A Contracultura em Hagar, de Dik Browne
A Contracultura em Hagar, de Dik Browne
A Contracultura em Hagar, de Dik Browne
2013
RESUMO
Esse estudo tem por direcionamento o exame da série de tiras em quadrinhos Hagar, o Horrível
criada em 1973 pelo desenhista estadunidense Dik Browne, totalizando um universo de 200 tiras
que compunham o primeiro ano da publicação pelo jornal Folha de São Paulo. Foi aprofundado
como esse quadrinho, através de seus muitos recursos, desenvolveu concepções de mundo ao
desconstruir ideias e discursos, valorizando outras manifestações humanas e grupos sociais que
estavam pouco evidentes na conturbada década de 1970 nos Estados Unidos. Foram também
trabalhadas algumas categorias de análise, como o humor, a arte, o cotidiano, os quadrinhos, a
cultura, entre outros, que em seu conjunto contribuem quanto ao melhor entendimento das
potencialidades de Hagar, que se afirma numa significativa crítica aos eventos e ideias daquela
conjuntura, ao construir um universo rico de possibilidades de reflexão de mundo. Cabe
ressaltar que Hagar esteve situado com os movimentos contraculturais das décadas de 1960 e 1970
nos Estados Unidos, ao reafirmar a crítica que esse movimento produziu, como as políticas e
discursos no campo econômico e ideológico, corroborando com ideias que fluíam em oposição aos
grupos que se encontravam no poder e que enfrentavam forte oposição de outras parcelas da
sociedade.
1
Alguns especialistas usam o termo “tira cômica” (como Paulo Ramos) e nos Estados Unidos os quadrinhos
são chamados de comics, que numa tradução livre pode ser ligado com “cômico”.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
girava entre dois ou três meses, considerado quase “simultâneo”, pensando na questão do
envio dos originais e na tradução entre Estados Unidos e Brasil, numa época que recursos
de comunicação encontravam-se em graus de desenvolvimento diferentes dos atuais.
O objetivo central desse estudo é o universo nos quadrinhos de Hagar e a leitura que
essa tira faz de sua conjuntura, pensando na sugestão de mundo construída. A proposta
geral de Hagar pode ser mais bem compreendida relacionando suas histórias, não de modo
ilustrativo, à conjuntura estadunidense, assim como devem ser trabalhadas algumas
categorias de análise, como artes, cultura, linguagem, política, entre outras.
A metodologia adotada neste artigo é como o autor de Hagar, Dik Browne,
desenvolveu estratégias que possibilitou divulgar suas formas de ver e interpretar o mundo.
Destacam-se nesse caso os diálogos do enredo de Hagar, o desenrolar das histórias e ações
dos personagens.
Uma categoria importante a este estudo são os quadrinhos, considerados tema em
aberto e que a história tem começado a explorar melhor recentemente há poucas décadas.
Não existe consenso sobre quando surgiram ou quem os criou, ressaltando a existência de
diversas manifestações artísticas semelhantes aos quadrinhos atuais, ampliando ainda mais
essa discussão2. Os quadrinhos, enquanto categoria de análise são entendidos como uma
instância ampla, englobando outras áreas não de modo hierárquico, buscando relações e
semelhanças. As histórias em quadrinhos, tiras em quadrinhos e a charge3 são
complementares, conforme o exemplo que se queira seguir. Nas tiras em quadrinhos - uma
das manifestações que originaram as histórias em quadrinhos -, normalmente a preferência
é pelos formatos retangulares e quadrados, embora existam outros formatos4, mas mesmo
2
McCloud mostra que o conceito de quadrinhos pode ser estendido até o século XI com o exemplo da
Tapeçaria de Bayeux (Bayeux tapesty), ou no século XVI no manuscrito em imagem pré-colombiano
encontrado pelos invasores espanhóis. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron
Books. 1995, p. 10-12.
3
Termo adotado por Sheila do Nascimento Garcia referente a uma forma de representação humorística,
caricatural e de caráter potencialmente político, satirizando fatos específicos e demonstrando entendimento
muito próximo à caricatura. GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta. Mestrado em História.
UNESP. São Paulo. 2005. p.71.
4
Antonio Pietroforte estudou alguns quadrinhos com formas alternativas do desenhista brasileiro Luiz Gê, e
entre elas destacam-se a história em quadrinhos Os Tubarões Voadores, uma mistura de desenhos mais
caricaturados e realistas, e histórias quadrinhos em 3D, a partir de um manequim chamado Borba Gata.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
PIETROFORTE, Antonio Vicente Seraphim. Análise textual da história em quadrinhos. São Paulo:
Annablume. 2009.
5
RAMOS, Paulo Eduardo. Tiras Cômicas e Piadas. Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa. USP. São
Paulo. 2007. p. 60.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
humor interessa, pois demonstra a sutileza presente neste tipo de expressão. Destaca-se,
então, a sofisticação do humor, entendido não como inocente ou despolitizado, e sim
crítico, assim como pode ser observado com Hagar, em que Dik Browne problematizou
alguns eventos de sua conjuntura, pensando na rigidez das instituições com as quais esteve
envolvido, como o syndicate, destacando o caminho do humor para driblar essas
imposições.
