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Manifestacoes Cardiologicas Do HIV

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ANEURISMA DE ARTÉRIA CORONÁRIA UM ANO E CINCO MESES PÓS-IMPLANTE DE STENT COM ELUIÇÃO DE SIROLIMUS

Update Atualização

Manifestações Cardiovasculares em Pacientes


com Infecção pelo Vírus da Imunodeficiência
Humana
Cardiovascular Manifestations in Patients Infected with the Human
Immunodeficiency Virus

Ludhmila Abrahão Hajjar, Daniela Calderaro, Pai Ching Yu, Isabela Giuliano,
Enéas Martins de Oliveira Lima, Giuseppe Barbaro, Bruno Caramelli
Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP e
Department of Medical Pathophysiology, University La Sapienza, Itália - São Paulo, SP e Roma, Itália

Estima-se atualmente que a infecção pelo vírus da manifestações cardiovasculares são as mais diversas,
imunodeficiência humana (HIV) acometa 42 milhões de conseqüentes à própria infecção pelo HIV, à auto-
pessoas no mundo. No Brasil são 1,2 milhão infectados, imunidade, à reação imunológica diante das infecções
dos quais 257.780 são portadoras da síndrome da virais outras, à inflamação crônica, a neoplasias, à
imunodeficiência adquirida (Sida). A Sida é responsável imunossupressão prolongada, à desnutrição e à
atualmente por 1,41% das mortes notificadas no Brasil, cardiotoxicidade dos medicamentos8,9 .
um número atualmente em queda pela política nacional A instituição da terapia múltipla trouxe modificações
de distribuição de tratamento anti-retroviral, que oferece à qualitativas nas manifestações cardiovasculares.
população acesso amplo à terapêutica disponível. Têm-se observado reduções nas doenças cardíacas
A história da infecção pelo HIV é marcada por dois causadas por agentes oportunistas, por desnutrição e pela
períodos – antes e após 19961. No primeiro período, o imunossupressão prolongada10. É crescente, contudo, o
que se buscava, desde a descoberta da infecção em 1981, número de casos de síndromes coronarianas e eventos
era o diagnóstico precoce e o tratamento das doenças vasculares periféricos, que se relacionam tanto ao
oportunistas. Após 1996, com a introdução da terapêutica aumento da sobrevida da população quanto à toxicidade
anti-retroviral combinada (HAART – Highly Active dos medicamentos11,12.
Antiretroviral Therapy), foram obtidos ganhos significativos Pretendemos discutir as diversas formas de
no combate à infecção, com aumento da sobrevida e manifestação cardíaca em pacientes infectados pelo HIV,
melhora da qualidade de vida dos infectados2. com ampla revisão da literatura, destacando tópicos
A utilização da terapia anti-retroviral combinada, que práticos da avaliação clínica e a nossa experiência
resultou no aumento da expectativa de vida dos pacientes, assistencial aos pacientes da Casa da Aids, no Instituto
associada à redução das infecções oportunistas, propiciou, do Coração em São Paulo.
contudo, a ocorrência, nessa população, de doenças
crônicas e de afecções relacionadas a fatores de risco
comuns à população geral. Em especial, as alterações DOENÇAS DO PERICÁRDIO
cardiovasculares associadas à infecção pelo vírus da O derrame pericárdico era a manifestação cardiológica
imunodeficiência humana e aquelas relacionadas aos mais comum na era pré-HAART13. Sua prevalência é de
efeitos cardiológicos adversos dos anti-retrovirais 21% a 30% nos pacientes HIV+, com uma incidência
aumentaram de importância nos últimos anos3,4. anual de 11%14. Esses dados indicam que, atualmente,
O acometimento cardíaco da infecção pelo HIV foi a investigação de derrame pericárdico deva incluir a
inicialmente descrito em 1983, por Autran e cols.5, que realização da sorologia para o HIV, pois estudos atuais
descreveram um caso de sarcoma de Kaposi miocárdico têm detectado soropositividade na avaliação de derrame
em um paciente com Sida. Desde então, na era pré- pericárdico em 72% dos casos na África, em 33% dos
HAART foram observadas, especialmente em autópsias, casos na Europa e em 7% a 28% dos casos nos Estados
prevalências de 28% a 73% de acometimento cardíaco Unidos13,14. A ocorrência de derrame pericárdico no
no paciente HIV positivo, com envolvimento do contexto da infecção pelo HIV é um marcador de doença
pericárdio, endocárdio, miocárdio e dos vasos6,7. As em estágio avançado, e implica pior prognóstico,

Correspondência: Bruno Caramelli • Rua Cravinhos, 92/101 - 01408-020 - São Paulo, SP


E-mail: brunoc@cardiol.br ou bcaramel@usp.br Recebido em 14/02/05 • Aceito em 8/06/05 363

Arquivos Brasileiros de Cardiologia - Volume 85, Nº 5, Novembro 2005

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

independentemente da contagem de células CD4 e do A ecocardiografia confirma a suspeita clínica


nível sérico de albumina. Sua presença está associada à identificando o derrame pericárdico. A técnica no modo
redução na sobrevida para, em média, seis meses13,14. M pode ajudar a revelar as características do
As causas de derrame pericárdio são variadas. Nos tamponamento cardíaco: compressão atrial direita e
estudos de investigação, na maioria das vezes não se colapso diastólico ventricular direito. Esses sinais
encontra o agente etiológico. Dos casos elucidados, as precedem o pulso paradoxal e a insuficiência respiratória
causas mais freqüentes são as infecções por secundários ao tamponamento.
micobactérias, seguidas das infecções bacterianas e das Muito se discute sobre a melhor abordagem para os
neoplasias. Há também descrições de derrames virais casos de acometimento pericárdico, especialmente se é
(HIV, herpes simples, adenovírus, coxsackie citome- válida a busca do diagnóstico etiológico. São observadas
galovírus, Epstein Barr), causados por oportunistas, na literatura descrições variáveis de taxas de identificação
relacionados a doenças sistêmicas (insuficiência cardíaca, etiológica de acordo com as técnicas de análise utilizadas
cirrose, infarto agudo do miocárdio, uremia, miocardite) – pesquisa direta, citologia, imunofluorescência, testes
e associados ao estado inflamatório crônico (aumento da imunoenzimáticos, reação em cadeia da polimerase,
permeabilidade) e à desnutrição15-17. No quadro I estão culturas ou biópsias13,15,18,20,21. Com essa finalidade,
descritas as causas de derrame pericárdico no paciente podem ser realizadas a pericardiocentese ou a
portador do HIV. pericardiostomia com biópsia. Ambas têm um risco
aumentado nos pacientes HIV positivos, e têm sido
Quadro I - Causas de derrame pericárdico no paciente realizadas, de maneira geral, apenas nos derrames
HIV+. EBV: vírus Epstein Barr; HSV: vírus herpes simples; grandes, mal tolerados, com tamponamento, que não
CMV: citomegalovírus; ICC: insuficiência cardíaca regridem, ou em busca de diagnóstico de doença
congestiva; IAM: infarto agudo do miocárdio sistêmica. A escolha do método varia de acordo com a
Mycobacterium tuberculosis Chlamydia trachomatis experiência individual, embora a pericardiostomia com
Mycobacterium avium intracellulare Coxsackie/EBV/HSV biópsia pareça ser a mais adequada.
Staphylococcus aureus Adenovirus/CMV/HIV
Pouco se sabe sobre os efeitos da HAART na afecção
Nocardia asteroides Histoplasma/Cryptococcus
Rhodococcus equi Sarcoma de Kaposi/Linfoma
pericárdica relacionada ao HIV. Espera-se que ocorra, na
Endocardite Toxoplasma gondii era pós-HAART, uma redução dos casos de derrame
Listeria monocytogenes ICC/IAM/Cirrose/Uremia/Miocardite pericárdico, já que este se associa a infecção avançada e
Inflamação Desnutrição imunossupressão. Com a erradicação ou controle da
infecção viral, há, conseqüentemente, um número menor
O quadro clínico do envolvimento do pericárdio é de doenças oportunistas e neoplasias, resultando em
espectral, variando desde a ausência total de sintomas menos casos de doença pericárdica.
até a presença de choque e parada cardiorrespiratória,
podendo estar presentes febre, dor torácica e tosse. O
envolvimento pericárdico inclui pericardite, derrame com DOENÇAS DO ENDOCÁRDIO
ou sem tamponamento, pericardite constritiva e infiltração
A freqüência de endocardite nos pacientes com HIV é
neoplásica13,18. A maioria dos derrames é pequena, sem
semelhante à de pacientes de outros grupos de risco,
alteração hemodinâmica, com uma incidência anual de
como os usuários de drogas intravenosas22. A infecção
9% de tamponamento. Chen e cols.15 analisaram 122
pelo HIV não aumenta nem a freqüência nem a gravidade
casos de derrame pericárdico, dos quais quarenta
pacientes eram HIV positivos. Desses quarenta, o derrame da endocardite. A incidência de endocardite nos pacientes
era pequeno em 45% e moderado em 25%, não sendo HIV e usuários de drogas varia de 6% a 34%, e estes
encontrada causa em 63% dos casos, e micobacteriose têm sobrevida semelhante aos portadores de endocardite
em 19%. Gowda e cols.19 descreveram 185 casos de HIV negativos (85% x 93%)22,23. A mortalidade por
tamponamento em pacientes com Sida. A investigação endocardite é 30% maior nos pacientes em estágio
etiológica mostrou micobacteriose em 43%, bactérias em avançado da infecção24.
11%, linfoma em 8%, sarcoma de Kaposi em 7%, e em A endocardite em usuários de drogas geralmente
26% não foi possível identificação do agente. acomete válvulas do lado direito, a tricúspide em 90% e
Nos estudos de avaliação de derrame pericárdico no a pulmonar em 10% dos casos24. Em 20% dos pacientes,
paciente HIV positivo, não se encontra relação entre o há comprometimento simultâneo da mitral ou aórtica, o
estado da infecção e a gravidade do derrame19,20. Em que confere pior prognóstico. O quadro clínico é variável,
42% dos casos, o derrame pericárdico é autolimitado, podendo estar presentes febre, queda do estado geral,
com resolução espontânea, o que não exclui o ruim perda de peso, sudorese, manifestações de embolização
prognóstico associado à sua detecção19,20. No estudo de pulmonar ou sistêmica e, em alguns, a associação com
Gowda e cols., a maioria dos pacientes morreu na meningite e pneumonia. Pela maior ocorrência de
internação ou logo após, representando o derrame endocardite tricúspide, são freqüentes as embolizações
364 pericárdico um marcador de doença avançada19. pulmonares com infartos subseqüentes, presentes em até

