A Hora Da Estrela
A Hora Da Estrela
A Hora Da Estrela
Clarice Lispector: depoimento para a posteridade no Museu da Imagem e do Som, em 20 de outubro de 1976.
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Sabe-se hoje, inclusive, que ela participara da Passeata dos Cem Mil, a maior manifestação popular realizada
contra a ditadura, em 26 de junho de 1968, no Rio. Após o ato, a escritora teria se reunido com religiosos,
sindicalistas e artistas Colégio Santo Inácio e discursado sobre “a necessidade de união das classes contra a
ditatura”. O SNI também lembrou que, em janeiro daquele ano, ela dissera, ao jornal Última Hora, que os
estudantes “têm toda razão em lutar por um mundo menos podre do que este que vivemos atualmente”. E que,
em junho de 1962, ela assinara um manifesto de intelectuais em apoio à política externa de San Tiago Dantas,
chanceler do João Goulart, derrubado pelos militares. Clarice, cujo marido, Maury Gurgel Valente, era
diplomata, fora amiga de Dantas. Documentos descobertos por Teresa Montero (À procura da própria coisa)
revelam que a ditadura não considerava Clarice alienada. A escritora foi fichada pela polícia política. Em junho
de 1973, o Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um pequeno dossiê sobre ela composto por dois
telegramas, cópias de documentos como as certidões de casamento e de desquite de Clarice, além de cinco
telexes.
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3) Sobre Macabéa:
A) Os primeiros aspectos definidores de Macabéa são os de sua modesta origem social
(“Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num
quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa”). Órfã, criada por uma tia repressora, ela é
feia, virgem, gosta de coca-cola, passa um pouco de fome e trabalha como datilógrafa no Rio
de Janeiro.
B1) No entanto, o aspecto predominante de sua medíocre personalidade é o seu despreparo
para a vida inteligente. É tão tola que sorri para as pessoas na rua, mas ninguém lhe
responde ao sorriso porque sequer a olham. Sua própria cara expressa tanta pobreza mental
que parece pedir para ser esbofeteada (LEMBRAR BAUDELAIRE D’OS PEQUENOS
POEMAS EM PROSA. SPLEEN DE PARIS). Em síntese, trata-se de um ser ínfimo, de uma
“alma rala”.
B2) A principal característica de Macabéa é, assim, a sua completa alienação. Ela não sabe
nada de nada. A palavra realidade não lhe dizia nada. (...) Ela somente vive, inspirando e
expirando, inspirando e expirando. (...) Nenhuma coisa importante jamais acontecera em sua
vida:
Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manhã. (...).
Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. (...)
A sua inconsciência não resulta apenas da ignorância do mundo. Ela se desconhece:
“Quando acordava não sabia mais quem era”. Às vezes, diante do espelho, não se
enxergava, como se a sua tivesse sumido. A todo instante, Rodrigo S. M. registra a alienação
de Macabéa, a sua incapacidade de percepção. Por isso, a jovem nordestina vive a dimensão
do não-ser.
Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu” cairia estatelada no chão (...)
Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu. Assustou-se tanto que parou
completamente de pensar. (...)
“Essa moça não sabia que ela era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não
se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. (...)
Sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si
mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. (...)
Encontrar-se consigo própria era um bem que até então ela não conhecia.(...)
Algumas definições que Rodrigo S.M. elabora para Macabéa são tragicamente líricas:
Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim. (...)
Tornara-se apenas vivente em sua forma primária. (...) Era apenas fina matéria orgânica.
Existia. Só isto.
c) Quase nula é a compreensão de Macabéa a respeito da existência, seja a sua, seja a da
humanidade em geral. Normalmente, ela age no limite da incompreensão e da tolice: pede
desculpas ao patrão por tê-lo aborrecido quando este se dispõe a demiti-la; agradece ao
médico que lhe diagnostica a tuberculose e quando este ironicamente lhe receita espaguete,
ela ignora o que seja isso; e no momento em que o namorado, Olímpico, lhe dá o fora, põe-se
sem mais nem menos a rir. Nada a desespera, nem saber que não faz falta a ninguém ou que é
muito feia e desinteressante. (“Ser feia dói?”, pergunta-lhe Glória.). Tampouco o futuro a
preocupa, ela não tem futuro como não tem passado, nem presente, porque na verdade ela não
existe, ela é como um vegetal: “Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era
capim”.
A sua pobre cultura, originária das informações inúteis da Rádio Relógio, são risíveis:
O Imperador Carlos Magno era chamado na terra dele de Carolus. (...)
Você sabia que a mosca voa tão depressa que se voasse em linha reta ia passar pelo mundo
todo em 28 dias? (...)
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Igualmente hilariante é o diálogo que trava com o namorado, usando dados desta cultura de
almanaque:
Macabéa: – O que quer dizer eletrônico?
Olímpico: – Eu sei, mas não quero dizer.
Macabéa: – O que quer dizer “renda per capita”? Olímpico: – Ora, é fácil, é coisa de médico.
d) As pouquíssimas revelações (epifanias) que Macabéa experimenta não lhe suficientes
para a formação de uma identidade. Certa ocasião, chorara ao ouvir Una furtiva lacrima,
na interpretação de Caruso, (“Adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia
existências mais delicadas e até com certo luxo de alma”.) Outro dia, em que não fora
trabalhar e ficara sozinha no quarto, tinha dançado “num ato de absoluta coragem.” Porém, a
descoberta efetiva do próprio ser ocorreria apenas no breve momento que segue o
atropelamento. Ao ser atropelada, Macabéa descobre a sua essência: “Hoje, pensou ela, hoje
é o primeiro dia de minha vida: nasci”. Há uma situação paradoxal: ela só nasce, ou seja, só
chega a ter consciência de si mesma, na hora de sua morte. Por isso antes de morrer repete
sem cessar: “Eu sou, eu sou, eu sou, eu sou”.
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NOMES PERSONAGENS:
1. Macabéa – referência a Judas Macabeu, herói de um povo que, segundo a Bíblia,
triunfou sobre todas as adversidades. Ridicularizado por Olímpico como nome que até
parece doença, doença de pele (ele confunde “Macabéa” com morfeia, cf. Arêas, p.
