Sylvia Moretzsohn-A Necessidade e As Dificuldades Do Jornalismo No Contexto de Crise Das Instituições Epistêmicas 2021
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Sylvia Moretzsohn-A Necessidade e As Dificuldades Do Jornalismo No Contexto de Crise Das Instituições Epistêmicas 2021
JORNALISMO E CONHECIMENTO
EM TEMPOS DE CAPITALISMO PANDÊMICO
E DE EXPANSÃO DA DESINFORMAÇÃO
Resumo: Este artigo traça um quadro das transformações pelas quais o jornalismo vem passando
desde o surgimento da internet e a constituição do complexo de infotelecomunicações, que forne-
cem a estrutura tecnológica para o atual “capitalismo de plataforma”. A partir daí, discute as pos-
sibilidades de realização da tese de Genro Filho (2012) sobre o jornalismo como forma de conhe-
cimento voltado à emancipação humana, no contexto da crise das instituições epistêmicas e de
ascensão da extrema-direita no mundo. Busca na formulação de Lisboa e Benetti (2015) sobre o
jornalismo como crença verdadeira justificada as bases para a discussão sobre credibilidade, atra-
vés da qual o jornalismo pode se tornar conhecimento. Assumindo a mesma perspectiva marxista
de Genro Filho, indaga sobre os reflexos que as mudanças estruturais no capitalismo podem ter
para uma eventual atualização de sua teoria original.
Palavras-chave: jornalismo; credibilidade; conhecimento; capitalismo de plataforma; marxismo.
Abstract: This article sums up the changes journalism has been going through since the emer-
gence of the internet and the constitution of the info-telecommunications complex, which provide
the technological framework for the current “platform capitalism”. Then, it discusses the possibil-
ities of carrying out Adelmo Genro Filho's thesis on journalism as a form of knowledge aimed at
human emancipation, in the context of the epistemic institutions’ crisis and the rise of the far-
right around the world. It seeks in Lisboa and Benetti's (2015) formulation of journalism as a
justified true belief the bases for the discussion on credibility, through which journalism can
become knowledge. Assuming Genro Filho’s Marxist perspective, it asks about the consequences
that structural changes in capitalism may have for a possible update of his original theory.
Key words: journalism; credibility; knowledge; platform capitalism; Marxism.
Resumen: Este artículo describe las transformaciones que ha experimentado el periodismo desde
la aparición de internet y la constitución del complejo de info-telecomunicaciones, que proporcio-
na el marco tecnológico para el actual “capitalismo de plataforma”. A partir de ahí, se analizan las
posibilidades de llevar a cabo la tesis de Adelmo Genro Filho sobre el periodismo como forma de
conocimiento orientada a la emancipación humana, en el contexto de la crisis de las instituciones
epistémicas y el crecimiento de la extrema derecha en el mundo. Busca en la formulación de Lis-
boa y Benetti (2015) sobre el periodismo como creencia verdadera justificada las bases para la
discusión sobre la credibilidad, a través de la cual el periodismo puede convertirse en conocimien-
to. Asumiendo la misma perspectiva marxista que Genro Filho, indaga sobre las consecuencias
que los cambios estructurales en el capitalismo pueden tener para una eventual actualización de
su teoría original.
Palabras clave: periodismo; credibilidad; conocimiento; capitalismo de plataforma; marxismo.
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A NECESSIDADE E AS DIFICULDADES DO JORNALISMO NO CONTEXTO DE CRISE DAS INSTITUIÇÕES EPISTÊMICAS
Introdução
Reiterar a necessidade do jornalismo para a vida social no mundo contemporâneo,
tanto maior quanto mais se ampliam os canais de disseminação de notícias falsas e se
instala um ambiente caótico, de profunda incerteza e insegurança informativa, já se tor-
nou um lugar-comum. O jornalismo seria o responsável por distinguir o verdadeiro do
falso, fornecendo a informação confiável para que as pessoas possam se situar no mundo,
e, se adotarmos uma perspectiva marxista – que certamente não é a única neste sentido,
mas tem características muito próprias em seu projeto de emancipação humana –, tam-
bém desenvolver uma consciência crítica que ajude a transformá-lo.
O problema, como sempre, é como realizar tal necessidade.
