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Revista de Villegagnon 2022

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Villegagnon

Ano XVI Número 16 - 2022


Revista de

Revista Acadêmica da Escola Naval ISSN 1981-0342 | ISSN 1981-3589 (digital)


Caro Leitor,

Apresento, com grande satisfação, mais uma edição da


Revista de Villegagnon, publicação acadêmica que desde 2006
incentiva a produção intelectual dos Corpos Docente e Discente
da Escola Naval.

Ao percorrer as páginas que exibem os diferentes artigos


da presente edição, o leitor encontrará temas relevantes para
a formação acadêmica dos nossos Aspirantes, preparando-os
para as diversas funções que desempenharão no início das suas
carreiras como Oficiais de Marinha.

Em particular, esta edição apresenta um dossiê sobre


História Naval intitulado “PODER NAVAL E A ORGA-
NIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS DE
INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES
E PROCESSOS HISTÓRICOS”, que contém artigos inéditos
de autoria dos nossos “Sentinelas dos Mares”, em comemo-
ração ao Bicentenário da Independência do Brasil.

Tanto esta quanto as edições anteriores podem ser encontradas,


em meio eletrônico, no Portal de Periódicos da Marinha.

Por fim, agradeço aos que contribuíram para a conclusão


deste trabalho, desejando a todos uma boa leitura.

ADRIANO MARCELINO BATISTA


Contra-Almirante
Comandante

Revista de Villegagnon . 2022 1


REVISTA DE VILLEGAGNON
ANO XVI – NÚMERO 16 – 2022
ISSN 1981-0342
ISSN 1981-3589 (digital)

Revista de Villegagnon é uma publicação anual,


SUMÁRIO
produzida e editada pela Escola Naval.

Comandante
C. Alte Adriano Marcelino Batista 4 Crise e liderança – a possibilidade de uma
retroalimentação
Superintendente de Ensino Capitão de Mar e Guerra (Ref-FN) Paulo Roberto
C. Alte (RM1) Paulo Cesar Mendes Biasoli
Ribeiro da Silva
Editor
CMG (Ref) Pedro Gomes dos Santos Filho

Conselho Editorial
10 O livreto “Nossa Voga” na Escola Naval: uma
introdução às tradições e aos valores para os
CF (IM) Marcello José Gomes Loureiro jovens da Marinha
1T (RM2-T) Juliana da Silva Neto
Profª. Drª. Ana Paula Araujo Silva Capitão de Mar e Guerra (RM1-IM) Hercules
Prof. Mario Cesar da Silva Fonseca Guimarães Honorato

Revisão
Profª. Drª. Ana Paula Araujo Silva
Prof. Mario Cesar da Silva Fonseca
17 A origem da Rosa das Virtudes
Capitão de Mar e Guerra (Ref) Pedro Gomes dos
Santos Filho
Diagramação e Arte final

26
Acará Estúdio Gráfico
Conselhos aos oficiais recém-formados
www.acara.com.br
Capitão de Corveta (FN) Raphael Baptista Mattos dos
Anjos
Contato

30
en-revvillegagnon@marinha.mil.br
As compras por oportunidade e suas possibilidades
Os artigos enviados estão sujeitos a cortes e na Base Industrial de Defesa (BID)
modificações em sua forma, obedecendo a crité-
rios de nosso estilo editorial. Também estão sujei- Aspirante Lucas Gabriel Moura Carnaúba
tos às correções gramaticais, feitas pelos revisores
da revista.
As informações e opiniões emitidas são de ex-
34 Considerações sobre o gênero abstract em
trabalhos acadêmicos
clusiva responsabilidade de seus atores. Não ex-
primem, necessariamente, informações, opiniões Profa. Dra. Doris de Almeida Soares
ou pontos de vista oficiais da Marinha do Brasil. Profa. Dra. Márcia Magarinos de Souza Leão

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
41 Um modelo de proposta para avaliação de
desempenho usando o conceito fuzzy
Capitão de Mar e Guerra (RM1-IM) Luís Odair
Azevedo Gomes Raymundo

47 O radioamadorismo na Escola Naval: de


Villegagnon para o mundo!
Capitão de Mar e Guerra (RM1) Cesar Henrique Assad
dos Santos
50 A vela em Villegagnon: 1938 – 1972
Capitão de Mar e Guerra (Ref) Pedro Gomes dos Santos Filho

56 Mais uma marca da Escola Naval


Capitão de Mar e Guerra (Ref.) Pedro Gomes dos Santos Filho

59 Dossiê temático: “Poder Naval e a organização da Armada Imperial em


tempos de independência: instituições, personalidades e processos históricos”
Apresentação do dossiê:
Capitão de Fragata (IM) Marcello José Gomes Loureiro

62 Civilizar, modernizar e dissuadir: a contribuição da trindade José


Bonifácio, Marquês de Barbacena e Lorde Thomas Cochrane para a
formação marítima do Brasil independente
Professora Jéssica de Freitas e Gonzaga da Silva

73 Aspectos legais do surgimento da Real Academia de


Guardas-Marinhas
Aspirante André Pereira Rodrigues

82 “Dos destroços da pujante marinha que possuiu Portugal, levantou


o Brasil os alicerces da sua”: a organização do poder naval
brasileiro no contexto da independência
Aspirante Lucas Lima dos Santos

91 O Conde de Dundonald e a Independência do Brasil


Guarda-Marinha Elias Luiz Pedron Moschen

98 “Metade da esquadra inimiga é nossa, por que vou cortar sua linha”:
a Armada Imperial e a guerra pela integridade territorial do Brasil
Aspirante (IM) Pedro Lucas de Deus dos Santos

106 A Independência do Brasil no diário do Frei Manoel Moreira da


Paixão e Dores
Aspirante Lucas Expedito de Paiva Zim

112 Notícias de Villegagnon


Villegagnon
Ano XVI Número 16 - 2022
Revista de

Revista Acadêmica da Escola Naval ISSN 1981-0342 | ISSN 1981-3589 (digital)

Nossa Capa:
Após longa singradura,
Guardas-Marinha recebem a tão
almejada espada na Cerimônia de
Declaração de GM, realizada no
solo sagrado de Villegagnon
CRISE E LIDERANÇA – A POSSIBILIDADE
DE UMA RETROALIMENTAÇÃO
A parte mais terrível do inferno está reservada para aqueles
que se mantêm neutros em períodos de crise moral.
Dante Alighieri

Capitão de Mar e Guerra (Ref-FN)


Paulo Roberto Ribeiro da Silva1

INTRODUÇÃO plorada, poderá acarretar condições favoráveis ao


exercício da liderança?
Incontáveis questionamentos nos inquietam quan-
As contrariedades decorrentes da pandemia de
do analisamos o comportamento humano, especial-
COVID-19, uma crise sem precedentes, nos colocaram
mente os relacionamentos interpessoais. O viver gre-
gário reclama a existência de um líder, que aponte os de joelhos, notadamente pela sua velocidade de con-
caminhos e estabeleça a melhor forma de se conduzir tágio e a manifesta incapacidade de adoção de uma
de maneira a atingir eficientemente os propósitos esta- pronta resposta efetiva, apesar da alta e sofisticada
belecidos no grupo. No entanto, serão estes propósitos tecnologia que julgávamos possuir. Nestas ocasiões,
mandatoriamente orientados para o bem ou poderão extraordinários desafios estão sendo postos às lide-
estar descompromissados com quaisquer referenciais ranças por soluções inovadoras, a fim de confortar e
valorativos virtuosos? fortalecer seus liderados.

O exercício do processo de liderança, por sua O líder é normalmente percebido como um orien-
vez, deverá ser conduzido prioritariamente segun- tador, o indivíduo que é capaz de influenciar seus li-
do a personalidade do líder ou terá que ser conside- derados a operarem unidos sob um mesmo propósito.
rada também, com especial atenção, a conjuntura Suas palavras, de certa maneira, sintetizam o querer
em que ele se desenvolve? Será que, em uma situa- do grupo e, por consequência, é respeitado e valori-
ção estimada como normal, as ações empreendidas zado. Contudo, será que esta plêiade de atributos o
pelo líder deverão ser praticamente similares às de coloca como o único responsável pelas consequências
um contexto crítico, ou lhe serão exigidas algumas advindas de suas decisões, ou os liderados terão algu-
peculiaridades? ma corresponsabilidade neste processo?
Um cenário de crise geralmente debilita a todos. Evidentemente seria uma veleidade sem limites se
As novidades e os imprevistos deterioram nossas este trabalho se propusesse a apresentar uma solução
certezas, expondo visivelmente medos e fraquezas. definitiva para todos esses questionamentos; não obs-
Neste caso, será que a criticidade de uma circuns- tante, pretendemos lançar tão somente uma luz neste
tância aportará dificuldades para o líder se impor obscurantismo que nos envolve. Para tanto, inicial-
perante seus liderados ou, se convenientemente ex- mente será abordada a vida no coletivo, onde buscare-
mos enfatizar a importância e as consequências deste
1
Doutor em Ciências Navais pela Escola de Guerra Naval. viver em sociedade.

4 Revista de Villegagnon . 2022


Em seguida, e como decorrência do tópico anterior, lidade; já entre os humanos, construtores de seus pró-
analisaremos de maneira sintética o processo de lide- prios destinos, nem tudo sai por conta do automático,
rança, notadamente as vertentes valorativas possivel- haja vista que a natureza não engessa totalmente seus
mente contidas em seu propósito. comportamentos e se vê, às vezes, obrigada a se do-
Prosseguindo, nos concentraremos nos desdo- brar às suas vontades.
bramentos do exercício da liderança em ambientes Como fica evidente, a vida grupal é um avanço
de crise, analisando os prováveis impactos destes significativo no processo evolutivo das espécies. No
contextos na condução das ações de persuasão exer- entanto, como otimizá-la para que suas benesses se-
cidas pelo líder. jam de fato usufruídas com eficiência? O viver em
Ampliando e particularizando a análise de uma si- bando faz surgir situações ambíguas que requerem
tuação crítica, voltaremos nossa atenção para a pan- a escolha de algumas soluções, dentre inúmeras
demia de COVID-19 que atualmente nos assola, efe- outras, o que certamente poderá gerar desacordos,
tuando uma provocação, questionando quem serão de desarmonias e provavelmente conflitos entre seus
fato os responsáveis pelas consequências decorrentes membros. Para contornar estes dilemas, é funda-
das ações empreendidas pelo grupo. mental que surja um personagem do próprio grupo
Finalmente, chegaremos às considerações finais, capaz de se impor e persuadir os demais a acatarem
onde apresentaremos algumas possíveis soluções, bus- suas decisões – um Líder!
cando minorar as prováveis sequelas resultantes do Esse líder deve ser dotado de uma série de atri-
entrechoque entre as ações de liderança, sejam elas butos de maneira que o percebam como seu legí-
quais forem e os cenários de crise. timo representante; mesmo porque o Ser humano
precisa de alguém que o governe e seja capaz de
compreender as suas necessidades e lute para o
A VIDA NO COLETIVO seu atendimento. Por outro lado, o líder deve ser
confiante, ter uma visão clara dos seus objetivos e
“Unir-se é um bom começo, manter a união transmitir uma mensagem que sensibilize seus li-
é um progresso, e trabalhar em conjunto é a derados, incrementando as condições para o sur-
vitória”. gimento de motivação e desejo de pertencimento
Henry Ford àquele coletivo.

O Ser humano é um animal cooperativo; ou seja, A LIDERANÇA – UMA ANÁLISE BASEADA


um ser social que necessita do outro para ampliar EM SEU PROPÓSITO
sua segurança, manter a integridade de sua prole,
garantir o atendimento de suas necessidades, princi-
“A diferença entre os humanos e os animais
palmente, de procriação. Além do mais, a vida em
é que os últimos nunca permitem que um
conjunto concorre para manter o equilíbrio emocio-
nal dos seus integrantes, criando condições para um
estúpido lidere a manada”.
viver saudável e criativo. Winston Churchill
Entretanto, essas condições essenciais para perpe-
tuação das espécies estabelecem um contraponto, uma Com certeza a liderança não pode se restrin-
exigência inalienável; qual seja, a cessão de parte das gir somente às pessoas com habilidades gerenciais
liberdades individuais em favor das vantagens ofereci- especiais ou dotadas de um significativo destaque
das pelo viver coletivo – um verdadeiro “toma lá, dá intelectual; caso contrário todos os líderes seriam
cá” de interesse mútuo. referenciais de excelência, o que realmente não
Entre os animais ditos irracionais, esse processo se acontece, como se percebe ao estudar a história da
desenvolve instintivamente, sem nenhuma intenciona- humanidade.

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O indispensável para o exercício do processo da LIDERANÇA EM CONTEXTOS DE CRISE
liderança é a habilidade do líder em persuadir pes-
soas para que obedeçam às suas decisões volunta-
“O Homem que deseja liderar uma orques-
riamente em prol da realização do seu propósito,
tra deve dar as costas à multidão”.
como se este fosse um desejo único e inquestionável
do próprio grupo. James Crook
A liderança não surge de repente apenas como
uma dádiva, mesmo que, em algumas situações e com A liderança está intimamente condicionada às situ-
determinadas pessoas, ela possa estar latente ansian- ações, isto é notório, pois o estilo a ser adotado deve
do apenas o momento de se revelar. Neste caso, é estar vinculado aos contextos; caso contrário, bastava
patente o seu componente subjetivo firmemente ar- a adoção de um estilo único para todas os cenários, o
raigado a determinados dons e aptidões individuais. que inegavelmente seria um desastre.
Contudo, na maioria dos casos, a liderança exige Dos diversos parâmetros envolvidos no processo
exaustivos estudos, dedicação e, sobretudo, prática decisório de um líder, muitos podem ser controlados
num longo processo de maturação para que alcance conforme suas conveniências; no entanto, outros es-
um patamar aceitável. tão fora da possibilidade de sua interferência, po-
É manifesto que o sucesso na condução de pessoas rém podem ser utilizados a favor dos interesses de
não está obrigatoriamente atrelado à virtualidade do um líder hábil em perseguir seus propósitos, sejam
seu propósito, mas sim ao atendimento da vontade do eles quais forem.
líder, induzida nos liderados, que pode estar destituída Dessa forma, nada melhor que uma situação extra-
de qualquer vínculo ético ou moral. Como justificativa ordinária, repleta de novidades, para que o líder pas-
para esta afirmação, existem exemplos à exaustão des- se a explorá-la contando com um empenho extra dos
de os tempos primordiais. Em outras ocasiões, o líder liderados que, sobressaltados e inseguros, depositam
identifica os anseios dos liderados e os assume como se em suas mãos todas as esperanças. Nestes contextos
fossem seus, o que favorece mais prontamente o surgi- de crise, o poder do líder se sobreleva, permitindo a
mento de uma espiral crescente de coesão e harmonia adoção de decisões autocráticas, sem uma consulta
no seio do grupo. prévia aos membros do grupo, porém prontamente
Como supramencionado, a realidade escancara acatadas sem muitos questionamentos.
uma constatação incômoda e desconfortável. As Em síntese, quando as pessoas estiverem ameaça-
pessoas podem ser induzidas, mesmo que incons- das, vão procurar líderes fortes e autocráticos que pos-
cientemente, a se comportarem e buscarem ardo- sam resolver ou atenuar seus problemas e angústias, o
rosamente destinos impostos como se fossem seus, que torna estes contextos críticos uma excelente opor-
o que pode aportar consequências inimagináveis. tunidade para o exercício da liderança.
O século XX foi pródigo em exemplos desse com- Nesse momento, ficamos diante da seguinte per-
boiamento mental, dentre os quais a liderança de plexidade: já que o líder se favorece nestas situações
Hitler, a de Mussolini e a de tantos outros atestam limites, será que ele as pode utilizar igualmente para o
o quão permissiva e nociva uma liderança pode se bem ou mal com o mesmo sucesso, ou será mais fácil
tornar quando exercida desvinculada de princípios uma ou outra?
valorosos. O líder virtuoso, que pauta seus comportamen-
Em contraposição, a existência de uma liderança tos na busca do maior bem comum e na redução
alicerçada em princípios virtuosos é capaz de promo- das dificuldades dos seus subordinados, certamente
ver maravilhas, impulsionando as ações para realiza- estará atento e sensibilizado às suas fragilidades e
ções inimagináveis, alavancando o desenvolvimento e apreensões, disponibilizando-se e incentivando-os a
o aperfeiçoamento da sociedade se baseando na justiça superarem e prosseguirem perseguindo o propósito
e na busca do bem comum. comum do grupo. Será um sustentáculo, um amigo,

6 Revista de Villegagnon . 2022


compartilhando todas as nuances situacionais. O veis, o exagero na dosagem e o desdenho aliado ao
foco deste líder está nas pessoas e, como consequên- desprezo com a inteligência e bom senso dos liderados
cia natural, isto se refletirá no desempenho de todos decerto o levarão à ruína.
que prontamente reconhecerão o seu comprometi-
mento. Este líder se sustenta e permanece servindo
de paradigma comportamental. LIDERANÇA E A PANDEMIA
Caso o líder não tenha compromissos valorosos e DE COVID-19
aja segundo seus próprios interesses, escamoteando-
-os como usualmente acontece, ele poderá se valer do “Existe um momento em que você deve es-
medo e da insegurança dos liderados para se impor colher entre ficar em silêncio ou ficar de pé”.
como detentor da solução para todas aquelas mazelas, Malala Yousafzai
pois os membros do grupo, ansiando desesperadamen-
te por uma saída que os leve a uma situação melhor,
poderão renunciar a alguns dos seus direitos. Neste Surpreendentemente em pleno século XXI, um
caso, o líder não realiza seus desejos fundamentado momento sem igual no desenvolvimento humano em
tão somente na solução dos problemas das pessoas, todos os campos do conhecimento, quando já ousá-
mas sim interessado especialmente em manipular suas vamos agendar nossa viagem tripulada para o planeta
fraquezas, debilidades e temores. Esta modalidade de Marte, nos encontramos diante de uma situação limite
líder poderá até obter sucesso, porém este tipo de ma- – uma crise pandêmica de proporções inimagináveis,
nobra terá vida curta, esvaindo-se imediatamente após uma verdadeira ficção concretizada diante dos nossos
o desvanecer da crise. olhos incrédulos.
Já foi exaustivamente ressaltado que uma crise gera Qualquer estudante de história geral já deve ter se
condições que favorecem o exercício da liderança, seja defrontado com informações sobre pandemias arra-
qual for a modalidade adotada pelo líder. Aquele do sadoras (Gripe Espanhola, Peste Negra etc.), que dei-
bem, sem comprometer o cumprimento da missão, xaram a humanidade refém de “simpatias”, curandei-
oferece um ombro amigo e caminha junto com seus rismos e milagres na insana busca pela sobrevivência.
liderados que se sentem valorizados. O desvinculado Infelizmente e ironicamente, constatamos atemoriza-
de balizas éticas, por outro lado, também cumpre com dos que ainda não estamos tão distantes das caver-
suas obrigações, contudo, usa as pessoas apenas como nas como imaginávamos. Voltamos a nos isolar, nos
um meio para atingir os seus intentos e naturalmente evitar, nos discriminar e, permeando tudo isto, chegou
não se perpetua. o medo, a angústia, a histeria, e por fim a violência,
Será que uma débil liderança ou uma desassociada inclusive contra nós próprios.
de valores virtuosos poderá gerar uma crise? A respos- Não nos vemos diante de uma novidade propria-
ta afirmativa a este questionamento é incontestável, mente dita, mas sim do ressuscitar de um fantasma
basta analisar as grandes comoções que assolaram a que já julgávamos morto e sepultado – uma pandemia.
humanidade nos últimos séculos, que tropeçaremos Uma crise de proporções mundiais, com a qual não
em um sem número de evidências irrefutáveis. estamos conseguindo lidar e muito menos debelar fa-
Sendo assim, não basta ser diligente e oportunista, cilmente – um verdadeiro anátema.
apenas se valendo das crises para impor suas ideias Como estão reagindo as lideranças diante deste
e persuadir ou manipular seus seguidores a agirem quadro? Exatamente da mesma maneira como imagi-
segundo seus próprios interesses; faz-se necessário návamos! Algumas verdadeiramente sensibilizadas se
ser diligente e sábio ao dosar convenientemente suas entregam em apoiar seus liderados, buscando soluções
ações, sejam elas quais forem. não só sanitárias, porém mais amplas, visando garan-
Se o líder for bem-intencionado, não deverá ser tir seus sustentos e equilíbrio emocional de forma du-
econômico, mas sim pródigo em empatia e solidarie- radoura. Estes líderes não procuram se sustentar prio-
dade; outrossim, caso suas intenções sejam questioná- rizando seus interesses. Suas ações intentam afastar o

Revista de Villegagnon . 2022 7


medo, o pânico e a possível geração de violência, que estar diluído no bando do que individualizado sob
sói acontecer nestes contextos, notadamente quando os holofotes!
existem alguns indivíduos egoístas e oportunistas de- A filósofa judia-alemã Hannah Arendt, em seu li-
fensores de projetos escusos, travestidos de “bons mo- vro “Eichmann em Jerusalém”, afirma categoricamen-
ços”, apresentando alternativas reducionistas e, por- te que, quando o Homem não pensa, ele se robotiza e
tanto, inadequadas a médio e longo prazo. é capaz de se omitir e até fazer qualquer coisa, bana-
Doutra forma, a pandemia abriu espaço também lizando o mal.
para aqueles que na surdina lideram priorizando seus Como então equacionar essa questão? Fica patente
interesses, descompromissados com as pessoas. Estes que não existe uma solução simples e com resultados
agem como catalizadores do desespero e do estado imediatos, pois seria uma quimera, mesmo porque
calamitoso que comumente grassa nestas situações. qualquer linha de ação a ser analisada passa pela ne-
Produzem e, até mesmo, incentivam as consequências cessidade de conscientizar as pessoas a serem críticas e
mais pessimistas e nefastas, fermentando proposital- não se iludirem ingenuamente sob a influência de um
mente a catástrofe, para fragilizar seus liderados e re- líder, e isto requer tempo e investimento na educação.
ceberem o salvo conduto para agirem como bem lhes Por outro lado, a inação sustenta e, até mesmo, re-
convier. A médio prazo, quando a realidade escanca- força este comportamento condescendente. Logo, en-
rar a verdade, estes arautos do infortúnio e desespe- quanto se inicia a adoção de uma solução eficaz ideal,
rança suscitarão a ira das pessoas outrora enganadas; porém de longa maturação, deve-se empreender um
e aí sim, estaremos diante de uma crise autogestada de minucioso processo de informação, a fim de efetuar de
grandes proporções. pronto, no mínimo, um despertamento para os perigos
envolvidos nesta questão.

CORRESPONSABILIDADE
DOS LIDERADOS CONSIDERAÇÕES FINAIS
O viver em coletividade agrega uma série incontá-
“Todos somos responsáveis por tudo, peran- vel de benefícios, malgrado exigir em contraposição
te todos”. a concessão de parte da liberdade dos seus membros
ao grupo, o que pressupõe uma sujeição espontânea
Feodor Dostoievski dos seus integrantes a um determinado indivíduo que
o represente – o líder, um personagem essencial para
Quase sempre é imputada aos líderes a respon- sobrevivência do coletivo, que sintetiza os anseios do
sabilidade total pelas consequências dos atos prati- grupo ou a ele impõe suas próprias pretensões, por
cados pelo grupo. Não obstante isto acontecer e ser persuasão ou outros artifícios.
em parte veraz, não se pode negligenciar a parcela de Liderar não é fácil! Este processo pode se dar
comprometimento dos liderados. Em sendo omissos de maneira menos árdua para aquelas pessoas con-
e ineptos ao se deixarem levar impensadamente se- templadas naturalmente por alguns dons especiais;
gundo as vontades e devaneios do líder, contribuem ou de forma exaustiva, como acontece com a maio-
significativamente para o desenlace dos aconteci- ria. Todavia, é notório que num caso ou no outro o
mentos. O Dalai Lama ratifica a citação do eminente seu propósito não está necessariamente vinculado
romancista e pensador Dostoievski dizendo que “A a valores virtuosos, mas sim à consumação dos de-
responsabilidade de todos é o único caminho para a sejos do grupo, sejam quais forem, cristalizados na
sobrevivência humana”. figura do líder.
Quando as pessoas estão sob uma liderança for- A liderança é situacional! Não há possibilidade de
te, têm tendência a se acomodarem e se deixarem desvinculá-la dos contextos, a não ser que o líder cor-
conduzir, pois se desoneram do peso das respon- teje intencionalmente o fracasso, ou seja um desprepa-
sabilidades. É muito mais conveniente e cômodo rado, o que é uma tolice ou uma inépcia.

8 Revista de Villegagnon . 2022


Em situações de crise, quando todos estão debilita- pedagógico seria adequada, exequível e aceitável, por
dos e instáveis, são outorgados aos líderes, até mesmo permitir desencadear o despertamento de um senso
inconscientemente, direitos para agirem com maior li- crítico reflexivo nas pessoas a respeito das consequên-
cenciosidade, o que pode provocar a adoção de linhas cias comportamentais decorrentes dos relacionamen-
de ação dos mais variáveis matizes, estendendo-se de tos humanos, o que certamente minoraria as insufici-
uma conduta proba e honrada, que agrega e edifica; ências geradoras ou instigadoras dessas crises.
até um comportamento aviltante e egoísta, que desa-
grega e arruína, causando o surgimento de uma crise
ainda mais gravosa. Esta “carta em branco” concedi-
REFERÊNCIAS
da ao líder pode, sem dúvida, acarretar consequências ALIGHIERI, Dante. Disponível em: https://frasescurtas.
de toda ordem, dependendo, é claro, dos princípios com.br/2018/06/frases-inferno.html. Acesso em: 03 fev.
éticos e morais que alicerçam o seu caráter, arrastando 2022.
a todos para o sucesso ou fracasso. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato
Atualmente, a pandemia de COVID-19 nos defron- sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das
tou com uma crise sanitária de proporções inimaginá- Letras, 1999.
veis, precisamente num momento que nos julgávamos
CHURCHILL, Winston. Disponível em: https://verbub.
relativamente capazes de encarar e debelar a maioria
com/i/191237/la-principal-diferencia-entre-los-humanos-y-
das moléstias num curto espaço de tempo; e isto não
los-animales-es-que-los/. Acesso em: 03 fev. 2022.
está acontecendo! Esta situação acaba gerando um
desequilíbrio emocional generalizado, permitindo aos CROOK, James. Disponível em: https://mundodasmensagens.
líderes terem ainda maior visibilidade. com/frases/K4kaZG7rq/. Acesso em: 03 fev. 2022.

Apesar de os líderes serem os maiores responsáveis DOSTOIEVSKI, Feodor. Disponível em: https://pensador.
pelos resultados alcançados pelo grupo, eles não de- com/frases/MTEzNDc/. Acesso em 03 fev. 2022.
vem ser sempre apontados como sendo os únicos. O
FORD, Henry. Disponível em: https://sliderplayer.com.br/
entusiasmo, a motivação, assim como a passividade e
slide/50180/. Acesso em: 03 fev. 2022.
a omissão dos liderados de fato estimulam e impelem
o líder e, consequentemente, todo o grupo para o su- LAMA, Dalai. Disponível em: https://pensador.com/frase/
cesso ou o fracasso. NzQ4MDMy/. Acesso em: 03 fev. 2022.

Não resta a menor dúvida de que a adoção imedia- YOUSAFZAI, Malala. Disponível em: https://benefi.com.br/
ta de um processo informativo preventivo de caráter frases-de-liderança/. Acesso em: 03 fev. 2022.

Revista de Villegagnon . 2022 9


O LIVRETO “NOSSA VOGA” NA
ESCOLA NAVAL: UMA INTRODUÇÃO
ÀS TRADIÇÕES E AOS VALORES PARA
OS JOVENS DA MARINHA

Capitão de Mar e Guerra (RM1-IM)


Hercules Guimarães Honorato1

INTRODUÇÃO sas. As organizações podem ser influenciadas e impacta-


das pelas constantes mudanças que ocorrem na socieda-
“Mocidade a esplender, alma ridente e fran-
de, essa hipótese pode fazer com que elas tenham que se
ca, ao toque de ‘reunir’ toda a Escola se ali-
adaptar rapidamente a essas transformações.
nha. Ei-la: uniforme azul, boné com capa
branca ... rapaziada de Escola é o porvir da Paula et al. (2011) asseveram que a organização
Marinha!” (PRADO MAIA, poema “Escola formal, com estrutura de cargos e funções organizadas,
Naval”). vai sofrendo modificações e ajustes no fazer as coisas,
durante os anos de sua existência, surgindo uma cul-
As rápidas mudanças que estamos presenciando tura que vai se disseminando entre os seus integrantes
no século XXI, com o avanço sem precedentes das e incorporando gradativamente à organização, o que a
Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação torna distinta das demais. Se formos analisar as insti-
onde o click de um comando em nossos modernos tuições permanentes e regulares como as Forças Arma-
smartphones pode nos dar acesso às relações sociais das, teríamos que tratar sobre um outro aspecto, visto
que cultivamos ou às notícias instantâneas que nos que, como previsto em nossa Constituição Federal, em
assolam sem nem questionarmos. Se continuarmos a seu art. 142, e no Estatuto dos Militares, em seu art.
pensar sob os aspectos das transformações sociais que 2º, elas têm por base a hierarquia e a disciplina, o que
vemos e de que ainda vamos participar, deparamo-nos poderá ou não existir nas empresas.
com mudanças reais e sentidas nas gerações que estão O objetivo deste ar-
a chegar e a crescer e as que estão por vir, sem nos tigo, portanto, é apre-
lembrarmos das que já passaram. sentar o tradicional
Caminhando pelos novos e interessantes termos cria- livreto “Nossa Voga”,
dos para uma possível explicação das gerações, como: que, desde a década de
veteranos ou tradicionais, “Baby Boomers”, X, Y, Z ou 1950, procura dissipar
Alfa, em especial para o mercado de trabalho, o vocábu- as dúvidas naturais
Figura 1. Chegada dos novos
lo “gerações” tem despertado curiosidade em função da que surgem no início Aspirantes (1950)
quantidade de jovens que estão se inserindo nas empre- da carreira dos jovens Fonte: Acervo da DPHDM.
Aspirantes, quando de
1
Professor-pesquisador do Instituto Naval de Pós-graduação. sua formação inicial na Escola Naval (EN). O Capitão de
E-mail: hercules.guimaraes@marinha.mil.br. Corveta Carlos Borba, comandante do Corpo de Alunos

10 Revista de Villegagnon . 2022


à época, externou que o livreto significava “Assimilar ra- Em março de 1915, o Almirante Henrique Aris-
pidamente os costumes e as tradições da Escola Naval tides Guilhem, apresentou o seu livreto intitulado
bem como suas normas e regulamentos constitui dever “Conselhos aos jovens officiaes”, que tinha como ob-
dos Aspirantes que tiveram a honra de nela ingressar” jetivo proporcionar aos jovens oficiais, que não estão
(ESCOLA NAVAL, 1955, p. 6, grifo nosso). mais em formação, o conhecimento de alguns detalhes
Esta pesquisa é de abrangência qualitativa e o cami- da vida prática. O autor inicia o seu texto com o se-
nhar deste estudo contou com pesquisas documental e guinte conselho: “Dedica-te com ardente enthusiamo
bibliográfica como técnicas exploratórias iniciais. No á tua profissão e a ella empenha toda a tua energia e
caso em estudo, é a apresentação de valores e tradições toda a tua actividade” (GUILHEM, 1915, p.7). Um
que permeiam a formação do oficial da MB, foco na conselho que perpassa qualquer época e geração nos é
EN. Foi realizada como coleta de dados, após leitura do apresentado e deveria estar sempre em nossas mentes:
material recuperado, e uma entrevista semiestruturada “Educa-te para seres o verdadeiro typo do official de
com um dos dois autores do livreto “Nossa Voga”, com marinha: espirito educado, fino, energico e perseve-
um roteiro inicial constando de três perguntas abertas rante” (p.10).
e abrangentes. Os conteúdos apresentados em citações “A marinha é a chave da nossa riqueza, prosperida-
diretas não foram descaracterizados, foi decidido man- de e defesa [...] Quem veste a farda da Marinha nunca
ter a ortografia do início do século XX. está só! Tem virtualmente atrás de si tôda a sua classe
A justificativa para esta pesquisa baseia-se na in- e as glórias inacessíveis de suas tradições” (VILLAR,
tenção do autor em destacar que o início de uma car- 1952, p.10-13, grifo nosso), com essas frases retiradas
reira, a das armas por jovens estudantes, tem que estar do livreto, de 1940 e que foi reeditado em 1952, “Faze
relacionada com uma formação estruturante de base, assim... breviário moral e cívico”, do Contra-Almiran-
independente da geração a que pertence. Desde a sua te Frederico Villar, que dava as boas-vindas aos novos
origem, em 1782, na Academia Real de Guardas-Ma- oficiais da reserva naval. A palavra “virtualmente”
rinha, com uma formação acadêmica e militar, mesmo grifada, que atualmente teria um significado ligado à
durante sua transferência para o Brasil com a Corte internet, tinha um significado de potenciar todo um
Portuguesa, em 1808, a EN procura apregoar as tra- coletivo que se constrói, independentemente de época,
dições e os valores, como descrito na primeira edição nas tradições dos nossos antepassados que forjaram a
do livreto, de 1954, onde a breve história é concluída Marinha do presente.
com a seguinte frase: “Nossa Escola é a descendente Neste mesmo livro, é apresentado o “caráter do
diréta da de Sagres, berço do ensino náutico; são cinco marinheiro”, onde podemos destacar os seus atributos
séculos de trabalhos, dificuldades vencidas, e progres- principais, que se assemelham em grande medida aos
so constante” (ESCOLA NAVAL, 1954, p.22). 16 valores que são apresentados na Rosa das Virtudes,
como: lealdade, iniciativa, espírito de sacrifício, zelo,
coragem, fidelidade, fogo sagrado e decisão. Outras
CONSIDERAÇÕES INICIAIS virtudes como sinceridade, critério, confiança em si,
A história de uma instituição centenária pode e discrição e tato também são conceituados. Importan-
deve servir de alerta para a continuidade de uma for- te destacar que, independentemente dos valores des-
mação acadêmica e militar de qualidade, sem serem critos na publicação, o autor afirma que o oficial da
esquecidos os valores e as tradições passadas, que vão Marinha não deve esquecer que: “[...] tu representas a
perpetuar nas gerações futuras de novos marinheiros. Nação Brasileira e precisa fazê-lo com dignidade e bri-
O Almirante Prado Maia, em seu poema epigrafado lho. Todos êsses atos de ‘cortezia’ são ‘oficiais’ e obri-
neste artigo, deixa-nos a certeza de uma mocidade que gatórios; dêles ninguém se poderá eximir” (VILLAR,
possui uma alma que expressa a alegria e que se mos- 1952, p. 40, grifo do autor). Duas virtudes que foram
tra viva e vigorosa, jovens que, em seu tradicional uni- consideradas gêmeas pelo autor são o patriotismo e o
forme azul e boné de capa branca, são e serão sempre espírito de sacrifício, que devem ser constantemente
o futuro de uma grande Marinha. desenvolvidas até se tornarem naturais.

Revista de Villegagnon . 2022 11


Em pequeno texto escrito à mão e sem uma data O “NOSSA VOGA” ONTEM E HOJE
de lançamento, “Tudo o que você queria saber sobre
O início foi em 1953, quando os Aspirantes Go-
a Escola: mas não ‘queria’ perguntar”, e que foi distri-
thardo e Vilhena apresentaram a necessidade de distri-
buído aos Aspirantes, sem autoria e uma data precisa.
buir uma apostila para os calouros, uma espécie de bo-
Os seus autores apresentam as principais informações
as-vindas e um dissipador de dúvidas iniciais na EN.
aos calouros, como a recreação e esportes, a vida so-
Nas primeiras palavras do diretor à época, Contra-
cial, a regata Escola Naval, os grêmios disponíveis
-Almirante Ary dos Santos Rongel, “Aspirante! Você
para as poucas, porém importantes horas de lazer, o
que deseja ser um oficial brilhante e desempenado, leia
bar e o mais interessante, o salão de recreio com o jogo
êste livreto com atenção e siga a bôa voga dos crentes
de sinuca e pingue-pongue, embora esta última afir-
e entusiastas” (ESCOLA NAVAL, 1955, p.4, grifo do
mativa não se aplique aos novos aspirantes. Destaque
autor). As duas palavras grifadas, “desempenado” e
também ao incentivo da equipe de vela, um esporte
“voga”, destacam o que se desejava de um oficial em
tipicamente marinheiro.
formação, que ele fosse de porte esbelto, airoso e que
Em uma publicação mais recen- seguisse uma derrota já antes realizada em um roteiro
te, de 2010, o Almirante José Júlio de tradições e valores por aqueles que os antecederam.
de Moura Netto, antigo Comandan-
As duas edições iniciais, a primeira de 1954 e a
te da Marinha, nos apresenta o li-
segunda, de 1955, com pequenos acréscimos e su-
vreto “Conselhos aos jovens da Ma-
pressões que visaram a sua atualização, tiveram boa
rinha”, como mostrado na figura 2.
aceitação e a sua utilidade reconhecida para aqueles
O tema destacado na publicação foi Figura 2.
Conselhos que estão a iniciar o curso da EN. Uma das alterações
o da liderança, argumentando que aos Jovens da verificadas foi em relação ao curso regular e à distin-
o oficial jamais será um líder se os Marinha ção entre a formação do Corpo da Armada, de quatro
nossos subordinados só nos obede- Fonte: Acervo anos, e dos demais Corpos, Intendentes e Fuzileiros
da DPHDM.
cem para não serem punidos na lei. Navais, de três anos.
Devemos gerar confiança e sermos o exemplo daqui-
Em ambas as edições iniciais, apenas a figura da
lo que pregamos, visto que o caráter de um homem
Rosa das Virtudes é mostrada na contracapa, sem ex-
se desvela em todas as suas ações. “Nunca dêem uma
por os conceitos envolvidos nos seus 16 valores. Po-
ordem que não possa ser cumprida; nunca dêem uma
rém, na primeira edição, existe uma referência a duas
ordem a não ser que realmente tenham a intenção de
importantes ações que não deveriam ser usadas pelos
vê-la executada” (BRASIL, 2010, p. 18).
futuros oficiais, a da “deslealdade” e a de “faltar a
Podemos afirmar que os valores apresentados es- verdade”. É destacado que sempre se deve ser respon-
tão relacionados ao nível individual do homem, liga- sável por seus atos, inclusive na própria informação
dos também à construção desse sujeito social e militar. que será prestada em uma parte de ocorrência, pois
Os valores institucionais dizem respeito ao comporta- “FALTAR COM A VERDADE é uma contravenção
mento desejado da pessoa em relação ao seu ambiente grave (ESCOLA NAVAL, 1955, p.103).
de trabalho, como motivador de seu relacionamento
com as tradições de sua organização, comunicados e
transmitidos entre seus membros, sem deixar de pos-
suir certa correspondência com os valores pessoais e
geracionais. A partir desse ponto, os valores laborais e
funcionais aparecem, ou seja, os militares apresentam
uma estrutura geral inicial de valores, disseminadas
no início de sua formação e, a partir dela, estruturas Figura 3.
Nossa Voga
específicas são construídas para contextos específicos Figura 4. Turma de 1953 – Almoço dos
Fonte:
e significativos de sua vida, com a hierarquização de Biblioteca da 100 dias
seus valores apreendidos. EN. Fonte: Acervo da DPHDM.

12 Revista de Villegagnon . 2022


Os livretos originais contam com diversas seções sobre as Forças Armadas e sua missão constitucional.
que informam aos calouros sobre o que é a instituição, Outra diferença foi a apresentação, na seção “Caráter
sua formação acadêmica e física, até dos momentos de Marinheiro”, dos 16 conceitos dos valores integrantes
recreação. Assim, as seguintes seções, além do breve his- da Rosa das Virtudes.
tórico da EN, são apresentadas em especial: a discipli- Atualmente, não existe mais uma edição impressa
na, a honra, a cola, o exemplo, o coleguismo, a família, e distribuída, sendo disponibilizado um PDF para ser
o serviço, hinos e canções, a vida escolar, aulas, exercí- baixado do sítio da instituição, cuja edição é datada
cios práticos, recreação, estudo, viagem de instrução, de 2021. Na seção “Aos Novos Aspirantes”, uma di-
festividades, parte de ocorrência, contravenções, uso do ferença na atualização das edições de 2007 e a de 2021
telefone, os Grêmios, a galera e a chalana, o oficialato foi a inclusão das mulheres, que a partir de 1980 pas-
e o sonhado almoço dos 100 dias. Em relação à seção saram a constituir a força de trabalho da MB como
dedicada aos calouros, destaca-se claramente, em tom oficiais e praças e, em 2014, também como Aspirantes
jocoso, que o calouro é um ser “‘assextavado’” a quem da EN. E assim: “Escolher ser Oficial de Marinha é es-
pitorescamente se costuma afirmar, ‘por definição, todo colher comandar homens e mulheres, em presença da
calouro é burro’ e que ‘nenhum veterano foi calouro’” infinidade do céu e sobre a imensidão do mar, para o
(ESCOLA NAVAL, 1955, p.87). bem de nossa Marinha e para a defesa de nosso País”
A última edição impressa, atuali- (ESCOLA NAVAL, 2021, p. 4, grifo nosso).
zada e distribuída do livreto foi a de Uma outra ampliação considerada nos livretos foi
2007, onde pudemos constatar que a inclusão da seção “As Águas Jurisdicionais Brasi-
logo no terceiro parágrafo da primeira leiras”, onde é apresentada a Amazônia Azul. É um
seção, intitulada “aos novos aspiran- ponto que julgamos importante em relação ao tema
tes”, é destacado que: “A carreira es- deste estudo, ou seja, os valores e as gerações, em que
colhida é das mais fascinantes. Acentua Figura 5. também é destacado que algumas coisas não mudam,
Nossa Voga
o amor pela pátria e ensina o respeito como o respeito mútuo a bordo e a solidariedade na
Fonte: O
e a admiração pelo mar. [...] A força de autor. carreira, tudo com uma sólida formação profissional
vontade e o espírito de sacrifício serão que recebe da MB.
as principais armas de que irás dispor” (ESCOLA NA-
Nas leituras comparativas das seções das di-
VAL, 2007, p.5).
versas edições aqui retratadas, podemos verificar
Na apresentação desse livreto em questão, é discu- que houve uma redução sentida nas informações
tido que o seu surgimento se deu em 1954, mas que gerais aos novos Aspirantes, como a retirada dos
ocorreu um período sem ser publicado e distribuído itens: parte de ocorrência, contravenções, citações
durante a década de sessenta, sem maiores detalhes, especiais, prêmios, aulas, estudos, refeições, visitas,
retornando no início dos anos setenta, “[...] para não licenciamentos, representação, apresentação, bar,
mais se ausentar na formação do Aspirante” (ESCO- barbearia, lavanderia, e o que julgamos de suma im-
LA NAVAL, 2007, p.7). portância, a cola. Estamos em um século da comu-
As informações que constituem os capítulos não nicação instantânea, do “dr. Google”, que se soma,
se diferem em grande medida do livreto de 1954/55, em 2014, à entrada no currículo da EN do Trabalho
por isso mesmo, ao final da apresentação, é destacado de Conclusão de Curso, onde o problema ético na
que “Por este motivo, a leitura atenta e minuciosa da pesquisa, ou seja, a questão do plágio e da cola digi-
NOSSA VOGA determinará, com certeza, uma adap- tal, entra em consonância com a formação acadêmi-
tação mais fácil e amena à vida na Escola Naval e às ca e profissional do futuro oficial.
tradições marinheiras” (ESCOLA NAVAL, 2007, p.7).
Podemos apresentar que o grande diferencial da
primeira e da última edição impressa e distribuída em
ANÁLISE E DISCUSSÃO
formato de livreto foi a apresentação do que venha a A partir desse ponto, vamos descrever o livreto
ser Poder Naval e o art. 142 da nossa Carta Magna “Nossa Voga” inicialmente nas palavras do Almirante

Revista de Villegagnon . 2022 13


Carlos Augusto Vilhena de Magalhães Cunha, nosso A terceira pergunta, que foi prontamente recha-
entrevistado, autor em parceria com o saudoso Almi- çada pelo entrevistado, foi se a “Revolta dos Anjos”,
rante Gothardo de Miranda e Silva, à época, década de ocorrida em 1948 na EN, tinha relação com o lan-
1953, Aspirantes veteranos e encarregados da instru- çamento do livreto. Ele afirmou que não tinha nada
ção militar dos calouros, que apresentaram a ideia, de a ver, visto que o reflexo dos eventos acontecidos
imediato aceita pelo comandante da 1a Cia do Corpo anteriormente não se sentia pesar na Escola quando
de Alunos, Capitão-Tenente Telmo Becker Reifschnei- começou sua formação em 1950. Podemos destacar,
der, que também galgou o generalato, de elaborar uma nas palavras do comandante do Corpo de Alunos,
apostila onde pudessem “dissipar as dúvidas naturais à época Capitão de Corveta Carlos Borba, que “O
que surgem no início da carreira” (ESCOLA NAVAL, trabalho é grande, sendo primordial que desenvol-
1954, p.5). vam confiança em si próprios, iniciativa, integridade
O Almirante Vilhena respondeu a três pergun- moral e obediência leal às ordens e regulamentos”
tas abertas que fizemos em nossa entrevista, sendo (ESCOLA NAVAL, 1955, p.7).
a primeira a motivação para a elaboração do livre- Continuando a análise dos livretos e nas palavras
to “Nossa Voga”. A resposta foi direta, deixando de um ex-diretor da Escola, dirigidas em 1951 aos
claro que foi o de dar as boas-vindas aos novos alunos do então curso prévio: “Começais hoje uma
Aspirantes, mas com algum documento que dimi- vida nova. [...] Sentireis a honra de vestir o uniforme
nuísse suas dúvidas iniciais, com a breve história de uma classe que tem por missão a defesa da honra e
da Escola Naval, desde a sua criação, transferência da independência da Nação e que sempre voltou com
e independência do Brasil, e outros temas julga- glória do campo de batalha”. (ESCOLA NAVAL,
dos interessantes, inclusive tratando do serviço, da 1955, p.38-39).
cola, dos nossos heróis, dos hinos e canções, das O último número impresso, de 2007, em sua parte
aulas, da educação física. inicial, apresenta também o boas-vindas aos novos
O Almirante Vilhena fez questão de destacar que o Aspirantes, destacando “[...] que foram selecionados
mentor e quem organizou o livreto foi o CT Reifsch- entre os melhores de tua geração para fazer parte de
neider, que com sua batuta a apostila desejada virou uma das mais tradicionais instituições do Brasil – a
o reconhecido “Nossa Voga”. Outra informação im- Escola Naval” (ESCOLA NAVAL, 2007, p.5, grifo
portante foi a de que o Almirante Gothardo foi quem nosso). Vale ressaltar que é a casa em que agora irão
elaborou a última seção chamada de “Você sabia?”. morar, com uma formação militar, acadêmica e tam-
A seção, em síntese, tem 62 informações importantes bém física. Continuando o tema, é afirmado que a
e de caráter marinheiro e histórico para os calouros, carreira escolhida é de amor à Pátria e o respeito e
como por exemplo logo em seu item 1, apresenta admiração pelo mar.
“Que TAMANDARÉ é o Patrono da Armada Brasi- O termo que é desvelado no capítulo de “Apre-
leira”, ou no no 43, “que após o arriar da bandeira sentação” é o conceito de “voga”, que é empregado
Nacional é costume dar ‘boa-noite’ aos mais antigos nas atividades de remo, significando a cadência que
que encontrar”, terminado com a frase “TUDO PELA deve ser dada por todos nas remadas. Assim apresen-
PÁTRIA” em caixa alta e bem destacada. (ESCOLA tado e contextualizado que surge a finalidade princi-
NAVAL, 1955, p.151). pal do pequeno livro, ou seja: “[...] dar informações
A segunda questão da entrevista foi a curiosidade importantes que contribuam para a formação daque-
que existe do aparecimento da “Rosa das Virtudes” les que se iniciam na carreira naval, bem como au-
na primeira página do livreto. A resposta foi simples, xiliar o novo aspirante adaptar-se à vida, à cadência
ele não sabia, mas creditou a ação do CT Reifschnei- da Escola naval, enfim, à NOSSA VOGA” (ESCOLA
der como seu organizador. O importante e que pode- NAVAL, 2007, p.7).
mos retirar da figura disposta, sem seus conceitos, é Nesta versão atualizada, de 2007, foi tratado do
que eles sejam “os nossos rumos, Escola Naval, Ma- tema do Poder Naval, onde é relembrado que para o
rinha do Brasil”. Brasil “[...] o uso do mar se constitui em uma opção

14 Revista de Villegagnon . 2022


mandatória para a concretização dos anseios de desen- forme nossas considerações iniciais, que navegaram
volvimento nacional e afirmação político-econômica pela história das publicações que foram apresentadas
no cenário mundial” (p.12). Tal tema não foi discuti- desde os jovens oficiais até o manuscrito para os in-
do na versão original, de 1954/55, sendo um acrésci- cautos calouros, podemos constatar que a fortaleza do
mo que foi julgado necessário para os futuros oficiais homem do mar está em ser um líder para os seus pares
da Marinha. Como a nossa Constituição Federal é de e subordinados. Como três marcações na carta deter-
1988, foi somada também a missão constitucional das minam a certeza de um ponto, podemos assegurar que
Forças Armadas, deixando claro que a “[...] hierar- a tradição, os valores e a liderança determinam em
quia é um dos sustentáculos da Marinha” (ESCOLA grande medida uma formação de qualidade dos nossos
NAVAL, 2007, p.13). jovens oficiais.
Atualmente, não temos mais o livreto sendo im- A partir da comparação nos textos de 1954,
presso e distribuído gratuitamente aos novos ca- passando por 2007 e o atualmente disponibilizado
louros, como já informado em seção anterior. Foi para baixar, de 2021, podemos verificar que certos
disponibilizado um arquivo em PDF, cujo título pontos destacados na edição original poderiam ser
se mantém “Nossa Voga”, uma publicação desti- avaliados para retornarem, como exemplo a seção
nada aos Aspirantes, edição de 2021. A parte que “Você sabia...”, atualizada logicamente com algu-
introduz as boas-vindas se mantém a mesma, mas mas informações importantes vivenciadas na atuali-
foi acrescida uma seção específica sobre o tema da dade e que devem ser de conhecimento de todos os
“Amazônia Azul”. O tema do Poder Naval é manti- oficiais. Não poderemos esquecer os hinos, a histó-
do, o mesmo referente à missão constitucional, em rias das mulheres na MB e na Escola Naval, entre
que é reforçado que a disciplina e a hierarquia são outros temas de domínio geral e contínuo, que per-
os sustentáculos da Força. passam o tempo, caminhando pari passu na história
de uma forte Nação.
Os conceitos dos valores cons-
tantes da Rosa das Virtudes são ex- Os nossos heróis sempre continuarão a ser as
postos. Importante destacar que é nossas referências como conquistadores do reconhe-
apresentada como sua origem o ano cimento pelo legado que deixaram de amor à Pátria,
de 1954, quando da publicação da com o sacrifício da própria vida. Assim, seria inte-
primeira edição do “Nossa Voga”, ressante, em uma nova versão, a inclusão, na seção
Figura 6.
em que verificamos anteriormen- “Nossa Voga” “O Nosso Passado”, do herói Jerônimo de Albu-
te ser apresentada apenas a figura em PDF querque Maranhão, que foi o primeiro comandante
em si. Em consonância com o obje- Fonte: EN de uma força naval brasileira, considerado o herói
(2021). da Batalha de Guaxendura, de 19 de novembro de
to deste estudo, a atual publicação
afirma-nos que “[...] em que pese a evolução dos 1614, que tem o seu busto, desde 2015, à frente do
tempos, mantém-se inalterada, em consequência de mastro principal da Escola Naval. Como questão
seus conceitos exprimirem as verdadeiras qualidades de reconhecimento da Marinha, a segunda fragata
dos homens e mulheres do mar, bem como tudo aqui- Classe “Tamandaré”, a F-36, será denominada “Je-
lo que a nossa Marinha espera da formação moral e rônimo de Albuquerque”.
profissional de seus Aspirantes” (ESCOLA NAVAL, Acreditamos que a primeira impressão é a que
2021, p.22). fica. Por isso mesmo, sentimos a necessidade de es-
crever sobre um livreto que há quase 70 anos dá as
boas-vindas aos novos Aspirantes da Escola Naval.
À GUISA DE CONCLUSÃO Acreditamos que tanto a primeira edição quanto a
O livreto “Nossa Voga” foi a forma que encon- versão atual em PDF cumprem, em grande medida,
traram, em meados do século passado, de dar boas- para o que se deseja como primeiro contato. Porém,
vindas aos novos estudantes que adentravam o solo seria interessante se pensar em uma publicação im-
sagrado de Villegagnon, os conhecidos calouros. Con- pressa, em formato de livreto, que tivesse, além de

Revista de Villegagnon . 2022 15


algumas informações iniciais para quem chega à REFERÊNCIAS
Marinha, independentemente do seu centro de for-
BRASIL. Marinha do Brasil. Conselho aos jovens da
mação, mas que fosse uma espécie de referência a
Marinha. Biblioteca da Marinha: Rio de Janeiro, 2010.
ser consultada durante toda a carreira, bem sinté-
tica e atual. ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 1954.

