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ECOS3 Entrevista Com Eric LAURENT

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O Inconsciente e o Acontecimento de Corpo


ENTREVISTA COM ÉRIC LAURENT POR REVISTA LA CAUSE DU DÉSIR 1

O inconsciente: real, simbólico ou imaginá rio?

L a Cause du désir – Lacan, em um de seus seminários, diz: “vocês acreditam que o inconsciente,
é Simbólico. Mas, não! Vocês se enganam, é Imaginário ou Real”2. Como o Sr. entende isso?
Éric Laurent – É um giro fundamental no ensino de Lacan. Ele colocou várias vezes em
destaque as dimensões e consistências desse ternário, que ele promoveu desde o início de seu ensino
RSI. Primeiramente ele explorou muito o Imaginário, antes mesmo de isolar essas três categorias, e
em seguida, o Simbólico. Mas, mesmo que ele desse prioridade a uma consistência particular, não
perdia de vista o ternário. Por exemplo, quando ele desenvolve a função da negação, sua importância
simbólica pelo aspecto criacionista do Simbólico ligado a um “não” fundamental que permite fazer
existir o vazio, Lacan mantém uma referência ao Real.3 Temos também o testemunho das dificuldades
de Jean Hyppolite, que, como hegeliano, era sensível ao trabalho da negação, ao mecanismo da
Aufhebung, mas teve problemas com a montagem das três consistências no esquema dos dois
espelhos.4 Lacan já mantinha essa articulação.
Depois de ter explorado as voltas e reviravoltas do Simbólico, no momento da crise, da fratura
que separa no pensamento francês o momento estruturalista do momento pós-estruturalista, Lacan se
serviu de seu ternário para situar os impasses da estrutura segundo Lévi-Strauss. A partir do Seminário
XI, ele mostrou como seu sujeito não é mais somente abordável pelos tropos da significação, a metáfora
e a metonímia. Ele dá cada vez mais lugar à lógica da alienação e da separação, que colocam em jogo
o objeto a, misto de imaginário e de real. Isso foi levado até as últimas consequências na declaração
de igualdade das consistências, como indica Jacques-Alain Miller.5 Ele retomará tudo a partir do
Seminário XXII6 no qual nenhuma consistência domina a outra. Essa igualdade das consistências dá
um peso formidável a essa báscula que teve lugar no Seminário “A lógica da Fantasia”, onde Lacan
diz que o lugar do Simbólico não é o espírito, como alguns acreditam, mas o corpo.7 A partir daí,
temos um remanejamento em série.

