KASSANDRA
KASSANDRA
KASSANDRA
I. PRÓLOGO
Troia – sem acento –, 23 de julho de 1184 a.C. Não! (Risca) Bagdad, 19 de março de 2003.
Não, não! (Risca de novo) Nagasaki, 9 de agosto de 1945. Kassandra, a que nunca quis ser princesa
de Troia, deixa escrita a profecia completa que tantas vezes repetiu e na qual nunca ninguém
acreditou... (à parte) na esperança que algum vindouro, quando passarem muitos séculos, a
encontre numa escavação arqueológica, ou copiada num papiro retirado de uma lixeira do Egito
e possa dá-la a conhecer ao mundo.... e se ninguém a encontrar? Fico na mão desses mentirosos,
poetas, dramaturgos, pintores e escultores, que dirão de mim... Ah! Digam o que lhes apetecer!
(Continua a escrever) ... ao mundo que dirá, quando o que restar desta tabuinha puder enfim ser
lido, “Kassandra avisou!”, (à parte) “She told you so!”
(Para o público) Levo vários anos aqui encerrada, entre paredes de pedra que transpiram
um suor gélido e penetrante que rasga a pele em ferida, sobre um chão cheio de água parada e
nauseabunda, a remendar uniformes e roupas para os soldados. Um trabalho fabril, não
remunerado e sem sindicato, como o que têm as mulheres do povo antigamente amas de casa,
e as raparigas, quase crianças, raptadas aos seus pais e obrigadas agora a trabalhar em campos
para refugiados e bordéis. (Irónica) Eis os aposentos de uma princesa; os aposentos e a casa de
banho, o local de trabalho e mesmo a residência de férias.
Devem estar a pensar que estas roupas sujas e rasgadas não são dignas da princesa que
eu fui, nem sequer da humildade que devia ter uma sacerdotisa de Apolo como eu. A ele dediquei
toda a minha vida, a ele ofereci cedo demais o sangue da minha virgindade. Mas nada consegui
com isso além das dezenas, das centenas de homens sem nome que, todos os dias, mas
sobretudo ao fim-de-semana, vêm até aqui para descansar do combate. Apolo não atendeu aos
pedidos da sua demente serva, ofendido pela espada desse homem, o quase titã Aquiles, que
impiamente decapitou a sua estátua que em Troia se erguia voltada para Nascente. Não o vi, não.
Não mo contou nenhum mensageiro. Foi antes uma mesma sensação de cabeça cortada que mo
revelou, prenúncio da morte dos meus e de mim própria, no mesmo dia em que a armada dos
Gregos chegou às praias desta cidade.
O pior de ser como eu sou, uma desgraçada que tudo vê, tudo sabe e tudo sente – um
Édipo bem-sucedido, no fundo – é saber que ainda falta muito tempo para morrer. Falta
demasiado tempo ainda para que o meu corpo apodreça em terra estranha e nada hospitaleira,
repasto para as aves de rapina que sobrevoam os céus em busca de carne podre para comer –
não é de Homero, mas bem podia ser. Com os séculos, os artistas farão de mim o assunto da sua
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arte. Mas sempre como personagem secundária; Kassandra, a eterna co-staring, a que nunca é o
título de porcaria nenhuma. Farão de mim a princesa, a mulher, a louca a que ninguém deu
ouvidos, a puta mais reles de Ájax e Agamémnon, que ainda por cima vai acabar os seus dias a
esfregar a latrina do último em Micenas. Serei o que de mim cantarem, escreverem ou pintarem
os que estão por vir. Uma vida depois de outra vida. Mentira sobre mentira, coisas de aspirante
a dramaturgo que com tanto que fazer e se pôs a reescrever um mito clássico; porque – dizia ele
a toda a gente, tentando mostrar erudição e criatividade artística de perfil pós-contemporâneo –
“É demasiado estranho que não conservemos nenhuma tragédia, fragmento de tragédia ou
sequer um triste ditirambo que tenha a Kassandra como personagem principal. Há que escrevê-
la. Um dia, quando acabar aquilo que estou a fazer, ainda me lanço e escrevo eu uma peça!” Isto
ia dizendo ao longo de quase dez anos – curioso período de tempo esse! – até que por fim pôs
mãos à obra. Ai, o teatro! O teatro!
Por falar em teatro. Tenho que vos confessar que a loucura, a demência insana pela qual
todos vocês me conhecem, na verdade nunca existiu. A sério! Foi só uma personagem que eu
inventei. Juro-vos por Deus (apercebe-se do anacronismo que cometeu. Ri embaraçada). E sabiam
que eu sempre quis ser atriz? Não sabiam? Isso não consta do mito que vocês conhecem?! Mas
uma atriz a sério, uma diva dessas que sussurram tanto que nem o diretor da peça ou do filme
sabe bem o que ela está a dizer, mas que enfeitiça pela sua cara completamente pálida e
descarnada. Uma tela em branco: o sonho de qualquer diretor. E se vier emoldurada por uns
belos cabelos, encaracolados de preferência... ouro sobre azul. Enfim.
