estabelecimento. Ou seja – as ações

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

14
fiscais apresentarão fatores essencialmente novos e complexos, e cujo deslinde será
crucial para a abordagem adequada e alcance de resultado exitoso no que diz respeito
à preservação da saúde do trabalhador. Esse resultado deverá contemplar não só as
questões de saúde e segurança do trabalhador, como também a necessidade de
serem absorvidos os atributos atinentes às alterações de legislação, estas ainda em
fase de absorção e consolidação de seus efeitos.
Não se pode deixar de citar um outro componente essencial na influência do
aumento da complexidade do momento atual: a avaliação da segurança do próprio
Auditor quando no desempenho de seu ofício. O risco iminente de contaminação pelo
vírus em tela é factível, principalmente se considerarmos a escassez de suporte,
como, por exemplo, a indisponibilidade de testes de detecção de COVID-19 à equipe
de Auditores que se encontra em atividade externa, visitando ambientes laborais com
denúncia de surto da doença. Ademais, a avaliação de segurança se refere não
apenas ao risco de contaminação, mas também à integridade física propriamente dita,
valendo recordar que Auditores-Fiscais do Trabalho já foram assassinados em razão
do exercício da função, e mesmo assim não foi criado um protocolo de segurança para
a Inspeção do Trabalho.

2 DESENVOLVIMENTO DA SUGESTÃO PROCEDIMENTAL

Diante da necessidade premente de orientar a equipe de Auditores-Fiscais da


Seção de Fiscalização do Trabalho (SFISC) da SRTb/RJ que deveriam ir a campo
atender denúncias de surto de COVID-19, foi desenvolvido, inicialmente, um roteiro
preliminar nesse sentido em formato de documento de texto que poderia ser
reproduzido nos celulares particulares dos Auditores-Fiscais, ou ainda impresso e
portado em papel.
Este roteiro define quatro etapas para a ação fiscal, sendo elas:

1) Fase 1: Preparação
2) Fase 2: Pré-visita de inspeção
3) Fase 3: Visita de inspeção
4) Fase 4: Resultados

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

15
É importante salientar que todas as proposições são gerais, visam à proteção
do trabalhador no que diz respeito à exposição ocupacional ao Sars-Cov-27,8,9, e não
conflitam com qualquer legislação, não sendo de atendimento obrigatório, ou seja, o
Auditor é livre para segui-las ou não, e podem ser utilizadas em qualquer espécie de
atividade, independentemente da atividade econômica (quer seja uma indústria, um
restaurante, um supermercado, ou outra qualquer), excetuando-se os
estabelecimentos de saúde, dadas as particularidades da atividade, onde entendemos
que a análise deva ser realizada de forma diversa e específica10.

2.1 VERSÕES DISPONÍVEIS

Inicialmente, o roteiro de análise foi elaborado em formato de documento de


texto e em seguida transportado para planilha, pois é desejável que haja interatividade
entre o Auditor e o referido roteiro, além de ser interessante para melhorar a facilidade
de uso do documento que este possa ser manuseado a partir de celulares, e da
possibilidade do papel impresso se tornar veículo de contaminação para o Auditor.
Em seguida, o Comitê Técnico Operacional da SRTb/RJ desenvolveu uma
versão online do protocolo que, além das funcionalidades já descritas, emite relatórios
e notificações e permite ao Auditor que registre dados de diversas empresas, sem que
sejam perdidas informações. A versão online exige o endereço de correio eletrônico
institucional para o acesso ao protocolo, visto que o conteúdo é destinado apenas a
ocupantes da carreira da Auditoria Fiscal do Trabalho.

7 AQUINO, Estela M L et al. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de COVID-


19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, supl. 1, Rio de
Janeiro, jun. 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
81232020006702423&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em: 20 set. 2020.
8 ANTUNES, Bianca Brandão de Paula et al. Progressão dos casos confirmados de COVID-19 após

implantação de medidas de controle. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, v.32, nº 2, São Paulo,
abr./jun. 2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
507X2020000200213&lng=en&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em: 19 set. 2020.
9 FLUMIGNAN, R L G et al. Evidence from Cochrane systematic reviews for controlling the

dissemination control of COVID-19 infection. A narrative review. São Paulo Medical Journal, jul.
2020. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
507X2020000200213&lng=en&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em: 19 set. 2020.
10 GALLASCH, Cristiane Helena et al. Prevenção relacionada à exposição ocupacional do profissional

de saúde no cenário de COVID-19. Revista Enfermagem UERJ, v. 28, Rio de Janeiro, 2020.
Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/49596>.
Acesso em: 20 set. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

16
A versão online, disponível no sítio “http://fiscaldotrabalho.com/pop”11, traz
uma introdução explicativa para contextualizar o uso do material, conforme transcrito
a seguir.

Prezados colegas,
O presente material foi elaborado com o intuito de orientar as ações fiscais
dirigidas para atendimento de denúncia de surto de COVID-19 em
estabelecimentos em geral (com exceção dos estabelecimentos de saúde).
Inicia-se com questões a serem levantadas antes do início da ação fiscal,
com o desenvolvimento de um roteiro de fiscalização, cujo objetivo é otimizar
os recursos e reduzir o tempo que o AFT precisará permanecer no
estabelecimento, aumentando a segurança durante a fiscalização. Tratam-se
de perguntas genéricas a serem investigadas pelo AFT quando da análise
ambiental, englobando ainda questões cuja verificação se dará através de
documentos, mas que visam à gestão de saúde e segurança no trabalho no
que diz respeito à grave situação causada pela pandemia de Sar-Cov-2, de
forma a embasar a tomada de decisões e fortalecer os resultados da ação
fiscal.
Apresentamos ainda sugestão de documentação a ser solicitada à empresa
e vídeos elucidativos acerca do uso correto dos equipamentos de proteção,
higienização das mãos, dentre outros, cujo conteúdo é de conhecimento
necessário por qualquer AFT que se dirigir ao ambiente de trabalho para
realizar verificação física.
O presente material não determina procedimentos e de forma alguma se
propõe a amarrar qualquer tipo de conduta por parte do AFT, sendo este livre
para formar sua convicção a partir do que for verificado na ação fiscal.
Temos duas versões de apresentação: a primeira consiste em uma planilha
com diversas abas; cada aba correspondendo a uma fase da ação fiscal,
onde o AFT deverá assinalar “SIM” ou “NÃO” para cada quesito, e analisar
as sugestões de procedimentos indicadas na aba 4. Pode ser aberta e
preenchida no celular ou computador, utilizando o programa Excel. Deverá
ser aberta uma planilha para cada empresa, iniciando-se a ação fiscal com
todas as opções a serem assinaladas em branco, para que a planilha possa
exibir, ao final, os itens que não foram verificados pelo AFT. Esta foi
desenvolvida pelo Comitê Técnico Operacional COVID-19 / SRTERJ e
aperfeiçoada pela equipe de informática do SINAIT. A segunda trata-se de
um aplicativo totalmente online, que deverá ser prioritariamente utilizado em
celular, e tem a capacidade de armazenar dados de mais de uma empresa,
sendo de fácil manuseio durante a ação fiscal, tendo sido desenvolvida pelo
colega Luiz Guilherme. Ambas as versões ainda estão em desenvolvimento
e em breve poderão contar com mais funcionalidades, como a geração de
notificações ou relatórios.
Esperamos que o material seja útil e auxilie o caro colega neste momento
crítico que atravessamos.
Comitê Técnico Operacional COVID-19/ SRTERJ

11SUGESTÃO PROCEDIMENTAL DE ATUAÇÃO PARA FISCALIZAÇÃO DIRETA EM


ATENDIMENTO À DENÚNCIA – Avaliação de GIR por surto de COVID-19. Disponível em:
<http://fiscaldotrabalho.com/pop>

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

17
2.2 FASE 1: PREPARAÇÃO

A primeira fase é antecipatória. O desenvolvimento dela está relacionado à


organização das tarefas e sistematização de condutas, sendo seu cumprimento
importante para o levantamento de informações cruciais à fiscalização e para a
segurança dos Auditores envolvidos. Cumpre ressaltar que a proposta contida nesse
protocolo veda a possibilidade de serem realizadas ações fiscais individuais, por todos
os motivos já tratados anteriormente, exigindo que o trabalho seja feito sempre em
equipe a ser dimensionada de acordo com a complexidade da tarefa.
Primeiramente, é sugerida uma análise detalhada da ordem de serviço e
levantamento de várias informações que podem fazer diferença tanto no
dimensionamento da equipe, quanto no planejamento da abordagem a ser tomada,
como os resultados de últimas ações fiscais, a presença de aprendizes e pessoas
com deficiência no local, o enquadramento ou não como atividade essencial, entre
outras.
A disponibilidade de equipamentos de proteção individual a todos os membros
da equipe, incluindo importantes pormenores, a exemplo da compatibilidade de óculos
de segurança ou viseiras com o uso de óculos de correção visual devem ser previstas,
obstaculizando a realização da visita de inspeção a inexistência dos referidos
equipamentos.
Estabelecer um roteiro de fiscalização do meio ambiente de trabalho, assim
como designar tarefas para os membros da equipe, também é importante no intuito
de se evitar desperdício de tempo e retrabalho, otimizando os recursos humanos
disponíveis para a ação fiscal. Nesta etapa inicial, ainda é indicada uma série de
vídeos explicativos acerca dos procedimentos apropriados de paramentação e
desparamentação, destinada à capacitação da equipe quanto à utilização correta dos
equipamentos de proteção e minimização das chances de contaminação oriundas
destes dispositivos.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

18
2.3 FASE II: PRÉ-VISITA DE INSPEÇÃO

A fim de planejar passo a passo as ações, visando à segurança das equipes,


foi traçado um roteiro a ser cumprido no dia da inspeção orientando a fim de orientar
os Auditores em relação a procedimentos de segurança relevantes. De forma
redundante e visando o aumento da segurança da equipe, foram levantadas questões
pertinentes a uma ação fiscal voltada à verificação de suspeita de surto de COVID-19,
nomeadamente utilização de equipamentos de proteção individual, cuidados no
deslocamento, documentação a ser solicitada, momento sugerido para a
paramentação e desparamentação, uso de instalações sanitárias durante a ação.
Estas medidas visam à redundância das verificações de segurança visa elevar
o nível de proteção dos Auditores envolvidos e mitigar a possibilidade de ocorrência
de situações críticas durante a ação fiscal. É fundamental que cada Auditor tenha
conhecimento não só de suas atribuições durante a ação, mas também da
incumbência de seus pares.

2.4 FASE III: CHECKLIST

A terceira fase do protocolo trata da visita de inspeção propriamente dita. Ela é


chamada de “Roteiro de Análise de Viabilidade de Funcionamento” e consiste em um
checklist com oito diferentes áreas de análise, são elas:

1- Medidas de vigilância médica ativa e rastreabilidade dos possíveis


infectados e seus contatantes;
2- Medidas de distanciamento social tomadas pela empresa;
3- Distribuição e disponibilidade de Equipamentos de Proteção Individual e
medidas de contenção (máscaras descartáveis, álcool gel, disponibilidade de
lavatórios);
4- Eficiência das medidas de limpeza e desinfecção tomadas pela
Organização;
5- Capacitações e informação dos trabalhadores;
6- Condições de ventilação;
7- Controle de acesso de pessoas externas;
8- Transporte dos Trabalhadores.

Cada um desses tópicos traz uma série de itens que devem ser respondidos
com “sim”, “não” ou “não se aplica”, de forma a orientar e organizar as reflexões e
condutas do Auditor-Fiscal. E a seguir, há uma análise indicativa de procedimento,

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

19
com quatro possíveis proposições: a necessidade de notificação com prazo imediato
(considerado prazo reduzido), independentemente da autuação correspondente, a
necessidade de afastamento dos trabalhadores de determinado setor ou atividade, de
forma a se promover o rastreio dos mesmos, a necessidade de interdição de atividade,
setor ou estabelecimento, ou ainda “Nenhuma sugestão”. De fato, as proposições
devem ser avaliadas individualmente pelo Auditor-Fiscal, que, baseado no caso
concreto, irá construir seu entendimento e definir a conduta a ser tomada.
Foram consideradas situações com indicativo de notificação com prazo
imediato aquelas que elevam consideravelmente o risco de contaminação dos
trabalhadores, mas que podem ser adequadas de forma rápida e objetiva, como por
exemplo a implementação de protocolos ou questionários de avaliação médica a
serem atendidos antes do ingresso ao local de trabalho. Ressaltamos que, a despeito
da notificação, o AFT deverá avaliar a autuação do item correspondente dentro do
contexto da ação fiscal.
Em consonância ao disposto na Portaria Conjunta no 20, de 18 de junho de
2020, as circunstâncias que implicam o aumento da possibilidade de contaminação
de trabalhadores, associadas à impossibilidade de rastreio dos contatantes, são
apresentadas com o indicativo de necessidade de afastamento dos trabalhadores
envolvidos pelo período de quarentena ou testagem para a doença em análise,
exigindo-se a liberação do médico do trabalho responsável, registradas no prontuário
clínico do trabalhador. O afastamento dos trabalhadores potencialmente expostos,
determinado no item 2.5 da referida Portaria, tem por base as diretrizes norteadoras
da higiene ocupacional, dispostas na Norma Regulamentadora NR09. A partir da
identificação da possibilidade de exposição de um grupo de trabalhadores ao novo
coronavírus, com a determinação e localização das possíveis fontes geradoras
(trabalhador contaminado), e de posse do conhecimento científico acerca das formas
de disseminação do Sars-Cov-2, a Organização deverá efetuar a identificação das
funções e determinação dos trabalhadores possivelmente expostos para adoção de
tal medida.
Este procedimento é fundamental para que se aumente o nível de segurança
dos demais trabalhadores presentes no ambiente, visto que a COVID-19 afeta

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

20
diferentes pessoas de maneiras distintas, sendo possível que o indivíduo
contaminado, assintomático, transmita o agente. Em média, os primeiros sintomas
aparecem de 5 a 6 dias após a infecção, no entanto um percentual alto, mas ainda
desconhecido, de indivíduos permanece assintomático durante todo o processo. Com
isso, quando há a sinalização de que trabalhadores contaminados entraram em
contato com os demais, é imprescindível que seja realizada essa investigação visando
à identificação dos possíveis infectados e a quebra da proliferação da infecção no
ambiente.
Além das proposições citadas anteriormente, há episódios em que é constatado
o grave e iminente risco à saúde dos trabalhadores presentes, sendo aconselhada a
avaliação da necessidade de interdição de setor ou atividade, que constitui medida de
exceção, até que se possa retomar a segurança exigida para que os trabalhadores
possam exercer seu direito ao meio ambiente do trabalho seguro e saudável.
Lembramos que a contaminação pelo SARS-CoV2 provoca risco de lesões
respiratórias, do sistema cardiovascular, neurológicas, entre outras sequelas graves,
além do risco aumentado de morte, agravado para trabalhadores pertencentes aos
grupos de risco.
As proposições de avaliação de interdição foram construídas de acordo com o
disposto na Norma Regulamentadora 3 (NR-3, aprovada pela Portaria SEPRT nº.
1.068, de 23 de setembro de 201912), utilizando-se a TABELA 3.4 - Tabela de excesso
de risco onde a exposição ao risco pode resultar em lesão ou adoecimento de diversas
vítimas simultaneamente, já que, no caso específico, a exposição ao risco situações
afetará a coletividade de trabalhadores, inclusive podendo se expandir para vítimas
que sequer trabalham na empresa (como é o caso dos contatantes dos trabalhadores
e os que aqueles eventualmente puderem vir a infectar). Dada a situação acima,
associada ao fato de que a exposição ocupacional coloca o trabalhador exposto por
período prolongado e que o tempo de exposição é fator importante a ser avaliado
quando do risco de infecção, conjugada a grande sorte de sequelas persistentes

12BRASIL. NR-3. EMBARGO E INTERDIÇÃO. Disponível em:


<https://enit.trabalho.gov.br/portal/images/Arquivos_SST/SST_NR/NR-03-atualizada-2019.pdf>
Acesso em: 21 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

21
observadas em pacientes recuperados de COVID-19, e considerando ainda a alta
transmissibilidade observada deste agente em específico, a classificação esperada
do risco atual é a consequência de MORTE/SEVERA, com probabilidade de
ocorrência PROVÁVEL. Com a adoção das medidas de proteção exigidas, pode-se
caracterizar o risco de referência com probabilidade REMOTA, havendo assim
excesso de risco classificado como EXTREMO, o que demanda interdição segundo o
normativo em comento. Havendo os riscos acima descritos, além da grande sorte de
sequelas persistentes observadas em pacientes recuperados de COVID-19,
associada ao fato de que a exposição ocupacional coloca o trabalhador exposto por
período prolongado e que o tempo de exposição é fator importante a ser avaliado
quando da análise do risco de infecção, e considerando ainda a alta transmissibilidade
observada deste agente em específico, a classificação esperada do risco atual é a
consequência de MORTE/SEVERA, com probabilidade de ocorrência PROVÁVEL.
Com a adoção das medidas de proteção exigidas, pode-se caracterizar o risco de
referência com probabilidade REMOTA, havendo assim excesso de risco classificado
como EXTREMO, o que demanda interdição segundo o normativo em comento.
Além disso, o checklist já trazia, ao lado de certos itens cuja apreciação
requeria conhecimento de dispositivos legais específicos, a transcrição ou o resumo
destes, viabilizando a formação de convicção do Auditor na legislação vigente. É o
caso de portarias da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que tratam
de processos de desinfecção e limpeza, elementos primordiais na mitigação do risco
biológico, ou ainda a legislação específica do Estado do Rio de Janeiro, onde foi criado
o protocolo de trabalho. Também reunidos os itens de normas regulamentadoras
infringidos em cada tópico, o que agiliza inclusive a análise da proposição de medidas
corretivas.
Exemplificativamente, para que seja entendida a lógica do checklist, transcrevo
o item 1.1, que trata das medidas de vigilância médica impostas pela empresa: “1.1 A
organização possui sistema de vigilância ativa da saúde dos trabalhadores, com
protocolos para identificação e encaminhamento de trabalhadores com suspeita de
contaminação pelo novo coronavírus antes de ingressar no ambiente de trabalho,
assim como o rastreamento de possíveis contatantes?”

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

22
Esse item apresenta um símbolo que indica a necessidade de notificação com
prazo imediato (podendo ser entendido como prazo reduzido), independentemente da
autuação correspondente. Ou seja: ao final da ação, o AFT deverá analisar que
medida deve ser tomada com relação ao atendimento deste item, lembrando que deve
ser buscada uma solução urgente e eficaz para que seja implementado sistema de
vigilância ativa da saúde dos trabalhadores, sendo que geralmente, não há indicativo
de interdição exclusivamente por falha neste quesito.

2.5 FASE IV: RESULTADOS

A última fase do protocolo busca reunir e sistematizar as informações colhidas


pelo Auditor durante a ação fiscal.
Com relação às funcionalidades disponíveis na versão “Planilha”, foi
desenvolvida uma aba para cada fase do protocolo. Pela limitação dos recursos do
arquivo de texto e da planilha, as duas primeiras abas eram referentes às fases pré-
visita de inspeção; a terceira aba, referente ao checklist e a quarta e quinta abas
dedicadas aos Resultados da Ação Fiscal, reunindo itens com sugestões
procedimentais idênticas, ou seja, itens de notificação aglutinados em um quadro para
elaboração do termo de notificação, ou relação dos autos correspondentes, além de
assinalar quais dos itens não foram respondidos ou avaliados pelo Auditor, o que
ajuda significativamente a evitar falhas na análise que poderiam demandar novas
visitas ao local de trabalho e consequente nova exposição da equipe à possível
contaminação.
Com o desenvolvimento do material e a criação da versão online, o Protocolo
passou também a emitir um Relatório de Visita que contém todos os dados informados
ao sistema durante a fiscalização, uma Notificação para Correção de Irregularidades,
baseada nos itens assinalados como irregulares na Fase III, e também a apresentar
texto propositivo para auxiliar a construção de laudo técnico de interdição.
Desta forma, o Protocolo subsidia a ação fiscal desde a preparação até sua
conclusão.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

23
3 USO PRÁTICO DO PROTOCOLO

A equipe de Auditores-Fiscais da SRTb realizou visitas de inspeção para


atendimento de denúncias de surto de COVID-19 em maio de 2020. Os Auditores
foram divididos em 4 equipes e realizaram fiscalizações em uma emissora de
televisão, alguns supermercados e outros estabelecimentos, conduzindo as ações
fiscais a partir dos protocolos impressos e assinalando “X” nos itens correspondentes,
ou com as planilhas instaladas nos celulares pessoais, de forma a buscar a melhor
interface para ser utilizada por cada um. Foi realizada uma videoconferência prévia às
ações fiscais com os desenvolvedores do protocolo e os Auditores que atenderiam às
ordens de serviço, de forma a explicar detalhadamente os itens e dirimir eventuais
dúvidas que surgissem no que diz respeito à interpretação e aplicabilidade das
medidas, assim como orientar as equipes a assistirem vídeos explicativos
referenciados no protocolo acerca do uso dos equipamentos de proteção individual.
Os relatos foram bastante positivos, sendo realizada uma segunda reunião de
retorno onde foram passados os pontos mais críticos encontrados in loco e outros
detalhes que poderiam ser melhorados tanto na formatação, quanto no conteúdo do
material.
Uma importante observação foi que, no decorrer das ações fiscais, o
aprendizado do conteúdo do protocolo tornou mais simples toda a sequência de
abordagens e reduziu o tempo de permanência no estabelecimento, além de
possibilitar a comparação do atendimento de determinado item entre empresas
distintas, assim como as soluções encontradas para a correção das irregularidades.
Os Auditores-Fiscais referiram sensação de segurança e tranquilidade no curso das
visitas de inspeção e na tomada de decisões posterior.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sistematização de condutas é desejável por motivos diversos, dentre os


quais, deve-se ressaltar:

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

24
1) Organizar e padronizar as etapas iniciais da ação fiscal, buscando antecipar
situações críticas que devem ser investigadas no local de trabalho.
2) Dimensionar de forma adequada e racional a equipe fiscal, assim como os
equipamentos de proteção necessários.
3) Acelerar a formação de massa de conhecimento na categoria e,
consequentemente, a adaptação a este momento ímpar que estamos atravessando,
de forma a suavizar a ruptura metodológica e de conhecimento.
4) Instruir de forma adequada os membros da equipe.
5) Reduzir o tempo que o Auditor-Fiscal do Trabalho permanecerá no
estabelecimento, a partir da sistematização das abordagens, o que reduz o risco de
contaminação.
6) Aumentar a segurança do Auditor-Fiscal do Trabalho, reduzindo a chance
de decisões equivocadas, seja por desconhecimento da legislação, seja por
desconhecimento das particularidades do agente biológico, ou ainda pela
possibilidade de deixar de verificar determinado detalhe crucial ao atendimento da
finalidade da ação fiscal.
Além do exposto, a criação de rotinas e padrões nacionais favorece a
segurança jurídica dos atos administrativos. Os Auditores-Fiscais da área da
legislação que atenderam ordens de serviço visando investigar denúncias de surto de
COVID-19 relataram que o uso do presente protocolo foi de extrema importância na
orientação das condutas. Desta forma, indicamos a ampla divulgação do material de
forma a instrumentalizar o corpo fiscal nas ações de atendimento de denúncia de surto
de COVID-19.
A experiência da sistematização destas ações poderá ainda servir como base
experimental ou piloto para adoção de procedimentos ou protocolos nas mais diversas
áreas de atuação dos Auditores-Fiscais, a fim de tornar o resultado do esforço fiscal
mais coeso, seguro e exitoso.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Bianca Brandão de Paula et al. Progressão dos casos confirmados de


COVID-19 após implantação de medidas de controle. Revista Brasileira de Terapia

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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507X2020000200213&lng=en&nrm=iso&tlng=pt >. Acesso em: 19 set. 2020.

AQUINO, Estela M L et al. Medidas de distanciamento social no controle da


pandemia de COVID-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciência & Saúde
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<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
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19 jun. 2020.

BRASIL. NR-3. EMBARGO E INTERDIÇÃO. Disponível em:


<https://enit.trabalho.gov.br/portal/images/Arquivos_SST/SST_NR/NR-03-atualizada-
2019.pdf> Acesso em: 21 jun. 2020.

ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE; ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA


SAÚDE. Considerações sobre medidas de distanciamento social e medidas
relacionadas com as viagens no contexto da resposta à pandemia de COVID-
19. Disponível em
https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52045/OPASBRACOVID1920039_por.
pdf?sequence=9

FLUMIGNAN, R L G et al. Evidence from Cochrane systematic reviews for controlling


the dissemination control of COVID-19 infection. A narrative review. São Paulo
Medical Journal, jul. 2020. Disponível em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
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MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sobre a Doença e Como se Proteger. Disponível em


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FRANÇA, Elisabeth Barboza et al. Óbitos por Covid-19 no Brasil: quantos e quais
estamos identificando? Revista Brasileira de Epidemiologia, v. 23, Rio de Janeiro,
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GALLASCH, Cristiane Helena et al. Prevenção relacionada à exposição ocupacional


do profissional de saúde no cenário de COVID-19. Revista Enfermagem UERJ, v.
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publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/49596>. Acesso em: 20
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para Vigilância em Saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, nº 09, Rio de
Janeiro, set. 2020. Disponível em:
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81232020000903567&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 20 set. 2020.

POSIÇÃO do Conselho Federal de Medicina. Disponível em:


<http://portal.cfm.org.br/images/stories/pdf/covid-19_cfm.pdf>

SUGESTÃO PROCEDIMENTAL DE ATUAÇÃO PARA FISCALIZAÇÃO DIRETA EM


ATENDIMENTO À DENÚNCIA – Avaliação de GIR por surto de COVID-19.
Disponível em: <http://fiscaldotrabalho.com/pop>

WORLDOMETER. COVID-19 Coronavirus Pandemic. Disponível em: <


https://www.worldometers.info/coronavirus/>. Acesso em: 20 set. 2020.

SYSTEMATIZATION OF FISCAL ACTIONS TO VERIFY THE


OUTBREAK OF COVID-19: A PROPOSAL FOR AN
AUXILIARY INSPECTION ROADMAP AIMED AT THE
PROTECTION OF THE LABOUR INSPECTION AND THE
OPTIMIZATION OF FISCAL INSPECTION.

ABSTRACT
Inspections aimed at investigating the outbreak of COVID-19
have numerous particularities that make them highly complex. In
order to support the team of Labor Inspectors of the Labor
Inspection Section (SFISC) of the Regional Labor
Superintendence of the State of Rio de Janeiro, the Technical
Operational Committee of SRTb / RJ developed a proposal for a
Roadmap for Analysis of Feasibility of Operation to be used in
actions aimed at investigating complaints of the spread of the
new coronavirus in various establishments, except for health
services. This important tool can be used in any area and is
constantly being updated in order to adapt to the variable needs
encountered by the Inspection who choose to use the material,
aiming at optimizing the results obtained in inspection actions.

Keywords: Systematization. COVID-19. Labor Inspection.


OSH Management. Work Environment. Pandemic.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

27
VIOLAÇÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E
VULNERABILIDADES DAS PROFISSIONAIS DO SEXO: ASPECTOS
VISIBILIZADOS PELA “OPERAÇÃO CINDERELA”

André Esposito Roston1


Bruna Carolina de Quadros2

1 Introdução. 2 Referencial Teórico. 3 Metodologia. 4 Análise dos Resultados.


3.1 Contratação, modo de execução do trabalho e remuneração. 3.2
Aliciamento, servidão por dívida e o aprofundamento da subordinação do
trabalho. 4.3 Trabalho forçado: vigilância, ameaças, violência, tratamento
desumano e degradante.5 Conclusão. Referências.

RESUMO
Este artigo é um estudo de caso que discute achados decorrentes de ação
fiscal de combate ao trabalho análogo ao de escravo realizada na cidade de
Ribeirão Preto, no estado de São Paulo, no bojo de operação conjunta com a
Polícia Federal, Ministério Público Federal e Ministério Público do Trabalho
que veio a ser denominada de “Cinderela”. A fase ostensiva da ação fiscal
teve início na data de 13/03/2019, foi executada por 21 auditores-fiscais do
trabalho sob coordenação da Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo
- DETRAE, compreendendo diligências em 14 alojamentos e pontos de
prostituição. A ação resultou na identificação de 17 vítimas de formas
contemporâneas de escravidão, todas mulheres transgênero e profissionais
do sexo.

Palavras-chave: trabalho escravo contemporâneo. exploração sexual.


transexualidade.

1 INTRODUÇÃO

Em 2010, no estado do Mato Grosso, foi realizado o primeiro resgate3 urbano


em estabelecimento em que havia indícios de exploração sexual de mulheres.

1 Auditor-Fiscal do Trabalho.
2 Auditora-Fiscal do Trabalho. Bacharel em Direito pela UFRGS e Mestre em Saúde Coletiva pela
mesma universidade.
3 A referência legislativa mais recente à expressão “resgate” é a que consta na Portaria nº 1293, de

28 de dezembro de 2017, que impõe ao Auditor Fiscal do Trabalho - AFT o dever de “resgatar” o
trabalhador que estiver submetido à condição análoga à de escravo e emitir o Requerimento do
Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado. Uma vez habilitado, o trabalhador faz jus à
percepção de três parcelas de seguro-desemprego – SD no valor de um salário mínimo cada. Para

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

28
Naquela oportunidade, as trabalhadoras resgatadas foram enquadradas como
trabalhadoras no atendimento em estabelecimentos de serviços de alimentação,
bebidas e hotelaria, pois faziam jus a comissões pela venda de bebidas alcoólicas aos
clientes. Em 2016, numa fiscalização em casa noturna no município de Porto
Seguro/BA, caracterizou-se exploração sexual de quatro mulheres cisgênero;
contudo, não foram constatados elementos caracterizadores do trabalho escravo.
Mais recentemente, em 2018, houve participação da Inspeção do Trabalho em
uma operação conjunta da Polícia Federal, Ministério Público Federal e Ministério
Público do Trabalho que resultou na prisão de pessoas envolvidas no tráfico
internacional de trabalhadoras transgênero em Franca/SP e Goiânia/GO. Naquela
oportunidade não foi possível reunir elementos que apoiassem a caracterização de
trabalho escravo, portanto não houve resgate no bojo da Operação Fada Madrinha,
segundo dados que constam no Controle de Erradicação do Trabalho Escravo -
COATE, sistema que armazena dados de ações executadas pela Divisão para
Erradicação do Trabalho Escravo -DETRAE. Este artigo contém breve relato sobre a
Operação Cinderela, na qual houve o primeiro resgate de trabalhadoras exploradas
por organizações criminosas que traficavam e submetiam trabalhadoras a condições
análogas à de escravo. Numerosos estudos e normas relacionam trabalho escravo,
exploração sexual, vulnerabilidades e migração, seja interna, seja externa 4 5 6 7 8 9 10.
Apesar disso, embora a exploração sexual represente 22% do total de pessoas

outros requisitos e a disciplina dessa modalidade de SD, v. Resolução CODEFAT nº 306, de 6 de


novembro de 2002, e alterações.
4 DAVIDSON, Julia O Connell. Will the real sex slave please stand up? Feminist Review, n. 83, p. 4–

22, 2006.
5 Idem. New slavery, old binaries: Human trafficking and the borders of “freedom”. Global Networks, v.

10, n. 2, p. 244–261, 2010.


6 Idem. Editorial: The Presence of the Past: Lessons of history for anti-trafficking work. Anti-Trafficking

Review, n. 9, p. 1–12, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.14197/atr.20121791 .Acesso em: 25 de


setembro de 2020.
7 HOYLE, Carolyn; BOSWORTH, Mary; DEMPSEY, Michelle. Labelling the victims of sex trafficking:

Exploring the borderland between rhetoric and reality. Social and Legal Studies, v. 20, n. 3, p. 313–
329, 2011.
8 LOGAN, T. K.; WALKER, Robert; HUNT, Gretchen. Understanding human trafficking in the United

States. Trauma, Violence, and Abuse, v. 10, n. 1, p. 3–30, 2009.


9 NADAL, Kevin L.; DAVIDOFF, Kristin C.; FUJII-DOE, Whitney. Transgender Women and the Sex

Work Industry: Roots in Systemic, Institutional, and Interpersonal Discrimination. Journal of Trauma
and Dissociation, v. 15, n. 2, p. 169–183, 2014.
10 PISCITELLI, Adriana. Entre as “máfias” e a “ajuda”: a construção de conhecimento sobre tráfico de

pessoas. Cadernos Pagu, n. 31, p. 29–63, 2008.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

29
escravizadas em todo o globo, a escravização para exploração sexual é praticamente
ausente nas estatísticas brasileiras11.
Entre 2003 e 2013, apenas 3,7% das vítimas de trabalho escravo constatadas
pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM no estado do Mato Grosso eram
de sexo feminino e apenas uma operação, das mais de 180 que ocorreram naquele
estado entre 1995 e 2013, dedicou-se à exploração de trabalhadoras na indústria do
sexo12. No ano em que se comemora os 25 anos de combate ao trabalho escravo no
Brasil, é imprescindível que se lance luz sobre as lições que a Operação Cinderela
pode ensinar à Auditoria Fiscal do Trabalho, sobretudo quanto à importância de se
refletir sobre a exploração feminina e à necessidade de intervenção estatal em
terrenos menos tradicionais, como a indústria do sexo13.
Quanto à Operação Cinderela, merecem relevo os seguintes aspectos:
i) gravidade das violações de direitos humanos apuradas, mesmo se
comparadas com outras situações de submissão a trabalho análogo ao de escravo;
ii) especificidade do trabalho sexual, não apenas pelo que há de inerente à
atividade, mas principalmente por ser uma ocupação marginalizada pela sociedade e,
como regra geral, não tutelada pelas instituições trabalhistas competentes para atuar
na garantia e defesa de direitos;
iii) especificidade do perfil de vulnerabilidade das vítimas, a demandar
qualificação dos agentes de Estado para sua abordagem e acolhimento;
iv) alta complexidade do cenário em que ocorreu a intervenção, incrementada
pela existência de uma organização que, para além de explorar ao trabalho análogo
ao de escravo, mediante uma rede de tráfico de pessoas, insere-se em meio a
diversas atividades criminosas marcadas por expedientes diversos de dissimulação e
pela informalidade, o que representou grandes desafios de investigação e de
gerenciamento dos riscos envolvidos;

11 VIANNA, Giselle Sakamoto Souza. Ser e não ser livre: A morfologia do trabalho escravo
contemporâneo em Mato Grosso. Universidade Estadual de Campinas, 2019.
12 Ibidem.
13 Recomenda-se como leitura complementar um capítulo da lavra da AFT Jamile Freitas Virgínio

“Trabalho escravo e Exploração Sexual Forçada: uma análise sob o enfoque justrabalhista” (2019).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

30
v) articulação e colaboração interinstitucional obtidas, inclusive com a
fundamental participação da sociedade civil – representada pelo Instituto Nice14 – no
acolhimento e no auxílio por ocasião da abordagem das vítimas, ações decisivas para
o transcurso e o resultado da operação;
vi) tamanho da fase ostensiva da atuação estatal, que reforça a complexidade
do contexto em que se pretendeu intervir;
vi) ineditismo da concessão de direitos de seguridade social às trabalhadoras
que foram resgatadas da submissão a trabalho análogo ao de escravo mediante a
emissão pela Inspeção do Trabalho de formulários de seguro desemprego nos quais
as vítimas são expressamente reconhecidas como empregadas cuja ocupação é a de
profissional do sexo, em observância à Classificação Brasileira de Ocupações (CBO
5198-05);
vii) quantidade ínfima de operações de combate ao trabalho análogo ao de
escravo e tráfico de pessoas envolvendo profissionais do sexo15, em contraste com a
execução, pela Inspeção do Trabalho, de um total de 5.326 ações fiscais ao longo de
mais de 25 anos, com atendimento de 54.687 trabalhadores vítimas de escravidão
contemporânea, em diferentes setores econômicos, contextos (rurais ou urbanos) e
atividades laborais16;
Reputa-se que os aspectos mencionados, por si só, justificam a importância e
o interesse público inerente à divulgação e à análise da ação fiscal empreendida.
Embora muitos ângulos e aportes complementares possam ser adotados para o
estudo do caso e para subsidiar o planejamento de futuras operações em sentido
análogo, para os propósitos e limites deste trabalho serão apresentadas as condições
e o contexto de exploração do trabalho sexual encontrados, que evidenciaram com
contundência típicas relações de emprego informais e substanciais violações de
direitos humanos. Quanto a essas, pode-se dizer que, além de gravíssimas,
mostraram-se notadamente complexas e dotadas de importantes particularidades,

14 O Instituto Nice tem por objeto de trabalho a reinserção social, com acesso a direitos básicos, da
população LGBT.
15 Contam-se apenas quatro com atuação da auditoria-fiscal do trabalho, incluídas aquelas em que

houve reconhecimento da submissão a trabalho análogo ao de escravo, mas não da existência de


relação de emprego decorrente da ocupação de profissional do sexo.
16 Conforme dados extraídos em 01/07/2020 do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do

Trabalho no Brasil: https://sit.trabalho.gov.br/radar/

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

31
mesmo se comparadas com outras situações flagrantes de trabalho análogo ao de
escravo e de tráfico de pessoas.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

O ano de 1995 foi um marco na história do combate ao trabalho escravo:


finalmente, o Governo Brasileiro admitiu a existência de trabalho escravo em solo
nacional. Isso ocorreu após reiteradas denúncias da Comissão Pastoral da Terra –
amplificadas em 1992 no plenário da subcomissão de Direitos Humanos da
Organização das Nações Unidas –, da Organização Internacional do Trabalho e da
Comissão Internacional de Direitos Humanos, e em face do fracasso do Programa de
Erradicação do Trabalho Forçado e do Aliciamento de Trabalhadores – PERFOR, de
1992, e de iniciativas parlamentares para alteração do tipo penal de redução à
condição análoga à de escravo17.
A Instrução Normativa Intersecretarial nº 1, de 24 de março de 1994, publicada
no Diário Oficial da União em 28 de março de 1994, dispunha sobre procedimentos
de Inspeção do Trabalho na Área Rural, e era justificada pela necessidade de
“orientação à fiscalização quanto aos procedimentos a serem adotados em face de
trabalho forçado, aliciamento de mão-de-obra e denúncias de situações que
exponham a vida ou a saúde do trabalhador a perigo direto e iminente. Em seu Anexo
I, estabelecia que se constituía “forte indício de trabalho forçado a situação em que o
trabalhador é reduzido à condição análoga à de escravo por meio de fraude, dívida,
retenção de salários, retenção de documentos, ameaças ou violência que impliquem
no cerceamento da liberdade dele e/ou de seus familiares, em deixar o local onde
presta seus serviços, ou mesmo quando o empregador se negar a fornecer transporte
para que ele se retire do local para onde foi levado, não havendo outros meios de sair
em condições seguras, devido às dificuldades de ordem econômica ou física da
região.
Em 1995, mediante a edição das Portarias nº 549 e 550 do Ministério do
Trabalho, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM, que visava

17MINISTÉRIO DO TRABALHO, Brasil. Trabalho Escravo no Brasil em Retrospectiva: Referências


para estudos e pesquisas. Brasília: [s.n.], 2012.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

32
“especialmente, potencializar o combate ao trabalho escravo, forçado e infantil”. Nos
últimos 25 anos, o esforço fiscal de combate ao trabalho escravo foi empreendido
eminentemente nas zonas rurais, datando de 2010 os primeiros operativos em oficinas
de confecção de vestuário, os quais deram visibilidade ao sweating system como
expressão do trabalho escravo urbano18.
Muito antes das sólidas intervenções na indústria do vestiário, que alcançaram
grande repercussão nacional e internacional, convém relacionar como antecedentes
urbanos as ações coordenadas pela AFT Cláudia Márcia Brito em um posto
revendedor de combustíveis, no município de Sorriso/MT, em 2002, e na construção
civil, em Paragominas/PA. Essas ações foram responsáveis pelo resgate de 9 (nove)
trabalhadores urbanos, segundo registros do COATE.
Somente em 12 de dezembro de 2003 foi publicada a Lei nº 10.803, editada na
véspera, dando nova redação ao art. 149 do Código Penal:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-


o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Pena: reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à
violência.
§1º. Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local
de trabalho

Para a compreensão da evolução dos elementos caracterizadores do trabalho


escravo contemporâneo na doutrina, jurisprudência e, especialmente, na esfera
administrativa, em autos de infração e relatórios de ações fiscais produzidos por
Auditores Fiscais do Trabalho, recomenda-se a tese de Giselle Sakamoto Souza
Vianna19, de onde se extraíram os conceitos que serão apresentados nesta seção.
Segundo a autora, colega AFT, em 2003 operou-se uma reconfiguração do crime de
submeter alguém a trabalho análogo a de escravo, o qual passou a “prescindir de

18 MINISTÉRIO DO TRABALHO, Brasil. Trabalho Escravo no Brasil em Retrospectiva: Referências


para estudos e pesquisas. Brasília: [s.n.], 2012.
19 VIANNA, Giselle Sakamoto Souza. Ser e não ser livre: A morfologia do trabalho escravo

contemporâneo em Mato Grosso. Universidade Estadual de Campinas, 2019.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

33
elementos de violência, coerção direta, cerceamento físico e geográfico da liberdade
de ir e vir, transitando da lógica da liberdade para a lógica da dignidade”. Seus estudos
demonstram que a degradância está no centro da caracterização do trabalho escravo
contemporâneo, importando violação do princípio da dignidade humana, "de um
mínimo essencial de civilidade para admissão da prestação de serviços" que
diferenciaria o "trabalho análogo ao de escravo" do mero descumprimento das normas
de saúde e segurança no ambiente de trabalho. Em suas análises, Vianna identificou
que a degradância é o aspecto mais frequentemente referido nos relatórios de ações
fiscais de combate ao trabalho escravo, estando presente em 100% dos casos em
oito dos dez anos de sua série temporal. “Trabalho forçado”, por sua vez, é aquele ao
qual a pessoa é submetida contra sua própria vontade, mediante emprego de
violência, ameaça, fraude coação física ou moral. Já jornada exaustiva é aquela que
esgota as forças do trabalhador, comprometendo sua saúde física e mental”, num
processo de exaurimento com repercussões significativas à saúde e segurança do
obreiro.
No sentido clássico, o “isolamento geográfico” afeta a liberdade, o livre
deslocamento dos trabalhadores, entretanto a dificuldade de acesso a um centro
urbano nem sempre representa um obstáculo intransponível para um trabalhador que
deseje ir embora do trabalho para nunca mais voltar. Na atualidade, pontua Vianna,
outro bem jurídico estaria sob ameaça: a integridade física dos trabalhadores,
especialmente em face dos entraves que as dificuldades de acesso importam à
prestação de primeiros socorros e atendimentos médicos emergenciais. Assim,
segundo ela, o isolamento é fator que aumenta a dependência do trabalhador em
relação ao empregador e seus intermediários.
Finalmente, tem-se a “servidão por dívida quando, “por qualquer meio”, o
trabalhador está sendo retido em razão de dívida”, geralmente associada a
aliciamento de mão de obra mediante falsas promessas. Vianna insiste que a servidão
por dívida

Deve ser compreendida num espectro muito mais alargado, que abarque não
só a contabilidade fraudulenta de custos do empregador que são cobrados

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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do trabalhador, mas também a condição de miséria das famílias desses
mesmos trabalhadores, o custo de entrada e de saída do posto de trabalho20.

Não raro constata-se o expediente do armazém (conhecido como “sistema de


barracão” ou “truck system”), com a prática de valores superiores aos de mercado
para aquisição de bens, e formas de remuneração variáveis incompatíveis com os
custos fixos de alimentação e moradia, muitas vezes descontados de forma indevida.
Vianna sublinha que os conceitos jurídicos são “objetos de disputa, a qual se
dá tanto na teoria quanto na jurisprudência”, daí a “heterogeneidade dos
entendimentos (...) e dos próprios fatos e a complexidade e pluralidade dos
mecanismos de escravização”. Assim, imprescindíveis à discussão proposta neste
artigo os aportes da filosofia e da sociologia do direito para a instrumentalização dos
conhecimentos acerca da evolução institucional e dos instrumentos de combate ao
trabalho escravo contemporâneo no Brasil, bem como dos elementos
caracterizadores da redução à condição análoga ao de escravo.

3 METODOLOGIA

O ineditismo da intervenção selecionada recomenda o emprego da metodologia


de estudo de caso, uma abordagem qualitativa. Foram empregados dados
secundários como relatórios de inspeção e depoimentos prestados às vítimas à
Polícia Federal e entrevistas realizadas pelos AFT envolvidos na Operação Cinderela,
cuja fase ostensiva ocorreu em março de 2019 em Ribeirão Preto/SP. O emprego de
dados primários consistentes nos diários de campo dos autores empresta notas de
pesquisa-ação a este trabalho, que objetiva a promoção de conscientização,
politização e mobilização de classe em torno de um tema pouco explorado.
Serão descritas analiticamente as formas de exploração do trabalho e as
violações constatadas, procurando articulá-las com a dinâmica de aliciamento, com a
atividade laboral e com o perfil de vulnerabilidade das vítimas. Do mesmo modo, serão
assinaladas as similaridades identificadas nas condutas adotadas pelos grupos de

20VIANNA, Giselle Sakamoto Souza. Ser e não ser livre: A morfologia do trabalho escravo
contemporâneo em Mato Grosso. Universidade Estadual de Campinas, 2019, p. 159.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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cafetinas21, as quais constituem um verdadeiro modelo de tráfico humano e
exploração escravista. Pontualmente, serão tratadas as especificidades de fatos
apurados em relação a um ou outro grupo, ou de constatações mais amplas advindas
da apuração da ação fiscal, quando relevante para a exposição.
Durante a fiscalização foram realizadas diligências em 14 pontos de
prostituição e de alojamento, tendo sido excluídos deste estudo aqueles em que não
houve identificação de trabalho análogo ao de escravo. Assim, restaram três conjuntos
deles, cada um controlado por uma cafetina, ou por uma dupla de cafetinas
associadas em grupo econômico, nos quais foram identificadas e resgatadas vítimas
de trabalho análogo ao de escravo.

4 ANÁLISE DOS RESULTADOS

As três unidades de análise são i) o ponto A, explorado pela cafetina X,


identificada como empregadora de 4 trabalhadoras; ii) o ponto B, explorado pela
cafetina Y, identificada como empregadora de 4 trabalhadoras; iii) o ponto C,
explorado conjuntamente por W e Z, identificadas como empregadoras de 12
trabalhadoras. Das 20 trabalhadoras, 17 sofriam exploração em condições análogas
à de escravo.
É oportuno esclarecer que, embora não tenha havido um recorte prévio no
planejamento da ação fiscal, todas as trabalhadoras exploradas pelas cafetinas eram
mulheres transexuais. Como se verá adiante, o perfil de vulnerabilidade das vítimas
as torna especialmente suscetíveis às estratégias de superexploração e de violação
de direitos praticadas. Para fins didáticos, foram organizados em subseções os
elementos caraterizadores das relações de trabalho abusivas que configuraram a
condição análoga à de escravo.

21É chamada “cafetina” aquela que pratica o chamado proxenetismo ou lenocínio; pessoa que
administra ou explora bordel ou casa de prostituição.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

36
4.1 CONTRATAÇÃO, MODO DE EXECUÇÃO DO TRABALHO E REMUNERAÇÃO

De antemão, para que se compreenda o panorama mais amplo, cumpre


esclarecer que os territórios de atuação eram rigorosamente delimitados, isto é, todos
os pontos de prostituição em locais públicos na cidade de Ribeirão Preto estavam
sempre sob o controle, exploração e organização de uma determinada cafetina, ou de
cafetinas associadas entre si. Assim, exigia-se que as profissionais do sexo que
desejassem atuar em certo local acordassem os termos verbal, informal e diretamente
com a respectiva cafetina. Diariamente as obreiras se dirigiam para as áreas de suas
contratantes para encontrarem clientes a procura do serviço de prostituição.
Como regra, era exigido das trabalhadoras que, para o início da atividade, se
instalassem em pensões, onde as diárias variavam entre R$50 e R$60,00, variações
explicadas parcialmente pelo nível de estrutura e lotação do local. O valor englobava
o alojamento, geralmente com a inclusão dos custos de água e energia, uma refeição
ao dia na minoria dos casos, e também, necessariamente, a permissão para o uso do
ponto. Demais gastos com alimentação e aqueles afetos à manutenção das
habitações eram suportados pelas moradoras.
Excepcionalmente, de acordo com sua conveniência, as cafetinas admitiam
que uma minoria de trabalhadoras utilizasse apenas o ponto de prostituição, sem
exigir-lhes que ocupassem as moradias controladas, ao custo de R$20,00 e R$30,00
por dia. Qualquer mulher que tentasse trabalhar no ponto sem autorização, ou sem
pagar as diárias, era prontamente expulsa do local mediante violência ou ameaça
perpetrada pelas autorizadas adimplentes, conforme previsto no ajuste informal
mantido com as cafetinas.
Os programas eram tabelados, de modo que deveria ser cobrado dos clientes
o valor mínimo de R$50,00 por meia hora, ou R$70,00, caso o serviço fosse prestado
em motel. Havia possibilidade de as profissionais do sexo combinarem valores
maiores diretamente com cada cliente.
Algumas das cafetinas orientavam que os programas fossem realizados nas
próprias pensões, sendo cobrado das obreiras o valor de R$10,00 por atendimento.
Outras determinavam os hotéis ou bares em que poderiam ser executados os
programas. Nesse caso, as profissionais do sexo deviam pagar 50% do valor do

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37
programa para as cafetinas, a título de “comissão”. Constata-se, portanto, que a
escolha do local da prestação do serviço sexual não era de livre escolha das
trabalhadoras, nem isenta de ônus financeiros.
De maneira análoga, também os horários em que as profissionais do sexo
deveriam explorar o ponto a que estavam vinculadas eram determinados pelas
cafetinas. As jornadas tinham início entre 17 e 19 horas, e terminavam entre 3 e 4
horas da madrugada, todos os dias da semana. Frequentemente era frustrada a
tentativa de reingresso antecipado na pensão, caso a trabalhadora não houvesse
garantido, com seu trabalho, o valor correspondente a uma diária. Admitidas exceções
na modalidade de atendimento de cliente no local de moradia.
As cafetinas compareciam pessoalmente às pensões e aos pontos de
prostituição para supervisionar e fiscalizar a execução das atividades, exigindo que as
mulheres fossem para o local de trabalho, verificando se não havia nenhum problema
no ponto e garantindo que outras profissionais não autorizadas por elas não se
utilizassem da área. Também telefonavam ou trocavam mensagens para
monitoramento, a fim de verificar, próximo ao horário de início de expediente, se as
trabalhadoras já estavam se arrumando para assumir o ponto.
As diárias eram cobradas independentemente de a profissional ir trabalhar ou
não, mesmo que a ausência ao serviço se desse em razão de incapacidade por motivo
de doença, por exemplo. A frequência das cobranças variava, a depender da cafetina,
e às vezes, de modo arbitrário, relativamente a cada trabalhadora, assumindo
periodicidades diversas - de 3 em 3 dias, semana a semana, ou mês a mês.
Profissionais em atraso com as diárias eram cobradas diariamente e constrangidas
de formas diversas, o que se exemplifica pela negativa de entrada na pensão quando
a profissional retornava sem ter realizado programas, impondo sua permanência na
rua.
Via de regra, as cafetinas contavam com o auxílio de uma das residentes para
a gestão do dia a dia, a organização da casa e o controle das contas, compreendendo
a arrecadação de recursos das demais para as despesas do dia a dia, bem como a
cobrança de diárias, comissões e outras dívidas contraídas pelas trabalhadoras junto
às exploradoras.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

38
Em adição, as cafetinas contavam com prepostos – que desempenhavam
também a função de verdadeiros capangas – para o desenvolvimento de atividades
direcionadas a gerir e controlar o negócio, como a vigilância ostensiva das pensões e
do ponto de prostituição e cobrança forçada das dívidas das obreiras.

4.2 ALICIAMENTO, SERVIDÃO POR DÍVIDA E O APROFUNDAMENTO DA


SUBORDINAÇÃO DO TRABALHO

A vinculação e a subordinação das trabalhadoras às cafetinas não decorriam


apenas dos elementos trabalhistas clássicos descritos na subseção anterior,
evidências de que dirigiam e fiscalizavam a prestação dos serviços, determinando
valores e a forma de execução do trabalho. Em adição a isso, eram empregados
expedientes que implicavam grave violação dos direitos das obreiras, começando com
o recrutamento mediante aliciamento e se consolidando com a servidão por dívida, no
mais das vezes, em caráter permanente. Não bastassem tais violações, as
trabalhadoras ainda eram submetidas a ameaças e agressões gravíssimas, de modo
que não conseguiam encerrar livremente a relação de trabalho e a superexploração
da sua situação de extrema vulnerabilidade.
Preliminarmente, cumpre destacar que, como qualquer trabalhador informal
remunerado por tarefa ou por produção, as profissionais do sexo, embora não fossem
autônomas, não tinham garantia de pagamento sequer do salário mínimo-hora para
seu sustento. Arcavam integralmente com o risco da execução da atividade laboral e,
ao mesmo tempo, deviam honrar os compromissos financeiros representados pelos
gastos fixos para sua subsistência e amortização de dívidas junto às cafetinas.
Não bastasse o arranjo remuneratório, que mais à frente será retomado com
detalhes adicionais, somavam-se diferentes formas de endividamento ilícito e abusivo
das obreiras, tanto no momento da arregimentação, quanto durante a execução da
relação de trabalho. A esmagadora maioria das trabalhadoras era oriunda de outras
localidades que não Ribeirão Preto e, considerável parcela, sequer residia na cidade
antes do início do labor para suas respectivas cafetinas, tendo sido aliciadas em outras
regiões. O aliciamento ocorria preferencialmente pela internet, mediante trocas de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

39
mensagens em redes sociais, como o Facebook, e aplicativos de comunicação, como
o WhatsApp.
As cafetinas custeavam as passagens das mulheres até Ribeirão Preto, custos
desde logo computados como débitos a serem pagos com o trabalho. Entretanto, o
valor a ser quitado em razão do “financiamento” do deslocamento era sempre o dobro
daquele informado como correspondente à passagem. Na chegada à cidade,
geralmente na rodoviária, as novas contratadas eram recolhidas pelas cafetinas –
eventualmente por seus prepostos – e conduzidas às pensões. Até mesmo esse
acolhimento inicial em Ribeirão Preto possuía um preço, o qual era devidamente
anotado para futura cobrança.
Ademais, no momento do aliciamento, as trabalhadoras eram informadas de
que teriam que pagar apenas o valor da pensão. Contudo, na chegada, descobriam
que teriam que arcar com todos os custos da moradia coletiva, bem como de, pelo
menos, seu café da manhã e jantar.
A lógica do “financiamento” – aquisição de um bem ou serviço diretamente
pelas cafetinas para uma determinada mulher desprovida dos recursos financeiros
para aquisição por conta própria – também era aplicada para todos os aspectos da
vida laboral das profissionais do sexo, depois do início do trabalho no ponto, com a
posterior cobrança de montante superior ao conteúdo econômico real do benefício
viabilizado.
Como estratégia para fortalecer a dependência do “financiamento”, as aliciadas
eram preferencialmente mulheres transexuais jovens, frequentemente menores de
idade, e que não haviam iniciado intervenções de transformação corporal, desejo
qualificado como sonho ou obsessão pelas transexuais entrevistadas, num processo
que é a concretização da identidade de gênero, finalmente transposta para o nível da
matéria.
Neste ponto, importa observar que o trabalho de prostituição se constitui como
o caminho mais comum não somente para a pura e simples subsistência de uma
população altamente discriminada e excluída do acesso à educação e a outras
colocações no mercado de trabalho, como também para viabilizar a transformação
corporal por meio de intervenções médicas e estéticas de feminilização (tratamento
hormonal, cirurgias para implante de silicone nas mamas e glúteos, rinoplastia e

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

40
preenchimentos), incluindo ou não a cirurgia de redesignação sexual. A renda
decorrente da prostituição de seus corpos viabiliza a aquisição de roupas e
acessórios, como perucas, cílios e unhas postiças. Em seu livro seminal22, Kulick
pontuou que a prostituição pode atuar como uma forma de construção do valor
pessoal e da autoestima das travestis e transexuais. Outro componente importante de
subjetividade passa pelo papel do exercício da prostituição para materializar o sonho
de imigração, o qual era compartilhado por algumas das entrevistadas23.
No Brasil, não há registros de estatísticas oficiais ou estudos quantitativos24
acerca desse grupo populacional, o qual é frequentemente descrito em estudos
qualitativos como de baixa escolaridade, atribuída à evasão escolar, que se justificaria
pela precariedade do suporte comunitário e familiar, e de menor expectativa de vida,
supostamente em razão da violência transfóbica e de índices de suicídio superiores,
quando comparado com outras minorias.
As precárias condições socioeconômicas e o elevado estigma dessa população
seriam explicações razoáveis para sua baixa empregabilidade, a qual suporta sua
participação no mercado informal, em atividades autônomas, como a de cabeleireira,
e no mercado do sexo, onde pode, em face de sua especial vulnerabilidade, se inserir
em cadeias de exploração de tráfico humano e trabalho análogo ao de escravo.
Os depoimentos coletados na ação fiscal evidenciam que as intervenções para
feminilização eram decisivas para a obtenção e consolidação de clientela, e para a
formação do preço do serviço, de modo que trabalhadoras de menor passabilidade25

22 Sobre o livro “Travesti: prostituição, sexo, gênero e cultura no Brasil”, de Don Kulick, cf.
GOLDENBERG, Mirian. O gênero das travestis: corpo e sexualidade na cultura brasileira. História,
Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 16, n. 4, p. 1115–1119, 2009.
23 Sobre imigração e prostituição, cf. TEIXEIRA, Flávia do Bonsucesso. L’Italia dei Divieti: entre o

sonho de ser européia e o babado da prostituição. Cadernos Pagu, n. 31, p. 275–308, 2008. Segundo
Teixeira, “a vivência da prostituição e o sonho de trabalhar na Europa integraram o universo da
travesti, compondo sua subjetividade. A percepção das estratégias migratórias desenvolvidas com o
propósito de materializar esse sonho são frequentemente dissonantes dos argumentos das agências
oficiais do uso de engano ou fraude e mesmo de aliciamento” (p. 278)
24 A Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, em iniciativa inédita, planejava realizar

entrevistas com a população T (travestis e homens e mulheres transexuais) ao longo do primeiro


semestre de 2020. Infelizmente, a pandemia atrasou a iniciativa. A Defensoria Pública da União
ajuizou Ação Civil Pública nº 50195430220184025101, em trâmite perante a 1ª Vara Federal do Rio
de Janeiro, para que o IBGE inclua no Censo de 2020 perguntas que permitam o dimensionamento e
a identificação do perfil da população T em todo o país. O Censo foi adiado para 2021.
25 A passabilidade é um termo que sugere que a pessoa transgênero “passa” como seu gênero de

identificação, isto é, que socialmente essa pessoa é tomada como se cisgênero fosse. Ícone de
beleza nos anos 80, a modelo Roberta Close é exemplo de pessoa trans com grande passabilidade.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

41
tinham mais dificuldade para negociar valores acima do piso de R$50,00 por
programa, ou mesmo de atingir esse patamar. Extrapolando conclusões de Pelúcio26,
o apreço dos clientes pela performatividade de gênero, aqui representada pela
passabilidade, poderia ser entendido como um “reforço da masculinidade
hegemônica”, uma vez que o desejo por mulheres trans os colocaria “perigosamente
no limiar das classificações binárias”. Por essa lógica, o homem reafirma sua
heterossexualidade ao se relacionar sexualmente com uma mulher transexual que
pode ser tomada socialmente como uma mulher cis.
Parte das obreiras realizava os procedimentos cirúrgico-estéticos de
feminilização com médicos, quer em consultórios, quer em locais clandestinos, ou com
as chamadas “bombadeiras”, mulheres sem formação médica ou em saúde, que
realizam aplicação de silicone industrial e outras substâncias para preenchimento e
volumização de estruturas corporais. Houve relatos também da implantação de
próteses de silicone reutilizadas e de seis casos de mortes de mulheres trans
vinculadas às cafetinas fiscalizadas, todas envolvendo aplicação de silicone industrial
ou silicone reutilizado, tanto por médicos, como por “bombadeiras”.
Ilustrativamente, os valores devidos pelas trabalhadoras pelos procedimentos
“financiados”, sempre equivalentes ao dobro do custo das intervenções declarado
pelas cafetinas, eram da ordem de R$ 3.600,00 pela aplicação de três litros de silicone
industrial no peito e de entre R$ 8.000,00 e R$ 12.000,00 pela aplicação de prótese
mamária ou nos glúteos com médico. Exemplos de outros bens e valores “financiados”
são os seguintes, sempre dobrados em relação ao preço de custo declarado: i) peruca
– valor cobrado de R$ 6.400,00; ii) cabelo para peruca – valor cobrado de R$ 500,00;
iii) calcinha – valor cobrado de R$ 60,00 por unidade. Houve relatos de diversos bens
adicionais “financiados” pelas cafetinas, como roupas e até móveis para a decoração
dos quartos da pensão.

Na atualidade, é possível citar como “passáveis” a modelo brasileira Léa T. e as atrizes americanas
Laverne Cox e a Jamie Clayton, dos seriados Orange is the New Black e Sense8, produzidos pela
Netflix. O conceito revela que a heteronormatividade permeia os afetos e os desejos do público que
procura profissionais trans para sexo, uma estratégia que instrumentaliza estereótipos de gênero,
atuando na autoafirmação identitária, uma discussão bem desenvolvida por Lomando e Nardi (2013)
26 PELÚCIO, Larissa. Três casamentos e algumas reflexões: Notas sobre conjugalidade envolvendo

travestis que se prostituem. Revista Estudos Feministas, v. 14, n. 2, p. 522–534, 2006.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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Além do “financiamento”, era comum o procedimento de haver uma “conta” com
as cafetinas, o que significa dizer que parte das obreiras deixava integralmente o
dinheiro amealhado no trabalho em posse de suas exploradoras, com objetivo de
acumular recursos para a transformação corporal ou para a aquisição de outros bens
ou serviços. Entretanto, as trabalhadoras simplesmente não sabiam dizer quanto de
dinheiro haviam efetivamente deixado em “conta”. Além de não terem acesso aos
controles de créditos e débitos feitos pelas cafetinas, as profissionais do sexo que
tentavam de alguma forma anotar e controlar seu saldo verificavam que os números
não coincidiam com os que lhes eram declarados. Assim, eram constrangidas a acatar
a contabilidade das cafetinas, uma vez que as anotações próprias das obreiras eram
agressivamente confiscadas ou destruídas.
Em suma, as profissionais do sexo que tinham “conta” precisavam se fiar
exclusivamente nas informações de suas exploradoras, não coincidentes com as
anotações ou expectativas das trabalhadoras, as quais – na prática –, acabavam por
perder completamente o controle de quanto dinheiro estavam deixando nas mãos
delas. Em um dos casos fiscalizados foi possível confirmar a existência de um caderno
utilizado pela cafetina e por seu preposto, no qual eram feitos os registros de todos os
créditos e débitos das trabalhadoras.
Passado algum tempo, havendo crédito reconhecido (e se não houvesse
intercorrências como a aplicação de multas, o que será abordado mais adiante), esses
recursos eram aplicados diretamente na aquisição de bem ou serviço, não sendo
entregues em espécie para a obreira. Comumente, o crédito reconhecido não era
suficiente para o atendimento da pretensão da trabalhadora (como a colocação de
silicone), de modo que a diferença de valor do bem ou serviço era “financiada” pelas
cafetinas e, evidentemente, cobrada em dobro.
Como forma de disciplina e de aprofundamento do endividamento das
profissionais do sexo, as cafetinas lhes aplicavam com frequência multas de altos
montantes, mediante alegação de comportamentos inadequados e inadmissíveis. Os
valores eram arbitrários, em geral a partir de R$ 500,00, podendo exceder de R$
2.000,00, a depender da alegada gravidade da conduta indesejada. São exemplos
práticos de multas relatadas: i) R$ 1.000,00 pelo uso considerado abusivo de drogas;
ii) R$ 500,00 por cabeça em razão de briga entre as mulheres; iii) R$ 3.000,00 por

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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quebra de móveis da pensão; iv) R$ 100,00 por não limpar os quartos onde as obreiras
dormiam e atendiam clientes; v) R$ 1.000,00 por conta de atraso no pagamento das
diárias (em alguns casos a multa consistia em dobrar o valor da dívida atrasada).
Nessas circunstâncias, mesmo as mulheres que informaram que chegavam a
ganhar entre R$ 300,00 e R$ 700,00 com os programas nos melhores dias (quinta,
sexta e sábado), supreendentemente não dispunham de nenhum dinheiro consigo, e
ainda acreditavam estar em débito com as cafetinas. E, inclusive as profissionais do
sexo que alegaram não terem realizado “financiamentos”, informaram que passaram
períodos sem conseguir arcar com as diárias das cafetinas, o que remete à questão
da remuneração por tarefa/produção.
Como visto, as diárias eram cobradas em relação a todos os dias do mês, assim
o custo fixo mensal das trabalhadoras era de aproximadamente R$ 1.500,00 a R$
1.800,00, sem prejuízo dos demais custos da pensão e os rotineiros de subsistência.
As trabalhadoras, especialmente aquelas que ainda não tinham alcançado a
transformação corporal, relataram passar por períodos em que, mesmo saindo para
trabalhar todos os dias, não conseguiam inteirar R$ 50,00 ou R$ 60,00 líquidos/dia.
Houve relatos de saírem para a rua e, reiteradamente, conseguirem apenas R$ 20,00
no dia, rebaixando até mesmo o piso de preço estabelecido para os programas para
conseguir algum cliente. Como resultado, concluíam o mês endividadas. Somam-se a
essas flutuações negativas da demanda e, consequentemente, da produção auferida,
a alta taxa de absenteísmo narrada pelas profissionais do sexo, em razão de
adoecimentos relacionados à atividade laboral e às condições de trabalho.
Outro aspecto a se considerar é que o exercício da prostituição era fortemente
associado ao consumo, inclusive abusivo, de álcool e outras drogas, de significativa
parcela das trabalhadoras, muitas das quais dependentes químicas. Informaram que
o uso das substâncias simplesmente facilitava “aguentar” a execução dos programas
e que muitos clientes só tinham interesse no programa se nele fosse incluído o
consumo compartilhado de entorpecentes. Em que pese as cafetinas punirem
alegados excessos advindos das drogas, partia delas a orientação de que as
trabalhadoras deveriam estimular o consumo de entorpecentes pelos clientes durante
os programas. Em última análise, esse consumo regular serve tanto para que as
mulheres gastem mais, agravando seu endividamento, quanto para fomentar o

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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comércio de drogas, amplamente associado à prostituição vinculada a este sistema
de cafetinagem. As obreiras relataram que, embora não fossem obrigadas a
consumirem drogas ilícitas, eram estimuladas e induzidas a tanto, adquirindo esses
produtos de fornecedores ligados às cafetinas, por preços cerca de três vezes mais
altos que os praticados na região.
Ao cenário descrito de superexploração do trabalho adiciona-se ainda a saúde
muitas vezes frágil dessas trabalhadoras, condições e doenças previamente
existentes, o trabalho noturno, o trabalho sujeito a intempéries, jornadas longas e
exaustivas sete dias por semana, e o consumo frequente de álcool e outras drogas.
O resultado, em síntese, é uma importante incidência de relatos de exaustão, física e
mental, adoecimentos e repetida incapacidade para o trabalho por vários dias.
Em sua maioria, as profissionais do sexo disseram que as cafetinas não
ofereciam nenhum tipo de assistência para cuidados com a saúde. Por exceção,
algumas das exploradoras compravam remédios para aquelas que adoecessem, e
não cobravam imediatamente o pagamento das diárias no período de convalescença.
No entanto, tanto os remédios adquiridos, quanto as diárias dos dias não trabalhados
por incapacidade laboral, eram computados e adicionados aos débitos da profissional
do sexo adoentada, e exigidos quando a trabalhadora voltasse a reunir condições para
retomar seu trabalho na rua.
Outro abuso encontrado decorre da forma forçada de cobrança de dívidas. Uma
prática comum era a abertura de crediários em lojas de roupas e de departamento em
nome das trabalhadoras com pagamentos atrasados, para aquisição de roupas e
acessórios pela cafetina. Em outros casos, as exploradoras optavam por
simplesmente tomar a força dinheiro, celular, roupas e outros itens pessoais.
Os fatos coletados evidenciam um modelo de exploração da mão de obra
arquitetado para ser deficitário, induzindo ilicitamente o endividamento das
trabalhadoras e a servidão por dívida.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

45
4.3 TRABALHO FORÇADO: VIGILÂNCIA, AMEAÇAS, VIOLÊNCIA, TRATAMENTO
DESUMANO E DEGRADANTE

As ameaças e a violência que sofriam as trabalhadoras, subjugadas e


degradadas, não são menos importantes do que a servidão por dívida. Apurou-se,
mediante depoimentos, que as trabalhadoras percebiam que o exercício da
prostituição sem vinculação direta a uma cafetina envolveria um incremento
insustentável do risco de agressões e morte violenta.
Como já visto, todos os pontos das ruas eram controlados por alguém. Não
havia território público livre para o exercício da atividade, visto que a prostituição de
travestis e transexuais não era tolerada pelo crime organizado, pela polícia ou pela
sociedade ribeirão-pretense em outros pontos da cidade que não os tradicionais A, B
e C. Qualquer profissional que ousasse se prostituir em determinado ponto da cidade
de Ribeirão Preto sem se vincular a uma cafetina controladora era prontamente
expulsa pela cafetina, pessoalmente, por seus capangas ou pelas próprias
profissionais do sexo daquele ponto, inclusive com emprego de violência, se
necessário. De outro lado, as cafetinas ofereciam e cobravam por proteção contra
perigos diversos, como calotes, abusos, agressões e ameaças dos clientes, assaltos
e violências de terceiros. As obreiras relataram, por exemplo, que, no caso de
problemas e confusões em motel utilizado para realização de programas, em vez de
acionar a polícia, deviam acionar as cafetinas, que se encarregavam de resolver a
situação.
A permanência da vinculação e da submissão das trabalhadoras era garantia
por meio de uma dinâmica de constante medo de que algum mal ocorreria se as
cafetinas fossem desagradadas. Era comum que a aplicação de multas pelos mais
variados motivos fossem acompanhadas de tapas, socos, chutes, xingamentos,
destruição de acessórios, ameaças, além de humilhações públicas, diante das demais
trabalhadoras, inclusive no meio da rua, em uma dupla pedagogia.
Os depoimentos coletados revelam brutalidades como atear fogo após uma
série de coações e agressões, e até mesmo um linchamento coletivo, inclusive com
pauladas, em razão de “vício”, ou seja, atender clientes sem cobrar. Essa sessão de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

46
violência, em particular, culminara com a remoção, mediante arranque mecânico, do
cabelo ‘financiado” junto à cafetina.
Como já apontado anteriormente, as cafetinas contavam com prepostos tanto
para vigiar como para cobrar as trabalhadoras, as quais relataram que um deles, além
de se utilizar de ameaças e agressões físicas, esfaqueara profissionais do sexo no
processo de cobrança de dívidas não pagas, abandonando-as à beira da rodovia.
Entretanto, casos de infrações consideradas mais graves pelas cafetinas eram
geridos pelos “irmãos” no chamado “Tribunal do Crime”, espécie de colegiado
vinculado ao Primeiro Comando da Capital – PCC, o qual possuiria atribuição para
julgamentos e aplicação de sanções. Após deliberação dos “irmãos”, à acusada
declarada culpada era estipulada uma penalidade, que poderia consistir, por exemplo,
em sodomia, empalamento, violentos espancamentos ou assassinato. Trabalhadoras
informaram conhecer pessoalmente mulheres que foram levadas aos “irmãos” e que
nunca mais teriam sido vistas. Segundo elas, os corpos seriam jogados à beira da
rodovia, no terreno da Usina Galo Bravo, ou em córregos.
Em verdade, representantes do PCC circulavam armados em todos os pontos
de prostituição para garantir a normalidade das atividades, vigiando as próprias
profissionais do sexo27. Outro tipo de ameaça é revelador da capilaridade da rede de
exploração relatada e de seu poderio, que não se limitava aos locais de prostituição
do município de Ribeirão Preto. Caso alguma das profissionais do sexo em débito com
a cafetina se desligasse sem autorização ou fugisse, esse fato era divulgado de forma
pulverizada entre as exploradoras, predominantemente em canais da rede mundial de
computadores. A cafetina que acolhesse obreira que viesse a ser identificada como
fugitiva poderia puni-la, aplicando o chamado “doce”, que nada mais é do que matar
ou espancar como forma de punição.
Importante sublinhar que, além de fatalmente anular a vontade e a liberdade
das profissionais do sexo, o conjunto de ameaças, violências e graves humilhações a
que eram expostas, configura tratamento desumano e condições degradantes de
trabalho.

27Sobre a violência e as dificuldades que a doutrina habitualmente enfrenta para produção do


conhecimento sobre tráfico de pessoas, Piscitelli destaca a “importância de mapear e situar os
pressupostos dos diferentes grupos de interesse envolvidos, incluindo as pessoas que se espera
proteger e atender” (2008, p. 29)

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

47
5 CONCLUSÃO

Para o fechamento do presente artigo pretende-se colocar em relevo, de modo


sintético, aqueles que se apresentam como os traços principais do método de
exploração do trabalho sexual das vítimas identificadas.
A análise dos fatos coletados na fiscalização revela que, de saída, o trabalho
em pontos públicos de prostituição de mulheres trans em Ribeirão Preto era
impossível sem a vinculação das profissionais do sexo a uma relação de trabalho em
favor de alguma cafetina.
Em adição, as 17 trabalhadoras identificadas como vítimas de tráfico de
pessoas e trabalho análogo ao de escravo pela Inspeção do Trabalho28 estavam
submetidas a um sistema de endividamento operado deliberadamente para gerar
servidão por dívida, bem como a regime de trabalho forçado e a condições
degradantes, obtidos por meio da vigilância ostensiva e armada, agressões físicas,
humilhações e ameaças de morte - efetivamente levadas a cabo quando considerado
necessário -, de modo que as vítimas, desumanizadas pelo absurdo tratamento
recebido, não conseguiam livremente encerrar a prestação de serviços em prol de
suas exploradoras e delas se desvencilhar.
O conjunto de abusos e violências utilizado com sucesso para subjugação e
anulação da vontade das trabalhadoras não pode ser completamente compreendido
sem que se tome em consideração que ele toma proveito de vulnerabilidades
particularmente incidentes na população transsexual, marcadas por fortíssimos
vetores multifatoriais de discriminação, segregação, fragilidade socioeconômica e
insuficiência de suporte social, o que contribui para o elevado risco psicossocial desse
grupo.
Destaque-se que a Inspeção do trabalho constatou, não somente em relação
às vítimas resgatadas, como também quanto às demais profissionais do sexo
identificadas em situação de informalidade, a clara presença dos elementos da
relação de emprego. Presente o intuito oneroso na prestação de serviços, remunerada
pelos clientes mediante pagamento por cada programa realizado. As obreiras

28Conforme autos de infração de números 21.847.268-4, 21.847.297-8 e 21.847.451-2 lavrados na


ação fiscal e disponíveis para consulta no Sistema Auditor, à disposição da Inspeção do Trabalho.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

48
exerciam suas atividades pessoalmente, sem qualquer tipo de substituição, sendo
pessoas admitidas diretamente pelas cafetinas, que conheciam a todas
individualmente e não permitiam a entrada de estranhas para laborar em seu ponto.
Ainda, as profissionais do sexo estavam inseridas, no desempenho de sua
atividade de prostituição, no ciclo organizacional ordinário e rotineiro do
estabelecimento informal correspondente ao ponto gerido pelas cafetinas, atuando de
modo contínuo e regular ao longo do tempo, inclusive cumprindo horários diários e
jornadas semanais de sete dias ininterruptos delas exigidos.
Por fim, aspectos como o lugar, o horário, a maneira, o custo dos serviços, bem
como a forma de realizar a oferta dos mesmos por cada uma das trabalhadoras eram
determinados de acordo com as necessidades e indicações específicas das cafetinas
e por meio de ordens pessoais e diretas, o que se garantia igualmente por meio de
fiscalização ostensiva e punições, como já exaustivamente exposto ao longo deste
artigo. Desta forma, a subordinação jurídica e o exercício do poder diretivo (ainda que
de forma abusiva e para além dos limites legais e da dignidade humana) encontram-
se plenamente caracterizados.
Confrontada com a gravidade das violações de direitos humanos encontradas,
bem como com a comezinha, ululante, tipicidade das relações de emprego advindas
da exploração sexual no caso concreto, em nada diferentes do que se pode encontrar
no país afora, é chocante a tônica de quase absoluta inação por parte do Estado
Brasileiro, com destaque especial para as instituições do mundo do trabalho. Falha o
país em garantir a defesa de direitos das profissionais do sexo, sejam elas vítimas de
trabalho análogo ao de escravo e de tráfico de pessoas ou não.
Espera-se que o escorço do caso realizado no presente artigo contribua para
dar visibilidade ao problema bem como para estimular outras reflexões e produções a
respeito do tema. Seria auspicioso, outrossim, que a experiência de fiscalização, ora
exposta, sirva de inspiração para novas propostas de atuação da Inspeção do
Trabalho e demais instituições vocacionadas para a garantia de direitos humanos e
trabalhistas.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

49
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ISBN 9788544224120.

Violations of fundamental rights and vulnerabilities of sex


workers: aspects made visible by “Operation Cinderella”

ABSTRACT
The findings presented in this article are derived from a case
study based on an antislavery action carried out in the city of
Ribeirão Preto, in the state of São Paulo, in the midst of joint
operation with the Federal Police, the Federal Public Ministry and
the Public Labor Ministry that came to be known as “Cinderella”.
The ostensible phase of the action started on 03/13/2019, was
carried out by 21 labor auditors under the coordination of the
Division for the Eradication of Slave Labor - DETRAE, comprising
diligences in 14 accommodation and prostitution sites. The
action resulted in the identification of 17 victims of contemporary
forms of slavery, all of them were transgender women and sex
workers.

Keywords: contemporary slavery. prostitution. transsexual.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

51
NORMAS DA REPÚBLICA ARGENTINA SOBRE TRABALHO
FORÇADO E TRÁFICO DE PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO
LABORAL: UMA ANÁLISE COMPARATIVA SOB A ÓTICA DO
PLANO REGIONAL DO MERCOSUL PARA PREVENÇÃO E
ERRADICAÇÃO DESSES CRIMES

Andréia Donin1

Introdução. 2. Contexto de surgimento do Plano Regional do Mercosul para


prevenção e erradicação do trabalho forçado e do tráfico de pessoas para
exploração laboral. 3. Normas da República Argentina sobre trabalho forçado
e tráfico de pessoas para exploração laboral. 3.1. Constituição da Nação
Argentina. 3.2. Tratados Internacionais com hierarquia constitucional. 3.3.
Normas supralegais. 3.4. Normas legais. 3.4.1. Código Penal da Nação
Argentina e Lei de Tráfico de Pessoas. 3.4.2. Lei de criação de um fundo
fiduciário público para assistência direta às vítimas de tráfico e exploração de
pessoas. 3.4.3. Lei do Ordenamento Laboral. 3.5. Normas infralegais. 4.
República Argentina e República Federativa do Brasil: assimetrias normativas
sobre trabalho forçado e tráfico de pessoas para exploração laboral. 4.1.
Tipificação penal de redução a condição análoga à de escravos, trabalho
forçado e tráfico de pessoas para exploração laboral. 4.2. Confisco ou
expropriação de bens. 4.3. Protocolo de 2014 relativo à Convenção nº 29 da
OIT concernente a trabalho forçado ou obrigatório. 4.4. Assistência às
vítimas. 4.5. Prerrogativas e responsabilidades da Inspeção do Trabalho. 5.
Considerações finais. Referências.

RESUMO
O objetivo do presente artigo é abordar o Plano Regional do Mercosul para
prevenção e erradicação do trabalho forçado e do tráfico de pessoas para
exploração laboral. Este Plano tem como uma de suas ações realizar
estudos comparativos acerca da legislação vigente nos Estados Partes do
Mercosul, com o intuito de promover o desenho de políticas para a
prevenção, erradicação e reinserção das vítimas de trabalho forçado e
tráfico de pessoas para exploração laboral. Para tanto, procedeu-se à
pesquisa documental e bibliográfica, a partir do estudo da legislação e do
estágio de implementação de políticas públicas relacionadas ao tema na
Argentina, comparando-as com as do Brasil. Realizou-se também a revisão
da literatura especializada. Dessa forma, o artigo primeiramente centra-se
na análise do contexto de surgimento do Plano Regional do Mercosul para
prevenção e erradicação do trabalho forçado e do tráfico de pessoas para
exploração laboral para, em seguida, explanar as normas vigentes na
Argentina concernentes ao tema. Por fim, faz-se uma análise comparativa
1Auditora-Fiscal do Trabalho, coordenadora do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) da
Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

52
das assimetrias percebidas entre a Argentina e o Brasil na implementação
das medidas legislativas e de políticas públicas, com enfoque no papel da
Inspeção do Trabalho, sinalando as medidas a serem implementadas para
que os Estados Partes aperfeiçoem suas deficiências no enfrentamento à
escravidão contemporânea no âmbito do Mercosul.

Palavras-chave: Trabalho escravo. Trabalho forçado. Tráfico de pessoas.


Mercosul.

1 INTRODUÇÃO

Tráfico de pessoas para exploração do trabalho, trabalho forçado ou redução à


servidão são conceitos tratados como sinônimos na República Argentina, no âmbito
das normas emitidas pelo Poder Executivo deste país. Embora os conceitos,
historicamente, tenham se desenvolvido a partir de condições distintas, atualmente, o
combate ao tráfico de pessoas para exploração laboral e à escravidão contemporânea
impõe a integração dessas definições, de forma a ampliar as garantias dos direitos
dos trabalhadores e o leque de condutas ilícitas puníveis. Essa integração esculpe a
visão moderna sobre em que consiste o fenômeno da escravidão contemporânea,
superando a noção restritiva que se preocupa com o mero cerceamento de liberdade.
A expressão “tráfico de pessoas” é definida pelo Protocolo de Palermo2,
em seu artigo 3º, alínea “a”, e significa o recrutamento, o transporte, a transferência,
o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou
a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou
à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios
para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para
fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de
outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados,
escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.
O Protocolo de Palermo define ainda que o consentimento da vítima de tráfico de

2BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção


das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em: 4 jun.
2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

53
pessoas, nas hipóteses dos tipos de exploração descritos acima, será considerado
irrelevante caso tenham sido utilizados quaisquer dos meios referidos.
A expressão “trabalho forçado ou obrigatório” é definida no artigo 2º da
Convenção nº 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)3 concernente a
Trabalho Forçado ou Obrigatório, e designa todo trabalho ou serviço exigido de um
indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de
espontânea vontade.
Analisando sob o contexto histórico, de acordo com Martins4, a herança
histórico-econômica da América Latina contribuiu para a constituição do seu mercado
de trabalho, pois houve a transição de um capitalismo escravista-mercantil e agrário-
exportador diretamente para um capitalismo urbano-industrial periférico em fins do
século XIX e início do século XX, inserindo os países latino-americanos, inclusive
mercosulistas, na divisão internacional do trabalho. Nesse sentido, a autora relata:

Na América Latina a concretização dos direitos humanos encontra sérios


entraves, inclusive na seara trabalhista, pois grande parte dos trabalhadores,
incluindo os migrantes, encontra-se submetido a intenso processo de
exploração de sua mão de obra, usufruindo de péssimas condições de
trabalho em diversas circunstâncias. Esta realidade, todavia, não é nova
porque a condição atual do trabalho assalariado latino-americano também é
reflexo do passado de colônia de exploração da região sob a ocupação
econômica ibérica. (...)
O Mercado Comum do Sul (Mercosul) assumiu, em sua origem, a condição
de aliança comercial com vistas a dinamizar a economia regional, tendo o
desafio de sua conversão, em longo prazo, em mercado comum com a
implantação da livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas,
incluindo os trabalhadores. Porém, apesar da importância da integração
econômica para a dinamização do comércio nos mercados regionais e
internacionais, o Mercosul não pode mais ficar adstrito apenas às questões
comerciais no século XXI, sendo necessária a sua expansão para a área
social que envolve, principalmente, as questões trabalhista e migratória as
quais são primordiais para o sucesso do projeto integracionista, embora
tenham sido relegadas a segundo plano.

3 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção n° 29 sobre o Trabalho


Forçado, 1930. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235021/lang--
pt/index.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.
4 MARTINS, Juliane Caravieri. Trabalho digno e a integração regional no Mercosul: O caso dos

migrantes venezuelanos no estado de Roraima. Scientia Iuris, Londrina, v. 22, n. 2, p.305-332, jul.
2018. DOI: 10.5433/2178-8189.2018v22n2p305.ISSN: 2178-8189. Disponível em:
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/iuris/article/view/33030/23933>. Acesso em: 14 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

54
Sob esse prisma a Declaração Sociolaboral5 foi adotada pelo Mercado Comum
do Sul (Mercosul) em 1998 e, posteriormente, em 2019 foi aprovado o Plano Regional
para prevenção e erradicação do trabalho forçado e do tráfico de pessoas para
exploração laboral. Para tanto, foi considerado que os crimes de trabalho forçado e
tráfico de pessoas violam a dignidade das pessoas e constituem uma grave violação
dos direitos humanos.
Nesse diapasão, a motivação desse estudo é subsidiar a ação prevista no
Plano Regional em questão de realizar estudos comparativos da legislação vigente
nos Estados Partes do Mercosul com o intuito de promover o desenho de políticas
para a prevenção, erradicação e reinserção das vítimas de trabalho forçado e tráfico
de pessoas para exploração laboral. Para isso, pretende-se jogar luz sobre os
diplomas legais da Argentina relacionados ao tema, em particular sobre aqueles
relacionados às prerrogativas e responsabilidades legais da Inspeção do Trabalho,
comparando-os aos do Brasil.
Trata-se de um estudo de legislação comparada. Quanto à técnica, utilizou-se
a pesquisa documental e bibliográfica, a partir do estudo da legislação vigente e da
literatura especializada. Assim, o presente estudo divide-se em três partes.
Primeiramente, centra-se na análise do contexto de surgimento do Plano Regional do
Mercosul para prevenção e erradicação do trabalho forçado e do tráfico de pessoas
para exploração laboral. A seguir, busca-se explanar as normas vigentes na Argentina
concernentes ao tema. Por fim, faz-se uma análise comparativa das assimetrias
percebidas entre a Argentina e o Brasil por ocasião da implementação das medidas
legislativas e de políticas públicas para o enfrentamento ao trabalho escravo
contemporâneo e ao tráfico de pessoas para exploração laboral, com enfoque no
papel da Inspeção do Trabalho.

5MERCOSUL. Documentos del Mercosur Sociolaboral 1991 – 2019. Disponível em:


<https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/documentos_mercosur_sociolaboral_1991_2019.pdf>
Acesso em: 4 jun. 2020. P. 99 – 198.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

55
2 CONTEXTO DE SURGIMENTO DO PLANO REGIONAL DO MERCOSUL PARA
PREVENÇÃO E ERRADICAÇÃO DO TRABALHO FORÇADO E DO TRÁFICO DE
PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO LABORAL

O Mercosul foi constituído no ano de 1991 pelo Tratado de Assunção, tendo


como Estados Partes a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai, com o objetivo de
promover a integração dos mercados. O art. 1º do Tratado de Assunção6 prevê que o
processo de integração implica na livre circulação de bens, serviços e fatores
produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos
alfandegários e restrições não-tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer
outra medida de efeito equivalente; o estabelecimento de uma tarifa externa comum
e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados ou
agrupamentos de Estados e a coordenação de posições em foros econômico-
comerciais regionais e internacionais; a coordenação de políticas macroeconômicas
e setoriais entre os Estados Partes - de comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal,
monetária, cambial e de capitais, de serviços, alfandegária, de transportes e
comunicações e outras que se acordem, a fim de assegurar condições adequadas de
concorrência entre os Estados Partes; e, o compromisso dos Estados Partes de
harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do
processo de integração.
Verifica-se então que o propósito da criação do Mercosul foi exclusivamente
comercial e econômico. Entretanto, logo se percebeu ser inviável um processo de
integração sem o trânsito de pessoas, em especial de trabalhadores.
Nesse contexto a Declaração Sociolaboral do Mercosul7 foi adotada pelos
chefes de estado dos Estados Partes do Mercosul, primeiramente em 10 de dezembro
de 1998. Considerou-se que a integração regional não pode se limitar à esfera
comercial e econômica e deve abranger a questão social, tanto no que diz respeito à
adequação das estruturas regulatórias do trabalho às novas realidades moldadas pela

6 MERCOSUL. Tratado de Assunção. Tratado para a Constituição de um Mercado Comum entre a


República Argentina, a República Federativa do Brasil, a República do Paraguai e a República
Oriental do Uruguai. Disponível em: <https://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/Braseuropa/pt-
br/file/Tratados%20e%20Protocolos/TratadoAssuncao.pdf>. Acesso em: 8 jun. 2020.
7 Opus citatum. P. 99 - 105.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

56
mesma integração e pelo processo de globalização da economia, quanto no que se
refere ao reconhecimento de uma plataforma mínima de direitos dos trabalhadores na
esfera do Mercosul, correspondendo às convenções fundamentais da OIT. Também
foi considerada a decisão dos Estados Partes de consolidar em um instrumento
comum o progresso já alcançado na dimensão social do processo de integração e de
consolidar o progresso futuro e constante no campo social, principalmente mediante
a ratificação e o cumprimento das principais convenções da OIT, dentre outras
considerações.
Conforme Martins8, a Declaração previu vários direitos, destacando-se a não
discriminação (art. 1º); a promoção da igualdade (artigos 2º e 3º); a proteção aos
trabalhadores migrantes e fronteiriços (art. 4º); a eliminação do trabalho forçado (art.
5º); a tutela do trabalho infantil e de menores (art. 6º); a seguridade social (art. 19).
Posteriormente, foi aprovado o Acordo sobre Residência de Nacionais dos Estados
Partes do Mercosul, da República da Bolívia e da República do Chile.
Por conseguinte, em 17 de julho de 2015, os Estados Partes procederam à
revisão e ao aperfeiçoamento da declaração, com base em princípios e direitos na
área de trabalho, adotando então a Declaração Sociolaboral do Mercosul de 20159. O
artigo 8º dessa declaração trata da eliminação do trabalho forçado ou obrigatório:

Artigo 8
Eliminação do trabalho forçado ou obrigatório
1. Toda pessoa tem direito a um trabalho livremente escolhido e a exercer
qualquer ofício ou profissão, de acordo com as disposições nacionais
vigentes.
2. Os Estados Partes comprometem-se a adotar as medidas necessárias
para eliminar toda forma de trabalho forçado ou obrigatório exigido a um
indivíduo sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido
espontaneamente.
3. Os Estados Partes comprometem-se, ademais, a adotar medidas para
garantir a abolição de toda utilização de mão de obra que propicie, autorize
ou tolere o trabalho forçado ou obrigatório.
4. Os Estados Partes comprometem-se, de modo especial, a suprimir toda
forma de trabalho forçado, obrigatório ou degradante que possa utilizar-se:
a) como meio de coerção ou de educação política, ou como punição por não
ter ou expressar, o trabalhador, determinadas opiniões políticas, ou por
manifestar oposição ideológica à ordem política, social ou econômica
estabelecida;
b) como método de mobilização e utilização da mão de obra com fins de
fomento econômico;

8 Opus citatum.
9 Opus citatum. P. 105 - 116.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

57
c) como medida de disciplina no trabalho;
d) como punição por haver o trabalhador participado em atividades sindicais
ou greves;
e) como medida de discriminação racial, social, nacional, religiosa ou de outra
natureza. (Tradução nossa)

Convém observar que a aprovação da Declaração Sociolaboral do


Mercosul é um marco para os direitos sociais dos trabalhadores, entretanto, tal
documento carece de efetividade por não possuir caráter vinculante e não apresentar
sanções aos Estados Partes que não cumprirem suas disposições.
Para tornar efetivos os direitos previstos na Declaração foram criadas a
Comissão Sociolaboral e as Comissões Nacionais, as quais, por sua vez, atuam
igualmente por meio de recomendações, carecendo do mesmo modo de poder
sancionador. Nesse sentido, foram celebrados acordos ao mesmo tempo em que
planos e estratégias regionais também foram desenvolvidos.
Cabe destacar que, em 5 de junho de 2019, o Grupo do Mercosul aprovou o
Plano Regional para Prevenção e Erradicação do Trabalho Forçado e do Tráfico de
Pessoas para exploração laboral10. Para tanto, foi considerado:

Que os crimes de trabalho forçado e tráfico de pessoas violam a dignidade


das pessoas e constituem uma grave violação dos direitos humanos.
Que os Estados Partes ratificaram a Convenção das Nações Unidas contra o
Crime Organizado Transnacional (2000) e seus Protocolos, para prevenir,
suprimir e punir o tráfico de pessoas, especialmente mulheres e crianças,
bem como a Convenção nº 29 sobre trabalho forçado (1930) e Convenção nº
105 sobre a abolição do trabalho forçado (1957) da Organização Internacional
do Trabalho (OIT).
Que a Declaração Sociolaboral do Mercosul de 2015, em seu artigo 8º,
compromete os Estados Partes a adotar as medidas necessárias para
eliminar todas as formas de trabalho forçado.
Que a Declaração de Ministros do Trabalho de 26 de junho de 2015
considerou recomendável elaborar um plano de ação na área de prevenção,
erradicação e reintegração de vítimas de tráfico de seres humanos e trabalho
forçado, a fim de cumprir as princípios e direitos estabelecidos na Declaração
Sociolaboral do Mercosul de 2015.
Que, devido à natureza transversal do problema e à necessidade de uma
abordagem abrangente das ações para detectar, prevenir e combater o
trabalho forçado e o tráfico de pessoas para exploração do trabalho na região,
cooperação, intercâmbio de informações e ações conjuntas dos Estados
Partes, mediante coordenação entre os diferentes órgãos e foros da estrutura
institucional do Mercosul.
Que a implementação do referido plano regional permitirá abordar as
questões acima mencionadas, consolidando o diálogo com os atores sociais
no mundo do trabalho. (Tradução nossa)

10 Opus citatum. P. 195-198.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

58
Os objetivos gerais do Plano Regional para prevenção e erradicação do
trabalho forçado e do tráfico de pessoas para exploração laboral são o de desenvolver
ações regionais para prevenir e erradicar o trabalho forçado e o tráfico de pessoas
para exploração do trabalho; e, facilitar a reinserção laboral das vítimas, conforme a
legislação de cada Estado Parte, mediando ou não processos judiciais.
O objetivo específico da dimensão normativa é o de promover o desenho de
políticas para a prevenção, erradicação e reinserção das vítimas de trabalho forçado
e de tráfico de pessoas para exploração laboral.

3 NORMAS DA REPÚBLICA ARGENTINA SOBRE TRABALHO FORÇADO E


TRÁFICO DE PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO LABORAL

O presente artigo fará a explanação dos diplomas normativos da República


Argentina relacionados ao combate ao trabalho escravo contemporâneo e ao tráfico
de pessoas para exploração laboral, transcrevendo os dispositivos citados, para além
de outros atinentes ao assunto.

3.1. CONSTITUIÇÃO DA NAÇÃO ARGENTINA

Na Constituição da Nação Argentina11, Lei nº 24.430 de 1994, nos


artigos nº 14 bis e 15 encontram-se os seguintes mandados relacionados ao trabalho
e à escravidão:
Artículo 14 bis.- El trabajo en sus diversas formas gozará de la protección de
las leyes, las que asegurarán al trabajador: condiciones dignas y equitativas
de labor; jornada limitada; descanso y vacaciones pagados; retribución justa;
salario mínimo vital móvil; igual remuneración por igual tarea; participación en
las ganancias de las empresas, con control de la producción y colaboración
en la dirección; protección contra el despido arbitrario; estabilidad del
empleado público; organización sindical libre y democrática, reconocida por
la simple inscripción en un registro especial.
Queda garantizado a los gremios: concertar convenios colectivos de trabajo;
recurrir a la conciliación y al arbitraje; el derecho de huelga. Los
representantes gremiales gozarán de las garantías necesarias para el
cumplimiento de su gestión sindical y las relacionadas con la estabilidad de
su empleo.

11ARGENTINA. Constitución de La Nación Argentina. Disponível em:


<https://www.biblioteca.org.ar/libros/201250.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

59
El Estado otorgará los beneficios de la seguridad social, que tendrá carácter
de integral e irrenunciable. En especial, la ley establecerá: el seguro social
obligatorio, que estará a cargo de entidades nacionales o provinciales con
autonomía financiera y económica, administradas por los interesados con
participación del Estado, sin que pueda existir superposición de aportes;
jubilaciones y pensiones móviles; la protección integral de la familia; la
defensa del bien de familia; la compensación económica familiar y el acceso
a una vivienda digna.
Artículo 15.- En la Nación Argentina no hay esclavos: los pocos que hoy
existen quedan libres desde la jura de esta Constitución; y una ley especial
reglará las indemnizaciones a que dé lugar esta declaración. Todo contrato
de compra y venta de personas es un crimen de que serán responsables los
que lo celebrasen, y el escribano o funcionario que lo autorice. Y los esclavos
que de cualquier modo se introduzcan quedan libres por el solo hecho de
pisar el territorio de la República.

3.2 TRATADOS INTERNACIONAIS COM HIERARQUIA CONSTITUCIONAL

A Constituição prevê no artigo nº 3112 que os tratados com as potências


estrangeiras, juntamente com a Constituição da Nação Argentina e as Leis da Nação
que são ditadas pelo Congresso em consequência da Constituição, são a Lei Suprema
da Nação e as autoridades de cada província estão obrigadas a cumpri-la.
Nos incisos 22 e 24 do artigo nº 75 da Constituição13, que trata das atribuições
do Congresso, estão elencados os Tratados Internacionais que possuem hierarquia
constitucional, bem como, está previsto que os tratados celebrados com as
organizações internacionais possuem hierarquia superior às leis, e ainda que, para
gozar de hierarquia constitucional, os demais tratados e convenções sobre Direitos
Humanos devem ser aprovados por dois terços dos membros de cada Câmara do
Congresso.
Quanto aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, relacionam-se a
seguir aqueles pertinentes ao tema e que possuem hierarquia constitucional. Por
oportuno seguem destacados os artigos relacionados ao Direito do Trabalho:
a) Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948)14, que
em seu artigo XIV trata do Direito ao trabalho e a uma justa retribuição:

12 Ibidem.
13 Ibidem.
14 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Declaração Americana dos Direitos e Deveres

do Homem. Disponível em:


<https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/b.Declaracao_Americana.htm>. Acesso em: 11 jun.
2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

60
Artigo XIV. Toda pessoa tem direito ao trabalho em condições dignas e o de
seguir livremente sua vocação, na medida em que for permitido pelas
oportunidades de emprego existentes.
Toda pessoa que trabalha tem o direito de receber uma remuneração que,
em relação à sua capacidade de trabalho e habilidade, lhe garanta um nível
de vida conveniente para si mesma e para sua família.

b) Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)15, que em seus


artigos XXIII e XXIV - trata do direito ao trabalho, repouso e lazer:

Artigo XXIII
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a
condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração
por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e
satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência
compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se
necessário, outros meios de proteção social.
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar
para proteção de seus interesses.
Artigo XXIV
Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável
das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.

c) Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969)16 - Pacto de São


José da Costa Rica, que em seu artigo 6º trata da proibição da escravidão e da
servidão:
Artigo 6. Proibição da escravidão e da servidão
1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a servidão, e tanto estas
como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as
suas formas.
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou
obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena
privativa da liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição
não pode ser interpretada no sentido de que proíbe o cumprimento da dita
pena, imposta por juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve
afetar a dignidade nem a capacidade física e intelectual do recluso.
3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste
artigo:
a. os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em
cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade
judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados sob
a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os

15 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos.


Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso
em: 11 jun. 2020.
16 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos

Humanos. Disponível em:


<https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 11 jun.
2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

61
executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias
ou pessoas jurídicas de caráter privado;
b. o serviço militar e, nos países onde se admite a isenção por motivos de
consciência, o serviço nacional que a lei estabelecer em lugar daquele;
c. o serviço imposto em casos de perigo ou calamidade que ameace a
existência ou o bem-estar da comunidade; e
d. o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais.

d) Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais


(1966)17, que em seus artigos 6º e 7º trata do direito ao trabalho:
Artigo 6º
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito ao trabalho,
que compreende o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a
vida mediante um trabalho livremente escolhido ou aceito, e tomarão
medidas apropriadas para salvaguardar esse direito.
2. As medidas que cada Estado Parte do presente Pacto tomará a fim de
assegurar o pleno exercício desse direito deverão incluir a orientação e a
formação técnica e profissional, a elaboração de programas, normas e
técnicas apropriadas para assegurar um desenvolvimento econômico, social
e cultural constante e o pleno emprego produtivo em condições que
salvaguardem aos indivíduos o gozo das liberdades políticas e econômicas
fundamentais.
Artigo 7º
Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa
de gozar de condições de trabalho justas e favoráveis, que assegurem
especialmente:
a) Uma remuneração que proporcione, no mínimo, a todos os
trabalhadores:
i) Um salário equitativo e uma remuneração igual por um trabalho de igual
valor, sem qualquer distinção; em particular, as mulheres deverão ter a
garantia de condições de trabalho não inferiores às dos homens e perceber
a mesma remuneração que eles por trabalho igual;
ii) Uma existência decente para eles e suas famílias, em conformidade
com as disposições do presente Pacto;
b) À segurança e a higiene no trabalho;
c) Igual oportunidade para todos de serem promovidos, em seu trabalho, à
categoria superior que lhes corresponda, sem outras considerações que as
de tempo de trabalho e capacidade;
d) O descanso, o lazer, a limitação razoável das horas de trabalho e
férias periódicas remuneradas, assim como a remuneração dos feridos.
(Grifos nossos)

e) Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966)18 e seu


Protocolo Facultativo, que em seu artigo 8º trata de trabalho forçado ou obrigatório:

17 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,


Sociais e Culturais. Disponível em: <https://fianbrasil.org.br/wp-
content/uploads/2016/09/PIDESC.pdf >. Acesso em: 11 jun. 2020.
18 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Disponível em:
<https://www.oas.org/dil/port/1966%20Pacto%20Internacional%20sobre%20Direitos%20Civis%20e%
20Pol%C3%ADticos.pdf >. Acesso em: 11 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

62
Artigo 8
1. Ninguém poderá ser submetido à escravidão; a escravidão e o tráfico de
escravos, em todos as suas formas, ficam proibidos.
2. Ninguém poderá ser submetido à servidão.
3. a) Ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou
obrigatórios;
b) A alínea a) do presente parágrafo não poderá ser interpretada no sentido
de proibir, nos países em que certos crimes sejam punidos com prisão e
trabalhos forçados, o cumprimento de uma pena de trabalhos forçados,
imposta por um tribunal competente;
c) Para os efeitos do presente parágrafo, não serão considerados "trabalhos
forçados ou obrigatórios”:
i) qualquer trabalho ou serviço, não previsto na alínea b) normalmente exigido
de um indivíduo que tenha sido encarcerado em cumprimento de decisão
judicial ou que, tendo sido objeto de tal decisão, ache-se em liberdade
condicional;
ii) qualquer serviço de caráter militar e, nos países em que se admite a
isenção por motivo de consciência, qualquer serviço nacional que a lei venha
a exigir daqueles que se oponham ao serviço militar por motivo de
consciência;
iii) qualquer serviço exigido em casos de emergência ou de calamidade que
ameacem o bem-estar da comunidade;
iv) qualquer trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas
normais.

3.3 NORMAS SUPRALEGAIS

Os tratados celebrados com as organizações internacionais possuem


hierarquia superior às leis por mandado Constitucional, o que foi explanado no
subcapítulo anterior. Nesse contexto, cabe destacar as Convenções e os Protocolos
Internacionais com hierarquia supralegal relacionados ao trabalho forçado e ao tráfico
de pessoas para exploração laboral.
Nesse prisma, a República Argentina é signatária de convenções do sistema
global especial de proteção aos Direitos Humanos da Organização Internacional do
Trabalho (OIT):
a) Convenção nº 2919 concernente a Trabalho Forçado ou Obrigatório;
b) Convenção nº 8120 concernente à Inspeção do Trabalho;
c) Convenção nº 10521 concernente à Abolição do Trabalho Forçado;

19 Opus citatum.
20
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 81 sobre a Inspeção do
Trabalho de 1947. Disponível em:
<https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUM
ENT_ID:312226:NO>. Acesso em: 4 jun. 2020.
21
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 105 sobre a Abolição do
Trabalho Forçado, 1957. Disponível em:

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

63
d) Protocolo de 2014 relativo à Convenção nº 2922 concernente a Trabalho
Forçado ou Obrigatório.
Além disso, o país ratificou o Protocolo de Palermo23 - Protocolo Adicional à
Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e
Crianças –, que faz parte do sistema global de proteção aos Direitos Humanos da
Organização da Nações Unidas (ONU).
Cabe enfatizar que a partir da aprovação da Declaração Sociolaboral do
Mercosul, já se divisa a sua eficácia no âmbito da República Argentina, com hierarquia
superior às leis internas. Contudo, a exemplo do Brasil, os tratados envolvendo
direitos humanos, para que sejam incorporados ao ordenamento jurídico interno, com
status de norma constitucional, requerem o voto de dois terços da totalidade dos
membros de cada Câmara do Congresso24.

3.4 NORMAS LEGAIS

Neste tópico serão abordadas as leis da República Argentina


relacionadas à prevenção e erradicação do trabalho forçado e do tráfico de pessoas
para fins de exploração laboral bem como aquelas relativas à reintegração ao trabalho
das vítimas, à restituição efetiva dos direitos trabalhistas violados e às prerrogativas e
responsabilidades legais da Inspeção do Trabalho.

<https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUM
ENT_ID:312250:NO>. Acesso em: 4 jun. 2020.
22 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Protocolo de 2014 relativo à Convenção

sobre Trabalho Forçado, 1930. Disponível em:


<https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:P029>.
Acesso em: 4 jun. 2020.
23 ARGENTINA. Lei 25.632, de 1 de agosto de 2002. Aprova a Convenção Internacional contra o

Crime Organizado Transnacional e seus protocolos adicionais. Disponível em:


<http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/75000-79999/77329/norma.htm>. Acesso em: 4
jun. 2020.
24 PEDUZZI, Maria Cristina Irigoyen. Aplicabilidade da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul

nos Estados-Partes. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/peduzzi.pdf>. Acesso em: 17


jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

64
3.4.1 Código Penal da Nação Argentina e Lei de Tráfico de Pessoas

A Lei nº 26.36425 de 2008, que trata da Prevenção e Sanção do Tráfico de


Pessoas e Assistência às Vítimas, foi modificada pela Lei nº 26.84226 de 2012, a qual
alterou os artigos nº 140 e 145 bis e ter do Código Penal27, Lei nº 11.179 de 1984.
Convém destacar que os delitos de escravidão, trabalho forçado e redução à
servidão estão previstos em seu art. nº 140, como também, o delito de tráfico de
pessoas está previsto no art. nº 145 bis e ter do Código Penal:

ARTICULO 140. - Serán reprimidos con reclusión o prisión de cuatro (4) a


quince (15) años el que redujere a una persona a esclavitud o servidumbre,
bajo cualquier modalidad, y el que la recibiere en tal condición para
mantenerla en ella. En la misma pena incurrirá el que obligare a una persona
a realizar trabajos o servicios forzados o a contraer matrimonio servil.
(Artículo sustituido por art. 24 de la Ley N° 26.842 B.O. 27/12/2012) (…)
ARTICULO 145. - Será reprimido con prisión de dos a seis años, el que
condujere a una persona fuera de las fronteras de la República, con el
propósito de someterla ilegalmente al poder de otro o de alistarla en un
ejército extranjero.
ARTICULO 145 bis. - Será reprimido con prisión de cuatro (4) a ocho (8) años,
el que ofreciere, captare, trasladare, recibiere o acogiere personas con fines
de explotación, ya sea dentro del territorio nacional, como desde o hacia otros
países, aunque mediare el consentimiento de la víctima.
(Artículo sustituido por art. 25 de la Ley N° 26.842 B.O. 27/12/2012).
ARTICULO 145 ter. - En los supuestos del artículo 145 bis la pena será de
cinco (5) a diez (10) años de prisión, cuando:
1. Mediare engaño, fraude, violencia, amenaza o cualquier otro medio de
intimidación o coerción, abuso de autoridad o de una situación de
vulnerabilidad, o concesión o recepción de pagos o beneficios para obtener
el consentimiento de una persona que tenga autoridad sobre la víctima.
2. La víctima estuviere embarazada, o fuere mayor de setenta (70) años.
3. La víctima fuera una persona discapacitada, enferma o que no pueda
valerse por sí misma.
4.Las víctimas fueren tres (3) o más.
5. En la comisión del delito participaren tres (3) o más personas.
6. El autor fuere ascendiente, descendiente, cónyuge, afín en línea recta,
colateral o conviviente, tutor, curador, autoridad o ministro de cualquier
culto reconocido o no, o encargado de la educación o de la guarda de la

25 ARGENTINA. Lei 26.364, de 9 de abril de 2008. Dispõe sobre prevenção e sanção do tráfico de
pessoas e assistência a suas vítimas. Disponível em:
<http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/140000-144999/140100/texact.htm>. Acesso
em: 15 jun. 2020.
26 ARGENTINA. Lei 26.842, de 19 de dezembro de 2012. Dispõe sobre prevenção e sanção do

tráfico de pessoas e assistência a suas vítimas. Disponível em:


<http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/205000-209999/206554/norma.htm>. Acesso
em: 15 jun. 2020.
27 ARGENTINA. Codigo Penal de La Nación Argentina. Disponível em:

<http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/15000-19999/16546/texact.htm>. Acesso em: 3


jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

65
víctima.
7. El autor fuere funcionario público o miembro de una fuerza de seguridad,
policial o penitenciaria.
Cuando se lograra consumar la explotación de la víctima objeto del delito de
trata de personas la pena será de ocho (8) a doce (12) años de prisión.
Cuando la víctima fuere menor de dieciocho (18) años la pena será de diez
(10) a quince (15) años de prisión.
(Artículo sustituido por art. 26 de la Ley N° 26.842 B.O. 27/12/2012).

A Lei nº 26.842 também alterou o art. nº 23 do Código Penal, para determinar


o confisco de bens relacionados ao tráfico de pessoas e sua destinação. A nova
redação desse artigo prevê que ficam compreendidos entre os bens a confiscar os
bens móveis ou imóveis onde a vítima foi mantida privada de sua liberdade ou foi
objeto de exploração, e que os bens apreendidos e o produto das multas aplicadas
serão destinados a programas de assistência às vítimas.
O art. nº 29, inciso 1º, do referido Código prevê que “La sentencia condenatoria
podrá ordenar: 1. La reposición al estado anterior a la comisión del delito, en cuanto
sea posible, disponiendo a ese fin las restituciones y demás medidas necesarias.”
A Lei de Tráfico de Pessoas28 traz em seu art. 2º a definição de tráfico de
pessoas, alterada pela Lei nº 26.842:

Artículo 2º: Se entiende por trata de personas el ofrecimiento, la captación, el


traslado, la recepción o acogida de personas con fines de explotación, ya sea
dentro del territorio nacional, como
desde o hacia otros países.
A los fines de esta ley se entiende por explotación la configuración de
cualquiera de los siguientes supuestos, sin perjuicio de que constituyan
delitos autónomos respecto del delito de trata de personas:
a) Cuando se redujere o mantuviere a una persona en condición de esclavitud
o servidumbre, bajo cualquier modalidad;
b) Cuando se obligare a una persona a realizar trabajos o servicios forzados;
c) Cuando se promoviere, facilitare o comercializare la prostitución ajena o
cualquier otra forma de oferta de servicios sexuales ajenos;
d) Cuando se promoviere, facilitare o comercializare la pornografía infantil o
la realización de cualquier tipo de representación o espectáculo con dicho
contenido;
e) Cuando se forzare a una persona al matrimonio o a cualquier tipo de unión
de hecho;
f) Cuando se promoviere, facilitare o comercializare la extracción forzosa o
ilegítima de órganos, fluidos o tejidos humanos.
El consentimiento dado por la víctima de la trata y explotación de personas
no constituirá en ningún caso causal de eximición de responsabilidad penal,
civil o administrativa de los autores, partícipes, cooperadores o instigadores.

28 Opus citatum.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

66
O Título II prevê as garantias mínimas para o exercício dos direitos das vítimas
de tráfico de pessoas, é importante destacar o artigo 6º, transcrito a seguir, que foi
regulamentado pelo Decreto nº 111 de 201529:

ARTICULO 6º — El Estado nacional garantiza a la víctima de los delitos de


trata o explotación de personas los siguientes derechos, con prescindencia
de su condición de denunciante o querellante en el proceso penal
correspondiente y hasta el logro efectivo de las reparaciones pertinentes:
a) Recibir información sobre los derechos que le asisten en su idioma y en
forma accesible a su edad y madurez, de modo tal que se asegure el pleno
acceso y ejercicio de los derechos económicos, sociales y culturales que le
correspondan;
b) Recibir asistencia psicológica y médica gratuitas, con el fin de garantizar
su reinserción social;
c) Recibir alojamiento apropiado, manutención, alimentación suficiente y
elementos de higiene personal;
d) Recibir capacitación laboral y ayuda en la búsqueda de empleo;
e) Recibir asesoramiento legal integral y patrocinio jurídico gratuito en sede
judicial y administrativa, en todas las instancias;
f) Recibir protección eficaz frente a toda posible represalia contra su persona
o su familia, quedando expeditos a tal efecto todos los remedios procesales
disponibles a tal fin. En su caso, podrá solicitar su incorporación al Programa
Nacional de Protección de Testigos en las condiciones previstas por la ley
25.764;
g) Permanecer en el país, si así lo decidiere, recibiendo la documentación
necesaria a tal fin. En caso de corresponder, será informada de la posibilidad
de formalizar una petición de refugio en los términos de la ley 26.165;
h) Retornar a su lugar de origen cuando así lo solicitare. En los casos de
víctima residente en el país que, como consecuencia del delito padecido,
quisiera emigrar, se le garantizará la posibilidad de hacerlo;
i) Prestar testimonio en condiciones especiales de protección y cuidado;
j) Ser informada del estado de las actuaciones, de las medidas adoptadas y
de la evolución del proceso;
k) Ser oída en todas las etapas del proceso;
l) A la protección de su identidad e intimidad;
m) A la incorporación o reinserción en el sistema educativo;
n) En caso de tratarse de víctima menor de edad, además de los derechos
precedentemente enunciados, se garantizará que los procedimientos
reconozcan sus necesidades especiales que implican la condición de ser un
sujeto en pleno desarrollo de la personalidad. Las medidas de protección no
podrán restringir sus derechos y garantías, ni implicar privación de su libertad.
Se procurará la reincorporación a su núcleo familiar o al lugar que mejor
proveyere para su protección y desarrollo.
(Artículo sustituido por art. 4° de la Ley N° 26.842 B.O. 27/12/2012)

29 ARGENTINA. Decreto 111/2015, de 26 de janeiro de 2015. Dispõe sobre prevenção e sanção do


tráfico de pessoas e assistência a suas vítimas. Disponível em:
<http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/240000-244999/241357/norma.htm>. Acesso
em: 15 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

67
3.4.2 Lei de criação de um fundo fiduciário público para assistência direta às
vítimas de tráfico e exploração de pessoas

A Lei nº 27.50830 de 2019 trata da criação de um fundo fiduciário público para


assistência às vítimas de tráfico e exploração de pessoas. A destinação do fundo está
prevista no artigo 3º:

Art. 3°-Los recursos del “Fondo de Asistencia Directa a Víctimas de Trata -


ley 26.364” se destinarán, de acuerdo a la finalidad establecida en el artículo
27, segundo párrafo, de dicha ley, a la asistencia directa a víctimas del delito
de trata y explotación de personas.
En aquellos casos que la asistencia directa a las víctimas y las reparaciones
previstas en el artículo 6° de la ley 26.364 no hayan podido ser satisfechas
con los bienes decomisados al condenado en la causa respectiva, el Consejo
Federal para la Lucha contra la Trata y Explotación de Personas y para la
Protección y Asistencia a las Víctimas deberá utilizar los recursos del “Fondo
de Asistencia Directa a Víctimas de Trata - ley 26.364” para cubrir tales
situaciones de forma prioritaria.

3.4.3 Lei do Ordenamento Laboral

A Lei nº 25.87731 de 2004 dispõe sobre o ordenamento laboral e regulamenta a


Inspeção do Trabalho no Título III, em seus artigos nº 28 a 38, destacando-se os
artigos nº 28 e 32 in verbis:

ARTICULO 28. — Créase el Sistema Integral de Inspección del Trabajo y de


la Seguridad Social (SIDITYSS), destinado al control y fiscalización del
cumplimiento de las normas del trabajo y de la seguridad social en todo el
territorio nacional, a fin de garantizar los derechos de los trabajadores
previstos en el artículo 14 bis de la Constitución Nacional, y en los Convenios
Internacionales ratificados por la República Argentina, eliminar el empleo no
registrado y las demás distorsiones que el incumplimiento de la normativa
laboral y de la seguridad social provoquen.
Integrarán el sistema la autoridad administrativa del trabajo y de la seguridad
social nacional y las autoridades provinciales y de la Ciudad Autónoma de
Buenos Aires, que actuarán bajo los principios de corresponsabilidad,
coparticipación, cooperación y coordinación, para garantizar su
funcionamiento eficaz y homogéneo en todo el territorio nacional.

