Montaigne e A Filosofia Do Ensaio - Danielle Antunes
Montaigne e A Filosofia Do Ensaio - Danielle Antunes
Montaigne e A Filosofia Do Ensaio - Danielle Antunes
FLORIANÓPOLIS
2018
Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de
Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.
Antunes , Danielle
"Par manière d'essai". Montaigne e a Filosofia do
Ensaio / Danielle Antunes ; orientador, Jaimir
Conte, 2018.
164 p.
Inclui referências.
1. CAPÍTULO I
A NATUREZA DA FILOSOFIA DE MONTAIGNE E O
NASCIMENTO DO ENSAIO .............................................................. 35
1.1 Delimitação do problema ........................................................... 35
1.2 A maneira de fazer filosofia como problema filosófico ............ 41
1.3 O que é “ensaio” ........................................................................ 47
1.3.1 Breve histórico do termo “ensaio” ................................. 48
1.3.2 O campo semântico do “ensaio” ..................................... 51
1.3.3 “Ensaio” como título de livro ........................................ 54
2. CAPÍTULO II
O ENSAIO: GÊNERO LITERÁRIO OU MÉTODO FILOSÓFICO?.. 61
2.1 Ensaio e gênero literário ............................................................ 61
2.2 O método filosófico: o “ensaio do julgamento” ......................... 71
2.2.1 “O julgamento é um instrumento para todos os assuntos”
......................................................................................... 74
2.2.2 “Qu’il lui fasse tout passer par l’étamine” ..................... 81
2.3 Ensaio como exercício pedagógico ............................................ 87
2.3.1 “Par manière d’essai” .................................................... 89
2.3.2 “Como as crianças propõem seus ensaios” ..................... 93
3. CAPÍTULO III
O ENSAIO PARA ALÉM DO CETICISMO ....................................... 97
3.1 O ceticismo de Montaigne.......................................................... 97
3.2 O Pirronismo na balança dos Ensaios ...................................... 101
3.3 “Não pinto o ser, pinto a passagem” ........................................ 106
3.4 “Um registro dos ensaios de minha vida” ............................... 121
1
Disponível em: https://www.lib.uchicago.edu/efts/ARTFL/projects/montaigne/
19
20
INTRODUÇÃO
21
Silvio Lima (1946) sobre as particularidades do ensaísmo de Montaigne,
e a ideia de Auerbach (1971) de que Montaigne cria um método
experimental rigoroso para a investigação da L’humaine condition.
Etimologicamente, a palavra “método” pode ser compreendida
como “ordem que se segue na investigação da verdade, no estudo de
uma ciência ou para alcançar um fim determinado” (CUNHA, 2010, p.
424). Aparece com estes contornos já no século XVI, sendo derivada do
latim methódus, e este, por sua vez, do grego méthodos, elaborado a
partir da junção de meta- e hodós, que significa ‘via, caminho’. Todavia,
quando falamos do “método” em Montaigne, não estamos tratando de
método em sentido tradicional, tal como foi configurado por René
Descartes (1596-1650), nos moldes da análise enumerada ou da ordem
das razões, nem tampouco do método experimental indutivo, proposto
por Bacon (1561-1626) na alvorada da modernidade; mas falamos de
método em sentido estrito - e no presente trabalho é fundamental
evidenciarmos tal distinção -; trata-se de método compreendido como
um procedimento performático de investigação, formação e criação,
estritamente vinculado à subjetividade daquele que o coloca em prática,
e que se desdobra através da prática discursiva do ensaio, seguindo uma
lógica interna de elaboração e desenvolvimento bem particular e
específica a ele.
Ao nos referirmos ao ensaio como um método filosófico
performático e vinculado à subjetividade de quem o pratica, levamos em
consideração duas instâncias primordiais de tal prática: primeiro, a
dimensão subjetiva desta prática, a qual está relacionada intimamente ao
sujeito que a realiza, a partir das percepções e experiências desta mesma
pessoa, e com o objetivo de dar primazia à investigação e atenção à si
mesmo. A partir desta perspectiva, podemos vincular o ensaio às
práticas e às técnica do cuidado de si, no sentido mesmo abordado por
Michel Foucault (1926-1984) em A hermenêutica do sujeito (2010),
como epimeléia heautoû - o cuidado de si - compreendida como uma
atitude “para consigo, para com os outros, para com o mundo”
(HADOT, 2010, p.11), atitude esta que gera algumas ações que “são
exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos, nos
modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos
transfiguramos.” (Ibdem, p. 12). Em segundo lugar, a condição de
performance2 do procedimento ensaístico, uma vez que, o que o autor
procura colocar em cena não suas ideias e teorias prontas e acabadas ou
os resultados de uma investigação, mas o próprio processo do seu
2
Ver Richard Schechner, Performance Studies: un introduction, 2013.
22
pensamento em ação e em construção, procurando expô-lo tal como
acontece em seus “bastidores”, isto é, em seus ensaios. Na prática do
ensaio Montaigne realiza o exercício de suas capacidades imaginativas e
judicatórias, a pesagem e avaliação de suas experiências e mesmo de sua
vida e, por fim, a construção e a prática de sua própria subjetividade,
tendo como instrumento de mediação a técnica da confecção textual.
Como ele nos coloca:
23
Performances marcam identidades, dobram o
tempo, remodulam e adornam o corpo, e contam
estórias. Performances - de arte, rituais, ou da vida
cotidiana - são comportamentos restaurados”,
“comportamentos duas vezes experienciados”,
ações realizadas para as quais as pessoas treinam e
ensaiam. Assim, fica claro que, para realizar arte,
isto envolve treino e ensaio. Mas a vida cotidiana
também envolve anos de treino e de prática, de
aprender determinadas porções de
comportamentos culturais, de ajustar e atuar os
papéis da vida de alguém em relação às
circunstâncias sociais e pessoais. A longa infância
e a meninice específicas da espécie humana é um
período estendido de treinamento e ensaio para
desempenho de sucesso na vida adulta. (2013, p.
28-29. Trad. de R. L. Almeida).
3
Tal como os exercícios espirituais praticados nas antigas escolas filosóficas
helenísticas e romanas, de que fala Pierre Hadot em O que é a filosofia antiga?
(2014).
4
Como diz Montaigne: “[B] Deixa, leitor, correr ainda este lance de ensaio
[coup d’essai] e este terceiro prolongamento das partes de minha pintura.
Ajusto, mas não corrijo.” (III, 9, 267).
25
está presente nestes filósofos antigos, seja através da maiêutica
socrática, da dialética platônica ou da lógica aristotélica, e está
relacionada à uma arte (techné). Entretanto, será com Galileu (Séc. II)
que a ideia de método será associada à ciência, mais precisamente
relacionada à medicina. Todavia, foi Pierre de la Ramée o primeiro
teórico a propor uma “via universal” em sua Dialética (1555) e, embora
ele permaneça impregnado por uma inspiração teológica, é preciso
reconhecer nele o início de um processo que irá desembocar em
Descartes. Para Desan, o surgimento das noções de método depende de
condições específicas e de mudanças na forma de ver e de conceber o
mundo, passando por algumas etapas fundamentais, por “diversos
momentos metodológicos” (Ibdem, p. 14), como afirma o autor:
5
Ver BIRCHAL, Telma de Souza. O Eu nos Ensaios de Montaigne. (2007).
27
Theodor Adorno, em seu texto O ensaio como forma (2008), faz
uma crítica ao procedimento científico e sua pretensão de pureza e
objetividade ao tratar das “coisas do espírito”, o qual procura estabelecer
uma separação entre ciência e arte em sua “alergia contra as formas”
(ADORNO, 2008, p. 19), a partir de uma divisão do trabalho e de
procedimentos especializados. Adorno faz uma distinção entre as formas
de proceder da ciência e do ensaio, colocando o ensaio em um âmbito de
competência sem prescrição, que não se enquadra nem no âmbito da
ciência nem no da arte, pois, como afirma, “seus conceitos não são
construídos a partir de um princípio primeiro, nem convergem para um
fim último” (Ibdem, p. 17). E, embora ele considere que o ensaio se
aproxime de uma autonomia estética, entretanto, assume que ele difere
da arte, precisamente porque seus meios específicos são os conceitos.
Mas não os conceitos trabalhados de forma sistemática, apresentados
através de definições exaustivas e com a intenção de dar conta do
objeto, tal como na ciência; ao contrário, no ensaio, os conceitos “só se
tornam mais precisos por meio das relações que engendram entre si”
(Ibdem, p. 28). E é através da experiência intelectual do próprio ensaísta
que se dá a interação recíproca dos conceitos. Adorno coloca tal fator
nos seguintes termos:
28
texto. Adorno nos fornece uma chave hermenêutica para a leitura dos
Ensaios, e através desta chave podemos nos aproximar da trama
conceitual que o termo ensaio engendra, atentando para a esfera
tridimensional na qual opera tal conceito: epistemológica, ética e
estética. É em virtude do conceito de ensaio como ponto fulcral para
uma interpretação da obra de Montaigne, que nos referimos à sua
filosofia como uma “filosofia do ensaio”. Nele estão contidos os
principais movimentos que caracterizam a sua prática filosófica, ou seja,
os ensaios do juízo e de suas faculdades naturais, os ensaios da ação e da
virtude, e os ensaios de sua vida, “ensaios em carne e osso” e título de
sua obra.
Nossa interpretação da filosofia de Montaigne como uma
filosofia ensaística surge como uma alternativa conciliadora entre
interpretações diversas que, embora contemplem elementos
fundamentais da obra e sejam de extrema importância para lidarmos
com suas complexidades, tal como a teoria literária do ensaio ou o
ceticismo filosófico de Montaigne, contudo, não explicam a interação
entre conteúdo e forma na obra como um todo conciso e integrado.
Encontramos então dois problemas em tais interpretações, na medida em
que procuram explicar a natureza literária ou filosófica da obra.
Acreditamos que tais problemas estão relacionados ao emprego do
método disciplinar de pesquisa. Tal método propõe uma separação entre
a forma e o conteúdo do texto, bem como uma classificação e
genealogia dos temas e assuntos tratados pelo autor, para então serem
analisados de modo especializado e a partir de áreas específicas de
conhecimento e atuação. A nossa suposição é de que este método
produz um duplo equívoco interpretativo da filosofia dos Ensaios.
O primeiro problema consiste em relacionar a noção de ensaio
unicamente à forma, à criação de um gênero textual e de um rótulo
literário, de tal maneira que se negligencia as dimensões metodológicas
e filosóficas que a noção de ensaio traz consigo em Montaigne. Isto
ocorre devido à tendência predominante de se interpretar o termo
“ensaio” no título e dentro da obra de forma superficial, sendo
fortemente influenciada por um anacronismo gerado em função da
concepção moderna de ensaio como gênero literário. Este anacronismo
produz um “ponto cego” na interpretação da obra, exatamente em
relação a um dos conceitos filosóficos essenciais para a sua
compreensão. Todavia, quando Montaigne faz e diz fazer ensaios ou se
ensaiar, ou ainda, quando ele intitula a sua obra de Ensaios, ele não está
se referindo ao termo tal como utilizado pela conceituação moderna,
29
relacionado ao gênero literário. Muito embora a concepção atual do
ensaio como um gênero de escrita tenha sua origem em Montaigne, isto
se dá por uma transformação e metamorfose que ocorreu com o termo e
o título desde a sua invenção por seu pai de batismo, e não pelos usos e
aplicações que o autor faz deste conceito em seus Ensaios. A nossa
hipótese é a de que Montaigne cria um conceito filosófico para
denominar sua maneira de fazer e conceber a filosofia ela mesma, ao
transpor o termo “ensaio” de um campo da prática, relacionado a testes e
provas de substâncias materiais, tais como o ouro, o vinho, o alimento, o
trigo, ou ainda relacionado às primeiras tentativas de um aprendiz em
qualquer ofício, para o campo do pensamento, da linguagem e da
escrita.
