ECOS3 Entrevista Com Eric LAURENT
ECOS3 Entrevista Com Eric LAURENT
ECOS3 Entrevista Com Eric LAURENT
L a Cause du désir – Lacan, em um de seus seminários, diz: “vocês acreditam que o inconsciente,
é Simbólico. Mas, não! Vocês se enganam, é Imaginário ou Real”2. Como o Sr. entende isso?
Éric Laurent – É um giro fundamental no ensino de Lacan. Ele colocou várias vezes em
destaque as dimensões e consistências desse ternário, que ele promoveu desde o início de seu ensino
RSI. Primeiramente ele explorou muito o Imaginário, antes mesmo de isolar essas três categorias, e
em seguida, o Simbólico. Mas, mesmo que ele desse prioridade a uma consistência particular, não
perdia de vista o ternário. Por exemplo, quando ele desenvolve a função da negação, sua importância
simbólica pelo aspecto criacionista do Simbólico ligado a um “não” fundamental que permite fazer
existir o vazio, Lacan mantém uma referência ao Real.3 Temos também o testemunho das dificuldades
de Jean Hyppolite, que, como hegeliano, era sensível ao trabalho da negação, ao mecanismo da
Aufhebung, mas teve problemas com a montagem das três consistências no esquema dos dois
espelhos.4 Lacan já mantinha essa articulação.
Depois de ter explorado as voltas e reviravoltas do Simbólico, no momento da crise, da fratura
que separa no pensamento francês o momento estruturalista do momento pós-estruturalista, Lacan se
serviu de seu ternário para situar os impasses da estrutura segundo Lévi-Strauss. A partir do Seminário
XI, ele mostrou como seu sujeito não é mais somente abordável pelos tropos da significação, a metáfora
e a metonímia. Ele dá cada vez mais lugar à lógica da alienação e da separação, que colocam em jogo
o objeto a, misto de imaginário e de real. Isso foi levado até as últimas consequências na declaração
de igualdade das consistências, como indica Jacques-Alain Miller.5 Ele retomará tudo a partir do
Seminário XXII6 no qual nenhuma consistência domina a outra. Essa igualdade das consistências dá
um peso formidável a essa báscula que teve lugar no Seminário “A lógica da Fantasia”, onde Lacan
diz que o lugar do Simbólico não é o espírito, como alguns acreditam, mas o corpo.7 A partir daí,
temos um remanejamento em série.
Consequências clinicas
La Cause du désir – O Sr. poderia nos dar alguns exemplos?
Éric Laurent – Partamos da indicação dada por J.-A. Miller desde 2005, ano em que publica
o Seminário O Sinthoma8: retomar todo o ensino de Lacan a partir desse Seminário. As diferentes
etapas foram as seguintes: 2005, a publicação do Seminário, com o comentário que o acompanha, em
seguida o Parlamento de Montpellier9 em 2011, em que J.-A. Miller propôs comentar um certo número
de frases extraídas do Seminário O Sinthoma, e que indicavam uma transformação da clínica a partir
daquele momento. Em seguida, em 2014, nós temos a conferência preparatória ao Congresso da AMP
de 2016. Em cada uma dessas etapas, J.-A. Miller explora as reformulações clínicas sucessivas. Este
ano, no quadro dos Estudos Lacanianos, tentei prosseguir com essas pistas10.
Em Montpellier, a fecundidade da igualdade das consistências, da não dominação do simbólico,
surpreendeu. O primeiro desenvolvimento clínico incidiu sobre as psicoses, em particular as psicoses
esclarecidas por Joyce. “Joyce o Sintoma”11, faz aparecer a grande diversidade das psicoses “não
desencadeadas”, e introduz um novo modo de foraclusão, a foraclusão “de fato”. Ali se separa o
modelo de carência do pai para Joyce e a foraclusão em ação no caso de Lucia, a filha de Joyce.