30 ARGENTINA. Lei 27.508, de 26 de junho de 2019. Dispõe sobre a Criação de um Fundo


Fiduciário Público para Assistência Direta às Vítimas de Tráfico e Exploração de Pessoas. Disponível
em: <http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/325000-329999/325439/norma.htm>.
Acesso em: 15 jun. 2020.
31 ARGENTINA. Lei 25.877, de 2 de março de 2004. Dispõe sobre o ordenamento laboral.

Disponível em: <https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/ley-25877-93595/actualizacion>.


Acesso em: 15 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

68
A tal efecto se celebrarán convenios y ejecutarán acciones con las provincias
y la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, para alcanzar los fines y objetivos
descriptos en los párrafos precedentes.
Los convenios celebrados por el Estado nacional con las Provincias y la
Ciudad Autónoma de Buenos Aires, con anterioridad a la sanción de la
presente ley, mantendrán su vigencia hasta tanto no sean modificados.
Invítase a las provincias y a la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, a dictar
normas similares a las del presente capítulo en sus respectivas jurisdicciones.
(…)
ARTICULO 32. — Los inspectores actuarán de oficio o por denuncia,
recogerán en actas el resultado de sus actuaciones y, en su caso, iniciarán el
procedimiento para la aplicación de sanciones.
En el ejercicio de sus funciones y dentro de su jurisdicción, los inspectores
están facultados para:
a) Entrar en los lugares sujetos a inspección, sin necesidad de notificación
previa ni de orden judicial de allanamiento.
b) Requerir la información y realizar las diligencias probatorias que
consideren necesarias, incluida la identificación de las personas que se
encuentren en el lugar de trabajo inspeccionado.
c) Solicitar los documentos y datos que estimen necesarios para el ejercicio
de sus funciones, intimar el cumplimiento de las normas y hacer comparecer
a los responsables de su cumplimiento.
d) Clausurar los lugares de trabajo en los supuestos legalmente previstos y
ordenar la suspensión inmediata de tareas que —a juicio de la autoridad de
aplicación— impliquen un riesgo grave e inminente para la salud y la
seguridad de los trabajadores.
En todos los casos los inspectores labrarán un acta circunstanciada del
procedimiento que firmarán junto al o los sujetos responsables. Los
responsables del cumplimiento de la normativa del trabajo y la seguridad
social, están obligados a colaborar con el inspector, así como a facilitarle la
información y documentación necesarias para el desarrollo de sus
competencias.
La fuerza pública deberá prestar el auxilio que requiera el inspector en
ejercicio de sus funciones.

3.5 NORMAS INFRALEGAIS

Passa-se a abordar neste momento os procedimentos para atuação da


Inspeção Laboral ante indícios de exploração laboral no âmbito da República
Argentina. Primeiramente, cabe falar da Resolução nº 23032 da Secretaria do Trabalho
do Ministério do Trabalho, Emprego e Seguridade Social da República Argentina, de
12 de junho de 2018. Esta normativa considerou que o crime de tráfico de pessoas
para exploração laboral é de competência da jurisdição federal, pelo que resultou ser
oportuno aprovar um procedimento para orientar o desenvolvimento de ações

32ARGENTINA. Resolução 230/2018, de 12 de junho de 2018, Secretaria do Trabalho do


Ministério do Trabalho, Emprego e Seguridade Social. Disponível em:
<https://www.boletinoficial.gob.ar/detalleAviso/primera/185788/20180615>. Acesso em: 15 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

69
voltadas à sua detecção. Assim, aprovou-se o Procedimento para Atuação da
Inspeção Laboral Nacional ante Indícios de Exploração Laboral; o Auto de
Constatação de Índicos de Exploração Laboral (ACTA IEL); bem como os formulários
para utilização nas ações de fiscalização em que se detectem indícios de exploração
laboral.
Sobre o Procedimento para Atuação da Inspeção Laboral Nacional ante
indícios de exploração laboral, descrito no anexo 1 da Resolução, convém destacar
os seguintes trechos:

Cuando en el marco de nuestras tareas de inspección nos encontramos ante


una situación que pudiese presumir la existencia de indicios de explotación
laboral, utilizaremos el Acta de Constatación de Indicios de Explotación
Laboral (Acta IEL), la que fuera aprobada por Resolución N° 3/2018 de la
entonces Subsecretaría de Fiscalización del Trabajo y de la Seguridad Social.
En atención a las particularidades que presentan las situaciones de
explotación, puede resultar complejo diferenciar cuándo estamos ante un
caso de trabajo irregular y cuándo ante uno que presenta condiciones
laborales abusivas que pueden constituir un delito penal, cuya calificación es
competencia exclusiva de los jueces y fiscales penales.
Según los datos que la inspección recoja y transmita, el Ministerio
Público Fiscal y/o el Poder Judicial podrán luego considerar si hay
elementos suficientes para calificar el hecho como un caso de Trata de
Personas con fines de Explotación Laboral, delito de competencia
federal, u otros delitos, como por ejemplo el de Trabajo Forzoso o de
Reducción a la Servidumbre, que son de competencia de la justicia
penal provincial.
Como ya manifestamos, la calificación de las conductas delictivas son de
competencia exclusiva de los jueces y fiscales penales, por ello a los
fines de nuestra tarea y frente a situaciones que exceden la no
registración, cualesquiera que sean las condiciones que rodean el caso,
haremos referencia a indicios de Explotación Laboral, y utilizaremos el
Acta IEL (…).
(...)
Constatada una situación que podría configurar un supuesto de Explotación
Laboral sea de adultos o menores de 18 años, el fiscalizador debe tener
presente que la máxima prioridad es velar porque la víctima se encuentre lo
más segura posible, procurando que se atiendan sus necesidades sanitarias,
físicas y psíquicas urgentes, debiendo para ello dar inmediata intervención a
los organismos con competencia en la materia.
(...)
Una vez relevada la información requerida en el Acta IEL, el inspector
deberá indicar si existen indicios suficientes y/o elementos para
formular la denuncia penal.
De considerar que existen indicios suficientes deberá realizar la denuncia
previo a abandonar el establecimiento inspeccionado.
Si considera que sólo surgieron algunos indicios acerca que se estaría
ante una situación de Explotación Laboral, pero tiene dudas, es conveniente
que formule de todas maneras la denuncia para que sea la autoridad
judicial la que determine o descarte la existencia de delito penal.
De tener certeza que no existe ningún indicio de explotación laboral, no
realizará denuncia penal.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

70
(...)
¿Cómo debe formularse la denuncia?
La denuncia penal debe formularse llamando desde el lugar donde se hizo la
inspección a la Línea 145 administrada por el Ministerio de Justicia y
Derechos Humanos de la Nación, la que opera las 24 horas del día, los 365
días del año.
(...)
Según el Protocolo interno de toma de denuncias de la línea 145, toda
denuncia efectuada por un inspector, será considerada por los
operadores de la línea telefónica como un caso de flagrancia,
asumiendo que se trata de un delito que se encuentra en ejecución en
el momento y que requiere inmediata intervención de las autoridades
judiciales.
(...)
Una vez hecha la denuncia, los inspectores estarán en condiciones de
retirarse del establecimiento inspeccionado, salvo que por lo gravedad de los
hallazgos y la urgencia de la situación la autoridad judicial o el
representante del ministerio público que tomó intervención, disponga lo
contrario.
(...)
Tengamos en cuenta que la formulación de denuncia penal no impide la
aplicación de sanciones labores. (Grifos nossos)

Quanto ao Auto de Constatação de Índicos de Exploração Laboral (ACTA IEL),


que corresponde aos anexos 2 a 4 da Resolução, cumpre mencionar que os anexos
2 e 3 contêm uma relação de perguntas a serem respondidas pelo inspetor do trabalho
quando perceber indícios de exploração laboral, referentes ao local de trabalho, à
identificação dos trabalhadores e às características do trabalho realizado. O anexo 4
contém orientações de preenchimento da ACTA IEL.

4 REPÚBLICA ARGENTINA E REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL:


ASSIMETRIAS NORMATIVAS SOBRE TRABALHO FORÇADO E TRÁFICO DE
PESSOAS PARA EXPLORAÇÃO LABORAL

Convém aclarar o motivo do porquê apresentar a análise comparativa das


disparidades legislativas encontradas. Como bem observou Martins33, existem
importantes assimetrias na legislação trabalhista interna dos Estados Partes do
Mercosul que inviabilizam a harmonização dessas normas e a regulamentação dos
direitos sociais laborais, inclusive dos trabalhadores migrantes, por meio de normas
comunitárias para o Bloco. Essas inconsistências dificultam o aprofundamento da

33 Opus citatum.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

71
integração regional no que concerne às relações de trabalho no Mercosul. Dito isso,
passa-se a realizar um estudo comparado apontando as assimetrias legislativas
constatadas entre as normas da Argentina e do Brasil.

4.1 TIPIFICAÇÃO PENAL DE REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE


ESCRAVOS, TRABALHO FORÇADO E TRÁFICO DE PESSOAS PARA
EXPLORAÇÃO LABORAL

No Brasil, a redução à condição análoga à de escravo e o de tráfico de pessoas


para exploração laboral, estão tipificados no Capítulo VI, Seção I - dos Crimes Contra
a Liberdade Pessoal -, nos artigos nº 149 e 149-A incisos II e III do Código Penal34,
respectivamente:

Redução a condição análoga à de escravo


Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-
o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a
condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer
meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador
ou preposto: (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente
à violência. (Redação dada pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003)
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho; (Incluído pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003)
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local
de trabalho. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: (Incluído
pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
I – contra criança ou adolescente; (Incluído pela Lei nº 10.803, de
11.12.2003)
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
origem. (Incluído pela Lei nº 10.803, de 11.12.2003)
Tráfico de Pessoas (Incluído pela Lei nº 13.344, de
2016) (Vigência)
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar,
alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação,
fraude ou abuso, com a finalidade de: (Incluído pela Lei nº 13.344,
de 2016) (Vigência)
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; (Incluído pela Lei
nº 13.344, de 2016) (Vigência)

34BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei no 2.848, de 7 de Dezembro de 1940. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 3 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

72
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de
escravo; (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; (Incluído pela Lei nº
13.344, de 2016) (Vigência)
IV - adoção ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 13.344, de
2016) (Vigência)
V - exploração sexual. (Incluído pela Lei nº 13.344, de
2016) (Vigência)
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. (Incluído pela
Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se: (Incluído pela
Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções
ou a pretexto de exercê-las; (Incluído pela Lei nº 13.344, de
2016) (Vigência)
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com
deficiência; (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de
coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou
de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou
função; ou (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território
nacional. (Incluído pela Lei nº 13.344, de 2016) (Vigência)
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não
integrar organização criminosa. (Incluído pela Lei nº 13.344, de
2016) (Vigência) (grifos nossos)

A tipificação de tráfico de pessoas adotada pelo Brasil foi incluída pela Lei nº
13.344 de 201635. Cabe observar que essa tipificação é bastante restritiva. Explica-
se. A figura básica se constitui de três elementos: ação, meio comissivo e finalidade
de exploração. A ação é caracterizada pela conduta de agenciar, aliciar, recrutar,
transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa. Há a necessidade de
caracterização do vício de consentimento da vítima mediante grave ameaça, violência,
coação, fraude ou abuso, os quais são considerados meios comissivos para a prática
da conduta ilícita. O terceiro elemento, finalidade de exploração, está determinado na
lei, nos incisos I a V do art. 149-A. Para que uma situação seja reconhecida como
crime de tráfico de pessoas é necessária a combinação de pelo menos um de cada
elemento constitutivo.

35 BRASIL. Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico
interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas; altera a Lei nº 6.815, de
19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal),
e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13344.htm>. Acesso em: 16 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

73
A Argentina, a seu turno, tem os delitos de escravidão, trabalho forçado e
redução à servidão previstos em seu art. nº 140. O delito de tráfico de pessoas
também está previsto no art. nº 145 bis e ter do Código Penal e já foram descritos no
tópico 3.4.1. deste artigo. Cumpre observar que, diversamente do que ocorre no
Brasil, na Argentina, para caracterizar o tipo penal de tráfico de pessoas, bastam dois
elementos: ação e finalidade. O consentimento ou não da vítima não tem qualquer
relevância jurídica em termos de repreensão criminal, civil ou administrativa. Ademais,
o art. nº 145 ter prevê que o vício de consentimento da vítima caracteriza uma situação
agravante do crime, o que implica uma pena maior.
Outro ponto a ser observado na tipificação do crime de tráfico de pessoas é o
terceiro elemento constitutivo, a finalidade de exploração. A legislação brasileira
adotou um conceito mais restrito que o do Protocolo de Palermo36 e trouxe uma lista
exaustiva de formas de exploração a serem consideradas, o que limita a configuração
do delito, quais sejam: remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; submetê-la a
trabalho em condições análogas à de escravo; submetê-la a qualquer tipo de
servidão; adoção ilegal; e, exploração sexual. Por outro lado, na Argentina, o
legislador optou por acolher o conceito amplo de finalidade, tal qual previsto no
Protocolo de Palermo: exploração.
Na Argentina, comete tráfico de pessoas quem oferece, recruta, transfere,
recebe ou acolhe pessoas com a finalidade de exploração. Em contrapartida, o
trabalho forçado tem como características a coerção e a ausência de voluntariedade
da pessoa explorada.
Na prática, essa diferença na tipificação penal entre os dois países implica que
na Argentina é possível enquadrar diversas condutas no crime de tráfico de pessoas,
diferentemente do que ocorre no Brasil. Como exemplo, pode-se citar a conduta de
acolher pessoas com a finalidade de exploração laboral. Na Argentina, essa conduta

36O Protocolo de Palermo - Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime
Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em
Especial de Mulheres e Crianças – foi promulgado no Brasil por meio do Decreto n.º 5.017, de 12 de
março de 2004 e faz parte do sistema global de proteção aos Direitos Humanos da Organização da
Nações Unidas (ONU). Este documento internacional afirma a necessidade de um instrumento
universal que aborde todos os aspectos relativos ao tráfico de pessoas, que objetive a sua prevenção
e combate, com especial atenção às mulheres e às crianças, a proteção e ajuda as suas vítimas, tem
como base o reconhecimento dos direitos humanos e a promoção da cooperação entre os Estados
Partes.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

74
ilícita é punível como tráfico de pessoas, ao passo que no Brasil não é criminalizada,
exceto se caracterizada a forma mais grave desse tipo de exploração, qual seja, a
submissão a trabalho em condições análogas à de escravo.
Observa-se que as condutas tipificadas criminalmente, no Brasil, como redução
à condição análoga à de escravo e como tráfico de pessoas para submetê-las a
trabalho em condições análogas à de escravo são enquadradas, na Argentina, nos
crimes de tráfico de pessoas ou de trabalho forçado. Ao se fazer a análise desses
delitos nos dois países deve-se levar em consideração as diferentes tipificações.

4.2 CONFISCO OU EXPROPRIAÇÃO DE BENS

A Constituição Federal do Brasil prevê em seu artigo nº 24337 a expropriação


de propriedades onde for localizada a exploração de trabalho escravo e o confisco de
bens de valor econômico apreendidos em decorrência dessa prática:

Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde


forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de
trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma
agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao
proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no
que couber, o disposto no art. 5º. (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 81, de 2014)
Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em
decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração
de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com
destinação específica, na forma da lei. (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 81, de 2014)

A redação do mencionado artigo foi dada pela Emenda Constitucional nº 81, de


2014. Trata-se de norma constitucional de eficácia limitada, portanto necessita de
regulamentação por lei para produzir efeitos.
Ora, devido à falta de regulamentação legal para o artigo acima transcrito,
nenhuma propriedade onde foi constatada a exploração de trabalho análogo ao de
escravo foi expropriada no Brasil, nem mesmo em propriedades nas quais houve
reincidência da prática desse crime.

37BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 3 jun.
2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

75
Enquanto no Brasil ainda não há regulamentação legal para a expropriação de
propriedades onde foi constatada a exploração de trabalho escravo, na Argentina o
confisco de bens que serviram para cometimento de crimes de trabalho forçado e de
tráfico de pessoas e de bens ou lucros que são produtos desses crimes, como também
a destinação específica a programas de assistência a vítimas, são realizados com
base nos artigos nº 23 do Código Penal alterado pela Lei nº 26.842, descrito no tópico
3.4.1. deste artigo.

4.3 PROTOCOLO DE 2014 RELATIVO À CONVENÇÃO Nº 29 DA OIT


CONCERNENTE A TRABALHO FORÇADO OU OBRIGATÓRIO

Quanto aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, que foram


explanados no item 3.3., constatou-se que as Convenções da OIT, relativas à
Inspeção do Trabalho (C081) e ao trabalho forçado (C029 e C105), assim como o
Protocolo de Palermo, foram ratificados pelos dois países. Contudo, o Brasil não
ratificou o Protocolo de 2014 relativo à Convenção nº 29 da OIT concernente a
Trabalho Forçado ou Obrigatório, o qual foi ratificado pela Argentina no ano de 2016.
Interessante observar que no mês de janeiro de 2017, conforme publicado no
site do então ainda existente Ministério do Trabalho38 (atual Secretaria do Trabalho
do Ministério da Economia), o governo brasileiro enviou ao Congresso Nacional
documento em que ratifica o Protocolo à Convenção nº 29, de combate ao trabalho
forçado. Por oportuno o então Ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, afirmou:

O Brasil é referência internacional no combate ao trabalho forçado. As ações


propostas no protocolo já são cumpridas pelo país, mas a assinatura garante
que a proteção contra os trabalhadores faça parte do ordenamento jurídico.
Além de proteger nossos trabalhadores e crianças, o documento combate
um sistema medieval de relação de trabalho, com sanções previstas a
quem descumprir suas normas. O trabalho forçado não pode mais ter espaço
na sociedade moderna. Nenhum país pode evoluir dos pontos de vista
econômico e social tolerando situações de trabalho degradante. (Grifos
nossos)

38 Ministério do Trabalho ratifica protocolo da OIT contra trabalho forçado. Ministério do Trabalho
[site], jan. 2017. Disponível em: <http://trabalho.gov.br/noticias/4164-ministerio-do-trabalho-ratifica-
protocolo-da-oit-contra-trabalho-forcado>. Acesso em: 17 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

76
Ainda de acordo com a publicação do site do referido Ministério, o texto
do protocolo adicional elenca uma série de medidas preventivas, reparatórias ou de
proteção para a erradicação do trabalho forçado, em especial de mulheres e crianças.
O documento reconhece o trabalho forçado como violação aos direitos humanos e
instrumento de perpetuação da pobreza no mundo.
Cabe rememorar que, no mês de maio de 2017, o Senado lançou uma
campanha para que o Brasil assinasse o Protocolo citado. O lançamento ocorreu em
audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação
Participativa (CDH), que debateu o tema do trabalho forçado. O encontro serviu para
a divulgação da página na internet da campanha “50 For Freedom - Pela Liberdade”
da OIT, que buscava o apoio da população mundial para que pelo menos 50 nações
assinassem o protocolo até o final de 2018.
Ainda que tenha ocorrido o apoio dos entes estatais para a ratificação do
Protocolo, ela não ocorreu.

4.4 ASSISTÊNCIA ÀS VÍTIMAS

No Brasil, a Lei no 10.60839 de 2002 alterou a Lei no 7.99840 de 1990, para


incluir o art. 2º-C no diploma original, conferindo à fiscalização, cuja competência
pertencia e ainda pertence ao Ministério do Trabalho e Emprego (atual Secretaria do
Trabalho do Ministério da Economia), o dever de efetuar o resgate de trabalhadores
encontrados em condições consideradas análogas à de escravo, assegurando ainda
o pagamento de uma assistência financeira temporária de três parcelas do seguro-
desemprego no valor de um salário mínimo para cada trabalhador resgatado.
Na Argentina, no ano de 2016, ocorreu a ratificação do Protocolo de 2014
relativo à Convenção nº 2941 da OIT concernente a Trabalho Forçado ou Obrigatório,

39 BRASIL. Lei no 10.608, de 20 de dezembro de 2002. Altera a Lei no 7.998, de 11 de janeiro de


1990, para assegurar o pagamento de seguro-desemprego ao trabalhador resgatado da condição
análoga à de escravo. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10608.htm#art2>. Acesso em: 17 jun. 2020.
40 BRASIL. Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990. Regula o Programa do Seguro-Desemprego, o

Abono Salarial, institui o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), e dá outras providências.


Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7998.htm>. Acesso em: 17 jun. 2020.
41 Opus citatum.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

77
o que foi tratado nos itens 3.3. e 4.3.. Dentre diversas medidas, o Protocolo traz em
suas disposições o compromisso de cada Membro de adotar medidas efetivas para
proporcionar às vítimas proteção e acesso a ações judiciais e de reparação
apropriadas e eficazes, tal como uma indenização. Nesse sentido cabe citar os
trabalhos do Professor John Ruggie42 sobre violações de direitos humanos por
corporações. Ele fala da tríade “proteger, respeitar e reparar” como sendo essencial
nestes casos. Por melhor que sejam as leis e os sistemas jurídicos, ainda assim
existirão situações de violações destes direitos por corporações, sendo fundamental
o acesso a reparações dignas, tais como as indenizações.
Nesse diapasão, no ano de 2019 foi promulgada na Argentina a Lei nº 27.508,
que trata da criação de um fundo fiduciário público para assistência direta às vítimas
de tráfico e exploração de pessoas, citada no tópico 3.4.2. deste estudo.

4.5 PRERROGATIVAS E RESPONSABILIDADES DA INSPEÇÃO DO TRABALHO

No Brasil, a atuação dos auditores-fiscais do trabalho é regulada pelo Decreto


nº 4.552 de 200243, pela Portaria MTb nº 1.29344 de 2017 e pela Instrução Normativa
SIT nº 13945 de 2018. O subcapítulo 4.4. deste estudo expôs que o art. 2º-C da Lei
no 7.998 de 1990 conferiu à fiscalização, então inserida no Ministério do Trabalho e
Emprego (atual Secretaria do Trabalho do Ministério da Economia), a competência e
o dever de efetuar o resgate de trabalhadores encontrados em condição análoga à de
escravo. O protagonismo no combate a essa violação coube à Auditoria-Fiscal do
Trabalho.

42 RUGGIE, John Gerald. Quando negócios não são apenas negócios. São Paulo: Planeta
Sustentável, 2014.
43 BRASIL. Decreto 4.552, de 27 de dezembro de 2002. Aprova o Regulamento da Inspeção do

Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4552.htm>. Acesso em:


14 set. 2020.
44 BRASIL. Portaria MTb nº 1.293, de 28 de dezembro de 2017. Dispõe sobre o conceito de trabalho

escravo. Disponível em: <http://www.legistrab.com.br/336-portaria-1293-de-2017-dispoe-sobre-o-


conceito-de-trabalho-escravo>. Acesso em: 24 jun. 2020.
45 BRASIL. Instrução Normativa SIT nº 139, de 22 de janeiro de 2018. Dispõe sobre a fiscalização

para a erradicação de trabalho em condição análoga à de escravo. Disponível em:


<http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/2075837/do1-2018-01-24-
instrucao-normativa-n-139-de-22-de-janeiro-de-2018-2075833>. Acesso em: 24 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

78
Os procedimentos administrativos para resgate das vítimas estão previstos no
art. nº 17 da referida IN:

Art. 17. O Auditor-Fiscal do Trabalho, ao constatar trabalho em condição


análoga à de escravo, em observância ao art. 2º-C da Lei nº 7.998, notificará
por escrito o empregador ou preposto para que tome, às suas expensas, as
seguintes providências:
I - A imediata cessação das atividades dos trabalhadores e das circunstâncias
ou condutas que estejam determinando a submissão desses trabalhadores à
condição análoga à de escravo;
II - A regularização e rescisão dos contratos de trabalho, com a apuração dos
mesmos direitos devidos no caso de rescisão indireta;
III - O pagamento dos créditos trabalhistas por meio dos competentes Termos
de Rescisão de Contrato de Trabalho;
IV - O recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS e da
Contribuição Social correspondente;
V - O retorno aos locais de origem daqueles trabalhadores recrutados fora da
localidade de prestação dos serviços;
VI - O cumprimento das obrigações acessórias ao contrato de trabalho
enquanto não tomadas todas as providências para regularização e
recomposição dos direitos dos trabalhadores.

No que diz respeito à atuação administrativa no âmbito da Inspeção do


Trabalho, a IN citada trata, em seu art. 6º, do conceito de trabalho em condição
análoga à de escravo; e, em seu art. 7º, define as modalidades desse tipo de trabalho.
A IN traz um anexo com os indicadores de cada uma das modalidades listados em rol
não exaustivo.
A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu em 2016 que a criação
do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), conhecido como “Grupo Móvel”,
coordenado pela Auditoria-Fiscal do Trabalho, é uma das iniciativas fundamentais ao
enfrentamento do trabalho escravo contemporâneo promovidas pelo governo
brasileiro, assim como a criação do cadastro de empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condição análoga à de escravo, mais conhecido como “lista suja” do
trabalho escravo46.
De acordo com Fagundes47, a forma de atuação interinstitucional do Grupo
Especial de Fiscalização Móvel é modelo para vários países. No final do ano de 2018,

46 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Trabalho Escravo. Disponível em:


<https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2016/04/position-paper-trabalho-escravo.pdf>. Acesso
em: 18 jun. 2020.
47 FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração venezuelana e a exploração de trabalho análogo ao

de escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, Brasília, 3 Ed, p.


293-326, 2019. Disponível em:

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

79
a Argentina manifestou interesse em participar de uma operação do GEFM no Brasil
para conhecer seu funcionamento de perto. Do mesmo modo, e ainda no âmbito da
Cooperação Sul-Sul, a Inspeção do Trabalho do Peru criou, no ano de 2018, um grupo
especial nos mesmos moldes do GEFM brasileiro, o Grupo Especializado de
Inspetores do Trabalho em Matéria de Trabalho Forçado e Trabalho Infantil (GEIT-
TFI) e aprovou seu Protocolo de Atuação após ter participado de uma operação em
território brasileiro, bem como de várias reuniões trilaterais com a Secretaria de
Inspeção do Trabalho (SIT) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) 48.
A atuação da Inspeção do Trabalho da Argentina no combate ao trabalho
forçado e ao tráfico de pessoas para exploração laboral, tratada no item 3.5., está
regulamentada pela Resolução nº 230 da Secretaria do Trabalho do Ministério do
Trabalho, Emprego e Seguridade Social, de 2018. Conforme demonstrado, quando
constatados indícios de exploração laboral, o inspetor do trabalho formalizará uma
denúncia de crime (denúncia penal), por meio de formulários e condutas especificados
na referida Resolução. No caso, a tipificação da conduta criminal é de competência
exclusiva dos juízes e promotores penais. Percebe-se então que a Inspeção do
Trabalho argentina não tem a atribuição de determinar a imediata cessação da lesão
aos direitos violados dos trabalhadores e efetuar o resgate.
Por conseguinte, a Inspeção do Trabalho realiza a denúncia e cabe ao
Ministério Público Fiscal da Nação (MPF) e/ou ao Poder Judiciário, se houver
elementos suficientes, qualificar se é um caso de tráfico de pessoas para exploração
laboral, delito de competência federal, ou, por exemplo, trabalho forçado e redução à
servidão, que são de competência da Justiça Penal Provincial. Quanto ao crime de
tráfico de pessoas para exploração laboral, o protagonismo no combate é da
Procuradoria de Tráfico e Exploração de Pessoas (PROTEX), vinculada ao MPF.

<https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=issue&op=view&path%5B%
5D=3&path%5B%5D=Revista%20Completa%203>. Acesso em: 18 jun. 2020.
48 As Inspetoras do Trabalho da Sunafil do Peru, Paola Egúsquiza Granda e Rosa Capcha Rojas, e a

representante da OIT no Brasil, Fernanda Carvalho, gravaram vídeos sobre o Projeto de Cooperação
Sul-Sul e a criação do GEIT para a série especial de 25 anos do GEFM. Disponíveis em:
<https://www.youtube.com/watch?v=0BkzpjV_eRs&feature=youtu.be>,
<https://www.youtube.com/watch?v=BNe0gPEVBuc&feature=youtu.be> e
<https://www.youtube.com/watch?v=cagPncGOg0Y&feature=youtu.be>. Acesso em: 18 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

80
Outrossim, convém mencionar que, no Brasil, conforme prevê o art. nº 21 inciso
XXIV da Constituição Federal49, compete à União organizar, manter e executar a
Inspeção do Trabalho. De outro modo, na Argentina, conforme demonstrado no item
3.4.3., que trata do Ordenamento Laboral, o sistema é integrado pela autoridade do
Trabalho e Segurança Social Nacional, pelas autoridades das províncias e da cidade
autônoma de Buenos Aires.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O enfrentamento à exploração do trabalho forçado e do tráfico de pessoas para


exploração laboral no Mercosul depende do comprometimento dos Estados Partes no
sentido de haver uma harmonização nas legislações e políticas públicas, com a
adoção de estratégias que compreendam a questão a partir da perspectiva dos
direitos humanos.
Procurou-se demonstrar que as assimetrias normativas relacionadas à
regulamentação do tema em questão na Argentina e no Brasil não se resumem
apenas ao enquadramento em um tipo penal. Em suma, para cumprir o compromisso
assumido na Declaração Sociolaboral do Mercosul, bem como no Plano Regional para
Prevenção e Erradicação do Trabalho Forçado e do Tráfico de Pessoas para
exploração laboral, é necessário o comprometimento dos Estados no sentido de
equilibrar as legislações e as políticas públicas.
Para tanto, impende ao Brasil aperfeiçoar sua legislação, a fim de adequá-la às
obrigações perante a sociedade internacional. Nesse prisma, deve o país
regulamentar a norma constitucional que determina a expropriação e o confisco de
bens utilizados na exploração do trabalho escravo, o que se delineia como uma eficaz
medida de reparação e de repressão a esse crime. Do mesmo modo, urge ratificar o
Protocolo de 2014, relativo à Convenção nº 29 da OIT a qual trata do trabalho forçado
ou obrigatório. Por fim, não se pode prescindir de tomar medidas efetivas para
proporcionar assistências às vítimas, garantir proteção e acesso a ações judiciais e

49 Opus citatum.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

81
de reparação apropriadas e eficazes, além de manter as medidas de assistência
imediata já existentes, como o seguro-desemprego do trabalhador resgatado.
Nesse sentido, cumpre à Argentina fortalecer o papel da Inspeção do Trabalho.
Para tanto, devem ser atribuídas prerrogativas e responsabilidades que permitam
tornar mais efetiva a ação dos inspetores do trabalho na repressão a esses crimes
para que possam atuar na imediata cessação da lesão aos direitos violados. Em
outras palavras, é preciso que os inspetores do trabalho na Argentina possam resgatar
os trabalhadores flagrados em situação de escravidão contemporânea e operar na
restituição rápida de seus direitos, a par da atuação do Ministério Público Fiscal. É
necessário considerar que o inspetor do trabalho, muitas vezes, é o agente que tem o
primeiro contato com a vítima. O combate a essa violação deve ser tratado sob vários
aspectos e por várias instituições. Significa dizer que é preciso transcender o ponto
de vista criminal, assim como o trabalhista e o civil.
A despeito de escravidão, trabalho análogo ao de escravo, tráfico de pessoas
para exploração laboral e trabalho forçado serem termos com definições próprias e
que se desenvolveram historicamente a partir de condições distintas, é evidente que
possuem intersecções fundamentais como a violação da dignidade da pessoa
humana e a exploração das vítimas e de seu trabalho. Em razão disso, a doutrina, em
sua grande maioria, opta pela utilização do termo escravidão contemporânea para
englobar esses conceitos a partir de uma abordagem ampla.
No tocante ao Mercosul, é necessário que os países aperfeiçoem suas
deficiências no enfrentamento à escravidão contemporânea, por meio de cooperação
e legislações mais similares na região. Dessa maneira, podem ser utilizados como
exemplos a serem adotados pelos demais países do Bloco, como marco legislativo,
as leis de combate ao tráfico de pessoas e de assistência às vítimas da Argentina; e,
como parâmetro de execução de políticas públicas, o modelo de enfrentamento
adotado pelo Brasil.
Na temática pertinente ao presente estudo, sugere-se a elaboração de um
estudo comparativo de casos constatados e de condenações penais de exploração
de trabalho escravo contemporâneo e tráfico de pessoas com essa finalidade. Dessa
forma, levar-se-ia em consideração as diferentes tipificações adotadas para

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

82
caracterizar esses delitos nos dois países, uma vez que o tráfico de pessoas para
exploração laboral é uma das expressões da escravidão contemporânea.
Por fim, para erradicar o trabalho escravo contemporâneo, há necessidade de
uma atuação ampla sobre as causas sociais e econômicas desse problema, não
apenas focar na criminalização e repressão do delito. É necessário que os Estados
envidem esforços no sentido de combater a exclusão social, o trabalho infantil, a falta
de oportunidades e a discriminação em todas as suas formas, inserindo as pessoas
na sociedade como titulares dos direitos que foram incorporados ao ordenamento
jurídico ao longo dos anos.

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87
RUGGIE, John Gerald. Quando negócios não são apenas negócios. São Paulo:
Planeta Sustentável, 2014.

SOUZA, Mércia Cardoso de. Tráfico de Pessoas para Trabalho Forçado no


Âmbito do Mercosul-Direito e Política para os Direitos Humanos. 566 f. Tese
Doutoral (Direito Constitucional) - Centro de Ciências Jurídicas, Universidade de
Fortaleza, Fortaleza, 2016. Disponível em:
<https://uol.unifor.br/oul/ObraBdtdSiteTrazer.do?method=trazer&ns=true&obraCodig
o=99954>. Acesso em: 26 jun. 2020.

REGULATIONS OF THE ARGENTINE REPUBLIC ON


FORCED LABOR AND HUMAN TRAFFICKING FOR LABOR
EXPLOITATION: A COMPARATIVE ANALYSIS FROM THE
PERSPECTIVE OF THE MERCOSUR REGIONAL PLAN FOR
THE PREVENTION AND ERADICATION OF THESE CRIMES

ABSTRACT
The purpose of this article is to address the Mercosur Regional
Plan for the prevention and eradication of forced labor and
human trafficking for labor exploitation. One of its actions in this
Plan is to carry out comparative studies on the legislation in force
in the Mercosur States Parties, with the aim of promoting the
design of policies for the prevention, eradication and
reintegration of victims of forced labor and human trafficking for
labor exploitation. To this end, documentary and bibliographic
research was carried out, based on the study of legislation and
the stage of implementation of public policies related to the
theme in Argentina, comparing them with those in Brazil. The
specialized literature was also reviewed. Thus, the article first
focuses on the analysis of the context of the emergence of the
Mercosur Regional Plan for the prevention and eradication of
forced labor and human trafficking for labor exploitation, and then
to explain the rules in force in Argentina regarding the topic.
Finally, there is a comparative analysis of the asymmetries
perceived between Argentina and Brazil in the implementation of
legislative and public policy measures, focusing on the role of
Labor Inspection, signaling the measures to be implemented so
that the States Parties can improve their deficiencies in
confronting contemporary slavery within the scope of Mercosur.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

88
Keywords: Slave labor. Forced labor. Human trafficking.
Mercosur.

NORMAS DE LA REPÚBLICA ARGENTINA SOBRE


TRABAJO FORZOSO Y TRATA DE PERSONAS CON FINES
DE EXPLOTACIÓN LABORAL: UN ANÁLISIS
COMPARATIVO DESDE LA PERSPECTIVA DEL PLAN
REGIONAL DEL MERCOSUR PARA LA PREVENCIÓN Y
ERRADICACIÓN DE ESTOS CRÍMENES

RESUMEN
El propósito de este artículo es abordar el Plan Regional
Mercosur para la prevención y erradicación del trabajo forzoso y
la trata de personas con fines de explotación laboral. Este Plan
tiene como una de sus acciones la realización de estudios
comparativos sobre la legislación vigente en los Estados Parte
del Mercosur, con el objetivo de promover el diseño de políticas
de prevención, erradicación y reintegración de víctimas del
trabajo forzoso y trata de personas con fines de explotación
laboral. Para ello se realizó una investigación documental y
bibliográfica, a partir del estudio de la legislación y el estado de
implementación de las políticas públicas relacionadas con el
tema en Argentina, comparándolas con las de Brasil. También
se revisó la literatura especializada. Así, el artículo se enfoca
primero en el análisis del contexto del surgimiento del Plan
Regional Mercosur para la prevención y erradicación del trabajo
forzoso y la trata de personas con fines de explotación laboral,
para luego explicar las normas vigentes en Argentina sobre el
tema. Finalmente, se realiza un análisis comparativo de las
asimetrías percibidas entre Argentina y Brasil en la
implementación de medidas legislativas y de política pública,
centrándose en el papel de la Inspección de Trabajo, señalando
las medidas a implementar para que los Estados Partes puedan
mejorar su deficiencias en el enfrentamiento de la esclavitud
contemporánea en el ámbito del Mercosur.
Palabras clave: Trabajo esclavo. Trabajo forzoso. Trata de
personas. Mercosur.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

89
ASPECTOS DA REVOLUÇÃO DIGITAL 4.0 NAS RELAÇÕES DE
TRABALHO: A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR EM FACE DA
AUTOMAÇÃO

Antônio Ivo Cavalcante Prudêncio1

1. Introdução. 2. A dicotomia entre o desenvolvimento tecnológico e a


proteção do emprego. 3. A saúde e segurança do trabalhador na Revolução
4.0. 4. A proteção do trabalhador em face da automação. 4.1. Projeto
legislativo de regulamentação. 4.1.1 Projeto de lei n.º 2.902/1992. 4.1.2
Projeto de lei n.º 1.091/2019. 5. Conclusão. Referências.

RESUMO
Com o avanço da denominada revolução digital, surgiram questionamentos
sobre o futuro do emprego e os meios necessários de proteção dos
trabalhadores. Neste artigo, foram analisadas as características da
denominada Revolução 4.0 e suas implicações no mundo do trabalho.
Destacadas as intenções dos legisladores brasileiros em regulamentar o
direito constitucional de proteção em face da automação, previsto no inciso
XXVII, artigo 7.º da Constituição Federal, visando mitigar os efeitos
inerentes as alterações no processo produtivo. Analisado ainda projeto de
lei com proposta de criação de um regramento para o uso da inteligência
artificial no Brasil. No contexto de digitalização da produção, os
trabalhadores ficam inseridos num ambiente de incertezas e sujeitos aos
riscos psicossociais decorrentes. Tal condição, exige o recrudescimento do
debate e a busca de soluções para essa nova realidade laboral. O momento
exige a construção de consenso político e social para promover o
desenvolvimento tecnológico, aliado a necessária eliminação das
desigualdades sociais. O benefício da tecnologia deve ser coletivo e
precisa do reconhecimento de práticas para eliminação dos riscos laborais
e a proteção efetiva para os trabalhadores excluídos pela inovação
tecnológica.

Palavras-chaves: Revolução Industrial 4.0. Automação. Novas


Tecnologias. Norma Regulamentadora. Prevenção.

1 Auditor-Fiscal do Trabalho. Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE.


Graduado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Teresina – CEUT. Especialista em Direito e
Processo do Trabalho - UNICHRISTUS.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

90
1 INTRODUÇÃO

A tecnologia é o fascínio da contemporaneidade e conduz os humanos para um


conflito existencial. Traz uma admirável esperança de superação de desafios, espelho
da resiliência humana, aliado à visível elasticidade do fosso da desigualdade. Um
olhar rápido pela história é suficiente para corroborar essa linha de entendimento.
Na história dos humanos, o trabalho esteve presente nas suas diversas formas
de efetivação. No percurso da liberdade à força e do rejúbilo à mera sobrevivência. O
bom pão de cada dia. A engrenagem evolutiva. O objeto incorporado da propaganda
de que o sacrifício possibilita o empoderamento nos avanços de cada época.
Participante fiel das conquistas, mas excluído dos frutos das vitórias. O sujeito
trabalhador, contrariando probabilidades, demonstra que a superação é possível. Os
desafios na convivência com as ditas novas tecnologias, trará à prova a referida
capacidade de superação.
A tecnologia é uma conquista humana imensurável. Em cada fase histórica, ela
se realiza, transforma a realidade e se supera com a mesma tenacidade. Não temos
noção ainda de como a humanidade vai acompanhar esse galope tecnológico, pois
as aplicações são desenvolvidas e superadas muito rapidamente.
Serão construídos parâmetros seguros para saber o que vai acontecer no
mundo das relações de trabalho? A sociedade está consciente e preparada para o
futuro da tecnologia sobre o emprego?
Estudos descrevem a possibilidade da substituição do trabalho humano pela
automação, mas essa substituição, embora constante, é gradual e não afasta a
existência de novas funções e a própria readaptação do trabalhador. O exemplo,
historicamente configurado, foi o caso das primeiras etapas da revolução industrial.
Os empregos perdidos pela automação foram substituídos pelos empregos gerados
no setor de serviço.
O alerta é que foram substituídos trabalhos manuais por trabalho técnico e
intelectual. No processo atual, a tecnologia caminha para substituir o trabalho
intelectual e ainda não foram identificados novos campos de atuação para o trabalho
humano. O historiador Yuval Harari faz tais considerações e alerta para um ponto

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

91
chave nesse processo: a tecnologia suplanta o humano pela melhor capacidade de
atualização e interação.2
Resumidamente, a primeira etapa da Revolução Industrial teve início por volta
de 1760, representada pela mecanização da produção. A segunda etapa pode ser
delimitada entre a metade do século XIX e meado do século XX, sendo caracterizada
pelas novas fontes de energia aplicadas na produção. A terceira etapa tem como
marco temporal o fim da segunda guerra e é caracterizada pela introdução da
automação no processo produtivo. 3
No caso da quarta etapa da Revolução Industrial, foi considerada a partir do
ano 2000. Caracterizada pelo uso do que se denomina de novas tecnologias, inclusas
a inteligência artificial, impressão 3D, material inteligente, big data, IoT (internet das
coisas) etc. Tais avanços, quando consolidados, prometem grandes transformações
nos modos de produção, com previsão de forte impacto nas relações de emprego.
A denominada Indústria 4.0 foi apresentada como divulgação das fábricas
inteligentes na Alemanha em 2011 (feira de Hannover). Por outro lado, a citada
Revolução Industrial 4.0 seria mais abrangente, por considerar a influência das novas
tecnologias em diversos setores da cadeia de produção:
A quarta revolução industrial, no entanto, não diz respeito apenas a sistemas
de máquinas inteligentes e conectadas. Seu escopo é muito mais amplo.
Ondas de novas descobertas ocorrem simultaneamente em áreas que vão
desde o sequenciamento genético até a nanotecnologia, das energias
renováveis a computação quântica. O que torna a quarta revolução industrial
fundamentalmente diferente das anteriores é a fusão dessas tecnologias e a
interação entre os domínios físicos, digitais e biológicos.4
Como visto, a influência das novas tecnologias transcende o ambiente de
produção, influenciando todos os setores da atividade econômica e relações sociais.
Na mesma seara, outro termo denominado de Revolução 4.0, com a seguinte
descrição:
Em primeiro lugar, precisamos esclarecer do que trata o termo Revolução 4.0.
Trata-se de alterações nos processos produtivos, devido a dois aspectos: a)
avanço científico tecnológico que introduz meios de produção digitais
conectados em rede, a partir de hardware e software, os quais permitem
conexão ilimitada entre pessoas, coisas e máquinas, e captura, arquivo e
tratamento de dados, transformando-os em produtos vendáveis, ou seja,

2 HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 40
a 68.
3 NEVES, DANIEL; SOUSA, RAFAELA. Revolução industrial. Disponível em:
<https://brasilescola.uol.com.br/historiag/revolucao-industrial.htm>. Acesso em: 6 maio 2020.
4 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2019. p. 16.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

92
novas mercadorias; b) constante processo de degeneração e regeneração de
tudo que possa circular e ser consumido, inclusive a própria tecnologia.5
Há pontos objetivos para identificar as etapas anteriores das denominadas
revoluções industriais. Por exemplo, na primeira revolução seria a criação da máquina
a vapor (ferrovias); na segunda, a eletricidade (linhas de montagem); na terceira pela
influência digital (computador). Resta a imprecisão temporal da referida quarta
revolução industrial, que é “caracterizada por uma internet mais ubíqua e móvel, por
sensores menores e mais poderosos que se tornaram mais baratos e pela inteligência
artificial e aprendizagem automática (ou aprendizado de máquina).6
A hiper conectividade é o elemento crucial da quarta Revolução Industrial. As
redes de telecomunicações se desenvolvem num processo contínuo e está em
andamento a disponibilidade da rede de comunicação 5G. Tal inovação possibilitará
conexões mais rápidas que a 4G, gerando transporte de grande quantidade de dados
em alta velocidade.7 A rede 5G propiciará um nível surpreendente de interação entre
pessoas e máquinas, com influência nos diversos campos tecnológicos. Por tais
características, a inovação está sendo nomeada de Revolução 5G e determinante
para a quarta revolução industrial.
A nova rede 5G propiciará conexões mais efetivas para a ampliação da internet
das coisas (Internet of things – IoT), tornando-se o elemento integrativo e
revolucionário das novas tecnologias.
A saída apresentada para superação dos avanços tecnológicos seria
aprimoramento do nível de capacitação dos trabalhadores. Tudo indica que o Brasil
ainda tenha espaço para a substituição do trabalho técnico pelo intelectual. Questiona-
se, entretanto, se a preparação educacional do trabalhador poderá ser considerada
como satisfatória para enfrentar o problema. Qual seria o limite daquela absorção do
trabalho manual pelo trabalho intelectual? O Brasil será capaz de propiciar novas

5 PAULINO. Roseli Aparecida Figaro. As reconfigurações da comunicação no cenário da Revolução


4.0 e seus desdobramentos. Revista do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, São Leopoldo, ed.
544, p. 17, nov. 2019.
6 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2019. p. 16.
7 TRISTÃO, Rafael Vieira. REDES 5G. Monografia (Especialização) - Universidade Tecnológica
Federal do Paraná. Curso de especialização em teleinformática e redes de computadores, p.21,
Curitiba, 2015. Disponível em:
<http://repositorio.roca.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/13572/1/CT_TELEINFO_1_2014_04.pdf>.
Acesso em: 2 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

93
oportunidades de emprego suficientes para o tanto de atividades a serem alteradas
ou extintas?
No desenvolvimento deste estudo, pretende-se fomentar o debate e a
indagação sobre a existência de prevalência entre desenvolvimento tecnológico e a
proteção do emprego. Delimitado como objetivo a identificação das novas tecnologias
que afetam a empregabilidade e os caminhos para a mitigação dos seus efeitos nas
relações de emprego.
Será utilizada a metodologia da pesquisa exploratória, objetivando identificar e
analisar fontes teóricas disponíveis sobre o tema. No tocante aos procedimentos de
execução, foram adotadas a pesquisa bibliográfica e a análise documental, conforme
fontes relacionadas nas referências.

2 A DICOTOMIA ENTRE O DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO E A PROTEÇÃO


DO EMPREGO

A questão da nossa época é como incentivar as pesquisas tecnológicas, o


desenvolvimento e a respectiva implementação nos sistemas de produção, ao mesmo
tempo que aflora e urge a necessidade de salvaguardas para proteção dos
trabalhadores afetados pela exclusão tecnológica. Essa premonição carece de
atenção na busca de meios preventivos para mitigar seus efeitos, propiciando o
crescimento econômico atrelado a uma realidade laboral de oportunidades.
Dados da Confederação Nacional das indústrias (CNI) apontam que em 1985
a participação da indústria no PIB nacional seria de 21,6%, passando em 2016 para
11,9%. No índice global de inovações, o Brasil ocupa a 69.º posição. Em junho de
2017, foi criado o Grupo de Trabalho para a indústria 4.0 (GTI 4.0), com propósito de
elaborar agenda de desenvolvimento para o setor. O caminho encontrado, dentre
outras variáveis, passaria pelo uso das novas tecnologias.8
Nas políticas públicas, devem ser observadas as mudanças de parâmetros nos
processos produtivos globais. Há implicações nos níveis de salário e um sistemático

8 MINISTÉRIO DA INDÚSTRIA, COMÉRCIO E SERVIÇOS. Agenda Brasileira para a Indústria 4.0.


Disponível em: <http://www.industria40.gov.br/>. Acesso em: 8 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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aumento de precarização do trabalho, bem como a movimentação das fontes
geradoras de emprego formal. Vejamos:

A Quarta Revolução Industrial tem dado lugar à fábrica digitalizada, que deixa
de ter a sua produção nos países em desenvolvimento e ganha instalações
nos países centrais, já que os baixos custos de mão de obra, nesse quadro
de crescente automação deixam de ser o principal critério para alocação da
produção. Concomitante com essas transformações, novas formas de
trabalho passam a ganhar importância, como os trabalhos on demand, como
o Uber, ou aqueles relacionados à gig economy, na qual trabalhadores com
qualificação trabalham por encargos específicos. 9

Os países desenvolvidos ampliam as fábricas digitalizadas, com a intensa


busca por inovações tecnológicas, como mecanismo de redução de custos e acesso
a mercados de consumo. Considerando o alto valor de investimento do aparato digital,
países em desenvolvimento sofrem para adequar seus sistemas produtivos. A redução
dos níveis salariais e a eliminação ou alteração dos postos de trabalho são
consequências da automação. Por outro lado, a ausência de modernização das
empresas acarreta a diminuição da competitividade e da própria existência da unidade
produtiva.10
O avanço da tecnologia tornou seu uso não um mero ato volitivo, mas uma
imposição para muitas pessoas e processos. O sistema produtivo não parece ser
capaz de se furtar disso, especialmente num mundo de competitividade globalizada,
embora não se possa determinar que todos os setores empresariais do país precisem
necessariamente daquela modernização.
Variáveis como oferta e custo da mão de obra e a própria regulação, como será
tratada adiante, podem afetar diretamente a velocidade e o alcance da automação.
Forma-se a necessidade do consenso de que o desenvolvimento econômico não pode
ser distanciado da melhoria de vida dos trabalhadores e da comunidade.
Não há parâmetro seguro para indicar que as constantes reformas trabalhistas
sejam um caminho necessário à inovação, tidas como pressuposto à implantação de
novas tecnologias e desenvolvimento do país. Obstáculos regulatórios pontuais são

9 ZYLBERSTAJN, Hélio. Novas Tecnologias, globalização e relações de trabalho. São Paulo, p.


39. In: Futuro do Trabalho no Brasil: Perspectivas e Diálogos Tripartites. Brasília: Organização
Internacional do Trabalho (OIT), 2017.
10 INTERNACIONAL LABOUR ORGANIZATION. Transformacion Empresarial: nuevas
oportunidades para las organizaciones empresariales. Oficina Internacional del Trabajo y
Organización Internacional de Empleadores, Ginebra: OIT y OIE, 2019. p. 10.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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passíveis de resolução, por exemplo, por negociação coletiva, sem a imposição de
precarização generalizada das relações de trabalho. No mesmo sentido, a defesa de
implementação de novas tecnologias, como elemento de aumento da produtividade,
é mitigada pela constatação histórica. A tecnologia não propicia, necessariamente, o
incremento da produtividade, o que se denomina de paradoxo da produtividade:

Na última década, a produtividade em todo mundo (medida como a


produtividade do trabalho ou a produtividade total dos fatores - PTF) manteve-
se lenta apesar do crescimento exponencial do progresso tecnológico e dos
investimentos em inovações. Esta encarnação mais recente do paradoxo da
produtividade - o alegado fracasso da inovação tecnológica em conseguir
níveis mais elevados de produtividade - é um dos maiores enigmas
econômicos atuais que antecede o início da Grande Recessão, e para o qual
não há uma explicação satisfatória.11

Não é estranha a percepção de que o mundo do trabalho está mudando, bem


como ainda são visíveis às implicações para algumas atividades. Há substancial
probabilidade que a automação substitua boa parte do trabalho humano. Nesse
caminho, foi disponibilizado estudo que indica a previsão de como algumas profissões
serão afetadas, considerando o mercado laboral dos Estados Unidos, estima-se que
47% das profissões estão em risco.12 Os dados podem ser utilizados como paradigma
para outros lugares no mundo.
No contraponto da eliminação de empregos, estima-se que outras funções
serão criadas, porém sem precisar o nível de qualificação necessária para sua
execução. As restrições para o implemento e uso das novas tecnologias sofrem
divergências, especificamente quanto ao seu custo-benefício. Por um lado, a defesa
da automação, com as considerações apontadas:

Diante da escala das transições de trabalhadores que descrevemos, uma


possível reação seria tentar diminuir o ritmo e o alcance da automação na
tentativa de preservar o status quo. Mas isso seria um erro. Embora uma
adoção mais lenta da automação possa limitar a escala das transições da
força de trabalho, isso também restringiria as contribuições que essas
tecnologias podem trazer para o dinamismo empresarial e o crescimento
econômico. Devemos adotar essas tecnologias, mas também enfrentar as
transições da força de trabalho e os desafios que elas trazem. Em muitos
países, isso poderá exigir uma iniciativa do mesmo porte do Plano Marshall,
envolvendo investimento sustentável, novos modelos de treinamento,

11 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2019. p. 38.
12 FREY Carl Benedikt; OSBORNE Michael. WILL ROBOTS TAKE MY JOB?. Disponível em:
<https://willrobotstakemyjob.com/>. Acesso em: 2 mar. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

96
programas para facilitar as transições dos trabalhadores, esforços para
preservar sua renda e colaboração entre os setores público e privado.13

Na linha do debate, destacamos projeto de lei em andamento na Câmara dos


Deputados, cuja justificativa indica a mencionada necessidade de meios para
abrandar os efeitos das novas tecnologias. O referido projeto de autoria do deputado
Eduardo Bismarck: “Estabelece princípios, direitos e deveres para o uso de
inteligência artificial no Brasil, e dá outras providências”.14 Apresentada a proposta do
conceito legal de sistema de inteligência artificial, conforme inciso I, artigo 2.º: “o
sistema baseado em processo computacional que pode, para um determinado
conjunto de objetivos definidos pelo homem, fazer previsões e recomendações ou
tomar decisões que influenciam ambientes reais ou virtuais”.15
O projeto está em andamento, carente ainda de debate com a comunidade
científica, pessoas e entidades que serão afetadas. O detalhamento da proposta é
necessário, mas sem espaço para aprofundamento neste estudo. Destacamos,
entretanto, que foram inseridas disposições com intuito de proteção trabalhista. Por
exemplo, delineado como fundamento ao uso da inteligência artificial a livre iniciativa
e livre concorrência, atrelada a igualdade, não discriminação e respeito aos direitos
trabalhistas.
O uso da IA deverá ter por objetivo a promoção do aumento da produtividade
brasileira, com o relacionamento do crescimento inclusivo, do bem-estar da sociedade
e da redução das desigualdades sociais e regionais, dentre outros relacionados no
artigo 5.º do mencionado projeto de lei. A proposta adota ainda seis princípios para o
uso responsável da IA, destacando-se o da finalidade de promover o desenvolvimento

13 MANYIKA, James; LUND Susan; CHUI, Michael; BUGHIN, Jacques; WOETZEL, Jonathan;
BATRA, Parul; KO, Ryan; SANGHVI, Saurabh. O Futuro do Mercado de Trabalho: Impacto em
Empregos, Habilidades e Salários. McKinsey Global Institute. Nov. 2017. Disponível em:
<https://www.mckinsey.com/featured-insights/future-of-work/jobs-lost-jobs-gained-what-the-future-of-
work-will-mean-for-jobs-skills-and-wages/pt-br#part%201>. Acesso em: 14 maio 2020.
14 BRASIL. Projeto de Lei 21, de 4 de fevereiro de 2020. Cria o marco legal do desenvolvimento e
uso da Inteligência Artificial (IA) pelo poder público, por empresas, entidades diversas e pessoas
físicas. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236340>. Acesso em:
16 maio 2020.
15 BRASIL. Projeto de Lei 21, de 4 de fevereiro de 2020. Cria o marco legal do desenvolvimento e
uso da Inteligência Artificial (IA) pelo poder público, por empresas, entidades diversas e pessoas
físicas. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236340>. Acesso em:
16 mai. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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sustentável e o da centralidade no ser humano com respeito à dignidade humana, à
privacidade e à proteção de dados pessoais e aos direitos trabalhistas.16
Cada vez mais a sociedade está envolvida na já mencionada dicotomia de
capital e trabalho, sem a mínima condição de fugir da realidade de que o trabalho deve
ser mantido e protegido. Uma norma de regulação e restrição à implantação de novas
tecnologias vai precisar conciliar os diversos interesses, visando o desenvolvimento
tecnológico sustentável.

3 SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHADOR NA REVOLUÇÃO 4.0

A Constituição Federal, ainda jovem em efetividade, implantou direitos


trabalhistas fundamentais para a mitigação da miséria e desigualdade social. Sem
afastar outras normas de emancipação da classe trabalhadora, foi disciplinado o
direito à redução dos riscos inerente ao trabalho, por meio de normas de proteção à
saúde, segurança e higiene nas relações de trabalho.17 Como exemplo de tais
normas, considera-se a recepção constitucional das Normas Regulamentadoras
(NR).18
A temática da inovação tecnológica e o direito à saúde e segurança no trabalho
devem ser vistos com cuidado, para não se levar a um anacronismo. As NR visam a
proteção do trabalhador e não do sistema produtivo. As novas tecnologias devem
observar as regras preventivas e se adequar a análise do risco. Inexiste lógica de uma
norma ser adaptada a determinada tecnologia, em prejuízo da segurança humana,
meramente porque a tal tecnologia representa uma inovação produtiva a ser
implementada.

16 BRASIL. Projeto de Lei 240, de 11 de fevereiro de 2020. Cria a Lei da Inteligência Artificial, e dá
outras providências. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236943>. Acesso em:
2 maio 2020. O referido projeto foi anexado ao PL 21/2020. Apresenta propostas de regulamentação
da IA, porém não há disposição específica sobre proteção aos trabalhadores afetados.
17 BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF, 05 out. 1988. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 2 maio
2020.
18 BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Portaria n.º 3.214, de 08 de junho de 1978. Aprova as
Normas Regulamentadoras - NR - do Capítulo V, Título II, da Consolidação das Leis do Trabalho,
relativas a Segurança e Medicina do Trabalho. Diário Oficial União, Brasília, DF, 06 set. 1978.
Disponível em: <https://www.trt2.jus.br/geral/tribunal2/ORGAOS/MTE/Portaria/P3214_78.html>.
Acesso em: 25 set. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

98
Ademais, na alteração do meio ambiente do trabalho, deve prevalecer o
princípio da precaução. Nesse sentido, entendimento do ministro do STF Roberto
Barroso: “… o princípio da precaução, que vale também para o ambiente do trabalho,
pelo qual, sempre que houver risco ou incerteza, deve ser favorecida a posição mais
conservadora e protetiva.” 19
Ao mesmo tempo em que as etapas das revoluções industriais avançaram,
cada vez mais se incrementou o uso de tecnologias, porém a prevenção de acidentes
e doenças ocupacionais continuou como tema relevante. Devemos ampliar a prática
preventiva, pois as normas fundamentais não albergam retrocesso. A inovação deve
ser harmoniosa com os direitos postos, inexistindo prevalência do interesse
econômico.
A insegurança gerada pela revolução digital é ampla e atinge a sociedade como
um todo, mas afeta o trabalhador de forma direta e imediata. A imprevisibilidade da
digitalização acarreta angústia sobre o futuro. Como serão possíveis a adequação e
a superação das novas formas de trabalho? Quais os efeitos das novas tecnologias
na saúde dos trabalhadores e quais as melhores medidas preventivas, quando se
vislumbram severos conflitos no âmbito da saúde mental? Sobre o tema:

As questões que esse futuro coloca, me parece, à saúde mental são: qual o
papel que é possível a mim (trabalhador) nesse cenário? Tenho condições
(qualificações) para existir nesse mundo do trabalho? Se não, há garantias
ou direitos que me permitam sobreviver? Qual o custo desse trabalho à vida?
Esta última pergunta se refere ao trabalho, quando aparece, que surge como
oportunidade, mas se configura como precário, tanto nas condições da
execução do trabalho quanto nas formas que produz a subjetividade do
trabalhador. Essas incertezas e precarizações, a meu ver, se estabelecem
atualmente como os efeitos mais visíveis na saúde mental dos
trabalhadores.20

A questão da saúde mental dos trabalhadores envolvidos na era digital é objeto


de estudo da OIT e OMS, visando propiciar recomendações e fomentar o debate sobre
a necessidade de atenção política e social sobre o tema. 21

19 CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais Julgados do STF e do STJ comentados.


Salvador: Editora Jus Podivm, 2020. p. 57.
20 CRUZ, Daniel Viana Abs da. Incertezas e precarização são os efeitos mais visíveis na saúde
mental dos trabalhadores. Revista do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, São Leopoldo, RS,
edição 544, p. 22, nov. 2019.
21 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comissão da OIT pede que saúde seja mais
valorizada no ambiente de trabalho. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/comissao-da-oit-
pede-que-saude-seja-mais-valorizada-no-ambiente-de-trabalho/>. Acesso em: 21 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

99
O risco decorrente de implementação de novas tecnologias, principalmente
naquelas situações que acarretem demissões ou alteração substancial nas atividades
e meio ambiente de trabalho, deve ser considerado o alto risco psicossocial. Nesse
caminho, “os altos níveis de desemprego, em particular na ausência de medidas
adequadas de proteção social, também podem ter consequências indesejáveis para
a saúde mental dos trabalhadores”.22 Como indicativo de proteção do risco
psicossocial:

Na União Europeia, dada a alta prevalência de problemas de saúde


(principalmente de saúde mental) relacionados às condições de trabalho, tais
como elevado estresse, violência no trabalho, assédio moral, entre outros,
foram estabelecidas diretrizes de um programa de gestão de riscos
psicossociais no trabalho Psychosocial Risk Management – European
Framework (PRIMA EF). Esse programa objetiva fornecer um modelo de
promoção de políticas e práticas de gestão desses riscos nos quais se prevê
identificação dos riscos, intervenções e avaliação das intervenções.23

O ser humano é uma construção de miséria e glória. Infelizmente, nessa


evolução, a miséria precede. Em muitos casos, a prevenção é banalizada e relegada
ao formalismo ou como obstáculo à produtividade. Milhares de acidentes de trabalho
e doenças ocupacionais tornam-se, infelizmente, meros dados estatísticos, quando
poderiam ser evitados, utilizando técnicas preventivas, em vez de ações reparadoras
após a exacerbação do problema. A análise de risco psicossocial, embora
normatizada para algumas funções, sofre a crítica pela omissão de normas mais
abrangentes:

Sendo assim, percebe-se, no âmbito jurídico, que o conceito de “riscos


psicossociais no trabalho” é absolutamente ignorado pelas normas que
compõem o ordenamento jurídico brasileiro, demonstrando que apesar de se
intitular Estado democrático “de direito”, o Brasil é altamente tolerante com o
intolerável – apesar do reconhecimento por parte da Previdência Social dos
transtornos mentais causados pelo trabalho, não há um movimento no
sentido de prevenir o problema.24

22 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Estresse no local de trabalho: É hora de


aliviar o fardo. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/noticias/WCMS_475248/lang--
pt/index.htm>. Acesso em: 10 maio 2020.
23 FISCHER, Frida Marina. Editorial: Relevância dos fatores psicossociais do trabalho na saúde do
trabalhador. Revista de Saúde Pública, São Paulo, SP, v 46, p. 402, 2012. Disponível em:
<https://www.scielo.br/pdf/rsp/v46n3/a01.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2020.
24 DUARTE, Renan Fernandes; COSTA, Jackeline Ferreira da. O Papel do Estado na Prevenção
dos Riscos Psicossociais nas Relações de Trabalho. II Seminário Internacional de Pesquisa em
Políticas Públicas e Desenvolvimento Social, UNESP, Franca, SP, p. 2. 2016. Disponível em:
<https://www.franca.unesp.br/Home/Pos-graduacao/-

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

100
No processo de industrialização, foram estabelecidas regras restritivas e de
proteção, visando mitigar os riscos ocupacionais num mundo cada vez mais dominado
pela automação. Abrigados no conceito de direito fundamental, foram recepcionados
os mandamentos consolidados de proteção, conforme especificado no Título II,
capítulo V (DA SEGURANÇA E DA MEDICINA DO TRABALHO), da Consolidação das
Leis do Trabalho - CLT.
As Normas Regulamentadoras são verdadeiras cápsulas jurídicas de
salvaguarda ao trabalho em ambiente hostil. Normas preventivas por essência, pois
buscam o equilíbrio entre produtividade e vida. As inovações, em destaque na
atualidade, induzem a necessidade de se alcançar novas formas de trabalho sob
advento da era da conectividade, bem como exigem meios preventivos de superação
de novos riscos ocupacionais e das dificuldades impostas aos trabalhadores afetados.
Estamos no momento certo de incrementar medidas preventivas face ao
aumento de uso das novas tecnologias. Uma alternativa ao debate seria a criação de
norma específica para a realidade da revolução 4.0. O objeto seria a identificação de
rupturas no meio ambiente de trabalho, visando a implantação de sistemas de
proteção à saúde e segurança do trabalhador inserido nesse processo de
readequação de suas funções laborais.
Na formalização de uma norma 4.0, poderiam ser albergados procedimentos
de monitoramento dos projetos de digitalização, em cada unidade produtiva, com a
análise preventiva da probabilidade de automação e respectivos meios de eliminação
dos riscos ocupacionais inerentes. Estabelecer formulações e determinações práticas
de convivência e superação das novas formas de trabalho, com a efetivação de
capacitação técnica sistemática.
A necessária adoção de sistema preventivo no processo de automação é
essencial para a redução dos infortúnios e também como balizador para indicar o
sucesso econômico do uso de novas tecnologias na produção. A continuada prática
de capacitação dos trabalhadores, inclusive pelo método de treinamento on-the-job,
sistema em que a própria empresa treina sua força de trabalho, se mostra promissor
para superar os desafios vindouros. Nesse sentido, a manifestação:

planejamentoeanalisedepoliticaspublicas/iisippedes2016/artigo-sippedes-final.pdf>. Acesso em: 1 jun.


2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

101
Oferecer oportunidades de reciclagem profissional e incentivar as pessoas a
adquirirem novas habilidades com foco no mercado ao longo de toda a vida
será um desafio crítico. Para alguns países, este será o desafio fundamental.
A reciclagem profissional no meio da carreira será cada vez mais importante
à medida que as habilidades necessárias para ter uma carreira bem-sucedida
mudam ao longo do tempo. As empresas poderão liderar esta frente em
algumas áreas, inclusive oferecendo treinamento on-the-job e oportunidades
para os trabalhadores atualizarem e aprimorarem suas habilidades.25

Observa-se que as alterações introduzidas nos métodos de trabalho pelas


novas tecnologias sofrem constantes atualizações. O trabalhador precisa está em
permanente processo de qualificação para continuar no mercado de trabalho. Isso
gera um estresse a mais, pois o emprego 4.0 exige o profissional criativo, capaz de
gerir pessoas e tomar decisões, sempre fincado no critério de inovação tecnológica
do momento.
As empresas devem integrar os esforços de propiciar caminhos de superação.
O novo trabalhador exigido pela inovação, está inserido num sistema de contínua
reinvenção. Em relatório da OIT, foi utilizada a nomenclatura de força laboral adaptável
e traz o alerta para a mencionada participação das empresas no processo de
qualificação, como forma de se manterem competitivas.26
Adiante será comentado o projeto de lei n. º 21/2020, que pretende estabelecer
o marco do uso da Inteligência Artificial no Brasil, antecipando, destaquem-se dois
artigos que direcionam para medidas preventivas. Estabelece as diretrizes para
atuação do poder público, referindo-se a “capacitação humana e sua preparação para
a reestruturação do mercado de trabalho, à medida que a inteligência artificial é
implantada”27, conforme disposto no inciso V, artigo 10 do citado projeto de lei. O

25 MANYIKA, James; LUND Susan; CHUI, Michael; BUGHIN, Jacques; WOETZEL, Jonathan;
BATRA, Parul; KO, Ryan; SANGHVI, Saurabh. O Futuro do Mercado de Trabalho: Impacto em
Empregos, Habilidades e Salários. McKinsey Global Institute. Nov. 2017. Disponível em:
<https://www.mckinsey.com/featured-insights/future-of-work/jobs-lost-jobs-gained-what-the-future-of-
work-will-mean-for-jobs-skills-and-wages/pt-br#part%201>. Acesso em: 14 maio 2020.
26 INTERNACIONAL LABOUR ORGANIZATION. Transformacion Empresarial: nuevas
oportunidades para las organizaciones empresariales. Oficina Internacional del Trabajo y
Organización Internacional de Empleadores, Ginebra: OIT y OIE, p. 12, 2019. Disponível em:
<https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_dialogue/---
act_emp/documents/publication/wcms_724016.pdf>. Acesso: 02 maio 2020.
27 BRASIL. Projeto de Lei 21, de 4 de fevereiro de 2020. Cria o marco legal do desenvolvimento e
uso da Inteligência Artificial (IA) pelo poder público, por empresas, entidades diversas e pessoas
físicas. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2236340>. Acesso em:
16 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

102
dispositivo indica a necessidade de capacitação do trabalhador afetado pela nova
tecnologia.
O artigo 15 do citado projeto, estabelece dentre outras providências, a
formulação pelo setor empresarial de estudos e planos para promover a capacitação.
A responsabilidade caberia ao Poder Público e sociedade civil como um todo, visando
“formular e fomentar estudos e planos para promover a capacitação humana e para a
definição de boas práticas para o desenvolvimento ético e responsável dos sistemas
de inteligência artificial no País”.28
Um plano preventivo de boas práticas do uso das novas tecnologias, quando
passível de alterar a vida das pessoas, deveria ser formulado antes da implantação
da inovação no sistema produtivo. Adaptar as cadeias de produção para a visão de
desenvolvimento social igualitário, harmonizando os ganhos de capitais e lucros
sociais decorrentes. Segue a sugestão:

Assumamos, portanto, uma responsabilidade coletiva por um futuro em que


a inovação e a tecnologia estão focadas na humanidade e na necessidade
de servir ao interesse público, e estejamos certos de empregá-las para
conduzir-nos para um desenvolvimento mais sustentável. […] podemos usar
a quarta revolução industrial para elevar a humanidade a uma nova
consciência coletiva e moral, baseada em um senso de destino comum.29

Construir um ambiente de trabalho seguro e saudável deve ser o balizador na


aplicação da legislação e na formulação de políticas públicas, garantindo o avanço da
tecnologia, sem relegar o direito à sobrevivência do trabalho digno.

4 A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR EM FACE DA AUTOMAÇÃO

4.1 CONSIDERAÇÕES GERAIS REFERENTES À AUTOMAÇÃO

A Constituição Federal estabeleceu o direito social de proteção, conforme


disposto no artigo 7.º, inciso XXVII: “Proteção em face da automação, na forma da
lei”30. Os direito e garantias fundamentais estão previstos no título II, compreendendo

28 Ibidem
29 SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2019. p. 114.
30 BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 2 maio
2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

103
os artigos 5 a 17. No parágrafo 1.º do artigo 5.º consta que: “As normas definidoras
dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”31.
Podemos admitir que vivemos numa época de luz no campo dos direitos
sociais. A Constituição Federal de 1988 não se furtou ao tema e garantiu direitos
representativos de décadas de lutas. Nesse sentido: “A Constituição de 5 de outubro
de 1988 foi de todas as Constituições brasileiras aquela que mais procurou inovar
tecnicamente em matéria de proteção dos direitos fundamentais”. 32
A efetividade da proteção do trabalhador deve ser compromisso fiel do
aplicador do direito, sob pena de descumprimento de princípio fundamental. A doutrina
remete a tripla função dos princípios: informativa, interpretativa e normativa.
Destacamos a função interpretativa: “A função interpretativa é destinada ao aplicador
do direito, pois os princípios se prestam à compreensão dos significados e sentidos
das normas que compõem o ordenamento jurídico”.33
Afastado o entendimento de proteção formal, posto que a nova hermenêutica
constitucional adotou a máxima efetividade e a imediaticidade de aplicação dos
direitos sociais na sua condição de direito fundamental. Há considerações sobre o que
se denomina norma de eficácia limitada, em que dependeria de outra norma
delineadora para a exigibilidade do direito constitucional, porém tal entendimento
encontra-se superado.34 Na ausência de tal lei, não há impedimento para que o direito
seja concretizado:

De longa data se encontra superada a concepção de Constituição como um


documento político, que conteria uma convocação à atuação do Poderes
Públicos. Por essa visão antiga, que deita raízes no constitucionalismo
francês e prevaleceu no Brasil até muito recentemente, a concretização de
um direito fundamental dependeria ou da intermediação do legislador ou de
uma atuação discricionária da Administração. […] Nos dias atuais, já não se
nega o caráter jurídico e, pois, a exigibilidade e acionabilidade dos direitos
fundamentais, na sua múltipla tipologia.35

31 Ibidem
32. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 30.ª ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2015, p. 560.
33 LEITE, Carlos Henrique Bezerra Leite. Curso de Direito Processual do Trabalho. 16ª ed. São
Paulo: LTR, 2018. p. 48.
34 JOSÉ FILHO, Wagson Lindolfo. A eficácia do direito fundamental da proteção em face da
automação previsto no inciso XXVII, do art. 7°, da Constituição Federal de 1988. Revista Jus
Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4820, 11 set. 2016. Disponível em:
<https://jus.com.br/artigos/35702>. Acesso em: 12 maio 2020.
35 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 9ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2020. p. 503.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

104
Não observar o direito de proteção ao trabalhador, configuraria um retrocesso
ao mandamento constitucional. Em julgado do STF, o ministro Celso de Mello
destacou a vedação de retrocesso dos direitos trabalhistas e que a cláusula proibitiva
de tal retrocesso “traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão
negativa pertinente aos direitos sociais, a impedir que os níveis de concretização
dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos, degradados ou
suprimidos.” 36
Na sistemática da inovação em vigor, a alteração do trabalho pela tecnologia
não é condicional, mas contínua e temporal. A pergunta não é se, mas quando
determinada atividade vai ser afetada. Embora não se tenha uma data precisa, pois a
automação é um processo cuja velocidade depende de fatores sociais e políticos, mas
pode-se identificar que a necessidade da produção acelera o evento.
É necessário o debate sobre a restrição do desenvolvimento tecnológico,
determinando as diferenças entre a inovação que cause bem-estar coletivo e aquela
de mero corte de gastos. Por exemplo, o caso da tentativa de implantação do
autoatendimento em posto de abastecimento de combustíveis, vedado pela lei
9.956/2000. Tal situação geraria um ônus à coletividade, em detrimento da mera
redução de custos. No mesmo sentido, a prática que está sendo implantada no Brasil
de incluir o caixa de autoatendimento em supermercado, apresentando-se como mera
redução de custo, pois não se demonstra melhoria do ambiente de trabalho e ainda
impõe ônus ao consumidor.
Na questão do regulamento em face da automação, o que se pretende é
estipular mecanismo de salvaguarda, pois com a possível extinção de postos de
trabalho e aumento da população ativa, teremos um contingente de pessoas aptas ao
trabalho, porém com risco de não ter ocupação definida. A readaptação ao trabalho
não é um intento simples, diante da rapidez com que as qualificações são exigidas.
Será que tais dificuldades serão suplantadas diante da inexistência de novas
ocupações?

36 CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais Julgados do STF e do STJ comentados.


Salvador: Editora Jus Podivm, 2020. p. 57.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

105
O ideal é que o processo de digitalização seja favorável a todos os atores
envolvidos e se torne o objetivo de desenvolvimento a ser alcançado. O enlace da
produtividade e eliminação da desigualdade social. Por outro lado, um sistema de
automação que seja meramente redutor de custo, sem nenhuma contribuição para
melhoria dos mencionados efeitos do trabalho, produzindo ainda desemprego, deverá
ser rechaçado pelo Direito. Nessa seara:

O direito deve estar atento ao seu papel nesse cenário para, de um lado, não
dificultar demasiadamente o desenvolvimento econômico e tecnológico em
andamento, e, de outro, regular com eficácia essas práticas, visando coibir
abusos e protegendo os direitos constitucionais vigentes.37

Há defesa de cenário com novas funções, inclusive as decorrentes de


oportunidades geradas pelo desenvolvimento da internet das coisas (IoT – internet of
things), que abrigaria o trabalhador afetado. Há também sugestão de renda mínima
para os excluídos, mas a questão é se haveria vontade política e recursos financeiros
para tanto. No aspecto empresarial, os lucros da tecnologia são privados e esses
grupos não se mostram simpáticos em compartilhar tais recursos. Nesse caminho:

Assim, usualmente a IoT é apresentada como uma oportunidade suscetível


de aumentar a produtividade e a inovação, estimulando novos modelos de
negócio. Todavia, cabe destacar que a produtividade, a inovação e a geração
de novos negócios estão sendo lideradas por um grupo muito restrito de
multinacionais, ávidas por dados pessoais e, em geral, muito mais favoráveis
à otimização fiscal do que à preservação de empregos potencialmente
eliminados para a IoT.38

Importante o reconhecimento de que a tecnologia não afeta exclusivamente


aos empregados, considerados os trabalhadores com vínculo empregatício. A
proteção constitucional é direcionada aos trabalhadores em geral, conforme disposto
no caput do artigo 7.º do texto constitucional, por conseguinte, a lei regulamentadora
deve ser abrangente na busca de identificar os efeitos sobre as demais relações
laborais e ampliar o alcance da proteção.
No caminho dessas considerações, alguns pontos são observados no projeto
de lei em andamento na Câmara dos Deputados, cujo debate se mostra fundamental
para busca do consenso entre desenvolvimento empresarial e direito dos

37 MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018. p. 106.
38 BELLI, Luca. A internet das coisas e as perguntas fundamentais que ninguém está fazendo.
In: MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018. p. 187.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

106
trabalhadores. Deve ser levado em conta os diversos aspectos da aplicação
tecnológica e como ela afeta as relações de trabalho. A seguir, considerações sobre a
tentativa de regulamentação do citado direito constitucional.

4.2 PROJETOS DE REGULAMENTAÇÃO DA PROTEÇÃO EM FACE DA


AUTOMAÇÃO.

4.2.1 Projeto de Lei n.º 2.902/1992

Houve tentativa de regulamentação do citado artigo 7.º, inciso XXVII, da


Constituição Federal, por meio do projeto de lei n.º 2.902, protocolado em 25 de maio
de 1992, pelo então senador Fernando Henrique Cardoso.39
Pretendia-se a criação de comissão paritária na empresa para negociação dos
efeitos negativos da automação e que os sindicatos estabelecessem, em negociação
coletiva, mecanismos de readaptação e reabsorção dos empregados excluídos.
Estipulava ainda que Ministério do Trabalho deveria incentivar a criação de centros de
pesquisa e comissões interdisciplinares, para orientação de processos visando
reciclagem de mão de obra. No artigo 4.º do citado projeto, previa instauração no
ensino fundamental e médio de disciplinas sobre o tema dos avanços da computação
e informática.
Na Câmara dos Deputados, foram anexados ao PL 2.902 outros sete projetos
sobre o tema. Procurou-se estabelecer uma oneração ao empregador que adotasse
a automação com exclusão de emprego, impondo que a multa indenizatória seria em
dobro, ou concessão de benefício fiscal para quem não demitisse, neste caso,
proposta pelo então deputado Paulo Paim. Em outra proposta anexada, propunha a
vedação de demissão de trabalhadores em virtude da automação, determinando
treinamento e readequação ou aposentadoria proporcional compulsória.

39 BRASIL. Projeto de Lei 2.902, de 25 de maio de 1992. Regula o inciso XXVII do artigo 7º da
Constituição Federal, que trata da proteção ao trabalhador em face da automação e determina outras
providências. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=18794>. Acesso em:
12 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

107
A proposta original e projetos anexados foram rejeitados em 20 de maio de
2009. Na rejeição dos projetos, o relator da Comissão de Trabalho, de Administração
e Serviço Público, deputado Vicentinho, justifica:

Entendemos que a melhor forma de enfrentar os malefícios dos processos de


automação, necessariamente passa pela larga escala do uso de recursos
para reciclagens com vistas à requalificação dos trabalhadores, para que eles
se adaptem às novas demandas e exigências do mercado de trabalho, e não
pela oneração das empresas que adotam os recursos tecnológicos para se
tornarem mais competitivas.
Nesse sentido, o Ministério do Trabalho e Emprego já vem atuando de forma
exemplar, através, por exemplo, dos Programas Estaduais de Qualificação –
PEQ’s e as parcerias nacionais e regionais que implementam o Plano
Nacional de Qualificação do Trabalhador – PLANFOR, oferecendo
qualificação profissional a uma boa parcela da população economicamente
ativa utilizando recursos do FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador. 40

Em resumo, a resposta do parlamento foi a defesa de um sistema educacional


formador de pessoas conscientes dos novos desafios da empregabilidade, como
paliativo no processo de alteração das relações de trabalho.

4.2.2 Projeto de Lei n.º 1.091/2019

A referida previsão constitucional de proteção em face das novas tecnologias,


ensejará interpretações extensivas ao termo diante das alterações no meio produtivo,
principalmente com o advento da referida revolução digital. O humano tecnológico de
1988 é diverso do sobrevivente no meado de 2020.
Outra tentativa de regulamentação, consta no projeto de lei n.º 1.091/19, em
trâmite na Câmara dos Deputados. Proposta de autoria do deputado Wolney Queiroz,
apresentada em 25 de fevereiro de 2019.41
Foi proposto um conceito legal do termo automação, conforme parágrafo
primeiro, artigo 1º do citado projeto: “método pelo qual se utilizem quaisquer

40 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Diário da Câmara dos Deputados. Ano LXIV – n.º 093 de 02 de
junho de 2009. p. 179. Disponível em:
<http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD02JUN2009.pdf#page=177>. Acesso em: 10 maio
2020.
41 BRASIL. Projeto de Lei 1.091, de 25 de fevereiro de 2019. Regula o disposto no inciso XXVII, do
art. 7º, da Constituição Federal, que estabelece o direito de o trabalhador urbano e rural ter "proteção
em face da automação, na forma da lei". Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192959>. Acesso em:
20 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

108
equipamentos, mecanismos, processos ou tecnologias para realização de trabalho,
ou para seu controle, com reduzida ou nenhuma interferência humana”.42 Na linha do
projeto anteriormente mencionado, prevê a obrigatória precedência de negociação
coletiva para a implantação de automação, caso contrário, os atos jurídicos tendentes
à automação seriam nulos.
Destacamos ainda no mencionado projeto de lei, a previsão de processos de
readaptação e capacitação para novas funções. Acrescida a previsão de estabilidade
provisória, vedando demissão sem justa causa nos primeiros seis meses após a
automação, ampliado o prazo para dois anos no caso de empregados readaptados
para outras funções. A dispensa imotivada e sem a observação da lei proposta,
ensejaria pagamento dobrado de todas as verbas rescisórias. Vedada também a
dispensa coletiva massiva de trabalhadores, considerado o quantitativo de dez por
cento do total de empregados de uma mesma unidade de trabalho na respectiva
empresa.
O citado PL 1.091/199, artigo 14, destaca que no prazo de até 60 dias após a
publicação da lei: “O Ministro do Trabalho editará portaria discriminando, em rol
exauriente, todos os métodos considerados de automação, nos termos do parágrafo
anterior, e a atualizará anualmente”.43 Consta ainda a possibilidade de tributação de
empresas, considerando índice de rotatividade de emprego.
Conforme dados de tramitação, foi transcorrido prazo regimental, sem
apresentação de emendas. O projeto encontra-se no aguardo de parecer do relator,
deputado Sérgio Vidigal (PDT-ES), na Comissão de Seguridade Social e Família
(CSSF).

42 Ibidem
43 BRASIL. Projeto de Lei 1.091, de 25 de fevereiro de 2019. Regula o disposto no inciso XXVII, do
art. 7º, da Constituição Federal, que estabelece o direito de o trabalhador urbano e rural ter "proteção
em face da automação, na forma da lei". Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192959>. Acesso em:
20 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

109
5 CONCLUSÃO

As etapas da revolução industrial foram impulsionando novas formas de


trabalho, revelando a necessidade de meios preventivos de identificação dos
problemas. O país precisa se desenvolver e para isso precisa dos recursos
tecnológicos.
É preciso reconhecer que desenvolvimento não pode alargar a desigualdade.
Não há caminho para igualdade e justiça social se os trabalhadores não forem
protegidos frente aos excessos da primazia da produção. Eis a questão: são
necessários o crescimento econômico e a proteção dos trabalhadores, harmonizando
essa disparidade dos grupos de interesses.
Os projetos de lei visando regular a aplicação de tecnologia são fundamentais
para que se mantenha o debate e seja encontrada uma solução viável. Pelo exemplo
histórico, a tecnologia somente produzirá desenvolvimento se houver compromisso
político e social na busca de consenso, respeitado o direito social.
O grande desafio é conciliar a manutenção do avanço tecnológico, aliada a
inserção do trabalhador nos benefícios da transformação. O amadurecimento dos
espaços de realização e criação da genialidade pelo trabalho. No caminho, resta ainda
a configuração de que o problema existe e deve ser debatido pela sociedade em busca
de soluções construtivas, trilhando o caminho da igualdade e compaixão.
No trabalho em minas de carvão na Grã-Bretanha, a atividade era limitada pelo
alto risco de intoxicação dos trabalhadores pela inalação de monóxido de carbono,
inclusive com o registro de inúmeras mortes. Na ausência dos modernos sensores
tecnológicos para detectar o perigo, foi utilizado um astucioso sistema, onde se
mantinha um canário preso numa gaiola. O pássaro ficaria em seu poleiro até ser
acometido pelos gases, quando se agitava ou desmaiava, dependendo do grau de
toxidade. No momento do alerta, os trabalhadores identificavam que o ambiente
estava perigoso. Imediatamente, forneciam oxigênio ao canário e deixavam o local.
Usando o paradigma do canário de mina, indica que não deveríamos entrar no
ambiente da revolução digital de forma inconsciente ou sujeitando nossa existência
ao acaso e ao improvável de que tudo vai se resolver. O canário da tecnologia não
canta mais e caiu do poleiro. E agora, o que deve ser feito?

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

110
REFERÊNCIAS
BELLI, Luca. A internet das coisas e as perguntas fundamentais que ninguém está
fazendo. In: MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora,
2018.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 30.ª ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2015.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 9ª ed.


São Paulo: Saraiva, 2020.

BRASIL. Projeto de Lei 21, de 4 de fevereiro de 2020. Cria o marco legal do


desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial (IA) pelo poder público, por
empresas, entidades diversas e pessoas físicas. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=22363
40>. Acesso em 16 mai. 2020.

BRASIL. Projeto de Lei 240, de 11 de fevereiro de 2020. Cria a Lei da Inteligência


Artificial, e dá outras providências. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1857143
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BRASIL. Constituição Federal. Artigo 7.º São direitos dos trabalhadores urbanos e
rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] inciso XXII:
redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e
segurança. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>
Acesso em: 02 de maio de 2020.

BRASIL. Projeto de Lei 2.902, de 25 de maio de 1992. Regula o inciso XXVII do


artigo 7º da Constituição Federal, que trata da proteção ao trabalhador em face da
automação e determina outras providências. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=18794
>. Acesso em: 12 maio 2020.

BRASIL. Projeto de Lei 1.091, de 25 de fevereiro de 2019. Regula o disposto no


inciso XXVII, do art. 7º, da Constituição Federal, que estabelece o direito de o
trabalhador urbano e rural ter “proteção em face da automação, na forma da lei”.
Disponível em:

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

111
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=21929
59>. Acesso em: 20 de maio de 2020.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais Julgados do STF e do STJ


comentados. Salvador: Editora Jus Podivm, 2020. p. 57.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Diário da Câmara dos Deputados. Ano LXIV – n.º 093
de 02 de junho de 2009. p 179. Brasília. Disponível em:
<http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD02JUN2009.pdf#page=177>
Acesso em: 10 maio 2020.

CRUZ, Daniel Viana Abs da. Incertezas e precarização são os efeitos mais visíveis
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Brasília: Organização Internacional do Trabalho (OIT), 2017.

ASPECTS OF THE DIGITAL REVOLUTION 4.0 IN WORK


RELATIONS: THE PROTECTION OF WORKER IN FACE OF
AUTOMATION

ABSTRACT
With the advancement of the so-called digital revolution,
questions arose about the future of employment and the
necessary means of protecting workers. In this article, the
characteristics of the so-called Revolution 4.0 and its implications
in the world of work were analyzed. Highlighted the intentions of
Brazilian legislators to regulate the constitutional right of
protection in the face of automation, provided for in item XXVII,
article 7 of the Federal Constitution, in order to mitigate the
effects inherent to changes in the production process. Also
analyzed a bill with a proposal to create a regulation for the use
of artificial intelligence in Brazil. In the context of innovation of
production, workers are inserted in an environment of uncertainty
and subject to the resulting psychosocial risks. Such a condition
requires a renewed debate and the search for solutions to this
new work reality. The moment requires the construction of
political and social consensus to promote technological
development, combined with the necessary elimination of social
inequalities. The benefit of technology must be collective and
needs the recognition of practices for eliminating occupational
risks and effective protection for workers excluded by
technological innovation.

Keywords: Industrial Revolution 4.0. Automation. New


technologies. Regulatory standard. Prevention.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

114
O TRABALHO ESCRAVO E A SUBORDINAÇÃO ESTRUTURAL NA
CADEIA PRODUTIVA DA CERA DA CARNAÚBA

Benedito de Lima e Silva Filho1


Sérgio Carvalho de Santana2

1 Introdução. 2 A economia da cera de carnaúba. 2.1 O trabalho escravo na


cadeia produtiva da cera de carnaúba. 2.2 As condições de trabalho
encontradas. 2.3 Estudo de caso. 2.3.1 Estudo de caso da atividade
econômica explorada. 2.3.2 Da cadeia produtiva. 2.3.3 Da constatação dos
vínculos de emprego informais. 2.3.4 Das condições degradantes de trabalho
e vida. 3. A subordinação estrutural na cadeia produtiva da cera de carnaúba.
4 Conclusão. Referências.

RESUMO
O presente artigo identifica que a indústria da cera da carnaúba utiliza na
primeira etapa do processo produtivo - extração do pó - pequenos
empreendedores que na maioria das vezes são hipossuficientes
economicamente e/ou são financiados pelas indústrias ou pegam dinheiro
emprestado para custear a atividade. A hipossuficiência econômica destes
empreendedores se materializa na informalidade da relação de emprego,
bem como no descumprimento das normas de segurança e saúde do
trabalho. As irregularidades encontradas nas frentes de trabalho e nos
alojamentos disponibilizados aos trabalhadores da extração da palha de
carnaúba foram suficientes para caracterizá-las como condições análogas
às de escravo, na modalidade trabalho degradante. O presente artigo,
sustentado em uma breve revisão do conceito de subordinação estrutural
e em dados colhidos pelos próprios autores em fiscalizações no setor de
extração de pó de carnaúba, bem como análise de relatórios do Grupo
Especial de Fiscalização móvel, defende que nos casos de hipossuficiência
dos produtores a indústria da cera da carnaúba deva ser a responsável pela
formalização da relação de emprego bem como disponibilizar as condições
adequadas de trabalho por haver a subordinação estrutural na cadeia
produtiva do seu produto.
Palavras-chave: Trabalho análogo a de escravo. Cera de carnaúba.
Subordinação estrutural.

1 Benedito de Lima e Silva Filho, mestre em Ergonomia e auditor fiscal do trabalho.


2 Sérgio Carvalho Santana, auditor fiscal do trabalho.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

115
1 INTRODUÇÃO

O presente artigo trata das relações de subordinação entre os trabalhadores


extratores do pó de carnaúba e as indústrias da cera de carnaúba, os reais
beneficiários da produção. Os princípios da subordinação tradicional não tem sido
suficientes para resguardar os direitos desses trabalhadores, mesmo sendo
essenciais na cadeia produtiva, uma vez que a extração do pó da carnaúba na maioria
das vezes está a cargo de pequenos intermediários que, por serem economicamente
hiposuficientes, não formalizam as relações de emprego nem garantem as condições
de segurança e saúdes dos trabalhadores o que foi constatado durante fiscalizações
realizadas pelos autores e em análise de relatórios de fiscalizações do Grupo Especial
de Fiscalização móvel – GEFM. Diante disto, este artigo calcado na teoria da
subordinação estrutural defende que a responsabilidade de formalizar a relação de
emprego, nos casos em que o extrator do pó é hipossuficiente econômico, deve ficar
a cargo da indústria.

2 A ECONOMIA DA CERA DE CARNAÚBA

A carnaubeira é uma palmeira nativa do Brasil, encontrada no Ceará, Piauí,


Maranhão e Rio Grande do Norte, não existindo em outro lugar do mundo. Ela está
tão presente no cenário cearense que o governo estadual, através do Decreto-Lei n°
27.413, de 30 de março de 20043, em seu artigo 1°, instituiu a carnaúba como símbolo
do Estado do Ceará.
Conhecida como "A árvore da vida" por possuir múltiplas aplicações, a
carnaubeira é utilizada integralmente desde o seu fruto que é comestível a madeira
que é usada na construção civil e a palha no artesanato. Mas é o pó, produzido no
período de estiagem para diminuir a transpiração das folhas, usado na produção da
cera, que tem maior valor econômico. A cera é cobiçada no mercado internacional por
conta do largo espectro de utilização. Devido à grande procura a cera de carnaúba

3Decreto-Lei n° 27.413, de 30 de março de 2004.


<http://memorial.jaguaruana.ifce.edu.br/carnauba.htm>. Acesso em: 20 de julho de 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

116
figura entre os principais produtos da pauta de exportação do Ceará e Piauí, principais
exportadores do Brasil.
O processo de produção da cera ocorre no segundo semestre de cada ano,
durante o período de seca, e raramente estende-se até o mês de janeiro do ano
seguinte. A extração do pó se inicia com o corte das palhas, seguido da secagem e
do batimento para sua extração.
O modus operandi da extração é rudimentar e secular, mantendo-se inalterado
ao longo do tempo, sem nenhuma inovação tecnológica substancial e faz parte da
cultura e da economia desses estados.
O corte das folhas é feito no período seco, variando de julho a dezembro. A
palha da carnaúba é cortada na altura do talo por um vareiro (derrubador) que utiliza
uma vara comprida com uma foice bem amolada presa na ponta. As palhas adultas
(verdes) são, então, separadas das palhas novas (olho).
Recolhidas as folhas, elas são postas para secar ao sol, etapa imprescindível
para possibilitar o desprendimento do pó, que é feito posteriormente pelo batimento
mecânico das folhas.
O pó extraído da parte central das folhas novas é conhecido como "pó de olho"
e produz a cera clara de cor amarelo ouro. Já o "pó de palha" é obtido de toda
extensão das folhas, produzindo a cera gorda ou arenosa, com a coloração amarela
alaranjada ou preta.
Segundo a FIEC – Federação das Indústrias do Ceará, o pó de carnaúba
depois de transformado em cera ganha status de produto nobre e é utilizado na
indústria farmacêutica, alimentícia, cosmética, eletrônica e polidoras em geral por
reunir os melhores atributos de qualidade no tocante a:

a) Brilho: é reconhecida como a melhor cera para polimento, sendo um


diferencial de marketing das empresas especializadas em polidores de
piso e automóveis;
b) Dureza e alto ponto de fusão: dura, permanece em estado sólido sob altas
temperaturas (ponto de fusão em torno de 84⁰ C) o que lhe garante alta
demanda em aplicações como revestimentos, isolantes e componentes
eletrônicos;
c) Baixa toxidade e tolerância para consumo humano: Diferentemente de
ceras minerais, sintéticas e derivadas de petróleo, a cera de carnaúba
pode ser utilizada em produtos em que há contatos ou ingestão humana
como cosméticos, alimentícios e farmacêuticos.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

117
No Ceará, os carnaubais são encontrados em quase todo o Estado, tanto no
sertão quanto no litoral. Os principais municípios produtores são: Granja, Camocim,
Moraújo, Santana do Acaraú, Morrinhos, Russas, Aracati, Sobral e São Gonçalo do
Amarante, entre outros. Oito indústrias monopolizam o beneficiamento do pó no Ceará
e cerca de 95% da cera produzida é exportada para os Estados Unidos, Europa e
Japão.
Segundo o Sindicado das Indústrias Refinadoras de Cera de Carnaúba no
Estado do Ceará, a extração, o refino e a comercialização da cera de carnaúba geram
aproximadamente 100 mil empregos diretos e indiretos nos estados produtores.
A cera de carnaúba ocupa a sétima posição na pauta de exportação do Ceará
e a segunda do Piauí, conforme dados do IBGE. O valor de exportações de cera de
carnaúba no Ceará superou US$ 71 milhões de dólares no ano de 2012, o que
representou 57,89% do total do produto exportado pelo Brasil. O Piauí exportou US$
47 milhões, representando 47% da cera exportada e o Rio Grande do Norte exportou
US$ 5,5 mil, o que representou 4,4% do total exportado (Fonte: AliceWeb - MDIC.
Elaboração UCP/INDI/FIEC).
A participação das ceras vegetais nas exportações cresceu de 1,38% para
5,28% entre os anos de 2003 a 2012, colocando-a na 7ª posição. No Piauí, a cera de
carnaúba ocupa, uma posição mais significativa ainda, a segunda posição na pauta
de exportação.
Apesar da importância econômica da indústria da cera nos Estados do Ceará
e Piauí, a base da sua cadeia produtiva é formada por pequenos produtores rurais ou
rendeiros que fazem a extração do pó com o mesmo modus operandi do começo do
século passado. Constatou-se durante as fiscalizações que as relações de trabalho
ocorrem em sua maioria na informalidade e que as condições de trabalho e moradia
são as mais precárias possíveis e muitas vezes submetendo os trabalhadores a
condições de trabalho análogas à escravidão, em razão das condições degradantes
em que são submetidos os trabalhadores.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

118
2.1 O TRABALHO ESCRAVO NA CADEIA PRODUTIVA DA CERA DE CARNAÚBA

Os primeiros indícios de trabalho análogo a de escravo na cadeia produtiva da


cera de carnaúba no estado do Ceará foram detectados no ano de 2012 pela equipe
de fiscalização rural da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Ceara
– SRTE/CE ao realizar rastreamento, em campo, das atividades rurais a fim de
subsidiar o planejamento de fiscalização no ano de 2013. Ficou evidente durante o
rastreamento que as condições de trabalho disponibilizadas aos trabalhadores na
extração do pó da carnaúba eram tão precárias quanto aquelas caracterizadoras de
situação de escravidão contemporânea encontradas pelo Grupo Especial de
Fiscalização Móvel de Combate ao Trabalho Análogo ao de Escravo – GEFM em
outras regiões do país.
Conforme análise dos relatórios de fiscalização de 2013 a 2019, os primeiros
resgates de trabalhadores devido às condições análogas às de escravo na cadeia
produtiva da cera de carnaúba no Ceará ocorreram em dezembro de 2013 quando o
Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego, resgatou
85 trabalhadores numa fazenda no município de Granja e 11 no município de
Barroquinha.
Depois do resgate de trabalhadores encontrados em condições análogas às de
escravo em 2013 na cadeia produtiva da cera de carnaúba no Ceará, a
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego - SRTE e o Grupo Especial de
Fiscalização Móvel - GEFM intensificaram nos anos seguintes a fiscalização na
atividade de extração do pó de carnaúba.
No ano de 2014 foram resgatados no Ceará 31 trabalhadores, sendo 6
trabalhadores nos municípios de Viçosa do Ceará, 12 em Granja e 13 em Caucaia.
O primeiro resgate no Piauí foi realizado em 2012 através de fiscalização da
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Piauí - SRTE/PI.
Em 2014 foram resgatados no estado do Piauí 61 trabalhadores em Picos, 52
em Parnaíba e 17 em Assunção do Piauí. Analisando os dados constatou-se que 30
dos resgatados em Luis Correia/PI eram oriundos dos municípios de Granja e 43 dos
trabalhadores encontrados na Ilha Grande de Santa Isabel/PI, eram de Santana do
Acaraú, municípios do Ceará.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

119
Em 2015, no Ceará foram resgatados 26 trabalhadores em Groaíras, 11 em
Granja e no Piauí a SRTE/PI resgatou 29 trabalhadores cearenses na cidade de
Cajueiro da Praia/PI vindos das cidades de Granja, Barroquinha e Viçosa do Ceará.
Em 2016, a equipe rural da SRTE/PI resgatou mais 90 trabalhadores da situação
análoga a de escravo nos municípios de São José do Divino, Cajueiro da Praia,
Esperantina, Santa Cruz do Piauí e São Francisco do Piaui.
Em 2016, não houve ações fiscais no setor no Estado do Ceará em função do
movimento grevista da categoria de auditoria fiscal do trabalho, que perdurou
principalmente durante o segundo semestre, época da extração da palha da carnaúba.
Em 2017, o Grupo Móvel resgatou 37 trabalhadores em situação de trabalho
análogo ao de escravo, nos estados do Piauí, Ceará e Maranhão. Desse total, 25
trabalhadores foram resgatados em duas propriedades rurais em Várzea Grande/MA,
marcando a entrada do Maranhão nessa triste estatística.
Em 2018, os grupos regionais do Piauí, Ceará e Maranhão e o grupo móvel
continuaram resgatando trabalhadores na cadeia produtiva da cera de carnaúba. No
Piauí, foram resgatados 06 trabalhadores no município de Batalha. No Maranhão,
foram resgatados pela equipe local 20 trabalhadores no município de Caxias,
enquanto no Ceará foram resgatados 03 trabalhadores no município de Beberibe. Já
o grupo móvel realizou ações fiscais no Maranhão, onde foram resgatados 13
trabalhadores no município de São Bernardo. O ano foi marcado principalmente pela
expansão das ações fiscais para o Rio Grande do Norte, onde o grupo móvel resgatou
14 trabalhadores no município de Carnaubais e 05 trabalhadores no município de
Ipanguaçu.
Em 2019, o grupo móvel continuou com seu foco nas condições de trabalho no
Rio Grande Norte, onde foram resgatados mais 09 trabalhadores em Assú e 04 em
Carnaubais. No Piauí, o grupo rural resgatou 25 trabalhadores no município de São
Joao da Serra.
No tópico a seguir far-se-á uma breve exposição das condições de trabalho
encontradas nas frentes de serviço de extração de pó de carnaúba durante as
fiscalizações realizadas pelos auditores e constantes nos relatórios de fiscalização.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

120
2.2 AS CONDIÇÕES DE TRABALHO ENCONTRADAS

A base da cadeia produtiva da cera de carnaúba é realizada principalmente por


pequenos produtores e arrendadores rurais, que na maioria das vezes são
hiposuficientes economicamente, conforme constatado pelos autores do presente
artigo e pelos relatórios de fiscalização do GEFM, por isso são financiados pelas
indústrias ou tomam empréstimos para custear a atividade, conforme declarações
colhidas durante as ações fiscais. Trata-se de uma atividade econômica
eminentemente extrativista. Devido a essa fragilidade econômica dos produtores
rurais, a informalidade alcançava nos primeiros anos das ações fiscais a quase
totalidade dos trabalhadores rurais envolvidos nesta primeira etapa de extração de
produção do pó.

Foto 01: Trabalhador da extração da palha de carnaúba sem Equipamentos de Proteção Individual –
EPI(Ceará/2013).

Fonte: SIT/DETRAE.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

121
A extração do pó realizada ao ar livre, em meio à vegetação, consiste num
encadeamento de atividades que se inicia com vareiros fazendo a derrubada manual
das folhas de talos espinhosos, por meio de uma ferramenta rústica de corte - espécie
de foice - fixada na ponta de uma longa vara de madeira. Em seguida, os talos que
ficam presos no emaranhado de galhos das árvores e arbustos secos são derrubados
para os aparadores fazerem a separação dos talos espinhosos da palha verde, por
meio de corte seco com facões. Só então, os amarradores recolhem as palhas,
amarram-nas em feixes e as levam para o ponto de coleta. A secagem e a retirada do
pó são realizadas em outro local, geralmente próximos aos barracões.
A análise dos relatórios de inspeção entre 2013 e 2019 pelo extinto Ministério
do Trabalho e atual Ministério da Economia demonstram que a maioria das
propriedades inspecionadas descumpriram sistematicamente as normas trabalhistas,
haja vista o número de autos de infrações lavrados.
A principal e mais recorrente das infrações encontradas na extração do pó da
carnaúba é a falta de registro em Carteira de Trabalho. Entretanto, outras não menos
importantes como o não fornecimento de EPI; a inexistência de local adequado para
preparo de alimentos, o que levava os trabalhadores a prepararem suas refeições
sobre fogueiras rústicas montadas no chão, sem quaisquer condições de higiene;
alojamentos desprovidos de instalações sanitárias, obrigando os trabalhadores a
fazerem as suas necessidades fisiológicas no mato, a céu aberto, sem as mínimas
condições de segurança, privacidade e higiene; a falta de um local adequado para se
alimentar, o que obrigava os trabalhadores a realizarem as suas refeições sentados
em redes, no chão ou em bancos improvisados; a água retirada de açudes ou poços
era armazenada em recipientes de plástico de combustível e reutilizadas pelos
trabalhadores sem nenhum tratamento de purificação; a inexistência de abrigos
rústicos nas frentes de trabalho que protejam os trabalhadores de intempéries
durante as refeições é generalizada, o que torna as condições dos trabalhadores
semelhantes à de escravo. A seguir detalhar-se-á as condições e as relações de
trabalho em uma fiscalização no setor de extração de pó de carnaúba realizadas pelos
autores.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

122
Foto 02: Casa utilizada como alojamento de trabalhadores (Ceará/2013).

Fonte: SIT/DETRAE.

2.3 ESTUDO DE CASO

2.3.1 Estudo de caso da atividade econômica explorada

O presente tópico visa mostrar as condições de trabalho disponibilizadas aos


trabalhadores nas frentes de serviço e nos alojamentos encontradas durante uma
fiscalização no setor de extração de pó de carnaúba no estado do Ceará, bem como
demonstrar a hipossuficiência da pessoa responsável pela extração do pó de
carnaúba. Para tal dividiu-se o tópico, para efeito didático em três partes: cadeia
produtiva, vínculos de emprego informais e as condições degradantes de trabalho.
A Sra. Maria Antonieta4, professora licenciada, resolveu ajudar seu pai, Pedro
Dias, de 82 anos, que trabalhou toda a vida cuidando de carnaubais de proprietários
da região e ainda continua envolvido com a atividade da extração do pó da carnaúba.

4 Todos os nomes são fictícios, entretanto partes dos depoimentos e do relatório de fiscalização foram
transcritos ipsis litteris

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

123
Pelo fato de estar afastada do colégio, resolveu trabalhar nessa atividade empresarial
para ajudar o pai. Diante disso, arrendou uma área, por meio de contrato de
arrendamento firmado para retirada de carnaubal, com produção estimada de 5 mil
milheiros de palhas, cuja produção média de pó é de 32.500 Kg (na média de 6,5 Kg
de pó por milheiro de palha).
A Sra. Maria Antonieta afirmou que a atividade foi financiada pelo Sr. Bernardo
Filho, dono de uma indústria que transforma o pó da carnaúba em cera bruta. Como
consequência do financiamento, ela lhe venderia toda a produção de pó da carnaúba
produzida.
Segundo ela, o empresário financiou a produção inicial e continuou
emprestando dinheiro, semanalmente, para o pagamento da folha e que embora ainda
não tivesse entregado nenhuma quantidade de pó deveria entregar a primeira
remessa no fim de agosto do ano em questão. Assim, ele continuaria a lhe repassar
dinheiro. O balanço só seria feito ao final da extração, mas a expectativa de Maria
Antonieta é de que sua conta ficasse positiva, ou seja, que sobrasse algum crédito a
seu favor. Foi Bernardo Filho quem ofereceu o financiamento da produção, sem
cobrança de juros, somente com o combinado de que lhe fosse entregue a produção
para que ele fizesse o processamento do pó para a produção da cera bruta. Em
seguida, repassaria para outra fábrica de maior porte para que fizesse o refinamento.
O Sr. Bernardo Filho confirmou que a Sra. Maria Antonieta lhe venderia com
exclusividade a integralidade da produção de pó da carnaúba em função dele ter lhe
emprestado os recursos para que ela executasse a extração do pó.
Verificou-se então a existência de uma associação e comunhão de esforços
entre os dois para viabilizar a exploração econômica do estabelecimento para colheita
das folhas da carnaúba, extração e processamento do pó das palhas da carnaúba e
a clara dependência econômica da Sr. Maria Antonieta.
Diante disso, o GEFM – Grupo Especial de Fiscalização Móvel verificou que os
dois acima “constituem uma sociedade de fato para a exploração da atividade de
extração do pó das palhas da carnaúba, do que resulta, por força de lei, na
responsabilidade solidária de ambos. Ante a incidência no caso concreto de
solidariedade passiva estabelecida por norma de ordem pública sobre os dois sócios,
inafastável pela vontade privada das partes, não há que se falar em ordem de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

124
preferência legal em benefício de qualquer um deles na cobrança das obrigações
oriundas da relação de emprego.”

2.3.2 Da cadeia produtiva

Analisando o relatório da fiscalização do GEFM realizada no empreendimento


de produção de cera de carnaúba do Sr. Bernardo Filho constatou-se que o mesmo
vendeu, nos últimos quatro anos, toda a sua produção para uma empresa exportadora
de Fortaleza-CE. Bernardo Filho afirmou, no seu depoimento, tomado a termo, que
não tem como custear os custos do empreendimento com recursos próprios e que a
empresa de Fortaleza lhe adianta dinheiro para que ele compre o pó e a borra da
carnaúba.
Da análise dos documentos apresentados, em especial as Notas Fiscais de
Compras para Comercialização, emitidas pela empresa de Fortaleza em favor de
Bernardo Filho, constatou-se que "toda" a cera produzida nesse período pelo parque
industrial do Sr. Bernardo Filho foi destinada à empresa de Fortaleza, ou seja, a
indústria de Fortaleza garante através do financiamento ao Sr. Bernardo Filho a
exclusividade da produção.
Dessa forma, conclui-se que a atividade explorada pelo o Sr. Bernardo Filho
está inserida na base da cadeia produtiva da empresa exportadora localizada em
Fortaleza/CE e que, portanto, devido a hipossuficiência do fornecedor, a indústria tem
no mínimo a responsabilidade solidária no que tange a formalização dos vínculos.
A seguir analisar-se-á as relações de emprego entre os trabalhadores
extratores do pó, o Sr. Bernardo Filho e a indústria de Fortaleza que tentar-se-á
demonstrar que os trabalhadores extratores de pó estão inseridos na cadeia produtiva
da indústria exportadora.

2.3.3 Da constatação dos vínculos de emprego informais

Conforme o relatório de fiscalização do GEFM, durante as diligências de


inspeção, a fiscalização constatou um grupo de 39 trabalhadores laborando no

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

125
carnaubal dos empregadores na mais completa informalidade, sem o correspondente
registro em livro ficha ou sistema eletrônico competente.
A gestão deste processo de extração do pó das folhas da carnaúba no
estabelecimento fiscalizado era realizada pela Sra. Maria Antonieta que esclareceu
em depoimento, tomado a termo, como se dava a rotina de trabalho em seu
estabelecimento – as atividades de derrubada de folhas da carnaúba iniciaram
efetivamente no dia 27/07/2017. Antes disso, apenas realizou procedimentos de
organização da atividade e coleta de documentos de trabalhadores para realizar os
trabalhos em sua cadeia produtiva. Por orientação de seu pai, optou por contratar
pessoas-chave, especializadas em determinadas funções e que já possuíam
trabalhadores conhecidos e próximos para indicarem e realizarem os trabalhos.
Contratou os senhores: 1) João, a quem chama de "empreitante", pois convidava e
trazia os vareiros, aparadores e desenganchadores para o trabalho no carnaubal. O
acerto com João foi de pagar R$ 23,00 para cortar e aparar o milheiro de folhas da
carnaúba, deixando no ponto de fazer o transporte. O pagamento seria semanal para
ele ou para alguém por ele indicado que se responsabilizasse por fazer a distribuição
do valor aos demais trabalhadores; 2) Pedro, conhecido como Neto, dono dos animais
e responsável pela indicação da turma de comboeiros. O acerto com este trabalhador
foi de pagar R$ 7,00 por milheiro carregado do local da retirada das folhas para a
ramada (onde seca). O acerto era feito semanalmente e davam dinheiro ao Neto, ou
alguém por ele indicado para o repasse aos demais trabalhadores; 3) Antonio
apelidado de "Quel", responsável pela equipe de "ramadeiros" (espalhadores das
folhas para secagem). O acerto com o Isaac foi de pagar R$ 7,00 por milheiro
estendido na ramada, o pagamento seria feito semanalmente para que Antonio
repassasse o dinheiro aos demais trabalhadores; e 4) Paulo, o dono da máquina de
moer a palha e extrair o pó, Paulo levava a máquina para as "ramadas", juntamente
com uma equipe de trabalhadores, cerca de 05 trabalhadores no total. O valor
acertado para pagamento deste serviço seria de R$ 0,90 por milheiro batido na
máquina, cada milheiro dava por volta de 6,5 kg de pó, o trabalho realizado da
moagem da palha não se dá todos os dias; geralmente é de 02 a 03 dias na semana.
Especificamente, essa equipe do Paulo iniciou os trabalhos efetivamente de moagem
no dia 14/08/2017, que dos dias 14 a 16 esteve trabalhando na fazenda arrendada,

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

126
terminando por volta de 13hs da tarde no dia 16/08. Terminada esta etapa do trabalho
trouxe a máquina e a equipe para a outra fazenda, onde estava moendo cerca de 300
milheiros de palha, o que daria em torno de dois dias de trabalho. Então, finalizada
esta parte do trabalho, provavelmente só voltaria a moer em torno de 10 dias, quando
tivesse palha seca.
A Sra. Maria Antonieta também afirmou para a fiscalização que, desde o início,
quando começou a chamar os “responsáveis” pelas equipes de trabalho, pediu a todos
eles que entregassem os documentos dos trabalhadores trazidos por eles ao
carnaubal para que a empregadora providenciasse as devidas anotações do contrato
de trabalho em suas respectivas carteiras de trabalho. Afirmou ainda que realizou
grande parte dos exames médicos dos trabalhadores trazidos pelos "responsáveis",
que entregou e registrou a entrega de equipamentos de proteção individual (EPI), que
coletou diversos documentos e algumas CTPS. A prática de recolher e registrar as
CTPS é realizada por ser obrigação legal e exigência do Ministério Público para dar
respaldo aos trabalhadores, embora tenha sido informada pelo sindicato para não
registrar os trabalhadores porque se ultrapassar 90 dias de registro dos trabalhadores
os mesmos perdem os benefícios e a qualidade de segurado especial do INSS e o ato
do registro corta o benefício do bolsa família. A falta de informações aos trabalhadores
prejudica a formalização dos contratos e que por tantas nuances os trabalhadores não
querem fazer o registro.
Sobre a equipe contratada para a moagem das palhas da carnaúba para
extração do pó, onde três empregados foram encontrados em situação degradante de
trabalho e vida a Sra. Maria Antonieta aduziu que pediu os documentos para registrar
o Paulo e os seus trabalhadores, mas que Paulo resistiu por conta de o serviço não
ser diário. A turma de moagem passa alguns dias sem trabalhar direto no carnaubal,
o que torna difícil de controlar esse registro. Paulo possui outras atividades, dentre
elas, uma oficina; ele não apresentou documento nem dele e de nenhum trabalhador
que estava com ele na atividade. No dia da fiscalização, Paulo estava com sua equipe
na fazenda localizada atrás de sua casa; que não sabia quantos trabalhadores
estavam com o Paulo na frente de serviços, que o seu contato é o Paulo, que não tem
controle de quem ele leva, que apenas vê a equipe de moagem quando vai buscar o
pó da palha da carnaúba; que vai ao local da extração do pó pelo menos duas ou três

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

127
vezes ao dia buscar o pó, em decorrência do roubo recorrente dessa matéria prima.
Trata-se de uma ramada o local onde o pessoal da equipe de Paulo estava
trabalhando, sem sede ou construção de propriedade para eles ficarem, mas que
como tem casas de moradores próximas eles utilizam os banheiros dessas casas a
pedido de Paulo, mas acredita que os moedores da palha fazem as necessidades
urinárias também no mato e que sabe que os trabalhadores levavam redes.
Maria Antonieta afirmou ao GEFM que costuma ir de duas a três vezes por dia
nas demais frentes de trabalho para olhar principalmente se os trabalhadores estão
usando os EPI entregues e também pra ver o andamento dos trabalhos. Disse que na
área arrendada tem uma casa e nos locais onde os serviços acontecem geralmente
tem casas de moradores que podem servir de apoio, mas que os trabalhadores não
utilizam.
Em razão disso, não teria condições, nem em tese, de ser responsabilizada
pelo não adimplemento dos direitos trabalhistas dos demais componentes de cada
grupo de trabalho. Lembre-se que, a Sra. Maria Antonieta reconheceu que efetuava
um pagamento semanal a cada responsável pelas turmas, em razão do trabalho em
campo e que esses valores eram repassados aos demais empregados. Salienta-se
que esses pagamentos semanais só eram possíveis graças aos aportes financeiros
do Sr. Bernardo Filho.
Segundo o relatório, não há que se cogitar de afastar a existência de relação
de emprego entre o estabelecimento rural composto pelo carnaubal existente nas
propriedades fiscalizadas e os encarregados das equipes chamados de pessoas-
chave, especializadas em determinadas funções pela empregadora, ou afastar a
existência de relação de emprego entre o carnaubal e os demais trabalhadores. Afinal,
a prestação de serviços pelos encarregados, que não apenas supervisionavam, mas
realizavam diversos trabalhos no campo ocorrem igualmente sob determinado e
característico ponto do contrato de trabalho. Ou seja, desenvolveu-se de forma
subordinada pessoal, não eventual e onerosa em relação à dupla empregadora.
Ademais, estes obreiros não detinham idoneidade financeira para
realizarem o pagamento dos valores devidos aos outros trabalhadores. Eles apenas
repassavam semanalmente, o dinheiro da empregadora aos obreiros. E,
principalmente, não eram senhores de um negócio próprio, com bens, capital

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

128
financeiro e carteira de clientes organizados e independentes. Em relação ao
carnaubal, nunca dirigiram a prestação de serviços autonomamente, estando sob o
controle e comando do empregador tanto quanto os demais obreiros.
O mais importante de tudo, a própria empregadora, quando confrontada sobre
os dados apurados pela fiscalização admitiu como empregados do estabelecimento
rural os obreiros encontrados no carnaubal, informando estarem eles em situação de
informalidade e dispondo-se a realizar o registro de todos.
A realidade encontrada revela, portanto, prestação de serviços de caráter
dependente, subordinado e empregatício, o que impõe aos tomadores da força de
trabalho dos rurícolas a submissão ao registro em livro, ficha ou outro sistema
equivalente, o que não se observou. A falta de registro revela propósito de manter a
relação empregatícia na informalidade, com desatendimento de direitos trabalhistas,
sonegação de encargos, ausência de cobertura social e obstrução das atribuições das
instituições de proteção do trabalho. Como prejuízo para o trabalhador e para a
coletividade advindo da informalidade das relações de trabalho, cita-se: I) a relação
de trabalho torna-se mais insegura e instável, inclusive pela ausência de acesso ao
sistema do FGTS (destinado a desestimular a dispensa imotivada bem como auxiliar
a subsistência do trabalhador involuntariamente desempregado), assim como às
estabilidades legais provisórias, como as decorrentes de acidente de trabalho e de
maternidade; II) ausência de cobertura social; III) sonegação de direitos trabalhistas
básicos, como descanso semanal remunerado, férias e décimo terceiro salário; IV)
ausência de cobertura sindical, afastando direitos da categoria profissional, como o
piso salarial.
Diante das irregularidades acima elencadas o GEFM verificou que as mesmas
eram de tal monta que caracterizavam condições degradantes de trabalho como será
demonstrado a seguir.

