Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Homenagem a M.F. Sousa e Silva

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 750

MISCELÂNEA DE

ESTUDOS
EM HONRA DE
MARIA DE FÁTIMA SILVA
Volume I

FREDERICO LOURENÇO
SUSANA MARQUES
(COORD.)
Este volume reúne estudos diversos nas áreas das Literaturas Grega e

Latina, Cultura, Filosofia, Arte, Linguística, Antiguidade Tardia, Idade

Média, Humanismo, Receção dos Clássicos e Literatura Portuguesa

Contemporânea.
I N V E S T I G A Ç Ã O
edição
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensa@uc.pt
URL: http//www.uc.pt/imprensa_uc
Vendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt

coordenação editorial
Imprensa da Universidade de Coimbra

C onceção gráfica
Imprensa da Universidade de Coimbra

revisão
Daniela Pereira

I magem da C apa
Laura Adai - Unsplash

I nfografia
Margarida Albino

E xecução G ráfica
KDP

ISBN
978-989-26-2144-9

ISBN D igital
978-989-26-2145-6

DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-2145-6

Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para
a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UIDB/00196/2020
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra

© junho 2022, I mprensa da U niversidade de C oimbra


MISCELÂNEA DE
ESTUDOS
EM HONRA DE
MARIA DE FÁTIMA SILVA
Volume I

FREDERICO LOURENÇO
SUSANA MARQUES
(COORD.)
(Página deixada propositadamente em branco)
Sumário

PREFÁCIO.................................................................................... 9
PUBLICAÇÕES DE MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA. . ................ 11
TABVLA GRATVLATORIA............................................................. 27

LITERATURA GREGA................................................................... 31

A paleta homérica – Ana Paula Pinto & João Carlos Onofre Pinto.....33

Hearts and Minds in Greek Tragedy: Metanoia in Text and


Performance – Lorna Hardwick. . ....................................................67

¿Monodein: threnein? Tradiciones poéticas en la monodia


trágica – Milagros Quijada Sagredo................................................85

La caída de troya y el campo semántico de kairós en Agamenón


de Esquilo – Graciela Zecchin de Fasano..................................... 105

Las guerras de Esquilo y el léxico de la violencia contra las


mujeres – Marta González González............................................. 123

O que os olhos veem na Helena de Eurípides – Jorge Deserto...... 143

Troia, paradigma de cidade aniquilada na tragédia grega


– Félix Jácome Neto. . ..................................................................... 163

De volta ao aguilhão das vespas. Origens e fortuna de um


motivo aristofânico – Carlos A. Martins de Jesus.. ....................... 185

Aristófanes e Platão: do poder das mulheres na pólis. Paródia


e Utopia – Rui Tavares de Faria.................................................... 209

As palavras do mundo heroico na epopeia alexandrina


– Ana Alexandra Alves de Sousa. . .................................................. 231

A dívida de A Feiticeira de Teócrito ao fragmento PSI 1214


de Sófron – Cláudia Cravo............................................................ 249

5
Ecos da Comédia Nova em Flávio Josefo (AJ 18.65-80) – Nuno
Simões Rodrigues.......................................................................... 259
O vinho como fonte de prazer e elixir de males, em três
epístolas de Álcifron – Adriano Milho Cordeiro.......................... 283
Evolução no tempo e no espaço: Plutarco e a ação de Alexandre
perante os bárbaros derrotados – Delfim F. Leão
& Ália Rodrigues. . .......................................................................... 299
Plutarco e Heródoto: entre biografia e história –
Joaquim Pinheiro........................................................................... 321

LITERATURA LATINA................................................................. 339

Amphitruo de Plauto y la construcción de la “romanidad” –


Aldo Rubén Pricco......................................................................... 341

O cinismo, Menipo e a identidade romana. Os testemunhos


de Diógenes Laércio, Cícero e Varrão – Paulo Sérgio
Margarido Ferreira......................................................................... 363

Montanhas em Plínio o Antigo – Francisco Oliveira........................ 389

A mesa como elemento caracterizador e identitário na Roma


do poeta Marcial – José Luís Brandão.. ........................................ 435

Visión de aspectos del teatro grecorromano en Apuleyo Met. X


– Aurora López & Andrés Pociña................................................... 463

FILOSOFIA................................................................................ 481

Aristóteles, Sócrates y los socráticos sobre la riqueza – Javier


Campos Daroca. . ............................................................................ 483

Um Ângulo Morto da Memória? Maine de Biran sobre


a Reminiscência, a Memória e os seus Fantasmas – Luís
António Umbelino.. ........................................................................ 503

CULTURA.................................................................................. 517

Festa e Banquete: a fórmula ugarítica de assembleia dos deuses


– José Augusto Ramos................................................................... 519

La fuerza a-cósmica. La amenaza de Tifón y el poder de Zeus


– María Cecilia Colombani............................................................. 541

6
ARTE . . ....................................................................................... 557

Corpos atléticos gregos – Fábio de Souza Lessa.............................. 559

O grande Serapeum de Alexandria: Esboço de reconstituição


– Rogério Sousa............................................................................. 581

De novo sobre o vaso de vidro de Odemira e o porto de


Pvteoli (Pozzuoli) – Vasco Gil Mantas. . ........................................ 611

LINGUÍSTICA . . ........................................................................... 649

O lugar do input linguístico e metalinguístico em teorias de aqui-


sição/aprendizagem de línguas não maternas.
Implicações pedagógicas – Cristina Martins................................ 651

Desvios linguísticos na aquisição do português por falantes


estrangeiros: o caso particular dos aprendentes chineses
– Maria Carmen de Frias e Gouveia. . ............................................. 673

ANTIGUIDADE TARDIA.............................................................. 697

Basilio ante el Teatro. Mimesis y Katharsis Cristiana


vs Mimesis y Katharsis Dramática – Aurelio Pérez Jiménez...... 699

Paximathivm: traçando o caminho de uma tipologia de pão


na tradição romano-mediterrânica tardia – Paula Barata Dias.... 719

7
(Página deixada propositadamente em branco)
P r e fác i o

Para homenagear a jubilação em 2020 da Professora Doutora


Maria de Fátima Sousa e Silva, o Centro de Estudos Clássicos e
Humanísticos e a Secção de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra organizaram a presente Miscelânea de
Estudos. A feição multidisciplinar e internacional do volume reflete
a abrangência que tem orientado a carreira académica da Doutora
Maria de Fátima Silva: não obstante o seu principal teatro de atuação
ter sido a Universidade de Coimbra (de que foi Vice-Reitora), várias
outras universidades e escolas não universitárias (na Europa, nas
Américas e em África) puderam beneficiar do seu magistério, não só
em colóquios especializados, como em cursos sob a forma de ciclos
de conferências. Esse magistério foi refletindo a feição transdisciplinar
das suas leituras, pesquisas e publicações: à tradução e ao estudo da
Literatura Grega (de várias épocas e géneros), veio depois juntar-se
um interesse crescente pelos Estudos de Receção.
Gostaríamos de agradecer aos Professores Doutores Delfim Ferreira
Leão e Carmen Soares o apoio que deram à concretização deste
volume. Deixamos também o nosso agradecimento à Dra. Daniela
Pereira, pelo contributo dado ao processo de edição. À própria
Homenageada, agradecemos-lhe a sua brilhante carreira como pro-
fessora e investigadora, assim como a generosidade com que sempre
pôs ao dispor de outros a riqueza da sua experiência e a amizade
dos seus conselhos.

Frederico Lourenço
Susana Marques Pereira

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_0
(Página deixada propositadamente em branco)
P u b l i c aç õ e s d e M a r i a d e F át i m a S o u s a
e S i l va

MARIA DE FATIMA DE SOUSA E SILVA


Porto, 18.08.1950

Percurso Escolar e Académico


1957-1968
Estudos primário e secundário, Porto, Colégio de Nossa Senhora da Esperança
1968-1973
Licenciatura em Filologia Clássica, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
1974
Tese de Licenciatura – O Díscolo de Menandro (Introdução, tradução e notas), elaborada
sob a orientação da Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira.
1984
Doutoramento em Literatura Grega – Crítica Literária na Comédia Grega. Género
dramático
1992
Provas de Agregação: Lição – O sacrifício voluntário. Teatralidade de um motivo
euripidiano
1992
Nomeação como Professora Catedrática a título definitivo.

Publicações
Traduções

1978
Aristófanes. As mulheres que celebram as Tesmofórias. Coimbra: INIC.
1980
Aristófanes. Os Acarnenses. Coimbra: INIC.

11
1984
Aristófanes. A Paz. Coimbra: INIC.
1985
Aristófanes. Os Cavaleiros. Coimbra: INIC.
1988
Aristófanes. As Mulheres no Parlamento. Coimbra: INIC.
1989
Aristófanes. As aves. Lisboa: Edições 70.
Menandro. O Díscolo. Coimbra: INIC.
1994
Heródoto. Histórias. Livro I (em colaboração com M. H. Rocha Pereira e José Ribeiro
Ferreira). Lisboa: Edições 70.
1996
Cáriton. Quéreas e Calírroe. Lisboa: Cosmos.
1997
Heródoto. Histórias. Livro III (em colaboração com Carmen Soares). Lisboa: Edições 70.
1998
Eurípides. Ifigénia em Áulide, introd. e trad. de C. A. Pais de Almeida, com revisão
e notas de M. F. S. S. Coimbra: Gulbenkian / JNICT.
1999
Teofrasto. Os Caracteres. Lisboa: Relógio d’Água.
2000
Menandro. A Rapariga de Samos. Madrid: Ediciones Clásicas.
Aristófanes. Os cavaleiros. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
2001
Heródoto. Histórias. Livro IV (em colaboração com Cristina Abranches). Lisboa:
Edições 70.
2002
Aristófanes, Lisístrata. Madrid: Ediciones Clásicas.
2006
Aristóteles. História dos animais I. Lisboa: INCM.
Aristófanes. Comédias I. Lisboa: INCM.
2007
Menandro. Obra completa. Lisboa: INCM.
Heródoto. Histórias. Livro V (em colaboração com Cristina Abranches). Lisboa:
Edições 70.
2008
Aristóteles. História dos animais II. Lisboa: INCM.
2010
Aristóteles. Partes dos animais. Lisboa: INCM.
Aristófanes. Comédias II. Lisboa: INCM.

12
Aristófanes. Comédias II. Lisboa: INCM.
Eurípides. Tragédias II (coord.). Lisboa: INCM.
2014
Aristófanes. Rãs. Coimbra: IUC.
Teofrasto. Caracteres. Coimbra: IUC / Annablume.
2015
Aristófanes. O dinheiro. Coimbra: IUC.
2016
A História das plantas de Teofrasto (em colaboração com Jorge Paiva). Coimbra:
Gulbenkian / IUC.
2017
Plutarco. Epítome da Comparação de Aristófanes e Menandro (em colaboração com
Ana M. Pompeu, M. Aparecida Silva). Coimbra: IUC.
2018
Pseudo-Eurípides. Reso. Coimbra: IUC.
Eurípides. Tragédias III (coord.). Lisboa: INCM.
2019
Aristófanes. Comédias III. Lisboa: INCM.
Plutarco.Vidas Paralelas.Alexandre e César (em colaboração com J. L. Brandão). Coimbra:
IUC.
2020
Teofrasto. Causas das plantas (em colaboração com Jorge Paiva). Coimbra: IUC.
2021
Aristóteles. Geração dos Animais. Lisboa: INCM.

Estudos de Literatura Grega

1977
“A Pnix aristofânica”, Humanitas 29-30: 121-143.
1979
“A posição social da mulher na comédia de Aristófanes”, Humanitas 31-32: 97-113.
1985
“Elementos visuais e pictóricos na tragédia de Eurípides”, Humanitas 37-38: 9-86.
1986
“Políticos e mulheres na comédia grega”, Línguas e Literaturas 3: 127-151.
1987
Crítica do teatro na comédia antiga. Coimbra: INIC.
“Crítica à retórica na comédia de Aristófanes”, Humanitas 39-40: 43-104.

13
“Comédia grega antiga – um conceito de cómico”, Revista da Universidade de Aveiro
4-5: 89-111.
1991
O teatro de Aristófanes (em colaboração com Francisco de Oliveira). Coimbra: FLUC.
“Sacrifício voluntário. Teatralidade de um motivo euripidiano”, Biblos 67: 15-41.
1993
“Etéocles de Fenícias. Ecos de um sucesso”, Humanitas 45: 49-67.
1995
“Dario, o Grande-Rei, personagem em Histórias de Heródoto”, Máthesis 4: 63-88.
”A história de Polícrates de Samos. Mais um capítulo na biografia da humanidade”,
Humanitas 47: 55-70.
”Ecos da tradição na viagem cómica de Dioniso em Rãs”, in As Línguas Clássicas –
Investigação e Ensino II. Coimbra, FLUC: 129-146.
“Mulheres na Assembleia. Embrião de uma nova fase na evolução do género cómico”,
Biblos 71: 35-53.
1996
“Execução dramática do tema ‘viagem’ na comédia de Aristófanes”, Máthesis 5: 105-121.
“Philia e suas condicionantes na Hécuba de Eurípides”, in Eros e Philia na Cultura
Grega. A. Nascimento, V. Jabouille, F. Lourenço (eds.). Lisboa, CEC: 127-143.
1997
Crítica do teatro na Comédia Antiga, 2 ed. Lisboa: Gulbenkian / JNICT.
“L’esclave dans la comédie d’Aristophane: potentialités d’un type populaire”, in
Aristophane: La langue, la scène, la cité. P. Thiercy, M. Menu (eds.). Bari, Levante
Editori: 229-242.
“Cambises no Egipto. Crónica de um rei louco’, in Historiografía y Biografía. J. A.
Sánchez Marín, J. Lens Tuero, C. López Rodríguez (eds.). Madrid, Ediciones Clásicas:
1-14.
“O sério e o risível em Mulheres na Assembleia’, in Sociedad Política y Literatura:
Comédia Griega Antigua. A. López Eire (ed.). Salamanca, Logo: l73-181.
“No inferno com Luciano’, in Actas do II Colóquio Clássico. J. M. Torrão (ed.). Aveiro,
Universidade de Aveiro: 25-43.
1999
“O estrangeiro na comédia grega antiga”, Humanitas 51: 23-48.
2000
“La comédie, l’art le plus difficile entre tous”, in Le rire des Grecs. M.-L. Desclos (ed.).
Grenoble, Millon: 357-368.
“O desafio das diferenças étnicas em Heródoto. Uma questão de inteligência e de
saber.1”, Humanitas 52: 3-26.
2001
“O soldado fanfarrão. Potencial cómico de um modelo épico”, Florentia Iliberritana
12: 365-392.
“O desafio das diferenças étnicas em Heródoto. Uma questão de inteligência e de
saber.2”, Humanitas 53: 3-48.

14
2002
“A voz do Autor na Comédia Greco-Latina”, in Márcaras, Vozes e Gestos: nos caminhos
do teatro clássico. M. F. Brasete (ed.). Aveiro, Universidade de Aveiro: 179-199.
“Aristófanes crítico da poesia”, Classica 24: 37-58.
“A visão do outro. Configuração colectiva dos Persas em Heródoto”, Cadmo 12: 195-
210.
2003
“O retrato cómico da vida conjugal em Aristófanes”, in Presença de Vítor Jabouille. A.
Ventura (ed.). Lisboa, FLUL: 371-392.
“Dinheiro e sociedade (Teofrasto, Caracteres)”, in Sátira, paródia e caricatura: da
Antiguidade aos nossos dias. C. M. Mora (ed.). Aveiro, Universidade de Aveiro: 91-
104.
“La figura de Ulises en el Filoctetes de Sófocles: un paradigma de la retórica
contemporânea”, in La dimension retórica del texto literário. H. Beristáin, G. Ramírez
Vidal (eds.). Ciudad de México, UNAM: 7-21.
2004
“Ecos da Odisseia na Helena de Eurípides”, Máthesis 13: 227-242.
“Os Cavaleiros de Aristófanes. Um padrão de caricatura biográfica do político’, in O
retrato e a biografia como estratégia de teorização política. A. Pérez Jiménez, M. C.
Fialho (eds.). Coimbra, IUC: 23-35.
2005
“O motivo do sonho no romance de Cáriton”, in O romance antigo. Origens de um
género literário. F. Oliveira, P. Fedeli, D. Leão (eds.). Coimbra, IUC: 49-62.
“Ilíada, um terreno de glória”, Minerva (Valladolid) 18: 25-38.
“Representações de alteridade no teatro de Eurípides: o bárbaro e o seu mundo”, in
Génese e Consolidação da Ideia de Europa. I. M. H. Rocha Pereira, M. C. Fialho, M.
F. Silva (eds.). Coimbra, IUC: 187-237.
“O estrangeiro na Comédia Grega Antiga”, in Génese e Consolidação da Ideia de Europa.
I. M. H. Rocha Pereira, M. C. Fialho, M. F. Silva (eds.). Coimbra, IUC: 239-264.
“Sentido de permanência e o risco de esquecimento de Sófocles’, in Sófocles. XXV
Centenário do nascimento. A. Nascimento (ed.). Lisboa, Colibri: 15-22.
“Nomos e sexo na comédia de Aristófanes”, Humanitas 57: 39-55.
Ensaios sobre Eurípides. Lisboa: Cotovia.
Ésquilo, o primeiro dramaturgo europeu. Coimbra: IUC.
“Eurípides, Orestes. Crime, remorso e justiça”, in Vt par delicto sit poena: crime e justiça
na Antiguidade. C. M. Mora (ed.). Aveiro, Universidade de Aveiro: 67-81.
2006
“Menandro e a comédia grega – o fim de um trajecto”, in Estudios sobre Terencio. A.
Pociña, B. Rabaza, M. F. Silva (eds.). Granada, Universidad de Granada: 13-43.
“La puerta en la comedia de Aristófanes. Una entrada para la utopia”, in El Teatro
Greco-Latino y su recepción en la tradición ocidental. F. De Martino, C. Morenilla
(eds.). Bari, Levante Editori: 619-636.
“Vamos rir com Luciano”, Máthesis 15: 221-239.
“Eurípides, a voz poética de um povo de marinheiros”, in Mar Greco-latino. F. Oliveira,
P. Thiercy, R. Vilaça (eds.). Coimbra, IUC: 83-109.

15
“O brilho do ouro e o fulgor da glória: Olímpica I”, in Ensaios sobre Píndaro. F. Lourenço
(ed.). Lisboa, Cotovia: 13-33.
2007
“’Philia’ e ‘kléos’ em Ifigénia em Áulide”, Euphrosyne 35: 13-26.
“Eurípides crítico teatral’, in Teoría y práctica de la composición poética en el mundo
antiguo y su pervivencia. E. Suárez de la Torre (ed.). Valladolid, Universidad de
Valladolid: 125-141.
Ensaios sobre Aristófanes. Lisboa: Cotovia.
“Expressão dramática do tema ‘viagem’. A Ifigénia entre os Tauros de Eurípides”, Classica.
Revista Brasileira de Estudos Clássicos 17-18: 143-154.
“Ser ateniense, uma honra em risco? O testemunho de Acarnenses de Aristófanes”,
Letras Clássicas 7 (São Paulo): 35-48.
“Bacantes de Eurípides. Símbolos em confronto”, Synthesis 14: 11-30.
“A arte de construir o sucesso. Persas e Gregos em Salamina”, Studia Philologica
Valentina 9, n. s. 6: 111-130.
“Eurípides misógino”, in Las personas de Eurípides. F. J. Campos Daroca, F. J. García
González, J. L. López Cruces, L. Romero Mariscal (eds.). Amsterdam, Hakkert: 133-
190.
“O feminino em Aristófanes”, Florentia Iliberritana 18: 399-419.
“Um deus em busca de identidade: Dioniso em Rãs”, Minerva 20: 53-64.
“’Aqui’ e ‘lá’: a construção de uma utopia em Aves”, Máthesis 16: 81-95.
“Helena, um exemplo de futilidade feminina e de exotismo bárbaro”, in O mito de
Helena de Tróia à actualidade. I. J. V. Bañuls, M. C. Fialho, A. López, F. De Martino,
C. Morenilla, A. Pociña, M. F. Silva (eds.). Coimbra, IUC: 89-103.
“O trabalho feminino na Grécia antiga”, Classica (SBEC) 20. 2: 182-201.
2008
“La Fedra de Eurípides. Eco de un escándalo”, in Fedras de ayer y de hoy. Teatro, poesía,
narrativa y cine ante un mito clásico. A. Pociña, A. López (eds.). Granada, Universidad
de Granada: 105-123.
“Padre e hijo: una pareja cómica tradicional. Daitales de Aristófanes”, Cuadernos de
Filología Clásica. Estudios Griegos e Indoeuropeos 18: 233-247.
“Mensagens, cartas e livros no teatro grego antigo”, in Helénicos. Estudos em homenagem
do Prof. Jean-Pierre Vernant (1914-2007). M. C. Matos (ed.). Lisboa, Revista Portuguesa
do Livro e da Leitura: 227-260.
“A técnica do trajo: Uma lição ao vivo de crítica teatral em Aristófanes”, Cadernos do
Ceia 2 (Niterói, UFF): 106-128.
“El Penteo de Las Bacantes. El fracaso del poder”, in Teatro y Sociedad en la Antiguedad
Clásica: Las relaciones del poder en época de crisis. F. De Martino, C. Morenilla
(eds.). Bari, Levante Editori: 369-386.
“As Nuvens de Aristófanes: um texto fundador do teatro científico europeu”, Biblos n.
s. 6: 57-72.
“Epinício 11 de Baquílides a Alexidamo de Metaponto, luta de rapazes, Jogos Píticos”,
Humanitas 60: 45-55.
“O retrato dramático do sistema judicial ateniense. Factores de bloqueio e de corrupção”,
Florentia Iliberritana 19: 313-335.

16
“Eneias, um herói da Ilíada”, Cadmo 18: 121-132.
2009
“Sexo e sociedade. A Lisístrata de Aristófanes”, in A Sexualidade no Mundo Antigo. J.
A. Ramos, M. C. Fialho, N. S. Rodrigues (eds.). Lisboa, CECH, CH: 279-291.
“A ágora de Atenas. Coração de uma urbe cosmopolita’, in Espaços e paisagens.
Antiguidade clássica e heranças contemporâneas. I. F. Oliveira, C. Teixeira, P. Barata
Dias (eds.). Coimbra, IUC: 43-48.
“Sob o sol quente de Atenas”, in O sol Greco-romano. M. C. Fialho, J. Encarnação, J.
Alvar (eds.). Coimbra, IUC: 63-76.
“Conflicto de generaciones en la casa de los Atridas. La version de Esquilo de una vieja
tradición”, in Teatro y Sociedad en la Antiguedad Clásica. Legitimación e
institucionalización política de la violência. F. De Martino, C. Morenilla (eds.). Bari,
Levante Editori: 355-372.
“Heródoto e a guerra. Um desafio à sophrosyne”, Cadmo 19: 171-179.
“Língua, identidade e convivência étnica nas Histórias de Heródoto”, Humanitas 61:
59-82.
“O difícil fluxo de gerações: mito e progresso na Cultura Grega”, Revista Portuguesa
de Psicanálise 29. 1: 121-140.
2010
“A fortuna de um autor chamado Menandro”, Revista Portuguesa de História do Livro
24: 31-60.
“Euripides’ Orestes: the chronicle of a trial”, in Law and Drama in Ancient Greece. E.
M. Harris, D. Leão, P. J. Rhodes (eds.). London, Duckworth: 77-93.
-Tragic heroines on Ancient and Modern Stage. M. F. Silva, S. Marques (eds.). Coimbra:
IUC.
“Crimes no feminino nas Histórias de Heródoto”, in Dic mihi, Musa, Virum. Homenaje
al Professor Antonio López Eire. F. Cortés Gabaudan, J. V. Méndez Dosuna (eds.).
Salamanca, Universidad de Salamanca: 645-652.
“Os Cavaleiros. Retrato de um grupo social”, Revista Portuguesa de História do Livro
25: 131-140.
“O caso de Orestes: dois tribunais, duas sentenças”, in Retórica e Teatro. A palavra em
acção. B. F. Pereira (ed.). Porto, Universidade do Porto: 43-61.
“Helena en tiempo de guerra: símbolo de muerte e artifice de salvación”, in La
redefinición del role de la mujer por el escenario de la Guerra. F. De Martino, C.
Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 309-324.
“La Commedia Antica. Un canale de pubblicità nella polis”, in Antichità y pubblicità.
F. De Martino (ed.). Bari, Levante Editori: 261-306.
“Euripides y el espectáculo de la violência”, in Mito y Performance. De Grecia a la
Modernidad. A. M. González de Tobía (ed.). La Plata, Centro de Estudios Helénicos:
109-129.
“Heródoto e o Oriente: uma lição de história”, Phoînix 16.2: 41-59.
“O Nilo na literatura grega”, Cadmo 20: 369-391.
“Euripides and the profile of an ideal city”, in Il quinto secolo. Studi di filosofia antica
in onore de Livio Rossetti. S. Giombini, F. Marcacci (eds.). Città del Castelo, Aguaplano:
603-616.

17
2011
“Delfos, um lugar de peregrinação. Eurípides, Íon”, Humanitas 63: 89-103.
“Una adaptación de la trophos en la novella de Caritón”, in La Mirada de las mujeres.
F. De Martino, C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 403-420.
“The foreigner living in Athens: a dramatic type character of the last quarter of the 5 th
century BC”, in Estudios sobre Tragedia Griega: Eurípides, el teatro griego de finales
del siglo V a. C. y su influencia posterior. M. Quijada Sagredo (ed.). Madrid, Ediciones
Clásicas: 201-218.
“Eurípides, um precursor do romance grego”, Calíope 21 (UFRJ): 9-27.
2012
“Comédia e comida: Aristófanes e o quotidiano alimentar ateniense”, in Práticas
alimentares no Mediterrâneo antigo. R. Cândido (ed.). Rio de Janeiro, NEA/UERJ:
170-194.
“O plágio: um mal na comédia grega do séc. V a. C.?”, in Mundus uult decipi. Estudios
interdisciplinares sobre falsificación textual y literária. J. Martínez (ed.). Madrid,
Ediciones Clásicas: 379-388.
“El Télefo de Euripides. Motivos de un éxito’, in Textos fragmentarios del teatro griego
antiguo: problemas, estudios y nuevas perspectivas. A. Melero, M. Labiano, M.
Pellegrino (eds.). Lecce, Pensa Multimedia: 213-235.
“A rainha regente, um ‘tipo’ esquiliano”, in El logos femenino en el teatro. F. De Martino,
C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 303-322.
“Ésquilo, Suplicantes. Um exercício de mestria cénica”, Humanitas 64: 21-41.
“O futuro de Atenas em mãos femininas: Eurípides, Íon”, in Narrativas do poder feminino.
M. J. Lopes, A. P. Pinto, A. Melo, A. Gonçalves, J. A. Silva, M. Gonçalves (eds.). Braga,
Universidade Católica Portuguesa: 67-78.
“O Hades e a polis: o tema utópico da catábase”, Kleos (UFRJ) 16-17: 13-45.
“Reinventar a cidade nas Aves de Aristófanes”, Phoînix 18. 2 (UFRJ): 49-61.
“Registo e memória. Arriano e Plutarco sobre Alexandre”, in Mnemosyne kai sophía. J.
A. Ramos, N. S. Rodrigues (eds.). Coimbra, IUC: 127-148.
2013
“Madres de Guerra. Eurípides, Andrómaca y Troyanas”, in Palabras sabias de mujeres.
F. De Martino, C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 361-376.
“The rhetorical agon as dramatic condiment in the Epitrepontes of Menander”, in Retórica
y discurso en el Teatro Griego. M. Quijada Sagredo, M. C. Encinas (eds.). Madrid,
Ediciones Clásicas: 261-278.
“On the trail of Alexandria’s founding”, in Alexandria ad Aegyptum. The legacy of
multiculturalism in Antiquity. R. Sousa, M. C. Fialho, M. Haggag, N. S. Rodrigues
(eds.). Biblioteca de Alexandria, CITCEM, CECH: 20-34.
“Da democracia à politeia: a imagem de uma velha conquista europeia”, in Representações
da República. L. M. Bernardo, L. Santa Bárbara, L. Andrade (eds.). Lisboa, Húmus:
189-199.
“Da violência à civilização. Hércules, o Super-homem da Antiguidade”, Humanitas 65:
9-26.
“Penteu de Bacantes: o fracasso do poder”, in A representação dos deuses e do sagrado
no teatro greco-latino. A. Duarte, Z. Cardoso (eds.). São Paulo, FFLCH: 139-159.

18
2014
“Cativas de Guerra: a extrema degradação do estatuto social da mulher”, Sapere Audi
5. 9: 69-88.
“Osadías dramáticas en Eurípides. El Frigio en el Orestes”, in A la sombra de los héroes.
F. De Martino, C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 269-283.
“O pirata no romance grego: um modelo de marginalidade e vandalismo”, in Violência
e transgressão: uma trajetória da Humanidade. F. Oliveira, M. F. Silva, T. V. Barbosa
(eds.). Coimbra, IUC / Annablume: 149-170.
“Atenas. Perfil de uma cidade modelo”, Delphica 2: 5-17.
“Medo e esperança em Tucídides: dois factores dinâmicos de progresso e de história’,
in Symbolon III. Medo e esperança. B. F. Pereira, J. Deserto (eds.). Porto, Universidade
do Porto: 19-30.
2015
“Dinheiro e sociedade. Aristófanes, Pluto”, in Hygieía kaì gélos. Homenaje a Ignacio
Rodríguez Alfageme. J. Ángel y Espinós et alii (eds.). Zaragoza, Libros Pórtico: 753-
764.
“Tipos citadinos nos Acarnenses de Aristófanes”, Phoînix 21. 1: 55-71.
“La pareja de esclavos: una apertura convencional en la comedia antigua”, in Teatro y
Sociedad en la Antiguedad Clásica. En el umbral de la obra. Personajes y situaciones
en el prólogo. F. De Martino, C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 279-293.
“Koinonia e politeia: a função das mulheres na polis. Aproximações e diferenças entre
as Mulheres na Assembleia e a República” (em colaboração com M. G. Moraes
Augusto), in Mujeres en Grecia y Roma y su transcendencia: diosas, heroinas y
esposas. V. H. Méndez Aguirre, M. Irigoyen Tronconis (eds.). Ciudad de México,
UNAM: 153-214.
“Plutarco, Vidas de Teseu e Rómulo: os alicerces de duas culturas paralelas”, in Grécia
e Roma no universo de Augusto. A. M. Pompeu, F. E. Sousa (eds.). Coimbra, IUC /
Annablume: 147-168.
“La locura de Orestes en el teatro de Eurípides”, in Agon: competencia y cooperación
de la Antigua Grecia a la actualidad. C. Fernández, J. Nápoli, G. Zecchin (eds.).
La Plata, EDULP: 147-169.
“Aristófanes e a arte de construir o cómico”, Kléos 19: 49-81.
2016
“A paixão na cena de Eurípides”, in Diferença sexual e desconstrução da subjectividade
em perspectiva. Z. Assis, M. G. Santos (eds.). Belo Horizonte, D’Plácido Editora:
119-142.
“Historias de amor y adulterio. Las Fedras y las Estenebeas de Eurípides”, Revista de
Estudios Clásicos 43 (Univ. de Cuyo, Argentina): 175-210.
“Criados fieles en casa de Agamenón: el Centinela (Esquilo, Agamenón) y el Viejo
(Eurípides, Ifigenia en Áulide)”, in Personajes secundarios con historia. F. De Martino,
C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 199-214.
“Deconstruir y reconstruir la ciudad: Politea y kratos en Aves de Aristófanes’, in XXIII
Simposio Nacional de Estudios Clásicos – Ciudadanía y poder político en el mundo
clásico. Debates y proyecciones. Salta (Argentina), Universidad Nacional de Salta:
73-82.
“Taltíbio, o arauto dos Aqueus na versão de Eurípides”, Humanitas 68: 31-49.

19
“Cassandra: carácter, discurso e espectáculo”, Revista Portuguesa de Humanidades 20.
2: 11-36.
2017
“Melanipa Sábia. Uma versão euripidiana de vícios femininos”, in Eupoikilon anthos.
Estudios sobre teatro griego en homenaje a Antonio Melero. M. Labiano (ed.). Valencia,
Universidad de Valencia: 433-448.
“Teatro e pintura, duas formas de mimesis”, Phoînix 23: 66-88.
“Mujeres, fugitivas, suplicantes. El coro de las Suplicantes de Esquilo”, in El coro
dramático, un personaje singular. J. V. Bañuls, F. De Martino (eds.). Bari, Levante
Editori: 223-240.
“The ‘boastful’ Bellerophon. The rhetoric in a Euripides’ lost play’, in Connecting
Rhetoric and Attic Drama. M. Quijada Sagredo, M. C. Encinas (eds.). Bari, Levante
Editori: 177-212.
“Alexandre o explorador de um mundo novo”, Cadmo 26: 37-53.
2018
“’Talento e conselho’: o contributo do poeta na cidade”, in A Poiesis da Democracia.
B. Sebastiani, D. Leão, L. Sano, M. Soares, C. Werner (eds.). Coimbra, IUC: 383-409.
“Da criação de uma cidade até à cidade perfeita: Tucídides e o passado da Grécia”, in
Nardus et myrto plexae coronae. J. J. Valverde Abril, P. Gatsioufa (eds.). Granada,
Universidad de Granada: 377-389.
2019
“Em tempo de guerra e de confronto. A noção do ‘outro’ na Ilíada”, Hélade 5.1 (UFF):
56-87.
“Héctor, un héroe controvertido en Reso de Pseudo-Eurípides”, Synthesis 25. 2: 39-53.
“A complexidade da figura de Dejanira. Um modelo de rainha vingativa”, Humanitas
74: 29-50.
“Aves e República. A invenção da cidade” (em colaboração com M. G. Moraes Augusto),
in Literatura y Cultura en la Grecia Antigua. G. Zecchin, F. Lessa (eds.). La Plata,
FAHCE: 101-140.
“A difícil busca da eudaimonia. Entre nomos e physis em Aves de Aristófanes’, in Casas,
património, civilização. Nomos versus Physis no pensamento grego. M. F. Silva, M.
G. Moraes Augusto, M. C. Fialho (eds.). Coimbra, IUC: 117-137.
“Homero e o mundo vegetal”, Classica. Revista Brasileira de Estudos Clássicos 32.2:158-
180.
2020
“O triângulo do sucesso: autor, obra e espectador. O teatro grego e o seu público”,
Dramaturgias 13 (Brasília): 26-44.
“Maternidade e filicídio”, Cadmo 28: 11-29.
“O coro de Coéforas: alimentar a vingança e partilhar o remorso”, Synthesis 27.1: online
– ISSN 1851-779X
“’El libro’ en la Grecia clássica. Primeros pasos hacia un gran futuro”, in El Libro.
Reflexiones interdisciplinares sobre la lectura, la biblioteca y la edición. A. Gallego
Cuiñas, A. López, A. Pociña (eds.). Granada, EUG: 9-23.
“Dinheiro e felicidade. Aristófanes, Pluto”, in O mundo clássico e a universalidade dos
seus valores. Homenagem a Nair de Nazaré Castro Soares I. A. Rebelo, M. Miranda
(eds.). Coimbra, IUC: 113-125.

20
“Teseu, o paradigma do ateniense áristos. Testemunhos de Pausânias e Plutarco”, Cadmo
29: 175-201.
2021
“Tragédia Grega Antiga: origens, expressões e legado”, in Temas de Cultura Clássica.
R. Faria (ed.). Linda-a-Velha, DG Edições: 145-169.
“La tragedia griega. La índole de un género”, in Claves para la Lectura del Mito Griego.
M. González González, L. Romero Mariscal (eds.). Madrid, Dykinson: 175-200.
“Héracles. Versões dramáticas de um mito popular”, in Θεατρον Και Ζωη. Estudios de
teatro griego en honor a la Profesora Milagros Quijada Sagredo. M. C. Encinas
Reguero, J. Bilbao Ruiz (eds.). Madrid, Ediciones Clásicas: 183-196.
“The art of creating a messenger. Aeschylus’ Persians and Agamemnon”, in Tragic
Rhetoric. The Rhetorical Dimensions of Greek Tragedy. M. C. Encinas Reguero, M.
Quijada Sagredo (eds.). Roma, Aracne Editrice: 73-98.

Estudos de Receção

1998
“Duas versões do tema de Antígona no teatro português contemporâneo: Antígona de
Júlio Dantas e Perdição de Hélia Correia”, Humanitas 50. 2: 963-1000.
Representações de Teatro Clássico no Portugal Contemporâneo. I (coord.). Coimbra:
FLUC.
1999
“Os caminhos da honra e do amor ou O corpo de Helena de Paulo José Miranda”, Ágora
1: 57-74.
2001
Representações de Teatro Clássico no Portugal Contemporâneo. II (coord.). Coimbra:
FLUC.
“Mudança, um tema de inspiração clássica em Camões”, in Fim do Milénio, VII e VIII
Foruns Camonianos. M. Azevedo (ed.). Lisboa, Centro Internacional de Estudos
Camonianos, Associação da Casa-Memória de Camões em Constância: 49-67.
“Motivos clássicos no teatro de Camões – O Auto dos Enfatriões’, in Fim do Milénio,
VII e VIII Foruns Camonianos. M. Azevedo (ed.). Lisboa, Centro Internacional de
Estudos Camonianos, Associação da Casa-Memória de Camões em Constância: 95-
118.
“A Antígona de Júlio Dantas: regresso ao modelo sofocliano”, in Máscaras Portuguesas
de Antígona. C. Morais (ed.). Aveiro, Universidade de Aveiro: 39-69.
“Antígona, o fruto de uma cepa deformada. Hélia Correia, Perdição”, in Máscaras
Portuguesas de Antígona. C. Morais (ed.). Aveiro, Universidade de Aveiro: 103-139.
“Antígona breve. Eduarda Dionísio, Antes que a noite venha”, in Máscaras Portuguesas
de Antígona. C. Morais (ed.). Aveiro, Universidade de Aveiro: 141-160.
2002
“Tragédia feita comédia. Os encantos de Medeia do Judeu”, in Medeas. Versiones de un
mito desde Grecia hasta hoy. II. A. López, A. Pociña (eds.). Granada, Universidad
de Granada: 819-846.

21
2004
Representações de Teatro Clássico no Portugal Contemporâneo. III (coord.). Coimbra:
FLUC.
“Tradição do teatro clássico na cena contemporânea”, in Antiguidade clássica: que
fazer com este património? A. Nascimento (ed.). Lisboa, CEC: 171-178.
“O Auto dos Enfatriões: recuperação de um modelo de simillimi”, Máthesis 12: 183-197.
“El don de la inmortalidad. Sófocles y algunas Antígonas del siglo XX’, in Sófocles el
Hombre, Sófocles el Poeta. A. Pérez Jiménez, C. A. Martín, R. C. Sánchez (eds.).
Málaga, Universidad de Málaga: 89-100.
“Tradição clássica no Auto de Camões El-Rei Seleuco”, Humanitas 56: 461-484.
“Mitos em crise. Hélia Correia, O Rancor”, in Largo mundo iluminado. Estudos em
homenagem a Vítor Aguiar e Silva. C. M. Sousa, R. Patrício (eds.). Braga, Centro de
Estudos Humanísticos da Universidade do Minho: 805-818.
2006
“A Ama. Um motivo clássico no Rancor de Hélia Correia”, Humanitas 58: 495-507.
Furor. Ensaios sobre a obra dramática de Hélia Correia. Coimbra: IUC.
“A dupla patrão/criado, uma tradição cómica. A. José da Silva, ‘Os encantos de Medeia’”,
A Antiguidade Clássica e Nós. Herança e identidade cultural. V. S. Pereira, A. L.
Curado (eds.). Braga, Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho:
139-151.
2007
“Language, barbarity and civilization. Excess by Hélia Correia”, in Stephanos. Tribute
to Walter Puchner. I. Vivilakis (ed.). Athens, Ergo: 1115-1127.
“Mopsos, o pequeno grego. O poder eterno das palavras”, Humanitas 59: 317-329.
2008
“Tradição clássica no auto de Camões El-Rey Seleuco”, in Fedras de ayer y de hoy. Teatro,
poesía, narrativa y cine ante un mito clásico. A. Pociña, A. López (eds.). Granada,
Universidad de Granada: 301-322.
“Hélia Correia, Desmesura: un agôn au féminin”, Linguae &. Rivista di Lingue e Culture
Moderne 1, on line www.ledonline.it http://www.ledonline.it.
“Helen, a trophy for heroes: Paulo José Miranda’s O corpo de Helena”. Oxford, on line
http://www.mod-langs.ox.ac.uk/portuguese/index.php.
2009
“A expressão da maternidade na obra dramática de Hélia Correia”, in En recuerdo de
Beatriz Rabaza. Comedias, tragedias y leyendas grecorromanas en el teatro del siglo
XX. A. López, A. Pociña (eds.). Granada, Universidad de Granada: 629-643.
“Os encantos de Medeia (The Charms of Medea). A comic ‘opera’ by António José da
Silva”, Eirene (República Checa) 45: 23-33.
“Uma ‘tradução’ livre de Sófocles: J. Anouilh, Antigone”, Aletria 19 (UFMG, Belo
Horizonte): 177-190.
2010
“Le mythe d’Antigone sur la scène portugaise du XXème siècle”, in Les Antigones
Contemporaines (de 1945 à nos jours). R. Duroux, S. Urdician (eds.). Clermont-
Ferrand, Presses Universitaires Blaise Pascal: 287-294.

22
“Da Cólquida à Galiza: sobre Medea en Camariñas de Andrés Pociña”, Florentia
Iliberritana 21: 393-403.
“Tebas. A imagem literária do Tempo e da História em Mário de Carvalho”, Humanitas
62: 305-320.
“O Segundo sexo: condição feminina sob o jugo da tradição”, in Simone de Beauvoir.
Olhares sobre a mulher e o feminino. I. Capeloa Gil, M. C. Pimentel (eds.). Lisboa,
Veja: 85-98.
“Um regresso à Lesbos de Safo. Atardecer en Mitilene de A. Pociña”, in Homenaje a la
Professora María Luisa Picklesimer. M. N. Muñoz Martín, J. A. Sánchez Marín (eds.).
Granada, Universidad de Granada: 419-434.
“The nurse – a classical theme in Helia Correia’s Rancour”, in Theatre and theatre
studies in the 21th century. A. Tabaki, W. Puchner (eds.). Athens, Ergo: 229-238.
“Desde la Cólquida hasta Galicia: Andrés Pociña, Medea en Camariñas”, in Actualidad
de los clásicos. III Congreso de Filología y Tradición Clásicas ‘Vicentina Antuña’ in
memoriam. E. Miranda Cancela, G. Herrera Díaz (eds.). La Habana, Editorial: 380-
390.
2011
“A tradição grega em Simone de Beauvoir, Le deuxième sexe”, Sapere Aude 2.3 (Belo
Horizonte): 75-88.
“Espaço para Medeia? Notas acerca da Medeia de Mário Cláudio” (em colaboração com
M. A. Hörster), in Norma e Transgressão. II. C. Soares, M. C. Fialho, M. C. Álvarez,
R. M. Montiel (eds.). Coimbra, IUC: 175-191.
“Mário de Carvalho, In excelsum. Un portrait ‘classique’ de l’homme contemporain”, in
Receptions of Antiquity. J. Nellis (ed.). Gent, Academia Press: 179-184.
2012
Ensaios sobre Mário de Carvalho (coord.). Coimbra: IUC.
“A imagem literária do Tempo e da História em Mário de Carvalho”, in Ensaios sobre
Mário de Carvalho. M. F. Silva (ed.). Coimbra, IUC: 13-30.
“Escrever tem arte e tem segredos … Era bom que trocássemos umas ideias sobre o
assunto”, in Ensaios sobre Mário de Carvalho. M. F. Silva (ed.). Coimbra, IUC: 77-
126.
“Pirro e Cíneas: o para quê da acção humana”, Sapere Aude 3.6 (Belo Horizonte): 298-
309.
“Una Medea portuguesa: Eduarda Dionísio, Antes que a noite venha”, in De ayer a hoy.
Influencias clásicas en la literatura. A. López, A. Pociña, M. F. Silva (eds.). Coimbra,
IUC: 517-527.
2013
“Henrique Aires Vitoria. Tragedy on the revenge of King Agamemnon’s Death”, in Καλος
Και Αγαθος Ανηρ Διδασκαλος Παραδειγμα, Homenaje al Profesor Juan Antonio
López Férez. L. M. Pino Campos, G. Santana Henriquez (eds.). Madrid, Ediciones
Clásicas: 785-792.
2014
“Crime: a morte do teatro. Uma leitura de Medeia de Mário Cláudio” (em colaboração
com M. A. Hörster), in Violência e transgressão: uma trajetória da Humanidade. F.
Oliveira, M. F. Silva, T. V. Barbosa (eds.). Coimbra, IUC / Annablume: 279-294.
“O professor de grego. Mário de Carvalho, Era bom que trocássemos umas ideias sobre
o assunto”, Euphrosyne 42: 217-224.

23
“Em Knossos, de Hélia Correia. Notas de leitura”, (em colaboração com M. A. Hörster),
Humanitas 66: 421-432.
2015
“Fantasia para dois coronéis e uma piscina – Ecos clássicos num contexto do séc. XX
português”, in A recepção dos clássicos em Portugal e no Brasil. M. F. Silva, M. G.
Moraes Augusto (eds.). Coimbra, IUC: 229-254.
“Helen”, in Brill’s Companion to the Reception of Euripides. R. Lauriola, K. Demetriou
(eds.). Leiden, Brill: 174-198.
“Penthesiléa de Hélia Correia. Notas de leitura” (em colaboração com M. A. Hörster),
Humanitas 67: 169-192.
2016
“Hélia Correia, A de Cólquida” (em colaboração com M. A. Hörster), in O livro do tempo:
escritas e reescritas. Teatro Greco-latino e sua recepção. II. M. F. Silva, M. C. Fialho,
J. L. Brandão (eds.). Coimbra, IUC: 55-68.
2017
“Jean Anouilh’s Antigone: a free ‘translation’ of Sophocles’, in Portrayals of Antigone
in Portugal. 20th and 21st Century rewritings of the Antigone myth. C. Morais, L.
Hardwick, M. F. Silva (eds.). Leiden, Brill: 72-89.
“Creon, the tyrant of Antigone on stage: his reception in Júlio Dantas and António
Pedro during the Portuguese dictatorship”, in Portrayals of Antigone in Portugal.
20th and 21st Century rewritings of the Antigone myth. C. Morais, L. Hardwick, M.
F. Silva (eds.). Leiden, Brill: 207-221.
“Antigone, fruit of a twisted vine: Hélia Correia’s Perdição”, in Portrayals of Antigone
in Portugal. 20th and 21st Century rewritings of the Antigone myth. C. Morais, L.
Hardwick, M. F. Silva (eds.). Leiden, Brill: 265-284.
“A brief “Antigone”: Eduarda Dionísio’s Antes que a noite venha (Before the night
comes)”, in Portrayals of Antigone in Portugal. 20th and 21st Century rewritings
of the Antigone myth. C. Morais, L. Hardwick, M. F. Silva (eds.). Leiden, Brill: 285-
304.
“Antigone”, in Brill’s companion to the reception of Sophocles. R. Lauriola, K. Demetriou
(eds.). Leiden, Brill: 391-474.
“Sophia na Grécia. Evocando Fernando Pessoa” (em colaboração com M. A. Hörster),
Nuntius Antiquus 13. 1: 59-84.
“En Lisboa, un Edipo ... Bernardo Santareno, António Marinheiro (O Édipo de Alfama)”,
in Pervivencia del mundo clásico en la literatura: tradición y relecturas. A. R. Pricco,
S. M. Moro (eds.). Coimbra/São Paulo, IUC/Annablume: 115-124.
“Clitemnestra, mulher, esposa e mãe. Francisco Dias Gomes, Ifigénia”, in Clitemnestra
o la desgracia de ser mujer en un mundo de hombres. F. De Martino, C. Morenilla,
M. C. Fialho, M. F. Silva, D. De Martino, A. Navarro (eds.). Bari, Levante Editori:
347-364.
2018
“Os encantos de Medeia by António José da Silva: Comedy version of a tragic theme
(18th century)”, in Portraits of Medea in Portugal during the 20th and 21st centuries.
A. Pociña, A. López, C. Morais, M. F. Silva, P. Finglass (eds.). Leiden, Brill: 45-64.
“In search of lost identity; Jean Anouilh’s Medea”, in Portraits of Medea in Portugal
during the 20th and 21st centuries. A. Pociña, A. López, C. Morais, M. F. Silva, P.
Finglass (eds.). Leiden, Brill: 65-86.

24
“A Portuguese Medea: Eduarda Dionísio, Antes que a noite venha (Before the night
comes)”, in Portraits of Medea in Portugal during the 20 th and 21st centuries. A.
Pociña, A. López, C. Morais, M. F. Silva, P. Finglass (eds.). Leiden, Brill: 123-143.
“Hélia Correia’s A de Cólquida (The woman from Colchis)” (em colaboração com M.
A. Hörster), in Portraits of Medea in Portugal during the 20th and 21st centuries.
A. Pociña, A. López, C. Morais, M. F. Silva, P. Finglass (eds.). Leiden, Brill: 144-157.
“Language, barbarism, and civilization: Hélia Correia’s Desmesura (Excess)”, in Portraits
of Medea in Portugal during the 20th and 21st centuries. A. Pociña, A. López, C.
Morais, M. F. Silva, P. Finglass (eds.). Leiden, Brill: 158-184.
“Medea in the society of entertainment: a reading of Mário Cláudio’s Medeia’ (em
colaboração com M. A. Hörster), in Portraits of Medea in Portugal during the 20th
and 21st centuries. A. Pociña, A. López, C. Morais, M. F. Silva, P. Finglass (eds.).
Leiden, Brill: 200-215.
“The art of translating a classic: Author’s and translator’s marks”, in Portraits of Medea
in Portugal during the 20th and 21st centuries. A. Pociña, A. López, C. Morais, M.
F. Silva, P. Finglass (eds.). Leiden, Brill: 233-257.
2020
“El arte de esperar. Glória o como Penélope se murió de tedio de Cláudia Lucas Chéu”,
in Clásicos en escena ayer y hoy. M. T. Amado Rodríguez, M. F. Silva (eds.). Coimbra,
IUC: 495-511.
Francisco Dias Gomes, Duas tragédias clássicas: ‘Ifigénia’ e ‘Electra’. J. A. C. Bernardes,
M. F. Silva, M. F. Brasete. Coimbra: IUC.
“’Existe apenas o começo do belo e do terrível’: A de Cólquida e Desmesura, de Hélia
Correia” (em colaboração com M. A. Hörster), Correntes d’Escrita 19: 74-81.
“Recriaciones homéricas en una biografia de Safo. La novela Rocha Branca de Fernando
Campos” (em colaboração com M. A. Horster), Revista Virtual Quimera, Univ. Costa
Rica (online).
“Mário de Carvalho relator das ‘subtilezas’ da justiça”, in As palavras justas. Ensaios
sobre Literatura e Direito. A. P. Arnaut (ed.). Coimbra, Centro de Literatura Portuguesa,
FLUC, Minerva Coimbra: 381-410.
“Carlos da Maia, um outro Édipo”, in Estudos Literários. As palavras invisíveis. Estudos
para Carlos Reis. A. P. Arnaut, A. T. Peixinho (eds.). Coimbra, IUC: 463-83.
“Perfection – the immortals’ default. Eça de Queiroz and Calypso’s Island”, in A special
model of Classical Reception. Summaries and Short Narratives. M. F. Silva, D. Bouvier,
M. G. Moraes Augusto (eds.). Cambridge, Scholars Publishing: 73-90.
2021
“Entre realidade e ficção: Ana Clitemnestra, de Carlos Henrique Escobar”, in Recepção
dos mitos gregos na dramaturgia brasileira. II. J. Prezotto, O. Araújo, R. C. Silva
(eds.). Catu, Editora Bordô-Grená: 49-76.

25
(Página deixada propositadamente em branco)
T a b v l a G r at v l ato r i a

Abel Nascimento Pena Andrés Pociña


Abílio Hernandez Cardoso António Apolinário Lourenço
Adriana Nogueira António Campar Almeida
Adriano Milho Cordeiro António Filipe Pimentel
Aires A. Nascimento António Pedro Pita
Aires Pereira do Couto António Rebelo
Albano António Cabral Figueiredo António Sousa Ribeiro
Aldo Rubén Pricco Arménio Sottomayor
Alexandra de Brito Mariano Arnaldo do Espírito Santo
Ália Rodrigues Aurelio Pérez Jiménez
Amadeu Carvalho Homem Aurora López
Ana Alexandra Alves de Sousa Belmiro Pereira
Ana Cristina Araújo Bernardo Mota
Ana Guedes Ferreira Bernardo Salgado
Ana Leonor Pereira Carlos A. Martins de Jesus
Ana Lúcia Curado Carlos Camponez
Ana Maria dos Santos Lóio Carlos Mesquita Severino
Ana Maria Machado Carlos Morais
Ana Paula Arnaut Carlos Reis
Ana Paula de Oliveira Loureiro Carlota Miranda Urbano
Ana Paula Quintela Sottomayor Carmen Soares
Ana Paula Pinto Cecilia Colombani
Ana R. Luís Celina Maria Fernandes
Ana Rita Figueira Clarinda de Azevedo Maia
Ana Seiça Carvalho Cláudia Amparo Afonso Teixeira
Ana Teresa Peixinho Cláudia Cravo
Anabela dos Santos Fernandes Concepción López Rodríguez
André Simões Cornelia Plag

27
Cristina Abranches Guerreiro Jaime Rocha
Cristina Martins Javier Campos Daroca
Cristina Robalo Cordeiro Joana Brites
Cristina Santos Pinheiro Joana Nazaré de Castro Soares Mor-
Daniela Pereira gado
Delfim Ferreira Leão Joana Vieira Santos
Diogo Ferrer João Carlos Onofre Pinto
Embaixada da Grécia – Portugal João da Costa Domingues
Emilio Suárez de la Torre João Gouveia Monteiro
Fábio de Souza Lessa João Nunes Torrão
Fátima Velez de Castro João Nuno P. Corrêa-Cardoso
Félix Jácome João Paulo Cabral de Almeida Ave-
lãs Nunes
Fernanda Bernardo
Joaquim Pinheiro
Fernanda Delgado Cravidão
Jorge Alarcão
Fernanda Lapa
Jorge Deserto
Fernando Catroga
Jorge M. C. Almeida e Pinho
Fernando de Jesus Regateiro
Jorge Paiva
Fernando Matos Oliveira
José Amado Mendes
Fernando Taveira da Fonseca
José Augusto Bernardes
Fiona Macintosh
José Augusto Martins Ramos
Francesco de Martino
José Carlos Seabra Pereira
Francisco Oliveira
José Luís Brandão
Francisco Pato de Macedo
José Manuel Azevedo e Silva
Frederico Lourenço
José Maria Pedrosa Cardoso
Graça Capinha
José Oliveira Barata
Graça Rio-Torto
José Pedro Paiva
Graciela Zecchin de Fasano
José Pedro Serra
Heitor Emanuel de Castro Soares
Morgado José Ribeiro Ferreira
Helena Costa Toipa Judith Geiger
Hélia Correia Júlia Araújo Borges
Henrique Jales Ribeiro Leonor Santa Bárbara
Irene Vaquinhas Lorna Hardwick
Isabel A. Santos Lucía P. Romero Mariscal
Isabel Caldeira Luciano Lourenço
Isabel Ferreira da Mota Luciene Lages da Silva
Isabel Nobre Vargues Lúcio Cunha
Isabel Pereira Luís António Umbelino
Isaltina Martins Luís Miguel Henriques
Jacinta Maria Matos Luís Reis Torgal

28
Luísa Severo Buarque de Holanda Martinho Soares
Manuel José de Sousa Barbosa Miguel Carvalho Abrantes
Manuel Portela Milagros Quijada Sagredo
Margarida Miranda Miriam Carrillo Rodriguez
Maria Alegria Fernandes Marques Nair de Nazaré Castro Soares
Maria Antónia Lopes Nuno Simões Rodrigues
Maria António Hörster Olga Maria de Castro Soares
Maria Aparecida Ribeiro Osvaldo Manuel Silvestre
Maria Carmen de Frias e Gouveia Paula Barata Dias
Maria Cecília Miranda Coelho Paulo Estudante
Maria Clara Keating Paulo Farmhouse Alberto
Maria Cristina Pimentel Paulo Sérgio Margarido Ferreira
Maria das Graças Morais Augusto Pedro C. Carvalho
Maria de Fátima Gil Raquel Vilaça
Maria de Lurdes Póvoa F. Roxo Regina Anacleto
Mateus Renan Lipparotti
Maria do Rosário Morujão Rita Marnoto
Maria do Rosário Neto Mariano Rodrigo Furtado
Maria Fernanda Brasete Rogério Madeira
Maria Helena Coelho Rogério Sousa
Maria Helena Horta Simões Rómulo Pianacci
Maria Helena Santana Rosana Baptista dos Santos
Maria João de Castro Soares Rui Bebiano
Maria João Silveirinha Rui Cascão
Maria José Azevedo Santos Rui Tavares de Faria
Maria José Ferreira Lopes Rute Soares
Maria Luísa de Castro Soares Sandra Pereira Vinagre
Maria Mafalda Viana Sérgio Dias Branco
Maria Manuel Borges Sofia Frade
Maria Manuela Tavares Ribeiro Stéphanie Urdician
María Teresa Amado Rodríguez Stephen Harrison
Marília Pulquério Futre Pinheiro Stephen Wilson
Mário de Gouveia Susana Marques
Mário Magalhães Lopes da Silva Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Mário Montenegro Vasco Gil Mantas
Mário Pereira Soares Victor Gabriel de Castro Soares
Mário Santiago de Carvalho Morgado
Marta González González Virgínia Soares Pereira
Marta Teixeira Anacleto Zélia de Sampaio Ventura
Marta Várzeas

29
(Página deixada propositadamente em branco)
LITERATURA GREGA
(Página deixada propositadamente em branco)
A pa l e ta h o m é r i c a *1

Homer’s Palette

Ana Paula Pinto


Univ. Católica Portuguesa, CEFH
ORCID: 0000-0003-0371-4984
appinto@ucp.pt

João Carlos Onofre Pinto


Univ. Católica Portuguesa, CEFH
ORCID: 0000-0001-8841-7502
jcopsj@ucp.pt

Resumo: Tendo conquistado desde a Antiguidade o posto de primeiro


autor ocidental, Homero continua a merecer, em praticamente todos
os âmbitos da mundividência cultural europeia, um espaço referencial
de centralidade indisputada. Do ponto de vista expressivo, a leitura
da Ilíada e da Odisseia – abarcando quer as componentes mais deno-
tativas da produção linguística, quer as mais conotativas da sua aura
simbólica – continua a causar, ao fim de quase três mil anos de rea-
proximações, a impressão de regresso à inesgotável fonte primordial.
A esse título pareceu-nos particularmente sugestivo propor como
ângulo de abordagem o pormenor expressivo da notação das cores.
Interessa-nos verificar como esta peculiar apreensão sensorial-racional,
que perpassa toda a experiência mental humana, surge traduzida na

*1 Os autores deste texto não adotam o chamado Acordo Ortográfico da Língua


Portuguesa (1990). A ortografia seguida é da responsabilidade da Imprensa da
Universidade de Coimbra, que, enquanto instituição pública, o exige por imposição
legal a que está obrigada.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_1
plasticidade poética da língua grega arcaica. Simultaneamente, pro-
curamos perceber como a notação homérica da cor se aproxima ou
diverge daquela que, na contemporaneidade, as línguas modernas
traduzem, e a investigação e a experimentação estética no âmbito das
artes visuais interpretam.
É, pois, através da análise circunstanciada dos campos lexicais e
semânticos associados às referências de cor, e da transfiguração
simbólica do real apreendido que eles operam, que nos propomos
tentar a revisitação do poeta – em diálogo com as grandes questões
filosóficas e científicas à volta da cor e da visão.
Palavras-chave: Homero, memória cultural, referências cromáticas,
ontologia da cor

Abstract: Having conquered since Antiquity the position of first Western


author, Homer continues to deserve, in virtually all spheres of European
cultural worldview, a referential space of undisputed centrality. From
the expressive point of view, the reading of the Iliad and the Odyssey
– encompassing both the most denotative components of the linguistic
production and the most connotative of its symbolic aura – continues
to cause, after almost three thousand years of re-approximation, the
impression of a return to the inexhaustible primordial source.
In this respect, it seemed particularly suggestive to us to propose as
an angle of approach the expressive detail of the notation of colours.
We are interested in verifying how this peculiar sensorial-rational
apprehension, which pervades all human mental experience, appears
translated into the poetic plasticity of the archaic Greek language.
Simultaneously, we seek to understand how the Homeric notation of
colour approaches or diverges from equivalent references in modern
languages and in aesthetic research and experimentation within the
visual arts.
It is, therefore, through the detailed analysis of the lexical and se-
mantic fields associated with colour references, and the symbolic
transfiguration of the reality apprehended that they operate, that we
propose to attempt the poet’s revisitation – in dialogue with the great
philosophical and scientific questions surrounding colour and vision.
Keywords: Homer, cultural memory, cromatic references, ontology of color

34
1. O testemunho dos Poemas Homéricos

A poesia homérica assume em praticamente todos os âmbitos da


mundividência europeia um espaço referencial absolutamente ímpar.
Composta no período arcaico, provavelmente no séc. VIII a.C., tornou-
-se – de início dentro das fronteiras estreitas da Hélade, e depois
nos círculos cada vez mais amplos de influência da cultura grega
– o superior exemplo para todos os poetas sucessivos, a inspiração
incontornável de todos os âmbitos das artes, o ponto de partida para
as reflexões de inúmeros filósofos, e a nuclear essência da educação
de todos os homens livres. Revelando-se antes de mais o primordial
esteio da unidade helénica, ela acabará ainda por assumir-se como
o mais antigo testemunho literário e o mais autêntico fundamento
de toda a cultura ocidental.
Apesar do caudal incomparável do debate e dos controversos
resultados de todas as investigações sobre os Poemas Homéricos,
naturalmente marcados, como todos os começos, pela velatura do
enigma (que nenhuma das ciências, cada vez mais apetrechadas de
instrumentações complexas, consegue ainda assim por completo
esgotar), continuam a formular-se hoje, à semelhança do ocorrido
desde a Antiguidade, questões sem resposta definitiva – sobre o
enquadramento histórico do autor e a cartografia dos seus espaços,
sobre o perfil dos heróis e o significado das suas gestas, sobre o
alcance da obra e a natureza das suas mundividências, e sobre a
peculiaridade do seu registo poético sem precedentes.
Mercê das mais recentes descobertas científicas, e em particular das
da arqueologia, algumas fações da filologia homérica têm hasteado
nos últimos tempos mais uma bandeira revolucionária. Na verdade,
ecoando sobre o silêncio dos séculos com uma extraordinária fideli-
dade a toada épica, em Hissalirk, na fronteira da Ásia Menor, junto do
estreito de Dardanelos – muito próximos dos limites primitivamente
identificados por Calvert e Schliemann como solo da Troia homérica –,
foram sendo resgatados e identificados, entre conjeturas, avanços e
retrocessos, múltiplos destroços do passado: para além das ruínas de

35
vários aglomerados urbanos sobrepostos, e dos fabulosos achados
do “Tesouro de Príamo”, do seio árido da terra foram trazidos à luz
por sucessivas campanhas de escavação vários edifícios, segmentos
de estruturas defensivas, largos fossos, portas colossais, torres e
canalizações, trechos reconhecíveis de traçados viários, armas, ade-
reços e os mais variados objetos domésticos, além de fragmentos de
cerâmicas e ossos. A “vasta” e “fértil” Troia, palco privilegiado onde
até os venturosos deuses sempiternos se comoveram com as trági-
cas misérias dos mortais, resgatada do pó dos tempos e despida de
ornatos poéticos, surge-nos agora à consciência como uma opulenta
metrópole anatólia da Idade do Bronze. Surpreendentemente, também,
do lado oposto do Egeu, quase cada um dos inúmeros topónimos
do Catálogo das Naus (Il. 2), durante séculos apreciados como um
exercício de encantamento poético, aparece agora confirmado, com
a exatidão próxima da de um recenseamento, nas tabuinhas de argila
de Linear B das mais recentes escavações de Tebas 1. Aprofundando,
sem a apagar, a aura do seu incomparável estatuto poético, constan-
temente enriquecida pelo caudal fértil de outras inspirações artísticas,
os Poemas Homéricos deixaram, pois, recentemente de ser apenas o
mais antigo testemunho literário e o mais sólido referente cultural
do Ocidente, para começarem a ser também aceites como iniludível
documento histórico.

2. A visão na hierarquia dos sentidos

Na sua crítica radical à cultura e filosofia ocidentais, Friedrich


Nietzsche assinala negativamente a prevalência das metáforas visuais,

1 As mais importantes campanhas de escavação em Troia foram, desde as primei-


ras modestas tentativas de Frank Calvert (1863-69), secundado de forma sistemática
por Heinrich Schliemann (entre 1871-79 sozinho, acompanhado de Dörpfeld entre
1882-90), passando pelos sucessores Wilhelm Dörpfeld (1882-1890 com Schliemann, e
sozinho entre 1893-94) e Carl Blegen (1932-38), até às recentes de Manfred Korfmann
(1988-2000). As mais recentes de Tebas foram de meados da década de noventa do
século XX. Para mais detalhes, vd. Latacz 2001.

36
decorrentes da vitória do espírito apolíneo sobre o dionisíaco2. Outros
filósofos – nomeadamente Edmund Husserl, Martin Heidegger, Martin
Buber3, Maurice Merleau-Ponty e Emmanuel Levinas – se lhe seguiram
na crítica àquilo a que Xavier Zubiri chamou a “tirania da vista” 4.
Estas críticas remetem-nos a um importante filão associado à
visão: a ideia da hierarquia dos sentidos, com profundas raízes na
história da filosofia. Desde muito cedo se estabeleceu um estatuto
superior à visão e ao ouvido, com claras vantagens para a primeira.
Um dos fragmentos de Heraclito diz que “os olhos são testemunhas
mais exatas que os ouvidos”: ỏφθαλμοὶ γὰρ τῶν ὤτων ἀκριβέστεροι
μάρτυρες (fragm. 101a Diels-Kranz). Por sua vez, Platão concede à
visão o estatuto de “a mais fina das sensações”: ὄψις γὰρ ἡμῖν ὀξυτάτη
τῶν διὰ τοῦ σώματος ἔρχεται αἰσθήσεων (Fedro, 250 D); diz também
que o olho é “o mais afim ao sol”: ᾿Αλλ’ ἡλιοειδέστατόν γε οἶμαι τῶν
περὶ τὰς αἰσθήσεις ὀργάνων (República, 508B 3-4). Muito significa-
tiva e influente é a posição de Aristóteles, no início da Metafísica
(980a21), ao defender a supremacia da visão sobre os demais sentidos:
“Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal disso é o

2 “Que significa a oposição conceptual de apolíneo-dionisíaco, por mim introduzida


na estética, e ambos entendidos como tipos de embriaguez? – A embriaguez apolínea
excita sobretudo o olho, de modo que ele obtém a força da visão. O pintor, o escul-
tor e o épico são visionários par excellence. No estado dionisíaco, pelo contrário, é
todo o sistema emocional que é excitado e intensificado, de maneira que, com um
só golpe, descarrega todos os seus meios de expressão e acentua simultaneamente a
força da representação, da imitação, da transfiguração, da metamorfose, todo o tipo de
mímica e de arte teatral” (Nietzsche 1985: 75-76). Noutro lugar, destaca a importância
do nariz: “E que delicados instrumentos de observação temos nos nossos sentidos! O
nariz, por exemplo, de que nenhum filósofo falou ainda com veneração e reconheci-
mento; talvez seja mesmo o instrumento mais delicado que temos à nossa disposição:
pode constatar diferenças mínimas de movimento, que o próprio espectroscópio não
detecta” (Nietzsche 1985: 31).
3 Cfr. Buber 1967: 25-26.
4 Cfr. Zubiri 2003: 110. Este autor nota que a “tirania da vista” fez com que as metá-
foras tradicionais relativas à intelecção sejam predominantemente visuais (cfr. “óbvio”,
“evidência”, etc.). Assim o diz em Inteligencia y logos: “Casi todos, por no decir todos,
los vocablos referentes a la intelección están tomados del verbo “ver”: expresan la
intelección como “visión”. Esto es una ingente simplificación: la intelección es intelec-
ción en todos los modos de presentación sentiente de lo real, y no sólo en el modo
visual. Por esto, […] expreso la intelección no como visión sino como aprehensión”
(Zubiri 2002: 218-219).

37
prazer que nos proporcionam os nossos sentidos; pois, ainda que
não levemos em conta a sua utilidade, são estimados por si mesmos;
e, acima de todos os outros, o sentido da visão. Com efeito, não só
com o intento de agir, mas até quando não nos propomos fazer nada,
pode-se dizer que preferimos ver a tudo mais. O motivo disto é que,
entre todos os sentidos, é a visão que põe em evidência e nos leva
a conhecer maior número de diferenças entre as coisas” 5.
Na verdade, as mencionadas críticas favoreceram em simultâneo a
tomada de consciência de aspetos matriciais da nossa cultura ocidental,
moldada nos Poemas Homéricos.
Dado o seu muito recuado enquadramento histórico, Homero tende
a exprimir uma mais acurada sensibilidade e atenção ao universo
de referenciais concretos, comparativamente muito mais presentes e
detalhados no discurso do que as entidades abstratas 6. Na descrição
da realidade circundante, que o testemunho poético imortaliza – ora
nos cenários de batalha da Ilíada, onde a inquietação de Aquiles
prenuncia ruína generalizada, ora na Odisseia através da atribulada
politropia de Ulisses de regresso ao lar – preponderam claramente
sobre as restantes as notações relativas à visão, seguidas das da
audição e eventualmente do tato, a par das muito raras gustativas
ou olfativas.
A extraordinária riqueza lexical com que os Poemas Homéricos
exprimem e matizam o alcance sensitivo da visão parece traduzir a
inequívoca relevância que desde o início da cultura europeia a vista
assume sobre as restantes faculdades da perceção humana.

5 Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει. Σημεῖον δ’ ἡ τῶν αἰσθήσεων ἀγάπησις·
καὶ γὰρ χωρὶς τῆς χρείας ἀγαπῶνται δι’ αὑτάς, καὶ μάλιστα τῶν ἄλλων ἡ διὰ τῶν ὀμμάτων.
Οὐ γὰρ μόνον ἵνα πράττωμεν ἀλλὰ καὶ μηθὲν μέλλοντες πράττειν τὸ ὁρᾶν αἱρούμεθα
ἀντὶ πάντων ὡς εἰπεῖν τῶν ἄλλων. Αἴτιον δ’ ὅτι μάλιστα ποιεῖ γνωρίζειν ἡμᾶς αὕτη τῶν
αἰσθήσεων καὶ πολλὰς δηλοῖ διαφοράς (Metafísica, 980a). Não obstante isto, nas obras
Sobre a Sensação e Sobre a Memória, Aristóteles reserva uma atenção bastante especial
ao sentido do tato, atribuindo-lhe um papel fundamental na vida sensitiva-vegetativa
(a vida de segundo grau). Na história da filosofia moderna encontramos também
algumas interessantes exceções na valorização dos outros sentidos que não a visão,
nomeadamente Étienne Bonnot de Condillac e Maine de Biran.
6 Para a formação arcaica do espírito grego, vd. Snell 1992: 20 sqq.

