Miopericardite - Casuística de Um Hospital Central
Miopericardite - Casuística de Um Hospital Central
Miopericardite - Casuística de Um Hospital Central
MIOPERICARDITE – CASUÍSTICA
DE UM HOSPITAL CENTRAL
MYOPERICARDITIS - CASE SERIES OF A CENTRAL HOSPITAL
Os autores não beneficiaram de qualquer subsídio ou bolsa para a realização deste trabalho
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fúngica.5,6 MP recorrente pode ainda associar-se e presença de pelo menos 1 lesão focal com pa-
a patologias autoimunes ou metabólicas.5Causas drão não isquémico nas sequencias de realce tar-
mais raras de MP são as neoplasias ou agentes tó- dio com Gadolíneo (RTG).8,10
xicos.2,7 Apesar dos inúmeros agentes causais já O presente estudo teve como objetivo descrever
identificados, a forma idiopática continua a ser a a apresentação clínica, etiologia, abordagem diag-
mais frequente.2,3,4,5 nóstica e terapêutica em contexto de Miopericar-
A MP evolui habitualmente em 3 fases que se dite num Hospital Central de Portugal, descrever a
podem sobrepor.8,9 A primeira fase é caracterizada evolução da doença e avaliar eventuais preditores
pela invasão e destruição celular direta pelo agente precoces de disfunção ventricular.
agressor.8 No caso dos vírus, estes podem apresen-
tar tropismo específico para o sistema de condução
elétrico (como os herpes vírus), para os cardiomió- MÉTODOS
citos (como enterovírus e Parvovirus B19), ou para
células do endotélio vascular.2,6,8 A segunda fase, Foi realizado um estudo retrospetivo trans-
com duração de dias a meses, é caracterizadapela versal, num Centro de Referência em Cardiologia
resposta inflamatória, com expressão de citocinas e Pediátrica.
infiltrado inflamatório.8,9 Se esta reação for susten- Analisaram-se os processos dos doentes com
tada e auto-perpetuada, pode ser responsável por idade inferior a 18 anos e com diagnóstico de Mio-
maior dano cardíaco. A terceira fase pode ser de pericardite, internados entre julho de 2012 e janeiro
resolução da infeção e resposta inflamatória com de 2019.
presença ou não de deposição de colagénio e fibro- O diagnóstico de Miopericardite foi realizado por
se difusa.8,9 Cardiologista Pediátrico com base nos critérios de
O diagnóstico definitivo de MP é histológico mas diagnóstico: Dor torácica aguda compatível, asso-
pode ser inferido por critérios clínicos, analíticos e ciada a pelo menos um dos seguintes critérios: Al-
imagiológicos.2,5,9Assim, existe presunção de MP no teração eletrocardiográfica compatível (suprades-
contexto de dor torácica aguda associada apelo nivelamento ou elevação do segmento ST, inversão
menos um dos seguintes parâmetros: alteração ele- da onda T ou BAV),elevação dos biomarcadores de
trocardiográfica compatível,nomeadamente supra- necrose miocárdica ou alterações da contractilida-
desnivelamento ou elevação do segmento ST, in- de cardíaca. Na ausência de dor torácica sugestiva,
versão da onda T ou bloqueio Auriculo-ventricular a MP foi considerada na presença de pelo menos
(BAV); elevação dos biomarcadores de necrose mio- dois dos critérios diagnósticos supracitados.
cárdica, sobretudo troponina I; alterações da con- Descreveram-se os dados demográficos dos
tractilidade cardíaca.2,5 Na ausência de dor torácica doentes, características clínicas, dados laborato-
sugestiva, o diagnóstico é ponderado na presença riais, exames de imagem realizados, terapêuticas
de pelo menos dois dos critérios supracitados.2,3,5 instituídas e orientação dos doentes.