105), é um índice irônico do fracasso da heroína de A hora da estrela, representante
muda e dócil de uma resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o
direito ao grito (p. 96). A raça-anã seria releitura da famosa definição euclidiana do
sertanejo: “O sertanejo é antes de tudo um forte”? Vimos o risco do conformismo
nessas releituras. Sobre alusão bíblica, cf. tb. Arêas, p.93.
Acho, porém, que pode haver outras implicações na referência bíblica, conforme a definição
de macabeus (makabim ou maqabim, "martelos"), que foram os integrantes de um exército
rebelde judeu que assumiu o controle de partes da Terra de Israel, até então um Estado-
cliente do Império Selêucida (um estado político helenista que existiu após a morte de
Alexandre III da Macedónia). Os macabeus fundaram a dinastia dos Hasmoneus, que
governou de 164 a 63 a.C., reimpuseram a religião judaica, expandiram as fronteiras de
Israel e reduziram no país a influência da cultura helenística. Seu membro mais conhecido
foi Judas Macabeu, assim apelidado devido à sua força e determinação. Os macabeus
durante anos lideraram o movimento que levou à independência da Judéia, e que
reconsagrou o Templo de Jerusalém, que havia sido profanado pelos gregos. Após a
independência, os hasmoneus deram origem à linhagem real que governou Israel até sua
subjugação pelo domínio romano em 63 a.C.. Com a proibição em 167 a.C. da prática do
judaísmo pelo decreto de Antíoco IV e com a introdução do culto do Zeus Olímpico no
Templo de Jerusalém, muitos judeus que decidem resistir a esta assimilação acabam sendo
perseguidos e mortos.
2. Olímpico – há uma dupla tensão no nome deste cabra safado que era um diabo
premiado e vital (p. 71) porque ele tinha como sobrenome apenas o de Jesus, nome
dos que não têm pai (p. 54), mas mente o próprio nome. Note-se: Olímpico X de
Jesus X Moreira Chaves. Há uma tensão entre o de Jesus e os outros dois nomes, que
evidenciam uma preocupação consciente com a ostentação de status social;
encarnação degradada do self made man (Franco Jr., p.62) De Olimpo, nome de vários
montes da Grécia, em especial o monte entre a Tessália e a Macedônia; de aspecto
grandioso, majestoso, sublime.
3. Glória – brilho, esplendor, honra, riqueza, estima, majestade, magnificência; irônico:
cheia de carnes, filha de açougueiro, mulata loira oxigenada
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LINGUAGEM E ESTILO: Arêas, pp.88-89-90; Arnaldo Franco Jr. apropriação irônica, por
Rodrigo S.M., de clichês e frases-feitas, tomados no plano popular e inserido no plano
literário (p.64); empilhamento e sinestesia (Moles reconhece como características do kitsch,
que se caracteriza justamente pelo exagero sentimentalista, melodramático ou sensacionalista,
freq. com a predileção do gosto mediano ou majoritário, e pela pretensão de, fazendo uso de
estereótipos e chavões inautênticos, encarnar valores da tradição cultural (diz-se de objeto ou
manifestação de teor artístico ou estético); explorado pela indústria cultural; estrutura do
cúmulo (fait divers, notícia cujo interesse reside naquilo que tem de insólito, extraordinário,
surpreendente) (Franco Jr, p. 62 n. 6)..
fora ou anterior à linguagem. Procurando apresentar a idéia do autor como sujeito social e
historicamente constituído, Barthes o vê como um produto do ato de escrever - é o ato de
escrever que faz o autor e não o contrário. Para ele um escritor será sempre o imitador de um
gesto ou de uma palavra anteriores a ele, mas nunca originais, sendo seu único poder mesclar
escritas. Barthes retira a ênfase de um sujeito que tudo sabe, unificado, intencionado como o
"lugar" de produção da linguagem, esperando assim libertar a escrita do despotismo da obra -
o livro”.
Um ano depois, Michel Foucault em “O que é um autor?” retoma a questão e, embora
reconheça, a inanidade do conceito tradicional de autor (i. é., a ideia de autor empírico
justaposto ou coincidindo com o que Aguiar e Silva nomeia de autor textual, enunciador do
texto), avança no sentido de reconhecer que o desaparecimento “desse” autor não equivale ao
desaparecimento autoral “tout court”. Ou seja, que o conceito de autor de algum modo excede
o que podemos pensar como autor empírico, como escritor, em suma. Foucault propõe, então,
o conceito de “função autor”, que ele significativamente define como “característico do modo
de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma
sociedade.” (Foucault, 1969). O que está em causa, pois, são os modos e condições de
existência social do discurso, ou seja, o facto de que, ao contrário do que propunha Barthes
com uma escrita anonimizada, para Foucault é a noção de discurso, bem como a inscrição
social e simbólica do sujeito, que estão na raiz da reconfiguração da noção de autor (ou, mais
precisamente, da função autor - e a introdução desta precisão implica, justamente, que o que
aqui está em questão não é já tanto a coincidência entre autor empírico e autor textual como,
pelo contrário, os modos “excedentários” pelos quais este último continua a manifestar-se,
mesmo depois do afastamento daquele outro)2.
Esses ensaios foram divisores de água, que levariam críticos posteriores a seguir nesse
mesma esteira, como Genette, ao lado de outros que, com alguma variabilidade e formulações
algo flutuantes, aceitam a existência de uma formulação autoral distinta da instância
narradora, e que recebe designações como por exemplo “autor implícito” (Booth, 1961) 3,
“Autor Modelo” (Eco, 1985 e 1995), “autor postulado” (Nehamas, 1981, 1986 e 1987),
2
“A "função-autor" não se constrói simplesmente atribuindo um texto a um indivíduo com poder criador, mas se
constitui como uma "característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns
discursos no interior de uma sociedade" (Foucault, 1992, pág. 46), ou seja, indica que tal ou qual discurso deve
ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. O que faz de um
indivíduo um autor é o fato de, através de seu nome, delimitarmos, recortarmos e caracterizarmos os textos que
lhes são atribuídos.
3
Wayne Booth, A retórica da ficção: autor implícito:
“(...) o autor não desaparece mas se mascara constantemente, atrás de uma personagem ou de uma voz
narrativa que representa. A ele devemos a categoria de autor implícito, extremamente útil para dar conta do
eterno recuo do narrador e do jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis da narração”. (Chiappini:
1991:18).
