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Desaparecimentoforcado

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

(EDOC BRASIL, BELO HORIZONTE/MG)


D441
Desaparecimento forçado: vidas interrompidas na Baixada Fluminense
/ Organizadores Adriano Moreira de Araujo... [et al.]. – Rio de Janeiro,
RJ: Autografia, 2023.
ISBN: 978-85-518-6175-2 [recurso eletrônico]
1. Sociologia. 2. Antropologia. I. Araujo, Adriano Moreira de. II.
Gomes, Jaqueline de Sousa. III. Alves, José Claudio Souza. IV. Pinto,
Nalayne Mendonça.
CDD 301

Desaparecimento forçado: vidas interrompidas na Baixada Fluminense


Araujo, Adriano Moreira de (org.)
Gomes, Jaqueline de Sousa. (org)
Alves, José Cláudio Souza (org.)
Pinto, Nalayne Mendonça (org.)

ISBN: 978-85-518-6175-2
1ª edição, setembro de 2023.

Conversão formato e-Book: Lucia Quaresma

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
Rio de Janeiro, RJ – CEP: 20090-050
www.autografia.com.br

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor
e da Editora Autografia.
Equipe
Coordenação da Pesquisa
Adriano Moreira de Araujo
José Cláudio Souza Alves
Nalayne Mendonça Pinto

Pesquisadores
Amanda Gabrielle Covelo de Araújo
Augusto Torres Perillo
Gabriel Souza Alves
Jaqueline de Sousa Gomes
Lorene Monteiro Maia
Lucas Conti de Souza Rosa
Lucas Ribeiro Nogarole

Psicóloga e Arteterapeuta
Nádia Maria P. Figueiredo

Filme
“Desova”
Quiprocó Filmes
Apoio de Pesquisa
Joseane Martins de Lima
Sônia Ferreira Martins
Sumário

Descrição da Equipe

Introdução

CORPOS INSEPULTÁVEIS: UMA BREVE REVISÃO SOBRE O


DESAPARECIMENTO FORÇADO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Amanda Gabrielle Covelo de Araújo

Jaqueline de Sousa Gomes

O DESAPARECIMENTO FORÇADO NOS TRATADOS INTERNACIONAIS E NA


CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (CIDH)

Jaqueline de Sousa Gomes

Lorene Maia

PROPOSIÇÕES EM TORNO DA TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE


DESAPARECIMENTOS FORÇADOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Nalayne Mendonça Pinto

Lucas Nogarole

ANÁLISE DOS DADOS DO INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA (ISP)


SOBRE DESAPARECIDOS E SUA RELAÇÃO COM OS DESAPARECIMENTOS
FORÇADOS

José Cláudio Souza Alves

Gabriel Souza Alves

ANÁLISE DOS DADOS QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS DO DISQUE


DENÚNCIA (2016-2020)
Amanda Gabrielle Covelo de Araújo

Augusto Torres Perillo

Gabriel Souza Alves

Jaqueline de Sousa Gomes

Nalayne Mendonça Pinto

A AUTOCONSTRUÇÃO DO SER MÃE E FAMILIAR DE VÍTIMA DE


DESAPARECIMENTO FORÇADO

José Cláudio Souza Alves

Nádia Maria P. Figueiredo

OS DESAPARECIMENTOS FORÇADOS NOS JORNAIS DA BAIXADA


FLUMINENSE

Lucas Conti de Souza Rosa

PESQUISA EXPLORATÓRIA SOBRE DESAPARECIMENTOS NA BAIXADA


FLUMINENSE A PARTIR DO FACEBOOK

Augusto Torres Perillo

Nalayne Mendonça Pinto

RECOMENDAÇÕES PARA CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA NACIONAL DE


TIPIFICAÇÃO, IDENTIFICAÇÃO, INVESTIGAÇÃO DE DESAPARECIMENTOS
FORÇADOS E ACOLHIMENTO DE FAMILIARES

Considerações Finais

Lista de Siglas

Lista de Figuras / Tabelas /Gráficos e Fotos


Descrição da Equipe

Adriano Moreira de Araujo: Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal


do Rio de Janeiro (1994). Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1998). Coordenador Executivo do Fórum Grita Baixada (FGB). Representa o FGB
no Grupo de Trabalho Interinstitucional em Defesa da Cidadania (7ª Câmara -
Controle Externo da Atividade Policial e Sistema Prisional do Ministério Público
Federal), no Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos
e no Comitê Estadual de Pessoas Desaparecidas do Rio de Janeiro.

Amanda Gabrielle Covelo de Araújo: Graduada em Ciências Sociais pela


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Mestranda em Ciências Sociais
pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS) pela Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Observatório Fluminense – UFRRJ,
Integrante e Pesquisadora da Assessoria Técnica e Educacional Meio Ambiente e
Barragens (ATEMAB). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES).

Augusto Torres Perillo: Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal


Fluminense (UFF). Mestrando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-graduação
em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ).

Gabriel Souza Alves: Bacharel e Licenciado em Geografia pela Universidade


Federal Fluminense, Mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense
(POSGEO-UFF), doutorando em Geografia Humana (PPGH) e integrante do
Laboratório de Geografia Urbana (LABUR) da Universidade de São Paulo (USP).
Jaqueline de Sousa Gomes: Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro. Mestre e doutoranda em Ciências Sociais pelo Programa
de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro. Pesquisadora do Observatório Fluminense – UFRRJ, Integrante
e Pesquisadora da Assessoria Técnica e Educacional Meio Ambiente e Barragens
(ATEMAB). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES).

José Cláudio Souza Alves: Graduado em Estudos Sociais pela Fundação de Brusque
(1983). Mestre em Sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(1991). Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1998). Atualmente é
Professor Titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Lorene Monteiro Maia: Bacharel em Turismo pelo Instituto Multidisciplinar (IM)


da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Mestre em Desenvolvimento
Territorial e Política Pública (UFRRJ-PPGDT). Doutoranda em Planejamento
Urbano e Regional (UFRJ-IPPUR). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Atuou como articuladora de Territórios no
Fórum Grita Baixada (FGB).

Lucas Conti de Souza Rosa: Graduando em Ciências Sociais pela Universidade


Federal Rural do Rio de Janeiro.

Lucas Ribeiro Nogarole: Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal


Rural do Rio de Janeiro. Pesquisador do Instituto Fogo Cruzado.

Nádia Maria P. Figueiredo: Graduação em Psicologia pela Universidade Santa


Úrsula. Pós-graduação em Psicologia Hospitalar pela Santa Casa de Misericórdia
do Rio de Janeiro – 28ª Enfermaria. Formação Clínica em Arteterapia pela Clínica
Pomar. Especialização em Psicologia Junguiana pela PUC- Rio.
Nalayne Mendonça Pinto: Mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2000). Doutora em Ciências Humanas (Sociologia) pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006). Professora Associada do Departamento
de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pesquisadora do Observatório
Fluminense – UFRRJ e Pesquisadora Associada ao Instituto de Estudos Comparados
em Administração Institucional de Conflitos – INEAC/INCT.

Introdução

A Baixada Fluminense, desde sua fase colonial, sempre conviveu com o assassinato e
ocultação de cadáver. Assim foi com os Jacutingas e Trairapongas, grupos indígenas
dizimados pelos senhores de engenho através do seu braço armado, ávidos pelas
terras, riquezas naturais e potencial produtivo, sempre protegidos pela Coroa
(SOUZA e RIBEIRO, 2021). Negros escravizados foram menos atingidos por esse
destino enquanto seus corpos eram peças caras, essenciais ao modo produtivo
escravista. Quilombolas do Campo Negro de Iguaçu sempre souberam, ao longo
dos 100 anos de sua existência, que a preservação de suas vidas estava diretamente
relacionada à sua capacidade de se esconder no labirinto formado por pântanos
entre os rios Iguaçu e Sarapuí (GOMES, 1992).
Quando esses negros foram despejados sem qualificação e propriedades no
mercado de trabalho da sociedade capitalista não escravocrata passaram a conhecer
o desaparecimento pelas mãos dos donos do poder, que viam nessa estratégia a
redução de possíveis danos econômicos, jurídicos e sociais. Assim, as formas de poder
que se expressaram ao longo do tempo na região cultivaram, nas diferentes fases
históricas, a percepção de que a máxima violência assassina e cruel combinada com
a incapacidade de se proteger dela ou de expô-la a prejuízos sempre foi o recurso
mais notável e infalível que poderiam lançar mão. No início dos anos 1960, várias
matérias de jornais denunciavam o uso do rio Guandu como destino dos corpos
de mendigos que eram retirados das ruas da capital. Com o advento dos grupos
de extermínio, criados pela ditadura empresarial-militar de 1964, paralelo aos
corpos expostos em público, com cartazes que lhes atribuíam crimes que haviam
cometido ou que iriam cometer, temos, também, os corpos ocultados, visando à
proteção dos assassinos.
O Fórum Grita Baixada (FGB) desde a sua origem se deparou com os
desaparecimentos forçados. Denúncias foram recebidas por diferentes meios ao
longo do tempo. O primeiro relato foi feito pelo então Frei Evaristo Spengler, que
era pároco da Igreja Católica de Imbariê. Ele mencionou a guerra iniciada no sábado,
26 de julho de 2014 (ANTUNES, 2014), na localidade em que atuava, e repassou
as informações que havia recebido dos membros das comunidades católicas dos
bairros de Imbariê e Santa Lúcia, no terceiro distrito da cidade de Duque de Caxias.
Naquele momento, uma facção do tráfico de drogas, o Comando Vermelho – CV,
havia iniciado um confronto com a facção Terceiro Comando Puro – TCP, tentando
retomar os pontos de venda de drogas. O que chamava a atenção era a diferença
entre o número de mortos identificado pelos fiéis e moradores, nas redes sociais,
superior a 20; o número de mortos divulgados pela mídia, que seriam 8 e os 7
homicídios registrados pela polícia. Houve a denúncia, por parte dos moradores,
quanto à existência de um cemitério clandestino. A polícia fez escavações no local
e encontrou 2 corpos. Os moradores insistiram que havia mais corpos enterrados e
que o cemitério cobria uma área maior. A polícia, no entanto, não continuou com
as escavações, encerrando as buscas.
O segundo relato estava associado à madrugada do dia 21 de setembro de 2015.
Nela, os milicianos que ocupavam uma parte do bairro Km 40, em Seropédica,
invadiram o outro lado do bairro, que desde 2011 tinha sido ocupado pelo CV. A
mídia noticiou um morto, testemunhas locais falavam em mais de 20 mortos.
No terceiro caso, na madrugada do sábado, 19 de fevereiro de 2017, um sábado
antes do sábado de carnaval, teria ocorrido a maior chacina de toda a história da
Baixada. Algo entre 35 e 60 pessoas foram assassinadas, conforme a denúncia feita
por e-mail e confirmada por telefone, pelos relatos de um ex-aluno da UFRRJ e
ex-morador da cidade de Japeri, onde a chacina ocorreu, e nas palavras de uma
importante liderança comunitária, morador do bairro São Jorge. Segundo eles,
enquanto ocorria um baile funk, um grupo de homens fortemente armados e
treinados para matar desceu por cordas lançadas de um helicóptero, o que não foi
percebido em decorrência do volume muito alto do som da música. Ao acessarem o
topo do morro, por trás do local da festa, onde há uma mata, o grupo foi descendo
e degolando os olheiros do tráfico que cuidavam da segurança do baile. Outro
grupo chegou de caminhão, jipes militares e ônibus. Foram direto para o baile,
fecharam as portas e pediram para que os traficantes se identificassem. Após a
identificação, eles foram fuzilados junto a um paredão, no mesmo local do baile.
Carros e caminhonetes passaram a transportar os corpos pelas ruas do bairro, sendo
vistos pela população. Tiveram como suposto destino, que comportaria o volume
de corpos, um dos grandes cemitérios submerso da Baixada: o rio Guandu. Nem os
policiais da delegacia de Engenheiro Pedreira nem jornalistas foram autorizados,
pelos assassinos, a entrar no bairro.
O quarto evento denunciado se deu no dia 24 de junho de 2019. Nesse dia, as redes
sociais de moradores da cidade de Nova Iguaçu e Seropédica passaram a receber
uma enxurrada de mensagens, fotos e vídeos sobre a invasão que a milícia estava
realizando. Tratava-se de uma grande operação por parte de aproximadamente 100
milicianos, todos armados de fuzil, nas comunidades controladas pelo CV, na cidade
de Nova Iguaçu, tendo como eixo geográfico a Estrada Madureira, a fim de eliminar
a presença do CV. Foram atingidos os bairros de Jardim Paraíso, Marapicu, Grão
Pará, Danone, Dom Bosco, Parquinho, Esperança e Marinha. Relatos inicialmente
falavam de 15 a 35 mortos. Em contato com o Ministério Público Estadual – MPE
foram confirmadas denúncias de 45 mortos, apesar da polícia e a mídia noticiarem
apenas uma morte. O mesmo MPE informou que logo após o envio das imagens
para as redes sociais, houve a procura, por parte dos milicianos, dos autores das
imagens e de sua divulgação, a fim de puni-los. Um dos motivos principais desta
caçada que os milicianos promoveram aos produtores de imagens estava associado
à veiculação de imagens de policiais civis e militares, com seus uniformes, portando
tocas ninjas, atuando diretamente no exército miliciano. Também foi divulgado
pela mídia que se tratava de uma ação da maior milícia do Estado, a Liga da Justiça.

Origens do projeto
A origem do projeto relaciona-se ao convite feito, em 2019, pelo mandato do então
Deputado Federal Marcelo Freixo (Partido Socialismo e Liberdade – PSOL) ao
Fórum Grita Baixada para o desenvolvimento de uma pesquisa sobre as dinâmicas
de desaparecimento forçado na região da Baixada Fluminense. A perspectiva seria
a de apoiar, via emenda parlamentar, a realização de uma pesquisa exploratória
que pudesse se relacionar a um trabalho de denúncia e relevante incidência política
que o FGB já vinha desenvolvendo e que foi apresentada em 26 de abril de 2019
na Audiência Pública “Homicídios e Desaparecimentos Forçados na Baixada
Fluminense”, realizada pelas Comissões de Defesa dos Direitos Humanos e pela
Especial da Juventude, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
(Alerj), presididas, respectivamente, pelas deputadas Renata Souza e Dani Monteiro,
ambas do PSOL.
Na ocasião, o Fórum Grita Baixada, em conjunto com a Rede de Mães e Familiares
de Vítimas de Violência de Estado na Baixada Fluminense e com a colaboração do
Professor José Cláudio Souza Alves (UFRRJ) apresentou dados divulgados pelo
Instituto de Segurança Pública (ISP) relativos à letalidade violenta na região da
Baixada Fluminense. Nesta audiência pública, o Fórum Grita Baixada apresentou
também propostas no âmbito estadual para o enfrentamento das dinâmicas de
violência de estado, entre elas, os desaparecimentos forçados.
Em setembro de 2019, ocorreu a primeira reunião para tratar da pesquisa
exploratória sobre os desaparecimentos forçados. Adriano de Araujo (FGB), falou
sobre o convite feito ao FGB e formalizou um pedido de parceria com a Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ, através do Observatório Fluminense
(OF), ligado ao departamento de Ciências Sociais. O objetivo do projeto era fazer
um levantamento exploratório sobre os desaparecimentos forçados na Baixada
Fluminense, com foco nas cidades de Nova Iguaçu e Queimados que se mantinham
em destaque pelos relatos e matérias jornalísticas relacionadas ao tema. Além disso,
desde o início se pensou em ações que ajudassem as mães e familiares de vítimas
de desaparecimentos forçados a lidar com o sofrimento que enfrentavam. O ano
de 2020, atingido pela pandemia de Covid 19, restringiu as ações do projeto à sua
organização, planejamento, soluções de problemas burocráticos e montagem de
equipe. O projeto, de fato, só teve início em 2021. Adriano de Araujo e Lorene
Monteiro Maia passaram a representar o Fórum Grita Baixada, na equipe. Edilene
Santos Portilho, José Cláudio Souza Alves, Marco Antonio Perruso e Nalayne
Mendonça Pinto representariam a UFRRJ, cabendo a esta última a coordenação
do projeto. Joseane Martins de Lima, membro da Rede de Mães e Familiares de
Vítimas da Violência de Estado da Baixada Fluminense tornou-se organizadora das
atividades no município de Nova Iguaçu, mais precisamente, no bairro do km 32.
Sônia Martins, advinda das pastorais sociais da Diocese de Nova Iguaçu, com atuação
em Queimados, também se inseriu como organizadora de atividades. A equipe
ficou completa com a presença dos graduandos e pós-graduandos Amanda Gabrielle
Covelo de Araújo, Jaqueline de Sousa Gomes, Lucas Conti e Lucas Nogarole, pela
UFRRJ; Gabriel Souza Alves e Augusto Torres Perillo, pela Universidade Federal
Fluminense – UFF.
Ainda afetados pela pandemia de Covid 19 e as implicações do distanciamento
social em meio à crise sanitária, o trabalho inicial se direcionou ao levantamento
de dados sobre o tema em diferentes instituições e meios. Assim, foram acessadas,
coletadas, organizadas e analisadas informações que passaram a ser obtidas junto a
órgãos como o Instituto de Segurança Pública – ISP, Disque Denúncia, Ministério
Público e Defensoria Pública. Também foram levantadas e analisadas as interações
sobre o tema em redes sociais, mais especificamente em páginas do Facebook
relacionadas com a Baixada Fluminense. Matérias de jornais foram igualmente
trabalhadas dentro dos mesmos limites espaciais e temáticos. Nos meses finais
de 2021, com a redução gradativa dos riscos da pandemia, o contato direto com
bairros e moradores passou a ocorrer. Foram feitas reuniões com mães e familiares
de vítimas de desaparecimentos forçados e visita a locais caracterizados como
cemitérios clandestinos pelos moradores. Nesse momento, foram desenvolvidas
atividades de Arteterapia destinadas àqueles atingidos pelo sofrimento envolvido
nos desaparecimentos dos familiares e amigos. Sob a coordenação de Nádia Maria P.
Figueiredo, psicóloga e arteterapeuta, foram realizados quatro encontros com mães
e familiares de desaparecidos, favorecendo processos de construção de linguagens
e práticas que os auxiliassem a lidar com as dimensões do sofrimento presentes na
realidade que vivem.
Em paralelo, iniciaram-se também os primeiros diálogos com a Quiprocó Filmes
para a produção de um curta, tendo como pano de fundo as histórias em torno
da realidade dos desaparecimentos forçados na região. O lançamento do filme
“Desova”, apresentado pelo Fórum Grita Baixada e a Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro abordando a dinâmica dos desaparecimentos forçados, ocorrerá
em conjunto com a publicação desse livro em 2023.

Notas metodológicas da pesquisa


A presente pesquisa exploratória sobre desaparecimentos forçados em municípios da
Baixada Fluminense - Rio de Janeiro (2016-2020) colocou em prática a triangulação
de diferentes técnicas e métodos de pesquisa acadêmica, a fim de permitir uma
compreensão mais ampla sobre o fenômeno dos desaparecimentos forçados, tendo
como lócus a Baixada Fluminense. Nesse momento será apresentada de forma breve
uma síntese da metodologia utilizada nesta pesquisa; contudo, ressalta-se que tal
descrição será apresentada de forma esmiuçada em cada capítulo que compõe este
relatório.
Em primeiro momento, a fim de analisar os conceitos e principais aspectos dos
desaparecimentos forçados teoricamente e empiricamente, a equipe de pesquisa
buscou realizar o levantamento bibliográfico sobre o tema através da catalogação de
trabalhos e estudos acadêmicos concentrados nas áreas da sociologia, antropologia,
direito, direito internacional e áreas afins; em seguida empreendeu-se análise
qualitativa dos artigos, teses, trabalhos acadêmicos e etnografias urbanas sobre
o tema dos desaparecimentos forçados. Tal catalogação e leitura provocaram um
entendimento sobre o tema dos desaparecimentos forçados, as tramas envolvidas e
a dificuldade polissêmica de conceituação do fenômeno. O esforço de produzir este
capítulo teórico resultou na consolidação do estado da arte sobre os desaparecimentos
forçados, capítulo este intitulado: “Corpos insepultáveis: uma breve revisão sobre
o Desaparecimento Forçado nas Ciências Sociais”.
Em seguida no capítulo intitulado “O desaparecimento forçado nos tratados
internacionais e na corte interamericana de direitos humanos (CIDH)” são
apresentados os principais aspectos e tratados internacionais que deram ênfase ao
tema dos desaparecimentos, principalmente na América Latina, onde se encontra
o Brasil e outros países marcados pela violenta herança de regimes ditatoriais que
favoreceram o cenário dos desaparecimentos até os dias atuais. Apresenta-se quais
instrumentos legais internacionais e nacionais foram elaborados e quais países são
signatários de tais medidas. O texto orienta-se por trabalhos das áreas do direito
constitucional e direito internacional, levando em consideração as tratativas e
acordos do Brasil e sua cooperação com os organismos internacionais. Por meio
dessas análises, foi possível entender a situação dos países Latino-Americanos
e entender o debate nacional, além de perceber a posição do Brasil, a partir da
subscrição aos tratados sobre o tema dos desaparecimentos e desaparecimentos
forçados, na esfera internacional.
No 4º capítulo, analisamos os principais Projetos de Lei (PL´s) que tramitam no
Congresso Nacional sobre os desaparecimentos forçados, capítulo este intitulado
“Proposições em torno da tipificação do crime de Desaparecimentos Forçados
na legislação brasileira”. O primeiro trabalho foi identificar todos os projetos de
lei que tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal que possuem
como palavra-chave: desaparecidos, desaparecimentos, desaparecimento forçado.
Foram encontrados 53 PL´s atualmente em tramitação. Após a catalogação de
todos e leitura atenta foram selecionados 11 para acompanhamento. Destaca-se
um grande número de projetos que tratam de crianças desaparecidas e criação
de ferramentas de buscas, cadastro e banco de dados para rápida localização de
crianças desaparecidas. No que tange ao desaparecimento forçado o texto deste
relatório apresenta os projetos de lei que buscam aprovar a tipificação do crime
de desaparecimento forçado no Código Penal Brasileiro, seguindo a orientação
internacional da ONU através da Convenção Internacional para a Proteção de Todas
as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, aprovada no Decreto Presidencial
Nº 8.767 de 11 de maio de 2016.
No 5º capítulo intitulado “Análise dos dados do Instituto de Segurança Pública
(ISP) sobre desaparecidos e sua relação com os desaparecimentos forçados”
foram levantados através do banco de dados do Instituto de Segurança Pública do
Estado do Rio de Janeiro os dados desagregados relativos às seguintes variáveis
de análise: pessoas desaparecidas, homicídio doloso e morte por intervenção de
agente de Estado entre os anos de 2016 e 2020. Essas informações foram coletadas
em todos os municípios que compõem a Baixada Fluminense e na cidade do Rio de
Janeiro para fins de comparação. Os dados foram planilhados e comparados como
pode ser visto no capítulo em questão.
No capítulo sob o título de “Análise dos dados quantitativos e qualitativos do
Disque Denúncia (2016-2020)” a pesquisa orientou-se por analisar as denúncias que
chegaram ao Disque Denúncia (DD) e que têm correlações com os desaparecimentos
forçados. Através de algumas tratativas com o Disque Denúncia, que serão melhor
explicitadas no capítulo em tela, recebemos do referido órgão um banco de dados com
denúncias relativas aos seguintes assuntos: 1) Cemitério Clandestino; 2) Destruição/
Subtração de Cadáver; 3) Encontro de Cadáver; 4) Furto/comércio de ossos, membros
e órgãos; 5) Pessoas Desaparecidos e 6) Tráfico de Mulheres. O banco de dados
contava com 14.935 denúncias entre os anos de 2002 e 2021. Filtramos os anos de
2016 a 2020 e, em seguida, percebemos que as denúncias referentes ao tráfico de
mulheres e furto/comércio de órgãos não atendiam aos interesses da pesquisa. Por
fim ficamos com um banco de dados de 1.738 denúncias que foram lidas, catalogadas
através de um sistema classificatório e separadas nos seguintes campos analíticos:
localidade do aparecimento do corpo; estado de decomposição e putrefação do
corpo; execução sumária e/ou desaparecimento forçado envolvendo tráfico, milícia
e/ou polícia; destruição de cadáver envolvendo carbonização de corpos; cárcere/
detenção clandestina e sequestro; cemitério clandestino; organizações criminosas
que realizam extorsão/ameaças e desaparecimentos.1
No 7º capítulo “A autoconstrução do ser mãe e familiar de vítimas de
Desaparecimento Forçado”, deste relatório, apresentamos os aspectos mais
importantes e principais que fazem parte dos objetivos dessa pesquisa. O fenômeno
do desaparecimento forçado evidencia-se de forma lancinante a partir do grupo
focal realizado com mães e familiares de vítimas de desaparecimentos forçados
na Baixada Fluminense. Foram 5 encontros com o grupo de mães e familiares, no
primeiro encontro 13 mães relataram as experiências de desaparecimentos e busca
pelos seus entes; em outros 4 encontros foi realizado com as mesmas mães o projeto
de Arteterapia; promovida pela psicóloga Nádia Maria P. Figueiredo, que orientou
atividades de acolhimento, escuta juntamente com trabalhos manuais e artesanais
– uma abordagem adequada, levando em consideração o respeito, delicadeza e
a sensibilidade que o tema demonstra. Os relatos e as entrevistas forneceram
importante compreensão sobre o fenômeno da violência de desaparecimentos
forçados observado pelas experiências de quem vive a dor da perda do seu ente
sem a possibilidade do luto e confirmação da morte.
O 8º Capítulo esmiúça uma “Análise exploratória sobre Desaparecimentos
Forçados nos jornais da Baixada Fluminense” a partir do levantamento de matérias
relacionadas a assuntos e categorias que tratavam de casos de desaparecimentos entre
2015 e 2021. A forma de busca foi feita através das páginas dos jornais, usando as
palavras chaves, desaparecido, desaparecida, desaparecidos, desaparecidas. Importa
explicar que a escolha dos jornais se orientou pela qualidade das ferramentas de
busca que possuíam. Os que estabeleceram predominância e relevância no assunto

1. Neste trabalho foi garantida a anonimização dos dados pessoais, incluindo nomes, qualificação e dos
dados de localização de todas as informações utilizadas oriundas dos relatórios produzidos pelo Disque-
Denúncia. Tudo em consonância com o TERMO DE SIGILO E CONFIDENCIALIDADE, acordo
assinado entre o Instituto MOVRIO/Disque Denúncia e Nalayne Mendonça Pinto (Coordenadora
da Pesquisa), bem como em obediência à previsão legal contida no artigo 7º inciso IV Cap II Seção
I da Lei Geral de Proteção de Dados nº 13.709/2018 onde está previsto que o tratamento de dados
pessoais somente poderá ser realizado, entre outras hipóteses, para a realização de estudos por órgão
de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais.
foram os seguintes jornais: O Dia, Seropédica Online, Notícias Queimados, Notícias
Duque de Caxias e Notícias Nova Iguaçu. No total foram analisadas 36 notícias.
Para finalizar, o Capítulo 9 apresenta uma “Análise exploratória sobre
Desaparecimentos na Baixada Fluminense a partir do Facebook”. Intenciona-
se no capítulo a busca, identificação e análise de páginas do Facebook da Baixada
Fluminense que avisam ocorrências de desaparecimentos. As páginas do Facebook
que foram catalogadas são as seguintes: “Guapimirim ao vivo” (91 mil seguidores),
“Seropédica online” (20 mil seguidores) “Caxias da Depressão” (508 mil seguidores),
“Plantão Mesquita Nilópolis” (111 mil seguidores), “Notícias de Belford Roxo” (311
mil seguidores), “Itaguaí News” (13 mil seguidores), “Amigos de Nilópolis” (106
mil seguidores) e “Jornal Meriti Baixada” (29 mil seguidores). Foram encontradas
154 notícias/postagens nessas páginas que se aproximam das características de
desaparecimentos forçados.
Por último, e não menos importante, apresentamos uma síntese de propostas
e recomendações para a construção de uma política nacional de tipificação,
identificação, investigação de desaparecimentos forçados e acolhimento de familiares
de vítimas de violência por desaparecimentos forçados no Brasil.
Adriano Moreira de Araujo
José Cláudio Souza Alves
Nalayne Mendonça Pinto

Referências Bibliográficas
ANTUNES, Thiago. Guerra de facções aterroriza Caxias. O Dia. Rio de Janeiro. 28/7/2014.
Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2014-07-27/guerra-
de-faccoes-aterroriza-caxias.html. Acesso em: 6/8/2018.
GOMES, Flávio dos Santos. História de Quilombolas: Mocambos e Comunidades de
Senzalas no Rio de Janeiro – séc. XIX. Dissertação de Mestrado da UNICAMP. Campinas:
UNICAMP. Mimeo. 1992.
SOUZA, Marlúcia Santos de e RIBEIRO, Simone Orlando. Memórias Ancestrais no Norte
e Oeste das Cercanias da Guanabara: No Tempo das Conchas e da Jacutinga. In: Revista
Pilares da História. Ano 20. No 19. Junho de 2021. P.37-45.
CORPOS INSEPULTÁVEIS: UMA
BREVE REVISÃO SOBRE O
DESAPARECIMENTO FORÇADO NAS
CIÊNCIAS SOCIAIS
Amanda Gabrielle Covelo de Araújo
Jaqueline de Sousa Gomes

Introdução
A construção desse levantamento bibliográfico tem como objetivo central uma
análise sobre o desaparecimento forçado de pessoas em diálogo direto com a
produção debruçada sobre o tema. Enquanto uma das categorias operadas no
universo de casos de desaparecimento, o tema enseja uma ampla compreensão sobre
o fenômeno da violência, das dinâmicas criminais e tramas estatais envolvidas.
Essa abordagem teórica e empírica faz parte da investigação exploratória sobre os
desaparecidos e desaparecimentos forçados em municípios da Baixada Fluminense
e Rio de Janeiro – Capital – com análise quantitativa e qualitativa de dados sobre
desaparecimentos, entre os anos de 2016 e 2021.
Priorizamos pesquisas que mapeiam a construção histórica, política, social e
jurídica do conceito e, que, em alguma medida, protagonizaram os sujeitos e as
instituições imbricados na (in)visibilização do fenômeno. Ainda que as produções
sejam pouco numerosas no contexto brasileiro, dado a necessidade de visibilidade
e compreensão da complexidade do assunto, há uma mobilização nas últimas
décadas de pesquisadores e pesquisadoras que investigaram o tema de modo mais
sistemático e aprofundado (ARAÚJO, 2012, 2014; AZEVEDO, 2016; FERREIRA,
2011, 2013; FRANCO, 2018; OLIVEIRA, 2007, 2014).
De acordo com o sociólogo Fábio Araújo (2012), a trajetória pública da discussão
dos desaparecimentos, ao menos no Brasil, ganha maiores contornos em dois
contextos históricos: o período referente à ditadura civil-militar, que em seu sistema
de repressão produziu a figura do desaparecido político e dos familiares de vítimas
de mortos e desaparecidos pelo regime; e o contexto histórico inaugurado pelo
processo de redemocratização do país, cuja categorização é marcada pela pluralidade
de formas de abordagem da questão, englobando diversas modalidades, gramáticas
e figurações. Este artigo será conduzido de modo a traçar o estado da arte de
produções a partir destes marcos, não de maneira disruptiva, mas sim continuada e
relacionada. Contudo, também propomos uma interpretação crítica em articulação
com as discussões realizadas em “Necropolítica” por Achille Mbembe (2016) à
ideia de que o regime militar teria sido marcado por uma violência institucional
sem precedentes. Longe de constituir uma exceção própria aos momentos críticos
como as guerras e golpes militares, as técnicas de fazer e deixar desaparecer se
apresentam na história brasileira como uma constante.
Este artigo está segmentado da seguinte forma: propomos trabalhar em primeiro
plano com os desafios conceituais e as multicausalidades em torno do tema do
desaparecimento, em segundo lugar nos deteremos na discussão da categoria
desaparecimento forçado em seu contexto histórico-político. Na terceira seção, nos
concentramos em evidenciar brevemente alguns dos agentes, tramas e dinâmicas
envolvidas e atravessadas pelo desaparecimento forçado enquanto parte do repertório
da violência urbana no contexto contemporâneo.

Dentro de um universo de casos


O desaparecimento de pessoas é objeto de múltiplos embates entre as instituições,
grupos e sujeitos que circulam pelas tramas do fenômeno. Familiares de pessoas
desaparecidas, policiais militares e civis, funcionários de ONGS e gestores
governamentais de políticas públicas (FERREIRA, 2011) constituem os embates
pelo poder de definir como e por quem deve ser gerido o desaparecimento de
pessoas. Nesse sentido, certo jogo de (des) responsabilizações cruzadas é produzido
na disputa pela demarcação de múltiplas ausências e pela definição de faltas e de
faltosos (VIANNA, 2013).
A antropóloga Letícia Ferreira (2011) em sua tese “Uma etnografia para muitas
ausências: o desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema
social” dedicou-se a analisar as rotinas burocráticas no Setor de Descoberta de
Paradeiros (SDP) da antiga Delegacia de Homicídio do Rio de Janeiro (Centro /
capital), bem como os eventos organizados da Rede Nacional de Identificação e
Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDESAP), que reúne
órgãos governamentais e organizações não-governamentais que lidam com
desaparecimentos de pessoas. Em sua pesquisa Ferreira aponta que se por um
lado casos particulares de desaparecimento são estruturados como ocorrências
policiais, por outro, é constituído como “problema social”.

Para policiais, desaparecimentos são “problemas de família”; para outros agentes


sociais engajados no tema, desaparecimentos são “problemas de segurança pública”
ou “problemas de assistência social”. Por meio dessas classificações, policiais, mães
de pessoas desaparecidas e gestores de políticas públicas posicionam-se uns em
relação aos outros e constroem juntos, denúncias públicas de múltiplas ausências.
Enquanto a falta de uma pessoa em espaços geográficos e teias de relações sociais
em que se esperava que ela pudesse ser localizada é objeto de comunicação em
repartições policiais, em eventos públicos sobre o desaparecimento a falta de um
Estado assistente, uma família protetora e uma polícia sensível e competente
são objeto de denúncia. (FERREIRA, 2011, p. 05).

Para a autora a controvérsia em torno do caráter plural de responsabilização (da


família, da polícia, do Estado) é fundamental para a constituição do desaparecimento
como um problema social a ser combatido no Brasil. Embora seja possível identificar
um sistema de acusação mútua entre os responsáveis ora pela ocorrência e pelo
dever de prevenir, ora pela não resolução dos casos, é na falta de precisão acerca das
diretrizes e definições para o enfrentamento de desaparecimento de pessoas que
esses agentes partem de um lugar comum: “um vazio plural, no qual está inscrita
também, mas não apenas, a ausência do desaparecido” (FERREIRA, 2013ª, p. 207).
O sociólogo Djaci Oliveira (2007) em sua tese intitulada “Desaparecidos civis:
conf litos familiares, institucionais e de segurança pública”, também destaca o
aspecto de um problema social, não só por ensejar a dimensão quantitativa, mas
também pelas problemáticas que configuram o debate. A hipótese de sua tese
é de que o fenômeno dos desaparecimentos é alimentado cotidianamente pelas
relações intrafamiliares e dos impactos dos valores do patriarcalismo sobre as
relações de geração e de gênero. O interesse do pesquisador está na reflexão sobre as
possíveis práticas causais que viabilizam a ocorrência do desaparecimento, e reflete
também sobre os fluxos e rotinas por parte dos familiares que buscam respostas pelo
desaparecimento. Oliveira (2007), portanto, inspeciona o conceito de desaparecidos
civis em oposição aos desaparecidos políticos2. Para o autor, o desaparecido civil é
caracterizado como a pessoa que sai de algum ambiente de convivência familiar e
afetiva, não anunciando o seu intento de não voltar e nunca retornar.
No vocabulário jurídico, segundo as definições legais vigentes no Brasil até
1991, as categorias operadas eram as do “desaparecido” e do “ausente”. A figura
do desaparecido se referia àquele cuja morte é certa, embora o corpo não tenha
sido encontrado: falar em “desaparecido” muitas vezes significava indicá-lo como
morto. Como afirma o autor, o uso comum desta definição, de certa forma,
destrói as expectativas de todas as famílias que buscam notícias de seus entes
desaparecidos, uma vez que buscam, sobretudo, pessoas vivas. Por outro lado,
para os que supostamente estavam vivos, o sistema jurídico criou a categoria
“ausente”, ou seja, desaparecimentos que não se têm nenhuma certeza da morte
e muito menos as razões pelo desaparecimento. No entanto, o uso das figurações
“ausente” e “desaparecido’’ se deu em termos de uma preocupação da legislação
com a administração e a transferência de bens, o que não exigia uma ação rápida na
investigação do paradeiro da pessoa desaparecida. A ausência de uma legislação mais
abrangente e adequada que defina a condição dos desaparecidos civis reflete ainda
hoje na inércia dos aparatos legais frente às angústias dos familiares e conhecidos
dos desaparecidos, bem como na perpetuação da falta de diretrizes mais eficazes
para a sistematização de informações sobre o fenômeno.
Marcelo Neumann, outro pesquisador que se dedicou ao tema em sua tese “O
desaparecimento de Crianças e Adolescentes”, argumenta que uma das faces mais
perversas da falta de políticas sociais em torno da questão do desaparecimento se
expressa justamente no alto índice de subnotificações do país. Segundo os dados
levantados por Neumann (2010), há casos que até chegam aos serviços de proteção
social, como os conselhos tutelares, mas por serem considerados “problemas de
família” não são encaminhados aos sistemas formais de notificação. Somado a essa
questão, familiares de desaparecidos ainda enfrentam no interior das delegacias a
cultura das 24 ou 48 horas para abertura de boletim de ocorrência, embora exista

2. Durante as ditaduras civil-militares, as práticas de tortura, perseguição, sequestro, detenção,


morte e desaparecimento de militantes e oposicionistas produziram a figura do desaparecido
político. O desaparecimento teve um papel fundamental na caracterização da Ditadura como um
regime autoritário excepcional. Para maior aprofundamento ver: Azevedo (2016) Cabral e Lapa
(1979) e Miranda e Tibúrcio (1999).
legislação vigente desde 20053, que determina a investigação policial imediata do
desaparecimento. Tais problemáticas acentuam em muito a desestimulação das
notificações e, mais ainda, o descrédito da população no Estado (OLIVEIRA, 2007;
NEUMANN, 2010).4
Vale, nesse momento, retomar o trabalho de Ferreira (2011), cujo pilar analítico
se deu a partir da problemática do “gestar e gerir”. O desaparecimento aqui importa
menos como objeto principal, e sim os processos, disputas e embates nos quais é
forjado e, portanto, administrado. Os trabalhos citados nos apontam para uma
multiplicidade de elementos e figurações e também para a compreensão de que os
conceitos de desaparecido e desaparecimento são demarcados, quando demarcados,
por linhas muito frágeis. A complexa teia de significados tem inviabilizado a
constituição de um estatuto legal “que norteie as ações estatais e normatize as
atividades policiais, assim como permita uma clara orientação sobre as relações
entre família e as instituições de apoio para a busca do desaparecido” (OLIVEIRA,
2007, p. 12).
Essa imprecisão pode ser observada na convivência simultânea de diferentes casos
de desaparecimento encontrados na “mesma gaveta dos arquivos” (FERREIRA, 2011,
p. 22) das delegacias brasileiras. Casos ligados à fuga do lar em virtude de conflitos
e violência intrafamiliar, a condições psiquiátricas e psicológicas ou até mesmo às
ocorrências que podem estar atreladas, ainda que eventualmente e virtualmente,
a componentes criminais como homicídio, sequestro e ocultação ou destruição
de cadáver, acabam por constituir algumas das circunstâncias englobadas numa
mesma forma de registro: a de “pessoa desaparecida”.

Embora tão distintos entre si, tais exemplos convivem na mesma gaveta dos
arquivos do SDP (...). O que chama atenção nessa coleção é que, de modo geral, as
ocorrências não possuem componentes especificamente criminais, constituindo,
nos termos de Mota (1995), “casos sociais”. A especificidade dos “casos sociais”

3. Lei nº 11.259/2005.
4. Inspirada nos estudos de Souza Lima (2002), que explorou o universo prescritivo e pedagógico
das práticas, técnicas e saberes constitutivos da administração pública a partir das noções do “gestar”
(função constitutiva e pedagógica) e gerir (administrar; controle cotidiano de uma administração),
Ferreira (2011) argumenta que o objeto em foco de sua pesquisa é menos o desaparecimento de
pessoas, e sim aquilo que é construído como desaparecimento de pessoas, procurando compreender
o processo por meio da qual se dá tal construção.
abarcados pelo nome de desaparecimento, entretanto, é que componentes
criminais eventualmente se fazem presentes, não podendo ser excluídos a priori
(FERREIRA, 2011, p. 22).