O segundo problema de interpretação está vinculado à análise do
conteúdo separadamente da forma, buscando-se localizar e classificar as
ideias e influências filosóficas presentes na obra, para, a partir de certas
opiniões, argumentos ou capítulos, filiar Montaigne a correntes e escolas
da tradição antiga. Esta via, que atenta especialmente para as teses,
asserções e estratégias argumentativas apresentadas por Montaigne, as
quais podem ser relacionadas a tal ou qual escola filosófica, fazendo
uma análise centrada em determinados trechos ou capítulos, pode gerar
uma interpretação tendenciosa relativa ao tipo de filosofia posta em
prática pelo autor, uma vez que, como pretendemos mostrar, forma e
conteúdo são intrínsecos um ao outro nos Ensaios, e constituem uma
estratégia metodológica e retórica de comunicação de seu projeto e
modo de fazer filosofia, devendo portanto ser considerados dentro de
uma relação de inseparabilidade e complementaridade.
Assim sendo, se por um lado se isola a forma textual do ensaio
para estudá-lo unicamente como um gênero literário, e elaborar a partir
disso uma teoria literária do mesmo, por outro lado, se separa o
conteúdo para localizar nele as principais teses e posicionamentos
filosóficos de Montaigne, elegendo determinadas opiniões e certos
capítulos como mais importantes em detrimento de outros, fazendo
desta forma uma análise que reduz o alcance filosófico dos Ensaios
como um todo, da mesma forma que enfraquece e desvaloriza a
diversidade e a especificidade dos cento e sete capítulos que compõem a
obra. Como já dissemos, a nossa hipótese é de que este duplo equívoco é
gerado em função do método de pesquisa disciplinar, o qual separa
aquilo que será investigado por áreas de conhecimento. Embora tal
método seja de fundamental importância para o desenvolvimento das
ciências de um modo geral, todavia, em se tratando da especificidade
30
dos Ensaios, consideramos que este método não seja o mais adequado
para interpretá-lo, tendo em vista a fundamental importância do arranjo
estilístico e artístico para a construção e a expressão da filosofia
montaigneana, uma vez que defendemos a relação de
complementaridade e unicidade entre forma e conteúdo na obra, como
nos diz Montaigne: “[C] Meu estilo e meu espírito vão vagabundeando
ambos.” (III, 9, 315-316).
Posto que o projeto filosófico de Montaigne é o de estudar a si
mesmo, trazendo à tona a construção dinâmica da sua subjetividade
através dos ensaios aos quais se propõe, como modo de observar-se de
perto em seus pensamentos e fantasias, pela via de uma escrita
performática, “impremeditada e fortuita”, é que percebemos o elo
essencial entre aquilo que se diz e o modo como se diz em seu livro de
boa-fé. Assim, Montaigne visa instituir um pacto de fidelidade entre a
forma e o conteúdo, entre a teoria e a prática, entre autor e leitor e, por
esta via, estabelecer a consubstancialidade entre si mesmo e o seu livro.
É o que podemos subtrair nesta seguinte passagem:
31
um problema filosófico. Esta forma específica de fazer filosofia consiste
em aproximar a teoria da prática de forma experimental e performática,
dando origem a um método filosófico de criação, investigação e
aprendizagem através da escrita pessoal.
Dessarte, para compreendermos a natureza da filosofia
montaigneana, precisamos atentar para o que está posto em questão pelo
próprio Montaigne em seus Ensaios, que não é precisamente a defesa de
teses, sistemas ou escolas filosóficas que visem explicar (ou não) as
coisas e o mundo, mas é a formação da sua própria subjetividade através
da exercitação de seus julgamentos, conjuntamente ao projeto de se dar
a conhecer, a si mesmo e aos outros, através da pintura de si. E isto está
posto por ele, de forma declarada, logo no início do livro no aviso Ao
leitor:
6
O ensaio do julgamento (I, 50 e II, 17), das faculdades naturais (I, 26 e II, 10),
o ensaio do senso (I, 25).
32
juízo sobre questões morais, políticas, pedagógicas, históricas, culturais,
bem como sobre si mesmo e suas próprias ações e relações, Montaigne
não está apenas colocando em questão a possibilidade e os limites do
conhecimento humano e do acesso à verdade, mas está também
constituindo a si mesmo como sujeito ético, através de uma estética do
bem viver. Assim, podemos colocar em primeiro plano a possibilidade
da prática ensaística como um método que visa performar a constituição
da subjetividade em suas instâncias intelectual, moral e estética.
Sendo assim, o resultado final que encontramos no livro de “boa-
fé” que Montaigne nos oferece, é uma obra que retrata de maneira
singular o universo filosófico de Michel de Montaigne, e a
temporalidade histórica de seu olhar, revelando através de seu
testemunho em movimento, o que ele chama de seu “registro de
duração” (II, 18, 498), sua maneira de ver e pensar a si mesmo e o
mundo que o circunda. E, mais uma vez, é importante colocarmo-nos a
auscultá-lo:
[C] E, mesmo que ninguém me leia, acaso terei
perdido meu tempo ao entreter tantas horas
ociosas com pensamentos tão úteis e agradáveis?
Ao modelar sobre mim esta figura, tantas vezes
tive de me ajustar e compor para transcrever-me
que o molde se consolidou e de certa maneira
formou a si mesmo. Ao pintar-me para outrem,
pintei em mim cores mais nítidas do que eram as
minhas primeiras. Não fiz meu livro mais do que
meu livro me fez, livro consubstancial a seu autor,
com uma ocupação própria, parte de minha vida;
não com uma ocupação e finalidade terceiras e
alheias, como todos os outros livros. Terei perdido
meu tempo por prestar-me contas de mim tão
continuadamente e tão cuidadosamente? Os que se
repassam apenas em pensamento e oralmente, de
passagem, não se examinam tão essencialmente
nem se penetram como quem faz disso seu estudo,
sua obra e seu ofício, quem se propõe a um
registro de duração, com todo seu ânimo, com
toda sua força. (II, 18, 498).
7
O ensaio da ação (I, 25), o ensaio da virtude (I, 14), a experiência e os ensaios
da vida (III, 13).
8
A pintura de si (III, 2), a linguagem dos Ensaios (I, 26 e I, 40), ensaios como
grotescos (I, 28).
33
Nesta passagem acima, registrada nas margens do exemplar de
Bordeaux no período que seria o da escrita da última camada dos
Ensaios, vemos a declaração explícita de Montaigne de qual seria a sua
empresa, o seu projeto, “seu estudo, sua obra e seu ofício”. E aqui
podemos constatar com clareza que o seu objetivo na escrita de seu livro
era transcrever-se e examinar-se, “com todo seu ânimo, com toda sua
força”. E assim o fez de tal maneira, que o livro tornou-se
“consubstancial a seu autor”, não apenas sendo ele a fazer e a compor o
livro, mas o livro dando forma à sua figura e esculpindo-o também. Está
posto nesta passagem a importância de seu método de autoinvestigação
ensaística, e o prazer que ele lhe proporciona.
Tendo em vista o panorama metodológico e conceitual
apresentado acima, iremos, no primeiro capítulo, discutir o modo de
fazer filosofia como um problema genuinamente filosófico em
Montaigne, e porque o autor elabora o conceito de ensaio. A partir desta
perspectiva, iremos tratar de explicar e exemplificar no segundo
capítulo, porque o ensaio não é apenas um gênero literário, mas um
método, um exercício e, portanto, um conceito filosófico nos Ensaios. E
enfim, no terceiro capítulo, estabeleceremos uma diferença entre o
ceticismo e o modo de proceder ensaístico, atentando para suas
semelhanças e diferenças, para então vermos descortinar o que seria a
novidade de Montaigne: a filosofia do ensaio.
34
1. CAPÍTULO I
35
Todavia, a arquitetura dos Ensaios - e este aspecto é fundamental
- a forma “desordenada” e “variegada” de Montaigne, a sua
“marchetaria mal colada” (III, 9, 267), não é fruto de displicência, mas
sim de sua arte e habilidade com a pena, a qual ele decantou e
aprimorou ao longo de aproximadamente vinte anos, e o que ele
denomina de “um registro dos ensaios de minha vida” (III, 13). Assim
ele diz:
9
O Maneirismo é um movimento artístico que se iniciou na Itália, por volta de
1520, especialmente nas áreas da pintura, da escultura e da arquitetura, mas
também alcançando a arte decorativa, a música, a poesia e a literatura. É um
movimento artístico com características muito diversas e por vezes conflitantes
entre si, tal como entre o espiritualismo mítico de Greco e o naturalismo
panteísta de Bruegel (HAUSER, 1982, p. 476). Segundo a literatura sobre o
assunto, o Maneirismo foi mencionado pela primeira vez por Giorgio Vasari em
36
considera Montaigne não apenas enquanto um livre pensador de
questões morais e políticas, ou enquanto um descobridor do “moi” e
suas dobras subjetivas, ou ainda pela sua consciência face à morte e de
seu intenso amor pela vida e por tudo que vive; mas considera-o
especialmente enquanto um escritor, um criador de formas, enfim, um
poeta no sentido mais pleno da palavra, pois para a autora, o texto
montaigneano se descobre como obra de arte e assim se desdobra.
Nos Ensaios, maneira e matéria se fundem uma na outra ao
modelar das ideias nas frases, imagens e ritmos, imprimindo nas
palavras não apenas a força de seu conteúdo, mas também o charme e a
elegância do estilo. Longe de ser um fator puramente externo ou
meramente superficial, o estilo fornece nuances expressivas para aquilo
que o artista quer criar, transmitir, comunicar, criticar; ele dá cor e corpo
às ideias. O estilo é a “maniera” do artesão “manusear” seus
instrumentos para criar formas com sua arte, e por isto é, encarado por
este ângulo, uma técnica, a técnica de talhar, lapidar, esculpir, desenhar,
pintar: a parede, a pedra, a madeira, a tela, o teto, o texto. E em
Montaigne, como ele já nos advertiu, é importante prestarmos ouvidos
não apenas ao que ele diz, mas também à maneira como diz. Escutemo-
lo:
Le vite dei più eccelenti pittori, scultori e architettori, no ano de 1550, como a
“bella maniera”, no sentido de individualidade artística, de expressão pessoal,
da técnica e criatividade do artesão, de onde decorre a noção de “estilo”.
37
forma desmedida e tumultuosa. [C] Meu estilo e meu espírito vão
vagabundeando ambos.” (III, 9, 315-316). É por este pressuposto do
estilo pessoal do autor como fator fundamental da composição
ensaística10, que podemos dizer que o ensaio apresenta contornos
poéticos, sonoros, dinâmicos, e, até mesmo, artísticos. H. Friedrich
ressalta a importância fundamental do estudo do estilo nos Ensaios, e
considera-o indispensável para a plena inteligência da obra. Ele diz:
10
Este tema da intrínseca relação entre o pensamento e o estilo de Montaigne
foi abordada por autores como Floyd Gray em Le Style de Montaigne (1958),
Hugo Friedrich em Montaigne (1968) e, no Brasil, por Celso Martins Azar
Filho, especialmente em seu artigo Método e estilo, subjetividade e
conhecimento nos Ensaios de Montaigne (2012).