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

56% dos casos24,25. São encontradas também nos pacientes infectados pelo HIV, os últimos têm sobrevida bastante
HIV positivos as manifestações imunologicamente me- reduzida (risco relativo de morte por insuficiência cardíaca
diadas, como a glomerulonefrite, a presença do fator de 5,86)4. Lipshultz e cols. observaram uma sobrevida
reumatóide, as manchas de Roth e as lesões de Janeway. média de 101 dias em pacientes com disfunção
ventricular, e de 472 dias em pacientes com coração
O diagnóstico, assim como no paciente não-portador
normal no mesmo estágio da infecção pelo HIV27.
de HIV, faz-se baseado na clínica, em culturas e
ecocardiografia. O Staphylococcus é o agente mais comum Estudos clinicopatológicos da era pré-HAART mostram
(mais de 70% dos casos), seguido por Streptococcus e prevalência de 30% de cardiomiopatia nos pacientes com
Haemophilus23-26. Também são descritas endocardites por Sida28. Em estudo prospectivo de cinco anos em pacientes
fungos e outras bactérias como a Salmonella, que nesses HIV assintomáticos, a incidência de cardiomiopatia
pacientes têm maior chance de causar bacteremia e dilatada foi de 15,9/1.00029. Em análise ecocardiográfica,
uma disfunção diastólica precoce foi encontrada em até
endocardite. No quadro II estão descritas as causas de
15% dos pacientes com HIV30,31. Com a evolução da
endocardite infecciosa no paciente HIV.
miocardiopatia sobrevêm hipocinesia difusa, dilatação
global das câmaras e disfunção sistólica32. Fração de
Quadro II - Causas de endocardite infecciosa no ejeção reduzida e espessura ventricular aumentada têm
paciente HIV+. Grupo HACEK: Haemophilus sido associadas a maior mortalidade, demonstrada em
parainfluenzae, haemophilus aphrophilus, estudo multicêntrico realizado com crianças infectados
Actinobacillus actinomycetemcomitans, por transmissão vertical.33
Cardiobacterium hominis, Eikenella corrodens A etiopatogênese da cardiopatia dilatada associada
e Kingella kingae. MRSA: S.aureus ao HIV é multifatorial, estando implicados o próprio HIV,
resistente a meticilina outras infecções virais, miocardite, auto-imunidade,
Staphylococcus aureus (75%) inflamação crônica, imunossupressão prolongada,
Streptococcus viridans (20%) disfunção endotelial, arterite, encefalopatia associada ao
Staphylococcus epidermidis HIV, disfunção autonômica, deficiências nutricionais e
Streptococcus pneumoniae de oligoelementos e a cardiotoxicidade por drogas32,34-40.
Haemophilus influenzae
Organismos do grupo HACEK Os estudos com modelos animais que analisaram a
MRSA infecção pelo vírus da imunodeficiência dos simianos (SIV)
Salmonella sp nos macacos rhesus procuraram esclarecer a patogênese
Mycobacterium intracelullare / avium da agressão miocárdica associada com a infecção retroviral.
Candida sp
A infecção crônica com o SIV resulta em depressão da
Cryptococcus neoformans
Aspergillus fumigatus
função sistólica ventricular e uma arteriopatia coronariana
Pseudallescheria boydii extensa sugestiva de lesão mediada por resposta imune
celular25. Aproximadamente dois terços dos primatas
O tratamento da endocardite no paciente portador do infectados que morreram da infecção viral apresentavam
HIV não muda em relação à população geral, persistindo miocardiopatia. Miocardite linfocítica foi encontrada em
indicada a antibioticoterapia prolongada e os mesmos nove dos quinze, e vasculopatia coronariana em nove dos
critérios de terapia cirúrgica: insuficiência cardíaca quinze em estudo de necrópsia. Em alguns primatas foram
refratária, sepse, embolização sistêmica, endocardite visualizadas áreas de oclusão coronariana e recanalização
fúngica e falha terapêutica. relacionadas a regiões de necrose miocárdica, além de
Um outro tipo de endocardite encontrada no paciente um caso de trombo mural ventricular25.
com Sida na era pré-HAART é a endocardite marântica, A infecção pelo HIV e o processo inflamatório miocár-
ou trombótica não-infecciosa23,24. Em casuísticas de dico (miocardite) a ela relacionado são as causas mais
autópsias, era encontrada em 3% a 5% dos pacientes. estudadas de cardiomiopatia nessa população. Virions
Acomete as quatro válvulas, com predomínio da mitral e HIV-1 parecem infectar as células miocárdicas de
aórtica, e se caracteriza pela presença de uma vegetação maneira dispersa, sem que haja associação direta entre
friável, rica em plaquetas sobre uma rede de fibrina, com a presença qualitativa do vírus e a disfunção dos
pouca inflamação e altos índices de embolização sistêmica. miócitos29. A necrose das fibras miocárdias geralmente
Não há relatos de sua ocorrência na era pós-HAART. é mínima, com infiltrados linfocíticos associados. Não
está esclarecido como o HIV-1 entra nos miócitos, uma
vez que estes não apresentam receptores CD425. É
DOENÇAS DO MIOCÁRDIO provável que outras células como as dendríticas
A cardiomiopatia dilatada secundária à infecção pelo desempenhem papel não só de reservatório, como
HIV totaliza 3% a 6% dos casos de cardiopatia também de apresentadoras de antígenos no contexto
dilatada4,11. Quando comparados pacientes portadores do complexo principal de histocompatibilidade e de
de cardiomiopatia dilatada na forma idiopática e na dos ativadoras de dano tissular progressivo mediado por 365

