Desaparecimentoforcado
Desaparecimentoforcado
Desaparecimentoforcado
ISBN: 978-85-518-6175-2
1ª edição, setembro de 2023.
Pesquisadores
Amanda Gabrielle Covelo de Araújo
Augusto Torres Perillo
Gabriel Souza Alves
Jaqueline de Sousa Gomes
Lorene Monteiro Maia
Lucas Conti de Souza Rosa
Lucas Ribeiro Nogarole
Psicóloga e Arteterapeuta
Nádia Maria P. Figueiredo
Filme
“Desova”
Quiprocó Filmes
Apoio de Pesquisa
Joseane Martins de Lima
Sônia Ferreira Martins
Sumário
Descrição da Equipe
Introdução
Lorene Maia
Lucas Nogarole
Considerações Finais
Lista de Siglas
José Cláudio Souza Alves: Graduado em Estudos Sociais pela Fundação de Brusque
(1983). Mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(1991). Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1998). Atualmente é
Professor Titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Introdução
A Baixada Fluminense, desde sua fase colonial, sempre conviveu com o assassinato e
ocultação de cadáver. Assim foi com os Jacutingas e Trairapongas, grupos indígenas
dizimados pelos senhores de engenho através do seu braço armado, ávidos pelas
terras, riquezas naturais e potencial produtivo, sempre protegidos pela Coroa
(SOUZA e RIBEIRO, 2021). Negros escravizados foram menos atingidos por esse
destino enquanto seus corpos eram peças caras, essenciais ao modo produtivo
escravista. Quilombolas do Campo Negro de Iguaçu sempre souberam, ao longo
dos 100 anos de sua existência, que a preservação de suas vidas estava diretamente
relacionada à sua capacidade de se esconder no labirinto formado por pântanos
entre os rios Iguaçu e Sarapuí (GOMES, 1992).
Quando esses negros foram despejados sem qualificação e propriedades no
mercado de trabalho da sociedade capitalista não escravocrata passaram a conhecer
o desaparecimento pelas mãos dos donos do poder, que viam nessa estratégia a
redução de possíveis danos econômicos, jurídicos e sociais. Assim, as formas de poder
que se expressaram ao longo do tempo na região cultivaram, nas diferentes fases
históricas, a percepção de que a máxima violência assassina e cruel combinada com
a incapacidade de se proteger dela ou de expô-la a prejuízos sempre foi o recurso
mais notável e infalível que poderiam lançar mão. No início dos anos 1960, várias
matérias de jornais denunciavam o uso do rio Guandu como destino dos corpos
de mendigos que eram retirados das ruas da capital. Com o advento dos grupos
de extermínio, criados pela ditadura empresarial-militar de 1964, paralelo aos
corpos expostos em público, com cartazes que lhes atribuíam crimes que haviam
cometido ou que iriam cometer, temos, também, os corpos ocultados, visando à
proteção dos assassinos.
O Fórum Grita Baixada (FGB) desde a sua origem se deparou com os
desaparecimentos forçados. Denúncias foram recebidas por diferentes meios ao
longo do tempo. O primeiro relato foi feito pelo então Frei Evaristo Spengler, que
era pároco da Igreja Católica de Imbariê. Ele mencionou a guerra iniciada no sábado,
26 de julho de 2014 (ANTUNES, 2014), na localidade em que atuava, e repassou
as informações que havia recebido dos membros das comunidades católicas dos
bairros de Imbariê e Santa Lúcia, no terceiro distrito da cidade de Duque de Caxias.
Naquele momento, uma facção do tráfico de drogas, o Comando Vermelho – CV,
havia iniciado um confronto com a facção Terceiro Comando Puro – TCP, tentando
retomar os pontos de venda de drogas. O que chamava a atenção era a diferença
entre o número de mortos identificado pelos fiéis e moradores, nas redes sociais,
superior a 20; o número de mortos divulgados pela mídia, que seriam 8 e os 7
homicídios registrados pela polícia. Houve a denúncia, por parte dos moradores,
quanto à existência de um cemitério clandestino. A polícia fez escavações no local
e encontrou 2 corpos. Os moradores insistiram que havia mais corpos enterrados e
que o cemitério cobria uma área maior. A polícia, no entanto, não continuou com
as escavações, encerrando as buscas.
O segundo relato estava associado à madrugada do dia 21 de setembro de 2015.
Nela, os milicianos que ocupavam uma parte do bairro Km 40, em Seropédica,
invadiram o outro lado do bairro, que desde 2011 tinha sido ocupado pelo CV. A
mídia noticiou um morto, testemunhas locais falavam em mais de 20 mortos.
No terceiro caso, na madrugada do sábado, 19 de fevereiro de 2017, um sábado
antes do sábado de carnaval, teria ocorrido a maior chacina de toda a história da
Baixada. Algo entre 35 e 60 pessoas foram assassinadas, conforme a denúncia feita
por e-mail e confirmada por telefone, pelos relatos de um ex-aluno da UFRRJ e
ex-morador da cidade de Japeri, onde a chacina ocorreu, e nas palavras de uma
importante liderança comunitária, morador do bairro São Jorge. Segundo eles,
enquanto ocorria um baile funk, um grupo de homens fortemente armados e
treinados para matar desceu por cordas lançadas de um helicóptero, o que não foi
percebido em decorrência do volume muito alto do som da música. Ao acessarem o
topo do morro, por trás do local da festa, onde há uma mata, o grupo foi descendo
e degolando os olheiros do tráfico que cuidavam da segurança do baile. Outro
grupo chegou de caminhão, jipes militares e ônibus. Foram direto para o baile,
fecharam as portas e pediram para que os traficantes se identificassem. Após a
identificação, eles foram fuzilados junto a um paredão, no mesmo local do baile.
Carros e caminhonetes passaram a transportar os corpos pelas ruas do bairro, sendo
vistos pela população. Tiveram como suposto destino, que comportaria o volume
de corpos, um dos grandes cemitérios submerso da Baixada: o rio Guandu. Nem os
policiais da delegacia de Engenheiro Pedreira nem jornalistas foram autorizados,
pelos assassinos, a entrar no bairro.
O quarto evento denunciado se deu no dia 24 de junho de 2019. Nesse dia, as redes
sociais de moradores da cidade de Nova Iguaçu e Seropédica passaram a receber
uma enxurrada de mensagens, fotos e vídeos sobre a invasão que a milícia estava
realizando. Tratava-se de uma grande operação por parte de aproximadamente 100
milicianos, todos armados de fuzil, nas comunidades controladas pelo CV, na cidade
de Nova Iguaçu, tendo como eixo geográfico a Estrada Madureira, a fim de eliminar
a presença do CV. Foram atingidos os bairros de Jardim Paraíso, Marapicu, Grão
Pará, Danone, Dom Bosco, Parquinho, Esperança e Marinha. Relatos inicialmente
falavam de 15 a 35 mortos. Em contato com o Ministério Público Estadual – MPE
foram confirmadas denúncias de 45 mortos, apesar da polícia e a mídia noticiarem
apenas uma morte. O mesmo MPE informou que logo após o envio das imagens
para as redes sociais, houve a procura, por parte dos milicianos, dos autores das
imagens e de sua divulgação, a fim de puni-los. Um dos motivos principais desta
caçada que os milicianos promoveram aos produtores de imagens estava associado
à veiculação de imagens de policiais civis e militares, com seus uniformes, portando
tocas ninjas, atuando diretamente no exército miliciano. Também foi divulgado
pela mídia que se tratava de uma ação da maior milícia do Estado, a Liga da Justiça.
Origens do projeto
A origem do projeto relaciona-se ao convite feito, em 2019, pelo mandato do então
Deputado Federal Marcelo Freixo (Partido Socialismo e Liberdade – PSOL) ao
Fórum Grita Baixada para o desenvolvimento de uma pesquisa sobre as dinâmicas
de desaparecimento forçado na região da Baixada Fluminense. A perspectiva seria
a de apoiar, via emenda parlamentar, a realização de uma pesquisa exploratória
que pudesse se relacionar a um trabalho de denúncia e relevante incidência política
que o FGB já vinha desenvolvendo e que foi apresentada em 26 de abril de 2019
na Audiência Pública “Homicídios e Desaparecimentos Forçados na Baixada
Fluminense”, realizada pelas Comissões de Defesa dos Direitos Humanos e pela
Especial da Juventude, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
(Alerj), presididas, respectivamente, pelas deputadas Renata Souza e Dani Monteiro,
ambas do PSOL.
Na ocasião, o Fórum Grita Baixada, em conjunto com a Rede de Mães e Familiares
de Vítimas de Violência de Estado na Baixada Fluminense e com a colaboração do
Professor José Cláudio Souza Alves (UFRRJ) apresentou dados divulgados pelo
Instituto de Segurança Pública (ISP) relativos à letalidade violenta na região da
Baixada Fluminense. Nesta audiência pública, o Fórum Grita Baixada apresentou
também propostas no âmbito estadual para o enfrentamento das dinâmicas de
violência de estado, entre elas, os desaparecimentos forçados.
Em setembro de 2019, ocorreu a primeira reunião para tratar da pesquisa
exploratória sobre os desaparecimentos forçados. Adriano de Araujo (FGB), falou
sobre o convite feito ao FGB e formalizou um pedido de parceria com a Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ, através do Observatório Fluminense
(OF), ligado ao departamento de Ciências Sociais. O objetivo do projeto era fazer
um levantamento exploratório sobre os desaparecimentos forçados na Baixada
Fluminense, com foco nas cidades de Nova Iguaçu e Queimados que se mantinham
em destaque pelos relatos e matérias jornalísticas relacionadas ao tema. Além disso,
desde o início se pensou em ações que ajudassem as mães e familiares de vítimas
de desaparecimentos forçados a lidar com o sofrimento que enfrentavam. O ano
de 2020, atingido pela pandemia de Covid 19, restringiu as ações do projeto à sua
organização, planejamento, soluções de problemas burocráticos e montagem de
equipe. O projeto, de fato, só teve início em 2021. Adriano de Araujo e Lorene
Monteiro Maia passaram a representar o Fórum Grita Baixada, na equipe. Edilene
Santos Portilho, José Cláudio Souza Alves, Marco Antonio Perruso e Nalayne
Mendonça Pinto representariam a UFRRJ, cabendo a esta última a coordenação
do projeto. Joseane Martins de Lima, membro da Rede de Mães e Familiares de
Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense tornou-se organizadora das
atividades no município de Nova Iguaçu, mais precisamente, no bairro do km 32.
Sônia Martins, advinda das pastorais sociais da Diocese de Nova Iguaçu, com atuação
em Queimados, também se inseriu como organizadora de atividades. A equipe
ficou completa com a presença dos graduandos e pós-graduandos Amanda Gabrielle
Covelo de Araújo, Jaqueline de Sousa Gomes, Lucas Conti e Lucas Nogarole, pela
UFRRJ; Gabriel Souza Alves e Augusto Torres Perillo, pela Universidade Federal
Fluminense – UFF.
Ainda afetados pela pandemia de Covid 19 e as implicações do distanciamento
social em meio à crise sanitária, o trabalho inicial se direcionou ao levantamento
de dados sobre o tema em diferentes instituições e meios. Assim, foram acessadas,
coletadas, organizadas e analisadas informações que passaram a ser obtidas junto a
órgãos como o Instituto de Segurança Pública – ISP, Disque Denúncia, Ministério
Público e Defensoria Pública. Também foram levantadas e analisadas as interações
sobre o tema em redes sociais, mais especificamente em páginas do Facebook
relacionadas com a Baixada Fluminense. Matérias de jornais foram igualmente
trabalhadas dentro dos mesmos limites espaciais e temáticos. Nos meses finais
de 2021, com a redução gradativa dos riscos da pandemia, o contato direto com
bairros e moradores passou a ocorrer. Foram feitas reuniões com mães e familiares
de vítimas de desaparecimentos forçados e visita a locais caracterizados como
cemitérios clandestinos pelos moradores. Nesse momento, foram desenvolvidas
atividades de Arteterapia destinadas àqueles atingidos pelo sofrimento envolvido
nos desaparecimentos dos familiares e amigos. Sob a coordenação de Nádia Maria P.
Figueiredo, psicóloga e arteterapeuta, foram realizados quatro encontros com mães
e familiares de desaparecidos, favorecendo processos de construção de linguagens
e práticas que os auxiliassem a lidar com as dimensões do sofrimento presentes na
realidade que vivem.
Em paralelo, iniciaram-se também os primeiros diálogos com a Quiprocó Filmes
para a produção de um curta, tendo como pano de fundo as histórias em torno
da realidade dos desaparecimentos forçados na região. O lançamento do filme
“Desova”, apresentado pelo Fórum Grita Baixada e a Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro abordando a dinâmica dos desaparecimentos forçados, ocorrerá
em conjunto com a publicação desse livro em 2023.
1. Neste trabalho foi garantida a anonimização dos dados pessoais, incluindo nomes, qualificação e dos
dados de localização de todas as informações utilizadas oriundas dos relatórios produzidos pelo Disque-
Denúncia. Tudo em consonância com o TERMO DE SIGILO E CONFIDENCIALIDADE, acordo
assinado entre o Instituto MOVRIO/Disque Denúncia e Nalayne Mendonça Pinto (Coordenadora
da Pesquisa), bem como em obediência à previsão legal contida no artigo 7º inciso IV Cap II Seção
I da Lei Geral de Proteção de Dados nº 13.709/2018 onde está previsto que o tratamento de dados
pessoais somente poderá ser realizado, entre outras hipóteses, para a realização de estudos por órgão
de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais.
foram os seguintes jornais: O Dia, Seropédica Online, Notícias Queimados, Notícias
Duque de Caxias e Notícias Nova Iguaçu. No total foram analisadas 36 notícias.
Para finalizar, o Capítulo 9 apresenta uma “Análise exploratória sobre
Desaparecimentos na Baixada Fluminense a partir do Facebook”. Intenciona-
se no capítulo a busca, identificação e análise de páginas do Facebook da Baixada
Fluminense que avisam ocorrências de desaparecimentos. As páginas do Facebook
que foram catalogadas são as seguintes: “Guapimirim ao vivo” (91 mil seguidores),
“Seropédica online” (20 mil seguidores) “Caxias da Depressão” (508 mil seguidores),
“Plantão Mesquita Nilópolis” (111 mil seguidores), “Notícias de Belford Roxo” (311
mil seguidores), “Itaguaí News” (13 mil seguidores), “Amigos de Nilópolis” (106
mil seguidores) e “Jornal Meriti Baixada” (29 mil seguidores). Foram encontradas
154 notícias/postagens nessas páginas que se aproximam das características de
desaparecimentos forçados.
Por último, e não menos importante, apresentamos uma síntese de propostas
e recomendações para a construção de uma política nacional de tipificação,
identificação, investigação de desaparecimentos forçados e acolhimento de familiares
de vítimas de violência por desaparecimentos forçados no Brasil.
Adriano Moreira de Araujo
José Cláudio Souza Alves
Nalayne Mendonça Pinto
Referências Bibliográficas
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Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2014-07-27/guerra-
de-faccoes-aterroriza-caxias.html. Acesso em: 6/8/2018.