Consequências clinicas
La Cause du désir – O Sr. poderia nos dar alguns exemplos?
Éric Laurent – Partamos da indicação dada por J.-A. Miller desde 2005, ano em que publica
o Seminário O Sinthoma8: retomar todo o ensino de Lacan a partir desse Seminário. As diferentes
etapas foram as seguintes: 2005, a publicação do Seminário, com o comentário que o acompanha, em
seguida o Parlamento de Montpellier9 em 2011, em que J.-A. Miller propôs comentar um certo número
de frases extraídas do Seminário O Sinthoma, e que indicavam uma transformação da clínica a partir
daquele momento. Em seguida, em 2014, nós temos a conferência preparatória ao Congresso da AMP
de 2016. Em cada uma dessas etapas, J.-A. Miller explora as reformulações clínicas sucessivas. Este
ano, no quadro dos Estudos Lacanianos, tentei prosseguir com essas pistas10.
Em Montpellier, a fecundidade da igualdade das consistências, da não dominação do simbólico,
surpreendeu. O primeiro desenvolvimento clínico incidiu sobre as psicoses, em particular as psicoses
esclarecidas por Joyce. “Joyce o Sintoma”11, faz aparecer a grande diversidade das psicoses “não
desencadeadas”, e introduz um novo modo de foraclusão, a foraclusão “de fato”. Ali se separa o
modelo de carência do pai para Joyce e a foraclusão em ação no caso de Lucia, a filha de Joyce.
Sua ruptura com Beckett provocará um verdadeiro desencadeamento. No mais, Lacan encontra um
fenômeno particular, capturável a partir de seu nó, o famoso, “o corpo que está pronto para se esvair”12
e que se mantém por uma consistência suplementar, o Ego, como instrumento para mantê-lo junto. O
termo Ego é utilizado aí numa acepção nova, uma espécie de corpo separado de sua forma, um misto
de consistências. Assim, a partir desse Seminário, no campo das psicoses, essa clínica permite sair da
oposição demasiadamente mecânica entre foraclusão e não-foraclusão. Abre-se então um continente
para explorar que vai mais além da “psicose ordinária”. Trata-se, em cada caso, de tentar encontrar
uma montagem dos nós que dê conta de um sujeito, mais além de sua inserção num pequeno quadrado
ou numa classe clínica.
Para as neuroses, a conferência de Montpellier fez valer que a declaração de igualdade das
consistências permitia situar a histeria sobre numa abordagem não menos renovada. A histeria é
abordada a partir do “sintoma de sintoma”, não mais como o impacto primeiro da linguagem sobre o
corpo, que era o sintoma histérico segundo Freud, mas como mediação pelo Imaginário. O sintoma
de sintoma é sintoma em segundo grau, emprestado de um outro corpo. A histeria se inscreve em uma
série em que não é mais o sintoma histérico que é o primeiro corte do corpo. Há primeiro a posição
feminina, que se define em reduzir seu ser ao ser sinthoma de um outro corpo. A clínica da histeria
encontra-se profundamente remanejada, o que é compatível com a clínica contemporânea da histeria,
que não tem muito a ver com a clínica freudiana. Estamos lidando com uma extensão de fenômenos
muito maior, que não pode ter como epônimo simplesmente “Dora”.
Para a obsessão, J.-A. Miller coloca em destaque que Lacan situa o obsessivo como aquele
que não chega a se desprender do olhar. É portanto o corpo enquanto tomado sob o olhar, na medida
em que ele tem uma forma ou não a tem, em relação ao olhar que o domina. O corpo real sob o olhar
permite abordar o campo da obsessão, ele também, a partir do corpo e do acontecimento de corpo.
O campo da obsessão parecia a priori bem longe das questões do corpo, uma vez que centrado sobre
o pensamento. Assim situando a conjunção tão difícil de desfazer do olhar e do corpo real informe,
temos um acontecimento de corpo, remanejamento do que é a obsessão. Isso permite pensar a divisão
subjetiva como divisão a partir do Imaginário e do Real.

Histeria e corpo falante


La Cause du désir – Na perspectiva freudiana da histeria havia no primeiro plano a
somatização enquanto fenômeno da mesma ordem que o Simbólico, já que ele se deixava decifrar
unicamente pelos significantes, sendo feito e desfeito por eles. Com esse remanejamento, o que
se torna o fenômeno somático na histeria?
Éric Laurent – Lacan se distanciou de muitas maneiras em relação a isso. Ele pôde reformular
a dita “complacência somática” como uma recusa da feminilidade corporal.13 Nessa recusa baseada
na ideia de um corpo que não há, o corpo-histérico se dava através da identificação a um outro corpo,
aquele dito da “outra mulher”, que tinha como função fazer suplência a esse corpo que não há.
Simplesmente, esse corpo da outra mulher, é a outra mulher como tendo uma relação com A mulher.
Frequentemente, queremos reduzir a outra mulher a uma igual, à rival. Mas Madame K. é A mulher,
razão pela qual Lacan diz, depois de longas linhas de raciocínio lógico: a histérica é aquela que,
do ponto de vista feminino, faz existir o universal da mulher, que se empenha em fazer existir esse
universal. A posição feminina como tal é o contrário, desfazer-se do universal feminino para fazer
existir a sua singularidade. Esta consiste em se fazer o sintoma a ser decifrado para um outro corpo;
especialmente homem, mas este pode ser mulher. Esse tipo de determinação não é simplesmente a
encarnação “ser o falo para”.14 Lacan em um momento, sustentou que a passagem da posição histérica
à posição feminina se fazia pela travessia do ser fálico, na dialética do ser e do ter. Além disso, o que se
constitui, é o sintoma a ser decifrado de um corpo particular, que depende de uma fantasia particular.
Lacan pôde dizer que Deus intervém de modo constante nos casos humanos15, a prova disso é que,
cada vez que uma mulher intervém na vida de um homem, isso não é a partir do universal. Os deuses
são do Real, não do Simbólico. A respeito disso, crer não é uma função simbólica, é uma função real,
um acontecimento de corpo. Isso toca o ponto fundamental sobre todo o desenvolvimento simbólico.
Os fatos da histeria se veem deslocados por todo esse conjunto.