Em primeiro lugar, mesmo que não considerássemos os interesses e os constran-
gimentos envolvidos na produção noticiosa, o compromisso iluminista de esclarecimento
sempre exigiu o empenho de “pensar contra os fatos” (MORETZSOHN, 2007) – isto é,
contra a aceitação do mundo “tal qual é” –, e, por isso, confronta o jornalismo com a difi-
culdade de lidar com a imediaticidade dos fatos com um distanciamento capaz de oferecer
elementos de crítica ao que o senso comum naturaliza. Com o surgimento da internet, a
proliferação das mídias sociais e a consequente formação de redes virtuais, essa dificul-
dade se amplia imensamente. Porque:
1) o jornalismo perde o seu tradicional lugar de referência como produtor de in-
formação confiável – e o fato de tantas vezes, ao longo da história, ter frauda-
do essa promessa favorece o discurso que desqualifica essa atividade;
2) os algoritmos passam a atuar como os novos definidores do agendamento an-
tes estabelecido pelas empresas jornalísticas;
3) as fontes e os anunciantes passam a ter condições de atingir seus públicos sem
a mediação das empresas jornalísticas, o que, além de tudo, tem evidente im-
pacto em sua fonte de financiamento;
4) o ambiente das redes estimula a ilusão da “horizontalidade”, que apaga hierar-
quias e relações de poder, alimentando a ideia de que, agora, “todos” estaría-
mos em pé de igualdade para comunicar, como se a prática do jornalismo não
exigisse competências específicas, responsabilidade e ética;
5) a perda do status de mediador da informação pública – considerando que, ago-
ra, qualquer pessoa com acesso à internet está potencialmente em condições de
divulgar qualquer coisa – reduz o poder de influência do jornalismo compro-
metido com a ética: o filtro fundamental dos tempos anteriores a essa tecnolo-
gia já não produz o mesmo efeito porque agora é possível escapar dele e é ir-
reparável o estrago feito, proposital ou involuntariamente, pela publicação de
informações falsas, difamatórias ou que ferem direitos individuais ou coletivos;
6) a internet abre um campo inédito para produção, circulação e consumo de in-
formação, que potencialmente amplia a possibilidade de conhecimento, mas ao
mesmo tempo provoca uma radical dispersão de atenção dos usuários;
7) as redes sociais tendem a constituir bolhas autorreferentes, que contrariam o
potencial de abertura para o mundo oferecido pela nova tecnologia, embora a
criação de bolhas não devesse surpreender, porque reproduz a dinâmica social
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História”, que só tinha mesmo o sentido ideológico de silenciar a crítica ao sistema pelo
convencimento de que não havia alternativas. Tantas décadas depois, a crise do capital é
muito evidente e põe em causa a própria sobrevivência do planeta. Buscar formas de
superá-la – isto é, recuperar a perspectiva revolucionária – exige compreender as mu-
danças pelas quais o capitalismo passou, ao longo do processo de ascensão do capital
financeiro e das profundas alterações no mundo do trabalho. Exige, especialmente, e em
particular para quem trabalha com o jornalismo e a comunicação, compreender o reflexo
dessas mudanças no campo ideológico, com o recrudescimento de um irracionalismo que
atinge alcance inédito com as manifestações nas plataformas digitais e que é estimulado
pelas forças de extrema-direita pelo mundo afora.
Digo que a proposta teórica de Genro Filho foi até agora pouco explorada porque
frequentemente se ignora sua base marxista1, como notou Souza (2016, p. 88), ao assina-
lar “a absorção epistemológica da defesa do jornalismo enquanto ‘forma social de conhe-
cimento’ e um quase total esquecimento das noções de práxis e do papel do jornalismo na
construção de uma sociedade emancipada”. De fato, tornou-se recorrente a referência ao
jornalismo como “forma de conhecimento”, como se fosse algo consensual e autoeviden-
te, e como se não houvesse distinção entre a formulação marxista e a pragmática de
Park, que Genro Filho aponta como funcionalista2 e da qual deriva sua proposta. Pontes
(2015), na tese em que expõe a trajetória de jornalista-militante do autor brasileiro e
analisa criticamente a sua principal obra, mostra que alguns pesquisadores chegaram ao
ponto de pretender descartar o enfoque marxista/luckacsiano dessa proposta teórica,
como se ela pudesse existir em outras bases. “Em suma”, diz Pontes (2015, p. 303), “os
conceitos são utilizados usurpando-lhes os sentidos, traindo sua gênese, retirando-os do
sistema em que foram propostos”. É também significativo que mesmo pesquisadores
como Henriques (2014, p. 31), que compreendem e sintetizam com clareza o sentido da
proposta de Genro Filho, digam que o autor desenvolve “uma abordagem teórica pró-
pria”, esquivando-se de nomeá-la como marxista.
