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Por Esta Cruz Te Matarei - Bruce Olson

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POR ESTA CRUZ TE

MATAREI
Bruce Olson

A Bobarishora,
que faleceu enquanto
este livro estava sendo escrito.

Os nomes das pessoas foram mudados nos casos em que


poderia surgir alguma situação embaraçosa.
Contra-capa
O que acontece quando um jovem de dezenove anos sai de
casa contra a vontade de seus pais e vai trabalhar com uma
tribo de índios ferozes?
Doença, terror, solidão, tortura: são esses os resultados do
sonho de um jovem que deseja servir ao Senhor?
Leia como Bruce Olson descobre através de sofrimento e
insucessos como apresentar a mensagem do amor de Cristo a
uma nação selvagem, sem destruir a beleza de sua cultura.
Você nunca leu um livro como POR ESTA CRUZ TE MATAREI,
e nunca o esquecerá.

Sobre o autor: Bruce Olson nasceu e foi criado em


Minneapolis, Minnesota, nos Estados Unidos. Cursou a faculdade
na Universidade de Minnesota e em Pennsylvania. Daí foi para a
Venezuela, onde freqüentou a Universidade de Caracas, e,
finalmente, entrou em contacto com os índios motilones. A força
de seu incomum amor pelos índios e os excepcionais resultados
de seus inovadores métodos missionários deram-lhe a
oportunidade de travar amizade com cinco presidentes
colombianos consecutivos e levaram-no a falar nas Nações
Unidas, na Organização dos Estados Americanos e em muitas
outras organizações proeminentes.
Sumário

Prefácio.........................................................................................5
1. Um lar nas selvas......................................................................6
2. Quem é meu Deus?.................................................................15
3. Conflito....................................................................................22
4. Missionário?.............................................................................31
5. Primeiro encontro com os índios..............................................39
6. Auxílio de última hora..............................................................48
7. Comunistas..............................................................................53
8. Quase assassinado..................................................................61
9. Suborno...................................................................................72
10. Uma recepção aterradora......................................................78
10. Dentro e fora da civilização...................................................87
12. Uma espera impaciente.........................................................93
13. Desânimo..............................................................................99
14. Irmão por pacto...................................................................106
15. Tomado por canibal.............................................................112
16. Usando o médico-feiticeiro..................................................121
17. Jesus, o motilone.................................................................129
18. A noite do tigre....................................................................139
19. Os milagres de cada dia......................................................146
20. Como Davi e Jônatas............................................................155
21. Glória...................................................................................163
22. Quase derrotado..................................................................172
23. O remoinho..........................................................................177
24. Além do horizonte................................................................184
PREFÁCIO

Faz muito tempo que este livro está em preparativos.


Houve várias tentativas e imaginamos se seria ou não termi-
nado. Mas ele o foi. Este é um tributo à repercussão que Bruce
Olson tem sobre todos nós.
Bruce não impressiona logo à primeira vista — alto, magro,
loiro, com traços nórdicos bem acentuados. Ele é um tanto
tímido. A sua maneira de falar — sempre intensa — é, às vezes,
num staccato, e às vezes tateante.
Ele tem uma aparência jovem.
É um tanto difícil combinar essa descrição com as honras
que lhe foram conferidas. Todas as pessoas que se encontram
com Bruce o observam com respeito; às vezes com reverência.
Afinal de contas, com trinta anos e apesar de ter terminado a
faculdade apenas com cursos feitos por correspondência, já se
apresentou diante das Nações Unidas, e da Organização dos
Estados Americanos. Ele já almoçou com o Vice-Presidente dos
Estados Unidos e foi amigo pessoal dos últimos quatro
presidentes da Colômbia.
Fala 15 línguas, já teve trabalhos publicados em revistas de
lingüística e foi o pioneiro no trabalho de tradução para o
computador, das línguas tribais.
Acima de tudo, Bruce Olson viveu só, por mais de dez anos,
com os motilones, uma tribo da América do Sul, a qual obtivera a
dúbia distinção de matar quase todos "os de fora" que pusessem
os pés em seus territórios. Bruce "amarrou-se" aos motilones e
como resultado, os motilones "se amarraram" a Deus. Gozaram
também a transformação econômica mais rápida de qualquer
grupo primitivo no mundo — um tributo à filosofia missionária de
Bruce, a qual lhe permitiu conservar os moldes básicos de sua
cultura.
Esses são apenas alguns fatos a respeito de Bruce Olson.
Porém, há muito mais do que esses fatos poderiam sugerir,
porque ninguém pode passar certo tempo com Bruce e per-
manecer a mesma pessoa. As idéias, as sementes de ação que
plantou na "Casa da Criação", durante algumas semanas que
esteve conosco, continuam a nos afetar, nas nossas relações,
uns com os outros — e na maneira pela qual vemos a nós
mesmos.
Bruce não se impressiona consigo mesmo. E tampouco se
preocupa com o que os outros pensam a seu respeito e de seu
trabalho. Os seus esforços difíceis nem sempre são possíveis de
serem vividos, e Bruce já irritou bem mais do que umas poucas
pessoas. Conseqüentemente, várias vezes foi rejeitado pelos
homens. Porém não foi rejeitado por Deus. Essa é a fonte de sua
força. Todos nós podemos aprender com ele.
Os Editores
Creation House

1. UM LAR NAS SELVAS

Bobby e eu encontramos Ayaboquina, um chefe índio dos


motilones, sozinho lá na clareira nas selvas, no topo do pe-
nhasco. Brotos verdes de bananeiras e vergônteas de mandioca
já estavam surgindo através do solo, e havia espaço suficiente
para o gado pastar naquela área de cinqüenta e cinco acres.
Enquanto conversávamos com Ayaboquina a respeito do
progresso que os índios estavam fazendo, ouvimos o barulho de
um barco a motor no rio, logo abaixo. Estava muito junto à
margem para que pudéssemos vê-lo, mas pudemos ouvir
quando ancorou. Usualmente são necessários diversos minutos
para que alguém chegue à clareira, porém, muito antes do que
esperávamos, um homem moreno surgiu ali.
— Boa tarde — disse asperamente em espanhol. Estava
sem fôlego e esperou impacientemente enquanto eu continuava
conversando com Ayaboquina. Vi, pelo rabo dos olhos, que era
Humberto Abril, um dos foragidos que se haviam estabelecido
naquela área. Eu sabia que ele tinha um mau gênio e que havia
ameaçado os motilones. Agora, obviamente, estava enfurecido.
Quando terminei a minha conversa com Ayaboquina, res-
pondi: — Boa tarde, Humberto.
Ele suava profusamente, e gotas enormes de suor caíam de
seu rosto encovado, o qual estava contorcido de tal forma que
me deixava apreensivo.
— Eu vim aqui para dizer-lhes que saiam dessa terra —
disse ele —. Esta terra é minha. Eu sou um colono colombiano.
Tenho o direito de exigir terra para colonizar, e estou exigindo
estas terras. Vocês podem sair! Falava comigo, mas Bobby o
interrompeu.
— E eu tenho algo a dizer —. Ele falava lenta e"calma-
mente, porém com grande ênfase. — Esta terra é nossa. Sempre
foi nossa terra. E sempre será a nossa terra. Nós já cedemos
bastante terra a você. Há seis meses cedemos uma parte de
nossas terras a você, de acordo com a sua exigência, e o que foi
que você fêz? Você as vendeu, e agora está exigindo mais ainda.
Mas nós não daremos mais nada. Nós protegeremos aquilo que é
nosso.
A discussão não durou muito tempo. Humberto começou a
tremer. Os músculos de seu pescoço se distenderam como se
fossem cordas de aço; seu rosto enrubesceu intensamente.
Pegou Bobby pelos ombros e gritou:
— Estas são minhas terras. Elas são minhas. Todo mundo
pode sair delas —. Depois, então, soltou Bobby e ficou ali
tremendo.
O medo começou a percorrer-me a espinha, como gelo. Mas
Bobby estava seguro de si mesmo.
— Você se engana. Estas terras não lhe pertencem. Elas
não lhe pertencerão — disse ele calmamente.
— Cale a boca! — gritou Humberto. — Cale a boca, índio
sujo. Cale a boca!
A saliva lhe saía dos cantos da boca e deixava pequenas
marcas no seu rosto congestionado. E então colocou o dedo
indicador sobre o polegar de sua mão direita, de modo a formar
uma cruz. Ele a apontou para nós. Os seus olhos saltaram e a
sua mão tremia tanto que quase não podia mantê-la firme.
Beijou os dedos.
— Por Deus — disse ele, beijando os dedos novamente, e
cuspindo no chão. — Por todos os santos — e cuspiu novamente,
balançando a cabeça tão violentamente, que mais parecia um
espasmo do que um movimento consciente. — Em nome da
Virgem Mãe —. Pela terceira vez ele cuspiu. — E por essa cruz —.
Ele tornou a cuspir, e então, olhando diretamente para nós,
levou o seu polegar e indicador à boca e os beijou. A sua voz se
tornou gutural: — Eu te matarei!
E então ele gritou: — "Juro por esta cruz que eu te matarei!"
Ele virou nos calcanhares e desceu pela rampa abaixo.
Observamos a parte de trás de seu pescoço até desaparecer. Ela
ainda estava sangüínea, e os seus músculos e veias
continuavam salientes como cordões. Ficamos em silêncio até
que o ouvimos dar partida ao seu barco, e depois desaparecer ao
longe.
Eu estava tremendo. — Bobby, ele o fará. Ele vai matar
você. Eu sinto que ele está falando a verdade.
— Você está certo, Bruchko.
— E o que é que poderemos fazer a esse respeito?
Ayaboquina, Bobby e eu pensamos em algumas precauções
de segurança.
Mas, Bruchko — disse Bobby —, não há nenhuma segu-
rança perfeita nessas medidas. Somente Deus é que nos pode
ajudar.
E então, nós três curvamos as nossas cabeças e juntos
falamos com Deus. Enquanto o fazíamos, o meu temor foi
substituído pela alegria — que me invadira quando pela primeira
vez vira Bobby naquela manhã. Ela se espalhara pela minha
alma, indo até ao meu estômago. No entanto, não era a mesma
alegria. Era muito mais profunda, como se a dor e o perigo e o
temor tivessem sido injetados nela, tornando-a muito mais
profunda e mais sensível.
Quanta coisa havia acontecido naquelas poucas horas
desde que meu avião sobrevoara a cidade de Rio de Ouro, para
poder aterrizar. Embaixo do avião podia ver a selva estendendo-
se pelo horizonte, como um tapete denso, pesado e verde. À
direita, podia-se vislumbrar uma tira escura, como se fosse um
fio marrom mal colocado sobre aquele tapete verde. Era o Rio
Catatumbo. Voamos sobre ele até à balsa, e vi um aglomerado
de casas, todas novas, que compunham a cidade. Davam a
impressão de estarem perdidas no meio daquela vasta selva.
Mas está crescendo, pensei.
Lembrei-me, então, que justamente dez anos antes, não
havia casa alguma, senão árvores frondosas, bloqueando o sol, e
a folhagem densa sob elas. Talvez um papagaio tivesse gritado
comigo. Agora, no mesmo lugar, havia uma pequena cidade.
Um jato de alegria se apoderou de mim, não por causa da
cidade, mas porque estava voltando dos Estados Unidos e logo
estaria junto com Bobby, o meu irmão de pacto. Grudei os olhos
à janela, tentando ver adiante do avião, e as minhas emoções
cresciam de meu estômago para as minhas costas, num arrepio.
À medida que o velho e gasto DC-3 perdia altura, as árvores
estavam tão perto do corpo do avião que davam a impressão de
que certamente as rodas as tocariam, e o avião viraria e nos
jogaria nas selvas. Mas, repentinamente houve uma abertura na
folhagem, e estávamos sobre uma clareira — uma longa pista
estreita, cortada nas selvas. Tocamos o chão com umas batidas,
e uma sacudidela, os breques rangeram, tentando conservar o
grande avião na pequena pista.
Enquanto éramos levados até ao fim da pista, os meus
olhos buscaram a Bobby entre as pessoas que estavam ali. Não
podia vê-lo. Mas, ao descer a rampa, eu o vi, um pouco afastado;
o seu tronco pequeno, forte, parecia muito ágil e poderoso, até
mesmo sob a sua camisa xadrez, folgada, e suas calças escuras.
O seu rosto era mais escuro do que o das outras pessoas que
estavam aguardando a chegada do avião, mas mesmo assim, lá
da rampa, podia ver os seus dentes brancos cintilando. Era um
sorriso que dizia: "Você voltou novamente, Bruchko, e como isso
é bom." Ele nunca usava o meu nome americano, Bruce.
Desandei a correr. Quando cheguei perto dele, eu o agarrei
e lhe dei uma saudação verdadeiramente Motilone. Creio que
apresentávamos um quadro bem exótico: um índio, de pele
escura, baixo, abraçando um americano loiro e alto. Mas aquilo
não fazia diferença alguma para nós.
— Meu irmão — disse eu — meu irmão Bobarishora —.
Chamei-o pelo seu próprio nome, como o fazia sempre nos
momentos solenes.
Segurei-o a distância de um braço. — Você está com boa
aparência — disse eu —. Como vai a sua esposa? E o seu filho?
Eles vão bem?
— Minha esposa está bem — disse Bobby —. Ela é muito
sadia e muito alegre.
Ela está sumamente feliz de ser a mãe de um filho sadio e
belo.
— Então ele está bem?
— Oh, sim. Ele é gordo. Você precisa vê-lo. E já está
andando pela casa como um macaquinho.
— Venha — acrescentou —. É melhor não ficarmos aqui o
dia todo. Vamos pegar a sua bagagem.
Enquanto caminhávamos até ao avião, onde toda bagagem
era requisitada, Bobby perguntou: — E como foram os seus
negócios nos Estados Unidos?
Pensei naquela imensidão de rostos, nos quartos sem fim
dos hotéis, todos eles semelhantes. Sacudi a cabeça.
— Não sei, Bobby. Acho que consegui fazer as coisas que
deveriam ser feitas. Mas estou imensamente alegre por estar de
volta.
Bobby conversou sobre a sua família. Ele estava tão feliz
quanto eu podia me lembrar de vê-lo assim. Os seus olhos
escuros estavam brilhando. Eu me preocupara com ele depois
que sua filha falecera, porque durante algumas semanas ficara
amuado, não se comunicando. Agora, parecia que não podia
parar de sorrir.
Depois de apanharmos a bagagem, decidimos comer algo.
Fomos à cidadezinha que fora fundada exatamente ao lado da
pista de pouso. As suas ruas estreitas, cobertas de pedras,
estavam repletas de casas novas, com suas paredes laterais
ainda sem pintura e cheirando a madeira nova, seus tetos de
folha', ainda reluzentes, entre as casas velhas, com tetos de
palmeira. Eram umas coisas estreitas, vacilantes, que davam a
impressão de que não poderiam durar muito mais tempo.
Eu não comera coisa alguma no avião, e Bobby riu da
maneira como me fartava das guloseimas colombianas.
— Você terá um estômago bem cheio daqui em diante,
Bruchko — disse ele.
Eu sabia o que ele queria dizer ... Porque, para um moti-
lone, ter um estômago repleto, quer dizer que não iria querer
mais alimento. Significava contentamento, satisfação com a
vida, alegria. Ele expressara muito bem a maneira como me
sentia.
— Como vai a criação de gado? — perguntei.
— Vai indo muito bem. A semana passada estive um tanto
apreensivo a respeito desse programa, porque algumas das
vacas que ficam no planalto, adoeceram. Na realidade, uma
delas morreu. Julguei ter que fazer sozinho todo o trabalho e
cuidar delas até recuperarem a saúde. Porém, tudo deu certo. Os
próprios chefes cuidaram do problema, deram o remédio exato e
cuidaram das vacas até ficarem completamente curadas. Agora
parece que estão todas boas, dando bastante leite —. Ele se
inclinou para a frente com um certo ar zombeteiro. — Na
realidade, Bruchko, lá em Iquiacarora estava sobrando leite e
estava-se estragando. Então nós fizemos queijo.
— O quê? Vocês fizeram queijo? Como é que fizeram isso?
— Ele fingiu estar surpreso. — Por que não? nós o fizemos
simplesmente como uma pessoa sempre faz queijo —. Então ele
desandou a rir, e eu devia ter uma expressão de surpresa.
— Nós tínhamos os comprimidos que você deixara conosco.
Então lemos as instruções e descobrimos como é que se fazia.
Deu tudo muito certo. Você poderá experimentá-lo quando
chegarmos a Iquiacarora, se já não terminou.
Reclinei-me na cadeira, bastante surpreendido. Dez anos
atrás, Bobby era simplesmente um garoto amigo, com um
sorriso maravilhoso. E agora era o líder de um povo. Talvez a
fabricação de queijo, em si, não fosse coisa tão importante.
Porém, demonstrava que os motilones eram um povo em si.
— Bobby — disse eu —, você agora é o líder de seu povo. É
uma grande responsabilidade.
Ele sacudiu os ombros. — Bem, não sou realmente. Há
muitos outros homens capazes de tomar o meu lugar. E além
disso, Bruchko, Jesus Cristo anda nos nossos caminhos. Ele
conhece os nossos caminhos e sabe quais as coisas de que
precisamos. Enquanto nós não o enganarmos novamente, ele
será o nosso verdadeiro guia.
Concordei, sacudindo a cabeça afirmativamente.
— Bruchko — disse Bobby —, você precisa ver as escolas.
Elas estão superlotadas. A maior parte dos alunos já leu os livros
que nós traduzimos e estão pedindo mais. Especialmente mais
do Novo Testamento. Conversam sobre as coisas que estão
aprendendo como se estivessem discutindo uma caçada. Os
mais velhos também. Precisamos nos pôr a trabalhar e traduzir
mais para eles, senão não nos deixarão em paz.
Eu ri. — Pois bem, começaremos a trabalhar nisso logo que
pudermos. Deverá ser muito mais rápido agora que já temos a
maior parte das palavras difíceis traduzidas.
A idéia de ter mais traduções a fazer deixou-me bastante
alegre. Uma coisa é certa, eu aprendera muita coisa sobre a
Bíblia, fazendo esse trabalho. Lembrei-me da palavra/é em
motilone, a palavra que significava "atado a Deus", justamente
como um motilone atava a sua rede nos caibros mais altos de
seu lar coletivo. "Atados a" Jesus, podíamos descansar, dormir, e
cantar bem acima do solo, sem temor de cair.
Estou tão feliz de estar de volta com você Bobby — disse eu
—. Senti muita falta de você todo o tempo que estive fora. Creio
que simplesmente estou "atado aos motilones".
— E nós estamos atados a você, Bruchko.
O garçom nos serviu café, espesso e bem fumegante. En-
quanto Bobby mexia o seu café, o seu sorriso se transformou
numa carranca. — Temos tido muitos problemas com os
colonizadores da terra. Eles nos têm enviado várias cartas amea-
çadoras.
Os colonizadores já nos haviam perturbado anteriormente.
Alguns deles eram fugitivos das prisões que moravam nas
fronteiras, para evitar que fossem presos. Estavam interessados
em tomar as terras dos motilones como suas próprias fazendas,
e declarar, então, aquele território como um lugar de refúgio.
— O que é que querem agora? — perguntei.
— Oh, você já sabe. Mais terra. Mais de nossas terras; eles
nos tratam como se fôssemos animais, que devem ser jogados
em qualquer direção que lhes seja conveniente.
— Então você espera deles problemas verdadeiros ou sim-
plesmente ameaças?
Não sei, Bruchko. Talvez os problemas sejam verdadeiros. A
maior parte dos colonizadores parece que se reuniram aos
proscritos, e isso significa que não irão parar por tão pouco.
Acreditam que se os foragidos nos expulsarem de nossas terras,
terminarão por se apossarem delas, pois que os foragidos nunca
terão o direito de possuir terras.
— Então, o que é que você vai fazer, Bobby?
O seu rosto se entristeceu e olhou para baixo. — Bem,
posso dizer-lhe isto: nós não vamos entregar nem mais um
pouco de nossas terras a eles. Já entregamos muitas e muitas
vezes, e não há fim nisso. Desta vez nós mesmos a protegere-
mos. Mas, Bruchko — disse ele —, olhando para mim —, espero,
e oro para que não cheguemos a esse ponto.
Tive bastante tempo para pensar sobre o assunto,
enquanto navegávamos rio acima. Era uma viagem de sete
horas, e o motor Briggs e Straton fazia tanto barulho que era
impossível conversarmos. Era incrível, inacreditável que os
colonizadores estivessem nos perturbando novamente. Era coisa
de gente de duas caras. Mais de três mil colonizadores haviam
sido tratados pelos índios motilones nos seus centros de saúde.
Eles se sentiam felizes por poderem ir aos nossos centros
quando precisavam de auxílio. Os motilones lhe davam as suas
drogas e medicamentos. No entanto, quando cobiçavam a terra
dos motilones, faziam qualquer coisa para obtê-las.
Olhei novamente para Bobby, que estava pilotando o barco
e sorri. Como era estranho que estivesse nesse local, e que
sentisse da maneira como me sentia, a respeito desse povo. Fora
Deus que me trouxera até ali. Nunca teria chegado por mim
mesmo. E mesmo que tivesse desejado, nunca teria alcançado e
vencido todos os problemas, agüentado a solidão e os perigos.
Realmente, eu mesmo nunca teria deixado o meu lar em
Minneapolis, se não tivesse tido sua Presença poderosa e
determinante dentro de mim.
Enquanto sentava ali na canoa, agradeci a Deus por Bobby,
pelos motilones, pelas selvas que estavam em toda parte ao
nosso redor, e até mesmo sobre nós, como se fosse uma tenda.
Árvores enormes, com troncos finos, elevavam-se para o alto,
buscando a luz do sol, que dificilmente penetrava até ao chão
das selvas. Um musgo espesso e verde pendia dos lados de cada
árvore, e sob elas havia uma vegetação espessa, trepadeiras da
altura de um homem, folhagens, touceiras, tudo isso de um
verde brilhante. Quando o rio se tornou mais estreito, e ficamos
sob as árvores, parecia tão escuro quanto a noite. O ar era
quente, úmido e asfixiante. Os insetos circulavam ao nosso redor
e nos picavam. Mas eu estava imensamente feliz. Esse era o
meu lar. Em todos os outros lugares, eu me sentira fora do
ambiente.
Navegamos durante cinco horas e meia. Nenhum de nós
tentava conversar, no entanto, havia comunicação entre nós.
Indicávamos alguma coisa, e nos lembrávamos de alguma
experiência que havíamos passado juntos. Não vimos vida
alguma no rio. Alguns pássaros de cores brilhantes voaram por
uns instantes entre as árvores e depois desapareceram. Quando
paramos o motor para reabastecê-lo, podíamos ouvir os
chamados dos animais. Porém não havia nenhum sinal de
colonização humana.
Repentinamente percebemos, pelas curvas do rio, que nos
estávamos aproximando do lar coletivo dos Ayaboquina.
Bobby olhou interrogativamente para mim, e apontou em
direção de uma casa que estava no topo de um penhasco. Você
quer parar? Ele estava perguntando. Fiz que sim. Dirigiu o barco
em direção à margem do rio. Amarramos o barco a uma árvore,
depois subimos rapidamente a ribanceira. Lá no topo, a poucos
pés da casa, havia uma placa nova e grande, com letras bem
nítidas, informando que além daquele ponto era o território dos
motilones e que era ilegal estabelecer-se ali.
Indiquei a placa. — Finalmente o governo mandou colocá-la,
não é?
— Sim. Há duas semanas atrás.
Lá na casa, perguntamos por Ayaboquina, e uma das mu-
lheres nos disse que estava na clareira mais próxima. Estavam
construindo uma nova casa ali por perto, e haveria uma escola e
um centro de saúde.
Fora ali que encontráramos Ayaboquina e fôramos amea-
çados por Humberto Abril.
Mais tarde, pensei naquelas palavras, "Por esta cruz eu te
matarei". Elas eram ameaçadoras, geladas. Eram simplesmente
uma praga ou uma maldição, uma ameaça, ou elas significavam
muito mais? Eram proféticas de algo que a cruz ainda faria por
nós?
Fora pela cruz que eu amara os motilones e como recom-
pensa era amado por eles. Mas era também pela cruz que eu
haveria de morrer? Era também pela cruz que Bobby haveria de
morrer?

2. QUEM É MEU DEUS?

"Quem é meu Deus?" perguntei. Eu tinha catorze anos.


"Quem é ele?" Não havia ninguém para responder. Do outro lado
do pátio do ginásio eu podia ouvir os ruídos surdos e os apitos
dos que treinavam futebol. Pela centésima vez desejaram que eu
fosse bastante forte nos esportes, a fim de ser convidado a
jogar.
Porém, havia algo mais além dos esportes em minha mente
... algo que me preocupava havia vários dias.
"Quem é meu Deus?" perguntei a mim mesmo, novamente.
"Há o Deus luterano, de quem nós falamos na igreja. Há o Deus
de todas as igrejas cristãs, a respeito de quem nós estudamos na
escola. Há o Deus do qual eu tenho lido na Bíblia. Porém qual
deles é o meu Deus?"
Não recebi resposta alguma dos céus gelados de Minessota.
Eu me dirigi para casa.
Parece que ninguém sabia a resposta. No domingo anterior
me enchera de coragem e perguntara ao meu professor. Ele
sorrira, um sorriso muito grande e esquelético. — Você não fez a
sua profissão de fé?
Eu sabia tudo a respeito de como preparar-se para a profis-
são. Enquanto estudava para fazê-la, aprendera teologia. Mas eu
queria conhecer Deus.
O meu pai gostaria que não pensasse mais aquilo. Eu não
lhe perguntara pois sabia o que diria. Ele olharia para mim, com
os seus olhos azuis cristalinos, e me diria que estava
desperdiçando o seu tempo e o meu.
Talvez eu estivesse. Parece que não havia outro Deus
qualquer senão o Deus feroz dos luteranos; eu sentia medo só
em pensar nesse Deus.
Esse vento gelado, cortando o meu rosto, é o seu vento,
pensei. Chutei a grama seca, marrom, ao longo da calçada. Essa
manhã ela fora enfeitada pela neve. Alguns pedaços ainda
gelados estavam espalhados à sombra das sarjetas.
Por que é que eu nasci? Eu sou tão alto e magro... tão
míope... muito acanhado. Eu nem posso jogar futebol. Quando
eles me passam uma bola, e ela me atinge, todos riem de mim.
Eu podia ver o rosto cheio de sardas de Kent Lange, envolto
por cabelos escuros, ondulados, e sua boca aberta numa grande
gargalhada. Era o meu melhor amigo. Senti um peso gelado no
meu estômago, semelhante a quando eu tomava sorvete
rapidamente.
Por que é que eu tomava tudo isso tão seriamente? Era
apenas um jogo. Quando eu chegar em casa, pensei, pegarei os
meus livros. Então todos esses problemas serão esquecidos.
Eu gostava de arrumar os meus livros sobre a minha cama,
colocando-os ao meu redor, de acordo com o idioma. Nas últimas
duas noites estivera estudando grego, lendo a minha Bíblia. Eu
possuía uma grande Bíblia de couro, lindamente encadernada, e
muito bem impressa; eu gostava de folheá-la. Havia vários anos
eu vinha lendo a Bíblia, especialmente o Antigo Testamento.
Agora que estava aprendendo grego, era muito interessante
aprofundar-me no Novo Testamento.
Porém, por enquanto, o Antigo Testamento era o meu
favorito. Estava encantado com as histórias, fascinado pelas
batalhas. Às vezes, aos domingos à tarde, eu lia muitos capítulos
seguidos.
Os profetas eram diferentes. Muitas vezes eles me ame-
drontavam tanto que eu fechava a Bíblia bruscamente, até me
convencer de que esse era um "livro de sonho", e não de
verdadeira profecia. O julgamento de Deus era muito fácil de ser
previsto: a terra abrindo-se e as pessoas sendo levadas para o
fogo eterno; Jesus chegando com seus exércitos de anjos ferozes
e resplandecentes, com espadas para destruir toda a criação por
causa de sua pecabilidade.
Eu me amedrontava todo, só em pensar em Deus. Às vezes,
quando perdia a calma, descobria o que estava fazendo, e então
eu me encolhia internamente e os músculos de meu estômago
ficavam tensos. E no entanto, não podia parar; ia para a frente,
lutando, sentindo-me desagradável o tempo todo. Mais tarde eu
pensaria: Oh, Deus, eu vou ser julgado. Eu me arrependia, mas
intimamente sabia que tornaria a agir do mesmo modo.
O Novo Testamento parecia diferente. Durante duas noites
eu estivera lendo o livro de João. Estava confuso com ele. Jesus
não se parecia em nada com aquele que me fora descrito. Ou
será que eu teria confundido Jesus com o Deus que eu temia?
Por toda parte por onde Jesus andava, as pessoas eram mudadas
por ele — e sempre para melhor.
Lembrei-me de minha classe da Escola Dominical. Conhecia
cada um dos alunos. Eu freqüentava a igreja com todos eles,
toda a minha vida. Eles nunca haviam mudado. Nenhum de nós
jamais se transformara.
Sempre houvera muita conversa a respeito de transforma-
ção. O ministro nos dissera: "Vocês precisam mudar porque Deus
vai amaldiçoar a terra e os seus pecadores. Vocês precisam ser
santos, assim como Deus é santo. Isso é o que ele exige de
vocês. Tendo pouco de sua perfeição, significa ter pouco de sua
eternidade."
E essa maldição me amedrontava. Às vezes, aos sábados,
Kent ia à minha casa e conversávamos a respeito de histórias de
terror e de filmes que havíamos visto. Tentávamos nos
amedrontar mutuamente, e ríamos e dávamos risadinhas e
escondíamos a cabeça embaixo dos travesseiros. Tínhamos
prazer em amedrontar-nos. Mais cedo ou mais tarde, estávamos
conversando a respeito do julgamento de Deus, sobre o fogo
eterno e o céu sendo enrolado como um rolo. E então ficávamos
bem quietos. Sabíamos que não era invenção de um diretor de
cinema, ou de um escritor. Era algo verdadeiro. Esse fim viria.
Mamãe estava preparando o jantar lá na cozinha, quando
cheguei em casa. Eu estava gelado por causa do vento frio e
cortante. Tirei o casaco e o pendurei; depois fui à cozinha,
esfregando as mãos. Ela afastou um de seus cachos loiros para
trás e olhou para mim.
— Como foi a aula, hoje, Bruce?
— Muito boa — disse eu. — Onde está Dave?
Ela baixou os olhos. — Seu irmão e seu pai tiveram uma
discussão. Está lá em cima no quarto.
Repentinamente me senti cansado até aos ossos. Sempre
alguém estava discutindo lá em nossa casa. As coisas pareciam
muito melhores quando não conversávamos uns com os outros.
Subi as escadas para o meu quarto, notando que cada de-
grau estava tão limpo e tão brilhante, com um vermelho bem
escuro — semelhante a uma cereja madura. Gostei de ver aquilo.
Tudo deveria estar em ordem. Tudo deveria ser perfeito e limpo.
Por que a nossa família não poderia ser assim? Simplesmente
olhando para todos nós, você pensaria que tudo estava bem.
Minha mãe era uma mulher sueca muito bonita, perfeita como
uma estátua. Nenhum de meus amigos tinha uma mãe
semelhante a ela. E o meu pai era elegante, com um queixo
forte, cabelos castanhos abundantes, que nunca estavam
despenteados. Mas dificilmente nós combinávamos.
Fui para o meu quarto e guardei os livros. Então tirei outros
livros e os coloquei em minha cama. Tinha uma Bíblia em inglês,
um Novo Testamento em grego, e alguns livros que me
ajudavam a compreender grego.
Estiquei o corpo magricela na cama. Meus pés projetavam-
se sobre os pés da cama. Meus livros formavam um círculo ao
meu redor. Isso era o mais próximo do que se poderia chamar de
um lar. Eu me sentia confortável no meio deles.
Li até ao entardecer. Minha mãe me chamou para jantar;
desci para o círculo silencioso de minha família, ainda pensando
sobre aquilo que acabara de ler.
Meu pai observara que eu não proferira palavra alguma.
— Por que você não contribui com alguma coisa para o bem
do resto da família? — perguntou ele. Ele falara com grande
precisão.
— Eu estava pensando a respeito de outra coisa, pai —
disse eu.
— E sobre o que estava pensando?
Olhei para minha mãe meio desamparado. Não desejava
ser obrigado a falar.
— Bruce — disse meu pai — não olhe para a sua mãe —.
Sou eu quem está falando com você.
E então eu fui forçado a tentar explicar que estivera lendo o
Novo Testamento e que não o compreendera muito bem.
— Naturalmente que você não o entende — disse ele —. Ele
foi escrito há dois mil anos. E naturalmente não faz sentido nos
dias de hoje.
Um bocado de alimento parou-me na garganta. Estava tão
cansado de ouvir o meu pai descartar as coisas com uma
simples sentença. Que sabia ele a respeito disso? Olhei para o
meu prato. Era tão mais fácil se nós simplesmente não con-
versássemos.
Logo que pude pedir licença, me retirei e voltei para o meu
quarto. Tudo estava errado. Apanhei a Bíblia, mas as palavras
dançavam em volta da página. O meu rosto estava queimando.
Retirei os óculos e deitei-me na cama. "Que coisas mais
estúpidas", disse eu, olhando para as minhas lentes grossas, que
vinha usando desde que posso me lembrar. Eu as odiava.
Aqueles óculos haviam sido um empecilho no caminho dos
esportes; fizeram com que eu fosse apelidado de quatro-olhos, e
de olhos de inseto, durante todo o tempo que eu os usei.
Coloquei a cabeça no travesseiro. Que vantagem havia em
ficar zangado com os óculos?
Certamente que em algum, lugar haveria alguém que me
poderia ajudar. O apóstolo João encontrara-se com Jesus e desde
então nunca mais fora a mesma pessoa. Todos os Evangelhos
contavam a respeito de pessoas que foram mudadas por Jesus.
Eu ansiava por uma mudança, também. Mas julgava que o meu
Deus não se preocupava comigo o suficiente para fazer alguma
coisa.
"Afinal de contas, quem é o meu Deus? Onde está ele?"
disse para mim mesmo.
Talvez se continuar lendo, possa encontrar a resposta,
pensei.
Mas, realmente não esperava encontrar algo que me auxi-
liasse. Afinal de contas, a Bíblia fora escrita antes que os
luteranos existissem. E então me deparei com um versículo que
me chocou, que fez com que sentisse a eletricidade tilintar
dentro de meu corpo.
Sentei-me e o li novamente: "Porque o Filho do homem veio
buscar e salvar o perdido." Eu sabia a respeito da justiça de Deus
de que ele me julgaria sob o ponto de vista das minhas
impurezas — mas aqui estava um versículo dizendo que Jesus
tinha vindo salvar o perdido. Eu sabia, imediatamente, de quem
ele estava falando. Eu. Mas como é que Jesus iria me salvar? E
de quê? Porventura iria ele fazer algum milagre?
Um versículo que eu lera em Romanos começou a ter sen-
tido: "Se em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os
mortos, serás salvo." E salvo era o oposto de perdido.
Isso é tudo? pensei. Somente crer? Eu não teria que fazer
alguma coisa muito grande? não deveria viver uma vida
perfeita? Essa fora a idéia que minha igreja me dera.
Pensei a respeito das coisas de que não gostava em mim
mesmo. O meu gênio. Os maus pensamentos que às vezes
surgiam em minha mente. Jesus poderia mudar essas coisas?
Talvez. Ele fora capaz de transformar a água em vinho dois
mil anos atrás. Mas o que isso poderia provar com Bruce Olson?
Pensei acerca daquelas pessoas, nos Evangelhos, que foram
transformadas por Jesus. Mas o que é que elas tinham a ver
comigo?
As horas passaram. Parece que não havia nenhuma solução
para as minhas perguntas. Estava exausto. O relógio, no meu
quarto, marcava duas horas da madrugada.
E então senti, repentinamente, e com muita certeza, que
aquelas perguntas não eram para eu responder.
Senti-me atraído a falar com Cristo. Naturalmente já orara
antes, mas de maneira formal, na igreja, lendo no hinário. Mas
agora era diferente. Deitei-me de bruços e conversei com Jesus.
Foi uma conversa muito simples, mas a primeira que realmente
tive com ele.
"Oh, Jesus", disse eu, "li como as pessoas que estavam em
volta de ti foram transformadas. Agora eu desejo ser trans-
formado. Quero paz e satisfação como Paulo, João e Tiago, e os
outros discípulos. Quero ser libertado de todos os meus temores
e ..."
Naquele instante senti uma Presença em meu quarto, como
uma quietude. Eu era, ao mesmo tempo, pequeno e calmo,
enorme e suspenso, cobrindo tudo.
"Senhor, estou sendo amedrontado por ti", continuei; "tu
sabes que eu até não gosto de mim mesmo. Tudo está tão
atrapalhado por aqui. E também está confuso comigo mesmo.
Mas, por favor, Deus, quero ser transformado. Eu mesmo não
posso fazê-lo. E não compreendo como é que tu podes fazer
alguma coisa dentro de mim. Mas, Jesus, se tu pudeste mudar
todas aquelas pessoas que a Bíblia cita, acredito que podes
mudar-me também. Por favor, Jesus, faze com que eu te
conheça. Faze-me nova criatura."
E então eu sabia que estava sendo salvo. Senti-me como
um miserável, alquebrado, e saturado de mim mesmo. Mas, ao
mesmo tempo, sentia que uma paz me invadia. Não era algo
sem vida, passivo. Não era, tampouco, uma espécie de silêncio
acabando com a guerra que havia dentro de mim. Era algo bem
vivo, e aquilo me estava dando vida. Sentia que ia acabar
gostando de mim mesmo. E sentia que não desejava que aquela
paz, aquela quietude se afastasse.
Fiquei ali deitado em minha cama, sentindo-me perplexo,
estarrecido até mesmo para me mover ou até mesmo para
pensar. Continuei a conversar com Jesus, sabendo que ele
estava ali. Jesus estava ali no meu quarto. Eu não precisava me
afligir a respeito do Deus luterano, ou do Deus cristão ou o Deus
de qualquer outra pessoa. Eles não eram o meu problema. Jesus
era o meu Deus, o meu Deus pessoal. Eu acabara de conversar
com ele.
3. CONFLITO

Na manhã seguinte, ainda sentia aquela paz.


Eu preciso compartilhar isso, pensei. Mudarei a minha
família completamente. E os meus amigos lá na igreja. Eles
também precisam conhecer a Jesus.
Aos domingos à tarde a mocidade luterana reunia-se no
porão da igreja. Cheguei cedo. Apenas alguns dos jovens
estavam ali conversando, espalhados pelos vários cantos da
sala.
Aproximei-me de um grupo de três, os quais eu conhecia, e
comecei a explicar-lhes o que me sucedera. Eu estava sorrindo
com muito gosto, e esperava que eles reagissem da mesma
forma. Pelo contrário, nos seus rostos estampava-se uma
expressão cuidadosa e de certa reserva.
Alguma coisa estava errada, mas não sabia o que era. Mais
alguns rapazes se aproximaram e prestaram atenção, e todos
eles, solenemente. Quando terminei, não havia um som sequer.
E então um dos jovens olhou para cima, para o velho forro
de madeira e disse: — Então, Bruce, você encontrou uma porta
especial para entrar no céu?
— Sim, você se tornou superespiritual repentinamente,
Olson.
Eles não compreenderam! Talvez eu não tivesse explicado
a coisa muito bem.
— Não, não é isso, de jeito algum — eu disse —. Está ali
para qualquer pessoa e não só para mim. Não estou tentando
dizer a vocês que sou algo especial.
Olhei de um lado para outro ao redor daquele pequeno
círculo de faces frias e reservadas. Esses eram membros de meu
grupo! Eu desejava que compreendessem. Porém, eles olhavam
para mim como se eu fosse um animal do jardim zoológico.
O Reverendo Peterson aproximou-se e me voltei para ele.
Ali estava alguém que compreenderia. Poderia explicar muito
melhor do que eu.
— O que é que há meninos? — perguntou ele —. O que está
acontecendo aqui? — Ele se voltou para mim: — O que é que
está acontecendo, Bruce?
Era um homem alto, com um rosto fino e vermelho. Tinha
um enorme pomo-de-adão que subia e descia e que chamava a
atenção quando falava.
Expliquei o que havia dito até então. Ele ouviu com todo
carinho, sacudindo a cabeça enquanto eu falava. Eu me sentia
aliviado.
— Bem, isso é maravilhoso, isso é extraordinário, Bruce.
Estou tão contente por ouvir que você teve uma experiência tão
satisfatória. Mas não se esqueça que você foi confirmado na
igreja luterana, justamente aqui, neste edifício e que na ocasião
da confirmação você dedicou a si mesmo a Cristo. No entanto a
vida cristã começou para você, mesmo antes disso, quando foi
batizado e recebeu o seu nome.
— Porém, quando tomei a santa ceia e fui confirmado, não
havia nada de real para mim — eu disse —. Eu ainda era a
mesma pessoa —, Lembrei-me de como havia voltado para casa,
com minha beca branca de confirmação, esforçando-me por
sentir um tanto diferente, mas dizendo a mim mesmo: Isso é
tudo que há? Eu esperava que houvesse mais alguma coisa.
O rosto do Pastor Peterson, que até se mostrara amigo e
cordial, transformou-se na mesma indiferença como o rosto dos
jovens.
— Olson — disse ele — eu orei em favor de cada um de
vocês, meninos, quando foram confirmados. Você quer dizer que
as minhas orações não significaram coisa alguma? Você precisa
acreditar nos votos que fez, de que são verdadeiros e
significativos —. O seu rosto enrubesceu um pouco mais ainda.
Como eu gostaria de nunca ter trazido aquele assunto à baila.
Mas precisava continuar.
— Bem, acredito neles agora — disse —. Jesus agora é uma
realidade para mim. Eu fui mudado. Agora sinto algo pelas
pessoas o que nunca havia sentido —. As palavras jorravam de
minha boca. Eu queria pará-las, mas não conseguia. — Jesus é a
minha vida agora. Se ele o era antes, eu nunca o soube.
Mais tarde o Pastor Peterson conversou comigo em parti-
cular. Estava bem firme. — Olson, você adquiriu algumas idéias
pentecostais em algum lugar. Mas não entregue a sua vida ao
fanatismo. Retire a máscara. Você não é diferente de qualquer
outra pessoa.
Fiquei ali sentado, silenciosamente, cansado de tentar ex-
plicar a mim mesmo. Como é que algo tão bom, tão basicamente
simples, podia deixar as pessoas tão perturbadas?
Ele se recostou na cadeira. — Bruce, quando você chega no
âmago da coisa, cristianismo é uma moral imperativa, que nos
obriga a fazer o que é correto. Amar o nosso próximo. Essa é a
essência de tudo.
Depois disso, realmente prestei atenção aos seus sermões.
Ele pregava a respeito de reforma e sobre ética cristã, mas em
nenhum deles falava a respeito do poder para essas coisas.
Falava acerca de transformação e de um exemplo belíssimo do
que deveríamos ser, porém não nos dizia como poderíamos
começar a igualar-nos àquele modelo.
Eu, tampouco, podia igualar-me ao modelo. Sabia disso.
Ainda não, porém, apesar de tudo, a minha vida havia mudado, e
estava-se transformando cada vez mais. Eu tinha paz com Deus.
Ele era algo real e eu o conhecia. O meu gênio sempre fora um
problema terrível. Mas depois que conheci a Jesus, parece que se
desfizera. Até mesmo os meus amigos no grupo da mocidade,
com todas as suas zombarias, parece que não me perturbavam
mais. Eu estava frustrado e ferido, pois a única coisa que
desejava é que eles também tivessem um encontro pessoal com
Jesus.
A minha atitude em relação à escola também mudara. Co-
mecei a interessar-me pelo que eu estava estudando, porque
podia ver como tudo aquilo se relacionava com Jesus. Minha mãe
começou a apreciar as reuniões de pais e mestres a fim de ver o
melhoramento de minhas notas.
Eu sempre gostara de estudar línguas, e estudava latim,
grego e hebraico. Agora eu tinha uma razão para estudá-las. Eu
podia ler a Bíblia nas suas línguas originais, grego e hebraico, e
podia ler em latim os escritos dos primeiros cristãos.
Mas, à medida que a escola se tornava mais e mais
significativa, a igreja se tornava cada vez mais penosa. Eu ficava
suando durante os cultos, com um desejo imenso de gritar para
o Pastor Peterson de que ele não entendia Jesus. Deixei de
participar da comunhão, porque eu fora ensinado que para tomá-
la precisava estar em plena comunhão com os outros membros e
com Deus — e eu não sentia muita comunhão com o pastor nem
com a congregação.
Eu não havia contado a Kent Lange a respeito de minha
experiência; realmente, eu não o havia visto muitas vezes, desde
que mudara de colégio. Cerca de duas semanas depois de meu
encontro com Jesus, no entanto, ele veio à minha casa num
sábado à tarde. Ele havia corrido até à casa e estava
praticamente sem fôlego, quase não podendo falar.
— Bruce, a coisa mais incrível aconteceu comigo — final-
mente ele pode balbuciar —. Ontem à noite, lá na igreja, eu pedi
a Jesus que entrasse em meu coração, como eles nos dizem para
fazer o tempo todo, e Bruce, ele veio. Perdi a noção de tudo que
estava acontecendo no culto, Bruce. Ele estava lá, na igreja, e no
meu coração, e eu o sabia.
Fechei os olhos enquanto uma onda de alívio e de alegria
passou por mim.
— Oh, Kent, isso é maravilhoso — eu disse. E então lhe
contei a respeito de minha própria experiência. Ficamos ali
conversando ambos ao mesmo tempo. E então Kent saltou sobre
mim, e rolamos pelo quarto, numa luta, empurrando-nos
mutuamente, enquanto comparávamos as nossas experiências.
— Kent, eu quase não posso acreditar. Acontecer isso para
nós dois ... —.Eu estava de pé, olhando para ele. — Mas, Kent, o
que você quer dizer — que lá na igreja lhe dizem para pedir a
Jesus que entre em seu coração? Eles não dizem isso na minha
igreja. Ninguém jamais ouviu isso.
Kent me contou a respeito de sua igreja. Na realidade, ela
era completamente diferente da monótona igreja luterana, que
toda a minha vida eu freqüentara. Kent disse que praticamente
todas as pessoas reconhecem a Jesus como seu Senhor e
Salvador.
O dia seguinte era domingo, e Kent me convidou a ir com
ele à sua igreja. Externamente ela era semelhante a qualquer
outra igreja. Porém, eu me sentia excitado. Eu nunca havia ido a
outra igreja que não fosse luterana.
Para mim, internamente, ela não me assemelhava a uma
igreja. Não havia banco algum, não havia decorações elaboradas
no altar. Ela mais se parecia ao auditório de uma escola Havia já
uma porção de gente lá dentro, mas não estavam sentados em
seus lugares. Estavam conversando. Deu-me a impressão de
uma colméia repleta de abelhas grandes e zumbindo ao redor.
Na igreja luterana todas as pessoas chegavam em silêncio e
imediatamente tomavam os seus lugares e começavam a orar.
Nós nos sentamos nas cadeiras, mais para o fundo. Quando
o culto começou, o pai de Kent, que era o ministro, foi à frente.
— Estamos aqui reunidos hoje, para louvar a Deus pelo que
ele nos fez em nossas vidas através de seu Filho Jesus Cristo
— disse ele —. Unamo-nos todos cantando o hino número
38. Todas as pessoas apanharam o seu hinário e o abriram. Era
um hino que eu nunca ouvira. Kent achou o hino, o piano
começou a tocar, o órgão de tubos ecoou e a congregação
cantou. Alguém atrás de nós começou a bater palmas. Todos os
outros se juntaram a ele. Eu estava abismado. Que é que estava
acontecendo? Onde é que estava a reverência, o respeito?
Depois do hino, o Sr. Lange voltou à plataforma, — Bem,
estamos batendo palmas em louvor ao Senhor — disse ele —. É
um hino muito lindo, e cheio de verdades a respeito do que o
Senhor fez. Estamos hoje, aqui, na casa do Senhor, e se vocês
crêem que Deus é verdadeiro, digam "Amém". E todo mundo
disse, enchendo aquele local com um som enorme e ensurde-
cedor ...
— Amém!
Mas, o Sr. Lange colocou a mão ao ouvido e disse: — Todo
mundo disse Amém aí? Eu não pude ouvi-lo.
E então eles disseram novamente, mais alto do que nunca.
Eu me contorci. Achava que todo mundo devia estar olhando
para mim, a única pessoa a não dizer Amém. Lembrei-me de
uma vez, na igreja luterana, quando deixei cair o hinário no meio
do culto, e minha mãe me segurou e disse: "Psiu. Não o pegue
agora. Continue de pé." E aqui estavam essas pessoas dizendo
"Amém" bem alto.
Naquela tarde havia uma banda, e ela começou a tocar.
Logo mais todo mundo ao meu redor estava acompanhando a
música com o bater do pé.
O Sr. Lange convidou alguém a dar um "testemunho."
— Deus tem estado conosco toda essa tarde — disse ele.
— Sabemos disso, porque estamos aqui reunidos lendo sua
palavra e cantando seus louvores. Mas precisamos de que
alguém dê seu testemunho. Quem é que poderá se levantar e
contar o que Deus fez para ele?
Eu não esperava que pessoa alguma estivesse disposta a
fazer aquilo. Mas, antes que eu percebesse, um homem se
levantou e começou a falar a respeito de alguns problemas que
sua família estava passando.
— Mas, dou graças a Deus por esses problemas — disse ele
—, porque através deles Deus nos ajudou. Fomos capazes de
orar por eles como família, e realmente ele nos está ajudando a
solucionar as nossas diferenças com amor, dia após dia, e
estamos ficando muito mais unidos como família.
E ele fez com que toda a sua família se levantasse. Havia
quatro rapazinhos, e alguns deles se aproximavam de minha
idade. O homem abraçou a cada um deles. Depois eles o
abraçaram e se abraçaram entre si. E eles até abraçaram
algumas das pessoas sentadas perto deles. E todo mundo bateu
palmas.
Tudo aquilo era muito estranho. Mas, como eu ansiava por
tudo aquilo! Eu desejava poder orar com a minha família toda.
Eu desejava ser abraçado e aceito por meu pai!
E então veio o sermão. Não tinha ido muito longe, quando o
homem sentado ao meu lado, recostou-se e disse: "Amém!" Eu
quase caí da cadeira, de surpresa, pois foi tão inesperado e tão
perto de mim.
Se bem que tudo aquilo fosse tão estranho, tudo aquilo me
atraía. Aqui estava uma igreja onde as pessoas pareciam
conhecer a realidade de Cristo.
Voltei à igreja na quarta-feira para o culto da noite. E depois
fui ao culto de oração, na quinta-feira à noite, e depois a um
culto na sexta-feira à tarde. E o dia todo no domingo. Eu não
podia receber o suficiente. E estava aprendendo tanta coisa das
Escrituras. Naturalmente que eu estivera lendo a Bíblia, mas as
mensagens do Sr. Lange abriram-me os olhos para as coisas que
eu nunca pensara ou sonhara.
Imaginava que teria problemas com os meus pais. E não
demoraram muito a vir. Eles haviam ficado transtornados
quando a princípio eu lhes contara a respeito da realidade de
Cristo em minha vida. Meu pai, principalmente, estava
apreensivo. Se tudo não pudesse ser explicado em termos
luteranos, não era compreensível — ou aceitável. Ele havia sido
crismado como luterano, e para ele, ser luterano significa
respeitabilidade. Ele julgava que eu estivesse tentando ser
melhor do que ele quando comecei a contar-lhe como achara a
Cristo.
Ele tentou convencer-me de não ir mais à igreja interdeno-
minacional. Quando eu voltava para casa, ele levantava os olhos
do jornal e dizia: — Bem, aqui está o nosso filho pentecostal de
volta do reino de Deus. Qual é a mensagem de Deus, hoje à
noite, para nós pobres pecadores?
Ele dizia isso todas as noites — sim, cada noite quando eu
voltava da igreja. Foi tão enfadonho que eu não podia suportar
mais. Eu passava correndo por ele, ia para meu quarto e
enterrava a cabeça sob o travesseiro, tentando abafar o som de
sua voz em minha cabeça.
Ele também batia palmas, numa imitação do que acontecia
na igreja, (porque inicialmente eu havia tentado descrever aquilo
para todos eles) e cantava: "Oh, sim, Jesus! Nós seremos salvos;
Oh, sim, Jesus! vem visitar-nos hoje à noite."
A igreja interdenominacional ficava a oito quilômetros dis-
tante de minha casa, e eu não tinha outro jeito de chegar lá,
senão indo a pé. Eu ia à igreja luterana todos os domingos de
manhã para satisfazer minha mãe, e depois então eu começava
aminha caminhada para a outra igreja. Era inverno, e o vento
suspendia as pernas de minhas calças e as mangas de meu
casaco. O frio me penetrava através da sola dos sapatos,
subindo das calçadas cobertas de neve, e através de meus pés,
subia-me pelas pernas. Havia dias quando cada passo dessa
caminhada era uma agonia.
E então eu chegava à igreja. Lá havia calor. Rostos amigos
me olhavam e me cumprimentavam. Abríamos as nossas Bíblias
e o meu corpo se descontraía e relaxava, como um gato quando
se prepara para dormir. Mas a minha mente estava bem alerta.
Eu sentia uma alegria imensa quando lia a Palavra de Deus.
Após o término do culto, permanecia por ali tanto quanto
era possível. Eu sempre recusava voltar de carro com alguém.
Eu era orgulhoso demais — ou muito tímido.
Meu pai fizera tudo que fora possível, menos me proibir de
assistir aos cultos. Certa noite eu voltava para casa mais tarde
do que o costume. No caminho, eu precisava atravessar uma
ponte sobre um lago. O vento soprava ondas de neve em pó
sobre a estrada e em meu rosto, sem ter coisa alguma que o
impedisse. Eu podia ouvi-lo, também, zunindo lá embaixo, nas
águas geladas. Eu queria descansar, mas tinha medo de parar.
Lembrava-me de histórias de andarilhos que haviam morrido
congelados porque haviam parado para descansar e não
puderam levantar-se nunca mais.
Do outro lado da ponte podia ver as luzes das casas, lares
tão lindos, como conchas brancas espalhadas pela neve.
"Ó Jesus", eu sussurrei, "ajuda-me."
Mas continuei e, de um jeito ou outro, consegui subir o
declive, passar pelas casas até chegar à minha. Estava escuro.
Senti um grande alívio por ter chegado à minha casa. Tentei
pegar na maçaneta, e tive certa dificuldade em segurá-la. A
minha luva, coberta de gelo, escorregou no cobre gelado.
Lentamente, tentei retirar. Foi preciso, finalmente, retirá-la com
os dentes, pois os meus dedos simplesmente estavam duros e
hirtos. Coloquei a mão na maçaneta novamente e virei-a.
A porta estava fechada a chave.
Tentei novamente para ter plena certeza. Não havia engano
algum. Meus pais haviam-se esquecido que eu ainda estava fora.
Eu não sentia prazer algum em acordá-los, mas precisava
entrar em casa; então toquei a campainha. Olhei para a janela
do quarto deles, tentando ver a luz acender-se. Ela não se
acendeu. Toquei a campainha novamente. Não houve resposta.
Minha mãe podia facilmente dormir com todo aquele baru-
lho, mas meu pai tinha um sono muito leve. Eu sabia que ele
estava acordado. Chamei-o.
— Pai, sou eu, Bruce. Desça e abra a porta para mim, por
favor. Eu estou gelando.
Não houve resposta alguma. Se bem que não o quisesse,
desandei a chorar, e as lágrimas gelavam em meu rosto.
— Pai, por favor. Sou eu, Bruce. Deixe-me entrar. Tomei
uma respiração profunda e segurei-a. Então me
senti um pouco mais calmo. Ergui os olhos novamente para
a janela escura. Parecia que ela estava me observando, como
um olho escuro encoberto. Até que enfim me lembrei dos Lange.
Eu sabia que eles me receberiam. Mas eu precisava andar mais
três quilômetros até chegar à casa deles, e pelo mesmo caminho
que eu já havia andado.
— Por favor, papai —, tornei a chamar e esperei. Não houve
resposta alguma. Virei nos calcanhares e comecei a correr. Corri
o mais depressa que me foi possível, até não poder mais.
Quando parei, já havia atravessado a ponte. O meu hálito estava
pesado, e o ar frio me queimava os pulmões a cada respiração.
Finalmente cheguei à casa dos Lange, exausto e tremendo.
Eles se levantaram e me deram um lugar aquecido para dormir.
Essa foi a pior ocasião. Mas não foi a última. Eu nunca
sabia, ao voltar para casa, se iria encontrar a porta trancada ou
não.
Minha mãe estava numa posição um tanto esquerda. Ela
tinha receio de meu pai, e havia tão pouco que ela podia fazer
para contê-lo. Lembro-me de que uma tarde, ao voltar para casa,
encontrei-a na cozinha, debruçada sobre o fogão, com lágrimas
manchando o seu rosto impecável, e gotejando sobre os bicos de
gás.
Aquilo me assustou.
— Mãe, que é que há? perguntei.
A sua voz ficou embargada. Por duas vezes ela tentou falar,
mas não pôde. Finalmente ela disse: — Bruce, que é que poderá
manter a nossa família unida?
Eu achava que sabia a resposta. Eu estava tentando dá-la
havia muito. Mas agora, quando fui indagado, parecia muito
difícil pô-la em palavras.
— Mãe, nós precisamos ser cristãos verdadeiros. Com Jesus
em nossas vidas, há esperança para nós — eu disse.
Eu não desejava enraivecê-la. Porém, quando ela olhou
para mim, sabia que ela estava zangada e ferida — não era
somente comigo, mas com a vida.
— Oh, Bruce — disse ela —. Como é que você pode dizer
isso, quando é o seu Jesus a fonte da metade de nossos pro-
blemas? Pelo menos, antes dele, podíamos nos tolerar mu-
tuamente. Mas ele atrapalhou tudo.
E era verdade. Mas naquela ocasião eu não sabia que Cristo
havia dito que ele traria divisões tanto quanto a união para as
pessoas.
Eu estava descobrindo que a cruz de Cristo significava mais
do que alegria e paz. Ela significava sofrimento, também.
Sofrimento que era necessário para trazer, mais tarde, a
esperança.
Mas haveria oportunidades suficientes para eu aprender
aquela lição.