Quando era nova... devia ter uns treze anos, antes de ser aqui fechada, quando Troia
ainda era uma cidade na qual se podia andar em segurança pelas ruas, sem ataques à mão
armada, bombardeamentos ou pilhagens, sem embaixadores a serem mortos quando vêm ou
saem do palácio em missão oficial, sem os carros armados da Força de Pacificação a levar
crianças, moças e velhas para parte incerta, o meu pai Príamo ainda me inscreveu nas aulas de
um dramaturgo desses famosos, dos bons, dos que fazem parte dos júris de festivais e tudo. Eu
era a única rapariga no meio de uns quinze ou vinte marmanjos que estavam ali para tudo, para
tudo mesmo, menos para aprender a escrever ou a fazer teatro. No início tive que me disfarçar
de rapaz para poder entrar, antes que o meu pai, como rei, desse a ordem para que eu
frequentasse as aulas do mestre.
um processo de heteronímia levado demasiado a sério, estão a ver? O plano inicial era que Príamo
e os Aliados olhassem para mim como costumam as gentes olhar para uma pitonisa afetada pelos
fumos alucinogénios de Apolo, que ouvissem as minhas palavras como as dessas profetizas às
quais recorrem embaixadores de todo o mundo, com o único propósito de conseguir uma
resposta que não diz nada em concreto, mas admite qualquer interpretação.
Lembro-me também que uns anos depois, não muitos, devia ter uns quinze anos – sim,
por aí –, escrevi uma pequena peça de teatro, a minha primeira obra dramática. Uma peça sobre
a queda de Troia, a que estamos agora a viver, e que desde o meu primeiro dia de vida conhecia
com detalhes suficientes para pintar um quadro hiper-realista. Já vos conto. Uma peça da qual
eu era a autora, encenadora, protagonista e personagem-título. Pensei aliás em escrever um
monólogo, mas a falta de técnica fez com que fossem precisos mais e mais atores, e a coisa foi-
se-me das mãos. Portanto, só cheguei a trabalhar algumas partes, e não posso dizer que tenha
tido uma estreia oficial. Claro que tentei apresentar a minha obra em casa, no nobilíssimo salão
de banquetes de meu pai, numa noite em que recebiam no palácio a embaixada de um país
qualquer além-mar. Eu era muito nova – embora, em 1184 a.C., as meninas costumassem
madurar muito mais cedo – e a verdade é que não entendia muito bem o que se estava ali a
passar. Queria representar, e representar com público; queria sentir o escalafrio desses segundos
em que os aplausos custam a arrancar, talvez porque a obra foi demasiado forte e precisa de um
tempo mínimo, frações de segundo que sejam, para ser digerida antes de ser ovacionada. Antes
mesmo que o primeiro ato terminasse, o meu pai ordenou a uns matulões que me tirassem dali,
ficando a desculpar-se ante os convidados: “sabem como são as crianças!”
Acho que foi logo aí que teve fim a minha curtíssima carreira de dramaturga, encenadora
e atriz. É que eu sou de tal forma, tenho tal memória, para minha desgraça, que ainda seria capaz
de dizer o texto todo da peça. Dá para acreditar? (Finge que o público lhe pede que represente) O
quê? Não. Não, a sério. Não, deixem-se disso. Não, não vou fazer. Não faço. Ó pá, ‘tás parvo,
como é que eu vou agora... assim, sem nada para vestir, para... não, já disse! Bem, mas só um
bocadinho!
Primeiro, o argumento. A mitologia grega conta que Cassandra e o seu irmão gémeo,
Heleno, ainda crianças, foram ao Templo de Apolo brincar. Brincaram até ficar demasiado tarde
para voltar para casa, pelo que lhes foi arranjada uma cama no interior do templo. Na manhã
seguinte, a ama encontrou as crianças ainda a dormir, enquanto duas serpentes passavam a
língua pelas suas orelhas. Como resultado do incidente, os seus ouvidos tornaram-se tão sensíveis
que lhes permitiam escutar as vozes dos deuses. Cassandra cresceu para ser uma jovem de
magnífica beleza, devota servidora de Apolo. Foi de tal maneira dedicada que o próprio deus se
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apaixonou por ela e lhe ensinou os segredos da profecia. Mas quando se negou a dormir com
Apolo, ele, por vingança, lançou-lhe a maldição de que ninguém jamais viesse a acreditar nas suas
profecias. Passou então a ser considerada louca ao tentar comunicar à população troiana as suas
inúmeras previsões de catástrofe e desgraça. A falta de credibilidade das previsões e profecias de
Cassandra levou à queda e consequente destruição de Troia, quando esta viu frustradas as suas
sucessivas tentativas de implorar a Príamo que ele destruísse o cavalo de madeira (o Cavalo de
Troia) engendrado por Ulisses para a conquista de Troia pelo seu interior. Com a cidade já tomada
pelos Gregos, refugiou-se no templo de Atena, onde foi descoberta e violada pelo brutal Ájax.
Depois, a partilha do butim de guerra – o momento em que estamos agora, portanto – foi dada
a Agamémnon, que a levou de volta consigo para Micenas, onde seria assassinado por Egisto,
amante da rainha Clitemnestra, sua esposa. (Falsa saída)
Ah, esperem. Há mais. De acordo com a placa de número 183, no Museu de Arqueologia
de Atenas, Cassandra não foi morta em Troia ou em Micenas, como muitos acreditam, antes
ajudou na fundação de uma nova cidade na Cólquida, e teve descendência que, depois de trinta
gerações, gerou a Ágaton – o autor da placa. E é isto. Mais nada.