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

citocinas como as interleucinas 1 e 6 (IL-1 e IL-6) e o tissular, inflamação e remodelamento, acelerando o


fator de necrose tumoral alfa (TNF-α)41. processo de doença cardiovascular. O mesmo mecanismo
Evidências crescentes, contudo, apontam a auto- de disfunção endotelial, alteração de adesão leucocitária
imunidade como mecanismo regente da cardiomiopatia e arterite pode estimular a aterogênese, culminando com
do HIV 41,42 . Comparados com os pacientes com isquemia e dano miocárdicos.
cardiomiopatia dilatada idiopática, cujos infiltrados Vários estudos revelam que pacientes infectados pelo
inflamatórios indicam predomínio de células T CD4+ e HIV com encefalopatia têm maior probabilidade de morrer
linfócitos B, os HIV+ com diagnóstico ecocardiográfico de insuficiência cardíaca do que pacientes sem
de miocardiopatia dilatada e histopatologia com encefalopatia32,35,43. O HIV pode persistir nas células-
miocardite apresentam preferencialmente células T CD3+ reservatório no miocárdio e no córtex cerebral mesmo
e CD8+25,42. A existência de um processo imune ativo no após o tratamento anti-retroviral. Essas células alocam o
miocárdio foi sugerida pelo encontro de hibridização viral HIV em sua superfície por períodos prolongados e podem
e aumento da expressão de moléculas do complexo cronicamente liberar citocinas (TNF-α, IL-6 e endotelina-
principal de histocompatibilidade classe I (CPH-I). No 1), contribuindo para o dano tissular crônico e progressivo
pólo da imunidade humoral, são encontrados nos nos dois sistemas, independente da HAART32,35.
pacientes HIV+ anticorpos anti-alfa-miosina específicos A infecção pelo HIV pode se associar com alterações
ao miocárdio em 15% dos casos, comparados com uma do sistema nervoso autônomo, especialmente em estágios
prevalência de 3,5% em controles5,25. Nos pacientes avançados. Os reflexos autonômicos cardiovasculares estão
infectados pelo HIV que apresentam disfunção alterados em 5% a 77% dos pacientes conforme a definição
ventricular esquerda, o achado desses anticorpos ocorre da complicação, podendo causar hipotensão postural,
em até 43% dos casos, podendo representar um síncope e parada cardiorrespiratória durante procedimentos
marcador de disfunção ventricular com implicações invasivos25,32. A causa é desconhecida, embora se saiba
prognósticas. Um outro achado que corrobora a teoria que o HIV é neurotrópico e tenha sido isolado no tecido
do papel da auto-imunidade na cardiomiopatia associada neural periférico. De fato, um dos mecanismos implicados
ao HIV é a resposta terapêutica dos pacientes com na disfunção ventricular é a redução da sensibilidade
insuficiência cardíaca às imunoglobulinas, que agem miocárdica ao estímulo beta-adrenérgico.
inibindo os anticorpos cardíacos por meio da competição
Deficiências nutricionais são comuns na infecção pelo
com os receptores Fc e reduzindo a secreção e ação das
HIV, particularmente em estágios mais avançados da
citocinas inflamatórias.
doença e são fatores potencializadores de disfunção
O fato da disfunção miocárdica ser global e não ventricular esquerda25,39. Má absorção e diarréia levam a
segmentar na presença de focos de infecção miocitária desequilíbrios hidroeletrolíticos e a deficiências
viral sugere que fatores circulantes ou citocinas exercem nutricionais44. A deficiência dos elementos-traço foi
o papel de co-fatores na patogênese da associada direta ou indiretamente com a cardiomiopatia44.
cardiomiopatia25,32. A produção local de citocinas no Em pacientes depletados, a reposição de selênio restaura
miocárdio encontra-se aumentada, especialmente de IL- a função ventricular e reverte a cardiomiopatia39. Foi
1 e TNF-α. Infecção viral no contexto de um estimulador demonstrado que a deficiência de selênio aumenta a
de citocinas como a IL-1 e o TNF-α tem uma virulência de agentes indutores de miocardite39. Em
probabilidade muito maior de causar miocardite e dano pacientes infectados, foram descritas deficiências de
miocárdico que a agressão viral isolada35,41,42. O TNF-α hormônio tiroidiano, vitamina B12, carnitina e hormônio
produz um efeito inotrópico negativo por alterar a do crescimento, o que se relaciona com disfunção
homeostase do cálcio intracelular, e possivelmente por ventricular esquerda25,32,39.
induzir a síntese do óxido nítrico, que também reduz a A cardiotoxicidade por drogas em pacientes infectados
contratilidade miocárdica. Foi demonstrado nas biópsias pelo HIV tem sido motivo de muita controvérsia,
miocárdicas de pacientes com cardiomiopatia associada especialmente a associação entre zidovudina e
ao HIV uma maior intensidade de marcação de TNF-α e cardiomiopatia dilatada. Há evidências de que a
da óxido-nítrico-sintase induzível, quando comparados zidovudina está associada com destruição difusa das ultra-
com portadores de cardiomiopatia idiopática41. estruturas e inibição da replicação do DNA mitocondrial,
Na infecção pelo HIV, foram descritas disfunção e resultando em acidose láctica que contribui para a
ativação do endotélio vascular42. Marcadores circulantes disfunção miocárdica34,38. Entretanto, clinicamente não
de ativação endotelial como pró-coagulantes e moléculas foi demonstrada relação direta entre exposição aos
de adesão são encontrados em maior escala nesses inibidores da transcriptase reversa e indução de disfunção
pacientes. Esses achados se devem à secreção de ventricular. Outras drogas cardiotóxicas utilizadas há muito
citocinas em resposta à ativação de células mononucleares tempo no manuseio dessa população são a doxorrubicina
ou da adventícia pela infecção viral, ou ainda aos efeitos (tratamento de sarcoma de Kaposi e linfoma), interferon-
das proteínas virais gp 120 e tat no endotélio. As células alfa, foscarnet, cotrimoxazol, pentamidina e ganciclovir.
366 endoteliais lesadas e ativadas podem causar agressão Agentes tóxicos com prevalência aumentada de uso nessa