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UNICAMP. Mimeo. 1992.
SOUZA, Marlúcia Santos de e RIBEIRO, Simone Orlando. Memórias Ancestrais no Norte
e Oeste das Cercanias da Guanabara: No Tempo das Conchas e da Jacutinga. In: Revista
Pilares da História. Ano 20. No 19. Junho de 2021. P.37-45.
CORPOS INSEPULTÁVEIS: UMA
BREVE REVISÃO SOBRE O
DESAPARECIMENTO FORÇADO NAS
CIÊNCIAS SOCIAIS
Amanda Gabrielle Covelo de Araújo
Jaqueline de Sousa Gomes
Introdução
A construção desse levantamento bibliográfico tem como objetivo central uma
análise sobre o desaparecimento forçado de pessoas em diálogo direto com a
produção debruçada sobre o tema. Enquanto uma das categorias operadas no
universo de casos de desaparecimento, o tema enseja uma ampla compreensão sobre
o fenômeno da violência, das dinâmicas criminais e tramas estatais envolvidas.
Essa abordagem teórica e empírica faz parte da investigação exploratória sobre os
desaparecidos e desaparecimentos forçados em municípios da Baixada Fluminense
e Rio de Janeiro – Capital – com análise quantitativa e qualitativa de dados sobre
desaparecimentos, entre os anos de 2016 e 2021.
Priorizamos pesquisas que mapeiam a construção histórica, política, social e
jurídica do conceito e, que, em alguma medida, protagonizaram os sujeitos e as
instituições imbricados na (in)visibilização do fenômeno. Ainda que as produções
sejam pouco numerosas no contexto brasileiro, dado a necessidade de visibilidade
e compreensão da complexidade do assunto, há uma mobilização nas últimas
décadas de pesquisadores e pesquisadoras que investigaram o tema de modo mais
sistemático e aprofundado (ARAÚJO, 2012, 2014; AZEVEDO, 2016; FERREIRA,
2011, 2013; FRANCO, 2018; OLIVEIRA, 2007, 2014).
De acordo com o sociólogo Fábio Araújo (2012), a trajetória pública da discussão
dos desaparecimentos, ao menos no Brasil, ganha maiores contornos em dois
contextos históricos: o período referente à ditadura civil-militar, que em seu sistema
de repressão produziu a figura do desaparecido político e dos familiares de vítimas
de mortos e desaparecidos pelo regime; e o contexto histórico inaugurado pelo
processo de redemocratização do país, cuja categorização é marcada pela pluralidade
de formas de abordagem da questão, englobando diversas modalidades, gramáticas
e figurações. Este artigo será conduzido de modo a traçar o estado da arte de
produções a partir destes marcos, não de maneira disruptiva, mas sim continuada e
relacionada. Contudo, também propomos uma interpretação crítica em articulação
com as discussões realizadas em “Necropolítica” por Achille Mbembe (2016) à
ideia de que o regime militar teria sido marcado por uma violência institucional
sem precedentes. Longe de constituir uma exceção própria aos momentos críticos
como as guerras e golpes militares, as técnicas de fazer e deixar desaparecer se
apresentam na história brasileira como uma constante.
Este artigo está segmentado da seguinte forma: propomos trabalhar em primeiro
plano com os desafios conceituais e as multicausalidades em torno do tema do
desaparecimento, em segundo lugar nos deteremos na discussão da categoria
desaparecimento forçado em seu contexto histórico-político. Na terceira seção, nos
concentramos em evidenciar brevemente alguns dos agentes, tramas e dinâmicas
envolvidas e atravessadas pelo desaparecimento forçado enquanto parte do repertório
da violência urbana no contexto contemporâneo.
Embora tão distintos entre si, tais exemplos convivem na mesma gaveta dos
arquivos do SDP (...). O que chama atenção nessa coleção é que, de modo geral, as
ocorrências não possuem componentes especificamente criminais, constituindo,
nos termos de Mota (1995), “casos sociais”. A especificidade dos “casos sociais”
3. Lei nº 11.259/2005.
4. Inspirada nos estudos de Souza Lima (2002), que explorou o universo prescritivo e pedagógico
das práticas, técnicas e saberes constitutivos da administração pública a partir das noções do “gestar”
(função constitutiva e pedagógica) e gerir (administrar; controle cotidiano de uma administração),
Ferreira (2011) argumenta que o objeto em foco de sua pesquisa é menos o desaparecimento de
pessoas, e sim aquilo que é construído como desaparecimento de pessoas, procurando compreender
o processo por meio da qual se dá tal construção.
abarcados pelo nome de desaparecimento, entretanto, é que componentes
criminais eventualmente se fazem presentes, não podendo ser excluídos a priori
(FERREIRA, 2011, p. 22).
Até que o caso possa ser reclassificado no quadro das ocorrências policiais,
o termo adotado é um registro administrativo considerado “provisório’’. Isso
porque o desaparecimento de pessoas é considerado fato atípico nas repartições
policiais, pois não possui, em seu sentido jurídico, a materialidade necessária para
evidenciar a criminalidade de um ato. “Não tem corpo, não tem crime”, o sociólogo
Fábio Araújo (2016) salienta que é comum familiares de pessoas desaparecidas
ouvirem expressões como essas das autoridades policiais como justificativa para
não investigarem os casos.
Em diálogo com os últimos trabalhos citados (ARAÚJO, 2016; FERREIRA, 2011),
ambos realizados com enfoque nas delegacias do estado do Rio de Janeiro, é possível
afirmar também que os policiais que lidam com este tipo de ocorrência geralmente
costumam estabelecer sua atuação a partir de representações estigmatizantes
e classificações pouco formais. Vetores importantes para pensar que, dentro da
hierarquia das ocorrências do cotidiano das delegacias, o desaparecimento de pessoas
é visto como uma ocorrência de pouca relevância. O que se vê é uma flexibilidade
dos ditames administrativos, tão estruturantes ao campo burocrático (BOURDIEU,
1996), operando na construção da inferioridade e desimportância dos “envolvidos”.
A personalização de procedimentos administrativos e legais a partir da
f lexibilização de normas, capaz de relegar a universalidade de decretos e
regulamentos a um plano inferior (FERREIRA, 2011), mostra como o direito não
opera como um saber exclusivamente técnico e objetivo em prol da produção de
uma “verdade jurídica” única (EILBAUM e MEDEIROS, 2016). É possível identificar
que moralidades são recorrentemente acionadas para embasar diversos contextos de
desconfiança, responsabilizações e de “interesse pelo desinteresse” (BOURDIEU,
1996, p.124) tanto em casos que compreendem a dimensão do “envolvimento”
ou do “envolvido-com” a partir de uma espécie de expediente de “fabricação de
nexos causais”, avaliados como comprometedores entre pessoas, territórios e suas
interações (CECCHETTO, MUNIZ, MONTEIRO, 2018), quanto em casos que não
consistem em fatos ou suspeições ligados ao “mundo crime” (FELTRAN, 2008),
mas, que, sob a interpretação de policiais, evocam apenas a função administrativa
de “preencher e arquivar papel” e de realizar procedimentos distintos dos que
demandam os “problemas de policiais”.
No quadro de responsabilização das “famílias”, o cenário de desconfiança
e depreciação é ainda maior quando se trata de pessoas advindas de territórios
favelados. Favela, pobreza e criminalidade são gramáticas que parecem fornecer
um bloco unificado de interpretações para as especulações sobre os casos de
desaparecimento. A associação da inferiorização da categoria, dentro da hierarquia
de ocorrências policiais e da conhecida estigmatização dos territórios favelados e
de seus moradores, faz emergir um artefato do trabalho policial predominante na
gestão dos casos de desaparecimento, que é a “construção de reputações”, marcados
por julgamentos moralizantes sobre a proximidade pessoal e/ou territorial com as
“drogas” e o “tráfico”.
7. Por outro lado, seguindo a análise de Farias (2014), também é possível identificar tentativas de
produção da invisibilidade de mortes de moradores de favelas e periferias no preenchimento dos
laudos, sobretudo nos casos de auto de resistência. Esta invisibilidade produzida também está atrelada
à gestão governamental de mortes provocadas por agentes de Estado. Numa outra linha crítica, se
localiza os estudos de Hattori et al. (2016) em análise sobre as documentações do Instituto Médico
Legal-SP. As autoras inspecionam a categoria de desaparecimento administrativo para pensar as
formas de desaparecimento decorrentes das rotinas burocráticas nas instituições que envolvem o
morto e as formas que administram a morte.
8. Documentos públicos que definem a causa mortis sob categorias médico-legais.
eliminação da materialidade, a prática do desaparecimento forçado visa a eliminação
das identidades, onde “pessoas” são relegadas ao status de “corpos”. Atualizando este
debate, podemos identificar que ter ciência da morte de uma pessoa que desapareceu,
não significa ter acesso ao corpo e nem mesmo à possibilidade da realização dos
rituais fúnebres, já que, não raras vezes, este tipo de desaparecimento culmina em
tortura e morte, com ocultação e destruição de cadáver. Pessoas desaparecidas, ou
corpos insepultáveis, representam muitas vezes as mortes subnotificadas que não
entram no rol dos dados oficiais de homicídio doloso divulgados pelas instituições
de segurança pública. Não por mera coincidência, dados e pessoas desaparecem de
forma sistêmica e sistemática.
Contornando a categoria do desaparecimento forçado
O desaparecimento forçado se inicia com a captura arbitrária e violenta da
pessoa ou grupo, sendo levada para lugares desconhecidos, onde, na maior parte
dos casos, é torturada e executada, sem que deixe rastro ou vestígio do corpo, nem
dos lugares em que foram realizadas a detenção clandestina e nem quem perpetrou
o crime. Em seus termos legíveis, é uma categoria que é encontrada nas convenções
do direito internacional. De acordo com a primeira manifestação da ONU, em 1978,
desaparecimento forçado seria:
15. Para maior problematização na discussão sobre o auto de resistência ver à respeito: Bento (2018),
Farias (2012) e Misse et al. (2011).
sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil” defende que esta ideia precisa
também ser questionada. Segundo o autor, para os que defendem tal ideia, tudo
se resolve numa simples inferência:
Violência e espera
O início da década de 1990 é inaugurado por algumas das maiores chacinas visíveis
da história do estado do Rio de Janeiro, como a de Acari (1990), Candelária (1993)
e Vigário Geral (1993). Logo após, entre os anos de 1995 e 1998, foi instituída uma
premiação por bravura que ficou conhecida como gratificação faroeste, cujo lema
norteador do policial em serviço era “atirar primeiro e conferir depois” (FARIAS,
2012). Tal premiação era concedida preferencialmente a policiais envolvidos em
ocorrências com resultado de mortes de suspeitos. Essa estrutura de poder baseada
no extermínio de populações pobres, sobretudo negras e segregadas espacialmente,
foi terreno fértil para matadores se elegerem a vereadores, deputados estaduais e
prefeitos de municípios da Baixada Fluminense e para o surgimento dos primeiros
protótipos de milícias, fundamentam Diaz e Alves (2022).
Referências Bibliográficas
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O DESAPARECIMENTO FORÇADO
NOS TRATADOS INTERNACIONAIS
E NA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS (CIDH)
Jaqueline de Sousa Gomes
Lorene Maia
Introdução
A partir de literatura e do referencial teórico que trata do tema e da categoria
“desaparecimento forçado”, faz-se aqui uma análise conjuntural da jurisprudência
internacional que deu escopo ao tema dos desaparecimentos e desaparecimentos
forçados e seus instrumentos jurídicos. A metodologia experienciada neste artigo
repousa na análise bibliográfica dos tratados internacionais que deram subsídios
jurídicos ao tema dos desaparecimentos forçados. O desaparecimento forçado
apresenta-se assim como objeto deste artigo, compreendendo um leque de análises
que fazem parte da pesquisa exploratória sobre desaparecidos e desaparecimentos
forçados na Baixada Fluminense - RJ. Nesta pesquisa ressalta-se os variados aspectos
quantitativos e qualitativos de pesquisa na investigação sobre o tema.
Cabe aqui destacar que grande parte dos debates sobre o tema dos desaparecimentos
forçados no Brasil foram compilados e analisados nos seguintes artigos que
compõem este livro, o capítulo 2 “Corpos insepultáveis: Uma breve revisão sobre
o desaparecimento forçado nas Ciências Sociais” e o capítulo 4 “Proposições em
torno da tipificação do crime de desaparecimentos forçados na legislação brasileira”.
Aras (2020) anuncia que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi
inaugurado pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem em 1948
e em 1969 foi complementada pela Convenção Americana de Direitos Humanos,
também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, entrando em vigor apenas
em 1978. No Brasil esse sistema passou a vigorar apenas em 1992.
Sob análise interdisciplinar entre o Direito Internacional Público, os Direitos
Humanos e Direito Penal, Santos e Boiteux (2012) analisam os tratados internacionais
e a decisão da Corte Interamericana sobre as obrigações do Brasil acerca dos
desaparecimentos forçados. Segundo as autoras, a proteção dos direitos do homem
é salvaguardada por três vertentes que agem simultaneamente na proteção
internacional da pessoa humana, são elas: O Direito Internacional dos Direitos
Humanos; o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos
Refugiados.
16. Blake vs. Guatemala: Em 3 de agosto de 1995, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
representou um caso contra a República da Guatemala tendo como origem a denúncia 11.219,
recebida em 18 de novembro de 1993, por sequestro e assassinato de Nicholas Chapman Blake por
agentes do Estado guatemalteco em 28 de março de 1985, e pelo seu desaparecimento por mais de
sete anos, até 14 de junho de 1992. Ver a sentença em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_36_esp.pdf> .
17. Bámaca Velásquez vs. Guatemala: Em 30 de agosto de 1996, a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos representou um caso contra a República da Guatemala tendo como origem a
denúncia 11.129 em razão do Estado violar os seguintes direitos em detrimento de Efraín Bámaca
Velásquez: Direito ao Reconhecimento da Personalidade Jurídica, Direito à Vida, Direito à Igualdade,,
Direito à liberdade pessoal, Garantias Judiciais, Liberdade de Pensamento e Expressão, Proteção
Judicial, Obrigação de Respeitar e Garantir Direitos, Prevenir e Punir a Tortura. Ver a sentença em:
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_70_esp.pdf>.
18. Anzualdo Castro vs. Peru: Em 11 de julho de 2008, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos representou um caso contra a República do Peru tendo como origem a denúncia 11.385
apresentada à Secretaria da Comissão em maio de 1994, sobre o suposto desaparecimento de Kenneth
Ney Anzualdo Castro em 16 de dezembro de 1993, supostamente executado por agentes do Serviço de
Inteligência do Exército após ser sequestrado ou detido e levado para o porão do quartel-general do
Exército, onde teria sido executado e os seus restos mortais cremados. Ver a sentença em: <https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_202_esp.pdf>.
De acordo com Santos e Boiteux (2012) no caso Heliodoro Portugal vs. Panamá19,
adotou-se o princípio de que os Estados deveriam adequar suas normas internas
às normas internacionais, sendo obrigatória a tipificação como delito autônomo,
levando em consideração os seguintes parâmetros: “a desnecessidade de a privação da
liberdade ser ilegal, a negativa de fornecer informações sobre o paradeiro da pessoa,
a negativa de reconhecimento da privação da liberdade, a proporcionalidade da pena
cominada, e a natureza continuada do delito” (SANTOS e BOITEUX, 2012, p. 08).
