RP 39-2022-CC
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º 29/ CC /2022
Assunto: Pedido de registo de aquisição com base em escritura de compra e venda, na qual foi acordado pelas partes
diferir o pagamento do preço («o preço será pago até final do corrente ano»), sem qualquer referência ao meio
de pagamento a utilizar – (In)aplicabilidade da exigência de que o título mencione o momento do pagamento
e o meio de pagamento utilizado, prevista nos artigos 47º/ 5 e 6 do Código do Notariado e 44º/1-g) e 5 do
Código de Registo Predial
Palavras-chave: Artigo 47º/ 5 e 6 do Código do Notariado – Artigo 44º/1-g) e 5 do Código do Registo Predial – Preço - Meio de
pagamento do preço – Momento do pagamento do preço -
Relatório
1. No dia 23 de dezembro de 2021 Manuel F...., Notário com cartório em P…., pediu online o registo de
aquisição do prédio descrito sob o nº 16385/20080523, da freguesia e concelho de M….., a favor de Manuel
António …., mediante apresentação de escritura de compra e venda outorgada na mesma data e no dito Cartório.
O pedido foi distribuído à Conservatória do Registo Predial de .... e coube-lhe a apresentação n.º ..40.
Foi declarado na escritura que o «preço será pago até final do corrente ano”, sem indicação do meio de
pagamento que se projeta vir a ser utilizado.
2. O pedido foi objeto de despacho de qualificação (de 20 de janeiro de 2022) do seguinte teor:
«Qualifico o registo de aquisição provisório por dúvidas nos termos e com os seguintes fundamentos:
1 - O instrumento destinado a titular atos sujeitos a registo deve conter, em especial, os requisitos elencados
no artigo 47º do CN (Código do Notariado).
2 - Os nºs 5 e 6 do citado artigo 47º do CN especificam, relativamente, ao pagamento os necessários
requisitos.
3 - No caso concreto o pagamento como consta do ato notarial “será pago até final do corrente ano” – a
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6 - Consequentemente qualifico provisório por dúvidas o registo nos termos das disposições conjugadas dos
artigos citados no ponto 5 em conjugação com os artigos 68º e 70º do CRP.»
Como data de notificação do despacho consta anotado na ficha o dia 24 de janeiro de 2022.
3. No dia 17 de fevereiro de 2022 (Ap. ..20) interpôs o apresentante o presente recurso hierárquico1,
cujos termos aqui damos por integralmente reproduzidos e dos quais extraímos a seguinte síntese:
- Da interpretação conjugada do disposto nos nºs 5 e 6 do art. 47º do Código do Notariado(CN), resulta
que, não tendo ainda ocorrido o pagamento, a menção do respetivo meio (do pagamento a realizar) não constitui
requisito do ato;
- «A não ser assim, não valorizando o elemento literal de interpretação desses números 5 e 6 teremos
de equacionar as seguintes questões: Se o comprador declarar no título que o preço será pago até final do ano,
por cheque, que número terá o cheque nessa data? Nessa data o comprador terá o cheque disponível? Ou mesmo
que tenha, se preferir pagar por transferência bancária ou qualquer outro meio legal não poderá utilizá-lo, mesmo
que no título tenha declarado que o pagamento será feito por cheque? Terá de retificar o título?»;
- Ainda que assim não fosse, a falta da menção não impediria que o facto fosse definitivamente registado,
em conformidade com o entendimento constante dos pareceres emitidos no Pº R.P. 19/2018 STJSR-CC e no Pº
R.P.118/2018 STJSR-CC.
