Nilton Mullet
Nilton Mullet
Nilton Mullet
1590/S1413-24782019250002
ARTIGO
Ensinar história [entre]laçando futuros
Nilton Mullet PereiraI
Carmem Zeli de Vargas GilI
Fernando SeffnerI
Caroline PacievitchI
RESUMO
O artigo analisa escritos em disciplinas de introdução à prática e estágio em um
curso de licenciatura em história, em uma problematização do tempo e da tempora-
lidade. Parte da premissa de que as questões urgentes do presente são condutoras da
aprendizagem em história. Tal estratégia, decorrente da produção de planejamentos
e de diários dos licenciandos, sustenta-se no tempo futuro como abertura ética da
aula de história em sua relação com o mundo. Nesse sentido, foi fundamental o
pensamento de Pagès como possibilidade para o planejamento de aulas de história,
pautadas nas urgências do presente e de um passado que não passa e que, por isso
mesmo, insiste e subsiste na forma de um acontecimento que distribui seus efeitos
em um tempo não cronológico e não estabilizado.
PALAVRAS-CHAVE
ensino de história; planejamento de aulas de história; tempo presente.
I
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
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construção de futuros. Entre o passado que estuda e o presente que vive, resta ao/a
professor/a de história situar a experiência vivida no contexto histórico de forma
que possa ampliar a compreensão da e abrir a vida para novas experiências, nas quais
a injustiça, o racismo e a violência não existam.
No âmbito do ensino de história, a obra de Joan Pagès talvez seja um exemplo
que bem ilustra a complexidade das relações entre presente, passado e futuro no
campo do ensino. Em sua opinião, o ensino de história, de geografia e de ciências
sociais tem a responsabilidade tanto de posicionar-se perante os problemas do
tempo presente quanto de ajudar as pessoas a agir sobre eles.
Los problemas son profundos. [...] Desde mi punto de vista, los más preocu-
pantes son los que se relacionan con el discurso del odio y el uso de la violencia,
de cualquier tipo de violencia pero, en particular, la que se ejerce contra las mu-
jeres, los niños y las niñas y los y las ancianas y contra las personas y colectivos
que quieren ser diferentes. El incremento de la violencia y de actitudes sexistas,
homófobas, racistas, xenófobas, intolerantes y su traducción política en Europa,
en América y en prácticamente todo el mundo debería ser objeto de una enor-
me preocupación y debería hacernos plantear cuáles son los retos a los que debe-
ríamos dar respuesta a través de la enseñanza de las ciencias sociales, de la geografía
y de la historia y la formación de su profesorado. (Pagès, 2018, p. 19, grifo nosso)
el futuro, [lo que] puede ser una alternativa razonable a una enseñanza obsoleta y
alejada de los problemas actuales de la ciudadanía” (Pagès, 2018, p. 41).
Ensinar história é, portanto, ensinar sobre os tempos? Ainda que as formas
de representar o tempo, que tem tornado a sala de aula de história um lugar do
“passado frio e disciplinado” (White, 2014), tenham feito coincidir história e tempo,
a premissa que sustenta este artigo indica o contrário. A inserção de questões da
vida pública do presente na aula de história parte do pressuposto de que tempo e
história não são idênticos. Tal suposição sugere, de primeiro, que a abordagem das
urgências do presente proporcionam entrar no delicado debate sobre as políticas do
tempo (Ávila, 2016) em uma aula de história; de segundo, que a problematização
do presente e da atualidade não indica uma submissão da aula ao presente, seja ele
um “presente eterno”, seja ele qualquer forma de “presentismo” (Hartog, 2013).