Como indica Alfen (2013), no Brasil essa prática de crime esteve inicialmente
ajustado ao período da ditadura militar que teve início com o golpe militar em 1964
até o ano de 1979, período em que um incontável número de pessoas esteve submetido
a crimes de tortura, desaparecimento e morte. No entanto, o único caso brasileiro
julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos refere-se ao caso Gomes
Lund e outros vs. Brasil. De acordo com Jardim (2011), a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, neste caso conhecido também como Guerrilha do Araguaia,
responsabilizou o Brasil a tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas.
O caso corresponde à responsabilização do Estado Brasileiro pelo desaparecimento
de cerca de 70 pessoas, entre eles, membros do Partido Comunista do Brasil e
camponeses aliados nas imediações do Rio Araguaia (PA). As operações do exército
no Araguaia ocorreram durante o período militar entre 1972 e 1975, na erradicação
19. Heliodoro Portugal vs. Panamá: Em 23 de janeiro de 2007, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos representou um caso contra a República do Panamá tendo como origem a denúncia 12.408
apresentada à Secretaria da Comissão em junho de 2001, pelas violações cometidas pelo Estado
em razão do suposto desaparecimento forçado e execução extrajudicial de Heliodoro Portugal,
pela suposta falta de investigação e punição dos responsáveis pela
alegada falta de reparação a seus
familiares. Ver a sentença em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_186_esp.pdf>.
dos guerrilheiros, entre suas práticas comumente usadas destacam-se a detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado.
Considerações Finais
Este capítulo procurou estabelecer uma revisão sobre os acordos e tratados
internacionais envoltos no tema dos desaparecimentos forçados, os instrumentos
jurídicos que auxiliaram na compreensão do fenômeno e no fortalecimento do
debate jurídico no âmbito internacional e nacional.
Os caminhos percorridos aqui neste capítulo, compreenderam, a partir do
referencial teórico, um entendimento sobre o conceito da categoria desaparecimento
forçado no debate jurídico internacional. Apresentamos os casos julgados na Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), casos estes julgados a partir da
experiência de alguns países latino-americanos e no Brasil. Apresentamos também os
marcos legais do crime de desaparecimento na legislação internacional e na legislação
brasileira. Ao final, fornecemos um panorama dos crimes de desaparecimento
forçado na atualidade brasileira.
O desaparecimento forçado como um crime contra a humanidade, ganha
notoriedade a partir do contexto de alguns países latino-americanos e no Brasil,
envolvidos com regimes ditatoriais desde os anos 60, apresentaram-se nesse contexto,
regimes de extrema violência, tortura, assassinatos e ocultações de cadáver. O caso
mais emblemático no Brasil que foi julgado pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), refere-se ao caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, correspondente
ao processo da Guerrilha do Araguaia na década de 70. Nesse caso, o Brasil foi
obrigado a tipificar o crime de desaparecimento forçado. No cenário internacional
referente aos países latino-americanos destacam-se os casos julgados na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o caso Blake vs. Guatemala em 3 de agosto
de 1995; o caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala em 30 de agosto de 1996; o caso
Anzualdo Castro vs. Peru em 11 de julho de 2008 e o caso Blake vs. Guatemala em
03 de agosto de 1995.
A literatura aponta que a proteção humana é salvaguardada por três instrumentos,
o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional Humanitário
e o Direito Internacional dos Refugiados, a partir dessa tríade instrumental houve a
necessidade que os Estados membros também produzissem medidas de prevenção
do desaparecimento forçado. Assim, outros instrumentos jurídicos deram atenção
ao fenômeno do crime de desaparecimento forçado, destacam-se a Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José
da Costa Rica (1992); a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra
os Desaparecimentos forçados (1992) que foi aprovada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas e a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de
Pessoas, aprovada em Assembleia Geral das Organizações dos Estados Americanos
(1994); o Estatuto de Roma e o Tribunal Internacional em Haia (1998) e a Convenção
Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento
Forçado (2006).
Finalmente compreendemos e reiteramos a necessidade e importância de uma
tipificação do crime de desaparecimento forçado no Brasil; contudo, os instrumentos
jurídicos por si só não são suficientes para o combate e prevenção do crime de
desaparecimento forçado. Além da responsabilização jurídica do Estado importa
aprofundar a discussão sobre ações e políticas públicas no campo da segurança
pública que permitam a desarticulação e prisão de grupos armados com controle
de territórios e a permanente defesa pela restrita ação dos agentes policiais nos
certames da lei e garantia dos direitos humanos.
A literatura sobre o tema dos desaparecimentos forçados aponta para uma
dificuldade de caracterização do fenômeno, devido às polissemias em torno do
tema e a complexa dinâmica criminal que produz o fenômeno. Concordamos com
Oliveira (2007) quando ressalta o desaparecimento forçado como um problema
social a ser combatido no Brasil. Se faz necessário uma série de ações estatais
em âmbito jurídico, político e social que salientem não só a tipificação, mas a
prevenção e a correta responsabilização do Estado e outros agentes contra o crime
por desaparecimento forçado.
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PROPOSIÇÕES EM TORNO DA
TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE
DESAPARECIMENTOS FORÇADOS NA
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Nalayne Mendonça Pinto
Lucas Nogarole
Artigo 1
1. Nenhuma pessoa será submetida a desaparecimento forçado.
2. Nenhuma circunstância excepcional, seja estado de guerra ou ameaça de
guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública,
poderá ser invocada como justificativa para o desaparecimento forçado.
Artigo 2
Para os efeitos desta Convenção, entende-se por “desaparecimento forçado” a
prisão, a detenção, o seqüestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade
que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas
agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subseqüente recusa
em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da
pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei (DECRETO 8767/2016).
Cabe destacar alguns aspectos relevantes na Convenção. A parte I do texto contém
o princípio geral, que se constitui na norma fundamental da Convenção, razão de
sua celebração, expresso pela assertiva do seu Artigo 1º o qual afirma: “Nenhuma
pessoa será submetida a desaparecimento forçado”. Em seguida no artigo 2º o
texto apresenta as definições de termos/situações para definir o desaparecimento
forçado. Os artigos 3º e 4º contém compromissos dos Estados signatários quanto à
adoção de medidas investigatórias e à criminalização do desaparecimento forçado.
O artigo 5º classifica o desaparecimento forçado como crime contra a humanidade,
tal como define o direito internacional aplicável e sujeito às consequências previstas
no direito internacional. Em sequência, os artigos 6º, 7º e 8º contêm normativas
referentes ao compromisso dos Estados signatários no sentido de responsabilizar
penalmente, no âmbito de seu ordenamento jurídico interno, toda pessoa, ou seu
superior, que cometa, ordene, solicite ou induza a prática de um desaparecimento
forçado, tente praticá-lo, seja cúmplice ou partícipe do ato.
Chama atenção ainda o artigo 24 que regula aspectos referentes às vítimas de
desaparecimentos, a começar pela definição da expressão “vítima”, nos termos
da Convenção, a qual designa a pessoa desaparecida e todo indivíduo que tenha
sofrido dano como resultado direto de um desaparecimento forçado. Nesse aspecto,
regula os direitos das vítimas tais como: o direito da vítima de saber a verdade sobre
as circunstâncias do desaparecimento forçado; o andamento e os resultados da
investigação e o destino da pessoa desaparecida; e o direito à reparação (material,
moral, à reputação, à dignidade e à reabilitação, entre outras).
Como destacado pela Convenção Internacional para a Proteção contra o
Desaparecimento Forçado é necessário que os países atuem para introduzir em
suas normas penais o crime referido, como aponta o artigo 4° da Convenção: “Cada
Estado Parte tomará as medidas necessárias para assegurar que o desaparecimento
forçado constitua crime em conformidade com o seu direito penal.” Esse é o debate
atual que o Congresso Nacional está a constituir em diferentes projetos de lei que
tramitam a fim de definir essa tipificação.
Art. 33. Apreender, deter, sequestrar ou de outro modo privar alguém de liberdade,
ainda que legalmente, em nome do Estado ou de organização política, ou com a
autorização, apoio ou aquiescência destes, ocultando ou negando a privação da
liberdade ou informação sobre sua sorte ou paradeiro a quem tenha o direito de
sabê-lo, deixando o detido fora do amparo legal por período superior a quarenta
e oito horas:
Pena: reclusão, de cinco a quinze anos, sem prejuízo da concorrência de outros
crimes.
§ 1o Na mesma pena incorre quem ordena os atos definidos neste artigo ou
mantém a pessoa detida sob sua guarda, custódia ou vigilância.
§ 2o O crime perdura enquanto não seja esclarecida a sorte ou o paradeiro da
pessoa detida, ainda que sua morte ocorra em data anterior.
Passamos agora ao Projeto que visa incluir no Código Penal Brasileiro a tipificação
de Desaparecimento Forçado. Inicialmente, ele foi proposto como Projeto de Lei
do Senado n° 245, de 2011 de autoria do Senador Vital do Rêgo (MDB/PB). Sua
Ementa assim define o PLS:
O mesmo Projeto de Lei do Senado no seu Art. 149-A ainda dispõe sobre:
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das penas correspondentes
a outras infrações penais.
§ 1º Na mesma pena incorre quem ordena ou atua de qualquer forma para
encobrir os atos definidos neste artigo ou mantém a pessoa desaparecida sob
sua guarda, custódia ou vigilância.
§ 2º O crime perdura enquanto não for esclarecido o paradeiro da pessoa
desaparecida ou de seu cadáver.
§ 3º A pena é aumentada de metade, se: I – o desaparecimento durar mais de 30
(trinta) dias; II – se a vítima for criança ou adolescente, portadora de necessidade
especial, gestante ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua capacidade de
resistência.”
Ainda no PL 6240/2013 foi descrito com mais detalhes outros crimes correlatos
que se associam às formas que auxiliam e acobertam o crime de desaparecimento
forçado; e também qualificando os casos nos quais houve uso de tortura e que
resultam em morte, com considerável aumento na previsão da pena de reclusão
de 20 a 30 anos; se desdobrando nos parágrafos a seguir:
Apontamentos
O PL 5215/2020 acima apresentado está apensado ao PL 6240/2013 que veio do
Senado Federal como PLS 245/2011 e já foi discutido em comissões especiais e
tramitou em ambas as casas; entendemos que este é o projeto com reais condições
de aprovar a tipificação de crime de desaparecimento forçado no Brasil. Cabe nesse
momento aos legisladores levar essa discussão ao Plenário da Câmara dos Deputados
e construir um amparo legal sólido para especificação desse fenômeno criminal.
Entretanto, importa considerar que em 2019 foi promulgada a lei que institui
a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas (PNBPD), criada pela Lei
nº 13.812, de 16 de março de 2019, sendo a primeira política federal voltada para a
solução e prevenção dos casos de desaparecimento de pessoas. Uma política nacional
voltada para desaparecimento de crianças e adolescentes esteve mais avançada no
debate público, não apenas pela comoção social que causa o desaparecimento de
crianças, como também pela vulnerabilidade dos mesmos. Assim, dez anos antes,
em 2009, foi promulgada a lei 12.127/2009 que trata da criação do Cadastro Nacional
de Crianças e Adolescentes Desaparecidos.
A Lei nº 13.812 de 2019 destaca uma preocupação com a celeridade e organização
dos dados e informações sobre desaparecimentos e, em seu artigo Art. 3º define:
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legin/fed/decleg/2010/decretolegislativo-661-1-setembro-2010-608269-exposicaodemotivos-
144799-pl.html. Acesso em outubro de 2022.
Introdução
O ato de fazer ou deixar desaparecer corpos não é uma prática isolada ou acidental
dentro da realidade social da Baixada Fluminense e é necessário que se busque
métodos e metodologias de análise capazes de reconhecer e mensurar a totalidade do
fenômeno. Ao aparecer, à primeira vista, como evento trágico ou circunstância isolada
que decorre do cotidiano social, é recorrente nos depararmos com mistificações
de fatos e um desinteresse sobre a funcionalidade dos desaparecimentos forçados,
pouco questionadora das variadas representações sociais utilizadas para justificar
o acontecimento.
Quando estes fatos são abordados pela grande imprensa, costumam ser retratados
de modo espetaculoso, adotando-se alegorias do contexto social da periferia
metropolitana e sua violência cotidiana. Quando registradas por instituições do
Estado, os casos figuram apenas enquanto ocorrência sem viabilidade investigativa
ou são negligenciados enquanto questão criminal. É comum, no decorrer do registro
de uma ocorrência de desaparecimento forçado dentro da estrutura policial, que o
caso seja tratado imediatamente enquanto ação voluntariosa, uma vez que.
Gráfico 1
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 2014, 2021ª. Disponível em: http://www.ispdados.rj.gov.br/
estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.
Gráfico 2
Fonte: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Cidades. 2021. Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/. Acesso em 10 nov. 2021.
O que chama inicialmente a atenção, ao se comparar o quadro do número absoluto
de desaparecidos com a população de cada município da Baixada Fluminense, é o
fato de Nova Iguaçu surgir com 261 desaparecidos a mais do que Duque de Caxias,
apesar de ter 104.061 habitantes a menos. Que fatores levariam a esse número
maior? A hipótese da dimensão consolidada da milícia em Duque de Caxias, em
suas relações com outros grupos armados e nos acordos internos entre as diferentes
lideranças milicianas surge como plausível para explicar isso. Já em Nova Iguaçu,
a milícia Liga da Justiça, posteriormente denominada Bonde do Ecko, originária
da Zona Oeste do Rio de Janeiro, iniciou uma expansão, desde 2014, a partir da
anexação de áreas do eixo que se inicia no bairro do Km 32 e segue pela Estrada
de Madureira, através dos bairros Jardim Paraíso, Grão Pará, Marapicu, Danon,
Dom Bosco, etc. No caso específico do Km 32, ocorre uma intensificação de uma
guerra entre Terceiro Comando Puro – TCP e milícias, que havia se iniciado em
2007, quando da invasão miliciana. As disputas com as facções do tráfico, além das
guerras internas após a morte do líder Ecko, em 2021, recrudesceram as guerras
por territórios, tendo o ano de 2019 como ápice. Esse fenômeno estaria na origem
dos números maiores de desaparecidos do município.
O quadro abaixo reforça a hipótese aqui seguida quanto à relação entre as
movimentações milicianas e o número de desaparecidos.
Figura 1
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 01/2014 (taxa por 100 mil habitantes), 2021b. Disponível
em: http://www.ispdados.rj.gov.br/estatística.html . Acesso em: 02 nov. 2021.
Gráfico 3
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 2014, 2021ª. Disponível em: http://www.ispdados.rj.gov.br/
estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.
Mais uma vez, a diferença entre Nova Iguaçu e Duque de Caxias, com índice
maior para Nova Iguaçu apesar da população menor se apresenta. A seguir, os dados
proporcionais por 100 mil habitantes introduzem uma outra visão.