La Cause du désir – O que o Sr. diria dessa passagem em que Lacan diz: “Eu sou um
histérico perfeito”16, porque não há o bastão “Nome-do-pai”?
Éric Laurent – Uma histérica perfeita é ainda uma histérica? Uma histeria perfeita torna-se a
posição feminina? Seria isso uma maneira de dizer: eu tento reconstruir toda a psicanálise desde a
posição feminina sem crer em A mulher?

La Cause du désir – O exemplo que Lacan dá é estranho, pois ele volta a dizer que ele
está sem cessar em relação com o inconsciente, todo o tempo no circuito moebiano.
Éric Laurent – Ele está todo o tempo do lado do inconsciente, quer dizer que ele diz: eu não
quero mais de “moi”. Assim como no obsessivo, é uma resistência do eu (moi), e a histérica é marcada
pela fraqueza de seu eu (moi) como diziam os pós-freudianos. Lacan se esforça para não ter mais eu
(moi). Ele se esforçou no estilo de vida dele, em ser ao mesmo tempo pulsão e ausência de eu (moi),
em contato constante com seu inconsciente entendido como falasser. Não é mais “Eu, a verdade, eu
falo”, mas “eu, o falasser, eu falo”. Lacan fez de sua ética de vida alguma coisa assim.

O corpo falante, é o corpo da civilização


La Cause du désir – Questão um pouco mais política. Recentemente, em Lacan Cotidiano,
o Sr. disse: “o corpo falante, é o corpo da civilização”17. E em PIPOL 7: “a radicalização, é a
radicalização do gozo”18. O Sr. poderia desdobrar essas duas proposições?
Éric Laurent – Em PIPOL 7 foi evocada a polissemia do termo “radicalização” que suplantou
uma série de outros termos. Tentei apreender isso, não em termos de ideais, como um de nossos
colegas o sublinhava – queda dos ideais, traumatismo sobre o ideal, humilhação – mas muito mais
como radicalização do empuxo-ao-gozo: a radicalização como um dos nomes do gozo, e nesse
sentido, é o que faz vibrar o corpo. No processo chamado “civilização”, que tem suas mentiras, seus
limites, suas inconsistências, o corpo submetido a um certo tipo de regulação é submetido a um resto,
um mal-estar superegóico, mas ele pode se segurar. Na radicalização, da toxicomania ao bacanal
fatal, nessa maneira de se fazer explodir com uma bomba, passamos para fora da civilização, num
desenlaçamento, feito de gozo.

La Cause du désir – Fora do laço social, fora do discurso.


Éric Laurent – Marcamos no discurso um lugar de impossível e nos identificamos a esse ponto.

La Cause du désir – Em Lacan Cotidiano, o Sr, retoma a fórmula desdobrada por J.-A.
Miller em seu texto “Intuições Milanesas” – “O inconsciente é a política”. O Sr. teria a ideia de
que o inconsciente do psicanalista representa no entanto um limite à radicalização?
Éric Laurent – “O inconsciente é a política”, quer dizer que o inconsciente é o que se inscreve
numa falha irredutível. A política mostra uma falha e o que chamamos “democracia” é apenas o nome do
significante da unidade perdida. Nessa falha se enxerta a banda de Moebius, o inconsciente, que introduz
nesse ponto aí alguma coisa que não é o ideal, que não é irredutível à polarização Ideal do eu/eu ideal.

La Cause du désir – A expressão “o corpo falante”19, que J.-A. Miller coloca em destaque
para todos nós como objetivo de pesquisa, é díspare em relação à ideia de um corpo decifrável,
de sintomas corporais vindo no lugar das mensagens do inconsciente.
Éric Laurent – O corpo falante foi durante muito tempo o corpo histérico. É um corpo que
falava perfeitamente a linguagem do sonho, portanto que dava sentido a tudo. Aqui, trata-se do corpo
falante enquanto centrado num fora de sentido, quando ele é o limite ao “dar sentido”, à decifração. J.-
A. Miller chegou a dizer que o acontecimento de corpo é também o que se chama os dados imediatos
da consciência na fenomenologia, quer dizer, o que precede a toda consciência possível, e incluída a
consciência “consciência de si mesma”, ou os objetos da consciência. A consciência é consciência de
alguma coisa, ela não é consciência do ponto de vista do dado imediato que é irredutível. É o que nós
chamamos o fora-de-sentido. Então o corpo falante é o corpo falante no momento em que ele escapa
ao sentido e que no entanto, é traumatismo do sistema da linguagem sobre ele.