Ser tradicional não é ser antigo, velho; interiorizar ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 1955.
os valores na formação não para na geração, eles são
ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 2007.
perenes e estruturantes, faz parte do DNA do mari-
nheiro. “Nossa Voga” (1955, p.145) nos faz refletir, ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 2021.

na seção VOCÊ SABIA? Item “38 – Que a atitude que GUILHEM, H. A. Conselhos aos jovens officiaes. Rio de
um indivíduo apresenta é um espelho no qual se pode Janeiro: Imprensa Naval, 1915.
ver refletido o seu interior”.
PAULA, P. de. et al. Clima e cultura organizacional em um
organização pública. Gestão & Regionalidade, v.27, n.81,
AGRADECIMENTOS p.59-73, set./dez. 2011. Disponível em: https://seer.uscs.edu.
br/index.php/revista_gestao/article/view/1279. Acesso em:
Aos CMG Helder Velloso Costa e Ronald dos San-
21 jul. 2022.
tos Santiago, da bibliotecária Marcia Prestes Taft e SO
Marcos Cavalcanti Ferreira da DPHDM, e do apoio TUDO o que você queria saber sobre a Escola: mas não

recebido das bibliotecas da DPHDM e da Escola Na- “queria” perguntar. 19??.

val. Todos foram importantes no levantamento biblio- VILLAR, F. Faze assim... breviário moral e cívico. 2. ed. Rio
gráfico e documental deste estudo. de Janeiro: Saturno, 1952.

16 Revista de Villegagnon . 2022


A ORIGEM DA ROSA DAS VIRTUDES

Capitão de Mar e Guerra (Ref.)


Pedro Gomes dos Santos Filho1

INTRODUÇÃO A PESQUISA
De acordo com o que preconiza a Doutrina de Li- A pesquisa foi realizada lançando mão do excelen-
derança da Marinha do Brasil (EMA-137), os “valores te acervo histórico existente na biblioteca da Escola
da Marinha” são traduzidos por meio do conjunto de Naval, o que permitiu chegar a bom termo no propósi-
princípios e costumes expressos na simbólica figura da to pretendido. É interessante constatar desde logo que,
Rosa das Virtudes. É contumaz encontrarmos nas Or- ao final do trabalho, veremos que a inspiração para a
ganizações Militares da MB esse importante símbolo, concepção da Rosa das Virtudes foi um Oficial de Ma-
que sintetiza os referenciais sobre como devem proce- rinha, vulto da História Naval brasileira: o Almirante
der aqueles que servem à Marinha do Brasil. Luiz Felipe de Saldanha da Gama.
A tradicional publicação da Escola Naval “Nossa
Voga” registra que “a Rosa das Virtudes foi publica- O início
da oficialmente em 1954, quando da divulgação da
A pesquisa nos remete há 82 anos atrás, em janei-
1ª edição daquela publicação” (ESCOLA NAVAL, 2021,
ro do ano de 1940, quando foi publicada a primeira
p.22). Entretanto, não apresenta dados que possam indi-
car, mais precisamente, a sua origem e o seu criador. edição do livrete denominado “Faze assim... breviário
moral e cívico”, de autoria do então Capitão de Mar
A publicação EMA-137, tanto na 1ª edição de
e Guerra Frederico Villar, cuja capa da 2ª edição, de
2004 quanto na 1ª Revisão, de 2013, embora apre-
1952, é apresentada na Figura 1.
sente no seu anexo a figura e os conceitos da Rosa
das Virtudes, também não ostenta informações que O trabalho (2ª edição, 1952), já esgotado e de di-
possam esclarecer as dúvidas existentes quanto à sua fícil aquisição, chegou às nossas mãos por cortesia do
origem. O mesmo ocorre com o Manual de Liderança CMG (RM1) Helder Velloso Costa, por indicação do
(DEnsM-1005), 1ª edição de 1996, que nem mesmo CMG (RM1-IM)
faz alusão à Rosa das Virtudes2. Hércules G. Hono-
rato, que cita o li-
Essas dúvidas sobre a Rosa nos motivaram a re-
vrete no seu artigo
alizar uma pesquisa, cujos resultados são descritos a
sobre a publicação
seguir, no sentido de levantar dados que permitam co-
“Nossa Voga”.
nhecer como surgiu, quem é o autor, como se deu a
sua evolução ao longo do tempo e a quem coube a bri- O livrete é divi-
lhante ideia de representar os “valores da Marinha” dido em vários ca-
em uma rosa à semelhança da rosa dos ventos, com pítulos, onde o au-
dezesseis pontos ou direções. tor discorre sobre
o que chama de
Educação Naval,
1
Doutor em Política e Estratégia pela Escola Superior de Guerra. dá conselhos aos
2
Na DEnsM-1005, a Rosa somente aparece em 2018, no Anexo jovens oficiais, a Figura 1. Segunda edição do
da 1ª revisão da publicação, também sem esclarecer a sua origem. exemplo do que livrete “Faze assim...”

Revista de Villegagnon . 2022 17


fez o Almirante Henrique Aristides Guilhem na rinha”. É interessante registrar que, na edição da publi-
sua obra de 1915, comenta sobre a arte de viver e cação de 1959 (figura a seguir), o título é simplificado e
conclui com uma série de mais de uma centena de o autor, logo de início, apresenta a definição de “brevi-
recomendações sob o título “Faze assim...”, finali- ário”, ao que parece termo bastante empregado à épo-
zando com pequeno texto sobre a educação física ca: “Aproveitamento de obras editadas no Brasil e no
na Marinha. Entretanto, o capítulo mais importan- estrangeiro com o propósito de facilitar a sintonia ge-
te para o propósito deste trabalho é o que recebe ral da iniciativa e realizar a propaganda de ideias pelas
o título de “A voz dos Mestres – como conduzir os classes distintas da sociedade”. (VILLAR, 1959, p.27)
subordinados”. Nesta parte da publicação, o Almi- O documento, com propósito semelhante ao “Faze
rante Villar apresenta a expressão “caráter mari- assim...”, foi publicado especialmente para as comemo-
nheiro”. Diz o Almirante: rações do Centenário do Almirante Saldanha da Gama,
em paralelo com a inauguração de monumentos3 e a re-
Por ser a Marinha, antes e acima de tudo, alização de uma série de conferências sobre o Almirante.
uma profissão de sentimento – O CARÁ- Capas dos exemplares das edições de 1946 e 1959
TER HÁ DE SEMPRE PREDOMINAR
são apresentadas nas figuras 2 e 3.
COMO FUNDAMENTO DA PROFISSÃO;
a maior capacidade técnica pode naufragar Na sua primeira edição, o “Breviário” contém os
desde que lhe falte o “Espírito da Marinha”, seguintes assuntos: “O Mestre Insigne (Saldanha)”;
desde que lhe falte “caráter marinheiro”. “O Espírito da Marinha”; “Aos jovens oficiais”; “O
(VILLAR, 1952, p.42) caráter marinheiro”; “Normas de bem viver naval,
militar e social”; “Sinais de respeito e etiquetas na-
vais”; “A cultura física e esportes”.
Seguindo em sua explanação, o Almirante, pela
primeira vez, lista o que ele considera os atributos Na segunda edição, de 1959, os assuntos são os
mais importantes nos quais está alicerçado o “cará- mesmos acrescidos de outros itens como comple-
ter marinheiro”.

O “caráter marinheiro” funda-se nos se-


guintes atributos principais: Coragem,
Lealdade, Zelo, Sinceridade, Espírito de
Sacrifício, Critério, Decisão, Iniciativa,
Confiança em si próprio, Tenacidade, Dis-
creção, Tato, “Fogo Sagrado”, e Fidelida-
de ao Serviço. (VILLAR, 1952, p.43 – com
grifo no original; mantida a grafia original
da palavra Discreção)
Figura 2. “Breviário de Figura 3. “Breviário de
Educação moral, cívica, Educação moral, cívica,
A partir daí, o autor conceitua os 14 atributos cita- social e militar da jovem social e militar da jovem
dos, que mais tarde irão evoluir para os 16 rumos da Marinha”, edição de Marinha”, edição de
1946 1959, com título reduzido
Rosa das Virtudes, como veremos a seguir. para “Breviário de
(O Museu da EN possui
em seu acervo um Educação moral, cívica,
exemplar desta edição) social e militar”
A primeira Rosa (A biblioteca da EN
A primeira Rosa das Virtudes, ainda sem essa de- possui em seu acervo dois
exemplares desta edição)
nominação, surge em 1946 com a publicação de novo
documento, também de autoria do então Comandante 3
A estátua de Saldanha, instalada no bairro de Ipanema, RJ, e o
Frederico Villar, inicialmente chamado “Breviário de marco que assinala o local onde o Almirante tombou, localizado
Educação moral, cívica, social e militar da jovem Ma- em Campo Osório, RS.

18 Revista de Villegagnon . 2022


mento. No tópico “O caráter marinheiro” dessa edi-
ção, o autor registra a sua conceituação:

Caráter é o conjunto de qualidades que dis-


tinguem as pessoas umas das outras, sob os
pontos de vista moral e mental. [...]
Na vida marinheira, o caráter adquire traços
especiais, resultantes do meio, dos hábitos de
bordo, do amor que o homem do mar dedica
ao seu navio e à sua profissão, da necessidade
de cooperação de todos bordas-a-dentro e de
navio a navio. (VILLAR, 1959, p.77)

Após concluir o que define por “caráter marinhei-


ro” e fazer considerações sobre o tema, Villar arremata:

O caráter do Oficial de Marinha é formado


por um conjunto de qualidades e disposi-
ções, por uma certa Mentalidade, por tra-
ços especiais, em suma, que cada qual deve
aperfeiçoar em si próprio e que a seguir se-
rão estudados. São esses os dezesseis rumos
da rosa do caráter marinheiro. (VILLAR,
1959, p.78 – grifo nosso)

A partir daí, apresenta os 16 rumos, enunciando os


seus conceitos, e, pela primeira vez, aparece a figura
da rosa, ainda denominada “rosa dos ventos do cará-
ter marinheiro” (Figura 4).
Nota-se que nesse “Breviário”, além da inclusão e
supressão de alguns atributos (ou valores), a quantida-
de foi alterada de 14 para 16. Provavelmente, a adição
de mais dois atributos foi para completar as 16 direções Figura 4. Os 16 rumos e imagem da ROSA DOS VENTOS
exigidas por uma rosa dos ventos (ver figura no Anexo). DO CARÁTER MARINHEIRO
Fonte: “Breviário de Educação moral, cívica, social e militar”,
Embora tenha sido o responsável pela es-
1959, p.79.
colha dos atributos e pela sua con-
ceituação, a ideia de colocá-los
em uma rosa dos ventos não se originou do
autor. Segundo ele nos conta no livro onde
são registrados os eventos das comemorações
sobre o Centenário do Almirante Saldanha,
ao levar um esboço do livrete para aprecia-
ção do Contra-Almirante Adalberto de Le-
mos Basto, Diretor da Escola Naval, partiu Figura 5. Relato sobre a ideia da “Rosa dos Ventos do Carácter do
deste a excelente ideia, conforme podemos Marinheiro”
observar no relato apresentado na Figura 5. Fonte: Centenário do Almirante Saldanha, 1947, p.203.

Revista de Villegagnon . 2022 19


Este dado ganha importância na medida em que no sentido dos ponteiros do relógio. No que tange aos
permite afirmar, comprovadamente, que a Rosa das rumos, é fácil constatar que os conceitos atualmente em
Virtudes teve a sua origem na Escola Naval, em Ville- vigor são paráfrases, mais elaboradas e concisas, daque-
gagnon. Este fato ocorreu no início dos anos 1940, no les registrados nas obras de Frederico Villar, por vezes re-
período que abrange o Comando do Almirante Lemos petindo ipsis litteris frases dos conceitos enunciados pelo
Basto: 30/03/1940 – 23/09/1942.4 autor na edição de 1959 (ver as comparações no Anexo).

A evolução da Rosa Saldanha como inspiração


Oito anos Frederico Villar foi Aspirante de Saldanha e o
após a publicação acompanhou quando o Almirante decidiu aderir à Re-
do “Breviário”, volta da Armada. O início do livrete “Faze assim...”
surge, na primei- apresenta uma dedicatória ao seu ídolo, onde assinala:
ra edição da pu-
blicação “Nossa À saudosa memória de seu grande Amigo e
Voga”, a apresen- ilustre Chefe Almirante Luiz Felipe de Salda-
tada ao lado (Figu- nha da Gama, modelo de Perfeição, tipo ide-
ra 6), que até hoje al de Bravura, de Galanteria e de Elegância.
é a referência para (VILLAR, 1952)
as diversas figuras
que representam a Figura 6. Rosa das Virtudes No “Breviário”, publicado em 1946, o autor volta
Rosa das Virtudes. Fonte: Nossa Voga, 1954. a dedicar seu trabalho ao antigo Chefe, registrando:
Nota-se que, além de representar a Honra como
Norte em substituição ao Patriotismo, a figura traz GRATIDÃO ETERNA – Ao saudoso Al-
modificações na sequência dos valores (no sentido dos mirante LUIZ PHELIPPE DE SALDANHA
ponteiros do relógio), eliminação e inclusão de alguns DA GAMA e a todos aqueles que, no glo-
rioso passado, deram à Marinha todo o seu
valores e alterações nos nomes de outros. Cabe salien-
esforço, o seu coração, o seu sangue e a sua
tar que a figura se repete nas edições de “Nossa Voga”
vida, e, por sua dedicação exemplar e seus
dos anos de 1955 e 1956 sem, nessas três edições, apre-
magníficos exemplos, serviram de guia na
sentar os conceitos de cada valor (ou atributo ou rumo) elaboração deste Breviário.
e sem registrar a designação “Rosa das Virtudes”.
Até onde a pesquisa pôde alcançar, os conceitos de No capítulo “A arte de viver” do “Faze assim...”,
cada rumo e a denominação Rosa das Virtudes aparecem Villar cita o livrete “Don’t”5 e amplia as informações
a partir de 1994 e são publicados na “Nossa Voga” de sobre ele no “Breviário de Educação moral, cívica, so-
2001, que mantém a figura exatamente igual a de 1954. cial e militar”, assinalando que:
Mas, afinal, o que leva a concluir que a figura da
Rosa de 1954 (e atual) e os conceitos dos Rumos são Quando em 1892 o Almirante Saldanha as-
decorrentes da rosa dos ventos do caráter marinheiro, sumiu a Diretoria da Escola Naval, fez distri-
sugerida pelo Almirante Lemos Basto? buir pelos Aspirantes um livrinho intitulado
Embora as figuras sejam diferentes, a Rosa de 1954 “Don’t” (“Não faça”) e instituiu as normas
(e atual) praticamente repete os rumos da Rosa de 1946, das Boas Maneiras – iniciativa coroada do
alterando, é verdade, o Norte e a sequência dos valores mais completo êxito. (VILLAR, 1959, p.27)

4
Villar assinala que, quando a sua obra estava quase pronta, eclo- 5
Possivelmente, o livreto “Don’t” deu origem ao “Breviário de
diu a 2ª Guerra Mundial, e a publicação do livrete só pôde ocor- Educação”, documento que sofreu uma adaptação, em 1983,
rer em 1946, durante as comemorações do Centenário do Almi- pelo Capitão de Corveta Afrânio Paes Leonardo Pereira Júnior, e
rante Saldanha. que pode ser encontrado na página da intranet da EN.

20 Revista de Villegagnon . 2022


Assim, o autor dá a entender que suas obras fo- 1954, apresenta a figura da Rosa que permanece em vi-
ram inspiradas por essa publicação de iniciativa do gor até hoje, com modificações com relação à pioneira,
próprio Saldanha da Gama e por tudo que o Almi- sem apresentar os conceitos e a denominação Rosa das
rante representava para ele, haja vista as dedica- Virtudes, mas registrando, pela primeira vez, a expres-
tórias registradas nos dois livretes. Estes detalhes, são “Nossos Rumos”. A figura é repetida nas publica-
aliados ao fato de que o primeiro capítulo do “Bre- ções “Nossa Voga” dos dois anos subsequentes.
viário de Educação moral, cívica, social e militar” A publicação “Nossa Voga”, de 2001, volta a uti-
é dedicado exclusivamente ao seu ídolo, nos leva a lizar a expressão “caráter marinheiro”, comentando
concluir que os rumos da Rosa das Virtudes foram sobre o seu significado, publica a figura sem diferenças
realmente inspirados no insigne homem do mar e com relação a de 1954 e expõe os conceitos dos rumos,
grande líder naval, o Almirante Luiz Felipe de Sal- praticamente iguais aos conceitos dos atributos assina-
danha da Gama. lados por Villar no “Breviário de Educação”, de 1946.
Por tudo o que foi exposto, parece ser possível afir-
CONCLUSÃO mar que a primeira Rosa, com os conceitos de cada
rumo, foi publicada oficialmente em 1946, ano do
Em síntese, a pesquisa realizada indica os fatos a
Centenário do Almirante Saldanha, por ocasião da
seguir registrados.
publicação do “Breviário de Educação moral, cívica,
Os atributos do caráter marinheiro originais fo- social e militar da jovem Marinha”, em consequência
ram concebidos pelo Comandante Frederico Villar e, do trabalho e da competência dos Almirantes Villar e
pela primeira vez, registrados no livrete de sua auto- Lemos Basto, a quem, por dever de justiça, devemos
ria “Faze assim...”, publicado em 1940, com 2ª edi- reconhecer como os criadores da figura e dos conceitos
ção em 1952. originais que, após algumas modificações, se transfor-
Os 14 atributos originais, modificados, aperfeiçoa- maram na atualmente denominada Rosa das Virtudes.
dos e acrescidos de dois outros, foram apresentados ao
Diretor da Escola Naval, Contra-Almirante Adalberto
REFERÊNCIAS
de Lemos Basto, no início da década de 1940.
A ideia de colocar os atributos do caráter mari- BRASIL. Marinha do Brasil. Diretoria de Ensino da Marinha.

nheiro em uma rosa dos ventos foi do Almirante Le- Manual de Liderança. 1ª Rev. Rio de Janeiro, 2018.

mos Basto, durante a sua gestão na EN (30/03/1940 ______. Estado-Maior da Armada. EMA - 137. Doutrina de
– 23/09/1942). Este fato garante que a atual Rosa das Liderança da Marinha. 1ª Rev. Brasília, 2013.
Virtudes teve origem na Escola Naval, em Villegagnon.
______. Ministério da Marinha. Centenário do Almirante
Em 1946, fazendo parte das comemorações do Saldanha: 1846 – 1946. Rio de Janeiro: Imprensa Naval,
Centenário do Almirante Saldanha, foi publicado o 1947.
livrete, também de autoria do Comandante F. Villar,
intitulado “Breviário de Educação moral, cívica, social ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 1954.
e militar da jovem Marinha”, que registra os atributos ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 1955.
e apresenta a pioneira “rosa dos ventos do caráter ma-
ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 1956.
rinheiro”, que se transformou na Rosa das Virtudes.
A 5ª edição do “Breviário”, com o título reduzido, foi ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 2001.
publicada em 1959, quando o Comandante Villar já
ESCOLA NAVAL, Nossa Voga. Rio de Janeiro, 2021.
havia atingido o Almirantado e encontrava-se na Re-
serva. Como mencionado anteriormente, a leitura das VILLAR, F. Faze assim... breviário moral e cívico. 2. ed. Rio
duas publicações nos leva a inferir que a atual Rosa de Janeiro: Saturno, 1952.
das Virtudes foi inspirada nas qualidades e no exem- VILLAR, F. Breviário de Educação moral, cívica, social e
plo do Almirante Luiz Felipe de Saldanha da Gama. militar. 5. ed. Rio de Janeiro: Diretoria de Hidrografia e
A primeira edição da publicação “Nossa Voga”, de Navegação, 1959.

Revista de Villegagnon . 2022 21


ANEXO

I – Breve biografia do Almirante Frederico Villar


CONTRA-ALMIRANTE FREDERICO VILLAR
“Aspirante de Saldanha da Gama, acompanhou este grande Chefe nas jornadas históricas de 1893
a 1895; depois, como oficial, ilustrou todas as Comissões que desempenhou, tanto em terra quanto
no mar; foi o pioneiro da nacionalização da pesca no Comando, que lhe coube, do Cruzador “José
Bonifácio”, o primeiro navio que a Marinha teve com o nome do Patriarca da Independência; e hoje,
na Reserva, ainda aplica todo o seu entusiasmo às coisas da Marinha”.
Dados sobre o Almirante Villar, contidos na Apresentação da reedição, de 13 de dezembro de 1959,
do seu “Breviário de Educação moral, cívica, social e militar da jovem Marinha”.

II – Evolução da Rosa de 1946 para a de 1954


• Mudou o Norte de “Patriotismo” para “Honra”;
• É alterada a sequência (no sentido dos ponteiros do relógio);
• Desaparecem por completo os rumos: “Aptidão para o mando” e “Tato, Discreção”1;
• O rumo “Abnegação, Espírito de Sacrifício” é separado em dois rumos “Abnegação” e “Espírito
de Sacrifício”;
• “Disciplina” somente aparece a partir de 1954;
• Têm suas denominações alteradas:
-- “Fidelidade ao Serviço” passa a ter o nome “Fidelidade”;
-- “Aplicação, Tenacidade” passa a ter o nome “Tenacidade”;
-- “Ordem, Economia” passa a ter o nome “Ordem”.

1
Grafia da palavra no original.

III – Rosa dos Ventos


“ROSA DOS VENTOS – Folha de papel circundada ou não de uma
lâmina de platina dividida em graus e partes do grau, que na bússola é
superposta à agulha para indicar os rumos”.
Fonte: Dicionário Marítimo, organizado pelo Barão de Angra, 1887.

16 PONTOS ou DIREÇÕES
Cardeais: N, S, E, O; Colaterais: NE, SE,NW, SW; Subcolaterais: NNE,
ENE, ESSE, SSE, SSO, OSO, ONO, NNO.

22 Revista de Villegagnon . 2022


IV – Comparação entre os valores da Rosa de 1946 e da atual

COMPARAÇÃO ENTRE VALORES


“FAZE ASSIM...” 1940/52 ROSA DE 1946 ROSA DE 1954 (em vigor)
sem Rosa 16 Rumos 16 Rumos
HONRA HONRA (Norte)
PATRIOTISMO (Norte) PATRIOTISMO
FOGO SAGRADO FOGO SAGRADO FOGO SAGRADO
LEALDADE LEALDADE LEALDADE
ZELO ZELO ZELO
CORAGEM CORAGEM CORAGEM
INICIATIVA INICIATIVA INICIATIVA
DECISÃO DECISÃO DECISÃO
FIDELIDADE AO FIDELIDADE AO FIDELIDADE
SERVIÇO SERVIÇO
COOPERAÇÃO COOPERAÇÃO
ABNEGAÇÃO, ESPÍRITO DE
ESPÍRITO DE SACRIFÍCIO ABNEGAÇÃO
SACRIFÍCIO
ESPÍRITO DE SACRIFÍCIO
ESPÍRITO MILITAR ESPÍRITO MILITAR
ORDEM, ECONOMIA ORDEM
TENACIDADE APLICAÇÃO, TENACIDADE TENACIDADE
DISCIPLINA
DISCREÇÃO
TATO, DISCREÇÃO
TATO
SINCERIDADE APTIDÃO PARA O MANDO
CRITÉRIO
CONFIANÇA EM SI PRÓPRIO

Sem rosa

Revista de Villegagnon . 2022 23


V – Comparação entre os conceitos da Rosa de 1946 e da atual

COMPARAÇÃO ENTRE CONCEITOS


O caráter do Oficial de Marinha é, pois, formado por qualidades e
BREVIÁRIO
disposições, por uma certa Mentalidade, por traços especiais, em suma, que
1946/59
CARÁTER cada um deve aperfeiçoar em si próprio e que a seguir serão estudados.
MARINHEIRO O caráter do Oficial de Marinha é, pois, formado por qualidades e
NOSSA VOGA
disposições, por uma certa mentalidade, por traços especiais que cada
2001(*)
um deve aperfeiçoar em si próprio.
BREVIÁRIO
A Honra é o patrimônio da alma.
1946/59
HONRA
NOSSA VOGA
A Honra é o patrimônio da alma.
2001
A Lealdade é o verdadeiro, espontâneo e incansável devotamento a uma
BREVIÁRIO
causa, a sincera obediência à autoridade dos superiores e o respeito aos
1946/59
sentimentos de dignidade alheia.
LEALDADE
A Lealdade é o verdadeiro, espontâneo e incansável devotamento a uma
NOSSA VOGA
causa, a sincera obediência à autoridade dos superiores e o respeito aos
2001
sentimentos de dignidade alheia.
BREVIÁRIO
A Iniciativa é o ânimo pronto para conceber e executar.
1946/59
INICIATIVA
NOSSA VOGA
A Iniciativa é o ânimo pronto para conceber e executar.
2001
O Zelo pelo Serviço, por ser um atributo que não depende, em alto grau,
BREVIÁRIO como acontece com outros, de preparo profissional, de predicados
1946/59 especiais de inteligência e de saber, é, por isso mesmo, uma virtude que
ZELO deve ser comum a todos os que servem à Marinha.
O Zelo é atributo que não depende, em alto grau, de preparo profissional,
NOSSA VOGA
de predicados especiais de inteligência e de saber. É, por isso mesmo,
2001
virtude que deve ser comum a todos os que servem à Marinha.
BREVIÁRIO É a força capaz de fazer com que aquele que ama a vida, e que nela é
1946/59 feliz, saiba arriscá-la e se disponha a morrer por uma causa nobre.
CORAGEM
NOSSA VOGA É a força capaz de fazer com que aquele que ama a vida, e que nela é
2001 feliz, saiba arriscá-la e se disponha a morrer por uma causa nobre.
BREVIÁRIO Cooperar é auxiliar eficiente e desinteressadamente; é esforçar-se em
1946/59 benefício de uma causa comum.
COOPERAÇÃO
NOSSA VOGA Cooperar é auxiliar eficiente e desinteressadamente; é esforçar-se em
2001 benefício de uma causa comum.
O “Fogo Sagrado” é a paixão, a fé, o entusiasmo com que o Oficial se
BREVIÁRIO dedica à sua carreira; é o seu intenso amor à Marinha, o seu devotamento
1946/59 pela grandeza da sua profissão; é a larga medida de uma verdadeira
FOGO vocação e de um sadio patriotismo; é o supremo amor pelo serviço.
SAGRADO O “Fogo Sagrado” é a paixão, a fé, o entusiasmo com que o militar se
NOSSA VOGA dedica à sua carreira; é o seu intenso amor à Marinha, o seu devotamento
2001 pela grandeza da sua profissão; é a larga medida de uma verdadeira
vocação e de um sadio patriotismo; é o supremo amor pelo serviço.

24 Revista de Villegagnon . 2022


COMPARAÇÃO ENTRE CONCEITOS

BREVIÁRIO A aplicação é uma forma de dedicação e amor ao serviço. É a disposição


1946/59 para estudar tanto o material, em si e na maneira de utilizá-lo.
TENACIDADE
NOSSA VOGA Aplicação é uma forma de dedicação, de amor ao serviço. É a disposição
2001 para estudar tanto o material em si como também a maneira de utilizá-lo.

Decidir é tomar resolução, é sentenciar, é orientar a ação. É coragem. Não


BREVIÁRIO há qualidade, no trato geral dos militares para com seus subordinados,
1946/59 que mais tenda a aumentar o respeito e confiança desses subordinados,
do que sua capacidade de decidir.
DECISÃO
Decidir é tomar resolução, é sentenciar, é orientar a ação. Não há
NOSSA VOGA qualidade, no trato geral dos militares para com seus subordinados, que
2001 mais tenda a aumentar o respeito e confiança desses subordinados, do
que sua capacidade de decidir.

A fidelidade ao serviço impede que o militar cuide de afazeres e atividades


BREVIÁRIO
estranhos à Marinha, enquanto estiver ao seu serviço, e negligencie as
1946/59
suas obrigações.
FIDELIDADE
A fidelidade ao serviço impede que o militar cuide de afazeres e atividades
NOSSA VOGA
estranhos à Marinha, enquanto estiver ao seu serviço, e negligencie as
2001
suas obrigações.

BREVIÁRIO A Ordem é diligência, porque economiza o tempo, e é previdência,


1946/59 porque o conserva.
ORDEM
NOSSA VOGA A Ordem é diligência, porque economiza o tempo, e é previdência,
2001 porque o conserva.

Espírito Militar é a qualidade que impele o Oficial a cumprir com sincero


BREVIÁRIO interesse, dentro da ética, os deveres e obrigações do Serviço, com
1946/59 disciplina e lealdade, sempre animado pelo desejo de ver brilhar o seu
ESPÍRITO navio, a sua classe e aumentar a eficiência e o prestígio da Marinha.
MILITAR Espírito Militar é a qualidade que impele o militar de cumprir com natural
NOSSA VOGA interesse, dentro da ética, os deveres e obrigações do serviço, com
2001 disciplina e lealdade, sempre animado pelo desejo de ver brilhar o seu
navio, a sua classe e aumentar a eficiência e o prestígio da Marinha.

O “espírito de sacrifício” é mais: é a abnegação levada ao extremo, é a


BREVIÁRIO
disposição sincera de realmente oferecer, espontaneamente, interesses,
1946/59
ESPÍRITO DE comodidades, vida, tudo, “em holocausto no altar da Pátria”.
SACRIFÍCIO O Espírito de Sacrifício é a disposição sincera de realmente oferecer,
NOSSA VOGA
espontaneamente, interesses, comodidades, vida, tudo, em prol do
2001
cumprimento do dever.

(*) São os mesmos conceitos apresentados na Doutrina de Liderança da Marinha do Brasil (EMA-137), no Manual
de Liderança (DEnsM-1005 – 1ª Revisão) e no Nossa Voga, 2021 (exceto o conceito de caráter marinheiro, que
não consta nesta edição).

Revista de Villegagnon . 2022 25


CONSELHOS AOS OFICIAIS
RECÉM-FORMADOS

Capitão de Corveta (FN)


Raphael Baptista Mattos dos Anjos1

Ao longo da minha fase inicial, na vida operativa, TENHA CONFIANÇA NA TROPA


como oficial subalterno dentro da Marinha, passei
por algumas situações e vivenciei algumas experiên- Não é porque você se integrou recentemente ao seu
cias pelas quais provavelmente todo tenente passará. Pelotão/Divisão que seus Sargentos, Cabos e Soldados
À medida que o tempo passa, e ficamos mais anti- irão ludibriá-lo e “passar a perna” em você. É verda-
gos (também mais maduros), conseguimos entender de que você será testado inicialmente, portanto seja
o porquê de determinadas decisões, atitudes, e talvez, competente, desenvolva suas habilidades e saiba bem
se pudéssemos voltar no tempo, teríamos uma forma o seu trabalho. Mas não deixe de confiar nas praças,
melhor de enfrentar esse período inicial da vida na pois eles estarão ao seu lado. Na maioria das vezes eles
tropa. O fato é que todo Oficial Subalterno recém- estarão lá para ajudá-lo.
formado, Guarda-Marinha e Segundo-Tenente, terá
que assumir as responsabilidades e deveres de suas
primeiras posições de liderança, sejam nos Batalhões
ESTEJA ABERTO AO APRENDIZADO
de Fuzileiros, ou nos Navios da Esquadra. Um bom Segundo-Tenente sabe que tem muito a
Serão apresentados, a seguir, alguns conselhos, aprender. É verdade que você concluiu o seu curso de
fruto de experiências vividas, estudos teóricos e formação como Oficial, também concluiu o Curso Bá-
apresentações vistas, que poderão ajudar os Ofi- sico de Especialização, porém você não está mais na
ciais em início de carreira a desempenharem me- Escola. É hora de botar em prática todo o seu conhe-
lhor suas tarefas e a serem melhores líderes, no fu- cimento teórico. Não pense que você sabe tudo e que
turo que se aproxima: não cometerá erros. Leia e estude a doutrina, e apren-
da com a experiência de seus pares e mais antigos.

SEJA HUMILDE
Bons líderes são aqueles humildes e fortes o sufi-
APRENDA COM SEUS SUBORDINADOS
ciente para admitir que não sabem determinado as- Na Marinha, para Oficiais Comandantes, de Uni-
sunto. Pedem ajuda e conselhos, em momento opor- dade, Subunidade ou Fração, temos a figura do Subo-
tuno, a fim de obterem as informações suficientes ficial Adjunto, ou Sargento Auxiliar, por exemplo: Co-
para tirar suas conclusões e decidir. Opte por ser esse mandante de Batalhão/Suboficial-Mor; Comandante
tipo de líder. de GruCAnf (Grupo de Comandos Anfíbios)/Sargento
Auxiliar de GruCAnf e Comandante de Pelotão e Sar-
gento Auxiliar de Pelotão.
1
Comandante do 2º Batalhão do Corpo de Aspirantes, Comandos
Imagine um típico Suboficial de Infantaria, que
Anfíbios, Guerreiro de Selva, Ex-Comandante do Grupo Especial
de Retomada e Resgate do Batalhão de Operações Especiais de vem fazendo seu trabalho há muito tempo e está
Fuzileiros Navais. neste “métier” há 20/30 anos. Não o ignore, trate-o

26 Revista de Villegagnon . 2022


com respeito. Peça-lhe conselhos e ajuda. Com pra- derá-lo, e com toda a certeza, caso precise construir
zer, ele compartilhará sua experiência e o ajudará a um bom relacionamento com seu chefe, é melhor des-
gerenciar o equilíbrio entre ser um membro da equi- cobrir qual é sua área de interesse, o que o motiva e
pe (com muito a aprender) e ser o líder da equipe sua forma de pensar. Não se trata de ser “puxa-saco”,
com uma palavra final. mas sim de ser inteligente.
Se o seu Comandante de Companhia for aficiona-
do por corte de cabelo e uniforme, então mantenha
SOBRE AMIZADE
seu cabelo curto e seus “boots” engraxados, e você
Você não será um bom Comandante de Pelotão se não terá problemas. Se ele for um entusiasta de “cor-
for “o melhor amigo” dos membros do seu Pelotão. ridões”, então treine duro, e nunca fique para trás.
Não é necessário que você seja uma pessoa inflexível, “Dance conforme a música”, isso evitará problemas
e que se distancie de todos. Na verdade, deverá ser para você, e respeitando a forma de pensar do seu che-
exatamente o contrário. Bons líderes são aqueles que fe, ele também o respeitará.
trabalham com amor, pela instituição, pelo país, e por
sua equipe. Porém é preciso saber que os Tenentes “su-
perlegais” muitas vezes são “by passados” ou “igno-
SEJA ALTRUÍSTA
rados” pelo seu Pelotão, e isso destrói a boa ordem e Os Tenentes têm o melhor emprego da Marinha,
a disciplina. Seja uma pessoa justa, seja você mesmo, pois são eles que assumem as funções de Comandante
mas não seja amigo. de Pelotão, colocam a mão na massa. Este é o momento
da vida em que você pode passar mais tempo com os
soldados, em que você pode FAZER, e não SOLICITAR
DESENVOLVA SUA CAPACIDADE NO COMPUTADOR; é quando você pode LIDERAR,
DE RECONHECER PADRÕES não AVISAR POR E-MAIL. Recomendo que valorize
A arma mais importante em um campo de batalha essa oportunidade e não a desperdice considerando-a
é a capacidade humana de reconhecer padrões. Essa como um trampolim, para “aparecer” e conseguir algo.
capacidade serve para você entender, se adaptar e do- Faça o seu melhor sem esperar nada em troca.
minar o futuro, à medida que ele se apresenta diante
de seus olhos. É saber a solução de uma situação, por
LÍDERES FORNECEM DIREÇÃO,
já tê-la vista anteriormente. Ao prestar o concurso do
Colégio Naval, ou Escola Naval, você estudou tanto e
ORIENTAÇÃO E PRIORIDADES
fez tantas questões, que esgotou as possibilidades da Evite o microgerenciamento, isso inibe a criativi-
banca de provas de criar questões “novas” de forma dade e iniciativa dos seus subordinados. No entanto, é
a identificar na primeira visada alguma questão que preciso fornecer direção, orientação e ditar suas prio-
já foi resolvida antes. Da mesma forma, no Corpo de ridades para o cumprimento da missão. Isso é chama-
Fuzileiros Navais, existe uma série de procedimentos do de intenção do comandante. O líder não dita todos
de combate chamados TAI (Técnicas de Ação Imedia- os detalhes de como uma missão deverá ser cumprida.
ta). Sua eficiência depende da variedade de cenários Ele estabelece as margens de segurança, passa algumas
treinados e da quantidade de repetições executadas. orientações gerais e os aponta na direção certa. Como
Bem treinada, a tropa dificilmente será surpreendida o líder entende a situação geral, ele normalmente sabe
por uma situação inusitada. algo que os subordinados não sabem, e abordará isso
ao dar sua orientação.

CONHEÇA AS ÁREAS DE INTERESSE


Na vida militar, você precisa fazer uma leitura cor-
UTILIZE BACK BRIEFS
reta do ambiente operacional e das pessoas. Entender As comunicações no meio militar podem ser uma
como criar simpatia entre você e seu pelotão, para li- questão de vida ou morte. Para evitar erros de comu-

Revista de Villegagnon . 2022 27


nicação, existe uma técnica chamada back brief. Ela para o Soldado como para o Comandante do Pelotão,
serve para verificar se a mensagem transmitida foi a pois o farol é a missão.
mensagem recebida.
É quando o comandante transmite uma ordem, e
SEJA PONTUAL
pede que seus elementos subordinados devolvam o
que entenderam (façam o cotejamento). Ser pontual é fácil de entender, porém, ainda sim,
tão difícil para alguns colocarem em prática.
Exemplo 1:
Imagine um briefing de missão de Operações Espe-
Mensagem: “Conquiste a elevação, custe o que
ciais em que o Comandante do GruCAnf chega atrasa-
custar.”
do. O que você esperaria ouvir do mais antigo que está
Resposta: “Recebido, conquistar a elevação, custe
emitindo a Ordem de Operação?
o que custar.”
“Sem problemas, amigo. Tudo bem ter um dia
Exemplo 2: ruim”; “Estamos felizes que você conseguiu. Melhor
Mensagem: “Faça A, pule B e faça C.” tarde do que nunca.”
Resposta: “Entendido, fazer A, pular B, e fazer C.”
No entanto, não é assim que funciona. Seria mais
Isso garante uma comunicação eficaz. ou menos assim:
“Oficial, esta missão pode ser uma questão de vida
ou morte. Por que você está chegando tarde à minha
ADOTE A DOSAGEM DE COMANDO 3-5 reunião? Você não se importa?!”
Cada líder militar é capaz de comandar de três a “Onde está sua caneta e papel? Você não vai tomar
cinco unidades subordinadas. Isso vale para um gru- notas? Se esta missão falhar, a culpa será sua!”
pamento de patrulha naval ou para um comandante
Portanto, chegue na hora ou mais cedo. Seja pontual!
de companhia com três pelotões. Um chefe do Estado
Maior de força pode até ser responsável por cinco a dez
seções diferentes, mas quando se trata de Comando e REALMENTE ESTEJA LÁ
Controle em situação tática no terreno, o recomendado
Significa que você precisa estar presente de corpo
é de três a cinco. Caso controle mais de cinco elemen-
e alma naquele lugar, focado, que não pode ficar veri-
tos, é provável que fique sobrecarregado e incapaz de
ficando suas mídias sociais, cochilando ou brincando.
liderar/manobrar de forma eficaz. Considere reorgani-
zar sua unidade/fração para que ela tenha entre 3 e 5 Quando está no trabalho, é necessário trabalhar.
equipes, facilitando, assim, seu comando e controle. Quando você está treinando, você precisa dedicar
100% de sua atenção.
Imagine que você está prestes a saltar de um
TENHA EM MENTE “A EQUIPE É MAIS avião para fazer uma infiltração por Salto Livre
IMPORTANTE QUE O INDIVÍDUO” – O Operacional. Ao pousar no solo, realizará uma mis-
FAROL É A MISSÃO! são de reconhecimento especial, mas você está mui-
Uma das maiores virtudes dos militares é que você to mais preocupado em olhar o seu Instagram uma
aprende que não se trata do individual, mas sim do última vez, antes de saltar. Luz verde! Todos saltam,
coletivo. Sua fração é mais importante do que o indi- menos você!
víduo. É por isso que os soldados adiam o tratamento Obviamente isso é um exemplo extremo e dificil-
médico e sua evacuação para continuar lutando con- mente ocorreria. Mas então, por que você deixaria
tra o inimigo, mesmo que estejam feridos. E, mesmo isso acontecer na sua Seção ou no seu Pelotão? Quan-
quando algo acontece com um membro da equipe e ele do estiver realizando alguma tarefa, você realmente
é substituído, a equipe continua coesa, seguindo em precisa estar focado e dedicar toda a sua atenção na-
frente, até o cumprimento da missão. Isso vale tanto quele momento.

28 Revista de Villegagnon . 2022


SEJA COMPETENTE
Se você faz parte de uma tropa de operações espe-
ciais, precisa dominar as técnicas de tiro, movimen-
tação tática e comunicações. Se você é o encarregado
de navegação do seu navio, precisa dominar a plo-
tagem de pontos na carta náutica, equipamentos de
navegação eletrônica e perigos à navegação. Se você
é um professor, precisa dominar por completo a sua
matéria. Independentemente de qual seja sua área de
atuação, sempre existem certos conhecimentos e habi-
lidades específicas que você deve dominar, e por isso
recomendo que você estude e pratique muito. Ser com-
Figura 1. 1ºTen (FN)
petente nessas habilidades é necessário para que você Baptista, Manaus-AM,
seja um bom profissional. 2013. Comandante de
Pelotão de Fuzileiros
Estes são alguns conselhos que, ao serem observa- Navais em instrução –
dos, ajudarão o Segundo-Tenente recém-formado a Arquivo do autor
trilhar um caminho mais suave nesta fase inicial da
vida operacional.
AUICA! AUDAZES UNIDOS INTRÉPIDOS CO-
MANDOS ANFÍBIOS!

REFERÊNCIAS
BLABER, Pete. The Mission, the Men and Me: Lessons from
a former Delta Force Commander. United States, 2008.

WILLINK, Jocko e BABIN, Leif. Extreme Ownership: How


US Navy Seals Lead and Win. New York: ST. MARTIN’S
PRESS, 2015.

LITTLESTONE, Christopher. Special Operations Mindset:


Figura 2. CT (FN) Baptista, Itaoca – ES, 2018.
Develop the Champion Mindset of the Best Trained & Most Comandante de Grupo de Comandos Anfíbios chegando de
Elite Forces in the World. United States, 2021. missão – Arquivo do autor

Revista de Villegagnon . 2022 29


AS COMPRAS POR OPORTUNIDADE
E SUAS POSSIBILIDADES NA
BASE INDUSTRIAL DE DEFESA (BID)

Aspirante Lucas Gabriel Moura Carnaúba

Uma prática que vem sendo bastante utilizada por dentes de inovações tecnológicas que não são forneci-
nossas forças de defesa é a compra por oportunida- das pelas potências da área, sendo assim a busca pela
de, isto é, adquirir produtos já desenvolvidos e usados independência tecnológica se faz cada vez mais impor-
por outros países. No aspecto operacional, em meio tante (AMARAL, 2013).
à emergência constante de novas tecnologias e de sis- Logo, o desenvolvimento dessa indústria não se tor-
temas inovadores, faz-se necessário este tipo de aqui- na apenas importante para a Defesa Nacional, o que se
sição. Porém, deixa-se de fora o aproveitamento do apresenta mais destacado neste trabalho, mas também
conhecimento local, assim como toda a Base Industrial no âmbito do Poder Marítimo, com a prevalência dos
de Defesa presente, não a utilizando e talvez, de certas navios mercantes e de seu papel na logística nacional.
formas, não a desenvolvendo para que se coloque o
país no patamar das nações inseridas em destaque no
Fabricações navais-militares nacionais
cenário militar mundial.
recentes
Neste artigo, serão discutidos os pontos positivos e
Como produções recentes em território nacional,
negativos dessa prática realizada por nossa Marinha,
destacam-se os navios-patrulha Brendan Simbwa-
as possibilidades acerca desta, e exemplos da nossa
ye para a Marinha da Namíbia, dois NPa da Classe
própria BID que podemos usar como referência para
Macaé na Indústria Naval do Ceará (INACE) e mais
que se consiga de fato inovar nossos meios através da
quatro dessa mesma classe em construção no Estaleiro
indústria local.
Ilha S.A. (EISA).
A construção da corveta Classe Barroso foi feita
PANORAMA DA INDÚSTRIA NAVAL pelo Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro (AMRJ)
BRASILEIRA em 2008, numa proposta de readequação do projeto
da Classe Inhaúma, com diferença estruturais e de siste-
Vale destacar, ao se tratar da Indústria Naval, o
mas. Assim como a Barroso, o submarino Tikuna tam-
quão relevante foi na história do país, e ainda é, pela
bém foi construído no AMRJ, com variações do projeto
grandeza da costa brasileira, pelo papel que a Marinha original do submarino Tupi, incorporando inovações
do Brasil exerce no Atlântico Sul e no cenário inter- tecnológicas que lhe propiciam melhor desempenho. O
nacional, e por 95% das cargas que entram e saem submarino Tikuna lançou-se ao mar em 2005.
do país serem transportadas por vias marítimas. O
empreendimento da construção naval tem relevância
estratégica, pela produção de navios para a Marinha Contexto do segmento de C,T&I
Mercante, e para a Marinha de Guerra na construção A indústria naval nacional também possui um con-
de navios militares, cada vez mais modernos e depen- junto de empresas e instituições que trabalham em prol

30 Revista de Villegagnon . 2022


do desenvolvimento de sistemas e tecnologias, sendo energia nuclear é um dos principais focos da corrida
de fato a base para a evolução de nossos recursos. Se- armamentista atual. Os benefícios deste protótipo
rão destacadas as instituições que servem diretamente em terra serão imensuráveis, ganhos que podem ser
à pesquisa e apoio da Força Naval. percebidos pelas cinco expressões do Poder Nacional:
Embora alguns mais embrionários, com pro- Política, Econômica, Psicossocial, Militar e Científico-
dutos talvez não tão impactantes se forem com- tecnológica (VETTORAZZI, 2017). Muito se deve à
parados com os grandes complexos de pesquisa gestão de conhecimento construída pelos vanguardis-
militares ao redor do mundo, pode-se ver a seguir tas do Programa Nuclear da Marinha para que o la-
certos projetos que de fato servem para provar a boratório e tudo o que foi desenvolvido em Aramar
capacidade intelectual de nossos engenheiros, no pudesse existir nos dias de hoje.
que tange a produções aplicáveis à cobrança por Avaliando esses projetos, pode-se observar o po-
modernizações constantes. tencial das empresas e instituições da BID nacional,
Pode-se citar o Projeto VSNT-E (Veículo de Super- com impactos diretos na evolução dos equipamentos
fície Não Tripulado – Experimental), que consiste na da guerra naval. Se houve os projetos, é porque usa-
lancha URCA-III, embutida de sensores e mecanismos ram como base o que já se tinha, para que, usando
que a fazem realizar monitoramento, pesquisa e di- como molde, a engenharia do país trabalhasse para
versas outras operações sem sequer algum tripulante construir algo semelhante, só que mais moderno e cada
a bordo, sendo assim uma inovação no campo dos ve- vez mais consonante com a evolução tecnológica mi-
ículos não tripulados. Para o Encarregado na Divisão litar mundial. As compras por oportunidade exercem
de Modelagem e Simulação do Centro de Análises de exatamente esse papel, em se trabalhar os produtos e
Sistemas Navais (CASNAV), Capitão de Mar e Guerra sistemas que se têm para que se adquira a capacidade
Cláudio Coreixas de Moraes: de se produzir seus próprios.