2.3.4 Das condições degradantes de trabalho e vida

A auditoria constatou que os trabalhadores pernoitavam na própria frente de


trabalho, no interior do baú de um velho caminhão, em razão de os autuados não lhes
terem disponibilizado alojamento para pernoite entre os dias de trabalho. No interior

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

129
da carreta, dividiam espaço com a máquina de moagem de palha de carnaúba. A
referida máquina possuía um precário instrumento de dutos responsável por guiar até
o exterior da carreta, um do lado direito e outro do lado esquerdo pelos quais
passavam o pó da carnaúba e o resíduo de sua palha, separadamente, não havendo
isolamento hermético no interior dos dutos pelos quais porções significativas desses
materiais escapam para o local de pernoite dos trabalhadores.

Foto 03: Caminhão baú utilizado como alojamento em área de extração do pó de carnaúba.
(Ceará/2017).

Fonte: SIT/DETRAE.

Também no interior da carreta estavam em depósito espalhados pelo local


galões de água, ferramentas, pertences pessoais dos trabalhadores, utensílios
básicos como garrafas térmicas e ainda porções de palha de carnaúba (matéria prima
que seria moída,) como do pó da planta, produto da moagem. Por isso, o local,
sobretudo piso e "paredes", tinha coloração branca, indicando a presença do pó por
todo o ambiente.
No espaço que restava livre da máquina, cujas dimensões aproximadas eram
de 2,2m por 2,5m os trabalhadores estendiam suas redes para descansar entre duas

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

130
jornadas de trabalho sem qualquer privacidade ou conforto, uma vez que as redes
tocavam umas nas outras.
No local não havia estruturas adequadas para guardar os pertences pessoais
dos trabalhadores, que ficam dependurados e espalhados no interior do baú do
caminhão, cobertos pelo pó da carnaúba. A lataria da carreta não garantia estabilidade
ou conforto térmico aos que permaneciam no seu Interior, ficando os obreiros sujeitos
às variações do clima (como regra, altas temperaturas durante o dia e baixas
temperaturas durante a noite). A ventilação era deficitária, pois o pequeno corte feito
na lataria da carreta não era suficiente para adequadas renovação e circulação do ar,
sobretudo considerando a sujidade do local com amontoados de palha e de pó da
carnaúba e a sua superlotação. A esses problemas se soma a falta de uma estrutura
de coleta e depósito de lixo, favorecendo a ausência de higiene e organização.
A degradação das condições de vida e trabalho desses trabalhadores se
ampliava ainda porque, afora a falta de alojamento, nenhuma estrutura que compõe
uma área de vivência minimamente digna era ofertada aos trabalhadores. Assim, não
havia instalações sanitárias para necessidades fisiológicas, chuveiros para a tomada
do banho, local adequado para preparo, conservação e tomada de refeições, ou local
para higienização das roupas e vestimentas de trabalho do grupo de rurícolas.

Fotos 04 e 05: A ausência de local apropriado para confecção de alimentos obriga os trabalhadores
a improvisarem no próprio local de trabalho a produção das refeições de forma precária.
(Ceará/2013).

Fonte: SIT/DETRAE.

Os três empregados responsáveis pela moagem das palhas da carnaúba para


extração do pó cerífero estavam submetidos a condições de vida e trabalho que

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

131
aviltavam a dignidade do ser humano. O GEFM procedeu ao resgate desses
trabalhadores, em cumprimento estrito ao art. 2°-C da Lei 7998/90, o qual determina
que sejam resgatados os trabalhadores encontrados em condições degradantes.

Foto 06: Trabalhador improvisando um local de descanso após o almoço, (Ceará/2013).

Fonte:SIT/DETRAE.

3 A SUBORDINAÇÃO ESTRUTURAL NA CADEIA PRODUTIVA DA CERA DE


CARNAÚBA

O conceito de subordinação na relação de emprego surgiu em um contexto


industrial clássico no século XIX e perdurou imutável e eficaz na caracterização dos
vínculos trabalhistas até bem pouco tempo. Entretanto, as mudanças tecnológicas
introduzidas nos processos produtivos no fim do século XX e início do século XXI,
bem como as inovações na tecnologia da informação permitiram que parte da
produção pudesse ser realizada sem a presença física do trabalhador no ambiente de
trabalho ou mesmo sem a supervisão do empregador ou preposto.
Determinadas atividades laborais sofreram modificações de tal ordem que os
elementos tradicionais caracterizadores do vínculo trabalhista: subordinação,

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132
alteridade, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade já não são tão facilmente
identificados como no passado. Haja vista a Lei 13.467/2017 que criou, através do §
3º do art. 443 da CLT a modalidade de contrato de trabalho intermitente, no qual a
prestação de serviços, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de
prestação de serviços e de inatividade o que excluiu legalmente a habitualidade neste
tipo de contrato como elemento necessário para existência da relação de emprego.
Segundo Cristiano Fraga5 a subordinação no mundo do trabalho tem sofrido
mudanças sutis e em algumas situações as atividades são realizadas longe da
supervisão do real beneficiário da produção; algumas vezes ele nem conhece o
trabalhador que realiza uma atividade essencial na cadeia produtiva de seu produto,
o que tem ocasionado discussão se nestas situações há relação de emprego.
Instalou-se entre os operadores do Direito a dúvida se o conceito de
subordinação tradicional já não seria insuficiente para garantir os princípios protetivos
do Direito do Trabalho às novas formas de produção, uma vez que alguns princípios
da subordinação tradicional para a caracterização de algumas relações laborais
contemporâneas já não são encontrados facilmente. Travou-se, então, uma discussão
teleológica do conceito de subordinação buscando adequá-la às relações modernas
para resguardar a proteção social ao trabalhador.
A teoria da subordinação estrutural surgiu, então, como uma tentativa de
explicar este novo tipo de subordinação, objetivamente com enfoque na atividade
prestada pelo obreiro e na natureza dessa atividade, se essencial ou não ao
funcionamento da empresa empregadora.
Vários juristas, dentre eles Dennis Veloso Amanthéa6, Maurício Godinho
Delgado7 e Francisco das C. L.ima Filho8, defendem a teoria da Subordinação
Estrutural como elemento vinculante da relação de emprego em atividades nas quais

5 FRAGA, Cristiano. Subordinação Estrutural: Um Novo Paradigma para as Relações de Emprego.


Publicado na Revista Eletrônica do TRT da 4ª Região, ano VII, nº 126, p.45.
6 AMANTHÉA, Dennis Veloso. A Evolução da Teoria da Parassubordinação.Trabalho a Projeto. LTr,

São Paulo. 2008, p 29 - 30.


7 DELGADO, Mauricio Godinho, Curso de Direito do Trabalho. 16ª edição. LTR: São Paulo, 2017, p

328 - 330
8 LIMA FILHO, Francisco das C. A subordinação Estrutural como elemento definidor da Relação de

Emprego. Repertório de Jurisprudência IOB: Trabalhista e Judiciário, São Paulo, V.2, n.9, 1ª quinzena
maio 2008, p 299.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

133
o real beneficiário não esteja presente no ambiente produtivo a fim de que o Direito
do Trabalho não perca sua carga protetiva em face das novas formas de produção em
que a segmentação das atividades é levada ao extremo.
No ordenamento jurídico brasileiro do trabalho a subordinação é um elemento
indispensável à caracterização da relação de emprego e materializa-se através da
sujeição do empregado diante do empregador, estando o primeiro sujeito ao controle,
à fiscalização e à gerência do último. Esta visão clássica de subordinação foi, por
muitos anos, aplicada e é, até os dias de hoje, ainda, o critério mais utilizado pelo
Judiciário para declarar o vínculo empregatício.
Entretanto, a sociedade globalizada impôs ao mundo do trabalho novas formas
de relações de produção, sendo que, na maioria das vezes, o poder gerencial passa
a ser exercido de forma mais sutil, indireto e, por vezes, quase imperceptível, fazendo
com que a função protetiva, essencial, do direito laboral não seja atingida.
A primazia da subordinação jurídica tradicional como critério definidor da
relação de emprego vem perdendo capacidade de explicar a sujeição laboral ao ser
confrontada com estas novas formas de labor.
Daí a necessidade de tentar substituir a noção única de subordinação por
subordinações diferenciadas, dentre elas a subordinação estrutural que se alicerça
nos seguintes princípios: a) A subordinação opera-se na atividade prestada, e não no
trabalhador; b) O trabalho será subordinado sempre que não se puder imaginar a
empresa sem a sua realização; c) Amplia a proteção estatal e abarca trabalhadores
que, à luz do critério clássico de subordinação, estariam sem a tutela estatal; d)
Supera as dificuldades de enquadramento de situações fáticas que não são
alcançadas pela visão clássica de subordinação.
O princípio da proteção, basilar no Direito do Trabalho, deve incidir não mais
em relação à intensidade da subordinação, muitas vezes quase imperceptível, mas
sim na debilidade contratual, na posição hipossuficiente do trabalhador quando presta
seu labor, mesmo que este não esteja sob às ordens diretas de quem o contratou.
A doutrina e a jurisprudência moderna, a partir de uma discussão sobre o
caráter pessoal (subjetivo) ou funcional (objetivo) da subordinação, passou a admitir
que a subordinação é uma conduta voltada para um procedimento produtivo, partindo
da atividade desenvolvida e concentrando-se nela, inserindo-se num processo de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

134
produção de bens e serviços. A subordinação deve ser definida dentro de um plano,
essencialmente objetivo, ou seja, pela integração do obreiro no processo produtivo
empresarial. Nesse sentido, o trabalhador é subordinado quando a sua atividade se
integra aos objetivos empresariais.
A Subordinação Estrutural também chamada de Objetiva, ou ainda, de
Integrativa consiste em caracterizar a subordinação com base na atividade
desempenhada pelo trabalhador, e a natureza dessa atividade, se essencial ao
funcionamento da estrutura organizacional do empregador ou não. Encarada sob o
prisma objetivo ela atua sobre o modo de realização da prestação e não sobre a
pessoa do trabalhador.
Para o Ministro e professor Maurício Godinho Delgado9 há uma iminente
necessidade de se reconceituar o conceito da subordinação a fim de proteger os
trabalhadores que se encontram nas atividades não alcançadas pelo conceito
tradicional de subordinação, sem, contudo, abandonar as noções já sedimentadas
deste. Para ele o enfoque sobre o comando empresarial direto, acentuando, como
ponto de destaque, a inserção estrutural do obreiro na dinâmica do tomador de
serviços independentemente de receber, ou não, ordens diretas, mas acolhendo,
estruturalmente, sua dinâmica da organização e funcionamento é o ponto basilar da
subordinação estrutural.
A ideia nuclear da Subordinação Estrutural é, portanto, que no novo contexto
da atividade produtiva da empresa pós-industrial e flexível, torna-se dispensável a
ordem direta do empregador, que passa a ordenar apenas a produção como um todo.
Tem-se a ruptura do conceito clássico de hierarquia funcional das empresas, as quais
passam a funcionar com a colaboração de seus empregados.
O professor da UFMG Francisco das C. Lima Filho10, um dos principais
defensores da teoria da Subordinação Estrutural argumenta que ela decorre do fato
do trabalhador se integrar em uma organização através de meios produtivos alheios,

9 DELGADO, Maurício Godinho, Curso de Direito do Trabalho. 16ª edição. LTR: São Paulo, 2017, p
328 – 330.
10 LIMA FILHO, Francisco das C. A subordinação Estrutural como elemento definidor da Relação de

Emprego. Repertório de Jurisprudência IOB: Trabalhista e Judiciário, São Paulo, V.2, n.9, 1ª quinzena
maio 2008, p 299.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

135
dirigida à obtenção de fins igualmente alheios, e que essa integração acarreta a
submissão às regras que exprimem o poder de organização do empresário, derivada
de sua posição nas relações de produção, mesmo quando a prestação laboral seja
realizada fora do alcance visual do empregador.
Ver-se-á no tópico seguinte que a teoria da subordinação estrutural desde que
recepcionada pelo judiciário seria a forma de resguardar os direitos dos trabalhadores
extratores do pó, essenciais à cadeia produtiva da cera de carnaúba, mas que na
maioria das vezes estão subordinados a empregadores hipossuficientes econômicos.

4 CONCLUSÃO

Os relatórios das fiscalizações realizadas entre os anos de 2013 a 2019 pelas


Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego e pelos Grupos Especiais de
Fiscalização Móvel de Combate ao Trabalho Análogo ao de Escravo analisados para
elaboração deste artigo descrevem detalhadamente o processo produtivo da extração
do pó de carnaúba nos estados do Piauí, Ceará, Maranhão e Rio Grande do Norte e
demonstram que a mesma está a cargo de pequenos empreendedores, em geral,
hipossuficientes economicamente.
Os relatórios analisados demonstram que as atividades de extração do pó da
carnaúba nestes Estados estão a cargo de pequenos empreendedores,
microempresas criadas exclusivamente para este fim, e que eles são, em geral,
descapitalizados e que para tocar seus empreendimentos se endividam juntos à
agiotas ou às indústrias produtoras de cera a quem vendem a produção.
O caso citado no corpo deste artigo foi escolhido por reproduzir as
irregularidades encontradas nas demais e por ser exceção ao reconhecer o vínculo
com os trabalhadores existentes na sua cadeia produtiva. Além dela, apenas em outra
ocasião o vínculo trabalhista foi feito com a indústria compradora do pó.
A indústria produtora e exportadora da cera de carnaúba, por sua vez, alega
que apenas compra de quem vier lhe vender e que, portanto, não pode assumir
responsabilidade trabalhista de terceiros.
Entretanto, ao estudar-se a cadeia produtiva desde o arrendamento da terra
até a produção da cera fica evidente a existência de uma relação simbiótica entre os

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

136
microempreendedores extratores do pó e as indústrias beneficiadoras. Há na relação
de produção, compra e venda do pó, uma corrente submersa de dependência
econômica que prende o microempreendedor, extrator do pó, às indústrias.
Haja vista que a teoria da Subordinação Estrutural ainda não é pacífica no meio
jurídico e que as empresas oligopólicas da cera de carnaúba se eximem da
responsabilidade do vínculo empregatício com os trabalhadores da extração da palha,
com exceção de apenas dois casos, sendo um deles aqui analisado, os autores
entendem que o vínculo da relação de emprego deveria ser firmado com as indústrias
da cera, quando da hipossuficiência dos pequenos produtores rurais, para assegurar
a ação protetiva das normas trabalhistas frente a situação de extrema vulnerabilidade
dos obreiros.
Mesmo diante da negativa sistemática das indústrias em reconhecerem o
vínculo trabalhista com os trabalhadores da sua cadeia produtiva é plenamente
factível, no curso das fiscalizações, coletar dados que através de análise robusta deixe
comprovado que há subordinação estrutural ou objetiva, a fim de que elas não se
abstenham de zelar pela dignidade dos trabalhadores da sua cadeia produtiva, pois,
como demonstrado no corpo deste artigo os trabalhadores estão em situação de
extrema vulnerabilidade, haja vista o elevado número de resgate de trabalhadores
encontrados em situação de trabalho escravo.

REFERÊNCIAS

ALVES, Maria Odete; COÊLHO, Jackson Dantas. Extrativismo da carnaúba:


relações de produção, tecnologia e mercados. Fortaleza: Banco do Nordeste do
Brasil, 2008 (Documentos do ETENE).

AMANTHÉA, Dennis Veloso. A Evolução da Teoria da Parassubordinação.Trabalho


a Projeto. LTr, São Paulo. 2008.

D’ALVA, Oscar Arruda. O extrativismo da carnaúba no Ceará. Fortaleza: Banco do


Nordeste do Brasil, 2007. 172 p. (Série BNB Teses e Dissertações, n. 4).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

137
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho.16ª edição. LTR: São
Paulo, 2017.

__________ Direitos Fundamentais na Relação de Trabalho e o novo


expansionismo juslaborista: o conceito de Subordinação Estrutural in FREDIANI,
Yone;

___________ O fim do trabalho e emprego no capitalismo atual: verdade ou mito? In


DELGADO, Mauricio Godinho; DELGADO, Gabriela Neves org. Doutrinas Essenciais
Direito do Trabalho e Direito da Seguridade Social. Volume 1. Fundamentos
Constitucionais e Teoria Geral do Direito do Trabalho. Editora Revista dos Tribunais.
São Paulo, 2012.

GOMES, Jaíra Maria Alcobaça; SANTOS, Karla Brito dos; SILVA, Marcos Soares.
Cadeia produtiva da cera de carnaúba: diagnóstico e cenários. Teresina: editora
gráfica da UFPI, 2006.

LIMA FILHO, Francisco das C. A subordinação Estrutural como elemento definidor


da Relação de Emprego. Repertório de Jurisprudência IOB: Trabalhista e Judiciário,
São Paulo, v.2, n.9, 1ª quinzena maio 2008, p. 299.

MALLET, Estêvão. A Subordinação como elemento do Contrato de Trabalho.


Revista Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 106/107,
dezembro/janeiro 2011/2012, p. 217-245.

SLAVE LABOR AND STRUCTURAL SUBORDINATION IN


THE CARNAÚBA WAX PRODUCTION CHAIN

ABSTRACT
The present article identifies that the carnauba wax industry uses
in the first stage of the production process - dust extraction -
small entrepreneurs that most of the times are economically

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

138
underfunded and / or are financed by the industries or borrow
money to finance the activity. The economic under-sufficiency of
these entrepreneurs is materialized in the informality of the
employment relationship, as well as in the non-compliance with
the safety and health rules at work. The irregularities found in the
work fronts and in the accommodations made available to
workers extracting carnauba straw were sufficient to characterize
them as conditions analogous to those of slavery, in the
degrading work modality. This article, supported by a brief review
of the concept of structural subordination and data collected by
the authors themselves in inspections in the sector of extraction
of carnauba dust, as well as analysis of reports from the Special
Mobile Inspection Group, argues that in cases of hyposufficiency
the producers of the carnauba wax industry should be
responsible for formalizing the employment relationship as well
as providing adequate working conditions as there is structural
subordination in the production chain of their product.
Keywords: Labor analogous to slavery. Carnauba wax.
Structural tying.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

139
ANÁLISE SISTEMÁTICO-NORMATIVA DA SUBMISSÃO DE
TRABALHADORES MIGRANTES À NEOESCRAVIDÃO

Claiz Maria Pereira Gunça dos Santos1


Felipe Macêdo Pires Sampaio2

Sumário: 1 Introdução; 2 Compreensão sistemática das normas


proibitivas do trabalho escravo; 3 O princípio da isonomia e a
não discriminação dos migrantes; 4 A vulnerabilidade do
migrante e a submissão ao trabalho escravo; 5 Conclusões;
Referências.

RESUMO
O presente artigo objetiva estudar a correlação da submissão de
trabalhadores migrantes à neoescravidão com a vulnerabilidade social e
econômica a que estão sujeitos, em especial pelos entraves da
regularização documental, das diferenças culturais, das barreiras do idioma
e do estigma da discriminação. O referido estudo é realizado sob uma
perspectiva humanitária, iluminada pelas normas internacionais e tratados
de direitos humanos ratificados pelo Brasil, que compõem o bloco de
constitucionalidade, conforme art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988.
Para tanto, buscou-se examinar o arcabouço normativo que proíbe o
trabalho escravo e a discriminação nas relações de labor, para, em
seguida, analisar as convenções e normas infraconstitucionais que tutelam
o trabalho do migrante. Ao final, identificadas as principais vulnerabilidades
migratórias, examinou-se a situação exploratória dos venezuelanos,
bolivianos, paraguaios e filipinos, bem como as medidas de combate à
neoescravidão.

Palavras-chave: Neoescravidão. Vulnerabilidade social. Migrantes.

1 Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito e Processo
do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia. Graduada em Direito, com Láurea Acadêmica, pela
Universidade Federal da Bahia. Professora de Direito Constitucional e Direito do Trabalho. Associada
efetiva do Instituto Bahiano de Direito do Trabalho - IBDT. Primeira Presidente da Associação Baiana
de Defesa do Consumidor - ABDECON. Ex-integrante do Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da
Faculdade de Direito da UFBA. Participante do Programa de Mobilidade Acadêmica com a
Universidade de Coimbra, Portugal, em 2009.
2 Auditor-Fiscal do Trabalho. Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho.

Especialização em Inovação e Novas Tecnologias na Educação (em andamento). Graduado em


Direito pela Universidade Federal da Bahia. Coordenador Acadêmico da Escola Nacional da Inspeção
do Trabalho - ENIT, da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho - SIT, do Ministério da Economia,
atuando no desenvolvimento e aperfeiçoamento da Fiscalização do Trabalho. Editor-Chefe da Revista
da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho. Professor da Pós-Graduação Estácio/CERS de Direito
e Processo do Trabalho. Professor da Pós-Graduação Estácio/CERS de Direito Contratual.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

140
1 INTRODUÇÃO

A intensificação das correntes migratórias é um fenômeno crescente na


realidade brasileira, especialmente em virtude das desigualdades econômicas, dos
conflitos internos nos países vizinhos e das extensas fronteiras nacionais.
O Brasil, superando a visão nacionalista constante no Estatuto do Estrangeiro,
passou a adotar, a partir de 2017, com a Lei de Migrações, uma perspectiva
humanitária, alinhada com os direitos humanos e com a Constituição Federal de 1988,
ao garantir os direitos fundamentais aos migrantes, uma vez cruzada a fronteira, de
forma a concretizar um horizonte de cidadania mundial.
Contudo, a vulnerabilidade social e econômica a que estão submetidos os
trabalhadores migrantes, em especial pelos entraves da regularização documental,
das diferenças culturais, das barreiras do idioma e do estigma da condição de
estrangeiro, potencializam a discriminação, exploração e sujeição desses
trabalhadores à condição análoga à de escravo.
Nesse contexto, o presente artigo objetiva examinar, de forma sistemática, o
arcabouço normativo que proíbe a escravidão e a discriminação dos trabalhadores
migrantes, inclusive os que se encontram em situação migratória irregular
(indocumentados), para, em seguida, identificadas as principais vulnerabilidades
sociais, examinar a situação exploratória dos venezuelanos, bolivianos, paraguaios e
filipinos.
Ao final, serão abordadas algumas medidas de proteção e de rompimento do
círculo vicioso da neoescravidão, com especial destaque para o encaminhamento,
pela Inspeção do Trabalho, do trabalhador migrante para a concessão de sua
residência permanente no território nacional.

2 COMPREENSÃO SISTEMÁTICA DAS NORMAS PROIBITIVAS DO TRABALHO


ESCRAVO

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

141
Escravizar é coisificar o ser humano, retirando a sua dignidade, igualdade e
liberdade. O escravo da atualidade encontra-se em situação de exploração
relativamente distinta do escravo da Idade Antiga ou do período da colonização
portuguesa no Brasil a partir do Século XVI. Antes o escravo era considerado um
patrimônio do seu amo, motivo pelo qual esse cuidava de alimentá-lo, bem como
também de curar as suas doenças, já que o escravo representava um investimento
econômico vultoso e caro.
Na atualidade, contudo, a mão de obra que se encontra nessa situação de
escravidão ou análoga à escravidão é considerada descartável e inutilizável pelo
explorador, particularmente quando se encontra idosa, doente ou, por qualquer outra
razão, desnecessária para o trabalho. O explorador não tem qualquer compromisso
com esses trabalhadores e, além disso, tem a sua disposição um grande contingente
de indivíduos para substituí-los, já que aceitariam a submissão a condições
semelhantes, por viverem num quadro de pobreza e miséria3.
A despeito disso, ambas as situações são aviltantes à dignidade humana e
devem ser combatidas, com o objetivo de garantir um patamar mínimo civilizatório. No
Brasil e no Mundo diversas são as tentativas de erradicar a escravidão, tendo sido
editados diversos normativos com esse objetivo. Aliás, a proibição da escravidão
encontra-se em posição de destaque no Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Os três instrumentos que constituem a Carta Internacional dos Direitos
Humanos tratam sobre a vedação à escravidão e a promoção do trabalho livre. Esses
três instrumentos são: Declaração Universal dos Direitos Humanos; Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; e Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos4, elaborada pela Organização
das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, em um contexto de pós-atrocidades
da Segunda Guerra Mundial, busca promover a igualdade, a liberdade, a não

3 SENTO-SÉ, Jairo Lins de Albuquerque. A Prova do Trabalho Escravo no Processo Laboral.


Disponível em: < https://www.trt3.jus.br/escola/download/revista/rev_83/jairo_lins_sento_se.pdf>.
Acesso em: 21.05.2020.
4 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Disponível em: < https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em: 4


jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

142
discriminação e a vedação à escravidão ou servidão, nos termos dos artigos III, IV, V
e VI. Isso porque, além de mencionar que todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos (artigo I), cita expressamente que “ninguém será
mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão
proibidos em todas as suas formas” (artigo IV). Cabe ressaltar que essas disposições
devem ser adotadas sem distinções de qualquer natureza, inclusive quanto à origem
nacional (artigo II).
Nesse mesmo sentido, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos5
menciona, no seu artigo 8º, que “ninguém poderá ser submetido à escravidão”
proibindo, ainda, “a escravidão e o tráfico de escravos, em todas as suas formas”.
O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais6, por sua
vez, preconiza que os Estados Partes do Pacto reconhecem o direito ao trabalho, que
compreende o direito de toda pessoa de ter a possibilidade de ganhar a vida mediante
um trabalho livremente escolhido ou aceito.
Cabe destacar que esses dois pactos mencionados anteriormente foram
ratificados pelo Brasil, conforme Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, e Decreto nº
591, de 6 de julho de 1992, sendo incorporados, portanto, ao ordenamento interno
brasileiro, fazendo parte do bloco de constitucionalidade (artigo 5º, § 2º, da
Constituição Federal).
Em sentido similar aos diplomas citados, a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos7 (Pacto de San Jose da Costa Rica) proíbe, em seu artigo 6º, a
escravidão:
Proibição da Escravidão e da Servidão
1. Ninguém pode ser submetido à escravidão ou a servidão, e tanto estas
como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as
formas.

5 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em: 4 jun.
2020.
6 BRASIL. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>. Acesso
em: 4 jun. 2020.
7 BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre

Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

143
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório.
Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa da
liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser
interpretada no sentido de que proíbe o cumprimento da dita pena, importa
por juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a
dignidade nem a capacidade física e intelectual do recluso.

Além disso, essa Convenção prevê, em seu artigo 5 º, que “toda pessoa tem o
direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral”. É possível notar a
nítida preocupação com a manutenção da dignidade do trabalhador, proibindo-se a
escravidão e a servidão e promovendo a sua integridade física, psíquica e moral. Essa
diretiva é estendida aos estrangeiros, já que o próprio pacto veda a discriminação
entre os indivíduos, em seu artigo 1 º.
A escravidão também é proibida pela Convenção sobre a Escravatura assinada
em Genebra, em 25 de setembro de 1926, emendada pelo Protocolo de 1953, e
Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfego de Escravos e
das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura8. Ambas foram ratificadas pelo
Brasil e publicadas por meio do Decreto nº 58.563, de 1º de junho de 1966.
No âmbito da Organização Internacional do Trabalho – OIT, o combate à
escravidão encontra-se em posição de destaque, com status de core obligation, tendo
em vista que, independentemente da ratificação das Convenções 29 e 105, todos os
membros da OIT tem o compromisso de cumprir os respectivos preceitos, conforme
Declaração sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho de 1998.9
Conforme Maurício Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado, a Declaração
da OIT de 1998 “é um marco civilizatório, em razão da importância do seu conteúdo
humanista, uma vez que os princípios e direitos fundamentais no trabalho por ela
enunciados são reconhecidos como fontes de direitos humanos dos trabalhadores”10.

8 BRASIL. Decreto nº 58.563, de 1º de junho de 1966. Promulga e Convenção sobre Escravatura de


1926 emendada pelo Protocolo de 1953 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da
Escravatura de 1956. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Atos/decretos/1966/D58563.html>. Acesso em: 4 jun. 2020.
9 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Declaração da OIT sobre os Princípios e

Direitos Fundamentais no Trabalho. Disponível em: <


https://www.ilo.org/public/english/standards/declaration/declaration_portuguese.pdf>. Acesso em: 4
jun. 2020.
10 DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. Documentos Internacionais da OIT:

Caracterização e Ingresso no Direito Brasileiro. In: ROCHA, Cláudio Jannotti et al. (Org.) A
organização do Trabalho: sua história, missão e desafios. Vol. 1. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p.
43.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

144
Além disso, é possível citar os seguintes diplomas da OIT sobre essa temática:
Convenção 29; Convenção 105; Recomendação 203; e Protocolo à Convenção sobre
o Trabalho Forçado, de 2014.
A Convenção 29 da OIT11, de 1930, concernente ao trabalho forçado ou
obrigatório, estabelece, em seu artigo 1º, que todos os Membros da Organização
Internacional do Trabalho que ratificam a convenção se obrigam a “suprimir o emprego
do trabalho forçado ou obrigatório sob todas as suas formas no mais curto prazo
possível”. A expressão “trabalho forçado ou obrigatório”, para essa convenção, refere-
se a “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer
penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”. Veja-se que,
apesar de buscar a abolição da escravidão, mencionava que essa medida deveria ser
executada no mais curto prazo possível, sem obrigar, categoricamente, a sua imediata
abolição.
Em 1957, já em um contexto de pós Segunda Guerra Mundial, a Convenção
10512 da OIT, promovendo a progressividade e universalidade dos direitos humanos,
preconizou, em seu artigo 1º, que qualquer Membro da Organização Internacional do
Trabalho que ratificasse essa convenção se comprometeria a suprimir o trabalho
forçado ou obrigatório e a não recorrer a ele sob forma alguma. Além disso, o Estado
deveria adotar medidas eficazes, no sentido da abolição imediata e completa do
trabalho forçado ou obrigatório, nos termos do artigo 2º. Observa-se que,
diferentemente da Convenção 29, a Convenção 105, ao afirmar que o trabalho forçado
ou obrigatório deveria ser suprimido, não estabelece prazo, devendo ocorrer, portanto,
imediatamente.
Cabe ressaltar que tanto a Convenção 29 quanto a Convenção 105 da OIT
foram ratificadas pelo Brasil, conforme Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019,
anexos XIV e XXV.

11 BRASIL. Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019, Anexo XXVIII. Consolida atos normativos
editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e
recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República
Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm>. Acesso em: 4 jun.
2020.
12 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

145
Ademais, convém destacar a Recomendação 203 da OIT13, que traz
recomendação sobre medidas suplementares para a supressão efetiva do trabalho
forçado, bem como o Protocolo à Convenção sobre o Trabalho Forçado, de 2014, que,
com o objetivo de complementar as disposições sobre o combate ao trabalho forçado,
prevê que os Estados Membros devem adotar medidas efetivas para prevenir e
eliminar seu uso, inclusive, fornecendo às vítimas proteção e acesso a ações legais
apropriadas14.
No mesmo sentido, a Declaração Sociolaboral do Mercosul15 também busca
promover o combate ao trabalho forçado ou obrigatório, ao afirmar, no item 1 do seu
Artigo 8º, que “toda pessoa tem direito a um trabalho livremente escolhido e a exercer
qualquer ofício ou profissão, de acordo com as disposições nacionais vigentes”.
Além disso, os Estados Partes “comprometem-se a adotar as medidas
necessárias para eliminar toda forma de trabalho forçado ou obrigatório exigido a um
indivíduo sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido
espontaneamente”, devendo, ademais, “adotar medidas para garantir a abolição de
toda utilização de mão de obra que propicie, autorize ou tolere o trabalho forçado ou
obrigatório”.
Ressalte-se a importância, nesse assunto, do Protocolo Adicional à Convenção
das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção,
Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças
(Protocolo de Palermo)16. Esse Protocolo, busca combater o tráfico de pessoas, por
meio da prevenção, da investigação e da repressão a essa prática, que está bastante

13 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Recomendación sobre el trabajo forzoso


(medidas complementarias). 2014. Disponível em: <
https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_INSTRUMENT_ID:317
4688>. Acesso em: 4 jun. 2020.
14 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Protocolo 29, de 2014, relativo al Convenio

sobre el trabajo forzoso, 1930. Disponível em:


<https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:P029> .
Acesso em: 17.05.2020.
15 MERCOSUL. Declaração Sociolaboral do MERCOSUL de 2015 de 17 de julho de 2015.

Disponível em: < http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/10519-declaracao-sociolaboral-


do-mercosul-de-2015-i-reuniao-negociadora-brasilia-17-de-julho-de-2015>. Acesso em: 4 jun. 2020.
16 BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção

das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e
Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-
2006/2004/Decreto/D5017.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.

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146
ligada à escravidão. Esse protocolo foi ratificado pelo Brasil, conforme Decreto nº
5.017, de 12 de março de 2004.
Outrossim, a proibição da escravidão constitui norma de jus cogens, sendo,
portanto, norma imperativa e inderrogável do Direito Internacional dos Direitos
Humanos que, pela sua importância e essencialidade, tem superioridade hierárquica
e obrigatoriedade erga omnes17. Representa, assim, uma verdadeira cláusula pétrea
mundial.
No Brasil, a abolição oficial da escravatura pela Lei Áurea18, em 13 de maio de
1888, não significou a sua eliminação efetiva. A ausência de reformas sociais e
estruturais perpetuou a cultura escravocrata na sociedade.
A Constituição Federal de 198819, promulgada em um contexto de
redemocratização política pós ditadura militar, proíbe toda e qualquer forma de
escravidão. A Constituição, conforme artigo 1º, incisos III e IV, tem entre seus
fundamentos a dignidade da pessoa humana, bem como os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa. Além disso, entre os seus objetivos encontra-se construir
uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, inciso I), a qual não pode ser atingida
sem a efetiva erradicação da escravidão. No mesmo sentido, encontram-se as
disposições do artigo 5º, caput, III, XIII, XLVII, sendo que esse último veda, inclusive,
a realização trabalhos forçados como pena em razão de delitos.
Ademais, a Constituição Federal consagra o direito fundamental ao trabalho
digno como seu núcleo ético-jurídico e pilar estruturante da ordem econômica e social
(artigos 170 e 193). Com efeito, tendo como base o primado do trabalho e da justiça
social, a Constituição cidadã reconhece a centralidade do labor humano e a sua
essencialidade para a afirmação democrática.
Como bem preleciona Gabriela Neves Delgado, o direito fundamental ao
trabalho deve pautar-se na dignidade da pessoa humana. “Por isso, quando a

17 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2014, p. 36-37.
18 BRASIL. Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888. Declara extinta a escravidão no Brasil. Diário Oficial

[da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM3353.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.
19 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa

do Brasil. Disponível em: <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

147
Constituição Federal de 1988 se refere ao direito ao trabalho, implicitamente já está
compreendido que o trabalho valorizado pelo Texto Constitucional é o trabalho digno.”
20

No que se refere à escravidão, Código Penal, em seu artigo 149, criminaliza a


conduta, identificando quatro formas de trabalho escravo: a) trabalho forçado; b)
jornada exaustiva; c) condição degradante; d) restrição da locomoção em razão de
dívida.
A Instrução Normativa nº 139, de 22 de janeiro de 2018, da Secretaria de
Inspeção do Trabalho, conceitua as expressões contidas no mencionado artigo 149
do Código Penal. Trabalho forçado é aquele exigido sob ameaça de sanção física ou
psicológica e para o qual o trabalhador não tenha se oferecido ou no qual não deseje
permanecer espontaneamente. Jornada exaustiva é toda forma de trabalho, de
natureza física ou mental, que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete
violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados a
segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social. Condição degradante de
trabalho é qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito
fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do
trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho. Restrição, por qualquer meio,
da locomoção do trabalhador em razão de dívida é a limitação ao direito fundamental
de ir e vir ou de encerrar a prestação do trabalho, em razão de débito imputado pelo
empregador ou preposto ou da indução ao endividamento com terceiros.21
Cabe mencionar, ademais, que a mencionada Instrução Normativa, em seu
artigo 33, elenca diversos indicadores que ajudam a identificar o trabalho escravo e
análogo ao de escravo.
Para se ter uma ideia mais específica da quantidade de trabalhadores
submetidos a essa realidade, do ano de 2009 até o mês de junho de 2019 foram

20 DELGADO, Gabriela Neves. Direito Fundamental ao Trabalho Digno. São Paulo: LTR, 2015, p.
183.
21 BRASIL. Instrução Normativa nº 139, de 22 de janeiro de 2018, da Secretaria de Inspeção do

Trabalho. Dispõe sobre a fiscalização para a erradicação de trabalho em condição análoga à de


escravo e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível
em: < http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/2075837/do1-2018-
01-24-instrucao-normativa-n-139-de-22-de-janeiro-de-2018-2075833>. Acesso em 2 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

148
encontrados 21.86222 trabalhadores em situação de escravidão ou análoga à de
Escravo. Esse número considera apenas trabalhadores encontrados em fiscalização,
não representando, contudo, o número efetivo de indivíduos expostos à escravidão.
A neoescravidão está intimamente ligada à vulnerabilidade social. Alguns dos
fatores que favorecem essa vulnerabilidade social são o baixo poder aquisitivo, o
trabalho infantil e a baixa escolaridade. Esses fatores são particularmente
potencializados pela condição de migrante, já que a eles são somadas as diferenças
culturais, a barreira do idioma e o estigma da discriminação.

3 O PRINCÍPIO DA ISONOMIA E A NÃO DISCRIMINAÇÃO DOS MIGRANTES

O princípio da isonomia, tanto em sua acepção formal quanto material e,


inclusive, de reconhecimento (mundo aberto à diversidade), pressupõe a igualdade
de oportunidades, o respeito à dignidade, bem como o pleno e igualitário exercício
dos direitos fundamentais por todos os seres humanos. Consagrado em diversos
diplomas internacionais, o princípio da isonomia constitui norma de jus cogens, possui
status de core obligation e proíbe a adoção de práticas discriminatórias.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos23 garante, nos seus artigos I, II
e VII, a igualdade de direitos entre todos os seres humanos, sem estabelecer distinção
quanto à sua nacionalidade.
Além disso, preconiza no seu artigo XIII que “todo ser humano tem o direito de
deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”. Em que pese seja
assegurado o direito de emigrar, a Declaração Universal dos Direitos Humanos não
garante o direito de imigrar, razão pela qual a referida disposição é alvo de críticas,
em especial diante da desafiante tarefa de compatibilizar o princípio da igualdade com
o não reconhecimento do direito de imigrar para os estrangeiros24.

22 BRASIL. Radar SIT - Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.


Disponível em: < https://sit.trabalho.gov.br/radar/>. Acesso em: 19 abr. 2020.
23 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Disponível em: < https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2018/10/DUDH.pdf>. Acesso em: 4


jun. 2020.
24 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. O direito a não discriminação dos estrangeiros. Boletim

Científico ESMPU, Brasília, a. 11 – n. 37, p. 37-61 – Edição Especial 2012.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

149
O princípio da igualdade está disposto, ademais, no artigo 3º Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos25 e no artigo 3º Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais26, já que é assegurado o gozo de todos os
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais previstos nesses pactos a todas
as pessoas sem qualquer distinção. Os dois pactos mencionados foram ratificados
pelo Brasil, conforme Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992, e Decreto nº 591, de 6
de julho de 1992.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa
Rica)27, por sua vez, é ainda mais enfática ao afirmar a igualdade de direitos entre
nacionais e estrangeiros, nos termos do seu artigo 1º:

ARTIGO 1
Obrigação de Respeitar os Direitos
1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os
direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício
a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma
por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de
qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica,
nascimento ou qualquer outra condição social.
2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Veja-se que essa convenção busca que a proibição de discriminação seja mais
abrangente quanto possível, proibindo discriminações diversas, entre elas quanto à
origem nacional. Ratifica-se, ademais, em seu artigo 24 que todas as pessoas são
iguais perante a lei e, por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção
da lei.
É possível notar, dessa forma, que a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos não faz qualquer diferenciação entre pessoas para o acesso à proteção
estatal, havendo plena igualdade entre nacionais e estrangeiros, inclusive com relação

25 BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 4
jun. 2020.
26 BRASIL. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>. Acesso
em: 4 jun. 2020.
27 BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre

Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

150
àqueles em situação irregular. Cabe destacar que essa convenção foi ratificada pelo
Brasil, por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, integrando, por
conseguinte, o ordenamento jurídico nacional.
Referida diretiva é reafirmada no Protocolo Adicional à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
também conhecido como Protocolo de São Salvador28. Isso porque esse diploma
reafirma, no seu artigo 3º, que os Estados-Partes se comprometem a garantir o
exercício de direitos, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social,
posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. Esse protocolo foi
ratificado pelo Brasil, conforme Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999.
Ressalte-se que o acesso universal ao trabalho livre e sem discriminação
inclusive quanto à origem nacional também é buscado pela Organização Internacional
do Trabalho - OIT. Nesse sentido, cabe mencionar as Convenções 10529 e 11130 da
OIT.
A Convenção 10531 da OIT veda o trabalho forçado ou obrigatório, e que os
países signatários dessa se comprometem a adotar medidas eficazes, no sentido da
abolição imediata e completa do trabalho forçado ou obrigatório.
Já a Convenção 111 da OIT trata sobre a discriminação em matéria de emprego
e profissão. No seu artigo 1º preconiza-se que o termo “discriminação” compreende
“toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião
política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar
a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”.
É possível verificar, portanto, que a Convenção 111 encontra-se em consonância com

28 BRASIL. Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999. Promulga o Protocolo Adicional à


Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais "Protocolo de São Salvador", concluído em 17 de novembro de 1988, em São Salvador, El
Salvador. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3321.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.
29 BRASIL. Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019, Anexo XXVIII. Consolida atos normativos

editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e
recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República
Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Decreto/D10088.htm>. Acesso em: 4 jun.
2020.
30 Ibidem.
31 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

151
os demais dispositivos internacionais até agora mencionados no presente estudo, ao
vedar todo tipo de discriminação, inclusive quanto à origem nacional.
Depreende-se, portanto, que o país signatário das Convenções 105 e 111 deve
combater em igual medida a escravidão tanto de nacionais quanto de estrangeiros no
seu território. O Brasil ratificou as duas Convenção, conforme Anexo XXVIII do
Decreto nº 10.088, de 5 de novembro de 2019.
A proibição da discriminação no acesso ao emprego e durante o contrato de
trabalho do migrante também encontra previsão na Convenção 97 da OIT, ratificada
pelo Brasil, bem como na Convenção 143 da OIT, que, entretanto, não foi ratificada.
Apesar de a Convenção 97, em seu artigo 6º, proibir a discriminação entre migrantes
e nacionais em matéria de emprego, ela apenas faz referência aos migrantes que se
encontrem legalmente em seu território, não sendo aplicável, por conseguinte, ao
migrante irregular.
A Declaração Sociolaboral do Mercosul32 também trata sobre a não
discriminação entre nacionais e estrangeiros, ao dispor no seu artigo 4º que:

Os Estados Partes comprometem-se a garantir, conforme a legislação


vigente e práticas nacionais, a igualdade efetiva de direitos, o tratamento e
as oportunidades no emprego e na ocupação, sem distinção ou exclusão por
motivo de sexo, etnia, raça, cor, ascendência nacional, nacionalidade,
orientação sexual, identidade de gênero, idade, credo, opinião e atividade
política e sindical, ideologia, posição econômica ou qualquer outra condição
social, familiar ou pessoal.

É possível notar que há a expressa vedação de discriminação em razão de


ascendência nacional e nacionalidade.
A mencionada Declaração Sociolaboral do Mercosul ainda é mais específica
quanto à situação dos migrantes e fronteiriços, já que no seu artigo 7º trata
especificamente sobre o assunto. De acordo com esse dispositivo, todos os
trabalhadores, independentemente de sua nacionalidade, devem ter garantido o
direito à assistência, à informação, à proteção e à igualdade de direitos e condições
de trabalho, bem como direito de acesso aos serviços públicos, reconhecidos aos

32MERCOSUL. Declaração Sociolaboral do MERCOSUL de 2015 de 17 de julho de 2015.


Disponível em: < http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/notas-a-imprensa/10519-declaracao-sociolaboral-
do-mercosul-de-2015-i-reuniao-negociadora-brasilia-17-de-julho-de-2015>. Acesso em: 4 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

152
nacionais do país em que estiver exercendo suas atividades, em conformidade com a
legislação de cada país.
Cabe, por fim, mencionar a “Convenção Internacional sobre a Proteção dos
Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias” da
Organização das Nações Unidas33. A sua aplicação é a todos os trabalhadores
migrantes e aos membros das suas famílias sem qualquer distinção, fundada
nomeadamente no sexo, raça, cor, língua, religião ou convicção, opinião política ou
outra, origem nacional, étnica ou social, nacionalidade, idade, posição económica,
património, estado civil, nascimento ou outra situação. Essa Convenção traz, ademais,
diversas outras disposições sobre o tema, contudo ainda não foi ratificada pelo Brasil.
Observa-se, desse modo, que existe um vasto arcabouço normativo que busca
promover a não discriminação em relação aos trabalhadores migrantes, incorporado
ao ordenamento jurídico brasileiro com status supralegal34 e eficácia paralisante.
Além disso, o tema do migrante também é tratado na Constituição Federal de
1988. A sociedade brasileira, nos termos do artigo 1º, incisos II, III e IV, da Constituição
Federal de 1988, tem entre seus fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, bem como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Ademais, entre
os seus objetivos encontra-se construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo
3º, inciso I), bem como “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º, inciso IV).
Outrossim, as relações internacionais do Brasil são regidas, entre outros, pelo
princípio da prevalência dos direitos humanos (artigo 4º, inciso II). A referida
disposição reflete o princípio pro homine, segundo o qual “havendo conflito entre uma

33 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional sobre a Proteção dos


Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias. Adotada pela
Resolução 45/158, de 18 de Dezembro de 1990, da Assembleia-Geral (entrada em vigor a 1 de Julho
de 2003). Disponível em: <
https://www.oas.org/dil/port/1990%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20Internacional%20sobre%20a%
20Protec%C3%A7%C3%A3o%20dos%20Direitos%20de%20Todos%20os%20Trabalhadores%20Mig
rantes%20e%20suas%20Fam%C3%ADlias,%20a%20resolu%C3%A7%C3%A3o%2045-
158%20de%2018%20de%20dezembro%20de%201990.pdf> Acesso em: 4 jun. 2020.
34 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343-1 São Paulo. Relator:

Ministro Cezar Peluso. Brasília, DF, 3 de dezembro de 2008. Diário de Justiça Eletrônico.
Disponível em: < http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/re466343.pdf>. Acesso em: 4 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

153
convenção internacional do trabalho ratificada e as leis internas nacionais, deverá
prevalecer a norma mais favorável ao ser humano”35.
As disposições do artigo 5º, caput, I, XLI e XLII ratificam tal diretiva, ao vedar
qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, bem como
a prática de racismo36.
É possível verificar, portanto, que o ordenamento jurídico busca a prevalência
dos direitos humanos, em especial o direito à igualdade entre os nacionais e
migrantes, promovendo a não discriminação. Contudo, o migrante ainda se encontra
em situação fática marcada pela sua acentuada vulnerabilidade e exposição a
variadas situações adversas, que serão abordadas no capítulo a seguir.

4 A VULNERABILIDADE DO MIGRANTE E A SUBMISSÃO AO TRABALHO


ESCRAVO

A disciplina jurídica do migrante no ordenamento jurídico brasileiro era tutelada,


até o ano de 2017, pelo Estatuto do Estrangeiro37, o qual, editado em um contexto de
ditadura militar, era marcado pelo nacionalismo.
Fundado em um conceito tradicional de nação e em uma suposta
homogeneidade populacional, que não existe no mundo real, o nacionalismo acaba
sendo utilizado como um fundamento ideológico para justificar a opressão e a
exclusão daqueles que não se identificam com essa homogeneidade. Inclusive,
exemplos históricos demonstram que o nacionalismo exacerbado pode ser utilizado

35 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Integração das convenções e recomendações internacionais da


OIT no Brasil e sua aplicação sob a perspectiva do princípio pro homine. In: ROCHA, Cláudio Jannotti
et al. (Org.) A comunicabilidade do direito internacional do trabalho e o direito do trabalho
brasileiro. Vol. 2. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 167.
36 O STF, no julgamento do HC 82424 (Caso Ellwanger), concluiu que a definição do termo racismo

requer a conjugação de fatores e circunstâncias históricas, sociais e políticas, devendo ser


compreendido, portanto, em sua dimensão social, projetando-se para além de aspectos estritamente
biológicos ou fenotípicos. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82424 Rio Grande do Sul. Relator
para Acórdão: Ministro Maurício Corrêa. Brasília, DF, 17 de setembro de 2003. Diário de Justiça
Eletrônico. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/jurisprudencia/IT/frame.asp?classe=HC&processo=82424&origem=IT&cod_class
e=349>. Acesso em: 4 jun. 2020).
37 BRASIL. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil,

cria o Conselho Nacional de Imigração. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6815.htm>. Acesso em: 19 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

154
com um instrumento populista e de tomada de poder38. Veja-se que não se critica aqui
o sentimento de pertencimento de um indivíduo ao seu país e a sua história em
comum, que faz parte da individualidade de um povo e deve ser respeitado, mas os
contornos negativos que a manipulação desse sentimento pode tomar.
Assim, o nacionalismo não deve estar na base de qualquer raciocínio jurídico,
nem deve influir na gestão da imigração, em especial quando se trata de compatibilizar
o princípio da igualdade com as diferenças de nacionalidade.39 Nessa linha, “as
restrições ao estabelecimento de estrangeiros no país devem ser compreendidas
numa perspectiva de preservação da ordem jurídica e do mercado de trabalho
brasileiros.”40 Por conseguinte, essas restrições não devem ter o objetivo de preservar
o elemento “nacional”, mas garantir a integridade do ordenamento jurídico brasileiro e
impedir a livre exploração da mão de obra estrangeira, garantindo o respeito ao
patamar mínimo civilizatório.
O Brasil, superando a visão nacionalista constante no Estatuto do Estrangeiro,
passou a adotar, a partir de 2017, com a Lei de Migrações41, uma perspectiva
humanitária, alinhada com os direitos humanos e com a Constituição Federal de 1988,
ao garantir os direitos fundamentais aos migrantes, uma vez cruzada a fronteira, de
forma a concretizar um horizonte de cidadania mundial.
Assim, quando o imigrante cruza a fronteira e se estabelece no Brasil, ainda
que sem realizar os procedimentos legalmente previstos, a irregularidade
administrativa não pode servir de justificativa para negar ao imigrante o acesso aos
direitos fundamentais, sob pena de ferir os princípios da igualdade e da não
discriminação.42

38 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Menos nacionalismo e mais direitos humanos: O papel do MPT
diante do trabalho estrangeiro irregular. Revista do Ministério Público do Trabalho. Ano XXI. N. 4.
Brasília: Procuradoria-Geral do Trabalho, 2011, p. 205.
39 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Menos nacionalismo e mais direitos humanos: O papel do MPT

diante do trabalho estrangeiro irregular. Revista do Ministério Público do Trabalho. Ano XXI. N. 4.
Brasília: Procuradoria-Geral do Trabalho, 2011, p. 207.
40 Ibid., p. 218.
41 BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Diário Oficial [da]

República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-


2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.
42 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Menos nacionalismo e mais direitos humanos: O papel do MPT

diante do trabalho estrangeiro irregular. Revista do Ministério Público do Trabalho. Ano XXI. N. 4.
Brasília: Procuradoria-Geral do Trabalho, 2011, p. 218.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

155
Nesse contexto, com a mudança paradigmática ocorrida com a Lei de
Migrações, busca-se assegurar a isonomia, não discriminação e solidariedade entre
nacionais e estrangeiros, inclusive indocumentados (situação migratória irregular), na
linha das normas internacionais e constitucionais, de forma a materializar a
universalidade e progressividade dos direitos humanos.
Aliás, não só o migrante é beneficiado com essa política de garantia dos direitos
fundamentais ao estrangeiro, mas também os cidadãos brasileiros. No campo do
Direito do Trabalho é ainda mais evidente o benefício ao brasileiro, tendo em vista que
impedirá a superexploração e a geração de uma massa de mão de obra mais barata
que a brasileira.
É justamente essa a diretiva do Protocolo de São Salvador43, ao tratar sobre o
Direito do Trabalho nos artigos 6º e 7º. Garante-se, no artigo, 6º que toda pessoa
tenha o direito ao trabalho, incluindo a oportunidade de obter os meios para levar uma
vida digna e decorosa através do desempenho de atividade lícita, livremente escolhida
ou aceita. Já o artigo 7º preconiza que todos devem gozar desse direito em condições
justas, equitativas e satisfatórias.
No âmbito do sistema interamericano, mais especificamente sobre a questão
migratória, convém ainda destacar a Opinião Consultiva nº 18/2003 da Corte
Interamericana de Direitos Humanos44 que reconheceu a plena aplicação do princípio
da isonomia aos trabalhadores migrantes, inclusive os indocumentados.
84. Com isso se pode assegurar rapidamente um mínimo de proteção convencional, por
exemplo, aos trabalhadores imigrantes indocumentados, em suas relações não apenas com o
poder público, mas também com outros indivíduos, em particular seus empregadores. Pode-
se, assim, sustentar que os trabalhadores migrantes, inclusive os indocumentados, são titulares
de direitos fundamentais erga omnes. Em última instância, o Estado tem a obrigação de tomar
medidas positivas para impedir a exploração do trabalho inescrupulosa, e para pôr fim à
mesma. O Estado tem o dever de assegurar a prevalência do princípio fundamental da
igualdade e não discriminação, que, como estabelece com acerto o presente Parecer
Consultivo da Corte Interamericana, é um princípio do jus cogens (par. 101, e ponto resolutivo
n° 4). O esclarecimento deste ponto básico constitui uma valiosa contribuição do presente
Parecer Consultivo N° 18 da Corte.

43 BRASIL. Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999. Promulga o Protocolo Adicional à


Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais "Protocolo de São Salvador", concluído em 17 de novembro de 1988, em São Salvador, El
Salvador. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3321.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.
44 CORTE INTERAMERINACA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva nº 18, de 17 de

setembro de 2003. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_18_por.pdf>.


Acesso em: 1 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

156
85. O Estado está obrigado pela normativa da proteção internacional dos direitos humanos,
que protege toda pessoa humana erga omnes, independentemente de seu estatuto de
cidadania, ou de migração, ou qualquer outra condição ou circunstância. Os direitos
fundamentais dos trabalhadores migrantes, inclusive os indocumentados, são oponíveis ao
poder público e igualmente aos particulares (v.g., os empregadores), nas relações
interindividuais. O Estado não pode se prevalecer do fato de não ser Parte em um determinado
tratado de direitos humanos para se evadir da obrigação de respeitar o princípio fundamental
da igualdade e não discriminação, por ser este um princípio de Direito Internacional geral, e do
jus cogens, que transcende assim o domínio do direito dos tratados.

Contudo, apesar de todo arcabouço legal e principiológico, além da mudança


de diretiva da legislação Brasileira, com a edição da Lei de Migrações, os estrangeiros
ainda se encontram em situação de vulnerabilidade quando cruzam as fronteiras. Isso
porque, além de carregarem o estigma da condição de estrangeiro, sofrem diversas
restrições e entraves burocráticos para o exercício dos direitos civis e políticos, bem
como para o acesso ao mercado de trabalho, às prestações sociais e à legalização
de documentos45. Pela dificuldade de obtenção do ingresso regular no território
nacional, muitos optam pelo ingresso irregular no país.
Além disso, observa-se ainda que, nas contratações de migrantes,
constantemente, o princípio do fair recruitment é desrespeitado. Como forma de
garantir o trabalho decente46 e minimizar a vulnerabilidade do migrante, o princípio do
fair recruitment, também conhecido como princípio da contratação equitativa, veda a
cobrança de valores por motivo de contratação, bem como a formulação de propostas
de emprego falaciosas. Por conseguinte, devem ser adotados contratos de trabalho
transparentes, que reflitam a efetiva oferta de emprego47.

45 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. A atuação do Ministério Público do Trabalho em Matéria de


Imigração e Refúgio. In: PAIXÃO, Cristiano; CAVALCANTI, Tiago Muniz (Org.). Combate ao trabalho
escravo: conquistas, estratégias e desafios. São Paulo: LTr, 2017, p. 228.
46 O trabalho decente consiste no trabalho produtivo, adequadamente remunerado, exercido em

condições de liberdade, equidade e segurança e capaz de garantir uma vida digna. Como condição
fundamental para a superação da pobreza, redução das desigualdades sociais, garantia da
governabilidade democrática e desenvolvimento sustentável, o conceito de trabalho decente foi
formalizado pela OIT em 1999 e é eixo central para onde convergem os quatro objetivos estratégicos
da OIT, quais sejam: i) respeito às normas internacionais do trabalho, em especial aos princípios e
direitos fundamentais do trabalho; ii) promoção do emprego de qualidade; iii) extensão da proteção
social; iv) fortalecimento do diálogo social). (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO.
Trabalho Decente. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-decente/lang--
pt/index.htm>. Acesso em: 15 jun. 2020).
47 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Mulher Migrante Doméstica e o Princípio do Fair

Recruitment. In: ARAÚJO, Adriane Reis et al. Direitos Humanos no Trabalho pela Perspectiva da
Mulher. Belo Horizonte: RTM, 2019.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

157
Assim, os migrantes e refugiados são particularmente mais vulneráveis à
discriminação, à opressão e à exploração do trabalho escravo. Em muitos casos, a
ausência do domínio do idioma e os entraves culturais acentuam o quadro de
vulnerabilidade migratória. Esse conjunto de fatores tem demonstrado contornos mais
graves quando observado que o Brasil é um país que tem se mostrado relativamente
atrativo para migrantes de diversas origens, em especial dos países economicamente
menos desenvolvidos da América do Sul, da América Central e da África. Serão
analisados alguns casos a seguir que demonstram a vulnerabilidade do estrangeiro
em variadas situações.
A partir de 2016, o fluxo migratório de venezuelanos para o Brasil cresceu
acentuadamente, principalmente na cidade fronteiriça de Pacaraima, em Roraima, e
na capital do Estado, Boa Vista. O primeiro caso de trabalho análogo ao de escravo
identificado com trabalhadores venezuelanos como vítimas foi em 201748.
Os migrantes venezuelanos vêm para o Brasil fugindo da realidade de um país
arrasado economicamente, buscando conseguir um trabalho que os possibilite
comprar alimentos para enviar a seus familiares que ainda não migraram ou
simplesmente recomeçar uma nova vida em um local próximo do país de origem. No
período de 10 anos compreendido entre 2009 e junho de 2019, foram encontrados 91
trabalhadores em condição análoga à de escravo em Roraima. Desse total, 19 eram
venezuelanos, ou seja, 1/5 das vítimas identificadas de escravidão contemporânea
em Roraima49.
Quanto à atividade econômica, é possível verificar que os venezuelanos foram
encontrados principalmente na criação de bovinos e na extração de madeira, mas
também são encontrados em outras atividades econômicas, como serviços de
montagens de tendas para eventos, coleta de contêineres de entulhos, entre outros.50

48 FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração Venezuelana e a Exploração de Trabalho Análogo ao de


Escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho. 3ª edição. Brasília:
Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, 2019. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=article&op=view&path%5B%5
D=84&path%5B%5D=47>. Acesso em: 28 abr. 2020.
49 BRASIL. Radar SIT - Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.

Disponível em: < https://sit.trabalho.gov.br/radar/>. Acesso em: 19 abr. 2020.


50 FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração Venezuelana e a Exploração de Trabalho Análogo ao de

Escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho. 3ª edição. Brasília:


Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, 2019. Disponível em: <

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

158
Ressalta-se que não é incomum encontrar o trabalho escravo conjugado com o
trabalho infantil, o que acaba por favorecer a continuidade do ciclo da neoescravidão.
É possível verificar que os trabalhadores, em geral, se encontravam em uma situação
na qual são obrigados a aceitar qualquer valor para trabalhar ou para ter um lugar
para passar a noite, ainda que submetidos ao aviltamento à sua dignidade pessoal.
Entre as condições de trabalho desumanas encontradas, é possível citar, sem
exclusão de outras: trabalho realizado em propriedades de difícil acesso; alojamentos
precários, montados com lonas compradas pelos próprios trabalhadores, sobre chão
de terra e desprotegidos de intemperes e insetos; alojamentos posicionados em locais
distantes das sedes das fazendas, em percurso de mata fechada, sem pontes sobre
os cursos de água; ausência de fornecimento gratuito de equipamentos de
proteção individual; ausência de instalação sanitária; alimentação precária, preparada
sem higiene, em fogão a lenha dentro do barraco de lona; a água consumida sendo a
mesma utilizada para cozinhar e tomar banho, apresentando coloração e proveniente
de buracos cavados nas proximidades dos barracos e, por vezes, com a utilização de
recipientes reutilizados de agrotóxicos51.
Além disso, é possível encontrar a servidão por dívida, já que em alguns casos
o gasto mensal médio imputado ao empregado pelos itens adquiridos pelo
empregador é maior que o salário combinado, o que acaba importando no não
pagamento efetivo de salário.
De forma geral o perfil do migrante venezuelano resgatado de condições
análogas às de escravo é bem parecido com os demais resgatados brasileiros e
estrangeiros de outras nacionalidades. Entre os venezuelanos, quanto ao gênero,
91% são homens, enquanto a proporção nacional é de 87%. Quanto ao estado civil,
66% dos venezuelanos resgatados são solteiros, sendo 72% a média nacional; 25%
dos venezuelanos são casados, enquanto esse percentual na amostra nacional é de

https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=article&op=view&path%5B%5
D=84&path%5B%5D=47>. Acesso em: 28 abr. 2020.
51 FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração Venezuelana e a Exploração de Trabalho Análogo ao de

Escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho. 3ª edição. Brasília:


Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, 2019. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=article&op=view&path%5B%5
D=84&path%5B%5D=47>. Acesso em: 28 bar. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

159
21%. Quanto à etnia, 75% venezuelanos se declaram como pardos, sendo 72% na
amostra nacional52.
Apesar de a maioria dos dados dos trabalhadores venezuelanos encontrados
em situação de trabalho escravo serem parecidos com os brasileiros, há uma notável
diferença quanto à respectiva escolaridade. Enquanto a maioria dos resgatados no
Brasil possui apenas até o 5º ano incompleto, a maioria da amostra de venezuelanos
resgatados possui ensino médio completo. Além disso, não é comum encontrar
analfabetismo entre os venezuelanos resgatados, enquanto os trabalhadores
brasileiros apresentaram média de 12% de analfabetismo, segundo os dados de 2018
da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), da
Inspeção do Trabalho. Sendo assim, nota-se que os venezuelanos resgatados detêm
grau escolaridade superior à média nacional de resgatados, o que reforça a situação
migratória como fator principal de vulnerabilidade social53.
Além da situação dos migrantes venezuelanos, é possível citar o trabalho
escravo realizado na cadeia têxtil, preponderantemente no Estado de São Paulo, por
empresas varejistas que subcontratam a produção de peças de vestuário. As
subcontratadas, por sua vez, subcontratam a produção a facções, que se valem do
trabalho, principalmente, de bolivianos e paraguaios em condições degradantes:
informalidade, jornadas abusivas e ausência de segurança. Nesse caso, em regra, a
irregularidade encontrada é a existência de trabalho degradante, mas é possível
encontrar, também, a restrição à liberdade de circulação.54
Cite-se, também, a submissão de trabalhadoras migrantes de origem filipina ao
quadro de tráfico de pessoas e redução de trabalhadores à condição de trabalho
análogo ao de escravo, ocorrido no âmbito do trabalho doméstico em residências de
alto padrão em São Paulo. Nesse caso, as trabalhadoras foram enganadas no

52 BRASIL. Radar SIT - Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil.


Disponível em: < https://sit.trabalho.gov.br/radar/>. Acesso em: 19 abr. 2020.
53 FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração Venezuelana e a Exploração de Trabalho Análogo ao de

Escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho. 3ª edição. Brasília:


Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, 2019. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=article&op=view&path%5B%5
D=84&path%5B%5D=47>. Acesso em: 28 abr. 2020.
54 LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Migrações, mundo do trabalho e atuação do Ministério Público

do Trabalho. In: PRADO, Erlan José Peixoto do; COELHO, Renata. Migrações e trabalho. Brasília:
Ministério Público do Trabalho, 2015, p. 228.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

160
momento da contratação com falsa promessa de emprego. Essas trabalhadoras foram
submetidas a jornadas extenuantes, de 10 a 14 horas por dia, ausência de
observância dos descansos intra, interjornada e semanal, retenção de salários,
limitação de liberdade, rígido controle da alimentação na residência do empregador e
ausência de cuidados médicos.55
É possível verificar, portanto, que os migrantes estão em situação de acentuada
vulnerabilidade social, merecendo especial atenção dos órgãos de combate ao
trabalho escravo, notadamente: a Inspeção do Trabalho; o Ministério Público do
Trabalho; a Defensoria Pública da União; a Polícia Federal; e a Polícia Rodoviária
Federal. Esses órgãos trabalham em conjunto e de forma complementar para o
combate ao trabalho escravo e análogo ao de escravo, e vêm se mostrando de grande
relevância nessa função.
Dessa forma, mostra-se imprescindível a atuação desses órgãos na promoção
da não discriminação e no combate aos pontos de vulnerabilidade social que
provocam o aparecimento do trabalho escravo. Ademais, torna-se essencial a adoção
de políticas públicas de proteção, acolhimento, capacitação, empregabilidade,
regularização documental e assistência médica e social.
Entre os mecanismos de relevante importância previstos no ordenamento
jurídico encontra-se a Convenção 97 da Organização Internacional do Trabalho,
ratificada pelo Brasil, que no seu artigo 2º estabelece que os Estados devem ter ou
“assegurar a existência de um serviço gratuito apropriado encarregado de ajudar os
trabalhadores migrantes e, nomeadamente, de lhes fornecer informações exatas”.
Também é necessário frisar, nesse contexto, a importância do quanto revisto
na Instrução Normativa nº 139, de 22 de janeiro de 201856. Essa Instrução Normativa
estabelece diretrizes a serem observadas pela Inspeção do Trabalho nas ações fiscais
direcionadas à erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo ou em

55 GONDIM, Andrea da Rocha Carvalho; LOPES, Cristiane Maria Sbalqueiro. Contratação


Equitativa e Serviço Doméstico: O Caso Das Trabalhadoras Domésticas Filipinas no Brasil.
Disponível em: < https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/142130>. Acesso em: 20 jun. 2020.
56 BRASIL. Instrução Normativa nº 139, de 22 de janeiro de 2018, da Secretaria de Inspeção do

Trabalho. Dispõe sobre a fiscalização para a erradicação de trabalho em condição análoga à de


escravo e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Disponível
em: < http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/2075837/do1-2018-
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Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

161
ações fiscais em que for identificada condição análoga à de escravo,
independentemente da atividade laboral, seja o trabalhador nacional ou estrangeiro,
inclusive quando envolver a exploração de trabalho doméstico ou de trabalho sexual.
Além de traçar dispositivos no sentido do planejamento e aperfeiçoamento das
ações fiscais realizadas por parte dos Auditores-Fiscais do Trabalho, ainda trata de
importantes procedimentos de combate à escravidão cuja vítima seja um migrante,
conforme disposto no seu artigo 24:
Artigo 24. Os trabalhadores estrangeiros em situação migratória irregular que tenham sido
vítimas de tráfico de pessoas e/ou de trabalho análogo ao de escravo deverão ser
encaminhados para concessão de sua residência permanente no território nacional, de acordo
com o que determinam artigo 30 da Lei n.º 13.445, de 24 de maio de 2017, e a Resolução
Normativa n.º 122, de 3 de agosto de 2016, do Conselho Nacional de Imigração - CNIg.
Parágrafo Único. O encaminhamento será efetuado mediante memorando da Chefia de
Fiscalização à Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo da Secretaria de
Inspeção do Trabalho (DETRAE), devidamente instruído com pedido de autorização imediata
de residência permanente formulado pelo Auditor-Fiscal do Trabalho responsável pelo resgate.
A DETRAE, por sua vez, oficiará o Ministério da Justiça e Cidadania requerendo deferimento
do pedido de autorização.

Veja-se que há previsão expressa de encaminhamento do migrante para a


concessão de sua residência permanente no território nacional, sendo importante
instrumento efetivador do quanto revisto no artigo 30 da Lei n.º 13.445, de 24 de maio
de 201757, e na Resolução Normativa n.º 122, de 3 de agosto de 2016, do Conselho
Nacional de Imigração - CNIg.
Tal previsão, adotada pela Inspeção do Trabalho em todas as constatações de
trabalho escravo de migrante, é importante para garantir que esse seja legalizado no
país e que fique mais protegido contra o retorno à situação vulnerabilidade social e,
eventualmente, à escravidão ou condição análoga à de escravo.
O endereçamento de ações e políticas públicas que busquem acabar com a
vulnerabilidade social e migratória, juntamente com uma efetiva fiscalização,
constituem importantes pilares de combate ao trabalho escravo contemporâneo, por
romper o ciclo de pobreza e exclusão ao qual os trabalhadores migrantes e suas
famílias estão expostos.

5 CONCLUSÕES

57 BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de Migração. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm>. Acesso em: 4 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

162
A neoescravidão está intimamente ligada à vulnerabilidade social. Alguns dos
fatores que favorecem essa vulnerabilidade social são o baixo poder aquisitivo,
o trabalho infantil e a baixa escolaridade. Esses fatores são particularmente
potencializados pela condição de migrante, já que a eles são somadas as
diferenças culturais, a barreira do idioma e o estigma da discriminação.
O Brasil, superando a visão nacionalista constante no Estatuto do Estrangeiro,
passou a adotar, a partir de 2017, com a Lei de Migrações, uma perspectiva
humanitária, alinhada com os direitos humanos e com a Constituição Federal
de 1988, ao garantir os direitos fundamentais aos migrantes, uma vez cruzada
a fronteira, de forma a concretizar um horizonte de cidadania mundial.
Apesar de todo arcabouço normativo, os estrangeiros ainda se encontram em
situação de vulnerabilidade, discriminação e exploração, pois, além de
carregarem o estigma da condição de estrangeiro, sofrem diversas restrições e
entraves burocráticos para o exercício dos seus direitos.
Diante da acentuada vulnerabilidade social, os migrantes merecem especial
atenção dos órgãos de combate ao trabalho escravo, notadamente: a Inspeção
do Trabalho; o Ministério Público do Trabalho; a Defensoria Pública da União;
a Polícia Federal; e a Polícia Rodoviária Federal. Esses órgãos trabalham em
conjunto e de forma complementar para o combate ao trabalho escravo e
análogo ao de escravo, e vêm se mostrando de grande relevância nessa
função.
Mostra-se imprescindível a atuação dos órgãos públicos e a adoção de políticas
públicas de proteção, acolhimento, capacitação, empregabilidade,
regularização documental e assistência médica e social.
Há previsão expressa na Instrução Normativa nº 139, de 22 de janeiro de 2018,
da SIT, de encaminhamento do migrante para a concessão de sua residência
permanente no território nacional. Referida previsão normativa, adotada pela
Inspeção do Trabalho em todas as constatações de trabalho escravo de
migrante, é importante para garantir que esse seja legalizado no país e que
fique mais protegido contra o retorno à situação vulnerabilidade social e,
eventualmente, à escravidão ou condição análoga à de escravo.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

163
O endereçamento de ações e políticas públicas que busquem acabar com a
vulnerabilidade social e migratória, juntamente com uma efetiva fiscalização,
constituem importantes pilares de combate ao trabalho escravo
contemporâneo, por romper o ciclo de pobreza e exclusão ao qual os
trabalhadores migrantes e suas famílias estão expostos.

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Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

169
SYSTEMATIC-NORMATIVE ANALYSIS OF SUBMISSION OF
MIGRANT WORKERS TO NEO-SLAVERY

ABSTRACT
This article aims to study the correlation between the submission
of migrant workers to neo-slavery and the social and economic
vulnerability to which they are subjected, especially due to the
obstacles to document regularization, cultural differences,
language barriers and the stigma of discrimination. This study is
carried out from a humanitarian perspective, illuminated by
international standards and human rights treaties ratified by
Brazil, which make up the block of constitutionality, according to
art. 5, § 2, of the Federal Constitution of Brazil from 1988. To this
end, it’s sought to examine the normative framework that
prohibits slave labor and discrimination in labor, and then,
analyzing the infraconstitutional conventions and norms that
protect the migrant labor. At the end, after identifying the main
migratory vulnerabilities, the situation of Venezuelans, Bolivians,
Paraguayans and Philippines was examined, as well as
measures to combat neo-slavery.
Keywords: Neo-slavery. Social vulnerability. Migrants.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

170
CONTRATO INTERMITENTE: IMPACTOS E CONSEQUÊNCIAS NAS
RELAÇÕES DE TRABALHO

Daniele de Oliveira Siqueira1

1. Introdução. 2. A reforma trabalhista. 3. O contrato de trabalho intermitente


no ordenamento jurídico brasileiro. 4. O contrato de trabalho intermitente no
Direito Comparado. 5. A adoção do trabalho intermitente e seu impacto nas
relações laborais. 6. Conclusão. Referências.

RESUMO
O trabalho intermitente foi inserido no nosso ordenamento jurídico por meio
da Lei nº 13467/2017. Essa nova modalidade contratual rompe com a lógica
tradicional dos contratos típicos previstos na Consolidação das Leis do
Trabalho ao prever a alternância entre períodos de atividade (trabalho) e
inatividade (não trabalho), sendo esses não remunerados pelo
empregador. Este artigo, através do método de revisão bibliográfica,
apresenta uma abordagem qualitativa e quantitativa de como a adoção do
contrato intermitente tem impactado as relações de trabalho. Apresenta,
em linhas gerais, a forma como foi regulado no Brasil, fazendo um breve
contraponto com o Direito Comparado. Analisa-se, ainda, os rendimentos
médios mensais auferidos por esses trabalhadores no ano de 2018, bem
como a frequência da chamada para o trabalho. Como resultado do estudo,
verificou-se que é fundamental que o contrato intermitente seja
regulamentado pela via legislativa e/ou negocial para que se possa
assegurar um mínimo de estabilidade financeira e segurança aos
trabalhadores.

Palavras-chave: Reforma trabalhista. Trabalho intermitente. Direito


Comparado. Precarização.

1 INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas várias alterações nas normas de proteção ao trabalho


foram colocadas em prática ao redor do mundo. No Brasil não foi diferente. Diante de
um cenário de crise econômica e política experimentado pelo país em meados de
2016, foi aprovada a Lei Ordinária nº 13.467/2017, conhecida como Reforma

1Auditora-Fiscal do Trabalho. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Pontifícia


Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2020). Graduada em Administração pela Universidade
Federal de Goiás (2010).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

171
Trabalhista. Dentre as inúmeras modificações promovidas, introduziu-se na
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) a figura do contrato de trabalho intermitente.
A Doutrina define essa nova modalidade contratual como contrato zero hora2,
tendo em vista o rompimento de um dos elementos naturais presentes no contrato de
trabalho que é a predeterminação da jornada. No contrato intermitente, o trabalhador
não possui uma jornada mínima definida, podendo ser convocado a qualquer tempo
para a prestação de serviços. Os períodos de inatividade, ou seja, não trabalho, não
são considerados tempo a disposição do empregador.
Trata-se, portanto, de um contrato atípico que relativiza o princípio da
continuidade da relação de emprego ao permitir a alternância entre períodos de
atividade e inatividade. A ausência de integração do trabalhador na dinâmica e
estrutura da empresa, proporcionada pela descontinuidade da prestação dos serviços,
repercute diretamente em sua estabilidade financeira e vida profissional.
Após a implementação da Reforma Trabalhista, os dados do Ministério da
Economia revelam que o crescimento desse novo tipo de contratação tem contribuído
para o aumento no número de empregos formais no país. No entanto, é preciso
analisar as peculiaridades desses vínculos, pois ainda que o trabalhador possua um
contrato ativo, isso não significa que houve a prestação de serviços e,
consequentemente, a garantia de uma remuneração digna.
Nesse sentido, este estudo aborda como a adoção do contrato de trabalho
intermitente tem impactado as relações de trabalho. Apresenta, em linhas gerais, a
forma como foi regulado no Brasil, fazendo um breve contraponto com o Direito
Comparado. Analisa-se, ainda, os rendimentos médios mensais auferidos por esses
trabalhadores no ano de 2018, bem como a frequência da chamada para o trabalho.
A pesquisa conta com uma abordagem qualitativa e quantitativa. O
procedimento metodológico utilizado foi o de levantamento bibliográfico, valendo-se
da consulta de artigos científicos, legislação, periódicos, processos judiciais e dados
divulgados pelo Poder Executivo.

2CASSAR, V. B. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 16. ed. São Paulo:
MÉTODO, 2018.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

172
2 A REFORMA TRABALHISTA

A demanda por reformas na área trabalhista começa a ter os primeiros registros


na década de 70, fim da era de ouro do capitalismo, fazendo parte do conjunto de
reformas da agenda neoliberal. No Brasil, desde 1990, houve diversos esforços para
mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). No entanto, as reformas
implementadas nos anos de 1990 e 2000 não alteraram de forma substancial a
legislação do trabalho3.
Com a crise econômica de 2008, a desregulamentação ou flexibilização
trabalhistas tiveram uma arrancada mundial4. No Brasil, a crise teve seu início em
meados de 2014, momento a partir do qual a taxa de desemprego começou a
alavancar, atingindo seu pico no primeiro semestre de 2017, ocasião em que registrou
13,8%5.
Nesse cenário, aliado a uma crise política, voltou à tona a tentativa de
implementar novas reformas trabalhistas, notadamente em 2016, sob o argumento de
que a rigidez e o protecionismo do direito do trabalho prejudicavam o desenvolvimento
econômico do país, afetando de forma direta o número de desempregados e o nível
de pobreza6.
Diante desse contexto, o então Presidente da República Michel Temer
encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) nº 6.787/2016, o qual
alterava ou incluía sete artigos na CLT e oito na Lei nº 6.019/1974 (Lei sobre Trabalho

3 FILGUEIRAS, Vitor Araujo; LIMA, Uallace Moreira; SOUZA, Ilan Fonseca De. Os impactos jurídicos,
econômicos e sociais das reformas trabalhistas. Cad. CRH, Salvador, v. 32, n. 86, p. 231–252, aug.
2019. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
49792019000200231&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em: 18 abr. 2020.
4 Ibidem; DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada

conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprundenciais posteriores.


18. ed. São Paulo: LTr, 2019.
5 SILVA, Alexandre Antônio Bruno da; SANTOS, Aline Maia dos; BEZERRA, Stéfani Clara da Silva.

Contrato de trabalho intermitente: benefícios ou forma de precarização do trabalho? Revista da


Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, Brasília, p. 14–36, jan./dez. 2019. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=article&op=view&path%5B%5
D=70 > Acesso em: 10 abr. 2020.
6 BELTRÃO, Rogério Coutinho; OLIVEIRA, Flavia de Paiva Medeiros de. Flexisecurity e a garantia do

trabalho em tempos decrise econômica: uma possibilidade jurídica ou uma realidade atual? Revista
do Direito do Trabalho e Meio Ambiente do Trabalho, Maranhão, v. 3, n. 2, p. 63–82, jul./dez.
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Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

173
Temporário). No entanto, o referido PL foi ampliado de forma significativa, recebendo
mais de oitocentas emendas7.
Apesar de a proposta de reforma ter sido anunciada pelo chefe do Executivo
como uma modernização necessária para “garantir os atuais empregos e gerar
novos”8, para Carlos Henrique Bezerra Leite9 ela instituía “três princípios de proteção
ao Capital (liberdade, segurança jurídica e simplificação), invertendo os valores, os
princípios e as regras de proteção ao trabalhador consagrados em diversas normas
internacionais e constitucionais”.
Com tramitação extremamente célere tanto na Câmara dos Deputados quanto
no Senado Federal, o PL foi transformado na Lei Ordinária nº 13.467/2017, colocando
em prática diversas medidas de desregulamentação e de flexibilização das normas de
proteção ao trabalho. Dentre as inúmeras alterações promovidas, criou-se no
ordenamento jurídico brasileiro a figura do contrato de trabalho intermitente10.
A adoção dessa nova modalidade de contratação foi justificada em uma das
emendas ao PL nº 6.787/2016 como forma de flexibilizar as regras contratuais
trabalhistas e ampliar as formas de contratação das empresas que, por sua natureza,
exerciam suas atividades em períodos variados ou que sofriam oscilações ou
descontinuidade de demanda por produção ou prestação de serviços, contribuindo,
assim, para a geração de empregos11.

7 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de lei n.º 6.787, de 2016. Coordenação de
Comissões Permanentes - DECOM - P_5369. Brasília, 2016. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=12455D4D33F9A65323
D00C0BE624813%202.proposicoesWebExterno1?codteor=1544128&filename=Avulso+-
PL+6787/2016> Acesso em: 09 abr. 2020.
8 MATOSO, Filipe. Em 1ª fala na TV, Temer defende reforma previdenciária e trabalhista. G1, política,

ago. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/processo-de-impeachment-de-


dilma/noticia/2016/08/temer-faz-pronunciamento-em-cadeia-nacional-de-radio-e-tv.html> Acesso em
17 abr. 2020.
9 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 9. ed. São Paulo: Saraiva

Educação, 2018, p.5.


10 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme

a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprundenciais posteriores. 18. ed. São
Paulo: LTr, 2019.
11 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Projeto de lei n.º 6.787, de 2016. Coordenação de

Comissões Permanentes - DECOM - P_5369. Brasília, 2016. Disponível em:


<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=12455D4D33F9A65323
D00C0BE624813%202.proposicoesWebExterno1?codteor=1544128&filename=Avulso+-
PL+6787/2016> Acesso em: 09 abr. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

174
Segundo tal emenda, o contrato intermitente também atenderia ao desejo dos
trabalhadores em dedicar parte do seu tempo para o desenvolvimento intelectual ou
profissional, para experimentar outras possibilidades disponíveis no mercado de
trabalho, ou, ainda, atender interesses de caráter pessoal.
Em razão de algumas lacunas deixadas pelo legislador, dias após a entrada
em vigor da Lei nº 13.467/2017, foi publicada a Medida Provisória (MP) nº 808/2018.
Ocorre que a referida MP perdeu a vigência em 24/05/2018, ao não ser convertida em
lei, voltando o trabalho intermitente a ser regulado inteiramente pelas disposições
contidas na lei da Reforma Trabalhista12.
Isso posto, será abordado a seguir como o contrato intermitente foi incorporado
ao sistema normativo trabalhista e suas principais peculiaridades.

3 O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

A Lei nº 13.467/2017 inseriu uma nova modalidade de contrato de trabalho no


art. 443 da CLT, dispondo que “o contrato individual de trabalho poderá ser acordado
tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou
indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente”13.
A definição sobre o que se considera trabalho intermitente veio no §3º do
mesmo dispositivo legal14, o qual evidencia a descontinuidade da prestação dos
serviços como sua característica central, ou seja, o trabalhador poderá ficar em

12 FINCATO, Denise. Direitos fundamentais e contrato de trabalho intermitente no Brasil: uma leitura
propositiva. Revista Ibérica do Direito, v. I, n. I, p. 190–206, jan./abr. 2020. Disponível em:
<http://revistaibericadodireito.com/index.php/revistaiberica/article/view/14/14> Acesso em: 30 abr.
2020.
13 BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),

aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de
1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação
às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 jul. 2017. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm> Acesso em: 10 abr. 2020.
14 § 3o Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com

subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de


inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do
empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

175
inatividade por curtos ou longos períodos15. Embora a atividade ocorra de forma não
contínua, ela não colide com a não eventualidade, que é um dos elementos que
configuram o vínculo de emprego16.
Maurício Godinho Delgado17 explica que a eventualidade não significa
intermitência, pois se a prestação de serviços é intercalada com períodos de não
trabalho, mas de forma permanente, trata-se de trabalho não eventual. Por sua vez,
Vólia Bonfim Cassar18 acrescenta que a não eventualidade está diretamente
relacionada à necessidade permanente da empresa por determinado tipo de serviço
ou atividade, seja de forma contínua ou intermitente.
Outra característica relevante é a ausência de limitação do contrato ao tipo de
atividade desempenhada pelo empregador, podendo ser utilizado em quaisquer
atividades empresariais, o que expande sobremaneira a possibilidade de contratação
nessa nova modalidade. Algumas atividades são intermitentes por natureza, havendo
alternância de períodos com alta e baixa demanda de mão de obra, tais como os
setores de hotelaria e turismo, no entanto, o legislador não impôs qualquer restrição19.
Consoante o art. 452-A da CLT, caput, o contrato de trabalho intermitente deve
ser celebrado por escrito e deve garantir ao trabalhador o valor da hora de trabalho,
não inferior ao percebido pelos demais empregados do estabelecimento que exercem
a mesma função, sejam intermitentes ou não20.

15 SILVA, Alexandre Antônio Bruno da; SANTOS, Aline Maia dos; BEZERRA, Stéfani Clara da Silva.
Contrato de trabalho intermitente: benefícios ou forma de precarização do trabalho? Revista da
Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, Brasília, p. 14–36, jan./dez. 2019. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=article&op=view&path%5B%5
D=70 > Acesso em: 10 abr. 2020.
16 KALED, Gabriela Schellenberg Pedro Bom. Contrato de trabalho intermitente. Percurso - ANAIS

DO VIII COMBRADEC, Curitiba, v. 01, n. 28, p. 39–55, 2019. Disponível em:


<http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/percurso/article/view/3418>. Acesso em: 10 abr. 2020.
17 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme

a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprundenciais posteriores. 18. ed. São
Paulo: LTr, 2019.
18 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 16. ed. São

Paulo: MÉTODO, 2018.


19 SALES, Alan Jorge P.; OLIVEIRA, Débora da Silva de. Trabalho intermitente: entre a inovação e a

precarização. Rev. do Trib. Reg. Trab. 10a Região, Brasília, v. 22, n. 2, p. 73–84, 2018. Disponível
em: <https://hdl.handle.net/20.500.12178/153830>. Acesso em: 14 abr. 2020.
20 BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),

aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de
1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação
às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 jul. 2017. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm> Acesso em: 10 abr.
2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

176
Além do contrato escrito, deve ser efetuada a anotação na CTPS do
empregado, pois não se admite contrato de trabalho intermitente verbal ou tácito,
mesmo que tenha sido objeto de negociação coletiva21. A não observância dessa
formalidade implica na contagem do tempo à disposição conforme o art. 4º da CLT,
aplicando-se as demais regras do contrato por tempo indeterminado22.
Para a prestação dos serviços, o empregador convocará o empregado, por
qualquer meio de comunicação eficaz, com pelo menos três dias de antecedência,
noticiando a jornada. Recebida a comunicação, o empregado terá o prazo de um dia
útil para responder, presumindo o silêncio como recusa. A referida recusa, todavia,
não descaracteriza a subordinação inerente ao contrato de trabalho intermitente.
Aceita a proposta para comparecimento ao trabalho, a parte que descumprir, sem
motivo justificado, deverá pagar a outra parte multa de 50% da remuneração devida,
no prazo de trinta dias, admitida a compensação nesse mesmo prazo23.
Durante a vigência da Medida Provisória nº 808/2017, o inciso IV do art. 452-B
da CLT dispunha que era facultado às partes definir por meio do contrato intermitente
a forma como se daria a reparação nas hipóteses de cancelamento dos serviços
previamente fixados. Portanto, a multa não era vinculada à lei, mas sim
convencionado entre as partes24.
Um problema que se apresenta nesse ponto está na previsão da multa a ser
quitada pelo trabalhador, caso aceite a oferta, mas não compareça para a prestação
dos serviços, sem um justo motivo. O legislador não definiu quais seriam as
justificativas aceitáveis. Poder-se-ia aplicar, por analogia, as disposições contidas no

21 NETO, Francisco Ferreira Jorge; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do


trabalho. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
22 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 16. ed. São

Paulo: MÉTODO, 2018.


23 BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),

aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de
1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação
às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 jul. 2017. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm> Acesso em: 10 abr. 2020.
24 CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do trabalho: de acordo com a reforma trabalhista. 16. ed. São

Paulo: MÉTODO, 2018.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

177
art. 473 da CLT, no entanto, conforme determinação expressa, as hipóteses ali
elencadas demandam o pagamento integral do salário ao empregado25.
Agora, se a recusa vier por parte do empregador, quando, por exemplo, ele
convoca o trabalhador para a prestação de serviços em um determinado dia, porém
no dia previamente fixado muda de ideia porque o volume do serviço não demandaria
mais uma pessoa. Nesse caso, ele deixa de pagar o valor total que seria devido, e
paga ao trabalhador apenas a metade, compartilhando os riscos da atividade
econômica26.
O parágrafo 5º do art. 452-A da CLT estabelece que não será considerado
tempo a disposição os períodos de não trabalho (inatividade), podendo o empregado
prestar serviços para outros contratantes, enfatizando, mais uma vez, a característica
principal dessa figura contratual27.
Por cada período de prestação de serviço, o empregado deverá receber uma
importância referente a: remuneração; férias proporcionais com acréscimo de um
terço; décimo terceiro proporcional; descanso semanal remunerado; e adicionais
legais. Há também a determinação para que o empregador forneça recibo de
pagamento com a discriminação de cada uma das parcelas pagas, bem como efetue
o recolhimento das contribuições previdenciárias e o depósito para o Fundo de
Garantia do Trabalhador, com base nos valores pagos no mês28.
Quanto ao pagamento da remuneração, a norma dispõe que será efetuado no
final de cada período, no entanto, tal disposição deve ser interpretada nos moldes do

25 NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves. O contrato de trabalho intermitente na reforma trabalhista
brasileira: contraponto com o modelo italiano. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15o
região, n. 51, p. 128–148, 2017. Acesso em: 10 abr. 2020.
26 COLUMBU, Francesca. O trabalho intermitente na legislação laboral italiana e brasileira. Revista

de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, v. 1, n. 1, p. 93–114, jan./jun.2019. Disponível em:


<https://revistas.anchieta.br/index.php/Dirdotrabalhoeprocessodotrabalho/article/view/1424/1306>.
Acesso em: 12 abr. 2020.
27 Ibidem.
28 BRASIL. Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),

aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de
1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação
às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 14 jul. 2017. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm> Acesso em: 10 abr.
2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

178
art. 459 da CLT, o qual determina que qualquer que seja a modalidade contratual, a
periodicidade do pagamento não poderá ser superior a 30 (trinta) dias29.
Ainda, a cada doze meses de vigência do contrato de trabalho, o empregado
adquire direto a usufruir, nos dozes meses subsequentes, um mês de férias, período
no qual o empregador não poderá convocar o intermitente para trabalhar, consoante
o § 9º do art. 452-A. O legislador não mencionou se as férias seriam remuneradas ou
não, contudo, pela leitura simples do dispositivo, deduz-se que como os valores
proporcionais das férias, acrescidos de um terço, já foram pagos “tais trinta dias
representam um período estabelecido pelo legislador una tatum, independentemente
se nos doze meses anteriores haja tido trabalho ou não”30.
Por fim, o art. 611-A, inciso VIII, trazido pela Lei 13.467/2017, permite que a
convenção e o acordo coletivo de trabalho tenham prevalência sobre a lei, quando
dispuserem sobre o contrato intermitente. Desta disposição geral, abre-se um leque
para atuação das organizações sindicais, que podem suprir várias lacunas legais e
até determinar a vedação da contratação de intermitentes para determinados
categorias profissionais ou ramo de atividade31.
Para auxiliar no entendimento dos contornos e possibilidades dessa nova
tipologia contratual, será apresentado, no próximo tópico, uma breve análise das
experiências internacionais na regulação do trabalho intermitente.

4 O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE NO DIREITO COMPARADO

O Brasil não foi pioneiro na implantação do contrato de intermitente, pelo


contrário, foi com base nos modelos estrangeiros que essa nova modalidade

29 NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves. O contrato de trabalho intermitente na reforma trabalhista
brasileira: contraponto com o modelo italiano. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15o
região, n. 51, p. 128–148, 2017. Acesso em: 10 abr. 2020.
30 COLUMBU, Francesca. O trabalho intermitente na legislação laboral italiana e brasileira. Revista

de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, v. 1, n. 1, p. 93–114, jan./jun.2019, p.111.


Disponível em:
<https://revistas.anchieta.br/index.php/Dirdotrabalhoeprocessodotrabalho/article/view/1424/1306>.
Acesso em: 12 abr. 2020)
31 NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves. O contrato de trabalho intermitente na reforma trabalhista

brasileira: contraponto com o modelo italiano. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15o
região, n. 51, p. 128–148, 2017. Acesso em: 10 abr. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

179
contratual foi inserida no nosso ordenamento jurídico, embora em circunstâncias
econômicas distintas32.
Na Itália, a figura contratual do trabalho intermitente foi introduzida pelo Decreto
Legislativo nº 276/2003. Atualmente, é regulada pelo Decreto nº 81/2015, fruto de
diversas alterações implementadas pela reforma trabalhista, conhecida como Jobs
Act. A finalidade da inserção dessa nova modalidade foi a de criar um modelo flexível
de contratação que possibilitasse a regularização de contratos informais e fomentasse
a criação de novos postos de trabalho33.
Em tal país, a aplicação do contrato intermitente é estabelecida por meio de
negociação coletiva, de acordo com as possibilidades e situações indicadas, ou, na
ausência desta, por regulamentação específica do Ministério do Trabalho, podendo
ser definidos os períodos em que a prestação será exigida na semana, mês ou ano34.
Considerando que um dos objetivos para a adoção do contrato intermitente foi
a de ampliar a geração de empregos, foram indicadas as hipóteses subjetivas de
legítimo uso do contrato – trabalhadores com idade inferior a 24 anos (caso em que a
prestação dos serviços poderá ser exercida até os 25) ou superior a 55 anos. Para
esse grupo de trabalhadores, as contratações são sempre permitidas35.
Além disso, estabeleceu-se limitação temporal da duração do contrato, que
não poderá ultrapassar 400 dias de trabalho em três anos. Se superado esse marco,
será transformado em contrato por prazo indeterminado, com exceção dos setores de
turismo, entretenimento e serviços em locais abertos ao público. Também não poderá
haver a contratação pelas empresas que realizaram dispensas coletivas nos últimos

32 KALED, Gabriela Schellenberg Pedro Bom. Contrato de trabalho intermitente. Percurso - ANAIS
DO VIII COMBRADEC, Curitiba, v. 01, n. 28, p. 39–55, 2019. Disponível em:
<http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/percurso/article/view/3418>. Acesso em: 10 abr. 2020.
33 NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves. O contrato de trabalho intermitente na reforma trabalhista

brasileira: contraponto com o modelo italiano. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15o
região, n. 51, p. 128–148, 2017. Acesso em: 10 abr. 2020.brasileira: contraponto com o modelo
italiano. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15o região, [s. l.], n. 51, p. 128–148, 2017. .
34 FERNANDES, Paulo Roberto. A figura do contrato de trabalho intermitente do PL no 6.787/2016

(Reforma Trabalhista) à luz do direito comparado. Os Trabalhistas, abr. 2017. Disponível em:
<http://ostrabalhistas.com.br/figura-do-contrato-de-trabalho-intermitente-do-pl-no-6-7872016-reforma-
trabalhista-luz-do-direito-comparado/> Acesso em: 30 abr. 2020.
35 COLUMBU, Francesca. O trabalho intermitente na legislação laboral italiana e brasileira. Revista

de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, v. 1, n. 1, p. 93–114, jan./jun.2019. Disponível em:


<https://revistas.anchieta.br/index.php/Dirdotrabalhoeprocessodotrabalho/article/view/1424/1306>.
Acesso em: 12 abr. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

180
seis meses ou que procederam a suspensão do contrato ou redução salarial; para
substituir grevistas; e nos casos dos empregadores que não efetuaram a análise dos
riscos relacionados à saúde e segurança do trabalho36.
De acordo com Francesca Columbu37, a legislação italiana permite dois tipos
de contrato intermitente: com ou sem garantia de disponibilidade. No trabalho com
garantia de disponibilidade, o empregado alterna períodos de atividade com períodos
a disposição do empregador, comprometendo-se a atender as exigências quando
solicitado, em contrapartida lhe é assegurado um valor indenizatório, fixado em
negociação coletiva, que não pode ser inferior ao estabelecido pelo Ministério do
Trabalho. A recusa injustificada em atender o chamado permite a resolução do
contrato.
Por outro lado, no trabalho sem garantia de disponibilidade, a referida autora
explica que o trabalhador não possui direito a qualquer indenização nos momentos
em que não ocorre prestação de serviços, porém, não é obrigado a atender as
chamadas do empregador. A doutrina italiana tem ressaltado a falta de conveniência
desse tipo de contrato, tanto para o empregado – que não sabe se será chamado e
em que momento, além de não possuir uma garantia mínima de renda – quanto para
a empresa, pois a ausência de garantia de disponibilidade pode prejudicar a própria
execução da atividade.
Observa-se, a despeito de guardar algumas similaridades, a exemplo do
trabalho a chamada sem garantia de disponibilidade, a Itália regulou o trabalho
intermitente de forma mais detalhada que o Brasil, atentando para pontos importantes,
tais como a proibição de uso de intermitentes para substituição da mão de obra
permanente, tendo em vista a limitação do número de jornadas máximas durante um
arco temporal; a vedação do uso para empresas que realizaram dispensas coletivas
recentes; e a exigência de regulamentação dos contratos individuais por meio de

36 ARAÚJO, Eneida Melo Correia de. O contrato de trabalho intermitente: um novo contrato? Revista
TST, São Paulo, v. 84, n. 1, p. 349–376, jan./mar. 2018. Disponível em:
<https://hdl.handle.net/20.500.12178/138413>. Acesso em: 12 abr. 2020.
37 COLUMBU, Francesca. O trabalho intermitente na legislação laboral italiana e brasileira. Revista

de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, v. 1, n. 1, p. 93–114, jan./jun.2019. Disponível em:


<https://revistas.anchieta.br/index.php/Dirdotrabalhoeprocessodotrabalho/article/view/1424/1306>.
Acesso em: 12 abr. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

181
negociação coletiva ou em situações específicas previamente determinadas pelo
Ministério do Trabalho38.
Segundo Nogueira39, a regulamentação desse tipo de contrato na Itália
contribuiu rapidamente para o aumento no número de trabalhadores pobres,
entendidos como aqueles que, apesar de contarem com um emprego, não recebem o
suficiente para permanecer acima da linha de pobreza. De acordo com pesquisa
apresentada em seu estudo, no primeiro semestre de 2017, os trabalhadores
intermitentes laboraram em média apenas 10 dias por mês.
Em Portugal, o contrato intermitente foi introduzido no Código do Trabalho em
2009, como parte de um acordo para um Novo Sistema de Regulação das Relações
Laborais. Lá, o referido contrato é permitido para empresas que exerçam atividades
“com descontinuidade ou intensidade variável”, podendo as partes decidir se a
prestação do serviço será intercalada com um ou mais períodos de inatividade. Ainda,
deve ser indicado o número anual de horas ou dias de trabalho. Caso não seja
observado essa formalidade, o contrato é considerado sem período de inatividade40.
O Código Português também previu duas espécies de contrato intermitente: o
trabalho alternado e o trabalho a chamada. No trabalho alternado, as partes devem
estabelecer a duração da prestação do trabalho, de maneira consecutiva ou
interpolada, bem como o início e fim de cada período de trabalho. Já no trabalho a
chamada, as partes ajustam a antecedência com que o empregador deve informar o
trabalhador do início da prestação do serviço, que não pode ser inferior a 20 dias.
Nessa espécie, o empregado depende da vontade e da necessidade da empresa, a
qual poderá determinar livremente quando haverá trabalho e sua duração41.
Em ambos os casos, a prestação não pode ser inferior a seis meses por ano
nem menor que quatro meses consecutivos de trabalho. Durante o período de

38 NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves. O contrato de trabalho intermitente na reforma trabalhista
brasileira: contraponto com o modelo italiano. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15o
região, n. 51, p. 128–148, 2017. Acesso em: 10 abr. 2020.
39 Ibidem.
40 ARAÚJO, Eneida Melo Correia de. O contrato de trabalho intermitente: um novo contrato? Revista

TST, São Paulo, v. 84, n. 1, p. 349–376, jan./mar. 2018, p.367. Disponível em:
<https://hdl.handle.net/20.500.12178/138413>. Acesso em: 12 abr. 2020.
41 FERNANDES, Paulo Roberto. A figura do contrato de trabalho intermitente do PL no 6.787/2016

(Reforma Trabalhista) à luz do direito comparado. Os Trabalhistas, abr. 2017. Disponível em:
<http://ostrabalhistas.com.br/figura-do-contrato-de-trabalho-intermitente-do-pl-no-6-7872016-reforma-
trabalhista-luz-do-direito-comparado/> Acesso em: 30 abr. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

182
inatividade, o trabalhador faz jus a uma compensação financeira fixada em
negociação coletiva. Na falta desta, deverá receber 20% da remuneração base com
periodicidade igual à da remuneração. Nos períodos de inatividade, o trabalhador
poderá prestar serviços a outros contratantes42.
O trabalho a chamada português é o que mais se aproxima do contrato
intermitente no Brasil. Porém, conforme mencionado acima, o legislador determinou
que o chamado deve ocorrer com no mínimo 20 dias de antecedência, deve ser
efetuado o pagamento de uma compensação retributiva pelos períodos de não
trabalho, além da obrigatoriedade de se definir o limite mínimo de horas a serem
laboradas durante o ano43.
No Reino Unido, em que o sistema jurídico é marcado por uma maior liberdade
nas relações de trabalho, o contrato intermitente ocorre na modalidade zero hora, não
existindo uma garantia do número de horas a serem trabalhadas nem quando o
trabalhador poderá ser chamado. Após ser objeto de intensa discussão, em 2014, o
governo britânico proibiu a cláusula de exclusividade nos contratos intermitentes44.
Os contratos zero hora no Reino Unido explodiram na última década. De acordo
com dados apresentados pela ONS (Office for National Statistics), referente ao
mercado de trabalho no último trimestre de 2019, quase um milhão de pessoas
possuem contrato intermitente como principal fonte de renda e isso representa cerca
de 3% das pessoas empregadas. Ainda, um terço dos contratos intermitentes foram
celebrados com pessoas entre 16 e 24 anos de idade, e são maioria entre as
mulheres45.

42 KALED, Gabriela Schellenberg Pedro Bom. Contrato de trabalho intermitente. Percurso - ANAIS
DO VIII COMBRADEC, Curitiba, v. 01, n. 28, p. 39–55, 2019. Disponível em:
<http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/percurso/article/view/3418>. Acesso em: 10 abr. 2020.
43 REIS, Camila dos Santos; MEIRELES, Edilton. O trabalho intermitente e seus impactos nas

relações trabalhistas. Revista dos Tribunais, v. 1002, p. 147–172, abr. 2019. Disponível em: <https://
https://www.academia.edu/40220996/o_trabalho_intermitente_e_seus_impactos_nas_rela%c3%87%c
3%95es_trabalhistas_intermittent_work_and_its_impacts_on_labor_relations> Acesso em: 10 abr.
2020.
44 FERNANDES, Paulo Roberto. A figura do contrato de trabalho intermitente do PL no 6.787/2016

(Reforma Trabalhista) à luz do direito comparado. Os Trabalhistas, abr. 2017. Disponível em:
<http://ostrabalhistas.com.br/figura-do-contrato-de-trabalho-intermitente-do-pl-no-6-7872016-reforma-
trabalhista-luz-do-direito-comparado/> Acesso em: 30 abr. 2020.
45 FINLAY, Brian Stuart. One million Britons will be on zero-hour contracts by end of 2020. The

conversation, Economy + Business, fev. 2020. Disponível em: <https://theconversation.com/one-


million-britons-will-be-on-zero-hour-contracts-by-end-of-2020-132338>. Acesso em: 1 mai. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

183
No entanto, Brian Stuart Finlay46 destaca que apesar do aumento na taxa de
emprego e das crescentes contratações na modalidade zero hora, os trabalhadores
do Reino Unido estão sofrendo níveis recordes de insegurança no trabalho, pois a
oferta de trabalho intermitente depende muito da necessidade do empregador e pode
ser cancelada com pouquíssima antecedência, causando uma enorme instabilidade
financeira.
Em síntese, comparado aos modelos adotados nesses três países, o Reino
Unido é o que guarda maior similaridade com o Brasil, haja vista a ampla liberdade na
contratação e a ausência de estipulação de garantias dirigidas aos empregados
intermitentes. Resta saber, como se dará, os efeitos da aplicação dessa nova tipologia
contratual nas relações de trabalho no Brasil.

5 A ADOÇÃO DO TRABALHO INTERMITENTE E SEU IMPACTO NAS RELAÇÕES


LABORAIS

O contrato de trabalho intermitente foi inserido no ordenamento jurídico


brasileiro sob a justificativa de aumentar o número de postos de trabalho e regularizar
determinadas relações de trabalho informais que já se davam dessa forma, mas não
eram acobertadas pela legislação trabalhista47.
De acordo com os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados
– CAGED, no ano de 2019 foram criadas 644.079 novas vagas de trabalho, desse
total, 85.716 foram na modalidade de trabalho intermitente, o que representa um
percentual de 13,31% do total de empregos criados no país. Apesar de a quantidade
de intermitentes aparentar relativamente pequena, o número de contratos vem
aumentando a cada mês, se comparado com o mesmo período do ano anterior. Em
novembro de 2019, houve um aumento de 50,23% em relação ao mesmo mês em
201848.

46 Ibidem.
47 SALES, Alan Jorge P.; OLIVEIRA, Débora da Silva de. Trabalho intermitente: entre a inovação e a
precarização. Rev. do Trib. Reg. Trab. 10a Região, Brasília, v. 22, n. 2, p. 73–84, 2018. Disponível
em: <https://hdl.handle.net/20.500.12178/153830>. Acesso em: 14 abr. 2020.
48 BRASIL. Ministério da Economia. Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED.

Brasília, 2020. Disponível em: <http://pdet.mte.gov.br/images/ftp//dezembro2019/nacionais/2-


apresentacao.pdf>. Acesso em: 2 maio 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

184
Gráfico 1 – Evolução do trabalho intermitente a partir de janeiro de 2018

14,000

11,733
12,000
10,934

10,000
8,825
8,162
7,810
8,000
6,612 6,801 6,627
6,231 6,258
5,758 5,647
6,000 5,097
4,833 4,546
4,414
4,090 3,983
4,000 3,553 3,541 3,592
2,669 2,920
2,263
2,000

0,000

Fonte: Ministério da Economia

De fato, a contratação sob a modalidade intermitente tem auxiliado na redução


no número de desempregados no país. No entanto, é importante frisar que ainda que
o trabalhador conte com um vínculo formal de emprego, ele apenas será remunerado
pelas horas efetivamente trabalhadas, já que o legislador não impôs a obrigação de
indenizar ou remunerar o empregado nos períodos em que não há efetiva prestação
de serviço, o que pode levar a uma grande insegurança, haja vista a imprevisibilidade
quanto ao montante que será recebido ao final de cada mês49.
Um estudo realizado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Econômicos – com base nas informações da Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS), revelou que dentre os trabalhadores admitidos como intermitentes no ano de
2018, 11% não obtiveram renda, ou seja, não foram chamados para trabalhar. Os
contratos ativos até o final daquele ano tiveram duração aproximada de 05 (cinco)

49VEIGA, Aloysio Corrêa Da. Reforma trabalhista e trabalho intermitente. Revista eletrônica [do]
Tribunal Regional do Trabalho da 9a Região, Curitiba, v. 8, n. 74, p. 15–26, dez. 2018/jan. 2019.
Disponível em: < https://hdl.handle.net/20.500.12178/150672> Acesso em: 10 abr. 2020; KALED,
Gabriela Schellenberg Pedro Bom. Contrato de trabalho intermitente. Percurso - ANAIS DO VIII
COMBRADEC, Curitiba, v. 01, n. 28, p. 39–55, 2019. Disponível em:
<http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/percurso/article/view/3418>. Acesso em: 10 abr. 2020>.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

185
meses, divididos entre três meses de trabalho e dois meses aguardando ser chamado
pelo empregador 50.
Ainda, mesmo com o aumento nas contratações no último trimestre do ano de
2018, alavancadas pelo crescimento das vendas de final de ano, 26% dos
trabalhadores admitidos nesse período não trabalharam um dia sequer. Levando em
conta a quantidade de empregados contratados em 2018 e que permaneceram com
o vínculo ativo até dezembro, apenas 60% laboraram no referido mês.
Com relação à renda gerada pelos contratos intermitentes, segundo o DIEESE,
a remuneração média de cada mês no ano de 2018 foi de R$763,00, incluídos todos
os meses desde a admissão, trabalhados ou não. Para os trabalhadores que
prestaram algum tipo de serviço, 49% deles receberam remuneração mensal média
inferior ao salário mínimo. Além disso, dos quase 62 mil vínculos ativos em dezembro
de 2018, cerca de 36 mil laboraram efetivamente no último mês do ano. Desses, 43%
receberam remuneração inferior ao salário mínimo e 17% receberam dois salários
mínimos ou mais.

Gráfico 2 – Remuneração dos vínculos intermitentes em dezembro de 2018

Fonte: Ministério da Economia. Rais 2018


Elaboração: DIEESE51

50 DIEESE. Contratos intermitentes na gaveta. Boletim Trabalho em Pauta, n. 14, p. 1–4, jan. 2020.
Disponível em:
<https://www.dieese.org.br/boletimempregoempauta/2020/boletimEmpregoEmPauta14.pdf>. Acesso
em: 12 abr. 2020.
51 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

186
Embora o trabalhador possa ter mais de um vínculo de trabalho intermitente,
segundo os dados do CAGED de dezembro de 2019, apenas 0,54% dos
trabalhadores possuíam mais de um contrato ativo52. A baixa remuneração atrelada
aos contratos intermitentes pode se mostrar um desafio aos trabalhadores,
principalmente se for considerada como a principal fonte de renda.
Por outro lado, a flexibilidade deste tipo de contratação pode ser relevante para
determinados grupos de trabalhadores que desejam harmonizar o tempo de trabalho
com a vida pessoal, “mas direcionados aos que já possuem uma fonte de sustento
(aposentados, por exemplo), àqueles que tenham maior poder aquisitivo ou de grande
especialização, cujos ganhos intermitentes não prejudiquem seu sustento”53.
Quanto à questão previdenciária, os trabalhadores intermitentes se encontram
em um “limbo normativo”, tendo em vista a perda da vigência da MP 808/201754.
Atualmente, a Instrução Normativa nº 1867/2019 da Receita Federal atribui à
contribuição previdenciária do trabalhador intermitente natureza tributária,
reconhecendo-o como segurado obrigatório. Entretanto, para que seja mantida a
cobertura para o recebimento de auxílios por doença, salário maternidade,
aposentadoria, dentre outros, o trabalhador deve complementar as contribuições
quando a remuneração percebida for inferior ao salário mínimo55.
Segundo Angela Carolina Soncin e Rafael Tomaz de Oliveira56 apesar de a
Instrução Normativa traçar as diretrizes para o recolhimento, é impossível não
reconhecer a posição desfavorável do trabalhador, pois além da instabilidade
financeira e do baixo rendimento gerado por essa modalidade de contratação, o

52 BRASIL. Ministério da Economia. Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED.


Brasília, 2020. Disponível em: <http://pdet.mte.gov.br/images/ftp//dezembro2019/nacionais/2-
apresentacao.pdf>. Acesso em: 2 maio 2020.
53 NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves. O contrato de trabalho intermitente na reforma trabalhista

brasileira: contraponto com o modelo italiano. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15o
região, n. 51, p. 128–148, 2017, p. 140. Acesso em: 10 abr. 2020.
54 FINCATO, Denise. Direitos fundamentais e contrato de trabalho intermitente no Brasil: uma leitura

propositiva. Revista Ibérica do Direito, v. I, n. I, p. 190–206, jan./abr. 2020, p. 203. Disponível em:
<http://revistaibericadodireito.com/index.php/revistaiberica/article/view/14/14> Acesso em: 30 abr.
2020.
55 SONCIN, Angela Carolina; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Reforma trabalhista e o trabalhador

intermitente: principais impactos nos direitos destes trabalhadores. Anais do I Congresso


Internacional da Rede Ibero-Americana de Pesquisa em Seguridade Social, n. 1, p. 424–439, out.
2019. Disponível em: <http://revistas.unaerp.br/rede/article/view/1658/1365>. Acesso em: 9 mai.
2020.
56 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

187
trabalhador se vê obrigado a reduzir seu ganho mensal para complementar o
recolhimento previdenciário, caso queira se manter na qualidade de segurado.
Além da questão relacionada à renda e a previdência, o regime de trabalho
intermitente pode ter implicações importantes para o desenvolvimento profissional do
trabalhador. De uma forma geral, as empresas não investem em qualificação
profissional de um trabalhador que, de início, não têm a perspectiva de continuar
prestando serviço para a empresa de forma contínua ou a longo prazo57.
Nesse sentido, Maurício Godinho Delgado58 leciona que o empresário se sente
estimulado a investir na educação e qualificação profissional do trabalhador, quanto
maior é o montante pago ao obreiro, e esse montante, ao lado de outros aspectos,
está diretamente relacionado à duração do contrato de Trabalho. O investimento em
educação e profissionalização é uma ferramenta utilizada para aumentar a
produtividade e compensar as despesas trabalhistas.
Ainda, considerando os dados divulgados pelo DIEESE, de que o intermitente
permanece em média dois meses aguardando ser chamado para o trabalho, isso
significa que o trabalhador deixa de se atualizar das mudanças promovidas no
processo produtivo de bens e serviços e de aperfeiçoar suas técnicas laborais. Essa
falta de atualização importa, certamente, em prejuízos no desenvolvimento da
atividade profissional, tanto do ponto de vista da produção, quanto da qualidade da
prestação dos serviços59.
Talvez essa seja a razão pela qual as funções que mais empregaram
intermitentes, no ano de 2018, foram as que demandavam menor escolaridade e
qualificação profissional. De acordo com o ranking apresentado pelo Ministério da
Economia – com base nas informações da RAIS 2018, as ocupações que mais
adotaram o contrato intermitente, em ordem decrescente, foram: assistente de
vendas; servente de obras; cozinheiro; faxineiro; garçom; vigilante; alimentador de

57 ARAÚJO, Eneida Melo Correia de. O contrato de trabalho intermitente: um novo contrato? Revista
TST, São Paulo, v. 84, n. 1, p. 349–376, jan./mar. 2018. Disponível em:
<https://hdl.handle.net/20.500.12178/138413>. Acesso em: 12 abr. 2020.
58 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme

a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprundenciais posteriores. 18. ed. São
Paulo: LTr, 2019.
59 NOGUEIRA, Eliana dos Santos Alves. O contrato de trabalho intermitente na reforma trabalhista

brasileira: contraponto com o modelo italiano. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15o
região, n. 51, p. 128–148, 2017. Acesso em: 10 abr. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

188
linha de produção; soldador; cuidador em saúde; embalador a mão; e vendedor de
comércio varejista60.
Do ponto de vista do empregador, o principal benefício dessa modalidade se
refere à sua flexibilidade para contratação, o que permite as empresas limitarem os
gastos, tendo em vista a possibilidade de admitirem empregados em períodos
específicos (dias, horários ou meses) de acordo com a necessidade de produção ou
do serviço, pagando-lhes somente pelas horas efetivamente trabalhadas61.
Em contrapartida, a contratação de forma ampla para diversos setores do
estabelecimento também pode resultar em perdas, decorrentes da falta de inserção
do trabalhador na estrutura da empresa. É que o empregador deixa de manter à sua
disposição o empregado experiente, que se aprimora constantemente com o
desenvolvimento das atividades diárias62. Há também a probabilidade do não
comparecimento do trabalhador para a prestação dos serviços nos momentos de pico,
pois não há obrigação para o intermitente em atender o chamado da empresa63 .
No que diz respeito à legalidade do trabalho intermitente, alguns doutrinadores
têm-se manifestado pela inconstitucionalidade dessa nova modalidade de
contratação. De acordo com Carlos Henrique Bezerra Leite:

[...] o novel art. 425-A da CLT é, segundo pensamos, manifestamente


inconstitucional, porque o trabalhador só receberá remuneração quando
chamado pela empresa, que utiliza o seu serviço e depois o descarta como
se fosse uma mercadoria, violando, assim, os princípios da dignidade da
pessoa humana do cidadão trabalhador, do valor social do seu trabalho, da
busca do pleno emprego, da correção das desigualdades sociais e da função
social da empresa (CF, arts. 1º, III e IV, 170, caput, III, VII e VIII), sendo certo,
ainda, que esse “trabalhador intermitente” poderá nada receber durante um

60 BRASIL. Ministério da Economia. Relação Anual de Informações Sociais - RAIS 2018. Brasília,
out. 2019. Disponível em: <http://pdet.mte.gov.br/images/rais2018/nacionais/2-apresentacao.pdf>.
Acesso em: 2 maio 2020.
61 SILVA, Alexandre Antônio Bruno da; SANTOS, Aline Maia dos; BEZERRA, Stéfani Clara da Silva.