Figura 2
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 01/2014 (taxa por 100 mil habitantes), 2021b. Disponível
em: http://www.ispdados.rj.gov.br/estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.
Gráfico 4
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 2014, 2021ª. Disponível em: http://www.ispdados.rj.gov.br/
estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.
Figura 3
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 01/2014 (taxa por 100 mil habitantes), 2021b. Disponível
em: http://www.ispdados.rj.gov.br/estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.
Considerações Finais
A não definição dos desaparecimentos forçados enquanto crime tipificado pela
legislação foi utilizada por dentro do fazer da estrutura de segurança pública, de tal
maneira que os dados coletados pelos Registros de Ocorrência seguem acobertando
práticas, interesses, estruturas de poder e projeções políticas diretamente vinculadas
à existência e manutenção dos desaparecimentos forçados. As pesquisas e análises
que o ISP fez relacionadas aos desaparecidos, buscando desvinculá-los de qualquer
aproximação com os desaparecimentos forçados, resultaram, pelas limitações
metodológicas, insignificância quantitativa dos dados e ausência de qualificação
dos mesmos na manutenção da dúvida e no não esclarecimento sobre o fenômeno.
Ou seja, serviram mais para ocultar e confundir do que para esclarecer.
A partir da aproximação dos dados de desaparecidos obtidos pelo ISP com a
atuação dos grupos armados, compreendendo-os enquanto estruturas político-
criminais, que se manifestam ao longo do tempo e no espaço, numa perspectiva de
longa duração e focados na Baixada Fluminense, operou-se neste texto a transmutação
dos desaparecimentos forçados de - não dado - em - dado essencial e explicativo. Ou
seja, assume-se, de forma central a hipótese de que os números dos desaparecidos
possuem uma relação direta com o número dos desaparecimentos forçados, ocultados
em seu interior e responsáveis, em última instância, pelos quantitativos e sua
distribuição pelos municípios. Um desvelamento somente possível a partir dos
dados proporcionais, ou seja, do número de casos por 100 mil habitantes, em
cada município. Essa opção metodológica, aqui assumida, justifica-se diante da
ausência de qualquer dado razoavelmente produzido, a incapacidade de gerá-lo a
partir da prática dos agentes de segurança e a deliberada utilização dos mesmos
como forma política de se impedir qualquer aproximação das características de
uma sociedade que convive cada vez mais com os desaparecimentos forçados e os
grupos que os produzem, a partir dos interesses políticos, econômicos, sociais e
culturais daqueles que dominam essas diversas esferas e se articulam em projetos
consolidados e intocáveis.
As leituras sobre desaparecidos a partir das conjunturas de confrontos de grupos
armados estatais, não estatais e mistos, percebidos sob a luz das relações de poder
político e levando-se em conta as características geopolíticas das disputas permitiu
a localização de eixos, faixas e patamares de números de desaparecidos vinculados
ao fazer-se de cada processo, em cada localidade. Desse modo, a expansão miliciana
e sua consolidação foi vista a partir da relação direta com a atuação policial e sua
letalidade. Já a presença do Comando Vermelho aparece como uma espécie de
crime-indicador de geração dos desaparecimentos forçados e, por conseguinte, dos
desaparecidos, ganhando contornos como o principal eixo interpretativo, permitindo
ampliar e aprofundar o olhar analítico, que se busca tolher pelo uso canhestro
dos dados. Nessa busca, foram identificados os epicentros dos desaparecidos e sua
relação com as estruturas político-econômicas hegemônicas, os vetores em cada
faixa de dados e suas correlações históricas e geopolíticas mais amplas. Assumiu-
se aqui, também, a hipótese de que os dados sobre desaparecidos, intensamente
impulsionados pelos desaparecimentos forçados, guardam uma estreita relação com
outros dois indicadores coletados pelo ISP, ou seja, com os números de homicídios
dolosos e homicídios por intervenção de agentes do Estado. O cruzamento dos mapas
gerados por cada um desses índices potencializa, ainda mais, o refino da compreensão
dos processos que se dão no tempo-espaço. As características e peculiaridades
sobressaem permitindo leituras mais transversais e capazes de captar contradições
e complexidades. A opção metodológica assume, aqui, seu intento mais radical, ou
seja, aponta na imbricação de processos violentos, a partir da atuação dos grupos
armados, em consonância com as estruturas sócio-econômico-político dominantes,
que desembocam, inevitavelmente, no aumento do número de desaparecidos,
recheado e inf lado, qual cavalos de Tróia, pelo número de desaparecimentos
forçados. A radicalização permite uma contraposição frontal ao atual estado de coisa,
no qual convivem sofrimento desesperador de um número crescente de pessoas,
manutenção das estratégias violentas dos grupos dominantes e a atuação da estrutura
de segurança pública como articuladora e gerenciadora de toda essa engrenagem,
protegendo-se a partir da geração de dados que a acobertam e dissimulam o papel
central do Estado na manutenção desse estado de coisa.
Referências Bibliográficas
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tornou campeã de operações policiais na pandemia? The Intercept Brasil. Rio de Janeiro.
12/7/2021. Disponível em: https://theintercept.com/2021/07/12/favela-cv-campea-operacoes-
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CAMPAGNAC, Vanessa; FERRAZ, Thaís Chaves; SOLIVA, Thiago; RISCADO, Priscila;
RAPIZO, Emannuel; LINHARES, Guilherme; SOUZA, Nadja; AGUM, Ricardo e VELLOSO,
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construção da pesquisa. In: Cadernos de Segurança Pública. Ano 1. Número 0, dezembro
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https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/13/apos-encontros-de-ossadas-de-
vitimas-da-milicia-em-queimados-policia-pede-exames-de-dna-as-familias.ghtml. Acesso
em: 29/11/2021.
EXTRA. Governador troca às pressas secretário da PM por temer outro desgaste em sua
administração com investigação de coronel. Rio de Janeiro. 24/8/2021. Disponível em:
https://extra.globo.com/casos-de-policia/governador-troca-as-pressas-secretario-da-pm-
por-temer-outro-desgaste-em-sua-administracao-com-investigacao-de-coronel-25167859.
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urgentes. Rio de Janeiro: Fórum Grita Baixada, 2016.
GRANDIN, Felipe; COELHO, Henrique; MARTINS, Marco Antônio e SATRIANO, Nicolás.
Franquia do crime: 2 milhões de pessoas no RJ estão em áreas sob influência de milícias. G1.
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SAIGG, Mohamed e GIMENEZ, Elza. Allan Turnowski, ex-chefe da Polícia Civil do RJ,
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TEIXEIRA, Paulo Augusto Souza (Coord.) Desaparecimentos: o papel do policial como
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TORRES, Lívia; Brasil, Márcia e Borges, Narayanna. Vereador de Queimados, no RJ, é
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g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/07/18/mprj-e-policia-civil-fazem-operacao-
contra-suspeitos-ligados-a-milicia-e-ao-trafico-na-baixada-fluminense.ghtml Acesso em:
29/11/2021.
20. Neste trabalho foi garantida a anonimização dos dados pessoais, incluindo nomes, qualificação e
dos dados de localização de todas as informações utilizadas oriundas dos relatórios produzidos pelo
Disque-Denúncia. Tudo em consonância com o TERMO DE SIGILO E CONFIDENCIALIDADE, acordo
assinado entre o Instituto MOVRIO/Disque Denúncia e Nalayne Mendonça Pinto (Coordenadora
da Pesquisa), bem como em obediência à previsão legal contida no artigo 7º inciso IV Cap II Seção
I da Lei Geral de Proteção de Dados nº 13.709/2018 onde está previsto que o tratamento de dados
pessoais somente poderá ser realizado, entre outras hipóteses, para a realização de estudos por órgão
de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais.
no Rio de Janeiro - capital, resultando na redução de 14.935 para 12.629 denúncias.
Em seguida, definimos o recorte de 5 anos (2016-2020) para análise, que diminuiu
o quantitativo de denúncias a serem analisadas de 12.629 para um total de 1.738
(gráfico 5).
Gráfico 5
Fonte: Banco de dados da pesquisa com base nos dados do DD, 2022.
O elemento mais rico dessa base de dados é o texto descritivo das informações
fornecidas em cada registro de denúncia, que detalham práticas da ocultação,
condição do(a) desaparecido(a), cemitérios clandestinos, justificativa do ocorrido
e até os nomes dos sujeitos ou agrupamentos responsáveis pelo desaparecimento
forçado. Deve-se salientar, entretanto, que o texto descritivo é tanto uma seleção
quanto uma transcrição dos aspectos significativos da conversa telefônica e passa
necessariamente pelo crivo e pela subjetividade do atendente do DD-RJ, não se
tratando, consequentemente, de reprodução dos diálogos na íntegra. Com isso,
é necessário considerar que se lidou com representações de uma denúncia, cuja
finalidade era selecionar os elementos mais sintéticos e objetivos da interação
denunciante-atendente.
Importa considerar que os cidadãos, ao ligarem para o Disque Denúncia,
constroem um fio narrativo eivado de valorações morais, sociais, territoriais e
emocionais. São descrições que almejam comunicar situações limites que podem
ajudar a polícia em investigações imediatas ou futuras. As narrativas são repletas de
detalhes sobre ruas, locais, esquinas, lojas, carros, ponto de referência, etc, tudo que
possa ajudar na identificação e nas evidências dos casos narrados; almeja-se auxiliar
o trabalho de investigação e elucidação através da comunicação feita. A denúncia
aqui deve ser compreendida como campo de disputa, onde pessoas anônimas podem
participar da elucidação de casos policiais. Uma disputa com múltiplas dimensões,
pois envolve os processos territoriais e sociais da dinâmica criminal dos territórios
denunciados, bem como a complexa trama dos atores envolvidos: denunciante
e sua família; vizinhos, polícia (militar e civil), tráfico, milícia, poder público,
comerciantes locais; soma-se, ainda, os riscos de ser reconhecido como um delator.
Outro ponto que exige cuidado em relação a essa fonte são os procedimentos
de classificação adotados pelo DD-RJ. Os Tipos de Assuntos são utilizados para
organizar as denúncias em grupos de acordo com a temática identificada pelos
atendentes. Eles facilitam a subdivisão dos dados e permitem seu seccionamento
para fins de consulta e elaboração de pesquisas, mas não devem ser confundidos
com categorias de análises e conclusões mais profundas de cada caso. Trata-se
apenas de um procedimento de repartição simples, que justapõe e classifica a
partir do fator mais chamativo e aparente do que foi narrado pelo denunciante.
Diante disso, tendo em vista a necessidade da pesquisa em mapear amplamente
os desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense, o DD-RJ forneceu o acesso
a seis Tipos de Assunto: 1) Cemitério Clandestino; 2) Destruição/Subtração de
Cadáver; 3) Encontro de Cadáver; 4) Furto/comércio de ossos, membros e órgãos;
5) Pessoas Desaparecidos e 6) Tráfico de Mulheres.
Em seguida, realizamos uma leitura detalhada das formas descritivas que se
aproximavam das situações de desaparecimentos forçados. Dessa forma, excluímos
denúncias que não estavam próximas do problema analisado, bem como denúncias
repetidas (pessoas que ligam mais de uma vez para fazer a mesma denúncia ou
pessoas diferentes que denunciam o mesmo fato). Durante a leitura foi construída
uma nova coluna na planilha do DD com as palavras chaves que mais se repetiam
na denúncia. Essas palavras recorrentes estão na nuvem de palavras, que pode ser
vista logo abaixo:
Figura 4 - Nuvem de Palavras feita a partir do Disque Denúncia.
Gráfico 6
Fonte: Banco de dados da pesquisa com dados do DD, 2022.
Tráfico de Mulheres 1 0
Pessoas Desaparecidas 50 49
Furto/Comércio de Cadáver 0 0
Destruição/Subtração de Cadáver 5 2
Gráfico 7
“No bairro citado, atrás da Comunidade “xxx”, há dois dias, traficantes, aliados
ao “xxx”, a mando do traficante “xxx”, que lidera o tráfico na região, assassinou
e jogou o corpo de um de seus comparsas no único rio do bairro e o corpo
se encontra boiando, nesse momento”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No Rio “xxx”, próximo ao ponto do “xxx”, pelo canal de “xxx”, neste momento,
foi visto um cadáver de caráter masculino”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No final da rua citada, próximo ao campo de futebol, localiza-se uma casa
em construção, com um matagal na frente, onde no quintal foram enterrados
dois indivíduos (não identificados), um de vulgo “xxx”, que foram assassinados
por traficantes da localidade, segundo informa, eles foram enterrados em
um barranco do quintal”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
BAIXADA FLUMINENSE).
“Na rua citada, no alto do morro “xxx”, perto das torres de telefonia, foi enterrado
o corpo do morador “xxx”, que após um desentendimento com os traficantes
“xxx” e “xxx”, foi executado a tiros e enterrado no local. Cita que, os traficantes
não permitem que a família da vítima busque o cadáver. O crime ocorreu
há cerca de três meses”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO
DE JANEIRO).
“Na rua citada, em frente ao túnel e atrás da “xxx”, situa-se uma ocupação
irregular conhecida como “xxx”, em um beco, primeira direita, encontra-se uma
cisterna próximo ao bicicletário com um cadáver dentro. Cita que os traficantes
de drogas do local, executaram a vítima ontem (XX/XX/XX) e jogaram o corpo
dentro da cisterna e a água é utilizada para consumo”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“No endereço citado, próximo a saída “xxx”, neste momento, pode ser encontrado
o advogado “xxx”, que está sendo mantido em cárcere privado pelo policial
“xxx” lotado na “xxx”. “xxx” que está desaparecido desde o dia XX/XX/XX,
conforme cadastro nacional desaparecidos do Brasil”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“No bairro citado, o desaparecido “xxx” foi sequestrado por “xxx” vulgo
“xxx” e “xxx” a mando do “xxx” vulgo “xxx”. Há duas semanas, “xxx” vulgo
“xxx” e “xxx” levaram o carro que pertence ao vulgo “xxx”, um fiesta de cor
“xxx”, para o lava jato do “xxx” para que fosse feita uma limpeza geral pois
o carro estava sujo com sangue. Pode-se observar que, “xxx” vulgo “xxx” e
“xxx” estavam nervosos e circulavam ininterruptamente pela barraca, ambos
armados. Após este dia, o vulgo “xxx” ordenou aos seus subordinados que
espalhassem no bairro que quem ficasse comentando a respeito do caso também
iria desaparecer. Completa que, o vulgo “xxx” costuma executar alegando que
seriam delatores, conhecidos popularmente como “xxx”. Somente no mês de
abril, estão desaparecidos dois rapazes, sendo um deles o “xxx”, em ambos casos
os responsáveis pelo desaparecimento são o vulgo “xxx” e os seus subordinados,
“xxx” vulgo “xxx” e “xxx.” (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
BAIXADA FLUMINENSE).
“No endereço mencionado, próximo a “xxx”, localiza-se o condomínio “xxx”,
onde podem ser vistos, com frequência, milicianos, entre eles “xxx”, que é o
chefe, “xxx”, “xxx”, “xxx”, “xxx” e “xxx”, circulando armados, cobrando taxas de
segurança dos moradores e invadindo residências. Informa que no dia XX/XX/
XX os citados sequestraram “xxx”, vulgo “xxx”, que encontra-se desaparecido.