De forma correlata a Luiz Costa Lima, Maria Lucia Dal Farra, em O Narrador Ensimesmado afirma que o autor
é um manejador de disfarces, que encoberto pela ficção insurge do interior da narrativa denunciando sua
presença através da escolha sígnica, da pontuação e das personagens que cria para deixar a sua marca.
Mas esse jogo entre autor implícito, narrador e personagens só pode ser feito por meio do leitor. Ao discutir o
conceito de Booth, Chiappini nos diz que o deslocamento do ponto de vista pode, a princípio, nos confundir,
pois corremos o risco de cair em psicologismos ou confundir personagens com pessoas ou, ainda, confundir
autor real com autor ficcional. Segundo a autora, Booth tomou os devidos cuidados ao considerar a obra na sua
materialidade. E acrescenta ainda que,
“O AUTOR IMPLÍCITO é uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos
do NARRADOR, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do
espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as
personagens envolvidas na HISTÓRIA.” (1991:19).
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“autor inferido” (Chatman, 1990; Rimmon-Kenan, 1983), “autor textual” (Aguiar e Silva,
1986).
Para vários intérpretes, a presença ostensiva do Rodrigo S.M., os impasses literários ou
mesmo existenciais que ele coloca, faz de A hora da estrela, entre outras coisas, um “drama
de linguagem” (expressão de Benedito Nunes), além de um questionamento metafísico sobre
o significado último da existência. Argumentam que escrever, para Rodrigo S.M., é algo mais
do que contar uma história ou fixar um drama social. Escrever é questionar-se o tempo todo:
“Este livro é uma pergunta.”. É, ao mesmo tempo, uma busca de autoconhecimento
(“Desculpai-me, mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido.”); é uma
tentativa de encontrar significado para a existência fora da própria interioridade (“Bem sei
que é assustador sair de si mesmo.”); e é, também, uma suspensão parcial da morte:
(“Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser
e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os
dias.”). Mesmo assim, o narrador experimenta um forte sentimento de fracasso da linguagem
e a certeza de que a literatura não resolve os problemas humanos. As primeiras vinte páginas
do texto são de discussão dos problemas que Rodrigo S.M. enfrenta para escrever.
Mas ainda que se aceite essa interpretação sobre o conflito da escrita, o drama da linguagem e
as indagações existenciais, é bom observar que elas só se colocam aí em vista da alteridade,
do outro social que está no centro da cena. É em vista desse outro que se coloca a indagação
pelo próprio lugar social, a reflexão sobre a linguagem, o estilo e o modo de escrita e o de
narrar a serem adotados. Sabemos que o narrador se atormenta ao escrever uma novela sobre
uma jovem nordestina. Questiona o tempo inteiro o seu próprio modo de narrar, o seu estilo,
a sua capacidade de compreender Macabéa, moça de extração sócio-cultural humilde.
Simultaneamente, tenta desvelar o jogo complicado que o seu texto empreende entre a ficção
e a realidade.
É em função desse seu outro social que aflora também uma questão central na obra: o
sentimento de culpa social ou má consciência do narrador em relação à Macabéa. A
consciência que, de alguma maneira, ele é co-responsável pela pobreza econômica e
existencial da jovem nordestina o atormenta:
Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela.(...)
Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de
algum modo um desonesto. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com
desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. (...)
Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa. (...) A moça é uma verdade da
qual eu não queria saber.(...) Não sei a quem acusar, mas deve haver um réu.(...)
A respeito dessa culpa, diz ainda Suzi Frankl Sperber, em “Jovem com ferrugem”:
“Em a Hora da estrela emerge o sentimento de culpa e de responsabilidade de antes do
começo e para depois do fim. Sentimos a surpresa da identidade possível entre o outro e o eu,
o que nos confunde. O livro parece ainda ser uma resposta a uma cobrança: ‘O final foi
bastante grandioso para a vossa necessidade?’”. Os títulos encenam esses conflitos: A
CULPA É MINHA; ELA QUE SE ARRANJE; ELA NÃO SABE GRITAR; SAÍDA
DISCRETA PELA PORTA DOS FUNDOS. “É a tematização do sentimento de culpa, com o
correspondente ódio pela responsabilidade que recai sobre quem observa o indivíduo
inconsciente de sua miséria; é a defesa de si mesmo por parte do leitor, que assim quer fugir
da responsabilidade que cairia sobre ele”.
Há certos aspectos a se observar nesse Narrador e que diz respeito ao seu lugar social (de
classe), à sua perspectiva ideológica e a sua atitude em relação à sua heroína. Aspectos esses
que podem, por vezes, parecer contraditórios, certamente intencional e profundamente
irônicos e que nos leva a indagar sobre seu sentido último. Assim, apenas para citar alguns
exemplos, ao mesmo tempo que tematiza o sentimento de culpa e má consciência; denuncia a
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condição de vida abjeta de sua (anti-)heroína e vê a jovem como alguém que merece amor,
piedade e até um pouco de raiva, por sua patética alienação, por outro lado, ele carrega nas
tintas de sua imagem clownesca e de suas limitações (chegando ao cúmulo da miséria e da
inocência, beirando a idiotia), não faltando notas de sadismo (talvez para conter o apelo
sentimental, segundo Franco Jr4.) e referindo-se por vezes a uma atitude de desprezo e de
arrogância de classe:
“é mesmo uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-
povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é?”.
Em outros momentos, porém, superando a distancia de classe, chega a se identificar tanto
com ela a ponto de se confundirem:
Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para ela. (...)
Essa história será um dia o meu coágulo... (...)
Vejo a nordestina se olhando ao espelho e – um rufar de tambor – no espelho aparece o meu
rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos intertrocamos. (...)