Contrato de trabalho intermitente: benefícios ou forma de precarização do trabalho? Revista da


Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, Brasília, p. 14–36, jan./dez. 2019. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=article&op=view&path%5B%5
D=70 > Acesso em: 10 abr. 2020>.
62 ARAÚJO, Eneida Melo Correia de. O contrato de trabalho intermitente: um novo contrato? Revista

TST, São Paulo, v. 84, n. 1, p. 349–376, jan./mar. 2018. Disponível em:


<https://hdl.handle.net/20.500.12178/138413>. Acesso em: 12 abr. 2020.
63 COLUMBU, Francesca. O trabalho intermitente na legislação laboral italiana e brasileira. Revista

de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, v. 1, n. 1, p. 93–114, jan./jun.2019. Disponível em:


<https://revistas.anchieta.br/index.php/Dirdotrabalhoeprocessodotrabalho/article/view/1424/1306>.
Acesso em: 12 abr. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

189
mês ou meses ou auferir remuneração inferior ao salário mínimo, o que fere
o disposto no art. 7º, IV, da CF64.

No Supremo Tribunal Federal há pelo menos duas Ações Diretas de


Inconstitucionalidade (ADIs) nesse mesmo sentido aguardando julgamento. Uma
delas proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Atividade
Profissional dos Empregados na Prestação de Serviços de Segurança Privada, e de
Monitoramento, Ronda Motorizada e de Controle Eletro-Eletrônico e Digital
(CONTRASP) – ADI 580665 – e a outra pela Federação Nacional dos Empregados
em Postos de Serviços de Combustíveis e Derivados de Petróleo (FENEPOSPETRO)
– ADI 582666.
Nessa última, a Procuradoria Geral da República manifestou pelo não
conhecimento da ação e, no mérito, pela improcedência do pedido. Para o órgão, o
regime de trabalho intermitente não consubstancia em fragilização das relações
trabalhistas ou ofensa ao princípio do retrocesso, tendo vista a possibilidade de
geração de oportunidades e benefícios tanto para os trabalhadores quanto para os
empregadores. Ainda, desde que assegurado o salário mínimo pelo tempo trabalhado
na mesma proporção do trabalhador regular, não há que se falar em ofensa ao texto
constitucional.
Enquanto o STF não julga as ADIs que versam sobre o tema, os ministros da
4ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) proferiram decisão em que
declararam válida a contratação de empregados sob o regime de trabalho
intermitente67. Ainda que a decisão não represente o posicionamento do TST como

64 LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. 9. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018.LEITE, 2018, p.364-365.
65 BRASIL (a). Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI5806.

Brasília, 2017. Disponível em: < https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5303585>


Acesso em: 08 mai. 2020.
66 BRASIL (b). Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI5826.

Brasília, 2017. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5317595>


Acesso em 08 mai. 2020>.
67 BRASIL(a). Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista n° TST-RR-10454-

06.2018.5.03.0097. Magazine Luiza S.A. e Marcos Teixeira Olegário. Relator: Ives Gandra da Silva
Martins Filho. Data de julgamento: 07/08/2019, 4ª Turma. Data da publicação: DJET 09/08/2019. Ago.
2019. Disponível em:
<http://aplicacao4.tst.jus.br/consultaProcessual/resumoForm.do?consulta=1&numeroInt=74472&anoIn
t=2019>. Acesso em 09 mai. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

190
um todo, ela pode ter impactado diretamente na elevação do número de contratos
intermitentes68.
Deixando a matéria da legalidade do trabalho intermitente de lado, os dados e
apontamentos iniciais sobre os impactos dessa nova modalidade contratual nas
relações laborais revelam que o contrato intermitente limita os custos empresarias e
é atrativo para atividades em que não se exige uma alta qualificação profissional ou
aperfeiçoamento de forma continuada. Para os trabalhadores, esses contratos
proporcionam rendimentos médios mensais abaixo do salário mínimo, o que pode
repercutir na qualidade de segurado da previdência, além de não assegurar uma
remuneração digna, caso seja a principal fonte de renda do trabalhador.

6 CONCLUSÃO

A conjuntura econômica e política em que o Brasil estava inserido no final de


2016 contribuiu para a aprovação da Lei nº 13.467/2017, a qual colocou em ação
diferentes medidas de desregulamentação e flexibilização das normas de proteção ao
trabalho, dentre elas o contrato de trabalho intermitente.
O argumento político-legislativo utilizado para a introdução dessa nova
modalidade contratual no nosso ordenamento jurídico guarda semelhança com outros
países. No entanto, observa-se que o Brasil desconsiderou algumas garantias
essenciais, como a estipulação de compensação financeira para os períodos de
inatividade e determinação do número mínimo de horas a serem trabalhadas em
determinado período.
Outro ponto que merecia atenção especial do legislador, refere-se à
possibilidade de se determinar situações específicas para a contratação de
trabalhador intermitente, precisando, por exemplo, os sujeitos que poderiam ser
contratados nas atividades econômicas que não sofrem variações ou descontinuidade
na demanda por prestação de serviços ou produção, de forma a fomentar a inclusão

68SILVA, Alexandre Antônio Bruno da; SANTOS, Aline Maia dos; BEZERRA, Stéfani Clara da Silva.
Contrato de trabalho intermitente: benefícios ou forma de precarização do trabalho? Revista da
Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, Brasília, p. 14–36, jan./dez. 2019. Disponível em:
<https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=article&op=view&path%5B%
5D=70> Acesso em: 10 abr. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

191
de grupos que possuem dificuldade de inserção no mercado de trabalho e impedir que
os contratos típicos por prazo indeterminado sejam substituídos por contratos
intermitentes.
Apesar de essa nova modalidade contratual ter contribuído para a geração de
empregos ou a inserção de trabalhadores no mercado formal, os dados estatísticos
iniciais demonstram que a remuneração média mensal percebida pela maioria dos
intermitentes é inferior ao salário mínimo nacional. A possibilidade de o trabalhador
possuir múltiplos contratos intermitentes para complementar a renda também não
mostrou resultados. Além disso, o tempo em que se passa aguardando o chamado da
empresa, cerca de dois meses, agrava sobremaneira a situação.
Nesse sentido, para que se possa cumprir com a finalidade para a qual foi
criada, é necessário assegurar um mínimo de estabilidade financeira e segurança aos
trabalhadores, harmonizando o interesse de ambas as partes envolvidas na relação
de emprego, além de restringir esse tipo de contratação para determinadas atividades
econômicas. E isso deve ser efetivado através de uma regulamentação mais
detalhada, seja por via legislativa e/ou negocial. Ademais, espera-se do judiciário um
posicionamento acerca da legalidade e aplicabilidade dessa nova modalidade de
contratação.
Certamente, o que não se pode aceitar é que os cenários de crise aliados à
pressão pela redução de custos empresariais sejam justificativas hábeis para
precarizar as relações de trabalho.

REFERÊNCIAS

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contrato? Revista TST, São Paulo, v. 84, n. 1, p. 349–376, jan./mar. 2018.
Disponível em: <https://hdl.handle.net/20.500.12178/138413>. Acesso em: 12 abr.
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e a garantia do trabalho em tempos decrise econômica: uma possibilidade jurídica
ou uma realidade atual? Revista do Direito do Trabalho e Meio Ambiente do
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24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho.
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publicação: DJET 09/08/2019. Ago. 2019. Disponível
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Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

195
INTERMITTING CONTRACT: IMPACTS AND
CONSEQUENCES ON WORK RELATIONSHIPS

ABSTRACT
Intermittent work was inserted into our legal system through the
Law nº. 13467/2017. This new contractual modality breaks with
the traditional logic of the typical contracts provided by CLT when
predicting the alternation between periods of activity (work) and
inactivity (non-work), these being unpaid by the employer. This
article, using the bibliographic review method, presents a
qualitative and quantitative approach on how the adoption of the
intermittent contract has impacted labor relations. It presents, in
general lines, the form in which it was regulated in Brazil, making
a brief counterpoint with Comparative Law. It also analyzes the
average monthly earnings earned by these workers in 2018, as
well as the frequency of the call to work. As a result of the study,
it was found that it is essential that the intermittent contract is
regulated by legislative and/or negotiation with the trade unions
so that a minimum of financial stability and security for workers
can be guaranteed.

Keywords: Labor reform. Intermittent work. Comparative law.


Precariousness.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

196
TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO: SÉRIE HISTÓRICA DOS
25 ANOS DE GRUPO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO MÓVEL, NO
BRASIL E NA AMAZÔNIA LEGAL (1995-2019)

Emerson Victor Hugo Costa de Sá1


Luly Rodrigues da Cunha Fischer2
Valena Jacob Chaves Mesquita3

1 Introdução. 2 Referencial Teórico. 3 Metodologia da Pesquisa. 4 Análise


dos Resultados. 5 Conclusão. Referências.

RESUMO
Analisa a série histórica do trabalho escravo contemporâneo no Brasil e na
Amazônia Legal a partir dos registros das operações da Divisão para
Erradicação do Trabalho Escravo (1995 a 2019). Utiliza o método de
abordagem indutivo e as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.
Foram construídas as séries históricas e calculados os coeficientes de
fiscalizações, trabalhadores alcançados, escravizados, resgatados e
formalizados para cada período. A pesquisa quantitativa identificou como
resultados: redução dos quadros de fiscalização; fiscalizações em que foi
constata escravidão (45,4%) reúnem 78,8% da formalização de
trabalhadores, 63,8% dos autos de infração e 97,3% das emissões de
Carteira de Trabalho; média de 213,3 fiscalizações e 2.189,0 trabalhadores
escravizados anualmente; prevalência da faixa entre 16 e 18 anos de idade
(60,0%) no trabalho escravo infantil; concentração dos imigrantes
escravizados nas atividades urbanas (81,5%); preponderância do estado
do Pará na Amazônia Legal (42,6% das fiscalizações e 48,9% dos
trabalhadores escravizados na região), com maior incidência na pecuária;
maior ocorrência da condição degradante na escravidão no campo (97,8%)
e na cidade (80,0%). Conclui-se que há mais precarização laboral na
escravidão contemporânea; a queda nas quantidades de fiscalizações, de

1 Doutorando em Direito na Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre em Direito Ambiental pela
Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Auditor Fiscal do Trabalho. Professor de Graduação e
Pós-Graduação em Direito e Processo do Trabalho. Desenvolve atividades de pesquisa nos Grupos
de Pesquisa “Direitos Humanos na Amazônia” (UEA), "Novas formas de trabalho, velhas práticas
escravistas" (UFPA) e “Pesquisa Contemporaneidade e Trabalho” (UFPA).
2 Doutora em Direito pela UFPA e Universidade de Paris XIII em regime de cotutela. Professora da

Graduação e Pós-Graduação do Instituto de Ciências Jurídicas – ICJ/UFPA. Advogada, membro do


Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Membro da
Rede de Pesquisa Junction Amazonian Biodiversity Units Research Network Program (JAMBU-RNP)
e dos Grupos de Pesquisas Biodiversidade, Território e Sociedade na Amazônia (BEST AMAZÔNIA).
3 Doutora em Direito pela UFPA. Professora da Graduação e Pós-Graduação e Diretora Geral do

ICJ/UFPA. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Novas formas de trabalho, velhas práticas


escravistas”. Pesquisadora dos seguintes Grupos de Pesquisa: “Biodiversidade, Sociedade e
Território na Amazônia - BEST Amazônia”, “Trabalho Escravo Contemporâneo” e “Direito do Trabalho
e os Dilemas da Sociedade Contemporânea”.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

197
resgates e de fiscais indica a necessidade de realização de concurso
público para a reposição dos quadros e a melhor distribuição do quantitativo
nos estados da Amazônia Legal; e a retirada da submissão a condições
degradantes do conceito de escravidão não se justifica. O estudo pretende
contribuir para a compreensão da temática e a formulação e
implementação de políticas públicas.
Palavras-chave: Trabalho escravo. Fiscalização do Trabalho. Amazônia
Legal. Série histórica. Grupo Especial de Fiscalização Móvel.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, a proibição do trabalho escravo limitou-se ao plano normativo. Lei do


Ventre Livre (1871), a Lei dos Sexagenários (1885) e a Lei Áurea (1888) são exemplos
da sequência de atos nessa direção. Causas estruturais atinentes à pobreza e à
concentração da propriedade das terras contribuíram para a continuidade da prática,
de modo que nas décadas de 60 e 70 as denúncias sobre a exploração do trabalho
escravo ganharam evidência na Amazônia brasileira4.
Escravidão moderna, contemporânea, neoescravidão ou trabalho análogo ao
de escravo são nomenclaturas relativas ao contexto pós-abolição, embora o termo
trabalho escravo continue sendo utilizado e reconhecido como postura ofensiva ao
trabalho decente e à não mercantilização do labor, fundamento da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), postulado estampado no item I, “a”, do Anexo à
Declaração de Filadélfia de 1944.
A disseminação da prática forçou o Estado a reconhecer a persistência da
escravidão no território nacional em 1995, com a criação do Grupo Especial de
Fiscalização Móvel de Combate ao Trabalho Análogo à Escravidão (GEFM), o que
resultou no resgate de 54.725 trabalhadores, no período de 1995 a 2019. O GEFM
constitui-se exclusivamente por Auditores-Fiscais do Trabalho (AFT).
Cada equipe possui um coordenador e um subcoordenador, com dedicação
exclusiva, além de outros integrantes convocados a cada operativo. A atuação ocorre
de forma coletiva, e as decisões fiscais no curso de cada procedimento possuem

4Sobre as denúncias de exploração do trabalho escravo na Amazônia no período citado: FIGUEIRA,


Ricardo Rezende; PRADO, Adonia Antunes; PALMEIRA, Rafael Franca. L’esclavage contemporain et
ses transformations en Amazonie brésilienne: les témoignages des victimes. Brésil(s), n. 11, 2017.
Disponível em <https://journals.openedition.org/bresils/2186?lang=pt>. Acesso em 5 mai. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

198
caráter deliberativo, de modo que os integrantes decidem em conjunto sobre os atos
necessários à regularização e/ou à identificação do trabalho análogo ao de escravo e
o correspondente resgate. As operações contam com o apoio de instituições como o
Ministério Público do Trabalho, Polícia Civil, Militar, Federal ou Rodoviária Federal,
Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União.
Primeiro contencioso apreciado pelo Sistema Interamericano de Direitos
Humanos substancialmente relacionado ao descumprimento do direito de não ser
submetido à condição de escravidão, o caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil
Verde resultou em condenação do Estado brasileiro5.
Define-se como condição análoga à de escravo a submissão, isolada ou
conjuntamente, a (i) trabalho forçado; (ii) jornada exaustiva; (iii) condição degradante
de trabalho; (iv) restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida
contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do
contrato de trabalho; e (v) retenção no local de trabalho em razão de cerceamento do
uso de qualquer meio de transporte, manutenção de vigilância ostensiva, ou
apoderamento de documentos ou objetos pessoais6.
O objetivo central deste trabalho consiste em analisar a série histórica do
trabalho escravo contemporâneo no Brasil e na Amazônia Legal7 (1995 a 2019),
quanto às fiscalizações realizadas, quantidade de trabalhadores encontrados em tal
condição, atividades econômicas mais recorrentes e outras estratificações, a partir de

5 A sentença destacou, por exemplo, a ofensa aos artigos 6.1 e 27.2 da Convenção Americana de
Direitos Humanos, delito de direito internacional também presente em documentos como a
Convenção sobre a Escravidão de 1926 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravidão
de 1956. CORTE IDH. Caso dos Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Exceções
Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 20 de outubro de 2016. Série C, No. 318.
6 Trata-se da concepção normativa presente no artigo 149 do Código Penal brasileiro.
7 A Amazônia Legal abrange os seguintes estados: Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará,

Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão (oeste do meridiano de 44º). A primeira definição
está contida na Lei 1953, de 6 de janeiro de 1953, tratando-se de conceito político e não de uma
determinação geográfica, tendo em vista que não havia corresponde exata à Região Norte do país.
Após extinção da SPVEA e a criação da SUDAM por meio da Lei 5173, de 27 de outubro de 1966,
não houve mudança no conceito, mas seus limites foram estendidos. A última modificação legal
ocorreu com a Constituição de 1988 (artigos 13 e 14 da ADCT), que criou o Estado do Tocantins e
transformou em Estados os territórios de Roraima e do Amapá. Para fins de padronização da
exposição e análise dos dados, considerou-se a integralidade do estado do Maranhão. FISCHER,
Luly Rodrigues da Cunha. Ordenamento territorial e planejamento municipal: estudo de caso das
limitações supralocais à aplicação do art. 30, VIII da constituição de 1988 pelo município de
Parauapebas, Pará. 2014. 624 f. Tese (Doutorado) – Universidade Paris 13, Universidade Federal do
Pará, Instituto de Ciências Jurídicas, Belém, 2014.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

199
um panorama detalhado sobre a atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel,
desde a sua criação, e das equipes regionais no desempenho dessa missão.
Pretende-se, ainda, desmistificar, a partir da análise de dados estatísticos, as
alegações de excessos na atuação da Inspeção do Trabalho em matéria de
configuração de labor em condições análogas às de escravo.
Realizou-se, então, a exposição do referencial teórico, em que são
apresentadas questões sobre a escravidão contemporânea, o funcionamento da
Inspeção do Trabalho e os marcos normativos pertinentes ao estudo; a identificação
dos métodos e técnicas empregados; a discussão dos resultados; e as conclusões.
A originalidade resulta da inexistência de abordagem idêntica nas bases
indexadas. Os estudos sobre o tema abordam notadamente os panoramas histórico,
econômico, sociológico, político e jurídico, mas com enfoque na legislação aplicável à
escravidão contemporânea ou no perfil dos trabalhadores identificados escravizados8.
Não há notícias de outros estudos com o mesmo enfoque pretendido pelo presente.
A necessidade deste estudo decorre, então, da escassez de pesquisas direcionadas
à análise dos dados referentes às ações de fiscalização realizadas, especialmente o
estudo quantitativo com enfoque nos 25 anos de combate à escravidão

8 A literatura concentra-se precipuamente em aspectos qualitativos ou, quando quantitativos,


consideram números absolutos observados em um período mais reduzido que o sugerido pela série
histórica ora analisada. Muito embora não seja o foco deste estudo o levantamento bibliográfico a
respeito de aspectos relacionados à escravidão contemporânea, para fins de demonstrar que os
estudos anteriores com este não se confundem, listam-se exemplificativamente os seguintes
trabalhos relevantes quanto à temática, os quais serão contemplados ao longo do texto, com a
ressalva de que a literatura a eles não se restringe Em termos de similaridade, menciona-se a análise
do trabalho escravo contemporâneo brasileiro a partir da investigação dos dados levantados pela
Comissão Pastoral da Terra – CPT e pelo extinto Ministério do Trabalho e Emprego – MTE (1995-
2006), em mapeamento exploratório e correlação com indicadores sociais, econômicos e de
violência, realizado majoritariamente em escala municipal, para definição das principais
características internas e regionais do fenômeno (primeira parte) e análise dos dados do MTE (2007-
2012) para avaliação das mudanças do trabalho escravo no Brasil (segunda parte), porém sem a
estrutura de série histórica e em período mais restrito que o proposto – GIRARDI, Eduardo Paulon;
MELLO-THÉRY, Neli Aparecida de; THÉRY, Hervé; HATO, Julio. Mapeamento do trabalho escravo
contemporâneo no Brasil: dinâmicas recentes. Espaço e Economia, n. 4, 2014. Disponível em:
<http://journals.openedition.org/espacoeconomia/804>. Acesso em 29. jun. 2020. Por sua vez, outros
estudos voltam-se à conceituação da escravidão contemporânea e à exposição de condições fáticas
relacionadas ao perfil das vítimas, dos exploradores e das políticas públicas de combate – OIT. Perfil
dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil. Brasília: OIT, 2011.
Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-
brasilia/documents/publication/wcms_227533.pdf. Acesso em 22 set. 2020. Por fim, uma quantidade
relevante de estudos volta-se aos aspectos qualitativos do fenômeno, especialmente nuances
relacionadas ao prisma jurídico – MESQUITA, Valena Jacob Chaves. O trabalho análogo ao de
escravo: uma análise jurisprudencial do crime no TRF da 1ª região. Belo Horizonte: RTM, 2016.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

200
contemporânea no Brasil, compreensão relevante para o aperfeiçoamento das
políticas públicas nessa área.
Desse modo, inicia-se com a apresentação do referencial teórico, no qual
haverá a abordagem da concepção atual de escravidão, do funcionamento das
equipes de fiscalização quanto à temática e dos principais marcos temporais e
legislativos e conceituais utilizados na apreciação dos resultados da pesquisa.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

O advento do capitalismo industrial resultou em textos legais proibitivos do


tráfico de escravos e na evolução do processo de alforria. Em razão de interesses
econômicos, o abolicionismo surgiu como medida necessária à transformação das
relações sociais da escravidão para o trabalho considerado livre ou assalariado, para
a ampliação dos consumidores em potencial dos produtos desenvolvidos pelas
indústrias e dos bens que circulavam no comércio9.
No Brasil, o processo de abolição ocorreu em fases. De início, houve a política
de aprisionamento de navios negreiros (1845), que resultou na proibição da
importação de escravos, seguindo-se da concessão de liberdade para os filhos de
escravos, continuando sob a tutela dos senhores até a maioridade e da atuação de
movimentos abolicionistas que levaram à libertação dos escravos a partir dos
sessenta anos de idade e, então, à vedação absoluta10.
O modelo escravocrata instaurou-se mediante práticas capitalistas, antes e
depois da libertação simbólica do período colonial no qual as massas de trabalhadores
foram inseridas no ciclo de consumo e produção mundial, contexto que incentivou uma
nova concepção, agora associada a fatores sociais e econômicos, “porque a falta de
emprego e a consequente necessidade gerada na busca do sustento próprio e do de

9 Para melhor compreensão do panorama histórico e das condicionantes da escravidão moderna:


TREVISAM, Elisaide. Trabalho escravo no Brasil contemporâneo: entre as presas da
clandestinidade e as garras da exclusão. Curitiba: Juruá, 2015.
10 Lei 854 de 1850, Lei 2.040 de 1871 (Lei do Ventre Livre), Lei 3.270 de 1885 (Lei dos Sexagenários)

e Lei Imperial 3.353 de 1888 (Lei Áurea).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

201
sua família fazem o homem abdicar de seus direitos, tornando-se presa fácil da
exploração”11.
Logo, o fim da escravidão como direito de propriedade não significou a
interrupção da prática. Pelo contrário, a exposição dos menos favorecidos
economicamente à violação de direitos fundamentais encontra-se potencializada na
ocupação da fronteira amazônica, em que políticas estatais indiretamente estimularam
a violência contra milhares de migrantes, trabalhadores contratados para a abertura
de áreas para grandes projetos do agronegócio12. Por essa razão, desde o início do
século XX multiplicam-se documentos e compromissos internacionais em prol do
combate ao trabalho forçado.
O trabalho escravo consiste em grave violação aos direitos humanos e a busca
pelo fim do trabalho forçado compõe a pauta prioritária da OIT13, que estabelece o
compromisso de os Estados membros cumprirem o conteúdo das convenções
fundamentais, mesmo sem a expressa ratificação ou internalização.
Tutela-se o direito ao trabalho e a qualidade do emprego em condições justas
e favoráveis, a superação do desemprego, a eliminação do trabalho precário e a
promoção do trabalho decente, em vista dos direitos fundamentais e da dignidade
humana, em decorrência da vedação à utilização do trabalho como mercadoria14.
Proíbe-se a exigência de trabalhos forçados, assim considerado todo serviço exigido
do indivíduo sob ameaça de penalidade e para o qual não se ofereceu de espontânea
vontade, afastando-se do âmbito de proteção situações específicas15.

11 MESQUITA, Valena Jacob Chaves. O trabalho análogo ao de escravo: uma análise


jurisprudencial do crime no TRF da 1ª região. Belo Horizonte: RTM, 2016, p. 76.
12 Sobre o contexto político e social e os desafios na implementação das normas contra a exploração

do trabalho escravo: FIGUEIRA, Ricardo Rezende; ESTERCI, Neide. Slavery in Today’s Brazil: Law
and Public Policy. Latin American Perspectives, v. XX, p. 0094582X1769991, 2017. Disponível em:
<http://www.gptec.cfch.ufrj.br/artigos/ricardo_e_neide_slavery_in_today_Brasil.pdf>. Acesso em 29
jun. 2020.
13 As Convenções 29 e 105 da OIT são consideradas os principais documentos associados ao artigo

2º, “b”, da Declaração de Direitos e Princípios Fundamentais do Trabalho de 1998, que destaca o
caráter fundamental dos princípios e direitos referentes à eliminação de todas as formas de trabalho
forçado ou obrigatório.
14 Nesse sentido, confira-se o artigo XXIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e o

Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966.


15 Concepção veiculada pela Convenção 29 da OIT.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

202
Presente na exploração dos seringais para produção da borracha (sistema de
aviamento)16, a servidão por dívidas configura trabalho escravo e caracteriza-se como
o estado ou condição resultante do compromisso assumido pelo devedor de fornecer,
em garantia a um débito, serviços pessoais próprios ou de alguém sobre quem tenha
autoridade, com base em valor não equitativamente avaliado ou sem duração limitada
e natureza definida17.
Os modos clássicos de concretização do delito são a coação física, o abuso
sexual, o abandono do trabalhador em local isolado e a vigilância armada18, em que
a presença da violação à liberdade de locomoção da vítima mostra-se evidente.
Todavia, prescinde-se da ofensa a esse bem jurídico nas demais modalidades.
Entende-se como trabalho forçado ou obrigatório aquele demandado de uma pessoa
sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente,
considerando-se como manifestação válida da vontade aquela exercida de modo livre,
sem influência de vulnerabilidade social, econômica ou jurídica.
A partir da edição da Lei 10.833, de 29 de dezembro de 2003, o conceito de
trabalho escravo passou a abranger de modo expresso a jornada exaustiva e as
condições degradantes. Conforme os parâmetros técnicos e normativos destinados à
especificação e delimitação dessas condutas típicas19, a jornada exaustiva
corresponde a toda forma de trabalho, de natureza física ou mental, que, por sua
extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do
trabalhador, notadamente os relacionados à segurança, saúde, descanso e convívio
familiar e social; e a condição degradante refere-se à negação da dignidade humana

16 Para mais detalhes referentes ao fenômeno da escravidão por dívidas: GUILLEN, Isabel Cristina
Martins. O trabalho de Sísifo: "escravidão por dívida" na indústria extrativa da erva-mate (Mato
Grosso, 1890-1945). Varia Historia, Belo Horizonte, v. 23, n. 38, p. 615-636, 2007. Disponível em:
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87752007000200021&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 29 jun. 2020.
17 Definição presente no artigo 1.2 da Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do

Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura de 1956.


18 Especificamente quanto ao estudo das convenções fundamentais da OIT que tratam da proibição

do trabalho forçado, conferir: FLAITT, Isabela Parelli Haddad, O trabalho escravo à luz das
convenções 29 e 105 da organização internacional do trabalho. In: ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de;
REZENDE, Lorena de Mello (coord.). Direito internacional do trabalho e convenções
internacionais da OIT comentadas. São Paulo: LTr, 2014.
19 Artigo 7º, II e III, da Instrução Normativa 139, de 22 de janeiro de 2018, e artigo 2º, II e III, da

Portaria 1.293, de 28 de dezembro de 2017, do extinto Ministério do Trabalho.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

203
pela violação de direito fundamental do trabalhador, especialmente os dispostos nas
normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde.
A vedação normativa da utilização de trabalho em condição análoga à
escravidão constante no artigo 149 do Código Penal brasileiro protege a dignidade
como bem jurídico20 e compreende a submissão do trabalhador, de forma isolada ou
conjuntamente, a trabalho forçado; jornada exaustiva; condição degradante de
trabalho; restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída
com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato
de trabalho; e retenção no local de trabalho pelo cerceamento do uso de qualquer
meio de transporte, manutenção de vigilância ostensiva, ou apoderamento de
documentos ou objetos pessoais.
Uma importante medida de efetividade no combate à escravidão consiste na
divulgação do Cadastro de Empresas e Pessoas Autuadas por Exploração do
Trabalho Escravo (lista suja)21, que viabiliza a ciência da sociedade e a imposição de
restrição de crédito e financiamento público nas instituições de fomento22. Serve,
então, de parâmetro para o desenvolvimento de políticas de responsabilidade social
e gerenciamento de riscos decorrentes da manutenção de relações comerciais com
empregadores autuados em razão dessa prática e funciona como política de estímulo
ao cumprimento das obrigações trabalhistas23.
Com o objetivo de viabilizar meios de transição no processo de libertação,
surge em 2002 o seguro-desemprego devido ao trabalhador resgatado de regime de

20 STF. RE 541627, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, julgado em 14/10/2008, DJe de 21 nov. 2008.
21 Instituída pela Portaria 1.234, de 17 de novembro de 2003, o instrumento que respalda a
veiculação da lista foi sucessivamente substituído pelas Portaria 540, de 15 de outubro de 2004, e
depois pela Portaria Interministerial 2, de 12 de maio de 2011; Portaria Interministerial 2, de 31 de
março de 2015; e, atualmente, pela Portaria Interministerial 4, de 11 de maio de 2016. Em decisão
prolatada em 16 de setembro de 2020, o STF reconheceu, por maioria, a constitucionalidade da lista
suja do trabalho escravo. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 509. Relator:
Min. Marco Aurélio. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5343222.
Acesso em 22 set. 2020.
22 Artigo 4º da Lei 11.948, de 16 de junho de 2009 e artigo 110, § 1°, I e IV, da Lei 13.473, de 8 de

agosto de 2017.
23 A respeito da utilização da lista suja do trabalho escravo como instrumento de prevenção,

repressão e enfrentamento ao trabalho escravo contemporâneo: CAVALCANTI, Tiago Muniz. Como o


Brasil enfrenta o Trabalho Escravo Contemporâneo. In: SAKAMOTO, Leonardo (Org.). Escravidão
Contemporânea. São Paulo: Contexto, p. 67-84, 2020; SILVA, Amanda Carolina Souza;
RODRIGUES, Débhora Renata Nunes; TIBALDI, Saul Duarte. Nudges e políticas públicas: um
mecanismo de combate ao trabalho em condição análoga à de escravo. Revista Brasileira de
Políticas Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, p. 266-286, 2018.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

204
trabalho forçado ou da condição análoga à de escravo24, consistente em três parcelas
no valor de um salário mínimo, desde que o destinatário não esteja recebendo
benefício da Previdência Social, exceto auxílio-acidente e pensão por morte, e não
possua renda para o sustento próprio ou familiar.
Para a compreensão adequada deste estudo, importa esclarecer e diferenciar
os termos operação e fiscalização. Em cada operação, pode haver um ou mais
estabelecimentos alcançados (fiscalizações). Determinada operação pode abranger
um, nenhum ou vários estabelecimentos com identificação de trabalhadores
escravizados. Também não se afasta a hipótese de a investigação ser demandada
em razão de uma frente de trabalho específica e, durante o operativo, outras situações
serem identificadas e, então, contempladas.
Há possibilidade de não ser constatada pelos Auditores-Fiscais do Trabalho
alguma das hipóteses de escravidão contemporânea. Porém, isso não impede a
adoção de outras medidas pertinentes ao caso, como a formalização de trabalhadores
ou condições diversas, acompanhadas das correspondentes autuações. Por tais
motivos, estratificam-se os quantitativos de trabalhadores em alcançados –
encontrados no estabelecimento fiscalizado, escravizados ou não –, escravizados –
vítimas de ao menos uma das hipóteses configuradoras da escravidão
contemporânea –, resgatados – escravizados e efetivamente afastados dos locais de
trabalho (o resgate pode não ocorrer por motivo de fuga, resistência ou outras
condições impeditivas) – e formalizados – com vínculo formalizado durante o
procedimento fiscal, abrangendo escravizados ou não.
Independentemente do resultado da abordagem, as informações são
registradas e armazenadas no banco de dados utilizado como parâmetro pelo Painel
de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil25. Além das equipes
do GEFM, as unidades regionais nos estados também realizam atividades de
fiscalização com enfoque no combate à escravidão contemporânea, mas não se
observam auditores especificamente dedicados a esse fim em todas as unidades.

24 A Lei 10.608 de 20 de dezembro de 2002 resultou da conversão da Medida Provisória 74 de 2002 e


promoveu a alteração da Lei 7.998 de 11 de janeiro de 1990, instituindo essa modalidade de seguro-
desemprego devido ao trabalhador resgatado.
25 Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Disponível em:

<https://sit.trabalho.gov.br/radar/>. Acesso em: 10 mai. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

205
As irregularidades trabalhistas demandam do Auditor-Fiscal do Trabalho a
lavratura do correspondente auto de infração26, relacionado a cada impropriedade
constatada, a exemplo da falta de registro, da ausência de anotação ou da retenção
da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), do excesso de jornada, da não
concessão de repouso semanal remunerado, do atraso no pagamento da realização
de descontos no salário, além de condições derivadas de inadimplemento dos deveres
de proteção e respeito às normas de segurança e saúde no trabalho27, como a falta
de exames admissionais, de concessão de capacitação, da ausência de medidas
administrativas ou de equipamentos de proteção individual, além das medidas de
higiene e conforto referentes aos dormitórios, locais de refeição, instalações sanitárias
e afins, e dos riscos que deveriam ser controlados ou evitados.
Com efeito, a exploração do trabalho infantil escravo consta na lista das piores
formas28. O trabalho antes dos 18 anos de idade encontra limitações quanto à
natureza (noturno, perigoso, penoso, insalubre ou prejudicial à formação moral ou à
frequência escolar), de modo que antes dos 16 anos de idade somente é legítimo
quanto à aprendizagem profissional, decorrente do direito fundamental à
profissionalização e permitida desde os 14 anos de idade, compreensão que decorre
da leitura dos artigos 7º, XXXIII, e 227 da Constituição da República de 1988.
Apresentados a concepção de escravidão contemporânea, o funcionamento da
Inspeção do Trabalho nesse aspecto e expostos os marcos relevantes para fins de
desenvolvimento do trabalho, segue-se a apresentação e análise dos dados
referentes às fiscalizações realizadas no período.

26 Obrigação decorrente do disposto no artigo 628 da Consolidação das Leis do Trabalho.


27 A respeito das condições laborais identificadas pela fiscalização do trabalho sob um prisma
descritivo das principais nuances e irregularidades verificadas, conferir: SANTOS, Douglas Ferreira.
Mapa do trabalho escravo rural contemporâneo: a escravidão em Mato Grosso do Sul. Revista da
Escola Nacional da Inspeção do Trabalho. Brasília, ano 3, p. 150-172. 2019. Disponível em:
<https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=issue&op=view&path%5B%
5D=3>. Acesso em: 28 jun. 2020.
28 As atividades consideradas danosas para crianças e adolescentes encontram-se discriminadas no

Decreto 6.481, de 12 de junho de 2008, e decorrem da obrigação contida na Convenção 182 da OIT.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

206
3 METODOLOGIA DA PESQUISA

Utilizou-se o método de abordagem indutivo. Trata-se de pesquisa descritiva,


de natureza quantitativa. Foram empregadas na coleta dos dados as técnicas de
pesquisa bibliográfica e documental, sendo esta última baseada nas informações
fornecidas pela Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo – DETRAE, órgão
vinculado à Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT, da Secretaria do Trabalho,
quanto aos registros das operações realizadas no Brasil durante os 25 anos do Grupo
Especial de Fiscalização Móvel (1995 e 2019), razão pela qual a análise abrange esse
período.
Elegeu-se o método de análise de séries temporais, frequentemente utilizado
em estudos econométricos29 para investigar o comportamento de uma variável ao
longo do tempo, com a finalidade de descrição do comportamento temporal do evento
analisado e de realização de previsões quanto a valores futuros da série, com enfoque
para o componente de tendência como método de filtragem.
A sistematização foi retrospectiva. Os dados extraídos foram compilados em
planilhas eletrônicas, por meio do aplicativo Microsoft Excel, e posteriormente as
variáveis em estudo foram importadas para o Statistical Package for Social Sciences
(SPSS), em que foram submetidas à análise descritiva e os resultados dos dados
foram apresentadas por meio de gráficos e tabelas, todos de autoria própria e
elaborados com base em documentos oficiais.
As variáveis do banco de dados consideradas nas análises compreendem, para
cada registro de fiscalização: ano de realização; identificação da operação no ano;
estado; município; código e descrição da Classificação Nacional de Atividades
Econômicas (CNAE); nome do estabelecimento inspecionado; quantidade de
trabalhadores alcançados (escravizados ou não), formalizados (escravizados ou não),
escravizados (encontrados em situação de escravidão contemporânea), resgatados
(efetivamente afastados), imigrantes alcançados (escravizados ou não), imigrantes
resgatados (efetivamente afastados) e com idade inferior a 18 anos (escravizados);

29ANTUNES, José Leopoldo Ferreira; CARDOSO; Maria Regina Alves. Uso da análise de séries
temporais em estudos epidemiológicos. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, v. 24, n. 3, p.
565-576, 2015. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.5123/S1679-49742015000300024>. Acesso em
29 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

207
valor das indenizações pagas; quantidade de autos de infração; quantidade de
seguro-desemprego; quantidade de CTPS emitidas; ambiente (rural ou urbano); e
motivo do resgate (hipóteses configuradoras).
Os principais agrupamentos consideraram o ambiente de realização da
fiscalização (rural ou urbano); o resultado (se houve ou não trabalhador escravizado);
o estado em que realizada a fiscalização (comparativamente aos demais ou
identificação como integrante ou não da Amazônia Legal); o conjunto de 8 anos (1995
a 2002; 2003 a 2010 e 2011 a 2018), comparativamente ao ano de 2019, estratificação
realizada para fins de comparação do quadro observado no último ano de análise em
relação aos grupos que se iniciam com os anos que marcaram a instituição do GEFM
(1995), a alteração normativa do tipo penal que proíbe o trabalho escravo (2003) e o
último ingresso significativo decorrente de concurso na Auditoria Fiscal do Trabalho
(2011).
Houve um padrão diferenciado de análises para as variáveis registradas a partir
de momentos posteriores, como o trabalho infantil (2004), o trabalho de imigrantes
(2006), a formalização de trabalhadores (2000), a concessão do seguro-desemprego
especial devido ao trabalhador resgatado (2003), as fiscalizações efetivadas pelas
regionais (2003) e o trabalho escravo urbano (2009).
Realizou-se a avaliação da média de formalização de trabalhadores durante as
fiscalizações a partir de 2000, ano em que consta o primeiro registro dessa
informação. Como decorrência da formalização dos trabalhadores que não possuam
o correspondente documento necessário para a liberação do seguro-desemprego do
trabalhador resgatado, desde 2002 consta a informação do quantitativo de CTPS
emitidas. Comparou-se, ainda, o total de fiscalizações, trabalhadores formalizados,
autos de infração lavrados e emissão de CTPS com as ações que resultaram em
resgate de ao menos um trabalhador da condição de escravidão.
Os valores decorrentes das verbas rescisórias e de eventuais adiantamentos
de indenização por dano moral individual aos trabalhadores, bem como as restituições
de valores indevidamente retidos ou descontados dos salários dos trabalhadores,
escravizados ou não, são denominados de indenização paga.
A análise do resgate de imigrantes dentre os trabalhadores identificados em
condição de escravidão inicia em 2006, quando há o primeiro registro no banco de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

208
dados analisado. No tocante ao motivo do resgate, a especificação encontra-se a
partir de 2003, quando houve mudança legislativa no artigo 149 do Código Penal.
Expostas as principais diretrizes e os procedimentos metodológicos, segue-se
para a análise dos resultados.

4 ANÁLISE DOS RESULTADOS

Antes da análise relativa aos registros das fiscalizações em si, expõe-se a


variação do quantitativo de AFT em relação à estimativa de população do Brasil entre
1995 e 2019 (Figura 1). Observa-se que crescimento da população não se fez
acompanhar da manutenção ou do aumento, mas da redução do quantitativo de AFT
em atividade. Trata-se de um indicador que pode influenciar na atuação das equipes
destinadas ao combate à escravidão contemporânea, tanto nas ações promovidas
pelo GEFM, como pelas regionais.

Figura 1 - População x Auditores-Fiscais do Trabalho em atividade (1995-2019).

3.600
3.400
3.200
3.000
AFT

2.800 R² = 0,6023
2.600
2.400
2.200
2.000
150 160 170 180 190 200 210
Milhões

População

Fonte: Autoria própria, com base nos dados de Cabral30 e do IBGE31.

30 CABRAL. Fernando André Sampaio. Por que a proteção ao trabalhador está em risco? In:
Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait). 29º e 30º Concurso sobre a Inspeção
do Trabalho - 120 anos da atuação da Inspeção do Trabalho no Brasil (2011) - Por que a proteção
ao trabalhador está em risco? (2012). Brasília: Sinait, p. 45-60, 2013.
31 IBGE. Boletim Estatístico de Pessoal. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Secretaria de Recursos Humanos. Disponível em:


<http://www2.planejamento.gov.br/planejamento/assuntos/gestao-publica/arquivos-e-
publicacoes/BEP>. Acesso em: 24 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

209
Além da redução dos quadros de fiscalização, a restrição orçamentária dos
recursos destinados às ações do GEFM, observada sobretudo a partir de 2012,
desponta como possível elemento adicional que prejudica estruturalmente o
desempenho da missão de combate ao trabalho escravo contemporâneo (Figura 2),
tanto no viés repressivo, para identificação e resgate em si, como sob o prisma
preventivo, com a finalidade de investigação, acompanhamento e formalização das
relações laborais em segmentos, atividades e cadeias produtivas específicas.

Figura 2 - Demonstrativo da Execução Orçamentaria e Financeira da Fiscalização Erradicação


Trabalho Escravo (1997 a 2019)

6.000.000,00

5.000.000,00

4.000.000,00

3.000.000,00

2.000.000,00

1.000.000,00

0,00
1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019

Dotação atualizada Despesas pagas (controle de empenho)

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pelo Ministério da Economia32.

A média de fiscalizações (5.333) por operação (2.771) corresponde a 1,9 na


série histórica, tendo iniciado em 4,7 (1995 a 2002), reduzindo-se para 2,2 (2003 a
2010) e para 1,6 (2011 a 2018), culminando para aproximadamente 1,0 em 2019, ano
em que houve 278 estabelecimentos fiscalizados em 271 operações. Portanto,
observa-se a tendência de operações mais específicas, contemplando de 1 a 2
estabelecimentos fiscalizados, o que pode decorrer da especialização das equipes.
Além disso, foram identificadas condições análogas à escravidão em 2.422 das
5.333 fiscalizações realizadas no período analisado (45,4%), tendo sido observado o

32 Ministério da Economia – ME. Documentos de acesso público. Disponível em:


http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/_layouts/15/DetalhePedido/DetalhePedido.aspx?nup=0300
6000033201914 e
http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/_layouts/15/DetalhePedido/DetalhePedido.aspx?nup=0300
6005810202042. Acesso em 21 set. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

210
patamar de 40,6% em 2019. Desse modo, o coeficiente de sucesso nos
procedimentos fiscais voltados à apuração de denúncias ou suspeitas de escravidão
contemporânea revela que em praticamente metade das ações promovidas encontra-
se ao menos um trabalhador escravizado. Além disso, nos recortes foram observados
coeficientes de 15,7% (1995 a 2002), 57,1% (2003 a 2010) e 46,4% (2011 a 2018), o
que expressa o desenvolvimento de estratégias de inteligência na organização das
atividades ao longo dos anos de atuação.
Nos estabelecimentos fiscalizados, a avaliação da média de trabalhadores
escravizados, resgatados e formalizados (Tabela 1) demonstra que não há
fundamento para a afirmação de que a Inspeção do Trabalho sempre conclui serem
escravos os trabalhadores encontrados nas fiscalizações. Na realidade, necessita-se
de avanço no combate e de resistência quanto às tentativas de retrocesso, como será
demonstrado ao longo do trabalho.
Tabela 1 - Média de trabalhadores alcançados, escravizados e resgatados por fiscalização, agrupadas a cada
8 anos, entre 1995 e 2018, e comparadas ao ano de 2019.
Trabalhadores 1995-2002 2003-2010 2011-2018 2019 Total

Alcançados 218,0 117,6 65,5 48,3 107,8


Escravizados 7,2 16,4 6,5 3,9 10,3
Resgatados 7,2 16,4 5,6 3,6 9,8
Formalizados* 19,9 14,9 4,6 3,4 8,9

*Apenas a partir do ano 2000 constam registros sobre a quantidade de trabalhadores formalizados.
** As médias de fiscalização nos períodos foram, respectivamente: 102,0; 254,1; 275,8; 278,0; e 213,0.
Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

A média de autuações por fiscalização no meio urbano supera a verificada no


ambiente rural na série histórica (15,8 e 11,6) e nos recortes de 2003 a 2010 (17,2 e
12,5) e de 2011 a 2018 (16,3 e 12,6). No entanto, considerando-se apenas os dados
de 2019 (7,7 e 10,7), nota-se a alternância desse quadro. No último ano analisado,
embora a média de autuações no campo tenha mantido o padrão, superou-se a
registrada na cidade. Essa situação pode indicar uma mudança na estratégia e nas
atividades fiscalizadas no trabalho escravo urbano.
Em comparação com a série histórica e com o ano de 2018, nota-se que em
não houve ou reduziu-se a quantidade de autos de infração lavrados em 80,0% das
atividades dez atividades mais autuadas na série histórica, com exceção da

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

211
construção de rodovias e ferrovias, que teve 20 autuações em 2019 e nenhuma em
2018 e da confecção de peças do vestuário, exceto roupas íntimas e as
confeccionadas sob medida, que teve 41 autuações em 2019 e 29 em 2018.
Menos da metade das fiscalizações resulta na identificação de ao menos um
trabalhador escravizado, mas essas ações fiscais geram uma quantidade significativa
de trabalhadores formalizados, de autos de infração lavrados e de CTPS emitidas
(Tabela 2). Logo, percebe-se que há mais precarização laboral na escravidão
contemporânea, associada à informalidade, às infrações trabalhistas e à falta de
documento para anotação do vínculo laboral, situações presentes em proporções
reduzidas nas ações fiscais que não constatam trabalho escravo.
O valor pago a título de indenização aos trabalhadores nas fiscalizações em
que houve escravidão identificada totaliza R$ 106.072.384, o que significa a média de
R$ 697,06 por trabalhador alcançado e de R$ 1.938,28 por trabalhador escravizado.
Em 2019, as médias foram superiores e consistiram em R$ 1.239,85 e R$ 4.245,21,
aumento que pode derivar de fatores como o ajuste do valor do salário mínimo
nacional e a integração nos cálculos de montantes referentes à indenização por dano
moral individual devida às vítimas da escravidão.
Tabela 2 - Proporção de fiscalizações, trabalhadores formalizados, autos de infração e CTPS emitidas* em
ações que identificaram trabalhadores escravizados, agrupadas a cada 8 anos, entre 1995 e 2018, e
comparadas ao ano de 2019.
1995-2002 2003-2010 2011-2018 2019 Total
Atributo
N % N % N % N % N %

Fiscalizações 127 15,6 1.161 57,1 1.021 46,3 113 40,6 2.422 45,4
Formalizados 4.441 72,8 24.915 82,1 7.532 74,2 615 64,2 37.503 78,8
Autos de infração 1.269 20,9 18.534 72,4 19.231 65,9 1.657 57,1 40.691 63,8
CTPS emitidas 34 100,0 4.357 98,2 2.358 96,1 142 91,0 6.891 97,3

* A informação da quantidade de CTPS emitidas por fiscalização consta a partir de 2002.


Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Os estados da Amazônia Legal representam 42,8% da liberação de seguro-


desemprego ao trabalhador resgatado da condição análoga à escravidão (Tabela 3),
com predominância do âmbito rural. No entanto, houve redução nessa proporção ao
longo da série histórica: 49,6% (2003 a 2010); 30,4% (2011 a 2018); e 18,7% (2019).
A redução na identificação de trabalho escravo nos estados da Amazônia Legal pode
tanto decorrer do aumento do enfoque em atividades urbanas como também da

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

212
diminuição do quantitativo de AFT lotados na região ou de eventual dificuldade de
direcionamento dos recursos escassos para a fiscalização em regiões que demandem
mais investimento, o que deve ser objeto de investigação.

Tabela 3 - Quantidade de liberação de seguro-desemprego especial ao trabalhador resgatado* nas


fiscalizações realizadas por área de abrangência nos ambientes Rural e Urbano**, agrupadas a cada 8 anos,
entre 1995 e 2018, e comparadas ao ano de 2019.
2003-2010 2011-2018 2019 Total
Âmbito
N % N % N % N %

Brasil 24.033 100,0 11.560 100,0 824 100,0 36.417 100,0


Rural 23.824 99,1 8.308 71,9 712 86,4 32.844 90,2
Urbano 209 0,9 3.252 28,1 112 13,6 3.573 9,8

Amazônia Legal 11.923 100,0 3.519 100,0 154 100,0 15.596 100,0
Rural 11.811 99,1 3.270 92,9 154 100,0 15.235 97,7
Urbano 112 0,9 249 7,1 - - 361 2,3

*As liberações constam a partir de 2003.


**As fiscalizações de trabalho escravo urbano possuem registro a partir de 2009.
Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Analisando-se a proporção de trabalhadores escravizados, de fiscalizações


realizadas e de Auditores-Fiscais do Trabalho ativos em relação às respectivas
médias (Figura 3), há tendência de queda no quadro de fiscalização desde 2013. As
pequenas elevações nos anos de 1996, 1999, 2004-2005, 2007 e 2010-2011
ocorreram em virtude dos concursos e ingressos na carreira. Não obstante a média
de um concurso a cada 2,5 anos entre 2003 e 2013, há sete anos não há certames
para incremento dos quadros, o que justifica o movimento descendente.
Com efeito, fiscalizações anuais encontram-se acima da média entre 2008 e
2019, com exceção de 2016, e os quantitativos de trabalhadores escravizados
estiveram acima da média entre 2002 e 2013, com pico 2007. Desde então, a variação
deu-se abaixo da média, com o patamar mínimo em 2017, apenas superior aos seis
primeiros anos da série. O início da queda nas quantidades de fiscalizações (2009),
de trabalhadores resgatados (2008) e dos quadros da fiscalização (2012) são
similares. Logo, há correlação entre a realização da política pública de combate à
escravidão e a quantidade de agentes de fiscalização, o que demanda a realização
de certames públicos para a reposição dos quadros.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

213
Figura 3 – Proporção de trabalhadores escravizados, de fiscalizações realizadas e de Auditores-
Fiscais do Trabalho ativos em relação às respectivas médias (1995-2019).
300,0
PROPORÇÃO EM RELAÇÃO À

250,0

200,0
MÉDIA (%)

150,0

100,0

50,0

0,0
1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019

Escravizados Fiscalizações AFT

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

No tocante à distribuição geográfica, o estado do Pará lidera com 21,7% das


fiscalizações realizadas (Figura 4), seguido de Minas Gerais (11,1%), Mato Grosso
(10,9%), Maranhão (7,2%) e Tocantins (6,2%). Na parte final, ressalta-se que Sergipe
consta na penúltima posição (0,2%), com todas as fiscalizações realizadas em 2019,
apenas à frente do Distrito Federal (0,1%), sendo uma ação em 1997 e as demais no
último ano da análise. Dos cinco estados mais representativos, quatro encontram-se
na Amazônia Legal e somam 46% de todas as fiscalizações registradas, percentual
aproximado ao de AFT lotados na Região Sudeste (41%)33, sendo 23% na Região
Nordeste, 18% na Região Centro-Oeste, 12% na Região Sul e somente 7% na Região
Norte. A distribuição mostra-se incompatível com a falta de fiscalização de trabalho
escravo no Amazonas e Amapá, nos anos de 2018 e 2019, e no Acre, neste último
ano.
Minas Gerais destaca-se em razão das fiscalizações do trabalho urbano (92),
que, somadas às 500 fiscalizações do trabalho escravo no campo, resultaram na
primeira colocação nos anos de 2018 e 2019, respectivamente com o total de 49 e 46
fiscalizações. Todavia, em termos de média, as fiscalizações no Pará (46,4)
correspondem a praticamente o dobro da verificada em terras mineiras (23,7).

33Em razão da riqueza e da profundidade da análise promovida a respeito de variados aspectos


relacionados à Inspeção do Trabalho no Brasil, inclusive no tocante à distribuição do quadro nas
regiões do país, sugere-se a seguinte leitura: ASSUMPÇÃO, Luiz Felipe Monsores de. O sistema, a
história, a política e o futuro da inspeção do trabalho no Brasil. Tese apresentada ao Programa
de Pós-Graduação stricto sensu em Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal Fluminense
– UFF, 463 f. Niterói-RJ: UFF, 2018. p. 385.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

214
Necessita-se, então, de estratégias para melhor distribuição do quantitativo de AFT,
notadamente nos estados da Amazônia Legal, pois o fortalecimento das equipes
regionais potencializa o exercício do poder de polícia administrativa em matéria laboral
nos locais que concentram situações de exploração.

Figura 4 - Fiscalizações por estado (1995-2019).

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

O número de trabalhadores identificados em situação de escravidão


contemporânea por estado acompanha, com pouca variação, a ordem de
representatividade por estado (Figura 5). Pará (24,1%), Minas Gerais (11,9%), Mato
Grosso (11,3%), Goiás (7,4%) e Maranhão (6,3%) destacam-se como principais
estados. Não obstante constem fiscalizações registradas no estado de Sergipe, não
há trabalhador identificado em condição de escravidão.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

215
Figura 5 - Trabalhadores escravizados – por estado (1995-2019).

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Os estados da Amazônia Legal (Figura 6) concentram 51,3% das fiscalizações


realizadas. A proporção é mais significativa no ano de 1998 (97,9%) e o patamar
mínimo consta no último ano analisado (28,8%), sendo de 41,0% no período de 2013
a 2019. Por sua vez, na região foram identificados 50,3% dos trabalhadores em
situação de escravidão (Figura 7). Nos anos de 1997 a 1999 e 2001, a proporção
correspondeu a 100,0%. A taxa mínima (13,4%) ocorreu em 2018 e desde 2007 as
taxas encontram-se abaixo da média. Entre 1995 e 2006 a proporção foi de 81,8%,
enquanto entre 2007 e 2019 foi de 28,4%, deixando de se concentrar na Amazônia
Legal. No entanto, a média de escravizados por fiscalização no Brasil (10,3) e na
Amazônia Legal (10,0) seguem padrões similares.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

216
Figura 6 - Fiscalizações no Brasil e na Amazônia Legal (1995-2019).
400
350
300
250
200
150
100
50
0
1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019

Brasil Amazônia Legal

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Figura 7 - Trabalhadores escravizados no Brasil e na Amazônia Legal (1995-2019).


7.000
6.000
5.000
4.000
3.000
2.000
1.000
0
1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019

Brasil Amazônia Legal

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Essa mudança de padrão pode decorrer do aumento do enfoque em outras


atividades e nas fiscalizações no ambiente urbano, e da redução dos quadros da
fiscalização, isolados ou conjuntamente. A sistemática de ingresso na carreira merece
reflexão. A escolha do município de lotação, que antes era feita no momento da
inscrição, passou a ocorrer posteriormente ao resultado e antes da nomeação, o que
resultou em menor fixação nos estados da Amazônia Legal, com a redução dos
quadros a cada processo de remoção.
A Amazônia Legal responde pelo coeficiente de 54,5% das fiscalizações no
meio rural e por 11,2% das ações fiscais promovidas no meio urbano. Em 2019,
representou 31,6% do total de fiscalizações no campo, mas nenhuma das 25

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

217
fiscalizações de trabalho escravo urbano ocorreu no território. Relativamente à
quantidade de trabalhadores identificados em situação de escravidão, a Amazônia
Legal apresenta 54,3% no meio rural e 9,0% no meio urbano. Em 2019, 19,7% no
campo e nenhum dos 120 trabalhadores escravizados nas cidades foi identificado na
região. As médias de trabalhadores escravizados por fiscalização no Brasil e na
Amazônia Legal são idênticas quanto ao trabalho rural (10,1), mas no trabalho urbano
a nacional (12,2) apresenta-se superior à verificada na região (9,6).
Em relação aos estados da Amazônia Legal (Tabela 4), nota-se a
preponderância da escravidão rural no Pará em número de fiscalizações e de
trabalhadores escravizados, na série histórica e em 2019. Em termos de média de
trabalhadores escravizados por fiscalização, o Pará lidera na série histórica, mas em
2019 ocupa o segundo lugar, depois do Maranhão. No meio urbano, as médias mais
relevantes encontram-se nos estados do Maranhão, Rondônia e Pará.

Tabela 4 - Média de trabalhadores escravizados por fiscalização, nos ambientes Rural e


Urbano**, agrupadas a cada 8 anos, entre 1995 e 2018, e comparadas ao ano de 2019.
1995-2002 2003-2010 2011-2018 2019 TOTAL
UF Atributos
Rural Urbano Rural Urbano Rural Urbano Rural Urbano Rural Urbano

Total Fiscalizações 431 - 1.213 10 970 34 80 - 2.694 44


Escravizados 5.522 - 17.750 152 3.406 279 190 - 26.858 431
Taxa 12,8 - 14,6 15,2 3,5 8,2 2,4 - 10,0 9,8

PA Fiscalizações 111 - 617 2 395 9 25 - 1.148 11


Escravizados 3.004 - 8.666 16 1.329 92 66 - 13.065 108
Média 27,1 - 14,0 8,0 3,4 10,2 2,6 - 11,4 9,8

MT Fiscalizações 115 - 247 5 193 7 12 - 567 12


Escravizados 1.741 - 3.918 63 384 35 28 - 6.071 98
Média 15,1 - 15,9 12,6 2,0 5,0 2,3 - 10,7 8,2

TO Fiscalizações 54 - 143 - 121 4 8 - 326 4


Escravizados 59 - 2.240 - 685 4 4 - 2.988 4
Média 1,1 - 15,7 - 5,7 1,0 0,5 - 9,2 1,0

MA Fiscalizações 105 - 144 - 116 5 15 - 380 5


Escravizados 676 - 2.141 - 445 118 59 - 3.321 118
Média 6,4 - 14,9 - 3,8 23,6 3,9 - 8,7 23,6

RO Fiscalizações 38 - 27 3 43 2 13 - 121 5
Escravizados 42 - 613 73 171 12 17 - 843 85
Média 1,1 - 22,7 24,3 4,0 6,0 1,3 - 7,0 17,0

AM Fiscalizações - - 17 - 51 3 - - 68 3

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

218
Escravizados - - 135 - 310 6 - - 445 6
Média - - 7,9 - 6,1 2,0 - - 6,5 2,0

AC Fiscalizações 5 - 11 - 25 1 - - 41 1
Escravizados - - 117 - 116 3 - - 233 3
Média - - 10,6 - 4,6 3,0 - - 5,7 3,0

RR Fiscalizações - - 1 - 20 2 7 - 28 2
Escravizados - - 26 - 40 9 16 - 82 9
Média - - 26,0 - 2,0 4,5 2,3 - 2,9 4,5

AP Fiscalizações 3 - 6 - 6 1 - - 15 1
Escravizados - - - 37 - - - 37 -
Média - - - - 6,2 - - - 2,5 -

*As fiscalizações de trabalho escravo urbano possuem registro a partir de 2009.


Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

São fatores que demonstram a necessidade de maior atenção e enfoque nos


estados localizados em áreas de abertura de fronteira agrícola e de desmatamento na
Amazônia Legal34. A ausência estatal corrobora para o agravamento desse quadro.
Necessita-se de maior atenção do poder público no sentido de conferir mais proteção
aos trabalhadores explorados em condição de escravidão em tais áreas. Com efeito,
o GEFM atua em áreas de difícil acesso e complementa as atividades em locais onde
geralmente as unidades regionais não possuem efetivo adequado, estrutura logística
e apresentam alta probabilidade de os Auditores-Fiscais do Trabalho locais receberem
ameaças dos empregadores35.
Encontram-se na Amazônia Legal 70% dos dez municípios com maior
quantidade de fiscalizações realizadas (Tabela 5), com destaque para Açailândia/MA,
Marabá/PA e Itupiranga/PA, que se encontram entre os cinco primeiros na série
histórica, embora em 2019 não tenha havido fiscalização com enfoque em combate à
escravidão em tais localidades.

34 Sobre a associação do trabalho escravo com o avanço do desmatamento na Amazônia: SILVA,


Érica de Kássia Costa da; FERREIRA, Vanessa Rocha. Trabalho escravo contemporâneo e o
desmatamento na Floresta Amazônica: crise de garantias no Estado Democrático de Direito. Revista
de Direito e Sustentabilidade. Goiânia, v. 5, n. 1, p. 40-59, 2019. Disponível em:
<https://www.indexlaw.org/index.php/revistards/article/download/5510/pdf>. Acesso em 25 jun. 2020.
35 Concorda-se com o apontamento promovido nesse sentido pelo atual coordenador da DETRAE no

seguinte estudo, relevante pela atualidade e precisão técnica na descrição das abordagens e dos
procedimentos de fiscalização realizados: FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração venezuelana e a
exploração de trabalho análogo ao de escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da
Inspeção do Trabalho. Brasília, ano 3, p. 293-326, 2019. Disponível em:
<https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=issue&op=view&path%5B%
5D=3>. Acesso em: 28 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

219
Tabela 5 - Lista dos 10 municípios com maior quantidade de fiscalizações, agrupadas a cada 8
anos, entre 1995 e 2018, e comparadas ao ano de 2019.
Município UF 1995-2002 2003-2010 2011-2018 2019 Total Posição

Açailândia MA 22 43 22 - 87 1º
Paracatu MG 11 62 3 1 77 2º
Marabá PA 6 39 26 - 71 3º
Rio de Janeiro RJ - 4 48 15 67 4º
Itupiranga PA 2 24 20 - 46 5º
Novo Repartimento PA 2 15 27 1 45 6º
Goianésia do Pará PA - 31 9 - 40 7º
Paragominas PA 6 29 3 - 38 8º
Pacajá PA - 21 15 1 37 9º
Luís Eduardo Magalhães BA - 24 9 2 35 10º

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Por sua vez, encontram-se na Amazônia Legal 60% dos dez municípios com
maior quantidade de trabalhadores escravizados (Tabela 6), com destaque para
Confresa/MT, Marabá/PA e Açailândia/MA, que estão entre os cinco primeiros na série
histórica. Os maiores números de tais municípios concentram-se no período de 2003
a 2010. No entanto, em 2019 somente um dos municípios mais fiscalizados na série
apresentou 2 resgates, e não houve registro de escravidão contemporânea nas
demais localidades. A falta de resgates mais recentes pode significar a migração para
outras atividades, o resultado das investidas da fiscalização na região, ou, ainda da
mudança de enfoque das ações fiscais.

Tabela 6 - Lista dos 10 municípios com maior quantidade de trabalhadores escravizados,


agrupadas a cada 8 anos, entre 1995 e 2018, e comparadas ao ano de 2019.
Município UF 1995-2002 2003-2010 2011-2018 2019 Total Posição

Confresa MT 45 1.347 1 - 1.393 1º


Brasilândia MS - 1.011 - - 1.011 2º
Campos dos Goytacazes RJ - 909 73 - 982 3º
Marabá PA 156 464 190 - 810 4º
Açailândia MA 248 418 44 - 710 5º
Dom Eliseu PA 300 346 5 - 651 6º
Iguatemi MS - 624 - - 624 7º
Pacajá PA - 528 89 2 617 8º
Belo Horizonte MG - 538 - 538 9º
Paragominas PA 29 461 22 - 512 10º

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

220
Apenas a construção de edifícios envolve atividade tipicamente urbana dentre
as mais fiscalizadas (Tabela 7). As atividades rurais dominam a lista, com destaque
para a criação de bovinos para corte, a produção de carvão vegetal em florestas
nativas e cultivo de cana-de-açúcar. Em 2019, apenas a primeira apresenta relevo,
além da produção de carvão vegetal em florestas plantadas e do cultivo de café.

Tabela 7 - Lista das 10 atividades econômicas com maior quantidade de fiscalizações, agrupadas a
cada 8 anos, entre 1995 e 2018, e comparadas ao ano de 2019.
Descrição 1995-2002 2003-2010 2011-2018 2019 Total Posição
Criação de bovinos para corte 186 853 590 39 1.668 1º
Produção de carvão vegetal - florestas nativas 40 132 104 6 282 2º
Cultivo de cana-de-açúcar 57 98 33 - 188 3º
Cultivo de soja 5 85 83 8 181 4º
Cultivo de café 25 43 94 14 176 5º
Serrarias com desdobramento de madeira 49 47 59 4 159 6º
Construção de edifícios 6 18 117 11 152 7º
Extração de madeira em florestas nativas 25 81 37 4 147 8º
Atividades de apoio à produção florestal 39 69 8 2 118 9º
Extração de madeira em florestas plantadas 1 29 70 2 102 10º
Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Em número de trabalhadores escravizados (Tabela 8), preponderam as


atividades rurais, sendo que a construção de edifícios está na 12ª posição como
primeira atividade em meio urbano, com 321 escravizados. Em destaque, constam a
criação de bovinos para corte, a fabricação de álcool e o cultivo de cana-de-açúcar.
Em 2019, a primeira apresenta relevo, seguida do serviço de preparação de terreno
(15ª posição, com 29 escravizados) e da extração de madeira em florestas nativas.

Tabela 8 - Lista das 10 atividades econômicas com maior quantidade de trabalhadores


escravizados, agrupadas a cada 8 anos, entre 1995 e 2018, e comparadas ao ano de 2019.
201 Posiçã
Descrição do CNAE 1995-2002 2003-2010 2011-2018 Total
9 o
15.55
Criação de bovinos para corte 3.427 10.531 1.601 66 1º
9
Fabricação de álcool 199 1.500 28 - 1.727 2º
Cultivo de cana-de-açúcar 75 1.631 - - 1.706 3º
Produção de carvão vegetal - florestas
107 496 420 14 1.023 4º
nativas
Extração de madeira em florestas nativas 128 430 117 20 675 5º
Cultivo de outras plantas de Lavoura
249 398 - - 647 6º
permanente não especificadas anteriormente
Cultivo de soja 75 420 110 7 605 7º
Cultivo de algodão herbáceo 581 - - - 581 8º
Produção de ferro-gusa - 508 12 - 520 9º
Cultivo de milho 267 232 18 - 517 10º
Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

221
Evidencia-se que o GEFM realizou 59,3% e as regionais 40,7% das
fiscalizações contra a escravidão moderna no Brasil, percentuais que em 2019
estiveram na ordem de 53,2% e 46,8%, respectivamente. As equipes regionais que
mais realizaram ações fiscais nos estados foram Minas Gerais (6,3%), Mato Grosso
(4,8%), Pará (4,3%), Goiás (3,1%) e São Paulo (2,7%).
O pico de fiscalizações de trabalho escravo rural ocorreu em 2009 (Figura 8).
Em 2019, as fiscalizações no campo superaram a média histórica (197,6), mas as
realizadas nas cidades foram inferiores à correspondente (35,6). As fiscalizações se
concentram nas equipes do GEFM, pela expertise desenvolvida e pela dificuldade de
operacionalização nas regionais com quadros reduzidos.

Figura 8 - Fiscalizações de trabalho escravo rural e urbano (1995-2019).


400 342
350 303 306
276
300 246 253
302 223
250 219 209 222
188 235
200 149 223 216
206
150 189 186
88
100 77 67 70 61
47 56 38 25
95 85
10 25 26 37 25
50 8
0
1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019

Fiscalizações Rural Fiscalizações Urbano

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Quanto aos trabalhadores escravizados, o auge no ambiente rural ocorreu em


2007 e no urbano em 2013 (Figura 9). O trabalho rural concentra 91,2% dos
escravizados e o urbano reúne 8,8%. Em 2019, no meio urbano verificou-se 27,5% da
média histórica (1.996,7) e no meio rural 48,3% da média correspondente (437,1).
Desde 2013 não se atinge o mesmo patamar, realidade que reforça a coincidência
dessa informação com o período em que os quadros da fiscalização iniciaram o maior
período consecutivo de queda nos quantitativo de AFT em atividade.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

222
Figura 9 - Trabalhadores escravizados no trabalho escravo rural e urbano (1995-2019).
7.000
6.000
5.000
4.000
3.000
2.000
1.000
0
1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019

Trabalhadores escravizados Rural Trabalhadores escravizados Urbano

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

A média de trabalhadores escravizados por fiscalização atingiu os picos no


âmbito rural em 2007 e no ambiente urbano em 2012 (Figura 10). A média histórica
no campo (10,1) não é alcançada desde 2010 e nas cidades (13,0) desde 2014. O
último ano analisado representou 37,5% da média no meio rural e 37,1% no meio
urbano. Em ambos os casos, a tendência de queda pode ser explicada por diferentes
fatores vinculados a dificuldades operacionais e estruturais, que impedem a afirmação
no sentido da redução da escravidão moderna no mesmo ritmo.

Figura 10 – Média de trabalhadores escravizados nos âmbitos rural e urbano (1995-2019).


35,0
30,0
25,0
20,0
15,0
10,0
5,0
0,0
1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019

Taxa de escravizados x Fiscalização Rural Taxa de escravizados x Fiscalização Urbano

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Quanto à formalização dos vínculos durante as ações fiscais (Figura 11), o


âmbito rural (94,1%) prepondera em relação ao urbano (5,1%), encontrando-se os
picos em 2003 e 2013, respectivamente. Em 2019, no trabalho rural e no urbano
observou-se desempenho inferior à média (2.256,2 e 222,5). A partir de 2014, a média

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

223
de trabalhadores formalizados por fiscalização apresenta similaridade (Figura 12),
variando no trabalho urbano entre 2,8 e 3,6 e no trabalho rural entre 3,1 e 4,2.
Considerando a média desse período, em cada 100 fiscalizações, estima-se a
regularização de 360 trabalhadores no meio rural e 320 no meio urbano.

Figura 11 - Trabalhadores formalizados nos ambientes rural e urbano (2000-2019).


7.000
6.137
6.000
5.000 4.271
3.637
4.000 3.123
2.805 1.277
3.000 3.643 928 570 871
3.454
3.057 1.695
2.000 1.130 2.674 1.275
2.164 773 750 889
1.000 295 317 116
688 69
0 73 288 230 188 91 92
2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016 2018

Trabalhadores formalizados Rural Trabalhadores formalizados Urbano

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

Figura 12 - Média de trabalhadores formalizados por fiscalização no meio rural e urbano


(2000-2019).
35,0
30,0
25,0
20,0
15,0
10,0
5,0
0,0
2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016 2018

Taxa de formalizados x Fiscalização Rural Taxa de formalizados x Fiscalização Urbano

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

As médias de formalização inferiores nos últimos anos de análise pode decorrer


do aumento da formalização nas atividades que tipicamente empregam mão de obra
escrava, da mudança de enfoque da fiscalização para atividades que notadamente
registram seus empregados, da redução do alcance da atividade fiscalizatória ou da
automação em atividades mais relevantes em termos de informalidade. Pode-se
atribuir o aumento da quantidade de resgates em outras regiões ao aumento das

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

224
fiscalizações, do crescimento econômico ou da demanda nas culturas do Centro-Sul
e nos canteiros de obra36.
A análise comparada entre as taxas de trabalho infantil em cada grupo de 1.000
trabalhadores escravizados indica a proximidade entre os índices dos ambientes rural
(15,0) e urbano (16,4), com prevalência deste último. São números que demonstram
a presença de crianças e adolescentes em situação reconhecida como uma das piores
formas de trabalho infantil, com prevalência da faixa entre 16 e 18 anos de idade
(60,0%).
Com base em estudo promovido pela OIT37, ressalta-se que a escravidão
contemporânea está associada ao trabalho infantil, que ocorre de modo simultâneo
ou em momento anterior, estimando-se que 92,6% das vítimas iniciam a vida
profissional precocemente, em contexto estranho à aprendizagem profissional, sendo
aproximadamente 30% submetidos a trabalho infantil em proveito de terceiros,
diretamente ou em conjunto com familiares.
Quanto aos imigrantes identificados em situação de escravidão, nota-se que o
ambiente urbano (81,5%) prepondera em relação ao rural (18,5%), encontrando-se os
picos de ambos em 2013 (Figura 13). Em 2019, não há registro de imigrantes no
trabalho escravo em ambiente rural, embora no urbano tenha sido encontrado uma
quantidade maior que o biênio anterior. Observa-se, então, a tendência de elevação
do quadro de precariedade desse público em atividades urbanas38.
Nesse aspecto, importa considerar a quantidade de pessoas provenientes de
outros países são empregadas principalmente no setor de confecção (373),

36 Para mais detalhes referentes aos fatores associados à escravidão contemporânea no Brasil com
base em dados da CPT e do extinto MTE até o ano de 2012: GIRARDI, Eduardo Paulon; MELLO-
THÉRY, Neli Aparecida de; THÉRY, Hervé; HATO, Julio. Mapeamento do trabalho escravo
contemporâneo no Brasil: dinâmicas recentes. Espaço e Economia, n. 4, 2014. Disponível em:
<http://journals.openedition.org/espacoeconomia/804>. Acesso em 29. jun. 2020.
37 OIT. Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil. Brasília: OIT,

2011. p. 81. Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---ro-lima/---ilo-


brasilia/documents/publication/wcms_227533.pdf. Acesso em 22 set. 2020.
38 Destaca-se o início da atuação do Grupo Especial com a temática de migração em Roraima em um

momento no qual o fluxo migratório de venezuelanos cresceu, havendo informação de 31


trabalhadores escravizados, em 22 estabelecimentos fiscalizados entre 2018 e 2019, acima da média
para o estado. FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração venezuelana e a exploração de trabalho
análogo ao de escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho.
Brasília, ano 3, p. 293-326, 2019. Disponível em:
<https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=issue&op=view&path%5B%
5D=3>. Acesso em: 28 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

225
construção de edifícios (176), comércio varejista de artigos do vestuário e acessórios
(64). Em 2019, além do setor de confecções (35), houve identificação em parques de
diversão e parques temáticos (9), serviços domésticos (1) e comércio varejista de
suvenires, bijuterias e artesanatos (1). Trata-se de mão de obra com um especial grau
de restrição em razão do idioma e do receio de deportação, não obstante haja garantia
da possibilidade de permanência no Brasil em questões de refúgio.

Figura 13 - Trabalhadores imigrantes resgatados nos ambientes rural e urbano (2006-2019).


250 224

200

150
119

100 64
42 47 49 51 46
36 36
50 21 25
11 20
1 23 1 3
0 15
2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

Imigrantes resgatados Rural Imigrantes resgatados Urbano

Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

A análise do motivo do resgate na série histórica por tipo de ambiente


fiscalizado (Tabela 9) demonstra que não houve preenchimento significativo até 2018,
mas em 2019 apenas uma fiscalização não possui motivo definido, ano em que 89,2%
dos resgates em ambiente rural e 40% no urbano apontaram exclusivamente a
condição degradante. Em 80% dos resgates em meio urbano esse o único ou algum
dos motivos, assim como em 97,8% do rural.
O discurso em defesa da redução conceitual do trabalho escravo que afaste as
condições degradantes e a jornada exaustiva das possibilidades de condutas
configuradoras de trabalho escravo para fins expropriatórios, sendo aquela
preponderante nas fiscalizações, apresenta-se inconvencional39, pois contrária ao
conceito referendado pela Corte IDH. Essa postura significaria atrofiamento ou

39A respeito da discussão sobre os efeitos das decisões da Corte IDH e a compreensão do STF
quanto ao controle de convencionalidade: SILVA, Carla Ribeiro Volpini; WANDERLEY JUNIOR,
Bruno. A responsabilidade internacional do Brasil em face do controle de convencionalidade em sede
de direitos humanos: conflito de interpretação entre a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e o Supremo Tribunal Federal quanto a Lei de anistia. Revista de Direito Internacional,
Brasília, v. 12, n. 2, p. 611-629, 2015.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

226
atalhamento constitucional, além de retrocesso quanto à noção legislativa
vanguardista desenvolvida no Brasil nas últimas décadas, atingindo a principal
conduta motivadora da escravidão contemporânea.

Tabela 9 - Taxa de motivos* de resgate, nos ambientes Rural e Urbano**, agrupadas a cada 8 anos,
entre 1995*** e 2018, e comparadas ao ano de 2019.
2003-2010 2011-2018 2019 TOTAL
Motivo Rural Urbano Rural Urbano Rural Urbano Rural Urbano
N % N % N % N % N % N % N % N %

Total 1.144 100,0 17 100,0 797 100,0 224 100,0 93 100,0 20 100,0 2.161 100,0 261 100,0

n/a 761 66,5 16 94,1 560 70,3 160 71,4 1 1,1 - - 1.449 67,1 176 67,4
1 353 30,9 1 5,9 191 24,0 37 16,5 83 89,2 8 40,0 627 29,0 46 17,6
Mais de 1 27 2,4 0 0,0 44 5,5 27 12,1 8 8,6 11 55,0 79 3,7 38 14,6
3 2 0,2 - - - - - - - - 1 5,0 2 0,1 1 0,4
2 - - - - 1 0,1 - - 1 1,1 - - 2 0,1 0 -
4 1 0,1 - - 1 0,1 - - - - - - 2 0,1 - -

* Motivo: 1 – Condição degradante; 2 – Jornada exaustiva; 3 – Restrição de liberdade (Servidão por Dívida); 4 –
Trabalho forçado; n/a - não atribuído. Estratificação realizada a partir de 2003.
** As fiscalizações de trabalho escravo urbano possuem registro a partir de 2009.
*** Entre 1995 e 2002 foram 127 registros não preenchidos no meio rural.
Fonte: Autoria própria, com base nos dados fornecidos pela DETRAE/SIT.

A análise da série histórica das fiscalizações do trabalho escravo


contemporâneo efetivada no presente estudo expõe dados e discussões que podem
motivar novas pesquisas e contribuir para novas abordagens e ponderações, no
sentido do aprimoramento dos debates.

5 CONCLUSÃO

A partir do preenchimento da lacuna analítica observada no tocante à


apreciação da série histórica das ações de combate ao trabalho escravo
contemporâneo no Brasil e na Amazônia Legal e, portanto, da contribuição para o
atual estado da arte referente ao tema, a presente pesquisa demonstrou a ausência
de fundamento para a crítica dirigida à Inspeção do Trabalho no sentido de que as
autoridades responsáveis pelas fiscalizações sempre concluem serem escravos os
trabalhadores encontrados.
Conclui-se que há mais precarização laboral nos quadros de escravidão
contemporânea, associada à informalidade, às infrações trabalhistas e à falta de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

227
documento para anotação do vínculo laboral. Essas irregularidades também estão
presentes nas ações fiscais que não constatam trabalhadores escravizados (54,6%
dos procedimentos com esse enfoque), embora em proporções reduzidas.
O período de queda na quantidade de fiscalizações, de trabalhadores
resgatados e dos quadros da fiscalização são coincidentes e ocorrem de modo
dissonante com o aumento da população brasileira. A tendência de queda pode ser
explicada por diferentes fatores relacionados a dificuldades operacionais e estruturais,
que impedem a afirmação no sentido da redução da escravidão moderna no mesmo
ritmo, correlação que demanda a realização de certames públicos para a reposição
dos quadros e melhoria na consecução da política de enfrentamento.
A tendência de redução na quantidade de trabalhadores escravizados em
atividades urbanas e rurais pode indicar a redução do fenômeno, o menor alcance da
fiscalização ou a migração para áreas que demandam menos mão de obra. Porém, a
exploração do trabalho em condições análogas à escravidão resta facilitada pela
ausência de estratégias de preenchimento dos quadros e distribuição adequada do
quantitativo de AFT, notadamente nos estados da Amazônia Legal. São ações
estatais julgadas fundamentais para que haja o fortalecimento das equipes regionais,
de forma a potencializar a fiscalização laboral nos locais que concentram situações
de aviltamento da dignidade obreira.
A mudança da concentração do trabalho escravo na Amazônia Legal pode
decorrer de fatores como o aumento do enfoque em outras atividades e nas
fiscalizações urbanas, da redução dos quadros da fiscalização e, ainda, da atual
sistemática de ingresso na carreira, em que a escolha do município de lotação, que
antes era feita no momento da inscrição, passou a ocorrer posteriormente ao resultado
e antes da nomeação, o que resultou em menor fixação nos estados da Amazônia
Legal, com o esvaziamento dos quadros a cada processo de remoção.
Nesse sentido, há necessidade de maior atenção e enfoque nos estados
localizados em áreas de abertura de fronteira agrícola e de desmatamento na
Amazônia Legal, pois a ausência estatal corrobora para o agravamento desse quadro
de fragilidade na proteção aos trabalhadores explorados em condição de escravidão
em tais áreas, que concentram os municípios e atividades relevantes em termos de
fiscalização e de trabalhadores escravizados.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

228
A maior concentração das fiscalizações nas equipes do GEFM resulta da
expertise desenvolvida associada à dificuldade de operacionalização de ações do
gênero pelas regionais, sobretudo as mais afetadas pelo quadro reduzido de AFT, o
que novamente reforça a necessidade de preenchimento dos cargos vagos e da
melhor distribuição dos fiscais nos estados.
Com efeito, a efetividade das políticas públicas de combate à escravidão carece
da aplicação do dispositivo constitucional relativo ao confisco de propriedades (artigo
243). O discurso em defesa da redução conceitual do trabalho escravo que afaste as
condições degradantes e a jornada exaustiva das possibilidades de condutas
configuradoras para fins expropriatórios, sendo aquela recorrente nas fiscalizações,
apresenta-se inconvencional, pois contraria o conceito referendado pela Corte IDH e
representaria retrocesso normativo e social, ao retirar a principal conduta constatada
pelo órgão de fiscalização (condições degradantes).
Como limitações desta pesquisa, destacam-se as associações com os indícios
de alteração da intensividade de aplicação da mão de obra e de deslocamento dos
trabalhadores arregimentados para outros setores produtivos e as modificações nos
critérios de seleção concursal para os cargos da auditoria fiscal do trabalho. Logo,
identifica-se a necessidade de novas, específicas e aprofundadas investigações, para
confirmar ou refutar tais hipóteses.
Não obstante as dificuldades e os limites apontados, os resultados expostos
pelo presente estudo demonstram a efetividade das ações promovidas pela Inspeção
do Trabalho na seara da eliminação da escravidão contemporânea, o que decorre não
apenas da apreciação dos quantitativos de fiscalizações e resgates de trabalhadores
submetidos a essas condições laborais aviltantes, mas também dos índices de
formalização de vínculo empregatício, de emissão e anotação de Carteira de Trabalho
e da identificação de outras irregularidades mesmo em contextos que não permitem a
configuração do trabalho em condições análogas à escravidão.
Ainda assim, a evolução no desenvolvimento dessa política e o cumprimento
do compromisso estampado no item 8.7 dos Objetivos do Desenvolvimento
Sustentável, no sentido do alcance da eliminação da escravidão ocorra até 2030,
demanda ações públicas e privadas que confiram efetividade ao combate e mais
atenção do Estado brasileiro quanto ao tratamento das questões sociais que

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

229
condicionam uma grande parcela da população a um quadro de discriminação
estrutural facilitador do aviltamento da dignidade obreira.

REFERÊNCIAS

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CONTEMPORARY SLAVE WORK: HISTORICAL SERIES


FROM THE 25 YEARS OF THE SPECIAL GROUP OF
MOBILE INPECTION, IN BRAZIL AND THE LEGAL AMAZON
(1995-2019)

ABSTRACT
This paper analyzes the historical series of contemporary slave
labor in Brazil and the Legal Amazon from the records of the
operations of the Division for the Eradication of Slave Labor
(1995 and 2019). It uses the method of inductive approach and
bibliographic and documentary research techniques. Historical
series were made, and the inspection coefficients were
calculated, workers reached, enslaved, rescued, and formalized
for each period. The quantitative research identified as results:
reduction of the inspection staff; in 45.4% of the inspections in
which slavery was found, 78.8% of the formalization of workers
was concentrated, 63.8% of the infraction notices and 97.3% of
the Work Card issues; average of 213.3 inspections and 2,189.0
enslaved workers annually; prevalence of the range between 16
and 18 years of age (60.0%) in child slave labor; concentration
of enslaved immigrants in urban activities; preponderance of

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

232
Pará in the Legal Amazon (42.6% of inspections and 48.9% of
enslaved workers in the region), with a higher incidence of
livestock; greater occurrence of the degrading condition in
slavery in the countryside (97.8%) and in the city (80.0%). It is
concluded that there is more precarious work in contemporary
slavery; the drop in the number of inspections, redemptions and
inspectors indicates the need to hold a public tender for the
replacement of staff and the better distribution of the amount in
the states of the Legal Amazon; and the withdrawal from
submission to degrading conditions of the concept of slavery is
not justified. The study aims to contribute to a better
understanding of the theme and to support the formulation and
implementation of public policies.

Keywords: Slavery. Labor Inspection. Legal Amazon. Historic


Serie. Special Group of Mobile Inspection.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

233
A PERCEPÇÃO DOS AUDITORES-FISCAIS DO TRABALHO EM
RELAÇÃO AO TELETRABALHO EM TEMPOS DE PANDEMIA POR
COVID-19

Eva Patrícia Gonçalo Pires Tormin1


Sarah de Mattos Oliveira2
Luiz Victorino3

1 Introdução. 2 Referencial Teórico. 2.1 Conceito de teletrabalho. 2.2 O


Teletrabalho no Brasil. 2.3 O Teletrabalho no Setor Público. 2.4 O
Teletrabalho na Auditoria Fiscal do Trabalho. 3 Metodologia da Pesquisa. 3.1
Participantes. 3.2 Instrumentos. 3.3 Procedimentos. 4 Análise dos
Resultados. 5 Conclusão. Referências.

RESUMO
Dentre as mudanças ocasionadas pela pandemia de COVID-19, a adoção
do teletrabalho nos setores privado e público foi uma das mais
significativas. No intuito de entender melhor os impactos desse processo
no setor público, o presente trabalho investigou a percepção dos Auditores-
Fiscais do Trabalho acerca do teletrabalho. Foram aplicados 74
questionários entre Auditores-Fiscais do Trabalho de todo o Brasil, com
média de idade de 44,5 anos (DP = 10,1) e de 15,4 anos de experiência na
carreira (DP = 9,2). O questionário abarcava questões que investigavam a
temática do teletrabalho, as percepções dos Auditores-Fiscais do Trabalho
sobre essa modalidade e as Escalas de Satisfação no Trabalho e Conflito
Trabalho-Família. Os resultados mostraram que 57% da amostra passou
ao teletrabalho atualmente por conta da pandemia e relatam aumento de
carga horária decorrente dessa mudança. As análises também
compararam os Auditores-Fiscais do Trabalho que já estavam em regime
de teletrabalho antes da pandemia com aqueles que entraram nesse
regime em decorrência da COVID-19 e não foram encontradas diferenças
significativas nos níveis de satisfação com o trabalho e nos níveis de

1 Mestranda em Direitos Sociais e Processos Reivindicatórios pelo Instituto de Educação Superior de


Brasília (IESB). Pós graduada em Engenharia de Segurança no Trabalho pelo Centro Universitário do
Distrito Federal (UDF). Pós graduada em Direito Administrativo pela Faculdade Anhanguera. Pós
graduada em Direito Constitucional pela Faculdade Anhanguera. Graduada em Direito pelo Centro
Universitário do Distrito Federal (UDF). Graduada em Engenharia Civil pela Universidade Federal de
Goiás (UFG). Auditora-Fiscal do Trabalho. Contato: evagoncalopires@gmail.com
2 Mestranda em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Graduada em

Direito pelo Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB). Graduada em Arquitetura e Urbanismo
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Auditora-Fiscal do Trabalho. Contato:
sarah_mattos@hotmail.com
3 Doutor em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília (UnB),

Mestre em Administração pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ). Graduado em Psicologia pela
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: luiz.victorino1@gmail.com.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

234
conflito trabalho-família, sugerindo que, apesar das dificuldades iniciais, há
uma tendência de adaptação rápida ao regime de teletrabalho. Ainda, 54%
dos respondentes afirmaram estar se sentindo melhor fazendo teletrabalho
e 69% se sentem mais produtivos, com um total de 74% de Auditores-
Fiscais do Trabalho recomendando o teletrabalho. Os resultados sugerem
que a modalidade de teletrabalho traz efeitos positivos em termos de
produtividade e satisfação, devendo ser considerada como possibilidade
após a pandemia.

Palavras-chave: Teletrabalho. Auditoria-Fiscal do Trabalho. Serviço


público. Pandemia COVID-19.

1 INTRODUÇÃO

A COVID-19 teve seu início em dezembro de 2019, na província de Wuhan, na


China, e em menos de 3 meses já havia sido declarada pela Organização Mundial da
Saúde – OMS como uma pandemia. A rápida expansão da doença obrigou pessoas
no mundo inteiro ao confinamento por meio de quarentenas e medidas de isolamento
social. Em consequência disso, muitas organizações, públicas e privadas se viram
confrontadas com o desafio da implementação às pressas de modelos de trabalho
remoto4.
Com a necessidade de manter as organizações funcionando, tanto por motivos
econômicos quanto práticos, já no início da pandemia, um terço dos trabalhadores
estava em trabalho remoto, segundo dados relativos à indústria norte americana5.
Nesse processo, algumas organizações saíram em vantagem, pois já vinham
implementando o teletrabalho de forma gradual, enquanto outras tiveram sérios
problemas para manter a funcionalidade e evitar mais prejuízos.
O processo de adaptação envolve não apenas o uso de ferramentas, mas
também a adequação dos processos de trabalho e a mudança de mentalidade de
líderes e gestores, que devem, nesse novo cenário, ajustar-se a novas demandas ao
mesmo tempo em que dão suporte aos liderados. Processos como a condução de

4 BARTIK, Alexander W. et al. How are small businesses adjusting to covid-19? early evidence from a
survey. National Bureau of Economic Research, 2020.
5 BRYNJOLFSSON, Erik et al. COVID-19 and remote work: An early look at us data. Unpublished

work, 2020. Disponível em: https://john-joseph-horton.com/papers/remote_work.pdf Acesso em:


02/06/2020

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

235
reuniões, tomada de decisão, planejamento e execução de ações precisaram ser
modificados, o que gerou um impacto nos trabalhadores, que também se viram
forçados repentinamente a se adaptarem6.
Nesse sentido, os trabalhadores do setor público se igualam aos do setor
privado, pois também adotaram o regime de teletrabalho e, assim como os pares da
iniciativa privada, sofrem os efeitos da maior interseção entre os campos profissional
e particular, o que acaba adicionando outras variáveis complicadoras ao já exaustivo
processo de adaptação à nova realidade.
Com a responsabilidade e o papel de protagonismo que o Estado tem em
momentos de enfrentamento de crises, é essencial compreender os impactos desse
processo adaptativo nos trabalhadores do setor público, não apenas para detectar
características específicas desse grupo, mas também apontar tendências e sugerir
ações que possam facilitar o processo de adaptação.
O presente estudo, por essa razão, elegeu a carreira da Auditoria-Fiscal do
Trabalho como objeto da pesquisa acerca da percepção do teletrabalho no contexto
da COVID-19, em vista de características dessa carreira, notadamente pela realização
de trabalhos presenciais e remotos antes e após a pandemia, o que favorece uma
análise comparativa do caso, bem como pelas mudanças observadas, logo no início
da pandemia, na forma de realização do trabalho pelos integrantes da carreira.
Primeiramente, será analisado o teletrabalho sob a perspectiva conceitual, com
exposição da contextualização histórico-jurídica do teletrabalho, tanto em uma
perspectiva geral, quanto também do instituto no Brasil, no serviço público e, mais
especificamente, na carreira de Auditoria-Fiscal do Trabalho. Após, apresentar-se-á
pesquisa conduzida junto a Auditores-Fiscais do Trabalho de todo o país acerca da
percepção desses servidores quanto ao teletrabalho no contexto da COVID-19,
quando serão tratados dos métodos utilizados na pesquisa e serão apresentados os
seus resultados. Por fim, os resultados serão analisados e será apresentada a
conclusão do trabalho.

6CRUZ, Bruno Silveira; DE OLIVEIRA DIAS, Murillo. COVID-19: from outbreak to pandemic. Global
Sci J, v. 8, n. 3, 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

236
2 REFERENCIAL TEÓRICO

Com a finalidade de melhor proporcionar a compreensão e análise dos dados


coletados e a obtenção de resultados, buscar-se-á discorrer, inicialmente, sobre os
conceitos de teletrabalho, contextualizando-os ao caso pesquisado. Em seguida, em
uma abordagem que busca partir do aspecto mais amplo para o específico, passar-
se-á à apreensão histórica de como essa modalidade de trabalho pode ser verificada
no contexto brasileiro e, em seguida, mais especificamente no âmbito do setor público
pátrio, para, por fim, ser tratada da questão do teletrabalho no contexto histórico da
Auditoria-Fiscal do Trabalho.

2.1 CONCEITO DE TELETRABALHO

Em estudo relativo a teletrabalho, cumpre esclarecer, inicialmente, que há


variadas denominações dadas ao termo, seja em razão de peculiaridades relativas à
forma de realização do trabalho, seja quanto à absorção de terminologias utilizadas
em outros países.
Um conceito que se torna importante trazer à baila em momento preambular é
aquele dado pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, justamente por, de
maneira geral, balizar os conceitos posteriormente trazidos tanto pelos doutrinadores
estrangeiros quanto por aqueles que se lançam ao estudo da questão no Brasil.
Assim, tem-se que Organização Internacional do Trabalho define teletrabalho
como “a forma de trabalho efetuada em lugar distante do escritório central e/ou do
centro de produção, que permita a separação física e que implique o uso de uma nova
tecnologia facilitadora da comunicação”7.
A definição apresentada pela OIT é de fácil compreensão e, pela simplicidade
no conceito, tem sido bastante difundida em diversos países. A acepção proposta pela
OIT apresenta, como elementos característicos do teletrabalho, basicamente: a) o fato
de o trabalho ser realizado à distância, com separação física entre o trabalhador e o

7ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. The strong case for working remotely.
2013. Disponível em: . <http://www.ilo.org/rome/risorse-informative/per-la-stampa /articles
/WCMS_208067/ lang--en/index.htm> Acesso em: 12/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

237
escritório ou centro de produção; b) a utilização de novas tecnologias que permitam a
comunicação. A reprodução desses elementos como definidores do teletrabalho é
verificada em diversos outros conceitos, como adiante se analisa.
O magistrado e doutrinador Cairo Jr.8 conceitua teletrabalho também segundo
a constatação dos dois elementos básicos apontados na definição concebida pela
OIT, como a seguir se verifica:

Etimologicamente, tele significa à distância, e trabalho expressa a ideia de


prestação de serviço por uma pessoa com um objetivo determinado. Assim,
teletrabalho nada mais é do que uma forma de prestação de serviço à
distância ou, de forma sintética, trabalho à distância.
Assim, conceitua-se teletrabalho como uma espécie de trabalho à distância
(executado fora do centro de trabalho tradicional), concebido como uma
forma flexível de organização do trabalho e com utilização das ferramentas
fornecidas pelas novas tecnologias da informática e das
telecomunicações. (CAIRO JR, 2013, p. 338, grifo nosso)

A Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades – SOBRATT9 define


teletrabalho como modalidade de trabalho intelectual regido por um contrato, realizado
fora do local da sede da empresa, com a utilização de tecnologias da comunicação e
informação que permitam recebimento e transmissão de dados, arquivos de texto,
imagem ou som, mediante controle, supervisão e subordinação.
Filardi, Castro e Zanini10 defendem a definição de teletrabalho supracitada,
segundo a qual este se trata do trabalho realizado à distância, ou seja, fora do local
de trabalho, com uso das tecnologias da informação e computação, computadores,
telefonia fixa e celular, bem como toda tecnologia que permita trabalhar em qualquer
lugar, receber e transmitir informações, arquivos, imagens ou som relacionados à
atividade laboral. Segundo esses autores, a tecnologia da informação seria, portanto,
a principal ferramenta de apoio às empresas em suas atividades administrativas e

8 CAIRO JR, José. Curso de Direito do Trabalho. 8ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2013, p. 338.
9 SOBRATT. Estudo home office 2018, Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades. 2018.
Disponível em: <http://www.sobratt.org.br/site2015/wp-content/uploads/2018/12/pesquisa-sap-2018-
completa.pdf>. Acesso em 13/05/2020.
10 FILARDI, FERNANDO; CASTRO, RACHEL MERCEDES P. DE; ZANINI, MARCO TULIO FUNDÃO.

Vantagens e desvantagens do teletrabalho na administração pública: análise das experiências do


Serpro e da Receita Federal. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro , v. 18, n. 1, p. 28-46, Jan. 2020 .
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-
39512020000100028&lng=en&nrm=iso>. Accesso em: 13/06/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

238
operacionais, uma vez que carrearia maior agilidade a processos burocráticos e bem
definidos.
Segundo argumenta Moreno11, a definição de teletrabalho de modo
generalizado não é possível, em virtude das diversas modalidades existentes e da
possibilidade do surgimento de novas, não havendo consenso por parte dos autores
que versam acerca do tema. Contudo, não seriam definições contraditórias, mas sim,
conceitos complementares.
Na mesma linha, Lopes12 argumenta que a literatura comporta uma grande
variedade de definições para o teletrabalho, não havendo um consenso sobre uma
única definição precisa e generalizada entre os estudiosos, o que, segundo o autor,
ocorre devido às várias modalidades encontradas, bem como em razão do frequente
surgimento de novas formas.
Assim, apesar das divergências sobre o que seria um conceito fechado para o
termo, os diversos conceitos apresentados para o teletrabalho são complementares,
de modo que é possível traçar uma linha mestra a nortear todos os entendimentos,
centrada nos dois elementos inicialmente apontados no conceito da OIT: a) o fato de
o trabalho ser realizado à distância, com separação física entre o trabalhador e o
escritório ou centro de produção; b) a utilização de novas tecnologias que permitam a
comunicação.
Atualmente, constata-se tendência de forte aceitação mundial dessa forma de
trabalho, bem como seu acelerado crescimento. Com o intuito de reconhecer e
regulamentar a prática do teletrabalho, países como Portugal, Itália, Espanha, França,
Finlândia, EUA, Argentina e Chile já desenvolveram legislações específicas, além de
haver regulamentações próprias da União Europeia13 e mais recentemente no Brasil,
como a seguir se aduz.

11 MORENO, Eglay Lopes. Teletrabalho no serviço público federal: um estudo de caso no Tribunal
Superior do Trabalho. 2019.
12 LOPES, Danielle Cristina Mariz. O processo de implementação do projeto-piloto de teletrabalho no

âmbito do Ministério Público Federal no Rio Grande do Norte. Trabalho de Conclusão de Curso.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2019.
13 BARBOSA, Fernanda Borges Stockler. A regulamentação jurídica do teletrabalho. Horizonte

Científico, v. 4, n. 1, 2010.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

239
2.2 O TELETRABALHO NO BRASIL

O tema teletrabalho, no Brasil, tem ganhado cada vez mais importância nos
fóruns de discussão e nas plenárias dos órgãos legisladores, motivado,
principalmente, pela crescente disseminação da prática nas empresas brasileiras.
Nesse sentido, segundo LOPES14, Goulart15 e a SOBRATT16, diversos foram
os fatos que marcaram a trajetória histórica do teletrabalho no Brasil, mencionando-
se, inicialmente, em 1997, a realização do “Seminário Home Office/ telecommuting –
Perspectivas de Negócios e de Trabalho para o 3º Milênio”, em que foi lançado o
primeiro livro sobre o assunto em português. Em 1999, houve a criação, no Conselho
Regional de Administração (CRA-SP), de grupo de excelência relacionado ao tema e
a fundação da SOBRATT, primeira instituição do gênero na América Latina.
No âmbito do serviço público, merece destaque a realização do Fórum Latino-
americano de Teletrabalho - FLAT (SP), no qual houve a primeira apresentação do
modelo de teletrabalho do Serviço Federal de Processamento de Dados – SERPRO,
em 2003, e, em 2006, a implantação, pelo SERPRO, do projeto piloto de teletrabalho
com sucesso. Também é de se registar que, em 2012, foi instituído, pela Companhia
do Metropolitano de São Paulo, um programa piloto de teletrabalho entre seus
empregados, com o intuito de criar um benchmark de teletrabalho, dada a sobrecarga
da rede de Metrô, e publicada, pelo Tribunal Superior do Trabalho – TST, a Resolução
Administrativa Nº 1499, de 1º de fevereiro de 2012, que regulamenta o teletrabalho no
TST.
No que se refere à regulamentação do teletrabalho, destaca-se a apresentação,
em 2004, do Projeto de Lei nº 3.129/2004, que versa acerca da alteração do artigo 6º
da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT17, para equiparar os efeitos jurídicos da
subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por meios
pessoais e diretos, e em 2008, do Projeto de lei nº 4.505-A, de 2008, que regulamenta

14 LOPES, Danielle Cristina Mariz. Op. Cit.


15 GOULART, J. O. Teletrabalho – alternativa de trabalho flexível. Brasília: SENAC, 2009.
16 SOBRATT. Op. Cit.
17 BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do

Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em:


06/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

240
o trabalho à distância, conceitua e disciplina as relações de trabalho e dá outras
providências. Ainda, em 2011, houve a aprovação da lei 12.551, de 15 de dezembro
de 201118, que alterou o art. 6º da CLT, com o objetivo de equiparar os efeitos jurídicos
da subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por
meios pessoais e diretos.
A esses fatos importante acrescerem aqueles relacionados à COVID-19, como
se procederá adiante, no estudo do teletrabalho no âmbito da Auditoria-Fiscal do
Trabalho no Brasil.
É possível observar que o Brasil segue a tendência mundial, observando a
disseminação do uso do teletrabalho. Em termos comparativos, tem-se que, de acordo
com pesquisa realizada pela Organização Não-Governamental Market Analysis,
citada por Mascaro19, em 2009, havia 10,6 milhões de teletrabalhadores no Brasil,
sendo que, em 2001, eram apenas 500 mil. Já segundo pesquisa recente da
SOBRATT20 denominada “Pesquisa Home Office Brasil 2018”, realizada em 315
(trezentas e quinze) empresas de diferentes segmentos e portes, em todas as regiões
do Brasil, as quais empregam mais de um milhão de pessoas, 45% das empresas
participantes praticam o home office e 15% estavam avaliando sua implantação e, das
empresas que possuem a política, 25% haviam efetuado sua implantação há menos
de um ano. Essa pesquisa indicou um crescimento de 22% das empresas que adotam
teletrabalho em relação ao ano de 2016.
No serviço público, esse crescimento também é ascendente. De acordo com
reportagem do sítio eletrônico Convergência Digital21, de 27/07/2018, intitulada “Home
office não existe para quase 70% dos servidores públicos no Brasil”, um estudo
encomendado pela Microsoft ao IBOPE Conecta teria concluído que 68% dos

18 BRASIL. Lei 12.551, de 15 de dezembro de 2011. Altera o art. 6º da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, para equiparar os efeitos
jurídicos da subordinação exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por meios
pessoais e diretos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2011/Lei/L12511.htm>. Acesso em: 06/05/2020.
19 MASCARO NASCIMENTO, Amauri. Curso de Direito do Trabalho. 28ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva,

2013, p. 1040.
20 SOBRATT. Op. Cit.
21 CONVERGÊNCIA DIGITAL. Home office não existe para quase 70% dos servidores públicos no

Brasil. Disponível em:


<https://www.convergenciadigital.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=site%2Cm
obile%252Csite&infoid=48553&sid=46#.XuNu7UVKjIU> Acesso em: 05/06/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

241
servidores públicos nunca teriam realizado home office. Quase dois anos depois, em
estudo realizado pela Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério
da Economia, para fins de monitoramento da expansão do trabalho remoto no
contexto da COVID-19, divulgado pelo mesmo sítio22, em 01/06/2020, constatou-se
que 51% dos servidores públicos federais civis estariam em home office. Em vista
disso, passa-se à análise do teletrabalho no âmbito do serviço público no Brasil.

2.3 O TELETRABALHO NO SETOR PÚBLICO

As mudanças provocadas em razão do avanço das tecnologias e do contexto


político e econômico vivenciado no Brasil ocasionaram alterações também na forma
como as instituições públicas repensam sua estrutura e seu processos, para que
estivessem adequadas às novas exigências apresentadas pela sociedade.
Segundo Bresser-Pereira23, a reforma gerencial do Estado brasileiro, iniciada
em 1995, que tinha como foco a busca pela maior eficiência da Administração Pública,
por meio da desburocratização, da redução de custos e do aumento da qualidade dos
serviços públicos, inaugurou período de mudanças na forma de administrar as
organizações públicas no país.
Frente a esses acontecimentos e seguindo a tendência das empresas privadas,
o teletrabalho surge nas organizações públicas com o intuito de reduzir os custos,
aumentar a produtividade e garantir a satisfação da sociedade com a melhoria na
prestação dos serviços.
O teletrabalho realizado pelo servidor público, segundo Pereira24, pode ser
conceituado como aquele que pode ser realizado parcial ou integralmente da casa do
servidor, ou de qualquer outro local, com suporte de ferramentas tecnológicas, entre
as quais se destacam o computador, o acesso à Internet e os hardwares e softwares
necessários para o desempenho de suas funções, e no contexto em que devem ser
priorizadas atividades que tenham como referência atribuições em que seja possível,

22 Idem. Teletrabalho atinge 51% do serviço público federal. Disponível em:


<https://www.convergenciadigital.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?UserActiveTemplate=site%2Cm
obile%252Csite&infoid=53793&sid=46#.XuNuz0VKjIU>. Acesso em: 15/05/2020.
23 BRESSER-PEREIRA, Luis. Globalização e competição: por que alguns países emergentes têm

sucesso e outros não. Elsevier Brasil, 2009.


24 PEREIRA, José Matias. A adoção do teletrabalho na Administração Pública. Brasília- DF: 2013.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

242
em função da característica do serviço, mensurar objetivamente o desempenho do
servidor e a qualidade do serviço prestado.
A primeira adoção de teletrabalho no serviço público brasileiro foi feita pelo
Serviço Federal de Processamento de Dados – SERPRO, empresa pública vinculada
ao então Ministério da Fazenda, cujo foco é a prestação de serviços em tecnologia da
informação e comunicações para o setor público, sendo considerada uma das maiores
organizações públicas mundiais nesse ramo.
A iniciativa de criar o primeiro projeto-piloto remonta ao ano de 1986, para
quatro empregados que iriam desenvolver softwares em domicílio, porém sem êxito25.
No ano de 1996, houve mais uma tentativa de implementação, novamente
descontinuada. No ano de 2006, o projeto piloto foi implementado com sucesso na
organização e, após a implementação, segundo a Superintendência de Gestão de
Pessoas do órgão, ocorreu o alcance das metas relacionadas à qualidade de vida,
conformidade profissional, produtividade e economia de recursos.
Posteriormente, outras instituições começaram a implementar o modelo, entre
as quais destaca-se rol exemplificativo: Tribunal de Contas da União, em 2009;
Receita Federal do Brasil, em 2010; Advocacia Geral da União, 2011; Tribunal
Regional do Trabalho da 23ª Região, em 2011; Tribunal Superior do Trabalho, em
2012; Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2015; Controladoria-Geral da União, em
2015; Conselho Nacional de Justiça, em 2016; Superior Tribunal de Justiça, em 2016;
Conselho Nacional do Ministério Público, em 2017; Ministério Público Da União, em
201726.
Segundo Pereira27, barreiras culturais configuram dificuldade para a adoção do
modelo de teletrabalho na Administração Pública. Para o autor: “É preciso considerar
que muitas pessoas não possuem o perfil adequado para deixar o ambiente do órgão
público, devido às dificuldades de gestão do tempo e a falta de clareza no que se
refere a seus próprios objetivos de vida”.
Nessa esteira, Silva28 argumenta que o teletrabalho no setor público brasileiro
já é uma realidade; todavia, sua implementação é permitida somente para as

25 SOBRATT. Op. Cit.


26 LOPES, Danielle Cristina Mariz. Op. Cit.
27 PEREIRA, José Matias. Op. Cit., p. 17.
28 SILVA, Aimée Mastella Sampaio. A aplicação do teletrabalho no serviço público brasileiro. 2015.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

243
atividades com maior esforço individual, bem como para as que não necessitam de
interação coletiva para sua execução. A autora destaca ainda que a adoção do
teletrabalho na Administração Pública não é uma medida fácil de ser implantada,
posto que há a necessidade de que as atividades a serem priorizadas sejam
selecionadas, distribuídas e acompanhadas de forma consistente.
Quanto à regulamentação jurídica, apesar de a regulamentação do teletrabalho
para os trabalhadores celetistas ter ocorrido no Brasil em meados de 2017, por meio
da publicação da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, conhecida como “Lei da
Reforma Trabalhista”, as organizações públicas ainda não contam com uma
legislação específica. Em vista disso, o que dá esteio a essa prática nas organizações
é a promulgação de normativos próprios (portarias, atos e resoluções), tais como:
Portaria nº 139/2009, do Tribunal de Contas da União – TCU; Resolução
Administrativa nº 1499/2012, do Tribunal Superior do Trabalho – TST; Resolução nº
227/2016, do Conselho Nacional de Justiça – CNJ; Resolução nº 568/2016, que
dispõe sobre a realização de teletrabalho, a título de projeto-piloto, no Supremo
Tribunal Federal – STF e Resolução de número nº 157/2017, do Conselho Nacional
do Ministério Público - CNMP29.
Em vista do exposto referente ao teletrabalho no âmbito do serviço público,
passa-se então ao estudo dessa forma de prestação laboral no âmbito da carreira de
Auditoria-Fiscal do Trabalho, com vistas ao desenvolvimento de estudo mais
minudenciado das especificidades do teletrabalho, em comparação à realização do
trabalho presencial, antes e após a pandemia. A escolha da Auditoria-Fiscal do
Trabalho como carreira deu-se em razão da possibilidade de estruturação de análise
comparativa, já que uma menor parte de seus integrantes já realizavam, antes da
pandemia de COVID-19, o teletrabalho, em concomitância à maioria dos membros,
que desempenhavam o labor em sua forma presencial, e, após a pandemia, as duas
formas de trabalho continuaram a coexistir, predominando, nesse caso, o teletrabalho.

29 LOPES, Danielle Cristina Mariz. Op. Cit.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

244
2.4 O TELETRABALHO NA AUDITORIA FISCAL DO TRABALHO

A Inspeção do Trabalho no Brasil é regulamentada por meio do Decreto


nº 4.552/200230, que aprovou o denominado Regulamento da Inspeção do Trabalho –
RIT. Segundo dados obtidos a partir do Sistema Federal de Inspeção Web, referentes
a maio de 2020, a carreira é composta por 2.088 (dois mil e oitenta e oito) Auditores-
Fiscais do Trabalho na ativa.
De acordo com o RIT, aos Auditores-Fiscais compete a realização de inspeções
nos estabelecimentos e questões relacionadas ao seu fiel cumprimento, inclusive a
orientação e aconselhamento técnico de pessoas sujeitas à inspeção do trabalho
(arts. 18 e 23), bem como das atividades de gestão voltadas à efetivação das
fiscalizações, inclusive aquelas atinentes à estruturação de atividades de capacitação
e treinamento (arts. 7º, 8º e 33) e de questões afetas ao contencioso trabalhista (arts.
7º e 18º, inciso XIX). Também compete aos integrantes do Sistema Federal de
Inspeção, dentre os quais os Auditores-Fiscais do Trabalho, o desempenho de
atividades técnicas relacionadas à interface internacional da Inspeção (art. 7º, §2º).
Além disso, os Auditores-Fiscais do Trabalho, no âmbito do Ministério da
Economia, ainda podem desempenhar atividades correcionais, notadamente em
razão do disposto no artigo 143, da Lei 8.112/199031.
Para o desempenho de todas essas atribuições, as unidades de lotação e
exercício dos Auditores-Fiscais do Trabalho são variadas. Dentro da estrutura do
Ministério da Economia, é possível dividir, inicialmente, a atuação dos Auditores-
Fiscais do Trabalho segundo a Administração Central e as Unidades
Descentralizadas.
Na Administração Central, os Auditores-Fiscais do Trabalho podem se
encontrar vinculados desde à Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – que
corresponde à maioria dos casos referentes à Administração Central – quanto a outros

30 BRASIL. Decreto nº 4.552, de 27 de dezembro de 2002. Aprova o Regulamento da Inspeção do


Trabalho. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4552.htm>. Acesso
em: 06/05/2020.
31 BRASIL. Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores

públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm>. Acesso em: 26/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

245
Órgãos, como à Secretaria de Trabalho e à Secretaria Executiva. As atribuições
desempenhadas nesses casos variam entre aquelas relacionadas à gestão (a
exemplo da definição de diretrizes nacionais de fiscalização e da coordenação e
desenvolvimento de projetos nacionais), atividades de apoio à Inspeção (como
aquelas relacionadas à promoção de capacitação e treinamento, com destaque à
Escola Nacional de Inspeção do Trabalho, e aquelas relacionadas aos sistemas
informatizados da Inspeção do Trabalho), o contencioso administrativo (notadamente
nas atividades relacionadas à análise e decisão, em segunda instância, sobre
recursos referentes a autos de infração trabalhistas e notificações de débito do Fundo
de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS), participação de grupos de elaboração e
alteração de normas regulamentadoras, atividades de gestão e apoio à gestão
relacionadas a outras áreas do Ministério da Economia, com a ocupação de cargos
em comissão e funções de confiança, e, ainda, o desempenho de atividades
correcionais, no âmbito da Secretaria Executiva do Ministério da Economia.
No âmbito das Unidades Descentralizadas, que são as Superintendências,
Gerências e Agências Regionais do Trabalho, predomina a realização de atividades
eminentemente de inspeção, que podem ter diversos enfoques, como a segurança e
saúde no trabalho, o combate a fraudes no registro de empregados, o combate ao
trabalho infantil e ao trabalho análogo ao de escravo, o recolhimento do FGTS, a
inserção de pessoas com deficiência e de aprendizes no mercado de trabalho, dentre
diversos outros. Além disso, as atividades voltadas à fiscalização nas Unidades
Descentralizadas podem também observar enfoques setoriais, como a fiscalização do
trabalho portuário, da construção civil e do trabalho em frigoríficos, para citar alguns
exemplos. Os Auditores-Fiscais do Trabalho das Unidades Descentralizadas também
podem desempenhar atividades relacionadas à gestão, seja como Chefes de Setor
ou Seção, como também na Coordenação de Projetos. Finalmente, também é
observada a realização, por Auditores-Fiscais do Trabalho, de atividade de análise de
processos administrativos, em sede de primeira instância do contencioso
administrativo trabalhista.
Dentre as atividades elencadas, aquelas que mais comumente verificam a
realização do teletrabalho, independentemente do contexto da COVID-19, são: a
análise de processos de primeira e segunda instâncias do contencioso administrativo

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

246
trabalhista; a coordenação de projetos nas Unidades Descentralizadas; a realização
de fiscalizações indiretas, normalmente relacionadas à fiscalização do cumprimento
das cotas legais de inserção de pessoas com deficiência e de aprendizes, bem como
do recolhimento do FGTS; a participação de grupos de normas regulamentadoras; as
atividades relacionadas ao desenvolvimento de sistemas informatizados; e a atividade
correcional.
Destaca-se que, em muitos casos e fora do contexto da COVID-19, a realização
do trabalho sob a forma remota não observa a integralidade da jornada do Auditor-
Fiscal do Trabalho, podendo se alternar com o trabalho presencial em determinadas
circunstâncias, de forma a compor sistema híbrido de teletrabalho, aos moldes do
teletrabalho misto apresentado por Rosenfield e Alves32.
Quanto ao esteio jurídico da realização do teletrabalho no âmbito da Auditoria-
Fiscal do Trabalho, verifica-se, em relação aos casos mencionados, que ora o
teletrabalho se deu em razão de instrumentos normativos publicados, ora pela própria
circunstância do desempenho da atividade, sem que houvesse regulamentação
expressa.
Preambularmente, tem-se que o RIT prevê, em seu artigo 30, caput e §1º33, a
possibilidade de realização de procedimentos de fiscalização indireta, entendida como
aquela realizada a partir de sistema de notificação para apresentação de documentos
nas unidades descentralizadas do atual Ministério da Economia.
A fiscalização indireta, assim, é forma de atuação fiscal que possibilita a
realização do teletrabalho, seja no todo, seja em parte da ação fiscal, por permitir que
esta seja conduzida por meio de sistemas de notificação muitas vezes eletrônicos,
com documentos fiscais encaminhados por sistemas de entrega postal e/ou remetidos
por e-mail ou outro sistema informatizado. Com isso, parte ou a integralidade do

32 ROSENFIELD, Cinara L.; ALVES, Daniela Alves de. Autonomia e trabalho informacional: o
teletrabalho. Dados, v. 54, n. 1, p. 207-233, 2011.
33 Art. 30. Poderão ser estabelecidos procedimentos de fiscalização indireta, mista, ou outras que

venham a ser definidas em instruções expedidas pela autoridade nacional competente em matéria de
inspeção do trabalho.
§ 1º Considera-se fiscalização indireta aquela realizada por meio de sistema de notificações para
apresentação de documentos nas unidades descentralizadas do Ministério do Trabalho e Emprego.
(...) (BRASIL, Regulamento da Inspeção do Trabalho, 2002).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

247
trabalho a ser desenvolvido pelo Auditor-Fiscal passa a poder ser realizada à distância
das sedes administrativas do Ministério da Economia.
O RIT, em seu artigo 25, também prevê que as notificações de débitos e outras
decorrentes da ação fiscal podem ser lavradas no local que melhor oferecer
condições, a critério do Auditor-Fiscal do Trabalho, permitindo, dessa forma, que
referidas notificações não necessariamente tenham que ser lavradas nas unidades
administrativas do Ministério da Economia.
Como exemplo mais específico do caso, tem-se que a Instrução Normativa
nº 14634, de 25/07/2018, da Secretaria de Inspeção do Trabalho, que dispõe sobre a
fiscalização do cumprimento das normas relativas à aprendizagem profissional,
estabelece, em seu artigo 30, a priorização da fiscalização na modalidade indireta,
com encaminhamento de notificação por meio de Aviso de Recebimento – AR ou outro
instrumento que assegure a comprovação de recebimento. No §4º do mencionado
artigo 30, da IN nº 146/2018, é possibilitado ainda ao Coordenador do Projeto que
estabeleça que a apresentação de documentos pela empresa ao Auditor-Fiscal do
Trabalho notificante se dê na forma eletrônica, seja por e-mail ou sistema próprio, de
modo a viabilizar a atuação do Auditor-Fiscal muitas vezes integralmente à distância.
Também a Instrução Normativa nº 9835, de 16/08/2012, da Secretaria de
Inspeção do Trabalho, que dispõe sobre procedimentos de fiscalização do
cumprimento, por parte dos empregadores, das normas destinadas à inclusão no
trabalho das pessoas com deficiência e beneficiários da Previdência Social
reabilitados, prevê a possibilidade de que esse tipo de fiscalização seja feito na
modalidade indireta, a qual possibilita a realização do teletrabalho, ainda que em
partes da atuação fiscal.
Outro exemplo que pode ilustrar a existência de dispositivo formal que dispõe
sobre o teletrabalho no âmbito da Auditoria-Fiscal do Trabalho é o Memorando

34 BRASIL. Instrução Normativa nº 146, de 25 de julho de 2018. Secretaria de Inspeção do Trabalho.


Disponível em: <http://www.in.gov.br/materia/-
/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/34730621/do1-2018-07-31-instrucao-normativa-n-146-de-
25-de-julho-de-2018-34730599>. Acesso em: 26/05/2020.
35 BRASIL. Instrução Normativa nº 98, de 16 de agosto de 2012. Secretaria de Inspeção do Trabalho.