A primeira cena do primeiro ato era tal qual um prólogo de Ésquilo ou Eurípides. Nele se
contavam, na primeira pessoa, as origens da minha doença, desculpem, da minha maldição de
tudo saber. O cenário? Imaginem o templo de Apolo, ao cimo das escadas que levam à galeria
onde se encontra o altar principal. Há uma multidão de gente a assistir, o que há que sugerir pelas
palavras e gestos da única atriz em cena – eu. Como também há que sugerir o cheiro a incenso e
mirra, as cores dos frescos das paredes e o vento que sopra pelas janelas, limpando o ar de
qualquer impureza. Kassandra, a personagem principal, representa o papel de si mesma, já
madura, muito diva, contando a sua própria história. Meio esquizofrénico, eu sei! Leva um vestido
encarnado de seda – foi só escolher nas dezenas de roupeiros da minha mãe –, e os cabelos estão
recolhidos num toucado elaborado de muitas tranças. O tom é quase lírico. Começa assim:
Era um dia lindo e brilhante, como costumavam ser os dias em Troia, esse em que o meu
pai recebeu das entranhas da minha mãe Hécuba os corpos frágeis e ensanguentados de
Kassandra e Heleno. Não cabendo em si de alegria, o doce rei Príamo chamou todo o reino para
uma festa no Templo de Apolo, que ficava mesmo ao lado da muralha norte, orgulhoso por
mostrar à cidade os mais tenros dos seus muitos rebentos.
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(à parte) Eu sei, eu sei que o mito que ainda agora vos contei diz que eu e o meu irmão
fomos para lá brincar, já em putos, e que nos deixámos adormecer. Mas não. Ou melhor, talvez
não; nesta versão não. Continuemos.
Ainda hoje, agora mesmo, sinto o frio do mármore do altar no qual as suas mãos me
depositaram. Recordo o ouro ofuscante que revestia as paredes do templo. E aí ficámos toda a
noite, esquecidos pela multidão, a quem vencera a força do vinho sem mistura e do sono
apaziguador. O mármore frio do altar foi, para essa longa noite, o único aconchego de dois recém-
nascidos que todos proclamavam felizes. Minto, outro aconchego estava para chegar.
A noite devia ir já avançada, avançada pelo menos para duas crianças que ainda há pouco
tinham saído do ventre de sua mãe. Deviam ser umas quatro ou cinco da manhã, noite escura,
lembro-me bem, quando vi sobre mim a figura de um homem, já avançado nos anos e com uma
barba espessa, pele clara, mas enrugada, que se aproximava do meu rosto. “Papá” – disse eu sem
dizer. Mas não era Príamo essa figura imponente e sedutora. Era Apolo. Beijou-me na testa,
primeiro, e na boca em seguida, nesse mesmo dia selando um compromisso impossível de
quebrar de fidelidade cega e mortal, uma fidelidade que nada tem que ver com a partilha da
cama, com o amor ou sequer com a paixão. Apolo estava desde então unido a mim, todo ele
estava em mim e toda a minha existência, que nesse dia apenas começava, a ele devia ser
devotada.
Não tive medo. O beijo do deus foi um misto de conforto e prazer, e toda eu, todo o meu
corpo franzino tremia. Foi quando ele, afastada a sua boca da minha, me virou para a esquerda
a cabeça incapaz ainda de se suster por si própria, para o lado onde estava o meu irmão. Vi duas
serpentes que se aproximavam, com os olhos brilhantes e muito abertos, lambendo-lhe os olhos
e os ouvidos. Uma delas penetrava mesmo pela orelha direita dele e saía, prodígio inexplicável,
pela esquerda. Outra traçava dentro dele o terrível percurso entre a boca e o ânus, não
terminando ainda de entrar quando já se lhe via a cabeça sair. Mas Heleno não sentia dor. O seu
rosto de menino brilhava de contentamento enquanto as serpentes do deus lhe profanavam o
corpo gentil. Comigo foi diferente. Olharam-me com frieza e promessa de sofrimento as mesmas
feras rastejantes que tinham dado prazer ao meu irmão. Eriçaram os seus pescoços brilhantes,
preparam-se para investir sobre mim. Mas Apolo fez adormecer o meu corpo aterrorizado. E foi
assim que fui campo aberto e fecundo para esses animais enquanto dormia.
Apenas os raios de sol do dia seguinte, cruzando as muralhas e penetrando na sala nobre
do palácio, me fizeram despertar. Era de Príamo, agora sim, o rosto branco e barbudo que então
me beijava a testa ainda fria da noite anterior. A minha mãe, segurando Heleno nos braços, altiva
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e loura no seu cabelo ricamente entrançado, dirigia-se também para a minha alcofa de tecidos
debruados a ouro e mostrava-me aquele sorriso que apenas uma mãe tem para mostrar, esse
sorriso que tudo sana e tudo perdoa. E o meu pai sussurrava: “minha princesa, a minha
princesa…”
Quase esquecida do horror dessa noite, tive logo a minha primeira visão. (“tambor”) Vi o
céu que desabava sobre a sala do palácio. Um homem atava o corpo de outro homem a um carro
e com ele dava voltas sem fim às muralhas de Troia, dilacerando o cadáver para que nenhum
deus aceitasse recebê-lo. Mulheres e crianças fugiam, à pressa e entre gritos, das chamas imensas
que saqueavam as ruas, das bombas que não paravam de cair. Do alto de um monte, espetáculo
para uma multidão inimiga que assistia, uma criança, serena, lançava-se para o imenso ermo
escarpado. Em baixo, quase em simultâneo, o pescoço de uma donzela era rasgado por uma
espada afiada, e a terra, volvida em monstro que respira, sorvia-lhe o sangue, para alguns a
derradeira promessa de vingança. As sirenes que anunciam os bombardeamentos sobrepunham-
se numa sinfonia barroca, e havia no ar uma poeira suja que fazia tudo parecer a cena de um
filme dos anos cinquenta não restaurado.