4. MISSIONÁRIO?

Quando eu tinha dezesseis anos, a igreja interdenominacio-


nal, da qual eu agora participava regularmente, realizou uma
conferência missionária. Era algo novo para mim, e eu estava
intrigado. Missionários de todas as partes do mundo se reuniram
ali para relatar a respeito das regiões nas quais estavam
trabalhando. Pela primeira vez ouvi a frase "A Grande Co-
missão". Havia um quê misterioso nela.
Um dos missionários, o Sr. Rayburn, "servira" na Nova
Guiné. Ele era um homem baixo, gordo, com uma expressão de
surpresa permanente em seu rosto. Na noite que ele falou, usou
uma camisa verde, brilhante, de bolinhas, calças pretas, e
sapatos de tênis, sujos. Eu estava tão surpreendido que alguém
tão desleixado assim falasse na igreja, mas logo descobri que ele
possuía uma mensagem vigorosa.
A igreja estava repleta. Eu lera a respeito de Nova Guiné, e
antecipava com prazer um relatório em primeira mão.
O Sr. Rayburn exibiu alguns filmes que ele filmara. Numa
das cenas havia um homem comendo um rato. Podia-se ver o
rabo de um rato ainda na sua boca — e então — lá se fora ele.
— Aquele homem comendo o rato não é cristão — disse o
Sr. Rayburn.
Pobre coitado, pensei, lembrando-me de como eu fora infe-
liz antes de me tornar cristão.
Havia outras cenas: algumas de extrema pobreza no meio
das cidades modernas, outras dos "nativos com suas roupas
esquisitas, suas casas e seus hábitos de alimentação. E então o
Sr. Rayburn fez o seu apelo.
— Essas pessoas estão famintas, estão morrendo por causa
das doenças, vivendo na ignorância, comendo ratos. Mas, acima
de tudo, estão famintas pelo conhecimento de Jesus Cristo. Elas
estão morrendo perdidas, sem conhecer como Jesus Cristo pode
salvá-las de seus pecados. Vocês podem ficar aí sentados,
confortavelmente, em seus lugares e aceitar tudo isso? Vocês se
preocupam por esses homens e mulheres que estão vivendo na
esqualidez e imundície? Eles estão morrendo, amaldiçoados pela
condenação eterna. E o que é que vocês fazem? Talvez,
colocarão alguns centavos na salva, no domingo de manhã.
Talvez até ponham uma nota de um dólar para poder auxiliar
aquelas pessoas que estão famintas pelo Evangelho.
— Mas Jesus quer muito mais de vocês. Ele deseja alguma
coisa mais do que apenas uma adoração de lábios para a grande
causa das missões. É responsabilidade de todos aqui levar o
Evangelho de Cristo a essas pessoas. De outra forma, o sangue
deles será exigido de vocês.
Naquela noite eu tive vários pesadelos. Sonhei que o
homem que comera o rato estava puxando o rabo do rato, para
fora da boca. Ele se transformara num chicote, e o homem o
usava para me bater, enquanto gritava: "O meu sangue é
exigido de você."
Acordei banhado em suor.
Isso não está certo, pensei. Deus não é assim. Ele é um
Deus de amor. Ele me ama.
"Mas você o ama?" surgiu a pergunta em seguida.
"Sim, eu o amo. Naturalmente que eu o amo. Eu poderia
deixar de amá-lo?"
"Não quer servir a ele, então?"
"Servi-lo? Eu o estou servindo. Eu estudo a Palavra. Partilhei
com todos os meus amigos o que ele significa para mim. Isso
não é servi-lo?"
Na tarde seguinte conversei com o Sr. Rayburn. — Você
está perdendo o seu tempo aqui — disse ele —. O mundo todo
está condenado, e a sua responsabilidade é entregar a eles a
verdade.
Durante várias semanas, após a conferência, eu me debati
com Deus.
"Afinal de contas, o que é que tu tencionas, fazer de mim
um missionário?" perguntei. "Por que é que não posso ser teu
servo aqui em Minneapolis?"
O meu alvo era tornar-me professor de línguas, conseguir o
meu doutorado em filosofia. Mas alguma coisa dentro de mim
me dizia: "Mas isso não é o que Deus quer que você faça."
"Ouve, Deus, esses missionários são ridículos", objetei.
"Eles usam sapatos de tênis, lá no púlpito. As suas cartas com
pedidos de oração nem são escritas num inglês correto. E a
teologia deles? Eles estão sempre falando em inferno e conde-
nação. Onde é que está o amor deles pelas pessoas com quem
estão convivendo? Eles são uns fracassos. Eles não conseguem
vencer na vida normal, e então se tornam missionários."
"Mas, eu posso vencer aqui, Pai. Todo mundo concorda
comigo. Por que é que devo ir trabalhar com pessoas nuas e
famintas?"
Deus nunca me disse por que. Porém ele realmente mudou
o meu coração. Gradualmente o meu sonho sensato e agradável
de me tornar professor de lingüística foi-se desfazendo numa
idéia ridícula de ir a outros países e falar com os selvagens a
respeito de Deus. Eu tinha certeza de que isso não fazia sentido
para os meus pais e também não fazia muito sentido para mim.
Mas com o passar dos meses, enquanto eu andava para a
escola, sentava na classe e sonhava acordado, enquanto lia a
Bíblia, ele me deu algo que eu nunca havia esperado receber
compaixão.
Eu não podia lutar contra ela. Deus não fazia nenhuma
exigência. Ele não me forçava. Porém eu me achei irresisti-
velmente interessado em outros países, em outras culturas. À
medida que ia lendo, a América do Sul prendia a minha atenção,
e comecei a identificar-me com os povos daquele continente.
Dentro de pouco tempo eu me encontrava sonhando com aquela
terra encantadora e com seu povo. Entreguei os pontos a Deus.
Eu disse a Kent Lange que eu fora "chamado" para ser
missionário na América do Sul.
— Você? Você? Missionário? — O rosto de Kent se abriu
num sorriso. — Bruce, isso é inacreditável. Você não se lembra
de quando éramos escoteiros — que grande aventureiro você
era?
Sorri juntamente com ele. Meus pais me deixavam em
frente da igreja metodista, onde a tropa dos escoteiros se reunia.
Eu entrava pela igreja dentro e saía pela porta do fundo, indo à
Farmácia do Rei, onde comprava um livro e o lia até à hora de ir
para casa. A vida ao ar livre nunca me interessara.
Amigos, só de nome, também me censuraram. Eles me
fizeram lembrar das minhas incapacidades físicas. Quando mais
novo, eu sofrera de bronquite, e eu ainda não era muito forte.
— E Bruce — eles me disseram —, você tem um futuro
brilhante à sua frente, como professor de lingüística. Não jogue
fora as suas capacidades.
Era um argumento bem convincente. No entanto, eu estava
mudando de idéia a respeito da envergadura dos missionários.
Quando examinei os requisitos da junta de missões, descobri,
para surpresa minha, que era necessário que se tivesse o
preparo de um instituto bíblico (ou o equivalente a ele, de uma
faculdade) a fim de poder ser aceito. Então, adiei a minha
decisão e no outono de 1959 fui ao Estado de Pensilvânia. Para
qualquer das vocações — catedrático de lingüística ou
missionário — eu precisaria do preparo de uma faculdade.
Mas eu não podia fugir à minha fascinação pelo povo da
América do Sul. Sentia-me obrigado a ler livros sobre a sua
história e cultura, e tornei-me profundamente interessado em
dois países: Colômbia e Venezuela.
Gostei de minhas aulas lá em Pensilvânia, e fui muito bem
nos estudos. Mas eu me sentia solitário. Havia feito poucos
amigos. Mas no íntimo de minha mente, apoquentando-me,
estava a idéia de que eu deveria estar planejando ir, num futuro
próximo, à Colômbia ou Venezuela.
No ano seguinte eu me transferi para a Universidade de
Minesota. Tinha a esperança de que estando em casa nova-
mente, a situação da família melhoraria. Mas não melhorou em
nada. Eu orara pedindo a Deus que mudasse a atitude de meus
pais a meu respeito e a minha atitude para com eles. Eu sabia
que não os ajudava em nada. Porém, meu pai, particularmente,
permanecia rigoroso e era uma tensão demasiadamente pesada
para mim. Estávamos sempre numa alternativa, ignorando-nos
friamente, ou nos debatendo abertamente. De qualquer jeito, eu
não era aos olhos deles considerado como uma pessoa adulta.
Com tudo isso, a minha compaixão pelas pessoas da Amé-
rica do Sul continuava a crescer. O que inicialmente fora um
compromisso um tanto morno, tornara-se agora numa ânsia
impulsionadora. Finalmente, uma tarde, decidi que não esperaria
até terminar a faculdade. Eu iria visitar a América do Sul agora.
Talvez eu achasse paz para o meu coração assim que chegasse
lá.
Iniciei o processo de candidatar-me a uma junta de missões
muito bem conhecida, lá na Venezuela. Era um processo cacete,
lento, e eu sentia que a escola me irritava. Uma vez que eu
tomara a decisão de deixar os Estados Unidos, não via razão
para continuar a freqüentar a escola. E a idéia de ir à Venezuela
estava-se tornando cada vez mais e mais excitante.
Também sentia uma paz íntima a esse respeito. Sabia, que
apesar de parecer absurdo, eu estava fazendo a coisa certa.
Estava obedecendo a Deus.
E então, um dia, recebi a resposta da junta de missões, tão
ansiosamente esperada. Numa grande excitação abri o enve-
lope. Encontrei apenas uma folha de papel.
"Prezado Sr. Olson: Lamentamos muito informá-lo que não
podemos aceitá-lo, no momento, para os serviços missionários.
O senhor compreende, eu espero que ..."
Nem sequer terminei de ler a carta. Não podia. Parecia que
as palavras haviam perdido todo o seu sentido — como se
tivessem sido escritas em hieróglifos. Eu olhava espantado para
elas. Minha mãe entrou no quarto naquele momento e percebeu
que havia algo errado.
— O que é que há, Bruce? — perguntou, pondo sua mão na
minha testa, examinando para ver se eu estava com febre.
Fechei os olhos e respirei profundamente. — Não é nada,
mamãe — eu disse —. Simplesmente algumas notícias más.
Ela olhou para mim interrogativamente, mas eu não podia
explicar. Especialmente naquele momento. Virei-me e saí do
quarto.
Mais tarde, ultrapassado o choque, eu me senti melhor.
Bem, pelo menos isto já está terminado e não tenho mais nada
com o assunto, pensei. Não preciso mais me preocupar a
respeito de Deus querendo que eu vá, pelo menos por certo
tempo, à América do Sul.
Por alguns dias eu me senti aliviado. Matriculei-me em
novas classes na Universidade de Minesota e realmente ante-
cipava os meus estudos. Meu sonho de ser professor de línguas
havia retornado. Eu podia reiniciar onde havia deixado, e
esquecer tudo a respeito da América do Sul, como se esquece
um pesadelo depois de acordar.
Porém, muitas vezes enquanto estudava na biblioteca, sen-
tia Deus me acotovelando. "Bruce, eu quero você na América do
Sul."
"Mas, Senhor, eu já tentei isso. Tu não te lembras? Fui
recusado."
"Foi recusado por quem?"
"Ora, pela junta de missões, naturalmente."
Era como se Deus estivesse sorrindo para mim, divertindo-
se e tolerando. "Bruce, eu não o recusei. Quero você na América
do Sul. Siga-me."
"Deus, isso é ridículo. Como é que posso ir até lá sem uma
junta de missões? Queres que eu vá para lá sem ter ninguém
para cuidar de mim? Quero dizer — sem nenhum protocolo e
tudo mais?"
"Bruce, eu também estou na América do Sul."
E então, lentamente, com má vontade, comecei a ver o que
Deus estava tentando me ensinar. Ele não me havia chamado
para ser missionário como o Sr. Rayburn. Ele me havia chamado
para si mesmo, para ser como o seu Filho Jesus Cristo. Ele queria
que eu o seguisse até à América do Sul. Agora.
Eu sabia que os meus pais nunca aceitariam isso. Até
mesmo a idéia de ir, sob os cuidados de uma junta de missões já
em função, os havia perturbado. E ir por mim mesmo, só ... eles
julgariam aquilo impossível.
Então fui a Chicago de trem, a fim de providenciar o meu
passaporte e o visto de entrada, sem dizer-lhes coisa alguma. Eu
tinha dinheiro apenas para a passagem de trem de ida e volta:
nada para as refeições ou para um lugar onde dormir. Durante a
viagem fui orando, pedindo a Deus que tomasse conta de tudo
que eu fosse precisar.
Estava faminto quando cheguei a Chicago. Eu tinha perto
de trinta centavos no bolso. Consegui abrir caminho através
daquela estação enorme, alvoroçada, e cheia de barulho, indo
para a rua. Parei uns instantes a fim de orientar-me. Estava
quente e o vento soprava. Olhei para baixo e pelo canto dos
olhos vi algo verde. Parecia ser dinheiro.
Peguei-o e o desdobrei. Era uma nota de dez dólares!
"Oba! Obrigado, Deus", sussurrei. Olhei em volta, espe-
rando que alguém viesse reclamar. Não havia ninguém ali por
perto. Não havia jeito algum de descobrir quem o havia deixado
cair. Eu podia ficar com aquele dinheiro.
Mais tarde um amigo me deu o nome e o endereço de um
missionário na Venezuela. Escrevi a ele e lhe perguntei se estava
disposto a me esperar no aeroporto. Contei-lhe que era
estudante e estava interessado em missões. Ele me respondeu
entusiasticamente, dizendo que faria todo o possível para estar
lá no aeroporto e que me mostraria Caracas e me ajudaria a
achar um lugar onde eu pudesse ficar. Aquilo ajudou a acalmar
os temores de minha mãe.
Mostrei aos meus pais fotografias de Caracas e contei-lhes
a respeito de seu alto padrão de vida e de sua cultura bem
desenvolvida nos moldes da civilização do Ocidente. Nada,
porém, os convencia. Eles tinham a certeza de que qualquer
outro lugar, além dos Estados Unidos ou Europa, era bárbaro, e
que eu estava desperdiçando a minha vida.
Mas deixaram-me ir. Deram-me dinheiro suficiente para a
minha viagem de avião até Caracas, e mais setenta dólares para
as despesas. Eu esperava que isso fosse suficiente.
Quase perdi o avião. Eu perdera a passagem lá na igreja,
numa grande festa de despedida, e alguém a achara e a entre-
gara na hora certa. Quando a recebi, havia apenas alguns
minutos para uma despedida muito rápida com os meus pais e
os Lange. E então subi a rampa e entrei no avião. A comissária
de bordo mostrou-me o lugar, e eu me sentei e tentei relaxar.
Por uns momentos o pânico me invadiu. O que estava eu
fazendo? Eu tinha dezenove anos. Possuía setenta dólares, não
sabia uma palavra de espanhol e não tinha nenhum plano
concreto. Apenas um impulso interno vindo de Deus, que quase
todo mundo julgava ser uma coisa louca.
Pelo menos, o Sr. Saunders, o missionário a quem eu havia
escrito, estaria no aeroporto à minha espera.
Recostei-me no meu assento e observei enquanto o avião
deixava o solo para trás. Os campos quadriculados e as árvores
gradualmente eram como se fossem pequenas manchas verdes
e logo depois os perdi de vista, assim que o avião foi envolto
pelas nuvens.
5. PRIMEIRO ENCONTRO COM OS ÍNDIOS

No avião um garoto sentou-se ao meu lado. Olhou-me com


certa curiosidade.
— Alô, eu disse.
Ele abriu a boca e dela saiu uma profusão de palavras em
espanhol. Eu ri estendendo as mãos — "No comprendo." Ele
parou de falar e olhou surpreendido.
— "Americano", eu disse, apontando para mim mesmo.
Apanhei o jornal impresso em espanhol que a comissária de
bordo me havia dado, e tentei ler uma sentença em voz alta. O
menino não deu sinal algum de que tivesse compreendido, mas
isso não me fez parar. De repente ele disse, "Bien, bien", e eu
sabia que havia pronunciado alguma coisa corretamente. Mas eu
não sabia o que ela significava.
Precisei rir sozinho. E eu que havia estudado grego, hebreu,
e sânscrito, no entanto nunca havia estudado espanhol. Às
vezes, eu pensava, Deus não é muito prático.
À medida que as horas passavam eu ia ficando cada vez
mais nervoso. Finalmente avistamos a Venezuela.
Encostei-me à janela, para ver o avião aterrissar. Enquanto
baixávamos podia ver as montanhas erguendo-se ao longo da
costa. Depois de circular sobre o oceano, o avião aterrissou num
moderno aeroporto junto à costa.
Quando saí do avião, o calor venezuelano me envolveu
todo. Era alguma coisa indescritível. E pelo tempo que levei para
chegar ao aeroporto, estava suando profusamente.
Enquanto estava na fila, aguardando para passar pela al-
fândega, olhei ao redor ansiosamente, buscando o Sr. Saunders.
A separação de vidro dava-me uma visão completa dos membros
das famílias que aguardavam as pessoas e eu dei um suspiro de
alívio quando vi uma pessoa conhecida. Porém, após duas horas
de espera, descobri que eu estava enganado.
Ninguém estava à espera de um rapaz de dezenove anos,
vindo dos Estados Unidos.
Apanhei a minha bagagem e sentei-me sobre ela, com a
esperança de que o Sr. Saunders fosse surgir a qualquer minuto.
Todas as vezes que eu ouvia passos, olhava para cima, pronto
para saudá-lo, depois eu me afundava novamente quando via
que era um zelador ou um venezuelano, homem de negócios.
Eu não podia acreditar que o Sr. Saunders se tivesse esque-
cido de mim. Alguma coisa o havia feito retardar.
Mas não chegou ninguém. Estava só, exceto o zelador que
estava limpando o chão. Eu não sabia o que fazer. Tinha receio
de que se eu saísse, o Sr. Saunders poderia chegar e nos
desencontraríamos. Sentia-me como um tolo, sentado numa sala
vazia, esperando por ele. Desejei estar em casa.
Finalmente apanhei a minha bagagem e levei-a até ao gui-
chê de passagens, e perguntei se porventura alguém havia
procurado um tal Sr. Olson. O funcionário ouviu atentamente e
depois repetiu, provavelmente, as únicas frases que sabia em
inglês: — Sinto muito. Eu não falo inglês —. E voltou ao seu
trabalho.
Olhei em volta da sala. — Alguém aqui fala inglês? —
perguntei em voz alta. Ninguém se virou.
Nisso um padre entrou, um senhor já mais idoso, com seu
hábito preto. Corri e o agarrei pela manga até que ele fosse
comigo ao guichê das passagens. E ali falei com ele em latim e
ele compreendeu! Que coisa maravilhosa poder ser com-
preendido!
Porém, o padre estava com pressa. Ele traduziu as minhas
perguntas ao funcionário lá no guichê — que nada sabia a
respeito de Bruce Olson ou de Sr. Saunders. Antes que eu
pudesse fazer outras perguntas, o padre já havia ido embora.
Que é que eu devia fazer? Que é que eu poderia fazer,
senão esperar? Ele precisava vir.
Porém ele não veio. À uma hora da manhã, quando eu era a
única pessoa ainda no aeroporto, um funcionário dirigiu-se a
mim, dizendo em inglês que eu precisava retirar-me. Não
haveria mais vôos até à manhã seguinte, eu não podia passar a
noite ali no aeroporto.
Acabei indo para um hotel muito luxuoso nas proximidades
do aeroporto, e a única coisa em que conseguia pensar era
quanto aquilo me iria custar. Os meus setenta dólares se
acabariam numa semana!
No dia seguinte eu me levantei cedo e andei pelo pátio do
hotel, tentando resolver o que deveria fazer. O sol estava
brilhando e já estava quente. Fiquei sem café e sem almoço a
fim de poupar dinheiro. Mas às cinco horas eu estava com muita
fome para poder resistir.
Não havia jeito algum de poder entrar em contato com o Sr.
Saunders a não ser por correspondência, e quando uma carta
pudesse chegar até onde ele estava, eu estaria completamente
sem dinheiro. Eu não podia pedir conselho algum, porque não
sabia espanhol.
E então algo muito estranho aconteceu. No dia seguinte,
um jovem me deteve e perguntou se eu era norte-americano.
Era um rapaz muito alegre e risonho, com olhos pretos muito
vivos. Falando um inglês muito pobre, ele se apresentou como
Júlio, e me disse que era estudante da Universidade de Caracas.
— O que você está fazendo aqui na Venezuela? —
perguntou Júlio.
— Quero trabalhar com os índios — respondi —. Esperava
ser recebido por um dos missionários que trabalham em Orinoco,
mas alguma coisa saiu errado. Ele nunca apareceu.
Júlio fez uma careta. — Você não está hospedado ali, está?
— e apontou para o hotel.
Encolhi os ombros. — Onde poderia estar? Eu não conheço
Caracas.
— Bem, você nunca conhecerá Caracas se ficar aí nesse
lugar. Pois ele é somente para ... para ...
Eu ri. — Para os norte-americanos, é isso que você iria
dizer? Pois bem, eu sou norte-americano.
— Está bem — disse ele, você é norte-americano —. Ele
sorriu. — Isso é mau para você. De qualquer jeito, você não
deveria ficar ali. Por que você não vem comigo para a minha
casa? Nós o receberemos. A minha família terá muito prazer em
recebê-lo.
Meu coração deu um pulo. Num instante estávamos le-
vando as minhas malas num ônibus, que nos conduziu pelas
montanhas acima até Caracas — a qual, Júlio explicou, era a
cidade mais moderna da América do Sul. Mas eu estava abis-
mado ao ver milhares de cabanas de invasores ao lado das
montanhas, feitas de caixas de papelão, ou de madeira.
Quando chegamos à casa de Júlio, ele me apresentou à sua
mãe, uma senhora gorda e simpática. Ela não falava inglês,
porém, pelos seus gestos, deu-me a entender que era bem-
vindo. Um punhado de irmãos e irmãs de Júlio surgiram por trás
dela.
Deram-me um quartinho na parte superior, com uma janela
que estava permanentemente fechada, pois fora pregada, e com
apenas uma lâmpada. Mas eu me sentia feliz por ter um lugar
para ficar, e logo todos eles me colocaram no centro de todas as
atenções. Eu perguntava a Júlio e aos seus irmãos e irmãs os
nomes em espanhol das diferentes coisas, e comecei a aprender
a língua. Também fui conhecendo a comida colombiana e gostei
imensamente dela.
Mas dentro de poucos dias comecei a ficar inquieto. Tinha
dificuldade em me comunicar com os outros, quando Júlio não
estava e não tinha coisa alguma para encher o meu tempo. Eu
desejava ajudar aquela família de um jeito ou outro, mas não
podia imaginar como é que poderia fazê-lo. Muitas vezes eu
andava sem rumo pelas ruas de Caracas, desejando poder
conversar com as pessoas. Sentia certo mal-estar em compar-
tilhar a casa e a comida da família de Júlio: Evidentemente eles
não estavam preparados financeiramente para ter mais um
membro na família. Também eu sentia que estava atrapalhando.
Um dia, quando Júlio voltou para casa, perguntou: — Você
está falando sério quando diz que deseja viver entre os índios? —
Nós já havíamos conversado antes a esse respeito. Para ele, os
índios eram apenas curiosidades de quem se podia adquirir
artefatos para uma decoração rústica.
— Sim, estou — disse eu.
— Bem, então há uma pessoa que você deve conhecer. É
um médico que mora perto do Rio Orinoco. Ele é funcionário do
governo, da Comissão dos índios. Além disso, ele é norte-
americano. A sua esposa é amiga de uma amiga de nossa
família.
Eu o acompanhei pela rua abaixo até chegarmos a um café
muito pequeno. Ali, Júlio me apresentou ao Dr. Christian. Um
homem magro, alto, de uns quarenta anos, que estava sentado
numa cadeira de vime, com suas pernas longas esticadas,
segurando um copo de bebida, e fumando um cigarro.
— Então você está interessado nos índios? — disse ele. —
Para quê?
Hesitei um instante, tentando formular a minha resposta da
melhor maneira. — Simplesmente desejo ter a oportunidade de
vê-los e ver a maneira como vivem. Talvez mais tarde eu possa
ser-lhes útil.
Ele sorriu, curvando-se um pouco para a frente. — "O que o
faz pensar que poderá ajudá-los? Você possui alguma habilidade
que eles estão precisando?"
Não respondi imediatamente; ele ergueu o copo e ficou
mirando-o. — Você nem sequer gostaria dos índios — disse ele
—. Eles são sujos e ignorantes. Não há nada de nobre a respeito
deles, exceto que cuidam de seu próprio povo, mesmo que
tenham de pedir aos outros que o façam.
— Por que, então, o senhor está trabalhando com eles? —
repliquei.
Ele riu. — Essa é uma boa pergunta —. Ele encolheu os
ombros. — É um emprego. Preciso fazer alguma coisa com a
minha medicina. Isso é tão interessante como qualquer outra
coisa — e além de tudo, implica viajar.
Houve certo silêncio entre nós. Júlio nos deixou.
— Com que índios o senhor trabalha? — perguntei.
— Oh, com diversas tribos no rio Orinoco —. E ele começou
a contar a respeito deles; à medida que ia falando, a sua atitude
se modificava. Pequenas rugas sorridentes surgiram ao redor
dos cantos de sua boca. Ele realmente amava os índios e era
fascinante ouvi-lo falar sobre eles.
E então parou de falar e me observou. — Pois bem — disse
ele —, se você realmente é sincero em seu desejo, poderá ir
comigo. Eu parto na próxima semana e estarei fora um mês e
meio.
Exteriormente apresentei certa calma, mas o meu coração
começou a dar pulos. Apertamo-nos as mãos e conversamos
sobre os arranjos de viagem. E então saí. Assim que houve
distância de um quarteirão entre mim e o café, soltei um grande
grito, e desandei a correr pela rua abaixo, num zigue-zague,
tentando não esbarrar nas pessoas que estavam nas calçadas.
Uma semana mais tarde estávamos em Puerto Ayacucho,
carregando gêneros de primeira necessidade, provisões e
drogas, num caminhão que levaria tudo isso e a nós também,
para as canoas no Alto Orinoco — numa viagem de sessenta
quilômetros, a única estrada para fora da cidade. As pessoas
estavam-se amontoando no caminhão, gritando de um lado para
outro. Naquela manhã, um DC-3 enorme, madeireiro, nos levara
àquela cidadezinha.
Quando terminamos de atar a carga, as pessoas se
dependuravam por todos os lados do caminhão. Subimos no alto
do caminhão, juntamente com eles. Uma grande botija de vinho
passou por nós; eu a passei para o homem que estava próximo a
mim. Todo mundo estava conversando. O caminhão deu partida
e moveu-se lenta e pesadamente em direção a uma faixa de
estrada de terra bem estreita. Adentramos pelas árvores e
imediatamente a cidadezinha estava longe de nosso alcance. À
nossa frente estava a savana, entremeada com agrupamentos
de selvas.
Quando chegamos a Samariapo, estávamos todos doloridos
e cansados. O contínuo sacolejar do caminhão nos havia deixado
exaustos. Ali terminava a estrada. De Samariapo teríamos que
viajar de barco pelo Alto Orinoco.
Descarregamos a nossa carga, e a levamos junto ao rio
Orinoco, amarelo e barrento, onde o Dr. Christian tinha duas
enormes canoas atadas uma à outra. Nós as enchemos com as
nossas mercadorias para os próximos dois meses, e depois então
com dois guias para podermos navegar dia e noite, começamos
a subir o rio.
Levou mais de uma semana para atingirmos o primeiro
posto de colonização dos índios. Quilômetros e quilômetros do
rio ficaram para trás de nós. Logo perdi a conta das inúmeras
curvas — e das pontas de madeira seca, que surgiam por toda
parte por cima das águas.
A vegetação rica, em ambas as margens, era imutável. De
vez em quando atingíamos uma pequena clareira onde um
colonizador tinha a sua choupana. Quase sempre ele — ou
alguém de sua família — levantava os olhos de seu trabalho ou
corria até à margem do rio para nos observar. Mas na maior
parte da viagem, não víamos sinal algum de homens que já
tivessem antes subido o rio.
— A maior parte dos colonizadores está mais acima no
Orinoco, nos pequenos canais, onde há menos probabilidade de
enchentes — explicou o Dr. Christian. Eu estava excitado, e fazia
perguntas intermináveis a respeito dos índios e do trabalho
missionário realizado ali. Esperava encontrar alguns dos
missionários, inclusive o Sr. Saunders, pois essa era a região
onde ele trabalhava. Tinha a certeza de que ele seria bastante
amável e que se desculparia por ter-se esquecido de me esperar
no aeroporto.
De repente, o Dr. Christian me examinou cuidadosamente.
— Você nunca se adaptaria a esses missionários — disse ele —.
Eles são uns atrapalhados.
— O que o senhor quer dizer com isso? Ele sacudiu a mão.
— Você vai ver.
Finalmente atingimos a primeira vila dos índios lá no alto
Orinoco. Das margens do rio podíamos ver um pequeno aglo-
merado de cabanas redondas. Não havia nenhum índio à vista.
Senti-me um tanto apreensivo, mas o Dr. Christian, automa-
ticamente amarrou as canoas a uma árvore e nós saltamos.
Ao redor de nós havia o cheiro intolerável de excremento
humano, e enquanto caminhávamos para a vila, podíamos ver
moscas zunindo em volta de montes de sujeiras, simplesmente a
poucos passos das cabanas.
O Dr. Christian parecia não estar perturbado com tudo isso.
Alguns dos nativos nos cumprimentaram, e o médico conversou
com eles, pois aprendera um pouco de seu vocabulário numa
visita anterior. A maior parte dos índios, todavia, amedrontara-se
quando ouvira o barulho das canoas e se escondera nas selvas.
De um em um, foram surgindo de seus esconderijos, e o Dr.
Christian examinou aqueles que estavam enfermos, aplicando-
lhes injeções ou dando-lhes comprimidos, e fazendo sugestões a
respeito de saneamento. Seus olhos brilhavam quando ele lhes
falava na sua língua, e o Dr. Christian evidentemente sentia
prazer em estar em sua companhia. Ele tratava cada um
pacientemente, tentando explicar cada coisa tão bem quanto
possível.
Ficamos ali somente aquele dia, e depois continuamos su-
bindo o Orinoco até ao ponto onde o rio Mavaca deságua no
Orinoco.
— Você precisa viver com os índios antes de poder com-
preender como é a vida deles — disse o Dr. Christian.
Enquanto pensava sobre isso, senti um arrepio por todo o
corpo, mas resolvi que poderia ser deixado ali em Mavaca,
durante três semanas, enquanto o Dr. Christian continuava rio
acima e navegava em outros tributários. Ele podia apanhar-me
novamente quando voltasse. Eu estava sumamente interessado
em ficar ali porque o Sr. Saunders trabalhava naquelas
proximidades. No entanto, o meu encontro com ele foi um
grande desapontamento.
— O que o faz pensar que pode vir à América do Sul sem
estar ligado a uma junta de missões? — perguntou ele em
seguida, após a nossa apresentação —. Você simplesmente
deseja vir e tirar vantagens de nós. Você pensa que temos a
obrigação de cuidar de você. Mas está completamente errado.
Você vai depender de si mesmo, Buster —. Ele virou as costas e
se foi.
Fiquei no acampamento missionário apenas uns instantes.
Os diversos missionários estavam totalmente prevenidos contra
mim. No entanto afirmaram que estavam tendo "um certo êxito
em alcançar os índios com o Evangelho de Jesus Cristo", mas
agora havia "uma grande perseguição aos índios cristãos, por
parte dos outros índios". Eles haviam sido excluídos do resto da
tribo.
Desde que a missão não me oferecera nenhuma espécie de
acomodação, o Dr. Christian me deixou na parte norte do rio
Mavaca com um grupo de índios, que, segundo os missionários,
não eram cristãos. Eles falavam um espanhol irregular. Naquela
ocasião, eu já havia aprendido a falar um pouco e assim
mantínhamos uma comunicação um tanto truncada — mas
muito melhor do que o meu primeiro encontro no aeroporto
internacional de Caracas.
Eu não podia crer que esses fossem os índios que os mis-
sionários haviam descrito. Esses índios eram perseguidores de
alguém? Impossível. Eles eram tão inocentes. Permitiam que eu
os acompanhasse quando iam caçar, e quando eu não podia
acompanhar a sua trajetória, sempre deixavam alguém para trás
comigo. Quando tropeçava nos ramos das trepadeiras e nas
raízes, eles me ajudavam. Eles compartilhavam tudo o que
possuíam. Eu comia a sua comida, dormia nas suas redes. Como
é que esses índios podiam ser "perseguidores"?
Quando chegou o domingo sugeri a um deles que todos nós
fôssemos à igreja, a qual não ficava muito distante do acam-
pamento, e ouvíssemos as histórias a respeito de Deus. Ele olhou
para mim, franziu o cenho. — Não, nós não fazemos isso.
— Por que não?
— Aqueles cristãos são esquisitos.
Ele não disse mais nada, porém me levou ao chefe da
aldeia, um homem grande, forte, que riu quando lhe disseram o
que eu desejava saber.
— Ouça. — disse ele —, aqueles cristãos não se preocupam
mais conosco, por que então nós devemos nos preocupar com
eles?
— Como é que você sabe que eles não se preocupam com
vocês? Eles são da sua tribo.
— Ora, eles rejeitaram tudo a nosso respeito — disse ele —.
Eles não cantam mais as nossas canções. Cantam aqueles
cânticos estranhos, lamentosos, fora do tom e que não fazem
sentido algum. Aquela construção, à qual eles chamam de igreja!
Por acaso você viu a igreja deles? Ela é quadrada! Como é que
Deus pode estar numa igreja quadrada? A redonda é que é a
perfeição —. Ele apontou para a parede da palhoça, na qual
estávamos sentados. — Ela não tem fim, como Deus. Mas os
cristãos, o Deus deles tem pontas por todos os lados, que nos
espetam. E a maneira como aqueles cristãos se vestem! Roupas
tão gozadas.
Lembrei-me dos índios cristãos, que eu vira no acampa-
mento missionário. Eles foram ensinados a usar roupas com
botões, a usar sapatos, e a cantar hinos de outra civilização.
Foi isso o que Jesus ensinou? perguntei a mim mesmo. É
isso o que o Cristianismo significa? Que é que as boas-novas de
Jesus Cristo têm a ver com a cultura norte-americana? No tempo
da Bíblia não havia cultura norte-americana. Porventura os
missionários estavam cometendo um erro na maneira como
estavam pregando? Naturalmente, isso os fazia muito felizes ao
verem que os índios se vestiam como norte-americanos, e
cantavam "Rocha Eterna". Mas seria esse o único jeito pelo qual
Jesus poderia ser adorado? E haveria certa dose de prazer em ter
os índios cristãos perseguidos pelo resto da sua tribo? Comecei a
pensar nisso.
Resolvi tentar contar aos índios o que o Evangelho real-
mente era, mas foi dificílimo. O meu espanhol não somente era
muito pobre, mas eu precisava vencer as suas suspeitas e a falta
de confiança nos "missionários estrangeiros". Os índios
delicadamente ouviam as minhas explicações, e depois apon-
tavam na direção geral dos índios cristãos e sacudiam a cabeça.
— Nós não queremos nos tornar como eles — diziam com
toda ênfase —. O nosso jeito é que está certo.

6. AUXÍLIO DE ÚLTIMA HORA

Após três semanas, o Dr. Christian retornou e voltamos


para Puerto Ayachucho onde tínhamos reservado um apar-
tamento no hotel. Ele me convidou a ficar ali, enquanto foi a
Caracas.
Mais uma vez eu estava só. Não tinha mais dinheiro. O
apartamento, repleto de vasos e de estatuetas de louça que a
Sra. Christian gostava de colecionar, parecia pequeno. Também
eu me sentia deslocado tendo que ficar na residência particular
de alguém, e desejava estar de volta às selvas do Orinoco.
No entanto, Puerto Ayachucho era uma cidade fronteiriça,
agradável, e assim todas as manhãs eu saía para andar. As ruas,
sombreadas pelas amendoeiras plantadas nos dois lados, nunca
estavam repletas e assim eu estava livre para poder orar e
pensar.
A junta de missões com a qual o Sr. Saunders estava afi-
liado possuía uma enorme casa na cidade. Um dia eu me
encontrei com Bob, filho de um dos missionários. Ele tinha
dezoito anos, cabelos ruivos, com um sorriso aberto e infantil.
Por ser apenas um ano mais jovem do que eu, logo estávamos
nos divertindo. Era um prazer poder conversar em inglês depois
do esforço imenso em falar em espanhol durante vários meses.
Comparávamos as nossas histórias e trocávamos as nossas
piadas. Mais tarde, naquele dia, outro filho de missionários,
chamado Tom, juntou-se a nós. Ele era um pouco mais velho,
mas possuía um bom senso de humor, e nos fazia rir o tempo
todo.
Quando começou a entardecer, Tom disse: — Bob e eu
precisamos voltar por estar na hora do jantar —. Ele podia ver
que eu sentia vê-los ir embora. — Olhe — acrescentou — eu
gostaria que você pudesse ir jantar conosco, mas o meu pai,
bem... ele não deixaria.
— Oh — eu disse. Era a mesma coisa que os outros mis-
sionários me haviam dito. Se eles me oferecessem hospedagem,
pensariam que estavam assumindo a responsabilidade de tomar
conta de mim.
Voltei para o apartamento vazio e escuro, sentei-me no sofá
e pus as mãos atrás da cabeça. Ao fazer isso, derrubei um vaso
de cerâmica da prateleira. Ele se espatifou com a queda.
Tremendo, varri os cacos e os joguei fora.
Como eu ansiava por poder sair daquele apartamento, e
estar com amigos. Mas para onde eu poderia ir?
Deitei-me. "Oh, Senhor", orei. "Eu não tenho coisa alguma.
Não tenho dinheiro... não tenho amigos. Os cristãos aqui não me
querem aceitar. Não sou missionário ligado a uma junta de
missões, portanto não tenho nenhum apoio nem de lá nem
daqui. Por favor, ajuda-me. Por favor, conserva o meu juízo."
No dia seguinte na rua não havia nenhum sinal de Tom e
tampouco de Bob. Resolvi ir vê-los na casa da missão. Quando
bati à porta, ela se abriu somente um pouquinho.
— O que você deseja? — perguntou alguém.
— Eu gostaria de ver Tom, se for possível — respondi. Tom
veio à porta, mas bastante constrangido. — Eu sinto muito. Mas
não tenho permissão de ver você mais — disse ele.
— Por que não?
Meu pai diz que você foi expulso da comunidade. Isso quer
dizer que nenhum dos missionários tem permissão de saudá-lo.
— Estou fora da comunidade? Por quê? — Eu sabia que a
minha voz estava se alterando, mas eu não podia parar.
Tom sacudiu os ombros. — Você não lhes obedece. Eles lhe
disseram para voltar para os Estados Unidos, ligar-se a uma
missão, e então voltar aqui e trabalhar.
— De que maneira eu poderia voltar? Por acaso eles paga-
rão a minha passagem? E desde quando eu devo obedecer às
ordens deles? — Minha respiração estava ofegante.
Tom se encolheu, hesitou. — Acho que não devo conversar
mais com você a respeito disso — respondeu. "Até-logo". E
fechou a porta.
Caminhei até à praça, sentindo-me mais solitário do que
nunca. Eu queria correr. Mas, para onde?
Sentei-me num banco lá na praça, desejando ficar para
sempre ali ao sol.
Depois de uma hora ou mais, um padre se aproximou e
iniciou uma conversa. Ele disse que era italiano, e estava
ensinando inglês aos alunos do ginásio, mas que sonhava em ir
trabalhar com os índios. Ele nunca tivera a oportunidade de ir rio
acima para ver as colônias. Quando lhe contei a respeito de
minha experiência com o Dr. Christian, ele ficou fascinado.
Apesar de meu preconceito contra os católicos — especialmente
contra o clero — eu logo estava entabulando uma conversa
agradável, e me esquecera de meus problemas. Quando ele se
levantou e foi dar a sua aula, continuei sentado ao sol, sentindo-
me um pouco mais animado.
Logo mais um grupo de meninos se aproximou, andando
pelo passeio, sorrindo meio constrangidos. Cercaram-me e cada
um por sua vez apertou-me a mão e disse "Hello", mas com uma
acentuação tão exagerada que soava como "Heyloe". Depois
dessa cerimônia, um deles deu um passo à frente, olhou para o
céu e recitou: — Nós desejamos convidar você para ir à nossa
classe para falar de inglês.
Tentando não rir (por causa do inglês que falavam), eu lhe
agradeci solenemente e depois os acompanhei até à escola,
onde, sem muita surpresa, o padre era o professor. Passei ali,
pelo menos uma hora, falando a respeito dos Estados Unidos.
Depois da aula os meninos ficaram em volta de mim. Um
deles foi chamar o irmão mais velho, um estudante da univer-
sidade, que estava em casa, por causa das férias de Natal. Fui
apresentado a ele. Era baixo, musculoso, com sobrancelhas
escuras e bastas, de pele bronzeada. Tinha um olhar feroz, mas
as suas maneiras eram gentis. Seu nome era Rafael. Ele me
convidou a ficar com sua família, e aceitei. Descobri, mais tarde,
que era inadmissível, entre as famílias latinas responsáveis,
deixar um jovem como eu ficar só. Descobri, também, que
acreditavam que se fizessem o bem aos outros, fariam o mesmo
por seus filhos, quando estes estivessem fora do lar. Mas
naquela ocasião eu não estava me preocupando com as
diferentes razões. Eu simplesmente estava feliz porque
finalmente estava sendo aceito.
A casa de Rafael, no distrito mais pobre da cidade, consistia
em uma só sala. Era de chão batido, paredes escuras e telhado
de sapé. As baratas circulavam por toda parte. Eu dormia na
rede, assim como todos os outros membros da família. Mas
pouco me importava.
Na manhã seguinte, Rafael me acordou quando ainda es-
tava escuro. — Apresse-se — disse ele — é o primeiro dia da
celebração do Natal —. Juntamo-nos a uma multidão de pessoas
nas ruas. Era divertido. Corremos para cima e para baixo,
soltando fogos e bombas vermelhas, durante a manhã, ainda
fria, acotovelando-nos contra as outras pessoas também alegres,
conversando e gritando. Parecia o dia Quatro de Julho, lá em
Minesota.
Às cinco horas, todas as pessoas começaram a dirigir-se à
igreja.
— Venha, vamos à missa — disse Rafael.
Eu sacudi a cabeça negativamente. — Não posso. Sou pro-
testante.
Ele me puxou pelo braço. — Não tem importância. Venha
conosco.
Olhei para ele. Ele agora era o meu amigo. Como é que eu
poderia recusar-me ir à missa com meu amigo? Esse era um
acontecimento muito importante para ele e sua família. Então os
acompanhei.
Aqueles foram dias de travessuras. Todas as manhãs nos
levantávamos cedo, soltávamos fogos, e depois íamos à missa, e
realmente eu me divertia imensamente.
Porém, quando os missionários souberam que eu estava
assistindo a missa, eles me isolaram completamente. Desde que
eles haviam dito que eu estava fora da comunidade, não podia
ver como isso faria muita diferença, apesar de que as suas
palavras de condenação me feriram.
Não havia nada que os satisfizesse, concluí, exceto a minha
partida — e eu não estou pronto a fazer isso — especialmente
agora.
Finalmente, pude entender um pouco do que Deus estava
tentando ensinar-me. Que importava que os missionários me
houvessem rejeitado! As pessoas com as quais eu mais contava
não agiam da maneira que eu julgava que fossem agir; contudo,
Jesus não me havia rejeitado. Ele me havia encaminhado aos
venezuelanos. Eu estava seguindo o seu plano e ele iria usar
cada experiência para o meu bem.
Após o Natal, Rafael precisou fazer uma viagem e depois
iria para a universidade em Caracas. Eu não desejava ficar em
sua casa enquanto ele estivesse ausente e assim fiz planos para
sair quando ele partisse.
— Mas, para onde é que você irá? — perguntou.
Eu disse a ele que iria para Caracas também; o Dr. Christian
me havia explicado a respeito de um programa de permuta
norte-americano-venezuelano, e talvez eu pudesse me envolver
nele.
— Mas onde é que você irá ficar? — perguntou Rafael. —
Você não pode simplesmente ir a Caracas, e andar circulando.
Há tumultos por todos os lados, e há uma demonstração anti-
norte-americana muito forte.
Ele me deu o endereço de uma pensão particular, na qual
ele ficava, e uma carta de apresentação para os proprietários.
— Esse é o melhor lugar em toda Caracas — disse ele. — É
barato, limpo e fica na parte antiga de Caracas. Todos nós
ficamos lá.
O que eu não disse a Rafael é que não tinha meio algum de
chegar a Caracas. No entanto eu sabia que, de qualquer jeito,
isso seria resolvido. Então reservei meu lugar no avião.
No dia em que eu devia partir, fiquei ao lado de minhas
malas na casa de Rafael, imaginando o que eu deveria fazer. Eu
já dissera adeus a todos os meus novos amigos. Mas Caracas
estava muito longe para um jovem norte-americano sem
dinheiro.
Então, o irmãozinho de Rafael chegou com uma carta para
mim, a primeira carta que eu recebia desde que deixara Caracas
com o Dr. Christian.
Era dos Lange, apenas uma notinha. Porém com ela havia
um cheque de cem dólares — o auxílio prometido pela igreja. Ele
chegara exatamente quando eu necessitava, nem um dia antes,
e nem um dia depois.
Paguei a passagem lá no aeroporto e voei para Caracas,
sem ter noção de que eu quase seria morto no meu primeiro dia
ali.