4 - O senhor Conservador proferiu o despacho a que se refere o artigo 142º-A/1 do Código de Registo
Predial(CRP), no qual, em extenso articulado, desenvolve o fundamento constante do despacho de qualificação2,
que sustenta, nos seguintes sintéticos termos:
- É compreensível que o legislador (art. 47º/5 e 6 do CN) não tenha previsto que o pagamento possa
ocorrer depois da celebração do ato, dado que resulta do disposto nos art.s artigos 879º e 885º/1 do Código
Civil(CC) que, sem embargo da possibilidade de se proceder antecipadamente ao pagamento parcial (art. 440º do
CC), «é pressuposto que o pagamento ocorra no momento da celebração do ato»;
- O disposto no art.9º/1 e 3 do CC não consente uma interpretação da expressão “caso o pagamento
ocorra antes ou no momento da celebração do ato” que vá no sentido de que o pagamento possa ocorrer em
momento ulterior;
- «…não cremos que o legislador “escancarasse” com o uso do segmento “caso o pagamento ocorra
antes ou no momento da celebração do ato” a possibilidade de “branquear” o pagamento por formas ou outros
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meios que não os especificados nas alíneas a, b, c.i e c.ii do nº 6 do artigo 47º do Código do Notariado»;
1
Dirigido – por manifesto lapso, que se dá por irrelevante – ao “Exmo. Diretor-Geral dos Registos e do Notariado”.
2 O qual, por força da posição assumida pelo recorrente em sede de procedimento de suprimento de deficiências, já havia levado
em linha de conta a argumentação que veio a ser replicada, de forma mais desenvolvida, em sede de recurso.
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- Que só a circunstância de não ter sido suscitada em sede de suprimento de deficiências impediu que a
falta de demonstração do pagamento do preço tivesse sido incluída nos fundamentos de qualificação provisória
por dúvidas, «pese embora o artigo 886 do Código Civil admita a hipóteses de venda sem pagamento do preço»;
- A omissão do meio de pagamento, «sendo certo que está em causa o pagamento de uma quantia,
violou uma imperatividade da lei»;
- Que no Pº R.P.19/2018 STJSR-CC tratou-se de situação diferente e de cujo fundamento, ainda assim,
se discorda e que o Pº R.P.118/2018 STJSR-CC não cabe no contexto da matéria aqui em causa;
- Que, em consonância com o ponto 1) do grupo IV da deliberação do Conselho Diretivo nº 33/CD/2018,
de 26 -12-20183 e nos termos das disposições conjugadas dos art.s 44º/1-g) e 5 do e 68º do CRP, e do art. 47º/5
e 6 do CN, convidou o apresentante a suprir a deficiência, mas tal convite não logrou efeito.
Pronúncia
1. Como vimos, embora na fundamentação de direito tenham sido invocados genericamente os artigos
44º/1-g) e 5 do Código de Registo Predial (CRP) e 47º/5 e 6 do Código do Notariado (CN) – que se referem às
menções do momento do pagamento e do meio de pagamento utilizado - no plano da fundamentação de facto, o
único fundamento da qualificação do registo como provisório por dúvidas foi a falta da menção do meio de
pagamento, o que é categoricamente manifestado, não só pelo teor do próprio despacho, mas também pelo teor
da comunicação efetuada em sede de suprimento de deficiências, e é “confirmado” na delimitação feita pelo próprio
recorrente no despacho de sustentação.
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1.1. Apesar da referida delimitação da qualificação feita no despacho de sustentação – ao fundamento
da falta de menção do meio de pagamento – o recorrido dedica grande parte do articulado desse despacho à
defesa do entendimento de que o pagamento do preço não pode ter lugar em momento ulterior à celebração do
contrato.
Contudo, sem embargo de esse fundamento estar, assim, excluído do âmbito do objeto da presente
impugnação - mas porque, embora não no plano substantivo, a singularidade da questão em tabela está
precisamente na circunstância de o pagamento do preço não ter sido feito antes ou no próprio momento da
celebração do contrato de compra e venda - não podemos deixar de manifestar a nossa discordância com o
entendimento defendido no despacho de sustentação.