38
afetação, desordenado, descosido e ousado [...].”
(I, 26, 256).
40
Será a partir destes pressupostos que colocaremos em questão o
método disciplinar e exegético utilizado para interpretar filosoficamente
os Ensaios, a partir do qual se procura distinguir o conteúdo filosófico
dos demais assuntos, visando delimitar suas principais ideias e teorias,
com o intuito de definir o seu gênero e filiação às correntes e escolas da
tradição filosófica. E, por outro lado, relegam o estudo da forma
ensaística ao campo da literatura. Entretanto, acreditamos que tal
método de análise seja parcial tendo em vista a natureza singular da obra
e de sua dinâmica interna. Esta forma de análise “cartesiana” tende a
gerar uma visão ortodoxa na compreensão da mesma, justamente porque
desconsidera a obra como um todo integrado, além de não dar a devida
atenção à fundamental importância que o processo de criação do ensaio
opera sobre o resultado de tal projeto. Portanto, acreditamos que, para
uma interpretação mais holística dos Ensaios, precisamos de um método
de investigação que opere de modo interdisciplinar, e que, tendo em
vista a natureza híbrida da obra, considere de maneira integrada forma e
conteúdo.
Não obstante, ao defendermos o teor filosófico dos Ensaios,
precisamos nos colocar a pergunta a respeito da natureza de tal filosofia.
É por isso que apresentamos como hipótese de investigação a tese de
que o conceito de “ensaio” é fundamental para compreendermos e
interpretarmos corretamente a filosofia montaigneana. Sustentamos que
a prática filosófica do autor estaria fundamentada justamente na
concepção de uma “filosofia do ensaio”. Assim, para o autor, fazer e
escrever seus “ensaios” é uma maneira específica de fazer filosofia, na
qual forma e conteúdo são inconcebíveis separadamente, sendo,
portanto, uma orientação e um método filosófico, e não meramente um
gênero textual e literário como muitos historiadores e intérpretes
sugerem.
41
[A] É singular que em nosso século as coisas
sejam de tal forma que a filosofia, até para as
pessoas inteligentes, seja um nome vão e
fantástico, que se considera de nenhum uso e de
nenhum valor, [C] tanto por opinião como de fato
[par effect]. (I, 26, 240).
11
Encontramos tal crítica à Escolástica especialmente nos capítulos Do
pedantismo (I, 25) e Da educação das crianças (I, 26).
42
Portanto, segundo Montaigne, o erro está no modo de se
relacionar com as ciências, com o conhecimento. E ele continua:
12
Tema já presente em Sêneca (Cartas a Lucílio, LXXXIV), e de quem é muito
provável que Montaigne tenha tomado emprestado.
13
Montaigne trata mais especificamente destas noções epistemológicas e
pedagógicas no capítulo Da educação das crianças (I, 26).
43
portanto, passíveis de serem questionados, testados, provados, pesados e
ensaiados. Montaigne diz:
14
Nota de rodapé da tradutora: “Pois, não menos que saber, agrada-me
duvidar.” (Dante, Inferno, XI, 93).
44
Xenofonte e de Platão por seu próprio julgamento,
não serão mais as opiniões deles, serão as suas. (I,
26, 226).
15
Sobre este tema, Marc Foglia em seu livro Montaigne, pédagogue du
jugement (2011), defende a tese de que há uma concepção original da filosofia
nos Ensaios em Montaigne, a qual consiste precisamente “no exercício e no
exame do julgamento” (p. 183).
16
Ver 2.2.2.
45
Se filosofar é duvidar, como se diz, com mais forte razão entreter-se
com ninharias [niaiser] e fantasiar [fantastiquer], como faço, deve ser
duvidar. Pois cabe aos aprendizes inquirir e debater, e ao catedrático
resolver.” (II, 3, 29). Nesta passagem, na qual Montaigne faz um jogo
silogístico para falar da sua forma de filosofar, podemos perceber em
que dimensão ele situa a sua filosofia: na dimensão das coisas
ordinárias, das ninharias e das fantasias, pois cabe esta licença aos
aprendizes. Pois, se filosofar é duvidar, e o ato de duvidar pode ser
entendido como entreter-se com ninharias e fantasiar, à maneira do
ensaio, logo, fazer ensaios seria uma forma específica de filosofar, não
como um catedrático que traz resoluções, mas como aprendizes
inquiridores e debatedores.
Outrossim, cabe aqui falarmos a respeito da própria imagem que
Montaigne faz da filosofia, através do seu elogio na seguinte passagem,
que, embora longa, merece ser transcrita:
17
O Tresor é, antes de tudo, um herdeiro do Dictionnaire françois-latin e dos
dicionários latim-francês de Robert Estienne. Encontramos este e todos os
outros dicionários franceses consultados, do séc. XVI ao séc. XX, digitalizados
pelo The ARTFL Project, através do projeto Dictionnaires D’Autrefois,
48
com definições e com tradução das palavras para o latim, que era a
língua internacional da época, encontramos diversas acepções para o
termo Essay (grafia antiga da palavra). A primeira definição que
encontramos para “ensaio” é a de (1) uma tentativa, a qual é teste ou
prova do que está sendo feito (lat. periculi factio, tentamentum). Esta
definição, de cunho mais geral, permanece atual ainda hoje. Ela se
relaciona diretamente com a segunda definição, que é a do (2) ensaio do
aprendiz de algum ofício ou de alguma coisa; de acordo com isto, é que
se diz “fazer sua primeira tentativa”, que em francês possui uma
expressão própria, o coup d’essai, para a qual não há uma tradução
literal no português. A terceira definição relaciona-se não com o sujeito,
mas com o objeto, e chama-se de ensaio (3) a peça modelo ou exemplar
de um artesão que aspira à mestria na arte (lat. specimen, argumentum).
A quarta, quinta e sexta definição estão vinculadas à prova ou avaliação,
degustação e medição de alimentos e bebidas. Chama-se de ensaio (4) a
prova da comida e da bebida que é feita diante do rei, daquilo que lhe
será servido, para garantir-lhe salvaguarda de que seu alimento não está
envenenado; também são chamados de ensaio as pequenas fatias de pão
e as pequenas taças que são utilizadas para esta atestação do alimento e
da bebida servida ao rei. Da mesma maneira, chama-se de ensaio (5) as
pequenas garrafas e pequenas taças utilizadas pelos comerciantes de
vinho, para fornecer uma pré-degustação do produto que está sendo
comercializado (lat. praegustatio, praegustare). E por fim, diz-se (6)
ensaio do trigo todo o processo que envolve a moagem dos grãos de
trigo em um moinho rústico (conhecido na época como bulteau, bluteau,
ou ainda blultoir), sua separação em partes (farinha, farelo, germe, etc.),
a sondagem de sua qualidade e a pesagem das partes originadas deste
processo. A partir da consulta a este dicionário do séc. XVI, é possível
ver que o substantivo “ensaio” era empregado para designar atividades
bastante concretas e específicas, e utilizado na linguagem popular, para
se referir a ações ou objetos relacionados à manufatura de produtos, ao
preparo de alimentos e bebidas, enfim, à produção da vida mesma.
O segundo dicionário consultado foi a primeira edição do
Dictionnaire de L’Académie Française18, de 1694, e no qual não
encontramos grandes variações nas definições do substantivo masculino
“ensaio” com relação ao dicionário anterior; o que pudemos observar de
19
O historiador das ideias Peter Burke (2006) alega em seu Montaigne que nos
dois primeiros terços século XVII, “os Ensaios continuaram a ser reimpressos a
cada dois ou três anos, ao menos cinco vezes em 1608, seis vezes em 1617,
cinco em 1627, nove em 1636” (BURKE, 2006, p. 96).
50
nova acepção, relevante ao nosso estudo: se diz, ainda, “ensaio” para
designar “certas obras que se intitulam assim, seja por modéstia, seja
porque, de fato, o autor não se propõe a aprofundar a matéria que ele
trata. Ensaios de Geometria, Ensaios de Moral, de Física, de Literatura.
Ensaio sobre a Pintura, sobre a Música. Os Ensaios de Montaigne.”
Além de podermos constatar que Montaigne faz uso de quase
todos os sentidos que a palavra permite, como veremos mais adiante, é
interessante notarmos que seus Ensaios propriamente passam a figurar
na lexicografia da língua francesa, a partir do século XVIII, como um
exemplo dado a um dos sentidos possíveis ao termo ensaio. Entretanto,
diferentemente dos usos que o próprio autor deu ao termo, aqui se
encontra já no sentido moderno de gênero literário, abarcando uma
diversidade de obras sob um mesmo rótulo. Todavia, o ensaio como
gênero literário, é definido em linhas muito gerais e vagas, e nos cabe
indagar se teria Montaigne (como tantos outros que escrevem ensaios)
atribuído tal título a sua obra apenas por uma questão de modéstia, como
a definição do dicionário caracteriza, ou, então, por que não se propôs a
aprofundar a matéria de que trata no livro. Porém, deixemos para mais
adiante o questionamento sobre os possíveis motivos que o levaram à
escolha do título, à caracterização do ensaio, bem como o uso do termo
para designar um gênero literário; por ora, pretendemos traçar as
principais acepções que a palavra ensaio teve na França, a partir do
Renascimento e nos séculos seguintes, para assim delimitarmos a
adoção do termo por Montaigne, os sentidos empregados e os usos que o
autor faz do mesmo, contrastando-os com a metamorfose subsequente
da palavra e do título em um gênero literário. Nosso objetivo é
acompanhar a criação e lapidação do conceito de ensaio por Montaigne,
perscrutando as virtualidades que o conceito opera na sua obra, e de
como esta invenção contribui para o desenvolvimento e a articulação da
sua filosofia.
20
Em Blinkenberg (Org.). L’Essai: Metamorphoses d’un genre. 2002.
51
Berlan escreve: “Tudo começa com o par agere/facere em latim.”
(2002, p. 2, trad. nossa). Utilizando-se da análise de sinonímia
distintiva, proposta inicialmente por Marco Terêncio Varrão,
reformulada com os conceitos linguísticos modernizados por Alfred
Ernout e Antoine Meillet no Dicionnaire Étymologique de la Langue
Latine Ernout-Meillet (2001), Berlan traz à tona esta comparação entre
os dois verbos sinônimos, sendo ambos relativos à ação; entretanto,
enquanto agere está do lado do sujeito, facere está do lado do objeto.
Assim, “Agere se diz de uma atividade que se desdobra, facere de uma
coisa que se fez” (Ibdem). Seus correspondentes, tanto em francês como
em português, são agir/agir e faire/fazer, e enquanto ambos os verbos
em latim são transitivos, no francês e no português o primeiro é
intransitivo enquanto o segundo é transitivo. Berlan sugere que a
evolução através da construção intransitiva de agere se explica pela
centralidade do sujeito, uma vez que é o sujeito que age, e considera que
esta dimensão subjetiva é importante para compreendermos o
desenvolvimento do termo ensaio.