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

população, como o álcool e a cocaína, são fatores A biópsia endomiocárdica é outro método diagnóstico
agressores miocárdicos implicados na potencialização da de cardiopatia dilatada que visa estabelecer diagnóstico
disfunção ventricular desses pacientes25,32. etiológico e prognóstico, porém sua baixa sensibilidade e
A cardiomiopatia dilatada ocorre tardiamente na riscos associados ao procedimento tornam sua realização
infecção pelo HIV, geralmente associada a níveis reduzidos rotineira mais voltada a centros com experiência acumulada
de CD4. Tem implicação prognóstica por estar associada e protocolos de pesquisa clínica. O grupo italiano assim
a altos índices de mortalidade. O exame anatomopa- como o Instituto do Coração preconizam a biópsia
tológico mostra fibrose endocárdica e trombo mural, endomiocárdica em toda disfunção sistólica associada à
preferencialmente apical, evidência histológica de infecção pelo HIV, o que tem resultado em achados variados
hipertrofia miocárdica e degeneração com aumento do de miocardites virais, reagudização de doença de Chagas
colágeno intersticial e fibrilar endocárdico. Esses achados (fig. 1), infecções fúngicas cardíacas e toxoplasmose, muitas
estão eventualmente associados a evidências de vezes com resposta satisfatória à terapêutica específica.
miocardite. Em um estudo prospectivo de 952 pacientes O tratamento da cardiomiopatia dilatada relacionada ao
HIV assintomáticos, o diagnóstico ecocardiográfico de HIV é semelhante ao da forma idiopática dessa doença.
cardiopatia dilatada foi feito em 76 (8%) com incidência Pela escassez de estudos prospectivos direcionados
anual de 15,9/1.000 29 . Todos os pacientes com especificamente a essa população, o tratamento é baseado
confirmação ecocardiográfica eram submetidos a biópsia nos resultados obtidos nos pacientes HIV negativos,
miocárdica, e a miocardite estava presente em 63 (83%) respeitando-se algumas particularidades. Apesar da
dos pacientes e 36 (57%) tinham hibridização positiva recomendação do uso de inibidores da enzima de conversão
para HIV. Em alguns casos foi observada co-infecção por e de betabloqueadores, podem ocorrer efeitos adversos em
outros vírus – coxsackie, citomegalovírus e Epstein-Barr29. alguns casos de pacientes com resistência vascular sistêmica
O diagnóstico da cardiomiopatia dilatada associada à reduzida por desidratação, diarréia ou infecção. Pacientes
infecção pelo HIV é clínico e ecocardiográfico 27,28. com miocardite apresentam maior sensibilidade à digoxina
Clinicamente o paciente apresenta-se de forma e devem ser monitorizados. O uso de imunossupressores é
semelhante ao não-infectado e em alguns casos o exame controverso nessa população e resultados positivos
ecocardiográfico pode detectar o paciente em fase promissores foram observados em crianças com a
assintomática, geralmente com disfunção diastólica imunoglobulina administrada por via venosa45.
isolada30,31. A indicação do ecocardiograma como exame
de rotina e triagem nos pacientes HIV é duvidosa. Os
benefícios do diagnóstico precoce, na fase inicial da
HIPERTENSÃO PULMONAR
doença, são indiscutíveis, porém não está bem estabe- Hipertensão pulmonar foi encontrada nos pacientes HIV
lecida a relação custo-efetividade do procedimento. De positivos com uma prevalência de 1/200 casos,
maneira geral, como demonstram os estudos, a cardio- contrastando com o achado de 1/200.000 casos na
miopatia dilatada incide em fase avançada da infecção população geral46-50. Sua detecção é muitas vezes associada
pelo HIV; dessa forma o ecocardiograma é bem indicado a infecções pulmonares, uso de drogas intravenosas,
para pacientes com suspeita clínica ou com CD4 abaixo transfusão de fator VIII em hemofílicos, tromboembolismo
de 20025,29,32. venoso, insuficiência cardíaca e à presença do HLA-DR6

Fig. 1 – Ninho de formas amastigotas de T.Cruzi em paciente com reagudização de doença de Chagas. Cedida por The University of Chicago Press.
Sartori AM, Lopes MH, Caramelli B et al. Simultaneous occurrence of acute myocarditis and reactivated Chagas’ disease in a patient with AIDS. Clin
Infect Diseases 1995; 21(5): 1297-9
367

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

e HLA-DR5246,47. Nos pacientes hospitalizados com Sida, metabólicas secundárias ao tratamento anti-retroviral.
sua ocorrência gira em torno de 0,5%. Assim, não seria surpreendente uma alarmante incidência
Alguns estudos revelam artéria pulmonar pré-capilar de eventos cardiovasculares e cerebrovasculares.
muscular, hipertrofia da média das arteríolas, fibroelastose Entretanto, esse tema ainda é motivo de discussão.
e fibrose intimal excêntrica sem infecção viral direta das
células da artéria pulmonar48,49. Esses achados sugerem Alterações metabólicas
liberação de mediadores de células infectadas e provável
Embora o maior enfoque dado à relação entre Sida e
lesão mediada por citocinas.
alterações metabólicas seja sobre efeitos colaterais da
A patogênese da hipertensão pulmonar primária é terapêutica anti-retroviral, trabalhos da era pré-HAART
pouco conhecida mas parece ser de natureza estabeleceram que a própria infecção pelo HIV determina
multifatorial. Entretanto, em alguns pacientes HIV um perfil lipídico mais desfavorável, caracteristicamente
positivos a hipertensão pulmonar primária é descrita com hipertrigliceridemia e baixo HDL-colesterol 52.
sem nenhum fator predisponente. Supõe-se que, nesses Constans e cols.53 observaram inclusive implicação
casos, o próprio HIV cause dano endotelial e a liberação prognóstica dessas alterações; quanto mais baixa a
de mediadores vasconstritores, como a endotelina-1, a contagem de linfócitos CD4 maior o nível de triglicérides
interleucina-6 (IL-6) e o fator de necrose tumoral alfa e mais baixos os níveis de HDL-colesterol. A fisiopatologia
(TNF-α) nas artérias pulmonares. O HIV é freqüente- dessa associação não está esclarecida, compreendem-
mente identificado nos macrófagos alveolares em exames se mais as vias pelas quais a terapêutica anti-retroviral,
histológicos47. Esses macrófagos liberam TNF-α, radicais especificamente os inibidores de protease, potencializa
livres e enzimas proteolíticas em resposta à infecção. esse distúrbio lipídico e acarreta outros a ele associados,
As linfocinas também parecem contribuir para a como o aumento da resistência insulínica, diabete melito,
proliferação endotelial vista na hipertensão pulmonar lipodistrofia e obesidade centrípeta.
por promover a adesão leucocitária ao endotélio.
Carr e cols.54 propuseram uma teoria baseada no
Também têm sido implicados na patogênese a ativação
achado de homologia estrutural entre o sítio catalítico da
dos receptores a-1 adrenérgicos e fatores genéticos
protease do HIV e proteínas humanas importantes no
(aumento da freqüência do HLA-DR6 e DR52)47,50.
metabolismo lipídico (CRABP-1: proteína ligadora do
Os sintomas e o prognóstico dos pacientes com disfunção ácido retinóico citoplasmático tipo I e LRP: proteína
ventricular direita por hipertensão pulmonar relacionam-se relacionada ao receptor de LDL), de tal forma que os
à gravidade da hipertensão. O quadro pode ser variável, inibidores da protease inibiriam também etapas
desde ausência de sintomas até insuficiência cardíaca importantes do metabolismo humano. Em última
avançada e cor pulmonale. Segundo o estudo Swiss HIV instância os inibidores de protease determinariam uma
Cohort, o paciente HIV positivo portador de hipertensão interrupção na metabolização do ácido retinóico e menor
pulmonar tem sobrevida reduzida quando comparado ao atividade do PPAR-y (peroxisome-proliferator-activated
paciente não-infectado (1,3 anos x 2,6 anos)51. receptor type gamma), que tem papel fundamental na
O tratamento com o uso de anticoagulantes e diferenciação dos adipócitos e na apoptose dessas células,
vasodilatadores deve considerar as possíveis interações além de melhorar a sensibilidade periférica à insulina. O
medicamentosas, especialmente no caso dos anticoa- resultado final desses efeitos é uma maior liberação de
gulantes. Em relação aos vasodilatadores, não há dados gordura na corrente sangüínea e hipertrigliceridemia.
que justifiquem sua ampla utilização. O epoprostenol é A inibição da LRP, por sua vez, implica menor captação
utilizado apenas nos pacientes mais graves em virtude dos triglicérides pelo fígado e também menor clivagem
do alto custo, necessidade de infusão venosa e risco destes a ácidos graxos e glicerol, que deveria ocorrer por
aumentado de infecção. Com relação ao tratamento da atividade do complexo endotelial da LRP-LPL (lipase
doença de base, não se conhecem, até o momento, os lipoproteica). A hipertrigliceridemia seria a responsável
efeitos da HAART na incidência e evolução clínica da pelo aumento da resistência a insulina que, nos indivíduos
hipertensão pulmonar. suscetíveis, poderia promover o desenvolvimento de
diabete melito tipo II. Contribuiria ainda para essa
INFECÇÃO PELO HIV E discrasia metabólica a inibição da enzima 3A do citocromo
P 450, etapa compartilhada pelos inibidores de protease
ATEROSCLEROSE e o metabolismo do ácido retinóico.
O controle da morbidade e mortalidade dos pacientes
portadores do HIV já os torna naturalmente expostos a Epidemiologia de eventos
processos crônico-degenerativos como a aterosclerose, cardiovasculares e dos fatores de
que antes não eram manifestos dada a mortalidade
precoce pela doença. Além disso, a predisposição a
risco para aterosclerose
aterosclerose resulta também da própria exposição Inicialmente, a associação entre infecção pelo HIV e
368 cumulativa ao vírus e das importantes alterações doença cardiovascular era inferida a partir de relatos de