A verdade é que não costuma vir cá muita gente além da quota de soldados que me cabe
atender todos os dias. Ao fim de semana são mais. Também, quem é que no seu perfeito juízo ia
querer passar algum tempo neste sítio sem personalidade nenhuma com outro propósito que
não fosse o de satisfazer o instinto e pôr-se a andar? Neste posto onde me colocaram há uns anos
– sinceramente já perdi a conta –, parece que é sempre verão. Um verão completamente
insuportável; o ar não circula, quase não há janelas e sente-se perto o cheiro do vertedouro por
onde se expulsam as águas sanitárias de toda a raça de Príamo. Lá fora já não há quase nada,
quase nada. Antes ouviam-se os pássaros e viam-se as árvores dançar ao som das brisas suaves
do vento de oeste; o ar como que tinha um sabor a flores de laranjeira. Depois a cidade foi
tomada, e tudo isso foi substituído pelo som e o cheiro a enxofre das bombas. Mas agora... agora
é ainda pior. Instaurou-se um silêncio que é demasiado assustador, demasiado gelado para o
calor que em julho costumava sentir-se nestas terras. O silêncio total é talvez a pior das ameaças.
Não há, no silêncio mais perfeito, nem deuses nem homens.
Mas às vezes recebo cartas que me vão mantendo ao corrente daquilo que no fundo já
sei. É sempre bom algum contato humano, não é? Esta manhã, por exemplo, um soldado da força
de ocupação meu amigo trouxe-me um bilhete do Filotes, um criado do meu pai. Sim, que o velho
comigo já não fala, pois tem vergonha que a filha esteja reduzida a esta condição de concubina
de guerra. (Retira o bilhete do bolso) Ah! Lembro-me bem do Filotes, dos meus tempos de menina
antes de ser encerrada aqui. Era um fulano assim bem corpulento, mãos grandes e pálidas, lábios
grossos. Vejam bem.
(Lê) Princesa Kassandra! (à parte) Puff, princesa! (volta a ler) O grande Príamo mandou
preparar refúgios dignos dos príncipes e das princesas que gerou, e quer consultar-te
especialmente a ti, pois não sabe como proceder perante um novo prodígio.
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Ah, agora é que Príamo quer os meus conselhos? Acredita afinal o meu pai nas palavras
desta tresloucada?
Quase dez anos se passaram desde que a esta terra aportaram os navios dos Helenos.
Morreu há dias o teu irmão Heitor às mãos do terrível Aquiles, despedaçado o seu corpo no asfalto
das ruas da sua cidade, da cidade sobre a qual deveria ele próprio reinar. Troia estava, ainda há
pouco, a um passo da destruição pela fome, cercada pelos homens de Agamémnon que agora,
por fim…
... que agora, ao que julgam Príamo e os anciãos da sua corte, foram vencidos pelas
saudades de casa e regressaram, partindo nas suas naus pelo mesmo mar violáceo que até cá os
trouxe. (Risos) Sinceramente!
... e deixaram, em frente às portas de bronze desta cidade, que não tombaram ainda, uma
oferenda enigmática. Um gigantesco cavalo de madeira, habilmente construído, do qual se diz
pela cidade que é um presente e uma mostra de arrependimento da parte de Agamémnon. E as
naus de negras velas já não se avistam na praia. Terão partido, é o que todos julgam.
Claro, claro. Foram-se embora, assim. Sem butim, sem pedras preciosas, sem o nosso
petróleo e sem as nossas princesas transformadas em putas de serviço? Haja paciência, Filotes!
(Levanta-se) Agora, passados tantos anos, depois de todos os meus avisos ignorados quando
ainda era tempo de evitar a desgraça, agora é que Príamo sente que deve consultar-me? Achava
mesmo que desta vez a profecia ia ser diferente? Que lhe diria que fizesse entrar o cavalo de
madeira dentro das muralhas e organizasse toda a espécie de festejos para comemorar a vitória,
antes de consagrar esse presente envenenado a Apolo e aos demais deuses desta cidade? Mas
alguma vez adiantou que eu dissesse algo, fosse o que fosse? Não ia ele fazer isso mesmo,
dissesse eu o que dissesse? Pudesse eu dizer-lhe que o queimasse, com o mesmo fogo que há de
destruir Troia quando o sol se for deitar esta noite. Oxalá esse fogo pudesse consumir cada tábua
desse animal, reduzi-lo a um imenso nada. Tarde demais. É sempre tarde demais!