Sua ruptura com Beckett provocará um verdadeiro desencadeamento. No mais, Lacan encontra um
fenômeno particular, capturável a partir de seu nó, o famoso, “o corpo que está pronto para se esvair”12
e que se mantém por uma consistência suplementar, o Ego, como instrumento para mantê-lo junto. O
termo Ego é utilizado aí numa acepção nova, uma espécie de corpo separado de sua forma, um misto
de consistências. Assim, a partir desse Seminário, no campo das psicoses, essa clínica permite sair da
oposição demasiadamente mecânica entre foraclusão e não-foraclusão. Abre-se então um continente
para explorar que vai mais além da “psicose ordinária”. Trata-se, em cada caso, de tentar encontrar
uma montagem dos nós que dê conta de um sujeito, mais além de sua inserção num pequeno quadrado
ou numa classe clínica.
Para as neuroses, a conferência de Montpellier fez valer que a declaração de igualdade das
consistências permitia situar a histeria sobre numa abordagem não menos renovada. A histeria é
abordada a partir do “sintoma de sintoma”, não mais como o impacto primeiro da linguagem sobre o
corpo, que era o sintoma histérico segundo Freud, mas como mediação pelo Imaginário. O sintoma
de sintoma é sintoma em segundo grau, emprestado de um outro corpo. A histeria se inscreve em uma
série em que não é mais o sintoma histérico que é o primeiro corte do corpo. Há primeiro a posição
feminina, que se define em reduzir seu ser ao ser sinthoma de um outro corpo. A clínica da histeria
encontra-se profundamente remanejada, o que é compatível com a clínica contemporânea da histeria,
que não tem muito a ver com a clínica freudiana. Estamos lidando com uma extensão de fenômenos
muito maior, que não pode ter como epônimo simplesmente “Dora”.
Para a obsessão, J.-A. Miller coloca em destaque que Lacan situa o obsessivo como aquele
que não chega a se desprender do olhar. É portanto o corpo enquanto tomado sob o olhar, na medida
em que ele tem uma forma ou não a tem, em relação ao olhar que o domina. O corpo real sob o olhar
permite abordar o campo da obsessão, ele também, a partir do corpo e do acontecimento de corpo.
O campo da obsessão parecia a priori bem longe das questões do corpo, uma vez que centrado sobre
o pensamento. Assim situando a conjunção tão difícil de desfazer do olhar e do corpo real informe,
temos um acontecimento de corpo, remanejamento do que é a obsessão. Isso permite pensar a divisão
subjetiva como divisão a partir do Imaginário e do Real.
La Cause du désir – O que o Sr. diria dessa passagem em que Lacan diz: “Eu sou um
histérico perfeito”16, porque não há o bastão “Nome-do-pai”?
Éric Laurent – Uma histérica perfeita é ainda uma histérica? Uma histeria perfeita torna-se a
posição feminina? Seria isso uma maneira de dizer: eu tento reconstruir toda a psicanálise desde a
posição feminina sem crer em A mulher?
La Cause du désir – O exemplo que Lacan dá é estranho, pois ele volta a dizer que ele
está sem cessar em relação com o inconsciente, todo o tempo no circuito moebiano.
Éric Laurent – Ele está todo o tempo do lado do inconsciente, quer dizer que ele diz: eu não
quero mais de “moi”. Assim como no obsessivo, é uma resistência do eu (moi), e a histérica é marcada
pela fraqueza de seu eu (moi) como diziam os pós-freudianos. Lacan se esforça para não ter mais eu
(moi). Ele se esforçou no estilo de vida dele, em ser ao mesmo tempo pulsão e ausência de eu (moi),
em contato constante com seu inconsciente entendido como falasser. Não é mais “Eu, a verdade, eu
falo”, mas “eu, o falasser, eu falo”. Lacan fez de sua ética de vida alguma coisa assim.
La Cause du désir – Em Lacan Cotidiano, o Sr, retoma a fórmula desdobrada por J.-A.
Miller em seu texto “Intuições Milanesas” – “O inconsciente é a política”. O Sr. teria a ideia de
que o inconsciente do psicanalista representa no entanto um limite à radicalização?