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

casos de pacientes jovens e soropositivos que sofriam infarto Foi ao longo do ano de 2003 que as maiores
agudo do miocárdio, e principalmente de achados casuísticas foram publicadas. Bozzette e cols. analisaram
anatomopatológicos em estudos de necrópsia, com retrospectivamente 36.766 pacientes HIV+ em
evidência de doença obstrutiva em coronárias de pacientes tratamento entre os anos de 1993 e 2001, no que diz
sem fatores de risco habituais para aterosclerose55. Estudos respeito a mortalidade geral, mortalidade específica por
imuno-histoquímicos possibilitaram documentação objetiva eventos cardiovasculares e cerebrovasculares e taxas de
da presença do HIV em artérias coronárias comprometidas internação hospitalar por estes61. As únicas alterações
por inflamação e obstrução aterosclerótica56. Sugeriu-se expressivas ao longo desse período foram a importante
então uma associação direta entre infecção pelo HIV e redução da mortalidade geral e significativo aumento do
presença de arterite coronariana sem afastar a fisiopatologia uso de terapêutica anti-retroviral, notadamente após 1995
clássica aterosclerótica, a despeito da baixa prevalência e 1996. Não houve aumento da incidência de eventos
de fatores de risco nos pacientes estudados. cardiovasculares ou cerebrovasculares concomitante-
Com o advento e o uso cada vez mais difundido da mente à melhora da sobrevida. Embora os autores não
terapêutica anti-retroviral agressiva e seu inquestionável tenham especificado o perfil dos fatores de risco clássicos
impacto sobre os metabolismos lipídico e glicídico, surgiram para aterosclerose nessa população, eles relataram que
estudos com casuísticas progressivamente maiores 23,9% dos pacientes já haviam sido previamente tratados
procurando correlacionar infecção pelo HIV com doença para diabete, hipertensão ou tabagismo, e 6,6% já tinham
cardiovascular, e esta com tratamento anti-retroviral e fatores diagnóstico de doença vascular. Os autores observaram
de risco cardiovascular. Em 2000, Rickerts e cols. analisaram ainda, de maneira interessante, o progressivo aumento
retrospectivamente a incidência de infarto em 4.993 da prescrição de hipolipemiantes, com relato de 140
pacientes portadores de HIV. Verificaram que, embora o pacientes em uso de algum dos medicamentos disponíveis
número absoluto fosse baixo, houve um aumento significativo para controle de dislipidemia em 1995 e de 2.417
da taxa de infarto após a exposição a HAART57(tab. I). Após pacientes em 2001.
dois anos, Holmberg e cols. confirmaram esses mesmos Currier e cols. conduziram um estudo também
achados em população de 5.672 pacientes soropositivos, retrospectivo com inclusão de 28.513 pacientes
evidenciando entre os anos de 1993 e 2002 um significativo portadores do HIV e 3.054.696 não-infectados, com o
aumento da incidência de infarto após 1996, época da objetivo de determinar a incidência específica, por faixas
introdução da HAART58. Entretanto, os autores já chamavam etárias, de doença arterial coronariana em homens e
atenção para a participação de fatores de risco como mulheres HIV+ comparando àquela observada em
tabagismo e dislipidemia. indivíduos não-infectados 62 . O tempo médio de
Foi também em 2002 que Klein e cols. analisaram observação foi 2,5 anos dos pacientes soropositivos e
retrospectivamente 4.159 homens portadores do HIV que 2,64 anos dos pacientes soronegativos. Houve 1.360
ao longo de 5,5 anos de observação apresentaram 72 eventos cardiovasculares no grupo de pacientes
eventos cardiovasculares, dos quais 47 foram infartos do soropositivos e 234.521 no grupo-controle. Quando tais
miocárdio59. Os autores não observaram impacto da eventos eram distribuídos por gênero e idade, a infecção
exposição à terapia anti-retroviral na incidência dos pelo HIV consistiu importante marcador de risco para os
eventos cardiovasculares, porém a incidência destes entre homens com menos de 34 anos e para as mulheres com
os pacientes infectados pelo HIV foi superior àquela menos de 44 anos. Tal associação perdeu força nas faixas
observada entre os 39.877 homens não-infectados do etárias mais avançadas em ambos os sexos, com o curioso
grupo-controle (4,86 x 3,69 por 1.000 pessoas-ano; p achado, em algumas dessas faixas, de menor risco entre
= 0,003). Com relação aos fatores de risco, os pacientes os pacientes HIV+, por exemplo; risco relativo de DAC
soropositivos apresentavam maior prevalência de em homens entre 55 e 64 anos (infectados x não-
dislipidemia e tabagismo, porém menor prevalência de infectados) de 0,60 (0,51-0,71; p < 0,0001).
diabete e hipertensão que os pacientes do grupo-controle. Especificamente entre os pacientes com idade inferior a
33 anos, o uso de terapêutica anti-retroviral foi associado
David e cols. analisaram o perfil de risco de dezesseis
a maior risco de doença coronariana (risco relativo de
pacientes HIV+ (1,7% do total de seus 951 pacientes
2,06; p < 0,001). Os autores observaram um perfil de
infectados) com diagnóstico confirmado de doença arterial
maior risco entre os pacientes soropositivos, com aumento
coronariana e constataram que 81% destes eram
progressivo da prevalência dos fatores de risco
tabagistas, 63% apresentavam hipertensão, 50% tinham
cardiovascular nas faixas etárias mais elevadas.
dislipidemia e 31% história familiar positiva para doenças
cardiovasculares 60 . Os autores compararam as Em novembro de 2003 foram publicados dados do
características desses pacientes às de 32 indivíduos estudo DAD (Data Collection on Adverse Events of Anti-
HIV+, porém sem evidência de doença arterial HIV Drugs) com evidência de correlação positiva entre a
coronariana (DAC), e demonstraram que a prevalência duração da exposição à terapêutica anti-retroviral e o risco
dos fatores de risco era significativamente maior naqueles de infarto do miocárdio 63. Prospectivamente foram
com evidência de DAC, sem demonstrar associação entre observados 23.468 pacientes portadores do HIV, com
a exposição a inibidores de protease e maior risco. tempo médio de seguimento inferior a dois anos e registro 369