7. COMUNISTAS

No dia antes ao de minha chegada a Caracas, havia sido


decretado estado de emergência por causa de demonstrações
contra o governo. Tive dificuldade em conseguir um táxi, e notei
que havia muitas tropas patrulhando as ruas.
A pensão para onde os meus amigos me enviaram ficava
num velho edifício, perto da Praça Simon Bolívar. As paredes
tinham a espessura de vários centímetros, para fins de isola-
mento, muito embora a temperatura apenas atingisse o máximo
de vinte e seis graus. Deram-me um quarto pequeno com uma
janela para a rua.
A casa estava repleta, especialmente de estudantes, e não
demorou muito para que eu me sentisse em casa. Os corredores
estreitos, iluminados por telhas de vidro, estavam pintados de
cores brilhantes. A "sala de jantar" ficava numa parte ampla,
num desses corredores onde havia sido colocada uma longa fila
de mesas. Aquela noite, na hora do jantar, quando as mesas
estavam repletas de alimento, e as velhas cadeiras de madeira,
de costas retas, cheias de estudantes que conversavam
animadamente, fez-me pensar no carnaval.
No dia seguinte havia barulho nas ruas — e a maior parte,
justamente quase às portas da pensão. Enquanto eu me vestia,
ouvi pipocar muito ao longe. Nunca me passara pela cabeça que
fossem tiros de arma de fogo. Assim que pus os pés na rua, no
entanto, ouvi o barulho que as paredes espessas haviam
abafado: o cântico compassado da multidão e o tiroteio. Fiquei
gelado junto à porta. E então os soldados surgiram na esquina,
empurrando algumas pessoas na frente. Eles pararam
abruptamente. Ouvi o barulho de suas metralhadoras, e vi a
poeira erguendo-se quando as balas atingiram o pó que se
acumulava nas ruas pavimentadas.
Enquanto aquilo se passava diante de meus olhos, alguma
coisa dentro de mim me dizia: "Mexa-se, pelo amor de Deus,
mexa-se." Mas eu fiquei ali plantado, como se minhas pernas
fossem raízes. Um dos jovens que estavam correndo, de repente
caiu — como um balão desamarrado — e caiu de bruços na rua.
As metralhadoras voltaram a atirar e eu vi mais duas pessoas
caírem, e o sangue espirrando de seus corpos.
A maior parte da multidão já havia desaparecido, mas
algumas pessoas ainda hesitavam pelas esquinas. Um deles, um
jovem de rosto escuro, com um lenço vermelho atado ao redor
do pescoço, voltou-se, apanhou uma pedra e correu em direção
às tropas. Ele fazia pontaria para atirá-la, mas enquanto o fazia,
as metralhadoras que até então estiveram silenciosas, voltaram
a funcionar, e o rapaz pareceu explodir: um braço voou sob uma
chuva vermelha e foi rolar na sujeira.
Então eu me mexi, sem pensar, como se minha mente
dissesse ao corpo: "mexa-se", um minuto depois que meu corpo
já estava em movimento. Fechei a porta dupla, trancando-a a
chave e pondo a tranca, e depois corri para o meu quarto. Fechei
a janela, para abafar qualquer som. Atirei-me na cama. Eu sentia
frio. Fiquei ali deitado o dia, todo, ouvindo o ruído das armas de
fogo.
No dia seguinte eu estava com febre e fiquei de cama.
Quando os meus amigos voltaram à escola, eu estava verda-
deiramente doente, com febre de quase quarenta graus.
Trouxeram um médico, que receitou alguns remédios; não
perguntei de onde vieram, pois não podia pagar por eles, de jeito
algum. Soube, depois, que um jovem chamado Lúcio Mondragon,
um estudante, é que havia pago pelos remédios. Todos os dias
ele passava pelo meu quarto para me ver, contava uma ou duas
piadas e depois saía.
Os remédios ajudaram, e eu já podia andar um pouco,
embora ainda levasse algum tempo para que realmente eu
ficasse bom.
Enquanto me convalescia, travei amizade com um vaga-
bundo da cidade, e eu me encontrava com ele todos os dias
durante uma hora, para conversarmos em espanhol. A noite, eu
estudava espanhol num livro antigo.
Um outro estudante partilhava comigo, do mesmo quarto
da pensão, mas ele mudou-se após o segundo mês de minha
estada ali. Com isso eu precisava pagar o aluguel sozinho, sendo
agora duas vezes mais caro.
Lúcio, provavelmente, suspeitando que eu não possuía
muito, se porventura tivesse algum dinheiro, convidou-me a
mudar para o seu quarto, que ficava no outro pavimento. E ele
até me ajudou. Era um sujeito elegante, magro, com cabelos
pretos, que caíam sobre a testa, e tinha movimentos rápidos e
nervosos. Ele abriu a porta de seu quarto, e a minha primeira
impressão foi de que tudo ali era vermelho. Então descobri que o
vermelho estava no formato de foices e martelos — existentes
numa parede toda forrada deles.
Lúcio entrou e colocou no chão uma caixa com as minhas
coisas.
— Essa é a sua cama — disse ele, apontando. — Tudo o
mais está à sua disposição. Você tem toda liberdade para usar o
rádio —. Foi até onde ele estava e o ligou. Estava sintonizado na
Rádio Havana, de Cuba. Lúcio olhou-me com uma leve sombra
de sorriso no rosto. — Será melhor não tentar mudar para outras
estações. Ele é muito temperamental. Será difícil depois
conseguir a estação certa.
Não demorou muito para eu descobrir que Lúcio era um dos
líderes dos estudantes do partido socialista no campus da
universidade. Havia um espírito anti-norte-americano muito forte
ali, e Lúcio constantemente tentava me provocar, às vezes numa
forma de brincadeira, e outras num rancor um tanto encoberto.
Aquele vagabundo com quem eu conversava regularmente
era um tipo original, e ele não me estava ensinando o melhor
espanhol. Os meus amigos estudantes riam-se de algumas das
coisas que eu dizia. — O seu estilo não é muito bom, Olson. Por
que você não vai à Universidade, onde realmente poderá
aprender? — perguntou-me um deles.
Se bem que poder freqüentar a Universidade fosse além
dos meus sonhos, resolvi experimentar. Não havia muitos outros
estudantes estrangeiros ali, de modo que um norte-americano
alto, loiro como eu, chamava a atenção imediatamente. Dentro
de pouco tempo eu era conhecido pela maior parte dos
estudantes.
No entanto, era Lúcio, justamente com os seus amigos
extremistas, que eram os mais atenciosos comigo. Eu podia
perceber que as suas idéias eram de grande importância para o
grupo e que eles realmente desejavam auxiliar os pobres de seu
país; eu compartilhava de sua compaixão — mas muitas vezes
tínhamos discussões bem fortes.
Por exemplo, Lúcio sempre me responsabilizava por qual-
quer coisa que o governo norte-americano tivesse feito.
— Você, porco capitalista — disse ele um dia, enquanto nós
sentávamos num café com um grupo de outros estudantes. —
Nós esperamos desenvolver o nosso país, tornando-o tão bom
para os pobres como para os ricos, e no entanto, o que é que
vocês norte-americanos, fazem? Vocês vêm aqui e nos exploram,
levando todos os nossos recursos e nos deixando sem coisa
alguma. Vocês dominam o nosso governo, pagando e
despedindo as pessoas.
— Espere um instante — eu disse. — Eu não faço nada
disso.
— Oh, então você não apóia o seu governo? Você é um
revolucionário?
— Não, eu não disse isso.
— Então, por que é que você está aqui se não for por
motivos capitalistas? Você é um espião, tentando descobrir como
é que nós trabalhamos para depois usá-lo contra nós, assim
como o seu governo o usou no Vietnam e em Cuba. Não é isso
mesmo?
— Não — eu disse. — Eu estou aqui porque desejo auxiliar
os índios, se eu puder.
Os estudantes que se haviam reunido ao grupo para ouvir,
começaram a rir. Para eles, os índios não tinham valor para
serem arrolados na sua rebelião política.
Olhei para eles com um certo desdém. — E quem são
vocês, seus comunistas elegantes, que podem estabelecer as
igualdades derrubando as estruturas já existentes e depois colo-
cando outras que não dão atenção aos índios, os verdadeiros
venezuelanos, e que realmente necessitam de auxílio? Eles não
são o seu povo? Ou vocês são tão seletivos quanto os ricos que
estão governando agora — para usar as suas próprias palavras?
Lúcio sempre tomava posições impossíveis, e me atacava
com elas. Isso tornava a vida muito tensa; eu nunca sabia se ele
estava brincando ou se estava falando sério. Éramos amigos, no
entanto havia ódio em sua vida, e uma parte dele estava sempre
voltada para mim.
Um dia fomos nadar em Caria dei Mar, uma das lindas
praias nas costas da Venezuela. Havíamos discutido e ele me
chamara de vários nomes depreciativos. Quando chegamos às
águas mais profundas, brincamos e nos empurramos e nos
derrubamos, simplesmente por brincadeira. Mas havia certa
crueldade na nossa maneira de brincar que ambos percebíamos.
De repente, Lúcio disse: — Eu vou matar você, seu cachorro
capitalista —. Ele me agarrou e me segurou por baixo da água. A
princípio não lutei. Eu tinha a certeza de que logo ele me
largaria. Mas, não. Ele me segurava com mão forte. Logo o meu
coração começou a bater com muita força, e eu sentia uma
necessidade urgente de respirar. E mesmo assim, ele continuava
me segurando debaixo d'água. Eu ia morrer. Eu o sabia. Lutei
contra ele com forças que eu não sabia possuir, e finalmente
comecei a sentir certa frouxidão na maneira como ele me
segurava. Dando um arranco com todas as minhas forças,
consegui escapar. Lúcio havia mergulhado, longe do alcance de
meus olhos. Eu me sentia muitíssimo fraco e terrivelmente triste.
Nadei até à praia e deitei-me na areia.
Lúcio ficou mais vinte minutos ali na água, e depois veio
para o meu lado. Não olhei para cima.
— Venha — disse ele. — Saiamos daqui —. Caminhamos
para casa em silêncio.
O meu senhorio nunca havia feito menção do aluguel e de
quanto eu lhe devia, e tampouco os meus amigos nunca pediram
que eu lhes pagasse a minha parte da conta, quando íamos
tomar café. Mas, era uma situação muito estranha ter de
depender dos outros para tudo.
Perguntei a Deus a respeito disso, mas não recebi resposta
alguma. Não havia recebido mais dinheiro dos Estados Unidos, e
eu não tinha razão alguma de crer que ele começaria a vir,
depois de todo esse tempo. Como turista na Venezuela, era
impossível trabalhar, recebendo dinheiro.
Uma noite, numa festa, eu me encontrei com Miguel Nieto,
que trabalhava em Caracas, com o ministro da saúde.
— O que está você fazendo na Venezuela? — perguntou, e
depois me explicou que estava procurando alguém para lecionar
inglês a alguns estudantes que estavam se preparando para ir
estudar na Escola de Medicina Tropical, em Harvard. — Você
estaria disposto a fazer isso? — perguntou.
Eu estaria disposto? — Mas senhor Nieto, já me informaram
que é ilegal eu trabalhar na Venezuela — eu disse.
Ele sorriu. — Isso está muito bem. Nós lhe pagaremos
adiantado. Se surgir alguma coisa, não há nenhum contrato
entre nós. E nós simplesmente tomaremos isso como um
negócio concluído —. Ele colocou uma nota em minhas mãos. —
Aí está o seu salário do primeiro mês. Venha falar comigo
amanhã, no Ministério da Saúde.
Fui para casa tão contente que poderia ter dançado pela
rua. Eu tinha um trabalho. Logo eu teria dinheiro suficiente para
poder pagar as minhas contas.
Em 1961, o Presidente Kennedy e os presidentes da Amé-
rica do Sul se encontram em Punta Del Este, no Uruguai, para
definir os planos de ação entre os Estados Unidos e a América
Latina. Foi um período de grande tensão política na
Universidade. Cartazes enormes, de cores brilhantes, foram
colocados na maior parte dos edifícios da Universidade e se
opunham à cooperação com os Estados Unidos. Um dos cartazes
demonstrava Tio Sam como um Tocador de Gaita Empastelado,
atirando dólares aos presidentes da América do Sul, que o
seguiam avidamente.
As eleições na Universidade estavam-se aproximando, e
Lúcio era um dos candidatos na chapa dos socialistas radicais.»
Ele trabalhava muitas horas, tentando formar uma coligação de
diferentes socialistas. Muitas vezes, ele chegava em casa de
madrugada e depois saía novamente antes do nascer do sol.
Por esta ocasião eu nutria certa simpatia pelos ideais dos
estudantes comunistas. Havia visto os turistas, grosseiros,
andando de ônibus e desfilando pelas ruas. Vira a maneira
desleal do comportamento do pessoal da embaixada norte-
americana, e não sentia orgulho algum deles. Os estudantes
comunistas tinham, pelo menos, uma preocupação muito séria
pelo seu país, que os ex-patriotas nunca pareciam demonstrar.
A coligação de Lúcio venceu as eleições na Universidade.
— Agora você verá alguma coisa, Olson, você realmente
verá o que vai acontecer — disse ele.
Ele logo descobriu que o pior inimigo de um reformador
político é vencer uma eleição. Dentro de poucos meses a
coligação começou a se dividir. Eram poucos os estudantes
dedicados ao partido, quanto Lúcio; havia discussões, lutas pelo
poder, ameaças constantes de retirada da coligação. Finalmente
Lúcio foi forçado admitir que fracassara. Uma noite ele se atirou
na cama, praguejando.
— Olson, qual é a vantagem de tudo isso? Não obstante as
minhas idéias serem boas, há sempre alguém que as estraga.
Essa fora a primeira vez que ele pedira a minha opinião a
respeito de alguma coisa. Eu dificilmente sabia como lhe dar
uma resposta.
— Sei como isso é, Lúcio — disse lentamente. — Todo
mundo deseja que você se adapte ao que eles querem que você
faça.
Ele ergueu a cabeça do travesseiro e olhou para mim.__
Como é que você sabe como isso é? perguntou. — Você já
foi um organizador político?
— Não — eu disse. — Porém, quando comecei a seguir a
Jesus Cristo a mesma espécie de coisa aconteceu. Meu pai,
particularmente — ele é um banqueiro rico, você já sabe —
queria que eu fosse em busca de sucesso, um bom emprego, e
todas as outras coisas que ele julgava serem importantes. E a
minha igreja desejava que eu explicasse tudo na maneira
tradicional.
— Mas, Lúcio — eu disse — foi Jesus que me deu a capaci-
dade de ver muito além de tudo isso. Essa é a razão por que me
encontro aqui, planejando poder ajudar os índios. Você acha que
o meu pai e os meus amigos viam muito sentido nisso? Eles
achavam que eu estava ficando louco! Tentaram fazer com que
eu desistisse. Mas Jesus me deu uma visão completamente
diferente. E ele lhe pode dar uma também. Ele lhe pode dar a
perspectiva correta da vida.
— Não, não, não — disse ele. — Nós já experimentamos o
Cristianismo aqui. Não funciona. A igreja faz parte do
situacionismo. Eles possuem mais terra, mais negócios do que
qualquer outra pessoa na Venezuela — ou em toda a América do
Sul.
Conversamos até tarde da noite. Ele conhecia todos os
argumentos. Mas também sabia que deveria haver algo mais na
vida — alguma coisa que não podia ser tocada, alguma coisa que
poderia trazer a paz. Ele percebia isso em minha vida — aquela
paz que não era simplesmente uma apatia, aquela paz que
proporcionava um propósito divino; e até mesmo um poder
inexplicável.
Três dias mais tarde ele entrou correndo no quarto. —
Olson — ele disse. — Realmente isso funciona? Você está me
dizendo a verdade?
— Sobre o quê?
— A respeito de Jesus. Você está mentindo para mim, está?
— Não, Lúcio. Não estou mentindo para você. Ele se sentou
em silêncio e cruzou as suas mãos.
— Está bem — disse, olhando para o chão. — Está muito
bem, eu o farei.
— Fazer o quê, Lúcio?
Ele olhou para mim, com uma determinação no rosto. — Eu
aceitarei a Jesus. Quero que ele dirija a minha vida.

8. QUASE ASSASSINADO

A solidão me atacava. Quase sempre eu andava pelas ruas


durante horas, simplesmente olhando para o rosto das pessoas,
e tentando escutar as suas conversas.
Você está bancando o tolo, eu disse a mim mesmo. Você ê
simplesmente um estúpido e saudoso minesoteano. Mas eu não
desejava voltar para os Estados Unidos; a América do Sul me
havia cativado.
O que eu precisava era realmente de um amigo verdadeiro
— alguém que me conhecesse completamente; um irmão. Eu
não podia traduzir esse anseio em palavras, mas o desejo estava
ali. E de qualquer jeito, eu sabia que Lúcio nunca poderia ser isso
para mim.
Eu também estava preocupado com a minha matrícula na
Universidade. Eu estava na América do Sul para ajudar os índios.
Havia dito isso para todos. Mas a Universidade era um lugar
muito esquisito para se procurar índios.
Miguel Nieto, o meu superior no Ministério da Saúde, sabia
de meu interesse pelos índios, e um dia me chamou a seu
escritório para conversamos sobre eles.
— Você já ouviu falar da tribo dos motilones? — perguntou.
A nossa conversa resultou em algo monumental. Através dela eu
descobri por que Deus me havia dirigido à América do Sul.
Nieto me informou que o primeiro contato entre os motilo-
nes e a civilização fora através das flechas. Ninguém ainda havia
aprendido a língua dos motilones, e tampouco havia estado tão
próximo deles a fim de descrever a sua cultura física. Ele me
informara que os motilones vivem numa área das selvas
indômitas, nas fronteiras entre a Colômbia e a Venezuela.
Somente as grandes companhias petrolíferas norte-
americanas é que pareciam estar interessadas naquela área.
Todas as vezes que os seus funcionários ali penetravam eram
atingidos pelas flechas. Um grande número deles já havia sido
ferido pelas flechas e muito deles já haviam sido mortos.
Parece que a melhor coisa a fazer seria esquecer os motilo-
nes. Porém eu não podia. Uma curiosidade atormentadora e
agitada se apossava de mim. E ela não me deixava apesar de
todos os bons argumentos que eu usava para me opor a ela.
O que poderei eu fazer para um punhado de índios selva-
gens, primitivos? perguntava a mim mesmo.
Não tinha importância o que eu pensava e o que poderia
fazer. Interiormente, eu sabia que, de um jeito ou de outro, Deus
desejava que eu fosse ter com eles. Mas, eu tinha medo, e tentei
todo o possível para evitar que me entregasse a essa idéia.
Esquecera-me de como Deus pode tornar as coisas tão difíceis
para alguém que não faz aquilo que é exigido dele. Eu perdera a
capacidade de me concentrar, de fazer qualquer coisa, a não ser
pensar nos motilones.
E mesmo assim, eu não iria!
Um dia, eu estava no Ministério da Saúde, à espera de
poder falar com um funcionário público, quando alguém atirou
um jornal na cadeira junto à minha. Dei-lhe uma olhada.
A palavra "motilone" prendeu-me os olhos. Olhei com mais
cuidado ainda. Havia um artigo comentando uma epidemia de
sarampo que estava atingindo um grande número de motilones.
Um dos funcionários de uma companhia petrolífera havia
descoberto mais de vinte corpos mortos — e abandonados —
numa das suas casas comunitárias. A descrição feita por ele,
com todos os detalhes daqueles corpos em decomposição, era
deprimente.
Um ponto qualquer, dentro de mim, se partiu com um
estalo. Contra o que é que eu estava lutando?
Por que tanta resistência? Lá, nas selvas, havia gente que
necessitava de auxílio. Eu havia estudado medicina tropical; eu
poderia ajudá-los.
Dentro de uma semana eu estava num ônibus, a caminho
de Machiques, uma cidadezinha ao pé dos Andes. Não fora fácil
conseguir sair. os problemas para conseguir um visto haviam me
levado até ao presidente do país. E fora bastante penoso ter que
deixar meus amigos estudantes. Eles tinham a certeza de que eu
enlouquecera.
No entanto, eu me sentia jubiloso. O ônibus estava repleto,
não somente de passageiros, mas com criação. Acabei carre-
gando um porco enorme no meu colo, durante a maior parte de
nossa viagem de três dias. No entanto, eu me sentia muito mais
à vontade agora, do que quando deixara Caracas para subir o
Orinoco. Agora eu falava bem o espanhol e sentia prazer em
conversar com os outros passageiros. A esposa de um rancheiro,
gorda, com um rosto avermelhado, minha companheira de
banco, já ouvira falar nos motilones, e então eu a interroguei de
todo jeito, em busca de informação. Ela me contou várias
histórias bem interessantes a respeito de pessoas que haviam
sido feridas pelas flechas longas e pesadas dos motilones.
— Não se aproxime deles — disse ela, sacudindo o seu dedo
enorme. — Eles o matarão.
Ouvi o mesmo conselho de diversas pessoas em Machiques.
Mas eu estava confiante — e muito entusiasmado por iniciar uma
nova*aventura. Também eu me lembrava vividamente de minha
viagem quando subira o Orinoco. Aqueles índios haviam-se
mostrado tão amigos, tão maravilhosos para se conviver com
eles. Na minha mente, índios eram índios. E poder viver nas
selvas não seria tão difícil também. Afinal de contas, eu vivera lá
no Orinoco.
Eu economizara dinheiro suficiente para comprar algumas
mercadorias, e decidi iniciar essa aventura com uma visita muito
curta, talvez de uma semana. O único meio de transporte de
Machiques, através dos Andes, é a pé, e então comprei uma
mula, "uma de pé bem firme", segundo o homem que a vendera.
Nós dois saímos uma manhã bem cedinho e seguimos a trilha
que me fora indicada.
O caminho era fácil de seguir e gradualmente ele ia subindo
pelos Andes. A todo momento eu esperava encontrar-me com
um motilone cordial e que me levasse ao seu acampamento.
Andei um tanto lepidamente o dia todo, parando apenas
para mastigar um pedaço de pão. A medida que o sol ia
baixando, e o verde tão lindo da folhagem se tornava cada vez
mais escuro, comecei a me sentir exausto. Desapontado por não
ter encontrado índio algum, e por precisar passar a noite ao ar
livre, eu fazia a mula avançar, com a esperança de encontrar
uma das aldeias dos índios.
De repente parei. Eu havia perdido a pista. À minha frente
havia apenas as trepadeiras e plantas rasteiras. Voltei até
encontrar a pista novamente. Mas não prossegui muito longe
nela. A uns cem metros ela desaparecera novamente.
Tornei a voltar. Parecia esquisito eu tomar caminho errado
duas vezes seguidas. Talvez fosse simplesmente a diferença de
luz.
O caminho agora não estava tão bem marcado. Ele se tor-
nara um caminho repleto de ervas daninhas, estreito como um
fio, indo através das árvores. Quando o encontrei de novo, eu o
segui cuidadosamente. Mas, havia andado apenas uns poucos
passos, quando percebi que não havia caminho algum.
Ziguezagueei aquela área, puxando atrás de mim a mula
cansada e teimosa, através de arbustos e trepadeiras. Não havia
sinal algum de trilha. Ela havia desaparecido.
Parei e olhei ao redor; meu coração batia aceleradamente.
Não havia coisa alguma em todos os lados, senão silêncio,
árvores escuras, e as trepadeiras. Tudo aquilo era tão igual.
Tentei lembrar-me de meu treinamento como escoteiro.
Como é que um escoteiro descobria em que lugar se encon-
trava? Eu não podia me lembrar.
Sabia o que poderia fazer. Poderia esperar até o sol surgir
no dia seguinte e então encontrar o meu caminho com o auxílio
dele.
Aquele pensamento me aliviou. Era muito simples. Era
simplesmente esperar até o amanhecer.
Mas, em que direção eu havia viajado até então? Do lugar
onde me encontrava, onde é que ficava Machiques? Eu achava
que caminhara em direção ao leste, mas não tinha certeza.
Agora tudo estava completamente escuro. Eu apenas podia
enxergar as silhuetas das árvores. Não tinha coisa alguma onde
pudesse dormir. Teria que me deitar no chão. Pelo menos não
estava frio.
Amarrei a mula, escolhi um lugar, e deitei-me. No virar de
um lado para outro, a fim de acomodar-me e encontrar uma
posição mais cômoda, acabei espetando um espinho em minhas
costas. Sentei-me rapidamente.
Sentia-me tão infeliz, cansado, e deprimido. Realmente eu
sabia o que estava fazendo? As selvas, que durante o dia
pareciam tão agradáveis, começaram a parecer perigosas. Eu
ouvia barulhos e pancadas no meio das moitas. Gritos estranhos
e lamentosos ecoavam através do ar. Eu não podia dormir.
Fiquei à espera de que o sol nascesse. A noite parecia
muitas horas mais longa do que usualmente. Certa hora, quando
eu estava a ponto de pegar no sono, alguma coisa pousou em
meu rosto, e imediatamente saltou para o meio da moita. A
adrenalina jorrou através de minhas veias. E eu estava
totalmente acordado.
Observei a escuridão transformando-se num cinza, que
gradualmente ia ficando cada vez mais claro. Quando, final-
mente, podia distinguir as cores, eu me levantei. Eu estava duro,
e tinha na boca um sabor horrível.
Eu tinha uma lata de sardinhas, que sobrara de meu al-
moço, e uma vela para poder aquecê-las. Só em pensar em
alimento, eu me sentia vorazmente faminto, porque me havia
esquecido de comer na noite anterior. Revirei apressadamente a
mochila até encontrar a lata de sardinhas.
Mas eu havia-me esquecido de colocar um abridor de latas.
Apanhei o canivete e comecei a abrir a lata. O canivete se
quebrou. Daquela pequena abertura que eu fizera, chupei
avidamente o azeite de oliva. Eu precisava comer! Não podia
prosseguir sem comer! Poderia morrer de inanição.
Tentei abrir a lata, batendo-a numa rocha, mas não adian-
tou coisa alguma. Finalmente eu a atirei no meio da moita.
Eu havia perdido uma hora. E ainda não sabia onde me
encontrava. E tampouco tinha idéia alguma de como encontrar o
caminho por onde eu andara. Mas eu não queria voltar.
O sol estava surgindo ao longe, lá no alto de uma
montanha. Resolvi, então, caminhar naquela direção. Comecei a
andar, puxando a mula que se opunha. Agora que não havia
caminho algum marcado, prosseguíamos vagarosamente. A
mula constantemente se emaranhava nas trepadeiras e na
vegetação rasteira. Algumas das moitas tinham espinhos agudos
e longos, e muitos deles se espetaram nas minhas mãos e per-
nas. Assim que eu os retirava, os cortes inchavam horrivelmente.
Comecei a sentir-me febril.
À medida que eu subia, cada vez mais alto, pelas monta-
nhas, a folhagem ia rareando, e borboletas lindas, iridescentes,
voavam por toda parte. Papagaios vermelhos como fogo
grasnavam para mim. O ar tornara-se mais ameno. A minha sede
desaparecera, mas eu me sentia fraco. Os insetos continuavam a
picar-me, como o fizeram desde o momento em que eu iniciara a
viagem. Cada pedacinho de meu corpo, que se achava exposto,
estava coberto de vergões vermelhos.
Naquela noite realmente dormi, apesar de os pesadelos me
acordarem várias vezes. Estava frio, e eu não tinha roupas
quentes para me cobrir. Quando me levantei na manhã seguinte,
a primeira coisa que fiz foi esforçar-me para vomitar. Olhei para
as mãos, e dificilmente podia reconhecê-las. Estavam vermelhas,
inchadas, e picadas; assemelhavam-se a pedaços de carne crua.
"Por quê, Senhor?" perguntei. "Que é que eu estou fazendo
aqui?" Contudo, desamarrei a mula e prossegui. As colinas eram
muito íngremes para que eu pudesse montá-la, e então eu a
puxava pelas rédeas, tropeçando, e praticamente sem nenhum
domínio sobre mim mesmo.
Então, olhando através de um vale bastante profundo, vi,
no outro lado do cume, um aglomerado de cabanas. Era uma vila
dos índios. Pisquei os olhos.
Graças a Deus, eu havia encontrado os motilones.
Vagarosamente fui descendo até ao vale, e depois, lenta e
cansativamente, fui subindo pelo outro lado. Isso levou várias
horas. Eu conservava os olhos voltados para a frente, na
esperança de encontrar alguns índios. E então, porque não
olhava onde punha os pés, eu tropeçava e caía.
Finalmente atingi aquele aglomerado de cabanas. Senti um
alívio enorme enquanto um grupo de pessoas se encaminhava
em minha direção. — Eu estou aqui — gritei, não dando a
mínima importância se eles iriam ou não me entender.
Uns vinte ou mais índios me cercaram, mirando-me e taga-
relando em sua própria língua. Tentei conversar em espanhol
com eles. Não houve resposta alguma. Tentei as poucas frases
que conhecia e que aprendera durante o tempo que ficara com
os índios em Orinoco. Ainda assim, mo houve resposta alguma.
Todas as pessoas pareciam velhas e enrugadas. Elas me
olhavam, me cutucavam e davam gargalhadas. A maior parte
delas estava sem dentes. Quando abriam a boca, mostravam as
gengivas vermelhas e desdentadas.
Caminhamos para a vila. Ali, mulheres e crianças saíram de
suas cabanas para me verem. Ninguém entendia uma palavra
sequer do que eu dizia. E eles nem mesmo tentavam escutar.
Eu tinha a certeza de que ali haveria um chefe. Talvez ele e
os mais jovens estivessem fora caçando. Eu estava sempre na
expectativa de vê-los voltar. Mas eles não voltaram, e me cansei
de ficar de pé, ali no meio daquele círculo de rostos sorridentes,
de velhos decrépitos, mulheres e crianças. Eu ainda me sentia
doente e aturdido.
Que é que eu poderia fazer para me comunicar com eles?
Então me lembrei de minha flauta pequena de madeira, que eu
trouxera para me divertir. Talvez essas pessoas se interes-
sassem em ouvir-me tocá-la.
Retirei-a de minha mochila, sentei-me no chão e comecei a
tocar. À medida que tocava, quase todos acompanhavam com
movimentos de cabeça, o compasso da música. Quando parei,
um dos velhos colocou as mãos em frente de sua boca, fazendo
menção de tocar, como se estivesse indicando que eu deveria
continuar tocando. E então comecei a tocar uma melodia que
aprendera com índios lá no rio Orinoco. De repente, surgiu um
homem com uma flauta e reproduziu as primeiras notas que eu
tocara. Toquei mais algumas notas, e ele as reproduziu também.
Logo estávamos tocando juntos aquela melodia.
Então ele tocou uma melodia que eu nunca ouvira. Eu a
reproduzi, nota por nota. Nessas alturas, a aldeia toda havia
parado para ouvir.
Prosseguimos tocando por muito tempo. Eu já estava-me
cansando, mas ninguém se levantava para sair. Finalmente, às
três e meia da manhã, paramos.
Choveu torrencialmente naquela noite. Fiquei deitado,
acordado, na choça para a qual me haviam levado, ouvindo a
respiração pesada dos homens que estavam ali comigo. Pelo
menos eu estava num lugar seguro, com pessoas que pareciam
ser amigas.
Na manhã seguinte ainda não havia sinal algum do chefe.
Deram-me algo para beber, com um sabor horrível, e umas
raízes fervidas e ásperas. Eu as engoli à força; estava tão
faminto que podia comer qualquer coisa.
Ninguém dava mostras de estar interessado em continuar o
concerto de flauta, e deixaram-me, para cuidar de seus próprios
interesses. Ás crianças estavam brincando. Um velho sentou-se
ao sol, reclinando de encontro a uma das choças. Quando olhei
para ele, ele sorriu para mim.
Encaminhei-me em sua direção. — Como vai o senhor? —
perguntei-lhe em inglês.
Ele começou a falar na sua própria língua, que era exata-
mente o que eu desejava. Imitei o que ele dizia.
Ele riu, disse mais algumas palavras, e tentei repeti-las. Ele
riu novamente. Parece que a brincadeira o divertia, e
continuamos assim por perto de duas horas. Era a minha
primeira experiência em tentar compreender uma língua, sem
ter dela nenhuma noção. Encantado com aquilo, logo eu me
esquecera de tudo mais. Eu começara a sentir que podia separar
alguns dos sons, e era apenas uma questão de tempo, pensei,
antes que começasse a descobrir o significado de algumas das
palavras.
Repentinamente, sem nenhum aviso, fui atingido nas costas
por uma pancada, que me atirou com o rosto em terra. Fiquei ali
aturdido. Um homem estava de pé sobre mim, gritando e
berrando, num tom esganiçado, batendo-me com chicotes que
ele tinha nas mãos. Uma espuma branca jorrava de seus lábios.
Tentei rolar, fugindo de suas pancadas, mas diversos jovens
surgiram e com flechas longas e aguçadas, que seguravam em
suas mãos, me empurraram na direção dele.
Depois, então, por ordem daquele homem, dois dos guer-
reiros me levantaram e me atiraram na choça onde eu passara a
noite. Ninguém me veio ver. Fiquei deitado ali no chão,
arquejando, quase aterrorizado. Vergões me surgiam nos braços
e nas pernas, onde os chicotes haviam atingido.
Uma flecha passou através da parede de palha e foi atingir
a outra parede, do outro lado da choça. Logo em seguida, outras
setas cortaram a choça, de lado a lado. Os homens haviam
cercado a choça e estavam tentando me atingir. As setas não
tinham o impulso suficiente para me ferirem, depois de passa-
rem pelas paredes, mas eram pesadas e deixavam marcas
roxas, feias e sangrentas, onde me atingiam. Depois de quinze
minutos desse sofrimento, caí ao chão, com as mãos sobre os
olhos.
O homem que usara o chicote chegou à porta e gritou
comigo. Acabei concluindo que ele era o chefe. Ele agora
segurava um arco com uma flecha bem longa, e a sua aparência
era de uma pessoa fora de si. Eu abracei o chão, e implorei em
inglês: — Por favor, não atire. Por favor. Não atire.
Ele se afastou da soleira da porta. Seguiu-se uma longa
pausa e a esperança voltou a surgir dentro de mim. Então ouvi o
zumbido, e uma flecha me atingiu, cegando-me de dor.
À medida que as setas continuavam a cair, aquela cena
parecia irreal. Tinha a semelhança de algo que somente aparece
nos filmes.
No instante de maior terror, ocorreu-me que o que eu
precisava fazer era orar.
"Deus", eu disse, "quanto tempo isso vai durar?" Preciso
passar por isso tudo?" Eu podia prever um futuro cheio de
torturas, incapacidade de me comunicar, e até a morte.
Então, algo estranho aconteceu. Era como se eu tivesse
sido derrubado. Podia ver Jesus na cruz. Comecei a chorar.
"Ó Jesus", eu disse, assustado e temeroso. "Foi isso o que
tu enfrentaste. Nós parecíamos vis para ti, assim como esses
índios se parecem para mim. "Oh, deve ter sido absurdo o nosso
ódio."
Fiquei ali em silêncio. "Deus, eu te darei tudo o que puder.
Eu te dou as minhas forças, a minha vida. Agüentarei qualquer
coisa, qualquer dificuldade e até mesmo estarei pronto a morrer,
se tu me deixares falar a respeito de teu Filho aos motilones."
Talvez eu já tivesse feito aquela mesma oração antes. Mas
desta vez, no entanto, eu era sincero nas minhas palavras.
Julgando que a morte estivesse tão perto, eu precisava ser
sincero.
Mais algumas flechas me atingiram, mas eu não estava
mais amedrontado com elas. Depois de certo tempo, o chefe foi
impedido de continuar atirando as flechas por alguns dos
homens mais velhos. Mais tarde eu soube que ele estava bêbado
— uma das condições em que se encontravam usualmente, ele e
os demais índios da tribo.
Apanhei a flauta e comecei a tocar. Eu a deixara ali na
choça na noite anterior. Os seus sons melodiosos eram
confortadores, e pareciam diminuir a dor de meus braços e de
minhas pernas. Logo alguém, lá fora, começou a tocar
juntamente comigo.
Porém o chefe demonstrou claramente que eu não era
bem-vindo ali na aldeia. Não havia razão por que eu não poderia
deixar a aldeia. Arrumei aquilo que me pertencia, montei na
minha mula e comecei a voltar para Machiques.
Justamente quando ia penetrar nas selvas, logo abaixo da
aldeia, um velho me chamou. Fez sinal para que eu esperasse, e
desapareceu numa das choças. Saiu dela carregando uma
criança.
Voltei para ver a criança. Era um menino, talvez de quatro
anos de idade, que estava bastante doente. Alguns dos outros
moradores, vendo-me olhar para aquela criança, trouxeram
outras crianças, que aparentemente tinham a mesma doença.
Um círculo de rostos preocupados e tristes formou-se ao meu
redor.
Eu tinha na minha mochila um pequeno frasco de antibió-
tico, mas hesitava em usá-lo. Já haviam decorrido seis meses,
desde a data marcada para o seu uso. No entanto, essas
crianças poderiam morrer se não recebessem qualquer cuidado
médico. Então procurei o frasco de remédio na minha mochila e
comecei a distribuí-lo. Não havia o suficiente para todas as
crianças, por isso dei a cada um apenas meia dose. Não tinha
muita confiança de que isso iria ajudá-las, mas isso era tudo o
que eu poderia fazer.
Retirei a carga de minha mula e esperei para ver os resulta-
dos. Pedi a Deus que curasse as crianças onde o remédio não
poderia. Transcorreu um dia, e não houve nenhuma mudança no
estado daquelas crianças. Mas, no dia seguinte, uma das
crianças começou a demonstrar certa melhora. Algumas horas
depois, todas elas estavam demonstrando sinais encorajadores.
Dentro de uma semana, todas estavam brincando alegremente.
O chefe mudou a sua atitude para comigo. Ele podia ver
que eu estava interessado em ajudar a sua tribo. Mais tarde
descobri que no dia em que ele me encontrara na sua aldeia,
dois de seus jovens haviam sido mortos a tiro por colonizadores
brancos. Portanto, ele tinha razão de me ver com maus olhos.
A minha visita foi-se prolongando. Comecei a aprender a
língua. Logo cheguei à conclusão de que esses não eram os
índios motilones. Nenhuma das descrições dos motilones se
entrosava com essa cultura.
Esses índios chamavam a si mesmos de iucos. Levaria
ainda mais um ano para eu entrar em contato com os motilones.
A recepção seria ainda mais amedrontadora.
9. SUBORNO

Terminei de carregar a mula, e andei ao seu redor, para ter


a certeza de que todas as correias estavam bem apertadas. Um
pequeno punhado de iucos me observava. Eu os olhava com
alguma incerteza. Deveria eu fazer alguma coisa mais do que
simplesmente dizer-lhe adeus? Deveria eu apertar-lhe as mãos,
ou abraçar cada um deles? Os iucos me olhavam impas-
sivelmente, sem nenhum sinal de emoção em suas faces.
Levantei a mão. — Adeus — eu disse. — Sinto deixá-los.
Mentiroso, eu disse a mim mesmo.
Montei na mula e parti, olhando para trás uma vez, para
acenar-lhes adeus.
Conduzi a mula sobre a trilha rochosa e íngreme que saía
da aldeia. Haviam-me informado que ela levaria à civilização.
Bem, eu havia feito mais do que a minha parte. Devia estar
satisfeito com o que fizera. Apesar de tudo, o que deveria ter
sido uma longa visita de uma semana, terminara sendo de
quatro meses.
Gente, como seria bom voltar à civilização e poder falar
com alguém que entendesse inglês. E a comida. A minha boca
encheu-se de água, só em pensar numa coca-cola e num
hambúrguer. A comida dos iucos era terrível. Dia após dia, era
sempre a mesma coisa. Milho e chicha. A chicha era uma bebida
alcoólica feita de milho mastigado e cuspido numa grande
cabaça, e deixado ali para fermentar. O seu sabor era tão bom
quanto a sua descrição.
Era um dia frio e nevoento. Os picos ao redor da aldeia
estavam encobertos pelas nuvens. Eu sonhava em desejar voltar
às selvas mais quentes e úmidas das elevações mais baixas. Mas
quatro meses de constante temor me haviam abalado.
Ê uma tolice sentir-se culpado por partir, pensei comigo
mesmo. Eu estava doente. Havia dois meses já que vinha
evacuando sangue. Eu precisava de cuidados médicos.
A mula continuou a caminhar pesadamente, levando-me
cada vez mais longe dos iucos.
O tédio tornara-se o meu maior inimigo. Eu podia aceitar as
flechas atiradas em mim. Pelo menos aquilo terminava logo. Mas
levantar todas as manhãs, para ver o mesmo alimento, sentir o
mesmo cheiro horrível, estar com as mesmas pessoas com as
quais eu não tinha nenhuma afinidade: tudo aquilo me aborrecia.
Então era tempo de partir. Eu havia feito a minha parte. E daí?
pois ninguém havia chegado a conhecer a Cristo. Eu aprendera o
suficiente de sua língua para contar-lhes a respeito dele. Fiz o
que pude.
A mula, lentamente, me foi levando por um declive abaixo e
depois para cima, na fralda mais alta. O homem que a vendera,
não mentira. Era um animal firme de pés, e muito bom. Se essa
picada realmente saía das selvas, como os índios haviam dito,
logo poderíamos sair dali.
De repente a mula empinou. Tentei segurar-me mas não
consegui. Fui atirado ao ar. Minhas mãos se estenderam a fim de
agarrar alguma coisa, mas a mula não estava sob o meu corpo.
Caí pesadamente sobre o ombro direito, enquanto ouvia a mula
galopando através das moitas.
Levantei-me lentamente. Com a queda, havia deslocado o
ombro. Minha mochila se abrira e todas as minhas coisas
estavam espalhadas ao longo da picada. Fazia apenas uma hora
que eu deixara a aldeia, mas eu não sentia desejo algum de
voltar lá. Eu podia prosseguir à pé, na esperança de poder
chegar, mas realmente eu precisava daquela mula, e ela estava
a caminho da aldeia. Eu precisava ir lá também.
Para voltar a pé, era uma longa distância, e o meu ombro
doía terrivelmente. A pior coisa, no entanto, era a dificuldade
emocional de voltar a um lugar que eu abandonara fazia pouco.
De jeito nenhum eu desejava ir àqueles índios novamente.
Meus piores temores se concretizaram quando me aproxi-
mei da aldeia. As pessoas já haviam visto a mula, muito antes
que eu lá chegasse, portanto já sabiam o que acontecera.
Vieram ao meu encontro, às gargalhadas! O grande homem
branco havia sido derrubado por uma mula. Ninguém me
auxiliou a levar a mochila.
Eu estava cansado pela caminhada e o meu ombro estava
rijo, mas eu não iria ficar e ser motivo de riso. Selei a mula,
carreguei-a, e parti novamente.
Desta vez as coisas caminharam muito melhor. Fora esqui-
sito que a mula houvesse pinoteado e me atirado. Não se espera
que as mulas procedam dessa forma. E essa era,
particularmente, de bom temperamento.
Prossegui durante três horas, e já estava-me sentindo muito
melhor. Logo eu estaria no meio da civilização.
De repente a mula empacou, e abaixou a cabeça. Apertei
as rédeas, como me haviam dito que fizesse. Mas a mula
começou a dar coices e me atirou por cima de sua cabeça. Fui
cair numa poça imunda e fria. Contudo, a mula não havia
corrido, e eu me levantei e tentei pegá-la. Ela pinoteou e me deu
um coice e o seu casco atingiu-me o braço e depois o rosto. O
sangue jorrou de minha boca, descendo pelo pescoço e me
encharcando a roupa. A dor era de cegar. Eu desejava morrer,
mas a dor foi simplesmente aumentando e aumentando como
uma espécie de parede que vibrava como uma concha
envolvendo-me.
Quando a dor havia diminuído o suficiente para eu poder
ver, a mula já havia desaparecido. Fiz pressão na minha boca,
para estancar o sangue.
Eu não podia voltar à aldeia; precisava deixar essas selvas.
Eu andaria até sair. Mas não agora. Já era tarde. Podia passar a
noite ali, e continuar no dia seguinte.
Naquela noite senti calafrios e tremi; dormi apenas intermi-
tentemente. Todo o lado direito de meu maxilar estava inchado e
deformado.
Na manhã seguinte eu me sentia terrivelmente doente e
sabia que deveria voltar à aldeia. Comecei a pensar o que é que
Deus estava querendo me dizer com tudo isso.
Os iucos não gostavam de mim. Eles ficaram tão contentes
quanto eu, quando eu partira. Portanto, por duas vezes, por que
eu não pudera partir? Por que Deus permitira que a mula me
atirasse duas vezes ao chão?
Então me lembrei da junta de missões e da lição que eu
aprendera dela. A junta de missões me recusara, mas Deus não.
Agora tudo estava acontecendo novamente. Os iucos não
queriam, particularmente, que eu ficasse ali, mas Deus queria. E
eu precisava seguir a Deus.
O sol estava brilhante naquele dia, e eu me sentia febril e
tonto. Não demorou muito para eu pensar que estava sendo
assado pelo sol. Minhas roupas estavam duras pelo barro e o
sangue seco. A cabeça parecia vazia.
Caminhei aos tropeções. Quando cheguei lá embaixo, num
dos vales, vi um riacho que antes eu vira apenas de passagem.
Abaixei-me e deitei-me na água fresca, deixando que ela me
amaciasse a pele. Fiquei ali deitado, sem mexer, pelo menos
uma hora.
Quando me levantei, já era bem tarde. Eu sabia que preci-
sava atingir a aldeia antes do anoitecer. Eu me sentia muito
fraco, bastante fraco até para ficar de pé. Caí vezes seguidas, e
ficava imóvel por uns minutos, antes de poder reunir forças
suficientes para me levantar novamente.
À medida que me aproximara da aldeia, comecei a gritar:
"Ajudem-me, por favor, ajudem-me." Desta vez, eu não me
importaria se eles rissem de mim.
De repente alguns iucos apareceram. O chefe estava com
eles. Eles não deram risadas.
O próprio chefe me carregou para a aldeia e ajudou a tomar
conta de mim. Levou uma semana para que eu me sentisse com
forças para me levantar. Quando me levantei, então não
desejava mais partir. Os índios haviam-se tornado gente para
mim. Eles haviam cuidado de mim quando eu necessitara de
auxílio. Agora eu iria ficar e ver como é que poderia auxiliá-los.
Não queria dizer que isso se tornara mais fácil. A vida ainda
era enfadonha ali, eu ainda estava com disenteria amebiana, e
ainda estava expelindo sangue todas as manhãs. Mas eu pro-
gredia no conhecimento da língua e logo pude falar razoavel-
mente bem. Isso ajudou grandemente. Quanto mais eu falava,
mais começava a compreender essas pessoas, e quanto mais eu
as compreendia, desejava muito mais ajudá-las. Aquilo que me
parecera ignorância e estupidez, não se assemelhava a isso
agora.
Era algo de que eu precisaria me lembrar muitas vezes:
Antes mesmo de realmente compreender um povo, não o julgue.
Mas eu ainda sentia o desejo de ir ter com os motilones.
Naturalmente, era tarde demais para ir ajudá-los com a epidemia
de sarampo. Mas isso não queria dizer que eu não deveria ir até
lá. Gradualmente aquele desejo, que anteriormente fora tão
forte, antes que eu me encontrasse com os iucos, reacendera.
Perguntei aos iucos a respeito das tribos daquela área. Uma
das tribos se destacava em suas mentes, a tribo com a qual
haviam combatido. Os iucos os conheciam como "o povo do
petróleo". Aquilo fazia sentido; a região dos motilones era tão
rica em petróleo que havia percolações naturais em várias
partes dela. Dessa informação e de outras descrições que me
deram, logo eu estava convencido que o "povo do petróleo"
eram os motilones.
Perguntei aos iucos se eles me levariam aos motilones. Os
seus olhos se esbugalharam de temor.
— Oh, não, nós não chegamos perto deles. Ele nos
matariam — disse um deles.
Eu insisti.
— Bem — disse ele — há uma tribo de iucos ao sul. Talvez
eles possam levá-lo. Você poderá tentar lá.
Desta vez a partida não foi tão difícil. Deus realmente
desejava que eu voltasse, embora não tivesse conseguido
realizar alguma coisa muito grande. Nenhum dos iucos chegara a
conhecer a Cristo. Eu não conseguira me sentir à vontade na
cultura deles. Havia ali um negócio inacabado, mas eu sentia a
urgência de estar com os motilones — uma insistência que
somente poderia vir de Deus.
Então me despedi e fui habitar com aquela tribo mais ao
sul. Não esperava ficar ali muito tempo, mas no momento que
tentei conversar com um deles, descobri que iria ter certa dose
de problemas. Esses iucos falavam um dialeto diferente. Eu não
podia entendê-los.
Todavia eles se demonstraram amigos. Aceitaram-me e
deixaram que eu comesse e dormisse com eles. Após um mês,
eu já aprendera o suficiente de sua língua para poder perguntar-
lhes a respeito da possibilidade de me levarem aos motilones.
Ficaram petrificados. — Oh, não, nós não chegamos perto
deles. Quem sabe a tribo que fica a leste daqui poderá levá-lo
até eles.
Então comecei a ir de tribo em tribo, tentando conseguir
alguém que me levasse. Às vezes eu tinha a intenção de pôr-me
a caminho, sozinho, mas eu aprendera o suficiente a respeito
das selvas para não experimentar isso novamente.
Em cada tribo havia sempre "talvez alguém" que me pode-
ria levar. Certa vez consegui um grupo que fosse comigo, mas
após o primeiro dia de andar pela picada, fiquei terrivelmente
doente e precisei voltar. A princípio eu julgava que talvez
estivesse indo contra a vontade de Deus, como eu o fizera
quando ele usara a mula para me fazer voltar. Num segundo
pensamento, sabia que desta vez eu estava certo. Eu não ia aos
motilones simplesmente para o meu próprio conforto. Ia porque
sentira que o chamado era de Deus. Portanto eu insistia.
Tinha os olhos voltados para um jovem iuco. Ele era forte, e
um sujeito pronto a rir e a divertir-se. Ele tinha a reputação de
estar pronto a fazer qualquer coisa, desde que houvesse a
possibilidade de tirar algum proveito.
Eu tinha um trunfo em minhas mãos. Os iucos adoram
coisas brilhantes, e na primeira tribo que eu estivera, eles
ficaram fascinados pelos meus zíperes. As minhas roupas, à
moda do oeste, havia muito que se gastaram, e eu usava o
tradicional poncho dos iucos. Mas eu conservara os zíperes de
minhas calças, e os guardava no fundo de minha mochila.
Após esperar dois meses, retirei um deles e o amarrei a um
pedaço de cordão. Depois levei aquele jovem à parte. Secre-
tamente eu o fui levando até à selva, e então retirei o zíper da
mochila. Deixei-o balançar na ponta do cordão, de modo que o
sol, batendo nele, o fizesse brilhar.
Ele tentou agarrá-lo, mas eu o retirei. — Eu lhe darei isso se
você me levar até aos motilones — eu disse.
Eu podia ver o conflito em que se achava. Cada vez que ele
pensava em se aproximar dos motilones, ele franzia a testa e se
afastava. Mas cada vez que olhava para o zíper, ele o desejava
ainda mais.
Finalmente, sacudindo os ombros, disse: — Está certo. Por
que não?
Eu o segurei pelos ombros. — Maravilhoso. Partiremos
amanhã?
Ele sacudiu a cabeça taciturnamente.