Éric Laurent – “O inconsciente é a política”, quer dizer que o inconsciente é o que se inscreve
numa falha irredutível. A política mostra uma falha e o que chamamos “democracia” é apenas o nome do
significante da unidade perdida. Nessa falha se enxerta a banda de Moebius, o inconsciente, que introduz
nesse ponto aí alguma coisa que não é o ideal, que não é irredutível à polarização Ideal do eu/eu ideal.
La Cause du désir – A expressão “o corpo falante”19, que J.-A. Miller coloca em destaque
para todos nós como objetivo de pesquisa, é díspare em relação à ideia de um corpo decifrável,
de sintomas corporais vindo no lugar das mensagens do inconsciente.
Éric Laurent – O corpo falante foi durante muito tempo o corpo histérico. É um corpo que
falava perfeitamente a linguagem do sonho, portanto que dava sentido a tudo. Aqui, trata-se do corpo
falante enquanto centrado num fora de sentido, quando ele é o limite ao “dar sentido”, à decifração. J.-
A. Miller chegou a dizer que o acontecimento de corpo é também o que se chama os dados imediatos
da consciência na fenomenologia, quer dizer, o que precede a toda consciência possível, e incluída a
consciência “consciência de si mesma”, ou os objetos da consciência. A consciência é consciência de
alguma coisa, ela não é consciência do ponto de vista do dado imediato que é irredutível. É o que nós
chamamos o fora-de-sentido. Então o corpo falante é o corpo falante no momento em que ele escapa
ao sentido e que no entanto, é traumatismo do sistema da linguagem sobre ele.
Novo imaginário?
La Cause du désir – É mais simples esclarecer a expressão “corpo falante” a partir
da dimensão do Real, do fora de sentido, do fora de discurso. É mais complicado articular o
“corpo falante’ tendo como consistência o Imaginário. Estaria do lado dos dados imediatos da
percepção, da consciência, das primeiras marcas perceptivas? A questão é a seguinte: o que é
esse novo Imaginário?
Éric Laurent – É ao mesmo tempo um novo Imaginário, e isso vai ao encontro ao
desenvolvimento constante em Lacan dos paradoxos do Imaginário. Em todo caso, do que é preciso
se desfazer fundamentalmente, se o corpo é uma superfície de inscrição, é da crença de que há sobre
o corpo alguma coisa que vem se inscrever como um primeiro traço. Foi a tentativa de nosso colega
Serge Leclaire que imaginarizava isso com as cosquinhas da mãe, as primeiras carícias; ele pensava
dessa forma um pré-significante que viria se inscrever sobre o corpo, delimitando as bordas, e que
se tornariam depois significantes. E não é isso! O modo de inscrição é um buraco. A marca real é
um buraco que faz com que os significantes se tornem inesquecíveis para aqueles que os receberam.
É alguma coisa que se inscreve como um buraco, um branco fundamental, como um impossível
de se recordar. Lacan diz: o inconsciente não é as luzes diminuídas…o inconsciente é o branco no
qual eu mesmo (moi-même) eu (je) não posso me lembrar, jogando sobre o equívoco de chamar/
lembrar (rappel), o que se permite de extrair de um buraco e a lembrança (chamado) como memória.
Trata-se aí de falta de recordação, contrariamente ao início de seu ensino, quando ele enunciava:
“O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma
mentira: é o capítulo censurado”.20
La Cause du désir – No texto que acaba de ser publicado, “Religiões e Real”, Lacan
diz: não é Faça-se a luz (Fiat lux), mas Faça-se o buraco (Fiat trou)21. É no fundo a fórmula da
relação entre o Simbólico e o Imaginário.
