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22p - Reflexões Sobre o Ser Pessoal em Edith Stein

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ARTIGO

REFLEXÕES SOBRE O SER PESSOAL EM EDITH STEIN

REFLECTIONS ON THE PERSONAL BEING IN EDITH STEIN

Maria Celeste de Sousa1

RESUMO

As reflexões sobre o “ser pessoal” em Edith Stein denota a relevância


e atualidade deste pensamento em resposta à pergunta antropológica
sobre a essência humana, em contraposição à visão naturalista e
positivista atual. A filósofa alemã compreende que a transformação
social passa pela educação, pela formação humana, uma vez que
a primeira mudança deve ser interior e, como a complexidade
antropológica requer uma atenção filosófica, Edith em sua busca pela
verdade descreve fenomenologicamente as estruturas fundamentais
que qualificam o ser humano como um ser espiritual. Ela acredita
que o processo educativo no autoconhecimento do “ser pessoal”
possibilitará a construção de novas relações capazes de elevar a
sociedade para um nível crescente de humanização.
Palavras-chave: Ser Pessoal. Estrutura Humana. Singularidade.

ABSTRACT

The reflections on the “personal being” in Edith Stein denotes


the relevance and actuality of this thought in response to the
anthropological question about the human essence, in contrast to
the current naturalist and positivist view. The German philosopher
understands that social transformation involves education,
human formation, since the first change must be interior and,
as anthropological complexity requires philosophical attention,

1
Doutora em Filosofia. Mestra em Filosofia Prática. Especialista em Filosofia da
Educação. Graduada em Filosofia e em Teologia. E-mail: celestejosefina@gmail.com

Revista Filosófica São Boaventura, v. 15, n. 2, jul/dez. 2021 73


Edith in her search for truth describes phenomenologically the fundamental
structures that qualify the human being as a spiritual being. She believes that
the educational process in the self-knowledge of the “personal being” will
enable the construction of new relationships capable of elevating society to
a growing level of humanization.
Keywords: Personal Being. Human Structure. Uniqueness.

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INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea globalizada, tecnológica e científica avança


prodigiosamente na produção de artefatos e se organiza em uma grande vitrine
colorida e sofisticada atraindo os seus consumidores por meio das múltiplas redes
sociais, em um bombardeio de mensagens que vencem o espaço e o tempo, tornando
a vida humana minimizada e seduzida diante do espetáculo da “coisa”. Concomitante
a esta situação está o fenômeno da impessoalidade, do mecanicismo instrumental
que delineia um espaço objetal, de visível esquecimento do ser, e, por conseguinte, da
eclipsada “vida segundo o espírito”. Já não se sabe mais o que é a “pessoa” ou se ela
vive em “comunidade”, uma vez que o interesse está voltado para o deslumbramento
do “canto da sereia” que envolve o ser humano em todas as dimensões como comenta
Horkheimer e Adorno na obra Dialética do Esclarecimento.
Os seres humanos estão encantados pela sedução das descobertas científicas em
todas as dimensões do planeta terra e até mesmo do cosmos, em uma corrida frenética
pelo domínio das leis naturais e de controle do mundo, assim como o domínio das
leis econômicas, politicas e sociais e o controle do capital. A questão do poder é
evidente no ambiente cultural, o vencedor é sempre quem tem mais poder econômico
podendo comprar até as “consciências”, e reverter qualquer quadro existencial que
se torne um obstáculo à sua hegemonia.
E quando se refere à realidade pandêmica que assola todos os países a nível
mundial, o sofrimento humano também é avaliado a partir do nível econômico, de
tal modo que, os países mais ricos detêm 80% das vacinas, enquanto os países mais
pobres detêm apenas 0,3% das vacinas. O resultado é catastrófico, o número de óbitos
cresce assustadoramente, nunca a dimensão humana de ser-para-a-morte, como fala
Heidegger na obra Ser e Tempo foi manifestada como na atualidade. Este quadro
denota o crescente processo de despersonalização vigente em nossa realidade. Há
um “protesto contra o Espírito” diz Lima Vaz em sua Antropologia Filosófica, um
posicionamento claro e objetivo contra a cultura judaico-cristã e contra a tradição
racional filosófica que defende os transcendentais do Bem, do Belo, do Justo e do
Verdadeiro. Vozes que proclamam a morte de Deus e a morte do homem e noticiam
o reducionismo antropológico à dimensão biopsíquica, de tal forma que o “único
Deus do homem é o próprio homem”, como afirma Feuerbach, ou que o “homem
é uma paixão inútil” como afirma Jean-Paul Sartre.

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Este contexto desperta a reflexão sobre o “ser pessoal” em Edith Stein. A
filósofa aprofunda esta temática descortinando a verdade sobre o ser humano,
descrevendo fenomenologicamente a singularidade deste ser único, que é a pessoa.
Por conseguinte, este artigo objetiva desenvolver algumas reflexões em torno do “ser
pessoal” para evidenciar a singularidade inviolável do indivíduo em sua dignidade, a
partir do pensamento antropológico de Edith Stein. O texto está dividido em três
tópicos: 1) Em busca da verdade pessoal; 2) A pessoa como um ser espiritual; 3) A
singularidade do “ser pessoal”;