Sobre a posição social e ideológica de Rodrigo S.M., diz Arêas que ele é definido por
negatividades: “não tem classe social definida; embora consciente não reage ao mundo
reificado e administrado; e não tem ética, pois aceita ser financiado pela Coca-Cola” (p. 77) –
que, como se deve saber, à época era rejeitada pelos mais engajados radicais como símbolo
do imperialismo yankee (ver ref. P. 23). Além disso, nas primeiras páginas, encena uma algo
cínica nostalgia da antiga pobreza, quando tudo era sóbrio e digno e não havia ainda comido
lagosta e mais adiante, depois de reconhecer que a pobreza é “feia e promíscua”, diz que,
para captar a alma de sua protagonista, “precisa se alimentar frugalmente de frutas e beber
vinho branco gelado”, por causa da calor no cubículo em que se trancou e no qual não tem
contato algum com o mundo, nem sexo nem futebol... (p.22-23). O próprio N. fala de sua
posição social de modo significativo na p. 19.
FORMAS COM QUE DIALOGA: formas cultas e populares: Franco Jr.: recursos do
romance folhetim, do melodrama, do romance social neo-realista e de um repertório kitsch.
Por meio da articulação de recursos e procedimentos característicos de tais gêneros
romanescos e, também, de recursos estruturais do conto maravilhoso e da chamada notícia
miúda (fait divers), a escritora tensiona a polaridade arte de vanguarda X kitsch característica
do Modernismo. Ambiguamente, reafirma tal polaridade para melhor questionar a hierarquia
de valores dela derivada. Neste sentido, Clarice Lispector estabelece, no plano metaficcional
de seu romance, uma crítica a determinadas utopias da arte moderna que balizaram alguns
dos parâmetros de avaliação da crítica literária brasileira no século XX.
Em A hora da estrela (1977), Clarice Lispector vale-se de estruturas e procedimentos
característicos do folhetim e do melodrama – identificados, sob uma perspectiva modernista,
como kitsch – para, via encenação, dramatizar o embate entre um intelectual de classe-média
e uma migrante nordestina miserável. O romance coloca em crise a utopia [...] do que se
convencionou chamar de arte engajada, irmanando-se às estéticas contemporâneas críticas do
4
Ele chega a falar em exercício de crueldade e sadismo, p. 62-63.
12
tour de force típico das vanguardas heróicas do final do século XIX e início do século XX.
Por meio da mobilização de recursos do folhetim e do melodrama e, também, por meio da
utilização de recursos característicos da arte de vanguarda (fragmentariedade,
metalinguagem, experimentação), A hora da estrela encena, no contraste estabelecido entre
os blocos discursivos característicos de um e de outro gêneros (com suas respectivas
vinculações a distintos estratos estético-ideológicos e socioeconômicos), uma dupla crise: a
do intelectual diante do pobre, a da escritora diante da escrita e da criação literárias. Clarice,
em entrevista, classificou A hora de estrela como novela (Lerner, 1992, p. 68), e não é difícil
reconhecermos, no livro, a aproximação com o sub-gênero literário de difícil classificação,
situado entre o romance e o conto, e uma aproximação com o que vulgarmente se reconhece
no rótulo novela: os gêneros populares de narrativa “industrializada”, a subliteratura, o
“romance de empregada”, a fotonovela, a novela de rádio e de TV – produtos que, no Brasil,
se expandem com o desenvolvimento e a consolidação da indústria cultural a partir dos anos
40/50 do séc. XX. [...]Há em A hora da estrela um viés metalinguístico de função irônica que
acompanha o fazer e a reflexão sobre o fazer literário. Este viés serve: a) para dissociar o
discurso estético sofisticado, identificado com o narrador-criador Rodrigo S. M., do discurso
folhetinesco-melodramático identificado com Macabéa; b) para, simultaneamente,
identificar um e outro gêneros discursivos e, a partir de tal identificação, operada pela
reversão do sentido dos signos característica do projeto literário clariciano, desconstruir
como folhetim/melodrama a pretensão de engajamento crítico do intelectual em favor do
miserável; c) questionar a estigmatização modernista da função e do alcance crítico do dado
sentimental em arte.
Segundo Silviano Santiago a literatura de Clarice, que inaugura uma tradição sem fortuna,
desafortunada, feminina e, por ricochete, subalterna (1997, p. 05) na literatura brasileira,
sempre se marcou pelo confronto com a “ingenuidade naturalista” dos anos 30 e 40 (1997,
05) e com a crítica de orientação luckacsiana que supervaloriza o cânone realista imposto
pelo romance oitocentista europeu (1997, p. 05). [...] Em A hora da estrela é a escrita
sofisticada, metairônica e crítica de Rodrigo S. M. que devora o folhetinesco e o
melodramático para tentar vender-se como literatura engajada. Clarice desconstrói, na própria
tecedura do romance, marcada pelas idas e vindas do criador à história de sua criatura e à
reflexão sobre a sua atividade de criação, o intelectual que usa o pobre como objeto de estudo
(Gotlib, 1988, p. 31), transformando a miséria em pretexto para a construção de um discurso
que visa justificar a sua função social e aliviar o seu sentimento de culpa. A capacidade
desmitificadora de Clarice desmascara tanto o sentimentalismo pseudo-feminino quanto o
racionalismo pseudo-masculino. E com sutil e perversa ironia, alerta para a atitude ambígua –
e por vezes pérfida – do intelectual brasileiro, cuja força de gravitação reside neste trabalho
por vezes humilde e cheio de boas intenções, mas por razões quem sabe de contexto social,
marcado, por vezes involuntariamente, ora por um incontrolável pendor para a pieguice, ora
pela sua inevitável e ávida prepotência competente. (GOTLIB, 1988, p. 31). O romance não
repõe a oposição vanguarda X kitsch característica do Modernismo, ele investe na abordagem
crítica dos limites, impasses, mistificações e alienações vinculadas a tal polaridade por meio
de uma impiedosa desconstrução do eixo de oposições binárias dela derivado. A hora da
estrela alimenta-se dos recursos característicos do romance folhetim e do melodrama,
apropria-se dos propósitos e procedimentos neo-realistas do romance social que marcaram a
literatura brasileira nas décadas de 30-40, estendendo-se, nas décadas de 50-60 e, mesmo, 70
do séc. XX, ao cinema, ao teatro e à música popular para, operando com uma identificação
dos signos e recursos de um aos signos e recursos do outro, realizar a crítica de ambos ao
mesmo tempo em que se realiza como ambivalente e irônica autocrítica. A habilidade de
Clarice para fazer convergirem os signos e os sentidos, aparentemente opostos e rivais, do
folhetim/melodrama e do romance social torna-se evidente na impossibilidade de isolarmos
13
uma e outra instâncias discursivas no romance. Lispector enovela os dois gêneros tornando-
os Indissociáveis [...] A hora da estrela encena, por fim, uma revisão crítica da utopia que
anima as ilusões da própria vanguarda que acreditou ser possível mudar a realidade a partir
da elaboração de mensagens conscientizadoras e/ou a partir da experimentação lingüística
que criou textos “revolucionários”. Não é, pois à toa, que Rodrigo S. M. pergunta a si mesmo
e a nós se, afinal, palavra é ação. A hora da estrela é um romance anti-utópico. Ele atinge o
desmantelamento da utopia que anima tanto o projeto da vanguarda política – ligado aos
movimentos e organizações de esquerda que marcaram a vida cultural do Brasil desde os
movimentos modernistas da década de 30 e, particularmente, as décadas de 60-70 do séc. XX
– como o projeto da vanguarda estética, também profundamente vinculado à política. Tal
desmantelamento se dá por meio da previsibilidade que incide sobre a narrativa de Macabéa e
da ironia em relação ao emolduramento desta pela metanarrativa que desmascara, na
construção do texto, a boa consciência do intelectual política e esteticamente de vanguarda. A
crise da utopia quase esgota as possibilidades de saída para o impasse que o romance enuncia
e o decorrente mal-estar que a consciência de tal esgotamento produz. Sem negar a herança
modernista de um maneira linear e ingênua, A hora da estrela, bem como o projeto literário
de Clarice Lispector tal como aqui o compreendemos, caracteriza-se pela visada crítica e pela
desconfiança em relação à pletora utópica das vanguardas modernistas, colocando-a em causa
e em crise.”