Com efeito, parece-nos inequívoco que o resultado da interpretação do disposto nos artigos do Código
Civil (CC) invocados pelo recorrido (sobretudo os 879º e 885º) bem como no art. 408º/1 do mesmo CC – com a
epígrafe (Contratos com eficácia real) e que consagra o princípio da consensualidade - é de sentido
diametralmente contrário àquele que o recorrido defende: o efeito real da transmissão dá-se por mero efeito do
contrato, sendo que, constituindo igualmente efeitos do contrato, as obrigações de entrega da coisa e do
pagamento do preço, as mesmas podem ser cumpridas ulteriormente e pode mesmo dar-se o caso de
incumprimento4.
1.2. O que ficou dito no ponto anterior permite dar por pacífico que o regime substantivo relativo ao
contrato de compra e venda não é passível de ser invocado como elemento interpretativo do disposto nos
mencionados artigos 44º/1-g) e 5 do Código de Registo Predial (CRP) e 47º/5 e 6 do Código do Notariado (CN)
no sentido de que os mesmos só se referem a pagamento antecipado e a pagamento no momento da celebração,
porque substantivamente ( especificamente no caso de contrato de compra e venda) o momento do pagamento
do preço não possa ser diferido.
Numa perspetiva “inversa”, não pode evidentemente deixar de se considerar afastado o entendimento
que pretendesse interpretar o direito substantivo à luz das referidas disposições do CRP e CN – ou tê-lo por
implicitamente alterado por efeito destas mesmas disposições -, no sentido de que houvesse que considerar
inadmissível o pagamento ulterior porque, se assim não fosse, ficaria inviabilizada a possibilidade de cumprimento
da determinação legal de efetuar as ditas menções.
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4 Em contraponto da citação feita pelo recorrido de trecho do Código Civil anotado( anotação ao art. 879º) , Vol. II, 3ª ed. pág.174,
da autoria de Pires de Lima e Antunes Varela - «A obrigação de pagamento do preço(…) é outro dos elementos essenciais da venda» -
e no sentido de tornar claro que o mesmo foi incorretamente interpretado (uma coisa é o efeito traduzido na obrigação de pagamento, outra
é o próprio pagamento), passamos a citar outro trecho da mesma obra, desta feita na pág. 173: «Ao lado da natureza real, a compra e
venda tem também natureza obrigatória ou obrigacional. O vendedor, por um lado, fica obrigado a entregar a coisa (alín. b)) e o comprador,
por outro, a pagar o preço (alín. c)). A transmissão da propriedade não fica, porém, dependente do cumprimento destas obrigações, embora,
em alguns casos, o não-cumprimento possa dar lugar à possibilidade de resolução do contrato.»
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2. Temos, assim, que a questão em tabela se circunscreve (como resulta dos termos do despacho objeto
de impugnação e foi expressamente “assumido” no despacho de sustentação) a saber se os termos utilizados na
previsão legal de exigência de efetuar as ditas menções, devem ser interpretados no sentido de que abrangem ou
excluem situação de futuro pagamento de uma quantia, que no caso concreto foi acordado em contrato de compra
e venda.
Ora, consideramos que da interpretação conjugada das expressões «Sempre que esteja em causa o
pagamento de uma quantia, a indicação do momento em que tal ocorre e do meio de pagamento utilizado» e
«caso o pagamento ocorra antes ou no momento da celebração do contrato» não é possível “chegar” a outro
resultado que não seja o da exclusão da referida exigência legal.
É que, tendo sido diferido o pagamento para o futuro, não pode considerar-se que esteja em causa o
pagamento de uma quantia (o preço). É certo que, para lá da situação em que o pagamento seja efetuado no
momento da celebração do contrato ( e relativamente ao qual pode dizer-se que está em causa nessa celebração)
a lei incluiu no âmbito da estatuição da exigência das referidas menções aqueloutra situação, em que tenha havido
pagamento anterior ( relativamente ao qual não pode dizer-se que esteja em causa no contrato celebrado ), mas
obviamente que o fez, parece-nos, em razão da conjugação da racionalidade da inclusão das menções (prevenção
do branqueamento de capitais) com a circunstância de o momento e o meio de pagamento utilizado já terem
“existência” e, assim, serem “mencionáveis”.