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de 126 casos de infarto do miocárdio, dos quais apenas nos pacientes HIV+. Nessa amostra, 58% dos pacientes
55% preenchiam os critérios definitivos para esse HIV+ eram tabagistas, 58% apresentavam dislipidemia,
diagnóstico de acordo com as normas do projeto MONICA64. 50% tinham história familiar de DAC precoce, 29%
A taxa absoluta de eventos foi baixa, correspondente a hipertensão e 12% diabete. Além disso, os autores
3,5 eventos por mil pessoas/ano. Entretanto, cada ano de analisaram comparativamente a morbidade e mortalidade
exposição à terapia antiretroviral combinada determinou a curto e médio prazos, demonstrando que os pacientes
um aumento de 26% do risco relativo de infarto do soropositivos apresentavam evolução intra-hospitalar
miocárdio durante os primeiros quatro a seis anos de benigna, porém com maior morbidade após a alta, com
exposição. Nessa mesma coorte de pacientes, a prevalência mais reinfarto (20% x 4%; p = 0,07) e maior recorrência
dos fatores de risco tradicionais para doença coronariana de sintomas (45% x 11%; p = 0,007) sem contudo
foi alta; 56,2% de tabagismo, 45,9% de dislipidemia, apresentar maior mortalidade (0 x 4%; p > 0,99). Com
7,2% de hipertensão e 2,8% de diabetes. Foram preditores relação ao comprometimento das artérias coronarianas,
independentes de infarto do miocárdio idade avançada, não foi observada diferença entre as características
história de tabagismo, sexo masculino e diagnóstico prévio angiográficas dos grupos.
de doença cardiovascular63. Finalmente, Hsue e cols. avaliaram retrospectivamente
Varriale e cols. analisaram prospectivamente 690 os fatores de risco e a evolução clínica de 68 pacientes
pacientes HIV+ submetidos a internação hospitalar portadores do HIV internados entre os anos de 1993 e
durante três anos de observação65. Detectaram 29 casos 2003 por angina instável ou infarto do miocárdio, e
de infarto do miocárdio, constatando uma incidência de compararam as características dessa população a um
1/100 pacientes-ano de observação, semelhante àquela grupo controle de 68 indivíduos com diagnóstico de DAC
observada na população geral norte-americana. No que aguda, porém soronegativos67. A prevalência de tabagismo
diz respeito ao perfil de risco cardiovascular desses (46% x 28%; p = 0,003) e baixo HDL-colesterol (35 ±
pacientes, 55% eram tabagistas, 21% dislipidêmicos, 12 x 41 ± 9; p = 0,005) era maior entre os pacientes
14% hipertensos, 14% apresentavam histórico familiar soropositivos e sua faixa etária era menor (50 + 8 x 61
de DAC precoce e apenas 21% não apresentavam ± 11 anos; p < 0,001). Entretanto, a prevalência de
nenhum fator de risco. A idade média dos pacientes diabete e dislipidemia foi maior no grupo-controle e o
infartados foi de 46 anos (±10 a.), 66% recebiam inibidor compito geral do risco, avaliado pelo escore de TIMI68,69,
de protease e, embora 79% deles apresentasse pelo também foi maior no grupo-controle, que apresentou à
menos algum fator de risco para aterosclerose, a maioria angiografia maior extensão da doença coronariana.
apresentava baixa associação deles. Contudo, a taxa de reestenose clinicamente manifesta
No estudo de Matetzky e cols., 24 pacientes HIV+ foi maior nos pacientes soropositivos do que nos controles
internados com o diagnóstico de infarto do miocárdio entre que foram submetidos a angioplastia com o uso de stent
os anos de 1998 e 2000 foram prospectivamente avaliados (50% x 18%; p = 0,078). Ao todo, foram realizadas 29
por um tempo médio de quinze meses e comparados a angioplastias nos pacientes soropositivos, com uso de
um grupo-controle de 48 pacientes com infarto, porém stents em 22 desses procedimentos. No grupo-controle
soronegativos66. Os autores não mostraram diferenças foram realizadas onze angioplastias com stents e dez
significativas entre as prevalências de diabete, hipertensão, exclusivamente com cateter-balão.
tabagismo, dislipidemia ou história familiar de DAC quando Um recente estudo procurou estabelecer de forma
compararam os grupos, sugerindo assim implicação direta objetiva a relação de risco de doença cardiovascular e
da infecção retroviral na doença. Entretanto, a não- uso de terapia antiretroviral70. Foram estudados 721
inferioridade do perfil de risco reforça a importância dos indivíduos divididos em três grupos pareados por idade e
fatores tradicionais na etiopatogenia da doença coronariana sexo; 219 pacientes eram HIV+ em uso de HAART, 64

Tabela I - Estudos epidemiológicos sobre doença cardiovascular e Sida

Autor/ano Tipo n Período Achado


Rickerts / 2000 Retrospectivo 4.993 HIV + 1983-1998 Maior incidência de IM após HAART (0,86/1.000
à 3,41/1.000 pessoas-ano)
Holmberg / 2002 Retrospectivo 5.672 HIV+ 1993-2002 Maior incidência de IM após HAART
Klein / 2002 Retrospectivo 4.159 HIV+39.877 HIV - 1996- 2001 Maior taxa de internação por DAC(4,86 X 3,69/
1.000 pessoas-ano; p=0,003)
Sem relação com HAART
Bozzette / 2003 Retrospectivo 36.766 HIV+ 1993-2001 Aumento da sobrevida sem aumento da
incidência de eventos cardiovasculares
Currier / 2003 Retrospectivo 28.513 HIV+3.054.696 HIV- 1994-2000 Maior risco de DAChomens < 34anos e mulheres
< 44 anos.
DAD / 2003 Prospectivo/Observacional 23.468 HIV+ 1999-2002 Baixa incidência de IM (3,5/1.000 pacientes-ano)

370 Relacionada ao tempo de HAART

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

pacientes HIV+ sem uso de HAART, e 438 indivíduos não for iniciado inibidor de protease, repetir a avaliação a
controles (HIV-). A estimativa de risco cardiovascular foi cada dois anos. Se vier alterado, iniciar tratamento e repetir
realizada utilizando o escore de risco de Framingham e em um mês e posteriormente de três em três meses. Quanto
evidenciou que a prevalência de risco coronariano ao tratamento, a dislipidemia nos pacientes infectados pelo
estimado > 20% em dez anos foi duas vezes maior nos HIV deve considerar as mesmas metas recomendadas para
pacientes tratados com HAART que no grupo-controle a população geral, após análise global dos demais fatores
(11,9% x 5,3% , p = 0,004). O grupo de pacientes de risco. Sempre se devem iniciar medidas não-
HIV+ que não receberam tratamento com HAART teve farmacológicas e, na persistência da dislipidemia, iniciar
um risco estimado > 20% em dez anos de 6,3%, sem farmacoterapia, com extrema cautela73,74.
diferença significativa quando comparada ao grupo HIV+ A prescrição dos hipolipemiantes, entretanto, pode
em uso de HAART (p = 0,25) ou comparada ao grupo trazer complicações aos complexos esquemas
controle (p = 0,76). Entre os fatores de risco observados, antiretrovirais75. Algumas alternativas ao tratamento
a prevalência de tabagismo foi maior no grupo de farmacológico da dislipidemia foram aventadas, tais como
pacientes HIV+ que nos controles (54,5% x 30,1%), alterar o esquema de tratamento anti-retroviral
assim como níveis mais elevados de colesterol total e substituindo o inibidor de protease por um outro, ou para
reduzidos de HDL-colesterol. um inibidor da transcriptase reversa não-nucleosídeo.
Na prática global de prevenção primária e secundária Porém, essas alternativas, teoricamente favoráveis, não
de doença cardiovascular inicialmente levava-se em conta têm resultado em benefícios consideráveis nos estudos
apenas a exposição aos fatores de risco, porém a clínicos, além da possibilidade de ocorrência de
necessidade de discriminação mais precisa das modificações nas características do processo infeccioso
populações de risco se traduziu na implementação de viral crônico como resistência e sorotipagem76,77.
exames de rastreamento para identificação de Os medicamentos mais utilizados no tratamento da
aterosclerose antes de sua repercussão clínica, a chamada dislipidemia desses pacientes são os mesmos da população
aterosclerose subclínica, comprovadamente relacionada geral: estatinas, fibratos e niacina. As recomendações do
à maior incidência de eventos futuros. Entre esses exames grupo de estudos da Sida referem-se ao NCEP Panel III
destacam-se o ultra-som de carótidas e femorais para para o manejo da dislipidemia74. As diretrizes baseiam-se
detecção de espessamento do complexo íntima-média na análise do risco global do paciente e se baseiam nos
dessas artérias, as provas de função endotelial e, mais níveis de LDL-colesterol em jejum.
recentemente, a detecção de cálcio em coronárias. No
Estatinas: com exceção da pravastatina e da
contexto específico de infecção pelo HIV, já foi
rosuvastatina, a maioria das estatinas é metabolizada
demonstrada prevalência elevada de disfunção endotelial,
pela isoenzima 3A4 do citocromo P450, que é inibida
principalmente entre aqueles pacientes em uso de
pelos inibidores de protease atuais. Portanto, a
inibidores de protease, bem como maior prevalência de
administração das estatinas com os inibidores de protease
espessamento do complexo íntima-média de carótidas71.
pode resultar em elevação dos níveis da estatina no sangue
Recentemente, além de se verificar maior espessura do
a níveis perigosos, possivelmente causando toxicidade
complexo médio-intimal de carótidas de pacientes
soropositivos quando comparados a controles, foi muscular esquelética e outros efeitos adversos73-77. Pelas
observada maior velocidade da progressão desse potenciais interações, as estatinas devem ser dadas
espessamento no intervalo de um ano72. inicialmente em baixas doses com monitoração freqüente.
Na prática clínica, alguns autores utilizaram atorvastatina
com segurança nessa população, fato também observado
Manuseio da dislipidemia nos em nossa experiência 76,77 . Assim, as estatinas
pacientes portadores de HIV teoricamente mais seguras para uso em associação aos
O estudo Framingham demonstrou que o controle da inibidores de protease são pravastatina, atorvastatina e
dislipidemia reduz o risco de doenças cardiovasculares no rosuvastatina. São as drogas de escolha no tratamento
contexto tanto de prevenção primária quanto secundária. da hipercolesterolemia, além de serem eficazes também
Especificamente na população de pacientes portadores na terapia da hipertrigliceridemia, especialmente a
de HIV não há estudos epidemiológicos que permitam atorvastatina e rosuvastatina.
conclusões sobre essa questão. Entretanto, a maior Fibratos: os fibratos são a primeira escolha no tratamento
sobrevida desses pacientes implica a adoção de medidas da dislipidemia mista dos pacientes infectados pelo HIV, a
para redução de seu real risco cardiovascular. A Sociedade mais freqüente alteração observada nessa população74,77.
Brasileira de Cardiologia foi a primeira a incluir nas Os efeitos a longo prazo de sua administração com os
Diretrizes Brasileiras sobre Dislipidemias e Diretriz de inibidores da protease são desconhecidos. O gemfibrozil é
Prevenção de Aterosclerose, em 2001, um tópico bem tolerado e tem perfil de interação aceitável para
específico para conduta em pacientes soropositivos. utilização. Em estudo que utilizou atorvastatina com
Recomenda que seja feita dosagem do perfil lipídico no gemfibrozil em pacientes soropositivos houve redução de
início do acompanhamento; se o mesmo vier normal e 30% no colesterol total e 60% nos triglicerídeos77. As 371