Novo imaginário?
La Cause du désir – É mais simples esclarecer a expressão “corpo falante” a partir
da dimensão do Real, do fora de sentido, do fora de discurso. É mais complicado articular o
“corpo falante’ tendo como consistência o Imaginário. Estaria do lado dos dados imediatos da
percepção, da consciência, das primeiras marcas perceptivas? A questão é a seguinte: o que é
esse novo Imaginário?
Éric Laurent – É ao mesmo tempo um novo Imaginário, e isso vai ao encontro ao
desenvolvimento constante em Lacan dos paradoxos do Imaginário. Em todo caso, do que é preciso
se desfazer fundamentalmente, se o corpo é uma superfície de inscrição, é da crença de que há sobre
o corpo alguma coisa que vem se inscrever como um primeiro traço. Foi a tentativa de nosso colega
Serge Leclaire que imaginarizava isso com as cosquinhas da mãe, as primeiras carícias; ele pensava
dessa forma um pré-significante que viria se inscrever sobre o corpo, delimitando as bordas, e que
se tornariam depois significantes. E não é isso! O modo de inscrição é um buraco. A marca real é
um buraco que faz com que os significantes se tornem inesquecíveis para aqueles que os receberam.
É alguma coisa que se inscreve como um buraco, um branco fundamental, como um impossível
de se recordar. Lacan diz: o inconsciente não é as luzes diminuídas…o inconsciente é o branco no
qual eu mesmo (moi-même) eu (je) não posso me lembrar, jogando sobre o equívoco de chamar/
lembrar (rappel), o que se permite de extrair de um buraco e a lembrança (chamado) como memória.
Trata-se aí de falta de recordação, contrariamente ao início de seu ensino, quando ele enunciava:
“O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma
mentira: é o capítulo censurado”.20

La Cause du désir – No texto que acaba de ser publicado, “Religiões e Real”, Lacan
diz: não é Faça-se a luz (Fiat lux), mas Faça-se o buraco (Fiat trou)21. É no fundo a fórmula da
relação entre o Simbólico e o Imaginário.
Éric Laurent – É a relação ao corpo enquanto ele obedece a uma lógica de saco e de corda,
quer dizer a reta infinita, que é o exemplo do buraco que inclui ao mesmo tempo o buraco e uma
borda. Há de início o saco, e em seguida vem a forma, que é um inchaço. E o que a forma dissimula, é
que o saco é fundado sobre um buraco. Aí, toda a montagem que propõe Lacan, e que tem por vocação
remanejar a estética transcendental kantiana, coloca um outro estatuto do sujeito, uma outra topologia
do sujeito, que desarranja a intuição. É também um abandono claro de tudo o que carrega ainda a
psicologia ligada a Aristóteles: a alma é a forma do corpo, as faculdades cognitivas, etc. Muitas coisas
que se conta nas neurociências são reformulações de Aristóteles, retomadas nas metáforas congeladas
do tipo: a experiência mostra que se encontram enfim tais inscrições no corpo de tais sistemas,
onde encontramos velhas faculdades aristotélicas recodificadas. O que Lacan quer, é romper de vez
com a representação aristotélica e com o remanejamento de Aristóteles ligado à nova concepção do
Simbólico desenvolvido por Kant.

O analista faz parte do corpo falante


La Cause du désir – Na perspectiva do corpo falante, o que acontece com a posição de Lacan
sobre o analista como fazendo parte do conceito de inconsciente?
Éric Laurent – É bastante claro que sua posição é mantida. Ele a reformula ao mesmo tempo
em Televisão22 e em seu trabalho sobre Joyce. Fazer parte do sistema do inconsciente, não é, se posso
dizer, fazer parte dele passivamente; é ativamente “descaritar”, re-enviar o sujeito à questão: qual
é seu desejo, fora do sistema dos bens? O analista descarita situando-se justamente para além desse
ponto, para que o sujeito possa, de sua posição, torná-lo causa de seu desejo, quer dizer, colocar a
si mesmo a questão de seu desejo. No Seminário A Identificação, Lacan colocará em série a mística
muçulmana sufi com a mística católica23 para colocar a questão do desejo enquanto ele se situa mais
além de todo o sistema dos bens.