Disponível em: <http://www.normaslegais.com.br/legislacao/instrucao-normativa-98-2012.htm>.


Acesso em: 26/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

248
Circular nº 75/2016/SIT/MTb36, de 25 de novembro de 2016, da Secretaria de
Inspeção do Trabalho, que publicou o Processo Seletivo Simplificado para Analistas
de Processo de Segunda Instância da Coordenação Geral de Recursos - CGR, em
que, no artigo 1º do Edital, é estabelecida a seleção de Auditores-Fiscais do Trabalho
para trabalharem remotamente para a CGR como analistas de segunda instância de
auto de infração e notificações de débito.
Todos esses exemplos fazem referência a um contexto prévio à ocorrência da
pandemia de COVID-19. Importante, pois, apresentar a série de disposições
normativas introduzidas em razão da pandemia, o que se faz a seguir.
Para contextualizar, importante registrar que, em 31 de janeiro de 2020, a
Organização Mundial da Saúde, após reunião realizada em Genebra, Suíça, declarou
estado de emergência global em razão da disseminação do coronavírus37.
Em 4 de fevereiro de 2020, em Edição Extra do Diário Oficial da União, foram
publicados dois instrumentos de importância à situação da COVID-19 no Brasil. O
primeiro deles é o Despacho do Presidente da República, que continha a Mensagem
nº 2838, por meio da qual se encaminhou ao Congresso Nacional texto do projeto de
lei que dispunha sobre as medidas sanitárias para enfrentamento da emergência de
saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. Naquela data,
foi também publicada a Portaria nº 18839, de 3 de fevereiro de 2020, do Ministério da
Saúde, que declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN)
em decorrência da Infecção Humana pelo novo coronavírus (2019-nCoV).
Adiante, em 13 de março de 2020, foi publicado o Ofício Circular SEI
nº 825/2020/ME, da Secretaria Executiva do Ministério da Economia, que dispensou
do controle de ponto e autorizou o trabalho remoto por 30 (trinta) dias a servidores,
empregados e estagiários com doenças crônicas ou cujos familiares que habitassem

36 BRASIL. Memorando Circular nº 75/2016/SIT/MTb. Secretaria de Inspeção do Trabalho. Fonte:


Documento físico disponível na Subsecretaria de Inspeção do Trabalho.
37 AGÊNCIA BRASIL EBC. OMS declara estado de emergência global em razão do coronavírus.

Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-01/oms-declara-estado-de-


emergencia-global-em-razao-do-coronavirus>. Acesso em: 06/05/2020.
38 BRASIL. Despacho do Presidente da República – Mensagem nº 28, de 04 de fevereiro de 2020.

Disponível em: < http://www.in.gov.br/web/dou/-/despacho-do-presidente-da-republica-241408389>.


Acesso em: 01/06/2020.
39 BRASIL. Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Ministério da Saúde. Disponível em:

<http://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388>. Acesso em:


01/06/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

249
na mesma residência tivessem doenças crônicas, além de gestantes e lactantes e
daqueles com idade superior a 60 anos. À época, foi estabelecido o condicionante de
que a dispensa do ponto e o trabalho remoto poderiam ser autorizados desde que não
houvesse prejuízos às atividades desenvolvidas no setor e que fosse resguardado o
quantitativo mínimo de servidores para garantir a manutenção do atendimento
presencial e a preservação do funcionamento dos serviços considerados essenciais
ou estratégicos.
Outra medida consolidada por meio do Ofício Circular SEI nº 825/2020/ME40 e
que propiciou condições favoráveis ao teletrabalho, no contexto da COVID-19, foi a
restrição de reuniões presenciais e fomento de que fossem realizadas por meio de
teleconferência ou videoconferência.
O Ofício Circular SEI nº 825/2020/ME acrescentou ainda que, em razão da
edição do Decreto Distrital nº 40.509, de 11 de março de 2020, também seria possível
a dispensa do controle de ponto e a realização do trabalho remoto aos servidores,
empregados e estagiários que fossem responsáveis por crianças que não possuíssem
idade suficiente para ficar sozinhas em casa ou que não tivessem a possibilidade de
deixá-las em outro ambiente de segurança ou aos cuidados de um terceiro, enquanto
durasse a suspensão das atividades educacionais nas redes de ensino pública e
privada. Considerando que a medida sob análise havia sido adotada no Distrito
Federal, a Secretaria Executiva do Ministério da Economia, por meio do instrumento
sob análise, autorizou que a medida fosse adotada nas demais unidades do Ministério
no caso de os governos locais promoverem medidas semelhantes àquelas realizadas
pelo Governo do Distrito Federal.
No dia 13 de março, foi publicada a Instrução Normativa nº 1941, de 12 de março
de 2020, da Secretaria de Gestão e Desempenho de Pessoal do Ministério da
Economia – SGDP/ME, que estabeleceu orientações aos órgãos e entidades do
Sistema de Pessoal Civil da Administração Pública Federal - SIPEC quanto às

40 BRASIL. Ofício Circular SEI nº 825/2020/ME, de 13 de março de 2020. Secretaria Executiva do


Ministério da Economia. Disponível em: < http://www.previc.gov.br/regulacao/normas/oficio-
circular/2020/sei_19962-100067_2020_55-pdf-pdf.pdf/view >. Acesso em: 15 de abril de 2020.
41 BRASIL. Instrução Normativa nº 19, de 12 de março de 2020. Secretaria de Gestão e

Desenvolvimento de Pessoal do Ministério da Economia. Disponível em:


<http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-19-de-12-de-marco-de-2020-247802008>.
Acesso em: 26/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

250
medidas de proteção para enfrentamento da COVID-19. Àquela época, ainda em uma
fase inicial dos efeitos da pandemia no Brasil, a SIPEC dispôs, no artigo 4º da IN
19/2020, que os servidores e empregados públicos que estivessem em retorno de
viagem internacional, a serviço ou privadas, deveriam executar suas atividades de
forma remota por quatorze dias, contados da data de retorno ao país.
Ainda no dia 13 de março, foi publicada, em edição extra do Diário Oficial da
União, a Instrução Normativa nº 2042, da SGDP/ME, que alterou para sete dias o prazo
para o trabalho remoto de servidores que houvessem retornado de viagens
internacionais.
No dia seguinte, em 14 de março de 2020, foi então publicado o Ofício Circular
SEI nº 827/2020/ME43, da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho – SIT, sobre
“Recomendações COVID-19”. Por meio desse instrumento, foram recomendadas às
chefias de fiscalização a suspensão de fiscalizações em portos, aeroportos, terminais
rodoviários e estabelecimentos de saúde e a emissão de ordens de serviço referentes
a outras atividades, com privilégio às fiscalizações indiretas, inclusive as eletrônicas.
Ainda, a SIT, por meio do Ofício Circular SEI nº 827/2020/ME, autorizou a
substituição das atividades de fiscalização por capacitações realizadas na modalidade
de ensino à distância – EAD pela Escola Nacional de Inspeção do Trabalho – ENIT, e
desde que houvesse a anuência da chefia imediata, aos Auditores-Fiscais do Trabalho
que se enquadrassem nos requisitos já previstos pelo Ofício Circular SEI nº
825/2020/ME.
Em 16 de março de 2020, foi publicada a Instrução Normativa nº 2144, da
SGDP/ME, que incorporou às questões previstas pelo Ofício Circular SEI nº
825/2020/ME novos aspectos, como o dever de executar remotamente o trabalho os
servidores e empregados públicos com imunodeficiência ou com doenças crônicas ou

42 BRASIL. Instrução Normativa nº 20, de 13 de março de 2020. Disponível em: <


http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-20-de-13-de-marco-de-2020-247887393>.
Acesso em: 26/05/2020.
43 BRASIL. Ofício Circular SEI nº 827/2020/ME, de 14 de março de 2020. Subsecretaria de Inspeção

do Trabalho. Disponível em: <


https://enit.trabalho.gov.br/ead/pluginfile.php/13472/mod_resource/content/0/Ofi%CC%81cio%20Circu
lar%20SEI%20n%C2%BA%20827_2020.pdf>. Acesso em: 15 de abril de 2020.
44 BRASIL. Instrução Normativa nº 21, de 16 de março de 2020. Disponível em: <

http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-n-21-de-16-de-marco-de-2020-248328867>.
Acesso em: 26/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

251
graves e os responsáveis pelo cuidado de uma ou mais pessoas com suspeita ou
confirmação de diagnóstico de infecção por COVID-19, nos casos de coabitação.
Além disso, a IN 21/2020, da SGDP, também dispôs, em seu artigo 6º, inciso I,
alínea “b”, no que se refere às “Medidas Gerais de Prevenção, Cautela e Redução da
Transmissibilidade”, a possibilidade de o Ministro de Estado ou autoridade máxima de
entidade adotar outras medidas, elencando como opção a realização do trabalho
remoto, relativizando eventuais normas internas dos órgãos ou entidades e reiterou
os termos do Ofício Circular SEI nº 825/2020/ME acerca da realização do trabalho
remoto por servidores ou empregados públicos que possuíssem filho em idade escolar
ou inferior.
Em seguida, no dia 17 de março de 2020, foi publicado o Ofício Circular SEI nº
882/2020/ME45, da Diretoria de Gestão de Pessoas do Ministério da Economia, que
conteve “Orientações Complementares ao Ofício SEI nº 825/2020/ME-COVID-19”.
Nesse instrumento, reprisaram-se as hipóteses de trabalho remoto já previstas pela
IN 19/2020, com alterações incorporadas em razão do Ofício Circular SEI nº
825/2020/ME.
Também em 17 de março de 2020, em substituição ao Ofício Circular SEI nº
827/2020/ME, foi publicado o Ofício Circular SEI nº 883/2020/ME46, da SIT, sobre
“Recomendações COVID-19”, com medidas de prevenção a serem observadas pelas
unidades regionais que compõem o Sistema Federal de Inspeção.
Nessa esteira, a SIT determinou que os Auditores-Fiscais do Trabalho que se
enquadrassem nas hipóteses previstas pela IN 19/2020 deveriam (observa-se que o
Ofício Circular SEI nº 827/2020/ME apresentava apenas recomendação), dentre
outros aspectos, executar suas atividades de forma remota, enquanto durasse o
estado de emergência de saúde pública da COVID-19.

45 BRASIL. Ofício Circular SEI nº 882/2020/ME, de 17 de março de 2020. Diretoria de Gestão de


Pessoas do Ministério da Economia. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/ead/pluginfile.php/13473/mod_resource/content/0/Ofi%CC%81cio%20Circu
lar%20SEI%20n%C2%BA%20882_2020.pdf>. Acesso em: 15 de abril de 2020.
46 BRASIL. Ofício Circular SEI nº 883/2020/ME, de 17 de março de 2020. Subsecretaria de Inspeção

do Trabalho. Disponível em: <


https://enit.trabalho.gov.br/ead/pluginfile.php/13459/mod_resource/content/0/Ofi%CC%81cio%20Circu
lar%20883_2020.pdf>. Acesso em: 15 de abril de 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

252
O Ofício Circular SEI nº 883/2020/ME, da SIT, inovou ainda ao prever, em
relação aos Auditores-Fiscais do Trabalho que não se enquadrassem nas hipóteses
listadas no art. 4º-B da IN nº 19, com redação dada pela IN nº 21, que deveriam
observar restrições relativas a atendimentos presenciais, viagens a serviço, plantões
fiscais, reuniões e eventos estabelecidas pela chefia e, ainda, também realizar as
capacitações na modalidade EAD oferecidas pela ENIT.
Em 18 de março de 2020, foi encaminhada pelo Presidente da República ao
Congresso Nacional, por meio da Mensagem nº 9347, solicitação para o
reconhecimento de estado de calamidade pública em decorrência da pandemia da
COVID-19 declarada pela Organização Mundial da Saúde. Em razão disso, no dia 20
de março de 2020, foi então publicado o Decreto Legislativo nº 0648, do Congresso
Nacional, que reconheceu, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4
de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até o dia
31 de dezembro de 2020.
Em relação aos aspectos laborais no novo contexto pátrio relacionado à
COVID-19, foi publicada, em 22 de março de 2020, a Medida Provisória nº 92749, que
dispôs sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade
pública e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da
COVID-19. Em relação ao teletrabalho – e, veja-se, nesse caso aplicado aos
trabalhadores celetistas, e não aos servidores públicos – foi prevista a possibilidade
de utilização dessa forma de prestação laboral como alternativa para a preservação
do emprego, tendo-se regulamentado alguns aspectos de sua realização (artigos 3º,
4º e 5º, da MP 927/2020).
Para a Auditoria-Fiscal do Trabalho, na perspectiva da atuação funcional, uma
inovação relevante da MP 927/2020 foi a trazida pelo seu artigo 31, que previu que a
atuação da Inspeção do Trabalho, no período de cento e oitenta dias após a

47 BRASIL. Despacho do Presidente da República – Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.


Disponível em: <http://www.in.gov.br/web/dou/-/despacho-do-presidente-da-republica-248641738>.
Acesso em: 01/06/2020.
48 BRASIL. Decreto Legislativo Nº 6, de 20 de março de 2020. Congresso Nacional. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-
2020.htm#:~:text=DECRETO%20LEGISLATIVO%20N%C2%BA%206%2C%20DE,18%20de%20mar
%C3%A7o%20de%202020.>. Acesso em: 01/06/2020.
49 BRASIL. Medida Provisória Nº 927, de 22 de março de 2020. Disponível em: <

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm>. Acesso em: 13/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

253
publicação da Medida Provisória, deveria atuar de maneira orientadora, à exceção
dos casos especificados no instrumento (falta de registro verificada em razão de
denúncias, situações de grave e iminente risco, acidente de trabalho fatal, trabalho
em condições análogas à de escravo e trabalho infantil). Ainda que essa modificação
da atuação fiscal não esteja intimamente relacionada ao exercício do teletrabalho por
integrantes da carreira, significou alteração nos procedimentos de trabalho daqueles
que já se encaminhavam à ampla utilização do trabalho remoto para exercício do seu
labor.
Nesse sentido, e tendo por base a MP 927/2020, em 23 de março, foi publicado
o Ofício Circular SEI nº 975/2020/ME50, da SIT, com novas recomendações no âmbito
da COVID-19, inclusive a determinação de que fossem realizadas fiscalizações diretas
somente nos casos de denúncias de situações urgentes, sendo que só deveriam ser
emitidas ordens de serviço nos casos relacionados no artigo 31, da citada Medida
Provisória.
Ainda por meio do Ofício Circular SEI nº 975/2020/ME, a SIT estabeleceu que
as fiscalizações diretas anteriormente mencionadas não deveriam ser designadas a
Auditores-Fiscais do Trabalho que se enquadrassem em grupo de risco, os quais
deveriam realizar atividades de orientação de forma remota, quando houvesse
designação pela chefia ou pela SIT, a exemplos de plantões fiscais telefônicos
realizados em diversas Unidades Descentralizadas do Ministério da Economia, além
de outras atividades compatíveis com a situação. Permaneceu a orientação para que
referido grupo de Auditores-Fiscais realizasse capacitações na modalidade EAD.
Em meio a esse contexto, foi publicado o Decreto nº 10.292, de 25 de março
de 202051, que alterou o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, o qual
regulamentou a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços
públicos e as atividades essenciais. Com a publicação do Decreto nº 10.292/2020, a

50 BRASIL. Ofício Circular SEI nº 975/2020/ME, de 23 de março de 2020. Subsecretaria de Inspeção


do Trabalho. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/ead/pluginfile.php/13460/mod_resource/content/0/Ofi%CC%81cio%20Circu
lar%20975_2020.pdf>. Acesso em: 15 de abril de 2020.
51 BRASIL. Decreto nº 10.292, de 25 de março de 2020. Disponível em: <

http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.292-de-25-de-marco-de-2020-249807965>. Acesso
em: 06/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

254
fiscalização do trabalho passou a ser considerada atividade essencial (artigo 3º, inciso
XXXVI, do Decreto nº 10.292/2020).
Em 30 de março de 2020, a Diretoria de Gestão Corporativa do Ministério da
Economia publicou o Ofício Circular SEI nº 1085/2020/ME52, com “Orientações
Complementares ao Ofício Circular SEI nº 882/2020/ME”. Em referido instrumento,
além de serem reprisadas as hipóteses de trabalho remoto trazidas pelo Ofício
Circular SEI nº 882/2020/ME, inovou ao estabelecer que servidores que
apresentassem sinais e sintomas gripais deveria executar suas atividades
remotamente enquanto perdurasse essa condição.
A SIT, por meio do Ofício Circular SEI nº 1102/2020/ME53, também de 30 de
março de 2020, passou a incluir do rol de fiscalizações que deveriam ser conduzidas
na modalidade direta “as fiscalizações nas empresas em que possa ocorrer risco de
exposição de trabalhadores à COVID-19”. De acordo com referido instrumento, as
fiscalizações diretas não poderiam ser executadas por Auditores-Fiscais do Trabalho,
segundo restrições previstas pelos instrumentos previamente elencados.
Em 29 de abril de 2020, em sessão do plenário do Supremo Tribunal Federal,
foi suspenso o efeito do artigo 31, da Medida Provisória 927/2020. Em vista disso e
da inclusão da fiscalização do trabalho no rol de atividades essenciais, de acordo com
o previamente mencionado Decreto nº 10.292, de 25 de março de 2020, foi então
publicado, no dia 30 de abril de 2020, o Ofício Circular SEI nº 1460/2020/ME54, da SIT,
com “Instruções relativas às atividades de fiscalização nas unidades descentralizadas,
durante a pandemia causada pelo coronavírus”.
O Ofício Circular SEI nº 1460/2020/ME tornou sem efeito os Ofícios Circulares
883/2020, 975/2020, 1102/2020 e 1153/ 2020. Além disso, classificou as ações fiscais

52 BRASIL. Ofício Circular SEI nº 1085/2020/ME, de 30 de março de 2020. Diretoria de Gestão


Corporativa do Ministério da Economia. Disponível em: <
https://enit.trabalho.gov.br/ead/pluginfile.php/13475/mod_resource/content/0/Ofi%CC%81cio%20Circu
lar%20SEI%20n%C2%BA%201085_2020.pdf>. Acesso em15 de abril de 2020.
53 BRASIL. Ofício Circular SEI nº 1102/2020/ME, de 30 de março de 2020. Subsecretaria de Inspeção

do Trabalho. Disponível em: <


https://enit.trabalho.gov.br/ead/pluginfile.php/13458/mod_resource/content/0/Ofi%CC%81cio%20Circu
lar%201102_2020.pdf>. Acesso em: 15 de abril de 2020.
54 BRASIL. Ofício Circular SEI nº 1460/2020/ME. Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, de 30 de

abril de 2020. Disponível em: <


https://enit.trabalho.gov.br/ead/pluginfile.php/13510/mod_resource/content/1/SEI_ME%20-
%207844665%20-%20Ofi%CC%81cio%20Circular%201460.pdf>. Disponível em: <>. Acesso em: 01
de maio de 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

255
segundo aquelas urgentes (risco grave à segurança e à saúde, falta de pagamento de
salário, indício de trabalho análogo ao de escravo, indícios de trabalho infantil) e
prioritárias (empresas em que possa ocorrer risco de exposição dos trabalhadores à
COVID-19, verificação das situações previstas pela Medida Provisória nº 936/202055,
retenção de documentos rescisórios, ausência de registro e informação deste nos
sistemas eletrônicos, análise de acidente fatal e lavratura de notificação de débito do
FGTS com risco de prescrição).
Ainda, o Ofício Circular SEI nº 1460/2020/ME também estabeleceu que a
vedação da realização de fiscalizações diretas se daria em relação aos servidores
com imunodeficiência ou com doenças preexistentes crônicas ou graves, às
servidoras gestantes ou lactantes e àqueles que possuíssem filhos em idade escolar
ou inferior e que necessitassem da assistência de um dos pais, enquanto vigorasse
norma local que suspendesse as atividades escolares ou em creche. Observe-se,
dessa forma, que foram retirados do rol que vinha sendo previamente consolidado os
trabalhadores acima de 60 anos, os servidores que coabitassem e fossem
responsáveis pelo cuidado de uma ou mais pessoas com suspeita ou confirmação de
diagnóstico de infecção por COVID-19, aqueles que coabitassem com pessoa em
grupo de risco, bem como aqueles com sintomas de gripe.
Com a publicação do Ofício Circular SEI nº 1460/2020/ME, da SIT,
estabeleceu-se a preferência pela realização de ações fiscais na modalidade direta,
sendo que as designações deveriam observar ordem de prioridade: primeiramente, as
fiscalizações urgentes; em seguida, as fiscalizações prioritárias; na sequência, as
atividades de forma remota, com privilégio àquelas voltadas à prevenção da
propagação da COVID-19 e à vulnerabilidade de renda do trabalhador em razão do
descumprimento de legislação durante a pandemia; e por fim, a realização de
capacitações da modalidade EAD oferecidas ou aprovadas pela ENIT, além de outras
determinações a critério da chefia imediata.
Por meio do Ofício Circular SEI nº 1460/2020/ME, da SIT, foi ainda restaurada
a possibilidade de realização de viagens a serviço para a realização de fiscalizações
diretas.

55 BRASIL. Medida Provisória Nº 936, de 1º de abril de 2020. Disponível em: <


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv936.htm>. Acesso em: 13/05/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

256
Como se verifica, no dia 30 de abril de 2020, com o Ofício Circular SEI nº
1460/2020/ME, da SIT, houve inversão da tendência antes observada, tendo-se
deixado de priorizar a atuação remota para privilegiar a atuação direta dos integrantes
da Auditoria-Fiscal do Trabalho.
Com esse processo de adaptação, complexo e ao mesmo tempo urgente, faz-
se necessário um olhar para a figura do Auditor-Fiscal do Trabalho, na tentativa de
entender quais os efeitos positivos e negativos da adoção do teletrabalho, com vistas
a não apenas identificar questões-chave, mas colaborar com a proposição de medidas
futuras, que gerem melhoria na execução das atividades ao mesmo tempo em que
melhoram a qualidade de vida dos servidores.

3 METODOLOGIA DA PESQUISA

A seguir serão descritos os procedimentos metodológicos adotados, iniciando


com a composição da amostra, posteriormente apresentando os instrumentos
utilizados e por último os procedimentos de pesquisa executados.
A amostra foi composta por 74 (setenta e quatro) Auditores-Fiscais do Trabalho
com média de idade de 44,5 anos (DP=10,1) e tempo médio de serviço de 15,4 anos
(DP=9,2), sendo 61% do sexo feminino. Na amostra, 62% se encontravam em regime
de teletrabalho em decorrência da pandemia da COVID-19, enquanto 38% já
trabalhavam nessa modalidade anteriormente.
Os principais instrumentos de pesquisa utilizados para a coleta de dados foram
a Escala de Conflito Trabalho-Família56, que investiga os efeitos da carga de trabalho
nas relações familiares, e a Escala de Satisfação no Trabalho57, que é um questionário
amplamente utilizado em pesquisas nas áreas de Psicologia Organizacional e Gestão
para avaliar o nível geral de satisfação que os indivíduos têm em relação ao seu
trabalho. Ambas as escalas têm seu uso científico consagrado e são adotadas em
pesquisas no Brasil e no mundo.

56 AGUIAR, Carolina Villa Nova; BASTOS, Antonio Virgilio Bittencourt. Tradução, adaptação e
evidências de validade para a medida de conflito trabalho-família. Avaliação Psicológica:
Interamerican Journal of Psychological Assessment, v. 12, n. 2, p. 203-212, 2013.
57 MARTINS, Maria do Carmo Fernandes; SANTOS, Gisele Emídio. Adaptação e validação de

construto da Escala de Satisfação no Trabalho. Psico-USF, v. 11, n. 2, p. 195-205, 2006.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

257
Foram incluídas ainda questões sobre as percepções dos Auditores-Fiscais do
Trabalho sobre o regime de teletrabalho, baseadas no trabalho de Moreno58, além de
itens sobre dados demográficos e de caracterização da amostra.
Quanto aos procedimentos de pesquisa, um link da plataforma Google Forms
foi disponibilizado e distribuído via redes sociais (Whatsapp e Instagram) e por e-mail
para Auditores-Fiscais do Trabalho de todo o Brasil por meio de grupos
especificamente formados por esses servidores ou mensagens diretamente
encaminhadas aos servidores. No link, constavam todos os instrumentos de pesquisa
supracitados e os dados foram analisados a partir dos resultados obtidos por essa
plataforma. Essas análises encontram-se na seção seguinte.

4 ANÁLISE DOS RESULTADOS

Os resultados mostraram que 62% da amostra passou a executar o teletrabalho


recentemente em razão da pandemia da COVID-19 e 57% relatam aumento de carga
horária decorrente dessa mudança. Nesse sentido, a adaptação repentina também
ficou evidenciada pelo fato de que 35% da amostra relatou estar trabalhando em um
ambiente de trabalho improvisado.
Quando perguntados sobre produtividade, 69% afirmaram que estão se
sentindo mais produtivos (com 20% não vendo diferenças na produtividade). Já ao
serem questionados sobre como se sentiam por estarem em trabalho remoto, 54%
afirmaram que se sentem melhor nessa modalidade, com apenas 14% relatando piora
nesse sentido.
A Tabela 1 mostra os resultados da pergunta sobre as vantagens do
teletrabalho. Para a resposta da pergunta, os Auditores-Fiscais do Trabalho foram
solicitados a indicar três dos fatores inicialmente propostos que caracterizariam as
principais vantagens do teletrabalho, além de poderem acrescer aspectos não
elencados no rol proposto.

Tabela 10 - Quais as principais vantagens que você identifica no teletrabalho?


Quais as principais vantagens que você identifica no teletrabalho?

58 MORENO, Eglay Lopes. Op. Cit.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

258
Maior qualidade de vida 81%
Economia financeira 35%
Mais produtividade 34%
Mais autonomia 28%
Mais motivação e satisfação 23%
Menos ociosidade 16%
Menos interrupções e menos reuniões inúteis 4%
Tranquilidade para trabalhar e estudar os temas relacionados 4%
Uso de equipamentos próprios 4%
Flexibilidade de horário e de local de trabalho. 3%

Na tabela 1, fica evidenciada a importância da qualidade de vida como principal


vantagem, o que está em alinhamento com a literatura científica na área59. Economia
financeira também se mostrou como fator preponderante entre as vantagens
apontadas na pesquisa. Produtividade e autonomia vêm em seguida, indicando que
as vantagens dessa modalidade de trabalho não apenas se relacionam a aspectos
individuais, mas também no âmbito pragmático da execução do trabalho.
Ainda em relação às vantagens, nas questões abertas, a flexibilidade de
horários foi bastante citada, com respondentes defendendo sua implementação no
regime de trabalho remoto.
A Tabela 2 mostra as respostas sobre as desvantagens do teletrabalho na visão
dos Auditores-Fiscais do Trabalho. Para a resposta da pergunta, os Auditores-Fiscais
do Trabalho foram solicitados a indicar três dos fatores inicialmente propostos que
caracterizariam as principais desvantagens do teletrabalho, além de poderem
acrescer aspectos não elencados no rol proposto.

Tabela 11 - Quais as principais desvantagens que você identifica no teletrabalho?


Quais as principais desvantagens que você identifica no teletrabalho?
Falta de contato pessoal com pares 66%

59ROCHA, Cháris Telles Martins da; AMADOR, Fernanda Spanier. O teletrabalho: conceituação e
questões para análise. Cad. EBAPE.BR, Rio de Janeiro , v. 16, n. 1, p. 152-162, Jan. 2018 .
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-
39512018000100152&lng=en&nrm=iso> <http://dx.doi.org/10.1590/1679-395154516>. Acesso em:
13/06/2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

259
Desânimo, desmotivação ou insatisfação 26%
Dificuldades com estruturação de um ambiente de trabalho adequado 23%
Dificuldades com estabelecimento de rotina 19%
Dificuldades com equipamentos 18%
Dificuldades na comunicação com pares 14%
Ausência de treinamentos e de possibilidades de atualização de conhecimentos. 3%
Desinformação sobre o dia a dia da repartição e do andamento da fiscalização 3%
Jornada de Trabalho 3%
Não nos foi facultado fazer nenhum dos cursos com redução do quantitativo de 3%
processos.
Outros 14%

Em relação às desvantagens, o maior destaque foi a falta de contato pessoal


com pares, evidenciando o aspecto humano do trabalho, enquanto questões práticas
como dificuldades com equipamentos e estrutura apareceram em segundo plano. O
aspecto relacionado ao desânimo, desmotivação ou insatisfação, apontado por 26%
dos respondentes, não pode ser analisado de forma isolada, pois o cenário de
isolamento social em razão da COVID-19 provavelmente interfere na percepção desse
fator.
Nas questões abertas, a falta de maior regulamentação do teletrabalho foi
apontada como desvantagem significativa, na medida em que desestimula a adoção
dessa modalidade de forma mais recorrente, segundo os respondentes.
Nas análises das Escalas de Conflito Trabalho-Família60 e Satisfação no
Trabalho61, foram comparados os Auditores-Fiscais do Trabalho que já trabalham em
regime remoto (N = 28) com aqueles que passaram a adotar essa modalidade em
decorrência da pandemia (N = 46). Como as amostras tinham tamanhos N diferentes,
foram realizados testes de Wilcoxon-Mann-Whitney, que não apontaram diferenças
significativas entre os grupos para a Escala de Conflito Trabalho-Família (W = 933,5,
Z = -7,49, p = 0,45). No caso da Escala de Satisfação no Trabalho, apesar de haver
diferença significativa entre os grupos (W = 1179,5, Z = 2,066, p = 0,039), análises

60 AGUIAR, Carolina Villa Nova; BASTOS, Antonio Virgilio Bittencourt. Op. Cit. p. 203-212.
61 MARTINS, Maria do Carmo Fernandes; SANTOS, Gisele Emídio. Op. Cit. p. 195-205.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

260
confirmatórias mostraram que o resultado foi originado pela presença de 3 outliers em
um dos grupos, sugerindo que de fato não há diferença significativa entre os grupos
para essa variável.
Apesar disso, os grupos são bem diferentes em termos de experiência com
trabalho remoto. Para os Auditores-Fiscais do Trabalho que já estavam em
teletrabalho antes da pandemia, o tempo médio de experiência em trabalho remoto foi
de 48,36 meses (DP =51,2), enquanto os que adotaram essa modalidade em
consequência da pandemia estavam nessa modalidade em média há 2,46 meses (DP
= 0,62).
Para investigar se o tempo de experiência como Auditor-Fiscal do Trabalho e o
tempo de experiência com teletrabalho teriam efeito nas escalas de Conflito Trabalho-
Família e Satisfação no Trabalho, correlações não-paramétricas (Spearman´s Rho)
foram conduzidas, todas com resultados negativos, o que sugere que nenhuma
dessas variáveis tem efeito na relação familiar ou na satisfação do servidor, conforme
tabela 3.

Tabela 12 - Correlações entre Tempo de Experiência, Tempo de Teletrabalho, ECTF e EST


Escala de Conflito Escala de Satisfação
Trabalho-Família no Trabalho
Tempo de experiência como Auditor-Fiscal rs(74) = -0,12, p = rs(74) = 0,42, p =
do Trabalho 0,294 0,723
Tempo de experiência na modalidade rs(74) = - 0,73, p = rs(74) = 0,22, p =
teletrabalho 0,539 0,063

Para investigar se o contexto familiar teria um efeito significativo nas escalas,


testes de Qui-quadrado de Pearson foram conduzidos e indicaram que não houve
diferenças significativas do contexto familiar, nem para a Escala de Conflito Trabalho-
Família, X2 (2, N = 74) = 129,4, p = 0,548, nem para a Escala de Satisfação no
Trabalho, X2 (2, N = 74) = 116,7, p = 0,185 indicando que essas variáveis não se
relacionam.
Considerando que os diferentes tipos de atividades executadas poderiam ter
um impacto nesse processo, abordou-se essa questão. As atividades executadas são

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

261
as mais variadas, conforme a tabela 4, que identifica a natureza da atividade exercida
por teletrabalho.

Tabela 13 - Você exerceu/exerce o teletrabalho na condição de:


Fiscalização rotineira, exercida na modalidade de teletrabalho em razão da COVID- 19%
19
Cargo de chefia/Assessoramento à chefia 16%
Analista de processos (primeira e segunda instâncias) 16%
Fiscalização Indireta (outros) 12%
Exercício na Administração Central 9%
Coordenação de projetos (regionais ou nacionais) 8%
Fiscalização indireta FGTS 5%
Corregedoria 4%
Fiscalização indireta Aprendizagem 3%
Comitê Regional 1%
Outros 4%

Em relação às atividades executadas, há uma distribuição razoável entre as


diferentes atribuições dos Auditores-Fiscais do Trabalho, com servidores atuando
desde as diversas áreas de fiscalização, até a análise de processos e atividades de
corregedoria. É possível que essa distribuição de funções se justifique em razão das
determinações da SIT, o que pode influenciar os resultados obtidos nessa questão.
Apesar de os resultados mostrarem não haver diferença significativa quanto às áreas
de atuação entre os Auditores-Fiscais do Trabalho que já exerciam o teletrabalho em
relação àqueles que apenas recentemente adotaram essa modalidade, as recentes
mudanças e determinações proveniente da Administração Central em relação às
demandas prioritárias e urgentes podem ter incluído viés nesses resultados.
Esses resultados sugerem que os Auditores-Fiscais do Trabalho estão se
adaptando bem ao teletrabalho, independente do contexto familiar, tempo de
experiência como servidor ou tempo de experiência com teletrabalho. Além disso,
54,8% relatam que sentem melhor em regime de teletrabalho, 68,5% relatam aumento
de produtividade e 73,9% recomendam a adoção do teletrabalho para a categoria.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

262
5 CONCLUSÃO

Inicialmente é plausível concluir que, a despeito de não haver um conceito


unificado para o teletrabalho, é possível estabelecer parâmetros gerais que são
observados em todos eles, a saber: a) o fato de o trabalho ser realizado à distância,
com separação física entre o trabalhador e o escritório ou centro de produção; b) a
utilização de novas tecnologias que permitam a comunicação. Com isso, ao
estabelecer parâmetros hábeis a caracterizar a prática do teletrabalho, um dos
objetivos da problemática inicialmente estabelecida foi observado.
No caso dos Auditores-Fiscais do Trabalho, os resultados sugerem que o
processo de adaptação ao teletrabalho em razão da COVID-19 foi relativamente
rápido, com os servidores apontando melhoria de produtividade, melhor qualidade de
vida e recomendando essa modalidade para chefes, subordinados e pares. Se por um
lado temos que considerar que o processo de regulamentação dessa modalidade foi
acelerado pelo contexto da COVID-19, por outro lado essa alternativa mostra uma
série de vantagens que lhe asseguram pauta em definições futuras sobre a forma de
atuação.
Se há melhorias claras nos âmbitos da execução do trabalho e da qualidade de
vida, as vantagens econômicas e de melhor uso dos recursos públicos ficam
evidentes. Como confirmado na análise de resultados, o teletrabalho foi tido como
positivo por expressiva maioria dos Auditores-Fiscais do Trabalho respondentes.
Como fatores que demonstram essa constatação, destaca-se que foram
relatadas melhora na qualidade de vida, economia financeira e mais produtividade.
Assim, emerge claro que há mais vantagens do que desvantagens da adoção deste
modelo de labor pela referida categoria.
Notadamente, alguns Auditores-Fiscais do Trabalho, possivelmente por
possuírem mais familiaridade com tecnologias, tiveram sua adaptação ao teletrabalho
facilitada. A significativa parcela dos respondentes que, no momento da entrevista,
estavam laborando em um ambiente de trabalho improvisado sugere que há a
sensação de incerteza quanto ao lapso temporal de continuidade de permissão da
execução das atividades por meio dessa modalidade de trabalho. Assim, identifica-se
como muito importante a regulamentação dessa forma de trabalho para carreira, de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

263
modo que se dê maior embasamento e segurança à categoria, tanto no presente
momento da pandemia de COVID-19, quanto para o futuro.
Quanto às relatadas falta de contato pessoal com os pares, bem como a
dificuldade de comunicação, caracterizadas como desvantagens, estas poderiam ser
mitigadas pelo uso da tecnologia, por meio de grupos de discussão e trocas de
experiência, bem como suporte, nos moldes do que, a exemplo, já ocorre com os
grupos de Auditores-Fiscais do Trabalho que realizam análises de processos. Outra
possível medida seria a coexistência do teletrabalho e do trabalho presencial para um
mesmo servidor.
Aliás, a realização de jornadas de trabalho parcialmente presenciais,
parcialmente à distância pode se mostrar como possível forma de realização do
trabalho que agrega várias das vantagens relatadas ao logo do estudo e que soluciona
algumas desvantagens apontadas.
É inegável que a sociedade contemporânea, a qual se apresenta cada vez
mais globalizada e integrada, exige soluções que não foram possíveis no passado. O
serviço público deve acompanhar tais mudanças, adotando práticas que modernizem
o trabalho dos Auditores-Fiscais do Trabalho ao mesmo tempo em que atualizam a
própria função.
No caso da Auditoria-Fiscal do Trabalho, além de outras carreiras que possuam
semelhante estrutura, verifica-se que o teletrabalho pode ser instrumento apto a
promover um equilíbrio na distribuição da carga de trabalho aos Auditores-Fiscais do
Trabalho em nível nacional, por meio da utilização de ferramentas que viabilizem o
atendimento telemático de demandas, por exemplo, por telefone, e-mail, ou ainda, por
fiscalizações indiretas eletrônicas de alguns atributos, como Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço e cotas de inserção de pessoas com deficiência e de aprendizes.
Imprescindível apontar, nessa esteira, o papel da gestão, não somente no caso
da Auditoria-Fiscal do Trabalho, como em todo o serviço público, para a definição das
atividades que podem ou não ser direcionadas à realização por meio do teletrabalho,
inclusive com a definição de parâmetros, metas e protocolos específicos de
realização, as quais devem ser inclusas nas ações estratégicas e devem atender aos
fins do Órgão.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

264
Em compasso a isso, deve a gestão também se ocupar de propiciar as
condições para que esse trabalho seja desempenhado, sendo relevantes os estudos
acerca do eventual fornecimento de materiais e meios para a realização do
teletrabalho, incluídas a distribuição de equipamentos de informática, a
disponibilização de suportes técnicos de informática e psicológico, dentre outras
questões que possam tornar ou não viável a realização o trabalho fora do Órgão. Além
disso, também podem ser realizados estudos para avaliar uma eventual redução dos
custos de manutenção da estrutura da Administração Pública, o que também pode
justificar a própria opção pela realização do teletrabalho.
Portanto, a análise do teletrabalho, como não poderia deixar de ser, é
complexa, dado o número de novas variáveis introduzidas no contexto da relação de
trabalho moderna, carecendo de ser analisada sob a perspectiva de suas vantagens
e desvantagens, tanto para a produtividade da organização quanto para a qualidade
de vida do indivíduo, jamais podendo dissociar-se da análise das questões
psicossociais que envolvem o trabalhador.
Ainda que a legislação trabalhista brasileira proporcione, em termos, alguns
amparos ao trabalhador, inclusive ao servidor público caso não haja a preocupação
precípua de caracterizar a realidade fática observada em determinado contexto de
teletrabalho, os referidos direitos não poderão ser garantidos, razão pela qual se torna
essencial a compreensão dos parâmetros que possibilitam o entendimento adequado
dessa nova forma de realização do trabalho.
Dessa forma, entende-se que, com um maior suporte institucional, seja de
tecnologia, seja de regulamentação, a modalidade poderia ser implementada de forma
mais eficiente e eficaz, o que se reverteria em benefício institucional e a toda a
sociedade, com a observância dos princípios da Administração Pública e dos
fundamentos constitucionais da República Federativa do Brasil.

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BRASIL. Lei 12.551, de 15 de dezembro de 2011. Altera o art. 6º da


Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452,
de 1º de maio de 1943, para equiparar os efeitos jurídicos da subordinação
exercida por meios telemáticos e informatizados à exercida por meios
pessoais e diretos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
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BRASIL. Decreto Legislativo Nº 6, de 20 de março de 2020. Reconhece, para os


fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência
do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da
República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.
Congresso Nacional. Disponível em:
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emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do
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Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

266
trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade
pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e
da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do
coronavírus (COVID-19), de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020,
e dá outras providências. Disponível em: <
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267
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THE LABOR INSPECTORS` PERCEPTION OF


TELEWORKING IN TIMES OF COVID-19 PANDEMIC

ABSTRACT
Among the changes caused by the COVID-19 pandemic, the
adoption of teleworking in the private and public sectors was one
of the most significant. In order to better understand the impacts
of this process on the public sector, the present study
investigated the perception of Labor Inspectors about
teleworking. 74 questionnaires were applied among Labor
Inspectors from all over Brazil, with an average age of 44.5 years
(SD = 10.1) and of 15.4 years of experience as Labor Inspectors
(SD = 9.2). The questionnaire covered questions that
investigated the topic of teleworking, the perceptions of the
professionals about this modality and the Work Satisfaction and
Work-Family Conflict Scales. The results showed that 57% of the
sample have started to telework due to the pandemic and
reported an increase in workload due to this change. The
analyzes also compared the Labor Inspectors that were already
on telework before the pandemic with those who entered this

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

271
system as a result of COVID-19 and did not find significant
differences in the levels of job satisfaction and in the levels of
work-family conflict, suggesting that, despite the initial difficulties,
there is a tendency to adapt quickly to the teleworking regime. In
addition, 54% of respondents said they were feeling better doing
teleworking and 69% feel more productive, with a total of 74% of
Labor Inspectors recommending teleworking. The results
suggest that the teleworking modality has positive effects in
terms of productivity and satisfaction, and should be considered
as a possibility after the pandemic.

Keywords: Teleworking. Labor Inspection. Public service.


COVID-19 pandemic.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

272
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL PARA PREDIÇÃO DE ACIDENTES
LABORAIS NO BRASIL E SUA APLICAÇÃO PELA INSPEÇÃO DO
TRABALHO
Jefferson M. Toledo1
Robson D. A. Timoteo2
Enadio da Silva Barbosa3

1. Introdução. 2. Acidentes de trabalho no Brasil. 3. Aprendizagem de


máquina (machine learning) e a construção de modelos preditivos. 3.1.
Aprendizagem supervisionada e não supervisionada. 3.2. Algoritmos de
aprendizagem supervisionada. 3.3. Avaliando os modelos construídos. 4.
Modelos de predição de acidentes de trabalho no Brasil. 4.1. Escolha das
variáveis de entrada. 4.2. Construção e avaliação do modelo. 5.
Aplicabilidade da predição de acidentes para a fiscalização trabalhista no
Brasil. 6. Discussões e considerações finais.

RESUMO
O uso de ferramentas de inteligência artificial tem crescido muito nos
últimos anos, impulsionado pelo aumento da capacidade de
processamento computacional e pelo acesso a dados. Neste trabalho,
propomos a aplicação de modelos de aprendizagem de máquina – ramo
da inteligência artificial que possui interseções com estatística e ciência
de dados – para a predição de acidentes de trabalho no Brasil.
Apresentaremos as etapas necessárias ao desenvolvimento do modelo,
da obtenção dos dados nas bases disponíveis à Inspeção do Trabalho à
escolha e avaliação dos algoritmos preditivos. Foi possível otimizar os
modelos e obter predições com acurácia da ordem de 80%.
Discorreremos, ainda, sobre o uso dos modelos para auxiliar no
planejamento das fiscalizações trabalhistas e sobre as possibilidades de
melhorias do sistema desenvolvido.
Palavras-chave: acidentes de trabalho. aprendizagem de máquina.
modelos preditivos.

1 INTRODUÇÃO

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que cerca de seis mil


trabalhadores morrem por dia devido a acidentes de trabalho ou doenças laborais4.

1 Auditor-Fiscal do Trabalho. Doutor em física, com ênfase na área de gravitação e cosmologia.


2 Auditor-Fiscal do Trabalho. Mestre e doutor em ciência da computação pela Universidade Federal
de Pernambuco.
3 Auditor-Fiscal do Trabalho. Pós-graduado em engenharia de software e MBA internacional pelo

instituto de empresa - Espanha. Graduado em direito e ciências econômicas.


4 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. World Statistic. Disponível em: <https:

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

273
Isso corresponde a um total de cerca de 2,19 milhões (dois milhões e cento e noventa
mil) de trabalhadores que perdem a vida anualmente em decorrência da atividade
laboral. Agrega-se a esta estatística o fato de, anualmente, cerca de 340 milhões de
acidentes de trabalho ocorrerem em todo o mundo5.
Segundo dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, mantido
pelo Ministério Público do Trabalho, entre 2012 e 2018 foi verificada uma morte por
acidente de trabalho no Brasil a cada três horas e quarenta e cinco minutos,
perfazendo um total de 16.455 (dezesseis mil quatrocentos e quarenta e cinco) óbitos
no período6. Estima-se que, no mesmo intervalo de tempo, tenham ocorrido 4,5
milhões de acidentes de trabalho no país, 351 (trezentos e cinquenta e um) mil dias
de trabalho tenham sido perdidos e que os gastos previdenciários correspondentes
aproximam-se da cifra de R$ 79 bi (setenta e nove bilhões de reais)7. Como se nota,
os adoecimentos laborais e os acidentes de trabalho constituem grave problema de
saúde no Brasil e no mundo.
Segundo a literatura especializada, entretanto, os acidentes de trabalho são
provocados por uma conjunção de fatores que poderiam ser prevenidos8. Nesse
sentido, a legislação pátria cria um arcabouço conferindo condição de direito social
dos trabalhadores a redução de riscos inerentes à atividade laboral através da
observância a normas de saúde, higiene e segurança, nos termos do art. 7° da
Constituição Federal de 19889. Por consequência, compete aos empregadores
implementarem um sistema de proteção à segurança dos empregados, segundo as
exigências da legislação trabalhista.
Ainda no plano constitucional, a proteção à vida e à saúde é direito de todos
e dever do Estado10, que tem por obrigação a implementação de políticas sociais e

//www.ilo.org/moscow/areas-of-work/occupational-safety-and-health/WCMS_249278/ lang--
en/index.htm>. Acesso em: 25 maio 2020.
5 Ibid.
6 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Observatório Digital de Saúde e Segurança do

Trabalho. 2020. Disponível em: <https://smartlabbr.org/sst>. Acesso em: 08 jun. 2020.


7 Ibid.
8 ALLI, B. O. Fundamental principles of occupational health and safety. 2 ed. Genebra: OIT,

2008.
9 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da

República, [1988]. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 08 jun. 2020.
10 Ibid., art. 196.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

274
econômicas com o fito de reduzir os riscos ao adoecimento11. No âmbito
infraconstitucional, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT estabelece, em seu
capítulo V, regras gerais de saúde e medicina no trabalho12,complementadas pelas
Normas Regulamentadoras.
Nessa seara, compete aos Auditores-Fiscais do Trabalho, nos termos do
artigo 11 da Lei n. 10.593, de 6 de dezembro de 200213 e do artigo 18 do
Regulamento da Inspeção do Trabalho, aprovado pelo Decreto n. 4.552, de 27 de
dezembro de 200214, a verificação do cumprimento dos dispositivos legais
relacionados à segurança e à saúde dos trabalhadores. No exercício de suas
atividades, os Auditores-Fiscais do Trabalho têm a competência de, dentre outras
ações, inspecionar os locais de trabalho, o funcionamento de máquinas e a utilização
de equipamentos, averiguar e analisar situações com risco potencial de gerar
doenças ocupacionais e acidentes do trabalho, notificar as pessoas sujeitas à
inspeção do trabalho para o cumprimento de obrigações. Detectadas situações que
coloquem em grave e iminente risco a saúde e a integridade física dos trabalhadores,
os Auditores devem efetuar a interdição de estabelecimento, setor de serviço,
máquina ou equipamento, ou o embargo de obra15.
É possível, em suma, verificar que a proteção à saúde dos trabalhadores é
amplamente resguardada pela legislação e cumpre ao Estado o estabelecimento de
política que torne eficaz esse direito. Aos Auditores-Fiscais do Trabalho, compete
papel fundamental de, na qualidade de autoridades em segurança e saúde no

11 Ibid.
12 BRASIL, Consolidação das Leis do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de
maio de 1943. Disponível em: <http://planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htm>. Acesso
em: 08 de junho de 2020.
13 BRASIL. Lei nº 10.593, de 06 de dezembro de 2002. Dispõe sobre a reestruturação da Carreira

Auditoria do Tesouro Nacional, que passa a denominar-se Carreira Auditoria da Receita Federal -
ARF, e sobre a organização da Carreira Auditoria-Fiscal da Previdência Social e da Carreira
Auditoria-Fiscal do Trabalho, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República,
[2002]. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10593.htm>. Acesso em:
08 jun. 2020.
14 BRASIL. Decreto nº 4.552, de 27 de dezembro de 2002. Aprova o Regulamento da Inspeção do

Trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, [2002] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/decreto/2002/D4552.htm>. Acesso em: 08 jun. 2020.
15 BRASIL. Instrução Normativa nº 142, de 23 de março de 2018. Disciplina procedimentos de

fiscalização relativos a embargo e interdição para a atuação da Auditoria-Fiscal do Trabalho.


Brasília, DF: Presidência da República, [2018] Disponível em: <http://www.in.gov.br/web/dou/-
/instrucao-normativa-n-142-de-23-de-marco-de-2018-7889407>. Acesso em: 08 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

275
trabalho, participarem da consecução das políticas de proteção ao meio ambiente de
trabalho. É nesse sentido que vimos propor, neste artigo, a aplicação de técnicas de
computação e de programação estatística no auxílio à fiscalização trabalhista, de
modo a tornar possível que se antecipe a ocorrência de acidentes laborais e que se
possa, eficientemente, auxiliar empregadores e trabalhadores no gozo de seus
direitos.
Aprendizagem de máquina (mais conhecido pelo termo original em inglês
machine learning) é a área da inteligência artificial que fornece aos computadores a
habilidade de aprender a partir de dados16. As soluções construídas com base nessa
tecnologia, depois de treinadas, são capazes de fazer predições de novos eventos
e melhorar seu desempenho à medida que são utilizadas. A aprendizagem de
máquina é área interdisciplinar que combina métodos de ciência da computação,
ciência de dados e estatística na construção de modelos preditivos.
Na última década, diversas aplicações construídas com base na
aprendizagem de máquina surgiram e são utilizadas em larga escala, embora esta
realidade não seja perceptível por boa parte da população17. Sistemas de
recomendação – usados, por exemplo, em plataformas de streaming –, detecção de
spam na caixa de entrada de e-mails e sistemas de detecção de fraude são alguns
exemplos de uso de machine learning com quais temos diuturno contato.
Como era de se esperar, há diversas iniciativas governamentais no sentido
de utilização de plataformas modernas para auxiliar na consecução de atividades de
interesse público. Por exemplo, a Controladoria Geral da União (CGU) possui um
sistema que utiliza aprendizagem de máquina para a análise automatizada das
prestações de conta em transferências voluntárias da União. Já o Tribunal de Contas
da União (TCU) utiliza o robô Alice (Análise de Licitações e Editais) para buscar
irregularidades em licitações.
Em nosso trabalho, propomos o emprego da aprendizagem de máquina para
construção de uma plataforma capaz de prever futura ocorrência de acidentes de
trabalho no país. Como mostraremos, foi possível calcular a probabilidade de

16 ABU-MOSTAFA, Y. S.; MAGDON-ISMAIL, M.; LIN, H.-T. Learning from data. Nova Iorque:
AMLBook, 2012.
17 JORDAN, M. I.; MITCHELL, T. M. Machine learning: Trends, perspectives, and prospects.

Nova Iorque: Science.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

276
ocorrência de um sinistro laboral para cada empregador do Brasil. A utilização da
ferramenta beneficiará sobremaneira o país, permitindo que a inspeção do trabalho
escolha de forma assertiva as empresas para os procedimentos fiscalizatórios,
promovendo um meio ambiente laboral seguro.
Este trabalho está organizado como segue. Na seção 2, iremos mostrar um
breve panorama estatístico dos acidentes de trabalho típicos no Brasil, deixando
claro a necessidade de fiscalizações com o objetivo de auxiliar na prevenção de
sinistros laborais. Em seguida, na seção 3, fazemos uma revisão sobre
aprendizagem de máquina, focando em modelos supervisionados, que serão
utilizados no restante do artigo. Na seção 4, apresentamos o desenvolvimento de
uma aplicação de aprendizagem de máquina capaz de prever acidentes de trabalho
com uma acurácia que se aproxima dos 80 % (oitenta por cento). Por sua vez, na
seção 5, apresentaremos algumas sugestões do uso prático da referida aplicação na
fiscalização do trabalho. Por fim, na seção 6, apresentamos as conclusões.

2 ACIDENTES DE TRABALHO NO BRASIL

A Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991, conceitua acidente de trabalho típico


como aquele "que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa [...],
provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda
ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho18.
Equiparam-se aos acidentes de trabalho as doenças profissionais, aquelas
produzidas ou desencadeadas "pelo exercício do trabalho peculiar a determinada
atividade", e as doenças do trabalho, adquiridas ou desencadeadas "em função de
condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione
diretamente19.
Quando da ocorrência de acidente ou de doença ocupacional, o empregador
é obrigado a emitir a Comunicação de Acidente de Trabalho - CAT até o primeiro dia

18 BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. dispõe sobre os planos de benefícios da


previdência social e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1991]
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 08 jun. 2020.
19 Ibid.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

277
útil da ocorrência20. Em caso de óbito, a comunicação deve ser realizada de maneira
imediata e, caso o empregador não elabore CAT, esta pode ser formalizada pelo
acidentado, sua família, médico, sindicato ou por qualquer autoridade pública21.
Os dados das CAT são utilizados para realizar as estatísticas oficiais de
acidentes e doenças de trabalho no Brasil22. Além disso, as informações das
comunicações estão disponíveis nos bancos de dados disponíveis à Inspeção de
Trabalho. Por essas razões e como a proposta deste artigo é propor a construção de
aplicação que auxilie a Auditoria-Fiscal Trabalhista na consecução de suas
atividades, faz-se tecnicamente viável o uso dos dados de CAT no que segue.
Uma primeira etapa necessária à construção de modelos preditivos é o estudo
das características estatísticas do problema abordado. Nessa perspectiva, iniciamos
fazendo um breve retrato dos acidentes de trabalho típicos no Brasil nos anos de
2017 e 2018.
Em 2018, foram elaboradas 623.786 (seiscentas e vinte e três mil, setecentas
e oitenta e seis) CATs23. Delas, 57,0 % referiam-se a acidentes de trabalho típico,
1,4 % a doenças de laborais, 16,9 % a acidentes de trajeto e 14,7 % tinham tipo
ignorado. Esse perfil é observado em dados de anos anteriores. Em 2017, por
exemplo, 58,3 % das comunicações foram elaboradas em consequência de acidente
típico. Assim, é de se observar que as características e números de acidentes
laborais em sentido lato variam significativamente em cada uma de suas classes.
Adicionando-se o fato de que os acidentes de trajeto têm tido uma instabilidade
legislativa em seu tratamento, conclui-se pela necessidade de tratar individualmente
esses acidentes, os típicos e as doenças ocupacionais. O presente trabalho,
portanto, focará apenas nos acidentes típicos.
Primeiramente, iremos analisar a relação dos acidentes de trabalho com o
sexo e a idade dos empregados. Na figura 1, apresentamos a pirâmide etária de
acidentes de trabalho típicos no Brasil no biênio 2017-2018. É possível verificar que

20 Ibid., art. 22.


21 Ibid.
22 MINISTÉRIO DA FAZENDA. Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho - AEAT 2017. 2018.

Disponível em: <http://sa.previdencia.gov.br/site/2018/09/AEAT-2017.pdf>. Acesso em: 04 jun.


2020.
23 MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. Observatório Digital de Saúde e Segurança do

Trabalho. 2020. Disponível em: <https://smartlabbr.org/sst>. Acesso em: 08 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

278
mais homens que mulheres são acometidos – 67,1 % dos acidentes típicos
ocorreram com homens. Além disso, verifica-se concentração de acidentes é maior
entre trabalhadores de idades compreendidas entre vinte e quarenta anos. É possível
verificar que a pirâmide de acidentes não segue o padrão da população brasileira,
que possui mais mulheres que homens, nem a pirâmide etária da população de
trabalhadores do país24. Podemos, portanto, concluir que empresas que possuem
grandes quantidades de empregados do sexo masculino com idade inferior a
quarenta anos tem mais chances de notificar acidentes de trabalho que empresas
que empregam mais mulheres com idades mais avançadas.

Figura 1 – Pirâmide etária de acidentes de trabalho típicos no Brasil no biênio 2017-2018.

Fonte: compilação dos autores com base em dados de CATs.

Outros fatores importantes na ocorrência de acidentes laborais são as


atividades desempenhadas pela empresa e pelo trabalhador. De fato, as atividades
econômicas executadas pelos empregadores apresentam graus de riscos diferentes.
Semelhantemente, empregados de uma mesma empresa que realizam diferentes
funções em ambientes de trabalho diversos estão expostos a distintas condições de

24LIMA, A. V. D.; KONRAD, J. A transição demográfica no brasil e o impacto na previdência


social. Boletim Economia Empírica, Brasília, DF, v. 1, n. 2, 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

279
segurança em seu meio ambiente laboral.
Na figura 2, apresentamos um gráfico de barras enumerando as dez
ocupações que mais acidentaram no biênio 2017-2018. De uma lista de 2.049
ocupações, essas dez atividades corresponderam a cerca de 30 % dos acidentes de
trabalho. Pode-se verificar que as atividades de saúde (técnicos e auxiliares de
enfermagem e enfermeiro) são aquelas que mais apresentaram CATs por acidente
típico no período. Destaque-se, ainda, as atividades de alimentador de linha de
produção, faxineiro, motorista de caminhão e servente de obras dentre as ocupações
que mais acidentam. Pede-se concluir, consequentemente e como se deveria
esperar, pela existência de relação entre a função desempenhada pelo obreiro e a
acidentalidade laboral.

Figura 2 – Acidentes de trabalho por ocupação para as dez atividades que mais acidentaram no
biênio 2017-2018.

Fonte: compilação dos autores com base em dados de CAT.

Outro fator que guarda relação com acidentes de trabalho no país é a


atividade econômica desenvolvida pelo empregador. Na figura 3, representamos um
gráfico de barras das dez atividades econômicas que mais provocaram acidentes de
trabalho típico em 2017 e 2018. Merece destaque o fato de que o CNAE
(Classificação Nacional de Atividades Econômicas) do empregador e o CBO

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

280
(Classificação Brasileira de ocupações) do empregado nem sempre estão
equitativamente relacionadas nas estatísticas de acidentes laborais. Por exemplo,
embora as ocupações de enfermagem levem a emissão da maioria das CATs, as
atividades de saúde nem sempre figuram dentre aquelas que mais acidentam.
Verifique-se, ainda, que algumas atividades concentram grandes quantitativos de
acidentes típicos, como é o caso do cultivo da cana de açúcar e das atividades de
frigorífico em geral.

Figura 3 – Acidentes de trabalho por atividade econômica do empregador para as dez atividades que
mais acidentaram no biênio 2017-2018.

Fonte: compilação dos autores com base em dados de CAT.

Mais um fator importante na caracterização dos acidentes no Brasil, país


continental, é a distribuição geográfica dos sinistros. As unidades federativas
diferenciam-se entre si pelas atividades econômicas desenvolvidas e,
consequentemente, o perfil dos acidentes laborais também se altera. No período de
2017 a 2018, São Paulo foi o estado que mais informou CAT por acidente de trabalho
típico, correspondendo a 36,9 % do total do país. A ele, seguiram os estados de
Minas Gerais (10,3 %), Rio Grande do Sul (8.8 %), Paraná (8.3 %) e Rio de Janeiro
(6.8 %).
As atividades econômicas que mais acidentam também variam entre os

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

281
Estados. Excluindo-se a atividade da administração pública, os CNAEs que mais
elaboraram CATs de acidentes típicos no Estado de São Paulo foram limpeza em
prédios e em domicílios, coleta de resíduos não-perigosos e fabricação de açúcar em
bruto, enquanto em Minas Gerais foram os setores de construção de edifícios, cultivo
de café e abate de suínos.
Observamos, em suma, que diversas características da empresa e da relação
de trabalho podem estar relacionadas à ocorrência de acidentes e podem ser
utilizadas para a construção de modelos preditivos. Devido à complexidade do tema
abordado, nem sempre é possível concluir pela importância de determinada
característica e algumas podem não ter sido aqui citadas. No entanto, os modelos
propostos são capazes não só de prever futuros acidentes de trabalho, mas também
listar as características que mais foram importantes em sua construção.

3 APRENDIZAGEM DE MÁQUINA (MACHINE LEARNING) E A CONSTRUÇÃO


DE MODELOS PREDITIVOS

Em 1959, Arthur Samuel definiu a aprendizagem de máquina como sendo “o


campo de estudo que dá aos computadores a habilidade de aprender sem serem
especificamente programados para tal”25,26. Em outras palavras, a aprendizagem de
máquina está relacionada à possibilidade de computadores aprenderem com dados
prévios para realizar predições que melhoram à medida que o sistema vai sendo
alimentado com novos dados27.
A aprendizagem de máquina representa uma interseção entre a estatística e
a computação, está no núcleo da ciência de dados e é área da inteligência artificial
que mais tem se expandido nos últimos anos28. Essa expansão pode ser explicada
pela crescente capacidade computacional e de armazenamento de dados e pela

25 Tradução livre do original: “Field of study that gives computers the ability to learn without being
explicitly programmed”.
26 SAMUEL, A. L. Some studies in machine learning using the game of checkers. IBM Journal of

research and development, IBM, v. 3, n. 3, 1959, p. 212


27 MITCHELL, T. M. et al. Machine learning. Nova Iorque: McGraw-hill, 1997.
28 JORDAN, M. I.; MITCHELL, T. M. Machine learning: Trends, perspectives, and prospects.

Nova Iorque: Science, 2015, p. 255.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

282
disponibilização de informações por meio da internet29. Diversas empresas,
instituições de pesquisa e órgãos governamentais em todo o mundo têm utilizado o
aprendizado de máquina para auxiliar no desempenho de suas atividades e no
aumento da eficiência de suas ações30.
A tecnologia sobre a qual estamos discorrendo deixou, nos últimos anos, de
ser curiosidade científica e passou a ter diversas aplicações práticas31,32, com as
quais lidamos todos os dias. Os sistemas de recomendação de produtos que grandes
empresas utilizam são construídos com algoritmos de aprendizado de máquina. A
detecção de e-mails indesejados (spam) é realizada utilizando-se algoritmos de
machine learning.
Mais recentemente, a aprendizagem profunda (deep learning) tem ganhado
espaço33, através da do grande desenvolvimento das redes neurais e a consequente
criação de aplicações capazes de realizar reconhecimento de sons e de imagens e
do processamento de linguagem natural, como tradutores simultâneos.
Vale, por fim, destacar as palavras de M. Jornan e T. Mitchell que, em
publicação recente na prestigiada revista Science, afirmaram que a aprendizagem
de máquina destaca- se como uma das mais importantes tecnologias do século XXI
e, portanto, merece ser estudada e amplamente implementada:
Considerations such as these suggest that machine learning is likely to be
one of the most transformative technologies of the 21st century. Although it
is impossible to predict the future, it appears essential that society begin now
to consider how to maximize its benefits.34,35

29 JORDAN, M. I.; MITCHELL, T. M., op. cit., p. 256.


30 Ibid., p. 255.
31 Ibid.
32 KUBAT, M. An introduction to machine learning. Nova Iorque: Springer, 2017.
33 SKANSI, S. Introduction to Deep Learning: from logical calculus to artificial intelligence.

Nova Iorque: Springer, 2018.

34 Considerações como essas sugerem que é provável que a aprendizagem de máquina seja uma
das tecnologias mais transformadoras do século 21. Embora seja impossível prever o futuro, parece
essencial que a sociedade comece agora a considerar como maximizar seus benefícios (tradução
nossa).
35 JORDAN, M. I.; MITCHELL, T. M., op. cit., p. 260.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

283
3.1 APRENDIZAGEM SUPERVISIONADA E NÃO SUPERVISIONADA

Usualmente, os algoritmos de machine learning são agrupados em duas


classes: algoritmos de aprendizagem supervisionada e modelos de aprendizagem
não supervisionada. Em linhas gerais, nos problemas de aprendizagem
supervisionada, pretendemos estimar um resultado (conhecido como variável
dependente, output ou target) com base em uma ou mais variáveis de entrada
(também denominadas variáveis independentes, inputs ou features)36. A
aprendizagem supervisionada pode ser dividida em problemas de regressão – nos
quais se pretende prever o valor da variável de saída com base nas variáveis de
entrada – e problemas de classificação – em que, baseados nas variáveis de entrada,
é possível dividir os dados em classes previamente conhecidas.
Os modelos de aprendizagem não supervisionada são largamente utilizados
para detecção de anomalias ou fraudes num conjunto de dados ou ainda para realizar
a classificação de dados em conjuntos não previamente conhecidos – problemas de
clustering.
Iremos propor neste trabalho a construção de uma aplicação capaz de prever
futura ocorrência de acidentes do trabalho em determinada empresa. Como se
percebe, o problema com que estamos lidando pretende realizar uma classificação
em conjuntos previamente conhecidos. Dessa forma, nosso problema será
solucionado por um algoritmo de classificação, como discorremos, no gênero de
aprendizagem supervisionada.
Importa ressaltar que o modelo construído possui boa capacidade de
generalização quando é capaz de realizar predições para conjuntos de dados
diferentes daqueles que foram utilizados para desenvolver o seu treinamento. Dessa
forma, costuma-se dividir o conjunto de dados utilizados para construção do modelo
em dados de treino, dados de validação e dados de teste.
Como sugerido pelo próprio nome, dados de treino, são aqueles utilizados
para a construção e treinamento do algoritmo de predição. Como os modelos
possuem certos parâmetros que precisam ser ajustados para melhorar seu

36 JAMES, G. et al. An introduction to statistical learning. Nova Iorque: Springer, 2013.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

284
desempenho, utiliza-se o conjunto da validação para comparar o desempenho dos
algoritmos com diversos parâmetros, de modo que se possam selecionar aqueles
que apresentaram melhor desempenho. Por fim, após haver encontrado o melhor
conjunto de parâmetros, utiliza-se o conjunto de testes para analisar as predições
realizadas. Vale destacar que os conjuntos de treino, de validação e de teste não
possuem elementos em comum e, com isso, é possível ter confiança no trabalho
desenvolvido.
A prática de particionamento do conjunto de dados é recomendada pela
literatura especializada37 e foi aplicada nos desenvolvimentos técnicos descritos
neste trabalho.

3.2 ALGORITMOS DE APRENDIZAGEM SUPERVISIONADA

Já que o problema abordado neste trabalho será tratado com algoritmos de


aprendizagem supervisionada, iremos abordar, em linhas gerais, como eles
funcionam.
As variáveis que compõem as características do modelo e que serão
utilizadas para sua construção, features, serão representadas por X. Por seu turno,
a variável de saída será representada por y. Cada exemplo do conjunto de treino é
constituído pelos valores das variáveis independentes e da variável dependente,
conjunto (X, y). O nosso objetivo é realizar predições para conjuntos em que não
conhecemos os valores de y. Cada par (X, y) é denominado observação ou instância
do conjunto de dados utilizado.
Assim, podemos resumir os problemas de aprendizagem supervisionada no
desafio de descobrir qual função ou algoritmo f é capaz de ser utilizado para,
sabedores dos valores das variáveis independentes, X, prever os valores da variável
dependente em conjuntos previamente não conhecidos, y’. Em outras palavras,
temos como desafio determinar f tal que y’ = f (X).
Neste artigo, não iremos aprofundar a matemática necessária à construção
dos modelos, mas apresentaremos detalhadamente as etapas de sua construção e

37 BISHOP, C. M. Pattern recognition and machine learning. Nova Iorque: Springer, 2006.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

285
avaliação, iniciando pelas ferramentas computacionais empregadas.
Python38 é uma linguagem de programação aberta, de propósito geral e que é
atualmente a mais ensinada no mundo e aquela mais utilizada para o
desenvolvimento de aplicações de ciência de dados39. Dentre os pacotes disponíveis
nessa linguagem, o Scikit-Learn40 apresenta uma série de modelos de aprendizagem
supervisionada bem conhecidos e amplamente testados. Durante as etapas práticas
de programação e desenvolvimento técnico que culminaram nesta exposição de
resultados, diversos algoritmos de aprendizagem supervisionada foram
parametrizados e testados com o problema que abordamos. Podemos citar, por
exemplo, os modelos de regressão logística, K-Nearest Neighbor(KNN), Suport
Vector Machine41, Random Forest42 e LightGBM43. Trataremos dos modelos que
trouxeram melhores resultados e que poderão ser implementados pela fiscalização
do trabalho.

3.3 AVALIANDO OS MODELOS CONSTRUÍDOS

É fundamental destacar que os modelos construídos precisam ser avaliados


para que se possa garantir sua utilização com eficácia e para que se possa buscar
sua melhoria contínua44. Como já afirmado, não é o objetivo deste artigo detalhar a
matemática por trás da construção dos modelos. Logo, iremos resumir brevemente
algumas das principais métricas de avaliação de desempenho dos algoritmos para
predição de classes binárias – apenas duas classes– que, como veremos, é o tipo
de classificação que melhor se adequou ao problema que abordamos.
Nessa senda, a acurácia é a razão entre o número de predições corretas e a
quantidade total de registros existentes no conjunto de dados. Num problema de

38 ROSSUM, G. V. et al. Python programming language. In: USENIX ANNUAL TECHNICAL


CONFERENCE, 2007. v. 41, p. 36.
39 SRINATH, K. Python–the fastest growing programming language. International Research

Journal of Engineering and Technology (IRJET), v. 4, n. 12, p. 354–357, 2017.


40 PEDREGOSA, F. et al. Scikit-learn: Machine learning in Python. Journal of Machine Learning

Research, v. 12, p. 2825–2830, 2011.


41 VAPNIK., V. N. The nature of statistical learning theory. Nova Iorque: Springer-Verlag, 1995.
42 BREIMAN, L. Random forests. Machine learning. Nova Iorque: Springer, 2001.
43 KE, G. et al. Lightgbm: A highly efficient gradient boosting decision tree. In: GUYON et al.

Advances in neural information processing systems. Nova Iorque: Curran Associates, 2017.
44 BISHOP, C. M., op. cit.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

286
classificação binário – que, como veremos, é o que melhor se adequou ao problema
que propomos – a acurácia não deve ser tomada como única métrica de avaliação.
Isso porque é possível que o modelo desenvolvido tenha uma boa acurácia e faça
predições confiáveis em apenas uma das classes. Por essa razão, utilizaremos, para
comparar os modelos concebidos, a precisão e o recall.
Num modelo binário, a variável que desejamos prever (y) vai adquirir dois
valores: a predição será positiva (y = 1) ou negativa (y = 0). Com isso, definimos
precisão como a razão entre a quantidade de acertos realizados na predição da
classe positiva e o total de casos previstos como positivos pelo modelo. A precisão
é uma boa métrica para se verificar se a solução está realizando grande predição de
falso-positivos45. Precisão baixa implica a classificação de muitas observações como
falso-positivos.
Por seu turno, o recall é calculado pela razão entre o total de predições
corretas da classe positiva e o total de predições efetuadas nessa classe. Com o
recall, podemos verificar se o modelo está realizando um grande número de
previsões na classe negativa que deveriam ter sido classificadas como positivas46.
Em outras palavras, essa métrica, quando baixa, nos informa que há grande número
de falso-negativos sendo previstos.

4 MODELOS DE PREDIÇÃO DE ACIDENTES DE TRABALHO NO BRASIL

Como já mencionado, o objetivo do presente estudo é propor a utilização de


aprendizado de máquina para a predição da ocorrência de acidentes de trabalho
típicos no Brasil.
Vale destacar que um dos desafios da construção do modelo é determinar
qual a variável de saída (y) que se pretende obter com o modelo. Nesse intento, vale
destacar que, no ano de 2017, 115.276 (cento e quinze mil, duzentos e setenta e
seis) empregadores declararam CAT por acidente de trabalho típico no país. Desses,
em 76.660 (setenta e seis mil, seiscentos e sessenta) apenas um acidente foi
registrado, o que equivale a 66,4 % do total. Situação semelhante ocorreu em 2018,

45 BISHOP, C. M., op. cit.


46 JAMES, G. et al., op. cit.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

287
quando 122.315 (cento e vinte e dois mil, trezentos e quinze) empregadores
apresentaram CAT por acidentes típicos e em 65,7 % apenas um acidente foi
registrado.
Percebe-se, assim, que a maioria dos empregadores que informam acidentes
de trabalho declara a ocorrência de apenas um infortúnio. Além disso, diversas
tentativas foram realizadas no sentido de testar modelos que pudessem prever o
número de acidentes que a que ocorrerão em determinada empresa. Os resultados,
no entanto, não foram bons quando se tentava diferenciar o número de acidentes.
Por esses motivos, o objetivo do nosso trabalho será prever se determinada empresa
irá acidentar (y = 1) ou não (y = 0) e com qual probabilidade o acidente ocorrerá.
Como veremos, trabalhando com essa variável de saída, pudemos produzir bons
modelos preditivos.
Outro ponto importante do modelo é a determinação do nível de agregação
em que serão realizadas as predições. Os diversos testes práticos desenvolvidos
apontaram como uma boa instância de predição o par CNPJ-CBO. Isso significa que
as predições são realizadas para cada tipo de ocupação dentro do empregador. Com
isso, uma mesma empresa pode apresentar probabilidades de acidentes diferentes
para empregados que desempenham distintas funções.

4.1 ESCOLHA DAS VARIÁVEIS DE ENTRADA

Como passo inicial para a construção do algoritmo preditivo de acidentes


laborais, precisamos determinar que variáveis da relação de trabalho são
importantes para a ocorrência do infortúnio. Em outras palavras, devemos
estabelecer que características do empregador e do trabalhador são fundamentais
para que possamos realizar predições úteis. Constataremos que os modelos também
são capazes de avaliar dentre as variáveis de entrada aquelas que mais
influenciaram nas previsões.
Como verificamos na seção 2, a distribuição etária de acidentes laborais no
Brasil não segue padrão da população do país. Dessa maneira, é possível verificar
que a maior concentração de empregados masculinos e a prevalência na faixa etária
compreendida entre vinte e quarenta anos aumentam a probabilidade de ocorrência

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

288
de acidente de trabalho e, por conseguinte, essas duas características serão
utilizadas para construção de modelos de predição.
Outros aspectos importantes e que caracterizam os acidentes laborais são a
atividade econômica do empregador e a atividade desempenhada pelo acidentado,
como discorrido na seção 2. Ainda nesse sentido, as atividades econômicas são
distintas ao longo do território nacional e, por consequência, o comportamento dos
acidentes são diferentes em dada região. Outra característica importante que será
utilizada para a construção do modelo é, portanto, o município do estabelecimento
em que o empregado labora.
O histórico de fiscalizações já realizadas também serviu como base para
construção dos modelos. Por experiência, sabemos que empresas que apresentam
muitas irregularidades detectadas e muitos itens interditados ou embargado por
Auditores tendem a possuir sistemas frágeis de proteção à saúde dos trabalhadores.
A vivência nas atividades de fiscalização também corrobora com esse entendimento.
Em suma, na construção dos modelo proposto, usamos como variáveis de
entrada o CBO dos empregados, o CNAE nas empresas, o município, o número de
empregados, a média de idade dos trabalhadores e as comas, por CNAE e município,
de todas irregularidades detectadas pelos Auditores-Fiscais do Trabalho, das
irregularidades de jornada e do total de itens interditados ou embargados. Como
veremos, além alguns modelos também permitem a avaliar quais variáveis foram
mais importantes para as decisões tomadas pelo algoritmo e, com isso, seremos
capazes de melhorar o trabalho.

4.2 CONSTRUÇÃO E AVALIAÇÃO DO MODELO

Selecionadas as variáveis de entrada e as classes que se pretende prever,


faz-se importante buscar corretamente nos bancos de dados disponíveis à inspeção
do trabalho as informações necessárias à construção do modelo.
Como já informado, os dados de acidentes foram buscados dos dados de
CAT, incluindo aquelas não elaboradas pelos empregadores, desde que tenha
havido o reconhecimento de acidente típico como motivo. As informações de CNAE
e município estão presentes nas informações das empresas advindas da Receita

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

289
Federal. Os dados de números de empregados, idade e CBO de trabalhadores são
coletados nas informações prestadas na Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS). As informações relacionadas à atuação da Auditoria-Fiscal do Trabalho são
colhidas do Sistema Federal de Inspeção do Trabalho (SFITWEB).
Pode-se verificar que as variáveis de entrada são as mais diversas e possuem
tipos de dados e limites de valores diferentes. Adotamos, por exemplo, variáveis
categóricas (como município e atividade econômica do empregador) e numéricas
(como idade e número de trabalhadores). Dentre as numéricas, a quantidade de
obreiros de uma empresa pode variar de um até dezenas de milhares, mas suas
idades ficam limitadas a algumas dezenas. Para que as variáveis sejam
consideradas de forma correta, há a necessidade de uma etapa de pré-
processamento, o que foi realizado utilizando-se as ferramentas existentes no pacote
Scikit-Learn47.
Como informamos, o conjunto de dados foi dividido em conjunto de dados de
treino, de validação e de teste o os modelos foram construídos na linguagem de
programação Python. Cada modelo possui um conjunto de parâmetros que são
fixados de acordo com o melhor desempenho apresentado. Na tabela 1,
apresentamos as métricas calculadas para quatro algoritmos que apresentaram bom
desempenho para o problema abordado.
Perceba-se que os valores de acurácia, precisão e recall foram superiores a
74% para todos os algoritmos. Isso significa que, no conjunto de teste, diferente
daquele usado para treinar os modelos, foi possível acertar as predições em boa
parte dos dados, mantendo-se baixos níveis de falso-positivos e falso-negativos.

Tabela 1 – Desempenho dos algoritmos de machine learning testados.


Modelo Acuráci Precisã Rec
a o all
Regressão 0,75 0,75 0,74
logística
KNN 0,77 0,77 0,76
Random forest 0,80 0,80 0,80

47 PEDREGOSA, F. et al., op. cit.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

290
LightGBM 0,74 0,74 0,74
Fonte: métricas de avaliação calculadas para os modelos testados pelos autores.

O algoritmo Random Forest permite a avaliação da importância das variáveis


de entrada nas predições realizadas, o que pode ser observado na Fig. 4. Nota-se
que o CBO do trabalhador e sua idade foram os fatores mais importantes nas
escolhas feitas pelo modelo. Das verificações feitas pela Inspeção do Trabalho, as
informações de empresas que tenham sofrido embargos e/ou interdições
desempenharam, também, importante papel no algoritmo.

Figura 4 – Importância das features na construção do modelo.

Fonte: compilado pelos autores48.

Após a definição das features que serão utilizadas pelo modelo, foi criado um
sistema com o objetivo de acessar vários bancos de dados e criar os
supramencionados conjuntos de treino, validação e teste. Na Figura 5, temos o
diagrama básico que ilustra todo o processo para geração do modelo. Inicialmente,
temos a extração, transformação e carregamento dos dados (ETL, Extract Transform
Load). Após esse passo, o modelo é treinado e seus parâmetros ajustados (tuning)
utilizado os conjuntos de treino e validação. A seguir, o conjunto de teste é utilizado
para avaliar a capacidade de generalização do modelo utilizando os melhores

48 Importância das variáveis de entrada no modelo Radom Forest.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

291
parâmetros encontrados no treinamento. Por fim, após a avaliação, o modelo é
colocado em produção e pode realizar a predição de novos dados.

Figura 5 – Diagrama básico ilustrando o processo de extração, transformação e carrega- mento dos
dados (ETL, Extract Transform Load) para composição das features com objetivo de treinar e avaliar
o modelo de machine learning.

Fonte: compilado pelos autores.

5 APLICABILIDADE DA PREDIÇÃO DE ACIDENTES PARA A FISCALIZAÇÃO


TRABALHISTA NO BRASIL

De acordo com a explanação feita anteriormente, os acidentes no trabalho


causam grandes prejuízos, em diversos aspectos, para a sociedade. Eles causam
um elevado prejuízo devido à perda de vidas humanas, a incapacitação parcial ou
total dos trabalhadores envolvidos e o próprio sofrimento físico associado à sua
ocorrência. Além disso, existe o prejuízo financeiro que atinge as empresas e o
prejuízo ao ente público que, através de benefícios previdenciários, precisa amparar
os trabalhadores ou suas famílias em função do evento acidentário ocorrido.
Para a Inspeção do Trabalho no Brasil, que labora sob a égide do respeito e
observação da legislação trabalhista, o que inclui atividades relacionadas à Saúde e
Segurança no Trabalho, reveste-se de fundamental importância atuar firmemente na
prevenção de acidentes no trabalho. Desta forma, o resultado da utilização de
modelos preditivos de machine learning pode permitir um avanço significativo na
diminuição dos prejuízos humanos e financeiros causados pelos acidentes no

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

292
trabalho no país.
A utilização da mencionada tecnologia tem o potencial de expandir o universo
de empresas analisadas, gerando um considerável avanço no cumprimento da
missão legal dos Auditores do Trabalho. No entanto, faz-se necessário associar a
utilização desta tecnologia com uma estratégia que permita a consecução dos
melhores e mais rápidos resultados dentro das ações fiscais. Desta forma,
sugerimos duas estratégias de uso desse modelo preditivo. Ressalta-se, em tempo,
que a continua utilização desta tecnologia permitirá constatar quais alternativas
geram os melhores resultados, além de permitir seu refinamento nesta proposta e o
surgimento de outras formas alternativas de utilização.
Esta estratégia pressupõe uma ação concentrada e direcionada na predição e,
por conseguinte, prevenção de acidentes do trabalho. O cerne desta proposta consiste
na execução do modelo preditivo em um conjunto de empresas de atividade
econômicas previamente selecionadas. Desta forma, para operacionalizar esta
estratégia, o modelo preditivo seria acionado para analisar uma quantidade específica
de CNPJs de um determinado CNAE em um conjunto de regionais escolhidas
antecipadamente.
Em seguida, os Auditores Fiscais participantes analisariam as predições
geradas pelo modelo e as empresas seriam notificadas ou fiscalizadas “in loco” a
depender da probabilidade das ocorrências de acidentes no trabalho.
Uma segunda estratégia idealizada é introduzir uma funcionalidade no
SFITWEB de forma que, ao ser gerada uma nova ordem de serviço (OS), o modelo
preditivo possa informar automaticamente quão provável é a ocorrência futura de
acidentes naquela empresa. Ato contínuo, esta informação seria analisada pelo
Auditor Fiscal do Trabalho responsável pela OS e deliberada com o chefe da
Inspeção do Trabalho da respectiva regional. De forma a decidir sobre a ampliação
da fiscalização para atender questões específicas ligadas a Acidentes no trabalho
ou a criação de uma nova OS direcionada exclusivamente a fiscalizar tal achado.
Observa-se de pronto, o caráter preventivo de tais alternativas, numa tentativa
de mitigar os prejuízos anteriormente descritos e tornar o ambiente de trabalho
menos nocivo à saúde dos trabalhadores. Acrescenta-se que, uma alternativa para
a utilização dos dados preditivos de acidentes no trabalho seria no intuito de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

293
subsidiar o planejamento anual da fiscalização, servindo para gerar a priorização de
ações fiscais exclusivamente focados no enfrentamento das questões associadas
aos acidentes do trabalho.

6 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, propusemos a criação de um modelo de aprendizagem de


máquina para a predição de acidentes de trabalho no Brasil e verificamos que foi
possível obter acurácia da ordem de 80%, realizando-se previsões com baixo
número de falso-positivos e falso-negativos. São resultados animadores que
permitem à Auditoria-Fiscal do Trabalho se apropriar de avançadas técnicas para
trabalhar de maneira preventiva, adiantando-se à ocorrência de sinistros laborais.
Em função da novidade da utilização desta tecnologia, entende-se que uma
abordagem inicial possa ser a de implementar esta solução através de projetos-piloto
em regionais escolhidas previamente. De fato, como esta tecnologia tem a
capacidade de trazer resultados importantes para a fiscalização e para a sociedade,
observa-se que a implementação prática deve ser cercada de prudência e de
acompanhamento próximo para validar não só a utilização da tecnologia como
encontrar a melhor forma de aplicá-la.
Além disso, dado o pioneirismo da iniciativa, o seu êxito pode abrir portas para
o desenvolvimento de outros modelos que possam auxiliar outras áreas da
fiscalização. Faz-se necessário evidenciar que este é o início de um processo de
mudança, onde grandes quantidades de informações prévias podem subsidiar uma
melhor gestão dos recursos, uma maior eficiência da fiscalização e um melhor
resultado para a sociedade.
Vale salientar também que esta ferramenta tem o caráter de auxiliar o labor
do Auditor Fiscal do Trabalho sem, no entanto, jamais ter a pretensão de substituí-lo
ou torná-lo obsoleto. A realidade, que já está amplamente estampada na sociedade
moderna, é que a enorme quantidade de dados disponíveis deve ser utilizada com o
objetivo de agregar e qualificar o conhecimento prévio existente sobre a fiscalização
das empresas e sobre o ambiente de trabalho enfrentado pelos trabalhadores no
Brasil.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

294
A implementação desta ferramenta não será um ponto final. Será uma porta
que se abre no árduo caminho trilhado pela fiscalização trabalhista em direção a
lograr uma mais salutar convivência e harmonia dos atores envolvidos com as leis
trabalhistas.
Neste diapasão, um pressuposto fundamental deste tipo de tecnologia é sua
melhoria constante. O modelo proposto irá sendo melhorado e refinado par-e-passo
com o seu uso. Assim como o conhecimento desta tecnologia e as infindáveis
possibilidades de utilização para a melhoria do serviço pública na seara circunscrita
pela atuação da legislação trabalhista. Desta forma, Aperfeiçoamentos certamente
serão necessários e a participação e colaboração de todos será imprescindível.

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VAPNIK., V. N. The nature of statistical learning theory. Nova Iorque: Springer-


Verlag, 1995.

ARTIFICIAL INTELLIGENCE FOR PREDICTING OCCUPATIONAL


ACCIDENTES IN BRAZIL AND ITS APPLICATION BY THE LABOUR
INSPECTION

ABSTRACT
The use of artificial intelligence applications has been growing in
the past few years, driven by the raising of computational
processing and access to databases. In this work, we propose
the application of machine learning – a field of artificial
intelligence that intersects statistics and data science – for
predicting the occurrence of occupational accidents in Brazil. We
present the steps to construct the model, from the data extraction
from the Labor Inspection databases to the choice and evaluation
of the predictive algorithms. We succeed in model optimization
and reached accuracy near 80%. We deal, yet, with the uses of
the models to assist in planning the labor inspections and with

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

297
the possibility of improving the constructed system.

Keywords: occupational accidents. machine learning. predictive


models.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

298
CADASTRO DE EMPREGADORES: A LISTA SUJA COMO
INSTRUMENTO DE TRANSPARÊNCIA E COMBATE AO TRABALHO
ANÁLOGO AO DE ESCRAVO

Maurício Krepsky Fagundes1

1. Introdução. 2. Histórico do Cadastro de Empregadores. 3. Transparência


como modelo de atuação. 4. Análise comparada a transparência dos atos da
inspeção do trabalho em outros países. 5. Conclusão. Referências.

RESUMO
As denúncias de violações de direitos humanos na exploração de
trabalhadores em condições análogas às de escravo exigiram que governo
brasileiro reconhecesse essa realidade perante a comunidade internacional
e implantasse uma política pública de combate ao trabalho escravo. Isso
têm início em 1995, com a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel
(GEFM), coordenado pela auditoria-fiscal do trabalho. Em 2003 foi criado o
Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a
condições análogas à de escravo, mais conhecido como lista suja,
ferramenta de transparência e controle social, reconhecido
internacionalmente com um dos mais importantes instrumentos de combate
às formas contemporâneas de escravidão. Inspeções do Trabalho em
outros países utilizam semelhante princípio de transparência para
promover uma atuação mais eficiente em determinadas áreas que
representam problemas crônicos nas relações de trabalho. Este artigo
apresenta propostas desse modelo de sucesso reaplicado a bases de
dados brasileiras já existentes, como as de saúde e segurança no trabalho,
trabalho infantil, informalidade e embaraço à fiscalização, a fim de
promover o trabalho decente em conjunto com empregadores e com a
sociedade.

Palavras-chave: Cadastro de Empregadores. Lista suja. Transparência.


Trabalho em condições análogas à de escravo. Inspeção do Trabalho.

1Auditor-Fiscal do Trabalho, graduado em Física (Universidade de Brasília), chefe da Divisão de


Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

299
1 INTRODUÇÃO

A publicação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido


trabalhadores a condições análogas à de escravo significa o exercício de
transparência ativa exercido pela Administração, consoante o princípio constitucional
da publicidade. E em nível infraconstitucional, tem amparo na Lei de Acesso à
Informação (Lei nº 12.527/2011), que prevê expressamente o direito de acesso à
informação, sendo um dever dos órgãos públicos promover, independentemente de
requerimentos, a divulgação, em local de fácil acesso, no âmbito de suas
competências, de informações de interesse coletivo ou geral.
A inclusão do nome de empregadores no Cadastro é prevista expressamente
na Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4 de 11/05/2016, assim como em
portarias anteriores, sendo mero consectário lógico da confirmação final de
responsabilidade administrativa no processo decorrente de auto de infração lavrado
pela constatação de trabalho em condições análogas às de escravo. Não há conteúdo
decisório no ato de publicação dos nomes no Cadastro, tratando-se de ato vinculado
e automático, de mera execução material que simplesmente constata o advento da
decisão administrativa final de procedência do auto de infração lavrado.
No curso da ação fiscal em que são encontrados trabalhadores em condição
análoga à de escravos, são lavrados autos de infração para cada irregularidade
trabalhista encontrada, que demonstram a convicção da auditoria-fiscal do trabalho
sobre a existência de graves violações de direitos. Cada auto de infração gera um
processo administrativo no qual são assegurados aos empregadores garantias
processuais constitucionais, como o contraditório e a ampla defesa nas duas
instâncias administrativas.
Em todos os casos, há uma análise técnica das defesas e recursos
apresentados pelos empregadores a fim de subsidiar as decisões proferidas em
primeira e segunda instâncias administrativas, considerando-se, somente, os autos
de infração com decisão irrecorrível de procedência para a inclusão dos
empregadores no Cadastro, em obediência ao ordenamento jurídico vigente.
A construção dessa base de dados sólida, criada em 2003, alguns anos após
o início da política pública de combate ao trabalho escravo, com a criação do Grupo

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

300
Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) que completou 25 anos de atividade, foi peça
fundamental para o reconhecimento do Brasil como modelo internacional de boa
prática. Desde 1995 são mais de 55 mil trabalhadores e trabalhadoras resgatadas
dessa condição e mais de 108 milhões de reais recebidos pelos trabalhadores a títulos
de verbas salariais e rescisórias durante as operações. Esse resultado se deve à
atuação da Auditoria Fiscal do Trabalho, que coordena o grupo, e às parcerias que
foram formadas ao longo desses anos.
Como a violação de direitos humanos no contexto laboral não é uma ofensa
apenas aos trabalhadores, mas a toda sociedade, as informações decorrentes dessa
atuação de um quarto de século se revestem de tanta importância que o anonimato
dos responsáveis por crimes dessa natureza não guarda qualquer sentido. Uma ação
abominável seria o governo brasileiro financiar empreendimentos que se utilizassem
desse tipo de exploração para obter lucro, ou seja, lucro às custas da dignidade alheia.
Esse foi o ponto de partida do Cadastro de Empregadores, que alcançou outras
esferas que são apresentadas neste artigo. A instituição do Cadastro de
Empregadores pela Inspeção do Trabalho foi inclusive tema de discussão pela
Suprema Corte brasileira, tendo sido reconhecida sua constitucionalidade este ano
por nove ministros votantes. A juridicidade do Cadastro foi afirmada em um momento
em que ele já se revestia como de extrema importância para o controle social e a
responsabilidade empresarial não só no Brasil, mas em todo mundo.
A partir dessa reação da sociedade ao que ocorre nas relações de trabalho,
serão apresentadas propostas para que o país avance no combate a outras formas
de violações de direitos, como o trabalho infantil, a informalidade, os acidentes e
doenças relacionadas ao trabalho. Para isso, foi pesquisada a história da criação do
Cadastro de Empregadores, apontados princípios de transparência aplicáveis,
iniciativas similares em outros países e analisados bancos de dados da Inspeção do
Trabalho que poderiam também serem exemplos de transparência ativa. Com esse
trabalho se espera gerar um conteúdo potencial para um maior envolvimento da
sociedade frente a outras práticas inaceitáveis no mundo do trabalho.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

301
2 HISTÓRICO DO CADASTRO DE EMPREGADORES

A origem da criação do Cadastro de Empregadores surgiu da percepção de que


os relatórios de fiscalização do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM)
continham fotos das porteiras das propriedades rurais objeto das operações. Em
muitas dessas fotos havia placas com o indicativo de que a propriedade estava sendo
financiada por um determinado banco. Essa era uma obrigação de quem recebia
financiamento: divulgar em sua propriedade que o desenvolvimento da mesma
contava com recursos e empréstimos de determinado banco e determinado fundo
público.
Relatórios que continham essas fotos foram reunidos pelo auditor-fiscal do
trabalho Cláudio Secchin e o assunto inserido na pauta de reuniões do Grupo
Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF), instituído pelo Decreto nº
1.538, de 27 de junho de 1995. O GERTRAF era constituído por representantes do
Ministério do Trabalho, Ministério da Justiça, Ministério do Meio Ambiente, dos
Recursos Hídricos e da Amazônia Legal, Ministério da Agricultura e do Abastecimento,
Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo, Ministério da Previdência e
Assistência Social e pelo Gabinete do Ministro de Estado Extraordinário de Política
Fundiária.
No ano de 2002, nas três últimas reuniões do GERTRAF, o Grupo chegou à
conclusão de que o governo brasileiro estava financiando indiretamente a prática de
trabalho escravo no país, por meio de fundos constitucionais, principalmente os
administrados pelo então Ministério da Infraestrutura.
Desse modo, o grupo propôs que o governo deveria bloquear financiamentos a
pessoas que utilizassem esses recursos às custas da dignidade de trabalhadores. A
proposta foi apoiada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio da
então Coordenadora Nacional de Projetos para Erradicação do Trabalho Escravo no
Brasil, Patrícia Souto Audi.
Esse problema foi levado ao Ministério da Infraestrutura, órgão que gerenciava
fundos constitucionais e regionais, para então ser avaliada uma forma de se evitar que
recursos públicos fossem usados para explorar trabalhadores a condições subumanas
de trabalho. O Cadastro só não foi efetivamente criado no final de 2002 porque estava

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

302
acabando o governo de Fernando Henrique Cardoso e se iniciaria o governo de Luiz
Inácio Lula da Silva, momento em que cargos chave para a implementação dessa
iniciativa teriam novos ocupantes.
De toda forma, foi elaborada pela Divisão de Apoio à Fiscalização Móvel
(DAFM) da então Secretaria de Fiscalização do Trabalho (SEFIT) a minuta de um
documento que representasse um compromisso de transparência e que pudesse ser
utilizado como base confiável para o governo evitar a concessão de financiamento a
empregadores que já tivessem submetido trabalhadores à condição análoga à de
escravo. Esse trabalho foi realizado pelos auditores-fiscais do trabalho Cláudio
Secchin (então chefe da DAFM) e Valdiney Arruda.
Valdiney Arruda foi o responsável por apresentar essa minuta para o Ministério
da Integração, a fim de explicar o problema que foi identificado na DAFM e ouvir a
opinião dos técnicos daquele Ministério. A primeira versão foi elaborada no formato
de termo de cooperação. Em 2002, após algumas reuniões, estavam esclarecidos as
particularidades e os limites de competência da gestão dos fundos constitucionais,
bem como alinhados todos os aspectos técnicos de aplicabilidade da proposta. Nesse
momento ficou definido que a forma do ato administrativo deveria ser por meio de
portarias do Ministério da Integração e do Ministério do Trabalho e Emprego.
Esse trabalho foi passado para a nova gestão do governo federal e a então
Secretária de Inspeção do Trabalho, Ruth Beatriz Vilela, deu continuidade a esse
trabalho prévio, junto ao então Ministro do Trabalho e Emprego Jacques Wagner.
Paralelamente, o Secretário Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República, Nilmário Miranda, manifestava apoio a essa iniciativa.
Em 2003 foi lançado o 1º Plano Nacional Para a Erradicação do Trabalho
Escravo, o qual previa em uma de suas metas a criação do Conselho Nacional de
Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) vinculado à Secretaria Especial dos
Direitos Humanos da Presidência da República. O GERTRAF foi extinto nesse mesmo
ano, dando lugar à Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo
(CONATRAE), criada pelo Decreto de 31 de julho de 2003.
O 1º Plano também continha como meta a aprovação do Projeto de Lei nº
2.022/1996, de autoria do Deputado Eduardo Jorge, que dispunha sobre as “vedações
à formalização de contratos com órgãos e entidades da administração pública e à

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

303
participação em licitações por eles promovidas às empresas que, direta ou
indiretamente, utilizem trabalho escravo na produção de bens e serviços”. Ou seja,
um ano após o início da política pública de combate ao trabalho escravo com a criação
do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), já havia proposta legislativa para
que o Estado não adquirisse bens oriundos da exploração da dignidade dos
trabalhadores.
Outra meta prevista no 1º Plano era que o Banco Central e o Ministério da
Fazenda inserissem cláusulas impeditivas para obtenção e manutenção de crédito
rural e de incentivos fiscais nos contratos das agências de financiamento, quando
comprovada a existência de trabalho escravo.
Como decorrência do trabalho prévio de alinhamento normativo feito pela
Inspeção do Trabalho com o Ministério da Integração, das discussões no âmbito do
GERTRAF e de um Plano Nacional que representava um esforço coletivo de várias
instituições no combate à escravidão contemporânea, o Cadastro de Empregadores
começou a tomar forma vencendo a barreira de uma mudança de gestão do governo
federal.
Nesse cenário, os princípios de transparência dos atos da Inspeção do
Trabalho e de financiamento governamental responsável sobreviveram à transição de
governos, uma vez que esses princípios são superiores à alternância de poder exigida
pelo regime democrático, pois possuem raiz em fundamentos do Estado brasileiro,
como a dignidade humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Antes mesmo da criação do Cadastro de Empregadores, a Portaria nº 101, de
12 de janeiro de 1996, do Ministério do Trabalho, previa o envio de relatórios
circunstanciados da Inspeção do Trabalho, que fossem conclusivos quanto a
condições degradantes de trabalho, ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA), para subsidiar proposta de ação desapropriação por desvirtuamento
da função social da propriedade:

Art. 1º O Ministério do Trabalho ao constatar, por via da Fiscalização, que em


função dos dispositivos violados, os trabalhadores, naquela propriedade, são
submetidos a forma degradantes de trabalho, desvirtuando a função
social da propriedade, encaminhará relatório circunstanciado ao Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a fim de subsidiar
proposta de ação de desapropriação, de acordo com o art. 2º § 1º, da Lei
Complementar nº 76, de 06 de junho de 1993. (grifo nosso)

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

304
Art. 2º Para os fins previstos no art. 1º desta Portaria, a Secretaria de
Fiscalização do Trabalho - SEFIT ou a Secretaria de Segurança e Saúde no
Trabalho - SSST, à vista dos relatórios expedidos pela fiscalização móvel,
verificará a reincidência do descumprimento das normas trabalhistas básicas
e as de Segurança e Saúde e emitirá relatório circunstanciado.
Parágrafo único. O relatório será instruído com cópias autênticas dos autos
de infração lavrados e cópias das decisões proferidas na forma do parágrafo
único do art. 635 da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, bem como
cópias das notificações e orientações emitidas pelo agente da inspeção do
trabalho.

A Portaria nº 1.234, de 17 de novembro de 2003, revogou a Portaria nº


101/1996 e regulamentou o envio das informações sobre condições degradantes de
trabalho ou condições análogas à de trabalho escravo2, além de avançar sobre outro
aspecto, considerando que benefícios fiscais para desenvolvimento regional devem
propiciar trabalho justo e digno. Entretanto, uma ligação com a portaria anterior ainda
se manteve ao ressaltar que a função social da propriedade rural deve compreender
seu aproveitamento racional e desenvolvimento sustentável.
A Portaria nº 1.234/2003 simplificou a forma de envio da informação e ampliou
os órgãos destinatários em relação às normas previstas na portaria anterior. Por outro
lado, ainda não previa uma publicação ampla a toda a sociedade sobre os
empregadores que tivessem sido flagrados submetendo trabalhadores a condições
análogas às de escravo, mas sim o envio dessa informação a órgãos específicos.
Também foi previsto o envio de informações complementares, como relatórios de
fiscalização, caso fossem solicitadas pelos órgãos destinatários da relação de
empregadores.
Publicada no Diário Oficial da União no mesmo dia que a Portaria nº
1.234/2003, a Portaria MIN nº 1.150, de 18 de novembro de 2003, impunha
determinação para que a gestão de fundos constitucionais e regionais recomendasse
aos agentes financeiros a não concessão de financiamentos com recursos do
Ministério da Integração Nacional a pessoas físicas e jurídicas que integrassem
relação de empregadores e de propriedades rurais que submetessem trabalhadores
a formas degradantes de trabalho ou que os mantivessem em condições análogas ao

2A modalidade de condição degradante de trabalho só foi relacionada no código penal como


condição análoga à de escravo em 11/12/2003, com a publicação da Lei nº 10.8030.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

305
de trabalho escravo, cujas autuações com decisão administrativa fossem de
procedência definitiva, publicada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
Com isso, as instituições financeiras passaram a adotar as recomendações do
Ministério da Integração Nacional3:

Em respeito às recomendações feitas pelo MI às instituições financeiras


representadas pelo Banco do Brasil, Banco do Nordeste do Brasil e Banco da
Amazônia, os gestores de fundos constitucionais de financiamento não
concedem créditos, de qualquer espécie, àqueles que têm seus nomes
inclusos na “lista suja”. Em dezembro de 2005, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES anunciou que passaria a
assumir igual comportamento. Igualmente, o Ministério do Desenvolvimento
Agrário faz uso da “lista suja” em formalização de contratos e
financiamentos. Além desses órgãos, podemos citar a Federação Brasileira
de Bancos – FEBRABAN, principal entidade representativa do setor bancário
brasileiro, que vem recomendando aos bancos privados a não cessão de
créditos aos infratores autuados pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel
– GEFM.

A primeira relação dos empregadores que tinham submetido trabalhadores a


condições análogas às de escravo encaminhada aos órgãos constantes dos incisos I
a V da Portaria nº 1.234/2003 foi publicada pela Repórter Brasil em novembro de 2003,
com informações da Agência Brasil4.
De 1995 a 2003, quase a totalidade dos resgates ocorreram no meio rural,
conforme mostra o Radar do Trabalho Escravo da Subsecretaria de Inspeção do
Trabalho (SIT)5. Isso explica o porquê desses instrumentos estarem preocupados com
a função social da propriedade rural e com o financiamento responsável de atividades
econômicas rurais.
Apenas em 2004 o Cadastro de Empregadores ganhou identidade própria,
constando formalmente em um ato normativo e com denominação específica. O
apelido “lista suja” surgiu antes mesmo de sua denominação oficial e o Cadastro
atualmente ainda é mais conhecido por esse epíteto. A Portaria nº 540, de 15 de
outubro, publicada no Diário Oficial da União em 19/10/2004 criou o Cadastro de

3 ANDRADE, Cintia Freitas. O combate ao trabalho em condições análogas à escravidão: “lista suja”.
Brasília, 2012.
4 LISTA de empresas que usam trabalho escravo. Repórter Brasil. São Paulo, 19 nov. 2003.

Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2003/11/lista-de-empresas-que-usam-trabalho-escravo/>.


Acesso em: 20 jun. 2020.
5 Conforme dados extraídos em 01/07/2020 do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do

Trabalho no Brasil: https://sit.trabalho.gov.br/radar.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

306
Empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas à de
escravo, embora o seu conteúdo na figura da “lista suja” já tivesse sido criado ao final
de 2003.
Além da nomenclatura oficial, o Cadastro previu princípios constitucionais do
contraditório e ampla defesa ao auto de infração em que fosse descrita a condição
análoga à de escravo, embora isso já fosse levado em consideração na elaboração
da relação de empregadores da Portaria nº 1.234/2003. A periodicidade de
atualização continuou semestral, sendo que caberia ao Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE) dar conhecimento do Cadastro aos órgãos listados nos incisos I a VIII
do art. 3º. Nesse ponto, cabe ressaltar a necessidade de se dar ciência das
atualizações a outros órgãos que não fazem parte do Poder Executivo Federal: o
Ministério Público do Trabalho e o Ministério Público Federal.
Outro ponto inédito foi criação de uma regra para exclusão, a qual ocorreria no
prazo de dois anos, no qual a Fiscalização do Trabalho monitoraria os empregadores.
A exclusão ocorreria nesse prazo com mais três condicionantes: se não fosse
constatada reincidência, se o empregador tivesse pagado as multas relativas aos
autos de infração lavrados na ação fiscal e desde que comprovada a quitação de
débitos trabalhistas e previdenciários.
O Cadastro, apesar de ter sido criado oficialmente em 2004, em sua primeira
publicação já constava a base de dados anterior, da Portaria nº 1.234/2003, com a
inclusão de empregadores mais antiga datada de novembro de 2003, mesmo mês de
publicação da portaria. A Portaria nº 540/2004 não tratou sobre a publicação ou a sua
forma, por ser um ato implícito da própria essência de transparência do Cadastro.
Em 2010 ainda era muito estreita a relação de trabalho análogo ao de escravo
com o meio ambiente rural. Das 1.288 ações fiscais realizadas pela Inspeção do
Trabalho em que os auditores-fiscais constataram trabalho escravo, apenas 53 foram
no meio urbano, conforme dados do Radar do Trabalho Escravo da SIT. Ou seja, 95%
dos resgates de trabalhadores ocorreram no meio rural.
Nesse ano, o Banco Central do Brasil vedou a concessão de crédito rural para
pessoas físicas e jurídicas inscritas no Cadastro de Empregadores, por meio da
Resolução nº 3876 do Conselho Monetário Nacional:

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

307
RESOLUÇÃO Nº 3876
Veda a concessão de crédito rural para pessoas físicas ou jurídicas que estão
inscritas no Cadastro de Empregadores que mantiveram trabalhadores em
condições análogas à de escravo instituído pelo Ministério do Trabalho e
Emprego.
O Banco Central do Brasil, na forma do art. 9º da Lei nº 4.595, de 31 de
dezembro de 1964, torna público que o Conselho Monetário Nacional, em
sessão realizada em 22 de junho de 2010, tendo em vista as disposições do
art. 4º, inciso VI, da Lei nº 4.595, de 1964, dos arts. 3º, inciso IV, 4º e 14 da
Lei nº 4.829, de 5 de novembro de 1965, e dos arts. 3º e 48 da Lei nº 8.171,
de 17 de janeiro de 1991,
RESOLVEU:
Art. 1º Fica vedada às instituições financeiras integrantes do Sistema
Nacional de Crédito Rural (SNCR) a contratação ou renovação, ao amparo
de recursos de qualquer fonte, de operação de crédito rural, inclusive a
prestação de garantias, bem como a operação de arrendamento mercantil no
segmento rural, a pessoas físicas e jurídicas inscritas no Cadastro de
Empregadores que mantiveram trabalhadores em condições análogas à de
escravo instituído pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em razão de
decisão administrativa final relativa ao auto de infração.
Art. 2º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 22 de junho de 2010.
Henrique de Campos Meirelles
Presidente

Em 2011 o Cadastro se revestiu da forma de ato conjunto do Ministério do


Trabalho e Emprego da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República,
nos termos da Portaria Interministerial MTE/SEDH nº 2, de 12 de maio de 2011.
Apesar da união de vontade de dois órgãos, a nova portaria trouxe poucas mudanças
materiais no Cadastro, mas, dentre elas, rebatizou-o como Cadastro de
Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de
escravo, com é atualmente, com alteração do verbo “mantido” da portaria anterior para
“submetido”.
A Portaria Interministerial nº 2/2011 encontrou uma barreira em 30/12/2014,
quando o Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF),
proibiu6, em caráter liminar, sua divulgação, atendendo a um pedido no bojo da Ação
Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 5209.
No ano seguinte, a Portaria Interministerial MTE/SEDH nº 2, de 31 de março de
2015, revogou a Portaria Interministerial nº 2/2011, com a intenção de que o STF
declarasse a perda de objeto da ADIN, mas essa portaria nunca teve efeitos práticos.

6STF suspende divulgação de nomes de exploradores de trabalho escravo. Agência Brasil. Brasília,
31 dez. 2014. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2014-12/stf-proibe-
ministerio-do-trabalho-de-divulgar-lista-suja-do-trabalho-escravo>. Acesso em: 20 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

308
De toda forma, ela previu novas normas, como a organização e a divulgação do
Cadastro no sítio eletrônico do MTE, pela Divisão de Fiscalização para Erradicação
do Trabalho Escravo (DETRAE), assim como o acompanhamento das atualizações
do Cadastro pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo
(CONATRAE).
Pouco mais de um ano após a vigência da liminar de suspensão do Cadastro
de Empregadores, em maio de 2016, foi editada a Portaria Interministerial
MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de maio de 2016, em ato conjunto à época do Ministro do
Trabalho e Previdência Social e da Ministra das Mulheres, da Igualdade Racial, da
Juventude e dos Direitos Humanos, que apresentava soluções ao litígio. No mesmo
mês, a Ministra Cármen Lúcia, do STF, cassou a liminar que impedia a publicação do
Cadastro, impondo perda de objeto da ADI, e afirmou em sua decisão que a redação
da nova portaria interministerial havia sanado os pontos questionados no processo7.
A Portaria Interministerial nº 4/2016, além de preservar os dispositivos da
portaria anterior, como a organização e divulgação do Cadastro pela DETRAE e o seu
acompanhamento pela CONATRAE, trouxe um dispositivo inédito: a possibilidade de
o empregador celebrar Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou acordo judicial
com a União:

Art. 5º A União poderá, com a necessária participação e anuência da


Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência
Social, e observada a imprescindível autorização, participação e
representação da Advocacia-Geral da União para a prática do ato, celebrar
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou acordo judicial com o
administrado sujeito a constar no Cadastro de Empregadores, com objetivo
de reparação dos danos causados, saneamento das irregularidades e adoção
de medidas preventivas e promocionais para evitar a futura ocorrência de
novos casos de trabalho em condições análogas à de escravo, tanto no
âmbito de atuação do administrado quanto no mercado de trabalho em geral.

O acordo deve possuir compromissos mínimos previstos na própria portaria e,


uma vez celebrado o TAC ou acordo judicial, o compromissado pode deixar de figurar
no Cadastro propriamente dito, mas sim constar de uma segunda relação de
empregadores que tenham assumido compromissos robustos de combate ao trabalho

7BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.209, Relatora Ministra
Cármen Lúcia Brasília, DF, 16 de maio de 2016. Distrito Federal. Disponível em:
<https://www.migalhas.com.br/arquivos/2016/5/art201605>. Acesso em: 20 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

309
análogo ao de escravo, desde reparação de direitos, inserção de trabalhadores
resgatados no mercado de trabalho decente e ações de prevenção. Esse
procedimento é de competência da Advocacia Geral da União (AGU), mas termos de
compromisso celebrados com o Ministério Público do Trabalho (MPT) também podem
ser aproveitados para esse fim, desde que cumpridos os requisitos mínimos previstos
na Portaria Interministerial nº 4/2016.
Todos os sucessivos atos normativos que regulamentam o Cadastro de
Empregadores desde 2003 contribuíram para que essa iniciativa fosse reconhecida
nacional e internacionalmente como uma boa prática da Inspeção do Trabalho.

3 TRANSPARÊNCIA COMO MODELO DE ATUAÇÃO

O trabalho realizado em condição análoga à de escravo, sob todas as formas,


constitui atentado aos direitos humanos fundamentais e à dignidade do trabalhador,
sendo dever dos auditores-fiscais do Trabalho combater a sua prática. Segundo a
Subprocuradora-Geral da República Raquel Dodge, a divulgação dos resultados
dessa política pública e a transparência dos atos da Inspeção do Trabalho atendem a
princípios constitucionais8:

A Portaria Interministerial 4/2016, assim como as demais impugnadas já


revogadas, nada mais é do que instrumento administrativo concebido para
dar concretude aos princípios constitucionais da publicidade, da
transparência da ação governamental e do acesso à informação.

A Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, conhecida como Lei de Acesso à


Informação (LAI), regula o acesso a informações, conforme o previsto no inciso XXXIII
do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal.
Em seu art. 8º9, a LAI prevê a transparência ativa dos órgãos, ou seja,
independentemente do requerimento de interessados:

8 MPF: lista suja do trabalho escravo é legítima e se baseia no princípio da transparência.


Procuradoria-Geral da República. Brasília, 3 jul. 2018. Disponível em:
<http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-lista-suja-do-trabalho-escravo-e-legitima-e-se-baseia-no-
principio-da-transparencia>. Acesso em: 20 jun. 2020.
9 Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a

divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse


coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

310
A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu em 2016 que a criação
do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, coordenado pela auditoria-fiscal do
trabalho, é uma das iniciativas fundamentais ao enfrentamento do trabalho escravo
contemporâneo promovidas pelo governo brasileiro, assim como a criação do
Cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condição análoga
à de escravo.
Em 2019, um estudo da Organização Internacional para Migrações (OIM) e do
Foreign Commonwealth Office do Reino Unido para contribuir com o desenvolvimento
e o fortalecimento de políticas públicas e programas para enfrentamento da
escravidão moderna elogiou o combate ao trabalho escravo no Brasil e definiu o
Cadastro de Empregadores como o maior instrumento de identificação de
empregadores que submetem trabalhadores a condições análogas às de escravo.
Sobre a vitimização de empregadores incluídos na “lista suja” e a corrida ao
Poder Judiciário para ocultar a divulgação de casos de trabalho escravo, a
Organização Internacional do Trabalho (OIT)10 se manifestou em 2007:

Curiosamente, no entanto, a utilização do epíteto “Lista Suja” parece projetar


também um efeito reverso, qual seja, o de vitimizar os empregadores
incluídos no referido cadastro de modo a permitir que, no bojo das mais
diversas ações judiciais com que tentam ver seus nomes excluídos do
cadastro, tentem sensibilizar o Poder Judiciário para a obtenção de decisões
favoráveis, em especial as de caráter liminar (...) os empregadores quase
sempre se apresentam como indivíduos produtivos e altruístas que
empreendem seus negócios com vistas ao crescimento do país, gerando
empregos e pagando impostos. Dentro desse contexto, o fato de cometer
“irregularidades trabalhistas” — modo como usualmente se referem às
práticas que caracterizam o trabalho escravo — parece-lhes algo normal e
corriqueiro. Igualmente, julgam absurda a possibilidade de que sejam
surpreendidos com a inclusão de seus nomes num cadastro que os exponha
ao público de forma negativa”.

Em outra publicação, a OIT ressalta o papel das empresas, o caráter


pedagógico do Cadastro e o efeito multiplicador indireto das ações de inspeção do
trabalho11:
No Brasil, o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo é um
processo paralelo às inspeções trabalhistas, que relaciona compromissos
das empresas para acabar o trabalho forçado em suas próprias operações e

10 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Possibilidades Jurídicas de Combate à


Escravidão Contemporânea. Brasília, 2007.
11 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Labour inspection and private compliance

initiatives: Trends and issues. Genebra, 2013.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

311
cadeias de fornecimento, e desistir de negociar com empresas que fazem uso
de trabalho forçado, como detectados e listados publicamente pela
autoridade de inspeção do trabalho. Esse processo aprimora a fiscalização
do trabalho, espalhando seus efeitos dissuasivos para empresas que não
foram diretamente sujeitos a inspeção ou investigação.

O Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, foi resultado de um


estudo aprofundado de cadeias produtivas relativas a nomes incluídos no Cadastro
de Empregadores, segundo um estudo da OIT de 200612:

Essa é a primeira etapa do envolvimento do setor privado para que a


responsabilidade social das empresas fale mais alto diante desses crimes
contra os direitos humanos. Em parceria com a ONG Repórter Brasil e a
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, foi identificada a cadeia produtiva
da escravidão no Brasil com base nas “listas sujas” acima mencionadas. Sob
o apoio e a supervisão do Instituto Ethos, foi feito um alerta à sociedade para
que as empresas socialmente responsáveis cortassem os contratos com
fornecedores que estivessem inseridos nessa teia que utiliza mão-de-obra
escrava. O resultado desse trabalho foi o Pacto Nacional pela Erradicação ao
Trabalho Escravo, que foi assinado no dia 19 de maio de 2005 em duas
solenidades na Procuradoria-Geral da República e no Conselho de
Desenvolvimento Econômico e Social, por mais de 80 empresas públicas e
privadas.

O Cadastro de Empregadores, ironicamente, em dezembro de 2014 (mesmo


mês em que foi suspenso por liminar do STF) recebeu da Controladoria Geral da
União (CGU) um prêmio da categoria Promoção da transparência ativa e/ou passiva,
conforme informado pelo então chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do
Trabalho em Condições Análogas à de Escravo (DETRAE), o auditor-fiscal do trabalho
Alexandre Lyra, em entrevista à Repórter Brasil13: “Ficamos surpresos com a liminar
impeditiva, ainda mais considerando o momento em que o cadastro ganhou
justamente por dar transparência às ações do poder público”.
A Comissão do Setor Financeiro da Iniciativa de Liechtenstein sobre Escravidão
Moderna e Tráfico de Pessoas foi criada a partir de uma demanda de um grupo
formado pelos colegiados G7, G20, Assembleia Geral das Nações Unidas e Conselho
de Segurança das Nações Unidas para que os governos fizessem parceria com o
setor privado para abordar escravidão moderna e tráfico de pessoas.

12 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI.


Brasília, 2006.
13 AÇÃO de construtoras barra publicação da ‘lista suja’ do trabalho escravo. Repórter Brasil. São

Paulo, 30 dez. 2014. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/2014/12/lobby-de-construtoras-


barra-publicacao-da-lista-suja-do-trabalho-escravo/>. Acesso em: 20 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

312
Em seu relatório de setembro de 2019, essa comissão, ao enaltecer em várias
partes do mundo instrumentos chave contra a escravidão e contra o tráfico de
pessoas, cita a Federal Dirty List (Lista Suja Federal, tradução livre), bem como a
consistência e confiabilidade dos dados que ela publica:

Desde o início dos anos 2000, o governo brasileiro mantém e publica uma
lista de empresas flagradas (por meio de inspeções trabalhistas de campo)
utilizando trabalho escravo. A inclusão nessa lista se tornou um indicador-
chave pelo qual o setor financeiro brasileiro avaliava o risco social em suas
atividades. Relações reais e potenciais, com o governo recomendando
formalmente essa abordagem.
Instituições financeiras públicas e privadas, incluindo o Banco do Brasil, o
Banco da Amazônia, o Banco do Nordeste e o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), recusaram crédito a
empresas incluídas na lista suja - nome coloquial do banco de dados emitido
pelo governo dos empregadores responsáveis pelo uso do trabalho escravo
- com bancos privados protegidos contra ações legais pelo fato de a lista ter
sido emitida pelo governo (tradução livre).

Mais recentemente, no Trafficking in Persons Report 2020 (Relatório de Tráfico


de Pessoas 2020, tradução livre) do governo do Departamento de Estado dos Estados
Unidos da América (EUA), em capítulo específico sobre o Brasil, o Cadastro de
Empregadores foi citado como uma das ferramentas mais eficazes de enfrentamento
ao trabalho escravo:

As autoridades não fizeram esforços para reduzir a demanda por atos sexuais
comerciais. No entanto, as autoridades fizeram esforços para reduzir a
demanda por trabalho forçado. A SIT publicou a lista suja, que tornou públicos
os nomes de indivíduos e empresas responsabilizadas por utilizar trabalho
escravo.
(...)
Enquanto a lista suja continua sendo uma das ferramentas mais eficazes do
Brasil para reduzir a demanda por trabalho escravo, a criminalização
inadequada desses crimes dificultou o progresso na luta contra o tráfico para
exploração laboral.

Percebe-se nesse relatório, a importância do Cadastro na visão do governo dos


EUA, colocando-o em posição de destaque histórico no combate ao trabalho escravo.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou constitucional a
criação do Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à
condição análoga à de escravo, a chamada “lista suja do trabalho escravo”. A decisão,
por maioria de votos, foi proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

313
Fundamental (ADPF) 509, ajuizada pela Associação Brasileira de Incorporadoras
Imobiliárias (Abrainc), na sessão virtual encerrada em 14/9/2020.
O único voto contrário ao do ministro Marco Aurélio Mello, relator da ação, foi o
do ministro Alexandre de Moraes, pelo não reconhecimento da legitimidade da Abrainc
em propor a ADPF. Esse posicionamento da Suprema Corte significou o
reconhecimento da constitucionalidade da Portaria Interministerial MTE/MMIRDH nº
4, de 11 de maio de 2016 e, consequentemente, do Cadastro de Empregadores.
A decisão do STF é de extrema importância e vem confirmar que a publicação
do Cadastro de Empregadores significa o exercício de transparência ativa exercido
pela Administração, consoante o princípio constitucional da publicidade e, em nível
infraconstitucional, com amparo na Lei de Acesso à Informação.
Outros países também se utilizam de ferramenta similar, mas com o mesmo
princípio de transparência para atos da Inspeção do Trabalho que, pela importância
de seu conteúdo, são de interesse público.

4 ANÁLISE COMPARADA DA TRANSPARÊNCIA DOS ATOS DA INSPEÇÃO DO


TRABALHO EM OUTROS PAÍSES

A Inspeção do Trabalho no Reino Unido publica regularmente os atos


administrativos similares aos de embargo e interdição praticados no Brasil, onde a
Norma Regulamentadora nº 3 (NR-3, Embargo e Interdição)14 define as diretrizes para
caracterização de grave e iminente risco de acidente ou doença com grave lesão ao
trabalhador, bem como dispõe sobre os instrumentos de embargo e interdição que
devem ser adotados pelos auditores-fiscais do trabalho.
Dois tipos de atos administrativos com força executória são praticados como
medidas de emergência no Reino Unido, os avisos de proibição e os avisos de
melhoria15:

14 BRASIL. Norma Regulamentadora nº 3. Disponível em:


<https://enit.trabalho.gov.br/portal/images/Arquivos_SST/SST_NR/NR-03-atualizada-2019.pdf>.
Acesso em: 20 jun. 2020.
15 SCIENZA, Luiz Alfredo e RODRIGUES, Otávio Kolowski. Grave e Iminente Risco

à Integridade dos Trabalhadores: superando a morte e a desinformação. In: FILGUEIRAS, Vitor


Araújo. Saúde e Segurança do Trabalho no Brasil. Brasília, 2017.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

314
O estudo comparado das disposições legais relacionadas aos procedimentos
de igual natureza do embargo e interdição brasileiros revela seu precípuo
caráter cautelar, diante da gravidade do risco à integridade dos trabalhadores.
Há uma base conceitual homogênea: são medidas de urgência, vinculadas
ao poder dever do Estado em fazer cessar a exposição ao risco. Já suas
rotinas de aplicação são estabelecidas sob formas diversas, conforme os
costumes e práticas nacionais. No Reino Unido, o serviço estatal de inspeção
do trabalho em segurança e saúde - o Health and Safety Executive (HSE) –
é o responsável pela sua execução. As seções 22 e 23 do Health and Safety
at Work etc Act (HSWA)16 permitem que os inspetores do HSE emitam um
Aviso de Proibição (Prohibition Notice), determinando a paralisação imediata
da atividade que esteja induzindo ou que possa vir, futuramente, a induzir
riscos de lesões graves. O aviso pode ser emitido em nome de qualquer
pessoa no controle de um processo ou planta, sem prejuízo de outras
disposições. Se o inspetor tiver motivos razoáveis para acreditar que exista
risco de graves lesões, sequer é necessária a expressa violação de uma
disposição legal para a sua validade. O aviso não pode ser suspenso por um
recurso administrativo, mas o requerente poderá apelar para um tribunal do
trabalho, buscando a eventual suspensão do efeito, até o seu efetivo
julgamento. Os avisos de proibição são publicados e mantidos em um registro
on line de acesso universal, durante um período de cinco anos. Infrações
menores que exijam correção, porém sem paralisação da atividade, são
denominadas improvement notice.

A publicação do HSE difere do Cadastro de Empregadores que tenham


submetido trabalhadores a condições análogas às de escravo, principalmente pelo
volume de dados e tipo de acesso, pois em pesquisa realizada em 16/6/2020, ele
reunia 41.451 registros e possui ferramentas de busca por tipo de aviso e por região,
dentre outras.
De forma similar como o Cadastro de Empregadores no Brasil é conhecido
como “lista suja”, o Cadastro do HSE é chamado de name and shame website (página
de expor e constranger, tradução livre). Conforme Relatório de Pesquisa 339 do HSE,
intitulado Promoting health and safety as a key goal of the Corporate Social
Responsibility agenda (Promover a saúde e a segurança como objetivo principal da
agenda de Responsabilidade Social Corporativa, tradução livre), a Comissão
Executiva de Saúde e Segurança do HSE (HSC/E) não possui a necessidade de expor
e ou constranger, mas deve continuar a informar e a educar, sendo que qualquer
suposição de que uma empresa possa estar em desvantagem no mercado como
resultado de seu desempenho em saúde e segurança ocupacional servirá para torná-
la um problema material.

16Health and Safety at Work etc Act (HSWA), ato do Parlamento do Reino Unido que define a
estrutura e autoridade para a regulação para a saúde, segurança e bem estar nos locais de trabalho.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

315
Associado a isso, o relatório informa que, de acordo com pesquisa de compra
ética, a Fundação Nova Economia descobriu que 52% dos consumidores tinham
alguma vez boicotado um produto ou serviço por razões éticas. Dessa forma, um fato
como não adotar uma gestão adequada de saúde de segurança no trabalho se
tornaria um problema real, com prejuízos financeiros à empresa infratora que fosse
flagrada submetendo seus trabalhadores a risco de acidente ou adoecimento no
trabalho.
Caso a preocupação com a integridade física e mental dos trabalhadores não
seja suficiente para a adoção de medidas de saúde e segurança ocupacional, a
preocupação com a saúde financeira da empresa cumpriria indiretamente o papel de
promover o trabalho decente e seguro.
A própria Comissão Executiva de Saúde e Segurança do HSE (HSC/E)
reconhece no Relatório de Pesquisa 339 que entre as atividades mais problemáticas
do HSE quanto à objetividade de suas funções regulatórias é a política “name and
shame” e homologar práticas de empresas. Entretanto, consideram que a
Responsabilidade Social Empresarial (RSE) possui um poder maior em elevar o perfil
da saúde e segurança ocupacional nas empresas, provendo uma pressão “de cima
para baixo” sobre aspectos ambientais e sociais, enquanto o HSE pode promover uma
abordagem “de baixo para cima” entre as partes interessadas.
O resultado tende a seguir uma linha de solução do problema, como mostram
Scienza e Rodrigues (2018), em comparação à prática brasileira:

As decorrentes estatísticas do HSE britânico na aplicação de tais medidas,


quando comparadas com as de sua contraparte brasileira, revelam a
banalização radical da morte pelo trabalho em nosso país. Este serviço, no
biênio de 2014/2015, realizou 4.117 determinações para paralisação imediata
de atividades (prohibition notice) em face de riscos à integridade física de
trabalhadores (o equivalente ao nosso embargo e interdição) e 8.288
notificações para adoção de medidas corretivas (improvement notice), sem
efeito de paralisação17. Portanto, uma determinação de paralisação para cada
duas notificações sem efeito de paralisação, aproximadamente oito vezes
superior à média da inspeção do trabalho brasileira no mesmo período. Já o
estudo comparado de suas taxas de óbito (mesmo se ressalvando as
diferenças no conceito e abrangência da taxa) revela que o Reino Unido
possui 0,46 óbitos para cada grupo de 100 mil trabalhadores, ao passo que o
Brasil possui taxa oficial de 6 óbitos a cada 100 mil trabalhadores. Assim, é

17HEALTH AND SATEFY EXECUTIVE. Health and Safety Statistics. Annual Report for Great Britain
2014/2015. Disponível em <http://www.hse.gov.uk/statistics/overall/hssh1415.pdf>. Acesso em 19
mai. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

316
cerca de doze vezes mais provável a morte de um trabalhador brasileiro em
acidente de trabalho do que a de um trabalhador britânico – o que permite
inferir uma maior quantidade e severidade de situações de risco (inclusive as
passíveis de paralisação imediata) muito superior no Brasil.

Percebe-se que a Inspeção Britânica de saúde e segurança no trabalho (HSE)


buscou soluções além da própria regulação e fiscalização, em uma agenda de
responsabilidade social empresarial, onde a promoção do trabalho decente é um
problema de toda a sociedade.
Da mesma forma, o trabalho escravo contemporâneo não é um problema
apenas da Inspeção do Trabalho, no âmbito da apuração administrativa, ou apenas
da Polícia Federal ou do Ministério Público Federal, no âmbito da investigação penal,
mas sim de toda a sociedade, pois os efeitos deletérios dessa prática mancham o
tecido social.
O Fair Work Ombudsman (FWO), que é a agência do governo australiano
responsável pela inspeção do trabalho, anunciou em 3 de junho de 2019, em sua
página oficial18, as suas prioridades para o ano de 2020.
Dentre as prioridades anunciadas pela autoridade máxima do órgão, Sandra
Parker, está a de que o órgão nomearia publicamente os empregadores que
infringissem as leis trabalhistas para divulgar a mensagem de que não é aceitável
pagar menos aos trabalhadores ou privá-los de seus direitos.
Iniciativa semelhante já foi colocada em prática no Reino Unido, onde o
Department for Business, Energy and Industrial Strategy (BEIS) do HM Revenue and
Customs (HMRC) publica o nome dos empregadores que tenham pagado salários
abaixo do salário mínimo nacional.
Em 15/2/2017 foi publicada em um aviso à imprensa19 com o nome de 359
empregadores que deixaram de pagar o salário mínimo a seus empregados. A
Ministra de Negócios, Margot James, afirmou que “Todo trabalhador no Reino Unido
tem direito a pelo menos o salário mínimo nacional e este governo garantirá que eles
o recebam”. Sobre a política de name and shame ela declarou que “É por isso que

18https://www.fairwork.gov.au/
19RECORD number of employers named and shamed for underpaying. Governo Britânico. Londres,
15 fev. 2017. Disponível em <https://www.gov.uk/government/news/record-number-of-employers-
named-and-shamed-for-underpaying>. Acesso em 19 jun.2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

317
nomeamos mais de 350 empregadores que não pagaram o mínimo legal, enviando
uma mensagem clara aos empregadores, de que os abusos de salário mínimo não
ficarão impunes.” (tradução livre).
A publicação possui, além dos nomes dos empregadores, o número de
trabalhadores prejudicados e os respectivos valores dos salários não pagos:

The 359 employers named today are:


1. Debenhams Retail plc, London NW1, failed to pay £134,894.83 to 11,858
workers.
2. Pembrokeshire Care Limited, Haverfordwest SA61, failed to pay
£55,056.75 to 154 workers.
3. Mr Lorenzo Berni trading as Osteria San Lorenzo, London SW3, failed to
pay £53,496.57 to 29 workers.
4. 4.Tag Hotel Limited trading as Aviator Hotel, Farnborough GU14, failed to
pay £32,094.17 to 37 workers.
5. 5. WH Recruitment Ltd, Portadown BT62, failed to pay £26,418.67 to 143
workers.
(...)

A referida publicação do BEIS é parte da execução da política de aplicação da


Lei do Salário Mínimo Nacional britânica, que tem a nomeação de empregadores
infratores como um dos seus pilares, detalhados em Política de aplicação do HM
Revenue and Customs (HMRC), processos e nomeação de empregadores que
infringem a Lei nacional do salário mínimo.
Da mesma forma que o Cadastro de Empregadores que tenham submetido
trabalhadores a condições análogas às de escravo, a publicação britânica não publica
o nome de empregadores que tenham apelado em grau de recurso ainda não julgado,
ou seja, também obedece a princípios de contraditório e ampla defesa.
A Inspeção do Trabalho (Labour Inspectorate) da Nova Zelândia publica a
Stand Down List (Lista de Espera, tradução livre), cuja última atualização consultada
para elaboração deste artigo foi a de 17 de junho de 2020. A Lista relaciona
empregadores que tenham violado padrões mínimos de emprego e explorado seus
trabalhadores.
Os efeitos dessa lista são diretamente relacionados à contratação de
migrantes, sendo que o empregador permanece na Lista de Espera por dois anos sem
poder contratar migrantes com visto para trabalhar no país. A Lista é a base de dados
que a Imigração neozelandesa utiliza para qualificar a idoneidade de um empregador
para aplicação de visto de trabalho de migrantes.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

318
No mesmo documento da Lista de Espera, a Inspeção do Trabalho ressalta
princípios de publicidade e que os efeitos individuais porventura sentidos são medidas
executadas pelas autoridades de migração:

As informações do "período de espera" contidas nesta tabela são mantidas


pela Labour Inspetorate para uso da Imigração da Nova Zelândia,
conselheiros de imigração licenciados, empregadores e migrantes. A
Inspeção do Trabalho não determina o período de suspensão aplicável como
resultado da violação dos padrões de emprego de um empregador; isto está
definido nas instruções de imigração (tradução livre).

As medidas de restrição para contração de migrantes ocorrem na Nova


Zelândia desde 1º de abril de 2017. Os empregadores que tenham recebido
penalidade administrativa trabalhista, desde essa data, são vistos como não
conformes à legislação trabalhista e são incapazes de oferecer suporte a pedido de
visto no país. Os empregadores que tenham recebido multas por terem sido levados
à Autoridade de Relações de Emprego ou ao Tribunal do Trabalho,
independentemente da atuação da Inspeção do Trabalho, também estarão sujeitos à
inclusão na lista e a cumprir períodos de espera.
Na Lista neozelandesa, além da relação nominal, aponta quais legislações
pertinentes que foram violadas, dentre elas as de relações de emprego, trabalho aos
feriados e salário: Employment Relations Act 2000, Holidays Act 2003, Wages
Protection Act 1983. Além da natureza das infrações trabalhistas, outra considerável
diferença em relação ao Cadastro de Empregadores brasileiro é que os empregadores
neozelandeses que tenham apresentado recurso administrativo permanecem na Lista
de Espera até que o recurso seja julgado procedente, enquanto no Brasil apenas são
incluídos novos nomes apenas de processos que tenham decisão final publicada,
após esgotadas as instâncias administrativas recursais.
A Argentina possui desde 2014 o Registro Público de Empleadores con
Sanciones Laborales (REPSAL), que é uma publicação de ocorrências de infrações
trabalhistas que estão em um contexto de graves violações, segundo o governo
argentino. O chamado registro público de empregadores com infrações trabalhistas
no país vizinho foi criado em um contexto de combate à informalidade, por meio da
Lei nº 26.940, de 2014: Ley de Promoción del Trabajo Registrado y Prevención del
Fraude Laboral. arge

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

319
Segundo consta no portal do Ministério do Trabalho, Emprego e Seguridade
Social do governo argentino, a Lei de Promoção do Trabalho Formal e Prevenção de
fraude trabalhista possui dois tipos de ferramentas essenciais, o REPSAL e os
regimes de empregos de promoção do trabalho formal:

El REPSAL tiene por finalidad hacer públicas las sanciones firmes por trabajo
no registrado que sean aplicadas por la Secretaría de Gobierno de Trabajo y
Empleo, por la Administración Federal de Ingresos Públicos (AFIP), por las
autoridades provinciales y de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, por el
Registro Nacional de Trabajadores y Empleadores Agrarios (RENATEA), y
por la Superintendencia de Riesgos del Trabajo (SRT).

O REPSAL possui o registro das infrações confirmadas por trabalho não


registrado aplicadas por diferentes órgãos de fiscalização do governo argentino. Além
disso, nele também são publicadas as infrações por embaraço ou obstrução à
inspeção do trabalho, as sentenças judiciais por relações trabalhistas não
reconhecidas pelos empregadores, as sanções impostas por infração à Lei de
Proibição do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalho Adolescente e as sanções por
violação da Lei de Prevenção e Sanção do Tráfico de Pessoas e Assistências às
Vítimas.
Em resumo, o REPSAL comporta transparência em infrações como falta de
registro de empregados, embaraço à inspeção do trabalho, trabalho infantil e tráfico
de pessoas. Nesse conjunto de graves violações em matéria trabalhista, foram
associadas como graves aquelas que acarretam prejuízo manifesto ao trabalhador ou
à criança que, em razão do arcabouço jurídico de proteção, nem deveriam estar
trabalhando. Entretanto, o governo argentino elevou a esse patamar de gravidade as
infrações de embaraço e obstrução à atuação da inspeção do trabalho.
A partir desse ponto de vista, o REPSAL torna público o nome dos
empregadores que, direta ou indiretamente, causaram obstrução ao trabalho dos
inspetores do trabalho argentinos. Infração essa que contém, na maioria dos casos,
dolo do empregador, a intenção de dificultar a auditoria em seu estabelecimento por
tentativa de ocultar infrações trabalhistas.
Em 2020 (até 21 de junho), o Sistema Auditor, sistema de lavratura de autos
de infração da Inspeção do Trabalho, desenvolvido por auditores-fiscais do trabalho,

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

320
registrou 154 autos de infração lavrados por violação ao art. 630, § 3º, da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)20.
Em todo o ano de 2019 foram 581 autos de infração lavrados pela mesma
infração do art. 630 § 3º da CLT, tipificadas nas ementas 000439-1 (Dificultar o livre
acesso do AFT a todas as dependências dos estabelecimentos sujeitos ao regime da
legislação trabalhista) e 001405-2 (Deixar de prestar ao AFT os esclarecimentos
necessários ao desempenho de suas atribuições legais). Dentre as empresas
autuadas, constam empresas de grande porte e até mesmo empresas públicas.
Em 21/6/2020, o REPSAL possuía apenas 55 registros de empregadores
infratores, relacionado apenas a sentenças da justiça do trabalho argentina. Sendo
que apenas seis haviam ingressado no Registro em 23/1/2020 e os demais bem
recentemente, em 19/5/2020. O tempo de permanência do empregador no REPSAL
depende da infração cometida, do momento da regularização da mesma e do
pagamento da multa correspondente, podendo variar de 60 dias a 3 anos.
Logo, em primeira análise, pode-se inferir que o Registro argentino possui
grande eficiência no que diz respeito à regularização das infrações, tanto do ponto de
vista de correção retroativa, quanto de recolhimento do valor da multa devida relativa
à infração, uma vez que a maioria empregadores que nele constavam na data de
pesquisa cumpriam ainda o tempo mínimo de permanência.
O REPSAL possui inclusive um domínio exclusivo na página do governo
argentino: http://repsal.trabajo.gob.ar/. Há possibilidade de consulta por tipo de
infração, região, atividade econômica, órgão sancionador, além da possibilidade de
acessar a íntegra do Registro e seus dados em planilha.
A publicação da sanção no REPSAL implica para os empregadores
sancionados, enquanto permanecerem no Registro, a impossibilidade de:
a) acessar programas, ações de assistência ou promoção, benefícios ou
subsídios administrados, implementados ou financiados pelo Estado
nacional;

20§ 3º - O agente da inspeção terá livre acesso a todas dependências dos estabelecimentos sujeitos
ao regime da legislação, sendo as empresas, por seus dirigentes ou prepostos, obrigados a prestar-
lhes os esclarecimentos necessários ao desempenho de suas atribuições legais e a exibir-lhes,
quando exigidos, quaisquer documentos que digam respeito ao fiel cumprimento das normas de
proteção ao trabalho.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

321
b) acessar linhas de crédito concedidas por instituições bancárias públicas,
c) celebrar contratos de compra e venda, suprimentos, serviços, locações,
consultoria, aluguéis com opção de compra, permutas, concessões para
o uso de mercadorias de domínio público e privado do Estado nacional;
d) participar em concessões de obras públicas, concessões e licenças de
serviço público; e
e) acessar os benefícios econômicos da promoção de contratos.
Caso o empregador seja reincidente, no período de 3 anos, na mesma infração
que motivou sua inclusão no REPSAL, ele será excluído do Regime Simplificado para
Pequenos Contribuintes, no caso de pequenas empresas, ou ficará impedido
descontar dos tributos sobre o lucro os gastos com folha de pagamento de pessoal,
no caso de grandes empresas.
Na legislação brasileira, a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de
2006, que institui o Estatuto Nacional da Microempresa (ME) e da Empresa de
Pequeno Porte (EPP), em seu art. 29, inciso XII, prevê exclusão do Simples Nacional
(SIMPLES) em situação semelhante à legislação argentina, além da hipótese de
embaraço à fiscalização:

Art. 29. A exclusão de ofício das empresas optantes pelo Simples Nacional
dar-se-á quando:
II - for oferecido embaraço à fiscalização, caracterizado pela negativa não
justificada de exibição de livros e documentos a que estiverem obrigadas,
bem como pelo não fornecimento de informações sobre bens, movimentação
financeira, negócio ou atividade que estiverem intimadas a apresentar, e nas
demais hipóteses que autorizam a requisição de auxílio da força pública;
(...)
XII - omitir de forma reiterada da folha de pagamento da empresa ou de
documento de informações previsto pela legislação previdenciária,
trabalhista ou tributária, segurado empregado, trabalhador avulso ou
contribuinte individual que lhe preste serviço. (grifo nosso)

O benefício tributário decorrente do SIMPLES a microempresas e a empresas


de pequeno porte depende de que os registros de seus empregados sejam
formalizados e constem das respectivas folhas de pagamento, sob pena de o próprio
enquadramento da empresa ME ou EPP estar sendo subdimensionado pela
informalidade.
Apenas em 2020 (até 21 de junho) o Sistema Auditor já possuía 3.152 autos de
infração lavrados na ementa 001774-4 (Admitir ou manter empregado em

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

322
microempresa ou empresa de pequeno porte sem o respectivo registro em livro, ficha
ou sistema eletrônico competente), que tipifica infração ao artigo 41, caput e artigo
47, §1º da Consolidação das Leis do Trabalho.
Em tese, com base nos dados apurados a partir de autos de infração lavrados,
admitindo-se que todas as empresas ME e EPP autuadas de 1/1/2020 a 21/6/2020
sejam optantes do Simples Nacional e que a infração tenha ocorrido de forma
reiterada, mais de três mil empresas poderiam perder esse benefício fiscal por ter
ocultado de sua folha de pagamento lançamentos decorrentes da manutenção de
empregados informais. Tomando em análise o ano de 2019, foram 15.678 autos de
infração lavrados para a mesma ementa.
Sob uma análise mais restritiva sobre o conceito de omissão de forma reiterada,
aplicando o critério de reincidência, no ano de 2019, considerada do ponto de vista de
que omissão reiterada sejam dois ou mais flagrantes (autos de infração) no período
dos últimos 5 anos, sendo o primeiro auto de infração procedente, tem-se que 264
empresas foram reincidentes na infração por falta de registro de empregados,
segundo o Sistema de Controle de Processos de Multas e Recursos (CPMR -
CGR/SIT).
Considerando todos os tipos de embaraços à fiscalização, como potenciais
motivadores para exclusão de empresas do Simples Nacional, tem-se que, no ano de
2019, o CPMR declarou 16.341 processos administrativos com decisão de
procedência final decorrentes de autos de infração de embaraço à fiscalização de
empresas que possuíam em sua razão social a expressão “ME” ou “EPP”. As referidas
decisões finais são referentes a autos de infração lavrados entre os anos de 2017 e
2019.
Dessa forma, caso fossem publicados em 2020 os empregadores que em 2019
tiveram contra si decisão final relativa a embaraço à fiscalização, essa relação conteria
14.565 empregadores distintos. Desses, 1.776 empregadores cometeram mais uma
vez algum tipo de embaraço à fiscalização, inclusive na mesma tipificação. Desse
conjunto, uma microempresa possuía dez autos de infração por embaraço, sendo
nove por não apresentação de documentos sujeitos à inspeção do trabalho em um
período de menos de um ano.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

323
5 CONCLUSÃO

O Brasil se vinculou a compromissos internacionais para erradicar o trabalho


escravo, destacando-se, sem prejuízo de outros instrumentos, as Convenções da OIT
29 (Decreto n.º 41.721/1957) e 105 (Decreto n. 58.822/1966), a Convenção sobre
Escravatura de 1926 (Decreto n.º 58.563/1966) e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica – Decreto n.º 678/1992); todas
plenamente compatíveis com a Carta Constitucional de 1988 e contendo dispositivos
que preveem a adoção imediata de medidas de qualquer natureza (legislativas ou
não) necessárias para a erradicação do trabalho escravo.
Desde o início da política pública de combate ao trabalho análogo ao de
escravo no país, com a criação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM),
coordenado pela auditoria-fiscal do trabalho, que em 15 de maio de 2020 completou
25 anos, o Cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a
condições análogas às de escravo assumiu um papel histórico de importância e
referência como modelo de atuação eficaz do governo brasileiro.
Em razão da solidez da base de dados acumulada, contendo relatórios de
fiscalização detalhados sobre as situações e as irregularidades encontradas, o
Cadastro de Empregadores se tornou fonte de informação governamental para evitar
o financiamento público para exploração indireta de trabalhadores a condições
subumanas de trabalho e vida.
Pela confiabilidade dessa informação, oriunda das fiscalizações no âmbito
administrativo-trabalhista realizadas pela auditoria-fiscal do trabalho, o Cadastro
alcançou outras dimensões, chegando até mesmo a uma esfera de name and shame
policy (política de expor e constranger, tradução livre), semelhante aos instrumentos
da Inspeção do Trabalho no Reino Unido ou da Austrália, muito embora não tenha
sido esse o objetivo no qual o Cadastro foi concebido.
As ações do GEFM e dos projetos regionais de combate ao trabalho escravo,
que ocorrem no âmbito das unidades regionais da Inspeção do Trabalho, quando não
constatam condições que ensejam o resgate de trabalhadores, não raro também
encontram trabalho infantil, incluindo suas piores formas; situações de grave e
iminente risco de acidentes e doenças do trabalho; embaraço à fiscalização e,

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

324
principalmente, informalidade. Em alguns casos, todas essas irregularidades são
encontradas em conjunto, mas apenas a situação de trabalho escravo contemporâneo
pode alcançar as janelas da transparência ativa.
Conforme a meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da
Agenda 2030 da ONU21, o Brasil necessita erradicar a escravidão moderna e o tráfico
de pessoas até 2030 e assegurar a eliminação das piores formas de trabalho infantil
até 2025.
Se, atualmente, erradicar a escravidão moderna no país em 10 anos e acabar
com todas as formas de trabalho infantil em 5 anos soa como uma meta ousada, ou
até inatingível, no que diz respeito ao combate ao trabalho escravo, poderia parecer
um horizonte totalmente inalcançável caso instrumentos como o Cadastro de
Empregadores, em conjunto com outras iniciativas governamentais e da sociedade
civil, não fossem criadas. Em relação ao trabalho infantil, ferramentas de
transparência como a lista suja deveriam ter sido criadas ainda nos anos 1990, tendo
em vista que a cobrança da comunidade internacional em relação ao prazo da meta
8.7 ter sido mais rígida que a escravidão contemporânea.
Empresas que, por falta de uma gestão adequada de saúde e segurança no
trabalho, escolhem expor seus empregados a riscos graves de acidente e
adoecimento, privilegiando uma economia de despesa mortal para a classe
trabalhadora, igualmente poderiam ser relacionadas pela Inspeção do Trabalho e
medidas mais amplas poderiam ser tomadas para enfrentamento desse descaso com
a vida humana.
Sem qualquer consideração comparativa de normas ou de eficiência entre os
efeitos dos atos de aviso de proibição e aviso de melhoria do Reino Unido e os atos
de embargo e interdição do Brasil, percebe-se que a transparência dos flagrantes de
situação de grave e iminente risco no ambiente de trabalho poderia proporcionar um
olhar mais amplo da Inspeção do Trabalho sob o aspecto da saúde e segurança
ocupacional, bem com um maior engajamento das partes interessadas.

21 8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a
escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas
de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o
trabalho infantil em todas as suas formas (grifo nosso). Disponível em <
https://nacoesunidas.org/pos2015/ods8/ >.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

325
A informalidade detectada pelos auditores-fiscais do trabalho, apesar de
possuir uma conexão com perda de benefícios tributários de empresas que incorrem
nessa prática, não tem uma ferramenta de transparência simples de comunicação
interna eficaz. Atualmente, a Inspeção do Trabalho e a Receita Federal se encontram
na mesma estrutura administrativa do Ministério da Economia. Além disso,
empregadores que ocultam trabalhadores de seus registros promovem uma
concorrência desleal com quem recolhe os tributos e contribuições sociais devidas a
trabalhadores registrados. A transparência ativa também poderia conferir maior
eficiência da atuação da fiscalização, gerando efeitos indiretos nos empregadores que
nunca foram fiscalizados.
Da mesma forma, os nomes das empresas e empregadores que cometeram
infrações graves, como impedir o livre acesso dos auditores-fiscais do trabalho,
também poderiam ser amplamente divulgados, a fim de que a sociedade tenha
conhecimento de quais estabelecimentos possuem objetivo de ocultar dados e
informações da Inspeção do Trabalho. As infrações cometidas nesses
estabelecimentos podem ser tanto trabalho infantil ou trabalho escravo, além de
outras como informalidade, sonegação fiscal ou até mesmo da natureza ambiental ou
sanitária.
Uma empresa que tivesse seu nome em relação de empregadores que
possuísse esse perfil de embaraço à fiscalização, possivelmente teria problemas em
se inserir como fornecedor de uma cadeia de valor de empresas com alta
responsabilidade social. Se possuem esse tipo de postura hostil com autoridades em
matéria trabalhista, como lidarão com uma auditoria privada de cadeia de
fornecimento? Quão grande seria o esforço para ocultar ilegalidades ou
responsabilidades previstas em contrato? Esse seria um risco o qual empresas
responsáveis ou investidores não gostariam de correr.
O Radar SIT possui estatísticas sobre a reserva legal de vagas para pessoas
com deficiência e beneficiários reabilitados da previdência social. Conforme o último
ano de apuração, tem-se que em 2018 apenas metade das cotas reservadas para
pessoas com deficiência estavam ocupadas em todo Brasil. O refinamento da busca
pode ser realizado por Unidade da Federação, por município e por atividade
econômica. Ou seja, uma pessoa interessada pode pesquisar a porcentagem do

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

326
cumprimento de cota no seu município e em qualquer atividade econômica. O
interesse pode ser ainda maior se essa pessoa é portadora de necessidades especiais
e se ela está desempregada e à procura de trabalho.
Essa ferramenta só precisaria de mais um passo para facilitar o encontro de
quem encontra dificuldades para se inserir no mercado de trabalho, mas legalmente
possui o direito de nele ingressar, com a empresa que está em débito com a lei de
cotas: a publicação ativa das empresas que não estão cumprindo a lei. Não apenas
com o objetivo de criar restrições de qualquer natureza poderia se revestir um
Cadastro desse tipo, mas sim de transparência pura e simples, acessível a qualquer
cidadão interessado.
Não só as restrições impostas por órgãos de governo sobre o financiamento ou
mesmo a contratação de empresas que não respeitem padrões mínimos de saúde,
segurança e higiene das relações de trabalho, mas todas as relações comerciais se
baseiam em respeito à legislação e a proteção de direitos humanos. As eventuais
repercussões sentidas pelos empregadores incluídos no Cadastro de Empregadores
são decorrentes de controle social que advém não de uma previsão jurídico-
normativa, mas da própria reação da sociedade à violação de direitos humanos
básicos.
Enquanto houver uma pessoa no território nacional em situação de
informalidade, sem proteção social, em risco grave e iminente de acidente ou
adoecimento no trabalho, ou até mesmo em condições de escravidão contemporânea,
a cidadania, a dignidade humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
estarão ameaçadas como fundamentos da construção de uma sociedade livre, justa
e solidária, um dos objetivos da República Federativa do Brasil. A transparência das
ações da Inspeção do Trabalho que buscam promover o trabalho decente no Brasil é
um princípio fundamental a ser seguido.

REFERÊNCIAS

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escravidão: “lista suja”. Disponível em < https://jus.com.br/artigos/22226/o-

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determinação ao Departamento de Gestão de Fundos de Desenvolvimento Regional
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2003_184483.html#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20determina%C3%A7%C3%
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BRASIL. Portaria Interministerial MTE/SEDH nº 2 de 31 de março de 2015. Enuncia


regras sobre o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a
condição análoga à de escravo. Disponível em: <
https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=282591 >. Acesso em 29 jun. 2020.

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Repressão ao Trabalho Forçado e dá outras providências. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Antigos/D1538.htm#:~:text=Art.,%C3%A
0%20repress%C3%A3o%20ao%20trabalho%20for%C3%A7ado >. Acesso em 25
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330
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Report June 2020. Disponível em < https://www.state.gov/wp-
content/uploads/2020/06/2020-TIP-Report-Complete-062420-FINAL.pdf > Acesso
em 1 jul. 2020

EMPLOYERS REGISTER: THE DIRTY LIST AS AN


INSTRUMENT FOR TRANSPARENCY AND FIGHT AGAINST
SLAVERY-LIKE LABOUR

ABSTRACT
Complaints of human rights violations related to labour
exploitation in conditions analogous to slavery demanded that
the Brazilian government recognized this reality in the
international community and built a public policy to combat slave
labor. This started in 1995, when the Special Mobile Inspection
Group (GEFM), coordinated by the labour inspection was
created. In 2003, the Employers Register that subjected workers
to conditions analogous to slavery, known as Dirty List, was
created, a tool of transparency and social control, internationally
recognized as one of the most important instruments to combat
modern slavery. Labour inspections in other countries use a
similar principle of transparency to promote a more efficient
performance in certain areas that represent chronic problems in
labour relations. This article presents proposals for this model of
success reapplied to existing Brazilian databases, such as health
and safety at work, child labor, informality, and embarrassment
to inspection, in order to promote decent work with government,
employers, and society together.
Keywords: Employers register. Dirty List. Transparency. Work
in a condition analogous to slavery. Labour Inspection.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

331
GESTÃO DE SEGURANÇA EM CALDEIRAS: IMPACTOS GERADOS
PELAS FALHAS E POSSIBILIDADES DE MELHORIAS

Rinaldo Angelo dos Santos1


Marinilda Lima Souza2
Alex Álisson Bandeira Santos3
Diego Henrique de Andrade Santos Siqueri4
Valvite José Alípio Junior5

1. Introdução. 2. Referencial teórico. 3. Metodologia da pesquisa. 4.


Resultados e discussões. 5. Conclusões. Referências.

RESUMO
Este trabalho visa contribuir com a melhoria do processo de
gerenciamento de segurança em caldeiras, como resultado de
embasamento bibliográfico da Norma Regulamentadora 13 (NR-
13) e de uma pesquisa junto ao órgão fiscalizador no estado de
Mato Grosso. O referido estudo anseia maior segurança,
redução das não conformidades, minimização dos riscos de
acidentes e diminuição no número de autos de infração com
caldeiras. Atualmente, a gestão de segurança do trabalho com
caldeiras, ainda apresenta lacunas com alto grau de relevância.
Essas lacunas ou possibilidades de melhorias são observadas

1 Acadêmico no curso de Mestrado Profissional em Gestão de Tecnologia industrial pelo SENAI


CIMATEC da Bahia (2019/2020), Pós Graduado em Docência na Educação Profissional e
Tecnológica pela Faculdade SENAI CETIQT do Rio de Janeiro (2014), Pós Graduado em Gestão em
Segurança no Trânsito e Mobilidade Urbana pela Faculdade Afirmativo de Cuiabá (2013), Possui
MBA em Consultoria Empresarial pela Faculdade de Tecnologia do SENAI Florianópolis (2010),
Graduado em Licenciatura Plena em Ciências Biológicas pelo Centro Universitário de Várzea Grande
(2007).
2 Ms. em Gestão e Tecnologia Industrial. Professora no SENAI CIMATEC, Orientadora no pré-projeto

e no projeto de mestrado sob o tema: Gestão de Segurança em Caldeiras: Impactos gerados pelas e
falhas e possibilidades de melhorias.
3 DSc em Energia e Ambiente. Professor e Gestor no SENAI CIMATEC, Orientador no projeto de

mestrado sob o tema: Gestão de Segurança em Caldeiras: Impactos gerados pelas e falhas e
possibilidades de melhorias.
4 Acadêmico no curso de Mestrado Profissional em Gestão de Tecnologia Industrial pelo SENAI

CIMATEC da Bahia (2019/2020). Pós Graduado em Gestão da Produção Industrial - SENAI


CIMATEC (2018/2019), Campeão Brasileiro no World Skills Competition Abu Dhabi em Manufacturing
Team Challenge (2017), Graduado em Processos Gerenciais pelo Centro Universitário Internacional
(2017).
5 Acadêmico no curso de Mestrado Profissional em Gestão de Tecnologia Industrial pelo SENAI

CIMATEC da Bahia (2019/2020). Pós Graduado em Docência na Educação Profissional e


Tecnológica pela Faculdade SENAI CETIQT do Rio de Janeiro (2017). Especialista em Engenharia
de Segurança do Trabalho pela Universidade de Cuiabá (2017). Graduado em Engenharia Mecânica
pela Universidade Federal de Mato Grosso (2013).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

332
principalmente pela falta de conhecimento dos gestores na
comprovação das observâncias das obrigações com esses
equipamentos no ato das auditorias fiscais. Riscos com tais
recipientes independem do tamanho, do modelo, do tipo, da
fonte de energia empregada ou finalidade de uso, em todos é
inerente, o potencial de graves acidentes, inclusive com perdas
humanas, o que, consequentemente justifica a necessidade de
uma gestão de segurança permanente e eficiente capaz de
garantir a redução ou mitigar as possíveis ocorrências. Diante
do exposto, se faz necessário que toda a equipe técnica, bem
como os operadores passem por processo de formação
teórica/prática sobre as instalações e operações dos
equipamentos que compõem as caldeiras, adquirindo um prévio
conhecimento do objeto de trabalho, tornando-se capazes de
manusear com segurança todas essas ferramentas, de modo
que facilite e possibilite a prática de atitudes e hábitos dos
responsáveis diretos pelo gerenciamento desses equipamentos
permitindo-os a antecipação dos riscos e dos possíveis eventos
maléficos.
Palavras-chave: Gestão de Segurança. NR-13. Caldeiras.

1 INTRODUÇÃO

Quando os estudiosos Denis Papin, James Watt, Wilcox, entre outros,


dedicaram as atenções para aperfeiçoar e desenvolver os equipamentos geradores
de vapor, talvez não imaginassem o quanto suas contribuições seriam significativas
para suportar e possibilitar o surgimento do capitalismo, nem o quanto esses
equipamentos seriam úteis às gerações futuras6. Na verdade, com esses
conhecimentos o homem estava descobrindo algo precioso, que viria, mais tarde, se
tornar imprescindível para o desenvolvimento industrial e de prestação de serviços.
As caldeiras passaram a ser importantes de fato aos interesses do homem, por
volta do século XVII, sendo determinante para a revolução industrial. No início foram
usadas para a extração de água nas minas, mais adiante passaram a ser utilizadas
na navegação e nas locomotivas, por último passaram a ser incorporadas nas
indústrias, auxiliando diversas etapas dos processos7.

6 Magrini, Rui de Oliveira. Riscos de Acidentes na Operação de Caldeiras, São Paulo,


Fundacentro, 1994.
7 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

333
Hoje é inegável o valor e a importância que os geradores de vapor ocupam,
principalmente para as indústrias, visto ser a forma mais barata e consequentemente,
a mais vantajosa quando precisa obter calor para determinados processos de
produção. Contudo, alguns fatores negativos foram sendo notados com essa
invenção, e logo o homem conheceu uma face perigosa, capaz de provocar incidentes
ou acidentes envolvendo vidas humanas.
Passados anos de estudos, experiências vivenciadas, com muitas vidas
perdidas, começou-se um movimento a favor da prevenção dos acidentes com as
caldeiras8. Para isso, leis foram sendo aprovadas em vários países com a finalidade
de reduzir esses eventos danosos e possibilitar uma atividade segura no trabalho com
caldeiras.
No Brasil, o cenário de segurança com as caldeiras, começou de fato a tomar
contorno de mudança, com o advento da publicação da Lei nº 6.514, em 1977, relativa
à segurança e medicina do trabalho9. A partir dela deu-se a abertura para publicação
das NRs – Normas Regulamentadoras, aprovadas em 08 de junho de 1978, através
da portaria nº 3.214, do MTE – Ministério do Trabalho e Emprego.
Atualmente existem em vigor 37 normas de segurança publicadas, entre as
quais a Norma Regulamentadora 13 (NR-13) Caldeiras, Vasos de Pressão e
Tubulações e Tanques Metálicos de Armazenamento, por meio da Portaria nº 1.082,
de 18 de dezembro de 2018, que trouxe sua última grande revisão. Vale ressaltar que
a MP 905 de 11 de novembro de 2019, revogou algumas NRs.
Até o momento a NR-13 passou por oito (08) revisões, a saber: Portaria SSMT
N°12 de 06 de junho de 1983, Portaria SSMT N° 02 de 08 de maio de 1984, Portaria
SSST N° 02 de 08 de maio de 1994, Portaria N°57 de 19 de junho de 2008, Portaria
MTE 594, de 28 de abril de 2014, Portaria Nº 1.084 de 28 de setembro de 2017 e pôr

8TORREIRA, Raúl Peragallo. Manual de segurança industrial, Marques Publicações, s.l, 1999.
9SANTOS, Fabiola Arruda dos; SILVA, Ricardo Luis Alves da; BARBOSA, Daianny dos Santos;
MENDONÇA, Lucas Silva de. Gerenciamento de Riscos de Acidentes em Áreas de Caldeiras.
XXXV ENCONTRO NACIONAL DE ENGENHARIA DE PRODUCAO Perspectivas Globais para a
Engenharia de Produção Fortaleza, CE, Brasil, 13 a 16 de outubro de 2015. Disponível em:
<http://www.abepro.org.br/biblioteca/TN_STO_209_242_27210.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2019.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

334
fim a Portaria MTB N° 1.082 de 18 de dezembro de 2018, com algumas alterações
concebidas pela Portaria SEPRT n.º 915, de 30 de julho de 201910.
A última revisão em 20/12/2018, com algumas alterações pela Portaria SEPRT
n.º 915, de 30 de julho de 2019, será base desse trabalho. A NR-13 estabelece
requisitos mínimos para gestão da integridade estrutural de caldeiras a vapor, nos
aspectos relacionados à instalação, inspeção, operação e manutenção, entre outros,
objetivando a segurança e à saúde dos trabalhadores.
Vale lembrar que no tocante à exigência de formação de segurança para o
trabalho, a NR-13 foi percussora no Brasil, sendo exigido desde 08 de maio de 1984
o curso de capacitação aos operadores de caldeiras e vasos pressão. Todas as
iniciativas são bem vindas e vêm ao encontro da lógica na prevenção de acidentes e
na redução dos riscos de ações civis e criminais as empresas em decorrências dos
acidentes com caldeiras e vasos de pressão11.
A Norma Regulamentadora 13 estabelece requisitos para gestão da integridade
de caldeiras a vapor, vasos de pressão, tubulações de interligação e tanques
metálicos de armazenamento no que refere à sua instalação, ao programa de
manutenção e inspeção e aos requisitos para operação e seus funcionamentos12.
Define também caldeiras, como sendo equipamentos destinados a produzir e
acumular vapor sob pressão superior à atmosférica, utilizando qualquer fonte de
energia, projetados conforme códigos pertinentes, excetuando-se refervedores e
similares13.
As caldeiras, por atuarem com pressões acima da pressão atmosférica, podem

10 BRASIL. Portaria SEPRT n.º 915, de 30 de julho de 2019. NR-13 Caldeiras, Vasos de Pressão e
Tubulações, Brasília, DF, 18 dez 2018. 33 p. Disponível em: <https://www.in.gov.br/web/dou/-
/portaria-n-915-de-30-de-julho-de-2019-207941374> Acesso em: 8 ago. 2020.
11 SCHWINDEN, M. Camisão. A evolução da NR-13 ao longo dos anos e seus impactos. Unisul,

Tubarão, SC, 2019. 40 p. Disponível em: <https://riuni.unisul.br/handle/12345/7132>. Acesso em: 17


mar. 2019.
12 SOUSA, Edilson Rocha de. Uma contribuição à reformulação da Norma Regulamentadora 13

(NR-13) na perspectiva da adoção de sistema de gestão de segurança e saúde ocupacional.


UFRN, Natal, RN, 2008. 90 p. Disponível em:
<https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/14976/1/EdilsonRS_DISSERT.pdf>. Acesso em:
11 mar. 2019.
13 BRASIL. Portaria N.°1.082, de 18 de dezembro de 2018. NR-13 Caldeiras, Vasos de Pressão e

Tubulações, Brasília, DF, 18 dez 2018. 33 p. Disponível em: <http://www.in.gov.br/materia/-


/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/56127453/do1-2018-12-20-portaria-n-1-082-de-18-de-
dezembro-de-2018-56127448>. Acesso em: 18 nov. de 2019.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

335
por alguma falha constituir riscos elevados a operadores e a pessoas nas
proximidades com resultados graves, em muitos casos14.
Nesse artigo serão analisados, portanto, os impactos gerados pela ineficiência
no gerenciamento adequado dos aspectos de segurança em caldeiras ocorridos em
Mato Grosso e suas ocorrências registradas em notificações aplicadas durante as
fiscalizações realizadas pela SRTE/MT – Superintendência Regional de Trabalho e
Emprego de Mato Grosso nos anos de 2017 e 2018.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

À medida em que as caldeiras foram sendo utilizadas pelas empresas,


acidentes passaram a ser uma constante na atividade, em especial as explosões,
ocasionadas principalmente por falta de conhecimento, por falta de manutenções ou
ainda por erros operacionais15.
A variedade dos riscos para os trabalhadores que atuam na área de caldeiras
é grande. Explosões, incêndios, choques elétricos, intoxicações, quedas,
queimaduras, ruídos são alguns dos problemas que podem atingir aqueles
que estão próximos da casa de caldeira. No caso de uma explosão, as perdas
podem se estender a outros setores da empresa, inclusive seus arredores,
atingindo trabalhadores e comunidade. Por isto todo o cuidado é pouco. A
segurança deve estar presente em todas as etapas – projeto, instalação,
operação, manutenção e inspeção16

Relatos de acidentes, geralmente com muita gravidade, eram frequentes na


atividade, tornando-se um desafio a ser vencido. Em 1905, a explosão de uma caldeira
ocorrido em Massachusetts (EUA), matou 58 pessoas, despertando então, maior
interesse da sociedade para elaboração de normas mais rigorosas17.
Para minimizar ou controlar tais riscos, tornou-se necessário lançar mão de
várias formas de controle, desde dispositivos de segurança e bloqueio, acessórios

14 MORAES, Giovanni Araújo. Normas regulamentadoras comentadas e ilustradas: Legislação de


segurança e saúde no trabalho. Rio de Janeiro, 7. ed. v. 2, 2009.
15 MAGRINI, Rui de Oliveira. Riscos de Acidentes na Operação de Caldeiras, São Paulo,

Fundacentro, 1994.
16 PIRES, Aline de Melo. A vida sob pressão. Revista Proteção, Novo Hamburgo/RS, n. 162, p. 36-

51. jun. 2005.


17 SOUSA, Edilson Rocha de. Uma contribuição à reformulação da Norma Regulamentadora 13

(NR-13) na perspectiva da adoção de sistema de gestão de segurança e saúde ocupacional.


UFRN, Natal, RN, 2008. 90 p. Disponível em:
<https://repositorio.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/14976/1/EdilsonRS_DISSERT.pdf>. Acesso em:
13 mar. 2019.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

336
auxiliares para tornar a operação mais segura, mas principalmente através do
conhecimento técnico aplicado em cada caldeira, possibilitando a antecipação aos
riscos nessa atividade. Para que essas medidas deem respostas positivas deve-se
dispor de um processo de gerenciamento de riscos que contemple a prevenção das
falhas dentro do processo de gestão com caldeiras18.
Assim, nota-se que na atualidade não é suficiente apenas fornecer um produto
com qualidade ou com baixos custos, é necessário também que as empresas
demonstrem que os seus processos são controlados de forma eficiente e responsável
e que podem fornecer produtos e serviços de confiança. Além disso, é imprescindível
demonstrar a preocupação com o meio ambiente, e principalmente com a saúde,
segurança e qualidade de vida para de seus colaboradores19.
Os números elevados de acidentes no trabalho, divulgados anualmente pelo
INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social, destacados no gráfico 1, evidenciam
que o Brasil ainda precisa evoluir bastante nesse quesito, mas também, que de fato,
uma empresa não pode ser concebida com o ideal somente de competitividade e
lucro. Devem demonstrar uma atitude ética e responsável quanto à segurança e saúde
em seus ambientes de trabalho, além de cuidar das demais questões20.

18 TORREIRA, Raúl Peragallo. Manual de segurança industrial, Marques Publicações, s.l, 1999.
19 SILVA, Welliton Rodrigues. O melhor tratamento. Revista Proteção, Novo Hamburgo/RS, n. 196,
p. 118-126. abr. 2008.
20 CUSTO dos acidentes. Anuário Brasileiro de Proteção 2008, Novo Hamburgo, RS, MPF

Publicações. 2008, p. 11.18.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

337
Gráfico 1 – Série histórica dos acidentes do trabalho com CAT – Brasil, 2002 a 2018

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010


2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

755.980

733.365

725.664
720.629

713.984

712.302
709.474
659.523

623.786
622.379

585.626

549.405
512.232
499.680
465.700
399.077
393.071

Fonte: INSS – 2000-2017 (AEAT), 2018 (CATWEB)21.

Pensando nisso, várias empresas já implantaram o SGSST – Sistema de


Gestão da Segurança e Saúde no Trabalho, considerado um instrumento eficaz para
a melhoria das condições do ambiente de trabalho. Também é apontado como uma
das possíveis alternativas para a evolução da gestão nas empresas, especialmente
para aquelas que historicamente apresentam baixo desempenho nessa área.
Os resultados demonstram que a implementação do SGSST traz melhorias
significativas nas condições do ambiente de trabalho, principalmente pela criação de
uma nova cultura, em que cada trabalhador incorpora o espírito prevencionista o que
eleva a segurança e saúde no trabalho a um patamar mais elevado e compõe um dos
fatores essenciais na avaliação global do desempenho da empresa22.

21 BRASIL. Ministério da Previdência Social. Anuário Estatístico de Acidentes do Trabalho –


AEAT. 2020. Disponível em: <https://smartlabbr.org/sst>. Acesso em: 4 jun. 2020.
22 CUSTO dos acidentes. Anuário Brasileiro de Proteção 2008, Novo Hamburgo, RS, MPF

Publicações. 2008, p. 11.18.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

338
A gestão de segurança e saúde ocupacional pode ser definida como um
conjunto de regras, ferramentas e procedimentos que visam eliminar,
neutralizar ou reduzir a lesão e os danos decorrentes das atividades23.

Para equacionar essa situação e até incentivar a prática de política de


segurança dentro das organizações, foram criadas diversas normas, por vários
organismos, com o intuito de padronizar as formas de atuação integrada e
configurável especialmente desenvolvida para facilitar a conformidade com as normas
e requerimentos internacionais.
Uma das normas mais conhecidas e aplicáveis quanto SST – Segurança e
Saúde no Trabalho, é a OHSAS, sigla em inglês para Occupational Health and Safety
Assessment Series, cuja tradução é Série de Avaliação de Saúde e Segurança
Ocupacional. Assim como os sistemas de gerenciamento ambiental e de qualidade, o
sistema de gestão de segurança e saúde ocupacional também possui objetivos,
indicadores, metas e planos de ação.
OHSAS 18001 consiste em um sistema de gestão, assim como a ISSO 9000
e ISSO 14000, porém com o foco voltado para a saúde e segurança
ocupacional. Isto é, a OHSAS 18001 é uma ferramenta que permite uma
empresa atingir e sistematicamente controlar e melhorar o nível do
desempenho da saúde e segurança do trabalho por ela mesma
estabelecido24.

A figura 1 a mostra de forma simplificada um modelo de gestão de segurança


que pode ser adotado pelas empresas.

23 A Revolução do Vapor. Revista Proteção, Novo Hamburgo, RS, n. 48, p. 20-35. dez. 1995.
Reportagem Especial Revista Proteção.
24 CUSTO dos acidentes. Anuário Brasileiro de Proteção 2008, Novo Hamburgo, RS, MPF

Publicações. 2008, p. 11.18.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

339
Figura 1: Elementos de um Sistema de Gestão de Segurança

Fonte: Adaptado da OHSAS 18001:200725

Uma certificação por essa norma garante o compromisso da empresa com a


redução dos riscos ambientais e com a melhora contínua de seu desempenho em
saúde ocupacional e segurança de seus colaboradores.
Como principais benefícios da implementação de sistema de gestão de
segurança destacam-se:

 A redução de riscos de acidentes e de doenças profissionais;


 A redução de custos (indenizações, multas, prêmios de seguro, prejuízos
resultantes de acidentes, dias de trabalho perdidos);
 A melhoria geral da produtividade e do desempenho da organização;
 A conformidade com a legislação vigente;
 A motivação dos colaboradores num ambiente de trabalho seguro e
saudável;
 A abrangência das atividades de prevenção a toda a organização;
 A redução das taxas de absentismo;
 As vantagens frente à sociedade;
 A imagem de responsabilidade social da organização; e
 O compromisso para o cumprimento da legislação aplicável26.

25 CICCO, Francesco de (Coord.). OHSAS 18001:2007 sistemas de gestão da segurança e saúde


no trabalho: Requisitos. 2. ed. Rio de Janeiro: Risk Tecnologia, 2007. 49 p. (Coleção Risk
Tecnologia).
26 CONTA Cara. Revista Proteção, Novo Hamburgo, RS, n. 91, p. 26-34. jul. 1999. Reportagem

Especial Revista Proteção.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

340
3 METODOLOGIA DA PESQUISA

Esse estudo é fruto do pré-projeto de mestrado de um dos autores com


possibilidade de aprofundamento e discussão do assunto na dissertação em
desenvolvimento.
Sendo uma pesquisa da revisão do estado da arte com dados coletados junto
à SRTE/MT – Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de Mato Grosso,
referente às fiscalizações e auditorias realizadas nas empresas do estado nos anos
de 2017 e 2018, sob análise de bibliografias pertinentes ao tema e embasamento em
normas, decretos, portarias conforme roteiro abaixo:

 Iniciou-se no primeiro semestre de 2019, através de contato com o órgão


fiscalizador SRTE/MT para apresentar a ideia do projeto de pesquisa, sua
finalidade, abrangência, caráter acadêmico, solicitação de apoio da referida
secretaria e como seria possível acesso as informações sobre as auditorias,
sendo fator essencial ao êxito da pesquisa;
 Solicitação formal por escrito, protocolada na SRTE/MT e posterior envio de
e-mail solicitando acesso aos dados das fiscalizações e auditorias realizadas
nas empresas do estado de Mato Grosso nos últimos dois anos no tocante a
NR-13;
 Recebimento das informações solicitadas em meio eletrônico (e-mail)
contemplando todas as notificações realizadas em caldeiras e vasos de
pressão no período de 2017 a 2018;
 Análise e tabulação das ocorrências com maior prevalência nas auditorias, a
serem destacadas e discutidas no pré-projeto de pesquisa, ficando as demais
ocorrências com baixa incidência de notificações agrupadas em outras
situações; e
 Realização de estudo comparativo das exigências a norma de segurança que
trata do assunto e possíveis consequências para as empresas, frente as
infrações como maior expressão e em especial aquelas que se enquadram
em RGI – Risco Grave e Iminente para a atividade.

Os dados obtidos junto a SRTE/MT foram de suma importância, pois permitiu


conhecer as principais infrações evidenciadas durante as fiscalizações nos últimos
anos, porém as análises, sobre as consequências e as sugestões para melhorias
foram embasadas em literaturas, em especial a NR-13, manuais técnicos de caldeiras,
publicações sobre o tema, recomendações de fabricantes entre outras fontes,
consultadas pelos autores.
É preciso esclarecimento em torno das quantidades de autos de infração
lavrados pela SRTE/MT em 2017 e 2018, que merece destaque para legibilidade e
interpretação dos dados, pois, ementas relacionadas a irregularidades semelhantes,
ou até mesmo, em alguns casos idênticas foram alteradas nesse meio tempo e

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

341
passaram a ter caráter de gravidades alteradas e tratativas diferenciadas em cada
caso em virtude da NR-13 ter passado por revisões periódicas no período chegando
a ser totalmente reformulada em 2018.
Além disso, os resultados apresentados nos dois anos, podem erroneamente
pressupor uma tendência em decréscimo nas irregularidades, por apresentar menor
valor quantitativo no ano de 2018 se comparado com 2017, porém, isso pode ser
devido a uma redução das ações pelo órgão fiscalizador em relação a NR-13 no último
ano dessa pesquisa.

4 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Em Mato Grosso, a SRTE/MT – Superintendência Regional de Trabalho e


Emprego de Mato Grosso – acompanha a aplicação da NR-13, visando comprovação
do seu cumprimento, sob pena de lavraturas de termos de notificações ou auto de
infração ou outras sanções previstas, podendo inclusive levar a elaboração de termo
de interdição caso seja comprovada uma situação de RGI – Risco Grave Iminente – o
que consequentemente leva paralisação do equipamento.
De acordo com dados obtidos junto à SRTE/MT, as fiscalizações realizadas no
estado em 2017 e 2018 evidenciaram diversas não conformidades que comprova
falhas na gestão de segurança das caldeiras.
Durante as auditorias no período citado, foram evidenciadas um total de
quarenta (40) irregularidades o que, consequentemente gerou notificações e/ou autos
de infrações e até interdição em alguns casos. O gráfico 2 ilustra as quantidades de
infrações registradas nas inspeções fiscais realizada pela SRTE/MT em cada ano
analisado.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

342
Gráfico 2: Total de infrações comprovadas pela SRTE/MT em 2017 e 2018

17
2017
2018
23

Fonte: SRTE/MT27.

Nos gráficos 3 e 4, são destacadas as principais infrações constatadas pelas


equipes de fiscalizações em cada ano, conforme preconizado na NR-13, e em
consonância com a redação em vigor em cada período, visto que a NR-13 passou por
alterações nesse intervalo da pesquisa.
As infrações com maior incidência de ocorrências comprovadas pelas equipes
de fiscalização, serviram de fundamentos para as análises e discussão das possíveis
consequências para as empresas e para a segurança do trabalho nessa atividade.

BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria Regional de Trabalho e Emprego de Mato Grosso -


27

SRTE/MT, com gráfico elaborado pelos Autores. Cuiabá MT, 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

343
Gráfico 3: Principais infrações evidenciadas pela SRTE/MT em 2017, em percentual

4,35% 4,35% 17,39%


4,35%
4,35%
4,35%
4,35%
17,39%
4,35%
4,35%

8,70%
13,04%
8,70%

Caldeira sendo operada por operador não qualificado - 17,39%.


Caldeira sendo operada por trabalhador sem estágio prático - 17,39%.
Caldeira sem manual de operação ou manual desatualizado - 13,04%.
Caldeira a combustível sólido não atomizado sem injetor de agua - 8,70%.
Caldeira em funcionamento sem operação e controle de operador de caldeira - 8,70%.
Caldeira em funcionamento sem manutenção preventiva ou preditiva - 4,35%.
Caldeira sem instrumento que indique a pressão do vapor acumulado - 4,35%.
Caldeira em funcionamento sem prontuário ou incompleto - 4,35%.
Caldeira instalada em desacordo com os requisitos de instalação - 4,35%.
Casa de caldeira com iluminação em desacordo com os requisitos - 4,35%.
Instrumentos não calibrados e/ou sem condições operacionais - 4,35%.
Caldeira sem inspeção de segurança periódica dentro do prazo estabelecido - 4,35%.
Relatório de inspeção sem páginas numeradas e sem conteúdo mínimo previsto -
4,35%.
Fonte: SRTE/MT28.

Ao analisar os dados do gráfico 3, observa-se que a principal falha da gestão


com as caldeiras nas empresas fiscalizadas no ano de 2017, foi referente a falta de
qualificação adequada para a operação das caldeiras estando presente em quase

28BRASIL. Ministério da Economia. Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de Mato


Grosso - SRTE/MT, com gráfico elaborado pelos Autores. Cuiabá MT, 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

344
35%, das não conformidades. Vale ressaltar que, em 17,39% das empresas
fiscalizadas as caldeiras eram operadas por trabalhadores sem nenhuma qualificação
teórica e prática e em outras 17,39% das empresas os operadores possuíam apenas
a qualificação teórica, mas não possuíam prática de estágio na caldeira.
De acordo com a NR-13 aprovada pela Portaria N.°1.082, de 18 de dezembro
de 2018, as falhas acima destacadas são consideradas como RGI - Risco Grave e
Iminente, sendo portanto, passíveis a interdição dos equipamentos, o que
consequentemente, pode levar a paralisação de um processo inteiro de produção, ou
até a mesmo de um planta industrial por completo, em alguns casos.
Ficou evidenciado que para 13,04% das empresas com alguma irregularidade
o motivo foi a falta do manual de operação das caldeiras, o que mesmo sendo uma
falha de menor gravidade segundo a NR-13, ainda assim, ocasiona dificuldades para
a operação segura, além de possibilitar erros operacionais e desgastes do
equipamento por desconhecimentos da forma correta de controle e parâmetros
próprios.
Também se destacaram outras duas situações distintas, sendo elas, ausência
de operador de caldeira no local de operação e falta de injetor de água em caldeira de
combustível sólido não atomizado, ambas com 8,70% de frequência. Essas duas
situações, são consideradas de caráter Risco Grave e Iminente e portanto, novamente
sujeitam a interdição das caldeiras e paralisação do processo. As outras infrações
vistas nas auditorias, apesar de menores em frequência algumas também se
enquadram em risco grave e iminente.
O gráfico 4 ilustra as principias infrações evidenciadas pela fiscalização do
SRTE de Mato Grosso no ano de 2018.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

345
Gráfico 4: Principais infrações evidenciadas pela SRTE/MT em 2018, em percentual

5,88% 11,76%
5,88%
5,88%
11,76%
5,88%
5,88%
11,76%
5,88%
5,88%
11,76%
5,88% 5,88%

Caldeira sendo operada por operador não qualificado - 11.76%.


Caldeira que opera a noite sem sistema de iluminação de emergência - 11.76%.
Caldeira sem inspeção adequada após completar 25 anos de uso - 11.76%.
Caldeira sendo operada por trabalhador sem estágio prático - 11.76%.
Efetuar reparos ou alterações em desacordo com os códigos de projeto - 5,88%.

Não egistrar ocorrência de inspeção de segurança no Livro de Registro - 5,88%.


Área de caldeira sem acesso fácil e seguro para operação e manutenção - 5,88%.
Casa de caldeira sem acesso fácil e seguro para operação e manutenção - 5,88%.
Caldeira instalada em desacordo com os requisitos de instalação - 5,88%.
Caldeira em funcionamento sem manual de operação ou desatualizado - 5,88%.
Caldeira sem inspeção de segurança periódica dentro do prazo estabelecido - 5,88%.
Não realizar inspeção de segurança extraordinária em caldeira - 5,88%.

Relatório de inspeção sem páginas numeradas e sem conteúdo mínimo previsto -


5,88%.
Fonte: SRTE/MT29
Analisando os dados contidos no gráfico 4, observam-se quatro situações
destacando-se nas falhas da gestão de segurança com as caldeiras nas empresas
fiscalizadas em 2018. Cada uma dessas falhas impactou em cerca 12% das
ocorrências não conformes registradas.

29BRASIL. Ministério da Economia. Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de Mato


Grosso - SRTE/MT, com gráfico elaborado pelos Autores. Cuiabá MT, 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

346
Similar a 2017, a falta qualificação para a operação das caldeiras seja de forma
teórica, ou, teórica e prática, novamente destacou-se como das principais falhas
constatadas. Também foi evidenciada em iguais quantidades de infrações, a falta de
manutenção apropriada das caldeiras após completarem vinte e cinco (25) anos de
uso e falta de condições de iluminação adequadas para caldeiras que operam à noite.
Nesses casos, de acordo com a NR-13, das quatro situações evidenciadas, três
são consideradas de caráter Risco Grave e Iminente, ou seja, novamente sujeitando
a interdição dos equipamentos e possível paralisação do processo de produção. “[...]
contudo, são considerados como riscos de maior amplitude aqueles que são graves e
iminentes e colocam em perigo a vida dos trabalhadores à sua volta30.”
Ao analisar os dados gerais dos anos de 2017 e 2018 observa-se que nas
empresas fiscalizadas as falhas na gestão com caldeiras foram imperiosas quanto à
falta de qualificação para operadores de caldeiras. Essas falhas são consideradas
graves conforme definido no subitem 13.3.1 da NR-13 e alínea f, diz que:

13.3.1 Constitui condição de Risco Grave e Iminente - RGI o não


cumprimento de qualquer item previsto nesta NR que possa causar acidente
ou doença relacionada ao trabalho, com lesão grave à integridade física do
trabalhador, especialmente:
[...] f) operação de caldeira por trabalhador que não atenda aos requisitos
estabelecidos no Anexo I desta NR, ou que não esteja sob supervisão,
acompanhamento ou assistência específica de operador qualificado31.

A qualificação dos operadores de caldeiras está descrita no anexo A1 da NR-


13 versão 2018, e trata também do estágio para operador de caldeiras, preconizando
que será considerado operador de caldeira aquele que satisfizer uma das seguintes
condições, conforme alíneas “a” ou “b” do Anexo A1, conforme afirma:

Para efeito da NR-13, é considerado operador de caldeira aquele que


satisfizer uma das seguintes condições:
a) possuir certificado de Treinamento de Segurança na Operação de
Caldeiras expedido por instituição competente e comprovação de prática
profissional supervisionada conforme item A1.5 deste Anexo;

30 BEUX, Giovana. Avaliação das condições de segurança na operação de caldeiras a vapor.


UTFPR, Pato Branco, PR, 2014. 60 p. Disponível em:
<http://repositorio.roca.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/5896/1/PB_CEEST_V_2014_17.pdf>. Acesso
em: 11 mar. 2019.
31 BRASIL. Portaria N.°1.082, de 18 de dezembro de 2018. NR-13 Caldeiras, Vasos de Pressão e

Tubulações, Brasília, DF, 18 dez 2018. 33 p. Disponível em: <http://www.in.gov.br/materia/-


/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/56127453/do1-2018-12-20-portaria-n-1-082-de-18-de-
dezembro-de-2018-56127448>. Acesso em: 18 nov.2019.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

347
b) possuir certificado de Treinamento de Segurança na Operação de
Caldeiras previsto na NR-13 aprovada pela Portaria SSMT n.° 02, de 08 de
maio de 1984 ou na Portaria SSST n.º 23, de 27 de dezembro de 199432.

Assim sendo, para atender essa determinação da NR-13 e a própria segurança


da empresa, todo operador de caldeira deve cumprir estágio prático na operação da
própria caldeira que operará, o qual deve ser supervisionado, por uma pessoa capaz
de informar ao novo operador, todos os procedimentos de segurança ao manusear tal
equipamento, conforme descreve a NR-13, que afirma no anexo A1.5 da NR 13 diz
que:
A1.5 Todo operador de caldeira deve ser submetido à prática profissional
supervisionada na operação da própria caldeira que irá operar, a qual deve
ser documentada e ter duração mínima de:
a) caldeiras de categoria A: 80 (oitenta) horas;
b) caldeiras de categoria B: 60 (sessenta) horas33.

Nos dois anos analisados do total de 40 infrações registradas, vinte (20) ou


seja, em 50% das infrações se caracterizam como condição de Risco Grave e
Iminente - RGI, situações que colocam em risco a segurança dos operadores e de
demais trabalhadores que estejam nas proximidades durante o uso desses
equipamentos.
Conhecer as inconformidades existentes mostra assim, que é preciso
proporcionar melhorias no processo de gestão possibilitando uma operação mais
segura, do contrário, poderá ocasionar acidentes fatais, interrupção da produção,
danos a estruturas da empresa e de terceiros além dos prejuízos financeiros.
Portanto, torna-se imprescindível cumprir os requisitos previstos na norma
visando eliminar e/ou reduzir a probabilidade de falhas e, consequentemente, os
incidentes ou acidentes provocados pela falta de gerenciamento de modo a garantir a
melhoria da confiabilidade operacional das caldeiras.
A aplicação da NR-13 visa a redução de acidentes, e a sua implantação em
todos os seus pontos procura a segurança dos que trabalham com equipamentos
como caldeiras. Logo se faz necessário o entendimento dos gestores de
equipamentos da dimensão do cumprimento dos requisitos da NR-13 como agregação

32 Ibidem.
33 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

348
de valor na gestão de risco de equipamentos industriais, e, com isso, ser uma
ferramenta da redução de acidentes e melhoria da segurança de operação.
5 CONCLUSÕES

A partir dos dados obtidos junto ao órgão de fiscalização e da análise frente a


mais recente versão da NR-13 é possível concluir que ainda existem falhas severas
na gestão de segurança das caldeiras.
Observou-se que ainda há uma grande falta de conhecimento por parte dos
gestores desses equipamentos, quanto a aplicabilidade plena da norma NR-13 o que
contribui para diversas situações incorretas verificadas, tais como: caldeiras sendo
operadas por trabalhadores sem qualificação, caldeiras com dispositivos de
segurança sem manutenção ou sem calibração comprovada, caldeiras operando com
as inspeções de segurança periódicas fora dos prazos estabelecidos, caldeiras
instaladas em locais inadequados, entre outras irregularidades muito sérias,
caracterizando descumprimentos a referida NR-13 além de consequentes riscos para
operação.
Nesse sentido é preciso que os empregadores (empresas) ao adquirir esses
equipamentos, busquem o máximo de conhecimento das responsabilidades que
assume frente ao correto funcionamento e aos riscos que geradores de vapor
oferecem.
Outro ponto importante diz respeito ao treinamento do operador de caldeira,
que de acordo com a NR-13, o trabalhador que almeja participar do treinamento de
segurança na operação de caldeiras deve atender ao requisito de escolaridade com
ensino médio completo, ser aprovado em curso teórico, devendo o curso ser
ministrado por profissionais capacitados, supervisionado por profissional habilitado e
ainda realizar estágio prático na caldeira que irá operar.
Precipuamente, a minimização dos riscos na área de caldeiras passa pela
melhoria do processo de gestão de segurança das caldeiras de forma a possibilitar
sua antecipação em todas as fases incluindo a aquisição, a instalação, as
manutenções e a operação e ainda possuir meios de comprovação de todos os
requisitos as entidades fiscalizadoras quando necessário.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

349
Vale ressaltar que a gestão de segurança com as caldeiras a ser desenvolvido
pelas empresas deve ocorrer independentemente da ação de fiscalização, uma vez
que se tratam de equipamentos operando sob constante risco, assim, os requisitos
mínimos de segurança devem ser observados, garantindo segurança aos operadores
e a coletividade no entorno das caldeiras.
Assim, almeja-se maior conscientização dos empregadores na melhoria do
processo de gestão de riscos e na prática rotineira das medidas de segurança em
especial diante do momento vivenciado onde se demonstra um aparente quadro de
desinteresse por parte do governo nas ações de fiscalização do órgão responsável34,
conforme esse autor afirma.
Para piorar a situação a fiscalização do trabalho está cada dia mais ineficiente
por falta de condições de trabalho dos agentes do antigo Ministério do
Trabalho, os quais carecem de recursos humanos e materiais e o número é
diminuto em face da quantidade de empresas que têm para fiscalizar35.

Afirmação como essa ganha contorno de verdade quando se observa a


revogação de duas Norma Regulamentadoras nos últimos dois anos, entre elas a NR
2 – Inspeção Prévia e a NR 27 – Registro Profissional do Técnico em Segurança do
Trabalho.
Também houve alteração em outras Normas, como a NR 28 – Fiscalizações e
Penalidades, reduzindo das 6,8 mil possibilidades de multas para 4 mil possibilidades
aproximadamente. A própria NR-13 sofreu alterações através da Portaria SEPRT n.º
915, de 30 de julho de 2019, publicada no D.O.U. (Diário Oficial da União) em
31/07/19, que revogou os itens: 13.3.6.3, 13.3.6.3.1, alíneas a) e b) e o item 13.4.1.6,
todos relacionados a caldeiras.
Tudo isso somado poderá contribuir para um cenário de piora no aspecto de
segurança do trabalho no Brasil nos anos seguintes, mesmo que os números possam
aparentemente se mostrarem em declínio.
As análises e considerações nesse trabalho estão fundamentadas
principalmente na publicação da Portaria nº 1.082, de 18 de dezembro de 2018,
Publicado no DOU em 20/12/2018, pelo Ministério do Trabalho / Gabinete do Ministro,

34 MELO, Raimundo Simão de. O papel da OIT em 100 anos de Existência e a Importância das
Convenções 148 e 155 sobre Saúde, Segurança e Meio Ambiente do Trabalho. Revista Jurídica
Luso-Brasileira, Ano 5 (2019), N.º 4, Pag. 1457-1478.
35 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

350
alterando a Norma Regulamentadora n.º 13 (NR13) - Caldeiras, Vasos de Pressão e
Tubulação, em vigor após decorridos 90 (noventa) dias de sua publicação oficial e as
alterações dadas pela Portaria SEPRT n.º 915, de 30 de julho de 2019.

REFERÊNCIAS

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<http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/56127453/do1-
2018-12-20-portaria-n-1-082-de-18-de-dezembro-de-2018-56127448>. Acesso em: 18
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Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

351
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TORREIRA, Raúl Peragallo. Manual de segurança industrial, Marques


Publicações, s.l, 1999.

SAFETY MANAGEMENT IN BOILERS: IMPACTS


GENERATED BY FAILURES AND POSSIBILITIES FOR
IMPROVEMENTS

ABSTRACT
This work aims to contribute to the improvement of the safety
management process in boilers, as a result of the bibliographic
basis of Regulatory Norm 13 (NR-13) and a survey with the
supervisory body in the state of Mato Grosso. This study aims at
greater safety, reduction of non-conformities, minimization of
accident risks and reduction in the number of infraction notices
with boilers. Currently, the safety management of boiler work still

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

352
has gaps with a high degree of relevance. These gaps or
possibilities for improvement are mainly observed due to the lack
of knowledge of managers in proving compliance with the
obligations with this equipment in the act of tax audits. Risks with
such containers are independent of the size, model, type, source
of energy used or purpose of use, in all of them is inherent, the
potential for serious accidents, including human losses, which
consequently justifies the need for management permanent and
efficient security system capable of guaranteeing the reduction
or mitigating possible occurrences. In view of the above, it is
necessary that the entire technical team, as well as the operators
go through a theoretical / practical training process on the
installations and operations of the equipment that make up the
boilers, acquiring prior knowledge of the object of work,
becoming capable to safely handle all these tools, in a way that
facilitates and enables the practice of attitudes and habits of
those directly responsible for the management of this equipment,
allowing them to anticipate risks and possible harmful events.
Keywords: Safety Management. NR-13. Boilers.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

353
TRABALHO ESCRAVO: EFEITOS DA ABSOLVIÇÃO CRIMINAL NO
PROCESSO ADMINISTRATIVO E NA LISTA SUJA

Rosália Ferreira Pinto1

1. Introdução. 2. Fundamentos do Cadastro de empregadores que tenham


submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo. 3.
Independência das esferas administrativa, civil e penal. 4. Efeitos da
absolvição criminal no processo administrativo que apura o ilícito de
exploração de mão de obra análoga à de escravo. 5. Repercussões práticas
sobre a lista suja. 6. A atuação da DETRAE na construção de precedentes.
7. Conclusão. Referências.

RESUMO
O ordenamento jurídico atinente ao Direito Administrativo sancionador
apresenta lacunas no tocante às repercussões administrativas da
absolvição do crime de submissão de trabalhador à condição análoga à de
escravo, o que acarreta divergentes posicionamentos sobre o tema. O
presente trabalho se destina a pesquisar em quais hipóteses e condições
uma absolvição criminal pode acarretar o efeito de promover a exclusão do
empregador da lista suja do trabalho escravo, incluindo os efeitos sobre os
autos de infração lavrados. Após breve introdução, o segundo capítulo
aborda os fundamentos do Cadastro de empregadores à luz dos diplomas
legais vigentes, bem como sua natureza jurídica. O terceiro capítulo analisa
a independência entre as diferentes instâncias de responsabilização, regra
geral do direito sancionador. O quarto capítulo tem por objetivo esclarecer
em quais hipóteses uma absolvição na seara criminal pode interferir no
processo administrativo. Em seguida, analisa-se as repercussões práticas
da absolvição criminal na lista suja, bem como a atuação da DETRAE na
criação de precedentes que envolvem o tema objeto deste estudo.

Palavras-chave: trabalho escravo. lista suja. absolvição criminal.


condenação administrativa.

1 INTRODUÇÃO

O Cadastro de empregadores que submetem trabalhadores a condições


análogas à de escravo, popularmente conhecido como “lista suja”, é um dos

1Auditora-Fiscal do Trabalho. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Pós-
graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

354
instrumentos mais importantes no combate à escravidão no Brasil. Em termos
simples, o Cadastro é o ato administrativo que dá publicidade ao resultado final de
ações fiscais nas quais consta lavratura de auto de infração motivado por submeter
trabalhador à condição análoga à de escravo, após o devido processo legal
administrativo.
Paralelamente, o Cadastro é um instituto muito questionado, uma vez que as
empresas incluídas na lista, além de terem sua marca associada ao trabalho escravo,
sofrem restrições no acesso às linhas de crédito dos bancos estatais. Logo, os sujeitos
que constam da lista se utilizam das mais variadas medidas jurídicas para pleitear sua
exclusão. Os fundamentos das referidas medidas são diversos e, dentre estes,
destacam-se as teses fundamentadas na absolvição na seara criminal.
A improcedência da pretensão punitiva na esfera criminal, quando colidente
com a decisão administrativa sancionadora da conduta de submissão de trabalhador
à condição análoga à de escravo, é questão que não pode ser absolutamente
desconsiderada. O ordenamento jurídico atinente ao Direito Administrativo
sancionador, no âmbito da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, é lacunoso
no tocante às repercussões administrativas, em especial na lista suja, da absolvição
do crime previsto no artigo 149 do Código Penal, o que gera insegurança jurídica sobre
o tema e necessidade de um maior aprofundamento.
Nesse cenário, o presente trabalho se destina a pesquisar em quais hipóteses
e condições a absolvição criminal pode acarretar efeitos sobre a sanção administrativa
e sobre o Cadastro de empregadores que submetem trabalhadores a condições
análogas à de escravo, servindo também como fonte de pesquisa para solução de
demandas que envolvem o tema.

2 FUNDAMENTOS DO CADASTRO DE EMPREGADORES QUE TENHAM


SUBMETIDO TRABALHADORES A CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO

Inicialmente, oportuno consignar que o Cadastro de empregadores que tenham


submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, enquanto instrumento
essencial no combate ao trabalho escravo, possui amparo jurídico em diversos
normativos existentes.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

355
No âmbito constitucional, a dignidade humana constitui um dos fundamentos
da República Federativa do Brasil dispostos no artigo 1º da Constituição. A construção
de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, da marginalização
e das desigualdades e a promoção do bem de todos, sem discriminação, estão entre
os objetivos da ordem constitucional, nos termos do artigo 3º, incisos I, III e IV.
Destaca-se ainda o Título II da Lei Maior, dedicado exclusivamente aos direitos
fundamentais, dentre os quais se encontram os direitos sociais e de caráter
trabalhista. Soma-se a isso o princípio constitucional da publicidade dos atos
administrativos, que possui intrínseca relação com a publicação da lista, conforme
será explicado a seguir.
Ilustrando o exposto, destaca-se o seguinte trecho do juiz do trabalho João
Humberto Cesário:

Assim , observado o imbróglio , é iniludível que a produção de um “cadastro


administrativo” , no qual são inseridos os empregadores que “reduzem
trabalhadores a condição análoga à de escravo” , usado como “ critério de
financiamento público da atividade produtiva privada”, não está a ferir, de
modo algum, o princípio da reserva legal, estando antes a implementar,
concretamente, tanto no plano prático quanto no ético, os mais sagrados
valores constitucionais2.

No âmbito do direito internacional, o Brasil vinculou-se a diversos


compromissos no sentido de erradicar o trabalho escravo, já tendo sido, inclusive,
condenado por omissão pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em
2016, no caso dos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde3. A Corte considerou que
o Estado incorre em responsabilidade internacional nos casos em que, existindo
discriminação estrutural histórica, não adota medidas específicas de proteção aos
grupos vulneráveis suscetíveis, em razão da situação socioeconômica, a se tornarem
vítimas dos delitos relacionados à escravidão4.

2 CESÁRIO, João Humberto. Legalidade e conveniência do cadastro de empregadores que tenham


mantido trabalhadores em condições análogas às de escravo – Compreendendo a “lista suja”. Rev.
TST, Brasília, vol. 71, nº 3, set/dez 2005, disponível em: <
https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/3793/004_cesario.pdf?sequence=1&isAllow
ed=y> Acesso em: 29 jul. 2020.
3 Inteiro teor da decisão: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf> Acesso

em: 28 jun. 2020.


4 STF: Boletim de jurisprudência internacional. Trabalho Escravo. Dezembro 2017. Disponível em:

<http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaPesquisasFavoritas/anexo/TrabalhoEscravoJurisprud
nciaInternacional.pdf> Acesso em: 30 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

356
Dentre os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e sem prejuízo
de outros instrumentos, destacam-se as Convenções da OIT nº 29 e nº 105, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Convenção sobre Escravatura
de 1926 e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da
Costa Rica), normas compatíveis com a Carta Constitucional de 1988, contendo
dispositivos que preveem a adoção imediata de medidas de qualquer natureza
(legislativas ou não) necessárias para a erradicação do trabalho escravo, dentre as
quais destaca-se a publicação do Cadastro.
A despeito de tudo isso, não se pode olvidar que o tema oferece um debate
que envolve um choque entre princípios constitucionais que tutelam, por um lado, os
valores sociais do trabalho e a dignidade humana do trabalhador e, por outro lado, a
livre iniciativa e o direito de propriedade. Na arguição de descumprimento de preceito
fundamental (ADPF) nº 509, protocolada em 26 de janeiro de 2018 pela Associação
Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC) no Supremo Tribunal Federal
(STF) para questionar a constitucionalidade do Cadastro de empregadores que
tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, o referido
choque constitucional foi abordado.
Na petição inicial, a ABRAINC dedicou um capítulo sobre os valores sociais do
trabalho e a livre iniciativa, no qual, após discorrer sobre as dificuldades de se
empreender no Brasil e a importância do pleno emprego, apresenta a tese de que
nenhum princípio constitucional é absoluto, nem mesmo a dignidade humana.
Destaca que a promoção do bem social é alcançável com a observância simultânea
dos princípios da dignidade humana, da livre iniciativa e dos valores sociais do
trabalho que se harmonizam e se complementam.
De fato, nenhum princípio constitucional é absoluto. A ordem econômica possui
como fundamentos a valorização do trabalho e a livre iniciativa e tem por fim assegurar
a todos existência digna, consoante o artigo 170 da Constituição Federal (CF). Por
serem princípios constitucionais, tanto a livre iniciativa quanto a valorização do
trabalho humano têm a mesma hierarquia, não havendo prevalência de um sobre
outro.
Assim, a livre iniciativa deve ser ponderada para se harmonizar com a
valorização do trabalho humano, princípio que se manifesta em regras e medidas

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

357
restritivas impostas pelo Estado ao empregador flagrado explorando mão de obra
escrava. Vale destacar que a propriedade, apesar de ser um direito fundamental, deve
ser exercida nos limites de sua função social, por determinação constitucional.
E o sujeito que explora sua atividade econômica submetendo trabalhadores a
condições análogas à de escravo ultrapassa os limites do seu direito individual, pratica
conduta que representa justamente a negação da valorização social do trabalho e das
finalidades da ordem econômica, atingindo toda a coletividade, em sentido contrário à
existência digna e à busca do bem-estar e da justiça social.
Nesse contexto, verifica-se que a submissão de trabalhador a condições
análogas à de escravo, além de atingir a classe trabalhadora, viola também o direito
de concorrência, por representar dumping social entre empresas de um mesmo
segmento, permitindo que empregadores que se utilizam de trabalho análogo ao de
escravo possam, de maneira desleal, oferecer produtos ou serviços a preços menores
do que aqueles que mantêm suas relações de trabalho hígidas e regulares.
Sem pretender esgotar o debate, vale destacar trecho de decisão recente,
proferida em 16 de setembro de 2020, pelo Exmo. Sr. Ministro Edson Fachin, nos
autos da ADPF nº 509:

Para finalizar, também não há qualquer mácula aos princípios constitucionais


que exortam os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Como bem
asseverou a Procuradoria-Geral da República em seus memoriais, “ O
cadastro é medida que se insere entre as mais importantes políticas de
Estado para a erradicação do trabalho escravo contemporâneo no país,
dando concretude ao princípio constitucional da publicidade (art. 37, caput,
da CRFB/88); aos fundamentos da República Federativa do Brasil da
“cidadania”, da “dignidade da pessoa humana” e dos “valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa” (art. 1º, II a IV); aos objetivos fundamentais de
“construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “garantir o desenvolvimento
nacional”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º) e
ao princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais
(art. 4º, II) ”. Portanto, não se trata de violação de quaisquer preceitos
fundamentais, mas sim da sua efetiva concretização, a inserir o Brasil em
quadro de medidas normativas das mais avançadas no combate ao labor em
condições análogas à de escravidão.

Vale ainda destacar o excerto abaixo de decisão proferida pelo Exmo. Sr.
Ministro Marco Aurélio de Mello, relator da ADPF nº 509:

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

358
A quadra vivida reclama utilização irrestrita das formas de combate a práticas
análogas à escravidão. No ápice da pirâmide das normas jurídicas, está a
Constituição Federal, submetendo a todos indistintamente, ou seja, pessoas
naturais e jurídicas, de direito privado e público, o Executivo, o Legislativo e
o Judiciário. Dela extrai-se, como fundamentos da República Federativa do
Brasil, a teor do artigo 1º, a dignidade da pessoa humana, cujo núcleo é
composto pela proibição de instrumentalização do indivíduo, e valores sociais
do trabalho. A observação justifica-se ante a necessidade de ter-se avanço,
e não retrocesso, civilizacional. A implementação do ato atacado volta-se a
realizar direitos inseridos no principal rol das garantias constitucionais.

No que tange ao âmbito infraconstitucional, destaca-se a Lei de Acesso à


Informação, Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que prevê em seu artigo 8º,
o exercício da transparência ativa por parte da Administração:

Art. 8º É dever dos órgãos e entidades públicas promover,


independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso,
no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou
geral por eles produzidas ou custodiadas.

Diante do evidente interesse público na publicação do resultado das ações


fiscais de combate ao trabalho escravo, o Poder Executivo regulamentou as regras
relativas ao Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a
condições análogas à de escravo. Atualmente, encontra-se vigente a Portaria
Interministerial MTPS/MMIRDH Nº 4, de 11/05/20165, da qual merece destaque o
seguinte trecho:

Art. 2º (...)
§ 1º A inclusão do empregador somente ocorrerá após a prolação de decisão
administrativa irrecorrível de procedência do auto de infração lavrado na ação
fiscal em razão da constatação de exploração de trabalho em condições
análogas à de escravo.
§ 2º Será assegurado ao administrado, no processo administrativo do auto de
infração, o exercício do contraditório e da ampla defesa a respeito da
conclusão da Inspeção do Trabalho de constatação de trabalho em condições
análogas à de escravo, na forma dos art. 629 a 638 do Decreto-Lei nº 5.452,
de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho) e da Portaria
MTPS nº 854, de 25 de junho de 2015.

Como se observa, o requisito essencial para inclusão do nome do empregador


no Cadastro é a existência prévia de decisão administrativa irrecorrível de procedência

5Vale registrar que esta Portaria teve sua constitucionalidade questionada no STF, por meio da
ADPF nº 509, de relatoria do Exmo. Sr. Ministro Marco Aurélio de Mello. Em julgamento proferido em
16 de setembro de 2020, foi confirmada a constitucionalidade do ato impugnado.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

359
do auto de infração lavrado em razão da constatação da exploração de trabalho em
condições análogas à de escravo, mediante o devido processo legal administrativo,
em que seja efetivamente assegurado ao administrado o exercício do contraditório e
da ampla defesa.
Vale ainda destacar que a permanência de cada empregador se dá por tempo
determinado, havendo atualização semestral do Cadastro. Para fins de exclusão da
lista, após realizado monitoramento pela Inspeção do Trabalho por dois anos e, não
configurada reincidência, é devida a exclusão do empregador, consoante o disposto
no artigo 3º da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH Nº 4, de 11/05/2016.
Ainda sobre a exclusão de empregadores do Cadastro, observa-se que a citada
Portaria se limita a prever a hipótese de decurso do prazo de dois anos, sendo omissa
sobre os efeitos da absolvição do crime previsto no artigo 149 do Código Penal. Do
mesmo modo, a Instrução Normativa nº 139, de 22 de janeiro de 2018, da Secretaria
de Inspeção do Trabalho e demais normativos vigentes no âmbito administrativo, não
oferecem qualquer previsão sobre os impactos no processo administrativo e no
Cadastro do trabalho escravo de eventual sentença absolutória criminal.
Nesse contexto, antes de adentrar no tema objeto deste estudo, torna-se
essencial, para a presente pesquisa, analisar a natureza jurídica do Cadastro.
Uma corrente6 sustenta tratar-se de ato administrativo punitivo, uma vez que
imputa aos sujeitos nele inscritos a pecha de escravagistas, com a imposição de
consequências de ordem moral e financeira, com destaque para aquelas previstas na
Portaria do Ministério da Integração Nacional nº 1.150 de 18/11/2003 e Resolução nº
3876 de 2010 do Banco Central do Brasil, as quais determinam aos agentes
financeiros que se abstenham de conceder financiamentos a pessoas físicas e
jurídicas inscritas no Cadastro de Empregadores que mantiveram trabalhadores em
condições análogas à de escravo.
Em consequência disto, os adeptos desta tese alegam que a inclusão na lista,
mesmo após a decisão final definitiva do auto de infração motivado por submeter
trabalhador a condição análoga à escravidão, mediante o devido processo legal
administrativo, exige uma segunda oferta de ampla defesa e contraditório, a fim de

6 Essa tese foi sustentada na petição inicial da ADPF nº 509.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

360
discutir, especificamente, a inclusão ou não do empregador no Cadastro. No seu
entender, a Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH Nº 4, de 11/05/2016, institui
punição aos administrados sem qualquer amparo legal e sem prever contraditório, o
que violaria os princípios da reserva legal, da separação de poderes e do devido
processo legal.
Todavia, acredita-se ser mais acertada a tese de que a inclusão no Cadastro
não tem natureza jurídica de sanção. Nos termos do artigo 68 da Lei nº 9.784, de 29
de janeiro de 1999, as sanções administrativas “terão natureza pecuniária ou
consistirão em obrigação de fazer ou não fazer”, situação na qual não se enquadra a
publicação da lista suja.
O Cadastro administrativo do trabalho escravo, embora possa ter repercussões
sociais e em outros órgãos, não tem natureza jurídica de sanção. Os possíveis efeitos
da inclusão da lista decorrem da reprovação social da conduta de submeter um ser
humano a condições análogas à escravidão. Mas a publicidade do Cadastro deve ser
considerada como mero ato administrativo enunciativo7 que atesta e dá publicidade
ao resultado de procedência do auto de infração.
Em conformidade com o aludido artigo 68 da Lei nº 9.784/1999, a sanção
administrativa que pune a submissão de trabalhador a condição análoga à de escravo
é constituída pelas multas pecuniárias decorrentes dos autos de infração, ao passo
que o Cadastro é o mero exercício de transparência ativa, ou seja, é o ato que publica,
independente de requerimentos, o resultado daquela sanção pecuniária, após o
devido processo legal destinado a apurar a responsabilidade administrativa do
empregador sobre os fatos apurados.
Por conseguinte, não há que se falar em renovação do contraditório e da ampla
defesa, os quais são ofertados no âmbito da impugnação da autuação. Do mesmo
modo, uma vez que o Cadastro não institui sanção, não há que se falar que a
imposição de multa administrativa e a inclusão na lista suja acarretam dupla punição
pelo mesmo fato ou bis in idem, argumento comumente usado pelos empregadores
para solicitar sua exclusão.

7 “Ato enunciativo é aquele pelo qual a Administração apenas atesta ou reconhece determinada
situação de fato ou de direito. (...) Eles exigem a prática de um outro ato administrativo, constitutivo
ou declaratório, este sim produtor de efeitos jurídicos”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 30ª Ed. Rio
de Janeiro: Forense, 2017, p. 268.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

361
A Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE) já
se manifestou na mesma linha, dispondo que a publicação do Cadastro administrativo
do trabalho escravo não tem natureza jurídica de sanção. Sobre o tema, destaca-se o
trecho abaixo da nota informativa nº 33/2018/DETRAE/SIT, proferida nos autos do
processo administrativo nº 46268.003844/2017-29:

8. Concluído todo o trâmite processual, a inclusão do nome do empregador


no Cadastro é mero consectário lógico da confirmação final de
responsabilidade administrativa no processo decorrente do auto de infração
lavrado pela constatação de trabalho em condições análogas às de escravo.
Não há qualquer conteúdo decisório no ato de publicação dos nomes no
Cadastro, tratando-se de ato vinculado e automático, de mera execução
material, previsto expressamente na Portaria Interministerial nº 4/2016, que
simplesmente constata o advento da decisão administrativa final de
procedência do auto de infração lavrado.
9. Em outros termos, a inclusão no Cadastro de Empregadores significa
simplesmente o exercício de transparência ativa exercido pela Administração,
consoante o princípio constitucional da publicidade. E em nível
infraconstitucional, sustenta-se na Lei de Acesso à Informação (Lei nº
12.527/2011), que em seu art. 8º obriga o governo brasileiro a fornecer
informações de interesse público, independente de requerimentos.

Corroborando o exposto, vale destacar a manifestação da ilustre Raquel


Dodge, enquanto Procuradora-Geral da República, nos autos da ADPF nº 509:

A Portaria Interministerial 4/2016, assim como aquelas que a antecederam,


apenas regulamenta a publicização do resultado de procedimentos
administrativos praticados em defesa de direitos humanos e de proteção do
interesse público e estipula instruções para execução de normas
internacionais integradas à ordem jurídica interna. Diferentemente do que
alega a requerente, as portarias questionadas não restringem direitos nem
impõem sanções administrativas, muito menos sem base legal.
(...)
A Portaria Interministerial 4/2016 (assim como as demais impugnadas já
revogadas) nada mais é do que instrumento administrativo concebido para
dar concretude aos princípios constitucionais da publicidade, da
transparência da ação governamental e do acesso à informação, a que se
referem os arts. 37‒caput e 5.º‒XIV e XXXIII da Constituição. Por meio dela,
diante da gravidade das práticas que reduzem trabalhadores a condições
análogas à de escravo, os Ministros de Estado competentes deliberaram
consolidar ações estatais e divulgá-las para conhecimento público, dado o
interesse coletivo e geral das informações, como prevê a Carta Magna.
Observadas as peculiaridades de cada situação, cuida-se de iniciativa similar
à de divulgação de informações de interesse público no Portal da
Transparência, mantido pelo Poder Executivo por meio da Controladoria-
Geral da União. O dever de transparência, em boa hora, passou a ser objeto
de normatização legal própria com a promulgação da Lei 12.527, de 18 de
novembro de 2011.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

362
Observa-se ainda que a Portaria Interministerial nº 4/2016 não inovou no
ordenamento jurídico, apenas instituiu instruções para a efetivação do compromisso
assumido pelo Brasil no sentido de adotar medidas de qualquer natureza para a
erradicação do trabalho escravo, o que inclui a publicidade ativa dos resultados de
autos de infração que tratam do tema, independente de requerimentos por parte dos
administrados, conforme determina a Lei de Acesso à Informação.
E, com a devida vênia dos entendimentos contrários, não há qualquer
irregularidade na publicação do Cadastro, pois não há previsão legal de sigilo ou
censura quanto ao conteúdo das autuações lavradas por auditores-ficais do trabalho,
ao mesmo tempo em que é de interesse público a divulgação proativa de dados sobre
resultados das ações fiscais destinadas a combater a escravidão.

3 INDEPENDÊNCIA DAS ESFERAS ADMINISTRATIVA, CIVIL E PENAL

A fim de investigar os efeitos no processo administrativo e na lista suja da


absolvição do crime previsto no artigo 149 do Código Penal, é preciso estudar a
relação entre as diferentes esferas sancionadoras. Isto porque a prática de um ato
ilícito pode ensejar, simultaneamente ou não, a aplicação de sanções de ordem civil,
administrativa e criminal.
Carvalho Filho8 nos ensina que as sanções diferem entre si pela natureza da
norma ofendida. Se é a norma penal a violada, o efeito será a aplicação de sanção
penal. Se alguém vulnera o dever de não causar prejuízo a outrem, e mesmo assim o
faz, terá responsabilidade civil e se sujeitará à aplicação de sanção civil, no caso, será
ele condenado a reparar os prejuízos que causou. O mesmo se passa com a sanção
administrativa, que é tratada no artigo 68 da lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
Havendo comportamento que viole norma administrativa, o infrator terá
responsabilidade e se sujeitará à aplicação de sanção administrativa. Adiante,
Carvalho Filho9 menciona a hipótese em que o indivíduo infrator está sujeito a duas

8 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Processo Administrativo Federal. Comentários à Lei nº 9.784,
de 29.1.1999, 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 347 e 348.
9 Idem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

363
ou mais sanções de diversa natureza. É o caso da exploração da mão de obra análoga
à de escravo.
A submissão de trabalhador a condições análogas à de escravo é um ato que
pode ensejar a responsabilização civil, penal e administrativa do empregador. Sobre
esse tema, há teses no sentido de que a absolvição do infrator do delito previsto no
artigo 149 do Código Penal ou o arquivamento do inquérito respectivo acarretam a
improcedência do auto de infração lavrado por auditor-fiscal do trabalho e a
consequente exclusão do empregador do Cadastro regulado pela Portaria
Interministerial nº 4/2016. Todavia, esse entendimento precisa ser analisado com
cautela, pois a regra vigente é a da independência das esferas administrativa, civil e
penal.
O artigo 935 do Código Civil dispõe acerca do princípio da independência
relativa das instâncias, que também é previsto no Código de Processo Penal, em seus
artigos 66 e 67. Na seara administrativa, é oportuno transcrever o disposto no artigo
4º da Instrução Normativa nº 139, de 22 de janeiro de 2018:

Art. 4º. A constatação na esfera administrativa de trabalho em condição


análoga à de escravo por Auditor-Fiscal do Trabalho e os atos dela
decorrentes são competências legais da Inspeção do Trabalho, pelo que
independem de prévio reconhecimento no âmbito judicial.

Importante atentar-se para o fato de que não se deve confundir as diferentes


instâncias de responsabilização quando decorrentes de condutas que possam, em
tese, caracterizar a prática tanto de crime quanto de infração administrativa, pois é
perfeitamente possível que seja configurada uma infração administrativa e ao mesmo
tempo não seja considerada a prática de um crime.
E não poderia ser diferente, pois as esferas de responsabilização de um
indivíduo estão sujeitas a regimes jurídicos diversos, autônomos, com efeitos e
sanções específicos, que impõem tratamentos desiguais justificados, conforme ilustra
a doutrina abaixo, de Fábio Medina Osório:

A unidade (parcial) impõe traços em comum e umas mínimas garantias, mas


as diferenças impõem tratamentos desiguais justificados, desenvolvimento
de princípios próprios do Direito Administrativo Sancionador, que é, antes de
tudo, direito administrativo por excelência, até porque já não se discute que

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

364
ilícitos penais e administrativos se encontram debaixo de regimes jurídicos,
em sua maior parte, distintos10.

Portanto, a regra geral vigente é a da incomunicabilidade entre as diversas


instâncias de responsabilização, inclusive no tocante às sanções previstas para os
empregadores flagrados explorando mão de obra análoga à de escravo.

4 EFEITOS DA ABSOLVIÇÃO CRIMINAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO QUE


APURA O ILÍCITO DE EXPLORAÇÃO DE MÃO DE OBRA ANÁLOGA À DE
ESCRAVO

Conforme tratado no tópico anterior, a regra geral é a da incomunicabilidade


entre as instâncias. E assim deve ser, pois ao auditor-fiscal do trabalho cabe a
apuração das irregularidades trabalhistas, o que, consequentemente, atrai a
prerrogativa de constatar o ilícito de trabalho análogo ao de escravo na esfera
administrativa e adotar os procedimentos legais de resgate e autuação, o que se infere
das disposições constantes do artigo 11 da Lei nº 10.593, de 6 de dezembro de 2002,
e o artigo 2º-C da Lei 7.998, de 11 de janeiro de 1990.
Acerca da lavratura do auto de infração no âmbito da Subsecretaria de
Inspeção do Trabalho, dispõe o artigo 25 da Instrução Normativa nº 139, de 22 de
janeiro de 2018:
Art. 25. Quando o Auditor-Fiscal do Trabalho identificar a ocorrência de uma
ou mais hipóteses previstas nos incisos I a V do art. 6º, deverá lavrar auto de
infração conclusivo a respeito da constatação de trabalho em condição
análoga à de escravo, descrevendo de forma circunstanciada os fatos que
fundamentaram a caracterização.
§ 1º. O Auto de infração de que trata o caput deste artigo será capitulado no
artigo 444 da Consolidação das Leis do Trabalho, assegurado o direito ao
contraditório e à ampla defesa em todas as instâncias administrativas.
§ 2º. No auto de infração lavrado deverão ser identificados e enumerados os
trabalhadores encontrados em condições análogas às de escravo.

Conforme disposto no Capítulo anterior, em regra, a constatação na esfera


administrativa de trabalho em condição análoga à de escravo e os atos dela
decorrentes são competências legais da Inspeção do Trabalho e independem de

10OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador, 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2015, p. 155.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

365
prévio reconhecimento no âmbito judicial. A despeito disto, há situações em que uma
decisão judicial pode possuir efeitos de interferir no auto de infração lavrado por
submissão de trabalhador à condição análoga à de escravo e, consequentemente, no
Cadastro de empregadores.
Como exceção à regra da incomunicabilidade entre as instâncias, a doutrina e
a jurisprudência apontam as hipóteses de absolvição criminal motivada por
comprovação de inexistência de materialidade ou de negativa de autoria. Sobre o
tema, vale destacar as lições de Hely Lopes Meirelles, ao analisar a responsabilidade
civil, penal e administrativa do servidor público:

A absolvição criminal só afasta a responsabilidade administrativa e civil


quando ficar decidida a inexistência do fato ou a não autoria imputada ao
servidor, dada a independência das três jurisdições. A absolvição na ação
penal, por falta de provas ou ausência de dolo, não exclui a culpa
administrativa e civil do servidor público, que pode, assim, ser punido
administrativamente e responsabilizado civilmente11.

Há precedentes no Supremo Tribunal Federal que corroboram o entendimento


acima exposto, no sentido de que as instâncias civil, penal e administrativa são
independentes, sem que haja interferência recíproca entre seus respectivos julgados,
ressalvadas as hipóteses de absolvição por inexistência de fato ou de negativa de
autoria, conforme excerto abaixo12:

Ementa: DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO


ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. 1. Não caracterizada a suspeição da
presidente da comissão processante uma vez que não restou provada a
ocorrência de nenhuma das hipóteses do art. 20 da Lei 9.784/1999, tampouco
atuação parcial da servidora pública. 2. A nomeação de defensor dativo,
diante da relutância do interessado e de seu advogado devidamente
intimados em apresentar defesa, não caracteriza nenhum vício. 3. Não corre
o prazo prescricional enquanto perdurar ordem judicial de sobrestamento do
processo administrativo. 4. Ressalvadas as hipóteses de absolvição pelo
reconhecimento categórico de inexistência de materialidade ou de negativa
de autoria, a decisão penal não interfere automaticamente na esfera
administrativa. 5. Ausência de demonstração, no caso concreto, de razões
para superação do entendimento da autoridade administrativa, que
reconheceu atuação dolosa causadora de prejuízo ao erário por parte do
agravante. 6. Agravo a que se nega provimento. STF, RMS 32584 AgR,

11MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 42ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2016.
p.616.
12 Outros precedentes do STF no mesmo sentido: MS 21545 , Relator(a): Min. Moreira Alves,
Julgamento: 11/03/1993, HC 147576 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em
24/08/2018.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

366
Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em
16/10/2017.

Por todo o exposto, é possível afirmar que uma decisão judicial poderá
repercutir na esfera administrativa quando ocorrerem as hipóteses de absolvição
criminal do delito de submissão à condição análoga à de escravo motivada por
comprovação de inexistência do fato ou de negativa de autoria, situações previstas no
artigo 386, incisos I e IV do Código de Processo Penal.
Explicando essas hipóteses com maiores detalhes, destaca-se o seguinte
trecho do artigo de João Lopes13:

A orientação da Corte Suprema se sustenta em duas premissas bem simples,


garantidoras da autonomia das decisões administrativas, que vale a pena
serem realçadas:
a) Inexistência Material do Fato significa com clareza meridiana que o
evento em que se fundamentaram a sindicância administrativa, o inquérito
policial, o processo administrativo e o processo criminal, simplesmente foi
produto de grande equívoco e não possui tipicidade disciplinar nem penal.
b) Negativa de Autoria há que ser entendida como comprovação de
inocência, que é bem diferente de não constatação de culpa. Importa dizer
que o outrora sindicado, indiciado, denunciado, acusado e condenado em
primeira instância também fora objeto de engano dessas instâncias
anteriores, em possível situação de erro judiciário, de que se procura
justamente redimir, com a inadmissão de qualquer resquício de
responsabilidade sobre o evento típico e antijurídico que em verdade
aconteceu, mas que por intervenção salomônica não lhe deve ser imputado.
Enfim, a presente discussão reside na inteligência de que a existência da
prova de não participação de alguém em fato criminoso é aberrantemente
diferente da insuficiência de evidências para comprová-lo. Igualmente é
induvidoso que a inexistência material do fato imputado irá eximir qualquer
pessoa de responsabilização penal ou administrativa, o que nem se deve
discutir, por razões elementares de lógica jurídica.

5 REPERCUSSÕES PRÁTICAS SOBRE A LISTA SUJA

As considerações desenvolvidas no Capítulo anterior apontam no sentido de


que a decisão judicial que absolver o empregador do crime de redução à condição
análoga à de escravo poderá acarretar a improcedência do auto de infração lavrado
por este motivo e, consequentemente, sua exclusão do Cadastro regido pela Portaria
Interministerial nº 4/2016 se a sentença penal absolutória reconhecer a comprovação

13 LOPES, João. Processo Administrativo: repercussão da decisão criminal. Disponível em: <
https://jus.com.br/artigos/24132/processo-administrativo-repercussao-da-decisao-criminal> Acesso
em: 01 jul. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

367
de inexistência do fato ou a existência de prova que demonstre que o réu não
concorreu para a infração penal, além de ter ocorrido o trânsito em julgado da referida
decisão.
Destarte, a absolvição criminal por razões tais como a insuficiência de provas,
a ausência de dolo, não constituir o fato infração penal, ou quaisquer das hipóteses
do artigo 386 do Código de Processo Penal que não se enquadrem nos incisos I e IV,
não acarreta qualquer efeito sobre o auto de infração lavrado por submeter
trabalhador a condições análogas à de escravo e, consequentemente, sobre a
inclusão do nome do empregador no Cadastro. Para ilustrar o assunto, observe-se
que o tipo criminal previsto no artigo 149 tem suas especificidades, tratando-se de um
tipo estritamente doloso “em que se exige a consciência do agente de estar reduzindo
alguém a um estado de submissão por uma das formas previstas no artigo”.14
Diversamente, as infrações administrativas apuradas pelos Auditores-Fiscais
do Trabalho têm natureza objetiva e sua caracterização independe da existência do
elemento volitivo. Realizada a conduta indesejada pela lei, a infração se aperfeiçoa e
atrai a sanção, independentemente de dolo ou culpa. Sobre o tema, leciona Hely
Lopes Meirelles: “A multa administrativa é de natureza objetiva e se torna devida
independentemente da ocorrência de culpa ou dolo do infrator”15.
Desta maneira, resta clara a possibilidade de que um fato que não constitui
infração penal pode constituir um ilícito administrativo, e vice-versa. Do mesmo modo,
eventual insuficiência de provas no âmbito criminal não significa a insuficiência de
provas no âmbito administrativo, pois os elementos normativos que constituem o ilícito
administrativo são diferentes daqueles exigidos para a responsabilização penal.
Nessa linha de raciocínio, destaca-se o seguinte excerto de decisão proferida
pelo Exmo. Sr. Ministro Luís Roberto Barroso, nos autos do RMS 32584/STF:

Ocorre que na esfera penal o ônus que recai sobre a acusação é bem mais
severo, de modo que, ainda que o agravante tenha sido absolvido da
imputação criminal por ausência de provas suficientes para a condenação,
essa conclusão não vincula a esfera administrativa.