Pode-se apontar que inicialmente os quadrinhos tiveram um tipo de produção mais
artesanal, para, não muito tempo depois estarem situados dentro da indústria cultural,
estando, por esta ótica, incluídos no conceito de lucratividade do capitalismo, entretanto
cabe ressaltar tensões existentes entre as produções artísticas e os interesses
mercadológicos. Cabe diferenciar que essas duas esferas, que não são isoladas em si,
possuem propositos e objetivos que comumente não podem ser iguais, como o objetivo do
lucro pela indústria cultural, e o da reflexão das artes. Outro ponto importante, dentro da
ótica da indústria cultural, é o aspecto de reprodução que a obra de arte possui. Para Walter
Benjamim:
Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens
faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era
praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão
das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro.6
6
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense. 1985, p.166.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
Dialogando com Raymond Williams, a cultura pode ser entendida como modos de
vida e, também, modos de luta da sociedade. A ação dos sujeitos neste processo ajuda a
entender as transformações e como estas afetam a cultura, em um movimento contínuo.
Raymond Williams desenvolveu extensa experiência no âmbito profissional, acadêmico e
de militância, como Edward Thompson e Eric Hobsbawn. A cultura, entendida como
experiência histórica e estudo do processo histórico, teve em épocas anteriores outros
significados e deve ser entendida, assim como outros conceitos, em sua especificidade
histórica, como um processo ativo, contrário a ideia de algo estático, sem necessidade de
revisão ou estudo. Mais especificamente, Raymond Williams define cultura como artes,
sistemas de significados de valores, entendidos na esfera política, e também como
compreensão de modos de vida, ressaltando que isso deve ser entendido em sua
complexidade de configurações e de força ativa na sociedade. Se Hagar é um produto
histórico, situado por uma determinada cultura, pode ser entendido como expressão e
interesses de determinados grupos? O exame mais detalhado desta fonte mostra que, longe
de “reflexo”, Hagar é um produto ativo, em que sua substância (entendido como seu
processo histórico) deve ser compreendida em sua conjuntura e em suas particularidades.
Para o autor:
O conceito de “cultura”, quando considerado no contexto amplo do
desenvolvimento histórico, exerce uma forte pressão contra os termos
limitados de todos os outros conceitos. Essa é sempre a sua vantagem; é
sempre também uma fonte de dificuldades, tanto na definição como na
compreensão.7
7
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar. 1979, p.37.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
8
SILVA, José Ricardo Carvalho da. A leitura do gênero tira de humor em uma perspectiva enunciativa.
Doutorado em Letras. UFF. 2007.
9
MELO, Jair Alcindo Lobo de. Tiras jornalísticas e ensino: estratégias de leitura do texto icônico-verbal.
Mestrado em Letras. Universidade de Taubaté. 2008.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
10
PEREIRA, Joseane Serra Lazarini. (Des) enquadres interativos nos quadrinhos de Dik Browne e
Zappa: um estudo sobre os (des) alinhamentos de Helga e Jandira. UFES. Mestrado em Estudos Lingüísticos.
2008.
11
Cabe ressaltar que Hagar fez muito sucesso por vários países, como na Escandinávia e Europa, recebendo
vários nomes conforme o país que foi sendo publicado.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
12
Sempre quando for necessário serão transcritos os discursos dos personagens.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
Na Figura 3 pode ser observado que os cidadãos comuns são protegidos pelos muros
e portões, mesmo destrancados, e vivem suas vidas alheias às guerras que se desenrolam do
lado de fora. Nisso, a guerra é, em si, um tema ao mesmo tempo delicado quanto separado
da sociedade, e ao tratar da guerra pela via da banalização Dik Browne quis mostrar como
isso pode dificultar ou impedir um olhar mais crítico, pensando-se em seus resultados
destrutivos e desigualdade de condições, sendo que legitima ao mesmo tempo as ações
bélicas e seus propósitos civilizatórios. Hagar é visto como um personagem que alude a
essas ideias, pois tem como função saquear aldeias e castelos, fazendo parte de seu destino,
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
decidindo como, quando e porque fazer, sem ter a necessidade de consultar ninguém. Para
ele todos são potencialmente inimigos.
Isso também pode se desdobrar no discurso de legitimação da guerra, que inverso a
isso poderia ser ganha sem grande esforço, ou de grandes investimentos. Nisso, Dik
Browne produz sua crítica na falta ou pouco reconhecimento do outro, exemplificando no
ímpeto civilizatório dos Estados Unidos. Podem ser observadas outras possibilidades, como
o castelo, um personagem sempre pronto a ser invadido dentro dessa lógica, possivelmente
como uma metáfora de conquista, cabendo ressaltar que a maioria das ações se passam na
área externa a ele. Na Figura 3, como outra proposta de reflexão, é observado no calor da
batalha Eddie Sortudo abrindo o portão que dá acesso ao interior do castelo e nele pessoas
alheias a batalha, indiferentes ao caos total da guerra. Isso serve de crítica, pela via do
humor, de como as pessoas comuns estavam indiferentes à guerra, e ela em pouca sintonia
com suas vidas, e por outro lado, apresenta uma alusão do discurso da luta para conquista,
em que Dik Browne satirizou ao colocar uma simples porta sem apresentar resistência
alguma, para transpor o castelo, e não fora de questão imaginar como se ao optar pelo
caminho do portão acontece o esvaziamento do discurso da guerra.