10. UMA RECEPÇÃO ATERRADORA

Na manhã seguinte, logo cedo, sete de nós partimos, num


caminhar bem rápido. O sol estava apenas surgindo sobre as
montanhas quando deixamos a aldeia, e o ar estava fresco e
agradável.
Quase não falávamos. Caminhamos apressadamente o dia
todo, seguindo algumas picadas quase que invisíveis, sobre as
bordas das montanhas, tomando o caminho, nas encruzilhadas,
sem consulta alguma. Nem sequer paramos para comer. Quando
o sol se pôs, caminhamos até não poder mais ver a picada. Na
manhã seguinte já estávamos a caminho antes de o sol
despontar.
Caminhamos naquela marcha penosa durante seis dias.
Gradualmente ia-se dando uma mudança na paisagem e no
clima. As árvores esparsas dos altos Andes tornaram-se em
árvores altas e abundantes da selva tropical. Cipós pendiam das
árvores, alguns tão grossos como cordas. Até mesmo os sons
eram diferentes. Os papagaios gritavam quando passávamos. Às
vezes um macaco guinchava e saltava de uma para outra árvore,
a fim de se esquivar de nós.
No final de cada dia eu caía ao chão quando, finalmente,
parávamos. Cada dia era mais difícil para me levantar na manhã
escura. Os iucos, no entanto, não demonstravam sinal algum de
cansaço. O calor os incomodava e o suor lhes corria pelo rosto
enquanto andavam, contudo eles não diminuíam a marcha.
Eles estavam-se dirigindo a uma cordilheira no território dos
motilones. Disseram-me que, de onde se pudesse avistar uma
casa dos motilones, ali me deixariam, para me defender sozinho.
À medida que nos aproximávamos da casa, os iucos foram-se
tornando cada vez mais silenciosos. Certa vez comecei a
comentar a respeito de um papagaio que eu vira de cores
brilhantes e imediatamente senti a mão tapar-me a boca. Era um
dos iucos. Não havia sorriso algum no seu rosto. Somente
quando teve a certeza de que eu não proferiria palavra alguma,
é que ele retirou a mão de sobre a minha boca.
Agora não precisávamos mais escalar os Andes elevados.
Aqui havia apenas pequenos penhascos e cumes. As árvores
eram tão grossas que raramente víamos o céu. Os rios eram o
problema. Quase sempre o solo era pantanoso junto às margens,
de modo que muitas vezes eram necessárias horas para
conseguirmos um lugar seguro para atravessar. No sétimo dia de
nossa viagem, acordamos e começamos a caminhar sem proferir
uma palavra sequer. Eu sabia que nos estávamos aproximando
da cordilheira dos motilones, e apesar de estar excessivamente
cansado, mesmo assim sentia certa elasticidade nos meus
passos.
Era para isso que eu viera às selvas. Logo eu veria o meu
primeiro motilone.
De repente todos os iucos pararam e ergueram as cabeças,
como a farejar o ar. Ficaram parados como estátuas. Eu não
ouvira som algum, mas permaneci parado, também, ouvindo o
meu fôlego que era pesado e alto — alto demais, pensei. Não
ouvia nada mais.
Então, como num só movimento, os iucos desandaram a
correr, voltando pelo mesmo caminho que vieram. Fiquei ali
parado, abismado, por uns instantes, e depois, desajeitada-
mente, corri atrás deles, imaginando de que é que eu estava
correndo. Corri diretamente em direção a uns cipós, tropecei e
cai em cheio sobre o rosto, arrastei-me e emaranhei-me
novamente nos cipós. E depois, então, uma dor cruciante atingiu
a minha coxa, e todo o meu corpo enfraqueceu. E eu caí.
Tudo parecia mover-se lentamente, até mesmo a minha
respiração ofegante. Olhei para a minha coxa. Uma longa haste
estava pendurada nela, com um pequeno orifício, redondinho e
bem feito, onde a flecha penetrara. O orifício era de um
vermelho bem forte, por causa do sangue, o meu sangue, que
vertia e me corria pela perna.
Eu não podia retirar os olhos da haste. Parecia algo irreal.
Talvez ela estivesse espetada na perna de mais alguém, e não
na minha. Mas não estava.
Depois olhei para o alto e o meu coração quase parou de
bater. Eu estava rodeado por homens nus, de pele escura, com
enormes arcos destendidos. Nove cabeças de flechas, pequenas,
estavam apontadas diretamente para mim. Esqueci-me
completamente de minha perna. — Não atirem, não! — eu disse
em iuco, implorando também com os olhos. Os olhos deles,
semelhantes a pequenos pedaços pretos de carvão, não
demonstraram reação alguma. Os seus braços não se relaxaram
nos arcos.
— Por favor — eu disse em espanhol. — Eu venho como um
amigo.
— Amigo — eu disse em latim.
Sem contudo afastar os olhos de mim, removeram as
flechas de seus arcos. Um dos homens veio em minha direção.
Eu me acovardei. Ele se abaixou até à minha perna e agarrou a
flecha pela haste. Colocando o seu pé na minha coxa, arrancou a
flecha. Vi estrelas dançando, pequenas e vermelhas. Eu não
podia respirar. Olhei para a minha perna e vi um pedaço de meu
músculo saindo no sangue de onde a flecha fora retirada. Cada
segundo a dor parecia ser muito mais forte do que eu poderia
suportar, e depois, então, inacreditável, ela se tornou pior ainda.
O homem retirou a flecha e me cutucou nas costas. Tentei
ignorá-lo. Eu simplesmente queria ficar ali deitado e morrer. Ele
insistiu. Queria que eu me levantasse. Eu o fiz. Depois ele me
espetou pelas costas e fui à frente aos tropeções. Os outros
homens formaram uma fila e começamos a caminhar em direção
ao território dos motilones.
A marcha durou três horas. Minha perna doía além do que
posso descrever, mas toda vez que eu começava a diminuir o
passo, sentia a flecha espetar-me as costas.
Subimos uma colina íngreme e longa, e eu sabia que não
poderia ir muito além antes de desmaiar. Um ponto escuro no
canto de meus olhos ameaçava cobrir todo o meu campo de
visão. Parecia que a minha perna fora cortada pela metade.
Finalmente chegamos ao topo da colina, à luz do sol, e vi
um enorme outeiro marrom no centro de uma clareira rústica.
Parecia uma colméia, colocada de maneira fora do normal, no
chão. Ficava a uns doze metros de altura e havia buracos
escuros e retangulares ao rés do chão.
Dirigimo-nos diretamente para ele e nos abaixamos para
entrar numa daquelas aberturas escuras. A princípio estava
escuro demais para se poder ver. Ouvi pequenos gritos profe-
ridos por mulheres, arrastar de pés, e choro de crianças. Aos
poucos os meus olhos foram-se acostumando àquela semi-
escuridão. Fui atirado sobre uma pequena esteira.
As mulheres e as crianças saíram. Apenas os homens fica-
ram ao meu redor e, ali na sombra, pareciam amedrontadores e
perigosos. Num relance, as estatísticas das mortes dos
empregados da companhia de petróleo tornaram-se verdadeiras.
Porventura haviam me trazido até ali para depois me matar?
Os homens conversaram e depois se retiraram e me deixa-
ram só. Olhei em torno do edifício. Não era redondo como
inicialmente eu pensara, mas sim oblongo. Havia nele seis
portas. Haviam curvado e atado os troncos das palmeiras desde
o chão, de modo a formar a estrutura de um arco simples e
bonito e depois fora coberto de folhas marrons, de palmeira.
Meus olhos percorriam de alto a baixo esses arcos. Davam a
impressão de que se iam tornando cada vez mais leves, e que se
moviam graciosamente, como se uma brisa os estivesse
balançando. Senti certo descontraimento. Eu não podia sentir a
dor em minhas pernas. Uns instantes antes de eu desmaiar,
compreendi o que estava acontecendo, e ri.
— Estou delirando — disse eu em voz alta. — Que tal tudo
isso? — E ri novamente.
Creio que acordei no dia seguinte. Não havia jeito de desco-
brir quanto tempo eu ficara inconsciente. As mulheres e as
crianças não me davam a mínima atenção. Senti que estava
quente e febril. Minha coxa estava inchada, e um pus amarelado
e feio circundava o local onde a fecha havia penetrado.
Tentei erguer-me, apoiado no cotovelo, mas comecei a sen-
tir tonturas, e tive que me deitar novamente, e fiquei olhando
para o teto. Os arcos tão altos se assemelhavam quase aos arcos
de uma catedral. O murmúrio em surdina das mulheres que
trabalhavam, soava como se fossem orações.
Eu estava com diarréia. A primeira vez que senti a neces-
sidade de defecar, tentei levantar-me para ir lá fora. Imedia-
tamente fui atirado de volta à minha esteira. Finalmente
conseguimos estabelecer certos sinais convencionais de modo
que uma das mulheres pudesse me acompanhar lá fora, junto à
porta, onde os índios defecavam. Fiz o mesmo, mas com as
faces ruborizadas, porque era uma mulher quem me vigiava
cuidadosamente. As minhas viagens, por motivo dessa neces-
sidade, tornaram-se cada vez mais freqüentes.
Eu ficava deitado na minha esteira o dia todo, numa semi-
consciência. As glândulas debaixo de meus braços começaram a
inchar. Não me ofereciam alimento algum. Fui acordado, de
certo torpor, por uma série de gritos, que mais pareciam gritos
de guerra. Sentei-me, esperando pelo pior. Os homens entraram
correndo, gritando e segurando macacos e papagaios que
haviam caçado. Uma conversa excitante encheu a atmosfera.
Eles seguraram as aves e animais sobre o fogo, a fim de queimar
as penas ou o pelo. A casa estava cheia de uma fumaça
sufocante e picante. As mulheres cozinharam os animais.
Estava extremamente faminto, apesar de a minha febre
fazer-me ficar com o estômago enjoado. Porém, não me ofere-
ceram alimento algum. Aquela noite, quando todos os motilones
haviam dependurado as suas redes e estavam dormindo, fiquei
ali deitado, acordado e suando, com a sensação de que a casa
estava oscilando e ameaçando cair sobre minha cabeça. Minha
coxa doía até à medula do osso. Obviamente ela estava
infeccionada, e eu nem sequer podia lavá-la. Comecei a chorar,
por causa da fraqueza em que me encontrava. De certo modo,
as lágrimas foram confortadoras.
Então comecei a orar, e orei como nunca orara havia muito
tempo. Silenciosamente conversei com Deus, com os olhos
abertos e observando o leve vai-e-vem das redes dos motilones
presas bem alto, longe do chão. Deus me confortou. Ele me fez
saber que eu estava fazendo o que ele queria.
No dia seguinte um garoto se aproximou de mim com uma
folha de palmeira dobrada em sua mão. Ele sorriu e estendeu a
folha. Havia nela uma porção de lagartas mexendo-se. Cada uma
delas tinha o tamanho e o formato de uma salsicha.
Eu não sabia o que fazer com aquilo. Encolhi os ombros e o
meu rosto demonstrava uma expressão de perplexidade.
Uma das lagartas contorceu-se e caiu ao chão. Rapida-
mente o menino estendeu a mão, pegou-a, mordeu-a, tirando-
lhe a cabeça, e depois mastigou e engoliu o resto daquela larva.
Ele estendeu a folha novamente. Eu devia comer aquelas
larvas. Uma onda de náusea me encheu todo. Mas eu estava
com fome, e se eu recusasse comer isso, quem é que saberia
quando ofereceriam outro alimento, outra vez?
Estendi a mão e peguei uma das larvas menores. Ela se
mexeu na minha mão. Fechei os olhos, pus a sua cabeça entre
os meus dentes, arranquei-a depressa e a cuspi fora. Todo o
conteúdo de seu corpo começou a sair. Eu sabia que se eu
olhasse para aquilo, eu não seria capaz de comer, e então enfiei
a larva toda na boca e mastiguei. Aquilo parecia borracha. O
sabor não era ruim: haviam uma pequena semelhança com
toucinho defumado. Apanhei mais uma e a comi, e depois mais
outra.
Meu estômago se revoltou. Minha pele ficou fria. Eu podia
sentir aquelas larvas virando-se lá no meu estômago. De repente
elas voltaram do jeito que haviam descido.
Quando, finalmente, olhei para cima, o menino havia saído.
Mais tarde ele me trouxe alguns peixes defumados, e fui capaz
de comê-los e de conservá-los no estômago. Daí em diante,
deram-me comida suficiente, e não me deram mais larvas.
Fiquei muito mais doente. Parecia que os dias flutuavam.
Ainda não me era permitido deixar a esteira, e eu duvidava se
porventura seria capaz de ficar de pé para poder sair. As
glândulas debaixo de um de meus braços estavam tão inchadas
que eu não podia abaixar de todo. Minha coxa não estava
cicatrizando.
Quando eu podia ficar acordado, olhava as mulheres traba-
lhando, os homens fazendo arcos. A maior parte dos homens
parecia ser bem cruel. Eles me cutucavam e riam quando eu
pulava. Contudo, um deles parece que decidira que iria me
proteger. Todas as vezes que ele se aproximava de mim, os
outros se afastavam. Ele tinha uma risada bem alta e caracte-
rística — e a sua aparência, também, era engraçada. Ele andava
de pés voltados para dentro, e havia uma pequena cicatriz num
dos lados de sua boca. Todos os dias quando voltava da caça,
ele sorria para mim e me dizia alguma coisa. Usualmente era ele
quem me trazia a comida.
Eu estava lá havia um mês, vivendo uma espécie de meia
vida. A minha diarréia ficara pior ainda. Eu estava tão doente
que era com dificuldade que me sentava. Eu precisava de auxílio
para poder ir lá fora. Eu precisava deixar aquele lugar. Deus
queria que eu fosse, eu tinha certeza.
Mas isso significava que iria perder o meu contato com os
motilones. Como é que eu poderia perder tudo aquilo depois de
tudo que eu havia passado para poder entrar lá? Por outro lado,
de que me valeria se eu estivesse morto?
Naquela noite a lua estava brilhando. Eu podia vê-la brilhar
lá fora da casa. Silenciosamente eu me levantei, oscilando um
pouco, por causa da tontura. Ninguém se mexeu para me
impedir. Todos estavam dormindo. Caminhei nas pontas dos pés,
em direção à porta. Ainda assim, ninguém se moveu. Saí ao ar
livre, para o ar fresco da noite e o meu coração batia apressado
por causa do medo. Por uns instantes eu até me esqueci que
estava doente.
Havia um caminho que saía da porta pela colina abaixo. Eu
queria encontrar água, a fim de despistar as minhas pegadas.
Minha perna doía, onde a flecha a atingira, e ela estava dura, por
isso eu tinha que arrastá-la. O caminho era áspero, e as pedras
me feriam os pés.
Quando cheguei ao pé da montanha, parei. Havia ali um
riacho. Banhei a minha perna. A água ferroava, fazendo com que
lágrimas brotassem em meus olhos. Prestei atenção aos sons,
para ouvir se estava sendo seguido. Não havia barulho algum.
Eu precisava acompanhar o rio, para baixo ou para cima,
caso contrário, eu me perderia. Rio acima, eu sabia, chegaria às
montanhas. E no outro lado delas haveria povoações. Rio abaixo,
eu não sabia o que iria encontrar. Portanto segui rio acima.
Caminhei durante quatro dias sem nenhum alimento. Não
via coisa alguma pelas margens de que eu tivesse certeza, fosse
comestível, e eu tinha medo das inúmeras plantas venenosas
que havia nas selvas. A febre me queimava. Alternadamente eu
me sentia, ora quente, ora frio. Era com um esforço tremendo
que levantava os pés. Às vezes eu até vadeava. Outras vezes
andava pelas margens rochosas.
O rio serpenteava o seu curso através das montanhas. Tive
que cruzá-lo muitas vezes para achar o caminho sobre as rochas.
Às vezes as correntes frias me apanhavam, me levantavam e me
atiravam de encontro às rochas e penedos, antes que eu
pudesse me safar delas. Teria sido muito mais fácil deixar que o
rio me levasse embora.
Meus pés estavam inchados de pisar em rochas pontiagu-
das. Muitas vezes fui impedido de prosseguir pelas quedas
d'água, com rochedos de ambos os lados e tive que escalar
aquelas pedras lisas, cobertas de musgo, arquejando, em busca
de algo que pudesse me segurar, a fim de não cair.
Na tarde do quinto dia, caí esgotado sobre uma pedra entre
dois enormes penedos. Recostei-me, descansando o corpo
contra a pedra fria e úmida.
Olhei para as minhas unhas; estavam azuis por causa da
água fria; e as mãos e dedos estavam de um branco pálido. Todo
o meu corpo. Todo o meu corpo gemia de dor; meu estômago
doía por causa da fome. Comecei a tremer; e não podia parar.
Olhei para a água, e meu olhar estava fora de foco.
Poderia prosseguir? Eu não via possibilidade. Necessitava
de comida, de descanso.
Alguma coisa, de um amarelo vivo, parecia mexer-se, para
cima e para baixo na superfície da água. Eu não podia concen-
trar os olhos naquilo. Achava que estava delirando. Esfreguei os
olhos. Consegui focalizar a água. Era um cacho de bananas que
se balançava ao longo da corrente de água. Agarrei-as quando
boiavam ali perto. Eu não podia acreditar. E as bananas também
estavam maduras; bananas verdes são terrivelmente amargas.
Passei por uns maus pedaços, tentando segurá-las no estô-
mago, mas à medida que comecei a digeri-las, sentia que me
estavam dando forças e uma nova esperança.
Levantei-me e comecei a andar rio acima. Em poucas horas
o rio atingiu uma enorme bacia, de onde aos poucos se foi
dividindo em diversos riachos. Subi pelo paredão da bacia e
finalmente alcancei o topo das montanhas.
Eu podia ver além os declives arborizados daquela área lá
embaixo. Em parte alguma havia sinal de vida. Em parte alguma
havia uma brecha entre as árvores — somente quilômetros e
quilômetros da mesma selva que eu havia atravessado.
Desabei num tronco caído. Qual o motivo para eu conti-
nuar? Mesmo que houvesse uma colônia por ali, eu nunca a
poderia achar.
Todos os dias, desde a minha fuga, eu pensava, se eu ao
menos pudesse atingir o topo das montanhas, estaria salvo.
Agora eu via que não estava em situação muito melhor do que
anteriormente. Não havia segurança em parte alguma.
Então, lembrei-me das bananas. Porventura Deus as havia
enviado para caçoar de mim, para me fazer pensar que havia
esperança, e depois tirá-la?
Lembrei-me das palavras: "Preparas-me uma mesa na pre-
sença dos meus adversários." Deus me havia dado, no meio das
selvas, uma mesa, uma mesa de bananas maduras. Iria ele se
esquecer de mim, agora?
Algures lá ao longe, pensei, olhando aqueles quilômetros de
árvores intocáveis, deve haver pessoas que poderão me ajudar.
Deus me mostrou o cacho de bananas quando eu precisava. Ele
poderá levar-me àquelas pessoas.
Não posso afirmar que eu tinha plena confiança de que ele
faria isso. Contudo, ergui o corpo dolorido daquele tronco e
comecei a andar novamente.
Encontrei o leito de um riacho no vale, lá embaixo e o
segui. Eu estava num estado de torpor. Parecia que estava
passando por um sonho muito ruim, do qual não podia acordar.
Andei pelo leito do rio o dia todo. Às vezes, eu preferiria me
deitar e deixar que a água me levasse embora. Mas continuava
caminhando.
A princípio não reconheci o barulho. Era alto e agudo —
semelhante ao barulho do pica-pau, apenas mais alto e mais
lento. Escutei com todo cuidado, pensando que fosse um barulho
bastante estranho de se ouvir no meio da selva. Algo dentro de
mim me alertou de que aquilo era importante. Alguma coisa
despertou em minha memória, mas eu não podia lembrar-me do
que era. Tratava-se de um barulho que eu já ouvira antes.
Resolvi investigar. À medida que me aproximava, pude me
lembrar. Era o som de um machado batendo na árvore. Um ser
humano!
Porventura Deus havia feito isso? Ele me havia levado até à
civilização?
Apressei-me em direção ao som, tropeçando, e as minhas
pernas se movimentando num gingado descontrolado, tentando
correr. Então vi dois homens cortando a base de uma enorme
árvore. Quando gritei para eles, perdi o equilíbrio e caí no chão.

10. DENTRO E FORA DA CIVILIZAÇÃO

— Quem vem lá? — gritou um dos homens, provavelmente


pensando que eu fosse um índio. Eu havia caído atrás de uma
moita, por isso eles não me podiam ver.
— Socorro — gritei. — Por favor, ajudem-me. Eles pararam
o trabalho e vieram ver-me.
— O que há com você? — perguntou um deles.
— Médico — foi tudo o que pude falar ofegante.
Eles se olharam com expressão de surpresa, depois me
ergueram e me recostaram numa árvore. Deram-me um bolinho
de milho e um pouco de açúcar. Abri a boca para lhes agradecer,
mas vi que não podia falar. Levou um tempo enorme para eu
poder comer o bolinho. Eu estava demasiadamente fraco para
poder mastigar muito bem.
Os homens pegaram a mula, puseram-me sobre ela e me
levaram à casa mais próxima. A esposa de um deles trouxe-me
um bocado de feijão vermelho, muito gostoso, duas broinhas de
milho e uma xícara de café, doce e delicioso. Comecei a sentir-
me mais forte. Enquanto eu socava a comida em minha boca,
perguntei a eles a que distância eu estava de Machiques.
— Machiques? Nunca ouvimos falar nisso.
Fiquei surpreso. Machiques era uma cidade bem conhecida.
— Qual é a cidade mais próxima daqui? — perguntei.
— Talamaque.
— A que distância fica? Nunca ouvi falar sobre ela.
— Dois dias de viagem ... andando.
— E qual é a maior cidade mais próxima?
— Rincon Honda.
— O quê? Colômbia? Estou na Colômbia?
Não parei para pensar nisso. Poucos minutos mais tarde eu
estava dormindo. Acordei numa cama, a primeira cama que via
depois de mais de um ano. O sol brilhava através da janela, no
mesmo ângulo que brilhava quando eu adormecera. Dormi
apenas alguns minutos, pensei. E depois, então, compreendi que
devia ser o dia seguinte.
Levantei-me, lavei-me e me vesti. Sentia-me melhor, se
bem que ainda me sentisse bastante fraco. Olhei no espelho. Eu
era igualzinho a um espantalho! As minhas roupas — que eu
recebera dos iucos, estavam em farrapos. Não era para se
admirar que os homens ficassem amedrontados.
Naquele dia repousei sem gastar muita energia. Meu corpo
não estava acostumado à alimentação, de modo que comi
apenas pequenas porções. Pois, caso contrário, eu ficaria
doente. Apanhei um mapa e tentei calcular onde é que eu
estivera durante o ano passado.
No dia seguinte os colonos me levaram a Talamaque. Eu
tinha algum dinheiro venezuelano, que conseguira conservar
durante todo o tempo que estivera nas selvas. Troquei-o por
pesos colombianos, fui a uma loja e comprei um bom par de
sapatos, um par de calças de brim, e uma camisa. Deixando, no
quarto de vestir da loja, as minhas roupas sujas e rasgadas,
dirigi-me para a rua, sentindo-me como um novo homem.
Eu desejava transpor a fronteira e ir a Bogotá, a capital da
Colômbia. Ali eu poderia decidir o rumo a tomar. Eu não possuía
dinheiro suficiente para chegar até lá, então comprei uma
passagem de trem para parte do caminho. Com isso, fiquei
totalmente sem dinheiro. Mas não me preocupei como é que eu
faria o resto da viagem. De um jeito ou de outro, isso seria
resolvido.
Que coisa maravilhosa estar sentado num trem e deixar
que ele me levasse, sem esforço algum, sem nenhuma
preocupação. Jamais antes eu achara tão gostoso andar de trem.
A sua velocidade parecia inacreditável. Eu estendi as pernas no
banco da frente e me descontraí.
No meio da viagem o trem parou, e alguns soldados entra-
ram. Começaram a andar pelo vagão onde eu me encontrava,
olhando os documentos de todos os passageiros.
— Psiu, que é que eles estão fazendo? — perguntei a um
homem que estava no outro lado do corredor.
Ele encolheu os ombros. — Eles estão procurando os guer-
rilheiros comunistas. Às vezes eles os prendem nos trens.
Um soldado baixinho, atarracado, com um bigode basto e
grande, aproximou-se de mim. — Por favor, posso ver os seus
documentos?
Eu sacudi a cabeça. — Sinto muito, mas não tenho nenhum.
— Você não tem nenhum? Por quê?
— Eu simplesmente estou vindo das selvas.
Muitas cabeças se voltaram em minha direção para me
olharem. O soldado tinha uma aparência inflexível. — Será
melhor você me acompanhar — disse.
Ele me levou ao seu comandante, que, por sua vez,
também não acreditou na minha história. Fui retirado do trem. O
comandante telegrafou para Bogotá, informando que havia
capturado um expatriado, suspeito, que aparentemente estivera
foragido nas selvas.
Levaram-me para um posto militar, onde me serviram um
bom almoço, bastante farto. E então o comandante me informou
que precisaria enviar-me para Bogotá para um inquérito.
Tudo o que o fiz foi encolher os ombros. Intimamente eu
estava rindo. Eu não tinha mais dinheiro e somente a passagem
que me levaria a meio caminho de meu destino. Agora, a milícia
militar estava me alimentando e enviando para onde eu
desejava ir! Eu tinha um Amigo excelente lá nos lugares altos.
Contei a minha história, lá em Bogotá a um bom número de
oficiais de alta patente. Eles não acreditaram em tudo, mas eu
os convenci de que realmente estivera nas selvas. Telegrafaram
para a embaixada norte-americana, que naturalmente nunca
ouvira falar de mim, visto que eu não estava registrado na
Colômbia. Não pude convencer os oficiais de que deveriam
investigar na Venezuela. Eles tinham a certeza de que aquela
parte de minha história era falsa.
— Ninguém — disseram eles — entra no território dos
motilones e sai vivo.
Tentando fazer-me cair em contradições, eles me enviaram
ao Dr. Gregorio Hernandez de Alba, chefe da comissão dos índios
da Colômbia. O Dr. Hernandez havia lido um artigo sobre os
índios iucos, escrito por um antropólogo e então ele me inquiriu
a respeito da cultura deles. O que eu lhe disse concordava,
naturalmente.
— Pois bem — ele disse —, eu creio em você. Você esteve
com os iucos.
— Mas e a respeito dos motilones! — perguntei. — O senhor
não crê que eu estive com eles?
Ele encolheu os ombros e sorriu. — Jamais alguém esteve
em contato com os motilones, portanto não há jeito algum de
comprovar a sua história.
Ele estendeu a mão. — Não tem importância, mesmo assim
eu creio em você.
Ele se responsabilizou por mim, legalmente, de modo que
eu poderia conseguir os documentos oficiais para permanecer na
Colômbia. Também me deu algum dinheiro e me ajudou a achar
uma pensão onde eu poderia ficar.
Alguns dias mais tarde encontrei-me numa igreja Batista,
em Bogotá, com um casal de norte-americanos, os Martin. Eles
me convidaram a ficar com eles, deram-me dinheiro para
comprar roupas e outras coisas necessárias, e me apresentaram
a muitos de seus amigos.
Eu passava a maior parte de meu tempo andando por
Bogotá. Cada dia que passava, ia-me sentindo bem melhor. Era
uma coisa extraordinária poder comunicar-me livremente.
Sentia-me em casa, e quanto mais pensava nisso, menos
vontade eu tinha de voltar aos motilones. A vida era dura nas
selvas. Eu havia passado quase dois anos no seu seio, e na maior
parte do tempo estive doente, comendo um alimento horrível,
quando comia algum, e incapaz de me comunicar muito bem:
Portanto, por que deveria eu voltar? Que é que havia lá que me
atraía?
Bem, pensei, eu deveria estar falando aos índios a respeito
de Jesus. Foi para isso que Deus me enviou aqui.
Como é que eu iria fazer isso? Eu não devia voltar às selvas
e transformá-los em norte-americanos, como alguns dos mis-
sionários parece que estavam fazendo. E com todos aqueles
mitos e histórias indígenas, lendas e ritos estranhos, onde e
como é que Jesus Cristo poderia apelar para eles?
Mas um homem não abandona a sua esposa simplesmente
porque é penoso alimentá-la. Apesar do quanto desejava estar
longe das selvas, eu sabia que iria voltar lá. Eu precisava voltar.
Era lá que Deus desejava que eu estivesse. Ele afirmara isso
tantas vezes que eu não podia ter dúvida alguma. E, o mais
importante, ele despertara em mim um amor pelos motilones,
apesar de tudo o que eu passara, enquanto estivera com eles,
que parecia inacreditável. Eu sabia que isso não fazia sentido,
mas quando me perguntavam acerca das minhas aventuras,
descobria que mais e mais eu falava a respeito dos motilones, da
maneira que viviam, e gastava menos tempo, todas as vezes,
em falar no que me acontecera. Eu amava aquele povo. Sentia
orgulho dele.
No entanto, Bogotá tinha uma atração. Eu sentia prazer em
estar ali. Desejava ficar ali tanto tempo quanto me fosse
possível.
"Pois bem, Senhor, voltarei", eu disse. "Mas não tenho meio
algum para poder ir lá. Quando quiseres que eu volte, tu darás
um jeito para que eu possa ir."
O casal com quem eu morava, os Martin, trabalhava para a
companhia de Petróleo Texaco. Eles estavam interessados na
minha história, e o Sr. Martin desejava que eu a contasse ao
superintendente da Companhia Petrolífera Colombiana, que está
associada à Texaco e Mobil. Concordei em fazer isso, devido à
bondade do Sr. Martin para comigo.
Frank Lerory, o superintendente, ouviu a minha história
com toda atenção. Quando terminei, ele se recostou na cadeira e
franziu a testa, como se fosse me dar más noticias.
— Sr. Olson, nós contratamos dois excelentes antropólogos
para entrarem em contato com a tribo conhecida como dos
motilones. Como sem dúvida o senhor já ouviu, parece que são
os motilones que atacam os nossos funcionários.
— Os antropólogos, contudo, em ambas as ocasiões, se
comunicaram com os índios iucos, e afirmaram que eles eram
conhecidos como os motilones —. Ele encolheu os ombros e
ergueu as mãos para o alto. — Por que, então, devemos aceitar o
que o senhor está falando?
Mencionei algumas das diferenças na maneira de viver
entre os motilones e os iucos.
— Oh, pois bem — disse ele. — Creio que o senhor sobre-
voou aquela área. E qualquer pessoa pode fazer isso.
Isso me enraiveceu. — Não estou interessado em que o
senhor creia ou não em mim — eu disse. — Eu simplesmente vim
aqui porque o Sr. Martin me pediu para fazê-lo.
Ele demonstrou certo aborrecimento. — Então, que é que o
senhor espera receber de nós?
— Não desejo coisa alguma do senhor — eu disse. "Eu
simplesmente vim a pedido de um amigo."
Ele abanou a mão. — Pois bem, o senhor veio. Muito
obrigado.
Levantei-me e virei-me para sair, sem sequer dar-lhe um
aperto de mão.
— Espere um minuto — disse ele. — O senhor deseja voltar
ao território dos motilones?
Eu me virei. Imediatamente me lembrei do que havia orado
alguns dias atrás.
— Sim — eu disse simplesmente.
— Temos um DC-3 que partirá depois de amanhã para o rio
de Ouro — ele disse — ; creio que poderei arranjar para que o
senhor vá junto, se quiser ir. Ali é o ponto mais próximo que
poderá chegar até o território deles.
Lentamente sacudi a cabeça. — Muito obrigado. Sei que é.
Eu gostaria imensamente de poder ir.

12. UMA ESPERA IMPACIENTE

Após um mês em Bogotá, as selvas pareciam estranha-


mente quietas e serenas. Montei o meu acampamento junto à
margem de um riacho, e esperei que os motilones me achassem.
O acampamento estava na junção de três trilhas diferentes
usadas por eles, e eu sabia que não estava muito distante da
habitação dos motilones. Mas teria sido perigoso simplesmente ir
até eles. Em vez disso, deixei vários presentes nas picadas, para
que os motilones os achassem.
Meus equipamentos pareciam luxuosos comparados ao que
eu possuíra anteriormente. Eu possuía um encerado plástico
para me proteger das chuvas que caíam à noite, e suficiente
alimentação para uma semana ou mais. Eu tinha, inclusive, três
livros: uma Bíblia, Dr. Jivago e Selva Verde em Pano Vermelho,
uma aventura antropológica com os índios iucos. Eu estava
muito satisfeito comigo mesmo. Logo eu estaria de volta, no
meio dos motilones, pensei. Durante a expectativa, eu podia ir
gozando a selva, fazer as minhas leituras e descansar.
A civilização estava a muitos quilômetros longe de mim. Do
rio de Ouro, onde terminava o território da companhia petro-
lífera, um fazendeiro me havia levado rio acima até ao ponto
onde tivera coragem de chegar. E então eu entrara novamente
nas selvas, perdendo várias vezes o caminho, indo e voltando, e
tentando compreender, pelo instinto, essas picadas indígenas
tão emaranhadas. Finalmente eu encontrara um local para
acampar.
Todos os dias eu ia observar os presentes que colocara nas
picadas. Eu amarrara um pedaço grande de fazenda vermelha
nos galhos de uma das picadas, amarrara às árvores pequenos
saquinhos contendo açúcar e sal, e deixara três machadinhas
"deitadas" no solo de uma outra picada. Elas estavam deitadas
porque os motilones haviam declarado guerra, segundo me
informara um dos empregados da companhia petrolífera,
espetando nas picadas as suas flechas de ponta para baixo. Eu
não desejava confusão alguma: eu vinha numa atitude de paz.
Todos os dias eu gastava uma boa parte do dia observando
os presentes, pois eu precisava enfrentar e lutar contra os cipós
e galhos que cobriam as diferentes picadas. Depois de
investigar, eu voltava para o meu acampamento. Ele estava
situado num outeiro, à sombra de uma árvore de mogno, cujas
raízes se projetavam para fora, semelhantes aos botaréus de
uma catedral. Era um lugar confortável, com exceção dos
insetos. Usualmente eu costumava pescar à tarde, cozinhava
algum alimento no fogo que eu mantinha sempre aceso, e
depois lia.
Passou-se uma semana, depois duas. Não havia sinal algum
de que os presentes tivessem sido tocados. As semanas se
transformaram num mês. O meu alimento terminara. A selva já
começava a me parecer apreensiva. Os gritos dos animais,
muitas vezes, não me deixavam dormir a noite toda. Eu sabia
que havia tigres que sorrateiramente buscavam suas presas
durante a noite. As vezes, quando ouvia o grito de um animal, eu
chegava a tremer. Durante o dia, as grandes árvores estavam
sempre gotejando e pareciam escuras e sombrias. Eu desejava
poder ver o sol através da vegetação da selva. Havia um sentido
amedrontador na quietude, como se a minha presença tivesse
feito calar a selva toda; como se qualquer palavra proferida
ecoasse incessantemente na quietude. As vezes, para aliviar
aquele silêncio, eu ficava ali de pé, e gritava várias frases em
todas as línguas que eu podia me lembrar.
Comecei a pensar se realmente os meus presentes trariam
algum resultado. Todos os dias, quando fazia a ronda e ao
contornar uma picada, eu esperava ver alguma mudança. Todos
os dias eles estavam exatamente como eu os deixara. Comecei a
ficar impaciente. Depois de lutar durante várias horas para
chegar aonde estavam os presentes, eu dava uma olhadela com
todo desprezo e saía. Eu já lera os meus livros várias vezes e já
me cansara deles. Eu desejava que acontecesse algo.
A minha impaciência parecia ridícula. Ali estava eu, que
entregara toda a minha vida aos motilones, e não podia'ficar nas
selvas, algumas semanas, esperando confortavelmente. Por que
toda aquela pressa?
Todas essas considerações racionais foram postas de lado
no entanto, quando fiquei sumamente feliz, porque após dois
meses de espera, descobri que os meus presentes haviam
desaparecido. Eu quase não podia acreditar. Examinei com
cuidado para ver se era exatamente o mesmo lugar. Não havia
dúvida alguma; eu conhecia a localização tão bem quanto a
palma da minha mão. Podia descrever cada ramo da árvore. Os
presentes haviam sido levados.
Coloquei mais alguns presentes. No dia seguinte também
aqueles foram levados. Novamente coloquei outros presentes.
Naquele dia eles foram substituídos por um arco e uma flecha.
Aquilo era um grande passo: eles estavam prontos a trocar os
presentes.
Desta vez resolvi colocar os presentes e ficar ali por perto,
para ver se eles os aceitariam de mim pessoalmente. Eu tinha
certeza de que na selva havia olhos que me espreitavam. Eu os
queria ver.
Então me sentei na picada e esperei. Passaram-se várias
horas. Não vi e tampouco ouvi coisa alguma. Eu tinha o meu
equipamento de pescar e ali perto havia um riacho; então resolvi
pescar. Provavelmente eu os ouviria se viessem buscar os
presentes.
Quando voltei, depois de pescar, os presentes já não esta-
vam mais ali. No lugar deles havia quatro flechas enterradas no
solo, de ponta para baixo.
Era um aviso dos motilones. Eu devia fugir para salvar a
vida. Mas se fugisse agora, provavelmente nunca mais os veria.
Eu teria perdido todos aqueles meses e anos. Minha consagração
teria sido uma fase vazia de minha vida.
Ajoelhei-me e orei. Parecia ser a única coisa lógica que eu
poderia fazer. Quando me levantei, tive uma idéia. Arranquei as
flechas e as coloquei estendidas, uma por uma, ali no chão.
Depois apanhei mais alguns presentes e os coloquei sobre as
flechas. Talvez aquilo os convenceria de que eu vinha com
sentimentos de paz.
Comecei a dirigir:me de volta para o meu acampamento,
seguindo a picada. À medida que avançava, encontrava outros
sinais. Havia uma camisa branca, toda cortada e feita em trapos.
Mais além, junto à picada, encontrei uma raiz de mandioca
aberta ao meio, onde haviam esfregado terra dentro dela.
Que é que esses sinais indicavam? Porventura os motilones
iriam cortar o meu corpo ao meio e esfregar terra dentro dele?
Iriam retalhar o meu corpo?
Nisso ouvi um farfalhar na moita. Parei à escuta. O farfalhar
parou também.
Era a minha imaginação, pensei. Comecei a caminhar
novamente. Porém havia sons bem definidos junto à picada. Eu
estava sendo seguido.
Procurei ver através daquela vegetação verde e espessa.
Mas não vi coisa alguma. Continuei a caminhar, olhando ao meu
redor constantemente, esperando sentir uma flecha chiando em
minhas costas.
Lembrei-me de uma frase em motilone que eu aprendera
com eles quando estivera lá anteriormente. Tinha plena certeza
de que significava "venha cá". Eu a gritei para os índios.
"Guaycaba dobucubi! Guaycaba dobucubi!"
Depois de proferi-la várias vezes, novamente ouvi aquele
farfalhar, desta vez como se alguém se estivesse afastando de
mim, e voltando para as selvas. Então houve completo silêncio.
Mais tarde descobri que "dobucubi" queria dizer: "Vocês aí,
preguiçosos, que não valem nada", portanto eu estava gritando:
"Venham seus preguiçosos, vocês que não valem nada." Mas
naquela ocasião eu não sabia. Não sabia o que fizera, então.
Dois meses de espera haviam-se transformado em nada por um
erro estúpido que eu nem sequer podia identificar. Senti-me
completamente frustrado. Minhas esperanças, que haviam sido
tão grandes naquela manhã, desapareceram. Comecei a correr
pela picada em direção ao meu acampamento, debatendo-me
contra os espinhos e os cipós. Tudo o que eu desejava era poder
sair daquele lugar. Eu já suportara dos índios tudo o que fora
possível. Eles eram estúpidos e irracionais.
Então corri, arfando furiosamente, e tampouco sentindo o
cansaço. Senti, então, toda aquela solidão dos dois meses
passados ali. Eu sentia que as moitas me estavam estraçalhando
as mãos e o rosto, mas aquilo até me parecia bom. Eu queria
partir, esquecer os índios.
Penetrei abruptamente na clareira onde estava o meu
acampamento, e fiquei ali por uns instantes, arfando. Depois,
então, apanhei o machado e corri até à água, e comecei a
derrubar uma árvore de madeira própria para se construir uma
balsa. Eu construiria uma jangada, e flutuaria para fora dali.
Trabalhei num frenesi. Logo a árvore se balançou, caindo
com um choque no rio. Imediatamente parti para uma segunda,
aprofundando o corte do machado. Essa também caiu. Fui a uma
terceira.
Então olhei para cima. Ali estavam os motilones — seis
deles, com as cordas de seus arcos esticadas. Sem pensar, atirei
o machado ao chão e me escondi atrás de uma árvore. Eu os
espiei. Aparentemente não davam indicação alguma de que
desejavam me matar. Eles, simplesmente estavam esperando,
segurando os seus arcos de prontidão.
Saí de trás da árvore. Estendi as mãos, mostrando que elas
estavam vazias. Minha raiva havia desaparecido. Olhei para os
seus rostos em busca de algum sinal; minhas mãos tremiam
levemente.
Lentamente eles relaxaram a posição dos arcos. Um deles
avançou em minha direção. Ele era aquele de pés voltados para
dentro. Olhei mais cuidadosamente para o seu rosto. Havia uma
pequena cicatriz num dos lados da boca.
Sorri para ele, com a esperança de que ele me
reconhecesse. Ele retribuiu o sorriso. Sorri mais abertamente. Ele
fez o mesmo. Ele me conhecera. Falou uma palavra com os
outros homens. Eles abrandaram. Então ele deu aquela risada
grande e longa, pela qual eu o conhecera no outro lado das
montanhas. Lá ele fora a única pessoa amiga, e agora eu vinha
encontrá-lo aqui a centenas de quilômetros.
Os homens começaram a falar entre si. Eu podia ver que
não estavam zangados; até nem pareciam me vigiar tão de
perto. Depois, então, o homem da risada fez sinal para que eu os
seguisse, e nós partimos. Desta vez não havia nenhuma lança
em minhas costas.
Quando chegamos à casa comunitária, causei uma grande
comoção. Os motilones me cercaram, cutucaram, esfregaram.
Eles estavam tão interessados nos cabelos de meus braços e
pernas. Eu notara anteriormente que os motilones não os têm.
Um jovem tocou-me o braço, depois segurou um pouco de
cabelos loiros e puxou-os.
— Ui! eu disse. A dor fora excruciante. Porém ele apenas riu
e todos os outros riram com ele. Eles puxaram a minha camisa,
os meus shorts, como se não tivessem certeza de que aquilo não
fazia parte de meu corpo. Eles me deram socos e me apertaram
os músculos.
Arrancaram mais uns punhados de meus cabelos. Doeu,
mas, é claro, eles estavam-se divertindo. Logo eu mesmo
precisei rir. Eu estava sorridente. Eles não iriam me ferir. Eu
fizera novo contato com eles. Mais uma vez tinha a oportunidade
de alcançar os motilones.
Naquela noite me deram alimento e uma rede na qual eu
poderia dormir. A rede estava pendurada tão alta nos caibros,
que foram necessárias várias tentativas para alcançá-la. Na
primeira vez que tentei, caí, e todos riram. Mas finalmente
consegui, e sentindo-me um tanto inseguro, tentei relaxar. A
rede balançava suavemente.
Olhando para o teto, estudei aqueles caibros curvos, tão
meus conhecidos. E então vi algo que se parecia com um ratinho
que descia por uma das cordas e caminhava em minha direção.
Tinha um formato chato e bastante esquisito para ser aquele
animal. Quando estava a uma distância de um braço, vi que era
uma enorme barata, talvez de doze centímetros de
comprimento. Dei um pequeno grito e atirei-a ao chão. Apa-
rentemente ninguém notara. Voltei a deitar-me na rede e ri
nervosamente.
A casa estava em silêncio. Eu ouvia, de vez em quando,
apenas alguns fragmentos da linguagem modulada e explosiva
dos motilones.
Logo, pensei, compreenderei isso.
13. DESÂNIMO