1 EM BUSCA DA VERDADE PESSOAL

A despersonalização presente na sociedade contemporânea e caracterizada


por Emmanuel Mounier em sua obra O Personalismo nos motiva a olhar com mais
profundidade as evidências presentes no cotidiano. Nossa sociedade é contraditória,
de um lado, sujeitos que vivem luxuosamente e esbanjam riquezas, e, de outro, sujeitos
que morrem de fome e vivem na miséria. É a partir deste contexto sofisticado e,
ao mesmo tempo, de descuido com a “vida humana”, que o pensamento de Edith
Stein se destaca como um grande desafio reflexivo sobre o “ser pessoal”. Esta filósofa
contemporânea se diferencia por sua busca pela verdade, e, particularmente, pelo
empenho em compreender o “fenômeno humano” em sua totalidade. Sua experiência
em ser judia, ateia, religiosa e santa denota o quanto esta filósofa penetrou no “sentido
da vida” em sua própria vivência pessoal e comunitária e comunicou por meio de
seus escritos a sua busca pela verdade.
Edith Stein judia descobriu no recinto familiar o cuidado materno para com os
filhos, ela comenta: “Minha mãe costumava dizer, que, para ela, cada filho era um
enigma singular” (STEIN, 2018, p.46) e descobriu nesta vivência primária da vida
comunitária, a formação da personalidade ética e moral, pela espiritualidade vivida
entre seus pares nos gestos de cuidado, de respeito e de carinho para com as pessoas,
sejam elas do mesmo laço sanguíneo, sejam elas de famílias diferentes, pois o mais
significativo era o laço de amizade e a comunhão intersubjetiva.
Segundo Feldman, “Edith cultivou, durante toda a sua vida, um amor irredutível
por sua mãe. Ninguém marcou tanto para ela quanto essa mulher forte, corajosa,
inteligente, que com o seu modo resoluto não se deixava intimidar diante de ninguém”
(FELDMAN, 2001, p. 11). Já na infância Edith demonstrou a sua extraordinária
inteligência e o seu desejo em desbravar o desconhecido, em busca do conhecimento.

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E foi a sua sede pela descoberta da verdade que a motivou ainda adolescente a estudar
línguas, literatura alemã, história e psicologia. “Edith queria se tornar professora.
Aos dezessete anos dera aulas particulares a algumas amigas, mostrando-se um
incontestável talento pedagógico”(Ibid, p. 16).
No entanto, foi a filosofia que a fez se elevar em sua percepção de mundo e do
significado da vida, depois que ela leu as Investigações Lógicas do filósofo Edmundo
Husserl. Esta leitura possibilitou o seu ingresso no Círculo fenomenológico de
Gotinga. Fieldman comenta:
Com Edmund Husserl, a filosofia abandonou o batido ceticismo
do mundo e aproximou-se novamente da possibilidade de uma
ordem objetiva do ser, na qual, na verdade, apenas os teólogos
acreditavam. Agora poder-se-ia novamente refletir sobre os
valores que nos impõem obrigações sobre as regras válidas não
meramente em caráter individual (Ibid, p. 18).

Após a conclusão de sua propedêutica filosófica, do estudo de história e de


línguas, a jovem estava preparada para dar aulas em uma escola, quando despontou a
primeira guerra mundial. ”Durante toda a guerra ela tinha uma postura tão exaltada
que parecia que ela mesma sozinha, tivesse de conduzir uma guerra contra alguma
coisa. Ela queria participar” (Ibid, p. 31). E foi ser enfermeira no hospital municipal
de sua cidade e daí para o hospital militar, como auxiliar da Cruz Vermelha.
Quando Edmund Husserl vai para Freiburg leva consigo sua aluna mais brilhante. E
ela se tornou sua assistente pessoal, cuidando dos escritos originais do mestre, organizando
as suas intuições filosóficas na construção de sua nova filosofia, a Fenomenologia, ciência
descritiva das essências, um novo método filosófico, que Husserl estava formulando a
partir de sua crítica ao cientificismo e ao psicologismo. Edith Stein bebeu nesta nova
fonte de saber, exercitando o que ela já tinha aprendido no Círculo Fenomenológico de
Gotinga, isto é, o rigor científico da busca pela verdade transcendental. Ela reitera: “aos
fenomenólogos não interessam os fenômenos no sentido usual, ou os meros apareceres,
mas justamente, as essencialidades objetivas últimas” (STEIN, 2019, p. 40-41).
O método fenomenológico despertou na jovem Edith o motivo para a
compreensão do humano. “Quem é o homem?” Pergunta sempre renovada em
qualquer época e lugar, por sua fundamental importância no significado da vida e
do mundo. E, atenta aos manuscritos do mestre em suas análises sobre a consciência,
ela percebe uma lacuna em seu pensamento. Fieldman comenta:

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Husserl era de opinião de que o mundo exterior só poderia ser
‘intersubjetivo’, ou seja, experimentado por vários indivíduos que
iriam pôr-se de acordo quanto às suas percepções. A essa vivência
ele chamou “empatia”, sem, contudo, definir mais precisamente
esse conceito (2014, p. 34).

Sua tese de doutorado versa, justamente sobre o problema da empatia (1916) em


que ela dialoga com Husserl sobre o problema da Intersubjetividade. A experiência
da dor humana ocasionada pelos horrores da primeira guerra mundial, quando ela se
tornou voluntariamente enfermeira na Cruz Vermelha, a fez reconhecer a necessidade
epocal de uma reflexão fenomenológica sobre o sentido da vida humana. Ela narra
em sua autobiografia:
Ver globalmente a interdependência dos acontecimentos da
História mundial despertou meu antigo amor pela História.
Uma participação apaixonada nos acontecimentos políticos do
presente constituintes da história que se escreve agora estava
fortemente associada a esse meu amor, esses dois aspectos
provinham certamente da minha consciência extrema da
responsabilidade social e do sentimento de solidariedade que
nos une não apenas ao conjunto da Humanidade, mas também
às comunidades mais restritas (STEIN 2018, p. 233-234).