La Cause du désir – Lacan sempre teve a ideia de que o desejo estava mais além do
sistema de bens.
Éric Laurent – Sim, mas isso vai muito longe quando concebemos o místico como ideia do
desejo. No entanto, Lacan não dizia para transformar os analisantes em místicos. O desejo como
mais além do sistema de bens pode se encarnar fora de uma relação com um deus. Isso se encarna na
versão que dá Lacan da psicanálise como discurso. A psicanálise como modo de vida, ou a questão da
psicanálise mais além do terapêutico, ou o remanejamento do terapêutico visando a um mais além, é
nesse duplo movimento que se situa a psicanálise.
Sua posição deve ser suficientemente estranha no sistema da repartição dos bens. A posição
do terapeuta como tal consiste em querer se reduzir a um eu quero seu bem. Isso se enuncia no
sistema cliente-prestador de serviço como: nós estamos a seu serviço, nós temos uma técnica a seu
serviço, é você que define o objetivo, o bem tal como você mesmo o concebe, e nós temos a técnica
para responder a tudo – TCC, etc. O cognitivismo contemporâneo é diferente daquele de vinte anos
atrás; ele foi remanejado pelo individualismo democrático, por esse nós estamos a seu serviço e
nós trazemos para você o seu bem. Tudo isso pode ser muito inquietante, como percebemos por
exemplo na Inglaterra onde um programa de saúde pública foi elaborado, no qual, para o bem dos
desempregados que são depressivos vão tratá-los com algumas sessões de psicoterapia e assim eles
reencontrarão o caminho do trabalho. É formidável, é um cuidado! Ora, agora as pessoas marcham
nas ruas, denunciando a ausência de ética na vontade de reduzir o desemprego à doença mental.
O paradoxo do sistema de bens é que, ao querer o bem, o definimos, e então só pode surgir
um não é ético querer se limitar a esse objetivo que entra num utilitarismo global. O psicanalista
como aquele que descarita se esforça para sair do sistema de bens tal como ele é definido em um dado
momento numa civilização. Não é no absoluto, é um judô com os discursos estabelecidos. Não é a
mesma coisa tentar praticar esse jogo no século XXI como em 1950, não fazemos do mesmo jeito.
Aqueles que acreditam que podemos fazer como em 1950 ou em 1970 se enganam. É preciso ser
resolutamente contemporâneo, senão não conseguimos. É preciso continuar a fazer o judô com o
sistema de bens, tal como ele introduz seu discurso no mundo no qual estamos, e permitir assim que
surja alguma coisa como o desejo enquanto que ele escapa da captura dos discursos estabelecidos.

La Cause du désir – Isso seria a passagem do axioma do Seminário A ética da psicanálise24,


“não ceder de seu desejo”, tipo Antígona, e eventualmente sufi, à posição “ser tolo do Real”.
Éric Laurent – O discurso psicanalítico consiste em propor essa solução: o psicanalista faz
parte do sistema do inconsciente, o que introduz um sistema mais suportável. A posição não é a
transgressão mais além, de ser Antígona ou mística. É preciso conhecer o debate Antígona-Creonte,
mas isso se joga de outro modo nas análises do século XXI.

La Cause du désir – Se Antígona escolhesse uma posição moderna do tipo sobrevivente


no lugar da posição heroica, que é também uma posição sacrificial, o que isso daria?
Éric Laurent – É o questionamento de Gérard Wajcman. Ele extraiu em uma conversação com
François Régnault essa passagem em que Lacan diz que Antígona é uma mártir, e que o momento dos
mártires é o incêndio nos discursos da civilização. É um incêndio, uma epidemia. Com efeito, isso
vinha depois de uma longa reflexão sobre as epidemias de mártires no islã, e isso lembrava também
que a cristandade conheceu também esse tipo de epidemia.

La Cause du désir – Absolutamente, ela até mesmo a inventou.


Éric Laurent – A cristandade conheceu uma epidemia de mártires. Peter Brown escreveu
coisas muito interessantes sobre a maneira como isso se produziu, em que tipo de discurso veio essa
fascinação pelo martírio.25 Foi um verdadeiro incêndio, e foi preciso que a Igreja passasse do estatuto
de perseguida àquele de agente de Estado ao fim de três séculos para que a idade dos mártires e dos
eremitas do deserto ficasse distante.