Acrescenta que o “xxx” e o “xxx” residem no endereço mencionado”. (BANCO
DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No endereço citado, próximo ao “xxx”, localiza-se a casa onde reside “xxx”, que
sexta-feira (XX/XX/XX), saiu para um churrasco na casa do amigo, no município
“xxx” e na mesma rua do evento, passou um carro com alguns indivíduos,
encapuzados, abordaram o mesmo e sequestraram. O citado estava vestido com
blusa nas cores preta e cinza, bermuda preta, chinelo preto, marca havaianas”.
(BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No final da rua mencionada, situada no “xxx”, no “xxx” dentro do “xxx”, depois
da “xxx”, inicia-se a mata, e nela há uma trilha, desse ponto anda-se cerca de dez
minutos até a parte alta, onde existe um cemitério clandestino e um local de
queima de corpos, mas é visível corpos em estado de decomposição e arcadas
dentárias pelo chão, e precisamente no final da “xxx”, depois de uma represa
existe outro cemitério clandestino”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Na rua citada, próximo ao “xxx”, pode ser visto, um cemitério clandestino
pertencente aos milicianos (não identificados). Os mesmos, estavam com
dragas cavando covas, próximo ao sítio “xxx”. Solicita averiguação.” (BANCO
DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Na rua citada, sem saída, atrás de “xxx”, na comunidade “xxx”, localiza-se um
terreno, o qual funciona como cemitério clandestino do tráfico de drogas.
Relata que, os traficantes (não identificados) também utilizam o terreno como
esconderijo de armas de fogo e entorpecentes. O chefe dos citados é o vulgo
“xxx”, que mora na rua supracitada, no “xxx”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Na rua citada, antiga fábrica da “xxx”, situa-se um cemitério clandestino,
idealizado pelos traficantes de drogas, entre eles o vulgo “xxx” e outros (não
identificados), oriundos da facção “xxx”. Cita que eles enterram os corpos,
posteriormente jogam concretos em cima dos corpos e ameaçam as famílias que
tentam buscar os corpos, inclusive, o vulgo “xxx” já executou alguns familiares
devido à procura dos parentes para realizar um enterro digno. Finaliza dizendo
que as ruas do entorno estão sendo obstruídas com blocos de concreto fixados
no chão”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Final da rua mencionada com a rua “xxx”, beirando o rio, existe um cemitério
clandestino, onde traficantes de drogas (não identificados), liderados por “xxx”
(não caracterizado), da facção criminosa “xxx”, jogam os corpos esquartejam
e enterram. Neste momento, podem ser encontrados pelo menos dois corpos
no local, em cova rasa”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
BAIXADA FLUMINENSE).
“No bairro citado, no final da rua principal da comunidade “xxx”, passando pela
“xxx”, chegando no “xxx”, localiza-se um cemitério clandestino, onde podem
ser encontrados quatro corpos de jovens (não identificados) que foram mortos
na comunidade na segunda-feira XX/XX/XX, por volta das 22h, pois foram
pegos por traficantes (não identificados), em um ponto de ônibus, em frente da
comunidade, pois seriam moradores de uma outra comunidade de facção rival.
(BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Na estrada citada, após o cemitério “xxx”, localiza-se uma porteira, onde cerca
de 50 metros à frente, podem ser encontrados mais de cinquenta corpos que
foram enterrados pelos milicianos “xxx” vulgo “xxx” e “xxx” vulgo “xxx”. cerca
de cinquenta policiais lotados no “xxx”, estão envolvidos com o grupo, policiais
que recebem o valor de R$ 15.000,00, por semana, para que os milicianos possam
utilizar o blindado, com o qual entram e saem na comunidade do “xxx”. todas
as quintas-feiras, entre 12h e 17h, os milicianos “xxx”, “xxx” e “xxx”, são vistos
em frente à estação “xxx” em uma barraca de doces, cobrando de comerciantes,
por uma suposta segurança, que chegam a arrecadar o valor de R$ 85.000,00,
por semana, utilizam o veículo “xxx”, de cor preta, rebaixado, placa não citada,
que fica parado em frente à barraca, solicita averiguação”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
Considerações Finais
As narrativas presentes neste texto fazem parte do universo que compõe o
desaparecimento forçado; representam um conjunto de técnicas de se fazer
desaparecer corpos que se correlacionam com as gramáticas e pedagogias da
violência e do terror. O banco de dados do Disque Denúncia representa uma
ferramenta que amplifica o olhar sobre o fenômeno dos desaparecimentos, e dentro
dessas denúncias podemos observar as práticas, modos de ação e procedimentos
que conduzem ao desaparecimento forçado. Entendemos as informações colhidas
pelo Disque Denúncia como um referencial importante que fornecem material
empírico e analítico para compreensão do fenômeno aqui estudado.
O banco de dados que nos foi entregue permite um levantamento tanto
quantitativo, das inúmeras formas de denúncias que são recebidas, como qualitativo,
sobre as múltiplas dimensões da comunicação. É muito significativo, como pode ser
observado nas denúncias acima enunciadas, a forma como os denunciantes buscam
descrever de forma detalhada os procedimentos e modos de agir presentes nos
desaparecimentos. Procedimentos que envolvem inúmeros métodos, instrumentos
e estratégias para a eliminação de corpos e ocultação de cadáveres; os matagais,
as cisternas, os carros queimados, os poços, os rios, as áreas abandonadas feitas de
cemitérios clandestinos; tudo isso descrito como rituais de morte e celebração de
poder de grupos armados. A dimensão territorial é importante nesse aspecto, pois
essas ações de terror abrangem e incluem as possibilidades que os territórios físicos
permitem, como as bacias hidrográficas, as áreas de mata, terrenos abandonados,
entre outros. A leitura atenta e cuidadosa desse banco de dados, que não se esgota
nesta pesquisa, permite muito mais do que denunciar as formas de desaparecimento
forçado, permite compreender os dispositivos de fazer morrer, as táticas, estratégias
e tecnologias de matar, eliminar, ocultar e fazer desaparecer.
As fronteiras entre os espaços e as práticas pertencentes aos Estados e os
excluídos dele encontram-se cada vez mais borradas e colocam diferentes desafios
às normatizações internacionais elaboradas até aqui para dar conta do que compõe
o desaparecimento forçado de pessoas. Os agentes e as dinâmicas criminais citados
ao longo desta análise, demonstraram-se, repetidas vezes, imbricados, ora em
cooperação, ora em disputa, mas se identificou também que a utilização da técnica
do desaparecimento de corpos por diferentes grupos organizados do tráfico, por
exemplo, é notadamente similar às técnicas utilizadas pela polícia e pelas milícias e
se dá muitas vezes de forma autônoma. Nesse sentido, a prática do desaparecimento
forçado reproduzida pelo tráfico não deve ser percebida como mais uma imitação da
violência do Estado e sim como uma das facetas da guerra cotidiana pela eliminação
do inimigo político e a propagação do terror para o controle de mercadorias,
territórios e corpos. A atuação das facções do tráfico e das milícias, a partir das
relações porosas com as estruturas estatais, complexifica na prática o conceito
jurídico internacional de desaparecimento forçado e nos convoca a uma atualização
do debate.
As denúncias feitas ao DD lançam pistas importantes sobre os modos e formas
de agir e respondem a algumas perguntas sobre como vem sendo constituído o
desaparecimento forçado nos territórios da Baixada Fluminense e no município
do Rio de Janeiro. Os dados nos direcionam ao entendimento de que são múltiplas
as técnicas de desaparecimento de corpos, de negação ao direito do sepultamento
e de registro dessas mortes. Fica evidente que o desaparecimento forçado é uma
realidade cotidiana vivida pelas populações mais vulnerabilizadas dos territórios
pesquisados nesse estudo, percebida na convivência com cemitérios clandestinos
dos mais complexos aos mais improvisados, corpos carbonizados ou jogados do
alto do morro, nos rios ou à flor da terra, contraditoriamente expostos, à mercê de
serem devorados por urubus e de desaparecerem para sempre. Estão aí, em todo
lugar. Erra, abandona, faz e deixa desaparecer o Estado brasileiro, ao não tipificar o
crime de desaparecimento forçado, ao não produzir políticas públicas de prevenção
e combate ao fato, além de não garantir assistência e acolhimento às famílias e aos
territórios afetados.
Referências bibliográficas
ARAÚJO, Fábio. Das “técnicas” de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência,
sofrimento e política. In: Das “técnicas” de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos,
violência, sofrimento e política. 2014. p. 220-220.
A AUTOCONSTRUÇÃO DO SER
MÃE E FAMILIAR DE VÍTIMA DE
DESAPARECIMENTO FORÇADO
José Cláudio Souza Alves
Nádia Maria P. Figueiredo
As interações da equipe do projeto com o Fórum Grita Baixada e com a Rede de Mães
e Familiares de Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense permitiram
o contato com as mães e familiares de vítimas de desaparecimentos forçados
presentes neste artigo. A aproximação se deu através de conversas individuais,
rodas de conversa, visitas aos cemitérios clandestinos e realização das atividades
de Arteterapia.
O bairro do Km 32
O bairro do km 32, em Nova Iguaçu, foi o principal espaço de construção do
trabalho de campo sobre desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense. Ali
foram feitas entrevistas e reuniões com mães e familiares de desaparecidos e de
pessoas que foram assassinadas pelos confrontos decorrentes da atuação no tráfico
de drogas, a partir da facção Terceiro Comando Puro – TCP e mortes ligadas à
milícia e à atuação policial. Foram feitas visitas às localidades do bairro relacionadas
ao desaparecimento de corpos, com destaque para os fundos do bairro e o rio que
o corta. A participação de Joseane Martins de Lima permitindo o acesso às pessoas,
na organização de reuniões, possibilitando a visita aos lugares e o contato com
entrevistados foi decisivo. Sua atuação militante na proteção e cuidado com as
famílias de vítimas, sua incansável dedicação e sua coragem permitiram a realização
desse projeto.
A localização do bairro do km 32 lhe dá uma dimensão estratégica, para os
grupos armados organizados a partir de suas dinâmicas criminais. A fronteira
entre Rio de Janeiro, a partir dos bairros de Campo Grande e Santa Cruz, e Nova
Iguaçu, município da Baixada Fluminense, a partir dos eixos rodoviários da BR 465,
antiga Rodovia Rio – São Paulo, e da Estrada Madureira, o posicionam como área
privilegiada, na operacionalização das múltiplas dimensões que movimentam os
interesses do mundo do crime abarcados pelo tráfico de drogas, milícia e estrutura
da Segurança Pública, essa última visibilizada pela atuação da Polícia Militar e
Polícia Civil, mas não restrita a elas. Sobressai a bacia hidrográfica formada pelo
Rio Guandu, Rio Guandu Mirim, Rio Capenga e Rio do Campinho, que permite a
existência, histórica, de um dos maiores cemitérios clandestinos do estado e, quiçá,
do país. Por exemplo, um dos entrevistados, que mora às margens do Rio Capenga,
afirmou que nos 8 anos que reside ali avistou algo em torno de 500 corpos boiando
no rio, lançados por assassinos. Isso daria uma média de um corpo por semana. Por
se tratar de um trecho pequeno, de apenas um dos rios mencionados, e do relato
de apenas um morador, demonstra que as proporções desse fenômeno são bem
maiores. Algo assustador diante de uma primeira aproximação. O que deve ser
para as populações desta área conviver com esse volume de corpos lançados nos
rios? Sem falar dos corpos submergidos por força de pesos a eles amarrados, como
pedras. São comuns os relatos de que moradores encontram corpos boiando, presos
nos troncos e vegetação das margens do Rio Capenga e os soltam para que sigam o
fluxo da correnteza. Em muitos casos, sabem quem são as pessoas e conhecem seus
familiares, que procuram pelo seu paradeiro. Porém, o que inicialmente pareceria
ser crueldade nada mais é do que a autoproteção. Revelar o corpo e anunciá-lo
significaria atrair sobre si o mesmo destino daquele corpo: seu desaparecimento,
a ausência de velório, luto e memória. Uma aniquilação que ninguém se dispõem
a enfrentar.
Turvas e obscuras não são somente as águas dos rios que cortam a região. As
relações entre população, grupos armados, estruturas de poder político, Estado,
empresas privadas e poder econômico configuram conjunturas complexas e difíceis
de serem percebidas, confundindo o entendimento do que existe ali, induzindo a
equívocos. Mas está justamente nos intrincados meandros relacionais construídos
ao longo do tempo, naquele espaço, a chave interpretativa que mais nos aproxima da
realidade. A invisibilização dos corpos só pode ser desvelada nas tramas invizibilizadas
de práticas, controle de corpos, domínios de áreas e projeção política e econômica
que subjazem no fundo lodoso das convivências, da imposição de vontades e
interesses acima de qualquer contraposição. Não que a resistência inexista, pelo
contrário, ela brilha em cada lágrima de mãe ou familiar das vítimas, na imensa
e profunda rede de cuidado e proteção que subjaz ao sofrimento e à permanência
enquanto pessoas vivas, mas que convivem com os meandros de um poder que
se super expõe, que aglutina e distribui benesses, que é positivo por possibilitar
ganhos, projeção, prestígio, votos, grana.
Andar pelas ruas do Km 32 é um exercício de pisar o presente e o imaginário
de um universo paralelo e simultaneamente concreto. Há um desdobramento de
tempo e espaço em cada passo. A ilusão, simultaneamente desilusão, nos empurra
dos barrancos de rios ao encontro de instituições, empresas, vizinhanças, famílias e
proximidades afogadas em contradições. Tudo que é dito se dissolve, se decompõe
e se refaz em gestos, culturas, poderes em permanente pulsar de possibilidades e
alternativas onde o detalhe leva a outra porta, que se abre em múltiplas direções,
nos deixando entrever um pouco daquilo que, muitas vezes, não queremos acreditar,
mas que está ali, incontornável. A chamada de uma jornalista âncora de telejornal ao
difundir como verdade as narrativas de delegados e investigadores policiais apenas
finaliza um projeto que percorreu dezenas de quilômetros entre casas de tijolo sem
emboço, ruas sem asfalto e rostos aterrorizados para se constituir na verdade dos
que permanecem assassinando e lucrando com a morte dos mais frágeis.
A guerra infinita
No Km 32, enquanto exceção, o TCP e a milícia protagonizam uma guerra sem fim
e sem regras, no controle de negócios, ganhos e corpos. Essa guerra rasga ao meio
ruas, praças, casas, igrejas e famílias. Condensados no mesmo território irmãos,
primos, amigos, parentes, vizinhos, congregações religiosas, igrejas, terreiros e
bares compartilham sonhos, amor, ódios, projetos de poder e vinganças revestidas
dos mais diferentes discursos que permitem justificar, fortalecer e movimentar suas
vidas em busca de significados que deem sentido aos seu existir, planos e ambições.
A integridade convive com a mentira, a compaixão se abraça com a covardia.
Difícil separar, nas trajetórias que prosseguem, histórias retilíneas e coerentes.