No dia seguinte permutamos os nossos nomes. Apontei


para mim mesmo.
— Bruce Olson — pronunciei claramente.
A maior parte das pessoas ao meu redor tinha um olhar
confuso. Um dos homens tentou dizê-lo. "Bruchalonga." Ele
tornou a experimentar. "Bruchko."
— Bruce Olson — eu disse.
Ele sorriu e abanou a cabeça. — Bruchko — ele disse.
Virando-se, disse alegremente a um homem perto dele:
— Bruchko — ; tentativamente aquele índio repetiu-o
— Bruchko —. Logo o grupo todo havia espalhado o meu
nome por toda parte. "Bruchko" eles repetiam, apontando para
mim.
Então fiquei sendo Bruchko.
E também eu era uma celebridade. Eles imitavam o meu
modo de falar, apertavam-me os braços, ou passavam a mão no
meu estômago. Às vezes, quando eu estava deitado na minha
rede, duas ou três crianças subiam na rede e ficavam ali comigo,
falando e trepando por cima de mim, como se eu fosse uma
grande peça de estatuária.
Eu comia uma boa quantidade de peixe defumado e man-
dioca fervida. Tudo era delicioso. O primeiro homem a me
reconhecer, cujo nome era Arabadoyca, usualmente era aquele
que me trazia o alimento, numa grande folha de bananeira. Eu
descia de minha rede e comia, enquanto ele ficava ali de pé,
sorrindo, juntamente com o grupo usual de curiosos. Tudo o que
eu fazia, parecia interessá-los. E eles estavam sempre rindo,
cantando ou conversando.
Logo cedo de manhã, os homens saíam à caça, e as
mulheres começavam o seu trabalho diário. As crianças
brincavam de pega-pega, ou faziam pequenas flechas e as
atiravam a um alvo. Horas mais tarde, os homens voltavam
trazendo o que haviam caçado e então haveria uma refeição, e
todo mundo desfrutava o aroma da carne assada, gritando de
um lado para outro, no centro da casa comunitária. Cada família
cozinhava a sua própria comida, e a comia com prazer todo
especial. Quando estavam satisfeitos, os seus estômagos
ficavam salientes, e eles caminhavam em volta, acariciando o
estômago uns dos outros, como mães orgulhosas quando estão
comparando seus bebês.
Parece que todos ali estavam gostando de mim, e eu me
sentia animado. Eu já estava me aplicando intensamente para
aprender a língua dos motilones, mas via que seria um processo
muito longo e lento.
Lá em Minesota eu trabalhara com clubes de meninos, e
conseguira fazer uma "mágica", de retirar o meu olho e limpá-lo.
Diversos meninos estavam na minha rede quando me lembrei
dessa mágica. Peguei cada um deles, sentei-os no chão, e me
preparei para apresentar o meu papel. Outras crianças se
aproximaram para ver o que estava acontecendo.
Coloquei meus dedos num dos olhos, e os mexi de um lado
para outro, fazendo um certo barulho com os dentes. Depois,
fechando o olho, fiz de conta que o estava tirando da órbita,
soprei sobre ele, limpei-o com a camisa. Coloquei-o novamente
na órbita, dei uma viradinha para ajustá-lo, e depois o abri. Ah!
Agora era bem melhor. Eu via com muito mais clareza.
As crianças ficaram encantadas. Pediram que eu fizesse o
mesmo com o outro olho. Então eu o fiz. Depois, fiz de conta que
estavam cruzados. Aquilo foi uma grande sensação. A maior
parte das crianças correu para fora a chamar outras crianças ou
os seus pais, a fim de que pudessem ver aquele maravilhoso
espetáculo.
Eu estava tão satisfeito de ser tão bem recebido. Mas à
medida que as pessoas se iam reunindo ali, deduzi que aquela
cena deveria ter um significado prático na aprendizagem da
língua. Então apanhei um caderno e lápis que estavam numa
prateleira, que rodeava o interior da casa, e enquanto eu
apresentava a minha mágica, prestava atenção ao que o povo
dizia, e ia anotando tão bem quanto me era possível, o que
estava ouvindo.
Quando tirei os meus dois olhos, as crianças disseram al-
guma coisa parecida com isto: "Agora ele colocará os seus olhos-
cruzados", e então eu aprendi o verbo no futuro.
Quando coloquei um olho em minha boca, e o engoli, houve
uma expressão de surpresa. "Ele o engoliu!" um dos garotos
disse num sopro. Isso me deu o verbo no passado.
Quando arrotei o olho, ouvi um verbo no passado, mas com
um significado de algo que continua no presente.
Apresentei a minha mágica a cada um dos motilones na
casa comunitária, umas dúzias de vezes, até que tive a
impressão de que os meus olhos se tornariam pretos e azuis.
Mas, ao mesmo tempo, o meu caderninho estava-se enchendo
de palavras da língua dos motilones.
Também, os outros jogos dos quais eu me lembrava foram
úteis. Eu fingia cortar o braço, com a minha mão acima da
manga da camisa, e depois puxava o braço para fora da manga,
como se estivesse quebrado. Os motilones riam a valer, depois
cortavam os seus próprios braços e puxavam. Mas nada
acontecia. Eles olhavam com certo espanto, e eu dizia: — Por
que vocês não deixam que eu faça isso no seu braço? — Eles
riam e diziam: — Não, faça no seu próprio braço —, e saiam
correndo, fugindo de mim.
Eu deixava o braço tenso, e o virava em círculos, como se
estivesse quebrado no cotovelo e pendurado. Naturalmente, os
motilones estavam abismados, pois não conheciam a farsa.
Eles tinham uma capacidade inacreditável para ver essas
apresentações vezes seguidas. Mas, com o tempo, todo mundo
se cansou disso. E depois de algumas semanas a maior parte dos
motilones havia perdido interesse nelas, e eu também.
Tentei interessar-me mais na vida dos adultos ali na casa
comunitária. Um dia eu observava Arabadoyca fazendo as suas
flechas e até tentei fazer uma para mim mesmo. Naturalmente,
ela estava errada por completo, mas Arabadoyca era um
professor muito paciente. Era interessante, mas também era
necessário certa dose de prática. Após alguns dias, procurei
outra coisa para fazer.
Comecei a observar as mulheres quando teciam. Geral-
mente elas nunca deixavam um homem sentar-se ali e observar,
mas desde que eu era pessoa de fora, elas me permitiram,
apesar de que cochichavam e enrubesciam enquanto eu estava
ali. A tecelagem fora um dos meus passatempos favoritos, e eu
me interessei intensamente em observar as mulheres tecerem o
fio, com aquele algodão rústico que haviam colhido, e depois
tecerem aquela fazenda áspera para as suas saias. Era a hora de
camaradagem social para elas, e ao mesmo tempo eu podia
ouvir muita conversa entre elas. Naturalmente, eu não entendia
coisa alguma, mas ia-me acostumando aos sons da língua, que
eu julgava me ajudariam mais tarde. Comecei a pensar que
gostaria de ter o meu próprio tear onde eu pudesse trabalhar.
Mas eu sabia que não era uma idéia muito boa. Se eu passasse
as horas tecendo, logo os homens me expulsariam, pois aquele
era o trabalho das mulheres. Era interessante, durante um dia,
dois ou talvez três, observar a fabricação de flechas, as mulheres
tecendo, mas depois desse tempo, não se agüenta mais.
Comecei a almejar que o dia tivesse apenas três horas, e
que o resto do tempo fosse separado para dormir. Eu ficava em
minha rede horas seguidas durante o dia, olhando para o alto
teto, desejando poder dormir. Comecei a ir para a minha rede
muito cedo, logo depois do jantar. Mas então eu acordava às
duas da manhã, por isso me forcei a ficar acordado à noite. Eu
ficava olhando para alguma coisa, ou então me esforçava a
escutar as conversas sem sentido, para mim, até que fosse
bastante tarde para eu ir dormir.
Um nevoeiro de depressão começou a encher os meus dias.
Parecia que o sol não se movia de jeito algum, e cada dia durava
muito mais tempo, e que todos os dias eram semelhantes.
Eu não me deveria sentir infeliz. Os motilones eram alegres,
gentis, um povo amigo. Um dia observei uma das mães tecendo,
segurando a filha ao colo. A criança pôs as mãos na fazenda e
misturou todos os fios até que todos eles ficassem emaranhados.
Mas a mãe não a repreendeu. Ela simplesmente a colocou de
lado, e com paciência reparou o dano feito; depois lhe mostrou
como é que ela poderia ajudar a cortar o fio.
Certa vez, vi dois irmãos brigando. A mãe, perturbada,
apanhou uma cabeça de galinha, e gentilmente bicou a perna de
um dos meninos. Ela o havia tocado somente de leve, mas o
menino desandou a chorar porque ele havia entristecido a mãe.
Essa foi a maneira de punição mais forte que eu vi aplicada, ou
que fosse necessária.
Mas havia outras coisas, as quais não me atraíam muito. O
lar comunitário, abrigando perto de oitenta motilones, deveria
ser um excelente lugar para um viver comunitário. Porém cada
família vivia à sua moda. Se uma família, porventura, tivesse
alimento sobrando, num determinado dia, ela o jogava fora,
mesmo que a família ao seu lado estivesse faminta. Não havia
laço de ligação entre as famílias. Uma família podia morar
próxima da outra por certo tempo, sem contudo se chamarem
pelo nome.
E a população da casa estava constantemente em
mudança. Uma família simplesmente decidia partir, ia-se
embora, sem nenhum aviso antecipado. Outras vezes, diferentes
famílias surgiam ali, acomodavam-se conosco, sem que qualquer
pessoa tomasse conhecimento delas, ou mesmo dando demons-
tração de que haviam chegado. Às vezes as semanas passavam,
antes que alguém soubesse quem eram eles.
Nunca havia derramamento de lágrimas, e nenhum sinal de
dor ou de tristeza fora jamais mostrado. Os motilones pareciam
não ter tais sentimentos. Os sorrisos e as constantes
gargalhadas pareciam sem sentido.
Quando se chega ao âmago da questão, acredita-se que
esses índios sejam incivilizados, sem nenhuma espécie de
sentimento que se possa observar, pensei.
Li e reli a Bíblia várias vezes, ate que ela me parecia velha.
Eu sabia qual era o versículo que se seguia ao que eu estava
lendo. Lembrava-me dos pensamentos que tivera a respeito
dessas passagens, e as orações que eu fizera. Na verdade, havia
uma evidência muito clara de que Deus ouvira aquelas orações.
Afinal de contas, eu estava ali, vivendo pacificamente com índios
motilones, de tanta má fama.
Mas todo entusiasmo já havia terminado. Eu viera para falar
a respeito de Jesus Cristo aos índios motilones. Porventura
estava eu cumprindo isso? Eu não conhecia a língua, a não ser
umas frases muito rudimentares.
Pensava a respeito de alguns grandes missionários cujas
biografias eu lera. Não havia nada nas suas vidas que aparen-
temente me poderia ajudar na situação em que eu me encon-
trava. Podia enfrentar os grandes obstáculos, mas que faria eu
com aquele tédio horrível e enervante? Comecei a pensar a
respeito dos missionários semelhantes àqueles que eu vira em
Minneapolis, e os missionários que trabalhavam no Orinoco, os
quais tanto me criticaram. Após quatro anos de trabalho, eles
voltavam para seu país, a fim de contar a respeito de seus
convertidos.
Realmente o que me deixou acabrunhado foi pensar a
respeito disso. Eu já estava na América do Sul havia três anos.
Onde é que estavam os meus convertidos? Lá na universidade
estavam os meus amigos, com toda certeza, porém eu não os
poderia contar como convertidos. Eram simplesmente meus
amigos, com os quais eu tivera a oportunidade de compartilhar.
E após três anos, eu não tinha dinheiro algum, e nenhuma
junta de missões para pagar a minha passagem de volta ao meu
lar. E, na verdade, o único lugar no mundo onde eu tinha a
certeza de conseguir algo para comer, era nas selvas, ao lado
dos motilones.
Então me senti desanimado. Cada manhã eu tinha pavor de
pensar em comer. O alimento tornara-se tão insípido, ou mais
ainda, do que o alimento dos iucos. Sem sal ou açúcar, havia
certo limite quanto ao seu paladar. E muitas vezes, quando havia
apenas carne de macaco ou larvas, após ingeri-los eu os
vomitava. Minhas pulgas estavam cada vez piores, e eu tinha
uma erupção na pele, por estar constantemente sujo.
E por que a língua era tão difícil? Nos primeiros dias eu
julgava que estava progredindo, mas agora ela me parecia muito
mais difícil de aprender do que a língua dos iucos. Eu não queria
passar três meses inteiramente sem me comunicar, como fizera
com os iucos. Eu estava sempre à espera de oportunidades, mas
não surgiam.
Certa manhã, completamente desanimado pelas horas
intermináveis que tinha diante de mim, desci da rede e fui lá
fora. Quando me abaixei para sair pela porta, escorreguei e
quase caí. Eu pisara numa porção de excremento humano.
Limpei o sapato, tão bem quanto me foi possível, e depois fui
sentar-me num tronco de árvore. Eram mais ou menos onze
horas. O sol estava a pino, fazendo com que o dia estivesse
muito quente e cheio de vapor. Não havia árvore alguma junto à
casa para dar-lhe sombra e conforto. As moscas zuniam ao sol
sobre outros montes de excremento.
Por que eles precisavam defecar justamente ali, junto à
porta? Eles não poderiam ir a outro lugar para as suas neces-
sidades, onde não importunariam pessoa alguma?
Justamente naquele instante, uma das mulheres saiu à
porta e atirou um punhado de lixo: cascas de banana e de
abacaxi, e tudo mais que restara dos peixes e dos macacos que
comêramos.
Pelo padrão dos índios, naturalmente, ela fora higiênica.
Uma outra mulher não jogou fora o lixo durante uma semana.
Ele ficara lá no chão até que cogumelos cresceram.
Que lugar imundo! Senti um aperto no peito. Fechei os
olhos para afastar tudo aquilo.
Uma velha saiu da casa e caminhou em minha direção,
dando um largo sorriso com sua boca desdentada. Ela se
esfregou em mim, de maneira amistosa, tagarelando. Ela
cheirava mal. Olhei para os seus cabelos pretos, grossos e
emaranhados. Os piolhos andavam por toda parte. Seus seios
flácidos estavam caídos.
Levantei-me e me afastei dela, sentindo-me mal. Ela me
seguiu, colocando suas mãos na minha cintura e me abraçando.
Depois ela riu — um riso estúpido, lunático. Olhei para as suas
mãos; elas estavam encardidas. Delicadamente retirei-as de
mim, e caminhei um pouco em direção à selva. Ela me seguiu a
certa distância, com as suas risadinhas.
Eu nem sequer podia dizer a ela que se afastasse. Uma
coisa tão simples e no entanto eu não podia proferi-la. Não havia
ali uma alma que pudesse me compreender.
Quanto tempo levaria? Três meses? Quatro? Será que eu
poderia comunicar-me de maneira compreensível dentro de um
ano?
Há um antigo hino evangélico que diz: "Se você não puder
suportar a cruz, então não poderá usar a coroa." Cheguei à
conclusão de que eu não queria a cruz; queria a coroa, com
todas as suas pedras preciosas, sem contudo carregar a cruz.
Olhando novamente para aquela velha, tampouco tinha a
certeza de que desejava a coroa.
14. IRMÃO POR PACTO

Fiquei ali deitado na minha rede, olhando as baratas cami-


nhando pelo teto. Que iria eu fazer hoje? Por acaso poderia dar a
minha contribuição a alguma coisa... fazer algo que pelo menos
pudesse ajudar esse povo?
Um garoto me trouxe um pouco de alimento. Desci da rede.
Não sentia vontade alguma de comer.
O menino olhou para mim com um largo sorriso — um
sorriso amistoso e eu me lembrei de que já o vira antes. Na
verdade era ele que várias vezes fora a pessoa indicada para me
levar o alimento.
Pus-me de cócoras para comer, e ele ficou por ali. Fiz sinal
para que se sentasse, e ele se sentou. Era escuro, musculoso e
tinha a aparência de um menino de treze anos, pois ele ainda
não tinha o fio-G, que era o sinal entre os motilones de que já
era homem feito.
Ofereci-lhe um pouco de minha comida, porém ele recusou.
— Qual é o seu nome? — perguntei.
— Cobaydra — ele disse.
O meu vocabulário só ia até aí. Eu já estava com os motilo-
nes fazia quase um ano. Ficamos ali sentados, olhando um para
o outro, enquanto eu comia. O tempo todo ele mantinha aquele
sorriso em seus lábios. Quase tive o ímpeto de colocar os meus
braços ao redor dele e abraçá-lo.
Era o dia da expedição de pesca para os motilones. Eu
nunca fora numa delas, mas desta vez, enquanto os homens e as
mulheres se preparavam para deixar a casa comunitária,
Cobaydra veio e me pegou pelo braço e disse: — Venha.
O rio ficava a uma distância de uns seis quilômetros. Quando
cheguei lá, estava exausto. O rio era largo e raso, dividido ao
meio por um banco de areia. Era um dia quente e um mergulho
seria tão bom. Além disso, eu estava sujo! Mas ninguém parou.
Os homens foram rio acima e as mulheres rio abaixo. Hesitei,
mas depois segui os homens. Eles já estavam longe de meu
alcance. Abri caminho através dos ramos das amoreiras
silvestres a fim de chegar até um ponto onde pudesse ouvi-los
gritar. Quando os vi novamente, eles já estavam carregando
enormes pedras e colocando-as no rio, a fim de fazer uma
represa.
Pensei em poder ajudar, por isso entrei pelo rio dentro e tentei
tirar uma pedra que parecia ser do mesmo tamanho daquelas
que eles estavam carregando. Nem sequer pude movê-la. Fiz
uma força enorme, empurrei-a, mas não consegui tirá-la de seu
lugar.
Bem, pensei, essa deve ser mais pesada do que as pedras que
eles estão levando.
Enquanto olhava ao redor, procurando uma pedra menor, dei um
salto: logo ali atrás de mim, com o mesmo sorriso amistoso,
estava Cobaydra. Ele passou por mim, e com toda facilidade
ergueu aquela pedra, levou-a e colocou-a no seu lugar. Eu
estava envergonhado, mas ele sorriu para mim, flexionou os
músculos, e deu uma gargalhada. Eu ri também. E começamos a
trabalhar juntos.
Levou quase a manhã toda para construir a represa. Quando
todas as pedras estavam nos seus lugares, pegamos enormes
folhas de árvores e cobrimos todas as pedras com elas. Isso fez
com que a água fosse conduzida para o outro lado do banco de
areia. Nesse meio tempo, rio abaixo, as mulheres haviam
construído uma represa menor, para impedir que os peixes
nadassem rio abaixo.
Depois, brandindo longos arpões, finos como um lápis, os
homens arremetiam para baixo e para cima do rio, alvejando o
peixe com precisão. Gritavam e riam atirando-se contra a água,
e surgindo com enormes peixes na extremidade de seus arpões.
Sentei-me na margem, olhando e deixando secar a minha roupa.
Cobaydra aproximou-se e me ofereceu o seu arpão. Ele queria
que eu experimentasse.
Acenei com a cabeça. Não.
Cobaydra acenou com a cabeça. Sim. O seu sorriso era
divertido. Eu não podia recusá-lo.
Ele me acompanhou à água, que agora estava espessa e
marrom, por causa de todo aquele sapateado. Eu não via peixe
em parte alguma.
Cobaydra me pegou pelo braço e apontou para o riacho. Olhei,
mas não vi coisa alguma. Ele continuou apontando. Finalmente,
pude ver o peixe. Ergui o arpão cuidadosamente, fiz pontaria e
lancei-o. O arpão desequilibrou-se e resvalou, caindo na água,
mas não atingindo o peixe. Aborrecido, recuperei o arpão e o
entreguei a Cobaydra. Ainda sorrindo, ele mo devolveu. —
Pegue-o — ele disse. — Experimente de novo.
Eu tinha um amigo. Daquele dia em diante as coisas começaram
a andar bem melhor. Praticamente, todos os dias Cobaydra
trazia a minha comida, e eu antecipava com certo prazer sentar-
me ali com ele e comer. Ele me levava consigo quando os
homens iam caçar, e deste modo eu tinha mais coisas a fazer. A
caça era divertida, particularmente tendo Cobaydra para
percorrer as picadas comigo.
Desejava mostrar a Cobaydra e aos outros homens que eu
realmente estava interessado na caça. Eu não podia dizer-lhes
diretamente, pois não conhecia os termos necessários. Então
dava uma grande demonstração, gritando quando eles gritavam
e seguindo atrás deles e imitando as suas frases.
Certa manhã fiquei com dor de garganta de tanto gritar. A
princípio eu mal podia falar. Mais tarde a minha voz tinha um
tom mais baixo do que usualmente. Naquela tarde fiquei com
fome e fui falar com Cobaydra e lhe pedi uma banana. Ele saiu e
voltou com um machado. Fiquei surpreso. Tinha certeza de que
dissera a palavra exata para banana. Então voltei a pedir
novamente, e Cobaydra deu-me o machado outra vez.
De repente, tive uma idéia louca. Apertei o nariz e tornei a pedir
num tom mais alto. Desta vez Cobaydra me deu uma banana.
Os motilones têm um idioma tonal! Segundo os livros de
lingüística, não existia na América do Sul nenhum idioma tonal. E
agora eu estava tentando aprender um; sem a minha flauta, eu
não podia sequer acompanhar uma melodia. Como é que eu iria
me arrumar?
Mas Cobaydra era alguém com quem eu podia conversar sem
me sentir embaraçado. Passávamos horas deitados na rede, ou
de cócoras dentro da casa. Eu anotava as coisas que ele dizia, e
aos poucos meu vocabulário ia aumentando.
O pai de Cobaydra era um dos membros ilustres da tribo. Ele era
o único motilone com cabelos brancos. Sensível à nossa
amizade, ele nos encorajava a passar muito tempo juntos.
Certo dia ele se aproximou de mim e me pediu que eu o
seguisse. Saímos. Cobaydra nos esperava lá fora, olhando um
tanto nervoso.
Dois motilones estavam com ele. Caminharam em direção à
selva, sem trocar uma palavra sequer. Eu os segui. Que é que
estava acontecendo? Andamos cerca de quinze minutos, e
depois paramos numa pequena clareira.
Solenemente o pai de Cobaydra exibiu o cordão-G, e com-
preendi, com certo tremor de excitação, que essa era a ceri-
mônia usada para determinar que Cobaydra se tornara jovem.
Eu não tinha idéia alguma do que acontecera. Tudo o que eu
sabia era que um dia um menino motilone era um menino, e no
dia seguinte ele estava usando o cordão-G, e daí para a frente
era considerado homem.
Houve uma pequena cerimônia, e depois Cobaydra colocou o
cordão-G. Ele estava sorrindo, quase rindo ... realmente
orgulhoso.
Seu pai voltou-se para nós três que estávamos ali. — Seu nome
é Bobarishora —. Depois, voltando-se para mim, disse: — Agora
que ele é homem; não será mais chamado de Cobaydra. Ele se
chamará Bobarishora.
Tentando repetir o nome, este se embaraçou todo em minha
língua.
— Bobarishora — lentamente seu pai o repetiu.
Olhei para Bobarishora. Ele estava sorrindo. Tentei dizer o seu
nome outra vez. "Bobbishow." Esse era o jeito que ele parecia
soar para mim. "Bobbishow." Então eu o tornei mais curto.
— Bobby — eu disse, e sorri. O nome parecia adaptar-se à sua
personalidade agradável e de coração sincero.
Os outros repetiram. Eles gostaram e mais tarde toda tribo o
adotou. Bobarishora ficou sendo conhecido como Bobby, se bem
que Bobarishora ainda fosse o seu nome completo.
O fato de ter sido convidado a participar da cerimônia de
iniciação de Bobby era algo muito significativo, porque somente
aos membros mais chegados da família e seus amigos era
permitido assistir àqueles ritos. No entanto, eu já conhecia muita
coisa da cultura dos motilones para saber que alguma coisa
estava faltando. Usualmente era feito um pacto com a pessoa
convidada. No meu caso, não houve.
O sistema social dos motilones é baseado nos pactos entre
as famílias. Se se fizer um pacto com alguém, significa que se
concorda em compartilhar tudo: alimento, abrigo e família. Mas
vai além do que isso. As pessoas se tornam irmãos.
Eu vira antes a elaboração de outros pactos. Parte da
cerimônia consistia na troca de flechas pelas pessoas. Eu
desejava estabelecer um pacto com Bobby, e sentia que ele
também o desejava. Mas eu não podia fazer flechas muito bem,
e a troca das flechas era uma parte muito importante para o
início desse relacionamento.
Pedi ao irmão de Bobby que fizesse algumas flechas para
mim, e que providenciasse a cerimônia do pacto. A medida que o
dia para a cerimônia do pacto se aproximava, eu me tomava
bastante nervoso. Desejava tanto que Bobby ficasse satisfeito
com ela, e eu tinha receio de cometer algum erro.
Mas tudo correu bem. Entreguei minhas flechas a Bobby,
ele as pegou, e com uma grande demonstração examinou-as
cuidadosamente. — Estas flechas são muito bonitas — disse ele
com toda solenidade. — Eu o aceito como meu irmão.
Recebi as flechas que ele estava me entregando. Eram
longas, pesadas, e muito lindas. Eu podia ver que Bobby, que
sempre fizera flechas, havia tomado um cuidado todo especial
ao fazer essas.
Cantamos o hino tradicional da fraternidade, e então o meu
corpo se descontraiu. "Somos irmãos", cantei, olhando para
Bobby, e no meu rosto havia um sorriso tão largo e tão franco
quanto o que estava no rosto de Bobby. "Somos irmãos, e não há
nada neste mundo que nos possa separar."
Cada vez mais passávamos o tempo juntos. Quando eu saía
da casa comunitária para caminhar pelos trilhos dos motilones,
Bobby me seguia sem dizer uma palavra. Para mim isso tinha um
significado muito profundo. Significava que ele me aceitava
como seu guia, como o seu chefe pessoal. Freqüentemente
íamos caçar juntos. Um dia lá na selva pisei num enorme
espinho. Quando retirei o pé do sapato de tênis, o sangue
começou a jorrar por toda parte. Bobby começou a correr em
volta, dando pequenos gritos de choro até que eu pudesse parar
de gritar e fazer com que o sangue estancasse. Os motilones
nunca demonstram sintoma algum de dor, no entanto, Bobby
demonstrara a sua compaixão e demonstrara que desejava
ajudar.
Algumas semanas mais tarde, quando andávamos pela
selva, Bobby parou atrás de mim, sem dizer uma palavra sequer.
Por uns instantes não notara que ele havia parado, porque ele
andava tão mansamente. Quando percebi, eu me virei. Ele
estava um tanto trêmulo, e sua boca estava aberta como se
estivesse tentando dizer alguma coisa.
— Bobby — eu disse — o que há com você?
— Nada — ele disse num murmúrio bem baixo. Encolhi os
ombros e continuei a caminhar pela picada. Continuamos
andando e nenhum de nós proferia palavra alguma. O silêncio
era enervante. Eu desejava saber o que havia de errado.
Então ouvi a sua voz atrás de mim.— Bruchko, o meu nome
é "Nos Céus".
Voltei-me espantado. Ele estava ali parado, com a boca
semi-aberta, como se tivesse visto um fantasma. Eu podia
perceber que aquilo era extremamente importante para ele. Mas
não compreendia.
— Aquele é o meu nome — ele disse.
— E o que há com Bobarishora?
Ele sacudiu a cabeça. — Não, o meu verdadeiro nome é
"Nos Céus". Esse é o meu nome secreto.
Então ele explicou que cada índio motilone tem um nome
secreto, que é a sua verdadeira identidade. Apenas seus pais e,
algumas vezes, mais alguns, conhecem esse nome. É um
segredo, porque se alguém o souber, ele terá pleno domínio
sobre a pessoa. — E você está me contando o seu nome? —
perguntei. — Você está me contando o seu nome secreto, e
dando-me poder sobre a sua vida?
Ele assentiu com a cabeça. Ficamos ali olhando um para o
outro. Foi um dos momentos mais sérios de minha vida.
Então o rosto de Bobby se abriu num sorriso, novamente.
Estendi-lhe as mãos e o peguei pelos ombros. Eu estava
chorando. Eu viera à América do Sul, à Colômbia, e agora à
selva, precisando de algo que realmente eu não esperava
encontrar: um amigo verdadeiro. Alguém que fosse meu irmão.
Um irmão de sangue. Eu o havia encontrado. As nossas idades,
os nossos idiomas, a cor de nossas peles, as nossas crenças,
tudo, enfim, era diferente. Mas tínhamos uma coisa em comum:
um amor de irmão muito profundo. Eu não sabia para onde
aquilo nos levaria. Mas Deus havia colocado esse amor em
nossos corações.
15. TOMADO POR CANIBAL

Depois que Bobby e eu nos tomamos irmãos, a sujeira


ainda estava lá, as pulgas ainda picavam, os insetos ainda
transmitiam doenças, e eu ainda sofria de diarréia. Mas essas
coisas pareciam menos e menos significativas.
Eu havia sido aceito. Eu tinha uma família.
Bobby e eu começamos a visitar as diferentes casas comu-
nitárias. As selvas pareciam muito mais bonitas, quando através
delas andávamos, cantávamos e conversávamos. Eram
momentos extraordinários!
As casas comunitárias dos motilones estão espalhadas por
uma grande área. Às vezes levávamos vários dias para ir de uma
casa a outra. Bobby era um dos mais fortes jovens guerreiros
motilones, e o seu caminhar nas picadas era demasiadamente
apressado para mim. Quando ele observava que eu estava
exausto, parava sem dizer uma palavra e descansávamos.
Porém ele era orgulhoso. Não aceitava coisa alguma das
pessoas. Quando chegávamos à casa comunitária, às vezes ele
esperava dias antes de aceitar qualquer alimento. Comer era um
sinal de fraqueza, e nenhuma espécie de fraqueza era tolerada.
— Bobby, por que você não come? — eu perguntava.
— Não estou com fome — respondia.
Bobby estava tão decidido a ser mais forte do que qualquer
outra pessoa, que nem sempre era bem visto pelos outros
motilones. Ele não tinha condescendência nem consigo mesmo.
Mas comigo ele era bondoso e gentil.
Quando voltávamos de uma de nossas viagens, soubemos
que o pai de Bobby havia falecido. Bobby me contou, não
demonstrando nenhuma emoção. Eu estava ferido e abismado.
Ele fora um velho tão distinto. Havia-me recebido no seio de sua
própria família. Havia estimulado a minha amizade com Bobby. E
agora ele estava morto. Morrera durante a noite. O seu corpo
ainda estava na rede.
Ninguém parecia incomodar-se. Era o primeiro funeral
motilone a que eu estava assistindo, e não podia crer como
todos eles eram tão insensíveis. O seu corpo foi enrolado na sua
rede e carregado para as selvas por alguns homens. Foi
pendurado bem alto lá nas árvores. Logo os abutres desceram lá
dos altos céus para devorá-lo.
Não havia lágrima alguma. A impressão era de que nada
havia acontecido. Anotei o seguinte no meu diário: "Essas
pessoas são tão duras como o ferro. Para elas a morte não tem
grande significado. Elas não são atingidas por nenhuma di-
mensão espiritual. O fato de que a pessoa não andará mais na
face da terra parece não produzir nenhum impacto nas suas
vidas. E como é que eu poderei alcançá-las com a mensagem de
amor de Jesus, se nem sequer tentam se amar?"
Por toda parte por onde eu andava, nos territórios motilo-
nes, ouvia falar no nome de Abaratatura. Era sempre pro-
nunciado com temor e respeito. No idioma dos motilones, esse
nome tem uma cadência toda especial que lhe dá um quê quase
mágico. Finalmente, perguntei a Bobby quem era ele.
Bobby franziu a testa. — Ele é um grande guerreiro e
caçador, muitíssimo respeitado por todos os motilones. Creio que
poderia dizer que é o chefe dos chefes.
— Onde é que ele mora?
— Em Corroroncayra. É um lugar muito distante daqui, lá
nas montanhas.
— Bobby, por que não o visitamos? Eu gostaria de me
encontrar com ele.
Bobby riu e sacudiu a cabeça. — Você quer morrer? Ele
odeia os brancos.
Esse pensamento foi um tanto amedrontador. Eu pratica-
mente havia-me esquecido de que os motilones matavam as
pessoas; e que talvez eu pudesse ter inimigos.
Um dia Arabadoyca e eu estávamos deitados em nossas
redes conversando quando de repente me surgiu a idéia de
perguntar-lhe a respeito de Abaratatura. — Por que ele desejaria
me matar? Ele já deve saber, agora, que eu não sou perigoso.
Naturalmente ele já ouviu falar que eu moro aqui.
— Ele acha que você é o canibal da flauta mágica, — disse
Arabadoyca. — Então ele o matará antes que você o mate.
— O quê? — eu disse.— O que você quer dizer com isso?
Arabadoyca se espreguiçou. Tempo virá em que aparecerá
entre os motilones um homem branco com uma flauta mágica e
ele a tocará. Através de sua música conduzirá os motilones a
uma armadilha, onde todos serão devorados vivos.
Eu sabia que os motilones possuíam grandes tradições,
porém eu apenas ouvira algumas delas. Essa era completamente
nova para mim.
— É por isso que Abaratatura me odeia? Ele pensa que eu
sou um canibal?
— Bem, você toca flauta, não toca? — Ele riu. — De qual-
quer jeito, todos nós aqui não pensamos que você seja canibal. A
princípio pensávamos que você o fosse. Na realidade, Aba-
ratatura já estava a caminho para matá-lo quando você desa-
pareceu, na primeira vez que esteve aqui. No dia seguinte à sua
partida, ele chegou.
Lembrei-me daquela noite, quando, doente, fugi da casa,
pensando por que cargas d'água eu fazia aquilo. Agora eu
compreendia que fora Deus quem me coagira, a fim de salvar-
me a vida.
— Visto que não sofremos mal algum por sua causa —
Arabadoyca continuou — a maior parte de nós creu que você não
nos prejudicaria. Alguns, até chegaram a crer que talvez você
estivesse trazendo o talo da bananeira dado por Deus.
— Que é isso?
— Essa é outra profecia de que um homem alto, com
cabelos amarelos, virá com um talo de bananeira, e que Deus
sairá desse talo.
— E você crê que eu possa ser ele?
Ele encolheu os ombros. — Você não carrega talos de
bananeiras, carrega?
— Bem — eu disse — e quanto a Abaratatura? Eu gostaria
de vê-lo.
Arabadoyca sacudiu a sua cabeça. — Você não pode ir até
lá. Ele o matará.
No entanto, uma vez posta a idéia em minha cabeça, eu
não podia me esquecer dela. Algumas semanas mais tarde, um
grupo de motilones ia à montanha visitar Abaratatura, e pedi que
me deixassem ir com eles. Eles me recusaram, mas continuei a
insistir. Com muita relutância o permitiram.
Era uma viagem muito longa. Começamos num passo vio-
lento, não parando nem mesmo para comer. Vivemos aqueles
dias comendo mandioca crua, lagartos e besouros. Depois de
oito dias eu tinha uma dor aguda no peito, e começava a vomitar
todas as vezes que tentava comer. Parecia que a minha boca
estava sempre cheia de algodão. Em cada riacho que
passávamos eu bebia água até causar a sensação de que meu
estômago fosse arrebentar, mas, mesmo assim a minha boca
continuava sem saliva. O nono dia se prolongou infindavelmente.
Por fim, quando ainda restavam algumas horas para andarmos,
tive que pedir aos meus companheiros que parassem.
Tentei comer um pouco da comida que Arabadoyca me
trouxera, mas ela não parou no estômago. Eu não podia
imaginar que espécie de doença me havia atingido. Mental-
mente, fui repassando os meus livros de medicina, tentando
combinar os meus sintomas.
Arabadoyca veio e me pegou pelos ombros. O seu sorriso
de esguelha parecia ser tão grande e muito longe, como uma
figura num sonho.
— Bruchko — ele disse — os seus olhos estão lindos! Como
é que você conseguiu fazê-los ter essa cor tão linda?
Levara algum tempo para eu compreender o que ele estava
falando. O seu rosto parecia balançar na minha frente. — Que
cor? — perguntei.
— Olha, eles estão amarelos, um amarelo muito bonito. Nós
não podemos fazer com que os nossos também fiquem assim?
Olhos amarelos! Hepatite! Mais do que descanso, eu preci-
sava de cuidados médicos.
Mas era uma viagem de mais de oito dias até ao rio, depois
mais uma semana para se construir uma balsa e ir rio abaixo, à
civilização. Eu não chegaria vivo.
Mas ao mesmo tempo, eu não podia continuar. Não estaria
em condições de ajudar Corroroncayra. E lá eu enfrentaria a
possibilidade de ser morto de imediato. Certamente eu não teria
força física para lutar.
De qualquer jeito, não havia esperança. Os troncos das
árvores, lá na selva, pareciam estar balançando na minha frente,
de um lado para outro. Eu estou doente, pensei, e com o meu
estômago afundando, eu vou morrer.
Lembrei-me da promessa que fizera a Deus quando fora
prisioneiro dos iucos. Eu prometera viver uma vida dirigida por
Deus. E agora, então, quais eram as suas instruções?
Resolvi que eu devia prosseguir. Minha vida estava nas
mãos de Deus. Ele faria com ela o que desejasse.
Os dias seguintes foram como se eu estivesse hipnotizado.
Minha pele ficou de cor amarelo-escuro. Cada passo era uma
luta. Eu sentia o corpo cambalear e lutava para manter o
equilíbrio. Desmaiei uma vez e quando voltei a mim, estava
deitado numa picada, os motilones me cercando, com seus
rostos fixos em mim. Levantei-me e continuei a andar.
Algumas horas mais tarde voltei a desmaiar. Quando acor-
dei, um dos homens, o médico-feiticeiro — estava gritando e
cantarolando por cima de mim. Eu estava amedrontado, porém
fraco demais para me mover. O seu rosto se aproximava cada
vez mais. Parecia um rosto enorme e desumano. Ele apanhou
uma faca e fez um corte em minha testa. Eu podia sentir o
sangue correndo-me pelo rosto, mas não podia mexer-me para
deter o homem.
Ele apanhou uma cabaça, retirou dela um pouco de pó
muito leve e esfregou no corte, cantando constantemente os
seus sortilégios.
Ergui os braços acima da cabeça e consegui detê-lo. Eu
disse a eles que não tinha certeza de que o remédio produziria
bons resultados, visto que eu não era motilone. Pedi a eles que o
fizessem parar. O médico-feiticeiro continuava a debruçar-se
sobre mim, e as minhas mãos, que estavam sobre a minha
cabeça, tremiam enquanto eu falava.
Eles discutiram sobre o assunto. O médico-feiticeiro não
estava muito contente com a minha atitude. Porém eles resol-
veram que seria muito melhor que ele parasse, desde que eu
não desejava ser medicado.
Dois motilones me ergueram e me carregaram. Minhas
pernas iam-se arrastando pelo chão. Às vezes eu chegava a
desmaiar. O caminho parecia sem fim. Dias após dias fomos
caminhando, e os motilones se revezavam para me carregar. Eu
tinha uma leve noção do que estava acontecendo. De vez em
quando eu me sentava no chão, e o meu corpo se esparramava
todo, como se tivesse vontade própria. Então, os motilones me
erguiam pelas axilas, e novamente eu era arrastado, indo aos
solavancos. Era muito dolorido. Eu abria a boca para gritar, mas
não saía som algum.
Após duas semanas chegamos a Corroroncayra. A poucos
quilômetros da casa, um pequeno grupo de homens veio ao
nosso encontro. Eles tinham ordem de matar-me. O chefe
soubera que eu estava chegando, e ficara enfurecido.
Ouvi a discussão, que parecia estar tão longe. Fiquei atento
a cada opinião emitida, ouvindo-a objetivamente. Eu não me
importava se tivesse que morrer.
— Ele está doente — Arabadoyca lhes disse. — Vocês não
podem matar um homem doente. E, além disso, ele é um
homem bom. Ele não fará mal algum a vocês.
Eles me inspecionaram. Não havia dúvida alguma de que
eu não estivesse doente. — Pois bem — disse um dos homens —,
vamos levá-lo até Abaratatura.
Mais uma vez fui arrastado pelos braços, seguindo o cami-
nho da colina. Chegamos ao topo da colina onde havia uma
clareira. Vi a casa dos motilones. De uma das portas saiu um
homem. — Jogue-o ao chão — disse ele. — Jogue este canibal!
Era Abaratatura. Arabadoyca se colocou entre nós dois.
— Você não pode matá-lo — disse. — Ele está morrendo. Os
motilones nunca matariam qualquer animal ou ser humano que
estivesse prestes a morrer de morte natural. Eles crêem que isso
poria feitiço em suas flechas, o que faria com que elas se
quebrassem no vôo, e então eles morreriam de fome.
Esse pensamento fez com que Abaratatura parasse. — O
que você quer dizer com isso, que ele está morrendo? —
perguntou ele. — Naturalmente ele morrerá quando eu o
transpassar com uma seta.
— E o seu povo morrerá de fome — respondeu Arabadoyca
—. Isso porá feitiço em todas as suas setas. Esse homem está
morrendo.
Abaratatura caminhou em minha direção. Ele não podia
discordar.
Cuspiu no chão, olhou para mim com desprezo, e depois
deu ordens para me colocarem numa rede. Não falou comigo.
Ele possuía um ar majestoso, e as suas ordens foram obedecidas
incontinenti.
Durante duas semanas permaneci na sua casa. Dormi horas
sem fim. Quando eu acordava, orava para que pudesse voltar a
dormir. Minhas dores pareciam atravessar-me os ossos.
Vou morrer, pensava. Eu não estava amedrontado. Parecia
algo interessante. Vou morrer. E ficava pensando como seria.
Esse pensamento revirava vezes seguidas em minha mente.
Certa tarde, acordei por causa de uma grande agitação. As
crianças estavam correndo, as mulheres estavam gritando. "A
flauta está chegando. O canibal vai nos comer." Foi o que eu
ouvi alguém gritar.
As pessoas saíram aos montes pelas portas, empurrando-se
e correndo para se esconder. Abaratatura apanhou o arco e veio
em minha direção.
— Precisamos matar esse canibal antes que a flauta chegue
— ele disse.
Eu podia ouvir o barulho do qual eles estavam fugindo.
Levou alguns minutos para que eu o reconhecesse. Era o "paf-
paf-paf' de um helicóptero. Que estava ele fazendo por ali?
O barulho ia-se tornando cada vez mais alto e mais
próximo. Abaratatura hesitou amedrontado, mas ao mesmo
tempo ainda desejando me matar. Depois, saiu correndo pela
porta fora. Somente Arabadoyca permaneceu comigo ali na casa.
Os seus olhos estavam enormes, e ele dava a impressão de que
também estava pronto para correr. Ele pensava que eu o tivesse
traído.
— Por favor, leve-me para fora — eu disse. Minha voz quase
não podia ser ouvida.
Ele hesitou, e depois — com grande dificuldade — ergueu-
me da rede, levou-me para fora e me colocou na clareira. Depois
correu para a selva.
Eu via o helicóptero, mas não podia erguer os braços para
pedir auxílio. A única coisa que eu esperava era que uma cabeça
loira pudesse surpreender o piloto o suficiente para fazê-lo
descer, a fim de averiguar mais de perto.
— "Por favor, Deus, faze com que aterrize", orei.
O helicóptero sobrevoou, pairou, deu uma vira-volta, e
depois pousou na clareira, varrendo folhas e lixo por toda parte
com o seu vento. Um homem saiu e veio em minha direção.
— Olson — ele disse — você tem uma aparência terrível;
você se parece com um esqueleto —. Era o Dr. Hans Baum-
gartner, que eu havia conhecido com o Dr. Christian na nossa
viagem subindo o Orinoco, anos antes.
Eu mal podia sorrir. Ele e o piloto me carregaram para o
helicóptero, e se dirigiram incontinenti para o hospital em Tibu.
Depois de quatro dias no hospital, comecei a ter hemorra-
gias internas. Os médicos disseram que se eu tivesse ficado nas
selvas mais seis horas, sem medicação eu teria morrido.
O Dr. Baumgartner e o piloto foram visitar-me.
— Você não pode imaginar que surpresa foi ver você, Olson.
O helicóptero pertence à companhia petrolífera, como você sabe,
e Manuel é o piloto. O aparelho não estava sendo usado no dia
em que estive lá, então fomos dar um passeio sem licença.
Pensamos em sobrevoar o território dos motilones, para ver se
podíamos tirar umas fotografias.
— Que coisa — ele disse sacudindo a sua cabeça —,
imagine só, ir fotografar uma tribo feroz, da idade da pedra, e
encontrar um norte-americano de cabelos loiros defronte da casa
comunitária! — Ele desandou a rir. Todos nós rimos também.
Mas eu sabia que Alguém os havia movido a ir em meu caminho.
O meu médico lá no hospital era Alfredo Landinez.
Tornamo-nos bons amigos. Ele estava interessado nos motilones
— até mesmo havia escrito uma tese a respeito da extração da
seta dos motilones, tese que fora apresentada na Escola de
Doenças Tropicais, de Harvard.
Depois de permanecer no hospital várias semanas, pergun-
tei ao Dr. Landinez quando eu poderia voltar às selvas.
— Você deverá ficar em tratamento por mais de seis meses
— disse. — Você praticamente quase destruiu o seu fígado.
Depois você precisará ficar em convalescença por mais um ano.
— O quê? — disse eu. — Um ano e meio antes que eu possa
voltar às selvas?
Ele sacudiu a cabeça. — Você nunca mais terá possibilida-
des de voltar às selvas. O seu fígado foi danificado para o resto
da vida.
Olhei para as minhas mãos. Estavam da cor de laranja.
Estavam-me aplicando transfusões de sangue, porque eu ainda
sangrava internamente.
— O senhor está enganado — eu disse. — Vou voltar.
— É assim que eu gosto — ele disse, com um sorriso meio
esquerdo, batendo nos meus ombros. — Continue firme!
Três semanas mais tarde eles me deram alta, lá no hospital.
O Dr. Landinez não podia acreditar que eu estivesse passando
bem. — Bruce — disse ele — por favor, não volte às selvas.
Eu já estava me preparando para sair. — Por que não? —
perguntei.
— Você ainda não está suficientemente bom. Você poderá
ter uma recaída e morrer por lá, sem ter alguém que cuide de
você.
Sacudi a cabeça e sorri. — Já disse ao senhor. Não vou
morrer. Deus vai curar o meu corpo muito melhor do que o
senhor poderia fazer.
Ele encolheu os ombros.
— Agora tenho um pedido a fazer-lhe — eu disse. — O
senhor sabe que tenho bons conhecimentos de medicina. Preciso
de alguns remédios e drogas para levar aos índios. Não há
ninguém que cuide deles. Sei que é ilegal o senhor dar-me esses
remédios, e nem sequer tenho dinheiro para pagá-los. Mas os
motilones precisam deles.
Apesar de estar pondo em jogo o seu trabalho e a sua
profissão ao fazê-lo, apanhou certa quantidade de remédios que
pertenciam à companhia petrolífera e mos entregou.
— Qual é o valor de meu trabalho — perguntou — se eu não
estiver ajudando as pessoas? Talvez esses nunca auxiliarão a
ninguém. Na medicina você não se aventura. Você dá o remédio
e espera que ele não seja perdido.
Uma semana mais tarde voltei às selvas. Tinha uma bús-
sola, e sabia exatamente para onde me dirigia: direto para a
casa de Abaratatura.
No terceiro dia comecei a sentir tonturas. As dores no peito
haviam voltado. Minha urina estava novamente escura. Naquela
noite adormeci sentindo-me muito mal.
"Pai", eu orei, "tu me trouxeste aqui para trabalhar com os
índios motilones. Tenho remédios que poderão ajudá-los. Por
favor, Deus, cura o meu corpo."
Na manhã seguinte acordei sentindo-me perfeitamente
bem. Não sentia dor alguma, e a urina estava clara. Levantei-me
e continuei a andar.
Quando cheguei à casa comunitária de Abaratatura, ele
veio ao meu encontro na estrada. Alguém já me vira e lhe
comunicara que eu estava chegando.

16. USANDO O MÉDICO-FEITICEIRO

Eu estava amedrontado. Porventura ele tentaria me matar?