Esse esquivamento provavelmente resulta do receio a uma reação preconceituosa
que a palavra “marxismo” ainda desperta em muitos círculos acadêmicos, em parte pelo
desconhecimento ou pela má compreensão da obra de Marx, o que gera distorções há
muito tempo incorporadas ao senso comum. Isso decorre basicamente de dois problemas:
a publicação tardia de textos essenciais de Marx para a compreensão de seu pensamento
e a predominância do positivismo entre o final do século XIX e o início do XX, inclusive
entre os responsáveis pela vulgarização – no duplo sentido de “disseminação” e “deturpa-
ção” – das ideias de Marx, com o agravante de que, desde a vitória da Revolução Russa,
1 É, em muitos casos, o mesmo que ocorre nas pesquisas que adotam Gramsci como referência. Seu conceito
de hegemonia é largamente utilizado nos estudos de comunicação e jornalismo, porém, frequentemente,
dissociado da raiz marxista que o sustenta e despido de implicações políticas. Valorizado como teórico da
cultura, é como se essa dimensão de sua obra pudesse ser autonomizada e isolada de sua perspectiva
revolucionária.
2 Como argumenta Pontes (2015, p. 399-406), Park não era um funcionalista. Vinculava-se mais ao
pragmatismo culturalista de Dewey, embora sua formulação sobre o jornalismo como forma de
conhecimento tenha aspectos funcionalistas, decorrentes de uma compreensão empírica da realidade
cotidiana, que o leva a enxergar como imutáveis as características estruturais da sociedade estadunidense.
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O “ser” do jornalismo diz respeito à sua natureza, à sua gênese – identificada, mo-
dernamente, ao surgimento do capitalismo e à necessidade de produção e consumo de
informações objetivas – e ao seu papel na história da humanidade. Se “inaugura histori-
camente uma nova possibilidade epistemológica”, o jornalismo requer uma teoria capaz
de apanhá-lo “em sua conexão com categorias filosóficas, situando os aspectos histórico-
sociais no contexto de uma reflexão de alcance ontológico sobre o desenvolvimento soci-
al” (GENRO FILHO, 2012, p. 162).
O esforço teórico do autor está diretamente vinculado ao seu empenho em orientar
jornalistas, em especial os de esquerda, e demovê-los da crítica simplista que via na ati-
vidade da imprensa (burguesa) apenas uma forma de manipulação ideológica (PONTES,
2015, p. 354), ressaltando a relevância do jornalismo informativo, porém num sentido
distinto do adotado por Lage (1979, p. 26), que apontava o “conceito de verdade extraído
dos fatos com o extraordinário poder de convencimento dos próprios fatos”. Exatamente
por perceber “a dimensão ontológica dos fatos sociais antes mesmo de serem apresentados
como notícias ou reportagens”, Genro Filho (2012, p. 45) afirmava a existência de uma
“abertura de significado na margem de liberdade intrínseca à manifestação de qualquer
fenômeno enquanto fato social”, e por isso haveria “um componente subjetivo inevitável
na composição mesma do fato, por mais elementar que ele seja”. Daí a conclusão de que a
clássica oposição entre relato e opinião é um falso problema.
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3 Pontes (2015, p. 462) considera que, de acordo com a teorização de Genro Filho, “somente uma parte do
jornalismo pode ser conhecimento, a depender das circunstâncias de produção (e de recepção, incluiríamos)”.
É sem dúvida essencial inserir a recepção nesse processo, mas seria preciso também qualificar a ressalva:
somente uma parte do jornalismo pode ser conhecimento emancipador, a depender da maneira como constitui
a singularidade do que reporta – e por isso “permaneceria como uma potência” –, mas certamente o jorna-
lismo hegemônico, que responde aos interesses dominantes e reitera o senso comum, também produz conhe-
cimento.
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4Veja-se a esse respeito os argumentos de Demuru disponíveis em vídeos no YouTube (CICLO..., 2020;
CONVERSAS..., 2020).
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É o que conduz à destruição da base comum que precisaria existir para que
o conhecimento seja compartilhado. Parte dessa base comum é garantida
por instituições que produzem e também servem de depositárias do conhe-
cimento. Se o papel dessas instituições deixa de ser universalmente reco-
nhecido, o conhecimento que elas detêm não é mais parte do que todos de-
veriam dar como certo – por exemplo, que a Terra é redonda, ou que vaci-
nas não são perigosas (PERINI-SANTOS, 2021, p. 242, tradução nossa).