Pensar o tempo presente na aula de história e, de uma só vez, a cidadania e
a injustiça como elementos por meio dos quais a narrativa histórica assume signi-
ficado na vida das pessoas parece enviar-nos ao plano de uma problematização do
tempo e das temporalidades que tem sujeitado a aula de história como lócus de um
passado morto, disciplinado (White, 2014) e desinteressante. Desse modo, tornar as
urgências do presente em conteúdo da aula de história e disparador da elaboração
de planejamentos consiste em inserir o elemento ético no centro do debate sobre
as implicações do ensino de história, o que significa elaborar uma forte crítica ao
aprisionamento do tempo realizado pelo eurocentrismo, abrindo as possibilidades
de pensar, medir ou representar o tempo de modos ainda não catalogados. Então, o
que propomos é — uma vez desfeita a identidade entre tempo e história — deixar
fluir os devires-minoritários (Deleuze e Guattari, 1997), deixar transitar em nos-
sas salas de aula de história “o povo que falta”, os povos que escaparam à narrativa
histórica, uma vez que foram sempre vistos e ditos por dentro dos marcadores
temporais eurocêntricos (moderno, atrasado, inovador, antiquado, evoluído…),
por essa “imagem de tempo hegemônica em nossa cultura” (Pelbart, 2000, p. 129),
atravessados por uma linha que dividia moralmente a modernidade (europeus) e
o atraso (outros povos) (Quijano, 2005). Do mesmo modo, essa irreconciliação do
tempo com o que se disse dele abre o debate histórico para temáticas que usurpam,
pela força de sua relevância, o tempo sucessivo, linear e evolucionista, que criou uma
distância aparentemente irreconciliável entre o passado e o presente.
Decorre dessa crítica a possibilidade de repensar o presente e suas urgências,
bem como o passado que delas dizemos e abordar tanto esse passado quanto o tempo
presente como coexistentes e coetâneos, o que torna, como já afirmamos, “os fatos
do passado problemas do presente”. Nesse sentido é que o caráter ético e o caráter
estético do ensino de história apresentam-se como a forma pela qual problematizamos
o presente e abrimos possibilidades de futuros. Abordar as questões relevantes da vida
pública no presente, como o racismo, a violência ou o autoritarismo (tal como nos
documentos que analisaremos), revela essa maneira labiríntica de pensar o tempo,
fazendo coincidir passado e presente, apresentando um passado que não passa e que,
por isso mesmo, insiste e subsiste na forma de um acontecimento que distribui seus
efeitos em um tempo não cronológico e não estabilizado. Tudo se passa como se o
tempo não se identificasse com os modos de medi-lo, representá-lo ou significá-
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-lo. Ora, se supomos que tais modos são qualidades que uma política cria, produz
e impõe ao tempo, como maneiras particulares e contingentes de estabelecer-lhe os
limites cronológicos, então o tempo passa a ser considerado o em si, ontológico, que,
no seu recuo, se deixa capturar apenas pelas formas particulares por meio das quais
estabelecemos os limites para a experiência. O tempo é um excesso em relação às
temporalidades que criamos para dar forma a ele. São, portanto, criações humanas,
produções culturais, políticas do tempo que, ao se constituírem e se estabelecerem,
excluem outras temporalidades, outros modos de dar qualidades humanas ao tempo.
Esses questionamentos sobre o tempo presente na aula de história não são
casuais. Eles emergiram como o fenômeno conmovedor, que, para Ana Zavala e
Magdalena Scotti (2005), é a origem das investigações práticas da prática, isto é,
de pesquisas feitas por professores sobre suas próprias práticas. Fomos mobilizados
pelas produções de nossos alunos, futuros professores de história, em seus primeiros
ensaios de criação de aulas de história, em duas disciplinas ministradas por nós:
uma de caráter teórico-prático, introdutória aos estágios e ministrada em docência
compartilhada por todos nós, e a disciplina de estágio em ensino fundamental. Essas
produções têm sido objeto de nossos projetos de pesquisa, que se debruçam sobre o
fenômeno da aula de história e da educação histórica das juventudes. A escrita deste
texto é fruto dessa reflexão coletiva, que tem rendido questionamentos diversos,
alguns já publicados. Em outras palavras, as reflexões aqui postas têm tempo e lugar
de nascimento, crescimento e maturação. No entanto, os atores envolvidos não são
apenas os autores do artigo. A natureza das disciplinas que lecionamos faz-nos aten-
tos ao “que anda na cabeça e na boca” tanto dos estagiários quanto dos estudantes
das escolas e de outras instituições onde ocorrem os estágios. A aula de história é
discutida, planejada e organizada no diálogo entre os docentes orientadores e os
estagiários da licenciatura em história, em escolas públicas da Região Metropolitana
de Porto Alegre, em regime de complexas negociações com os desejos e vontades
das culturas juvenis. Todos esses elementos modificaram-se nos últimos anos, ao
incluir as demandas sociais e políticas que recaíram sobre o ensino de História ao
longo do período, a isso somado visível clima de perseguição e censura causado pela
atuação combinada dos movimentos “Escola sem Partido” e “Ideologia de Gênero”,
conforme discutido em Seffner e Picchetti (2016) e Seffner (2017).