Um segundo elemento destacado por Berlan, também extraído do
dicionário Ernout-Meillet, é o fato de agere ser um verbo durativo,
enquanto facere é um verbo “quase determinado”. Para Berlan, esta
distinção fica mais clara com uma terminologia recente relacionada aos
modos ou aspectos de processos verbais, pois enquanto um é conclusivo
(facere), o outro é não conclusivo (agere). Sendo assim, agere designa
uma atividade tendo em conta seu desdobramento, seu desenrolar, e não
o seu término. E este aspecto, segundo a autora, é também muito
importante para compreendermos melhor a noção de ensaio. Agere está
diretamente relacionado à uma ideia de atividade e dinamismo. E assim,
Berlan define três características semânticas a serem conservadas para o
estudo da palavra ensaio: “a orientação subjetiva, o valor não conclusivo
e a ideia de atividade” (Ibdem, p. 3). Por via destas três características
podemos iniciar uma melhor compreensão da palavra ensaio, já
apontando para a potência que a noção ganha com Montaigne, ou seja,
ao buscarmos as origens da formação da palavra, compreendemos que a
função que o termo opera em sua obra está relacionada a estas raízes
semânticas do termo latino agere, ou seja, se relaciona àquele que fala e
age, ao valor não conclusivo de sua ação, e por fim, à condição
dinâmica deste processo de ação e fala.
Ainda de acordo com Berlan, será pela via do agere que
chegaremos ao seu derivado prefixado exigere, de onde é retirado
exagium, o qual, por sua vez, é derivado do radical do verbo exigere. O
52
sentido primeiro de agere é ainda mais concreto do que o indicado
anteriormente, pois este é um termo da língua pastoral, que significava a
princípio “empurrar diante de si”, “avançar”, trazendo a representação
de uma atividade em seu exercício contínuo, como bem indica Berlan. A
autora também destaca o prefixo ex, de exigo, o qual carrega a noção de
uma origem, concreta ou abstrata, seja um lugar, uma referência, um
critério, ou um padrão de medida, no sentido de “fazer sair de”, e de
onde se pode chegar às noções de “retirar, tirar uma amostra” e, em
consequência, à “avaliar, medir”. Berlan sublinha:
54
para Telle, a elegância, a moderação e a crítica são os elementos
norteadores na escolha do título por Michel de Montaigne para seus
livros.
Françoise Berlan, assim como Emile V. Telle, faz uma
importante observação sobre o título: ambos sublinham a alteração nele
feita após a morte de Montaigne, na primeira edição póstuma organizada
por Pierre de Brach e Marie de Gournay, com a introdução do artigo
definido, passando de Essais de Messire Michel, seigneur de Montaigne,
para Les Essais de Michel, seigneur de Montaigne. Para os
comentadores, a introdução do artigo definido causa uma distorção no
sentido do título pois, se a ausência do artigo definido denota
contingência, não exaustividade, por outro lado, a presença do
determinante definido sugere “a ideia de completude, balanço de uma
vida ou perfeição da obra.” (BERLAN, 2002, p. 6).
Mas, para Berlan, o dano maior acontece quando é adotada a
disposição canônica de colocar o nome do autor a frente, e então em
seguida o título, desmembrado-o do complemento de nome. Esta
alteração é negligente com um sintagma tomado da língua comum, o
qual cria uma relação subjetiva e confere estatuto de agente ou paciente
ao messire Michel, tornando clara a relação orgânica entre tentativas ou
experiências e aquele que é o instigador ou a sede delas. Telle (1968)
ainda destaca que este limite acentuado pelo título Essais ao invés de
Les Essais, é um limite não apenas quantitativo, mas também
qualitativo, pois, como ela afirma, bem sabemos que Montaigne teria se
pintado inteiro e completamente nu se assim o pudesse, como nos revela
no aviso Ao leitor: “[A] Pois, se eu tivesse estado entre aqueles povos
que se diz viverem ainda sob a doce liberdade das primeiras leis da
natureza, asseguro-te que de muito bom grado me teria pintado inteiro e
nu.” (I, 4).
De acordo com Hugo Friedrich (1968, p. 333), o título Ensaios se
coloca ao lado de outros títulos que estavam na moda para as
miscelâneas literárias, como por exemplo “Disputas” (Disputations),
“Sentenças” (Sentences), “Palavras de Ouro” (Mots Dorés),
“Conversas” (Entretiens), “Misturas” (Mélanges), “Variedades”
(Variétés), “Diversidades” (Diversités). Não obstante, o que Friedrich
ressalta é que, apesar do título figurar ao lado de outros atribuídos à
categoria literária das miscelâneas, Montaigne, o primeiro autor que
nomeia seu livro de Ensaios, associa este título a uma noção de método,
e não a uma etiqueta de um gênero anexado à literatura. Porém, apesar
do sentido metódico que Montaigne atribui a este título, entretempos,
55
segundo Friedrich, ele passa a ser adotado por outros importantes
autores devido aos seus atributos de elegância mundana, andamento sem
pedantismo, e a um fragmentarismo pretendido, como é o caso de
Descartes, Pascal e Nicole (1968, p. 357). E, apesar de ter sido nos
Essays de Bacon que o termo ensaio foi empregado pela primeira vez
como um gênero preciso, certamente por referência a Montaigne, e,
através dos ingleses ter sido disseminado para a literatura mundial como
“[...] um gênero cheio de arte e urbanismo, alimentado por elementos
autobiográficos e de um subjetivismo afirmado” (1968, p. 358), há uma
enorme diferença entre os Ensaios de Bacon e os de Montaigne de
acordo com Friedrich, pois o estilo “[...] didático, sentencioso, seco e
frio [...]” de Bacon nada possui em comum com “[...] o amável francês,
colorido, caprichoso e aberto a todos os aspectos do humano.” (Ibdem).
Silvio Lima, em seu Ensaio sobre a Essência do Ensaio (1946),
duas décadas antes de Hugo Friedrich, já chama a nossa atenção para
essa mutação:
56
Com grande prazer observo que os homens de
letras de nossa época têm perdido, em grande
medida, o temperamento tímido e acanhado que
os mantinha distantes dos homens e que, ao
mesmo tempo, os homens do mundo se orgulham
de buscar nos livros os tópicos mais agradáveis de
suas conversas. Espera-se que essa liga do mundo
letrado com o mundo do convívio social, que
começou tão bem, possa se aprimorar ainda mais,
para mútuo benefício de ambos. Não sei de nada
tão vantajoso para esse fim quanto ensaios como
estes, com que me proponho a entreter o público.
Deste ponto de vista, posso me considerar uma
espécie de representante ou embaixador das letras
nos domínios do convívio social, e devo ter como
constante dever a promoção das boas relações
entre esses dois Estados, que tanto dependem um
do outro. (Ibdem, p. 222-223)
21
Max Bense, Über den Essay und seine Prosa [Sobre o Ensaio e sua Prosa],
Merkur, I (1947).
58
des arts et des métiers22 (título original), contém uma breve definição
para “ensaio” no campo da literatura, a qual supera as definições
anteriores dos dicionários franceses supracitados quanto ao sentido
literário, por deixá-lo mais maleável, como podemos ler:
22
Disponível em: http://encyclopedie.uchicago.edu/ . Acesso Junho 2017.
23
Disponível em: http://artflsrv02.uchicago.edu/cgi-
bin/philologic/getobject.pl?p.4:1016.encyclopedie0416 . Acesso Maio 2017.
59
seja para saber a quantidade de cada uma delas,
condição que caracteriza propriamente o ensaio
dos minerais, e o distingue de qualquer outra
operação química [...]. (Ibdem).
Através deste verbete citado acima, ainda que ele seja voltado
para a química, reconhecemos uma das primeiras definições de “ensaio”
contidas nos dicionários franceses anteriormente consultados, que é a do
ensaio do ouro, para o qual se utilizava uma pequena balança e a pedra
de toque, como constam descritas neste verbete.
É por isso que, apesar do termo “ensaio” ter sido empregado no
título de obras tão diversas após Montaigne, é importante distinguirmos
o sentido dado por Montaigne, pois, contrariamente a todos os outros
que adotaram para seus livros tal título devido ao espírito crítico e
experimental ou ao estilo da prosa, o nosso autor o concebe relacionado
ao seu procedimento filosófico, no qual método e estilo pessoal,
conteúdo e forma são indissociáveis e expressam não apenas o seu
projeto de escrita, mas o seu projeto de vida, “seu estudo, sua obra e seu
ofício”, enfim, seu “registre de durée” (II, 18, 498), fazendo jus à
modelagem de sua figura enquanto “um filósofo impremeditado e
fortuito” (II, 12, 320).
60
2. CAPÍTULO II
61
modo geral, por serem os de Montaigne protótipo para todos os outros;
porém, não há como deduzir o que seja o conceito de ensaio em
Montaigne, apenas por conhecer o procedimento científico ou o gênero
literário. Aliás, esta associação apressada configura como uma das
causas do equívoco interpretativo na compreensão da obra. Há, contudo,
uma relação fundante dos Ensaios do nosso autor com os
desdobramentos da palavra e a posterior invenção de um gênero
literário, e por isso a ideia comum entre nós de que ele cria tal gênero;
todavia, o conceito de ensaio em Montaigne não é redutível e nem
equivalente ao gênero literário.
A concepção clássica de gênero literário no Renascimento,
enraizada na tradição greco-romana representada por Platão, Aristóteles
e Horácio, possuía regras rigorosas e formas fixas, sendo muito
valorizada a pureza do gênero e a unidade do tom, e por isso,
hierarquizados entre gênero maior e gênero menor; desde a Antiguidade
até o Renascimento a concepção tripartite de gênero (épico, lírico e
dramático) permanece quase inalterada; foi só a partir do Barroco (final
do Renascimento) que ocorreu uma crescente valorização de gêneros
mistos, como também a criação de novos gêneros. A partir desta
perspectiva histórica, podemos presumir que, embora Montaigne tenha
vivido no limiar desta mudança de paradigmas e possa estar vinculado a
determinadas correntes artísticas e literárias, ele não esboça em nenhum
momento de sua obra a ambição de criar um novo gênero literário,
menos ainda de realizar uma revolução científica através do ensaísmo. O
que vemos no autor é sim uma consciência quanto à originalidade de seu
estilo e do seu livro, como diz:
24
Montaigne escreve um capítulo especialmente sobre este assunto, o Da arte
da conversação (III, 8). Sobre o tema, ver Morellet et al. em A Arte de
Conversar, 2001.
65
fortuitus, palavra tão cara à filosofia de Montaigne25. Todavia, dentre
todos estes gêneros citados, a semelhança maior do ensaio está,
principalmente, em relação à carta e ao diálogo, que foram dois gêneros
de grande predileção, tanto na Antiguidade como no Renascimento e, de
acordo com Friedrich, forneceram as condições históricas que tornaram
possível a criação da forma aberta do ensaio.
O ensaio se assemelha à carta com relação ao seu estilo familiar,
divagante, íntimo e em primeira pessoa, como bem caracteriza
Friedrich:
25
Por diversas vezes Montaigne utiliza o termo “fortuito” para se referir ao seu
livro, à sua forma de falar e escrever e mesmo à sua figura enquanto um
filósofo, como podemos ver nestas passagens: “[A] O que são estes [ensaios]
também, na verdade, senão grotescos e corpos monstruosos, remendados com
membros diversos, sem forma determinada, não tendo ordem, nexo nem
proporção além da fortuita?” (I, 28, 274); “[B] [...] ao passo que minha intenção
é representar, quando falo, uma profunda despreocupação e movimentos
fortuitos e impremeditados [...]” (III, 9, 266).