Até que o caso possa ser reclassificado no quadro das ocorrências policiais,
o termo adotado é um registro administrativo considerado “provisório’’. Isso
porque o desaparecimento de pessoas é considerado fato atípico nas repartições
policiais, pois não possui, em seu sentido jurídico, a materialidade necessária para
evidenciar a criminalidade de um ato. “Não tem corpo, não tem crime”, o sociólogo
Fábio Araújo (2016) salienta que é comum familiares de pessoas desaparecidas
ouvirem expressões como essas das autoridades policiais como justificativa para
não investigarem os casos.
Em diálogo com os últimos trabalhos citados (ARAÚJO, 2016; FERREIRA, 2011),
ambos realizados com enfoque nas delegacias do estado do Rio de Janeiro, é possível
afirmar também que os policiais que lidam com este tipo de ocorrência geralmente
costumam estabelecer sua atuação a partir de representações estigmatizantes
e classificações pouco formais. Vetores importantes para pensar que, dentro da
hierarquia das ocorrências do cotidiano das delegacias, o desaparecimento de pessoas
é visto como uma ocorrência de pouca relevância. O que se vê é uma flexibilidade
dos ditames administrativos, tão estruturantes ao campo burocrático (BOURDIEU,
1996), operando na construção da inferioridade e desimportância dos “envolvidos”.
A personalização de procedimentos administrativos e legais a partir da
f lexibilização de normas, capaz de relegar a universalidade de decretos e
regulamentos a um plano inferior (FERREIRA, 2011), mostra como o direito não
opera como um saber exclusivamente técnico e objetivo em prol da produção de
uma “verdade jurídica” única (EILBAUM e MEDEIROS, 2016). É possível identificar
que moralidades são recorrentemente acionadas para embasar diversos contextos de
desconfiança, responsabilizações e de “interesse pelo desinteresse” (BOURDIEU,
1996, p.124) tanto em casos que compreendem a dimensão do “envolvimento”
ou do “envolvido-com” a partir de uma espécie de expediente de “fabricação de
nexos causais”, avaliados como comprometedores entre pessoas, territórios e suas
interações (CECCHETTO, MUNIZ, MONTEIRO, 2018), quanto em casos que não
consistem em fatos ou suspeições ligados ao “mundo crime” (FELTRAN, 2008),
mas, que, sob a interpretação de policiais, evocam apenas a função administrativa
de “preencher e arquivar papel” e de realizar procedimentos distintos dos que
demandam os “problemas de policiais”.
No quadro de responsabilização das “famílias”, o cenário de desconfiança
e depreciação é ainda maior quando se trata de pessoas advindas de territórios
favelados. Favela, pobreza e criminalidade são gramáticas que parecem fornecer
um bloco unificado de interpretações para as especulações sobre os casos de
desaparecimento. A associação da inferiorização da categoria, dentro da hierarquia
de ocorrências policiais e da conhecida estigmatização dos territórios favelados e
de seus moradores, faz emergir um artefato do trabalho policial predominante na
gestão dos casos de desaparecimento, que é a “construção de reputações”, marcados
por julgamentos moralizantes sobre a proximidade pessoal e/ou territorial com as
“drogas” e o “tráfico”.

“Só de olhar” policiais levantam um conjunto de hipóteses para explicar o que


pode ter passado a certos desaparecidos. Casos de homens jovens registrados
como tendo ocorrido em favelas são agrupados em um leque de hipóteses ainda
mais restrito. De modo geral, trabalha-se com as hipóteses de morte, prisão
e internação. A nebulosa do tráfico de drogas é acionada para “explicar” o
desaparecimento. Desapareceu ou porque usava drogas ou porque era “envolvido
com o tráfico” (ARAÚJO, 2016, p. 38).

Nesse contexto, cabe ressaltar o “tratamento epidemiológico” (BIRMAN,


2008) que as favelas recebem historicamente das políticas governamentais: mães,
mulheres/negras/moradoras de favelas, chamadas de “fábricas de marginais”5, são
recorrentemente enquadradas por técnicas de governo como um problema a ser
tratado. A condição de suspeito a priori que pesa sobre as populações marginalizadas,
notadamente as populações negras (CARNEIRO, 2005) e periféricas, bem como o

5. Em 25 de outubro de 2007, o governador Sérgio Cabral afirmou em entrevista ao G1 que o


aborto pode funcionar como forma de controle da violência nas favelas. Estas, segundo ele, seriam
“verdadeiras fábricas de marginais”, destaca Birman (2008). Vale citar esse trecho da entrevista
para maior contextualização: “Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas,
Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão.
Isso é uma fábrica de produzir marginal. O Estado não dá conta. Não tem oferta da rede pública
para que essas meninas possam interromper a gravidez. Isso é uma maluquice só.” (Disponível em:
< http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00- CABRAL+DEFENDE+A%20
BORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html>).
desinteresse das autoridades policiais e judiciárias em apurar os casos, se apresentam
aqui como uma das facetas mais cruéis da violência e do racismo de Estado.
No caso de denúncias que apontam o envolvimento de policiais e outros agentes
públicos, “seja através da violência policial ou da violência das milícias, em disputa
ou em colaboração com o tráfico de drogas” (ARAÚJO, 2016, p. 40), esse cenário
se complexifica ainda mais. Seguindo as análises de Araújo (2012), cujas pesquisas
etnográficas tiveram como foco as experiências de familiares de vítimas de violência,
particularmente de desaparecimento forçado6, o corporativismo policial torna-se
outra barreira à investigação e punição dos responsáveis. A polícia aqui, segundo
as perspectivas e experiências de familiares de vítimas de violência, aparece muitas
vezes como vilã – e não à toa. Para além de lidarem com a violência física, que
interrompem abruptamente a vida de seus filhos, mães de vítimas de violência
policial em favelas precisam lidar também com a violência moral, configurada na
destituição de sua dignidade como pessoas e cidadãs e em sua própria criminalização
(BIRMAN e LEITE, 2004; FARIAS, 2014), bem como exemplifica o autor ao falar
do movimento de Mães da Cinelândia:

Essa tripla condição, de falar a partir de um lugar de despossuído, de um território


criminalizado e denunciar a participação de agentes estatais, principalmente
policiais, tornava-se uma barreira à ação dessas mães. Implicava falar de um
lugar subalterno, marcado pelo estigma e pela criminalização e, portanto,
tratava-se de uma fala que tinha tudo para ser desacreditada no espaço público
(ARAÚJO, 2012, p. 63).

Quando o desaparecimento de uma pessoa oculta um homicídio, sobretudo com


envolvimento direto ou indireto de um agente estatal, mais do que a destruição ou
ocultação do corpo, entram também em ausência a disponibilização de documentos,
como o atestado de ausência ou atestado de óbito e resultados de exames periciais
de DNA para identificação do cadáver, importantes para o enfrentamento e
questionamento à ilegibilidade do Estado (DAS apud ARAÚJO, 2016), ou seja,
aquilo que o Estado produz para a dificuldade de leitura e compreensão de suas
regras e regulações.

6. O autor utilizou o termo “desaparecimento forçado” conforme a definição e normatização do


direito internacional, que será exposto adiante.
É essa questão da ilegibilidade do Estado que se coloca no caso do desaparecimento.
A dificuldade de acessos às práticas documentárias, às estatísticas e aos documentos
oficiais do Estado no caso dos desaparecimentos no Rio de Janeiro cria uma
atmosfera de ilegibilidade de algumas práticas estatais e alguns fenômenos
objetos de ação estatal. É o Estado produzindo sua ilegibilidade, ora através da
forma como interpreta, classifica fenômenos e dados e faz circular explicações,
ora através do recurso ao segredo, evitando a liberação e publicização dos dados
(ARAÚJO, 2016, p. 43).

A ausência de um laudo cadavérico tem impacto significativo para mães e


familiares de vítimas de violência em suas trajetórias por justiça. É inegável que o
laudo cadavérico tem um peso enquanto prova para questionar a camuflagem da
violência policial, além de ratificar a “equivalência entre inscrições que marcam
no corpo sua própria morte e relatos orais que trazem informações fundamentais
para a investigação” (FARIAS, 2014, p. 166)7. Então, se é a partir da elaboração da
identificação civil, do Laudo Médico-Legal e da Declaração de Óbito8 que um cadáver
passa a ser declarado como morto (MEDEIROS, 2012), de que lugar e estatuto é
deslocada a pessoa desaparecida cuja ausência esconde um homicídio?.
Desaparecer pode significar: a) ocultar, b) sumir, c) esconder, d) ausentar, e)
morrer e f) perder. Ou seja, ser um desaparecido é ser uma pessoa que por razões
externas ou internas sumiu, ocultou-se, escondeu-se ou perdeu-se. A morte, segundo
Oliveira e Geraldes (1999), seria uma hipótese aceita enquanto não se sabe desse
acontecimento. No entanto, estudos empíricos e etnográficos comprovam as
complexidades que implicam os métodos de fazer desaparecer, dentre eles citamos
aqui o livro de Araújo (2014), originado de sua tese, intitulado “Das ‘técnicas’ de
fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência, sofrimento e política”. A
escolha do autor pelo uso do termo “corpos” e não “pessoas” indica que, mais que a

7. Por outro lado, seguindo a análise de Farias (2014), também é possível identificar tentativas de
produção da invisibilidade de mortes de moradores de favelas e periferias no preenchimento dos
laudos, sobretudo nos casos de auto de resistência. Esta invisibilidade produzida também está atrelada
à gestão governamental de mortes provocadas por agentes de Estado. Numa outra linha crítica, se
localiza os estudos de Hattori et al. (2016) em análise sobre as documentações do Instituto Médico
Legal-SP. As autoras inspecionam a categoria de desaparecimento administrativo para pensar as
formas de desaparecimento decorrentes das rotinas burocráticas nas instituições que envolvem o
morto e as formas que administram a morte.
8. Documentos públicos que definem a causa mortis sob categorias médico-legais.
eliminação da materialidade, a prática do desaparecimento forçado visa a eliminação
das identidades, onde “pessoas” são relegadas ao status de “corpos”. Atualizando este
debate, podemos identificar que ter ciência da morte de uma pessoa que desapareceu,
não significa ter acesso ao corpo e nem mesmo à possibilidade da realização dos
rituais fúnebres, já que, não raras vezes, este tipo de desaparecimento culmina em
tortura e morte, com ocultação e destruição de cadáver. Pessoas desaparecidas, ou
corpos insepultáveis, representam muitas vezes as mortes subnotificadas que não
entram no rol dos dados oficiais de homicídio doloso divulgados pelas instituições
de segurança pública. Não por mera coincidência, dados e pessoas desaparecem de
forma sistêmica e sistemática.
Contornando a categoria do desaparecimento forçado
O desaparecimento forçado se inicia com a captura arbitrária e violenta da
pessoa ou grupo, sendo levada para lugares desconhecidos, onde, na maior parte
dos casos, é torturada e executada, sem que deixe rastro ou vestígio do corpo, nem
dos lugares em que foram realizadas a detenção clandestina e nem quem perpetrou
o crime. Em seus termos legíveis, é uma categoria que é encontrada nas convenções
do direito internacional. De acordo com a primeira manifestação da ONU, em 1978,
desaparecimento forçado seria:

A violação complexa de direitos fundamentais, alguns inderrogáveis, praticada por


agentes públicos (geralmente os encarregados da segurança e/ou cumprimento
das normas jurídicas), em que, de forma arbitrária, violenta e à margem da lei,
detêm, encarceram, e, não raras vezes, assassinam pessoas, não informando os
fatos, o paradeiro da vítima ou a motivação da ação a quem de direito. Trata-se,
desse modo, em qualquer situação ou circunstância, de um crime injustificável
contra o direito à vida, à liberdade e à segurança pessoais, composto mediante
tortura ou tratamento, pena ou castigo cruéis, e apartado do devido processo
legal. Acima da normalidade, tem em suas consequências extrapoladas além da
vítima principal, seja em relação à angústia e à dor intermitente do cônjuge, dos
filhos, dos parentes e dos amigos, que as circunstâncias do desaparecimento
causam, seja na insegurança coletiva gerada por esses crimes, já que os ofensores
(diretos ou indiretos) aos direitos fundamentais implicados são justamente os
encarregados de garanti-los na entidade estatal (JARDIM apud ARAÚJO, 2014,
p. 39).
A definição da tipificação do desaparecimento forçado como crime é fruto da
elaboração de uma série de normatizações e tratados internacionais pactuados
para combater a questão, estando entre eles: 1) a Declaração sobre a Proteção
de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, da ONU (UNITED
NATIONS, 1992), que enumerou os direitos violados do desaparecido e de sua
família, determinando que nenhum Estado deverá cometê-lo, autorizá-lo ou tolerá-
lo; 2) a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas,
aprovada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) em 19949, que inova,
em relação à declaração anterior, na compreensão de que a ação penal decorrente
deste crime não está sujeita à prescrição, no entanto, caso não fosse possível aplicar
a imprescritibilidade, o prazo deveria ser o equivalente ao maior previsto na
legislação do país; 3) o Estatuto de Roma, que estabeleceu a criação do Tribunal
Penal Internacional em 1998 (INTERNATIONAL CRIMINAL COURT, 2011) a partir
do desenvolvimento do conceito de responsabilização internacional do indivíduo
e determinou o conceito de desaparecimento forçado como um dos crimes mais
graves contra a humanidade; e 4) a Convenção Internacional para a Proteção de
Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado, esta última, redigida pela
Comissão de Direitos Humanos da ONU, sendo adotada em 200610, que determinou
expressamente a contagem do prazo da prescrição, caso exista na legislação do
país, deve ser iniciada no momento em que cessar o desaparecimento (artigo 8º)
(ARAÚJO, 2014; SANTOS e BOITEUX, 2012).
Em sentença de 24 de novembro de 201011, o Brasil foi responsabilizado pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no Caso Gomes Lund e outros

9. A Convenção adotada na Resolução da Assembleia Geral da OEA 1256 (XXXIV-0/94, em Belém


do Pará, Brasil, entrou em vigor na data 28 de março de 1996 (PERRUSO, 2010).
10. Essa Convenção tramitou entre os anos de 2009 e 2010 na Câmara dos Deputados sendo aprovada
como Decreto Legislativo 661/2010. Alguns anos mais tarde a Presidenta Dilma Rousseff considerando
que o Congresso Nacional aprovou por meio do Decreto Legislativo nº 661 de 2010 a Convenção,
e destacando que o Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação à mesma junto ao
Secretário-Geral das Nações Unidas em 29 de novembro de 2010, resolveu por decretar a Convenção
Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, concluída
em 20 de dezembro de 2006 e firmada pela República Federativa do Brasil em 6 de fevereiro de 2007
como Decreto Presidencial Nº 8.767 de 11 de maio de 2016.
11. Anteriormente, o Congresso Nacional brasileiro decretou e o presidente Fernando Henrique
Cardoso sancionou, em 4 de dezembro de 1995, a Lei dos Desaparecidos de nº 9.140, que “reconhece
como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação ou acusação de participação em atividades
políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979”. A lei é resultado das contribuições
(Guerrilha do Araguaia)12, a tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas
(JARDIM, 2011). No entanto, apesar de atualmente tramitar no Congresso Nacional
o projeto de lei nº 6240/2013, que visa acrescentar o artigo 149-A ao Código Penal
Brasileiro, tornando crime o desaparecimento forçado, não houve tantos avanços
concretos para a vigência de sua tipificação.
As primeiras aparições na arena pública da figura do desaparecido emergiram
sob os gritos de denúncia de mães e familiares de jovens assassinados, sequestrados,
detidos, torturados e sumidos durante o período histórico das ditaduras civil-militar.
O movimento de mães e avós de pessoas desaparecidas e detidas na Argentina,
intitulados “Madres de la Plaza de Mayo” e “Abuelas de la Plaza de Mayo”, compõe
uma das imagens mais marcantes vinculadas ao quadro de violações de direitos
humanos na história da América Latina produzida pela prática do desaparecimento
forçado, que se configurou como uma violação múltipla, pluriofensiva ou complexa.
Ana Lucrecia Molina Theissen (1998), irmã de Antonio Marco Molina Theissen,
desaparecido forçado na Guatemala em 198113, cita que os militares latino-americanos,
a partir da utilização desse método repressivo, acreditavam terem descoberto uma
forma de produzir um crime perfeito, pois dentro de sua lógica desumana, se não há
vítimas, não há perpetradores, nem crime. Os desaparecimentos forçados desde os
primeiros momentos deram os sinais do que, ao longo dos anos veio a constituir o
principal método de controle político e social dos países latino-americanos a partir
da década de sessenta de forma sistemática: impunidade e transgressão absoluta
das leis mais elementares da convivência humana.
Perruso (2010) defende que há registros de antecedentes de desaparecimentos
na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Na primeira, se apresentou a partir da
ocultação de corpos de soldados mortos em combate, o que levou a Conferência

realizadas pelo Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, criado


pela Comissão dos Direitos Humanos (1980), responsável por criar um dos primeiros mecanismos
temáticos para o monitoramento de fenômenos violadores dos direitos humanos no âmbito mundial,
sobretudo, no intuito de “resolver” a questão dos “desaparecimentos” de pessoas como prática
política de regimes ditatoriais, intimamente associada à tortura, detenção arbitrária e execução de
pessoas identificadas como “militantes”, “oposicionistas” e “inimigos do regime” (AZEVEDO, 2016).
12. Corte IDH. Caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) c. Brasil. Exceções Preliminares,
Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24 de novembro de 2010. Série C nº 219.
13. Corte IDH. Caso Molina Theissen Vs. Guatemala. Fondo. Sentencia de 4 de mayo de 2004. Serie
C No. 106, y Caso Molina Theissen Vs. Guatemala. Reparaciones y Costas. Sentencia de 3 de julio
de 2004. Serie C No. 108.
Internacional da Cruz Vermelha, em 1925, a determinar que placas de identificação
deveriam obrigatoriamente compor os uniformes dos militares. Bem como em
práticas nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, quando cerca de sete mil
pessoas foram secretamente transferidas para a Alemanha sob o decreto Nacht und
Nebel (Noite e Neblina), emitido pelo Comando Supremo do exército alemão em 17
de dezembro de 1941. Seguindo as ordens de A. Hitler, os nazistas recorreram ao
desaparecimento dos opositores para evitar que se transformassem em mártires de
seus povos, caso fossem submetidos a provações e sentenças de morte. O decreto
estabelecia que qualquer pessoa poderia ser detida e por simples suspeitas, fossem
“dissipadas”, que a informação não poderia ser obtida sobre a situação e o paradeiro
das vítimas, com as quais pretendiam produzir uma “intimidação efetiva” da
população.
A política de desaparecimento se impôs com impacto e eficiência na América
Latina como um método de Terror de Estado (TDE). Ao longo de duas décadas, o
método repressivo se estendeu a países como Chile, El Salvador, Uruguai, Colômbia,
Argentina, Peru, Bolívia, Haiti, México e Brasil. De acordo com os estudos de Padrós
(2007), esta modalidade surgiu como consequência da doutrina contra revolucionária
construída pelos militares franceses nas experiências coloniais na Indochina e na
Argélia. Segundo o autor, o método como tal começa a tomar forma na Guatemala
entre os anos de 1963 e 1962, sendo uma espécie de “laboratório” a partir da criação
da Polícia Judicial (força especial de segurança que atuava sem ordem judicial,
mas que detinha o poder de prisão de suspeitos, os mantendo incomunicáveis por
tempo indeterminado) e da atuação de esquadrões da morte, grupos armados que
demarcavam suas ações com cartazes onde se destacava a imagem de uma mão
preta (Mano Negra).
O contexto era de ebulição política internacional, marcado pela bipolarização
da Guerra Fria, por lutas de libertação nacional e movimentos terceiro-mundistas,
promovendo símbolos transnacionais que mobilizavam os conflitos políticos internos,
bem como forjando noções de oposição e unidade entre conjuntos de países.

Na América Latina, as disputas entre projetos associavam os ideais de


desenvolvimentismo nacionalista à cisão paradigmática entre os blocos
comunista e capitalista, que opunha irreconciliavelmente perspectivas “de
direita” e “de esquerda”. Apesar da proximidade com os Estados Unidos, a região
via disseminarem governos nacionalistas de caráter popular e proliferarem
movimentos sociais reformistas e revolucionários. Inúmeros processos
insurrecionais em todo o mundo, e o especial impacto da Revolução Cubana
sobre as esquerdas latino-americanas, alimentavam os imaginários políticos,
fazendo predominar a visão de que as transformações sociais almejadas deveriam
ser arrancadas pela força, através de confronto violento, luta armada, guerrilha
e outras formas de revolução social (AZEVEDO, 2016, p. 56).

O desaparecido político, portanto, surge com a prática do desaparecimento


forçado. Ele se configuraria nesse sistema como a pessoa que expressava ou era
interpretada como militante e oposicionista. Um sujeito social identificado com as
esquerdas, considerado pela Doutrina de Segurança Nacional um terrorista, um
inimigo da nação a ser combatido, a quem toda sorte de intervenção estaria legitimada.
Segundo Barbosa Lima Sobrinho (1979), no Brasil a coluna dos desaparecidos excluía
de todo a hipótese do reaparecimento.
Na ditadura argentina, o desaparecimento forçado estabeleceu uma mudança
significativa na dinâmica das relações de poder em razão dos reajustes das estratégias
do regime militar. Em procedimentos ilegais, fazendo-se passar por comandos
clandestinos, as Forças de Segurança do Estado detinham os suspeitos sem qualquer
prova. Dadas às características do procedimento, a prisão era na verdade um sequestro
que permitia o início do processo de “desaparecimento”. O que se pode observar
a partir daqui é um refinamento do método. Grupos como a Aliança Argentina
Anticomunista e o comando da Libertadores da América, por exemplo, iniciaram
a transição para a ilegalidade ao sequestrar e assassinar supostos opositores de
esquerda entre 1973 e 1974, com total impunidade (MOLINA-THEISSEN, 1998).
Após o golpe de estado que derrubou Maria Isabel Perón em março de 1976, o poder
político foi totalmente centralizado pelos militares.
Pilar Calveiro (2003), cientista política que analisou os campos de concentração
argentinos a partir de sua própria experiência como “detida-desaparecida”14, entre
maio de 1977 e outubro de 1978, fala de um poder desaparecedor fundado pelo
Golpe de Estado em todo território nacional com a instauração dos chamados
campos de “concentração-extermínio” ou Centros Clandestinos de Detenção,
Tortura e Extermínio (CCDTyE), forjados para aniquilar os movimentos sociais e
políticos. A tarefa dos militares argentinos era de “disciplinamento da sociedade

14. Para maior aprofundamento do conceito de detido-desaparecido ver Gatti (2010).


para moldá-la à sua imagem e semelhança [das Forças Armadas]” (CALVEIRO,
2013, p. 26). Essa narrativa pode ser identificada em uma das falas do líder golpista
General Videla, em 1975: “tantos argentinos morrerão quantos forem necessários
para preservar a ordem”.

Una vez que el campo de concentración obtenía la información que el


prisioneiro podia dar, o bien cuando ésta perdía utilidade, una vez consumada
su “desaparición” como sujeto dentro de los laberintos concentracionarios, la
persona pasaba a ser considerada como un material de desecho y, como tal,
quedaba a la espera, inmovilizada, ciega, sorda y muda, en aquellos “depósitos”
de cuerpos inertes y aterrorizados, aunque potencialmente resistentes. Estaba
entonces lista para la fase final: la supresión de la vida biológica y la posterior
“desaparición” del cuerpo mismo, del cadáver (CALVEIRO, 2003, p. 118-119).

Calveiro afirma que o desaparecimento no Brasil, se constituiria como uma


das práticas que envolvia um poder torturador. Havia, segundo a autora, uma
certa preocupação com a legitimidade institucional, caracterizada pelo modelo
centralizado e seletivo de informações para desestruturar grupos oposicionistas, pois
mesmo que manipulada, o governo se ocupava em dar um ar de legitimação legal
às suas ações. Exemplo disso foi a criação, em 1969, do “auto de resistência” como
um instrumento policial para justificar os assassinatos de opositores, geralmente
numa situação forjada de resistência armada à prisão. Era comum que a cena de
execução fosse alterada para sustentar a narrativa de autodefesa (BENTO, 2018).
Instrumento este que é utilizado até os dias atuais15, sob os mesmos discursos e
práticas.
No entanto, há autores brasileiros que discordam dessa premissa de que a
repressão brasileira se caracterizaria muito mais como “poder torturador” do que
como um “poder desaparecedor”. Isso se daria pelo fato de que o fenômeno do
desaparecimento era maciçamente encarado no Brasil como um episódio específico
ditatorial e, mesmo nesse contexto, sem grande amplitude, se comparada às cifras
argentinas e chilenas de números oficiais de desaparecidos políticos. Franco (2018)
em sua tese intitulada “Da biopolítica à necrogovernamentalidade: um estudo

15. Para maior problematização na discussão sobre o auto de resistência ver à respeito: Bento (2018),
Farias (2012) e Misse et al. (2011).
sobre os dispositivos de desaparecimento no Brasil” defende que esta ideia precisa
também ser questionada. Segundo o autor, para os que defendem tal ideia, tudo
se resolve numa simples inferência:

[...] só pode ser considerado desaparecido aquele que desapareceu: 1) em razão de


participação em atividade política e 2) pela ação de agentes públicos da ditadura.
Como são poucos casos no Brasil que atendem aos critérios 1 e 2, então não é
possível afirmar que existiu por aqui um “poder desaparecedor”. (FRANCO,
2018, p. 15).

É, portanto, da associação do desaparecimento com o desaparecimento político,


praticado por agentes da ditadura brasileira, que esta interpretação associa “poder
desaparecedor” com “o poder do governo ditatorial de produzir desaparecidos
políticos”. Essa concepção restringe o conceito de poder ao Estado ditatorial, ao
mesmo tempo que limita-se a noção de desaparecimento à causa que o produziu,
no caso, as motivações políticas do desaparecido. Se por um lado, há o recorte
com precisão da categoria de desaparecimento político, permitindo melhor sua
investigação, por outro, sua fragmentação dificulta que sobre ele se formule uma
compreensão mais abrangente, que, “referindo-nos ao método paradigmático, seja
capaz de expor seu paradoxal estatuto topológico e temporal” (FRANCO, 2018, p.15).
De acordo com os dados divulgados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV),
entre 1964 e 1985, 243 pessoas foram vítimas de desaparecimento forçado. No
entanto, Franco sublinha que o total de desaparecidos políticos durante esse período
da história do Brasil é certamente maior, conforme os próprios fatos apontados
no segundo volume do relatório final da CNV e de diversos movimentos sociais.
Nestes 243 desaparecidos listados pela CNV, não se encontram, por exemplo, índios
e camponeses que morreram em decorrência de conflitos por terra, vítimas de
esquadrões da morte, entre outros grupos sociais sobre os quais incidiu a ditadura
brasileira, destaca o autor.
Mas deve-se também salientar que, apesar das produções acadêmicas de certa
forma elegerem o período ditatorial um marco da celebração da brutalidade policial,
faz-se necessário ponderar e questionar a hegemonia da interpretação de que o
regime militar teria sido marcado por uma violência institucional sem precedentes.
Flauzina esclarece que “o fato de essas brutalidades terem sido percebidas
como excepcionais não se encontra relacionado com a novidade das práticas de
violência, mas sim da inauguração desta violência contra os corpos brancos”.
Neste esquema, a narrativa que considera a ditadura brasileira como momento
inaugural do estabelecimento da violência institucional, invisibiliza a violência
racista de Estado historicamente direcionada contra os corpos negros (STREVA,
2016, p. 95).

Segundo Achille Mbembe (2016), nas configurações nacionais forjadas


historicamente sob o processo do colonialismo, a violência constituiu a forma
original do direito, isto é, a exceção enquanto estrutura da soberania. Ao dialogar
com a noção de biopoder de Michel Foucault, ele examina as trajetórias pelas
quais o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa
do direito de matar. Em tais instâncias, o poder se refere e apela continuamente à
emergência, à exceção e a uma noção ficcional do inimigo. Sua contribuição avança
em alguma medida as reflexões foucaultianas acerca do debate sobre o racismo de
Estado, ao passo em que introduz a questão colonial, o modelo de plantation e o
sistema escravocrata como um dos primeiros exemplos de experiência biopolítica.
O espaço da ocupação colonial era a matéria-prima da soberania e da violência,
onde soberania significou ocupação e ocupação significou “relegar o colonizado
em uma terceira zona, entre o status de sujeito e objeto” (MBEMBE, 2016, p. 135),
resultando numa tripla condição de perda: perda de um “lar”, perda de direitos
sobre seu corpo e perda de status político. Isso nos lembra alguma coisa?
Ainda que não tenhamos aqui a pretensão de rastrear e identificar exaustivamente
o momento histórico o qual se dá a gênese do fenômeno, as reflexões colocadas por
Mbembe em “Necropolítica” nos auxiliam a compreender que as gramáticas que
constituem o que hoje denominamos desaparecimento forçado, tais como, sequestrar,
aprisionar, torturar, matar, destruir e ocultar, mais que transcendem ao período
ditatorial, basta voltar os olhos para ver que estes elementos foram os pilares para
a construção dos Estados–Nação da América Latina. Nesse sentido, os métodos de
repressão utilizados pelo regime autoritário brasileiro podem ser observados, na
verdade, nos termos de uma sofisticação das técnicas de tortura e de truculência
que já vinha, há muito, vitimizado a população negra (FLAUZINO, 2006).
Longe de constituir uma exceção própria aos momentos críticos citados, como as
guerras e golpes militares, as técnicas de fazer e deixar desaparecer se apresentam
na história brasileira como uma constante. Tais implicações nos convocam a uma
virada epistemológica da discussão histórica e política do tema do desaparecimento
forçado e do assassinato de pessoas, a partir dos debates que insurgem tanto em
âmbito acadêmico e de campos analíticos que vão pensar as construções e práticas
da violência de Estado, sobretudo contra a população negra no Brasil (CARNEIRO,
2009; GONZALES, 1984; ALMEIDA, 2019), quanto a partir dos movimentos sociais
organizados pela sociedade civil, como os coletivos de mães e familiares de vítimas
de violência de Estado. Dentre eles, destacamos os coletivos de mães e familiares do
Estado do Rio de Janeiro: Mães de Acari, Rede de Mães e Familiares de Vítimas de
Violência de Estado da Baixada Fluminense, Rede de Comunidades e Movimentos
Contra a Violência, Movimento Moleque, e Mães de Manguinhos.

Violência e espera
O início da década de 1990 é inaugurado por algumas das maiores chacinas visíveis
da história do estado do Rio de Janeiro, como a de Acari (1990), Candelária (1993)
e Vigário Geral (1993). Logo após, entre os anos de 1995 e 1998, foi instituída uma
premiação por bravura que ficou conhecida como gratificação faroeste, cujo lema
norteador do policial em serviço era “atirar primeiro e conferir depois” (FARIAS,
2012). Tal premiação era concedida preferencialmente a policiais envolvidos em
ocorrências com resultado de mortes de suspeitos. Essa estrutura de poder baseada
no extermínio de populações pobres, sobretudo negras e segregadas espacialmente,
foi terreno fértil para matadores se elegerem a vereadores, deputados estaduais e
prefeitos de municípios da Baixada Fluminense e para o surgimento dos primeiros
protótipos de milícias, fundamentam Diaz e Alves (2022).

Os protótipos de milícias começaram a surgir em meados dessa década, a partir


de ocupações urbanas em bairros como São Bento e Pilar, no município de Duque
de Caxias, e nos bairros cariocas Campo Grande e Rio das Pedras. Nos anos 2000,
o modelo de milícia chegaria ao que conhecemos hoje: milícias organizadas por
agentes públicos de segurança, por dentro do Estado, e atuando em parceria
com facções do tráfico de drogas para maximizar ganhos e enfrentar grupos
armados rivais. (DIAZ e ALVES, 2022, p. 164-165).
Vê-se que após a transição democrática, ocorreu uma ampliação da violência
policial direcionada contra parte da população civil, bem como o aumento
do comprometimento da polícia com o crime organizado e o crescimento da
criminalidade ordenada em diferentes facções e milícias. É nesse cenário que a
prática do desaparecimento ganha novas composições e se torna parte do repertório
da linguagem da violência urbana, contribui mais uma vez o trabalho de Araújo
(2012). O autor afirma que no ato de desaparecer corpos é possível identificar uma
espécie de divisão do trabalho entre “milícia”, “traficantes” e “polícia”, ora se
aproximando, ora se afastando, seja pela disputa ou pela cooperação do controle
de territórios e populações vinculado ao controle de circulação de mercadorias
ilícitas e à extração de renda. As discussões centrais de Araújo confirmam nossa
problematização de que grande fração dos homicídios praticados com envolvimento
de agentes de Estado e de facções tem no desaparecimento o seu método de ocultação
e de produção do terror.
De acordo a pesquisa realizada por Cano e Duarte (2012), intitulada “No
sapatinho”: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011), não é mesmo raro
que a execução sumária tome a forma de desaparecimento da pessoa e do cadáver,
pois desaparecer com um corpo se configuraria como “uma opção mais discreta
do que a morte no meio da rua” (CANO e DUARTE, 2012, p. 67), dificultando
também possíveis investigações dos homicídios. A região metropolitana do Rio de
Janeiro é hoje repleta de cemitérios clandestinos distribuídos estrategicamente ao
longo de todo o território, confundindo-se com os rios que cortam as cidades, um
grande componente no ato de fazer desaparecer corpos. Essas imagens podem ser
identificadas na fala de uma das mães entrevistadas por Araújo (2016, p. 47): “caso
se queira pesquisar os casos de desaparecimento, pode-se começar drenando todos
os rios da cidade”.
Catela (2001), ao discutir os rituais de sepultamento realizados pelos familiares de
pessoas desaparecidas forçadas na Argentina, fala que é raro que eles e elas aceitem
ou enunciem a ideia que um familiar possa ter sido jogado no rio. A água, o rio,
aqui, marcam um vazio intangível, extremo, do desaparecimento de corpos em
contrapartida à representação simbólica de que na terra, para além da possibilidade
de identificação, pelo menos permitiria “pensar nos corpos ‘descansando’ em um
espaço potencialmente localizável” (CATELA, 2001, p. 222-223).
De toda forma, são muitas as facetas de dor e sofrimento que esta prática violenta
impõe aos afetados e afetadas. Como exemplifica a trajetória de Izildete, que tem
percorrido um árduo caminho para a elucidação do caso de seu filho e seu sobrinho,
desaparecidos após abordagem policial desde o dia 9 de junho de 2003. Os dois
estavam saindo de uma festa junina que acontecia em um bar em Queimados, Rio
de Janeiro, até que foram abordados por policiais e, em seguida, jogados dentro
da caçamba de uma viatura. Fábio e seu primo não foram mais vistos desde então.
Sua busca por respostas é marcada por falta de informação, ameaças e burocracias,
mas se perguntada sobre a morte de Fábio, ela ainda responde: “Não, Fábio morreu
não. Eu ainda não tive resposta. (...) Pra mim ele ainda tá por aí. O Estado ainda
não me deu uma decisão” (SUBCOMISSÃO DA VERDADE NA DEMOCRACIA
“MÃES DE ACARI”, 2018, p. 26).
A espera de Izildete expressa aquilo que Ayuero (2011), ao se debruçar sobre
questões acerca da pobreza, do sofrimento ambiental e de políticas de espera,
nos fala de uma tempografia da violência. O tempo nesse sentido se torna parte
integrante fundamental do exercício de dominação e produção da vulnerabilidade.
No entanto, na contramão de um Estado que faz adiar, esperar, atrasar e criar falsas
esperanças, se olharmos sob a outra faceta desta mesma espera, Izildete, em vez
de marcar e facilitar a passagem do mundo dos “vivos” ao mundo dos “mortos” a
quem quer que a pergunte de seu filho, transforma suas ausências em um capital
de força política (CATELA, 2001). Sua espera não é passiva, ao contrário, é um ato
de testemunho da vida e do desaparecimento de seu filho.

Algumas considerações sobre o objeto inconcluso


O tema deste artigo não se esgota por si só, através das literaturas articuladas,
podemos perceber o fenômeno do desaparecimento forçado como um objeto de
múltiplos embates e dilemas, através de jogos de responsabilizações e disputas na
tríade família-polícia-Estado. Esse jogo de responsabilizações é dado ao caráter
plural que o tema enseja, imbricado entre os agentes das instituições e familiares
de desaparecidos.
Seguindo as análises de Catela (2001), os rituais colocados em cena para dar conta
do desaparecimento, em vez de marcar e facilitar a passagem do mundo dos “vivos”
ao mundo dos “mortos”, transformam a ausência do corpo em um capital de força
cultural e política que se expressa sob o registro de diferentes formas de denúncia de
mães e familiares de desaparecidos. Desta forma, a categoria desaparecido acarretou
em um sistema classificatório diferente, que se tornou eficaz para as pessoas que se
posicionaram em torno desta figuração, “tanto como forma de enunciação de um
drama privado quanto na arena pública” (CATELA, 2001, p. 213). Resultado de um
longo processo que não se deu com facilidade, passando por muitas etapas de ajustes,
idas e vindas em torno da constituição, uso e aceitação do termo desaparecido.
Além dos desafios conceituais da própria categorização do desaparecimento,
quando se é analisado na prática, nos estabelecimentos de instituições, o problema
se complexifica. Se por um lado a literatura aponta um engavetamento de arquivos
(FERREIRA, 2011), não levando em consideração as complexas e multivariadas
dimensões dos desaparecimentos, não há uma dimensão clara, procedimental
e protocolar que evidencie cada caso a seu modo. Do mesmo jeito, nessa trama
das responsabilizações, os próprios agentes categorizam de forma a conceituar
que o desaparecimento seja um problema de família ou um problema de polícia
(FERREIRA, 2011). A pouca relevância dada aos casos de desaparecimentos por
parte dos agentes de segurança abre um leque de interpretações que se orientam
de forma a classificar, racializar, estigmatizar corpos apenas no olhar (ARAÚJO,
2016). São as famílias que, no fim, acabam por serem as principais interessadas na
resolução dos casos e, por conta própria, se tornam responsáveis pela investigação
e busca de seus amores desaparecidos. É por meio das vozes de mães e familiares
que o desaparecimento sai do lugar do mero rumor.
A partir do balanço do debate, destacamos duas dimensões centrais apresentadas
pelas pesquisas articuladas, que colocam o(s) desaparecimento(s) como problema
social a ser combatido no Brasil:

1) A falta de sistematização de informações sobre o fenômeno e de precisão


acerca das diretrizes e definições para o enfrentamento dos desaparecimentos
impactam diretamente as políticas de assistência e de redes de atendimento aos
familiares de desaparecidos, produzindo um terreno fértil para o desinteresse
na investigação dos casos e desqualificação das vítimas, de seus familiares, e
seus locais de moradia.
2) Coagida pela própria atuação violenta de agentes estatais em articulação com
outros autores, como facções e milícias, que, juntos ou em embates, disputam os
lucros de mercados regionais do terror, a população vê o Estado e suas instituições
com descrédito, desconfiança e medo. Frente a esse cenário, os números de casos
subnotificados tornam-se impossíveis de mensurar. Sabemos que sem produção
alguma de dados, não há produção de políticas públicas: desaparecem, portanto,
pessoas, laudos, documentos, dados e políticas sociais que deem conta de tornar
legível a prática do desaparecimento forçado na arena pública.

A literatura aponta o fenômeno do desaparecimento e seus entrecruzamentos


sócio-histórico-políticos como um resquício de períodos ditatoriais na América
Latina e no Brasil, esses períodos destacaram-se como de grande relevância para
altos índices de desaparecidos civis, representados na figura do desaparecido político,
desaparecimentos cuja tônica se dá pela violência, morte e ocultação de corpos. No
entanto, destacamos que o olhar sobre o fenômeno não deve se restringir a esses
contextos históricos, pois as gramáticas que constituem o que hoje denominamos
desaparecimento forçado, tais como, sequestrar, aprisionar, torturar, matar, destruir
e ocultar, somadas entre si, com o investimento e consentimento direto ou indireto
do Estado em articulação com outros atores, transcendem ao período ditatorial.
Essa técnica está e sempre esteve atravessando sem aviso o cotidiano das pessoas,
inundando, como barragens rompidas, nossas cidades ajoelhadas, deixando marcas
de uma lama que não sai.

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O DESAPARECIMENTO FORÇADO
NOS TRATADOS INTERNACIONAIS
E NA CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS (CIDH)
Jaqueline de Sousa Gomes
Lorene Maia

Introdução
A partir de literatura e do referencial teórico que trata do tema e da categoria
“desaparecimento forçado”, faz-se aqui uma análise conjuntural da jurisprudência
internacional que deu escopo ao tema dos desaparecimentos e desaparecimentos
forçados e seus instrumentos jurídicos. A metodologia experienciada neste artigo
repousa na análise bibliográfica dos tratados internacionais que deram subsídios
jurídicos ao tema dos desaparecimentos forçados. O desaparecimento forçado
apresenta-se assim como objeto deste artigo, compreendendo um leque de análises
que fazem parte da pesquisa exploratória sobre desaparecidos e desaparecimentos
forçados na Baixada Fluminense - RJ. Nesta pesquisa ressalta-se os variados aspectos
quantitativos e qualitativos de pesquisa na investigação sobre o tema.
Cabe aqui destacar que grande parte dos debates sobre o tema dos desaparecimentos
forçados no Brasil foram compilados e analisados nos seguintes artigos que
compõem este livro, o capítulo 2 “Corpos insepultáveis: Uma breve revisão sobre
o desaparecimento forçado nas Ciências Sociais” e o capítulo 4 “Proposições em
torno da tipificação do crime de desaparecimentos forçados na legislação brasileira”.
Aras (2020) anuncia que o Sistema Interamericano de Direitos Humanos foi
inaugurado pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem em 1948
e em 1969 foi complementada pela Convenção Americana de Direitos Humanos,
também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, entrando em vigor apenas
em 1978. No Brasil esse sistema passou a vigorar apenas em 1992.
Sob análise interdisciplinar entre o Direito Internacional Público, os Direitos
Humanos e Direito Penal, Santos e Boiteux (2012) analisam os tratados internacionais
e a decisão da Corte Interamericana sobre as obrigações do Brasil acerca dos
desaparecimentos forçados. Segundo as autoras, a proteção dos direitos do homem
é salvaguardada por três vertentes que agem simultaneamente na proteção
internacional da pessoa humana, são elas: O Direito Internacional dos Direitos
Humanos; o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos
Refugiados.

A partir desses instrumentos genéricos, se mostrava essencial que a comunidade


internacional regulasse especificamente as obrigações dos Estados na prevenção e
repressão da prática do desaparecimento /forçado, tendo sido editada a Declaração
sobre a Proteção de todas as pessoas contra o Desaparecimento Forçado, que
enumera os direitos violados do desaparecido e sua família, determinando que
nenhum Estado deverá cometê-lo, autorizá-lo ou tolerá-lo, devendo ser adotadas
todas as medidas cabíveis à sua prevenção e erradicação. (SANTOS e BOITEUX,
2012, p. 04-05).