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3) Sobre Macabéa:
A) Os primeiros aspectos definidores de Macabéa são os de sua modesta origem social
(“Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num
quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa”). Órfã, criada por um tia repressora, ela é
feia, virgem, gosta de coca-cola, passa um pouco de fome e trabalha como datilógrafa no
Rio de Janeiro.
B1) No entanto, o aspecto predominante de sua medíocre personalidade é o seu despreparo
para a vida inteligente. É tão tola que sorri para as pessoas na rua, mas ninguém lhe
responde ao sorriso porque sequer a olham. Sua própria cara expressa tanta pobreza mental
que parece pedir para ser esbofeteada (LEMBRAR BAUDELAIRE DOS PEQUENOS
POEMAS EM PROSA. SPLEEN DE PARIS). Em síntese, trata-se de um ser ínfimo, de uma
“alma rala”.
B2) A principal característica de Macabéa é, assim, a sua completa alienação. Ela não sabe
nada de nada. A palavra realidade não lhe dizia nada. (...) Ela somente vive, inspirando e
expirando, inspirando e expirando. (...) Nenhuma coisa importante jamais acontecera em sua
vida:
Mas vivia em tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manhã. (...).
Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. (...)
A sua inconsciência não resulta apenas da ignorância do mundo. Ela se desconhece:
“Quando acordava não sabia mais quem era”. Às vezes, diante do espelho, não se
enxergava, como se a sua tivesse sumido. A todo instante, Rodrigo S. M. registra a alienação
de Macabéa, a sua incapacidade de percepção. Por isso, a jovem nordestina vive a dimensão
do não-ser.
Se tivesse a tolice de se perguntar “quem sou eu” cairia estatelada no chão (...)
Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu. Assustou-se tanto que parou
completamente de pensar. (...)
“Essa moça não sabia que ela era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não
se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não, sabia para quê, não se indagava. (...)
Sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si
mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. (...)
Encontrar-se consigo própria era um bem que até então ela não conhecia.(...)
Algumas definições que Rodrigo S.M. elabora para Macabéa são tragicamente líricas:
Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim. (...)
Tornara-se apenas vivente em sua forma primária. (...) Era apenas fina matéria orgânica.
Existia. Só isto.
c) Quase nula é a compreensão de Macabéa a respeito da existência, seja a sua, seja a da
humanidade em geral. Normalmente, ela age como uma mentecapta: pede desculpas ao
patrão por tê-lo aborrecido quando este se dispõe a demiti-la; agradece ao médico que lhe
diagnostica a tuberculose e quando este ironicamente lhe receita espaguete, ela ignora o que
seja isso; e no momento em que o namorado, Olímpico, lhe dá o fora, põe-se sem mais nem
menos a rir. Nada a desespera, nem saber que não faz falta a ninguém ou que é muito feia e
desinteressante. (“Ser feia dói?”, pergunta-lhe Glória.). Tampouco o futuro a preocupa, ela
não tem futuro como não tem passado, nem presente, porque na verdade ela não existe, ela é
como um vegetal: “Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim”.
A sua pobre cultura, originária das informações inúteis da Rádio Relógio, são risíveis:
O Imperador Carlos Magno era chamado na terra dele de Carolus. (...)
Você sabia que a mosca voa tão depressa que se voasse em linha reta ia passar pelo mundo
todo em 28 dias? (...)
Igualmente hilariante é o diálogo que trava com o namorado, usando dados desta cultura de
almanaque:
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visualiza na morte de Macabéa a sua própria: “Meu Deus, só agora me lembrei que a gente
morre. Mas – mas eu também?!”
b) A conclusão implícita do narrador é a de que ele, Macabéa e a própria Clarice, apesar das
diferenças sociais, intelectuais e de visão de mundo que os separavam, tinham uma
identidade comum, irmanavam-se e convergiam para um mesmo destino, simbolizado pela
metáfora “a hora da estrela”, ou seja, a morte, “pois na hora da morte a pessoa se torna
brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um, e é quando como no canto coral
se ouvem agudos sibilantes”.
c) Numa série de doze títulos paralelos que Clarice – no corpo do próprio texto – estabelece
para A hora da estrela figura um último, que é uma espécie de pungente referência a
Macabéa, a Rodrigo S.M. e a própria Clarice: “Saída discreta pela porta dos fundos”.