As fontes que usamos para pensar a preocupação com o tempo presente no
ensino de história praticado em nossas disciplinas por esse período foram: programas
das disciplinas; planejamentos dos estagiários; diário de campo das observações e das
orientações de estágio; artigos escritos ao longo desse período e que fizeram menção ao
tema. Esses registros foram lidos e analisados, buscando, especificamente, a preocupação
com o tempo presente na aula de história, cotejando com as problematizações teóricas
que apresentamos ao início, o que se transformou em um projeto de pesquisa sobre a
produção do planejamento e a aula de história, na perspectiva de pensar o presente e o
futuro como elementos temporais significativos de uma aula de história. O que se discute
a seguir é pequena parte desse exercício de investigação, construído em dois momentos:
primeiro, situar as preocupações com o presente, examinando a ementa das disciplinas
de estágio docente; e, segundo, analisar alguns planejamentos e práticas dos estagiários
desafiados a pensar o tempo presente.
A preocupação com o presente era difusa e servia muitas vezes para combater
certo viés enciclopedista do ensino de história. Atentar para o presente dos alunos po-
deria ser um critério para deixar de lado partes do passado que, naquele momento, não
estavam ajudando a “entender” o presente. Ao longo do tempo, a preocupação com as
questões do tempo presente ampliou-se ao pensar o planejamento das aulas de história,
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e, com isso, incorporou conceitos e temas de outras ciências humanas, como a sociologia,
a ciência política e a geografia, dando lugar, em parte, ao chamado ensino de temas
sensíveis, questões socialmente vivas ou questões controversas (Pereira e Seffner, 2018).
A sessão de orientação para o planejamento das aulas foi difícil hoje. Os dois estagiários estão em
escola de grande porte em bairro próximo ao centro da cidade, com turmas de primeiro ano do
ensino médio, mesma professora regente, turno da noite. As duas classes são compostas de alunos
trabalhadores. [...] Os dois estagiários são fortemente vinculados a certas posições teóricas e políticas
que falam da revolução feita pelos pobres e trabalhadores para barrar o capitalismo. Ficaram então
um tanto decepcionados ao verificar que o tema das aulas que irão lecionar nestes primeiros anos do
ensino médio é História Antiga [...]. Acresce a isso o fato de que a professora regente, segundo eles,
lhes deu grande liberdade para escolherem os conteúdos a serem lecionados. Estamos em período
eleitoral, com a possibilidade de reeleição aprovada no ano passado. [...] O somatório de todos estes
fatores resultou numa proposta de programa para as aulas de História que era de acompanhamento
das eleições presidenciais e dos demais cargos, combinada com uma avaliação do governo de Fernando
Henrique Cardoso [...]. A História Antiga havia saído completamente do planejamento, substituída
pelo panorama de atualidades eleitorais. Questionados por mim sobre isso, de imediato retrucaram
que para os alunos que iriam dar aulas, todos pobres e trabalhadores, não fazia sentido ficar dando
conteúdos de caldeus, assírios, persas, egípcios, fenícios, com tanta coisa acontecendo na vida política
nacional. Além do mais, ao conversar com as turmas, haviam percebido que, por serem alunos um
pouco mais velhos, vários deles já estavam aptos a votar [...]. Depois de muita negociação, chegamos a
um acordo, em que as aulas teriam uma sessão de acompanhamento da vida nacional (o que chamamos
de observatório do presente), organizada com os alunos e a partir de seus interesses na vida política (e
não a partir dos interesses estritos dos estagiários [...]), e conteúdo de História Antiga em conexão com
a realidade dos países que ora existem naquelas regiões. [...]
Fonte: acervo da disciplina introdução à prática e estágio em história (Faculdade de Educação/ Universidade Federal do
Rio Grande do Sul — FACED/UFRGS).