La Cause du désir – Para que haja um mártir, é preciso que haja uma cena. Se não há
circo romano, não há mártir. Sem o circo Internet, não há mais martírio.
Éric Laurent – Por exemplo, qual era a cena dos tigres do Ilam Tamoul? Não era a cena da
Internet. Eles fizeram um pequeno avanço sobre o Hezbollah; eles fizeram 80 atentados suicidas entre
1987 e 2009-2010. Ora, os Tigres eram hindus e católicos.

La Cause du désir – Há também a imolação dos tibetanos.


É.L. – Ela é mais rara, mas sempre presente. Há também a imolação budista e birmanesa.

La Cause du désir – Mas em todo caso, é preciso alguém que assista.


Éric Laurent – Há sempre alguém que vê. Como se desfazer disso? É a questão que nos propõe
o Seminário XXIII.

Tradução: Cristiana Pittella


Revisão: Márcia Bandeira e Ana Helena Souza
Revisão notas: Márcia Mezêncio

Notas bibliográ ficas


1
Entretien avec Éric Laurent, Línconscient et i’événement de corps, La Cause Du Désir, Revue de Psychanalyse 91, Navarin Éditeur,
2015; agradecemos Éric Laurent a gentileza de nos autorizar a tradução e publicação em Ecos, Boletim da 25a Jornada EBP-MG.
2
Lacan J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 98.
3
Cf. Lacan J. “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud” (1954). In: Escritos, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1998, p.370-382.
4
Cf. Lacan J. O Seminário, livro 1: Os Escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983, p. 147.
5
Cf. Miller, J.-A. “O inconsciente e o corpo falante”, Apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016. In: Scilicet:
O corpo falante, sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: EBP, 2016, p. 19-32.
6
Cf. Lacan J. Le Seminaire, livre XXII: “R.S.I”, 1974-1975. Inédito.
7
Cf. Lacan J. Le Séminaire, Livre XIV: “La logique du Fantasme”, lição de 10 de maio 1967. Inédito.
8
Cf. Lacan J. O Seminário, livro 23, O Sinthoma. Op. cit.
9
Conferência pronunciada por Jacques-Alain Miller ao segundo Parlamento de Uforca que ocorreu em 21 e 22 de maio 2011 em
Montepellier com o titulo “Em torno do Seminário XXIII”.
10
Seminário de Éric Laurent, “Falar lalíngua do corpo”, realizado na École de La Cause Freudienne no quadro dos Estudos
lacanianos, 2014-2015.
11
Lacan, J. “Joyce o Sintoma” (1975). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor 2003, p. 560-566.
12
Lacan, J. O Seminário, livro 23: O Sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007, p. 145.
13
Lacan J. O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 88.
14
Lacan J. “A significação do falo” (1958). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.700.
15
Lacan J. “Conférence à Yale University”. Scilicet, n. 6/7, 1976, p.32
16
Lacan J. Le Séminaire, livre XXIV, “Linsu que sait de l’une-bévue S’aile à mourre”, leçon du 14 Décembre 1976, Ornicar?, n.
12/13, décembre 1977, p. 7-10.
17
Laurent, É. “‘L’inconscient c’est la politique’, aujourd’hui”, Lacan Quotidien, Paris, n. 518, 2015. Disponível em: http://www.
lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2015/06/LQ-518.pdf.
18
Intervenção de Éric Laurent em PIPOL 7, Victime!, 3o Congresso europeu de psicanálise, 4 e 5 de julho 2015 em Bruxelas.
19
J.-A. Miller. “O inconsciente e o corpo falante”, op.cit.
20
Lacan J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998,
p.260.
21
Lacan J. “Religiões e Real”. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 73, 2016, p.14.
22
Lacan J. “Televisão” (1974). In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 518
23
Cf. Lacan J. Le Seminaire, Livre IX: “L’identification”, 1961-1962. Inédito.
24
Lacan J. O Seminário, livro 7: A ética da psicanális (1959-1960). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.

25
Brown P. Le culte des saints: son essor et sa fonction dans la chretienté latine. Paris: CNRS éditions, 2012.

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