66
pensamentos, mas também das ações, sentimentos e paixões. E, apesar
de, por vezes, possuir uma intenção didática de instrução do remetente,
o tom da linguagem epistolar é caloroso. É justamente quanto ao
remetente que o ensaio se distancia da carta; o ensaísta escreve para um
público anônimo, ainda que ele possa se direcionar-se a um público
determinado; por não possuir um remetente específico a quem deva
instruir, o ensaísta foge do tom professoral e mesmo das intenções
didáticas, como podemos verificar com Montaigne, nas seguintes
passagens: “[C] Meu temperamento, tanto falando como escrevendo,
não é apropriado para os principiantes.” (III, 8, 228); e especialmente
nesta outra:
67
Hugo Friedrich fala ainda de uma outra passagem dos Ensaios, na
qual Montaigne revela que via em Platão um tipo de cético. Friedrich
afirma:
26
Ver Sexto Empírico, Esbozos Pirrónicos. (HP, I, 13-15). 1993.
69
Voltaremos a tratar mais detalhadamente este trecho acima no
terceiro capítulo. Por hora, vamos falar de um outro elemento presente
na constituição do ensaio: a glosa jurídica e a prática do comentário.
André Tournon em sua tese Montaigne: la glose et l’essai (1983),
sustenta que no ensaio o comentário se mistura ao texto, em uma
combinação que revela os antecedentes de Montaigne: o trabalho de
exegese doxográfica e a glosa jurídica, ambas as atividades familiares ao
nosso autor, seja em vista de sua formação humanista e da prática das
leçons, seja devido à prática do comentário crítico exercida em função
do cargo de conselheiro ocupado por Montaigne na Câmara de
Inquéritos de Bordeaux, durante sua carreira de magistrado. Tournon
afirma que Montaigne, mais tarde, realiza um desvio destas práticas de
suas finalidades próprias, mas retém seus esquemas e “o ensinamento
essencial impresso em sua estrutura: a dúvida sistemática que deve tê-lo
inspirado em sua insígnia de filósofo” (1983, p. 12). Tournon mostra
que a dúvida pirrônica nos Ensaios não é apenas produto de uma crise
provisória, situada na fase intermediária de escrita da obra, como afirma
Pierre Villey27, mas está estreitamente vinculada à sua experiência na
carreira de magistrado e à assimilação dos métodos do comentário
crítico, e encontra-se presente desde a escrita dos primeiros ensaios,
como diz:
27
Les sources et l’évolution des Essais de Montaigne (1903).
70
Sob esta rubrica [filosofia do ensaio] não se
anuncia uma síntese do pensamento de
Montaigne. Ela consiste unicamente em precisar
as formas inéditas de enunciação graça às quais a
dúvida e a epochè pirrônica, no lugar de conduzir
ao silêncio, podem se combinar com o desejo de
tudo dizer, sobre o mundo e sobre si, sem
reticências, senão sem desvios. (Ibdem).
72
Esta passagem deixa muito claro o sentido de exercício das
faculdades naturais que Montaigne dá ao termo ensaio. Portanto, o que
se coloca a partir desta significação torna evidente que o ensaio não se
trata de um resultado final da investigação como uma verdade a qual se
chega; mas é o sentido de processo da investigação em sua operação, do
exercício das “faculdades naturais”, dos discursos e opiniões em ação,
como assinalado por Georg Lukács28: “o ensaio é um julgamento, mas o
essencial nele não é (como no sistema) o veredicto e a distinção de
valores, e sim o processo de julgar” (LUKÁCS, 1971, não paginado).
Destarte, quando Montaigne confessa a sua ignorância, é muito provável
que ele não faça tal declaração apenas para afirmar que nada sabe mas,
ao afirmá-la, coloca em evidência que o que está em questão é o
procedimento do ensaio de seu julgamento. Tendo isso em vista,
concordamos com o posicionamento de Tournon, de que o estatuto da
verdade nos Ensaios de Montaigne se dá na ordem do testemunho, da
palavra dada de “boa-fé”, como afirma o intérprete: “A verdade dos
Ensaios não se situa na ordem dos conhecimentos, filosofia ou erudição,
mas na ordem dos testemunhos” (2004, p. 117). Portanto, a condição de
verdade dos discursos proferidos nos Ensaios situa-se na relação que
Montaigne estabelece com o seu leitor, e na disposição deste em aceitar
o testemunho de Montaigne, uma vez que este “se confessa destituído de
garantias doutrinais sempre fraudulosas” (TOURNON, 1983, p. 295.
Trad. nossa). E Montaigne mesmo, no capítulo Do desmentir (II, 18),
afirma a importância da palavra dada de boa-fé para a manutenção das
relações sociais:
28
Em Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper, (1971).
73
conceito de ensaio em Montaigne. Nesta outra passagem abaixo,
podemos perceber de que forma está agenciado no conceito de ensaio o
projeto montaigneano de se fazer conhecer através da escrita da sua
subjetividade e da confissão dos pormenores da sua experiência pessoal,
bem como o seu julgamento sobre as coisas. Mais uma vez podemos
observar que a noção de ensaio traduz um método e um exercício:
75
do vau, para verificar sua profundidade e saber se pode atravessá-lo. E,
caso considere-o fundo demais para sua estatura, mantém-se na margem,
aceitando a impossibilidade de passar para o outro lado. Aplicando a
analogia ao assunto desconhecido, o ensaio seria o exercício do juízo
sobre qualquer assunto, ainda que desconhecido, muito embora, quando
for este o caso, aceite permanecer na margem do não conhecer. Sendo
assim, a consciência de sua limitação é uma das grandes características
do ensaísta, que a aceita declaradamente e de antemão, e, ao invés de se
privar da tentativa de travessia por conta disso, ao contrário, desta
característica se envaidece. Inclusive, podemos nos perguntar em que
medida esta declaração de Montaigne de “manter-se na margem” não
seria uma das principais justificativas, por parte de comentadores, para a
alegação da característica de modéstia e moderação atribuída ao ensaio.
Outrossim, esta imagem também representa o reflexo da sua “forma
mestra, que é a ignorância” (I, 50, 449).
Uma outra metáfora empregada por Montaigne neste mesmo
capítulo, para se referir ao ensaio do julgamento, é a de “dar corpo”,
apoiar e escorar este corpo, quando o assunto a ser julgado é um assunto
vão e sem valor. Vejamos:
80
julgamento ou das faculdades naturais, como processo e exercício de
julgar sobre os mais variados assuntos, mesmo sobre aqueles
desconhecidos, para testar, provar e exercitar sua capacidade. Mas ainda
há outros usos da palavra no texto, e será importante analisá-los, a fim
de formarmos um quadro mais abrangente sobre este conceito.
29
Ver Theobaldo, Maria Cristina. Sobre o “Da educação das crianças”: a nova
maneira de Montaigne. (2008). Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-25112008-171903/pt-
br.php.
81
saber, seu julgamento. Sua educação, seu trabalho e estudo visam tão
somente a formá-lo.” (I, 26, 227). Assim, para formar uma “cabeça bem
feita” é preciso submeter tudo ao “filtro” do julgamento:
82
[B] Eu gostaria de dizer-lhes que o fruto da
experiência de um cirurgião não é a história de
suas práticas nem lembrar-se que curou quatro
empestados e três gotosos, se desse exercício não
souber extrair com que formar seu julgamento e
não souber fazer-nos sentir que se tornou mais
sábio com o exercício de sua arte. [C] Assim
também, num concerto de instrumentos, não
ouvimos um alaúde, uma espineta e a flauta:
ouvimos uma harmonia global, a união e o fruto
de todo esse ajuntamento. [B] Se as viagens e os
cargos os melhoraram [um senhor temido ou um
homem a quem dão missões e cargos], cabe à
manifestação de seu entendimento evidenciá-lo.
Não basta contar as experiências: é preciso
sopesá-las e combiná-las; é preciso tê-las digerido
e destilado, para extrair-lhes conclusões que elas
comportam. (III, 8, 218).
30
Assim Montaigne escreve: “[A] [...] gostaria que se tivesse o cuidado de
escolher-lhe um preceptor que antes tivesse a cabeça bem feita do que bem
cheia, e que se lhe exigissem ambas as coisas, porém mais os modos [moeurs] e
o entendimento do que a ciência; e que em seu encargo ele se conduzisse de
uma nova forma [nouvelle manière].” (I, 26, 224).
83
se não fez mudar a característica e a forma do que
lhe deram para digerir. (I, 26, 225).
86
o que se apresenta a nossos olhos serve de livro
eficiente [suffisant] [...]. (I, 26, 228).
87
Epicuro, etc., e podemos identificar algumas práticas presentes nos
Ensaios com estes exercícios espirituais acima citados. Como, por
exemplo, no capítulo De três relacionamentos, quando fala sobre o
poder da meditação: “[C] Meditar é um estudo poderoso e rico, para
quem sabe sondar-se e aplicar-se com vigor; prefiro forjar minha alma a
mobiliá-la.” (III, 3, 49); ou, no Dos livros, quando discorre sobre o valor
da leitura:
31
Em Educació, Filosofia i Escriptura en Montaigne. Un comentari a “De
l’Educació dels infants”. Universitat de les Illes Balears: Palma, 2001.
32
Segundo nota da edição da Folio Classique: “Este tipo de pintura mural
aparece na Itália em meados do século XV, inspirados nos afrescos da Domus
aurea de Nero. Ela combina entrelaçamentos de folhagens e uma profusão de
temas fantásticos, seres híbridos proliferando de maneira a sugerir, sob a
simetria dos arranjos, uma impressão de desordem.” (Essais, I, p. 645).
89
fantasiosas cuja única graça está na variedade e
estranheza. O que são estes também, na verdade,
senão grotescos e corpos monstruosos,
remendados com membros diversos, sem forma
determinada, não tendo ordem, nexo nem
proporção além da casualidade [ni proportion que
fortuite]? Desinit in piscem mulier formosa
superne.33 (I, 28, 273-274).
33
“É o corpo de uma bela mulher terminando em cauda de peixe.” (Horácio,
Arte poética, 4.)
90
[A] Resolvi tomar emprestado um de Etienne de
la Boétie, que honrará todo o restante deste
trabalho. É um discurso a que deu o nome de A
servidão voluntária, mas os que ignoraram esse
nome depois rebatizaram-no com muita
propriedade de Contra um. Escreveu-o à maneira
de ensaio [par manière d’essai], em sua juventude
[première jeunesse], em honra da liberdade contra
os tiranos. [...] Entretanto muito lhe falta para ser
o melhor que La Boétie pode fazer; e se na idade
em que o conheci, mais avançada, concebesse um
projeto como o meu, de lançar por escrito suas
elucubrações, veríamos muitas coisas raras e que
nos aproximariam muito da honra da Antiguidade;
pois sobretudo nessa parte dos dons da natureza
não conheço outro que lhe seja comparável. (I,
28, 274-275).
91
a costura que as uniu. Se me pressionarem para
dizer por que o amava, sinto que isso só pode ser
expresso [C] respondendo: ‘Porque era ele,
porque era eu.” (I, 28, 281).
92
Embora estas sejam considerações secundárias ao nosso tema, é
importante tê-las em mente, uma vez que servem de base à tessitura
complexa que compõe o conceito de ensaio, como as noções de
amizade, de indivíduo e de singularidade. Agora vamos ao Das orações.
34
O qual Montaigne faz a tradução do latim para o francês, e foi publicado em
1569.
93
paradigmas, o que mais tarde caracterizará a ruptura com o mundo
Medieval e o surgimento da Modernidade. É neste contexto que
acontece de forma mais clara e definida a separação entre as
investigações teológicas e as investigações filosóficas; e Montaigne se
posiciona diante deste debate, justificando o caminho que escolheu:
94
crianças propõem seus ensaios”, trazendo à tona a dimensão aberta do
processo de formação, “instruíveis, não instrutoras”.