Ótima conversa hoje de orientação do planejamento das aulas com duas estagiárias, que vão trabalhar
em regime de docência compartilhada no ensino fundamental, oitavo ano. As duas são feministas e
apresentaram uma proposta de aulas que tinha como fio condutor na história do Brasil e da Europa
as questões das mulheres e das relações de gênero. Trouxeram abundante material didático, ótimas
ideias, planejamento feito da primeira à última aula. A classe em que vão lecionar é composta, segundo
elas, por grande maioria de meninas, escola da zona leste da cidade, que no ensino médio é uma
tradicional escola normal. [...] Mas conversamos sobre esses recortes tão profundos, que elegem uma
linha específica, e como isso dialoga, ou pode dialogar, com um relato mais geral de cada período
histórico. Difícil chegar a um consenso ou meio-termo nisso.
Fonte: acervo da disciplina introdução à prática e estágio em história (Faculdade de Educação/ Universidade Federal do
Rio Grande do Sul — FACED/UFRGS).
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centrados en problemas políticos que sean fácilmente identificables como tales y sobre
los que se pueda intervenir” (Pagès, 2015, p. 24). Assim, o autor indica a importância
do currículo se constituir, também, da abordagem dos problemas do presente, que
dizem respeito aos debates públicos e políticos da atualidade. No final do semestre,
realizamos um seminário para debater cada planejamento. No Quadro 4, apresen-
tamos oito desses trabalhos, destacando o enfoque sobre o presente, os conceitos, os
objetivos e a metodologia.
Joan Pagès
Atualidade
Conhecer aspectos diversos sobre a Lana Siman e
7 como Imigração
imigração europeia para o Sul do Brasil. Araci Coelho
pretexto
Miriam M. Leite
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eles e seu potencial explicativo. Nas duas aulas seguintes, armados dessas ferramentas
conceituais, os alunos iriam explorar situações do século XIX em que tais conceitos
pudessem ajudar a entender as relações históricas entre algumas regiões. A atividade
foi originalmente prevista para alunos do ensino médio. No semestre seguinte, duas
das alunas autoras do planejamento, Priscila e Vitória, realizaram estágio em uma
turma de sexto ano em uma escola de classe média baixa na Zona Leste da cidade. A
primeira aula, com duração de dois períodos, foi assistida pelo professor supervisor,
que posteriormente debateu com as estagiárias suas observações. O planejamento
feito pelas duas alunas se inspirou naquele do semestre anterior, mas com modifi-
cações importantes, como a descrição a seguir permite ver, e com adaptações para
os temas em estudo no programa do ano indicado.
Contando com 23 alunos, a classe foi acolhida na sala de aula e levada para a
sala de vídeo. A atividade dizia respeito aos conceitos de etnocentrismo e imperialismo
e estava ambientada no Egito Antigo. Na segunda parte, o planejamento previa, com
o uso de gravuras, mostrar como as mulheres foram apagadas ou tiveram seu papel
diminuído na história oficial do Egito. Organizaram-se então em cinco grupos. Foi
solicitado pelas estagiárias que, no primeiro momento, apenas escutassem as músicas
propostas, sem comentar entre si. A primeira música foi a de um rapper egípcio Zap
Tharwat (em colaboração com Amina Khalil), “Nour”, em árabe. Essa música provocou
curiosidade e tentativas de adivinhação da língua. O estilo rap foi identificado e causou
surpresa a alternância entre uma voz masculina e uma feminina. A música brasileira
foi identificada por algumas alunas, tratava-se de “Dona de mim”, da cantora Iza. De
modo sintomático, os meninos da turma não reconheceram letra e melodia dessa
música. Uma rodada de conversa mostrou que a classe não sabia a autoria da música
em árabe, nem do que ela tratava, mas fizeram especulações envolvendo elementos do
Oriente, falando em deserto. Citaram como possibilidade que a língua fosse o árabe
e se puseram a imaginar com quais roupas estariam vestidos, dizendo que deviam ser
terroristas, que era a música de um ritual religioso ou que “estavam todos drogados,
pelo jeito de cantar”. A seguir, o clipe da música em árabe foi projetado, agora com
som e imagem. O debate após a projeção, com mediação das estagiárias, permitiu
que a classe identificasse que se tratava de um homem jovem — tido pelas meninas
como muito bonito e pelos meninos como um sujeito com cara de terrorista — que
se encarregava de cuidar de seus filhos, alimentando, levando à escola, colocando para
dormir e dialogando musicalmente com uma mulher, que poderia ser sua esposa ou
companheira. Em algumas cenas, as tarefas domésticas eram igualmente divididas
entre o homem e a mulher. O videoclipe projetado tinha legenda em inglês, o que
permitiu perceber que o diálogo entre o homem e a mulher falava em equidade de
gênero, mas essa informação não era acessível aos alunos. Ao contrário das especulações
acerca do deserto, o videoclipe se passava em uma cidade e foram apontados tanto
elementos coincidentes com o modo de vida dos alunos quanto elementos diversos,
no que se refere ao aspecto das ruas, transporte coletivo, interior do apartamento onde
viviam as personagens, roupas, comidas consumidas, carros que apareciam nas ruas
etc. De modo unânime, a classe afirmou que não tinha sido possível identificar o tema
da música e que era uma surpresa que se tratasse da história de um homem cuidando
dos filhos, repartindo as tarefas com a mulher. Aqui, o conceito de etnocentrismo
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foi construído, e algumas anotações foram feitas pelos alunos nos grupos, a partir da
pergunta: Por que ficamos surpresos ao ver um homem e uma mulher repartindo
as tarefas domésticas, em um clipe de música do Oriente? A seguir foi projetado o
videoclipe da música brasileira. Algumas meninas cantaram junto, os meninos se
mantiveram mais calados, alguns até mesmo um tanto constrangidos, pois a cantora
faz afirmações fortes.