(Senta-se e começa a costurar) Eu vi esse fogo há muito, e não era um cavalo nem
qualquer outra obra de madeira que dentro dele ardia. Eu mesma vi esse fogo, sim, e não eram
gregos os homens que nele queimavam. Podia lá o meu pai dar-me ouvidos, ele, o pai de um
príncipe de louros cabelos que, à nascença, ouviu da irmã ainda criança a pior das sortes? Que o
expusesse, que o expusesse às aves de rapina no mais alto promontório de Troia. O pobre do
Páris, como se ele tivesse culpa. Um menino e um rapaz que sempre teve a mais linda das caras
para compensar o mais pequeno dos paus, os mais brilhantes de quantos olhos azuis há, pelos
quais mortais e deuses entregam tudo sem pestanejar. Eu juro que tentei, mal ele nasceu, com a
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pouca força que podiam os meus braços de menina, arrancá-lo da alcofa em que dormia para o
mandar desta para melhor. Cheguei a pensar, imaginem, que podia evitar chegar a esta situação.
Que podia evitar que esse menino adorável se transformasse no demente sexual que, depois de
uma adolescência entre cabras e ovelhas, voltaria ao palácio que o vira nascer com o único fim
impensado de o destruir. Que podia evitar que Príamo o enviasse a Esparta em missão oficial,
onde não se contentaria com o harém de raparigas que havia de oferecer-lhe Menelau e violaria
a mulher do seu anfitrião, Helena. Helena, a primeira-dama de Esparta e de toda a Hélade, cujos
retratos eróticos chegavam a Troia entre os rolos de papiro que meu pai encomendava para a
biblioteca pública da cidade; retratos que ela própria mandava pintar e distribuir
clandestinamente para embriagar com a sua beleza os príncipes de todo o mundo, na esperança
de que algum a libertasse dos braços gordos e peludos e dos arrotos nauseabundo de Menelau.
Mas Helena tampouco teve a culpa. Ninguém teve a culpa: nem os homens, nem os
deuses nem o destino. Já não adianta. Nem sei para que coso eu estes uniformes, se amanhã já
não haverá soldado nenhum que os possa vestir. Troia não é mais que uma lixeira de cadáveres
a céu aberto. (Sussurrando, como quem conta um segredo.) O que há ainda para sonhar, se a esta
noite não há de suceder um amanhecer? (Apaga o candeeiro da mesa.)
IV. ANDRÓMACA
Somos cerca de trinta, as que trabalhamos aqui. Algumas não passam de meninas que
demasiado cedo tiveram que aprender à força as delícias e os horrores tutelados por Afrodite. A
mim, raptaram-me quando vinha de uma aula de teatro. A mim e a mais cinco amigas minhas,
com as quais tinha combinado encontrar-me à saída dos banhos públicos da cidade para ver,
nessa tarde de quarta-feira, os rapazes que saiam do banho e se deslocavam à palestra. Fazia
parte da nossa rotina semanal. Embora, é certo, eles não nos ligassem nenhuma. Já sabem como
é, efebos no ginásio e nos banhos públicos...
Há dias esteve cá a Andrómaca, a mulher do meu irmão Heitor. Como já tem mais de
trinta, pode deslocar-se pela cidade sem perigo de ser raptada como eu fui. Os soldados não
querem mulheres casadas que já pariram alguma vez. Buscam outra coisa.
A. Sou eu Kassandra, Andrómaca, a esposa do teu irmão Heitor. Mas não, já não sou eu!
Com ele partiu a mulher que havia em mim. Senti cada golpe do seu corpo ensanguentado nas
pedras escarpadas das ruas de Troia, quando o puxava o carro de quatro cavalos de Aquiles. E
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agora, agora mesmo, quando o sol estava para se pôr, o pior dos males sucedeu a uma mãe já
viúva. Astíanax, o pobre rebento de uma casa sem futuro, o meu menino de olhos muito vivos e
cabelos muito encaracolados, os Gregos mataram-no. O meu menino, Kassandra! O meu menino!
Ele que há poucos dias assistia, alegre e orgulhoso, enquanto o pai vestia a couraça que não mais
havia de despir com vida. No meu colo, inquieto, pressentia que seria essa a última vez que
pediria que os braços fortes e musculados do pai o segurassem, erguendo-o à luz do sol que
entrava pela janela do nosso quarto.
A. Mas não chorava. Nos seus olhos brilhava uma alegria fingida para encorajar o pai. E o
meu marido, o teu irmão, pespegava-lhe de beijos o rosto pequenino, fazendo cócegas com a
barba no seu pescocinho suave. Sabíamos os três que não haveria outra ocasião para sorrir, sim,
já sabíamos. Mas eu não podia admiti-lo, e implorava ao teu irmão de joelhos que não fosse
combater Aquiles em defesa de Alexandre. Ele é que tinha sido cobarde, ao precisar que uns
toques de ilusionista o tirassem da poeira da batalha que estava a perder. Que ficasse comigo e
com o filho, o resto dessa manhã, para na noite seguinte fugirmos pelo mar adentro, esquecidos
de Troia e dos troianos. Eu, a mulher mais amada de toda a cidade, pedi a Heitor que abandonasse
Troia quando dele mais necessitava, e nem por um segundo consigo sentir vergonha.