Este modo de se referir às suas ideias e fantasias como matéria de
opinião e como maneira de se instruir, corrobora a nossa defesa de que o
exercício do ensaio para Montaigne não se trata de um gênero literário
unicamente, mas que, em primeiro lugar, consiste em um gênero e
método filosófico, ainda que, com o passar do tempo, através dos usos e
apropriações do termo, ele tenha se transformado em um gênero literário
não fictício. Esta metamorfose que ocorre com o gênero ensaístico
aponta certamente para a permeabilidade que há entre as fronteiras da
literatura e da filosofia em Montaigne, o que também revela a
dificuldade que há em definir e classificar o tipo de filosofia que o autor
elabora. Todavia, o que se torna claro para nós, é o horizonte
interdisciplinar no qual o ensaísta opera e engendra a sua filosofia.
Neste segundo capítulo vimos os principais usos e aplicações do
conceito de ensaio em Montaigne, e acreditamos que desta forma tenha
se delineado com maior clareza a nossa hipótese de que o ensaio não é
apenas um gênero literário em Montaigne, mas se trata de seu
procedimento e método filosófico. Porém, agora nos falta mostrar de
que modo Montaigne inventa uma filosofia que, embora encorpore
diversos posicionamentos e estratégias argumentativas do ceticismo,
todavia, ao se dar a liberdade de tudo dizer e de, por vezes, afirmar e
defender posições e opiniões, vai além do ceticismo pirrônico ao
inventar um método filosófico positivo: o ensaio.
95
96
3. CAPÍTULO III
35
Como diz na seguinte passagem: “[A] No entanto julgo assim: que numa
coisa tão divina e tão elevada, e que ultrapassa de longe o entendimento
humano, como o é essa verdade com a qual aprouve à bondade de Deus
iluminar-nos [a Revelação], é muito necessário que ele continue a prestar-nos
auxílio, por um favor extraordinário e privilegiado, para a podermos conceber e
abrigar em nós; e não creio que os recursos puramente humanos sejam capazes
disso; e, se o fossem, tantas almas raras e excelentes, e tão abundantemente
munidas de forças naturais nos séculos antigos, não teriam deixado de por meio
da razão chegar a esse conhecimento. É tão-somente a fé que abarca vivamente
e verdadeiramente os altos mistérios da nossa religião.” (II, 12, 164).
36
Como Montaigne mesmo relata: “[A] Suas maneiras de falar [dos pirrônicos]
são: Não estabeleço coisa alguma; não é assim mais do que assim, ou do que
nem um nem outro; não compreendo isso; as aparências são iguais para tudo; a
possibilidade de falar contra e a favor é a mesma. [C] Nada parece verdadeiro
que não possa parecer falso. [...] Eis seus refrões, e outros de igual conteúdo.”
(II, 12, 258).
98
dos empreendimentos humanos nos níveis intelectual, social e cultural,
fazendo com que o humano fosse questionado quanto à sua posição
moral no cosmos, e, por fim, produzindo um questionamento sobre a
própria natureza humana. Diante deste cenário, a reabilitação do
ceticismo filosófico é crucial para o aprofundamento das discussões
neste período, no qual Montaigne figura como um dos principais
personagens, pois, de acordo com Popkin, foi através da sua Apologia
que o Pirronismo se popularizou. Popkin diz:
37
Em A “Apologia” na Balança. A Reinvenção do Pirronismo na Apologia de
Raimundo Sabunde de Michel de Montaigne. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 2007.
38
Em Montaigne contra a vaidade (2004) e A figura do filósofo. Ceticismo e
subjetividade em Montaigne. Edições Loyola: São Paulo, 2007.
99
inferir que o todo da composição possui o atributo exclusivo do
ceticismo, porque ocorre que um de seus capítulos é cético por
excelência.
Assim sendo, não pretendemos negar a importância do ceticismo
pirrônico como um elemento fundamental na configuração da filosofia
dos Ensaios, mas pretendemos questionar a interpretação que enxerga
na Apologia o principal capítulo da obra e, no ceticismo, o centro da
filosofia de Montaigne. Portanto, pretendemos lançar luz à totalidade
dos Ensaios pelo viés do método filosófico inventado por Montaigne, o
ensaio, e não pelo viés da importância histórica de Montaigne na
reabilitação do ceticismo antigo.
Como já dissemos anteriormente, embora o método de análise
dos conteúdos e de identificação de suas origens e filiações seja de
grande relevância para a compreensão das concepções e fontes
utilizadas por Montaigne, ele se mostra insuficiente para as finalidades
da nossa pesquisa, justamente por desconsiderar o trabalho de
construção positiva e artística do ensaio, e atentar apenas para a
construção teórica. Acreditamos que por esta via da análise de
conteúdos perde-se de vista a originalidade da empresa de Montaigne,
que é a de captar e retratar a passagem através de seus ensaios, diante da
impossibilidade de fixar seu objeto de investigação, que é ele mesmo. O
ensaio opera exatamente neste registro textual do deslocamento de seus
humores, intenções, opiniões, experiências, e na maneira como retorna a
estes registros e os comenta. É neste ponto que reside a descoberta de
Montaigne e o que lhe permite fazer infinitos ensaios: “Se minha alma
pudesse tomar pé eu não me ensaiaria, decidir-me-ia, ela está sempre em
aprendizagem e à prova.” (III, 2, 27). Vemos nitidamente se desenvolver
em seus Ensaios um trabalho positivo de criação sobre si, de
aprendizagem e de autoconhecimento, retratando as minúcias de seus
juízos, fantasias e humores, e de seu olhar sobre a condição humana. E,
para o projeto montaigneano, a forma do texto não é mero acaso nem
consiste apenas em um elemento estilístico ou estético; antes, a forma
textual é o próprio procedimento metodológico operado por Montaigne
através do ensaio.
Outrossim, a questão da subjetividade, fundamental nos Ensaios,
muito embora possa ser coadunada ao ceticismo, por exemplo através de
uma leitura dos dez tropos de Enesidemo (HP, I, 36-39), seja a partir
daquele que julga, a partir do que se julga ou de ambas as coisas, ainda
assim, não está posta pelo ceticismo antigo. Ademais, os dez tropos
apresentam como finalidade a suspensão do juízo, e não realizam esta
100
dobra reflexiva sobre si mesmo, tal como o ensaio se configura
enquanto procedimento performático e experimental em Montaigne.
A empresa de Montaigne, que alia a investigação constante sobre
problemas e paradoxos da condição humana a partir de si mesmo, o
exercício e a formação dos seus julgamentos sobre estes problemas, bom
como a pintura e a formação da sua subjetividade através de uma arte da
construção textual, é o que podemos conceber então como ensaio. Esta
tessitura de ideias forma um todo que deve ser compreendido em sua
complexidade, considerando a inseparabilidade entre forma e conteúdo,
ou seja, entre aquilo que é dito e a maneira como é dito. Assim,
Montaigne propõe um gênero filosófico pautado em uma arte da
maneira de dizer o que se pensa, no uso da escrita no processo de
constituição da própria subjetividade e de seu questionamento,
considerando a dinâmica e mutabilidade do próprio pensamento.
A arte do ensaio consiste em assumir a própria perspectiva
subjetiva na investigação e não tomar nenhuma opinião humana como
absoluta ou verdadeira; parte de uma atitude não dogmática frente à
diversidade de opiniões e à equivalência entre as coisas. Porém, esta
atitude, que pode ser considerada cética de partida, ou como preferimos
denominar, a zetética montaigneana, não conduz necessariamente, como
o pirronismo antigo, à suspensão do juízo (epoché), à não afirmação de
nada (aphasía), ou unicamente à tranquilidade ou impassibilidade da
alma (ataraxía); mas encaminha o ensaísta a um exercício contínuo de
meditação, reflexão e pesagem de opiniões, com o objetivo de se
conhecer e se dar a conhecer. Esta incessante pesquisa e pesagem é o
que caracterizaria o ensaio como um autêntico exercício espiritual e um
método de investigação, formação e criação, exercício este que se
concretiza através do registro de seu testemunho e fornece o texto como
artefato de conhecimento, de lapidação e de subjetivação.
101
possível encontrá-la - os acadêmicos, e ainda outros que permanecem
investigando - os céticos (HP, I, 1-4). Sexto define o ceticismo como a
habilidade ou
103
modo de realizar seu exercício e investigação, e descobre através dela a
possibilidade de revelar o seu próprio eu como um autoretrato fiel a si. E
se, por um lado, a prática da argumentação cética realizada por
Montaigne o conduz à descoberta da singularidade da sua subjetividade,
por outro lado, o projeto de trabalhar na constituição e formação de si
mesmo com a prática de seus ensaios, não está presente como um
objetivo do programa do pirronismo praticado na Antiguidade. Esta
descoberta de Montaigne é inovadora e genuinamente um projeto
Moderno. Portanto, o modo como Montaigne põe em prática a filosofia
o conduz à uma descoberta nos Ensaios, e esta é a descoberta do
indivíduo singular, da subjetividade que se exprime através da
experiência intelectual da escrita de ensaios, como afirma Todorov:
104
Ainda há um outro ponto no qual Montaigne parece discordar dos
pirrônicos, que é quanto à expressão cética “não afirmar nada”
(aphasía). Muito embora Montaigne faça uso de expressões “céticas”, e
tenha por elas predileção, como podemos ler neste trecho:
107
louvor; e a culpa que tiver uma vez, tem-na
sempre, pois praticamente desde seu nascimento
ele é uno: mesma inclinação, mesmo caminho,
mesma força. (III, 2, 38-39).
110
Após afirmar que não existe a constância ou permanência, “a
própria constância é um movimento mais lânguido”, mas apenas o
movimento, ele justifica porque então não lhe é possível fixar seu objeto
- que é ele mesmo - pois este também faz parte do movimento do
mundo. “Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural”,
isto é, é de sua própria natureza a impermanência e a obscuridade.
Porém, tais características, não o impedem de querer investigá-lo;
entretanto, para realizar tal projeto, é preciso ajustar o método à natureza
do “objeto”: “Tomo-o nesse ponto, como ele é no instante em que dele
me ocupo”; pois, como ele já deixou claro que sua concepção é de uma
natureza em movimento, ele pode declarar como atua: “Não pinto o ser.
Pinto a passagem”. Para tal intento, é essencial que ele possa captar o
seu objeto, não em sua completude, o que seria impossível, mas
precisamente, em seus diversos momentos e movimentos, pois “É
preciso ajustar minha história ao momento”, ou seja, captar o instante
através da escrita, em seu “registro de duração”. Apenas através da
reunião destas “peças” desconexas, do “enfeixamento de partes tão
diversas [Ce fagotage de tant de diverses pieces]” (II, 37, 637) é que ele
poderá formar o “fricassée” (III, 13, 444) dos ensaios de sua vida.
Posto a mutabilidade e efemeridade de seu objeto, ele justifica e
dá embasamento a esta condição:
111
significa então, por vezes, registrar as contradições que a mudança e
transformação causam em si mesmo. E, muito embora Montaigne
conheça o princípio da não-contradição, que diz que duas afirmações
contraditórias não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo, no caso do
objeto tratado por Montaigne, o qual possui como uma das suas
principais características a mudança, este princípio não é válido. Enfim,
Montaigne faz um jogo de palavras para mostrar que, em sua concepção,
a contradição é parte integrante da condição humana e, portanto, uma
verdade.