Essas ficam para os heróis de telejornais e novelas com armas em punho, sangue
entre as mãos, bolsos cheios de dinheiro e urnas prenhas de votos fruto da mentira
e da ignorância. O que teria sido uma convivência menos violenta entre tráfico e
milícia teve fim em 2007. Naquele momento, a Liga da Justiça, liderada pelo então
vereador e policial civil Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho e pelo irmão, então
deputado estadual, José Guimarães Natalino, o Natalino, iniciou uma política de
confrontos e assassinatos no bairro, vitimando os membros do TCP e dando uma
guinada definitiva na relação entre os dois grupos armados. A sucessão de conflitos,
lideranças rotativas e assassinatos em ambos os lados prosseguiu, em diferentes
fases, até desembocar no cenário atual, de águas mais profundas e escuras, sob o
domínio da milícia.
O assassinato de 17 pessoas entre os dias 14 e 15 de outubro de 2020, (BARRETO
FILHO, 2020 e ROUVENAT et all., 2020) há um mês das eleições municipais,
representou uma inflexão nas forças que, armadas, dividem a região. A operação
conjunta da Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal foi definida pela segurança
pública do estado como combate aos “narcomilicianos”, obtendo assim um tríplice
efeito. Primeiro, respondiam às acusações de que o governo do estado não combatia
milícias, revertendo a imagem de cumplicidade. Segundo, jogava sobre os ombros dos
traficantes a responsabilidade pela ação miliciana, ou seja, livrava os agentes públicos
de segurança, historicamente vinculados às milícias, de qualquer envolvimento
com a existência delas e por fim, sinalizava dentro da disputa eleitoral a plataforma
política a ser propagandeada, o velho e tão atual bordão do: “bandido bom é bandido
morto”. Seis meses depois, o assassinato em uma operação da Polícia Civil do
assim definido chefe da maior milícia do Rio, Welington da Silva Braga, o Ecko,
mergulharia as áreas sobre seu controle numa disputa sangrenta, que segue até os
nossos dias. A supremacia miliciana comporta a ruptura das suas fronteiras internas
e o esgarçamento do tecido social sobre o qual ela opera. Danilo Dias Lima, o
Tandera e Luis Antônio da Silva Braga, o Zinho, irmão de Ecko, inauguraram uma
nova fase de mortes, rompendo com a regra de não atingir parentes de milicianos
rivais, impulsionando a morte de mulheres afetivamente vinculadas a milicianos e
utilizando-se de informações obtidas a partir dos celulares de vítimas como base para
a execução de inimigos, a partir do conteúdo das trocas de mensagens, ampliando
não só o número de mortos, como o terror e o controle sobre os moradores.
As relações sociais no Km 32, ao longo do período recente, acima descrito,
constroem o fundo submerso dos desaparecimentos forçados. Mergulhar nelas a
partir dos relatos obtidos é o objetivo aqui buscado. Por exemplo, entre a operação
policial que matou os 17 milicianos, em outubro de 2020 e o assassinato do Ecko
em uma operação policial, que ocorreu em junho de 2021, há o Réveillon de 2021.
Tendo como base o depósito de bebida relacionado à milícia, que forneceu as bebidas,
ocorrendo na praça principal do bairro do Km 32, na BR 465, ao lado da Delegacia
de Polícia, a festa aglutinou centenas de pessoas, com predominância de jovens. A
festa miliciana em si é um evento de manifestação de poder, não só pela aglomeração
em plena pandemia do Covid 19, ou pela vultuosidade, ou por ocorrer às margens
de uma rodovia federal e de uma delegacia, mas porque nela os próprios milicianos
se valem da sua supremacia armada para interferir na organização das interações
que ali se desenvolvem. A festa é o ambiente para ostentar e exercer o domínio
miliciano. Recados são enviados às pessoas de acordo com os desdobramentos
que estão em andamento dentro do bairro, a partir das aproximações entre os
moradores e os milicianos. Qualquer ameaça à ordem miliciana, configurada pela
comunhão com os donos do poder armado, é tratada imediatamente pelos seus
representantes, num cenário de discussões, tensões e soluções imediatas, nas quais
cabe discussões em público, ameaças, medições de força e construções de verdades
e mentiras, tudo como se fossem correntes sociais submersas com suas direções
o objetivos próprios, detectadas pelos diretamente envolvidos e passível de serem
lidas e interpretadas pelos imediatamente afetados e pelas leituras de terceiros, a
partir das redes de comunicação acessadas. O Réveillon da Milícia vai congregar
milicianos assassinos, em guerra entre si, traficantes assassinos em guerra com a
milícia e os parentes de assassinos e assassinados, na confraternização do ódio, medo,
perdão, revolta, vingança e todas as demais emoções possíveis de serem cultivadas
nesse universo. Essas energias se cruzam entre funks, tiros de fuzil para o alto no
romper do ano e bebidas gratuitamente distribuídas. Os que dançam e celebram
são os mesmos que convivem com os corpos esquartejados e desaparecidos de seus
filhos e filhas, irmãos e irmãs, primos e primas, esposos e esposas, amigos e amigas.
A banalização do mal em passos de dança, copos e letras de músicas compelindo
a uma sociabilidade garantida pelo Estado, sua estrutura de segurança pública e
os donos de empresas e comércio que lucram com tudo isso. Desnecessário dizer
que a 500 metros dali a maior multinacional de cervejas do país, computa no seu
lucro as bebidas consumidas no Ano Novo miliciano. O mais moderno do nosso
capitalismo é impulsionado por grupos criminosos, sem qualquer vínculo ou
compromisso entre um e outro. Crime e mercado se congraçam na modernidade
brasileira protegida pelo Estado.
Após esse Réveillon ocorreram festas semelhantes, no mesmo local, às margens da
BR 465, na Praça do Km 32, ao lado da Delegacia de Polícia, nos finais de semana. Em
uma delas, foi apresentado um funk feito em homenagem a um dos milicianos mortos
na operação policial de 15 de outubro do ano anterior. Ao final da apresentação,
membros da milícia realizaram disparos com rajadas de metralhadora e fuzis para
o alto. Naquele momento, a ruptura entre Tandera e Ecko era recente e envolvia
a comunidade num clima de ansiedade e tensão, decorrentes das ameaças de
retaliação, por parte de Ecko. Sobressaltados os moradores acordaram em plena
madrugada acreditando que a vingança do líder miliciano traído havia iniciado. Até
as informações desmentirem a versão da guerra, lá se foi uma noite de sono perdida.
A milícia em ação
Na cronologia das famílias atingidas, há casos que se tornaram marcos do terror.
Um dos primeiros filhos a ser atingido pela milícia trabalhava no TCP. Chegaram
em sua casa se passando por policiais. Esse detalhe é importante, pois há uma
relação intrínseca entre milícia e polícia. A mãe abriu a porta. Eles pegaram o seu
filho e o arrastaram, o jovem gritava dizendo que iriam matá-lo. Tentou fugir,
mas eles o mataram. Levaram o corpo, disseram que iriam devolver, mas nunca o
devolveram. Isso há 8 anos. A polícia foi a essa residência três vezes. Mas a família
nunca fez registro do ocorrido. Mataram o rapaz em cima da laje de um vizinho,
depois jogaram o corpo na rua, para que todos presenciassem. Depois sumiram com
ele. Esse vizinho teve que sair da casa, virou alcoólatra, teve problemas mentais,
terminou falecendo. Na casa dele havia crianças, idosa acamada, todos traumatizados.
Mas nunca houve qualquer acompanhamento psicológico. Só a igreja. Os detalhes
de crueldade desse caso abalaram o bairro como um todo, marcando o fim de uma
fase que não conhecia o terror sanguinário.
No dia 12 de agosto de 2022, o desaparecimento de quatro jovens da comunidade
do Valverde e o motorista de aplicativo que estava com eles, na Estrada de Madureira,
em Nova Iguaçu, ganhou a mídia (PORTO, 2022). As informações da investigação
levaram à atuação da milícia controlada por Tandera como responsável pelo ocorrido.
A projeção político-midiática do caso levou a operações policiais que resultaram na
morte de milicianos do referido grupo, apreensão de fuzis, prejuízos nos ganhos e
risco para o próprio Tandera, que, por fim, desapareceu, deixando toda a sua milícia
para ser comandada por outros donos, entre eles, seu grande rival, Zinho. Com
isso, os que haviam sido perseguidos, sofrendo mortes e desaparecimentos forçados
pelo grupo do Tandera, retornaram ao Km 32. Passou-se a viver a hora da vingança
contra os que haviam apoiado Tandera. Uma escalada sem fim da violência varre,
mais uma vez, aquele bairro. Midiaticamente, a busca pelos corpos dos quatro
jovens dentro do Rio Capenga ganhou imagens televisivas (MOURA, 2022), com
direito a balsas, helicópteros e encontro de corpos. Poderia ser o início de mudanças
para todo esse sofrimento, mas foi apenas ganho político-midiático-eleitoral. O Km
32 segue expondo ao mundo um dos maiores cemitérios clandestinos da história.
A ação humana dos moradores do Km 32 faz parte do consórcio de uma
governamentalidade miliciana que tem suas raízes em instituições mais sólidas e
poderosas. A gestão do poder, diretamente vinculada à geração de uma verdade
inconteste, baseia- se na preservação de um ecossistema no qual a razão de Estado
e o lucro do capital elegem a força de um grupo armado como melhor estratégia
de preservação dos seus ganhos políticos e econômicos. A mediação racionalizada
a partir de disciplinas e saberes esgarçou de tal maneira a realidade social que o
retorno à imposição pela violência física eligiu um looping de retorno à soberania
tirânica e à convocação de uma liturgia que ritualiza a verdade, que tanto necessita
da ciência, com destaque para a base tecnológica bélica, como da religião, em especial
o mundo evangélico e sua autorregulação individualizada. O que fora banido pela
razão de Estado como misticismo desnecessário, entra pelas portas dos fundos
como justificativa decisiva na hegemonia dos grupos dominantes que organizam
seu escritório sobre os bicos dos fuzis e faz da miséria humana atendida por igrejas
a base operacional do seu poder. Outro exemplo é a existência, próximo ao bairro,
de uma multinacional, que gera bilhões, com uma planta produtiva fantasma, ou
seja, o humano só participa na produção apertando um botão que liga e outro que
desliga o sistema. Ali o desaparecimento dos corpos tornou-se o próprio motivo de
existir da empresa. Os corpos só transitam ali através dos terceirizados que recolhem
os cacos que eventualmente são gerados pela movimentação das esteiras. Mas se
no interior da multinacional os corpos foram banidos pela maximização do lucro
e recurso à tecnologia, a oito quilômetros da sede, esse banimento pode ser feito
de outra forma. Quando o CV descobriu um setor de tratamento de águas dessa
multinacional, montado diretamente nas margens do Rio Guandu, aos fundos do
bairro que então dominavam, não pensou duas vezes, e passou a pedir 5 mil reais
por semana para permitir o acesso dos funcionários ao local. Mas uma multinacional
não se submete aos interesses de jovens pobres e negros armados, prefere grupos
armados mais competentes, estáveis, de dentro do Estado. Em 21 de setembro
de 2015 a milícia invadiu essa localidade. Tinha lista com nomes e endereços de
pessoas para matar. O que revela a necessária investigação, que só a estrutura
policial detém, sobre cada um a ser eliminado. Os poupados foram convencidos, sem
grandes delongas, que seria melhor, doravante, trabalhar para a milícia, a não ser
que quisessem ir para o caminhão que, ao final da chacina, acumulava mais de 20
corpos. A racionalidade da governamentalidade miliciana se reduz à contagem de
corpos e às formas de torná-los desaparecidos. A razão de Estado e de empresários
refundam o contrato social pela inquestionável razão de execução.
Referências Bibliográficas
BARRETO FILHO, Herculano. Polícia mata 5 suspeitos em combate à ação de milícia na
eleição do RJ. UOL. São Paulo. 15/10/2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/
cotidiano/ultimas-noticias/2020/10/15/policia-mata-5-suspeitos-em-combate-a-acao-das-
milicias-nas-eleicoes-do-rio.htm. Acesso em: 1/12/2022.
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
ROUVENAT, Fernanda; COELHO, Henrique e SCHMIDT, Larissa. Polícia mata 12
suspeitos em operação policial contra a milícia em Itaguaí. G1. Rio de Janeiro. 16/10/2020.
Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/10/16/tiroteio-com-
milicianos-deixa-12-mortos-na-regiao-de-itaguai-diz-policia.ghtml. Acesso em: 1/12/2022.
PORTO, Marcos. Familiares pedem informações sobre quatro jovens e um motorista de
aplicativo sequestrados na Baixada. O Dia. Rio de Janeiro. 13/8/2022. Disponível em: https://
odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2022/08/6464121-familiares-pedem-informacoes-sobre-quatro-
jovens-e-um-motorista-de-aplicativo-sequestrados-na-baixada.html. Acesso em: 1/12/2022.
MOURA, Felipe. Mãe reconhece corpo de jovem Desaparecido em Nova Iguaçu. Bande Rio.
Rio de Janeiro. 23/8/2022. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/rio-de-janeiro/
noticias/mae-reconhece-corpo-de-jovem-que-estava-desaparecido-em-nova-iguacu-16530088.
Acesso em: 1/12/2022.
OS DESAPARECIMENTOS FORÇADOS
NOS JORNAIS DA BAIXADA
FLUMINENSE
Lucas Conti de Souza Rosa
O Dia 17
Seropédica Online 4
Notícias de Queimados 5
Pretos e Pardos 26
Brancos 13
Não identificado 3
Milícia e Tráfico 17
Motivos narrados para os desaparecimentos Número de casos encontrados
Feminicídio 11
Outros 10
O racismo, mais uma vez, permite a conformação das almas, mesmo as mais
nobres da sociedade, à extrema violência a que populações inteiras são submetidas,
que se naturalize a morte de crianças por “balas perdidas”, que se conviva com
áreas inteiras sem saneamento básico, sem sistema educacional ou de saúde, que
se exterminem milhares de jovens negros por ano (...). (ALMEIDA, 2019, p.75).
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1997.
CARNEIRO Sueli. A Construção do Outro Como Não-Ser Como Fundamento do Ser.
Feusp, 2005 (Tese de Doutorado).
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
MBEMBE, Achille, Necropolítica, biopoder e soberania, estado de exceção e política de
morte. In Artes e Ensaios, Revista do ppgav/eba/ufrj, nº 32 Dezembro 2016.
PESQUISA EXPLORATÓRIA SOBRE
DESAPARECIMENTOS NA BAIXADA
FLUMINENSE A PARTIR DO
FACEBOOK
Augusto Torres Perillo
Nalayne Mendonça Pinto
O Facebook é a rede social mais utilizada no Brasil (HOOTSUITE, 2021). Com mais
de 130 milhões de usuários, há um fluxo constante e gigantesco das mais variadas
informações. Além das postagens que usuários podem fazer no site, também
há outros mecanismos de interação como comunidades, páginas, marketplace,
facebook watch, entre outras. Neste sentido, durante a pesquisa se optou pelo
mapeamento exploratório sobre desaparecimento forçado e a análise de dados
gerados pelo Facebook, visto que, nessa rede é possível identificar não só as notícias
de desaparecimento, mas, também, alguns discursos que emergem relacionados a
públicos específicos que desaparecem.