Observei-o mais de perto. Abaratatura não trazia arma
alguma.
— Pensávamos que você tivesse morrido — disse ele — e
que os urubus haviam levado o seu corpo. Mas Deus o conser-
vou.
— Sim — respondi. — Realmente, ele me conservou.
Permaneci na casa de Abaratatura. Ele acabara de crer que eu
não o enganaria e tampouco ao seu povo. Então fui aceito da
parte dos motilones. Mandei um recado a Bobby e ele veio ter
comigo.
Aquela curta permanência no meio da civilização me con-
vencera, mais do que nunca, de que eu pertencia às selvas.
Trouxera comigo, da civilização, algo que faria com que a minha
vida fosse mais confortável: uma coleira para afastar as pulgas.
Tais coleiras haviam chegado à Colômbia pouco tempo antes de
eu ir para o hospital. Vi uma delas no pescoço de um cachorro e
perguntei ao Dr. Landinez o que era aquilo.
— Aquilo é uma coleira à prova de pulga — disse ele.— É a
última novidade. Você a coloca no pescoço de seu cachorro, e
todas as pulgas morrem e durante seis meses o cachorro está
livre delas.
— Que coisa formidável — eu disse. — Preciso comprar uma
delas.
O Dr. Landinez olhou um tanto espantado para mim. —
Vocês têm cachorros lá nas selvas?
— Não, oh não — eu disse, e desandei a rir. — Não, não
temos cachorros mas com toda certeza temos pulgas! — Ri
novamente, e essas foram as últimas palavras sensatas que ele
ouviu a respeito desse assunto. Agora tenho uma coleira ao
redor de meu pescoço, e não sinto tanta coceira.
Porém, a minha mente estava preocupada com os remédios
que trouxera. Os motilones estavam morrendo constantemente
por causa de uma ou outra doença, e eu sabia que os remédios
que trouxera haviam de curar muitos deles. Porém, os motilones
já tinham o seu próprio método de cura, e não tinham razão
alguma para crer que o meu método fosse melhor do que o
deles. Várias vezes oferecera os meus remédios aos doentes,
porém eles o recusavam.
— Deixe isso com a médica-feiticeira — diziam. — Ela
conhece os nossos costumes e a nossa maneira de curar.
E às vezes eles saravam. Então vinham para mim com um
sorriso zombeteiro, como se dissessem: — Está vendo? não
somos tão tolos como você pensa.
Porém, quando uma epidemia de conjuntivite se alastrou
entre eles eu tinha algo bem concreto, pois conjuntivite é curada
com antibióticos. Dentro de pouco tempo, quase todos os
motilones tinham os olhos infeccionados, e andavam a cocá-los,
sentindo-se infelizes. A médica-feiticeira começou a cantar as
suas canções de sortilégio, dia após dia, cantando até vinte
horas por dia. Era profundamente dedicada ao seu povo.
Após uma semana, era evidente que as suas canções de
encantamento não estavam ajudando. Fui falar com ela. Ela
estava deitada na esteira descansando. O seu rosto demons-
trava um cansaço intenso.
— Tenho uma poção chamada terramicina — disse-lhe. —
Ela poderá curar a doença se a senhora a puser nos olhos dos
doentes."
— Eu já usei poções — ela disse. — Não surtiram efeito.
— Porém essa é uma poção diferente — eu disse. — E
funciona. Já vi o resultado dela muitas vezes.
Ela olhou para mim com um leve interesse. — De onde é
que vem essa poção?
— É uma que os médicos-feiticeiros de meu povo usam. Ela
perdeu todo interesse. Encolheu os ombros. — Você é branco. O
seu jeito é diferente do nosso —. Ela se levantou, voltou as
costas para mim e começou a cantar novamente.
Fui andar um pouco a fim de pensar sobre o caso. Conjunti-
vite, em si, não era uma doença perigosa, mas a infecção
poderia transformar-se em algo muito mais sério. Ela precisava
ser curada, e eu tinha a cura.
A única coisa que poderia fazer era tentar convencer al-
guém que me deixasse experimentar o remédio nele. Então teria
a prova necessária de que o meu método funcionava, e os da
médica-feiticeira não.
Mas então estaria competindo com ela. E nesse caso tiraria
a sua autoridade e o seu papel na tribo, ou ela teria que me
expulsar.
Eu sabia que os missionários, muitas vezes, achavam que o
médico-feiticeiro era como um elemento demoníaco, e que
precisava ser eliminado. A médica-feiticeira não fazia as suas
preces aos demônios. Ela tentava ajudar o seu povo orando a
Deus, da melhor maneira que sabia. Eu não desejava destruir o
que ela estava fazendo. Eu desejava ajudá-la.
De repente, tive uma idéia. Voltei para a casa comunitária e
dirigi-me a um dos homens, um que estava muitíssimo atacado
da doença. Esfreguei meu dedo no canto de um de seus olhos, e
depois esparramei o pus no meu próprio olhos.
Em cinco dias estava com conjuntivite. Fui à médica-
feiticeira e disse-lhe que precisava de seus cuidados. Ela cantou
as suas canções de sortilégios, da mesma maneira que o fizera
para os outros. Naturalmente aquilo não me ajudou, assim como
não ajudara as outras pessoas.
Então eu voltei a visitar a médica-feiticeira. Disse-lhe que
desejava que ela colocasse terramicina nos meus olhos, en-
quanto cantava seus encantamentos. Olhou para mim um tanto
duvidosa, mas depois se prontificou a experimentar alguma
coisa nova. Pegou o tubo de terramicina e esfregou um pouco da
pomada em meus olhos enquanto cantava as suas orações, para
que Deus me curasse.
Em três dias meus olhos estavam limpos e eu me sentia
perfeitamente bem. E, naturalmente, todos os demais ainda
estavam em condições miseráveis. A médica-feiticeira conti-
nuava cantando seus cânticos e suas orações.
Aguardei a oportunidade certa para voltar a falar com ela.
Não desejava insultá-la, de maneira alguma. Certa tarde eu a vi
sair de casa, com os ombros caídos de tanto cansaço. Segui-a
até onde estava escuro e a segurei pelo braço. Ela se voltou para
mim.
Segurei o tubo de terramicina — Por que não experimenta
essa poção? — perguntei. — Você curou os meus olhos com ela.
Talvez produza o mesmo efeito com o seu povo.
Dentro de três dias havia curado todas as pessoas. Isso fez
valorizar a sua posição na comunidade. Ela se sentia muito
orgulhosa de obter tão bom resultado com as suas canções e a
sua nova pomada, e nos tornamos muito bons amigos — e esse
foi um novo caminho para novas curas.
Tendo a possibilidade de usar os antibióticos mais simples,
através da médica-feiticeira, dei um grande passo em relação ao
meu alvo de ajudar os motilones. Porém, havia tantos germes
nas sujeiras acumuladas ao redor das casas, e na maneira anti-
higiênica como os motilones viviam, que era quase impossível
não haver outras doenças pela falta de higiene. Algumas delas
estavam além do alcance dos remédios que eu possuía.
— Qual é a causa de todas essas doenças? — perguntei à
médica-feiticeira. — Parece que não há fim para elas.
Ela ficou surpresa com a minha ignorância. — São os espí-
ritos maus mostrando o seu poder. É por isso que usamos as
canções de sortilégio. Nós pedimos a Deus que expulse os
espíritos maus.
— E por que ele nem sempre, faz isso? — perguntei.
O seu rosto ficou abatido e ela se voltou para outro lado.
— Nós decepcionamos a Deus — ela disse, numa voz triste
e submissa.
Fiquei atrás dela, surpreso, sentindo que por trás do que ela
dissera havia algo que eu precisava compreender.
— Como é que vocês decepcionaram a Deus? — perguntei.
— Um homem chegou aqui e se apresentou como profeta —
ela disse. — Ele disse que nos poderia levar além do horizonte,
para uma terra onde havia uma caçada melhor. O seu nome era
Sacamaydodji. Nós abandonamos a Deus e o seguimos.
— Quando foi que tudo isso aconteceu? — perguntei sua-
vemente.
Por uns momentos ela ficou calada; depois estendeu o
braço. — Há muitos, e muitos anos. Nós apenas ouvimos contar
a história. Mas sabemos que nos decepcionou. Estamos muito
longe de Deus.
Mais tarde fui falar com ela e lhe disse que desejava, que
ela visse alguns dos espíritos maus que provocavam as doenças
e a morte. Tirei o meu microscópio e pus um pouco de sujeira na
lâmina. E mandei que ela olhasse através da lente ocular.
— Oh sim, posso vê-los dançando ao redor — ela disse e
começou a cantar as suas canções de sortilégio.
Então eu pus um pouco de desinfetante sobre a sujeira, e
disse a ela para olhar novamente. Ela viu que o desinfetante
havia matado todos os germes. Isso abalou-a. Ela vira que os
germes não haviam morrido com os seus cânticos.
Dentro de pouco tempo, ela estava apresentando o desinfe-
tante em todas as cerimônias normais dos motilones. Houve, por
exemplo, um cerimonial de limpeza, quando uma nova casa
comunitária foi construída. Todos os motilones que vão residir
naquela casa se reúnem e cantam sortilégios, e batem nas
paredes com varas, a fim de expulsar os espíritos maus. A
médica-feiticeira, influenciada pela minha sugestão, fez com que
eles usassem desinfetantes juntamente com o cerimonial, e as
pessoas observaram que a saúde melhorara consideravelmente.
Também fez com que as parteiras começassem a usar
desinfetantes quando as mães tivessem os seus bebês, e o
índice de mortalidade diminuiu.
As medidas de saúde se espalharam por outras casas, e eu
me sentia profundamente grato ao Dr. Landinez pela sua boa
vontade em nos fornecer os remédios. A alimentação dos
motilones também melhorara, por causa de novas colheitas. Eles
dependiam, até então, somente da caça e de plantas silvestres
para a sua alimentação. No entanto, trabalhando com
Abaratatura, fui capaz de mostrar-lhes como se criava o gado e
se plantava o milho.
Dentro de poucos anos, havia oito postos de saúde (um em
cada casa), que forneciam antibióticos, davam injeções, e outros
medicamentos. Esses postos também tinham a responsabilidade
de verificar se as casas estavam livres dos germes. Cada casa
também desenvolveu o seu próprio sistema agronômico e,
finalmente, abriram-se escolas.
Os postos de saúde, as fazendas e as escolas não foram
iniciados ou auxiliados pelos brancos civilizados. Os próprios
motilones é que trabalhavam nos postos. Eu era a única pessoa
de fora em toda aquela área dos motilones. As injeções eram
dadas pelos motilones. Os remédios, de acordo com as
necessidades, eram fornecidos pelos motilones.
Para muitas pessoas, esse impulso tem sido considerado
como o exemplo mais rápido de desenvolvimento que tem
ocorrido no seio de uma tribo primitiva. Como é que tudo isso
aconteceu? Como foi possível realizar tudo isso?
Há duas razões. A primeira é muito simples: não foi exigido
dos motilones que abandonassem a sua cultura e se tornassem
homens brancos. Tudo que foi introduzido foi baseado naquilo
que eles já conheciam. A vacinação, por exemplo, foi introduzida
pela médica-feiticeira, como uma nova forma de sangria
tradicional, que os motilones praticavam quando alguém estava
doente, porque o fato de deixar o sangue correr dava uma dor
que se sobrepunha à grande dor da doença ou da morte.
Explicada daquele modo, administrada pela médica-feiticeira,
que era conhecida e em quem tinham confiança, ela era aceita
muito rapidamente, e em pouco tempo estava espalhada por
toda a tribo, tão depressa quanto era possível conseguir agulhas
e as próprias vacinas. E porque a médica-feiticeira vira os
germes, e compreendera o seu grande perigo, foram
introduzidos métodos sanitários adequados.
A agricultura não era uma idéia nova, tanto quanto a medi-
cina, porém não teria sido aceita se ela se opusesse às maneiras
tradicionais de se fazer as coisas. Mas, visto que Abaratatura e
os outros chefes eram tradicionalmente responsáveis pela
provisão dos alimentos, uma vez que a idéia era introduzida, ela
era rapidamente aceita, sem o desmembramento da sociedade,
que sempre acontece quando há o desenvolvimento econômico.
Não havia demonstração de revolta contra os antigos métodos
dos mais idosos; eles próprios é que introduziam os novos
métodos.
Porém, eu disse que havia duas razões. A segunda foi o
Espírito Santo. Sem ele, não teria havido nenhum real ou
duradouro desenvolvimento.
Como já mencionei, parecia que os motilones não se impor-
tavam de maneira alguma uns com os outros. Cada homem era
responsável por si mesmo, por sua família e por mais ninguém.
Essa era uma coisa que eu dificilmente aceitava em relação a
Bobby.
Eu desejava ver que todas as tribos recebessem os remé-
dios de que precisavam, e que soubessem como cuidar das
plantas que haviam sido introduzidas. Bobby ia comigo nas
minhas viagens de inspeção. Tínhamos horas alegres durante o
percurso, visitando muitos dos lugares onde antes estivéramos.
Falávamos profundamente a respeito da vida e daquilo que
desejávamos para nós mesmos e para os outros. Bobby desejava
ser um líder guerreiro dos motilones, semelhante a Abaratatura.
Eu desejava guiar os motilones ao caminho verdadeiro. Nós
compartilhávamos essas coisas, caçávamos juntos, e
cantávamos juntos. Podíamos compreender os sentimentos um
do outro, sem proferir palavra alguma.
Porém, Bobby não compartilhava as minhas preocupações
pelos outros membros tribais. Certa vez houve uma doença
muito séria em duas casas comunitárias, afastadas uma da outra
por grande distância. Ambas necessitavam de remédios
imediatamente.
— Bobby — eu disse — você vai a Iquicarora com um pouco
de medicamento, e eu vou à outra, nas terras altas. Nós nos
encontraremos novamente aqui.
Ele parecia ofendido. — Quero ir com você, Bruchko.
Franzi o cenho.— Bobby, você não pode. Não temos tempo
para irmos juntos aos dois lugares.
— Então, vamos juntos a um só deles.
Finalmente, Bobby foi só, porque eu lhe dissera que fosse.
Ele não teria ido por vontade própria. Isso me entristecera, e eu
não podia compreender por quê.
Todos os demais compartilhavam a mesma atitude de
Bobby. As pessoas morriam numa casa porque a casa vizinha
não se preocupava em levar-lhes medicamentos. Uma vaca
morreria se o seu guarda estivesse doente e não pudesse cuidar
dela, pois ninguém mais o faria. Era uma luta cada vez maior
para mim, estar em todas as partes onde havia necessidade de
auxílio, e Bobby me daria uma mãozinha, se eu lhe pedisse, mas
somente por causa de nossa amizade.
Eu estava exausto. Já estava com os motilones havia quatro
anos. Algumas das coisas que eu fora capaz de introduzir eram
boas. Porém, eu precisava lutar para que elas continuassem a
ser usadas. Comecei, então, a perguntar a mim mesmo a razão
de tudo aquilo. Por que deveria eu preocupar-me se alguns
motilones ficassem mais ou menos doentes? Qual era o valor de
suas vidas? Para o resto do mundo, todos eles poderiam morrer,
até ao último homem, e nunca sentiriam a sua falta.
No entanto, um dia, enquanto eu estava sentado à porta da
casa comunitária, pensando, eu sabia que a resposta deveria ser
a mesma que fora há quatro anos. O valor da vida dos motilones,
e aquilo que eu estava fazendo, não era o que o povo estava
pensando. Lembrei-me do que Deus me dissera: "Todo o mundo
poderá rejeitá-lo, porém eu não o rejeitarei." Ele os amava. Era
por isso que eu viera às selvas: para deixá-los ver e
experimentar o amor de Deus.
Porém, eu ainda não podia ver como é que poderia fazer
isso. Já sabia muita coisa a respeito das crenças dos motilones.
Nada do que eu dissesse a respeito de Jesus Cristo faria sentido
para eles. Seria o "jeito do homem branco". Nunca seria o jeito
dos motilones. O que aconteceria se alguém entregasse a sua
vida a Jesus Cristo? Por ventura terminaria como os índios lá no
Orinoco, trazendo uma divisão entre os motilones, destruindo as
suas estruturas sociais?
Mesmo assim eles precisavam de Jesus. Como é que eu
poderia apresentá-lo a eles, pelo que ele realmente era, inde-
pendente de minha própria cultura e personalidade?
Jesus teria que fazer isso para mim. Não havia outro jeito
qualquer. Nada do que eu dissesse levaria a mensagem certa,
com o impacto correto. Mas Jesus poderia falar através de mim,
e ele poderia mostrar-me a ocasião certa para falar.
Curvei a cabeça. O sol estava quente no meu pescoço. "Ó
Jesus, esse povo necessita de ti. Mostra-te a eles. Tira-me do
caminho, e fala na sua própria língua, de modo que eles te vejam
assim como tu és. Ó Jesus, transforma-te num motilone."

17. JESUS, O MOTILONE

Já estávamos no caminho havia três dias, e nos apro-


ximávamos de Norecayra. Eram os últimos momentos do
entardecer. Bobby e mais dois motilones estavam na minha
frente e os seus corpos escuros estavam longe do alcance de
minha vista, cobertos pelas trepadeiras e arbustos espessos que
havia nas selvas. Era um dos instantes mais lindos do dia. A
escuridão que se aproximava fazia com que o verde da selva
tomasse um tom suave e semelhante ao veludo.
Andávamos apressadamente. Dentro de poucos instantes
chegaríamos à casa comunitária. Comecei a ouvir gritos altos à
nossa frente, clamores excruciantes como se partissem de
muitas bocas diferentes. Eu nunca ouvira coisa tão angustiante
como essa. Apressei os passos e mentalmente comecei a
separar os remédios que havia em minha sacola.
Os gritos pareciam muito mais desesperadores à medida
que nos aproximávamos. Eu nunca ouvira os motilones gritarem
daquela maneira. Eles nunca choramingavam sequer sob a dor
mais tremenda. Porém, Bobby e os outros motilones
continuaram caminhando numa linha reta, à minha frente, como
se nada estivesse errado.
— Parem — eu disse. Bobby e os outros se voltaram.
— Que gritaria é aquela? — perguntei. — Não deveríamos ir
ver o que podemos fazer?
Bobby olhou para baixo, para a picada. Um dos outros
homens, que era médico-feiticeiro, sacudiu a cabeça. — Não há
nada que possamos fazer.
— Mas, que é que está acontecendo?
Nenhum dos três disse uma palavra sequer. Olharam para
mim com seus olhos pretos e silenciosos.
Como os gritos continuassem a ecoar através das selvas,
fiquei um tanto agitado. — Pois bem — eu disse — talvez não se
importem com quem quer que seja, porém eu me importo. Quero
ver se podemos ajudar.
Mesmo assim, não me responderam. Eles estão tristes,
pensei. Há alguma coisa lá que é muito triste para eles
suportarem.
— Pois bem — eu disse — vocês não precisam vir comigo.
Porém, eu quero ver o que está acontecendo.
Eles ficaram ali parados, até que eu me voltei, saí da picada
e caminhei para a selva, em direção aos sons. Depois de ter
andado alguns metros, ouvi um barulho atrás de mim. Eles
estavam me seguindo.
Os homens que gritavam estavam muito mais perto do que
eu pensara. E havia apenas dois deles. Eu conhecia um deles
muito bem. Era um dos chefes na casa comunitária, e guerreiro
muito feroz. Ele matara os empregados da companhia
petrolífera, somente para pegar os seus capacetes e usá-los
como panelas de cozinhar. Ele usava um colar feito com os
botões tirados da roupa de sua vítima, e um outro colar feito
com dentes de jaguar, uma onça pintada que ele caçara com seu
arco. Agora, em frente de um buraco que ele cavara, um buraco
de quase dois metros de profundidade, ele gritava numa voz
desesperada, buscando algo: "Deus, ó Deus, sai desse buraco."
O outro homem estava no topo de uma árvore. Enfiava
folhas na boca, tentando mastigá-las, enquanto gritava: "Deus, ó
Deus, vem daí do horizonte."
Era o quadro mais estranho que eu já vira. Poderia ser algo
do qual se dar gargalhadas, porém algo me fez ver que não
havia nada de engraçado naquilo tudo.
Meus três companheiros colocaram-se ao meu lado, eviden-
temente tristes e embaraçados.
— Você sabia a respeito disso? — perguntei a Bobby. Ele
assentiu com a cabeça.
— Por que fazem isso?
Então ele explicou que o irmão do homem que estava gri-
tando para dentro do buraco havia falecido numa região que não
era o seu próprio lar. Ele fora mordido por uma cobra venenosa e
morrera antes que tivessem tempo de trazê-lo de volta. E de
acordo com as suas tradições, isso significava que o seu idioma,
seu espírito, sua vida, nunca poderiam ir a Deus além do
horizonte. Agora o homem estava tentando buscar a Deus, para
fazer com ele trouxesse o seu idioma de volta à vida, para poder
viver no seu corpo.
— Ê o que faz com que ele pense que poderá achar Deus,
gritando para dentro de um buraco?
Bobby encolheu os ombros. — É um bom lugar como qual-
quer outro para se procurar.
A expressão do seu desespero estampava-se nas suas pala-
vras.
Essa era a razão pela qual Deus permitira que eu vivesse.
Eu estava ali para dizer-lhes onde é que poderiam achar Deus.
Talvez essa fosse uma oportunidade que Deus arranjara. O meu
corpo ficou tenso com o pensamento de poder compartilhar
Cristo, depois de cinco anos de espera. No entanto, parecia que
era esperar demais. Eu estava orando silenciosamente.
O homem parou de gritar para o buraco e veio em nossa
direção. Seus cabelos estavam desalinhados, seu corpo estava
coberto de sujeira. Seus olhos estavam fundos nas olheiras
escuras. — Não há razão alguma — ele disse. — Nós fomos
enganados.
— Quanto tempo faz que você está aqui? — perguntei
tranqüilamente.
— Desde que o sol nasceu hoje de manhã.
— E por que você diz que foi enganado?
Ele me contou novamente a história do falso profeta que os
motilones haviam seguido, cujas promessas falsas os afastaram
de Deus. — Nós não conhecemos mais a Deus — ele disse com
calma.
Então os outros homens tentaram explicar uma lenda dos
motilones, que confirmava porque a morte desse irmão tinha
implicações tão terríveis. Não compreendi tudo.
As lendas dos motilones são tão complicadas quanto qual-
quer teologia. Porém compreendi alguma coisa nova: a grande
sensação de solidão. Muitas e muitas vezes eu ponderara o que
é que Cristo teria a oferecer a eles. A maneira como eles viviam,
uns com os outros, era muito superior à maneira dos norte-
americanos. Porém na vida havia muito mais do que aquilo.
Lembrei-me da noite quando Jesus penetrou em minha
vida. Havia sido muitos anos antes; era simplesmente um
pontinho no tempo. No entanto, daquela raiz nascera tudo o que
eu era. Através dela, Deus me dera a paz e um verdadeiro
propósito.
E aqui estavam os motilones em busca de Deus. Mas como
poderia eu explicar coisas tais como graça, sacrifício e
encarnação? Poderia contar uma história simples, e eles
entenderiam. Porém, como poderia eu transmitir a real verdade
espiritual?
Iniciamos, então, um debate animado. O homem que esti-
vera no alto da árvore descera e se juntara a nós. Ele nos fez
recordar aquela lenda de que um profeta viria, trazendo talos de
bananeira e que Deus sairia daqueles talos.
Eu não podia compreender muito bem a idéia ligada àquela
lenda.
— Por que esperar que Deus venha de um talo de bana-
neira? — perguntei.
Houve um silêncio um tanto constrangedor. Aquilo tinha
sentido para eles, porém não sabiam explicá-lo. Bobby se dirigiu
a uma bananeira, que crescia ali por perto. Ele cortou uma parte
dela e atirou-a em nossa direção.
— Esse é o tipo de talo de bananeira da qual Deus poderá
vir — ele disse. Era uma secção transversal. Ela rolou aos nossos
pés.
Um dos motilones abaixou-se e atingiu-a com a sua
machadinha, partindo-a ao meio, acidentalmente. Uma parte
ficou de pé, enquanto a outra se dividiu. As folhas que ainda
estavam dentro do talo, à espera de se desenvolver e sair,
começaram a se desfolhar, de maneira que presas àquele talo,
se assemelhavam às paginas de um livro.
De repente, uma palavra surgiu em minha mente. "Livro!
Livro!" Apanhei minha sacola e peguei a Bíblia. Eu a abri.
Folheando suas páginas, apresentei-a aos homens. Apontei para
as folhas do talo da bananeira, e depois para a Bíblia.
— Aqui está ele — eu disse. — Eu o tenho aqui. Este é o
Deus do talo da bananeira.
Um dos motilones, aquele que subira à árvore, arrancou a
Bíblia de minhas mãos. Começou a rasgar-lhe as páginas e enfiá-
las na boca. Ele julgava que comendo as páginas, teria Deus
dentro de si.
Visto que nada aconteceu, eles começaram a fazer pergun-
tas. Como poderia eu explicar-lhes o Evangelho? Como poderia
eu explicar que Deus, em Jesus, seria semelhante a eles?
De repente, lembrei-me de uma de suas lendas, a respeito
de um homem que se transformara numa formiga. Ele estivera
sentado num trilho, atrás de uma caça, e notara algumas
formigas construindo a casa. Ele queria ajudá-las a construir uma
boa casa, igual à dos motilones, por isso começou a cavar o solo.
Mas, porque ele era tão grande e desconhecido, as formigas se
amedrontaram e fugiram.
Então, milagrosamente, ele se transformou numa formiga.
Pensava como formiga, assemelhava-se a uma formiga e falava
a linguagem de uma formiga. Viveu com as formigas e elas
chegaram a confiar nele.
E, um dia, ele contou a elas que realmente ele não era
formiga, mas, sim, um motilone, e que tentara, certa vez, ajudá-
las a construir a sua casa, porém as assustara.
As formigas disseram algo parecido como: "Você está brin-
cando? Então era você?" E elas riram, porque ele não se parecia
nada com aquele ser tão grande e amedrontador que estivera
removendo a terra.
Então, naquele momento, ele voltou a ser motilone, e co-
meçou a trabalhar a terra no formato de uma casa igual à dele.
Desta vez as formigas o reconheceram e deixaram que ele
fizesse o seu trabalho, porque sabiam que ele não lhes faria mal
algum. Essa é a razão por que, segundo a lenda, as formigas têm
formigueiros semelhantes às casas dos motilones.
À medida que a história ia passando pela minha mente,
pela primeira vez, vi e compreendi a lição: se alguém for grande
e poderoso, precisa tornar-se pequeno e fraco, a fim de trabalhar
com os outros seres que são mais fracos. Era um paralelo
perfeito para aquilo que Deus fizera em Jesus.
Porém, havia tantos fatores desconhecidos na maneira
como os motilones raciocinavam. Como poderia eu ter certeza
de que estava transmitindo a coisa correta?
Eu não podia. No entanto, tinha certeza de que Deus me
dera aquela oportunidade para falar. Então peguei a frase,
"transformou-se numa formiga", e usei-a para a encarnação. —
Deus está encarnado no homem — eu disse.
Eles ficaram assombrados. Em seguida um silêncio muito
tenso. A idéia de que Deus se tornara homem os abismara.
— Onde é que ele andou? — perguntou o médico-feiticeiro
num sussurro.
Cada motilone tem a sua própria picada. É a sua marca de
identificação. Você simplesmente anda no caminho de outra
pessoa, se deseja encontrá-la. Deus deveria ter um caminho
também. Se desejássemos achá-lo, precisaríamos andar no seu
caminho.
Meu sangue corria apressado e o coração batia desordena-
damente. — Jesus Cristo é Deus feito homem — eu disse. — Ele
pode mostrar a vocês o caminho de Deus.
A expressão de surpresa estampava-se em seus rostos e
era quase de temor. O homem que estivera gritando para dentro
do buraco olhou para mim.
— Mostra-nos Cristo — ele disse num sussurro áspero.
Tentei encontrar uma resposta. — Vocês mataram Cristo — eu
disse. — Vocês destruíram Deus.
Seus olhos tornaram-se maiores ainda. — Eu matei a Cristo?
Eu fiz isso? Como poderia eu fazer isso? E como pode Deus ser
morto?
Eu queria dizer a eles como a morte de Jesus os libertara da
mediocridade, da morte e dos poderes do mal.
— Como é que o mal, a morte e a decepção encontram
poderes sobre os motilones? — perguntei.
— Por intermédio dos ouvidos — respondeu Bobby, pois a
linguagem é muito importante para os motilones. É a essência
da vida. Se uma linguagem má vem através do ouvido, isso
significa a morte.
— Vocês se lembram — eu disse — como depois de uma
caçada de javali o guia retira a pele do animal e a coloca sobre a
cabeça, para cobrir os ouvidos e protegê-los contra os maus
espíritos das selvas?
Eles acenaram com a cabeça, afirmativamente, escutando
com toda atenção.
— Jesus Cristo foi morto — eu disse. — E assim como vocês
colocam a pele sobre a cabeça do chefe, para esconder-lhe os
ouvidos, assim também Jesus, quando morreu, derramou o seu
sangue sobre a decepção de vocês, escondendo-a da vista de
Deus.
Fiquei ali parado, olhando para eles, com uma profunda
esperança de que estivessem entendendo. Então notei nos seus
rostos, que estavam compreendendo.
Eu lhes disse que Jesus fora enterrado. Uma onda de tris-
teza se estampou em seus rostos. O homem que procurava a
linguagem de seu irmão desandou a chorar. Era a primeira vez
que eu via um motilone chorar. Pois o fato de pensar que Deus
estava morto, e que eles estavam perdidos, trouxera lágrimas e
soluços.
Apanhei a Bíblia e abri-a, dizendo: — A Bíblia diz que Jesus
voltou a viver após a sua morte e que está vivo hoje.
Um dos homens tomou-me a Bíblia e a colocou junto ao seu
ouvido. — Eu não posso ouvir coisa alguma — disse ele.
Tomei-a de volta. — A maneira como a Bíblia fala não muda
— eu disse. — Ela representa o mesmo que o talo da bananeira;
diz sempre a mesma coisa. A Bíblia diz que Jesus voltou à vida. É
o talo de bananeira que Deus enviou.
Mostrei-lhe a página e lhe disse que aquelas marcas peque-
ninas tinham um significado.
— Ninguém jamais voltou dos mortos em toda a história dos
motilones — ele disse.
— Eu sei — respondi. — Mas Jesus voltou. É a prova de que
ele é realmente o Filho de Deus.
Eles fizeram muitas outras perguntas. Algumas delas eu
não compreendia totalmente. Mas tinha a certeza de que Deus
falara por meu intermédio. Aquela noite eu orei: "Deus, dá
validade à tua Palavra. Faze com que ela toque essas vidas." Eu
reivindiquei a promessa de Deus de que a sua Palavra não
voltaria a ele sem ter uma resposta.
No entanto, parecia que não haveria resposta. Continuei a
caminhar pelas picadas com Bobby, dando remédios aos
médicos-feiticeiros e mostrando-lhes como poderiam fazer o seu
trabalho com muito mais eficiência.
No entanto, uma tarde Bobby começou a fazer perguntas.
Estávamos sentados ao redor do fogo. A luz do fogo refletia
levemente sobre ele. O seu rosto estava sério.
— Como posso eu andar no caminho de Jesus? —
perguntou. — Nenhum motilone já fez isso. É algo novo. Não há
outro motilone que possa dizer como se faz isso.
Lembrei-me das dificuldades que eu tivera, quando menino,
como às vezes era quase impossível continuar crendo em Jesus,
quando a minha família e os meus amigos se opunham à minha
consagração. Bobby estava passando por essa mesma
experiência.
— Bobby — eu disse — você se lembra de meu primeiro
Festival das Flechas, da primeira vez que vi todos os motilones
reunidos a fim de cantarem as suas canções? — O festival era a
cerimônia mais importante na cultura dos motilones.
Ele assentiu com a cabeça. O fogo brilhou por uns instantes
e eu pude ver os seus olhos atentamente fixados em mim.
— Você se lembra de que eu estava com medo de subir nas
redes tão altas, para cantar, pois tinha medo de que a corda se
partisse? E que eu lhe disse que somente cantaria se pudesse ter
um pé na rede e outro no chão?
— Sim Bruchko.
— E que foi que você me disse?
Ele riu.— Eu lhe disse que você precisava ter os dois pés na
rede. Você precisava estar suspenso, foi o que eu lhe disse.
— Sim — eu disse. — Você precisa estar suspenso. É assim
que se deve estar quando se segue a Jesus, Bobby. Nenhum
homem poderá dizer-lhe como você deve andar na trilha de
Jesus. Somente ele poderá fazê-lo. Porém, para descobrir isso,
você terá que atar as cordas de sua rede nele, e estar suspenso
em Deus.
Bobby não disse palavra alguma. O fogo dançava em seus
olhos. Levantou-se e saiu, andando pela noite escura.
No dia seguinte ele se aproximou de mim. — Bruchko —
disse ele — Quero atar as cordas de minha rede em Jesus Cristo.
Mas como posso fazer isso? Eu não posso vê-lo e tampouco
posso tocá-lo.
— Você andou falando com os espíritos, não é?
— Oh — disse ele —, agora eu vejo.
No dia seguinte ele tinha um vasto sorriso na face. —
Bruchko, eu atei as cordas de minha rede em Jesus. Agora falo
uma nova língua.
Não compreendi o que ele queria dizer. — Você aprendeu a
falar um pouco de espanhol, como eu falo?
Ele deu uma gargalhada, feliz e gostosa. — Não, Bruchko,
eu falo uma nova língua.
Então compreendi. Para os motilones, a língua é vida. Se
Bobby tinha uma nova vida, ele possuía um novo modo de falar.
A sua fala seria orientada por Cristo.
Colocamos nossas mãos sobre os ombros, um do outro.
Minha mente voltou à primeira vez que me encontrei com Jesus,
e a vida que senti sendo derramada dentro de mim. Agora meu
irmão Bobby estava tendo a mesma experiência, com o próprio
Jesus, da mesma maneira que eu sentira. Ele começara a andar
com Jesus.
— Jesus ressuscitou dentre os mortos! — exclamou Bobby,
tão alto que o som de suas palavras ecoou a uma grande
distância ali nas selvas. — Ele andou pelos nossos caminhos! Eu
me encontrei com ele.
Daquele dia em diante a nossa amizade foi intensificada por
causa de nosso amor a Jesus. Falávamos constantemente a
respeito dele, e Bobby me fazia inúmeras perguntas. Porém ele
nunca me perguntou qual era a cor do cabelo de Jesus, ou se
porventura ele tinha olhos azuis. Para Bobby, as respostas eram
óbvias: Jesus tinha pele escura e os seus olhos eram pretos. Ele
usava um cordão-G e caçava com flechas e arcos. Jesus era
motilone.
18. A NOITE DO TIGRE

Eu estava deitado em minha rede depois da caçada feita


pela manhã. As mulheres estavam cozinhando, e a fumaça
causticante do fogo, misturada com o cheiro dos macacos que
estavam assando, fazia-me sonolento. Logo seria a hora de
comer. E eu estava com fome.
Ouvi uma agitação no outro lado da casa, e me ergui sobre
os cotovelos para ver o que estava acontecendo. Num grupo,
homens e mulheres estavam reunidos em torno de Abacuriana,
um rapaz esbelto. Ouvi algumas das palavras: "Tigre. Eu não
podia me afastar ..."Ele falava com bastante excitação.
Dois homens que estavam junto à minha rede se levanta-
ram e foram em direção ao grupo. — Ei, Chanti — gritei para um
dos homens. — O que está acontecendo?
Ele se aproximou de minha rede. Parecia nervoso.
— Você não ouviu? — perguntou ele roucamente. — O tigre
falou.
— Que tigre? — eu disse, um tanto embaraçado. — O que
ele falou? Que é que você está falando?
— O tigre falou! Ele falou!
Sacudi a cabeça. — Chanti, os tigres não falam. E também,
se falassem, quem é que se importaria com o que eles disses-
sem?
— Oh — disse ele —, quando o tigre fala, nós estamos em
grandes dificuldades. Dificuldades bem grandes mesmo.
Nessa hora seus olhos estavam rolando.— Pois bem, muito
obrigado — e deixei que ele se fosse.
A casa toda estava sobressaltada. Todo o trabalho cessara.
Aqueles que não podiam aproximar-se de Abacuriana ficavam
em volta do grupo e conversavam ou iam rapidamente à porta e
olhavam para fora.
Desci da rede. O chefe estava junto a uma das portas.
Conduzi-o para um lado.
— Preciso falar com você — disse eu. — Que quer dizer que
o tigre falou?
— Isso quer dizer que estamos próximos de um problema
muito grande — ele disse.
— Mas, que espécie de problema? Que poderia um tigre
falar que fosse tão perigoso assim?
— Eu vou à selva conversar com o tigre. E ele me dirá o que
é.
— Mas chefe — eu disse —, os tigres não falam. Isso é fora
de propósito.
Ele me deu um olhar rápido e duro. — Olhe aqui — disse ele
—, você não sabe coisa alguma a respeito das selvas. Você não
sabe caçar, não sabe o que comer. Você não pode acompanhar
os que estão nas picadas. E que o faz pensar que saiba alguma
coisa a respeito dos tigres?
Não havia muita coisa que eu pudesse falar. Olhei para ele
com expressão de espanto, enquanto que ele olhava friamente
para a selva. E depois, num esforço monumental, ele endireitou
os ombros e saiu da casa. Observei-o enquanto atravessava a
clareira e desaparecia sozinho entre as árvores. Voltei-me. Todos
ali na casa estavam olhando para o ponto onde ele
desaparecera.
Ele ficou fora até os últimos momentos da tarde. Todos
estavam esperando pela sua volta. Ninguém trabalhou. Alguns
homens tentaram fazer flechas, porém estavam sempre parando
e olhando para o alto. Havia pouca conversa. As pessoas
andavam impacientemente ao redor da casa, e a sua
impaciência foi transferida para mim. Que é que estava acon-
tecendo? Eu nunca vira coisa semelhante. A casa parecia estar
sendo oprimida por mão invisível, muito pesada.
Quando o chefe voltou, imediatamente as pessoas se reuni-
ram em volta dele. Esperou até que todos estivessem ao seu
redor para depois falar. Tinha o rosto cansado e repuxado.
Parecia ter envelhecido dez anos.
— O tigre disse que os espíritos sairão hoje à noite das
rochas. Eles atacarão esta casa. As vidas serão extintas. As
línguas cessarão. Haverá morte.
Num silêncio profundo o chefe se afastou e subiu para a sua
rede. As pessoas se desviavam e andavam sós.
Que é que estava realmente acontecendo? comecei a
pensar. De onde vinha todo esse temor? Que quer dizer, que o
tigre fala e os espíritos sairão das rochas?
Era claro que alguma coisa realmente amedrontadora es-
tava acontecendo. Normalmente, essas pessoas não eram
supersticiosas, e eu nunca, nunca mesmo, as vira assim tão
amedrontadas. Rotineiramente enfrentavam cobras venenosas e
animais perigosos, e nunca mostravam sinal de medo. Se
estavam com medo agora, com toda certeza havia alguma coisa
digna desse medo. Mas, o que era? E como poderiam eles lutar
contra ele?
Encontrei Bobby fora da casa, olhando ao longe. Ele olhou
por cima de mim quando me aproximei.
— Bruchko, será que Jesus poderá ser tirado de minha
boca? perguntou, mostrando quase um traço de medo em sua
voz.
— Bobby, que é que está acontecendo? Que quer dizer que
o tigre falou? E o que significa que os espíritos sairão das
rochas?
— Os espíritos sairão das rochas — ele disse. — Eles tentam
matar. Às vezes, morre apenas uma pessoa. Às vezes, muitas
delas morrem. Dois meses atrás, lá em Ocbabuda, morreram
sete pessoas.
— Como é que morrem? — perguntei. — Quem é que os
mata?
— Os espíritos os matam, Bruchko — disse ele. — Eles
morrem em suas redes, porque os espíritos maus retiram deles a
sua fala.
— Bobby, sempre morre alguém?
— Sempre — ele disse.
O ar parecia pesado. Que significava tudo aquilo? E o que
sentia eu sob tanta pressão?
— Será que Jesus pode ser retirado de minha boca? —
perguntou Bobby novamente, olhando em direção da selva.
Eu não sabia como lhe responder. Nunca antes eu lidara
com poderes demoníacos. Eu me sentia amedrontado, também.
— Será que o diabo pode matar-me agora que ando no
caminho de Jesus? — continuou. — Bruchko, que devo eu fazer?
— Não sei Bobby. Você mesmo deve conversar com Jesus.
Ele é o único que tem todas as respostas para as suas pergun-
tas. Ele falará com você, em seu coração.
Ele hesitou, e então se retirou, indo para a selva. Imedia-
tamente senti certo remorso. Por que não lhe dei alguns
conselhos? Que espécie de pai espiritual era eu?
Porém, eu não tinha conselho algum para lhe dar.
Saí para uma longa caminhada pela selva. Eu não estava
apenas amedrontado, mas também confuso. "Os tigres não
podem falar", eu disse a Deus. "O que está acontecendo aqui?"
Quando voltei para a casa, era quase noite. Assim que me
aproximei da clareira, podia ouvir lamentos estranhos, cantos de
sortilégio e feitiçarias. A casa se balançava de um lado para
outro, como se ela mesma estivesse possuída pelo próprio
demônio. As canções eram embaralhadas. Elas aumentavam e
diminuíam, ganhavam força e de repente caíam de volume. O ar
parecia cheio de eletricidade. Eu estava quase com medo de
entrar ali.
Lá dentro, os fogos lançavam um brilho vermelho assusta-
dor. Vi que realmente a casa se balançava. Todos os homens, lá
no alto, em suas redes, se balançavam e cantavam a fim de
afastar o demônio. As mulheres estavam no chão, batendo
pedras enormes, uma na outra. Seus olhos, como os olhos dos
homens, estavam fechados e bem apertados.
Onde estava Bobby? Ele se achava ali naquele lugar? De
repente senti certo temor por ele. Ele era o único motilone que
começara a andar na trilha de Jesus. Será que ele se havia
entregue a esse temor e superstição?
Então vi a sua rede. Ele estava nela, balançando. Quase
virei as costas e voltei para a selva. Mas alguma coisa me
impediu. Ele era meu irmão.
Agarrei um dos mastros que suportavam a casa, e comecei
a subir em direção à rede de Bobby que estava a quase seis
metros acima do chão. O bambu curvou-se sob o meu peso e
comecei a pensar se porventura me agüentaria.
Mas, naquele instante, o bem-estar de Bobby era a coisa
mais importante do mundo para mim. Quando subi o suficiente,
olhei para a rede de Bobby. Seus olhos estavam abertos. Ele
tinha um largo sorriso em seu rosto. A canção que ele estava
cantando era diferente:

"Jesus está em minha boca;


Eu tenho uma nova fala.
Jesus está em minha boca;
ninguém poderá tirá-lo de mim.
Eu falo as palavras de Jesus.
Eu ando nos passos de Jesus.
Eu sou um dos jovens de Jesus;
Ele encheu o meu estômago e não sinto mais fome."

Enquanto eu permanecia agarrado ao poste de palmeira,


Bobby olhou diretamente para mim. Ele estava salvo. Ele
conhecia Jesus. Ele estava fazendo aquilo que eu deveria ter tido
a visão de sugerir. Ele estava afastando os espíritos maus
cantando a canção de Jesus.
Comecei a cantar com ele. Cantamos a noite toda. Quando
a alvorada surgiu, ninguém havia morrido. Era a primeira vez, na
lembrança de todos eles, em que os espíritos haviam passado e
ninguém havia falecido.
Ninguém comentou a respeito da canção de Bobby, no
entanto, eu podia sentir que os outros motilones tinham um
interesse totalmente novo em relação a Bobby e na sua relação
com Jesus. Não era algo particularmente externo; pois essa não
era a maneira dos motilones. Mas as evidências eram claras.
E Bobby começou a mudar. Nos meses seguintes, após a
sua entrega a Jesus, ele se tornou menos orgulhoso. Quando
visitava as outras casas comunitárias, aceitava o alimento
imediatamente, em vez de se forçar a ficar sem alimento, afim
de demonstrar a sua força. Aquela teimosia não o fizera muito
popular entre os outros homens, se bem que eles o respeitassem
por causa dela. Agora, eles notavam sua nova atitude, e ficavam
imaginando o que é que a causara.
Eu estava ansioso para que Bobby lhes contasse. Eu tinha
certeza de que poderia fazê-lo com as suas experiências, e fiquei
desapontado quando ele não quis fazê-lo. Seria por que ele não
se preocupava suficientemente com outros motilones? Eu não
tinha muita certeza.
Mas eu estava tentando forçá-lo a encaixar-se em "um
molde" e não conseguia. As notícias não têm significado real
para os motilones, até que elas sejam dadas numa cerimônia
formal. Na minha excitação a respeito da experiência espiritual
de Bobby, eu queria que ele fizesse as coisas como são feitas na
América do Norte. Queria que ele convocasse uma reunião e
contasse a respeito de Jesus, ou então, que pegasse os seus
amigos e explicasse a eles o que é que Jesus agora significava
para ele. Mas, graças a Deus, ele esperou até que pudesse fazê-
lo à moda dos motilones.
Logo se espalhou a notícia de que em breve haveria outro
Festival das Flechas. Houve excitação pela casa. A única vez
quando todos os motilones se reuniam, era por ocasião desse
festival.
Formavam-se novos pactos. Havia troca de flechas, e os
homens que formavam os pactos tinham um concurso de cân-
ticos. Subiam em suas redes e cantavam seguidamente durante
o tempo todo, tanto quanto podiam, relatando lendas, histórias,
e notícias de acontecimentos recentes. Às vezes, as suas
canções chegavam a durar até doze horas, sem interrupção em
busca de alimento, água, ou descanso.
As pessoas fluíam pela casa dentro. Havia muito barulho e
muita comida. Os velhos amigos se cumprimentavam e troca-
vam histórias. As pessoas olhavam para Bobby sob um novo
prisma. A notícia correra a respeito da noite quando os espíritos
haviam saído, e ninguém falecera. Ele era olhado com respeito e
certa curiosidade. Ele se casara e era aceito como homem.
Um dos chefes mais velhos, chamado Adjibacbayra, sentiu
um interesse todo especial por Bobby. O seu ar reservado fazia
com que ele parecesse estar cheio de dignidade. No entanto, ele
possuía uma boa dose de curiosidade, e no primeiro dia do
Festival, imediatamente desafiou a Bobby para o concurso das
canções. Bobby ficou satisfeito e aceitou o desafio.
Ambos subiram na mesma rede, a seis metros de altura, e
começaram a balançar-se de um lado para outro. Bobby cantou
primeiro, e Adjibacbayra imitou-o, acompanhando linha por
linha. Outros homens haviam feito outros desafios, e também
estavam cantando.
A canção de Bobby era sobre a maneira como os motilones
haviam sido enganados e haviam perdido o caminho de Deus.
Ele falara como, antigamente, conheceram a Deus, mas haviam
sido gananciosos e seguido um falso profeta. Então ele começou
a cantar a respeito de Jesus. Assim que começou a cantar, os
outros homens que também estavam cantando, pararam os seus
cânticos. Todos ficaram silenciosos a fim de poderem ouvir.
— Jesus Cristo foi encarnado como homem — Bobby cantou.
— Ele andou pelas nossas picadas. Ele é Deus, contudo, mesmo
assim podemos conhecê-lo.
A casa estava num silêncio mortal, com exceção do cântico
lamentoso de Bobby e a repetição de Adjibacbayra. As pessoas
estavam aguçando os ouvidos para poderem ouvir.
Dentro de mim, no entanto, havia uma luta espiritual. Eu
estava odiando aquela canção. Ela parecia tão pagã. A música,
cantada num tom menor, soava como a música dos feiticeiros.
Parecia que ela estava rebaixando o Evangelho. No entanto,
quando olhei para as pessoas ao meu redor, e para cima, para o
chefe que se balançava em sua rede, pude ver que eles ouviam
como se suas vidas dependessem daquilo. Bobby estava dando a
eles a verdade espiritual através da canção.
No entanto, eu ainda queria fazer à minha moda... até que
ouvi Bobby cantar como Jesus lhe dera uma nova fala.
"Você não pode ver a realidade do que ele está dando ao
seu povo?" parecia que Deus me perguntava.
"Mas Senhor", repliquei, "por que eu sinto tanta repulsa
pelo modo como eles se expressam?"
Então percebi que era por ser eu um pecador. Eu podia
amar a maneira de viver dos motilones, mas quando se rela-
cionava com os assuntos espirituais, eu julgava ter a única
maneira correta. Porém, ela não era a maneira de Deus. Deus
está dizendo: "Eu também amo o modo como os motilones
vivem. Fui eu que o fiz. E eu vou contar a eles a respeito de meu
Filho, à minha moda."
Eu me descontraí e finalmente pude sentir uma verdadeira
alegria no cântico de Bobby. Ele continuou durante mais oito
horas, dez horas. A atenção do grupo não diminuíra. A casa
ficara às escuras. Os fogos foram acesos. Finalmente, após
catorze horas, eles pararam de cantar e, fatigados, desceram de
sua rede.
Adjibacbayra olhou para Bobby. — Você comunicou uma
notícia completamente nova — ele disse. — Eu também quero
estar suspenso em Jesus. Quero esparramar o seu sangue sobre
a minha decepção.
Naquela noite deu-se uma revolução espiritual com aquele
povo. Ninguém recusou a novidade a respeito de Jesus. Todos
eles queriam que ele os levasse além do horizonte. Houve uma
alegria intensa, tremenda. Às vezes havia silêncio, e as pessoas
conversavam entre si em pequenos grupos. Outras vezes, a
alegria rompia espontaneamente através de cânticos. Isso
prosseguiu até tarde da noite.
Deus havia falado. Ele havia falado na língua dos motilones
e através da cultura deles. E ele nem sequer tivera que me usar.