Suas principais vantagens são, primeiramen- ESTUDO DE CASO: EMBRAER


te, a não exposição da vida de operadores
a riscos inerentes a determinadas regiões de Certos projetos, como os do caça A-1 “AMX”, ao
operação, como por exemplo, em operações passar pela nossa indústria, deixam um legado que
de varredura de minas. Outra vantagem é ditará a cadência dos novos que virão. Explicitar-se-
reduzir custo da operação e a complexidade -á nesse capítulo o exemplo da Empresa Brasileira de
da logística atrelada. Por último, expandir Aeronáutica (EMBRAER), que, como já visto num de
a capacidade de sensores para aplicação no seus empreendimentos, tornou-se referência no meio
SisGAAZ (Sistema de Gerenciamento da em produção de aeronaves, tanto civis como militares.
Amazônia Azul).1
Serão utilizadas constantemente analogias com o
meio aeronáutico para entrar no meio naval, visto que
Como um dos pontos mais importantes deste ar- a EMBRAER pode ser tratada como referência para se
tigo, destaca-se o Laboratório de Geração de Ener- entender a importância da Gestão do Conhecimento
gia Nucleoelétrica (LABGENE), que é o protótipo na P&D. Cabe observar que a EMBRAER era uma
em terra da propulsão do futuro submarino nuclear estatal que se tornou privada num passado recente e
brasileiro (SN-BR), projetado e construído no Centro que, por incentivos do setor militar, veio a desenvolver
Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP), no produtos que se destacam no cenário internacional,
Centro Experimental de Aramar, em Iperó-SP. Comen- sabendo desenvolver efetivamente o essencial para a
ta-se bastante acerca da transferência de tecnologia e Força Aérea Brasileira (FAB).
suas consequências, no entanto nenhum país autoriza
Esse grande sucesso vem de um esforço princi-
esse método, visto que a posse de conhecimento sobre
palmente no que tange à gestão do conhecimento
1
https://www.marinha.mil.br/economia-azul/noticias/veiculo-nao- da empresa e de seu pessoal. Precisou de anos, com
tripulado-aumentara-fiscalizacao-das-aguas-brasileiras participação em projetos internacionais até falhas de

Revista de Villegagnon . 2022 31


concepção, para se ter o que a empresa representa nos baseados em produtos vindos por exportação, ava-
dias de hoje. A organização elaborou uma doutrina lia-se sua complexidade, necessitando de meios que
para melhor se trabalhar a GC, com quatro etapas: sejam a ponte entre o produto que se tem e o co-
1. Identificar; 2. Desenvolver; 3. Reter/proteger; 4. nhecimento envolvido neste. A transferência de tec-
Disseminar e utilizar. Segundo José Eduardo Carara nologia, meio já utilizado pela Marinha, como nos
Júnior, engenheiro de desenvolvimento do produto da projetos de fabricação das fragatas Classe Niterói e
empresa, em sua palestra no Fórum de Boas Práticas nos submarinos da Classe Tupi, com o objetivo de
da Fundação Nacional de Qualidade (FNQ): “Não absorver conhecimento, apresenta-se como um dos
adianta ter o conhecimento se esse não for dissemina- vetores para indução do desenvolvimento, através
do. É necessário algum foco ou objetivo para se traba- da participação da BID nos processos de construção
lhar. E trabalhar com pessoas e processos é o que gera (JÚNIOR, 2020).
o diferencial da empresa”.2 Para Júnior (2020), os reflexos da transferência de
Vale ressaltar a importância das transferências de tecnologia não se fazem apenas na evolução em si das
tecnologia externas aplicadas, que foram de fato es- indústrias envolvidas, mas também no transborda-
senciais para a evolução da engenharia aeroespacial mento a outros setores como educação, saúde, habita-
brasileira. Teixeira (2005) narra que o Brasil tem his- ção, entre outros. Como exemplo, podemos comentar
toricamente adotado a importação de tecnologia como sobre o impacto que vem trazendo a construção do
forma de política de desenvolvimento, em algumas complexo naval de Itaguaí-RJ à sua população e ao
áreas consideradas estratégicas, possibilitando ruptu- município, com significativo aumento de índices de
ras com dependências diversas em processos produ- população, empregos, rendimentos e PIB, justificados
tivos e científicos. Lembrando que a atual Estratégia pelo aumento de investimentos na região (PINHEIRO
Nacional de Defesa – END brasileira entende que o e AGUIAR, 2012).
condicionamento da compra de produtos de defesa es-
As transferências de tecnologia podem ser vistas
trangeiros à transferência de tecnologia é uma oportu-
no recente projeto das fragatas Classe Tamandaré
nidade a ser perseguida, sendo que o estabelecimento
(FCT), que virão para modernizar a frota da Esqua-
de parcerias internacionais para pesquisa, desenvolvi-
dra brasileira, já que a geração das Classe Niterói está
mento e fabricação de produtos em território nacional
chegando ao fim. Além da cessão do conhecimento
deve ser estimulado.
do projeto alemão, está previsto o gerenciamento
O projeto dos caças AMX, em parceria com o go-
do ciclo de vida dos navios, incluindo o contrato de
verno italiano, foi, segundo Gomes (2012), uma das
manutenção pós-venda. Tal iniciativa, dependendo
aquisições tecnológicas de maior importância para a
do sucesso alcançado, contribuirá para uma maior
indústria tecnológica nacional, agregando conheci-
disponibilidade operativa dos futuros navios durante
mentos aeronáuticos e industriais necessários para
todo o ciclo de atividades, além de contribuir para
o desenvolvimento do modelo comercial ERJ-145, a
uma maior perenidade de negócios para a Base In-
aeronave responsável por colocar a EMBRAER no
dustrial da Defesa (BID).
patamar das maiores fabricantes de aviões do mundo
(FONSECA, 2012).
CONCLUSÃO
A IMPORTÂNCIA DAS TRANSFERÊNCIAS Em meio à corrida armamentista dos dias atu-
DE TECNOLOGIA NAS COMPRAS POR ais, muito se pergunta quando e como teremos For-
ças Armadas aptas para guerrear com os demais
OPORTUNIDADE
países. Num balanço atual, vê-se um grande atraso
Ao se tratar da elaboração de projetos nacionais de nossa indústria e, consequentemente, de nossos
meios. Além disso, para dificultar uma tentativa de
2
https://adm.fnq.org.br/informe-se/artigos-e-entrevistas/cases-de- modernização destes, o país vem passando por cri-
sucesso/a-gestao-do-conhecimento-na-embraer ses políticas e financeiras que acabam por deixar

32 Revista de Villegagnon . 2022


de lado quaisquer tentativas de mudança de nossos REFERÊNCIAS
meios de combate.
AMARAL, Misael Henrique Silva do. O PODER PELO MAR:
As compras por oportunidade logo se tornam uma
a indústria de construção naval militar no Brasil a partir da
alternativa para que se consiga atualizar as frotas. No
política desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (1956-
entanto, como visto neste trabalho, certas compras 1961). Mestrado (CPDOC – FGV). Rio de Janeiro, 2013.
acabam por se tornar um prejuízo à nação por não ha-
ver uma projeção clara de custos e uma gestão de ciclo FONSECA, Paulus Vinicius da Rocha. Embraer: um caso de
de vida ideal, a fim de que se planeje seu tempo de vida sucesso com o apoio do BNDES. Revista do BNDES, Ed. 37,

útil nas forças até sua alienação. Aquisições com essa 2012. Acesso em: 08 de setembro de 2022.

espécie de projeção não são as ideais para um país com GOMES, Sergio Bittencourt Varela. A indústria aeronáutica
o potencial que o Brasil tem. no Brasil: evolução recente e perspectivas. BNDES. Biblioteca
A autossuficiência industrial, principalmente no Digital, 2012. Acesso em: 08 de setembro de 2022.
campo militar, é um passo à frente para os Estados que JÚNIOR, Euclides Ribeiro. Transferência de tecnologia para
almejam destaque e a dissuasão no cenário militar in- a construção de submarinos no Brasil. 2020. Trabalho de
ternacional. No entanto, para que se atinja esse aspec- Conclusão de Curso do Curso de Altos Estudos de Política e
to, deve-se construir estratégias e planos visionários Estratégia – Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro, 2020.
que acabem por ser custosos no momento presente,
PINHEIRO, J.C.; AGUIAR, P.R. Impacto da Construção da
mas que no futuro se justificarão com os retornos em
Base de Submarinos na Economia de Itaguaí – RJ. Pontifícia
diversos setores.
Universidade Católica-RJ. Rio de Janeiro, 2012.
Para que se atinja a independência tecnológica,
com uma base industrial autossuficiente que res- TEIXEIRA, Francisco Lima Cruz. Desenvolvimento
ponda aos anseios e interesses das forças militares, Industrial e Tecnologia: Revisão da Literatura e uma

deve-se trabalhar a gestão de conhecimento atra- Proposta de Abordagem. Cadernos EBAPE.BR (FGV),

vés da assimilação do know-how da fabricação dos Rio de Janeiro, 2005.

meios, isto é, nas transferências de tecnologia. São VETTORAZZI, Jorge Luiz. A importância do
acordos com países possuidores da capacidade in- desenvolvimento do Laboratório de Geração de Energia
dustrial que farão com que os engenheiros e em- Nucleoelétrica (LABGENE) para a construção do submarino
presas adquiram a base, para que no longo prazo de propulsão nuclear. 2017. Trabalho de Conclusão de
se possa construir uma BID condizente à força da Curso do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia –
nação brasileira. Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro, 2017.

Revista de Villegagnon . 2022 33


CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO
ABSTRACT EM TRABALHOS ACADÊMICOS

Profa. Dra. Doris de Almeida Soares1


Profa. Dra. Márcia Magarinos de Souza Leão2

INTRODUÇÃO linguística de corpus, descreve alguns elementos que


caracterizam esse gênero discursivo, elenca alguns dos
problemas de linguagem mais recorrentes em sua ela-
Os trabalhos acadêmicos, em geral, incluem um boração por falantes não nativos de inglês e apresen-
resumo de seu conteúdo, redigido entre 100 e 250 pa- ta orientações para os autores brasileiros produzirem
lavras, de responsabilidade do(s) próprio(s) autor(es) seus resumos em língua inglesa com mais propriedade.
do trabalho. Além do resumo na língua original da
publicação, costuma haver uma versão em língua es-
trangeira, chamada, por exemplo, de resumen em es- A ORGANIZAÇÃO RETÓRICA
panhol, résumé em francês e abstract em inglês. Esses DOS ABSTRACTS
resumos são minitextos autônomos que apresentam
A estrutura retórica dos abstracts foi primeira-
aos leitores uma síntese do tópico, da metodologia de
mente descrita por Graetz (1982), confirmada por
estudo e das principais descobertas descritas no traba-
análises posteriores como, por exemplo, na investiga-
lho. Além de constarem na primeira página do próprio
ção de dos Santos (1996) e na de Lorés-Sanzs (2004)
trabalho, antecedendo a introdução, os resumos são
e endossada por Swales e Feak (2009). Em geral, esse
disponibilizados digitalmente na web em plataformas
gênero acadêmico é realizado por meio de cinco mo-
de consulta a bancos (de dados) de dissertações e teses
vimentos retóricos.
e de consulta aos periódicos acadêmicos. Desta forma,
os resumos ou abstracts funcionam como dispositivos O movimento 1 (Introdução) objetiva mostrar
de triagem, ajudando o leitor a decidir se deseja ter ao leitor o que a comunidade acadêmica sabe sobre
acesso à leitura completa do estudo (HUCKIN, 2001). o tópico em estudo, ou seja, o estado da arte, assim
Assim, a qualidade dos abstracts impacta fortemente como a importância de pesquisá-lo e o que motiva a
na chance de um estudo ser selecionado por outros pesquisa ou discussão. O movimento 2 (Objetivo do
profissionais para pesquisa. trabalho) tem como função apontar o propósito, a tese
ou a hipótese que baliza o estudo realizado e apresen-
A fim de contribuir para que os abstracts sejam ela-
tado no artigo, dissertação ou tese em questão. O mo-
borados com qualidade, aumentando a visibilidade e a
vimento 3 (Metodologia) cumpre informar o desenho
leitura completa das produções acadêmicas, o presente
da pesquisa, indicando as abordagens, os métodos,
artigo, fruto de uma pesquisa bibliográfica na área de
materiais e procedimentos empregados na realização
do estudo, assim como apontar dados obtidos e em
1
Professora Associada de Língua Inglesa da Escola Naval. Douto-
qual contexto. O movimento 4 (Resultados) se destina
ra em Letras pela PUC-Rio. Pós-doutoranda em Letras Vernácu-
las pela UFRJ. Pesquisadora do GPLinT (UFRJ). a informar ao leitor um breve panorama das principais
descobertas ou resultados do estudo. O movimento 5
2
Professora Adjunta de Língua Inglesa da UERJ e Professora As-
sociada de Língua Inglesa da Escola Naval. Mestre e Doutora em (Conclusão) tem a função de prover o fechamento do
Linguística Aplicada pela UFRJ. abstract, fazendo menção às implicações dos resulta-

34 Revista de Villegagnon . 2022


dos, ou à discussão que eles suscitam, ou a recomen- com verbos, e há predominância de verbos de ori-
dações a partir deles, a fim de mostrar sua relevância gem latina (por exemplo, discuss e increase) em vez
para estudos futuros. de verbos frásicos (phrasal verbs, por exemplo: talk
Apesar de esses cinco movimentos terem sido iden- about, go up). Exclamações também não são usadas,
tificados nos textos de várias áreas de conhecimento, é nem perguntas, nem direcionamento ao leitor através
possível encontrar variações que contemplem de três a do pronome pessoal “you”. Essas características, que
seis movimentos. Essas variações podem ser decorrên- devem ser evitadas, enquadram o texto em registro
cia das diferenças entre abstracts do subtipo indicativo informal. Os substantivos e advérbios são de regis-
(descritivo) – que descreve a pesquisa realizada – e do tro formal também, específicos do contexto, como
subtipo informativo – que se concentra em informar “participants” em vez de “people” e “a great amount
as descobertas feitas (SWALES e FEAK, 2012; NISO, of” em vez de “lots of”.
2015). Para Okamura e Shaw (2014), a variação tam-
bém pode ser reflexo da falta de exigência ou padro-
Tempos verbais e os movimentos retóricos
nização por diferentes periódicos das informações a
serem incluídas, assim como diferenças entre abstracts Em relação à escolha de tempo verbal, a análise
para publicações de artigos, apresentações em confe- de abstracts por diferentes autores aponta para o uso
rências ou catalogação de dissertações e teses. do presente simples e do passado simples, assim como
alguns usos do presente perfeito. No movimento 1 (In-
A título de ilustração, citamos Huckin (2001),
trodução), é usual a escolha pelo presente simples ou
que encontrou uma realidade diferente no corpus (90
presente perfeito (SWALES e FEAK, 2012). Para o mo-
abstracts) de pesquisas biomédicas que analisou na
época. No referido corpus, o autor observou constância vimento 2 (Objetivos do estudo), Swales e Feak (2009,
apenas na apresentação de três destes movimentos p. 10) recomendam utilizar o presente simples quan-
retóricos: metodologia, resultados e conclusão. do o gênero textual (por exemplo, artigo, dissertação,
Ademais, ainda hoje vigora o documento norte- tese etc.) é mencionado, mas usar o passado simples
americano que orienta a redação de abstracts (NISO, quando se trata de um substantivo que descreve o tipo
2015), que indica a apresentação dos movimentos de investigação realizada, tais como “levantamento”,
retóricos de 2 a 5, sem mencionar o movimento 1. “experimento”, “análise”. Ambos os tempos são en-
Assim, o movimento 1 (Introdução) pode vir a ser contrados em referência a “study” (“estudo”). A com-
considerado opcional por alguns autores. pilação dos exemplos apresentados por dos Santos
(1996) e por Farjami (2014), organizada nos Quadros
1 e 2, ilustra essas escolhas.
A LINGUAGEM USADA NOS ABSTRACTS Ainda sobre os tempos verbais, a literatura sugere
Os resumos acadêmicos são elaborados em regis- que o movimento 3 (Metodologia) tende a ser desen-
tro formal. Em língua inglesa, observa-se que não se volvido no passado simples (por exemplo, “The data
usam contrações de palavras, como as de pronomes were collected through [...]” e “A questionnaire was

Quadro 1. Relação entre substantivos e tempos verbais no movimento 2 (Objetivos do estudo)

article
is
paper
aim study
The object of this investigation
purpose experiment was
analysis
survey
Fonte: As autoras, com base em Santos (1996) e Farjami (2014).

Revista de Villegagnon . 2022 35


used to collect data about [...]”), ao passo que o mo- de alcançar essa maior objetividade era pela escolha do
vimento 4 (Resultados) parece variar de acordo com uso da voz passiva em frequência superior à sua ocor-
as áreas de estudo e com a escolha pessoal dos auto- rência em outros usos da língua. Assim, no lugar do
res, ou seja, tanto o presente simples quanto o passado pesquisador dizer: “I observed that [...]”, ele optava
simples são utilizados (SWALES e FEAK, 2012), con- por utilizar “It was observed that [...]”, por exemplo.
forme ilustra o Quadro 3. Contudo, o levantamento realizado por Okamura
Já o movimento 5 (Conclusão) quase sempre con- e Shaw (2014), analisando abstracts ao longo de dé-
templa o presente simples, como apontam estes exem- cadas, indicou uma mudança nessa característica. Os
plos em Farjami (2014): “The article concludes with autores relatam, portanto, um maior uso da voz ativa
[...] / concludes with a discussion of [...]”; “The paper em lugar da passiva e do uso dos pronomes pessoais
ends with [...]”; “The implications of these findings are na primeira pessoa do plural quando vários autores
[...]”; “The present study showed / suggested that [...]”. assinam os trabalhos. Deste modo, observa-se que es-
truturas do tipo “It is argued [...]” (“Argumenta-se”)
têm sido substituídas por orações na voz ativa, como
Impessoalização do discurso
“This paper argues that [...]” (“Este artigo sustenta
Outra questão importante na redação dos traba- que [...]”). Há verbos que são mais utilizados com um
lhos acadêmicos e, por conseguinte, na elaboração de sujeito impessoal, como a escolha por usar “paper” no
abstracts é o (des)uso da impessoalização do discurso. exemplo acima, mas outros ocorrem com sujeitos per-
A impessoalização do discurso era uma forte caracterís- sonalizados. Assim, em lugar de “It was found [...]”,
tica dos trabalhos científicos no passado para eliminar a opção cada vez mais escolhida é: “We found [...]”
marcas de subjetividade do discurso. Uma das formas (“Descobrimos [...]”), em trabalhos com múltiplos

Quadro 2. Exemplos de verbos utilizados no movimento 2 (Objetivos do estudo)

describes
argues that
examines
is based on
reports on a
This article
reports the results of
The present paper
investigated the effects of
study
deals with
presents the findings of
focuses on the
provides an overview of
Fonte: As autoras, com base em Santos (1996) e Farjami (2014).

Quadro 3. Exemplos de verbos no presente e no passado no movimento 4 (Resultado)

are discussed (in terms of)


suggest that
findings show(ed) that
The results indicate(d) that
results of this study reveal(ed) that
are consistent with
have implications for
Fonte: As autoras, com base em dos Santos (1996) e Farjami (2014).

36 Revista de Villegagnon . 2022


autores, em áreas de volumosa produção científica, cionados à sintaxe quanto à semântica e que afetaram
como biologia celular, marketing e economia mate- a correção da estrutura frasal. Estes resultaram em fra-
mática. Outro passo em direção à personalização é o ses incompletas, confusas, ambíguas ou ininteligíveis, o
aumento de orações com pronomes, como em “Our que acabou impactando negativamente a compreensão
results indicate [...]” (“Nossos resultados indicam”), dos textos. Outras questões envolveram a escolha de
em lugar da voz ativa impessoal “The results indicate palavras, bem como o emprego de preposições e de arti-
[...]” (OKAMURA e SHAW, 2014). gos. Schuster et al. (2013), por sua vez, analisaram 114
abstracts de artigos nas áreas das ciências, escritos por
alunos de graduação em quatro universidades brasilei-
DIFICULDADES RECORRENTES ras. Para o estudo, um linguista americano avaliou os
AO REDIGIR UM ABSTRACT textos e depreendeu 23 categorias de erros. Contudo, a
Para nosso estudo, tivemos acesso a pesquisas sobre pesquisa revelou que apenas seis categorias concentra-
a redação de abstracts por falantes de nacionalidades di- ram 66% dos problemas. Estas se referiam a escolha
versas, como brasileiros (DAYRELL, 2009; FRADKIN, de palavras (ex. “amount” x “number”), colocações
2015; SCHUSTER et al., 2013), tchecos (KLIMOVA, (substantivo/verbo + preposição), artigos, preposições,
2013), etíopes (GESSESSE, 2016), iranianos (SABET, ortografia e pontuação.
2014), israelenses (GRAETZ, 1982) e tailandeses (AM- Além de haver a barreira linguística, também há de se
NUAI, 2020). Em comum, as pesquisas revelam que, in- considerar as diferenças nas convenções e normas adota-
dependentemente da cultura na qual o autor/pesquisador das na comunidade acadêmica em língua nativa e na co-
se insere, há problemas similares e que são recorrentes munidade acadêmica em língua estrangeira (DAYRELL,
para aqueles falantes cuja língua materna não é o inglês. 2009), o que requer especial atenção por parte do autor/
Portanto, dificuldades ou dúvidas na escrita não são in- pesquisador. Portanto, é essencial estar em contato com
comuns e podem afetar a compreensão geral do texto, as publicações internacionais de maior prestígio na área
tornando-o obscuro ou pouco objetivo. Isso impacta de atuação em que se escreve, observando as característi-
negativamente no potencial de acolhimento da pesquisa cas próprias dessas comunidades discursivas.
que se quer divulgar em publicações internacionais.
Klimova (2013), por exemplo, analisou 66
RECURSOS E DICAS
abstracts escritos por estudantes na Universidade de
Hradec, República Tcheca, e constatou que a preferên- Com o objetivo de auxiliar o autor brasileiro na re-
cia foi por produzir o resumo em tcheco e traduzi-lo dação de seus abstracts, elencamos alguns pontos que
para obter o abstract. Isso resultou em vários proble- merecem destaque, baseados nas leituras feitas para
mas com relação à gramática, ortografia, estilo e pon- esta pesquisa.
tuação, muitas vezes causados pela interferência da Primeiramente, é necessário compreender que o
língua materna. A autora cita como exemplo um erro, abstract não é uma mera versão do resumo em portu-
que sabemos também ser comum para o escritor brasi- guês para o inglês, visto que algumas práticas comuns
leiro, que é o uso de substantivos incontáveis em inglês, na redação acadêmica em nossa língua são fontes de
como “information”, grafados com forma plural, que problemas, se vertidas literalmente para o inglês. Um
não existem na língua. Outra questão foi o emprego exemplo é o uso da estrutura “locução verbal + sujei-
correto de artigos, visto que são raros na língua tcheca. to paciente” na voz passiva, como na seguinte frase:
Esse também é um problema enfrentado por brasilei- “Na parte teórica, são dadas informações básicas so-
ros, pois as regras para o uso de artigos em inglês têm bre [...]”, cuja tradução literal é “In the theoretical part
suas peculiaridades e não são exatamente como as do are given some basic information about [...]”. Portanto,
português. Já Amnuai (2020) analisou 40 abstracts em caso o autor/pesquisador decida verter o resumo para
projetos de pesquisa de alunos tailandeses no programa o inglês, será necessário, primeiramente, uma revisão
English for International Communication (EIC). A pes- e adequação da estrutura frasal do texto em português
quisa constatou a ocorrência de problemas tanto rela- para eliminar possíveis problemas, para então usar uma

Revista de Villegagnon . 2022 37


ferramenta de tradução. No exemplo dado, seria o caso Para que o abstract cumpra seu propósito comuni-
de redigir a frase, obtendo-se “Na parte teórica, infor- cativo, que é despertar o interesse do leitor para proce-
mações básicas sobre [...] são dadas”. Outros exemplos der à leitura do trabalho acadêmico, devemos mantê-lo
são frases muito longas, contendo várias orações encai- objetivo e sucinto. Portanto, deve-se evitar o uso de
xadas, e a elaboração de frases que não seguem a ordem repetições, exemplos, preliminares, detalhes descriti-
usual dos componentes (não marcada), ou seja, “sujei- vos, citações, notas de rodapé, adjetivos, superlativos
to + verbo + complemento”. A versão literal, portanto, ou outros recursos que não são essenciais aos pontos
deve ser evitada (FRADKIN, 2015, p. 109). principais que precisam ser abordados. Essa foi uma
Um segundo ponto que merece atenção é a revisão observação feita já no levantamento seminal de Graetz
cuidadosa do abstract, principalmente quanto aos ele- (1982), baseado em 87 abstracts advindos de diferen-
mentos linguísticos que a literatura aponta como fonte tes áreas de conhecimento. A autora também observou
de erros recorrentes na escrita em inglês por brasilei- e recomenda que não se usem jargões, abreviações ou
ros, como os elencados no Quadro 4. símbolos, uma vez que podem levar à falta de compre-
ensão quando não explicados. Quanto ao movimento 1
As dúvidas que surgem à medida que se elabora
(Introdução), um erro comum, e que deve ser evitado,
e se revisa o abstract podem ser esclarecidas usando
é alongá-lo em várias frases, tornando-o mais pronun-
algumas estratégias, tais como:
ciado do que os movimentos seguintes, que são mais
• recorrer aos corretores de texto online, como o importantes para motivarem os leitores a lerem o arti-
Grammarly3 ou o Language Tool4; go. Sugere-se, portanto, que este seja conciso e limitado
• fazer uma busca na internet pelo termo que se tem em extensão, e que haja um equilíbrio com relação aos
dúvida entre aspas e analisar os resultados obtidos, demais movimentos retóricos realizados no abstract.
escolhendo o que parece ser mais recorrente no Um terceiro ponto que destacamos é o fato de que
contexto em que o abstract se insere; a língua segue certas convenções. Assim, em situações
• ler explicações em materiais de referência, como e contextos recorrentes, lançamos mão de “modos de
gramáticas e dicionário, estudando o ponto que dizer” pré-fabricados, os quais incorporamos ao nos-
causou a dúvida; so repertório linguístico devido a sua alta frequência
• procurar o termo em outros abstracts ou em um de uso, o que resulta na sua memorização. Esse é um
banco de textos da área, chamado de corpus5, ou recurso valioso que pode auxiliar o autor/pesquisador
ainda consultar listas de vocabulário acadêmico6. a melhorar a qualidade de seus textos, pois elimina
dúvidas de regência verbal e nominal, por exemplo,
3
https://www.grammarly.com ou de escolha de expressões acadêmicas. Sendo assim,
4
https://languagetool.org/pt-BR é importante estarmos cientes da existência desses mo-
5
Para um exemplo, consulte: https://www.english-corpora.org/coca dos de dizer e aprendermos a empregá-los na escrita.
6
Para um exemplo, consulte: https://www.wgtn.ac.nz/lals/resour- Ao longo deste artigo, apresentamos alguns des-
ces/academicwordlist/awl-headwords ses modos de dizer, principalmente nos Quadros 1-3,

Quadro 4. Elementos que requerem atenção maior na etapa de revisão dos abstracts.

Categorias Componentes
Uso de artigos, preposições e tempos verbais; concordância verbal e nominal;
Gramática
uso de orações com “there” para existência; emprego de voz ativa e voz passiva
Léxico Ordenação e escolha de palavras; classes de palavras
Mecânica Ortografia, pontuação, uso de maiúsculas e abreviações
Estilística Frases muito longas, repetição de palavras, registro (nível de formalidade)
Fonte: As autoras

38 Revista de Villegagnon . 2022


e que podem servir de ponto de partida para a mais familiarizados. O objetivo deste trabalho, por-
elaboração de um inventário de expressões comu- tanto, foi descrever alguns elementos que caracteri-
mente utilizadas em abstracts. Como sugestão para zam esse gênero discursivo, apontar alguns dos pro-
aumentar esse inventário, apresentamos a seguinte blemas mais recorrentes em sua elaboração e sugerir
atividade, recomendada pelo Dr. Valtencir Zuco- algumas abordagens para a redação de abstracts de
lotto, Professor Titular no Instituto de Física de boa qualidade. Para tanto, realizamos uma pesquisa
São Carlos – IFSC da Universidade de São Paulo bibliográfica na área de linguística de corpus para
(USP). A atividade consiste no estudo de modelos identificar, na literatura internacional, as dificulda-
de abstract na sua área de atuação. O autor/pes- des mais comuns na escrita de abstracts por auto-
quisador identifica os cinco periódicos acadêmicos
res não nativos, incluindo os brasileiros. Segundo
mais relevantes na sua área, cujos textos venham
os estudos revisados, o que mais se destacou foram
acompanhados de abstracts. Em seguida, lê os
questões referentes ao estilo e à correção léxico-gra-
abstracts e escolhe dez que sejam mais significativos
matical bem como deficiências no emprego e desen-
para o seu objeto de estudo. Por fim, busca com-
volvimento dos movimentos retóricos típicos do gê-
preender a organização do texto, identificando os
nero. Desta forma, ainda que o domínio do registro
movimentos retóricos e quais modos de dizer são
utilizados para desenvolver o texto. A partir dessas formal do idioma seja o melhor caminho para uma
observações, compila uma lista com esses modos de produção proficiente, o conhecimento das principais
dizer, que estará disponível para consulta sempre escolhas lexicais e gramaticais nesse gênero linguís-
que necessário. tico pode contribuir para o processo de preparo de
abstracts em trabalhos acadêmicos.
Por fim, lembramos que, além das ideias apresen-
tadas neste artigo, há uma vasta gama de materiais
online que podem ajudar o autor/pesquisador a refinar REFERÊNCIAS
a sua redação tais como centros de escrita7, aulas no
Youtube8, sites especializados em escrita acadêmica9, AMNUAI, W. An Error Analysis of Research Project
entre outros. Abstracts Written by Thai Undergraduate Students.
Advances in Language and Literary Studies, [S.l.], v. 11,
n. 4, p. 13-20, ago. 2020. Disponível em: http://dx.doi.
CONSIDERAÇÕES FINAIS org/10.7575/aiac.alls.v.11n.4p.13. Acesso em: 09 ago. 2022.
A produção de artigos científicos, relatos de pes- DAYRELL, C. Sense-Related Verbs in English Scientific
quisas, monografias, trabalhos de conclusão de cur-
Abstracts: A Corpus-Based Study of Students’ Writing. ESP
so e demais textos acadêmicos exige que seus autores
across Cultures, v. 6, p. 61-78, 2009. Disponível em: https://www.
redijam um resumo em língua estrangeira. Em língua
lancaster.ac.uk/fass/projects/corpus/UCCTS2008Proceedings/
inglesa, esse gênero textual é chamado de abstract e
papers/Dayrell.pdf. Acesso em: 09 ago. 2022.
tem seus elementos básicos descritos na literatura.
O desafio de sua redação, para os graduandos bra- Dos SANTOS, M. B. The textual organization of
sileiros que iniciam sua produção acadêmica, está research paper abstracts in Applied Linguistics. Text –
no domínio da linguagem, que difere dos registros Interdisciplinary Journal for the Study of Discourse 16, p.
coloquiais e das escolhas lexicais com as quais estão 481-500, 1996.

FRADKIN, C. (2015). A Summary Evaluation of the Top-


7
Para um exemplo, consulte: https://writingcenter.gmu.edu/guides/
Five Brazilian Psychology Journals by Native English-
reducing-informality-in-academic-writing
Language Scholars. Psicologia: Reflexão e Crítica, 28, p.
8
Para exemplos, consulte: https://eaulas.usp.br/portal/video.ac-
99-111, 2015. Disponível em: https://www.researchgate.
tion?idItem=3153 ou https://www.youtube.com/channel/UCc3J-
DWPbI4s0b-AeJ3WN03g net/publication/283859018_A_Summary_Evaluation_of_
9
Para um exemplo, consulte: American Psychological Association the_Top-Five_Brazilian_Psychology_Journals_by_Native_
em https://apastyle.apa.org English-Language_Scholars. Acesso em: 09 ago. 2022.

Revista de Villegagnon . 2022 39


FARJAMI, H. Key lexical chunks in article abstracts NISO (the National Information Standards Organization).
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40 Revista de Villegagnon . 2022


UM MODELO DE PROPOSTA PARA
AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO USANDO
O CONCEITO FUZZY

Capitão de Mar e Guerra (RM1-IM)


Luís Odair Azevedo Gomes Raymundo1

INTRODUÇÃO de serviços” pela percepção dos “demandantes de ser-


viços”. O nível ótimo dessa interação múltipla é medi-
Cada vez mais, o processo de avaliação de desem-
do de acordo com a precisão e importância dos fatores
penho no âmbito do cenário de auxílio à tomada de
condicionantes aplicados.
decisão vem se tornando necessário. Além disso, as
O modelo utiliza como suporte o Modelo de Hie-
variáveis ou atributos inerentes ao processo têm sido
diagnosticados com mais precisão, refletindo também rarquia Fuzzy Coppe/Cosenza – FHMCC (Cosenza,
em aumento desse número para consideração. 1998 e 2009), que considera o conjunto de fatores de-
mandantes e ofertantes.
Um dos bons exemplos disponíveis, e também um
grande desafio, é quando se tem a necessidade de se Os resultados apontam para um índice de desem-
confrontar demanda a uma determinada oferta de ser- penho para cada alternativa avaliada, em relação a
viços, diante de um vasto conjunto de elementos en- outras comparadas, expresso por um “Índice de Per-
volvidos e inter-relacionados envolvidos, o que forma cepção” (IP), que pode ser classificado.
uma complexa rede de stakeholders. O conceito apresentado pode contribuir para me-
Nesse contexto, este artigo apresenta um modelo, a lhorar as ações estratégicas a serem tomadas, incluin-
ser aplicado em caso geral, para um arranjo adequado do o nível de serviço prestado.
dos requisitos desejados de ambos os lados – deman-
dantes e ofertantes; para a prestação de serviços.
Comentário Sobre a Literatura
Essa linha de pensamento sugere a inclusão dos
Um dos problemas mais cruciais em muitos métodos
elementos mais importantes em questão, apontando
para uma fórmula que indica uma avaliação de desem- de tomada de decisão é a avaliação precisa dos dados per-
penho, com base nas percepções diagnosticadas dos tinentes, e a modelagem fuzzy tem se mostrado uma ferra-
stakeholders, que são os mais interessados ​​na avaliação. menta útil para ser utilizada em situações complexas de-
vido à natureza dos dados e diversas variáveis ​​envolvidas.
Inicialmente, aborda-se a interação entre os diver-
sos stakeholders e os fatores que compõem o ambiente Conforme amplamente descrito no fórum acadê-
em tratamento, levantando componentes (atributos) mico, a modelagem fuzzy é originada na “teoria do
chave que podem aferir o desempenho dos “ofertantes raciocínio aproximado” (Zadeh, 1979). Essa teoria
fornece uma estrutura robusta para raciocinar dian-
te de informações imprecisas e incertas. Ponto central
1
D.Sc. em Engenharia de Produção (UFRJ/COPPE com sanduíche
para essa teoria é a representação de proposições tanto
pela Loughborough University); M.Sc. em Logistics Engineering
Management (National University); B.Sc. em Ciências Econômi- como declarações que atribuem conjuntos fuzzy quan-
cas (UFF) e B.Sc. em Ciências Navais (EN). to como valores atribuídos para variáveis.

Revista de Villegagnon . 2022 41


Sob esse conceito, foi formulado o FHMCC. A hie- O resultado final para o modelo proposto neste ar-
rarquia do modelo fuzzy é, em geral, um modelo de tigo é avaliar o desempenho por meio de um índice
alocação de recursos que avalia o nível de satisfação de de percepção (IP), com o propósito de reunir padrões
um conjunto de “atributos/atributos necessários para com qualidade de serviço, identificados pela percep-
um determinado projeto” em contraste com a disponi- ção dos stakeholders. E os conteúdos de percepção
bilidade desses “atributos/atributos por diferentes alter- vêm da teoria da qualidade do serviço.
nativas”. O grau de satisfação é medido comparando a A qualidade percebida do serviço é definida como
importância de cada fator para o projeto e a quantidade a diferença entre as expectativas e percepções dos con-
e qualidade de disponibilidade desse fator para cada al- sumidores/usuários, que eventualmente depende do
ternativa. A maior utilidade deste método é a tomada tamanho e da direção das lacunas relativas à entrega
de decisão entre diferentes perfis para diferentes graus da qualidade do serviço por parte da organização.
de importância para os fatores gerais e específicos, mes-
GHOBADIAN et al. (1994) confirmam que a maio-
mo com um grande número de alternativas.
ria das definições de qualidade recairá sobre a aborda-
Originalmente concebido para estudos de sele- gem baseada no usuário (ou consumidor) afirmando
ção de instalações, o FHMCC, por sua elasticidade e que a qualidade percebida pelo cliente deve correspon-
consistência, permite detalhar perfis para níveis inter- der ou superar suas expectativas, defendendo a ideia
mediários de oferta e demanda, excesso de oferta de de que a qualidade do serviço deve ser, acima de tudo,
fatores e redefinir penalidades de escassez de oferta “o que os clientes percebem”.
para demanda inexistente. O modelo incorpora a ma-
Destarte, o conceito de percepção sob avaliação do
temática baseada na lógica fuzzy. Como a lógica fuzzy
serviço prestado tem um significado importante, que
incorpora a lógica clássica (considera não apenas o 0
pode indicar estratégias a serem aplicadas de acordo
ou o 1 – que estão nas extremidades, mas o potencial
com as perspectivas dos stakeholders.
entre 0 e 1), o modelo é flexível, mais próximo da re-
alidade, permitindo o uso de variáveis ​​quantitativas e
qualitativas, sendo capaz de gerar resultados quantita- Abordagem Metodológica
tivos a partir de dados qualitativos. Este artigo se dedica a adaptar o desempenho ava-
Para este estudo, o papel dos stakeholders recebe liado do modelo FHMCC, por meio do confronto
a mesma importância que a seleção dos atributos do direto entre o perfil dos prestadores de serviços e os
serviço. Os stakeholders são os agentes envolvidos em demandantes de serviços. O FHMCC é basicamente
todo o setor avaliado e serão responsáveis ​​pela avalia- uma operação com matrizes e se baseia no confronto
ção do desempenho, definidos como “qualquer grupo entre o nível de demanda e os fatores condicionantes
ou indivíduo que pode afetar ou é afetado pelo alcance e atributos da oferta. O esquema metodológico deste
dos objetivos da organização” (Mitchell et al., 1997). estudo é mostrado na Figura 1.

Demandantes de
Serviços Perfil de Demanda

Stakeholders Análise Índice de


Matemática Fuzzy Percepção
Perfil de Oferta

Ofertantes de
Serviços

Figura1. Esquema Metodológico

42 Revista de Villegagnon . 2022


De forma ampla, para medir com maior grau B, C, D, E; onde: A = Extremamente Importante (EI),
de precisão a importância dos atributos obtidos, a em que a ausência do fator impede o sucesso; B = Mui-
pesquisa é realizada utilizando um modelo de de- to Importante (MI), a ausência do fator prejudica um
cisão multicritério (MDM) fuzzy. A estrutura dese- pouco o sucesso, mas não o inviabiliza; C = Importan-
nhada para avaliar o desempenho parte das pers- te (I), a ausência do fator prejudica o sucesso, mas não
pectivas dos diferentes stakeholders do ambiente o inviabiliza; D = Pouco Importante (PI), a ausência do
em questão, de acordo com os objetivos do proble- fator não compromete o sucesso, mas o torna menos
ma de avaliação. atrativo; e D = Não Importante (NI), a ausência do
A abordagem do modelo empregado é uma forma fator não compromete ou influencia o sucesso caracte-
adaptativa da estrutura desenhada por COSENZA rizando uma expectativa não exigida.
(1989 e 2009) e RAYMUNDO (2016) e consiste em A coleta de dados deve ser feita por meio da elabo-
comparar duas matrizes, a matriz de demandantes de ração de uma estratégia de resposta a um questionário
serviços, tipo “h x n” onde h = número de stakeholders de múltipla escolha com possíveis respostas para atri-
e n = número de atributos e a matriz de perfil de alter- buição de graus de importância às variáveis ​​do estudo.
nativas, tipo “n x m”, onde n = número de atributos, e A quarta fase é determinar a matriz de ofertantes
m = número de alternativas a serem avaliadas. de serviços (Matriz B). Essa matriz relaciona a dispo-
Na primeira fase do estudo, é necessário determinar nibilidade dos atributos estabelecidos para cada alter-
quais stakeholders são atores dentro do desempenho nativa “m” avaliada.
a ser considerado. O modelo pode suportar quantos Os valores atribuídos a cada elemento da Ma-
players forem encontrados. Para o modelo proposto, triz B são baseados nas opiniões percebidas dos
os stakeholders são classificados em dois grupos: “de- stakeholders demandantes de serviços, em um in-
mandantes de serviços” e “prestadores de serviços” de tervalo de cinco valores de suporte (termos linguís-
h1, h2, ..., hn. ticos) classificados por (classificações de desempe-
Na segunda fase, trata-se de determinar quais nho). São possíveis valores de elementos “aij”: A,
atributos (mediante condicionantes) podem exer- B, C, D, E: A = Muito Bom (MB), em que as con-
cer influência na demanda de serviços nas alterna- dições encontradas na íntegra demanda de serviço,
tivas apresentadas, de m1, m2, ..., mn. Neste esco- com situação privilegiada; B = Bom (B), em que as
po, os principais componentes que podem avaliar condições julgadas desejáveis para
​​ o atendimento
o desempenho dos atores envolvidos (prestadores da demanda; C = Regular (R), em que se encontram
de serviços) são tratados. Esta parte, de definição condições em regularidade de atendimento à de-
do atributo, é muito importante para o processo e manda, caracterizando uma situação de normalida-
pode ser o principal desafio quando medidas glo- de; D = Ruim (R), em que as condições encontradas
bais precisam ser obtidas. não são aceitáveis para
​​ o atendimento da demanda,
Na terceira fase, a tarefa é construir a matriz de caracterizando uma situação de precariedade; e E =
demandantes de serviços (Matriz A). Essa matriz rela- Muito Ruim (MR), em que condições encontradas
ciona a demanda por prestadores de serviços expressa em baixa intensidade ou não são encontradas, ca-
pelo conjunto dos atributos estabelecidos. Também racterizando uma situação de escassez.
formaliza os níveis de exigência de desempenho apli- Para ambas as fases anteriores, cada respondente
cáveis ​​a cada stakeholder ofertante de serviços sob avalia a importância relativa dos pesos dos atributos
avaliação de desempenho. de serviço e a classificação de desempenho de cada al-
Os valores atribuídos a cada um dos elementos da ternativa em relação a cada atributo de serviço, usan-
Matriz A são classificados de acordo com a demanda do um dos termos linguísticos definidos no conjunto
percebida dos stakeholders demandantes de serviços, de termos correspondente.
em um intervalo de cinco valores de suporte (termos Todas as respostas devem ser hierarquizadas e tra-
linguísticos) classificados pelos requisitos (pesos dos tadas conforme sugerido pela FHMCC, que permite
atributos). São possíveis valores de elementos “aij”: A, um modelo de alocação de recursos que avalia o nível

Revista de Villegagnon . 2022 43


de satisfação de um conjunto de atributos necessários O confronto segue a lógica de um produto matri-
ao projeto em contraponto à disponibilidade desses cial. Porém, ao invés de operar cada produto (aij x bjk),
atributos para diferentes alternativas. O grau de sa- os valores foram comparados conforme uma tabela de
tisfação é medido comparando a importância de cada confronto para determinação do elemento somatório
atributo para o projeto e a qualidade da disponibili- (cik) obtendo assim os valores utilizados na montagem
dade desse atributo em cada alternativa. do resultado “Matriz C – Matriz de Percepção (Tabela
A quinta fase destina-se a confrontar as duas ma- 3 abaixo).
trizes obtidas nas fases três e quatro: “Matriz A (h x A seguir, a “Matriz C – Matriz de Percepção”
n)”, em que “h” é o número de stakeholders e “n” é (Tabela 3) é multiplicada pela “Matriz D – Diago-
o número de atributos; e “Matriz B (n x m)”, em que nal (h x h)” (Tabela 4), em que “h” é o número de
“n” é o número de atributos e “m” é o número de “stakeholders ofertantes de serviços”. Para a compo-
alternativas (a serem considerados). sição da Matriz D, os elementos diagonais assumem o
A Tabela 1 abaixo expressa a “Tabela de Con- valor (1/n), em que “n” é o número de “stakeholders
frontação”. ofertantes de serviços”.
A Tabela 2 abaixo demonstra o resultado da opera- Em seguida, para atingir o desejado “Índice de
ção da matriz de confronto de pares (aij x bjk) entre as Percepção” (IP), é necessário obter a multiplicação
matrizes de demanda e oferta. da Matriz C pela Matriz D. O resultado é expresso

Tabela 1. Tabela de Confrontação (A ⊗ B = C)

Ofertantes
A B C D E
A 1 1 - 1/n 1 - 2/n 1 - 3/n 1 - 4/n
B 1 + 1/n 1 1 - 1/n 1 - 2/n 1 - 3/n
Demandantes C 1 + 2/n 1 + 1/n 1 1 - 1/n 1 - 2/n
D 1 + 3/n 1 + 2/n 1 + 1/n 1 1 - 1/n
E 1 + 4/n 1 + 3/n 1 + 2/n 1 + 1/n 1

Tabela 2. Fatores Condicionantes de Demanda e Oferta

Ofertantes
A B C D E
A 1,0 0,0 0,0 0,0 0,0
B 1,1 1,0 0,0 0,0 0,0
Demandantes C 1,2 1,1 1,0 0,0 0,0
D 1,3 1,2 1,1 1,0 0,0
E 1,4 1,3 1,2 1,1 1,0

Tabela 3. Matriz C – Matriz de Percepção (h x m)

Alternativas
Ofertantes de Serviços Possíveis valores para o elemento “cik”: Tabela de Confrontação

44 Revista de Villegagnon . 2022


pela “Matriz E – Índice de Percepção” mostrada na Em primeiro lugar, sobre a ferramenta de suporte
Tabela 5 abaixo, que ilustra o desempenho de cada utilizada. A técnica FHMCC mostra-se auxiliar nas
alternativa, com base em diferentes stakeholders aplicações em relação ao objetivo descrito devido à
ofertantes de serviços, podendo ser classificados sua flexibilidade, que permite combinar matrizes re-
como desejado pelo gestor/tomador de decisão, me- ferentes a questões de demanda e oferta, ponto chave
diante normalização. para encontrar uma solução adequada e abrangente.
Em segundo lugar, reunir todas as partes interessa-
das em uma solução abrangente facilita a quantifica-
DISCUSSÃO
ção, tanto quanto possível, do impacto da demanda e
Este artigo apresenta uma alternativa ao uso de ló- da oferta de serviços como um sentimento de percep-
gica fuzzy e modelos de hierarquia analítica aplicados ção muitas vezes confuso. Isso ajuda a medir os efeitos
à avaliação de desempenho, que emergem diferentes do posicionamento de alternativas operando em toda
fórmulas de mensuração para apoiar ao máximo as a variedade e complexidade de serviços exigidos pelos
decisões dos stakeholders. demandantes e, também, a definir estratégias precisa-
Nesse contexto, fundamentado na abordagem de mente diferentes para cada parte interessada.
tomada de decisão multiatributos, o modelo propos- Em terceiro lugar, é desejável a utilização de um
to aponta para um indicador baseado na percepção suporte computacional para a execução do algoritmo
avaliada por demandantes de serviços em relação estabelecido, em função do tamanho das matrizes ob-
aos ofertantes de serviços, ambos identificados como tidas (em função do número de stakeholders, número
stakeholders. de atributos e número de alternativas), a fim de pro-
O modelo proposto traz algumas conclusões inte- porcionar resultados rápidos e possibilitar ajustes fi-
ressantes para um contexto complexo de mensuração. nos recorrentes desejados pelo modelador.

Tabela 4. Matriz D – Matriz Diagonal (h x h)

Ofertantes de Serviços
A B C D E
A 1/n 0 0 0 0
B 0 1/n 0 0 0
Ofertantes de
C 0 0 1/n 0 0
Serviços
D 0 0 0 1/n 0
E 0 0 0 0 1/n

Tabela 5. Matriz E – Matriz “Índice de Percepção” (h x m)

Ti
Alternativas
(média)
dik dik dik
Ofertantes de Serviço dik dik dik
dik dik dik
Zk (média)

Revista de Villegagnon . 2022 45


Em quarto lugar, pela seleção de stakeholders, atri- COSENZA, C.A.N. (2009), “Metrics and operators for
butos e alternativos em avaliação, os modeladores fi- facility site selection”, working paper, Martin Centre for
cam livres para construir cenários que permitem lidar Architectural and Urban Studies Cambridge University,
com o maior número possível de variáveis ​​visualiza- Cambridge
das, desde matrizes simples até complexas, abordando
GHOBADIAN, A., Speller, S. and Jones, M. (1994), “Service
múltiplas dimensões.
quality; concepts and models”, International Journal of
Ademais, o resultado traduzido como “índice de per- Quality & Reliability Management, v. 11, pp. 43-66
cepção” também permite auxiliar a orientar políticas e
estratégias diversas da percepção do ambiente estudado, MITCHELL, R.K., Agle, B.R. and Wood, D.J. (1997),

sendo uma ferramenta útil para os interesses da gestão, “Toward a theory of stakeholder identification and salience:
quando há o interesse em hierarquizar as alternativas. defining the principle of who and what really counts”, The
Academy of Management Review, 22(4), pp. 853-886
Por fim, sabe-se que a avaliação de desempenho
requer um processo de melhoria contínua. O modelo RAYMUNDO, L.O.A.G.R., Índice de Percepção de Aeroportos.
proposto é uma contribuição para trazer, dentre vá- Modelo de Mensuração de Percepções Sobre Performance de
rias, mais uma abordagem a ser discutida, sendo aber- Aeroportos em Escala Global. Uma Abordagem Fuzzy. 180f.
ta a futuros desenvolvimentos rumo à desejada exce- Tese de Doutorado - UFRJ, Rio de Janeiro, 2016.
lência na gestão.
TRIANTAPHYLLOU, E. and LIN, C., (1996), “Development
and evaluation of five fuzzy multiattribute decision-making
REFERÊNCIAS methods”, International Journal of Approximate Reasoning,
14:281-310
COSENZA, C.A.N. (1998), “Localização industrial:
delineamento de uma metodologia para a hierarquização ZADEH, L. A. (1979), “A theory of approximate reasoning”,
das potencialidades regionais”, working paper, Federal Machine Intelligence, vol. 9, Halstead Press, New York, pp.
University of Rio de Janeiro – Coppe/UFRJ 149-194.