38
Na verdade, a par das centenas de ocorrências que em cada um
dos poemas se registam dos radicais do verbo ὁράω, nas suas múl-
tiplas variantes (regulares e supletivas 7, com e sem contração, com
diéctase, com e sem aumento, simples ou com prefixos)8, a traduzir
possivelmente a notação básica mais neutra do exercício do olhar que
se aplica a uma realidade externa ao sujeito (muitas vezes reforçada
na dicção poética pela fórmula recorrente, de pendor pleonástico,
“ver com os olhos” 9 ), o texto homérico oferece-nos um conjunto
alargado de outras formas verbais que conotam de algum modo esse
movimento expressivo de encontro entre o ser animado que percebe
e a realidade percebida 10.
Assim, proximamente ligada à família dos radicais supletivos do
verbo ὁράω11, surge a forma verbal ὄσσομαι: as ocorrências parecem

7 A sistematização gramatical do paradigma supletivo do verbo elenca as variantes


ὁράω, ὄψομαι, ὀφθήσομαι, εἶδον, ὤφθην, ἑώρακα, ὄπωπα, ἑώραμαι e ὦμμαι. Notar que
já o supletivismo verbal, que associa num só paradigma flexional radicais de verbos
primitivamente distintos (ὁρᾶν, ἱδεῖν, ὄψεσθαι), deve elucidar-nos sobre a possibilidade
de cada um deles traduzir primitivamente diferentes modalidades da perceção visual,
cujo peculiar significado se obnubilou com o tempo.
8 Acresce ainda à multiplicidade de cambiantes semânticas supostas na tradução
a possibilidade, muito produtiva na morfologia grega, e particularmente funcional
na dicção homérica, de os radicais básicos do verbo sofrerem mutações de sentido
pelo acréscimo regular de prefixos: a título de exemplo, podemos notar que não
representam seguramente a mesma modalidade expressiva de visão os verbos ὁρᾶν
e εἰσορᾶν Il. 24.291, e Il. 5.183, Il. 14.345, Il. 23.495), ἰδεῖν e ἐξιδεῖν (cfr. e.g. as
variantes Il. 5.770, e Il. 20.342).
9 Cfr. Il.1.587, Il. 3.28, Il. 3.169, Il. 3.306, Il. 5.212, Il. 5.770, Il. 10.275, Il. 13.99,
Il. 14.153, Il. 15.286, Il. 15.488, Il. 15.600, Il. 16.182, Il. 17.466, Il. 17.646, Il. 18.135,
Il. 18.190, Il. 19.174, Il. 20.169, Il. 20.44, Il. 21.54, Il. 22.25, Il. 22. 236, Il. 23.202,
Il. 24.206, Il. 24.246, Il. 24.392, Il. 21.555; Od. 2.155, Od. 4.47, Od. 4.226, Od. 4.229,
Od. 6.160, Od. 8.459, Od. 10.181, Od. 10.385, Od. 10.387, Od. 10.414, Od. 10.574,
Od. 11.528, Od. 11.615, Od. 12.258, Od. 14.143, Od. 14.343, Od. 15.76, Od. 15.462,
Od. 15.484, Od. 16.32, Od. 16.470, Od. 17.511, Od. 19.36, Od. 19.383, Od. 20.233,
Od. 23.92. Em Od. 9.146, Od. 10.197, Od. 19.446, Od. 19.476, o inciso circunstancial
acompanha o verbo δέρκεσθαι.
10 Snell nota (1992: 20) que, após Homero, só dois novos verbos aparecem relativos
ao âmbito da visão, βλέπω e θεωρέω; através do mecanismo de associação prefixal,
eles acabarão por concentrar muitas das modalizações expressivas dos verbos arcai-
cos, que cairão em desuso.
11 O futuro ὄψομαι e o perfeito segundo ὄπωπα, com seu amplo campo lexical
de formações nominais próximas (nomeadamente o substantivo ὄψ, ὀπός, ou, com
alongamento de vogal, ὤψ, ὀπός, “vista, olhar”, e ὀπή, “vista”, “abertura”), formados
a partir da raiz indo-europeia *ok w . Vd. Chantraine, 1984, s.v. ὁράω, ὄσσε e ὄπωπα.

39
regularmente veicular a notação figurada de uma visão interior, que
se antecipa, por intuição ou pressentimento, aos factos 12.
Os contextos 13 em que ocorre a notação verbal ἀθρέω, de eti-
mologia obscura 14 , sugerem de alguma forma a estranheza ou
perplexidade com que o olhar capta um aspeto insólito da realidade.
A traduzir o deslumbramento causado por uma visão inesperada,
maravilhosa, e geralmente fomentada pela manifestação mais ou me-
nos secreta de uma divindade, ocorre a forma verbal θεάομαι (usada
na variante ática θηέομαι) 15, um provável denominativo formado do
radical que em Grego veicula a notação fundamental da divindade
(θεός, θεά).

12 Vd. Il. 1.105 (virando-lhe um olhar nefasto, Agamémnon dirige-se a Calcas); Il.
14.17 (o mar fica roxo na previsão dos ventos); Il. 24.172 (Íris, mensageira de Zeus,
garante a Príamo que não se aproxima para lhe prever o mal); Od. 1.115 (Telémaco
apercebe-se da presença de Atena enquanto está a ter uma visão interior do pai); Od.
2.152 (duas águias fitam terrivelmente a assembleia dos itacenses, prevendo a morte);
Od. 10.374 (Ulisses confessa a Circe que se atormenta interiormente, prevendo o mal);
Od. 18.154 (alertado pelo mendigo para os riscos de um revés, Anfínomo afasta-se
cabisbaixo, tomado de pressentimentos); Od. 20.81 (Penélope deseja ser arrebatada
para a morte a pensar em Ulisses).
13 E.g. Il. 10.11 (Agamémnon olha com espanto para a planície troiana), Il. 12.391
(Gláucon retira-se para que nenhum dos Aqueus perceba com surpresa que foi atin-
gido); Il. 14.334 (Hera manifesta a Zeus o receio de ser insolitamente observada em
liberdades amorosas com o esposo pelos restantes deuses); Od. 12.232 (Ulisses não
conseguiu surpreender-se com a imagem terrível de Cila); Od. 19.478 (Penélope nem
se surpreendeu, nem se apercebeu do tumulto próximo).
14 Possivelmente comportando a mesma raiz dos verbos ἐνθρέω (lançar-se) e
θρήσκω (prestar culto), vd. Chantraine, 1984: 28, s.v.
15 Il. 7.444 (os deuses observam com admiração os trabalhos dos Aqueus); Il.
10.524 (os Troianos espantam-se dos trabalhos dos que avançaram para as naus); Il.
15.682 (homens e mulheres maravilham-se com a perícia de um cavaleiro); Il. 22.370
(os Aqueus arrebatados contemplam Heitor); Il. 23.728 (as hostes contemplam as
movimentações da corrida); Il. 23.881 (o povo deslumbra-se com a prova de tiro); Od.
2.13 (o povo contempla a graciosidade de Telémaco, aumentada por Atena); Od. 5.74
(o prazer com que um mortal contemplaria Ogígia) e Od. 5.75 e 76 (Hermes contempla
extasiado as belezas de Ogígia); Od. 6.237 (Nausícaa deslumbra-se da graciosidade de
Ulisses, aumentada por Atena); Od. 7.133 e 134 (Ulisses deslumbra-se dos requintes
do palácio de Alcínoo); Od. 8.265 (Ulisses deslumbra-se com a perícia das danças
feaces); Od. 10.180 (os Itacenses deslumbram-se com o porte do veado); Od. 15.132
(Pisístrato deslumbra-se com as ofertas de hospitalidade de Menelau a Telémaco);
Od. 17.64 (os pretendentes contemplam a graciosidade de Telémaco, aumentada por
Atena); Od. 17.315 (Eumeu garante ao mendigo que se teria deslumbrado com o porte
anterior do cão de Ulisses); Od. 24.90 (a sombra de Agamémnon ilustra a de Aquiles
sobre a admiração que causaram aos Aqueus os seus Jogos fúnebres).

40
Na mesma esfera semântica, e com ela aparentadas etimologica-
mente, estão documentadas as variantes θαυμανέω16 e θαυμάζω, 17
derivações do tema nominal θαῦμα – que por sua vez revela par-
ticular produtividade em fórmulas recorrentes do campo da visão,
como θαῦμα ἰδέσθαι18, μέγα θαῦμα τὸδ’ ὀφθαλμοῖσιν ὁρῶμαι 19, ou

16 Um hapax, em Od. 8.108 (os Feaces avançam para o recinto público, para se
admirarem com os jogos).
17 Vd. Il. 2.320 (Ulisses relata como os prodígios de Zeus maravilham os mor-
tais); Il. 5.601 (Diomedes nota que Heitor suscita a admiração dos aqueus); Il. 10.12
(Agamémnon maravilha-se com a multiplicidade de fogueiras na planície troiana); Il.
13.11 (Poséidon olhava admirado para a batalha dos exércitos); Il. 18.467 (Hefesto
profetiza o espanto que há-de tocar os homens que vierem a contemplar as armas de
Aquiles); Il. 18.496 (na descrição do escudo, estão gravadas mulheres que assistem
maravilhadas às danças dos mancebos); Il. 24.394 (os Troianos pasmavam de ver Heitor
a combater); Il. 24.629 (Príamo encara maravilhado Aquiles, alto e belo); Il. 24.631
(Aquiles encara maravilhado o nobre aspeto e as palavras de Príamo); Od. 1.382 (os
pretendentes olham admirados para Telémaco); Od. 3.373 (Nestor olha maravilhado
para Atenas metamorfoseada, que se afasta); Od. 4.44 (Telémaco e Pisístrato olham
deslumbrados o palácio de Agamémnon); Od. 4.655 (Noémon confessa a admiração
por ter visto em Ítaca Mentor); Od. 7.43 (Ulisses maravilha-se com a paisagem de
Esquéria); Od. 7.145 (os Feaces observam com surpresa e deslumbramento o estra-
nho que abraça os joelhos de Arete); Od. 8.265 (Ulisses maravilha-se a assistir às
danças dos Feaces); Od. 8.459 (Nausícaa olha maravilhada para Ulisses); Od. 9.153
(os Itacenses maravilham-se das belezas da ilha dos Ciclopes); Od. 13.157 (os Feaces
irão contemplar com espanto a petrificação dos colegas); Od. 16.203 (Ulisses lembra
que não fica bem a Telémaco ficar tão surpreendido com a presença do pai); Od.
18.411 e Od. 20.269 (os pretendentes observam com admiração a desenvoltura de
Telémaco); Od. 19.229 (as gravações realistas da fíbula de Ulisses causam a quem as
vê grande admiração); Od. 24.370 (Telémaco surpreende-se com a aparência do pai).
18 Usada na Ilíada no contexto do deslumbramento dos homens perante objetos
heroicos de peculiar valor (vd. Il. 2.725, sobre as rodas de ouro do carro de Hera;
Il. 10.439, sobre as armas de ouro de Reso; Il. 18.83, sobre as armas de Aquiles,
que Heitor despiu na batalha a Pátroclo; Il. 18.377 sobre as trípodes com rodas que
Hefesto fabricara, para se automoverem no palácio divino), na Odisseia ela tende a
aparecer sobretudo no contexto da produção de têxteis delicados (Od. 6.306, sobre
a lã purpúrea que Alceste fia à luz do fogo doméstico; Od. 7.45, sobre as edificação
muralhada da cidade feace; Od. 8.366, sobre as vestes resplandecentes com que as
Graças cobrem a nudez de Afrodite; Od. 13.108 sobre as tramas de púrpura que as
náiades tecem no reduto das grutas de Fórcis, em Ítaca).
19 Vd. Il. 13.99 (Poséidon incita os Aqueus com a visão extraordinária do sucesso
dos Troianos); Il. 15.286 (Toante exprime a perplexidade de ver Heitor ferido regres-
sar ao combate); Il. 20.344 (Aquiles estranha o súbito desaparecimento de Eneias,
na neblina); Il. 21.54 (Aquiles exprime espanto por ver voltar ao combate o jovem
Licáon); Od. 19.36 (Telémaco manifesta estranheza pelo extraordinário brilho na
sombria sala de banquetes).

41
em expressões de tipo análogo, mas de menor representatividade
formular 20.
Já a etimologia do verbo σκέπτομαι, fundada num primitivo
nome-raiz21 com inúmeros compostos e derivados documentados na
morfologia grega, sugere a notação do olhar que se dirige intencio-
nalmente para, que observa cautelosamente, examina, esquadrinha
ou vela; essa mesma componente semântica, recorrendo em várias
formas verbais paralelas de outras línguas indo-europeias 22, surge
confirmada nas ocorrências contextuais homéricas 23.
A forma verbal δενδίλλω, de etimologia desconhecida (mas aparen-
temente construída como forma expressiva por reduplicação silábica)
ocorre em Homero como um hapax; tendo em conta o contexto 24,
as glosas posteriores de Hesíquio associam-na à intensidade com
que o olhar do sujeito prende o dos seus interlocutores, piscando
(emitindo sinais) ou incidindo fixamente.
O termo αὐγή, com que frequentemente se traduz em poesia o cla-
rão da luz do Sol, de etimologia obscura, fundou na morfologia grega
um vasto conjunto de derivados, sobretudo adjetivos; enquanto seu
denominativo ocorre igualmente como um hapax25 o verbo αὐγάζομαι,
que comporta a notação de discernir com clareza, ver claramente.

20 Como θαῦμα βροτοῖσιν (Od. 11.287), θαῦμα μ’ἔχει (Od. 10.326) e θαῦμα τέτυκτο
(Il. 18.549, Od. 9.190).
21 Possivelmente *σκεπ-yο-μαι, retirada, com um mecanismo de inversão das
consoantes oclusivas π e κ corrente em indo-europeu, de um primitivo nome-raiz,
não registado na língua grega, mas em sânscrito (spás), avéstico (spas), e latim
(haru-spex). A forma nominal masculina grega daqui derivada, σκοπός, por sua vez,
encontra possíveis paralelos no sânscrito spása, e em vários termos de uma família
de palavras germânica que se especializou na expressão da noção de “profecia”. Vd.
Chantraine 1984, s.v. σκέπτομαι.
22 Como o latim specio, o avéstico spasyeiti e o sânscrito pásyati, “ver”.
23 Vd. Il. 16.361 (Heitor, protegido pelo escudo, observava bem o voo das fle-
chas); Il. 17.652 (Ájax aconselha Menelau a verificar com cuidado se Antíloco ainda
está vivo no meio da confusão da batalha); Od. 12.247 (Ulisses vela pela nau e pelos
companheiros, perante os perigos de Cila).
24 Vd. Il. 9.180 (Nestor tenta persuadir os embaixadores, fitando seriamente cada
um nos olhos).
25 Cfr. Il. 23.458 (Idomeneu pergunta aos companheiros se é apenas ele o único
a vislumbrar ao longe os cavalos). Para a etimologia, Chantraine 1984: 137, s.v. αὐγή.

42
Em proximidade semântica documenta-se ainda o verbo arcaico
λεύσσω: etimologicamente26 derivado do adjetivo λευκός (que desde a
poesia homérica traduz a referência cromática do branco luminoso)27,
parece conotar uma certa qualidade luminosa do olhar 28, ou a inci-
siva atenção prestada a um pormenor pelos dinamismos da visão 29.
A forma verbal δέρκομαι, por sua vez, aparentada 30 com o nome
δράκων, serpente, oferece na morfologia grega raiz a um conjunto
lexical de particular expressividade, onde estão representadas vá-
rias formas adjetivas e verbais derivadas, a conotarem a vivacidade
ameaçadora e paralisante do olhar 31 ; ao seu radical de perfeito
δέδορκα se associa também o vocábulo expressivo, de valor adver-
bial, ὑπόδρα, com que a poesia homérica traduz formularmente, no
espaço fixo que antecede a cesura pentemímere 32, … δ’ἄρ’ ὑπόδρα
ἰδὼν33, a violência de um olhar que mede sobranceiro a fragilidade

26 Apenas registado em Homero, em Píndaro, nos trágicos (e em Aristófanes que


os parodia): vd. Chantraine 1984: 632, s.v. λεύσσω.
27 Vd. infra, p. 33.
28A associação formular aos verbos τέρπω (e.g. Il. 19.19; Od. 8.171) e χαίρω (e.g.
Od. 8.200) parece confirmar a notação, sublinhada por Snell (1992: 20 sqq.), de uma
certa manifestação de alegria no olhar.
29 Cfr. Il. 1.120 (Agamémnon pede a atenção dos Aqueus para a injúria de que foi
alvo); Il. 3.110 (Menelau nota que o espírito de um ancião, ao contrário da leviandade
dos jovens, dirige atentamente o olhar para trás e para a frente, para garantir a equidade);
Il. 5.771 (o homem da atalaia observa atentamente o mar cor de vinho); Il. 16.70 (os
Troianos não reconhecem com atenção o elmo de Aquiles); Il. 16.127 (Aquiles vê com
atenção uma labareda junto das naus); Il. 19.19 (Aquiles delicia-se a olhar atentamente
para o esplendor das suas novas armas); Il. 20.346 (apesar do esforço de atenção que
faz, dispersada a neblina, Aquiles não vê Eneias); Od. 6.157 (Ulisses nota a Nausícaa a
alegria dos pais, quando a observam a entrar na dança), Od. 7.171 (Ulisses sublinha o
prazer com que os homens contemplam aquele que tem o dom da palavra); Od. 8.200
(regozijo de Ulisses a reconhecer na turba um aliado), Od. 23.124 (Telémaco pede ao
pai que avalie com atenção e inteligência a situação em que se encontram).
30 Com o radical de grau zero nos aoristos segundos activo ἔδρακον e passivo
ἐδράκην.
31 Chantraine, 1984: 264, s.v. δέρκομαι.
32Reservando quase invariavelmente o espaço até à cesura heftemímere para a
fórmula verbal que introduz o discurso ameaçador, προσέφη, e desde essa ao final
do verso o espaço para o autor do assédio.
33 Dezassete vezes na Ilíada (cfr. Il. 1.148, Il. 2.245, Il. 4.349, Il. 4.411, Il. 5.251,
Il. 5.888, Il. 10.446, Il. 12.230, Il. 14.82, Il. 15.13, Il. 17.141, Il. 17.169, Il. 18.284, Il.
20.428, Il. 22.260, Il. 22.344 e Il. 24.559) e nove na Odisseia (cfr. Od. 8.165, Od. 17.459,
Od. 18.14, Od. 18.337, Od. 18.388, Od. 19.70, Od. 22.34, Od. 22.60 e Od. 22.320).

43
de um interlocutor; todos os contextos épicos 34 do verbo valorizam
essa notação disfórica de violência, ruína e desgraça.
Já a forma παπταίνω, de etimologia desconhecida, correspondendo
com grande probabilidade a uma formação intensiva com redupli-
cação e sufixação (πα-πτ-αίνω) 35, denota por sua vez regularmente
a ansiedade colocada no olhar que procura, movendo-se inseguro
em várias direções 36.
E o elenco das formas poderia exponencialmente ampliar-se, se
considerássemos como nos Poemas Homéricos ocorrem ainda vários

34 Cfr. Il. 1.88 (Aquiles garante proteção a Calcas, enquanto contemplar a luz sobre
a terra); Il. 3.342 (Alexandre e Menelau confrontam-se, observando-se terrivelmente);
Il. 11.37 (a Górgona de aspeto terrível olha fixa e terrivelmente); Il. 13.86 (a tristeza
toma o coração dos Troianos que contemplam esgotados o combate); Il. 14.141 (o
coração de Aquiles exulta ao contemplar a desgraça); Il. 17.675 (fala-se do olhar
da águia predadora, a que nada escapa); Il. 22.95 (fala-se da serpente que fita com
olhar medonho); Il. 23.815 (fala-se de Diomedes e Ájax, que avançam, com olhares
terríveis, ávidos de guerra); Od. 5.84 e Od. 5.158 (fala-se de Ulisses, que fita o mar);
Od. 10.197 (Ulisses narra aos companheiros o que viu com os olhos); Od. 16.439
(Eurímaco garante a Telémaco proteção enquanto contemplar a luz sobre a terra);
Od. 19.446 (fala-se do javali que lança fogo do olhar). Além destes, ocorrem ainda
variantes derivadas como ποτιδέρκομαι, (Il. 16.10 e Od. 17.518).
35 Chantraine 1984: 856, s.v. παπταίνω.
36 Cfr. Il. 4.200 (o arauto obedece a Agamémnon e vai procurar entre os Aqueus
Macáon); Il. 4.497 (Ulisses arremessa a lança, olhando em várias direções); Il. 8.269
(Teucro, protegido pelo escudo de Ájax, lança a sua seta, depois de olhar em várias
direções); Il. 11.546 (Ájax perturba-se na refrega, olhando em todas as direções); Il.
12.333 (Menesteu encurralado olhando em todas as direções); Il. 13.551 (Antíloco
desarma o adversário morto, olhando em todas as direções); Il. 13.649 (Harpálion
retira-se frustrado, olhando em todas as direções); Il. 14.507 (todos os Troianos temem
a morte, e olham em todas as direções); Il. 15.574 (Antíloco arremete, olhando em
todas as direções); Il. 16.283 (convencidos da presença de Aquiles em combate, todos
os Troianos temerosos olham em todas as direções); Il. 17.84 (Heitor olha sombrio e
inquieto para as falanges dos exércitos); Il. 17.115 (Menelau olha em todas as dire-
ções à procura de Ájax); Il. 17.604 (Heitor retrocede, olhando ansioso); Il. 17.674
(Menelau avança, olhando em todas as direções, como a águia); Il. 22.463 (Andrómaca
corre a procurar ansiosamente com o olhar Heitor, arrastado na planície); Il. 23.464
(Idomeneu antecipa os resultados da corrida, olhando a pista em todas as direções);
Il. 23.690 (Euríalo que olhava em todas as direções é atingido por um golpe de Epeu);
Od. 11.608 (no Hades, Héracles olha terrivelmente em todas as direções, pronto para
atirar); Od. 12.233 (Ulisses afadiga os olhos a procurar Cila); Od. 19.552 (olhando em
todas as direções, Penélope verifica que os gansos permanecem vivos); Od. 22.24 (os
pretendentes procuram aflitos pelas paredes as armas); Od. 22.43 (os pretendentes
procuram aflitos forma de escapar à morte); Od. 22.380 (Médon e Fémio retiram-se
para o pátio, olhando em todas as direções); Od. 22.381 (Ulisses procura por todo o
lado vestígios de mais pretendentes); Od. 24.179 (Anfimedonte reconta a Agamémnon
a chacina, e como Ulisses atingiu Antínoo, depois de olhar em todas as direções).

44
outros passos onde verbos sensitivos que aprendemos a interpretar
como de cariz mais abstratizante – como ἀίω37, αἰσθάνομαι, γιγνώσκω,
εὑρίσκω, νοέω, φαίνω ou φράζω – podem de algum modo sugerir,
sobretudo a partir das suas variantes perfectivas, uma perceção da
realidade mentalmente processada por intermédio da visão. Mesmo
sem explorar à exaustão a análise dos campos lexicais dos verbos
que denotam o exercício da vista, e o seu cotejo com aqueles que
traduzem as restantes apreensões sensoriais, incomparavelmente
menos abundantes, podemos concluir que a mundividência arcaica
dos Poemas Homéricos atesta claramente uma fase de relevância da
visão sobre os restantes sentidos.
A excecional variedade das notações visuais, associadas muitas vezes,
como vimos, a modalizações concretas e expressivas da faculdade da
visão, comporta, no entanto, muitas vezes uma proporcional dificuldade
de identificação do exato matiz semântico implicado nas variantes. A
tentativa de restituir às palavras homéricas o significado e luminosi-
dade original corresponderá sempre, na verdade, a um exercício mais
ou menos fruste, e frustrante, de aproximação hermenêutica, que não
consegue anular a componente subjetiva das representações mentais
dos leitores e tradutores, construídas por séculos de sedimentação
de experiências culturais e linguísticas, e assumidas mais ou menos
inconscientemente por cada um dentro da sua própria comunidade
linguística. Contrariamente à nossa intuição básica de que a expressão
linguística é unívoca, intemporal e imutável – as palavras assumem,
na moldura mais ou menos definida das suas peculiares coordenadas
históricas e identitárias, a natureza mutável de um ser vivo, gregário,
que se vai desenvolvendo e adquirindo, no desenrolar do tempo e da
teia de relações que tece com os outros, a sua peculiar configuração. E
a releitura de um testemunho antigo comporta sempre uma inalienável
traição à verdade original que nele surge cristalizada.

37 Em Il. 15. Para análise da forma, de interpretação controversa, vd. Chantraine


1984: 42, s.v.

45
3. Dualidades da cor

A par da abundância lexical com que se diversificam as referências


verbais ao acto e às modalizações expressivas do exercício da visão,
os Poemas Homéricos também detalham com muito maior requinte
de pormenor a forma visível das coisas e dos seres. Nesta moldura
semântica, pareceu-nos particularmente sugestivo propor como ân-
gulo de abordagem para a releitura da Ilíada e da Odisseia o inciso
expressivo da notação das cores.
Reconhecer matizes de variações cromáticas e nomear cores, tra-
duzindo linguisticamente a perceção das diferenças, revela-se, com
efeito, um processo complexo de construção mental, que comporta
uma muito peculiar capacidade de apreensão, e categorização da rea-
lidade. O (re)conhecimento das cores – sejam elas entendidas como
propriedades (secundárias) dos objetos (independentes de um sujeito),
ou, pelo contrário, como experiência subjetiva de quem as apreenda
– deriva de uma aprendizagem gradual, que teve o seu início, como
todos os dinamismos culturais, na alvorada dos tempos. Processo e
produto sistemático de descobertas e sedimentações cognitivas, ele
depende em grande medida do enquadramento civilizacional e histó-
rico do sujeito, e vai operando – consciente e inconscientemente, na
órbita da sua mundividência e do seu imaginário – uma apreensão
cada vez mais profunda da realidade em que já se está implantado.
Nesse sentido, interessa-nos perceber como esta peculiar apreensão
sensorial, que perpassa toda a experiência mental humana, e nela
configura múltiplas simbologias codificadas38 , surge traduzida na
plasticidade poética da língua grega arcaica, enquanto primordial
testemunho escrito de uma etapa civilizacional recuada da Europa.
O texto homérico oferece-nos também, na verdade, a mais genuína
imagem de como as cores seriam de início percecionadas, de um
modo muito distinto daquele em que hoje, no final de um amplo
arco temporal de quase três mil anos de história, as interpretamos.

38 Vd. Pastoureau e Simmonet 2007.

46
A primeira e surpreendente impressão de quem contacta com os
Poemas Homéricos é a de que a fronteira cromática primordial se
estabelece pela contundente oposição entre claro e escuro, fundada
na bipolaridade, real e simbólica, da noite e do dia.
Perfilam-se, na verdade, muito produtivos, e quase sempre inva-
dindo, em estreita proximidade, a esfera um do outro na tessitura
poética, os campos lexicais e semânticos da luz e da treva. No grupo
dos primeiros, surgem, nuclearmente associados à raiz do aoristo assig-
mático φάε, “brilhar” (que na Odisseia 4.502 denota a ação iluminadora
da Aurora 39), e aos seus cognatos φαίνω, “aparecer”, “distinguir-se
à vista”, e πιφαύσκω, “fazer brilhar”, “manifestar”, os substantivos
φάος40 , luz, e φάεα (defetivo neutro plural), “olhos brilhantes” 41 ,
com os derivados adjetivos φαεινός, φαέθων, φαάντατος, φανερός e
-φανής42, “(muito) brilhante”, “luminoso”; também ocorrem, vincula-
dos a outras raízes como λάμπω, “resplandecer”, os nomes λαμπάς e
λαμπτήρ, “archote” ou “lanterna”, e o adjetivo λαμπρός, “resplande-
cente”; vinculados aos nomes ἧμαρ e ἡμέρα, “dia”, documentam-se
derivados adjetivos (ἠμάτιος, diurno) e adverbiais (αὐτῆμαρ, “no
mesmo dia”, πανῆμαρ, “todo o dia”, ἐξῆμαρ, “por seis dias”, ἐννῆμαρ,
“por nove dias”); o nome, muito frequente, αὐγή, “luz do sol”, origina
o denominativo αὐγάζω43.
Já na órbita das trevas, fundada sobre os esteios nominais dos
lexemas νύξ, “noite”, (com seu amplo conjunto de derivados e

39 Quase sempre traduzida pelo verbo etimologicamente aparentado φαίνω, na


fórmula recorrente ἦμος δ’ἠριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς (testemunhada 20 ×
na Odisseia, 2 × na Ilíada, com mais uma variante formular de ocorrência única em
cada um dos dois poemas).
40 Ou φόως com diéctase, ou contraído φῶς.
41Dois passos da Odisseia (Od. 16.15, Od. 17.39) traduzem a comoção com que,
após uma ausência prolongada e aflitiva, alguém (Telémaco, Penélope) acarinha
emocionado, beijando a testa, os belos olhos brilhantes e marejados, e as mãos de
quem estima (Eumeu, Telémaco).
42 Como segundo radical em processos de composição morfológica.
43 Vd. supra, p. 27.

47
compostos 44 ), σκιά, “sombra” (com os denominativos σκιάω 45 e
σκιάζω, “sombrear”, “encher(-se) de sombras”, e os derivados adje-
tivos σκιερός e σκιόεις, “sombrio”), e σκότος, “a sombra [da morte]”
(com os derivados adjetivos σκότιος, “sombrio”, e σκοτομήνιος, “sem
luar”), sobressaem ainda outros termos expressivos, como ἔρεβος46,
“obscuridade subterrânea” (com seu derivado ἐρεβεννός, “sombrio”,
“obscuro”, epíteto frequente da noite47), e a forma adjetiva ἀμαυρός,
“obscuro”, de etimologia desconhecida 48.
Esta notação dúplice de claro-escuro, manifesta passim em todo o
testamento homérico, assume peculiar poder evocativo nas fórmulas
recorrentes do nascer do dia 49 ou do cair da noite 50 , que muitas
vezes balizam no contínuo poético momentos de mais expressivo
dramatismo.

44 Vd. Chantraine 1984: 750-60, s.v.


45 Vd. e.g. a fórmula poética do anoitecer, δύσετο τ’ἠέλιος σκιόωντο τε πᾶσαι ἀγυιαί,
“pôs-se o sol e sombrearam-se todos os caminhos” (7 × na Odisseia).
46 Para a análise do nome, com múltiplas ocorrências paralelas noutras línguas
indoeuropeias, vd. Chantraine 1984: 366, s.v.
47 Documentado 7 × na Ilíada associada à noite, e uma às nuvens.
48 Vd. Chantraine 1984: 71-72, s.v. Ocorre documentada duas vezes na Odisseia,
iv 824 e 835, como epíteto de um fantasma.
49 A par das fórmulas recorrentes Ἦμος δ’ ἐριγένεια φάνη ῥοδοδάκτυλος Ἠώς
(22 ×, “quando surgiu a Aurora de róseos dedos, filha da manhã”) e αὐτίκα δὲ χρυ-
σόθρονος ἤλυθεν ‘Ηώς (4 ×, “e logo sobreveio a Aurora de trono dourado”), surgem
ainda algumas outras variantes menos documentadas, mas de grande força expressiva,
como Ἠώς δ’ἐκ λεχέων παρ’ ἀγαυοῦ Τιθωνοῖο ὤρνυθ᾽, / ἵν᾽ ἀθανάτοισι φόως φέροι ἠδὲ
βροτοῖσιν (2 ×, “do leito do orgulhoso Titono se ergueu a Aurora, para levar a luz
aos deuses e aos mortais”); Ἠὼς μὲν κροκόπεπλος ἐκίδνατο πᾶσαν ἐπ᾽ αἶαν (2 ×, “a
Aurora de manto de açafrão espargia-se sobre toda a terra”); Ἠὼς μὲν κροκόπεπλος
ἀπ᾽ Ὠκεανοῖο ῥοάων / ὄρνυθ᾽, ἵν᾽ ἀθανάτοισι φόως φέροι ἠδὲ βροτοῖσιν· (1 ×, “a Aurora
de manto de açafrão surgiu das correntes do Oceano para levar a luz aos deuses e
aos mortais”); ἦμος δ᾽ ἑωσφόρος εἶσι φόως ἐρέων ἐπὶ γαῖαν, / ὅν τε μέτα κροκόπεπλος
ὑπεὶρ ἅλα κίδναται ἠώς (1 ×, “quando surgiu para anunciar a luz à terra a estrela da
manhã, atrás da qual se esparge sobre o mar a Aurora de manto de açafrão”); Ἡέλιος
δ’ ἀνόρουσε, λιπὼν περικαλλέα λίμνην, οὐρανόν ἐς (1 ×, “o sol ergueu-se, deixando
o belíssimo refúgio, para o oceano”); ὄφρα μὲν Ἠὼς ἦν καὶ ἀέξετο ἱερὸν ἦμαρ (1 x,
quando ainda se manifestava a Aurora e o dia crescia), αὐτίκα δ’ ‘Ηώς ἦλθεν ἐύθρονος,
(1 ×, “e logo sobreveio a Aurora de belo trono”), αἶψα γὰρ Ἠώς ἦλθεν ἐύθρονος (1
×, “imediatamente chegou a Aurora de belo trono”).
50 Δύσετό τ’ἠέλιος σκιόωντό τε πᾶσαι ἀγυιαί (7 ×, “pôs-se o sol e sombrearam-se
todos os caminhos”), ἦμος δ’ ἠέλιος κατέδυ, καὶ ἐπὶ κνέφας ἦλθε (7 ×, “quando o sol
se pôs, e desceu a treva”), μέλας δ’ἐπὶ ἕσπερος ἦλθε (5 ×, “chegou a noite negra”).

48
A ela se associam ainda, claramente explicitadas, a notação cro-
mática do branco e do negro. O branco luminoso, traduzido nos
Poemas Homéricos sobretudo pela notação adjetiva λευκός51, associa-
-se regularmente a realidades da natureza 52, mas também se aplica
a criações humanas 53; equivalente registo semântico é ainda veicu-
lado por outras formas adjetivas (como ἀργηννός, ἀργής e ἄργυφος),
retiradas como derivados de um tema original ἀργ-, a comportar o
significado generalizado de “brancura resplandecente” 54; todos am-

51 Chantraine 1984: 632-33 (s.v. λευκός) nota que o adjetivo, já documentado desde
o micénico como atributo de tecidos, e animais (bovinos), traduz a noção de “bran-
cura resplandecente”; apresentando grande extensão em processos de composição e
derivação na língua grega, com particular incidência no âmbito da antroponímia, tem
documentada correspondência exata em formas adjetivas e verbais do sânscrito, latim,
irlandês, lituano, e antigo alto alemão, pelo que se pode fundamentar a suposição de
uma raiz originária indo-europeia *leuq-/*louq.
52 Como o leite, 4 ×; a água, 2 ×; o marfim, 2 ×; as presas das feras, 7 ×; os
ossos dos mortos, 7 ×; a flor da oliveira, 1 ×; o grão e a farinha da cevada, 10 ×; os
cumes montanhosos, 1 ×; a neve, 1 ×; a claridade, 1 ×; a acalmia, 1 ×; os braços das
mulheres, 50 × (em 48 das ocorrências, toma-se por referência o epíteto λευκώλενος;
regularmente atribuído a figuras femininas: contra as vinte e quatro ocorrências
associadas, em fórmulas simples ou compostas, ao nome de Hera, o epíteto atribui-se
ainda a Helena, a Andrómaca, às servas, a Nausícaa e a Arete; pode traduzir-se como
“de níveos braços”, “de alvos braços”); a pele humana, 1 ×; os carneiros sacrificiais,
1 ×; o sinal na fronte de um cavalo, 1 ×; as pedras, 2 ×; as nuvens de pó provocadas
pela agitação dos cavalos, 1 ×.
53 Como produtos têxteis (velas de barcos, 8 ×; vestes fúnebres, 1 ×; um caldeirão
intocado pelo fogo, 1 ×; as gravações de estanho de um escudo, 1 ×; a cidade, 1 ×; o
véu resplandecente de Hera, 1 × (notar a curiosidade de dele se dizer, em Il. 14.185,
λευκὸν δ’ἦν ἠέλιος ὤς, “era branco como o Sol!”).
54 O tema reflete-se, de forma simples, no adjetivo ἀργός (que em grego se traduz
simultaneamente como “dotado de uma brancura resplandecente”, aplicado a animais,
nomeadamente bois e gansos, e como “rápido”, funcionando como um epíteto regu-
lar dos cães no texto homérico) ou alargado em ἀργυ-, em múltiplos termos gregos,
como ἀργυρός, “de prata”, com seus derivados, e ἄργυφος, “de um branco resplande-
cente”. Chantraine supõe na origem deste tema uma raiz indo-europeia que exprimia
a dualidade da brancura luminosa e da rapidez do raio. A este tema primitivo se
associam formas documentadas em sânscrito (árjuna-, “branco, claro”), latim (argu-
tus, “claro”, arguo, “tornar claro, revelar”, e, com um infixo -nt-, argentum, “prata”),
messápio (argorian, “prata”, e “argora-pandes”), e gaulês (arganto-, “prata”), o que
parece comprovar uma origem comum indo-europeia. No entanto, não se encontra
reconstituído um termo indo-europeu generalizado para referenciar a prata: se o
grego, o latim, o gaulês e o messapiano deram preferência a uma raiz nominal *arg-,
traduzindo o brilho da cor branca, outras línguas (o germânico, o báltico e o eslavo,
por exemplo) denunciam a utilização de uma raiz completamente diferente – o que,
segundo Chantraine 1984 (s.v. ἄργυρος), parece traduzir a modesta importância deste
metal entre os povos indo-europeus.

49
pliam nos Poemas Homéricos a notação da brancura ao universo da
natureza (a conotar os rebanhos de ovelhas, os gansos, o relâmpago
de Zeus e o Noto).
Já o espectro semântico do negro se alimenta sobretudo 55 da
vinculação primordial ao adjetivo μέλας56, “negro”, “escuro”: retirado
de uma raiz indo-europeia que deixou vestígios em báltico e litua-
no, e provavelmente aparentado na esfera do Grego com μολύνω,
“sujar”, ocorre como epíteto muito regular das naus (em mais de 50
ocorrências), da noite, da terra, do destino, das nuvens, do sangue,
e do vinho, mas também se aplica às ondas e à agitação das águas,
às águas das nascentes, às dores e às fúrias, a pedras e raízes, a uma
águia, à cinza e à poeira, a carneiros e ovelhas sacrificiais, e à morte.

55 Acrescem a este outras formas adjetivas de menor representatividade, como


αἰθαλόεις, “escurecido pelo fumo” (aplicado à cinza do luto ritual, à sala de banquetes
de Príamo e ao teto do palácio de Ulisses); δνοφνερός, “obscuro”, “sombrio” (dito
da noite, 2 × na Od., e do caudal de uma nascente, 2 × na Il.); ἐρεμνός, “escuro”,
“tenebroso” (aplicado à tempestade, à noite e à terra, mas também à tenebrosa égide
de Zeus); κελαινός, “negro”, “sombrio” (dito do sangue, da noite, e de uma vaga na
tempestade; os poetas posteriores retomarão o seu uso, aplicando-o ocasionalmente
ao mundo subterrâneo e seus habitantes, e sobreviverá na onomástica grega; apesar
de se reconhecer a sua antiguidade, já que se usava em micénico para descrever a
cor dos bois, a sua etimologia permanece obscura; vd. Chantraine, 1984, s.v.); λυγρός,
“sombrio”, “triste”, “amargo” (regularmente aplicado a realidades psíquicas, como as
amizades e diatribes, as aflições e a velhice, mas também aplicado à notação das
vestes imundas do mendigo); ὀρφναῖος, “sombrio”, “ermo” (dito da noite). Como
formas nominais, recorrem ainda ἀμολγός, “obscuridade”, κνέφας, “obscuridade”, e
σκότος, “escuridão”, “trevas”, no hemistíquio fixo τὸν δέ σκότος ὄσσε κάλυψε (11 ×
Il.) a conotar o súbito desfalecimento de um mortal.
56 Vd. Chantraine 1984: 680, s.v.: ocorre na morfologia grega muito frequentemente
como primeiro termo de composição, em termos poéticos e técnicos (e sobretudo
na onomástica), tendo também regular produtividade em mecanismos de derivação.
Testemunha já nos Poemas Homéricos vários exemplos de derivados (e.g., μελάνδε-
τος, “estriado de negro”, dito de espadas; παμμέλανος, “completamente negro”, dito
de animais sacrificiais; μελαγχρώς, “de pele escura” (dito de homens por oposição às
mulheres λευκώλενοι); μελάνυδρος, “de águas negras”; ocorre ainda o verbo denomina-
tivo μελαίνομαι, “escurecer”, aplicado três vezes, a conotar a pele de Afrodite, ferida na
contenda, a terra, artisticamente representada no escudo de Aquiles, e o mar, agitado
pelos ventos). O adjetivo descreve em dois casos (Il. 11.24 e Il. 11.35) a coloração
de azul profundamente escuro de dois pormenores do escudo de Agamémnon; tam-
bém em Od. 14.12, a alusão ao negro carvalho que Eumeu usara na construção dos
recintos da propriedade parece apontar para a notação da cor castanha, que várias
das modernas línguas europeias traduzem por um mecanismo equivalente, recorrendo
ao nome de uma espécie arbórea ou vegetal (port.: castanho; cast.: marrón; franc.:
marron; italiano e corso: marrone; grego: καφέ; romeno: maro).

50
A corroborar a notação desta primeira alternância dual, sobres-
sai de seguida na órbita semântica da cor uma nova e inequívoca
fronteira, a dividir especularmente o universo poético homérico.
Reproduzindo um esquema imagético recorrente nas narrativas
míticas da Antiguidade, impõe-se, com efeito, uma divisória nítida,
especular 57, entre a esfera dos seres divinos, dispensadores de dá-
divas, eternos habitantes olímpicos, dotados de imortalidade e de
bem-aventurança, e a dos seres humanos, os industriosos e infelizes
habitantes da terra, inscritos na fatal finitude da sua mortalidade 58.
Enquanto a primeira surge simbolicamente nimbada pelo brilho do
ouro 59 (e, em menor escala, o da prata 60) – que, pelo seu cunho de
excelência e incorruptibilidade, se presta a descrever a sublimidade
da natureza divina – a segunda surge marcada pela omnipresença

57 A reforçar o esquema narrativo da reprodução especular, na esfera olímpica,


das ocupações das sociedades humanas, multiplicam-se os paralelismos não só nas
cenas domésticas de conversa familiar intergeracional, debate em assembleia, vestir
e calçar, banhar, dormir e partilhar cama, estabelecer laços afetivos e seus desvios,
dividir refeições e receber ou despedir hóspedes, viajar, anunciar e profetizar, provi-
denciar a si mesmo cuidados e vaidades corporais, aplicar-se em ofícios profissionais,
e nas atividades militares, como o apetrechar-se de armas ou lutar.
58 A mais absoluta distinção entre os primeiros, superiores, antecessores, e, na
maior parte das cosmogonias, criadores, e os segundos, inferiores, sucedâneos, e
criaturas, passava pelo traço absolutamente distintivo que à imutável bem-aventurança
de uns e à desmedida desventura de outros emprestava a morte.
59 Na origem da forma nominal χρυσός, “ouro”, empregue desde o micénico
(kuruso) como substantivo e adjetivo, parece estar um empréstimo semítico (visível
na proximidade com termos linguísticos do hebraico, ugarita e fenício). Segundo
Chantraine (1984, s.v.), é possível supor a existência de uma antiga raiz indo-europeia
para referenciar linguisticamente o ouro, a partir da comparação do latim aurum, com
o antigo pruss. ausis, do tocário A wäs, etc; mas essa raiz deve ter sido substituída
em grande parte das línguas por formas retiradas da raiz *ghel-, ter um brilho ama-
relado. O termo apresenta grande produtividade na língua grega, já que se encontra
documentado, em todas as épocas desde o micénico, em várias centenas de compos-
tos (sobretudo no primeiro elemento), e tem também razoável representatividade em
processos de derivação.
60 Para a etimologia, vd. supra, nota 54. Ἄργυρος apresenta na morfologia grega
relativa importância, figurando como primeiro e segundo termo em diversos com-
postos, e como radical derivante em numerosas formas nominais e verbais. Além
da lista de termos poéticos em que se inscrevem várias formas homéricas (como os
adjetivos epitéticos ἀργυρότοξος, “de arco de prata”, dito de Apolo, ἀργυροπέζα, “de
pés de prata”, dito de Tétis, πανάργυρος, “todo de prata”, ἀργυροδίνης, “de correntes
de prata”, ἀργυρόηλος, “com pregos de prata”), Chantraine 1984 (s.v. ἄργυρος) apon-
ta ainda pelo menos uma trintena de compostos que assumem um sentido técnico.

51
mais opaca do bronze 61 e pela discretíssima ocorrência do ferro 62,
quase sempre representações disfóricas de dureza e violento domínio.
E se o cenário olímpico de eterna bem-aventurança,

onde dizem ficar a morada eterna


Dos deuses: não é abalada pelos ventos, nem molhada
Pela chuva, nem sobre ela cai a neve. Mas o ar estende-se
Límpido, sem nuvens: por cima paira uma luminosa brancura.
A í se aprazem os deuses bem-aventurados, dia após dia (Od.
6. 42-46),

acumula a extraordinária resplendência do ouro 63, também os seus


habitantes associam ao perfil atributos de ouro: de ouro são, pois,

61 A forma nominal masculina χαλκός, que figura desde o grego micénico como
a denominação comum do cobre e do bronze (uma liga metálica que associa cobre
e estanho) revelou na morfologia grega grande produtividade em processos de com-
posição e derivação. A etimologia do termo, muito debatida entre os especialistas, é
obscura: propuseram-se, entre outras hipóteses, a associação a uma raiz indo-europeia
*ghel(e)gh- (que traduziria a denominação do “ferro”), ou a uma raiz de origem
obscura que traduzisse a noção fundamental de “cor vermelha” (associado ao termo
grego χάλχη ou χάλκη, “múrice”), ou a uma língua do Próximo Oriente (fenício, ara-
maico, sumério, anatólio). Inclinado para a hipóteses de que a técnica de utilização
do cobre e do fabrico da liga de bronze, documentada já numa fase muito antiga da
civilização egeia, tenha sido determinada pelas ricas minas de cobre de Chipre, e
pela influência do Próximo Oriente. Chantraine (1984: 1243-44, s.v. χαλκός) defende
que o termo, e a técnica metalúrgica que ele designa, devem ter chegado ao mundo
grego como empréstimo muito antigo (pré-micénico) de uma língua e civilização que
não é possível determinar com exatidão.
62 Chantraine (1984: 1002, s.v. σίδηρος) nota que o termo, de etimologia desconhe-
cida, deveria corresponder a um empréstimo antigo de uma língua não indo-europeia;
o testemunho da Poesia Homérica apresenta o ferro como um metal raro, e, contra-
riamente ao bronze, difícil de trabalhar e ausente dos campos lexicais da metalurgia.
63 Assente entre nuvens douradas (Il. 14.343, Il. 14.351, Il. 18.206-07), o palácio é
dourado (Il. 13.22), com o pavimento de ouro (Il. 4.2), as paredes resplandecentes (Il.
8.435), o mobiliário de ouro (Il. 8.436). Em Od. 8.273 sqq., pela sensibilidade poética
de Demódoco, propõe-se a descrição do palácio de Hefesto, o deus artífice, que cumula
de benesses aqueles por quem se desvela, mas suporta no requinte da sua morada
etérea, de chão de bronze (Od. 8.321), a mais humilhante das experiências afetivas,
obrigado a expor em público a desdita do desprezo adúltero da esposa, e a regatear
perante a chacota dos pares divinos a compensação devida à sua honra maltratada;
dado o preferencial âmbito de ação do deus, a descrição do palácio inclui detalhes
sobre a oficina de ferreiro, a forja e a bigorna, e o trabalho dos metais. Também na
Odisseia o palácio de Alcínoo, rei dos ditosos Feaces (que, aparentados com os deu-
ses, gozam de uma vida de ininterrupta bem-aventurança, sem os duros cuidados do

52
as vestes 64, as armas 65 e objetos vários 66 com os quais os deuses
exercem a sua divina influência. De igual modo apresentam notável
frequência os atributos divinos que se apresentam morfologicamente
como derivados ou compostos deste tema 67. Mesmo Zeus, o mais
elevado e poderoso dos imortais, fundando numa distinta categoria
de predicados a sua excelência inter pares, garante, pelas correntes
(Il. 8.19) e pulseiras (Il. 15.19) de ouro inquebrantável com que dis-
ciplina os deuses, pela balança com que pondera as circunstâncias
(Il. 8.69, Il. 12.209), e indiretamente, pela terrível égide franjada 68

trabalho), em Esquéria, multiplica a utilização do ouro, nos umbrais, nas portas, nas
alfaias domésticas, na estatuária decorativa (cfr. Od. 7.86 sqq.).
64 E.g. as vestes de Zeus (Il. 8.43), os cintos de Calipso (Od. 5.231) e de Circe
(Od. 10.543-44); as pregadeiras com que Hera prende a túnica (Il. 14.180); as san-
dálias de Hermes (Il. 24.341-42; v 45), e as de Hera (Od. 11.604; apesar de o epíteto
χρυσοπέδιλος não voltar a documentar-se nos Poemas Homéricos, as quatro ocorrên-
cias registadas em Hesíodo parecem fundamentar a sua inscrição na lista de epítetos
distintivos da deusa, a traduzir a ideia da excelência na notação do metal raro com
que se concebem as suas sandálias).
65 E.g., o chicote de Zeus (Il. 8.44) e o de Poséidon (Il. 13.26), a espada de Apolo
(Il. 5.509), o elmo de Atena (Il. 5.744), as armas de Poséidon (Il. 13.25).
66 E.g., as suas alfaias domésticas do Olimpo (Il. 4.3); o trono de Hera, de Ártemis
e de Aurora (Il. 1.611, Il. 5.529 e Od. 10.541); muitas partes do carro de Hera (Il.
5.724-31); as rédeas dos seus cavalos (Il. 6.205); os arreios dos cavalos de Ares e Hera
(Il. 5.358, Il. 5.362, Il. 5.720 sqq., Il. 8.383) e até as crinas dos cavalos de Poséidon
(Il. 13.24) e as correntes com que os prende (Il. 13.36); a roca de Hera e Ártemis
(Il. 20.70 e Il. 16.183; a lançadeira de Calipso (Od. 5.62); o bastão de Hermes (Od.
5.87, Od. 10.331, Od. 14.172, Od. 24.3), os cestos (Od. 10.355) e as taças de ouro
(Od. 10.315 e Od. 10.357) de Circe; e as obras artísticas que se criam nas forjas de
Hefesto (Il. 18.416, Il. 18.474, Il. 18.561).
67 A saber, χρυσέη, dito de Afrodite (11 ×); χρυσάορος, de Apolo (2 ×); χρυσηλά-
κατος, de Ártemis (3 ×); χρυσήνιος, de Ártemis (1 ×) e Ares (1 ×); χρυσόθρονος, de
Hera (3 ×), Aurora (10 ×) e Ártemis (2 ×); χρυσοπέδιλος, de Hera (1 ×); χρυσόρραπις,
de Hermes (3 ×); χρυσόπτερος, de Íris (2 ×).
68 Símbolo de um poder superlativo, capaz de alterar mesmo as circunstâncias
mais complexas, a égide, brandida regularmente nos Poemas Homéricos por Zeus (daí
dotado do epíteto distintivo αἰγίοχος, com 56 ocorrências nos Poemas Homéricos) – e
algumas vezes emprestada a Atena, interpretada como mandatária superior de Zeus, ou
como herdeira dos seus excecionais poderes (Il. 5.738-42, Il. 18.204, Il. 21.400) ou a
Apolo (Il. 15.308, Il. 24.20) – surge descrita (Il. 2.446-48, Il. 5.738-42, Il. 24.20) como
um prodigioso objeto, cuja visão infundia terror: ao centro comportava a cabeça mons-
truosa de uma das Górgonas, emoldurada de assustadoras representações alegóricas
do Medo, da Discórdia, da Violência e da Perseguição. Parece andar simbolicamente
associada, como uma arma mágica, ao poder excecional de Zeus sobre todas as for-
ças da natureza, nomeadamente os elementos atmosféricos. O sentido próprio “de
pele de cabra” aparece já documentado em Heródoto, 4.189, e Eurípides, Cycl. 360,

53
(cedida por regra à filha Atena) e pelo cetro (oferecido como sinal
de legitimação suprema aos reis dos Argivos 69, e em particular ao
Atrida Agamémnon70), todos de ouro, a mesma notação superlativa.
Na esfera humana, exibem excecionalmente objetos de ouro os mais
distintos dos mortais, sobretudo os reis, que muitas vezes merecem
na dicção homérica o expressivo título de “criados por Zeus” 71, ou
“aqueles a quem se estima” (θεὸν ὣς τιμᾶν, 8 ×)/ “a quem se contempla
(θεὸν ὣς εἰσορᾶν, 3 ×) como deuses”. Em contextos de batalha, o ouro
surge sobretudo 72 em armas 73, despojos e prémios conquistados 74,
compensações de resgate75 e desagravo76, ofertas77, e ainda objetos

embora lhe tenham sido associados outros, de origens pouco claras, nomeadamente
em vocábulos técnicos; vd., a propósito, Chantraine 1984 (s.v. αἰγίς).
69 Cfr. Il. 2.196-197, Il. 2.268, Il. 6.159, Il. 9.156, Il. 9.298, Od. 3.412; σκηπτοῦχος,
detentor do cetro é, pois, epíteto distintivo dos reis (Il. 1.279, Il. 2.87, Il. 14.93; Od.
2.231, Od. 5.9, Od. 8.41 e Od. 8.47).
70 Cfr. Il. 9.38. O cetro dourado de Zeus surge replicado como símbolo de legiti-
mação divina não só por reis, mas também por sacerdotes (Il. 1.15, Il. 1.374), arautos
(Od. 2.37), profetas e adivinhos (Od. 11.91), e juízes (Od. 11.569); são de outra
natureza os cetros (bastões) dos aedos e mendigos. Notar ainda que, até pela sua
representatividade política no mundo homérico, Micenas tem o epíteto de πολύχρυσος
Μυκήνη, rica em ouro (Il. 7.180, Il. 11.46; Od. 3.304).
71 Διοτρεφής (43 ×), διοτρεφής βασιλεύς (12 ×).
72 Excecionais ocorrem os testemunhos de adereços usados por guerreiros aris-
tocráticos, como as fitas de ouro no cabelo do filho de Pântoo, em Il. 17.50-51, ou
a pregadeira de ouro artisticamente gravada da túnica de Ulisses (Od. 19.226-30);
equivalente adereço tem o cinto guerreiro de Menelau (Il. 4.133).
73 Cfr. Il. 4.112, Il. 6.236, Il. 6.320, Il. 8.193, Il. 10.437-39, Il. 11.25, Il. 11.30, Il.
11.297, Il. 18.612, Il. 19.381, Il. 20.268, Il. 20.270, Il. 21.165, Il. 22.316, Il. 23.503;
Od. 11.10.
74 Cfr. Il. 2.873-75, Il. 9.137, Il. 9.279, Il. 9.365, Il. 23.269, Il. 23.549, Il. 23.614, Il.
23.751, Il. 23.796-97; Od. 14.324. Neste âmbito, sobressai, pela conotação infamante,
o ouro que a aleivosa Erífile recebe pela vida do marido, em Od. 11.327.
75 Cfr. Il. 11.133, Il. 22.50, Il. 22.340, Il. 22.351, Il. 24.232
76 Cfr. Il. 9.122, Il. 9.126, Il. 9.264, Il. 9.268, Il. 19.247; Od. 22.58b.
77O episódio da oferta da panóplia de Glauco ao opositor Diomedes (Il. 6.119-
236) detalha como, defrontando-se como inimigos no campo de batalha, o Grego
Diomedes e o Lício Glauco reconhecem acidentalmente, após a enunciação da
genealogia do último, que estão ligados por um vínculo de hospitalidade que uniu
no passado os seus avós. Assumindo o dever moral herdado dos antepassados, ambos
renovam as sagradas obrigações de hospitalidade familiar: renunciam às primitivas
intenções hostis, e trocam simbolicamente, em sinal de amizade, as armas; e assim,
pelas armas de bronze de Diomedes, Glauco entrega sem hesitar as suas armas de
ouro, dez vezes mais valiosas. Para a discussão desta extravagância narrativa, que
provavelmente obedece a um intuito humorístico do poeta, e corresponde a um género

54
rituais78. No âmbito doméstico, e sobretudo nos palácios mais opulen-
tos (o de Príamo na Ilíada; os de Nestor e Menelau79, e o de Ulisses
na Odisseia), muitas vezes interpretado como sinal extraordinário de
estatuto e favor divino – e ocorrendo como produto de heranças 80, de
gestas heroicas81, de ofertas de hospitalidade 82 ou propiciação83, de

típico de narrativa popular, interpolada no poema, vd. Kirk, 1990, pp. 190-91, ad Il.
6.234-36.
78 Cfr. Il. 3.248, Il. 9.670, Il. 11.633-34, Il. 11.774, Il. 23.196, Il. 23.219, Il. 23.243,
Il. 23.253, Il. 24.110, Il. 24.285, Il. 24.795; Od. 24.74.
79 A errância de Telémaco fora de Ítaca permite trazer à atenção do auditório os
cenários contrastantes da sagrada Pilos arenosa (Od. 3), e da ravinosa Lacedemónia
(Od. 4). Pilos está marcada pela sóbria humildade dos domínios de Nestor, que pro-
move na praia aos deuses sacrifícios isentos, e oferece generosamente ao filho do
companheiro os prudentes cuidados de uma família de substituição; a descrição do
palácio só recorrerá mais tarde, quando, empenhado no escrupuloso cumprimento
dos deveres de hospitalidade, Nestor recusa a hipótese desonrosa de deixar os hós-
pedes pernoitarem na embarcação. Em Esparta impressiona a luxuosa exuberância
das acomodações de Menelau (cfr. Od. 4.72 sqq.), que tanto contrasta com o angus-
tiado cenário de Ítaca: chama aqui a atenção, como nota irónica, a circunstância
de Menelau se empenhar a preparar o sucesso matrimonial dos filhos (Hermíone e
Megapentes), acompanhado da adúltera Helena, que, responsável pela tragédia troiana,
continua a exercer, inconsequente, sobre os homens, e até sobre os jovens visitan-
tes, a sua sedução fatal. Também Menelau, multiplicando a opulência das ofertas, e
o tempo de hospitalidade, apesar da trágica experiência que teve com a morte do
irmão, não vê os perigos em que coloca o jovem Telémaco e a família, isolados um
do outro.
80 Cfr. Il. 10.315, Il. 10.379.
81 E.g., Il. 2.229; Il. 9.126; Il. 9.268; Il. 9.137; Il. 9.365; Od. 21.10; xxi 10,
82 E.g., Il. 6.220; Od. 2.338, Od. 3.308, Od. 4.129 sqq., Od. 4.615, Od. 5.38, Od.
8.393, Od. 8.431, Od. 8.440, Od. 9.203, Od. 10.35, Od. 10.45, Od. 13.11, Od. 13.136,
Od. 13.218, Od. 13.368, Od. 15.115-16, Od. 15.207, Od. 16.231, Od. 23.341, Od.
24.275.
83 Cfr. Il. 19.247; Od. 3.274, Od. 3.384, Od. 3.426, Od. 3.435, Od. 3.437, Od.
16.185. Note-se, como especialmente relevante, a coleção de dádivas preciosas pro-
digalizadas a Penélope no contexto da corte dos pretendentes (Od. 18.293-94, Od.
18.295-96, Od. 18.298).

55
comércio84 ou de roubo85 – o ouro pode evidenciar-se em móveis86,
baixelas 87, e outros objetos de arte 88.
A par das notações lexicais do ouro, sobressaem, muito mais fre-
quentes, e generalizadas no universo humano 89, as referências ao

84 Cfr. Od. 15.460; ocorrem ainda referências ao soldo pago por alguma tarefa
mais complexa, como em Od. 4.526.
85 Cfr. Od. 15.447.
86 Sobressai, pela sua excecionalidade, a cama de Ulisses, construída sobre uma
oliveira enraizada, e artisticamente gravada pelo herói “com entalhes de ouro, prata
e marfim” (Od. 3.200). O tema simbólico da cama, reincidindo transversalmente na
Odisseia, assume nos tempos de paz uma singular relevância: sendo o coração da
casa, onde os homens depõem as preocupações quotidianas, retemperam as forças, e
aguardam as surpresas do futuro imediato, ela ocorre também, no seio das relações
estabilizadas pelo vínculo matrimonial, como a certeza da continuidade geracional.
No enquadramento singular da cultura aristocrática arcaica, a cama é o conforto
supremo que o hospedeiro concede ao hóspede, sinal da confiança sem reservas
de quem acolhe, que se traduz ritualmente na disponibilidade generosa de armar,
no pórtico ou junto da lareira, espaços sagrados, um patamar amovível de conforto,
bem guarnecido de mantas de lã e peles, e macios lençóis frescos, para quem chega
sujeito a uma qualquer premente necessidade. No contexto temático específico do
tardio regresso de Ulisses, a cama do rei ausente recorre como o espaço de intimidade
sofrida, onde Penélope esgota, dentro dos limites da sua incomparável fidelidade, a
consciência desesperada de uma solidão que parece estar votada a não ter fim. Em
simultâneo, ela surge no imaginário libidinoso dos violentos pretendentes como o
espaço vazio que deve ser usurpado à força. A relevância simbólica da cama, que
atravessa todas as camadas de significação da Odisseia, amplia-se ainda no momento
crucial do reconhecimento dos esposos. Depois das atribuladas cenas do confronto
no mégaron e da chacina (Od. 20-22), Penélope é despertada pela leal Euricleia do
leito, onde se esgota a chorar, com a insólita notícia de que os deuses propiciaram
o desfecho de muitas dores, trazendo para casa Ulisses, e castigando às suas mãos
a prepotência criminosa dos pretendentes. Mas a legitimação dessa notícia dar-se-á
apenas por meio do sinal definitivo da cama, quando, reagindo sem o saber a uma
provocação intencional da esposa, o herói denuncia com a sua irada surpresa a
partilha de um segredo que apenas os esposos partilhavam (Od. 23.109-10): o leito
conjugal não poderia jamais ser removido do espaço do tálamo nupcial, porque tinha
sido contruído (Od. 23.183 sqq.) pelas mãos habilidosas de Ulisses, no início do seu
casamento, desbastando uma oliveira ainda solidamente enraizada, onde se esculpe
a base da cama. Enumerados com clareza os sinais, os esposos reconciliam-se e vão
fruir na cumplicidade da cama a harmonia conjugal restituída. A digressão poética
sobre a história da construção do leito empresta fundamento à notação poética de que
a cama, inamovível e enraizada na solidez da terra, a partir da qual se criou depois
toda a restante estrutura habitável do palácio, é a metáfora objetivada da lealdade
viva, inamovível e inabalável onde repousa o verdadeiro amor dos cônjuges.
87 Cfr. Od. 3.41, Od. 3.50, Od. 3.478, Od. 4.53, Od. 4.58, Od. 6.79, Od. 6.215, Od.
7.173, Od. 15.84, Od. 15.136, Od. 15.148, Od. 20.261, Od. 22.10.
88 Cfr. Il. 5.425; Od. 6.232, Od. 19.34, Od. 23.159.
89 Notar que um dos epítetos recorrentes dos Aqueus é χαλκοχίτωνες, “vestidos de
bronze” (33 ×). No universo Olímpico, o bronze só excecionalmente ocorre vinculado,
como atributo disfórico (χάλκεος, de bronze), à figura do “funesto” (οὖλος, βροτολοι-

56
bronze e ao ferro. Numa amálgama expressiva, a filigrana da formu-
laridade poética, fundindo mecanismos de sinédoque e de sinestesia,
veicula simultaneamente, com os traços associados ao tato (a conotar
a solidez e a dureza dos instrumentos metálicos fabricados), outros
que se prendem com a perceção visual, ora do brilho, ora da notação
cromática. A exuberância de fórmulas epitéticas relativas ao bronze
combina um primeiro conjunto de atribuições que veicula a referência
à dureza 90 e outro – contendo vários epítetos indistintamente asso-
ciados ao bronze e ao vinho – que evoca uma notação cromática 91
de um tom escuro, afogueado, rubro, provavelmente próximo daquilo
que modernamente simplificamos com a notação de vermelho. De
forma equivalente, o muito mais limitado formulário relativo ao ferro
repete a mesma dualidade semântica 92 , e aponta prioritariamente

γός) “abominável” (ἀίδηλος, στυγερός) Ares, o “assassino” (ἀνδροφόνος, μιαιφόνος), o


mais odioso dos deuses; a associação regular deste epíteto, nos Poemas Homéricos, a
instrumentos e armas, parece configurar um mecanismo arcaico de indistinção entre
o deus Ares e a sua esfera de ação, aliás muito recorrente em várias outras notações
epitéticas de Ares. Também a morada infernal de Hades, temida pelos homens e abo-
minada pelos deuses, tem portas de ferro e soleira de bronze (Il. 8.15).
90 Cfr. ἀτειρὴς χαλκός (7 ×), “o duro bronze”; νηλεὴς χαλκός (19 ×; o mesmo epíteto
se aplica regularmente ao destino, ἦμαρ), “o bronze impiedoso”; ὀξὺς χαλκός (37 ×; “o
mesmo epíteto se aplica a espadas”, a lanças, e a Ares), “o bronze agudo”; ταμεσίχρως
χαλκός (2 ×), “o bronze dilacerante”; ταναήκης χαλκός (4 ×), “o bronze cortante”.
91 Cfr. αἴθοψ χαλκός (11 ×; o mesmo epíteto se aplica regularmente ao vinho,
οἶνος, 24 ×), “o bronze ardente/afogueado”; ἐρυθρὸς χαλκός (1 ×; o mesmo epíteto
se aplica regularmente ao vinho, οἶνος, e ao néctar divino, νέκταρ), “o rubro bronze”,
ἤνοψ χαλκός (3 ×), “o bronze resplandecente”; embora não comporte uma notação
explicitamente cromática, a fórmula εὐήνωρ χαλκός, “o bronze viril” (1 ×), com um
epíteto também aplicado ao vinho, pode traduzir uma certa amálgama de sentido
colorístico. Já θεσπέσιος χαλκός (1 ×), “o bronze divino”, não se insere claramente em
nenhum dos dois grupos semânticos.
92 Conota inflexibilidade e dureza, aplicado como derivado adjetivo ao eixo da
roda do carro de Hera (Il. 5.723), às portas do Hades (Il. 8.15), à clava de Ereutálion
(Il. 7.141, Il. 7.144), ao coração dos homens (Il. 24.205, Il. 24.521, Od. 4.293, Od.
5.191, Od. 12.280, Od. 23.172), ao som do combate (Il. 17.424), à violência do fogo
(Il. 23.177), ao céu (Od. 15.329, Od. 17.565), às correntes que aprisionam (Od. 1.203);
como substantivo, denota (partes de) armas (Il. 4.123, Il. 4.510, Il. 18.4, Od. 16.294,
Od. 19.13, Od. 19.587, Od. 21.3, Od. 21.81, Od. 21.97, Od. 21.127, Od. 21.114, Od.
21.328, Od. 24.168, Od. 24.177), ferramentas de corte (Il. 4.485, Il. 23.30), riquezas
acumuladas (Il. 6.48, Il. 7.473, Il. 10.379, Il. 11.133, Il. 23.834, Od. 1.184, Od. 13.324,
Od. 21.10, Od. 21.61) e força incomparável (Il. 20.372, Od. 9.393, Od. 19.211, Od.
19.494); associa os epítetos πολύκμητος, “muito trabalhoso” (5 ×), a conotar dureza, e os
de notação cromática πολιός, “cinzento” (5 ×), ἰόεις, “arroxeado”, “cor de violeta” (1 ×)
e αἴθων, “refulgente”, “ardente” (4 ×). Parece também óbvio que a referência metafórica

57
para uma gradação fosca, escura, possivelmente correspondendo à
modulação do cinzento.