O debate a seguir foi dominado por elas, que demonstraram conhecer a
cantora e citaram muitos casos no bairro, em que mulheres tinham de trabalhar e
cuidar sozinhas dos seus filhos. Uma menina afirmou: “A mulher que é dona de si é
malfalada nessa vila”. Em contrapartida, alguns meninos citaram casos, mais raros,
nos quais o homem é quem cuidava de tudo em relação aos filhos, na tentativa de
mostrar que isso também acontecia ali. De qualquer modo, a centralidade do debate
envolveu o protagonismo feminino, conceito que estava previsto no planejamento.
Em particular, uma frase do videoclipe levantou polêmica: “Já não me importa a
sua opinião/ O seu conceito não altera minha visão/ Foi tanto sim que agora eu
digo não”. Alguns meninos usaram a tática do deboche em relação às meninas e à
própria atividade, improvisando uma estrofe ao som da música que dizia “elas antes
só diziam sim, agora querem dizer não, mas é sim, sim, sim”, o que elevou os ânimos.
A aula aconteceu em uma quinta-feira pela manhã, entre duas datas significativas: no
sábado anterior (29 de setembro de 2018), aconteceram as manifestações feministas
conhecidas como “Ele não”, em referência ao repúdio de grupos de mulheres ao
candidato à presidência Jair Bolsonaro; e o primeiro turno das eleições presidenciais
iria acontecer em 7 de outubro, logo no fim de semana seguinte.
Essa situação, não prevista no planejamento, fez com que o debate incorpo-
rasse posições partidárias. Um menino negro, com argumentação clara e vocabulário
bem cuidado, afirmou enfaticamente que “a mulher não cuida só da casa, ela pode
fazer outras coisas”. Em resposta, um menino branco disse simplesmente: “Eu
apoio o Bolsonaro”. Algumas meninas e o menino negro que havia feito a primeira
afirmação disseram que Bolsonaro era um candidato machista e racista. O menino
branco afirmou então: “Ele pode ser machista e racista, mas ele não está preso”. O
menino negro respondeu: “A prisão do Lula não foi legal”. O branco disse: “Ele
está preso porque ele roubou”, e o menino negro encerrou a discussão dizendo:
“Ele roubou pouquinho, mas ele ajudou os pobres no seu governo”, o que recebeu
certo apoio geral da classe. As estagiárias aproveitaram para encerrar a questão e
encaminhar o debate para o que lhes interessava, que era trazer à tona o cuidado
de um homem com os filhos no vídeo do Oriente e a mulher negra dona de si no
vídeo do Ocidente. Vários alunos e alunas se manifestaram, dizendo que de fato
eles imaginavam que “lá na Arábia” os homens eram todos terroristas, nunca cui-
davam dos filhos, e as mulheres eram completamente submissas, não saíam de casa
nunca e se vestiam da cabeça aos pés de burca. Os meninos tiveram que reconhecer,
pela pressão das meninas, que mulheres donas de si não eram bem vistas por eles.