46 Revista de Villegagnon . 2022


O RADIOAMADORISMO NA ESCOLA NAVAL
DE VILLEGAGNON PARA O MUNDO!

Capitão de Mar e Guerra (RM1)


Cesar Henrique Assad dos Santos1

O final do século XIX caracterizou-se pelo desen- e o espaço, através de um conjunto de satélites com-
volvimento tecnológico e industrial. Em 1888, Hein- partilhados e a própria estação espacial ISS, pois o
rich Rudolf Hertz demonstrou a existência das ondas radioamadorismo faz parte da qualificação de todo
eletromagnéticas, conhecidas como Ondas Hertzianas, astronauta.
e apenas dois anos após, Guglielmo Marconi adaptou- A primeira rádio transmissão ocorrida na Escola
-as a um sistema de comunicações, marcando a inven- Naval deu-se no ano de 1938, quando, sob a orienta-
ção do rádio. A partir de então, diversas pessoas no ção do Almirante Menezes de Oliveira, professor de
mundo, motivadas pela curiosidade em relação a essa rádio eletricidade, os Aspirantes montaram seu pró-
nova tecnologia, iniciaram pesquisas e experimentos prio transmissor. Em 1941, então, por meio da Ordem
para explorar as suas possibilidades. Surgia então o de Serviço nº 5 de 30 de abril, foi oficialmente criado
radioamadorismo, um hobby de pessoas apaixonadas
o “Grêmio de Radioamadores”, o mais antigo daque-
por novas tecnologias, pesquisa, experimentos e troca
la instituição e que na época utilizava o indicativo de
de conhecimento.
chamada PY1BE.
Basicamente, o radioamador realiza contatos bi-
Algumas mudanças ocorreram desde então, dentre
laterais, via rádio, com outros radioamadores, for-
elas o indicativo PY1BJN, outorgado em 1954 por
mando uma rede de congraçamento e cooperação que
solicitação do então Presidente do Grêmio, Aspirante
interliga mais de três milhões de pessoas ao redor do
Mauro Cesar, posteriormente Ministro da Marinha.
mundo. Além disso, participa de competições de co-
Esse indicativo perdura até os dias atuais, um dos mais
municações, uma atividade lúdica em que o desempe-
antigos em contínua operação no Brasil. Houve ainda
nho de seus sistemas e suas habilidades são testadas;
a mudança de seu nome para “Grêmio de Comunica-
divulga datas e fatos importantes de sua região e país;
ções da Escola Naval” (GCEN) em 1984, por deter-
apoia, com equipamentos próprios, ações de cunho
minação do Contra-Almirante Ivan da Silveira Serpa,
humanitário em regiões remotas ou em calamidade;
Comandante da Escola, Oficial da primeira turma da
e atua na salvaguarda da vida humana no mar, pois
Especialidade de Comunicações na Marinha, que tam-
forma uma rede de comunicações mundial em ininter-
bém exerceu o cargo de Ministro da Marinha, com a
rupta operação.
visão de levar aos Aspirantes as atividades profissio-
O desejo de conhecer novas tecnologias fez com
nais dessa especialização.
que o radioamadorismo absorvesse e, por vezes, até
Apesar de toda essa evolução, o espírito continua
protagonizasse o surgimento de novas tecnologias de
o mesmo: trazer aos Aspirantes o contato com novas
telecomunicações. Hoje vai além da transmissão ele-
tecnologias, um complemento de viés prático que mui-
tromagnética na atmosfera, pois abrange a internet
to enriquece a teoria apresentada em sala de aula, no
elevado nível acadêmico da instituição. Propicia tam-
1
PY1-XH, radioamador. Foi responsável pela estação radioa-
madora da Escola Naval, junto à Agência Nacional de Teleco- bém a projeção da Escola Naval e da Marinha a nível
municações. mundial, tendo em vista tratar-se de uma atividade

Revista de Villegagnon . 2022 47


universal e com grande número de adeptos em todo Inspirados nesse exemplo, concluímos que uma
o mundo. É importante lembrar ainda que a Escola das possibilidades para incentivar e manter PY1B-
Naval é a único centro de formação de Oficiais das JN viva seria a criação de um grupo de radioa-
Forças Armadas brasileiras a manter uma estação de madores voluntários, que dediquem seu tempo e
radioamadores em atividade. conhecimento em prol dessa atividade. Em uma
No entanto, a evolução tecnológica dos últimos breve pesquisa, não foi difícil encontrar dentro e
trinta anos tornou cada vez mais desafiador a um jo- fora da Marinha do Brasil radioamadores que, por
vem, já absorvido pelo exigente currículo da Escola amor ao hobby e respeito e admiração à Marinha
Naval, dedicar-se e aprender sobre esse hobby a pon- e a uma das mais antigas estações de radioama-
to de conduzir e operar a estação PY1BJN, que, diga- dor nacionais em atividade, dispuseram-se a parti-
se de passagem, é privilegiada por sua localização na cipar desse projeto. No radioamadorismo existem
Ilha de Villegagnon. Além disso, para manter uma
estação de rádio é necessário tempo e conhecimento.
Mais que levá-la ao ar e realizar comunicados, o que
por si só já exige qualificação e habilidade técnica, as
antenas e linhas de transmissão devem sofrer inspe-
ção e manutenção periódicas e os equipamentos ele-
trônicos precisam manter-se em operação para que
não se deteriorem. Ainda, como a boa ética do ra-
dioamadorismo sugere, após cada contato rádio, esse
deve ser confirmado, seja via o tradicional cartão
Figura 1. Distintivo do “Grêmio de Radioamadores” –
QSL com data, hora, frequência e modo de operação Década de 1940
utilizados no respectivo contato, ou por via eletrôni-
ca nos canais existentes na internet. Assim consolida-
se a imagem da instituição para todo o mundo. Ou
seja, diversas atividades de elevado conhecimento e
dispêndio de tempo devem ser realizadas, tornando-
se quase impraticável aos estudantes envolvidos em
uma exigente rotina militar cumpri-las sem adequada
orientação e auxílio.
Para tentar solucionar essa questão, olhamos para
o exemplo europeu, onde cada Marinha possui seu
clube de radioamadores, com pessoal da ativa, reser-
va e convidados, que desenvolvem diversas ativida-
des sempre ligadas a suas tradições e ao mar, como
ativação2 de faróis e navios-museu e a realização de
contestes em datas festivas das respectivas marinhas.
Esses clubes trabalham em parceria gerando interação
e congraçamento entre seus países.

2
A ativação é a montagem de uma estação provisória em determi-
nada localidade, normalmente com um indicativo de chamada
especial outorgado pela Agência Nacional de Telecomunicações
(ANATEL), para a realização de contatos bilaterais via rádio com
radioamadores de todo o mundo. Já o Conteste é uma compe-
tição entre radioamadores, em período de tempo determinado,
na qual vence o que mais pontuar tendo como base os contatos
realizados. Figura 2. Cartão de confirmação de contato da EN

48 Revista de Villegagnon . 2022


diversas áreas de atuação, como: telegrafia; fonia;
transmissão de imagens; contatos a longa distân-
cia; contatos via satélite; pesquisa sobre antenas
e propagação; contestes (competições); ativações;
expedições para operação em locais remotos; e por
aí vai. A chance de reunir diversos radioamadores
para atuar em uma estação traz a grande vantagem
de podermos absorver o conhecimento de cada um
nessas diversas áreas, oferecendo aos Aspirantes
todas as vertentes tecnológicas e práticas dessas
atividades. Assim, damos aos jovens a oportuni-
dade de conhecerem e tomarem gosto pelo radioa-
madorismo, pois só se pode gostar daquilo que se
conhece. E o mais importante, a possibilidade de
manter em contínua operação uma das mais anti-
gas estações de radioamador do Brasil.
Hoje temos uma equipe de radioamadores creden-
ciados pela Escola Naval a frequentar e operar a esta-
ção PY1BJN, contribuindo, desta forma, na formação
dos futuros Oficiais da Marinha do Brasil, propician-
do ainda o ingresso de novos adeptos a esse hobby.
Uma atividade realmente recompensadora e que en- Figura 3. Radioamadores voluntários passando
grandece o radioamadorismo brasileiro. conhecimento aos Aspirantes

Figura 4. Aspirantes realizando manutenção em antena Figura 5. Em JUN 22, Aspirantes e radioamadores após o
contato via satélite com a Estação Antártica Alemã

Revista de Villegagnon . 2022 49


A VELA EM VILLEGAGNON: 1938 – 1972

Capitão de Mar e Guerra (Ref)


Pedro Gomes dos Santos Filho1

Pintura de autoria do Contra-Almirante Trajano prática do remo e da vela indispensável para a formação
Augusto de Carvalho, registrada no seu livro “Nossa dos Aspirantes. Logo após a mudança da sede da Escola,
Marinha seus feitos e glórias: 1822 – 1940”, retrata tomou providências no sentido de aprimorar essa for-
um bordejo de escaleres a vela, conduzindo Aspirantes mação. Diz o Almirante no seu livro de memórias:
sob a orientação do Capitão-Tenente Arthur de Oli-
veira, em 1895. A tela demonstra que, desde tempos
A instrução profissional na Escola havia deca-
remotos, a prática da vela na Escola Naval está pre-
ído muito nos últimos anos. Tive ocasião de
sente na formação dos Aspirantes. observar, logo que assumi a direção da Escola,
Há registros que, a partir dos anos 1930, quando como havia desaparecido o gosto pelos exer-
a Escola Naval ainda era localizada na Ilha das En- cícios propriamente marítimos, isto é, pelo
xadas, foi instituído um programa de instrução, que remo e pelo escaler a vela. Para falar a verda-
visava aprimorar nos Aspirantes a arte de velejar. Des- de, o corpo de alunos não sabia mais remar
de essa época, a Escola participava de regatas como nem andar a vela. Entre alguns aspirantes ha-
convidada dos clubes e da Federação de Vela e Motor via algum entusiasmo pelos prazeres do “ya-
da cidade do Rio de Janeiro. chting” nas organizações esportivas civis, mas
sobre os bordejos em escaleres regulamenta-
A longeva ligação da vela com a Escola motivou-nos
res nem se falava (MELLO,1994, p.125).
a pesquisar como a prática veleira teve continuidade
após a transferência da Ilha das Enxadas para as novas
instalações em Villegagnon, em 1938, época em que o A partir da orientação do Diretor, a vela começou a
“yachting” (iatismo) começava a ganhar importância ganhar prioridade. Um ano após a instalação definiti-
no Rio de Janeiro como esporte náutico de prestígio. va em Villegagnon, 1939, a motivação para os esportes
Surge, então, o presente artigo, que pretende explorar náuticos era animadora. De acordo com o registrado
os acontecimentos relativos à vela nas primeiras déca- na revista “A Galera”, em nota sobre os “Sports Náu-
das da Escola Naval, em Villegagnon. Para tanto, va- ticos”, de autoria do Aspirante Roberto C. Coimbra:
mos nos apoiar, principalmente, nos depoimentos de
quem vivenciou a época e deixou registros em diversas Nesse ano o interesse pelos sports náuti-
fontes, que nos permitem voltar no tempo e ter conhe- cos, principalmente pela vela, começou
cimento da dedicação daqueles que foram pioneiros e bem cedo. Os cutters eram as figuras cen-
responsáveis pela importância que a prática da vela tem trais das cogitações de todos; todos queriam
na formação dos nossos “Sentinelas dos mares”. vê-los de perto, neles navegar, bordejar nas
O primeiro Diretor da EN2 em Villegagnon, Con- embarcações que tanto se falava. E tinham
razão porque de fato os cutters ultrapassam
tra-Almirante Américo Vieira de Mello, considerava a
qualquer expectativa. [...] Esses cutters inau-
guram uma nova classe construída especial-
1
Doutor em Política e Estratégia pela Escola Superior de Guerra. mente para a navegação na baía do Rio de
2
A designação foi alterada para “Comandante da Escola Naval” Janeiro, donde se chamar “classe Guanaba-
somente em 1981. ra” (COIMBRA, 1939, p.53).

50 Revista de Villegagnon . 2022


rinheiro, Patrão e Capitão5. A ascensão dos graus
dependia da participação efetiva em regatas, da prá-
tica e da técnica como patrão em cutters6 e escaleres,
do trabalho no desenvolvimento da vela, do número
de vitórias e, principalmente, do amor às coisas do
mar e do esporte.
Por participarem da Volta a Pau a Pino, guarne-
cendo os escaleres ou os cutters Gaivota, Marreco e
Mergulhão, 16 aspirantes foram os primeiros a serem
agraciados com a Ordem dos Veleiros no grau de Ma-
rinheiro: Gabriel de Almeida Fialho, Elcy Silveira da
Figura 1. Bordejo3 em escaler a vela – década de 1940
Rosa, Murillo Bastos Martins, Adhaury Costa e Ro-
cha, Carlos Ernesto Messiano, Colbert Demaria Boi-
Em substituição a Vieira de Mello, assume a dire- teux, José Freire Parreiras Horta, Geraldo Labarthe
ção da Escola, o Contra-Almirante Adalberto de Le- Lebre, Ary Marques Jones, Francisco Ernesto Bulhões
mos Basto, que dá prosseguimento às ações de incen- de Carvalho, Luiz Gonzaga Langsch Dutra, John An-
tivo aos esportes náuticos, priorizando o iatismo. No derson Munro, Carlos Borba, Gustavo Eugênio de
primeiro ano de sua gestão, 1940, cria a regata “Volta Oliveira Borges, Horacio Rubens de Mello e Souza e
à Ilha Rasa” e motiva os Aspirantes a participarem Jonas Corrêa da Costa Sobrinho.
dos campeonatos promovidos pelo Fluminense Yacht A fundação da Ordem dos Veleiros foi um gran-
Club, que mais tarde alterou o nome para Iate Clube de passo para concretizar a ideia, vislumbrada pelos
do Rio de Janeiro. Aspirantes Euclides Quandt de Oliveira e Gabriel de
Sobre essas competições, o Comandante Euclides Almeida Fialho de se instituir uma agremiação que
Quandt de Oliveira, que exerceu o cargo de Ministro pudesse unir a Marinha ao esporte e à vela. Em 1943,
das Comunicações no Governo Geisel, lembra, na sua é criado o Grêmio de Vela da Escola Naval (GVEN).
autobiografia, as suas participações quando Aspiran- À época, já havia assumido a Direção da EN o
te: “Em 1940 fiz parte da guarnição do veleiro tipo Contra-Almirante Mário Hecksher.
Guanabara, que venceu o campeonato carioca nessa O GVEN teve como sócios fundadores o
classe, organizado pelo Iate Clube do Rio de Janeiro” Guarda-Marinha Luiz Gonzaga Langsch Dutra7 e os
(OLIVEIRA, 2007, p.27). aspirantes José Aratanha, Amaral Saboia, Aécio de
No ano seguinte, continuam as iniciativas do Souza, Antonio Didier, Fernando Achiles, Helio Ma-
Almirante Lemos Basto. É criada a regata de ida e ranhão, Fernando Chagas, Albuquerque Lins, Paulo
volta à Ilha Grande, contornando o farol de Pau a Lindeberg e Mauricio Taveira.
Pino4, com percurso de 120 milhas, considerada a Um desses aspirantes, Antonio Didier Viana, dei-
primeira regata de oceano no Brasil. Ao término da xou registradas suas impressões sobre o início do
regata, o Diretor da Escola decide condecorar os Grêmio: “O Diretor da Escola Naval criou o Grê-
Aspirantes que participaram por terem demonstra- mio de Vela ao qual deu todo apoio. Inscrevia os
do arrojo e espírito marinheiro, perfazendo o longo barcos da Escola nas competições do Iate Clube do
percurso em três dias. A condecoração vem com a
criação, em 14 de janeiro de 1941, da Ordem dos 5
O grau de Capitão-mor é reservado ao Diretor da Escola em
Veleiros da Escola Naval, com seus graus de Ma- exercício.
6
Cutter: Embarcação pequena de estrutura constituída de gurupés
e um mastro envergando pano latino e gafetope, usada especial-
3
Bordejar: Navegar em zigue zague; andar aos bordos; dar bor- mente em regatas a vela.
dadas; mudar de rumo constantemente para aproveitar ventos 7
Chefe de Classe EN 39 – GM 43, primeiro Presidente do GVEN
favoráveis.
e um dos pioneiros a atingir o grau de Capitão na Ordem dos
4
A regata também ficou conhecida como “Volta a Pau a Pino”. Veleiros.

Revista de Villegagnon . 2022 51


Rio de Janeiro, para induzir os aspirantes a se fami- Nesses primeiros anos em Villegagnon, os Aspi-
liarizarem com as coisas do mar” (VIANNA, 2013, rantes eram convidados pelos clubes náuticos filiados
p.20). Didier relata também que a descoberta, na à federação a participarem das regatas por eles pro-
biblioteca da Escola, de um livro técnico em fran- movidas sem a necessidade de pagarem as altas taxas
cês do suíço Manfred Cury com informações sobre de inscrição vigentes. Com o sentimento de gratidão e
barcos, velas e técnicas de regata e a divulgação dos espírito marinheiro, os Aspirantes decidem retribuir a
seus ensinamentos foram um grande trunfo para gentileza, instituindo uma competição isenta de taxa
o aprimoramento do desempenho dos veleiros da de inscrição, aberta a todos os velejadores que cruzas-
EN, que em paralelo receberam apoio da direção da sem a linha de partida.
Escola no que tange à montagem de equipamentos Assim, em 1946, na gestão do Contra-Almirante
improvisados para o Grêmio e à aquisição de velas Braz Paulino de França Vellozo, fato da maior impor-
novas para os barcos. tância para o iatismo nacional ocorre na Escola. Com
No ano seguinte à criação do GVEN, a prática da a presença do Ministro da Marinha, Almirante Jorge
vela na EN era intensa. Ao recordar esse tempo, diz o Dodsworth Martins, do Diretor da EN e de outras au-
Almirante Luiz Edmundo Brígido Bittencourt: toridades, precisamente às 14 horas do dia 8 de se-
tembro, mais de 70 embarcações tomaram posição na
Lembro-me, também, que, já como calou- linha de partida para o início da primeira Regata Esco-
ro, fazia parte da guarnição de um dos es- la Naval, na ocasião denominada Taça Escola Naval.
caleres que defendiam a camiseta branca da O evento iria se tornar uma das mais importantes e
turma de 1944 em diversas regatas inter- tradicionais competições do iatismo latino-americano.
nas que aconteciam naquele tempo: volta à A Regata EN estimulou ainda mais as atividades
Lage, volta à Ilha... (passando por debaixo
veleiras. Dois anos após a sua criação, alguns Aspiran-
da ponte, o que implicava em desmontar
tes, com muita vibração, foram receber os primeiros
e montar os mastros), volta à Paquetá e a
barcos oceânicos. O fato ficou assinalado nas palavras
peculiar “Maria Cebola”, em que remo e
vela eram igualmente válidos, desde que de um desses Aspirantes, Bernard David Blower:
montássemos Jurubaíba (BITTENCOURT,
1997, p.12). O primeiro, o Procelária, foi doado à Esco-
la Naval pelo Dr. Pimentel Duarte e recebeu
o nome de Grazina; o segundo, já quando
Em paralelo, os clubes de iatismo também criam as
cursávamos o 4º ano, foi o Albatroz, adqui-
suas regatas, motivando ainda mais a participação dos
rido de um proprietário inglês, que havia
Aspirantes. Como assinala o Almirante Blower sobre
transformado a sua mastreação para nave-
essa época:
gação de cruzeiro, quando, na versão origi-
nal, era do tipo wishbone rigging, introdu-
A Regata ‘Volta de Paquetá’, patrocinada zida pelo grande projetista inglês Ufe Fox,
pelo Iate Clube Brasileiro, situado no Saco que proporcionava muito melhor desem-
de São Francisco, tinha sua largada realiza- penho, principalmente na orça (BLOWER,
da na tarde de um sábado, com o propósito 2003, p.231).
de permitir que a chegada dos barcos acon-
tecesse na tarde de domingo, cerca de 20 ho-
ras após a partida. Mais um depoimento sobre esse tempo ficou a car-
go do Capitão de Mar e Guerra Fernando M. Baptista
Participavam da regata barcos a vela de
todas as classes: seis metros internacio- da Costa em artigo para a Revista do Clube Naval.
nais, hagen sharpies, sharpies 12m, cario- Nesse artigo, o autor também relembra a Regata “Ma-
cas e guanabaras, inclusive barcos da Es- ria Cebola” e registra que o Iate Albatroz, adquirido
cola Naval nesta última classe (BLOWER, em 1948, permitiu à Escola Naval competir, em nível
2003, p.225). mais profissional, nas regatas interestaduais e interna-

52 Revista de Villegagnon . 2022


cionais. Além disso, o artigo enaltece a participação barco campeão de várias
do então Capitão-Tenente Roberto Mário Monerat regatas e com uma longa
nas atividades de remo e vela da Escola, tendo inclusi- história na Vela, perdeu a
ve conseguido que os Aspirantes viajassem a bordo do competitividade e foi ven-
veleiro Atrevida, competidor assíduo da Regata Bue- dido. Adquirido por um
nos Aires – Rio, sob o comando do seu proprietário, Oficial de Marinha após
Dr. José Cândido Pimentel Duarte. passar por vários donos,
Além de doar o veleiro Procelária, o Dr. Pimentel foi doado à EN, passou
Figura 2. Entrega da
Duarte, à época Presidente da Liga Carioca de Vela e por uma reforma, mas Ordem dos Veleiros da
ficou sem condições de Escola Naval ao Dr.
Motor, em muito contribuiu para a prática da vela em
competir como antes. Pimentel Duarte
Villegagnon nos seus primórdios. Considerado o maior
impulsionador das regatas de longo percurso no Brasil, Na década de 1950, as atividades do GVEN con-
chegou a ministrar aulas de vela na Escola, às quais os tinuam a evoluir. No primeiro ano, o Albatroz, com
aspirantes assistiam com grande interesse. Foi um dos Aspirantes na tripulação, participa da Regata Buenos
primeiros a receber o grau de Capitão da Ordem dos Aires – Rio. Nessa época, o Almirante Lemos Basto
Veleiros da EN. Para homenagear o grande veleiro, os atua como Presidente da Confederação Brasileira de
aspirantes se deslocaram até o Iate Clube do Rio de Ja- Vela e Motor e apoia a sua querida Escola. A Regata
neiro, quando, em uma singela cerimônia, entregaram Escola Naval vai adquirindo prestígio na comunidade
o distintivo e o diploma correspondente. Na ocasião, o veleira. As primeiras regatas atingem a marca de mais
orador foi o Aspirante Chagas, presidente do Grêmio de 100 barcos na raia. Recordes em número de parti-
de Vela, que proferiu um breve, mas belo, discurso: cipantes viram rotina.
Nos 10 anos seguintes, são admitidas novas classes
Em nome dos Aspirantes de Marinha eu de embarcações, promovendo o aumento do número
vos entrego o distintivo e o diploma da Or- de inscrições. Mais recordes.
dem dos Veleiros da Escola Naval no Grau Em 1961, é criado o símbolo do GVEN por Aspi-
de Capitão. Peço-vos que ao recebais como rantes da Turma Quevedo (1957-61). O Comandante
reconhecimento dos Aspirantes e também Ronald Cardoso Guimarães, no livro de comemoração
como homenagem dessa Mocidade Veleira dos 60 anos de entrada de sua Turma na Escola Naval,
da Guanabara, destes jovens que em horas
dá seu depoimento referente à criação do símbolo.
de folga de seus afazeres diários enchem as
salas desta Casa para receber os vossos en-
sinamentos, desta rapaziada por quem tanto A Regata Escola Naval – Adoção do Símbo-
tendes trabalhado, e a quem muito ensinais lo. Fomos designados, eu e o saudoso Ferraz
pelo vosso exemplo de amor à Vida no Mar, (que nomina nossa Estação Antártica) para
mostrando-lhes o quanto é útil a prática organizá-la naquele ano de 1961. […] O Fer-
da Vela, a prática do esporte pelo esporte, raz resolveu criar um símbolo para a Regata
e que ela pode trabalhar muito pelo nosso daquele ano, que veio a se tornar permanen-
País, trabalhando pela Vela, pois trabalhar te e hoje é também o símbolo do Grêmio de
um pouco pela Vela é trabalhar pelo Brasil Vela. Trata-se de duas velas de balão entre-
(CHAGAS, 1940). laçadas, uma listrada de encarnado e branco
e a outra de amarelo e preto e que vige até
hoje (GUIMARÃES, 2017, p.109).
Pimentel Duarte reconhecidamente mereceu essa
homenagem. Além do apoio à Escola Naval e de mui-
to que contribuiu para o esporte náutico no Brasil,
foi o responsável pela realização da primeira Regata
Buenos Aires – Rio, da qual participou com o seu
famoso veleiro Vendaval. Com o tempo, o Vendaval,

Revista de Villegagnon . 2022 53


Em 1967, têm início as atividades em terra durante No ano do Sesquicen-
a Regata Escola Naval promovidas pela Escola, per- tenário da Independência
mitindo a participação de familiares dos iatistas e do (1972), ocorrem três fa-
público em geral. tos marcantes para a vela
Dois anos depois, o Grêmio de Vela da Escola em Villegagnon: a EN sa-
Naval recebe dois veleiros Califórnia 40 (Cal 40), gra-se campeã em todas
da classe Oceano, batizados Villegagnon e Colig- as classes disputadas no
ny. Esses barcos conquistam mais vitórias para Campeonato das Forças
o GVEN, ao substituir com galhardia o valente Armadas; pela primei-
Brekelé, classe Guanabara, também vencedor de ra vez, a Regata Escola
muitas regatas. São designados para servir na EN Naval conta com a par- Figura 3. Panfleto da XXV
dois renomados velejadores: Comandante Oscar ticipação de barcos ame- Regata Escola Naval
Matoso Maia Forte e Tenente Robinson Hassel- ricanos; o GVEN tem a sua flotilha da classe Soling
mann, que mais tarde puderam contar com a co- reconhecida pela Associação Brasileira de Soling e,
laboração de outro grande velejador, o Capitão- em consequência, os barcos da flotilha não precisam
Tenente Érico Albuquerque. mais ser incorporados à flotilha de um clube civil.
Um dia antes da XXIV Regata Escola Naval, é O contexto temporal delineado para este artigo
realizada a Regata Almirante Lemos Basto, homena- atinge o seu limite. Toda a saga da vela em Villegag-
gem a um dos maiores impulsionadores do iatismo no non no período considerado pode ser resumida em um
Rio de Janeiro, pioneiro em promover a primeira rega- trecho do editorial do Jornal do Brasil alusivo à XXV
ta de oceano no país. Regata Escola Naval:
Em 4 de outubro de 1970, acontece a XXV “A regata, pelo que representa no iatismo
Regata Escola Naval, que conta com participante carioca e pela grandiosidade do espetácu-
lo, há muito deixou de ser mais uma prova
muito especial: o Almirante Benjamin Sodré, Ofi-
esportiva, para se transformar na grande
cial de escol, ícone do esporte na Marinha, desta-
festa de congraçamento e confraterniza-
que do Escotismo brasileiro, ídolo dos escoteiros
ção do iatismo brasileiro” (JORNAL DO
do mar. O Almirante participa da regata junto com BRASIL, 1970).
seu neto, no barco Fragata VII, pertencente a seu
Finalmente, cabe salientar que este artigo é uma
filho, que também participou da prova. Pelo regis-
homenagem, ainda que singela, a todos aqueles que,
tro que deixou, podemos ter a exata ideia do que
servindo no solo sagrado de Villegagnon, contribuí-
aconteceu na competição:
ram para alcançar o prestígio nacional e internacional
de que desfruta atualmente a vela, “o esporte dos ho-
No mar cerca de 300 barcos aguardavam. mens do mar”.
Às 13 horas foi dada a primeira largada,
para barcos de oceano; seis minutos após,
para nossa classe, solings. A chuva não
cessou nem um momento. Vento nenhum.
Maré começando a encher. Afinal, uma
aragem imperceptível permitiu que passás-
semos a linha de partida. A chuva persis-
tia. Quase parados, os barcos embolavam
sacudidos pelos vagalhões que vinham da
barra. As horas corriam sem nenhuma es-
perança de melhorar as condições. Afinal,
cerca de 16 horas, veio a comunicação de
que a prova estava cancelada. Era o bom Figura 4. Medalha outorgada na XXV Regata Escola Naval
senso (SODRÉ, 1989, p.202). – 1970

54 Revista de Villegagnon . 2022


REFERÊNCIAS GUIMARÃES, Ronald Cardoso. “Turma Quevedo (GM
1961): sessenta anos de participação na vida brasileira”.
BITTENCOURT, Luiz Edmundo Brígido. Veleiros ... minhas Diretoria da ATQ, 2017.
recordações com a vela. Revista Marítima Brasileira, v. 117,
JORNAL DO BRASIL. Editorial. 04 de out. de 1970.
out./dez. 1997.
MELLO, Américo Vieira de. Memórias: visão histórica da
BLOWER, Bernard David. O lado pitoresco da vida naval.
Marinha Brasileira, 1895 a 1945. São Paulo: O Escriba, 1994.
Revista Marítima Brasileira, v. 123, jan./mar. 2003.
OLIVEIRA, Euclides Quandt de. Autobiografia. Rio de
CHAGAS, Aspirante. Veleiros da Guanabara! Revista “A
Janeiro: Ed. Rio, 2007.
Galera”, 1940.
SODRÉ, Dora. A educação pelo exemplo – Momentos da
COIMBRA, Roberto C. “Sports Náuticos”, Revista “A vida de Benjamin Sodré. Rio de Janeiro: EDC Didática e
Galera”, 1939. Científica Ltda; 1989.
COSTA, Fernando M. Baptista. Escola Naval 1948: a VIANNA, Antonio Didier. Competitividade e a Indústria
história que não foi contada Revista do Clube Naval, nº brasileira: por que o Brasil não é competitivo. Rio de Janeiro:
340, 2009. Editora Jaguatirica Digital, 2013.

Revista de Villegagnon . 2022 55


MAIS UMA MARCA DA ESCOLA NAVAL

Capitão de Mar e Guerra (Ref.)


Pedro Gomes dos Santos Filho1

Pesquisando em revistas “A Galera” da década de de 1946. Ao discursar, o Diretor da Escola, Contra-Al-


1940, foi encontrada uma frase que chamou atenção. mirante Braz Vellozo, elogiou a acertada escolha.
Em um artigo sobre a Escola, o autor assinalou que:
Na escolha do vosso paraninfo mostrastes o
Em 1939, o estudo da decomposição atômi- acerto de vossas decisões. A homenagem é
ca foi introduzido no curso de química do justa e oportuna. O Comandante Álvaro Al-
departamento de ciência física, em Villegag- berto representa brilhantemente o Brasil nas
non. A Escola Naval assim ficou sendo a pri- Comissões de Energia Atômica das Nações
meira Escola do Brasil e, possivelmente, da Unidas e a Escola Naval orgulha-se da ação
América Latina, a iniciar o estudo da ciência ali exercida pelo seu professor de Química e
atômica (A Galera, 1941). Chefe do Departamento de Ciências Físicas.
Respeitado pelo seu talento e pelo seu sa-
ber, acatado pela sua atitude hábil e decisiva
A afirmação de que a EN foi a primeira escola do
fez-se estimar pelos demais cientistas com-
país a iniciar o estudo da ciência atômica, caracteriza
ponentes daquela Comissão.
uma importante marca de pioneirismo, que, ao longo
Em 1939, com as desconfianças de uns e as dú-
do tempo, parece ter ficado esquecida, mas que não
vidas de outros, incluiu no programa da cadeira
pode deixar de ser lembrada.
de Química deste estabelecimento de ensino – a
A iniciativa de promover o estudo da energia nu- cisão do átomo de urânio sob o bombardeio
clear na Escola foi do Vice-Almirante Álvaro Alberto neotrônico – cabendo assim a esta Escola Naval
da Mota e Silva. Sua capacidade intelectual foi evi- a ser a primeira no Brasil e talvez no Continente
denciada desde os tempos de Aspirante, quando re- a ocupar-se de assunto de tanta relevância (Re-
cebeu, em 1909, o Prêmio GREENHALGH, maior vista Marítima Brasileira, 1946).
honraria acadêmica concedida pela Escola Naval
(EN) aos seus alunos. Em 1916, como Primeiro-Te- No posto de Capitão-Tenente, foi admitido na
nente, Álvaro Alberto ingressou no Quadro de Ma- Academia Brasileira de Ciências (ABC), na qual exer-
gistério da Marinha e atuou com brilhantismo no ceu por duas vezes o cargo de Presidente. Foi, tam-
Corpo Docente da EN até 1946, exercendo as fun- bém, Presidente da Sociedade Brasileira de Química,
ções de Instrutor, Lente Substituto de Química, Lente no período de 1920 a 1928. Além de se tornar uma
Catedrático de Química, Pólvora e Explosivos e Che- das maiores autoridades em Química do país, obteve
fe do Departamento de Ensino Físico-Químico, que semelhante sucesso no campo da Energia Atômica.
mais tarde ganhou a denominação Departamento de
Como bem registrado em livros que tratam da sua
Ensino de Ciências Físicas.
biografia, em 1939, ano em que conquistou o Prêmio
No seu último ano como docente da Escola Naval, Einstein da Academia Brasileira de Ciências, incluiu
foi escolhido Paraninfo da Turma de Guardas-Marinha no Programa de Ensino da Escola Naval o estudo da
energia atômica, inserindo na sua disciplina um tópico
1
Doutor em Política e Estratégia pela Escola Superior de Guerra. sobre energia nuclear e suas aplicações, o que reforça

56 Revista de Villegagnon . 2022


a frase publicada na Revista “A Galera” e as palavras Entre 1956 e 1960, sete engenheiros navais, ex-alu-
do Diretor da Escola Naval, proferidas em 1946. Seu nos de Álvaro Alberto nos anos 1940, concluíram o
interesse sobre o assunto o levou a dedicar-se com afin- curso e puderam dar a sua contribuição para a Mari-
co para o desenvolvimento da Energia Nuclear no país. nha e para o Brasil. Ao incluir Física Nuclear no currí-
Em 1945, já na Reserva Remunerada, mas ainda culo da EN, em 1939, além de incentivar a busca pelo
como docente da Escola Naval, “empenhou-se na or- desenvolvimento científico e tecnológico, o Almirante
ganização de um grande seminário de física nuclear, contribuiu, de maneira expressiva, para a formação
envolvendo os acadêmicos brasileiros que trabalha- acadêmica de oficiais que, mais tarde, puderam dar
vam no tema, principalmente pesquisadores de São continuidade aos seus esforços em prol do Programa
Paulo e do Rio de Janeiro” (Garcia, 2.000). Nuclear da Marinha.
No ano seguinte, exercendo a função de Adjunto Além de Oficial de Marinha de escol, cientista
do Adido Naval nos Estados Unidos da América, re- de renome internacional, empreendedor de suces-
presentou o Brasil nas reuniões preparatórias e na ses- so, Álvaro Alberto destacou-se na nobre missão de
são se abertura da Comissão de Energia Atômica da professor, pela dedicação ao ensino, principalmen-
Organização das Nações Unidas. te na Escola Naval, em que lecionou por 30 anos,
Em 1948, foi promovido a Contra-Almirante e, em sempre preocupado com a preparação dos jovens
1949, atuando como Presidente da ABC, incentivou a Aspirantes.
criação do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), o Embora seja difícil
que ocorreu em 1951. afirmar que a EN foi
Ao ser promovido a Contra-Almirante, foi home- pioneira na América
nageado pelo Conselho de Instrução da Escola Naval, Latina no que tange ao
em cerimônia que contou com a participação do Minis- estudo da Energia Nu-
tro da Marinha, Almirante de Esquadra Sylvio ee No- clear, parece ser bastan-
ronha, do Diretor Geral do Ensino Naval, Almirante te aceitável que, sendo
Humberto Areia Leão, e de outras altas patentes navais, o Almirante Álvaro Al-
além da Direção e do Corpo Docente da Escola. berto considerado pio-
Em 1955, promovido a Vice-Almirante, deu impul- neiro nos estudos sobre
so na criação da Comissão Nacional de Energia Atô- a Energia Nuclear no Figura 1. Almirante Álvaro
Alberto
mica no âmbito do CNPq. No ano seguinte, continuou Brasil e o introdutor no
envidando seus melhores esforços em prol do desenvol- Programa de Ensino da nossa Escola o estudo desse
vimento da Energia Nuclear, tanto para fins pacíficos assunto em 1939, esteja correta a afirmativa de que,
quanto para a Defesa Nacional. De acordo com o regis- além de ser a Instituição de Ensino Superior mais an-
tro do Comandante Antonio Didier Vianna, tiga: “A Escola Naval é a primeira escola a iniciar o
estudo da Energia Nuclear no país”.
Em 1956, o Almirante Álvaro Alberto con-
venceu o Ministro da Marinha a enviar para
os Estados Unidos engenheiros navais de
REFERÊNCIAS
carreira, de várias especialidades, para um A GALERA. Revista do Corpo de Alunos da Escola Naval.
curso de extensão em Engenharia Nuclear e Rio de Janeiro, 1925 -1947.
estágio de um ano em instalações nucleares.
Todos tinham obtido o título de mestrado GARCIA, João Carlos Vitor. Álvaro Alberto. A ciência no
em universidades americanas. O intuito era Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto Editora Ltda, 2000.
construir um grupo capaz de orientar a Ma- REVISTA MARÍTIMA BRASILEIRA. Rio de Janeiro, 1946.
rinha quanto aos problemas relacionados
com a construção de submarinos nucleares, VIANNA, Antonio Didier. Competitividade e a indústria
considerada por ele como o futuro de qual- brasileira: por que o Brasil não é competitivo? 1. ed. Rio de
quer Marinha (Vianna, 2013). Janeiro: Jaguatirica Digital, 2013.

Revista de Villegagnon . 2022 57


Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

58 Revista de Villegagnon . 2022


Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ
“PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO
DA ARMADA IMPERIAL EM
TEMPOS DE INDEPENDÊNCIA:
INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES
E PROCESSOS HISTÓRICOS”
Capitão de Fragata (IM) Marcello José Gomes Loureiro1

1
Professor de História Naval do Centro de Ensino de Ciências Sociais da Escola Naval.

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Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

Ao dimensionar questões e tendências para o avan- lise sobre a atuação de José Bonifácio de Andrada
ço das pesquisas sobre a Independência do Brasil, o e Silva para a organização da esquadra, bem como
Professor Jurandir Malerba defendeu que mesmo os as diligências do Marquês de Barbacena para a con-
eventos bem conhecidos merecem novos olhares, de tração de estrangeiros desde Londres. Após se deter
tal modo que seja possível promover uma compreen- nos esforços administrativos para a institucionaliza-
são mais aprofundada ou refinada dos processos que ção da Armada Imperial, a Professora se debruça,
desencadearam o 7 de setembro. Não se trata de mi- ainda, sobre as ações navais de Cochrane para as
nudenciar a narrativa diacrônica dos acontecimentos, incorporações dos territórios que, incialmente, não
mas sim articulá-los às perspectivas e questões recen- eram aderentes à emancipação.
tes da historiografia brasileira e internacional, bem Em seguida, o Aspirante André Pereira Rodrigues
como alargar os horizontes do conhecimento histórico inquire as fontes normativo-legais respeitantes à es-
a partir da exploração da documentação primária so- truturação e funcionamento da Academia Real de
bre o período.2 Guardas-Marinha em seus anos iniciais. Em diálogo
Nas últimas duas décadas, uma série de estudos com as pesquisas já empreendidas pelo Professor An-
conferiu ossatura suficiente a tal possibilidade. No tônio Luiz Porto e Albuquerque3 e pelo Capitão de
campo da história militar, diversas investigações de- Fragata (do Quadro Técnico) Carlos André Lopes da
monstraram a centralidade da guerra na conjuntura Silva,4 sua pesquisa desvelou os critérios de admissi-
da Independência e no processo de construção do bilidade estabelecidos para a Academia, seus percal-
Estado Imperial Brasileiro. Algumas se dedicaram ços e desafios iniciais, e algumas de suas dinâmicas
à complexidade e dificuldade de suas características procedimentais.
operacionais inerentes, a exemplo da organização das Já o Aspirante Lucas Lima dos Santos refaz
instituições, do recrutamento, da tática, dos constran- e percorre a trajetória do Almirante D. Luís da
gimentos financeiros e das limitações de abastecimen- Cunha Moreira, titulado Visconde de Cabo Frio.
to; outras sublinharam a participação e os interesses Com extensa experiência em combate, coube ao
dos diversos grupos sociais envolvidos, bem como o Visconde a pasta ministerial da Marinha em uma
impacto dos conflitos na economia ou na política. Há, conjuntura crítica, de escassos recursos financei-
ainda, as investigações que privilegiaram o exame da ros e dificuldades em torno de meios navais. Lucas
propaganda, das representações de batalhas e de suas Lima conecta significativa historiografia, imbri-
memórias, além dos discursos e dispositivos jurídico- cando desde referências incontornáveis de amplo
-legais adstritos ao universo bélico. A efeméride dos espectro – a exemplo de obras clássicas, como a
200 anos da Independência contribuiu para uma pro- dos Professores José Honório Rodrigues e Sérgio
fusão de valiosas publicações, resultantes, em grande Buarque de Holanda 5 – aos estudos mais pormeno-
medida, dos esforços empreendidos nas últimas duas rizados, a exemplo dos trabalhos mais específicos
ou três décadas.
Por ocasião do Bicentenário, a Revista de Vil-
3
PORTO e ALBUQUERQUE, Antônio Luiz. “A Academia Real
dos Guardas-Marinha”, in BRASIL, Ministério da Marinha. His-
legagnon publica, nesta oportunidade, um dossiê
tória Naval Brasileira. v. 2, t. II, Rio de Janeiro: Serviço de Docu-
constituído por cinco artigos de Aspirantes e um mentação-Geral da Marinha, 1979.
artigo de autoria da Professora Jéssica de Freitas e 4
LOPES DA SILVA, Carlos André. A Real Companhia e Acade-
Gonzaga da Silva, que gentilmente aceitou o convite mia dos Guardas-Marinha: aspectos de uma instituição militar
para participar desta edição especial. Amparada em de ensino na Alvorada da profissionalização do oficialato militar,
1808-1839. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em His-
diversificada documentação primária, a Professora
tória Social-UFRJ, 2012, dissertação de mestrado.
Jéssica inaugura o dossiê, oferecendo-nos sua aná-
5
RODRIGUES, José Honório. Independência: Revolução e Con-
tra-Revolução: As Forças Armadas. Rio de Janeiro: Biblioteca do
2
MALERBA, Jurandir. “Esboço crítico da recente historiografia Exército, 2002; e HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A herança
sobre a Independência do Brasil (1980-2002), in MALERBA, Ju- colonial – sua desagregação”, in HOLANDA, Sérgio Buarque de
randir (org.). A Independência Brasileira: novas dimensões. Rio (org.). História Geral da Civilização Brasileira. 1º Volume, T. II –
de Janeiro: FGV, 2006, p. 45. O Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993.

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Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

de Theotonio Meirelles da Silva ou de um artigo do


Almirante Max Justo Guedes.6
O quarto artigo da série é de autoria do Guarda-
-Marinha Elias Luiz Pedron Moschen e versa sobre a
descrição e os argumentos de Thomas Cochrane acer-
ca de sua atuação naval na Bahia e Maranhão. Para
tanto, Moschen recorre ao texto genuíno redigido pelo
Primeiro Almirante, sem descurar que se trata de uma
fonte histórica cuja finalidade político-jurídica era de-
claradamente bem delimitada.7
Os Aspirantes Pedro Lucas de Deus dos Santos
e Lucas Expedito de Paiva Zim encerram o dossiê
oferecendo um panorama das tarefas que a Arma-
da Imperial desempenhou em prol da causa da In-
dependência. Em ambos os trabalhos, percebe-se a
potencialidade do diário do Frei Manuel Moreira da
Paixão Dores, capelão embarcado na Nau Pedro I.8
Souberam questionar e perscrutar essa fonte primá-
ria, extraindo informações valiosas sobre tática na-
val, meios e até elementos pertinentes ao cotidiano
experimentado no mar.
Assim, em conjunto, o dossiê demonstra a preocu-
pação metodológica e o caráter investigativo em prol
da promoção dos saberes históricos. Para além, de-
monstra, sobretudo, não apenas o interesse por com-
preender o passado, seus processos de transformação e
de permanência, mas também explicita nosso compro-
misso com o desenvolvimento dos estudos das ciências
humanas na Escola Naval.

6
SILVA, Theotonio Meirelles da. Historia da Marinha de Guer-
ra Brazileira. Vol. II. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança,
1882; e GUEDES, Max Justo. “Bicentenário do Almirante D.
Luiz da Cunha Moreira”, in Revista Navigator, jun-dez 1976, p.
3-6.
7
COCHRANE, Thomas. Narrative of Services in the Liberation of
Chili, Peru and Brazil. Vol. II. USA, 2004.
8
DORES, Fr. Manoel Moreira da Paixão e. Diário da Armada da
Independência. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957.

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Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

CIVILIZAR, MODERNIZAR E DISSUADIR: A CONTRIBUIÇÃO


DA TRINDADE JOSÉ BONIFÁCIO, MARQUÊS DE
BARBACENA E LORDE THOMAS COCHRANE PARA A
FORMAÇÃO MARÍTIMA DO BRASIL INDEPENDENTE

Professora Jéssica de Freitas e Gonzaga da Silva1

INTRODUÇÃO conduzido à outrora orientado por questões, desejos,


esperanças e inquietações motivadas pela conjuntura
O Brasil será em vossas mãos um grande país. O Brasil na qual está inserido. Conforme Reinhart Koosele-
vos quer para seu monarca. Com o vosso apoio ou sem ck, o pesquisador é capaz de usar as fontes históricas
o vosso apoio ele fará a sua separação. O pomo está mediante um aparato teórico e metodológico para re-
maduro, colhei-o já, senão apodrece. Pedro, o momento é
o mais importante de vossa vida. Já dissestes aqui o que construir “fatos que ainda não chegaram a ser articu-
ireis fazer em São Paulo. Fazei, pois. Teres o apoio do lados, mas que ele revela a partir desses vestígios.4
Brasil inteiro e, contra a vontade do povo brasileiro, os
No âmbito da historiografia naval brasileira, é
soldados portugueses que aqui estão nada podem fazer.
Leopoldina2
consenso a tese sobre o papel protagonista da re-
cém-criada Armada Nacional e Imperial, em 1822,
na garantia da independência do país, na defesa do
Às quatro da tarde de 7 de setembro de 1822, o comércio marítimo e na manutenção da unidade ter-
príncipe Pedro de Alcântara, após receber a mala diplo- ritorial. Contudo, isso não significa que o assunto
mática com as notícias políticas europeias além da cor- esteja esgotado. Pelo contrário, a compreensão do
respondência da princesa regente Leopoldina decretou, processo de formação do caráter marítimo do Esta-
finalmente, a ruptura do Brasil com o Reino de Portu- do brasileiro é um objeto pouco abordado ao mesmo
gal às margens do rio Ipiranga. D. Pedro embainhou a tempo que apresenta uma importância atual relevan-
espada e vociferou: “Brasileiros, a nossa divisa de hoje te para a sociedade brasileira tendo em vista sua de-
em diante será Independência ou morte”.3 pendência do mar para sobrevivência. Por conseguin-
Em 2022, o Estado Brasileiro celebra o bicentená- te, estamos no momento oportuno para compreender
rio da independência do Brasil. No campo historiográ- o papel das comunicações marítimas no processo de
fico, é um momento oportuno para os historiadores independência do Brasil não somente da perspectiva
revisitarem o marco histórico com o propósito de pro- militar, mas também, política e econômica. Afinal, o
mover reflexões a partir de diferentes fontes e para- mar influenciou na construção do projeto político de
digmas. Na relação presente-passado, o historiador é Estado Brasileiro? Haveria um pensamento marítimo
e naval estratégico? Quais personagens históricos
1
Doutoranda em História, Política e Bens Culturais pela Funda- compreenderam a importância do desenvolvimento
ção Getúlio Vargas. Mestre em Estudos Marítimos pela Escola
de Guerra Naval e Graduada em História pela Universidade do
do comércio marítimo e da Marinha de Guerra para
Estado do Rio de Janeiro. assegurar a soberania brasileira?
2
REZZUTTI, Paulo. D. Leopoldina: A história não contada. A
mulher que arquitetou a Independência do Brasil. São Paulo: 4
KOOSELECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semân-
Leya Editora, 2017, p. 233.
tica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, Editora
3
Idem, p. 235. Puc-RJ, 2006, p. 305.