O fenômeno da desumanização e da despersonalização proporcionados pela


guerra mundial faz com esta voz ecoe em defesa da “pessoa” e da “comunidade”.
Angela Ales Bello comenta: “se é fortemente sublinhada a importância da
comunidade como expressão de vida profunda na agremiação humana, que precede
a sociedade e o estado, não menor é a relevância atribuída à autonomia do indivíduo,
enquanto pessoa” (BELLO, 2014, p. 32).
Edith objetivava lecionar na Universidade de Gotinga, porém, grande foi a sua
surpresa e decepção quando o seu amigo e orientador de tese Edmund Husserl apesar
de reconhecer o seu talento e conhecimento comentou: “a cátedra não era para mulheres
e ponto final” (FELDMAN, 2001, p. 42). O pedido foi rejeitado em 1919 pela reitoria
da Universidade. E mesmo com a petição que ela fez ao ministério competente em
Berlin justificando que “pertencer ao sexo feminino não poderia se constituir um
impedimento para o avanço de uma carreira científica” (Ibid, p. 42), não obteve êxito.
A jovem doutora sentindo-se desolada pelo não reconhecimento de sua carreira
profissional, resolveu tornar-se professora particular em sua casa e, depois se engajou

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na formação para mulheres em uma ordem religiosa. E como Edmund Husserl
não conseguiu vê-la como colaboradora, mas somente como uma assistente, ela
o abandonou. Todo este contexto levantou dúvidas em Edith sobre a validade em
entregar sua vida à pesquisa científica. Feldman comenta: “O conflito de Edith se
iniciou quando ela deixou Husserl. Após isto ela desejava entregar-se totalmente à
verdade, mas não acreditava que a verdade da ciência que ela conhecia tão bem, fosse
a última verdade à qual se devesse entregar a vida” (2014, p. 50).
A jovem filósofa seguiu o seu caminho e buscou outra verdade que saciasse a sua
sede de conhecimento. Em 1921, ela leu a autobiografia de santa Tereza D’Ávila e
ficou impressionada com o sentido de uma “vida segundo o espírito”, com a verdade
que levou a santa mulher entregar sua vida a Deus. Feldman narra a sua recordação:
“Comecei a ler, fiquei imediatamente presa e não parei mais até o final. Fechei o
livro, disse para mim mesma: esta é a verdade” (Ibid, p. 48).
Uma nova inquietude a levou a se aproximar da comunidade cristã, a ler os textos
sagrados e a encontrar a sua verdade pessoal em Jesus Cristo, o caminho, a verdade
e a vida. Uma verdade que não se limita aos raciocínios lógicos, mas que transcende
o imanente e se eleva ao transcendente, ao Absoluto. Esta verdade lhe pareceu a
fundamentação antropológica adequada à sua prática pedagógica.

2 A PESSOA COMO UM SER ESPIRITUAL

A formação de pessoas permaneceu um ideal na vida de Edith Stein, e, para


o seu pleno desenvolvimento, ela inferiu que a educação necessitava de uma
concepção antropológica. Como as Ciências Humanas seguiam uma orientação
antropológica naturalista, a jovem filósofa percebeu sua impossibilidade em oferecer
uma fundamentação sobre o ser humano, tarefa própria da antropologia filosófica.
Rus comenta:
exigência de uma fundamentação antropológica que consiste
em tornar clara a visão do ser humano subjacente ao gesto
educativo, a insistência sobre a dimensão interior do ser humano,
pois a educação é aqui compreendida como formação integral
da pessoa com base em sua interioridade. Enfim, vem o lado
radicalmente orientado para o sobrenatural (2015, pp. 34-35).

Para Edith educar é refletir sobre “o que é o homem?” A interrogação sobre o


sentido da pessoa subjacente ao ato educativo infere a necessidade de educa-la a

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partir da sua interioridade, ajudando-a a perceber-se como um ser consciente e livre,
responsável por si e pelos seus atos. O autoconhecimento do eu possibilita a percepção
de uma existência finita, situada temporalmente e sujeita às vicissitudes do cotidiano.
Esta condição humana denota o desafio constante do eu em viver a cada instante aquilo
que lhe é dado de momento em momento, pelo ‘ser mesmo’ em estado permanente de
passagem da potência ao ato. Nesta experiência vital o eu convive com outras pessoas,
uma vez que a inserção em um todo faz parte da estrutura humana.
Edith compreende que a educação se efetiva em uma relação dialógica, e que a
formação humana é coletiva requerendo o intercâmbio das várias instituições com
quem a pessoa se relaciona. Como ser incompleto a pessoa deve encontrar em seu
interior a força necessária para ‘ser mais’ diante dos desafios da vida, e quem vai lhe
ajudar é a educação.
A Educação (Bildung) deve, portanto, propiciar a formação (Formung) do ser
humano em sua completude, em um processo que parte de dentro para fora. Educar
(E-ducere) afirma Rus, “é levar para fora de, fazer sair de; e é por isso que se trata
de falar exatamente de um gesto. Afinal, o que é um gesto senão um ‘movimento
irradiante’ a partir de um cerne interior. A educação constitui um gesto epifânico
pelo qual uma existência toma corpo na sua unicidade manifesta” (2015, pp 47-48).
Por conseguinte, Edith se viu desafiada a refletir o “ser pessoal” descrevendo suas
estruturas fundamentais e para esta tarefa, ela aplicou o método fenomenológico
evidenciando as vivências sensoriais, emotivas e espirituais do ser humano, que é,
em última instância, um ser espiritual. Stein afirma:
a antropologia que necessitamos como fundamento da
pedagogia haverá de ser uma antropologia filosófica e que estude,
em relação viva, com o conjunto da problemática filosófica a
estrutura do homem e sua inserção nas distintas modalidades
e territórios do ser aos quais pertence (STEIN, 2002, p. 29).

A antropologia filosófica tematizando a totalidade das experiências humanas


demonstra que a natureza humana participa simultaneamente do reino da natureza e
do reino do espírito. Sua tarefa é investigar as fronteiras entre as dimensões humanas e
os limites do ser, bem como descortinar os entrelaçamentos e influências que ocorrem
no interior da pessoa em sua busca por autoconhecimento. A filósofa alemã aplica a
epoqué à visão naturalista e positivista da antropologia para se dedicar à compreensão
da intencionalidade tomista, para melhor compreender a pessoa em sua totalidade.

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Sua problemática direcionava-se para a explicação da unidade entre natureza
e espírito, uma vez que a natureza tem uma fonte externa e o espírito tem uma
fonte interna.
na dupla constituição ôntica do indivíduo, não devemos
considerar, porém, um duplo princípio de individuação (um
extrínseco correspondente à natureza e um intrínseco relativo
ao espírito), uma vez que a ideia (eidos) da fenomenologia visa
apreender, primeiramente o momento essencial-individual,
portanto, intrínseco) (ALFIERI, 2014, p. 33).

Em sua análise fenomenológica sobre as experiências corporais e psíquicas, Edith visa


uma perspectiva filosófica em encontrar a essência espiritual, fundamento indispensável
para as humanidades, pois só ele permite compreender as diferenças individuais e também
o “ser pessoal”. Ela volta-se, então, para a análise da realidade vivida seguindo os passos
do mestre Husserl, para “retomar continuamente os fenômenos como origem, visando
descrevê-los segundo o modo como aparecem aqui e agora, ou como ambos costumavam
dizer, os fenômenos em carne e osso” (ALFIERI, 2014, p. 19)
A filósofa inicia a sua descrição do fenômeno humano pela dimensão corpórea.
Ela analisa primeiramente, as duas dimensões do corpo: o corpo físico (körper)
experiência oferecida pela percepção externa do sujeito, permitindo-o diferenciá-
lo dos outros objetos circundantes e percebê-lo como seu e o corpo próprio (Leib)
referente ao corpo orgânico e vivo alcançado por meio das sensações e que permite
ao sujeito a percepção do seu eu corporal. Ela afirma:
as sensações pertencem ao ‘eu’ porque elas não podem ser
suspensas ou colocada entre parênteses. Elas, portanto têm um
pé, por assim dizer, na realidade da consciência pura, a realidade
daquilo que não é extenso nessa discussão. Por outro lado, as
sensações são sempre dadas em algum lugar do corpo vivo, tal
como na cabeça para dados da visão ou na superfície do corpo
para dados táteis (STEIN, 2002, p. 20).

Pelo corpo vivo, a pessoa sente e percebe também a sua dimensão interior,
pela dinâmica emocional possibilitada pelas sensações em contato com o mundo
exterior. Nesta dimensão inicia o processo de autoconhecimento do “ser pessoal”,
pois o contato físico sensorial favorece a interrelação entre sujeito e mundo. Kusano
comenta: “o corpo vivo é o lugar das manifestações dos eventos da alma e dos eventos
psíquicos” (KUSANO, 2014, p. 72).

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Nas vivências do corpo vivo em sua dinâmica exterior-interior por meio dos
sentidos já se denota a atualização da estrutura psíquica, uma vez que o estado da
psique refere-se à qualidade e intensidade das ações em que a pessoa expressa as suas
emoções. A causalidade destas ações é motivacional, e, por conseguinte, interiorizada,
uma vez que a psique relaciona sensação e sentimento nas relações intersubjetivas,
pela atualização das potencialidades psíquicas entre sensação e emoção. O corpo vivo
é, portanto, o lugar das manifestações dos eventos da alma e dos eventos psíquicos.
É importante ainda considerar a tarefa das vivências do sentimento pelas quais o
sujeito está motivado a expressar algo. Kusano comenta: “Os sentimentos vivenciados
sempre liberam uma expressão e nunca são completos em si mesmos: eles terminam
em atos de vontade, em expressões corporais ou atos de reflexão” (Ibid, p. 73).
O eu sentimental vivencia com intensidade sua emoção, mas também confere ao
sujeito centelhas reflexivas sobre si mesmo. Isto denota núcleos diferentes de vivências,
mas relacionados entre si. Assim como o sentimento resulta em uma expressão, a
vontade se exterioriza em ação, pela qual o eu exercita a energia motivacional na
decisão da vontade. A vontade segundo Edith é mestre da alma e do corpo vivo e,
enquanto tal vivencia continuamente as tensões entre as forças psíquicas e a vontade
livre. Todas estas expressões só denotam a unidade psicofísica do eu.
Edith aprofunda a sua análise descritiva sobre o “ser pessoal” fazendo a diferença
entre alma e a psique. Segundo Ales Bello não é tão fácil estabelecer esta diferença
devido a ambiguidade do termo Alma (Seele). Ela explica a dificuldade afirmando: “É
o mesmo termo Seele que é usado em uma multiplicidade de significações, indicando
às vezes psique e às vezes, ambos psique e espírito; outras vezes Seele tem a conotação
de uma dimensão totalmente autônoma” (BELLO, 2007, p. 131).
Edith na obra Sobre o problema da Empatia faz referência à alma substancial e
aos atributos psíquicos como aspectos do fluxo das experiências vitais. Stein afirma:
“Entre as nossas experiências vividas há uma que está na base de todas, e que, junto
com seus atributos persistentes, se torna aparente em nossas experiências como a
portadora idêntica delas. Essa é a alma substancial” (STEIN, 2008, p. 40).
Para explicitar esta nova estrutura que se evidencia nas reflexões sobre o ser
humano, Edith aprofunda a natureza da psique diferenciando-a da consciência. A
experiência psíquica atualizada pelos desejos e motivações está voltada para o seu
objeto intencional relativo ao mundo exterior, enquanto que a consciência é expressiva
daquilo que se opõe a tudo o que existe exteriormente. Kusano comenta:

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a alma como uma dimensão una e fechada em si mesma e
aberta ao mundo dos objetos numa espécie de correlato do
meio ambiente que a circunda. Esta dupla natureza da psique —
voltada para o interior e para o exterior — não coloca em risco
a unidade indestrutível que lhe é conferida, pois mesmo diante
da multiplicidade de objetos que chegam, ela mostra-se capaz
de conservar o que está em seu íntimo interior. Stein identifica
esse interior como o centro, o núcleo, o lugar em que a alma cresce
e, ao mesmo tempo, onde ela encontra-se enraizada: trata-se de
um centro que configura o ser da alma individual e que molda o seu
caráter. Ela fala em ‘centro pessoal’ (2014, p. 77).

Edith avança em suas reflexões sobre o “ser pessoal” inferindo sobre o núcleo
central responsável pelo desenvolvimento psíquico e espiritual do indivíduo, mas que
permanece estático, sem desenvolvimento, denotando a sua especificidade espiritual.
Ela mesma afirma: “cada ser humano é uma pessoa espiritual” (STEIN,1994, p.
425). E justifica o termo espiritual dizendo que ele designa “o não espacial e o não
material; é aquele que possui uma interioridade em um sentido certamente não
espacial e que permanece em si, saindo de si mesmo” (Ibid, p. 360). Esta vivência
eleva o pensamento steiniano para a percepção da estrutura espiritual e a análise da
singularidade pessoal.

3 A SINGULARIDADE DO “SER PESSOAL”

O ser humano é complexo em suas estruturas existenciais, Edith Stein refletiu


sobre esta realidade durante toda a sua vida, desde a sua tese de doutorado sobre O
Problema da Empatia até a sua fase madura quando escreveu Ser Finito e Ser Eterno.
Ela quer compreender a singularidade, ou o núcleo central da personalidade, em seu
contínuo movimento atualizador que denota a liberdade intrínseca do “ser pessoal”, e
impede o seu simples condicionamento à situação. A liberdade humana é ontológica
e cada pessoa tem a possibilidade de crescer quando explora o seu potencial, toma
consciência de si mesma e assume uma posição diante da vida.
Para compreender a singularidade da pessoa era necessário descrever a
experiência de seu núcleo interior pelo ato espiritual, ou pelas operações além da
corporeidade e do psiquismo, para evidenciar a vida espiritual do indivíduo, sua
afetividade e o seu caráter como “ser pessoal” que se expressa por seus sentimentos,
suas escolhas e pelas posições que assume na vida.

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Na obra A estrutura da pessoa humana Edith assume uma postura fenomenológica
mais realista em sua pesquisa sobre o “ser pessoal”. Ela quer compreender melhor
as vivências do eu vivente, em suas interrogações existenciais sobre a origem e o
sentido da própria vida, e, por conseguinte, ela afasta-se das análises fenomenológicas
husserlianas do eu puro. A filósofa aproxima-se da explicação tomásica da estrutura
humana que ocorre desde dentro, da forma interna (anima). Segundo o pensamento
de Alfieri, esta forma interna designa um princípio de vida que assegura ao corpo,
sua organização da matéria, crescimento, junção das partes em “um todo unificado e
que faz o organismo apontar para algo que está além de si mesmo pela reprodução:
a espécie” (Ibid. p. 80).
No diálogo com Tomás de Aquino, Edith descobre outras dimensões do ser, a
partir, da abertura possibilitada pelo espírito, enquanto forma substancial que unifica
a totalidade estrutural humana. Em sua referência à alma, Edith declara:
ter alma quer dizer possuir um centro interior, no qual se percebe
o entrechoque de tudo o que vem de fora, e do qual procede
tudo que se manifesta na conduta do corpo como proveniente de
dentro. Trata-se de um ponto de intercâmbio, no qual impactam
os estímulos e da qual saem as respostas (STEIN, 2002, p. 55).

Como Edith pesquisa o que qualifica a singularidade do eu, ela percebe que,
pela alma, a pessoa é capaz de sair de si mesma e direcionar-se ao mundo e às outras
pessoas e, em seguida, voltar a si mesma. Esta capacidade é expressiva da presença
da alma espiritual que torna a pessoa um ser livre e distinto de todos os outros seres.
No entanto, ela infere ainda uma diferença entre a forma e o espírito, o que insere a
pergunta sobre a problemática da unidade da forma substancial ensinada por Tomás
de Aquino, na relação da alma racional com o corpo.
Para Gilson, Tomás admite uma única forma em cada ser. O homem
possui uma única forma: a alma que o constitui de maneira imediata a partir da
potencialidade indeterminada da matéria. Esta união substancial confirma os atos
do homem, como humanos. Não há necessidade de referir-se ao corpo, ou a alma,
mas ao composto: homem. Quanto à doutrina da diferença entre união substancial
e união acidental, o Aquenate explica que a alma é um ser incompleto, seu grau de
autonomia é imperfeito, só atinge a sua perfeição natural reunida ao corpo o que
lhe permite exercer suas atividades por meio dos órgãos corporais (cf. História da
Filosofia Cristã, p. 467 ss).

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Como forma substancial a alma racional ou intelecto humano constitui
o homem em seu ser próprio e confere-lhe a um tempo corporeidade, vida,
sensibilidade e racionalidade. Tomás ensina a individualização da alma pela matéria
quantitativamente determinada, pois se o homem fosse apenas a sua alma, não
haveria diferenças individuais e, por conseguinte, não haveria a singularidade do eu.
A alma transcende as formas corporais, pois ela não se submerge ao corpo, ela
domina a matéria e se sobreeleva à matéria, pela gradação gnosiológica. A alma
racional consegue transcender a matéria, por outro lado ela, não é capaz de fazê-lo
sem a ajuda da matéria, sua dependência do ser corporal. Há no homem uma só forma
substancial, uma só alma, que é princípio da vida, da sensibilidade e do pensamento.
Nestas três potências desenrola-se toda a vida humana.
Edith problematiza o princípio de individuação das coisas pela matéria, e no
sujeito pelo corpo (körper) inferindo uma contradição nesta definição tomásica da
alma humana. Segundo o pensamento de Kusano:

na medida em que ele vê no corpo material o princípio


individuador pressupõe que a espécie é o propriamente
formalizante e, portanto, algo geral. O problema subjacente aqui
é que São Tomás não atribui nada de geral à alma humana, ao
contrário disso, cada alma é particular e contra a tese averroísta
possui cada qual um entendimento que lhe é próprio (Ibid, p. 84).

Como fenomenóloga Edith assume uma posição diferente do autor angélico


compreendendo que a individuação da pessoa não pode ser efetivada pela matéria,
uma vez que o corpo vivo (Leib) já é animado pelo espírito (Geist), logo a individuação
se dá pela forma, isto é, pelo espírito e não pela matéria. Edith discorda que a
diversidade dos corpos materiais seja um mero processo quantitativo, ao contrário,
ela já estabelece a unidade entre corpo e alma, de tal forma que o corpo é tal, por
causa de sua alma individual, a pessoa é o que é na intrínseca relação entre corpo e
espírito. Edith reitera:

este organismo... quer dizer o corpo humano enquanto cabe


compreendê-lo como um organismo - não é de sua parte uma
substância independente, sendo que está por sua vez ordenada
e subordinada a uma unidade superior e ao princípio estrutural
desta última todo corporal é corporal e anímico de uma só vez
(STEIN, 2002, p. 120).

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Edith analisa os significados da palavra espírito. Ao qualificar a natureza da
alma como espiritual ela utiliza o termo spiritus, traduzido pelos gregos pelo termo
hálito caracterizando sua mobilidade, ligeireza e falta de fixação. Ela enfatiza a
transcendência da alma espiritual às realidades físicas, sendo capaz de sair de si
mesma, embora permanecendo corporalmente unida. A alma humana enquanto
spiritus difere dos espíritos puros ou dos espíritos incorpóreos, como anjo ou
demônios, pois ela é o centro do ser de uma natureza espiritual-corporal. Esta análise
possibilita a Edith elevar-se às realidades superiores.
Edith difere, por conseguinte, as manifestações subjetiva e objetiva da alma,
passando pelos espíritos finitos até chegar ao espírito absoluto, Deus. Quanto ao
espírito subjetivo, ela refere-se às atividades intelectuais e volitivas que implica em
liberdade e confronto com os estímulos externos. O spiritus usa o corpo para fins
espirituais. Kusano reitera: “É um corpo cheio de significados que nos revela o modo
de ser espiritual do homem” (Ibid, p. 89).
Quanto ao espírito objetivo, Stein refere-se ao sentido presente na natureza,
que nos confere certa espiritualidade. Toda a natureza está repleta de significados,
todavia nenhum ser natural é capaz de perceber-se, uma vez que ele está determinado
naturalmente. Diferente é a espiritualidade pessoal que pressupõe a liberdade para
determinar o ser e o agir humanos. Só o sujeito está apto a valorar, os valores são
objetos para sujeitos. Segundo Kusano: “Toda a obra da criação possui um sentido
previamente determinado, e o ser humano, portanto, é um ser livre para desvelar seu
sentido e deixar fluir força até ele, vistos que estas fontes de sentido são capazes de
renovar e incrementar a força do ser humano” (Ibid, p. 91).
Edith Stein relaciona o termo espírito (Geist), tanto às operações cognitivas e
valorativas, quanto à espiritualidade da alma. Quanto ao conhecimento intelectual
ela enfatiza o conhecimento concretizado pelas ciências, pela filosofia, e, de
certa forma, pela arte e pela religião e destaca, também, a capacidade humana
de valorar, ato que exige a interrelação entre cognição e liberdade nas relações
sociais. Alfieri esclarece:

em fenomenologia, ao empregar-se o termo valor tem-se em


vista não apenas identificar coisas de valor (a justiça, um quadro,
um emprego, etc.), mas principalmente mostrar que certos atos
de consciência não são neutros, mas envolvem atração ou repulsa
por seus objetos” (2014, p. 69).

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Por conseguinte, os atos valorativos são conscientes, uma vez que eles requerem
o conhecimento do sentido de algo, ou o seu valor. Logo, tanto os atos cognitivos,
quanto os atos valorativos são unidades de sentidos percebidos pela consciência. Entre
os atos valorativos, Edith destaca o ato do amor, cujo sentimento só virá se a pessoa
reconhecer o valor do amor e escolher alimentá-lo. O valor é o objeto intencional
do sentir e do sentimento, pois guiam tanto a adesão, quanto a repulsa expressões
de um ato cognitivo. Edith Stein afirma:
O espírito, que com sua vida intencional ordena o material
sensível em uma estrutura, e, ao fazer isso, vê em si um mundo de
objetos, chama-se razão ou intelecto. A percepção sensível é a sua
primeira e mais elementar atividade. Mas ele pode fazer ainda
mais: pode voltar-se para trás, refletir, e, portanto, compreender
o material sensível e os atos de sua própria vida. Pode, ainda
extrair a estrutura formal das coisas e dos atos da própria vida:
abstrair. “Pode”, quer dizer, é livre. O eu que conhece, o eu
“inteligente”, experimenta as motivações que provêm do mundo
dos objetos, colhe-as e as segue usando a livre vontade. Ele é
necessariamente, ao mesmo tempo, um eu que quer; da sua ação
espiritual voluntária aquilo que ele conhece. O espírito é razão
e vontade juntas; conhecimento e vontade estão em relação de
dependência recíproca (STEIN apud ALFIERI, 2014, p. 71).

O “ser pessoal” estrutura-se, portanto em uma unidade de corpo-psique-espírito


em uma totalidade espiritual. Edith explica: “vida espiritual, alimentada por fontes
de uma psique encarnada em um acontecer psíquico e vinculada, com isso, a um
corpo físico” (STEIN, 2005, p. 504). Esta estrutura espiritual é o específico da vida
humana. Por esta estrutura, o ser humano desenvolve as atividades como a intelecção,
a reflexão, a autoconosciência e a decisão. Peretti ressalta,
A esfera espiritual é uma esfera ativa do ser humano e, apesar
de ser ela própria limitada pelas contingências das dimensões
corpóreas, psíquicas e do mundo exterior com suas eventualidades
sociais e culturais, ela permite ao ser humano um posicionar-se
frente às estas realidades, o que exprime a liberdade. Os atos
espirituais livres são os que expressam propriamente o caráter
de humanidade (PERETTI, 2018, p. 69-70).

Por esta esfera ativa ficam delineadas as vivências do “ser pessoal”, como
especificamente qualitativas. Alfieri reitera: “se se deve dar vida a uma ciência dos
indivíduos espirituais, nesse caso a individualidade deve significar algo diferente

Revista Filosófica São Boaventura, v. 15, n. 2, jul/dez. 2021 87


do que é nas ciências da natureza: não simplesmente uma singularidade numérica,
mas um estado qualitativo próprio” (ALFIERI, 2014, p. 34). A singularidade
pessoal é meio para apreender a unicidade. Só pelas ciências do espírito é possível
apreender a essência interior da pessoa individual. No entanto, ainda falta mais
um passo a evidenciar.
Edith adere ao cristianismo aceitando a revelação divina e compreendendo,
conforme o pensamento de Alfieri “um dado revelado que permite chegar a uma
compreensão racional de aspectos que a filosofia-racional em sua essência não se
mostra capaz de extrair apenas com seus recursos próprios” (2014, p. 38). Ela afirma,
portanto, a existência de uma matéria-prima, originária e eterna e não sujeita ao
devir significando que “nada pode derivar do nada e que o que é não pode tornar-se
nada” (Ibid, p. 39).
Os seres finitos correspondem a graus diferentes de desenvolvimento da matéria-
prima criada pelo Fiat criador. O ser humano é um ser espiritual e, como tal, é um
espírito finito que se assemelha ao espírito infinito. Alfieri comenta que Edith afirma
esta dimensão profunda da pessoa,
o indivíduo, metafisicamente, tem um substrato, um fundamento.
(...) Forma vazia (Leerform) à qual devemos chegar com a nossa
razão é o último fundamento do nosso ser. (...) Forma vazia ou
o substrato determinado como estrutura formal-ontológica e
a outra é o preenchimento qualitativo como plenitude do ser”
(ALFIERI, 2014, p. 53).

Para Edith é pelo preenchimento qualitativo, que a pessoa possui uma identidade
própria e única que a singulariza diante das outras pessoas. Esta “forma vazia dos seres
criados é preenchida por uma série de formas universais qualitativamente diferentes,
que podemos indicar como gêneros do ser” (ALFIERI, 2014, p. 60).
Na obra Introdução à Filosofia Edith reflete sobre as vivências da singularidade
que preenchem a forma vazia. Ela afirma:
se, por um lado falamos de uma individualidade de todas as
vivências (graças à ação que se exercitam como estados reais
do desenvolvimento psíquico de todas as qualidades), por
outro notamos que nem todas têm uma peculiaridade pessoal;
portanto, não pode ser a mesma individualidade que aqui e
ali se constitui o momento distintivo” (STEIN, Introdução à
Filosofia, p. 333-334).

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A filósofa explica que a singularidade da pessoa reside no eu puro com seu fluxo
de vivências, em que cada pessoa é única, em que ela encontra o seu verdadeiro eu
distinto de todos os outros. Alfieri reitera: “O eu é desperto é condição indispensável
para vivenciar a singularidade, a qual – por sua natureza – não é ligada a nenhuma
dimensão espaçotemporal, uma vez que se refere somente à essência qualitativa das
nossas vivências” (2014, p 75).
A vivência individual é imediata, total e rápida. É o instante do preenchimento
do significado da existência sempre renovada e que vai se tornando a marca pessoal
da individualidade. Edith ainda esclarece que as inclinações sensíveis e as do intelecto
pertencem às condições externas do desenvolvimento do indivíduo, logo, somente as
vivências afetivas conferem a verdadeira singularidade do “ser pessoal”. Edith afirma:
“Nas experiências de tais vivências percebo uma ‘nota individual’ sinto que a origem
está em uma profundidade determinada e sinto também o grau de profundidade”
(STEIN, Introdução à Filosofia, p. 176).
Na constituição do núcleo Edith evidencia a prioridade ontológica do momento
qualitativo, que confere ao “ser pessoal” consistência e permanência de seu ser. Cada
indivíduo vive segundo este núcleo que o unifica qualitativamente, por conseguinte,
cada ato vivido é colorido pelo núcleo intangível. Edith afirma:
Esse ser não cessa de viver desde sua alma como um ‘fundamento
do mais além’, o ser dela resplandece na atualidade da vida que
brota de suas profundidades, sem diluir-se completamente
nela. O que é alma, a alma individual, não pode expressar-se
em qualidades definidas. O ser da alma, o mesmo que o núcleo
em que ela está enraizada é algo absolutamente individual,
indissolúvel e inominável (STEIN, 2005, p. 440-441).

Edith Stein define este centro como a alma da alma, isto é, alma e individualidade
estão interacionados, ou seja, a personalidade e o caráter individual na pessoa humana
estão vinculados. Pelo caráter individual, como esfera da personalidade, é possível
identificar esse núcleo como núcleo da personalidade ou eu pessoal, pois o indivíduo,
mediante um movimento desde o próprio núcleo até o mundo exterior, manifesta
a própria individualidade nas qualidades do seu caráter. Stein afirma: “a análise da
personalidade individual mostra que pertence precisamente a essência da pessoa.
Ela possui um núcleo individual que confere uma marca individual inclusive a todo
traço típico de seu caráter” (STEIN, 2005, p. 472).

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O núcleo pessoal evidencia a raiz de onde brotam a verdadeira liberdade e a
autenticidade da pessoa. Viver desde o núcleo é “viver desde a própria alma” (STEIN,
2018, p. 84). A pessoa que ainda não encontrou a si mesma vivencia experiências
“sem alma” e sua personalidade é irreconhecível, falta-lhe uma tonalidade própria,
falta-lhe a autenticidade. Sem identidade ela corre o risco de ser apenas um número
a mais, ou um fantoche nas mãos de outrem. Um dado importante a se reverenciar é
que a percepção de que uma comunidade só é possível por meio da individualidade
singular de seus membros.

CONCLUSÃO

Um olhar sobre a prática educativa naturalista e positivista voltada para o exercício


técnico visando à inclusão do indivíduo no mercado global, que constitui o espaço
do humano na sociedade contemporânea, confere a atualidade e importância do
pensamento de Edith Stein, sobre a minimização do espírito, quanto à insuficiência
da pedagogia em educar o homem por falta de uma compreensão sobre a antropologia
integral. Por conseguinte, a intuição da filósofa alemã de que a pessoa que ainda
não encontrou a si mesma tem comportamentos “sem alma”, e sua personalidade é
irreconhecível, porque lhe falta uma tonalidade própria, pela ausência da autenticidade,
e que uma pessoa sem identidade corre o risco de ser apenas um número a mais, ou
um fantoche nas mãos de outrem, fenômenos tão correntes na sociedade massificadora
contemporânea, em que o vazio existencial cresce em detrimento do sentido da vida.
A filósofa alemã oferece aos educadores os fundamentos antropológicos para
uma educação libertadora, que possibilite o desenvolvimento das potencialidades
do educando evidenciando o seu “ser pessoal”. Compreender a complexidade do
fenômeno humano e descrevê-la por meio das vivências cotidianas a fez chegar ao
núcleo da personalidade, que só se justifica por meio da Revelação do Absoluto, que
gratuitamente doa o seu espírito tornando o ser humano um espírito finito dotado de
uma estrutura espiritual. A compreensão desta estrutura espiritual demonstrou os três
estratos expressivos do ser humano: o corpo físico e vivenciado, a psique e o espírito.
A experiência sensorial proporcionada pelo corpo físico (Korper) é animada
por uma força vital (Leib) que potencializa o organismo em uma totalidade de
significados. Pela corporeidade, a pessoa percepciona as relações que estabelece
com o meio ambiente exterior pelas sensações e simultaneamente a atualização do
mundo interior psíquico pelas percepções.

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As experiências emotivas e psíquicas são, portanto, motivadas e visam uma
finalidade, sendo a passagem entre emoção e sentimento imediata, atualizando
a atividade espiritual na pessoa, diferenciando-a dos outros seres por meio do
sentimento e do conhecimento, por sua vida interior.
A experiência espiritual denota as operações da consciência, que se apresentam
como operações cognitivas e operações de adesão valorativa. O ato espiritual envolve
simultaneamente inteligência e liberdade, o que exige escolha pessoal, uma vez que a
dimensão espiritual se apoia na motivação, ou na liberdade. A pessoa livre é senhora
de seus atos, responsável por si e por suas vontades, ou seja, pela formação de sua
singularidade. O seu núcleo pessoal (Kern) é determinante para a configuração de
todas as experiências vividas.
A singularidade da pessoa reside, portanto, no eu puro, com seu fluxo de vivências,
em que ela encontra o seu verdadeiro “eu” distinto de todos os outros, pela essência
qualitativa das suas escolhas. A vivência individual é imediata, total e rápida. É o
instante do preenchimento do significado da existência sempre renovada e que vai
se tornando a marca pessoal da individualidade. Enquanto as inclinações sensíveis
e intelectuais pertencem às condições externas do desenvolvimento do indivíduo, as
vivências afetivas conferem a verdadeira singularidade do “ser pessoal”, pois nelas se
efetiva a ‘nota individual’ em sua profundidade. Nesta constituição do núcleo Edith
evidencia a prioridade ontológica do momento qualitativo, que confere ao “ser pessoal”
consistência e permanência de seu ser. Cada indivíduo vive segundo este núcleo que
o unifica qualitativamente e colore todos os seus atos, Edith o define como alma da
alma, uma vez que alma e individualidade estão correlacionados.
Neste núcleo a personalidade e o caráter individual estão vinculados. Pelo caráter
individual, esfera da personalidade é possível identificar esse núcleo como essência
da personalidade, já que o indivíduo manifesta mediante o movimento desde o
próprio núcleo até o mundo exterior, a própria individualidade nas qualidades do seu
caráter, a sua ‘marca individual’. O núcleo pessoal evidencia a raiz de onde brotam a
verdadeira liberdade e a autenticidade da pessoa. Viver desde o núcleo é “viver desde
a própria alma” (STEIN, 2018, p. 84).
Estas descrições das vivências sensoriais, emotivas e espirituais que estruturam o
ser humano possibilitam aos educadores a retomada sobre a verdade antropológica,
a fim de suscitar novas perspectivas em relação a “vida segundo o espírito”, que
poderá preencher o vazio niilista da indiferença, da intolerância, da violência, do

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individualismo e fortalecer os laços espirituais da empatia, da amizade, da cidadania,
da economia solidária, do reconhecimento da alteridade, pois a vida comunitária só
é possível por meio da individualidade singular de seus membros, tarefa própria do
processo educativo que se desenvolve ao longo do processo vital.

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