Um menino com modos afeminados, sentado em um grupo com quatro meninas,
aproveitou para dizer que também os meninos gays eram hostilizados e retomou
o assunto das eleições dizendo: “Eu não vou votar no Bolsonaro”, ao que alguns
retrucaram: “Tu não vota mesmo, porque tu é ‘de menor’”.
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Essa aula da turma 82 foi notável, pois se propôs abordar temáticas urgentes
que ultrapassam os limites temporais e estudar os conceitos de “escravidão, resistên-
cia, discriminação, racismo e desigualdade social”. Conforme Bruno e Misael, a aula
dividiu-se em três momentos: o primeiro passou pela leitura do artigo 3º da Consti-
tuição Federal de 1988, iniciando-se uma breve discussão sobre como os preconceitos
de origem, raça, sexo, cor e outras formas de discriminação estão presentes na nossa
sociedade hoje em dia, estabelecendo uma relação com discursos discriminatórios
presentes na mídia — nesse momento foram exibidas algumas manchetes de jornais,
trazendo o que pensa o presidente recém-eleito sobre essas questões; no segundo
momento, foi passado aos alunos dados sobre a população negra, em uma tentativa
de pensar historicamente o racismo e o preconceito; o terceiro momento implicou
a exibição do DVD contido na caixa pedagógica “África no Arquivo”, elaborada
pelo Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
O mais impressionante e mais difícil foi a inserção nessa aula das questões refe-
rentes à recente eleição presidencial, particularmente o depoimento do então candidato
Jair Bolsonaro, descrito anteriormente. Entretanto, a abordagem do tema da escravidão
e do racismo, a partir da menção aos ditos do agora presidente da República, permitiu
acessar uma realidade social que não pode ser vista mediante uma leitura fria do passado
ou como uma descrição desinteressada de um presente aceitável e considerado normal. O
recurso a pensar historicamente o racismo e a escravidão foi rigoroso, do ponto de vista
conceitual, e necessário, do ponto de vista ético, pois essa abertura e simpatia, criadas
pelo disparador que dissipou as crenças, os clichês e os modelos enraizados sobre as
relações entre passado, presente e futuro, permitiu uma aula em que os problemas do
presente (desigualdade, movimentos de luta, resistências) misturaram-se às questões
do passado (escravidão, protagonismo dos escravizados, aspectos econômicos do Im-
pério) por meio de um estudo com documentos — cartas de alforria, testamento de
ex-escravos, inventários de senhorios, processos-crime e documento de compra e venda
—, possibilitando imaginar futuros, abrir um campo de estranhamento para a criação
de novas experiências, ao passo que revisamos e repensamos nossas relações no presente.
DE PASSADOS, DE PRESENTES E DE
FUTUROS VIVE A AULA DE HISTÓRIA
Pensar em um passado distante de um presente que lhe é tecnológico e
moralmente superior e na de um futuro que promete uma redenção é um modo
muito particular de uma política do tempo que é excludente, violenta e genocida.
Trata-se de uma maneira eurocêntrica de pensar a temporalidade, de dar sentido
ao tempo, de medir, representar e ter experiência. Assim, a identificação entre o
tempo e a história não é outra coisa senão um modo muito sofisticado de tornar
uma forma específica de medir e representar o tempo universal e necessária. Essa
temporalidade quadripartite, contínua, sucessiva e evolucionista é uma maneira
criada pela modernidade europeia de dar qualidade ao tempo. Sua arma principal
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foi a de fazer coincidir tempo e temporalidade, para esconder seu caráter particu-
lar e político. Abordar as urgências do presente significa, primeiro, supor que não
há identidade entre tempo e temporalidade e entre tempo e história — o que vai
permitir tornar as aulas espaços disponíveis para a abertura a quaisquer formas de
medir, representar ou experienciar o tempo; segundo, supõe pensar o tempo não
mais por dentro dessa temporalidade eurocentrada, sucessiva e linear, desfazendo a
“solidariedade entre tempo e história”, tal como afirma Pelbart (2004, p. 39).
feito nesses anos foi perseguir incessantemente os indícios que nossas “máquinas
de imaginar” deixavam pelo caminho, tenuemente sugerindo que existem muitas
outras vidas, muitos outros tempos, muitas outras maneiras de se criar relações com
o passado e com o futuro, desde a angústia que nos constitui no presente.
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