O conceito de responsabilização internacional do indivíduo, de acordo com


Santos e Boiteux (2012), surge a partir do Tribunal de Nuremberg, onde foi positivado
em 1998 a possibilidade de validar crimes cometidos contra a humanidade, nesse
sentido os desaparecimentos forçados são salvaguardados neste instrumento. Em
1994, foi elaborada a Convenção Interamericana sobre desaparecimentos forçados
(CIDH), determinando que a ação penal do crime de desaparecimento forçado não
está sujeita à prescrição.
Tomamos de empréstimo noções de alguns autores que possam nos auxiliar na
compreensão mais acentuada do termo “desaparecimento”. Carneiro (2017) destaca
que o crime de desaparecimento, portanto, é.

O sequestro de determinado cidadão, com privação de sua liberdade e sem a


devida comunicação ao juiz ou a algum outro funcionário designado pela lei,
de sua detenção ou privação.
É um crime pluriofensivo, pois ofende, ao mesmo tempo, vários bens da vida:
a liberdade e a segurança do cidadão, o devido processo legal, concretizado na
negativa à vítima de se comunicar com uma autoridade competente, sem contar
que esse crime vem normalmente acompanhado de ofensa à integridade física,
torturas e, não raras vezes, a própria morte (CARNEIRO, 2017, p. 103).

A complementação da categoria “desaparecimento forçado” na inspeção de


Santos e Boiteux (2012), pode ser concebida como “a privação de liberdade de uma
pessoa, por agentes governamentais ou particulares que atuem com o consentimento
estatal expresso ou tácito, seguida da negativa de revelar o paradeiro da vítima ou de
reconhecer a sua detenção” (2012, p. 03). De acordo com a legislação internacional,
o desaparecimento forçado pode ser concebido como uma modalidade de violência
praticada por agentes e organismos públicos do Estado. Consiste em pôr uma pessoa
(ou um grupo) ilegalmente sob a custódia de agentes estatais, privando-a, de qualquer
proteção da lei, portanto, sujeitando-a a todo tipo de arbitrariedades, violências
físicas, psicológicas e, dada essa escalada de violências e ilegalidades, a morte e a
ocultação do corpo como ação final para a ocultação da materialidade do crime.
Como analisa Alfen (2013), o crime de desaparecimento forçado é uma das
mais violentas formas de violação dos direitos humanos e, na América Latina,
surge fundamentalmente, nos anos sessenta como uma prática; cuja característica
principal baseou-se em proporcionar a negativa em oferecer informação - para
ocultar informações de paradeiro ou situação das vítimas com a finalidade de
preservar a autoria do crime.

Casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos


(CIDH) na América Latina e no Brasil.
Na América Latina e consequentemente no Brasil, podemos notar um cenário
de graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade, que são
resultados de guerras civis e ditaduras nos últimos 60 anos. Para Santos e Boiteux
(2012), ainda hoje é insatisfatória a responsabilização e a reparação por todas essas
violações.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos padronizou quais seriam as
obrigações dos Estados contra as violações dos direitos humanos, haja vista a
sentença de casos específicos na América Latina e no Brasil, julgados pela CIDH,
que deram relevância e fundamento jurídico para os desaparecimentos forçados.

Em seu primeiro julgamento de mérito, a corte considerou que o fenômeno


do desaparecimento é uma forma complexa de violação de Direitos Humanos
que fere de maneira múltipla e contínua diversos direitos reconhecidos na
convenção, e declarou que o sequestro desrespeita o artigo 7º da CADH, ao
privar arbitrariamente a liberdade de alguém, impede seu acesso a um juiz e a
recursos capazes de controlar a legalidade da sua prisão. (SANTOS e BOITEUX,
2012, p. 07).

O início da prática desse tipo de crime tem o primeiro registro na Guatemala


em 1962, sendo também adotada nas décadas seguintes em países como El Salvador,
Chile, Uruguai, Argentina, Brasil, Colômbia, Peru, Honduras, Bolívia, Haiti e
México (ALFEN, 2013), entre outros.
No Caso Blake vs. Guatemala16, o tribunal se pronunciou sobre o caráter
permanente e continuado do desaparecimento forçado. Dado ao caráter indeterminado
do paradeiro da vítima, o crime teria o status de permanente e continuado. O caso
Bámaca Velásquez17, além do entendimento de que o desaparecimento forçado
violou artigos da CIDH, inova ao fazer menção ao direito à personalidade jurídica
do desaparecido, não previsto até então. O direito à personalidade jurídica também
aparece no caso Anzualdo Castro vs. Peru18, “admitindo-se finalmente que o
desaparecimento subtrai a pessoa do ordenamento jurídico, impedindo o gozo dos
direitos dos quais é titular e negando a existência da vítima” (SANTOS e BOITEUX,
2012, p. 08).

Em 2008, a jurisprudência interamericana passou a utilizar também outros


instrumentos internacionais como parâmetros nos casos de desaparecimento – a
Convenção da ONU sobre este crime e o Estatuto de Roma. A corte declarou,
no caso Heliodoro Portugal, que a responsabilidade internacional do Estado
pode ser agravada se constatada a prática sistemática aplicada ou tolerada pelo
mesmo, pois seria considerado um crime contra a humanidade. (SANTOS e
BOITEUX, 2012, p. 08).

16. Blake vs. Guatemala: Em 3 de agosto de 1995, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
representou um caso contra a República da Guatemala tendo como origem a denúncia 11.219,
recebida em 18 de novembro de 1993, por sequestro e assassinato de Nicholas Chapman Blake por
agentes do Estado guatemalteco em 28 de março de 1985, e pelo seu desaparecimento por mais de
sete anos, até 14 de junho de 1992. Ver a sentença em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/
articulos/seriec_36_esp.pdf> .
17. Bámaca Velásquez vs. Guatemala: Em 30 de agosto de 1996, a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos representou um caso contra a República da Guatemala tendo como origem a
denúncia 11.129 em razão do Estado violar os seguintes direitos em detrimento de Efraín Bámaca
Velásquez: Direito ao Reconhecimento da Personalidade Jurídica, Direito à Vida, Direito à Igualdade,,
Direito à liberdade pessoal, Garantias Judiciais, Liberdade de Pensamento e Expressão, Proteção
Judicial, Obrigação de Respeitar e Garantir Direitos, Prevenir e Punir a Tortura. Ver a sentença em:
<https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_70_esp.pdf>.
18. Anzualdo Castro vs. Peru: Em 11 de julho de 2008, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos representou um caso contra a República do Peru tendo como origem a denúncia 11.385
apresentada à Secretaria da Comissão em maio de 1994, sobre o suposto desaparecimento de Kenneth
Ney Anzualdo Castro em 16 de dezembro de 1993, supostamente executado por agentes do Serviço de
Inteligência do Exército após ser sequestrado ou detido e levado para o porão do quartel-general do
Exército, onde teria sido executado e os seus restos mortais cremados. Ver a sentença em: <https://
www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_202_esp.pdf>.
De acordo com Santos e Boiteux (2012) no caso Heliodoro Portugal vs. Panamá19,
adotou-se o princípio de que os Estados deveriam adequar suas normas internas
às normas internacionais, sendo obrigatória a tipificação como delito autônomo,
levando em consideração os seguintes parâmetros: “a desnecessidade de a privação da
liberdade ser ilegal, a negativa de fornecer informações sobre o paradeiro da pessoa,
a negativa de reconhecimento da privação da liberdade, a proporcionalidade da pena
cominada, e a natureza continuada do delito” (SANTOS e BOITEUX, 2012, p. 08).

Desde a sua primeira demanda, a Corte Interamericana determinou que o


Estado tem o dever de prevenir razoavelmente e investigar seriamente as
violações de direitos humanos que tenham sido cometidas no âmbito de sua
jurisdição, além de assegurar à vítima uma reparação adequada, obrigações que
decorrem do expresso no artigo 1.1 da Convenção Americana: O compromisso
de organização do aparato governamental e de todas as estruturas por meio das
quais se manifesta o exercício do poder público, para que possam assegurar o
livre e pleno exercício dos direitos humanos. (SANTOS e BOITEUX, 2012, p. 09).

Como indica Alfen (2013), no Brasil essa prática de crime esteve inicialmente
ajustado ao período da ditadura militar que teve início com o golpe militar em 1964
até o ano de 1979, período em que um incontável número de pessoas esteve submetido
a crimes de tortura, desaparecimento e morte. No entanto, o único caso brasileiro
julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos refere-se ao caso Gomes
Lund e outros vs. Brasil. De acordo com Jardim (2011), a Corte Interamericana de
Direitos Humanos, neste caso conhecido também como Guerrilha do Araguaia,
responsabilizou o Brasil a tipificar o crime de desaparecimento forçado de pessoas.
O caso corresponde à responsabilização do Estado Brasileiro pelo desaparecimento
de cerca de 70 pessoas, entre eles, membros do Partido Comunista do Brasil e
camponeses aliados nas imediações do Rio Araguaia (PA). As operações do exército
no Araguaia ocorreram durante o período militar entre 1972 e 1975, na erradicação

19. Heliodoro Portugal vs. Panamá: Em 23 de janeiro de 2007, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos representou um caso contra a República do Panamá tendo como origem a denúncia 12.408
apresentada à Secretaria da Comissão em junho de 2001, pelas violações cometidas pelo Estado
em razão do suposto desaparecimento forçado e execução extrajudicial de Heliodoro Portugal,
pela suposta falta de investigação e punição dos responsáveis pela
​​ alegada falta de reparação a seus
familiares. Ver a sentença em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_186_esp.pdf>.
dos guerrilheiros, entre suas práticas comumente usadas destacam-se a detenção
arbitrária, tortura e desaparecimento forçado.

(...) O §109 da mencionada sentença determina que o Brasil deva regulamentar o


desaparecimento forçado como delito autônomo, a fim de permitir a persecução
penal de um crime que se caracteriza justamente pelo objetivo de impedir o
exercício dos recursos legais pelas vítimas e familiares, e eliminar todos os
obstáculos jurídicos para julgar seus responsáveis. Os §§ 284-7 determinam que
a tipificação do delito do desaparecimento forçado de pessoas é uma garantia
de não repetição do ilícito. (JARDIM, 2011, p. 05).

A prática contínua dos crimes de desaparecimento forçado de pessoas em toda a


América Latina, em especial nos países em que regimes ditatoriais foram instalados
motivou, portanto, mobilizações jurídicas internacionais para reprimir esse tipo
de crime e regulamentar instrumentos capazes de conscientizar e responsabilizar
os Estados.

Dos Marcos Legais do Crime de Desaparecimento Forçado


Como relata Carneiro (2017), o crime de desaparecimento forçado frequentemente
aparece nos julgamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos que, em tais
julgamentos, esteve alerta em relação à proteção aos cidadãos dos Estados-membros,
percebendo e julgando os abusos e arbitrariedades proferidas por autoridades estatais
nos períodos mais perversos das ditaduras militares do continente.
Para tanto, marcos legais foram estabelecidos desde o final da década de sessenta.
Esses marcos são fundamentais para que Estados sejam julgados e responsabilizados
pelos crimes cometidos e, ainda, para que assumam um compromisso de prevenir
a prática desse crime. São eles:
- A Convenção Interamericana de Direitos Humanos, ou Pacto de São José
da Costa Rica: celebrada em 1969, na cidade do mesmo nome, sendo ratificada
pelo Brasil somente em 7 de setembro de 1992.
- A Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos
Forçados, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 18 de dezembro
de 1992 e promulgada no Brasil somente em 2016 pelo decreto nº 8.767.
- Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas:
Aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos que se
reuniu em Belém do Pará, Brasil, em 1994. O Congresso Nacional aprovou o Projeto
de Decreto Legislativo nº 116 em 2008, somente sendo promulgada em 2016, pelo
decreto nº 8.766.
- O Estatuto de Roma e o Tribunal Internacional em Haia: originados em
Roma na Itália, em 1998, por meio de um tratado que formulou o Estatuto e fundou
o tribunal permanente com autoridade para julgar os crimes de desaparecimento
forçado, tipificando a conduta da prática desse crime como “crime contra a
humanidade”. O tratado em questão foi assinado pelo Brasil em 7 de fevereiro de
2000 e ratificado em 20 de junho de 2002. O Estatuto de Roma prevê e diferencia
crimes cometidos contra a humanidade, crimes de guerra, crimes de genocídio e
crimes de agressão. Definindo, também, em seu art. 7º, § 1º, os crimes contra a
humanidade:

(a); extermínio (b); escravidão (c); deportação ou transferência forçada da população


(d); encarceramento ou outra grave privação da liberdade física em violação às
normas de direito internacional (e); tortura (f); estupro, escravidão sexual,
prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou outra forma de
violência sexual de semelhante gravidade (g); prisão ilegal (h); desaparecimento
forçado (i); crime de apartheid; (j) e outros atos desumanos (k). (Art. 7º, § 1º
ESTATUTO DE ROMA). (Grifo Nosso).

A Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os


Desaparecimentos Forçados foi aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas,
em 20 de dezembro de 2006, aberta para assinatura em 6 de fevereiro de 2007,
entrou em vigor oficialmente em 23 de dezembro de 2010, quando foi ratificada
como instrumento vigente em 20 países. Essa convenção respondeu a uma enorme
lacuna legal na legislação internacional sobre os direitos humanos e se tornou um
marco instrumental na caminhada para acabar com a prática desse tipo de crime.
O Brasil tornou-se signatário em 2007.
Como marco instrumental fundamental para prevenir e reprimir a prática do
crime, a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os
Desaparecimentos Forçados veta, ao longo de seus 45 artigos, os desaparecimentos
forçados sem exceção, salientando explicitamente que “o desaparecimento forçado
é uma violação proibida em todos momentos”. Nem a guerra, nem o estado de
emergência ou razões imperativas de segurança nacional, instabilidade política
pública ou emergência podem justificar um desaparecimento forçado” (Artigo 1).
A Convenção define o desaparecimento forçado de pessoas em seu Artigo 2º como:

Para os efeitos desta Convenção, entende-se por “desaparecimento forçado” a


prisão, a detenção, o seqüestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade
que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas
agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subsequente recusa
em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro
da pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei. (CONVENÇÃO
INTERAMERICANA SOBRE O DESAPARECIMENTO FORÇADO DE
PESSOAS, ADOTADA EM BELÉM DO PARÁ, BRASIL, 1994).

Nesse sentido, a Convenção também define em seu Artigo 5º que a prática


generalizada ou sistemática de desaparecimento forçado constitui um crime contra
a humanidade.

Marcos na legislação brasileira


Muito embora o Brasil seja signatário e tenha ratificado tratados e convenções que
se apresentam como marcos regulatórios na legislação internacional, até os dias
atuais não houve um efetivo engajamento para com as obrigações pertinentes aos
Estados-Partes em tipificar esse crime, prevenir e combatê-lo.
Isso porque, em conformidade com o que analisa Alfen (2013), a principal
implicação para os Estados-Partes de estar em acordo com as normas internacionais,
é a obrigação de agir legalmente e adotar quaisquer medidas necessárias para tipificar
internamente o delito de desaparecimento forçado, bem como de proporcionar uma
pena compatível com gravidade deste crime. Portanto, é fundamental ressaltar que
apesar de subscrever e ratificar tais documentos legais internacionais, o crime de
desaparecimento forçado de pessoas não está tipificado no ordenamento jurídico
brasileiro, mesmo que nacionalmente a Constituição Federal do Brasil, em seu
art. 5º, § 4º determine que o país está submetido à jurisdição do Tribunal Penal
Internacional.
Não obstante, são poucas as leis nacionais que se referem ao crime de
desaparecimento e parece haver desinteresse e descaso em relação a essas ações
(a própria ratificação da Convenção Interamericana ocorreu somente oito anos
após a tramitação do Projeto de Lei no Congresso Nacional). Cabe citar leis que
mencionam o desaparecimento forçado no Brasil:
- A Lei nº 9.140/1995, que reconhece como mortas as pessoas desaparecidas no
Brasil em razão de participação em movimentos contrários ao regime da ditadura
no território nacional;
- A Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2012, que cria a Comissão Nacional
da Verdade, com a função de apurar as circunstâncias que deram ensejo ao
desaparecimento de pessoas durante os períodos de exceção.
Em 26 de março de 2009, acompanhando as designações do Estatuto da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos submeteu ao Tribunal Internacional uma demanda contra o Estado
brasileiro, que foi originada de uma petição oferecida em 7 de agosto de 1995,
pelo Centro de Justiça e Direito Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch/
Americas. A petição foi apresentada em nome de pessoas desaparecidas na Guerrilha
do Araguaia e dos seus familiares, dando origem a sentença proferida pela Corte
em 24 de novembro de 2010, condenando o Brasil, entre outros termos a:
- Invalidar as disposições da Lei de Anistia Brasileira (Lei nº 6.683/1979), por
impedirem a investigação e a punição de violações de direitos humanos (disposições
incompatíveis com a Convenção Americana);
- Assumir responsabilidade pelo desaparecimento forçado e pela violação dos
direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e
à liberdade pessoal, já estabelecidos nos artigos. 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos;
- Cumprir a obrigação de adequar legislação interna à Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, contida em seu art. 2º, em relação aos artigos. 8.1, 25 e
1.1 do mesmo instrumento;
- Assumir responsabilidade pela violação de diversos direitos contidos na
Convenção Americana, tais como: direito à liberdade de pensamento e de expressão
(art. 13); direito à integridade física (art. 5.1), bem como pelo excesso de prazo por
ultrapassar o prazo razoável para o processamento da respectiva ação ordinária.
A Corte Interamericana condenou, ainda, o Brasil a desenvolver uma série de
atividades, tais como:
– Conduzir de maneira eficaz investigação penal dos fatos que dizem respeito
ao caso com o objetivo de esclarecê-los, apontar responsabilidades e determinar
as sanções penais e consequências previstas em lei;
– Buscar o destino das vítimas desaparecidas e, sendo possível, identificar e
apresentar os restos mortais aos familiares;
– Oferecer acompanhamento médico e psicológico que as vítimas necessitem;
– Realizar ato público internacional reconhecendo a responsabilidade do Estado
em relação aos caso;
– Implementar programa ou curso em período permanente e obrigatório sobre
a temática dos direitos humanos, dirigido às Forças Armadas em todos os seus
níveis hierárquicos;
– Adotar as medidas necessárias para tipificar o crime de desaparecimento
forçado de pessoas, de acordo com os parâmetros interamericanos, e conforme
estabelecido no § 287 da sentença;
– Continuar a desenvolver iniciativas que acompanhem toda informação sobre
a Guerrilha do Araguaia, bem como toda informação que se refere a violações de
direitos humanos durante o regime militar, garantindo o acesso a elas;
– Pagar os valores determinados em sentença a título de indenização; [...]
Mesmo diante dessa sentença condenatória do Estado brasileiro, não houve
avanços razoáveis em relação a tipificação do referido crime. Até mesmo as ações
violentas e crimes cometidos pelo regime militar vem sendo relativizados ampla e
publicamente por membros do executivo e legislativo, sendo essa uma outra forma
de violação das vítimas e de seus familiares. Portanto, se todos os marcos legais
apresentados são direitos fundamentais, previstos não somente nas convenções e
tratados internacionais assinados, mas na maioria das Constituições ocidentais,
a falta de comprometimento e violação por parte do Estado brasileiro deve ser
confrontada, combatida e sua interpretação ampliada para além do ocorrido na
ditadura militar.
Isso porque, como analisam Ambos e Böhm , “a figura do desaparecimento forçado
é sem dúvida uma figura extremamente complexa” (2013, p. 122). Consideram, no
entanto, sua tipificação e descrição enquanto crime contra a humanidade no que
tange ao direito penal interno.
De acordo com Ambos e Böhm (2013), o bem jurídico afetado pelo crime de
desaparecimento forçado pode se distinguir em três níveis: o individual que afeta em
primeiro plano o estado físico e psíquico da vítima e em segundo plano a segurança
em termos gerais. O nível familiar, em que se opõe ao direito da família de saber
do ocorrido e atuar juridicamente para preservar os direitos da vítima ou buscar
informações e reconhecimento sobre o crime cometido. E o nível coletivo em que
a sociedade é afetada pela obstrução dos mecanismos de gerência da justiça e pela
ausência de possibilidade de reconstruir a verdade histórica e social.

Dos crimes de desaparecimento forçado nos dias atuais


No Brasil, em 2020, foram 62.857 casos de desaparecimentos, 172 por dia, de acordo
com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021. Em termos absolutos, os
estados com o maior número de pessoas desaparecidas em 2018 foram: São Paulo
(18.342), Minas Gerais (6.835), Rio Grande do Sul (6.202), Paraná (5.377), Santa Catarina
(3.285) e Rio de Janeiro (3.216). Em 2019, no Estado do Rio de Janeiro, foram 4.619
desaparecidos, aproximadamente 385 pessoas por mês. Por dia, foram notificados
em média 13 casos, a maioria na capital e na Baixada Fluminense (particularmente
em Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo e São João de Meriti).
A expressividade dos números indicados ainda não leva em consideração
as subnotificações e a falta de um registro público padronizado sobre os casos
de desaparecimento, principalmente as que incorrem na possibilidade de um
desaparecimento forçado.
Como já destacado, os desaparecimentos forçados já foram, e continuam sendo,
muito usados em todo o mundo como estratégia de repressão e de terror exercido
pelo Estado contra opositores políticos, supostos criminosos ou mesmo contra
pessoas que se opõem a um grupo no poder. Trata-se de uma prática sancionada
no direito internacional como crime contra a humanidade e é considerada uma
das mais graves violações aos direitos humanos, utilizada amplamente no Brasil
pelo regime militar como mecanismo auxiliar de tortura e execuções sumárias de
inimigos político-ideológicos.
No entanto, atualmente, essa prática criminosa ainda está presente de modo
ilegal tanto em abordagens policiais quanto em ações de grupos criminosos com
a participação e/ou anuência de agentes públicos. O emblemático caso do ajudante
de pedreiro Amarildo Dias de Souza morador da favela da Rocinha (RJ), até hoje
desaparecido após ter sido levado por policiais a uma unidade da polícia pacificadora
(UPP) em 14 de julho de 2013 (caso que culminou na condenação de 12 policiais
militares), é um exemplo desse tipo de violência envolvendo agentes públicos e a
estrutura do estado.
Portanto, o desaparecimento forçado de pessoas é uma técnica amplamente
utilizada pelo Estado, seja para a manutenção de um poder político-econômico ou
como forma de gerar terror e medo. A prática desse tipo de crime deixou marcas
na história e na memória da sociedade e, ainda nos dias atuais, está associada a atos
e práticas do Estado e seus agentes, tal como nos casos de mortes decorrentes da
atuação policial, execuções sumárias, sequestros, tráfico de pessoas e de órgãos,
com o objetivo de ocultar provas e dificultar a investigação material de assassinatos.
Cabe salientar que em 2016 no governo Dilma Rousseff, foi determinado o
decreto de número 8.767 em 11 de maio, que promulga a Convenção Internacional
para a proteção de todas as pessoas contra o desaparecimento forçado. Importa
destacar também que este decreto define o crime de desaparecimento forçado no
Brasil, haja vista a não tipificação do desaparecimento forçado como crime; desse
modo, não temos na atualidade uma tipificação penal que criminalize os casos de
desaparecimento forçado. Os Projetos de Lei que tramitam no Congresso Nacional
tratando desse tema serão analisados com mais afinco na próxima seção deste
relatório: “Proposições em torno da Tipificação do crime de Desaparecimentos
Forçados na Legislação Brasileira”.

Considerações Finais
Este capítulo procurou estabelecer uma revisão sobre os acordos e tratados
internacionais envoltos no tema dos desaparecimentos forçados, os instrumentos
jurídicos que auxiliaram na compreensão do fenômeno e no fortalecimento do
debate jurídico no âmbito internacional e nacional.
Os caminhos percorridos aqui neste capítulo, compreenderam, a partir do
referencial teórico, um entendimento sobre o conceito da categoria desaparecimento
forçado no debate jurídico internacional. Apresentamos os casos julgados na Corte
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), casos estes julgados a partir da
experiência de alguns países latino-americanos e no Brasil. Apresentamos também os
marcos legais do crime de desaparecimento na legislação internacional e na legislação
brasileira. Ao final, fornecemos um panorama dos crimes de desaparecimento
forçado na atualidade brasileira.
O desaparecimento forçado como um crime contra a humanidade, ganha
notoriedade a partir do contexto de alguns países latino-americanos e no Brasil,
envolvidos com regimes ditatoriais desde os anos 60, apresentaram-se nesse contexto,
regimes de extrema violência, tortura, assassinatos e ocultações de cadáver. O caso
mais emblemático no Brasil que foi julgado pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), refere-se ao caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, correspondente
ao processo da Guerrilha do Araguaia na década de 70. Nesse caso, o Brasil foi
obrigado a tipificar o crime de desaparecimento forçado. No cenário internacional
referente aos países latino-americanos destacam-se os casos julgados na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o caso Blake vs. Guatemala em 3 de agosto
de 1995; o caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala em 30 de agosto de 1996; o caso
Anzualdo Castro vs. Peru em 11 de julho de 2008 e o caso Blake vs. Guatemala em
03 de agosto de 1995.
A literatura aponta que a proteção humana é salvaguardada por três instrumentos,
o Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Direito Internacional Humanitário
e o Direito Internacional dos Refugiados, a partir dessa tríade instrumental houve a
necessidade que os Estados membros também produzissem medidas de prevenção
do desaparecimento forçado. Assim, outros instrumentos jurídicos deram atenção
ao fenômeno do crime de desaparecimento forçado, destacam-se a Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José
da Costa Rica (1992); a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra
os Desaparecimentos forçados (1992) que foi aprovada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas e a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de
Pessoas, aprovada em Assembleia Geral das Organizações dos Estados Americanos
(1994); o Estatuto de Roma e o Tribunal Internacional em Haia (1998) e a Convenção
Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento
Forçado (2006).
Finalmente compreendemos e reiteramos a necessidade e importância de uma
tipificação do crime de desaparecimento forçado no Brasil; contudo, os instrumentos
jurídicos por si só não são suficientes para o combate e prevenção do crime de
desaparecimento forçado. Além da responsabilização jurídica do Estado importa
aprofundar a discussão sobre ações e políticas públicas no campo da segurança
pública que permitam a desarticulação e prisão de grupos armados com controle
de territórios e a permanente defesa pela restrita ação dos agentes policiais nos
certames da lei e garantia dos direitos humanos.
A literatura sobre o tema dos desaparecimentos forçados aponta para uma
dificuldade de caracterização do fenômeno, devido às polissemias em torno do
tema e a complexa dinâmica criminal que produz o fenômeno. Concordamos com
Oliveira (2007) quando ressalta o desaparecimento forçado como um problema
social a ser combatido no Brasil. Se faz necessário uma série de ações estatais
em âmbito jurídico, político e social que salientem não só a tipificação, mas a
prevenção e a correta responsabilização do Estado e outros agentes contra o crime
por desaparecimento forçado.

Referências Bibliográficas
ACNUDH. A Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os
Desaparecimentos Forçados. Santiago, Chile. Disponível em: <http://acnudh.org/wp-
content/uploads/2010/12/Carta-desaparecimentos-PORTUGUES-FINAL.pdf>. Acesso
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brasileiro. In: Crime de desaparecimento forçado de pessoas. AMBOS, Kai; BOHM,
Maria; ALFEN, Rodrigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
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ARAS, Vladimir. O Brasil diante do Sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
In: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; SILVA NETO, Manuel Jorge; MONTENEGRO, Cristina
Rasia; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. (Org). In: Direitos fundamentais em processo:
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SANTOS, Shana Marques Prado; BOITEUX, Luciana. A Responsabilização pelo
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(Org.). Anais do XXI Encontro Nacional do Conpedi. 1ed.Uberlândia: CONPEDI, 2012,
v., p. 12001-12029.

PROPOSIÇÕES EM TORNO DA
TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE
DESAPARECIMENTOS FORÇADOS NA
LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
Nalayne Mendonça Pinto
Lucas Nogarole

A proposta deste capítulo é compilar algumas informações necessárias para a


compreensão do debate sobre desaparecimentos forçados na legislação brasileira.
Apresentando de que forma o debate vem sendo recebido pelos legisladores a partir
do acolhimento dos tratados internacionais e da necessidade de tipificação penal
do crime de desaparecimento forçado na legislação penal pátria.
No primeiro momento cabe apresentar o Projeto de Decreto Legislativo - Acordos,
Tratados ou Atos Internacionais PDC 2230 de 2009 que trouxe para nosso contexto
legislativo a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra
o Desaparecimento Forçado, concluída pela Organização das Nações Unidas em
20 de dezembro de 2006 e firmada pela República Federativa do Brasil em 6 de
fevereiro de 2007.
Essa Convenção tramitou entre os anos de 2009 e 2010 na Câmara dos Deputados
sendo aprovada como Decreto Legislativo 661/2010. Alguns anos mais tarde a
Presidenta Dilma Rousseff considerando que o Congresso Nacional aprovou por
meio do Decreto Legislativo nº 661 de 2010 a Convenção, e destacando que o
Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação à mesma junto ao
Secretário-Geral das Nações Unidas em 29 de novembro de 2010, resolveu por
decretar a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o
Desaparecimento Forçado, concluída em 20 de dezembro de 2006 e firmada pela
República Federativa do Brasil em 6 de fevereiro de 2007 como Decreto Presidencial
Nº 8.767 de 11 de maio de 2016.
Esse documento traz importante contribuição para discussão dos desaparecimentos
forçados no âmbito nacional e internacional e define como desaparecimento forçado:

Artigo 1
1. Nenhuma pessoa será submetida a desaparecimento forçado.
2. Nenhuma circunstância excepcional, seja estado de guerra ou ameaça de
guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública,
poderá ser invocada como justificativa para o desaparecimento forçado.
Artigo 2
Para os efeitos desta Convenção, entende-se por “desaparecimento forçado” a
prisão, a detenção, o seqüestro ou qualquer outra forma de privação de liberdade
que seja perpetrada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas
agindo com a autorização, apoio ou aquiescência do Estado, e a subseqüente recusa
em admitir a privação de liberdade ou a ocultação do destino ou do paradeiro da
pessoa desaparecida, privando-a assim da proteção da lei (DECRETO 8767/2016).
Cabe destacar alguns aspectos relevantes na Convenção. A parte I do texto contém
o princípio geral, que se constitui na norma fundamental da Convenção, razão de
sua celebração, expresso pela assertiva do seu Artigo 1º o qual afirma: “Nenhuma
pessoa será submetida a desaparecimento forçado”. Em seguida no artigo 2º o
texto apresenta as definições de termos/situações para definir o desaparecimento
forçado. Os artigos 3º e 4º contém compromissos dos Estados signatários quanto à
adoção de medidas investigatórias e à criminalização do desaparecimento forçado.
O artigo 5º classifica o desaparecimento forçado como crime contra a humanidade,
tal como define o direito internacional aplicável e sujeito às consequências previstas
no direito internacional. Em sequência, os artigos 6º, 7º e 8º contêm normativas
referentes ao compromisso dos Estados signatários no sentido de responsabilizar
penalmente, no âmbito de seu ordenamento jurídico interno, toda pessoa, ou seu
superior, que cometa, ordene, solicite ou induza a prática de um desaparecimento
forçado, tente praticá-lo, seja cúmplice ou partícipe do ato.
Chama atenção ainda o artigo 24 que regula aspectos referentes às vítimas de
desaparecimentos, a começar pela definição da expressão “vítima”, nos termos
da Convenção, a qual designa a pessoa desaparecida e todo indivíduo que tenha
sofrido dano como resultado direto de um desaparecimento forçado. Nesse aspecto,
regula os direitos das vítimas tais como: o direito da vítima de saber a verdade sobre
as circunstâncias do desaparecimento forçado; o andamento e os resultados da
investigação e o destino da pessoa desaparecida; e o direito à reparação (material,
moral, à reputação, à dignidade e à reabilitação, entre outras).
Como destacado pela Convenção Internacional para a Proteção contra o
Desaparecimento Forçado é necessário que os países atuem para introduzir em
suas normas penais o crime referido, como aponta o artigo 4° da Convenção: “Cada
Estado Parte tomará as medidas necessárias para assegurar que o desaparecimento
forçado constitua crime em conformidade com o seu direito penal.” Esse é o debate
atual que o Congresso Nacional está a constituir em diferentes projetos de lei que
tramitam a fim de definir essa tipificação.

A Tipificação do Desaparecimento Forçado como Crime


Dessa forma, passamos agora a analisar os projetos que tramitam no Congresso
Nacional e tratam especificamente sobre a tipificação dos crimes relacionados aos
desaparecimentos forçados. Cabe destacar que a pesquisa encontrou na busca por
atividade legislativa 53 Projetos de Lei que tratam de desaparecimentos. Entretanto,
grande parte dos projetos orientam-se pelo debate sobre publicização de pessoas
desaparecidas, criação do banco de dados e cadastro nacional de pessoas desaparecidas
e mais especificamente crianças desaparecidas.
O Projeto de Lei 4038 de 2008 de autoria do Poder Executivo e apresentado pela
Deputada Rosinha PT/PR tramita na Câmara dos Deputados. Ele “Dispõe sobre
o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra
e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional,
institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal
Penal Internacional, e dá outras providências.” Este PL foi apensado ao PL 301/2007
que “Define condutas que constituem crimes de violação do direito internacional
humanitário, estabelece normas para a cooperação judiciária com o Tribunal
Penal Internacional e dá outras providências”; o mesmo tramita há exatos 16 anos,
tendo sido aprovado em todas as comissões necessárias e permanece aguardando
apreciação pelo Plenário desde 2018.
No PL 4038/2008 temos importante possibilidade de anteparo contra o crime
de genocídio e crime contra humanidade, sendo que seu Título III Artigo 33 assim
define o crime contra a humanidade por desaparecimento forçado:

Art. 33. Apreender, deter, sequestrar ou de outro modo privar alguém de liberdade,
ainda que legalmente, em nome do Estado ou de organização política, ou com a
autorização, apoio ou aquiescência destes, ocultando ou negando a privação da
liberdade ou informação sobre sua sorte ou paradeiro a quem tenha o direito de
sabê-lo, deixando o detido fora do amparo legal por período superior a quarenta
e oito horas:
Pena: reclusão, de cinco a quinze anos, sem prejuízo da concorrência de outros
crimes.
§ 1o Na mesma pena incorre quem ordena os atos definidos neste artigo ou
mantém a pessoa detida sob sua guarda, custódia ou vigilância.
§ 2o O crime perdura enquanto não seja esclarecida a sorte ou o paradeiro da
pessoa detida, ainda que sua morte ocorra em data anterior.

Passamos agora ao Projeto que visa incluir no Código Penal Brasileiro a tipificação
de Desaparecimento Forçado. Inicialmente, ele foi proposto como Projeto de Lei
do Senado n° 245, de 2011 de autoria do Senador Vital do Rêgo (MDB/PB). Sua
Ementa assim define o PLS:

Altera o Decreto-Lei nº 2.848/1940 (Código Penal) para incluir o art. 149-A


que trata do crime de - Desaparecimento forçado de pessoa -, para tipificar a
conduta de apreender, deter ou de qualquer outro modo privar alguém de sua
liberdade, ainda que legalmente, em nome do Estado ou de grupo armado ou
paramilitar, ou com a autorização, apoio ou aquiescência destes, ocultando o
fato ou negando informação sobre o paradeiro da pessoa privada de liberdade
ou de seu cadáver, ou deixando a referida pessoa sem amparo legal por período
superior a 48 horas.

O mesmo Projeto de Lei do Senado no seu Art. 149-A ainda dispõe sobre:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, sem prejuízo das penas correspondentes
a outras infrações penais.
§ 1º Na mesma pena incorre quem ordena ou atua de qualquer forma para
encobrir os atos definidos neste artigo ou mantém a pessoa desaparecida sob
sua guarda, custódia ou vigilância.
§ 2º O crime perdura enquanto não for esclarecido o paradeiro da pessoa
desaparecida ou de seu cadáver.
§ 3º A pena é aumentada de metade, se: I – o desaparecimento durar mais de 30
(trinta) dias; II – se a vítima for criança ou adolescente, portadora de necessidade
especial, gestante ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua capacidade de
resistência.”

Na justificativa, anexa ao PLS, o Senador Vital do Rêgo destaca que o


desaparecimento forçado de pessoas é um crime que provocou profundas marcas
na sociedade latino-americana e na brasileira em especial, pois foi “instrumento de
assassinato de muitos cidadãos mediante política de repressão e, mesmo décadas
depois, fomenta angústia em familiares e amigos diante da impossibilidade de
acesso aos restos mortais das vítimas”. Contudo, salienta que esses crimes não
estão revestidos apenas de aspectos políticos, mas ocorre com frequência por outras
motivações tais como “queima de arquivo, discriminação social, etc”; sendo um
crime complexo que “envolve várias condutas e agentes e, não raras vezes, culmina
em tortura e morte, com ocultação de cadáver”. O senador lembra ainda que o
Brasil foi advertido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH),
no Caso Gomes Lund e outros, em sentença de 24 de novembro de 2010, e assim
deve tipificar o desaparecimento forçado de pessoas como delito comum, e não
somente como crime contra a humanidade. Conclui defendendo que: “por essa
razão, a presente proposição almeja dar forma a esse mandamento judicial, bem
como adequar nossa legislação aos acordos internacionais assinados pelo País”
(Justificativa ao PLS 245/2011).
Este Projeto de Lei do Senado ao tramitar na Câmara dos Deputados passou
a receber a referência de Projeto de Lei 6240 de 2013. O mesmo já foi aprovado
na Comissão Direitos Humanos e Minorias (CDHM) e Comissão de Segurança
Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) e já possui parecer favorável
da Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC); o Deputado Orlando
Silva, que foi seu relator nesta comissão, votou pela constitucionalidade do PL
ressaltando a importância da matéria e a necessidade de aprovação do texto proposto
pelo Senado Federal nos seus termos originais (Parecer do relator em 02/12/2022).
Todavia o Projeto de Lei 6240/2013 ao tramitar na Câmara dos Deputados foi
acrescido de algumas modificações. A primeira delas foi a inclusão da tipificação de
desaparecimento forçado não apenas no Código Penal; acrescentando o art. 149-A
ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), como também
acrescentando o inciso VIII ao art. 1º da Lei nº 8.072 (Lei de Crimes Hediondos),
de 25 de julho de 1990, para considerar o desaparecimento forçado como crime
hediondo.
Observa-se ainda algumas alterações na redação da definição de desaparecimento
forçado e aumento expressivo da pena prevista em relação ao PLS que foi proposto
no Senado Federal com aumento da pena de 2 a 6 anos para de 6 a 12 anos.

Art. 1º O Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa


a vigorar acrescido do seguinte art. 149-A: Desaparecimento forçado de pessoa
Art. 149-A.
Apreender, deter, sequestrar, arrebatar, manter em cárcere privado ou de qualquer
outro modo privar alguém de sua liberdade, na condição de agente do Estado, de
suas instituições ou de grupo armado ou paramilitar, ocultando ou negando a
privação de liberdade ou deixando de prestar informação sobre a condição, sorte
ou paradeiro da pessoa a quem deva ser informado ou tenha o direito de sabê-lo:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, e multa.