14MIRABETE, Julio Fabbrini. Código Penal Interpretado, 6ª ed. São Paulo: Altas. 2007.
15MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 42ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016,
pág.222.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

368
Com a devida vênia do que defende grande parte dos empregadores que
constam da lista, a inclusão do nome do infrator no Cadastro administrativo do trabalho
escravo, nos casos em que inexiste sentença criminal condenatória, não significa
ofensa ao princípio da presunção de inocência, insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da
Constituição, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória.
Isto porque, conforme explicado no Capítulo dois do presente trabalho, que
trata dos fundamentos legais do Cadastro de empregadores, a inclusão do infrator na
lista somente ocorre após a prolação de decisão administrativa irrecorrível de
procedência do auto de infração lavrado em razão da constatação da exploração de
trabalho em condições análogas à de escravo, mediante o devido processo legal
administrativo, em que seja assegurado ao administrado o exercício do contraditório
e da ampla defesa.
Desta forma, pede-se vênia novamente para sustentar que não há que se falar
em culpa presumida do empregador ou violação da presunção de inocência diante da
mera publicidade do resultado final da sanção administrativa decorrente da exploração
de mão de obra análoga à de escravo, uma vez que o infrator somente é considerado
responsável pelos fatos imputados após a decisão de procedência do auto de infração
se tornar irrecorrível, ofertada defesa ampla e contraditório.
Corroborando o exposto, segue abaixo trecho de voto proferido pelo Exmo. Sr.
Ministro Edson Fachin, em 16 de setembro de 2020, nos autos da ADPF nº 509, que
discutiu a constitucionalidade do Cadastro e, analisou, dentre outras coisas, a
alegação acerca da violação do princípio da presunção de inocência:

Tampouco visualizo contradição ao devido processo legal e à presunção de


inocência. A inclusão do nome no Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo só ocorre após
a realização de regular processo administrativo, com contraditório e ampla
defesa, realizado nos termos dos artigos 629 a 638 do Decreto-Lei nº 5.452,
de 1º de maio de 1943 – Consolidação das Leis do Trabalho – como assegura
o §2º do artigo 2º da citada Portaria. Estão garantidos, portanto, o direito à
correta identificação do auditor do trabalho, lavratura do auto de infração,
defesa com produção ampla de provas e recursos em face de decisão
desfavorável.

Assim, a aplicação do princípio da presunção de inocência na seara


administrativa não significa a exigência de prévia sentença criminal condenatória. O

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

369
respeito ao referido princípio, no que tange à inclusão de administrado no Cadastro
do trabalho escravo, materializa-se pela exigência prévia de decisão irrecorrível
proferida pela autoridade administrativa competente, que declara a procedência do
respectivo auto de infração, após o devido processo legal administrativo, com ampla
defesa e contraditório.
O Exmo. Sr. Ministro Marco Aurélio de Mello compartilha deste entendimento,
conforme voto proferido na condição de relator da ADPF nº 509:

Sob o ângulo do devido processo legal, o lançamento, no Cadastro, do nome


do empregador ocorre após decisão administrativa irrecorrível, observadas
as garantias do contraditório e ampla defesa, bem como as regras atinentes
ao processo de multa, na forma do artigo 2º, § 2º, da Portaria em jogo: § 2º
Será assegurado ao administrado, no processo administrativo do auto de
infração, o exercício do contraditório e da ampla defesa a respeito da
conclusão da Inspeção do Trabalho de constatação de trabalho em condições
análogas à de escravo, na forma dos art. 629 a 638 do Decreto-Lei nº 5.452,
de 1º de maio de 1943 (Consolidação das Leis do Trabalho) e da Portaria
MTPS nº 854, de 25 de junho de 2015. O dispositivo remete aos artigos 629
a 638 da Consolidação das Leis do Trabalho e à Portaria nº 854, de 25 de
junho de 2015, do Ministério do Trabalho e Previdência Social, a versarem o
procedimento de multa administrativa decorrente de auto de infração lavrado
ante descumprimento de normas de proteção ao trabalho. Garante-se, ao
empregador, a apresentação de defesa no prazo de dez dias, contados do
recebimento do auto de infração, a requisição de audiência para ouvir
testemunhas e outras diligências, bem assim recurso dentro de dez dias, a
partir do recebimento da notificação da decisão impondo a pena.

6 A ATUAÇÃO DA DETRAE NA CONSTRUÇÃO DE PRECEDENTES

O artigo 2º, §3º da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11/05/2016,


atribuiu à DETRAE, órgão integrante da atual Subsecretaria de Inspeção do Trabalho,
a responsabilidade pela organização e divulgação do Cadastro de empregadores que
tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo. Os pleitos
administrativos de exclusão da lista são, em regra, respondidos por este órgão, que
também presta informações em ações judiciais, quando demandado.
Desse modo, torna-se relevante para o presente trabalho a análise do acervo
de manifestações oficiais já proferidas pela DETRAE no âmbito de processos que têm
por objeto a exclusão do Cadastro por meio de pleitos que abordam reflexos de efeitos
da seara criminal na esfera administrativa.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

370
De 2015 até os dias atuais, foram identificadas 31 (trinta e uma) manifestações
oficiais, em sua maioria formalizadas por meio de notas informativas, que abordam,
direta ou indiretamente, o tema em estudo.
Dentre estas, verifica-se que 10 (dez) manifestações foram emitidas em
resposta a pedidos de empregadores fundamentados na necessidade de prévia
condenação criminal como condição para inclusão no Cadastro. Em sua maioria,
envolvem casos nos quais o Ministério Público Federal ingressou com ação penal para
apuração do crime tipificado no artigo 149 do Código Penal, porém tal ação ainda se
encontrava pendente de julgamento ou foi extinta sem resolução de mérito.
As manifestações da DETRAE analisadas apontam no sentido de que não é
necessária prévia condenação criminal transitada em julgado para fins de inclusão do
nome do empregador no Cadastro do trabalho escravo. Nesse sentido, destaca-se a
Nota Informativa nº 58/2017/DETRAE/SIT, proferida nos autos do processo
administrativo nº 00746.003053/2017-10516:

Aqui, ressaltamos também que não procede a alegação da empresa de que


é necessária condenação criminal transitada em julgado para permitir a
divulgação do Cadastro de Empregadores.
Há que se registrar a distinção entre responsabilidade objetiva administrativa
e a responsabilidade penal, que tem medidas completamente distintas em
razão dos próprios bens jurídicos que se buscam salvaguardar. Dessa forma,
há incomunicabilidade dessas instâncias, sobretudo porque não se
comprovou que houve sentença de absolvição penal.

Vale ainda destacar interessante trecho da Nota Informativa nº


52/2018/DETRAE/SIT, proferida nos autos do processo administrativo nº
00746.001956/2018-42:

Quanto à alegação de que a autora não respondeu à ação penal, ressalta-se


que não é necessária condenação criminal para a apuração de
responsabilidade administrativa da empresa por exploração do trabalho
análogo ao de escravo e para a consequente divulgação do Cadastro de
Empregadores.
Veja o disposto no art. 4º, da atual Instrução Normativa 139/2018, da
Secretaria de Inspeção do Trabalho, vigente na ocasião da inclusão do nome
da autora no Cadastro:

16 Ilustrativamente, cita-se outras Notas Informativas (NI) nesse sentido, seguidas do respectivo
processo administrativo: NI 13/2018/DETRAE/SIT, processo 46219.021419/2017-05; NI
18/2018/DETRAE/SIT, processo 46239.000234/2018-00; NI 42/2018/DETRAE/SIT, processo
00746.001230/2018-18; NI 62/2018/DETRAE/SIT, processo 00746.002279/2018-80.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

371
Art. 4º A constatação na esfera administrativa de trabalho em condição
análoga à de escravo por Auditor-Fiscal do Trabalho e os atos dela
decorrentes são competências legais da Inspeção do Trabalho, pelo que
independem de prévio reconhecimento no âmbito judicial.
Neste ponto, importa registrar a distinção entre responsabilidade objetiva
administrativa e a responsabilidade penal, que tem medidas completamente
distintas em razão dos próprios bens jurídicos que se buscam salvaguardar.
Dessa forma, há incomunicabilidade dessas instâncias, sobretudo porque
não houve sentença de absolvição penal.

Outro assunto comumente abordado e identificado em 15 (quinze)


manifestações oficiais analisadas é a exclusão do empregador do Cadastro em razão
de arquivamento de inquérito criminal, como por exemplo a que consta do trecho
abaixo da Nota Informativa SEI nº 26/2019/DETRAE/CGFIT/SIT/STRAB/SEPRT-ME,
proferida nos autos do processo administrativo SEI nº 19966.100297/2019-41:

Alega ainda que foi instaurado Inquérito pela Polícia Federal, para apurar
possível ocorrência do delito previsto no art. 149 do Código Penal, que
tramitou na Justiça Federal – Seção Judiciária do Estado do Acre, mas que
tal inquérito foi arquivado em 19/12/2018. Dessa forma entende que não há
provas para que o empregador seja mantido no Cadastro.

Nesta mesma Nota, a DETRAE se manifestou no seguinte sentido17:

Verifica-se que o pedido do interessado se fundamenta principalmente na


alegação de ter sido arquivado o inquérito policial para apuração do crime do
art. 149 do CP. Cabe relembrar, porém, que no Ordenamento Jurídico
Brasileiro predomina a independência de instâncias, que decorre da
separação entre os Poderes e da própria distinção entre a responsabilidade
administrativa com as demais responsabilidades: penal e civil. 8. Em virtude
dessa independência de responsabilidades (sanções penais, civis e
administrativas), o processo administrativo não se sujeita ao pressuposto de
haver prévia definição sobre o fato na esfera judicial. Neste ponto,
ressaltamos o entendimento pacífico do Supremo Tribunal Federal no sentido
da independência entre as instâncias administrativa, civil e penal, excetuados
os efeitos da decisão proferida nesta última, quando assentada na
inexistência de autoria ou a inocorrência material do próprio fato.

Acerca da comunicabilidade entre as esferas penal e administrativa, é relevante


ressaltar o trecho abaixo da Nota Informativa nº 16/2017/DETRAE/SIT, proferida nos
autos do processo administrativo nº 46017.001826/2017-64:

17 Na mesma linha, destacam-se, exemplificativamente, as seguintes Notas Informativas (NI),


seguidas do respectivo processo administrativo: NI 32/2016/DETRAE/SIT, processo
46017.006701/2016-40; NI 01/2017/DETRAE/SIT, processo 46200.00011/2017-91; NI
25/2017/DETRAE/SIT, processo 47749.000298/2017-24; NI 29/2017/DETRAE/SIT, processo
00746.001639/2017-45.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

372
Ocorre que não houve decisão judicial de absolvição criminal, com negativa
de materialidade, em relação à prática de exploração de trabalho análogo ao
de escravo. Apenas nesse caso seria possível se falar em comunicação entre
as esferas penal e administrativa hábil a desconstituir a higidez da imputação
de responsabilidade constante do auto de infração 20.002.504-0, capitulado
no art. 444, da CLT.
(...)
Com a escusa da insistência, o ato de constatação da Inspeção do Trabalho
não é penal, mas sim administrativo. Justamente por isso a análise regional,
acolhida pela decisão de procedência do auto de infração, registra que os
crimes serão apreciados pelas autoridades competentes, para, mais à frente,
mencionar que ao auditor-fiscal do trabalho cabe a apuração das
irregularidades trabalhistas, o que atrai a prerrogativa própria de constatar o
ilícito de trabalho análogo ao de escravo na esfera administrativa, nos estritos
termos do comando inserto do art. 2º-C da Lei 7998/90 – grifos inseridos.

Na mesma linha de raciocínio, merece destaque o seguinte excerto da Nota


Informativa nº 65/2018/DETRAE/SIT:

Por outro lado, quando na instância penal for expressamente negada a


autoria do delito ou ficar patente a inexistência do fato em discussão, nos
casos de sentença penal absolutória fundamentada no art. 386, I ou IV do
CPP, entende-se que o desfecho do caso deve repercutir na seara
administrativa.
No presente caso, como visto, não houve sentença de mérito sobre o fato ou
absolvição do réu. Houve apenas a rejeição da denúncia por questões
processuais. Dessa forma, o arquivamento do inquérito não alcança a esfera
de punições administrativas pelas irregularidades encontradas, de forma que
os registros administrativos no histórico do empregador permanecem
incólumes – grifos inseridos.

Outrossim, relevante ressaltar o trecho abaixo da Nota Informativa nº


10/2019/DETRAE/SIT, elaborada a fim de subsidiar a defesa da União nos autos da
ação ordinária nº 1001890-89.2019.4.01.3600, que tramitou perante o Tribunal
Regional Federal da 1ª Região, na qual restou consignado que a absolvição por
insuficiência de provas na seara criminal não interfere na apuração do fato na esfera
administrativa:

No presente caso, a sentença penal proferida no Processo N° 0020081-


10.2016.4.01.3600 - 5ª VARA – CUIABÁ/TRF 1ªRegião, concluiu não haver
provas suficientes para comprovar a existência do crime imputado aos
denunciados na peça acusatória, conforme disposto em sua conclusão: “Ante
o exposto, acolho a manifestação do MPF (fls. 266/274), para absolver (...),
com fundamento no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.” Como se
observa, a sentença absolveu o réu com fundamento no artigo 386, inciso VII,
do Código de Processo Penal, o qual dispõe: (...)
Veja-se que as hipóteses de absolvição por inexistência do fato estão
previstas no art. 386, I e II do CPP e a hipótese de negativa de autoria possui
previsão nos incisos IV e V do mesmo dispositivo legal. Já o inciso VII, citado

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

373
na parte dispositiva da sentença, prevê, como acima demonstrado, a hipótese
de não existir prova suficiente para a condenação.
Aqui vale lembrar, tal qual esclarecem as decisões colacionadas do STF, que
ainda que um fato tenha enfrentado repercussão na esfera penal, ele será ou
não sancionado a partir da aplicação das normas e princípios daquela seara,
não afastando sua apreciação e suas implicações legalmente previstas no
âmbito administrativo. Considerando-se a maior gravidade do ilícito penal,
que enseja normalmente penas restritivas de liberdade, o juiz pode entender
serem necessárias provas diferentes ou maior número de fatos para a
caracterização do crime.

Merecem ainda destaque duas manifestações oficiais da DETRAE em resposta


a pedidos de exclusão do Cadastro fundamentadas na existência de sentença penal
absolutória motivada por comprovação da inexistência do fato. Trata-se da Nota
Informativa nº 11/2016/DETRAE/SIT, proferida nos autos do processo administrativo
nº 00410.019928/2014-40 e da Nota Informativa nº 14/2016/DETRAE/SIT, proferida
nos autos do processo administrativo nº 46017.003360/2016-51.
Em ambos os casos opinou-se pela observância os efeitos da sentença
absolutória motivada por comprovação da negativa do fato, conforme excerto abaixo,
retirado da Nota Informativa nº 11/2016/DETRAE/SIT18:

Entretanto, reconhece-se igualmente que estas argumentações teriam lugar


no bojo da ação penal – da qual não participa o Ministério do Trabalho. Mas,
uma vez que a ação penal já foi julgada e arquivada, não cabe outra
alternativa senão a de observar os efeitos reflexos em razão da absolvição
por negativa de fato, afinal, o que o Exmo. Sr.Juiz Federal julgador concluiu
foi que as condutas descritas não existiram à luz dos tipos mencionados no
art.149 do Código Penal.
Assim, observa-se-ão (sic) ambas as decisões judiciais, seja por implicação
direta (Mandado de Segurança) ou reflexa (absolvição penal por inexistência
do fato), no histórico do empregador.

7 CONCLUSÃO

Por todo o exposto, conclui-se que a regra geral vigente no ordenamento


jurídico é a da independência entre as instâncias penal e administrativa. Como
exceção, apresenta-se a sentença penal absolutória motivada por comprovação de
inexistência de materialidade ou de negativa de autoria.

18Na época da emissão desta Nota Informativa, a publicação do Cadastro estava suspensa em razão
de decisão liminar concedida pelo STF nos autos da ADI nº 5.209.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

374
Assim, não acarretam qualquer efeito na seara administrativa as hipóteses de
arquivamento de inquérito criminal, bem como de sentença absolutória motivada por
razões tais como a insuficiência de provas, a ausência de dolo ou por não constituir o
fato infração penal. Do mesmo modo, não há que se falar em exigência de prévia
sentença penal condenatória para fins de inclusão no Cadastro de empregadores que
tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo.
É importante que os operadores do Direito estejam atentos às diferentes
esferas de responsabilização e seus respectivos regimes jurídicos, para que não seja
mitigada a eficácia da lista suja em sua nobre missão de combater a escravidão
contemporânea. Para verificar os efeitos da sentença absolutória no Cadastro do
trabalho escravo, é preciso analisar com profundidade o processo penal e,
principalmente, a fundamentação da decisão judicial.
Nesse contexto, não se pode admitir uma inversão de valores. Há que se ter
sempre em mente que a vítima da exploração do trabalho análogo ao de escravo é o
trabalhador e não o empregador responsabilizado por condutas que aviltam, das
formas mais graves possíveis, a dignidade da pessoa humana.

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375
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Auditoria da Receita Federal - ARF, e sobre a organização da Carreira Auditoria-
Fiscal da Previdência Social e da Carreira Auditoria-Fiscal do Trabalho, e dá outras
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SLAVE LABOR: EFFECTS OF CRIMINAL ABSOLVEMENT ON THE


ADMINISTRATIVE PROCESS AND ON THE DIRTY LIST

ABSTRACT
The legal system related to the sanctioning Administrative Law
has gaps regarding the administrative repercussions of the
absolution of the crime of submitting a worker to a condition
analogous to that of a slave, which leads to divergent positions
on the subject. The present work aims to investigate the
hypotheses and conditions under which a criminal acquittal can
have the effect of promoting the exclusion of the employer from
the dirty list of slave labor, including the effects on the infraction
notices drawn up. After a brief introduction, the second chapter
deals with the foundations of the Employers' Register in the light
of current legal diplomas, as well as their legal nature. The third
chapter analyzes the independence between the different
instances of accountability, a general rule of the sanctioning law.
The fourth chapter aims to clarify in which hypotheses an
acquittal in the criminal field may interfere in the administrative
process. Then, the practical repercussions of criminal absolution
on the dirty list are analyzed, as well as the role of DETRAE in
creating precedents that involve the subject matter of this study.

Keywords: slavery. dirty list. criminal acquittal. administrative


conviction.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

378
ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE NO CRIME DE REDUÇÃO À
CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO E A SUA RELAÇÃO COM A
TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO DE CLAUS ROXIN

Vitória Carvalho de Aquino1

1. Introdução. 2. Dos casos a serem analisados. 3. Ação Penal de número


0001605-78.2012.4.01.3303. 3.1. Dos fatos. 3.2. Da Atribuição da autoria.
3.3. Da figura do proprietário da fazenda. 3.4. Da figura do administrador. 3.5.
Da figura do suposto aliciador. 4. Ação Penal de número 0006807-
68.2014.4.03.600. 4.1. Dos fatos. 4.2. Da atribuição da autoria. 4.3. Da figura
do proprietário da fazenda. 4.4. Da figura do administrador. 4.5. Da figura do
suposto aliciador. 5. Análise comparativa. 5.1. Quanto aos proprietários. 5.2.
Quanto aos administradores. 5.3. Quanto aos supostos aliciadores. 6.
Relação com a Teoria do Domínio do Fato de Claus Roxin. 7. Considerações
Finais. Referências.

RESUMO
O presente artigo busca, valendo-se do método indutivo de pesquisa,
analisar padrões de critérios e valorações utilizados jurisprudencialmente
para a atribuição da autoria no crime tipificado pelo artigo 149 do Código
Penal, na circunstância de organização hierárquica tripartite de
gerenciamento, por meio de estudo detido de dois casos. Estabelece, a
partir disso, um paralelo entre o parâmetro de responsabilização por esse
delito nas ações analisadas e a lógica do domínio do fato de Claus Roxin.
Para além disso, constata que a teoria mencionada foi aplicada, inclusive,
pelo Ministério Público, ao serem oferecidas as denúncias dos delitos em
questão. Pretende, assim, demonstrar a hipótese de que a Teoria do
Domínio do Fato pode ser utilizada como parâmetro de análise do crime de
redução à condição análoga à de escravo pelo sistema judiciário brasileiro.
Palavras-chave: Trabalho escravo contemporâneo. Imputação. Autoria.

1 INTRODUÇÃO

Apesar de a relação jurídica de escravidão ter sido institucionalmente extinta


no Brasil com a promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, a herança cultural
deixada pelo passado escravocrata do país contribuiu para que, até os dias atuais,
indivíduos sejam submetidos a condições análogas àquelas observadas no regime
escravagista.

1Estudante de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Estagiária do II Tribunal do Júri de


Belo Horizonte/MG. Extensionista da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

379
A situação supramencionada é a realidade de empregados que têm seus
direitos constantemente violados por seus empregadores, que se aproveitam da
situação de hipossuficiência desses indivíduos para submetê-los aos mais diversos
constrangimentos, sejam eles físicos ou morais. Apesar de juridicamente livre, o
trabalhador é subjugado, no plano fático, a condições que aviltam a sua dignidade e
liberdade individual, respaldadas, respectivamente, pelos artigos 1º., inciso III, e 5º.,
caput, da Constituição da República Federativa do Brasil de 19882, tornando-se vítima
do delito tipificado pelo artigo 149 do Código Penal3, exposto abaixo:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-


o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições
degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua
locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente
à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com
o fim de retê-lo no local de trabalho
II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de
documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local
de trabalho
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I - contra criança ou adolescente
II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Analisando-se a legislação acima, depreende-se que são quatro as


modalidades passíveis de serem configuradas como análogas à escravidão, quais
sejam: o trabalho forçado, que, segundo o artigo 2 (1) da Convenção nº. 29 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) caracteriza-se como “todo trabalho ou
serviço exigido de um indivíduo sob a ameaça de sanção e para o qual ele não se
tenha oferecido espontaneamente”4; a jornada exaustiva, em que o indivíduo é
submetido a jornadas extenuantes, que colocam em risco a sua saúde e o impedem
de perseguir seus próprios projetos de vida; condições degradantes de trabalho, que
podem ser caracterizadas por alimentação precária, pela ausência de instalações
sanitárias, falta de equipamentos de proteção necessários, alojamentos insalubres,
entre outros5; e a servidão por dívidas, cenário em que o empregador faz com que o

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


3 BRASIL. Decreto-lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
4 OIT. Convenção nº. 29, 1930 (Trabalho Forçado ou Obrigatório).
5 O conceito de condições degradantes é geralmente extraído do conjunto de fatores, sendo essa a

conjuntura dos casos que serão analisados posteriormente.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

380
obreiro gaste seu salário com despesas relativas ao próprio labor, como com o
transporte até o local de trabalho ou com equipamentos necessários para o exercício
da atividade, gerando dívidas ilegais, que acaba por prendê-lo ao serviço.
Os casos de resgate de trabalhadores reduzidos a condições análogas à
escravidão, conforme hipóteses descritas acima, concentraram-se, de 2003 a 2014,
na área rural, sendo que, dos trabalhadores libertados nesse período, 25% laborava
em funções ligadas à pecuária, 25%, à indústria da cana de açúcar e 8% prestava
serviços de carvoaria, segundo dados do Ministério do Trabalho, sistematizados pela
Comissão Pastoral da Terra6.
O fato de as formas contemporâneas de trabalho escravo ocorrerem, em
grande parte, na área rural contribui para que esse crime seja inefetiva e
escassamente penalizado, devido, entre diversos outros fatores, à dificuldade de
acesso aos latifúndios pelos órgãos fiscalizadores, uma vez que eles se encontram
estrategicamente afastados dos centros urbanos. O isolamento social das fazendas e
a existência de uma cultura de preservação das relações sociais de dominação no
Brasil contribuem para que inexista farta jurisprudência consolidada e harmoniosa a
respeito da delimitação da autoria desse crime.
Tal problemática instaura-se em razão de que, em considerável parcela das
fazendas onde são resgatados trabalhadores, existe estrutura hierárquica de
dominação em que mais de um indivíduo é diretamente responsável pela manutenção
das condições análogas à de escravo. Além do proprietário do imóvel rural, a quem
são revertidos todos os benefícios advindos do esforço físico dos trabalhadores,
geralmente há o envolvimento de um administrador, que coordena o andamento do
negócio por meio de relação imediata e autoritária com os obreiros. Pode haver, ainda,
um aliciador, que, por ser incumbido das contratações dos empregados, origina a
situação de perigo que vem a ocasionar lesão aos seus direitos fundamentais.
A existência dessa estrutura tripartite torna, frequentemente, dificultoso o
delineamento da parcela de responsabilização de cada indivíduo. Isso porque o
Código Penal brasileiro pouco clarifica no que diz respeito à delimitação da autoria,
acabando por fornecer conceito genérico ao estabelecer, em seu artigo 29, que

6 Dados disponibilizados pela ONG Repórter Brasil em seu “Guia Rápido para jornalistas sobre
trabalho escravo”. Disponível em <https://reporterbrasil.org.br/guia/>. Acesso em 28 fev. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

381
“quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas,
na medida de sua culpabilidade”. A explícita abrangência do legislador, ao estipular,
como único critério de atribuição da autoria, a proporção de culpabilidade de cada
agente, enseja o exercício de certa discricionariedade por parte dos magistrados ao
serem feitas as decisões.
Essa abertura para o exercício da discricionariedade dos juízes e
desembargadores, somada à inexistência de satisfatória e harmoniosa jurisprudência
a respeito do delito do art. 149 do Código Penal, acaba por produzir decisões
discordantes quanto à definição da autoria dos agentes envolvidos nesse tipo de
crime.
Essa é a conjuntura em que se situam as duas Ações Penais Públicas que
serão utilizadas como objeto de análise do presente estudo, por meio do método
indutivo de pesquisa. Pretende-se, aqui, examinar detidamente uma sentença e um
acórdão, referentes a delitos semelhantes, quais sejam, a sujeição de trabalhadores
a condições análogas à de escravo em imóveis rurais, tendo como principais
envolvidos o proprietário, o administrador (em ambos os casos esses indivíduos
gozam de relação parental) e o aliciador.
Todavia, apesar de os crimes apresentarem cenários semelhantes, os
magistrados optaram por condenações distintas no que diz respeito aos sujeitos
envolvidos. É nessa temática que a análise proposta será centrada: a delimitação dos
pontos de convergência e de discordância pertinentes aos elementos considerados
pelos julgadores na determinação dos autores desses delitos.
Propõe-se, assim, estabelecer padrões de critérios utilizados para efeito de
condenação, adotando-se, como hipótese de parâmetro de julgamento, a Teoria do
Domínio do Fato, criada em 1939 por Hans Welzel e posteriormente aprimorada por
Claus Roxin. Essa teoria sustenta que a autoria pode consistir na “realização direta,
voluntária e conscientemente final do fato por quem, tendo preenchido os
pressupostos pessoais e subjetivos exigidos pelo tipo, possui o domínio pleno sobre
sua decisão e execução”7, isto é, seria autor quem possuísse domínio da execução

7ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do domínio do fato. 1ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2014, p.
91.

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382
da conduta criminosa, com vistas a um determinado fim, realizando, assim, o verbo
núcleo do tipo.
Roxin ainda descreve duas outras possibilidades distintivas de autoria, quais
sejam, o domínio da vontade, que abrange o caso de autoria mediata, em que o sujeito
instrumentaliza outrem para a concretização da ação típica, por meio de coação ou
indução ao erro, e o domínio funcional do fato, em que é possível a existência de
coautoria, devido à contribuição essencial dos agentes para a materialização da
prática delituosa8.
Para além da análise da conformidade quanto ao arbítrio dos magistrados, o
presente artigo pretende exprimir como a teoria supramencionada foi adotada como
paradigma de análise do delito do art. 149 do Código Penal não só pelos órgãos
julgadores, mas também pelo próprio Ministério Público. Isso porque, nos referidos
casos, não foi oferecida denúncia contra os aliciadores, os quais, segundo a Teoria
do Domínio do Fato, não são passíveis de responsabilização, por motivos que serão
demonstrados ao longo deste estudo.
Dessa forma, por meio do método indutivo de pesquisa, investiga-se como o
delito de redução à condição análoga à de escravo pode ser analisado por perspectiva
roxiniana pelo sistema judiciário brasileiro.

2 DOS CASOS A SEREM ANALISADOS

Conforme expendido, ambas as situações investigadas se caracterizam pelo


delito contido no artigo 149 do Código Penal e por uma estrutura tripartite de
coordenação. Todavia, é notória a presença de certas variáveis fáticas em seus
contextos, tais como a quantidade de trabalhadores resgatados, a relação deles com
os seus superiores e a divisão de tarefas entres os cargos de gerência.
A partir disso, este estudo buscará analisar quais variáveis foram distintivas ao
ser determinada a autoria dos referidos delitos. Ademais, visará retratar que a conduta
dos aliciadores poderia ter sido considerada, em denúncia, comissiva por omissão, o
que ensejaria imputação pelos crimes praticados.

8 ROXIN, Claus. Sobre la autoria y participación en derecho penal, em Problemas actuales de las
ciencias penales y la filosofia del derecho. Buenos Aires: Ediciones Pannedile, 1970, p. 60 e ss.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

383
Assim, após breve explanação sobre os aspectos materiais de cada ocorrência,
será examinada a atribuição da autoria e, por fim, os elementos presentes em cada
conduta, para que se possa comprovar que a atribuição da responsabilidade pelos
crimes de redução a condições análogas à escrava, nos aludidos cenários, segue
lógica coerente com a teoria de Roxin, a qual sustenta que9:
Autor do crime é o participante que, possuindo o controle de todo o processo
causal, do começo ao fim, determina a sua ocorrência, bem como o modo
pelo qual o tipo se concretizará. Na concreta realização do fato típico, o autor
conscientemente domina o fato mediante o poder de determinar o seu modo
de realização e, inclusive, quando possível, de determinar a sua interrupção.

Tendo em vista tal conceituação, segue-se à análise fática dos eventos.

3 AÇÃO PENAL DE NÚMERO 0001605-78.2012.4.01.3303

3.1 DOS FATOS

O primeiro caso diz respeito à ação penal de número 0001605-


78.2012.4.01.3303, proposta pelo Ministério Público Federal, na Subseção Judiciária
de Barreiras/BA, em face de P.R.C. e L.H.C., imputados pela prática do delito de
redução à condição análoga à de escravo, disposto no art. 149 do Código Penal, por
dezoito vezes, em concurso formal (art. 70, CP) e de pessoas (art. 29, CP). Assim,
ambos foram condenados a penas idênticas de quatro anos e três meses de reclusão
e multa correspondente a oitenta e sete dias-multa, sendo cada dia-multa equivalente
ao valor de três salários mínimos vigentes na data do fato, a saber, data em que foram
resgatados os trabalhadores rurais (julho de 2006).
Em denúncia oferecida em março de 2012, o Órgão acusador alegou que
P.R.C. e L.H.C., proprietário e administrador,10 respectivamente, da Fazenda Nova
Esperança, localizada na zona rural do Município de São Desidério, Bahia, reduziram
dezoito trabalhadores a condições análogas à escrava. Os trabalhadores, que

9 GALVÃO, Fernando. Direito Penal: parte geral. 10ª Edição. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2018,
p. 575.
10 Conquanto, em sede de denúncia, o Ministério Público tenha apontado P.R.C. como administrador

e L.H.C. como proprietário, todos os depoimentos das vítimas relatam determinação de cargos
contrária, de forma que se irá levar em consideração a materialidade apontada pelas declarações,
tratando-se a disposição da acusação, assim, como um equívoco.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

384
realizavam atividades de carvoaria, eram submetidos a condições degradantes de
trabalho e tinham suas locomoções restritas em virtude de supostas dívidas
contraídas com os empregadores.
Entre as condições degradantes a que os trabalhadores eram submetidos, vale
destacar que a água fornecida a eles não era devidamente armazenada ou filtrada, os
alojamentos onde repousavam eram totalmente improvisados, revestidos de lona e
cimento batido, sem instalações elétricas, móveis ou camas nem instalações
sanitárias. Além disso, não era fornecido gratuitamente qualquer Equipamento de
Proteção Individual (EPI) para realização de atividades laborativas de produção
carvoeira, o que torna clara a configuração do delito de redução à condição análoga
à escrava, por meio da sujeição dos obreiros a condições degradantes de trabalho.
Outro aspecto relevante é a adoção do sistema de “barracão” ou truck-system
por parte dos empregadores, que consiste na prática de servidão por dívidas, a qual,
conforme afirma Silva11:

O sistema pelo qual o empregador mantém o empregado em trabalho de


servidão por dívidas com ele contraídas, ou seja, é a condição de trabalho
similar à de escravo, tendo em vista que o empregador obriga seu empregado
a gastar seu salário dentro da empresa. Costuma incidir no trabalho rural,
onde o fazendeiro (empregador) faz com que seus empregados comprem
seus utensílios de subsistência na própria fazenda.

O sistema adotado, além de estar contido no Código Penal, em seu art. 149,
como uma das modalidades de trabalho análogo ao escravo, também é repelido pela
Consolidação das Leis do Trabalho, que, em seu artigo 462 e parágrafos12, estabelece

11 SILVA, Renata Cristina Moreira da. (2009) O que se entende por "truck system" no Direito do
Trabalho? Disponível em <http://ww3.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20091001215417503>.
Acesso em 01 nov. 2015.
12 Art. 462 - Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo

quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.


§ 1º - Em caso de dano causado pelo empregado, o desconto será lícito, desde que esta
possibilidade tenha sido acordada ou na ocorrência de dolo do empregado.
§ 2º - É vedado à empresa que mantiver armazém para venda de mercadorias aos empregados ou
serviços estimados a proporcionar-lhes prestações " in natura " exercer qualquer coação ou
induzimento no sentido de que os empregados se utilizem do armazém ou dos serviços.
§ 3º - Sempre que não for possível o acesso dos empregados a armazéns ou serviços não mantidos
pela empresa, é lícito à autoridade competente determinar a adoção de medidas adequadas, visando
a que as mercadorias sejam vendidas e os serviços prestados a preços razoáveis, sem intuito de
lucro e sempre em benefício das empregados.
§ 4º - Observado o disposto neste Capítulo, é vedado às empresas limitar, por qualquer forma, a
liberdade dos empregados de dispor do seu salário.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

385
os princípios da irredutibilidade e intangibilidade salarial, estabelecendo como ilícita a
venda de mercadorias aos trabalhadores com o intuito de lucro ou em benefício
próprio dos empregadores.
A prática explanada acima contribuía para que ocorresse o cerceamento do
status libertatis dos trabalhadores, uma vez que as dívidas contraídas faziam com que
eles se encontrassem confinados àquele ambiente de trabalho, diante da
impossibilidade de pagamento do débito pendente.
Elucidado o cenário a ser analisado e restando clara a prática do crime, segue-
se para a verificação da atribuição da responsabilidade penal, foco do presente artigo.

3.2 DA ATRIBUIÇÃO DA AUTORIA

Em sentença, Juiz Federal Substituto responsável pelo processo decidiu que a


materialidade e autoria concernente ao delito previsto no art. 149 do CP foram
anunciadas mediante fatos relatados em Relatório de Fiscalização e provas colhidas
em Inquérito Policial, confirmadas pelas testemunhas ouvidas em juízo.
Nesse caso, julgou-se incontroversa a contratação dos obreiros pelos réus P.
R. C. e L.H.C., visto que foram eles os responsáveis pelos pagamentos das verbas
rescisórias dos trabalhadores, conforme consta das CTPS assinadas e demais
documentos juntados aos autos, ou seja, ambos seriam os responsáveis financeiros
pelos trabalhadores. Somado a isso, declarou-se que o fato de os réus manterem os
obreiros em propriedade rural, submetendo-os a condições indignas e degradantes,
seria suficiente para que se fosse constatado o dolo dos autores.
Nesse contexto, entre os depoimentos colhidos pelos trabalhadores
resgatados, destaca-se o relato de uma das vítimas, J. B.S., que alegou que “foi
contratado pelo G., que trabalhava para o dono da FAZENDA NOVA ESPERANÇA,
(...) que os alimentos eram fornecidos pelo dono da fazenda, Sr. P.R.C. (...)”.
Já a vítima J.S.R. relatou que “foi contratado pelo pai de L., que é dono da
fazenda, para trabalhar como cortador de lenha; (...), que comprou um par de botas
na mão de L., para usar na tarefa de fazer carvão nos fornos, (...).”
Das alegações acima consignadas, depreende-se que os dois condenados
estavam cientes da situação em que se encontravam os obreiros e até mesmo

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

386
cooperavam para a sua manutenção, visto que uma das vítimas descreveu que os
alimentos que consumiam eram fornecidos pelo dono da fazenda, P.R.C., e outra
sustentou que L.H.C. lhe vendeu um par de botas, refletindo, então, o papel ativo dos
imputados.
Outra questão que merece ser abordada, no que diz respeito ao depoimento
de J.B.S., é a possível presença de mais um indivíduo de caráter hierarquicamente
superior e de função participativa relativamente à situação em que foram submetidos
os obreiros. Segundo a vítima, um senhor denominado G., funcionário subordinado
ao proprietário da fazenda, teria sido o responsável pela sua contratação. Entretanto,
a denúncia oferecida pelo Ministério Público desconsiderou o envolvimento de mais
um agente, atendo-se aos senhores P.R.C. e L.H.C.
Tendo em vista tais observações, torna-se notória a presença de três níveis de
agentes de caráter aparentemente decisivo na contratação e manutenção dos
trabalhadores submetidos a condições degradantes, a saber: o proprietário da
fazenda, o administrador e o aliciador. Posto isso, agora serão examinados, de forma
detalhada, o envolvimento dessas figuras e suas respectivas condenações ou
desconsiderações.

3.3 DA FIGURA DO PROPRIETÁRIO DA FAZENDA

No que tange à atribuição da autoria no caso em questão, o proprietário da


fazenda, P.R.C., foi imputado criminalmente, juntamente com seu filho e coautor
L.H.C., sob a alegação de que:

Relativamente à contratação dos obreiros pelos réus P. R. C. e L. H. C., tal


matéria se mostrou incontroversa, uma vez que foram resgatados de sua
propriedade, tendo sido os réus os responsáveis pelos pagamentos das
verbas rescisórias dos trabalhadores, conforme consta nas CTPS assinadas
e demais documentos de fls. 55/72 do apenso.

Considerando-se que a alegação acima se caracteriza como a única disposição


a respeito da autoria no referido crime, depreende-se que o magistrado levou em
consideração, para atribuí-la, principalmente a responsabilidade financeira dos réus
sobre os contratados. Outrossim, dispôs brevemente sobre o status de proprietário,

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

387
nem sequer especificando as atribuições de L.H.C., como administrador, e P.R.C.,
como dono do imóvel.
Quanto ao segundo critério mencionado, quer dizer, a responsabilidade
financeira, decorrente do pagamento das verbas rescisórias, o magistrado levou em
consideração o que constava nas Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS)
dos trabalhadores, pois ambos os réus fizeram as anotações devidas nesses
documentos.
Outro critério que, embora não tenha sido levado em consideração na referida
sentença, pode ser entendido como de fundamental relevância para a atribuição da
autoria é a relação imediata do agente relativamente aos trabalhadores submetidos à
condição análoga à escrava. No que toca ao proprietário da fazenda, P.R.C., resta
incontroversa tal proximidade, com embasamento em prova testemunhal do resgatado
J.S.R., que afirmou que “foi contratado pelo pai de L.H.C, que é dono da fazenda, para
trabalhar como cortador de lenha” e de J.B.S, que alegou “que os alimentos eram
fornecidos pelo dono da fazenda, Sr. P.R.C.”
Um aspecto que ainda pode ser levado em consideração é o fato de que há
uma relação lógica entre a figura do proprietário e o cometimento da infração descrita.
Isso porque, como o dono do imóvel rural é beneficiário direto dos serviços prestados
pelos obreiros, torna-se natural que um eventual crime nesse contexto seja cometido
por ele. Ou melhor, como o proprietário beneficia-se diretamente com os lucros
advindos do crime praticado, há uma correlação entre a sua conduta e o cometimento
da infração.
Com base nas ponderações realizadas acima, é possível afirmar que o
proprietário da fazenda convivia com a realidade dos trabalhadores, não se tratando
de uma figura distante, que administra a propriedade remotamente, sendo ele,
portanto, responsável direto pelo andamento do empreendimento. Ademais, ele se
encarregava da remuneração dos obreiros e, como consequência lógica do seu papel
de proprietário, era beneficiário direto dos frutos advindos dos negócios da fazenda.

3.4 DA FIGURA DO ADMINISTRADOR

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

388
No que se refere ao administrador, L.H.C., individualmente, nada foi dito em
sentença. Porém, os depoimentos das vítimas retrataram que ele desempenhava
função diversa daquela desempenhada por seu pai. O trabalhador resgatado, J.S.R.,
por exemplo, disse que “comprou um par de botas na mão de L., para usar na tarefa
de fazer carvão nos fornos”.
É possível, a partir do depoimento acima, depreender que L.H.C. era
responsável pela venda ilícita de artigos para os trabalhadores, revelando a prática,
elucidada no item 3.1 deste artigo, do sistema de “barracão”, ou truck-system, que
gera servidão por dívida, uma das modalidades do crime de redução à condição
análoga à de escravo.
Logo, é notório que L.H.C. tinha contato direto com os trabalhadores e limitava,
na prática, os seus status libertatis, por meio da manutenção do sistema de barracão
na fazenda, além de ser o responsável financeiro, juntamente com seu pai, pelos
obreiros, consoante narrado no item anterior.

3.5 DA FIGURA DO SUPOSTO ALICIADOR

De acordo com os depoimentos das vítimas citados em sentença, fica notória


a presença de terceiro agente na realização da conduta tipificada pelo art. 149 do
Código Penal. Apesar de não ter sido citada em denúncia pelo Ministério Público, a
figura de G. parece ter papel relevante na manutenção das condições a que eram
submetidos os trabalhadores.
Nesse sentido, quanto à competência do referido sujeito, é fundamental citar o
depoimento da vítima J.B.S., que sustentou que foi contratado por G., o que
transparece que ele detinha certo poder de decisão a respeito dos trabalhadores. Isso
se deve ao fato de a contratação de um funcionário ser procedimento que denota
domínio sobre a organização do negócio e que, portanto, não seria delegada para
pessoa que não ostentasse certa posição de comando na cadeia produtiva.
Embora a circunstância acima acuse o papel importante desempenhado pelo
suposto aliciador, não existiram maiores disposições a respeito da sua presença,
fazendo com que nada mais pudesse ser asseverado sobre o seu status na gerência
da fazenda.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

389
Contudo, é pertinente analisar a possibilidade de G. se encontrar em posição
de garantidor em relação aos funcionários da fazenda, em vista da disposição do
artigo 13, parágrafo segundo, alínea c, do Código Penal, que estabelece que quem,
com seu comportamento anterior, criar o perigo da existência do resultado, será
incumbido do dever de agir. Dessa forma, o capataz, por ter auxiliado diretamente na
contratação dos trabalhadores em condições degradantes e se omitido quando devia
e podia agir para evitar o resultado, teria o dever legal de findar essa situação.
Tal entendimento vai ao encontro das disposições de Bitencourt 13, que afirma
que:

(...) o sujeito coloca em andamento, com a sua atividade anterior, um


processo que chamaríamos de risco, ou, então, com seu comportamento,
agrava um processo já existente. Não importa que o tenha feito voluntária ou
involuntariamente, dolosa ou culposamente; importa é que com sua ação ou
omissão originou uma situação de risco ou agravou uma situação que já
existia. Em virtude desse comportamento anterior, surge-lhe a obrigação de
impedir que essa situação de perigo evolua para uma situação de dano
efetivo, isto é, que venha realmente ocorrer um resultado lesivo ao bem
jurídico tutelado.

Com base no disposto acima, é possível concluir que, com a conduta de


contratar um ou mais funcionários, o aliciador gerou a conjuntura de perigo, que
culminou na sujeição deles à condição análoga à de escravo. Ou seja, conforme
afirma Galvão14, o sujeito que deu causa à situação de perigo está obrigado a agir
para evitar que o bem jurídico alheio venha a ser lesionado.
Por conseguinte, apesar da inexistência de mais específicas disposições a
respeito de G., é possível afirmar que, como um suposto aliciador, ele se encontraria
na posição de garantidor frente aos trabalhadores, estando, assim, na obrigação de
agir de modo a impedir que o bem jurídico, no caso, seus direitos fundamentais,
continuassem a ser aviltados.

13 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal 2: Parte Especial: dos crimes contra a
pessoa. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
14 GALVÃO, Fernando. Op. cit.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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4 AÇÃO PENAL DE NÚMERO 0006807-68.2014.4.03.600

4.1 DOS FATOS

No segundo caso, houve constatação, durante fiscalização promovida pelo


Grupo Especial de Fiscalização Móvel, em conjunto com o Ministério Público do
Trabalho e a Polícia Militar, da redução de cinco trabalhadores à condição análoga à
escravidão, em propriedade rural localizada no Município de Porto Murtinho, Mato
Grosso do Sul, dando início ao processo de número 0006807-68.2014.4.03.600 na 5ª.
Vara Federal de Campo Grande.
As circunstâncias a que eram submetidos esses trabalhadores foram
espelhadas em relatório elaborado pela Fiscalização do Ministério do Trabalho e
Emprego, bem como pelas declarações testemunhais, como se observa a seguir:

PENAL. PROCESSO PENAL. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE


ESCRAVO. IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. NULIDADE RELATIVA. CRIME
DE AÇÃO MÚLTIPLA. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS.
DOSIMETRIA. MAJORAÇÃO DA PENA-BASE. O relatório enumera as
diversas infrações à legislação trabalhista decorrentes dos fatos narrados na
denúncia, contém fotos do local e registra dados coletados com os próprios
trabalhadores, suficientes para caracterizar o trabalho como análogo ao de
escravo. Dentre as irregularidades constatadas, verificou-se que os
trabalhadores alojavam-se em acampamentos construídos com lonas
plásticas e sobre a "terra batida", dormiam sobre "tarimbas", que são
estruturas improvisadas feitas de galhos de árvores e troncos de madeira.
Não havia banheiro nem local adequado às refeições e à manutenção dos
alimentos. A água utilizada para consumo, higiene e para lavar roupas e
louças era a mesma, proveniente de uma represa de águas pluviais. Além
disso, alguns dos trabalhadores estavam aplicando herbicida para o controle
de pragas vestidos com suas roupas e calçados pessoais, sem os
equipamentos de proteção necessários e sem treinamento específico
(Apelação Criminal n° 0006807-68.2014.4.03.6000/MS, Relator:
Desembargador Federal André Nekatschalow, Quinta Turma, Data da
Publicação: 09/11/2016, fls. 17/92.)

Dentre os detalhes elencados acima, é relevante ressaltar que os obreiros


laboravam em atividade de roçada de pastagem destinada ao gado bovino, com
aplicação de herbicida para controle de forrageiras, sem o devido equipamento
individual de proteção e sem a realização de treinamento prévio para a execução
apropriada de tal atividade.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

391
Com isso, as condições a que estavam sujeitados os trabalhadores eram
degradantes, configurando o crime tipificado no artigo 149 do Código Penal, o que
elucida a materialidade do crime. Segue-se, agora, à análise da atribuição da autoria.

4.2 DA ATRIBUIÇÃO DA AUTORIA

A responsabilidade pelo crime foi assumida pelo filho do proprietário da


Fazenda Barranco Branco, D.C.C., que era o incumbido pela administração da
propriedade. Já seu pai, R.C.C., foi absolvido, sem que o Ministério Público Federal
se insurgisse em sentido contrário, uma vez que havia feito uma procuração com
plenos poderes em favor de seu filho. O documento em questão autoriza um indivíduo
a fazer trâmites de qualquer natureza em nome de outro, o que permitia que os
negócios da fazenda fossem executados mesmo sem a presença do dono.
Outro ponto fundamental para a absolvição do proprietário foi a sua alegação
de não ter retornado à fazenda após a elaboração do instrumento de mandato
supramencionado, somente tendo tomado conhecimento dos fatos narrados na
denúncia após a notificação do Ministério Público do Trabalho.
No que diz respeito ao condenado, D.C.C., a autoria mostrou-se
suficientemente comprovada, tendo em vista que ele estava na sede da fazenda no
dia da fiscalização, o que indicava o seu conhecimento e consentimento acerca do
estado dos trabalhadores, resultando na sua condenação à pena de dois anos e
quatro meses de reclusão e pagamento de onze dias-multa, no valor unitário de um
salário mínimo.
O condenado ainda assumiu ter contratado um empreiteiro, denominado S.,
que foi o indivíduo encarregado pela admissão dos trabalhadores, segundo
esclarecimento dos Auditores-Fiscais do Trabalho responsáveis pela fiscalização da
propriedade. Também era essa pessoa que fornecia a alimentação e pagava as
diárias dos funcionários em condição análoga à de escravo.
A respeito do empreiteiro S., foi esclarecido ter sido opção dele a alocação dos
trabalhadores em alojamento próximo ao local de trabalho, de acordo com depoimento
do próprio administrador da fazenda, D.C.C. No entanto, apesar de as evidências

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

392
revelarem o contato imediato de S. com os funcionários e a sua posição de comando
sobre estes, não foi oferecida denúncia contra ele pelo Ministério Público.

4.3 DA FIGURA DO PROPRIETÁRIO DA FAZENDA

Malgrado fosse, formalmente, o proprietário da fazenda, beneficiando-se


diretamente de todos os frutos advindos da propriedade, R.C.C. foi absolvido devido
à alegação de que não tinha conhecimento sobre a sujeição dos trabalhadores a
condições análogas à escrava. Esse argumento foi embasado na procuração
elaborada por ele, em que conferia plenos poderes ao seu filho para agir legalmente
em seu nome, permitindo, então, que D.C.C. chefiasse a fazenda sem restrições.
Em um primeiro momento, pode-se verificar que esse argumento é facilmente
desconstruído ao se considerar que, com todos os recursos tecnológicos disponíveis
na atualidade, uma administração à distância seria totalmente viável e permitiria que
o dono ficasse por dentro dos acontecimentos que dissessem respeito à sua
propriedade, mesmo sem assinar os documentos referentes a ela ou, ainda, sem
visitá-la com frequência. Ademais, também se pode considerar que, como beneficiário
direto de todos os frutos produzidos pelo negócio, ele dificilmente se desinteressaria
pelos fatos lá ocorridos.
Por outro lado, é necessária ponderação acerca da possibilidade de o
proprietário não ser usuário da tecnologia, já que, de modo geral, esse recurso é
utilizado por uma maioria composta por jovens. Além disso, já que a administração do
imóvel rural foi provadamente delegada a seu filho, haveria a possibilidade de que
seus frutos tivessem sido destinados a ele, o que excluiria o elemento do interesse
acerca do andamento do negócio por parte do pai.
Assim, extrai-se dessas alegações que a existência de diversos fatores
determinantes na delimitação do envolvimento desse sujeito no crime demandava
uma investigação mais detalhada. Isso porque o critério distintivo utilizado pelo
magistrado ao efetuar a condenação, a saber, o conhecimento acerca da situação dos
trabalhadores, não era incontroverso nem o único elemento relevante nesse episódio.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

393
4.4 DA FIGURA DO ADMINISTRADOR

Quanto ao administrador da fazenda, D.C.C., resta incontroversa a sua posição


de autoria. O primeiro fundamento que respalda essa consideração é o de que ele
estava presente na sede da fazenda no dia em que foi realizada a fiscalização pelo
Ministério do Trabalho e Emprego, atestando o seu contato com as circunstâncias a
que eram submetidos os obreiros, ao contrário do que foi sustentado a respeito de
seu pai.
Além do contato imediato com a realidade dos trabalhadores, deve ser feito um
exame quanto à incumbência pelos procedimentos burocráticos da propriedade,
atividade que, aparentemente, era atribuída a D.C.C. Essa inferência é fundamentada
no fato de que foram firmados com ele dois Termos de Ajustamento de Conduta (TAC)
relacionados às atividades da fazenda, além da existência da procuração que
concedia a ele plenos poderes para agir em nome de seu pai, o proprietário.
Dessa forma, torna-se notória a ostentação de controle, tanto formal quanto
material, de D.C.C. no que tange aos funcionários da fazenda, justificando a sua
responsabilidade pela prática delitiva narrada na denúncia oferecida pelo Ministério
Público.

4.5 DA FIGURA DO SUPOSTO ALICIADOR

É passível de problematização, ainda, o envolvimento do empreiteiro S., contra


quem não foi oferecida denúncia, conquanto sua figura se faça presente em diversos
depoimentos que escancaram o seu caráter decisivo na manutenção dos funcionários
em condição análoga à escrava.
Inicialmente, é fundamental ressaltar que os Auditores-Fiscais do Trabalho
responsáveis pela fiscalização da Fazenda Barranco Branco, em fevereiro de 2013,
esclareceram ter sido incumbida a S. a contratação dos trabalhadores, o que, por si
só, já atestava o seu papel de garantidor em relação a eles, na mesma linha
demonstrada no item 3.5 do presente estudo. Os Auditores também afirmaram que o
empreiteiro era o responsável pela alimentação e pagamento das diárias dos obreiros.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

394
Os fatos supramencionados foram, inclusive, corroborados pelo depoimento do
informante E.A.C., que trabalhava na fazenda quando ocorreu a fiscalização e afirmou
ter sido contratado pelo empreiteiro para realizar atividade de limpeza de pasto.
Não bastasse isso, o filho do proprietário, D.C.C., alegou ter contratado S. para
a construção de uma cerca e limpeza da pastagem. Além do mais, afirmou ter sido
dele a opção de manter os trabalhadores em alojamentos próximos ao local de
trabalho, o que confirma que detinha poder de decisão até mesmo sobre o próprio
administrador da fazenda.
Com base nesses relatos, resta incontroverso o papel de controle
desempenhado pelo aliciador, o qual não somente possuía contato imediato com os
trabalhadores, visto que era o responsável pelo fornecimento de alimentação a estes,
como também detinha certa gerência financeira, já que era incumbido de efetuar o
pagamento das diárias. E por ter sido o responsável pela contratação dos
funcionários, ele tinha o dever de agir de modo a evitar a lesão aos direitos
fundamentais dos obreiros, já que atestada a sua posição de garantidor.

5 ANÁLISE COMPARATIVA

Será realizada uma análise comparativa em relação às características


utilizadas pelos magistrados ao decidirem pela absolvição ou condenação dos
agentes envolvidos nos crimes de redução à condição análoga à escrava relatados
nos tópicos passados.
Essa análise utilizará como base elementos que foram, ou não, considerados
na sentença e no acórdão avaliados, relativos, respectivamente, ao primeiro e ao
segundo casos, descritos nos tópicos 3 e 4 deste artigo.
No que concerne à natureza de tais características, serão verificados o caráter
de autoridade, a propriedade do local e a responsabilidade financeira e proximidade
em relação aos trabalhadores, além do conhecimento acerca da situação laboral
deles.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

395
5.1 QUANTO AOS PROPRIETÁRIOS

Inicialmente, levando em conta a imputação criminal dos donos das


propriedades rurais em que foram encontradas as vítimas do crime previsto no art.
149 do Código Penal, nota-se que há, entre as decisões pesquisadas, pontos de
dissenso e outros de concordância, que serão abordados na sequência.
A princípio, é notória a divergência das decisões, derivada do fato de que o
primeiro magistrado optou pela condenação, ao passo que o segundo, pela absolvição
dos agentes que ostentavam posição de proprietários, ou seja, de beneficiários diretos
dos frutos produzidos nas suas respectivas fazendas. Todavia, ao se sopesar
detalhada e separadamente essas figuras, tornam-se evidentes certos atributos que
as tornam diametralmente distintas.
Relativamente ao proprietário no caso 1, o juiz, ao deliberar pela sua
condenação, ponderou que ele detinha responsabilidade financeira pelos funcionários
e mantinha relação imediata com eles, pois ele havia sido o responsável direto por
contratar os trabalhadores, fornecer alimentos a eles e pagar as suas verbas
rescisórias.
De outro modo, nada foi dito no acórdão do caso 2 a respeito da
responsabilidade financeira do dono da fazenda. Todavia, o fato de ele ter elaborado
procuração com plenos poderes em favor de seu filho torna concebível a suposição
de que não era ele, mas o administrador da fazenda, o responsável por pagamentos
dos funcionários e demais tarefas burocráticas.
Em adição, é de fundamental relevância que o magistrado, ao absolver o dono
da fazenda, tenha ponderado que ele desconhecia a situação a que eram sujeitados
os trabalhadores, sendo informado a respeito dela somente após notificação do
Ministério Público.
Com a averiguação desses fatos, é possível aferir que a posição de dono da
propriedade rural, quando tida de modo isolado, não seria suficiente para a atribuição
da autoria delitiva em ambos os cenários.
Em relação às demais características, tais como a responsabilidade financeira,
o contato imediato com os empregados e a contribuição para a manutenção da
situação laboral, não é possível afirmar se houve concordância ou divergência entre

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

396
as duas decisões, em razão da falta de disposições acerca desses elementos no
acórdão do segundo caso, cuja deliberação se baseou apenas no desconhecimento
da situação para que fosse atribuída a absolvição.

5.2 QUANTO AOS ADMINISTRADORES

Partindo-se ao exame da figura do administrador da fazenda no primeiro caso,


torna-se inegável, consoante o item 3.2 deste estudo, que um dos fatores apreciados
na atribuição da coautoria aos dois réus é que eles gozavam de responsabilidade
financeira em relação aos funcionários da fazenda.
Tendo em conta esse papel que era desempenhado, em conjunto, pelo
proprietário e o administrador da fazenda, o juiz se ateve a esse elemento distintivo
ao decretar a sentença, condenando os réus a penas idênticas. Desconsiderou,
assim, outros aspectos relevantes para a delimitação da autoria e o cálculo da
dosimetria, como o fato de que era o administrador quem vendia artigos para os
trabalhadores com preços abusivos, ocasionando o chamado truck-system ou sistema
de “barracão”, esclarecido no item 3.1.
Esse sistema era o causador do cerceamento do status libertatis dos obreiros,
visto que as dívidas contraídas os impediam de deixar o ambiente de trabalho. Isso
comprova que o administrador era essencial e diretamente responsável pela
manutenção dos empregados em condições análogas à escrava, já que ele detinha
pleno poder de determinar quando seria a interrupção do estado de exploração em
que se encontravam os trabalhadores.
No que tange ao administrador referente ao segundo caso, diversos traços
contribuintes para a definição da autoria podem ser observados. Além de possuir
procuração que concedia a ele plenos poderes sobre a fazenda, o que permitia que
deliberasse legalmente sobre quaisquer questões burocráticas e financeiras
envolvendo o negócio, ele estava presente no dia da fiscalização do Ministério
Público. Isso confirma que ele conhecia a situação descrita e cooperava diretamente
para que fosse mantida.
Reputando que a figura do administrador preencheu tanto a responsabilidade
formal sobre a propriedade (realizava procedimentos burocráticos, a exemplo do TAC

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

397
firmado com o Ministério Público) quanto a material (estava presente no dia a dia da
fazenda), foi decidido que esse agente era o único passível de punição pelo crime.
Ao serem comparadas as informações relativas aos dois casos, é possível
afirmar que foi constatado o desempenho de papeis muito semelhantes pelos
administradores das duas fazendas, já que detinham pleno domínio sobre a sujeição
dos trabalhadores a condições degradantes. Com isso, além de administrarem a rotina
das fazendas, eles eram os responsáveis por materializar os crimes praticados.

5.3 QUANTO AOS SUPOSTOS ALICIADORES

Uma vez verificadas detidamente as decisões em questão, torna-se perceptível


a presença, nas duas ocorrências, quando comparados com os trabalhadores
resgatados, de funcionários hierarquicamente superiores, cujas funções eram
semelhantes entre si e relevantes para o gerenciamento das atividades rurais das
fazendas.
É o caso dos aliciadores, descritos nos itens 3.5 e 4.5 deste artigo, que foram
incumbidos de tarefas que indicam ostentação de certa posição de controle, como a
contratação de funcionários e, no caso 2, algumas gestões financeiras e estruturais
da fazenda.
No entanto, apesar de esses agentes, notoriamente, terem sido essenciais para
a manutenção dos trabalhadores em condições análogas à escrava, eles não foram
responsabilizados pelo cometimento do crime.
Os fatos especificados, em conjunto com as apurações efetuadas nos itens 3.5
e 4.5, denotam que os aliciadores, nos episódios narrados, caracterizavam-se como
garantidores frente aos trabalhadores resgatados por serem diretamente
responsáveis pelas contratações e, consequentemente, pela sujeição dos obreiros a
condições degradantes de trabalho. Segundo o disposto no art. 13, § 2º., alínea c, do
Código Penal, os aliciadores deveriam ter agido para obstar a lesão aos direitos
fundamentais desses indivíduos.
Dessa maneira, a omissão desses sujeitos em face da situação dos
trabalhadores ensejaria a devida imputação criminal e, portanto, deveria ter sido
considerada em denúncia, haja vista que o resultado lesivo adveio da situação de

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

398
perigo causada por eles. Tal assertiva está de acordo com entendimentos
jurisprudenciais divulgados abaixo:

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – DELITO DE HOMICÍDIO


QUALIFICADO – POSIÇÃO DE GARANTIDOR – DEVER LEGAL DE
CUIDADO – VIOLAÇÃO – EVIDÊNCIAS SUFICIENTES À PRONÚNCIA –
EXAME DETIDO DAS PROVAS – ATRIBUIÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI –
MEIO CRUEL – CIRCUNSTÂNCIA QUALIFICADORA PERTINENTE. [...] A
omissão que, em tese, foi dolosamente erigida, pois voltada à concretização
de perigo juridicamente desaprovado, autoriza a imputação do resultado
lesivo, àqueles que violaram o dever legal de cuidado (art. 13, § 2º, CP) [...].
(TJ-MG – Rec em Sentido Estrito: 10112100054496001 MG, Relator: Beatriz
Pinheiro Caires, Data de Julgamento: 06/11/0018, Data de Publicação:
21/11/2018)
REVISÃO CRIMINAL. DECISÃO CONTRÁRIA AO TEXTO DE LEI.
ESTUPRO. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. GENITORA. OMISSÃO. CRIME
OMISSIVO IMPRÓPRIO. FIGURA DO “GARANTIDOR”. PARTICIPAÇÃO
POR OMISSÃO. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO ABUSO. INÉRCIA
CONFIGURADA. [...] A omissão só é “penalmente relevante quando o
omitente devia e podia agir para evitar o resultado” (CP, art. 13, § 2.º),
colocando-se na figura do “garantidor”. Este tem o dever de engendrar
esforços para, ao menos, tentar evitar o resultado. (TJ-SC – RVC:
20130303449 SC 2013.030344-9 (Acórdão), Relator: Roberto Lucas
Pacheco, Data de Julgamento: 26/11/2013, Seção Criminal Julgado).

Desse modo, é possível inferir que a presença dos aliciadores nos casos 1 e 2
deveria ter sido investigada pelo Ministério Público de maneira mais minuciosa, posto
que, conquanto não fossem proprietários ou administradores formais da fazenda,
esses agentes possuíam o dever legal de buscar impedir a continuidade da conduta
criminosa.

6 RELAÇÃO COM A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO DE CLAUS ROXIN

Após uma exposição individualizada dos casos apresentados, uma análise


comparativa entre eles e algumas considerações críticas, não só no que tange às
decisões, mas também às próprias denúncias, este estudo passa a estabelecer um
paralelo entre tais julgados e a Teoria do Domínio do Fato de Claus Roxin.
A teoria supramencionada propõe uma análise típica centrada no efetivo
domínio do fato e na finalidade da conduta, isto é, adota perspectiva objetiva
conjuntamente à subjetiva. Conforme afirma Welzel15: “a conformação do fato

15 WELZEL, Hans Welzel. Derecho Penal aleman. Chile: Editoral Jurídica de Chile, 1997, p. 145

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

399
mediante a vontade de realização que dirige de forma planificada é o que transforma
o autor em senhor do fato”. (tradução livre)
Utilizando-se essa proposição como parâmetro, torna-se possível observar um
ponto de convergência presente nas condutas dos três indivíduos condenados como
autores do delito previsto no art. 149 do CP (o proprietário e o administrador do
primeiro caso e o administrador do segundo caso): a voluntariedade e o domínio da
execução da conduta criminosa com vistas a um determinado fim. Então, torna-se
perceptível que a característica distintiva utilizada nas três condenações está em
concordância com o conceito de autoria pelo domínio sobre a própria ação, de Roxin,
que entende que “aquele que leva à realização do tipo pelas próprias mãos é sempre
autor, e que mesmo em ‘casos extremos’ nada pode mudar isso”16.
Tal característica também está presente na concepção welzeliana17:

A característica geral do autor: o domínio final sobre o fato. Senhor do fato é


quem o faz na forma final, em razão de sua decisão volitiva. A conformação
do fato por meio da vontade de realização que ele dirige de maneira planejada
é o que transforma o autor em senhor do fato. Por esse motivo, a vontade
final de realização (o dolo do tipo) é o momento geral de domínio sobre o fato.
(tradução livre)

A conclusão imediata que decorre dessa conceituação é a de que os três


indivíduos condenados como autores possuíam domínio final sobre a sujeição dos
trabalhadores a condições análogas à escrava, já que agiam dessa maneira volitiva e
intencionalmente para atender aos seus interesses econômicos.
Deriva da assertiva acima que o proprietário e o administrador do primeiro caso,
por apresentarem aparente cooperação administrativa, somada à relação paternal,
dirigiam mutuamente seus esforços à obtenção de lucro nos negócios familiares. Para
tanto, submetiam, deliberadamente, seus vinte e oito funcionários a condições de
trabalho e alojamento consideradas desumanas, para que, assim, os custos fossem
minimizados.
Analogamente, o administrador do segundo caso atuava de modo a manter
seus cinco funcionários em condições degradantes, porquanto era, sabidamente, o
responsável pelos negócios da fazenda. Já em relação ao proprietário, o qual, ao que

16 ROXIN, Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil, vol. I, 3ª edição. Munique: Verlag Beck, 1997, p. 21
17 WELZEL, Hans. Op. cit., p. 121

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

400
tudo indica, não se envolvia com os andamentos do negócio nem sequer conhecia a
situação dos trabalhadores, não haveria que se falar em autoria, tendo em vista que
a vontade consciente e responsável pelo acontecimento causal é um dos pilares do
domínio do fato. Conforme o entendimento de Costa Jr.18:

“[...] a ação finalística se decompõe no objetivo que o autor se propõe a


alcançar, nos meios que emprega para tanto e nas consequências
secundárias, necessariamente vinculadas à utilização desses meios. A
finalidade, portanto, não se restringe ao fim, mas abrange os meios
necessários à sua obtenção”

Dessa forma, mesmo que os lucros da fazenda, quer dizer, a finalidade da


ação, fossem divididos entre o proprietário e o administrador, não poderia ter sido
atribuído ao primeiro o caráter de autor, já que ele não se envolvia nos meios utilizados
para a consecução desse resultado.
Posto isso, como os três sujeitos condenados tinham pleno controle sobre as
circunstâncias a que eram sujeitados os trabalhadores, administrando-as conforme
seus arbítrios para o atingimento do objetivo final dos negócios, resta clara a
adequação da responsabilização criminal nesses casos à concepção do domínio do
fato de determinação da autoria.
Na sequência, é relevante acrescentar uma averiguação da correspondência
entre o papel dos aliciadores das fazendas e a teoria comentada, buscando expressar
a relação intrínseca entre ela e o exame do delito capitulado no art. 149 do Código
Penal, não só pelos órgãos julgadores, mas também pelo próprio Ministério Público.
Isso porque as denúncias oferecidas não englobavam esses indivíduos ou apontavam
a relevância que eles tiveram para o sucesso da execução desses crimes.
Nesse contexto, o presente estudo procurou demonstrar que a conduta dos
aliciadores nos crimes analisados foi omissiva, por negligenciaram o dever que
tinham, como causadores da situação de perigo, de tentar cessar a situação a que
estavam sendo sujeitados os obreiros. Aí não há a possibilidade de aplicação da
Teoria do Domínio do Fato, porque não existe o direcionamento da vontade dos

18COSTA JR., Paulo José da Costa. Curso de Direito Penal. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Editora
Saraiva, 2010.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

401
agentes para o alcance de um resultado, somente a falta de cumprimento de mandato
normativo, conforme explica Greco19:

O critério do domínio do fato não é proposto com pretensões de


universalidade. Há delitos cuja autoria se determina com base em outros
critérios. O primeiro e mais importante desses delitos é o grupo dos
chamados delitos de dever ou, como preferem os espanhóis, delitos de
violação de dever (Pflichtdelikte). Neles, autor é quem viola um dever
especial, de caráter extrapenal, pouco importando o domínio que tenha sobre
o fato. Entre os delitos de dever, encontram-se, principalmente, os delitos
próprios (delitos de funcionário público, por ex.) e os delitos omissivos
impróprios (em razão da posição de garantidor).

Com base na explanação citada, fica claro que a conduta dos aliciadores se
configurou como omissiva imprópria, já que eles violaram um dever especial de agir
que decorria da posição de garantidor em que eles se encontravam. Nota-se, pois, a
ausência de um nexo causal, porquanto a relação não se dá entre a vontade dos
aliciadores e o alcance do resultado, mas com a falta de esforços da parte deles no
intuito de impedir esse resultado. Tal observação reforça a tese de que a teoria de
Roxin não satisfaz os delitos omissivos, consoante afirmação de Jesus20:

A teoria do domínio do fato, que rege o concurso de pessoas, não tem


aplicação aos delitos omissivos, sejam próprios ou impróprios, devendo ser
substituída pelo critério da infringência do dever de agir. Na omissão, o autor
direto ou material é quem, tendo dever de agir para evitar um resultado
jurídico, deixa de realizar a exigida conduta impeditiva, não havendo
necessidade de a imputação socorrer-se da teoria do domínio do fato.

Do exposto, torna-se incontroverso que, nos dois casos apreciados, condutas


omissivas foram desconsideradas para fins de delimitação de autoria no delito de
redução à condição análoga à escrava. Essa percepção corrobora que, segundo ideia
aqui proposta, a responsabilização nas duas Ações Penais em pauta está diretamente
ligada à existência de domínio de consecução do resultado previsto por parte do
agente, que, dessa forma, executa suas resoluções segundo seus desígnios próprios,
o que, provadamente, está em consonância com a Teoria do Domínio do Fato.

19 GRECO, Luís; LEITE, Alaor. Claus Roxin: 80 anos. In: Revista Liberdades n°. 7 - ISSN 2175-5280,
maio-agosto de 2011, pp. 103 e 104.
20 JESUS, Damásio de. Direito penal: parte geral. 34ª Edição. Editora Saraiva, 2012, p. 477.

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402
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo cuidou de investigar duas Ações Penais destacadas pela presença
do delito de sujeição à condição análoga à de escravo, disposto no artigo 149 do
Código Penal. Para tanto, foram escolhidos dois casos em que vigorava estrutura
tripartite de organização e comando de propriedade rural, na qual se faziam presentes
três figuras de caracteres e funções muito semelhantes: o proprietário, o administrador
e o aliciador. Embora possuíssem cenários e agentes atuando de modo muito
semelhante, a autoria desses delitos foi estipulada de modos diversos, temática em
que se centrou a investigação.
Inicialmente, foi realizada explanação individualizada das conjunturas e das
particularidades de cada caso, salientando-se os elementos de conduta e o grau de
conhecimento e envolvimento dos três agentes superiores relativamente aos
trabalhadores encontrados em condições degradantes de trabalho nas propriedades
rurais.
Quanto ao caso 1, o proprietário e o administrador, que tinham relação parental,
cooperavam mutuamente para a gestão dos negócios rurais familiares. Eles possuíam
um funcionário hierarquicamente superior, quando comparado aos trabalhadores
resgatados, aqui denominado aliciador, que era responsável pela contratação e
supervisão dos trabalhadores submetidos a condições degradantes de trabalho.
O caso 2 apresenta dinâmica bem semelhante, divergindo do caso anterior
somente no que tange ao proprietário do imóvel, devido ao fato de que este não se
envolvia com os negócios da fazenda, tendo confiado ao seu filho, o administrador, a
gerência de sua propriedade.
Em seguida, efetuou-se uma análise comparativa entre as condutas dos três
agentes, com a particularização dos elementos distintivos utilizados pelos magistrados
responsáveis pela condenação ou absolvição dos sujeitos presentes.
Decorreu da análise dos casos que os condenados foram o proprietário e o
administrador no caso 1 e o administrador no caso 2, sendo que os pontos de
convergência de suas condutas eram a voluntariedade e o domínio da execução da
conduta criminosa com vistas a um determinado fim. Os três indivíduos, para obtenção
de lucro nos negócios, dirigiam seus esforços à sujeição dos trabalhadores à condição

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403
análoga à escrava, tendo sido esse o critério diferenciador aplicado pelos magistrados
na imputação criminal desses agentes.
Em relação ao proprietário no caso 2, não houve condenação, devido ao fato
de que, ao que tudo indica, esse indivíduo não se envolvia com o empreendimento,
dado que fez procuração concedendo plenos poderes ao seu filho, o qual, então,
chefiava a fazenda sem restrições. Dessa forma, foi ratificada a alegação de que o
proprietário ignorava o estado a que eram submetidos os trabalhadores, posto que
nem mesmo costumava comparecer ao imóvel rural, tendo sido esse o embasamento
de sua absolvição.
No que diz respeito aos aliciadores, chegou-se à conclusão de que eles eram
qualificados como garantidores frente aos trabalhadores resgatados, haja vista que
foram os responsáveis pela contratação dos obreiros, o que os tornaria incumbidos,
conforme o disposto na alínea c do § 2º. do art. 13 do CP, do dever de agir com vistas
a impedir a lesão dos direitos fundamentais das vítimas. Dessarte, seria possível
entender que os aliciadores se omitiram do dever de acabar com a situação lesiva, o
que ensejaria imputação criminal. Porém, o Ministério Público preferiu desconsiderar
a conduta desses sujeitos para fins de acusação.
Chegou-se, assim, à conclusão parcial de que foi tido como parâmetro de
responsabilização o domínio sobre a realização da conduta típica segundo desígnios
próprios, o que vai ao encontro da Teoria do Domínio do Fato, elaborada por Hans
Welzel e, posteriormente, aprimorada por Claus Roxin.
A conduta dos três sujeitos convergia no sentido de que eles submetiam os
trabalhadores a condições degradantes de forma volitiva, com o fim de atender aos
seus interesses econômicos, traço que não foi detectado na conduta do proprietário
no caso 2, porque ele desconhecia a situação dos obreiros, o que, segundo a teoria
multicitada, descartaria a atribuição de autoria.
Ademais, a desconsideração da conduta omissiva dos aliciadores para fins de
imputação criminal também está em conformidade com a Teoria do Domínio do Fato,
uma vez que a ausência de nexo causal entre a vontade desses agentes e a
consecução do resultado lesivo afasta a aplicação dessa teoria, significando que não
houve direcionamento dos esforços dos aliciadores para concretização da conduta
criminosa, mas apenas o descumprimento de um comando normativo.

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404
A partir dessas inferências, tentou-se aclarar como a teoria de Roxin possui
uma proposta bem próxima à defendida pelos magistrados dos casos trazidos à baila,
que condenaram os indivíduos que praticaram o verbo núcleo da conduta típica e
possuíam domínio sobre todo o desenrolar dos acontecimentos causais.
Além do apontamento supramencionado, vale destacar que os julgadores dos
casos não poderiam condenar os supostos aliciadores, vez que esses sequer foram
denunciados pelo Ministério Público, conforme bem destacado no item 1 deste estudo.
O Ministério Público, assim, desconsiderando a figura dos aliciadores nas
denúncias oferecidas, também se mostrou consonante com a teoria roxiniana, na
medida em que não contemplou a atribuição da autoria com base em delitos omissivos
impróprios, em razão de esses delitos não tratarem de vontade e domínio na
consecução de um resultado, e sim da ausência de esforços para evitar a lesão de
um bem jurídico, o que não se ajusta ao domínio do fato.
Posto isso, tem-se que, relativamente aos dois casos analisados, o
entendimento do Ministério Público e dos órgãos julgadores está alinhado com a
Teoria do Domínio do Fato, de Claus Roxin, conforme hipótese inicialmente defendida.
Essa assertiva permite inferir que o crime de redução à condição análoga à de
escravo, disposto no artigo 149 do Código Penal, pode ser encarado por meio de uma
perspectiva roxiniana pelo Poder Judiciário brasileiro.

REFERÊNCIAS

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conceitos restritivos de autoria. Monografia – UFRGS. Porto Alegre, 2014.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 15
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em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm>. Acesso em: 15
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(Trabalho Forçado ou Obrigatório). Disponível em:
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Pannedille, 1970.

ROXIN, Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil. Vol. I. 3ª Edição. Munique: Verlag


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WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal – Una introducción a la
doctrina de la acción finalista. Buenos Aires: Editorial B de F., 2004.

WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Chile: Editoral Jurídica de Chile, 1997.

CRIMINAL LIABILITY IN THE CRIME OF SUBJECTION TO


CONDITIONS ANALOGOUS TO SLAVERY AND ITS RELATION TO
CLAUS ROXIN’S THEORY

ABSTRACT
The present article seeks, using the inductive method of
research, to analyze patterns of criteria and valuations used
jurisprudentially for the attribution of authorship in the crime
typified by article 149 of the Brazilian Penal Code, under the
circumstance of tripartite hierarchical management organization,
through a detained study of two cases. From this, a parallel is
established between the parameter of criminal liability for this
crime in the cases analyzed and the logic of the domain of fact
of Claus Roxin. In addition, it notes that the theory was also
applied by the Public Prosecutor's Office, when the reports of the
crimes in question were offered. Thus, it intends to demonstrate
the hypothesis that the Theory of the Domain of Fact can be used
as a parameter for the analysis of the crime of reducing someone
to a condition analogous to slavery by the Brazilian judicial
system.
Keywords: Contemporary slave labor. Imputation. Criminal
liability.

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407
Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

408
FISCALIZAÇÃO DE CASAS DE FARINHA EM ALAGOAS E
PERNAMBUCO PELO GRUPO ESPECIAL DE FISCALIZAÇÃO
MÓVEL

Joel Darcie1
Otávio Morais Flor2

1 Introdução. 2 O processo de produção da farinha de mandioca. 2.1 Matéria-


prima na produção de farinha. 2.2 O processo da casa de farinha. 2.3 O
processo da casa de farinha - Constatação de riscos. 3 A mão de obra. 4
Máquinas. 5 Trabalho em condições análogas às de escravo. 6 Conclusão.
Referências.

RESUMO
Considerando a recente atuação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel
em auditorias na atividade econômica de fabricação de farinha de
mandioca, objetivou-se evidenciar as principais irregularidades trabalhistas
encontradas nas casas de farinha de Alagoas e Pernambuco. Para tanto,
procedeu-se à análise de relatórios de fiscalização produzidos pelo Grupo
Especial de Fiscalização Móvel relativos a essa atividade econômica,
nesses estados, no período de 2018 a 2019. Dessa forma, foram estudadas
características relativas à própria atividade econômica, evidenciando os
riscos que ela pode gerar aos trabalhadores. Foram analisadas infrações
trabalhistas relativas à mão de obra utilizada na atividade, indicando que
havia uma grande informalidade nos vínculos empregatícios e baixo
cumprimento de itens de legislação trabalhista. Em seguida, foram
estudados aspectos relativos às infrações relacionadas às máquinas para
produção de farinha de mandioca que resultaram em interdições. Também
foram examinados aspectos que levaram ao resgate, em casos específicos,
de trabalhadores em condições análogas às de escravo.

Palavras-chave: Casa de Farinha. Inspeção do Trabalho. Irregularidades


Trabalhistas. Trabalho Análogo ao de Escravo.

1 Auditor-Fiscal do Trabalho. Graduado em Ciências da Computação pela Universidade Federal do


Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM).
2 Auditor-Fiscal do Trabalho. Graduado em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB).

Membro do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

409
1 INTRODUÇÃO

O Grupo Especial de Fiscalização Móvel3 (GEFM), composto por Auditores-


Fiscais do Trabalho, sob coordenação da Divisão de Fiscalização para Erradicação
do Trabalho Escravo (DETRAE), no âmbito da Subsecretaria de Inspeção do
Trabalho/Ministério da Economia, visa realizar ações fiscais mais ágeis e eficientes
no que concerne às Normas de Proteção do Trabalho, sendo um braço operacional
do Estado para efetivar os compromissos nacionais e internacionais de erradicação
do trabalho análogo ao de escravo no Brasil, nas mais variadas atividades
econômicas.
A atividade econômica de fabricação de farinha de mandioca (CNAE 1063-
5/00) foi primeiramente fiscalizada pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel
somente no ano de 2018. Segundo o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção
do Trabalho no Brasil4, a partir de então, totalizam-se 04 (quatro) operações de
fiscalização.
A primeira dessas operações ocorreu no estado de Alagoas, com 02 (duas)
empresas fiscalizadas em Feira Grande/AL. As (02) duas operações seguintes foram
desenvolvidas no estado de Pernambuco, com 02 (duas) empresas fiscalizadas em
Araripina/PE, 06 (seis) em Ipubi/PE, 01 (uma) em Jupi/PE, e 04 (quatro) em
Lajedo/PE. Finalmente, 01 (uma) operação ocorreu nos estados da Bahia, com 03
(três) empresas fiscalizadas em Crisópolis/BA, e de Sergipe, com 02 (duas) empresas
fiscalizadas em Campo Brito/SE e 09 (nove) em Lagarto/SE.
Dentre as operações mencionadas, foram analisadas aqui aquelas que
correspondem aos estados de Alagoas e Pernambuco5, por meio de Relatórios de
Fiscalização disponibilizados, e da comparação das infrações trabalhistas imputadas
aos empregadores.6

3 Grupo Especial de Fiscalização Móvel - GEFM, criado pela Portaria MTb nº 549 de 14/06/1995.
4 MINISTÉRIO DA ECONOMIA/SUBSECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO. Painel de
Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil. Disponível em
<https://sit.trabalho.gov.br/radar/>. Acesso em: 9 jun, 2020.
5 Operações analisadas neste artigo referem-se às de número 34/2018, 44/2018 e 24/2019 do Grupo

Especial de Fiscalização Móvel, e correspondem ao total de15 empresas fiscalizadas.


6 Em conjunto, os trabalhadores das 15 casas de farinha foram atingidos por irregularidades

trabalhistas cometidas por seus empregadores que totalizaram 533 autuações lavradas pelos
Auditores-Fiscais do Trabalho. Entre os normativos descumpridos estão, além da própria

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

410
A partir da análise dos relatórios, buscou-se entender a atividade econômica
de produção de farinha de mandioca. A farinha produzida nesses estados era obtida
por meio de processamento em fases que envolvia o uso de trabalho manual e o uso
de máquinas, sem a necessidade de mão de obra muito especializada. As raízes da
planta eram submetidas às etapas de descascamento, com uso predominante de mão
de obra feminina, e, após, às etapas de ralação, prensagem, nova ralação, secagem
e peneiração, com maior uso de mão de obra masculina.
Foi dada ênfase aos riscos que a atividade ocasionava aos trabalhadores.
Foram identificados riscos ergonômicos, biológicos, químicos, físicos e de acidentes
presentes nessa atividade.
A partir da comparação de autos de infração, foi possível verificar o grau de
formalização dos vínculos empregatícios. Dentre os 416 (quatrocentos e dezesseis)
trabalhadores encontrados laborando no momento das inspeções em Alagoas e
Pernambuco, 389 (trezentos e oitenta e nove) encontravam-se na informalidade,
revelando baixo índice de cumprimento da legislação trabalhista nesse aspecto.
A situação das máquinas foi reveladora: todas as empresas fiscalizadas tiveram
suas máquinas interditadas pela fiscalização, por apresentarem risco grave e iminente
de acidente dos operadores.
A ocorrência de situações caracterizadas como de trabalho análogo a de
escravo foram constatadas em 3 (três) das 29 (vinte e nove) empresas, resultando no
resgate de 95 (noventa e cinco) trabalhadores7.

Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei nº 5.452, de 01.05.1943) e da CLT combinada com a
Lei 7.998, de 11.01.1990 [Regula o Programa do Seguro-Desemprego, o Abono Salarial, institui o
Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), e dá outras providências], a Lei nº 605/1949 (Repouso
semanal remunerado e o pagamento de salário nos dias feriados civis e religiosos), o Decreto nº
76.900, de 23.12.1975 (Institui a Relação Anual de Informações Sociais – RAIS e dá outras
providências), a Lei nº 8.036, de 11.5.1990 (Dispõe sobre o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço,
e dá outras providências), a Lei nº 4.090, de 13.7.1962, com as alterações introduzidas pelo art. 1º,
da Lei nº 4.749, de 12.8.1965 (Institui a Gratificação de Natal para os Trabalhadores), a Lei
Complementar nº 110, de 29.6.2001 (Institui contribuições sociais, autoriza créditos de complementos
de atualização monetária em contas vinculadas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS
e dá outras providências), e as seguintes Normas Regulamentadoras: NR-5, NR-6, NR-7, NR-8, NR-
9, NR-10, NR-11, NR-12, NR-17, NR-24 e NR-25.
7 De acordo com a Instrução Normativa nº 139/SIT/MTb, de 22/01/2018, considera-se em condição

análoga à de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a:


I - Trabalho forçado;
II - Jornada exaustiva;
III - Condição degradante de trabalho;
IV - Restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

411
2 O PROCESSO DE PRODUÇÃO DA FARINHA DE MANDIOCA

Para que seja possível uma análise acerca das fiscalizações nas casas de
farinha de Alagoas e Pernambuco, fez-se necessário, de princípio, esclarecer o
processo produtivo que envolve a fabricação da farinha de mandioca.

2.1 MATÉRIA-PRIMA NA PRODUÇÃO DE FARINHA

A mandioca, macaxeira ou aipim (Manihot esculenta Crantz) é uma raiz da


família das Euphorbiaceae, de origem sul-americana. Apresenta rica fonte energética
devido à sua alta concentração de carboidratos, além de conter vitamina C, niacina,
betacaroteno (raízes amareladas) e licopeno (raízes rosadas). O consumo exige
cozimento ou fritura para eliminar o ácido cianídrico, que a torna perigosa para a saúde
quando ingerida crua. Pode ser consumida pura ou transformada em pratos doces e
salgados, além de bebidas típicas. No processo de desidratação, segundo Luciana
Peniche8, a mandioca dá origem a um produto denominado de farinha, que é uma
espécie de sêmola torrada em que os grãos são formados por aglutinação de
partículas da massa de mandioca, semelhante às sêmolas de trigo. A forma de farinha
é muito utilizada por famílias e por pequenos produtores, segundo o SEBRAE.9
Segundo Mariangela Agostini10, pela facilidade de plantio, grande resistência a
condições climáticas adversas (secas, altas temperaturas) e baixo custo de

ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho;


V - Retenção no local de trabalho em razão de:
a) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte;
b) manutenção de vigilância ostensiva;
c) apoderamento de documentos ou objetos pessoais.
8 PENICHE, Luciana Ribeiro da Silva. O Processo de Trabalho na Produção de Farinha de Mandioca

no Município de Rio Branco-AC. Contribuições à Vigilância em Saúdo do Trabalhador. 2014 96 f.


Dissertação (Mestrado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2014, p.
16.
9 SEBRAE – Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Mandioca (Farinha e

Fécula), Série Estudos Mercadológicos. Disponível em


<https://m.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/UFs/RN/Anexos/Mandioca-(farinha-e-fecula).pdf
>. Acesso em: 09 jun. 2020, p. 7.
10 AGOSTINI, Mariangela Rosário. Produção e utilização de farinha de mandioca comum enriquecida

com adição das próprias folhas desidratadas para consumo alimentar. Dissertação de Mestrado.
Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências Agronômicas. Botucatu, 2006. Disponível em:

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

412
reprodução de plantas, a mandioca faz parte da dieta regular em muitos locais no
mundo, sendo consumida principalmente em países tropicais, em desenvolvimento,
ou com grande parcela de populações de baixa renda, o que caracteriza essa raiz
como cultura rústica ou “de fundo de quintal”.
De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura (FAO), em levantamento referente ao ano de 2016, a produção mundial de
raiz de mandioca correspondeu a 293,31 milhões de toneladas. O maior produtor
mundial foi a Nigéria, que computou 59,56 milhões de toneladas, seguido por Congo,
com 34,57, milhões de toneladas e Indonésia, com 31,16 milhões de toneladas. O
Brasil foi o 4º maior produtor mundial, com 21,03 milhões de toneladas de raiz de
mandioca, conforme dados da FAOSTAT11. Estima-se para o ano de 2020, de acordo
com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, uma produção no Brasil
de 19,1 milhões de toneladas12.
Gráfico 1 – Produção de Mandioca em 2016 (Em milhões de toneladas)

59,56; 20%

Nigéria
Congo
146,98; 50% 34,57; 12% Tailândia
Brasil
Demais Países
31,16; 11%

21,03; 7%

Fonte: FAOSTAT

<https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/90612/agostini_mr_me_botfca.pdf?sequence=1&
isAllowed=y> Acesso em: 09 jun. 2020, p 12.
11 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A ALIMENTAÇÃO E A AGRICULTURA (FAO).

Banco de Dados Estatísticos Corporativos da Organização para Agricultura e Alimentação


(FAOSTAT). Disponível em < http://www.fao.org/faostat/en/#data/QC>. Acesso em: 09 jun. 2020.
12 SILVA, Adonis Boeckmann: Mandioca: Análise mensal: março de 2020.CONAB, 2020. Disponível

em: <https://www.conab.gov.br/info-agro/analises-do-mercado-agropecuario-e-extrativista/analises-
do-mercado/historico-mensal-de-mandioca/item/13531-mandioca-analise-mensal-marco-2020>.
Acesso em: 09 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

413
Em território nacional, a Região Norte é responsável por 36,3% da produção,
seguido pela Região Sul, com 25,8%, pela Região Nordeste, com 20%, pela Região
Sudeste, com 10,9% e, por fim, pela Região Centro-Oeste, com 7%. Alagoas ocupou
a décima terceira posição na produção de mandioca por estado brasileiro, com
produção de 394.073 toneladas, em 33.922(ha) de área colhida, e rendimento de
11,62(t/ha), enquanto que Pernambuco ocupou a décima quarta posição, com
372.360 toneladas de produção, em 41.466(ha) de área colhida e rendimento de
8,98(t/ha), conforme dados do IBGE-PAM - Produção Agrícola Municipal13.

Gráfico 2 – Produção de Mandioca por Região

7%
11% Norte
36% Sul
Nordeste
20%
Sudeste
Centro-Oeste
26%

Fonte: IBGE-PAM - Produção Agrícola Municipal

Em relação ao consumo per capita de farinha de mandioca entre as regiões do


País, levantamento 2017/201814 confirma o maior consumo nas regiões Norte e
Nordeste. A média brasileira é de 3,24 quilos anuais per capita, enquanto a região

13 TABELA - Produção brasileira de mandioca em 2018. EMBRAPA, 2019. Disponível em:


<http://www.cnpmf.embrapa.br/Base_de_Dados/index_pdf/dados/brasil/mandioca/b1_mandioca.pdf>
Acesso em: 09 jun.2020.
14 BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017 –

2018. Aquisição Alimentar Domiciliar Per capita. Brasil e Grandes Regiões. Disponível em:
<https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/condicoes-de-vida-desigualdade-e-pobreza/24786-
pesquisa-de-orcamentos-familiares-2.html?edicao=27139&t=resultados>. Acesso em: jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

414
Norte continua com a maior média do País (10,79 kg/per capita/ano), seguida pela
região Nordeste (3,86 kg/per capita/ano). Todas as demais regiões apresentam
consumo inferior a 0,6 kg/per capita/ano.

2.2 O PROCESSO DA CASA DE FARINHA

O Nordeste abriga centenas de casas de farinha dedicadas à produção de


pequenos volumes de farinha de mandioca, consumidos quase exclusivamente na
própria região.
Para Maria Sena:

No Nordeste brasileiro, tecnologicamente falando, ocorrem três tipos de


casas de farinha: a tradicional, a modernizada e a eletrificada. Embora quanto
à arquitetura e materiais de construção existam diferenças no âmbito de uma
região, os modelos encontrados podem ser classificados de acordo com
padrões tecnológicos.15

Segundo a mesma autora, a classificação dos diferentes tipos de casas de


farinha pode ser considerada da seguinte maneira:

A casa de farinha tradicional, também conhecida como manual, é assim


denominada tendo em vista não possuir quaisquer equipamentos modernos,
sendo os processos de trituração de raízes, a prensagem, a desintegração
da massa prensada e a torrefação realizados manualmente. Já a
modernizada possui algumas “inovações”, a exemplo da utilização de motor
(a gasolina, a diesel ou elétrico) no processo de trituração das raízes. As
demais etapas são realizadas manualmente. A casa de farinha eletrificada
constitui-se de uma estrutura mais modernizada, dotada de quase todas as
etapas de processamento movidas a eletricidade (exceto o descascamento
das raízes, que ainda é realizado manualmente), inclusive a torrefação, a qual
é realizada num grande forno de ferro dotado de pás de madeira
movimentadas por uma engrenagem movida a eletricidade. Existem modelos
onde até o ensacamento da farinha é mecanizado.16

As casas de farinha inspecionadas, alvos do presente estudo, eram do tipo


eletrificada, ou seja, excetuando-se o descascamento, as demais etapas do processo
eram realizadas com o auxílio de equipamentos movidos a eletricidade.

15 SENA, Maria das Graças Carneiro. Aspectos Sociais. In: SOUZA, Luciano da Silva et al. (Ed.).
Aspectos socioeconômicos e agronômicos da mandioca. Cruz das Almas: Embrapa Mandioca e
Fruticultura Tropical, 2006. 91-111 . p. 104
16 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

415
A partir da análise dos relatórios, observou-se que a farinha de mandioca era
obtida por meio de um processo básico no qual as raízes eram submetidas às etapas
de descascamento, ralação, prensagem (liberação da manipueira - calda
extremamente venenosa), nova ralação, secagem (emissão de vapores tóxicos) e
peneiração.
As raízes eram descascadas manualmente com o auxílio de facas ou
raspadores e em seguida eram lavadas para remoção do excesso de sujeira do solo.
Após a lavagem, as raízes inteiras passavam por uma máquina de ralação que
funcionava por meio de eletricidade, resultando na obtenção de uma massa com
elevado teor de umidade. Esta massa ralada era transferida para sacos, geralmente
de nylon, e submetidas a uma prensa para eliminação do excesso de líquido. Após a
prensagem e eliminação da maior parte do conteúdo líquido da mandioca, a massa
era submetida a uma nova ralação para, em seguida, ir para fornos de torrefação.
Após a peneiração, a farinha era ensacada e estava pronta para ser comercializada.
Para a realização de todo o processo descrito acima, as casas de farinha
inspecionadas dividiam-se, basicamente, em dois setores: 1) setor de descascamento
da mandioca in natura, e 2) setor de processamento da farinha de mandioca.
No setor de descascamento, trabalhavam empregados cuja função era
regionalmente denominada de “raspador” ou “descascador”. As atividades foram
assim descritas:

A atividade consistia na retirada manual da casca da mandioca com o uso de


facas e raspadores. As facas eram utilizadas para o corte e descascamento
das pontas do tubérculo, enquanto o raspador limpava a parte intermediária
da raiz (o raspador, regionalmente chamado “marisco”, consistia em uma
ferramenta rudimentar e de construção artesanal, com um cabo de madeira
e uma lâmina de aço vergada em forma de “U” presa na ponta, normalmente
confeccionada com velhas lâminas de serra-fita descartadas). Todas as
ferramentas pertenciam aos próprios trabalhadores, não sendo fornecidas
pelo proprietário da casa de farinha. Neste primeiro setor,[...] os trabalhadores
trabalhavam diretamente sentados no chão ou sobre pequenos banquinhos
de madeira, em meio aos montes de cascas e às pilhas de mandiocas
descascadas depositadas diretamente no piso, sem qualquer higiene e em
meio à passagem de todos.17

17SUBSECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO (SIT). Relatórios de Fiscalização da Divisão de


Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE). Operação 34, 2018, p 6.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

416
A mandioca raspada era constantemente levada em balaios ou cambões feitos
com pneus pelos empregados chamados “cambozeiros” ao setor de processamento
da farinha. A descrição do processo continuava:

Nesse local, a mandioca, após ser lavada em um cocho, era triturada em um


equipamento elétrico e, em seguida, prensada para a remoção da maior parte
da porção líquida da massa, denominada manipueira, resíduo rico em ácido
cianídrico, tóxico para o homem e para o meio ambiente aquático e o terrestre
(fauna e flora). A massa resultante da prensagem era depositada em outro
cocho,[...] triturada ou destorroada com uma espiral de ferro[...], e seguia por
uma tubulação para a secagem na chapa quente do forno a lenha,
constantemente mexida por pás movimentadas por um motor elétrico. De
acordo com o tipo de farinha a ser produzido, poderia haver necessidade de
haver trituração ou peneiramento para diminuição de sua granulometria,
quando novamente a farinha voltava ao forno, onde permanecia até o ponto
final de torra. As etapas seguintes consistiam em ensacar e armazenar para
venda no local ou entrega para os empacotadores e distribuidores da
região.18

Pode-se observar que a descrição do encadeamento das diversas etapas de


produção nos relatórios faz sentido na medida em que se buscou compreender a
função de cada trabalhador das empresas fiscalizadas em cada etapa.

2.3 O PROCESSO DA CASA DE FARINHA – CONSTATAÇÃO DE RISCOS

Os relatórios analisados deram conta de que houve por parte dos Auditores-
Fiscais do Trabalho uma constatação de riscos a que os trabalhadores estavam
expostos. Puderam ser identificados riscos físicos, químicos, biológicos, de acidentes
e ergonômicos. As respectivas repercussões para a saúde dos trabalhadores também
foram descritas.
Argumentou-se assim, que no processo de produção de farinha, quanto à
ergonomia, havia incidência de movimentos repetitivos, que é um fator relevante no
desenvolvimento de distúrbio osteomuscular relacionado ao trabalho (DORT) ou
lesões por esforços repetitivos (LER). Constatou-se que nas etapas de raspagem ou
descascamento, escaldadura e torrefação existia uma ocorrência grande de
movimentos repetitivos realizados ao longo da jornada de trabalho.

18 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

417
Além dos movimentos repetitivos, ressaltou-se a postura inadequada no
manuseio da mandioca durante o descascamento. Concluiu-se que os trabalhadores
assumiam tal postura devido à inadequação dos postos de trabalho, estando
propensos a fadiga, a dores musculares e comprometimentos da coluna. Neste ponto,
deu-se ênfase aos locais em que ficavam sentados os que descascavam as
mandiocas: banquinhos de cerca de 20cm de altura ou as pilhas de raízes de
mandioca.
Ainda quanto à ergonomia, foi observado o manuseio de carga, na descarga
da mandioca, no leva e traz dos balaios com aproximados 100kg de mandioca, e no
manejo das sacas de farinha de 50kg. Tais atividades foram tidas como fatores de
risco relacionados a possíveis traumas musculares entre os trabalhadores, de tal
forma que a sobrecarga significativa representaria riscos para a coluna cervical,
varizes de membros inferiores, além de complicações cardíacas.
Houve a informação de que estavam presentes riscos físicos na atividade.
Destacou-se o ruído decorrente do funcionamento contínuo das peneiras, trituradores
e pás dos fornos, e ausência de proteção coletiva e individual.
Verificou-se ainda, como risco físico, a incidência de calor que provinha dos
fornos utilizados na etapa de escaldadura e torrefação. Tal condição era
potencializada pela ausência de sistemas de exaustão e ventilação adequadas.
Em relação aos riscos biológicos, foram observados ataques de animais
peçonhentos, como lacraias, aranhas e escorpiões, uma vez que a atividade de
descascamento era realizada muitas vezes junto ao solo. Alguns trabalhadores
ficavam inclusive sentados diretamente sobre as pilhas de raízes. Forneiros também
manipulavam lenha amontoada no exterior da casa de farinha.
Também foram descritos riscos químicos, devido ao contato tópico e
respiratório com o ácido cianídrico (HCN) presente em todas as partes da mandioca,
principalmente os decorrentes da exposição crônica, a mais comum, o que podia
causar distúrbios neurológicos como tonturas e dor de cabeça, respiratórios, como
fadiga e dispneia, e diminuição da produção de hormônios tireoidianos tironina e
tiroxina resultante da capacidade inibitória sobre a captação de iodo na glândula
tireoide. Também houve menção a enfermidades pulmonares provocadas, segundo

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

418
Cyro Zacarias19, pelo contato direto com o cianureto de hidrogênio (HCN) volatilizado
durante a torrefação e aspiração do pó da farinha em suspensão no ar
(aerodispersoides).
Por fim, foram mencionados os riscos de acidentes a que estavam expostos os
empregados, notadamente, lesões provocadas por instrumentos perfurocortantes,
como faca e ralador, bem como lesões provocadas pelas partes perigosas das
máquinas utilizadas no processo produtivo.
Em função dos riscos encontrados, foram lavrados 318 autos de infração
relativos à saúde e segurança dos trabalhadores, sendo 103 referentes à Norma
Regulamentadora nº 12, que trata da segurança no trabalho em máquinas e
equipamentos; 69 referentes à Norma Regulamentadora nº 24, que trata das
condições sanitárias e de conforto nos locais de trabalho; 54 referentes à Norma
Regulamentadora nº 7, que trata do programa de controle médico de saúde
ocupacional – PCMSO; 27 referentes à Norma Regulamentadora nº 17, que trata de
ergonomia; 19 referentes à Norma Regulamentadora nº 10, que trata de segurança
em instalações e serviços com eletricidade; 15 referentes à Norma Regulamentadora
nº 06, que trata de equipamentos de proteção individual - EPI; 15 referentes à Norma
Regulamentadora nº 9, que trata do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais -
PPRA; 8 referentes à Norma Regulamentadora nº 5, que trata da Comissão Interna
de Prevenção de Acidentes – CIPA; 6 referentes à Norma Regulamentadora nº 25,
que trata de Resíduos Industriais; 1 referente à Norma Regulamentadora nº 8, que
trata de edificações; e 1 referente à Norma Regulamentadora nº 11, que trata de
transporte, movimentação, armazenagem e manuseio de materiais.

19 ZACARIAS, Cyro Hauaji. Avaliação da exposição de trabalhadores de casas-de-farinha ao ácido


cianídrico proveniente da mandioca, Manihot esculenta, Crantz, no Agreste Alagoano. Dissertação de
mestrado. Faculdade de Ciências Farmacêuticas. São Paulo, 2011. Disponível em <
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/9/9141/tde-16042013-111938/pt-br.php> Acesso em: 09
jun. 2020. p 29.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

419
Gráfico 3 – Autos de Infração lavrados relativos à Saúde e Segurança

NR12
NR24

6;1; 0%
2% NR07
15;8;
5% 3%
15; 5% NR17
19; 6% 103; 32%
NR10
27; 8% NR06
NR09

54; 17% NR05


69; 22%
NR25
NR08
NR11

Fonte: Operações de número 34/2018, 44/2018 e 24/2019 do GEFM

O estudo desses riscos e sua descrição nos relatórios e autos de infração


lavrados pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel deram conta da importância da
instrução dos empregadores das casas de farinha para que ocorra a eliminação ou
diminuição de tais riscos no ambiente de trabalho.

3 A MÃO DE OBRA

Os dados consolidados das 15 fiscalizações empreendidas nos estados de


Alagoas e Pernambuco mostraram 151 empregados homens com 18 anos ou mais, e
8 abaixo dos 18 anos, sendo, entre esses, 5 abaixo dos 16 anos. Entre as mulheres,
eram 238 com 18 anos ou mais, e 19 abaixo dos 18 anos, sendo, entre essas, 15
abaixo dos 16 anos.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

420
Gráfico 4 – Trabalhadores Alcançados pela Fiscalização

19; 5%

151; 36% Homens 18 anos ou +


Homens 17 anos ou -
Mulheres 18 anos ou +

238; 57% Mulheres 17 anos ou -


8; 2%

Fonte: Operações de número 34/2018, 44/2018 e 24/2019 do GEFM

Quanto à prática de trabalho infantil encontrada em 4 casas de farinha, deu-se


relevância aos riscos a que estavam expostos as crianças e os adolescentes, e as
repercussões à sua saúde:

[...] esforços físicos intensos; acidentes com instrumentos perfurocortantes;


posições inadequadas; movimentos repetitivos; altas temperaturas e poeiras.
Acrescenta[-se] que tais riscos podem gerar graves repercussões à saúde:
afecções musculoesqueléticas (bursites, tendinites, dorsalgias, sinovites,
tenossinovites); contusão; amputações; cortes; queimaduras; DORT/LER;
cifose; escoliose; afecções respiratórias e dermatoses ocupacionais. [...]
trabalhos com utilização de instrumentos ou ferramentas perfurocortantes
sem proteção adequada capaz de controlar o risco, indicando risco de
perfurações, cortes e, consequentemente, ferimentos e mutilações.20

A análise dos relatórios de inspeção do trabalho também trouxe à tona o


cometimento de irregularidades básicas por parte dos empregadores em relação à
maioria de seus empregados. Do total de trabalhadores encontrados (416), 148
homens e 241 mulheres não possuíam registro como empregados nos locais em que

20SUBSECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO (SIT). Relatórios de Fiscalização da Divisão de


Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE). Operação 34, 2018, p 30.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

421
laboravam. As mulheres eram a mão de obra preponderante nas casas de farinha.
Elas laboravam majoritariamente como raspadeiras, função que consistia na retirada
manual da casca da mandioca com o uso de facas e raspadores.

Gráfico 5 – Trabalhadores Sem Registro

4; 1%

Homens 18 anos ou +
145; 37%
Homens 16 e 17 anos
Mulheres 18 anos ou +
237; 61%
Mulheres 16 e 17 anos
3; 1%

Fonte: Operações de número 34/2018, 44/2018 e 24/2019 do GEFM

Dentre as irregularidades a que estavam sujeitos os empregados, ressaltou-se,


sobretudo, a falta do cumprimento de registro do empregado e anotação de sua CTPS.
Cabe ressaltar que a falta de formalização das relações de emprego gera
consequências negativas das mais diversas para o trabalhador e para a coletividade
como, por exemplo: i) a relação de trabalho torna-se mais insegura e instável, inclusive
pela ausência de acesso ao sistema do FGTS (destinado a desestimular a dispensa
imotivada, bem como auxiliar a subsistência do trabalhador involuntariamente
desempregado); ii) não tem direito às estabilidades legais provisórias, como as
decorrentes de acidente de trabalho e de maternidade; iii) não recebimento das
rubricas decorrentes do vínculo empregatício (terço constitucional de férias, 13º
salário, descanso semanal remunerado, entre outras); iv) o trabalhador informal não
tem acesso à representação sindical e benefícios daí decorrentes, como o piso
estabelecido para a categoria; v) sonegação de encargos públicos; vi) obstrução das
atribuições das instituições de proteção do trabalho; entre outros prejuízos.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

422
Salientou-se também que os pagamentos recebidos pelos empregados das
casas de farinha, costumeiramente não formalizados, não contemplavam o valor
correspondente ao descanso semanal remunerado.
Quanto ao pagamento de salário em valor inferior ao mínimo vigente, foi
observado que trabalhadores nas mais variadas funções, como forneiros,
descascadores e raspadeiras, eram afetados por esta irregularidade. Eles eram pagos
por produção, em valores baixos, sendo pagos por carrinho de mão de mandioca que
raspavam ou sacos de farinha que produziam.
As autuações trabalhistas analisadas corresponderam à realidade fática da
atividade. Neste sentido, os relatórios imputaram aos empregadores as infrações de
admitir ou manter empregado sem o respectivo registro em livro, ficha ou sistema
eletrônico competente; deixar de anotar a CTPS; deixar de depositar mensalmente o
percentual referente ao FGTS; deixar de pagar a remuneração, à que fizer jus,
correspondente ao repouso semanal; pagar salário inferior ao mínimo vigente; deixar
de conceder férias anuais a que fez jus; deixar de efetuar o pagamento do 13º (décimo
terceiro), e efetuar o pagamento do salário, sem a devida formalização do recibo.
Em função das irregularidades trabalhistas encontradas, foram lavrados 215
autos de infração relativos a normas legais, sendo 137 referentes ao não cumprimento
de artigos da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (Decreto-Lei nº 5.452, de
01.05.1943); 25 referentes à falta de prestação de informações em à Relação Anual
de Informações Sociais – RAIS (Decreto nº 76.900, de 23.12.1975); 21 referentes ao
não recolhimento para o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS (Lei nº
8.036, de 11.5.1990); 15 referentes à não concessão do descanso semanal
remunerado – DSR (Lei nº 605/1949); 11 referentes ao não pagamento do décimo
terceiro salário (Lei nº 4.090, de 13.7.1962, com as alterações introduzidas pelo art.
1º, da Lei nº 4.749, de 12.8.1965); 3 referentes ao não pagamento da contribuição
social (CS) sobre o saldo do FGTS nos casos de demissão sem justa causa (Lei
Complementar nº 110, de 29.6.2001); e 3 referentes à manutenção de empregados
trabalhando sob condições contrárias às disposições de proteção do trabalho, sob
condições de “TE”, trabalho análogo ao de escravo, (CLT combinada com a Lei 7.998,
de 11.01.1990).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

423
Gráfico 6 – Infrações à Legislação Trabalhista

3;1%
1% CLT
11;3;5%
15; 7% RAIS

21; 10% FGTS


DSR
25; 12% 137; 64% 13º
CS
TE

Fonte: Operações de número 34/2018, 44/2018 e 24/2019 do GEFM

Verificou-se, portanto, uma realidade de grande informalidade da mão de obra,


e descumprimentos de legislação trabalhista capazes de gerar prejuízo monetário aos
empregados.

4 MÁQUINAS

As etapas da produção da farinha de mandioca a partir da utilização de


máquinas também foram alvo das inspeções trabalhistas analisadas. As condições
gerais de insegurança causadas pela utilização das máquinas e equipamento nos
estabelecimentos fiscalizados, aliadas à completa ausência de medidas de caráter
coletivo e individual, por parte dos empregadores, no sentido de neutralizar ou, ao
menos, minimizar os riscos aos quais estavam expostos os obreiros, acarretaram a
interdição dos maquinários das casas de farinha.
Os Termos de Interdição lavrados pelos Auditores-Fiscais do Trabalho
abrangeram as mais variadas máquinas dos empreendimentos:

Trituradores do tipo “ralador/cevadeira”, equipamentos responsáveis por ralar


a mandioca que chega da área de descascamento. A intervenção do
operador é requerida para ligar e desligar o equipamento, alimentar a
máquina e em casos de eventos como obstruções e falhas.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

424
Prensas: recebe a massa do triturador e realiza prensagem para retirada do
líquido existente na massa. A intervenção do operador é requerida para ligar
ou desligar o equipamento e na entrada e retiradas das placas na prensa, que
são feitas de forma manual.
Máquina raspadeira: equipamento responsável por raspar as mandiocas de
menor porte. A intervenção do operador é requerida para ligar e desligar o
equipamento, bem como colocar e retirar a mandioca de seu interior.
Triturador de mandioca prensada/moinho de massa fria: o triturador recebe a
massa da prensa e a tritura. A alimentação da máquina com massa da prensa
é realizada de forma manual, após esta etapa a intervenção do operador
somente é requerida para ligar e desligar o equipamento.
Forno de Embolar: responsável por “dar o ponto na farinha”. A intervenção do
operador dá-se na alimentação do forno e extração da farinha do forno. O
operador, ainda, intervém no equipamento no momento de ligá-lo e desligá-
lo.
Forno de secar: responsável pela secagem e cozimento da farinha. A
intervenção do operador dá-se na alimentação do forno e extração da
mandioca do forno. O operador, ainda, intervém no equipamento no momento
de ligá-lo e desligá-lo.
Moinho de massa quente: recebe de forma manual a massa após passar
pelos fornos e realiza a moagem da massa de mandioca antes da peneiração.
O operador intervém na máquina na alimentação desta, e no momento de
ligar e desligar o equipamento.
Peneira de classificação: recebe a farinha do forno e realiza a separação dos
tipos de granulação da farinha. O processo consiste na alimentação das
máquinas pelo operador, bem como n acionamento do botão liga e desliga.21

As irregularidades a seguir correspondem àquelas relacionadas a um triturador


ralador/cevadeira encontrado em uma das operações, mas eram também as mais
comuns que estavam presentes em outros maquinários das casas de farinha:

Deixar de instalar sistemas de segurança em zonas de perigo de máquinas


e/ou equipamentos. Deixar de instalar proteções fixas, e/ou móveis com
dispositivos de intertravamento em transmissões de força e seus
componentes móveis, quando acessíveis ou expostos, e/ou adotar proteção
de transmissões de força e seus componentes móveis que não impeça o
acesso por todos os lados. Manter comandos de partida e/ou acionamento
de máquinas sem dispositivos que impeçam seu funcionamento automático
ao serem energizadas. Deixar de instalar em máquina um ou mais
dispositivos de parada de emergência. Deixar de dotar de porta de acesso os
quadros de energia de máquinas e/ou equipamentos e/ou deixar de manter a
porta de acesso permanentemente fechada. Manter quadros de energia de
máquinas e/ou equipamentos sem sinalização quanto ao perigo de choque
elétrico e/ou restrição de acesso por pessoas não autorizadas.22

Foram descritos ainda, os riscos e/ou riscos relacionados às irregularidades


encontradas nas máquinas e/ou equipamentos:

21 SUBSECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO (SIT). Relatórios de Fiscalização da Divisão de


Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE). Operação 24, 2019, p 82.
22 Ibidem.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

425
1. Falta de sistemas de segurança nas zonas de perigo, acarretando riscos
de corte, fratura, amputação, esmagamento, esfolamento e perfuração de
membros e outras partes do corpo dos trabalhadores: equipamento permite
acesso a zona de prensagem durante operação, com risco de acesso do
operador durante a prensagem; ausência de proteções fixas nas polias e
correias; 2. Ausência de proteções fixas ou móveis com dispositivos de
intertravamento nas transmissões de força e seus componentes móveis,
acarretando riscos de corte, amputação e esmagamento de membros e
outras partes do corpo dos trabalhadores; 3. Comando de partida que não
impedia seu funcionamento automático em caso de ser energizada,
acarretando riscos de corte, fratura, amputação, esmagamento, esfolamento
e perfuração de membros e outras partes do corpo dos trabalhadores; 4.
Inexistência de dispositivo de parada de emergência, acarretando riscos de
corte, fratura, amputação, esmagamento, esfolamento e perfuração de
membros e outras partes do corpo dos trabalhadores; 5. Risco de choque
elétrico: eletroduto com o cabeamento elétrico que alimenta o equipamento
com parte energizada exposta. Dispositivo de partida de máquina e quadro
de energia sem sinalização adequada e com acesso a pessoas não
autorizadas; 6. Ausência de proteções fixas ou móveis com dispositivos de
intertravamento na parte móvel do eixo do mancal e da engrenagem, ambos
expostos ao contato.23

Tal estado dos maquinários encontrados nas casas de farinha demonstrou a


necessidade de adoção de medidas bruscas como as interdições analisadas, de
acordo com as disposições legais e regulamentares previstas no Art. 7º, inciso XXII
da Constituição Federal, no Art. 161 da Consolidação das Leis Trabalhistas - CLT e
no Art. 4º da Portaria 1.719, de 07/11/2014, do Ministério do Trabalho, e o item 3.1 e
seguintes da Norma Regulamentadora nº 3, em razão da constatação da situação de
grave e iminente risco aos trabalhadores.

5 TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO

Quanto a trabalhadores resgatados de condições análogas às de escravo, de


um total de 416 trabalhadores alcançados pelas fiscalizações nos estados de Alagoas
e Pernambuco, 95 empregados foram encontrados em tais condições. Nas 2 casas
de farinha de Alagoas fiscalizadas, dos 91 trabalhadores alcançados pelas
fiscalizações, 90 foram resgatados, todos na confluência das modalidades “jornada
exaustiva” e “condições degradantes de trabalho”. Enquanto isso, em uma das casas
de farinha de Pernambuco, 5 empregados foram resgatados de condição análoga a
de escravo na modalidade de “condições degradantes de trabalho”.