4. Complementos e refrações

Além destas dualidades básicas, que de alguma forma se sobre-


põem na análise, como impressões marcantes, os Poemas Homéricos
manifestam a presença discreta de várias outras referências cro-
máticas, associadas a realidades naturais e próximas das vivências
arcaicas. Sem terem perfeitamente definida a sua legitimação lexical,
e inscrevendo-se num território de algum enigma expressivo, que
muitas vezes pode surpreender pela sua excentricidade os nossos
padrões culturais contemporâneos, elas não escapam à sensibilidade
atenta dos leitores.
Assim, comungando de alguma forma, como refração complementar,
da esfera do brilho luminoso, e aparentando-se pela sua gradação
com a notação do ouro, recorrem as referências ao amarelo 93 (ou
amarelado, ou louro, ou pálido), centradas no tema do adjetivo
ξανθός: já documentado na antroponímia micénica, com o provável
significado de “amarelo”, “dourado”, “louro”, esse tema, de etimologia
desconhecida, desempenha na morfologia grega um importante papel,
fundamentando numerosos compostos e derivados, nomeadamente
a nível da antroponímia94. Atribui-se em Homero, ao cabelo claro de

ao “céu de ferro” (Od. 15.329, Od. 17.565), como aliás a do “céu de bronze” (Il. 5.504,
Od. 3.2), sugere a impressão visual de um céu ameaçador, carregado de sombras.
93 Que as línguas modernas nomeiam ora pelo parentesco com flores (o portu-
guês amarelo e o castelhano amarillo) ou com frutos (o grego moderno κίτρινος),
ora com a raiz indo-europeia que conotaria o brilho amarelado, *ghel- (através do
latim galbinus, o francês jaune, o italiano giallo, o romeno galben, o inglês yellow,
o alemão gelb, o holandês geel).
94 Chantraine 1984: 763, s.v. No âmbito da antroponímia, registam-se Ξάνθος
(esta designação com acento recessivo, já registada no micénico kasato, serviu de
nome não só a vários homens, mas também a um rio na Tróade, uma cidade na Lícia,
e ao especial cavalo de Aquiles), Ξάνθιππος, Ξανθίππη, Ξανθεύς, Ξανθίας, Ξάνθιχος,
Ξανθώ, Ξάνθυλλα, Ξανθάριον, etc. Em textos pós-homéricos expande o seu âmbito

58
divindades (uma vez a Radamanto e outra a Deméter, traduzindo
neste caso metaforicamente, num símile de grande encanto bucólico,
o sugestivo amadurecimento das searas) e pessoas (particularmen-
te Menelau, mas também Agamede, Aquiles, Ulisses 95 e Meleagro);
também se documenta ainda associado ao pelo “fulvo” do cavalo
alazão (Il. 9.407, Il. 11.679). Esta última associação parece permitir-
-nos inscrever o adjetivo no campo dos semitons alaranjados 96, ou
arruivados, uma vez que são recorrentes nos Poemas, para conotar
o mesmo brilho dourado do pelo de animais (leões, cavalos, touros
e bois)97, os adjetivos αἶθοψ e αἴθων, “afogueado”, “ardente”, ambos
aparentados com o verbo αἴθω, “incendiar”. A conotar a tonalidade
rica do amarelo, ocorrem ainda as notas descritivas do açafrão, ou
κρόκον, que se detalham nos Poemas associadas à pletórica abundân-
cia da natureza, ora na cena íntima de Hera e Zeus, ocultados por
uma nuvem de ouro e reclinados sobre a terra que se desentranha
de flores (a flor de lótus, o açafrão e os jacintos, Il. 14.384), ora na

de atribuição, passando a qualificar também o ouro, o fogo, o mel, as nuvens, as


folhas das oliveiras, etc.
95 Em Od. 13.392 sqq., Atena, expondo a Ulisses o projeto de ação que concebeu
para o proteger dos inimigos, revela que o tornará irreconhecível perante todos,
envelhecendo-o e privando dos cabelos louros (Od. 13.399). Esta informação contradiz,
no entanto, a que se apresentará posteriormente, em Od. 16.175-76, quando, para
propiciar o reconhecimento entre o herói e o filho, Atena o faz regressar à figura ori-
ginal, e de novo lhe atribui pele e barba escuros (ἂψ δὲ μελαγχροιήε γένετο... κυάνεαι
δ’ἐγένοντο γενειάδες ἀμφὶ γένειον). O pormenor do cabelo escuro ajuda a sustentar
a ideia de que Ulisses é um herói da saga mediterrânica. Para um comentário mais
detalhado da questão, vd. Hoekstra, 1984, pp. 189 (ad Od. 13.399) e 281 (ad Od.
16.176). Convém ainda notar que em Od. 23.158, de novo por intervenção de Atena,
após o banho Ulisses recupera o bom aspeto, com cabelos crespos, “semelhantes à
flor do jacinto”; a alusão, enigmática (porque os jacintos assumem várias colorações)
parece apontar mais para o amarelo (porque o símile se estrutura a partir da analogia
da ação da deusa com a do artífice que derrama ouro sobre a prata).
96 Mais uma vez convém notar que as línguas modernas tendem a referenciar o
tom pela aproximação analógica ao fruto que o exibe na natureza ou ao povo que o
disseminou historicamente (daí o português laranja, e o castelhano naranja, o fran-
cês, o inglês e o alemão orange, o italiano arancione ou portocallo, o corso aranciu,
o holandês oranje e o polaco pomarańczowy, o grego moderno πορτοκάλι, o romeno
portocale, o turco portakal).
97 E também aplicáveis a taças e trípodes de bronze, ao bronze e ao ferro e ao
vinho.

59
fórmula epitética recorrente da Aurora κροκόπεπλος, “de manto de
açafrão” 98.
Pela sua proximidade semântica com a esfera da luz, e surpre-
endidas sobretudo no seio da natureza – que a paleta expressiva
de Homero não se cansa de descrever com requinte – ocorrem por
fim as sugestões cromáticas do verde, particularmente discretas: no
contexto dos organismos vegetais, recorrem, associadas à raiz do
verbo θάλλω, “reverdecer”, “florescer”, a variante prefixada ἀναθάλλω
(dita do cajado cortado que não reverdecerá mais), os substantivos
neutro θάλος (2 × metaforicamente aplicados pelos pais aos filhos
que os continuam) e masculino θαλλός (1 × dito dos rebentos fres-
cos dados como alimento ao gado), “rebento”, e o adjetivo θαλερός,
“florescente”, “vigoroso”, aplicado recorrentemente aos jovens na flor
da idade. O adjetivo χλωρός, “verde”, “pálido”, “amarelado”, usa-se 12
× numa fórmula regular, para a qualificar o pálido terror que toma
os homens; 2 × recorre a conotar a cor pálida (amarelada?) do mel;
também 2 × aplicado ao ramo verde de oliveira; a variante feminina
χλωρηίς, “amarelento”, da verdura, ocorre uma vez aplicado ao rou-
xinol. Na descrição do exuberante pomar dos Feaces, de inesgotável
fecundidade, descreve-se como “as uvas maduras”, σταφῦλαι, rivali-
zam na videira com as ὄμφακες, “uvas verdes”. Por último, γλαυκός,
“verde pálido”, “verde acinzentado”, ocorre uma vez como epíteto
de θάλασσα (o mar, seio materno de Aquiles) 99. O seu enigmático

98 Cfr. Il. 8.1, Il. 19.1, Il. 23.227 e Il. 24.695. Apesar do preconceito cultural que
nos convida a acreditar que a mais regular das fórmulas epitéticas da Aurora, ῥοδο-
δάκτυλος Ἠώς, de róseos dedos, comporta a notação da cor rosa (vermelho pálido)
a que as línguas modernas associam lexicalmente o termo generalizado “rosa” – rosa
(em português, castelhano, italiano, corso e alemão), rose (em francês e inglês), roze
(em holandês), ροζ, (em grego moderno), roz (em romeno), e różowy (em polaco) –
é possível que a notação antiga reconhecesse nela, e na sua primitiva raiz nominal,
ῥόδον, outra variedade tonal (o amarelo?). A gradação amarelada coincide, de resto, com
outra das notações epitéticas regulares da Aurora, a de trono dourado (χρυσόθρονος),
que se associa dez vezes à deusa, contra três atribuições a Hera e duas a Ártemis.
99 Comentadores e lexicógrafos antigos apresentaram para o adjetivo neste con-
texto vários significados possíveis: Hesíquio interpreta-o como sinónimo de λευκός
(assumindo os significados de “claro, brilhante, radioso, cintilante”) e simultaneamente
de ἱσχυρός, φοβερός (“terrível, assustador”); na Suda, surge traduzido por λευκός “bri-
lhante”, opondo-se a κυάνεος, “azul escuro”. Apresentado literariamente como epíteto

60
composto, γλαυκῶπις, exclusivamente atribuído à deusa Atena, e
desde a Antiguidade controversamente interpretado 100, parece per-
mitir introduzir na paleta homérica a tonalidade indefinida e clara
do “azul esverdeado”, ou do “verde acinzentado”.
Variantes refratadas da esfera sombria do bronze, parecem ser
as modulações cromáticas compreendidas numa ampla escala de
tons de vermelho, púrpura e rubro. Semanticamente associada, so-
bretudo no contexto bélico da Ilíada, à trágica evidência do sangue
que inunda a terra, confirmando a absoluta falência do destino dos
infelizes mortais, esta gama de cor tende a associar os mesmos epí-
tetos recorrentes da forma nominal αἶμα, que sintomaticamente são
μέλας, “negro”, κελαινός, “sombrio”, e κελαιναφής, “nebuloso”101. Em
equivalente enquadramento expressivo da paleta, recorrem múltiplas
notações adjetivas, que conotam quer a sensibilidade a fenómenos
da natureza, quer o conhecimento de técnicas de transformação. Ao
primeiro grupo pertencem os adjetivos αἴθοψ, “ardente”, “flamejante”,

do mar, o adjetivo parece ter passado a conotar a sua cor azulada; posteriormente é
aplicado a ἅλς, e κύματα (por Sófocles e Eurípides), e encontra-se frequentemente
documentado em jónico-ático referenciando a cor azul-acinzentada dos olhos; com este
significado permanece ainda em Grego moderno. A atribuição posterior de γλαυκός
ou de epítetos compostos da mesma raiz à folhagem das oliveiras e à lua ou ao luar
possivelmente combina os significados “resplandecente”, e “cinza-azulado”. O termo
simples desempenha um papel importante na morfologia grega, e em particular na
onomástica, com referências já documentados em micénico.
100 Sendo possível que o epíteto γλαυκῶπις, comportando como primeiro elemento
de composição o nome γλαῦξ, -κός, assuma um sentido ritual original de “de cara
de coruja”, “de olhos de coruja”, “de aspeto de coruja”, não está ainda, no entanto,
confirmada a existência de um estádio teriomórfico da religião grega ou pré-grega. O
composto deve ter posteriormente assumido o sentido de “de olhos faiscantes, cinti-
lantes, terríveis”, pelo que também passou, por influência próxima de γλαυκός e seus
empregos, a atribuir-se à folhagem da oliveira, à lua, etc., e a assumir em determinados
contextos uma conotação colorista, “de olhos cinza-azulados ou cinza-esverdeados”.
101 As duas formações nominais ocorrem como variantes, por derivação e com-
posição, de uma primitiva raiz de etimologia obscura, já documentada em micénico
para descrever a cor dos bois; aplicada em Homero associada ao sangue, à noite, e a
uma vaga na tempestade, será retomada pelos poetas posteriores associada ao mundo
subterrâneo e seus habitantes, e sobreviverá na onomástica grega (vd. Chantraine,
1984, s.v. κελαινός). A forma composta, que recorre onze vezes como epíteto distintivo
de Zeus todo poderoso (capaz de dominar até os elementos atmosféricos imprevi-
síveis), quase sempre em contextos que conotam hostilidade ou violência do deus
sobre terceiros, aparecerá sete vezes, por extensão de sentido, associada ao sangue.

61
cor de fogo, derivado do verbo αἴθω, “arder” (11 × aplicado ao bron-
ze, 24 × ao vinho); ἐρυθρός, “rubro”, derivado de vocalismo zero da
raiz indo-europeia presente no verbo ἐρεύθω, “ruborizar” (com um
paralelo exacto no latim ruber), aplicado recorrentemente ao vinho (6
×), mas também ao néctar (2 ×) e ao bronze (1 ×); οἴνοψ, “da cor do
vinho” (composto pela junção das duas raízes nominais, οἶνος vinho,
e ὄψ, aspeto, visão), que ocorre nos Poemas Homéricos como epíteto
distintivo do mar alto (19 ×). O adjetivo φοινός, “ensanguentado”,
de etimologia incerta, e muitas vezes erroneamente interpretada (ou
como aparentado de φόνος ou de φοίνιξ) ocorre uma vez atribuído
aos focinhos ensanguentados dos lobos que devoram a presa. No
segundo grupo, a traduzir já o conhecimento técnico da tinturaria,
incluem-se, além das múltiplas ocorrências do adjetivo πορφύρεος,
derivado do substantivo πορφύρα102 (e aplicado a produtos têxteis,
mantas, tapeçarias e véus, 13 ×; mas também ao sangue, 1 ×, à bola de
Nausícaa, 1 ×; às nuvens, 1 ×, ao mar, 1 ×; às ondas, 5 ×; ao arco-íris,
1 ×; e à morte, 3 ×), as variantes criadas a partir de φοίνιξ, “purpúreo”,
“da Fenícia” (porque a técnica tintureira na Antiguidade tinha pecu-
liar qualidade em Tiro, na Fenícia): os Poemas documentam φοίνιξ
(dito de um cavalo, 1 ×; da tinta com que se tinge o marfim, 1 ×; e
de partes da indumentária guerreira – cinturões, crinas de elmos, e
correias – tingidas de púrpura, 4 ×), φοινικόεις (dito de feridas cober-
tas de sangue, 1 ×; de rédeas, túnicas e mantas tingidas de púrpura,
5 ×); φοινήεις (dito de serpentes avermelhadas, 2 ×); φοινικοπάρηος,
“de faces/proas purpúreas” (dito de naus, 2 ×). Aparece ainda como
estrutura morfológica equivalente o composto μιλτοπάρηος, “de fa-
ces/proas purpúreas” (dito de naus, 2 ×), que inclui como primeiro
termo de composição o substantivo feminino μίλτος, “tinta vermelha”
(produzida a partir do cinábrio, um sulfureto de mercúrio, também
chamado mínio ou vermelhão).

102 O molusco murex trunculus, de cuja secreção se fabricava a tintura púrpura


preferencialmente usada na indústria têxtil antiga.

62
No enquadramento da mesma moldura semântica dos tons som-
brios, recorre, muito discutida, sobretudo a partir das investigações
de William Ewart Gladstone 103 , a modulação cromática do azul,
e, possivelmente refratada a partir dela, a do violeta. Os Poemas
Homéricos elencam na verdade, no seu léxico de cores, o azul, numa
variante que sugere quase sempre uma tonalidade profundamente
escura, muito próxima do negro, sustentada sobre o tema nominal
masculino κύανος, que se documenta com frequência desde os tem-
pos micénicos, para designar uma substância ou mineral de cor azul
escura, utilizada para decoração 104. O termo, um provável emprés-
timo do hitita kuwanna, “azurite”, deu origem, no grego alfabético,
a um grupo considerável de compostos 105, e a um único derivado,
κυάνεος, usado desde Homero para designar os objetos decorados
por esmaltagem, ou que possuem uma coloração azul escura, sombria
ou negro-azulada; assim, a par das ocorrências em que descrevem
elementos decorativos (do escudo de Agamémnon, 4 ×; da cornija
do palácio feace, 1 ×), as vestes de luto de Tétis, 1 ×), também qua-
lificam aspetos da natureza, sobretudo ligados ao céu (as nuvens, 7
×); e ao mar (o areal de uma praia, 1 ×), mas também a conotar o
cabelo empastado de sangue de Heitor (1 ×), e o cabelo, e a barba
de Ulisses 106. Os epítetos derivados κυανοχαῖτα / κυανοχαίτης, “de
cabeleira azul”, de Poséidon, e κυανῶπις, “de olhos azuis escuros”

103 Vd. Sampson 2013.


104 O termo encontra-se bem documentado nos inventários micénicos: kuwano,
seu derivado kuwanijo, e composto kuwanowoko, “esmaltador, obreiro que trabalha
o esmalte ou lápis-lazúli”; vd. Chantraine 1984: 593-94, s.v.
105 Onde se inscrevem além do epíteto distintivo de Poséidon, κυανοχαῖτα/ κυα-
νοχαίτης (excecionalmente 1 ×, em Il. 20. 224, atribuído a Bóreas, metamorfoseado
em cavalo), os epítetos homéricos κυανῶπις, “de olhos escuros ou rosto negro”, dito
de Anfitrite (Od. 12.60); κυανόπεζα, (mesa) “com pés esmaltados de azul escuro”;
κυανόπρωιρος, “de proa azul escura ou sombria” (dito 13 × das naus, com a alterna-
tiva métrica κυανοπρώιρειος). A estes acrescerão posteriormente muitos outros, como
κυαναυγής, de olhos azuis escuros, κυανοβενθής, “de fundo sombrio”; κυανέμβολος,
“de esporão escuro”; κυανειδής, “azul escuro”; κυανόπεπλος, “de véu azul-negro”; κυα-
νοπλόκαμος, “de cabeleira negra”; κυανόπτερος, “de asas azuis escuras”; κυανόχροος,
“de pele escura ou azulada”. Para mais detalhes, vd. Chantraine, 1984, s.v. κύανος.
106 Vd. supra a nota 91.

63
ou “de rosto azul escuro”, dito de Anfitrite, como a alusão às vestes
de luto de Tétis (1 ×), parecem simbolicamente confirmar o meca-
nismo semântico de identificação das divindades com os espaços
que tutelam; desse mesmo mecanismo de analogia também pode
estar marcada a notação do sobrolho azul escuro dos deuses – Zeus
e Hera – enfurecidos (3 ×).
Próxima do azul escuro, e surpreendida como um fenómeno de
florescência da natureza, ocorre a notação da cor roxa ou violeta:
criada a partir da raiz nominal neutra ἴον, “violeta” (aparentada com
o latim uiola, a partir de uma provável raiz mediterrânica comum) a
notação, surpreendente e geralmente interpretada como excêntrica,
documenta-se nas formações adjetivas derivada ἰόεις (1 × aplicada ao
ferro107), e compostas ἰοδνεφής (1 × à lã tingida, e outra à lã espessa
dos carneiros do Ciclope) e ἰοειδής (3 × aplicada ao mar alto), todas
a comportar equivalente significado (“violáceo, escuro”).

5. Conclusão

Tendo conquistado desde a Antiguidade o estatuto de primeiro


autor ocidental, Homero continua a suscitar um irreprimível fascínio:
a sua leitura ocorre ainda, ao fim de quase três mil anos de reapro-
ximações, como o revisitar da inesgotável fonte primordial.
Os Poemas Homéricos são, pois, o primeiro testemunho literário
a evidenciar, no Ocidente, que nomear as cores e traduzir linguisti-
camente a perceção de cromatismos se revela um processo complexo
de construção verbal que denota uma peculiar capacidade de apre-
ensão da realidade 108.

107 Por um mecanismo de proximidade fonética com ἰός, o verdete ou ferrugem


da oxidação do ferro?
108 O fenómeno das notações excêntricas do cromatismo marinho, denunciado
no séc. XIX por William Ewart Gladstone, ocorre, de resto, como um de muitos
pormenores em que a leitura dos Poemas Homéricos, sobretudo se não mediada
por traduções empobrecedoras, rasga ao público de todos os tempos e quadrantes
a volúpia sinestésica superabundante de um universo expressivo de puro enigma.

64
Manifestando a permeabilidade das línguas a aspetos de ordem
simbólica, as referências cromáticas representam, em contextos
diferenciados, não só processos de continuidade, mas também de
surpreendente rutura.
Não pode deixar de se fazer uma breve referência ao mundo da
cor e da visão em ambiente extra-literário. Na modernidade e contem-
poraneidade tem-se mantido um discreto mas rico filão da discussão
sobre a cor, tanto no plano científico como no filosófico, marcado
desde logo pela controvérsia Newton-Goethe 109. Enquanto a física
newtoniana nos apresentou a cor como um fenómeno associado a
um determinado comprimento de onda da luz refletida, os filósofos
têm continuado a levantar questões relativas à ontologia da cor: o
que é uma cor? As cores existem realmente? Devem ser encontradas
fora ou “apenas” dentro da nossa mente? (cfr. Chirimuuta, 2015,
1). O espectro taxonómico de posições inclui irrealistas, realistas,
mentalistas, externalistas, fisicalistas, disposicionalistas, primitivistas
ou relacionalistas (cfr. Cohen, 2009, 1-15). Como quer que seja, o
que este filão tem mostrado é que a riqueza da cor resiste a uma
abordagem única, seja ela científica, filosófica ou outra. Com Zubiri
(1983), diremos que as coisas, e especialmente a cor, nos dão que
pensar, tanto científica como filosoficamente.
Mas, ao lado da racionalidade científica e filosófica, há que reivin-
dicar uma racionalidade poética e literária. E aí Homero – considerado
cego pela mais antiga tradição – surge-nos como aquele que continua
a ensinar-nos a ver.

Bibliografia

Aristóteles (1982, 2ª ed.), Metafísica. Edición trilingüe por Valentín García Yebra.
Madrid: Gredos.
Aristóteles (1969), Metafísica. Trad. de Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo.
Buber, M. (1967), ¿Qué es el hombre?. México: Fondo de Cultura Económica.

109 Müller 2017: 73-94.

65
Chirimuuta, M. (2015), Outside Color. Massachussets: MIT Press.
Cohen, J. (2009), The Red and the Real. An Essay on Color Ontology. Oxford: Oxford
University Press.
Dunbar, H. (1971), A Complete Concordance to the Odyssey of Homer (revised and
enlarged by Benedetto Marzullo), Hildesheim – New York: Georg Olms Verlag.
Heraclitus (1991), Fragments. A text and translation with a commentary by T. M.
Robinson. Toronto-Buffalo-London: University of Toronto Press.
Heubeck, A., West, St., e Hainsworth, J. B. (1988-1992), A Commentary on Homer’s
Odyssey. Oxford, Oxford University Press – Clarendon.
Homero (2005), Ilíada. Trad. portuguesa de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia.
Homero (2018), Odisseia. Trad. portuguesa de Frederico Lourenço. Lisboa: Quetzal
Editores.
Homerus (1991), Odyssea. Edited by Helmut van Thiel. Hildesheim: Olms-Weidmann.
Homerus (1996), Ilias. Edited by Helmut van Thiel. Hildesheim: Olms-Weidmann.
Kirk, G. S. (ed.) (1985-1993), The Iliad: A Commentary. 6 vol. Cambridge-New York:
Korfmann, M. (2002), “Ilios ca 1200 BC – Ilion, ca 700 BC. Report on findings from
archaelogy”, in F. Montanari (ed.), Omero tremila anni dopo. Roma: Ed. Storia e
Letteratura, 209-27.
Latacz, J. (2003), Troya y Homero, Hacia la resolución de un enigma. Trad. de Eduardo
Gil Bera. Barcelona: Destino. [Berlin, 2001].
Müller, O. (2017), “Goethe contra Newton on Colours, Light, and the Philosophy of
Science”, in M. Silva (ed.), How Colours Matter to Philosophy, Synthese Library 388.
Berlin: Springer, 73-94.
Nietzsche, F. (1985), Crepúsculo dos Ídolos. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70.
Pastoureau, M., e Simonnet, D. (2007), Breve historia de los colores. Trad. de María José
Furió. Barcelona: Paidós Ibérica.
Plato (2014), Phaedrus. Edited by Harvey Yunis. Cambridge: Cambridge Press.
Plato (1937/1942), The Republic. With an English translation by Paul Shorey, 2 vols.
Cambridge: Harvard University Press.
Prendergast, G. L. (1983), A Complete Concordance to the Iliad of Homer (revised and
enlarged by Benedetto Marzullo), Hildesheim – Zurich – New York: G. Olms Verlag.
Sampson, G. (2013), “Gladstone as linguist”, Journal of Literary Semantics 42.1: 1-29.
Snell, B. (1992), A descoberta do espírito. Trad. de Artur Morão. Lisboa: Edições 70.
Zubiri, X. (1983), Inteligencia y razón. Madrid: Alianza.
Zubiri, X. (2002), Inteligencia y logos. Madrid: Alianza.
Zubiri, X. (2003), El hombre y Dios. Madrid: Alianza.

66
Hearts and Minds in Greek Tragedy:
M e ta n o i a i n T e x t a n d P e r f o r m a n c e

Lorna Hardwick
Open University, APGRD
ORCID: 0000-0003-0210-1107
lorna.hardwick@open.ac.uk

Abstract: In this paper I examine the contribution of Greek Tragedy


to studies of challenge, change and transformation. Focusing on the
concept of metanoia the paper will analyse selected examples to
demonstrate how the formal elements of text (such as Prologue, Agon,
Stichomythia, Messenger Speech) generate reflection and revision of
perspectives and assumptions, both among the on-stage participants
and, potentially, among the spectators. The formal structures and the
rhetorical clusters of the words used bring together argument, debate
and affective responses.
The discussion will be structured to explore comparison between the
tragedians (one example each from Aeschylus, Sophocles and Euripi-
des) and also to suggest comparisons with the form and contexts of
metanoia in other Greek authors (such as Thucydides).
The main focus will be on the ancient plays but a short conclusion
will also point to how metanoia has become a crux in revivals and
adaptations created for the modern stage.
Keywords: metanoia, kleos, sacrifice, tragedy, Agamemnon, Aulis, Troy,
Antigone, Creon, Iphigenia, Aeschylus, Euripides, Sophocles

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_2
It is a great pleasure as well as an honour to be part of the tribute
volume to the work of Professor Maria de Fatima Silva. Those of us
who have had the privilege of working with her over many years have
not only benefited from her scholarship and expertise in teaching
and research but have also gained a friend who has enriched our
lives as well as our learning. Her own work has been characterised
by its combination of detailed philological analysis with understand-
ing of dramaturgy, theatre and audiences. Above all she has inspired
us by her determination that the texts and cultures of antiquity can
be a crucible for forging a deeper humanistic understanding of the
histories of human beings and their potential in the future.

*
*   *

In this brief essay I examine one aspect of the contribution of


Greek Tragedy to studies of challenge, change and transforma-
tion. Focusing on the concept of metanoia and its variations in the
Agamemnon of Aeschylus and Euripides’ Iphigenia at Aulis, I dis-
cuss ways in which the formal elements of text (such as Prologue,
Chorus, Agon, Rhesis, Stichomythia, Messenger Speech) gener-
ate reflection and map revision of perspectives and assumptions,
both among the on-stage participants and, potentially, among the
spectators, both in antiquity and more recently. The formal struc-
tures and the rhetorical clusters of the words used bring together
argument, debate and affective responses and have shaped later
receptions as well as prompting attempts to understand the con-
tinuing struggles of human beings to engage with past, present and
future.
Metanoia as a concept has been defined in different ways and
contexts. In antiquity Metanoia was a somewhat obscure goddess,
wrapped in a cloak and lurking sorrowfully in the shadows. The
Classical Lexicon published under the names of Liddell and Scott in
1883 included examples of metanoia described as ‘after-thought’ and

68
‘repentance’. Yet even in 1518 the radical theologian Martin Luther
had challenged the traditional Christian interpretation of metanoia
as involving contrition, confessions and penance. He argued instead
that the ancient Greek connotation of ‘change of mind’ (derived from
nous, mind) should be retained.1 Here, I focus on the classical usage
in which metanoia does indicate change of mind but my interest is
in the manner and circumstances of the change and the context and
occasion in which it is communicated, both by the subject as agent
vocalised by the author of the text and by subsequent translators
and practitioners.
A very large study would be needed to list and explore all the
occasions of metanoia in Greek tragedy. I have chosen these two
plays because taken together they provide a richly layered texture of
allusions and philological and dramatic interactions, both intertextual
and intratextual. They are ‘thick’ texts with which to work. In both
Agamemnon and Iphigenia at Aulis the action hinges on occasions
when protagonists do change their mind, or are induced to do so,
and the consequences are far-reaching for the ancient narratives and
for subsequent receptions. In contrast, however, there are other plays
where failure to change a protagonist’s mind is the crux. For example,
in Sophocles’ Antigone both Antigone and Creon’s resolves are tested
through successive episodes in which their entrenched positions and
preconceptions are challenged. Antigone does not change her mind
about her obligation to provide some kind of funerary rite for her
brother and in that sense chooses her fate. Creon is also intransigent
in his determination to discover and condemn the perpetrator of the
attempted burial of Polyneices. Only at the very end of the play does
he relent – ‘since my opinion has come round to this, I who bound
her will untie her in person, lines 1108-9’. 2 By then it is too late to
save Antigone or his own son or his wife.

1 Letter to John von Staupitz, May 30, 1518, Luthers Works vol. 48, Letters, 65-70.
2 Tr. Harrison 2003: 83

69
Creon’s ‘tragedy’ is that he failed to change his mind. In that he
reflected the attributes of political leadership that were admired at
the time. For example, in his History of the Peloponnesian War, the
historian and former general Thucydides, who was roughly a contem-
porary of Sophocles, commented on several occasions on the dangers
of sudden or frequent changes of mind. In an extended dramatization
of the Assembly debate about the fate of Mytilene he attributes to
the Athenian demagogue Cleon the argument that if the Assembly
changed its decision to kill the adult males of Mytilene it would be
allowing itself to be seduced by the attractions of arguments put
forward by rhetoricians and in ‘theatrical shows’ – ‘any novelty in an
argument deceives you at once but when the argument is tried and
proved you become unwilling to follow it’ (Thuc. 3.38).3 Thucydides
himself was often critical of Cleon but in his account of the Last
Speech given by Pericles he has Pericles, whom he greatly admired,
make a similar point in respect of the Athenian arche over the other
Greek poleis: ‘your empire is now like a tyranny; it may have been
wrong to take it; it is certainly dangerous to let it go’ (Thuc. 2. 63).
This parallels the political stance of Creon in Sophocles’ Antigone.
The statesmanlike imperative is not to change course. Thucydides,
who was no friend of the demos, criticised the Assembly for its
changes of mind, when it first held Pericles to account and fined
him but then shortly afterwards ‘as is the way with crowds they
again elected him to the generalship and put all their affairs into
his hands’ (Thuc. 2. 65). That aside marks one of Thucydides’ few
direct authorial comments.
It is clear, therefore that in ancient Athens, as in modern times,
intransigence and changes of mind and their consequences were
matters of political and social import. The distinctive contribution
of tragedy is its formal and lexical capacity to explore the nuances
and the twists and turns of dilemmas and to present their affective

3 English translations of Thucydides are taken from the version by Rex Warner,
1954, London: Penguin.

70
and rational hinterlands through the reworking of mythical narratives
rather than through the pressing but sometimes ephemeral situations
of their own present.

*
*   *

In Aeschylus’ Agamemnon, the first play in the Oresteia Trilogy,


Agamemnon returns from Troy to Argos. The figure of the Watchman
speaks the Prologue (lines 1-39). 4 His speech is a mixture of differ-
ent kinds of messages. He awaits ‘a blazing message of flame from
Troy’, beacons that will announce that the Greeks have triumphed
over the Trojans. However, this eager anticipation is counterweighted
by his sense of fear – ‘my eyes never firmly close in sleep’. He says
that he weeps for the house of Atreus and ‘grieves for its difficulties’
but still hopes that ‘the fire of good news’ will appear. There are two
aspects to the Watchman’s fearfulness, both of which foreshadow
Aeschylus’ presentation of the metanoia of Agamemnon later in the
play. The first is the reference to Clytemnestra, who has been in
effect in charge of Argos during the absence of Agamemnon. The
Watchman alludes to ‘the authority of a woman’s mind: expectant,
determined like a man’s’ (lines 10-11). This seeds in the audience a
sense of her power, both in terms of the public realm of the city and
within the oikos. Alongside that perception, the Watchman conveys
a sense of foreboding, which he is unwilling to explain – ‘I’ll keep
quiet. A great ox stands on my tongue, although the house itself,
had it a voice, could speak most clearly’. This silence not only con-
cerns the past and the present that is the situation in Agamemnon’s
house itself, in which Clytemnestra’s relationship with her lover
Aegisthus, violates her duty as a wife. It also presages the future
events in the narrative of Agamemnon’s return and his fate, events

4 Quotations in English are taken from Philip de May’s translation, Aeschylus:


Agamemnon, 2003, and Oliver Taplin’s translation in The Oresteia, 2018.

71
which would be known to the spectators, who were aware of the
events in the Trojan narrative via the Epic Cycle, the Homeric poems
and other aspects of the cultural memory. The spectators do not,
however, know precisely how the play will handle those elements
and so must hold their breath and keep silent as they discover not
only what happens, but how. Thus the Watchman’s characterisation
of Clytemnestra and her authority lays the ground for the encounter
between Agamemnon and Clytemnestra as Agamemnon prepares to
enter the house after his return.
The Chorus that follows adds a further dimension to the narrative
and to the dense concentration of emotions that add to the sense of
foreboding (lines 40 ff ). The opening lines of the Parodos evoke im-
ages from the natural world that are both emotive and metaphorical.
The Chorus sings of the might and power of the Greek fleet but the
allusion to the vultures, apparently fierce and vengeful, is also the
vehicle for shifting the mood, since the savage birds also ‘sorrow for
their young at home’ and their exertions on behalf of their young
are said to be wasted. The cries of the birds turn into a lament that
in its turn conjures up the Furies, the agents of vengeance. This im-
age foreshadows the second and third plays of the trilogy in which
Orestes kills his mother Clytemnestra and is pursued by the Furies.
The register of lament continues with another image from the natural
world – the slaughter by the powerful eagles of the pregnant hare
(lines 115-6) and the evocation of the resentment of Artemis against
this brutality.
The Choral song then returns to the events at Aulis when the
Greek fleet was becalmed and morale in the army collapsed (‘foul
idleness/Causing the men to stray’). When he hesitates to allow his
child Iphigenia to be sacrificed in order to placate the gods and re-
vive the winds, Agamemnon’s leadership is put under pressure – the
soldiers beat the ground with their staffs, a gesture of rebellion. He
weighs the dilemma and acknowledges that his heart must be heavy
whichever alternative he follows. It will be heavy if he betrays the
fleet and destroys the alliance of the Greeks. Equally if he butchers

72
his child, he will ‘smear a father’s hands in a daughter’s blood bath
at the altar’. However, Agamemnon’s deliberation is short-lived. He
acknowledges to the army that ‘it is right for you to insist on a sac-
rifice of virgin blood’. The Chorus continues as a quasi-messenger
speech. It sings a graphic narrative which is both full of pathos and
also semi-pornographic in its visual focus:

λιτὰς δὲ καὶ κληδόνας πατρῴους


παρ᾿ οὐδὲν αἰῶνα παρθένειον τ᾽
ἔθεντο φιλόμαχοι βραβῆς·
φράσεν δ᾿ ἀόζοις πατὴρ μετ᾿ εὐχάν
δίκαν χιμαίρας ὕπερθε βωμοῦ
πέπλοισι περιπετῆ παντὶ θυμῷ
προνωπῆ λαβεῖν ἀέρ-
δην στόματός τε καλλιπρῴ-
ρου φυλακᾷ κατασχεῖν
φθόγγον ἀραῖον οἴκοις,

βίᾳ χαλινῶν τ᾿ ἀναύδῳ μένει·


κρόκου βαφὰς δ᾿ ἐς πέδον χέουσα
ἔβαλλ᾿ ἐκαστον θυτή-
ρων ἀπ᾿ ὀμματος βέλει
φιλοίκτῳ, πρέπουσά θ᾽ὡς
ἐν γραφαῖς προσεννέπειν
θέλουσ᾿, ἐπεὶ πολλάκις
πατρὸς κατ᾿ ἀνδρῶνας εὐτραπέζους
ἐμελψεν, ἁγνᾷ δ᾿ ἀταύ-
ρωτος αὐδᾷ πατρὸς
φίλου τριτόσπονδον εὔ-
ποτμον παιῶνα φίλως ἐτίμα. (228-247)

‘Her prayers, her cries of ‘father’


Her innocent youth, the leaders
Intent on war valued at nothing.

73
After a prayer her father told his attendants
To lift her like a goat
Face downwards over the altar……
[Iphigenia is muzzled, specifically to prevent her uttering a curse
on the house of Atreus]
She waits voiceless under the constraint of the gag
As her saffron-dyed robe trailed down
She hit each of the sacrificers
With a pitiable shot from her eye
Like the subject of a painting
Ever wishing to speak
For she had often sung to them at her father’s house
In the men’s lavish quarters, still unviolated and with pure
voice’. (tr. P. De May, 2003, 23).

Oliver Taplin’s translation of the Greek makes even more explicit


the quasi-violation of Iphigenia as she is manhandled on to the altar:

‘They used the bridle’s brutal force


to muffle up her voice;
and as her saffron-tinted cloth
fell pouring to the earth
she shot each leader standing by
an arrow from her eye
imploring pity. Beauty standing out
as in a work of art’ (tr. Taplin, 2018, 11) 5 .

In this way, Aeschylus makes the Chorus present the sacrificial


victimisation of Iphigenia through visual images that reflect not only
the picture painted by the Chorus but also the inability of Iphigenia

5 In the Introduction to his translation Taplin comments on Greek Choric metre


and the challenges of rendering this into English (Taplin 2018: xxx-xxxii).

74
to speak and her recourse to visual signs.6 She is presented through
the gaze of the spectators at the sacrifice but they are in their turn
presented by implication through her gaze. The language suggests
violation and imports into the scene echoes of the visual nature of
non-consensual sex as well as of non-consensual killing. 7
Thus in the parodos the Chorus turns the clock back. It commu-
nicates Agamemnon’s intransigence when challenged to assert his
own waning power over the army and adds another dimension to
the sense of foreboding expressed in the Watchman’s speech. The
action of the play then returns chronologically to the present with-
out specifically linking Clytemnestra or evoking her emotions at the
context and manner of the death of her daughter.
Clytemnestra’s Beacon speech (rhesis) begins at line 281. It plays
on the several twists and turns in chronology and focus. In describing
her own situation she manipulates the perceptions of the spectators
within the play – the Elders of Argos (the Chorus), and of the spec-
tators external to the play, those in the theatre. She begins by saying
that with the passage of time, ‘people’s timidity dies away’. She can
then speak of her own situation and her suffering as a lone woman,
beset by ‘festering rumours’. This repeated phrase insinuates the idea
of the poisonous effects of the years in which she has been left in
Argos. The sub-text is of the equally poisonous effects of the loss
of her daughter Iphigenia, sacrificed by Agamemnon to obtain a fair
wind for Troy so that the Greeks could sail on from Aulis. The dilem-
ma faced by Agamemnon in making up his mind and the brutality
of the sacrifice was graphically described by the Chorus earlier in
the play (lines 218ff ). This ‘back-story’ is unspoken by Clytemnestra

6 Raeburn and Thomas ad loc., point out that in her brightly coloured dress
Iphigenia is conspicuous and that her eyes emit rays of light that illuminate the object
seen (which aligns with Greek theories of vision, Raeburn and Thomas 2011: 94-5).
7 This provides a comparison and contrast with the dramatic and verbal strate-
gy deployed by Euripides in Iphigenia at Aulis, to which I shall return later in this
discussion

75
but is part of her consciousness and that of the spectators, internal
and external to the play.
At Agamemnon’s return, Clytemnestra changes the focus of her
address which is initially to the Chorus of Elders (lines 855ff ) and
speaks to Agamemnon himself. She asks him to dismount from his
chariot but not to touch the ground with ‘the foot that has conquered
Troy’. Instead, he must enter the house by walking on the tapestry
of precious cloths that she has ordered to be spread before him.
Ambiguously she asserts that only in this way this can justice be done.
When Agamemnon demurs it is for two reasons – the first is that he
believes he should not follow such female pampering; honour should
be paid to him in more appropriate ways. The second ground for his
hesitation is that he knows that the honour he is being offered in un-
Greek. Laying out such a carpet for him to walk on involves revering
him like a god. In the stichomythia that follows, Clytemnestra asks
him what Priam, the great king of Troy, would have done if offered
such an honour. Agamemnon admits that Priam would have walked
on the cloths. The desire not to be vanquished in competition with
Priam over comes Agamemnon’s hesitation. He is also motivated by
Clytemnestra’s rhetorical demand that he should not heed criticism
from others. Agamemnon is still aware that Clytemnestra is winning
the argument, asserting her power, but there is a certain quid pro
quo in that he is also bringing into his house Cassandra, his Trojan
concubine, part of the booty of war. He can therefore present to
himself his action as representing a kind of victory over Clytemnestra,
rather than a submission to her authority:

‘This girl, a flower picked out from our horde of booty and
Given to me by the army, comes with me.
Now, since I am forced to heed you in this matter,
I will enter the halls of my house, trampling on this purple’.

Agamemnon’s metanoia leads to and explains his death. It was his


pride and his desire to maintain and proclaim his power that hard-

76
ened his mind in Aulis and convinced him to sacrifice his daughter.
It is his pride and his desire for the show of power that convinces
him to overcome his scruples, change his mind and enter his house
with a symbolic trampling of the tapestries. The Chorus comment
that, in spite of this apparently triumphant return and entrance, they
still feel fear and foreboding – ‘time has now grown old’. Cassandra’s
prophecy to the Chorus (beginning at line 1214) is that ‘you will see
Agamemnon dead’. Clytemnestra’s account of the killing of Agamemnon
(beginning at lines 1372) is partly a kind of Messenger Speech, partly
a defiant self-justification. Her extended exchange with the Chorus
repeatedly invokes the sacrifice of Iphigenia and depicts her hand
as ‘the craftsman of justice’. Agamemnon did not change his mind
again about the sacrifice and he pays the price. The internal spec-
tators, the Chorus, re-situate the events in a continuing process of
brutality and revenge. The external spectators, in the ancient theatre
and subsequently are also compelled resituate their own emotions
and moral judgements, to endure their own metanoia.

To explore those processes, it is necessary to wind the clock back


in the mythical narrative but forwards in the history of performance
and to consider how Euripides dramatizes metanoia in his tragedy
Iphigenia at Aulis. 8
Euripides’ play was composed and performed in a public context
in which the performers and spectators knew that in the first play in
Aeschylus’ Oresteia trilogy the tragedian had situated the narrative
in Agamemnon’s decision to sacrifice Iphigenia in order to induce
Artemis to send winds that would allow the Greek fleet to proceed

8 Aeschylus’ Agamemnon dates from 458 BCE. Iphigenia at Aulis was Euripides’
last and probably unfinished play, performed posthumously in about 405 BCE at
the Great Dionysia in Athens where it won first prize. Euripides’ Iphigenia at Tauris
probably dates from 413/412 BCE and dramatizes the form of the myth in which
Iphigenia was spirited away from Aulis by Artemis and became a priestess of the
goddess among the Taurians (in the Crimea) before escaping once more to become
Artemis’ priestess in Attica (for discussion of the ancient sources for that part of the
myth and their sometimes contradictory perspectives on Agamemnon’s motives and
decisions, see further Collard and Morwood 2017: 3-6

77
to Troy before turning the lens on the consequences, culminating in
Clytemnestra’s entrapment of Agamemnon and his murder following
his return from Troy. Euripides’ treatment of metanoia permeates
Iphigenia at Aulis and shapes its dramatic structure. Metanoia in the
play has three main focal points: Agamemnon’s dilemma; Achilles’
decision about what (not) to do; Iphigenia’s change of mind about
how to regard her approaching and inevitable death. Here, I shall
explore only the first and third of these, since Achilles’ attitudes and
actions are not treated by Aeschylus and are less densely layered
by Euripides.
The text of Euripides’ play presents many problems, partly because
it was unfinished at his death and possibly prepared for performance
by other hands, including his son, and partly because of the inter-
polations and corruptions in the transmission of the manuscripts. 9
For the purposes of this discussion, I shall not address the section
of the play from lines 1531 onwards, which focuses on her disap-
pearance. Textual issues from the earlier part of the play are not
central to my discussion – in fact, questions of possible interpolation
actually serve to emphasise the continuing importance attached to
the theme of metanoia.
Euripides focuses on Agamemnon’s indecision in the opening se-
quence of the play, which serves as a kind of prologue. The Old Man
observes that Agamemnon is repeatedly erasing what he has written
on his pine – tablet, flinging it on the ground and weeping (lines
28ff ). Agamemnon then recounts how he resisted the pronouncement
by the seer Calchas that Iphigenia must be sacrificed to Artemis and
instead instructed the herald Talthybius to dismiss the army. However,
Agamemnon then gave in to the persuasion of his brother Menelaus
and wrote to his wife, Clytemnestra, to instruct her to bring Iphigenia
to Aulis on the pretext that she would be married to Achilles. He then
writes again to Clytemnestra to countermand his order but the Old

9 See further Collard and Morwood 2017: ix. They point out that of the play’s 1629
lines only about 200 have not been revised or deleted by various scholars.

78
Man carrying the message is intercepted by Menelaus (lines 303 ff) and
the two brothers engage in an extended agon in which Agamemnon
asserts he will not sacrifice his child, only to be interrupted by her
arrival at Aulis. In a self-serving speech Agamemnon laments that
although he has the dignity of his rank he is actually a slave to the
masses (line 450). Menelaus then experiences a change of mind and
urges Agamemnon not to kill his daughter but instead to disband the
expedition – ‘Let it go from Aulis!’ (line 495). The argument swings
to and fro, with each brother’s change of mind inverting reason and
emotion. The exchange ends with Agamemnon then taking a stand
against his brother, arguing that if he fails to sacrifice her the army
will turn against them and they will both be killed.
When Clytemnestra and Iphigenia come to him Agamemnon ini-
tially maintains the charade that his daughter is to be married to
Achilles. When Iphigenia discovers the truth she pleads for her life
and Agamemnon goes through a further process of apparent un-
certainty before he reasserts the political imperative that means he
cannot defy the will of the army. Achilles briefly plans to intervene
but he is persuaded not to act because in the key metanoia episode
in the play Iphigenia accepts her fate. She shifts her position from
one of seeing herself as the victim: ‘my blood is being shed, I am
being destroyed, in impious slaughter by an impious father’ (lines
1316-8, tr. Collard and Morwood). After emerging from her retreat
into the shelter of the hut, Iphigenia interrupts the stichomythic
exchanges between Achilles and Clytemnestra with her assertion
that her decision is that she will die – ‘I want to do just this, glori-
ously, putting all meanness of spirit wholly aside’ (line1375). 10 Her
reasons for becoming complicit with her own death are that this
will ensure the progress of the fleet to Troy and victory over the
Trojans – ‘through my death I shall ensure all that and my fame as

10 At lines 1183-4 Clytemnestra foresees the effect that the sacrifice of Iphigenia
will have on herself. This is another example of the use of foreshadowing in Greek
tragedy.

79
the liberator of Greece will be blest’ (lines1383-4). The word trans-
lated as ‘fame’ is kleos in the Greek. In using the term for herself,
Iphigenia takes over a male concept of everlasting fame, glory and
reputation. This concept is recurrent in the language of the play. At
the beginning of the play the Chorus in lines 563-7 has already al-
lied the achievement of lasting glory (kleos) through the cultivation
of reputation (doxa). They proclaim that this is underpinned by an
educated upbringing (paideia) that develops virtue and merit (arete).
The cluster of attributes praised by the Chorus includes a sense of
shame, which is equates with wisdom. Most important of all for the
thread of metanoia that runs through the play, the Chorus alludes to
the grace (charis) through which obligation is recognised through
the exercise of the mind (gnomon).
Underlying Iphigenia’s change of mind are two arguments presented
by her that are somewhat different from one another and yet com-
plementary. The first is that one person should not save themselves
at the cost of the benefit to the whole community. The second is that
it is not right that she, as a woman, should be valued against the
lives and prosperity of men. On the contrary, one man’s life is to be
valued above that of many women. She elides the value of the lives
of men with the ideal of her native land, the ‘fatherland’ (patridos).
There are a number of different aspects to this change of mind
which have been interpreted and elaborated in different ways by
scholars as well as in staging and other creative responses to the
play. The first point to be made is that in the play Euripides dram-
atizes the development of a consensual dimension in Iphigenia’s
contemplation of her death. This is in contrast to Aeschylus’ treatment
in the Agamemnon in which she is given no voice and is depicted
entirely as the victim. Euripides presents this dimension through
verbal debate and reflection, in contrast to the visual treatment in
Aeschylus’ play, and it is on words and concepts that the metanoia
in his play hinges. The second important point depends on the first,
that idealisation of Iphigenia’s viewpoint has been regarded by
scholars and by creative interpreters as a forerunner of the gendered

80
subservience of women to the demands of the ‘fatherland’ that has
subsequently characterised both totalitarian and other supposedly
liberal societies. It can of course be argued that her viewpoint is
the result of her rationalisation of the inevitability of her death, that
it is indirectly enforced on her. Nevertheless there is an element of
consensual pride in her decision, however problematic this may be
and the ways in which it is staged and critiqued provide an index
to the viewpoint of the interpreters. Edith Hall has discussed how
Iphigenia’s speech can no longer be regarded as an ‘uncomplicated
patriotic celebration of a Greek heroine’s selfless heroism in offering
herself for immolation on the altar of her country’ (Hall, 2010, 290).
This is perhaps especially the case in the light of twentieth-century
Nazi and Stalinist propaganda and brainwashing. Hall’s sums up the
metanoia as the result of Iphigenia’s real problem, which is ‘how to
die with honour in an ignoble cause for the sake of unworthy men’
(Hall, 2010, 290).
Iphigenia at Aulis has been extensively revived and adapted. 11 In
recent years film has become important as a medium in the reception
and interpretation of the sacrifice, for example in Iphigenia, directed
by Michael Cacoyannis and released in 1978. Modern associations
of the metanoia trope have been explored in translations adapted
for staging in the theatre, for example Don Taylor’s 1990 transla-
tion was staged at the National Theatre in London in 2004, directed
by Katie Mitchell. In the 1990s Ariane Mnouchkine director of the
company Theatre du Soleil, staged Iphigenia at Aulis as a prelude to
her production of the Oresteia, Les Atrides, eventually making it a
ten hour four play cycle.12 Each of these examples raises significant
questions about the ways in which medium and cultural/political

11 For discussion of examples of early performances and later receptions, see


Collard and Morwood 2017: 37-45 and entries on the database of the Archive of
Performances of Greek and Roman Drama (www.apgrd.ox.ac.uk) and the database
of the Reception of Classical Texts Research Project at the Open University (www.
open.ac.uk/arts/research/greekplays/).
12 Iphigenia at Aulis and Agamemnon premiered first, in November 1990.

81
contexts shaped the interpretation and the creative dynamic. The
significance of film and adaptations of the play at times of politi-
cal and social crisis has been explicitly noted by scholars. 13 Here, I
would like to comment briefly on two aspects.
The first aspect is the interpretation of Iphigenia’s change of
mind that is offered by Taylor in his translation and transplanted to
the stage in Katie Mitchell’s 2004 production. Taylor translates the
concept of kleos in terms of the everlasting fame that Iphigenia envis-
ages: ‘I shall become famous as the woman who set Greece free’ 14.
The lexical choices made by Taylor situate Iphigenia’s speech at the
intersection between quasi-fascist adulation of fatherland and the
desire to rationalise an inevitable death that she hopes to approach
with dignity. Her interjection, ‘What nation is better than Greece’,
and her rhetoric to her mother, ‘When you gave me birth mother, it
was as a Greek woman, part of the Greek nation’, are set alongside
her aspiration: ‘If I must die let me do it decently, with dignity and
courage’ 15. Iphigenia stakes her claim to a dual kleos, one of the
everlasting fame sanctioned by masculinist values, but also one that
proclaims the special role of female roles in the nation. Of course
this smacks of indoctrination and complicity and Taylor has made
the sinister modern implications clear in his Introduction to his
translation:
‘she offers herself as a patriotic icon, and ……makes crudely
rabble-rousing speeches full of lines reminiscent of the things Hitler
said at Nuremberg….that Greeks must always dominate barbarians.
In performance, the speech is genuinely frightening. As we see the

13 See further the discussion of the impact of the play in the 1990s and subse-
quently and the prominence of Irish adaptions in Collard and Morwood 2017: 42-45
and the exploration of the relationship between the play and narratives of human
origins and cultures of violence in Michelakis 2013: 198 ff.
14 Taylor 2004: 52.
15 Taylor’s language and rhythms at this point recall for readers and listeners on
English the opening words of the 1914 sonnet ‘The Soldier’ by the World War 1 poet
Rupert Brooke ‘If I should die, think only this of me…There shall be/In that rich
earth a richer dust concealed; /A dust whom England bore, shaped, made aware’.

82
young girl transforming herself before our eyes into a fascist poster
or a Nazi statue of German womanhood sacrificed for the greater
Reich’. 16
Taylor’s reference to ‘rabble-rousing’ resonates with the comments
by Edith Hall on how the tragedy portrays the political manipulation
of a volatile unruly mob [sc. the army] by fraudulent politicians. 17
Both Cacoyannis’ film and Mitchell’s stage production underline
those elements.
The second aspect that is crucial to modern receptions of the play
by creative practitioners and by scholars is interest in the relationship
between interpretation of Iphigenia’s metanoia and deep-seated aspects
of cultural and human concerns. Pantelis Michelakis notes that at one
level the sacrifice of Iphigenia relates to the sacrifice of innocents in
Cyprus or Vietnam. 18 He then digs deeper and refers in his discus-
sion of Cacoyannis’ film to its relationship to contemporary European
concerns with origins and cultural anxieties: ‘Cacoyannis’ Iphigenia
focuses on a story of origins. Aulis is the site where the Trojan war
began [sc and from which] much of Western culture and literature
has arguably originated…..the film uses the tragically inflected
story of Iphigenia’s sacrifice at Aulis to illustrate a grand narrative
about how human culture is founded on violence’. Michelakis goes
on to relate this narrative about the violent foundations of culture
to the ideas of modern thinkers such as Freud, Darwin, Frazer and
Girard, arguing that Cacoyannis’ film moves out from a specific set
of historical circumstances to engage with a larger configuration

16 Taylor 2004: xvi. For extended treatment of Nazi appropriation of Greek tra-
gedy, see Fisher-Lichte 2017: especially ch. 5. Fischer-Lichte’s study also addresses
appropriation of tragedy in the post-war German Democratic Republic under Soviet
domination, as well as documenting its role in dissent and resistance to totalitarian
regimes.
17 Hall, 2010, 290. The pattern of manipulation is similar to that categorised by
Thucydides.
18 The director Cacoyannis was a Greek Cypriot and the film was made at a time
when conflict between Greeks and Turks in the island of Cyprus was intense.

83
of cultural anxieties 19. Don Taylor made an analogous point in the
Introduction to his translation when he used the subject matter of
Euripides’ play as an analogy not only with the specific context of
the melange of emotion and psychological manipulation that led to
the willingness of soldiers in World War 1 to go to their deaths, but
also with the Biblical archetype of the willingness of Abraham to
sacrifice his son Isaac, a willingness invoked by Wilfred Owen in
his poem Abraham and Isaac in which he lamented how this led to
the killing of ‘half the seed of Europe one by one’ 20. The treatment
of metanoia in Aeschylus and Euripides has in its turn seeded and
destabilised the narratives surrounding human violence, its rationales
and its complicities throughout the ages.

Bibliography

Collard, C. and Morwood, J. (eds.) (2017), Euripides: Iphigenia at Aulis. Liverpool:


Liverpool University Press (2 vols.).
De May, P. (2003), Aeschylus: Agamemnon. Cambridge: Cambridge University Press.
Hall, E. (2010), Greek Tragedy: Suffering Under the Sun. Oxford: Oxford University
Press.
Harrison, J. (2003), Sophocles’ Antigone. Cambridge: Cambridge University Press.
Fischer-Lichte, E. (2017), Tragedy’s Endurance: Performances of Greek Tragedies and
Cultural Identity in Germany since 1800. Oxford: Oxford University Press.
Michelakis, P. (2013), Greek Tragedy on Screen. Oxford: Oxford University Press.
Raeburn, D. and Thomas, O. (2011), The Agamemnon of Aeschylus. Oxford: Oxford
University Press.
Taplin, O. (2018), The Oresteia, O. Taplin and J. Billings (eds.). Norton Critical Editions.
New York-London: WW Norton and Co.
Taylor, D. (2004, first published in 1990) trans. Iphigenia at Aulis: Euripides, London:
Methuen.

19 Michelakis 2013: 198, 134.


20 Taylor 2004: xviii.

84
¿Monodein: threnein? Tradiciones poéticas
e n l a m o n o d i a t r ág i c a *1

¿Monodein: Threnein? Poetical Traditions


i n T r ag i c M o n o d i e s

Milagros Quijada Sagredo


Univ. País Vasco
ORCID: 0000-0003-0586-8995
milagros.quijada@ehu.eus

Resumen: Aunque léxicos antiguos, como La Suda o Focio, glosan el


término μονῳδεῖν (cantar una monodia) como θρηνεῖν (ejecutar un
lamento fúnebre), los solos de actor en la tragedia griega contienen
con frecuencia elementos tradicionales de distinta naturaleza, que los
acercan a géneros poéticos diversos. El presente estudio aborda tipos
diferentes de monodias trágicas, algunas de sus funciones tradicionales
más características, así como otras que revelan una inspiración nueva.

Palabras clave: monodia, treno, géneros poéticos, tragedia

Abstract: Although ancient lexicons, such as Suda or Photius, gloss


the term μονῳδεῖν (sing a monody) as θρηνεῖν (perform a funeral
lament), the actor’s solos in Greek tragedy frequently contain tradi-
tional elements of a different nature, which bring them closer to a
range of poetic genres. This study addresses different types of tragic

*1 El presente trabajo se ha desarrollado en el marco del Proyecto de Investigación


FFI2016-79533-P, del Ministerio de Ciencia, Investigación y Universidades de España,
y ha sido cofinanciado con fondos FEDER. Quiero expresar aquí mi más profundo
agradecimiento a la Profesora Fátima Sousa Silva, miembro del equipo de investiga-
ción, por su colaboración en dicho proyecto.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_3
monodies, some of their most characteristic traditional functions, as
well as others that reveal a new inspiration.

Keywords: monody, threnos, poetic genres, tragedy

I. El concepto de monodia

Etimológicamente, el término monodia designa una forma de eje-


cución (el canto de un solista) y no está unido al drama; “monódico”
se dice del género poético que cultivan poetas como Alceo, Safo y
Anacreonte, cuyas composiciones estaban creadas para que las eje-
cutara un único cantor, con acompañamiento musical. Este amplio
concepto es el que maneja Platón, quien en Leyes 764d y 765a, al re-
ferirse a los agones musicales, utiliza los términos μονῳδία y χορῳδία
sin asociarlos expresamente al drama 1. Aristóteles, por su parte, en
el capítulo 12 de la Poética, donde se describen las distintas partes
que componen la tragedia, no menciona los conceptos de μονῳδία
y μονῳδεῖν, sino que se limita a señalar “aquellas partes que pro-
vienen de la escena, y los kommoi” (τὰ ἀπὸ τῆς σκηνῆς καὶ κομμοί,
1452b18), añadiendo que los kommoi son un “canto de lamentación
(θρῆνος) a cargo del coro y de la escena”, es decir, del coro y del
actor (1452b24-25). La identificación de la monodia con el treno, una
simplificación semántica de la teoría literaria postaristotélica –como
la que resuena en ciertos escolios de la comedia de Aristófanes–, es
probable que tenga este pasaje de la Poética detrás.
Los testimonios más antiguos sobre la monodia se refieren, sin
embargo, a la monodia trágica, y aparecen en las comedias de
Aristófanes. Nada tiene esto de extraño dada la conciencia alta-
mente metapoética de la comedia y el espíritu de competición que

1 Es muy posible, sin embargo, que Platón esté pensando también en las mono-
dias trágicas; famosas fueron en la antigüedad algunas monodias de Eurípides, cuya
ejecución, como solos virtuosos, es posible que entrara a formar parte de ciertos
agones musicales.

86
ésta mantuvo con la tragedia en su búsqueda de definición propia 2.
En Ranas, la monodia forma parte de la competición entre Esquilo
y Eurípides (1331-1363) a propósito de quien compone mejor las
partes cantadas (μέλη)3 de sus tragedias (ΑΙ. Τὰ μὲν μέλη σου ταῦτα·
βούλομαι δ᾽ἔτι / τὸν τῶν μονῷδιῶν διεξελθεῖν τρόπον, “E. Éstos son tus
cantos líricos. Pero todavía quiero examinar el tipo de tus monodias”,
1329-1330), y parodias de monodias, especialmente de Eurípides, se
encuentran en diversos pasajes de comedias de Aristófanes, como Aves
226-259, Tesmoforintes 1065-1068 y Ranas 1331 ss.4 De otro lado, el
término μονῳδία o el verbo correspondiente aparecen mencionados
en diversos pasajes de las obras de Aristófanes, como Ranas 849,
944, 1330, Tesmoforiantes 1077 y Paz 1012.
En su aclaración del término, diversos Lexica de la antigüedad,
como La Suda y Focio, identifican el término con su contenido más
habitual, el treno (μονωιδεῖν· τὸ θρηνεῖν), y el modo de ejecución,
el canto a cargo de un solista 5 . Hesiquio une ambos conceptos
con la glosa μονοθρηνεῖν6; de igual manera, el escolio al v.112 de
la Andrómaca de Eurípides señala que μονωιδία ἐστὶν ὠιδὴ ἑνὸς
προσώπου θρηνοῦντος.
En la crítica moderna, la delimitación de la monodia es en mu-
chas ocasiones imprecisa, en particular cuando la monodia está
en contacto con un canto amebeo. Es el caso, por ejemplo, de la
que canta Yocasta al comienzo del primer episodio de Fenicias,
considerada por algunos como monodia pero por otros como una

2 Este es un campo de estudio al que la doctora Fátima Sousa Silva ha dedicado


amplia atención, ya desde su tesis doctoral, Crítica do teatro na comédia antíga,
Coimbra 1987, y que ha dado como fruto trabajos reseñables.
3 En este pasaje de Ranas, bajo el programa de μέλη, Aristófanes incluye cantos
del coro y monodias de actor.
4 Solo en Paz 1012, la referencia a un canto monódico procedente de Medea, εἶτα
μονῳδεῖν ἐκ Μηδείας, no se corresponde con la obra trasmitida de Eurípides; de ahí
que se haya postulado que proceda de la Medea de otro poeta trágico, Melancio o
Mórsimo (cf. De Poli 2011: 1).
5 Cf. Suda, Lexicon 1244 Adler; Focio, Lexicon s.v. Naber; Pseudo-Aristóteles
Problemata 19.6; 43.
6 Hesiquio, Lexicon μ 45.

87
ejecución monódica que forma parte de un canto amebeo más am-
plio (291-353), en el que quedarían integrados los versos de llamada
del coro que la preceden. De hecho, hay bastante unanimidad a la
hora de aceptar que la monodia es una parte que se desgajó del
canto amebeo, y también, siguiendo la opinión de Aristófanes, que
fue principalmente Eurípides quien dio entidad a la monodia como
μέρος de la tragedia, al menos si juzgamos por las tragedias que
han llegado hasta nosotros 7. Barner, en su estudio de la monodia,
sostiene que, convencionalmente, podemos entender por monodia
“eine vom Schauspieler gesungene (‘lyrische’ oder ‘melische’) Partie
von grösserem Umfang und relativer Eigenständigkeit” 8.

II. La integración de la monodia en el drama

Dado que el modo tradicional de expresión del actor en la tra-


gedia griega era el recitado, y el del coro, los versos cantados, el
despliegue de canto a cargo de un actor podía causar cierta sorpresa:
el canto del coro se esperaba, no así el solo del actor. Por ello, los
poetas trágicos siguieron procedimientos diversos para integrar la
monodia en el drama y hacer que ésta no pareciera un añadido, un
μέρος extraño al género que manejaban. La aparición de la monodia
en lugares tradicionalmente destinados al coro –como la parodos o
la exodos–, muchas veces en contacto con un canto amebeo, fue uno
de los procedimientos que siguieron los creadores para integrar la
monodia en la obra y que lo nuevo pareciera tradicional. Este proce-
dimiento se vio favorecido por el hecho de que la métrica, el lenguaje
y el estilo de las monodias –como μέλη que eran– guardaban relación
con los del coro. De otro lado, las diferencias entre ambos géneros
musicales podían contribuir a lograr efectos y combinaciones nuevos.

7 En Esquilo el canto del actor forma parte siempre de un canto amebeo.


8 Barner 1971: 279.

88
Por lo que se refiere a música y danza, las monodias se cantaban
acompañadas generalmente por el aulos, algunas veces por la lyra o
la kithara, en lo que no se diferenciaban del coro. Distinta debía de
ser la situación por lo que respecta a los modos tonales. En los
pseudoaristotélicos Problemata (922b) se afirma que los modos hipo-
dóricos y los hipofrigios eran propios de las partes cantadas a cargo
del actor, pero no de las partes que cantaba el coro. Asociada a la
música estaba la danza, de la que debieron de existir tipos distintos.
Aristófanes, en Ranas 849, menciona las monodias “cretenses”, que
debían de estar acompañadas de una danza muy movida. Pero los
detalles nos faltan. Muchas veces la monodia contiene indicaciones
sobre la forma musical de presentación (de corros que bailan en
derredor canta repetidamente Casandra en la segunda parte de su
monodia en Troyanas 325 ss.), los instrumentos que la acompañan,
flauta, lira o siringe (así, en Helena 167 ss.); con mucha mayor fre-
cuencia la monodia se refiere al propio canto con términos como
μέλος, θρῆνος, αὐδᾶν, ἀείδειν, μελῳδός (βάρβαρος βοά en la monodia
del frigio, Orestes 1385), sin que por ello podamos hacernos una
idea exacta de la expresión que cobraba el canto.
La representación a través de palabra, música y movimiento de una
determina acción sobre la escena alcanzaba en la monodia trágica
su expresión máxima, pues, como señalan los pseudoaristotélicos
Problemata 918b, el actor imita, pero el coro imita menos: ὁ μὲν γὰρ
ὑποκριτὴς ἀγωνιστὴς καὶ μιμητής, ὁ δὲ κορὸς ἧττον μιμεῖται. Es este
carácter básico mimético de la monodia el que explica que muchas
de ellas sean astróficas, pero el poeta podía construir una monodia
dotándola de responsión estrófica; es lo que hace Eurípides con la
monodia de Electra en la parodos de la obra homónima, que, al modo
esquileo, tiene mesodoi intercalados (en los dos primeros sistemas,
125 ss., 150-156) y un refrán al comienzo de cada unidad métrica
(en el primer par, 112 ss., 127 ss.) 9. Nada más tradicional.

9 Estos mesodoi no tienen paralelo en las monodias que se han trasmitido. En


cuanto al refrán, es de origen ritual (como el que aparece en la invocación al peán

89
En cuanto a métrica, lenguaje y estilo, las monodias tienen un
cercano parentesco con los cantos del coro (metros líricos y vocali-
zación doria10), y como todo el lenguaje poético griego, la monodia
utiliza también formas fuertemente estilizadas como son las formas
del lenguaje ritual (sobre todo, tal y como éstas aparecen en los
trenos), las diversas figuras de repetición de palabras, y ciertos ras-
gos de estilo de la épica (vocabulario, epítetos, fórmulas, sintaxis).
Entre las figuras de repetición de palabras están a) la frecuencia de
formas flexivas semejantes; b) las preguntas al comienzo de la mo-
nodia con la que hace su entrada en escena un personaje (adónde,
dónde, quién); c) apóstrofes e interjecciones donde cobra expresión
el pathos del que canta y su respuesta emocional ante la situación
de necesidad en que se encuentra 11. La variedad y colorido de las
exclamaciones de la abubilla en Aves de Aristófanes (227 ss.) es
un reflejo paródico de este rasgo de estilo de la monodia trágica y
un testimonio insuperable: el aria que canta la abubilla se sitúa en
la línea de las monodias de Eurípides que dan forma a la primera
escena de la parodos, antes de la entrada del coro, donde cobra
expresión la atmósfera de la que parte el drama 12. La parodia de
Aristófanes en Ranas 1331-1363 refleja lo que podrían considerarse
como los elementos de estilo más característicos de la monodia, al

en Ión 125-127, 141-143). Relacionada con el refrán es la llamada a Himeneo que se


repite en la monodia de Casandra, Troyanas 314, 331, 310, 322 ss.
10 Una excepción la constituye el canto de Electra en la parodos de la obra
homónima de Sófocles, que, aunque en metros líricos, tiene vocalización ática; cf.
Barner 1971: 281.
11 La monodia tiene un carácter básico de lamentación; sirve para exponer la
situación en la que se encuentra el que canta, víctima de un pasado personal de
sufrimiento. No hay ninguna monodia en Sófocles, por ejemplo, que tenga el carácter
de esa “exaltación de alegría” que tienen algunos de sus coros.
12 Hay un variado cambio de ritmo en los metros: yambos y troqueos, anapestos
y dáctilos, docmios, jónicos y créticos se suceden en el más estrecho espacio, parodia
métrica de las monodias de Eurípides; como lo es también la frecuente resolución
de las sílabas largas por dos breves, y la sustitución de dos breves por una larga.

90
menos de las monodias más novedosas de Eurípides, como la que
canta el frigio en Orestes13.
La crítica moderna es unánime al considerar que la monodia del
frigio es una muestra de la influencia que los cambios musicales de
finales de siglo operaron sobre formas poéticas contemporáneas,
como el nomos citaródico y el ditirambo; también, naturalmente,
sobre los elementos cantados de tragedia y comedia 14 . Esta mo-
dernidad se plasmó no solo en lo rítmico-musical, sino también en
la tendencia a desarrollar un estilo monódico: las extensas partes
ecfrásticas del que Kranz denominó “estilo bello” 15 parecen estar
relacionadas con claridad con el estilo del “nuevo ditirambo”. La rica
polimetría y los frecuentes cambios de ritmo –adaptaciones necesarias
a los cambios experimentados por la música– fueron característicos
de este “nuevo ditirambo”, cuyo máximo exponente fue Timoteo de
Mileto. Igualmente, el predominio de voces femeninas –más altas y
más suaves– no solo en las partes monódicas, sino tambien en los
coros, creciente en las obras de Eurípides a partir de la década de los
veinte, es un fenómeno que debe ser relacionado con la influencia
de los nuevos modos y estilos musicales 16.

13 Puede verse el comentario de Radermacher a este pasaje de Ranas. De mono-


dia ditirámbica habla la crítica moderna a propósito del aria del frigio en Orestes;
sobre las monodias ditirámbicas de Eurípides puede verse, entre otros, De Poli 2012:
147-162; sobre la evolución del ditirambo, Zimmermann 2008: 26-41; Privitera 1977
y 1991, Schönewolf 1938, en particular 37-44, Wilamowitz 1903: 47-55.
14 Csapo 2000 sostiene que una de las principales manifestaciones de los cam-
bios musicales en la tragedia fue el aumento de las partes cantadas por el actor en
detrimento de las que cantaba el coro, una tendencia que él sitúa ya hacia la mitad
de la década de los veinte y que registran las tragedias no solo de Eurípides sino
también de Sófocles.
15 Cf. Kranz 1933: 251-262.
16 Un coro de mujeres, en la concepción etopoética de Eurípides, era esperable
que se prestase mejor al abondono emocional y a las vicisitudes incontroladas de
la música. De hecho, y a pesar de las incertidumbres sobre la cronología, se puede
afirmar que, con posterioridad a Heracles, ninguna tragedia de Eurípides (con excep-
ción de Arquelao, representado en Macedonia) debió de tener un coro de personajes
masculinos. Distinto es el caso en Sófocles.