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suposto de que o público deseja a informação fidedigna – e, caso bem orientado, rejeitaria o
que não é confiável6. O problema parece ser bem mais complexo, porque decorre da força
do autoengano, que se alimenta da irreflexão. Precisamente, o contrário do lema “penso,
logo hesito” – na feliz paráfrase de Giannetti (2005) –, que cultiva a dúvida. Aliás, tomado
na perspectiva marxista da emancipação humana, o ideal iluminista do jornalismo poderia
ser traduzido exatamente como uma atividade empenhada em fazer e provocar perguntas.
São belas palavras, que precisam encontrar um meio de se concretizar. Por isso é
impossível ignorar o quadro descrito acima se quisermos pensar em alguma forma de
realizar o potencial transformador do jornalismo, tal qual Genro Filho o concebeu. Mas,
para sermos coerentes com os argumentos que sustentam sua tese, precisamos indagar o
que mudou estruturalmente na sociedade para verificar se a teoria original continua vá-
lida ou se precisa ser atualizada.
A questão essencial
Genro Filho apostava enfaticamente na luta dos jornalistas, dentro das redações e
em suas entidades de classe, para uma atuação condizente com o potencial revolucionário
de sua atividade. Esse quadro se alterou drasticamente nos últimos 40 anos, em razão
das profundas transformações do capitalismo e seus reflexos no mundo do trabalho, num
processo iniciado com o que Harvey (1993) chamou de “acumulação flexível” e que confi-
gura o que hoje Srnicek (2016) define como “capitalismo de plataforma”, que articula a
robotização, a dataficação, a financeirização e a gestão algorítmica do trabalho (GROH-
MANN, 2020).
No caso do jornalismo, desde a virada do século, o chamado “modelo de negócio”
das empresas tradicionais vinha sendo afetado com as novas possibilidades abertas pela
internet, e a constituição das grandes plataformas digitais não apenas reestruturou o
jornalismo, como afirmaram Bell et al (2017), mas o degradou, como logicamente se
conclui diante da exposição dos autores sobre a forma como essas plataformas interferem
nos valores jornalísticos, que precisam se submeter à lógica da dataficação para obter
mais visibilidade e interatividade com o público. Em paralelo, essas estruturas também
financiam a desinformação, com o estímulo às “fazendas de cliques” (HAO, 2021). No
campo laboral, Barros et al (2021) apresentam o quadro recente da plataformização do
trabalho jornalístico, apontando os novos arranjos dos profissionais precarizados na busca
de alternativas para continuarem a exercer sua atividade nesse novo contexto, que entre-
tanto dependem das plataformas digitais, como Facebook e Twitter, para se viabilizar.
6 Caberia aqui, talvez, um paralelo com as observações de Safatle (2017, online) a respeito dos esforços
daqueles que supõem ser possível dialogar com fascistas para convencê-los de que estariam errados: “Faz
parte de um iluminismo pueril a crença de que o outro não pensa como eu porque ele não compreendeu bem
a cadeia de argumentos. Logo, se eu explicar de forma pausada e lenta, você acabará concordando comigo.
Bem, nada mais equivocado. O que nos diferencia é a adesão a formas de vida radicalmente diferentes. Quem
quer um fascista [quem opta por votar num candidato com essa proposta] não fez essa escolha porque
compreendeu mal a cadeia de argumentos. Ele o escolheu porque adere a formas de vida e afetos típicos
desse horizonte político. Não é argumentando que se modifica algo, mas desativando os afetos que
sustentam tais escolhas”.
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Este brevíssimo resumo permite perceber que a conjuntura atual não guarda qual-
quer semelhança com o tempo em que Genro Filho escreveu. Por isso, ainda que não
avancem numa resposta, Pontes e Pismel (2018, p. 390) colocam a questão essencial: “se
foram mudanças estruturais na sociedade que fizeram emergir a necessidade do jorna-
lismo informativo, têm de ser analisadas como as transformações atuais reconfiguram
dinamicamente essa necessidade”.