K. Todo o amor é egoísta Andrómaca, mesmo o de príncipes. A que vens tu aqui, afinal?
A. O teu pai...
A. ... o teu pai não conseguiu negociar com o exército a tua libertação. Troia parece estar
condenada, e o velho quer pôr a salvo as mulheres da sua família. Há meses que as forças secretas
escavam um túnel estratégico que permitirá sacar-te daqui a ti e a todas as mulheres do palácio
que os Gregos têm prisioneiras. Um túnel que nos levará a todas a um reduto desconhecido da
praia, debaixo de uma falésia, de onde esta noite mesmo partirá um navio totalmente
aprovisionado para nos levar a Tebas, a terra do meu defunto pai.
K. O meu pai? O mesmo fulano que levou dez anos a decidir resgatar a sua filha de um
bordel? A sua princesinha? Sair de Troia, hoje? Sair de Troia para salvar o quê? E tu, Andrómaca,
tão rápido te recuperaste da morte de Astíanax e do teu Heitor? O teu Heitor... é preciso ter lata!
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(Pausa) Sabes, minha querida?! Recordo bem o dia em que me apaixonei pelo meu irmão, pelo
teu Heitor! Eu devia ter uns treze anos quando Heitor começou a querer passar mais tempo
comigo, a ser mais carinhoso, a brincar aos papás e às mamãs com as minhas bonecas, não se
importando de passar horas fechado no meu quarto... tempo que roubava à palestra e às
máquinas de fitness do ginásio, fique claro! Às vezes, trazia um amigo com ele, um desses com
quem costumava divertir-se ele próprio nos balneários da palestra. Tinha bem clara, a início, a
sua função: iniciar-me na vida adulta, fazer de mim uma princesa preparada para as núpcias com
um gajo qualquer de aquém ou além-mar. Ai! Mas eu sei, eu sei que com o passar dos meses ele
começou a amar-me, a querer estar comigo a toda a hora, com a sua Kassandra, a sua irmãzinha
do coração.
(Ao público) E vocês, não fiquem assim! Estamos em 1184 a.C., em Troia – ou Bagdad, 19
de março de 2003, ou Nagasaki, 9 de agosto de 1945, dá no mesmo! Isto das relações afetivas
consanguíneas é mesmo assim. Coisa dos tempos e das geografias, a sério! O pós-estruturalismo
há de ter-nos ensinado alguma coisa, não?
(Grita.) Tu, Andrómaca, ao menos levarás contigo as memórias de uma vida feliz. Às
vezes, Andrómaca, o coração dos homens pode muito, pode atravessar oceanos num ínfimo
instante. E a memória é tudo o que restará, quando milhares e milhares de estações se
sucederem e, num tempo que existirá ainda, as crianças adormecerem a ouvir histórias
românticas acerca dos amores de Heitor e Andrómaca, para depois tentarem elas próprias vivê-
las e acabarem numa lista demasiado extensa de mulheres assassinadas pelos maridos. Poupa-
me! A história é o que quiseram dois ou três fulanos que ela fosse. E a dos mitos, então?! Balelas!
Vai, vai e salva-te a ti e ao que resta dessa memória. Mas fica a saber que era a mim que ele comia
como nunca te comeu a ti; que era este corpo agora magrela e sujo por falta de banho o que
percorria com a língua e os dentes, como quem por fim se delicia com as calorias de um doce
sempre proibido. Vai, a certeza do que te conto me basta.
V. AGAMÉMNON
(Lê num jornal) Até ao fim, a sul-coreana Kim Bok-dong continuou a batalhar para que o
Japão oferecesse reparações às centenas de milhares de mulheres que foram utilizadas como
escravas sexuais. “A última palavra audível que proferiu antes de morrer foi, na verdade, um
palavrão expressando a sua forte raiva contra o Governo japonês”, referiu a presidente de um
grupo sul-coreano de defesa dos direitos das mulheres exploradas. Já o presidente da Coreia do
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Sul, Moon Jae-in, que se deslocou ao hospital onde Kim morreu para prestar a sua homenagem,
lembrou que a mulher “ajudou-nos a ter a coragem de enfrentar a verdade”. Já no hospital, Kim
tinha acusado o governo de Shinzo Abe de cobardia por não se redimir de forma adequada.
No obituário publicado pelo New York Times lembra-se que quando a ativista fez 14 anos,
o Japão estava a meio de uma guerra com a China e que Kim foi recrutada para trabalhar numa
fábrica de roupas por oficiais japoneses e que os soldados japoneses ameaçaram a sua família
caso se recusasse. Mas em vez de ir para a fábrica foi obrigada a fazer sexo com soldados em
bordeis militares na China e, mais tarde, em Hong Kong, Malásia, Indonésia e Singapura até ao
fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. “Nos dias de semana, tinha de receber 15 soldados por
dia. Aos sábados e domingos, eram mais de 50. Fomos tratadas pior do que animais” – disse uma
vez. Depois do fim da II Guerra, em 1945, Kim voltou a casa e em 1991, começou a falar da sua
experiência e a lutar pelos direitos das mulheres escravas.