Ainda no PL 6240/2013 foi descrito com mais detalhes outros crimes correlatos
que se associam às formas que auxiliam e acobertam o crime de desaparecimento
forçado; e também qualificando os casos nos quais houve uso de tortura e que
resultam em morte, com considerável aumento na previsão da pena de reclusão
de 20 a 30 anos; se desdobrando nos parágrafos a seguir:

§ 1º Na mesma pena incorre quem ordena, autoriza, consente ou de qualquer


forma atua para encobrir, ocultar ou manter ocultos os atos definidos neste
artigo, inclusive deixando de prestar informações ou de entregar documentos
que permitam a localização da vítima ou de seus restos mortais, ou mantém a
pessoa desaparecida sob sua guarda, custódia ou vigilância.
§ 2º Para efeitos deste artigo, considera-se manifestamente ilegal qualquer
ordem, decisão ou determinação de praticar o desaparecimento forçado de uma
pessoa ou ocultar documentos ou informações que permitam a sua localização
ou a de seus restos mortais.
§ 3º Ainda que a privação de liberdade tenha sido realizada de acordo com as
hipóteses legais, sua posterior ocultação ou negação, ou a ausência de informação
sobre o paradeiro da pessoa, é suficiente para caracterizar o crime.
Desaparecimento forçado qualificado
§ 4º Se houver emprego de tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou se do
fato resultar aborto ou lesão corporal de natureza grave ou gravíssima:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 24 (vinte e quatro) anos, e multa.
§ 5º Se resulta morte:
Pena – reclusão, de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, e multa.
§ 6º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até 1/2 (metade): I – se o desaparecimento
durar mais de 30 (trinta) dias; II – se o agente for funcionário público; III – se a
vítima for criança ou adolescente, idosa, portadora de necessidades especiais ou
gestante ou tiver diminuída, por qualquer causa, sua capacidade de resistência.
Por fim vamos tratar do Projeto de Lei 5215 de 2020 proposto por 31 Deputados
Federais do Partido dos Trabalhadores (PT) e apensado ao PL 6240/2013 que
tratamos acima. Sua ementa assim o define: “Dispõe sobre prevenção e repressão
ao desaparecimento forçado de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas,
altera o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal),
o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal) e a Lei nº 8.072,
de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos)”.
A justificativa do PL inicia alertando para o fato que no Brasil entre os 2007 a
2016, foram registrados 693.076 boletins de ocorrência por desaparecimento, sendo
8 (oito) desaparecimentos por hora nos últimos 10 anos, segundo dados do coligidos
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em estudo encomendado pelo
Comitê internacional da Cruz Vermelha (CICV). O texto assinado pelo Deputado
Paulão PT/AL aponta que o desaparecimento forçado de pessoas “é umas das
mais hediondas espécies de violação de direitos humanos, pela sua capacidade de
impingir de modo continuado sofrimento, angústia, danos psicológicos e incertezas
aos familiares das vítimas e à comunidade que os cercam”; sendo uma questão
humanitária que preocupa organismos nacionais e internacionais. Indica que é dever
do Estado “prevenir que pessoas desapareçam, bem como buscar e localizar pessoas
desaparecidas e adotar políticas para ação integral voltada às necessidades dos seus
familiares”. Lembra ainda que o Brasil já promulgou a Convenção Internacional
para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado por meio do
Decreto nº 8.767, de 2016; todavia, ainda não tipificou o delito do desaparecimento
forçado como crime, previsto no Código Penal.
Nesse sentido, o PL visa suprir essa lacuna e tipificar o crime de desaparecimento
forçado. “A sua tipificação, prevista no Projeto de Lei, é fundamental para um
diagnóstico desse fenômeno cruel, servindo como instrumento para a elaboração
de políticas públicas específicas visando o seu enfrentamento eficaz” (PL 5215/2020).
Os propositores destacam que o texto se harmoniza com a Convenção Internacional
para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, ao adotar
o seu conceito de desaparecimento forçado; e incluir as “diretrizes, os princípios,
as medidas de prevenção e repressão ao desaparecimento forçado de pessoas, os
dispositivos de proteção e assistência integral às vítimas e aos seus familiares, bem
como as campanhas educativas sobre o tema, previstas no texto do Projeto de Lei”.
Finaliza lembrando as milhares de famílias que tiveram um ente vitimado por essa
grave violação de direitos humanos. E assim conclui: “Em nome dessas famílias,
que segundo os evangelhos, são bem-aventuradas, pois tem sede e fome de justiça,
que espero contar com a pronta acolhida a essa iniciativa legislativa” (PL 5215/2020).
Em fevereiro de 2021, o Presidente da Câmara Arthur Lira definiu que a
proposição (que tramita apensada ao PL-6240/2013) deveria ir para apreciação do
Plenário da Câmara dos Deputados em regime de prioridade, todavia, desde então,
a mesa diretora da Câmara não colocou o projeto para ser discutido em plenário.

Apontamentos
O PL 5215/2020 acima apresentado está apensado ao PL 6240/2013 que veio do
Senado Federal como PLS 245/2011 e já foi discutido em comissões especiais e
tramitou em ambas as casas; entendemos que este é o projeto com reais condições
de aprovar a tipificação de crime de desaparecimento forçado no Brasil. Cabe nesse
momento aos legisladores levar essa discussão ao Plenário da Câmara dos Deputados
e construir um amparo legal sólido para especificação desse fenômeno criminal.
Entretanto, importa considerar que em 2019 foi promulgada a lei que institui
a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas (PNBPD), criada pela Lei
nº 13.812, de 16 de março de 2019, sendo a primeira política federal voltada para a
solução e prevenção dos casos de desaparecimento de pessoas. Uma política nacional
voltada para desaparecimento de crianças e adolescentes esteve mais avançada no
debate público, não apenas pela comoção social que causa o desaparecimento de
crianças, como também pela vulnerabilidade dos mesmos. Assim, dez anos antes,
em 2009, foi promulgada a lei 12.127/2009 que trata da criação do Cadastro Nacional
de Crianças e Adolescentes Desaparecidos.
A Lei nº 13.812 de 2019 destaca uma preocupação com a celeridade e organização
dos dados e informações sobre desaparecimentos e, em seu artigo Art. 3º define:

A busca e a localização de pessoas desaparecidas são consideradas prioridade com


caráter de urgência pelo poder público e devem ser realizadas preferencialmente
por órgãos investigativos especializados, sendo obrigatória a cooperação
operacional por meio de cadastro nacional, incluídos órgãos de segurança
pública e outras entidades que venham a intervir nesses casos.
Em seu artigo Art. 5º a lei define que Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas
tem por objetivo implementar e dar suporte à política através da criação de: *um
banco de informações públicas, de livre acesso por meio da internet; *um banco
de informações sigilosas, destinado aos órgãos de segurança pública, com registros
padronizados de cada ocorrência; além de *um banco de informações sigilosas,
destinado aos órgãos de segurança pública, que conterá informações genéticas e
não genéticas das pessoas desaparecidas e de seus familiares. Essa lei foi seguida
do Decreto 10.622 de 2021 que designou Ministério da Justiça e Segurança Pública
como a autoridade central federal de que deve tratar da Política Nacional de Busca
de Pessoas Desaparecidas e o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas e instituiu
o Comitê Gestor da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas, órgão
integrante da estrutura organizacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Em termos de cooperação dos cadastros já existentes a informação mais recente
que se tem notícia é que em maio de 2022 foi firmado o acordo de cooperação
assinado pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ministério da
Justiça e Segurança Pública, Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp),
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e o Ministério Público
do Estado do Rio de Janeiro visando ampliar a utilização do Sinalid, o sistema de
localização e identificação de desaparecidos dos MP´s, e viabilizar a criação de um
cadastro nacional de pessoas desaparecidas.

Referências Bibliográficas
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BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado 245 de 2011. https://www25.senado.
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BRASIL. Decreto Presidencial N 8.767 de 11 de maio de 2016. Disponível em: https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8767.htm#:~:text=DECRETO%20
N%C2%BA%208.767%2C%20DE%2011,6%20de%20fevereiro%20de%202007. Acesso em
outubro de 2022.
BRASIL. Decreto Legislativo 661 de 2010. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/
legin/fed/decleg/2010/decretolegislativo-661-1-setembro-2010-608269-exposicaodemotivos-
144799-pl.html. Acesso em outubro de 2022.

ANÁLISE DOS DADOS DO INSTITUTO


DE SEGURANÇA PÚBLICA
(ISP) SOBRE DESAPARECIDOS
E SUA RELAÇÃO COM OS
DESAPARECIMENTOS FORÇADOS
José Cláudio Souza Alves
Gabriel Souza Alves

Introdução
O ato de fazer ou deixar desaparecer corpos não é uma prática isolada ou acidental
dentro da realidade social da Baixada Fluminense e é necessário que se busque
métodos e metodologias de análise capazes de reconhecer e mensurar a totalidade do
fenômeno. Ao aparecer, à primeira vista, como evento trágico ou circunstância isolada
que decorre do cotidiano social, é recorrente nos depararmos com mistificações
de fatos e um desinteresse sobre a funcionalidade dos desaparecimentos forçados,
pouco questionadora das variadas representações sociais utilizadas para justificar
o acontecimento.
Quando estes fatos são abordados pela grande imprensa, costumam ser retratados
de modo espetaculoso, adotando-se alegorias do contexto social da periferia
metropolitana e sua violência cotidiana. Quando registradas por instituições do
Estado, os casos figuram apenas enquanto ocorrência sem viabilidade investigativa
ou são negligenciados enquanto questão criminal. É comum, no decorrer do registro
de uma ocorrência de desaparecimento forçado dentro da estrutura policial, que o
caso seja tratado imediatamente enquanto ação voluntariosa, uma vez que.

O desaparecimento de pessoa, dentro da hierarquia das ocorrências policiais,


é em si uma ocorrência vista dentro do trabalho social como sem importância.
Associada ao local de moradia e à reputação da pessoa desaparecida, o policial
geralmente elabora seu “olhar”, constrói suas hipóteses sobre o que teria
acontecido em cada situação (ARAÚJO, 2016, p. 38).

Os casos de desaparecimento são, desta maneira, dependentes da interpretação


do policial mediante as informações fornecidas e sua relação com os envolvidos
no registro do caso. A condição familiar, a localidade de moradia, a versão de
quem realiza o registro, as suspeitas levantadas pela mesma, os fatos antes do
desaparecimento, um conjunto de detalhes podem ser reunidos e ainda assim não
há garantias de investigação. Podemos falar então de dois caminhos frequentes, no
primeiro o desaparecido é tratado como alguém que evadiu de seu círculo social por
vontade própria, figurando apenas um problema de conotação familiar (FERREIRA,
2013, p. 191-195). No segundo, havendo claros indícios de ser um desaparecimento
forçado, o registro acaba sendo arquivado sob justificativas que orbitam em torno
da debilidade do aparato investigativo e da ausência de provas.
Há ainda outro caminho usual, menos frequente, pelo fato de depender do
trabalho de apuração e do esclarecimento criminal do ocorrido. Neste caso, o ocorrido
é apurado em alguma proporção e a condição de pessoa desaparecida é substituída
pelo enquadramento criminal identificado na investigação, como: homicídio,
sequestro, morte por intervenção policial. Assim, o Registo de Ocorrência do
desaparecimento é atualizado digitalmente através de um Registro de Aditamento e
o sistema estatístico do Instituto de Segurança Pública (ISP) atualiza a contabilização
dos casos (ISP, 2022). De acordo com esse funcionamento, se o processo investigativo
fosse efetivo e amplo, haveria uma crescente redução nos números de desaparecidos.
Diante do processo descrito, o problema de pesquisa se faz incontornável: como
dimensionar os desaparecimentos forçados, inclusive em termos quantitativos, se o
mesmo é negligenciado pelos órgãos de segurança pública e tratado enquanto evento
casual ou de cunho familiar? Estamos cientes de que o termo desaparecimento
forçado é mais um questionamento das mistificações acerca desta realidade do que
uma categoria criminal operável. Por detrás do mesmo, não há apenas um corpo
escondido, mas uma estrutura de execuções sumárias e práticas cunhadas de sentido
de perpetuação das relações de poder e das hierarquias nos territórios. Com isso,
pode-se constatar que o desaparecimento forçado é evidenciado pelos órgãos de
segurança pública a posteriori, depois que o caso de desaparecimento obtém uma
qualidade criminal distinta, via apuração, sendo finalmente atualizado nos dados
institucionais, tornando-se homicídio doloso.
Ainda que o desaparecimento forçado seja evidenciado pelas erratas do ISP, nas
quais constam os casos de desaparecimento que lograram algum tipo de avanço
nas investigações, estamos, contudo, falando de um contingente pequeno e residual
dentro do universo estatístico feito pela instituição, sobretudo numa realidade social
em que o desaparecimento forçado assume o patamar de prática sistemática e com
finalidade política. A generalização destas ocorrências na Baixada Fluminense não
é mero acaso, refere-se à reprodução e expansão da atuação econômica e política de
determinadas facções – Comando Vermelho (CV), Terceiro Comando Puro (TCP),
Amigos dos Amigos (ADA) – e, principalmente, de agrupamentos milicianos.
Desafetos, queima de arquivo, censura, eliminação de concorrentes (comercial,
territorial ou eleitoral), descumprimento de regras, inadimplência para com taxas
de extorsão e agiotagem; os motivos para o desaparecimento forçado podem ser
variados e relacionados com estratégias de perpetuação política de seus praticantes.
Sua frequência, na referida realidade metropolitana, deveria nos levar a inverter o
sentido da dúvida diante dos registros de desaparecimento. Ela não residiria mais
na suposição de causas particulares do desaparecimento, mas sim no levantamento
de hipóteses acerca dos motivos e dos grupos político-criminais-armados envolvidos
no caso.
Mesmo que na compreensão do ISP não exista nenhum índice, medida ou
mecanismo que publicize o problema, é possível desenvolver uma aproximação através
do índice de Pessoas Desaparecidas divulgado pelo órgão. O quantitativo configura,
no pior dos casos, o limite máximo para o número de casos de desaparecimento
forçado registrados, sendo assim uma proxy estatística capaz de servir de fonte
para comparações e análises do fenômeno. Considerando-se a margem de casos
não registrados em delegacia e a margem quantitativa de desaparecimentos sem
o envolvimento de terceiros, tem-se uma variável capaz de fornecer parâmetros
acerca da realidade dos desaparecimentos forçados.
Entre 2016 e 2020 os municípios da Baixada Fluminense somaram um total
de 7.709 registros de pessoas desaparecidas, o que resulta numa média de quatro
desaparecimentos por dia na região. Se compararmos com a somatória da capital
(Rio de Janeiro), durante o mesmo período, vemos que a capital apresenta um
contingente absoluto maior: 10.306 casos (gráfico 1). Entretanto, se levarmos em
conta a disparidade populacional e avançamos na direção de um índice relativo,
às posições se invertem. Ao dividir o número de desaparecidos pela estimativa
populacional para 2020, tem-se 153,04 registros de Pessoas Desaparecidas na cidade
do Rio de Janeiro por 100.000 habitantes enquanto a Baixada Fluminense apresenta
154,38 registros por 100.000 habitantes (ISP, 2016; 2017; 2018; 2019; 2020; IBGE. 2020).
Os dados da capital carioca servem de comparativo, mas é imprescindível
evitar confusões e simplificações, pois se deve considerar as diferenças em termos
sociais, urbanos, de infraestrutura institucional (SIMÕES, 2021) e de atuação dos
agrupamentos armados nestes territórios. Sabendo-se dos limites comparativos
e das desigualdades sociais, sobretudo entre a capital e a Baixada Fluminense, é
o momento de analisar os dados dos potenciais desaparecimentos forçados com
maior profundidade.
Os dados relativos do ISP, calculados por 100 mil habitantes, sinalizam o
quão expressivo é a quantidade de pessoas desaparecidas dentro de um universo
populacional determinado, possibilitando comparações entre municípios com grandes
disparidades populacionais. Ademais, as elevadas taxas de pessoas desaparecidas
entre 2016 e 2020 estão presentes em Queimados, com ampla margem, e em Itaguaí,
Nova Iguaçu, Seropédica, Japeri e Mesquita, em sentido decrescente.
Tomados os devidos cuidados, temos condição de avançar no reconhecimento
de quais índices são significativos para uma análise ampla da violência na Baixada
Fluminense. Quando nos referimos a esta última, não significa que pretendemos
abolir as especificidades e locais em proveito da realidade regional.
Ainda que seja uma proxy estatística, os dados de Pessoas Desaparecidas do ISP
são imprescindíveis ao esforço de reconhecimento dos desaparecimentos forçados
e deve sempre ser visto ao lado de outros índices que auxiliem na composição de
um quadro estatístico mais abrangente. Que dependem, por sua vez, da abordagem
e do método empregado para reconhecer os processos que movem a perpetuação
das relações de violência num determinado contexto.
Sob nossa perspectiva teórica-metodológica, não estamos diante de uma Baixada
Fluminense constituída pelo acaso, mas por uma tessitura de relações que se
movimentam reproduzindo a concentração de poder e de capital nas mãos de
agrupamentos milicianos e de facções que retiram benefícios das práticas de violência.

Desaparecidos: a produção de dados e análises do Instituto de


Segurança Pública
A discussão sobre os dados produzidos pelo Instituto de Segurança Pública – ISP a
respeito dos desaparecidos sempre motivou debates entre esse órgão e a sociedade.
A compreensão sobre os elevados números e o seu crescimento, ao longo do tempo,
geraram contínuas discordâncias e tensões. A questão que mais persiste e continua a
persistir, independente do próprio ISP apresentar pesquisas e relatórios sobre o tema,
malgrado as explicações das autoridades do Estado, é a que indica que por trás da
redução do número dos homicídios e do crescimento dos índices de desaparecidos
dos últimos anos estaria ocorrendo o ocultamento de homicídios, ou seja, aquilo
que a presente pesquisa busca compreender: o quanto dos desaparecidos são, na
verdade, desaparecimentos forçados, ou seja, homicídios associados ao ocultamento/
destruição de cadáveres?
O embate entre estatísticos, agentes do Estado da área de segurança, autoridades
públicas, militantes, acadêmicos e vítimas vem gerando percepções, dúvidas,
respostas oficiais e ações dos movimentos sociais numa disputa por imputação de
atribuições, negações de responsabilidade, acusações de omissão e conivência. A
arena formada em torno dos números estatísticos produzidos pelo órgão oficial
sobre desaparecidos, porém, nunca foi o melhor caminho para se achar uma solução
para o problema, muito menos para se ter uma aproximação da realidade que
envolve o fenômeno. A nebulosidade que cerca o desaparecimento, em si mesmo,
atinge tudo aquilo que o tange. As ausências se tornam as únicas presenças que se
passa a ter certeza: ausência de pessoas, de corpos, de processos de investigação,
de interesse pela solução, de políticas públicas e de fortalecimento da participação
dos mais atingidos.
Foi nesse ambiente, que o ISP publicou pesquisas sobre o tema. “Desaparecidos
no Estado do Rio de Janeiro em 2007, do ISP: Notas sobre a construção da pesquisa”,
publicado em 2009, pelos Cadernos de Segurança Pública, permaneceu como
o primeiro e o único trabalho, que acabou por ser a referência para as demais
produções institucionais sobre o tema. Ao se ler o artigo, próximo às conclusões,
depara-se com a seguinte afirmação: “Apenas 84 aparecimentos foram registrados
na Polícia Civil no ano de 2007, o que representa 2% do total de desaparecimentos
daquele mesmo ano (esses dados se relacionam ao total de registros realizados:
4.423)” (CAMPAGNAC et All, 2009, p.11). Essa assertiva vai se somar aos dados de
outra obra do ISP: “Desaparecimentos: O Papel do Policial Como Conscientizador
da Sociedade”, uma cartilha de 2009, baseada na mesma pesquisa anteriormente
citada, de 2007, na qual outra afirmação sobre aparecimentos sobressai: “A Pesquisa
de Desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro em 2007 estimou que 71,3% das
vítimas de desaparecimento retornam. Ou seja, na maioria dos eventos pesquisados,
essas pessoas reaparecem” (TEIXEIRA, 2009, p. 29). No entanto, não é apresentada
a metodologia utilizada para se chegar a essa conclusão. A cartilha indica que:
“buscou informações em outras duas fontes além dos Registros de Ocorrência da
Polícia Civil: os bancos de dados do Departamento de Trânsito do Estado do Rio de
Janeiro (Detran-RJ) e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), ligado
ao Sistema Único de Saúde (SUS)” (TEIXEIRA, 2009, p. 25). Contudo, no caso do
Detran-RJ, ao se buscar por informações sobre certidão de casamento, carteira de
identidade ou carteira de motorista tirada por pessoas na lista dos desaparecidos
em outros estados, identificou-se que as informações obtidas não continham a data
exata do evento localizado pelo Detran, não se podendo precisar se o casamento ou
pedido de nova documentação teria ocorrido antes ou depois do desaparecimento,
o que levou à não utilização dos dados. Quanto ao SIM/SUS, buscou-se informações
sobre óbitos a partir dos nomes dos desaparecidos e filiações. Sendo assim, se os
dados do Detran foram rejeitados restariam os óbitos do SIM/SUS para verificar o
reaparecimento por outras fontes. Se não foi isso, qual foi a metodologia da pesquisa
utilizada para chegar aos 71,3% de reaparecidos? .
Em decorrência das tensões contidas na crítica de que os dados sobre desaparecidos
estariam ocultando homicídios, a referida cartilha diz que os perfis das vítimas
em ambos os casos não são os mesmos. Na explicação que segue, fala-se de uma
diferença francamente significativa, quando se trata do sexo das vítimas. No
caso dos homicídios, 81% de homens, contra 7,2% de mulheres e, no caso dos
desaparecimentos, 61,6% de homens contra 38,4% de mulheres. Ou seja, a redução
na diferença entre homens e mulheres, nos desaparecimentos, comparados com os
homicídios, apontando a maior presença feminina entre os desaparecidos, leva à
conclusão de que são públicos diferenciados quanto à vitimização. O que é excluído,
entretanto, nessa abordagem quantitativa/estatística, simplificada, sem maiores
detalhamentos, acaba retornando, em outros parâmetros escolhidos para se fazer a
comparação. A cor dos desaparecidos, 56,4% de pardos e negros se aproxima muito
da cor das vítimas de homicídios, onde pardos e negros somam 56,7% (TEIXEIRA,
2009, p. 27). Na informação quanto ao local dos eventos, outra coincidência, 83,6%
dos desaparecimentos ocorreram nas áreas localizadas na Zona Oeste e Zona
Norte da cidade do Rio de Janeiro e 25,9% dos desaparecimentos de todo estado
se localizaram na Baixada Fluminense (TEIXEIRA, 2009, p. 15), revelando um
padrão altíssimo de sobreposição entre homicídios e desaparecimentos, pois afeta
muito mais os moradores da periferia urbana da região metropolitana, do que a
área Central e da Zona Sul da mesma região.
No afã de obter mais informações, o ISP procurou realizar uma análise qualitativa
no caso da pesquisa de 2007. Assim, a partir dos Registros de Ocorrência – RO’s que
possuíam o número de telefone, conseguiram falar com 2,4% dos comunicantes. É
nessa parte da pesquisa que aparece a explicação do índice de 71,3% dos desaparecidos
que reaparecem. Ou seja, essa informação foi obtida junto a aproximadamente
114 pessoas, uma amostra de 2,4% de um banco de dados com 4.423 registros
sobre vítimas de desaparecimentos. Contudo não há qualquer esclarecimento
sobre esses informantes como, por exemplo, onde eles moram? Se estão na Zona
Sul, Zona Norte, Zona Oeste ou Baixada Fluminense? Quais as características do
perfil socioeconômico? Qual a cor? Ou seja, pode-se estar falando de um segmento
muito específico de pessoas, não caracterizadas, e generalizando conclusões para
um conjunto muito maior e diversificado do universo analisado. A aleatoriedade
das ligações, em busca da cientificidade esbarra num grande filtro, que direciona
e controla os resultados, ou seja, apenas os que indicaram seu número de telefone
puderam ser contactados. Um filtro que pode ser lido, inicialmente, como de ordem
econômica, pois se precisa de um aparelho, linha e conta para se ter um número
a informar, mas que, numa percepção mais aprofundada, pode ser visto como
vinculado à questão da segurança do comunicante. Desaparecimentos relacionados
à dinâmica de grupos armados, normalmente, trazem risco para qualquer um que
faça denúncia. Não informar um número de telefone, nesses casos, significa uma
tentativa de se proteger, ainda mais sabendo das relações diretas entre milicianos
e a estrutura de segurança pública, nas quais, frequentemente, o miliciano e o
policial coincidem na mesma pessoa. Ao final, as várias limitações, não explicitadas
nem trabalhadas de forma adequada, determinaram uma reduzida e imprecisa
amostragem.

Análise dos dados do ISP sobre desaparecidos: uma radicalização


teórico-metodológica
Outra debilidade dos estudos do ISP está nos limites estruturais da legislação
brasileira, que até o presente momento não tipificou o crime de desaparecimento
forçado, dificultando sua prevenção, combate e atribuição de pena compatível
com a gravidade do crime. Isso significa dizer que não há uma diferenciação entre
os tipos de desaparecidos. A identificação do desaparecimento forçado, enquanto
prática de sequestro, assassinato e ocultação/destruição do corpo, envolvendo
diretamente ou indiretamente a ação de agentes do Estado, simplesmente não
existe nos dados do ISP, pois ele não é discriminado na confecção dos RO’s, feitos
pela Polícia Civil, quando do registro das informações que colhe ou recebe. O que
temos, portanto, são dados gerais, sobre todo e qualquer tipo de desaparecimento.
Desse modo, o número de desaparecimentos forçados encontra-se desaparecido
dentro do número de desaparecidos. O dado vira um não dado, pois não se pode
fazer qualquer conjectura sobre ele. Qualquer afirmação vira, automaticamente,
uma não afirmação. Como não há investigação e, logicamente, não há a conclusão
de investigações, fica-se numa espécie de limbo informacional-jurídico-social.
Um não dado não serve para nada. A máxima do: “sem corpo, sem crime” segue
exatamente essa lógica. O papel segue o mundo real e esse segue o funcionamento
burocrático-estatal presente na estrutura policial de operações e investigações.
Apesar dessa ocultação e nulidade dos dados do ISP quanto aos desaparecimentos
forçados, decidiu-se, no âmbito da pesquisa, olhar para os dados gerais dos
desaparecidos, buscando confrontá-los com outras informações relacionando-os a
momentos históricos dos territórios onde foram gerados e às políticas de segurança
pública. Há, portanto, um exercício de imaginação sociológica, leitura nas entrelinhas,
indicação de indícios e pistas que permitam uma leitura oblíqua e diagonal dos
dados, tencionando-os nos limites do ocultamento que representam. Ao se perceber
o jogo político por trás dos dados e sua leitura, numa arena eivada de incertezas,
ocultamentos, dissimulações, indefinições e acusações se decidiu por entrar nessa
arena ampliando as possibilidades de leitura dos dados e, até mesmo, invertendo a
dinâmica de desvelamento dos mesmos. Definiu-se por tomar os desaparecimentos
forçados, que não são sequer registrados por não serem especificados na lei, como
aqueles que desvelam a dinâmica dos desaparecimentos como um todo. Sim, aquele
que é negado, recusado, refutado e rechaçado como um não dado se tornou a base
da perspectiva analítica adotada. Essa decisão foi motivada pela compreensão que as
milícias, enquanto grupo armado organizado por dentro do Estado, a partir da sua
presença entre os agentes da segurança pública, fazem da sua posição privilegiada
o seu maior trunfo interferindo tanto na regulação dos territórios como na geração
de informações sobre ele. A racionalidade burocrática estatal se torna racionalidade
burocrática criminal. O esforço, portanto, é de revelar a partir da movimentação e
atuação miliciana o aumento de desaparecidos a partir não só do desaparecimento
forçado, isto é, do homicídio seguido de ocultamento/destruição de cadáver, mas de
todos os demais efeitos sobre os territórios em que atuam, como a regulação da vida
cotidiana e as implicações disso nos conflitos, abandono, descasos e vitimizações
presentes nas relações das milícias com outros grupos armados, com a própria
polícia, à qual pertencem e suas interações com os interesses em conflito presentes
na vida das pessoas das regiões que controlam.
A seguir, serão apresentados gráficos dos dados colhidos e serão feitas análises
que tentam ampliar nosso olhar sobre essa realidade.

Gráfico 1
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 2014, 2021ª. Disponível em: http://www.ispdados.rj.gov.br/
estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.

Gráfico 2

Fonte: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE Cidades. 2021. Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/. Acesso em 10 nov. 2021.
O que chama inicialmente a atenção, ao se comparar o quadro do número absoluto
de desaparecidos com a população de cada município da Baixada Fluminense, é o
fato de Nova Iguaçu surgir com 261 desaparecidos a mais do que Duque de Caxias,
apesar de ter 104.061 habitantes a menos. Que fatores levariam a esse número
maior? A hipótese da dimensão consolidada da milícia em Duque de Caxias, em
suas relações com outros grupos armados e nos acordos internos entre as diferentes
lideranças milicianas surge como plausível para explicar isso. Já em Nova Iguaçu,
a milícia Liga da Justiça, posteriormente denominada Bonde do Ecko, originária
da Zona Oeste do Rio de Janeiro, iniciou uma expansão, desde 2014, a partir da
anexação de áreas do eixo que se inicia no bairro do Km 32 e segue pela Estrada
de Madureira, através dos bairros Jardim Paraíso, Grão Pará, Marapicu, Danon,
Dom Bosco, etc. No caso específico do Km 32, ocorre uma intensificação de uma
guerra entre Terceiro Comando Puro – TCP e milícias, que havia se iniciado em
2007, quando da invasão miliciana. As disputas com as facções do tráfico, além das
guerras internas após a morte do líder Ecko, em 2021, recrudesceram as guerras
por territórios, tendo o ano de 2019 como ápice. Esse fenômeno estaria na origem
dos números maiores de desaparecidos do município.
O quadro abaixo reforça a hipótese aqui seguida quanto à relação entre as
movimentações milicianas e o número de desaparecidos.

Figura 1
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 01/2014 (taxa por 100 mil habitantes), 2021b. Disponível
em: http://www.ispdados.rj.gov.br/estatística.html . Acesso em: 02 nov. 2021.

Com a tonalidade mais escura do espectro de cores do quadro, no epicentro dos


desaparecimentos, temos Queimados. Neste município, de 2016 a 2020, teríamos
entre 230 e 250 desaparecidos por 100 mil habitantes. Estar no topo dos índices de
desaparecidos guardaria, portanto, uma relação direta com a atuação miliciana,
que foi revelada pelos eventos de 2019 relacionados às prisões de vários membros da
milícia denominada Caçadores de Ganso, entre eles Davi Brasil Caetano, ex-Secretário
de Defesa Civil e Vereador pelo Avante, chefe da organização (TORRES, 2019) e ao
encontro de várias ossadas em cemitérios clandestinos fruto da atuação miliciana
(COELHO, 2019). As ações armadas permanentes desse grupo em áreas de atuação
do Comando Vermelho – CV, com destaque para a favela São Simão, e o controle de
taxas de extorsão, mercados e serviços nos condomínios do programa Minha Casa
Minha Vida como Valdariosa, Ulysses Guimarães e Eldorado estariam na base dos
desaparecimentos. Para se ter uma ideia, inicialmente houve a identificação de 23
vítimas de desaparecimentos forçados, a partir do encontro de ossadas dentro de
um poço utilizado pela milícia para ocultação de cadáveres, mas havia a estimativa
que o número poderia chegar a 100, revelando um potencial muito elevado desse
tipo de ocorrência.
Nova Iguaçu, Seropédica e Itaguaí aparecem logo abaixo de Queimados, com uma
taxa entre 191 e 211 desaparecidos por 100 mil habitantes. O caso de Nova Iguaçu,
acima explicitado, guarda relação direta com o caso dos outros dois municípios.
Itaguaí e Seropédica, desde 2014, vivenciavam a expansão miliciana ainda sob a
liderança de Carlinhos Três Pontes, irmão do Ecko, assassinado em 2017. As guerras
pela expansão, via anexação de territórios anteriormente controlados pelo CV darão
lugar, após a morte do Ecko, à guerra interna à própria milícia, através do confronto
entre Tandera e Zinho, também irmão do Ecko. Esse processo de permanentes
assassinatos nas fronteiras internas e externas a essa milícia tem relação direta com
o número de desaparecidos que, apesar de serem elevados, estão muito aquém dos
números reais, dada a subnotificação que resulta do terror imposto às populações,
que convivem com os cemitérios clandestinos há muitos anos. O detalhe, nessa faixa
geográfica de desaparecidos, fica por conta da atuação do 24o Batalhão da Polícia
Militar, sediado em Queimados, abrangendo administrativamente Seropédica,
mas tendo estreita relação com todo o eixo da BR 465, que conecta a Rodovia
Presidente Dutra à Avenida Brasil, ligando Queimados, Japeri, Seropédica, Nova
Iguaçu e Rio de Janeiro.
Na faixa entre 152 e 172 desaparecidos por 100 mil habitantes estariam Magé,
Japeri, Mesquita, São João de Meriti e Rio de Janeiro. No relatório Um Brasil
dentro do Brasil Pede Socorro, de 2016, um processo de recomposição de perdas
por parte das facções do tráfico de drogas afetadas pela política de implantação de
Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs, no Rio de Janeiro, havia sido identificado.
À vinda de facções para disputar espaços na Baixada somou-se o crescimento de
grupos milicianos, implicando na inversão da tendência de queda dos índices de
homicídios e no seu aumento significativo. Segue-se a hipótese, analisada mais
adiante, de que o número dos desaparecimentos guarda uma relação com o número
de homicídios, não de forma imediata, mas conforme as características geográficas,
populacionais, políticas e históricas de cada município. Magé ao longo de décadas
viu se estruturar um poder político familiar naquilo que se denomina Cozzolândia,
em referência à família Cozzolino. Próxima à atuação dos grupos de extermínio,
essa estrutura facilmente incorporou a evolução para os grupos milicianos de modo
a ter seus membros na chefia da secretaria municipal de segurança pública e de
outras secretarias, conforme matéria do The Intercept Brasil (ALEIXO, 2021). Na
matéria, o fato de Magé possuir a favela da Lagoa, que entre junho de 2020 a abril
de 2021, em plena pandemia do Covid 19, recebeu 42 operações policiais, ficando
em primeiro lugar quanto a esse tipo de procedimento, enquanto Salgueiro, em
São Gonçalo, e Barão, na capital, ficarem em segundo lugar, cada uma com 18
operações, conforme os dados do ISP, revela as consequências dessa evolução
miliciana. Controlada pelo CV, Lagoa tornou-se alvo dos negócios milicianos
relacionados ao tráfico de drogas. Nessa disputa, policiais, dentro do 34o Batalhão
da Polícia Militar, de Magé, são acusados de serem agentes infiltrados da milícia,
influenciando em ações contra o CV e a favor da milícia. Entre os acusados está
o filho do também PM, secretário de segurança pública municipal, quando da
produção da matéria. Se a ampliação dos ganhos com o tráfico de drogas está na
base motivacional das operações policiais e milicianas que produzem mortes e
desaparecimentos forçados, na favela da Lagoa, em outros bairros, como Suruí e
Praia de Mauá, os interesses se voltam para negócios imobiliários, empreendimentos
turísticos e ganhos relacionados à destruição ambiental e extrativismo, como aqueles
relacionados à pesca predatória. Sem contar os ganhos nas áreas marítimas com
extorsão sobre pescadores e o controle do fluxo de embarcações relacionadas ao
tráfico de drogas e outras mercadorias. Quando se percebe a posição geopolítica
de Magé, entre a Baía de Guanabara e a região serrana, pode-se compreender o
porquê dessa disputa tão encarniçada.
Por falar em geopolítica criminal, Japeri encarna a própria posição estratégica
em disputa. Cortado pelo Arco Metropolitano, corredor logístico para qualquer
empreendimento criminal, o município conta com uma longeva política controlada
por matadores, comerciantes que os financiam, um complexo penitenciário dominado
pelo CV e áreas hegemonizadas pelas milícias, que possuem no município vizinho
de Queimados sua base operacional. Ter tido como prefeito um matador por 3
mandatos, ter sediado uma das maiores chacinas invisíveis do estado, conforme
relatado em outra parte desse trabalho e concentrar os mais baixos indicadores de
desenvolvimento humano da região metropolitana não são fatores desconectados, mas
partes articuladas de um difícil quebra-cabeça. Aqui, homicídios e desaparecimentos
forçados se movimentam a partir dos objetivos almejados por diferentes grupos
políticos, nas múltiplas interações que estabelecem entre si e com a população.
Vereadores e prefeitos podem articular operações policiais para proteger traficantes
e garantir recursos para suas campanhas. Comerciantes escalam seus eleitos a
partir da manutenção dos seus negócios, monopólio e eliminação de concorrentes.
Empresários, dispostos espacialmente no distrito de Engenheiro Pedreira, empregam
em seus quadros os indicados pela estrutura política, que por sua vez, faz suas
interfaces com a população que, no mesmo distrito, convive com os negócios em
torno do complexo penitenciário controlado pelo Comando Vermelho. Drogas,
terrenos, imóveis, empregos, votos, roupas para visitas aos presos e hospedagem
para familiares de presos são algumas das mercadorias/serviços que orientam
fluxos econômicos, demográficos e eleitorais. Roubos de carros e carga no Arco
Metropolitano convivem com operações policiais sistemáticas, letais e tantas vezes
produtoras de corpos desaparecidos nas áreas favelizadas e bairros pobres. Há um
multiverso criminal em formação, sem contornos definidos e em crescente expansão.
Mesquita traz a convivência explosiva entre o 20º Batalhão da Polícia Militar, a
correlata milícia e a crescente expansão do Comando Vermelho no Complexo do
K11, mais especificamente, no Complexo da Chatuba, que tem no eixo do Maciço
do Mendanha uma forte conexão com a favela do Chapadão, controlada pelo CV,
em Costa Barros, na capital. Comprimida entre as movimentações desses grupos
armados, nos seus múltiplos negócios e arranjos, a população convive com chacinas de
comoção social, como a dos sete jovens, em 2012, e com mortes e desaparecimentos
forçados pontuais e diários.
São João de Meriti, uma das maiores concentrações demográficas do país, com
473 mil habitantes, agrega explosão de pobreza, operação de grupos de extermínio,
agora em fase miliciana, ação policial e disputa entre facções do tráfico num território
que além de diminuto localiza-se às margens da Rodovia Presidente Dutra e da
Linha Vermelha. Some-se a isso, suas fronteiras com Duque de Caxias, Belford Roxo,
Mesquita, Nilópolis e Rio de Janeiro, o que a transforma num centro geopolítico por
excelência. As disputas territoriais intensificadas pela reconfiguração das facções do
tráfico, após a instalação das UPPs na capital, tornaram-se indicadores de ganhos
para as milícias, impulsionando mortes e desaparecimentos forçados para bairros
como Éden, Parque Araruama e favelas como Caixa D’água, Guarani e Embaixador.
Dada a condensação socioespacial, os efeitos dos confrontos desdobram-se sobre
a cidade como um todo, potencializando, ainda mais, a violência das mortes e
desaparecimentos forçados.
Rio de Janeiro compreende o município com grande expansão miliciana,
responsável pela ocupação de 57% do território dominado por grupos armados na
cidade. É palco, igualmente, de uma política de extermínio em favelas e bairros
dominados pelo CV praticada enquanto política de segurança pública do Estado,
produzindo chacinas que, a partir do atual governo, busca alcançar o patamar
de 30 mortos por operação policial. O comprometimento da estrutura policial,
exposta na prisão de Allan Turnowsky, ex-secretário estadual de Polícia Civil, detido
enquanto candidato na campanha eleitoral de 2022 (SAIGG e GIMENEZ, 2022) e
na exoneração do coronel Rogério Figueredo de Lacerda, secretário estadual de
Polícia Militar, meses antes de ser alvo de investigação (EXTRA, 2021), indica a
relação de ambos com o Jogo do Bicho, reforça uma coalizão por dentro do Estado,
que potencializa as milícias e seus, desde sempre, patrões donos das bancas de jogo
do bicho. Mortes e desaparecimentos forçados seguem as disputas entre os grupos
armados estatais, não estatais e mistos, isto é, estatais e não estatais simultaneamente.
A centralidade econômica, política e social da capital, somado a todo o histórico de
existência e desenvolvimento desses grupos, a situa num nível menor de números de
desaparecimentos na comparação com os demais municípios da Baixada Fluminense.
Isso revela acordos mais consolidados, disputas mais difíceis de serem travadas e o
decisivo papel do Estado na imposição do crescimento miliciano. Entretanto, todo
o espectro do quadro de desaparecimentos se desenrola em patamares altíssimos,
independente das variações de faixas de números aqui mencionadas.
No patamar final, entre 132 e 152 desaparecidos por 100 mil habitantes, temos
Paracambi, Guapimirim, Duque de Caxias, Belford Roxo e Nilópolis. Os dois
primeiros municípios expressam populações bem menores em áreas pouco disputadas
entre os grupos armados, com baixa produção de conflitos e mortes, se bem que
Guapimirim sustenta um número de homicídios, proporcional à população, elevado,
como se verá a seguir. Neste caso, sua posição geopolítica estratégica privilegiada,
mais do que Magé, entre a Baía de Guanabara e a região serrana, indicam mudanças
trazida pela evolução dos grupos de extermínio em direção à sua fase miliciana e à
acumulação primitiva do capital criminal a partir dos eixos econômicos mais fortes
da região: comércio, turismo, setor imobiliário e empreendimentos com impactos
socioambientais elevados.
Duque de Caxias sustenta uma linhagem de matadores e milicianos que
ascenderam ao poder a partir de cargos eletivos, desde a década de 1990. As
articulações dessa estrutura a partir da atuação do 15o Batalhão da Polícia Militar,
através de vínculos históricos, inclusive, estando na origem da Chacina de 2005, com
seus 29 mortos, em Nova Iguaçu e Queimados, permitem uma sólida manutenção
de interesses. Os pontos de conflitos com o CV, bastante localizados: Complexo da
Mangueirinha, Vai Quem Quer, Santa Lúcia, Vila Nova, Vila Ideal, Vila Fraternidade,
Marapani, etc se distribuem espaçadamente sobre um grande território, cuja metade
encontra-se em área rural, no terceiro e quarto distrito, pouco ocupada e a outra
parte em núcleos urbanos mais densos, como o primeiro e o segundo distritos. O
epicentro miliciano, a partir do eixo da Rodovia Leonel Brizola, com destaque para
os bairros do Pilar e São Bento, revelam um trabalho de ocupação de mais de duas
décadas, com venda de terrenos, passando pela estrutura administrativa municipal
ligada à Secretaria Municipal de Meio Ambiente, por órgãos de fiscalização estadual
e federal, respectivamente Inea e Incra, e por serviços cartoriais que transformam
terras da União em propriedades privadas com Registro Geral de Imóveis. Esses
fatores estão relacionados ao surgimento de uma segunda geração de milicianos
que vem se elegendo nessa área, permitindo a ocupação de cargos importantes no
legislativo e executivo municipais.
Belford Roxo representa uma bem-sucedida transição do domínio de grupos de
extermínio, presentes na figura do pai fundador da cidade, Jorge Júlio Costa dos
Santos, o Joca, na década de 1990; e a desenvolta estrutura miliciana, fundamentada
nas ações do executivo local e estadual, a partir da atuação do 39o Batalhão da Polícia
Militar. A hegemonia eleitoral dos candidatos da cidade, os mais votados em todo
o estado para as câmaras legislativas estadual e federal, que contaram com mais da
metade dos votos de toda a cidade, hoje com mais de meio milhão de habitantes,
mantém relação direta com a criação de um destacamento desse batalhão dentro
do Complexo do Roseiral, em janeiro de 2021, afetando diretamente os bairros do
Roseiral, Bacia, Vale do Ipê e Lote XV. A Pax Miliciana se estabeleceu a partir de
assassinatos e desaparecimentos forçados nas comunidades controladas pelo CV
gerando efeitos duradouros de terror sobre toda a cidade e projetando a estrutura
da segurança pública enquanto eficiente cabo eleitoral. A solidez dessa estrutura
insere a cidade nessa última faixa do número de desaparecidos, sem perder de vista
que se encontra num patamar de números muito altos, como os de toda a região
da Baixada.
Nilópolis é uma das estruturas de controle político e territorial mais antigas
e sólidas da Baixada Fluminense. O Clã Abraão-David/Sessim, sustentados pelo
apoio direto da ditadura empresarial-militar de 1964, criou um verdadeiro nicho
urbano periférico mesclando contravenção, carnaval (Escola de Samba Beija-Flor),
grupo de extermínio e tráfico de drogas, como costumava dizer Hélio Luz, que foi
delegado da Delegacia de Homicídios da Baixada, entre 1991 e 1992. A fase miliciana
dos grupos de extermínio trouxe acordos que funcionam, junto a esse amálgama
tão original e longevo. Novas gerações de bicheiros prosseguem com sua presença
no poder local. Desaparecimentos se apresentam com números altos, embora num
patamar mais reduzido, comparativamente aos demais municípios.