Genro Filho considerava que o jornalismo informativo era fruto da superação dia-
lética das fases mercantil e ideológica que o antecederam e respondia a uma necessidade
social. Será justo sustentar que essa necessidade permanece, e é difícil imaginar que uma
sociedade complexa possa prescindir desse tipo de informação. No entanto, é forçoso
indagar a que tipo de necessidade responde a alienação que grassa nas redes, expressão
da prevalência dos “valores de coordenação”, em oposição aos valores epistêmicos. Se
esse conflito atravessa as épocas, como diz Perini-Santos, talvez seja o caso de prestar
mais atenção à tendência ao autoengano como expressão da alienação humana.
Como já referi anteriormente, esta é uma questão que exige um amplo esforço de
investigação, mas é preciso tê-la no horizonte para que se possa orientar o caminho das
possíveis respostas às perguntas que se colocam neste momento. Como, num ambiente
que convida à dispersão, atrair a atenção do público? Como levar as pessoas a entender
que precisam se informar e se capacitar a distinguir o verdadeiro do falso? Como comba-
ter a ideia de que as redes sociais não substituem o jornalismo nem podem prescindir de
sua mediação? Como furar essas bolhas? Como enfrentar o agendamento comandado por
algoritmos? Ou, talvez melhor, como o jornalismo poderá atuar, preservando seu lugar
de mediador nesse cotidiano permeado pelas redes digitais que por sua vez são mediadas
por algoritmos? Finalmente: se as ITCs são os porta-vozes do capitalismo contemporâ-
neo, se atuam no sentido de conformar o gosto do público (SCHNEIDER, 2015) e se
constituem a estrutura inescapável de produção, circulação e consumo de bens simbóli-
cos, como a informação, como trabalhar dentro delas à contracorrente?
Num artigo em que vincula a crise do jornalismo à crise estrutural do capital,
Souza (2018, p. 67) lamenta que, “quando finalmente as pessoas podem ter uma tecnolo-
gia avançada de produção comunicacional voltada a criar conteúdos para o mundo, sua
decisão estranhada é voltá-la para si próprias, em selfies, tweets, snapchats e blogs narcisis-
tas”. Mas não se poderia esperar nada diferente, considerando-se o ambiente em que
estão imersas. Nem por isso essas manifestações são necessariamente alienadas, nem são
as únicas. Porém, se não encontrarmos formas de afetar essas pessoas, estaremos conde-
nados a defender o ideal de um jornalismo que sempre adia a sua realização.
Trazer a teoria de Genro Filho para a atualidade significa sustentar sua formula-
ção sobre o potencial transformador do jornalismo, mas também entender as novas e
muito mais difíceis condições em que ele pode ser praticado. Desde logo, na própria pro-
dução de notícias, no sentido mais elementar da redação, diante da radical dispersão da
atenção – o que, entretanto, não pode significar a aceitação de um argumento como o de
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Boczkowski (2021), para quem é inútil escrever textos longos, se as pessoas não leem7;
mas, acima de tudo, é preciso considerar o alcance que os “novos arranjos” profissionais
podem almejar, diante das limitações impostas pelos algoritmos. Por isso, a antiga e
crucial luta política pela democratização da comunicação se amplia agora para a necessi-
dade de limitação do poder das plataformas. Sem isso, fica difícil vislumbrar a recomposi-
ção de um ambiente que favoreça a superação da crise epistêmica contemporânea e, com
ela, a possibilidade de esclarecimento que o jornalismo pode proporcionar.
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7 Em exposição sobre seu mais recente livro, Abundance: on the experience of living in a world of information
plenty, resultado de pesquisa etnográfica realizada na Argentina, durante aula inaugural do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Boczkowski (2021) comparou o comportamento de seus entrevistados diante de notícias e entretenimento
para concluir que as pessoas se interessavam mais por diversão, que sua forma de consumir era dispersiva e
que, no caso do jornalismo, só liam o título e eventualmente a chamada da notícia ou da reportagem. Logo, a
informação deveria resumir-se a isto. Não sei se vale a pena questionar a impropriedade da comparação entre
coisas de natureza distinta – jornalismo de um lado, entretenimento de outro, ainda que a imbricação de
ambos, o infotainment, exista há muito tempo –, mas dizer que as notícias devem ser telegráficas apenas
porque as pessoas não leem nada além de duas frases – quando leem – equivaleria a sustentar que a
bibliografia de um curso universitário (ou colegial) deveria ser substituída por meia dúzia de slides de
PowerPoint ou por algum vídeo do TikTok, apenas porque os estudantes não têm o hábito da leitura.
Talvez, em vez de constatar como as pessoas se comportam, fosse mais adequado indagar por que elas se
comportam assim.
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