19. OS MILAGRES DE CADA DIA

Parecia um milagre que os motilones tivessem aceito a


Jesus no dia do Festival das Flechas. Durante vários dias, um
cântico de louvor encheu-me o coração.
Depois ouvi relatos acerca de outros Festivais de Flechas.
As palavras que Bobby cantara haviam sido repetidas lá e
alegremente haviam sido aceitas. Era muito mais do que eu
podia acreditar.
À medida que as pessoas começaram a responder à Palavra
e a obedecer a Deus, outras coisas foram acontecendo, as quais
eu também chamava de "milagres", coisas que eram claramente
sobrenaturais. Mas a idéia de milagre para os motilones não era,
necessariamente, igual à minha. Algumas coisas que me
surpreendiam, eles as aceitavam sem hesitação.
A medicina, por exemplo. Depois que os motilones aceita-
ram a Jesus Cristo, houve uma tremenda expansão nesse campo.
Porém, todas as vezes que injeções, comprimidos ou ungüento
fossem aplicados, eles eram acompanhados por cânticos que
invocavam a Jesus para curar. Para os motilones, a cura que a
medicina realizava era um milagre da parte de Jesus. Era algo
que ele fazia em benefício do povo. As suas orações eram parte
desse processo de cura.
Às vezes isso trazia resultados surpreendentes. Certo dia
cheguei a uma casa onde havia um homem que, na semana
anterior, havia sido picado por uma cobra venenosa. Ele estava
praticamente recuperado.
— Eu julgava que você não tivesse mais soro antivenenoso
— eu disse. — Onde você o conseguiu?
— Nós não tínhamos nenhum — respondeu o médico-
feiticeiro.
— Que é que vocês, em nome do céu, fizeram para que ele
se recuperasse?
— Pois bem, tudo o que tínhamos eram alguns antibióticos.
Então nós os demos a ele e oramos para que Deus o curasse. E
como você pode ver, ele o curou.
Eu estava abismado. O antibiótico não tem efeito algum
sobre o veneno de cobra. Deus havia curado o homem, e não o
remédio.
Mas não era isso que os motilones diziam a respeito de
todas as curas? Que diferença faziam os métodos aplicados por
Deus? Quer as pessoas usassem o remédio adequado ou não,
ainda assim era Deus quem efetuava a cura.
Porém eu estava tão satisfeito que Deus escolhera traba-
lhar de maneira poderosa e visível, entre os motilones, sim-
plesmente para mostrar-me que ele realmente estava mudando
os seus corações. De outro modo, seria quase impossível crer na
quase totalidade da aceitação do Evangelho, pelos motilones. As
vezes, eu me punha a pensar: Isso é realmente conversão ou é
simplesmente mais uma lenda em que os motilones se apóiam?
Deus me fez ver as mudanças poderosas ocorridas na vida
daquela gente, de modo que eu não podia duvidar de que ele
estava agindo sobre eles e por intermédio deles.
Certo dia voltei de uma viagem e soube que Atabacdora
havia sido trazido para a casa comunitária com uma fratura nas
costas. Ele caíra de uma árvore durante uma caçada aos
macacos. Não tínhamos meio algum de ajudá-lo ali mesmo, e
então o levamos durante três dias através de picadas, e depois,
por barco, rio abaixo, depois para o hospital em Tibu. Lá no
hospital tiraram uma radiografia de suas costas, e o médico
depois me informou que ele havia fraturado o pescoço. Ele
deveria ficar em repouso, imóvel, durante meses. Sendo eu a
única pessoa que falava espanhol e motilone, fui encarregado de
dar-lhe essa notícia.
Atabacdora estava deitado de costas. Eles haviam colo-
cado, no seu leito, alguns suportes, de modo que o seu corpo
estivesse curvado ao meio. Estava numa posição desconfortável.
Queixara-se de que as enfermeiras não o deixavam mover.
— O médico acabou de me dizer que você terá que ficar aí,
imóvel, durante três meses — eu lhe disse. — Se você não
obedecer, nunca mais ficará bom.
— Não, Bruchko — disse ele. — Não posso fazer isso. Não
posso ficar aqui deitado todo esse tempo.
— Atabacdora, você precisa fazer isso. Se não o fizer, não
ficará curado.
Fiz com que ele prometesse obedecer às ordens do médico,
porém ele não estava muito contente, não. E também, eu não
tinha certeza de quanto tempo duraria sua promessa. Bobby e
eu falamos a esse respeito, mas nenhum de nós tinha uma
solução para o caso. Ele poderia permanecer imóvel por uma
semana, se realmente tentasse. Mas três meses? Era impossível.
— Escute, Bobby — eu disse —, às vezes os homens que
conheceram a Jesus, quando ele andava pelas picadas, ungiam
com óleo um doente e oravam para que ele fosse curado. Acho
que talvez deveríamos fazer isso com Atabacdora.
— E isso funciona, Bruchko? — perguntou Bobby. — Deus
cura desse modo?
Eu não tinha muita fé que isso realmente fosse ajudar, mas
eu sabia que Atabacdora nunca seria capaz de ficar três meses
imóvel, e eu nem sequer podia pensar em vê-lo disforme para o
resto da vida.
Arranjamos um pouco de óleo e fomos ao seu quarto lá no
hospital. Ele estava sofrendo dores horríveis. Os sedativos não
estavam produzindo o efeito necessário, contudo ele ainda sorriu
para nós. — Nós queremos orar por você — eu disse.
Bobby colocou o dedo no óleo, e depois eu fiz a mesma
coisa. Ficamos ali por um momento; Bobby esperava pela minha
iniciativa.
— Não sei onde devo colocar o óleo — ele disse. — Deve ser
em algum lugar em sua cabeça, mas eu não sei onde.
— Ponhamos na sua testa — disse Bobby.
Fizemos isso, e depois pusemos as mãos sobre a sua
cabeça. Então Bobby orou.
— Deus — ele disse —, Atabacdora tem dores nas costas.
Ele precisa ficar bom novamente, de modo que ele possa voltar a
correr pelas picadas, pescar e caçar, com os seus irmãos
motilones. Tu podes livrá-lo dessa dor nas costas. Nós queremos
que faças isso, e te pedimos em nome de Jesus.
Dissemos mais algumas palavras a Atabacdora e depois
fomos embora. Eu tinha alguns negócios a ver em Cucuta e
assim deixei Atabacdora aos cuidados de Bobby. Os meus
negócios levaram três dias, e passei a maior parte desse tempo
preocupando-me com o estado de Atabacdora. Quando voltei, fui
imediatamente ter com Bobby. Ele estava aborrecido.
— Atabacdora nem sequer tenta ficar parado, Bruchko —
ele disse. — Ele diz que não é nada confortável para ele ficar de
costas, e ele não fica deitado.
Fomos ao hospital visitá-lo. Sua cama estava vazia. Fiquei
assustado. Será que ele se havia mexido tanto, prejudicando a si
mesmo, e fora levado à sala de operação para uma cirurgia?
Nisso Atabacdora surgiu pelo quarto a dentro. Quando nos
viu, havia certo ar de culpa em seu rosto, como o de uma criança
apanhada ao pegar as bolachas, sem licença. Rapidamente, e
sem uma palavra sequer, ele se deitou, e deu uma
demonstração de como deveria ficar deitado corretamente, com
as costas curvadas ao meio. Ele mal acabara de deitar-se e de
colocar-se naquela posição, quando uma enfermeira, com o rosto
vermelho, chegou atrás dele, bufando. Com o dedo em riste, e
aos trancos, ela me repreendeu em voz bem alta, por deixá-lo
sair da cama. Atabacdora permaneceu ali bem quieto, com certo
ar de santidade no rosto. Finalmente, quando a enfermeira saiu,
fazendo toda sorte de ameaças, ele sorriu.
Era a minha vez de ralhar com ele. — Atabacdora, você não
se interessa em ficar bom? Se não ficar aí quieto, talvez você
nunca mais poderá caçar.
Ele falou amuado: "Bruchko, eu não podia mais ficar aqui
nesta cama. Ela é muito sem conforto. Fiz isso durante três dias
e foi o bastante.
— Bruchko — disse Bobby —, se ele não sente mais dores
nas costas, por que deve ficar imóvel na cama?
Eu não pensara nisso. Procurei o médico e perguntei-lhe se
não poderia tirar outra radiografia de Atabacdora. Ele não queria,
porém eu consegui demovê-lo. — Pois bem — disse ele —, se
isso o faz sentir mais feliz, eu o farei.
No dia seguinte ele veio ter comigo com ar um tanto emba-
raçado.
— Esse é o mesmo índio que você trouxe anteriormente?
— De certo que é — eu disse. — Acha que nós brincamos de
esconde-esconde com os seus pacientes?
— Pois bem, se esse é o mesmo homem, as suas costas
foram curadas. É algo surpreendente. Não há sinal algum, nem o
sinal de fratura. É algo como um milagre.
— Gente — ele disse —, vou procurar saber qual foi exata-
mente o seu tratamento. Nunca soube que o nosso tratamento
fosse tão eficaz como esse.
Eu ri. — O senhor não acha que houve algo mais do que
simplesmente a medicina que agiu sobre ele?
— O quê, por exemplo? — perguntou ele.
— Deus, por exemplo.
Ele saiu sacudindo a cabeça.
Eu estava profundamente exultante. Encontrei-me com
Bobby e contei a ele o que acontecera. — Bobby, você acredita
que isso é um milagre?
Bobby não estava tão excitado. Para ele, era simplesmente
uma dor nas costas que Deus curara. Muitas pessoas sentiam
dores nas costas, ficavam deitadas em suas redes durante um
dia, e em seguida se levantavam e iam cuidar de seus negócios.
Essa dor era um pouco pior do que as comuns.
— Mas, Bobby — eu disse —, a radiografia provou que o
pescoço dele estava quebrado.
— O que é radiografia?
— Bem, não posso explicar isso, Bobby. O negócio é que
Deus o curou.
— Mas, Bruchko, por que isso é surpresa para você? Nós já
vimos tantas pessoas serem curadas, que não constitui mais
surpresa.
Em 1967, depois de quase um ano que os primeiros
motilones se tomaram cristãos, Arabadoyca e mais um pequeno
grupo de outros índios vieram falar comigo. Eles haviam decidido
que desejavam ir contar a respeito de Jesus aos índios iucos. Eu
sentira o mesmo desejo anteriormente, e até fizera uma viagem
de volta à aldeia dos iucos, onde eu passara quase um ano.
Eu estava lá não fazia nem uma hora quando percebi que
alguma coisa havia mudado. Logo descobri o que era. Uma das
mulheres a quem eu tentara falar a respeito de Jesus, quando eu
estivera lá na primeira vez, tivera uma visão. Como resultado
disso, a maior parte da aldeia havia aceito a Jesus. Eles haviam
abandonado a chicha, a bebida com a qual se embebedavam tão
freqüentemente, e havia uma mudança notória ali na aldeia. Em
vez de falar a respeito de Jesus aos iucos, como eu tencionara
fazer, eles é que falavam a respeito dele para mim.
No entanto, eu estava surpreso ao ouvir que os motilones
desejavam falar a respeito de Jesus aos iucos. As duas tribos
haviam sido inimigas acérrimas durante anos. Os iucos tinham
certa brincadeira que gostavam de fazer. Eles costumavam
trançar os espinhos longos, de quase treze centímetros, que
havia nas selvas, e colocá-los nas picadas dos motilones. Depois
se escondiam por trás das moitas e esperavam. Quando os
motilones corriam ao longo daquela picada, pisavam naqueles
espinhos. Os iucos desandavam a rir de seus sofrimentos e
saíam correndo.
Agora os motilones queriam ir aos iucos e falar-lhes sobre
Jesus. Naquela ocasião eles não entendiam que havia outras
línguas, além da que os motilones falavam. Eles achavam que os
iucos falavam da mesma maneira que eles. Porém, as duas
línguas são completamente diferentes. Eu não podia ver como
eles poderiam transmitir qualquer coisa a respeito de Jesus.
Porém, não seria eu que iria impedi-los de fazer isso. Sugeri
que fossem às tribos nas terras baixas, que ainda não tinham
ouvido acerca de Jesus. Alguns dias mais tarde eles partiram.
Orei para que aquela não fosse uma experiência destruidora
para eles, e que Deus os confortasse no seu desapontamento em
não poderem comunicar-se com os índios iucos.
Eles estiveram por lá durante diversas semanas. Quando
voltaram, fui ver Arabadoyca, curioso por saber o que aconte-
cera.
— Como é que foi? — perguntei.
Ele estava fabricando flechas; olhou para mim com o seu
sorriso familiar e meio torto. — Maravilhoso — disse. — Eles
nunca antes tinham ouvido falar de Jesus.
— E eles compreenderam?
— Oh, sim, nós lhes dissemos uma porção de coisas sobre
Jesus.
— Você falou com eles?
— De certo —. Arabadoyca estava um tanto preocupado
com a minha surpresa. — Como é que você lhes falaria?
— Oh...da mesma maneira. Mas como sabe você que eles
compreenderam?
Novamente ele parecia perplexo. — Ora, eles nos disseram
que haviam compreendido. Estavam tão animados ao ouvirem as
boas-novas, Bruchko.
— Você quer dizer que simplesmente abriram a boca e
conversaram com os iucos e eles compreenderam o que vocês
diziam, e que eles conversavam com vocês e vocês os enten-
diam?
— É isso mesmo, na verdade.
A língua dos iucos não é um dos dialetos dos motilones. É
uma língua totalmente diferente. Você nunca compreenderia
uma se soubesse a outra. No entanto, eu tinha certeza de que
Arabadoyca e os outros não estavam mentindo. A mentira é algo
quase totalmente desconhecido entre os motilones. E eles não
tinham razão alguma para estar mentindo. E, também, há o fato
concreto de que agora, nas terras baixas, há cristãos entre os
iucos, quando anteriormente não havia nenhum.
Só posso concluir que o Espírito Santo de Deus fez com que
os motilones falassem e entendessem a língua dos iucos. Era um
milagre para mim. Mas, para os motilones, tudo o que Deus faz é
um milagre.
Aprendi com os motilones a esperar que Deus providencie
tudo o de que precisamos, apesar das circunstâncias. Certa
ocasião, quando tivemos uma epidemia de sarampo, fiquei sem
nenhum remédio. O sarampo é uma das doenças mais mortais
entre os índios, e sem os antibióticos eu estava desamparado. Já
havia dez casos de sarampo, e ele estava-se espalhando
rapidamente.
Porém eu tinha certeza de que Deus providenciaria os
remédios de um jeito qualquer. Eu nunca duvidara disso, embora
eu não tivesse dinheiro algum no banco, e tampouco crédito.
Fui a Tibu, certo de que ali haveria algum dinheiro. Abri
toda a minha correspondência. Não havia nenhum centavo.
Mas, mesmo assim, eu ainda me sentia seguro de que Deus
tinha uma resposta para o problema. Ele a tivera em circuns-
tâncias semelhantes anteriormente, e o seu Espírito estava-me
confortando a respeito dessa situação.
Fui a Cucuta, abri a minha caixa postal e ali encontrei um
cheque de quinhentos dólares.
Isso não me surpreendeu. Eu simplesmente disse: "Graças
a Deus, ele chegou. Descontei o cheque e comprei os remédios
de que necessitava. Os remédios custaram quinhentos e ses-
senta e cinco dólares.
— Tenho aqui comigo quinhentos dólares; se você puder
esperar, pagarei o restante mais tarde — eu disse ao balconista.
Ele concordou. Era uma transação muito grande e ele não queria
perdê-la.
No dia antes de deixar Cucuta, voltei ao correio novamente.
Havia um cheque de cem dólares. Voltei à farmácia, paguei o
restante de minha compra, e ainda sobrou um pouco para fazer
uma boa refeição e comprar algumas coisas de que eu precisava
lá nas selvas. Voltei a Tibu, e de lá segui para as selvas. Os
remédios foram suficientes para exterminar a epidemia e
controlar as suas complicações.
No entanto, o maior dos milagres que eu já vira foi a
mudança que se dera na vida dos motilones. Eles haviam
encontrado o propósito de sua vida em Jesus Cristo. Como
resultado, haviam abandonado aquela individualidade que os
impedia de ajudar um ao outro. Há um verdadeiro sentido de
cuidado uns pelos outros, de um verdadeiro sacrifício próprio, o
que fez possível o seu desenvolvimento econômico, tanto quanto
o desenvolvimento espiritual. Sem ele, os seus programas
sempre se afundavam. Com ele, os seus problemas estavam
sendo resolvidos.
Já falei perante as Nações Unidas. Já falei à Organização dos
Estados Americanos. Fui amigo pessoal dos últimos quatro
presidentes da Colômbia. Minha experiência com os índios
motilones ensinou-me a trabalhar com as outras culturas; a
prover mudanças positivas sem estraçalhar as estruturas sociais
existentes. Tento compartilhar essas experiências. Porém, a
coisa mais importante que posso afirmar àqueles que desejam
auxiliar os povos primitivos é esta: Eles não serão auxiliados em
muitos aspectos, a não ser que encontrem um propósito de vida
através de Jesus Cristo. Sem ele, qualquer desenvolvimento que
ocorra será sempre torcido ou corrompido. Isto amargurará
aqueles que tentam mantê-lo unido, e os que não se preocupam
com isso serão arruinados pela apatia e alienação.
Porém, com Jesus, haverá uma mudança real. Não apenas
uma mudança espiritual. Nem tampouco uma mudança gradual.
Haverá uma mudança real, agora, com poderes visíveis. Jesus é
a fonte de toda mudança. Ele é o Deus dos milagres de cada dia.

20. COMO DAVI E JÔNATAS

George Camibocbayra encontrou-se comigo no lado de fora


da casa e me levou a um lado. — Será melhor que você vá já ver
Bobby — ele disse. — A sua filhinha está muito doente, e eles a
levaram ao hospital em Tibu.
Entrei na casa e encontrei Bobby sentado numa esteira,
olhando para os pés. Seu rosto estava triste; coloquei a mão
sobre o seu ombro. Ele olhou para cima, e depois novamente
para os seus pés.
— Ouvi dizer que sua filha está doente — disse-lhe.
Ele assentiu com a cabeça. — Nós a levamos a Tibu, há três
dias.
— Por que você voltou para cá?
— Eu tinha de cuidar de minha esposa. Ela está grávida,
você sabe. E eu tenho outros trabalhos a fazer, trazer o
mantimento e levar as coisas para vender. E que poderia eu
fazer lá em Tibu?
— E no entanto — eu disse, sorrindo levemente — parece-
me que tampouco você está sendo muito útil aqui.
Ele olhou para mim novamente. Seu rosto parecia cansado
e envelhecido.
— É, isso é verdade — disse ele. — Eu não posso deixar de
pensar nela.
Ele se levantou e ficou ao meu lado. Olhei para Atacadara,
sua esposa. Ela estava em pé, olhando para Bobby, com uma
grande preocupação. O seu ventre estava grande, por causa da
gravidez, no entanto, ela ainda conservava o seu rosto fino, e os
olhos escuros de uma mulher muito linda. Ela amava Bobby.
Mesmo com a filhinha doente, e longe, lá no hospital, ela estava
muito mais preocupada com Bobby.
Voltei a olhar para Bobby. — Vamos orar juntos a favor de
sua filha — eu disse. — E depois irei a Tibu para ver se posso
auxiliar em alguma coisa. Você deve ficar aqui e cuidar de
Atacadara.
Quatro dias depois eu estava junto ao leito daquela criança.
Seu corpo parecia diminuído. Estava que era pele e ossos, e os
olhos tinham uma membrana fina sobre eles.
O médico estava ali junto de mim. — Que doença ela tem?
— perguntei.
Ele era um rapaz recém-formado. — Não sabemos — ele
disse. — Talvez seja uma combinação de diversas coisas. Não sei
se poderemos fazer muita coisa a seu favor.
Um arrepio gelado me percorreu todo o corpo, até à ponta
dos dedos. — O senhor quer dizer que ela vai morrer?
— Quem é que sabe? — ele disse. — Se não descobrirmos o
que há de errado com ela, provavelmente morrerá.
Saí do hospital lembrando-me de como Bobby costumava
erguê-la até à minha rede. Eu costumava sentá-la no meu
estômago e cantar canções para ela, enquanto ela sorria e
balbuciava, na tentativa de falar.
Lembrei-me de quando Bobby se casara com Atacadara.
Fora logo depois que ele aceitara a Cristo. Atacadara fora a moça
mais linda e mais inteligente da casa comunitária. Bobby a fizera
saber, através de um amigo, que gostava dela. Todas as vezes
que se viam e se encontravam, ambos enrubesciam. Atacadara
sentia-se apaixonada por Bobby. Era um jovem guerreiro, forte,
vistoso, e que era, pode-se dizer, um prêmio valioso da tribo.
Um dia ela mudou a rede para junto da de Bobby, e eles se
casaram. O pai dela ficara muito zangado. Ele não estava
interessado num genro. Ele queria que a filha ficasse junto à
família. Mas ela se recusara.
Ri quando me lembrei de como me sentira na ocasião. Eu
tivera receio de que o casamento pudesse trancar a nossa
amizade, e que nunca poderíamos nos sentir tão perto nova-
mente. Porém, tudo se deu de modo diferente. Atacadara e eu
havíamo-nos tornado irmão e irmã, e quando a sua primeira filha
nasceu, de acordo com os costumes motilones, eu era o seu
segundo pai. Nós nos havíamos tornado numa só família.
Bobby era um pai e esposo devotado. Não era muito
comum entre os homens motilones partilhar muita coisa com
suas esposas, porém Bobby e Atacadara, desde o início de seu
casamento, eram muito chegados um ao outro. Fora a conversa
de Bobby, antes mesmo do Festival das Flechas, que a levara a
conhecer a Cristo. Eles não eram apenas marido e mulher, mas
amigos. Muitas vezes eles se deitavam na mesma rede e
conversavam por horas seguidas. Podia-se ouvir as suas vozes,
bem baixinho, sussurrando através da casa comunitária, até
altas horas da noite.
E agora a filhinha deles estava às portas da morte. Deus
tinha que curá-la. Ela significa muita coisa para Bobby e
Atacadara.
No dia seguinte, quando o médico me informou que ela
falecera durante a noite, foi como se eu recebesse um soco no
rosto.
Eu precisava contar isso a Bobby. Quando lhe contei, o seu
rosto empalideceu. Sem dizer uma palavra sequer, ele caminhou
em direção à selva, e não voltou até à noite. E assim mesmo, ele
não conversou, e não mostrou sinal algum de afeto por
Atacadara ou por mim. Dois dias mais tarde, Atacadara deu à luz
outra menina, mas Bobby simplesmente fez um leve
reconhecimento. Todos os dias ele fazia uma grande caminhada
pela selva. Quando voltava, não fazia menção de onde estivera.
Se eu conversasse com ele, geralmente não respondia.
Era, na verdade, sua primeira prova como cristão e estava
sendo muito difícil. Continuava a não mostrar nenhum sinal de
amor por Atacadara e pela outra filhinha. Orávamos por ele,
porém durante duas longas semanas havia somente uma grande
tristeza.
Então ele começou a observar a nova filha. Eu a peguei e a
coloquei nos seus braços. Ele a segurou e a balançou. Dentro de
uma semana, ele a estava levando a toda parte, e ele e
Atacadara eram mais amigos do que nunca. Todos observavam
essa união. O sogro de Bobby, que ficara zangado com aquele
casamento, começara a tomar as refeições junto com eles. Ele
podia ver que estivera errado. Mais tarde ele se tomou cristão,
principalmente por causa do relacionamento matrimonial de sua
filha.
A família de Bobby crescera também. Dentro de um ano, o
seu primeiro filho nasceu, e isso o fez muito feliz. Porém, ele não
era egoísta em relação à sua família. Pensei que talvez ele fosse
passar o tempo todo trabalhando para os seus, em vez de
cooperar com os outros motilones. Mas parece que se deu o
oposto; seu amor pela sua família parecia transbordar para
todos, e estava, mais do que nunca, interessado no bem-estar
alheio.
Numa de nossas viagens ao território dos motilones, que
ficava montanha acima, encontramos um menino de oito anos,
mais ou menos, que se chamava Odo. Toda a família daquele
menino havia morrido numa epidemia; não tendo ninguém,
estava crescendo como um jovem delinqüente. Ele passava de
uma casa comunitária para outra, sempre encontrando alguma
coisa para comer, porém nunca era totalmente aceito.
Ele não era um menino muito agradável. Achava, pelas
suas condições, que deveria ser alimentado e que deveriam
cuidar dele; mas nunca era grato, quando alguém o fazia.
Freqüentemente estava em apuros e transtornava as coisas.
Bobby e eu já havíamos observado aquele garoto, porém,
como estávamos simplesmente de passagem, não pensei muito
no caso. Contudo, Bobby não deixava de preocupar-se. Um dia
ele me disse que iria levar Odo consigo, quando partíssemos.
— Para que, Bobby? Ele só vai nos atrapalhar.
— Ele precisa de alguém — disse Bobby. — Quem sabe, se
ele nos acompanhar, poderá ajudar-nos e nós poderemos ajudá-
lo.
Quando sugerimos a Odo que nos acompanhasse, ele ficou
desconfiado.
— Por que vocês querem que eu vá com vocês?
Bobby não deu atenção à sua suspeita. — Nós precisamos
de um auxílio extra. Há tanto trabalho para ser feito, e é demais
para nós dois. Todo mundo pode ver que você é esperto,
portanto achamos que você aprenderá rapidamente.
Odo olhava ora para um e ora para outro, para descobrir o
que realmente queríamos com ele; finalmente, fez sinal que sim
com a cabeça. — Está bem — disse ele.
A princípio não foi fácil agüentá-lo. Bobby me surpreendia
pela sua paciência. Ele nunca se zangava e aparentemente não
parecia estar perturbado. Dentro de algumas semanas comecei a
observar certa mudança nas atitudes de Odo. Ele estava
constantemente perto de Bobby. Em vez de nos atrapalhar, pelo
contrário, ele realmente estava começando a nos ajudar. Quando
voltamos para a nossa casa comunitária, Odo nos acompanhou e
se tornou parte da família de Bobby. Quando, antigamente, ele
estava sempre sujo, agora começara a se lavar, apesar de que
Bobby nada comentara a esse respeito.
Dentro de alguns meses, ele estava sendo notado pelas
pessoas, não por causa de seu mau comportamento, mas pelo
fato de que era um jovem valioso. Ao imitar Bobby, ele se
preocupava pelos outros.
Essa foi a época mais feliz e agradável que eu já tivera.
Bobby e eu estávamos constantemente juntos. Não havia
segredo algum entre nós. Eu podia notar que ele estava-se
tomando um líder jovem de projeção entre os motilones. Eu
nunca precisava dizer-lhe o que tinha que fazer. Na verdade,
quando ele vinha a mim, em busca de conselhos, eu lhe dizia
que ele precisava decidir por si mesmo. Outros jovens que
também haviam aceitado a Cristo, e que sentiam certa preo-
cupação pelos outros, começaram a trabalhar conosco.
Desenvolveu-se um sistema de liderança. Era extraordinário ver
o trabalho progredir. Novas colheitas foram desenvolvidas, as
pessoas doentes foram curadas, e cada vez mais, outros
motilones encontravam a sua verdadeira identidade em Cristo.
Porém, o melhor de tudo, eram as horas que eu passava
com Bobby. A Bíblia diz que Davi, em seu amor a Jônatas, "era
muito maior do que o amor que tinha por qualquer mulher". Eu
nunca compreendera isso. Mas há um perfeito amor fraternal, e
à medida que esse amor a Bobby crescia, deixei de me
preocupar para onde ele nos levaria. Eu simplesmente queria
passar o tempo com ele, com sua família, e gozar as coisas que
Deus nos dera.
Talvez as nossas melhores horas fossem aquelas após a
refeição da noite, quando nos sentávamos ao redor do fogo ou
ficávamos deitados em nossas redes, Bobby e Atacadara juntos,
Odo e eu ali perto, com os filhos de Bobby passando de um para
outro, rindo alegremente. Cantávamos as canções dos motilones
e conversávamos sobre os acontecimentos do dia. Se tivéssemos
comido uma boa refeição, alisávamos os nossos estômagos, ou
eu ia até à rede de Bobby e batia no seu estômago e ríamos
juntos. Contávamos histórias e lendas do passado dos motilones,
e sempre as histórias de Jesus e das coisas que ele fizera quando
homem e quando andara no trilho dos motilones. Às vezes eu
tirava a minha Bíblia e conversava a respeito de uma passagem.
Finalmente os fogos se extinguiam, o ar ficava silencioso e a
chuva noturna começava a cair. E um a um, caímos no sono.
Um dia Bobby me perguntou se não podíamos traduzir a
Bíblia, de modo que os motilones pudessem entendê-la por si
mesmos. Eles queriam saber mais a respeito de Jesus. Até então,
eu passara uma boa parte do tempo contando a eles a respeito
de Jesus, e respondendo as suas perguntas. Eu sabia que sozinho
não poderia traduzir a Bíblia no idioma deles, porque ainda não
dominava completamente a língua e não tinha uma
compreensão total das lendas dos motilones. Porém, com o
auxílio de Bobby, seria possível, porque não havia barreira
alguma em nossa comunicação.
E então começamos a traduzir o livro de Marcos. Uma coisa
é aprender a falar uma nova língua, porém outra totalmente
diferente é colocar um livro todo, semelhante ao de Marcos, num
novo idioma. Nas minhas viagens, fora das selvas, adquirira
vários volumes sobre lingüística e como fazer traduções, e
encontrei-me com um jovem de Caracas que estava interessado
em usar um computador para auxiliar na tradução. Desde que
havia muito tempo me interessava pela lingüística, foi animador
e excitante estar envolvido nisso.
Porém, a parte mais excitante do trabalho foi a parte con-
creta da tradução que eu fiz com Bobby. Uma vez determinado
como escrever a linguagem dos motilones, ainda havia o
problema de fazer com que as frases bíblicas fossem com-
preensíveis. E era aí que Bobby auxiliava.
Como é que se pode falar a uma tribo primitiva a respeito
de coisas como graça, quando no seu vocabulário não há tal
palavra? Às vezes eu tentava adaptar uma idéia cristã à cultura
dos motilones. Eu já tivera sucesso com a palavra/é que eu
relacionara com "suspender a sua rede em Cristo", e a palavra
encarnação que eu relacionara à lenda do homem motilone que
se tornara numa formiga. Se a minha tentativa fosse boa, Bobby
o confirmava. Outras vezes, ele dizia: "Não, isso não está certo,
Bruchko. Jesus não é assim"; e eu precisava tentar novamente.
Ele, também, me esclarecia a respeito de certos aspectos
da cultura em que eu falhara compreender completamente. Os
motilones, por exemplo, sempre usam nomes que tenham um
significado. Não há nomes como Kent ou Kim que são apenas
nomes e nada mais. Então, os personagens bíblicos precisavam
receber nomes que tivessem sentido. Abraão, tornou-se no "O
Homem que Conhece a Deus". João Batista ficou sendo chamado
o " Anunciador" e "Habitante das Selvas", e Jesus "O único Filho
de Deus conosco".
Todas as vezes que tínhamos que dar um nome, ficávamos
longas horas ao redor do fogo discutindo a pessoa e qual seria o
melhor nome para ela. Muitas vezes, outros motilones se
reuniam conosco e nos ajudavam na decisão.
Algumas das parábolas pareciam também que não se adap-
tavam à cultura dos motilones. Tomemos, por exemplo, a
parábola do homem que construiu a sua casa sobre a rocha, de
modo que ela fosse firme. Quando Bobby a ouviu pela primeira
vez, ele sugeriu que ela fosse suprimida.
— Isso não está certo, Bruchko. Para que uma casa fique
firme, ela precisa ser construída sobre a areia. Pois de outro
jeito, os mastros não ficarão muito profundos e a casa se
desmanchará.
Então demos um arranjo na parábola. Afinal de contas,
Jesus havia escolhido aquela parábola para esclarecer a verdade
aos seus ouvintes. Portanto, não queria ele que os motilones
também a compreendessem?
Ficamos ambos tão orgulhosos quando terminamos a tra-
dução. No entanto, o nosso trabalho estava apenas se iniciando.
Eu era o único que podia lê-lo. Bobby começou a ensinar
algumas das crianças. Todas as tardes, fora da casa comunitária,
onde era mais agradável, tínhamos as nossas classes.
Mas começamos a ouvir certas queixas dos homens mais
velhos. Depois de um mês de termos começado o nosso ensino,
Bobby me disse que teríamos que pará-lo.
Fiquei chocado. — Mas por quê? Nós apenas o iniciamos —
disse eu.
— É por causa dos mais velhos, dos chefes. Eles acham que
não é direito ensinar as crianças coisas que os seus pais não
conhecem.
Por um instante fiquei zangado.
— Então deveríamos parar de ensinar o Evangelho sim-
plesmente por que um punhado de velhos está enciumado? —
falei abruptamente.
Bobby não respondeu. Ele simplesmente estava triste.
Eu poderia ter-me matado por ter dito aquelas palavras.
Não era o meu Evangelho. Era o Evangelho dos motilones.
Nenhuma notícia boa deveria estraçalhar o sistema social deles.
Deixamos de ensinar as crianças e em seu lugar
convidamos os homens mais velhos. Havia uma grande
competição entre eles. Eles não aprendiam tão depressa quanto
as crianças, porém tentavam.
Depois de um mês e pouco, eles se sentiam bastante à
vontade, para deixar que as crianças aprendessem também. Em
vez de viverem em mundos totalmente diferentes, como em
geral acontece em toda parte entre as gerações, os homens
mais velhos e as mulheres compartilhavam o seu novo conhe-
cimento com seus filhos. Isso favoreceu a união da tribo em vez
de destruí-la.
Dentro de pouco tempo, um bom número de motilones
sabia ler e escrever. Eles repetiam o evangelho de Marcos como
uma metralhadora, e as sílabas, num staccato; saíam de suas
bocas tão depressa quanto podiam falar. Porém, não havia
compreensão alguma.
Então, um dos chefes mais velhos sugeriu uma regra, que é
usada agora, onde quer que as classes sejam ensinadas. Todas
as vezes que alguém lê um versículo, outra pessoa faz uma
pergunta a respeito dele.
Por exemplo, um motilone poderá ler, "Pois Deus amou o
mundo de tal maneira que deu o seu unigênito Filho, para que
todo aquele que nele crê não pereça ..."
Um outro motilone perguntará: "Quem é que amou o
mundo?"
Se o primeiro homem não puder responder, ele lê o versí-
culo novamente, tentando compreendê-lo. Quando ele o com-
preende, começa a perguntar a si mesmo: "E como é que isso
pode me afetar?"
E assim o trabalho foi progredindo. Porém, eu já estava
ficando impaciente de novo. Quanto tempo Deus iria me con-
servar ali?

21. GLÓRIA

Durante os meus primeiros cinco ou seis anos com os moti-


lones, quase não tive contato com o mundo lá fora. No entanto,
enquanto fazia a tradução de Marcos, juntamente com Bobby,
comprei um rádio transistorizado e o trouxe comigo para a casa
comunitária. Durante várias noites fiquei acordado ouvindo o
locutor falar de coisas que pareciam quase irreais. Eu podia me
lembrar muito bem de como era o outro mundo, porém ele
parecia tão distante.
Uma noite eu estava deitado em minha rede, com arcos e
flechas para caçar ali por perto o jantar do dia seguinte, e ouvi a
transmissão sobre o primeiro homem que andara na lua. Uma
parte de mim ansiava por empacotar as minhas coisas e ir aonde
carros, aviões e ônibus governavam, em vez de panteras e
javalis. Mas, ao mesmo tempo, eu estava profundamente
satisfeito comigo mesmo. Era como se eu tivesse um segredo
que o mundo não conhecia; um lugar secreto que não fora
permitido a ninguém entrar ali.
Poucas pessoas creram que eu tivera contato com os moti-
lones, quando, pela primeira vez, reentrei no mundo lá fora. No
entanto, alguns jornais ouviram falar do que eu estava fazendo,
e quando voltei à civilização, novamente, diversos jornalistas e
repórteres me procuraram e fizeram perguntas a respeito de
meu trabalho com os motilones. As suas reportagens
despertaram real interesse. Não demorou muito para que os
motilones fossem os heróis da Colômbia. Diversos homens
motilones me acompanharam numa das viagens em busca de
provisões, e um deles, Axducatsyara, foi indicado como o
"Homem do Ano da Colômbia". Até então, todas as notícias dos
jornais simplesmente reforçavam o fato de que os motilones
eram os que matavam os empregados das companhias
petrolíferas. Aos poucos, no entanto, os jornais começaram a
compreender que, no todo, os motilones estavam simplesmente
defendendo o seu território contra aqueles que desejavam
roubar-lhes as terras e destruir a sua maneira de viver. O
sentimento público se transformou, e como geralmente
acontece, deixou-se levar e indiscriminadamente começou a
culpar todos os colonizadores que viviam naquela área, em vez
de ver a diferença que havia entre aqueles que estavam
interessados em cultivar suas fazendas e aqueles que realmente
haviam invadido o território dos motilones.
Os colonizadores revidaram e me chamaram de
embusteiro. Eu estava nas selvas, e quando novamente voltei
em busca de medicamentos, as notícias dos jornais estavam
repletas de ataques, dizendo que eu estava explorando os
índios, e transformando-os numa mina de ouro e diamante para
mim. Dei uma boa risada. Eu podia ver a mim mesmo
descansando numa cadeira de vime de espaldar alto, usando um
terno branco, chapéu de panamá, tomando uma bebida,
enquanto os motilone me serviam.
Conversei com o Dr. Landinez a respeito disso. — O que é
que devo fazer? — perguntei.
— Ouça — disse ele — , não faça coisa alguma. É muito
natural q e haja muita conversa a respeito disso. Os motilones
constituem um grupo muito interessante de pessoas e ninguém
tem jeito de provar qualquer coisa dita a respeito deles. Faça o
seu trabalho, seja honesto com os índios, e deixe que cada um
pense o que quiser. Se você passar o tempo a preocupar-se com
o que os outros pensam, nunca fará coisa alguma.
Então voltei para as selvas. O interesse em torno dos moti-
lones continuou, mas visto que não havia jeito algum de se
conseguir informações a respeito deles, todo o assunto cessou.
Então, em 1970, uma comissão do governo foi de helicóp-
tero àquela área, a fim de resolver problemas de limites de
fronteira entre a Colômbia e a Venezuela. Ficaram surpresos ao
verem numa casa comunitária, um centro de saúde e uma
escola, mantidos pelos motilones. As notícias saídas nos jornais
não os haviam preparado para uma coisa assim. Eles
conseguiram perguntar aos motilones, quem era responsável por
tudo aquilo — uma tarefa muito difícil, visto que não falavam a
língua dos motilones.
Naturalmente os motilones disseram "Bruchko".
Aquilo provou que eu era um falsário. O verdadeiro herói do
desenvolvimento, os jornais afirmavam, era alguém chamado
"Bruchko".
Alguns meses mais tarde, outra comissão apareceu, de
helicóptero, naquela mesma área. Felizmente eles perguntaram
a um motilone que aprendera um pouco de espanhol.
— Queremos ver Olson — disse o chefe da Comissão.
— Não conhecemos Olson — respondeu o motilone num
espanhol truncado.
O homem estava surpreso. — Olson não vive aqui?
— Não — disse o motilone, sacudindo a cabeça. — Os
motilones vivem aqui.
— Olson, um rapaz alto, loiro?
— "Oh, Bruchko".
Daquela hora em diante, tivemos publicidade favorável.
Porém publicidade favorável não cura os doentes. Ela não enche
a boca dos famintos. Ela não garante que ninguém irá enxotá-lo
de sua própria casa. A única coisa que ela conseguiu foi
despertar e garantir maior hostilidade da parte de muitos dos
exploradores de terra.
Nessa ocasião houve uma grande fuga numa das prisões na
Colômbia. Muitos dos que fugiram se embrenharam naquela área
selvagem, junto ao território dos motilones porque ali seriam
deixados em paz. Eles começaram a cultivar a terra, e,
naturalmente, viram os motilones como uma ameaça, tanto para
o controle de suas terras como para a sua liberdade, das forças
do governo, pois os motilones sentiam-se felizes em cooperar
com o governo colombiano.
Foi crescendo um ressentimento, embora muitos dos fugi-
tivos recebessem cuidados médicos dos motilones. Os explo-
radores regulares das terras mudavam de opinião a cada
momento indo de um lado para outro, na sua fidelidade. Eles não
gostavam dos bandoleiros. Mas, ao mesmo tempo, eles se
ressentiram porque os jornais os haviam chamado de vilões, na
luta pelas terras. E era verdade que eles desejavam usurpar as
terras dos motilones. A maior parte das vezes o apoio deles era
dado aos bandoleiros. Com isso, desencadeou-se às claras uma
hostilidade.
O contato com o mundo exterior, o qual havia destruído
quase que totalmente a cultura de muitas tribos primitivas,
certamente era uma ameaça aos motilones. Era uma ameaça
que eles precisariam enfrentar. E simplesmente eu apenas podia
orar, para que quando chegasse a hora, eles estivessem tão
firmes em Jesus Cristo a fim de resistir a todo aquele que
tentasse mudar os seus costumes.
Para mim, pelo menos, surgiu algo muito precioso que veio
desse contato com o mundo lá fora. Glória. Seu irmão, tenente
do exército colombiano, estava encarregado do posto militar lá
em Tibu. Um rapaz alto, forte, interessado nas selvas, apesar de
nunca haver passado tempo algum no meio dela. Quando entrou
de férias, planejou entrar pela selva, o mais longe que pudesse.
Eu me encontrara várias vezes com ele, lá em Tibu, e tentei
fazer com que desistisse da idéia. Parecia que ele julgava que as
selvas fossem como um parque, lindo, agradável, onde se podia
penetrar a fim de se fazer ali um piquenique. Não foi fácil
convencê-lo de que a coisa era diferente.
Encontrei-me com Glória em 1965, depois de uma viagem
difícil a Tibu. Porque eu estava com pressa de conseguir os
remédios para os motilones, não parei para procurar alimento. E
durante a viagem toda não vi coisa alguma que pudesse comer.
Simplesmente continuei andando. E tampouco consegui muita
água para beber.
Foi um erro. Comecei a me sentir enfraquecido. Na terceira
noite de caminho eu estava tão exausto que tive que parar mais
cedo do que de costume. Eu sabia que precisava me alimentar,
mas nem sequer podia levantar-me para ir procurá-lo. Caí num
sono espasmódico.
Sonhei com a selva. Era muito linda e verde e cheia de
borboletas. Uma delas voou para dentro de minha boca e grudou
ali, porque as suas asas estavam molhadas. Eu podia sentir as
asas batendo e a sua luta para escapar. Acordei, mas não de
todo; estava meio adormecido. Eu estava tonto.
Há uma borboleta na minha boca. Que coisa esquisita,
pensei. Será melhor eu retirá-la.
Coloquei a mão na boca — e realmente peguei em alguma
coisa. Comecei a puxá-la. Quanto mais eu puxava, mais ela saía.
Então, realmente acordei. Eu podia sentir aquela coisa
debatendo-se lá no fundo de minha garganta. Quando consegui
retirá-lo, e olhei para aquilo, fiquei nauseado.
Era um verme intestinal, de 45 centímetros de compri-
mento. Ele estava tão faminto, que se arrastara até à minha
garganta, procurando alimento.
Com essa experiência, aprendi a sempre comer alguma
coisa enquanto andava pelas picadas, ainda que fosse sim-
plesmente para deixar aqueles parasitas satisfeitos.
No dia seguinte resolvi caçar alguma coisa para comer, e
alguns dias mais tarde cheguei a Tibu, completamente exausto.
E foi ali que me encontrei com Glória. Ela estudava Direito em
Bogotá, e fora passar uns dias com o irmão. Esbelta e linda,
usava "jeans" e uma jaqueta de couro. O seu cabelo estava
amarrado à moda de rabo de cavalo, Não dei muita atenção a
ela, visto que eu estava com muita pressa de voltar com os
medicamentos.
Contudo, o seu irmão ainda não havia desistido de ir até às
selvas. Ele ia tirar cinco dias de férias e desejava que eu o
levasse comigo, juntamente com Glória. Eu estava fazendo uma
refeição com eles, quando ele fez a pergunta. Eu olhei para
Glória. Ela estava olhando para o seu prato.
— Acho que você não compreende — eu disse. — A selva
não é lugar para piquenique.
Glória levantou a cabeça num impulso. — Eu não com-
preendo — ela disse —; que é que o faz pensar que é a única
pessoa que pode sobreviver ali?
Repliquei às suas palavras: — A selva não é lugar para
mulheres. Você não agüentaria dois dias de caminho.
— Experimente-me — ela disse.
Fiquei um tanto zangado. — Pois bem — eu disse. — Vocês
podem ir, enquanto puderem. Mas eu não tenho tempo para
bancar babá. Se não puderem me acompanhar, voltarão
sozinhos.
No dia seguinte, quando estávamos prontos para partir,
resolvi que seria uma bobagem tentar levá-los de volta comigo à
casa comunitária de onde eu viera. Então, em vez disso, eu os
levei à casa comunitária dos motilones, perto de Tibu. Era uma
viagem de barco de dois dias. Quando vi como estavam, senti-
me envergonhado de não lhes mostrar como a selva realmente
poderia ser árdua.
Chegamos à casa comunitária num dia de pesca. Já haviam
construído os diques, e os homens estavam começando a lançar
o arpão nos peixes, atirando o arpão rio abaixo e rio acima,
gritando e espadanando. Glória quis ir ter com eles. Eu tive que
rir. Dei-lhe um arpão. Ela entrou no rio com a água até à cintura
e desceu rio abaixo, espiando por baixo da superfície, como uma
profissional. Meia hora mais tarde ela voltou, pingando água,
sorrindo, e com um peixe grande debatendo-se na ponta de seu
arpão. Os motilones ficaram encantados com ela, por causa
disso. Nenhuma outra mulher jamais havia ido pescar sozinha, e
muito menos pegara um peixe tão grande.
Naquela noite sentamo-nos ao redor da fogueira dentro da
casa comunitária, e contamos histórias a respeito dos motilones.
Uma das mulheres se aproximou de Glória, tocou-lhe no cabelo,
e elogiou-o. Depois ela sorriu e disse: — Você é a esposa de
Bruchko?
Eu corei, e Glória quis saber o que ela havia dito. Disse-lhe
que a mulher perguntara se ela era uma jovem. Foi tudo o que
pude pensar no momento.
— Está claro que eu sou uma jovem — Glória replicou,
sorrindo. — Mas o que foi que ela realmente perguntou?
Corei novamente, e recusei-me a dizer, mas os dois insisti-
ram tanto, até que eu lhes disse. — Ela queria saber se você era
a minha esposa.
Ela olhou para o irmão e ambos sorriram. "Sim", ela disse.
Foi uma semana maravilhosa. Glória ajudou as mulheres a
tecerem e a fazerem o trabalho que elas faziam. Ela estava
apaixonada com a maneira de viver dos motilones, e os moti-
lones gostaram dela.
No final da semana, Glória ficou no meio da clareira e
acenou com os braços ao redor, indicando tudo aquilo.
— O que é que eu posso fazer? — ela perguntou.
— O que você quer dizer?
— O que eu quero dizer? Como é que eu posso ajudar? Eu
não a tomei muito a sério. Todo mundo quer ajudar.
— Você pode estudar medicina — disse eu levianamente
— , e voltar aqui para trabalhar no posto de saúde.
Eu não a vi mais durante cinco anos, e posso afirmar que eu
quase a esquecera completamente. Havíamo-nos correspondido
algumas vezes, mas depois, principalmente por minha causa, a
correspondência cessara.
Em 1970 eu estava em Bogotá, andando por uma das ruas
movimentadas, quando alguém me tocou nas costas com um
livro. Virei-me. Era Glória. Ela era a mesma jovem da qual eu me
lembrava, porém parecia mais velha e mais amadurecida.
— Por onde é que você andou? — perguntou-me num ar de
insistência.
— Nas selvas, naturalmente — disse eu.
— Por que você não me escreveu mais?
— E quem é que tem tempo para escrever? Eu ando muito
ocupado.
— Ninguém está tão ocupado assim.
Caminhamos juntos pela rua abaixo. Perguntei-lhe como ia
de estudos na faculdade de Direito. Ela parou e quase chorou.
— O que há com você? — perguntei, pensando que talvez
ela tivesse sido reprovada e estivesse envergonhada.
— Agora eu estou na faculdade de Medicina — ela disse.
— Você me falou que se eu quisesse ajudar os motilones,
eu deveria ir para a faculdade de Medicina. Então eu desisti da
faculdade de Direito.
Eu me lembrava muito levemente de lhe haver dito aquilo e
fora apenas um conselho casual. Porém, de repente, percebi que
ela na verdade estava interessada em ajudar os motilones.
Desse dia em diante, todas as vezes que ia a Bogotá, ia
visitá-la e à sua mãe. (Seu pai havia falecido alguns anos antes.)
Glória e eu íamos a um restaurante húngaro, do qual nós dois
gostávamos e bebíamos café e conversávamos durante várias
horas. Quando eu não podia ir a Bogotá, conversava com ela
pelo rádio, e quase sempre sobre os motilones. Também
falávamos sobre Jesus.
Glória estava entusiasmada porque o Evangelho havia dado
esperança aos motilones, porém não tinha certeza de como
aquilo se aplicaria a ela. — Minhas idéias não são as mesmas dos
motilones — disse ela um dia, enquanto estávamos no pequeno
café.
— Eu não posso compreender Jesus. Não sinto que real-
mente eu possa conhecê-lo.
— Mas você não pode ver como ele é maravilhoso? —
perguntei. — Você não pode ver o quanto ele a ama? Ela sacudiu
a cabeça violentamente. — Posso identificar-me com os seus
sofrimentos. Eu tenho sofrido. Vi meu pai e meu irmão
morrerem, e então sei o que é o sentimento da morte. Mas Jesus
— ele ressuscitou. Não é verdade? Ele ressuscitou novamente.
Porém eu não posso me erguer de meus sofrimentos.
Ela se debruçou sobre a mesa. Estendi a mão e coloquei-a
no seu pescoço. — Você pode — eu disse. — Eu não sei
exatamente como. Todas as vezes é diferente. Porém você pode
erguer-se. Todo aquele que quiser, pode fazer isso, porque Deus
fará isso com você e por você.
Ela simplesmente continuou ali debruçada e não disse mais
nada.
Mais tarde, fomos a uma das catedrais de Bogotá. De re-
pente, no meio da missa, Glória que estivera orando, me
envolveu com os seus braços e me deu um grande beijo. Ela
estava chorando: — Como é maravilhoso! Como ele é mara-
vilhoso! — ela dizia.
Uma senhora, ao nosso lado, ficou muito preocupada. —
Que é que há? — perguntou ela.
Eu ri. — Não há nada errado — eu disse. — Nós estamos
simplesmente adorando a Deus.
Não demorou muito tempo, depois disso, para que a mãe
de Glória também se encontrasse com Jesus, e houve uma cena
muito familiar, pois ambas choravam e se abraçavam, enquanto
eu estava ali olhando e sentindo-me um tanto embaraçado.
Glória ia formar-se na faculdade de Medicina. E na Colôm-
bia, os médicos recém-formados precisam dar um ano de serviço
gratuito na zona rural. Eu conhecia o Ministro da Saúde da
Colômbia, e lhe perguntei se haveria a possibilidade de Glória
prestar os seus serviços em Tibu, durante um ano, numa
pequena casa que havia sido preparada ali para os motilones
que necessitavam de mais cuidados médicos do que aqueles que
recebiam, nos centros de saúde, nas casas comunitárias.
— Sinto muito Bruce — disse ele — , mas não há nenhuma
possibilidade de mandarmos uma jovem solteira ali. É uma área
muito difícil.
Fiquei parado por um segundo. Era como se o ar ao meu
redor, os carros lá fora nas ruas, e até mesmo o mundo tivessem
parado. Foi um momento daqueles! Então, eu sabia, e foi fácil
dizê-lo.
— Isso não será problema. Nós vamos nos casar.
Acho que eu estava mais surpreso ao ouvir a mim mesmo
dizer aquelas palavras do que ela, quando, mais tarde lhe pedi
para se casar comigo.
22. QUASE DERROTADO

Eu estava em Tibu, trabalhando na casa que Glória e eu


iríamos usar, gozando a idéia de morar ali com ela, e sentindo
certo prazer no trabalho de carpintaria do telhado. Por inter-
médio de uma das casas dos motilones, fui informado de que
grassava uma doença que os médicos-feiticeiros não eram
capazes de tratar. Reuni todos os medicamentos que pude,
pedindo ou tomando emprestado, e parti no dia seguinte.
Só cheguei àquela casa alguns dias mais tarde. Ninguém se
aproximou da clareira ensolarada para me saudar. De dentro da
casa eu podia ouvir gemidos e choros. Abaixei-me e entrei.
Havia corpos espalhados por toda parte. O único sinal de
que eles estavam vivos eram os lamentos e lamúrias constantes
que, uma vez ali dentro, pareciam um cântico de loucos. Havia
ali um mau cheiro horrível, que fez com que o meu estômago
baqueasse.
Corri de uma pessoa para outra, reconhecendo os amigos,
incapaz de parar e ajudar uma pessoa, porque no momento que
eu parava para ajudar, um gemido mais forte me fazia correr
para outra pessoa. As pessoas estavam deitadas sobre o seu
próprio vômito, incapazes de limpar-se. As suas fezes estavam
espalhadas ao redor de suas redes. Algumas pessoas haviam
caído da rede e estavam deitadas no chão sobre toda aquela
sujeira.
Comecei a limpar aqueles que estavam mais sujos e dar os
remédios. Eu mal acabava de limpar um homem, quando em
seguida ele defecava, ou vomitava, e todo o meu trabalho
estava perdido. Eu tentava dar-lhes comprimidos, e estes eram
vomitados em meu rosto. Não demorou muito para que a minha
roupa e a minha pele estivessem duras por causa do vômito que
havia secado.
A maior parte das pessoas ali estava sem alimento e sem
água, havia mais de cinco dias; portanto, um dos maiores
perigos era a desidratação. A pele sobre os seus corpos estava
flácida. Visto como não podiam beber sem vomitar, os piores
casos tiveram que ser alimentados através de injeções intra-
venosas.
Na primeira noite não dormi um instante sequer. Eu estava
morrendo de sono, mas não podia me deitar enquanto as
pessoas estavam às portas da morte. Continuei a movimentar-
me; minhas pernas e meus pés doíam, e eles queriam
desmoronar.
No dia seguinte, Bobby e mais alguns homens chegaram.
Entre eles estava o meu velho amigo Adjibacbayra, o chefe que
havia desafiado Bobby para cantar, no Festival das Flechas,
quando pela primeira vez os motilones ouviram falar de Jesus.
Coloquei minhas mãos sobre os seus ombros, dando-lhes as
boas-vindas. Era como se eu fosse a única pessoa viva num
mundo de fantasmas.
Naquele dia houve sinais de melhora. Os remédios e as
injeções endovenosas estavam produzindo resultado. E ter
outros para trabalhar conosco era animador. À medida que foi
escurecendo, comecei a antecipar que poderia dormir. Quando
acendemos o fogo e trabalhamos à luz de uma chama
bruxuleante, aquela idéia se tornou uma obsessão. A única razão
que fazia com que eu continuasse trabalhando, era a idéia de
que logo estaria terminado.
Mas as horas foram-se arrastando, e cada minuto era tão
doloroso como a espetada de uma faca.
Várias vezes eu dizia a mim mesmo, marcando um limite:
"Às dez horas eu vou parar." Mas as dez horas passavam, e
havia muito mais ainda para ser feito.
Às duas horas da manhã cheguei ao meu ponto máximo.
Houve um alívio momentâneo com as doenças, e eu me levantei
e procurei Bobby. Ele veio em minha direção.
— Vamos dormir — disse ele, e o meu coração respondeu,
Oh sim! — Então, às cinco horas, será melhor nos dirigirmos a
Iquiacorara.
Teria eu ouvido, "Iquiacorara?"
— Sim — disse ele. — Lá está tão ruim como aqui.
— Bobby — eu disse — , você quer dizer que esta não é a
única casa?
— Oh, não — disse ele. — Todas as casas lá na área mais
baixa foram atingidas pela doença. Eles não se acham tão
doentes como estes aqui, mas todos estão muito doentes.
Fechei os olhos e parecia que a escuridão estava girando
dentro deles. Mais doença! Mais vômito. Talvez, até, alguns já
tivessem morrido. Oh, Senhor, livra-me.
A coisa que percebi, em seguida, é que eu estava sendo
sacudido para acordar. Abri os olhos e percebi que estava
deitado numa rede, e Bobby estava ali ao meu lado.
— Bruchko, você precisa se levantar — estava Bobby di-
zendo. — Nós precisamos ir a Iquiacorara.
Com muito esforço me levantei da rede.
Não perdemos tempo em nos lavar. Bobby já havia dito a
alguns homens e mulheres que se haviam recuperado o sufi-
ciente para se levantarem e circularem, o que deveriam fazer
para ajudar aos outros. E então partimos.
O pior daquela epidemia continuou cerca de três semanas.
Durante aquele tempo, eu não conseguia dormir mais do que
duas ou três horas, em cada vinte e quatro horas. Setecentas
pessoas foram tratadas de sarampo ou dos efeitos dessa doença.
Milagrosamente, apenas uma pessoa faleceu — uma meni-
nazinha. Quando a vi pela primeira vez, ela estava com
Adjibacbayra. Ela havia diminuído por causa da desidratação, e
estava do tamanho de um bebê. Adji estendeu a mão e tocou-lhe
a pele. Ela estava solta e semelhante à borracha. Ele fez uma
dobra num pouco de pele e ela ficou dobrada quando ele retirou
a mão. Dois dias depois, apesar de todos os nossos esforços, ela
faleceu.
Aquela noite eu não pude deitar-me. Estava cheio de ran-
cor. Eu precisava andar, mover-me. Comecei a caminhar em
direção a outra casa comunitária, sozinho. Acho que eu estava
meio delirante, porque não me sentia cansado. Minha raiva ardia
como brasa, forçando as minhas pernas exaustas a caminhar.
Chegado ao topo da colina, vi um par de olhos à minha
frente, de um brilho amarelado. Pensei que fosse um sapo, pois
que certos sapos têm olhos daquela cor. Então percebi que os
olhos estavam muito separados. Pensei que talvez fossem dois
sapos.
Então ouvi um silvo. Os olhos se moveram. E eu vi um
corpo comprido, liso, movendo-se delicadamente. Era uma
pantera, a primeira que eu já vira.
Parei. Toda a minha raiva se transferiu para os olhos frios,
fixos, daquele animal. Eu o odiei. Tateei em volta de meu pé, e
encontrei um pau. Peguei-o e gritando corri atrás da pantera. Ela
grunhiu e se abaixou. Então quando eu estava cerca de trinta
centímetros dela, ela se virou e num salto silencioso e rápido foi-
se embora.
Fiquei ali, gritando. Então percebi o que havia feito. Meu
coração começou a bater depressa e de repente fiquei com
medo que a pantera voltasse.
"Obrigado, Senhor", murmurei ali no meio daquela escuri-
dão.
No dia seguinte deixei a selva. Eu precisava de mais medi-
camentos, e a epidemia já havia abrandado o suficiente, de
modo que eu não faria falta. Havia um bom número de motilones
trabalhando sob as ordens de Bobby.
Durante uma semana e meia lidei com relatórios e balance-
tes financeiros, em vez de lidar com panteras, e não sabia bem
qual deles eu preferia. Tentei conseguir auxílio do governo
colombiano, e de tomar emprestado de qualquer pessoa que
pudesse me emprestar. Quando julguei ter o suficiente, voltei às
selvas.
Encontrei Adjibacbayra às portas da morte. Visto como
havíamos trabalhado lado a lado durante três semanas, eu
concluíra que ele tinha imunidade natural à doença. Porém, não
somente havia contraído a doença, mas também estava com
pneumonia, como resultado dela. Ele não podia comer. Dois dias
após a minha chegada, ele caiu em estado de coma. Seu corpo
estava amarelo, e as moscas lhe andavam sobre o peito, onde o
vômito havia secado. Seu rosto estava coberto de pequenos
pontos azuis, resultado da erupção. Era uma situação horrível
para o homem que fora tão forte a ponto de cantar a Canção das
Flechas durante catorze horas, quando o Espírito de Deus se
derramara sobre os motilones.
Enquanto eu olhava para ele, ele piscou os olhos e acordou.
Debrucei-me sobre ele. Seu rosto estava pintado como se fosse
uma máscara e havia sulcos provocados pela dor.
— Bruchko — disse ele — , o meu corpo dói. Eu estou todo
dolorido.
— Psiu — eu disse. — Você precisa ficar quieto. Queremos
que você fique bom. Queremos que fique forte.
Ele sacudiu a cabeça, muito lentamente. — Não, Bruchko.
Eu não estou bem e não sou forte. Eu já fechei os olhos.
E realmente os seus olhos se fecharam, e ele desmaiou.
Fiquei ali perto dele. Mais tarde ele voltou a abrir os olhos.
— Bruchko, eu ouvi uma voz semelhante à dos espíritos
quando eles tentam matar.
Concordei com um aceno de cabeça.
— Mas essa voz me chamou pelo meu nome secreto, pelo
meu verdadeiro nome. Não há nenhum ser vivo que saiba o meu
verdadeiro nome, porém esse espírito me chamou pelo meu
nome verdadeiro. Então eu respondi e disse: "Quem é você?" e
ele disse, "Eu sou Jesus que andei com você na sua picada."
Diversos homens se reuniram ao redor dele, inclusive o pai
daquela menina que havia falecido.
— Então contei a Jesus que eu estava sentindo dores em
toda parte, da cabeça aos pés. E Jesus me disse que ele queria
que eu voltasse para o lar.
A sua respiração estava entrecortada.
— Ajuda-me, irmão! — sussurrou ele, olhando para mim.
— Ajuda-me! — E depois virou os olhos para outro lado.
— Você não pode — disse ele — , a morte me abraçou.
Estou partindo. Bruchko, eu vou indo. Não posso enxergar. Eu
sinto uma dor. Só Deus está aqui e ele quer me conduzir no
caminho que nós nunca pudemos achar nas nossas caçadas, o
caminho que vai além do horizonte para o seu lar.
Então ele sorriu, e o seu rosto, por uns instantes, estava
semelhante ao rosto que eu conhecera. — Não estou só — ele
disse. — Não estou só. Eu não andarei naquele caminho sozinho.
Há um Amigo que quer me levar. E ele conhece o meu nome, o
meu verdadeiro nome.
Depois o seu corpo cedeu. Ele agarrou a minha mão, e aos
poucos os seus dedos ficaram flácidos. Coloquei a sua mão junto
ao seu corpo e saí para fora da casa.
Eu parei lá na clareira. O sol estava brilhando. Era inacre-
ditável. Caminhei para a selva, onde era agradável, fresco e
escuro, e encontrei uma picada e comecei a andar nela, sem
saber e sem me incomodar para onde ela me levaria. Então
comecei a cantar a canção de Adji, a canção que ele cantara na
picada. Comecei a cantar suavemente, mas logo eu estava
cantando a plenos pulmões, e estava chorando.
"Deus", eu cantei, "eu amava o meu irmão. Eu anseio por
cantar a sua canção com ele novamente."
Senti o toque de uma mão sobre o meu ombro. Olhei ao
redor, amedrontado. Era Atrara.
— Não chore — disse ele. — Não fique triste. A fala dele foi
além do horizonte. Ela não está perdida nas selvas. Você não
precisa cantar aqui. Ela foi para um outro lugar.