Em suma, se não houve pagamento, não são mencionáveis nem o momento do cumprimento da
obrigação nem o meio utilizado. A utilidade da menção de que foi acordado diferir o momento do pagamento,
cinge-se, para o efeito aqui em causa, a permitir a perceção da razão de ser da omissão da indicação dos ditos
momento em que ocorre o pagamento e o meio utilizado.
Em apoio da solução que defende, o recorrido invoca os princípios constantes do art.9º/1 e 3 do CC, mas,
com o devido respeito, consideramos que não levou na devida conta o princípio contante do nº2 da mesma norma,
segundo o qual «Não pode, porém, [ adversativamente ao concreto resultado a que conduziu a consideração,
pelo mesmo recorrido, do princípio previsto no n.º 1, e relativamente ao qual já manifestámos a nossa
discordância] ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um
mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.» (Negrito e sublinhado nossos) O
elemento gramatical é simultaneamente o ponto de partida e um limite da interpretação5.
Cabe ainda referir que a perceção que eventualmente se tenha de que a previsão legal - interpretada no
sentido que deixámos defendido -, possa ser usada como expediente para evitar dar a conhecer os elementos em
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causa, não pode ser instituído em elemento interpretativo e interferir com aquele resultado, alcançado por meio
dos elementos que a lei coloca à disposição do intérprete.
5 Num tratamento aprofundado da relação entre estes dois planos de aplicação do elemento literal ou gramatical, cfr. José de
Oliveira Ascensão, in O DIREITO INTRODUÇÂO E TEORIA GERAL, 2ª ed., pp. 353/355 e João Baptista Machado, in INTRODUÇÃO AO
DIREITO E AO DISCURSO LEGITIMADOR, pp. 182 e 188/189.
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3. Tendo a nossa pronúncia ido no sentido de que a situação em tabela não cabe na facti-species para
que a lei estabeleceu a exigência das referidas menções, fica afastada a pertinência da apreciação da discordância
manifestada pelo recorrido relativamente ao entendimento que este Conselho deixou manifestado nos ditos
Processos R.P.19/2018 STJSR-CC6 e R.P.118/2018 STJSR-CC7, ambos objeto de homologação superior, nem
indagar da harmonia/desarmonia entre esse entendimento e a parte da deliberação do Conselho Diretivo supra
transcrita na nota 2.
Conclusões
I - A letra da lei - sendo um dos elementos, entre outros (maxime o teleológico, o sistemático e o
histórico), que concorre para revelar o seu sentido e alcance - constitui simultaneamente o
ponto de partida e um limite da interpretação, conforme determinado no artigo 9º/2 do Código
Civil.
6
Acessível em https://bit.ly/3GG52f5, em que estava em causa a questão se saber se, constando declarados no documento
particular de compra e venda o momento e o meio de pagamento do preço utlizado, seria ou não exigível que os mesmos elementos
fossem também mencionados no termo de autenticação, à qual se respondeu negativamente.
Embora não estivesse em tabela, foi emitida pronúncia quanto à (hipotética) questão de saber se a omissão das menções -
sendo devidas - deveria constituir fundamento de qualificação desfavorável do registo, à qual se respondeu negativamente, nos seguintes
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termos: «4.4. Em face do exposto, somos do entendimento de que a omissão das menções especiais previstas no artigo 4.º, nºs 5 e 6 do
Código do Notariado, no instrumento destinado a titular o ato sujeito a registo, por si só, não impediria que o facto fosse definitivamente
registado».
7 Acessível em https://bit.ly/3GTAqXL, em que, sem embargo de no âmbito de apreciação de situação muito singular (escritura
de compra e venda na qual o respetivo Notário consignara que, para pagamento de parte do preço, entregara ao vendedor cheque que ele
próprio (titulador) sacara de montante igual ao valor que lhe fora previamente entregue pelo comprador) foi expressamente reiterado o
entendimento mencionado na nota anterior.
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considerar que a obrigatoriedade das referidas menções fosse de aplicar ao caso em que o
pagamento do preço tivesse sido diferido para momento futuro («até final do corrente ano»).
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