Até ao momento, 239 mulheres assumiram ter sido escravas sexuais – apenas 23 estão
vivas, a maioria na casa dos 90 anos. Em 1965, o Japão pagou 300 milhões de dólares à Coreia do
Sul como parte de um acordo que estabelecia laços diplomáticos entre os dois países. Mas em
2005, os coreanos afirmaram que aquele acordo não cobria os “atos ilegais contra a
humanidade”, como o caso das escravas sexuais. Já em 2015, Shinzo Abe assinou um acordo com
Park Geun-hye, tendo o Japão pedido desculpa a todas as mulheres usadas e pagado menos de
nove milhões de dólares a uma fundação destinada a cuidar das sobreviventes nos seus últimos
anos de vida.
Esta manhã decidiu-se em sorteio ao ar-livre, com cerveja e petiscos à fartura, a que
príncipe grego devia eu ser dada, eu e as minhas irmãs, e todas as mulheres ainda aptas para a
cama e os trabalhos domésticos de Troia. Que mania esta a das guerrilhas e forças pacifistas. Ou
seja. Primeiro matam a descendência masculina toda de um governante deposto – não vá o gajo
ter deixado instruções –, para não se propagar o sangue que reclama a vingança, dizem eles.
Então, esse sangue não corre também nas veias dos bastardos que depois vão gerar das princesas
que transformam em prostitutas? Não é um só o sangue que corre sobre nupciais cetins, no
campo de batalha ou em bordéis baratos?
Há umas horas atrás, esteve cá o Agamémnon. Veio comunicar-me o que já sabia, como
não podia ser de outra maneira. (Veste um casaco de general.) Ato terceiro.
A. Kassandra! Kassandra!
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K. Agamémnon, senhor e rei de Micenas! Pensava que tinhas partido para os braços
sempre saudosos e para o coração plangente de Clitemnestra, a esposa que em casa deixaste em
insuportável espera, outra como a mulher do Ulisses!
(Passa revista às tropas por uns segundos, ao fundo, e depois fala.) A. Pouco me importam
essas ironias de rapariguinha que não conheceu ainda garanhão à altura da sua nobreza. Troia
caiu nas mãos dos Helenos. O teu pai Príamo deixou que o seu corpo fosse consumido pelas
chamas do alto do seu palácio. As sortes foram lançadas e é comigo, o rei supremo da expedição,
que Kassandra, a tresloucada princesa de Troia, deve partir, criada e prostituta sem soldo do
melhor e mais ilustre dos homens. Vês, como Apolo não te abandonou afinal? De todos os
machos da Grécia, foi ao leito do melhor que o deus quis que fosses entregue, presa fácil e
apetecível do comandante supremo das naus que, qual enxame negro de abelhas, domou o mar
e assentou em Troia a morada do seu ilustre cortiço. Um deus por outro deus, essa afinal a tua
sorte.
K. Soubesses tu, pérfido filho de um pérfido e neto de outro pior ainda, a dimensão da
perfídia que te espera no regresso a casa. Soubesses tu da tua sorte e da dos teus, e nunca
zarparias das praias troianas para enfrentar os ventos que te conduzirão em tempo record ao
palácio de Micenas. Aqui mesmo, na cidade que reduziste a pó, ias preferir encontrar
voluntariamente a morte, destino mais honroso do que aquele que te espera.
A. Antevejo, por baixo dessas vestes sujas e rasgadas, o vigor antanho da tua pele macia,
temperado pelo sangue ressequido das feridas. Sabes, princesa, nem só de Helena circulavam
pela Hélade notícias de uma beleza imensa. Muito se falava, nos banquetes dos homens, do tom
de pele exótico e dos cabelos sedosos das donzelas da raça de Príamo. E saboroso me parece
esse corpo, ainda que débil, oferenda fácil aos caprichos de um grego que há tempo demais não
sente no seu corpo o corpo de uma mulher.
K. Apolo, atenta no que quer este homem fazer à tua esposa, à mulher que, no berço,
marcaste como tua.
A. Apolo morreu há muito, princesa, quando o furioso Aquiles degolou a sua estátua com
um só golpe de espada certeiro. Não há qualquer deus que neste momento vele sobre Troia, a
cidade que deixará esta noite mesmo de existir. Que tínhamos partido, nós, sem mais; nisso
acreditaram todos os Troianos. Meninos de colo! Julgava Príamo que abandonaríamos Troia se
no primeiro dia tivesse entregado a devassa esposa do meu irmão ao seu marido legítimo? Nesse
mesmo dia teríamos entrado na cidadela com a maior força de homens que o mundo oriental
alguma vez viu. Como pôde Príamo, o rei cuja sabedoria lendária chegava às margens do Egeu,
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K. (Despe o casaco) Fica sabendo, meu rei, que acertaste em cheio no alvo do teu destino.
Mas enfim... poderosa é a espada assassina de Agamémnon! Como poderia eu, uma
simples princesa obrigada a coser para as tropas, fazer frente à vontade do mais valente dos
homens? Da descendência de Troia, ao que parece, fui a única que os deuses quiseram poupar.
Morreram já os meus irmãos varões, e amante de homens inferiores hão de ser as minhas irmãs
e todas as mulheres. Até a minha mãe, e já passou dos sessenta, a pobre Hécuba! Sim, é outra a
minha sorte. Irei, irei com este para Micenas, onde ungirei o seu corpo com os mais delicados
perfumes troianos no banho merecido pelo regresso, o banho do esquecimento.