No primeiro momento, as redes sociais democratizaram a possibilidade de
externalização de opiniões sobre assuntos diversos. É verdade que se ampliou
o acesso às informações e modos de enunciar as notícias, porém, não podemos
deslocar tais opiniões de uma intenção discursiva dos usuários; ou, como afirma
Foucault (1996), em “A ordem do discurso”: “em toda sociedade a produção de
discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes
e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 8). Nesse sentido, observar os discursos e
suas formas de enunciação propicia uma compreensão das camadas de sujeitos,
grupos, interesses, valores e sensibilidades que estão produzindo a disputa moral
sobre significados e significantes do tema em questão.
Portanto, embora o foco da pesquisa não seja uma análise de discurso sobre as
notícias de desaparecimento e os comentários postados sobre os mesmos, interessa-
nos evidenciar as formas como são noticiados os desaparecimentos e as inúmeras
reações que se seguem a partir das notícias; os comentários das mais diversas
naturezas e valorações, que produzem significados, juízos de valor, suposições e
acusações sobre o fato.
A seguir, com o intuito de mapear notícias de desaparecidos no Facebook, o
presente trabalho primeiramente mapeia os casos de desaparecimento na Baixada
Fluminense e, em segundo momento, destaca certos comentários para ilustrar o
ambiente no qual as notícias de pessoas desaparecidas estão imersas. O recorte
utilizado foi entre o período de 2016 a 2021 e a metodologia de busca das páginas
e grupos foi encontrar em cada município aquelas/aqueles com mais curtidas e
comentários.
O arcabouço metodológico construído para o mapeamento de desaparecidos
nos municípios da Baixada Fluminense em mídia social foi constituído através do
site Facebook a partir de uma netnografia. A pesquisadora Cláudia Tafarello (2013)
aponta que, nas Ciências Sociais, a pesquisa de campo in loco se apresenta na tríade
antropologia-etnografia-observação participante, contudo, quando o campo é a
Internet, se apresenta como ferramenta analítica a netnografia que possui lacunas
em relação a tríade descrita. Essa lacuna é a produção de uma pesquisa em que
a observação participante se debilita na ausência do contato humano. Para ela,
perde-se, ao analisarmos o mundo virtual, os elementos como o toque, o respiro,
a intencionalidade das palavras, etc.
Assim sendo, a Internet representa na contemporaneidade uma ferramenta
analítica própria no campo das Ciências Sociais com características específicas do
mundo virtual, e com elementos importantes sobre os processos de sociabilidade
e produção de narrativas que devem ser investigadas. Kozinets (1998) aponta para
o fato das relações e conteúdo produzido no mundo virtual possuírem vínculo e
impacto na sociabilidade do mundo real. Logo, a netnografia, embora tenha suas
peculiaridades e limitações, se mostra como uma ferramenta condizente com o
interesse do cientista social no campo da Internet.
Para iniciar a pesquisa no Facebook seguiu-se o caminho mais simples, através
da ferramenta de busca do próprio aplicativo; aplicou-se o nome de cada município
da Baixada Fluminense na busca. Entre eles destacaram-se: Belford Roxo, Nova
Iguaçu, São João de Meriti e Duque de Caxias em função do maior volume de
informações relacionadas a eles.
A partir do nome de cada município foi escolhida a página ou o grupo local
com mais seguidores ou participantes. Ou seja, buscou-se o grupo de moradores
e a página de notícias local que tivesse o maior número de seguidores/curtidas.
Nesse grupo ou página, foi então realizada a busca por postagens relacionadas a
pessoas desaparecidas. As páginas selecionadas foram: “Guapimirim ao vivo” (91
mil seguidores), “Seropédica online” (20 mil seguidores) “Caxias da Depressão”
(508 mil seguidores), “Plantão Mesquita Nilópolis” (111 mil seguidores), “Notícias
de Belford Roxo” (311 mil seguidores), “Itaguaí News” (13 mil seguidores), “Amigos
de Nilópolis” (106 mil seguidores) e “Jornal Meriti Baixada” (29 mil seguidores).
Na maior página do município de Paracambi, nada foi encontrado. Portanto,
buscou-se em um perfil de notícias da cidade e, ainda assim, nenhuma denúncia
sobre pessoas desaparecidas foi encontrada. Em Japeri, os dois grupos de Facebook
explorados também não possuem postagens de desaparecidos.
Tabela 5 - Ranking das Páginas e Grupos do Facebook que mais aparecem na pesquisa.
Já nos grupos de Facebook foram escolhidos: “Nova Iguaçu” (50 mil membros),
“JLD Queimados” (33 mil membros), “Itaguaí Notícias” (14 mil membros), “Japeri
News” (3 mil membros) e “Japeri, o povo tem direito de saber!” (17 mil membros).
Também houve investigação no grupo “Eu amo a minha Baixada Fluminense” (22
mil membros) e na página “Baixada Viva Notícias” (489 mil seguidores) por serem
dois ambientes com bastante repercussão na região.
Determinado o ambiente a ser explorado, utilizou-se da ferramenta de busca
através das categorias “desaparecido” e “desaparecida” com o recorte temporal
dos anos de 2016 até 2021. Foram descartadas postagens relacionadas a casos de
pessoas com problemas em seu desenvolvimento psicoemocional ou neurológico
(depressão, Alzheimer, autismo, etc.), de crianças, de pessoas que não possuíam
nome nem endereço e de pessoas que desapareceram em catástrofes naturais. Nas
postagens, também foram lidos os comentários, em busca por informações sobre o
aparecimento da pessoa. Caso ocorresse o reaparecimento, seria comum que algum
usuário comentasse sobre isso ou a própria página anunciasse o reaparecimento
e, desse modo, a publicação em questão seria descartada da análise. Uma outra
forma de confirmação da situação de desaparecido foi feita pela aferição do
perfil do denunciante, para a obtenção de mais alguma informação como fotos
recentes, publicações, ou qualquer outra interatividade virtual que demonstrasse
o aparecimento daquele indivíduo que outrora havia desaparecido. O intuito,
portanto, era mapear postagens de pessoas que estão desaparecidas na Baixada
Fluminense e que se enquadram como potenciais desaparecidos forçados dentro
de uma dinâmica criminal específica.
Com o mapeamento, cada pessoa encontrada foi classificada em uma planilha do
Google pelas variáveis “nome”, “idade”, “raça”, “gênero”, “município que a pessoa
desapareceu”, “bairro”, “data do desaparecimento”, “ela foi encontrada morta?”, “se
sim, em qual bairro?”, “a fonte da informação sobre o desaparecimento” e o “link
da postagem”. Na variável Idade, classificamos (A) quando a idade do desaparecido
não consta na postagem e é colocado, portanto, uma idade aparente. Na variável
gênero, classificamos “HC” para “Homem Cis”, “HT” para “Homem Trans”, “MC”
para “Mulher Cis” e “MT” para “Mulher Trans”. Na variável de Raça, “B” para
pessoas “Brancas”, “P” para pessoas “Pardas”, “PE” para pessoas “Pretas”, “A” para
pessoas “Amarelas” e “I” para pessoas “Indígenas”.
Abaixo, tabela com informações sobre o mapeamento de desaparecidos a partir
das informações do Facebook:
É importante destacar que a análise dos casos foi realizada a partir de postagens
com fotos e texto e, muitas das vezes, tais postagens não possuíam informações
básicas como gênero. Com isso, a tabela acima quando marcado como “não
identificado” significa que não foi possível, a partir das informações trazidas pelo
autor da publicação, identificar gênero, raça ou se houve homicídio.
Importa destacar três aspectos centrais e interseccionais do perfil majoritariamente
desaparecido: a idade média encontrada é muito jovem com média de 26 anos, 133
são homens e somando pretos e pardos temos 93 casos (contra de 61 - outras). Esse
dado confere com os perfis encontrados nas pesquisas que realizamos em jornais,
bem como com os dados apresentados pela pesquisa com dados do ISP e os relatos
de mães. Todos corroboram com os dados oficiais do Atlas da Violência e do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública que anualmente publicam os dados apontando que
vivemos no Brasil um verdadeiro genocídio da população jovem e negra, pois 77%
das vítimas de homicídios no Brasil são negras; a taxa de homicídios por 100 mil
habitante é de 29,2 para negros e pardos contra 11,2 para brancos; em uma década
perdemos 333.330 adolescentes e jovens assassinados entre 2009 e 2019 (FBSP, 2021).
Na tabela abaixo é destacada, em ordem, os municípios que mais possuem
publicações no Facebook sobre pessoas desaparecidas. Os municípios de Belford
Roxo e Nova Iguaçu se sobressaem nas postagens. Belford Roxo sendo um caso
particular em sua intensa dinâmica criminal como abordado no capítulo que
analisou os dados do Instituto de Segurança Pública.
Tabela 7 - Tabela com o ranking de municípios que mais apresentaram postagens sobre
pessoas desaparecidas na Baixada Fluminense.
Magé 1 0,6%
Seropédica 3 1,9%
Japeri 3 1,9%
Queimados 4 2,6%
Guapimirim 5 3,2%
Itaguaí 6 3,9%
Nilópolis 11 7,1%
Mesquita 12 7,8%
.
Fonte: FACEBOOK, Página Baixada Viva Notícias. Acesso em 03/01/2023.
Referências Bibliográficas
CECCHETTO, Fátima; MUNIZ, Jacqueline e MONTEIRO, Rodrigo.“BASTA TÁ DO
LADO” – a construção social do envolvido com o crime. Caderno CRH, Salvador, v. 31,
n. 82, p. 99-116, Jan./Abr. 2018.
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
FBSP. A violência contra negros e negras no Brasil. Infográfico de 2021 com base no Atlas
da Violência 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/a-
violencia-contra-pessoas-negras-no-brasil-2021/.
HOOTSUIT. Digital 2021: July Global Statshot Reporto. Disponível em: https://datareportal.
com/. Acesso em 08/03/2022.
KOZINETS, R. On Netnography: Initial Reflections on Consumer Research Investigations
of Cyberculture. Advances in Consumer Research. Volume 25, 1998.
SCHETINNI, A. A Violência Da Ausência: Notas Sobre o Desaparecimento Forçado
no Brasil. Tese de Doutorado apresentada no Programa de Pós-graduação em Direito da
PUC-Rio, 2016.
TAFARELO, C. Análise Crítica Entre Etnografia e Netnografia: Métodos de Pesquisa
Empírica. 9°Interprogramas de Mestrado da Faculdade de Direito, 2013.
RECOMENDAÇÕES PARA
CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA
NACIONAL DE TIPIFICAÇÃO,
IDENTIFICAÇÃO, INVESTIGAÇÃO DE
DESAPARECIMENTOS FORÇADOS E
ACOLHIMENTO DE FAMILIARES
1.1. Aprovar o Projeto de Lei 5215/2020 que tramita apensado ao PL 6240/2013 e
que saiu do Senado Federal como PLS 245/2011 que trata sobre a tipificação de
Desaparecimento Forçado no Código Penal Brasileiro.
1.4. Criar plano federal para a redução da letalidade das forças de segurança de
competência da União incluindo orientações às unidades da federação.
1.6. Aprovar a PEC 128/2015, que atribui à Polícia Federal a apuração de crimes
praticados por milícias e grupos de extermínio, e à Justiça Federal a competência
para o julgamento desses crimes.
1.7. Aprovar a PEC 117/2015, que separa a perícia oficial de natureza criminal das
polícias civis e federal e institui a perícia criminal como órgão de segurança pública.
1.8. Aprovar a PEC 126/2015 que cria o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade
Racial, Superação do Racismo e Reparação de Danos, incluindo a perspectiva do
atendimento sócio psicoassistencial e jurídico a mães e familiares de vítimas de
violência de Estado.
21. Apresentado na 51ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU realizada entre 12 de
setembro e 7 de outubro de 2022 pelo Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes
para Avançar em Direção à Justiça Racial e à Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei e o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
1.9. Criar comissão de trabalho para a elaboração do plano federal para o
enfrentamento da atuação financeira, organizativa e operacional das milícias e
grupos armados ilegais, com orientações aos estados da federação.
Considerações Finais
Cabe destacar que esta pesquisa não se esgota em si, enquanto pesquisa exploratória,
nosso propósito inicial foi o de reunir registros, informações, dados e esboçar
conhecimento preliminar sobre o desaparecimento forçado de pessoas a partir
da realidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ainda há muito a ser
compreendido sobre o fenômeno do desaparecimento forçado em suas múltiplas
dimensões, processos e atores envolvidos. Estamos tratando de mães, familiares,
vizinhos, amigos, além de grupos armados criminosos: facções armadas que realizam
o varejo do tráfico de drogas, grupos milicianos que dominam economia, política,
governos e territórios na Baixada Fluminense, policiais e agentes do estado (políticos
ou funcionários), do Executivo, Legislativo e Judiciário que estão envolvidos com o
crime organizado. Uma complexa rede de agenciamentos, significados, interesses
e modos de depreender o desaparecimento de alguém.
O mapeamento da literatura especializada no tema, os estudos teóricos e
pesquisas empíricas sobre desaparecimentos forçados trouxeram a possibilidade
de revelar as facetas que compõem a arena pública e privada desse drama social
presente em nossa sociedade. O trabalho do luto sem um corpo ou até mesmo sem
o conhecimento do que ocorreu, no caso de mães e familiares de desaparecidos, se
produz improvisadamente a partir de um não-lugar, de um corpo sem o estatuto
de vivo ou morto, de uma sepultura impossibilitada e sistematicamente negada.
A dúvida primordial, instaurada pela perda, sobre quem é esse “eu” que passa a
existir sem “você” (BUTLER, 2004) acaba por desencadear em distintas formas de
sofrimento, adoecimentos e silêncios, mas não somente somente isso; nesse processo
complexo de elaboração de práticas e formas específicas de subjetivação, pulsam
também as resistências: o protagonismo dos familiares de vítimas de violência,
em especial as mães, na busca por justiça vem sendo constituído como o principal
vetor na formulação de políticas e denúncias públicas contra a violência estatal. Os
rituais colocados em cena para dar conta do desaparecimento, em vez de marcar e
facilitar a passagem do mundo dos “vivos” ao mundo dos “mortos”, transformam
a ausência do corpo em um capital de força cultural e política que se expressa sob
o registro de diferentes formas de denúncia de mães e familiares de desaparecidos.
As pesquisas empíricas realizadas revelam a pouca relevância dada aos casos de
desaparecimentos por parte dos agentes de segurança, além da falta de sistematização
de informações sobre o fenômeno e de precisão acerca das diretrizes e definições para
o enfrentamento dos desaparecimentos. As práticas, modos de registrar e investigar,
abrem um leque de interpretações que se orientam de forma a classificar, racializar,
estigmatizar, desqualificar corpos, famílias e territórios. E são elas, as famílias
que, no fim, acabam por serem as principais interessadas na resolução dos casos e,
por conta própria, se tornam responsáveis pela investigação e busca de seus entes
desaparecidos. É por meio das vozes de mães e familiares que o desaparecimento
sai do lugar do mero rumor.