A relação dos números de desaparecidos com os números de


homicídios dolosos
A hipótese que se segue nessa análise é que existe uma relação entre número de
desaparecidos com o número de homicídios dolosos na Baixada Fluminense e no Rio
de Janeiro. A seguir, os dados quanto aos números absolutos de homicídios dolosos.

Gráfico 3

Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 2014, 2021ª. Disponível em: http://www.ispdados.rj.gov.br/
estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.

Mais uma vez, a diferença entre Nova Iguaçu e Duque de Caxias, com índice
maior para Nova Iguaçu apesar da população menor se apresenta. A seguir, os dados
proporcionais por 100 mil habitantes introduzem uma outra visão.
Figura 2

Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 01/2014 (taxa por 100 mil habitantes), 2021b. Disponível
em: http://www.ispdados.rj.gov.br/estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.

À semelhança dos índices de desaparecidos, sempre tendo como recorte temporal


o período que vai de 2016 a 2020, temos Queimados no epicentro, com o patamar
entre 300 e 354,4 homicídios dolosos por 100 mil habitantes. A atuação miliciana,
nas proporções do que foi mencionado anteriormente, está na explicação desse
índice. Desse modo, onde há mais violência, perpetrada por grupos armados, nesse
caso, a milícia, há também o aumento de desaparecidos.
Japeri, ao lado de Queimados, apresenta-se no segundo patamar, entre 250 e 300
homicídios dolosos por 100 mil habitantes. Sua proximidade com a atuação miliciana
em Queimados, sendo seu território alvo dos interesses desse grupo, encontra
uma forma de arrefecimento a partir de uma atuação mais sólida e organizada do
CV a partir do complexo penitenciário. As movimentações financeiras em torno
dele permitem negociações entre esses grupos armados que reduzem os índices
da cidade, quando comparados com os de Queimados. O mesmo deve se dar
pela posição estratégica deste município com relação ao Arco Metropolitano, na
operacionalização de roubos, transporte de mercadorias e logísticas relacionadas
aos diferentes negócios criminais.
Na terceira faixa, entre 200 e 250 homicídios por 100 mil habitantes temos
Itaguaí, Nova Iguaçu, Belford Roxo e Guapimirim. Itaguaí e Nova Iguaçu se inserem
na dinâmica de expansão miliciana e fragmentação interna que foi analisada
anteriormente, com relação aos desaparecidos. Belford Roxo aparece aqui a partir
da Pax Miliciana imposta no Complexo do Roseiral e seus desdobramentos para
o resto da cidade, onde o posicionamento dos demais grupos armados, CV e TCP
não enfrenta grandes movimentações. O que o índice de desaparecidos esconde, os
índices de homicídios revelam, ou seja, a intensificação das mortes relacionadas ao
projeto político e de poder em movimentação com a participação direta do Estado
nas suas esferas municipal e estadual. Guapimirim, que não tinha essa posição de
maior destaque quanto aos desaparecidos, surge aqui revelando a intensificação de
disputas naquela região. Algo relacionado à sua posição geopolítica, entre a baía
e a serra, seus recursos naturais e as disputas dos grupos armados aí presentes.
Seropédica, Duque de Caxias e Magé compõem o quarto bloco, com índice
que fica entre 150 e 200 homicídios dolosos por 100 mil habitantes. Periférica no
espectro de interesses da Liga da Justiça/Bonde do Ecko e sua guerra interna atual,
Seropédica apresenta um quadro consolidado de dominação miliciana, que produziu
muitas mortes na guerra contra o CV no período entre 2014 e 2015, que acabou fora
do recorte temporal desta pesquisa. Mas esse quadro começa a se alterar a partir
da retomada de territórios perdidos para a milícia pelo CV, como é o caso do Grão
Pará, na Estrada Madureira, em Nova Iguaçu. Historicamente, lá está a base das
operações do CV que incidem sobre Seropédica. Duque de Caxias e Magé possuem
atuações milicianas consolidadas e projetos políticos bem estruturados. Produz
um conjunto de mortes estabilizado, claro, em patamares muito altos, como em
todos os demais municípios aqui analisados. As áreas de confronto entre milícias
e CV são controladas, sem grandes movimentações nem expansão. A atuação
policial-miliciana se faz presente na combinação de operações policiais e ações de
grupos de extermínio, agora na sua fase miliciana, articulando negócios e votos,
controlando territórios e submetendo territórios e populações aos seus interesses.
Há um convívio mais antigo e acordos mais longos entre os grupos armados, com
destaque para a hegemonia policial-miliciana.
Na quinta faixa temos Paracambi, São João de Meriti, Mesquita e Nilópolis com
o patamar entre 100 e 150 homicídios dolosos por 100 mil habitantes. Paracambi,
apesar da baixa concentração urbana e populacional, marcado por áreas rurais mais
amplas, esboça uma totalização muito elevada. A base disso está nos confrontos
cada vez mais intensos relacionados às facções do tráfico de drogas, com destaque
para o CV, em bairros urbanos periféricos. Não há uma expansão miliciana, pois
ela atua muito mais por dentro da esfera policial e junto aos demais interesses
dentro dos grupos econômicos dominantes, com destaque para os comerciantes. Os
outros três municípios configuram uma malha urbana densamente ocupada, com
disputas entre os grupos armados, mas sem grandes movimentações de expansão
miliciana. São João de Meriti e Mesquita convivem com uma ação mais intensa do
CV em guerras por controle de áreas e confrontos com a estrutura policial. Nilópolis
recebe os desdobramentos de Mesquita e a atuação miliciana mais controlada, a
partir dos interesses políticos controlados pelo Clã.
A cidade do Rio de Janeiro aparece no último patamar, entre 94,4 e 100 homicídios
dolosos por 100 mil habitantes. Ou seja, bem abaixo dos índices encontrados em
várias cidades da Baixada. Posições consolidadas e movimentações menos intensas
por parte dos grupos armados se apresentam nesse período. O cenário imediato
pós-implantação das UPPs e expansão miliciana ocorreram numa temporalidade
anterior ao da pesquisa e com intensidade de mortes mais baixas. As forças que
se movimentam na capital, entrelaçadas ao jogo político e à atuação midiática
expressam uma realidade mais controlada, marcada por um palco de operações
em que se destaca a força policial, com seus massacres bem aproveitados político-
midiaticamente e o calculado plano estratégico de posições ocupadas pelas facções
do tráfico.

A relação do número de desaparecidos com o número de


homicídios por intervenção de agente do Estado
A seguir, temos o quadro com o número de mortes por intervenção de agente do
Estado por municípios da Baixada Fluminense.

Gráfico 4
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 2014, 2021ª. Disponível em: http://www.ispdados.rj.gov.br/
estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.

Apontando menos a proporção dos homicídios relativa à população e mais as


formas operacionais da atuação policial, as mortes por intervenção de agente do
Estado trás indicadores próprios que passam por batalhões, acordos políticos entre
poderes municipais e estaduais, grupos econômicos envolvidos nas diferentes esferas
de negócios e ganhos, controle territorial e controle político eleitoral. Nos números
absolutos Duque de Caxias ganha a liderança, revelando a intensa atuação do 15o
BPM, estreitamente vinculado à hegemonia político-miliciana armada presente
e consolidada no município. Belford Roxo segue na mesma base de Duque de
Caxias. Lembrando que ambos tiveram membros de grupos de extermínio eleitos
vereadores e prefeitos desde meados da década de 1990. Para refletir melhor sobre
esse tema, a exemplo do feito anteriormente, lança-se mão aqui da análise desse
tipo de morte por 100 mil habitantes. Buscando suas aproximações e diferenciações
com os índices anteriores. Veja o quadro a seguir.

Figura 3
Fonte: INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. ISP Dados Abertos. Estatística de segurança: série
histórica mensal por município desde 01/2014 (taxa por 100 mil habitantes), 2021b. Disponível
em: http://www.ispdados.rj.gov.br/estatistica.html. Acesso em: 02 nov. 2021.

Japeri e Itaguaí retiram de Queimados o epicentro dos índices colocando-se


na faixa entre 117 e 140 homicídios por intervenção de agente do Estado por 100
mil habitantes, embora Queimados esteja num patamar muito próximo, entre 95
e 117. Queimados repete, portanto, seus altos indicadores, reforçando a ideia que
há uma estreita relação entre o índice de desaparecidos e os índices de homicídios
dolosos e homicídios por intervenção de agentes do Estado. Ou seja, os municípios
com maior incidência de mortes por confrontos entre grupos armados, estatais,
não estatais e mistos a partir da atuação de traficantes, milicianos e policiais são
os mesmos que possuem maior número de desaparecidos. O mesmo ocorre com
Itaguaí. Japeri expressa uma quebra desse padrão, pois apresentou índices menores de
desaparecidos, embora em patamares muito elevados, entre 152 e 172 desaparecidos
por 100 mil habitantes. A presença do CV e seus interesses a partir do complexo
penitenciário pode estar na origem dessa redução dos desaparecidos e aumento
dos registros de homicídios dolosos e homicídios por intervenção de agente do
Estado. Há um acionamento maior da atuação dos parentes de vítimas interferindo
no registro desses casos e impedindo a atuação desenfreada policial-miliciana na
geração de desaparecidos que, como sabemos, é um não índice, ou um não dado.
De toda maneira, a maior letalidade policial no eixo Itaguaí, Japeri e Queimados
aponta a marca registrada da atuação policial na atual política de segurança pública
do Estado, ou seja, guerra ao CV, onde quer que ele esteja. O CV é transformado
num crime-indicador. Ou seja, onde ele está presente, desaparecidos, homicídios
dolosos e homicídios por intervenção de agentes do Estado se intensificaram a
partir das ações da polícia, milícia e TCP.
Um outro eixo que se desenha nesse quadro é o formado por Duque de Caxias,
Belford Roxo e Mesquita, na faixa entre 73 e 95 homicídios por intervenção de
agente do Estado por 100 mil habitantes. Ele segue na mesma lógica apontada
no eixo anterior, a forte presença do CV em áreas importantes de cada cidade.
Seu patamar reduzido frente ao eixo anteriormente analisado indica práticas que
foram se sedimentando e rotinizando a partir de operações policiais frequentes,
perdas e ganhos de áreas pelos grupos armados e a regulação que os agentes de
segurança pública cumprem quanto ao controle territorial, mercado de drogas e
controle político-eleitoral, tudo sob a égide do universal arrego, que é o principal
índice da bolsa de valores do mercado criminal. As movimentações milicianas nesse
eixo seguem num ritmo mais concatenado, dependendo de acordos mais sólidos,
contudo, passíveis de serem quebrados, principalmente nos períodos de campanha
eleitoral, onde são rompidos por projetos de ascensão que se tornam ameaça para
os demais, notadamente, entre os diferentes grupos milicianos, já que traficante
ou vai para os presídios, para a vala ou é desaparecido.
Entre 28 e 50 homicídios por intervenção de agente do Estado por 100 mil
habitantes forma outra faixa na qual se distribuem os municípios analisados.
Nela se incluem Magé, São João de Meriti, Nilópolis e Rio de Janeiro. Magé e
Nilópolis apontam os Cozzolino e os Abraão-David/Sessim como Clãs consolidados,
operando ao longo do tempo a estrutura policial de acordo com seus interesses, o
que permitiria uma atuação mais seletiva, como o caso da favela da Lagoa, em Magé,
anteriormente comentada e relacionada ao CV e a atuação policial-miliciana em
Nilópolis, atingida mais brandamente pelas ações do CV oriundo do Complexo do
Chapadão, da cidade vizinha de Mesquita. Não esquecer que essa estrutura também
atua na eliminação de qualquer desafeto, oposição mais ameaçadora, quebra de
acordos ou interesses contrários que possam emergir. São João de Meriti traz a
guerra entre o CV e o TCP como núcleo dos conflitos que geram homicídios. A
estrutura policial-miliciana administra isso de forma a garantir menor presença
e elevação dos ganhos com menor risco, visto que não há uma estrutura familiar
consolidada ao longo do tempo com hegemonia capaz de respaldar uma atuação
mais letal. O Rio de Janeiro, por tudo que já foi anteriormente exposto, condensa
um histórico político-criminal que permite esse patamar, apoiando-se em ações
letais de repercussões midiáticas, em áreas controladas pelo CV, distribuídas ao
longo do tempo e concentradas espacialmente, concomitantemente à articulação
densa e intocável da expansão miliciana pela Zona Oeste, pobre e rica, da Barra da
Tijuca a Santa Cruz, com nichos de riqueza, comumente usufruída por milicianos,
e guetos segregados, reservados ao tráfico, além das fronteiras permanentemente
conflagradas, como Cidade de Deus, Praça Seca e suas adjacências.
Entre os municípios com os menores números temos Guapimirim, Paracambi,
Seropédica e Nova Iguaçu, trazendo entre 6 e 28 homicídios por intervenção de
agente do Estado por 100 mil habitantes. Os três primeiros trazem em comum a
baixa concentração urbana, com amplas áreas rurais, pequena população e pouca
presença da atuação do tráfico de drogas. A escassa presença do CV e a hegemonia
policial-miliciana permitem a baixa existência dos casos em tela. Nova Iguaçu segue
aqui, numa expansão miliciana, com intensa participação policial que não necessita
da letalidade. Uma conjuntura que permite, inclusive, o assassinato de milicianos
por policiais, iguais às produzidas ao longo da campanha eleitoral de 2022, sem
que isso interfira no arranjo mais amplo. As áreas controladas pelo CV ou foram
tomadas pelas milícias ou estão em pontos que não despertam interesse. O TCP
tem forte atuação no Km 32, bairro ainda hegemonizado pela milícia. O Grão Pará,
na Estrada de Madureira, retomado recentemente pelo CV, aponta para o futuro
aumento da atuação do mesmo em Seropédica. Nova Iguaçu se apresenta como
um bem-sucedido caso de Pax Miliciana. Com certeza contribui para isso o fato
de possuir um dos maiores cemitérios clandestinos do país, formado pelas bacias
hidrográficas dos rios Guandu, Guandu Mirim e Capenga, tornando desnecessário
o recurso aos homicídio pela atuação policial.

Considerações Finais
A não definição dos desaparecimentos forçados enquanto crime tipificado pela
legislação foi utilizada por dentro do fazer da estrutura de segurança pública, de tal
maneira que os dados coletados pelos Registros de Ocorrência seguem acobertando
práticas, interesses, estruturas de poder e projeções políticas diretamente vinculadas
à existência e manutenção dos desaparecimentos forçados. As pesquisas e análises
que o ISP fez relacionadas aos desaparecidos, buscando desvinculá-los de qualquer
aproximação com os desaparecimentos forçados, resultaram, pelas limitações
metodológicas, insignificância quantitativa dos dados e ausência de qualificação
dos mesmos na manutenção da dúvida e no não esclarecimento sobre o fenômeno.
Ou seja, serviram mais para ocultar e confundir do que para esclarecer.
A partir da aproximação dos dados de desaparecidos obtidos pelo ISP com a
atuação dos grupos armados, compreendendo-os enquanto estruturas político-
criminais, que se manifestam ao longo do tempo e no espaço, numa perspectiva de
longa duração e focados na Baixada Fluminense, operou-se neste texto a transmutação
dos desaparecimentos forçados de - não dado - em - dado essencial e explicativo. Ou
seja, assume-se, de forma central a hipótese de que os números dos desaparecidos
possuem uma relação direta com o número dos desaparecimentos forçados, ocultados
em seu interior e responsáveis, em última instância, pelos quantitativos e sua
distribuição pelos municípios. Um desvelamento somente possível a partir dos
dados proporcionais, ou seja, do número de casos por 100 mil habitantes, em
cada município. Essa opção metodológica, aqui assumida, justifica-se diante da
ausência de qualquer dado razoavelmente produzido, a incapacidade de gerá-lo a
partir da prática dos agentes de segurança e a deliberada utilização dos mesmos
como forma política de se impedir qualquer aproximação das características de
uma sociedade que convive cada vez mais com os desaparecimentos forçados e os
grupos que os produzem, a partir dos interesses políticos, econômicos, sociais e
culturais daqueles que dominam essas diversas esferas e se articulam em projetos
consolidados e intocáveis.
As leituras sobre desaparecidos a partir das conjunturas de confrontos de grupos
armados estatais, não estatais e mistos, percebidos sob a luz das relações de poder
político e levando-se em conta as características geopolíticas das disputas permitiu
a localização de eixos, faixas e patamares de números de desaparecidos vinculados
ao fazer-se de cada processo, em cada localidade. Desse modo, a expansão miliciana
e sua consolidação foi vista a partir da relação direta com a atuação policial e sua
letalidade. Já a presença do Comando Vermelho aparece como uma espécie de
crime-indicador de geração dos desaparecimentos forçados e, por conseguinte, dos
desaparecidos, ganhando contornos como o principal eixo interpretativo, permitindo
ampliar e aprofundar o olhar analítico, que se busca tolher pelo uso canhestro
dos dados. Nessa busca, foram identificados os epicentros dos desaparecidos e sua
relação com as estruturas político-econômicas hegemônicas, os vetores em cada
faixa de dados e suas correlações históricas e geopolíticas mais amplas. Assumiu-
se aqui, também, a hipótese de que os dados sobre desaparecidos, intensamente
impulsionados pelos desaparecimentos forçados, guardam uma estreita relação com
outros dois indicadores coletados pelo ISP, ou seja, com os números de homicídios
dolosos e homicídios por intervenção de agentes do Estado. O cruzamento dos mapas
gerados por cada um desses índices potencializa, ainda mais, o refino da compreensão
dos processos que se dão no tempo-espaço. As características e peculiaridades
sobressaem permitindo leituras mais transversais e capazes de captar contradições
e complexidades. A opção metodológica assume, aqui, seu intento mais radical, ou
seja, aponta na imbricação de processos violentos, a partir da atuação dos grupos
armados, em consonância com as estruturas sócio-econômico-político dominantes,
que desembocam, inevitavelmente, no aumento do número de desaparecidos,
recheado e inf lado, qual cavalos de Tróia, pelo número de desaparecimentos
forçados. A radicalização permite uma contraposição frontal ao atual estado de coisa,
no qual convivem sofrimento desesperador de um número crescente de pessoas,
manutenção das estratégias violentas dos grupos dominantes e a atuação da estrutura
de segurança pública como articuladora e gerenciadora de toda essa engrenagem,
protegendo-se a partir da geração de dados que a acobertam e dissimulam o papel
central do Estado na manutenção desse estado de coisa.

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g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/07/18/mprj-e-policia-civil-fazem-operacao-
contra-suspeitos-ligados-a-milicia-e-ao-trafico-na-baixada-fluminense.ghtml Acesso em:
29/11/2021.

ANÁLISE DOS DADOS


QUANTITATIVOS E QUALITATIVOS
DO DISQUE DENÚNCIA (2016-2020)
Amanda Gabrielle Covelo de Araújo
Augusto Torres Perillo
Gabriel Souza Alves
Jaqueline de Sousa Gomes
Nalayne Mendonça Pinto

Apresentação e descrição metodológica


Os caminhos percorridos nesta pesquisa fazem parte de uma ampla investigação
sobre desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense - RJ, envolvendo múltiplas
dimensões analíticas. Assim, através da triangulação ou combinação de diferentes
técnicas e mecanismos de pesquisa, objetivou-se ampliar o escopo a fim de alcançar
uma melhor compreensão do fenômeno. Como não se possui tanto no ordenamento
jurídico como nas formas investigativas e classificatórias essa categoria dos
desaparecimentos forçados, recorrer a diferentes caminhos metodológicos foi um
recurso essencial. Desse modo, neste capítulo, buscou-se a depuração de dados
de desaparecimentos de pessoas a partir do acesso ao banco de dados do Disque
Denúncia (DD), tendo como recorte os anos entre 2016 e 2020. Esse esforço, porém,
não se restringiu à organização quantitativa, pois, através da construção de um
sistema classificatório para organização e classificação das denúncias por assuntos,
construiu-se uma dimensão qualitativa, visando perceber as descrições dos fatos
que se relacionam ao fenômeno do desaparecimento forçado. O primeiro passo,
portanto, foi a solicitação ao Disque Denúncia do acesso ao banco de dados que
eles possuem sobre os casos de situações de desaparecimentos, desaparecimentos
forçados e formas correlatas de denúncias.
Importa neste momento detalhar como foi o processo de acesso e filtragem
desses dados do Disque Denúncia, a fim de explicitar as ferramentas utilizadas.
Foi enviada uma solicitação escrita à coordenação do DD explicando os objetivos
da pesquisa e a necessidade de acesso às informações que fossem correlatas aos
desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense e na cidade do Rio de Janeiro.
Em curto espaço de tempo, recebeu-se a resposta positiva e assim foi marcada
uma reunião para explicar melhor quais variáveis e filtros se gostaria de utilizar
para acessar os dados. Após esse contato, foi realizada a assinatura do termo de
compromisso, que definia o uso que seria feito dos dados, de forma a manter o
sigilo e a integridade dos mesmos. 20
Após as tratativas, foi disponibilizada uma planilha com 14.935 denúncias
referentes aos anos entre 2002 e 2021, de todos os municípios do estado do Rio de
Janeiro, classificadas em Tipos de Assunto, definidos pela equipe do DD e enviados
por entenderem que corresponderiam à solicitação realizada.
O esforço de ir além dos dados estatísticos do Instituto de Segurança Pública (ISP)
e de superar os limites de um sistema de Registro de Ocorrência - estruturalmente
afetado pela subnotificação e pela coação de testemunhas de desaparecimentos
forçados, conforme inúmeros relatos registrados no trabalho de campo - encontrou
viabilidade através desse acesso à base de dados do Disque Denúncia do Rio de
Janeiro. Com um banco de denúncias que datam desde 2002, a tabulação do DD-
RJ mencionava: data e hora da ligação; endereço do ocorrido (município, bairro,
rua, número); tipo de assunto; texto descritivo das informações repassadas pelo
denunciante; órgão em que já foi registrada a ocorrência; e coordenada geográfica
(latitude, longitude). Diante da amplitude das informações dessa base de dados,
não foi difícil concluir que sua dimensão qualitativa era tão ou mais importante
do que a quantificação e a localização das denúncias.

A filtragem dos dados


A partir dessa planilha inicial, tendo em vista as dimensões analíticas que foram
evocadas a partir do recortes empíricos que se relacionavam com os temas: violência,
milícia, tráfico de drogas, homicídios, entre outros, presentes na realidade social,
começamos a realizar a filtragem dos dados. Os primeiros filtros inseridos foram o
espacial e o temporal. Concentramo-nos nos municípios da Baixada Fluminense e

20. Neste trabalho foi garantida a anonimização dos dados pessoais, incluindo nomes, qualificação e
dos dados de localização de todas as informações utilizadas oriundas dos relatórios produzidos pelo
Disque-Denúncia. Tudo em consonância com o TERMO DE SIGILO E CONFIDENCIALIDADE, acordo
assinado entre o Instituto MOVRIO/Disque Denúncia e Nalayne Mendonça Pinto (Coordenadora
da Pesquisa), bem como em obediência à previsão legal contida no artigo 7º inciso IV Cap II Seção
I da Lei Geral de Proteção de Dados nº 13.709/2018 onde está previsto que o tratamento de dados
pessoais somente poderá ser realizado, entre outras hipóteses, para a realização de estudos por órgão
de pesquisa, garantida, sempre que possível, a anonimização dos dados pessoais.
no Rio de Janeiro - capital, resultando na redução de 14.935 para 12.629 denúncias.
Em seguida, definimos o recorte de 5 anos (2016-2020) para análise, que diminuiu
o quantitativo de denúncias a serem analisadas de 12.629 para um total de 1.738
(gráfico 5).

Gráfico 5

Fonte: Banco de dados da pesquisa com base nos dados do DD, 2022.

O elemento mais rico dessa base de dados é o texto descritivo das informações
fornecidas em cada registro de denúncia, que detalham práticas da ocultação,
condição do(a) desaparecido(a), cemitérios clandestinos, justificativa do ocorrido
e até os nomes dos sujeitos ou agrupamentos responsáveis pelo desaparecimento
forçado. Deve-se salientar, entretanto, que o texto descritivo é tanto uma seleção
quanto uma transcrição dos aspectos significativos da conversa telefônica e passa
necessariamente pelo crivo e pela subjetividade do atendente do DD-RJ, não se
tratando, consequentemente, de reprodução dos diálogos na íntegra. Com isso,
é necessário considerar que se lidou com representações de uma denúncia, cuja
finalidade era selecionar os elementos mais sintéticos e objetivos da interação
denunciante-atendente.
Importa considerar que os cidadãos, ao ligarem para o Disque Denúncia,
constroem um fio narrativo eivado de valorações morais, sociais, territoriais e
emocionais. São descrições que almejam comunicar situações limites que podem
ajudar a polícia em investigações imediatas ou futuras. As narrativas são repletas de
detalhes sobre ruas, locais, esquinas, lojas, carros, ponto de referência, etc, tudo que
possa ajudar na identificação e nas evidências dos casos narrados; almeja-se auxiliar
o trabalho de investigação e elucidação através da comunicação feita. A denúncia
aqui deve ser compreendida como campo de disputa, onde pessoas anônimas podem
participar da elucidação de casos policiais. Uma disputa com múltiplas dimensões,
pois envolve os processos territoriais e sociais da dinâmica criminal dos territórios
denunciados, bem como a complexa trama dos atores envolvidos: denunciante
e sua família; vizinhos, polícia (militar e civil), tráfico, milícia, poder público,
comerciantes locais; soma-se, ainda, os riscos de ser reconhecido como um delator.
Outro ponto que exige cuidado em relação a essa fonte são os procedimentos
de classificação adotados pelo DD-RJ. Os Tipos de Assuntos são utilizados para
organizar as denúncias em grupos de acordo com a temática identificada pelos
atendentes. Eles facilitam a subdivisão dos dados e permitem seu seccionamento
para fins de consulta e elaboração de pesquisas, mas não devem ser confundidos
com categorias de análises e conclusões mais profundas de cada caso. Trata-se
apenas de um procedimento de repartição simples, que justapõe e classifica a
partir do fator mais chamativo e aparente do que foi narrado pelo denunciante.
Diante disso, tendo em vista a necessidade da pesquisa em mapear amplamente
os desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense, o DD-RJ forneceu o acesso
a seis Tipos de Assunto: 1) Cemitério Clandestino; 2) Destruição/Subtração de
Cadáver; 3) Encontro de Cadáver; 4) Furto/comércio de ossos, membros e órgãos;
5) Pessoas Desaparecidos e 6) Tráfico de Mulheres.
Em seguida, realizamos uma leitura detalhada das formas descritivas que se
aproximavam das situações de desaparecimentos forçados. Dessa forma, excluímos
denúncias que não estavam próximas do problema analisado, bem como denúncias
repetidas (pessoas que ligam mais de uma vez para fazer a mesma denúncia ou
pessoas diferentes que denunciam o mesmo fato). Durante a leitura foi construída
uma nova coluna na planilha do DD com as palavras chaves que mais se repetiam
na denúncia. Essas palavras recorrentes estão na nuvem de palavras, que pode ser
vista logo abaixo:
Figura 4 - Nuvem de Palavras feita a partir do Disque Denúncia.

Fonte: Banco de Dados da Pesquisa, 2022.

Assim, as denúncias fornecidas pelo Disque Denúncia nos referidos tipos de


assunto, restrita à seleção dos municípios que compõem a Baixada Fluminense
e à cidade do Rio de Janeiro, delimitada pelo recorte temporal estipulado entre
2016 e 2020, que haviam resultado num quantitativo de 1.738 denúncias passaram
pelo crivo das denúncias duplicadas e dos casos com ausência de informação ou
de conotação de desaparecimentos por motivos pessoais, chegando-se, finalmente,
a um total de 768 denúncias com evidências de desaparecimento forçado. Como
pode ser observado no gráfico abaixo:

Gráfico 6
Fonte: Banco de dados da pesquisa com dados do DD, 2022.

Tabela 1 - Saldo quantitativo dos dados filtrados na Baixada Fluminense e município do


Rio de Janeiro por Tipo de Assunto.

Tipo de Assunto Rio de Janeiro Baixada Fluminense

Tráfico de Mulheres 1 0

Pessoas Desaparecidas 50 49

Furto/Comércio de Cadáver 0 0

Encontro de Cadáver 256 204

Destruição/Subtração de Cadáver 5 2

Cemitério Clandestino 105 96

Fonte: Banco de dados da pesquisa com dados do DD, 2022.

A presença do município do Rio de Janeiro junto com os municípios da Baixada


Fluminense, como vem sendo realizado, têm por finalidade estabelecer parâmetros
e comparações possíveis. É preciso, contudo, ter cuidado, pois toda correlação entre
essas duas realidades requer extremo cuidado e ressalva, pois se está lidando com
realidades profundamente distintas, seja no quesito populacional, como no campo
social, econômico, histórico, cultural, espacial e urbano. Além disso, a noção de
Baixada Fluminense aqui adotada compreende um esforço de mapeamento das
condições sociais marcadas por uma desigualdade social profunda, que coabita
com dinâmicas de acumulação de capital amplamente exitosas - sejam aquelas que
figuram na aparência de legalidade ou não. Portanto, os 13 municípios compreendidos
como parte da Baixada Fluminense são apenas um ponto de partida para mapear
e dimensionar o fenômeno.
À Baixada Fluminense corresponde um total de 351 denúncias de desaparecimentos
forçados: Belford Roxo (91), Duque de Caxias (96), Guapimirim (1), Itaguaí (18), Japeri
(18), Magé (8), Mesquita (13), Nilópolis (5), Nova Iguaçu (37), Paracambi (0), Queimados
(21), São João de Meriti (35), Seropédica (8). Já a cidade do Rio de Janeiro teve um
quantitativo de 417 denúncias. Contudo, estamos diante de um dado numérico
absoluto, que não leva em conta a proporção populacional, e, ao se partir para os
dados relativos, vemos que a situação se inverte, quando observamos o contingente
de denúncias por 100.000 habitantes. Ou seja, temos uma taxa de 9,25 denúncias
de desaparecimento forçado por 100 mil habitantes na Baixada Fluminense e 6,12
deste mesmo tipo de denúncia no Rio de Janeiro. Indo além das diferenciações
quantitativas, o banco de dados do DD-RJ oferece um extenso repertório descritivo
dos relatos feitos durante a denúncia, que nos permite observar as palavras-chaves
mais empregadas na representação dos fatos.
Mesmo sem acesso à metodologia de elaboração dos códigos e termos comuns
utilizados pelos atendentes do DD-RJ na elaboração dos textos descritivos, é
possível identificar narrativas que retratam a realidade do desaparecimento de
modo compreensível e objetivo. Ao ilustrar a frequência destas narrativas utilizadas
através de uma nuvem de palavras, temos uma noção dos processos de construção
social do crime e do desaparecimento forçado no Rio de Janeiro. Cabe apontar que
estamos trabalhando nessa análise do banco de dados do DD com um triplo filtro
de classificação/seleção. Primeiro da pessoa que denuncia e recorre às próprias
formas discursivas para narrar os fatos, segundo o atendente do DD, que ao ouvir
as denúncias as classifica de acordo com variáveis já existentes no aplicativo que
utilizam para registro dos fatos (mas com certa f lexibilidade de abertura para
descrição dos fatos). Terceiro, o filtro por nós realizado para selecionar aqueles
que indicavam maior aproximação com o conceito de desaparecimento forçado,
de acordo com as descrições registradas.
No gráfico abaixo, há a possibilidade de observar o quantitativo de denúncias que
foram realizadas ao DD e que tem aproximações com as formas de desaparecimento
forçado; podemos ver no mapa da Baixada Fluminense e do Rio de Janeiro quais
municípios possuem maior incidência de denúncias de casos deste tipo por 100 mil
habitantes. Com maiores taxas temos: i) os municípios Itaguaí, Japeri e Belford
Roxo, na margem de 15,1 até 18,1 denúncias por 100 mil habitantes; ii) em seguida
Queimados, na faixa de 12,1 até 15,1; iii) depois Seropédica e Duque de Caxias, no
intervalo de 9,1 até 12,1; iv) posteriormente São João de Meriti e Mesquita, com 6
até 9,1; v) em penúltimo Nova Iguaçu, Nilópolis e Magé, com 3 até 6; vi) por fim,
Rio de Janeiro, Guapimirim e Paracambi, na parcela de 0 até 3.

Gráfico 7

Fonte: Análise da pesquisa a partir do Banco de Dados do DD, 2022.

Análise das categorias empregadas


Os textos produzidos pelos funcionários do DD a partir dos relatos de denunciantes
forneceram os principais elementos que caracterizaram as espacialidades, os métodos
e os procedimentos nos quais se dá o desaparecimento forçado. Houve um esforço de
se debruçar sobre essa planilha para selecionar aquelas denúncias que fornecessem
indícios de desaparecimentos forçados em seus textos descritivos; bem como a
identificação de grupos atuantes nas dinâmicas criminais e elementos que indicassem
a potencialidade da destruição/ocultação de cadáver, pontos de “desova” e cemitérios
clandestinos. Ainda que expressa pelas palavras do atendente, um léxico comum foi
identificado e determinadas palavras-chaves assumiram a forma de um repertório
coerente acerca das características dos processos de desaparecimentos forçados
que “explodem” no cotidiano das pessoas que, de algum modo, os testemunham.
Muitos relatos evidenciaram que componentes criminais como homicídio, sequestro
e ocultação ou destruição de cadáver são denominadores comuns na tecnologia
de fazer desaparecer corpos (ARAÚJO, 2014) entre milícias, traficantes, grupos
criminosos e policiais.
Contudo é interessante mencionar aqui que notamos que as categorias fornecidas
e operacionalizadas pela própria plataforma do DD-RJ denominadas “Tipos de
Assunto” como pessoas desaparecidas, encontro de cadáver e cemitério clandestino,
se entrecruzam no corpo textual e descritivo da denúncia. Isso quer dizer que
por diversas vezes denúncias cujo assunto era, por exemplo, pessoa desaparecida,
acabavam por revelar em suas descrições a existência de um cemitério clandestino
ou de um ponto de desova, remontando as imagens e os caminhos que fazem do
corpo executado um corpo desaparecido e também o contrário.
Vale relembrar que o DD-RJ não opera com a categoria de desaparecimento
forçado, assim como não há uma operação normativa no cotidiano das delegacias
brasileiras. Algumas chaves de análise, portanto, foram acionadas para construir
um sistema classificatório que organizasse as denúncias cujas descrições apontassem
para situações com possibilidades de desaparecimentos forçados. Estas serão a partir
de agora apresentadas como denúncias semelhantes àquelas analisadas no banco
de dados, preservando o anonimato de locais e pessoas.
a) Localidade do “aparecimento” do corpo: palavras-chaves como sítio, terreno
baldio, carro abandonado, campo de futebol, zona de mata, matagal, alto do morro,
rio, lagoa, valão ou até mesmo poços artesianos e cisternas, compõem a gramática das
espacialidades utilizadas como pontos de “desova” em que ocorrem recorrentemente
o abandono, a destruição ou a ocultação de cadáveres. Segue alguns exemplos:

“No bairro citado, atrás da Comunidade “xxx”, há dois dias, traficantes, aliados
ao “xxx”, a mando do traficante “xxx”, que lidera o tráfico na região, assassinou
e jogou o corpo de um de seus comparsas no único rio do bairro e o corpo
se encontra boiando, nesse momento”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No Rio “xxx”, próximo ao ponto do “xxx”, pelo canal de “xxx”, neste momento,
foi visto um cadáver de caráter masculino”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No final da rua citada, próximo ao campo de futebol, localiza-se uma casa
em construção, com um matagal na frente, onde no quintal foram enterrados
dois indivíduos (não identificados), um de vulgo “xxx”, que foram assassinados
por traficantes da localidade, segundo informa, eles foram enterrados em
um barranco do quintal”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
BAIXADA FLUMINENSE).
“Na rua citada, no alto do morro “xxx”, perto das torres de telefonia, foi enterrado
o corpo do morador “xxx”, que após um desentendimento com os traficantes
“xxx” e “xxx”, foi executado a tiros e enterrado no local. Cita que, os traficantes
não permitem que a família da vítima busque o cadáver. O crime ocorreu
há cerca de três meses”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO
DE JANEIRO).
“Na rua citada, em frente ao túnel e atrás da “xxx”, situa-se uma ocupação
irregular conhecida como “xxx”, em um beco, primeira direita, encontra-se uma
cisterna próximo ao bicicletário com um cadáver dentro. Cita que os traficantes
de drogas do local, executaram a vítima ontem (XX/XX/XX) e jogaram o corpo
dentro da cisterna e a água é utilizada para consumo”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).

b) Estado de decomposição e putrefação do corpo: estas denúncias podem


apontar para a morosidade/desinteresse na resolução e no registro oficial de casos
de homicídios, demarcando o tempo em que está abandonado não somente um
corpo, como também uma investigação. Aqui a dimensão da espera indica que
um corpo não reclamado pode ser aquele que está prestes a desaparecer, tal como
exemplifica um dos relatos abaixo: “se a polícia não chegar, corre o risco do corpo
da vítima ser devorado por urubus”.