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

recomendações são em favor da utilização do gemfibrozil como diabetes ou dieta. A maior importância dos outros
ou fenofibrato nessa população73,74. fatores de risco em relação à dislipidemia para essa
Niacina: a niacina reduz os níveis de LDL-colesterol, população específica aliada às limitações dos estudos
aumenta os níveis de HDL-colesterol e reduz os disponíveis mantém ainda indefinido, em nossa opinião,
triglicerídeos. Entretanto, efeitos colaterais como flushing, a existência de um regime anti-retroviral que deva ser
prurido, hiperglicemia e principalmente a hepatotoxi- escolhido em busca de um menor risco cardiovascular.
cidade, não a recomendam como agente de primeira Em conclusão, dadas as características do perfil de
escolha no portador de HIV. risco cardiovascular dessa população, as intervenções
Outros agentes: a colestiramina e o colestipol não são não-farmacológicas parecem ter o efeito mais importante
recomendados por interferirem com a biodisponibilidade no tratamento preventivo do paciente infectado pelo HIV.
dos inibidores de protease e por aumentarem os níveis Os pacientes devem ser aconselhados a controlar os
de triglicerídeos77. As glitazonas, ativadores do receptor fatores de risco seguindo as orientações de estilo de vida,
PPAR-g, não se demonstraram úteis no tratamento da como parar de fumar, seguir dieta, realizar exercício físico,
dislipidemia nesses pacientes. Entretanto, a metformina controlar hipertensão arterial e diabete74.
mostrou eficácia na redução dos triglicerídeos, mas com
um efeito potencial de acidose láctica, especialmente na
presença de uso contínuo de inibidores da transcriptase
SIDA EM CRIANÇAS
reversa77. Os ácidos graxos w3 são úteis no tratamento
da hipertrigliceridemia nos pacientes soropositivos, porém Epidemiologia
não foram avaliados em pacientes que receberam
Apesar de todos os esforços de prevenção da
inibidores da protease77. Outra fronteira a ser explorada transmissão vertical do vírus HIV no Brasil, a
é a busca por inibidores de protease com menor perfil contaminação materno-fetal continua sendo freqüente.
aterogênico e com menos interações com os hipoli- Aliado a isso, os avanços no controle da doença e de
pemiantes. O atazanavir é um inibidor de protease potente suas complicações têm determinado a diminuição
e eficaz recentemente aprovado, para o qual foi sugerida progressiva da sua letalidade na infância. Isso determina
menor incidência de efeitos colaterais metabólicos em um aumento significativo do número de crianças
pacientes tratados por 108 semanas77. infectadas, as quais necessitam de controle de possíveis
Em pacientes nos quais foi feita a troca de nelfinavir complicações em longo prazo78 (gráfico 1).
para atazanavir, houve retorno dos níveis lipídios para os Dados internacionais têm demonstrado também uma
valores encontrados antes do tratamento com nelfinavir. diminuição significativa da letalidade da Sida na infância
Entretanto, uma análise cuidadosa revela que esses e aumento da sobrevida dessas crianças. Apesar disso,
estudos têm deficiências metodológicas semelhantes, enquanto há a diminuição dos óbitos por causas
incluindo tamanho amostral inadequado, não-observação infecciosas, há uma tendência secular de aumento discreto,
de jejum ou abstinência de álcool para coleta de perfil mas progressivo, da mortalidade proporcional por causas
lipídico e não-correção para potenciais fatores de confusão cardíacas nas crianças acometidas pela Sida79,80.

Gráfico 1 – Número de casos novos e de óbitos pela Sida em crianças e adolescentes do Brasil,
no período de 1981 a 2003. Fonte: Datasus

1800
n 1600
1400
1200
1000 ó b it o s
800 c as os n o v os
600
400
200
0
81 83 85 87 89 91 93 95 97 99 01 03
a no
372

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Quando se analisa o impacto das complicações Sida em criança, lesão vascular e


cardiovasculares na mortalidade de crianças com Sida,
vê-se que é um dos fatores de pior prognóstico. Estudos
aterogênese
realizados com crianças que morreram demonstraram, Em crianças, alguns estudos têm apresentado a
na maior parte das vezes, cardiomegalia, efusões associação positiva entre infecção pelo HIV e lesão
pericárdicas e disfunções ventriculares sistólicas ou vascular. Isso pode ser evidenciado laboratorialmente pelo
diastólicas. Entretanto, manifestações clínicas de aumento de níveis dos fatores de von Willebrand e do
insuficiência cardíaca congestiva, aumento de freqüência ativador de plasminogênio tissular, dois marcadores de
cardíaca ou hipertensão arterial sistêmica parecem ser disfunção endotelial. Seus níveis parecem estar
preditores independentes de mortalidade81-84. diretamente relacionados com carga viral, citocinas e
As complicações cardiovasculares da Sida em crianças doença avançada100. O mecanismo fisiopatológico ainda
são bastante freqüentes. Descreve-se a ocorrência dessas não está completamente elucidado, mas parece ser
complicações em 25% das crianças aos dez anos de mediado pelo sinergismo entre a proteína HIV-1 Tat
idade, havendo uma relação direta entre a prevalência (liberada por células infectadas) e o TNF-α101. A dilatação
dessas complicações e o tempo de doença85-87. da raiz aórtica observada em crianças infectadas pelo
HIV também pode representar manifestação de lesão
Não há, necessariamente, sinais clínicos nas crianças
vascular, talvez conseqüente à inflamação linfoproliferativa
com complicações cardíacas da Sida88, mas há algumas
determinada pelo vírus94.
correlações entre quadros clínicos e afecções cardíacas. As
formas rapidamente progressivas da Sida em crianças estão É cada vez maior a preocupação com o diagnóstico
geralmente associadas a aumentos de freqüências cardíaca da disfunção endotelial já na infância ou adolescência,
e respiratória, e diminuição de fração de encurtamento de por ser o primeiro sinal da progressão da aterosclerose.
ventrículo esquerdo89. Há evidências de associação negativa Bonnet, numa série de casos de 49 crianças com HIV,
entre estado nutricional e massa ventricular esquerda, encontrou significativamente mais alterações da
sugerindo um aumento do tônus simpático nos pacientes distensibilidade de artérias nas crianças infectadas do
mais acometidos44. A presença de encefalopatia, por sua que nas do grupo controle. O mesmo não ocorreu em
vez, parece estar associada com queda progressiva da fração relação a diferenças de espessura de camadas íntima e
de encurtamento de ventrículo esquerdo33. média de carótida102.
A hipertensão pulmonar parece ser também uma Muito se têm estudado sobre os efeitos dos agentes
complicação freqüente na evolução crônica da Sida em anti-retrovirais e a progressão da aterogênese. Esse fato
crianças. Esse desfecho parece estar relacionado com tem importância entre as crianças e adolescentes infectados
infecções broncopulmonares de repetição90,91 e a lesão que estarão expostos por mais tempo, teoricamente, a esses
histopatológica mais freqüentemente encontrada é a efeitos. Entretanto, se, por um lado, se descreve o efeito
arteriopatia pulmonar plexogênica92. hiperlipemiante desses agentes em qualquer faixa etária103,
Há uma associação negativa entre níveis de linfócitos por outro, há evidências de que podem diminuir a expressão
T CD4+ e função sistólica de ventrículo esquerdo nas sérica de marcadores de ativação vascular como a molécula
fases iniciais da doença. Com a sua evolução, essa de adesão celular vascular solúvel (sVCAM1), o fator von
associação perde seu impacto33. Já em relação aos níveis Willebrand e o dímero-D104.
de IgG séricos, crianças portadoras do HIV mas com níveis
normais dessa imunoglobulina ou em tratamento de
reposição apresentam mais freqüentemente função e EXPERIÊNCIA DO INCOR
estrutura ventriculares normais, sugerindo mediação Em um estudo pioneiro, analisamos as variações do
imunológica na remodelação ventricular esquerda93. perfil lipídico antes e após o início de inibidores de
Quando se consideram a presença e o grau de dilatação protease, em trinta pacientes soropositivos acompanhados
do ventrículo esquerdo, há uma associação positiva com no Ambulatório Casa da Aids-SP e pela equipe da Unidade
carga viral e negativa com níveis de linfócito T CD4+94. de Medicina Interdisciplinar do InCor. Foi encontrado
Além da lesão direta do HIV sobre o miocárdio, a aumento médio de 31% no nível de colesterol total
imunodepressão pode determinar maior risco de miocardite circulante (p < 0,0006) e de 146% no nível de
por outros agentes infecciosos. Foi detectado o genoma de triglicérides (p < 0,0001). Neste mesmo estudo, treze
diversos vírus em miocárdio de crianças em fase adiantada pacientes com hipertrigliceridemia persistente após dieta
de Sida, as quais apresentavam, freqüentemente, miocar- foram submetidos a tratamento com fenofibrato. Foi
diopatia dilatada e insuficiência cardíaca congestiva95. observada queda de 6,6% do nível de colesterol total (p
Ainda não há consenso sobre se há ou não proteção = 0,07) e significativa queda de 45,7% dos níveis de
cardíaca quando da utilização das novas drogas anti- triglicérides (p = 0,0002), sem nenhum efeito adverso104.
retrovirais nas crianças com Sida82,96-98. Entretanto, foram Mais recentemente, analisamos o papel do bezafibrato
observados sinais de lesão mitocondrial em miócitos, em no tratamento da dislipidemia relacionada ao uso de
associação ao uso desses medicamentos, independen- terapia anti-retroviral. Avaliamos o comportamento do
temente da ação direta da infecção99. perfil lipídico, antes e após tratamento com bezafibrato, 373

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MANIFESTAÇÕES CARDIOVASCULARES EM PACIENTES COM INFECÇÃO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA HUMANA

em 84 pacientes que apresentavam hipertrigliceridemia endocárdio e do miocárdio, variando de doença


persistente após dieta. Houve significativa redução do assintomática até a morte. Os estudos mostram maior
nível de triglicerídeos, colesterol total e também da mortalidade dos pacientes com comprometimento
glicemia de jejum, com boa tolerabilidade (gráfico 2). cardiovascular, o que suscita a necessidade da prevenção.
Alguns aspectos abordados nos chamam a atenção. Em
primeiro lugar, a alta prevalência de tabagismo e os
CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS hábitos inadequados de vida e dieta desses pacientes
Ao longo de seus vinte anos de história, a epidemia contribuem para o aumento do risco cardiovascular.
da infecção pelo vírus da imunodeficiência humana tem Ressalte-se ainda a ação pleiotrópica do vírus, desde a
possibilitado à ciência a aquisição de múltiplos infecção do miocárdio até os distúrbios metabólicos
ensinamentos que se tornaram necessários à conseqüentes à sua presença no organismo. E não menos
compreensão dessa e de outras doenças. A difícil busca importante é a contribuição da adversidade dos anti-
inicial de seu agente etiológico logo deu lugar a retrovirais, que agem negativamente no metabolismo dos
perspectivas de tratamento e de redução de morbidade e pacientes, além de promover interações medicamentosas
mortalidade, obtidas nesses anos. Entretanto, nesse consideráveis na presença de outros fármacos.
período, com a disseminação do uso das drogas anti-
A avaliação do paciente HIV no contexto da doença
retrovirais em esquemas potentes, pudemos conhecer a
cardiovascular exige alto grau de suspeição clínica, uma
história natural da infecção pelo HIV, em vários aspectos
vez que o quadro clínico muitas vezes é frustro ou
diferente da doença da década de 1980 e do início dos
confundido com outras doenças mais comumente
anos 90. Pois, com o controle virológico e melhor
encontradas. O conhecimento das manifestações
preservação do sistema imunológico, as infecções
cardiovasculares do HIV aponta para a necessidade de
oportunistas deram lugar às manifestações da doença
implementarmos medidas eficazes no intuito de reduzir a
causada pelo próprio vírus, e então foram sendo
detectadas as doenças auto-imunes, inflamatórias e ocorrência de doenças cardiovasculares nesse grupo, o que
cardiovasculares associadas a este. Nesse contexto, pode ser conseguido por meio do rígido controle dos fatores
somaram-se os efeitos adversos das drogas anti- de risco, do diagnóstico precoce da cardiopatia, da
retrovirais, que têm contribuído para considerável instituição terapêutica adequada e, em última instância,
morbidade, especialmente do ponto de vista metabólico. da constante busca por um tratamento anti-retroviral com
menos efeitos adversos sem comprometer a eficácia.
De mero espectador do paciente que sucumbia por
infecções oportunistas, o sistema cardiovascular ganhou O cardiologista, em sintonia com o infectologista, deve
importância, uma vez que os pacientes vivem mais e, contribuir para a redução do risco cardiovascular dos
além disso, sobre eles incide uma série de fatores de pacientes soropositivos, considerando globalmente os
risco cardiovasculares e complicações metabólicas. O diversos fatores de risco e fortalecendo orientações
coração é acometido em vários aspectos pela doença, dietéticas e de estilo de vida, e, em situações especiais,
sendo reconhecido o comprometimento do pericárdio, do associar com cautela medidas farmacológicas.

Gráfico 2 - Comportamento do perfil lipídico e da glicemia de jejum em pacientes soropositivos


acompanhados no InCor, antes e após tratamento com bezafibrato (BZF)

70 0

60 0
6 4 0,4 8 p<0,0001

50 0

40 0 trig licerid es
3 7 2 ,3 1
co lestero l to tal
30 0
2 5 2 ,9 6 p=0,0009
g licem ia jeju m
2 2 7 ,7 8
20 0

10 0 1 0 6 ,6 p=0,009
9 7 ,4 8

P ré-BZ F P ó s-BZ F
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