A partir do estabelecimento do modo como deve tratar seu objeto,
para a ele ser fiel e manter o seu estatuto epistêmico, Montaigne dá o
seu coup de maître, e declara porque então o ensaio é a melhor maneira
de abordá-lo: “[B] Se minha alma pudesse prender pé, eu não me
ensaiaria, eu me resolveria: ela está sempre em aprendizagem e em
prova” (III, 2, 28). Esta expressão, já citada anteriormente, abarca em
seu significado toda a amplitude do projeto de Montaigne. Pois, se ele
pudesse fixar seu objeto, prender pé na “travessia do rio” do
conhecimento de si, chegar a um conhecimento definitivo e resolutivo,
não haveria a necessidade do procedimento do ensaio, e sua obra não se
chamaria Ensaios, mas talvez, Resoluções, Conclusões, Suspensões, ou,
ainda, Chefs d’oeuvre.
Montaigne se volta então para a questão da singularidade de seu
objeto, e de como através de um exemplar particular, neste caso, Michel,
toda a filosofia moral pode ser relacionada, para dela extrair exemplos e
aprendizagens, pois como afirma, “cada homem porta em si a forma
integral [entière] da humana condição”:
113
intenção é relatar a si mesmo com fidelidade, é preciso que ele vá com a
pena ao mesmo passo que vai com os pés:
114
Este capítulo nos mostra que, para além da empresa pirrônica de
suspensão do juízo, como acontece na Apologia em relação à pretensão
da razão humana de conhecer as causas celestes e a divindade,
Montaigne está interessado em dar forma aos seus juízos sobre si
mesmo, exercitando a consciência de si e abordando o tema do
arrependimento. Ele não suspende seus julgamentos, mas, antes,
performa-os, percorre-os através da escrita, registrando seus ensaios,
delineando a sua pintura de si e, portanto, constituindo a sua
subjetividade. E, ao passo que ele decide colocar-se em sua tela de
autoretrato, pintando a passagem de seus humores, fantasias, ações e
julgamentos, e assim ousar com fidelidade tudo dizer sobre si, daquilo
que é capaz de fazer e pensar, vemos o passo que Montaigne dá para
além do pirronismo, não atendo-se à suspensão do juízo e à afasia
cética.
Auerbach, quando trata deste mesmo capítulo por nós abordado,
em seu texto L’Humaine Condition (2004), fala precisamente do método
de Montaigne, e do rigor que lhe é peculiar:
120
mesmo; tais caracteres norteiam a prática do ensaio, precisamente
porque ele se constitui como uma investigação e construção da própria
subjetividade, proporcionando o grau de abertura necessário à liberdade
de expressão fundamental ao desdobramento do eu na escrita de si. É
sua intenção se representar de tal maneira, como diz: “[...] [B] minha
intenção é representar, quando falo, uma profunda despreocupação e
movimentos fortuitos e impremeditados como nascendo de ocasiões
presentes” (III, 9, 266). Por esta via, o filósofo “impremeditado e
fortuito” revela uma filosofia toda própria, construída através da
performance da sua experiência intelectual no palco de seus escritos: a
filosofia do ensaio.
A experiência de si se torna então a única que está ao nosso
alcance imediatamente, pois, como diz Montaigne, “[A] fazer o punhado
maior do que o punho, a braçada maior do que o braço e esperar saltar
mais que a extensão de nossas pernas é impossível e antinatural. E
tampouco que o homem se alce acima de si e da humanidade, ele só
pode ver com seus próprios olhos e aprender com as próprias forças” (II,
12, 406-407). Portanto, somente a partir do âmbito da investigação e
construção da própria subjetividade, registrada, refletida e lapidada pela
prática do ensaio, que se torna possível desenvolver uma filosofia tal
como a proposta por Montaigne.
121
meios possíveis que nos podem levar ao conhecimento, seja pela via da
razão ou pela via da experiência, isto é, tanto através de considerações
teóricas quanto pela observação empírica dos fenômenos. Embora ele
alegue que a experiência é “um meio mais fraco e menos digno” (III, 13,
423) que a razão, entretanto, devido à grandeza da verdade, não
podemos desdenhar nenhum meio de nos encaminhar a ela. Porém, tanto
a razão quanto a experiência possuem tantas formas que não sabemos a
qual nos ater. Como resultado, nossos julgamentos confusos, e que,
numa tentativa de ordenar as coisas, procura classificá-las de acordo
com supostas semelhanças. Mais uma vez, Montaigne toma partido a
favor da diversidade e da variedade, e afirma: “[B] A semelhança não
torna tão igual quanto a diferença torna diferente. [C] A natureza
obrigou-se a não fazer outra coisa que não o dissemelhante” (III, 13,
423).
A partir desta tomada de posição a favor do nominalismo,
Montaigne inicia sua crítica à jurisprudência, alegando que a
multiplicação na quantidade de leis para a elas ligar a gigantesca
variedade de fatos, é desproporcional à infinidade das ações humanas,
pois, como afirma, “[B] A multiplicação de nossas invenções não
alcançará a variação dos exemplos” (III, 13, 424). Acrescenta-se a isso,
a diversidade de interpretações da própria linguagem comum, que acaba
por resultar sempre, em se tratando por exemplo de contratos e
testamentos, em dúvidas e contradições. Montaigne diz:
122
desejo por conhecimento, como parte de nossa condição humana. Ele
continua:
41
Cf. AZAR, Celso Martins. [Natureza e lei natural nos Ensaios de Montaigne].
Revista Principia. Ano 3, n. 4. P. 51-71, jan/dez 1996.
125
A busca pelo conhecimento de si e o reconhecimento de nossa
condição humana, através da observação de nossas próprias
experiências, faz com que, cada vez mais, Montaigne penda para um
socratismo, e adote como baluarte de sua filosofia a sentença do oráculo
de Delfos: “[B] A advertência para cada qual conhecer a si mesmo deve
ter um efeito importante, pois aquele deus de ciência e de luz mandou
fixá-la na fachada de seu templo, como abrangendo tudo o que ele tinha
para aconselhar-nos (III, 13, 437).
Contudo, Montaigne sabe da dificuldade desta tarefa do
conhecimento de si, e critica aquela grande maioria convicta e satisfeita
que acredita estar em posse desse conhecimento e serem nele
suficientemente entendidos. Como afirma:
128
de constância e unidade, se ainda assim se quiser investigá-la, será
preciso um método que dê conta desta multiplicidade e variação.
Dessarte, anunciando de que maneira lida com a sua investigação,
Montaigne entra na discussão sobre a sua saúde, mais uma vez
privilegiando a experiência particular em detrimento de conhecimentos
gerais, tal como os da medicina. Já citamos esta passagem
anteriormente, mas aqui é importante citá-la novamente, justamente
porque é neste movimento interno ao capítulo que ela se insere:
129
utiliza tais críticas para chamar a atenção para a importância do estudo
minucioso da observação de si. Para ele, apenas a experiência própria
pode nos fornecer algum tipo de conhecimento que seja seguro. Usa seu
exemplo próprio, e toma a sua própria vida como um teste, prova ou
“ensaio”, tal como aquele que é feito com o vinho pelo escanção, para
mostrar que apenas o conhecimento de si pode nos ajudar a conduzir
bem a nossa vida e a viver melhor. Como ele diz na seguinte passagem:
“[C] Já vivi o bastante para dar valor ao uso que me conduziu tão longe.
Para quem quiser degustá-lo, fiz o ensaio, seu escanção.” (III, 13, 445).
A partir deste momento do texto, Montaigne faz uma exposição
sobre os seus hábitos e usos, e de como o costume dá forma às nossas
vidas, mostrando com isso a singularidade de cada nação e de cada
indivíduo, e de como qualquer saber sobre a saúde pode ser relativo aos
hábitos e costumes de cada povo. Aproveita esta relativização para
criticar os eruditos, de forma um tanto irônica, colocando a seguinte
pergunta:
131
principalmente sobre o assunto das ações
humanas. (III, 13, 448).
42
Em Montaigne em Movimento. Trad. Maria Lúcia Machado. Companhia das
Letras: São Paulo, 1992.
133
e feliz, desperto para a ventura de sentir seu gesto.
Então, a uma só vez tensos e displicentes, ativos e
passivos, indestrutíveis e levados pela duração,
apaixonados e indiferentes, confiamos no que nos
é dado e nos contentamos com o pouco que
podemos agarrar. É uma presa magra, em
comparação com o que a filosofia pretendia
possuir e conhecer, Mas é tão mais; pois o que
doravante possuímos é o instrumento pelo pelo
qual todas as coisas podem ser representadas ou
negadas, afirmadas ou recusadas, aproximadas ou
afastadas: nossa consciência, que nada possui mas
conhece sua pobreza e, assim, se supera a si
mesma. (STAROBINSKI, 1992, p. 233).
134
Montaigne retoma, por um novo viés, a reflexão sobre a condição
humana dentro de seus limites, levando em consideração a sua condição
corporal, passional e finita, fazendo uma crítica àquelas pessoas que
procuram “passar o tempo”, como diz:
136
com tão cerrada e fraternal correspondência? Ao
contrário, reatemo-la por serviços mútuos. Que o
espírito desperte e vivifique a lassidão do corpo, o
corpo assente a leveza do espírito, e fixe-a. [...].
[B] Não há parte indigna de nossos cuidados nesse
presente que Deus nos deu; temos de prestar
contas dele até o mínimo detalhe. E não é uma
missão puramente formal para o homem a de
conduzir o homem de acordo com sua condição: é
expressa, natural [C] e muito importante, e o
criador encarregou-nos dela a sério e severamente.
(III, 13, 498).
43
Em [O humano, o inumano e o sobre-humano no pensamento antropológico
do Renascimento]. In O Espírito da Letra. Ensaios de Hermenêutica da
Modernidade. Imprensa Nacional-Casa da Moeda: Lisboa, 2007.
137
si, por querer ter uma outra natureza ou ser mais
do que realmente é. (SANTOS, 2007, p. 89).
138
Para ser grande , sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Ricardo Reis, 1933
139
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS
* * *
Portanto, pensar a filosofia por este prisma, como uma arte que
consiste em criar conceitos, é uma posição que coloca diante de nós o
caráter de artífice do filósofo que, tal como um artesão, elabora e
inventa conceitos a partir de discursos e ideias, face às condições
específicas e problemas peculiares que enfrenta. Esta concepção de
filosofia nos habilita a ver o conceito de ensaio como a criação
filosófica de Montaigne e, da mesma forma, nos auxilia a articular este
conceito aos nossos problemas. Acreditamos que a potência de
articulação e aplicação do ensaio é tamanha que, mesmo sendo ele um
conceito assinado e datado por um homem da Renascença, e, por certo,
em diálogo com seu tempo, é um conceito vivamente passível de
atualização em nossos tempos, capaz de nos auxiliar na criação de novas
práticas e conceitos, tal como sugerem os autores:
144
de ensaio, pensarmos e enfrentrarmos nossos problemas no campo das
atividades filosóficas, especialmente os relacionados à escrita
acadêmica: só a partir deste gesto libertador e criador é que poderemos
fazer autênticos ensaios, ou, ao menos, ensaiarmos nossa escrita de
maneira mais liberta, porque mais humilde; como aprendizes, e não
como mestres. Afinal, tentar imitar Montaigne, seria algo extremamente
contrário ao seu exemplo de livre pensador, como nos diz Pascal
Riendeau: “se liberar da sombra de Montaigne se torna talvez a única
opção factível.” (2005, p. 91), pois é preciso enxergarmos na criação
original de Montaigne “[...] uma possibilidade e uma abertura.”