Na Figura 4 Hagar toma uma torta na cara ao ameaçar o inimigo de fome, numa
metafórica referência da banalização da guerra enquanto tal, pois pode ser aplicada a ideia
de que a seriedade, uma característica comumente ligada à guerra, não é mais uma vez
aplicada. Outro desdobramento desta tira é que o inimigo de Hagar é dotado daquilo que
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
exatamente lhe é afirmado não possuir, como a torta na cara de Hagar em oposição à falta
de alimento.
BIBLIOGRAFIA
HISTÓRIA
ALMEIDA, Maria Izabel Mendes de; NAVES, Santuza Cambraia (orgs). “Porque não?”: rupturas
e continuidades da contracultura. Rio de Janeiro: 7Letras. 2007.
BAHIA, Benedito Juarez. História, jornal e técnica: história da imprensa brasileira. 5º edição. Rio
de Janeiro: Mauad X. [1964] 2009.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. [1982] 1990.
CRUZ, Heloisa de Faria. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São
Paulo: EDUC; FAPESP; Arquivo do Estado de São Paulo; Imprensa oficial SP. 2000.
ERRE, Fabrice. La caricature dans la mécanique de la presse satirique. Disponível em: <
http://www.caricaturesetcaricature.com/article-35763942.html >. Acessado em: 10.05.2013.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13º edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
[1995] 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 39º
edição. Petrópolis: Vozes. [1975] 2011.
HOBSBAWN, Eric. A Era dos Extremos: O breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos
Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras. [1994] 1995.
LANGER, Johnni. Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasília:
Editora Universidade de Brasília. 2009.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão. 5º Ed. Campinas: Editora
da UNICAMP. [1992] 2003.
MOTA, Carlos Guilherme; CAPELATO, Maria Helena. História da Folha de São Paulo. São
Paulo: IMPRES. 1981.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das
Letras. [1978] 2007.
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. [1936] 1985.
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade.
Tradução de Heloisa Pezza Cintrão. 4º edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
[1989] 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras. [1878] 2005.
WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e
Terra. [1981] 1992.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
QUADRINHOS
CIRNE, Moacy. A explosão criativa dos quadrinhos. São Paulo: Vozes. 1970.
DORFMAN, Ariel; MATTERLART, Armand. Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e
colonialismo. 6º Ed. Tradução de Álvaro de Moya. São Paulo: Paz e Terra. [1971] 2010.
GARCIA, Sheila do Nascimento. Revista Careta: um estudo sobre humor visual no Estado Novo
(1937 – 1945). Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Ciências e Letras de Assis.
UNESP. 2005.
JARCEM, René Gomes Rodrigues. A história das histórias em quadrinhos. 2007. Disponível em:
< http://www.historiaimagem.com.br/edicao5setembro2007/06-historia-hq-jarcem.pdf >. Acessado
em: 27.7.2011.
LUYTEN, Sonia Bibe (org). História em quadrinhos: leitura crítica. São Paulo: Edições Paulinas.
1984.
PIRES, Maria da Conceição Francisca. Cultura e política entre Fradins, Zeferinos, Graúnas e
Orelanas. São Paulo: Annablume. 2010.
RAMOS, Paulo Eduardo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto. 2010.
______. Tiras Cômicas e Piadas: Duas leituras, um efeito de humor. Tese de Doutorado.
Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras. Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas. Universidade de São Paulo. 2007.
Escola de Comunicações e Artes – Universidade de São Paulo – 20 a 23.08.2013
SILVA, Marcos Antonio da. Prazer e poder do Amigo da Onça: 1943-1962. Rio de Janeiro: Paz e
Terra. 1989.
VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andréas (orgs.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações
multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. São Paulo: Idéias & Letras. 2011.
HAGAR
MELO, Jair Alcindo Lobo de. Tiras jornalísticas e ensino: estratégias de leitura do texto icônico-
verbal. Dissertação de mestrado. Universidade de Taubaté. 2008.
PEREIRA, Joseane Serra Lazarini. (Des) enquadres interativos nos quadrinhos de Dik Browne
e Zappa: um estudo sobre os (des) alinhamentos de Helga e Jandira. UFES-DLL-PPGEL.
Dissertação de Mestrado em Estudos Lingüísticos. 2008.
SILVA, José Ricardo Carvalho da. A leitura do gênero tira de humor em uma perspectiva
enunciativa. Tese de Doutorado. Universidade Federal Fluminense. 2007.