62 Revista de Villegagnon . 2022


Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

Os conceitos são recursos da historiografia capazes Inicialmente, a Abertura dos Portos em 1808 e a con-
de auxiliar os historiadores a compreenderem o tempo centração do aparato político e burocrático na cidade
histórico e o espaço de experiência e o horizonte de ex- do Rio de Janeiro contribuíram para a capital fluminen-
pectativa dos homens. Afinal, “todas histórias foram se fortalecer seu poder político na dinâmica do Império
constituídas pelas experiências vividas e pela expecta- Marítimo Pluricontinental Português. O fim do exclu-
tiva das pessoas que atuam ou que sofrem”. Sob essa sivismo metropolitano foi reforçado após a elevação do
visão, alguns conceitos orbitavam o projeto político Brasil à condição de Reino Unido em 1815.
do Império do Brasil, quando da sua independência, e Na década de 1820, novos ares liberais assopra-
motivaram a elite política a promover ações necessá- vam sobre o território português e a ascensão da mo-
rias à garantia da soberania do país. narquia constitucional passou a limitar os poderes do
Atribuem-se aos personagens históricos conceitos rei D. João VI. Enquanto o objetivo era a moderniza-
que transmitem o significado dos seus espaços de ex- ção da estrutura política e administrativa portuguesa,
periência, muitas vezes, distintos, mas que detinham a Corte Lisboeta não vislumbrava as mesmas prerro-
o mesmo horizonte de expectativa: a garantia da au- gativas para o Reino do Brasil. O projeto recoloniza-
tonomia brasileira. Civilizar representava a condução dor almejava a retomada ao antigo pacto colonial. De
do Brasil ao liberalismo dos oitocentos no qual a Mo- acordo com Miriam Dolhnikoff: “a vinda da Corte, o
narquia Constitucional repousava seu poder natural envolvimento na Revolução do Porto e, posteriormen-
te, na Independência e no processo de construção do
nas dimensões continentais do corpo da Pátria que
Estado nacional corresponderam ao processo que se
deveria ser assegurada por meio da estratégia naval
forjou a elite política brasileira”.5
do domínio do mar defendida pelo Ministro Bonifá-
cio. Modernizar significava a condução do Brasil ao Por consequência, a condução do processo eman-
capitalismo mediante a inserção da frota nacional à cipatório foi promovida pela fidalguia de São Paulo,
era a vapor, ampliando o comércio marítimo como de- Rio de Janeiro e Minas Gerais. Em dezembro de 1821,
fendido por Marquês de Barbacena. Dissuadir refletia quando chegaram os decretos emitidos pela Corte de
a importância do emprego político da Esquadra capaz Lisboa, exigindo o retorno imediato do Príncipe Regen-
de não só garantir a integridade, mas tornar-se instru- te, Pedro de Alcântara optou pela manutenção do ali-
mento da política exterior do Império do Brasil, contri- nhamento político com a elite brasileira, desobedecen-
do o poder legislativo responsável pela transformação
buindo para o reconhecimento internacional da nossa
do monarca restrito à chefe de Estado a Lisboa. Em 7
independência e, mais uma vez, a defesa do território
de setembro, a soberania foi declarada e, em outubro,
mediante as ameaças estrangeiras. O objetivo do pre-
a aclamação de D. Pedro I como Imperador e a sua co-
sente trabalho é apresentar o pensamento estratégico
roação oficializaram a ruptura. A autonomia não de-
responsável por compreender a relevância do domínio
corria da filosofia abstrata do liberalismo político ou de
do mar, no âmbito político, militar e econômico, capaz
uma consciência nacional construída. O regime político
de assegurar o processo de independência, a partir das
escolhido era estratégico para a aristocracia brasileira
relações civis e militares entre José Bonifácio, Marquês
ansiosa pela manutenção dos seus privilégios econômi-
de Barbacena e Lorde Thomas Cochrane.
cos, a estrutura de produção do plantation que exigia a
continuidade da mão de obra escrava africana. Embora
O mar, a unidade territorial e o projeto de houvesse disputas de interesses, era urgente a constru-
poder na construção do Império do Brasil ção da nação, da identidade e a execução de um projeto
que viabilizasse erguer o Estado.
Os ventos do liberalismo político atravessavam o
Atlântico a partir do século XVIII. A conjuntura mar- O Império Brasílico não foi construído de forma
cada pelas Guerras Napoleônicas, atrelada às questões pacífica. A autoridade de D. Pedro I e o governo eram
desafiados pela presença da junta governativa portu-
regionais, motivou o processo de emancipação da Amé-
rica Luso-espanhola. A transferência da Família Real 5
DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo:
Portuguesa foi determinante para a inversão colonial. Editora Contexto, 2017, p. 23.

Revista de Villegagnon . 2022 63


Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

guesa na Bahia, Maranhão, Grão-Pará e Cisplatina. A aumento da civilização e riqueza progressiva


unidade territorial estava ameaçada pelas guerras de do Brasil; quem proibir as facções internas
independência e pelas disputas políticas entre brasilei- de homens ambiciosos e malvados que ou-
ros e portugueses. sassem atentar contra a liberdade e a pro-
priedade individual e contra o sossego e a se-
O oceano é reconhecido por sua imensidão capaz de
gurança pública do Estado em geral de cada
integrar e separar ao mesmo tempo. As comunicações uma das províncias em particular.6
marítimas são as rotas por onde as embarcações transi-
tam. Mas, qual o valor dessas linhas? A resposta é com-
plexa. Afinal, cada povo atribui maior ou menor depen- Conforme essa exclamação de José Bonifácio no
dência do mar para sua sobrevivência. No caso brasilei- Manifesto de agosto de 1822, é possível compreender
ro, a sociedade colonial foi construída a partir do mar. que a civilização e o desenvolvimento do país seriam
alcançados por meio de um poder centralizado funda-
Desde então, forjou-se o mito da “ilha brasil” com
mentado nos preceitos liberais. Consolidada a Inde-
o qual atribuiu elevado vínculo com o mar. Sobretudo,
pendência, o Estado deveria ingressar no “concerto da
pelo processo de formação territorial a partir do lito-
civilização, (...) assumindo seu lugar entre as nações
ral e a construção de uma economia baseada na de-
soberanas do globo”.7
pendência do mercado externo seja para importação
ou exportação. Por conseguinte, a partir das práticas A monarquia constitucional era o modelo que con-
sociais e econômicas da população civil, elencam-se as tribuiria para a preservação da extensão territorial assim
seguintes funções do mar durante o processo de for- como garantiria a defesa das liberdades individuais.8 No
mação do Império: a produção pesqueira, a navega- âmbito do seu projeto político, o conceito de civilização
ção de longo curso responsável pelo comércio exterior, é inserido mais uma vez atrelado aos indígenas e aos
negros. Segundo José Bonifácio, para a prosperidade do
pela navegação de cabotagem, integrando o mercado
Império era imperativo: “um novo regulamento para
interno e o tráfico intercontinental de escravos.
promover a civilização geral dos índios do Brasil, que
A dimensão política do mar é caracterizada pelo
farão com o andar do tempo inúteis os escravos e uma
transporte de pessoas e ideias políticas, contribuindo
nova lei sobre o comércio da escravatura e tratamento
para a integração territorial ou até movimentos de se-
dos miseráveis cativos”.9 Nesse sentido, Bonifácio foi
cessão. No âmbito da guerra naval, as linhas de comu-
um importante articulador da Independência junto a D.
nicação possuem caráter ofensivo e defensivo. É possível
Pedro e Leopoldina, assim como um responsável por
atacar o inimigo, promover uma batalha, estabelecer um
organizar um projeto de cidadania ao país.
bloqueio ao mesmo tempo que é vital promover a defesa
Diante das ameaças europeias à independência
para preservação do comércio e logística das tropas.
brasileira, o político adotou um pensamento estraté-
Durante as guerras de Independência, a população
gico com o propósito de erguer um Brasil soberano e
brasileira possuía elevada dependência marítima, ten-
forte. Para realização da empreitada, era mandatório:
do em vista a ausência de rodovias e a integração das
bacias fluviais. Diante da relevância do litoral, o pro- 6
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Manifesto de 6 de agosto de
jeto de poder do Império perpassava pela manutenção 1822. In: SENADO FEDERAL. O Ano da Independência. Brasí-
das dimensões continentais por meio do uso do mar. lia: Senado Federal, 2010, p. 277.
Isto posto, o seu domínio dependia das relações entre 7
Idem, pp. 268.
civis e militares. 8
MENCK, José Theodoro Mascarenhas. José Bonifácio de Andra-
da: Patriarca da Nacionalidade. Brasília: Câmara dos Deputados,
2019, p. 201.
O projeto de civilização de José Bonifácio: a 9
SILVA, José Bonifácio de Andrada e Silva. Representação à As-
importância do domínio do mar sembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil
sobre a escravatura. In: SILVA, Elisiane da. NEVES, Gervásio Ro-
drigo; MARTINS, Liana Bach. José Bonifácio: a defesa da sobe-
Um governo forte e constitucional era só rania nacional e popular. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães,
quem podia desempeçar o caminho para o 2011, p. 160.

64 Revista de Villegagnon . 2022


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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

a organização de uma administração pública capaz de como legado da transferência do Ministério da Ma-
executar um projeto de construção da Nação; o desen- rinha e Domínios Ultramarinos. A Armada Nacional
volvimento econômico do país, diversificando sua ati- e Imperial foi criada simultaneamente com o país. A
vidade industrial e comercial; adoção de uma política relação entre a instituição militar e o Estado era dialé-
externa capaz de evitar compromissos que limitasse a tica: a organização da Marinha de Guerra ocorreu
soberania nacional e, finalmente, a garantia da defesa para defesa da soberania do Estado, ao mesmo tempo
do território mediante formação das forças armadas.10 em que o fortalecimento do mesmo era condicionante
Em seu ensaio “Para ajuizar sobre o estado políti- para a consolidação da Esquadra.
co da Nação”, o Patriarca da Independência escreveu
quais são os fatores que devem ser analisados para a A modernização econômica: a condução da
elaboração da legislação que a um país compete: exata frota naval à era do vapor por Marquês de
descrição do país, sua história natural, suas produções Barbacena
e cultivação, sua divisão por comarcas, o número,
grandeza e situação das cidades, vilas e freguesias, o Após o 7 de setembro, forjava-se uma elite que iria
cálculo mais exato da gente, o estado das fortalezas e conduzir o país. Entre fazendeiros e comerciantes, des-
portos de mar; a indústria, artes e marinha; o comér- taca-se o marquês de Barbacena, Felisberto Caldeira
cio que se faz e o que se poderia fazer.11 É interessan- Brant. Na historiografia, é reconhecido pela atuação
te notar que os aspectos sublinhados pelo autor são no processo de reconhecimento internacional da au-
fatores relacionado às condições que um Estado deve tonomia brasileira, bem como nas questões políticas
possuir para o desenvolvimento do seu caráter marí- envoltas à Guerra da Cisplatina e à crise do Primeiro
timo: economia comercial, posição e espaço, marinha Reinado. Como político, defendia a manutenção da
mercante e marinha de guerra. ordem social a partir da defesa dos valores monárqui-
cos e constitucionais.
Essa análise refletiu-se em prática quando a Ma-
rinha de Guerra foi construída de forma emergencial Caldeira Brant estudou, em Lisboa, na Academia
sob liderança de José Bonifácio. Para o Vice-Almirante Real dos Guardas-Marinha e ganhou destaque por
Armando Vidigal, deve-se ao seu pensamento político pertencer à geração de 1790. O grupo era compos-
que compreendeu que a força naval seria a única capaz to por intelectuais que compreendiam a urgência de
de garantir a unidade nacional e um instrumento para uma reforma política capaz de garantir a centraliza-
efetivar a monarquia.12 De fato, para o patriarca era ção e modernizar a economia do Império Lusitano.
urgente “a prontificação, no Brasil, de uma força ma- O seu pensamento político transcende o tempo e o
rítima tal que possa obrar em massa ou subdividir-se Marquês tornou-se um incentivador das transforma-
pelos diversos pontos da Costa”.13 ções estruturais brasileiras. Para Rafael Cupello, o
melhoramento industrial ultrapassava os engenhos
A organização da força naval foi realizada a partir
de açúcar, incluindo, a abertura de estradas e a ado-
do aproveitamento da estrutura de comando deixada
ção de embarcações a vapor para navegação fluvial
10
ANJOS, João Alfredo dos. José Bonifácio, primeiro Chanceler do que, por sua vez, deveria atender aos interesses do
Brasil. Brasília: Alexandre de Gusmão, 2008, p. 292. soberano e da Pátria.14
11
SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Para ajuizar sobre o Estado Historicamente, desde a transferência da Família
política da Nação. In: DOLHNIKOFF, Miriam. José Bonifácio de Real Portuguesa, o governo promovia estímulo à che-
Andrada e Silva: Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia
gada de técnicos europeus e à instalação de fábricas
das Letras, 2000, p. 84.
de cabos e vários insumos relacionados à construção
12
VIDIGAL, Armando Amorim Ferreira. A evolução do pensamen-
naval. Os Arsenais de Marinha da Bahia, Rio de Ja-
to estratégico naval brasileiro. Biblioteca do Exército, 1985, p. 2.
13
1822, 11, 03. Instrução de José Bonifácio a Felisberto Caldeira
Brant Pontes. In: SILVA, Elisiane da. NEVES, Gervásio Rodri- 14
PEIXOTO, Rafael Cupello. O Marquês de Barbacena: política
go; MARTINS, Liana Bach. José Bonifácio: a defesa da sobera- e sociedade no Brasil Imperial (1796-1841). 2018. 393 f. Tese.
nia nacional e popular. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, (Doutorado em História) – Universidade do Rio de Janeiro, Rio
2011, p. 263. de Janeiro, 2018, p. 160.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

neiro e Pernambuco foram reformados, enquanto O objeto de barcos de vapor é de muita van-
estaleiros particulares construíam navios de menor tagem e fica autorizado para promover a vin-
porte. Visando melhorias às condições de navegação, da de alguns já feitos, ou de artífices que os
o monarca ordenou o levantamento de cartas hidro- possam construir aqui; tendo, porém, em vis-
gráficas da costa e a custódia dessa documentação ao ta não ingerir o governo na despesa dos mes-
mos, bastando tão somente animar os empre-
Real Arquivo Militar. D. João VI, em 1818, atento
endedores e prometer-lhes toda a proteção
às inovações tecnológicas, autorizou a incorporação
da parte de S.A.R. e até privilégios legais ao
de uma empresa destinada a explorar barcos a vapor
proprietário do primeiro barco de vapor que
na cabotagem e na navegação fluvial da Capitania da correr aos nossos portos como paquete.17
Bahia. Em 4 de outubro de 1818, foi estabelecida a
comunicação a vapor entre Salvador e Cachoeira por
Felisberto Caldeira Brant. A partir da análise de suas instruções, verifica-se
que auxiliaria na navegação e no comércio. Portanto,
Como resultante da 1ª Revolução Industrial, os sis-
no apoio logístico e na garantia da proteção das linhas
temas de transporte sofreram modificações mediante
de comunicação marítimas. Ao embaixador brasileiro
a inserção de máquinas e caldeiras. O primeiro navio
na Áustria, Bonifácio solicitou: “Amainará, mas sem
com propulsão a vapor surgiu em 1801.15 No entan-
comprometer este governo, os capitalistas, fabricantes,
to, as limitações provocadas pela precariedade do ma-
empreendedores, sobretudo de barcos de vapor, para
quinário, a ausência de locais para abastecimento de
os trazerem, porém à sua custa, contentando-se com a
carvão, a presença da roda que retirava espaço para
proteção do governo”.18 Mais uma vez, corroboram-
a artilharia e deixavam as belonaves vulneráveis aos
se as tentativas do político brasileiro em implementar
tiros de canhões são fatores que justificaram o atraso
seu projeto de modernização tendo em vista que essas
do navio de guerra movido a vapor.
embarcações também conduziriam o país ao capitalis-
A nova propulsão foi incorporada às pequenas em-
mo e ao desenvolvimento industrial.
barcações auxiliares e aos navios mercantes. De qual-
Em Londres, Barbacena enviou uma missiva ao
quer maneira, o país que dispusesse dessas inovações
barão de Santo Amaro informando o seu propósito
demonstraria poder econômico e civilidade tendo em
em garantir “um empréstimo que salve o Banco do
vista a sua frota atuar em conformidade às transfor-
Brasil imediatamente das dificuldades que experi-
mações tecnológicas do período. É preciso lembrar
menta e dois paquetes de vapor que reduzam a co-
que, no âmbito da teoria do poder marítimo, a gênese
municação do Amazonas com o Rio de Janeiro.19.
de uma poderosa Esquadra está no desenvolvimento
O político justificou a importância da embarcação
de uma Marinha Mercante que estimule a importância
pela necessidade de “estreitar a unidade de opinião
do domínio do mar.16
nas províncias do Norte do Brasil (...) nada pode
Nesse processo de afirmação política brasileira,
melhor fazer a união do que uma rápida comunica-
José Bonifácio e Caldeira Brant são agentes responsá-
ção entre as províncias.20 Esse documento é outro
veis pela modernização econômica por meio das em-
vestígio que demonstra a confluência do pensamen-
barcações capazes de servir ao comércio assim como
to político entre Bonifácio e marquês de Barbacena.
para a organização da Marinha. Em correspondência
A integração territorial era imprescindível para a
com os representantes do Brasil na Europa, o Ministro
instruiu Marquês de Barbacena a solicitar inclusive a
17
1822,08,12. Instruções de José Bonifácio de Andrada e Silva a
compra de vapores:
Felisberto Caldeira Brant Pontes. Arquivo Histórico do Itamaraty
AHI 268/01/14.
18
1822,08,21. Despacho de José Bonifácio a Jorge Antônio Schaef-
15
Em 1801, um rebocador a rodas foi construído por William Sy-
fer. Arquivo Histórico do Itamaraty, AHI 267/04/20.
mington. Em 1803, Robert Fulton fez um pequeno navio a vapor.
19
BRANT, Caldeira. In: PEIXOTO, Rafael Cupello. op. cit. p.
16
Ver: ALMEIDA, Francisco Eduardo Alves de. Os gigantes da
182.
estratégia naval: Alfred Thayer Mahan e Herbert William Rich-
mond. Curitiba: Editora Prismas, 2015. 20
Idem.

66 Revista de Villegagnon . 2022


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coesão política brasileira e, ademais, a unidade seria Cochrane para que viesse com seus navios servir a
alcançada a todo o vapor. S.A.R...? Só o seu nome levaria o susto e o terror aos
No que se refere à Marinha de Guerra, o quadro nossos inimigos”.24
de pessoal junto ao aspecto material eram as principais De fato, o Patriarca da Independência instruiu o
preocupações do governo. Em primeiro lugar, devido à Encarregado de Negócios em Londres Felisberto Cal-
presença, na força naval, dos portugueses cuja lealdade deira Brant Pontes a arregimentar mercenários.25 Ao
a D. Pedro I era duvidosa. Outro agravante era a ausên- final de sua estadia obteve 450 homens para servir à
cia de mão de obra qualificada, fossem oficiais ou pra- Armada Imperial além de suplementos para a Esqua-
ças, para servir a bordo. Na época da Independência do dra como canhões, mosquetes, projéteis, pólvora e
Brasil, estima-se uma população composta por 800 mil artigos navais. Por consequência, a Esquadra foi com-
índios “não domesticados” e 1,1 milhão de escravos ne- posta por oficiais ingleses e norte-americanos, entre os
gros,21 fator que dificultava o recrutamento em massa. quais destacamos: Lorde Thomas Alexander Cochra-
Diante da dificuldade em improvisar uma Esquadra e a ne (1775-1860); Capitão de Fragata Thomas Sackvil-
urgência em impedir a fragmentação territorial, tornou- le Crosbie (1793-?); Capitão de Mar e Guerra David
se imperativo a busca por profissionais da guerra. Nas Jewett (1784-1842), Capitão John Pascoal Grenfell
instruções de Bonifácio a Caldeira Brant, é evidente a (1800-1869) e Capitão de Fragata John Taylor (1789-
relevância política e militar da Marinha de Guerra: 1855), além de diversos marinheiros.26
A prioridade na construção da força naval obe-
Sendo a defesa exterior desse Reino um dos decia à urgência em garantir a vitória na guerra, so-
pontos essenciais a que ora cumpre atender- bretudo, a partir do emprego de uma estratégia naval
mos apesar da aparente fraqueza do Reino com bloqueio e domínio do mar; preservar a integra-
hoje em dia inimigo, tem S.A.R. já principia- ção territorial no país onde as comunicações entre as
do a lançar as bases de uma respeitável força regiões eram promovidas por rotas marítimas devido
tanto terrestre como marítima. Vai se pondo à ausência de estradas terrestres; defender a unidade
sobretudo a Marinha no possível pé de ca- nacional, lutando contra forças aliadas a Portugal e,
pacidade, mas, pelo atraso em que esse ramo
também, na projeção de poder, ou seja, submeter as
se achava entre nós, só com o tempo poderá
províncias rebeldes à autoridade central, consolidando
chegar ao estado que reclama a dignidade e
o processo de independência.
grandeza deste Império.22

Em seguida, Bonifácio solicitou ao Marquês de


A dissuasão: a Armada Nacional e Imperial e
Barbacena que obtivesse duas fragatas de 50 peças
a Guerra de Independência
de artilharia, munições de guerra e 200 marinheiros Determinados os propósitos políticos e estratégi-
de tripulação, além de assinar as comissões para os cos, as campanhas militares deveriam ter início. Era
oficiais.23 Desde maio de 1822, o marquês já defen-
dia a contratação do Almirante Cochrane: “o Chile
24
MARINHA DO BRASIL. História Naval Brasileira. Rio de Janei-
tem declarado sua Independência. Não seria o pro- ro: Serviço de Documentação da Marinha, 2002, v. 3, t. 1, p. 76.
pósito mandar alguém a título (...) de negociar com 25
José Bonifácio solicitou também a compra de equipamentos e na-
vios, além da contratação de mercenários na Alemanha, Suécia e
21
CARVALHO, José Murilo de. A vida política. In: SCHWARCZ,
Noruega ao representante brasileiro junto à corte de Viena Jorge
Lilia Moritz. História do Brasil Nação: 1808-2010: A Constru-
Antônio Schaeffer. Ver: 1822,08,21. Despacho de José Bonifácio
ção Nacional (1830-1889). Rio de Janeiro: Editora Objetiva,
a Jorge Antônio Schaeffer. Arquivo Histórico do Itamaraty, AHI
2012, p. 85.
267/04/20.
22
1822, 10, 04. Instruções de José Bonifácio a Caldeira Brant. In: 26
1823,01,12. Ofício de Felisberto Caldeira Brant Pontes Oliveira e
SILVA, Elisiane da. NEVES, Gervásio Rodrigo; MARTINS, Liana
Horta a José Bonifácio de Andrada e Silva comunicando sobre a
Bach. José Bonifácio: a defesa da soberania nacional e popular.
contratação de 600 marinheiros ingleses para o Brasil sob coman-
Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, 2011, p. 253.
do do capitão James Norton. Arquivo Nacional. BR RJANRIO
23
Idem, p. 254. Q1.0.DIL.2/66.

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imperativo um marinheiro com experiência guerreira, fiar para a luta que se aproximava com os
um líder audacioso dotado de coragem e bravura para compatriotas dos mesmos.28
organizar e liderar a força naval. O oficial britânico
Thomas Alexander Cochrane foi o escolhido devido Em 13 de março de 1823, o mercenário fundeou
ao desempenho durante as Guerras Napoleônicas em na cidade do Rio de Janeiro. Após as negociações que
que aniquilou navios franceses. Inclusive, foi alcunha- envolveram o Imperador, o Ministro da Marinha Luís
do por Napoleão Bonaparte de “o Lobo do Mar”. da Cunha Moreira e o Patriarca da Independência,
Na América do Sul, o Chile contratou o mercenário Cochrane conseguiu garantir o aumento de soldo e a
com o propósito de vencer a esquadra espanhola e as- manutenção de sua autoridade quando obteve o posto
segurar a sua emancipação. O embaixador chileno José de Primeiro-Almirante.
Antônio Condarco, em Londres, justificou sua escolha, Antes de prosseguir para o teatro de operações, o
afirmando “trata-se do mais valente marinheiro da oficial general realizou junto ao Monarca uma inspe-
Grã-Bretanha. É personagem altamente recomendável, ção aos navios no Arsenal da Corte. Escreveu em suas
não só pelos princípios liberais, como também porque memórias a escolha pela sua capitânia:
possui caráter superior a toda pretensão ambiciosa”.27
As vitórias alcançadas contra a Espanha corrobo- algumas das quais me agradaram muito,
raram a decisão do governo imperial pela contrata- como prova demonstrativa dos esforços que
ção do militar inglês. Por intermédio do Cônsul do em pouco tempo se deviam ter feito para
Império do Brasil a Buenos Aires, o Ministro Boni- trazê-la [a esquadra] a tão recomendável
fácio contratou Lorde Thomas Cochrane. Ao servir o condição. Grande cuidado se via bem haver-
país como Comandante em Chefe das Forças Navais, se posto em preparar o Pedro Primeiro, nau
poderia fornecer a experiência das táticas navais com contada como de 74 canhões. Era eviden-
as quais a Armada Nacional e Imperial almejava para te veleira, e se achava pronta para o mar,
cumprir sua missão. O oficial inglês compreendeu o com quatro meses de mantimentos a bordo;
caráter político da instituição e os desafios iria enfren- achei, portanto, razão de ficar satisfeito com
a minha intentada capitânia.29
tar. Para Cochrane, José Bonifácio e D. Pedro I foram
importantes atores no processo de formação da força:
As fragatas Maria da Glória e a Piranga também
Viu S. M. Imperial que, sem armada, o des- motivaram o Almirante. Durante sua permanência à
membramento do Império – pelo que respei- capital do Império, foi responsável pela incorporação
tava às províncias do Norte – era inevitável; de novos marinheiros à força naval tendo em vista que
e a energia do seu Ministro Bonifácio em pre- era crítico à presença de portugueses a bordo. As pro-
parar uma esquadra, foi tão louvável quanto postas sugeridas pelo mercenário era a fundação de
o havia sido a sagacidade do Imperador em uma escola de marinheiros na ilha de Santa Catarina,
determinar que ela se criasse. Entrou-se com elaboração de uma política de incentivos aos homens
entusiasmo numa subscrição voluntária: que almejavam permanecer na carreira e a adoção de
bandos de artífices correram aos arsenais, a
medidas de estímulo à construção naval no Grão-Pará
única nau de linha no porto requeria quase
para também contribuir com a integração do território
ser de todo reconstruída; mas o tripular de
e a compra de navios a vapor.30 Embora a tripulação
maruja nativa esse e outros vasos prestáveis
era cousa impossível – havendo sido política
da mãe pátria o fazer até o comércio de ca- 28
COCHRANE, Thomas. Narrativa de serviços no libertar-se o
botagem por meio exclusivamente de portu- Brasil da dominação portuguesa. Brasília: Edições do Senado Fe-
deral, 2014, p. 3.
gueses, nos quais o Brasil agora se não podia
29
COCHRANE, Thomas. op. cit. pp. 40-41.
27
PRIORE, Mary del. A viajante inglesa, o senhor dos mares e 30
ERMAKOFF, George. Lord Thomas Cochrane: um guerreiro es-
o imperador na independência do Brasil. São Paulo: vestígio, cocês a serviço da independência do Brasil. Rio de Janeiro: Casa
2022, p. 47. Editorial G. Ermakoff, 2021, p. 436.

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permanecesse no adestramento, a força naval sob co- está vinculado à capacidade de demonstração de po-
mando de Cochrane suspendeu em direção à província der com a finalidade de intimidar o adversário a fim
da Bahia no dia 1º de abril de 1823. A viajante inglesa de obter o interesse ora estratégico, ora político. No
Maria Graham testemunhou o episódio no seu diário: caso da Guerra de Independência, diante dos óbices
enfrentados para formação da Marinha de Guerra, a
Quando a pequena esquadra passava diante dissuasão era um importante trunfo para o britânico:
de Santa Cruz e a fortaleza começou a sal-
var, o sol rompeu detrás de uma nuvem e um Os meios de intimidação para expulsar os
jorro de luz amarela e brilhante desceu sobre portugueses da Bahia – o perseguimento da
o mar por trás dos navios. Parecia então que frota inimiga – o incapacitar os navios com
eles flutuavam na glória; e esta foi a última tropa destinados ao Maranhão – atos intei-
visão que tive do meu amável amigo.31 ramente além das instruções imperiais – não
só libertaram do inimigo as províncias do
Norte, mas, como já fica dito, pouparam ao
No âmbito da estratégia naval, o paradigma da
Governo brasileiro as demoras, gastos, e in-
batalha decisiva, ou seja, o confronto entre duas es-
certezas de fortes expedições.33
quadras não restringe a ação dos navios. Pelo contrá-
rio, é preciso sublinhar a sua natureza. A versatilidade
traduz seu valor político e militar, sendo capaz de ser Ao chegar à Bahia, o Comandante da nau Pedro I
empregado na paz e na guerra. Sendo assim, ações es- avistou a esquadra portuguesa. Inspirado pelas guer-
tratégicas como Esquadra em Potência transmitem o ras napoleônicas planejou a tática de coluna tal como
caráter político tendo em vista que a força naval é um Lorde Nelson em Trafalgar (1805). No entanto, sua
símbolo, um instrumento de poder do Estado que deve capitânia rompeu a linha inimiga sozinha tendo em
ser levado em consideração diante das controvérsias vista a ausência de experiência militar pela marinha-
entre os países. Já no âmbito militar, até a esquadra gem e a manobra que exigia coordenação além de
inativa pode se transformar em ativa. Portanto, torna- precisão dos tiros de canhão. Após o recebimento
se uma ameaça e limita a liberdade de ação do mais de reforços das fragatas Niterói, Maria da Glória e
forte, comprometendo o domínio do mar. Piranga foi possível a confrontação do inimigo, no
Retomando ao aspecto político dos navios de guer- combate conhecido como 4 de maio. Por consequ-
ra, o apoio à diplomacia é promovido quando o navio ência, o Almirante decidiu pelo bloqueio naval, es-
atua a fim de intimidar e modificar as atitudes do ini- tratégia responsável pelo isolamento das linhas de
migo, como também quando é concedido ao coman- comunicação aos vasos portugueses. O propósito era
dante do navio os plenos poderes para mediação do impedir o abastecimento logístico das tropas e des-
litígio, assumindo o papel político. gastar a população sem o fornecimento de alimentos.
Enquanto isso, Cochrane mediava a rendição da jun-
Nas ações navais empreendidas pelo Almirante Co-
ta governativa portuguesa mediante uso de ameaças
chrane, o oficial soube conduzir a Marinha de Guerra
para impedir que ela fornecesse reforços aos demais
conforme a conjuntura, aplicando a força de forma
no norte do país. Ao General português, Inácio Luís
gradual como também de modo político na Bahia e
Madeira de Melo escreveu:
no Maranhão. O sentido de dissuasão32 na análise

Contando-me que V. Ex.ª está para embar-


31
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Hori-
car as forças militares do seu comando, com
zonte: Editora Garnier, 2021, p. 256.
vistas de transportar-se a alguma das pro-
32
A dissuasão é uma prática das marinhas de guerra anterior ao víncias do Norte, obriga-me a humanidade
armamento nuclear. Durante o século XIX, a diplomacia das ca-
a declarar-lhe o meu dever, bem que penoso,
nhoneiras foi uma estratégia naval empregada pelas potências.
Atualmente, no âmbito da estratégia naval contemporânea, está
de tomar todas as medidas a meu alcance
vinculado ao emprego do submarino nuclear como instrumento
de poder para dissuadir o inimigo. 33
COCHRANE, Thomas. op. cit. p. 79.

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para desmantelar quaisquer transportes contava somente com seu navio sem contingente sufi-
que tentem dar à vela da Bahia no comboio ciente para elaborar uma ação ofensiva. A solução era
dos vasos de guerra. Que tenho os meios de apropriar-se do simbolismo de uma nau linha de bata-
cumprir este dever, a despeito dos navios de lha dotada de 74 canhões e empregar a dissuasão. Após
guerra que possam tentar de obstruir mi- prender o comandante do brigue Infante D. Miguel,
nhas operações, é fato de que nenhum oficial Francisco Garção, Cochrane barganhou sua liberdade
marítimo duvidará – mas que V. Ex.ª como
em troca do envio de correspondência à junta governa-
simples militar não verá tão claramente. Se,
tiva portuguesa. Considerando a experiência na carrei-
depois deste aviso, eu for obrigado a aludi,
ra naval de Garção, o Almirante arquitetou um ardil:
e se por essa causa numerosas vidas forem
sacrificadas, ficarei absolvido de consequên-
cias tais, que de outra sorte muito pesariam Antes que partisse – foi devidamente impres-
sobre o meu ânimo.34 sionada – pela relação que se lhe fez de um
número imaginário de embarcações de guerra
ao largo, acompanhadas por transportes car-
A demonstração da força naval por meio da bata-
regados de tropa, aos quais a capitânia por
lha e do bloqueio corroboraram a dissuasão promovida
mais veleira se havia podido adiantar. Sendo
pelo Almirante. Os portugueses se sentiram ameaçados.
o Capitão Garção homem do mar, e bem ca-
No dia 2 de julho, a força militar e naval levantou ferro paz de julgar das veleiras qualidades do Pe-
rumo à Europa. Porém, o fato não significou o fim das dro Primeiro, facilmente se deixou impressio-
operações. A dissuasão permaneceria conforme as or- nar por esta história, e tornou para a cidade
dens para o Capitão Beaurepaire, Capitão John Taylor com as notícias de uma força irresistível que
e Capitão Thompson para continuar a caça enquanto vinha desembarcar para subjugá-la.36
fosse possível tomar ou destruir os navios:
O ardil promovido por Cochrane é representati-
Tendo recebido notícias que o inimigo da vo do objetivo da dissuasão. A intimidação possui
independência do Brasil está tratando de o propósito de causar a sensação de ameaça e de in-
evacuar a cidade, e deixar o porto da Bahia segurança. Por consequência, ao sentir-se ameaçado,
– tomando debaixo da escolta de seus navios o inimigo necessita modificar imediatamente a sua
de guerra numerosos transportes em que a conduta. No Maranhão, esse efeito foi imediato. A
força militar, seu material e abastecimento
Junta Governativa foi convocada e informada das
são embarcados, juntamente com toda a
intimidações promovida pelo Almirante: “ansiosa-
fazenda móvel pública e particular – sem
mente desejo evitar o ter de deixar cair desenfreadas
excetuar até os vasos sagrados destinados
ao culto religioso – e sendo altamente im- sobre o Maranhão as tropas imperiais da Bahia (...)
portante impedir e interromper o progresso Fica V. Ex.ª o decidir se convirá exasperar ainda mais
do inimigo tanto quanto se possa – deve V. os habitantes destas províncias por uma resistência
Ex.ª ter a maior vigilância espreitando não que me parece inútil”.37
se escape, e tratando de interceptar lhe dos O papel político de Cochrane não terminou com a
navios aqueles que possa acometer a salvo, evacuação dos portugueses. Declarada a aclamação ao
continuando na execução desta ordem en- Imperador D. Pedro I pelo povo do Maranhão, o Al-
quanto puder conservar em vista as embar-
mirante tornou-se responsável pela manutenção da or-
cações inimigas.35
dem na província brasileira. Em 29 de julho de 1823,
escreveu ao General das Armas do Maranhão: “é, meu
No dia 26 de julho, a Nau Pedro I fundeou no dever agora, como chefe militar, por Sua Majestade
Maranhão. Naquele momento, o Almirante Cochrane Imperial, ter cuidado em que nenhuma interferência

34
Idem, p. 71. 36
Idem, p. 82.
35
Idem, p. 69. 37
Idem, p. 83.

70 Revista de Villegagnon . 2022


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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

ou intimidação militar de qualquer maneira assombre tropas terrestres, bloqueando o porto da Bahia e
ou influa a escolha dos habitantes na eleição do seu da Cisplatina e realizando fogo naval durante as
Governo Provisório”.38 batalhas. Além disso, empregou os navios como
elemento dissuasório. Os meios navais desempe-
nharam um papel político para expulsão das juntas
CONSIDERAÇÕES FINAIS governativas portuguesas e para auxiliar na proje-
A pesquisa histórica é uma encruzilhada onde o ção do poder do recém país independente.
presente e o passado se encontram. Revisitar o fato Na longa duração, duzentos anos depois, a Mari-
histórico “Independência do Brasil” permite navegar nha do Brasil permanece exercendo a herança deixa-
um antigo mar, porém, com um navio diferente ou flu- da pela Marinha Imperial. Na Estratégia Nacional de
tuar sobre um rio que também se modificou. Ninguém Defesa, a negação do uso do mar por meio da dissua-
entra no mesmo rio duas vezes, é o que diz o ditado são reforça o papel da diplomacia naval. A Esquadra
popular. Nesse bicentenário, analisar o processo de permanece sustentando um apoio à política externa
autonomia e a construção do Estado Brasileiro sob a brasileira e ao processo de desenvolvimento socioeco-
perspectiva marítima não é somente interessante, é so- nômico do país.
bretudo necessário para uma Nação cujos interesses
Sendo assim, é também possível concluir que o mar
nacionais atravessam as águas.
é civilizador, o mar conduz à modernidade e o mar per-
A trindade José Bonifácio, Marquês de Barbacena mite usá-lo para dissuadir. Cabe aos brasileiros trans-
e Lorde Thomas Cochrane revelam a relevância das formar o legado de sua história em consciência, inspi-
relações civis e militares para a formação de um pen- ração e práticas concretas para fortalecer, em qualquer
samento estratégico capaz de garantir a formação do tempo histórico, a sua mentalidade marítima.
Império do Brasil. Enquanto os membros da elite ci-
vil brasileira forjaram um projeto político fundamen-
tado na Monarquia Parlamentar responsável pela FONTES HISTÓRICAS
civilização e modernização – em certa medida – da 1822,08,12. Instruções de José Bonifácio de Andrada e Silva
economia, compreenderam que a unidade nacional e a Felisberto Caldeira Brant Pontes. Arquivo Histórico do
a ampliação do comércio estavam intimamente rela- Itamaraty AHI 268/01/14.
cionadas com o domínio do mar. O controle defensi-
vo das linhas de comunicação era estratégico para a 1822,08,21. Despacho de José Bonifácio a Jorge Antônio
defesa das dimensões continentais e para a segurança Schaeffer. Arquivo Histórico do Itamaraty, AHI 267/04/20.
da independência. Ademais, a navegação de cabota- 1823,01,12. Ofício de Felisberto Caldeira Brant Pontes
gem e as atividades comerciais de longo curso seriam Oliveira e Horta a José Bonifácio de Andrada e Silva
ampliadas mediante a modernização da frota através comunicando sobre a contratação de 600 marinheiros
aquisição de navios a vapor. Logo, forneceriam apoio ingleses para o Brasil sob comando do capitão James
à logística da Marinha de Guerra. Norton. Arquivo Nacional. BR RJANRIO Q1.0.DIL.2/66.
A partir desse projeto político, o domínio do COCHRANE, Thomas John. Narrativa de serviços no
mar seria consolidado pela força naval. A urgên- libertar-se o Brasil da dominação portuguesa. Brasília:
cia na obtenção de profissionais da guerra para a
Edições do Senado Federal, 2014.
formação de um Esquadra justificou a relevância
política e militar de Lorde Thomas Cochrane. O COSTA, Hipólito da. Correio Brasiliense. Londres, nº 175,
mercenário executou o plano estratégico forma- dezembro de 1822.
lizado pelos civis. Nas Guerras de Independência DOLHNIKOFF, Miriam. José Bonifácio de Andrada e Silva:
(1822-1824), as campanhas navais foram respon- Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
sáveis pelo cumprimento da missão: garantir a vi- 2000.
tória sobre a esquadra portuguesa, transportando
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo
38
Idem, p. 87. Horizonte: Editora Garnier, 2021.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

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2010: A Construção Nacional (1830-1889). Rio de Janeiro:
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Editora Objetiva, 2012.
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escocês a serviço da independência do Brasil. Rio de Janeiro:
Estadual Paulista Júlio de Mesquita, 2006. (dissertação de
Casa Editorial G. Ermakoff, 2021.
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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

ASPECTOS LEGAIS DO SURGIMENTO DA REAL ACADEMIA


DE GUARDAS-MARINHAS

Aspirante André Pereira Rodrigues

INTRODUÇÃO de 1757. Além disso, tal documento servirá, posterior-


mente, como base legal aos critérios de admissibilidade
Partindo da premissa de que o surgimento de Aca-
adotados pelo Corpo de Guardas-Marinhas (1761), pela
demias durante o período do Iluminismo na Europa
Academia Real de Marinha (1779), pela Real Compa-
visava tornar o conhecimento democrático, rompendo
nhia de Guardas-Marinhas (1782) e, finalmente, pela
o estamento vigente no Antigo Regime, elabora-se a
Real Academia de Guardas-Marinhas (1796).
seguinte questão: a criação da Real Academia de Guar-
das-Marinhas, seguiu a lógica iluminista, tornando o Com o intuito de promover, em solo lusitano,
ensino da náutica acessível para todos e, consequen- uma tentativa de institucionalização da Arte e da dis-
temente, permitindo que houvesse mobilidade social? ciplina Militar aos seus nobres, D. José I, então rei
de Portugal, promulga o Alvará de 16 de março de
O propósito deste trabalho é, assim, expor e analisar
1757. Nesse documento, ainda, é possível destacar a
cada decreto, lei e alvará que se relaciona com a criação
relevância dada ao ensino prático metódico no trecho
do que culminaria na Real Academia dos Guardas-Ma-
“a especulação se faz inútil sem huma quotidiana, e
rinhas, com seu estatuto, em 1796, em Lisboa, até sua
dilatada prática do que he pertencente às obrigações
vinda ao Brasil junto à família real. Dessa maneira, será
de cada um dos que se empregão em hum tão nobre
possível avaliar os critérios de admissibilidade positiva-
exercício” (PORTUGAL, 1757), ou seja, é notória a
dos na legislação vigente, de tal maneira a chegar a uma
preocupação do monarca, junto de seu Secretário de
resposta para a hipótese posta acima.
Estado, o Marquês de Pombal, em profissionalizar,
Esse compilado legal pode ser encontrado na obra
desde os postos mais modernos da carreira, os Oficiais
de António Delgado da Silva, intitulada Collecção da
que viriam a compor as fileiras do seu Exército. Tal
Legislação Portugueza: desde a última Compilação
fato provavelmente é uma reação direta ao estado be-
das Ordenações. Lisboa: Typografia Maigrense,
ligerante no qual o continente europeu se encontrava
1828. Todos os volumes, separados por períodos,
devido à Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Ainda
estão disponíveis no sítio da internet O Governo
nesse contexto, Guilherme, Conde de Schaumburg-Li-
dos Outros, http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/
ppe (chefe de Estado de um dos aliados de Portugal
?menu=consulta, desenvolvido pelo Instituto de
neste conflito), assume a função de Generalíssimo do
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Cabe
exército lusitano, implementando diversas reformas e
ressaltar que todas citações diretas foram feitas
liderando a defesa territorial e a vitória portuguesa du-
mantendo-se a ortografia e gramática explícitas nos
rante a invasão espanhola de 1762.
textos originais.
Tal ensino promovido, entretanto, era restrito à
nobreza, conforme:
Alvará de 16 de março de 1757
Apesar de se referir às Tropas de Terra, a primeira Em cada Companhia de Infantaria, Cavalla-
redação que versa sobre a criação de uma Patente, a de ria, Dragões, e Artilheria poderão assentar
Cadete, a qual visava ao preparo e ao treinamento e que praça tres Fidalgos, ou pessoas de nobreza
antecede às de Oficial é a do Alvará de 16 de março reconhecida, assim da Corte, como das Pro-

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

vincias, com a denominação de Cadete, fa- Sendo informado da pouca applicação, e


zendo petição aos respectivos Directores, na aproveitamento que tem mostrado no exer-
qual lhes representem, que pertendem servir cicio de seus empregos a maior parte dos
de Cadetes no Regimento, que declarem: E Guardas Marinhas, que até agora tiverão
que os admitta a fazer suas provas de No- nelle suas praças, sem com ellas se adianta-
breza (PORTUGAL, 1757). rem os seus conhecimentos theoricos e pra-
ticos como delles se devia esperar [...] (POR-
TUGAL, 1774).
E, mesmo assim, alguns segmentos específicos
da nobreza tinham precedência sobre os demais,
como é o caso dos filhos de Oficiais militares que É perceptível, portanto, a insatisfação do rei, já
tivessem, pelo menos, “a patente de Sargento Mór nos últimos anos de sua vida, em relação à Patente
pago; ou sendo filho de Mestres de Campo dos Ter- que previamente criara, devido à ineficácia que os
ços Auxiliares, e das Ordenanças” (PORTUGAL, militares que a ostentavam apresentaram durante os
1757). Tais pretendentes ao cargo de Cadete não 13 anos decorridos.
necessitavam de nenhuma prova de ascendência.
Em contrapartida, aqueles que não dispunham de Lei de 5 de agosto de 1779
tal precedência eram “obrigados a provar, que por
D. Maria I, da mesma forma que seu pai o fizera
seus Pais, e todos seus Quatro Avós tem Nobreza
previamente, percebendo a necessidade de institucio-
notória, sem fama em contrario; e não o mostran-
nalizar o ensino técnico e profissional da náutica a ser
do assim claramente não serão recebidos” (POR-
ministrado aos futuros Oficiais de sua Marinha, esta-
TUGAL, 1757).
beleceu a Academia Real da Marinha, por meio da Lei
Finalmente, a última restrição a que o texto se
de 5 de agosto de 1779.
refere é em relação à idade dos candidatos, que não
No trecho “poderem meus Vassallos applicar-se ao
poderiam ter “menos de quinze annos de idade, ou
estudo das Sciencias, que são indispensaveis, não só
passando de vinte” (PORTUGAL, 1757).
para se instruirem, mas também para se aperfeiçoa-
Com isso, é possível afirmar que, nesse momento, rem na Arte, e Prática da Navegação” (PORTUGAL,
em Portugal, há um suporte da legislação para ratifi- 1779) denota que, à época, já era possível vislumbrar
car o privilégio das armas exclusivamente à nobreza, a preocupação em instruir e aperfeiçoar, visto que, uma
impedindo o ingresso dos demais estratos sociais na etapa do aprendizado é dependente da outra. Adicio-
categoria de Oficial. nalmente, nesse momento, vem à tona outro debate: a
Arte referenciada por essa lei deveria ser tratada como
Decreto de 2 de julho de 1761 Arte Liberal ou como Arte Mecânica? Em um primeiro
instante, faz-se necessário distinguí-las. Originalmente,
Assim como fez com as Tropas de Terra, dessa vez,
na Idade Média, aquela se refere aos ofícios, disciplinas
D. José I estabelece, por meio do Decreto de 2 de julho
acadêmicas ou profissões desempenhadas pelos homens
de 1761, a patente de Guarda-Marinha – equivalente
livres e é composta pelo Trivium (lógica, gramática e
à de Alferes de Infantaria –, com o intuito de que haja
retórica) e Quadrivium (aritmética, música, geometria
instrução e educação de Oficiais da sua Marinha.
e astronomia). Já a segunda, também chamada de “arte
Tal documento remete ao Alvará de 16 de março servil” ou “arte vulgar”, era considerada imprópria
de 1757 no que tange aos critérios de admissibilidade, para os homens livres, uma vez que era concernente às
retomando as mesmas disposições da necessidade de necessidades mais básicas e era composta, segundo divi-
ser nobre. são de João Escoto Erígena (Irlanda, 810 – Paris, 877),
Essa breve empreitada, no entanto, chegou ao seu em alfaiateria, agricultura, arquitetura, vida militar e
fim, com a abolição de tal patente por meio do Decre- caça, comércio, culinária e metalurgia. Num contexto
to de 9 de julho de 1774, o qual dava como motivo de manutenção do status quo, conclui-se que há uma
para o ato o seguinte: tentativa de tornar o ensino militar dos Oficiais em Arte

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Liberal, de tal forma que se justifique a exclusividade aula e a outra metade referente à aula do próprio dia –
das armas aos nobres, ratificada pelos critérios adota- e sobre os dias nos quais elas deveriam ocorrer.
dos na admissão aos cursos. Para que os estudantes fossem estimulados a estu-
No texto, era possível, também, já se ter inicialmen- dar, e para que a admissão deles no Serviço Real fosse
te uma breve explanação das matérias que seriam lecio- fundamentada, eles seriam submetidos a exames ao
nadas durante o período em que se estava matriculado: final de cada ano letivo – que deveriam ser aprovados
pelos Lentes de cada matéria, que os julgaria aptos
hum curso de Mathematica, o qual será ou inaptos para dar continuidade ao próximo ano do
composto das partes seguintes: da Aritheme- curso –, com o conteúdo que foi ministrado durante
tica; da Geometria; da Trigonometria Plana, aquele período.
e Esférica; Algebra, e sua applicação á Ge- Em seguida, a Lei abordava sobre o Exame Geral
ometria; da Statica, da Dynamica; da Hy- de todo o Curso Mathematico (prova a ser feita ao
drostatica, Hydraulica, e Optica; e de hum final dos dois anos de curso, para verificar a aptidão e
Tratado completo de Navegação, havendo
aproveitamento nas Ciências e na Navegação), e aqui
uma Inspecção sobre a mesma Real Acade-
havia a distinção daqueles que seguiriam como Ofi-
mia, a qual pertencerá ao Inspector Geral da
Marinha (PORTUGAL, 1779). ciais da Marinha de Guerra ou Oficiais da Marinha
Mercante. Após a conclusão do Curso Mathematico
com aproveitamento e após a aprovação no Exame
Além disso, no trecho supracitado, ficava clara a Geral, o pretendente que visava a ser Piloto unicamen-
importância de uma inspeção, a ser feita com frequên- te nos navios mercantes poderia fazer requerimento
cia, com o intuito de que não ocorresse o mesmo que ao Lente de Navegação. Uma vez aprovado por este
acontecera com a última tentativa do Decreto de 2 de último, o pretendente, então, recebia o título de Pilo-
julho de 1761, em que era nítido o pouco aproveita- to. Já aqueles que objetivavam ser Pilotos na Marinha
mento dos Guardas-Marinhas. Real, além de apresentarem as mesmas condições aci-
Finalmente, a Lei de 5 de agosto de 1779 define o ma citadas, deveriam exercitar a prática de manobra e
Estatuto da Academia Real de Marinha, configuran- navegação durante dois anos nas naus de guerra. Após
do o número de professores (três), e os requisitos que esses dois anos, caso recebessem atestação de bons
estes deveriam cumprir para poderem lecionar (curso serviços, poderiam requerer a Patente de Piloto e se-
de cinco anos na Universidade de Coimbra). Versava, rem, de fato, admitidos nas naves bélicas. Outro ponto
ademais, sobre os substitutos desses docentes, que a ser ressaltado nesse trecho do Estatuto é que, dali
também eram em número três, com a função exclusiva em diante, a rainha proibiu a admissão de “Officiaes
de lecionar em caso de impedimento dos titulares. de Guerra” e de Pilotos a sua Marinha Real àqueles
Quanto aos discípulos, nenhum poderia ser aceito que não atestassem ter logrado êxito no Exame Geral,
sem ter conhecimento das quatro regras fundamentais após a conclusão e aprovação no Curso Mathematico,
da Aritmética, e deveriam ser aprovados pelo Professor ou seja, houve uma segregação ainda maior daque-
de Geometria, após declararem seus nomes, pais, pátria les que poderiam se tornar Oficiais (nesse momento,
e estudos já realizados, bem como uma certidão para criou-se uma sistematização do ensino da náutica para
comprovar a idade, a qual deveria ser maior do que a de os jovens que um dia tornariam-se Oficiais). Final-
quatorze anos. Percebe-se, portanto, mais uma forma mente, dessa parte da Lei também é possível perceber
de segregar o ensino da náutica no Reino de Portugal, a importância dada aos ensinamentos práticos:
uma vez que tais conhecimentos de Matemática não
eram acessíveis à maior parte da população.
E porque além da Theorica Nautica são ne-
O texto seguia abordando sobre as aulas e sobre o cessários outros conhecimentos, que só se
observatório, bem como sobre o tempo de cada lição podem adquirir com a experiencia, e prática;
– que deveria ter, pelo menos, uma hora e meia, sendo todos aquelles, que depois entrarem d’aqui
metade destinada à repetição dos exercícios da última em diante no serviço da Marinha, pedirem