Um dos momentos culminantes de Henfil e do próprio Pasquim foi o Cemitério dos Mortos-
Vivos. Nele, o cartunista enterrava, com sete palmos de desacato e desprezo, personalidades
que, a seu juízo, simpatizavam com a ditadura, ou se omitiam politicamente. Nessa espécie de
"tribunal da causa justa" — precursor do politicamente correto —, Henfil pôs a nu falhas de
caráter, oportunismos de toda ordem e desvios ideológicos. "Caráter não dá cupim", era a sua
frase favorita ao exigir máxima coerência das pessoas. Ele assim se explicou ao jornal
estudantil WO (agosto de 1973):
O Cemitério dos Mortos Vivos, onde Henfil enterrava colaboradores do gerenciamento
militar pró-imperialismo, causou grande polêmica no início da década de 70. Nesse cemitério
foram enterrados Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre, Roberto Campos, Hebe Camargo,
Sérgio Mendes, Elis Regina, Rachel de Queiroz, Filinto Müller, Bibi Ferreira, Clarice
Lispector, Plínio Salgado, toda “Tradição, Família e Propriedade” (TFP), Pelé, Josué
Montello, dentre muitos outros. Por pressão do Pasquim deixou de enterrar Jorge Amado, do
qual cobrava um mínimo de coerência com seu passado no PCB.
Por essas e outras, Henfil foi chamado de “patrulheiro ideológico” e acusado de atirar sem
critério. Mas nunca errou o alvo. Ele sabia que a aparente ingenuidade servia muitas vezes de
subterfúgio e absolvição para os que, direta ou indiretamente, se favoreciam da exploração e
da censura. Naquele momento, ele pensava que todos tinham um inimigo comum: a ditadura
fascista. E cobrava participação, principalmente, dos artistas, que nunca poderiam se omitir.
Para esses, Henfil cunhou o termo “patrulha odara” (dirigido, principalmente, a Gil, Caetano
e Glauber Rocha), por suas atitudes covardes diante do regime. De suas críticas também não
escaparam aqueles que apoiavam a abertura “lenta, gradual e segura” do Geisel, ou os
Festivais Internacionais da Canção promovidos pela Rede Globo nos anos 60 e 70, que
serviam para desviar a atenção dos acontecimentos políticos e favorecer a divulgação da
música estrangeira mais espúria.
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20
LINGUAGEM E ESTILO: Arêas, pp.88-89-90; Arnaldo Franco Jr. apropriação irônica, por
Rodrigo S.M., de clichês e frases-feitas, tomados no plano popular e inserido no plano
literário (p.64); empilhamento e sinestesia (Moles reconhece como características do kitsch,
que se caracteriza justamente pelo exagero sentimentalista, melodramático ou sensacionalista,
freq. com a predileção do gosto mediano ou majoritário, e pela pretensão de, fazendo uso de
estereótipos e chavões inautênticos, encarnar valores da tradição cultural (diz-se de objeto ou
manifestação de teor artístico ou estético); explorado pela indústria cultural; estrutura do
cúmulo (fait divers, notícia cujo interesse reside naquilo que tem de insólito, extraordinário,
surpreendente) (Franco Jr, p. 62 n. 6)..
FORMAS COM QUE DIALOGA: formas cultas e populares: Franco Jr.: recursos do
romance folhetim, do melodrama, do romance social neo-realista e de um repertório kitsch.
Por meio da articulação de recursos e procedimentos característicos de tais gêneros
romanescos e, também, de recursos estruturais do conto maravilhoso e da chamada notícia
miúda (fait divers), a escritora tensiona a polaridade arte de vanguarda X kitsch característica
do Modernismo. Ambiguamente, reafirma tal polaridade para melhor questionar a hierarquia
de valores dela derivada. Neste sentido, Clarice Lispector estabelece, no plano metaficcional
de seu romance, uma crítica a determinadas utopias da arte moderna que balizaram alguns
dos parâmetros de avaliação da crítica literária brasileira no século XX.
Em A hora da estrela (1977), Clarice Lispector vale-se de estruturas e procedimentos
característicos do folhetim e do melodrama – identificados, sob uma perspectiva modernista,
como kitsch – para, via encenação, dramatizar o embate entre um intelectual de classe-média
e uma migrante nordestina miserável. O romance coloca em crise a utopia [...] do que se
convencionou chamar de arte engajada, irmanando-se às estéticas contemporâneas críticas do
tour de force típico das vanguardas heróicas do final do século XIX e início do século XX.
Por meio da mobilização de recursos do folhetim e do melodrama e, também, por meio da
utilização de recursos característicos da arte de vanguarda (fragmentariedade,
metalinguagem, experimentação), A hora da estrela encena, no contraste estabelecido entre
os blocos discursivos característicos de um e de outro gêneros (com suas respectivas
vinculações a distintos estratos estético-ideológicos e socioeconômicos), uma dupla crise: a
do intelectual diante do pobre, a da escritora diante da escrita e da criação literárias. Clarice,
em entrevista, classificou A hora de estrela como novela (Lerner, 1992, p. 68), e não é difícil
reconhecermos, no livro, a aproximação com o sub-gênero literário de difícil classificação,
situado entre o romance e o conto, e uma aproximação com o que vulgarmente se reconhece
no rótulo novela: os gêneros populares de narrativa “industrializada”, a subliteratura, o
“romance de empregada”, a fotonovela, a novela de rádio e de TV – produtos que, no Brasil,
se expandem com o desenvolvimento e a consolidação da indústria cultural a partir dos anos
40/50 do séc. XX. [...]Há em A hora da estrela um viés metalinguístico de função irônica que
acompanha o fazer e a reflexão sobre o fazer literário. Este viés serve: a) para dissociar o
discurso estético sofisticado, identificado com o narrador-criador Rodrigo S. M., do discurso
folhetinesco-melodramático identificado com Macabéa; b) para, simultaneamente,
identificar um e outro gêneros discursivos e, a partir de tal identificação, operada pela
reversão do sentido dos signos característica do projeto literário clariciano, desconstruir
como folhetim/melodrama a pretensão de engajamento crítico do intelectual em favor do
miserável; c) questionar a estigmatização modernista da função e do alcance crítico do dado
sentimental em arte.