91
III. Motivos tradicionales y contaminación de géneros en la
monodia trágica

La adaptación de la monodia a situaciones que se daban en la


realidad, rituales –como la del lamento fúnebre– o no, fue otro de
los procedimientos que siguieron los poetas trágicos para integrar
la monodia en el drama. Pero la identificación de la monodia con
el treno, ampliamente atestiguada en la Antigüedad, requiere de
ciertas matizaciones. Pues si la lamentación es un elemento carac-
terístico de las monodias, en el sentido estricto de “canto ritual
por un muerto” la identificación alcanza solo a una parte de las
monodias transmitidas. Así, en un sentido mas laxo, nos podemos
encontrar con “trenos” que son cantos de lamentación ante la pro-
ximidad de la propia muerte (es el caso de la monodia que canta
Polixena en Hécuba 197-215, la de Electra en Orestes 960-1012, o la
de la protagonista en Ifigenia en Áulide 1279-1335 de Eurípides),
o con cantos ante la creencia de que alguien ha muerto (como la
monodia de Ifigenia en Ifigenia entre los tauros, 143-178, 203-235,
dentro de un canto amebeo que constituye la parodos de la obra);
finalmente las hay que son, simplemente, la expresión de la situa-
ción dolorosa en la que se encuentra el que canta. Como veremos,
además del treno, la monodia se nutre de otras formas poéticas
tradicionales.
Si dejamos de lado los solos de Ión en la tragedia homónima
(82-183) y de Casandra en Troyanas (308-341), todas las monodias
podríamos decir que contienen elementos de lamentación, de manera
especial los trenos 17: Eumelo en Alcestis (393-415), Teseo (Hipólito
817-851), Peleo (Andrómaca 1173-1196), Antígona (Fenicias 1485-
-1538, 1567-1581) e Ifigenia en Ifigenia entre los tauros (143-178,
203-235) son los ejemplos más claros. La mayoría de estas lamen-

17 Para una reconstrucción histórica del treno como género poético puede verse
Cannatà Fera 1990: 7-46.

92
taciones tienen lugar en presencia del muerto 18, aunque como se
ha señalado antes, Ifigenia lleva a cabo un acto ritual por alguien
que no ha muerto, sino que ella cree que ha muerto, su hermano
Orestes 19. Un caso especial lo representa la tragedia Orestes (960-
1012), en la que Electra se lamenta anticipadamente por su propia
muerte: ya que Orestes ha de morir, y con él la propia Electra, nadie
de la familia podrá después entonar el treno.
Cantos de muerte en un sentido amplio pueden considerarse
además de las monodias de Polixena (Hécuba 197-215), de Electra
(Orestes 960-1012) y de Ifigenia (Ifigenia en Áulide 1475-1499)
antes mencionadas, la que canta Evadne para dar expresión a su
deseo de morir en la pira en la que arde el cadáver de su marido
(Suplicantes 990-1030). La muerte está presente también en la mo-
nodia de Heracles (Traquinias 983-1043) y en la que canta Hipólito
en la tragedia de igual nombre (1347-1388), en la que entona Áyax
(en especial 394-400) e incluso en la de Filoctetes (a partir del v.
1084), en las tragedias homónimas.
Algunas de las monodias que hemos mencionado representan una
especie de muestra prealejandrina de mezcla de géneros. Es el caso
de la que canta Evadne en Suplicantes, donde se funden motivos
del canto de boda y de la lamentación por el muerto. La monodia
de Evadne vive de la tensión entre ambos temas, del contraste –tra-
dicional en la lamentación mortuoria– entre el “en otro tiempo” y
el “ahora”, que Eurípides desarrolla aquí en forma quiasmática: al
comienzo de la estrofa está el recuerdo de la boda, la dicha mayor
del “en otro tiempo”, a ella le sigue su anhelo de morir; la antistrofa
comienza con la idea de la muerte, con la descripción del fuego en
el que arde el cadáver de su esposo y al que Evadne se va a arrojar,

18 Los cantos mortuorios tradicionales se ejecutaban en el momento de la expo-


sición del cadáver, pero podían acompañar también la procesión que trasportaba el
cuerpo para su cremación o inhumación.
19 Como Helena y Electra en las obras homónimas de Sófocles y Eurípides, se
trata de cantos de lamentación con partes trenódicas. En los tres casos las partes
monódicas forman parte de la parodos de la obra (E. Hel. 164-178, 191-210, 229-252,
348-385; S. El. 86-120, E. El. 112-166).

93
a ella le sigue la idea de la luz y los cantos de boda, pues la muerte
es vista como un himeneo 20.
La monodia de Evadne es un canto en responsión estrófica, com-
puesto principalmente en gliconios, un metro popular, que Eurípides
utiliza con frecuencia en las tragedias de su etapa media y tardía de
creación 21. La responsión estrófica acentúa la ironía estilística de
una entrada así construida –en una forma rítmica estricta– para dar
expresión a unos sentimientos impetuosos, que rallan en la locura
(ἐκβακχευσαμένα, 1001)22. La muerte de Evadne es anunciada como
un segundo matrimonio23 y su canto, de hecho, presenta algunos de
los motivos y de las características del canto de boda, entre ellos, el
elogio de los esposos, tanto de Capaneo (998-999) como de Evadne
(1013-1015, 1029-1030), el recuerdo del esplendor de la boda (990-
999) 24, la alusión a la luz (que aquí une la ceremonia del pasado
con el fuego de la pira a la que se va a arrojar Evadne: τί φέγγος,
τίν᾽ αἴγλαν, 990 // ἴτω φῶς γάμοι τε, 1025); sobe todo, las referencias
directas a la unión carnal de los esposos (1019-1021: σῶμά τ᾽ αἴθοπι
φλογμῷ / πόσει συμμείξασα φίλον / χρῶτα χρωτὶ πέλας θεμένα, “unien-
do amorosamente mi cuerpo al de mi esposo en el fuego ardiente”).
Con un carácter muy distinto al que tienen otros cantos de boda
presentes en la tragedia, como la monodia de Casandra en Troyanas
llamando al coro y a su madre a celebrar su unión con Agamenón, el
solo de Evadne, que tiene detrás un lamento fúnebre de ausentes (el

20 El suicidio de Evadne constituye para la heroína un segundo matrimonio. El


motivo de la boda-muerte es un motivo habitual, cf. Wilamowitz 1921: 554. Puede
verse a propósito de esta monodia De Poli 2012: 120-125.
21 Henn 1959: 82, n. 3, señala el uso habitual del gliconio en cantos en responsión
estrófica (lo que es el caso, siempre, en Esquilo y Sófocles; también en Eurípides,
con la excepción de Ión 1229-1244).
22 Astróficas son las entradas de Io en Esquilo, Prometeo encadenado 574 ss., la
de Poliméstor en Hécuba 1056 ss. o la del frigio en Orestes 1369 ss.
23 Al respecto puede verse Baltieri 2011.
24 Evadne comienza el apóstrofe al día de su boda recordando el resplandor del
carro de Helios y Selene, una combinación óptima para los matrimonios, como señala
Collard 1975: 362.

94
de las madres argivas por sus hijos muertos), es fundamentalmente
la expresión de un impulso y una tensión eróticos.
La monodia de Casandra en Troyanas 308-341 es un canto de
boda que tiene detrás el modelo popular del himeneo 25, adaptado
aquí a una tragedia de catástrofe. Como en Persas, espera, anuncio
y reacción a la catástrofe constituyen los tres momentos básicos
de la acción. Así, tras la destrucción de Troya, una vez sorteadas
las principales cautivas y tras el anuncio de Taltibio, Casandra ir-
rumpe en escena agitando una antorcha y cantando y danzando
mientras invoca a Himeneo; en un fuerte contraste con el escena-
rio de dolor, muerte y devastación que recorre la obra, la entrada
de Casandra reviste las características de un canto tradicional de
celebración que cobra un significado profundamente irónico en la
obra.
El canto es autoreferencial en sus alusiones a diversos momentos
y costumbres que acompañaban el rito del matrimonio, que se dis-
tribuía en varios días 26. La ceremonia comenzaba con la conductio
(nymphagogia) de la novia desde la casa del padre a la del marido,
al atardecer, a la luz de las antorchas, que portaba la madre, y era
acompañada del canto del himeneo 27 . El canto era entonado por
un exarchos y los otros participantes respondían en coro en una
estructura antifonal. A la llegada del cortejo o durante la primera
noche de bodas, delante del lecho de los esposos, se entonaba el
epitalamio, mientras a la mañana siguiente se cantaba el diegerti-
kon, también llamado orthrion, atestiguado en un fragmento trágico
del siglo V, Esquilo, fr. 43 Radt. Las invocaciones a Himeneo (310:
ὦ Ὑμέναι᾽ ἄναξ, 314: Ὑμήν, ὦ Ὑμέναι᾽ ἄναξ, 322: ὦ Ὑμέναιε, 331:
Ὑμήν, ὦ Ὑμέναι᾽, Ὑμήν), el makarismos de los esposos (311-312:

25 Cf. Maas 1914. Algunas comedias de Aristófanes (Pax 1332 ss., Av. 1720
ss.) contienen también cantos de boda que debían de tener detrás modelos popu-
lares.
26 Puede verse Contiades-Tsitsoni 1990: 33-41.
27 En las fuentes antiguas el nombre “himeneo” se utiliza para referirse a expre-
siones mélicas diferentes. Sobre la confusión entre himeneo y epitalamio puede verse
Muth 1977.

95
μακάριος ὁ γαμέτασς· / μακαρία δ᾽ ἐγώ), las alusiones a la ceremo-
nia nupcial (λέκτροις, 313; ἁ γαμουμένα, 313; ἐπὶ γάμοις ἐμοῖς, 319;
παρθένων ἐπὶ λέκτροις, 323; νύμφαν, 337; ἐμῶν γάμων, 339; εὐνᾷ,
339) en particular, a las antorchas (φῶς, 308; φλέγω, 308; λαμπάσι,
309; ἀναφλέγω πυρὸς φῶς, 320) y al baile, con exhortaciones al
canto y a los movimientos de danza, (πάλλε πόδα. / αἰθέριον ἄναγε
χορόν, 325; ἄγε σύ, Φοῖβε, 329; χόρευε, 332; ἕλισσε τᾷδ᾽ ἐκεῖσε μετ᾽
ἐμέθεν ποδῶν / φέρουσα φιλτάταν βάσιν, 332-333; μέλπετ᾽, 339),
característicos del himeneo, son aquí reproducidos de forma con-
tinua para dar expresión a un canto estilísticamente tradicional,
pues está compuesto en responsión estrófica (un sistema), con
predominio de gliconios y un fuerte uso de las distintas figuras de
repetición de palabras (anáfora, aliteración, homoioteleuton, gemi-
nación).
Casandra asume en su monodia funciones que en un canto de
boda tradicional eran competencia de otros: ella es la que porta las
antorchas y la que dirige el coro; su canto contribuye así a focalizar
el himeneo sobre quien lo canta y a aislar la escena de la atmósfera
que la rodea. La entrada de Casandra es excepcional, como lo son
los poderes que presiden su figura: presa del enthousiasmos, como
una ménade (εὐἅν, εὐοἵ exclama en 326), Casandra se imagina en el
templo de Apolo (329) e insta al dios a dirigir el coro. Su aislamiento
al cantar este solo queda acentuado por el silencio de la joven so-
bre lo que vendrá después –la ruina sobre la estirpe de los Atridas
que su unión con Agamenón va a traer–, y la celebración del rito de
tránsito que su himeneo trae consigo cobra una expresión siniestra
para el espectador.
Este llamar la atención sobre sí mismo del que canta una mo-
nodia, la creación de una atmósfera que tiene como centro al
que canta y su visión particular de la situación en que se en-
cuentra, sentida muchas veces como incomunicable, la unión
para ello de motivos tradicionales diversos que permitían sor-
prender al espectador se hace par ticularmente visible en las
monodias de la parodos, un lugar reservado tradicionalmente al

96
coro 28. La monodia que canta Electra dando comienzo a la parodos
en la tragedia homónima de Eurípides es una muestra clara de estas
características y de las potencialidades de la monodia para crear una
perspectiva definida en la entrada de la tragedia.
Electra aparece en escena tras la conclusión del prólogo para
entonar el treno anunciado al padre muerto. Porta el agua para las
libaciones y comienza a cantar. El espectador espera que la pro-
tagonista entone el treno tradicional, pero la monodia de Electra
convoca motivos tradicionales que no solo pertenecen a la esfera
ritual del treno.
Para empezar, el refrán que repite al comienzo de cada una de
las unidades métricas que componen el primer par (σύντειν’ -ὥρα-
ποδὸς ὁρμάν· ὤ, / ἔμβα, ἔμβα κατακλαίουσα· ἰώ μοί μοι. “acelera –¡es
hora!– el ritmo de tu pie, ¡oh, camina, camina, llorando! ¡Ay de mí,
ay de mí!, 112-114), en dímetros anapésticos acatalécticos, contiene
expresiones que evocan un canto de trabajo, como el coloquial ἔμβα,
el uso de una frase nominal, los imperativos asindéticos y la excla-
mación. El canto comienza, pues, con una tensión notable entre dos
focos distintos; de un lado, Electra, que soporta trabajos horribles,
lejos del palacio paterno y unida a un humilde campesino, a quien
sus conciudadanos llaman la “desdichada Electra 29; de otro, su pa-
dre, Agamenón, muerto injustamente a manos de su esposa y Egisto
(122-124). De igual manera ocurre al final del primer sistema: Electra
utiliza la forma tradicional de la plegaria para invocar la ayuda de
Zeus, y de nuevo hay una tensión entre la lamentación por sí misma
(Electra ruega a Zeus que la libre de sus fatigas (ἔλθοις τῶνδε πόνων
ἐμοὶ / τᾷ μελέᾳ λυτήρ, “ven a librarme a mí, la desdichada, de estos
esfuerzos”, 135-136) y la venganza del padre muerto (137-139). En

28 Los tres poetas trágicos utilizan este recurso, y así monodias en la parodos las
encontramos en Andrómaca, Hécuba, Troyanas, Electra, Helena, Andrómeda, Ión e
Hipsípila de Eurípides, y en la Electra de Sófocles y Prometeo encadenado de Esquilo.
29 Se podría afirmar que hay cierta continuidad entre la segunda escena del pró-
logo, donde el diálogo entre el campesino y Electra se agota en la descripción de los
trabajos de la joven, y el comienzo de esta monodia de la parodos.

97
esta tensión entre dos polos que preside el canto en el primer siste-
ma, es la lamentación por la propia Electra la que domina.
La adaptación de elementos tradicionales a la situación de la
protagonista que esta monodia recrea se da también en el mesodo
astrófico del primer par (ἴθι τὸν αὐτὸν ἔγειρε γόον, / ἄναγε πολύδακρυν
ἁδονάν, 125-126: “Vamos, levanta el mismo lamento de siempre, sus-
pira el placer del abundante llanto”), donde hay claros ecos, como
se ha señalado, de elementos tomados del área semántica del matri-
monio, impregnados, claro está, de un significado distinto. Así, ese
ἔγειρε del verso 125 30, o el ἄναγε del verso siguiente, que también
aparece, profusamente repetido, en la monodia que canta Casandra
en Troyanas, al exhortar a bailar y a acompañar con la danza el
himeneo que está entonando (308, 325, 329 -ἄγε-, 332). Disimulados
en la monodia de Electra, estos elementos que evocan un canto de
boda debían de tener la misión de proyectar un significado concreto
para el espectador 31 en una tragedia donde el matrimonio cobra un
protagonismo significativo.
A partir del verso 141 (segundo sistema) el canto de Electra se
convierte en una lamentación por el padre muerto, con ecos claros
del treno tradicional: la llamada al muerto y la descripción de los
actos rituales que acompañaban dicha lamentación alcanzan dentro
de la monodia una independencia en sí mismos 32; pero la compa-

30 De Poli 2012: 125-127 señala las semejanzas con el canto popular del orthrion.
El autor menciona los paralelos que ofrece la presencia del verbo ἐγείρω en la mono-
dia de Electra con Danaides de Esquilo, fr.43 Radt: κἄπειτα δ᾽ εἶσι λαμπρὸν ἡλίου
φάος / ἕως ἐγείρηι πρευμενεῖς τοὺς νυμφίους / νόμοισι θέντων σὺν κόποις τε καὶ κόπαις
(“y después surgirá espléndidamente la luz del sol hasta que se despierte –diciendo:
“Felices sean los esposos, con los muchachos y las muchachas, según la costumbre–”);
también con Safo fr. 30.6-9 Voigt.
31 No son pocos los críticos que señalan el protagonismo que el matrimonio tiene
en esta tragedia, donde desde el comienzo de la obra el poeta subraya la situación
de Electra por lo que se refiere a la ausencia de un auténtico matrimonio, presentán-
dola casada con un campesino pero sin la posibilidad de hijos que puedan heredar
la casa paterna.
32 Características formales del treno como canto de lamentación tradicional eran
las apelaciones, las invocaciones, las exclamaciones de dolor y las diversas figuras de
repetición de palabras; desde el punto de vista del contenido, las fórmulas de inicio
del canto, las llamadas a participar en el lamento, las alusiones a los gestos de dolor

98
ración de Electra con el cisne quejumbroso contenida en el mesodo
de este segundo par (150-156), símbolo de una lamentación eterna
y no cambiante, vuelve a proyectar el foco de atención sobre quien
domina en esta parodos, Electra, a quien el poeta presenta como
una voz autorizada en el lamento de sus desgracias y renuente a los
consejos, una heroína resistente a compartir la visión negativa de la
utilidad de su canto que el coro, en su entrada, va a traer.
El treno domina en cierto modo sobre otros cantos tradicionales
que dan forma a la monodia en la tragedia griega, pero cobra signi-
ficados distintos al combinarse con motivos tradicionales distintos,
como los procedentes de cantos relacionados con la ceremonia del
matrimonio, cantos de trabajo, plegarias. En otros casos la monodia
trágica trae a expresión elementos característicos del himno, como
es el caso en la que canta Creusa en Ión, o en la que entona el joven
protagonista en la parodos de la obra, con Apolo como centro am-
bas 33. Un dios que se oculta en la obra y que provoca sentimientos
opuestos en madre e hijo, desprecio e injuria en la primera, devoción
y confianza en el segundo. La inclusión de dos monodias a cargo
de los dos protagonistas en la obra es una manifestación más de las
múltiples “repeticiones” presentes en esta tragedia, a través de las
cuales el poeta proyecta visiones distintas de los mismos hechos y
establece un juego dual de perspectivas 34.
La monodia de Creusa es una especie de anti-himno, en el que
los elementos que ensalzan al dios se mezclan con la censura por
el papel terrible que este ha jugado en la vida de la joven. Apolo es
invocado como divinidad que se complace en la música (881-885) y
en el canto del peán (906), pero entre ambas invocaciones se sitúan
la descripción del rapto y la violación de Creusa, el nacimiento y

y a las circunstancias concretas del canto para enfatizar la vivencia trágica del que
cantaba o el intento de consuelo. Puede verse al respecto Schauer 2002.
33 La misma polifuncionalidad de los géneros poéticos es explotada en la monodia
que canta Ifigenia en Ifigenia en Áulide 1475-1496, donde se mezclan la celebración
de la diosa Ártemis, la celebración de la victoria y la propiciación al sacrificio.
34 Sobre este aspecto de la obra puede verse Quijada Sagredo 2011; para la
monodia de Creusa en particular, 59-62.

99
la exposición de Ión. La tradicional hypomnesis del himno alcanza
un valor irónico en este canto, donde por primera vez en la obra
Creusa utiliza el término αἰδῶς para calificar la conducta de Apolo
(ἀδικία en 254, 341, 355, 384, 447, 449; αἰσχύνη en 288, 367). Apolo
y su trono son descritos con rasgos físicos radiantes (887, 909), pero
su comportamiento no excluye la violencia y sus actos conllevan la
injusticia, al dejar morir a su propio hijo pero conceder a Juto uno
que habitará la casa.
La monodia de Ión es un canto de trabajo con el que el joven
acompaña su tarea como servidor del templo de Apolo35; al tiempo,
se convierte en un peán que Ión entona para ensalzar al dios 36. La
estructura de la monodia es compleja: A) los primeros veros consti-
tuyen un astrophon en anapestos en recitativo (82-111), donde Ión
describe el escenario (el templo de Apolo en Delfos), el momento (la
salida del sol), la actividad profética de la Pitia (94-1010) y la tarea
que está realizando (limpiar la entrada al santuario). B) La sección
siguiente está construida en veros líricos en responsión estrófica, un
sistema (112-143), y es la que más propiamente contiene elementos
típicos del peán, en particular por la presencia de un ephymnion
(125-127 = 141-143) métricamente diferenciado del contexto 37, que
algunos consideran como un breve himno délfico a Apolo. C) La
tercera parte la constituye un largo epodo en anapestos líricos (144-
183), donde se describen las tareas concretas que acompañan su

35 Como es sabido, no cualquier tipo de personaje podía cantar una monodia en


la tragedia griega. Como señaló Maas 1929: 20, “personajes de bajo estatus social no
tienen a su cargo versos cantados, aunque sí anapestos”. Tampoco tienden a cantar
en el teatro griego los personajes de varones adultos griegos, a diferencia de lo que
ocurre con los bárbaros. Los casos de Ión e Hipólito, en las tragedias del mismo
nombre, no representan una excepción a este respecto, en cuanto que se trata de
jóvenes; sobre el tema puede verse Hall 1999: 96-122. Características son, a este
respecto, las monodias femeninas de Eurípides, de preferencia puestas en boca de
mujeres extranjeras o cautivas.
36 Sobre la historia del peán como género puede verse Käppel 1992, Schröder
1999. Rutherford 1994-1995, por su parte, estudia la forma flexible en la que un peán
es adaptado dentro de la tragedia.
37 Cf. Pordomingo 1994: 324. Los metros del refrán son molosos.

100
labor, la aspersión de agua y las tentativas para mantener alejadas
del templo las aves que se acercan.
Son numerosos los elementos que acercan el canto de Ión a las
características propias del himno (apóstrofes e invocaciones, epíte-
tos característicos, exhorataciones); en particular, la presencia del
refrán da cuenta de los ecos que este himno tiene del canto popular
y de la intención de Eurípides de acercarlo al peán. Pero Eurípides
construye un peán “privado”, un canto que es una caracterización
efectiva de la vida interior del joven 38. En este sentido, la forma de
monodia que adopta este “peán” debía de contribuir a que el es-
pectador sintiera que el himno se había convertido aquí no en una
celebración colectiva, en el reflejo de unas convenciones sociales
que perduran en el tiempo, sino en la expresión de la interioridad
de un joven solitario, presa de las circunstancias cambiantes que
marcan la vida de los individuos.
La elección de la monodia para dar forma a motivos y temas
tradicionales que muchas veces eran ejecutados por un coro, o por
un coro acompañado por un solista, fue utilizada por los poetas
trágicos para lograr efectos dramáticos sorprendentes. Muchos de
ellos derivaban de la yuxtaposición de motivos diferentes o de su
mezcla en el interior de la monodia; en otras ocasiones, del lugar de
aparición o de la función de la monodia, donde vinieron a sustituir
a los que tradicionalmente eran propios del coro. A medida que los
cambios musicales afectaron a la profesionalización del actor en las
décadas finales del siglo V, la monodia se fue convirtiendo en un
elemento polifuncional a través del cual formas fijas de la tradición
poética griega se desacralizaron o alcanzaron significados nuevos,
convirtiendo al personaje que cantaba en el foco aural y emocional
de la representación.

38 Cf. Furley 2000: 188.

101
Bibliografía

Baltieri, N. (2011), “Il ruolo dei canti di nozze ne drama di Euripide”, Prometheus 37:
205-230.
Barner, W. (1971), “Die Monodie”, in W. Jens (ed.), Die Bauformen der grieschischen
Tragödie. München: Wilhelm Fink Verlag, 277-320.
Cannatà Fera, M. (1990), Pindarus. Threnorum fragmenta. Roma: Edizioni dell’Ateneo.
De Poli, M. (2011), Le monodie di Euripide. Note di critica testuale e analisi métrica.
Padova: Sargon.
Collard, C. (ed.) (1975), Euripides. Supplices, Vol. II. Commentary. Groningen: Bouma’s
Boekhuis b.v. Publishers.
Contiades-Tsitsoni, E. (1990), Hymenaios und Epithalamion. Das Hochzeitlied in der
frühgriechischen Lyrik. Beiträge zur Altertumskunde, 16. Stuttgart: Vieweg Verlag.
De Poli, M. (2012), Monodie mimetiche e monodie diegetiche. I canti a solo di Euripide
e la tradizione poetica greca. Tübingen: Narr Verlag.
Furley, W. D. (2000), “Hymns in Euripidean Tragedy”, in M. Cropp, K. Lee, D. Sansone
(eds.), Euripides and Tragic Theatre in the Late Fifth Century. Illinois: Stipes
Publishing, 183-197.
Hall, E. (1999), “Actors’s Song in Tragedy”, in S. Goldhill, R. Osborne (eds.), Performance
Culture and Athenian Democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 96-122.
Henn, G. (1959), Untersuchungen zu den Monodien des Euripides. Inaugural Dissertation,
Heidelberg.
Käppel, L. (1992), Studien zur Geschichte einer Gattung. Berlin – New York: Walter De
Gruyter.
Kranz, W. (1933), Stasimon. Berlin: Verlag Weidman.
Maas, P. (1929), “Griechische Metrik”, in A. Gercke, E. Norden (eds.), Einleitung in die
Altertumswissenschaft, Vol. I.7. Leipzig – Berlin: Teubner.
Maas, P. (1914), “Hymenaios”, RE IX.1: 126–130.
Muth, R. (1977), “Imeneo ed epitalamio”, in C. Calame (ed.), Rito e poesia corale in
Grecia. Guida storica e critica. Roma – Bari: Laterza, 45-58.
Pordomingo, F. (1994), “La lírica popular en Eurípides”, Actas del VIII Congreso Español
de Estudios Clásicos (Madrid, 23-28 de septiembre de 1991), II. Madrid: Ediciones
Clásicas, 323-332.
Privitera, G. A. (1977), “Il ditirambo da canto cultuale a spettacolo musicale”, in C.
Calame (ed.), Rito e poesia corale in Grecia. Guida storica e critica. Roma – Bari:
Laterza, 25-44.
Privitera, G. A. (1991), “Aspetti musicali nella storia del ditirambo arcaico e tardo antico”,
in A. C. Cassio, G. Cerri (eds.), L’inno tra rituale e letteratura nel mondo antico.
Atti di un colloquio (Napoli 21-24 ottobre 1991). A.I.O.N. – Annali dell’Istituto
Universitario Orientale di Napoli 13, 141-153.
Quijada Sagredo, M. (2011), “Las seis versiones de la historia de Creusa en el Ión de
Eurípides”, in M. Quijada Sagredo (ed.), Estudios sobre tragedia griega. Eurípides,
el teatro griego de finales del siglo V a. C. y su influencia posterior. Madrid: Ediciones
Clásicas, 49-72.
Radermacher, L. (1921), Aristophanes’ Frösche. Einleitung, Text und Kommentar. Wien:
Hölder.

102
Rutherford, I. (1994-1995), “Apollo in Ivy: The Tragic Pean”, Arion 3.1: 112-135.
Schauer, M. (2002), Tragisches Klagen. Form und Funktion der Klagedarstellung bei
Aischylos, Sophokles und Euripides. Tübingen: Gunter Narr Verlag.
Schönewolf, H. (1938), Der jungattische Dithyrambos: Wesen, Wirkung, Gegenwirkung.
Dissertation Gießen.
Schröder, S. (1999), Geschichte und Theorie der Gattung Paian. Beiträge zur
Altertumskunde 121. Stuttgart: Teubner.
Wilamowitz, U. von (ed.) (1903), Timotheos. Die Perser. Leipzig: Hinrichs.
Wilamowitz, U. von (1921), Griechische Verskunst. Berlin: Weidmannsche Buchhandlung.
Zimmermann, B. (2008, 2ª ed.), Dithyrambos. Geschichte einer Gattung. Berlin: Verlag
Antike.

103
(Página deixada propositadamente em branco)
L a c a í d a d e t r o ya y e l c a m p o s e m á n t i c o
d e kairós e n Agamenón d e E s qu i lo

T h e F a l l o f T r oy a n d t h e S e m a n t i c F i e l d o f K a i -
ró s i n A e s c h y l u s ’ A g a m e m n o n

Graciela Zecchin de Fasano


Univ. Nacional de La Plata, CEH, FAHCE-IdIHCS
ORCID: 0000-0003-4530-2128
gzecchin@isis.unlp.edu.ar

Resumen: En Agamenón de Esquilo, kairós aparece en pasajes breves, pero


fundamentales, que exponen cómo Troya significó para el personaje
mítico, ese punto de crisis, el punto final revelador de sus terribles
condiciones personales. Partiendo de la definición de kairós ofrecida
por Chantraine como “le point juste qui touche au but”, se analizan
los pasajes en que esta palabra y sus derivados son utilizados y su
incidencia en la interpretación de la tragedia.

Palabras clave: Agamenón, Esquilo, Troya, Kairós

Abstract: In Aeschylus’ Agamemnon, the word kairós appears in short


but key passages which expose what Troy meant to the character
of the myth, a point of crisis, the revealing end point of his terrible
personal conditions. Based on the kairós definition offered by Chan-
traine as “le point juste qui touche au but”, we analyze the passages
in which this word and its derivatives are used and their impact on
the interpretation of this tragedy.
Keywords: Agamemnon, Aeschylus, Troy, Kairós

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_4
En un reportaje no tan reciente, Luciano Cánfora ha sostenido
que la razón principal de sus estudios de filología griega ha sido el
hecho de que el mundo antiguo no es de ningún modo un cemen-
terio, sino un territorio de debate. Es una afirmación enérgica para
aplicar a una literatura repleta de muertes y guerra, al menos, en lo
que constituye su canon.1 Creo que a pesar de ello, y especialmente
en la tragedia, estamos en territorio polémico.
La Guerra de retaliación –como la Guerra de Troya– y la guerra
interna por el poder y el patrimonio dentro de una estirpe –como
la guerra de Tebas– ofrecieron a Esquilo un versátil campo temático
para especular con el presente ateniense en la escena trágica ¿La
guerra con sus muertes fue realmente tan central en el mundo griego
antiguo o su centralidad es consecuencia del énfasis puesto en la
historia militar por los escritores antiguos y por algunos estudiosos?
La tragedia parece también haberla considerado un asunto de capital
importancia. Esta afirmación parece particularmente vigente para la
más famosa trilogía esquilea con su concatenación de crímenes y
fúnebres resultados.
Orestíada comienza con el anuncio del triunfo aqueo y, en con-
secuencia, del nóstos de Agamenón, un maldecido regreso a casa del
rey, después de la victoria largamente esperada contra los troyanos.
Así como en la tradición épica la caída de Troya lanza a los aqueos
a su desastroso regreso, del mismo modo, en Agamenón de Esquilo,
esta caída, como punto de partida de la ligazón de acciones en la
trilogía, 2 abre el capítulo final en la vida de un héroe aqueo. En
los primeros ochocientos versos de la obra, mientras se espera el
ingreso de Agamenón a escena, el espectador escucha una serie de

1 “…me he dado cuenta de que la antigüedad que me gusta tanto no es un cemen-


terio, ni un museo de cera, es un campo de batalla, donde el enfrentamiento continúa.
Me parece obvio. El pasado es el inicio de tantas cosas”. Entrevista realizada por Pablo
Ordaz, Diario El país “Democracia cadáver” 25 de abril de 2014 por la publicación
en español del libro “El mundo de Atenas”. https://elpais.com/cultura/2014/04/23/
actualidad/1398267208_914979.html
2 Cf. el concepto de “trilogía ligada” expresado por Adrados-Vílchez (2006: XIV).

106
reflexiones sobre su victoria reciente que proyectan una sombría
imagen de la destrucción de Troya sobre Argos.
La imagen de la caída de Troya en la literatura griega clásica ha
resultado un hecho contradictorio. Por una parte, es difícil conciliar
su carácter de éxito bélico con la oclusión de su relato en Homero.3
Por otra parte, en Agamenón, Esquilo abordó la destrucción de la
ciudad como el mayor fracaso del personaje que titula el drama. 4
Resulta notable que, tanto la caída de la ciudad, como el regreso
del héroe y las acciones a partir de allí desencadenadas, se vinculen
desde la perspectiva humana con kairós y sus derivados.
En toda tragedia resulta esencial el modo en que la dimensión
temporal acelera o desacelera la llegada a una solución. En este
sentido, la palabra kairós, que Chantraine, 5 ha definido como “el
punto justo que toca a su fin”, es decir como sinónimo del tiempo
dramático por excelencia, expresa el tiempo de crisis, que en Esquilo
implica una concatenación inexorable de crímenes y correcciones a
esos crímenes.
En Agamenón, kairós aparece en pasajes breves, pero fundamen-
tales, que exponen cómo Troya significó para los personajes del
mito, ese punto de crisis, el punto final revelador de sus terribles
condiciones personales. Troya simboliza la simbiosis entre la guerra,
el destino de la ciudad y el destino personal, en ese esquema ago-
biante y opresivo en que el dramaturgo concede forma al exceso
humano y su drástica solución. 6

3 Como es usual en Homero, el mayor éxito resulta insignificante frente a la divi-


nidad. En la técnica narrativa de la Ilíada, la oclusión de la caída de Troya refleja
una definición poética de la inanidad de los éxitos humanos.
4 La desaparición de Troya se proyecta sobre Argos con tintes sombríos y de
significación esquiva. Como sugiere Ireland 1986: la elusión de significado es un
elemento de la economía dramática esquilea.
5 Chantraine 1978: 480 “le point juste qui touche au but, d’oú là propos, la con-
venance […] d’oú le point critique, dangereux”.
6 Cf. Storey and Allan 2005: 246 “…Agamemnon was both the gods’ agent in
bringing dike on the Trojans[…] and his own actor…”

107
La construcción dramática del “punto justo que llega a su fin”,
se compone de un mosaico de “recepciones” o “recolecciones” de
la caída de Troya, distribuidas entre el recuerdo del coro sobre un
augurio distante (vv. 104-159); luego, una visión de Clitemnestra
acerca de los acontecimientos (vv. 281-316), un informe del heraldo
(v. 551 y ss.) y, finalmente, un reporte en boca del propio destructor
de la ciudad (v. 810 y ss.).
La primera recolección corresponde a la párodos en que el augurio
con aves resulta la forma metafórica de demostrar que los Αtridas
son predadores (48-55) y que devorarán a los troyanos. No sólo la
interpretación de Calcas no releva de esta terrible visión, sino que,
en el mejor cuño homérico, la conducta humana es colocada en el
ámbito animal. 7 El pasaje contrapone un símbolo de fertilidad y
procreación con los predadores que exterminan. Sin duda, se trata
de un modo de resolver la destrucción de la estirpe, que la guerra
tiene como objetivo, en la imaginería. Dentro de la sofisticada com-
posición de la párodos de la obra, la estructura que contiene el
augurio distante, entre los vv. 104-159, se caracteriza por insertar
una tríada lírica, con hexámetros dactílicos que le otorgan un tenor
narrativo resaltado por el léxico épico. 8 La primera estrofa contiene
los elementos esenciales:

κύριός εἰμι θροεῖν ὅδιον κράτος αἴσιον ἀνδρῶν


ἐκτελέων: ἔτι γὰρ θεόθεν καταπνεύει 105
πειθὼ μολπᾶν ἀλκὰν σύμφυτος αἰών
ὅπως Ἀχαιῶν δίθρονον κράτος, Ἑλλάδος ἥβας
ξύμφρονα ταγάν, 110
πέμπει σὺν δορὶ καὶ χερὶ πράκτορι
θούριος ὄρνις Τευκρίδ᾽ ἐπ᾽ αἶαν,
οἰωνῶν βασιλεὺς βασιλεῦσι νε-

7 Anderson 1997: 110.


8 Sobre la extensión inusitada de la párodos de Agamenón y su esquema rítmico,
cf. el comentario de Raeburn & Thomas 2011: 71-84.

108
ῶν ὁ κελαινός, ὅ τ᾽ ἐξόπιν ἀργᾶς, 115
φανέντες ἴκταρ μελάθρων χερὸς ἐκ δοριπάλτου
παμπρέπτοις ἐν ἕδραισιν,
βοσκόμενοι λαγίναν, ἐρικύμονα φέρματι γένναν,
βλαβέντα λοισθίων δρόμων. 120
αἴλινον αἴλινον εἰπέ, τὸ δ᾽ εὖ νικάτω.

Tengo autoridad para proclamar el afortunado poderen el ca-


mino de varones perfectos. Pues mi existencia, natural de un
viejo, todavía inspira persuasión, una fuerza de los cantos,
proveniente de los dioses. [Diré] Cómo un augurio impetuoso,
con la lanza y con diestra mano ejecutora, envía sobre la tierra
teucra el poder de doble trono de los aqueos, comando de la
juventud helena, con un pensamiento único: un rey de las aves
junto a reyes de las naves, una negra, otra plateada en el lomo.9
Tras aparecer cerca del palacio, del lado de la mano que blande
la lanza, en lugares bien visibles, estaban devorando una liebre,
repleta de crías en su vientre y frustrada en su última carrera.
C anta un penoso, penoso himno, pero que el bien obtenga la
victoria. 10

Sorprende esta estrofa, enfática en el léxico del poder, tras la con-


fesión de anciana debilidad y la invocación de un grupo de varones
a una reina, que no aparece en escena. La insistencia en la autoridad
del coro (κύριός εἰμι θροεῖν), que puede anunciar algo a gritos, la
repetición de κράτος (vv.104 y 109), la atribución de una energía
bélica que suelen detentar los guerreros de Ilíada a la persuasión
que los ancianos puedan ejercer (μολπᾶν ἀλκὰν) son ingredientes que
deconstruyen la imagen de debilidad. Dichos elementos trasladan al

9 La identificación de los Atridas con águilas de dos tipos: el águila negra rapaz y
asesina (Agamenón) y el águila blanca (Menelao), menos belicosa, también preanuncia
la potencial disparidad de destinos entre ambos hermanos en el mito.
10 Las traducciones de los textos nos pertenecen.

109
universo de las palabras una agresiva afirmación del poder de los
Atridas y su efecto sobre Troya. También la insistencia en la mano y
la lanza (σὺν δορὶ καὶ χερὶ πράκτορι/χερὸς ἐκ δοριπάλτου) que trans-
forman la amenaza colectiva en la mano individualmente peligrosa
sobre algún ser en particular. La antistrofa y el epodo acentúan estos
elementos y la reiteración del efimnio, αἴλινον αἴλινον εἰπέ, τὸ δ᾽ εὖ
νικάτω, instala un tono de lamento funeral lúgubre y quejumbroso,
que ruega el triunfo del bien. 11
El cúmulo de elementos antitéticos simplemente subraya la escasa
claridad en los acontecimientos de Argos. El augurio es la expresión
imagística de la amenaza de Agamenón sobre Troya, vuelta una cace-
ría atroz. Por una parte, se trata de un efecto analéptico fundado en
la necesidad de instaurar narrativamente el inicio de la guerra para
demostrar su concatenación con el presente de Argos. 12 El augurio
ofrece una doble vertiente, es analéptico porque el coro se remonta
al tiempo del origen del conflicto; pero a su vez, el augurio, pro-
lépticamente, apela al desenlace. La conexión con el segundo canto
de Ilíada es evidente. 13 Por otra parte, en cuanto al espacio, Troya
aparece como un sitio distante y, sin embargo, con un peso inevitable
sobre Argos. De este modo, ambas ciudades, la ciudad destruida del

11 El efimnio o estribillo es precisamente onomatopéyico del lamento de Lino,


y suele integrar lamentos fúnebres. A los contrastes de color –negro y plata–que
propone esta estrofa, se añade el tono funeral y agorero del efimnio que opaca el
éxito del regreso.
12 Algo similar sucede en el inicio de Persas de Esquilo, cuando Atosa recibe el
relato del mensajero.
13 Aunque el augurio de Ilíada 2.307-322 propone una serpiente que devora a
una madre gorrión y sus ocho crías en medio de su piar lastimero y no una liebre,
la interpretación temporal de Calcas coloca el augurio como prolepsis de la caída
certera de Troya. Ambas imágenes coincidentes en cifrar la indefensión de la víctima
son opuestas. En Ilíada describen la fuerza bélica del drákon (los aqueos) frente a
los quejumbrosos gorriones (los troyanos); mientras en la tragedia atacar la liebre
preñada en su última carrera es una imagen sombría del accionar de los Atridas.
Sommerstein 1997: 87-94 ha dudado de la referencia espacial a Aulis en esta imagen.
Una postura opuesta se ve en Heath 2001: 18-19.

110
mito y la ciudad del rey destructor, se proyectan sobre la ciudad de
los espectadores. 14
La idea de exterminio de la estirpe porque las águilas devoran
las crías no posee una interpretación unívoca, más bien podríamos
hablar de una polisemia, ya que resulta inexorable que se extienda a
Ifigenia, también ella un retoño inocente, como joven hija sacrificada
por Agamenón en pos de la guerra. En versos anteriores (vv. 49-50),
con la imagen de los padres llorando los hijos perdidos, ya se abría
esta interpretación directa. Finalmente, desde el punto de vista de
los hechos, la interpretación del augurio apela a tres situaciones en-
cadenadas por una causalidad estricta: Ifigenia, Troya, Agamenón. En
esta secuenciación, la problemática estirpe de los Atridas encapsula a
Troya, de cuya destrucción sólo queda como evidencia el personaje
que expone la dimensión sacrílega de la acción de Agamenón, es
decir, Casandra. Todos los matices iliádicos de la nefasta apropiación
de Criseida estarán aplicados a la escena de Casandra. 15
A través de estas variadas, pero contradictorias, recolecciones,
Esquilo proyecta una sombra sobre los eventos en Argos. La caída de
Troya actúa como un motor dramático y su efecto se observa en la
acción. Pero Esquilo construye una imagen de la caída de Troya en
cada pieza de la trilogía que se integra a la trama completa. Además
de la breve referencia al caballo de madera (v. 825), el dramaturgo
emplea pocos detalles específicos, no expone nada sobre la muerte
de Príamo ni la actitud de Neoptólemo. Por un lado, la conquista de
Troya aparece como algo lejano y con gran imprecisión geográfica y,

14 El vínculo entre el destino del líder y su estirpe y el destino de la ciudad que


dominan está en Esquilo siempre atravesado por una culpa que involucra al génos
en forma directa y puede excluir a la ciudad. Tebas queda en pie al final de Los Siete
contra Tebas, no así la estirpe.
15 En la Troya homérica, rica y sofisticada, las acciones de la estirpe gobernante
son las que abortan el futuro de la ciudad. Claramente Paris es presentado como un
ser execrable dentro de una familia en la que hay figuras más nobles, pero los troyanos
parecen tener una conducta errática respecto del respeto de acuerdos y eso precipita
a la ciudad a la ruina. La flecha de Pándaro reitera esa conducta de los troyanos,
que se inició con un atropello a la hospitalidad. En este sentido son reveladores los
comentarios de Judet de La Combe 2017, pace.

111
por otro lado, la recuperación de Helena ha desaparecido del con-
texto. La caída de Troya es presentada con matices muy generales
o poco específicos, de manera que se convierte en una presencia
“espectral” en el drama, cuya configuración y contornos no son fá-
ciles de discernir.
La sola mención de Troya supone, además, un esquema perma-
nente de retribución: los griegos castigaron a los troyanos, pero los
sacrilegios de los griegos serán castigados por los dioses, con los
terribles y desdichados nóstoi que sufrieron. El texto dramático jue-
ga permanentemente con la imagen de la justicia cumplida y de la
justicia abusada. Algo similar a lo que sucede con el rol de Atenea
en Homero, en que la diosa aparece instalada como la principal
auxiliadora de los aqueos, aunque este papel de la divinidad dista
mucho de ser permanente. 16
En la recolección que Clitemnestra presenta en su discurso inicial
asocia a los griegos con los vencidos troyanos, es decir, estos griegos
victoriosos son presa de la misma necedad que los troyanos cuando
festejaron la huida de los griegos, ingresaron el caballo, celebraron
y, luego, fueron asesinados mientras dormían. La original imagen tra-
zada por la reina, en la que griegos y troyanos son tan inconciliables
como el aceite y vinagre (vv. 322-325), resulta una ironía trágica que
se prolonga en los festejos de victoria superpuestos a los funerales.
Los vv. 338-344 recuperan la referencia épica a los sacrilegios
cometidos en Troya, de manera que el contenido irónico de la oda
coral subsiguiente resulta incrementado. Cada referencia a que los
troyanos pagaron el doble por su crimen contra la hospitalidad es
colocada como una ofensa contra Zeus xenios y, por tanto, anuncia
también para los griegos un pago duplicado por los sacrilegios (v.
537). La suma de factores ensombrecedores, junto a los victoriosos,
genera una emocionalidad pendular en Agamenón, de manera que

16 Atenea también es expuesta como la que impone los castigos sobre Áyax Locrio,
cuyo aciago destino será compartido por todos los aqueos que lo acompañaron, por
su ofensa contra Casandra.

112
la muerte del personaje parece un movimiento más en ese fluctuar
de crímenes y justicia. Se trata de matices ya desplegados en Ilíada
en las horrísonas imágenes de los guerreros como monstruos o
animales. 17
De manera que, si vamos sumando las imágenes lumínicas, la
observación de los astros como señal, las imágenes de la fertilidad
interrumpida, la rapacidad atroz en la naturaleza vuelta especular-
mente sobre los humanos, asistimos a una ubicación cósmica de la
caída de Troya, en la que el más brillante éxito bélico adquiere la
configuración más oscura. También es cierto que la exposición agó-
nica de la contraposición griegos/troyanos procurará una síntesis
final, en que vencedores y vencidos adolecen de la misma capacidad
sacrílega y sus destinos meramente lo comprueban. 18
Todo el lenguaje metafórico se dirige a la construcción de una
red de cacería en el discurso de Clitemnestra que no deja de ser,
básicamente, una red lingüística. Como sostiene Anderson, los grie-
gos enredan Troya, y Clitemnestra enreda a Agamenón. El lenguaje
metafórico se sirve, además, de la imagen de las antorchas que
anuncian la llegada de los griegos y de las imágenes del dormir y
el despertar, con una intencional insistencia en un modo de comu-
nicar la victoria griega que parece contaminado con usos orientales.
También Heródoto refiere esta estrategia comunicativa desarrollada
por Mardonio para anoticiar a Jerjes de sus movimientos (9.3.1). 19

17 A modo de ejemplo sirvan las líneas del canto 7.255-257, en que Áyax y Héctor
se acometen como jabalíes o leones ὠμοφάγοισιν, “carnívoros”.
18 Sobre la dimensión cósmica de los sucesos en la Orestíada, cf. pace, De Santis
2003. También observaciones en Garvie 1996: 137-146.
19 De tal modo se conjugan la intención de Clitemnestra de inculpar a Agamenón
por su molicie oriental y un trasfondo político, en que el poder de Clitemnestra en
Argos se relaciona con la comunicación simbólica y no con la comunicación directa.
Sobre las formas de gobierno implícitas en los modos de comunicación elegidos por
los poderosos en la tragedia, muy interesantes observaciones en Steiner 2012: 482.
Por otra parte, no podemos aseverar que Esquilo estuviese informado de que una
antorcha sobre el monte Sinón hubiese anunciado para Troya la partida de la flota
griega, pero es curioso cómo el dramaturgo aprovecha algo que aparece en detalle
en Ilioupersis 22-23.

113
La oda coral que se inicia en el v. 355 propone una vuelta al tema
de la caída de Troya como simple expresión desiderativa irrealizable
“que los aqueos no hayan saqueado la ciudad y los templos”. De
tal manera, el informe del mensajero continúa el esquema binario
en que todo lo positivo es pasible de interpretación negativa. La
eulogía que el personaje desarrolla sobre Agamenón, contrasta con
su propia confesión e inclusión en el saqueo de los altares, además
del comentario sobre el desastroso naufragio, causado por los dio-
ses y padecido por los aqueos, que certifica el castigo futuro para
Agamenón.
No es necesario insistir en la escena de la alfombra roja en la
que Agamenón es presentado como un rey oriental, con hábitos
lujosos, que también lo muestran diferente, “extraño” a los ojos
griegos. Como escena dramática de exposición de la culpa ya ha
sido suficientemente analizada.20 Interesa, más bien, destacar cómo
la caída de una ciudad por la recuperación de una mujer comienza
a verse como una retribución excesiva que será cuestionada en las
piezas siguientes de la trilogía y cómo este rey, tras tantos años de
permanencia en el Asia Menor, muestra el extraño comportamiento
muelle y lujurioso que viene de Oriente (al menos, esa parece la per-
cepción griega). Se trata de una presentación de extranjería, que no
condice con el nuevo sistema legal, más racional, que Esquilo desea
proponer. La escena se carga de contenidos homéricos, Agamenón
viene con la victoria en los labios, pero compara a la armada griega
con un león sediento de sangre en consonancia con la monstruosa
visión que Zeus atribuye a Hera en el canto 4 de Ilíada (vv. 34-36),
cuando le imputa un deseo cruel de devorar crudos a Príamo y a
sus hijos, como único modo de apaciguar su ira. Este informe de
Agamenón es el último sobre la caída de Troya al que accedemos
antes de su muerte. Curiosamente, antes de pisar la alfombra que
Clitememnestra le ofrece, ella misma menciona, como ejemplo, la
conducta que habría tenido Príamo como vencedor en el v. 935. La

20 Cf. McNeil 2005: 1-17.

114
sola recuperación del rey derrotado en ese momento abre una clara
interpretación: si troyano es igual a aqueo, la derrota de Agamenón
es inminente.
Las tres recolecciones sobre la caída de Troya mencionadas ofre-
cen una perspectiva polémica y variada del mismo hecho, visto por
los expectantes argivos, por la esposa insomne y por un protago-
nista como el heraldo, que trae el anuncio del arribo del líder. Las
versiones se complementan como alegatos de un juicio hasta que
ingresa el imputado a escena acompañado por la testigo, muda por
el momento, de todos los actos impíos. A partir de esta instancia no
es necesario ya otro comentario sobre Troya, sino que el momento
llegue a su fin.
En el texto homérico, el objetivo bélico de destruir la ciudad se
constituye como un hecho exofórico a su narrativa, que intensifica
la tensión y la emoción de la contingencia no narrada. En tanto que
la tragedia Agamenón, lo ubica como un pasado inmediato. Por un
efecto dramático intencional es Clitemnestra quien expresa en pre-
sente y con una deixis explícita del día, el momento de la toma de
Troya (Τροίαν Ἀχαιοὶ τῇδ᾽ ἔχουσ᾽ ἐν ἡμέρᾳ./“Los aqueos toman Troya
en este día.” v. 320). Sin embargo, el hecho es naturalmente anterior
y determinante de las acciones siguientes en el presente de la dra-
matización. En ese tiempo peculiar, el éxito bélico se convierte en
kairós trágico para el personaje protagónico y acarrea consecuencias
interpretativas.
La tensa y morosa espera del ingreso del rey a escena coloca en
boca del coro dos registros de vocablos vinculados a kairós, justa-
mente, en el anuncio de su ingreso:

ἄγε δή, βασιλεῦ, Τροίας πτολίπορθ᾽,


Ἀτρέως γένεθλον,
πῶς σε προσείπω; πῶς σε σεβίζω
μήθ᾽ ὑπεράρας μήθ᾽ ὑποκάμψας
καιρὸν χάριτος; vv. 783-787

115
¡Salve, mi rey, destructor de Troya, vástago de Atreo! ¿Cómo
debo saludarte? ¿Cómo debo honrarte, de modo de no exceder-
me ni disminuir lo oportuno de la gratitud? 21

La recepción esquilea de Homero satura los recursos dramáticos


y así como Aquiles es removido de las acciones narradas, por un
largo tiempo, en Agamenón se demora la aparición del personaje
que titula el drama y, cuando está por aparecer, casi como en una
grandilocuente epifanía, el coro insiste en el “momento oportuno”.
El léxico señala un contexto inconvenientemente religioso (σεβίζω),
en el que el coro debe venerar al rey como una figura casi divina
y los prefijos de las formas verbales (ὑπεράρας /ὑποκάμψας) esta-
blecen otros extremos. El contraste entre hyper e hypo, describe un
movimiento en el espacio, que constituye la definición “física” del
dilema: ¿quién es el que regresa? ¿alguien elevado o disminuido? Las
respuestas son múltiples y encierran un aire ominoso. Regresa un
líder guerrero victorioso, un cruel destructor de ciudades y alguien
que inmoló a su propia hija. El momento de cumplir con la gratitud
debida por parte de los súbditos se convierte rápidamente en una
admonición.
En los versos siguientes, la situación “política” de la casa real
ubica una segunda admonición vinculada a kairós. El tiempo le
permitirá al rey recién llegado conocer la verdadera situación de su
autoridad. El ejercicio de discernimiento contenido en el participio
διαπευθόμενος, cuyo campo semántico se halla intensificado con el
prefijo dia-, implica el recorrido y la selección, o más bien, la se-
paración de los ciudadanos –como el genitivo partitivo declara de
modo explícito – de las dos modalidades en las que los ciudadanos
pueden haber cuidado de la ciudad:

21 El coro reúne dos calificativos sugestivos y riesgosos en los anapestos de


estos versos: la condición de Agamenón como destructor de ciudades y su condición
de descendiente de Atreo. No hay ingenuidad en el saludo, la culpa antigua resulta
reeditada y vinculada a las condiciones nefastas del personaje.

116
γνώσῃ δὲ χρόνῳ διαπευθόμενος
τόν τε δικαίως καὶ τὸν ἀκαίρως πόλιν οἰκουροῦντα πολιτῶν.
vv. 807-809

Si averiguas, con el tiempo, conocerás al que, entre los ciudadanos,


cuida la ciudad como a su casa, con justicia o inoportunamente.

Las posibilidades sintácticas y semánticas de estos versos resultan


interesantes y productivas: ἀκαίρως, puede significar cuidar de la
ciudad “sin ajustarse a su fin”, de un modo peligroso y, en oposición
a δικαίως, implica, obviamente, “con injusticia”. La probabilidad
de considerar el genitivo πολιτῶν como complemento régimen de
διαπευθόμενος, coloca al coro en la situación de explicar, en su carác-
ter de ciudadanos que han permanecido relegados en la ciudad – esto
es, excluidos del heroísmo bélico –, lo que ha sucedido en ausencia
del rey. La inferencia obligada es que la llegada de Agamenón es
justamente su kairós, para ser recibido por los ancianos que tienen
la autoridad moral y han sido testigos de los hechos internos de la
casa real. No menos inocua resulta la aplicación de οἰκουροῦντα a la
conducta de los ciudadanos. Cuidar de la ciudad como de la propia
casa puede sugerir una afectuosa y delicada ocupación en los asun-
tos públicos. Sin embargo, Clitemnestra y Egisto se han constituido
en dos oikouroí (v. 1225 y 1626) y lo oportuno del cuidado de los
asuntos de la ciudad conserva la peligrosa incidencia de lo intrafa-
miliar en la vida de la pólis.22 Por otra parte, no pasa inadvertido el
hecho de que oikourós implica ejercer la guardia “como un perro”,
de modo que el participio se resuelve como una deixis concreta al
extenso discurso de la reina en la escena fundamental del tercer
episodio (vv. 855-913), en cuyo verso 896 considera a Agamenón

22 Como aclaran Raeburn & Thomas 2011: 152, el coro no da nombres en este
pasaje, pero “πόλιν οἰκουροῦντα: the metaphor interestingly melds the king’s polis
with his oikos, […] In the presence of δικαίως, the melding may suggest that at this
stage of the Oresteia, there is still no independent polis-justice independent from the
king’s house – a situation which will change in Eumenides”.

117
como “un perro que sostiene los establos”. En la típica urdimbre
esquilea, las imágenes entretejen referencias múltiples y derraman
sobre Agamenón la vigilancia perpetua de los dos guardianes, los
verdaderos “perros”, inactivos hasta ese momento, que atacarán a
quien ingresa a la casa. 23
Se suele insistir en la oscuridad del contenido del tercer estásimo
(975-1034), que desplaza la expectativa positiva desarrollada en la
párodos a través de la invocación a Zeus como garante del orden. A
la significativa presencia de la palabra kairós antes del ingreso de
Agamenón a escena hay que vincular el tono trenético del estásimo
y la inversión de la imagen nupcial ínsita en el carro portando a
la joven Casandra. 24 De tal manera, bajo el espectro de una boda
inadecuada, se restringe la posibilidad del banquete de bienvenida
al rey. El cierre del estásimo brinda otra oscura referencia:

νῦν δ᾽ ὑπὸ σκότῳ βρέμει


θυμαλγής τε καὶ οὐδὲν ἐπελπομέ-
να ποτὲ καίριον ἐκτολυπεύσειν
ζωπυρουμένας φρενός.
vv. 1030-1034

p ero ahora, [mi corazón] brama en la oscuridad, angustiado y


sin esperanza de desentrañar algo, oportunamente, en algún
momento, cuando mi mente está en llamas. 25

23 Cf. Bailly 1959: 1357, sobre οἰκουρός, -ον: “qui garde la maison, en parlant d’un
chien de garde […] qui reste a la maison […] oisif”
24 Sobre la tergiversación del banquete ritual de boda o de bienvenida al rey
y el contenido trenético del coro, véase De Santis 2016: 66: “Pero en lugar de una
celebración con música y comida, es el thymós del Coro el que entona un himno
(hymnodeí), que es un thrénos de la Erinia calificado a su vez por autodídaktos y
anéu lýras.” Es decir, el coro percibe la presencia de la Erinia que trastoca la alabanza
en premonitorio lamento fúnebre.
25 ἐκτολυπεύσειν, literalmente “ovillar la lana”, consecuente con la red discursiva
y de cacería que desarrolla Clitemnestra, impone un sofisticado lenguaje metafórico:
la oscuridad del corazón, cuyas emociones no son claras, y el ardor de la mente que
no cesa de pensar y conjeturar con pesimismo sobre el porvenir.

118
El usufructo del campo semántico de kairós no se reduce a la
expresión adverbial, sino que resulta altamente significativo cómo a
partir del concepto se señala un mayor o menor nivel de conciencia
respecto de la vecindad de la muerte. Casandra, en un discurso de
atroz claridad lógica suplica:

ἐπεύχομαι δὲ καιρίας πληγῆς τυχεῖν, v. 1292


ruego obtener un golpe certero,… 26

El texto cohesiona el anhelo de Casandra al final del episodio


precedente con el grito de apertura del quinto episodio en boca de
Agamenón:

Ag. ὤμοι, πέπληγμαι καιρίαν πληγὴν ἔσω. v. 1343


¡Ay de mí! Me ha herido un golpe certero dentro de mi casa.

Co. σῖγα: τίς πληγὴν ἀυτεῖ καιρίως οὐτασμένος; v. 1344


C alla ¿quién aúlla porque está oportunamente herido con una
puñalada? 27

Casandra, Agamenón y el coro, repiten expresiones afines. Sin


embargo, en el verso 1343, kairían define un momento crucial de
la trama, y la reacción del coro en tetrámetros trocaicos expone una
alteración prolongada. La reiteración de kairían /kairíos concede
al momento de la muerte del rey la clara significación de “el punto
justo que toca a su fin”, con máxima conciencia en Casandra y con
una cierta obnubilación en Agamenón, quien recibe dos golpes en

26 Implica naturalmente el golpe “certero” en el tiempo y preciso, de modo de


producir una muerte instantánea, que amortigüe el prolongado sufrimiento que la
clarividencia del personaje conlleva.
27 Se puede asumir que el verso es solo dicho por el corifeo, e incluso que su
sentido es “sufriendo una puñalada en el momento justo” para confirmar la simbiosis
entre oportunidad del crimen planificado y punto de crisis de la acción dramática.

119
acciones de aspecto perfectivo (πέπληγμαι, οὐτασμένος), de cuyo
resultado no existe ni duda ni escapatoria.
En otros dos textos el sentido de los derivados de καιρός asegura
que se refiere a una “finalidad concretada”. Ambos textos correspon-
den a Clitemnestra y le confieren un valor estratégico artero:

πολλῶν πάροιθεν καιρίως εἰρημένων


τἀναντί᾽ εἰπεῖν οὐκ ἐπαισχυνθήσομαι. vv. 1372-3

N o me sentiré avergonzada de decir lo contrario de muchas


cosas dichas antes oportunamente.

La admisión de Clitemnestra no es de índole moral, la dirección


opuesta de sus enunciados en cuanto a su afecto por Agamenón y
la vigilancia de su casa son imágenes fehacientes de la trastocada
relación familiar que se precipita sobre los asuntos de la ciudad.
En el discutido pasaje del éxodo de los vv. 1657-1658 afirma:

† στείχετε δ’ οἱ γέροντες πρός δόμους πεπρομένους τούσδε †


πρὶν μαθεῖν ἔρξαντα †καιρὸν χρῆν † τάδ’ ὡς ἐπράξαμεν. 28

¡Ancianos! Marchad hacia esas vuestras nobles casas, antes de


sufrir. Era necesario que todo esto se cumpliera en el momento
oportuno, tal como lo hemos hecho.

28 En la lectura del verso 1658 la edición de Smith registra: παθεῖν εἴξαντες ὥρᾳ:
χρῆν τάδ᾽ ὡς ἐπράξαμεν no aparece καιρὸν, sin embargo Raeburn & Thomas (2011:
240) que siguen la edición de Page, aun señalando dudas, prefieren el texto arriba
citado. En el comentario proponen στείχετ’, αἱδοῖοι γέροντες, πρὸς δόμους, πεπρωμένοις/
πρὶν παθεῖν εἴξαντες < >καιρόν χρῆν τάδ’ ὡς ἐπράξαμεν y traducen “Go home, reverend
elders, and yield to fate before you suffer <All things require their > moment: these
things were necessary, as we performed them”. De esta manera, los crímenes de
Clitemnestra se definen como algo necesario, hecho “oportunamente” y la tragedia
no es más que la representación de ese momento crítico y único.

120
Aunque la reconstrucción καιρὸν χρῆν es obviamente conjetural
para estas líneas corruptas, resulta muy coherente con la recurrencia
del uso del término que hace Clitemnestra, ya que, por una parte,
desalienta la reacción del coro que ha insistido en su ancianidad –
no puede comportarse heroicamente – y debe obedecer a los nuevos
poderosos. Por otra parte, señala el momento álgido de la venganza,
el fin de la tensa espera de los guardianes.
La muerte de Agamenón es lo menos glorioso que pueda suceder
a un guerrero. Como tal, Agamenón podía aspirar a una muerte bella
en el libre espacio exterior del campo de batalla. Una muerte en el
interior y a manos de una mujer es lo más indigno y “antihomérico”.
Aunque las mujeres traidoras ya habían aparecido en Homero, como
la reina despechada que traiciona a Belerofonte, entre otras; ellas no
asesinan directamente. La magistral organización de la tragedia de
Esquilo vuelve el kairós glorioso del derribador de Troya coincidente
con el momento oportuno de su caída. De tal manera, el problema
del desarrollo temporal de las acciones dramáticas diseñado por el
dramaturgo resulta también un problema de discernimiento humano
del punto que llega a su fin, de la coincidencia entre acción y mo-
mento, entre palabra y momento de su enunciación.
Podemos preguntarnos qué habría sido de Troya sin Agamenón y,
del mismo modo, qué significaría la figura mítica de Agamenón sin
Troya: una ciudad sofisticada y transgresora y su terrible asolador.
A Esquilo, la guerra de Troya le brindó ocasión (kairós) para ofrecer
con este personaje el punto en el tiempo de encuentro fatal con el
propio destino y para el despliegue del número de atrocidades de
las que un ser humano es capaz. En la simbiosis que cada personaje
esquileo ofrece entre ser agente de una justicia superior y ser cul-
pable de sus propios actos, el dilema humano de discernir el punto
exacto de la acción personal se abastece con kairós y sus deriva-
dos. Trágicamente, la oportunidad humana jamás se escabulle del
dios.
Tal como lo expresó Cánfora, la literatura griega, con Troya en
particular, brindó combates y un cementerio o, al menos, túmulos

121
memoriales, para nada silenciosos y estáticos, sino cargados de po-
lémica e interrogantes.

Bibliografía

Adrados, F.R, Vílchez, M. (2006), Esquilo. Tragedias III. Madrid: CSIC.


Anderson, M. (1997), The Fall of Troy in Early Greek Poetry and Art. Oxford: Oxford
University Press.
De Santis, G. (2003), Cosmos y justicia en la obra de Esquilo. Imágenes literarias y
argumentación. Córdoba: Universitas.
De Santis, G. (2017), “La traducción de términos y emociones musicales en Orestía de
Esquilo”, Stylos 25.25: 61-72. Disponible en: https://erevistas.uca.edu.ar/index.php/
STY/article/view/436
Garvie, A.F. (1996), “The Tragedy of the Oresteia: Response to van Erp Taalman Kip”,
in M. S. Silk (ed.) Tragedy and the Tragic. Oxford: Clarendon Press, 137-146.
Grantz, T. N. (1982-83), “Inherited Guilt in Aeschylos”, CJ 78: 1-23.
Heath, J. (2001), “The omen of Eagles and Hare (Agamemnon 104-59) from Aulis to
Argos and back again”, CQ 51:18-22.
Ireland, S. (1986), Aeschylus, G&R, New Surveys in the Classics Nº18.
Judet de La Combe, P. (2017), Homère. Paris: Gallimard.
McNeil, L. (2005), “Bridal Cloths, Cover-ups, and Kharis: The ‘Carpet Scene’ in
Aeschylus’ Agamemnon”, G&R 52: 1-17
Raeburn, D. & Thomas, O. (2011), The Agamemnon of Aeschylus. Oxford: Oxford
University Press.
Segal, E. ed. (1983), Oxford Readings in Greek Tragedy. Oxford: Oxford University
Press.
Sommerstein, A.H. (1997), “AESCH. AG. 104-59 (The Omen of Aulis or the Omen of
Argos?)”, MCr 30.1 (1995-96):87-94.
Steiner, D. (2012), “Lines of Demarcation: Aesch. AG. 485-86”, CQ 62: 476-485.
Storey, I. and Allan, A. (2005), A Guide to Ancient Greek Drama. Victoria: Blackwell
Publishing.

122
Las guerras de Esquilo y el léxico
de la violencia contra las mujeres

Aeschylus’ Wars and the Lexicon of Violence


Against Women

Marta González González

Univ. Málaga, CECH

ORCID: 0000-0002-3712-0677

martagzlez@uma.es

Resumen: Se propone en este texto atender a las alusiones a la violencia


contra las mujeres en contexto de guerra que nos ofrecen algunas
tragedias de Esquilo y que, sin constituir el centro del argumento, son
muy importantes por aportar información sobre consensos estructu-
rales sobre ese tipo de violencia. El contexto de la representación y
el léxico empleado (especialmente términos ambiguos como hybris
y gámos) son el hilo argumental de la propuesta.

Palabras clave: Esquilo, guerra, hybris, gámos, violación

Abstract: This paper focuses on the allusions to violence against women


in the context of war, specifically on some tragedies of Aeschylus.
These pieces offer us some data that, without being in the center of the
argument, are very important for providing information on structural
consensus on this type of violence. The context of the representation

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_5
and the lexicon used (especially ambiguous terms such as hybris and
gamos) are the common thread of the proposal.

Keywords: Aeschylus, war, hybris, gámos, rape

1. Lo que las mujeres se juegan en las guerras defensivas

A la hora de estudiar el papel de las mujeres en la guerra en la


Grecia Antigua, tiene mucho sentido diferenciar entre guerras ofensivas
y guerras defensivas. En uno y otro caso los hombres se juegan la
vida y la gloria, pero las mujeres se juegan cosas muy distintas según
de qué tipo de guerra se trate. En estas páginas veremos ejemplos
de ambas situaciones tomando como referencia, principalmente, la
tragedia, mucho más atenta que el género historiográfico a escenas
que propician este tipo de reflexiones.
Pese a la clásica distinción entre los ámbitos privado y público
para hablar de mujeres y de hombres, o de la oposición, que hizo
fortuna, entre el lecho (la maternidad) y la guerra 1 , esta última
era también asunto de las mujeres y hablar de su participación en
ella no es un mero ejercicio retórico sobre “el mundo al revés”. La
participación de manera activa de las mujeres griegas en la guerra
tenía un papel especial, aunque no único, en las guerras defensivas,
en las que ellas se jugaban mucho y mostraban su valor (ἀνδρεία),
como los varones 2. Aunque los historiadores de la antigüedad no
hayan dedicado demasiada atención a este asunto, encontramos
alguna que otra narración muy elocuente, a veces a medio camino
entre el mito y la historia, como el famoso episodio conocido como
“Desesperación focense”, que reproduzco en la versión de Plutarco:

1 Loraux 1981.
2 Sobre las mujeres en la guerra en la Grecia antigua, vid. recientemente Payen
2015 y Georgoudi 2015. Vid. también Schaps 1982 sobre la diferente situación en las
guerras exteriores y defensivas.

124
Los tesalios estaban en una guerra sin cuartel contra los focen-
ses, pues estos habían matado en un día a todos los gobernantes
y tiranos tesalios de las ciudades focenses y los tesalios habían
ejecutado a doscientos cincuenta rehenes focenses; a continuación,
se lanzaron con todo el ejército a través de la Lócride decretando
que no se perdonara la vida de ninguno de los que estaban en edad
militar y que se sometiera a esclavitud a niños y mujeres (παῖδας
δὲ καὶ γυναῖκας ἀνδραποδίσασθαι). Entonces, uno de los tres gober-
nadores, Daifanto, hijo de Batilio, [[244C]] convenció a los focenses
para que salieran a enfrentarse en la batalla contra los tesalios y
que todas las mujeres y niños de la Fócide, reunidos en un único
lugar, amontonaran cantidad de leña y dejaran guardianes con la
orden de que, si se enteraban de que los hombres eran vencidos,
inmediatamente prendieran fuego a la madera y quemaran comple-
tamente sus personas. Todos votaron esta resolución excepto uno
que se levantó para decir que era justo que las mujeres dieran su
consentimiento; en caso contrario, debían renunciar y no obligarlas
por la fuerza. Cuando se comunicó este plan a las mujeres ellas se
reunieron, votaron a favor [[244D]] y alabaron a Daifanto por haber
decidido lo mejor para la Fócide. Dicen que los niños, reunidos por
su cuenta, votaron lo mismo.
Después de todo esto, los focenses se lanzaron al combate cerca
de Cleonas de Hiámpolis y vencieron. A la votación los griegos la
llamaron “Desesperación focense”, y las mayores de todas las fies-
tas, las Elafebolia en honor de Ártemis en Hiámpolis, las celebran
todavía hoy en recuerdo de aquella victoria 3 .

Cuando las mujeres deciden quitarse la vida en el caso de que


sus hombres caigan en la batalla y, como consecuencia, su ciudad
se convierta en botín del enemigo, no se trata de un “sacrificio por
la patria”, ni de un acto de heroísmo entendido en términos milita-

3 Traducción de González González 2019a. Sobre las fuentes e historicidad del


acontecimiento, vid. Franchi 2015.

125
res o patrióticos 4 . Ni estas mujeres eran nuevas Ifigenias, ni los
niños nuevos Meneceos. Asistimos a algo bien distinto: una acción
desesperada provocada por el miedo a la esclavitud y el miedo a la
violación. Es extremadamente importante señalar que lo que Plutarco
dice que los tesalios habían decidido, que se pasara por las armas a
todos los varones en edad militar y se sometiera a esclavitud a niños
y mujeres (παῖδας δὲ καὶ γυναῖκας ἀνδραποδίσασθαι), se dice en unos
términos muy precisos, empleando el verbo ἀνδραποδίζω, que solo
muy pálidamente queda recogido en la traducción como “esclavizar”.
Como ha estudiado Kathy Gaca, en las guerras de devastación el
objetivo era capturar, dominar y explotar a mujeres y niñas, lo que
requería como paso previo el exterminio de los varones de todas
las edades 5. A esa práctica es a la que se refieren los autores con
el término andrapodismós, una selección sistemática de mujeres
jóvenes y niños con fines de explotación, como fuerza de trabajo,
pero también sexual 6. Lo que dice Plutarco, y que aparece solo en
su versión, que las mujeres e incluso los niños celebraron también
una asamblea para apoyar esa decisión de inmolarse, es anecdótico:
lo importante es atender a la suerte que esperaba a mujeres y niños
y que era considerada peor que la muerte. Es este, por tanto, un
ejemplo elocuente de lo que las mujeres se jugaban en las guerras
defensivas.
El mismo Plutarco ofrece otro ejemplo famoso, que tiene gran
interés dada la escasez de testimonios explícitos. Se trata de una
historia, tomada de Polibio, en la que parece que se asume que parte
de la fortuna del soldado vencedor está en poder usar sexualmente
a las mujeres de la ciudad vencida: En cuanto a Quiómara, la mu-
jer de Ortiagonte, sucedió que se convirtió en prisionera de guerra
junto con otras mujeres cuando los romanos y Gneo vencieron en la
guerra a los gálatas en Asia. El comandante que se apoderó de ella

4 Contra Schaps 1982: 201-202.


5 Gaca 2015: 291.
6 Véase también Gaca 2010, 2011 y 2016.

126
se aprovechó de su suerte (ἐχρήσατο τῇ τύχῃ), como suelen hacer los
soldados (στρατιωτικῶς), y la deshonró (κατῄσχυνεν) 7 . A falta de
un verbo con el sentido inequívoco de “violar”, el autor recurre a
καταισχύνω, “deshonrar, o arrojar vergüenza sobre alguien”. Ese com-
portamiento es descrito con el adverbio στρατιωτικῶς, como suelen
hacer los soldados. Es fácil, pues, entender el miedo de las mujeres y
niñas en una situación como la que se describe en Siete contra Tebas,
de Esquilo, con un ejército amenazador a las puertas de la ciudad.