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póstos de Tenente para cima, para continu- Com o intuito de equiparar os privilégios e
arem no serviço do mar deverão apresentar prerrogativas daqueles que participariam da Aca-
outra Attestação de terem feito ao menos demia Real de Marinha com aqueles que já eram
dous annos de exercicio no mar, em que se ingressos na Universidade de Coimbra, o Estatuto
comprehenda huma viagem á Índia, ou ao dedica uma parte versando tanto sobre os Profes-
Brazil; e os que tiverem essa circunstancia, sores, quanto sobre os Discípulos. Ambos eram
serão preferidos aos que me fizerem esse re-
integralmente equiparados às mesmas classes da
querimento sem ella (PORTUGAL, 1779).
Universidade de Coimbra.
A existência de um Guarda-Livros também está
Ou seja, com o intuito de receber uma promoção, exposta na Lei. Tal figura servia de Secretário da Aca-
o militar deveria demonstrar experiência no mar, ob- demia, escrevendo as resoluções, propostas e requeri-
tidas durante dois anos de serviço a bordo dos navios, mentos feitos na instituição. Era também o encarre-
com pelo menos uma viagem às colônias portuguesas, gado das declarações de aprovação e reprovação dos
seja para Índia ou Brasil. estudantes. Finalmente, era o incumbido do “Archivo
Em seguida, há uma abordagem das disposi- da Academia”. (PORTUGAL, 1779)
ções atinentes à boa ordem das aulas e à Academia. Os O último tópico abordado por esse Estatuto previa
alunos, após os inícios das lições, deveriam chegar em a função de Guarda dos Instrumentos, com a respon-
até seis minutos para não serem considerados faltosos, sabilidade de arrecadar, limpar e conduzir os apare-
e não poderiam sair antes do término previsto. Adicio- lhos utilizados para observação astronômica e maríti-
nalmente, os estudantes deveriam “guardar hum rigo- ma que eram utilizados nas aulas.
roso, e profundo silencio, quando estiverem nas aulas,
Em suma, conclui-se que a Academia Real da Ma-
excepto quando forem chamados pelos mestres”. Aque-
rinha era, de fato, uma universidade voltada ao ensino
les que faltavam com o respeito com seus Lentes, eram
técnico (Matemáticas) e prático (Navegação). No en-
admoestados até três vezes. Caso isso ocorresse, estes
tanto, havia ainda uma lacuna muito importante a ser
alunos eram expulsos da aula, não podendo retornar.
preenchida no ensino metódico dos futuros Oficiais: a
Além disso, os docentes eram obrigados a manter uma
formação militar. Tal lacuna vem a ser preenchida com
lista de presença rigorosa, utilizada para a “Attestação
o decreto a ser abordado a seguir.
de frequência das Aulas” (PORTUGAL, 1779).
Além disso, a Lei abordava sobre as “obrigações
dos Pilotos addictos ao serviço da Marinha Real”
Decreto de 14 de dezembro de 1782
(PORTUGAL, 1779). Assim que voltassem ao por- A rainha D. Maria I, por meio deste decreto,
to de Lisboa, após uma longa viagem, tais militares retoma a intenção daquele de 2 de julho de 1761,
possuíam o prazo de até oito dias para apresentar aos dessa vez criando uma Companhia de Guardas-Ma-
Lentes de Navegação a derrota percorrida na viagem, rinhas, para formar Oficiais hábeis e instruídos.
bem como deveriam entregar um catálogo, contendo Neste mesmo texto, a monarca ordena que se redija
todas as observações astronômicas que fizeram no um regulamento – que só será concluído em 1796,
mar e em terra, especificando o instrumento e a quali- com a promulgação do Primeiro Estatuto da Real
dade deste. Logo, mais uma vez se dava a devida im- Academia de Guardas-Marinhas. Enquanto tal re-
portância à prática e não somente aos conhecimentos gulamento não estivesse pronto, o número de pesso-
técnico-científicos. as admitidas na Companhia não deveria ultrapassar
O texto ainda cita a possibilidade de, uma vez ter- quarenta e oito, estando os pretendentes entre as
minado o curso com êxito, tornar-se Oficial Engenhei- idades de quatorze e dezoito anos.
ro. Para isso, deveriam, após concluir o Curso Mathe- Vale ressaltar que, mais uma vez, o Alvará de 16 de
matico, “ouvir as lições de Fortificação, e Engenharia, março de 1757 regia os critérios de admissibilidade da
e a se instruirem no Desenho, tendo determinados Companhia. Só estavam isentos de tais qualificações
Professores para esses effeitos” (PORTUGAL, 1779). aqueles que comprovarem ser filhos de:

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Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

Officiaes de Marinha de Capitão Tenente in- Finalmente, o último aspecto singular apresentado
clusivamente para cima, e de Sargentos móres por este decreto é atinente à provisão de fardamento
para cima das minhas Tropas de terra: poden- aos Aspirantes, e de soldo – que teria o valor da meta-
do tambem ser admittidos aquelles Discipulos de do soldo de Guarda-Marinha.
da Academia Real da Marinha, que houverem
Por mais que haja indícios que a Real Academia de
tido o partido (PORTUGAL, 1782).
Guardas-Marinhas já existisse e funcionasse, pelo me-
nos, desde 1786, seu primeiro Estatuto data de 1796,
Mais uma vez, portanto, é possível notar os privi- com assinatura do príncipe regente D. João, futuro D.
légios da fidalguia na admissão às fileiras do oficialato João VI, que viria ao Brasil.
da Marinha. Diferentemente da Real Academia da Marinha, que
tinha seu Curso Mathematico com duração de dois
Decreto de 14 de julho de 1788 anos letivos, a Real Academia de Guardas-Marinhas
propunha três anos, subdivididos da seguinte forma:
O Decreto de 14 de julho de 1788, assinado pela
então rainha de Portugal, tinha por objetivo aumentar
o efetivo da Companhia de Guardas-Marinhas, bem No Primeiro Anno: Arithmetica, Geometria,
como criar a Patente de Aspirante, com a finalidade e Trigonometria Recta com o seu uso pratico
mais proprio aos Officiaes do Mar.
de examinar e conhecer a propensão, os talentos e ou-
tras qualidades adequadas e precisas de cada um para No Segundo Anno: Principios de Algebra
até ás Equações do segundo grao inclusive;
o serviço na Marinha. Para tanto, a Companhia se-
primeiras applicações della á Arithmetica, e
ria composta de sessenta Guardas-Marinhas e vinte e
Geometria; Secções Conicas, e a Mechanica
quatro Aspirantes.
com a sua applicação immediata ao Appare-
Ademais, a Companhia passava a ser dividida, lho, e Manobra.
agora, em três brigadas, cada uma com um Chefe de No Terceiro Anno: Trigonometria Espheri-
Brigada (com Patente de Tenente do Mar), um Briga- ca; Navegação Theorica, e Pratica; e huns
deiro, um Sub-Brigadeiro (sendo os dois últimos com Rudimentos de Tactica Naval (PORTU-
Patente de Tenente de Infantaria), vinte Guardas-Ma- GAL, 1796).
rinhas e oito Aspirantes.
Dessa forma, institucionalizou-se a formação mi- O ensino das Artes também era seccionado em três
litar aos futuros Oficiais da Marinha Real, uma vez anos. No primeiro, era dado ênfase ao dito “Appa-
que esse era o grande objetivo da Companhia. Toda- relho” e em aparelhar o navio (“provello de todo o
via, não existia, à época, uma forte conexão do ensino necessário para sair”) (BLUTEAU, 1712-1728, Vol. 1.
técnico e prático, como observado na Academia Real p. 408). Era ainda nesse período que se aprendiam as
da Marinha, com tal formação militar – tanto é que manobras com as velas. Já no segundo ano, era lecio-
sobre isso nada é tratado por este decreto em questão. nada a aula de Desenho de Marinha, na qual se faziam
A união desses dois pilares só será possível com o Es- plantas das costas, baías, enseadas e portos. Era tam-
tatuto de 1796. bém durante essa época que se estudavam os materiais
Outro fato interessante abordado por tal decreto de composição do navio, bem como todo o proces-
é a necessidade de primeiro se tornar Aspirante an- so de construção deste. Finalmente, no último ano, o
tes de ser promovido a Guarda-Marinha, sendo que o Lente de Artilharia tinha a missão de lecionar sobre as
pretendente deveria estar dentro das qualificações do armas, sendo que, eventualmente, os estudantes prati-
Decreto de 14 de dezembro de 1782 – ou seja, as mes- cavam exercício de fogo.
mas qualificações do Alvará de 16 de março de 1757. Logo, é possível notar, novamente, a união da Arte
A única diferença é que, para ser Aspirante, a idade e da Ciência na formação dos Guardas-Marinha, da
mínima era de doze anos completos, enquanto que a mesma maneira que na formação dos Discípulos da
máxima era de dezesseis. Academia Real da Marinha previa.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

Em relação ao tempo que se designava às ativida- zava para evitar o mau aproveitamento por parte dos
des da Academia, três horas pela manhã eram destina- alunos, impedindo que acontecesse o mesmo que ocor-
das para as aulas (destas, a primeira uma hora e meia rera em 1774, conforme já discutido neste trabalho.
para o ensino da Matemática, e a uma hora e meia O corpo docente da Academia era formado pelas
restante para as demais matérias, com quinze minutos seguintes cadeiras: “três Lentes de Mathematica, dois
de intervalo), de tal forma que o período da tarde fos- seus Substitutos, hum Lente de Artilharia, e dois Mes-
se livre, a fim de possibilitar o estudo das lições nesse tres, hum de Apparelho, e outro de Construcção Na-
tempo. Portanto, é notório que, além dos tempos das val Pratica, e Desenho” (PORTUGAL, 1796).
aulas em si, também era dada relevância ao tempo de
Para ingressar como Substituto, era necessário ter
estudo, com o objetivo de se alcançar o melhor rendi-
se formado na Universidade de Coimbra, ou concluído
mento por parte dos alunos.
o Exame Geral do Curso Mathematico na Academia
O início do ano letivo ocorria em primeiro de ou- Real da Marinha. Aqueles que concluíssem, com ap-
tubro, sendo finalizado em trinta de junho, restando tidão, o curso da Real Academia dos Guardas-Mari-
julho para aplicação das avaliações. A entrada para nhas também poderiam se candidatar ao cargo.
as aulas se dava às nove horas da manhã entre outu-
Da mesma forma que a Academia Real da Mari-
bro e março, e às oito horas da manhã nos demais
nha, o Estatuto da Real Academia de Guardas-Mari-
meses. Os alunos do terceiro ano, entretanto, em dias
nhas estabeleceu a paridade entre os Lentes desta ins-
de observação prática, tinham seus horários regu-
tituição com os da Universidade de Coimbra, dando a
lados pelo Lente de Navegação, que os escolhia de
eles os mesmos privilégios e prerrogativas, tornando-
acordo com o que se desejava observar. Finalmente,
-os parte de um grupo seleto da sociedade portuguesa.
estava expresso na redação que o Natal, a Páscoa e
os meses de agosto e setembro seriam época de férias Quanto à admissão, percebe-se, mais uma vez, a
para os discípulos. Ademais, os dias feriados da se- importância do Alvará de 16 de março de 1757, visto
mana eram as quintas-feiras. que neste Estatuto em questão se retoma o Decreto
de 14 de julho de 1788, o qual, por sua vez, refere-se
Aos sábados, ocorriam os chamados exercícios li-
ao Decreto de 14 de dezembro de 1782, que, por fim,
terários, cujos assuntos eram aqueles tratados duran-
trata dos critérios de admissibilidade do dito Alvará,
te a semana. Três “defendentes” e seis “arguentes”
conforme já abordado.
eram sorteados para discutir sobre o que havia sido
lecionado, sendo os Lentes aqueles que presidiam O que intriga quanto aos critérios de admissibili-
tais eventos. Aos debates eram dada muita relevân- dade da Real Academia de Guardas-Marinha, no en-
cia, tanto que as faltas nesses dias eram computadas tanto, é a necessidade de atestar, por meio de um dos
duplamente no soldo. Lentes da própria Academia, ter suficiência nas quatro
Com o intuito de estimular os estudos, ao fim de regras da aritmética e na Língua Francesa. Possuir flu-
cada ano, ocorria o “Exame das Materias Mathema- ência em uma língua não nativa segregava ainda mais
ticas” atinentes ao dito período. Cada discípulo era o nicho que frequentava tal instituição. Curiosamen-
examinado por três Lentes, presidindo o da matéria te, também era necessário provar que não possuía ne-
em questão, que davam seus votos, a serem recolhidos nhum tipo de defeito pessoal, a exemplo de problemas
pelo Secretário – que decidia da aprovação ou não – de de vista, ou “aleijamento”.
maneira secreta. Já o “Exame das Artes” era feito na A Lei de 1796 vai de encontro ao Decreto de
presença de dois Lentes, com o professor da disciplina 1788 no que tange ao número e às regalias dos As-
interrogando o aluno, para verificar se estava apto a pirantes. Dessa vez, a quantidade de ingressos seria
passar para o próximo ano do curso. Por fim, aqueles indeterminada, e os Aspirantes não receberiam far-
que não obtivessem êxito e ficassem reprovados em damento, tampouco incorporariam nas formaturas
qualquer um dos exames eram reconduzidos a fazer o da Companhia. O fato de não serem providos com
ano novamente. Caso ficassem reprovados pela segun- farda denota, mais uma vez, uma clara distinção de
da vez, eram excluídos. Essa era a forma que se utili- quem poderia frequentar a Academia, visto que os

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

uniformes necessitavam ser adquiridos pelos preten- O Comandante do Destacamento também era in-
dentes, e não era toda a população que tinha essa cumbido de assistir todas as lições, de tal forma que
capacidade financeira. sempre mantivesse a boa ordem delas. Depois, ele en-
Ainda em relação às precedências na admissão que sinava os alunos o modo de fazer a derrota, o “Mane-
determinadas classes tinham sobre outras, destaca-se jo de Bordo” e os fazia escrever diversos modelos de
o trecho: mapas e ordens do “Serviço Diario de Bordo”.
Eventualmente, o Comandante do navio também
comparecia às lições com o intuito de subsidiar o Con-
Nesta admissão sempre serão preferidos os
selho do Almirantado “sobre as qualidades dos diffe-
Filhos de Officiaes Generaes, Capitães de
rentes Individuos daquelle Destacamento, em virtude
Fragata, e Capitães Tenentes, especialmente
dos mortos, ou feridos gravemente em ac- da qual informação, ou serão expulsos, ou passarão
ção; depois destes os Filhos dos Officiaes do a ouvir as lições do Segundo Anno Letivo” (PORTU-
Meu Exercito, que estiverem nas mesmas GAL, 1796).
circunstancias (PORTUGAL, 1796). O hiato de tempo entre o término do “Primei-
ro Anno” e o “Anno de Embarque” era preenchi-
do com ensinamentos sobre “o Manejo de Armas, e
Tanto a admissão, quanto a exclusão e a promoção
Construcção de Mappas, e Detalhes, não desprezan-
de ambas as classes, Aspirantes e Guardas-Marinhas,
do a Lição dos factos memoraveis das Marinhas Mi-
seriam feitas pelo Conselho do Almirantado, pela pri-
litares” (PORTUGAL, 1796). Ou seja, pela primeira
meira vez citado nos documentos sobre os quais este
vez, é possível perceber a relevância que passava a
trabalho debruça. A tal órgão competia, adicional-
ser dada à História Naval, mais especificamente de
mente, reger “tudo que se possa dizer á boa adminis-
cunho militar. Esse período também era destinado
tração da Marinha”, como consta no Decreto de 25 de
à Construção Naval, tanto prática, quanto para a
abril de 1795 (PORTUGAL, 1795).
parte de Desenho.
Após aprovados nas matérias do “Primeiro Anno’’,
Findo o “Anno de Embarque”, os Guardas-Ma-
os Aspirantes não eram imediatamente admitidos ao
rinhas se tornavam discípulos do segundo ano.
“Segundo Anno”. Antes, estes deveriam cumprir o que
Uma vez aprovados neste último, passavam a ouvir
era chamado “Anno de Embarque” – para mostrarem
as “Lições do Terceiro Anno” – último da forma-
que possuíam as “disposições naturaes, necessarias ção – no fim do qual, caso aprovados, recebiam as
para a Vida do Mar” (PORTUGAL, 1796) – prefe- “Cartas de Approvação”, as quais eram assinadas
rencialmente na “Curveta de Ensino” (PORTUGAL, pelo Comandante da Companhia e os habilitavam
1796). Daí se conclui a importância da aptidão e do para a Patente de Segundo Tenente da Real Ar-
ensino prático na formação. mada. Os Guardas-Marinhas, entretanto, só eram
Competia ao Comandante do navio o regime das promovidos à Oficialidade após proposta do Co-
lições durante esse período. O ensino era seccionado mandante da Companhia feita ao Conselho do Al-
de tal forma que o Comandante do Destacamento mirantado. Aqueles que aguardavam a promoção
(um Oficial das Brigadas da Companhia) lecionava ficavam isentos de todos os exercícios acadêmi-
as “Materias Mathematicas”; o Mestre do navio, o cos, sujeitos somente ao “Serviço da Companhia”
nome e uso dos “cabos e Apparelhos”; um Oficial de (PORTUGAL, 1796).
Artilharia, o nome e uso das diferentes peças de ar- Uma vez no Corpo da Marinha, qualquer promo-
tilharia, culminando no exercício prático; o Calafate ção era sempre precedida por aqueles que tivessem
(responsável pela impermeabilização das obras vivas feito o curso na Real Academia. Caso o militar não
do navio), as figuras, nomes e usos de seus instrumen- tivesse efetivamente realizado o curso, poderia, então,
tos, bem como instruía sobre bombas; finalmente o requerer realizar o “Exame de Todas as Materias”, a
Primeiro Carpinteiro, o nome e as posições das madei- fim de provar possuir todos os conhecimentos ensina-
ras de construção. dos em tal instituição.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

No que diz respeito à boa ordem das aulas e à Fidalgo, ou por Pai, ou por Mãi, provando também
frequência destas, o Estatuto diz que: “os que não além disso, que seus Pais vivêrão á Lei da Nobre-
estiverem dando Lição deverão guardar o mais pro- za” (PORTUGAL, 1800).
fundo, e rigoroso silencio” (PORTUGAL, 1796) Em sequência, o decreto restringe a ascensão
– similarmente ao texto do Estatuto da Academia aos Postos de Oficiais da Armada Real às seguintes
Real da Marinha. Os Lentes poderiam ainda repre- classes: Guardas-Marinhas, Discípulos da Academia
ender e, até mesmo, prender os discípulos, os quais da Marinha (somente depois de concluído o curso e
poderiam ser, inclusive, expulsos, dependendo da embarcado nos navios como voluntários, bem como
gravidade da falta. Os alunos que tivessem o total após concluírem o curso como Guardas-Marinhas
de trinta faltas sem causa perdiam o ano letivo e extraordinários), Primeiros Pilotos (com pelo menos
eram entendidos como reprovados. As faltas tam- cinco anos de Posto), Engenheiros construtores e,
bém eram imputadas no vencimento do soldo (a
finalmente, os voluntários que já estavam emprega-
cada uma se perdia um dia de soldo). Caso houvesse
dos à época.
justificativa, o aluno poderia faltar até sessenta dias
Essa redação, portanto, teve por seu objetivo
do ano letivo, sem ser julgado reprovado, por mais
único a restrição ao acesso à Oficialidade da Mari-
que perdesse o ano. Finalmente, aqueles que faltas-
nha de guerra portuguesa àqueles que não fossem,
sem sem causa, ou não quisessem realizar o exame,
de fato, nobres.
também eram tido como reprovados.
Por último, o Estatuto previa a criação dos cargos
de Secretário, de Porteiro e de Guarda. O primeiro era CONCLUSÃO
responsável por realizar as matrículas, e assentos, e
Utilizando-se da legislação exposta, é possível
lançar em um livro. As duas classes subsequentes ti-
responder, em um primeiro momento, a questão
nham as incumbências de cuidar do asseio das aulas e
antes apresentada (“a criação da Real Academia de
do observatório, bem como guardar e limpar os livros,
Guardas-Marinhas, seguiu a lógica iluminista, tor-
instrumentos e modelos.
nando o ensino da náutica acessível para todos e,
Em síntese, o Estatuto de 1796 unia a formação consequentemente, permitindo que houvesse mobi-
militar já prevista pela Companhia de Guardas-Ma-
lidade social?”). De fato, pela intenção legal, não
rinhas com o ensino técnico-científico da náutica, por
houve nenhum tipo de quebra ou rompimento no
meio da Ciência e da Arte, de forma metodológica.
estamento vigente no Antigo Regime. Pelo contrá-
Dessa forma, pode-se afirmar que a intenção norma-
rio, o movimento da criação dessa instituição de
tiva era de que o produto da Real Academia fosse, de
ensino ratificou a ideia de que apenas a nobreza po-
fato, um Oficial completo.
deria deter o privilégio das armas.
Vale salientar também que, embora a maior car-
Decreto de 13 de novembro de 1800 ga fosse para o ensino matemático, por assim dizer,
O último decreto a ser abordado neste trabalho, também era dada relevância à rígida formação militar,
assinado pelo príncipe regente D. João, ratifica a ne- introduzindo os futuros Oficiais à vida na caserna e ao
cessidade de ser nobre para poder desfrutar da exclusi- ensino prático, por meio das observações e das experi-
vidade das armas em sua Marinha de guerra. ências no “Anno de Embarque”.
O texto trata da necessidade de “estabelecer Finalmente, percebe-se que, à medida que o tempo
hum methodo fixo para regular o systema” (POR- foi passando, cada vez mais os critérios de admissibili-
TUGAL, 1800) de admissão à Real Academia, ex- dade adotados para a entrada na carreira de Oficial da
pondo o “grao de Nobreza necessario, para qual- Marinha foram se tornando mais rigorosos, chegando
quer Candidato” (PORTUGAL, 1800). Para isso, ao ponto de, em 1800, ser baixado um decreto exclu-
a redação segue: “Daqui em diante ninguem será sivamente tratando sobre o grau de nobreza necessário
admittido a Guarda-Marinha, sem ter o Foro de para isso.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

REFERÊNCIAS PORTUGAL, Decreto de 14 de dezembro de 1782. Da


criação da Real Companhia de Guardas-Marinhas
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino:
PORTUGAL, Decreto de 14 de julho de 1788. Aumentar os
aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das
efetivos da Companhia de Guardas-Marinhas, 1788.
Artes da Companhia de Jesus, 1712- 1728. 8 v.
PORTUGAL, Lei de 1º de abril de 1796. Do novo
PORTUGAL, Alvará de 16 de março de 1757. Criando a
Regulamento da Real Academia de Guardas-Marinhas,
Patente de Cadete, 1757.
1796.
PORTUGAL, Decreto de 2 de julho de 1761. Criando a
PORTUGAL, Decreto de 13 de novembro de 1800. Da
Patente de Guarda-Marinha, 1761.
admissão de Guardas-Marinhas (provas de nobreza),
PORTUGAL, Lei de 5 de agosto de 1774. Extinguindo a 1800.
Patente de Guarda-Marinha, 1774.
SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação
PORTUGAL, Lei de 5 de agosto de 1779. Da criação da Portugueza: desde a última Compilação das Ordenações.
Academia Real de Marinha, 1779. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828.

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“DOS DESTROÇOS DA PUJANTE MARINHA QUE POSSUIU


PORTUGAL, LEVANTOU O BRASIL OS ALICERCES DA
SUA”: A ORGANIZAÇÃO DO PODER NAVAL BRASILEIRO NO
CONTEXTO DA INDEPENDÊNCIA

Aspirante Lucas Lima dos Santos

INTRODUÇÃO da Baía de Todos os Santos, no Brasil. Seu pai era um


oficial da Armada Real, Luís da Cunha Moreira, e sua
O corrente ano de 2022 marca o Bicentenário da In- mãe, D. Joaquina Maria de Santana, filha de um ofi-
dependência do Brasil, marco de fundamental importân- cial do exército português.
cia para a memória coletiva da nação. No entanto, boa
Ainda na tenra idade de 7 anos, o jovem Cunha
parte da historiografia acerca do tema defende a tese de
Moreira foi levado, por seu pai, para Lisboa a fim de
que o processo de separação política entre colônia e me-
iniciar seus estudos preparatórios, incluindo discipli-
trópole teria sido, nas palavras de Oliveira Lima, apenas
nas como Retórica, Gramática Latina e Filosofia, e
um “desquite amigável”, isto é, sem derramamento de
depois matriculado no Colégio dos Nobres, onde as-
sangue, o que subestima o papel que os militares desem-
sentou praça como Aspirante a Guarda-Marinha na
penharam ao longo dos turbulentos anos de 1822 e 1823.
Academia Real de Marinha em 5 de outubro de 1795,
Há uma extensa bibliografia disponível sobre o
“em obediência à vontade de seu pai, que o destinara
processo de formação do Poder Naval brasileiro, ela-
para a Marinha, e por sua própria inclinação” (BARA-
borada por ilustres historiadores navais. De forma a
TA, 1919, p. 73).
contribuir com outra perspectiva para o entendimento
Em 11 de julho de 1798, os quadros da Armada Real
do tema, este trabalho optou por privilegiar a biogra-
já contavam com o Guarda-Marinha Cunha Moreira,
fia de um dos protagonistas do processo.
o qual embarcou como voluntário no Brigue Gavião
Assim, o presente artigo busca explorar a biografia
e, posteriormente, na Fragata Venus, a bordo da qual
de um dos protagonistas da Independência, nesse caso,
viajou para as Capitanias do Grão-Pará e Maranhão.
o Ministro da Marinha no 1º Gabinete de Dom Pedro
Cunha Moreira foi nomeado Segundo-Tenente,
I, o então Capitão de Mar e Guerra Luís da Cunha
por decreto de 20 de abril de 1799, e recebeu, em se-
Moreira, a quem coube a tarefa de “organizar o abas-
guida, ordens de D. Francisco de Sousa Coutinho, go-
tecimento e a manutenção da nova Marinha Imperial
vernador da Capitania do Grão-Pará, para assumir o
provendo-lhe condições aceitáveis para o cumprimento
comando da recém-construída Charrua S. João Mag-
das missões impostas” (CASTRO, 2020, p. 189). Utili-
nânimo e conduzi-la a Lisboa, aonde chegou em 15 de
zando-se de fontes primárias e secundárias, procura-se
fevereiro de 1800.
aqui compreender o papel desempenhado pelo ilustre
oficial em um momento crítico da história do Brasil. Após a exitosa comissão na S. João Magnânimo, o
jovem oficial foi nomeado pelo Conselho do Almiran-
tado para embarcar na Nau Medusa sob o comando
NASCIMENTO E INÍCIO DA CARREIRA do Chefe de Divisão Joaquim José Monteiro Torres, na
Em 1º de outubro de 1777, nasceu Luís da Cunha qual passou por diversos pontos estratégicos do Atlân-
Moreira na cidade de Salvador, capital da capitania tico português como as ilhas do Cabo Verde, Bengue-

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la, Angola e diversos portos no Brasil, dentre os quais e, naquele momento, procurava expandir seu império.
o do Rio de Janeiro, onde, em janeiro de 1802, foi Cabe ressaltar que entre os navios portugueses, estava a
transferido para o Cuter D. Rodrigo de Sousa, em 13 Fragata Golfinho, comandada pelo Capitão de Fragata
de janeiro de 1802, que recebeu a tarefa de capturar Cunha Moreira, pai do tenente Cunha Moreira.
uma escuna americana realizando comércio ilícito na Quando o Príncipe Regente, D. João VI desem-
ilha de São Sebastião. barcou no Rio de Janeiro em março de 1808, decidiu
Uma vez apresado o navio infrator, assumiu o seu agraciar os seus oficiais com uma promoção, dentre os
comando e regressou ao Rio de Janeiro, podendo en- quais Cunha Moreira, que alcançou o posto de Capi-
fim voltar ao Cuter em março, mas somente em abril, tão-Tenente “merecedor sem dúvida mais pelos seus
Cunha Moreira pôde retornar a Medusa, na qual via- reais predicados do que pela magnificência real” (BOI-
jou para Lisboa. Após voltar a capital, desembarcou TEUX, 1915, p. 148).
e foi designado para a Nau Vasco da Gama em mar- Por ordem do Infante D. Carlos, Almirante Gene-
ço seguinte, mas foi logo realocado para a Fragata ral, Cunha Moreira assumiu o comando do Brigue In-
S. João Principe, onde realizou mais uma comissão fante D. Pedro, compondo assim a Divisão formada
para o Grão-Pará. pelo Brigue Voador e pela Corveta Confiance, navio
Chegando ao Norte do Brasil, ficou sob as ordens inglês, cuja missão era transportar tropas, cerca de
do Conde dos Arcos como seu Ajudante de Ordens, 300 homens, para o norte a fim de conquistar Caiena.
então governador da Capitania, que o designou para Junto com a dinastia de Bragança, as Guerras Napo-
comandar o Brigue S. José Espadarte. No Brigue, reali- leônicas também tinham desembarcado na América.
zou outra vez a travessia para Lisboa, onde desembar-
cou em 28 de março de 1804. Logo depois, por ordem
CONQUISTA DA GUIANA FRANCESA
do Secretário de Estado dos Negócios da Marinha, o
Visconde de Anadia, embarcou na Charrua Princesa Após sua chegada ao Brasil, o monarca lusitano
da Beira com destino ao Grão-Pará, onde chegou a não permaneceu inerte em relação ao inimigo corso,
bordo do Iate Livramento após arribar para o Ma- cabendo aqui destacar algumas medidas:
ranhão, para, novamente, desempenhar as funções de
Ajudante de Ordens do Conde dos Arcos. O Conde D. João assinou, a 1º de maio de 1808, ma-
havia sido nomeado Vice-Rei do Estado do Brasil, e nifesto declarando guerra à França, consi-
transferiu Cunha Moreira para a Fragata Carlota, a derando nulos todos os tratados que o im-
bordo da qual viajou com o novo titular máximo da perador dos franceses o obrigara a aceitar.
colônia para o Rio de Janeiro em 1806. Como consequência, os limites entre o Brasil
e a Guiana Francesa voltaram a ser questio-
Em maio de 1807, através de decreto, foi Cunha
nados. Seguiu-se a este o decreto de 10 de
Moreira promovido a Primeiro-Tenente para, em se-
junho, que explicitava a determinação do
guida, retornar a Metrópole e embarcar na Nau Prin- Estado português de abrir novas frentes de
cipe Real, por nomeação do Conselho do Almiranta- combate na terra e no mar. Na Guerra Pe-
do para “servir na dita nau como segundo ajudante ninsular, mesmo com o auxílio britânico, os
do chefe de divisão Joaquim José Monteiro Torres, portugueses travavam no território metro-
major general da esquadra, de que era comandante o politano uma guerra de resistência; porém,
vice-almirante Manuel da Cunha Soutomaior” (BA- na América do Sul, havia a oportunidade
RATA, 1919, p.75). de um movimento ofensivo e o alvo ideal se
A esquadra de Soutomaior tinha o objetivo de trans- tornou a colônia francesa nas Américas, a
Guiana (SILVA, 2018, p. 82).
ferir a “fina flor” da aristocracia portuguesa, além das
estruturas administrativas do Estado, inclusive a Famí-
lia Real, para o Novo Mundo, a fim de evitar o des- Sem possibilidades de retaliação na Europa, o
tronamento pelas tropas de Napoleão Bonaparte, o jo- príncipe regente ordenou a invasão da Guiana Fran-
vem general que tomou rédeas da Revolução Francesa cesa ao Governador da Província do Grão-Pará, Te-

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

nente General José Narciso de Magalhães de Mene- lhe vincou durante a vida a fronte alta e espaçosa.”
zes para que “fizesse seguir forças de mar e terra para (BARATA, 1919, p. 82).
ocupar a margem direita do Oyapock” (BOITEUX, Após a capitulação do governador da Guiana,
1915, p. 149). Victor Hughes, foi incumbido Cunha Moreira de
Inicialmente, as ordens da expedição se limitavam escoltá-lo de volta à França a bordo do Infante D.
a reaver o que havia sido estabelecido no Tratado de Pedro, que havia sido desarmado com o intuito de
Utrecht, isto é, apenas a margem direita do Rio Oia- reforçar o caráter diplomático da missão, desatracan-
poque, evitando confrontos diretos com os defenso- do em março de 1809. Regressou ao Rio de Janeiro
res franceses. Em junho de 1808, chegou em Belém o em agosto de 1809, onde foi promovido a Capitão
Decreto do Príncipe Regente ordenando hostilidades de Fragata em outubro do mesmo ano, “de acordo
contra o inimigo gaulês. com o decreto de 30 de maio de 1809, que concedeu
Não seria mais uma questão de reestabelecer fron- um posto de acesso a todos os oficiais que tomaram
teiras, mas sim de expansão imperial, Caiena deveria parte naquela expedição, e como galardão aos bravos
ser conquistada e subjugada pela Corte do Rio de Ja- que naquela conquista tomaram parte” (BOITEUX,
neiro. O comando das forças terrestres da expedição 1915, p. 150).
coube ao Tenente-Coronel Manuel Marques d´Elvas
Portugal e o das “forças de mar” ao Capitão-de-Mar-
-e-Guerra James Lucas Yeo, oficial da Marinha Real
CONQUISTA DA CISPLATINA
Britânica e comandante da Corveta Confidence. Cunha Moreira permaneceu no comando do Bri-
O esforço material e humano requerido para uma gue Infante D. Pedro após a campanha na Guiana até
campanha em ambiente tão desafiador coube a Ca- que passasse juntamente com toda a sua guarnição
pitania do Grão-Pará, que chegou a recorrer a uma para o Brigue Gaivota em dezembro de 1811, de onde
subscrição pública. Além das tropas locais, que totali- desembarcou fevereiro de 1813.
zavam 405 praças sob o comando do Tenente Coronel Após a derrota definitiva de Napoleão nos cam-
Manuel Marques, a Corte enviou reforços na forma pos de Waterloo, a paz foi restaurada no continente
dos brigues Voador e Infante D. Pedro, cujas tripu- europeu. Na América, as colônias hispânicas lutavam
lações elevaram os números do contingente para 751 pela independência, tendo a Argentina declarado a sua
combatentes, apoiados por 93 canhões. em 1810 e procurava aumentar sua influência sobre a
Coube ao comandante do Brigue Infante D. Pedro Banda Oriental, onde José Gervásio Artigas conduzia
debelar o foco de resistência na região do Rio Aproua- uma rebelião contra os castelhanos.
gue, onde desembarcou com sua guarnição, contando O Congresso de Viena se encarregou de reordenar
entre eles ingleses e “brasilienses”, e avançou contra o Concerto das Nações. Como consequência, Portugal
o inimigo. “O choque foi rápido e formidável e, num teve que devolver a Guiana Francesa e ceder Oliven-
instante, era o inimigo levado de roldão, deixando um ça a Espanha. “Era, pois, natural procurasse D. João
sargento e 10 soldados prisioneiros das nossas forças” buscar uma compensação em território espanhol na
(LEIVAS & GOYCOCHÊA, 1979, p. 398). No entan- América” (SOUZA, 1979, p. 463). Na fronteira sul do
to, alguns franceses conseguiram escapar e se entrin- Brasil, os constantes atritos e disputas pelo controle
cheirar no “Colégio”, posição fortificada dotada de da foz do Rio da Prata forneciam uma oportunidade:
uma peça de bronze. a província Cisplatina. Então:
Novo ataque foi levado a cabo pelos homens de
Cunha Moreira, logrando êxito em seu intento, a Resolveu o Governo do príncipe regente
edificação foi queimada e foi apresado o canhão de ocupar a Banda Oriental, para resguardar
bronze, assim como duas escunas, rebatizadas como as fronteiras meridionais do Brasil das con-
D. Carlos e Sidney Smith. Entretanto, durante os tinuas invasões dos Argentinos e Orientais;
combates no Aprouague “foi Luís da Cunha Moreira e para isso teve de mandar vir forças de Por-
ferido por um golpe de sabre, cuja cicatriz gloriosa tugal (BARATA, 1919, p. 86).

84 Revista de Villegagnon . 2022


Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

Em 1815, Cunha Moreira recebeu ordens da Secreta- ocorreu a Guerra dos Mascates, entre os emergentes
ria de Estado da Marinha para se dirigir a Lisboa e se co- mercadores do Recife e a aristocracia rural de Olinda,
locar sob às ordens do Chefe de Divisão Rodrigo José Fer- de origem portuguesa.
reira Lobo, oficial responsável pelo embarque do General Em 1817, às vésperas da Revolução, já havia exem-
Carlos Frederico Lecor e sua divisão de voluntários reais plos bem-sucedidos como o da Revolução Americana
– que havia sido formada para combater Napoleão – para e o da Revolução Francesa, ao menos parcialmente,
o Brasil com o intuito dissimulado de subjugar Artigas e que inspiraram os descontentes com a administração
devolver o território à coroa espanhola. Dentre os navios central da Corte, materializada pelo aumento do custo
que escoltavam o comboio, estava a Nau Vasco da Gama, de vida devido aos monopolistas e devido ao declínio
na qual embarcou Cunha Moreira em janeiro de 1816.
econômico da região por conta da desvalorização do
Em agosto, os navios chegavam à Cisplatina, açúcar. Nesse contexto, mais uma vez Cunha Moreira
onde os soldados foram desembarcados. Cunha Mo- mostraria seus serviços à Coroa.
reira foi voluntário para arriscadas missões em terra
Depois de regressar ao Rio de Janeiro, Cunha Mo-
como emissário do Chefe de Divisão Ferreira Lobo,
reira assumiu, em março de 1817, o comando da Fra-
mantendo conhecimento dos movimentos das tropas
gata Thetis, a bordo da qual tomaria parte nos com-
e do humor da população local, logrando êxito e se
bates contra a Revolução Pernambucana, movimento
destacando entre seus pares, especialmente na tomada
separatista que havia tomado o Recife no mesmo mês e
de Maldonado em 23 de abril de 1816 por conta de
buscava se alastrar pelas outras capitanias do Nordeste.
“seu denodo e bravura foram postos em evidência”
(BOITEUX, 1915, p. 151), culminando na conquista Uma vez mais, Cunha Moreira serviu sob as ordens
de Montevidéu em 20 de janeiro de 1817. do Chefe de Divisão Ferreira Lobo, que recebeu o co-
mando da Divisão Naval. No ataque contra o Recife,
mais uma vez se destacou ao ser o primeiro a desem-
Quer desempenhando arriscadas missões
barcar e depois guarnecer as fortalezas para viabilizar
em terra – observações de caráter militar
ou operações de desembarque, como as to- o desembarque de Ferreira Lobo, que assumiu o con-
madas de S. Fernando e Maldonado – quer trole da cidade e mandou prender os revoltosos.
a bordo, atuando destacadamente no blo- Apesar da brutalidade com que tratou os rebeldes,
queio naval estabelecido, o alto conceito de Ferreira Lobo foi promovido a Chefe de Esquadra Gra-
que já gozava Cunha Moreira ainda mais se duado e, logo em seguida, efetivado no posto pelo De-
elevou (GUEDES, 1972, p. 5). creto de 12 de outubro de 1817, “que mandou ser pro-
movido ao posto superior todos os oficiais que tomaram
Conforme demonstram as palavras do Almirante parte nas guerras do Sul e de Pernambuco” (BOITEUX,
Max Justo Guedes, Cunha Moreira demonstrou cora- 1915, p. 153). Por conta disso, Cunha Moreira chegou
gem, iniciativa, abnegação e espírito de sacrifício em ao posto de Capitão de Mar e Guerra Graduado.
perigosas missões, que aportaram um caráter operati- Como seu comandante havia sido promovido duas
vo à sua carreira. vezes, Cunha Moreira se julgava merecedor de ser efeti-
Em 31 de julho de 1821, foi aprovada a incorporação vado no posto e escreveu um requerimento ao Rei pedin-
da Banda Oriental à Coroa portuguesa, sendo renome- do igual mercê, acompanhado de um atestado do Chefe
ada como Província Cisplatina. Mais uma vez, Cunha de Esquadra Ferreira Lobo, endossando seu pedido. Por
Moreira contribuiu para a dilatação do império joanino. fim, o pedido foi deferido e em 12 de outubro de 1818
foi promovido a Capitão de Mar e Guerra Efetivo.

SUPRESSÃO DA REVOLUÇÃO
PERNAMBUCANA DE 1817 PREÂMBULO DA INDEPENDÊNCIA
As tensões na Capitania de Pernambuco já vinham O inimigo corso já havia sido derrotado havia 6
de longa data, remontando ao século XVIII, quando anos, mas o soberano português insistia em continuar

Revista de Villegagnon . 2022 85


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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

morando, junto com o restante da corte, nos trópicos. dobrasse às medidas emanadas das Cortes, tentando
O controle da metrópole de outrora se dava por uma assim ocupar o Morro do Castelo com suas tropas.
junta militar britânica, gerando um cenário de cres- No entanto, D. Pedro conseguiu mobilizar as mi-
cente descontentamento. lícias cariocas e expulsar os soldados lusitanos para a
Praia Grande, em Niterói, onde foram cercados. Avi-
Com a queda de Napoleão e o movimento lez enfim recebeu ordem para retornar ao Velho Con-
de restauração das monarquias absolutistas tinente, a divisão lusitana foi embarcada e comboiada
encabeçado pelo Congresso de Viena, os por navios leais ao príncipe de volta a Lisboa: um des-
portugueses esperavam que seu rei retornas- ses escoltas era a Corveta Maria da Glória, coman-
se para Portugal e trouxesse a Corte de volta dada pelo Capitão de Mar e Guerra Luís da Cunha
para Lisboa. Entretanto, o monarca perma- Moreira. Infelizmente, dois transportes onde estavam
neceu no Rio de Janeiro e, para viabilizar embarcados soldados portugueses conseguiram esca-
esta situação, elevou o Brasil a uma condi- par do comboio e se dirigiram para Salvador, onde re-
ção equivalente de Portugal com a formação forçaram a guarnição de Madeira de Melo.
do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algar-
ves (SILVA, 2018, p. 86). Mesmo Portugal tendo enviado uma Força Naval
respeitável para reforçar Avilez no Rio de Janeiro, o
Chefe de Divisão Maximiano de Sousa encontrou a
Em 1821, eclodiu a Revolução Liberal do Porto cidade livre. Como não tinha condições de empreen-
em Portugal com o objetivo de diminuir os poderes der uma campanha sem apoios em terra, foi obrigado
absolutistas de D. João VI, substituindo o Ancién a deixar o Brasil e ainda desembarcar 400 praças, que
Régime por uma monarquia constitucional. As Cortes juntaram à causa de D. Pedro e à Fragata Real Caroli-
de Lisboa, como ficaram conhecidas, almejavam a re- na¸ seu segundo navio mais poderoso.
generação do Reino Unido, restaurando o papel cen-
Enquanto isso, principalmente na Bahia, come-
tral de Lisboa, mas ainda incluindo o Reino de Brasil,
çaram a ocorrer choques entre elementos nacionais,
no entanto muitos defensores da separação defendiam
organizados no Recôncavo baiano, que eram leais a
que o verdadeiro interesse dos deputados reinóis era
ao jovem príncipe e as tropas de Madeira de Melo,
“recolonizar” o Brasil.
que desejavam retorno do monarca para Portugal,
Antes de retornar a Lisboa, D. João VI nomeou seu conforme as ordens das Cortes. As reverberações
filho D. Pedro de Alcântara como Príncipe Regente do chegaram à Corte, onde foi montada uma esquadra
Reino do Brasil e duplicou a estrutura administrativa sob o comando do Chefe de Divisão Rodrigo de La-
a ele subordinada, ficando como Secretário de Estado mare, composta pela Fragata União, Corveta Maria
dos Negócios da Marinha o Chefe de Esquadra portu- da Glória, Corveta Liberal e o Brigue Reino Unido.
guês Manoel Antônio Farinha. Não satisfeitas, as Cor- Tal força deveria bloquear o Porto de Salvador e de-
tes determinaram que o jovem Príncipe voltasse para a sembarcar reforços para os rebeldes baianos, capita-
Europa. Entretanto, em 9 de janeiro de 1822, aconte- neados pelo General Labatut.
ceu o “Dia do Fico”, quando o D. Pedro anunciou sua O tendão de Aquiles da Divisão de Lamare era a sua
permanência em terras brasileiras. dependência de marinheiros portugueses para guarne-
Nesse ínterim, tropas lusitanas continuavam sedia- cer os navios. A fragilidade se fez sentir quando foram
das nas principais cidades brasileiras, especialmente a contrapostos pelos navios portugueses que apoiavam
Divisão Auxiliadora na Corte, as tropas do Brigadeiro a guarnição de Salvador. Houve uma conspiração a
Inácio Luís Madeira de Melo em Salvador, as tropas bordo dos meios brasileiros, onde marinheiros lusi-
do Governador de Armas do Piauí, Major Fidié, e a tanos planejaram assassinar os seus oficiais e depois
guarnição do General Lecor em Montevidéu. se unirem à esquadra lusitana, inclusive na Maria da
Como reação ao “Dia do Fico”, o Governador Glória¸ cujo comandante era malvisto pelos lusos.
de Armas do Rio de Janeiro, Tenente-General Jorge Diante da impossibilidade de prosseguir na missão,
de Avilez de Sousa Tavares, queria que o príncipe se De Lamare reuniu o Conselho de seus comandantes

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

subordinados a bordo da capitânia e decidiu desem- ações dos rebeldes, no Maranhão e no Grão-Pará as
barcar os soldados em Alagoas. Entretanto, as dificul- juntas governativas se mantiveram fiéis a Lisboa. Na
dades não haviam acabado. Cisplatina, o General Lecor aderiu à independência,
mas não foi acompanhado pelo seu subcomandante,
Na volta ao Rio, o espírito de indisciplina D. Álvaro da Costa de Souza Macedo, o que causou
criou novas dificuldades, sem contar a falta divisões entre os soldados estacionados lá.
de colaboração das autoridades pernambu- Diante da necessidade premente de consolidar seu
canas, ainda indecisas diante do rumo a to- nascente império, enquanto entidade soberana e una,
mar. Em 17 de setembro, a guarnição da fra- D. Pedro precisava de uma Marinha capaz de fazer
gata União amotinou-se, mas acabou sendo valer as determinações da Corte do Rio de Janeiro nos
dominada; no dia 21, na corveta Liberal,
territórios mais distantes. Foi José Bonifácio de An-
houve novo movimento visando apossar-se
drada, Ministro do Interior e dos Negócios Estrangei-
do navio e seguir para a Bahia (RODRI-
ros, quem primeiro defendeu a criação e organização
GUES, 2002, p. 110).
de uma esquadra para o Brasil independente. Em uma
de suas cartas para Caldeira Brant em Londres, Boni-
Em 5 de outubro, chegou uma ordem da Corte fácio escreveu:
determinando que Cunha Moreira assumisse a Fra-
gata União¸ enquanto De Lamare passou ao coman-
Sendo a defesa exterior deste Reino um dos
do da Maria da Glória. Dois dias depois, coube-lhe
pontos essenciais a que ora cumpre aten-
a missão de comandar a Fragata Real Carolina, sua
dermos, apesar da aparente fraqueza de
última comissão antes de ser chamado para ser Se-
Portugal, hoje em dia inimigo, tem SAR já
cretário de Estado dos Negócios da Marinha nas lu- principiado a lançar as bases de uma respei-
tas pela Independência. tável força terrestre como marítima. Vai-se
pondo, sobretudo, a Marinha no possível pé
de capacidade, mas, pelo atraso em que este
A INDEPENDÊNCIA E A ORGANIZAÇÃO ramo se achava entre nós, só com o tempo
DA ESQUADRA poderá chegar ao estado em que reclama a
Em 7 setembro de 1822, quando D. Pedro declarou dignidade e grandeza deste império (apud
a Independência do Brasil, não houve adesão das ou- RODRIGUES, 2002, p. 107).
tras capitanias de forma unânime. Apenas as provín-
cias coligadas do eixo centro-sul, Rio de Janeiro, São Em outubro de 1822, foi nomeado o 1º gabinete do
Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, aderiram Império, que contava com Cunha Moreira como Se-
de imediato ao novo império, exceto pela Cisplatina, cretário de Estado dos Negócios da Marinha, primeiro
onde havia considerável guarnição lusitana. brasileiro nato a ocupar o cargo. Apesar da longa esta-
As próprias dificuldades geográficas e as particula- dia no Brasil, o material flutuante remanescente estava
ridades da navegação a vela, concatenados com o regi- em péssimo estado de conservação, devido ao descaso
me de ventos no Atlântico, favoreciam a comunicação português em relação à sua Marinha, ao que se soma-
direta entre Lisboa e as províncias do norte, não com o va o caráter duvidoso dos possíveis tripulantes.
Rio de Janeiro. Tal conjuntura justifica a afirmação de Ao novo ministro cabia a hercúlea tarefa de moldar
Sérgio Buarque de Holanda: “no Brasil, as duas aspi- o amálgama de navios portugueses sediados na Baía de
rações – a da independência e a da unidade – não nas- Guanabara, muitos abandonados desde a transmigra-
cem juntas e, por longo tempo ainda, não caminham ção da Família Real em 1808, em uma força capaz de
de mãos dadas”. se contrapor aos reforços portugueses. “Dos destroços
Na Bahia, a guarnição de Madeira de Melo con- da pujante marinha que possuiu Portugal, levantou o
tinuava a controlar Salvador, mesmo tendo crescen- Brasil os alicerces da sua” (BOITEUX, 1915, p. 162),
tes dificuldades em avançar para o interior devido as essa era a síntese da missão de Cunha Moreira.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