Segundo Silviano Santiago a literatura de Clarice, que inaugura uma tradição sem fortuna,
desafortunada, feminina e, por ricochete, subalterna (1997, p. 05) na literatura brasileira,
sempre se marcou pelo confronto com a “ingenuidade naturalista” dos anos 30 e 40 (1997,
05) e com a crítica de orientação luckacsiana que supervaloriza o cânone realista imposto
pelo romance oitocentista europeu (1997, p. 05). [...] Em A hora da estrela é a escrita
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irônica, mas não foi sem dificuldade que a crítica feminista teve de se debater com um
comentário dessa ordem, até porque ele sempre deixa a questão de ponderarmos que essa
visão maniqueísta pudesse ser um modo de reagir ao rótulo de escritora feminista.
Mas a voz narrativa coloca ainda outras tantas questões para o leitor e a crítica, que tornam
ainda mais complexa inclusive a problemática genérica, quando, na Dedicatória do autor, o
livro se abre com uma advertência: “Na verdade Clarice Lispector”. Estabelece-se, assim,
uma estrita vinculação entre Clarice e o narrador da obra. Ambos se confundem. São um só
e, ao mesmo tempo, diferentes. Rodrigo S.M. representaria uma outra forma de ser e de
escrever de Clarice, um desdobramento seu. (Já se chegou mesmo a falar em heterônimo...)
Com isso, além da questão do gênero, coloca-se em xeque a própria figura do autor e a
solução clariciana pode mesmo ser visto como resposta a certa tendência da crítica da época,
dominada pelo estruturalismo francês, que radicaliza a orientação imanentista, a
fundamentação textológica e a deslocação da zona da produção para a zona do produto
inauguradas pelas correntes críticas anti-positivistas e anti- historicistas do primeiro quartel
do século XX, representadas pelo Formalismo russo, o estruturalismo checo e o New
Criticism anglo-americano. Com essas correntes, deslegitimado e desautorizado, “o autor
passa a ser entendido como estando apenas (e sublinho apenas) antes e fora do texto, pelo que
este em nada tem a ganhar (tendo pelo contrário tudo a perder) com a sua eventual
subordinação àquele. É esta a origem remota do que virá a ser paradigmaticamente designado
(Wimsatt e Beardsley, 1954) como a “falácia intencional”, ou seja, a falácia que consiste em
querer constranger o texto e os seus sentidos à prévia existência de uma “vontade de sentido”
autoral, intencionalmente reflectida no texto”. Radicalizando essas tendências, vemos, em
fins dos anos 60, figuras emblemáticas do estruturalismo francês publicarem dois ensaios que
são referencias decisivas nesse debate. Em 1968, Barthes publica seu polêmico estudo "A
Morte do Autor" cujo argumento representa justamente o título emblemático indica: o
assassinato do autor como pai fundacional e o proprietário exterior da obra (desbancada em
favor da noçao de “texto” ou de “escrita”, plural e anônima, relacionada ainda à de
intertextualidade). Dito de outro modo, Barthes enfatiza a questão da não existência do autor
fora ou anterior à linguagem. Procurando apresentar a idéia do autor como sujeito social e
historicamente constituído, Barthes o vê como um produto do ato de escrever - é o ato de
escrever que faz o autor e não o contrário. Para ele um escritor será sempre o imitador de um
gesto ou de uma palavra anteriores a ele, mas nunca originais, sendo seu único poder mesclar
escritas. Barthes retira a ênfase de um sujeito que tudo sabe, unificado, intencionado como o
"lugar" de produção da linguagem, esperando assim libertar a escrita do despotismo da obra -
o livro”.
Um ano depois, Michel Foucault em “O que é um autor?” retoma a questão e, embora
reconheça, a inanidade do conceito tradicional de autor (i. é., a ideia de autor empírico
justaposto ou coincidindo com o que Aguiar e Silva nomeia de autor textual, enunciador do
texto), avança no sentido de reconhecer que o desaparecimento “desse” autor não equivale ao
desaparecimento autoral “tout court”. Ou seja, que o conceito de autor de algum modo excede
o que podemos pensar como autor empírico, como escritor, em suma. Foucault propõe, então,
o conceito de “função autor”, que ele significativamente define como “característico do modo
de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma
sociedade.” (Foucault, 1969). O que está em causa, pois, são os modos e condições de
existência social do discurso, ou seja, o facto de que, ao contrário do que propunha Barthes
com uma escrita anonimizada, para Foucault é a noção de discurso, bem como a inscrição
social e simbólica do sujeito, que estão na raiz da reconfiguração da noção de autor (ou, mais
precisamente, da função autor - e a introdução desta precisão implica, justamente, que o que
aqui está em questão não é já tanto a coincidência entre autor empírico e autor textual como,
24
pelo contrário, os modos “excedentários” pelos quais este último continua a manifestar-se,
mesmo depois do afastamento daquele outro)5.
Esses ensaios foram divisores de água, que levariam críticos posteriores a seguir nesse
mesma esteira, como Genette, ao lado de outros que, com alguma variabilidade e formulações
algo flutuantes, aceitam a existência de uma formulação autoral distinta da instância
narradora, e que recebe designações como por exemplo “autor implícito” (Booth, 1961) 6,
“Autor Modelo” (Eco, 1985 e 1995), “autor postulado” (Nehamas, 1981, 1986 e 1987),
“autor inferido” (Chatman, 1990; Rimmon-Kenan, 1983), “autor textual” (Aguiar e Silva,
1986).
Para vários intérpretes, a presença ostensiva do Rodrigo S.M., os impasses literários ou
mesmo existenciais que ele coloca, faz de A hora da estrela, entre outras coisas, um “drama
de linguagem”, (expressão de Benedito Nunes), além de um questionamento metafísico sobre
o significado último da existência. Argumentam que escrever, para Rodrigo S.M., é algo mais
do que contar uma história ou fixar um drama social. Escrever é questionar-se o tempo todo:
“Este livro é uma pergunta.”. É, ao mesmo tempo, uma busca de autoconhecimento
(“Desculpai-me, mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido.”); é uma
tentativa de encontrar significado para a existência fora da própria interioridade (“Bem sei
que é assustador sair de si mesmo.”); e é, também, uma suspensão parcial da morte:
(“Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser
e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os
dias.”). Mesmo assim, o narrador experimenta um forte sentimento de fracasso da linguagem
e a certeza de que a literatura não resolve os problemas humanos. As primeiras vinte páginas
do texto são de discussão dos problemas que Rodrigo S.M. enfrenta para escrever.