2. Mujeres y “esposas” como botín de guerra. La ambigüedad


del gámos

El miedo de las mujeres y niñas ante las guerras defensivas, es


decir, cuando se da la circunstancia de que su ciudad es, o puede ser,
atacada, tiene una ilustración muy significativa en Siete contra Tebas.
En un trabajo previo 8 analicé varios versos del coro de muchachas
de esta pieza de Esquilo en los que, curiosamente, nos encontra-
mos con una expresión que evoca, por su alusión a la tyche, la que
acabamos de mencionar en el episodio de Quiómara. Se encuentra
al final de una de las intervenciones más conmovedoras del coro
de muchachas, cuando estas expresan todo el horror que imaginan
si Tebas cae en poder de un enemigo que ya está llamando a las
puertas. El coro se lamenta imaginando que una ciudad antigua
como Tebas pueda perecer y ser arrojada al Hades y, en cuanto a las
mujeres, expresa claramente su temor a que tanto las ancianas como
las jóvenes sean arrastradas por los cabellos, como animales, con
sus vestidos desgarrados (¡Y que ellas, prisioneras, sean arrastradas,
ah, ah, / jóvenes y ancianas, / cual yeguas por sus cabellos, / con sus
vestidos por todas partes desgarrados!, Sept. 326-329) y llega, incluso,

7 Traducción de González González 2019a. El texto aparece exactamente igual


en Polibio 21.38.1.
8 González González 2019b.

127
a imaginar muy vivamente la violación de niñas de poca edad. Casi
al final de esa intervención coral, las muchachas mencionan a las
jóvenes, convertidas en esclavas, † sufridoras de un lecho ganado
por la lanza / de un hombre que ha tenido suerte †, de un enemigo
vencedor, († τλήμονες εὐνὰν αἰχμάλωτον / ἀνδρὸς εὐτυχοῦντος †, ὡς
/ δυσμενοῦς ὑπερτέρου, Sept. 364-366 9). Vemos, como en el caso de
Quiómara, una expresión en la que la “fortuna” del soldado va li-
gada a la posibilidad que se le ofrece de violar a las mujeres de la
ciudad vencida. Esos versos cierran en ring-composition la alusión
que el coro de muchachas hacía, unos versos antes, a las violacio-
nes de las que serían víctimas si el ejército atacante se imponía al
ejército defensor de Tebas10. Esclavitud y violación eran la suerte
que esperaba a las mujeres cuando la ciudad, o el país, en el que
vivían era atacado y caía en manos del ejército enemigo y, aunque
sabemos que la violación de las mujeres en tiempos de guerra era,
y es, lo común, estas expresiones referidas a la tyche del vencedor
tienen un aire muy inquietante.
Por otra parte, la asociación de las mujeres con la esclavitud no
se limita al destino que les espera tras una guerra perdida, sino
que, en ocasiones, su situación tras un matrimonio adquiere también
tonos de esclavitud, según vemos en algunas reflexiones recogidas
en la tragedia. A modo de ilustración, recordemos a Medea cuando,
en la pieza homónima de Eurípides (Med. 230-234), afirma que las
mujeres son los más desgraciados de los seres y tienen que pagar
una gran suma para encontrar dueño. ¿No resulta extraña esta afir-
mación? Normalmente se paga por un esclavo, no por un amo; sin
embargo, esto es lo que dice Medea: de cuantas criaturas tienen vida
e inteligencia, / las mujeres somos las más desgraciadas. / En primer
lugar tenemos que, con gran gasto, / comprar un esposo y adquirir un
amo de nuestro cuerpo (πόσιν πρίασθαι δεσπότην τε σώματος λαβεῖν).
Estas palabras de la protagonista no son parte de la trama, sino un

9 Edición de West 1998.


10 Sobre este recurso en Esquilo, vid. Sommerstein 2010: 47.

128
detalle menor dentro de una gran historia de traición, venganza y
filicidio, pero son importantes porque forman parte de lo dado por
supuesto, es decir, de la mentalidad estructural.

En el ámbito en el que nos movemos, el mito, las historias podían


ser todavía mucho más terribles y retorcidas. Así, podemos también
recordar los argumentos con los que Clitemnestra, cuando descubre
el engaño con el que Agamenón las ha hecho ir al campamento grie-
go a ella y a Ifigenia, intenta disuadir a su esposo de sacrificar a su
hija. Le recuerda cuál fue el origen de la unión entre ambos y cómo
no es la primera vez que el rey de Micenas mata a un vástago suyo.
El pasaje se encuentra en Eurípides (I. T. 1146-1152): Escúchame
ahora: diré palabras claras / y no emplearé enigmas que se vayan
por las ramas. / Para empezar, esto es lo primero que te reprocho, /
que te uniste a mí contra mi voluntad y me tomaste con violencia
(ἔγημας ἄκουσάν με κἄλαβες βίαι), / después de matar a mi primer
marido, Tántalo: / a mi hijo recién nacido †lo arrojaste contra el
suelo†, / después de arrebatarlo violentamente de mi pecho. En este
caso nos encontramos con una situación que no nos es descono-
cida en el mundo del mito, la de una mujer obtenida como botín
de guerra que puede llegar a adquirir la condición de esposa. Se
ha discutido si es innovación de Eurípides la introducción de ese
episodio dramático referido al bebé arrojado contra el suelo por
Agamenón; para lo que aquí estamos discutiendo ese debate es irre-
levante y lo que cuenta es ver cómo una mujer podía pasar a manos
de un “varón vencedor” por la fuerza (βίαι) y contra su voluntad
(ἄκουσάν) e, incluso así, calificarse esa unión como un matrimonio
(ἔγημας).
Estos ejemplos están tomados de Eurípides, que pasa por ser un
autor que presta su voz con frecuencia a las quejas de las mujeres.
Se ha señalado cómo, a lo largo de la Guerra del Peloponeso, los
griegos vieron que las mujeres de un estado podían ser esclavizadas
por los hombres de otro (es decir, que se daba el caso de mujeres

129
griegas esclavizadas por hombres griegos 11) y que no es, por tanto,
una coincidencia que Eurípides, a mediados de los años 20 de ese
siglo, comenzara a componer tragedias sobre el destino de las esclavas
troyanas12. Insistiendo una vez más en que estos pasajes de los que
estoy hablando, independientemente del efecto que pudieran tener
en el auditorio y que podemos imaginar diferente según el sexo, no
constituían el núcleo del argumento, sino algo dado por descontado
(si se nos pidiera relatar el argumento de Medea o de Ifigenia en
Áulide no nos referiríamos a esos detalles), quiero centrarme ahora
en mostrar que tampoco Esquilo fue ajeno a esta realidad.

3. Ref lexiones a par tir de Persas, Siete contra Tebas y


Suplicantes

Persas de Esquilo formaba parte de una tetralogía ganadora repre-


sentada en el año 472 a.C. La tetralogía la formaban Fineo, Persas,
Glauco Potnieo y el drama de sátiros Prometeo. Persas, la única
conservada de entre ellas, conmemoraba la reciente victoria griega
sobre el impresionante enemigo del este y tuvo a un joven Pericles,
de tan solo veintidós años, como corego, es decir, como ciudadano
acaudalado encargado de sufragar los gastos del coro. Se trata de
una obra excepcional por muchas razones: es el ejemplo más antiguo
de tragedia griega que conservamos, es la única, de entre las que
han llegado hasta nosotros, de tema histórico (por mitificado que
se presente), y es obra de referencia por su presentación del Otro,
del oriental 13.

11 Los espartanos llevaron a cabo este tipo de guerra de destrucción en Platea,


427 a.C., y los atenienses en Escíone, 423 a.C.
12 Scodel 2010: 59.
13 Sobre este asunto la bibliografía es muy amplia. Recuerdo solo el libro funda-
cional de Edward Said, publicado originalmente en 1978 (Said 2018) y la obra clásica
sobre el tema, en el ámbito de la filología clásica, de Hall 1989. Un trabajo reciente
de la Profesora María de Fátima Silva plantea una mirada original e igualmente
interesante sobre la imagen que los persas tenían del enemigo griego (Silva 2020).

130
El argumento es bien conocido. En la corte de Susa se recibe la
noticia inesperada de la derrota de Jerjes en Salamina y toda la obra
es un lamento por la enorme pérdida de vidas entre la juventud persa,
al mismo tiempo que una loa a la fuerza de Atenas. La reina Atosa,
viuda de Darío y madre de Jerjes, es el personaje central, utilizado
por Esquilo para caracterizar un modo de actuar en lo político en-
teramente opuesto al de los griegos; así, Atosa aparece preocupada
por el lamentable aspecto de su hijo, pero no por una rendición de
cuentas por su fracaso, ejercicio al que los gobernantes bárbaros
no estaban sometidos. En línea con la pintura que Homero trazó de
los troyanos, también Esquilo consigue que nosotros (y, con toda
probabilidad, los griegos de entonces) sintamos una gran empatía
hacia los vencidos y su dolor.
En relación con el asunto que nos ocupa, las mujeres de los
griegos eran en las Guerras Persas y, en concreto, en la batalla de
Salamina, mujeres en una guerra defensiva. En consonancia con la
situación de la Hélade, víctima de un ataque externo, los versos
402-405 de Persas, recogen el peán entonado por los griegos tal y
como lo menciona el mensajero: Hijos de los helenos, adelante, /
mantened libre la patria, mantened libres / a vuestros hijos y mujeres
y los templos de los dioses patrios / y las tumbas de los antepasados:
ahora es el combate por todo esto. Este canto de guerra en el que los
soldados se animan al grito de preservar libre la patria, los hijos y
las mujeres, tiene una contrapartida en el deseo de Atosa, expresado
no aquí, sino en Heródoto (3.134.20 ss.), de tener esclavas griegas,
de Laconia, de Argos, del Ática, de Corinto. Volviendo a Esquilo, y
por lo que se refiere a las mujeres de los bárbaros, en Persas vemos
cómo se dice de ellas que sufren la ausencia de los maridos y los
hijos (Pers. 59-64): Tal es la flor de la tierra persa, / flor de hombres
que se ha ido / por los que toda la tierra de Asia / que los ha nutrido
se lamenta con violento póthos / y los padres y las esposas cuentan
los días / y tiemblan al alargarse el tiempo. Los guerreros persas
son “la flor” de su país, una metáfora recurrente para los jóvenes de
ambos sexos, y por ellos sienten póthos los padres y las esposas. En

131
el verso 252 se anunciará que esa flor ha caído (τὸ Περσῶν δ’ ἄνθος
οἴχεται πεσόν) y, poco después, se lamentará el coro por las mujeres
que la guerra ha dejado viudas (ἀνάνδρους).
Así, en Persas hay una breve mención tanto a las mujeres grie-
gas como a las persas y a cómo podría influir en ellas el devenir
de la guerra: al final, las griegas no pierden la libertad y las persas
lamentan la muerte de sus maridos e hijos, pero no van a ser escla-
vizadas por los vencedores al haberse disputado la batalla lejos de
su tierra. Una perspectiva distinta, desde el punto de vista de las
mujeres, y mucho más detallada, es la que nos ofrece Esquilo en
Siete contra Tebas (467 a.C.). Esta pieza es la tercera, y única con-
servada, de una tetralogía vencedora de la que formaban parte Layo
y Edipo y el drama de sátiros La Esfinge. En ella asistimos al miedo
de un coro de muchachas ante la posibilidad de que la ciudad caiga
en manos del ejército invasor. En esta pieza el miedo a la violaci-
ón es muy explícito. Remito a un trabajo anterior para un análisis
detallado de la intervención del coro en los versos 287-368 14; baste
ahora recordar que, como ya he señalado más arriba, en ese canto
las muchachas de Tebas imaginan al ejército atacante entrando en
la ciudad, arrastrando por sus cabellos a las mujeres de todas las
edades, rasgando sus vestidos, incluso sacando de sus habitaciones
a niñas de muy corta edad a cuya violación se alude de manera cla-
ra. A esas niñas se refiere el poeta con el término, “fruto”, aunque
el verso en cuestión haya sido entendido habitualmente en sentido
literal y las traducciones de Esquilo hablen de frutos derramados
por el suelo en la idea de que el ejército atacante echaba a perder
el fruto y las cosechas atesoradas en las despensas. Sin embargo, la
propuesta que planteo, la de entender καρπός de forma figurada en
referencia a las niñas todavía sin madurar, entiendo que, además de
los argumentos expuestos en el citado trabajo, puede verse refor-
zada atendiendo a otra obra de Esquilo, Suplicantes, a la que voy a
referirme a continuación. En ella, Dánao afirma, en referencia a sus

14 González González 2019b con abundante bibliografía.

132
hijas, que es muy difícil velar por esos “frutos delicados” sobre los
que caen las miradas lujuriosas de los hombres, unas muchachas a
las que se refiere como καρπώματα (Suppl. 996-1001).
Aunque el tema de Siete contra Tebas y de Suplicantes es muy
diferente, resulta interesante analizar de un modo conjunto los dos
coros de muchachas. Propondré ahora reconsiderar Suplicantes
(463 a.C.) y ofrecer una nueva perspectiva para entender cuál es el
motivo de la huida de las Danaides. Esta pieza, que tiene un final
abierto, formaba parte de una tetralogía ganadora que se completaba
con Danaides y Egipcios y el drama de sátiros Amimone, ocupando
en ella, probablemente, el primer lugar. En esta obra, las hijas de
Dánao, acompañadas de su padre, llegan como suplicantes a Argos,
huyendo de una unión con los hijos de Egipto y solicitando la pro-
tección del rey Pelasgo. Se ha escrito mucho sobre los motivos del
tajante rechazo de las Danaides a unirse a sus primos y, quizá, de-
bería descartarse que se trate de un rechazo genérico al matrimonio,
ya que su odio no va dirigido a la raza de los hombres, como el de
Hipólito hacia la de las mujeres en la obra homónima de Eurípides,
sino a una unión violenta, en nada diferente a aquella que temen
las muchachas del coro de Siete contra Tebas. Existen razones para
argumentar en esa dirección y para afirmar que, en este asunto,
entender que el término gámos significa, sin matices, “matrimonio”,
es un punto de partida erróneo.
Es cierto que ya en el comienzo de la obra (Suppl. 9) el coro
de Danaides se refiere a la indeseada unión con sus primos como
gámos. Muy poco después, califica al enjambre de hijos de Egipto
como hybristés (Suppl. 30) e, inmediatamente, señala que la unión que
pretenden es contra su voluntad, aékōn (Suppl. 39). Las palabras de
las jóvenes no dejan lugar a dudas, pero, además, el término hybris
reaparece con insistente frecuencia a lo largo de toda la pieza15. En

15 v. 30, en boca del Coro y en referencia a los Egipcios; v. 81, en boca del
Coro y hablando de esa unión indeseada; v. 104, idem; v. 426, en boca del Coro y
en referencia a los Egipcios (ὕβριν ἀνέρων); v. 487, en boca del rey y en referencia
a los Egipcios (ὕβριν μὲν ἐχθήρειεν ἄρσενος στόλου); v. 528, en boca del Coro y en

133
Suplicantes el empleo repetido del término hybris puede llevarnos
a postular que, en el contexto de esta pieza, gámos no significa
“matrimonio”, sino una unión sexual que, al estar bajo el signo de
la hybris, es una violación 16 . Es imposible hacer una traducción
palabra a palabra, sobre todo si estamos tratando con términos que
forman parte del vocabulario cultural, por eso hay que atender a
todo el contexto. Se ha dicho que en Suplicantes existe un conflicto
entre la hybris y la díke17, también lo hay entre la bía y la peithó,
y podríamos decir que una unión sexual bajo el signo del primero
de cualquiera de estos dos pares es una violación, mientras que una
unión sexual bajo el signo del segundo elemento de cualquiera de las
dos parejas es ya algo reconocible bajo el término de “matrimonio”.
En griego, sin embargo, gámos puede referirse a cualquiera de los
dos supuestos, lo que alimenta la ambigüedad.
Sin embargo, no es solo el empleo de hybris lo que conduce en
esta dirección, sino que hay otros indicios igualmente claros. Así,
en los versos 333-337 el rey Pelasgo y el coro se cruzan unas pala-
bras muy interesantes. A la pregunta de por qué huyen, el coro de

referencia a los Egipcios (ἄλευσον ἀνδρῶν ὕβριν); v. 817, en boca del Coro y en
referencia a los Egipcios (γένος γὰρ Αἰγύπτιον ὕβριν); v. 845, en boca del Coro y en
referencia a los Egipcios (δεσποσίῳ ξὺν ὕβρει); finalmente, v. 880, aunque el texto
presenta problemas, la referencia es del Coro hablando de los Egipcios. Para el texto
de Suplicantes, particularmente problemático por lo dañado que está en muchos
lugares, sigo la edición de West 21998.
16 En apoyo de esta interpretación pueden tomarse dos pasajes de Eurípides.
El primero de ellos, de Ifigenia entre los Tauros, vv. 13-17. En esos versos Ifigenia
recuerda los acontecimientos que llevaron a su padre Agamenón a reunir una flota
con la que ir a Troya; en su referencia a Helena y al deseo de venganza de Agamenón
para contentar a Menelao, no habla de un matrimonio, sino de una violación, unión
sexual llevada a cabo con hybris: ὑβρισθέντας γάμους. En el segundo caso, de la obra
Ion, habla el coro de una infeliz doncella (παρθένος μελέα, v. 503), en referencia a
Creúsa, que tuvo un hijo de Apolo, un parto denominado ultraje de bodas amargas,
es decir, resultado de una unión violenta o violación (πικρῶν γάμων ὕβριν, v. 506).
En contra, véase Lembke 2009: 198-203, que defiende que el rechazo de las hijas de
Dánao a la unión con sus primos es una demostración de la incapacidad de asumir
el paso a la edad adulta. La autora se desentiende de las innumerables alusiones a la
violencia que caracteriza a los Egipcios y concluye que “Two resolutions are possible
for the Suppliants: death or love. In the play’s own terms: an insanely murderous
defense of childishness or growing up” (Lembke 2009: 201).
17 Robertson 1967: 377.

134
Danaides responde que para no convertirse en esclava del linaje de
Egipto (ὡς μὴ γένωμαι δμωῒς Αἰγύπτου γένει, 335) y cuando el rey
insiste y quiere saber si es por odio, o porque se trata de una unión
contra la ley, el coro responde con otra pregunta, ¿quién querría
ganarse parientes que se convirtieran en amos? (τίς δ’ ἂν φιλοῦσ’
ὄνοιτο τοὺς κεκτημένους; 337). Esta forma de ver las cosas recuerda
las palabras de la Medea de Eurípides que recordábamos más arriba:
en ocasiones, lo que las mujeres consiguen al casarse es un amo, un
dueño de su cuerpo.
Hasta qué punto esa unión con los Egipcios es tan indeseada
como la que imaginan las muchachas del coro de Tebas, se ve en el
canto de las hijas de Dánao a partir del verso 776, cuando expresan
su deseo de morir como una opción preferible antes que someterse
a los Egipcios. El coro dice desear convertirse en humo negro, en
polvo (recordemos cómo la metamorfosis, a veces, aunque no siem-
pre, sirve como medio de evitar la violación, como en el caso de
Dafne 18), cualquier cosa antes que sucumbir a la violencia de una
unión indeseada, πρὶν δαΐκτορος βίαι / καρδιᾶς γάμου κυρῆσαι, Suppl.
798-799 (nótese el empleo de gámos con el valor que ya he señalado
de “unión violenta”). Mejor la muerte, mejor servir de alimento a los
perros y de banquete a los pájaros: la muerte libera de las desgracias
dignas de lamento (τὸ γὰρ θανεῖν ἐλευθεροῦ- /ται φιλαιάκτων κακῶν,
Suppl. 802-803). Aunque no estamos en un contexto de guerra, por
más que la llegada de los Egipcios pueda suponer para los habitantes
de Argos una amenaza bélica, lo que las Danaides están expresando
es su deseo de sufrir el destino de los hombres vencidos, no el de
las mujeres: morir y ser devoradas por perros y aves antes que sufrir
la violencia sexual. Se trata de la misma idea que encontramos en el
coro de Siete contra Tebas: Sin duda, lo aseguro, el que ya está muerto
/ tiene mejor suerte que estas (ἦ τὸν φθίμενον γὰρ προλέγω / βέλτερα
τῶνδε πράσσειν, Sept. 336-337) dice el coro en referencia a las niñas
a las que imagina violadas por los soldados del ejército atacante.

18 Zeitlin 1986: 123.

135
Finalmente, cuando el heraldo de los Egipcios trata de llevarse a
las muchachas, amenaza con arrastrarlas por los cabellos (ὁλκὴ γὰρ
οὔτοι πλόκαμον οὐδάμ’ ἅζεται, Suppl. 884) y arrancar sus ropas (εἰ
μή τις εἰς ναῦν εἶσιν αἰνέσας τάδε, / λακὶς χιτῶνος ἔργον οὐ κατοικτιεῖ,
Suppl. 903-904), exactamente la misma escena que imagina el coro
de Siete contra Tebas, aunque aquí no es una suposición, sino una
amenaza explícita del agresor.
Las hijas de Dánao son presentadas como muchachas “en flor”.
Su padre es muy claro al respecto cuando al final de la obra, cuan-
do reciben el apoyo de la ciudad de Argos, las alienta a no hacer
nada que pueda acarrearle a él vergüenza. A vosotras os animo a
no avergonzarme, / vosotras que tenéis esa edad en flor (ὥραν),
atractiva para los hombres. / No es en absoluto fácil de custodiar
la fruta delicada (τέρειν’ ὀπώρα). / Las fieras se afanan por ella y
también los hombres, ¿cómo no? / Y todo animal salvaje, el que vuela
y el que camina sobre la tierra. / Cipris anuncia los frutos ofrecidos
(καρπώματα) que destilan su savia (Suppl. 996-1001). En estos ver-
sos, las alusiones a la fruta deseada por el enemigo hacen imposible
no recordar los versos de las muchachas del coro de Tebas que he
recordado más arriba y en los que defendí que καρπός debía ser en-
tendido no en sentido literal, sino metafórico, en alusión a las niñas.
Utilizando una imagen parecida, la de la flor de la juventud, la flor
de los jóvenes cae en el campo de batalla, mientras que la de las
muchachas es arrancada por los soldados victoriosos. Los animales
salvajes se ceban con el cuerpo del guerrero caído en combate; otros
animales salvajes lo hacen con el de las muchachas todavía vivas,
lo que hace comprensible esa idea repetida de que es mejor morir
que sufrir tal violencia.
El final de Suplicantes, con todos sus problemas, de los cuales no
es el menor que no es un verdadero final (al menos no lo era para
el público del 463 a.C., que vería cómo Esquilo resolvía el enredo
en las piezas posteriores), puede servir como apoyo de esta idea de
que las hijas de Dánao no rechazan el matrimonio, sino una unión
sexual contra su voluntad. Tanto las palabras del coro, invocando a

136
Ártemis para que no se cumplan los ritos de Afrodita “bajo el signo
de la violencia” (ἐπίδοι δ’ Ἄρτεμις ἁγνὰ / στόλον οἰκτιζομένα, μηδ’ ὑπ’
ἀνάγκας / τέλος ἔλθοι Κυθερείας, Suppl. 1030-1032), como el encomio
a Hera y a Afrodita, junto con la referencia a Peithó, por parte del
coro secundario de sirvientas19 (Suppl. 1034-1051), señalan el camino
hacia un gámos sin violencia ni hybris.
No es esta la primera vez que los coros de doncellas de Esquilo
son estudiados de manera conjunta. La doncella (parthénos) tiene un
estatus de gran relieve en la vida religiosa, e incluso política, de la
ciudad y el modo en el que los coros de muchachas de Siete contra
Tebas y Suplicantes representan en escena esa relación única entre la
virgen y el estado ha merecido, con razón, una cuidadosa atención.
Sin embargo, sugerir que estos coros escenifican la transición a la
edad adulta, incluso que representen “a temporary period of wildness
in a young woman’s coming of age” 20 entiendo que es reduccionista
y que supone cerrar los ojos a la evidente violencia contra la que
estas muchachas se manifiestan con una claridad patente. Sus mie-
dos no son irracionales 21, sino que hablan de algo que el público
de entonces, como el de ahora, conoce muy bien. Es cierto que las
doncellas en la tradición literaria griega aparecen con frecuencia
como fieras que hay que domar (Anacreonte PMG 335), y eso mismo
puede hacer muy difícil trazar una línea entre el empleo metafórico
de imágenes que implican violencia y la denuncia explícita de vio-

19 Sobre el problema de quién canta en Suppl.1034-1061, vid. Librán Moreno 2005:


338-350, que argumenta, muy documentada y persuasivamente, en favor de que se
trate de un semicoro de sirvientas. Remito a esa autora para la bibliografía pertinente.
En fechas más recientes, Bednarowski 2011 ha defendido que todo ese canto final
debe atribuirse a las Danaides, desdobladas ahora en dos semicoros.
20 Fletcher 2007: 25. Sin embargo, una cosa son los ritos de paso, de indudable
interés, o los mitos como el de Atalanta (o el de Hipólito: no olvidemos que ambos
sexos tienen que culminar con éxito el paso a la edad adulta) y otra muy diferente
cerrar los ojos y los oídos a la violencia sexual, que nada tiene que ver (o nada
debería tener que ver) con esa transición.
21 Sobre la “histeria” del coro en Siete contra Tebas, vid., entre otros, Cameron
1970: 98, Conacher 1996: 40; para Suplicantes y Siete contra Tebas, Fletcher 2007: 31,
“The chorus of Danaids in The Suppliant Women, like the Theban women, display a
tendency towards irrational behaviour”.

137
lencia real y no metafórica. Hablando del coro de Siete contra Tebas,
decir que “their virginity is a perfect symbol for the sanctity of the
innermost part of the city where the drama takes place, while their
fear of rape corresponds on a personal level to the public violation
of the citadel” 22 es muy cierto, pero es también quedarse solo al
principio del camino. El miedo del coro de muchachas a la violaci-
ón se corresponde, en el nivel público, con el miedo al saqueo de
la ciudad, pero lo que realmente cuenta es que se trata de miedos
fundados, ya que una y otra cosa sucederán si la guerra se pierde.

4. Conclusiones

Desde la distancia, podemos ver en Persas el origen del orienta-


lismo; desde la cercanía, las impresiones de los espectadores eran
seguramente muy variadas. Sin duda, el valor de las apelaciones a
la victoria y a la libertad de los griegos frente al despotismo persa
podía funcionar como elemento de cohesión; por otra parte, el lujo
(¡cuántos compuestos con chryso – hay en Persas!) opone a griegos
y persas, así como otros muchos elementos de cultura política. Pero,
como recuerda Nancy S. Rabinowitz, dado que Atenas había sufri-
do la ocupación persa muy recientemente, y el público, mientras
asistía a la representación, podía todavía ver las ruinas y destrozos
provocados por el ejército invasor, esta pieza de Esquilo hacía que
el espectador fuese capaz de hacer algo más que ver en el enemigo
un oponente, siendo capaz también de identificarse con su dolor 23.
En cuanto a Siete contra Tebas, ¿qué pensarían los espectadores
varones sobre su propia actuación en las guerras?, ¿y qué pensarían
las mujeres sobre esa “fortuna” de los soldados, que consistía en
tomarlas como botín sexual? Teniendo en cuenta el contexto de la
representación de esta pieza, en el 467 a.C., Peter Meineck señala

22 Fletcher 2007: 28.


23 Rabinowitz 2008: 93.

138
que el miedo expresado por el coro era un miedo conocido por
los asistentes a la representación, que lo habían sentido solo trece
años antes, durante las Guerras Persas, y que ellos mismos habían
provocado al infligir tales atrocidades a otros griegos. Pudiera ser,
señala Meineck, incluso, que entre el público hubiera responsables
de barbaridades como las que se anuncian en escena 24.
Suplicantes, por su parte, seguramente haría reflexionar a parte
del público, no solo sobre la institución del asilo, tan querida por
los griegos, sino también sobre las diferentes circunstancias en las
que podían tenían lugar los matrimonios. Podemos imaginar que
el público de entonces, especialmente el femenino, no dejaría de
empatizar con las mujeres de estas piezas teatrales y conocería muy
bien el miedo del que hablan 25.
Si en los estudios sobre la tragedia griega se leen siempre lamentos
sobre la pérdida de dos de los componentes principales de la misma,
música y danza, no es menos cierto que para desentrañar el sentido
del tercer elemento, sí conservado, la palabra, necesitamos algo más
que un diccionario. En estas páginas he reflexionado, especialmente,
sobre dos palabras concretas: hybris (que puede significar insolencia,
pero, contextualmente, también violación 26 ) y gámos (que puede
significar matrimonio, pero también simple unión sexual, pacífica o
violenta). Ni siquiera hace falta que ambos términos vayan unidos
para que el sentido de gámos sea el de una unión sexual violenta.
A los ejemplos que ya he dado más arriba, quisiera añadir uno más.
En la Helena de Eurípides, en el verso 191, el coro, para describir un
grito de dolor lo compara con el que emite una ninfa, o náyade, que

24 Meineck 2017: 49-50.


25 El debate sobre la asistencia o no de las mujeres a las representaciones tea-
trales es uno de los más vivos, pero, en cualquier caso, el grueso de la discusión
se refiere a las representaciones en las Grandes Dionisias y no hay que olvidar que
había muchas otras representaciones en otras fechas y lugares de Grecia a las que las
mujeres podrían asistir, aparte de que circulaban copias escritas y algunos fragmentos
se memorizaban (Scodel 2010: 52-54).
26 Sobre el concepto de hybris y la idea de que debe analizarse contextualmente,
no solo en referencia al marco literario, sino también al político, vid. Bañuls Oller 1996.

139
huye por las montañas y denuncia con gritos la violación a la que
Pan la somete (Πανὸς ἀναβοᾶι γάμους). ¿Cómo vamos a hacernos una
idea de lo que el poeta dice si al traducir no tenemos en cuenta la
situación y hablamos de “los amores de Pan”, o “el abrazo de Pan”?
Propongo, pues, que el asunto concreto de la violencia sexual
contra las mujeres, especialmente en contexto de guerra, sea tenido
en cuenta junto a todas las demás perspectivas. No en lugar de, sino
además de ellas. Es, entiendo, un elemento estructural y quizá por
ello pase tantas veces desapercibido. Como señalaba más arriba, si se
trata de la trama de Siete contra Tebas, por ejemplo, habrá quienes
digan que apenas existe acción (“reproche” que también se hace a
Suplicantes, curiosamente), o se dedicarán páginas a la descripción,
bellísima y llena de significado, de los escudos de los atacantes,
pero del miedo de la mitad de la población no se dirá nada, o se
calificará de histérico. Nada justifica esa perspectiva. Tanto si nos
colocamos en la piel de los espectadores de entonces, como si nos
acercamos a estas obras con las inquietudes actuales, la violencia
contra las mujeres en la guerra es un tema nuclear.

Bibliografía

Bañuls Oller, J. V. (1996), “Expresión literaria del concepto ὕβρις”, Studia Philologica
Valentina 1: 7-19.
Cameron, H. D. (1970), “The Power of Words in the Seven Against Thebes”, TAPhA 101:
95-118.
Conacher, D. J. (1996), Aeschylus: The Earlier Plays and Related Studies. Toronto:
University of Toronto Press.
Bednarowski, K. P. (2011), “When the Exodos is not the End: The Closing Song of
Aeschylus’ Suppliants”, GRBS 51: 552-578.
Fletcher, J. (2007), “The Virgin Choruses of Aeschylus”, in J. Fletcher y B. MacLachlan
(eds.), Virginity Revisited: Configurations of the Unpossessed Body. Toronto: University
of Toronto Press, 24-39.
Franchi, E. (2015), “The Phocian Desperation and the ‘Third’ Sacred War”, Hormos n.s.
7: 49-71.
Gaca, K. L. (2010), “The andrapodizing of war captives in Greek historical memory”,
TAPA 140: 117-61.

140
Gaca, K. L. (2011), “Manhandled and ‘kicked around’: Reinterpreting the etymology
and symbolism of Andrapoda”, IF 115: 110-4.
Gaca, K. L. (2015), “Ancient Warfare and the Ravaging Martial Rape of Girls and Women.
Evidence from Homeric epic and Greek drama”, in Masterson et alii (eds.), Sex in
Antiquity. Exploring Gender and Sexuality in the Ancient World. Londres: Routledge,
278-297.
Gaca, K. L (2016), “Continuities in Rape and Tyranny in Martial Societies from Antiquity
Onward”, in Budin & Turfa (eds.), Women in Antiquity. Londres: Routledge, 1041-
1056.
Georgoudi, S. (2015), “To Act, Not Submit. Women’s Attitudes in Situations of War in
Ancient Greece”, in J. Fabre-Serris & A. Keith (eds.), Women & War in Antiquity.
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 201-213.
González González, M. (2019a), Plutarco. La excelencia de las mujeres, intr., trad. y
notas. Madrid: Mármara.
González González, M. (2019b), “The Enemy at the City Gates. Seven against Thebes,
287-368”, Cadmo 28: 33-49.
Hall, E. (1989), Inventing the Barbarian: Greek Self-Definition through Tragedy. Oxford:
Clarendon.
Hall, E. (2010), Greek Tragedy. Suffering under de Sun. Oxford: Oxford University Press.
Lembke, J. (2009), Aeschylus. Suppliants, in P. Burian y A. Shapiro (eds.), Greek Tragedy
in New Translations. The Complete Aeschylus, vol. II. Oxford: Oxford University
Press.
Librán Moreno, M. (2005). Lonjas del banquete de Homero. Convenciones dramáticas
en la tragedia temprana de Esquilo. Huelva: Universidad.
Loraux, N. (1981), “Le lit, la guerre”, L’Homme 21.1: 37-67.
Meineck, P. (2017), “Thebes as high-collateral-damage target: moral accountability for
killing in Aeschylus’ Seven against Thebes”, in I. Torrance (ed)., Aeschylus and War.
Comparative Perspectives on Seven Against Thebes. Londres: Routledge, 49-69.
Payen, P. (2015), “Women’s Wars, Censored Wars? A Few Greek Hypotheses (Eighth to
Fourth Centuries BCE)”, in J. Fabre-Serris & A. Keith (eds.), Women & War in
Antiquity. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 214-227.
Rabinowitz, N. S. (2008), Greek Tragedy. Malden: Blackwell.
Robertson, H. G. (1967), “The Hybristês in Aeschylus”, TAPhA 98: 373-382.
Said, E. (2018), Orientalismo. Trad. cast. Madrid: Debolsillo.
Scodel, R. (2010), An Introduction to Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge University
Press.
Scott, L. (2005), Historical Commentary on Herodotus Book 6. Leiden: Brill.
Schaps, D. (1982), “The Women of Greece in Wartime”, CPh 77.3: 194-213.
Silva, M. F. (2020), “The Greeks as seen from the East. Xerxes’ European Enemy”, in T.
Figueira y C. Soares (eds.), Ethnicity and Identity in Herodotus. Londres-Nueva
York: Routledge, 220-236.
Sommerstein, A. (2010, 2ª ed), Aeschylean Tragedy. Londres: Bloomsbury.
West, M. L. (1998, 2ª ed.). Aeschyli Tragoediae. Leipzig: Teubner.
Zeitlin, F. (1986), “Configurations of Rape in Greek Myth”, in S. Tomaselli y R. Porter
(eds.), Rape. Oxford-New York: Blackwell, 122-151.

141
(Página deixada propositadamente em branco)
O q u e o s o l h o s v e e m n a H e l e na
d e E u r í p i d e s *1

W h at t h e E y e s C a n S e e i n E u r i p i d e s ’ H e l e n

Jorge Deserto
Univ. Porto, CECH
ORCID: 0000-0001-6755-9771
jdeserto@gmail.com

Resumo: De acordo com a tendência, que os tempos recentes têm


largamente consolidado, de pensar as obras do teatro grego como
espetáculo, cabe perguntar se uma análise centrada no cenário, nos
figurinos, nos objetos de cena e na movimentação das personagens nos
pode ajudar a interpretar mais claramente estas obras. É certo que as
informações essenciais sobre estes elementos nos advêm do próprio
texto, criando um potencialmente nocivo efeito de circularidade, mas
torna-se produtivo verificar que, tratados com os necessários cuida-
dos, nos permitem, muitas vezes, alimentar linhas de leitura ao lado

*1 Participar num volume de homenagem à Doutora Maria de Fátima Sousa e


Silva é, entre muitas outras coisas, agradecer a amizade, a simpatia, a constante dis-
ponibilidade que o tempo tem reiteradamente confirmado. Mas é também, no meu
caso pessoal, muito mais do que isso. Em termos simples: se não fosse a orientação
dedicada e sólida da Doutora Maria de Fátima eu provavelmente não teria dobrado
o cabo do meu doutoramento. Com o notável pragmatismo que lhe conhecemos,
mostrou-me que não se sobe uma escada galgando os degraus ou esperando que
eles magicamente desapareçam; sobe-se vencendo os degraus um a um, um pé
diante do outro, até que, quando damos conta, está ultrapassado o declive. Parece
isto simples e natural, mas, naquela ocasião, para mim foi tudo. Não é coisa que
se agradeça uma vez. É algo por que se fica grato todos os dias, enquanto durar
a vida.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_6
do texto ou até mesmo, em determinados momentos, confrontar o
próprio texto e, portanto, tornar a sua leitura mais ampla e mais rica.
A minha proposta, neste artigo, é a de trabalhar a dimensão visual
(entendida como aquilo que, durante a representação, seria oferecido
ao olhar dos espectadores) de uma peça tão variada e desafiadora
como a Helena de Eurípides. Se há uma indiscutível riqueza, a este
nível, quer nos figurinos, quer na movimentação, ela torna-se ainda
mais decisiva numa obra que, desde o início, nos propõe que descon-
fiemos daquilo que os olhos veem e nos ensina que o olhar pode não
ser a fiel testemunha que nos permite encarar o mundo sem descon-
fiança.
Palavras-chave: Tragédia grega, Eurípides, Helena, opsis, objetos de
cena

Abstract: The tendency, now well consolidated, of thinking about Greek


theatre plays as performance and not just as text intended to be read,
opens way to ask how an analysis centred on scenery, costumes,
props, and movement can help us to clearly understand these works.
It is true that the essential information about these elements comes
from the text itself, creating a potential circularity, but it is important
to verify that, when treated with the necessary care, they often allow
us to build some parallel reading, or even to confront the text itself,
widening the ways in which it can be understood.
My aim, in this paper, is to work on the visual dimension (I mean,
everything that, during the performance, was under the eyes of the
audience) of a play as diverse and challenging as Euripides’ Helen.
If there is much to say about props, costumes, and movement, all
these become even more important in a play that, from the beginning,
keeps repeating eyes are not the faithful witnesses that allow us to
face the world without suspicion.
Keywords: Greek tragedy, Euripides, Helen, opsis, props

144
Introdução

Olhar para o teatro grego como algo que deve ser fruído pelo olhar
é certamente, não será necessária grande soma de argumentos para
o demonstrar, uma forma de enriquecer a leitura que fazemos destas
obras. No fundo, antes de qualquer outra consideração ou argumento,
a própria designação theatron, o lugar a partir do qual se olha, a partir
do qual se assiste ao espetáculo, reivindica essa importante parcela
de importância concedida ao olhar. Compreende-se, assim, que uma
das mais consistentes tendências dos tempos mais recentes seja olhar
para a tragédia grega (bem como para a comédia, mas, na comédia,
ao longo do tempo, tem sido mais natural e constante, pela própria
natureza exuberante de algumas propostas cénicas, a atenção aos as-
petos mais materiais da conceção do espetáculo) conferindo acrescida
importância ao cenário, aos figurinos, aos objetos de cena ou à movi-
mentação das personagens, ou seja, a tudo aquilo que, no momento
da representação, seria predominantemente absorvido pelos olhos e
não pelos ouvidos. O primeiro pressuposto deste breve texto, sem
qualquer particular originalidade, é o de que a Helena de Eurípides,
como qualquer outra das tragédias gregas, ganha em significados e
em linhas de leitura produtivas se for submetida a esse exercício.
Podemos até, sem qualquer receio de erro ou exagero, defender que,
neste exemplo particular da arte de Eurípides, uma específica atenção
àquilo que está diante dos olhos da audiência pode, além de corroborar
e ajudar a interpretar o texto, criar algumas linhas de tensão – que
acabam por interpelar de um modo inesperado as palavras que são
ditas em cena. Por isso, e porque este aspeto particular – a tensão a
que é permanentemente sujeito o olhar dos espectadores – me pare-
ce importante, tentarei explorá-lo um pouco mais do que apenas os
elementos relativos a adereços ou à movimentação de cena, também
eles claramente eloquentes e reveladores, mas funcionando num grau
menor de amplitude e de relevância.
O aspeto que, antes de todos os outros, ajuda a dar forma a
essa tensão que perpassa ao longo da Helena de Eurípides – e que,

145
convém sublinhá-lo, não lida apenas com a configuração do olhar
da audiência, embora se jogue muito nessa vertente particular do
espetáculo – prende-se com o modo, definidor e fundador da própria
dinâmica da peça, como Eurípides refaz a narrativa mitológica em volta
de Helena, criando um jogo em que o ato de refazer nunca desfaz
completamente o que antes existia. É este movimento incompleto,
esta construção de realidades em espelho que facilmente coloca o
espectador numa situação de alguma incomodidade, alimentada por
sinais contraditórios ou, pelo menos, não coincidentes – e, neste
ponto, aquilo que cabe à fruição do olhar ganha um papel relevante
na construção dessa incomodidade.
Antes de avançarmos mais, pensemos no seguinte: a narrativa
tradicional que nos conduz à guerra de Troia tem como gatilho fun-
damental o rapto de Helena, rainha de Esparta, levada do seu palácio
pelo príncipe troiano Páris – e se, sobre a vontade de Helena em
todo este processo, nem todas as versões parecem coincidir senão
neste ponto particular, da manchadíssima reputação já ninguém a
livra. Reparemos agora no que faz Eurípides: ele propõe-nos que,
neste seu drama, a intriga em torno da guerra de Troia seja fechada
por um rapto de Helena, o único que, nesta versão, verdadeiramen-
te acontece, já que o outro, o que conduz a mulher de Menelau a
Troia, fica agora envolto num nevoeiro quase tão imaterial como a
figura que, em vez de Helena, é levada por Páris para as margens
do Escamandro.
Como entender este novo rapto, aquele que agora reconduz os
acontecimentos à situação original? Podemos tentar lê-lo como forma
de criação de um efeito de circularidade, um percurso que se fecha
de um modo aproximado àquele com que a tradição o havia aberto.
Esta é, como se vê, uma circularidade predatória, já que a intriga que
conduz ao segundo rapto também, de caminho, reduz o primeiro a
um fingimento. No entanto, como uma incomodativa semente, algo
sobrevive, quase como se fosse uma marca de Helena e da influência
que ela exerce: para contar a história desta mulher, mesmo numa
versão em que ela se cobre de virtudes, é sempre preciso raptá-la.

146
De algum modo, algo nos avisa que em volta de Helena perdura
sempre este perfume algo malsão, esta aura de perigo e de incerteza.
Por outro lado – numa interpretação que não anula a anterior,
mas com ela convive em sã harmonia – podemos igualmente olhar
para este segundo rapto numa lógica substitutiva, como um lance da
intriga que aparece em vez de outro, algo que, em simultâneo, desau-
toriza, emenda e reconstrói aquela que era a versão mais conhecida
por todos. De algum modo, esta leitura até encaixa no paralelo que
é recorrentemente feito – e de forma absolutamente justa – entre
a intriga desta tragédia e a Odisseia, entre a situação de Helena,
nesta versão, e aquela que é vivida pela Penélope homérica. Sem
forçar demasiado, este rapto, que agora ocupa o lugar do inicial, é
um pouco uma forma de tecer de novo a intriga, depois de a haver
desmanchado – e esse ato de desmanchar e fazer de novo cola-se
a Penélope, bem o sabemos, como uma segunda pele. É certo que
Penélope não precisa de ser raptada para reconstruir a sua casa, mas
Helena, por mais que os nossos olhos tentem descortinar nela toda
a soma de virtudes, nunca será uma Penélope.
Desfazer o que está e colocar em seu lugar outra coisa. Parece
fácil, mas nunca é. E, neste caso, Eurípides claramente não quer que
seja: os vincos do passado, as marcas de uma tradição duradoura e
insistente continuam à vista. Eurípides, sempre tentado a descon-
certar-nos, durante largo tempo não coloca uma intriga no lugar de
outra: coloca-a ao lado da outra, a disputar-lhe o lugar, a respirar no
mesmo espaço onde o ar se rarefaz. É nessa tensão que o espectador
mergulha, é para essa tensão que o seu olhar é desafiado, de um
modo particularmente inteligente e intrigante.

Helena

Quando a peça abre, uma mulher, que está sozinha em cena, fala
connosco. Os monólogos iniciais, este dispositivo que Eurípides tão
largamente soube aproveitar, desenvolvem com o espectador uma

147
relação dúbia, já que não podem deixar de mostrar-se conscientes
– não explicitamente, mas no laço implícito que se estabelece entre
quem fala e quem ouve – do seu artificialismo e da sua teatralidade.
Por que razão há-de alguém, num determinado dia, rememorar em
voz alta o lugar onde se encontra, a sua identidade, as circunstâncias
da sua vida? Como espectadores, sabemos que é por nossa causa, por
algum lado tem de começar a desenrolar-se o fio que nos vai puxar
para dentro do drama – resta-nos fazer a nossa parte, fingirmos que
tudo aquilo é natural e deixarmos que o jogo prossiga.
A mulher que fala nestes versos iniciais (1-67) refere essencial-
mente duas coisas, ambas surpreendentes: o lugar onde se encontra
e aqueles que nele vivem, por um lado, a sua identificação e um
breve relance pela sua história, por outro. Esse relance, com todo o
seu efeito de contextualização, mas também com novos dados, que
completam e ampliam o que foi dito, vai ter continuidade no diálogo
com Teucro, que vem imediatamente a seguir (68-163).
O lugar, aquele onde decorre a ação, é o exótico Egipto, junto do
palácio que havia sido morada de Proteu. Não é claro que este lugar,
em nada habitual na tragédia1, seja usado visualmente para criar um
efeito particular de exotismo. É certo que estamos um bocado limi-
tados quanto ao que seria a skenographia, cuja criação Aristóteles
atribui a Sófocles, mas talvez não devamos esperar demasiado dela,
eventualmente um conjunto de painéis pintados, possivelmente
amovíveis, colocados nas paredes da skene2. Mesmo que deixemos a
nossa imaginação seguir esse caminho (e poderíamos legitimamente
fazê-lo), esta presença do Egipto parece-me aqui funcionar, não tanto
como forma de distanciamento ou exotismo, mas, antes disso, como
uma forma de conexão à tradição homérica, que Eurípides pretende

1 Burian 2007: 190; Allan 2008: 144.


2 Allan 2008: 30 é francamente céptico, mesmo quanto à existência de quaisquer
painéis pintados. Aduz um argumento que merece ponderação: “it is surprising that
such physical (as opposed to purely verbal) scene-setting is not explored for ludicrous
effect in Old Comedy.”

148
sublinhar de forma evidente 3. Nesta leitura, o Egipto funciona como
uma âncora que dá alguma segurança ao espectador, já que Helena,
esta nova Helena, não é colocada num lugar arbitrário e completa-
mente inesperado. Devo conceder, no entanto, que, ao lado do efeito
de reconhecimento, a que atribuo particular importância, o Egipto
não deixa de ser, ao mesmo tempo, suficientemente remoto, incerto
e desconhecido e pode, por isso, representar, em simultâneo, uma
ameaça credível. Eurípides, como é óbvio, faz isso de forma sinuosa:
num primeiro momento, Helena é arrebatada para o Egipto para aí
encontrar um refúgio, até vir, um dia, a ser resgatada por Menelau.
Este é, portanto, um lugar que, no início, oferece proteção. No en-
tanto, como acontece, por regra, nesta peça, as coisas tendem a não
ser permanentes, o certo e o incerto parecem estar em constante
movimento. Por isso, também o Egipto, com a morte de Proteu, se
muda de refúgio em ameaça, com o surgimento de um pretendente
que obriga Helena a procurar guarida na proteção algo incerta de
um túmulo a que as circunstâncias conferem o sagrado papel de um
altar, num mundo que se torna subitamente mais hostil.
Mais do que o país onde tudo acontece, o que prende a atenção
do espectador é esta figura feminina que fala. Percebemos rapida-
mente – porque o diz – que se trata de Helena, a filha de Tíndaro
(ou de Zeus, como também conta, não sem uma ponta de descren-
ça), refugiada no Egipto, enquanto a ilusão de um eidolon empnoun
acompanhou Páris e arrastou o sofrimento para Troia. Enquanto
aguardava o regresso incerto de Menelau, Helena perdeu a bondosa
proteção de Proteu, cuja morte de lhe trouxe a perseguição do filho
deste, Teoclímeno, pretendente à sua mão. Procurou, por isso, refúgio
junto do túmulo do anterior rei, onde agora a vemos.

3 Stavrinou 2015: 109-113 sublinha que lhe parece haver suficientemente exotismo
neste Egipto para que a alteridade do lugar fique devidamente sublinhada. Parece-lhe
igualmente que a imagem de um Egipto protetor se sobrepõe à noção de ameaça,
até porque mesmo Teoclímeno não é ameaçador pela sua condição de bárbaro, mas
pela sua atração por Helena.

149
Voltemos à disposição do espaço. O eixo que visualmente nos
conduz acaba por acolher essa dualidade que já aqui se associou
ao remoto Egipto onde tudo se passa: proteção e ameaça, numa
sequência que parece sempre periclitante. O olhar do espectador
divide-se entre o palácio de Teoclímeno, representado pela fachada
colorida da skene, ao fundo, e pelo túmulo de Proteu, que mais
provavelmente se encontrará na zona central da orchestra4. Parece-
me claro que se torna necessário algum afastamento entre palácio
e túmulo, de modo a que, para os espectadores, se torne mais clara
a polaridade entre os dois lugares – e também para dar consistên-
cia, em termos de movimentação em cena, a alguns momentos em
que esse jogo de aproximação e esquiva se torna particularmente
relevante, como acontece com a ocasião em que pela primeira vez
se encontram Helena e Menelau (541-556). É necessário que o olhar
do espectador dissocie os dois lugares (isso leva a que não possam
estar demasiado próximos), de modo a que se torne mais visível
como o palácio, anteriormente protetor, se tornou agora hostil e
ameaçador para Helena, enquanto a proteção é representada agora
por um lugar claramente mais precário, um túmulo e um leito feito
de folhas. Temos a noção de que chegamos junto de Helena num
momento em que a pressão se torna cada vez mais insustentável 5.
Os espectadores olham para esta mulher e, no cumprimento do
contrato de confiança a que o teatro os habituou, acreditam que é
Helena, a filha de Tíndaro, a que reinou em Esparta. No entanto, a

4 É essa a opinião de Allan 2008: 30-1 e Marshall 2014: 199-204. Burian 2007:
37 partilha a mesma opinião, ainda que com um grau menor de segurança. O único
passo que pode mais legitimamente suscitar dúvidas é aquele em que Teoclímeno
afirma que mandou erigir o túmulo do pai junto da entrada do palácio (1165), mas
esta é certamente uma afirmação que não tem de ser entendida à letra.
5 Também neste ponto se pode ler um dos paralelos homéricos com que Eurípides
longa e conscientemente se delicia. Também Penélope, no momento em que Ulisses
regressa, se encontra naquele ponto extremo em que se vê obrigada a quase ceder às
investidas dos Pretendentes. Como sabemos, este aproximar do abismo antes de uma
salvação in extremis tornou-se, ao longo dos tempos, recurso habitual de qualquer
autor ou argumentista de histórias de aventuras. Sobre as ligações, múltiplas e con-
sistentes, entre a Helena e a Odisseia, que não pretendo aprofundar aqui, vejam-se,
entre outros, Meltzer 1994 e Holmberg 1995.

150
tensão causada por esta nova versão não deixa, inevitavelmente, de
transmitir-se a quem assiste. Helena está ali. Não vemos outra, mas
sabemos que existe um eidolon empnoun, uma imagem que respira
e, por isso, com vida, que, noutro lugar que não este Egipto, conti-
nuou e continua a fazer tudo aquilo que a tradição nos havia narrado
como ações de Helena. O que acontece, portanto, aos espectadores
desta obra de Eurípides é que olham para Helena enquanto ela, à
distância, assiste ao decurso da sua vida, que parece desenvolver-
-se imparável e independente da sua vontade. Essa dissociação
entre o eu que fala e o meu nome, essa fama perversa que continua
associada à rainha de Esparta, tem sido largamente sublinhada e
é cabal testemunho da precária identidade desta figura. Mas esse
é o desafio que os espectadores também enfrentam, à medida que
vão sendo convidados a ver esta nova fase da narrativa da expe-
dição troiana e se habituam, não sem esforço, a esta nova Helena,
a única que a peça lhes mostra, condenada a um vazio existencial
em que contempla, com natural sofrimento, a versão famosa de si
própria.
O grau de tensão torna-se ainda mais evidente mais adiante, quando
aqueles que legitimamente poderiam reconhecê-la (Teucro, Menelau)
se recusam a fazê-lo. Ainda que, tal como nós, estejam a vê-la, porque
acreditam nos seus olhos. Eles veem agora Helena (enfim, parece mes-
mo Helena), mas também viram Helena quando conquistaram Troia.
E sabem quanto lhes custou e ainda custa aquela vitória. Para Teucro,
a Helena que viu em Troia e que lhe causou sofrimentos sem fim,
sofrimentos que ainda duram, é bem mais credível que esta mulher,
inesperadamente encontrada num lugar remoto. Para Menelau, a
Helena que o acompanhou no barco e que com ele naufragou, aquela
que agora aguarda numa gruta, a que o fez reduzir a cinzas uma
cidade é muito mais credível do que esta que agora lhe aparece,
pronta a cair-lhe nos braços 6.

6 Boedeker 2017: 246 sublinha como a esperança de Helena de que Menelau


acredite agora no que os seus olhos veem tem tudo para se mostrar vã: “he who has

151
Para os espectadores, o desafio é diferente. No mundo desta peça
não conhecem outra Helena que não esta, a que virtuosamente, no
Egipto, espera. A outra Helena, o eidolon, é uma abstração que já
parece gasosa antes de efetivamente o ser. A linha tensional que
se cria é, portanto, outra e desenha-se duplamente. Por um lado,
o público acompanha e tenta entender a incredulidade de Teucro
e Menelau – que recusam aceitar o que os olhos lhes mostram –
com a vantagem de ser conhecedor da falsidade do eidolon, mas,
ao mesmo tempo, tentando incorporar e dar sentido a este mundo
completamente novo onde agora encontra Helena. Por outro lado,
vai descobrindo, em alguns casos ao mesmo tempo que a rainha de
Esparta, os estragos que a fama de Helena continua a fazer. Helena
está no Egipto, isso é certo. Mas, ao mesmo tempo, Teucro sofre as
consequências da morte de Ájax, ruínas ocupam o lugar de Troia,
Leda pôs termo à vida. Eurípides reconstrói a tradição e mostra-nos
uma nova Helena (é um facto, estamos a vê-la), mas, ao mesmo
tempo, mantém tudo aquilo que construiu a fama da outra Helena.
Estas duas verdades, paralelas e inconciliáveis, fazem o seu cami-
nho impossível e avançam em simultâneo, até ao momento em que
um Menelau admiravelmente confuso quase parece sucumbir a um
excesso de Helenas claramente para lá do suportável.
O espectador lida com ambas, aquela que faz parte do seu patri-
mónio, esta que, agora, mais próxima, mais visível, desafia a anterior.
O público, mais confiante nos seus olhos, tem diante de si uma
Helena com corpo, voz, movimentos, sentimentos. E no entanto,
apesar dos olhos, que não enganam, uma sensação inquietante vai
invadindo quem vê: de uma certa maneira, esta Helena do segmento
inicial da peça não existe.

been misled for years by an image of Helen (as she [Helen] well knows) is told to
believe his own eyes.”

152
Menelau

É facto consensual que a Helena de Eurípides tem dois inícios,


elaborados com simetria, que podem ser designados, como faz, por
exemplo, Marshall7, ‘prólogo a Helena’ (1-385, incluindo o párodo) e
‘prólogo a Menelau’ (386-527, incluindo o epipárodo). Esta divisão,
que habilmente nos coloca, em separado, diante dos membros do
casal cuja reunião se prepara para mais adiante, convoca-nos a lan-
çar sobre Menelau e a sua entrada na peça um olhar que tem algo
de paralelo com aquele que anteriormente se lançou sobre Helena.
Menelau entra, também ele, numa cena vazia, proferindo igual-
mente um monólogo. Este, necessariamente com menos informação
contextual do que o trecho que abriu a peça, pode dedicar-se mais
longamente às motivações e à caracterização da personagem, que
longamente enuncia as suas desventuras. O vencedor de Troia, che-
fe de um incomparável exército, anda há anos errante, empurrado
por ventos contrários para longe da Grécia, até que, cereja no topo
do bolo, um naufrágio lhe destruiu o navio e os bens, poupando-o
a ele, a Helena e a um punhado de companheiros, refugiados em
lugar seguro 8.
O quadro de naufrágio aqui desenhado, este homem que se salvou
agarrado à quilha do navio (quanto aos companheiros, presume-se
que terão sido compelidos a nadar), adquire uma coloração homérica
que se vai sucessivamente degradando, quer pela forma como o rei
de Esparta é rispidamente recebido pela Velha que guarda a porta

7 Marshall 2014: 44.


8 Note-se como, neste monólogo, a solidão de Menelau, que parecia inicialmente
absoluta, se vai inesperadamente alargando, numa sugestiva construção em camadas.
Primeiro, o rei de Esparta refere-se a si mesmo como náufrago solitário, depois de
desaparecidos os companheiros (408), candidato perfeito a novo Ulisses. Pouco depois,
conta-nos que se salvou do naufrágio devido a um inesperado golpe de sorte, e com
ele Helena, que trouxe consigo de Troia (412-3). Um nadinha adiante sabemos que
Helena se encontra refugiada numa gruta, guardada por alguns companheiros de
Menelau que também sobreviveram ao naufrágio (424-7). Este progressivo alargamento
de presenças – os companheiros, como sabemos, serão ajuda imprescindível mais
adiante – não deixa de soar como uma inesperada subversão do ambiente homérico
que parecia começar a desenhar-se.

153
do palácio, quer, mais adiante, pelo modo como a sua aparência as-
susta Helena e como ele próprio, pouco depois, foge a reconhecer a
mulher. Não há aqui uma harmoniosa Nausícaa que acolha este náu-
frago – o que ele encontra é apenas uma multiplicação de Helenas,
e de problemas. A comparação com a Odisseia, que o espectador é,
de forma evidente, convidado a fazer, funciona aqui, sem dúvida,
como um modo de diminuir Menelau.
Para o propósito deste texto, aquilo que é mais relevante, no
modo como a figura de Menelau confronta o olhar do espectador, é
a forma como se apresenta vestido. A condição de náufrago privou-
-o de todos os bens e riquezas (e isso inclui as vestes adequadas
ao seu estatuto social) e leva a que se apresente diante dos nossos
olhos, como o próprio diz, vestido com despojos do navio (421-2).
Eventualmente estaria vestido com farrapos provenientes do que
restara das velas do navio, como se aventa frequentemente 9. Como
se compreende, não é a matéria do traje de Menelau o mais impor-
tante, mas sim a indiscutível importância que este adquire ao longo
da peça e o conjunto vasto de referências de que é objeto.
Para além de, como já vimos, o próprio Menelau chamar a aten-
ção para a sua aparência degradada, também Helena (544-5; 554) e
Teoclímeno (1204) reagem impressionados na primeira vez que veem
o rei de Esparta, o que mostra como o dramaturgo quer sublinhar o
poderoso impacto das roupas que cobrem Menelau. Além disso, no
momento em que o plano de fuga gizado por Helena exige que a
pretensa morte de Menelau ocorra convincentemente num naufrágio,
os farrapos, que até aí podiam ser vistos como fonte de vergonha,
transformam-se no mais adequado adereço para a cena que é ne-
cessário representar, como o próprio Menelau tem o cuidado de
sublinhar (1079-80).

9 Cf. Burian 2007: 213 e Allan 2008: 197. Ambos os comentadores referem um
passo de Aristófanes (Th. 934-5), no qual, após a paródia a Helena, Critila designa
como aner…histiorraphos o falso Menelau que havia tentado libertar o Parente. Não
é claro que uma referência como esta possa ser tratada como informação objetiva,
longe disso.

154
Esta insistência em regressar, em momentos distintos da ação, à
aparência do rei de Esparta não deixa de ser um tanto intrigante,
pelo menos se pensada à luz de uma representação e não apenas
de um texto. De facto, por que razão insistir tanto na aparência de
Menelau quando ela está à vista desde o momento da sua entrada
em cena e, portanto, exerce continuamente o seu efeito sobre os
olhos da audiência? 10
Uma primeira hipótese pode levar-nos a supor que a insistência
decorre de um menor poder do efeito visual, que tem de ser, assim,
reforçado pelas palavras. A aceitarmos esta possibilidade, teríamos
de pensar que os famosos farrapos euripidianos seriam mais um
exagero aristofânico do que algo claramente visível e distinguível
na caracterização, fosse porque a dignidade inerente à tragédia im-
pediria uma excessiva degradação na aparência das personagens,
fosse porque o próprio espetáculo e a dimensão do teatro onde ele
decorria não permitia que a caracterização da personagem fosse tão
visível e evidente que dispensasse a menção por palavras – ou seja,
o theatron seria, afinal, um lugar onde não se veria grande coisa. O
já respeitável axioma de Oliver Taplin, segundo o qual, na tragédia
grega, tudo o que tem significado ao nível da ação está presente no
texto 11, merece consideração, até porque nos recorda o profundo
peso da palavra na experiência teatral grega. Mas pode, ao mesmo
tempo, ser produtivamente discutido e até desafiado12. No caso que
agora se discute, parece-me suficientemente seguro que a aparência
de Menelau deveria tornar claramente visível a diferença entre o seu
aspeto e aquele que se esperaria que tivesse o soberano de Esparta
e vencedor de Troia. Aliás, só assim se consegue retirar sentido,
de forma completa, da sua mudança de aparência na parte final

10 Zuckerberg (2016: 215) coloca nestes termos a sua perplexidade: “The characters
in the play continually call attention to Menelaus’ wretched appearance. As a reader of
the text these reminders are helpful; as an audience member who can see Menelaus’
costume, the constant references to it might have seem redundant.”
11 Taplin 1977: 28.
12 Veja-se, por exemplo, Marshall 2014: 191-6.

155
da peça, a que voltarei adiante. Assente esta convicção, teremos de
abordar a partir de uma segunda hipótese o problema colocado há
pouco: Eurípides faz questão de sublinhar várias vezes a aparência
miserável de Menelau porque quer tornar visível, sem qualquer
ambiguidade, a sua relevância enquanto dispositivo teatral (ou seja,
enquanto elemento visual criador ou cocriador de sentido) e porque,
de algum modo, como sugere Marshall 13, o dramaturgo se apropria
aqui, para os seus próprios fins, de uma forma de caracterização que,
no passado, havia sido longamente parodiada na comédia 14. O que
acontece na Helena é que a questão da aparência de Menelau se joga
em mais do que um tabuleiro, dos farrapos que vemos no início aos
que vão ajudar a construir o dolo – são os mesmos e, no entanto, a
utilidade que lhes é dada como que os transfigura. A riqueza deste
elemento de caracterização insere-o numa moldura mais ampla, em
que se discute, num permanente quadro de incerteza, aquilo que os
olhos veem e aquilo que os olhos parecem ver.
Assentemos, portanto, no princípio de que os espectadores veem
os farrapos de Menelau e sentem com clareza que aquela imagem
contribui – entre outros aspetos, não é certamente fator único – para
a corrosão da personagem que se prepara, nesta metade inicial da
peça, para um percurso emocional sinuoso, em forma de montanha
russa, que o leva de náufrago desamparado e escorraçado a vencedor
de uma guerra que, subitamente, acaba de perder todo o sentido, isto
depois de ter assistido, com natural ansiedade, a uma inexplicável
e constrangedora multiplicação de Helenas.

13 Marshall 2104: 33.


14 Propõe-se, assim, que Eurípides entabula um diálogo com Aristófanes, à distância
e com o distanciamento próprio da tragédia. Marshall 2014: 33, n.28 sugere que esse
diálogo se torna evidente também por via da reação rápida, quase epidérmica, que
leva à paródia de Helena em As mulheres que celebram as Tesmofórias, logo no ano
seguinte. Zuckerberg 2016 defende que os farrapos de Menelau entram em diálogo
com Acarnenses, onde Diceópolis, ao revestir os farrapos cedidos por ‘Eurípides’,
explica que eles servirão para enganar os homens vindos de Acarnas, mas que os
espectadores, esses, conhecerão a identidade de quem se esconde por trás do disfarce
(440-445). O paralelo com Helena parece evidente.

156
Há, ainda assim, um pequeno pormenor, naquilo que os olhos dos
espectadores veem, que contribui para tornar a imagem de Menelau
um bocadinho mais complexa. A partir do texto só se percebe mais
tarde, mas Menelau entra em cena com uma espada. Significativamente,
ela só começa a ser referida, e profusamente, quando, após o reco-
nhecimento, o percurso do rei de Esparta começa a ganhar outra
cor. Se nos guiarmos apenas pelo texto, damos por ela quando, no
momento em que Helena e Menelau celebram o pacto suicida, a
rainha afirma que a espada de Menelau lhe dará a morte (837); mais
adiante, o próprio Menelau, na rhesis dirigida a Teónoe, relembra o
pacto e exibe a espada que, de acordo com ele, trará a morte a ambos
(983); um pouco depois, é Menelau quem, num assomo de coragem,
propõe ocultar-se no palácio e matar o rei com a sua espada (1043);
por fim, já depois de estabelecido o plano de Helena, a rainha sugere
que Menelau aguarde os acontecimentos sob a proteção do túmulo
de Proteu e também da sua espada (1086, única ocasião em que se
usa phasganon e não xiphos, como nas referências anteriores). Em
suma, é certo que o texto chama a nossa atenção, de forma mais
do que suficiente, para a espada que Menelau traz consigo. No en-
tanto, antes do reconhecimento, nunca as palavras referiram aquele
objeto. Mas desde a entrada de Menelau, o desamparado náufrago
em farrapos, que a espada estaria certamente bem visível aos olhos
dos espectadores: durante o momento em que é escorraçado pela
porteira, durante toda a confusão que ele vive em seguida, diante de
uma Helena supranumerária. Ao longo de todo este tempo, a espada
é um adereço dissonante, perante o qual, na melhor das hipóteses,
os espectadores não podem deixar de sentir uma certa perplexidade.
O desaparecimento do eidolon e o reconhecimento, imediatamente
a seguir, constituem o ponto de viragem e só após este momento a
espada é referida. Agora ela existe e cumpre uma função. Durante
toda a parte inicial, este adereço de Menelau esteve igualmente à
vista e, com isso, exibiu eloquentemente a sua inutilidade. Veja-se
como esta é uma forma hábil de esboroar por completo a identidade
de uma personagem.

157
Helena e Menelau

De uma forma simples – talvez, concedo, demasiado simples – pode


dizer-se que o enredo da Helena de Eurípides dramatiza a reconstrução
da identidade de duas figuras que nos são apresentadas, no início,
perigosamente à beira da não existência, como vimos até agora. O
momento em que as coisas mudam coincide com o desaparecimento
do duplo de Helena, criando as condições para o reconhecimento
e para o início da preparação de um arriscado plano de fuga. Esse
plano comporta a persuasão, em relação a Teónoe, e o dolo, quanto
a Teoclímeno. Não curarei aqui da persuasão da sacerdotisa, embora
seja um momento de particular riqueza discursiva e de caracterização,
e debruçar-me-ei apenas brevemente sobre os efeitos de natureza
visual que acompanham a afirmação da identidade das figuras, Helena
e Menelau, que participam na fuga.
O dolo de Teoclímeno, como sabemos, envolve a criação de um
pequeno drama, de personagens que nele se movimentem (a viúva
chorosa, o mensageiro náufrago), de adereços que o tornem verosímil
e convincente. No contexto desse drama e da criação de condições
para aquilo que ele deve ajudar a obter, um conjunto de meios de
fuga que permitam o regresso do casal à Grécia, há todo um pro-
cesso de recomposição das duas personagens, que tem significativa
incidência também no plano visual e que acompanha a progressiva
afirmação das suas identidades, cada vez mais firmes e seguras à
medida que o plano se desenvolve.
Um dos elementos mais interessantes deste processo de reconstru-
ção identitária é o modo como, em termos de representação visual,
ele funciona numa espécie de quiasmo, ou seja, num cruzamento dos
sinais que configuram a aparência de cada uma das personagens:
enquanto a imagem de Helena opera um movimento de degradação,
intencional e necessária ao plano, é certo, a de Menelau vê finalmente
restaurado, de forma brilhante, o esplendor real que é próprio do
seu estatuto. Vejamos com maior pormenor.

158
Helena, como vimos, vê a sua identidade manter-se periclitante,
a roçar a não existência, em toda a parte inicial da peça, separada
do seu nome e da fama que ele arrasta consigo. Em todo esse seg-
mento, no entanto, enquanto a identidade da rainha espartana luta
por se afirmar, a imagem que os espectadores dela têm preserva,
intacta, a beleza e a figura da mulher cuja mão foi disputada pelos
melhores de entre os Gregos, tal como agora desperta o desejo do
faraó. Aqueles que chegam não a reconhecem como Helena, a que
fez cair Troia, mas veem nela alguém que claramente parece Helena,
que é tão igual que se torna uma incomodativa presença. A Helena
só não é permitido ser Helena – e com isso se afunda numa dolorosa
impossibilidade de existir, obrigada a manter-se como angustiada
espectadora do seu nome.
Pouco a pouco, os acontecimentos vão resolvendo este problema.
Mas o plano de fuga, para ter sucesso, exige mais. Para que a revi-
ravolta seja completa, para que a rainha de Esparta possa readquirir
por inteiro o seu estatuto, as circunstâncias exigem que a sua imagem,
aquilo que nós vemos dela, sofra uma considerável degradação, é
certo que fruto de um plano engenhosamente elaborado, mas nem
por isso menos eloquente em termos visuais. Esta outra Helena, cada
vez mais próxima de poder livremente ser ela mesma, carrega novas
vestes, com o negro sombrio do luto, o seu rosto é desenhado por
uma nova máscara, na qual estão cortados os belos cabelos, em cuja
face se desenham as lágrimas e as marcas cortantes das unhas 15 .
Esta impressionante imagem de sofrimento – com a qual somos con-
vidados a lidar com alguma distância, sem envolvimento emocional,
nós que, como espectadores, somos cúmplices da artimanha –, esta
súbita degradação de um símbolo de beleza representa o passaporte
para que Helena possa recuperar a sua identidade e apresenta-se
como um eloquente contraste entre aquilo que vemos e aquilo que

15 A degradação da imagem de Helena não parece afetar grandemente Teoclímeno,


que parece agora particularmente esperançoso acerca da realização dos seus anseios e,
também por isso, muito pronto a quaisquer cedências. Sobre o desenho contraditório
do faraó, que este texto não explora, veja-se a análise de Boedeker 2017: 248-251.