23 Ibid.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

426
Gráfico 7 – Trabalhadores Resgatados

9; 9%

33; 35% Homens 18 anos ou +


Homens 17 anos ou -
Mulheres 18 anos ou +

48; 51% Mulheres 16 e 17 anos


5; 5%

Fonte: Operações de número 34/2018, 44/2018 e 24/2019 do GEFM

Em Alagoas, o conjunto das situações a que os trabalhadores das casas de


farinha foram submetidos, que se enquadraram nos indicadores de submissão de
trabalhador a condições degradantes e a jornadas exaustivas, constantes do Anexo
Único da Instrução Normativa nº 139/SIT/MTb, de 22/01/2018, foram relacionados nos
relatórios.
Quanto aos indicadores de submissão dos trabalhadores a condições
degradantes, foram citados:

[...]Disponibilização de água em condições não higiênicas nos locais de


trabalho.[...] Inexistência de instalações sanitárias e instalações sanitárias
que não asseguravam utilização em condições higiênicas. [...]Ausência de
local para tomada de refeições.[...] Trabalhadores expostos a situação de
risco grave e iminente. [...] Inexistência de medidas para eliminar ou
neutralizar os riscos graves das atividades desenvolvidas pelos trabalhadores
(não fornecimento de EPI; ausência de exames médicos admissionais e
periódicos; inexistência de materiais de primeiros socorros; [...]
Estabelecimento de sistema remuneratórios que resultava no pagamento de
salário base inferior ao mínimo legal.24

24SUBSECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO (SIT). Relatórios de Fiscalização da Divisão de


Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE). Operação 34, 2018, p 09.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

427
A análise do caso permitiu verificar que se tratava de uma situação pontual
dentre as demais fiscalizações. Neste sentido, foram relacionadas situações como a
de que os trabalhadores realizavam suas necessidades fisiológicas de excreção nos
matos dos arredores da casa de farinha; os trabalhadores se alimentavam no próprio
local de trabalho, sentados sobre bancos improvisados, em alguma parede mais
baixa, em cima das muretas que cercavam algumas máquinas, ou mesmo sobre os
sacos de farinha produzida, e segurando as marmitas com as mãos, ou até mesmo
que os empregados trabalhavam até dezoito horas por dia, e não recebiam pelas
horas extraordinárias prestadas.
Quanto aos indicadores de submissão dos trabalhadores a jornadas
exaustivas, foram elencados:

[...]Extrapolação não eventual do quantitativo total de horas extraordinárias


legalmente permitidas por dia. [...] Supressão não eventual dos intervalos
intrajornada e interjornadas.[...]Supressão do gozo de férias.
[...]Trabalhadores sujeitos a atividades com sobrecarga física e mental e com
ritmo e cadência de trabalho com potencial de causar comprometimento de
sua saúde e da sua segurança. [...]Trabalho executado em condições não
ergonômicas e associado a aferição de remuneração por produção.25

Em Pernambuco, por sua vez, houve resgate de 5 trabalhadores encontrados


em condições análogas às de escravo na modalidade condições degradantes de
trabalho.
Foram elencados os seguintes indicadores de submissão dos trabalhadores a
condições degradantes:

[...] Da disponibilização de água em condições não higiênicas nos locais de


trabalho e de alojamento. [...] Inexistência, nas áreas de vivência, de água
limpa para higiene, preparo de alimentos e demais necessidades. [...] Da
inexistência de instalações sanitárias em condições de uso no alojamento e
no local de trabalho. [...] Da falta de condições básicas de segurança, higiene,
privacidade e conforto no alojamento. [...]Da ausência de local adequado para
armazenagem ou conservação de alimentos e de refeições.[...] Da
inexistência de local adequado para o preparo de refeições. [...]Da ausência
de local adequado para tomada de refeições.[...] Da exposição dos
trabalhadores a situação de graves e iminentes riscos.[...]; não fornecimento
de EPI; ausência de exames médicos admissionais; inexistência de materiais
de primeiros socorros; ausência de capacitação dos trabalhadores e de
procedimento de trabalho e segurança).26

25Ibidem, p 24.
26SUBSECRETARIA DE INSPEÇÃO DO TRABALHO (SIT). Relatórios de Fiscalização da Divisão de
Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE). Operação 24, 2019, p11.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

428
A particularidade do caso também foi verificada quando foram narradas em
relatório o fato de o empregador ter deixado de disponibilizar água no alojamento dos
trabalhadores resgatados; de não haver bebedouro, galão, filtro de cerâmica ou até
uma torneira como fonte de água para beber; de o estabelecimento em que os
empregados trabalhavam não ser provido de rede pública de abastecimento de água.
Foi narrado ainda que, para necessidades como cozinhar e tomar banho, os
trabalhadores utilizavam a água proveniente de cisterna de alvenaria localizada nos
fundos da casa de farinha, que era a mesma usada no processo de fabricação da
farinha de mandioca. Foi dito que tal água apresentava tonalidade escura, particulado
sobrenadante com restos de matéria orgânica e estava disposta a cerca de 5 metros
de um chiqueiro de porcos e imediatamente ao lado de tanques abertos de
armazenamento da manipueira. Além disso, os trabalhadores alojados tomavam
banho nos fundos da casa de farinha e, para tal, retiravam a água armazenada na
mencionada cisterna por meio de baldes. Relatou-se ainda que a referida água não
era adequada para o consumo humano ou higiene corporal. E a mesma água também
era utilizada para a lavagem de panelas e outros utensílios de cozinha, uma vez que
os trabalhadores que se encontravam alojados pelo empregador cozinhavam em um
pequeno cômodo nos fundos da casa de farinha. A água não passava por qualquer
processo de purificação (cloração) ou filtragem antes de ser utilizada para ingestão.
Os trabalhadores também defecavam nos fundos da casa de farinha. O alojamento
dos trabalhadores resgatados não possuía instalações sanitárias. Em virtude da
inexistência de local adequado, os trabalhadores tomavam banho nos fundos da casa
de farinha, a céu aberto, dentro ou ao lado de caixas construídas de alvenaria para
armazenamento de mandioca. As refeições dos trabalhadores resgatados eram
preparadas em um quartinho localizado nos fundos da casa de farinha, ao lado de
chiqueiro de porcos.
Percebeu-se que a convicção do Grupo Especial de Fiscalização Móvel quanto
à submissão de trabalhadores à condição análoga à de escravo foi criteriosa e atingiu
trabalhadores de 03 (três) empresas fiscalizadas.
Por fim, ao examinar a fundamentação legal da caracterização do trabalho
análogo ao de escravo presente nos relatórios e nos 3 autos de infração lavrados em

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

429
desfavor dos empregadores das casas de farinha que submeteram trabalhadores a
tal condição, observamos que a adoção de indicadores constantes do Anexo Único
da Instrução Normativa nº 139/SIT/MTb, de 22/01/2018 e a própria capitulação das
infrações, qual seja, “Art. 444 da Consolidação das Leis do Trabalho combinado com
o art. 2ºC da Lei 7.998, de 11.01.1990” foram associadas a outras normas legais, tanto
nacionais quanto internacionais adotadas pelo Brasil. Os Auditores-Fiscais do
Trabalho descreveram desrespeitos a direitos do trabalho que se relacionaram à
descrição de desrespeitos a direitos da pessoa humana, daí a citação em sua
argumentação tanto de preceitos constitucionais garantidos nos art. 1º, inciso III, art.
4º, inciso II, art. 5º, caput, incisos III e XXIII, art. 6º e art. 7º, especialmente o inciso
XXII, da Constituição da República, quanto das Convenções da OIT n.º 29 (Decreto
n.º 41.721/1957) e 105 (Decreto n.º 58.822/1966), da Convenção sobre Escravatura
de 1926 (Decreto n.º 58.563/1966) e da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de San José da Costa Rica - Decreto n.º 678/1992).

6 CONCLUSÃO

A análise da atividade econômica de fabricação de farinha de mandioca a partir


dos relatórios de inspeção promovidos pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel
entre 2018 e 2019, em Alagoas e Pernambuco, trouxe à tona uma série de
irregularidades trabalhistas praticadas pelos empregadores.
Quanto à mão de obra utilizada, a informalidade foi a característica mais
marcante do setor, atingindo sobretudo as mulheres da região, que desempenhavam
funções de descascadoras/raspadeiras, atividade manual, exercida em posturas não
ergonômicas e com baixo valor salarial. O trabalho infantil também foi observado em
casos pontuais.
O maquinário utilizado, sobretudo por trabalhadores homens, estava em
desacordo com normas de Saúde e Segurança do Trabalho, sujeitando os obreiros a
riscos de acidentes. Nos casos analisados, tais maquinários foram interditados em
todas as empresas fiscalizadas.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

430
Por fim, o encontro de trabalhadores submetidos a condições análogas a de
escravo, em casos pontuais, sugere que esta atividade econômica deva ser
permanentemente observada pela fiscalização trabalhista no Brasil.

REFERÊNCIAS

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Ciências Agronômicas. Botucatu, 2006. Disponível em:
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Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2018/1/art20180124-04.pdf>.
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BRASIL. Portaria MTb nº 549 de 14/06/1995. Estabelece procedimentos para a


atuação da fiscalização móvel a que se refere o § 1º do art. 3º do Regulamento da
Inspeção do Trabalho, aprovado pelo Decreto nº 55.841, de 15 de março de 1965.
Diário Oficial da União, Brasília, 16 jun 1995.

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http://www.fao.org/faostat/en/#data/QC>. Acesso em: 09 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

432
SUPERVISION OF FLOUR HOUSES IN ALAGOAS AND
PERNAMBUCO BY THE SPECIAL MOBILE INSPECTION
GROUP

ABSTRACT
Considering the recent performance of the Special Mobile
Inspection Group in inspections in the economic activity of
manioc flour production, the objective was to highlight the main
labor irregularities found in the flour houses in Alagoas and
Pernambuco. To this end, we carried out the analysis of
inspection reports produced by the Special Mobile Inspection
Group for this economic activity, in these states, in the period
from 2018 to 2019. Thus, characteristics related to the economic
activity itself were studied, highlighting the risks that it can
generate for workers. Labor infractions related to the labor used
in the activity were analyzed, indicating that there was a great
informality in employment relationships and low compliance with
items of labor legislation. Then, aspects related to infractions
related to machines for the production of cassava flour, which
resulted in interdictions, were studied. Also examined aspects
that led to the rescue, in specific cases, of workers in slavery like
conditions.

Keywords: Flour House. Labor Inspection. Labor Irregularities.


Slavery-like working conditions.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

433
MIGRANTES VENEZUELANOS E O GRUPO ESPECIAL DE
FISCALIZAÇÃO MÓVEL NO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO
AO DE ESCRAVO: PLANEJAMENTO E EXECUÇÃO DAS
OPERAÇÕES NO ESTADO DE RORAIMA

Marcela Nunes Tavares Correia1

1. Introdução. 2. A importância da visita do GEFM aos abrigos comunitários


de migrantes venezuelanos no estado de Roraima. 3. Ações articuladas com
parceiros institucionais. 4. Criação de um formulário de denúncias e o
nascimento do atual Sistema Ipê. 5. Encaminhamentos após o resgate de
trabalhadores estrangeiros. 6. Conclusão. Referências.

RESUMO
A migração venezuelana para o Brasil cresceu de forma exponencial,
especialmente a partir de 2016, devido ao agravamento da crise política,
econômica e social na Venezuela. Um expressivo número desses
migrantes chegou através da fronteira da Venezuela com o Brasil, no
estado de Roraima. Diante da complexidade e da dinâmica do fenômeno
migratório, no início do ano de 2018, a Divisão de Fiscalização para
Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), depois de aproximadamente
quatro anos da última operação do Grupo Especial de Fiscalização Móvel
(GEFM) em Roraima, planejou a primeira operação a ser realizada naquele
ano no Estado. Este trabalho busca expor o direcionamento/metodologia
utilizado nas ações do GEFM durante operações realizadas no Estado de
Roraima, com enfoque nas iniciativas que foram efetivadas acerca da
crescente migração de venezuelanos, e de que forma essas ações
auxiliaram no resgate de trabalhadores migrantes venezuelanos
submetidos à condição análoga à de escravo. Percorrer-se-á desde o
planejamento da operação até o seu desenvolvimento e procedimentos
subsequentes.
Palavras-chave: Inspeção do Trabalho. Trabalho em condição análoga à
de escravo. Roraima. Migrantes venezuelanos.

1Auditora-Fiscal do Trabalho, subcoordenadora operacional do Grupo Especial de Fiscalização Móvel


(GEFM) da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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1 INTRODUÇÃO

Com o agravamento da crise política, econômica e social na Venezuela, a


migração venezuelana para o Brasil cresceu de forma exponencial, especialmente a
partir de 2016. Conforme dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), ao final de 2019, estimava-se que mais de 4,7 milhões de
venezuelanos haviam deixado o seu país de origem e, que, destes, aproximadamente
250 mil migraram para o Brasil. Um expressivo número desses migrantes chegou
através da fronteira da Venezuela com o Brasil, no estado de Roraima.
Conforme projeções das autoridades locais e agências humanitárias, estima-
se que quase 32 mil venezuelanos morem em Boa Vista e que mais de 2,9 mil
venezuelanos estejam em situação de rua, desabrigados na capital roraimense.
Devido ao grande número de venezuelanos em Roraima, sem ter onde ficar, com
abrigos comunitários já lotados, sujeitando-se a dormir em praças, sem emprego, os
migrantes acabam aceitando trabalhar em qualquer situação e por qualquer dinheiro,
sendo que alguns empregadores, por vezes com o discurso de estarem ajudando
perante a situação de vulnerabilidade, exploram de forma aviltante a mão-de-obra
barata e farta desses trabalhadores. Há relatos de trabalhos por valores diários a R$
10,00, R$ 20,00.
No início de 2018, depois de aproximadamente quatro anos da última operação
do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) em Roraima, a Divisão de
Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), motivada sobretudo
pela conjuntura migratória veiculada que pela existência de dados substanciais sobre
exploração de trabalho análogo ao de escravo, planejou a primeira operação a ser
realizada naquele ano no estado. Em Roraima, o GEFM atuou de forma diferenciada
e procedeu a iniciativas antes não realizadas em outras operações e que se
demonstraram essenciais naquele momento.
Este trabalho busca então expor o direcionamento/metodologia utilizado nas
ações do GEFM durante operações realizadas no estado de Roraima, com enfoque
nas iniciativas que foram efetivadas acerca da crescente migração de venezuelanos,
e de que forma essas ações auxiliaram no resgate de trabalhadores migrantes
venezuelanos submetidos à condição análoga à de escravo. Assim, percorrer-se-á

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desde o planejamento da operação até o seu desenvolvimento e procedimentos
subsequentes, como por exemplo documentação necessária ao migrante, com o
principal objetivo de ser uma boa prática possível de ser replicada nas
Superintendências Regionais do Trabalho dos Estados que recebam migrantes
venezuelanos.
Entre as iniciativas realizadas pelo GEFM para as operações em Roraima,
incluem-se as visitas da equipe aos abrigos comunitários de migrantes venezuelanos,
as novas parcerias institucionais para ações articuladas e a criação de um formulário
de denúncias. A este respeito, analisar-se-á então como a Auditoria-Fiscal do
Trabalho, com atualmente 25 anos completos de experiência no combate ao trabalho
escravo, ao introduzir novos procedimentos importantes, possibilitou operações
eficientes à consecução do objetivo pelo qual age o GEFM: o resgate da dignidade
dos trabalhadores.

2 A IMPORTÂNCIA DA VISITA DO GEFM AOS ABRIGOS COMUNITÁRIOS DE


MIGRANTES VENEZUELANOS NO ESTADO DE RORAIMA

O Índice Global de Escravidão 2018 da Fundação Walk Free classificou a


Venezuela como o país com a maior incidência de escravidão moderna nas Américas.
A Fundação indicou que cerca de 174.000 pessoas estão sob a condição de
escravidão moderna no território venezuelano, traduzida em uma taxa de 5,6 por
1.000 habitantes2.
Nesse contexto, conforme a Organização Internacional para Migrações (OIM)
das Nações Unidas, há pessoas que, devido às suas condições vulneráveis, parecem
forçadas a migrar para longe de suas comunidades ou países para alcançar uma
melhor qualidade de vida e oportunidades de emprego3. Com o agravamento da crise

2 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, Fundação Walk Free e em colaboração com a


Organização Internacional Para Migrações. Estimaciones mundiales sobre la esclavitud moderna.
Trabajo forzoso y matrimonio forzoso. Ginebra: ILO. 2017. p. 27. Disponível em:
<https://cdn.walkfreefoundation.org/content/uploads/2018/08/27141430/Americas_V9_digital-
English.pdf>. Acesso em 29 jun. 2020
3 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA MIGRAÇÕES e Foreign Commonwealth Office do Reino

Unido. Dinámica de la Esclavitud Moderna en Brasil, Colombia, El Salvador, Guatemala, Haití,


Honduras, República Dominicana y Venezuela, desde la perspectiva del Reino Unido: Un
Análisis Regional, 2019.

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política, econômica e social na Venezuela, a migração venezuelana para o Brasil
cresceu de forma exponencial, especialmente a partir de 20164, e notadamente
através da fronteira da Venezuela com o Brasil, no estado de Roraima.
Em um processo de transformação especialmente no cenário demográfico e
social devido ao constante fluxo migratório, Roraima exigiu uma atenção ainda mais
especial para a nova realidade. O Governo Federal reconheceu, por meio do Decreto
nº 9.285, de 15 de fevereiro de 2018, a situação de vulnerabilidade decorrente do fluxo
migratório para o estado de Roraima, provocado pela crise humanitária na República
Bolivariana da Venezuela, e admitiu a necessidade de acolhimento humanitário dos
venezuelanos no território nacional.
Assim, foram destinados investimentos do governo federal para construção de
abrigos para receber migrantes venezuelanos, em parceria com entidades sem fins
lucrativos, religiosas e organismos internacionais. O primeiro abrigo no estado foi
inaugurado ainda em dezembro de 2017. Atualmente, há trezes abrigos em Roraima,
que acolhem cerca de seis mil venezuelanos, sendo onze na capital Boa Vista e dois
na cidade de Pacaraima, fronteira com a Venezuela.
A vulnerabilidade social a que estão submetidos os migrantes venezuelanos,
ao chegarem a Roraima, provoca, por vezes, a aceitação de trabalhos sem a
estipulação de salários ou, ainda que estipulados, os valores ficam abaixo do valor
mínimo diário, por exemplo. Mais, o desconhecimento sobre os seus direitos em um
novo país acaba por aumentar a vulnerabilidade desses migrantes. Nesse contexto, a
Inspeção do Trabalho deve atuar para evitar a exploração de trabalhos em condições
análogas às de escravo.
Diante da complexidade e da dinâmica do fenômeno migratório no estado de
Roraima, a DETRAE, no início do ano de 2018, fez um planejamento para que uma
parte da equipe do GEFM, se deslocasse antes do início da operação, no mês de abril,
com o objetivo de percorrer os abrigos comunitários que recebiam migrantes
venezuelanos; nesse caso, sete auditores fizeram esse trabalho inicial no estado.

4SIMÕES, Gustavo da Frota Simões (Org.). Perfil sociodemográfico e laboral da imigração


venezuelana no Brasil. Curitiba: CRV, 2017. Disponível em:
<https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/publicacoes/Perfil_Sociodemografico_e_laboral_venezuel
anos_Brasil.pdf>. Acesso em 29 jun. 2020

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À época, existiam seis abrigos, conforme tabela abaixo, sendo cinco na capital
Boa Vista e um abrigo na cidade de Pacaraima, cidade fronteiriça com a Venezuela;
todos os abrigos foram visitados pela equipe do GEFM.

Tabela 1 (do GEFM): abrigos comunitários de migrantes venezuelanos em Roraima (dados


de abril/2018)
Abrigo Endereço Total de
abrigados5
Abrigo Jardim Av. Carlos Pereira de Melo, nº 999, Bairro Jardim Floresta, Boa 590
Floresta Vista
Abrigo Hélio Campos Rua HC 4, nº 1633, Bairro Senador Hélio Campos, Boa Vista 250
Abrigo São Vicente Rua Araraquara, nº 704, Bairro São Vicente, Boa Vista 290
Abrigo Tancredo Rua Pastor Fernando Granjeiro, nº 49, Bairro Caimbé, Boa 332
Neves Vista
Abrigo Pintolândia Rua Alípio Freire de Leme, nº 175, Bairro Pintolândia, Boa 717
Vista
Abrigo Galpão Azul Travessa Parima, SN, Bairro Centro, Pacaraima 498

Nos abrigos comunitários, a equipe do GEFM se reuniu com os responsáveis


de organizações sociais e do ACNUR. Primeiramente, a equipe do GEFM era
apresentada e era exposto o objetivo do trabalho do grupo e da DETRAE no combate
ao trabalho análogo ao de escravo. Para isso, era feito um breve histórico do trabalho
do GEFM e ainda a exposição do conceito de trabalho análogo ao de escravo e de
suas modalidades. A partir de então, a equipe detalhava os itens do formulário para
colhimento de denúncias, posteriormente descrito em tópico específico, que seria
entregue aos responsáveis para que deixassem à disposição dos migrantes
venezuelanos, auxiliando-os no preenchimento. O objetivo primordial da reunião inicial
era despertar os olhares dos responsáveis pelos abrigos comunitários para a
importância do tema trabalho análogo ao de escravo e, consequentemente, que
houvesse esse repasse para os venezuelanos.
No que tange ao repasse do tema trabalho análogo ao de escravo para os
migrantes venezuelanos, é imprescindível ressaltar a importância do engajamento dos
atores sociais que possuíam contato direto e afinado com os abrigados. Nesse ponto,

5BRASIL. Fluxo Migratório de Venezuelanos. Dados de abril de 2018, fonte Coordenador


operacional, conforme apresentação do Ministério de Desenvolvimento Social. Disponível em:
<http://www.mds.gov.br/cnas/pautas-atas-e-apresentacoes/apresentacoes/apresentacao-imigrantes-
assistencia-social-pela-casa-civil-na-reuniao-do-cnas.pdf> Acesso em 5 jun. 2020

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imagina-se a dificuldade de reconhecimento pelos venezuelanos até dos mais simples
direitos trabalhistas assegurados pela legislação brasileira, vez que há uma
expressiva parcela de cidadãos brasileiros que declara desconhecer totalmente
(7,8%) ou ter baixo conhecimento (35,1%), por exemplo, do texto da Constituição
Federal brasileira, conforme pesquisa feita pelo DataSenado6.
Além dos objetivos anteriores, a visita aos abrigos comunitários permitiu à
equipe do GEFM entender a situação dos migrantes venezuelanos e analisar, in loco,
o vínculo entre a vulnerabilidade social e a possível ocorrência de exploração desses
trabalhadores abaixo de patamares mínimos de dignidade. Quando se conhecem os
impactos sociais e econômicos na vida dos venezuelanos que recorreram à migração,
os níveis de conscientização acerca do trabalho realizado pela Auditoria-Fiscal do
Trabalho se multiplicam.

3 AÇÕES ARTICULADAS COM PARCEIROS INSTITUCIONAIS

A atuação interinstitucional do GEFM é um dos pilares de sucesso da política


pública de combate ao trabalho escravo no Brasil. A Auditoria-Fiscal do Trabalho, que
coordena as operações do Grupo Móvel, reconhece a importância das ações
articuladas com as instituições já historicamente parceiras ao longo dos 25 anos de
atuação do GEFM, como a Polícia Rodoviária Federal (PRF), a Polícia Federal (PF),
o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público Federal (MPF) e a
Defensoria Pública da União (DPU).
A OIM, em estudo7 realizado em 2019 com o objetivo de contribuir para o
desenvolvimento de políticas e programas contra a escravidão moderna,
especificamente nos países Brasil, Colômbia, El Salvador, Haiti, Honduras,
Guatemala, República Dominicana e Venezuela, considera que, desses países,
apenas o Brasil desenvolveu ações de alto nível contra o trabalho escravo, com a

6 Pesquisa DataSenado mostra que poucos conhecem realmente a Constituição. Disponível em:
<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/10/25/pesquisa-datasenado-mostra-que-
poucos-conhecem-realmente-a-constituicao-do-pais> Acesso em 5 jun. 2020.
7 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA MIGRAÇÕES e Foreign Commonwealth Office do Reino

Unido. Dinámica de la Esclavitud Moderna en Brasil, Colombia, El Salvador, Guatemala, Haití,


Honduras, República Dominicana y Venezuela, desde la perspectiva del Reino Unido: Un
Análisis Regional, 2019.

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participação determinada do antigo Ministério do Trabalho e do Ministério da
Economia no atual governo. Para a OIM, destacam-se a atuação do Grupo Especial
de Fiscalização Móvel, citado como “grupo de elite”, e a existência do Cadastro de
Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de
escravo.
Ainda nesse estudo, a OIM faz recomendações para fortalecer as políticas
públicas em cada um dos países supracitados, de forma a promover a
responsabilidade na proteção e garantia dos direitos dos trabalhadores para eliminar
a escravidão moderna e o trabalho forçado. Para tanto, considera a consolidação de
um espaço para o intercâmbio da experiência do GEFM, que atua no Brasil para a
investigação e repressão de casos de escravidão moderna, a fim de apoiar o
desenvolvimento de iniciativas similares nos países da região, principalmente na
Colômbia e na Venezuela.
Considerando o histórico de sucesso dessa atuação interinstitucional realizada
pelo GEFM, coube à Inspeção do Trabalho a ampliação das parcerias a fim de garantir
a efetividade das ações no combate ao trabalho análogo ao de escravo em Roraima.
Com esse objetivo, a coordenadora do GEFM Andréia Donin viajou para Brasília/DF,
no início do mês de abril de 2018, antes da primeira operação em Roraima, e
participou de reuniões, juntamente com o chefe da DETRAE Maurício Krepsky
Fagundes e com o chefe substituto Matheus Alves Viana, para tratar de assuntos
inerentes às ações fiscais a serem realizadas no estado de Roraima, além de assuntos
referentes aos desdobramentos dessas ações, como concessão de residência
permanente no Brasil a trabalhadores estrangeiros vítimas de trabalho análogo ao de
escravos e tráfico de pessoas, entre outros. As reuniões foram com a Diretora da
Secretaria Nacional de Assistência Social e Departamento de Proteção Social do, à
época, Ministério do Desenvolvimento Social – MDS, Mariana de Sousa Machado
Neris, e um representante do MDS, Francisco Coullanges Xavier, que posteriormente
participou de uma ação8 e atuou na assistência aos trabalhadores resgatados pelo
GEFM; com o representante do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), Luiz Alberto

8Francisco Coullanges Xavier gravou vídeo sobre a sua atuação no GEFM, para a série especial de
25 anos do Grupo. Disponível em: < encurtador.com.br/eFVZ3> Acesso em 25 jun. 2020.

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Matos dos Santos; com o representante do ACNUR, Paulo Sergio de Almeida; e, com
a representante da Polícia Rodoviária Federal, Augusta Tamasauskas9.
Além das parcerias com os órgãos supracitados, o GEFM teve a participação
direta nas operações, a partir de 2018, de dois professores de espanhol da
Universidade Federal de Roraima (UFRR). Fabrício Paiva Mota10, Professor do
Magistério Superior e Tradutor Público e Intérprete Comercial da Junta Comercial de
Roraima, e Eliabe Procópio, Professor do Magistério Superior, auxiliaram no diálogo
com os vários trabalhadores venezuelanos encontrados durante as operações do
GEFM. Ainda, nas ações em que foram constatadas condições análogas à de
escravo, os professores atuaram, junto aos Auditores-Fiscais do Trabalho, como
intérpretes para a coleta de declarações dos trabalhadores, para a explicação sobre
a legislação trabalhista brasileira e para o esclarecimento sobre os direitos que os
venezuelanos possuíam como trabalhadores resgatados pelo Grupo Móvel, ainda que
na condição de estrangeiros.
Nas três operações que se sucederam em Roraima (abril, maio e junho de
2018), foram resgatados pelo GEFM nove venezuelanos. Após a efetivação de
resgates de trabalhadores venezuelanos, a equipe do GEFM buscou ainda articulação
com a Polícia Federal, através da Superintendência Regional em Roraima, para que
as solicitações de refúgio dos trabalhadores resgatados que estavam agendadas ou
que ainda não tivessem sido protocoladas fossem entregues com prioridade, em razão
da situação sui generis de vítimas de trabalho análogo ao de escravo. Ainda, em
parceria com a Receita Federal, os trabalhadores conseguiram um número de CPF e,
posteriormente, tiveram a Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS emitida
pela Superintendência Regional do Trabalho em Roraima (SRTb/RR).
Tendo em vista a vulnerabilidade dos trabalhadores resgatados e a
necessidade de evitar possíveis represálias por causa dos resgates, foi realizada outra
reunião do GEFM com o ACNUR, na qual foi solicitada a possibilidade de prioridade
para o processo de “interiorização” desses trabalhadores resgatados. Posteriormente,
foi realizada a interiorização dos trabalhadores resgatados pelo GEFM.

9 Augusta Tamasauskas gravou vídeo sobre a atuação da PRF no GEFM, para a série especial de 25
anos do Grupo. Disponível em: < encurtador.com.br/gtA07> Acesso em 25 jun. 2020.
10 Fabrício Paiva Mota gravou vídeo sobre a sua atuação no GEFM, para a série especial de 25 anos

do Grupo. Disponível em: <encurtador.com.br/acmo7> Acesso em 25 jun. 2020.

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Organizado pela Casa Civil da Presidência da República e pelo ACNUR, o
processo de interiorização desloca imigrantes venezuelanos que desejam ir para
outros estados brasileiros. “O objetivo consiste em oferecer oportunidades de inserção
socioeconômica, além de diminuir a pressão sobre os serviços públicos do estado de
Roraima”11. Para a pesquisadora do Núcleo de Estudos da População (Nepo) da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Rosana Baeninger, a partir da
possibilidade de proporcionar mais garantias de direito aos imigrantes, “as instituições
em conjunto tentarão uma inserção laboral que acaba sempre tentando proteger de
condições análogas ao trabalho escravo.” Nesse ponto, é que a pesquisadora destaca
a importância da presença do Estado nessas migrações12. Dados do Subcomitê
Federal para interiorização dos imigrantes indicam que, de abril de 2018 a maio de
2020, 37.618 venezuelanos foram beneficiários do processo13.
Em outra operação planejada pelo GEFM e ocorrida em maio de 2019, houve
a atuação de uma nova parceria institucional, dessa vez, com a OIM14, que auxiliou
no acolhimento de um casal de migrantes venezuelanos resgatados e da família que
morava com eles, totalizando oito pessoas. O ACNUR providenciou o abrigo aos
resgatados e às famílias. Ainda, a DETRAE, através do Ofício SEI nº
8/2019/DETRAE/CGFIT/SIT/STRAB/SEPRT-ME, de 22 de maio de 2019, solicitou,
para ACNUR, a viabilização de interiorização das vítimas e do respectivo grupo
familiar, uma vez que os migrantes demonstraram interesse e, principalmente, devido
ao “grande risco de vida dessas pessoas, em razão do recebimento de ameaças do
ex-empregador para com as pessoas abaixo relacionadas, todas presenciadas pela
equipe de fiscalização”. A solicitação foi atendida e os oito migrantes venezuelanos
foram interiorizados.

11 Ministério implementa projeto-piloto voltado à interiorização de imigrantes venezuelanos no Brasil.


Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/maio/ministerio-implementa-
projeto-piloto-voltado-a-interiorizacao-de-imigrantes-venezuelanos-no-brasil> Acesso em 10 jun.
2020.
12 AGÊNCIA BRASIL. Processo interiorização de venezuelanos ajuda na garantia de direitos.

Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-12/processo-


interiorizacao-de-venezuelanos-ajuda-na-garantia-de> Acesso em 10 jun. 2020.
13 R4V. Plataforma de coordinación para refugiados y migrantes de Venezuela. Informe de

Interiorização – maio de 2020. Subcomitê Federal para interiorização dos imigrantes. Operação
Acolhida. Disponível em: <https://r4v.info/es/documents/download/72086> Acesso em 16 jun. 2020
14 A representante da Organização Internacional para Migrações (OIM) das Nações Unidas, Natália

Maciel, gravou vídeo sobre a parceria institucional da OIM no GEFM, para a série especial de 25
anos do Grupo. Disponível em: < encurtador.com.br/sJSY4> Acesso em 26 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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A partir dessas ações articuladas, tornou-se possível a importante participação
da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), através dos Auditores-Fiscais do
Trabalho do GEFM, junto ao Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), Irmãs
Scalabrinianas, e com apoio da Fundação Avina, OIM, ACNUR e o Comitê Nacional
para Refugiados (CONARE) na elaboração de uma cartilha15 como guia de informação
sobre os direitos trabalhistas aos imigrantes e refugiados, em versões disponíveis em
português e em espanhol. Um dos objetivos gerais da cartilha consiste em prevenir a
ocorrência de novos casos de migrantes vítimas de trabalho escravo.
Como boa prática de sucesso utilizada pelo GEFM nas operações em
Roraima, a ampliação da articulação entre a Inspeção do Trabalho e as instituições
mencionadas oportunizou contato posterior, acerca de temas sobre trabalho infantil,
entre a Auditora-Fiscal do Trabalho Thais Castilho, lotada na Superintendência
Regional do Trabalho em Roraima, e o representante do MDS, Francisco Coullanges
Xavier, que participou da primeira ação do GEFM no estado, em 2018.
Após a experiência do GEFM em Roraima, o modelo serviu ainda para atuação
da Inspeção do Trabalho em outras regionais. A DETRAE foi demandada, para
repasse de procedimentos, por Auditores-Fiscais do Trabalho da Superintendência
Regional do Trabalho na Bahia, que resgataram nove trabalhadores venezuelanos
submetidos a condições análogas às de escravo (Operação 40/2019). Os
procedimentos repassados abrangiam, por exemplo, emissão de CTPS para
trabalhador estrangeiro e desdobramentos decorrentes do resgate, tais como os
procedimentos para regularização migratória e solicitação de residência permanente.
Esses itens serão abordados no tópico 5 desse texto a fim de que possa auxiliar a
Inspeção do Trabalho em novas operações, que envolvam o resgate de trabalhadores
estrangeiros.
Da mesma forma, em operação ocorrida em junho de 2020, a experiência do
GEFM foi repassada à Inspeção do Trabalho da Superintendência Regional do
Trabalho em Rondônia, que resgatou em situação análoga à de escravos uma família
de venezuelanos, sendo cinco pessoas, incluindo uma criança, em uma fazenda de

15ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR). Guia de


informação sobre trabalho aos imigrantes refugiados. Disponível em:
<https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/04/Cartilha-ESPANHOL-PORTUGUES-
MIOLO_V4-WEB.pdf> Acesso em 5 jun. 2020

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

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cultivo de maracujá16. Nesse caso, a Auditoria-Fiscal do Trabalho utilizou também a
cartilha anteriormente citada, sobre os direitos trabalhistas aos imigrantes e
refugiados.

4 CRIAÇÃO DE UM FORMULÁRIO DE DENÚNCIAS E O NASCIMENTO DO ATUAL


SISTEMA IPÊ

Antes de 2018, a última operação realizada pelo GEFM no estado de Roraima


havia sido em outubro de 2014. Em histórico minucioso dos casos de trabalho análogo
ao de escravo em Roraima, Fagundes17 (2019) relata que, nos anos 2015, 2016 e
2017, foram realizadas operações coordenadas pelos Auditores-Fiscais do Trabalho
da Superintendência Regional do Trabalho em Roraima, com resgate de
trabalhadores em condição análoga à de escravo. O primeiro resgate de trabalhadores
estrangeiros em Roraima ocorreu em 2017, ocasião em que foram resgatados 4
(quatro) trabalhadores venezuelanos e 2 (dois) cubanos.
Em abril de 2018, depois de aproximadamente quatro anos da última operação
do GEFM em Roraima, a DETRAE, ao considerar a conjuntura migratória, planejou a
primeira operação a ser realizada naquele ano no estado. Ressalte-se que, nesse
momento, havia apenas nove denúncias recebidas pela DETRAE antes da operação
do GEFM, sendo que “nenhuma delas possuía elementos suficientes para fiscalização
ou relatos de graves violações de direitos humanos que pudessem, ainda que em
tese, caracterizar uma forma moderna de escravidão” (FAGUNDES, 2019, p. 306).
A equipe do GEFM considerou, diante do novo cenário existente, que era
necessário despertar o interesse para pontos importantes sobre o tema de combate
ao trabalho escravo a fim de que fosse possível identificar mais claramente as
violações aos trabalhadores. Revelou-se então a necessidade de criação de um

16 Ação da Inspeção do Trabalho resgata família de venezuelanos em Rondônia. Disponível em:


<https://www.gov.br/trabalho/pt-br/assuntos/noticias/trabalho/ultimas-noticias/acao-da-inspecao-do-
trabalho-resgata-familia-de-venezuelanos-em-rondonia> Acesso em 25 jun. 2020
17 FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração venezuelana e a exploração de trabalho análogo ao

de escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, Brasília, 3 Ed, p.


293-326, 2019. Disponível em:
<https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=issue&op=view&path%5B%
5D=3&path%5B%5D=Revista%20Completa%203>. Acesso em 5 jun. 2020

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formulário em plataforma digital, a fim de que os agentes sociais envolvidos direta ou
indiretamente com o tema pudessem ter conhecimento das informações fundamentais
no colhimento de denúncias. Além disso, ao implementar uma forma mais proveitosa
de obter informações acerca de possíveis situações de trabalho análogo ao de
escravo, buscou-se encontrar casos mais relevantes e que demandassem pronta
intervenção da Inspeção do Trabalho.
Em tópico “Para elaboração das ações fiscais”, o “Manual de recomendações
de rotinas de prevenção e combate ao trabalho escravo de imigrantes” (Brasília,
2013)18 prevê que:

A fim de garantir a eficácia do processo de triagem, a denúncia deve ser a


mais bem instruída possível, com identificação e endereço do local de
trabalho, local de alojamento; sempre com o máximo de detalhes quanto à
localização, formas de acesso, pontos de referência; identificação do
denunciante e todos os meios possíveis de contato; descrição dos fatos:
forma de contratação, atividades desenvolvidas; período em atividade,
número de trabalhadores prejudicados (homens, mulheres e crianças, se
houver); condições de trabalho, condições de alojamento; direitos frustrados;
ocorrência de violência ou assédio físico ou moral sofrido pelos
trabalhadores; salário contratado e salário efetivamente recebido;
Identificação dos responsáveis: pela contratação, pela supervisão das
atividades, pelo controle dos trabalhadores, pelo pagamento dos salários e
por eventual violência ou assédio praticados contra os trabalhadores;
informações sobre o empreendimento: atividade econômica, cadeia produtiva
onde está inserido, relacionamento com outros empreendimentos ou
empregadores. Ainda, na medida do possível, a denúncia deve ser
acompanhada de documentos que guardem relação com o empreendimento
denunciado e/ou com a situação descrita.

O formulário criado pelo GEFM foi disponibilizado em plataforma digital feita


pelo Auditor-Fiscal do Trabalho João Paulo Cadore Flores, integrante efetivo do
GEFM, através do link “http://bit.ly/denunciatrabalhoescravo”. Além do formato
eletrônico, o formulário poderia ser preenchido na forma impressa e encaminhado por
correio eletrônico ou diretamente para o endereço da DETRAE em Brasília/DF. Nele,
ainda constavam os telefones para contato com a DETRAE e a observação de que a
denúncia e o denunciante seriam mantidos em sigilo. O roteiro a ser preenchido no
formulário era o seguinte:

18BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. Manual de Recomendações


de Rotinas de Prevenção e Combate ao Trabalho Escravo de Imigrantes: Secretaria de Direitos
Humanos – SDH - Brasília, 2013. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/wp-
content/uploads/2013/10/Manual-Trabalho-Escravo-Imigrantes.pdf> Acesso em 10 jun. 2020

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Formulário 1: formulário criado pelo GEFM
DADOS DO DENUNCIANTE
Nome:
Endereço:
Telefone (se houver telefone para contato com o denunciante em caso de esclarecimento de
dúvidas):
Nacionalidade:

DADOS DO CONTRATO DE TRABALHO


Quem é o patrão da vítima?
A vítima ainda está trabalhando?
Há quanto tempo está no serviço?
Qual a atividade?
Qual a previsão de fim da atividade?
Há outros trabalhadores na mesma situação da vítima? Quantos?
Quem contratou a vítima? (patrão, gato, empreiteiro, gerente)
Alguém teve documentos pessoais pegos e não devolvidos?
A vítima recebeu o pagamento combinado?
Qual a frequência dos pagamentos?
A vítima ou outros trabalhadores estão devendo para o patrão ou gerente? Por que e qual o valor?
A que horas começa e a que horas termina, em média, a jornada de trabalho?
Há violência contra os trabalhadores?

LOCALIZAÇÃO DO ESTABELECIMENTO
Qual o endereço e nome da empresa ou da fazenda?
Em que estado e município se localiza?
Qual o nome do proprietário?

PARA ESTABELECIMENTO EM ÁREAS RURAIS


Qual a distância do centro urbano mais próximo?
Qual o sentido da estrada a seguir a partir do primeiro ponto de saída (de qual cidade para qual
cidade?)?
Qual a distância percorrida em ramais e/ou vias acessórias ao sair da estrada principal?
Quais os pontos de referência, como pontes, casas, vilas, mata burros, outras fazendas?

CONDIÇÕES AMBIENTAIS
ALOJAMENTO

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

446
A vítima dorme no estabelecimento ou em algum outro local fornecido pelo patrão?
Se sim, como é a estrutura do local para dormir? (tem chão, teto, paredes?)
Tem quartos para todos os trabalhadores?
O patrão fornece camas ou redes para os trabalhadores?

ALIMENTAÇÃO
Onde são guardados os alimentos?
Como é o local usado para preparar a comida?
Onde são tomadas as refeições?

INSTALAÇÕES SANITÁRIAS E ÁGUA


Onde os trabalhadores tomam banho?
Onde os trabalhadores fazem as suas necessidades (de excreção)?
De onde vem a água usada para beber?
Onde é armazenada a água?

EQUIPAMENTOS DE PROTEÇÃO
O patrão fornece os equipamentos de proteção individual, como botas, máscaras, perneiras?
Cobra por isso?

Destacam-se as informações constantes no tópico “Para estabelecimento em


áreas rurais” do formulário, posto que a falta e/ou o não detalhamento dessas
informações podem significar horas de deslocamento de um grupo composto,
normalmente, por quatro a cinco viaturas ou até uma possível não localização do
estabelecimento. Em alguns casos, há ainda a possibilidade de que a notícia sobre a
fiscalização se espalhe frente à necessidade de se obter informações com os
moradores locais acerca do caminho a ser percorrido até o estabelecimento.
O formulário criado foi disponibilizado na forma impressa na Superintendência
Regional do Trabalho em Roraima, além de ter sido distribuído nos abrigos
comunitários para migrantes venezuelanos, a partir das visitas do GEFM. A
elaboração e a divulgação do formulário, bem como os contatos estabelecidos pelo
GEFM no estado de Roraima, foram fundamentais para a realização de novas
operações, nas quais também foram resgatados trabalhadores em condições
análogas às de escravo.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

447
Além dos resultados satisfatórios obtidos em Roraima, a criação do formulário
revelou a necessidade de avançar na construção de uma plataforma de denúncias.
Nesse contexto, este ano, em marco histórico dos 25 anos do GEFM, a Subsecretaria
de Inspeção do Trabalho (SIT), por meio da DETRAE, e em importante parceria com
a OIT, desenvolveu e lançou plataforma online para recebimento de denúncias de
trabalho escravo contemporâneo: o Sistema Ipê. A plataforma traz agilidade na
comunicação da sociedade com a fiscalização e foi divulgada em notícia do site do
Ministério da Economia.19
O Sistema Ipê pode ser acessado por qualquer pessoa através do endereço
eletrônico “https://ipe.sit.trabalho.gov.br”. Conforme Nota Técnica SEI nº
21644/2020/ME, elaborada pela DETRAE, processo SEI nº 19966.100436/2020-70:

A plataforma é simples e intuitiva e conduzirá o usuário ao preenchimento de


um formulário com diversas perguntas sobre a situação fática a ser
denunciada, de forma que esta informação possa ser adequadamente tratada
posteriormente. O Sistema Ipê, em seu modo de gestão, trabalha com
algoritmos que permitem classificar as informações recebidas previamente,
facilitando o trabalho de inteligência e planejamento. O Sistema Ipê permitirá
maior agilidade na comunicação direta entre a sociedade e a DETRAE,
promovendo maior eficiência no trabalho de gestão da Divisão e, em última
instância, maior eficácia na importante política pública de combate ao
trabalho escravo contemporâneo. Está sendo implantado um acesso
exclusivo a parceiros institucionais que também recebem denúncias de
trabalho escravo, no qual órgãos e instituições como o MPT, a PF e a
Comissão Pastoral da Terra (CPT) poderão cadastrar as denúncias recebidas
e acompanhar o tratamento dado a elas. No caso de terem sido objeto de
fiscalização, poderão acessar os resultados da ação fiscal.

5 ENCAMINHAMENTOS APÓS O RESGATE DE TRABALHADORES


ESTRANGEIROS

Após o resgate de trabalhadores venezuelanos nas operações em Roraima, o


GEFM realizou os procedimentos previstos na legislação brasileira. Como meio de
auxiliar a Inspeção do Trabalho em novas operações, que envolvam o resgate de

19Aos 25 anos, Grupo Especial de Fiscalização Móvel do trabalho lança novo sistema para
denúncias. Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2020/maio/aos-25-
anos-grupo-especial-de-fiscalizacao-movel-do-trabalho-lanca-novo-sistema-para-denuncias> Acesso
em 25 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

448
trabalhadores estrangeiros de quaisquer nacionalidades, a seguir serão dispostas as
providências a serem realizadas.
A constatação de trabalhadores submetidos à condição análoga à de escravo
ensejará a adoção de procedimentos previstos no art. 2º-C, §§ 1º e 2º, da Lei n.º 7.998,
de 11 de janeiro de 1990, cabendo a Inspeção do Trabalho o resgate dos
trabalhadores que estiverem submetidos a essa condição e a emissão dos respectivos
requerimentos de Seguro-Desemprego do Trabalhador Resgatado, conforme art. 16
da Instrução Normativa SIT nº 139, de 22 de janeiro de 2018. Conforme art. 3º da
referida IN, os procedimentos estipulados devem ser observados pelo Auditor-Fiscal
do Trabalho, independentemente da atividade laboral, seja o trabalhador nacional ou
estrangeiro, inclusive quando envolver a exploração de trabalho doméstico ou de
trabalho sexual. In verbis, o art. 17 da IN nº 139/2018:

Art. 17. O Auditor-Fiscal do Trabalho, ao constatar trabalho em condição


análoga à de escravo, em observância ao art. 2º-C da Lei n.º 7.998, notificará
por escrito o empregador ou preposto para que tome, às suas expensas, as
seguintes providências:
I - A imediata cessação das atividades dos trabalhadores e das circunstâncias
ou condutas que estejam determinando a submissão desses trabalhadores à
condição análoga à de escravo;
II - A regularização e rescisão dos contratos de trabalho, com a apuração dos
mesmos direitos devidos no caso de rescisão indireta;
III - O pagamento dos créditos trabalhistas por meio dos competentes Termos
de Rescisão de Contrato de Trabalho;
IV - O recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS e da
Contribuição Social correspondente;
V - O retorno aos locais de origem daqueles trabalhadores recrutados fora da
localidade de prestação dos serviços;
VI - O cumprimento das obrigações acessórias ao contrato de trabalho
enquanto não tomadas todas as providências para regularização e
recomposição dos direitos dos trabalhadores.

Na constatação de submissão de trabalhadores estrangeiros em situação


migratória irregular a trabalho análogo ao de escravo e/ou tráfico de pessoas, além
das providências elencadas, o Auditor-Fiscal do Trabalho deverá realizar
procedimentos para regularização migratória e solicitação de residência permanente,
conforme determina o art. 24 da IN nº 139/2018:

Art. 24. Os trabalhadores estrangeiros em situação migratória irregular que


tenham sido vítimas de tráfico de pessoas e/ou de trabalho análogo ao de
escravo deverão ser encaminhados para concessão de sua residência
permanente no território nacional, de acordo com o que determinam art. 30

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

449
da Lei n.º 13.445, de 24 de maio de 2017, e a Resolução Normativa n.º 122,
de 3 de agosto de 2016, do Conselho Nacional de Imigração - CNIg.
Parágrafo Único. O encaminhamento será efetuado mediante memorando da
Chefia de Fiscalização à Divisão de Fiscalização para Erradicação do
Trabalho Escravo da Secretaria de Inspeção do Trabalho (DETRAE),
devidamente instruído com pedido de autorização imediata de residência
permanente formulado pelo Auditor-Fiscal do Trabalho responsável pelo
resgate. A DETRAE, por sua vez, oficiará o Ministério da Justiça e Cidadania
requerendo deferimento do pedido de autorização.

A autorização de residência, nesses casos, está ainda disciplinada no art. 158


do Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017, que regulamenta a Lei de Migração
(Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017) e prevê:

Art. 158. A autorização de residência poderá ser concedida à vítima de:


I - tráfico de pessoas;
II - trabalho escravo; ou
III - violação de direito agravada por sua condição migratória.
§ 1º A autorização de residência com fundamento no disposto neste artigo
será concedida por prazo indeterminado.
§ 2º O requerimento previsto neste artigo poderá ser encaminhado
diretamente ao Ministério da Justiça e Segurança Pública pelo Ministério
Público, pela Defensoria Pública ou pela Auditoria Fiscal do Trabalho, na
forma estabelecida em ato conjunto dos Ministros de Estado da Justiça e
Segurança Pública e do Trabalho, consultados os demais Ministérios
interessados, o qual disporá sobre outras autoridades públicas que poderão
reconhecer a situação do imigrante como vítima, nos termos estabelecidos
no caput .
§ 3º A autoridade pública que representar pela regularização migratória das
vítimas a que se refere o caput deverá instruir a representação com
documentação que permita identificar e localizar o imigrante.
§ 4º O beneficiário da autorização de residência concedida a vítima a que se
refere o caput deverá apresentar anuência ao requerimento ofertado pela
autoridade pública.

Ainda, foi publicada no Diário Oficial da União em 24 de março de 2020 a


Portaria nº 87 do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que dispõe sobre
a concessão e os procedimentos de autorização de residência à pessoa que tenha
sido vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direito
agravada por sua condição migratória. Os documentos necessários para requerimento
de autorização de residência estão elencados no art. 5º da referida Portaria:

Art. 5º O requerimento de autorização de residência deverá ser instruído com


os seguintes documentos:
I - formulário contendo dados de:
a) identificação;
b) filiação;
c) local e data de nascimento;

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

450
d) nacionalidade; e
e) indicação de endereço e demais meios de contato.
II - passaporte ou outro documento oficial com foto, expedido pelo País de
origem, que comprove a identidade e a nacionalidade, ainda que a data de
validade esteja expirada;
III - duas fotos 3x4;
IV - certidão de nascimento ou de casamento ou certidão consular, desde que
não conste a filiação nos documentos de que trata o inciso II;
V - declaração do imigrante, sob as penas da lei, de ausência de
antecedentes criminais no Brasil e no exterior, nos últimos cinco anos
anteriores à data de requerimento de autorização de residência;
VI - cópia de inquérito policial, relatório de ação fiscal, parecer técnico ou
denúncia em ação penal, contendo informações suficientes para
caracterização da situação do imigrante como vítima de alguma das condutas
previstas nos incisos do art. 3º; e
VII - declaração de anuência do beneficiário da autorização de residência,
conforme o Anexo II.
Parágrafo único. Para fins de cumprimento do disposto no inciso I do caput,
deve-se utilizar o modelo que consta do Anexo I desta Portaria.

A seguir, conforme previsão dos Anexos da Portaria MJSP nº 87/2020, os


modelos de formulário (inciso I), de declaração de anuência (inciso VII), além de
declaração de ausência de antecedentes criminais (inciso V), para instrução do
requerimento de autorização de residência:

Formulário 1: Formulário de Identificação do Imigrante e Dados do Contato

FORMULÁRIO DE IDENTIFICAÇÃO DO IMIGRANTE E DADOS DE CONTATO

IDENTIFICAÇÃO
Nome (s): __________________________________________________________________
Sobrenome (s): ______________________________________________________________
Gênero: ( ) Feminino ( ) Masculino ( ) Outro
Nome social (se aplicável) ____________________________________ (Conforme o Decreto nº 8.727, de 28
de abril de 2016)
Documento de identificação nº ___________________ Tipo de documento ______________
Filiação 1: ___________________________________________________________________
Gênero: ( ) Feminino ( ) Masculino ( ) Outro
Filiação 2: ___________________________________________________________________
Gênero: ( ) Feminino ( ) Masculino ( ) Outro
Data de nascimento: ____/_____/_______
Estado Civil: ( ) Solteiro(a) ( ) Casado (a) ( ) União Estável ( ) Separado (a) ( ) Viúvo (a)
Local de nascimento: País: ____________, cidade ______________________
Nacionalidade: ______________________________________________ (Caso possua mais de uma
nacionalidade, liste todas)

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

451
Último endereço no país de nacionalidade ou residência habitual:
________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________

DADOS DE CONTATO

Telefones: _____________________________________________________________________
E-mail: _______________________________________________________________________
(preenchimento obrigatório)
Endereço atual no Brasil:
________________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________

DECLARO, sob as penas da lei, para fins de regularização migratória no Brasil, a veracidade das informações
aqui prestadas, estando ciente que eventuais comunicações e notificações serão encaminhadas,
preferencialmente, para o endereço eletrônico informado, bem como do dever de atualização cadastral sempre
que houver alteração de dados pessoais e meios de contato.

Na oportunidade, informo que o presente termo foi lido e traduzido para o meu idioma nativo pelo intérprete ad
hoc ________________________________ (qualificação completa do intérprete, caso necessário).

E por ser verdade, firmo a presente.

(Local) _______________________, (data) __/____/____

__________________________________________________
(Assinatura do Imigrante)

__________________________________________________
(Assinatura do Intérprete, se houver)

DECLARAÇÃO DE ANUÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA

Eu, (nome)____________________________________________, (nacionalidade)____________________,


(especificar o tipo de documento)______________,
(número)____________________,endereço__________________________________________, endereço
eletrônico (e-mail) ____________________ DECLARO, sob as penas da lei, para fins de regularização
migratória no Brasil, que compreendo perfeitamente o conteúdo do presente documento e que estou de acordo
com o requerimento de autorização de residência fundamentada no art. 158 do Decreto nº 9.199, de 20 de
Novembro de 2017.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

452
Na oportunidade, informo que o presente termo foi lido e traduzido para o meu idioma nativo pelo intérprete ad
hoc ________________________________ (qualificação completa do intérprete, caso necessário).

E por ser verdade, firmo a presente.

(Local) _______________________, (data) __/____/____

__________________________________________________
(Assinatura do Imigrante)

__________________________________________________
(Assinatura do Intérprete, se houver)

DECLARAÇÃO DE AUSÊNCIA DE ANTECEDENTES CRIMINAIS

Eu, (nome)____________________________________________, (nacionalidade)____________________,


(especificar o tipo de documento)______________,
(número)____________________,endereço__________________________________________, endereço
eletrônico (e-mail) ____________________ DECLARO, sob as penas da lei, para fins de regularização
migratória no Brasil, que compreendo perfeitamente o conteúdo do presente documento e que não possuo
antecedentes criminais no Brasil e no exterior, nos últimos cinco anos anteriores à data do requerimento de
autorização de residência.

Na oportunidade, informo que o presente termo foi lido e traduzido para o meu idioma nativo pelo intérprete ad
hoc ________________________________ (qualificação completa do intérprete, caso necessário).

E por ser verdade, firmo a presente.

(Local) _______________________, (data) __/____/____

__________________________________________________
(Assinatura do Imigrante)

__________________________________________________
(Assinatura do Intérprete, se houver)

Quanto às operações em Roraima, é importante ressaltar que, no caso de


venezuelanos que não haviam finalizado a solicitação do pedido de refúgio, os quais
tinham apenas o protocolo para dar entrada nesse pedido, o GEFM encaminhava-os
para a Polícia Federal para a concretização dessa solicitação, de forma que também

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

453
era gerado o CPF do migrante, através de parceria com a Receita Federal; após,
tornava-se possível a emissão de CTPS definitiva e consequentemente a emissão de
número do PIS, necessário para a liberação do seguro-desemprego do trabalhador
resgatado, previsto no art. 2º-C da Lei n.º 7.998/1990.
Todos os venezuelanos resgatados em 2018 pela Inspeção do Trabalho,
apesar de estarem com situação migratória no Brasil irregular ou pendente de decisão,
tiveram a autorização de permanência no país autorizada, após representação feita
pelos Auditores-Fiscais do Trabalho ao então Ministério da Justiça.
Os pedidos foram formalizados por meio dos Ofícios nº 29, 46 e
64/2018/DETRAE/DEFIT/SIT/MTb, de 8/3/2018, 9/5/2018 e 28/5/2018,
respectivamente, e foram autorizados, com decisão publicada no Diário Oficial da
União (DOU) em 9/5/2018, 23/5/2018 e 3/8/2018.

6 CONCLUSÃO

Fato indiscutível é o de que os venezuelanos migraram com a expectativa de


fugir da crise política, social e econômica de seu país de origem. Porém, em
determinadas ocasiões, o histórico de cada migrante venezuelano em busca de um
recomeço, na vida e no trabalho, no estado de Roraima tornava-se uma extensão das
violações de direitos ocorridas na Venezuela.
De toda a conjuntura encontrada nas operações do GEFM em Roraima,
ratificou-se a importância da Inspeção do Trabalho no estado para proteger os direitos
trabalhistas dos migrantes. Ainda mais, verificou-se a importância das iniciativas que
foram efetivadas pelo GEFM, ao introduzir novos procedimentos significativos, e que
auxiliaram no resgate de trabalhadores migrantes venezuelanos submetidos à
condição análoga à de escravo.
Através das iniciativas explicitadas, o GEFM executou a política pública de
combate ao trabalho análogo ao de escravo com eficácia no estado de Roraima, tanto
na repressão quanto no contexto da prevenção e acolhimento dos trabalhadores
resgatados.
Ressalta-se a importância dos procedimentos aqui apresentados, posto que
podem ser replicados em ações similares nas Superintendências Regionais do

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

454
Trabalho dos Estados que recebam migrantes venezuelanos ou ainda de outra
nacionalidade.
Ainda, por fim, as operações do GEFM em Roraima fizeram surgir uma
plataforma online para recebimento de denúncias de trabalho escravo
contemporâneo, desenvolvida pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, por meio
da DETRAE, e em importante parceria com a OIT: o Sistema Ipê.

REFERÊNCIAS

Ação da Inspeção do Trabalho resgata família de venezuelanos em Rondônia.


Disponível em: <https://www.gov.br/trabalho/pt-br/assuntos/noticias/trabalho/ultimas-
noticias/acao-da-inspecao-do-trabalho-resgata-familia-de-venezuelanos-em-
rondonia> Acesso em 25 jun. 2020

Aos 25 anos, Grupo Especial de Fiscalização Móvel do trabalho lança novo sistema
para denúncias. Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-
br/assuntos/noticias/2020/maio/aos-25-anos-grupo-especial-de-fiscalizacao-movel-
do-trabalho-lanca-novo-sistema-para-denuncias> Acesso em 25 jun. 2020.

ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR).


Guia de informação sobre trabalho aos imigrantes refugiados. Disponível em:
<https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/04/Cartilha-ESPANHOL-
PORTUGUES-MIOLO_V4-WEB.pdf> Acesso em 5 jun. 2020

AGÊNCIA BRASIL. Processo interiorização de venezuelanos ajuda na garantia


de direitos. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-
humanos/noticia/2018-12/processo-interiorizacao-de-venezuelanos-ajuda-na-
garantia-de> Acesso em 10 jun. 2020

BRASIL. Decreto nº 9.199, de 20 de novembro de 2017. Regulamenta a Lei nº


13.445, de 24 de maio de 2017, que institui a Lei de Migração. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Decreto/D9199.htm>
Acesso em 28 jun. 2020

BRASIL. Instrução Normativa SIT nº 139, de 22 de janeiro de 2018. Dispõe sobre


a fiscalização para a erradicação de trabalho em condição análoga à de escravo.
Disponível em: <http://www.in.gov.br/materia/-
/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/2075837/do1-2018-01-24-instrucao-
normativa-n-139-de-22-de-janeiro-de-2018-2075833> Acesso em 25 jun. 2020

BRASIL. Lei nº 7.998, de 11 de janeiro de 1990. Regula o Programa do Seguro-


Desemprego, o Abono Salarial, institui o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), e
dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7998.htm> Acesso em 25 jun. 2020

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

455
BRASIL. Manual de Recomendações de Rotinas de Prevenção e Combate ao
Trabalho Escravo de Imigrantes: Secretaria de Direitos Humanos – SDH - Brasília,
2013. Disponível em: <https://reporterbrasil.org.br/wp-
content/uploads/2013/10/Manual-Trabalho-Escravo-Imigrantes.pdf> Acesso em 10
jun. 2020

BRASIL. Nota Técnica SEI nº 21644/2020/ME. Ministério da Economia. Secretaria


Especial de Previdência e Trabalho. Secretaria de Trabalho. Subsecretaria de
Inspeção do Trabalho. Coordenação-Geral de Fiscalização do Trabalho. Divisão de
Fiscalização para Erradicação do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo.
Processo SEI nº 19966.100436/2020-70. Acesso em 11 jun. 2020.

BRASIL. Portaria Ministério da Justiça e Segurança Pública nº 87, de 23 de


março de 2020. Disponível em: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-87-de-
23-de-marco-de-2020-249440047> Acesso em 25 jun. 2020

BRASIL. Fluxo Migratório de Venezuelanos. Dados de abril de 2018, fonte


Coordenador operacional, conforme apresentação do Ministério de Desenvolvimento
Social. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/cnas/pautas-atas-e-
apresentacoes/apresentacoes/apresentacao-imigrantes-assistencia-social-pela-
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FAGUNDES, Maurício Krepsky. Migração venezuelana e a exploração de


trabalho análogo ao de escravo em Roraima. Revista da Escola Nacional da
Inspeção do Trabalho, Brasília, 3 Ed, p. 293-326, 2019. Disponível em:
<https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php?journal=RevistaEnit&page=issue&op=
view&path%5B%5D=3&path%5B%5D=Revista%20Completa%203>. Acesso em 5
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Ministério implementa projeto-piloto voltado à interiorização de imigrantes


venezuelanos no Brasil. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-
br/assuntos/noticias/2019/maio/ministerio-implementa-projeto-piloto-voltado-a-
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ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, Fundação Walk Free e em


colaboração com a Organização Internacional Para Migrações. Estimaciones
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Ginebra: ILO. 2017. Disponível em:
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ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL PARA MIGRAÇÕES e Foreign Commonwealth


Office do Reino Unido. Dinámica de la Esclavitud Moderna en Brasil, Colombia, El
Salvador, Guatemala, Haití, Honduras, República Dominicana y Venezuela,
desde la perspectiva del Reino Unido: Un Análisis Regional, 2019.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

456
Pesquisa DataSenado mostra que poucos conhecem realmente a Constituição.
Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/10/25/pesquisa-
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R4V. Plataforma de coordinación para refugiados y migrantes de Venezuela.


Informe de Interiorização – maio de 2020. Subcomitê Federal para interiorização dos
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SIMÕES, Gustavo da Frota Simões (Org.). Perfil sociodemográfico e laboral da


imigração venezuelana no Brasil. Curitiba: CRV, 2017. Disponível em:
<https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/publicacoes/Perfil_Sociodemografico_e_
laboral_venezuelanos_Brasil.pdf>. Acesso em 29 jun. 2020

LABOR INSPECTION: THE VENEZUELAN MIGRATION AND


THE OPERATIONS OF THE SPECIAL MOBILE INSPECTION
GROUP IN THE FIGHT AGAINST SLAVE LABOR IN THE
STATE OF RORAIMA

ABSTRACT
Venezuelan migration to Brazil has grown exponentially,
especially since 2016, due to the worsening of the political,
economic and social crisis in Venezuela. A significant number of
these migrants arrived across the border from Venezuela to
Brazil, in the state of Roraima. In view of the complexity and
dynamics of the migratory phenomenon, at the beginning of
2018, the Division of Inspection for the Eradication of Slave Labor
(DETRAE), after approximately four years of the last operation of
the Special Mobile Inspection Group (GEFM) in Roraima,
planned the first operation to be carried out that year in the state.
This work seeks to expose the direction / methodology used in
the GEFM actions during operations carried out in the state of
Roraima, focusing on the initiatives that were carried out on the
increasing migration of Venezuelans, and how these actions
helped to rescue Venezuelan migrant workers subjected to
condition analogous to slavery. It will go from planning the
operation to its development and subsequent procedures.
Keywords: Labor Inspection. Work in a condition analogous to
slavery. Roraima. Venezuelan migrants.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

457
ANÁLISE DE ACIDENTE E CARACTERIZAÇÃO DE RISCO NA
OPERAÇÃO DE TELESCOPAGEM DE GRUA POR SISTEMA
MECÂNICO DE TRANSFERÊNCIA DE ESFORÇOS
Pedro Paulo Dantas de Souza Paiva1

1. Introdução 2. Metodologia. 3. Gruas e sistema de telescopagem: conceito


técnico-legal. 4. Acidente de trabalho envolvendo grua. 4.1 Descrição do
equipamento. 4.2 Descrição da atividade de telescopagem. 4.3 Descrição do
acidente. 5. Análise e comentários. 5.1 Riscos inerentes ao processo de
telescopagem da grua. 5.2 Manutenção da grua. 6. Conclusão. Referências.

RESUMO
O objetivo do presente trabalho é expor os riscos existentes na atividade
de telescopagem de grua ascensional que emprega, para sua elevação,
sistema de transferência de esforços que consiste em conjunto de mastro
e corpo telescópicos movimentados por cabo de aço tracionado pelo
tambor de montagem. A identificação do problema advém das conclusões
de análise de acidente de trabalho ocorrido com uma grua no ano de 2019.
Tal análise foi efetivada por meio de inspeções empreendidas no canteiro
de obras no qual o acidente ocorreu, durante as quais foram realizadas
entrevistas com os profissionais direta e indiretamente envolvidos nesse
evento adverso, e de avaliação detida das partes da grua que
possivelmente estavam envolvidas na gênese do evento acidentário - além
da apreciação de outras partes dessa máquina que poderiam originar
diferentes sequências acidentais potencialmente geradoras de desfechos
semelhantes. Os trabalhadores envolvidos nessa operação de
telescopagem sujeitam-se ao risco de esmagamento pela estrutura da grua
quando, sob a mesma, devem manusear os elementos destinados a sua
sustentação, por exemplo. A magnitude das lesões físicas às quais os
obreiros se sujeitam conjugada à existência de múltiplas fontes
independentes (nas quais não há redundância de componentes que vise a
garantir a efetividade das funções de segurança) cujos defeitos individuais
importam na queda da grua implicam a submissão desses trabalhadores a
risco grave e iminente e, portanto, a uma condição de lavor inaceitável.
Diante disso, propõe-se a inserção da proibição de seu uso no texto de
normas regulamentadoras do atual Ministério da Economia.

Palavras-chave: Grua ascensional. Sistema de telescopagem. Acidente


de trabalho.

1 Auditor-Fiscal do Trabalho.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

458
1 INTRODUÇÃO

Acidente de trabalho é a “ocorrência geralmente não planejada que resulta em


dano à saúde ou integridade física de trabalhadores ou de indivíduos do público”2, ou,
como estabelece o art. 19 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, “é o que ocorre
pelo exercício do trabalho a serviço de empresa [...], provocando lesão corporal ou
perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou
temporária, da capacidade para o trabalho”3.
Os fatores envolvidos na gênese do acidente de trabalho são variados e
podem-se relacionar entre si. Esses fatores podem ser classificados em imediatos,
subjacentes e latentes. Os fatores imediatos são “as razões mais óbvias da ocorrência
de um evento adverso, evidenciadas na proximidade das consequências”; os
subjacentes são as “razões sistêmicas ou organizacionais menos evidentes, porém
necessárias para que ocorra um evento adverso”; e os latentes são as “condições
iniciadoras que possibilitam o surgimento de todos os outros fatores relacionados ao
evento adverso”4.
A melhoria dos conhecimentos relacionados à rede de fatores causais
envolvida na gênese dos acidentes de trabalho é de grande importância para a
prevenção desses fenômenos5. No presente texto serão abordados alguns dos fatores
que desencadearam a ocorrência de acidente de trabalho envolvendo uma grua
utilizada em canteiro de obras no município do Recife/PE, no ano de 2019. Será dada
ênfase a algumas das características técnicas relacionadas aos fatores imediatos e
subjacentes, avançando um passo no sentido de identificar não apenas a sequência
particular de eventos relacionados ao acidente em si como também as inadequações
do projeto da máquina que poderiam originar outras sequências acidentais que

2 BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria de Inspeção do Trabalho. Guia de análise


acidentes de trabalho. Brasília, DF, 2010, p. 8.
3 BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência

Social e dá outras providências. Diário Oficial União, Brasília, DF, 25 jul. 1991. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>. Acesso em: 27 jun. 2020.
4 BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Secretaria de Inspeção do Trabalho. Guia de análise

acidentes de trabalho. Brasília, DF, 2010, p. 13.


5 ALMEIDA, I. M. A análise de acidentes do trabalho como ferramenta auxiliar do trabalho de

auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego. In: ALMEIDA, I. M. (org). Caminhos da


análise de acidentes do trabalho. 1. ed. Brasília: MTE, SIT, 2003, p. 13-55.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

459
conduziriam ao mesmo resultado. Outros dos fatores subjacentes e latentes, humanos
e organizacionais, relacionados ao evento adverso, tais como os descritos por Llory e
Montmayeul6, serão tratados, quando muito, apenas superficialmente, estando fora do
escopo do presente trabalho.
As causas imediatas do acidente, aqui tratadas e associadas à operação de
telescopagem da grua, estão relacionadas a atributos dessas máquinas que
submetem os trabalhadores envolvidos nessa tarefa a risco inaceitável; não por uma
característica específica do exemplar diretamente analisado, mas por particularidade
do modelo do equipamento – o que implica na reprodução dos mesmos riscos em
gruas do mesmo padrão. Buscaremos demonstrar que esse tipo de equipamento deve
ter seu uso vedado para que acidentes de mesma natureza não ocorram.
Inicialmente, será feita uma explanação das características das gruas, de seus
elementos constitutivos e de sua forma de instalação na edificação, para melhor
compreender as causas do acidente. Posteriormente, serão descritos os passos da
atividade de descensão da grua, os procedimentos adotados na ocasião do acidente
e os fatores de risco intrínsecos à operação da máquina que submetem seus
operadores a grave e iminente risco.

2 METODOLOGIA

A análise do acidente de trabalho foi efetivada por meio de inspeções


empreendidas no canteiro de obras em que este ocorreu, ocasiões nas quais foram
realizadas entrevistas com os profissionais direta e indiretamente envolvidos nesse
evento adverso, e de avaliação detida das partes da grua que possivelmente estavam
implicadas na gênese do evento acidentário - além da apreciação de outras partes
dessa máquina que poderiam originar diferentes sequências acidentais
potencialmente geradoras de desfechos semelhantes.
Procurou-se amealhar os conhecimentos técnicos e legais necessários para a
escorreita identificação das causas do acidente também por meio do exame das

6LLORY, M.; MONTMAYEUL, R. O acidente e a organização. 1. ed. Belo Horizonte: Fabrefactum,


2014.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

460
normas regulamentadoras e normas técnicas nacionais e internacionais relacionadas
ao tema, oportunamente citadas no decorrer deste texto.

3 GRUAS E SISTEMA DE TELESCOPAGEM: CONCEITO TÉCNICO-LEGAL

A EN 14439:2006+A2:2009 – “Cranes – Safety – Tower Cranes” define grua


(tower crane) como o guindaste de lança giratória com a lança localizada no topo de
uma torre que fica aproximadamente vertical na posição de trabalho. Este aparelho
motorizado é equipado com meios para elevar e abaixar cargas suspensas e para o
movimento de tais cargas, alterando o raio e rotação7.
A Portaria SEPRT n.º 3.733, de 10 de fevereiro de 2020, aprovou a nova
redação da Norma Regulamentadora nº 18, que entrará em vigor em fevereiro de
2021. O glossário desse novo texto define grua como o “equipamento de guindar que
possui lança de giro horizontal, suportada por uma estrutura vertical (torre), utilizado
para movimentação horizontal e vertical de materiais”8.
As gruas podem ser montadas com auxílio de um outro guindaste, seja um
guindaste móvel ou uma outra grua; no entanto esse método nem sempre é viável,
pois gruas muito altas podem exigir a ancoragem em uma estrutura adjacente,
geralmente a própria edificação na qual está sendo utilizada e, consequentemente,
precisam ser montadas em etapas. Além disso, em zonas urbanas movimentadas,
geralmente não há espaço suficiente para comportar os grandes guindastes móveis
necessários para montar as gruas. Nesses casos, a altura da grua pode ser estendida
usando técnicas de telescopagem9.
Telescopagem da grua, de acordo com o glossário do novo texto da NR 18, é
o “processo que altera a altura da grua pela inserção de elementos à sua torre através

7 EUROPEAN COMMITTEE FOR STANDARDIZATION. EN 14439: cranes – safety – tower cranes.


Brussels, 2009.
8 BRASIL. Ministério da Economia. Portaria SEPRT n.º 3.733, de 10 de fevereiro de 2020. Aprova a

nova redação da Norma Regulamentadora nº 18 - Segurança e Saúde no Trabalho na Indústria da


Construção. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 fev. 2020. Disponível em:
<https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-3.733-de-10-de-fevereiro-de-2020-242575828>. Acesso
em: 27 jun. 2020.
9 CPA. The climbing of tower cranes. CPA best practice guide. London: Tower Crane Interest

Group (TCIG), 2011. Disponível em: <https://www.cpa.uk.net/freedownload/?TCIG%2520-


+Publications%7E%7E%7ECPA-TCIG-1101-Climbing-of-Tower-Cranes-REV1-110512.pdf>. Acesso
em: 10 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

461
de uma abertura na gaiola”10. Esse processo pode ser circunscrito em duas categorias
principais: a telescopagem externa, na qual a torre da grua, do lado de fora de um
edifício, é elevada por meio de um sistema que permite a inserção de seções
adicionais na torre; e interna, na qual a altura da torre da grua é aumentada ou
reduzida por meio de sistema de elevação que atua diretamente sobre a estrutura na
qual a grua é suportada (no interior da caixa de corrida do elevador, por exemplo,
como é o caso da grua ascensional discutida no presente texto)11, 12.
Esse mesmo glossário define grua ascensional como a “grua cuja torre é de
altura definida, normalmente instalada e fixada no poço do elevador, amarrada à laje
através de gravatas e elevada através de sistema hidráulico”13.
A definição de grua ascensional, pelo glossário da nova NR 18, compreende
apenas aquelas cujo processo de elevação se dá por meio de sistema hidráulico (que,
atualmente, se revela preponderante). A EN 14439:2006+A2:2009, em nota do anexo
“F”, esclarece que, em geral, o sistema de elevação da grua é constituído por
cilindro(s) hidráulico(s) acionado(s) por uma central hidráulica14.
Como veremos adiante, o processo de elevação (telescopagem) da grua
envolvida no acidente ora analisado se dá por meio de um arcaico sistema mecânico
de transferência de esforços que utiliza um mastro e um corpo telescópicos
movimentados por um único cabo de aço.

10 BRASIL, op. cit.


11 CPA. The climbing of tower cranes. CPA best practice guide. London: Tower Crane Interest
Group (TCIG), 2011. Disponível em: <https://www.cpa.uk.net/freedownload/?TCIG%2520-
+Publications%7E%7E%7ECPA-TCIG-1101-Climbing-of-Tower-Cranes-REV1-110512.pdf>. Acesso
em: 10 jun. 2020.
12 EUROPEAN COMMITTEE FOR STANDARDIZATION. EN 14439: cranes – safety – tower cranes.

Brussels, 2009.
13 BRASIL. Ministério da Economia. Portaria SEPRT n.º 3.733, de 10 de fevereiro de 2020. Aprova a

nova redação da Norma Regulamentadora nº 18 - Segurança e Saúde no Trabalho na Indústria da


Construção. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 fev. 2020. Disponível em:
<https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-3.733-de-10-de-fevereiro-de-2020-242575828>. Acesso
em: 27 jun. 2020.
14 EUROPEAN COMMITTEE FOR STANDARDIZATION, op. cit., p. 40.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

462
4 ACIDENTE DE TRABALHO ENVOLVENDO GRUA

4.1 DESCRIÇÃO DO EQUIPAMENTO

O acidente ocorreu quando da operação de telescopagem de grua da marca


Sampson, modelo MS 14000, provavelmente fabricada na década de 1970. A base
dessa grua, de acordo com seu manual de peças, pode ser instalada de modo fixo
(sobre cruzeta; com a base da torre chumbada; ou com torre embutida), móvel (sobre
vagoneta com truques) ou ascensional (com torres telescópicas e sistema de
transferência de esforços)15.
No canteiro de obras inspecionado, a grua foi instalada na forma ascensional,
sustentada em vigas existentes na caixa de corrida de um dos elevadores sociais.
Essa grua era elevada juntamente com o edifício durante a construção.
Os elementos que compõem essa grua estão explicitados na Figura 1.

Figura 1 - Identificação dos elementos da grua Sampson MS 14000(instalada de modo fixo).

Fonte: adaptado de MECÂNICA SAMPSON S.A.16

15 MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de peças MS 14000. Osasco, p. 4.


16 MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de peças MS 14000. Osasco, p. 3.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

463
Como se constata do exame da figura acima, na qual a grua está instalada de
modo fixo, esse equipamento consiste em uma torre (em seções de 4 metros), lança,
contralança, crista, entre outros itens.
Nas vigas da caixa de corrida do elevador são instaladas gravatas e, de acordo
com o manual de instrução da grua:

as gravatas servem para transmitir as forças verticais do guindaste (peso


próprio mais carga) para a estrutura do prédio e também para transmitir o
momento próprio do guindaste em forças horizontais, também a serem
absorvidas pela estrutura do prédio.17

Na ocasião do acidente, três gravatas estavam instaladas na caixa de corrida


de um dos elevadores sociais (uma na altura da 17ª laje da edificação, outra na 18ª e
a última na 20ª).
O manual de instrução da grua também informa que as gravatas consistem
em18:
1 – Duas vigas H para serem sustentadas na parede do poço/laje;
2 – Uma pesada viga H para sustentar o mastro telescópico durante a
ascensão;
3 – Duas vigas U para sustentar o guindaste no trabalho;
4 – Uma pesada moldura de vigas H para apoiar o momento do guindaste;
5 – Quatro dispositivos para cunhar o mastro depois da ascensão.

Na Figura 2 há as vistas lateral e superior da gravata, com indicação de seus


componentes.

17 Id., Manual de instrução MS 14000. Osasco, p. 28-D.


18 MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de instrução MS 14000. Osasco, p. 28-D.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

464
Figura 2 - Vistas lateral e superior das gravatas, com indicação de seus componentes.

Fonte: MECÂNICA SAMPSON S.A.19

Consta, na Figura 3, relação extraída do manual de peças da grua com a


denominação de cada um dos componentes indicados na Figura 2.
Figura 3 - Identificação dos componentes da gravata.

Fonte: MECÂNICA SAMPSON S.A.20

19 Id., Manual de peças MS 14000. Osasco, p. 20.


20 MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de peças MS 14000. Osasco, p. 21.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

465
A torre da grua e as gravatas são instaladas na caixa de corrida do elevador
como mostrado na Figura 4.

Figura 4 – Imagem da torre da grua e das gravatas na caixa de corrida do elevador, extraída do
manual de peças do equipamento.

Fonte: adaptado de MECÂNICA SAMPSON S.A.21

Para a realização da telescopagem da grua são utilizadas duas estruturas


denominadas mastro telescópico (também chamada de torre telescópica) e corpo
telescópico, além de cabo de aço único por meio do qual essas duas estruturas são
ligadas. O mastro telescópico deve ser montado dentro da torre (ou mastro) da grua
(Figura 4) e o cabo de aço de montagem é passado pelas polias do mastro telescópico
e do corpo telescópico conforme Figura 5.

21 Ibid., p. 19.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

466
Figura 5 - Passagem do cabo de aço do tambor de montagem pelas polias do mastro telescópico e
do corpo telescópico.

Fonte: MECÂNICA SAMPSON S.A.22

O corpo telescópico é uma estrutura de base quadrada, de aproximadamente


46 cm de lado, e altura de cerca de 20 cm. Na Figura 6 mostra-se o corpo telescópico
da grua envolvida no acidente, danificado pela queda.

Figura 6 - Corpo telescópico da grua envolvida no acidente.

Fonte: acervo do autor (2019).

22 MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de instrução MS 14000. Osasco, p. 16.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

467
Como indicado na Figura 5, o cabo de aço do tambor de montagem (esse
tambor - assinalado pela seta 1 da Figura 7 - fica instalado sobre a contralança da
grua) desce até uma das polias do corpo telescópico, depois sobe para uma das polias
localizadas na parte superior do mastro telescópico, depois desce novamente para
outra polia do corpo telescópico, e assim sucessivamente, até que passe pelas quatro
polias do corpo telescópico e pelas três polias do mastro telescópico. A fixação da
extremidade do cabo se dá no local onde seria instalada a quarta polia do mastro
telescópico. Nesse ponto, no equipamento envolvido no acidente, foram dadas duas
voltas (volta seca) em torno do eixo que seria da polia, deixou-se um comprimento de
60 cm na parte morta do cabo de aço e foram fixados sete grampos leves.

Figura 7 - Vista da contralança da grua, após o acidente. A seta 1 indica o tambor de


montagem; a seta 2, o tambor de carga.

Fonte: acervo do autor (2019).

De acordo com o manual de instrução da grua, pág. 28-D, os equipamentos


necessários para a utilização da grua dentro dos poços dos elevadores (instalada na
forma ascensional) são o mastro telescópico (Figura 8), para ser montado dentro do

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

468
mastro normal (ou seja, da torre da grua); o corpo telescópico, “que serve para
recolher o mastro telescópico depois da ascensão”; e “três gravatas para suportar o
guindaste no poço, na laje ou fora do prédio”23.
O mastro telescópico (ou torre telescópica), de comprimento aproximado de 5
metros, permite a ascensão ou descensão da grua em lances de até 4 metros24. As
partes do mastro telescópico são indicadas na Figura 8.

Figura 8 - Mastro telescópico (ou torre telescópica) e indicação de seus componentes.

Fonte: MECÂNICA SAMPSON S.A.25.

23 MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de instrução MS 14000. Osasco, p. 28-D.


24 Ibid., p. 30-D.
25 Id., Manual de peças MS 14000. Osasco, p. 22.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

469
Na relação de componentes mostrada na Figura 9, retirada do manual de peças da
grua, há a identificação das partes do mastro telescópico constantes na figura anterior.

Figura 9 – Identificação dos componentes do mastro telescópico.

Fonte: MECÂNICA SAMPSON S.A.26

Necessário se faz explicitar, também, os componentes que estão instalados


sobre a contralança da grua para que seja possível compreender, de modo mais
abrangente, os riscos envolvidos na atividade.
Há dois motores elétricos que são utilizados para movimentar os tambores de
carga (seta 2, Figura 7) e de montagem (seta 1, Figura 7). Esses motores são
denominados motor de baixa velocidade (ou motor de primeira velocidade – seta 1,
Figura 10) e motor de alta velocidade – seta 2, Figura 10, sendo, este último, motor
do tipo motofreio (a frenagem do sistema de movimentação dos tambores de carga e
de montagem ocorre unicamente por ação desse motofreio).
O freio desse tipo de motor assim funciona:

Este tipo de freio tem seu princípio de funcionamento baseado na pressão de


molas. Quando o motor está ligado, o eixo está livre e o freio não está
atuando. E quando é interrompida a passagem de corrente elétrica para o
motor desligando-o, o freio começa a atuar. O sistema de frenagem é
composto por um eletroímã que deve ser alimentado ao mesmo tempo que o
motor e este é responsável por liberar o eixo do motor. Quando é interrompida
a corrente elétrica no motor e no eletroímã, as molas empurram a armadura
do eletroímã contra o disco de freio comprimindo-o e gerando atrito. Neste
momento ocorre a frenagem. Numa nova partida do motor o eletroímã irá
atrair a armadura e assim liberar o disco de frenagem e o eixo do motor.27

26MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de peças MS 14000. Osasco, p. 23.


27HÉRCULES MOTORES ELÉTRICOS LTDA. Manual de instalação, operação e manutenção de
Motores Elétricos Hércules com freio. Timbó, p. 4. Disponível em:
<https://www.herculesmotores.com.br/arquivos/manual-de-instrucoes-instalacao-de-motores-
motofreio-trifasicos-552.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

470
Os motores são interligados por um conjunto de correias (seta 3, Figura 10) e
polias conectadas a seus respectivos eixos e o acionamento desses motores se
alterna entre o início do processo de movimentação dos tambores (quando maior
torque é requerido, sendo utilizado o motor de baixa) e quando maior velocidade é
necessária (momento no qual a movimentação dos tambores passa a ser controlada
pelo motor de alta velocidade - motofreio). No eixo desse motor de alta velocidade há
uma engrenagem (roda dentada – seta 4, Figura 10) que transmite seus movimentos
de rotação ao eixo do tambor de carga.

Figura 10 - Equipamentos localizados na contralança: seta 1, motor de baixa velocidade; seta 2,


motor de alta velocidade; seta 3, correias que interligam as polias dos motores; e seta 4, engrenagem
do eixo do motor de alta velocidade.

Fonte: acervo do autor (2019).

Na outra extremidade do tambor de carga, há uma engrenagem móvel (seta 1,


Figura 14) que se desloca pela ação de uma alavanca (seta 2, Figura 14). Essa
alavanca tem a finalidade de controlar a transferência do movimento do tambor de
carga para o de montagem. Para fazer essa transferência, puxa-se a alavanca e com
isso a engrenagem do eixo do tambor de carga se desloca para o lado e engata na

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

471
engrenagem do tambor de montagem – seta 3, Figura 14. Quando a alavanca é
puxada, além de haver o acoplamento dessas engrenagens, há o desacoplamento do
movimento do eixo do tambor de carga com esse próprio tambor, ficando, este último,
livre. Com isso, a ação dos motores aciona o tambor de montagem, possibilitando a
movimentação do cabo de aço utilizado no processo de telescopagem.

Figura 14 - Seta 1, engrenagem móvel do eixo do tambor de carga; seta 2, alavanca usada para a
transferência do movimento; e seta 3, engrenagem do eixo do tambor de montagem.

Fonte: acervo do autor (2019).

4.2 DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE DE TELESCOPAGEM

Para fins de compreensão da descrição do processo de telescopagem, tanto


para ascensão quanto para descensão da grua, utilizaremos a seguinte diretriz para
a identificação das gravatas instaladas em três pisos da edificação: 1ª gravata é a
localizada no piso mais alto; a 2ª gravata é a intermediária; e a 3ª é a localizada abaixo
da 2ª gravata. O processo de descensão da grua era realizado da seguinte forma:
Passo 1: Inicialmente, o corpo telescópico é fixado - por meio de duas alças
(conhecidas como “orelhas”) existentes na parte superior desse corpo, dispostas uma
defronte à outra – ao trecho inferior do mastro telescópico, para que possam se

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

472
deslocar verticalmente de forma conjunta. Nesse momento, a torre da grua, o mastro
telescópico e o corpo telescópico estão suportados sobre três vigas de apoio fixadas
sobre a 2ª gravata (instalada na 18ª laje), e a torre da grua tem seu alinhamento
garantido pela 1ª gravata (instalada na 20ª laje). Há uma gravata já instalada na 17ª
laje (3ª gravata), esperando a chegada da estrutura da grua.
Passo 2: O tambor de montagem é acionado para suspender o cabo de
ascensão (ou cabo de telescopagem) por um pequeno trecho, levantando um pouco
o conjunto torre telescópica e corpo telescópico (a torre da grua não se move, visto
que a altura da base dessa torre, dentro da qual se encaixa o corpo telescópico, é
ligeiramente superior à altura do próprio corpo telescópico) para que seja possível
retirar a viga de apoio central (perfil H – elemento 11 da Figura 2) utilizada para
“descanso” dessas estruturas (na 2ª gravata).
Nesse momento, caso haja rompimento do cabo de aço de telescopagem, ou
falha no motofreio ou engrenagens ligadas ao tambor de montagem, por exemplo, a
estrutura que está sendo erguida despenca sobre os trabalhadores que estão
retirando a viga de apoio central, sujeitando-os a sérias lesões decorrentes do
esmagamento de segmentos corporais.
Passo 3: Após a retirada da viga de apoio central, o tambor de montagem é
acionado para liberar o cabo de telescopagem e o conjunto torre telescópica e corpo
telescópico é descido para a gravata inferior (3ª gravata). Enquanto esse conjunto está
sendo descido pelo poço do elevador, os trabalhadores levam a viga de apoio central
(elemento 11, Figura 2), que serve de “descanso” para essas estruturas, pelas
escadas, até o pavimento inferior, para que se instale essa viga de apoio na 3ª
gravata. Nessa etapa, a torre da grua ainda está apoiada na altura da 2ª gravata por
meio das vigas de apoio laterais, em perfil U (elemento 12, Figura 2).
Passo 4: Após o conjunto mastro telescópico e corpo telescópico se assentar
na viga de apoio instalada na 3ª gravata, os pinos que conectam o corpo telescópico
ao mastro telescópico são retirados e o mencionado corpo passa a ficar livre para se
deslocar ao longo do mastro telescópico.
Passo 5: Ao içar o cabo de telescopagem, o mastro telescópico permanece
assentado sobre a viga de apoio (na 3ª gravata) e o corpo telescópico começa a subir
(em virtude da forma de ligação entre as polias dessas duas estruturas) e, como esse

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

473
mastro telescópico tem cerca de 5 metros de altura e segue até pavimento superior
(ultrapassando-o e seguindo por dentro de um pequeno trecho da torre da grua), o
corpo telescópico encosta na base da torre da grua. Na base da torre dessa grua há
quatro cantoneiras metálicas que servem para que o corpo telescópico suporte a torre
da grua nos processos de ascensão e descensão.
Passo 6: O corpo telescópico, já encostado na torre da grua, é levantado por
uma pequena altura (levantando, como consequência, essa própria torre), por um
“toque” (no linguajar empregado pelos trabalhadores que desenvolviam a operação),
para que possibilite a retirada das vigas de apoio laterais (perfil U) da base; após isso,
inicia-se o processo de descensão da torre. A velocidade de descida, de acordo com
os trabalhadores entrevistados, é lenta, visto haver uma redução de 1/8 em relação à
velocidade de giro do tambor de montagem, em virtude do arranjo da instalação do
cabo de telescopagem entre as polias do corpo telescópico e do mastro telescópico.
Nessa etapa há risco iminente de tombamento da grua, porque, para retirar as
vigas de apoio laterais de baixo da torre da grua, se essa torre for erguida, pelo corpo
telescópico, por uma altura superior a cerca de 15 cm (conforme informações dos
trabalhadores que participavam da operação de telescopagem), que é a altura
aproximada da lateral do engravatamento (elementos 10 e 15 da Figura 2), a parte
inferior da torre da grua escapa da 2ª gravata, perdendo contato com a mesma, e essa
torre passa a ficar livre para girar, no plano vertical, em torno do eixo compreendido
no plano horizontal da 1ª gravata, tombando em qualquer direção (mais
provavelmente no sentido da lança ou da contralança).
Consta, no manual de instrução do fabricante, a seguinte passagem
relacionada ao processo de ascensão da grua:

Posição 4
Continuar subindo até o mastro do guindaste passar pelas vigas principais da
gravata, e além disso uns 20 cm. Nunca exceder a moldura em cima.
Parar a ascensão e colocar as duas vigas U e fixá-las com os parafusos. (grifo
nosso)
Posição 5
Acionar o motor micro do guincho na direção contrária, e o guindaste será
apoiado nas vigas U; continuar operando o motor e o corpo telescópico
descerá por dentro das vigas.28

28 MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de instrução MS 14000. Osasco, p. 30-D.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

474
Nesse trecho do manual, que contempla a descrição do processo de
ascensão da grua, ou seja, o processo inverso ao de descensão descrito no passo 6,
acima, fica evidenciado o risco de tombamento caso haja erguimento do mastro (torre)
da grua pouco acima do recomendado, havendo pouca margem para que a operação
seja executada com segurança. Para que esse processo seja realizado sem que a
torre do guindaste escape da 2ª gravata, o operador costuma dar “toques”, ou seja,
curtos acionamentos do motor para giro do tambor de montagem, de modo que se
consiga espaço suficiente para encaixar e fixar as vigas U (na descensão da grua se
dá o processo inverso, ou seja, retira-se as vigas U), abaixo da torre, sem que essa
estrutura escape do engravatamento. Observa-se que, de acordo com informações
prestadas pelos trabalhadores envolvidos na operação de telescopagem, esses curtos
acionamentos do motor (“toques”) não promovem solavancos ou movimentos bruscos
na estrutura da grua.
Além disso, por vezes, o mastro telescópico pode não ficar completamento
alinhado com a torre da grua no processo de descida da torre e a roldana desse
mastro pode entrar em contato com a torre, imprensando o cabo de aço do tambor de
telescopagem (cabo de ascensão). Nessa hora, o carrinho de translação com o peso,
colocado na lança da grua, é deslocado para frente ou para trás com o intuito de
melhorar o equilíbrio da estrutura e realinhar as torres.
Há a seguinte observação na página 30-D do manual de instrução do
equipamento: “para balancear o guindaste deve ser levantado no gancho uma carga
de 400kgs, e com o carrinho de translação movimentar a carga para frente até o
guindaste estar completamente equilibrado”29. Essa conduta não foi observada no
momento da telescopagem para desmontagem da grua.
Há, também, nessa etapa do processo de telescopagem, o risco de que a
estrutura despenque sobre os trabalhadores que estejam realizando a retirada das
vigas de apoio em perfil U (elemento 12, Figura 2) que suportam a torre da grua na 2ª
gravata. De forma semelhante ao que ocorre no passo 2, nesse momento, caso haja
rompimento do cabo de aço de telescopagem, ou falha no motofreio ou quebra de
engrenagens ligadas ao tambor de montagem, por exemplo, a estrutura que está

29 MECÂNICA SAMPSON S.A. Manual de instrução MS 14000. Osasco, p. 30-D.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

475
sendo erguida despenca sobre os trabalhadores que estão retirando as vigas de apoio
laterais, podendo causar o esmagamento de segmentos corporais (o mesmo risco há
na atividade de colocação dessas vigas de apoio na 3ª gravata, descrita no passo 7,
a seguir).
Passo 7: O corpo telescópico desce, com a torre da grua apoiada em si, e,
quando a grua já está próxima da 3ª gravata, os dois trabalhadores que acompanham
a descida dessa grua no pavimento da 2ª gravata descem para o pavimento inferior
para instalar as vigas de apoio (elemento 12, Figura 2) na 3ª gravata, para que daí
essa estrutura possa receber a torre da grua.
No acidente analisado, a torre da grua despencou em virtude do rompimento
do cabo de aço que realizava a movimentação do conjunto (cabo do tambor de
montagem). Quando esse cabo de aço se rompeu, o corpo telescópico estava
descendo junto com a torre da grua (passos 6 e 7 acima). A torre da grua passou a
cair em queda livre e se chocou com a gravata inferior (3ª gravata) e a viga de suporte
do mastro telescópico (elemento 11, Figura 2). Com a colisão da torre da grua com a
gravata inferior, essa estrutura foi seriamente danificada e a viga de suporte do mastro
telescópico (viga de apoio central, em perfil H), que estava fixada por meio de
parafusos às vigas de sustentação (elemento 5, Figura 2) da 3ª gravata, girou em
torno de uma dessas vigas, rompeu a parede da caixa de corrida do elevador e caiu
na caixa da escada definitiva da edificação, ao lado dessa caixa de corrida, no 16º
pavimento. O mastro telescópico, junto ao corpo telescópico, caiu no poço do
elevador.
A parte superior da grua (lança, contralança, conjunto de giro) ficou apoiada na
laje da cobertura da edificação. A torre permaneceu suspensa na caixa de corrida do
elevador, fixada ao conjunto de giro da grua.

4.3 DESCRIÇÃO DO ACIDENTE

O acidente ocorreu entre os passos 6 e 7, indicados no item anterior. Enquanto


a torre da grua estava descendo, apoiada sobre o corpo telescópico, houve o
rompimento do cabo de aço que sustentava o conjunto.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

476
Havia, ao todo, três trabalhadores envolvidos na operação de retirada da grua.
Dois deles estavam no 18º pavimento da edificação e acompanhavam a descensão
da grua, sendo responsáveis por colocar e retirar os pinos que ligavam o corpo
telescópico e o mastro telescópico, lubrificar as polias, retirar e recolocar as vigas de
apoio, entre outras atividades.
O mastro telescópico já estava no 17º pavimento, sobre a viga de apoio
(elemento 11, Figura 2). As vigas de apoio da torre da grua (elemento 12, Figura2),
que estavam no 18º pavimento, já haviam sido retiradas para permitir a descida da
grua e estavam com os trabalhadores. Essas vigas de apoio da torre da grua iriam ser
colocadas no 17º pavimento quando essa torre estivesse a aproximadamente um
metro da posição final (ou seja, um metro acima da local de instalação dessas vigas).
Na cobertura da edificação estava o trabalhador acidentado, encarregado de
operar o motor da grua, que movia o tambor de montagem. No exato momento do
rompimento do cabo, esse operador estava com parte de seu corpo sob a contralança
da grua, próximo ao conjunto de giro. Ao despencar, a grua esmagou parcialmente o
corpo do mesmo contra a laje da cobertura. De acordo com os funcionários
entrevistados, o operário acidentado estava naquela posição para que pudesse
visualizar a descida da grua pela abertura na laje, por meio da qual estava instalada.
Os trabalhadores que estavam no 18º pavimento relataram que a comunicação
via rádio estava prejudicada, durante a operação, em virtude de ruídos vindos de
outras partes da obra. Relataram que havia ruído de elevado nível de pressão sonora
proveniente de marteletes e furadeira equipada com serra copo. Em virtude desse
ruído, o trabalhador acidentado não conseguia entender o que estava sendo dito pelos
obreiros que estavam no 18º pavimento; mas, de acordo com informações prestadas
por esses trabalhadores, no momento da ocorrência do acidente não estava sendo
realizada nenhum tipo de comunicação visual, visto não haver mais necessidade para
tal, já que as etapas do trabalho em que isso era necessário já haviam cessado
(retirada de vigas de apoio, colocação de pinos de suporte na caixa telescópica) e
naquele momento estava ocorrendo apenas a descensão da grua, sem a interferência
desses operários.
Antes de realizar a descida propriamente dita da torre da grua, o operador teve
que realizar os procedimentos já relatados (passo 6 do item 4.2 deste texto) e dar

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

477
pequenos “toques” para posicionar a torre da grua na altura exata que possibilitasse
a retirada das vigas de apoio que a sustentavam sem que, no entanto, ultrapassasse
a pequena altura máxima permitida, além da qual a parte inferior da torre escaparia
da estrutura lateral da 2ª gravata e haveria o tombamento de toda a grua.
Verificou-se que uma das polias do mastro telescópico não estava instalada no
mesmo. De acordo com os trabalhadores que estavam participando dessa operação,
que também participaram da montagem da grua, no local não foi instalada a polia.
Nesse ponto era fixada a extremidade do cabo de aço utilizado nas operações de
telescopagem.
A fixação da extremidade do cabo de aço se dá no local onde seria instalada a
quarta polia do mastro telescópico. Nesse ponto, de acordo com informações
prestadas por um dos trabalhadores que participou das operações de montagem e
desmontagem da grua, foram dadas duas voltas (volta seca) em torno do eixo que
seria da polia, deixou-se um comprimento de 60 cm na parte morta do cabo de aço e
foram fixados sete grampos leves. O trecho livre do cabo de aço rompido que caiu no
piso do poço do elevador possuía cerca de 70 cm de comprimento (sem contar com o
trecho no qual estavam instalados os grampos do olhal) – Figura 12.

Figura 12 - Trecho final do cabo de aço. Na parte superior da figura, o ponto em que houve a ruptura.

Fonte: acervo do autor (2019).

O cabo de aço, no ponto de ruptura, é mostrado na Figura 13.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

478
Figura 13 - Ponto em que houve a ruptura do cabo.

Fonte: acervo do autor (2019).

Algumas das polias do corpo telescópico dispunham de duas ou três pequenas


placas metálicas que serviriam para que o cabo de aço não escapasse acidentalmente
das mesmas (Figura 14, Figura 15 e Figura 16). Em uma das polias havia três placas
e em outras duas polias havia duas placas, cada. Havia uma outra que não possuía
tais placas (Figura 17). Registre-se que é improvável que tais placas tenham se
desprendido do corpo telescópico na ocasião do acidente, em decorrência da queda
ou dos impactos que sofreu. Isso porque os locais nos quais essas pequenas placas
estavam anteriormente fixadas, nesse corpo, apresentavam sinais de corrosão,
escurecimento, indicando que estavam expostos já havia algum tempo, sem as
placas.
Figura 14 - Corpo telescópico, com indicação das placas metálicas (elipses vermelhas) e seta
indicando a polia que não possuía tais placas, onde supostamente houve o escape do cabo de aço.

Fonte: acervo do autor (2019).

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

479
Os danos encontrados no cabo de aço e nos elementos da grua sugerem que
esse cabo saiu do sulco (canal) de uma das polias do corpo telescópico e teve contato
com a borda dessa polia, ficando esse cabo, possivelmente, entre as paredes da polia
e do corpo telescópico. A polia de cujo canal, se supõe, houve o escape acidental do
cabo é a mostrada na Figura 17 (indicada, também, pela seta na Figura 14). O trecho
final do cabo, no qual havia o olhal com sete grampos, ficou tracionado entre o eixo
no qual estava fixado ao mastro telescópico e o corpo telescópico. Havia a tendência
ao movimento relativo entre o corpo telescópico e o mastro telescópico e essa tração
fez com que o cabo se rompesse, possivelmente no ponto em que estaria em contato
com a borda da polia. O laudo pericial do Instituto de Criminalística Prof. Armando
Samico (PE) concluiu, de modo semelhante, que a ruptura do cabo de aço ocorreu na
borda da polia30.
Nas figuras a seguir há a vista aproximada das polias do corpo telescópico
exibido na Figura 14. Na Figura 15 mostra-se a polia com três placas metálicas e a
Figura 16 expõe o posicionamento das placas metálicas, juntas à polia, por um outro
ângulo.

30PERNAMBUCO. Instituto de Criminalística Prof. Armando Samico. Laudo Pericial nº 17.973.


Recife, 2019.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

480
Figura 15 - Polia com três placas Figura 16 - Detalhe do posicionamento das placas
metálicas para impedimento do metálicas.
escape do cabo de aço.

Fonte: acervo do autor (2019).


Fonte: acervo do autor (2019).

Na Figura 17 está a polia que não possuía as mencionadas placas metálicas


que teriam a função de impedir o escape acidental do cabo de aço.

Figura 17 - Polia sem as travas que impediriam o escape acidental do cabo de aço.

Fonte: acervo do autor (2019).


Aparentemente, a ausência desse dispositivo para evitar o escapamento do
cabo de aço não foi notada pelas pessoas que executavam a manutenção da grua,
nem pelo engenheiro mecânico que a liberou para uso. Essa grua, também, não havia
sido submetida a avaliação da integridade estrutural e eletromecânica, conforme item

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

481
18.14.24.15 da NR 1831, realizada por engenheiro legalmente habilitado, com juntada
de ART.
A NR 18 dispõe sobre a obrigatoriedade da existência de dispositivo instalado
nas polias para impedir o escape acidental do cabo de aço:

18.14.24.11 A grua deve, obrigatoriamente, dispor dos seguintes itens de


segurança:
...
l) dispositivo instalado nas polias que impeça o escape acidental do cabo de
aço;32

O item 3.1.3 ABNT NBR ISO 4309:2009 – “Equipamentos de movimentação de


carga - Cabos de aço - Cuidados, manutenção, instalação, inspeção e descarte” –
estabelece que “antes de repor os cabos no equipamento de movimentação de carga,
todas as ranhuras do tambor e os canais das polias devem ser verificados para
assegurar que irão acomodar corretamente o cabo de reposição”33.
De acordo com o item 5.1.2.1 da ABNT NBR 10980:1989 – “Roldana -
Dimensões e materiais – Padronização” – a profundidade do canal de uma roldana
utilizada para cabos de aço de diâmetro de 9,5 mm (3/8 de polegada), é de 15 mm34.
Na inspeção realizada no local de trabalho, verificou-se que a profundidade do canal
da polia na qual não havia as travas para impedimento do escape acidental do cabo
de aço (Figura 17) possuía profundidade que variava de 13,7 mm a 14 mm. O cabo
de aço, na região de sua extremidade, próximo ao ponto de rompimento, possuía
diâmetro de 10 mm, aproximadamente.
Não foi possível avaliar se havia algum tipo de empenamento prévio na torre
telescópica que eventualmente tenha levado ao surgimento de componentes
horizontais das forças aplicadas no cabo de aço que pudessem contribuir para que
esse cabo escapasse da polia. Como já mencionado, não foi observada, no curso do

31 BRASIL. Ministério do Trabalho. Norma Regulamentadora nº 18. Condições e meio ambiente de


trabalho na indústria da construção. Disponível em:
<https://enit.trabalho.gov.br/portal/images/Arquivos_SST/SST_NR/NR-18.pdf>. Acesso em: 27 jun.
2020.
32 Ibid., p. 24-25.
33 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR ISO 4309: equipamentos de

movimentação de carga - cabos de aço - cuidados, manutenção, instalação, inspeção e descarte. Rio
de Janeiro, 2009, p. 3.
34 Id., NBR 10980: roldana - dimensões e materiais – padronização. Rio de Janeiro, 1989, p. 3.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

482
processo de telescopagem, a orientação contida no manual do equipamento de que
se deveria levantar no gancho da grua uma carga de 400 kg para balanceá-la e com
o carrinho de translação movimentar essa carga para frente até o guindaste estar
completamente equilibrado. Não foi possível atestar se essa conduta também pode
ter contribuído para a existência de tais componentes horizontais da força aplicada no
cabo de aço de ascensão.

5 ANÁLISE E COMENTÁRIOS

5.1 RISCOS INERENTES AO PROCESSO DE TELESCOPAGEM DA GRUA

Como já informado no item destinado à descrição do acidente, os trabalhadores


instalam as vigas de suporte da torre, na operação de descensão, quando essa torre
está a cerca de um metro acima da posição final. Também em outras etapas do
processo de telescopagem os trabalhadores necessariamente ingressam na zona de
perigo, abaixo da estrutura da torre da grua, mormente para a manipulação das vigas
de apoio dos engravatamentos e lubrificação dos cabos de aço. Nesse momento,
caso haja ruptura do cabo de aço, rompimento do eixo do tambor de montagem ou
mesmo quebra das polias (ou dos eixos das mesmas) do corpo telescópico ou da torre
telescópica, a estrutura da torre desce em queda livre (não há como deter essa queda)
e podem ocorrer acidentes de graves consequências, resultando em esmagamentos,
amputações de membros ou mesmo a morte de um ou mais trabalhadores.
O citado cabo de aço fica enrolado no tambor de montagem da grua (indicado
na seta 2 da Figura 7). Esse tambor gira em torno de um eixo metálico fixado à
estrutura da contralança. Caso haja a ruptura do eixo desse tambor durante o
processo de telescopagem, a torre da grua também despenca.
Outro fato que poderia desencadear o desabamento da torre da grua seria o
rompimento da correia (ou mesmo o escorregamento da mesma, em virtude de
exposição à chuva, por exemplo) que interliga o chamado motor de primeira
velocidade (motor de baixa) com o motor de alta velocidade. É no motor de alta
velocidade (motofreio) que está o freio magnético. Caso as engrenagens estejam
transferindo o movimento para o tambor de montagem no processo de telescopagem

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

483
e haja rompimento (ou escorregamento) dessa correia, se a botoeira de comando da
grua permanecer pressionada para que haja movimento dos tambores, a grua cai
(visto que o freio magnético não atuará caso a botoeira permaneça sendo
pressionada). Nessa mesma situação, caso a engrenagem não esteja fazendo essa
transferência, então o que está girando é o tambor de içamento (de carga), e se a
botoeira permanecer pressionada e houver a ruptura da correia, a carga içada
(utilizada para equilibrar a grua no processo de telescopagem) cai.
Se houver o rompimento dos dentes das engrenagens (ou delas próprias, como
um todo) que fazem a transmissão de força dos motores para o tambor de montagem,
no processo de telescopagem, a grua também cai (e nada impede, pois o motofreio
atuaria por meio dessas engrenagens).
E, ainda, como já relatado, há o risco de tombamento da grua caso sua torre
seja erguida, pelo corpo telescópico, por uma altura superior à altura da lateral do
engravatamento, visto que a parte inferior dessa torre escaparia da 2ª gravata,
perdendo contato com a mesma.
A exposição ao perigo se dá nesse processo de forma constante, de modo que
não se poderia permitir que trabalhadores se submetessem a esse risco de acidentes.
Como explicitado anteriormente, todo o processo de telescopagem se assenta no uso
de apenas um cabo de aço e se qualquer das falhas apontadas anteriormente ocorrer,
independentemente de qual seja, haverá a queda descontrolada da grua. Não há
redundância dos componentes para que, caso um falhe, outro atue para impedir a
queda. Constata-se, portanto, que a operação de telescopagem dessa grua é
intrinsecamente insegura e essa condição decorre de atributos característicos de seu
projeto.
A inexistência de redundância colide frontalmente, inclusive, com a lógica da
segurança em máquinas expressa na ABNT NBR ISO 12100:2013 – “Segurança de
máquinas — Princípios gerais de projeto — Apreciação e redução de riscos”, que, em
seu item 6.2.12.4, que trata da minimização da probabilidade de falhas das funções
de segurança - entre as medidas de segurança inerentes ao projeto -, estabelece que:

No projeto de componentes ou partes relacionadas a sistemas de segurança


de máquinas, a duplicação (ou redundância) de componentes deve ser
utilizada de modo que, caso um componente falhe, outro componente, ou

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

484
componentes, continue(m) a desempenhar as respectivas funções,
garantindo assim que a função de segurança permaneça disponível.35

5.2 MANUTENÇÃO DA GRUA

A mera existência das situações perigosas anteriormente apontadas submete


os trabalhadores que interagem com esse equipamento, durante o processo de
telescopagem, a risco inaceitável. Esse risco decorre da própria concepção da
máquina, sendo característico e inerente a seu projeto. Tal situação pode ser
agravada pela inadequação da manutenção dessa máquina e pela desacertada
gestão de segurança do trabalho das empresas proprietárias e/ou utilizadoras da grua,
potencializando o risco de que graves acidentes ocorram.
Algumas das irregularidades constatadas na grua envolvida no acidente, no
que diz respeito a sua manutenção, e que, de alguma forma, concorreram (ou podem
ter contribuído) para a ocorrência do acidente, foram as seguintes:
- Descumprimento do item 18.14.24.15 da NR 18, que estabelece que:

Toda grua que não dispuser de identificação do fabricante, não possuir


fabricante ou importador estabelecido ou, ainda, que já tenha mais de 20
(vinte) anos da data de sua fabricação, deverá possuir laudo estrutural e
operacional quanto à integridade estrutural e eletromecânica, bem como,
atender às exigências descritas nesta norma, inclusive com emissão de ART
- Anotação de Responsabilidade Técnica – por engenheiro legalmente
habilitado.36

- Inexistência de comprovação de que o cabo de aço do tambor de montagem


houvesse sido inspecionado com a frequência indicada no 3.4.1.2 da ABNT NBR ISO
4309:2009 – “Equipamentos de movimentação de carga - Cabos de aço - Cuidados,
manutenção, instalação, inspeção e descarte”, que estabelece que “os cabos de
guindastes móveis e gruas devem ser inspecionados uma ou mais vezes ao mês,
conforme recomendação de uma pessoa qualificada”37.

35 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR ISO 12100: segurança de máquinas


— princípios gerais de projeto — apreciação e redução de riscos. Rio de Janeiro, 2013, p. 38.
36 BRASIL. Ministério do Trabalho. Norma Regulamentadora nº 18. Condições e meio ambiente de

trabalho na indústria da construção. Disponível em:


<https://enit.trabalho.gov.br/portal/images/Arquivos_SST/SST_NR/NR-18.pdf>. Acesso em: 27 jun.
2020.
37 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR ISO 4309: equipamentos de

movimentação de carga - cabos de aço - cuidados, manutenção, instalação, inspeção e descarte. Rio
de Janeiro, 2009, p. 5.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

485
- Manutenção preventiva e corretiva deficiente, que não abrangia todas as
partes da grua (os componentes de telescopagem não estavam incluídos).
- Além da inexistência de algumas das travas para impedimento do escape do
cabo de aço das polias do corpo telescópico, havia outros indícios de que as roldanas
(polias) da caixa telescópica não haviam sido submetidas a inspeção, sendo um
desses o fato de que uma dessas roldanas possuía um de seus aros com um pequeno
trecho quebrado.
- Contratação, por parte da empresa titular do empreendimento, de empresa
tecnicamente e legalmente não qualificada para realizar os serviços de montagem,
manutenção e desmontagem da grua. A empresa contratada não possuía responsável
técnico registrado no CREA/PE; não possuía engenheiro legalmente habilitado, com
vínculo a essa empresa, para supervisionar a implantação, instalação, manutenção e
retirada de gruas; e seus trabalhadores envolvidos na manutenção, inspeção e demais
intervenções em gruas não eram capacitados de forma compatível com suas funções
e com conteúdo que abordasse os riscos a que estavam expostos e as medidas de
proteção existentes ou necessárias.

6 CONCLUSÃO

Partindo-se dos fatores imediatos que desencadearam o acidente de trabalho


(entre os quais, o rompimento do cabo de aço e suas causas) e avaliando-se as
características do processo relacionado ao evento adverso (no qual se evidenciaram
as falhas de concepção do projeto da máquina), concluímos que a exposição de
pessoas à situação aqui descrita as expõe a grave risco de acidentes.
Entendemos que a gravidade das lesões físicas às quais os obreiros se
sujeitam (chegando a serem fatais) conjugada à existência de múltiplas fontes
independentes (descritas no item 5.1 deste artigo e nas quais não há redundância de
componentes de modo a garantir o desempenho das funções de segurança) cujos
defeitos individuais importam na queda da grua implicam a submissão desses
trabalhadores a risco grave e iminente e, portanto, a uma condição de lavor
inaceitável.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

486
A Norma Regulamentadora nº 3, que trata do processo de embargo e
interdição, define, em seu item 3.2.1, o grave e iminente risco como “toda condição ou
situação de trabalho que possa causar acidente ou doença com lesão grave ao
trabalhador”. Ainda, o item 3.2.2 dessa mesma norma dispõe que “embargo e
interdição são medidas de urgência adotadas a partir da constatação de condição ou
situação de trabalho que caracterize grave e iminente risco ao trabalhador”38.
Necessário se faz, pois, a aplicação de medida administrativa cautelar de interdição
da interação dos trabalhadores com as máquinas que os submetam aos riscos aqui
identificados.
Não há, no arcabouço normativo pátrio, diretrizes ou regulamentos que deem
amparo à utilização de grua ascensional cujo processo de telescopagem se assente
em sistema de transferência de esforços que utiliza um mastro e um corpo telescópico
movimentados por cabo de aço, tal qual a grua debatida neste texto. A Norma
Regulamentadora nº 18, quando trata da operação de telescopagem de gruas, o faz
considerando-se apenas aquela implementada por meio de sistema hidráulico.
Igualmente, não foram identificadas normas técnicas nacionais ou
internacionais que estabeleçam preceitos para o sistema de telescopagem utilizado
nessa grua.
É possível, por meio de buscas na internet, encontrar exemplares desse
modelo de grua à venda e para locação. Isso demonstra que acidentes de mesma
natureza, decorrentes da exposição aos mesmos riscos aqui descritos, podem ocorrer
a qualquer momento. Se faz necessária, deste modo, a regulação do Estado para
impedir que outros trabalhadores sofram acidentes graves ou mesmo que percam
suas vidas nesse processo. E acreditamos que esse problema deve ser enfrentado
pelo Estado brasileiro por meio da ação dos diversos órgãos que possuem atribuições
relacionadas a essa matéria, afinal:

Cabem aos agentes que estão inseridos e constituem a regulação do


trabalho, dentro e fora do Estado, e que efetivamente se dispõem a defender
a vida, tomar partido, resistir e avançar contra a ampla ofensiva que tem

38BRASIL. Ministério do Trabalho. Norma Regulamentadora nº 3. Embargo e interdição. Disponível


em: <https://enit.trabalho.gov.br/portal/images/Arquivos_SST/SST_NR/NR-03-atualizada-2019.pdf>.
Acesso em: 27 jun. 2020.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

487
intentado solapar os chamados patamares civilizatórios mínimos de produção
da riqueza social.39
A atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho, interditando a operação dessas
máquinas quando as encontrar nessa situação que submete os trabalhadores a grave
e iminente risco, é ação importante e imprescindível, mas não nos parece suficiente
para enfrentar o problema. Urge inserir a proibição expressa de seu uso no texto da
Norma Regulamentadora nº 18, que trata das condições e meio ambiente de trabalho
na indústria da construção, ou da Norma Regulamentadora nº 12, que versa sobre
segurança no trabalho em máquinas e equipamentos.

REFERÊNCIAS

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trabalho de auditores-fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego. In: ALMEIDA, I. M.
(org). Caminhos da análise de acidentes do trabalho. 1. ed. Brasília: MTE, SIT,
2003.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR ISO 4309:


equipamentos de movimentação de carga - cabos de aço - cuidados, manutenção,
instalação, inspeção e descarte. Rio de Janeiro, 2009.

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da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial União, Brasília, DF, 25
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Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

489
ACCIDENT ANALYSIS AND RISK CHARACTERIZATION OF
A TOWER CRANE CLIMBING SYSTEM CONSISTING OF A
STRESS TRANSFER MECHANICAL SYSTEM

ABSTRACT
The objective of the present work is to expose the existing risks
in the climbing operation of a tower crane that employs, for its
elevation, a mechanical jacking system that consists of a set of
telescopic mast and body moved by steel wire rope pulled by the
crane's mounting drum. The identification of the problem comes
from the conclusions of the analysis of a work accident that
occurred with a tower crane in 2019. This analysis was carried
out through inspections carried out at the construction site where
the accident occurred, during which interviews were conducted
with the professionals directly and indirectly involved in this
adverse event, and a careful evaluation of the parts of the crane
that were possibly involved in the genesis of the accident event -
in addition to the appreciation of other parts of this machine that
could originate different accidental sequences potentially
generating similar outcomes. The workers involved in this
climbing operation are at risk of being crushed by the crane
structure when, under it, they must handle the elements intended
to support it, for example. The magnitude of the physical injuries
to which workers are subjected together with the existence of
multiple independent sources (in which there is no redundancy
of components aimed at guaranteeing the effectiveness of safety
functions) whose individual defects entail the fall of the crane
imply subjecting workers to serious and imminent risk and,
therefore, to an unacceptable working condition. In view of this,
it is proposed to insert the prohibition of its use in the text of
regulatory norms of the current Ministry of Economy.
Keywords: Tower crane. Climbing system. Work accident.

Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho – Ano 4

490

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