(Em transe.) Micenas. Uma noite como tantas outras. Um crime sem precedentes está
para acontecer. Um homem avança com uma bandeja de prata trabalhada nas mãos. É Atreu, o
pai do fulano que ainda há pouco saiu daqui, que prepara para o irmão Tiestes o mais indigesto
dos banquetes. Duas crianças – sete, oito anos, mais ou menos – que há bocadinho brincavam
no pátio do palácio sob o olhar sempre atento do seu precetor, ei-las feitas em pedaços miúdos
de carne temperada com sal e pimenta, nada mais. O main course da ceia dessa noite; uma delícia
para o apetite faminto do pai os ossinhos que esmaga e com os quais palita os dentes. Hummm!
Dos cantos da sua boca escorrem fios de sangue da carne malpassada. E o homem bebe vinho
sem mistura de água, para acalmar o estômago que uma vez e outra se lhe revolve e manifesta
num arroto.
soberano, para ti, o filho do pior dos homens, neto de quem entrou na ementa dos deuses e
bisneto de quem ousou enganar os próprios deuses, para ti está a preparar-se uma morte
especial. Gemerás como o peru a quem se rasga a garganta em dia de Ação de Graças.
VI. HÉCUBA
(Delira e vê a mãe) Mãe, mãe? Mãe? És tu quem eu vejo, sem te ver, querida Hécuba? A
mais querida das mães que sempre tudo sabem e ocultam. Vieste, vieste até mim neste dia de
felicidade, mãe! Não, não olhes para a tua princesa que não conseguiu ser a princesa que tu
querias, não toques no rosto que as lágrimas já não humedecem da tua filha desgraçada. Mas tu
tocas-me. Tocas-me com o mesmo carinho que senti da tua mão sempre suave e quente no dia
em que vim ao mundo, uma mão capaz de acalentar qualquer corpo franzino regelado pelos
ventos de inverno que costumam soprar cá em Troia. E os teus olhos não estão cheios de
lágrimas, não, antes da alegria que nesse dia os inundava. Porque sempre ansiaste, afinal, por
este dia derradeiro em que pudesses por última vez tocar sem tocar o rosto da tua filha, olhar
sem olhar para os seus olhos pequeninos que, aos teus olhos, nunca cresceram.
Eu parto hoje mãe. Partimos ambas, porque não só o que parte se afasta. Mas não há
entre nós lugar para lágrimas. Vamos, mãe, ajuda-me com os preparativos do meu casamento.
Toma, toma estas pétalas de flores, para lançares à passagem do meu cortejo nupcial, rumo à
negra nau que me levará ao palácio de ouro e diamantes de Micenas! Já estão secas... é que não
saio há muito. A rua dá-me medo, sobretudo nos últimos meses. Tinha apanhado malmequeres
e violetas, como em criança me ensinaste, temperando o branco de uma flor com o vermelho-
sangue da outra. Vamos. Mas antes dá banho ao corpo da tua filha que em breve cruzará o
oceano para desposar num palácio dourado.
(Insistente) Vamos querida Hécuba, prepara a tua filha para a mais merecida e aguardada
das bodas. (Sussurrando) Ouvi contar que nesse palácio além-mar para onde vou, há também,
como em Troia, incontáveis riquezas de ouro e de púrpura, mãe. E que aí os homens se vestem e
ornam como deuses, bebendo vinho puro e comendo, sem medos, as carnes que lhes são fiéis.
Que melhor sorte poderia eu esperar, afinal, eu que viverei morta entre riquezas sem fim e no
chão de uma terra hostil verterei o sangue vertido dos meus?
Vamos mãe, dá um beijo na testa desta noiva, a última das filhas que pariste. Em Micenas
estará, na loucura das minhas profecias, a nossa Troia que lá fora já não existe. Com Kassandra
partem os sonhos de uma donzela e as esperanças de uma cidade. Agora vai, mãe. A tua filha tem
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que partir, tem que lançar nas asas de um vento caro aos marinheiros as esperanças de uma vida
que não viveu. Um beijo mais, e um abraço, um abraço que tem, como todos os abraços, que
soltar-se um dia. Um abraço... e adeus!
VII. EPÍLOGO
Gil Won Ok. 79 anos. Coreia do Norte. Com apenas 13 anos, fui levada para o nordeste da
China, com uma promessa de emprego numa fábrica. Mas fui enclausurada num posto de
conforto, humilhada, explorada, convertida em escrava sexual. Durante esse período, contraí
sífilis e surgiram-me vários tumores. Foi-me retirado o útero, o que me impediu de alguma vez
ter filhos.
Ellen van der Ploeg. 84 anos. Países Baixos. Aquando da eclosão da Segunda Guerra Mundial,
vivia na atual Indonésia com a minha família. Entre 1943 e 1946, percorri cinco campos de
refugiados, nos quais fui violada reiteradamente. Fui depois levada pelas forças japonesas para
um posto de conforto, onde fiquei gravemente subnutrida e fui sexualmente explorada.
Menen Castillo. 78 anos. Filipinas. Aos 13 anos, fui raptada pelos soldados nipónicos e levada
para a minha escola, convertida num quartel militar e num posto de conforto. Durante quatro
dias, fui violada repetidamente, regressando a casa traumatizada e doente.
FIM