159
sabemos. É a última imagem que temos dela na peça – e em nenhum
outro momento da ação ela terá sido tão verdadeiramente Helena.
Como já sugeri há pouco, o processo semelhante de reconstrução
de identidade de Menelau segue uma via paralela, mas de sentido
oposto. Para dizer a verdade, a recomposição da imagem de Menelau
opera-se em dois níveis e o primeiro deles, mais subtil, não muda
a imagem, mas apenas a função desta. No desenvolvimento do pla-
no, os farrapos que vestem o rei de Esparta, e que até aqui apenas
simbolizavam a vergonha por ter descido tão baixo, tornam-se, de
um momento para o outro, uma das chaves que vão abrir a possi-
bilidade de regresso. Sem mudar nada, ainda disforme e andrajoso,
Menelau é agora o ‘Náufrago’, personagem de relevante importância
nesta trama de vida ou de morte, e já não o rei errante que, caído
em desgraça, não sabe sequer o valor do seu nome. Há ocasiões em
que morrer – só por palavras, não exageremos – pode ser a melhor
forma de voltar à vida.
Num momento em que o teatro era uma arte nova, a dar os pri-
meiros passos, ainda que já surpreendentemente seguros e adultos,
Eurípides dá-nos, enquanto espectadores, uma eloquente lição acerca
da abissal diferença entre um conjunto de farrapos e um adereço
teatral. Quando os andrajos que envolvem o corpo do rei de Esparta
se mudam em adereço, o primeiro passo da transformação de Menelau
está dado – e os nossos olhos testemunham que, mesmo nada mu-
dando de forma visível, muita coisa muda.
A transformação de Menelau, no entanto, não se fica por aqui.
Um segundo movimento, de matriz mais explicitamente homérica,
leva a que, dentro do palácio, por intervenção de Helena, Menelau
sofra ampla transformação, em muito semelhante a vários dos mo-
mentos em que Ulisses se vê rejuvenescido ao longo da Odisseia. O
processo é narrado por Helena às mulheres do Coro (1374-84): o rei
de Esparta está agora completamente armado, tem vestes condignas
com o seu estatuto, a própria Helena o banhou. Um novo Menelau
surge, renascido, depois de recuperar, pela aparência, todo o seu
estatuto de guerreiro e de rei. Quando o vemos pela última vez, no

160
cortejo que se dirige ao navio que vai proporcionar a fuga, é um
homem com a imagem de um grande chefe grego que está diante
dos nossos olhos. No caso desta figura, a recuperação da imagem
faz-se associando-a à representação estereotipada que os espectado-
res mais facilmente ligariam a uma personagem da sua natureza e
condição.
E quanto a Helena? Nesta peça, a recuperação da identidade e da
liberdade parece levar a rainha espartana a abdicar, por iniciativa
própria e de forma momentânea, é certo, daquilo que mais tradicio-
nalmente marca a sua imagem, a beleza que a todos deleita e que
todos cobiçam. Dito de outro modo, para ser Helena a filha de Tíndaro
tem de deixar de ser Helena. Há algo de muito amargo em tudo isto.

Epílogo

Façamos agora, por um instante breve, um daqueles exercícios


de realidade paralela, com pouco de científico, e tentemos imaginar
a continuação desta história. Helena e Menelau regressam a Esparta
e retomam a sua vida, narrando o que realmente aconteceu: que
Helena passou todos aqueles anos no Egipto, de onde agora Menelau
a raptou; que não houve outro rapto senão este. Os que os ouvem
conhecem há anos a história de Troia, sabem que a cidade foi redu-
zida a pó, conhecem muitos dos que regressaram, conhecem mais
ainda que ficaram por lá, no campo de batalha, convivem todos os
dias com as viúvas e os filhos dos que lá ficaram. Ouviram muitas
histórias de sofrimento. Contam-lhes do eidolon, sublinham a virtude
intocada da mulher de Menelau. Quantos vão acreditar nesta história?
Eurípides, suspeito, facilmente estenderia a toda a sua peça as
palavras descrentes que Helena profere, acerca do seu nascimento,
no verso 21: εἰ σαφὴς οὗτος λόγος …

161
Bibliografia

Allan, W. (2008), Euripides. Helen. Cambridge: Cambridge University Press.


Boedeker, D. (2017), “Significant Inconsistencies in Euripides’ Helen”, in Laura McClure
ed., A Companion to Euripides. Oxford: John Wiley and Sons, 243-257.
Burian, P. (2007), Euripides. Helen. Oxford: Aris & Phillips.
Holmberg, I. E. (1995), “Euripides’ Helen: Most Noble and Most Chaste”, AJPh 116.1:
19-42.
Marshall, C. W. (2014), The Structure and Performance of Euripides’ Helen. Oxford:
Oxford University Press.
Meltzer, G. S. (1994), “‘Where is the glory of Troy?’ Kleos in Euripides’ Helen”, CA 13.2:
234-255.
Oliveira, A. C. J. N. (2015), Eurípides. Helena. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra.
Stavrinou, A. S. (2015), “The Opsis of Helen: Performative Intertextuality in Euripides”,
GRBS 55: 104-132.
Taplin, O. (1977), The Stagecraft of Aeschylus: the Dramatic Use of Exits and Entrances
in Greek Tragedy. Oxford: Oxford University Press.
Zuckerberg, D. (2016), “The clothes make the man: Aristophanes and the ragged hero
in Euripides’ Helen”, CPh 111: 201-223.

162
T r o i a , pa r a d i g m a d e c i d a d e a n i q u i l a d a
n a t r ag é d i a g r e g a *1

T r oy a s a P a r a d i g m o f t h e A n i h i l i t e d C i t y
i n G r e e k T r ag e dy

Félix Jácome Neto


Univ. São Paulo
ORCID: 0000-0003-2036-6491
felixjacome@hotmail.com

Resumo: Este texto apresenta um levantamento dos principais trata-


mentos do aniquilamento de Troia na tragédia grega. Este trabalho
discute peças cujas ações dramáticas estão situadas durante ou ime-
diatamente depois da queda de Troia, de forma a entender como
personagens e Coros representaram a ruína de Troia. Este estudo
argumenta que as várias facetas da queda de Troia em Agamém-
non de Ésquilo, As Troianas e Hécuba de Eurípides, convergem na
exploração das ambiguidades inerentes a uma vitória que destrói
completamente o vencido, incluindo seus espaços sagrados. Uma vez
que as tragédias evitavam mencionar a destruição de cidades gregas,
o aniquilamento de Troia, cidade não-grega do passado remoto, ser-
viu, assim, como um meio para a audiência grega refletir sobre a sua

*1 Este texto é fruto da investigação de pós-doutoramento financiada pela Fundação


de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo 2018/17414-6.
Gostaria de agradecer ao Dr. Christian Werner (Universidade de São Paulo) a leitura
deste material, assim como ao avaliador anónimo deste volume. As deficiências argu-
mentativas restantes são, naturalmente, de minha responsabilidade.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_7
própria experiência histórica de destruição de cidades em tempos
de guerra.

Palavras-chave: Tragédia grega, Ésquilo, Eurípides, Troia

Abstract: This text presents a survey of the principal treatments of the


annihilation of Troy in Greek tragedy. This study discusses tragedies
whose dramatic actions are situated during or immediately after the
fall of Troy to understand how characters and choruses represented
the ruin of Troy. This work argues that the various aspects of the fall
of Troy in Aeschylus’ Agamemnon, Euripides’ Hecuba, and Trojan
Women converge in the exploration of the ambiguities inherent in a
victory that destroys the defeated completely, including their tombs
and temples. Since Greek tragedy avoided mentioning the destruction
of Greek cities, the ruin of Troy, being a non-Greek city situated in
the remote past, served thus as a means for the Greek audience to
reflect on their own historical experience of having cities destroyed
in times of war.

Keywords: Greek tragedy, Aeschylus, Euripides, Troy

Troia, “paradigma da cidade vítima da guerra” 1 desde a épica,


tornou-se um espaço dramático privilegiado na tragédia grega para
se pensar o aniquilamento de uma cidade e as suas consequências
para vencedores e perdedores. Vista como grande feito dos heróis
gregos do passado contra bárbaros, como castigo desmesurado que
carregou marcas de impiedade ou, ainda, como uma ordem advinda
da vontade de Zeus, a conquista de Troia teve muitas faces e signi-
ficados na tragédia grega.
Com a provável exceção de Ecália, destruída por Héracles em As
Traquínias de Sófocles, 2 as cidades gregas representadas ou men-

1 Silva 2005a: 94.


2 Ecália foi uma cidade grega associada a Héracles desde a poesia épica, tendo
recebido localizações distintas consoante o autor antigo. Em As Traquínias, Ecália é
localizada na Beócia.

164
cionadas na tragédia sempre sobrevivem e nunca são destruídas.
Tebas, por exemplo, está constantemente sob ameaça nas tragé-
dias conservadas (Sete Contra Tebas, de Ésquilo; Antígona e Rei
Édipo de Sófocles; As Fenícias, Héracles e Bacantes, de Eurípides)
e, ainda assim, nunca é arruinada. Atenas em Heraclidas e na
fragmentária Erecteu, ambas de Eurípides, salva-se do perigo de aniqui-
lamento.
Somente Troia, de todas as principais cidades trágicas, é com-
pletamente arruinada. Levando em consideração que Troia não era
originalmente uma cidade grega, David Carter3 sustenta que exis-
tia um padrão na tragédia segundo o qual a polis grega sempre se
salvava, ainda que estivesse em crise ou sob ameaça de destruição.
A repreensão sofrida pelo poeta trágico Frínico por ter representado,
em 494 a.C.,4 a queda de Mileto, cidade grega, pode reforçar a nossa
impressão de que tal padrão existiu 5, ainda que não possamos estar
seguros uma vez que muitas tragédias se perderam. 6
As histórias acerca de Troia forneceram matéria-prima para a
produção trágica.7 O tema do aniquilamento de Troia, e suas conse-
quências imediatas, por sua vez, está substancialmente presente, dentre
as tragédias conservadas, em Agamémnon de Ésquilo, As Troianas e
Hécuba de Eurípides. As Troianas é situada temporalmente no breve
instante entre a queda de Troia e as derradeiras manifestações da
aniquilação física da cidade, mostrando o destino das nobres troianas

3 Carter 2006.
4 As datas neste texto são todas a. C.
5 “The only tragedy known to have centred around overthrow of a Greek polis
(Phrynichos’ Capture of Miletos) caused the tragedian to be fined” (Seaford 2012:
206, n. 1).
6 Ésquilo e Sófocles apresentaram, cada um, Epigonoi, que poderia ter dramati-
zado a destruição de Tebas, ainda que não possamos estar completamente seguros
devido à escassez de fragmentos pertencentes a estas tragédias. Em Sete Contra Tebas,
a audiência poderia ter imaginado a ruína de Tebas se interpretarmos os versos
840-844 e 902-903 enquanto menções à futura destruição desta cidade grega pelos
epigonoi.
7 Anderson 1997: 105 estima que um quarto de toda a produção teatral de Sófocles
tenha sido dedicada ao mito de Troia, ao passo que Ésquilo e Eurípides teriam reser-
vado um quinto das suas obras a esta temática.

165
transformadas em cativas de guerra dos vencedores gregos. O recor-
te temporal em As Troianas é, portanto, um pouco anterior do que
vemos em Hécuba. Nesta última, a destruição da cidade de Príamo
está consumada, ainda que muito recentemente, dado que a cidade
ainda arde (ver o verso 477). Ainda em Hécuba, os gregos já saíram
de Troia e estão na costa da Trácia, ao passo que em As Troianas
ainda estão na cidade de Heitor. Agamémnon, por sua vez, inicia
com o Vigia identificando o sinal de fogo que anunciara a queda
de Troia. A chegada dos aqueus e de Agamémnon a Argos forma
o próximo acontecimento da peça. Presumivelmente, eles tardaram
alguns dias para chegar a solo grego, ainda que Clitemnestra dis-
curse como se a tomada da cidade tivesse acontecido no mesmo dia
dos demais eventos da peça (ver o verso 320). Estas três tragédias,
portanto, lidam com os eventos do saque de Troia e seu imediato
desenlace, o que nos fornece o critério para privilegiar estas peças
na nossa discussão sobre o aniquilamento de Troia na tragédia
grega. 8
No primeiro tópico deste texto, mostraremos que a recorrência
do tema, em Ésquilo, da vitória dos gregos sobre os troianos como
uma conquista de aniquilamento, leva-nos à conclusão de que esta-
mos diante de um motivo que objetivava inserir a Guerra de Troia

8 Certas tragédias mencionam a queda de Troia como um evento futuro, assim


Filoctetes de Sófocles, ou enquanto um acontecimento do passado recente, a exem-
plo de Andrómaca e Helena de Eurípides. A Suda, enciclopédia bizantina, atribui
ao filho de Sófocles, Iofon, uma tragédia chamada O saque de Troia (Iliou Persis),
cujo conteúdo não conhecemos. Em um passo da Poética com dificuldades textuais
(1456a, 10‑19), Aristóteles dá a entender que outros poetas dramáticos teriam apre-
sentado peças que abarcavam toda a “destruição de Troia” (πέρσιν Ἰλίου 1456a 16,
tradução por Valente 2011). A expressão “destruição de Troia” não é clara, pois o
poeta de Estagira poderia estar aqui a referir-se ao poema épico Iliou Persis. De todo
modo, dentre as tragédias que nos chegaram em fragmentos, vale destacar a obra de
Sófocles. Políxena recuperou a história do sacrifício da heroína homónima da peça
pela armada grega após a tomada de Troia, um tema também desenvolvido, como
veremos, por Eurípides em Hécuba. Ájax, o Locriano, contém um discurso da deusa
Atena, fragmento 10c (TrGF 4), condenando a violência de Ájax, filho de Oileu, contra
Cassandra, ocorrida logo após a queda de Troia. Em Laocoon, a partida de Eneias de
Troia deve ter amplificado o tema da iminente destruição completa da cidade, como
se percebe no discurso do mensageiro, fragmento 373 (TrGF 4), no qual é referido
que a multidão busca desesperadamente fugir de Troia.

166
na reflexão mais ampla proposta pela Oresteia: a possibilidade de
se estabelecer uma instituição jurídica humana que pudesse decidir
com legitimidade a correta justiça que deveria nortear a punição de
um determinado crime. Assim, a atitude excessiva dos gregos contra
Troia poderia ter sido vista por parte da audiência como um paralelo
para a tensão causada pelas punições desmedidas, incluindo o assas-
sinato de Clitemnestra, que caracterizam o historial da família dos
Atridas. Eurípides, como será discutido no segundo e terceiro tópicos,
explora o fim de Troia a partir da ótica das mulheres vencidas como
uma maneira de evidenciar as dificuldades morais inerentes a uma
conquista que arrasa o inimigo completamente. Como será sustentado,
as peças troianas de Eurípides não desenvolvem uma crítica à guerra
per se, antes mostram os horrores da dissolução completa do vínculo
entre indivíduo e cidade, que é resultado, não da simples conquista,
mas do aniquilamento de uma cidade. Por fim, argumentaremos que
este tema também possuía ressonância na realidade histórica, dada
a ameaça de aniquilamento de cidades gregas durante as Guerras
Pérsicas e a Guerra do Peloponeso.

1. Agamémnon de Ésquilo

“Coro: os deuses não perdem de vista os que causam muitas


mortes”
(A. A. 461-462). 9

A comparação do uso do epíteto ptoliporthos (“destruidor de


cidades”) na épica e no Agamémnon ilustra como a perceção sobre
a ruína de uma cidade mudou de Homero a Ésquilo. Na Ilíada, a
palavra é usada positivamente, por exemplo, para se referir a Aquiles
(8.372) e a Odisseu (2.278; 10.363). Em Agamémnon, a terceira

9 Tradução por Pulquério 2008. Texto grego por West 2008.

167
antístrofe do primeiro estásimo conclui o seu pensamento sobre o
receio diante daqueles que prosperam sem justiça com a afirmação
de que “eu não seja destruidor de cidades” (μήτ’ εἴην πτολιπόρθης
472). Diferentemente da Ilíada, ser um saqueador de cidades adquire
uma clara conotação negativa neste passo de Ésquilo, o que nos leva
à constatação de que de Homero a Ésquilo o tema da destruição de
uma cidade tornou-se mais ambíguo e problemático. 10
No início do segundo episódio de Agamémnon, o Arauto de Argos
anuncia a chegada do esposo de Clitemnestra. O tom do anúncio é,
aparentemente, triunfante, porém algum gosto amargo transborda
por entre os feitos de glória:

Arauto – Ele vem trazer a luz da noite, a vós e aos restantes


juntamente – Agamémnon, nosso senhor. (endereçando-se ao povo
de Argos) Acolhei-o bem, pois assim está certo, a ele que minou
completamente a cidade de Troia (Τροίαν κατασκάψαντα) com a
picareta de Zeus, administrador da justiça, trabalhando até ao fim
o seu solo, arrasando os altares e os templos dos deuses ({βωμοὶ
δ’ ἄϊστοι καὶ θεῶν ἱδρύματα}), exterminando as sementes na terra
(522-528). 11

O verbo kataskapto, formado pelo intensificador da ação kata mais


o verbo skapto, que significa “escavar”, adquire aqui, como observam
Denniston e Page 12, o sentido metafórico de “escavar completamen-
te”, ou seja, refazer todo o terreno destruindo o que existe a fim de
torná-lo cultivável. Este verbo é utilizado também por Odisseu em
Filotectes de Sófocles para se referir à destruição completa de Troia
por meio da força (998). Antígona, em Édipo em Colono, usa a mes-
ma palavra para se referir à ruína de Tebas que Polinices poderia

10 Ver Fartzoff 2009: 170-171, que serviu de base para a construção deste parágrafo.
11 West 2008 coloca o verso 527 entre colchetes por suspeitar de sua autenticidade.
12 Denniston, Page 1957: ad 525.

168
trazer (1421), num exemplo significativo pois usado em referência
a uma cidade grega.
O supracitado verso 527 de Agamémnon pode ser considerado
justamente uma dessas manifestações do aniquilamento de Troia.
Em que pese o facto de estas linhas indicarem que a ação de
Agamémnon foi fruto da “picareta de Zeus” (526), a destruição de
altares e templos dos vencidos pesará na mudança de fortuna que
marcará o penoso retorno de muitos gregos para casa após a Guerra
de Troia. 13 É digno de nota que existe um verso similar a este em
Os Persas de Ésquilo: “e os altares foram destruídos e as estátuas
dos deuses desenraizadas” (βωμοὶ δ’ ἄιστοι, δαιμόνων θ’ ἱδρύματα
/ πρόρριζα 811-812). Nesta última peça, o fantasma do Rei Dario
reflete sobre as motivações divinas da inesperada derrota do seu
povo contra os gregos sob o comando de Xerxes. Uma das razões,
pensa Dario, liga-se à destruição de templos e estátuas, vista como
atitude de soberba e que fere a vontade dos deuses, como pode ser
entendido pelo verso 808.
É certo, no entanto, que a semelhança entre o verso 527 de
Agamémnon e 811 de Persas tem sido usada como argumento contra
a autenticidade da linha 527, que teria sido incluída tardiamente por
influência justamente do verso dos Persas. 14 Denniston e Page 15
sustentam, todavia, que o conteúdo da linha 527 alinha-se perfei-
tamente com outros passos de Agamémnon que enfatizam o modo

13 O saque de Troia é justamente o momento em que certos deuses, como Atena,


que até então ajudavam os gregos, passam a persegui-los, pois entendem que a puni-
ção ao rapto de Helena foi excessiva. Assim, a punição divina aos ultrajes cometidos
por líderes gregos (Ájax, Neoptólemo, Odisseu) durante a tomada de Troia também
reverberou no coletivo. Essa linha de raciocínio, já evidente no discurso de Nestor
na Odisseia 3.132-134, é nítida no prólogo de As Troianas, no qual Poséidon e Atena
refletem sobre o engajamento dos deuses em relação ao destino dos gregos. A deusa
afirma que ofertará um “amargo regresso” (65) e “um regresso de desgraças” (75) aos
aqueus, e não apenas a Ájax, que “arrastou Cassandra à força” (70) do seu templo
em Troia.
14 Sommerstein 2008: 61, n. 112 pensa que a linha 527 de Agamémnon foi pro-
vavelmente adicionada, por um produtor ou ator, no final do século V.
15 Denniston, Page ad loc. Na mesma linha de defesa do verso 527 segue o tradutor
português Pulquério 2008: 45 n. 59, bem como Leahy 1974: 21, n. 61.

169
ímpio com o qual os gregos arrasaram a cidade de Troia. Uma destas
passagens é particularmente interessante, pois deixa clara a relação
entre o sofrido regresso dos gregos e seus atos de crime contra os
deuses. Trata-se das palavras de Clitemnestra, em 338-350, advertindo
os gregos a serem piedosos mesmo na qualidade de vencedores. Este
discurso está marcado pela repetição de palavras religiosas (euse-
bousi…theous 338; theon…hidrumata 339; theois 345), acentuando
o significado religioso dos acontecimentos pertinentes à queda de
Troia. 16
O espírito de Agamémnon relativamente à Guerra de Troia é ex-
presso, ainda, pelo Arauto, quando este informa as notícias acerca da
tempestade que vitimizou muitos gregos, mas que deixou incólume
a nau de Agamémnon. O Arauto começa a dizer que “não é próprio
manchar um dia auspicioso com o anúncio de más notícias” (636-637),
segue então por lamentar a sua sorte de ter de fornecer à cidade
notícias sobre “as abomináveis calamidades de um exército caído”
(639), que acarreta “ferida pública aberta no flanco da cidade” (640).
Se não soubéssemos que os gregos foram afinal vitoriosos em Troia,
suporíamos que o Arauto teria vindo relatar a derrota de um exército
em guerra no estrangeiro! Certamente, Ésquilo quis apresentar uma
imagem realista da guerra, o que inclui sofrimentos e perdas tam-
bém do lado dos vencedores. Ao fazer isso, convidou o seu público
a refletir sobre este “dia auspicioso” (euphemon emar 636), no qual
coincidem salvação, regresso de Troia, ruína e assassinato. 17
As apreciações, ora positivas, ora negativas, sobre a Guerra de
Troia em Agamémnon, foram classificadas de maneira especialmente
lúcida por Leahy.18 Seguindo este estudioso, podemos discernir três
significados básicos da saga de Troia na economia da primeira peça

16 Note que este discurso de Clitemnestra é tido pelo Coro como sensato: “Senhora,
falas com a sensatez de um homem sábio” (351).
17 “The victory transmitted by the fire is both Agamemnon’s over Troy and
Klutaimestra’s over Agamemnon (1378), who is therefore both winner and loser”
(Seaford 2012: 180).
18 Leahy 1974.

170
da Oresteia. O sentido positivo da tomada de Troia, que enfatiza a
missão chefiada pelos Atridas para recuperar Helena, conferindo
glória para si mesmos e para a armada ao vencer o inimigo com
ajuda dos deuses. É a versão da Guerra de Troia contada sobretudo
pelo próprio Agamémnon quando regressa a Argos (810-854). O se-
gundo significado pode ser tido como “realista”. Como comentamos
acima, esta abordagem reforça os efeitos corrosivos e nocivos desta
guerra para argivos e troianos. Neste âmbito, trata-se de uma guerra
levada a cabo para reaver uma mulher vista como indigna e que gera
insatisfações populares contra os Atridas. Esta versão da empresa
bélica está presente no relato de Clitemnestra (320-354) e nas partes
corais, como no primeiro estásimo que expõe o descontentamento
popular com a expedição 19 e no segundo estásimo, nomeadamente
entre os versos 783 e 804. 20
O terceiro sentido da Guerra de Troia no Agamémnon discutido
por Leahy diz respeito a uma tentativa de síntese dos dois outros
significados supracitados. Neste caso, a vontade de Zeus ganha
destaque enquanto razão para a punição de Páris e dos troianos.
O desígnio divino reequilibraria a ordem cósmica, conferindo certo
sentido ao sofrimento humano, bem como restabeleceria a fronteira
entre homens e deuses. Trata-se, aqui, do entendimento de que Troia
foi conquistada, como vimos, “com a picareta de Zeus, administrador
de justiça” (525-526).
Eurípides, por sua vez, explora o contraste entre a visão posi-
tiva e negativa da tomada de Troia, e as consequências realistas e
práticas da guerra para vencedores e vencidos, ainda que, muitas
vezes, a razão última para a queda de Troia resida na vontade dos
deuses, como argumenta François Jouan. 21 Vejamos como o tema
do aniquilamento de Troia aparece na obra de Eurípides.

19 O sofrimento dos argivos gera “uma dor ressentida [que] marcha secretamente
contra os demandantes Atridas” (450-451).
20 Este segundo significado da Guerra de Troia também focaliza a maneira como
Troia foi saqueada, ainda que este ponto não seja devidamente realçado por Leahy 1974.
21 Jouan 2007: 172-74.

171
2. Hécuba de Eurípides

“Coro: tu, ó Ílion, minha pátria, não serás contada entre as


cidades indestrutíveis, tal é a nuvem dos Helenos que te cobre”.
(E. Hec. 905-907). 22

A fumaça ainda emerge do incêndio das ruínas de Troia quando


a ação de Hécuba inicia. Nesta peça, nós vemos uma estreita relação
entre a destruição de Troia e as duas intrigas que movimentam a
ação trágica, a morte de Polidoro e o sacrifício de Políxena. Já no
prólogo, o espectro de Polidoro estabelece um vínculo direto entre
a morte de Heitor, a queda de Troia e a quebra da hospitalidade de
Polimestor. O rei trácio tirou proveito da ruína de Troia para matar
o seu hóspede Polidoro, filho de Hécuba.
O espectro de Polidoro afirma, ainda, que Polimestor cometeu o
assassinado com o intuito de se apoderar do tesouro que o jovem
troiano portava (26-27). O próprio rei da Trácia, no entanto, apresenta
outra versão: afirma ter matado Polidoro para evitar a continuação
da linhagem real troiana, pois este seria um possível agente de re-
construção de Troia (1135-1143). Assim, Polimestor teria assassinado
o jovem para evitar a regeneração da cidade de Príamo, que por
sua vez atrairia outra guerra contra os gregos, o que poderia atingir
também os trácios, dada a proximidade com Troia.
É relevante notar que essas linhas apresentam Polidoro como uma
esperança de renascimento de Troia, o que significa pensar que a
cidade poderia, de alguma maneira, sobreviver, enquanto os seus
cidadãos existissem. Dado que Eurípides, nesta tragédia, deliberada-
mente omite a regeneração de Troia após a sua primeira destruição
por obra de Héracles 23 , somos levados a pensar que a ênfase de

22 Tradução de Hécuba de Eurípides por Fialho e Coelho 2010. Texto grego por
Diggle 1984.
23 As Troianas (809-820), contudo, menciona a destruição de Troia por Héracles.
Os antigos, como observa Jouan 2007: 158, questionaram a estranha lógica de Troia
ter sido arrasada duas vezes em um curto intervalo de tempo.

172
Polimestor na restauração de Troia aparece como uma hipótese
implausível, uma espécie de argumento malicioso para esconder os
motivos mesquinhos que o levaram a assassinar o filho de Hécuba.
O sacrifício de Políxena, que constitui a segunda linha temática
de Hécuba, também está ligado ao motivo da destruição de Troia.
O morto Aquiles exige o sacrifício de Políxena como “vítima propí-
cia e troféu de honra para o seu túmulo” (τύμβωι φίλον πρόσφαγμα
καὶ γέρας λαβεῖν 41). Após uma assembleia disputada com opiniões
favoráveis e contrárias, a armada aqueia estacionada na Trácia con-
corda com o pedido de Aquiles, sendo que esta decisão coletiva
é enfatizada em diversos momentos no início da peça: pelo Coro
(107-109), por Hécuba (188-190; 195-196) e por Odisseu (218-221).
O sacrifício de Políxena constitui uma espécie de “obrigação” (cha-
ris) da armada grega em prestar tributo da sua “amizade” (philia)
a Aquiles, uma vez que o Pelida tinha sido um guerreiro decisivo
na vitória sobre Heitor e, consequentemente, sobre Troia. 24 Esse é
precisamente o teor do argumento de Odisseu quando ele infor-
ma a Hécuba da decisão dos aqueus (299-331). Segundo o pai de
Telémaco, existiria uma espécie de acordo entre os soldados gregos
que, uma vez conquistada Troia, o melhor dos guerreiros receberia
Políxena como prémio e vítima (304-305). Portanto, é fundamental,
para Odisseu e para a maioria dos gregos que votaram a favor do
sacrifício na assembleia, honrar Aquiles e respeitar os laços de gra-
tidão que vinculam os combatentes. 25
Desde há muito que a crítica aponta dificuldades em Eurípides
conferir unidade a uma peça que articula o mito de Polidoro, o sa-
crifício de Políxena e a brusca passagem de Hécuba de vítima dos
sofrimentos pela morte dos filhos a agente de uma vingança quase

24 Sobre o papel central da charis como uma obrigação entre as figuras aristo-
cráticas em Hécuba, ver Stanton 1995.
25 Esta é razão para a necessidade do sacrifício de Políxena em Hécuba. Certos
comentadores, por exemplo Franciscato 2014: 26, atribuem, equivocadamente, a exi-
gência do sacrifício da jovem também à interrupção, por parte de Aquiles, dos ventos
favoráveis à navegação. Como demonstra o verso 900, contudo, é uma divindade que
recusa facultar os ventos apropriados à armada grega estacionada na costa da Trácia.

173
selvática.26 O sofrimento de Hécuba, elemento essencial da coerência
temática do drama, é motivado pela morte de três entes queridos:
os dois filhos, Políxena e Polidoro, e a cidade de Troia, cujo ani-
quilamento é frequentemente lamentado por Hécuba e pelas cativas
troianas que formam o Coro.27 Assim, o terceiro estásimo de Hécuba
ilustra a indissociabilidade entre indivíduo e cidade, um elemento
que esquecemos facilmente quando nos concentramos em figuras
trágicas extraordinárias, porém conflitivas para a cidade e a comuni-
dade, como Ájax e Medeia.28 É por esta razão que a ruína da cidade
é tão lamentada quanto a desgraça das protagonistas nas peças do
ciclo troiano que contam a sorte final de Troia. O Coro entrelaça,
no belo canto seguinte, a tomada de Troia com a abrupta passagem
de esposas a cativas levadas à força pelos vencedores:

1ª Estrofe
Tu, ó Ílion, minha pátria, não serás contada entre as cidades
indestrutíveis, tal é a nuvem dos Helenos que te cobre, depois de
te devastar pela lança, ai pela lança! Arrasada foi a coroa das tuas
muralhas. A cinza te suja de alto a baixo e te enegrece. Desgraçada,
jamais voltarei a pisar o teu solo! (905-913).

2ª Antístrofe
Deixando o querido leito, com uma simples túnica, à maneira
de uma donzela dórica, fui dirigir súplicas – em vão – a Ártemis
venerável. Ah, desafortunada! Arrastada sou, depois de presenciar
a morte de meu esposo, até ao alto mar. Tinha os olhos fixos na
cidade, lá ao longe. E o navio tomava o seu rumo de regresso e da

26 Sobre a estrutura da ação trágica em Hécuba, ver Gregory 1999: xxiii-xxxvi.


27 Como argumenta Silva 2014: 76, n. 4, Hécuba, na peça homónima de Eurípides,
é a ilustração do “estatuto de uma vencida de guerra”, que perdeu os filhos, o marido
e a cidade.
28 Uma forte imagem que ilustra essa comunhão de destino entre as cativas troia-
nas e Troia pode ser vista na tentativa de Hécuba, em As Troianas, de se suicidar
atirando-se ao fogo que consome a sua cidade (1272-1286).

174
terra de Ílion me apartava. Desgraçada, à dor eu sucumbia (933-
-942).

É significativo contrastar a perspetiva do Coro, que canta a experi-


ência pessoal de ter vivido, enquanto vítima, a tomada de Troia, com
o relato de Clitemnestra em Agamémnon, que apresenta os eventos
da ruína da cidade de Príamo sem os ter vivenciado:

Os Aqueus são hoje senhores de Tróia. Imagino gritos que não


se fundem, a ecoarem distintamente na cidade. Assim, deitando
vinagre e azeite no mesmo vazo, dir-se-ia que se aparta como ini-
migos. Separadamente se ouvem, marcadas por diferente fortuna,
as vozes dos vencidos e dos vencedores” (A. A 320-325). 29

3. As Troianas de Eurípides

“Hécuba: um abalo de terra, um abalo…Coro: submerge toda a


cidade”.
(E. Tr. 1326). 30

As Troianas é a terceira peça de uma trilogia que Eurípides


consagrou à Guerra de Troia em 415. As três tragédias seguem uma
sequência cronológica. Alexandre conta eventos do início da saga
de Troia, especialmente o retorno do jovem Alexandre/Páris para
Troia, vinte anos depois de ter sido exposto enquanto bebê, ao passo
que Palamedes explora um episódio de disputa entre o herói que
dá nome à peça e Odisseu, que ocorreu durante o sítio dos gregos
à Troia. As Troianas, por sua vez, é uma tragédia de lamento com

29 Conforme observa Bakewell 2016: 116, “there is a world of difference between


imagining the sack of one’s city and experiencing it”.
30 Tradução de As Troianas por Pereira 1996. Texto grego por Diggle (1981).

175
pouca ação. Lamento pela ruína de Troia. 31 A peça aborda este tema
sob a ótica da parte dos vencidos que escapou ao aniquilamento: as
mulheres troianas. Elas, contudo, não se viram isentas da servidão:
a peça inicia justamente quando estas mulheres estão sendo atribu-
ídas a seus novos mestres gregos. O foco da peça concentra-se nas
reações da protagonista, Hécuba, diante de um duplo sofrimento: 32
a sua dor de ver seu estatuto desmoronar de nobre rainha a serva
de um grego, bem como o horror de contemplar a sua cidade com-
pletamente destruída e seu marido morto. A ação progride com a
interação de Hécuba com o Coro, Taltíbio, e três outras mulheres,
Andrómaca, Helena e Cassandra.
Em Sete Contra Tebas de Ésquilo, Etéocles, o rei tebano, adverte
as mulheres do Coro que as cidades somente são abandonadas pelos
deuses após serem conquistadas (216-217). Esse é o caso precisamen-
te do que se passa em As Troianas. No prólogo, Poséidon anuncia
que irá “abandonar a ilustre Ílion e os altares que me pertencem,
pois, quando a desgraça da devastação se apodera de uma cidade,
o culto dos deuses é afectado, e não quer aceitar honrarias” (25-27).
Troia é, assim, uma cidade sem ritos e sem deuses desde o início
da peça. 33 Ao sair de cena no fim do prólogo, Poséidon preludia,
em tom gnómico, o seguinte: “louco entre os mortais é aquele que
arrasar cidades, templos e túmulos, lugares consagrados dos que já
partiram. Quem os devastar, mais tarde há-de perecer por sua vez”
(95-97). Não obstante a dificuldade no estabelecimento do texto
original relativamente à sintaxe e pontuação destas três linhas, pa-
rece claro que, para Poséidon, o “louco” (μῶρος) é quem saqueia

31 “Lament appears to be the only song left for a city that has lost all its men”
(Weiss 2018: 102). Para o conjunto de As Troianas como uma peça de lamento, ver
Suter 2003.
32 “Il portatore principale della linea del pathos nelle Troiane è la protagonista,
Ecuba” (Di Benedetto 2018: 27).
33 Mikalson 1991: 53 comenta que Euripides “portrays, in the fullest detail found
in Greek literature, a city which lacks entirely the goodwill and help of the gods”.
Ainda sobre a enorme distância entre deuses e homens em As Troianas, ver Werner
2011: 133-34.

176
cidades e, também, quem profana (ou desola) templos e tumbas.
Nesse sentido, “louco” não é meramente quem saqueia cidades, mas
quem as destrói (ou tenta destruir) completamente, incluindo seus
espaços sagrados. 34
Taltíbio, no êxodo, conclama seus companheiros a incendiar, uma
vez mais, a cidade de Troia. 35 O Arauto grego utiliza aqui o verbo
kataskapto (1263) que, como vimos anteriormente, também está pre-
sente em Agamémnon e em outras tragédias, aludindo, precisamente,
à devastação total. Uma destruição assim também afeta templos e
tumbas, como Poséidon tinha anunciado no prólogo. Além disso,
as palavras do deus podem ser relacionadas com o facto de, como
afirma Hécuba, Príamo morreu “sem sepultura” (ataphos 1313) 36 .
A referência ao templo deve, naturalmente, ser ligada ao que é dito
no prólogo por Atena, de que seu templo foi ultrajado (69) “quando
Ájax arrastou Cassandra à força” (70). A deusa associa-se a Poséidon
precisamente no seu intento de ensinar aos aqueus a respeitarem os
lugares sagrados (ver 86-87). Nesse sentido, o final de As Troianas
reforça o quadro de despovoação e destruição muito bem qualificado
por Hécuba quando ela diz estar numa “cidade deserta” (eremopolis
603) 37.
A questão moral que emerge relativamente aos vencedores em
As Troianas não consiste, portanto, no mero facto de que os gregos
promovem guerras ou mesmo que saqueiem cidades. As Troianas
não é propriamente uma tragédia que denuncia a “selvajaria” de

34 West 1980: 15: “the fool is not ‘whoever sacks cities’, but ‘whoever sacks cities
laying waste shrines and tombs’. αὐτὸς ὤλεθ’ ὕστερον then follows in an asyndeton
which can be classified as explanatory (‘he is a fool because …’)”.
35 Estudiosos têm especulado se a audiência teria visto fogo ou fumo vindos da
cenografia da peça. Em caso afirmativo, este seria um significativo complemento visual
ao motivo do aniquilamento de Troia. Kovacs 2018: ad 1263, no entanto, argumenta
que o público não veria nenhuma ação relativa ao incêndio.
36 As mulheres do Coro igualmente lamentam que seus esposos troianos morreram
“sem sepultura” (athaptos 1085).
37 O termo eremopolis é bastante significativo, pois o campo lexical da eremia
marca, em As Troianas, como observa David 2009: 277, “l’anéantissement de la cité”.

177
toda e qualquer guerra, como tantas vezes se afirma. 38 O problema
reside numa vitória do aniquilamento que destrói a cidade inimiga,
incluindo os seus espaços sagrados, os seus habitantes e mesmo
o seu nome (ver os versos 1278, 1319, com a significativa palavra
anonymoi em 1322). 39
É importante ter em mente que a ruína completa de uma cidade
não era, para a audiência de As Troianas, um motivo meramente lite-
rário. De início, o temor de se ter a cidade ou mesmo toda a Hélade
aniquilada pelos persas foi real durante as Guerras Pérsicas. Além do
receio de a Grécia se tornar uma escrava dos bárbaros, como diz o
emissário de Plateias em Tucídides,40 existia o medo de a Hélade ser
reduzida às cinzas pelos persas (um tópico enfatizado por Heródoto,
por exemplo em 7.8; 8.50-64). Os Persas de Ésquilo, somente sete anos
após a Batalha de Plateias, contém diversas referências à salvação
dos gregos diante da ameaça do extermínio por parte dos invasores
persas. Logo após o Mensageiro anunciar que “os deuses salvaram
a cidade de Palas” (347), a mãe de Xerxes responde com palavras
que transparecem a catástrofe que poderia ter acontecido: “Atenas
escapou, portanto, à destruição” (348). 41

38 Por exemplo, David 2009: 278. Fialho 2016: 81 pensa que, nas peças troianas,
Eurípides põe “o mito ao serviço de uma veemente crítica da guerra”. Uma variante
desta leitura “pacifista” de Eurípides concebe As Troianas como uma espécie de
admoestação do poeta contra as ambições de guerra por parte de Atenas. Nesta última
linha, segue, por exemplo, Sutter 2003: 19, qualificando As Troianas como “a proleptic
lament for Athens”. Green 1999 oferece uma competente e necessária crítica à leitura
“pacifista” de As Troianas. Em linhas similares a Green, segue Kovacs 2018: 2-16.
39 Ainda que tenha vivido em um contexto histórico distinto, vale a pena lembrar
a observação de Políbio de que destruir templos e estátuas do inimigo seria uma ati-
tude reprovável, que não se adequaria às necessidades da guerra. Para o historiador
grego, “os homens virtuosos não devem guerrear contra os faltosos para destruí-los
ou exterminá-los, mas para corrigir ou emendar seus erros” (5.11.5). Tradução por
Sebastiani 2016. Faz parte do argumento deste artigo que a abordagem de Eurípides
sobre o aniquilamento de Troia guarda semelhança com esta censura de Políbio das
guerras de extermínio.
40 Tucídides 3.56.4.
41 Tradução de Os Persas por Pulquério 1998. Rosenbloom 2003: 189 argumenta
que o Coro dos Sete Contra Tebas recuperou elementos, como incêndio e destruição
de lugares sagrados, que a audiência poderia ter associado com o saque de Atenas
pelos persas em 480/479. Em linhas similares, ver Silva 2005b: 24-25.

178
O impacto do horror da ruína de uma cidade não foi apenas
corrente na época do conflito contra os persas. Não obstante a
afirmação feita por Sage, 42 de que a tendência da guerra entre os
gregos seria de conquista do terreno de batalha antes do que a ex-
terminação do inimigo, houve casos de guerras de aniquilamento
durante a Guerra do Peloponeso. Em 427, isto é, somente doze anos
antes de As Troianas, aconteceu a traumática conquista da cidade de
Plateias pelo exército espartano. Tucídides descreve nestas linhas o
derradeiro destino desta cidade da Beócia:

Arrasaram toda a cidade até ao chão (καθελόντες αὐτὴν ἐς


ἔδαφος πᾶσαν) e sobre as suas fundações construíram, vizinha ao
santuário de Hera, uma estalagem de duzentos pés quadrados, com
quartos em toda a volta, em cima e em baixo, e utilizaram para
essa finalidade os telhados e as portas dos Plateenses (Tucídides
3.68.3). 43

A dizimação de Plateias poderia estar bem presente na mente e


na memória da audiência de As Troianas, especialmente se levarmos
em conta que muitos plateenses se refugiaram em Atenas por conta
da guerra contra Esparta, não sendo impossível que alguns deles
pudessem estar no teatro no dia da apresentação desta peça euri-
pidiana. Além disso, Eurípides encenou o que poderia ser o receio
de muitos atenienses: ver a sua cidade completamente arruinada no
contexto da luta contra Esparta.44 Como é típico da tragédia, todavia,
acontecimentos históricos recentes e traumáticos foram retrabalhados
por meio de uma perspetiva que os distanciava da realidade concre-
ta e presente do público. Assim, o aniquilamento de Troia – cidade
bárbara – ocorrida no remoto tempo dos heróis, permitiu um certo

42 Sage 1996: 95; 97-8.


43 Tradução por Rosado Fernandes e Granwehr 2010.
44 Como nota Raaflaub 2014: 20, “this is one of the leitmotifs in Herodotus’
Histories, and it can be applied to Athens as well: this greatest of all cities too may
one day be crushed into a pile of smoking rubble”.

179
distanciamento que poderia tornar tolerável, para a audiência grega,
imaginar ou ressentir os temores da ruína completa de uma pólis.
Diante deste referencial histórico, percebe-se como, em tempos
de guerra, o destino individual está ligado à sorte do coletivo e da
cidade. A atenção dos cantos corais, especialmente o segundo (799-
859) e terceiro estásimos (1061-1122), repousa nesta espécie de
destino em comum entre, de um lado, a cidade destruída e privada
dos seus homens e, de outro lado, as mulheres que veem seus esta-
tutos arruinados de esposas de uma cidade próspera para servas de
um oikos grego. De forma a reforçar esta conexão, o poeta reserva,
para o tempo da ação da peça, os últimos incêndios e destruições
das muralhas e edifícios troianos, assim como o sepultamento da
última esperança de reconstruir Troia, Astíanax, filho de Heitor e
Andrómaca.
Astíanax e a sua descendência, com efeito, representavam, para
Hécuba, o desejo de refundação de Troia (703-705). Essa esperança,
contudo, acaba logo em seguida, pois Taltíbio anuncia a iminente
morte do pequeno Astíanax pelos aqueus. 45 Este desfecho contrasta
com outra peça de Eurípides, Andrómaca, na qual Tétis, enquanto
dea ex machina, regenera a combalida casa de Éaco ao criar um oi-
kos a partir da sobrevivência do filho de Andrómaca e Neoptólemo,
Molossos, e do novo casamento de Andrómaca com Heleno, irmão
de Heitor. As novas bodas e a sobrevivência de Molossos garantem,
assim, a continuidade da família real troiana e, de certo modo, sua-

45 Há divergência entre os filólogos relativamente ao estabelecimento do início


do verso 704. Se aceitarmos o texto de Diggle 1981, que lê ἐκ σοῦ (“de ti”), seriam
os filhos de Andrómaca que reergueriam Troia, pois Hécuba estaria a se endereçar à
esposa de Heitor. Caso aceitemos, por outro lado, a lição ἐξ οὕ (“dele”), impressa por
Lee 1997 e Kovacs 2018, os potenciais refundadores de Troia seriam os descendentes
de Astíanax, dado que, neste caso, Hécuba estaria referindo-se a Astíanax. A última
hipótese parece mais coerente com o restante da intriga da peça, pois o pathos da
reentrada de Taltíbio em cena incide precisamente na morte de Astíanax enquanto
última esperança de salvação da família real e de Troia (“the killing of Hector’s son
marks the end of Troy’s existence”, Kovacs 2018: ad 706-798). Sobre a maneira pela
qual a presença em cena do cadáver do filho de Heitor em As Troianas, com seu
respectivo ritual fúnebre, reforça o tema do aniquilamento de Troia, ver Dyson e Lee
2000. Ainda sobre o episódio de Astíanax, ver Werner 2018.

180
vizam a ruína completa de Troia e da sua nobreza em comparação
com As Troianas e Hécuba.

Como vimos neste breve panorama, Troia constitui o grande pa-


radigma de cidade destruída na tragédia grega. A ruína da cidade de
Príamo foi, obviamente, um dado da tradição mítica assente no ciclo
épico. Teria sido improvável, portanto, que os dramaturgos do sécu-
lo de Péricles pudessem ter alterado este elemento central quando
compuseram suas peças. Ainda assim, os poetas trágicos não foram
forçados a darem tanta ênfase à saga de Troia e, particularmente,
ao destino final da cidade. Uma memória coletiva, assim como a
memória de um indivíduo, precisa esquecer certos acontecimentos
para lembrar outros. Por que, então, o mito de Troia e de sua ruína
não cessou de reaparecer nas manifestações culturais dos gregos
do período clássico? Uma resposta, apontada neste trabalho, remete
para a elasticidade própria do mito, capaz de concentrar significados
opostos numa mesma narrativa. Assim, a guerra contra Troia poderia
ser vista como uma empresa sancionada pelos deuses para punir um
mau hóspede e, ao mesmo tempo, uma ilustração do que pode ocor-
rer de desastroso quando os vencedores exterminam uma cidade. 46
O tema do aniquilamento de Troia, como vimos, foi profícuo
para a reflexão dos gregos acerca das ameaças de ruína total das
suas próprias cidades. Podemos supor que as Guerras Pérsicas e a
Guerra do Peloponeso despertaram um vívido interesse dos poetas
e da audiência sobre o destino funesto de Troia, e as ambiguidades
inerentes a uma vitória que se transforma num aniquilamento do
vencido, aspeto realçado por Ésquilo e Eurípides nas tragédias dis-
cutidas neste texto. Por meio de Troia, situada no passado remoto e
não helénico, os gregos ponderaram sobre a ruína das cidades e o
papel de vencedores e vencidos em guerras extremas.

46 Neste último caso, estaremos próximos à apreciação de Heródoto (2.120), que


viu a ruína de Troia como uma lição que expressava o castigo divino diante de gran-
des injustiças humanas. Agradeço ao avaliador anónimo deste texto por ter chamado
a atenção para esta passagem de Heródoto.

181
Bibliografia

a) Edições, traduções e comentários

Denniston, J. D., Page, D. (1957), Aeschylus, Agamemnon. Oxford: Clarendon Press.


Di Benedetto, V. (2018, 3ª ed.), Euripide. Troiane. Milano: BUR.
Diggle, J. (1981), Euripidis Fabulae vol. 2. Oxford: Clarendon Press.
Diggle, J. (1984), Euripidis Fabulae vol. 1. Oxford: Clarendon Press.
Fialho, M. C., Coelho, J. L. (2010), “Hécuba”, in M.F.S. Silva (ed.), Eurípides Tragédias
II. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.
Gregory, J. (1999), Euripides, Hecuba: introduction, text, and commentary. Atlanta:
Scholars Press.
Kovacs. D. (2018), Euripides: Troades. Oxford: Oxford University Press.
Lee, K. H. (1997, 2ª ed.), Euripides Troades. London: Bristol Classical Press.
Pereira, M. H. R. (1996), Eurípides Troianas. Lisboa: Edições 70.
Pulquério, M. de O. (1998), Os Persas de Ésquilo. Lisboa: Edições 70.
Pulquério, M. de O. (2008), Oresteia de Ésquilo. Lisboa: Edições 70.
Rosado Fernandes, R. M.; Granwehr, M. G. (2010), Tucídides. História da Guerra do
Peloponeso. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Sebastiani. B. B. (2016), Políbio. História Pragmática. Livros I a V. São Paulo: Perspectiva.
Sommerstein, A. H. (2008), Aeschylus Oresteia: Agamemnon, Libation-Bearers; Eumenides.
Cambridge; London: Harvard University Press.
Valente, A. M. (2011), Aristóteles. Poética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
West, M. L. (2008), Aeschyli. Agamemnon. Stuttgart: Teubner.

b) Estudos

Anderson, M. J. (1997), The Fall of Troy in Early Greek Poetry and Art. Oxford-New
York: Clarendon Press.
Bakewell, G. (2016), “Seven against Thebes, city laments, and Athenian history”, in M.
R. Bachvarova, D. Dutsch, A. Suter (eds.), The Fall of Cities in the Mediterranean:
Commemoration in Literature, Folk-Song, and Liturgy. Cambridge: Cambridge
University Press, 106-126.
Carter, D. M. (2006), “At Home, Round Here. Out There: The City and Tragic Space”,
in Rosen, R.M., I. Sluiter (eds.), City, Countryside, and the Spatial Organization of
Value in Classical Antiquity. Leiden: Brill, 139-172.
David, S. (2009), “Troie et Thèbes: l’image littéraire et dramatique de la cité assiégée”,
in M. Fartzoff (ed.), Reconstruire Troie. Permanence et renaissances d’une cité
emblématique. Besançon: Institut des Sciences et Techniques de l’Antiquité, 259-279.
Dyson, M.; Lee, K. H. (2000), “The Funeral of Astyanax in Euripides’ Troades”, JHS 120:
17-33.

182
Fartzoff, M. (2009), “Troie dans l’Orestie d’Eschyle: l’adaptation dramatique d’une image
ambivalente”, in M. Fartzoff (ed.), Reconstruire Troie. Permanence et renaissances
d’une cité emblématique. Besançon: Institut des Sciences et Techniques de l’Antiquité.
167-185.
Fialho, M. C. (2016), “A febre da guerra: retórica e demagogia em Ifigénia em Áulide”,
Ágora 18: 81-98.
Franciscato, M.C.R.S. (2014), “Hécuba e As Troianas: Ecos da Guerra do Peloponeso
em Eurípides”, Let. Cláss. 18.2: 25-37.
Green, P. (1999), “War and Morality in Fifth-Century Athens: The Case of Euripides’
Trojan Women”, AHB 13.3: 97-110.
Jouan, F. (2007), “Priam, sa cité et sa famille dans l’œuvre d’Euripide”, in S. David, E.
Geny (eds.), Troïka. Parcours antiques. Mélanges offerts à Michel Woronoff, volume
1. Besançon: Institut des Sciences et Techniques de l’Antiquité, 155-174.
Leahy, D. M. (1974), “The Representation of the Trojan War in Aeschylus’ Agamemnon”,
AJPh 95.1: 1-23.
Mikalson, J. D. (1991), Honor Thy Gods: Popular Religion in Greek Tragedy. Chapel Hill:
University of North Carolina Press.
Raaflaub, K. A. (2014), “War and the City: The Brutality of War and Its Impact on the
Community”, in P. Meineck, D. Konstan (eds.), Combat trauma and the ancient
Greeks. New York: Palgrave Macmillan, 15-46.
Rosenbloom, D. (1993), “Shouting ‘fire’ in a crowded theater: Phrynichos’s Capture of
Miletos and the politics of fear in early Attic tragedy”, Philologus 137: 159-196.
Sage, M. (1996), Warfare in Ancient Greece: A sourcebook. London; New York: Routledge.
Seaford, R. (2012), Cosmology and the Polis: The Social Construction of Space and Time
in the Tragedies of Aeschylus. Cambridge: Cambridge University Press.
Silva, M. F. S. (2005a), Ensaios sobre Eurípides. Lisboa: Cotovia.
Silva, M. F. S. (2005b), Ésquilo o primeiro dramaturgo europeu. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra.
Silva, M. F. S. (2014), “Cativas de guerra: a extrema degradação do estatuto social da
mulher”, Sapere Aude 5.9: 69-88.
Stanton G.R. (1995), “Aristocratic Obligation in Euripides’ Hekabe”, Mnemosyne 48.1:
11-33.
Suter, A. (2003), Lament in Euripides’ “Trojan Women”, Mnemosyne 56.1: 1-28.
Weiss, N. A. (2018), The Music of Tragedy: Performance and Imagination in Euripidean
Theater. Oakland: University of California Press.
Werner, C. (2011), “Troianas: do filme de Michael Cacoyannis à tragédia de Eurípides”,
Archai 7: 131-13.
Werner, C. (2018), “As especulações de Andrómaca em Troianas de Eurípides”, Anais
de Filosofia Clássica 12.23: 13-30.
West. M. L. (1980), “Tragica IV”, BICS 27: 9-22.

183
(Página deixada propositadamente em branco)
D e v o lta a o a g u i l h ã o d a s v e s pa s .
Origens e fortuna de um motivo
a r i s t o fâ n i c o

B ac k to t h e S t i n g o f t h e W a s p s .
O r i g i n s a n d F at e o f a n A r i s to p h a n i c T h e m e

Carlos A. Martins de Jesus


Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-8723-690X
carlos.jesus@uc.pt

Resumo: Para esta homenagem à Professora Maria de Fátima Sousa e


Silva, voltamos às Vespas de Aristófanes, a comédia de 422 a.C. que
sob a sua orientação traduzimos e comentámos, além de a levar a cena,
há mais de uma década. O propósito é explorar a metáfora que lhe
serve de base, indagar sobre as suas origens e apreciar a sua fortuna
literária. Se dita assimilação poética do comportamento humano ao
das vespas surge já na Ilíada em dois momentos (12.167-170; 16.259-
-266), a sua utilização em contexto de invetiva iâmbica (Arquíloco e
Hipónax, sobretudo) parece igualmente conferir-lhe antiguidade. Por
outro lado, o motivo literário perpassou toda a literatura antiga (em
grego e latim) e chegou à modernidade, sobretudo em contexto de
invetiva poética. O presente trabalho, além de retomar a metáfora
aristofânica de Vespas, pretende analisar os principais testemunhos
– anteriores, contemporâneos e posteriores a Aristófanes – que se
servem das vespas sobretudo como símbolo do coletivo (e, portanto,

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_8
imagem política) e de ataque pessoal (moral ou poético), não deixando
de lado a literatura científica que, ao tempo, se acumulara sobre esse
inseto.

Palavras-chave: Aristófanes, vespas, comédia, invetiva, alegoria

Abstract: For this tribute to Professor Maria de Fátima Sousa e Silva,


we came back to Aristophanes’ Wasps, the comedy from 422 that we
translated and commented under his supervision, and that we also
staged, more than a decade ago. The aim is to explore its foundation-
-metaphor, look for its origins and evaluate its literary outcome. If the
comparison between the wasps’ and human behaviour is already at two
similes from the Iliad (12.167-170; 16.259-266), its use in iambic poetry
seems also to provide it with a spectrum of antiquity. Otherwise, this
literary motif is to be found in almost every ancient literature (both in
Greek and Latin) and came into Modernity, mostly in the context of
poetic invective. This paper, after resuming the Aristophanic metaphor
in Wasps, aims to analyse the main testimonies that, before and after
Aristophanes, recur to wasps mostly as a symbol of the community
(i.e. as a political image) and as a means of personal attack (moral or
poetic), never underestimating the scientific literature on that insect
by then available.

Keywords: Aristophanes, wasps, comedy, blame, allegory

Se o Aristófanes que em 422 apresentou Vespas nas Leneias – ul-


trapassada que parece estar a questão da autoria 1 da peça – era já
um dramaturgo experimentado, bom conhecedor do seu público e
das diversas receitas cómicas que nele surtiam efeito, era também um
artista desencantado com esse público, que nas Grandes Dionísias do
ano anterior lhe atribuíra um vergonhoso terceiro lugar. A comédia
de 422 é assim, antes de mais, um inegável (e confesso) esforço de
conciliação entre comédia intelectual e comédia vulgar, na busca já

1 Vd. Jesus 2010: 13-16, para a discussão e bibliografia fundamental sobre o assunto.

186
não de novidade extrema, mas de equilíbrio entre o gosto de ambos,
poeta e público. Aristófanes testa os diferentes menus de cómico,
procurando averiguar qual o que mais agrada ao seu público e mais
facilmente lhe garantiria o primeiro prémio. O recurso ao coro te-
riomórfico de homens-vespa é de facto de funcionalidade cómica
nuclear, bem como a principal estratégia dessa conciliação drama-
túrgica.
Se Aves e Rãs têm coros que, na verosimilhança da ficção, são
constituídos por animais de facto, não é esse o caso do coro de
Vespas. Formam-no juízes que apenas são caraterizados como esse
inseto como forma de concretização cénica do que neles é uma ca-
racterística psicológica (psicossocial, diríamos): o seu génio violento,
irritadiço e vingativo. Ao vestir de vespas o seu coro de velhos juízes,
Aristófanes está a aproveitar a cor cénica, o movimento e os sons
de uma tradição que remontava às mais antigas manifestações pré-
-cómicas e que colhe igualmente testemunho nas artes plásticas2.
Uma alegoria animal que – isso pretende demonstrar o presente
estudo – desde muito cedo adquiriu significado misto: símbolo do
coletivo (e, portanto, imagem política) e de ataque pessoal (moral
ou poético) de motivação erotizante. Uma imagem poderosíssima e
de fácil decifração que, no que toca a géneros literários, foi funda-
mental para a épica, a literatura popular (fábula) e a poesia iâmbica
(invetiva), e que extravasa as fronteiras temporais da comédia antiga
em vários séculos e em ambos os sentidos da linha cronológica.
Só no v. 225 da comédia de 422 a.C. surge a primeira referência
direta às vespas, quando Bdelícleon, empenhado em evitar a todo

2 Os fragmentos conservados da comédia anterior a Aristófanes, da primeira meta-


de do séc. V sobretudo, comprovam a aposta nos coros animalescos. Esse o caso de
Magnes, a quem um escólio a Ar. Eq. 520-526 atribui, entre outras peças, uma Ὄρνιθες
e uma Βάτραχοι, comédias cujo grau de influência nas homónimas aristofânicas
apenas podemos conjeturar a partir dos poucos fragmentos que delas se conservam.
Ou também Crates, autor de uma comédia intitulada Θηρία, que Aristófanes, na
Parábase de Cavaleiros, considera contemporâneo de Magnes. O clássico estudo de
Pickard-Cambride 1962, 2ª ed.: 151 sqq. analisa as origens deste processo cómico,
considerando os dados arqueológicos disponíveis, assunto depois retomado por
Sifakis 1971: 73-93.

187
o custo que o pai Filócleon saia para o tribunal, refere o pavor que
sente ante a chegada inevitável e anunciada dos seus companheiros,
como ele juízes populares (Ar. V. 223-229). Imediatamente antes da
entrada do Coro, os versos citados, de teor profundamente sinesté-
sico, concentram já os termos fundamentais da simbologia que este
encerra, a da cólera, pessoal e política, no sentido mais imediato
de uma irascibilidade natural (ἤν τις ὀργίσῃ, v. 223) – conceito, o
de ὀργή, que abaixo se discutirá. O sintagma ἔσθ’ ὅμοιον σφηκιᾷ
(v. 224) concretiza a natureza especial deste coro, não de animais, mas
de indivíduos travestidos de animais, como forma de manifestação
cénica do génio que os carateriza. Mais do que génio, neste ponto
em específico τὸ γένος (v. 223) remete para a raça dos Atenienses,
desses cidadãos envelhecidos de classe média-baixa que a comédia
parodia, ao mesmo tempo que condena a sua manipulação às mãos
dos poderosos como Cléon, que deles e do seu poder legal de jura-
dos populares se servem para efetivar a sua política de bastidores.
Fica garantida, desde o início, a representatividade deste coro de
vespas, que talvez por isso, na primeira vez que é mencionado, é
caraterizado como σφηκιά (à letra, “vespeiro”).
Completam este quadro inicial dois outros elementos simbólicos
e linguísticos recorrentes na comédia. O primeiro, e talvez o mais
eficaz em termos cénicos, é o aguilhão ou ferrão (κέντρον, v. 225),
que alguns críticos chegaram a identificar com o falo, elemento tra-
dicional da comédia. Mas tal identificação, como bem demonstrou
D. M. MacDowell 3, não se sustenta ante o próprio texto. Adiante,
Xântias comenta ao patrão, apavorado, que “os gajos têm ferrões a
sério!” (καὶ κέντρ’ ἔχουσιν, v. 420); e mais tarde, na Parábase, é o
Corifeu quem se refere à “garupa” que têm no traseiro (πρόσεστι
τοῦτο τοὐρροπύγιον, v. 1075), termo que alude normalmente à cauda
ou mesmo ao ânus dos animais 4. Recorrentemente mencionado, o

3 MacDowell 1971, repr. 2003: 11, n. 2.


4 Cf. Arist. HA 504a 32, 525a 12, 618b 33 e, em Aristófanes, Nu. 162 (onde se refere
ao ânus de um mosquito). Quanto ao falo, ele formaria também parte da indumentária

188
aguilhão é ao mesmo tempo elemento de figurino e símbolo primeiro
da alegoria estruturante da peça, a que assenta na fisionomia e no
comportamento das vespas. O segundo tem que ver com a expressão
linguística dessa cólera, com recurso a diversas formas do adjetivo
ὀξύς e compostos seus. O superlativo ὀξύτατον (“bem afiado”) não
deixa dúvidas, a início, sobre o caráter destes homens e da classe
social e profissional que representam, eles que, como os animais de
que foram caraterizados, parecem atacar indiscriminadamente quem
deles se aproxima. Mais do que o adjetivo em si, nas diferentes formas
da sua flexão, o comediógrafo serve-se sobretudo de dois compostos
para a caraterização destes homens-vespa: ὀξύθυμος (τοὐξύθυμον...
κέντρον, vv. 406-407; τρόπος ὀξυθύμων, vv. 454-455; ζῷον... ὀξύθυμόν,
vv. 1104-1105), junto com o verbo ὀξυθυμεῖσθαι (ὀξυθυμηθεῖσά μοι,
v. 501) 5, e ὀξυκάρδιος (σφῆκες ὀξυκάρδιοι, v. 430) 6.
É na Parábase que o próprio Coro se apresenta e define, revelando
o significado dos trajes que enverga e confirmando as impressões e
receios de Bdelícleon e dos seus escravos até então (vv. 1071-1080).
À idade avançada e ao ofício judicial dos integrantes deste coro,
já conhecidos da plateia, acrescentam-se noções de patriotismo na
primeira pessoa. O Corifeu insiste na noção de raça (ἀνδρικώτατον
γένος, v. 1077) e apresenta-se a si próprio e aos companheiros como
representantes dos Ἀττικοὶ μόνοι δικαίως ἐγγενεῖς αὐτόχθονες (v. 1076),
de acordo com a tradição antiga de que apenas as tribos de Atenas
eram autóctones, sendo as demais o resultado de movimentos mi-
gratórios posteriores 7. Dito argumento tradicionalista de autoctonia
leva-os a recordar um período histórico para eles dino de memória,
sobre o qual já meio século havia transcorrido – o da luta contra os

desse coro, como tradicionalmente era de esperar, e a ele parece aludir o Corifeu,
versos antes, epiditicamente (καὶ κατ’ αὐτὸ τοῦτο μόνον ἄνδρες ἀλκιμώτατοι, v. 1062).
5 Cf. Ar., Thesm. 466-468: Τὸ μέν, ὦ γυναῖκες, ὀξυθυμεῖσθαι σφόδρα/ Εὐριπίδῃ,
τοιαῦτ’ ἀκουούσας κακά,/ οὐ θαυμάσιόν ἐστ’, οὐδ’ ἐπιζεῖν τὴν χολήν.
6 Este último composto, considera-o Taillardat 1965: 197 uma “paródia do estilo
nobre”, mencionando o paralelo de Ésquilo (Sept. 906, e não 406, como por lapso se
imprimiu): ἐμοιράσαντο δ’ ὀξυκάρδιοι / κτήμαθ’, ὥστ’ ἴσον λαχεῖν.
7 Cf. Lys. 2.17, Eur. Ion 589-590, Thuc. 1.2.5, Isocr. 4.24, Pl. Menex. 237b.

189
Persas. Se é certo que os Persas haviam atacado e incendiado Atenas
em 480/79 – e a descrição aristofânica (vv. 1075-1080) recorda mesmo
a que, pouco tempo antes, elaborara Heródoto para esse evento 8 – o
texto parece antes uma amálgama de lembranças já turvadas pelo
tempo de distintos recontros militares com os Persas, com Maratona
à cabeça 9. Dramaticamente, porém, interessa mais atentar na forma
como a descrição desenvolve a alegoria comportamental das vespas,
transformando a cidade no próprio vespeiro e a sua geração autóc-
tone nos insetos que o habitam e recuperando a ação simbólica da
sua destruição pelo fumo e pelo fogo, com que Bdelícleon já tinha
ameaçado o Coro (τῦφε πολλῷ τῷ καπνῷ, v. 457).
Adiante (vv. 1102-1113), o Corifeu procede ao alargamento da
imagem, explicando porque razão eles são τἄλλ’ ὅμοια πάντα σφηξί
(v. 1106; cf. ὅμοιον σφηκιᾷ, v. 224). O assunto, desta feita, versa
sobre o caráter e o modo de vida (τοὺς τρόπους καὶ τὴν δίαιταν, v.
1103) que partilham estes juízes e as vespas. Quanto ao primeiro
aspeto, ἠρεθισμένον (v. 1104), ὀξύθυμόν e δυσκολώτερον (v. 1105)
são os compostos que definem o génio deste grupo de indivíduos,
unânimes na descrição de uma irritabilidade incontrolável que se
traduz, no seu caso específico, na obsessão pela condenação dos
arguidos. A novidade diz respeito ao segundo aspeto, o seu modo
de vida, importante na medida em que desloca a metáfora para o

8 Cf. Hdt. 8.50-54, 9.13.2. MacDowell 1971, repr. 2003: 271 (ad v. 1079) refere-
-se em particular ao termo πυρπολῶν (li.: “ateando fogo”), utilizado por Heródoto
em 8.50.1. Anos mais tarde, a mesma estratégia militar de ataque ao inimigo no seu
próprio território, com recurso à imagem do incendiar do cortiço das vespas – única
forma de as destruir – é utilizada por Xenofonte (Hell. 4.2.12), quando Timolau de
Corinto se refere aos planos de assalto aos Espartanos, no contexto da Guerra Coríntia
(em 394): ὁρῶ δ’ ἔγωγε, ἔφη, καὶ ὁπόσοι σφῆκας ἐξαιρεῖν βούλονται, ἐὰν μὲν ἐκθέοντας
τοὺς σφῆκας πειρῶνται θηρᾶν, ὑπὸ πολλῶν τυπτομένους· ἐὰν δ’ ἔτι ἔνδον ὄντων τὸ πῦρ
προσφέρωσι, πάσχοντας μὲν οὐδέν, χειρουμένους δὲ τοὺς σφῆκας.
9 É o próprio Bdelícleon, num dos muitos momentos em que fala sobre o que
o pai, doente, quer ouvir, que se refere ao Troféu de Maratona, símbolo máximo
do orgulho da geração de Filócleon e dos juízes seus companheiros (ἄξια τῆς γῆς
ἀπολαύοντες καὶ τοῦ’ν Μαραθῶνι τροπαίου, v. 711). Tratava-se de uma coluna de
mármore que envergava uma estátua de Nike, da qual a arqueologia pôde encontrar
vestígios, também referida por Aristófanes em Eq. 1333-1334. Sobre este troféu, vd.
West 1969: 7-19, idem 2009: cap. II, e Krentz 2010: 130-132.

190
plano coletivo (político). Dito de outra forma, a gestão e defesa do
vespeiro é imagem direta da pólis, em concreto da vida judicial da
cidade. O quotidiano destes juízes, que na ficção da comédia podiam
desempenhar as suas funções em três tribunais distintos 10, é comum
aos animais gregários (καθ’ ἑσμοὺς ὥσπερ εἰς ἀνθρήνια, v. 1107), e
o texto reforça a ideia de multidão, própria de um enxame 11, pela
alusão ao desconforto destes juízes, sempre muitos para os espaços
pequenos que lhes cabe ocupar (vv. 1109-1110). Finalmente, o ganha-
-pão, conseguido exclusivamente por via do suborno para depósito
de voto condenatório, dado uma e outra vez pelo verbo κεντέω (e.g.
πάντα γὰρ κεντοῦμεν ἄνδρα κἀκπορίζομεν βίον, v. 1113).
No seu clássico estudo sobre as imagens de Aristófanes, J.
Taillardat 12 referia já o caráter proverbial que, para os Gregos do
século V, devia ter a vespa13. Entre os argumentos textuais que apre-
sentava, conferia destaque a um verso da Lisístrata, de 411 a.C. (ἢν μή
τις ὥσπερ σφηκιὰν βλίττῃ με κἀρεθίζῃ, v. 475), que a seu juízo, porque
aparentemente isolado da ação da comédia nesse momento, pode
apenas entender-se como o recurso da Corifeia a um provérbio. Se
tem razão o Autor quando argumenta a propósito do uso proverbial
da frase com a sua presença na Suda (s.v. σφηκιά) – sem a identifi-
cação do passo aristofânico nesse léxico –, não podemos deixar de
olhar para a ocorrência na comédia de 411 como recuperação de uma
imagem do património cómico do próprio Aristófanes, comum também
à tragédia. Sófocles, em drama desconhecido (fr. 778 Radt), pode

10 Como bem adverte MacDowell 1971: 275 (ad v. 1108), dos três tribunais referidos
apenas o primeiro (o do Arconte-chefe) devia estar em funcionamento ao tempo da
estreia da comédia, e encarregava-se sobretudo de processos familiares, como era o
caso – apetecível para estes juízes cómicos – da partilha de heranças. Sobre as três
instituições mencionadas, vd. MacDowell 1971: 273-275 (ad v. 1108).
11 Cf. Neste ponto e já no v. 1080, Aristófanes usa o termo ἀνθρήνιον para se referir
ao vespeiro, em vez do mais comum σφηκείον. Os termos derivam de duas espécies
de vespas, cujas designações tendem, contudo, a ser usadas indiscriminadamente.
Vd. Beavis 1988: 187-188.
12 Taillardat 1965: 210-211 e n. 3.
13 Vd. também Beavis 1988: 193.