Fora inútil ao Brasil condecorar-se com o tí- verificar a lealdade desses oficiais. Dentre os 160 ofi-
tulo de Império e ver-se, ao mesmo tempo, ciais portugueses, 94 optaram pelo partido da Indepen-
sujeito a serem suas costas varridas por duas dência. Todavia, esse número não era suficiente para
fragatas velhas de Portugal; seria descuido guarnecer os navios, a que se somava o fato de haver
declarar-se a Nação independente e não cui- poucos oficiais subalternos dentre os que ficaram.
dar em adquirir os meios de sustentar essa
Além disso, não foi consultada a lealdade dos
independência, e os meios não são outros se-
marinheiros. As dúvidas acerca da confiabilidade do
não a criação de uma poderosa força naval.
Sem esta não haverá segurança, nem comér- emprego de lusitanos em combate contra conterrâne-
cio livre, nem riqueza, nem caráter nacional, os datavam da expedição de De Lamare, onde Cunha
nem propriedade individual (apud RODRI- Moreira testemunhou em primeira mão as carências
GUES, 2002, p.112). da esquadra. Para compensar a carência quantitativa
e qualitativa de tripulações para os navios, o governo
imperial procedeu com a contratação de marujos es-
De imediato, o Arsenal de Marinha iniciou inten-
trangeiros, especialmente ingleses e norte-americanos,
sos trabalhos com o objetivo de trazer o que era possí-
aproveitando a desmobilização feita após a derrota
vel dentre os meios flutuantes de volta ativa, logrando
definitiva de Napoleão.
êxito em casos como a da Nau D. Pedro I, ex Martin
Ainda no desempenho das funções ministeriais,
de Freitas e primeira capitânia da esquadra, e a Fraga-
Cunha Moreira esteve em contato direto com o Al-
ta Niterói, ex Sucesso, além de aquisições no exterior
mirante Lorde Cochrane, desde o acerto de seu pos-
por meio dos serviços de Felisberto Caldeira Brant em
to, o de 1º Almirante, que foi criado exclusivamen-
Londres. Ao passo que era possível revitalizar o mate-
te para aquela ocasião conforme decreto de 21 de
rial, ou mesmo comprar um novo na Europa, havendo
março de 1823, e soldo para o serviço na Marinha
até uma subscrição pública, da qual foi fiscal o pró-
Imperial até constantes comunicações ao longo da
prio Ministro da Marinha, com esse fim.
campanha da esquadra.
A subscrição, nacional e mensal, foi ideia de Mar-
Muitos desses oficiais vieram com a promessa
tim Francisco Ribeiro de Andrada, Ministro da Fazen-
de receberem salários maiores que os europeus, ou
da, o qual apresentou um plano que, segundo Silva
como no caso dos que acompanharam Cochrane,
(1882), foi imediatamente abraçado, aprovado e pos-
igual quantia àquela que recebiam no Chile. Coube
to em execução, uma vez que aos “portos deste rico,
a Cunha Moreira fixar junto com o almirante inglês
ameno e fértil Império, que a Providencia talhara para
seu soldo no Brasil, chegando inclusive a um valor
os mais altos destinos de glória, e de prosperidade, só
que superava o dos outros almirantes portugueses
podem ser bem defendidos por uma Marinha respeitá-
ainda residentes no Império.
vel” (SILVA, 1882, p. 100).
Não somente Cochrane como outros ilustres ofi-
Outro fator que aumentava a urgência da con- ciais estrangeiros vieram para o Brasil e receberam pa-
juntura era o fato de a Armada Real estar recebendo tentes, por meio de decretos assinados pelo ministro.
reforços, chegando a “apresentar relevante superio- Não somente a consolidação do Império, mas também
ridade em relação à Marinha Imperial, que contava a manutenção da unidade territorial da antiga Améri-
com 176 canhões, considerando os meios disponíveis ca portuguesa só se concretizou devido a atuação da
para combate, contra cerca de 380 peças portuguesas” Marinha Imperial, organizada por Cunha Moreira e
(CASTRO, 2020, p. 190). As contribuições da subscri- comandada por Lorde Cochrane, cujas ações garan-
ção contribuíram para que o governo imperial pudesse tiram as adesões da Bahia, Maranhão e Grão-Pará.
reduzir a diferença de poder de fogo. A Cisplatina foi assistida por uma divisão naval co-
A dificuldade maior se dava com a falta de pessoal mandada pelo Capitão de Mar e Guerra Pedro Antô-
adestrado para guarnecer os conveses dos navios. No nio Nunes. Em outubro de 1823, Cunha Moreira foi
Brasil, ainda moravam muitos oficiais da Armada Real. promovido ao posto de Chefe de Divisão da Armada
Portanto, Cunha Moreira presidiu uma comissão para Nacional e Imperial.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

Em 15 de novembro de 1823, após a dissolução CONCLUSÃO


da Assembleia Constituinte pelo Imperador, Cunha
A trajetória pessoal e profissional de Cunha Morei-
Moreira pediu demissão do cargo, com sua missão
ra esteve sempre ligada ao Brasil, desde seu nascimento.
cumprida, tendo em vista que todas as províncias ti-
Presente em todas as grandes ações do Poder Naval luso
nham aderido ao Império, o qual enfim possuía uma
no início do século XIX, foi figura central no processo
esquadra capaz de resguardar a unidade territorial.
das guerras pela Independência do Brasil. Cunha Mo-
Em seguida, foi nomeado pelo Imperador, no dia 19
reira não só se destacou nos altos postos de liderança
do mesmo mês, vogal do Conselho Supremo Militar
como organizador da Marinha em sua gênese, mas tam-
por seu “préstimo, zelo e atividade” (SILVA, 1882,
bém atuando como comandante de tropas, conforme
p. 41), recebendo ainda uma pensão de 80.000 réis
demonstrou na campanha da Guiana, onde foi ferido.
mensais, por mercê do Imperador, porque não tinha
“suficientes meios para poder exercer o seu lugar com Para o Almirante Max Justo Guedes, sua figura
a decência devida” (SILVA, 1882, p. 42). merecia mesmo mais destaque:

Se o Império, reconhecendo-lhe os serviços,


OUTROS CARGOS E MORTE deu-lhe comendas, condecorações e o título de
Pelo decreto de 12 de outubro de 1826, Cunha Mo- Visconde com Grandeza, não seria demais que
reira chegou ao posto de Chefe de Esquadra Graduado. a Marinha de hoje gravasse seu nome na popa
Em 7 de fevereiro do ano seguinte, foi nomeado Inspe- de uma de suas belonaves, ou escrevesse-o no
tor do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, sendo pórtico de um estabelecimento. A menção coti-
ainda efetivado no posto no dia 12 de outubro de 1827. diana dele, certamente perpetuaria a lembrança
do notável Ministro (GUEDES, 1972, p. 6).
Em 26 de abril de 1828, Cunha Moreira foi nome-
ado para o comando da Companhia de Guardas-Ma-
rinha e Diretor da Academia de Marinha, onde perma- Assim, fica patente a importância das ações do
neceu até 12 de dezembro de 1828, quando assumiu Visconde de Cabo Frio para que a independência e a
o cargo de Intendente de Marinha no Rio de Janeiro, unidade pudessem enfim “andar de mãos dadas”. A
exercendo a função até 16 de outubro de 1830. independência não foi um “desquite amigável”, mas
sim uma “guerra cruenta”, na qual Cunha Moreira
Em abril de 1831, Cunha Moreira recebeu uma
atuou de maneira decisiva, deixando legado territorial
carta imperial da Regência Interina que o nomeava
e marítimo ao Brasil.
como Presidente da Província do Pará, no entanto pe-
diu escusa. No dia 15 do mesmo mês, outra vez foi
nomeado Intendente de Marinha no Rio de Janeiro, REFERÊNCIAS
onde permaneceu até 2 de agosto do ano seguinte.
BARATA¸ Manuel de Mello Cardoso. Notas biográficas do
Mais uma vez Cunha Moreira foi nomeado Ins-
Almirante Luiz da Cunha Moreira (Visconde de Cabo Frio)
petor do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro por
In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro:
decreto de 30 de julho de 1836, onde esteve até 29 de
Tomo 83, Rio de Janeiro, 1919. p. 69-90.
agosto de 1837. Em janeiro de 1840, alcançou o pos-
to de Vice-Almirante graduado, sendo efetivado pelo BOITEUX, Henrique. Os Nossos Almirantes. Rio de Janeiro:
decreto de 2 de dezembro de 1841. Foi reformado no Imprensa Naval, 1915.
posto de Almirante pelo decreto de 4 agosto de 1849, CASTRO, Pierre Paulo da Cunha. A Organização Inicial da
exercendo ainda a função de conselheiro de guerra. Marinha Imperial (1822-1823). In: CASTRO, Pierre Paulo
O decreto de 10 de junho de 1858 agraciou da Cunha; PEREIRA, José António Rodrigues (coord.). Da
Cunha Moreira com o título nobiliárquico de Vis- Armada Real para a Marinha Imperial: As unidades e
conde de Cabo Frio, com grandeza. No dia 28 de organismos que ficaram no Brasil e as que voltaram para
agosto de 1865, veio a falecer em sua casa na rua do Portugal. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da
Lavradio, na Corte. Marinha, 2020. cap. 8, p. 183-206.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

GUEDES, Max Justo. “Bicentenário do Almirante D. Luiz RODRIGUES, José Honório. Independência: Revolução
da Cunha Moreira”, in Revista Navigator, jun-dez 1976, e Contra-Revolução: As Forças Armadas. Rio de Janeiro:
pp. 3-6. Biblioteca do Exército, 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A herança colonial – sua SILVA, Carlos André Lopes da. A Transmigração da Família
desagregação”. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). Real para o Brasil e a Independência. In: ABREU, Guilherme
História Geral da Civilização Brasileira. 1º Volume t. II – O Mattos de et al, (org.). Marinha do Brasil: Uma Síntese
Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. Histórica. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da
Marinha, 2018. cap. III, p. 72-101.
LEIVAS, Luís Cláudio Pereira; GOYCOCHÊA, Luís
Felipe de Castilhos. A Conquista de Caiena In: História SILVA, Theothonio Meirelles da. Historia da Marinha de
Naval Brasileira: Segundo Volume. Tomo II. Rio de Guerra Brazileira. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança,
Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha, 1882. v. II. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/
1979. p. 369-422. handle/id/227380. Acesso em: 6 maio 2022.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

O CONDE DE DUNDONALD E A
INDEPENDÊNCIA DO BRASIL
“I’m more afraid of our own blunders
than of the enemy’s devices”
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso
Livro I, Capítulo V

Guarda-Marinha Elias Luiz Pedron Moschen

INTRODUÇÃO Portugal e as terras brasileiras, pois que a liberalidade


almejada pelos revolucionários não se estenderia para
A apreciação histórica do processo de independên-
as paragens tupiniquins. Na realidade, é possível afir-
cia brasileiro passa, necessariamente, pela análise do
mar-se que um pilar importante no processo de rees-
que poderiam ser consideradas seus precedentes ime-
tabelecimento de Portugal enquanto centro do Impé-
diatos. As requisições, dadas a D. João VI a fim de
rio português, Império aqui usado no seu sentido lato
requisitar sua presença em terras portuguesas pelos
sensu, passava pelo rebaixamento da condição alcan-
signatários da Revolução Liberal do Porto, visavam a
çada pelo Brasil durante a presença da família real.
recuperação da dignidade dos territórios portugueses
dentro de uma política orgânica característica das mo- Obviamente, as mesmas reações que levaram ao
narquias Ibéricas, dita sinodal, em que a presença da surgir de inquietações políticas pelo rebaixamento da
figura real conferia importância econômica e política dignidade régia de Portugal tendiam a se repetir aqui,
às relações estabelecidas na localidade na qual estives- ainda mais acentuadas pela gravidade das propostas
se, efetivamente localizado o corpo físico do rei.1 advindas da centralidade portuguesa, que visavam à
diminuição da autoridade do Príncipe Regente D. Pe-
Pressionado pelos termos da carta recebida, e te-
dro através da oferta de um caminho de submissão
mendo perder o trono, D. João VI retorna para Portu-
direta das autoridades provinciais às Cortes em Por-
gal a fim de tomar parte na promulgação das Cortes,
tugal, restringindo a efetividade das decisões tomadas
destinadas ao estabelecimento de um regime liberal
pelo Príncipe.
marcado por uma Constituição, que estava em seu
processo embrionário. Quando da chegada da convocação das Cortes pela
presença de D. Pedro, reticente a princípio, mas con-
A saída do monarca para Portugal e o estabeleci-
mento das discussões constituintes, no entanto, vieram fiante no apoio de seus partidários, o Príncipe decla-
acompanhadas de um recrudescimento das relações de rou sua oposição inicial aos propósitos das Cortes em
submissão política anteriormente estabelecidas entre janeiro, dia nove, no chamado Dia do Fico, e, poste-
riormente, declarou a Independência do Brasil à sete de
1
XAVIER, Ângela Barreto & HESPANHA, António Manuel. “A setembro, na culminância do processo de cisão política
representação da sociedade e do poder”. In: MATTOSO, José começado durante as medidas da Revolução do Porto.
(Dir.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620-1807). Volu-
me coordenado por António Manuel Hespanha. Lisboa: Estam- Este trabalho discorre sobre as visões estabelecidas
pa. 1993. v. 4, p. 120-155. pelo Almirante Cochrane sobre seu serviço nesses pro-

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Dossiê “PODER NAVAL E A ORGANIZAÇÃO DA ARMADA IMPERIAL EM TEMPOS
DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

cessos de independência do Império do Brasil, isto é, sangue, derramado nos processos de reconquista da
qual a valoração que este fazia de suas ações, assim França Equinocial e das ocupações holandesas.4
como alguns comentários pertinentes a esta discussão As províncias do Sul, e o Rio de Janeiro em par-
ticular, eram mais acostumadas à autogestão, não
sendo raro ocasiões em que o auxílio para a expulsão
DA SITUAÇÃO DO BRASIL
de inimigos e invasores, estando eles no continente
O Brasil fora, tanto por motivos econômicos, quan- Americano ou Africano, partissem de decisões indivi-
to por motivos geográficos e pelos consequentes moti- dualizadas de indivíduos como Correia de Sá, em seu
vos políticos, dividido em dois centros de poder diver- processo para a reconquista da Angola.5
sos, culminando em duas zonas de influência, marcadas
Assim, não seria equivocado afirmar que no Norte
pelo seu posicionamento geográfico no continente.
prevaleciam facções com foco na associação com Por-
No âmbito econômico, as províncias do Norte, tugal, enquanto que, no Sul, seria mais vantajoso consi-
mais antigas em seu ciclo de produção de capital, mar- derar a possibilidade de uma autogestão, como propria-
cado pela manufatura açucareira e relacionamento mente indicado pelo apoio dado à decisão de permanecer
entre as províncias ultramarinas e Portugal próprio, no Brasil e desafiar a decisão das Cortes, tomada por D.
eram marcadas por uma maior duração da associação Pedro (ou então, em fato associado, pelo número vultuo-
com a organicidade política portuguesa, e, por tanto, so de oito mil assinaturas que acabaram por convencer o
maior influência desta.2 monarca a permanecer no Rio de Janeiro).
As províncias do Sul, associadas ao escoamento de
ouro das Minas Gerais e demais associações econô-
micas marcadas pela logística de tal produto, assim
O CONDE DE DUNDONALD
como pelo surgimento posterior do ciclo cafeeiro e seu Quando da declaração da Independência do Brasil,
estabelecimento, eram marcadas pela centralidade ad- as resistências das províncias mais afastadas resulta-
ministrativa trazida pela presença régia, dadas a uma ram em conflitos armados. Nesse sentido, tornou-se
regulação de certa forma independente e alinhadas necessária a montagem de uma expedição que garan-
com necessidades propriamente burocráticas.3 tisse a unidade territorial frente ao processo de sepa-
Nesse mesmo sentido, pode-se afirmar a divisão ração iminente. Aqui, novamente, os laços portugue-
trazida, na era da vela, pela presença do Cabo de São ses do Brasil se mostram como problema, pois que os
Roque, um acidente costeiro que dificultava a ligação navios disponíveis para a formação de uma Armada
comercial entre os polos das regionalidades provin- eram, em sua maioria, associados ao comércio ou ao
cianas, ponto que se pode apontar como responsável Estado português, assim como as suas tripulações,
pela maior ligação das províncias nortistas, comercial- como será apontado mais a frente. De mesma forma,
mente falando, com os territórios ultramarinos e com os exércitos eram comandados por oficialidade portu-
Portugal em si. guesa, assim como os vasos de guerra, cuja lealdade
duvidosa não carece de explicação.6
Dessas duas divisões, não resulta difícil concluir
que os alinhamentos políticos dos dois polos divergis- Nesse sentido, e dada a premência dos conflitos
sem grandemente entre si. As lealdades das províncias para garantir tanto a unidade Imperial quanto a menor
do Norte eram com seus parceiros comerciais, laços resistência possível, tornou-se necessário estabelecer a
de sangue e laços políticos conquistados ao custo de atuação de oficiais de nações estrangeiras. Nesse sen-
tido, dezesseis oficiais foram convidados a prestarem
2
BOXER, Charles Ralph. A Idade de Ouro do Brasil: dores de 4
MELLO, Evaldo Cabral de. Uma outra independência: o federa-
crescimento de uma sociedade colonial. Tradução de Nair de
lismo pernambucano (1817-1824). São Paulo: Editora 34, 2014.
Lacerda; prefácio à terceira edição de Arno Wehling; prefácio à
primeira edição de Carlos Rizzini. 3ª. ed., Rio de Janeiro, Nova 5
BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola.
Fronteira, 2000 [1962]. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1973.
3
LIMA, Oliveira. O Movimento da Independência. São Paulo: Ita- 6
BITTENCOURT, Armando de Senna (org.). Introdução à Histó-
tiaia, 1989. ria Marítima. Rio de Janeiro: SDM, 2006.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

seus serviços à causa brasileira, e, dentre desses, figu- seu próprio punho. O teor, no entanto, não é autobio-
rava o 10º Conde de Dundonald, Thomas Cochrane. gráfico, antes, escusatório. Os escritos desenvolvem-se
Thomas Cochrane, tendo tido os capitais familia- como uma justificativa de ações e prestação de contas,
res gastos por seu pai em experimentos científicos na certamente escritos como resposta às difamações que
Escócia, encontrou no serviço da Marinha Inglesa a o Almirante sofreu no curso de suas ações, difama-
resposta para garantir seu sustento. Tendo entrado no ções que este listou em sua obra, uma altercação entre
serviço ativo aos 18 anos, foi ascendendo na carreira o Almirante, seus feitos, e um acusador invisível que
até galgar a honra de Almirante, participando tanto personifica as afrontas que este afirma ter sofrido.8
nas Guerras Napoleônicas quanto na atuação política, Sendo advindo de uma visão unilateral, não se
enquanto membro do Parlamento. pretende nessas páginas proclamar algum juízo de
Em uma atuação contra a Esquadra francesa na valor sobre a veracidade das explicações e narrativa,
Baía da Biscaia, através de manobra arriscada, conse- mas antes, obter deste autor sua visão sobre a impor-
guiu abrir vantagem sobre o inimigo, mas o Coman- tância da Armada Imperial no processo de Indepen-
dante em chefe da Esquadra do Canal, Almirante Ja- dência do Brasil.
mes Gambier, optou por não fazer uso da vantagem. Nas páginas iniciais, julga o autor necessário expli-
O Parlamento, não obstante o fato, desejou pro- car as condições de seu convite ao serviço do Brasil, o
mover um agradecimento à atuação do Alm. Gambier, processo da viagem e sua impressão inicial dos vasos
que foi fortemente refutado por Cochrane. Diante desta brasileiros. Quando deste último momento, afirma o
situação, e sendo esta conduzida à Corte Marcial, Co- Almirante que “the worst kind of saving – false eco-
chrane acabou por ser afastado de seus deveres no mar, nomy- had evidently established itself in the Brazilian
sendo auxiliado neste afastamento pela sua atuação em Naval Administration”,9 com isto criticando o salário
favor de uma reforma no Parlamento e Marinha ingle- fornecido aos marinheiros, dez mil rés mais barato que
ses, que lhe conferiam uma reputação pouco popular. o serviço nos barcos mercantes. Para a nau que aca-
baria tomando por capitânia, a Pedro I, elogiou suas
Envolvido, posteriormente, em uma acusação de
provisões e navegabilidade.
golpe financeiro à Bolsa de Valores, foi aprisionado,
demovido de sua condecoração da Ordem de Bath e Com relação à tripulação, afirmou que “[os ho-
expulso do Parlamento. Entretanto, dias depois, foi mens] were of a very questionable description – con-
absolvido de suas acusações. sisting of the worst class of Portuguese, with whom
the Brazilian portion of the men had an evident di-
Estas situações, e outros mais infortúnios que lhe
sinclination to mingle”,10 ainda citando a relutância
sucederam, levaram-no a aceitar o convite do Chile
do Imperador em apontar que estes homens combate-
para tomar parte na sua guerra de independência, em
riam seus compatriotas, através do uso de frases como
1817. É na posição de Almirante no Chile que encon-
“ataque às forças parlamentares portuguesas”, com o
tra o convite estendido por D. Pedro I para que este
que buscava indicar que a guerra seria feita contra as
viesse auxiliar no estabelecimento da independência
Cortes, não contra Portugal ou seu rei.
do Império do Brasil.7
A isto se seguem considerações com relação à difi-
culdade de estabelecer com os ministros os termos de
A VISÃO DE COCHRANE: A ARMADA seu posto na Marinha brasileira, assim como os valo-
BRASILEIRA, SUA PRÓPRIA ATUAÇÃO, res de seu pagamento. Neste trecho de suas memórias,
A SITUAÇÃO DO BRASIL o Almirante transcreve trechos de discussões, cartas e
demais documentos comprobatórios de suas condutas.
A obra em que se escrevem as memórias de tal ser-
viço, nomeada Narrative of Services in the Liberation 8
COCHRANE, Thomas. Narrative of Services in the Liberation of
of Chili, Peru and Brazil, foi escrita pelo Conde de Chili, Peru and Brazil, Volume 2. USA, 2004, não paginado.
9
Ibidem, não paginado.
7
MARTINS, Hélio Leôncio. Almirante Lord Cochrane: uma figu-
ra polêmica. Rio de Janeiro: Clube Naval, 1997. 10
Ibidem, não paginado.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

Antes de partir para o serviço determinado pelo manobra seria capaz de prover vantagem no combate,
Imperador, qual seja, o combate e posterior dano à o Almirante se surpreendeu quando nenhum dos na-
Esquadra portuguesa estacionada na Bahia, Thomas vios de sua Armada seguiu seu exemplo.
Cochrane afirma ter procurado no porto do Rio de Ja- Somando-se ao fato de não ter sido obedecido,
neiro marinheiros estrangeiros, a fim de suplementar a afirma o autor que o fogo naval dado pelo navio capi-
falta de mãos no convés da Armada, assim como uma tânia, além de ser de baixa qualidade, foi atrapalhado
medida preventiva contra a situação do serviço, pois por dois marinheiros portugueses que, tendo sido en-
que “never before fallen to my lot to command a crew carregados de fornecer a pólvora, não só retiveram o
so inefficient”.11 fornecimento desta, como também prenderam os dois
Nesse momento da narrativa, começa a se configurar responsáveis por levá-la para os requerentes.
uma afirmação que vai permear o eixo lógico da obra: Nas palavras do Almirante, “extremely annoyed
essa apontava para a existência de partidos diversos nos at this failure”,13 Cochrane estabeleceu inquéri-
jogos políticos do Império, nomeados pelo autor como to quanto à desobediência de suas ordens e demais
“facção portuguesa” e “facção brasileira” ou “patrió- acontecimentos, tendo concluído que a Armada, ten-
tica”. Essa bilateralidade, assim como no plano físico, do sido apressada para se lançar ao mar, estava extre-
marcaria um esforço cisalhante no tecido social do Im- mamente deficitária. Isso posto, e tendo dado voz às
pério, pois que seria do interesse da “facção portuguesa” suas críticas em carta, em que se listam diversas au-
o retorno ao status quo anterior ao da proclamação da sências materiais, como cartuchos não apropriados
Independência, contribuindo para isso com a promulga- ao serviço, armas sem travas, necessitadas de cons-
ção de caos social, ódio contra a figura do Almirante e tante secamento com esponja, velas podres, cama do
divisão entre os centros políticos do Império. morteiro podre e pólvora sem força para fornecer a
Também afirma Cochrane que esse ódio da facção necessária velocidade inicial.
portuguesa podia ser traçado à sua nacionalidade, Da mesma forma, criticou os “marines”, por sua
pois que o fim dos monopólios comerciais acabara por falta de entendimento de exercícios de armas, gran-
prejudicar os negócios dos negociadores portugueses. des ou pequenas, ou ainda o uso de espadas, que não
Nas palavras do autor, “whom (os portugueses) cor- compreendiam, assim como sua postura, já que se
dially hated”.12 recusavam a limpar suas próprias cobertas e se tor-
O Almirante afirma que o tamanho de sua Armada navam em atrapalho aos marinheiros, obrigados a
era de quatro navios quando de sua partida do Rio, trabalhos de limpeza.
pois que alguns ficaram para trás para terminarem de Com relação aos marinheiros, ele afirma que seria
ser armados ou reparados. No navio capitânia, esta- proveitoso a escolha de jovens de 14 a 20 anos para
vam embarcados 160 marinheiros ingleses e america- o treinamento, de forma que estes viessem a se tornar
nos e 130 escravos libertos na condição de “marines”, eficientes, já que “(os marinheiros brasileiros) are not
isso é, tropa embarcada. only totatlly unpractised in naval profession, but are
No dia 4 de Abril, a Armada brasileira encontrou a too old to learn”.14
força do Almirante português, no que Cochrane, com Na mesma carta, ele cita que um dos navios da Ar-
um menor número de navios e desconfiado de sua mada estava a ponto de se entregar à força inimiga,
tripulação, optou por não combater de forma direta, graças à atuação de sua tripulação, como lhe foi rela-
mas antes, tendo visto na linha inimiga uma abertura, tado pelo comandante da embarcação, numa demons-
optou por quebrar a linha de batalha e separar quatro tração da evidente reticência dos marinheiros portu-
navios inimigos. gueses de atacar seus conterrâneos.
Tendo prosseguido com seu plano e sinalizado com Tendo tomado ciência desta situação, Cochrane opta
as bandeiras, e afirmando em suas memórias que tal por dissolver o estado da Armada como antes estabele-
11
Ibidem, não paginado. 13
Ibidem, não paginado.
12
Ibidem, não paginado. 14
Ibidem, não paginado.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

cido, tendo para isso ordenado que esta se concentrasse radas por este como sendo suas, e a posterior trans-
em Morro de São Paulo, na Bahia. Lá, ele retira todos os ferência destas para as mãos do português, antigo
oficiais e marinheiros aptos dos outros navios da Arma- dono, com a inclusão das cargas que, originalmente,
da e, com eles, equipa primariamente o capitânia Pedro não faziam parte da embarcação, assim como o su-
Primeiro, e, secundariamente, o Maria da Glória. miço inopinado de objetos de valor das cargas apre-
Essa primeira escaramuça e contato do Almirante endidas e uma tentativa, frustrada com o auxílio do
com sua Armada foram aqui relatados como forma Imperador, de tomar possessão do valor recolhido no
de estabelecer uma consideração quanto à natureza cofre do navio capitânia.
de nossas forças no processo de independência. Pos- Por fim, o autor relata diversas tentativas de demo-
teriormente a essa decisão, Thomas Cochrane narra ver o apreço que o Imperador e a população tinham
suas ações no processo de expulsão da Esquadra da dele, através da publicação de cartas de reprovação
Bahia, sua manobra de dissimulação para a conquista de suas atitudes em assuntos menores, relativos à sua
do Maranhão e Pará e o processo de retorno para o manutenção dos assuntos navais, assim como seu re-
Rio de Janeiro, em que narra as honras recebidas pelo baixamento de posto através de uma carta inopinada
Imperador. Nesse intervalo da obra, encontra-se deli- promulgada sem antecedente ou aviso.
neado de forma evidente a visão do Almirante com re- Essas atitudes eram consideradas pelo Almirante
lação à sua atuação nas batalhas pela independência. como maquinações da citada “facção portuguesa” a
Ao longo da obra, encontram-se espalhadas diver- fim de promover a fraqueza do Império para a recupe-
sas afirmações, acompanhadas de trechos de cartas, ração da condição anterior de colônia, sendo que em
recibos, documentos e relatos que visam evidenciar o diversas ocasiões buscou o autor eximir a figura do
Imperador da culpa por essas maquinações, respon-
que o Conde de Dundonald apresenta como maquina-
dia com um memorando de suas visões do serviço que
ções, incorreções e injustiças cometidas contra a sua
prestara à nação.
pessoa e à coletânea de seus serviços.
Dessas, retira-se “a country whose entire indepen-
Essas afirmações, de uma forma geral, giram em
dence was thus obtained by our personal sacrifices”,
torno de quatro polos: a deturpação do poder provin-
“knowing that everything depended upon the annexa-
cial, o injustiçar de suas ações, a apreensão de coisas
tion and pacification of the Northern provinces”, “the
que o autor considerava suas por direito e as tentativas
revolutionary proceedings in the North, the integrity
de rebaixamento político.
of the empire was at stake”.15
Como exemplo de uma situação atinente ao pri-
meiro eixo, Cochrane cita a rapidez com que a Jun-
ta Provisória, que estabelecera no Maranhão, busca CONCLUSÃO
exercer vingança sobre os portugueses remanescentes, As palavras do Almirante, acima citadas, de-
coisa por ele proibida. Não só isso, como também, monstram a importância que este associava às suas
posteriormente, o corpo eleito como medida contra a ações para o estabelecimento do Império, e, portan-
violência se apropria do poder, demovendo os nomes to, da Independência. Cabem aqui, no entanto, al-
que o Almirante indicara como pertinentes devido aos gumas considerações.
seus serviços e inserindo membros de sua própria fa- Primeiramente, o caráter unilateral deste trabalho
mília, em uma acusação de nepotismo. impede-o de ser capaz de formar imagem precisa da
Como injustiçamento, temos a decisão dos tribu- veracidade das afirmações apresentadas pelo Almiran-
nais do Rio de Janeiro, de maioria portuguesa, de con- te Cochrane. Seria impróprio considerar uma fonte
siderar que as presas feitas por Cochrane em guerra histórica unilateral no processo de construção de uma
seriam ilegais, através da divulgação de decreto poste- narrativa histórica, ainda mais quando esta fonte se
rior ao ato do aprisionamento. encontra em evidente litígio com relação aos outros
Na mesma linha de raciocínio, o aprisionamento
de embarcações capturadas por Cochrane, conside- 15
Ibidem, não paginado.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

participantes históricos dos eventos. Esse percalço não vê na obrigação de pagar, a fim de garantir a estabili-
invalida, de forma alguma, a validade de uma análise dade interna da província.
apreciativa de uma narrativa que parece se constituir Posteriormente, o bombardeio de praças terres-
de forma argumentativa, ainda que seja um momento tres, que, mesmo não realizado em grande escala nos
inicial no processo de pesquisa deste tema. primeiros embates do processo de independência, se
Em sequência, as afirmações do Almirante devem mostrou como manobra essencial para a demonstra-
ser tomadas com o devido peso. Não é novidade a ção de força e convencimento, principalmente de tro-
necessidade de autopromoção, seja por razões de ego pas reticentes, da necessidade de capitulação quan-
ou razões de serviço, e a narrativa histórica pode ser do enfrentando a presença da Armada estabelecida
distorcida para servir ao narrador, sendo que neste em suas águas e baías, como descrito pelo autor na
caso em específico, um aumento no nível das ações sua ocupação do Maranhão. Nesse episódio, quan-
tomadas no cenário das escaramuças serviria para in- do as tropas portuguesas, desconfiadas do estratage-
tensificar o contraste entre os benefícios obtidos pela ma utilizado para promover a rendição ao governo
nação e os desserviços realizados pelos seus ministros imperial, se recusaram a embarcar nas naves que as
e a “facção portuguesa” contra a pessoa do Almirante conduziriam de volta a Portugal, foram convencidas
e seus subordinados, que esperavam compensação pe- a cessar sua resistência quando um tiro de alarme
los seus serviços. foi dado sobre a cidade, e as tropas já embarcadas
Da mesma forma, a narrativa não pode ser com- ameaçadas em sua integridade física pela presença e
pletamente descartada, pois que os assuntos trata- manobra do navio capitânia.
dos pelo Almirante não são novidades na historio- Podemos por fim relatar a própria ação naval da
grafia, e muito já se tem escrito nas constatações de Armada, elemento-chave na manutenção e estabeleci-
assuntos como os “Brazis”, como o mesmo escreve mento da independência nas províncias do Norte. As
em seu relato, isto é, a não unidade entre as provín- ações da Armada brasileira foram responsáveis pela
cias do norte e as do sul, a pluralidade de interesses expulsão da esquadra de bloqueio de Portugal da
na causa imperial e demais dinâmicas da política Bahia, sua posterior perseguição e captura de navios
imperial brasileira. do comboio, pelo estabelecimento de defesas e, prin-
Qual é, no entanto, o papel da Armada Imperial cipalmente, pela rápida resposta oferecida quando da
no processo de independência? Podemos retirar das chegada de notícias de insurreições e conflitos. Na era
memórias do Almirante Cochrane as ações realiza- considerada, foi a presença da Armada que permitiu a
das pela força naval considerada. De um olhar téc- resolução eficiente do conflito, que, graças à sua maior
nico, temos um conjunto de manobras que podemos velocidade de ação, permitiu a derrubada dos sistemas
classificar em um agrupamento de atividades especí- opositores antes que estes pudessem se estabelecer de
ficas. Primeiramente, o desembarque de tropas nas forma mais completa.
províncias do Norte e a posterior organização destas A independência não foi o resultado de um rela-
de forma a garantir a estabilidade do governo recém- cionamento natural ou uma irmandade nascida de
-instituído, no que essas passaram a realizar trabalho igual passado histórico, mas antes, uma situação for-
de polícia e o eventual ulterior combate às forças de çada por circunstâncias externas, tal qual o desejo
guerrilha que tenham se estabelecido no interior dos do regresso do monarca à sua terra natal, e posta em
territórios recentemente ocupados. Nesse sentido, é execução pela mão de um estrangeiro desafortunado
interessante relatar a surpresa do Conde de Dundo- que comandava força naval crucial para o estabele-
nald ao se deparar com as requisições de um grupo de cimento de nossa unidade, homem que, movido por
tropas formado por indígenas e indivíduos desprovi- interesse pecuniário ou busca da restauração de sua
dos, para parafrasear o autor, que, após a liberação honra, acabou por unificar dois territórios gêmeos
do Maranhão, se puseram a requisitar pagas e prê- através de manobras peculiares e escrever, ao longo
mios pelo seu esforço no processo de independência, de sua vida, seu nome nos anais da independência de
esforço que Lorde Cochrane não reconhece, mas se quatro países diferentes.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

REFERÊNCIAS BOXER, Charles Ralph. A Idade de Ouro do Brasil: dores


de crescimento de uma sociedade colonial. Tradução de Nair
CASTRO, PAULO; RODRIGUES PEREIRA, José António. de Lacerda; prefácio à terceira edição de Arno Wehling;
Da Armada Real para a Marinha Imperial. Rio de Janeiro: prefácio à primeira edição de Carlos Rizzini. 3ª. ed., Rio de
SDM, 2020. Disponível em <https://www.naval.com. Janeiro, Nova Fronteira, 2000 [1962].
br/blog/2020/06/20/da-armada-real-para-a-marinha-
LIMA, Oliveira. O Movimento da Independência. São
imperial/>. Acesso em 6 ago. 2021
Paulo: Itatiaia, 1989
PAULA, Eurípedes Simões de. “Pequena nota sobre o papel
MELLO, Evaldo Cabral de. Uma outra independência: o
da Marinha Imperial no processo da Independência”, 3ª
federalismo pernambucano (1817-1824). São Paulo: Editora
Seção de Estudos, 1972.
34, 2014.
Encyclopaedia Britannica. Thomas Cochrane, 10th Earl of
BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e
Dundonald. Disponível em <https://www.britannica.com/
Angola. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1973.
biography/Thomas-Cochrane-10th-earl-of-Dundonald>.
Acesso em 6. ago. 2021 BITTENCOURT, Armando de Senna (org.). Introdução à
História Marítima. Rio de Janeiro: SDM, 2006.
XAVIER, Ângela Barreto & HESPANHA, António Manuel.
“A representação da sociedade e do poder”. In: MATTOSO, MARTINS, Hélio Leôncio. Almirante Lord Cochrane: uma
figura polêmica. Rio de Janeiro: Clube Naval, 1997.
José (Dir.). História de Portugal: o Antigo Regime (1620-
1807). Volume coordenado por António Manuel Hespanha. COCHRANE, Thomas. Narrative of Services in the Liberation
Lisboa: Estampa. 1993. v.4. of Chili, Peru and Brazil, Volume 2. USA, 2004, Não Paginado.

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“METADE DA ESQUADRA INIMIGA É NOSSA, POR QUE VOU


CORTAR SUA LINHA”: A ARMADA IMPERIAL E A GUERRA
PELA INTEGRIDADE TERRITORIAL DO BRASIL

Aspirante (IM) Pedro Lucas de Deus dos Santos

A nau Pedro I figura, em sua máxima expressão,


a temática aqui abordada, pois percorre o fluxo his-
aguardar retorno sobre envio da
tórico dos acontecimentos do início do século XIX
imagem pra acertar a diagramação
no Brasil, acomodando a Família Real Portuguesa,
ao escapar das tropas napoleônicas na Europa e ao
transferir a sede da monarquia portuguesa para o
Brasil. Além disso, participou, pelo rio Oiapoque,
da conquista de Caiena, na Guiana Francesa, e con-
tribuiu para o domínio da Província da Cisplatina,
no litoral sul do Brasil. Além destes eventos, a em-
barcação foi o capitânia inaugural da recém-criada
Armada Imperial Brasileira, sendo o primeiro navio Nau Pedro I
a hastear a bandeira do Império do Brasil. Partici- Construída em 1763 no Arsenal de Marinha da Bahia
pou ativamente nas Guerras de Independência com o para a Armada Real Portuguesa, a Nau foi intitulada
de Santo Antônio e São José, após reformas em 1794,
objetivo de fazer cumprir, nas regiões do Grão-Pará,
passou a ser a Infante D. João Carlos. Em 1808, já como
Maranhão, Bahia, e na Província da Cisplatina, os Martins de Freitas acomodou a Família Real Portuguesa na
efeitos do processo emancipatório iniciado “às mar- transferência da sede da monarquia para o Brasil. Somente
gens plácidas do Ipiranga”.1 em 1822, agora intitulada Pedro I, a nau com 60 metros
de quilha, três robustos e elegantes mastros, e 74 canhões,
Este artigo tem como objetivo elencar, dentro do passou a integrar, como navio capitânia, a Armada Imperial
cenário histórico do processo emancipatório do Bra- Brasileira.
sil, a atuação da Marinha na Campanha da Indepen- Autoria: Edoardo De Martino
dência e sua importância na afirmação e manutenção Acervo da DPHDM

da integridade territorial, bem como a formação da


Armada Imperial Brasileira. Para tal, foi consultada da Paixão e Dores,3 e o livro de História Naval do Ca-
a historiografia especializada, produzida pela própria pitão de Mar e Guerra William Carmo Cesar.4 Inicial-
Marinha do Brasil,2 o diário do Frei Manoel Moreira mente, será contextualizado o panorama da chegada
da família real no Brasil e os impactos desse evento,
destacando a Campanha da Independência e a manei-
ra como a Marinha, desde 1808, fez-se presente no
1
BITTENCOURT, Armando de Senna (org.). Introdução à histó-
ria marítima brasileira. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação
da Marinha, 2006, p. 79-80. 3
DORES, Fr. Manoel Moreira da Paixão e. Diário da Armada da
Independência. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957.
2
LOPES DA SILVA, Carlos André. “A transmigração da família
real para o Brasil e a independência”, in BARBOSA JÚNIOR, 4
CESAR, William Carmo. Uma história das Guerras Navais: o de-
Ilques & ABREU, Guilherme Mattos de. Marinha do Brasil: uma senvolvimento tecnológico das belonaves e o emprego do Poder
síntese histórica. Rio de Janeiro: SDM, 2018. Naval ao longo dos tempos. Rio de Janeiro: FEMAR, 2013.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

cenário político do século XIX, alcançando o ápice de oriundas da transferência da sede da monarquia por-
sua relevância na conformação do território brasileiro. tuguesa para o Brasil, foi instalado, em 11 de março de
No início do século XIX, Napoleão ascendia na 1808, a Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar,
Europa em seu projeto expansionista, porém a supe- sob os mesmos moldes dessa Secretaria de Estado cria-
rioridade naval da marinha inglesa levou o general a da em 1736 no reinado de D. João V.
buscar estrategicamente um outro cenário de atua- Além desta Secretaria, corroborando para o de-
ção no conflito contra a Inglaterra, estabelecendo em senvolvimento de uma unidade militar, alguns depar-
1806, pelo Decreto de Berlim, um bloqueio continen- tamentos, já estabelecidos em Portugal, foram ins-
tal que às nações europeias foram impostas a adesão, talados no Brasil. Houve, no entanto, a necessidade
sob pena de retaliação pela poderosa guarnição fran- de se criar outros; de modo geral, pode-se destacar:
cesa. Dentro desse cenário, pressionado pelos france- o Arsenal de Marinha, o Quartel-General da Arma-
ses e ingleses, o governo de Portugal, que mantinha da, a Intendência e a Contadoria, o Arquivo Militar,
boas relações comerciais com a Inglaterra, optou pela o Hospital de Marinha, a Fábrica de Pólvora, situada
não-adesão ao bloqueio, o que resultou na rápida res- no atual Jardim Botânico, o Conselho Supremo Mili-
posta de Napoleão. No ano seguinte, pelo tratado de tar e a Academia Real de Guardas-Marinha.8 Após a
Fontainebleau, firmado com a Espanha, definia-se a Independência, a Academia foi crucial na formação de
invasão do reino português. novos membros da Armada Imperial.
Com as tropas napoleônicas nas proximidades da Contracenando com a invasão francesa do territó-
fronteira lusa, no mesmo ano foi realizada a Conven- rio português na Europa, o Príncipe Regente D. João,
ção Secreta de Londres,5 em que foram decididas as após romper todos os tratados firmados entre França
normas protetivas para Portugal: a Inglaterra, garan- e Portugal, decidiu contra-atacar em terras para além
tiria o apoio naval necessário para a transferência da do continente europeu, nos limites fronteiriços entre o
sede da monarquia portuguesa para uma de suas colô- Brasil e a colônia da Guiana Francesa, respondendo às
nias, o Brasil, e em contrapartida Portugal garantiria pressões impostas pelas tropas napoleônicas.
uma série de benefícios aos ingleses, tais como a en- A força militar formada para o confronto contava
trega da esquadra lusa ao britânicos, potencializando com a participação de ingleses, portugueses e de bra-
o poderio da armada inglesa, e a concessão portuária sileiros, e estava sob o comando do Tenente-Coronel
de comercialização entre as duas nações, rompendo Manuel Marques d’Elvas Portugal que dispunha de
assim o pacto colonial que estabelecia a exclusividade uma esquadrilha composta pelas seguintes embarca-
de importação e exportação somente entre a colônia e ções: escuna General Magalhães (capitânia); cutters
a metrópole. Vingança e Leão; três barcas-canhoneiras; sumaca
Acompanhada de 16 naus inglesas, “[...] compos- Ninfa; dois obuseiros; iate Santo Antônio; e a lancha
ta pelas naus Príncipe Real, Afonso de Albuquerque e São Narciso, corveta inglesa Confidence, brigue Infan-
Medusa, da nau inglesa Bedford, da fragata Urânia, te D. Pedro e Voador.9
do bergantim Três Corações e transporte Alexandre”,6 Em primeiro de dezembro de 1808, a tropa de D.
a chegada da Família Real à Bahia em 22 de janeiro de João, com cerca de 700 homens armados, desembar-
1808 é garantida pela força naval, e em 07 de março cou no território francês, e avançou rumo à capital
do mesmo ano, junto à Brigada Real da Marinha, D. Caiena à medida que ganhavam o conflito; pelo rio
João estabelece a Corte portuguesa definitivamente no Oiapoque, a frota naval comandada pelo Comandante
Rio de Janeiro.7 Em acordo com a necessidade de se Yeo dominava as edificações de defesa e apoio inimi-
constituir uma estrutura administrativa corresponden- go, obtendo o domínio sob a colônia francesa em 12
te às novas demandas político-econômicas e militares de janeiro de 1809, quando o governo local se rendeu.
Esse foi o primeiro ato de D. João no que tange a uma
5
BITTENCOURT, op. cit., p. 66.
6
Ibidem 8
CESAR, op. cit., p. 173.
7
Ibidem 9
BITTENCOURT, op. cit., p. 69.

Revista de Villegagnon . 2022 99


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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

resposta à França no âmbito da política externa, em cia da Cisplatina.12 No entanto, a noção de unidade
menos de um ano após o estabelecimento da coroa política concorrente com a política nacional vigente
lusa no Brasil.10 A dominação da região foi relevante não duraria por muito tempo, fato que incluiu a região
para o estabelecimento dos limites territoriais do país sul na Guerra de Independência e, posteriormente, re-
realizado posteriormente, garantindo ao Brasil a deli- sultaria na Guerra da Cisplatina (1825-1828).
mitação do atual estado do Amapá. A revolta ocorrida em 1817, na capitania de Per-
Outra incursão realizada no período joanino foi nambuco, foi a última do período colonial que desa-
a tentativa de anexar às terras do Brasil o território, fiou a estrutura governativa da monarquia portugue-
antigamente sob o domínio castelhano, nas proximi- sa. Dentre as causas do movimento, está a cobrança
dades do Rio da Prata, a Banda Oriental do Uruguai. de impostos na localidade para patrocinar a campa-
Movimentados pelos ideais libertários do pensamento nha da Cisplatina; e a transferência da sede da Coroa
iluminista e encabeçados por José Gervásio Artigas, as para o Brasil, pois tal ato contrariava a ambição de
camadas populares da Banda Oriental se recusavam poder das elites locais, principalmente após D. João
a aderir ao projeto político das Províncias Unidas do elencar portugueses para exercer importantes funções
Rio da Prata. Dessa forma, a Coroa portuguesa con- administrativas em Pernambuco. Para fazer sucumbir
seguiu o apoio, não tão duradouro, das lideranças de a insurreição, o Governador da Bahia enviou para Per-
Bueno Aires. Embarcaram na empreitada, em 12 de nambuco a corveta Carrasco, o brigue Mercúrio e uma
junho de 1816, uma corveta, uma fragata, cinco naus escuna, com o intuito de estabelecer o bloqueio dos
e seis brigues, capitaneadas pela nau Vasco da Gama, portos de Recife e assim apagar a chama revolucioná-
juntos de seis navios que já estavam rumo a Santa ria pernambucana.
Catarina. A força naval se dividiu em duas, uma pelo Outras duas Divisões Navais incorporaram a re-
Rio da Prata em direção a Montevidéu, para realizar ação joanina à rebelião, uma comandada pelo Chefe
um bloqueio naval à cidade, e outra seguiu pelo Rio de Esquadra Rodrigo José Ferreira Lobo, composta
Uruguai, auxiliando as forças portuguesas frente aos pelos brigues Benjamin e Aurora, e pela escuna Ma-
ataques de resistência local.11 ria Teresa; e outra comandada pelo Chefe de Divisão
No final do ano de 1816, Montevidéu estava Brás Caetano Barreto Cogomilho, composta pela nau
rendida à ação de pacificação de D. João na Banda capitânia Vasco da Gama, os transportes Santiago
Oriental; porém, Artigas continuou a resistir ao des- Maior, Almirante, Harmonia, Joaquim Guilherme,
dobramento português mediante a atuação de corsá- Feliz Eugenia, Olímpia, Ateneu, Bela Americana e
rios que atacavam os navios portugueses a partir da Bonfim, e a fragata Pérola.13 Em terra, da Bahia, fo-
colônia de Sacramento, causando grandes estragos às ram enviados para Pernambuco dois regimentos de
tropas em terra que ficaram desmuniciadas e despro- cavalaria e dois de infantaria. Após o bloqueio do
vidas de apoio naval. A solução foi utilizar as tropas porto de Recife e da invasão da cidade pelas tropas
terrestres para destruir pontos estratégicos da linha enviadas portuguesas, o movimento separatista teve
inimiga como a Colônia de Sacramento e Paissandu. seu fim em 20 de maio de 1817.
Após o último episódio de atuação da Força Naval – Após a derrota de Napoleão pelas tropas europeias
em que se destacou a corveta Maria da Glória com o na Batalha de Waterloo, os representantes dos país
aprisionamento de um corsário inimigo e recuperação que derrotaram a França – Inglaterra, Prússia, Áustria
de dois navios mercantes, Ulisses e Triunfantes, em 31 e Rússia – reuniram-se em Viena para redefinir limites
de julho de 1821 – cerca de cinco anos após o início territoriais alterados pelo expansionismo napoleônico
das ações de incorporação da região do Rio da Prata, e remodelar o cenário político da Europa, de modo a
a deputação local aprovou a incorporação da Banda reestabelecer o Antigo Regime.14 Portugal, no entanto,
Oriental ao governo português, sob o título de Provín-
12
LOPES DA SILVA, op. cit., p. 85.
10
Ibidem, p. 69-70. 13
BITTENCOURT, op. cit., p. 73.
11
Ibidem, p. 70. 14
LOPES DA SILVA, op. cit., p. 85.

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

tinha um empecilho quanto à participação do Con- maio do mesmo ano, foi decretado o “Cumpra-se”,
gresso: o rei não estava, formalmente, em seu reino, ocasião na qual ficou determinado que as exigên-
mas numa possessão territorial dele. Para sanar tal cias emitidas pelas Cortes no que tange às ques-
questão, D. João elevou o Brasil à uma condição equi- tões brasileiras, somente seriam validadas com a
valente à da metrópole, com a instituição do Reino aprovação de D. Pedro I. Neste cenário, o Príncipe
Unido de Portugal, Brasil e Algarves. nomeou José Bonifácio de Andrade e Silva, adepto
O contraste entre a flexibilização da estrutura da emancipação do Brasil sob o modelo político
colonial no Brasil e governança administrativa do monárquico constitucional, para exercer a lideran-
território português por um comitê controlado por ça de um novo Gabinete de Ministros.
um inglês, minava a noção de autonomia política Em agosto, chegou ao Rio de Janeiro a notícia de
portuguesa no território luso em favor da brasileira que as Cortes intensificariam a pressão política, exer-
em terras ultramarinas, o que gerou insatisfação nos cida até então, sobre o Brasil. D. Leopoldina, esposa
portugueses residentes da metrópole. A ruptura do do Príncipe regente que se fazia ausente devido à sua
chamado “pacto colonial”, conforme expressão de viagem a São Paulo com intuito de manter o governo
Fernando Antônio Novais, na abertura de portos em local alinhado com sua política, reúne o Conselho de
1808, proporcionou a longo prazo certa liberdade Estado, junto a José Bonifácio, para que fosse discu-
fiscal e comercial nos portos da colônia; e as conquis- tida a imediata autonomia política brasileira frente à
tas da Guiana Francesa e da Província da Cisplatina, ameaça vinda de Portugal. Acordada a necessidade de
aumentavam o poderio econômico e geopolítico do emancipação, a carta da Princesa Regente é enviada a
Brasil. Somado a esse cenário, o “estado de ‘abrasi- D. Pedro I, que em 7 de setembro a lê nas proximida-
leiramento’ da Monarquia portuguesa”15 fez eclodir, des do Ipiranga. Apesar do Rio de Janeiro, São Paulo e
em 1820, a Revolução do Porto, um movimento re- Minas Gerais aceitarem a conclamação do Príncipe, a
volucionário, de caráter liberal, que ambicionava a declaração emanada das margens do rio Ipiranga não
instalação de uma Assembleia Constituinte – as Cor- fluiu pelas demais regiões do Brasil.16
tes – para instaurar uma monarquia constitucional, Apesar de declarada, a Independência não foi acei-
subordinando a Coroa ao Legislativo. Além de exigir ta em todo território. Imediatamente, quatro polos re-
o retorno do rei a Portugal, o movimento também presentaram resistência ao governo de D. Pedro I ao
objetivava reativar a antiga condição do Brasil – a não aderirem o projeto emancipatório: Belém, Mara-
de dependência econômica e política nos moldes do nhão, Bahia e a Província da Cisplatina. Nas provín-
“pacto colonial” – de modo a reestruturar a capital cias da banda Norte-Nordeste, as tropas militares des-
administrativa do Império Luso. tacadas foram reforçadas, a fim de manter afinidade
O cenário revolucionário e o medo de perder o com Lisboa, tendo destaque pelo alto conglomerado
trono, provocaram o retorno de D. João, em 1821, comandado pelo Brigadeiro Inácio Luís Madeira de
a Portugal, deixando no Brasil, como príncipe re- Melo, a província de Salvador. No sul, a divisão da
gente, seu sucessor na linhagem Bragança, D. Pe- guarnição frente à Independência era figurada de um
dro de Alcântara. As imposições das Cortes para lado pelo General Carlos Frederico Lecor, a favor da
que fossem transferidas de volta para Portugal as emancipação política, de outro, pelo seu subcoman-
principais instituições criadas por D. João, a reafir- dante, D. Álvaro da Costa de Souza Macedo, que con-
mação do “pacto colonial” e a exigência do retor- corria à ideia de subordinação do Brasil a Lisboa.
no do príncipe regente às terras lusas, bem como Diante desse panorama, José Bonifácio notou a ne-
o desacato à dinastia de Bragança, gerou uma res- cessidade da formação de uma forte Esquadra Impe-
posta imediata de D. Pedro, em 09 de janeiro de rial Brasileira para fazer processar, pelo mar, a concla-
1822, conhecida como Dia do Fico, em que o re- mação propagada nas margens do Ipiranga, de modo
gente declarou que permaneceria no Brasil, a des- a conformar as delimitações do território brasileiro.
peito das ordens vindas de Lisboa. Além disso, em Em outubro do ano da Independência, o primeiro bra-

15
Ibidem, p. 86 16
BITTENCOURT, op. cit., p. 74

Revista de Villegagnon . 2022 101


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sileiro nato a se tornar Ministro da Marinha, o Capi- John Taylor, Thomas Cochrane, John Grenfell, Jaime
tão de Mar e Guerra Luís da Cunha Moreira, também Shepherd, Teodor Beaurepaire e James Norton. Atu-
intitulado Visconde de Cabo Frio,17 iniciou a forma- ando de modo decisivo em Lisboa, quanto à aquisição
ção da Marinha Imperial. Frente às dificuldades orça- de material e recrutamento de pessoal para a Armada
mentárias para se adquirir novos navios, bem como as Imperial, destacou-se em seu serviço como diplomata
despesas decorrentes, alguns navios portugueses que brasileiro em Londres, o Marquês de Barbacena, Fe-
estavam no Brasil foram incorporados à força naval. lisberto Caldeira Brant.19 Para suportar os custos com
O Arsenal de Marinha, apesar das dificuldades enfren- o material flutuante e com a contratação de estrangei-
tadas quanto à falta de materiais e à mão de obra qua- ros e mesmo pagamento de soldos aos brasileiros, foi
lificada, exerceu importante função na reparação de aberta uma subscrição pública.
navios, neste cenário inicial. A nau Pedro I, as fragatas As instituições estabelecidas no período joanino
Niterói, Ipiranga, e Paraguaçu, além das corvetas Ma- também foram integradas ao projeto da estruturação
ria da Glória e Liberal, são exemplos das embarcações da força naval brasileira, dando destaque à Compa-
que passaram a ser assistidas pelo Arsenal.18 nhia de Guardas-Marinha, pelo papel que esta exer-
A dificuldade quanto ao quantitativo de oficiais cera na formação e integração de brasileiros natos
e praças brasileiros natos, contracenando com o alto na composição da Marinha do Brasil. Na Tabela 1
número de marinheiros estrangeiros habilidosos e ex- estão listados os componentes da Primeira Esquadra
perientes após o fim das guerras napoleônicas, sobre- da Independência.
tudo ingleses e franceses, evidenciou uma solução para A Marinha do Brasil, portanto, nasce da urgên-
corresponder a demanda de pessoal que a formação cia de resguardar a integridade territorial, figurativa-
de uma armada exigia; dentre os destacados estão: mente, atuando como uma agulha que, costurando o

Tabela 1. A Composição da Primeira Esquadra da Independência

Classificação Nome Canhões Nome Anterior


Nau Pedro I 74 Martins de Freitas
Piranga 68 União
Paraguaçu 48 Real Carolina
Fragata
Niterói 40 Sucesso
Tetis – –
Corveta Maria da Glória 24 –
Liberal 28 Gaivota
Cacique 18 Reino Unido
Real Pedro 14 –
Rio da Prata 14 Leopoldina
Brigue
Guarani 16 –
Caboclo 18 –
Atalante 10 –
Fonte: CESAR, William Carmo. Uma história das Guerras Navais: o desenvolvimento tecnológico das belonaves e o emprego do
Poder Naval ao longo dos tempos. Rio de Janeiro: FEMAR, 2013. p. 173. (grifo nosso).

17
LOPES DA SILVA, op. cit., p. 92. 19
CESAR, William Carmo. Uma história das Guerras Navais: o de-
18
BROTHERHOOD, Karina. “Trabalho e organização do Arsenal senvolvimento tecnológico das belonaves e o emprego do Poder
de Marinha do Rio de Janeiro na década de 1820” in Revista Naval ao longo dos tempos. Rio de Janeiro: FEMAR, 2013. p.
Navigator, v. 2, n. 3, jun. 2006, p. 8-9. 173.

102 Revista de Villegagnon . 2022


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litoral brasileiro na Campanha da Independência, fez o conceito tático da formação de duas linhas rígidas de
chegar o processo emancipatório emanado por D. Pe- batalha, Cochrane colocou o navio de linha, a nau Pe-
dro I, às margens do Ipiranga, às “ilhas”20 do nosso dro I, entre duas linhas de navios da esquadra brasilei-
“arquipélago”21, mantendo assim em absoluto o terri- ra, de modo a atacar a retaguarda da frota portugue-
tório constituinte do Império do Brasil. sa, sem tempo hábil de apoio da vanguarda inimiga,
No teatro da Guerra da Independência na Bahia, permitindo assim a passagem do capitânia pela linha
destacam-se a fragata Niterói que, comandada pelo inimiga. Todavia, somente esta última embarcação
Capitão de Fragata John Taylor, expulsou, mediante conseguiu o feito, pois, para o sucesso da manobra, o
severos ataques até os limites da Península Ibérica, na ataque deveria ser feito de forma conjunta e ordena-
foz do rio Tejo, os navios portugueses de apoio aos da, além de necessitar de volume e precisão dos tiros
resistentes em Salvador. Em 1º de abril de 1823, os de canhão, o que não foi possível por um problema
navios Piranga, Maria da Glória, Liberal, Guarani e interno às embarcações da frota brasileira. Além da
Real Pedro, e o então Primeiro-Almirante da Armada pouca experiência em combate da tripulação daque-
Nacional e Imperial do Brasil e comandante da nau les navios, o fator que corroborou para o desfavorável
Pedro I, Thomas Cochrane, deixavam a Guanabara desfecho do conflito reside no comportamento assu-
rumo à Bahia, para estabelecer um bloqueio na cidade mido por alguns marujos portugueses, já que:
de Salvador de modo a impedir a reposição de tropas
em terra, o abastecimento e apoio provido pelas tro- A indisposição dos marinheiros de origem
pas portuguesas no mar. A fragata Niterói se agrupou portuguesa em lutar contra a sua bandeira
dias depois à frota de Cochrane.22 foi claramente verificada na capitânia, quan-
do marujos chegaram a impedir o forneci-
mento de pólvora durante o combate, sendo
Achava-me sob a tolda, com o Lord, que
dominados por um tenente britânico.25
ambicioso desejava que se aproximasse o
momento de dar começo ao ataque, quando
já à distância de meia légua do inimigo me Após reorganizar suas forças militares e retirar
disse desta maneira: – ‘Sr. Cura, metad de de sua guarnição aqueles indispostos ao combate,
la Esquadra inimiga és nuestra, por que me Cochrane alcançou seu objetivo de estabelecer um blo-
voy cortar su linea’.23[sic] (grifo nosso) queio a Salvador, onde sem apoio e abastecimento, as
tropas portuguesas se viram pressionadas a abandonar
Elaborando uma arriscada tática militar, aproxi- as terras brasileiras. Em 02 de julho de 1823, um com-
mando-se à tática Meleísta24 (do francês melée, que boio português de mais de 70 embarcações, escoltado
significa confusão) e executada com êxito por Lorde por 17 navios de guerra, se retirou do Brasil sendo ata-
Nelson na Batalha de Trafalgar, e contracenando com cado incessantemente pela fragata Niterói; além disso,
vários navios foram capturados pela frota brasileira.
Dessa forma, Salvador aderiu a política emancipatória
20
Descrição das Províncias litorâneas que não aderiram a Indepen-
do Império de D. Pedro I.
dência (Ibidem, p.170-172).
No Maranhão, Lorde Cochrane, utilizando-se de
21
Descrição da extensão do território brasileiro (Ibidem).
uma estratégia fugaz, fez da nau Pedro I sua principal
22
Ibidem, p. 177-178
ferramenta de dissuasão, representando a excepcional
23
O trecho grifado foi escolhido como título deste trabalho e faz força naval recém-criada, de modo a obter a rendição
parte do relato do dia 04 de Maio de 1823 do Fr. Manoel da
Paixão sobre a Campanha da Independência na Bahia in DORES,
do Governo local que se mantinha até então firme em
Fr. Manoel Moreira da Paixão e. Diário da Armada da Indepen- apoio à Lisboa. O frei Manoel Moreira da Paixão e
dência. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957. p. 46. Dores narra em seu diário os movimentos estratégicos
24
Tática em que cada comandante de unidade tem autonomia de de Cochrane nesse jogo político:
atuação em combate, em detrimento da rígida estrutura de for-
mação em coluna do modelo “formalista”, em que o comandante
da Força Naval possui completo controle das unidades. 25
LOPES DA SILVA, op. cit., p. 115.

Revista de Villegagnon . 2022 103


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Demorar-se-ia com S. Excia. pouco mais de Diante de um cenário conturbado, visando à ma-
uma hora, depois do que, mandando S. Excia. nutenção da ordem político-social e fazendo valer
que desse fundo ao Brigue ao pé da Nau, o a unidade Imperial, Grenfell desembarcou com sua
despediu com ofício ao Govêrno, em resposta guarnição para atuar em terra, e no mar estabeleceu
ao que êle havia recebido. Nesse ofício disse S. um cerco para que a situação interna não fosse ali-
Excia. ter declarado quem era, que a Nau em mentada pelos portugueses. Representando a garan-
que se achava pertencia ao Império do Brasil
tia dos partidários da Independência, em um cenário
e não à Grã-Bretanha, como havia dito, e que
febril frente à liderança de Batista Campos, sofreu
seus fins eram fazer ali aclamar ao Imperador e
uma tentativa de assassinato, e ao final do mês de
Independência, e que, quando o Govêrno dei-
xasse de aderir a estas condições, veria romper agosto, tendo cessado o número de cárceres para os
toda espécie de hostilidade por mar e por terra, revolucionários, autorizou que os porões do brigue
até que finalmente se conseguisse o desejado Palhaço fossem utilizados como prisão, onde 254
fim de unir aquela amena Província ao grande presos foram mortos asfixiados.28 Após malsinações
Todo do vasto Império do Brasil.26 [sic] feitas a Grenfell pelo ocorrido no Grão-Pará, o co-
mandante foi julgado por um Conselho de Guerra e
absolvido das acusações.
No dia 26 de julho de 1823, Thomas Cochrane
havia recebido um ofício da Junta Governativa da re- O cenário em que as Províncias da banda Nor-
gião, respondendo da forma como explicitado acima, te-Nordeste aderiram à Independência aprofunda a
usando de um blefe e manipulando o real cenário da percepção das relações de poder estabelecidas inte-
expedição. Na mesma noite, o comandante da nau riormente nas capitais, pois a luta pela governança,
Pedro I recebe um ofício em resposta ao seu, conten- ora de brasileiros adeptos da Independência, ora de
do a informação de que no dia seguinte o Governa- lusitanos adeptos dos ideais propagados pelas Cor-
dor viria a bordo no capitânia aderir espontaneamen- tes de Lisboa, reflete o complexo teatro político e
te à Independência do Brasil, visando à tranquilidade militar em que a Marinha operou, por vezes de for-
da Província. ma pacífica, exercendo sua habilidade diplomática
e dissuasória, por vezes mediante o uso da força
No norte do país, mais especificamente no Grão-
armada, de modo a impor a ordem no Império e
-Pará, apesar de utilizado os mesmos subterfúgios
defender a vontade do Imperador.
aplicados à Província do Maranhão, a adesão à In-
dependência foi acrescida de uma complexa rede de Na Cisplatina, o plano para integrar a região ao
acontecimentos que permite bifurcações quanto à sua plano da Independência, foi similar ao realizado na
interpretação. O Capitão-Tenente de 27 anos, John Bahia, estabelecendo na cidade de Montevidéu, um
Pascoe Grenfell, comandando o brigue Maranhão, bloqueio pelo mar e pela terra, sufocando a resis-
valeu-se da astúcia tática de Cochrane e alertou aos tência portuguesa. O Almirante Rodrigo Ferreira
residentes da Província que uma grande frota naval se Lobo, comandante da Esquadra portuguesa residi-
aproximava, e que iria retaliar qualquer resistência à da nas proximidades do Rio da Prata, declarou-se
Independência.27 Com medo de um ataque, os portu- aliado ao processo da Independência, não conse-
gueses aderiram à emancipação brasileira. Contudo, guindo, no entanto, impor o bloqueio a Montevi-
com o passar do tempo, os portugueses voltaram a déu. Foi substituído pelo Capitão de Mar e Guer-
atacar aqueles que se mostravam favoráveis à autono- ra Pedro Antônio Nunes, que trouxe consigo uma
mia política do país, já que a ameaça feita por Grenfell corveta, três brigues e três escunas que realizaram
não se concretizara. o bloqueio àquela cidade e forçou uma resposta
armada sem vitoriosos. Entretanto, a vantagem de
manter o bloqueio pela parte brasileira que ocasio-
26
Relato do dia 26 de Julho de 1823 do Fr. Manoel da Paixão a res- nou desabastecimento das tropas inimigas em terra
peito da Campanha da Independência no Maranhão in DORES,
e a notícia de que a região era a último reduto de
op. cit., p. 112-113.
27
BITTENCOURT, op. cit., p. 77-78. 28
LOPES DA SILVA, op. cit., p. 98.

104 Revista de Villegagnon . 2022


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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

resistência a emancipação do país resultaram na REFERÊNCIAS


retirada dos portugueses da região em novembro
BITTENCOURT, Armando de Senna (org.). Introdução
de 1823.29
à história marítima brasileira. Rio de Janeiro: Serviço de
Portanto, a Armada Imperial, na Campanha da
Documentação da Marinha, 2006.
Independência, exerceu papel crucial nos confrontos,
fazendo uso, de acordo com a situação demandada, BROTHERHOOD, Karina. “Trabalho e organização do
ora da diplomacia, ora da força do canhão, objetivan- Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na década de 1820”
do estabelecer a integridade territorial do país que se in Revista Navigator, v. 2, n. 3, jun. 2006.
construía e a unidade política do Império. CESAR, William Carmo. Uma história das Guerras Navais:
A Marinha Imperial, seguidos os conflitos da o desenvolvimento tecnológico das belonaves e o emprego
Campanha de Independência do Brasil, atuou ati- do Poder Naval ao longo dos tempos. Rio de Janeiro:
vamente na consolidação do território nas revoltas FEMAR, 2013.
ocorridas nas regiões já elencadas, de instabilidade
DORES, Fr. Manoel Moreira da Paixão e. Diário da Armada
política, em que se figurou a ocorrência das Guerras
da Independência. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1957.
da Independência. A cada conflito, além de estabe-
lecer a integridade dos limites fronteiriços brasilei- LOPES DA SILVA, Carlos André. “A transmigração da
ros, a Marinha também se afirmava e se desenvolvia família real para o Brasil e a independência”, in BARBOSA
como força naval relevante no cenário político e mi- JÚNIOR, Ilques & ABREU, Guilherme Mattos de. Marinha
litar da época. do Brasil: uma síntese histórica. Rio de Janeiro: SDM, 2018.

29
Ibidem

Revista de Villegagnon . 2022 105


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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NO DIÁRIO DO


FREI MANOEL MOREIRA DA PAIXÃO E DORES

Aspirante Lucas Expedito de Paiva Zim

ANTECEDENTES território e Estado Brasileiro após 1822, percebe-se


que o legado lusitano foi basilar para a consolida-
O mar, com toda sua imensidão, desde os povos
ção do aparato governamental, social, cultural e até
mais antigos, revelava-se um grande mistério e temor, mesmo arquitetônico da sociedade aqui enraizada. De
poderia ser o lar de criaturas monstruosas, caminho acordo com Lúcia Bastos Pereira das Neves (1999),
para paraísos perdidos e o reino de Netuno. Mas, a a colonização portuguesa e, principalmente, a vinda
partir dos processos de secularização e de racionaliza- da monarquia portuguesa para sua colônia, devido às
ção, do aprimoramento de técnicas e ferramentas, li- invasões francesas napoleônicas a Portugal, resultou
gados às intenções de expansão territorial, os homens num processo de estruturação e divisão de classes,
reconheceram a necessidade de se lançar ao mar e con- desenvolvimento urbano, aparecimento de uma elite
quistar novos domínios. acadêmica e aculturada, que frequentava bibliotecas,
Evocando o período da expansão marítima euro- teatros e livrarias.
peia, a partir da análise de relatos e fontes históricas, é
possível perceber a notoriedade do mar na construção
e consolidação das sociedades ultramarinas. Portu-
A CAPITAL DA COLÔNIA SE TORNA A
gal e Espanha, monarquias ultramarinas nos séculos CAPITAL DO IMPÉRIO PORTUGUÊS
XV e XVI, ao tomarem consciência da importância Todo o processo de transformação derivado da
do domínio marítimo para ampliação de seu territó- presença da corte no Brasil ocorreu majoritariamen-
rio, riquezas e poder, voltam-se à navegação oceânica, te na cidade do Rio de Janeiro. Em 1763, houvera a
transformando as concepções em torno do mar. transferência da capital de Salvador para o Rio de Ja-
A partir desta tomada de consciência, o Atlântico neiro. A cidade, às margens da Baía de Guanabara,
destaca-se devido ao posicionamento estratégico da gozava de uma localização estratégica do ponto de
Península Ibérica e, posteriormente, torna-se a via de vista governamental, comercial e militar. Os textos
acesso mais apropriada dos colonizadores aos seus ter- acadêmicos costumam creditar a mineração em Minas
ritórios conquistados. Vale ressaltar que, a partir do iní- Gerais como causa basilar para a transferência da ca-
cio do domínio português e espanhol em outros territó- pital para o Rio de Janeiro.
rios banhados pelo Atlântico, estes reivindicaram para Porém, de acordo com os trabalhos de Antônio Ed-
si a exclusividade jurisdicional dessas águas marítimas, milson Martins Rodrigues, é necessário também valori-
motivados pelo seu pioneirismo na navegação e pelas zar a tradição de autonomia de que desfrutava a cidade
questões religiosas envolvidas, explicitadas pelo apoio do Rio de Janeiro: gozava de certa autonomia em rela-
papal a essas monarquias católicas. Esses elementos ção a Salvador para o trato com a metrópole e também
condicionaram as transformações e o desenvolvimento para com a Ásia, África, região do Prata e América do
econômico, cultural, social, político e militar das regi- Norte, especialmente no Caribe, sendo até considerada
ões africanas e americanas ocupadas pelos ibéricos. a cidade mais importante para o tráfico negreiro.
Numa perspectiva que prioriza o “descobrimen- Além disso, a Baía de Guanabara era fundamental
to”, ocupação, formação, unificação e afirmação do para os Engenhos Reais, que produziam cachaça para

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

servir como moeda de troca para a compra de escra- Após analisar alguns pontos gerais da formação
vos. Dessa maneira, o Rio de Janeiro se expandiu pelo e desenvolvimento do território brasileiro sob a in-
Atlântico, legado este deixado pelos portugueses, que fluência de sua metrópole portuguesa, é necessário
se diferenciava dos demais países europeus que busca- atribuir notoriedade à razão pela qual todos esses
vam grandes domínios terrestres, visto que adotavam aspectos foram possíveis: o domínio do mar. E desse
o mar como parte do seu domínio. Segundo Hespanha aspecto reluz a formação e emprego do Poder Naval.
e Santos (1998), o Império Português não se tratava de Portugal era uma nação de tradições marinheiras ao
um império terrestre, mas sim de um império oceâni- menos desde o século XV. Em 1808, Dona Maria I
co, em que o mar não representava um limite. e o regente D. João trouxeram junto de sua corte a
Por ocasião da transferência da corte, a elite portu- Marinha Real Portuguesa, instalando-se no Rio de
guesa trouxe consigo o luxo, costumes e as noções de Janeiro os órgãos máximos de direção da Marinha
moda que aqui não existiam. A necessidade da oferta Portuguesa, sendo eles: Intendência, Contadoria,
de serviços possibilitou a abertura de casas comerciais Auditoria, Hospital, Academia, Conselho do Almi-
voltadas para este mercado que estabelecia as regras rantado, Tribunal e Arsenal de Marinha. Além disso,
de vestuário sobre a sociedade, desenvolvendo o co- grande parte da esquadra portuguesa atracou na Baía
mércio nas cidades. de Guanabara, como naus, fragatas, corvetas, canho-
Outro ponto que vale a pena a ser destacado é a neiras e transportes. Ao reforçar que o mar é parte
construção de teatros para que os artistas portugueses essencial de um plano de domínio e desenvolvimen-
pudessem se apresentar, fazer com que os portugueses to, o governo português cria um aparato na colônia
mais enriquecidos se divertissem e ao mesmo tempo que aumentava o poderio econômico e geopolítico do
se adaptassem à sua nova realidade em um território Brasil, privilegiado pela ruptura do “pacto colonial”
tropical. O Real Teatro de São João, inaugurado em na abertura dos portos em 1808.
1813 na cidade do Rio de Janeiro, cujo nome home- Tratando-se do aspecto de formação marinheira, a
nageava o então príncipe regente D. João, foi palco Academia Real de Guardas Marinhas, criada em Lis-
de muitos espetáculos nessa época, além disso, era um boa, em 1782, foi trazida a bordo da nau “Conde D.
símbolo do aprimoramento arquitetônico construídos Henrique”, sendo instalada no Mosteiro de São Bento
pelos portugueses no contexto da chegada da família no Rio de Janeiro.
real. Além desse teatro, pode-se exaltar a beleza de Mas foi em 1822, depois de muitos movimentos e
construções e instituições, a exemplo do Horto Real, o ideias separatistas que às margens do rio Ipiranga, D.
Jardim Botânico, em terras cariocas; a Real Biblioteca Pedro I, assessorado por sua esposa Dona Leopoldi-
Nacional e a Escola de Belas Artes. Em 1816, chega- na e pelo estadista José Bonifácio de Andrade e Silva,
vam artistas franceses, engenheiros, técnicos e médicos declara a Independência do Brasil, fazendo necessá-
que contribuíram para as reformas urbanas do Rio de ria a consolidação do ato com as ações da Armada
Janeiro. Entre eles destaca-se o pintor Debret, que re- Imperial. Isso porque nas províncias do Norte e na
tratou em suas aquarelas a história do Rio de Janeiro, Cisplatina, a lealdade de muitos ainda pertencia às
destacando a vida dos escravos. autoridades lusitanas. O grito de Independência não
Houve também uma preocupação com as possíveis foi ouvido da mesma forma nas unidades administra-
influências causadas pelos ideais revolucionários da Re- tivas portuguesas, do antigo Estado do Grão-Pará e
volução Francesa. Dessa forma, a monarquia portugue- Maranhão ao Estado do Brasil. Dessa forma, fazia-se
sa implementou em 1808 a Imprensa Régia que, além ao mar a primeira esquadra brasileira, com o intuito
de se encarregar dos documentos oficiais, deveria fisca- de expulsar os que eram uma ameaça ao novo regime.
lizar, até mesmo censurar publicações, inclusive científi-
cas, consideradas perigosas. Além disso, nesse período,
Napoleão Bonaparte ocupava territórios portugueses,
OS RELATOS DO FREI PAIXÃO E DORES
despertando assim certa insegurança e temor e exigindo Como nesse período grande parte dos oficiais esta-
mais atenção ao que se devia importar da França. vam alheios às ideias separatistas, foi necessário que

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D. Pedro I buscasse experimentados estrangeiros para com destino a Bahia foi um desafio devido à falta de
tripularem os navios da recém-criada esquadra. O Pri- experiência dos homens na navegação.
meiro Almirante foi Lorde Cochrane. Nesse contexto, Frei Manoel Moreira da Paixão,
Lorde Cochrane era um oficial de Marinha e polí- então capelão naval a bordo da Nau Pedro I, escreveu
tico escocês, nascido em 14 de dezembro de 1775, em um diário em que registrou suas experiências e teste-
Hamilton no Reino Unido, que recebeu o apelido de munhos. Trata-se, portanto, de uma fonte primária
“lobo do mar” por suas façanhas em batalhas navais que narra os acontecimentos vividos pela esquadra co-
contra as forças de Napoleão Bonaparte. Foi decla- mandada por Cochrane. De acordo com esse registro,
rado Primeiro-Almirante e Comandante em Chefe da foram empregados os seguintes meios navais na cam-
Esquadra Brasileira no período da Guerra da Indepen- panha da Bahia: Nau Pedro I, comandada pelo Capi-
dência. Exaltado por seus feitos nas lutas navais das tão de Fragata Thomas Sackville Crosbie; Fragata Pi-
guerras napoleônicas, no combate à Espanha, na In- ranga, comandada pelo Capitão de Mar e Guerra Da-
dependência do Peru e do Chile, foi contratado por D. vid Jewett; a Fragata Real Carolina comandada pelo
Pedro para expansão territorial do Império do Brasil Capitão de Fragata Gonçalves Lima; a Fragata Niterói
e para expulsar do Brasil as autoridades lusas que não comandada pelo Capitão de Fragata John Taylor; a
se vincularam à Independência. Corveta Maria da Glória comandada pelo Capitão-
Com o título de Primeiro-Almirante da Esqua- Tenente Teodoro de Beaurepaire; Corveta Liberal
dra Brasileira, honra esta concebida exclusiva e comandada pelo Capitão-Tenente Antônio Salema
unicamente a ele pelo Imperador do Brasil, Thomas Garção; o Brigue Guarani sob o comando de Antônio
Cochrane, apesar de seus atos extraordinários, era Joaquim do Couto; Brinque Escuna sob o comando
conhecido por sua rebeldia e necessidade de publi- de Justino Xavier; e a Escuna Leopoldina comandada
cidade, que atraíam olhares descontentes por parte pelo Segundo-Tenente Francisco de Sá Lobão. Um to-
das autoridades navais britânicas. No que tange aos tal de nove navios, aproximadamente 2.000 praças e
seus serviços à Marinha Imperial Brasileira, apesar 278 peças de artilharia.
do desfecho final de sua última estada no Maranhão, Neste mesmo diário, são encontrados os bastidores
o almirante Cochrane cumpriu com o seu dever de do início dessa expedição, o momento em que a re-
unificar o Império, navegando com sua esquadra em presentação do Poder Naval consolidado no período
direção à Bahia, ao Maranhão e Pará. Sua esquadra da Independência sai de seu berço rumo a um possível
contava com a nau Pedro I, a capitânia, três fragatas combate. No relato do frei, é possível perceber a im-
(Piranga, Paraguaçu e Niterói) duas corvetas (Maria portância desse marco, a sua fidelidade e devoção ao
da Gloria e Liberal), quatro brigues e três escunas, casal imperial e o seu orgulho em pertencer à Armada:
sendo que nem todas as embarcações se apresenta-
vam de maneira desejada. Os oficiais ingleses busca- Neste mesmo dia, ás 5:30 hs. da manhã,
vam capacitar ao máximo suas tripulações fazendo veio para bordo da Nau o Exmo. Almirante
manobras de velas, exercícios de artilharia e adestra- Lord Cochrane, Comandante em Chefe da
mentos de abordagem. É necessário destacar que a Esquadra; e logo depois de 6hs. chegaram
sede da esquadra brasileira era a cidade do Rio de Suas Majestades Imperiais, a quem tive a
Janeiro e que, após a declaração da Independência, honra de beijar as Augustas Mãos, e se de-
tornou-se a capital do Império. moraram até às 7:30hs., em que fizemos à
vela, continuando a honrar-nos com a sua
Como o cenário do norte do país permanecia
companhia até mui perto da Ilha Redonda.
conflituoso, tendo Salvador controlada pelo General
Nesta altura, pondo-se a Nau à capa, em-
Madeira em terra e pelo Almirante Feliz Campos no barcaram Suas Majestades Imperiais na sua
porto, e tendo ainda no Maranhão e no Pará o domí- Galeota, com seus criados, e se lhes deram
nio das Juntas de Governo portuguesas, no início de os vivas de costume, com uma salva de vinte
abril de 1823 a Esquadra Imperial Brasileira se lança e um tiros, bem como a Fortaleza de Santa
ao mar. Apesar de todos os adestramentos, a viagem Cruz lhes havia feito ao passarmos pela sua

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frente. Suas Majestades Imperiais se digna- grandes até a proa, sem avaria de consequ-
ram de receber com muita satisfação, e em ência, e nos foi fazendo fogo até que pôde
pé na Galeota, com remos arvorados, o nos- arribar da Nau para a bater com a outra ba-
so cortejo, e assim se conservou a Galeota teria; a Nau imediatamente lhe fêz fogo, e
até que toda a Esquadra acabasse de passar. virando sobre ela com a Piranga ela fez for-
Constavam-se já 10 hs. da manhã quando ça de vela, e foi retirando com o resto das
tudo isto se deu por finalizado; e então mes- outras Fragatas, procurando a Nau D. João
mo, mareando a Nau o pano que tinha capa, VI, que com o resto das outras forças nos
prosseguisse o rumo de seu destino, voltan- procuravam pela retaguarda, para nos me-
do Suas Majestades Imperiais a demandar à ter em dois fogos; porém, como a Niterói,
barra para se recolherem à Cidade (DORES, Maria da Glória e Piranga correram sobre a
1957, p. 25-26).1 Nau inimiga, batendo ao mesmo tempo os
mais navios que podiam chegar, juntamente
com a nossa Nau, que as foi ajudando, obri-
Em 1823, uma esquadra suspende da Baía de Gua-
garam o inimigo a deixar sua empresa e a
nabara, com homens de diversas nacionalidades, reu- seguir caminho de seu porto, concluindo-se
nidos com o objetivo de unir um território, criar uma toda esta ação em menos de três quartos de
ideia de pertencimento em um país de dimensões con- hora (DORES, 1957, p. 47-48).
tinentais, em que o meio mais eficiente para o cumpri-
mento dessa missão era o mar. Além de consolidarem
Apesar desse intenso relato, notando a superiori-
um poder naval, ainda conseguiram a afirmação de
dade do inimigo, Cochrane retirou a esquadra para
um vasto território em um contexto de Independência.
um fundeadouro perto da Ilha de Tinharé, bem abri-
A desatracação do Rio de Janeiro foi um momento
gado, fazendo com que os portugueses desistissem de
de euforia e felicidade, mas os dias não foram tão fá-
persegui-los. Mas a situação na cidade de Salvador fi-
ceis assim durante a travessia. Sobre o trigésimo quar-
cou complicada, visto que o Primeiro Almirante fez
to dia de viagem, o Frei testemunha um encontro da
um bloqueio à cidade, apresou todas as embarcações
Esquadra Imperial Brasileira com navios do inimigo:
de abastecimento que se aproximavam da baía e, so-
mando a isto, chegaram notícias de que um exército
Continuaram as duas Esquadras na posição imperial se aproximava por terra. Para dar fim a este
descrita, e às 11hs. da manhã se atacou uma desafio, Cochrane atacou navios portugueses em seu
a outra, do mesmo modo que Lord tinha fundeadouro, causando confusão e provocando que
premeditado, posto que em todo se não efe- o General Madeira desistisse e embarcasse suas for-
tuassem seus planos pela falta de ordem que ças nos navios portugueses, passassem pelo bloqueio
a Nau teve em fazer fogo a uma das Fra-
e seguissem para Portugal. O Almirante iniciou uma
gatas do centro do inimigo, e as outras três
perseguição a eles, os navios imperiais atacaram o
que, retirando-se, nos faziam fogo. Parece
comboio português e muitos navios foram capturados;
incrível à vista de tão inspirado recurso, não
ficássemos sujeitos às duplicadas forças ini- depois de algum tempo, deu-se por encerrado e final-
migas, depois de contarmos com parte delas; mente a Bahia aderiu ao Império. Na obra Diário da
mas aproximando-se a nós pela proa a dita Armada da Independência, tem-se esta reflexão:
Fragata, ouviu em silencio a voz do Almi-
rante, que desta maneira lhe disse:-“Portu- A 2 de julho vejo o Lord com uma só Nau
guês, riende já tu Bandeira!” E logo sem per- acompanhar a Esquadra inimiga e aprisionar
der um momento, nem dar uma só palavra, em sua presença embarcações de seu com-
a mesma Fragata rompeu sobre a Nau Pedro boio. Vejo a Esquadra inimiga reunir-se e dar
Primeiro o fogo que pôde de artilharia com caça à nossa Nau, e esta sem receio dirigir-se
balas, granadas e metralha, desde as mesas para a terra, sem ser perseguida, como devia
pelo inimigo (se é que como inimigo a caça-
1
Foi respeitada a grafia original de época presente no diário. va), e finalmente fazer-se no bordo do mar,

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

deixando-nos em plena liberdade para con- modo de restabelecer-se a tranquilidade da


tinuarmos a fazer-lhe o mal que pudéssemos! Província, visto esta aderir espontaneamen-
Enfim, tudo parece aqui misterioso; mas nem te à Independência do Brasil, mantida pelo
por isso se pode negar a vantagem que têm Senhor D. Pedro. Primeiro Imperador (DO-
tido as armas brasileiras; e quanto a esses dois RES, 1957, p. 113).
dias, são famosos, assim como 2 de julho, em
que o inimigo deixou seu acampamento pelo
Após terminar sua expedição em 20 de setembro de
apuro em que o rigor do sítio de mar e terra o
tinha posto, obrigando-o a retirar-se ou pere- 1823, o Almirante Cochrane, a bordo de sua esquadra,
cer, pela falta de todos os objetos de primeira começa sua derrota para o Rio de Janeiro e, em 09 de
necessidade (DORES, 1957, p. 91) novembro, adentra novamente a Baía de Guanabara,
com honras. Coube-lhe o título nobiliárquico de Mar-
quês do Maranhão, que se destaca em seu túmulo na
Logo que findada a missão na Bahia, a esquadra se
Abatia de Westminster em Londres, e a Grã-cruz da Or-
direciona rumo ao Maranhão. O Almirante Cochrane
dem do Cruzeiro do Sul. Apesar de seus métodos não
utiliza de toda a sua experiência e autoridade para fa-
serem muito convencionais, em seis meses a esquadra
zer com que a adesão da província do Maranhão fosse
portuguesa já tinha sido expulsa do território marítimo
mais acelerada. Para alcançar esse feito, assim que ele
brasileiro, as províncias do Norte foram integradas ao
chegou em São Luís, capital da província do Mara-
Império e o Poder Naval estava constituído.
nhão, bloqueou o porto, o rio, a ilha e as águas, e tudo
que fosse possível para isolá-la; além disso, manteve a
cidade sob seus canhões, intimando-a a declarar a sua CONHECER PARA COMPREENDER
união ao Império do Brasil.
Os acontecimentos que se sucederam ao grito da
Independência, no que se refere ao reconhecimento de
Demorar-se-ia com S. Excia. pouco mais de D. Pedro como imperador, levaram à guerra. Em fun-
uma hora, depois do que, mandando S. Ex- ção das imensas distâncias, a Armada Imperial cum-
cia. que desse fundo ao Brigue ao pé da Nau,
priu funções essenciais, a exemplo das operações de
o despediu com ofício ao Govêrno, em res-
bloqueio e transporte de tropas. Todavia, significati-
posta ao que êle havia recebido. Nesse ofício
vos foram os desafios para a criação, em pouco tem-
disse S. Excia ter declarado quem era, que a
Nau em que se achava pertencia ao Império po, de uma marinha voltada desde sua origem para a
do Brasil e não à Grã-Bretanha, como havia guerra e não para a proteção de linhas de comércio e
dito e que seus fins eram fazer ali aclamar ao de comunicação. Houve a necessidade da contratação
Imperador e Independência, e que, quando o de oficiais e praças estrangeiros, devido à incerteza da
Govêrno deixasse de aderir a estas condições, fidelidade dos portugueses e brasileiros que haviam
veria romper tôda espécie de hostilidade por permanecido no país. Além disso, a Armada Imperial
mar e por terra, até que finalmente se conse- foi constituída por alguns navios inadequados e uma
guisse o desejado fim de unir aquela amena tripulação inexperiente que precisava ser adestrada
Província ao grande Todo do vasto Império por aqueles militares estrangeiros.
do Brasil (DORES, 1957, p.112-113).
O Diário da Armada da Independência do Frei Ma-
noel Moreira da Paixão e Dores é fundamental para
Apesar de a Junta Governativa do Maranhão ter a compreensão desse processo. Em geral pouco utili-
sido a mais fiel a Lisboa, em face da ameaça militar zado pela historiografia, o diário permite não apenas
aceitou a adesão ao Império em 28 de junho de 1823. conhecer elementos políticos e estratégicos que ocorre-
ram durante as operações da esquadra, mas também
Em resposta ao predito ofício veio outro, já desvela o cotidiano das tripulações, oferece sugestões
de noite, em que o Gôverno prometia vir no para se refletir sobre o relacionamento entre brasileiros
dia seguinte a bordo tratar com o Lord o e estrangeiros, além de apontar muitas das dificuldades

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DE INDEPENDÊNCIA: INSTITUIÇÕES, PERSONALIDADES E PROCESSOS HISTÓRICOS”

da vida a bordo. Graças a esse documento, é possível NEVES, Lúcia Maria Bastos P. Da repulsa ao triunfo. Anais
se aproximar de outras facetas da independência, ainda do Museu Histórico Nacional. Ministério da Cultura/
nem tão exploradas pela historiografia. Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio
de Janeiro. Vol. 31,1999, pp. 35- 55.

REFERÊNCIAS MARIZ, Vasco. Lorde Cochrane, o turbulento Marquês do


Maranhão. Revista Navigator. Rio de Janeiro. Diretoria do
DORES, Fr. Manoel Moreira da Paixão e. Diário da Armada Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha. V.8,
da Independência. Salvador: Livraria PROGRESSO 2012, pp. 11-20.
Editora, 1957.
DONIN, Luana de Amorim. Um mar de heranças: a
MARTINS, Helio Leoncio. Influência Portuguesa na importância do Atlântico na configuração do Império do
formação da Marinha Imperial. In Coletânea Helio Leoncio Brasil. Revista Navigator. Rio de Janeiro. Diretoria do
Martins. Revista Marítima Brasileira. Rio de Janeiro, Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha. V.8,
Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da 2012, pp. 35-47.
Marinha, V.137,2017, pp.194 - 200.
HESPANHA, Antônio Manoel & SANTOS, Maria
MARTINS, Helio Leoncio. As glórias da Marinha Imperial. Catarina. “Os poderes num Império Oceânico”. In:
In Coletânea Helio Leoncio Martins. Revista Marítima HESPANHA, Antônio Manuel (Coord.) História de
Brasileira. Rio de Janeiro, Diretoria do Patrimônio Histórico Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Editora
e Documentação da Marinha, V.137,2017, pp. 271-280. Estampa, 1998.

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Notícias de Villegagnon

ESCOLA NAVAL RECEBE PALESTRA


DA FAMÍLIA SCHÜRMANN
No dia 8 de outubro, integrantes da família Schür-
mann, conhecidos por circunavegar o mundo a bordo
de um veleiro, proferiram uma palestra aos Aspirantes
do 4º Ano da Escola Naval.
Durante a apresentação, Vilfredo, sua esposa Helo-
ísa e os filhos David e Wilhelm Schürmann relataram
as experiências e aprendizados adquiridos durante as
diversas travessias realizadas ao longo de mais de 20
anos de vivência no mar. Também destacaram a im-
portância do planejamento, motivação, dedicação e
espírito de equipe para colocar em prática a realização Apresentação da Familia Schürmann aos Aspirantes
de um sonho em alto-mar.
Atualmente, a família está realizando, com o Veleiro Os Aspirantes participaram de forma dinâmica, fa-
KAT, a expedição “Voz dos Oceanos” cujo objetivo é au- zendo perguntas à família e, ao final da palestra, o Co-
mentar a sensibilização sobre a poluição por plásticos e modoro do Grêmio de Vela da Escola Naval (GVEN),
microplásticos, bem como soluções inovadoras e o enga- Aspirante Jasbick, proferiu palavras de agradecimento
jamento com governos e o público em geral em cada para- pelos importantes ensinamentos passados pelos veleja-
da, do sul do Brasil a Nova York, Caribe e Nova Zelândia. dores aos Sentinelas dos Mares.

CAPELANIA REALIZA
PEREGRINAÇÃO
AO CRISTO REDENTOR
No dia 25 de julho, a Capelania da Escola Naval realizou uma peregri-
nação de Aspirantes ao Santuário do Cristo Redentor. O local foi acessado
por meio de trilha que atravessa o Parque Nacional da Tijuca até o cume do
Corcovado, a 710 metros de altitude. O evento compreendeu a celebração
da Missa dominical realizada na Capela Nossa Senhora Aparecida, locali-
zada aos pés da famosa imagem do Cristo Redentor.

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Notícias de Villegagnon

76ª EDIÇÃO DA REGATA ESCOLA NAVAL


É REALIZADA NA BAÍA DE GUANABARA
No dia 10 de outubro, pelo 76º ano consecutivo, Grêmio de Vela da Escola Naval, acontece tradicional-
a Baía de Guanabara foi o cenário da Regata Escola mente no dia do velejador, comemorado no segundo
Naval, a maior e mais tradicional regata realizada na domingo do mês de outubro.
América Latina. A competição, criada em 1946 pelo Nesta edição participaram da Regata mais de 155
veleiros de diversas classes, totalizando 708 velejado-
res na raia da Baía de Guanabara. Na ocasião, o velei-
ro oceânico SORSA III, comandado por Celso Quin-
tella, conquistou o título de “fita azul” (cruzou a linha
de chegada em primeiro lugar no tempo real).
Já a regata da Classe Optimist, realizada na La-
goa Rodrigo de Freitas com o apoio do Departamento
Esportivo do Clube Naval (Piraquê), teve cerca de 80
barcos competindo, sendo 12 categorias premiadas.
A Regata foi realizada obedecendo a todas as
orientações e medidas de prevenção ao Novo Corona-
vírus (COVID-19), não ocorrendo nenhuma atividade
Largada da 76ª Regata Escola Naval em terra, sem a presença de público externo.

SIMPÓSIO DE CENÁRIOS DA
ESCOLA NAVAL (SCEN) – EDIÇÃO 2021
Nos dias 9 e 10 de setembro, a Escola Naval sediou
a edição 2021 do “Simpósio de Cenários da Escola
Naval (SCEN)”, cujo tema foi: “Navegando o futu-
ro com temas do presente: uma simulação didática”.
O evento, que ocorre anualmente, tem o objetivo de
promover o estudo e o debate de temas de defesa e se-
gurança com ênfase nos aspectos marítimos e navais.
Na ocasião, os 40 Aspirantes participantes foram
divididos em dois grupos: “Canopus” e “Sirius”. Cada
grupo ficou responsável por explorar um tema e “na- Participantes do Simpósio de Cenários da Escola Naval
vegou o futuro” ao realizar projeções da atuação da
Marinha do Brasil em diversos cenários. Enquanto o O evento acadêmico contou com a mediação e par-
grupo “Canopus” ficou responsável por “Pesca ilegal ticipação de Professores de Relações Internacionais e
no Atlântico Sul”, o grupo “Sirius” trabalhou o assun- pesquisadores do Laboratório de Simulações e Cená-
to “Pirataria no Golfo da Guiné”. rios (LSC) da Escola de Guerra Naval (EGN).

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Notícias de Villegagnon

ESCOLA NAVAL PROMOVE PALESTRA


SOBRE CRIMES MILITARES
No dia 27 de abril, como parte do ciclo de pales-
tras destinado ao aprimoramento profissional dos As-
pirantes, a Escola Naval recebeu a visita do Procura-
dor de Justiça Militar da União, Dr. Luciano Moreira
Gorrilhas, que realizou uma apresentação com o tema
“Crimes Militares e Assuntos Correlatos”.
A palestra, que contou com um período de deba-
tes, contribuiu sobremaneira para que os Sentinelas
dos Mares pudessem conhecer as atividades exercidas
pela Justiça Militar da União, com a abordagem de
definições, especificidades e legislação concernente,
enriquecendo o conhecimento dos futuros Oficiais da Procurador de Justiça Militar da União, Dr. Luciano
Marinha do Brasil. Moreira Gorrilhas

GRÊMIO DE LIDERANÇA DA ESCOLA NAVAL


APOIA C-ESP-SOMOR NO CIAA
No dia 02 de Setembro, 20 Aspirantes tiveram a instrução no C-Esp-SOMor, com 29 Suboficiais, indi-
oportunidade de conhecer o Centro de Instrução Al- cados para a função de SO-Mor, de diversas Organiza-
mirante Alexandrino, participando de um período de ções Militares da Marinha do Brasil.
Na ocasião, os Suboficiais transmitiram aos jovens
Sentinelas dos Mares os ensinamentos obtidos ao lon-
go de suas carreiras, expondo o que uma Guarnição
espera de um Segundo-Tenente recém-formado, bem
como, por meio das perguntas, puderam compreender
um pouco dos principais anseios dos futuros Oficiais
ao chegarem a bordo.
A interação dos Aspirantes com esses experientes
Praças proporcionou grande crescimento profissional
para ambos os grupos, fomentando a prática do Es-
pírito de Cooperação, um dos valores constantes na
Aspirantes e alunos do C-Esp-SOMor Rosa das Virtudes.

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