“No endereço mencionado, no interior do “xxx”, no pavilhão “xxx” que dá de


frente para o depósito “xxx”, entre uma casa de ração e um depósito de bebidas,
existe uma cisterna que vai do chão com cinco metros de altura, há mais de
uma semana, encontra-se um cadáver em decomposição, para que o corpo
não seja encontrado e o odor abafado, foi colocado uma tampa, esta água é
a mesma utilizada no preparo das refeições, entre outros, de todo o “xxx”, na
sexta-feira dia XX/XX/XX a polícia esteve no local, rodeou a cisterna mas não
subiu para retirar a tampa e averiguar.” (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Na estrada do bairro mencionado, próximo a “xxx”, pode ser encontrado o
corpo de um homem (não identificado). a polícia militar já foi acionada, mas
até o momento, não compareceu ao local. Se a polícia não chegar corre o
risco do corpo da vítima ser devorado por urubus”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Complementa denúncia “xxx”, informando que no interior do auto de cor
prata (modelo ignorado), placa “xxx” mencionado na denúncia de origem,
supostamente pode ser encontrado um cadáver, pois está exalando um odor
de podre muito grande. pede providências urgentes”. (BANCO DE DADOS DO
DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“No bairro citado, na comunidade “xxx”, próximo a “xxx”, atrás do Clube “xxx”,
localiza-se uma mata fechada, que tem um bambuzal, onde encontra-se uma
cova, com um corpo enterrado. informa também que o local exala um odor
horrível de carne podre”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
BAIXADA FLUMINENSE).

c) Execução sumária e/ou desaparecimento forçado envolvendo tráfico, milícia


e/ou polícia: nestes relatos a prática do desaparecimento ligada à ocultação de um
homicídio expressa de modo mais evidente e sistemático os procedimentos, os
agentes e as práticas que produzem o desaparecimento forçado, fornecendo dados e
informações que nos permitem identificar os processos e modos de agir que envolvem
as situações e formas de operacionalizar. Pode-se observar nas denúncias abaixo:
“No final da rua citada, no alto do morro “xxx”, dá acesso a uma escadaria, onde
no final dela existe uma mata, onde traficantes (não identificados) jogaram dois
corpos, sendo um, do comerciante “xxx”, assassinado na quarta-feira (XX/XX/
XX). O registro de desaparecimento da vítima foi feito na “xxx”. (BANCO DE
DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“No final da rua citada, entrando à esquerda, no local onde se encontra o “xxx”,
há um cadáver de um homem, que está parcialmente enterrado, e já está em
decomposição, exalando muito odor. Há suspeitas de que possa ser o corpo de
um morador de nome “xxx” (cerca de 40 anos), que desapareceu no dia XX/XX,
quando saiu de casa para entregar curriculum, e era suspeito de envolvimento
com o tráfico local. ressaltou que “xxx” pode ter sido morto por traficantes da
comunidade denominada “xxx”, que é vizinha ao bairro “xxx”. (BANCO DE
DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No bairro citado, sem maiores referências ou detalhes, atua um grupo de
milicianos (todos não identificados), os quais foram os responsáveis pelo
desaparecimento de “xxx”, um idoso que reside no bairro citado, o qual,
recentemente, sabendo das ações dos milicianos no bairro, se dirigiu à “xxx”
para fazer o registro de ocorrência, porém os policiais o orientaram a entrar
em contato com a defensoria pública e não fizeram o registro. Pouco tempo
depois de ter comparecido à delegacia, o idoso desapareceu, havendo a suspeita
que os milicianos o tenham assassinado. O indivíduo de vulgo “xxx” (não
caracterizado), que realiza serviços aos milicianos, orientou os familiares e
amigos do idoso a pararem de procurar por seu paradeiro, pois, segundo suas
palavras, poderiam ter o mesmo fim que teve o idoso”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“No endereço mencionado, próximo a linha “xxx”, localiza-se um depósito de
gás “xxx”, cujo dono é o miliciano “xxx”, que segundo informações, mandou
matar o funcionário do depósito chamado “xxx”, que morava próximo, na
rua “xxx”, no morro do “xxx” e está desaparecido há um mês. Há suspeitas de
que ele tenha sido executado por falar que o depósito pertence ao miliciano
mencionado. Neste depósito há cargas de produtos roubados”. (BANCO DE
DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).

d) Destruição de cadáver envolvendo carbonização de corpos: observamos


nos relatos a recorrência da prática da carbonização como um procedimento
importante para destruição de cadáver/“queima de arquivo” e, consequentemente,
do desaparecimento de pessoas, sobretudo de registros oficiais. Nesse sentido,
seguem os relatos:
“Na avenida mencionada, mais conhecida como “xxx”, próximo à rua “xxx” e ao
“xxx”, localiza-se uma área abandonada chamada “xxx”, onde há vários carros
abandonados, alguns foram queimados, e há suspeitas de que tenham corpos
de pessoas que foram executados a mando do tráfico”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Na estrada citada, próximo a “xxx”, localiza-se um sítio, onde há dois corpos
que foram queimados, e encontram-se numa área de mata”. (BANCO DE
DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Na rua citada, acesso pela Avenida “xxx”, próximo ao cemitério do “xxx”,
neste momento, pode ser encontrado um auto “xxx”, que foi abandonado e
queimado na tarde de hoje. Informa que, pode ser visto um corpo carbonizado
dentro da mala”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA
FLUMINENSE).
“Na rua mencionada, na beira do “xxx”, no dia XX/XX/XX, por volta de 13h,
traficantes (não identificados) da facção “xxx”, oriundos da comunidade “xxx”,
mataram e queimaram corpos de inocentes (não identificados), alegando que
estes eram delatores. Relata que os traficantes andam fortemente armados, e
quem ordenou o assassinato das vítimas foi o traficante “xxx”. Acrescenta que
os familiares das vítimas estão impossibilitados de emitirem certidões de
óbito, tendo em vista que, os corpos desapareceram”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Na rua citada, após o Colégio “xxx”, localiza-se um terreno com várias jaqueiras,
que possui um poço de 50 cm de diâmetro e 26 metros de profundidade, o qual
é usado por traficantes (não identificados), para queimar os corpos das vítimas
assassinadas pela facção criminosa que atua na região”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Na rua citada, no “xxx”, na Comunidade “xxx”, numa localidade conhecida
como “xxx”, diariamente, pode ser encontrado o traficante procurado “xxx”
vulgo “xxx”, que está aliciando menores de idade de 12 anos para entrar no tráfico
de drogas. Segundo relatos, na localidade “xxx”, frequentemente, podem ser
encontrados os traficantes procurados “xxx”, “xxx” vulgo “xxx”, “xxx” vulgo “xxx”
e “xxx” vulgo “xxx”. Os citados estão matando várias pessoas na comunidade,
esquartejando as mesmas e ateando fogo nos corpos. Nessa localidade “xxx”,
há um cemitério clandestino do tráfico de drogas”. (BANCO DE DADOS DO
DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Na rua citada, próximo à rua “xxx”, no campo do “xxx”, localiza-se um lixão,
onde corpos são enterrados ou queimados em buracos, pois há grande combustão
devido ao gás ocasionado pelo lixo. Os traficantes “xxxx”, “xxx” e “xxx” são
os responsáveis. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE
JANEIRO).

e) Cárcere/detenção clandestina e sequestro: a prática do desaparecimento


forçado está intimamente associada à tortura, à detenção arbitrária, e, não raras
vezes, ao assassinato de pessoas, sem que seja informado os fatos, o paradeiro da
vítima ou a motivação da ação a quem de direito. A presença deste elemento no
texto descritivo salienta a violação complexa de direitos fundamentais, sobretudo
o direito à liberdade, este apartado do devido processo legal. Seguem alguns casos:

“No endereço citado, próximo a saída “xxx”, neste momento, pode ser encontrado
o advogado “xxx”, que está sendo mantido em cárcere privado pelo policial
“xxx” lotado na “xxx”. “xxx” que está desaparecido desde o dia XX/XX/XX,
conforme cadastro nacional desaparecidos do Brasil”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“No bairro citado, o desaparecido “xxx” foi sequestrado por “xxx” vulgo
“xxx” e “xxx” a mando do “xxx” vulgo “xxx”. Há duas semanas, “xxx” vulgo
“xxx” e “xxx” levaram o carro que pertence ao vulgo “xxx”, um fiesta de cor
“xxx”, para o lava jato do “xxx” para que fosse feita uma limpeza geral pois
o carro estava sujo com sangue. Pode-se observar que, “xxx” vulgo “xxx” e
“xxx” estavam nervosos e circulavam ininterruptamente pela barraca, ambos
armados. Após este dia, o vulgo “xxx” ordenou aos seus subordinados que
espalhassem no bairro que quem ficasse comentando a respeito do caso também
iria desaparecer. Completa que, o vulgo “xxx” costuma executar alegando que
seriam delatores, conhecidos popularmente como “xxx”. Somente no mês de
abril, estão desaparecidos dois rapazes, sendo um deles o “xxx”, em ambos casos
os responsáveis pelo desaparecimento são o vulgo “xxx” e os seus subordinados,
“xxx” vulgo “xxx” e “xxx.” (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
BAIXADA FLUMINENSE).
“No endereço mencionado, próximo a “xxx”, localiza-se o condomínio “xxx”,
onde podem ser vistos, com frequência, milicianos, entre eles “xxx”, que é o
chefe, “xxx”, “xxx”, “xxx”, “xxx” e “xxx”, circulando armados, cobrando taxas de
segurança dos moradores e invadindo residências. Informa que no dia XX/XX/
XX os citados sequestraram “xxx”, vulgo “xxx”, que encontra-se desaparecido.
Acrescenta que o “xxx” e o “xxx” residem no endereço mencionado”. (BANCO
DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No endereço citado, próximo ao “xxx”, localiza-se a casa onde reside “xxx”, que
sexta-feira (XX/XX/XX), saiu para um churrasco na casa do amigo, no município
“xxx” e na mesma rua do evento, passou um carro com alguns indivíduos,
encapuzados, abordaram o mesmo e sequestraram. O citado estava vestido com
blusa nas cores preta e cinza, bermuda preta, chinelo preto, marca havaianas”.
(BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).

f) Cemitério clandestino: O Disque Denúncia categoriza espaços com mais de


um cadáver como cemitérios clandestinos, os relatos classificados como cemitério
clandestino formaram um significativo número de denúncias que restaram na
planilha após a filtragem e limpeza das informações: passando de 266 (bruto) para
201 (filtrado). Importa destacar que os denunciantes relatam situações que não só
foram observadas por eles, na maioria das vezes, mas que, pelo grau de detalhes da
denúncia, indicam veracidade. Muitos casos relatam detalhes de como chegar ao
local, além dos nomes das vítimas que desapareceram e seus autores. As descrições
referem-se à terrenos baldios, rios, quintal, matagal, poço, fazendas, etc; tudo com
bastante precisão como podemos ler:

“No final da rua mencionada, situada no “xxx”, no “xxx” dentro do “xxx”, depois
da “xxx”, inicia-se a mata, e nela há uma trilha, desse ponto anda-se cerca de dez
minutos até a parte alta, onde existe um cemitério clandestino e um local de
queima de corpos, mas é visível corpos em estado de decomposição e arcadas
dentárias pelo chão, e precisamente no final da “xxx”, depois de uma represa
existe outro cemitério clandestino”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Na rua citada, próximo ao “xxx”, pode ser visto, um cemitério clandestino
pertencente aos milicianos (não identificados). Os mesmos, estavam com
dragas cavando covas, próximo ao sítio “xxx”. Solicita averiguação.” (BANCO
DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Na rua citada, sem saída, atrás de “xxx”, na comunidade “xxx”, localiza-se um
terreno, o qual funciona como cemitério clandestino do tráfico de drogas.
Relata que, os traficantes (não identificados) também utilizam o terreno como
esconderijo de armas de fogo e entorpecentes. O chefe dos citados é o vulgo
“xxx”, que mora na rua supracitada, no “xxx”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Na rua citada, antiga fábrica da “xxx”, situa-se um cemitério clandestino,
idealizado pelos traficantes de drogas, entre eles o vulgo “xxx” e outros (não
identificados), oriundos da facção “xxx”. Cita que eles enterram os corpos,
posteriormente jogam concretos em cima dos corpos e ameaçam as famílias que
tentam buscar os corpos, inclusive, o vulgo “xxx” já executou alguns familiares
devido à procura dos parentes para realizar um enterro digno. Finaliza dizendo
que as ruas do entorno estão sendo obstruídas com blocos de concreto fixados
no chão”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“Final da rua mencionada com a rua “xxx”, beirando o rio, existe um cemitério
clandestino, onde traficantes de drogas (não identificados), liderados por “xxx”
(não caracterizado), da facção criminosa “xxx”, jogam os corpos esquartejam
e enterram. Neste momento, podem ser encontrados pelo menos dois corpos
no local, em cova rasa”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
BAIXADA FLUMINENSE).
“No bairro citado, no final da rua principal da comunidade “xxx”, passando pela
“xxx”, chegando no “xxx”, localiza-se um cemitério clandestino, onde podem
ser encontrados quatro corpos de jovens (não identificados) que foram mortos
na comunidade na segunda-feira XX/XX/XX, por volta das 22h, pois foram
pegos por traficantes (não identificados), em um ponto de ônibus, em frente da
comunidade, pois seriam moradores de uma outra comunidade de facção rival.
(BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Na estrada citada, após o cemitério “xxx”, localiza-se uma porteira, onde cerca
de 50 metros à frente, podem ser encontrados mais de cinquenta corpos que
foram enterrados pelos milicianos “xxx” vulgo “xxx” e “xxx” vulgo “xxx”. cerca
de cinquenta policiais lotados no “xxx”, estão envolvidos com o grupo, policiais
que recebem o valor de R$ 15.000,00, por semana, para que os milicianos possam
utilizar o blindado, com o qual entram e saem na comunidade do “xxx”. todas
as quintas-feiras, entre 12h e 17h, os milicianos “xxx”, “xxx” e “xxx”, são vistos
em frente à estação “xxx” em uma barraca de doces, cobrando de comerciantes,
por uma suposta segurança, que chegam a arrecadar o valor de R$ 85.000,00,
por semana, utilizam o veículo “xxx”, de cor preta, rebaixado, placa não citada,
que fica parado em frente à barraca, solicita averiguação”. (BANCO DE DADOS
DO DISQUE-DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).

g) Organizações criminosas que realizam extorsão/ameaças e desaparecimentos.


Importa apontar que inúmeras denúncias que estão classificadas como cemitérios
clandestinos trazem relatos que envolvem controle territorial e ação criminosa de
grupos milicianos, facções do tráfico de drogas e policiais envolvidos com ações
criminosas. Os denunciantes relatam extorsão, controle violento do território,
assassinatos, desaparecimento de corpos, ocultação de cadáveres entre outros crimes
realizados por esses grupos. Os relatos detalhados trazem as múltiplas dimensões
que envolvem essas práticas criminosas:

“No endereço mencionado, na comunidade “xxx”, localiza-se a associação


de moradores “xxx”, cujo presidente “xxx”, juntamente a traficantes (não
identificados) da localidade, vêm extorquindo moradores, os obrigando a
fazer um documento da moradia, este sem nenhum valor legal, pagando o valor
de R$ 1.500,00, sendo que, R$ 500,00 fica na associação e R$ 1.000,00 vai para
o tráfico, e o morador que se recusa é assassinado, sendo queimado dentro
de latões no terreno atrás do “xxx”, que dá fundos para a comunidade, já são
vários cadáveres carbonizados no local”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-
DENÚNCIA, RIO DE JANEIRO).
“No endereço citado, próximo a “xxx”, localiza-se o sítio “xxx”, onde as terças e
quartas-feiras, por volta de 20h, o miliciano “xxx”, chefe da comunidade “xxx”, e
seu braço direito “xxx”, organizam festas com a presença de diversos milicianos
(não identificados), portando pistolas e fuzis. Informa que frequentemente o
procurado “xxx” comparece às festas. Acrescenta que nos fundos do sítio há
uma região de mata onde corpos são desovados. “xxx” é portador do telefone
(21 99xxxxxx) e organiza as festas através de grupos do whatsapp. Relata que
os milicianos estão cadastrados como uber ou com coletes de moto-taxista, de
forma a passarem despercebidos por blitz policiais”. (BANCO DE DADOS DO
DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“No bairro citado, reside “xxx” (não caracterizado) que foi preso ontem à noite
no bairro “xxx” portando armamentos e que neste momento encontra-se na
“xxx”. Ele é muito violento e faz parte de um grupo de extermínio que age
no bairro, os moradores (não identificados) temem denunciá-lo, mas é sabido
por todos que ele assassinou “xxx” e “xxx” (não caracterizados), “xxx” (não
caracterizado), (...), “xxx” (não caracterizado) e outros. Existe um cemitério
clandestino no bairro, em uma localidade que possui uma chaminé e um poço,
onde são jogados os corpos”. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
BAIXADA FLUMINENSE).
“Na rua citada, na altura do “xxx”, em frente de uma padaria (não nomeada), neste
momento, ali encontram-se um grupo de traficantes armados, os quais estão
efetuando disparos em direção aos carros que por ali passam. Num matagal,
localizado próximo da igreja “xxx”, há um cemitério clandestino do tráfico,
onde há diversos corpos enterrados, inclusive há um corpo com a mão pra fora
da terra. O tráfico nesta localidade é comandado pelo “xxx” (não caracterizado)”.
(BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Na avenida mencionada, após o “xxx”, localiza-se um bar, onde podem ser
aos sábados, mais de vinte indivíduos, sendo um de vulgo “xxx” que é (...) da
polícia militar, são milicianos, cobram tv a cabo, internet e estão matando
moradores, que estavam presos, sendo um chamado “xxx”, e que saíram da
prisão a pouco tempo. Eles matam viciados em drogas e recentemente mataram
“xxx” que era viciado em drogas. “xxx” tem como comparsas “xxx”, “xxx”, “xxx”,
“xxx”, sendo este último matou três adolescentes (não identificados), no bairro
“xxx” e os corpos foram enterrados em um cemitério clandestino, próximo ao
“xxx”. Eles não permitem que os parentes enterrem as vítimas”. (BANCO DE
DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA, BAIXADA FLUMINENSE).
“Na estrada citada, mais precisamente no ponto final das “xxx”, no conjunto
“xxx”, podem ser vistos diariamente, a partir das 21h, os milicianos “xxx” e o
vulgo “xxx”, juntamente com dez comparsas (não identificados) fortemente
armados. O grupo é responsável por vários homicídios na localidade, cujos corpos
estão enterrados em uma mata, localizada bem próxima do ponto final “xxx”.
Finaliza informando que o grupo está com uma lista com nomes de moradores,
que serão executados até o final do ano de 20XX. Obs: perguntado, não soube
fornecer maiores detalhes. (BANCO DE DADOS DO DISQUE-DENÚNCIA,
RIO DE JANEIRO).

Considerações Finais
As narrativas presentes neste texto fazem parte do universo que compõe o
desaparecimento forçado; representam um conjunto de técnicas de se fazer
desaparecer corpos que se correlacionam com as gramáticas e pedagogias da
violência e do terror. O banco de dados do Disque Denúncia representa uma
ferramenta que amplifica o olhar sobre o fenômeno dos desaparecimentos, e dentro
dessas denúncias podemos observar as práticas, modos de ação e procedimentos
que conduzem ao desaparecimento forçado. Entendemos as informações colhidas
pelo Disque Denúncia como um referencial importante que fornecem material
empírico e analítico para compreensão do fenômeno aqui estudado.
O banco de dados que nos foi entregue permite um levantamento tanto
quantitativo, das inúmeras formas de denúncias que são recebidas, como qualitativo,
sobre as múltiplas dimensões da comunicação. É muito significativo, como pode ser
observado nas denúncias acima enunciadas, a forma como os denunciantes buscam
descrever de forma detalhada os procedimentos e modos de agir presentes nos
desaparecimentos. Procedimentos que envolvem inúmeros métodos, instrumentos
e estratégias para a eliminação de corpos e ocultação de cadáveres; os matagais,
as cisternas, os carros queimados, os poços, os rios, as áreas abandonadas feitas de
cemitérios clandestinos; tudo isso descrito como rituais de morte e celebração de
poder de grupos armados. A dimensão territorial é importante nesse aspecto, pois
essas ações de terror abrangem e incluem as possibilidades que os territórios físicos
permitem, como as bacias hidrográficas, as áreas de mata, terrenos abandonados,
entre outros. A leitura atenta e cuidadosa desse banco de dados, que não se esgota
nesta pesquisa, permite muito mais do que denunciar as formas de desaparecimento
forçado, permite compreender os dispositivos de fazer morrer, as táticas, estratégias
e tecnologias de matar, eliminar, ocultar e fazer desaparecer.
As fronteiras entre os espaços e as práticas pertencentes aos Estados e os
excluídos dele encontram-se cada vez mais borradas e colocam diferentes desafios
às normatizações internacionais elaboradas até aqui para dar conta do que compõe
o desaparecimento forçado de pessoas. Os agentes e as dinâmicas criminais citados
ao longo desta análise, demonstraram-se, repetidas vezes, imbricados, ora em
cooperação, ora em disputa, mas se identificou também que a utilização da técnica
do desaparecimento de corpos por diferentes grupos organizados do tráfico, por
exemplo, é notadamente similar às técnicas utilizadas pela polícia e pelas milícias e
se dá muitas vezes de forma autônoma. Nesse sentido, a prática do desaparecimento
forçado reproduzida pelo tráfico não deve ser percebida como mais uma imitação da
violência do Estado e sim como uma das facetas da guerra cotidiana pela eliminação
do inimigo político e a propagação do terror para o controle de mercadorias,
territórios e corpos. A atuação das facções do tráfico e das milícias, a partir das
relações porosas com as estruturas estatais, complexifica na prática o conceito
jurídico internacional de desaparecimento forçado e nos convoca a uma atualização
do debate.
As denúncias feitas ao DD lançam pistas importantes sobre os modos e formas
de agir e respondem a algumas perguntas sobre como vem sendo constituído o
desaparecimento forçado nos territórios da Baixada Fluminense e no município
do Rio de Janeiro. Os dados nos direcionam ao entendimento de que são múltiplas
as técnicas de desaparecimento de corpos, de negação ao direito do sepultamento
e de registro dessas mortes. Fica evidente que o desaparecimento forçado é uma
realidade cotidiana vivida pelas populações mais vulnerabilizadas dos territórios
pesquisados nesse estudo, percebida na convivência com cemitérios clandestinos
dos mais complexos aos mais improvisados, corpos carbonizados ou jogados do
alto do morro, nos rios ou à flor da terra, contraditoriamente expostos, à mercê de
serem devorados por urubus e de desaparecerem para sempre. Estão aí, em todo
lugar. Erra, abandona, faz e deixa desaparecer o Estado brasileiro, ao não tipificar o
crime de desaparecimento forçado, ao não produzir políticas públicas de prevenção
e combate ao fato, além de não garantir assistência e acolhimento às famílias e aos
territórios afetados.

Referências bibliográficas
ARAÚJO, Fábio. Das “técnicas” de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos, violência,
sofrimento e política. In: Das “técnicas” de fazer desaparecer corpos: desaparecimentos,
violência, sofrimento e política. 2014. p. 220-220.

A AUTOCONSTRUÇÃO DO SER
MÃE E FAMILIAR DE VÍTIMA DE
DESAPARECIMENTO FORÇADO
José Cláudio Souza Alves
Nádia Maria P. Figueiredo

As interações da equipe do projeto com o Fórum Grita Baixada e com a Rede de Mães
e Familiares de Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense permitiram
o contato com as mães e familiares de vítimas de desaparecimentos forçados
presentes neste artigo. A aproximação se deu através de conversas individuais,
rodas de conversa, visitas aos cemitérios clandestinos e realização das atividades
de Arteterapia.
O bairro do Km 32
O bairro do km 32, em Nova Iguaçu, foi o principal espaço de construção do
trabalho de campo sobre desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense. Ali
foram feitas entrevistas e reuniões com mães e familiares de desaparecidos e de
pessoas que foram assassinadas pelos confrontos decorrentes da atuação no tráfico
de drogas, a partir da facção Terceiro Comando Puro – TCP e mortes ligadas à
milícia e à atuação policial. Foram feitas visitas às localidades do bairro relacionadas
ao desaparecimento de corpos, com destaque para os fundos do bairro e o rio que
o corta. A participação de Joseane Martins de Lima permitindo o acesso às pessoas,
na organização de reuniões, possibilitando a visita aos lugares e o contato com
entrevistados foi decisivo. Sua atuação militante na proteção e cuidado com as
famílias de vítimas, sua incansável dedicação e sua coragem permitiram a realização
desse projeto.
A localização do bairro do km 32 lhe dá uma dimensão estratégica, para os
grupos armados organizados a partir de suas dinâmicas criminais. A fronteira
entre Rio de Janeiro, a partir dos bairros de Campo Grande e Santa Cruz, e Nova
Iguaçu, município da Baixada Fluminense, a partir dos eixos rodoviários da BR 465,
antiga Rodovia Rio – São Paulo, e da Estrada Madureira, o posicionam como área
privilegiada, na operacionalização das múltiplas dimensões que movimentam os
interesses do mundo do crime abarcados pelo tráfico de drogas, milícia e estrutura
da Segurança Pública, essa última visibilizada pela atuação da Polícia Militar e
Polícia Civil, mas não restrita a elas. Sobressai a bacia hidrográfica formada pelo
Rio Guandu, Rio Guandu Mirim, Rio Capenga e Rio do Campinho, que permite a
existência, histórica, de um dos maiores cemitérios clandestinos do estado e, quiçá,
do país. Por exemplo, um dos entrevistados, que mora às margens do Rio Capenga,
afirmou que nos 8 anos que reside ali avistou algo em torno de 500 corpos boiando
no rio, lançados por assassinos. Isso daria uma média de um corpo por semana. Por
se tratar de um trecho pequeno, de apenas um dos rios mencionados, e do relato
de apenas um morador, demonstra que as proporções desse fenômeno são bem
maiores. Algo assustador diante de uma primeira aproximação. O que deve ser
para as populações desta área conviver com esse volume de corpos lançados nos
rios? Sem falar dos corpos submergidos por força de pesos a eles amarrados, como
pedras. São comuns os relatos de que moradores encontram corpos boiando, presos
nos troncos e vegetação das margens do Rio Capenga e os soltam para que sigam o
fluxo da correnteza. Em muitos casos, sabem quem são as pessoas e conhecem seus
familiares, que procuram pelo seu paradeiro. Porém, o que inicialmente pareceria
ser crueldade nada mais é do que a autoproteção. Revelar o corpo e anunciá-lo
significaria atrair sobre si o mesmo destino daquele corpo: seu desaparecimento,
a ausência de velório, luto e memória. Uma aniquilação que ninguém se dispõem
a enfrentar.
Turvas e obscuras não são somente as águas dos rios que cortam a região. As
relações entre população, grupos armados, estruturas de poder político, Estado,
empresas privadas e poder econômico configuram conjunturas complexas e difíceis
de serem percebidas, confundindo o entendimento do que existe ali, induzindo a
equívocos. Mas está justamente nos intrincados meandros relacionais construídos
ao longo do tempo, naquele espaço, a chave interpretativa que mais nos aproxima da
realidade. A invisibilização dos corpos só pode ser desvelada nas tramas invizibilizadas
de práticas, controle de corpos, domínios de áreas e projeção política e econômica
que subjazem no fundo lodoso das convivências, da imposição de vontades e
interesses acima de qualquer contraposição. Não que a resistência inexista, pelo
contrário, ela brilha em cada lágrima de mãe ou familiar das vítimas, na imensa
e profunda rede de cuidado e proteção que subjaz ao sofrimento e à permanência
enquanto pessoas vivas, mas que convivem com os meandros de um poder que
se super expõe, que aglutina e distribui benesses, que é positivo por possibilitar
ganhos, projeção, prestígio, votos, grana.
Andar pelas ruas do Km 32 é um exercício de pisar o presente e o imaginário
de um universo paralelo e simultaneamente concreto. Há um desdobramento de
tempo e espaço em cada passo. A ilusão, simultaneamente desilusão, nos empurra
dos barrancos de rios ao encontro de instituições, empresas, vizinhanças, famílias e
proximidades afogadas em contradições. Tudo que é dito se dissolve, se decompõe
e se refaz em gestos, culturas, poderes em permanente pulsar de possibilidades e
alternativas onde o detalhe leva a outra porta, que se abre em múltiplas direções,
nos deixando entrever um pouco daquilo que, muitas vezes, não queremos acreditar,
mas que está ali, incontornável. A chamada de uma jornalista âncora de telejornal ao
difundir como verdade as narrativas de delegados e investigadores policiais apenas
finaliza um projeto que percorreu dezenas de quilômetros entre casas de tijolo sem
emboço, ruas sem asfalto e rostos aterrorizados para se constituir na verdade dos
que permanecem assassinando e lucrando com a morte dos mais frágeis.
A guerra infinita
No Km 32, enquanto exceção, o TCP e a milícia protagonizam uma guerra sem fim
e sem regras, no controle de negócios, ganhos e corpos. Essa guerra rasga ao meio
ruas, praças, casas, igrejas e famílias. Condensados no mesmo território irmãos,
primos, amigos, parentes, vizinhos, congregações religiosas, igrejas, terreiros e
bares compartilham sonhos, amor, ódios, projetos de poder e vinganças revestidas
dos mais diferentes discursos que permitem justificar, fortalecer e movimentar suas
vidas em busca de significados que deem sentido aos seu existir, planos e ambições.
A integridade convive com a mentira, a compaixão se abraça com a covardia.
Difícil separar, nas trajetórias que prosseguem, histórias retilíneas e coerentes.
Essas ficam para os heróis de telejornais e novelas com armas em punho, sangue
entre as mãos, bolsos cheios de dinheiro e urnas prenhas de votos fruto da mentira
e da ignorância. O que teria sido uma convivência menos violenta entre tráfico e
milícia teve fim em 2007. Naquele momento, a Liga da Justiça, liderada pelo então
vereador e policial civil Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho e pelo irmão, então
deputado estadual, José Guimarães Natalino, o Natalino, iniciou uma política de
confrontos e assassinatos no bairro, vitimando os membros do TCP e dando uma
guinada definitiva na relação entre os dois grupos armados. A sucessão de conflitos,
lideranças rotativas e assassinatos em ambos os lados prosseguiu, em diferentes
fases, até desembocar no cenário atual, de águas mais profundas e escuras, sob o
domínio da milícia.
O assassinato de 17 pessoas entre os dias 14 e 15 de outubro de 2020, (BARRETO
FILHO, 2020 e ROUVENAT et all., 2020) há um mês das eleições municipais,
representou uma inflexão nas forças que, armadas, dividem a região. A operação
conjunta da Polícia Civil e Polícia Rodoviária Federal foi definida pela segurança
pública do estado como combate aos “narcomilicianos”, obtendo assim um tríplice
efeito. Primeiro, respondiam às acusações de que o governo do estado não combatia
milícias, revertendo a imagem de cumplicidade. Segundo, jogava sobre os ombros dos
traficantes a responsabilidade pela ação miliciana, ou seja, livrava os agentes públicos
de segurança, historicamente vinculados às milícias, de qualquer envolvimento
com a existência delas e por fim, sinalizava dentro da disputa eleitoral a plataforma
política a ser propagandeada, o velho e tão atual bordão do: “bandido bom é bandido
morto”. Seis meses depois, o assassinato em uma operação da Polícia Civil do
assim definido chefe da maior milícia do Rio, Welington da Silva Braga, o Ecko,
mergulharia as áreas sobre seu controle numa disputa sangrenta, que segue até os
nossos dias. A supremacia miliciana comporta a ruptura das suas fronteiras internas
e o esgarçamento do tecido social sobre o qual ela opera. Danilo Dias Lima, o
Tandera e Luis Antônio da Silva Braga, o Zinho, irmão de Ecko, inauguraram uma
nova fase de mortes, rompendo com a regra de não atingir parentes de milicianos
rivais, impulsionando a morte de mulheres afetivamente vinculadas a milicianos e
utilizando-se de informações obtidas a partir dos celulares de vítimas como base para
a execução de inimigos, a partir do conteúdo das trocas de mensagens, ampliando
não só o número de mortos, como o terror e o controle sobre os moradores.
As relações sociais no Km 32, ao longo do período recente, acima descrito,
constroem o fundo submerso dos desaparecimentos forçados. Mergulhar nelas a
partir dos relatos obtidos é o objetivo aqui buscado. Por exemplo, entre a operação
policial que matou os 17 milicianos, em outubro de 2020 e o assassinato do Ecko
em uma operação policial, que ocorreu em junho de 2021, há o Réveillon de 2021.
Tendo como base o depósito de bebida relacionado à milícia, que forneceu as bebidas,
ocorrendo na praça principal do bairro do Km 32, na BR 465, ao lado da Delegacia
de Polícia, a festa aglutinou centenas de pessoas, com predominância de jovens. A
festa miliciana em si é um evento de manifestação de poder, não só pela aglomeração
em plena pandemia do Covid 19, ou pela vultuosidade, ou por ocorrer às margens
de uma rodovia federal e de uma delegacia, mas porque nela os próprios milicianos
se valem da sua supremacia armada para interferir na organização das interações
que ali se desenvolvem. A festa é o ambiente para ostentar e exercer o domínio
miliciano. Recados são enviados às pessoas de acordo com os desdobramentos
que estão em andamento dentro do bairro, a partir das aproximações entre os
moradores e os milicianos. Qualquer ameaça à ordem miliciana, configurada pela
comunhão com os donos do poder armado, é tratada imediatamente pelos seus
representantes, num cenário de discussões, tensões e soluções imediatas, nas quais
cabe discussões em público, ameaças, medições de força e construções de verdades
e mentiras, tudo como se fossem correntes sociais submersas com suas direções
o objetivos próprios, detectadas pelos diretamente envolvidos e passível de serem
lidas e interpretadas pelos imediatamente afetados e pelas leituras de terceiros, a
partir das redes de comunicação acessadas. O Réveillon da Milícia vai congregar
milicianos assassinos, em guerra entre si, traficantes assassinos em guerra com a
milícia e os parentes de assassinos e assassinados, na confraternização do ódio, medo,
perdão, revolta, vingança e todas as demais emoções possíveis de serem cultivadas
nesse universo. Essas energias se cruzam entre funks, tiros de fuzil para o alto no
romper do ano e bebidas gratuitamente distribuídas. Os que dançam e celebram
são os mesmos que convivem com os corpos esquartejados e desaparecidos de seus
filhos e filhas, irmãos e irmãs, primos e primas, esposos e esposas, amigos e amigas.
A banalização do mal em passos de dança, copos e letras de músicas compelindo
a uma sociabilidade garantida pelo Estado, sua estrutura de segurança pública e
os donos de empresas e comércio que lucram com tudo isso. Desnecessário dizer
que a 500 metros dali a maior multinacional de cervejas do país, computa no seu
lucro as bebidas consumidas no Ano Novo miliciano. O mais moderno do nosso
capitalismo é impulsionado por grupos criminosos, sem qualquer vínculo ou
compromisso entre um e outro. Crime e mercado se congraçam na modernidade
brasileira protegida pelo Estado.
Após esse Réveillon ocorreram festas semelhantes, no mesmo local, às margens da
BR 465, na Praça do Km 32, ao lado da Delegacia de Polícia, nos finais de semana. Em
uma delas, foi apresentado um funk feito em homenagem a um dos milicianos mortos
na operação policial de 15 de outubro do ano anterior. Ao final da apresentação,
membros da milícia realizaram disparos com rajadas de metralhadora e fuzis para
o alto. Naquele momento, a ruptura entre Tandera e Ecko era recente e envolvia
a comunidade num clima de ansiedade e tensão, decorrentes das ameaças de
retaliação, por parte de Ecko. Sobressaltados os moradores acordaram em plena
madrugada acreditando que a vingança do líder miliciano traído havia iniciado. Até
as informações desmentirem a versão da guerra, lá se foi uma noite de sono perdida.

O sono e o sonho: o fluxo de corpos, doenças e cura


O sono, para mães e familiares de vítimas de desaparecimentos forçados, é,
normalmente, duramente atingido, a exemplo do sono acima mencionado, de um
bairro inteiro, à espera de uma guerra entre grupos fortemente armados. O sono
não só se torna interrompido, como deixa de existir. A insônia se torna permanente.
Junto com ela as dimensões emocionais aprofundam estados de ansiedade, depressão
e um conjunto de doenças que acarretam danos biológicos, funcionais e psíquicos.
A diabetes e a hipertensão arterial são as mais comuns, mas há uma miríade de
doenças que, associadas a esses estados, fazem explodir, de forma silenciosa e
oculta, os números de doentes. O que a visibilidade imediata da violência oculta
é a invisibilidade dos efeitos devastadores na vida dos sobreviventes vinculados às
vítimas. Quando alguém é assassinado, nas palavras de mães e familiares, uma
família inteira é assassinada. O que ela era antes daquele momento de brutalidade
e sofrimento deixa de existir. Uma bomba invisível é detonada atingindo a mente, a
alma, o espírito e o corpo dos mais próximos, que pela justaposição comprimida de
casas e convivências, vão além do núcleo familiar, atingindo igualmente vizinhos,
além de parentes. Mas o sono também é um recurso, um caminho para se lidar
com o sofrimento da perda. Uma jovem que teve um parente assassinado e procura
desesperadamente pelo seu corpo, sonha que o encontra num ponto do Rio Capenga,
comumente utilizado para desaparecer corpos. Transtornada, no dia seguinte,
ela vai às margens do rio, à noite e, identificando o lugar visto no sonho. Com
suas próprias mãos, passa a cavar a terra, e nessa procura, encontra um crânio.
Seu impulso de levá-lo e entregá-lo à polícia, contudo, é rapidamente detido pelo
medo de se tornar mais uma vítima dos assassinos. Ela simplesmente o fotografa
e o devolve para as margens do rio. Nas sombras da noite, horrores de assassinatos
e desaparecimentos de corpos convivem com os sonhos que guiam os que sofrem
em busca de uma resposta. O sono, no recolhimento solitário do descanso, processa
mecanismos profundos que constroem saídas. Devolvendo aos prisioneiros daquele
labirinto um sentido que os conduz para fora das ausências de informação e de
sentido em que se encontram.
O sonho que Ana teve e a conduziu ao crânio desenterrado com as próprias mãos,
precipitou sua vida na direção de uma solução. Pusera-se a missão de encontrar seu
parente, com quem mantinha laços estreitos de afeto, desde o desaparecimento dele,
em 2012. Suas procuras, porém, esbarravam num emaranhado que impedia qualquer
desfecho mais favorável. O jovem, nessa época, queria deixar o bairro, apreensivo
por ter ouvido informações que foram compartilhadas numa roda de amigos, mas
que não podia ter tido acesso, pelas implicações que traziam para a disputa entre
a milícia e o tráfico de drogas. Esse grupo de amigos, no entanto, o dissuadiram
de partir, garantindo que ele estaria em segurança. Nada mais falso. Tratava-se de
uma armadilha. O prenderam, o amarraram e o colocaram na mala de um carro.
Na ação, porém, suas mãos ficaram amarradas para a frente, o que permitiu que
ele ligasse para a família e os avisasse sobre o que estava ocorrendo. Membros da
família conseguiram localizar o carro, mas foram impedidos de continuar a segui-
lo. Eram amigos que trabalhavam com ele, quatorze pessoas participaram da sua
morte. Hoje, apenas um está vivo, os demais foram assassinados. A família pediu o
corpo, mas nunca o teve. Fizeram buscas nas margens do Rio Capenga. Encontraram
os glóbulos oculares que reconheceram como sendo dele. Pensaram em fazer um
enterro com eles, mas desistiram, não seria um enterro. A pessoa que cortou o
corpo do jovem procurou a família, disse que ele já chegou morto. Se prontificou
a levá-los ao local onde deixaram os restos, mas desistiram de ir, pois representava
muito risco para o informante e eles próprios. Caso denunciassem, teriam que ir
morar em outro lugar, mas morar onde? A esposa do jovem desaparecido, grávida
de 2 meses, e a filha, hoje com 10 anos, permaneceram acompanhados pela família.
Seus pais, irmãos, tios e primos também foram duramente afetados. Segundo Ana,
todos tiveram depressão e alguns passaram a desenvolver quadros de diabetes e
hipertensão, além de doenças psíquicas mais graves, sem que tenham qualquer
acompanhamento psicológico. Três meses depois do desaparecimento forçado, a
família foi convidada pelo assassino, responsável pelo desaparecimento, para o seu
aniversário. Lá chegando, ouviram que ele gostava muito da família, mas que havia
recebido informações que acusavam seu parente e que acabou acreditando nessas
versões. Ele ficou chorando, mostrando-se arrependido, mas a mãe do rapaz reagiu,
dizendo que aquele assassinato havia destruído uma família inteira e agora ele
ficava ali, chorando, mas isso não iria resolver nada. A família teve que conviver por
bastante tempo com os autores do desaparecimento. Para Ana, quando o sofrimento
daquela morte vinha, ela tinha que correr para o quarto e chorar, chorar, rir, engolir
e ficar quieta, para depois sair, sorrindo, como se tudo estivesse bem. Ela agradece a
Deus pelos treze envolvidos no assassinato que foram mortos, há nisso uma justiça
divina. Mas Ana convive com contradições e angústias que permanecem. Diz que
não quer ver uma mãe chorar para aliviar o coração de outra mãe, mas quando,
em uma reunião em que participava, ouviu uma mãe, ao seu lado, falar as coisas
boas que o filho fazia, antes de ter sido assassinado, não resistiu e disse a essa mãe
que o filho dela era responsável por destruir sua família. Para Ana, não se tem que
julgar. Tem que se viver a sua dor e tentar ajudar ao próximo. Pois hoje ela tem
noção do que é não ter mais, não poder ajudar e não poder cuidar. A gravidez de
Ana, agora, a conduz por outros caminhos, na vida que renasce.

Correntezas misturadas: quando o poder e o terror moram ao lado


As correntes submersas que movimentam vida e morte no Km 32, impulsionadas
pela rivalidade entre grupos armados e dentro de cada grupo armado, resvala
nas relações entre parentes, amigos e vizinhos, cruzando destinos, aproximando,
separando e destruindo pessoas, ao mesmo tempo que fortalece a imposição, as
decisões e a vontade de outros. Compartilha-se, condensadamente, territórios,
convívios, disputas, sonhos, controles de corpos e destinos. O poder distribuído
pelos grupos armados recobre as relações existentes permitindo delações, traições,
mentiras, disfarces que confeccionam códigos que garantem a sobrevivência, o
fortalecimento, ou a destruição de projetos e dos seus portadores. Incontornável e
irresistível, o poder dos grupos armados se entrelaça com o cotidiano da convivência
dentro de um bairro a partir dos interesses de políticos, autoridades, servidores do
Estado, empresários e empresas, instituições públicas e privadas, multinacionais,
camelôs e empreendedores individuais; além dos membros de igrejas, terreiros e
congregações religiosas. Uma imensa teia de sonhos, medos, rancores, mágoas,
sucesso e alegrias passa a recobrir toda a superfície social, impulsionando energias
que precisam ser decifradas e manipuladas, por cada envolvido, cuja participação
determina os desfechos. Conhecer cada ponto dessa teia, seus nós e cruzamentos,
sua história de longa duração e de imediato, as inflexões, quebras e reconfigurações
define o sucesso e o insucesso, o morrer ou o viver, a vida, enfim, em suas múltiplas
e variadas formas de existência e dimensão. O desaparecimento forçado é uma
parte desse todo, um momento, um ponto, dessa teia. Seguir fios e identificar
pontos, acompanhar a tecitura no momento mesmo da sua urdidura, representa
um exercício imprescindível, para se captar a ação humana imbricada na sociedade
periférica, desigual e moderna que se constitui diante de nós.
Amigos, irmãos, parentes, vizinhos, membros da mesma manifestação de fé
e espiritualidade são atravessados por ambições, ganâncias, paixões e projetos
pactuados por amor e sangue. Destrinchar as precipitações de cada ação e conjuntura,
os motivos, possibilidades e desfechos nos põe diante de um imenso desafio, que
se impõe aos que não querem de forma idealizada, moralista e impregnada de
preconceitos simplificar o que subjaz aos desaparecimentos forçados. Não se trata,
contudo, de responsabilizar os mais frágeis, jogar sobre os ombros das vítimas a
punição destinada aos réus, à semelhança do que fazem matadores e milicianos, ao
julgar, condenar e executar, num único ato, indivíduos, seus objetos humanos de
projeção e poder. Deixados à própria sorte, nus face a face com homens armados,
pobres diante dos empresários, donos de negócios; impotentes frente aos políticos
e autoridades a população age, reage, avalia, avança e retrocede; arrepende-se e
reformula suas ações. A agência humana dá ao conjunto de moradores, participantes
diretos dos eventos que constroem a sociabilidade em que vivem a condição única
e intransferível de serem o que são. São nas idiossincrasias que residem o humano
em si, a capacidade de agir e se afirmar como alguém, por mais dilacerante que
seja e permeado pelo arrependimento e culpa. Mas em nenhum momento se pode
olvidar das estruturas de poder que enfrentam, suas limitações, suas fragilidades
que, em última instância, tem nos corpos que habitam, sua última trincheira de
existência. O desaparecimento forçado nos fala de uma trajetória de acumulações
de desaparecimentos, que desagua, finalmente, no desaparecimento do corpo.
Pudéssemos olhar as pessoas e enxergar esse desaparecimento gradual, poderíamos
medir o tempo que ainda possuem de aparecimento, diante de nós. Mas se houvesse
um desapareciômetro, também precisaríamos de um antidesapareciômetro, ou
seja, perceber as agências humanas que dificultam o desaparecimento progressivo.
Instituições, grupos, amigos, família, pessoas que em pequenos gestos e atos
preservam a presença, impedindo o desaparecimento físico final.