191
ter usado a imagem com idêntico sentido proverbial 14 – ἢ σφηκιὰν
βλίττουσιν εὑρόντες τινά. O verbo βλίττω deve ter, neste contexto, o
sentido de “destruir uma colmeia [mais do que um vespeiro] para lhe
retirar o mel”15, como na Lisístrata e em Cavaleiros (ἀλλὰ καθείρξας
αὐτὸν [τὸν δῆμον] βλίττεις, v. 794), onde se trata de uma metáfora
para a delapidação dos bens do povo pelos poderosos. As vespas,
essas, com a carga semântica de irascibilidade que é basilar na co-
média homónima, encontramo-las já na primeira comédia aristofânica
conservada, Acarnenses (de 425 a.C.), na qual Diceópolis se refere ao
bando de flautistas que acompanha o Beócio com a imagem desses
animais (οἱ σφῆκες, οὐκ ἀπὸ τῶν θυρῶν; i – “essas vespas, não estão
à porta?”: v. 864). Bem assim, em Pluto (já de 388), a Pobreza define
os seus súbditos como ἰσχνοὶ καὶ σφηκώδεις καὶ τοῖς ἐχθροῖς ἀνιαροί
(“magros, com cinturinha de vespa e mordazes para os inimigos”,
v. 561) 16. Juntos, estes passos aristofânicos resumem o essencial da
alegoria sociopolítica de Vespas a que nos temos vindo a referir:
irritabilidade, violência contra os inimigos, pobreza (quase miséria)
de uma classe e, não menos importante, o empenho na defesa do
coletivo, pela imagem do vespeiro (σφηκιά), símbolo do oikos, em
particular, e da pólis, em geral. A outro nível, pelo lapso temporal
que representam, tornam a imagem que nos importa transversal à
carreira aristofânica, ao longo de pelo menos 40 anos.
Ainda em contexto dramático, A. H. Sommerstein 17 sugeriu
que Aristófanes pudesse ter colhido num passo das Suplicantes

14 Pace Taillardat 1965: 210, n. 4, para quem o fragmento deve ser lido “au sens
propre”. Em sentido concreto parece-nos antes que há que ler um trecho do Ciclope
euripidiano, de data incerta, relativo à descrição do ferimento do monstro por Ulisses
e os companheiros (εἰ τοῦ Κύκλωπος τοῦ κακῶς ὀλουμένου / ὀφθαλμὸν ὥσπερ σφηκιὰν
ἐκθύψομεν – “se, tal como se faz a um vespeiro, for para encher de fumo o olho do
maldito Ciclope”, vv. 474-475), prova ainda assim da familiaridade da imagem em
contexto dramático. Sobre o drama satírico e as dificuldades da sua datação, vd.
Soares 2009: 33.
15 LSJ explica assim a etimologia do verbo, a partir de μέλι: *μλίτ-yω.
16 Tradução de Silva 2015: 78. Crémilo, na resposta à deusa, explica a metáfora:
ἀπὸ τοῦ λιμοῦ γὰρ ἴσως αὐτοῖς τὸ σφηκῶδες σὺ πορίζει (“É decerto à fome que tu lhes
dás a tal elegância de vespa!”, v. 562).
17 Sommerstein 1983: 169-170 (ad. v. 225).

192
de Eurípides – que o autor considera terem estreado nas Grandes
Dionísias de 423, no ano anterior a Vespas, portanto – a ideia do
coro de homens-vespa. No passo em causa (Eur. Supp. 240-243),
Teseu dirige-se a Adrasto, o comandante do coro das sete viúvas dos
Epígonos que haviam atacado Tebas para recuperar o poder para
Polinices. Divide a raça dos homens em três grupos (ricos, pobres
e governantes), de acordo com a sua utilidade para a cidade. Pese
embora a referência aos κέντρα κακά (literalmente, “aguilhões ter-
ríveis”, v. 245) e às “palavras dos dirigentes perversos” (γλώσσαις
πονηρῶν προστατῶν, v. 246), e sendo verdade que o trecho encerra
(como todo o drama euripidiano de que faz parte) a problemática
do conflito social entre pobres (explorados) e ricos (exploradores),
como em Vespas, parece-nos forçado apenas por tal coincidência e
pelo uso da palavra κέντρον, sem referência sequer a um contexto
animal, ver neste passo a inspiração para toda uma obra teatral. Por
último, está longe de ser unânime a data de 423 para a estreia de
Suplicantes, que Sommerstein aceita a partir da edição de C. Collard18,
ao passo que os críticos oscilam entre uma datação mais remota, com
privilégio para o ano de 424, e outra mais recente, entre 417-416 19.
O facto é que talvez seja mesmo impossível, neste como em tantos
outros casos, localizar as origens da imagem da vespa, desde logo
porque, mais do que literárias, elas devem ser populares, do âmbito
da etnografia e da oralidade. Seja como for, a alegoria surge já em
dois momentos da Ilíada, em dois símiles nos quais vale a pena
demorar-se. O primeiro, no contexto do ataque troiano à muralha
dos Aqueus, é proferido por Ásio ante a bravura dos Gregos que
resistem, em especial de Polipetes e Leonteu (Il. 12. 167-172),

οἳ δ’, ὥς τε σφῆκες μέσον αἰόλοι ἠὲ μέλισσαι


οἰκία ποιήσωνται ὁδῷ ἔπι παιπαλοέσσῃ,

18 Collard 1975: 8-14.


19 Vd. Ferreira 1985-1986: 87-88, n. 4, para o essencial do estado da questão e
da bibliografia.

193
οὐδ’ ἀπολείπουσιν κοῖλον δόμον, ἀλλὰ μένοντες
ἄνδρας θηρητῆρας ἀμύνονται περὶ τέκνων,
ὣς οἵ γ’ οὐκ ἐθέλουσι πυλάων καὶ δύ’ ἐόντε
χάσσασθαι πρίν γ’ ἠὲ κατακτάμεν ἠὲ ἁλῶναι.

Se, como bem apontou B. Hainsworth 20, o símile causa alguma


estranheza – na medida em que não é comum que ocorram no âm-
bito de discursos diretos, e, no caso, não está realmente em causa
uma multidão de homens (καὶ δύ’ ἐόντε, v. 171) – o certo é que nele
se deteta um dos aspetos que seriam frequentes nos posteriores
tratamentos literários da alegoria das vespas: a defesa inabalável
da colmeia ou cortiço, e da família, em particular dos filhos (περὶ
τέκνων, v. 170). Os termos οἰκία (v. 169) e δόμον (v. 170) denotam
aliás a humanização dos insetos no símile, ao mesmo tempo que
ἄνδρας θηρητῆρας ἀμύνονται περὶ τέκνων (v. 170) não pode deixar
de lembrar o próprio enredo de Vespas, apenas invertido. Nesta, com
efeito, é o filho que protege o pai, e as vespas são, a início pelo
menos, o elemento ameaçador.
Mais comentado e referido como exemplo tem sido o símile do
canto 16, no qual se detetam outros pormenores de interesse (Il.
16.259-267) 21. O termo de comparação, desta feita, é o exército dos
Mirmidões, nesse momento comandado por Pátroclo, contra a von-
tade e às ocultas de Aquiles, quando se trata de defender as naus
do ataque troiano:

αὐτίκα δὲ σφήκεσσιν ἐοικότες ἐξεχέοντο


εἰνοδίοις, οὓς παῖδες ἐριδμαίνωσιν ἔθοντες
αἰεὶ κερτομέοντες ὁδῷ ἔπι οἰκί’ ἔχοντας
νηπίαχοι· ξυνὸν δὲ κακὸν πολέεσσι τιθεῖσι.
τοὺς δ’ εἴ περ παρά τίς τε κιὼν ἄνθρωπος ὁδίτης

20 Hainsworth 1993: 336.


21 Uma das mais detalhadas e atuais análises do símile pode ler-se em Brügger
2018: 122-126.

194
κινήσῃ ἀέκων, οἳ δ’ ἄλκιμον ἦτορ ἔχοντες
πρόσσω πᾶς πέτεται καὶ ἀμύνει οἷσι τέκεσσι.
τῶν τότε Μυρμιδόνες κραδίην καὶ θυμὸν ἔχοντες
ἐκ νηῶν ἐχέοντο· βοὴ δ’ ἄσβεστος ὀρώρει.

Em vez do mais simples ὥς σφῆκες do trecho anterior, o símile


abre com a fórmula comparativa σφήκεσσιν ἐοικότες (v. 259), a mes-
ma que, com outros referentes, surge 16 vezes na Ilíada, quatro na
Odisseia e duas outras na Teogonia de Hesíodo22. Presentes no símile
estão, uma vez mais, as noções de proteção da casa e do núcleo fa-
miliar (οἰκία, v. 161; ἀμύνει οἷσι τέκεσσι, v. 265). Como no Canto 12,
a escolha vocabular aponta claramente no sentido da humanização
destas vespas, algo frequente nos símiles animais do poema, como
é o caso dos lobos com que os Mirmidões haviam sido comparados
poucos versos antes (Il. 16.156-165) ou, mais evidente pela carga
psicológica que encerra, do leão que é imagem de Menelau no Canto
17, de quem é dito que “o valente coração se lhe gela no peito”
(Il. 17.111). Novidade neste passo são as noções de irascibilidade
(ἐριδμαίνωσιν, v. 260; ἄλκιμον ἦτορ ἔχοντες, v. 263; κραδίην καὶ θυμὸν
ἔχοντες, v. 265) e as notações de movimento (ἐξεχέοντο, v. 259; ἐχέοντο
v. 267), comuns a ambos os termos do símile e, como se viu, parte
integrante da alegoria em todos os seus tratamentos posteriores. Os
verbos cognatos ἐκχέω (v. 259) e χέω (v. 267), normalmente utilizados
com referentes líquidos, mais do que a noção de multidão, carre-
gam consigo a imagem desse enxame que, independentemente do
seu número, se abateu sobre os inimigos troianos e os desorientou.
A completar o quadro sinestésico, o clamor guerreiro (βοὴ ἄσβεστος,
v. 267) não deixa naturalmente de ter relação com as vespas.
Se estariam os dois símiles homéricos na mente de Aristófanes
aquando da composição de Vespas, nunca o saberemos. Mas eles são

22 Apud Brügger 2018: 123. A influência na épica posterior foi grande. Só nos
Posthomerica de Quinto de Esmirna (séc. IV AD), a fórmula σφήκεσσιν ἐοικότες surge
por três vezes (8.41, 11.146, 13.55).

195
importantes como prova da antiguidade de uma alegoria que, como
parecem demonstrar os passos antes citados da tragédia e da comé-
dia áticas, devia ser de decifração automática para os espectadores.
De resto, a paródia da épica homérica ocupa um importante espa-
ço na comédia de 422 a.C., para mais relacionada com o elemento
animal. Basta lembrar o sonho que assaltara, na noite anterior, o
escravo Xântias: uma águia pairava sobre a ágora com uma serpente
nas garras, que logo se transformou num escudo de bronze, objeto
que a criatura deixou em seguida cair ao chão – clara paródia a Il.
12.200-229 e, como no passo homérico, premonição do falhanço de
uma empresa. De relação mais imediata ainda é um dos estratagemas
de fuga de Filócleon (vv. 179-189), ao esconder-se debaixo de um
burro – versão cómica da fuga de Ulisses da gruta do Ciclope, na
Odisseia (9.424-463) 23.
Finalmente, outro género literário deve acrescentar-se à colação.
Esopo e as suas historietas têm uma presença notória na comédia24,
no contexto de cenas de banquete entre homens ilustres – que,
no enredo cómico, apenas se ensaiam como parte do processo de
reeducação social de Filócleon. Oportuna numa comédia assente na
metáfora e na alegoria animais, é certo, a presença das vespas em
duas fábulas do corpus esópico que nos chegou (235-236 Hausrath)
legitima a popularidade desse animal, embora pouco acrescente
enquanto imagem política e símbolo do coletivo 25.

23 Deve ter razão MacDowell 1971: 155-156, que não vê razões linguísticas que
sustentem a paródia de um passo literário em específico, da Odisseia ou qualquer
outro, preferindo ler a cena como um gracejo circunstancial sobre um episódio da
épica bem conhecido. A outro nível, Aristófanes poderia ter em mente o Ciclope de
Eurípides – onde, porém, não se recorre ao episódio da fuga da caverna sob as ove-
lhas – ou mesmo o Ulisses de Cratino (frs. 143-157 K-A).
24 Com quatro ocorrências: Αἰσώπου γελοῖον (vv. 566, 1259), Αἴσωπον (vv. 1401,
1446).
25 Na fábula 235, umas vespas oferecem proteção a um agricultor contra os ladrões,
prometendo afastá-los com o seu aguilhão (τοῖς κέντροις τοὺς κλέπτας ἀπώσεσθαι)
em troca de água – o que o agricultor recusa. No núm. 236, uma cobra suicida-se
por não suportar as picadas contínuas de uma vespa (συνεχῶς τῷ κέντρῳ πλήσσων
ἐχείμαζε), morrendo ambas.

196
Os testemunhos que até aqui recuperámos situam a alegoria que
nos importa num âmbito essencialmente político, como política é
a ação de Vespas e de todo o teatro ático. Uma imagem que, mais
ou menos desenvolvida, tem como ingredientes fundamentais (1) o
temperamento irascível do animal, sobretudo quando atacado, (2) a
sua vida gregária e (3) a defesa do coletivo, por via do aguilhão – já
seja o núcleo familiar, ou a totalidade da pólis –, que desse modo se
transforma em arma punitiva. O elucidativo trabalho de D. S. Allen26,
movendo-se sobretudo entre os testemunhos da oratória e os da co-
média de 422 a.C., deixou claro que a ὀργή, a emoção principal que
move Filócleon e os jurados do Coro – que, nessa manhã, surgem
em cena “armados de uma ração de cólera para três dias” (ἔχοντας
ἡμερῶν ὀργὴν τριῶν πονηράν, v. 243) – era na verdade necessária
ao bom funcionamento do sistema democrático, elemento regulador
da máquina judicial e um tópico recorrente no discurso político
ateniense. Para essa conclusão concorre um conjunto de passos dos
textos dos oradores áticos – eles que, na realidade das instituições
atenienses, seriam os encarregados de convencer os jurados de que
Filócleon e o Coro são o retrato cómico – nos quais é frequente o
apelo à ὀργή pessoal e coletiva como justificação da condenação
de um arguido 27. Trata-se afinal, como na tragédia, de vingança ou
retribuição, de um processo social e jurídico regulador que assenta,
na base, no pagar na mesma moeda.
Só em Vespas, de todas a comédia judicial por excelência, o termo
ὀργή surge sete vezes (não contando os seus cognatos), e em todas
elas se refere a Filócleon ou ao Coro28. No fundo, como Demóstenes

26 Allen 2003: 77-98.


27 Paradigmático é o exemplo de Demóstenes, Contra Mídias (123): Τοῦτο μέντοι
τὸ τοιοῦτον ἔθος καὶ τὸ κατασκεύασμ’, ὦ ἄνδρες Ἀθηναῖοι, τὸ τοῖς ὑπὲρ αὑτῶν ἐπεξιοῦσι
δικαίως ἔτι πλείω περιιστάναι κακά, οὐκ ἐμοὶ μὲν ἄξιόν ἐστ’ ἀγανακτεῖν καὶ βαρέως
φέρειν, ὑμῖν δὲ τοῖς ἄλλοις παριδεῖν, πολλοῦ γε καὶ δεῖ, ἀλλὰ πᾶσιν ὁμοίως ὀργιστέον
(...). Cf. schol. TBcFj ad loc.: ἀλλὰ πᾶσιν ὁμοίως ὀργιστέον] πάλιν εἰς τὸ δημόσιον ἀνάγει
τὰ πραχθέντα καὶ κέχρηται τελικὰ κεφάλαια τῷ συμφέροντι. Vd. Allen 2003: 76-83.
28 Haveria ainda que acrescentar à contabilidade uma ocorrência de χολή (εἰπέ
μοι, τί μέλλομεν κινεῖν ἐκείνην τὴν χολήν, / ἥνπερ ἡνίκ’ ἄν τις ἡμῶν ὀργίσῃ τὴν σφηκιάν,
vv. 403-404;) e duas de θυμός (τὸν ἐμὸν θυμὸν κατερεῖξαι, v. 649; θυμὸν ὀξίνην, v.

197
apela aos seus jurados que se armem de cólera para deliberar (ἀλλὰ
πᾶσιν ὁμοίως ὀργιστέον29), também Aristófanes é claro quando afirma,
pela boca do Coro, que “qualquer cidadão que não tenha aguilhão,
não deve tocar no trióbolo” (ἂν μὴ ‘χῃ τὸ κέντρον μὴ φέρειν τριώβολον,
v. 1121). Digamos, numa palavra, que o comediógrafo aproveitou
algo de comum e orgânico que havia na lógica judicial para nis-
so basear toda a peça, transferindo a ação da pólis para o oikos.
E é dessa transposição que surge a comédia, como acontece com a
tragédia30. A derradeira solução paliativa engendrada por Bdelícleon,
a simulação do tribunal doméstico, é prova disso mesmo: da ine-
vitabilidade da ὀργή e da impossibilidade da sua cura. Bdelícleon
parece alinhar, afinal, com uma corrente minoritária que condenava,
pelo menos em teoria, o uso das emoções no exercício das funções
judiciais, do qual seria exemplo Antifonte, que apelava diretamente
à necessidade de que as deliberações não fossem emocionalmente
motivadas: ἀλλὰ πρότερόν γ’ εὖ βουλεύσασθε, καὶ μὴ μετ’ ὀργῆς καὶ
διαβολῆς, ὡς τούτων οὐκ ἂν γένοιντο ἕτεροι πονηρότεροι σύμβουλοι
(De caede Her. 71).
Críticos houve, como se disse, que identificaram o aguilhão do
figurino do Coro da comédia aristofânica com o tradicional falo.
Ultrapassada a questão, porquanto o texto de Vespas não parece
sustentá-la em termos cenográficos, o certo é que os espectadores
fariam tal associação semântica. O assunto, de resto, foi alvo de di-
versos estudos31, dos quais destacamos o de E. Csapo32, que se serve

1080), termos que, como abaixo se discutirá, quase substituíram o primeiro a partir
do período helenístico.
29 Vd. nota 27.
30 Apud Allen 2003: 85: “Anger might be useful in the polis, but in the household,
as tragedy portrays it, it is ultimately destructive.” Como que consciente da metáfora
política, Aristóteles (HA 627b) considera que “os zangãos, se em pequeno número,
são favoráveis ao enxame, porque tornam as abelhas mais laboriosas” (κηφῆνες δ’
ὀλίγοι ἐνόντες ὠφελοῦσι τὸ σμῆνος· ἐργατικωτέρας γὰρ ποιοῦσι τὰς μελίττας.). Trad.
de Silva 2008: 186.
31 Reckford 1977: 235 sqq., 522 n. 16 (bibliografia), Henderson 1991: 122, Padel
1992: 118, 121-122.
32 Csapo 1993: 6-7 + plate 1.

198
do testemunho de Aristófanes (em distintas peças) e da iconografia
conservada 33 para concluir não apenas que “o Coro de Vespas era
certamente fálico”, mas também que, se em muitos casos as suas
autorreferências ao aguilhão dizem na verdade respeito aos falos,
o texto parece confirmar a existência do aguilhão como segundo
acessório de figurino, na parte traseira (e.g. vv. 225, 1075), revestido
muito embora de igual carga semântica 34. Poder-se-ia assim falar –
pelo menos simbolicamente – de um coro duplamente fálico. Se a
assimilação de qualquer objeto ou parte do corpo de propensa forma
fálica, já de si, permite um segundo sentido implícito, a relação do
aguilhão e das vespas que o envergam com o ataque de natureza
sexual parece textualmente confirmada na comédia em mais do que
um ponto, como sucede quando o Coro despe os casacos com que
entrou em cena e revela a sua caraterização de vespa, realçando o
“o aguilhão irritadiço (...) em riste” (κέντρον ἐντέτατ’ ὀξύ, v. 407).
O testemunho científico de Aristóteles 35 bastaria para confirmar
aquilo que, na prática cénica, seria uma opção óbvia: o entendimen-
to do particípio do verbo ἐντείνω como referindo-se ao pénis ereto.
Assim procedemos também nós, na montagem da peça com o grupo
Thíasos, em 2008.
Com efeito, em diversos momentos Filócleon e o Coro se gabam de
uma virilidade que já ninguém lhes reconhece. Quando, na segunda
Parábase, o Corifeu lamenta os tempos idos da juventude, os tempos
em que defenderam a cidade contra os Persas, lamenta a perda de
uma coragem também evidente ao nível do desempenho sexual (καὶ

33 Csapo 1993: 6 analisa o lado A do famoso cálix-krater ático de figuras vermelhas,


de c. 420-410 a.C. (Malibu, inv. 82.AE.83), no qual dois supostos coreutas vestidos de
galo dançam ao som da música produzida por um auleta. Na peça, reparou que as
esporas do galo da esquerda são fálicas (semelhantes mesmo, no desenho, ao falo do
galo da direita), pelo que sugere que, também no caso do Coro de Vespas, essa ligação
semântica aguilhão-falo que o texto empreende pudesse ter concretização no figurino.
34 Cf. Reckford 1977: 307: “The sting is a stand-in not just for anger, but for anger
as a sexual surrogate.”
35 Διὰ τί οἱ ἀφροδισιάζοντες καὶ οὐρητιῶντες ἐντείνουσιν; ἢ ὅτι πληρουμένων τῶν
πόρων ὑγρότητος, τὸ σπέρμα ὑπεξιὸν ἐν ἐλάττονι τόπῳ πλείονά τε ὄγκον ποιεῖ καὶ αἴρει;
ἐπίκειται γὰρ τὸ αἰδοῖον ἐπὶ τοῖς πόροις. (Arist. Pr. 879a 11).

199
κατ’ αὐτὸ τοῦτο μόνον ἄνδρες ἀλκιμώτατοι, v. 1062), apanágio de uma
raça de Atenienses que parece não encontrar paralelo nas mais novas
gerações. Uma raça caraterizada pela sua virilidade (ἀνδρικώτατον
γένος, v. 1077), por oposição aos zangãos (κηφῆνες, v. 1114) da nova
elite ateniense (demagogos, a nova geração de educação sofística),
que não têm aguilhão (οὐκ ἔχοντες κέντρον, v. 1115) e, como no reino
animal que lhes serve de imagem, vivem às custas dos exemplares
coletores da espécie 36. É por isso que Filócleon, abandonados os
tribunais, é ensinado pelo filho a comportar-se como essas novas eli-
tes, sendo recorrentemente caraterizado de velho e impotente, como
fica claro numa das cenas finais, com uma flautista, à qual pede que
trepe até si segurando na sua cordinha (τῇ χειρὶ τουδὶ λαβομένη τοῦ
σχοινίου37, v. 1342).
O até aqui exposto associa à imagem da vespa um segundo sen-
tido, não isolado do político que primeiro e mais naturalmente se
concluiu. Desta feita, trata-se de um sentido essencialmente erótico,
de masculinidade violenta, que cedo se terá associado ao universo
da poesia iâmbica. Para ele pode também concorrer uma ressonân-
cia linguística, para a qual primeiramente chamou à atenção D. S.
Allen 38, e que aqui pretendemos desenvolver. Pergunta a autora se
pode ter relevância que o genitivo de “vespa” (σφηκός) seja tão pró-
ximo ao nominativo do termo σφῆκος (“colar de figos”), dando os
exemplos de Bdelícleon, que antecipa a chegada do Coro ao ouvir “o
crepitar de ramos de figueira” (θρίων τὸν ψόφον), ou da criança que
acompanha os juízes populares e pede ao pai figos secos (ἰσχάδας,

36 A oposição abelha (vespa) / zangão remonta pelo menos à narrativa da criação


de Pandora por Hesíodo (Theog. 594-601). Aristóteles (HA 628b 4-7) menciona os
zangãos, referindo-se à falta de aguilhão, ao facto de não trabalharem para o cole-
tivo e à crença popular (inevitavelmente machista) de que seriam fêmeas: εἰσὶ δ’ οἱ
ἄκεντροι ἐλάττους καὶ ἀμενηνότεροι, καὶ οὐκ ἀμύνονται, οἱ δ’ ἔχοντες τὰ κέντρα μείζους
καὶ ἄλκιμοι· καὶ καλοῦσι τούτους ἔνιοι μὲν ἄρρενας, τοὺς δ’ ἀκέντρους θηλείας. (“As
que não têm ferrão são mais pequenas, menos vigorosas, sem capacidade de defesa,
enquanto as que o têm são maiores e mais agressivas. Há quem chame machos a estas
últimas, e às que não têm ferrão, fêmeas.”). Trad. de Silva 2008: 189.
37 Cf. LSJ s.v. σχοινίον III: “membrum virile”.
38 Allen 2003: 88-94.

200
v. 297). Tem razão a autora quando interpreta o último pedido como
uma alusão à idade avançada dos homens-vespa e à sua impotência
sexual, sobretudo a partir do sentido de “secar” (ἰσχαναίω) presente
no termo e da sua utilização referente aos genitais femininos, em
especial os de mulheres maduras 39. Tematicamente, a possibilidade
de estar também implícito nos conceitos de figo (σύκον) e sicofanta
(συκοφάντης) o ritual do pharmakos, a que em boa hora alude 40,
aumenta consideravelmente o conjunto de termos e ideias que nos
remetem para o universo do iambo grego da época arcaica. Em es-
pecial para Hipónax, o efésio, cujos fragmentos 5-12 West têm sido
relacionados com dito ritual, poeticamente utilizado como invetiva
contra Búpalo, o principal alvo do seu psogos, a acreditar na tradição
pseudobiográfica.41 Figos ou figueiras são de facto referidos pelo
iambógrafo, mesmo em fragmentos com possibilidade de interpretação
erótica, como é o caso do fr. 48 West (= 58 Medeiros), onde συκῆν
μέλαιναν foi interpretado como referente ao “grande falo” (σύκινος)
que desfilava nas Dionísias Rurais42. Ou o mais polémico συκοτραγίδες
do fr. 167 West (= 174 Medeiros), que Suetónio e Eustácio parecem
atribuir a ambos, Arquíloco e Hipónax – mas que quase de certeza

39 Cf. Allen 2003: 89-90 e n. 42. Semelhante utilização erótica dos figos secos
pode ver-se já em Acarnenses (797-808), onde Diceópolis oferece ἰσχάδες às filhas
do Megarense, que entram em cena mortas de fome e disfarçadas de porquinhas
(χοιρίδια) – termo, o último, com igualmente óbvia leitura erótica.
40 Allen 2003: 89. De origens agrárias, a cerimónia do pharmakos inclui-se entre
os ritos de purificação mais selváticos da religião grega, cuja etiologia pode estar no
sacrifício primeiro de um indivíduo chamado Pharmakos que, surpreendido a roubar
as taças de Apolo, foi apedrejado até à morte pelos companheiros de Aquiles (cf.
Istros, 334 FGrH fr. 50). Em Atenas, celebrava-se no primeiro dia das Targélias ou em
qualquer momento de calamidade pública. Um homem ou uma mulher (às vezes um
casal), dos mais disformes, sobre quem recaía toda a responsabilidade da doença de
que padecia a comunidade, recebiam como última refeição figos, um bolo de cevada
e uma ração de queijo, e em seguida obrigados a atravessar as ruas da cidade, ao
longo das quais a multidão os açoitava com ramos de figueira, em especial na zona
genital. Em Atenas, desfilavam ainda com um colar de figos ao pescoço. Podiam no
final ser lapidados até à morte, sendo o seu cadáver atirado ao mar. Sobre o ritual e
a sua presença na religião grega vide Burkert 1993: 176-179.
41 Vd., sobre o assunto, Jesus 2008: 42-44, com n. 27 para a principal bibliografia.
42 Apud Medeiros 1961: 96. Vd. Pestalozza 1951: 318.

201
é um neologismo do primeiro –, magistralmente traduzido por W. S.
Medeiros por “vergôntea dos rilha-figos” 43.
Quanto às vespas, a sua associação ao universo do iambo, e às
figuras de Arquíloco e Hipónax em particular, é literariamente tar-
dia, surgindo pela primeira vez, de forma explícita pelo menos e
associada a Arquíloco, num passo de Calímaco (fr. 380 Pf. = Archil.
test. 36 Gerber), que se refere à arte do iambógrafo como contendo
“a mordaz cólera de um cão e o aguçado aguilhão de uma vespa,
e de ambos o veneno em sua boca” (εἵλκυσε δὲ δριμύν τε χόλον
κυνὸς ὀξύ τε κέντρον / σφηκός, ἀπ’ ἀμφοτέρων δ’ ἰὸν ἔχει στόματος).
Contudo, pode a sua antiguidade remontar a tempos anteriores a
Aristófanes, a meados do século V a.C. Com efeito, a fragmentária
comédia Arquílocos de Cratino (frs. 1-16 K-A) desenvolveria um agon
entre dois semi-coros e, simultaneamente, dois géneros literários: a
invetiva de sabor arquiloquiano, representada por um grupo de po-
etas iâmbicos, por um lado, e Homero e Hesíodo, por outro – com
vitória, naturalmente, do primeiro grupo. De resto, como o poeta de
Paros em face de Licambas (fr. 23.14-15 West), também o Arquíloco
cómico afirma saber “pagar na mesma moeda” a quem lhe faz mal
(Cratin., fr. 6.2 K-A). Noutro fragmento, comodamente intitulado
“salsa de Tasos” (fr. 6 K-A), teria Cratino desenvolvido a imagem de
um assado onde a própria família de Licambas é a carne que grelha,
vítima dos virulentos ataques do iambógrafo 44 . Mas importa-nos
sobretudo o fr. 2 K-A, quando menciona um “enxame de sofistas”
(σοφιστῶν σμῆνος), expressão que levou A. Barchiesi a considerar a
possibilidade de um coro “do tipo com aguilhão” 45. De ser assim, não
seria descabido pensar que Aristófanes tivesse esse espetáculo em

43 Vd. Medeiros 1961: 232-233; idem 1969: 80-81. O sentido literal seria o de
“come-figos” (συκοτραγέω), também relacionado com o passivo σύκομαι, tardiamente
utilizado pelo epigramatista Páladas (βρώματά μοι χοίρων συκιζομένων προέθηκας,
AP 9.487, v. 1), poeta já dos séc. IV AD e ele próprio bom conhecedor da tradição
iâmbica antiga.
44 Sobre a comédia em discussão, vd. Silva 1987: 16-19 (com notas para bibliogra-
fia). E, sobre o fr. 6 K-A de Cratino, em específico, Pretagostini 1982: 43-52.
45 Barchiesi 2001: 150, n. 3.

202
mente aquando da conceção do seu corpo de juízes-vespa, embora
não haja forma de o demonstrar com segurança.
Especialmente devedores da tradição biografista que líamos em
Calímaco – a mesma que, como demonstrámos em seu momento,
se prolongou no tempo e chegou ao Renascimento, por via da sua
receção intermédia no iambo romano 46 – são três epigramas hele-
nísticos mais tardios, todos eles epitáfios, coligidos na Antologia
Grega 47. Num deles, atribuído a Getúlico (7.71) 48, aconselha-se o
transeunte a passar com pés de lã perto do túmulo de Arquíloco,
para não despertar “as vespas que rodeiam o seu túmulo” (τύμβῳ
σφῆκας ἐφεζομένους, v. 6). Imagem que constava já de outros dois
epitáfios, anteriores no tempo mas do mesmo século I AD: um de
Filipo (7.405), no qual pertence a Hipónax a tumba que se acon-
selha evitar para não despertar a “vespa adormecida” (σφῆκα τὸν
κοιμώμενον, v. 4); e outro de Leónidas (7.408) – que deve mesmo
ter sido a inspiração dos demais –, com alusão à “pungente vespa
que descansa” (πικρὸν… σφῆκ’ ἀναπαυόμενον, v. 2) e que convém a
todo o custo não atiçar. A alegoria das vespas, ainda que não con-
cretizada, está também implícita noutras composições do mesmo
género e ao longo dos períodos helenístico e bizantino. Textos nos
quais é uma constante o uso do adjetivo πικρός (e derivados), em
termos semânticos já um elemento-chave da imagem do aguilhão
na comédia, aí dado sobretudo por via de distintas formas de ὀξύς
e derivados, como antes se viu. Assim, em AP 7.352 (epigrama sem
certezas atribuído a Melegaro, do séc. I a.C.), refere-se o πικρὸς
Ἀρχίλοχος (vv. 7 e 9); Getúlico alude à πικρὴν μοῦσαν (AP 7.71.1-2);
e Juliano, já no século VI da nossa era, à πικροχόλου… στόματος de
Arquíloco (AP 7.69.4). Continua a estar em causa, como bem defendeu

46 Vd. Jesus 2007: 241-256, repr. in Jesus 2008: 55-65, com notas, para a bibliografia
essencial. Katz 2008: 207-213 estuda o caso específico de Horácio, a partir de Epist.
1.19.23, passo que entende como programático da inspiração arquiloquiana no vate
romano e como atualização da imagem da vespa, aí aplicada a si próprio.
47 Sobre estes textos, o seu contexto e sentidos, vd. Rosen 2007: 459-476.
48 O epigrama de Getúlico, em específico, é analisado por Brown 2001: 429-432.

203
G. Brown a propósito do epigrama de Getúlico, a noção de “afiado”,
“aguçado” ou “pungente”, literalmente aplicado às flechas na épica
(e.g. πικρὸν ὀϊστόν, Il. 4.118) e, metaforicamente, à palavra que fere
como flechas, já em Eurípides (γλώσσης πικροῖς κέντροις, HF 1288)49.
Estamos, afinal, no vasto domínio das imagens da palavra poética
como arma, um lugar-comum em toda a poesia grega 50.
Arquíloco e Hipónax, a partir da comparação que pela primeira
vez lemos em Calímaco, são agressores que não deixaram de o ser
mesmo depois da morte, tal a violência proverbial dos seus iambos
e da raiva que os movera contra os Licâmbidas e Búpalo e Átenis,
respetivamente 51. Uma raiva que, chegados ao período helenístico,
é preferencialmente χόλος52, e às vezes θύμος53, mas não mais ὀργή,
que parecia ser, como vimos na comédia de Aristófanes, o termo
mais frequente na época clássica. Esta evidência, só por si, denuncia
o conhecimento dos textos dos dois iambógrafos arcaicos por parte
destes autores tardios, porquanto é sobretudo o primeiro termo –
na sua versão feminina (χολή), o que por eles deve ter sido mais
utilizado, a avaliar pelas ocorrências nos fragmentos conservados54.
Muito mais poderia dizer-se sobre aquela que, como ficou de-
monstrado, é uma alegoria evidente, por um lado, e transversal à

49 Apud Brown 2001: 430.


50 Vd. Brown 2001: 432, n. 24, para o elenco dos principais exemplos.
51 Vd. Jesus 2008: 31-44, para o essencial da tradição biográfica de ambos os
poetas. Em algum momento as lendas biográficas de ambos ter-se-ão (con)fundido,
sendo a de Hipónax associada à de Arquíloco. Tanto que um escólio a Hor. epod. 6.14
(= Hippon. test. 11 Gerber) refere mesmo uma versão (de que discorda) segundo a
qual o casamento combinado entre o poeta e a filha de Búpalo teria sido cancelado
dada a fealdade do primeiro. No mesmo escólio, porém, afirma-se que Búpalo se
teria enforcado em consequência dos ataques virulentos de Hipónax, clara analogia
com a tradição dos Licâmbidas (Arch. test. 19-32 Gerber), hipótese que já Plínio (NH
36.4.12) refutava para o caso do poeta do efésio.
52 δριμύν τε χόλον κυνὸς (Call., fr. 380 Pf. = Archil. test. 36 Gerber); ἐχιδναίῳ…
χόλῳ (Getúlico, AP 7.71.2); οὐδ’ ἐν Ἅιδῃ νῦν κεκοίμικεν χόλον (Filipo, AP 7.405.5).
53 Θυμὸν ἰάμβων ( Juliano, AP 7.69.3); κεκοίμηται θυμὸς ἐν ἡσυχίῃ (Leónidas, AP
7.408.49).
54 Arquíloco: τίς ἆρα δαίμων, καὶ τέου χολούμενος (210 W.), χολὴν γὰρ οὐκ ἔχεις
ἐφ’ ἥπατι (234 W.); Hipónax: ὤμειξε δ’ αἷμα καὶ χολὴν ἐτίλησεν (73.3 W., onde deve
ter o sentido mais literal de “bílis”).

204
literatura grega, por outro. Ficou claro que não se trata de uma
criação aristofânica, desde logo na medida em que este tipo de
imagens animais têm origens populares que se perdem nos tempos
e nas geografias. Da mesma forma, nem sequer a ideia de dotar de
aguilhão um coro de comédia pode, sem mais delongas, ser conside-
rada um inédito aristofânico. Seja como for, os exemplos que fomos
apreciando harmonizam-se com relativa facilidade em torno a dois
conceitos-chave: o poder da palavra violenta, por um lado – seja o
da retórica judicial, ou o da poesia invetiva – e a noção de coletivo,
de um grupo de indivíduos que, regra geral, se move impulsiona-
do por uma raiva (ὀργή, χολήν ou θυμός) em tudo paralela à que
sempre se reconheceu nesse animal. Dois sentidos que, longe de se
autoexcluírem, parecem antes complementar-se nos exemplos estu-
dados. Os Mirmidões na Ilíada, os juízes-vespa ou o poeta iâmbico,
valorações morais à parte, partilham uma mesma intenção de corrigir
por via da punição, de um ataque que, como o aguilhão das vespas,
é pungente e difícil de evitar.

Bibliografia

Allen, D. S. (2003), “Angry bees, wasps, and jurors: the symbolic politics of ὀργή in
Athens”, in S. Braund, G. W. Most (eds.), Ancient anger. Perspectives from Homer
to Galen. Cambridge: University Press, 76-98.
Barchiesi, A. (2001), “Horace and Iambos: the poet as literary historian”, in A. Cavarzere,
A. Aloni e A. Barchiesi (eds.), Iambic Ideas. Essays on a poetic tradition from Archaic
Greece to the Late Roman Empire. Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 141-164.
Beavis, I. C. (1988), Insects and other invertebrates in Classical Antiquity. Oxford: Alden
Press.
Brown, C. G. (2001), “Arrows and etymology: Gaetulicus’ epitaph for Archilochus”, CPh
96: 429-432.
Brügger, C. (2018), Homer’s Iliad. The Basel commentary. Book XVI. Boston, Berlin: De
Gruyter.
Burkert, W. (1993), Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Trad. M. J. Simões
Loureiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Collard, C. (1975), Euripides. Supplices. Gröninguen: Bouma’s Boekhuis.
Csapo, E. (1993), “Deep ambivalence: notes on a Greek cockfight parts i–iv”, Phoenix
47: 1–28, 115–24.

205
Ferreira, J. R. (1985-1986), “Aspectos políticos nas Suplicantes de Eurípides”, Humanitas
37-38: 87-121.
Gerber, D. E. (1999), Greek iambic poetry from the seventh to the fifth centuries BC.
Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
Hainsworth, B. (1993), The Iliad: A Commentary. Volume III: books 9-12. Cambridge:
University Press.
Hausrath, A. (1959), Corpus Fabularum Aesopicarum. Vol. I, Fasc. 2. Leipzig: Teubner.
Hausrath, A. (1970), Corpus Fabularum Aesopicarum. Vol. I, Fasc. 1. Leipzig: Teubner.
Henderson, J. (1991) The maculate muse. Obscene language in Attic comedy. New
Haven, London: Yale University Press.
Jesus, C. A. M. (2007). “De ingeniosa maledicentia. Estêvão Rodrigues de Castro e a
recepção de Arquíloco no Renascimento”, Humanitas 59: 241-256.
Jesus, C. A. M. (2008), A Flauta e a Lira. Estudos sobre poesia grega e papirologia.
Coimbra: Fluir Perene.
Jesus, C. A. M. (2010), As Vespas, in M. F. S. Silva, C. A. M. Jesus (eds.), Aristófanes.
Comédias II. Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 11-178.
Katz, J. T. (2008), “Dux reget examen (Epistle 1.19.23): Horace’s Archilochean signature”,
Materiali e discussioni per l’analisi dei testi classici 59: 207-213.
Krentz, P. (2010), The Battle of Marathon. New Haven, London: Yale University Press.
MacDowell, D. M. (1971, repr. 2003), Aristophanes. Wasps. Oxford: Clarendon Press.
Medeiros, W. S. (1961), Hipónax de Éfeso I. Fragmentos dos Iambos. Coimbra: ed. autor.
Medeiros, W. S. (1969), Hipponactea. Subsídios para uma nova edição crítica do
iambógrafo de Éfeso. Coimbra: ed. autor.
Padel, R. (1992), In and out of the mind: Greek images of the tragic self. Princeton:
University Press.
Pestalozza, U. (et alii eds.) (1951), Religione Mediterranea: vecchi e nuovi studi. Milano:
Fratelli Bocca.
Pickard-Cambride, A. (1962, 2ª ed.), Dithyramb, tragedy and comedy. Reviewed by T.
B. L. Webster. Oxford: Clarendon Press.
Pretagostini, R. (1982), “Archiloco ‘salsa di Taso’ negli Archilochi di Cratino (fr. 6 K.)”,
QUCC 11: 43-52.
Reckford, K. J. (1977) “Catharsis and dream interpretation in Aristophanes’ Wasps”,
TAPhA 107: 283–312.
Rosen, R. M. (2007), “The Hellenistic epigrams on Archilochus and Hipponax”, in P.
Bing, J. S. Bruss (eds.), Brill’s companion to Hellenistic epigram down to Philip.
Leiden, Boston: Johns Hopkins University Press, 459-476.
Sifakis, G. M. (1971), Parabasis and animal choruses. A contribution to the history of
Attic comedy. London: Athlone Press.
Silva, M. F. S. (1987, repr. 1997), Crítica do teatro na Comédia Antiga. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica.
Silva, M. F. S. (2008), Aristóteles, História dos animais II. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda.
Silva, M. F. S. (2015), Aristófanes, O Dinheiro. Coimbra-São Paulo: Imprensa da
Universidade de Coimbra, Annablume.

206
Soares, C. L. (2009), Ciclope, in C. L. Soares (et alii, eds.), Eurípides. Tragédias I. Lisboa:
Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Sommerstein, A. H. (1983), The Comedies of Aristophanes IV. Wasps. Warminster, Aris
& Phillips Ltd.
Taillardat, J. (1965, 2ª ed.), Les Images d’Aristophane. Études de langue et de style. Paris:
Les Belles Lettres.
West, W. C. (1969), “The trophies of the Persian Wars”, CPh 64.1: 7-19.
West, M. L. (1992, repr. 1998), Iambi et elegi graeci ante Alexandrum cantati. Editio
altera. Oxford: University Press.
West, W. C. (2009), Greek public monuments of the Persian Wars. Ann Arbor: UMI.

207
(Página deixada propositadamente em branco)
A r i s t ó fa n e s e P l atã o :
do poder das mulheres na pólis.
Paródia e Utopia

A r i s to p h a n e s a n d P l ato :
T h e P ow e r o f W o m e n i n t h e P o l i s .
P a r o dy a n d U to p i a

Rui Tavares de Faria


Univ. Açores, CECH
ORCID: 0000-0002-0529-9107
rui.mv.faria@uac.pt

Resumo: O cenário social, político e económico da Atenas do pós-Guerra


do Peloponeso requeria mudanças e medidas urgentes. Uma pólis
ameaçada pelo declínio viu no teatro cómico e num certo tratado filo-
sófico a proposta para uma possível manutenção do poder, atribuindo
às mulheres o papel de governantes ou co-governantes. A comédia
Mulheres na assembleia, de Aristófanes, e o Livro V da República, de
Platão, propõem que à mulher deva ser dado o direito de exercer o
poder político.
No caso da peça cómica, tratar-se-á de uma paródia a presença de
um grupo de mulheres, disfarçadas de homens, na assembleia que
reclama e defende a entrega do poder da pólis à cidadã ateniense?
Ou será a melhor proposta – ou a única alternativa – para suceder
à ineficiência masculina na governação? No texto de Platão, a ideia
de uma pólis comunitária, onde homens e mulheres, semelhantes por

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_9
natureza, será a salvação para a Atenas do primeiro quartel do séc.
IV a.C.? Ou não passará de uma utopia, resultante de uma releitura
filosófica da comédia de Aristófanes.
O presente artigo é mais um contributo para a reflexão sobre as propos-
tas apresentadas por Aristófanes e por Platão. Pese embora o número
considerável de estudos sobre a temática em apreço, pretende-se aqui
apresentar e aprofundar linhas de comparação entre os dois autores,
respondendo às questões levantadas, de forma a analisar, por um lado,
a dimensão paródica subjacente à manutenção do poder da pólis nas
mãos das mulheres e recordar, por outro, a natureza utópica do tratado
platónico.
Palavras-chave: mulheres, paródia, utopia, Aristófanes, Platão

Abstract: The social, political, and economic context of post-Pelopon-


nesian war Athens required both changes and urgent measures.
A polis threatened by decline perceived the comic theatre and a certain
philosophical treatise as a mean to achieve a desirable maintenance
of power, by assigning women the role of governors or co-governors.
Ecclesiazusae, by Aristophanes, and Book V of Plato’s Republic recom-
mend that women should be given the right to exercise political power.
In the first case, is the presence of a group of women disguised as
men in an assembly defending the entrust of power to the Athenian
citizen a parody? Or is it the best proposal – or the only alternati-
ve – to replace male inefficiency in governance? In Plato’s text, will
the idea of a community polis where men and women are equals be
the salvation of Athens in the first quarter of the 4 th century BC? Or
will it be nothing more than a utopia, resulting from a philosophical
retelling of Aristophanes’ comedy.
This article is yet another contribution to the reflection on the pro-
posals presented by Aristophanes and Plato. Despite the considerable
number of studies on the subject, it is intended to present and dee-
pen the lines of comparison between the two authors, answering the
questions raised in order to analyse the parodic dimension of women
in power, and recalling the utopian nature of the Platonic treaty.
Keywords: women, parody, utopia, Aristophanes, Plato

210
Introdução

A presença das mulheres na poética grega antiga, embora seja


uma constante desde a épica homérica, tem, no âmbito da reflexão
política do século IV a.C., dois momentos marcantes: aquele em
que as mulheres, travestidas em homens, atuam na assembleia e
mudam a ordem estrutural da pólis, e aquele em que, através de
uma releitura ‘filosófica’ da tradição, se chega à conclusão de que
homens e mulheres são, por ‘natureza’, semelhantes, permitindo
uma alteração radical na estrutura funcional da politeia.” 1

Representada, ao que se pode apurar pela investigação de vários


classicistas, 2 em 393-392 a.C., a peça Mulheres na assembleia re-
toma um tema desgastado da comédia grega antiga: a mulher. Mas
a comédia acompanha os tempos e, em consequência da guerra, a
mulher ia ganhando uma visibilidade maior na pólis, com a morte
ou o afastamento dos seus concorrentes masculinos; assim a habitual
paródia ao feminino vai-se moldando à nova ordem dos tempos que
o teatro cómico, particularmente em Aristófanes, continua a explorar
as potencialidades desta temática. Embora se lhe recordem os traços
distintivos de perigosa e ardilosa, de decrépita e de apreciadora de
vinho,3 por um lado, e de fiel dona de casa e de boa mãe de família,
por outro, a mulher adquire também, logo no título desta comédia
de Aristófanes, um estatuto de agente político. Ao contrário de um
nome singular e falante, como sucede com a peça Lisístrata, de 411
a.C., é um nome plural o que intitula a comédia de 393-392 a.C.,
Ecclesiazusae, normalmente traduzido por ‘mulheres na assembleia’
ou ‘mulheres no parlamento’. É todavia Praxágora a figura que detém
maior protagonismo e é ela quem convence as suas companheiras a

1 Silva & Augusto 2015: 153.


2Hirmer 1897; Adam 1963; Parker 1969; Ussher 1973; Bertelli 1983; David 1984;
Rocha Pereira 1993; Vegetti 2000.
3 Em Lisístrata, por exemplo, as mulheres são consideradas panourgoi (11-12),
miaraí e ámachoi (253).

211
irem, disfarçadas de homens, tomar parte da assembleia na Pnix e
aí reclamarem o governo da pólis para o seu domínio. Da proposta
de governo apresentada resulta a aceitação de uma ginecocracia4
que comicamente põe fim a uma democracia desacreditada por uma
sucessão de governos corruptos e inaptos.
Proposta semelhante é a que apresenta Platão no Livro V da sua
República. 5 A teoria comunitária de bens e mulheres que o filósofo
defende estabelece um paralelo interessante com a peça de Aristófanes.
O parentesco “é inegável, que várias gerações de filólogos ponderaram
já, entre a comédia aristofânica e a República de Platão”. 6 Entre os
estudiosos da matéria, questiona-se sobre quem terá lançado, ainda
que rudimentarmente, as bases de um ‘radicalismo comunista’ no
projeto inovador para a sociedade ateniense e terá influenciado tanto
Aristófanes como Platão. Numa primeira leitura, importa atentar no
estado democrático a que a pólis foi votada, durante a Guerra do
Peloponeso e durante o momento pós-guerra. Numa leitura de natu-
reza filosófica, conceber o pensamento comunista ao serviço de uma
atuação meramente política legitima a consideração de Aristóteles
que “atribui expressamente a Platão a revolução radical da família,
[referindo-se] à sua formulação num projeto de Constituição”, 7 a
qual veio a traduzir-se na teoria comunitária de bens, mulheres
e filhos. 8

4 O problema é que a ginecocracia é tão democrata como a democracia; apenas


de sentido contrário. Porque a democracia ateniense excluía mulheres, metecos e
escravos; era, portanto, uma semidemocracia; a das mulheres exclui os homens, é
também semidemocrática.
5 Sobre a datação da obra não são unânimes os estudiosos de Platão. Na introdução
à tradução portuguesa, Rocha Pereira 152017: XIV-XVIII expõe as dificuldades com que
se têm deparado os classicistas em relação à data real do diálogo. Consensual é que
a República tenha sido publicada depois de Mulheres na assembleia, de Aristófanes.
Alguns autores apontam mesmo o ano de 380 a. C. (cf. Blundell 1995: 181).
6 Silva 2019: 215.
7 Lesky 1995: 477.
8 Sobre esta leitura, Silva 2019: 217 esclarece que “Embora Aristóteles (Pol. 1266a
34-36, 1274b 9-11) atribua a Platão, por certo na qualidade de filósofo, a autoria da
tese em causa, a verdade é que se pode encontrar, em textos mais antigos, referências
à prática do comunismo de mulheres, sobretudo entre povos não Gregos (cf. Hdt. I.
216, 4. 104, 172; E., Fr. 402, 653 N2). De resto, a discussão desta mesma filosofia,

212
Embora haja semelhanças evidentes entre os dois textos e alguns
investigadores insistam numa informação de Aulo Gélio, 9 há que
considerar a validade do argumento da datação cronológica de am-
bas as obras. “Desde meados do século XVIII que o problema foi
delimitado com lucidez: se, por um lado, são óbvios os pontos de
contato entre os dois textos – ainda que diferentemente valorizados
pelas sucessivas leituras de que foram objeto –, a conclusão, que pa-
receria inevitável, de que se tratasse de mais uma paródia do cómico
à teoria desenvolvida por Platão no Livro V da República, esbarra
com um primeiro, e decisivo, argumento, qual é a impossibilidade
de datar o tratado platónico de época anterior a 393-392 a.C., data
da apresentação da comédia. A cronologia é, portanto, um elemen-
to definitivo para excluir a dependência direta do texto cómico em
relação ao filosófico”. 10
Além do elemento distintivo apontado por Silva, importa ainda
referir que a atribuição de um qualquer poder decisor às mulheres
não constitui novidade para o público de Aristófanes, pelo menos
desde 411 a.C., ano em que leva à cena Lisístrata; esta comédia,
talvez de grande impacto político na Atenas do último quartel do
século V a.C. 11, apresenta o estratagema de um grande número de
mulheres que se predispõem a pôr fim à guerra do Peloponeso
através de uma greve ao sexo. Mas colocar o governo da pólis nas

dentro da obra de Platão, também no Timeu, constitui uma prova da atualidade da


temática dentro da Academia. Especulativo é, no entanto, procurar definir, como tem
sido preocupação de alguns, uma produção concreta, que tivesse servido de fonte
comum a Platão e Aristófanes. Protágoras e Antístenes são apontados como hipóteses,
que, porém, nenhuns testemunhos fidedignos abonam.”
9 Em Noites Áticas 14.3, o autor refere que uma parte da República teria sido
publicada antes. Não esclarece, porém, a que livros corresponderia esta parte, pelo
que é infundada a posição de alguns quanto à hipótese de Aristófanes parodiar a
comunidade das mulheres apresentada por Platão.
10 Silva 2019: 215-216.
11 Silva 2010: 517-531 delineia, na introdução à tradução portuguesa da comédia,
os vários aspetos que caracterizam o contexto histórico da peça, e evidencia a lição
política que Lisístrata comporta. O cenário social, económico e político da Atenas
do último quartel do século V a.C., em plena Guerra do Peloponeso, sensibiliza
Aristófanes para uma realidade adversa que envolve os Gregos numa luta fratricida
por uma supremacia absurda de interesses e domínio.

213
mãos das mulheres “c’est bien l’image d’un monde à l’envers que
propose Aristophanes aux spectateurs athéniens dans son Assemblée
des femmes, une comédie qui abolit en même temps le pouvoir
masculin, la proprieté et le mariage, ces trois fondements de la cité
grecque.” 12
No Livro V da República, Platão concebe um mundo às avessas 13,
na medida em que as prerrogativas masculinas são ocupadas pelas
mulheres, conforme o aplaudido pelo público de Aristófanes, assente
numa teoria comunitária, segundo a qual homens, mulheres e filhos
detêm um estatuto igualitário. O filósofo “constrói, com os pressu-
postos de uma politeia, um artefacto – que deverá corresponder à
escultura da ‘mais bela’ pólis, isto é, a cidade, cuja politeia, sendo
reta e boa, será definida do mesmo modo –, que estará sempre dis-
ponível à ‘contemplação’ de todos aqueles que desejarem agir em
consonância com a justiça.” 14

1. Um novo modelo de governo para a pólis: da democracia à


ginecocracia.

Mulheres na assembleia é uma comédia política. Pode não usar a


estratégia de ataque direto de Acarnenses, Cavaleiros ou Lisístrata,
mas a sátira das instituições está ainda bem viva nesta peça de 393-
392 a.C.. Atenas restabelecia-se, depois de três décadas de guerra
contra Esparta, depois de outras tantas décadas de uma democracia
cada vez mais entregue ao governo de demagogos, de oportunistas
e corruptos. Um novo modelo de governação impunha-se, portanto.
O impasse aparentemente insolúvel em que se encontra a pólis nos

12 Saïd 2013: 159.


13 “Este mundo que, na ótica da nossa comparação, se configura como sendo às
avessas não deixa de ser”, como assinala Alves-Jesus 2015: 238, uma proposta original
e inovadora sobre o papel da mulher no funcionamento da pólis: para Sócrates a
mulher deve ser igualmente parte activa na sua dinâmica e ocupar ao lado do homem
guardião a função de guardiã dos bens da comunidade.
14 Silva & Augusto 2015: 154.

214
inícios do século IV a.C. implica uma mudança. Praxágora, pro-
tagonista da comédia aristofânica – fazendo-se eco de discussões
que adivinhamos ativas na cidade concreta –, tem consciência da
necessidade de se impor um outro rumo ao governo de Atenas.
Referindo-se àqueles que têm as mais altas funções no Estado,
a ateniense exclama (104-109):

“É por estas e por outras – abençoado o dia que se aproxima!


– que temos de arriscar este golpe, a ver se conseguimos tomar as
rédeas do governo e fazer alguma coisa por esta cidade. Que como
está agora já lá não vai nem à mão de Deus padre!” 15

A situação política e social não é favorável de todo. Arriscam as


mulheres o golpe de reclamar para si o governo da cidade e instituir-
-lhe um novo caminho, servindo-se para isso daquilo que entendem
ser naturalmente a sua ‘especialidade’: ter a língua pronta, isto é,
falar ‘pelos cotovelos’, que é como quem sabe manipular argumentos
demagógicos. A defesa de um novo governo para a pólis justifica-
-se pelos variados motivos que Praxágora enumera no discurso que
ensaia perante as companheiras, antes de todas se apresentarem,
disfarçadas de homens, na assembleia a que se propuseram assistir,
que “é logo de manhãzinha” (85). Uma certa comicidade convencional
percorre o discurso de Praxágora, pautado pela denúncia de vícios e
pela sátira de virtudes; certo é que a oradora não se poupa a expor
o estado em que Atenas se encontra:

“Aos deuses suplico que levem a bom termo os nossos projetos.


Esta terra é tanto minha como vossa. E aflige-me, dá-me engulhos,
ver a crise que vai por essa cidade. O mal está em que a vejo
sempre deitar mão a governantes da pior espécie. Se, por um dia
que seja, aparece um que se aproveite, ao fim de dez fica igual

15 Todas as citações de Mulheres na assembleia serão feitas a partir da tradução


de Silva 2019: 238-239.

215
ao anterior. Confia-se noutro, é pior a emenda que o soneto. Sem
dúvida que é difícil abrir os olhos a gente cabeçuda como esta:
dos que vos são dedicados, vocês têm medo; dos que não querem
nada convosco, andam de joelhos atrás deles. Tempos houve em que
nem sabíamos o que era uma assembleia; apesar disso, o patife do
Agírrio não nos fazia o ninho atrás da orelha. Agora que as temos,
se um fulano se cose com as massas, cobrem-no de elogios; se não
se aproveita, diz-se que, quem procura ganhar a vida como membro
da assembleia, merece a morte. […] Mais: Essa aliança, quando foi
discutida, argumentou-se que era o fim da cidade, se se não fizesse;
afinal, quando se fez, arrependeram-se logo, e aquele orador que
os tinha convencido a fazê-la não teve outro remédio senão pôr-se
ao fresco. É preciso apetrechar uma frota: o pobre vota a favor,
os ricos e os lavradores votam contra. Vocês viravam-se contra os
Coríntios, e eles contra ti, povo de Atenas. Se eles agora estão de
boa catadura, põe-te tu também de boa catadura com eles. O Argivo
é uma besta, mas Hierónimo um alho. Uma esperança de salvação
surge, logo Trasibulo vai aos arames por não ter sido ouvido nem
achado. […] E são vocês, meu povo, os culpados de tudo. Quando
recebem, sem salários, os fundos do Estado, só pensam no vosso
próprio interesse. É ver quem se enche mais! E o Estado, como
Ésimo, lá vai tem-te-não-caias. Mas se acreditarem no que vos digo,
ainda se podem salvar. É às mulheres, na minha opinião, que se
deve confiar a cidade. Tanto mais que, nas nossas casas, é a elas
que confiamos a administração doméstica. […] Que os hábitos de-
las são melhores que os nossos é o que agora passo a demonstrar.
Para começar, mergulham a lã em água quente, à moda antiga,
todas elas, e não se vê que estejam dispostas a mudar. Ao passo
que a cidade de Atenas, mesmo se uma coisa dá resultado, não se
julga a salvo, se não engendrar qualquer inovação. Fazem os seus
grelhados sentadas, como dantes; trazem fardos à cabeça, como
dantes; celebram as Tesmofórias, como dantes; cozem bolos, como
dantes; estafam os maridos, como dantes; metem amantes em casa,

216
como dantes; compram gulodices, como dantes; gostam de uma boa
pinga, como dantes; pelam-se por fazer amor, como antes. Por isso
é a elas, meus senhores, que temos de confiar a cidade, sem mais
discussão, sem sequer nos preocuparmos com o que pensam fazer.
Demos-lhes carta branca para governar. Consideremos apenas estes
pontos: primeiro, que, se são mães, vão dar tudo por tudo para
salvarem os soldados; segundo, no que respeita à comida, quem
mais solícito que uma mãe para reforçar uma ração? Para arranjar
umas massas, ninguém mais furão que uma mulher; no poder, não
há quem lhe faça o ninho atrás da orelha, porque a fazer o ninho
atrás da orelha quem é que lhes leva a palma?! Bom, o resto passo-
-o por cima! Vão pelo que vos digo, que ainda hão de levar uma
vidinha regalada.” 16

A oradora denuncia, em primeiro lugar, o estado crítico em que


Atenas se encontra (175) para, depois, enumerar as respetivas cau-
sas. Centra-se sobretudo nos planos político e social, apontando os
“governantes da pior espécie”, a degeneração em cadeia dos prota-
gonistas políticos, que inevitavelmente cedem à corrupção (176-180),
e a atuação cega e ignorante do povo (180-183). Conclui: “E são
vocês, meu povo, os culpados de tudo.” (205). O que Praxágora faz,
no fundo, é criticar a democracia, elencando-lhe as fragilidades, que
vão desde a passividade do povo à má governação da pólis. E neste
sentido apela a que se opere uma mudança, adotando-se um novo
modelo de governo, o qual deve ser confiado às mulheres (210).
Argumenta a sua tese através da enumeração das atividades ilustrativas
do desempenho feminino nos âmbitos doméstico e familiar. Destaca
a persistência das mulheres no cumprimento das suas funções, valo-
rizando o sexo feminino em detrimento do masculino, porque tudo
o que elas fazem, fazem-no “como dantes” e fazem-no bem feito. Ao
contrário dos homens, propensos à mudança sem a consciência dos

16 173-188, 194-202, 205-212, 215-241.

217
interesses e do bem comuns, Praxágora entende que a Atenas devam
ser restituídas a estabilidade e a força de um passado perdido. Cabe,
pois, às mães e às esposas atenienses, segundo as suas palavras, o
novo governo da pólis e tal medida não virá a ser lamentada nem
pelos maridos nem pelos filhos.
A perspetiva de um novo modelo de governo para a pólis é tam-
bém motivo de reflexão para Platão, na República. A crise que Atenas
vivencia constitui, para o filósofo, uma perda da unidade – “Ora nós
teremos algum maior mal para a cidade do que aquele que a dilace-
rar e a tornar múltipla, em vez de una? Ou maior bem do que o que
a aproximar e tornar unitária?” (462b) –, pelo que importa projetar
um Estado perfeito. No plano de Platão, as mulheres adquirem um
papel significativo, mas não do mesmo modo como Aristófanes pro-
põe a ginecocracia em Mulheres na assembleia. “Ao refletir sobre a
posição que à mulher pode caber em sociedade, Platão está apenas
preocupado em definir o perfil social da mulher-guardiã, aquela que
desenvolverá uma atividade paralela à dos guardiães masculinos do
rebanho (República 451c)”. 17 A esta preocupação, norteada por um
critério meritocrático, que domina o pano de fundo da República,
Aristófanes responde com um plano de ‘substituição’, isto é, o seu
plano não é ‘inteiramente democrático’, porque exclui desde logo
os homens, ao abrir o acesso à gestão da cidade à mulher ateniense
no seu todo e sem condições de limite.
Na conceção da cidade ideal, a proposta de governo de Platão é
de base comunista; aí mulheres e homens – apenas os guardiães –
detêm o mesmo poder e desempenham as mesmas funções. Não se
diferencia a atuação de uns e de outros, porque o objetivo que lhes
é comum é o mesmo, a unidade. A propósito desta idealização, Saïd
assinala que “ce récit, inspiré du mythe athénien de l’autochtonie,
préfigure, sur le plan de la fiction et pour l’ensemble de l’État, la
fusion de la cité et de la famille.” 18 Sendo assim, a governação da

17 Silva 2019: 217.


18 2013: 214.

218
pólis entrega-se a mulheres e a homens e garante-se, ato contínuo,
a unidade que Platão lamenta ameaçada. No Livro V da República,
o filósofo não se debate sobre um novo modelo de governo, muito
embora subjaza à sua reflexão uma linha de atuação comunista.
Parece que perspetiva a sua ‘cidade ideal’ mais como um progra-
ma ético do que político. Morrison 19 questiona precisamente esta
hipótese:

“The extreme difficulty of realizing Callipolis raises questions


about its relevance to ordinary political circumstances. Did Plato
intend Callipolis to serve as the foundation of a political program,
which could be used, for example, in reforming Athens or in foun-
ding a new Greek colony? A distinguished line of interpreters have
argued that he did. Others have taken an opposite position: that
Plato’s motive in writing the Republic was not primarily political
but ethical. On this view, Callipolis is not intended as a guide to
designing a better society.”

Nesta linha de ideias, a reflexão platónica caracteriza-se por uma


abrangência de natureza político-ética que visa o bem comum, o qual
depende da atuação governativa conjunta de mulheres e homens.
Enquanto Aristófanes prevê, comicamente, que a salvação de Atenas
depende de um modelo governativo entregue às mãos das mulheres,
Platão idealiza uma pólis que atribui iguais poderes de governação
a homens e a mulheres guardiães.
Apesar dos pontos divergentes, “o pretexto para a reflexão, cômica
e filosófica, é um só: estabelecer critérios em que pode assentar a
construção de uma ‘cidade feliz’, para criar uma ordem política na
qual cada homem possa exercitar de modo excelente a sua nature-
za, com vista à felicidade.” 20 Daí a necessidade de um novo modelo
de governação para a pólis. A situação política e social da mulher

19 2007: 232.
20 Silva & Augusto 2015: 160.

219
ganha outra dimensão: enquanto Aristófanes lhe dá total protago-
nismo e exclusividade na atuação política, Platão atribui-lhe nesta
atuação igualdade face ao homem. 21 O papel relegado para segun-
do plano, que a tradição22 insiste em conceder à figura feminina,
parece esvair-se. Pelo menos na comédia aristofânica e na kallipolis
platónica.

2. Da comunidade de bens, mulheres e filhos: paródia e utopia

A kallipolis constrói-se a partir de uma teoria comunitária de


bens, mulheres e filhos: é esta a tese preconizada por Platão no
Livro V da República. A ‘doença’ que assola Atenas é a democracia
demagógica e o filósofo defende uma liberdade democrática, já su-
gerida em Timeu (18b), de modo a pôr termo ao individualismo e
à tirania. “Na liberdade democrática, tal como Platão a retrata, tem
origem um princípio radical de igualdade que elimina e torna indi-
ferentes, crescentemente, toda a sorte de diferenciações. Em face da
argumentação filosófica e das exigências da dialética não há auto-
ridades nem hierarquias e, nesse sentido, todos são iguais.” 23 Esta
idealização anárquica permite que mulheres e homens, assim como
os bens e os filhos se encontrem num mesmo plano de igualdade.
O estatuto dado ao universo feminino em nada condiciona a atua-

21 Rodrigues 2001: 98 afirma que “nos textos utópicos de Platão, a mulher grega
está longe de ser desprezada. Aliás, é-lhe reconhecido um valor imensamente neces-
sário à constituição da cidade ideal. Há mulheres dotadas para a medicina, outras
para a música, outras para a ginástica, outras para a guerra; e até mesmo mulheres
filósofas. Apesar de Platão não duvidar da inferioridade das mulheres em relação
aos homens, afirma que essa inferioridade é qualitativa e não quantitativa, admitin-
do assim a possibilidade de as mulheres acederem, na cidade ideal que projeta, às
duas funções de que estão completamente excluídas na cidade real: a política e a
guerra.”
22 Silva 1979-1980: 98 regista que “o reconhecimento da mulher como um ele-
mento social capaz de tomar parte ativa na organização e gerência da πόλις sofreu
uma marcha lenta e difícil, porque tinha atrás de si toda uma tradição desfavo-
rável.”
23 Franco de Sá 2017: 27.

220
ção política e isso é expressamente claro no Livro V. As mulheres,
detendo a mesma capacidade que os homens e tendo sido instruídas
e formadas segundo os mesmos modelos educativos, devem ocupar
cargos diretivos no governo da pólis. Propõe-se, dentro da classe dos
guardiães, um sistema de procriação e casamento que visa a eugenia
e idealiza-se a concretização de uma unidade família-Estado que não
passa de uma utopia.
A comunidade de bens permite aos guardiães a dedicação exclusiva
à causa pública e ao cumprimento devido da cidadania. Integrando a
classe dos guardiães homens e mulheres, o desempenho de funções
governativas da politeía é da responsabilidade de ambos os sexos,
indistintamente. No fundo, como assinala Saïd, 24 «Platon ne fait ainsi
que transposer dans son utopie un “ideal de militantisme” partagé
par les Grecs comme par les Romains. Il s’inspire aussi de la consti-
tution de Sparte, telle du moins que Plutarque l’évoque dans sa Vie
de Lycurgue.» Assim, uma teoria comunitária de bens, mulheres e
filhos faz sentido se nenhum destes elementos for sobrevalorizado ou
hostilizado, isto é, tem de haver um desprendimento total da matéria
e das emoções, porque tudo está ao mesmo nível. Prevalece a utopia.
Também Aristófanes se refere a esta teoria comunitária em Mulheres
na assembleia, afastando-se, porém, pela paródia, do idealismo da
kallipolis platónica. Num primeiro momento as palavras de Praxágora
expressam o desejo de um comunismo igualitário radical:

“Bem, que nenhum de vocês me contradiga nem interrompa,


antes de conhecer o meu projeto e de ouvir os meus argumentos.
A minha proposta é que todos devem entregar os seus bens para
um fundo comum, para onde cada um contribua com a sua parte
e de onde retire a subsistência. Não mais há de haver ricos e po-
bres; nem uns a cultivarem propriedades enormes, e outros sem
terem onde cair mortos; nem uns a terem ao serviço batalhões de

24 2013: 216.