23. O REMOINHO

Acordei com o cair suave da chuva. A casa comunitária


estava cheia daquela luz suave da manhã, e todos os outros
estavam dormindo. Deve ter chovido a noite toda, porque
ninguém havia saído para caçar. Virei-me na minha rede e voltei
a adormecer.
Algumas horas mais tarde acordei. Ainda estava chovendo.
Isso é estranho eu pensei. Quase nunca chove na selva durante
o dia.
Vários meses já se haviam passado desde aquela epidemia
de sarampo. Tinha sido um período de descanso, e eu esperava
pelo meu casamento com Glória, e a oportunidade de passar
uma boa parte do tempo com Bobby. Eu também estivera
trabalhando num material sobre lingüística, que eu havia
colecionado durante os dez anos que ficara com os motilones.
Entre lingüistas havia muito interesse pelo meu material, e eu
estava planejando publicar alguns trabalhos a respeito da língua
dos motilones.
Resolvi trabalhar nesse projeto. Não havia muita razão para
eu tentar fazer outra coisa, enquanto estivesse chovendo. Fui
até ao centro de saúde, que ficava a uma distância de
quinhentos metros. Estava apenas garoando, mas havia poças
de água em toda parte. Caminhei junto ao bananal e vi que as
plantas mais novas estavam crescendo muito bem. Nenhuma
delas havia sido derrubada pelo vento. Escorreguei no barro e
caí; desandei a rir. Não podia me lembrar de quando vira tanta
água assim.
Lá no centro de saúde eu me sentei à escrivaninha que nós
fizéramos, cortando uma parte de uma árvore de mogno, que
havia caído. Ela e um arquivo à prova de água e de inseto para
os meus papéis, eram as minhas possessões mais valiosas.
A água caía alegremente no telhado de zinco do centro de
saúde, e eu me preparei para trabalhar. Um pouco mais de uma
hora depois, fui perturbado por vozes que falavam alto. Fui até à
porta e olhei para fora. Dois homens motilones estavam gritando
do outro lado do rio, pedindo uma canoa para trazê-los de volta.
A canoa estava cheia de água e precisava ser esvaziada. Como a
água estava muito alta, por causa de tanta chuva, levou algum
tempo antes que os homens pudessem atravessar e voltar com
os dois passageiros. Resolvi ir até a casa, para ouvir o que eles
tinham a dizer. Eu sabia que eles eram de uma área que ficava
não muito distante de Tibu, e achei que talvez tivessem um
recado para mim.
Quando cheguei à casa comunitária, todos observavam os
dois homens enquanto comiam. Eles estavam andando pelos
caminhos havia vários dias, e estavam cansados e famintos.
Riam-se de algumas das coisas que lhes aconteceram. Evi-
dentemente havia sido uma viagem muito dura. Um bom
número de árvores havia sido derrubado, e alguns dos rios foram
difíceis de atravessar. Eu me abaixei junto a eles para ouvir.
Alguns minutos depois, Bobby também chegou. Acenei com a
mão para ele e sorri. Os dois homens falavam a respeito de uma
caçada que fizeram e um deles contou uma história muito
engraçada a respeito da topada que dera no dedo, durante a
viagem. Aborrecido, levantei-me para sair. Eles não tinham nada
para conversar, senão uma conversa fiada. Voltei ao centro de
saúde e comecei a escrever novamente.
Uma hora mais tarde, levantando os olhos, vi os dois para-
dos junto à porta. Eles me entregaram um pacote contendo cinco
envelopes.
— De onde é que vem isso? — perguntei.
Eles encolheram os ombros. — George Camiyocbayra no-los
deu para entregá-los a você — . George possuía uma procuração
lá em Tibu.
— Obrigado — disse eu.
Eram telegramas. Abri o primeiro. "Ela foi enterrada", dizia.
Quem é que fora enterrada? Deveria ser a mãe de Glória.
Mas não, fora a sua mãe que enviara o telegrama. Ela o havia
assinado no final.
Rasguei os outros. Glória sofrera um acidente. O seu carro
se lançara sobre um penhasco. "Venha em seguida", dizia um
dos telegramas. "Estamos esperando por você. Venha ime-
diatamente." E ele estava datado de duas semanas atrás. O
outro telegrama dizia que Glória falecera e que seria enterrada
dentro de três dias.
Atirei os telegramas ao chão e corri para a casa comu-
nitária. Bobby estava fazendo suas flechas. Ele olhou para mim
com o mesmo sorriso alegre que tivera quando menino.
— Bobby — solucei — , ela não virá. Ela não virá mais aqui.
— O quê? — disse ele.
— Ela não virá, Bobby. Glória não virá mais. Ela morreu. Ela
está morta.
Um outro motilone se aproximou e pôs as mãos sobre o
meu ombro, não sabendo que eu estava transtornado. Afastei-o
de mim.
— Como é que você sabe que ela está morta? — Bobby
perguntou.
— O papel diz isso. Aquelas cartas que vieram hoje de Tibu.
— Bobby — eu disse — , preciso ir a Bogotá. Nós precisa-
mos ir agora mesmo.
— Pois bem, nós iremos — ele disse. — Assim que as águas
baixarem, partiremos.
Aquele foi um dia muito longo. Às vezes a tristeza era muito
maior do que eu podia suportar. Outras vezes, era quase irreal.
Eu quase não podia acreditar que tivesse acontecido. Li e reli os
telegramas várias vezes. Bobby conversou comigo e cantou para
mim, falando sobre Glória, relembrando como fora ela a primeira
mulher estrangeira a vir até à região dos motilones.
Relembrando como havia pegado o seu peixe com o arpão.
A minha mente estava a todo momento envolvida com a
morte de Glória, semelhante a uma máquina que não parava de
trabalhar. Eu não podia chorar nem orar, apesar de tentá-lo. Mas
orar para quê? Ela já estava morta. Ela já havia morrido fazia
várias semanas.
Aquela noite eu acendi uma vela e fiquei na minha rede
ouvindo a chuva. Ela continuou o dia todo e agora caía a
cântaros. De repente senti que eu precisava sair dali. Eu
precisava ir a Bogotá. Eu precisava ver, pelo menos, o túmulo de
Glória e conversar com a mãe dela. Se eu não fosse, nunca
saberia se realmente aquilo não fora um pesadelo.
Virei-me na rede a noite toda, esperando que amanhecesse.
Às três horas da manhã acordei e fui sacudir Bobby.
— Bobby, quero ir agora. Eu preciso ir a Bogotá. Acho que
já está amanhecendo, e nós podemos viajar.
Ele me disse que voltasse para a minha rede. Ainda estava
escuro e chovendo. Depois, então, realmente começou a chover
torrencialmente. Orei para que a chuva parasse. Ouvi o barulho
das águas do rio correndo sobre as rochas e penhascos; depois o
som parou, então eu sabia que as águas haviam transbordado
sobre as margens. Quando amanheceu, elas haviam atingido
três metros e meio, além do nível da inundação e estavam quase
dois metros distantes da casa comunitária.
Mas eu precisava descer o rio. Era um impulso irresistível.
— Bobby — disse eu — , vamos!
— Bruchko, não podemos. Nós vamos nos afogar!
— Mas eu sei que você é um bom piloto, Bobby. Sei que
você pode nos levar rio abaixo.
Ele sacudiu a cabeça. — É impossível. O rio está muito alto.
Eu não estava pedindo a ele. Eu estava ordenando. E,
finalmente, entristecido, ele concordou. Empacotei o meu
material de lingüística numa sacola à prova d'água, engaiolei os
dois ursinhos que desejava mandar para um amigo nos Estados
Unidos. Mais ou menos às dez horas, partimos. Se bem que o rio
já tivesse baixado perto de um metro e meio, mesmo assim
ainda estava alto, as águas barrentas e feias, com remoinhos
sorventes com uma espuma amarela, ao redor das rochas.
Bobby estava preocupado.
— Você tem certeza de que precisa fazer isso, Bruchko?
— perguntou. — O rio está alto demais para tentarmos ir.
Não respondi. Simplesmente continuei a pôr os pacotes na
canoa.
Finalmente, partimos. Bobby, eu e mais dois outros ho-
mens. Outros motilones chegaram até à casa e ficaram ali na
chuva a nos dizer adeus.
— Quando você for ver a mãe de Glória, diga a ela que o
meu estômago sente dor por ela — disse Atacadara, a esposa de
Bobby. — Diga a ela que quando ouvimos dizer que Glória havia
morrido, nós não pudemos comer. Sabemos como ela se sente.
Dei um último olhar à casa e subi na canoa. Demos-lhe um
empurrão e as águas nos envolveram e nos levaram rio abaixo.
Não tínhamos que lutar contra a corrente, nem mesmo com
o motor do lado externo da canoa. Tudo o que tínhamos a fazer,
era nos desviarmos dos maus lugares. O rosto de Bobby estava
tenso. Ele conhecia o rio melhor do que qualquer outra pessoa
viva, porém nem ele mesmo podia prever os troncos, quando as
águas barrentas estavam correndo com uma velocidade duas
vezes mais rápido do que o normal.
De repente um enorme tronco rolou ao lado de nossa
canoa, à esquerda, Nós o observamos atentamente, para termos
a certeza de que ele não iria virar e nos atingir. Enquanto nos
aproximávamos de uma curva do rio, percebi que havia um
remoinho à nossa direita. Aquele tronco nos levaria para lá, se
não fôssemos cuidadosos.
— Bobby, cuidado aí na sua frente! — gritei. Porém ele
estava debruçado sobre o motor. A linha de nylon que controlava
o acelerador havia-se partido e ele estava tentando consertá-la.
De repente, um outro tronco surgiu, vindo do fundo do rio.
Ele bateu no tronco maior, à nossa esquerda, fazendo-o bater
em nossa canoa, o que fez com que ela fosse atirada direta-
mente na direção ao remoinho. Bobby tentou desligar o motor,
para diminuir a marcha e se afastar do tronco. Mas não houve
tempo. Podíamos ver o remoinho, bem perto e duas vezes maior
do que o seu tamanho normal. Bobby tentou desviar a canoa ao
redor, e ir contra a corrente de água, porém ela era muito forte.
A canoa atingiu as bordas do remoinho. Todos nós fomos
atirados para fora dela. Vi os tanques de gasolina flutuando na
água. Eu tinha os meus papéis nas mãos, e os dois ursinhos
debaixo de um braço. Eu queria me agarrar ao barco para me
manter sobre as águas, e então deixei escapar os ursos. Em
seguida eles começaram a nadar, e eu agarrei o barco com uma
das mãos e segurei os meus papéis com a outra.
Então vi Bobby sendo levado para o centro do remoinho.
Sem um borrifo qualquer ele foi levado para baixo e desapare-
ceu. Eu não podia ver coisa alguma, senão o cone lamacento de
água suja. A canoa começou a se aproximar do remoinho e
começou a se mover rapidamente. Todo esse tempo estávamos
girando e girando. De repente fui atirado para longe do barco e
levado pela água. Eu ainda estava segurando os meus papéis. A
água me carregou uma vez, num círculo, e depois mais outra,
aproximando-me cada vez mais do olho do remoinho. Não havia
jeito de evitá-lo.
Na terceira vez que dei a volta, vi um ramo de árvore
estendido sobre a água. Fiquei pensando por que é que eu não o
vira antes. Estendi a mão que estava livre e agarrei-o. Ele estava
firme. Então olhei para cima e vi um dos motilones na outra
extremidade. Ele me puxou para fora da água, com as mãos
para cima, e depois eu gatinhei para a margem, no barro,
tentando sorver o ar. Louvado seja Deus!
Mas onde estava Bobby? Então eu compreendi o que fizera,
ao insistir nessa viagem tão maluca! Bobby morrera.
— Você viu Bobby? — perguntei freneticamente.
— Não. Ele desapareceu no remoinho.
Eu disse aos homens que eu ia saltar novamente e ir rio
abaixo, até encontrar Bobby. Porém eles disseram que eu não
poderia, pois o rio me sorveria e eu também morreria.
Um rochedo contornava o rio naquele local, e nós não po-
díamos ir rio abaixo sem escalá-lo, por isso começamos a nos
arrastar para cima. Eu estava desvairado. Caí e cortei o dedo.
Eu preciso achar Bobby, disse a mim mesmo.
Deixei os papéis e continuei subindo. Tornei a cair nova-
mente, e fiz um corte muito profundo na perna. Quando cheguei
ao topo, um espinho espetou meu pé descalço. Penetrou uns
dois centímetros, e tive que parar por causa da dor. O inferno
todo se abriu contra mim, pensei. Mas fui-me arrastando, e
assim que pude ficar de pé, olhei ao redor e sobre o rio,
investigando as suas margens.
Vi a canoa, que parecia com uma agulha chata, ao longo de
uma das margens. Então eu vi Bobby segurando-se a ela. Oh,
Deus! Corri pela colina abaixo, caindo sobre as rochas. Cheguei
até lá e ajudei-o a retirar a canoa; depois o ajudei a sair da água.
Coloquei a minha mão no seu ombro.
— Eu achava que você havia morrido — disse ele.
— Eu achava que você havia morrido — disse eu.
Ele estava completamente nu: o remoinho havia estraça-
lhado toda a sua roupa.
— Veja — disse ele — , perdi toda a minha roupa que iria
usar no mundo civilizado e o meu dinheiro estava nela.
— E que importância tem isso? — eu disse — Você está
vivo. Jesus seja louvado!
Depois os outros dois homens se aproximaram. Eu estava
tão aliviado, que quase não podia falar muita coisa. Sorri e os
toquei. Depois, então, baldeamos a canoa e continuamos rio
abaixo.
O resto da viagem correu sem nenhum incidente. Quando
estávamos a poucos quilômetros do Rio de Ouro, paramos junto
ao rio. Bobby fez um cordão-G de uma folha grande e fomos à
cidade.
Quando eu entrei no avião, para ir a Tibu, Bobby colocou a
sua mão no meu ombro. — Diga à mãe de Glória que estamos
famintos por ela, que todos nós estamos tristes porque ela
morreu — disse ele. — Cuide de você e volte logo.
— Eu voltarei — prometi.

24. ALÉM DO HORIZONTE

Primeiramente fui a Bogotá e passei três dias com a mãe de


Glória. O chamado tão insistente para descer o rio dera-me uma
perspectiva de minha dor. Eu perdera Glória. Mas ainda tinha
Bobby.
Em vez de voltar a Tibu, voei para os Estados Unidos, a fim
de abordar o assunto deste livro. Passei três semanas lá. Quando
voltei à América do Sul, Bobby encontrou-se comigo em Tibu. Eu
estava cansado da civilização e feliz por estar de volta às selvas.
Mas a civilização ainda necessitava de mim. Os proscritos
naquela região estavam conspirando a forçar os motilones a
irem muito além de seu território. Em nossa viagem rio acima,
fomos ameaçados por Humberto Abril. Tentei rejeitar isso, porém
as suas palavras estavam continuamente se repetindo em minha
mente.
"Por esta cruz, eu te matarei", ele dissera. Elas eram
palavras tão frias e ameaçadoras.
Novas ameaças chegaram através de cartas — não apenas
para mim, mas para Bobby também. Uma das cartas informava-
o de que todos os motilones teriam que sair porque eles (os
proscritos) iriam apossar-se da terra. Eles ameaçavam violência.
No dia seguinte, o sócio de Humberto Abril, Graciano, e
mais cinco pessoas, chegaram numa canoa a Iquiacorora.
Encontrei-me com ele na margem do rio.
— Quem são aquelas pessoas? — perguntei.
— Elas estão doentes e precisam de cuidados médicos —
ele disse. — Um deles está com uma infecção muito ruim. Os
outros precisam de algum cuidado, por isso vieram comigo.
— Oh, sim — ele acrescentou. — Eu lhe trouxe uma carta,
também —. Ele ma entregou e depois se dirigiu ao centro de
saúde com os outros companheiros.
Tirei a minha faca e abri o envelope. A carta era de Abril.
— "Saia daqui", ela dizia. "Esta terra deve ser colonizada e
nós vamos matá-lo. Qualquer índio que fizer resistência, será
eliminado."
Profundamente enraivecido subi a colina, indo ao centro de
saúde. Meti a carta no rosto de Graciano.
— Leia-a — ordenei.
Ele sacudiu a cabeça. — Eu não sei ler.
— Pois bem, eu vou lê-la para você — . E eu a ü em voz
alta.
— Até que ponto vocês pensam que somos bobos?
— perguntei. — Vocês nos ameaçam com morte, e no
entanto esperam que curemos os seus doentes alegremente.
Recebam o seu tratamento e saiam daqui em seguida. E não se
preocupem em voltar aqui.
Naquela noite os chefes motilones se reuniram comigo,
para discutirmos o problema.
— Nós resolvemos que lutaremos se eles usarem de violên-
cia — eles me disseram. — Estamos nos preparando agora.
Tencionamos arranjar algumas armas e usá-las juntamente com
as nossas flechas, para defendermos as nossas casas.
Eles me perguntaram o que eu pensava a respeito daquele
plano.
— Eu não penso nada — disse. — Eu apóio o que vocês
decidirem, como sempre.
Passaram-se dois meses de grande tensão. Mais e mais
ameaças foram feitas, particularmente contra os motilones que
haviam construído pequenas casas ao longo do rio.
Bobby e eu trabalhávamos na tradução de Filipenses. Era
uma das ocasiões mais intensas, mais extraordinárias que já
tivéramos. Parecia que as nossas mentes estavam preocupadas
com a morte, por causa do inevitável conflito com os
colonizadores. E Filipenses nos falava a respeito dessa morte!
Enquanto trabalhávamos no primeiro capítulo, chegamos ao
versículo vinte, onde Paulo diz que a sua grande esperança é
aquela de não se envergonhar, mas que Cristo seja exaltado
nele, tanto na vida como na morte.
Eu precisava da palavra certa para esperança. Um motilone
espera ir para a cama à noite, porém aquela palavra não dava
muita força.
O centro de emoção para um motilone é o seu estômago.
Ter estômago cheio é sentir o coração alegre. Qual era a
maneira certa de ter um estômago cheio? Talvez fosse a de ter
caçado e morto uma grande anta. Você come anta até não poder
mais.
Então eu tomei o verbo que significava possuir uma anta, e
inventei um novo tempo: eu o pus no tempo futuro de algo que
houvesse acontecido, e depois eu fiz dele um superlativo.
Mostrei a palavra a Bobby. Isso o chocou. — Não — disse
ele. — Essa palavra é grande demais. Ela tem muita força. Como
é que você pode esperar uma coisa tão grande assim?
Nós a deixamos de lado, porém ela deve ter preocupado
Bobby. Dois ou três dias mais tarde ele disse: — Bruchko, vamos
voltar àquela palavra.
— Está certo — disse eu.
Ele esteve em silêncio por uns instantes, pensando, e de-
pois disse: — Bruchko, Jesus é essa esperança para você, em sua
vida? Realmente?
Aquilo me fez parar. Uma coisa é pensar na palavra certa a
ser usada, e outra completamente diferente é ser indagado se
ela é verdade em sua própria vida. Pensei na minha conversão, e
em algumas das crises que eu suportara com os iucos e os
motilones. Finalmente, depois de um longo silêncio, eu disse: —
Sim.
Então assenti com a cabeça vigorosamente. — Sim, Bobby.
Com todas as minhas forças e todo o meu desejo, quero dar-me
a mim mesmo a essa esperança em Jesus Cristo.
Bobby olhou para os seus pés. — Sim — disse ele. — É uma
boa palavra.
— Você tem certeza? — perguntei. Ele assentiu com a
cabeça.
Continuando com a tradução, chegamos àquela parte onde
Paulo diz que deseja conformar-se à imagem de Jesus Cristo,
através de seu próprio sofrimento ou de sua morte. Bobby tomou
aquela mesma construção gramatical forte que acabávamos de
usar, — alguma coisa já realizada, no entanto ainda no futuro,
numa forma superlativa — e aplicou-a ao verbo que dá a idéia de
conformidade com Cristo.
— Eu estarei completo na conformidade com a morte de
Cristo — ele disse.
Senti-me sobrecarregado, como se estivesse levando
ambos os pesos, o de Bobby e o meu. Que é que eu fizera? Eu
trouxera Jesus Cristo aos motilones, era verdade, mas estava eu
pronto a trazer-lhes essa espécie de conformidade —
conformidade com a morte de Cristo? Trouxera eu a morte, tanto
quanto a vida? Eu estava ansioso por orar. Bobby estava ainda
mais ansioso do que eu. Mas a oração de Bobby fez-me sentir
arrepios pelo corpo todo.
— "Jesus Cristo, quero estar conforme à tua imagem. Tu és
a minha expectativa."
Naquela atmosfera carregada de perigo, aquela oração pa-
recia audaciosa. Bobby estava dizendo: Não me importa se eu
vivo ou morro; quero ser semelhante a Jesus. Ele estava
entregando a sua vida.
Durante as três semanas seguintes, tudo estava calmo.
Esperávamos ouvir mais alguma coisa dos proscritos, mas não
chegou palavra alguma. Talvez tivesse sido um jogo, uma
ameaça desnecessária, que nunca seria levada a termo.
Bobby precisava descer o rio para vender alguns cachos de
banana. Ele levou mais dois motilones consigo. Ele era esperado
de volta lá pelas quatro horas do dia seguinte. O rio estava na
sua altura normal; a canoa estava em boas condições e não
havia razão alguma para que ela retardasse. Mas as quatro
horas chegaram, e depois cinco horas, e ainda assim nenhum
sinal de Bobby. Comecei a preocupar-me. Eu não gostara nada
de vê-lo partir. Agora a minha mente estava cheia de coisas que
poderiam ter acontecido a ele. Eram seis horas. O sol se pôs.
Somente o rio é que brilhava fracamente na penumbra. Na selva,
os barulhos noturnos começaram a surgir. Eles eram uma parte
natural da vida e eu dificilmente os notava, mas naquela noite,
cada um deles parecia um agouro.
Às seis e meia, Abacuriana, Asrayda, George Camiyocbara e
eu tomamos uma canoa e descemos o rio em busca de Bobby e
sua canoa. Os outros não estavam muito ansiosos em ir. Não é
muito fácil viajar pelo rio à noite. Não havia lua, e as rochas
podiam surgir no caminho de nosso barco, sem aviso algum.
Depois de passar pelas primeiras correntezas, a canoa se encheu
de água. Nós a esvaziamos e depois prosseguimos. Nas outras
correntezas arranhamos a nossa hélice de encontro a uma rocha,
porém pudemos consertá-la e continuamos a viagem.
Quando fizemos a curva do rio, uma outra canoa surgiu na
escuridão. Nós quase a batemos. Iluminei-a com a minha
lanterna e vi Aniano Buitrago, um dos homens de Humberto
Abril, e mais alguns de seu bando. Não conversei com eles, mas
mantive o foco de luz sobre os seus olhos, de modo que eles não
pudessem nos reconhecer. Num instante o rio nos afastara
rapidamente deles. Mas, que é que estavam eles fazendo, à
noite, no rio?
Um pouco mais à frente, encontramos outra canoa que ia
rio acima. Ela estava cheia de foragidos da lei. Os raios de luz de
nossa lanterna vasculharam a praia, enquanto procurávamos
Bobby ou a sua canoa. Não havia sinal algum dele.
Mais duas canoas passaram por nós, indo rio acima, cheias
de homens que eu não conhecia. Então passamos junto à casa
de um dos colonizadores. Havia ali, pelo menos, umas dez
canoas amarradas ao desembarcadouro. A noite parecia cheia
de ameaça.
Então George sussurrou: — Veja! Não é a canoa de Bobby?
— Ele estava apontando para o desembarcadouro. Firmei a
vista para ver, mas não podia afirmar. Chegamos mais perto.
Não poderia ser a de Bobby. Ele não iria parar na casa de um dos
colonizadores, especialmente quando Saphadana, uma pequena
casa motilone, estava localizada a poucos metros descendo o rio.
Resolvemos voltar para olhar pela segunda vez.
— Não é — disse eu. — Vamos até Saphadana e pergunte-
mos a Aystoicana se ele viu Bobby.
Paramos a canoa junto à margem, perto da casa comu-
nitária. Não havia fogo lá dentro, e tampouco som algum. Então
ouvi uma voz de um motilone. "Bruchko?"
— Sim.
Aystoicana desceu correndo até à margem. Eu quase não
podia ver o seu rosto. — Bruchko, eles mataram Bobarishora. Ele
está morto.
Eu não podia compreender o que ele estava dizendo.
— Isso é impossível! — repliquei. — Nós o estamos espe-
rando lá em Iquiacarora. Ele passou por aqui?
Aystoicana agarrou o meu braço. — Bruchko, ouça, Bobby
está morto. Eles o assassinaram.
Aturdido, caí na praia de joelhos. — Onde estão os dois
homens que estavam com ele?
— Eu não sei — disse ele. — Eles estavam muito feridos.
Eles foram embora.
Estendi as mãos e agarrei os joelhos de Aystoicana, pondo-
me de pé. A noite parecia coberta de manchas vermelhas e
azuis, semelhantes a feridas. — "O que é que aconteceu?"
sussurrei.
— Bobby estava com Satayra e Akasara. Eles estavam
subindo o rio, passando pela fazenda de Israel. Israel estava lá
na margem, fazendo sinal para que eles se aproximassem.
Bobby estava atrasado. Ele não queria parar, mas visto que
conhecia a Israel havia muito tempo, achou que talvez fosse uma
emergência.
— Israel, nos últimos meses, esteve na clínica duas ou três
vezes, para tratamento — disse eu, numa voz rouca. — Ele
quebrara o braço, que eu costurei e concertei. E ele recebeu de
nós os medicamentos de que precisava."
— Sim — disse Aystoicana.— Então Bobby julgou que ele
fosse um amigo. Ele dirigiu a canoa para amargem. Enquanto
estava debruçado sobre o motor, para desligá-lo, Satayra olhou
para cima e viu um homem escondido .atrás de uma árvore, com
uma espingarda de caça. Satayra gritou para Bobby e Akasara,
dizendo a eles que se atirassem ao rio. Ele não ouviu, porque
estava muito perto do motor. Satayra se atirou a margem e
agarrou a espingarda. Enquanto lutava com o homem, pela
espingarda, ele pegou a sua faca de mato. Satayra deixou
escapar a arma, para se proteger, e o homem usou a sua faca
para cortar o braço de Satayra do pulso até ao cotovelo. Satayra
caiu no rio, e Akasara se atirou para fora do barco para se
proteger. Bobby tentou sair do barco, porém um tiro de
espingarda pegou-o na virilha. Ele caiu no rio. Alguns dos grãos
de chumbo atingiram a perna de Akasara, porém ele e Satayra
nadaram para o outro lado do rio. Eles procuraram Bobby, mas
tudo o que podiam ver era o vermelho sobre a água. E então
viram o seu corpo flutuando. Viram também bandos de
colonizadores na outra margem. Todos eles tinham armas. Eles
estavam à espera de Bobby. Akasara e Satayra estavam
amedrontados e correram. Eles chegaram aqui e nos contaram.
— Oh, não, não; não pode ser — disse eu baixinho.
Um motilone assobiou a certa distância. Visto que a sua
linguagem é tonal, os motilones nem sempre usam palavras.
Esse assobio dizia que duas canoas estavam navegando rio
abaixo. Não havia barulho algum dos motores. Concluí que os
que estavam nos barcos, tentavam ficar em silêncio. Deveriam
ser os inimigos.
— Eu quero ir rio abaixo para ir buscar a força militar —
disse eu enraivecido. — George, você vem comigo.
Entrei no barco. Enquanto eu puxava a corda, para dar
partida ao motor, ouvi um barulho zunindo sobre a água. Eram
espingardas de balas de chumbo, e os tiros vinham de uma
longa distância, e não podiam nos fazer mal. Finalmente o motor
pegou, na terceira tentativa, e rapidamente deixamos as
espingardas para trás.
Foram necessárias várias horas para chegarmos ao posto
militar no Rio de Ouro. Acordei o comandante do posto. Ele
desceu de pijamas. Contei-lhe que se dera um atentado para
assassinar Bobarishora, e que eu fora informado que ele mor-
rera.
Ele ouviu a minha história, olhando para o ar com olhos
sonolentos.
— Está bem, eu verificarei isso — disse ele, e abriu a porta
para eu sair.
— Não quero que o senhor verifique — eu disse. — Quero
auxílio agora. Preciso de alguém para proteger os motilones.
— Sinto muito — disse ele — , mas não posso fazer coisa
alguma hoje à noite.
Fui à polícia. Eles tampouco iam fazer coisa alguma. Não
creio que eles estivessem interessados no problema. Estavam
com medo de que eles mesmos pudessem ser atacados.
Eu estava furioso e frustrado. Às quatro horas da manhã
comecei a subir o rio juntamente com George. A alvorada estava
começando a surgir. A luz cor de pérola cinzenta que se
espalhava sobre as águas tornava-se cada vez mais brilhante, à
medida que subíamos o rio. A folhagem tinha um tom verde
opulento. Tudo parecia tão inocente. Ali estavam as árvores e o
rio que eu amava. Isso era lar para mim.
Bobby não podia estar morto. Eu me recusava a crer.
Comecei a pensar naquela ocasião há poucos meses, quando o
nosso barco fora levado pelo remoinho. Eu pensara que ele
estivesse morto. Porém ele sobrevivera. Milagrosamente, talvez,
ele agora estivesse na selva, esperando por auxílio, escondendo-
se dos foragidos.
Quando chegamos a Saphadana, o sol brilhava e não
parecia possível que tivessem atirado em nós ali. Mas Aystoicana
nos disse que os colonizadores e os foragidos da lei passaram a
noite toda atirando nas casas dos motilones que estavam junto
ao rio, e gritando que os motilones precisavam se retirar, e que a
terra não lhes pertencia mais.
— Vocês procuraram Bobby? — perguntei.
— Nós o procuramos, porém não achamos nenhum vestígio.
— Precisamos procurar — disse eu. — Talvez ele esteja
precisando de auxílio. Ele poderá estar ferido aí nas selvas.
Aystoicana olhou para os seus pés, um tanto quanto emba-
raçado. Passamos o dia todo nas selvas, procurando Bobby. Os
outros queriam parar, porém eu não os deixei.
Fazia um dia e meio que eu não dormia, e já estava no fim
de minhas forças físicas. As vezes, a minha voz falhava, e não
havia nada mais senão o som do gorjeio suave dos pássaros
cantando nas árvores. Não havia resposta alguma de Bobby.
Às cinco horas paramos a busca. Seria já bastante escuro
quando chegássemos a Saphadana. Não conversávamos;
estávamos exaustos, doentes.
Quando chegamos ao ponto onde o Rio Cano Tomas se
reúne ao Rio de Ouro, vi alguma coisa boiando no rio. Parecia um
tronco de árvore. Chegamos até perto para investigar. Era
Bobby, que estava de bruços.
Não havia mais esperança, tudo se findara. Eu me senti
totalmente vazio — como uma casca. Havia-me convencido de
que esta seria semelhante àquela vez quando quase nos
afogáramos. Bobby estaria vivo. Nós nos reuniríamos nova-
mente.
O rio estava raso. Desci da canoa e virei Bobby. O seu
rosto, completamente branco, estava todo enrugado por ter
estado na água. Fechei-lhe os olhos com os meus dedos. Ele
havia morrido imediatamente. A rajada do tiro havia
estraçalhado a parte inferior de seu corpo.
— "Deus", exclamei, "oh, Deus, por quê?"
Ele havia sido o líder de seu povo, o primeiro a conhecer a
Cristo, o primeiro a aprender a ler e a construir escolas, o
primeiro a tomar uma posição contra os ladrões da civilização.
George me entregou um cobertor. Eu o enrolei em volta do
corpo de Bobby, e depois ajudei a colocá-lo na canoa.
No dia seguinte, levamos o seu corpo para Iquiacarora. A
minha mente não me deixava em paz. Eu havia chorado naquela
noite até não ter mais lágrimas. E ainda assim, os meus
pensamentos estavam girando num círculo. Por que todas essas
mortes, Senhor? eu perguntava continuamente. O rio era morte.
A selva era morte. A morte brotava pelos vales abaixo. Ela está
sempre tocando alguém que eu amava ... Glória, Bobby. E
entrelaçados em meus pensamentos estavam as palavras de
Humberto: "Por essa cruz te matarei."
O rio estava baixo, e tivemos que gastar muito tempo para
poder navegar nas partes mais baixas. Num desses lugares ouvi
o zunido das balas batendo na água. Elas vinham de duas
canoas do outro lado do rio. De repente um tiro abriu um dos
lados de nossa canoa. Nós lutamos freneticamente para ultra-
passar os foragidos, porém eles estavam nos alcançando.
Senti uma queimadura intensa em minha perna. Uma bala
havia me atingido.
Finalmente conseguimos livrar a canoa. Enquanto nos diri-
gíamos a águas mais profundas, uma bala passou de raspão pelo
meu peito. Isso fez-me sentir bem. Eu realmente queria ser
ferido; queria sentir dor; queria a morte.
Porém, sofri apenas ferimentos superficiais. Fizemos parar o
fluxo de sangue; os chumbos teriam que ser retirados mais
tarde.
Navegamos lentamente durante muitas horas mais, rio
acima, e finalmente chegamos à curva do rio que nos levava a
Iquiacorara. Diversas centenas de motilones armados estavam
ali na margem. Quando nos reconheceram, eles esperaram
imóveis, até que desembarcássemos. A notícia da morte de
Bobby já se havia espalhado, e as pessoas tinham vindo de
muitos quilômetros ao redor daquela área. Elas cercaram o
barco.
Eu vi Atacadara, a esposa de Bobby, de pé, ali sobre um
pequeno outeiro. Ela estava me observando, esperando. Olhei
para ela, acenando com a cabeça, para confirmar que realmente
Bobby estava morto. Ela se virou e saiu andando, com uma de
suas meninas agarrada à sua perna. Ela carregava em seus
braços o filho mais novo de Bobby.
Pegamos a minha rede lá da casa comunitária, e a amarra-
mos num mastro de três metros de comprimento. Retirando o
corpo de Bobby do barco, nós o colocamos na rede, e depois o
cobrimos com o meu cobertor, porque ele era o meu irmão de
pacto. Depois levamos a rede através do rio, e rio abaixo, e o
penduramos bem alto, nos galhos mais altos, de modo que os
abutres pudessem comer o corpo de Bobby.
Voltando, encontrei Atacadara sozinha, de pé, junto à en-
trada da selva. Os seus olhos estavam escuros e vazios, como
estiveram quando a sua filhinha falecera.
Ela olhou para mim, e eu desandei a chorar.
Ela agarrou o meu ombro. — Não, não — disse ela. Eu a
segurei por uns instantes e depois deixei que fosse embora.
Fiquei ali sentado do lado de fora da casa o dia todo,
olhando os abutres precipitando-se lá do céu. Eles começavam
como pequenas manchas pretas. Circulando cada vez mais
próximo sem bater as suas enormes asas, eles pousavam nas
árvores com batidas curtas e compassadas.
Lembrei-me de quando eu pensara que aquela cerimônia
era fria e cruel; eu pensara que colocar uma pessoa num caixão,
e colocá-lo num buraco, era muito melhor do que atá-la bem alto
numa árvore a fim de ser levada bem alto no céu. Eu sabia agora
o que aquilo significava. Queria dizer que Bobby estava livre
para ir além do horizonte.
Eu simplesmente desejava poder ir com ele.
Enquanto estava acocorado lá fora da casa, alguns dos
motilones tentaram conversar comigo, tentaram me animar. Mas
eu estava ali como uma pedra.
Naquela noite não pude agüentar mais, então fui até à
selva, perto das árvores onde estava a rede de Bobby. Eu me
deitaria ali, para dormir, sob a rede que guardava o corpo de
Bobby, para lhe dizer o adeus final. Porém, quando eu saí, a casa
toda me seguiu. Havia cerca de duzentas pessoas. Atravessamos
o rio juntos. Estava bem escuro sob a rede. Não havia lua.
— Vamos nos dar as mãos, fazendo um círculo que não tem
nem começo nem fim, e vamos conversar com Deus — disse eu.
Isso não era de acordo com a cultura dos motilones, mas
parecia ser a coisa exata a ser feita.
Odo, o filho adotivo de Bobby, foi o primeiro a orar. Ele
tinha apenas catorze anos, mas Deus lhe deu a oração profética
mais linda que eu jamais ouvi.
"Ó Deus", ele disse em voz alta, olhando para a silhueta da
rede de Bobby. "Deus, aqui está preto, está escuro. Eu não posso
ver. Nós estamos perdidos."
Por um momento ele ficou em silêncio, depois continuou
numa voz mais calma e diferente. "Deus, há uma árvore, com as
suas raízes se aprofundando bem fundas no solo. Somos nós,
Senhor, o povo motilone.
"Nós temos vivido nesta terra toda a nossa vida, gerações
após gerações, e as nossas raízes são muito profundas, e nós
nos erguemos muito alto.
"Nós tentamos seguir a Deus, porém nós o perdemos en-
quanto tentávamos segui-lo. Tentamos seguir os nossos próprios
caminhos, e eles nunca nos levaram ao lugar onde deveriam nos
levar; eles simplesmente iam ter a uma outra casa, ou outro rio.
Eles nunca nos levaram além do horizonte, onde nós te
encontraríamos.
"E então Bobarishora encontrou o teu caminho em Jesus
Cristo, e ele andou nele, e nos mostrou como deveríamos andar
nele. Nós nos sentimos felizes.
"Mas, Deus! Aonde é que esse caminho o levou? Por que é
que esse caminho o levou a esse lugar? Deus, isso não pode
ser!"
Ele parou. Houve um silêncio total.
"A árvore é linda", ele disse. "Ela é linda. Ela está coberta
de flores grandes e perfeitas que se abriram ao sol. Cada um de
nós é uma flor.
"Porém, há uma flor que é maior que todas e muito mais
bonita do que todas as outras. Ela produziu o fruto mais perfeito.
Esse é Bobarishora. Ele nos deu a agricultura, e os nossos
estômagos ficaram satisfeitos. Estávamos morrendo por causa
das doenças, e ele nos trouxe a cura por intermédio de Jesus
Cristo, através dos medicamentos. Ele nos mostrou o caminho de
como andar com Jesus Cristo, de modo que temos razões para
viver. Todos nós estávamos entusiasmados com a sua nova vida.
"Mas, ó Senhor, está tão escuro. Um vento soprou, e o
fruto, o fruto mais perfeito secou e murchou e caiu ao solo. Suas
sementes foram chutadas e pisadas no solo escuro, bem escuro.
Ele morreu ... Bobarishora morreu, e nos deixou.
"Deus, não deixes que a semente se perca. Faze com que
as nossas vidas sejam um solo fértil de modo que a sua semente
possa crescer em nós. Faze com que a sua morte seja uma
grande árvore crescendo em nosso solo, de modo que possamos
viver como ele viveu, ajudando-nos mutuamente, e aprendendo
a amar. Faze com que isso cresça em nós por causa de sua
morte. Nós te pedimos isso porque somos uma só pessoa hoje à
noite, num círculo de mãos dadas, nascidos em Jesus Cristo, teu
único Filho."
O nosso círculo se partiu e lentamente foi-se separando. Eu
vi alguma coisa que nunca vira entre os motilones antes: as
pessoas estavam escondendo os seus olhos e fungando.
Ocdabidayna caminhou em minha direção, tentando sorrir.
— Olhe só para nós, todos nós estamos resfriados! — disse ele.
— Não — eu disse. — Não é resfriado o que eu tenho. Não é
resfriado!
Então Ocdabidayna, um dos líderes dirigentes, agarrou a
sua cabeça com suas duas mãos, e caiu ao chão. — Oh, Bruchko
— disse ele, olhando para mim. — Eu não sou um homem. Eu
sou um bebê, um bebê muito pequeno. Somente os bebês é que
choram.
A sua tristeza abalou os motilones como eu nunca os vira
tão abatidos. Eles correram para a selva a fim de esconder um
do outro as suas lágrimas.
— Bruchko — disse Ocdabidayna — , Jesus Cristo morreu
por todas as tribos do mundo. Bobby é quase semelhante a ele.
Ele morreu pelos motilones.
Passei as três semanas seguintes recuperando-me de meus
ferimentos. Eu ansiava por deixar a selva, deixar o cheiro de
morte. Também queria informar às autoridades competentes a
respeito da situação dos foragidos da lei. Mas eu não podia sair.
O rio estava cheio de emboscadas. Qualquer pessoa que
tentasse sair dali teria sido morta. Os caçadores também
descobriram que nas picadas que saíam das selvas havia ar-
madilhas com espingardas. Um dos homens conseguira sair e ir
a Tibu, levando diversas cartas. Ele levou uma semana para
chegar lá, andando apenas à noite, e sempre evitando as
picadas.
O único caminho seguro era transpondo as montanhas —
uma viagem que exigia cento e quarenta horas de marcha.
Aminha perna havia sarado, e então comecei aminha viagem.
Quando eu havia caminhado metade do percurso, ouvi um
helicóptero. O Presidente da Colômbia havia mandado buscar-
me. Logo eu estava fora das selvas.
Passei uma semana muito inquieto lá em Bogotá. Que é que
tudo aquilo significava? Para os motilones, Bobby poderia
crescer como uma árvore florida. Mas, para mim, que significava
a morte de meu irmão de pacto?
Uma noite, enquanto eu conversava com um dos principais
ministros do governo Colombiano, recebi a minha resposta. Ele
conhecera Bobarishora pessoalmente e tinha um grande
interesse pelo povo motilone. Eu acabara de descrever a morte
de Bobby e havia lágrimas nos seus olhos.
— Mas Bruce — ele disse — , você continua falando como
se desejasse que Jesus interviesse e pusesse um fim a todas
essas perturbações. Você não pode ver que é justamente o
oposto. Se não fosse Jesus, os motilones seriam empurrados de
volta às selvas, até que fossem lenta, mas seguramente,
exterminados! Se não fosse por Jesus, não haveria luta; Bobby
nunca teria que morrer da maneira que ele morreu. Não, Bruce.
Não é a despeito de Jesus que Bobby morreu. É por causa de
Jesus.
Ele colocou a sua mão sobre o meu ombro. — Onde é que
os motilones estariam se Bobby não tivesse sido o tipo de
pessoa a quem os bandidos sentiam que precisavam matar?
Onde é que você estaria se Bobby não tivesse sido aquele tipo
de pessoa?
— Não estaria em parte alguma — eu disse. — Eu não
estaria em lugar algum.
Portanto, a vida tem que ser semelhante a isso, pensei. Ela
precisa ser luta e choro, e até mesmo a morte.
Repentinamente vi os meus pais, e todas as dores pelas
quais passáramos ...
Vi os iucos, e os semblantes colonizadores ...
Vi os rostos dos motilones, para quem o resto do Novo
Testamento ainda precisava ser traduzido.
Havia tanto serviço a ser feito ... tantas coisas que Cristo
me chamara para fazer. Isso traria novas dores, mais solidão. E
talvez a morte.
Por que é que estava sendo tão difícil? Por quê?
Então eu vi Jesus. Ele estava lutando para subir uma colina
com uma grande carga. O seu rosto estava crispado de dor. As
suas costas estavam curvadas.
Endireitei-me no encosto da cadeira, e olhei para o ministro.
— Creio que eu vejo — eu disse. — É a cruz.
Ergui a mão e pus o meu polegar sob o indicador. — É por
esta cruz.

FIM

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