Mas ainda que se aceite essa interpretação sobre o conflito da escrita, o drama da linguagem e
as indagações existenciais, é bom observar que elas só se colocam aí em vista da alteridade,
do outro social que está no centro da cena. É em vista desse outro que se coloca a indagação
pelo próprio lugar social, a reflexão sobre a linguagem, o estilo e o modo de escrita e o de
narrar a serem adotados. Sabemos que o narrador se atormenta ao escrever uma novela sobre
uma jovem nordestina. Questiona o tempo inteiro o seu próprio modo de narrar, o seu estilo,
5
“A "função-autor" não se constrói simplesmente atribuindo um texto a um indivíduo com poder criador, mas se
constitui como uma "característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns
discursos no interior de uma sociedade" (Foucault, 1992, pág. 46), ou seja, indica que tal ou qual discurso deve
ser recebido de certa maneira e que deve, numa determinada cultura, receber um certo estatuto. O que faz de um
indivíduo um autor é o fato de, através de seu nome, delimitarmos, recortarmos e caracterizarmos os textos que
lhes são atribuídos.
6
Wayne Booth, A retórica da ficção: autor implícito:
“(...) o autor não desaparece mas se mascara constantemente, atrás de uma personagem ou de uma voz
narrativa que representa. A ele devemos a categoria de autor implícito, extremamente útil para dar conta do
eterno recuo do narrador e do jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis da narração”. (Chiappini:
1991:18).
De forma correlata a Luiz Costa Lima, Maria Lucia Dal Farra, em O Narrador Ensimesmado afirma que o autor
é um manejador de disfarces, que encoberto pela ficção insurge do interior da narrativa denunciando sua
presença através da escolha sígnica, da pontuação e das personagens que cria para deixar a sua marca.
Mas esse jogo entre autor implícito, narrador e personagens só pode ser feito por meio do leitor. Ao discutir o
conceito de Booth, Chiappini nos diz que o deslocamento do ponto de vista pode, a princípio, nos confundir,
pois corremos o risco de cair em psicologismos ou confundir personagens com pessoas ou, ainda, confundir
autor real com autor ficcional. Segundo a autora, Booth tomou os devidos cuidados ao considerar a obra na sua
materialidade. E acrescenta ainda que,
“O AUTOR IMPLÍCITO é uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele que comanda os movimentos
do NARRADOR, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do
espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressam diretamente as
personagens envolvidas na HISTÓRIA.” (1991:19).
25
para captar a alma de sua protagonista, “precisa se alimentar frugalmente de frutas e beber
vinho branco gelado”, por causa da calor no cubículo em que se trancou e no qual não tem
contato algum com o mundo, nem sexo nem futebol... (p.22-23). O próprio N. fala de sua
posição social de modo significativo na p. 19.
Complementares
Um dos momentos culminantes de Henfil e do próprio Pasquim foi o Cemitério dos Mortos-Vivos. Nele, o
cartunista enterrava, com sete palmos de desacato e desprezo, personalidades que, a seu juízo, simpatizavam
com a ditadura, ou se omitiam politicamente. Nessa espécie de "tribunal da causa justa" — precursor do
politicamente correto —, Henfil pôs a nu falhas de caráter, oportunismos de toda ordem e desvios ideológicos.
"Caráter não dá cupim", era a sua frase favorita ao exigir máxima coerência das pessoas. Ele assim se explicou
ao jornal estudantil WO (agosto de 1973): O Cemitério dos Mortos Vivos, onde Henfil enterrava colaboradores
do gerenciamento militar pró-imperialismo, causou grande polêmica no início da década de 70. Nesse cemitério
foram enterrados Nelson Rodrigues, Gilberto Freyre, Roberto Campos, Hebe Camargo, Sérgio Mendes, Elis
Regina, Rachel de Queiroz, Filinto Müller, Bibi Ferreira, Clarice Lispector, Plínio Salgado, toda “Tradição,
Família e Propriedade” (TFP), Pelé, Josué Montello, dentre muitos outros. Por pressão do Pasquim deixou de
enterrar Jorge Amado, do qual cobrava um mínimo de coerência com seu passado no PCB. Por essas e outras,
Henfil foi chamado de “patrulheiro ideológico” e acusado de atirar sem critério. Mas nunca errou o alvo. Ele
sabia que a aparente ingenuidade servia muitas vezes de subterfúgio e absolvição para os que, direta ou
indiretamente, se favoreciam da exploração e da censura. Naquele momento, ele pensava que todos tinham um
inimigo comum: a ditadura fascista. E cobrava participação, principalmente, dos artistas, que nunca poderiam se
omitir. Para esses, Henfil cunhou o termo “patrulha odara” (dirigido, principalmente, a Gil, Caetano e Glauber
Rocha), por suas atitudes covardes diante do regime. De suas críticas também não escaparam aqueles que
apoiavam a abertura “lenta, gradual e segura” do Geisel, ou os Festivais Internacionais da Canção promovidos
pela Rede Globo nos anos 60 e 70, que serviam para desviar a atenção dos acontecimentos políticos e favorecer
a divulgação da música estrangeira mais espúria.
É verdade que o tal “Enterro” da escritora acabou sendo polemizado pelos leitores. A repercussão negativa
levou o cartunista a explicar-se para O Jornal em 1973: “Eu a coloquei no Cemitério dos Mortos-Vivos porque
ela se coloca dentro de uma redoma de Pequeno Príncipe, para ficar num mundo de flores e de passarinhos,
enquanto Cristo está sendo pregado na cruz. Num momento como o de hoje, só tenho uma palavra a dizer de
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uma pessoa que continua falando de flores: é alienada. Não quero com isso tomar uma atitude fascista de dizer
que ela não pode escrever o que quiser, exercer a arte pela arte. Mas apenas me reservo o direito de criticar uma
pessoa que, com o recurso que tem, a sensibilidade enorme que tem, se coloca dentro de uma redoma”, explicou
Henfil no trecho que foi repercutido pelo site da Biblioteca Nacional.