Éric Laurent – É a relação ao corpo enquanto ele obedece a uma lógica de saco e de corda,
quer dizer a reta infinita, que é o exemplo do buraco que inclui ao mesmo tempo o buraco e uma
borda. Há de início o saco, e em seguida vem a forma, que é um inchaço. E o que a forma dissimula, é
que o saco é fundado sobre um buraco. Aí, toda a montagem que propõe Lacan, e que tem por vocação
remanejar a estética transcendental kantiana, coloca um outro estatuto do sujeito, uma outra topologia
do sujeito, que desarranja a intuição. É também um abandono claro de tudo o que carrega ainda a
psicologia ligada a Aristóteles: a alma é a forma do corpo, as faculdades cognitivas, etc. Muitas coisas
que se conta nas neurociências são reformulações de Aristóteles, retomadas nas metáforas congeladas
do tipo: a experiência mostra que se encontram enfim tais inscrições no corpo de tais sistemas,
onde encontramos velhas faculdades aristotélicas recodificadas. O que Lacan quer, é romper de vez
com a representação aristotélica e com o remanejamento de Aristóteles ligado à nova concepção do
Simbólico desenvolvido por Kant.
La Cause du désir – Lacan sempre teve a ideia de que o desejo estava mais além do
sistema de bens.
Éric Laurent – Sim, mas isso vai muito longe quando concebemos o místico como ideia do
desejo. No entanto, Lacan não dizia para transformar os analisantes em místicos. O desejo como
mais além do sistema de bens pode se encarnar fora de uma relação com um deus. Isso se encarna na
versão que dá Lacan da psicanálise como discurso. A psicanálise como modo de vida, ou a questão da
psicanálise mais além do terapêutico, ou o remanejamento do terapêutico visando a um mais além, é
nesse duplo movimento que se situa a psicanálise.
Sua posição deve ser suficientemente estranha no sistema da repartição dos bens. A posição
do terapeuta como tal consiste em querer se reduzir a um eu quero seu bem. Isso se enuncia no
sistema cliente-prestador de serviço como: nós estamos a seu serviço, nós temos uma técnica a seu
serviço, é você que define o objetivo, o bem tal como você mesmo o concebe, e nós temos a técnica
para responder a tudo – TCC, etc. O cognitivismo contemporâneo é diferente daquele de vinte anos
atrás; ele foi remanejado pelo individualismo democrático, por esse nós estamos a seu serviço e
nós trazemos para você o seu bem. Tudo isso pode ser muito inquietante, como percebemos por
exemplo na Inglaterra onde um programa de saúde pública foi elaborado, no qual, para o bem dos
desempregados que são depressivos vão tratá-los com algumas sessões de psicoterapia e assim eles
reencontrarão o caminho do trabalho. É formidável, é um cuidado! Ora, agora as pessoas marcham
nas ruas, denunciando a ausência de ética na vontade de reduzir o desemprego à doença mental.
O paradoxo do sistema de bens é que, ao querer o bem, o definimos, e então só pode surgir
um não é ético querer se limitar a esse objetivo que entra num utilitarismo global. O psicanalista
como aquele que descarita se esforça para sair do sistema de bens tal como ele é definido em um dado
momento numa civilização. Não é no absoluto, é um judô com os discursos estabelecidos. Não é a
mesma coisa tentar praticar esse jogo no século XXI como em 1950, não fazemos do mesmo jeito.
Aqueles que acreditam que podemos fazer como em 1950 ou em 1970 se enganam. É preciso ser
resolutamente contemporâneo, senão não conseguimos. É preciso continuar a fazer o judô com o
sistema de bens, tal como ele introduz seu discurso no mundo no qual estamos, e permitir assim que
surja alguma coisa como o desejo enquanto que ele escapa da captura dos discursos estabelecidos.
La Cause du désir – Para que haja um mártir, é preciso que haja uma cena. Se não há
circo romano, não há mártir. Sem o circo Internet, não há mais martírio.
Éric Laurent – Por exemplo, qual era a cena dos tigres do Ilam Tamoul? Não era a cena da
Internet. Eles fizeram um pequeno avanço sobre o Hezbollah; eles fizeram 80 atentados suicidas entre
1987 e 2009-2010. Ora, os Tigres eram hindus e católicos.
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Brown P. Le culte des saints: son essor et sa fonction dans la chretienté latine. Paris: CNRS éditions, 2012.