A nova guerra e a reeleição do governador


Joseane Martins de Lima encarna uma ação humana anti desaparecimento. Lançada
no meio da praça de guerra do Km 32 pelo assassinato do filho pela milícia-polícia,
segue a sina das mulheres que transformam sofrimento em cuidado com os outros.
Seu útero se ampliou não somente para proteger jovens em risco, mas para cuidar
das mães e parentes de vítimas dilaceradas pelas perdas. Migrante nordestina,
evangélica, ampliou seu olhar para os mais abandonados, em especial os moradores
da localidade que ela chama de Guacha, isto é, a parte mais distante da BR 465,
aos fundos do bairro, com ruas de barro, casas inconclusas de tijolos sem emboço,
habitadas pelos que passam fome, desempregados, incapazes de dar sustento a si
e aos seus. Qualificando-se na prática, a partir da miríade de demandas que lhe
chegam, Joseane iniciou um curso de serviço social e atua como estagiária no
Centro de Referência e Assistência Social – CRAS da comunidade do Grão Pará, que
fica a poucos quilômetros seguindo pela Estrada Madureira. Houve um detalhe da
sua história pessoal que a conectou com os desaparecimentos forçados na região.
O assassinato do seu filho ocorreu numa residência ao lado do Rio Capenga, que
se localiza aos fundos da Guacha. Em busca de alívio para a sua dor, ela várias
vezes caminha às margens do rio e se depara com os corpos, ossadas, documentos
espalhados, vestígios da violência que faz desaparecer corpos. Resgatando os
últimos momentos da vida do filho, cruza com os últimos momentos de vários
outros. O sofrimento a impulsiona para os outros, em busca de uma saída. Atua
junto à Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada
Fluminense, mas interage com mães da Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro e
mães de outros movimentos, em outras cidades. Circula entre projetos sociais, ONGs
e igrejas. Mas apesar de sua coragem e resistência, enfrenta o cansaço e o medo,
que incessantemente lhe chegam. Suas visitas ao Rio Capenga e ao Rio Guandu,
onde identifica corpos boiando ou presos às margens a partir da presença de urubus
sobrevoando, tornam-se cada vez mais arriscadas. Já teve um celular apreendido pela
milícia que, por sorte, não possuía conteúdos que a comprometesse. Recentemente,
trabalhando no CRAS, viu-se em meio ao fogo cruzado. O Grão Pará, um bairro
próximo ao Km 32, vive uma guerra pela retomada da localidade pelo CV há
meses. Em 2019, a milícia havia dominado tudo, com um exército de 100 homens
de fuzil. Apoiados por lideranças do CV do Complexo do Alemão e aproveitando
o enfraquecimento da milícia pela guerra interna entre Tandera e Zinho, grupos
armados do CV iniciaram várias táticas de confronto e recuo, retomando espaços
perdidos. As operações da Polícia Militar se somaram à resistência da milícia. Uma
conjuntura de campanha eleitoral, cujo governador candidato à reeleição ergue a
bandeira do “bandido bom é bandido morto” a partir de chacinas em áreas do CV
como Jacarezinho, Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão; transformaram as cenas de
rasantes de helicópteros atirando, policiais descendo de rapel das aeronaves e mais
mortos espalhados pelas ruas, diariamente televisionados pela mídia empresarial,
na mais eficiente propaganda política que um candidato de extrema direita e
bolsonarista poderia desejar. Quando o tiroteio ameaçou Joseane, em meio ao seu
atendimento, ela se desorientou. Os demais membros do posto onde trabalhava
saíram às pressas e a deixaram para trás. Confusa, em meio ao terror, saiu para a
rua, ao invés de permanecer no posto. Aturdida, ela foi em direção ao epicentro do
tiroteio. As pessoas, das casas, gritavam para ela, chamando-a de louca e indicando
que deveria sair dali. Desacordou e acabou resgatada por uma família, que cuidou
dela até os confrontos cessarem e ela poder retornar para casa. Como o TCP,
tradicional aliado das milícias, ocupa o Km 32, o CV já decretou que moradores
desse bairro não podem vir para o Grão Pará. Moto taxista e motorista de uber do
Km 32 já foram mortos no Grão Pará por não obedecerem a essa ordem. Joseane, vai
e volta do CRAS do Grão Pará todos os dias, infringindo a regra imposta pelo CV.
Superou o trauma, fortaleceu os laços com os colegas do posto que a esqueceram
e que agora a protegem, refaz seus atos mantendo o propósito que a faz seguir
viva: ajudar àqueles que enfrentam as inúmeras injustiças, abandonos e crueldades
perpetradas pelo Estado e os donos da grana e do poder que o controlam.
A milícia em sua prática é minimalista. Tem detalhes colhidos pelos seus membros
em permanente convivência com os moradores entre famílias, vizinhanças e grupos
sociais dos mais diversos. O poder miliciano depende desse controle amiúde.
Por exemplo, no final do ano passado milicianos obtiveram a informação que
motocicletas que estavam num depósito da polícia no Km 32 estavam sendo roubadas
e vendidas para jovens do bairro. Munidos dessa informação chave, foram a cada
comprador dessas motos e passaram a cobrar mil reais de cada um, caso quisessem
ficar com a moto. Os que não conseguiram pagar foram espancados e tiveram suas
motos levadas. Vários desses jovens haviam projetado sua sobrevivência a partir
delas. Tinham se tornado mototaxistas ou entregadores. Muitos não conseguiram
continuar nesse projeto e voltaram às condições precárias anteriores. A milícia
regula relações sociais a partir de regras que ela estabelece, maximizando poder e
grana. Valer-se das regras e do poder da milícia constitui um jogo perigoso, mas
extremamente eficiente. Um jovem possuía uma rixa com um miliciano. Este, por
sua vez, valeu-se da sua posição dentro do grupo armado para acusar o referido
jovem de informante. O jovem foi imediatamente surrado e expulso. Ele acabou
indo trabalhar com o CV na Vila Kennedy, se reorganizou e voltou com um grupo
armado do CV para se vingar. Eles foram ao Km 32 e espancaram o miliciano que
o acusou de informante e um pastor, que estava com ele. Estes, por sua vez, foram
aos chefes do CV na Vila Kennedy e os acusaram de roubá-los e tentar matá-los. O
jovem acabou levando um tiro e sendo espancado por ordem dos seus superiores
na hierarquia do CV. Cada desdobramento dessa história depende de detalhes
de vínculos, manipulação, pertencimento e relações com grupos armados. Esses
grupos, em suas localidades dominadas, manipulam regras e interpretações sobre
elas. As interações que membros ou não membros dos grupos armados estabelecem
com as lideranças que controlam os grupos armados é decisivo para o desfecho
de cada caso. As versões, as proximidades, as influências são construídas por teias
de relações, incompreensíveis para os que não estão diretamente convivendo nos
espaços e tempos em que se desenrolam a ação. Descuidos e perda de detalhes e do
tempo de ação podem significar adversidades nas quais a morte e o desaparecimento
forçado se figuram.
Um caso exemplar ocorreu após a morte do Ecko e o início da guerra interna
à milícia. Um jovem vinculado ao grupo do Tandera, atuante no Km 32, decidiu
ir para o grupo do Zinho, irmão do Ecko que disputava com Tandera a liderança.
Ele terminou assassinado e seu corpo jogado no rio para desaparecer. Seu corpo,
entretanto, boiou, apesar das pedras que o afundavam. Quando morto, seu celular
foi capturado pelo grupo do Tandera. No aparelho, constava a troca de mensagens
com jovens que moravam no Km 32, amigos de infância. Essas mensagens tornaram-
se a base para uma lista de pessoas a serem mortas e desaparecidas, pelo grupo do
Tandera, como vingança e exemplo para os demais. Jovens desatentos e ingênuos,
em trocas de mensagens que comentavam qualquer informação interpretada como
traidora, foram desaparecidos. À lista de famílias destruídas pelos assassinatos e
desaparecimentos foram agregadas outras tantas.

A milícia em ação
Na cronologia das famílias atingidas, há casos que se tornaram marcos do terror.
Um dos primeiros filhos a ser atingido pela milícia trabalhava no TCP. Chegaram
em sua casa se passando por policiais. Esse detalhe é importante, pois há uma
relação intrínseca entre milícia e polícia. A mãe abriu a porta. Eles pegaram o seu
filho e o arrastaram, o jovem gritava dizendo que iriam matá-lo. Tentou fugir,
mas eles o mataram. Levaram o corpo, disseram que iriam devolver, mas nunca o
devolveram. Isso há 8 anos. A polícia foi a essa residência três vezes. Mas a família
nunca fez registro do ocorrido. Mataram o rapaz em cima da laje de um vizinho,
depois jogaram o corpo na rua, para que todos presenciassem. Depois sumiram com
ele. Esse vizinho teve que sair da casa, virou alcoólatra, teve problemas mentais,
terminou falecendo. Na casa dele havia crianças, idosa acamada, todos traumatizados.
Mas nunca houve qualquer acompanhamento psicológico. Só a igreja. Os detalhes
de crueldade desse caso abalaram o bairro como um todo, marcando o fim de uma
fase que não conhecia o terror sanguinário.
No dia 12 de agosto de 2022, o desaparecimento de quatro jovens da comunidade
do Valverde e o motorista de aplicativo que estava com eles, na Estrada de Madureira,
em Nova Iguaçu, ganhou a mídia (PORTO, 2022). As informações da investigação
levaram à atuação da milícia controlada por Tandera como responsável pelo ocorrido.
A projeção político-midiática do caso levou a operações policiais que resultaram na
morte de milicianos do referido grupo, apreensão de fuzis, prejuízos nos ganhos e
risco para o próprio Tandera, que, por fim, desapareceu, deixando toda a sua milícia
para ser comandada por outros donos, entre eles, seu grande rival, Zinho. Com
isso, os que haviam sido perseguidos, sofrendo mortes e desaparecimentos forçados
pelo grupo do Tandera, retornaram ao Km 32. Passou-se a viver a hora da vingança
contra os que haviam apoiado Tandera. Uma escalada sem fim da violência varre,
mais uma vez, aquele bairro. Midiaticamente, a busca pelos corpos dos quatro
jovens dentro do Rio Capenga ganhou imagens televisivas (MOURA, 2022), com
direito a balsas, helicópteros e encontro de corpos. Poderia ser o início de mudanças
para todo esse sofrimento, mas foi apenas ganho político-midiático-eleitoral. O Km
32 segue expondo ao mundo um dos maiores cemitérios clandestinos da história.
A ação humana dos moradores do Km 32 faz parte do consórcio de uma
governamentalidade miliciana que tem suas raízes em instituições mais sólidas e
poderosas. A gestão do poder, diretamente vinculada à geração de uma verdade
inconteste, baseia- se na preservação de um ecossistema no qual a razão de Estado
e o lucro do capital elegem a força de um grupo armado como melhor estratégia
de preservação dos seus ganhos políticos e econômicos. A mediação racionalizada
a partir de disciplinas e saberes esgarçou de tal maneira a realidade social que o
retorno à imposição pela violência física eligiu um looping de retorno à soberania
tirânica e à convocação de uma liturgia que ritualiza a verdade, que tanto necessita
da ciência, com destaque para a base tecnológica bélica, como da religião, em especial
o mundo evangélico e sua autorregulação individualizada. O que fora banido pela
razão de Estado como misticismo desnecessário, entra pelas portas dos fundos
como justificativa decisiva na hegemonia dos grupos dominantes que organizam
seu escritório sobre os bicos dos fuzis e faz da miséria humana atendida por igrejas
a base operacional do seu poder. Outro exemplo é a existência, próximo ao bairro,
de uma multinacional, que gera bilhões, com uma planta produtiva fantasma, ou
seja, o humano só participa na produção apertando um botão que liga e outro que
desliga o sistema. Ali o desaparecimento dos corpos tornou-se o próprio motivo de
existir da empresa. Os corpos só transitam ali através dos terceirizados que recolhem
os cacos que eventualmente são gerados pela movimentação das esteiras. Mas se
no interior da multinacional os corpos foram banidos pela maximização do lucro
e recurso à tecnologia, a oito quilômetros da sede, esse banimento pode ser feito
de outra forma. Quando o CV descobriu um setor de tratamento de águas dessa
multinacional, montado diretamente nas margens do Rio Guandu, aos fundos do
bairro que então dominavam, não pensou duas vezes, e passou a pedir 5 mil reais
por semana para permitir o acesso dos funcionários ao local. Mas uma multinacional
não se submete aos interesses de jovens pobres e negros armados, prefere grupos
armados mais competentes, estáveis, de dentro do Estado. Em 21 de setembro
de 2015 a milícia invadiu essa localidade. Tinha lista com nomes e endereços de
pessoas para matar. O que revela a necessária investigação, que só a estrutura
policial detém, sobre cada um a ser eliminado. Os poupados foram convencidos, sem
grandes delongas, que seria melhor, doravante, trabalhar para a milícia, a não ser
que quisessem ir para o caminhão que, ao final da chacina, acumulava mais de 20
corpos. A racionalidade da governamentalidade miliciana se reduz à contagem de
corpos e às formas de torná-los desaparecidos. A razão de Estado e de empresários
refundam o contrato social pela inquestionável razão de execução.

As mães e familiares apresentam sua face


No dia 10 de setembro de 2021, o projeto de Extensão e Pesquisa sobre desaparecimentos
forçados na Baixada teve o primeiro contato com um conjunto de mães e familiares
de vítimas. Houve uma reunião organizada por Joseane Martins de Lima em sua casa,
com a presença de mulheres convidadas por ela. Os treze relatos trazidos por essas
mulheres eclodiram dentro de todos com a força própria de todas as dimensões das
vidas ali expressadas. Um movimento que vinha de cada trajetória de sofrimento,
abandono, reconstrução de projetos de vida e resistência se materializaram em
palavras e expressões das dimensões mais profundas e complexas com as quais
todos ali haviam vivenciado até aquele momento. As ausências de explicação se
entremeavam aos abusos dos agentes públicos da área de segurança, emergindo
simultaneamente desespero, fé, preconceito e esperanças inquebrantáveis. Ali, as
almas foram compartilhadas naquilo que as definiam: o amor que jamais desiste. Em
vários casos, a morte era sabida. Tratava-se de um relato direto de como o corpo fora
ocultado por grupos armados. Não nos detalhes do ocultamento, mas na certeza do
fato. Em outras situações, não havia a certeza. Uma esperança constrangedora, para
quem não vive a situação, impulsionava aquela que busca pôr paradeiro, esperando
contra toda a esperança. Peregrinações por lugares, risco incessante, desqualificações
constantes de quem deveria proteger e ajudar, ofensas, o não dormir, a perda de
noção de tempo e espaço, a desagregação do resto da família, as recomposições,
a aceitação e a constituição de uma nova identidade. Enfim, um périplo interior e
exterior que vai moldando cada uma delas. Um turbilhão no qual são lançadas e
que de lá regressam, despedaçadas, mas inteiras, costuradas por doenças, cuidados,
vida em comunidades religiosas e solidariedade entre mulheres com as mesmas
perdas. Mais do que os detalhes, vai chegando a cada um a energia que transborda
em lágrimas e que nelas brilha uma força que não é só política, organizativa, mas,
fundamentalmente, testemunhal. O viver o que viveram e vivem da veracidade, às
projeta num clarão de consciência e exemplo. Cada uma artífice de si mesma, nos
limites do que nós, palidamente, costumamos chamar de humanidade.
O medo, naturalmente, afasta-nos delas. O imaginar estar em seus lugares, no
terror de cada história contada, na dilaceração de cada preconceito vociferado em
gestos, olhares, tratamento institucional e desamparo ergue um muro de proteção.
Por trás dele, ficamos a olhar tudo. O simples imaginar estar no lugar delas petrifica
a todos que não vivemos o que elas vivem. O absurdo que se desenha nos torna
absurdos a nós mesmos. Como se pode sair dessa reunião e simplesmente continuar
sendo o que se é? O alívio por não se estar no lugar delas imediatamente se torna não
compaixão. Se passa a dar fé de um individualismo que esfacela nossas vãs ilusões
de sociedade, ou coisas mais elaboradas como democracia, cidadania ou justiça.
Entra-se no vale de sombras indefinidas, torturantes. Se consegue permanecer lá
por alguns instantes, apenas. Não se perdura nesse universo. Corre-se para fechar
a porta e se resguardar de um horror que não se quer imaginar. A covardia une a
todos. Não há homem ou exército que empunhe fuzil, canhão, tanque de guerra,
mísseis ou bombas atômicas que expressem mais coragem do que uma daquelas
mulheres. Matadores, milicianos e assassinos se tornam arremedos de covardia
diante do farol de dignidade, envolto pela verdade do testemunho que cada mãe ou
familiar expressa. Se não somos os que foram mortos e desapareceram, se não somos
os testemunhos dos sobreviventes que buscam pelos corpos dos entes amados, somos
o quê? Os que sobreviveram não foram atingidos. Pode-se seccionar um do outro.
O sobrevivente não vivenciou a aniquilação e desaparecimento. O sobrevivente dá
testemunho. Traz a verdade pelo lugar que ocupa diante do fato. Alguém que por si
mesmo viu, escutou, presenciou, sentiu e sofreu as dimensões do fato, mesmo que
não saiba detalhes do como ocorreu. Os que ouvem os testemunhos, mais distantes
ainda, do ato primeiro, vivido pelos que foram diretamente atingidos, flutuam
indefinidos nesse cenário. Tentam lidar, como podem, com aquilo que ouvem,
veem e sentem. É possível desagregar esses tipos de relação com o desaparecimento.
Medicina, justiça, ciências sociais podem ser ramos de linguagens científicas
socialmente construídas para lançar suas verdades e repartir cada uma de suas
posições frente ao desaparecimento forçado. No turbilhão de fragmentações em
que nos movimentamos, perde-se o fio que nos conecta. Sozinhos nos protegemos,
nos separamos, continuamos convivendo com o mal, banalizado, ali, ao nosso lado.
Chama a atenção o caso de uma merendeira, diagnosticada com esquizofrenia,
glaucoma, descolamento da retina e outras doenças, que teve o filho levado por
policiais à paisana, de dentro de casa, segundo os relatos dos vizinhos. Foi várias
vezes para a porta do batalhão de polícia e desferiu ataques à indignidade e canalhice
dos envolvidos no desaparecimento do filho. Como lidavam com ela? Os policiais
passaram a tratá-la com o apelido de diabo. A desqualificação da sua coragem pela
ligação dela com o mais abjeto e destrutivo. O mal, em si, é lançado sobre quem
encarna o amor e a coragem. A mentira toma o lugar da verdade para garantir a
institucionalidade do embuste e covardia. Mulheres pobres e desamparadas se
tornam ameaças. Passam a lidar com todo o arsenal de preconceitos e inverdades
socialmente manipulados contra elas. A doença, a partir daí, torna-se companheira.

A Arteterapia como caminho


Diante dos relatos, o projeto de extensão e pesquisa sobre desaparecimentos
forçados fez então um movimento tentando superar o isolamento e a banalização.
Organizou-se uma atividade que permitisse a essas mães e familiares elaborar,
dentro delas, suas emoções e a forma de acessá-las. Algo que possibilitasse o
autocuidado consigo mesmas, que passasse por atividades potencializadoras das
dimensões que viviam. Foi assim que a Arteterapia se tornou parte significativa do
trabalho. Sob a orientação e coordenação dos trabalhos da psicóloga e arte-terapeuta
Nádia Maria P. Figueiredo, foram realizados quatro encontros aos sábados, que
contaram com a participação de aproximadamente 12 mulheres. Nádia, buscando
materializar símbolos que representam níveis mais profundos do inconsciente da
psique, utilizou-se de modalidades expressivas tais como a colagem, o desenho,
a pintura, a modelagem, etc. Abandona-se, portanto, as preocupações com a
estética ou com a técnica, próprias do fazer artístico, voltando-se para a expressão
e comunicação criativa de sensações, emoções e impressões armazenadas no
psiquismo. A Arteterapia é, pois, a possibilidade de tornar consciente o que dormia
no inconsciente. A produção simbólica desperta essa comunicação e inicia um
processo de compreensão e resolução de estados afetivos conflitivos, favorecendo
a estruturação da personalidade. Segundo Nádia, esses símbolos estão presentes
nas criações plásticas, nos sonhos e até mesmo no corpo, através das alterações
no funcionamento do organismo. A base teórica seguida é a junguiana, que entre
outras peculiaridades, permite uma estratégia de amplificação do material simbólico
produzido nas sessões. Amplificar um símbolo é entrar num labirinto de emoções
e imagens através de associações, analogias e descobertas feitas por cada um
no confronto com cada produção ou durante o seu processo de criação. Há um
desdobramento das emoções e percepções, que leva a uma melhor compreensão do
próprio processo. Imbuídos desse fazer terapêutico, os encontros foram realizados
visando proporcionar estratégias de fortalecimento individual e de grupo, entre
as quais se destacam o fortalecer laços afetivos, o delimitar espaços individuais, o
fortalecer a percepção da força do grupo, o aumentar a autoestima e o autocuidado,
a criação de um espaço de troca e apoio e a expressão livre das emoções.
Os recortes de revistas, os desenhos livres feitos com a mão não dominante e
com olhos fechados, as colagens e montagens de imagens orientavam-se a partir
de estímulos iniciais. Nádia trazia curtas histórias e mensagens que permitiam um
contato mais íntimo com dimensões da vida mais sutis, relacionadas ao amor, perdão,
sabedoria e compaixão, entre outras. Essa motivação inicial impulsionava o fazer
criativo de simbologias imagéticas, desenhos e pinturas. O coletivo, ali exercitado,
fazia toda a diferença. Não apenas na produção em si mesma, quando duas ou mais
pessoas confeccionavam um material, mas principalmente, na troca e interação.
Entremeados pelos relatos pessoais, que remontavam a momentos anteriores, vividos
quando da perda, ou fatos cotidianos do presente, o que emergia das experiências
arteterapêuticas ganhavam a importância de revelações e descobertas únicas, que
apenas elas mesmas poderiam dimensionar. Uma porta interior que se abre, um
outro olhar, uma conexão original e novas percepções. Assim, cada encontro permitia
elaborações e reelaborações dos materiais, ao mesmo tempo que o compartilhar
em grupo aproximava uma das outras, numa espécie de comunhão de destinos,
de mesmo barco, agora não mais solitário. Cores e riscos ganhavam contornos
suaves e floridos, onde não se economizava corações e declarações de apreço e
amor. Ausências recobertas por significados esquecidos e agora despertados. Um
trabalho de delicadezas sobre a superfície endurecida pelo sofrimento e descaso.
Vê-las juntas, na simples execução de exercícios manuais com tesouras, colas ou
lápis e papel permite resgatar na simplicidade de gestos, pequenos, as profundidades
adormecidas de nós mesmos. Estar junto com elas permite superar a fuga frente
à dor insuportável e acessar, mesmo que de forma tão tênue, o caminho que elas
trilham, todos os dias, para seguirem, vivas. O grande projeto, a ser sonhado,
seria elas e nós, testemunhas diretas e ouvintes, mergulharmos em exercícios
permanentes de Arteterapia nos estreitando em laços de cuidado e proteção, de
compaixão e compromisso, de uma linguagem que cresça, a cada encontro, na
direção delas, na direção de políticas públicas de segurança que as tenham como
protagonistas, criadoras elas mesmas de proteção e preservação da vida dos jovens
que diariamente são mortos em nome da segurança.

Referências Bibliográficas
BARRETO FILHO, Herculano. Polícia mata 5 suspeitos em combate à ação de milícia na
eleição do RJ. UOL. São Paulo. 15/10/2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/
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milicias-nas-eleicoes-do-rio.htm. Acesso em: 1/12/2022.
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980). São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.
ROUVENAT, Fernanda; COELHO, Henrique e SCHMIDT, Larissa. Polícia mata 12
suspeitos em operação policial contra a milícia em Itaguaí. G1. Rio de Janeiro. 16/10/2020.
Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/10/16/tiroteio-com-
milicianos-deixa-12-mortos-na-regiao-de-itaguai-diz-policia.ghtml. Acesso em: 1/12/2022.
PORTO, Marcos. Familiares pedem informações sobre quatro jovens e um motorista de
aplicativo sequestrados na Baixada. O Dia. Rio de Janeiro. 13/8/2022. Disponível em: https://
odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2022/08/6464121-familiares-pedem-informacoes-sobre-quatro-
jovens-e-um-motorista-de-aplicativo-sequestrados-na-baixada.html. Acesso em: 1/12/2022.
MOURA, Felipe. Mãe reconhece corpo de jovem Desaparecido em Nova Iguaçu. Bande Rio.
Rio de Janeiro. 23/8/2022. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/rio-de-janeiro/
noticias/mae-reconhece-corpo-de-jovem-que-estava-desaparecido-em-nova-iguacu-16530088.
Acesso em: 1/12/2022.

Fotos da Arte Terapia

Foto 1- Mães reunidas ao final da Sessão de Arteterapia.


Fonte: ALVES, J. C. S , 2022.

Foto 2 - Mãe apresentando seu projeto artístico final.


Fonte: ALVES, J. C. S , 2022.

Foto 3: Mãe apresentando seu projeto artístico final.


Fonte: ALVES, J. C. S , 2022.

Foto 4: Mães no processo de confecção da Arteterapia.


Fonte: ALVES, J. C. S , 2022.

Foto 5: Mães no processo de confecção da Arteterapia.


Fonte: ALVES, J. C. S , 2022.

Foto 6: Mães no processo de confecção da Arteterapia.


Fonte: ALVES, J. C. S , 2022.

Foto 7: Em destaque painel com slogan da Rede de Mães e Familiares da Baixada


Fluminense.
Fonte: DANTAS, L. QUIPROCÓ FILMES, 2022.

OS DESAPARECIMENTOS FORÇADOS
NOS JORNAIS DA BAIXADA
FLUMINENSE
Lucas Conti de Souza Rosa

A proposta deste capítulo é apresentar os resultados encontrados sobre notícias


de desaparecimentos em jornais da Baixada Fluminense. Foram pesquisados os
seguintes jornais: O Dia, Seropédica Online, Notícias Queimados, Notícias Duque de
Caxias e Notícias Nova Iguaçu durante os anos de 2015 a 2021. A forma de busca
foi feita através das páginas dos jornais, usando as palavras “desaparecido”,
“desaparecida’’,‘’desaparecidos’’ e ‘’desaparecidas’’. Cabe explicar que esses
jornais foram escolhidos porque dentre os jornais produzidos por e para a Baixada
Fluminense, estes possuem as melhores ferramentas de busca.
A internet permitiu a criação de diversos veículos de comunicação que não
necessitam de toda logística de editoria, impressão, distribuição e demais processos
do formato impresso. Graças a isso, surgiram vários jornais menores, muitas
vezes independentes, que deixam uma importância digital significativa. Locais
negligenciados pelos Estados, com pouca infraestrutura e outrora sem nenhuma
condição do fazer jornalístico puderam criar seus próprios veículos de comunicação.
Bourdieu (1997), em sua obra “Sobre a Televisão’’, irá pontuar como a produção
jornalística exerce um poder simbólico e uma construção interessada da informação a
partir dos grupos de poder que determinam o campo, referindo-se à monopolização
dos meios de comunicação; ele analisa o campo com dominantes e dominados, mas
também um campo de lutas e tensões pois o universo jornalístico está sob a pressão
de outros dois campos: o campo econômico e o político. Ora, a possibilidade de
jornais feitos do “povo para o povo” certamente rompe esse monopólio e permite
que possam transmitir as notícias que antes não iriam ao mainstream. Outrossim,
é preciso compreender que esses jornais locais se apresentam como um produto
espontâneo para concorrer com a notícia dos grandes meios de comunicação; porém,
também são fruto de grupos de interesses locais e produtores de uma certa narrativa
dos acontecimentos que são escolhidas para serem “reveladas”.
Todavia, pensar que esses jornais não fossem seguir a cartilha dos meios de
comunicação mais conhecidos seria uma ingenuidade. Quando Bourdieu (1997,
p. 62) diz que “(...) a informação fornecida por tal meio se torna uma informação
ônibus, sem aspereza, homogeneizada veem-se os efeitos culturais e políticos que
podem se resultar disso”, ele compreende como as informações são produzidas para
audiência, de forma ligeira e superficial. O jornalismo que foi analisado, ainda que
menor e independente, também retrata as notícias de desaparecimento com certo
grau de enviesamento e espetáculo.
A partir das buscas nos bancos de dados dos jornais da Baixada Fluminense
nos períodos de 2015 até 2021, faz-se aqui uma análise da conjuntura atual dos
desaparecimentos da região pesquisada, levando em conta fatores como idade,
gênero, raça e classe das vítimas. Buscou-se também a elaboração de um modelo
arquetípico do desaparecido, reunindo as características mais comuns dos casos de
desaparecimentos; contudo, os relatos ainda pecavam nas demarcações de gênero,
sexualidade e raça. Os casos eram quase sempre acompanhados de fotos, o que
facilitava (na medida do possível no contexto brasileiro) a identificação racial. Foi
obtido um total de 38 notícias, somando 42 pessoas, já que algumas dessas notícias
envolviam mais de um indivíduo desaparecido.

Tabela 2- Jornais Pesquisados.

Jornal Quantidade encontrada entre os anos 2015-2021

O Dia 17

Seropédica Online 4

Notícias Duque de Caxias 4

Notícias de Queimados 5

Notícias de Nova Iguaçu 8

Fonte: Banco de Dados da Pesquisa, 2022.

Existem diversos fatores relacionados aos desaparecimentos. À primeira vista, o


que chamou mais atenção foi o aspecto racial. Como por ser visto na tabela abaixo
do total de 38 notícias encontradas, 26 das 42 vítimas eram pretas e pardas.

Tabela 3- Identificação da cor dos desaparecidos.

Cor dos Desaparecidos Número absoluto

Pretos e Pardos 26

Brancos 13

Não identificado 3

Fonte: Fonte: Banco de Dados da pesquisa, 2022.

Destacou-se a ausência de notícias sobre desaparecimentos envolvendo pessoas


de outras etnias, como os amarelos; contudo é significativa a diferença das notícias
de desaparecimentos envolvendo brancos e pretos/pardos, que contabiliza 61,9%s.
Outro dado importante é o de gênero dos casos analisados. Sueli Carneiro (2011)
pontua.
De fato, as disparidades nos Índices de Desenvolvimento Humano entre brancos
e negros revelam que o segmento da população brasileira autodeclarado branco
apresenta em seus indicadores socioeconômicos (...) padrões de desenvolvimento
humano compatíveis com os de países como a Bélgica (...) enquanto o segmento
(...) negro (pretos e pardos) apresenta índice de desenvolvimento humano inferior
ao de inúmeros países em desenvolvimento, como a África do Sul (CARNEIRO,
2011, p. 17).

Homens representavam mais de dois terços dos desaparecimentos noticiados


na Baixada Fluminense - 71% contra 29% de mulheres, mas o que choca nos casos
femininos é a constância do envolvimento de parceiros amorosos e do feminicídio.
O gênero nesses jornais também era retratado de forma binária, já que nunca era
noticiado se a vítima era cis ou trans.
Um caso de desaparecimento, com repercussão, tratando pelos jornais, foi o de
Jennifer Capella do Amaral, uma mulher branca de 18 anos. Dada como desaparecida,
em janeiro de 2021, foi vitimada por feminicídio pelo ex-namorado, e teve o corpo
encontrado em um terreno ao lado da casa dele.
Mais um caso analisado foi o de Thais Brás da Silva, negra, de 17 anos, que
desapareceu em 2016 ao dizer que iria até a casa de uma amiga. O principal suspeito
do desaparecimento era seu ex-namorado, irmão da amiga que a vítima iria visitar.
O padrão das vítimas femininas de desaparecimento teve envolvimento de ex-
companheiros ou companheiros atuais esteve presente em 6 dos 9 casos.
A respeito do tipo de desaparecimento, dois padrões foram os mais encontrados
nas notícias. Os crimes feitos por agentes que atuam à margem da lei, como tráfico
e milícias, e os crimes passionais, que tinha sempre como vítimas as mulheres.
A categoria “outro” se refere a uma miscelânea de desaparecimentos que não
necessariamente tinham um padrão; como por exemplo pessoas desaparecendo ao
irem para outras cidades, pessoas portadoras de alguma doença neurotípica que
saem de casa e não conseguem voltar, etc.

Tabela 4- Motivações relatadas nos casos encontrados.

Motivos narrados para os desaparecimentos Número de casos encontrados

Milícia e Tráfico 17
Motivos narrados para os desaparecimentos Número de casos encontrados

Feminicídio 11

Outros 10

Fonte: Banco de Dados da pesquisa, 2022.

Em relação à idade dos desaparecidos, a maior parte era de jovens entre 18 e


30 anos com 18 casos, menores de idade, com 10 casos e acima de 30 anos, com 6
relatos; no restante não constava a idade das vítimas.
Uma parcela considerável dos desaparecimentos ocorreu antes que as vítimas
completassem seus 30 anos. Casos em que jovens são levados por agentes até locais
desconhecidos e desaparecem, como o de Douglas Neves Jesus, um rapaz negro
de 17 anos, que fora abordado junto com um amigo em julho de 2016 por homens
encapuzados e armados. Ambos os jovens foram levados para um barranco, e embora
o amigo não identificado tenha conseguido escapar, Douglas ainda permanece
desaparecido.
Outro caso foi o de Felipe Silva Ramos, que fora morto pela milícia no dia de
seu aniversário, em 2017, mas o corpo ainda permanece desaparecido.
Então, qual o tipo de desaparecimento mais comum nos jornais pesquisados?
Ao se olhar os números, percebe-se que o desaparecimento feito por organizações
que atuam à margem da lei, como a milícia e o tráfico, somam 44,7% dos casos
encontrados. Logo em seguida, temos os casos de crimes de feminicídios, que
representam 29% dos casos. Por fim, existem os desaparecimentos que não seguem
nenhum padrão e em certa medida podem ser considerados como tipos ‘’isolados’’.
Como foi visto acima, existem certas constantes nos casos estudados. O
desaparecimento de pessoas racializadas (pretas e pardas) mediante a ação de milícias
ou do tráfico é o que mais vai se repetir. Geralmente confundidos com outra pessoa
ou por estarem na hora errada e no lugar errado, homens racializados de idade entre
18 e 30 anos são as maiores vítimas desses crimes na região da Baixada Fluminense.
O caso de abril de 2020, do vigia Verner Bonicenha Werneck, homem negro de 27
anos que foi abordado por traficantes enquanto estava na companhia da namorada,
em Vila Nova, Mesquita, e levado para a comunidade do Sebinho e desapareceu,
ilustra bem o perfil citado acima.
Outro caso foi o de Carlos Henrique, um atendente de telemarketing de 30
anos, que ficou desaparecido por pouco mais de duas semanas, sendo seu carro e
seu corpo encontrados num matagal a mais de 50 km da rodovia Rio-São Paulo. A
polícia suspeita da ação de traficantes.
O caso mais emblemático envolvendo desaparecimentos ocorreu em 2020,
onde as 3 crianças negras: Lucas Matheus, Alexandre Silva e Fernando Henrique,
8, 10 e 11 anos, respectivamente, desapareceram no município de Belford Roxo. O
caso gerou comoção nacional, e a negligência do trabalho policial foi um assunto
que esteve em pauta por um longo período. Após um ano de investigação, foi
descoberto que as crianças foram mortas por membros de uma facção, após eles
terem supostamente roubado uma gaiola de passarinho.

Figura 5 - Foto de um dos meninos desaparecidos em Belford Roxo.


Fonte:(https://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2020/12/6054395-tres-criancas-estao-
desaparecidas-em-belford-roxo-na-baixada-fluminense.html?foto=2 ).

A exclusão sistemática de corpos negros não é nova no contexto do país. Segundo


Mbembe (2016), em seu ensaio sobre necropolítica: “na economia do biopoder, a
função do racismo é regular a distribuição de morte e tornar possível às funções
assassinas do Estado” (MBEMBE, 2016, p.7); o Estado, nesse caso, matando tanto
pela omissão como pela ação direta. Uma constante desses casos observados foi a
ineficiência da polícia em agir. Existem até casos em que os parentes das vítimas
sabem onde os corpos estão, mas não podem ir buscá-los. Sueli Carneiro aponta
que “o Brasil pós-abolição consolida a racialidade negra como meio delinquente
por excelência’’ (CARNEIRO, 2005, p.87).
A própria existência desses jovens leva a uma associação direta com a
criminalidade, seja por parte de quem é criminoso e considera o existir das vítimas
como uma ameaça a seu próprio status (conflito entre facções, ou o famoso “você é
da onde?”, geralmente ligado à territorialidade dos locais onde exercem poder), ou
seja, porque os agentes da lei, que consideram o existir das vítimas como associada
automaticamente à marginalidade. A autora ainda dá prosseguimento analisando:
“as vítimas são na maioria absoluta homens, negros, jovens e pobres, vítimas de
violência (...) por outros jovens, pobres e majoritariamente negros” (CARNEIRO,
2005, p.91).
É impossível, diante de todos os dados apresentados, não falar da estrutura do
racismo no Brasil; o mecanismo que permite que esses desaparecimentos continuem
ocorrendo é nada mais nada menos que o Racismo Estrutural, conceito utilizado por
Silvio Almeida, quando ele coloca: “As instituições são racistas porque a sociedade
é racista” (ALMEIDA, 2019, p.31). A estrutura brasileira é construída na base do
racismo, e precisa dele para se manter plenamente funcional.
Outro dado que chama atenção é a quantidade de pessoas encontradas. Houve
só três casos em que sujeitos desaparecidos foram encontrados com vida, o que
representa 8,3% dos 36 casos analisados, e todos eles foram brancos.
A mortalidade dos corpos negros é herança da nossa fundação colonial, que
considera descartáveis todos aqueles que fogem ao padrão da branquitude (e, por
consequência, todo o padrão normativo hetero cis). A Baixada Fluminense ainda
sofre dessa chaga, Silvio Almeida ainda pontua.

O racismo, mais uma vez, permite a conformação das almas, mesmo as mais
nobres da sociedade, à extrema violência a que populações inteiras são submetidas,
que se naturalize a morte de crianças por “balas perdidas”, que se conviva com
áreas inteiras sem saneamento básico, sem sistema educacional ou de saúde, que
se exterminem milhares de jovens negros por ano (...). (ALMEIDA, 2019, p.75).

O número de desaparecidos não é uma coincidência ou uma casualidade.