De acordo com as recomendações da Socie- Considerou-se disfunção sistólica do ventrículo
dade Europeia de Cardiologia,deve ser feita uma esquerdo se a sua fração de ejeção (FEVE) avaliada
investigação inicial com níveis de biomarcadores por ecocardiografia era inferior a 50%.Considerou-
(Troponina I, Creatinoquinase Músculo-cérebro -se elevação significativa de Troponina I se superior
(CK-MB), Peptídeo natriurético tipo B (BNP) ou a 80 ng/L, CK-MB se superior a 6,4ng/ml, Mioglobina
Mioglobina), Eletrocardiograma, Ecocardiograma se superior a 147ng/mL, BNP se superior a 100pg/
e Radiografia de tórax.3,5,6 A realização de Res- ml e Proteína C-reativa(PCR) se superior a 2,9 mg/L.
sonância magnética cardíaca tem importância Os dados foram apresentados por descrição
diagnóstica e prognóstica, sendo compatível com da sua frequência e percentagem para variáveis
o diagnóstico de MP na presença de pelo menos qualitativas. As variáveis quantitativas foram apre-
dois de três critérios de Lake Louise (LL): Hipersi- sentadas sob a forma mediana e valor máximo e
nal global ou regional do miocárdio em sequen- mínimo. Analisou-se a correlação entre a presença
cias T2-weighted, hipersinal global do miocárdio de disfunção sistólica do VE e as variáveis analíticas
nas sequencias de realce precoce com Gadolíneo, recorrendo a Teste Qui-quadrado e t-teste.
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Tabela 1: Valores absolutos dos parâmetros analíticos na admissão dos doentes com miopericardite
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A Radiografia de tórax foi realizada em 74,4% fibrose (realce tardio com gadolíneo) em 90% dos
das admissões, estando descrito um índice cardio- exames, com a extensão e distribuição apresentada
torácico aumentado em 2,6% dos casos na tabela 2. Assim, a primeira RM apresentou crité-
O eletrocardiograma, realizado em todos os in- rios Lake Louise positivos em 60%, duvidosos em
ternamentos, apresentava-se alterado em 92,3%, 30% e negativos em 10%. Se realizados na primeira
com supra-desnivelamento do segmento ST em semana após admissão, a RM identificou MP com
87% dos casos, 12,8% apresentando alterações da critérios LL positivos em 83,3% dos doentes.
onda T (negativa ou bifásica) e 2,6% casos com pro- Não se realizou biópsia endomiocárdica em ne-
longamento dointervalo QTc. nhum caso.
O ecocardiograma, realizado em todos os in- Não se verificou relação entre disfunção ventri-
ternamentos, apresentava alterações em 35,9% cular e valor absoluto de Troponina I, Mioglobina,
dos casos, com disfunção sistólica do ventrículo CK-MB, BNP, ou proteína C reativa. Constatou-se
esquerdo (VE) em 15,4% dos exames, hipocinésia correlação entre a presença de disfunção ventricu-
da parede posterior do VE em 2,6%, dilatação do lar e elevação dos níveis de BNP (p=0,022) ou Mio-
VE em 7,7%, dilatação do VD em 2,6% e insuficiên- globina (p=0,001).
cia mitral ligeira em 5,2%. A presença de derrame Em 82,1% dos internamentos foram realizadas
pericárdico de pequeno volume foi constatada em serologias para vírus, com estudo de autoimunida-
5,2% dos casos de a ser realizado em 53,8% e estudo metabólico
Foi realizada ressonância magnética cardíaca em 7,7% dos casos. Foi estabelecida causa infeciosa
(RMC) em 28,6% dos doentes, tendo um doente rea- em 25.6% dos casos, com 69.2% dos casos classifi-
lizado 4 exames e outro 2. A primeira RMC foi rea- cados como MP idiopática. Houve 1 caso de miope-
lizada em média 6 dias após a admissão(mínimo ricardite associada ao consumo de canabinóides.
de 2 e máximo de 240 dias), apresentando sempre Não se identificaram distúrbios metabólicos ou au-
alterações:derrame pericárdico pequeno e não cir- toimunes causais. O agente infecioso mais frequen-
cunferencial em 70% dos casos; realce pericárdico temente identificado foi o vírus Ebstein Barr(12,8%).
sugestivo de pericardite em 50%; hipocinésia seg- Outros agentes reportados foram o Parvovírus B19
mentar em 30% e redução da função sistólica do (10,3%), Herpes simplex 2, Enterovírus e Toxoplas-
VE em 10%. Após administração de gadolíneo, não ma(2,6% dos internamentos).
foram descritos sinais compatíveis com hiperemia O tratamento mais frequentemente instituído foi
na primeira RM, mas edema foi descrito em 60% e repouso e terapêutica com ibuprofeno(89,7% dos
Hiperemia – 0
Tabela 2: Distribuição das lesões verificadas em Ressonância Magnética, dos doentes com miopericardite
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premente a pesquisa de infeções crónicas, causas lesão reversível e boa resposta a anti-inflamató-
autoimunes ou distúrbios metabólicos.7 rios10,11).Deve ainda ser considerada em indivíduos
Em relação aos biomarcadores, e apesar da ele- com possível miocardite expostos a exercício físico
vação de troponina I não ser essencial para diag- extenuante ou com achados eletrocardiográficos
nóstico, todos os doentes desta série apresentavam inexplicáveis compatíveis com miocardite, mesmo
elevação deste marcador. A elevação de Troponina I na ausência de sintomas. Se realizada na primeira
apresenta especificidade documentada de 86% e semana após o início dos sintomas, a RMC pode
sensibilidade de 71% em crianças.2,9 não detetar lesões, sugerindo-se nestes casos, a sua
O valor de BNP à admissão parece correlacio- repetição.8 A localização do RTG auxilia também no
nar-se com disfunção do VE e prognóstico.2Neste prognóstico, já que o atingimento septal se associa
estudo, o valor contínuo de BNP, Troponina I ou a evolução menos benigna, com eventos cardíacos
Mioglobina não apresentou correlação com a pre- adversos precoces e tardios.10,11
sença de disfunção ventricular. No entanto, verifi- O tratamento instituído foi o recomendado, sen-
cou-se correlação positiva entre a elevação de BNP do sobretudo de suporte, estando recomendado
e mioglobina e a presença de disfunção ventricular tratamento específico se for identificado o agente
significativa, o que reforça a importância destes causal. A sua duração é variável, sendo decidida
biomarcadores na avaliação inicial do doente. caso a caso pelo clínico assistente.
A RMC tem importante papel diagnóstico e prog- O prognóstico da MP é muito variável de acordo
nóstico, com acuidade esperada de 78%.6,10,11 Nesta com a apresentação clínica inicial, estando descrita
série, a RMC apresentou superior capacidade de de- correlação com a FEVE na admissão, BNP e idade.2
teção de MP em relação ao descrito, sobretudo se A série estudada apresentou idade mediana supe-
realizada na 1ª semana após admissão, com positi- rior ao habitualmente descrito, o que, associado
vidade em 83% dos casos e recorrendo aos critérios ao correto tratamento e vigilância de todos os ca-
de LL. A afetação regional detetada por RMC foi a sos, terá contribuído para uma evolução favorável,
esperada. Este exame permitiu ainda documentar com ausência de mortes e recuperação da função
resolução/estabilização de lesões quando reali- ventricular.
zados exames sequenciais, apesar de não ter sido
realizado por rotina. De facto, as indicações para
realização de ressonância e o seu timing não são MENSAGENS CHAVE
muito claros, continuando ainda a tratar-se de um
exame caro, prolongado e muitas vezes difícil de • Importância da suspeita diagnóstica sobre-
realizar em doentes mais jovens. De acordo com a tudo nos SU dos Hospitais periféricos
Sociedade Americana de Cardiologia o exame deve • Severidade variável, podendo evoluir para
ser realizado em pacientes sintomáticos, se há clí- disfunção cardíaca
nica de miocardite e se o resultado da RMC prova- • Importância do estudo etiológico
velmente afetar a abordagem clínica (por exemplo, • Contacto precoce com Cardiologia pediátri-
a evidência de edema e ausência de RTG sugere ca, instituição terapêutica e vigilância clínica
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