Riendeau coloca de uma maneira ainda mais enfática esta perspectiva:
* * *
145
prática e da cultura filosófica no Brasil, desencadeia uma cisão interna
que apenas serve para enfraquecer tal intento. Ao buscarmos
compreender melhor a natureza da filosofia de Montaigne, nos
deparamos com um problema de ordem metafilosófica (o qual já estava
posto por ele mesmo): afinal, o que é a filosofia? O que significa fazer
filosofia?
Embora haja uma longa tradição e história da filosofia, a questão
primeira e sempre reatualizável que se põe a qualquer sujeito que queira
compreendê-la é sobre o que é isto, a filosofia, sendo portanto o
conceito de filosofia o primeiro problema filosófico a ser encarado.
Montaigne aparece então como um mestre da liberdade de pensamento,
ao nos ensinar que é preciso colocar em dúvida a autoridade e a
tradição, e buscarmos respostas por nós mesmos, através do exercício de
nossos próprios julgamentos. Portanto, o problema da metafilosofia é
um problema de primeira ordem ao qual não podemos nos furtar. Assim,
ao lidarmos com a formação acadêmica em filosofia, nos deparamos
com problemas situados em diversos âmbitos, desde questões de ordem
curricular e de conteúdos a problemas de ordem política e burocrática;
aparece-nos também questões de ordem metodológica e de práticas de
ensino-aprendizagem. É neste ponto que o ensaio compreendido como
um método genuinamente filosófico pode nos fornecer uma
possibilidade formativa e um exercício de grande alcance para o
desenvolvimento da escrita acadêmica, o que sabemos ser um problema
relevante no âmbito da educação em nosso país. Não se trata de uma
proposta salvacionista obviamente, nem tampouco de uma regra geral;
mas sim da ampliação do âmbito das práticas possíveis, as quais em
conjunto com tantas outras já estabelecidas, possuem de fato o potencial
de fornecer caminhos para a melhora das habilidades, competências,
capacidades e performances filosóficas de estudantes e pesquisadores.
Certamente aqui não estamos fornecendo uma metodologia para o
ensino de filosofia, mas iniciando uma pesquisa sobre o ensaio pensado
enquanto um conceito e um método filosófico voltado para o ensino.
Pois, como diz Montaigne “se minha alma pudesse prender pé eu não
me ensaiaria; decir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e em
prova”.
146
REFERÊNCIAS
Dicionários:
Textos de Montaigne:
147
______. Essais. Livre premier, second et troisième. Édition
d`Emmanuel Naya, Delphine Reguig-Naya et Alexandre Tarrête.
Nouvelle édition de l`Exemplaire de Bordeaux em 2009. Collection
Folio classique, Paris: Éditions Gallimard, 2009.
Outras fontes:
148
DESAN, Philippe. Naissance de la Méthode (Machiavel, La Ramée,
Bodin, Montaigne, Descartes). Paris : Librairie A.-G. Nizet, 1987.
149
________. Maneirismo: a crise da Renascença e a origem da arte
moderna. Trad. Magda França, revisão J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 1976.
150
ROMÃO, Rui Bertrand. A “Apologia” na Balança. A Reinvenção do
Pirronismo na Apologia de Raimundo Sabunde de Michel de
Montaigne. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007.
Referências eletrônicas:
151
152
APÊNDICE A
Livro I
Sobre a dor:
(1) [A] E viu-se um grande número de outros que por unicamente pelo
ensaio da virtude [le seul essay de vertu], de acordo com sua instituição,
na idade de sete anos suportaram ser chicoteados até a morte, sem
alterar a expressão do rosto. (I, 14, 85, 59).
Sentido de prova.
Sobre a morte:
(2) [A] Eis porque nesse último transe se devem tocar e testar todas as
outras ações de nossa vida. É o dia-mestre, é o dia juiz de todos os
outros: é o dia, diz um antigo, que deve julgar todos os meus anos
passados. Entrego à morte o ensaio [l’essay] do fruto de meus estudos.
153
Veremos então se minhas reflexões me saem da boca ou do coração. (I,
19, 117, 80).
Sentido de teste, de exame, de provação, de pôr à prova.
Ao tratar da educação:
(3) [A] Porém não basta que nossa educação não nos estrague; é preciso
que nos mude para melhor. Há alguns de nossos parlamentos que,
quando têm de admitir oficiais, os examinam somente sobre a ciência;
os outros acrescentam ainda o ensaio do senso [l’essay du sens],
apresentando-lhes o julgamento de alguma causa. Estes me parecem agir
de maneira muito melhor [meilleur stile] [...]. (I, 25, 209, 140).
Sentido de teste, de prova, de provação. Paralelo com examinar
Ao tratar da educação:
(4) [A] [...] eles quiseram colocar de imediato suas crianças à altura dos
fatos, e instruí-las não por ouvir dizer, mas pelo ensaio da ação [par
l’essay de l’action], formando-as e moldando-as vivamente, não apenas
com preceitos e palavras mas principalmente com exemplos e obras,
para que em sua alma isso não fosse uma ciência, e sim sua compleição
e hábito, para que não fosse uma aquisição e sim uma posse natural. (I,
25, 213, 142-143)
Sentido de exercício, de exercitação. Instruir pelo ensaio da ação,
formação da compleição e do hábito, posse natural.
154
rebocar nem remendar os defeitos que tal comparação [com os antigos
bons autores] me revelou.” (idem, 219)
Sobre La Boétie:
(8) [A] Resolvi tomar emprestado um de Etienne de La Boétie, que
honrará todo o restante deste trabalho. É um discurso a que deu o nome
de A servidão voluntária, mas o que ignoraram esse nome depois
rebatizaram-no com muita propriedade de Contra um. Escreveu-o à
maneira de ensaio [par maniere d’essay], em sua adolescência
[première jeunesse], em honra da liberdade contra os tiranos. [...]
Entretanto muito lhe falta para ser o melhor que La Boétie pode fazer
[...]. (I, 28, 274, 183-184).
Sentido de exercício.
Sobre interpretação:
(9) [C] Bem sei, quando ouço alguém estender-se sobre a linguagem dos
Ensaios, que eu preferiria que se calasse a esse respeito. Não é tanto
elevar as palavras quanto rebaixar o sentido, de maneira tanto mais
picante quanto mais oblíqua. Entretanto estou enganado, se poucos
outros dão mais a tirar na matéria, e como quer que seja, mal ou bem, se
155
algum escritor já semeou mais substancial [materielle] ou pelo menos
mais densa em seu papel.
(I, 40, 373-374, 251)
Referência à obra, à seu estilo e conteúdo.
Sobre interpretação:
(10) [C] Para alinhar maior quantidade, acumulo apenas os enunciados
[les testes]; se acrescentasse sua sequência, multiplicaria várias vezes
este volume. E quantas histórias divulguei que não dizem uma palavra,
com as quais quem quiser esmiuçá-las um tanto engenhosamente
produzirá infinitos Ensaios. Nem elas, nem minhas citações servem
sempre simplesmente de exemplo, de autoridade ou de ornamento. Não
as encaro somente pelo proveito que tiro delas. Amiúde trazem consigo,
fora de meu assunto, a semente de uma matéria mais rica e mais ousada,
e soam de través um tom mais refinado, tanto para mim que não quero
expressar mais como para aqueles que coincidem com o meu ar. (I, 40,
374, 251)
Referência à sua obra, às suas possibilidades interpretativas, aos seus
ares sugestivos. Semente como signo? Fazer ensaios com histórias, com
enunciados, casos, exemplos, etc.
156
que, depois de aquecida, nossa imaginação [invention] descobre um
número infinito de exemplos semelhantes, acrescentarei apenas este: se
estes ensaios [essays] fossem dignos de ser julgados poderia acontecer,
em minha opinião, que não agradassem aos espíritos comuns e vulgares
nem aos singulares e excelentes: aqueles não entenderiam o suficiente,
estes entenderiam demais; eles poderiam ir sobrevivendo na região
intermediária. (I, 54, 467, 313)
Referência à obra.
Livro II
Sobre a embriaguez:
(14) [A] Ciro, rei tão renomado, invoca entre outros elogios seus, para
sobrepor-se a seu irmão Artaxerxes, que sabia beber muito melhor que
ele. e nas nações mais bem regulamentadas e governadas, este ensaio
[cet essay] de beber o máximo era muito usada. (II, 2, 19, 342).
Sentido de prova.
157
não das adquiridas; e quem me surpreender em delito de ignorância nada
fará contra mim, pois dificilmente responderei a outrem por minhas
opiniões [discours] - eu que não respondo por elas a mim mesmo nem
estou satisfeito com elas. (II, 10, 114, 407).
Sentido de exercício, de jogo, de esforço.
158
aprovar nada a não ser pela via da razão; é sua pedra de toque para todos
os tipos de ensaios [essais]; mas sem dúvida é uma pedra de toque cheia
de falsidade, de erro, de fragilidade e de imperfeição. (II, 12, 313, 541).
Crítica à ciência, à razão. Sentido de aprovação, exame, de testes.
Sobre o suicídio:
(21) [A] Nas guerras civis de César, Lúcio Domício, capturado na
Prússia, tendo se envenenado, arrependeu-se depois. Ocorreu em nossa
época que alguém, decidido a morrer e não golpeando bastante fundo
em seu primeiro ensaio [essay], o formigamento da carne repelindo-lhe
o braço, tornou a ferir-se muito fortemente duas ou três vezes depois,
mas nunca conseguiu obrigar-se a aprofundar o golpe. (II, 13, 412, 608).
Sentido de tentativa.
159
Alusão à primeira edição dos Ensaios. Referência à obra, entretanto com
a grafia antiga, o que pode contribuir com a desconfiança quanto à
autoria do trecho.
Livro III
160
Ao falar de sua disponibilidade para ir ao encontro de pessoas
agradáveis, de boas companhias:
(27) [B] Correria o mundo de ponta a ponta em busca de um ano de
tranquilidade animada e jovial - eu que não tenho outro fim além de
viver e divertir-me. [...] Se houver alguma pessoa, alguma boa
companhia no campo, na cidade, na França ou alhures, sedentária ou
viageira, para quem meu temperamento seja conveniente, cujo
temperamento me seja conveniente, basta assobiar: irei fornecer-lhe
ensaios [essays] em carne e em osso. (III, 5, 87-88, 844).
Sentido do livro, de conversação, de experiência, de amizade.
161
(31) [B] Talvez não haja nada mais agradável no convívio com os
homens do que os ensaios [les essays] que fazemos uns contra os outros,
por anseio de honras e de valor, seja nos exercícios do corpo, ou do
espírito, e n[o]s quais a grandeza soberana não tem qualquer
participação real. Na verdade, amiúde me pareceu que à força de
respeito tratamos os príncipes desdenhosa e injustamente. (III, 7, 199,
918).
Sentido de testes, exercícios, de prova. Relação de se ensaiar um contra
o outro.
162
compor outros tantos ensaios [essais] ao invés de sujeitar-me a revisar
estes aqui para essa correção pueril. (III, 9, 269, 965).
Referência ao seus escritos.
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Sobre aconselhar com sinceridade e ousadia o Rei:
(38) [B] Habitualmente seus favoritos atentam mais para si do que para
o senhor; e dão-se bem com isso, porquanto de fato a maior parte dos
deveres da verdadeira amizade para com o soberano é um duro e
perigoso ensaio [un rude e perilleus essay]; de maneira que para ela é
preciso não apenas muita afeição e liberdade como também coragem.
(III, 13, 443, 1078).
Sentido de prova.
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