Os desaparecimentos na Baixada Fluminense são parte de um projeto maior de
extermínio no estado do Rio de Janeiro.
Considerações Finais
A análise dos jornais pesquisados chama atenção para alguns aspectos. O primeiro
deles é que o número de informações sobre desaparecimentos nesses meios de
comunicação é inferior aos dados de desaparecidos contabilizados. Segundo dados
do ISP, uma pessoa desapareceu na Baixada Fluminense a cada 6 horas em 2022
(dados de janeiro a novembro), com total de 1.360 registros na região. Percebe-se que
não há um volume de notícias que corresponda aos casos cotidianos, mas aqueles
onde há mais repercussão na comunidade local/ regional.
Em seguida, as notícias informam desaparecimentos de casos em que já existe
algum tipo de narrativa que informe o que pode ter ocorrido, sabemos que existem
casos de completo desconhecimento sobre como se desdobrou o desaparecimento. Há
muito do não dito que envolvem os casos de desaparecimento e que não interessam
às publicações em função da audiência.
Por fim, ressalta-se a importância de uma discussão qualificada no campo das
políticas públicas nos dois tipos mais encontrados: o feminicídio e a juventude
vulnerável. Importa frisar o significativo número de jovens pretos e pardos que
estão envolvidos em casos de desaparecimento. Como apontado acima, vivemos
uma tragédia urbana com o genocídio da juventude negra - vulnerável à convivência
com práticas criminais e suscetível à violência policial. Nos casos de feminicídio,
importa qualificar o debate público para ampliação das denúncias e fortalecer
as políticas de segurança pública e redes de apoio que garantam a proteção das
mulheres antes de ocorrer a violência de fato.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1997.
CARNEIRO Sueli. A Construção do Outro Como Não-Ser Como Fundamento do Ser.
Feusp, 2005 (Tese de Doutorado).
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
MBEMBE, Achille, Necropolítica, biopoder e soberania, estado de exceção e política de
morte. In Artes e Ensaios, Revista do ppgav/eba/ufrj, nº 32 Dezembro 2016.
PESQUISA EXPLORATÓRIA SOBRE
DESAPARECIMENTOS NA BAIXADA
FLUMINENSE A PARTIR DO
FACEBOOK
Augusto Torres Perillo
Nalayne Mendonça Pinto

O Facebook é a rede social mais utilizada no Brasil (HOOTSUITE, 2021). Com mais
de 130 milhões de usuários, há um fluxo constante e gigantesco das mais variadas
informações. Além das postagens que usuários podem fazer no site, também
há outros mecanismos de interação como comunidades, páginas, marketplace,
facebook watch, entre outras. Neste sentido, durante a pesquisa se optou pelo
mapeamento exploratório sobre desaparecimento forçado e a análise de dados
gerados pelo Facebook, visto que, nessa rede é possível identificar não só as notícias
de desaparecimento, mas, também, alguns discursos que emergem relacionados a
públicos específicos que desaparecem.
No primeiro momento, as redes sociais democratizaram a possibilidade de
externalização de opiniões sobre assuntos diversos. É verdade que se ampliou
o acesso às informações e modos de enunciar as notícias, porém, não podemos
deslocar tais opiniões de uma intenção discursiva dos usuários; ou, como afirma
Foucault (1996), em “A ordem do discurso”: “em toda sociedade a produção de
discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes
e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade” (FOUCAULT, 1996, p. 8). Nesse sentido, observar os discursos e
suas formas de enunciação propicia uma compreensão das camadas de sujeitos,
grupos, interesses, valores e sensibilidades que estão produzindo a disputa moral
sobre significados e significantes do tema em questão.
Portanto, embora o foco da pesquisa não seja uma análise de discurso sobre as
notícias de desaparecimento e os comentários postados sobre os mesmos, interessa-
nos evidenciar as formas como são noticiados os desaparecimentos e as inúmeras
reações que se seguem a partir das notícias; os comentários das mais diversas
naturezas e valorações, que produzem significados, juízos de valor, suposições e
acusações sobre o fato.
A seguir, com o intuito de mapear notícias de desaparecidos no Facebook, o
presente trabalho primeiramente mapeia os casos de desaparecimento na Baixada
Fluminense e, em segundo momento, destaca certos comentários para ilustrar o
ambiente no qual as notícias de pessoas desaparecidas estão imersas. O recorte
utilizado foi entre o período de 2016 a 2021 e a metodologia de busca das páginas
e grupos foi encontrar em cada município aquelas/aqueles com mais curtidas e
comentários.
O arcabouço metodológico construído para o mapeamento de desaparecidos
nos municípios da Baixada Fluminense em mídia social foi constituído através do
site Facebook a partir de uma netnografia. A pesquisadora Cláudia Tafarello (2013)
aponta que, nas Ciências Sociais, a pesquisa de campo in loco se apresenta na tríade
antropologia-etnografia-observação participante, contudo, quando o campo é a
Internet, se apresenta como ferramenta analítica a netnografia que possui lacunas
em relação a tríade descrita. Essa lacuna é a produção de uma pesquisa em que
a observação participante se debilita na ausência do contato humano. Para ela,
perde-se, ao analisarmos o mundo virtual, os elementos como o toque, o respiro,
a intencionalidade das palavras, etc.
Assim sendo, a Internet representa na contemporaneidade uma ferramenta
analítica própria no campo das Ciências Sociais com características específicas do
mundo virtual, e com elementos importantes sobre os processos de sociabilidade
e produção de narrativas que devem ser investigadas. Kozinets (1998) aponta para
o fato das relações e conteúdo produzido no mundo virtual possuírem vínculo e
impacto na sociabilidade do mundo real. Logo, a netnografia, embora tenha suas
peculiaridades e limitações, se mostra como uma ferramenta condizente com o
interesse do cientista social no campo da Internet.
Para iniciar a pesquisa no Facebook seguiu-se o caminho mais simples, através
da ferramenta de busca do próprio aplicativo; aplicou-se o nome de cada município
da Baixada Fluminense na busca. Entre eles destacaram-se: Belford Roxo, Nova
Iguaçu, São João de Meriti e Duque de Caxias em função do maior volume de
informações relacionadas a eles.
A partir do nome de cada município foi escolhida a página ou o grupo local
com mais seguidores ou participantes. Ou seja, buscou-se o grupo de moradores
e a página de notícias local que tivesse o maior número de seguidores/curtidas.
Nesse grupo ou página, foi então realizada a busca por postagens relacionadas a
pessoas desaparecidas. As páginas selecionadas foram: “Guapimirim ao vivo” (91
mil seguidores), “Seropédica online” (20 mil seguidores) “Caxias da Depressão”
(508 mil seguidores), “Plantão Mesquita Nilópolis” (111 mil seguidores), “Notícias
de Belford Roxo” (311 mil seguidores), “Itaguaí News” (13 mil seguidores), “Amigos
de Nilópolis” (106 mil seguidores) e “Jornal Meriti Baixada” (29 mil seguidores).
Na maior página do município de Paracambi, nada foi encontrado. Portanto,
buscou-se em um perfil de notícias da cidade e, ainda assim, nenhuma denúncia
sobre pessoas desaparecidas foi encontrada. Em Japeri, os dois grupos de Facebook
explorados também não possuem postagens de desaparecidos.

Tabela 5 - Ranking das Páginas e Grupos do Facebook que mais aparecem na pesquisa.

Páginas e Grupos Quantidades de


notícias

Grupo do Facebook Itaguaí Notícias 1

Página do Facebook Jornal Meriti Baixada 1

Página do Facebook Caxias da Depressão 1

Perfil Rayssa Machado 1

Portal de Notícias Seropédica online 4

Grupo do Facebook Nova Iguaçu 5

Página do Facebook Amigos de Nilópolis 7

Grupo do Facebook JLD Queimados 7

Página do Facebook Guapimirim Ao Vivo 8

Página do Facebook Eu Amo A Minha Baixada Fluminense 8

Portal de Notícias - Notícias de Belford Roxo 14

Página do Facebook Plantão Mesquita Nilópolis 22

Página do Facebook Baixada Viva Notícias 34


Páginas e Grupos Quantidades de
notícias

Página do Facebook Notícias de Belford Roxo 41

Total encontrado (com os filtros apresentados) 154

Fonte: Banco de dados da pesquisa, 2022.

Já nos grupos de Facebook foram escolhidos: “Nova Iguaçu” (50 mil membros),
“JLD Queimados” (33 mil membros), “Itaguaí Notícias” (14 mil membros), “Japeri
News” (3 mil membros) e “Japeri, o povo tem direito de saber!” (17 mil membros).
Também houve investigação no grupo “Eu amo a minha Baixada Fluminense” (22
mil membros) e na página “Baixada Viva Notícias” (489 mil seguidores) por serem
dois ambientes com bastante repercussão na região.
Determinado o ambiente a ser explorado, utilizou-se da ferramenta de busca
através das categorias “desaparecido” e “desaparecida” com o recorte temporal
dos anos de 2016 até 2021. Foram descartadas postagens relacionadas a casos de
pessoas com problemas em seu desenvolvimento psicoemocional ou neurológico
(depressão, Alzheimer, autismo, etc.), de crianças, de pessoas que não possuíam
nome nem endereço e de pessoas que desapareceram em catástrofes naturais. Nas
postagens, também foram lidos os comentários, em busca por informações sobre o
aparecimento da pessoa. Caso ocorresse o reaparecimento, seria comum que algum
usuário comentasse sobre isso ou a própria página anunciasse o reaparecimento
e, desse modo, a publicação em questão seria descartada da análise. Uma outra
forma de confirmação da situação de desaparecido foi feita pela aferição do
perfil do denunciante, para a obtenção de mais alguma informação como fotos
recentes, publicações, ou qualquer outra interatividade virtual que demonstrasse
o aparecimento daquele indivíduo que outrora havia desaparecido. O intuito,
portanto, era mapear postagens de pessoas que estão desaparecidas na Baixada
Fluminense e que se enquadram como potenciais desaparecidos forçados dentro
de uma dinâmica criminal específica.
Com o mapeamento, cada pessoa encontrada foi classificada em uma planilha do
Google pelas variáveis “nome”, “idade”, “raça”, “gênero”, “município que a pessoa
desapareceu”, “bairro”, “data do desaparecimento”, “ela foi encontrada morta?”, “se
sim, em qual bairro?”, “a fonte da informação sobre o desaparecimento” e o “link
da postagem”. Na variável Idade, classificamos (A) quando a idade do desaparecido
não consta na postagem e é colocado, portanto, uma idade aparente. Na variável
gênero, classificamos “HC” para “Homem Cis”, “HT” para “Homem Trans”, “MC”
para “Mulher Cis” e “MT” para “Mulher Trans”. Na variável de Raça, “B” para
pessoas “Brancas”, “P” para pessoas “Pardas”, “PE” para pessoas “Pretas”, “A” para
pessoas “Amarelas” e “I” para pessoas “Indígenas”.
Abaixo, tabela com informações sobre o mapeamento de desaparecidos a partir
das informações do Facebook:

Tabela 6 - Tabela com informações sobre postagens em páginas e grupos do Facebook


sobre pessoas desaparecidas.

Informações pertinentes sobre os Perfis


casos encontrados no Facebook

Idade média A idade média das pessoas desaparecidas foi


de 26 anos

Raça 41 pardos, 51 brancos, 52 pretos, 1 amarela, 0


indígenas, 9 não identificados

Gênero 133 homens cis, 13 mulheres cis e 8 não


identificados

Homicídio 30 foram encontrados assassinados e 124 não


possuíam informações suficientes

Fonte: Banco de dados da pesquisa, 2022.

É importante destacar que a análise dos casos foi realizada a partir de postagens
com fotos e texto e, muitas das vezes, tais postagens não possuíam informações
básicas como gênero. Com isso, a tabela acima quando marcado como “não
identificado” significa que não foi possível, a partir das informações trazidas pelo
autor da publicação, identificar gênero, raça ou se houve homicídio.
Importa destacar três aspectos centrais e interseccionais do perfil majoritariamente
desaparecido: a idade média encontrada é muito jovem com média de 26 anos, 133
são homens e somando pretos e pardos temos 93 casos (contra de 61 - outras). Esse
dado confere com os perfis encontrados nas pesquisas que realizamos em jornais,
bem como com os dados apresentados pela pesquisa com dados do ISP e os relatos
de mães. Todos corroboram com os dados oficiais do Atlas da Violência e do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública que anualmente publicam os dados apontando que
vivemos no Brasil um verdadeiro genocídio da população jovem e negra, pois 77%
das vítimas de homicídios no Brasil são negras; a taxa de homicídios por 100 mil
habitante é de 29,2 para negros e pardos contra 11,2 para brancos; em uma década
perdemos 333.330 adolescentes e jovens assassinados entre 2009 e 2019 (FBSP, 2021).
Na tabela abaixo é destacada, em ordem, os municípios que mais possuem
publicações no Facebook sobre pessoas desaparecidas. Os municípios de Belford
Roxo e Nova Iguaçu se sobressaem nas postagens. Belford Roxo sendo um caso
particular em sua intensa dinâmica criminal como abordado no capítulo que
analisou os dados do Instituto de Segurança Pública.

Tabela 7 - Tabela com o ranking de municípios que mais apresentaram postagens sobre
pessoas desaparecidas na Baixada Fluminense.

Município Total absoluto Total porcentagem

Magé 1 0,6%

Seropédica 3 1,9%

Japeri 3 1,9%

Queimados 4 2,6%

Guapimirim 5 3,2%

Itaguaí 6 3,9%

Duque de Caxias 7 4,5%

Nilópolis 11 7,1%

São João de Meriti 11 7,1%

Mesquita 12 7,8%

Nova Iguaçu 25 16,2%

Belford Roxo 66 42,9%

Fonte: Banco de dados da pesquisa, 2022.

A partir do que foi exposto anteriormente, podemos realizar algumas análises


sobre as postagens do Facebook que são, em sua maioria, feitas para facilitar o
compartilhamento e circulação de informações públicas. Nesse sentido, qualquer
um poderia comentar na postagem. Essa dinâmica, por um lado, facilita a coleta
de informações sobre a situação do desaparecido, mas, por outro lado, facilmente
se depara com o senso comum e o preconceito.
Abaixo, como exemplo, na página “Baixada Viva Notícias”, um comentário sobre
a postagem de uma mulher negra desaparecida, que aparenta ter 16 anos. Foi possível
constatar em postagens relacionadas a mulheres desaparecidas a culpabilização das
vítimas pelo sumiço a partir de um discurso moralista de “mulher que não se dá
o respeito”, muitas vezes com viés religioso fundamentalista.

Figura 6 - Comentário de usuário do Facebook sobre uma menina desaparecida.

Fonte: FACEBOOK, Página Baixada Viva Notícias. Acesso em 18/04/2022.


Aqui, outro exemplo, a partir da postagem de desaparecimento de uma mulher
que aparenta ter 20 anos, desaparecida em Belford Roxo, mãe de dois filhos sendo
um deles “especial” (como classificou a postagem ao se referir ao filho como sendo
deficiente, mas não especificando qual seria essa deficiência). O comentário machista,
portanto, busca justificar o seu desaparecimento.

Figura 7 - Comentário de usuário do Facebook sobre uma mulher desaparecida.

.
Fonte: FACEBOOK, Página Baixada Viva Notícias. Acesso em 03/01/2023.

Outra opinião recorrente é associar os homens, em especial negros ou pobres,


com o tráfico. Como pode ser observado a seguir na postagem de um menino
morador de Belford Roxo, que aparenta ter entre 14 e 16 anos, ao associá-lo com
“ganso”, termo utilizado para assaltantes:

Figura 8 - Comentário de usuário do Facebook sobre um menino desaparecido.

Fonte: FACEBOOK, Página Notícias de Belford Roxo. Acesso em 18/04/2022.

A leitura e análise das postagens do Facebook indicam situações de desaparecimento


e busca, todavia não nos permite indicar correlações com desaparecimentos forçados
e a qual dinâmica criminal o caso está submetido. Mas cabe apontar que a intensa
produção de comentários reforça estereótipos preconceituosos e valorativos sobre
determinados perfis de desaparecidos - jovens e mulheres. Muniz, Monteiro e
Chechetto (2018) analisam a categoria de acusação envolvido-com utilizada para
de moradores de periferia como dispositivos de controle social para produção de
fronteiras territoriais e simbólicas e reforço das desigualdades. Uma produção de
constante vigilância, regulação de trajetórias e punição contra os jovens periféricos
que vivem sobre a rotulação de “bandidos”; constituindo ações moralizantes que
criminalizam suas condutas e vínculos sociais.
Outro caso que se destaca é de um mesmo jovem que aparece em duas situações
diferentes na mesma página “Baixada Viva Notícias”. Na primeira postagem referente
ao caso, o corpo é encontrado no Rio Botas, enrolado em um saco plástico preto,
como pode ser visto a seguir:

Figura 9 - Postagem de Facebook sobre um jovem desaparecido.

Fonte: FACEBOOK, Página Baixada Viva Notícias. Acesso em 18/04/2022.


No mesmo dia, um pouco mais tarde, a mesma página pública outra notícia
sobre o encontro do cadáver, anteriormente mencionado, afirmando que o jovem
foi vítima de um acidente enquanto brincava no rio, além do comentário: “não
vamos julgar”. A alteração da notícia pode estar relacionada aos riscos e processos
acusatórios/difamatórios que a família poderia vivenciar. Entendemos que não é
possível identificar o motivo da mudança do discurso visto que seria fisicamente
impossível o mesmo jovem vir a óbito por afogamento e se colocar dentro de um
saco plástico. Mas nos sinaliza que as notícias postadas são influenciadas por pressões
externas e internas, levando, assim, a mudanças de narrativas quando necessário.

Tecendo alguns comentários finais


Para finalizar, compreendemos que o mapeamento no Facebook caracteriza o perfil
dos desaparecidos na Baixada Fluminense como majoritariamente jovens e pretos/
pardos. No caso de postagens sobre mulheres desaparecidas, observamos muitos
comentários machistas, repletos de valorização depreciativa sobre as formas de vida
que supostamente essa mulher possa ter e acusações infundadas. Os comentários
que se seguem às postagens, nos casos de jovens negros e periféricos e mulheres, são
eivados de acusações, suposições, associações ao crime e criminalização. Constituem-
se como construção social de trajetórias desviantes, tais como: “envolvidos com”,
“bandidos”, “ganso”, “marginais”, “putas” “mulher de bandido”, “vagabunda”,
entre outros. As famílias em busca de notícias que possam ajudar na localização
não encontram acolhimento, indicações e orientações de procedimentos, mas
ao contrário, são bombardeadas de comentários depreciativos. O Facebook se
mostrou um terreno pouco acolhedor para familiares e amigos que expõe casos
de desaparecimento.
Ainda assim, o Facebook pode ser estudado como ferramenta de busca utilizada
pelos familiares e pessoas conhecidas para divulgação e tentativa de localização
mais rápida dos desaparecidos; são situações de desespero dos familiares que sabem
que o tempo e a rapidez são determinantes para a localização dos desaparecidos.
As redes sociais tornaram-se um importante instrumento para ampliar o escopo da
busca, pois rapidamente milhares de pessoas podem compartilhar em suas páginas
e outras redes sociais o fato ocorrido. Qualquer pessoa com seu celular nas mãos
pode postar a foto do (a) desaparecido (a) e dar detalhes sobre o desaparecimento
ou do último momento que foi visto. Pessoas próximas começam rapidamente a
amplificar a notícia. Desse modo, temos hoje uma gama maior de possibilidades
de noticiar o desaparecimento, mas não sabemos se esse alcance e publicização
produz efeitos, não existem pesquisas sobre localização de desaparecidos/as pelas
redes sociais ou mesmo por investigação policial; carecemos com urgência de
pesquisas sobre modos de busca, localização, investigação e porcentagem de pessoas
encontradas - pela polícia ou pela sociedade civil organizada.

Referências Bibliográficas
CECCHETTO, Fátima; MUNIZ, Jacqueline e MONTEIRO, Rodrigo.“BASTA TÁ DO
LADO” – a construção social do envolvido com o crime. Caderno CRH, Salvador, v. 31,
n. 82, p. 99-116, Jan./Abr. 2018.
FOUCAULT, M. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola, 1996.
FBSP. A violência contra negros e negras no Brasil. Infográfico de 2021 com base no Atlas
da Violência 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/a-
violencia-contra-pessoas-negras-no-brasil-2021/.
HOOTSUIT. Digital 2021: July Global Statshot Reporto. Disponível em: https://datareportal.
com/. Acesso em 08/03/2022.
KOZINETS, R. On Netnography: Initial Reflections on Consumer Research Investigations
of Cyberculture. Advances in Consumer Research. Volume 25, 1998.
SCHETINNI, A. A Violência Da Ausência: Notas Sobre o Desaparecimento Forçado
no Brasil. Tese de Doutorado apresentada no Programa de Pós-graduação em Direito da
PUC-Rio, 2016.
TAFARELO, C. Análise Crítica Entre Etnografia e Netnografia: Métodos de Pesquisa
Empírica. 9°Interprogramas de Mestrado da Faculdade de Direito, 2013.

RECOMENDAÇÕES PARA
CONSTRUÇÃO DE UMA POLÍTICA
NACIONAL DE TIPIFICAÇÃO,
IDENTIFICAÇÃO, INVESTIGAÇÃO DE
DESAPARECIMENTOS FORÇADOS E
ACOLHIMENTO DE FAMILIARES
1.1. Aprovar o Projeto de Lei 5215/2020 que tramita apensado ao PL 6240/2013 e
que saiu do Senado Federal como PLS 245/2011 que trata sobre a tipificação de
Desaparecimento Forçado no Código Penal Brasileiro.

1.2. Considerando a necessária e urgente tipificação do crime de desaparecimento


forçado de pessoas, efetivar e fazer funcionar o Cadastro Nacional de Pessoas
Desaparecidas, com dados alimentados, atualizados e compartilhados entre os
estados da federação - Lei 13.812 de 2019. No mesmo cadastro criar um banco de
dados nacional sobre pessoas localizadas e correlação com dados de desaparecidos,
a fim de permitir a comparação das informações.

Através da referida lei que Instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas


Desaparecidas e criou Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas artigo 4o - IV
acelerar a criação e “desenvolvimento de sistema de informações, transferência de
dados e comunicação em rede entre os diversos órgãos envolvidos, principalmente
os de segurança pública, de modo a agilizar a divulgação dos desaparecimentos e a
contribuir com as investigações, a busca e a localização de pessoas desaparecidas”.

1.2.1. Criar comissão de trabalho com a garantia da participação da sociedade


civil para a elaboração do plano nacional de enfrentamento aos desaparecimentos
forçados, considerando:

1.2.2. a centralidade da perspectiva racial e de gênero;

1.2.3. a letalidade provocada pelas forças de segurança;

1.2.4. a violência de Estado;

1.2.5. a necessária tipificação criminal do desaparecimento forçado de pessoas a


assistência social, psicológica, médica e medidas de reparação a mães e familiares;
1.2.6. vítimas de violência de Estado.

1.3. Incluir na produção de dados sobre violência policial e desaparecimentos


forçados e violência de Estado a coleta, análise e publicação de dados desagregados
por raça ou origem étnica como elemento essencial para avaliar e subsidiar as ações
governamentais no combate ao racismo sistêmico e para fazer avançar a justiça e
igualdade no âmbito da aplicação da lei e no sistema de justiça criminal, conforme
apontado pelo relatório apresentado na 51ª sessão do Conselho de Direitos Humanos
da ONU em 202221.

1.4. Criar plano federal para a redução da letalidade das forças de segurança de
competência da União incluindo orientações às unidades da federação.

1.5. Aprovar o PL 9796/18, que cria o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio


de Jovens.

1.6. Aprovar a PEC 128/2015, que atribui à Polícia Federal a apuração de crimes
praticados por milícias e grupos de extermínio, e à Justiça Federal a competência
para o julgamento desses crimes.

1.7. Aprovar a PEC 117/2015, que separa a perícia oficial de natureza criminal das
polícias civis e federal e institui a perícia criminal como órgão de segurança pública.

1.8. Aprovar a PEC 126/2015 que cria o Fundo Nacional de Promoção da Igualdade
Racial, Superação do Racismo e Reparação de Danos, incluindo a perspectiva do
atendimento sócio psicoassistencial e jurídico a mães e familiares de vítimas de
violência de Estado.

21. Apresentado na 51ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU realizada entre 12 de
setembro e 7 de outubro de 2022 pelo Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes
para Avançar em Direção à Justiça Racial e à Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei e o Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos.
1.9. Criar comissão de trabalho para a elaboração do plano federal para o
enfrentamento da atuação financeira, organizativa e operacional das milícias e
grupos armados ilegais, com orientações aos estados da federação.

1.10. Fortalecer no âmbito federal e estadual as políticas de proteção às testemunhas


para garantia de anonimato e salvaguarda das testemunhas de crimes que envolvem
grupos criminosos organizados.

1.11. Elaboração de diretrizes, parâmetros e orientações para que estados e municípios


executem, com o apoio do governo federal Programas e Serviços de Apoio a
Familiares de Pessoas Desaparecidas e de violência de estado, visando o acolhimento
e o atendimento psicológico e social continuado a mães e familiares de pessoas
desaparecidas.

1.12. Promover debate nacional, seguido de elaboração e aprovação de legislação


a respeito da importância da perícia criminal autônoma, bem como da necessária
valorização e investimentos em recursos humanos, insumos e equipamentos, como
modo concreto de aumentar as taxas de elucidação de crimes, inclusive, aqueles
que envolvem violência de Estado.

Considerações Finais

Cabe destacar que esta pesquisa não se esgota em si, enquanto pesquisa exploratória,
nosso propósito inicial foi o de reunir registros, informações, dados e esboçar
conhecimento preliminar sobre o desaparecimento forçado de pessoas a partir
da realidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Ainda há muito a ser
compreendido sobre o fenômeno do desaparecimento forçado em suas múltiplas
dimensões, processos e atores envolvidos. Estamos tratando de mães, familiares,
vizinhos, amigos, além de grupos armados criminosos: facções armadas que realizam
o varejo do tráfico de drogas, grupos milicianos que dominam economia, política,
governos e territórios na Baixada Fluminense, policiais e agentes do estado (políticos
ou funcionários), do Executivo, Legislativo e Judiciário que estão envolvidos com o
crime organizado. Uma complexa rede de agenciamentos, significados, interesses
e modos de depreender o desaparecimento de alguém.
O mapeamento da literatura especializada no tema, os estudos teóricos e
pesquisas empíricas sobre desaparecimentos forçados trouxeram a possibilidade
de revelar as facetas que compõem a arena pública e privada desse drama social
presente em nossa sociedade. O trabalho do luto sem um corpo ou até mesmo sem
o conhecimento do que ocorreu, no caso de mães e familiares de desaparecidos, se
produz improvisadamente a partir de um não-lugar, de um corpo sem o estatuto
de vivo ou morto, de uma sepultura impossibilitada e sistematicamente negada.
A dúvida primordial, instaurada pela perda, sobre quem é esse “eu” que passa a
existir sem “você” (BUTLER, 2004) acaba por desencadear em distintas formas de
sofrimento, adoecimentos e silêncios, mas não somente somente isso; nesse processo
complexo de elaboração de práticas e formas específicas de subjetivação, pulsam
também as resistências: o protagonismo dos familiares de vítimas de violência,
em especial as mães, na busca por justiça vem sendo constituído como o principal
vetor na formulação de políticas e denúncias públicas contra a violência estatal. Os
rituais colocados em cena para dar conta do desaparecimento, em vez de marcar e
facilitar a passagem do mundo dos “vivos” ao mundo dos “mortos”, transformam
a ausência do corpo em um capital de força cultural e política que se expressa sob
o registro de diferentes formas de denúncia de mães e familiares de desaparecidos.
As pesquisas empíricas realizadas revelam a pouca relevância dada aos casos de
desaparecimentos por parte dos agentes de segurança, além da falta de sistematização
de informações sobre o fenômeno e de precisão acerca das diretrizes e definições para
o enfrentamento dos desaparecimentos. As práticas, modos de registrar e investigar,
abrem um leque de interpretações que se orientam de forma a classificar, racializar,
estigmatizar, desqualificar corpos, famílias e territórios. E são elas, as famílias
que, no fim, acabam por serem as principais interessadas na resolução dos casos e,
por conta própria, se tornam responsáveis pela investigação e busca de seus entes
desaparecidos. É por meio das vozes de mães e familiares que o desaparecimento
sai do lugar do mero rumor.
A literatura aponta o fenômeno do desaparecimento e seus entrecruzamentos
sócio-histórico-políticos como um resquício de períodos ditatoriais na América
Latina e no Brasil. Esses períodos destacaram-se como de grande relevância para
altos índices de desaparecidos civis, representados na figura do desaparecido político,
desaparecimentos cuja tônica se dá pela violência, morte e ocultação de corpos
de lideranças, ativistas, sindicalistas e políticos. No entanto, destacamos que o
olhar sobre o fenômeno não deve se restringir a esses contextos históricos, pois as
gramáticas que constituem o que hoje denominamos desaparecimento forçado, tais
como, sequestrar, aprisionar, torturar, matar, destruir e ocultar, somadas entre si,
com o investimento e consentimento direto ou indireto do Estado em articulação
com outros atores, transcendem ao período ditatorial. Essa técnica está e sempre
esteve atravessando sem aviso o cotidiano das pessoas pobres, pretas e periféricas,
em sua maioria, inundando, como barragens rompidas, nossas cidades ajoelhadas,
deixando marcas de uma lama que não sai.
A não definição dos desaparecimentos forçados enquanto crime tipificado pela
legislação brasileira conforma o fazer da estrutura de segurança pública de tal
maneira que os dados coletados pelos Registros de Ocorrência seguem acobertando
práticas, interesses, estruturas de poder e projeções políticas diretamente vinculadas
à existência e manutenção dos desaparecimentos forçados. As poucas pesquisas
e análises que o ISP fez relacionados aos desaparecidos, buscando desvinculá-los
de qualquer aproximação com os desaparecimentos forçados, resultaram, pelas
limitações metodológicas, insignificância quantitativa dos dados e ausência de
qualificação dos mesmos na manutenção da dúvida e no não esclarecimento sobre
o fenômeno.
A partir da aproximação dos dados de desaparecidos obtidos pelo ISP com a
atuação dos grupos armados, compreendendo-os enquanto estruturas político-
criminais, que se manifestam ao longo do tempo e no espaço, numa perspectiva
de longa duração e focados na Baixada Fluminense, operou-se a transmutação dos
desaparecimentos forçados de - não dado - em - dado essencial e explicativo. Ou
seja, assume-se, de forma central a hipótese de que os números dos desaparecidos
possuem uma correlação direta com o número dos desaparecimentos forçados,
ocultados em seu interior e responsáveis, em última instância, pelos quantitativos
e sua distribuição pelos municípios.
Assumiu-se aqui, também, a hipótese de que os dados sobre desaparecidos,
intensamente impulsionados pelos desaparecimentos forçados, guardam uma
estreita relação com outros dois indicadores coletados pelo ISP, ou seja, com os
números de homicídios dolosos e homicídios por intervenção de agentes do Estado.
O cruzamento dos mapas gerados por cada um desses índices potencializa, ainda
mais, o refino da compreensão dos processos que se dão no tempo-espaço. As
características e peculiaridades sobressaem permitindo leituras mais transversais
e capazes de captar contradições e complexidades. A opção metodológica assume,
aqui, seu intento mais radical, ou seja, aponta na imbricação de processos violentos,
a partir da atuação dos grupos armados, em consonância com as estruturas sócio-
econômico-político dominantes, que desembocam, inevitavelmente, no aumento do
número de desaparecidos, recheado e inflado, qual cavalos de Tróia, pelo número
de desaparecimentos forçados. A radicalização permite uma contraposição frontal
ao atual estado de coisa, no qual convivem sofrimento desesperador de número
crescente de pessoas, manutenção das estratégias violentas dos grupos dominantes
e a atuação da estrutura de segurança pública como articulador e gerenciador de
toda essa engrenagem, protegendo-se a partir da geração de dados que o acobertam
e dissimulam o papel central do Estado na manutenção dessa situação.
Corroboram nossas análises os dados que foram apurados através do banco
de dados do Disque Denúncia. As denúncias/relatos analisadas permitem um
levantamento tanto quantitativo das inúmeras formas de denúncias que são recebidas,
assim como qualitativa sobre as múltiplas dimensões da comunicação. É muito
significativo a forma como os denunciantes buscam descrever de forma detalhada
os métodos e modos de agir dos desaparecimentos. Procedimentos que envolvem
inúmeras técnicas, ferramentas e estratégias para eliminação de corpos e ocultação
de cadáveres; os matagais, as cisternas, os carros e pneus queimados, os poços,
os rios, as áreas abandonadas feitas de cemitérios clandestinos; tudo isso descrito
como rituais de morte e celebração de poder de grupos criminosos. A dimensão
territorial é importante nesse aspecto, pois essas ações de terror abrangem e incluem
as possibilidades que os territórios físicos permitem, como as bacias hidrográficas,
as áreas de mata, terrenos abandonados, entre outros. A leitura atenta e cuidadosa
desse banco de dados, que não se esgota nesta pesquisa, permitiu muito mais do
que denunciar as formas de desaparecimento forçado, permitiu compreender os
dispositivos de fazer morrer, as táticas, estratégias e tecnologias de matar, eliminar,
ocultar e fazer desaparecer. Fica evidente que o desaparecimento forçado é uma
realidade cotidiana vivida pelas populações mais vulnerabilizadas dos territórios
pesquisados neste estudo, percebida na convivência com cemitérios clandestinos
dos mais complexos aos mais improvisados, corpos carbonizados ou jogados do
alto do morro, nos rios ou à flor da terra, contraditoriamente expostos, à mercê de
serem devorados por urubus e de desaparecerem para sempre. Novamente erra,
abandona, faz e deixa desaparecer o Estado brasileiro ao não tipificar o crime de
desaparecimento forçado, ao não produzir políticas públicas de prevenção e combate,
de assistência e acolhimento às famílias e aos territórios afetados.
Em relação às pesquisas realizadas nas páginas do Facebook e Jornais da Baixada
Fluminense observou-se que os casos relatados/noticiados caracterizam um perfil
semelhante dos desaparecidos na Baixada Fluminense sendo majoritariamente jovens
e pretos/pardos e mulheres jovens, muitas delas vítimas de feminicídio. No caso
de postagens sobre mulheres desaparecidas nas redes sociais, observamos muitos
comentários machistas, repletos de valorização depreciativa sobre as formas de vida
que supostamente essa mulher possa ter e acusações infundadas. Os comentários
que se seguem as postagens, nos casos de jovens negros e periféricos são eivados de
acusações, suposições, associações ao crime e criminalização. Constituem-se como
construção social de trajetórias desviantes, tais como: “envolvidos com”, “bandidos”,
“ganso”, “marginais”, “putas” “mulher de bandido”, “vagabunda”, entre outros. As
famílias em busca de notícias que possam ajudar na localização não encontram
acolhimento, indicações e orientações de procedimentos, mas ao contrário, são
bombardeadas de comentários depreciativos. O Facebook se mostrou um terreno
pouco acolhedor para familiares e amigos que expõe casos de desaparecimento;
todavia representa uma tentativa de localização mais rápida dos desaparecidos;
são situações de desespero dos familiares que sabem que o tempo, a rapidez, é
determinante para localização dos desaparecidos.
Ressalta-se a importância de uma discussão qualificada no campo das políticas
públicas nos dois tipos mais encontrados nas mídias: o feminicídio e a juventude
vulnerável. Importa frisar o significativo número de jovens pretos e pardos que são
vítimas em casos de desaparecimento forçado, vivemos uma tragédia urbana com
o genocídio da juventude negra - vulnerável à convivência com práticas criminais,
suscetível ao racismo e a violência policial. Nos casos de feminicídio, importa
qualificar o debate público para ampliação das denúncias e fortalecer as políticas
de segurança pública e redes de apoio que garantam a proteção das mulheres antes
da violência de fato.
Em termos jurídicos cabe destacar que o Brasil é signatário e ratificou a Convenção
Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos
Forçados de 2006, a mesma foi firmada pela República Federativa do Brasil em 6 de
fevereiro de 2007. Essa Convenção tramitou entre os anos de 2009 e 2010 na Câmara
dos Deputados sendo aprovada como Decreto Legislativo 661/2010. Alguns anos
mais tarde a Presidenta Dilma Rousseff considerando que o Congresso Nacional
aprovou por meio do Decreto Legislativo nº 661 de 2010 a Convenção, e destacando
que o Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação à mesma junto
ao Secretário-Geral das Nações Unidas em 29 de novembro de 2010, resolveu por
decretar a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra
o Desaparecimento Forçado, concluída em 20 de dezembro de 2006 e firmada
pela República Federativa do Brasil em 6 de fevereiro de 2007 como Decreto
Presidencial Nº 8.767 de 11 de maio de 2016. Contudo, mesmo ratificando a citada
Convenção da ONU ainda carecemos na legislação pátria da tipificação do crime
de desaparecimento forçado no Código Penal, tal como orienta a Convenção. O
PL 5215/2020, que atualmente tramita no Congresso Nacional apensado ao PL
6240/2013 que veio do Senado Federal como PLS 245/2011, já foi discutido em
comissões especiais e tramitou em ambas as casas e representa hoje o projeto com
reais condições de aprovar a tipificação de crime de desaparecimento forçado no
Brasil. Cabe nesse momento aos legisladores levar essa discussão ao Plenário da
Câmara dos Deputados e, assim, constituir um amparo legal sólido para especificação
desse fenômeno criminal.
Para finalizar destacamos como a Arteterapia tornou-se um importante
instrumento para aproximação com as mães de pessoas desaparecidas e na construção
de uma metodologia de acolhimento emocional. Esse projeto de extensão e pesquisa,
ora apresentado neste livro sobre desaparecimentos forçados, fez um movimento
tentando superar o isolamento e banalização do tema. Foi então pensada uma
atividade que permitisse a essas mães e familiares elaborar, dentro delas, suas emoções
e a forma de acessá-las. Algo que possibilitasse o autocuidado, que passasse por
atividades potencializadoras das dimensões que viviam. Foi assim que a Arteterapia se
tornou parte significativa do trabalho. Sob a orientação e coordenação dos trabalhos
da psicóloga e arte-terapeuta Nádia Figueiredo, foram realizados quatro encontros
aos sábados, que contaram com a participação de aproximadamente 12 mulheres. As
atividades buscaram materializar símbolos que representam níveis mais profundos
do inconsciente da psique; desse modo, utilizou-se de modalidades expressivas tais
como a colagem, o desenho, a pintura, a modelagem, etc. Abandona-se, portanto, as
preocupações com a estética ou com a técnica, próprias do fazer artístico, voltando-
se para a expressão e comunicação criativa de sensações, emoções e impressões
armazenadas no psiquismo. A Arteterapia é, pois, a possibilidade de tornar consciente
o que dormia no inconsciente. A produção simbólica desperta essa comunicação
e inicia um processo de compreensão e resolução de estados afetivos conflitivos,
favorecendo a estruturação da personalidade. Há como um desdobramento das
emoções e percepções, que leva a uma melhor compreensão do próprio processo.
Imbuídos desse fazer terapêutico, foram realizados os quatro encontros visando
proporcionar estratégias de fortalecimento individual e de grupo, entre as quais se
destacam o fortalecer laços afetivos, o delimitar espaços individuais, o fortalecer a
percepção da força do grupo, o aumentar a autoestima e o autocuidado, a criação
de um espaço de troca e apoio e a expressão livre das emoções.
Parafraseando uma declaração de Jan Jarab (chefe da ONU Direitos Humanos
na América do Sul), o desaparecimento forçado não pode ser tratado como uma
questão do passado, muito pelo contrário, é uma violação dos direitos humanos
continuada ao longo de décadas e que persiste nos dias atuais sob variadas formas
e motivações. Enquanto a localização das vítimas não é esclarecida, sob os pactos
de silêncio entre criminosos e com a anuência do próprio Estado, continuamos
sem respostas, sem julgamentos justos e em muitos casos protegendo com a lei ou
com a ausência dela, perpetradores dessa violência aquém das vítimas e de seus
familiares cotidianamente violados pela impunidade.

Lista de Siglas

ADA – Amigos dos Amigos.


ALERJ – Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.
CCDTyE – Centros Clandestinos de Detenção, Tortura e Extermínio.
CCJC – Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
CDHM – Comissão Direitos Humanos e Minorias.
CICV – Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos.
CJDI – Centro de Justiça e Direito Internacional.
CNMP – Conselho Nacional Ministério Público.
CNV – Comissão Nacional da Verdade.
CRAS – Centro de Referência de Assistência Social.
CSPCCO – Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.
CV – Comando Vermelho.
DD – Disque Denúncia.
DF - Desaparecimento Forçado.
DETRAN – Departamento de Trânsito.
FBSP – Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
FGB – Fórum Grita Baixada.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
ISP – Instituto de Segurança Pública.
MP - Ministério Público.
MPE – Ministério Público Estadual.
OB – Observatório Fluminense de Pesquisa.
OEA – Organização dos Estados Americanos.
ONG – Organização Não Governamental.
ONU – Organização das Nações Unidas.
PDC – Projeto de Decreto Legislativo.
PL – Projeto de Lei.
PLS – Projeto de Lei do Senado.
PNBPD – Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas.
PSOL – Partido Socialismo e Liberdade.
PT – Partido dos Trabalhadores.
REDESAP – Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes
Desaparecidos.
RO – Registro de Ocorrência.
SDP – Setor de Descoberta de Paradeiros.
SENASP – Secretaria Nacional de Segurança Pública.
SIM – Sistema de Informações sobre Mortalidade.
SINALID – Sistema de Localização e Identificação de Desaparecidos.
SUS – Sistema Único de Saúde.
TCP – Terceiro Comando Puro.
TDE – Terror de Estado.
UFF – Universidade Federal Fluminense.
UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
UPP – Unidade de Polícia Pacificadora.

Lista de Figuras / Tabelas /


Gráficos e Fotos

Lista de Figuras:
Figura 1 - Taxa de pessoas desaparecidas por 100 mil habitantes na Baixada Fluminense e
no município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Figura 2 - Taxa de homicídio doloso por 100 mil habitantes na Baixada Fluminense e no
município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Figura 3 - Taxa de homicídio por intervenção de agente do Estado por 100 mil habitantes
na Baixada Fluminense e no município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Figura 4 - Nuvem de palavras feita a partir do Disque Denúncia.
Figura 5 - Foto de um dos meninos desaparecidos em Belford Roxo.
Figura 6 - Comentário de usuário do Facebook sobre uma menina desaparecida.
Figura 7 - Comentário de usuário do Facebook sobre uma mulher desaparecida.
Figura 8 - Comentário de usuário do Facebook sobre um menino desaparecido.
Figura 9 - Postagem de Facebook sobre um jovem desaparecido.

Lista de Tabelas:
Tabela 1 – Saldo quantitativo dos dados filtrados na Baixada Fluminense e no município
do Rio de Janeiro por tipo de assunto.
Tabela 2 - Jornais Pesquisados.
Tabela 3- Identificação da cor dos desaparecidos.
Tabela 4- Motivações relatadas nos casos encontrados.
Tabela 5 - Ranking das Páginas e Grupos do Facebook que mais aparecem na pesquisa.
Tabela 6 - Tabela com informações sobre postagens em páginas e grupos do Facebook
sobre pessoas desaparecidas.
Tabela 7 - Tabela com o ranking de municípios que mais apresentaram postagens sobre
pessoas desaparecidas na Baixada Fluminense.

Lista de Gráficos:
Gráfico 1 - Pessoas Desaparecidas nos Municípios da Baixada Fluminense em Números
absolutos (2016-2020).
Gráfico 2 - Projeção Populacional dos Municípios da Baixada Fluminense (2021).
Gráfico 3 - Homicídio Doloso nos municípios da Baixada Fluminense em números absolutos
(2016-2020).
Gráfico 4 - Homicídio por intervenção de agente do Estado nos municípios da Baixada
Fluminense em números absolutos (2016-2020).
Gráfico 5 – Filtragem dos dados brutos do Disque Denúncia – Rio de Janeiro para Baixada
Fluminense e Rio de Janeiro (capital) entre 2016 e 2020.
Gráfico 6 - Saldo quantitativo da filtragem dos dados do Disque Denúncia – Rio de Janeiro,
por tipo de assunto: Baixada Fluminense e Município do Rio de Janeiro (2016-2020).
Gráfico 7 – Taxa de Denúncia de desaparecimento forçado por 100 mil habitantes na Baixada
Fluminense e no município do Rio de Janeiro (2016-2020).

Lista de Fotos:
Foto 1- Mães reunidas ao final da Sessão de Arteterapia.
Foto 2 - Mãe apresentando seu projeto artístico final.
Foto 3: Mãe apresentando seu projeto artístico final.
Foto 4: Mães no processo de confecção da Arteterapia.
Foto 5: Mães no processo de confecção da Arteterapia.
Foto 6: Mães no processo de confecção da Arteterapia.
Foto 7: Em destaque painel com slogan da Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense.

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