A literatura aponta o fenômeno do desaparecimento e seus entrecruzamentos
sócio-histórico-políticos como um resquício de períodos ditatoriais na América
Latina e no Brasil. Esses períodos destacaram-se como de grande relevância para
altos índices de desaparecidos civis, representados na figura do desaparecido político,
desaparecimentos cuja tônica se dá pela violência, morte e ocultação de corpos
de lideranças, ativistas, sindicalistas e políticos. No entanto, destacamos que o
olhar sobre o fenômeno não deve se restringir a esses contextos históricos, pois as
gramáticas que constituem o que hoje denominamos desaparecimento forçado, tais
como, sequestrar, aprisionar, torturar, matar, destruir e ocultar, somadas entre si,
com o investimento e consentimento direto ou indireto do Estado em articulação
com outros atores, transcendem ao período ditatorial. Essa técnica está e sempre
esteve atravessando sem aviso o cotidiano das pessoas pobres, pretas e periféricas,
em sua maioria, inundando, como barragens rompidas, nossas cidades ajoelhadas,
deixando marcas de uma lama que não sai.
A não definição dos desaparecimentos forçados enquanto crime tipificado pela
legislação brasileira conforma o fazer da estrutura de segurança pública de tal
maneira que os dados coletados pelos Registros de Ocorrência seguem acobertando
práticas, interesses, estruturas de poder e projeções políticas diretamente vinculadas
à existência e manutenção dos desaparecimentos forçados. As poucas pesquisas
e análises que o ISP fez relacionados aos desaparecidos, buscando desvinculá-los
de qualquer aproximação com os desaparecimentos forçados, resultaram, pelas
limitações metodológicas, insignificância quantitativa dos dados e ausência de
qualificação dos mesmos na manutenção da dúvida e no não esclarecimento sobre
o fenômeno.
A partir da aproximação dos dados de desaparecidos obtidos pelo ISP com a
atuação dos grupos armados, compreendendo-os enquanto estruturas político-
criminais, que se manifestam ao longo do tempo e no espaço, numa perspectiva
de longa duração e focados na Baixada Fluminense, operou-se a transmutação dos
desaparecimentos forçados de - não dado - em - dado essencial e explicativo. Ou
seja, assume-se, de forma central a hipótese de que os números dos desaparecidos
possuem uma correlação direta com o número dos desaparecimentos forçados,
ocultados em seu interior e responsáveis, em última instância, pelos quantitativos
e sua distribuição pelos municípios.
Assumiu-se aqui, também, a hipótese de que os dados sobre desaparecidos,
intensamente impulsionados pelos desaparecimentos forçados, guardam uma
estreita relação com outros dois indicadores coletados pelo ISP, ou seja, com os
números de homicídios dolosos e homicídios por intervenção de agentes do Estado.
O cruzamento dos mapas gerados por cada um desses índices potencializa, ainda
mais, o refino da compreensão dos processos que se dão no tempo-espaço. As
características e peculiaridades sobressaem permitindo leituras mais transversais
e capazes de captar contradições e complexidades. A opção metodológica assume,
aqui, seu intento mais radical, ou seja, aponta na imbricação de processos violentos,
a partir da atuação dos grupos armados, em consonância com as estruturas sócio-
econômico-político dominantes, que desembocam, inevitavelmente, no aumento do
número de desaparecidos, recheado e inflado, qual cavalos de Tróia, pelo número
de desaparecimentos forçados. A radicalização permite uma contraposição frontal
ao atual estado de coisa, no qual convivem sofrimento desesperador de número
crescente de pessoas, manutenção das estratégias violentas dos grupos dominantes
e a atuação da estrutura de segurança pública como articulador e gerenciador de
toda essa engrenagem, protegendo-se a partir da geração de dados que o acobertam
e dissimulam o papel central do Estado na manutenção dessa situação.
Corroboram nossas análises os dados que foram apurados através do banco
de dados do Disque Denúncia. As denúncias/relatos analisadas permitem um
levantamento tanto quantitativo das inúmeras formas de denúncias que são recebidas,
assim como qualitativa sobre as múltiplas dimensões da comunicação. É muito
significativo a forma como os denunciantes buscam descrever de forma detalhada
os métodos e modos de agir dos desaparecimentos. Procedimentos que envolvem
inúmeras técnicas, ferramentas e estratégias para eliminação de corpos e ocultação
de cadáveres; os matagais, as cisternas, os carros e pneus queimados, os poços,
os rios, as áreas abandonadas feitas de cemitérios clandestinos; tudo isso descrito
como rituais de morte e celebração de poder de grupos criminosos. A dimensão
territorial é importante nesse aspecto, pois essas ações de terror abrangem e incluem
as possibilidades que os territórios físicos permitem, como as bacias hidrográficas,
as áreas de mata, terrenos abandonados, entre outros. A leitura atenta e cuidadosa
desse banco de dados, que não se esgota nesta pesquisa, permitiu muito mais do
que denunciar as formas de desaparecimento forçado, permitiu compreender os
dispositivos de fazer morrer, as táticas, estratégias e tecnologias de matar, eliminar,
ocultar e fazer desaparecer. Fica evidente que o desaparecimento forçado é uma
realidade cotidiana vivida pelas populações mais vulnerabilizadas dos territórios
pesquisados neste estudo, percebida na convivência com cemitérios clandestinos
dos mais complexos aos mais improvisados, corpos carbonizados ou jogados do
alto do morro, nos rios ou à flor da terra, contraditoriamente expostos, à mercê de
serem devorados por urubus e de desaparecerem para sempre. Novamente erra,
abandona, faz e deixa desaparecer o Estado brasileiro ao não tipificar o crime de
desaparecimento forçado, ao não produzir políticas públicas de prevenção e combate,
de assistência e acolhimento às famílias e aos territórios afetados.
Em relação às pesquisas realizadas nas páginas do Facebook e Jornais da Baixada
Fluminense observou-se que os casos relatados/noticiados caracterizam um perfil
semelhante dos desaparecidos na Baixada Fluminense sendo majoritariamente jovens
e pretos/pardos e mulheres jovens, muitas delas vítimas de feminicídio. No caso
de postagens sobre mulheres desaparecidas nas redes sociais, observamos muitos
comentários machistas, repletos de valorização depreciativa sobre as formas de vida
que supostamente essa mulher possa ter e acusações infundadas. Os comentários
que se seguem as postagens, nos casos de jovens negros e periféricos são eivados de
acusações, suposições, associações ao crime e criminalização. Constituem-se como
construção social de trajetórias desviantes, tais como: “envolvidos com”, “bandidos”,
“ganso”, “marginais”, “putas” “mulher de bandido”, “vagabunda”, entre outros. As
famílias em busca de notícias que possam ajudar na localização não encontram
acolhimento, indicações e orientações de procedimentos, mas ao contrário, são
bombardeadas de comentários depreciativos. O Facebook se mostrou um terreno
pouco acolhedor para familiares e amigos que expõe casos de desaparecimento;
todavia representa uma tentativa de localização mais rápida dos desaparecidos;
são situações de desespero dos familiares que sabem que o tempo, a rapidez, é
determinante para localização dos desaparecidos.
Ressalta-se a importância de uma discussão qualificada no campo das políticas
públicas nos dois tipos mais encontrados nas mídias: o feminicídio e a juventude
vulnerável. Importa frisar o significativo número de jovens pretos e pardos que são
vítimas em casos de desaparecimento forçado, vivemos uma tragédia urbana com
o genocídio da juventude negra - vulnerável à convivência com práticas criminais,
suscetível ao racismo e a violência policial. Nos casos de feminicídio, importa
qualificar o debate público para ampliação das denúncias e fortalecer as políticas
de segurança pública e redes de apoio que garantam a proteção das mulheres antes
da violência de fato.
Em termos jurídicos cabe destacar que o Brasil é signatário e ratificou a Convenção
Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos
Forçados de 2006, a mesma foi firmada pela República Federativa do Brasil em 6 de
fevereiro de 2007. Essa Convenção tramitou entre os anos de 2009 e 2010 na Câmara
dos Deputados sendo aprovada como Decreto Legislativo 661/2010. Alguns anos
mais tarde a Presidenta Dilma Rousseff considerando que o Congresso Nacional
aprovou por meio do Decreto Legislativo nº 661 de 2010 a Convenção, e destacando
que o Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação à mesma junto
ao Secretário-Geral das Nações Unidas em 29 de novembro de 2010, resolveu por
decretar a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra
o Desaparecimento Forçado, concluída em 20 de dezembro de 2006 e firmada
pela República Federativa do Brasil em 6 de fevereiro de 2007 como Decreto
Presidencial Nº 8.767 de 11 de maio de 2016. Contudo, mesmo ratificando a citada
Convenção da ONU ainda carecemos na legislação pátria da tipificação do crime
de desaparecimento forçado no Código Penal, tal como orienta a Convenção. O
PL 5215/2020, que atualmente tramita no Congresso Nacional apensado ao PL
6240/2013 que veio do Senado Federal como PLS 245/2011, já foi discutido em
comissões especiais e tramitou em ambas as casas e representa hoje o projeto com
reais condições de aprovar a tipificação de crime de desaparecimento forçado no
Brasil. Cabe nesse momento aos legisladores levar essa discussão ao Plenário da
Câmara dos Deputados e, assim, constituir um amparo legal sólido para especificação
desse fenômeno criminal.
Para finalizar destacamos como a Arteterapia tornou-se um importante
instrumento para aproximação com as mães de pessoas desaparecidas e na construção
de uma metodologia de acolhimento emocional. Esse projeto de extensão e pesquisa,
ora apresentado neste livro sobre desaparecimentos forçados, fez um movimento
tentando superar o isolamento e banalização do tema. Foi então pensada uma
atividade que permitisse a essas mães e familiares elaborar, dentro delas, suas emoções
e a forma de acessá-las. Algo que possibilitasse o autocuidado, que passasse por
atividades potencializadoras das dimensões que viviam. Foi assim que a Arteterapia se
tornou parte significativa do trabalho. Sob a orientação e coordenação dos trabalhos
da psicóloga e arte-terapeuta Nádia Figueiredo, foram realizados quatro encontros
aos sábados, que contaram com a participação de aproximadamente 12 mulheres. As
atividades buscaram materializar símbolos que representam níveis mais profundos
do inconsciente da psique; desse modo, utilizou-se de modalidades expressivas tais
como a colagem, o desenho, a pintura, a modelagem, etc. Abandona-se, portanto, as
preocupações com a estética ou com a técnica, próprias do fazer artístico, voltando-
se para a expressão e comunicação criativa de sensações, emoções e impressões
armazenadas no psiquismo. A Arteterapia é, pois, a possibilidade de tornar consciente
o que dormia no inconsciente. A produção simbólica desperta essa comunicação
e inicia um processo de compreensão e resolução de estados afetivos conflitivos,
favorecendo a estruturação da personalidade. Há como um desdobramento das
emoções e percepções, que leva a uma melhor compreensão do próprio processo.
Imbuídos desse fazer terapêutico, foram realizados os quatro encontros visando
proporcionar estratégias de fortalecimento individual e de grupo, entre as quais se
destacam o fortalecer laços afetivos, o delimitar espaços individuais, o fortalecer a
percepção da força do grupo, o aumentar a autoestima e o autocuidado, a criação
de um espaço de troca e apoio e a expressão livre das emoções.
Parafraseando uma declaração de Jan Jarab (chefe da ONU Direitos Humanos
na América do Sul), o desaparecimento forçado não pode ser tratado como uma
questão do passado, muito pelo contrário, é uma violação dos direitos humanos
continuada ao longo de décadas e que persiste nos dias atuais sob variadas formas
e motivações. Enquanto a localização das vítimas não é esclarecida, sob os pactos
de silêncio entre criminosos e com a anuência do próprio Estado, continuamos
sem respostas, sem julgamentos justos e em muitos casos protegendo com a lei ou
com a ausência dela, perpetradores dessa violência aquém das vítimas e de seus
familiares cotidianamente violados pela impunidade.
Lista de Siglas
Lista de Figuras:
Figura 1 - Taxa de pessoas desaparecidas por 100 mil habitantes na Baixada Fluminense e
no município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Figura 2 - Taxa de homicídio doloso por 100 mil habitantes na Baixada Fluminense e no
município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Figura 3 - Taxa de homicídio por intervenção de agente do Estado por 100 mil habitantes
na Baixada Fluminense e no município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Figura 4 - Nuvem de palavras feita a partir do Disque Denúncia.
Figura 5 - Foto de um dos meninos desaparecidos em Belford Roxo.
Figura 6 - Comentário de usuário do Facebook sobre uma menina desaparecida.
Figura 7 - Comentário de usuário do Facebook sobre uma mulher desaparecida.
Figura 8 - Comentário de usuário do Facebook sobre um menino desaparecido.
Figura 9 - Postagem de Facebook sobre um jovem desaparecido.
Lista de Tabelas:
Tabela 1 – Saldo quantitativo dos dados filtrados na Baixada Fluminense e no município
do Rio de Janeiro por tipo de assunto.
Tabela 2 - Jornais Pesquisados.
Tabela 3- Identificação da cor dos desaparecidos.
Tabela 4- Motivações relatadas nos casos encontrados.
Tabela 5 - Ranking das Páginas e Grupos do Facebook que mais aparecem na pesquisa.
Tabela 6 - Tabela com informações sobre postagens em páginas e grupos do Facebook
sobre pessoas desaparecidas.
Tabela 7 - Tabela com o ranking de municípios que mais apresentaram postagens sobre
pessoas desaparecidas na Baixada Fluminense.
Lista de Gráficos:
Gráfico 1 - Pessoas Desaparecidas nos Municípios da Baixada Fluminense em Números
absolutos (2016-2020).
Gráfico 2 - Projeção Populacional dos Municípios da Baixada Fluminense (2021).
Gráfico 3 - Homicídio Doloso nos municípios da Baixada Fluminense em números absolutos
(2016-2020).
Gráfico 4 - Homicídio por intervenção de agente do Estado nos municípios da Baixada
Fluminense em números absolutos (2016-2020).
Gráfico 5 – Filtragem dos dados brutos do Disque Denúncia – Rio de Janeiro para Baixada
Fluminense e Rio de Janeiro (capital) entre 2016 e 2020.
Gráfico 6 - Saldo quantitativo da filtragem dos dados do Disque Denúncia – Rio de Janeiro,
por tipo de assunto: Baixada Fluminense e Município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Gráfico 7 – Taxa de Denúncia de desaparecimento forçado por 100 mil habitantes na Baixada
Fluminense e no município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Lista de Fotos:
Foto 1- Mães reunidas ao final da Sessão de Arteterapia.
Foto 2 - Mãe apresentando seu projeto artístico final.
Foto 3: Mãe apresentando seu projeto artístico final.
Foto 4: Mães no processo de confecção da Arteterapia.
Foto 5: Mães no processo de confecção da Arteterapia.
Foto 6: Mães no processo de confecção da Arteterapia.
Foto 7: Em destaque painel com slogan da Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense.