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Aula Plinio

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INTERPRETAÇÕES SOBRE O

BRASIL CONTEMPORÂNEO
Plínio de Arruda Sampaio JR

Texto 1 - Globalização e Reversão Neocolonial: O Impasse


Brasileiro
Texto 2 - Notas sobre o momento histórico e os desafios
da esquerda

Texto 3 - A exaustão da Nova República


Globalização e Reversão Neocolonial: O Impasse Brasileiro

Plinio de Arruda Sampaio Jr.1

I. Introdução

Há pelo menos duas décadas, vem sendo inculcada à sociedade latino-


americana a idéia de que as economias da região estão condenadas a curvar-
se ante a inelutabilidade da globalização dos negócios e a ajustar-se o mais
rapidamente possível às exigências do capital internacional e das potências
hegemônicas. Dentro desta concepção, o raio de manobra das economias da
região está limitado à definição do ritmo e da intensidade de assimilação das
transformações irradiadas pelo capitalismo central. Com raríssimas
exceções, a ausência de propostas que abram novos horizontes para os
povos latino-americanos levou a luta política a ficar polarizada entre as
facções “modernizadoras” e “conservadoras” das burguesias latino-
americanas.
Os grupos econômicos e sociais mais estreitamente articulados às
novas tendências do capitalismo internacional lutam pela “globalização já”.
Ansiosos por aproveitar as oportunidades de negócios que surgem da nova
conjuntura mercantil, não querem perder tempo. Contando com amplo apoio
da comunidade internacional, colocam as exigências do “mercado” acima de
tudo, relegando os custos econômicos, sociais e culturais do ajuste às
exigências da globalização dos negócios a um distante segundo plano. Os

1. Professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – IE/UNICAMP. Novembro de 2004.


2

segmentos que não dispõem de condição de sobreviver à concorrência


externa não têm pressa. Exigem tempo para que possam se adaptar aos
novos ventos do capitalismo. Batem-se por uma modernização lenta, segura
e gradual.
Os arautos da modernização radical encarnam os sonhos da burguesia
dependente de rápido acesso ao “primeiro mundo”; os defensores da
modernização responsável expressam seu espírito de sobrevivência. Os
primeiros funcionam como acelerador do desenvolvimento induzido; os
segundos, como seu freio. Sem os “globalizados”, a economia periférica
estagna, pois ela é impulsionada pelos dinamismos que se propagam das
economias centrais. Sem os “jurássicos”, ela perde todo poder de barganha
em relação ao grande capital internacional, pois fica sem condições de
controlar seus “centros internos de decisão”.
Na prática, as duas facções devem ser vistas como os braços direito e
esquerdo do desenvolvimento dependente. Os “ultra-modernistas” sabem
que não podem eliminar o atraso sem levar ao paroxismo a instabilidade
econômica e social; e os “pseudo-conservadores”, não desconhecem que,
dentro da dependência, não é possível resistir para sempre as imposições
que vêm de fora para dentro como um furacão avassalador. Apesar de se
situarem em pólos opostos, ambos concordam em relação a uma questão
fundamental: a combinação do moderno e do atraso constitui o único meio
das regiões periféricas participarem dos ritmos desiguais do
desenvolvimento capitalista. Por isso, não podem romper com as estruturas
externas e internas responsáveis pela reprodução do capitalismo dependente.
Não é de estranhar a incapacidade das classes dominantes contemplar
nas suas políticas os interesses dos segmentos marginalizados do progresso
3

econômico. Os que vociferam à favor das reformas liberais revelam-se


empedernidos conservadores quando se trata de enfrentar as reformas
agrária e urbana. Os que se proclamam guardiões da identidade nacional
descartam qualquer mudança que possa ameaçar seu acesso aos padrões de
vida e consumo das economias centrais. As alternativas fora dos parâmetros
da modernização conservadora são estigmatizadas e imediatamente
descartadas sob a alegação de que provocariam o caos econômico, social e
político. Assim, as classes dominantes latino-americanas construíram a sua
própria versão do “fim da história”.
O dilema globalização ou dilúvio não passa, no entanto, de um
sofisma. Primeiro, porque nada garante que a subordinação às tendências da
divisão internacional do trabalho livre as economias periféricas de processos
caóticos de desorganização produtiva e crise social. O impacto da
globalização depende das características específicas do desenvolvimento
desigual do capitalismo e da natureza de seus efeitos sobre as estruturas de
cada formação social. Segundo, porque o reconhecimento da
transnacionalização do capitalismo como realidade histórica, cuja existência
extrapola o controle de nações individuais, não significa que as sociedades
da periferia estejam condenadas a ajustar-se passivamente às suas
exigências. O Estado nacional pode selecionar as tendências que pretende
absorver e bloquear aquelas que considera nocivas para seu
desenvolvimento.
O objetivo deste artigo é mostrar que a globalização dos negócios
tende a provocar um processo de reversão neocolonial nos países que fazem
parte da periferia do sistema capitalista mundial e, portanto, que é
absolutamente imprescindível definir uma estratégia nacional para enfrentar
4

os efeitos desagregadores da globalização sobre as economias latino-


americanas. A exposição será desdobrada em três partes. Primeiro,
mostraremos a natureza da crise contemporânea do Estado nacional,
relacionando-a com as novas características do desenvolvimento capitalista.
Examinaremos, então, os traços dominantes da resposta das economias
centrais ao novo contexto histórico, buscando identificar a lógica do novo
imperialismo. Em seguida, esboçaremos uma explicação para a
singularidade do novo padrão de dependência na América Latina, apontando
seus efeitos devastadores sobre o Estado nacional. Por fim, apresentaremos
uma explicação mais detalhada sobre a particularidade da crise brasileira e
sobre os dilemas em que se encontra a sociedade brasileira.

II. Globalização , crise do Estado nacional e imperialismo

A partir de meados da década de setenta, o aprofundamento da


transnacionalização do capitalismo desencadeou uma série de conflitos
econômicos e políticos que começaram a minar as bases do Estado nacional.
No campo econômico, o caráter predatório da concorrência e a crescente
mobilidade dos capitais comprometeram a capacidade da sociedade nacional
preservar o controle sobre os centros internos de decisão e reproduzir os
mecanismos de solidariedade orgânica entre as classes sociais. No plano
político, a acirrada disputa pelo monopólio das novas tecnologias e pelo
controle dos mercados mundiais acirraram perigosamente as rivalidades
entre os Estados nacionais, provocando uma encarniçada concorrência pela
atração de investimentos produtivos e pela criação de empregos industriais.
5

Sem questionar os processos responsáveis pela transnacionalização do


capitalismo, os países centrais tem procurado amenizar suas conseqüências
mais nefastas, lançando mão de políticas neomercantilistas que acabam
intensificando ainda mais o estado de guerra econômica. O objetivo último é
transformar o espaço econômico ao qual se vinculam em base estratégica da
concorrência intercapitalista em escala mundial. Daí, a corrida desenfreada
para aumentar a estabilidade da moeda, a produtividade da força de trabalho,
a qualidade da infra-estrutura econômica. Paralelamente, tentam
redimensionar a escala de sua fronteira econômica e a importância relativa
de seus mercados internos, promovendo diferentes estratégias de integração
regional e criando diversos mecanismos supranacionais de política
econômica. É esta a lógica da formação de grandes blocos econômicos
como a Alca, articulada pelos Estados Unidos, e a União Européia, que se
organiza em torno da Alemanha.
Se as economias capitalistas mais desenvolvidas ainda possuem
alguma capacidade de atenuar os efeitos mais destrutivos da globalização
dos negócios (que elas próprias impulsionam), reforçando a escala de suas
economias e de suas estruturas estatais, as tendências que levam ao
enfraquecimento dos Estados nacionais manifestam-se com força redobrada
nas regiões periféricas.
O problema central é que o novo contexto histórico reduz
dramaticamente os graus de liberdade das burguesias das economias
periféricas diante do capital internacional. Como as empresas transnacionais
passaram a operar com tecnologias concebidas para mercados
supranacionais, com renda média muito elevada, a natureza de seus vínculos
com as economias dependentes tornou-se muito mais fluida. A situação é
6

bem diferente daquela que ocorrera na fase final de difusão da Segunda


Revolução Industrial. No ciclo expansivo do pós-guerra, a estratégia de
conquista dos mercados internos, mediante a transferência de unidades
produtivas, levava o capital internacional a exigir espaços econômicos
nacionais relativamente bem delimitados. Tratava-se de evitar que unidades
produtivas deslocadas para a periferia sofressem a concorrência de produtos
importados. É este contexto histórico que permitiu que, até o início dos anos
oitenta, as economias mais avançadas da região apresentassem uma certa
convergência tecnológica com as economias centrais. Na era da
mundialização do capital, estamos assistindo a um fenômeno bem diferente.
O objetivo das grandes empresas transnacionais é diluir a economia
dependente no mercado global para que possam explorar as potencialidades
de negócios da periferia sem sacrificar sua mobilidade espacial. Por esse
motivo, os gigantes da economia mundial não querem que as fronteiras
nacionais continuem rigidamente delimitadas. O interesse no “Terceiro
Mundo” se resume basicamente aos seguintes objetivos: (a) ter livre acesso
aos mercados, (não importando se eles serão atendidos com produtos
importados ou com produção local - a decisão depende de circunstâncias
ditadas pela estratégia de concorrência de cada empresa); (b) ter o máximo
de flexibilidade para aproveitar as potencialidades da região como
plataformas de exportações que requerem mão-de-obra barata; (c)
açambarcar das mãos do capital nacional, público ou privado, os segmentos
da economia que possam representar bom negócio.
A adversidade do contexto histórico enfrentado pelos países latino-
americanos foi agravada pelo efeito extremamente negativo do colapso da
União Soviética sobre o poder de barganha dos países periféricos no sistema
7

capitalista. Sem medo do fantasma comunista, as nações hegemônicas


sentiram-se livres para desrespeitar os princípios mais elementares da
autodeterminação dos povos. Sem sustentação externa e sem base material
interna para sustentar o seu poder de classe, as burguesias dependentes estão
se convertendo em burguesias que vivem de intermediar negócios de
compra e venda de mercadorias no mercado internacional, de patrimônio
público e privado e de ativos financeiros. Isso explica a desfaçatez com que
grandes potências, direta ou indiretamente, pressionam as economias
dependentes a se adaptar incondicionalmente às suas exigências; bem como
a docilidade com que tais pressões são recebidas pelos mandatários-títeres
de plantão.
Em suma, na ordem internacional emergente, o desenvolvimento
nacional não está no horizonte de possibilidades dos países periféricos. A
comunidade internacional reduziu tudo que estiver fora dos megablocos
regionais a cobiçados mercados emergentes ou reles zonas de pobreza. Na
nova divisão internacional do trabalho, cabem às economias periféricas
fundamentalmente três papéis: (a) franquear seu espaço econômico à
penetração das grandes empresas transnacionais; (b) coibir as correntes
migratórias que possam causar instabilidade nos países centrais; e (c) aceitar
a triste e paradoxal função de pulmão e lixo da civilização ocidental.

III. Nova dependência e os riscos de reversão neocolonial

Expostas à fúria da globalização e ao arbítrio dos países ricos, as


sociedades latino-americanas ficaram sujeitas a mecanismos draconianos de
8

neocolonização. Três processos são suficientes para caracterizar a


perversidade da “nova dependência”.
Primeiro, a difusão desigual do progresso técnico aumentou a
defasagem tecnológica das economias atrasadas. A incapacidade estrutural
de suportar a concorrência internacional deixou a periferia extremamente
vulnerável a processos catastróficos de desestruturação produtiva. Encontra-
se aí, em última instância, a origem das forças disruptivas que, desde os
anos oitenta, comprometeram a continuidade dos processos de
industrialização e a estabilidade dos sistemas monetários. Nesse contexto, os
investimentos externos transformaram-se em verdadeiros “enclaves” que,
desarticulados do conjunto da economia, na melhor das hipóteses, são
capazes de gerar algumas “ilhas” de prosperidade. Enganam-se, portanto, os
que depositam tanta esperança no poder do capital internacional como mola
mestre do crescimento.
Segundo, a transnacionalização do capitalismo reforçou a
dependência financeira, o que se evidencia pelo caráter estrutural dos
desequilíbrios no balanço de pagamentos. Depois da conclusão do Plano
Brady, no início dos anos noventa, quando os bancos privados finalmente
digeriram a crise de sobreendividamento da década anterior, as economias
latino-americanas foram pressionadas a adotar políticas de estabilização
monetária e programas de liberalização destinados a impulsionar a inserção
especializada das economias periféricas no sistema capitalista mundial e a
fomentar uma nova rodada de modernização dos padrões de consumo. À
mercê das vicissitudes das finanças internacionais, as economias da região
vêem-se forçadas ora a gerar megasuperávits comercias, destinados a pagar
o serviço da dívida externa, ora a produzir megadéficits comerciais, a fim de
9

viabilizar a compra maciça de produtos estrangeiros e a absorção


indiscriminada de empréstimos internacionais. Nessas circunstâncias, o
mercado interno deixa de ser o centro dinâmico da economia e a
instabilidade econômica torna-se uma fonte permanente de crise social e
política.
Por fim, as transformações no padrão de desenvolvimento capitalista
intensificaram a dependência cultural, comprometendo a premissa elementar
de um Estado nacional: sua existência como entidade dotada de “vontade
política” própria. De um lado, os progressos tecnológicos nas áreas de
comunicações e transportes exacerbaram o mimetismo cultural, levando ao
paroxismo a propensão das classes médias e altas de copiar os padrões de
consumo e comportamento difundidos do centro hegemônico. Os efeitos
perversos desta forma de incorporação de progresso técnico sobre as
sociedades periféricas são conhecidos: maior concentração de renda e
crescente exclusão social. Quanto maior o hiato entre desenvolvidos e
subdesenvolvidos tanto maior a desigualdade social necessária. De outro
lado, a sacralização do “mercado” como princípio organizador da vida social
deixou as regiões periféricas totalmente indefesas diante do grande capital
internacional. Negando a “vontade política” como meio de construção da
Nação, elas abriram mão de seu principal instrumento de ação coletiva: o
Estado nacional.
A natureza anti-nacional e anti-social do modelo econômico
neoliberal fica patente no momento de pagar a dívida externa. O dilema se
situa entre cumprir os compromissos assumidos com a comunidade
econômica internacional e satisfazer as demandas das classes abastadas de
rápido acesso aos bens de consumo das economias centrais ou, pelo
10

contrário, defender os interesses nacionais e atender às necessidades das


classes populares. Sem controle sobre seu destino, a vida de sua população
passou a oscilar de maneira ciclotímica entre a euforia e a impotência,
conforme a direção dos fluxos de capital externo.
A realidade extraordinariamente adversa do novo marco histórico
logo se fez sentir. Sujeita à lógica ultra-especulativa dos capitais
internacionais, as economias latino-americanas ficaram condenadas a
intercalar fases de estabilidade inflacionária e baixo crescimento, quando,
apostando na compra de ativos baratos, há entrada maciça de capitais
externos; e fases de crises cambiais agudas e recessão intensa, quando, em
típica operação de realização de lucros, os capitais internacionais saem em
debandada da região. Contraditando a crença de que a adesão ao receituário
neoliberal permitiria à América Latina aumentar a competitividade de sua
economia e aproximá-la do Primeiro Mundo, o balanço de quase duas
décadas de ajuste às determinações da comunidade internacional mostra
uma realidade desoladora, marcada pela ampliação do atraso econômico e
acelerada deterioração das condições de vida da população. Nesse contexto,
não deve causar surpresa o avanço descontrolado da barbárie, ainda que de
maneira desigual, em todos os recantos do continente.

IV. Brasil: o impasse da formação

No Brasil, a exaustão do processo de substituição de importações


iniciou um período de estagnação da renda per capita, obsolescência das
forças produtivas, enfraquecimento da estrutura de capital das empresas
nacionais e desmantelamento do Estado desenvolvimentista. Interrompia-se,
11

assim, um longo ciclo de expansão das forças produtivas durante o qual a


economia brasileira havia ampliado seu mercado interno, internalizado as
estruturas fundamentais da Segunda Revolução Industrial e cristalizado as
bases do Estado nacional burguês.
O impacto das novas tendências do sistema capitalista mundial sobre
a economia nacional foi sobredeterminado pela submissão da política
econômica às pressões dos credores internacionais para reciclar a dívida
externa, bem como pelo apoio incondicional oferecido aos movimentos do
grande capital de fuga para a liquidez e de busca de mercados externos -
expedientes utilizados para mitigar as incertezas provocadas pela exaustão
do padrão de acumulação. São tais processos os principais responsáveis pela
crise do padrão monetário brasileiro, cujo sintoma mais conspícuo foi a
dificuldade de debelar a tendência à aceleração inflacionária ao longo de
toda a década de oitenta.
Até o início da década de noventa, a subordinação da política
econômica ao esquema convencional de reciclagem da dívida externa
transformou a transferência de recursos reais ao exterior no principal eixo de
articulação da intervenção do Estado na economia.2 A fim de evitar uma
violenta crise desvalorização de ativos produtivos, as autoridades
econômicas sustentaram artificialmente a rentabilidade corrente das
empresas e o valor contábil de seus patrimônios, adotando medidas para
impedir uma recessão aberta e prolongada e resistindo às pressões para a
liberalização da economias.

2 .O padrão de reciclagem da dívida externa foi armado para viabilizar a gradativa diminuição da carteira dos bancos privados nos países devedores, a diversificação do risco de
suas aplicações e o fortalecimento de sua base de capital. A propósito ver, Devlin, R., La deuda externa vs. el desarrollo económico: America Latina en la encrucijada", Santiago,
Estudios CIEPLAN 17:69-100, septiembre, 1985;.Sampaio Jr., P.S.A., “Auge e declínio da estratégia cooperativa de reciclagem da dívida externa”, São Paulo, Novos Estudos
Cebrap, No. 25, 1989.
12

Premido pela urgência de administrar a extrema instabilidade da


economia, o Estado brasileiro não articulou um plano de reorganização
produtiva. A renegociação da dívida externa não significou a superação do
estrangulamento cambial e o ajuste privado não teve como contrapartida um
aumento da competitividade dinâmica da economia brasileira.3 Por isso,
ainda que a estratégia de protelar o enfrentamento dos problemas colocados
pelo novo contexto internacional tenha evitado a hiperinflação aberta, ela só
agravou a obsoletização do parque produtivo. Mais do que isso. Ao
preservar os vínculos financeiros dos credores externos com os mutuários
internos, particularmente com as unidades de gasto do setor público, a
reciclagem da dívida externa reforçou de maneira extraordinária a influência
da comunidade financeira internacional sobre os rumos da política
econômica brasileira. Ao chancelar o ajuste privado em direção a ativos
financeiros e às exportações, a política econômica provocou o encilhamento
financeiro do setor público.
No final dos anos oitenta, a falta de perspectiva em relação à
retomada do financiamento externo, o crescimento acelerado da dívida
pública e o progressivo encurtamento do perfil de vencimento dos títulos
públicos evidenciavam que a crise dos padrões de financiamento externo e

3 . A hipótese aqui desenvolvida é a de que foi a ação do Estado que evitou que a fuga generalizada para a liquidez provocasse uma violenta crise de liquidação de ativos
produtivos. Na primeira metade dos anos oitenta, tal estratégia se traduziu em medidas que procuravam compatibilizar a geração de megasuperávits comerciais com a preservação
de um patamar de demanda efetiva suficiente para evitar crises abertas de liquidação. Para tanto, foram tomadas medidas destinadas a contrabalançar os efeitos da contração do
mercado interno sobre a contabilidade das empresas, tais como estímulos às exportações, estatização da dívida externa e defesa artificial da rentabilidade corrente do grande
capital industrial. Na segunda metade da década, o crescente risco de que os grandes detentores de riqueza financeira fugissem concentradamente para ativos reais e moeda
estrangeira colocou a política econômica integralmente a reboque dos movimentos especulativos do mercado financeiro e dos grandes grupos exportadores. Conciliar os
compromissos assumidos com os credores internacionais com a preservação da confiança na moeda nacional tornaram-se, assim, os dois principais desafios das autoridades
econômicas. A impossibilidade de alcançar simultaneamente essas duas metas levou à adoção de um padrão de gestão econômica que combinava a suspensão temporária dos
pagamentos aos credores internacionais com a administração ad hoc da tendência à aceleração inflacionaria. Sem raio de manobra para arbitrar o nível das taxas de juros e as
condições de liquidez dos ativos financeiros, a política antiinflacionária ganhou um caráter paradoxal, assumindo a forma ora de uma estratégia de "choques" - destinados a
controlar diretamente os preços e desindexar a economias, quando o processo inflacionário ameaçava fugir completamente de qualquer controle -, ora de uma política de
"coordenação" dos aumentos de preços e reindexação da economia, quando, após a liberação dos preços, a aceleração inflacionaria voltava a ganhar ímpeto. Cardoso de Mello,
J.M. e Belluzzo, L.G.M. (org.), FMI x Brasil - A armadilha da recessão, São Paulo, Gazeta Mercantil, 1984. Ler também, Sampaio Jr., P.S.A., Padrão de reciclagem da dívida
externa e política econômica no Brasil em 1983 e 1984, Campinas, mimeo, Tese de mestrado, 1988, capítulos 3 a 7; CEBRAP/FUNDAP, "Ajustamento e estabilização no Brasil
nos anos oitenta", São Paulo, mimeo, Relatório de Pesquisa FUNDAP, 1990.
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interno havia atingido o clímax. Impotente diante dos grandes detentores de


riqueza financeira e dependente dos setores geradores de divisas
internacionais, o Estado brasileiro ficou sem instrumentos para fazer política
econômica. O agravamento da incerteza estrutural e a extrema fragilidade
financeira do setor público diminuíam dramaticamente o raio de manobra do
Estado para continuar resistindo ao impacto desagregador do novo padrão
de concorrência intercapitalista sobre o parque industrial brasileiro. É a
partir desse pano de fundo que devemos entender a inflexão na política
econômica do início dos anos noventa, quando, entorpecido pelo vendaval
neoliberal que assolava o mundo, o Brasil passou a sancionar
sistematicamente as pressões liberalizantes da comunidade financeira
internacional.
Percebendo o perigo que significava continuar insistindo em uma
política de indefinida resistência ao ajuste neoliberal - perigo representado
pela crescente presença das forças populares na vida política nacional -, as
classes dominantes brasileiras unificaram-se monoliticamente em torno de
um objetivo comum: a promoção de uma nova rodada de modernização dos
padrões de consumo.4 Capitulando às recomendações do Consenso de
Washington, a política econômica passou a articular-se, desde então em
função da necessidade "ajustar" o Brasil às exigências da mundialização do
capital.
A liberalização da economia fez com que a industrialização pesada,
há tempo agonizante, entrasse em fase terminal, desencadeando um processo
de desestruturação do aparelho produtivo que compromete os elos

4 . Simboliza de maneira emblemática a nova escala de prioridades das classes dominantes brasileiras a consigna do candidato Collor de Mello: "o carro brasileiro é um carroça".
Florestan Fernandes fez a crônica do processo político que desembocou na liberalização da economia em artigos publicados na imprensa, sobretudo na Folha de São de Paulo.
Alguns desses artigos foram reunidos nos livros Democracia e Desenvolvimento, São Paulo, Hucitec, 1994; e Em busca do Socialismo, São Paulo, Xamã, 1995
14

estratégicos que permitiam à economia brasileira funcionar como um todo


orgânico. Não são difíceis de imaginar os efeitos desagregadores que as
tendências em curso provocam em uma sociedade como a brasileira: com
um território de dimensões continentais, imenso contingente populacional,
fortes heterogeneidades regionais e sociais, grau de urbanização equivalente
ao de países industrializados, parque industrial altamente diversificado e
vasto aparelho estatal.
A crise do padrão de industrialização pesada desarticulou um dos
principais mecanismos de legitimação ideológica do status quo junto às
classes operárias e às camadas mais desfavorecidas da população: a ilusão
de classificação social provocada pela elevada mobilidade social verificada
ao longo do ciclo de substituição de importações. A falta de dinamismo do
novo modelo econômico e sua elevada instabilidade diminuíram
significativamente o multiplicador de emprego dos setores mais produtivos
da economia. A liberalização da economia e os efeitos destrutivos da nova
onda tecnológica sobre as estruturas da Segunda Revolução Industrial
elevaram dramaticamente a heterogeneidade estrutural da base produtiva,
bem como a importância relativa do desemprego tecnológico provocado
pela modernização das forças produtivas e pela concorrência de produtos
importados. A década de noventa marcou, assim, uma inflexão no lento e
tortuoso processo de formação de um mercado de trabalho relativamente
homogêneo.5
Além de agravar a crise social no campo e na cidade, a ruptura das
bases materiais que sustentavam as correntes migratórias de força de

5 . Tal processo se consubstanciava em um padrão de absorção de mão-de-obra, de acordo com o qual os trabalhadores expulsos do campo tendiam a ser empregados em
atividades de baixa produtividade nas cidades à espera de sua eventual absorção nas atividades industriais de elevada produtividade. A propósito ver, Rodríguez, O. “Agricultura,
subempleo e distribución del ingresso”, São Paulo, mimeo Cebrap, 1983.
15

trabalho começou a fomentar perigosas rivalidades inter-regionais e


processos de segregação social.6 Por isso, a exaustão da industrialização
pesada minou a solidez material e social do pacto federativo brasileiro,
colocando em questão a própria coesão territorial do país. Esboçada no pós-
guerra e consolidada durante a ditadura militar, a unidade que sedimentava
os interesses das oligarquias regionais baseava-se em dois pilares
fundamentais: o pânico em relação à emergência do povo na política e o
consenso em torno da industrialização dependente e excludente como
objetivo estratégico das classes dominantes.7 O segundo pilar teve que ser
imolado para que uma parcela da população brasileira pudesse ingressar na
nova rodada de modernização dos padrões de consumo. Exposta ao processo
de mercantilização que se irradia do centro do sistema capitalista mundial, a
economia brasileira fica sujeita a forças centrífugas que tendem a segmentar
o espaço econômico nacional, entre regiões que conseguem encontrar nichos
de mercado na nova divisão internacional do trabalho - verdadeiras "ilhas de
prosperidade" que procuram aumentar seu grau de autonomia em relação ao
poder central - e regiões que ficam marginalizadas do comércio
internacional e que tendem a ser desarticuladas em partes estanques que
funcionam fechadas sobre si mesmas.
Dentro da longa transição do Brasil colônia de ontem para o Brasil
nação de amanhã, a conjuntura atual caracteriza-se pelo fato de que a
globalização dos negócios transformou em antagonismo aberto a secular
contradição entre o desenvolvimento desigual do sistema capitalista mundial
e a consolidação do Estado nacional como uma entidade relativamente
autônoma. Uma formulação sintetiza a essência do momento histórico

6 . A propósito ver, Furtado, C., “ Brasil: A Construção Interrompida”, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1992
7 . Florestan, F., “Nem Federação nem democracia”, São Paulo, Revista São Paulo em Perspectiva, Vol. 4, No. 1, 1990.
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brasileiro: dependência e barbárie.8 De acordo com a interpretação de três


dos maiores pensadores do Brasil - Caio Prado Junior, Florestan Fernandes e
Celso Furtado - a missão civilizatória do capitalismo dependente teria
atingido o limite de suas possibilidades. Em algum momento entre 1950 e
1980, intervalo exíguo quando visto de uma perspectiva histórica de longo
prazo, a burguesia brasileira teria se divorciado completamente das demais
classes sociais. A partir de então, o país passava a ser visto como um mero
instrumento de seus interesses particularistas e imediatistas.
Em suma, a incapacidade de evitar os efeitos destrutivos da crise da
industrialização pesada comprometeu as bases materiais, sociais e políticas
do Estado nacional, colocando o Brasil diante da ameaça de processos de
reversão neocolonial que interrompem o movimento de construção da
nação. Nessas circunstâncias, não parece um exagero afirmar que há uma
incompatibilidade incontornável entre: (1) a disciplina financeira e
monetária exigida pela comunidade financeira internacional; (2) a
reprodução de mecanismos de mobilidade social que sejam capazes de dar
um mínimo de legitimidade ao sistema político; e (3) a recomposição de um
esquema regional de poder que neutralize as poderosas tendências que
levam ao fracionamento da nação.
Nessas circunstâncias, para sobreviver como projeto civilizatório, a
sociedade brasileira não teria outra alternativa senão romper o quanto antes
com as relações econômicas, sociais e culturais responsáveis pela situação
de dependência e subdesenvolvimento. Continuar igual seria acelerar a rota
suicida de decadência econômica, regressão social e decomposição moral. A

8 . Esta síntese deve ser vista como contraposição tanto à idéia de que dependência e desenvolvimento poderiam
marchar em paralelo - formulação que alimentava as ilusões desenvolvimentistas das classes dominantes brasileiras
desde Juscelino Kubitschek - quanto à idéia de que “o Brasil não é um país subdesenvolvido mas um país injusto” -
proposição que orienta a visão das atuais autoridades brasileiras.
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gravidade do momento histórico fica evidenciada tanto na conclamação de


Caio Prado Júnior, de meados dos anos sessentas, a favor da "revolução
brasileira" quanto na insistência de Florestan Fernandes, desde o início dos
anos setentas, no caráter anti-social, anti-nacional e anti-democrático da
burguesia brasileira, assim como na eloqüente advertência de Furtado, no
início dos anos noventas, de que forças externas poderosíssimas ameaçam a
integridade do sistema econômico nacional.
A adversidade do marco histórico e os complexos problemas do Brasil
revelam que não há atalho para o desenvolvimento nacional. O desafio é
colossal e, ao contrário do que se supõe, não haverá cooperação
internacional. A continuidade do movimento de formação do Brasil
contemporâneo está ameaçada e ela só prosseguirá se as classes sociais
interessadas na construção da nação tiverem a vontade férrea de levar a
superação do capitalismo dependente às últimas conseqüências. Furtado, um
intelectual reconhecido pela sua visão ponderada dos problemas nacionais,
não escondeu o caráter decisivo do momento histórico. "Em meio milênio
de história, partindo de uma constelação de feitorias, de populações
indígenas desgarradas, de escravos transplantados de outro continente, de
aventureiros europeus e asiáticos em busca de um destino melhor, chegamos
a um povo de extraordinária polivalência cultural, um país sem paralelo pela
vastidão territorial e homogeneidade lingüística e religiosa. Mas nos falta a
experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja
sobrevivência chegou a estar ameaçada. E nos falta também um verdadeiro
conhecimento de nossas possibilidades, e principalmente de nossas
debilidades. Mas não ignoramos que o tempo histórico se acelera e que a
contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um
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futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se


prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo
histórico de formação de um Estado-nação".
Ao abrir novos horizontes para o desenvolvimento histórico, a idéia
de uma ruptura com a situação de dependência representa uma alternativa
criativa à discussão que circunscreve as opções das sociedades dependentes
à escolha binária entre o modernismo desvairado dos neoliberais e a
nostalgia extemporânea do nacional desenvolvimentismo. Este é o caminho
de quem não aceita o impasse que limita o debate sobre o futuro do Brasil a
um estéril braço de ferro a respeito do ritmo e da intensidade do processo de
reciclagem do padrão de consumo de uma pequena parcela da população. A
extrema adversidade do momento histórico revela que não há atalho para o
desenvolvimento nacional. O desafio é colossal e a urgência do problema
inadiável. As forças políticas comprometidas com o futuro da nação devem
transformar a revolução democrática - a erradicação do apartheid social - e
a revolução nacional - a desarticulação da dependência econômica e
cultural - nas duas principais prioridades da agenda política da nação. A
questão fundamental consiste em livrar o Brasil de suas três principais
mazelas: 1) o caráter dependente de seu sistema econômico - uma forma
de organização da vida material que deixa as estruturas e dinamismos da
economia sujeitos às vicissitudes dos movimentos especulativos do capital
internacional; 2) a natureza assimétrica de seu regime de classes - um
padrão de estratificação social que coloca um abismo entre ricos e pobres,
caracterizando um sistema de apartheid social; e 3) o pesado fardo de uma
cultura colonialista, que compromete a capacidade da sociedade de
discernir suas necessidades - uma visão de mundo estreita que transforma a
19

cópia dos estilos de vida e de consumo das economias centrais na prioridade


absoluta das classes dominantes.

***

Quando se contrasta o abismo que existe entre a estatura dos


intelectuais que conclamam o povo latino-americano a dar um basta à
situação de dependência e subdesenvolvimento e a petulância dos que
vendem a ilusão de que a América Latina está ascendendo ao "primeiro
mundo", não se pode deixar de lembrar a conhecida máxima do Padre
Vieira: "Se quereis profetizar os futuros, consultai as entranhas dos homens
sacrificados: consultem-se as entranhas dos que se sacrificaram e dos que se
sacrificam; e o que elas disserem, isso se tenha por profecia. Porém,
consultar quem não se sacrificou, nem se sacrifica, nem se há de sacrificar, é
não querer profecias verdadeiras; e querer cegar o presente e não acertar o
futuro"
Texto 2
Um desfecho melancólico: notas sobre o momento histórico e os
desafios da esquerda

I. A derrocada do governo de conciliação de classe e a


ascensão da República dos Delinqüentes

Encerrando um período de relativa estabilidade social,


econômica e política, iniciado em 2003 com a chegada de Lula
à presidência da República e consolidado em 2005 com a
recuperação do crescimento, a sociedade brasileira assistiu,
a partir de 2013, ao crescente aumento da efervescência
social; à inflexão do ciclo de expansão dos negócios que
havia propiciado um modesto dinamismo econômico, após décadas
de marasmo; e à acelerada decomposição do pacto político que
havia viabilizado a transição negociada do regime militar
para o Estado de direito. Desde então, o fim da letargia
social, o espectro de uma estagnação de longa duração e a
exacerbação da instabilidade política acirraram a luta de
classes.

O temor de que a crescente onda de inquietação social pudesse


fugir do controle e abrir brechas para a emergência das
classes subalternas no cenário histórico(como ocorreu na
surpreendente rebelião urbana de 2013)alarmou as classes
dominantes em relação ao risco de uma insubordinação dos
pobres. As concessões feitas às classes subalternas teriam
ultrapassado o limite do razoável, colocando na ordem do dia
a urgência de conter o ímpeto das reivindicações sociais e
cortar pela raiz o processo de ascensão das massas. Atiçados
pelos grandes veículos de comunicação de massa, com a luz
verde da grande burguesia, os bem de vida partiram para a
ofensiva.

O novo contexto histórico aguçou a guerra fratricida entre as


alas esquerda e direita do establishment. Na ausência de
discrepâncias substantivas de projeto político -posto estarem
ambos perfeitamente enquadrados nos parâmetros mais gerais do
neoliberalismo - a luta entre os partidos da ordem pelo
controle do Estado assumiu a forma de uma acirrada disputa
para definir quem seria o operador político mais credenciado
2

para administrar o ajuste do Brasil às novas exigências do


capital, internacional e nacional, em tempos de crise. Para
além das paixões cegas que alimentam falsos antagonismos, a
diferenciação entre as duas facções que polarizam a disputa
política girou em torno da forma de combinar “cooptação” e
“força bruta” como mecanismos de dominação das classes
subalternas.

Na guerra para decidir quem ficaria no comando do Estado, a


primeira batalha foi vencida pela ala moderada do partido da
ordem, com a reeleição de Dilma Rousseff para a presidência
da República em 2014. Foi uma vitória de Pirro. Ao adotar o
programa econômico de seu adversário, Dilma isolou-se de sua
base social e abriu caminho para uma contraofensiva
reacionária. De tanto ceder à chantagem do mercado e da
fisiologia, a presidente acabou comprometendo seu próprio
lugar na coalizão liberal-fisiológica. O vazio político
gerado pelo esvaziamento de sua autoridade foi ocupado por
Eduardo Cunha e Michel Temer. A sua sorte foi definitivamente
selada quando, contrariando o Planalto, o PT decidiu que seus
deputados não apoiariam o presidente da Câmara dos Deputados
na Comissão de Ética. Antes que Dilma tivesse completado
quinze meses de seu segundo mandato, sua base de sustentação
parlamentar deslocou-se ainda mais para a direita e o governo
ruiu. O Supremo Tribunal Federal abençoou o processo. A
democracia de baixíssima intensidade revelava-se ampla demais
para as exigências da situação. A burguesia teve de recorrer
a uma forma de governo abertamente espúria.

A queda de Dilma foi assimilada pelo conjunto da sociedade


sem comoção. Para além de ações isoladas de alguns movimentos
sociais, a maioria da população permaneceu apática aos
eventos que agitavam Brasília. Um desavisado que chegasse ao
país sequer perceberia que a chefe de Estado acabava de ser
deposta. A docilidade do PT foi surpreendente. Não houve nem
um esboço de resistência. Dilma deixou o Planalto de maneira
protocolar. Entre os dirigentes e parlamentares do PT, a
energia dedicada à batalha pela narrativa do golpe foi
superior ao esforço de evitá-lo. No momento decisivo, Lula
fingiu-se de morto, mais preocupado em negociar sua própria
3

situação com os futuros donos do poder do que em confrontá-


los. Com a honrosa exceção do Advogado Geral da República,
José Eduardo Cardoso, que se jogou de corpo e alma na defesa
“do cumprimento do devido processo legal”, os demais
componentes do governo parecem não ter alterado a rotina, a
começar pela própria presidente, que, mesmo nas piores horas
da crise, não abriu mão de seus exercícios matinais. A imagem
de Dilma pedalando placidamente pelas vizinhanças do
Alvorada, enquanto seu destino era decidido no covil do
Congresso Nacional, é uma metáfora de sua falta de estatura
para o cargo. A presença de parlamentares do PT, expoentes da
batalha contra o impeachment, confraternizando com
parlamentares da tropa de choque dos golpistas, na festa
Junina oferecida pela ministra recém deposta Kátia Abreu,
revela a promiscuidade e a leviandade dos atores do drama.

O afastamento da presidente encerrou melancolicamente treze


anos de ilusão de que a esperança venceria o medo. O sonho de
que um governo de conciliação de classes seria capaz de criar
um Brasil para todos terminou em pesadelo. Os ventos fortes
que levaram Lula ao poder no início dos anos 2000 não foram
aproveitados para romper o círculo de ferro do capitalismo
dependente. O melhorismo petista não questionou as estruturas
responsáveis pela perpetuação do status quo. Os nexos
inextricáveis entre negócios, segregação social e dependência
externa permaneceram incólumes, e as mazelas do
subdesenvolvimento reapareceram com força redobrada. Da
noite para o dia, o sentimento triunfalista de que o Brasil
caminhava para o desenvolvimento sustentável deu lugar à
sensação generalizada de que, na verdade, o país afunda no
descalabro.

Em nome da ordem e do progresso, os aventureiros que


assumiram o poder, sem nenhuma legitimidade para radicalizar
uma política que havia sido rejeitada nas urnas, partiram com
voracidade contra os direitos dos trabalhadores, as políticas
sociais e a soberania nacional. Os ministérios econômicos
foram entregues à sanha do mercado e os demais, aos apetites
da fisiologia. A altíssima coincidência de nomes-chaves entre
os próceres que compõem o ministério de Temer e os que
4

fizeram parte das administrações petistas evidencia que o


novo governo não é a negação do anterior, mas sua metástase.
Um é consequência do outro. Ao dar as costas para seus
eleitores, Dilma abriu a Caixa de Pandora e liberou as taras
do capital. Ao levar ao paroxismo a terceirização do governo
em favor do PMDB, o PT tornou-se supérfluo. Tornando-se mera
peça decorativa, Dilma perdeu a credencial para permanecer no
Planalto. A radicalização do ajuste neoliberal requer a ação
de um Estado de Exceção abertamente autocrático. A gritante
discrepância entre a imoralidade e absoluta falta de
compostura do “andar de cima” e o rigor e disciplina exigidos
do “andar de baixo” deve intensificar ainda mais a luta de
classes.

Para além das bravatas para consolar militantes frustrados, a


decisão de manter as alianças políticas e eleitorais (em
âmbito estadual e municipal) com os partidos golpistas
evidencia a plasticidade e desfaçatez com que o PT aceitou a
nova realidade. O compromisso de fazer uma “oposição
responsável”, comprometida com a “racionalidade econômica” e
com o "respeito às instituições", reitera a identidade do PT
com os imperativos do capital. Ao sancionar a violência
institucional de que foi vítima, reconhecendo-a como um fato
consumado que, por mais paradoxal que seja, faz parte das
regras do jogo, o PT acatou os parâmetros democráticos ainda
mais rebaixados de um Estado de exceção que não hesitará em
apelar para novas violências e fazer o que for necessário
para garantir a estabilização da economia e a pacificação da
nação. Incorporando definitivamente o espírito de seus
algozes, Dilma caiu enaltecendo a Lei de Responsabilidade
Fiscal e fazendo juras de fidelidade às exigências do
mercado. Num esforço desesperado para voltar ao poder, chegou
a afirmar que manteria o famigerado Henrique Meirelles no
Ministério da Fazenda. Em plena recessão, a patética
reiteração do princípio liberal do equilíbrio fiscal como
clausula pétrea de um governo responsável legitimou o
processo de criminalização de toda e qualquer gestão
econômica que não coadune com os ideais da doutrina
neoliberal - o discurso ideológico que, por ironia do
destino, fundamentou a farsa institucional que justificou a
5

sua deposição. O PT encerrou seu ciclo no poder central


rendido ao pragmatismo do fim da história e de tudo que o
acompanha. Na oposição, o partido de Lula será o complemento
necessário e funcional da situação. No próximo período,
caber-lhe-á um duplo papel: evitar a qualquer custo o
aparecimento de forças políticas que possam credenciar-se
como alternativas antissistêmicas; e servir como reserva
política estratégica na eventualidade de um agravamento da
crise nacional exigira volta do grande líder como forma de
apaziguar as massas exaltadas. Para tanto, o partido terá
apenas que adaptar sua estratégia política - impostura à
esquerda e usurpação à direita - às novas circunstâncias da
vida nacional.

II. A batalha pela narrativa da crise

As narrativas canhestras, que racionalizam a posição dos


antagonistas engalfinhados na disputa que levou à deposição
de Dilma, em nada contribuem para a compreensão das graves
contradições que condicionam a vida nacional.

Os que atribuem a crise econômica brasileira a desequilíbrios


fiscais, supostamente provocados por créditos suplementares
tachados de “pedaladas fiscais”, como propõe o simplório
discurso dos liberais tupiniquins, ecoado dia e noite nos
meios de comunicação, ignoram que a crise fiscal não é causa,
mas efeito da crise econômica. A justificativa da deposição
de Dilma como passo necessário para a solução da crise
econômica e recuperação do crescimento ignora que a
austeridade fiscal diminui a demanda agregada e, em
consequência, reforça a tendência recessiva que deprime as
expectativas de investimento dos empresários. A alegação de
que os créditos suplementares - as “pedaladas fiscais” -
caracterizariam crime de responsabilidade desconsidera que a
prática é corriqueira na administração pública brasileira,
generalizada em todas as esferas de governo, e não é
tipificada na Constituição como motivo para a deposição de
uma autoridade eleita.

O discurso moralista que imputa a corrupção generalizada ao


6

aparelhamento do Estado pelo PT omite que Lula e Dilma apenas


sancionaram a promiscuidade entre o público e o privado de
seus antecessores. A corrupção sistêmica é uma característica
inerente ao Estado brasileiro, permeia todos os poros da
administração pública e envolve todos os partidos da ordem. O
enaltecimento dos promotores federais que conduzem a operação
Lava Jato e do Juiz Sérgio Moro como figuras acima do bem e
do mal, comprometidas com o saneamento da política nacional,
omite o fato gritante de que o rigor com os malfeitos do PT é
proporcional à condescendência com os malfeitos de seus
opositores. Na melhor tradição da justiça brasileira, a
República de Curitiba opera segundo a norma “para os amigos
tudo, para os inimigos, a lei”. Os que esperam uma solução
jurídica para a grave crise ética que assola a nação fazem
lembrar as aventuras fantásticas do Barão de Münchhausen, que
se salvou do pântano onde afundava, puxando-se pelos cabelos.
A corrupção faz parte da regra do jogo e o poder judiciário
não está acima da Lei. Problemas políticos, relacionados com
a forma de organização do poder, só podem ser resolvidos com
decisões políticas. Sem a corrupção sistêmica, a dominação
burguesa entra em colapso.

Em contrapartida, os que reduzem a crise política a uma crise


de governabilidade, provocada pela falta de escrúpulos de uma
oposição golpista que, numa conjuntura econômica delicada,
apostou todas as fichas no “quanto pior melhor”, como repete
a ladainha petista, escondem o fato notório de que o governo
Dilma caiu porque foi incapaz de administrar suas próprias
contradições - problema potencializado pela surpreendente
inépcia de seu alto comando. Ao subordinar a razão de Estado
aos imperativos do grande capital, o governo petista ficou
sujeito à desestabilização assim que sua estrita
funcionalidade ao mercado ficou comprometida. Ao vincular sua
base de sustentação parlamentar ao que há de mais corrupto e
fisiológico na política brasileira, ficou sujeito à fuga das
ratazanas assim que o barco começou a fazer água. Ao manter
intacto o monopólio dos grandes meios de comunicação, na
ingênua suposição de que a docilidade com os maganos da mídia
teria como contrapartida sua relativa neutralidade na guerra
pelo poder, ficou completamente desarmado para impedir sua
7

execração pública. Por fim, e, sobretudo, ao negar a


organização independente dos trabalhadores como força motriz
das transformações sociais, o PT fomentou a fragmentação e o
desalento das massas, comprometendo a mobilização da única
força social potencialmente capaz de enfrentar uma
conspiração urdida nas altas esferas do poder.

A narrativa de que a presidente foi vítima de um “golpe” não


é falsa, mas omite o fato de que o primeiro golpe - o
estelionato eleitoral - foi cometido pela própria Dilma ao
jurar na campanha eleitoral que não faria o ajuste fiscal
“nem que a vaca tossisse”. Denunciar o segundo golpe,
ocultando o primeiro, deixa na penumbra o fato de que a
verdadeira vítima dos atentados contra a democracia é a
classe trabalhadora, que votou de maneira inequívoca contra o
ajuste neoliberal. Na conspiração contra os direitos dos
trabalhadores, Dilma e Temer são cúmplices, pois o segundo
golpe apenas arrematou o primeiro. Mais ainda. A denúncia do
golpe parlamentar como um atentado à democracia, sem a devida
ponderação sobre o caráter restrito da democracia brasileira,
não permite perceber a essência da crise que abala o sistema
representativo: a impermeabilidade do Estado brasileiro às
demandas populares. Supervalorizar os aspectos formais da
democracia brasileira, sem a devida explicitação sobre seu
conteúdo real, é uma forma capciosa de esconder os atentados
perpetrados pelo PT contra a classe trabalhadora e manter o
debate político hermeticamente enquadrado na lógica fechada
do cretinismo parlamentar.

III. A crise em perspectiva histórica

Postas em perspectiva histórica, a derrocada do governo do PT


e a ascensão da República dos Delinquentes devem ser vistas
como um capítulo da severa crise econômica e política que
abala a vida nacional. Antes de dificuldades conjunturais,
que poderiam ser resolvidas num curto espaço de tempo com a
substituição de administradores inoperantes e a adoção de
medidas técnicas e institucionais, os problemas brasileiros
refletem contradições estruturais, complexamente determinadas
por forças externas e internas à sociedade nacional. Para o
8

bem ou para o mal, tais contradições não serão resolvidas sem


transformações de grande envergadura nas estruturas
econômicas, sociais e políticas.

A perspectiva de um cenário econômico de grande


instabilidade, que coloca no horizonte a possibilidade de uma
estagnação de longa duração, resulta fundamentalmente da
absoluta impotência do Brasil para defender-se dos efeitos
devastadores da crise que paralisa a economia mundial. Após
décadas de crescente exposição à fúria da concorrência
global, a economia brasileira perdeu os elos estratégicos de
seu sistema industrial e comprometeu a eficácia de seus
centros internos de decisão, ficando sem meios objetivos e
subjetivos para colocar em prática uma política econômica
capaz de defender os interesses nacionais. Sem mecanismos
endógenos de expansão da demanda agregada, a mola propulsora
do crescimento passou a depender de fatores exógenos à
economia nacional. Nessas condições, enquanto o comércio
internacional permanecer deprimido, não há como recuperar de
maneira sustentável o processo de geração de renda e emprego.
Ao relegar o Brasil a uma posição ainda mais rebaixada na
divisão internacional do trabalho, a “integração profunda”,
comandada pelos Estados Unidos, deve agravar a dependência
comercial do país em relação à expansão da demanda de
produtos agrícolas e minerais no mercado internacional.

A expectativa de uma crescente instabilidade política é


determinada pela crise estrutural que abala o sistema de
representação. Ao evidenciar a presença de um gigantesco mal-
estar social, a intensificação da luta de classes coloca em
questão a funcionalidade do pacto de poder que viabilizou a
transição lenta, segura e gradual do regime militar para a
democracia de baixa intensidade da Nova República. O caráter
estrutural da crise política fica patente na total
incompatibilidade entre os princípios que fundamentaram a
Constituição de 1988 - a conquista de direitos da cidadania,
a ampliação das políticas públicas e a afirmação da soberania
nacional - e as diretrizes que orientaram a ofensiva
neoliberal iniciada por Collor, consolidada por Fernando
Henrique Cardoso e continuada por Lula e Dilma - a investida
9

do capital contra os direitos dos trabalhadores, o ataque do


rentismo sobre os fundos públicos e o avanço do mercado sobre
o Estado. As Jornadas de Junho de 2013 acirraram as
contradições. Os jovens foram às ruas para exigir o
cumprimento da Constituição. No entanto, os imperativos do
capital em tempo de crise apontam em direção contrária. O
caráter irreconciliável das vontades políticas que polarizam
a luta de classes não deixa margem para acomodação. A
acelerada decomposição do governo Dilma e o caráter espúrio
de seu sucessor expressam o antagonismo irreparável entre
vontades políticas inconciliáveis: a exigida nas ruas e nas
urnas e a exigida pelo chamado mercado, manifestada nos
ultimatos das agências internacionais de avaliação de risco e
na ladainha neoliberal martelada dia e noite nos grandes
meios de comunicação. Enquanto tal antagonismo não for
resolvido, de uma forma ou de outra, não há a menor
possibilidade de que o Brasil possa vivenciar um novo ciclo
de expansão e paz social.

Dentro dos parâmetros da ordem global, a solução para a crise


brasileira passa pela reciclagem do padrão de acumulação
liberal-periférico e pela recomposição do padrão de dominação
autocrático-burguês.

Nos marcos do liberalismo, as crises econômicas são


enfrentadas invariavelmente com um aprofundamento das
reformas liberais. O fundamental é ajustar a economia e a
sociedade aos novos imperativos do padrão de concorrência
global ditado pelo grande capital. No curto prazo, o ajuste
coloca a necessidade de recompor a taxa de lucro do capital e
abrir novos negócios para os capitais excedentes, com
políticas de arrocho salarial, cortes de gasto público,
diminuição da carga tributária sobre as empresas,
recomposição do rentismo lastreado em dívida pública,
ampliação da privatização e aprofundamento do processo de
liberalização. No longo prazo, o ajuste consiste em adequar a
economia brasileira à sua nova posição na divisão
internacional do trabalho, o que coloca no horizonte a
necessidade de aumentar o grau de especialização das forças
produtivas, reduzir a soberania do Estado nacional e rebaixar
10

o nível tradicional de vida dos trabalhadores, adaptando-o à


condição mais precária de uma economia primário-exportadora.
Entre o curto e o longo prazo, a sociedade fica no limbo,
sujeita à temporalidade abstrata do capital monopolista em
tempos de crise, cuja essência consiste no tempo necessário
para a destruição do excedente absoluto de capital que
emperra a retomada do processo de acumulação. Em outras
palavras, no médio prazo, a economia fica sujeita à
estagnação por prazo indeterminado. Ao acelerar e aprofundar
o processo de reversão neocolonial, o projeto do grande
capital coloca no horizonte a transformação definitiva do
Brasil numa megafeitoria moderna.

À ofensiva do capital sobre o trabalho no plano econômico


corresponde ofensiva simétrica no plano político. A fim de
harmonizar os interesses da burguesia brasileira com os do
capital internacional, as classes dominantes terão de
aprofundar a liberalização e a internacionalização da
economia, esvaziando ainda mais a soberania nacional. O novo
padrão de satelitização deve obedecer às diretrizes dos
acordos bilaterais de livre comércio, impulsionados pelos
Estados Unidos. Com a finalidade de evitar a rebeldia das
massas e perpetuar a passividade das classes dominadas, o
novo padrão de dominação deverá aprofundar o Estado de
Exceção, intensificando o processo de criminalização das
lutas sociais e políticas. O sentido mais geral desse
movimento já foi dado pela política antiterrorista aprovada
por Dilma Rousseff nos estertores de seu governo. Por fim,
para dotar a economia brasileira de um mínimo de
estabilidade, protegendo-a das instabilidades provocadas pela
concorrência global, sobretudo de seus efeitos catastróficos
sobre os agentes econômicos mais débeis, a relação entre os
setores modernos e atrasados que compõem o parque produtivo
nacional terá de ser redefinida. Os setores modernos de alta
produtividade expostos à concorrência global serão regidos
pelos padrões formais estabelecido sem acordos
internacionais, enquanto os setores anacrônicos de baixa
produtividade, associados ao fornecimento das grandes
empresas exportadoras e ao atendimento do mercado interno
protegido da concorrência de importados, serão relegados à
11

crescente informalidade. No momento, é impossível vislumbrar


a equação política capaz de resolver essas questões. Quando o
velho resiste à morte e o novo não tem força para nascer, a
sociedade fica sujeita a forças indeterminadas e prevalece
uma grande confusão.

IV. O Desafio da esquerda socialista

Os imperativos do capital em tempos de crise estrutural


colocam na ordem do dia a necessidade de uma ofensiva sobre o
trabalho. Dentro dos parâmetros do liberalismo, as
alternativas da sociedade ficam restritas à forma de graduar
o ritmo e a intensidade do ajuste neoliberal. Não há,
todavia, nenhuma margem para questionamento sobre o sentido
do ajuste - a retirada de direitos adquiridos e o
aprofundamento do processo de reversão neocolonial. Para
realizar seu desiderato, o capital tem um projeto político
bem definido - o ajuste econômico; um método eficaz para
implantá-lo - a terapia de choque que mobiliza a violência
econômica e política como forma de submissão dos
trabalhadores e usurpação da soberania nacional; e uma
complexa organização política para executá-lo - o Estado de
Exceção, como comitê executivo da burguesia.

As necessidades dos trabalhadores em tempos de ofensiva


liberal colocam na ordem do dia a urgência de uma resposta
prática que impeça o avanço da barbárie capitalista. A
solução democrática para o impasse histórico em que o país se
encontra passa, portanto, por uma completa ruptura com o
padrão de acumulação liberal-periférico e com o padrão de
dominação autocrático que lhe corresponde. Daí a urgência de
um grande debate sobre o projeto político, o método e as
formas de organização capazes de realizar tal tarefa. A
questão torna-se ainda mais candente quando se leva em
consideração o fato de que o programa que inspirou a luta da
esquerda nas últimas décadas e que permanece hegemônico- o
programa democrático-popular - parte da avaliação oposta.

A concepção de que existiriam condições objetivas e


subjetivas para compatibilizar capitalismo, democracia e
12

soberania nacional - a essência do programa democrático-


popular - parte de dois supostos fundamentais: a convicção de
que o Brasil possui as bases materiais de um capitalismo
autodeterminado; e a crença de que, restabelecido o estado de
direito, a luta de classes passou a ser regida por uma lógica
baseada na busca do bem comum. A avaliação de que não
existiriam obstáculos materiais e bloqueios políticos
intransponíveis para a implantação da justiça social levou à
conclusão de que o capitalismo não condenava fatalmente o
povo brasileiro à pobreza.

Uma leitura equivocada da realidade histórica induziu as


forças de esquerda a uma brutal subestimação das dificuldades
que seriam encontradas para transformar a realidade. 1 A
superestimação do significado da industrialização pesada, que
impulsionou o forte dinamismo da economia brasileira entre
1950 e 1980,levou à miragem de que existiria margem de
manobra para combinar acumulação de capital, distribuição de
renda e autonomia nacional. As esperanças geradas pelo volta
dos militares aos quartéis alimentaram a ilusão de que
finalmente a sociedade brasileira teria criado condições
subjetivas para a realização de reformas sociais que
redundassem em expressiva melhoria nas condições de vida do
conjunto da população. O retrospecto das últimas quatro
décadas não deixa, entretanto, margem a dúvida. Imerso num
processo de reversão neocolonial, o Estado brasileiro ficou
completamente refém dos negócios do grande capital, perdendo,

1 A interpretação sobre a autodeterminação do capitalismo brasileiro


encontra-se elaborada nos trabalhos da chamada Escola de Campinas,
principalmente nos trabalhos de Cardoso de Mello, J.M., O capitalismo
tardio, São Paulo, Brasiliense, 1982; Belluzzo, L.G., Desenvolvimento
Capitalista no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1982/1983, 2v.; e Tavares,
M.C., Acumulação de capital e industrialização no Brasil, Campinas,
UNICAMP, 1974; Ciclo e Crise, Rio de Janeiro, FEA/UFRJ, 1978; e
“Problemas de Industrialización avanzada en capitalismos tardios y
periféricos”, Economia de América Latina. Revista de Información y
Análises de la Región, México, n. 6, s.p., 1981. Mimeo. A interpretação
sobre o raio de manobra político das sociedades latino-americanas é
sistematizada por Fernando Henrique Cardoso em alguns capítulos de O
modelo político brasileiro, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972. A
crítica teórica a idéia da autodeterminação do capitalismo brasileiro
está desenvolvida em Sampaio Jr., P.S.A., Entre a Nação e a Barbárie: os
dilemas do capitalismo dependente, Petrópolis, Vozes, 1999, pp. 17 a 34.
13

de uma vez por todas, a capacidade de fazer políticas


públicas subordinadas aos imperativos da universalização de
direitos universais e às necessidades ditadas pelos
interesses estratégicos da nação.

Para que a história não se repita como farsa, é preciso


superar a teoria e a prática que levaram ao trágico naufrágio
do PT. Enquanto os trabalhadores não se convencerem de que é
impossível resolver os problemas fundamentais do povo sem uma
ruptura radical com a ordem capitalista, a política
permanecerá presa ao circuito fechado de escolhas binárias
que não alteram o curso da história. Enquanto os
trabalhadores não se convencerem de que é impossível romper a
ordem estabelecida sem questionar o caráter restrito da
democracia, a luta de classes permanecerá enquadrada nos
marcos de uma institucionalidade perversa que esteriliza o
potencial revolucionário das terríveis contradições que
brotam em uma sociedade em acelerado processo de reversão
neocolonial. Para estar à altura dos desafios históricos, o
polo trabalho precisa materializar sua vontade política em um
projeto simples e bem definido que tenha como norte a busca
da igualdade substantiva - direitos já; precisa definir uma
estratégica de luta capaz de enfrentar a terapia de choque -
a ocupação, a desobediência civil e a rebelião das massas
como centros nevrálgicos da luta de classes; e precisa
construir uma organização que unifique todas as organizações
de trabalhadores comprometidas com a busca da igualdade
substantiva em um grande movimento pela revolução brasileira.

Plínio de Arruda Sampaio Jr.2

2Plínio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de


Economia da UNICAMP. Agradeço a cuidadosa revisão de Marlene
Petros Angelides.
14

RESUMO:

O artigo é um esforço de caracterizar os condicionantes


estruturais que levaram à deposição da presidente Dilma
Rousseff e suas implicações para a esquerda socialista. Ao
criticar as narrativas que reduzem a crise brasileira à
guerra fratricida entre as alas moderadas e truculentas do
Partido da Ordem, procura-se lançar luz sobre as contradições
profundas que impulsionam a luta de classes. A ausência de
perspectiva histórica impede uma visão objetiva sobre a crise
nacional e bloqueia o debate sobre a pertinência da teoria e
da prática do programa democrático-popular como referência
capaz de impulsionar a reorganização da esquerda
revolucionária.

Palavras-chave:
crise brasileira, Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff,
programa democrático-popular, revolução brasileira.

ABSTRACT:

The article is an effort to characterize the structural


conditions that led to the deposition of President Dilma
Rousseff and its implications for the socialist left.
Criticizing the narratives that reduce the Brazilian crisis
to the fratricidal war between moderate and truculent wings
of the Order Party, the paper seeks to shed light on the deep
contradictions that drive the class struggle. The absence of
historical perspective prevents an objective view on the
national crisis and blocks the debate on the relevance of the
theory and practice of popular-democratic program as a
reference able to boost the reorganization of the
revolutionary left.

Key words:
Brazilian crisis, Workers Party, Dilma Rousseff, popular-
democratic program, Brazilian revolution.
Texto 3
A Exaustão da Nova República

A grave crise política que polariza a luta de classes


expressa a exaustão da democracia de cooptação, cristalizada
na transição da ditadura militar para o Estado de direito.
Enquanto o crescimento da economia alimentou a expectativa de
melhoria social, as terríveis contradições de uma sociedade
cindida entre ricos e pobres foram ignoradas e empurradas para
frente. Como já ocorrera inúmeras vezes na história do Brasil,
a esperança de dias melhores funcionava como um apaziguador da
luta de classes. Entretanto, assim que a expansão econômica
cessou, vieram à tona os gigantescos antagonismos de uma
sociedade subdesenvolvida e dependente que não resolveu nenhum
de seus problemas históricos.
As contradições latentes na acanhada democracia da Nova
República tornaram-se antagonismos abertos nas Jornadas de
Junho de 2013. Frustrados com o mesquinho “melhorismo” dos
governos petistas, os jovens que tomaram as ruas cobraram dos
governantes as promessas vazias da Constituição de 1988. Posta
contra a parede por um estado de mal estar social que corria o
risco de fugir do controle e premida pela necessidade de dar
uma resposta à crise econômica, a burguesia assumiu plenamente
e sem rodeios seu caráter autocrático e antissocial e partiu
para a ofensiva contra os trabalhadores.
Para as classes subalternas, a deficiência da Nova República
manifesta-se no caráter impermeável do Estado brasileiro às
demandas democratizantes da população. A convicção de que
“todos os políticos são iguais” decorre da constatação prática
de que, no final das contas, os imperativos do capital sempre
acabam prevalecendo. Para as classes dominantes, é o oposto. A
crise política reflete a impossibilidade de conciliar as
exigências dos negócios - “ordem e progresso” - com o respeito
às regras do jogo democrático. Os de cima enxergam as
aspirações da classe trabalhadora como uma ameaça a seus
privilégios e assumem sem disfarce seu caráter despótico. Os
“remédios amargos” para tirar o país da crise exigem o
atropelo de direitos adquiridos e a tutela dos trabalhadores.
O interesse popular é assumido abertamente como um elemento
espúrio que deve ser desconsiderado pelos homens de Estado. A
democracia não pode colocar em risco a subordinação da razão
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de Estado à razão dos grandes negócios que impulsionam a


acumulação capital.
Assim como a crise da economia cafeeira em 1929 selou a
sorte da República Velha, a crise terminal do processo de
industrialização por substituição de importações, cuja pá de
cal foi o ciclo neodesenvolvimentista de Lula e Dilma,
destruiu irremediavelmente a Nova República.
A resposta da burguesia à crise da Nova República não pode
ser dissociada da estratégia de reprimarização da economia
brasileira como resposta à crise terminal do processo de
industrialização. A guerra aberta contra os trabalhadores para
impor condições ainda mais draconianas de exploração da força
de trabalho requer uma compressão brutal do espaço de
manifestação da vontade política das classes subalternas.
Assim como os direitos trabalhistas não cabem nos cálculos de
rentabilidade dos empresários e a política social não cabe no
regime de austeridade imposto pelas finanças, o padrão de
dominação baseado na democracia de cooptação não cabe nos
planos de ajuste econômico, que coloca no horizonte um padrão
de acumulação característico de economias de tipo colonial,
baseado na produção de commodities para o mercado
internacional.
A solução reacionária para a crise econômica é simplesmente
impossível sem a anomia política da classe trabalhadora. Para
evitar qualquer possibilidade de uma solução que contemple os
interesses do trabalho, a opinião pública é submetida à
lavagem cerebral de que os remédios amargos que compõem as
"reformas" liberais constituem o único meio de tirar o país do
atoleiro. Como o protesto social poderia furar o cerco da
ignorância difundida pela grande mídia e dialogar diretamente
com as massas, torna-se obrigatório criminalizar a luta
social, estigmatizar a crítica e cercear a atuação dos
partidos de esquerda.
Além de agir diretamente sobre a consciência da classe
trabalhadora, o capital investe sistematicamente contra as
migalhas democráticas existentes nos interstícios de uma
estrutura de poder que, na realidade, há tempos já funciona
como um verdadeiro Estado de Exceção. Na concepção de uma
burguesia que não superou o espírito arbitrário e autoritário
do senhor de escravo, os direitos adquiridos dos trabalhadores
não podem se sobrepor aos imperativos dos negócios. Uma vez
que os ataques aos direitos trabalhistas e às políticas
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sociais jamais passariam pelo crivo do voto popular, torna-se


necessário desmoralizar as instituições que expressam - mesmo
que muito precariamente - a vontade do cidadão.
O ataque à Nova República assumiu a forma de uma cruzada
moralista contra a corrupção. As investigações judiciais
comprovaram o que todos sabiam. A corrupção é um elemento
estrutural do padrão de acumulação e dominação do capitalismo
brasileiro. As delações dos altos executivos do capital são
didáticas. O capital é o elo dominante da relação criminosa.
Os partidos são comprados pelos empresários. Os políticos
funcionam como despachantes de interesses privados nos
aparelhos de Estado.
A radiografia das relações promíscuas da política com o
capital feita pelo poder judiciário e sua espetacularização
pelos grandes meios de comunicação trucidaram o sistema
político e todas as suas instituições. Paradoxalmente, as
causas profundas da corrupção - a absoluta preponderância dos
imperativos dos negócios na vida nacional - em nenhum momento
foram colocadas em questão. Muito pelo contrário.
Os paladinos da moralização - Janot, Moro, Fachin - não vão
à raiz do problema. O problema da corrupção é reduzido a uma
questão moral de foro individual e circunscritas a casos
específicos. As investigações são seletivas. O sistema
financeiro é blindado de qualquer investigação, mesmo sendo
evidente que é impossível a lavagem de magnitudes amazônicas
de dinheiro sujo sem a sua cumplicidade. A ramificação da rede
criminosa no sistema judiciário e na grande mídia é
negligenciada. O capital estrangeiro não é sequer investigado.
Os acordos de leniência deixam as empresas livres para
continuar saqueando os cofres públicos e pilhando o país. No
final, sob a aparência de uma faxina geral, permanece tudo
como dantes. A engrenagem do roubo não é abalada. As relações
promíscuas entre o grande capital e o Estado permanecem
incólumes. A operação "Fora Todos" apenas prepara o caminho
para uma "modernização" dos esquemas de intermediação ilícita
dos interesses do capital nos aparelhos de Estado, adaptando-
os às exigências do novo padrão de acumulação.
Os limites pouco republicanos da investida contra a
corrupção revelam que o verdadeiro objetivo da operação "Fora
Todos" não é moralizar a vida pública, mas aumentar ainda mais
a submissão do Estado aos interesses dos grandes negócios. Ao
se explicitar que por trás de cada representante do povo
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existe invariavelmente o patrocínio de uma grande empresa,


avilta-se a relação de confiança entre os eleitores e seus
representantes. Desmoralizados perante seus constituintes, os
políticos perdem toda autonomia para mediar o conflito entre o
interesse privado e o interesse público. Acuados pela ofensiva
avassaladora da campanha midiática contra a política, abraçam,
sem qualquer contraponto, a agenda de desmonte das conquistas
trabalhistas e democráticas que estabeleciam um patamar mínimo
de civilidade à sociedade brasileira.
Ao assumir sem disfarce o conteúdo de classe do Estado, a
burguesia afirma sua ditadura implacável sobre a sociedade. A
banalização do debate público, a criminalização dos movimentos
sociais e a destruição do sistema político esvaziam a
democracia de qualquer conteúdo popular. Hermeticamente
fechado aos de baixo, o circuito político apresenta-se como o
que é: um condomínio exclusivo da plutocracia destituído de
qualquer verniz democrático. A soberania popular fica ainda
mais comprimida, deixando a sociedade a um fio da autocracia
explícita.
A falta de uma alternativa imediata para substituir as
estruturas carcomidas da Nova República não permitem
vislumbrar um rápido desfecho para a crise política. Mesmo que
historicamente condenada, o mais provável é que sua agonia
seja lenta, arrastando-se por tempo indefinido. Afinal, não se
deve subestimar a capacidade de resistência da coalizão que
une pemedebistas, tucanos e petistas em torno do interesse
comum em viabilizar a anistia da corrupção e evitar
instabilidades políticas que possam acirrar a luta de classes,
nem tampouco seu compromisso estratégico com a ordem global e,
em consequência, sua docilidade diante das imposições do
ajuste neoliberal. O estado de crise permanente que
caracteriza a moribunda Nova República não deixa de ser,
assim, altamente funcional ao capital.
Sem coragem, criatividade e ousadia para propor uma solução
alternativa para o grave impasse histórico que ameaça a
sociedade brasileira, as classes subalternas ficam condenadas
à miséria do possível. Na economia, as alternativas oscilam
entre o ajuste sem meta e o ajuste com meta dobrada que
dividem os partidos que compõem a esquerda e a direita da
ordem. Na política, a opção fica restrita à hipocrisia do
“Fora Todos” que preserva a causa do problema - o controle do
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Estado pelo capital -, e o “Estanca a Sangria” que perpetua o


mar de lama da corrupção.
Ameaçados pela virulência da ofensiva do capital contra o
trabalho, a classe trabalhadora está obrigada a buscar novos
caminhos para o enfrentamento da grave crise civilizatória que
degrada sua existência. O primeiro desafio é superar o
bloqueio mental que alimenta o senso comum de que nenhuma
política econômica é viável se não contar com a aprovação do
grande capital.
A tarefa imediata é política: derrubar o governo usurpador
de Temer e dar uma solução democrática, de baixo para cima,
para a crise terminal da Nova República. "Diretas Já" e "Fora
Todos", de baixo para cima, como ponto de partida e "Revolução
Democrática" como ponto de chegada devem ser as referências
fundamentais que norteiem a luta política das forças
comprometidas com a construção de uma agenda de combate à
barbárie.
Sem uma substancial ampliação da democracia, é impossível
imaginar a possibilidade de uma mudança radical nas
prioridades que orientam a política econômica. O essencial é
inverter o sentido das respostas que vêm sendo dadas à crise
econômica. Ao invés de dar primazia aos negócios do capital
internacional e à modernização dos padrões de consumo de uma
exígua parcela da população, a política econômica deve colocar
em primeiro plano as necessidades fundamentais do conjunto dos
trabalhadores - emprego digno para todos, reforma urbana,
reforma agrária, respeito ao meio ambiente, proteção das
nações indígenas, etc. "Fora Ajuste", "Direitos Já",
"Trabalho", "Teto", "Terra" e "Transporte" devem ser consignas
de uma política econômica comprometida com os interesses
estratégicos dos trabalhadores brasileiros.
Submetida a um processo de reversão neocolonial, a
sociedade brasileira encontra-se numa encruzilhada decisiva.
Sufocada pela ditadura militar em 1964, a revolução brasileira
volta à ordem do dia como único meio de superar os terríveis
antagonismos de uma sociedade marcada pela segregação social e
pela dependência externa. Polarizada entre projetos
irreconciliáveis - a reciclagem da contrarrevolução burguesa
cristalizada em 1964, que, hoje, tem a cara de uma regressão
ao patamar civilizatório do século XIX, e a revolução dos
pobres e oprimidos latente nas placas tectônicas da sociedade
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brasileira. Posta em perspectiva de longa duração, a escolha


real é entre socialismo ou barbárie.

Plínio de Arruda Sampaio Jr., professor do Instituto de


Economia da Universidade Estadual de Campinas - IE/UNICAMP.
Artigo preparado para o Grito dos Excluídos, em julho de 2017.

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