221
escravos, e outros nem sequer um criado. O que eu quero estabe-
lecer é um padrão único de vida comum, igual para todos.” 25

Em esclarecimento a Bléfiro, seu marido, a nova líder ateniense


reforça a prática da vida em comunidade aberta, dizendo-lhe que “É
deste fundo comunitário que nós, as mulheres, vos vamos sustentar.
É a nós que compete administrá-lo com economia e bom senso”
(599-601). Mais adiante assume-se o radicalismo: “Uma vida em co-
mum, para todos. Vou fazer da cidade uma habitação única; paredes,
vão todas abaixo, para podermos passar da casa de uns para a dos
outros.” (674-676)
Este é um dos aspetos em que o conceito de teoria comunitária
afasta Aristófanes de Platão. Para o poeta cómico, as mulheres lide-
ram os homens e administram a pólis; para o filósofo, a atuação é
conjunta e não há uma sobrevalorização da mulher face ao homem.
Do mesmo modo, também o princípio da procriação subjacente à
comunidade de bens, mulheres e filhos proposta por Praxágora
difere da que apresenta Sócrates aos seus interlocutores mais inte-
ressados, Adimanto, Polemarco, Gláucon e Trasímaco. Estabelece-se
a propriedade comum de mulheres e filhos, em palavras muito pró-
ximas nos dois textos, mas este princípio combina-se, no Livro V da
República (459d-e), com uma preocupação eugénica, que aconselha
a estabelecer pares equilibrados, que os homens superiores se en-
contrem com as mulheres superiores, e inversamente os inferiores
com as inferiores. A contraposição da comédia a esta solução elitista
é uma liberalização democrática do convívio sexual: “as mulheres
torno-as comuns a todos os homens; pode dormir com elas quem
quiser, e fazer-lhes um filho.” Mais ainda: a justiça social impõe uma
reparação aos que estiverem em inferioridade de circunstâncias:
sobre as jovens e belas terão prioridade as velhas decrépitas, como
os velhos caquéticos terão preferência, garantida por lei, sobre os

25 589-594.

222
galãs.” 26 A paródia a que se propõe a comédia não deixa de ser
ela própria uma pré-constatação da dimensão ridícula da utopia
platónica.

3. O poder no feminino: do oikos à ekklesia

A conceção estrutural da kallipolis platónica “is a thoroughly


hierarchical one, in which duties and privileges are distributed in
accordance with a rigid class system. The population is to be divided
into three groups, a ruling class, a soldier class and a class which
provides for the economic needs of the community.” 27 Não há uma
especificação quanto aos espaços de atuação das mulheres de acor-
do com a tradição. No âmbito da classe dirigente, a dos guardiães,
Sócrates solicita a concordância do seu interlocutor relativamente ao
lugar que ocupam as mulheres, o qual se caracteriza por um prota-
gonismo igualitário na orgânica da comunidade de bens, mulheres
e filhos:

“– Concordas portanto – perguntei eu – que haja entre homens


e mulheres a comunidade que descrevemos, e acerca da educação,
dos filhos e da guarda dos outros cidadãos, que as mulheres devam
ficar na cidade e ir para o combate, fazer vigilância e caçar junto
com os homens, tal como entre os cães, e participar em tudo, até
onde for exequível, e que, se assim fizerem, procederão da melhor
maneira possível, e não conta a natureza do sexo feminino em rela-
ção à do masculino, pois ela os criou para viverem em comunidade?
– Concordo, sim.” 28 (466d)

26 Silva 2019: 218-219.


27 Blundell 1995: 181-182.
28 Todas as citações de República serão feitas pela tradução de Rocha Pereira 2017.

223
Não se faz referência explícita ou denotativa, nem neste passo, nem
noutros do Livro V da República, à importância da experiência que
a mulher desenvolve no oikos na manutenção do poder. O estatuto
igualitário que Platão lhe atribui parece dispensar as funções que
Aristófanes naturalmente evoca nas suas comédias. Às mulheres da
‘cidade real’ se confia a administração do oikos, às da ‘cena cómica’,
a ekklesia e o governo de Atenas, e às da kallipolis, a permanência
no espaço público e sua guarda, a participação na caça e na guerra.
A idealização platónica de um poder feminino assenta em metáfo-
ras várias que se vêm demarcando ao longo do diálogo de Sócrates.
A metáfora ‘dos cães’, referida primeiramente no Livro III (404 a),
é retomada no Livro V para sustentar a metáfora ‘dos rebanhos’ e
justificar a igualdade do poder entre mulheres e homens:

“– Temos, pois, de voltar agora atrás, ao que devia talvez ter


dito naquela sequência. Pode ser que assim seja bem, que depois
de ter delimitado até ao fim o papel dos homens, passemos agora
ao papel das mulheres. De resto, és tu que me convidas a fazê-lo.
Para homens nados e criados como nós explicámos, não há,
na minha opinião, outra posse e uso correto dos filhos e das mu-
lheres do que seguirem aquele impulso que lhes comunicámos de
início. Pois tentámos estabelecer estes homens como uma espécie
de guardiões do rebanho.
– Tentamos, sim.
– Sigamos esse caminho, portanto, atribuindo-lhes nascimento e
criação semelhante, e vejamos se nos convém ou não.
– Como? – perguntou ele.
– Do seguinte modo: as fêmeas dos cães de guarda, entende-
remos que devem exercer vigilância com eles, como os machos,
e caçar com eles, e fazer tudo o mais em comum, ou devem ficar
dentro do canil como incapazes, por causa da criação e alimentação
dos cachorros, enquanto os machos se esforçam e têm a seu cargo
todo o cuidado dos rebanhos?

224
– É tudo em comum – respondeu ele – exceto que utilizaremos
os seus serviços tendo presente que elas são mais débeis, e eles
mais fortes.” (451 c-e)

Entre a metáfora ‘dos cães’ e o papel atribuído a mulheres e a


homens na governação da kallipolis estabelece-se uma relação de
semelhança de acordo com o nascimento e a criação, que reforça a
idealização do comunismo político. Tal como as fêmeas dos cães, as
mulheres devem desempenhar as mesmas funções que os homens.
Não devem permanecer no oikos, espaço metaforicamente sugerido
pelo ‘canil’, nem se ocupar dos afazeres domésticos ou dedicar-se à
criação dos filhos. Devem apoiar os homens no ‘cuidado dos rebanhos’,
isto é, na governação da pólis. O poder da guarda e da vigilância da
cidade é repartido igualitariamente entre os homens e as mulheres.
Para Aristófanes, o oikos reveste-se de particular importância
enquanto espaço da mulher por excelência por aí se desenvolverem
“as habilidades femininas que legitimam a tomada do poder, [por-
que] estão fundadas na simplicidade do caráter das mulheres (ἀπλῷ
τρόπῳ), o que lhes permite agir não só em consonância com o “τὸν
ἀρχαῖον νόμον”, mas, também, estabelecer um elo entre a pólis e o
oikos através da expressão “ὥσπερ καὶ πρὸ τοῦ”. 29 Assim se compre-
ende a capacidade de Praxágora quando assume o governo da pólis.
No discurso ensaiado antes da ida à ekklesia, a chefe das mulheres
enumera as funções domésticas como os alicerces para uma sólida
governação e depois, na Pnix, elenca, ao que se vem a saber por
Cremes, certos defeitos masculinos que não são de todo contrariados
pelo seu próprio marido:

“Cremes
Que a mulher – dizia ele – é um modelo de bom senso, que só
traz fortuna. Que não anda por aí a badalar aos quatro ventos os

29 Silva & Augusto 2015: 175.

225
mistérios das Tesmofórias, enquanto tu e eu, quando estamos no
conselho, não fazemos outra coisa.

Bléfiro
Quanto a isso, verdade seja dita, não mentiu.

Cremes
Depois pôs-se a dizer que eles emprestam umas às outras rou-
pa, joias, dinheiro, louças, só lá entre elas, sem testemunhas; que
devolvem tudo, ninguém fica defraudado, como – eram palavras
dele – é uso e costume cá entre nós.

Bléfiro
Lá isso é, e com testemunhas e tudo!

Cremes
E foi em frente com um nunca acabar de elogios às virtudes
femininas. Que elas não se metem em denúncias, nem em proces-
sos, nem em sabotagens à democracia. Um canto de louvores!” 30

A essência do poder feminino reside naturalmente no poder que


as mulheres exercem no oikos – espaço a que está a maioria con-
finada –, ficando impedidas de participar na vida pública e sendo
votadas a um papel secundarizado na sociedade grega.31 Mulheres na
assembleia sugerem a complementaridade entre dois domínios de
atuação, nos quais a figura feminina detém pleno poder: o espaço
privado, o oikos, e o espaço público, a ekklesia. Da democracia gerida
pelos homens à ginecocracia a transição é aparentemente utópica
(e cómica na Atenas do início do séc. IV a.C.), mas, na realidade, a
decisão de confiar o poder às mulheres afigura-se a alternativa mais
lógica – ou uma última alternativa – para salvar a pólis. Este cenário
utópico de inovação política reveste-se de contornos claramente sa-
tíricos, pois “cette innovation radicale s’inscrit en effet dans le droit

30 442-454.
31 Cf. Mossé 1983: 39-61.

226
fil de la tradition d’un peuple connu pour son gout de l’innovation
et pour ses idées folles. Et la forme même que prend cette innova-
tion est dictée par l’évolution d’un État où les vrais hommes ont été
écartés au profit des efféminés, où la parole politique a fait place à
un bavardage peu viril.” 32
Estender o poder também ao feminino surge como resposta
viável ao governo da pólis. Esta é uma premissa válida tanto para
o público de Aristófanes, como para Platão. O primeiro parodia e
satiriza o estado da democracia ateniense no período pós-Guerra
do Peloponeso ao ponto de propor que seja confiado às mulheres o
governo de Atenas, o segundo idealiza uma ‘cidade feliz’, onde ho-
mens e mulheres podem assumir conjuntamente as rédeas do poder
e da governação e viver numa comunidade aberta que define a nova
‘liberdade democrática’.

Conclusão

A ideia de atribuir às mulheres um lugar significativo na governa-


ção da pólis não é uma novidade para o público que terá assistido
à representação das Mulheres na assembleia, na primeira década
do século IV a. C., nem para os leitores da República de Platão.
Em relação à obra aristofânica, Sommerstein nota que “thus while
several comedies before Ecclesiazusae did, for substantial parts of
their action, show women in control of society, this control seems
to have been either temporary (as in Lisistrata, the Lemnian plays,
and probably Cephisodorus’ Amazons) or created on male initiative
(as apparently in Stratiotides)”.33 No caso da peça de 393-392 a. C., é
a instituição de uma ginecocracia permanente em Atenas que cons-
titui a novidade. Desta novidade se apercebe Platão, ao que parece,
quando atribui às mulheres um papel significativo na guarda e vigi-

32 Saïd 2013: 163.


33 Sommerstein 1998: 10.

227
lância da kallipolis que projeta na República. Embora o filósofo não
idealize uma ginecocracia, é evidente a influência que as comédias
aristofânicas têm no seu pensamento, pelo menos relativamente ao
tema em apreço.
Além da relação que entre a comédia de Aristófanes e o diálogo
de Platão se estabelece sob vários aspetos, sobre alguns dos quais
se tentou dar conta ao longo deste capítulo, importa concluir que
na base das Mulheres na assembleia e da República está uma mesma
constatação, a de que Atenas está a mudar. A realidade sociopolítica
do último quartel do século V a. C., vivida por Aristófanes e por
Platão, e o estado em que a pólis se encontra nas primeiras décadas
do século IV a. C., ao qual não é indiferente nem o poeta cómico
nem o filósofo, são as causas da apresentação de novos projetos
para reabilitação da cidade. Talvez por isso a comédia seja o melhor
mecanismo de crítica e de denúncia – ou não fossem a paródia e a
sátira meios eficazes de ensino e de aprendizagem – que estimula a
renovação. Ou, pelo menos, a sua idealização utópica.

Bibliografia

Edições, traduções e comentários

1. Aristófanes
Sommerstein, A. H. (1998), The Comedies of Aristophanes: Vol. 10. Ecclesiazusae.
Warminster: Aris & Philips LTD.
Silva, M. F. (2019), Comédias III. Aristófanes. Lisboa: Imprensa Nacional.

2. Platão
Rocha Pereira, M. H. (2017, 15ª ed.), A República. Platão. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.

Estudos

Alves-Jesus, S. M. (2015), “O papel das mulheres em A República de Platão (Livro V):


utopia no feminine ou tópicos para uma reflexão propedêutica sobre Direitos
Humanos”, Brotéria 180: 237-250.

228
Blundell, S. (1995), Women in ancient Greece. London: British Museum Press.
Franco de Sá, A. (2017), “Platão e a beleza ambígua da democracia (ii): a tensão entre
filosofia e democracia”, Archai 20: 15-38.
Franklin, K. (2016), “Aristófanes e Platão: discursos sobre a mulher na Antiguidade”,
Nuntius Antiquus 12.1: 91-116.
Lesky, A. (1995, 3ª ed.), História da Literatura Grega. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
López Férez, J. A. (ed.) (2015, 5ª ed.), Historia de la Literatura Griega. Madrid: Cátedra.
Morrison, D. R. (2007), “The Utopian Character of Plato’s Ideal City”, in G. R. F. Ferrari
(ed.), The Cambridge Companion to Plato’s Republic. Berkley: Cambridge University
Press.
Mossé, C. (1983), La Femme dans la Grèce antique. Paris: Éditions Albin Michel.
Rodrigues, N. (2001), “A mulher na Grécia antiga”, in M. C. C. Santos (org.), A Mulher
na História. Atas dos Colóquios sobre a temática da Mulher – 1999/2000. Moita:
Câmara Municipal.
Romilly, J. de (2011), Compêndio de Literatura Grega. Lisboa: Edições 70.
Saïd, S. (2013), Le monde à l’envers. Pouvoir féminin et communauté des femmes en
Grèce ancienne. Paris: Les Belles Lettres/essais.
Silva, M. F. (1979-1980), “A posição social da mulher na comédia de Aristófanes”,
Humanitas 31-32: 97-113.
Silva, M. F. (1986), “Políticos e mulheres na comédia grega”, Línguas e Literaturas 3:
127-151.
Silva, M. F. (2007), Ensaios sobre Aristófanes. Lisboa: Cotovia.
Silva, M. F. (2007), “O feminino em Aristófanes: Uma aguarela cómica”, Florentia
Iliberritana. Revista de Estudios de Antigüedad Clásica 18: 399-419.
Silva, M. F. & Augusto, M. G. M. (2015), “Koinonía e Politeía: a função das mulheres
na pólis. Aproximações e diferenças entre as Mulheres na assembleia e a República”,
in V. H. M. Aguirre & M. P. I. Troconis (eds.), Mujeres en Grecia y Roma y su
trascendencia: diosas, heroínas y esposas. México, Universidad Nacional Autónoma
de México: 153-214.
Trédé-Boulmer, M. & Saïd, S. (1990, 3ª ed.), La Littérature Grecque d’Homère à Aristote.
Paris: PUF.

229
(Página deixada propositadamente em branco)
A s p a l av r a s d o m u n d o h e r o i c o n a e p o p e i a
alexandrina

The Words of the Heroic World


in the Alexandrian Epic

Ana Alexandra Alves de Sousa


Univ. Lisboa, CECH
ORCID: 0000-0001-6515-1668
alexandra.a.sousa@sapo.pt

Resumo: A palavra permite aos heróis da epopeia alexandrina manter


a coesão do grupo e encontrar a estratégia ideal para contactar pa-
cificamente com os outros povos. Jasão é um chefe que se preocupa
com a opinião dos companheiros e se interessa por conseguir sempre
relações cordiais com os que encontra. Para entender melhor o mundo
heroico da epopeia alexandrina analisámos os epítetos dos sintagmas
que introduzem o discurso dos Argonautas entre si e destes com os
que governam as terras onde desembarcam. Este estudo permite-nos
considerar a humildade e a tolerância como novos valores heroicos, que
surgem em complementaridade com a ousadia e um juízo crítico sobre
as situações. Entre todos sobressai meilichie, que significa ao mesmo
tempo abordagem diplomática e respeito pelos deuses. De facto, esta
constitui o principal traço definidor do novo mundo heroico que se
situa nos antípodas da guerra.

Palavras-chave: Argonáutica, valores heroicos, diplomacia, temor aos


deuses, meilichie

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_10
Abstract: The words allow the heroes of the Alexandrian epic to main-
tain the cohesion of the group and to find the ideal strategy for
peaceful contact with the other countries. Jason is a leader worried
about the group’s opinion and at the same time interested in keeping
always diplomatic relations with foreigners. To better understand the
heroic world of this Hellenistic epic, we analyse the epithets of the
discourse every time an Argonaut speaks within the group or with
those from others countries. This study allows us to consider humi-
lity and tolerance as heroic values working together with boldness
and critical assessment of situations. Among all values, meilichie,
which means diplomatic approach and gods’ reverence, stands out
as the main defining feature of a world located in the opposite place
of war.

Keywords: Argonautica, heroic values, diplomacy, respect for the gods,


meilichie

Apolónio de Rodes terá escrito a sua epopeia na Alexandria do


século III a.C., na época ou de Ptolemeu II (283-246 a.C.) ou de
Ptolemeu III (246-221 a.C.), de quem foi precetor1. Tomando a Ilíada
e a Odisseia como modelos, o poeta seguiu os cânones estéticos da
poesia do seu tempo: economia, erudição, mestria, artifício, diver-
sidade lexical, precisão semântica, perfeição formal, o que originou
uma epopeia com 5836 versos, em vez dos 12110 da Odisseia ou
dos 15693 da Ilíada.
Apesar de muito mais breve, a Argonáutica contém quase o mes-
mo número de lemas que a Odisseia, com apenas menos 363 lemas.
Estudar estes lemas, que nem sempre são homéricos, leva o leitor a
aceder a linhas interpretativas2 que ajudam a perceber a razão de, na

1 Sobre a datação do poema, cf. Murray 2014, Carreira 2014: 22.


2 Sobre as linhas de sentido da invocação do livro IV, cf. Sousa 2013b; sobre a
relevância dos lemas na atribuição de um papel político a Hipsípile e Arete, ver Sousa
2020; sobre o termo “limiar”, cf. Sousa 2021b. Köhnken 2010: 149, embora se refira à
intertextualidade que Apolónio cria, de forma subtil e sofisticada, entre a Argonáutica
e outros textos, designa o poeta “a master in subtle and indirect storytelling”. Esta

232
Alexandria do século III a.C., se falar da viagem em busca do velo
de ouro, realizada pela geração anterior à homérica 3.
São heróis do poema os tripulantes da nau Argo, que chegam a
Iolco, vindos de várias partes do mundo grego, para ajudar Jasão
nesta demanda que os levará aos confins do mundo, a Cólquida.
Eleito pelos companheiros como chefe4, Jasão sobressai não pela ex-
celência bélica e desejo de glória 5, como o herói homérico, mas pelo
cuidado com a vida dos que lidera6, pela valorização da sua opinião7
e pela procura constante de concórdia 8, num percurso dinâmico de
aprendizagem para todos os Argonautas 9. Se, por um lado, Jasão é
capaz de ouvir os companheiros com tolerância, também com os que

mestria é também visível se estudarmos os lemas do poema, pois estes permitem


chegar a diversas linhas interpretativas; cf. Sousa 2021a: 19.
3 Dos estudiosos que têm explorado a interpretação política do poema desta-
camos Mori 2001, 2008, pela importância que esta dá aos lemas na constituição de
linhas de leitura.
4 Sobre a eleição de Jasão como chefe da expedição, cf. e.g., Hunter 1988: 442;
Mori 2008: 52-53, 64-74. Sobre o epíteto ἀρῇος atribuído a Jasão no momento da sua
eleição, e não só (1.439; cf. 2.122 e 3.1259-1261), ver Beye, 1982: 31 e 82-83.
5 Por isso o poeta não descreve as suas armas, apesar de o herói as possuir; opta
pela écfrase do manto que confere a Jasão um esplendor apolíneo: seria mais fácil
olhares para o nascer do sol/ do que contemplares o rubro deste manto (1.725-6). A
dinastia ptolemaica desenvolveu largamente a iconografia solar, símbolo do poder
supremo e eterno; cf., e.g., Strootman 2014: 51: “The religious association of the
king with the sun (and the moon) has a long tradition in Egypt and the Ancient Near
East, but in the Hellenistic empires the sun became an emblem of kingship more
profoundly than in any of the preceding monarchies”. Sobre as imagens solares do
poema, cf. Sousa 2021a: 30-32.
6 Jasão lembra a Tífis o fardo da chefia: É fácil pores-te a arengar,/ pois só dás
atenção à tua vida. Eu, por meu lado, comigo/ não me incomodo nem um pouco;
mas é por este, por aquele,/ por ti e por todos os companheiros que eu tenho medo,/
não aconteça que eu não vos leve em segurança para a Hélade (2.633-7). Todas as
traduções da Argonáutica aqui apresentadas são da nossa autoria, tendo as dos dois
primeiros livros já sido publicadas em Sousa 2021a.
7 Diz Jasão aos Argonautas: Amigos, dir-vos-ei o plano que me agrada,/ mas con-
vém que sejais vós a tomar a decisão final./ Se a empresa é comum, o direito de falar
é igualmente comum a todos (3.171-3).
8 A concórdia é referida por vários estudiosos como um dos pilares deste novo
mundo heroico; cf., e.g., Mori 2005: 227-8. Cilleruelo 2010: 233 fala de consciência
de comunidade e de espírito democrático e atribui a Jasão o papel de “un auténtico
valedor de la homónoia argonáutica”. De facto, lembremos que os Argonautas erigem
um altar à Concórdia (2.717-9) na ilha que designam Apolo Matinal.
9 Jackson 1993: 10-27 (especialmente 13) destaca a relevância de Fineu no per-
curso de aprendizagem dos heróis, sobretudo no de Jasão.

233
são externos ao grupo opta pela via do bom entendimento, sejam
eles gregos ou não 10. As palavras integram-se na dimensão heroica
como veículo de rejeição da guerra 11.
São vários os epítetos das palavras proferidas pelos Argonautas.
Organizámo-los em duas partes: primeiro, os que qualificam o dis-
curso destes entre si; a seguir, os que qualificam as palavras trocadas
entre os jovens gregos e aqueles que vão encontrando ao longo da
viagem 12.
O diálogo travado entre os Argonautas é introduzido por dativos
instrumentais positivos e negativos; estes são: discurso arrogante e
insustentável, μῦθος ὑπερφίαλος e ἄσχετος (1.1334), discurso funesto,
κακὸς μῦθος (1.1337), e palavras deletérias, ὀλοὰ ἔπεα (3.384).
Positivos são: palavras ousadas, θαρσαλέα ἔπεα (2.639, 1218) e pa-
lavras brandas 13, μειλίχια ἔπεα (2.621).

10 Os Argonautas evitam a deflagração de conflitos armados. Em Cízico, tudo


acontece de modo absurdo. Depois de zarparem da terra dos dolíones, a ausência de
luminosidade noturna leva os gregos a voltarem para trás, sem se aperceberem de
que estavam a regressar ao lugar de onde tinham saído e onde tinham sido hospi-
taleiramente acolhidos; combatem então encarniçadamente contra aqueles que não
conseguem reconhecer devido ao negrume da noite. Como dissemos em Sousa 2021a:
26, a ausência de luz serve como metáfora da cegueira que é a guerra. De facto, o
combate entre os jovens gregos e os hospitaleiros dolíones é totalmente absurdo.
Alcínoo também se guia pelo mesmo princípio de evitar a guerra. Por isso, quando
os colcos que queriam resgatar Medeia chegam a Drépane, prontos para um conflito
bélico, o rei reage pacificamente: Mas o poderoso Alcínoo deteve a sua urgência de
guerra,/ pois tinha a expectativa de resolver o colossal litígio de ambas as partes/sem
ter necessidade de recorrer a batalhas (4.1008-10).
11 Nos Poemas Homéricos o uso da palavra comprova a excelência heroica, ser-
vindo, entre outros fins, para o herói insuflar nos pares ímpeto guerreiro (e.g. Il.
5.470) e delinear estratégias de atuação, como a que visava fazer Aquiles regressar ao
combate (Il. 9.179-81). Palavra e guerra completam-se, portanto, no mundo homérico.
12 Pusemos de parte os qualificativos que caracterizam o discurso intimista. Assim,
excluímos da nossa análise o encontro de Jasão e Medeia, que se insere num âmbito
da sedução amorosa analisada em Sousa 2012.
13 Mori 2018: 117 verte o verbo e o adjetivo com a ideia de doçura (“doce como
o mel”). Lembremos que é na etimologia popular que liga o qualificativo a μέλι
que encontramos o fundamento para o epíteto Μειλίχιος atribuído a Zeus (Hunter
2015: 183). Também Vian 2002: 206 traduz o sintagma μειλίχια ἔπεα como “douces
paroles”. Mas, além da ligação etimológica ser duvidosa (Chantraine 1999: 678), os
contextos discursivos dos lemas com este radical levam-nos a optar pelo qualificativo
brando.

234
Os qualificativos negativos traduzem as dúvidas, as contradições e
os receios inerentes ao ser humano. Todos se reportam a momentos
difíceis, estrategicamente ultrapassados por Jasão, que prova que a
tolerância deve ser apanágio de um chefe14. Arrependido por ter acusa-
do Jasão de ter abandonado Héracles15, Télamon refere-se às palavras
de censura que dirigira àquele como arrogantes e insustentáveis. Os
lemas ὑπερφίαλος e ἄσχετος têm grande relevo no poema, constituin-
do dois traços do mundo adverso que os jovens gregos enfrentam.
Assim, o primeiro caracteriza o povo dos bébrices (2.129, 758), o rei
da Cólquida (3.15; 4.1083) e as provas impostas por Eetes a Jasão
(3.428). A arrogância define, portanto, a conduta não heroica. Por sua
vez, ἄσχετος qualifica também as referidas provas (3.60616, 104817,
132218) e ainda a morte de Absirto (4.62219, 74220). O insustentável
é, tal como a arrogância, aquilo que o herói tem de ultrapassar e
que não o pode definir21. Télamon prova uma evolução positiva no

14 Somos da opinião, como noutros estudos já defendemos, que Jasão não tem
falta de características heroicas; cf., e.g., Sousa 2013a . Para uma perspetiva sucinta e
clara das várias interpretações suscitadas pelo comportamento desta personagem no
poema, cf. Mori 2008: 83, n. 132.
15 Sobre a figura de Héracles, ver Júnior 2018.
16 Seguimos a interpretação de Hunter 1989: 163. No entanto, como o filólogo
explica alguns interpretam como insustentáveis não os planos de Eetes, mas os planos
dos gregos que haviam chegado à Cólquida. O paralelo com os outros passos em
que o adjetivo qualifica as provas impostas por Eetes contraria, em nossa opinião,
esta leitura.
17 Em 3.1048 Hunter 1989: 214 propõe “irresistible” para verter o qualificativo,
considerando em 2015: 167 a propósito de 4.622, que este é o sentido mais comum
do adjetivo.
18 Neste verso constrói-se como que uma hipálage, pois o adjetivo não qualifica
as provas, mas a lança de Jasão no momento em que combate os touros.
19 Hunter 2015: 167 em 4.622 opta pela tradução “ceaselessly” por ser epíteto do
odor exalado pelo cadáver de Absirto. No entanto, esta opção tem o inconveniente
de fazer desaparecer a conexão, que nos parece intencional, entre os termos quali-
ficados com o adjetivo ἄσχετος.
20 Neste passo Hunter 2015: 188 propõe como tradução “intolerable actions”.
Voltamos a reiterar o inconveniente assinalado na nota anterior.
21 Na Ilíada a arrogância pode caracterizar os heróis: têm-na, segundo o narra-
dor, Diomedes (5.881) e, segundo Menelau, Aquiles (21.224), e os troianos (13.621).
No entanto, na Odisseia, como na Argonáutica, ὑπερφίαλος pertence ao universo
não heroico. Assim, neste poema, o lema qualifica os Ciclopes (9.106); eventualmen-
te alguns homens da Esquéria (6.274); e sobretudo os pretendentes (1.134; 3.315;

235
seu processo de aprendizagem quando se revela arrependido. Jasão
responde de forma cautelosa, qualificando apenas de funesto o que
lhe havia sido dito, muito embora não deixe de inserir as palavras
do companheiro no âmbito do κύδος (1.1337) 22. Assim, ao mesmo
tempo que dissipa com prudência uma tensão, revela que a perce-
ção clara de um ultraje deve originar a manifestação de humildade
e tolerância, apresentadas no poema como valores heroicos deste
novo mundo 23.
O lema ὀλοός24, epíteto das palavras que Télamon, pleno de cólera,
não chega a dizer a Eetes, define o mundo não heroico25. O deletério

4.774, 790; 11.116; 13.373; 14.27; 15.12, 315, 376; 16.271; 18.167; 20.12, 291; 21.289;
23.356), e, entre eles, Antínoo (2.310). Bowie 2013: 168 considera-o um epíteto for-
mular quando atribuído aos pretendentes, mas em 14.27 coloca a hipótese de exprimir
o ponto de vista do porqueiro Eumeu. Aliás, o epíteto, se, como explicam os escó-
lios, derivar etimologicamente de φιαλή, é um qualificativo óbvio dos pretendentes
como pessoas que sem educação se encostavam à panela alheia, ἀπαιδεύτως ἐν τῇ
φιάλῃ προσκαθημένους (Scholia in Odysseam 310.3). Chantraine 1999: 1158 refere
as duas etimologias possíveis: além desta, ὑπερφυής, luxuriante como superbus.
Por sua vez, ἄσχετος complementa-se sempre, na Odisseia (na Ilíada surge como
epíteto de πένθος em 16.549 e 24.708, e do μένος de Hera em 5.892) com μένος
como acusativo de relação: insustentável no ímpeto. Os contextos remetem para a
forma como um dos pretendentes, neste caso, Antínoo caracteriza Telémaco (2.85,
303; 17.406), usando ironia, segundo os escoliastas (Scholia in Odysseam 2.85 d2); e
para a caracterização de Ciclope, nas palavras de Ulisses, quando escapa do monstro
e fala com a sua κραδίη (20.19). A única contextualização positiva do lema está na
fala de Nestor que destaca as qualidades heroicas dos aqueus considerando-os insus-
tentáveis no ímpeto (3.104). Os escólios interpretam o sintagma neste passo como
equivalente a viris, ἀνδρεῖοι, bastante fortes, δυνατώτεροι, excessivamente poderosos,
ἄγαν καρτερικοί, ou invencíveis na força, τὴν ἰσχὺν ἀκράτητοι (Scholia in Odysseam
3.104 c1,c2).
22 O verbo κυδάζω tem esta única ocorrência no poema, estando ausente dos
modelos homéricos. O κύδος equivale a uma λοιδορία, ultraje, entre os siracusanos,
como explicam os escólios que remetem para S. Aj. 722 (Scholia uetera in Apollonii
Argonauticam 1.1337). Segundo Mori 2008: 83, a reação de Jasão “is marked by ratio-
nalization and the inclination toward compromise”. Mori 2005 analisa esta reconciliação
à luz do interesse que a época helenística tinha no conceito de utilidade moral da
épica.
23 E não será a ἀμηχανίη deste herói uma consequência de serem valores heroicos
a humildade e a tolerância? Jackson 1993: 30-31 defende que ἀμήχανος é uma variante
do homérico πολύμητις aplicado a Ulisses.
24 Chantraine 1999: 793 traduz o adjetivo por “destructeur, mortel” e considera-o
epíteto do destino, da morte e do fogo.
25 Depois da violenta reação de Eetes à explicação de Argo sobre as pretensões
dos jovens gregos recém-chegados, Télamon sente tal indignação que quase profere
palavras deletérias, sendo travado por Jasão: o coração do Eácida intumescia sobre-

236
caracteriza os perigos da missão26, a consternação sentida no seio do
grupo 27 e ainda o caráter do rei da Cólquida (2.890, 1202; 3.614) 28.
Aquilo que é destrutivo constitui um risco que o herói deve evitar,
se puder, daí que Jasão impeça Télamon de ter uma iniciativa assim
qualificada. A atitude heroica é, portanto, conciliadora e construtiva:
não se alcança a conciliação a partir daquilo que é deletério.
Todos estes lemas, usados sempre em dativo instrumental para
introduzir o discurso, descrevem pela negativa o novo mundo heroi-
co. Assim, este caracteriza-se por ser propício (não funesto, κακός)
e por se alcançar com uma atitude construtiva (não deletéria, ὀλοός),
humilde (não arrogante, ὑπερφίαλος) e tolerante (não insustentável,
ἄσχετος).
Na Odisseia os epítetos ὑπερφίαλος e κακός são dos mencionados
os únicos que se enquadram em contexto discursivo, qualificando a
forma de falar dos pretendentes (ὑπερφίαλοι μῦθοι, 4.774; ἔπεα κακά,
24.161), os quais são, como as provas e as dificuldades que Jasão
enfrenta em Ea, um dos obstáculos do herói, definindo, deste modo,
também, o mundo não heroico que tem de ser dominado.
Têm conotação positiva os adjetivos ousado e brando, que qua-
lificam o discurso dos Argonautas entre si. O primeiro 29 é epíteto
das palavras do grupo que tenta animar Jasão, aparentemente de-
salentado com a empresa assumida (2.621), e do discurso de Peleu

maneira/ lá do fundo. Bem no seu íntimo ansiava por lhe dizer/ deletérias palavras
frente a frente, mas o Esónida deteve-o (3.382-4). Repare-se que é de novo Jasão quem
impede o Argonauta de agir contra o seu estatuto heroico, contribuindo, uma vez
mais, para o percurso de aprendizagem do companheiro.
26 Os perigos da missão qualificados como deletérios são: a passagem pelas
Simplégades (2.420), as provas em Ea (3.408, 906, 1028, 1049, 1338; 4.1033), o dragão
insone que vigia o velo (4.155), a tempestade que desvia a embarcação para a Líbia
(4.1232), a noite sem luz ao largo de Creta (4.1696).
27 Esta consternação é desencadeada, por exemplo, pela morte de Tífis, o piloto
da nau (2.858), e pelo medo da sentença de Zeus (4.584).
28 Este adjetivo está particularmente associado ao assassinato de Absirto, qualifican-
do o sangue do morto (4.559) e o medo dos Argonautas depois de terem perpetrado
este assassínio (4.584, 669).
29 O adjetivo θαρσαλέος, tal como κερδαλέος e σμερδαλέος que comentaremos
a seguir, pertence ao que Chantraine 1999: 1026 qualifica como adjetivos épicos e
jónicos em -αλέος.

237
que se apercebe do desânimo dos companheiros depois de ouvirem
Argo explicar quão cruel era Eetes e que ser aterrador guardava o
velo (2.1218). No primeiro contexto a ousadia é a resposta às pala-
vras brandas de Jasão a Tífis (2.639), ainda em sobressalto por ter
acabado de transpor as rochas do Bósforo; explica o narrador que
o herói estava a experimentar os companheiros, ao mostrar arre-
pendimento de ter aceitado a missão. Neste caso, como noutros que
analisaremos, a brandura é uma estratégia de atuação que tem como
objetivo o interesse comum.
Nos dois passos referidos vemos que a finalidade do discurso
ousado é dissipar o desânimo, confirmando-se que o desalento não é
um estado de espírito definidor dos heróis alexandrinos. Aliás, atuar
com ousadia é o que se espera: Fineu aconselha-o a Jasão (2.420-1),
que, no episódio mencionado em que as brandas palavras exprimem
um falso desalento, reconhece que a sua ousadia cresceria com o
incentivo do grupo (2.641); e o mesmo radical do adjetivo, ou seja,
o radical θαρσ- surge no advérbio para descrever uma das manobras
do herói no momento da realização das provas em Ea (3.137030).
O adjetivo brando, ao contrário de ousado, não qualifica apenas
as palavras dos Argonautas entre si, qualifica também o discurso
destes no contacto com as outras comunidades 31 . Assim, quando
perante Eetes Jasão evita as palavras deletérias de Télamon, a sua
opção é a brandura (3.385), estratégia que, como Hera explica a

30 Neste verso Hunter 1989: 250 interpreta o adjetivo como “confident [in the
outcome of his trick]”. Vian 2009: 149 considera que o termo provoca um efeito de
surpresa e define a manobra como uma prova de audácia, que consiste em Jasão se
esconder e ficar imóvel durante alguns minutos. Achamos, contudo, preferível uma
tradução que consiga manter a relação com os outros contextos, de modo a tornar
mais clara esta subtil linha de leitura.
31 Existem outros contextos, de que não nos ocuparemos, em que o epíteto bran-
do está associado a situações de intimidade familiar ou à relação entre o divino e o
humano. Referimo-nos aos episódios em que Jasão se despede da mãe (1.294) e em
que se encontra com Medeia (3.1102). O objetivo é sempre o de conquistar a simpatia
do interlocutor: seja a mãe que se inquieta com a partida do filho, seja a princesa
que Jasão quer seduzir. No âmbito do contacto dos deuses com os homens, brando
qualifica o discurso dos seguintes seres divinos com os Argonautas: as deusas tutelares
da Líbia (4.1317), Egle (4.1431) e a ninfa que aparece em sonhos a Eufemo (4.1740).

238
Atena, não resultaria com o rei colco (3.14-5). Jasão também recorre
a este tipo de abordagem com Medeia, quando sente a indigna-
ção da jovem, receosa de que ele a entregasse ao irmão Absirto
(4.394) 32.
Mas, para entender a dimensão política deste conceito, além dos
contextos discursivos 33 do adjetivo, há que refletir sobre todas as
resoluções morfológicas do radical μειλιχ- que remetam para a forma
como o homem se dirige aos outros 34. Nestas circunstâncias estão
o advérbio μειλιχίως (3.319) 35 e o verbo μειλίσσω com a aceção de

32 O conteúdo destas palavras brandas, em que Jasão fala da necessidade de


agir dolosamente com Absirto, suscita diversas interpretações. Para Byre 1996: 7-8
Jasão improvisa rapidamente um plano para aliviar os receios de Medeia e apaziguar
a sua ira, o que não significa que não esteja a falar com sinceridade. Para Paduano
1972: 224-225, a explicação do Esónida é demasiado repentina e repercute a sua
incapacidade em contrariar a vontade dos outros. Para Vian 2003: 21-22, Jasão fala
com honestidade. Hunter 1987: 131 lembra que, independentemente de as palavras
de Jasão corresponderem, ou não, a um plano previamente delineado, a dificuldade
interpretativa do passo deixa o leitor na mesma incerteza de Medeia; cf. também Hunter
1993:15. Defendemos noutro lugar que Medeia sofre duas metamorfoses na sequência
das duas perseguições que Eetes envia para a resgatar e, em nossa opinião, esta, que
conclui com o assassínio de Absirto, traduz a passagem da colca a Argonauta; cf. Sousa
2013a. Efetivamente o facto de exprimir a sua anuência relativamente ao plano do
Esónida com deletérias palavras coloca-a no mesmo patamar de seu pai, que também
fala aos Argonautas deste modo, como vimos. Ela ainda não é uma Argonauta neste
momento, mas prepara-se para o ser.
33 De facto, dos onze contextos do adjetivo μειλίχιος dez são discursivos.
34 Voltaremos a excluir os contextos intimistas: a explicação da maldição de Fineu
aos Argonautas, feita por aquele (2.467); o pedido de ajuda de Jasão a Medeia (3.985);
o pedido de purificação de Medeia a Circe (4.732); e a súplica de uma hamadríade,
numa história contada por Fineu (2.478). Excluiremos ainda da nossa análise os pro-
jetos para usar este tipo de abordagem enunciados por Cípris, no favor que solicitará
ao seu filho Eros (3.105), e por Calcíope, no diálogo em que pedirá o apoio da irmã
(3.613). Vian 2002: 206, n.2, não atribui dimensão política ao sintagma, considerando
que este se destina ou a consolar ou a persuadir e serve para realçar a filantropia
ou a cortesia das personagens. Parece-nos, contudo, que, para além da dimensão
intimista que associa este radical ao consolo, o que está em causa, nos passos não
intimistas, é uma estratégia política.
35 A este há que juntar a única ocorrência da variante do adjetivo μείλιχος que
surge com valor adverbial (1.971).

239
falar com brandura (1.650; 4.416, 1012, 1026)36, além do substantivo
μειλιχίη (2.1279; 3.586) 37.
Etálides, porta-voz de Jasão, usara este tipo de abordagem com
as lémnias (1.650) e Argo também percebe a conveniência de usar
brandura com Eetes, fazendo uso dela (3.319 38). Medeia fala assim
aos Argonautas em Drépane, pedindo que não a entregassem aos
colcos, que tinham ido em sua perseguição até ao reino de Alcínoo
para a resgatar (4.1012) 39. A colca volta a provar a sua visão política
quando propõe à rainha de Drépane esta forma de abordagem como
a ideal para persuadir Alcínoo a protegê-la (4.1026). Os próprios
colcos, com a confirmação do casamento entre Jasão e Medeia, ao
desistirem da missão, pedem com brandura a Alcínoo que os deixe
ficar como seus aliados (4.1210).
O adjetivo θαρσαλέος está ausente do contexto discursivo os
Poemas Homéricos, mas caracteriza o herói, sobretudo na Ilíada
(e.g. 5.602; 10.223; 19.169). A brandura como epíteto do discurso
surge na Odisseia, quando Ulisses quer dissipar o desespero e o
medo dos companheiros e quando ensina a Telémaco que esta é a
melhor forma de se dirigir a alguém (16.279). Assim, por exemplo,
na ilha de Circe, fala brandamente aos companheiros quando lhes
entrega um veado para saciarem a fome (10.173); e, perto de Cila e

36 Na Argonáutica este verbo tem também a aceção de apaziguar, quando o


objeto da ação são os deuses ou seres sobrenaturais (1.860; 2.692, 923; 3.531, 1035;
4.708, 1665), e pedir com brandura, se construído com uma completiva substantiva
(2.478; 4.1210). Apolónio pode ter ido buscar a aceção de falar com brandura (1.650;
3.105, 613, 985; 4.416, 1012, 1026) e de apaziguar aos Poemas Homéricos (Od. 3.96;
4.326, para a primeira aceção; e Il. 7.410, para a segunda). No poema distribui-as em
número igual de ocorrências: sete para falar com brandura e sete para apaziguar,
reservando dois contextos para a construção com a completiva.
37Os lemas com o radical μειλιχ- perfazem no poema trinta e cinco ocorrências.
Somando as ocorrências deste radical na Ilíada e na Odisseia, temos precisamente
o mesmo número.
38 Discordamos de Hunter 1989: 134, para quem o advérbio é um eco irónico
da ideia expressa por Hera de que a brandura discursiva não resultaria com Eetes.
39 Com este pedido a colca completa a sua integração num novo enquadramento
político (Sousa 2013a).

240
Caríbdis, fala-lhes de novo brandamente para que aqueles, apesar
do sobressalto, voltem a pegar nos remos (12.207).
Medeia mostra conhecer as vantagens desta atitude, quando
projeta adotá-la por dolo com Absirto (4.416). Também Ulisses na
Odisseia recorre dolosamente a uma forma branda de falar: é assim
que diz ao Ciclope que o seu nome é Ninguém (9.363). E também
Penélope usa a brandura com astúcia no trato com os pretenden-
tes, de modo a conquistar-lhes oferendas (18.283). Mas o recurso
a uma ardilosa brandura apresenta na Argonáutica uma diferença
linguística: Medeia planeia falar a Absirto dessa forma usando a voz
ativa 40, enquanto as restantes ocorrências do verbo μειλίσσω com
a aceção de falar com brandura 41 estão na voz média 42. A opção
pela voz ativa anula o interesse do sujeito 43, o que talvez seja uma
forma subtil de não ver Medeia como o único agente do assassínio
de Absirto, já que a morte deste deve ser considerada do interesse do
grupo 44.
Como estratégia política a brandura resulta da perceção de como
é vantajoso reagir numa determinada situação 45, ou seja, do que é

40 O cuidado com a estrutura poética leva a que na aceção do verbo como apa-
ziguar também haja uma voz ativa (4.708).
41 Discordamos de Mori 2008: 121, que considera que os termos com o radical
μειλιχ- sejam sempre “overly suggestive of deceit”. A atitude dolosa parece-nos existir
apenas no contexto com a voz ativa.
42 Esta questão não se coloca em Od. 9.363 ou 18.283, que apresentam o dativo
instrumental explicativo da forma como as personagens falam. Na Odisseia o lema
μειλίσσω também está na voz média (3.96; 4.326).
43 Estamos claramente a falar, nos outros seis contextos, de uma média, que
Rodríguez Alfageme 2017: 222 designa como média de interesse. Mesmo construído
com a completiva substantiva, a voz do verbo é a média.
44 Cf. Jackson 1993: 29ss. Lembremos que o grupo tinha ouvido as palavras de
Peleu, que os persuadira da vantagem de eliminar um chefe: lançar entre os homens por
ele liderados o desânimo e o medo (4.497-500). O facto de os Argonautas esperarem
um sinal de Medeia para avançar sobre os colcos (4.482-487) permite perceber que
todos são coniventes com o crime. Aliás, Zeus castiga-os a todos por este assassínio
sem poupar nenhum deles; cf. Sousa 2013a.
45 Chantraine 1999: 519 traduz este adjetivo proveniente de κέρδος (ganho, lucro,
vantagem) por “que cherche à gagner” ou “avantageux”. Para Vian 2009: 33 o sentido
habitual do adjetivo é “rusé”, mas neste passo o filólogo defende a sua tradução por
“habile” ou “avisé”. Pensamos que a ideia de conveniência se ajusta melhor ao que é
“vantajoso” ou ao “que procura lucrar”.

241
conveniente. Com efeito, Jasão, depois de falar a Eetes com pala-
vras brandas, volta a dirigir-se-lhe, no mesmo encontro ainda, com
palavras qualificadas como κερδαλέα, com as quais lhe explica que
aceitava as provas impostas (3.426). O uso deste lema surge apenas
neste passo da Argonáutica 46. Em nossa opinião, a complementari-
dade dos conceitos advém da Odisseia, na qual os lemas κερδαλέος e
μειλίχιος qualificam o modo de Ulisses falar com Nausícaa (6.148)47.
A brandura discursiva implica, portanto, uma boa perceção da con-
veniência de evitar uma reação hostil por parte do interlocutor ou
pelo menos de não a agravar.
No poema alexandrino o oposto de palavras brandas é palavras
medonhas, σμερδαλέα ἔπεα48, usado uma única vez para caracterizar
o modo como o rei da Cólquida fala com Jasão (3.433), depois de
este lhe dirigir as já mencionadas palavras brandas (3.385) e con-
venientes (3.426).
A brandura no diálogo – seja entre os Argonautas seja entre estes
e outros – é a apologia da palavra que substitui, desta forma, o con-
fronto pelas armas. Esta oposição é clara num passo em que o radical
μειλιχ- aparece no poema numa construção sintaticamente particular
e sem equivalência no modelo homérico. No passo o adjetivo μείλιχος
tem valor adverbial 49 e serve, juntamente com o verbo ἀντιάω, para

46 Hunter 1989: 145 considera insatisfatória a explicação de κερδαλέος neste verso


como sinónimo de “tactful, “helpful [to his cause]” ou “avisé” e remete para a sua
interpretação como μειλίχιος, proposta por Campbell 1971. No comparativo o lema
aparece de novo em contexto não discursivo quando Medeia pondera suicidar-se
(3.798). É significativo que a deusa Πειθώ receba o epíteto de Κερδείη (Herod. 7.74).
47 Garvie 1994: 119, no comentário ao uso do termo κερδαλέος neste verso,
considera-o sinónimo de “cunning” ou “calculating”. Em Od. 13.291 o adjetivo ilustra
um dos dons da personagem.
48 Chantraine 1999: 1026 verte σμερδαλέος por “terrible, qui épouvante”. Os
Poemas Homéricos associam este lema ao grito (e.g., Il. 20.443; Od. 22.81; 24.537),
ao gemido (Il. 18.35; Od. 9.395) e ao retinir do bronze (Il. 21.255). Rutherford 2019:
101 refere o uso deste adjetivo por Ar. Av. 553, na sua exploração do mundo heroico
feita com o intuito de provocar o cómico. Na Ilíada o contrário de palavras brandas é
palavras duras, στερεὰ ἔπεα (12.267), qualificativo que o poeta helenístico desprezou.
49 Na Argonáutica, como adjetivo, μείλιχος nunca caracteriza a forma de as perso-
nagens falarem; este lema tem apenas duas ocorrências enquanto epíteto e qualifica
o vento (1.1424) e a ave de Cípris (3.550).

242
descrever o modo como Cízico acolhe os Argonautas (1.971). O
contexto explica que o rei poderia receber os recém-chegados com
guerra ou com brandura, ficando assim evidente que estas são duas
possibilidades antagónicas no contacto com os povos. Mais adiante
na viagem, Anceu coloca aos companheiros a questão de ponde-
rarem se seria melhor abordar Eetes com diplomacia ou optar por
uma arremetida diferente (2.1279-80) 50. Exprime a primeira ideia o
termo μειλιχίη e cabe a ὁρμή o sentido oposto 51. A necessidade de
escolher entre uma e outra significa que as estratégias se excluem 52.
No segundo e último passo em que o substantivo μειλιχίη apa-
rece cria-se uma tradição ancestral, em que Frixo sobressai como
o mais dotado de μειλιχίη e de θεούδεια (3.586). A associação dos
dois conceitos compreende-se melhor se tivermos presente a ou-
tra conotação do verbo μειλίσσομαι [usar a voz média]: “apaziguar
os deuses”. Embora não justifique, o narrador apresenta Frixo em

50 Estas palavras de Anceu são comentadas por Vian 1973: 101-2. O estudioso
explica a leitura de Fränkel, que defende a existência de um verso depois do 1278,
em que o Argonauta perguntaria a Jasão ἀμφ’ ὅρμῳ, pois como piloto da nau não lhe
caberia colocar questões sobre a estratégia que o chefe adotaria com o soberano de Ea.
No entanto, Vian defende que não há qualquer incongruência: “Bref, les v. 1271-1285
ne comportent aucune absurdité; mais, bien que seules soient rapportées les paroles
d’Ancaios, c’est à un véritable dialogue en raccourci qu’ils nous font assister: Apollonios
de Rhodes a rarement été plus concis” (1973: 102). Em nossa opinião, além de conciso,
o passo prova que os Argonautas exprimiam as suas opiniões ao líder do grupo.
51 Os Scholia uetera in Apollonii Argonauticam explicam esta forma de testar
(ἀποπειραθείημεν) Eetes como uma abordagem suave (πράως προσφερόμενοι). Por
sua vez, o substantivo ὁρμή tem na Ilíada a aceção de esforço feito em combate (e.g.
4.466) e arremetida de um guerreiro (e.g. 9.355).
52 Na Ilíada brandura e guerra não são incompatíveis: Agamémnon usa a expressão
brandura de guerra, μειλιχίῃ πολέμοιο (15.741); e Andrómaca, depois da morte do mari-
do, elogia-o dizendo que ele nunca fora brando na aflitiva batalha (24.739). Macleod
1982: 152 considera que a expressão οὐ μείλιχος equivale a ἀμείλιχος do verso 734
deste mesmo canto, para a qual remete. Parece-nos, todavia, que assim não é, porque
os três contextos do adjetivo com o alfa privativo na Ilíada (na Argonáutica como
na Odisseia nem ocorre) são marcadamente negativos pela entidade que qualificam:
Hades, apresentado também como indomável, ἀδάμαστος (9.158), a Erínia (9.572) e
um senhor a lidar com um escravo (24.734). Quando se diz que Pátroclo se distingue
como μείλιχος no trato para com todos os mortais, o sentido do epíteto não é bélico:
Menelau apresenta esta qualidade de Pátroclo como reflexo da sua sabedoria (17.671)
e a cativa Briseida como forma de recordar as suas qualidades (19.300). Aliás, o uso
de palavras brandas por Pisandro e Hipóloco, que esperam que Agamémnon lhes
poupe a vida (11.137), prova que, embora seja possível usar de brandura na guerra,
não se espera que o herói homérico atue desse modo.

243
3.586 como aquele que apazigua os deuses e concilia os homens,
temente aos primeiros (θεουδής) e diplomata nas relações com os
segundos (μειλίχιος). Ora, estando esta personagem na origem da
missão dos Argonautas, os jovens que partem para resgatar o velo
do carneiro de Frixo devem ser detentores das mesmas qualidades.
E, de facto, os Argonautas apaziguam Hefesto e Cípris (1.859-60),
Apolo (2.692), a alma de Esténelo (2.923), Hécate (3.1035) e falam
brandamente com Hipsípile (1.650), com Eetes (3.385) e com Medeia
em Drépane (4.394). Por sua vez, o epíteto θεουδής, que designa
a qualidade daquele que possui θεούδεια, surge como qualificativo
de Ídmon (2.849), dos Argonautas (2.1180) e de Alcínoo (4.1123 53).
Na Odisseia, este adjetivo, para além de integrar um verso formular
(6.121; 8.576; 9.176; 13.202), encontra-se em dois passos que podem
ter sugerido a Apolónio a inserção do conceito no âmbito político:
Ulisses compara Penélope ao soberano temente aos deuses (19.109)
e Euricleia atribui ao rei de Ítaca esta qualidade (19.364).
Em suma, a Argonáutica apresenta aos governantes ptolemaicos
uma história épica com vários tipos de liderança: Jasão, o chefe de
uma arriscada expedição que, ao longo da viagem, atua com ousadia
(θαρσαλέως), avalia as situações, identificando um ultraje (κύδος)
e sente necessidade de falar com palavras convenientes (κερδαλέα
ἔπεα), sendo sempre humilde (não arrogante, ὑπερφίαλος), tolerante
(não insustentável, ἄσχετος), diplomático (μειλίχιος) e temente aos
deuses (θεουδής); Alcínoo, soberano temente aos deuses e diplomá-
tico na forma como lida com os colcos e com os Argonautas; Eetes,
arrogante, deletério, antidiplomático pelo uso que faz de palavras
medonhas e sacrílego pela violação das sagradas leis de hospitalidade.

53 Hunter 2015: 234 explica o uso do adjetivo neste verso remetendo para o
verso 1100 do livro IV, em que Alcínoo exprime o seu receio de ir contra a justiça
certeira de Zeus, Διὸς δείδοικα δίκην ἰθεῖαν ἀτίσσαι. Aliás, o radical do verbo δείδω
presente na fala do rei entra na composição do adjetivo θεουδής (Chantraine 1999:
256). Alcínoo está a desempenhar o papel dos reis justiceiros referidos em Hes. Th.
86-87 (Hunter 2005: 232) e mencionados no pacto entre colcos e mínias (AR 4.347).

244
Quererá Apolónio com este confronto de carateres suscitar a
reflexão dos Ptolemeus que, à maneira egípcia, se deificavam e, ao
mesmo tempo, salvaguardavam a sua cultura, que era grega? Não
será este poema uma proposta de reflexão sobre o modo de gerir as
tensões de um império tão vasto, ambicioso e multicultural como o
egípcio? O contacto com culturas distintas, línguas diferentes, perigos
naturais a que cada elemento do grupo está sujeito, pondo à prova
a sua resistência e fazendo emergir incertezas e dúvidas próprias da
natureza humana, era o desafio constante que, em Alexandria, enfren-
tavam todos aqueles que constituíam os pilares culturais e políticos
do reino ptolemaico. Apesar de este novo herói ser tão diferente do
homérico, Apolónio, ao evocar o mundo homérico como referente
poético, faz assentar no legado cultural helénico mais antigo, ao qual
o Egito estava miticamente ligado54, os alicerces do Novo Mundo, que
deveria ter deixado à Humanidade um património cultural mundial
de valor inestimável: o Mundo Alexandrino.

Bibliografia

Beye, C.R. (1982), Epic and Romance in the Argonautica of Apollonius. Carbondale,
Edwardsville: Southern Illinois University Press.
Bowie, A.M. (2013), Homer. Odyssey. Books XIII and XIV. Cambridge: University Press.
Byre, C. (1996), “The Killing of Apsyrtus in Apollonius Rhodius’ Argonautica”, Phoenix
50.1: 3-16.
Carreira, P. (2014), As Argonáuticas de Apolónio de Rodes. A Arquitectura e um poema
helenístico. Lisboa: Esfera do Caos.
Cilleruelo, A.C. (2010), “Notas sobre la concordia en Apolonio de Rodas”, Estudios
griegos e indoeuropeos 21: 231-246.
Jackson, S. (1993), Creative selectivity in Appolonius’ Argonautica. Amsterdam: Adolf
M. Hakkert.
Chantraine, P. (1999), Dictionnaire étymologique de la lange grecque. Paris: Klincksieck.

54 Alexandria era, no século III a.C., cultural e historicamente, uma cidade egípcia
e grega: na Odisseia o próprio Menelau explica a Telémaco que andou errante pelo
Egito, no regresso a casa, depois da guerra (4.83), e, na versão contada por Heródoto
(2.112-20), Proteu, rei do Egito, retém Helena no seu reino, não a deixando partir
com Páris para Troia. Sobre a ligação do Egito ao passado grego da Guerra de Troia e
sobretudo às figuras mitológicas de Helena e Menelau, veja-se Stephens 2010: 59-61.

245
Garvie, A.F. (1994), Homer. Odyssey. Books VI-VIII. Cambridge: University Press.
Hunter, R.L. (1987), “Medea’s flight: the fourth book of the Argonautica”, Classical
Quarterly 37: 129-139.
Hunter, R.L. (1988), “‘Short on Heroics’: Jason in the Argonautica”, Classical Quarterly
38: 436-453.
Hunter, R.L. (1989), Apollonius of Rhodes. Argonautica. Book III. Cambridge: University
Press.
Hunter, R.L. (1993), The Argonautica of Apollonius of Rhodius. Literary Studies. Cambridge:
University Press.
Hunter, R.L. (2015), Apollonius of Rhodes. Argonautica. Book IV. Cambridge: University
Press.
Júnior, F.R. (2018), “Héracles e o heroísmo nas Argonáuticas de Apolônio de Rodes”,
Cadernos Letras da UFF 28.56: 203-221.
Köhnsen, A. (2010), “Apollonius’ Argonautica”, in J. Clauss & M. Cuypers (eds), A
Companion to Hellenistic Literature. Blackwell: Wiley Blackwell, 136-150.
Macleod, C.W. (1982), Homer. Iliad. Book XXIV. Cambridge: University Press.
Mori, A. (2001), “Personal Favor and Public Influence: Arete, Arsinoë II, and the
Argonautica”, Oral Tradition 16.1: 85-106.
Mori, A. (2005), “Jason’s Reconciliation with Telamon. A Moral Exemplar in Apollonius’
“Argonautica”, The American Journal of Philology 126: 209-236.
Mori, A. (2008), The Politics of Apollonius Rhodius’ Argonautica. Cambridge: University
Press.
Murray, J. (2014), “Anchored in Time: the Date in Apollonius’ Argonautica”, in M.A.
Harder, R.F. Regtuit, G.C. Wakker (eds.), Hellenistic Poetry in Context. Leuven-Paris-
Walpole: Peeters, 247-277.
Paduano, G. (1972), Studi su Apollonio Rodio. Roma: Edizioni dell’ Ateneo.
Rodríguez Alfageme, I. (2017), Gramática Griega. Madrid: Ediciones Complutense.
Rutherford, R.B. (2019), Homer. Iliad. Book XVIII. Cambridge: University Press.
Sousa, A.A.A. (2012), “Le sourire des Amants et la Fusion de l’Amour (A.R. 3.1008-
1024)”, Euphrosyne 40: 321-326.
Sousa, A.A.A. (2013a), “A Metamorfose de Medeia na Argonáutica de Apolónio de
Rodes”, Aletria: Revista de Estudos de Literatura 23.1: 73-82.
Sousa, A.A.A. (2013b), “Apolónio de Rodes 4.1-5: uma teia de sentidos”, in C. Pimentel,
P. Alberto (eds.), Vir bonus peritissimus aeque. Estudos de homenagem a Arnaldo
do Espírito Santo. Lisboa: Centro de Estudos Clássicos, 133-141.
Sousa, A.A.A. (2020), “Lemnos e Drépane: a voz política das mulheres em Apolónio de
Rodes”, in A. Rebelo, M. Miranda (ed.), O mundo clássico e a universalidade dos
seus valores: da Antiguidade ao nosso tempo. Coimbra: Imprensa da Universidade,
135-146.
Sousa, A.A.A. (2021a), Apolónio de Rodes. Argonáutica. Livros I e II. Estudo Introdutório.
Tradução e Notas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
Sousa, A.A.A. (2021b), “Limiares ou Mudanças Anunciadas, em Apolónio de Rodes”,
Ágora. Estudos Clássicos em Debate 23: 85-92.
Stephens, S. (2010), “Ptolemaic Alexandria”, in J. Clauss & M. Cuypers (eds), A Companion
to Hellenistic Literature. Blackwell: Wiley Blackwell, 46-61.

246
Strootman, R. (2014), “Hellenistic Imperialism and the Ideal of World Unity”, in C. Rapp,
H. A. Drake (eds), The City in the Classical and Post-classical World: Changing
Contexts of Power and Identity. New York: Cambridge University Press, 38-61.
Vian, F. (1973), “Notes critiques au chant II des d’Apollonios de Rhodes”, Revue des
Études Anciennes 75.1-2: 82-102.
Vian, F. (2002, 3ª ed.), Apollonios de Rhodes, Argonautiques. Chants I-II, vol. I. Paris:
Les Belles Lettres.
Vian, F. (2009, 2ª ed.), Apollonios de Rhodes, Argonautiques. Chant III, vol. 2. Paris:
Les Belles Lettres.

Link para os textos antigos citados e analisados: http://stephanus.tlg.uci.edu/

247
(Página deixada propositadamente em branco)
A dívida de A Feiticeira de Teócrito
a o f r a g m e n t o PSI 1 2 1 4 d e S ó f r o n

T h e D e b t o f T h e o c r i t u s ’ T h e S o rc e r e r e s s
T o S o p h r o n ’ s PSI 1 2 1 4

Cláudia Cravo
Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-4691-3070
claudiacravo@hotmail.com

Resumo: Comentários antigos atestam a influência de Sófron sobre


Teócrito, em especial sobre o seu Idílio 2, A Feiticeira. Embora não
tenhamos razões para deles duvidar, até porque é muito plausível
que Teócrito tivesse querido render homenagem a um escritor seu
conterrâneo, os fragmentos que nos chegaram do mimógrafo do
séc. V a.C. não nos permitem, todavia, reconhecer com segurança
a precisa relação entre os dois autores siracusanos. Publicado, pela
primeira vez, em 1933, o fragmento de Sófron conhecido por PSI
1214 contém uma cena de magia, facto que impeliu a maioria da crí-
tica a acreditar estar perante o texto que servira de base ao poema
de Teócrito. É nosso propósito reunir os testemunhos concretos que
envolvem esta problemática e expor as incertezas que nos impe-
dem de afirmar que as dezanove linhas do papiro de Oxirrinco (PSI
1214) pertencem, de facto, ao mimo que serviu de modelo ao poeta
alexandrino.

Palavras-chave: Sófron, magia antiga, mimo, Teócrito, Idílio 2

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_11
Abstract: Scholia testify Sophron’s influence on Theocritus, especially on
his Idyll 2, The Sorceress. Although we have no reason to doubt them,
even because it is very likely that Theocritus would have wanted to
pay tribute to a writer from his own land, the fragments that came to
us from the 5th century BC mimographer do not allow us, however,
to recognize with certainty the precise relationship between the two
Syracusan authors. First published in 1933, the fragment of Sophron
known as PSI 1214 contains a scene of magic, a fact that induced
most critics to believe it was the text on which the poem of Theocri-
tus was based. It is our purpose to gather the concrete testimonies
that involve this problem and expose the uncertainties that prevent
us from affirming that the nineteen lines of the Oxyrynchus papyrus
(PSI 1214) belong, in fact, to the mime that served as a model for
the Alexandrian poet.

Keywords: Sophron, ancient magic, mime, Theocritus, Idyll 2

De Sófron sabemos pouco mais do que as informações que


nos são fornecidas pela Suda: que era natural de Siracusa; que
foi contemporâneo de Xerxes e de Eurípides; que escreveu mimos
masculinos (ἀνδρεῖοι) e femininos (γυναικεῖοι) em prosa e que fez
uso do dialeto dórico.
Deste mimógrafo do séc. V a.C., cuja produção literária terá sido
certamente extensa, conhecem-se apenas alguns títulos e fragmentos
muito curtos1, facto que constitui um grande obstáculo ao trabalho de
todos aqueles que, como nós, pretendem avaliar a dívida de Teócrito
ao seu ilustre conterrâneo.
Para aclarar o sentido de κυαθίς, Ateneu (11.480b) cita Sófron,
dizendo que, no seu mimo intitulado (ταὶ) 2 γυναῖκες αἳ τὰν θεόν

1 Para o que nos resta da obra de Sófron, veja-se a edição de Kassel & Austin
2001, vol. I: 187-253.
2 O artigo não aparece no texto de Ateneu, mas este mesmo título é citado com
artigo por Apolónio Díscolo (Dos advérbios, 186 Schneider & Uhlig), precisamente
como exemplo da forma dórica ταί.

250
φαντι ἐξελᾶν, o autor siracusano teria escrito: ὑποκατώρυκται δὲ
ἐν κυαθίδι τρικτὺς ἀλεξιφαρμάκων. A tradução mais imediata do
título do mimo será ‘As mulheres que dizem expulsar a deusa’,
com τὰν θεόν a servir de complemento direto do verbo, mas a
verdade é que, sem conhecermos o conteúdo exato da obra em
causa, esta é tão-somente uma das interpretações possíveis da
frase. Vários helenistas avançaram com propostas diferentes3, que
passam, algumas delas, pelo entendimento de τὰν θεόν como sujei-
to de ἐξελᾶν; mas também por outras significações admitidas por
este mesmo verbo, cujo sentido não é preciso; ou até pela iden-
tificação da deusa designada por τὰν θεόν com entidades muito
diversas.
Apesar de todas as incertezas que rodeiam o título ταὶ γυναῖκες
αἳ τὰν θεόν φαντι ἐξελᾶν, o fragmento a que Ateneu o associa sugere
que o conteúdo do mimo assim denominado estaria relacionado com
temas mágicos. Não é, por isso, de estranhar que, quando, nos anos
vinte do século passado, se descobriu um passo de Sófron com a
descrição de uma cerimónia de magia, a tendência fosse imediata-
mente para associá-la ao título conhecido. Este fragmento, que nos
chega de um papiro de Oxirrinco, foi publicado pela primeira vez,
alguns anos depois, por Norsa e Vitelli 4. Porque é, de longe, o mais
importante fragmento de Sófron e porque os especialistas discutem
há muito o seu interesse como modelo de Teócrito, impõe-se que o
citemos aqui 5:

3 Vide Tupet 1976: 144-145, onde se encontram resumidas as principais interpre-


tações do título em causa, alvitradas até então.
4 Norsa & Vitelli 1933: 119 e 249. O texto foi novamente publicado, em 1935,
pelos mesmos autores, in Papiri Greci e Latini (PSI) Vol. XI, nº 1214. Vários helenis-
tas tentaram uma tradução do novo fragmento. Vide, entre outros, Chantraine 1935:
26 e Page 1941: 331, cujas traduções são geralmente citadas nos estudos posteriores
dedicados ao mimógrafo siracusano.
5 Transcrevemos apenas o texto da primeira coluna do papiro, que é a mais
relevante. Existe uma segunda coluna, com cerca de 30 linhas, que estão, na sua
maioria, muito fragmentadas. Citamos o texto pela edição de Kassel & Austin
(Fr. 4.1-19).

251
τὰν τράπεζαν κάτθετε
ὥσπερ ἔχει· λάζεσθε δὲ
ἁλὸς χονδρὸν ἐς τὰν χῆρα
καὶ δάφναν πὰρ τὸ ὦας.
5 ποτιβάντες νυν πὸτ τὰν
ἱστίαν θωκεῖτε. δός μοι τὺ
τὤμφακες· φέρ’ ὧ τὰν σκύλακα.
πεῖ γὰρ ἁ ἄσφαλτος; : οὕτα.:
ἔχε καὶ τὸ δάιδιον καὶ τὸν
10 λιβανωτόν. ἄγετε δὴ
πεπτάσθων μοι ταὶ θύραι
πᾶσαι· ὑμὲς δὲ ἐνταῦθα
ὁρῆτε καὶ τὸν δαελὸν
σβῆτε ὥσπερ ἔχει. εὐκαμίαν
15 νυν παρέχεσθε ἇς κ’ ἐγὼν
πὸτ τάνδε πυκταλεύσω.
πότνια, δεί[πν]ου μέν τυ κα[ὶ]
[ξ]ενίων ἀμεμφέων ἀντά[
]ν . . ν· καὶ κα αμῶν δέπ.[

Estas 19 linhas, conhecidas por PSI 1214 6, retratam claramente,


em diálogo dramático, os preparativos de uma cerimónia de magia.
Logo após a descoberta do precioso papiro que as continha, vários
foram os helenistas que se preocuparam em analisar os pormenores
do ritual mágico que aí aparece descrito. Desses estudos, cuja argu-
mentação ainda hoje continua a ser repetida, o mais importante é,
sem dúvida, o de Eitrem, mas também não podemos deixar de referir
Latte, Gow, Legrand, Chantraine e Lavagnini 7. Este último filólogo
apresenta mesmo um comentário, linha a linha, do ‘novo’ texto de

6 Cf. supra, nota 4.


7 Eitrem 1933, Latte 1933, Gow 1933, Legrand 1934, Chantraine 1935 e Lavagnini
1935b.

252
Sófron 8. É de realçar que as interpretações do dito fragmento são
feitas, na maioria das vezes, com o pressuposto de que ele pertence,
de facto, ao mimo de que conhecemos o título. Porque assentam
numa especulação, teremos de aceitá-las sempre com grandes
reservas.
Não pretendendo repetir as ideias formuladas pelos diversos estu-
diosos que propuseram interpretações pormenorizadas do ritual aqui
apresentado 9, convirá, no entanto, tecermos algumas considerações
gerais que ressaltam da leitura do fragmento em questão.
Pelo que nos é dado inferir, existe uma figura principal que orienta
uma ação mágica e que, nesse papel, dá instruções a um número
impreciso de ajudantes e ordens diretas a alguém em particular (δός
… φέρ’ … ἔχε, linhas 6-9), figura que, ao que parece, pronuncia uma
única palavra na linha 8 (οὕτα)10. Não nos é permitido divisar qual o
sexo dos vários participantes na cerimónia, mas o uso do particípio
ποτιβάντες (linha 5), no masculino do plural, sugere o envolvimento
de homens 11. Percebemos que todo o ritual tem lugar no interior
de uma casa cujas portas, num primeiro momento, se encontravam
fechadas e que depois vão ser abertas (πεπτάσθων μοι ταὶ θύραι πᾶσαι,
linhas 11-12). A referência à tocha (τὸ δάιδιον, linha 9) indica que
a ação se passa de noite. É-nos ainda possível perceber que o rito
envolve o sacrifício de uma cadela (τὰν σκύλακα, linha 7), o que
leva a crer que a πότνια invocada na linha 17 seja Hécate, a deusa a
quem aquele animal se encontrava associado12. No seguimento deste

8 Lavagnini 1935a.
9Vide ainda a análise posterior de Tupet 1976: 147-149 e, mais recentemente, as
de Hordern 2002: 167-169 e de Verdejo Manchado 2010.
10 Uma vez que não podemos ter certezas quanto à pontuação do texto, parece-
-nos também admissível a hipótese de todo o fragmento ser um monólogo e a palavra
οὕτα ter sido proferida pela pessoa que dirige as operações, como resposta à sua
própria pergunta.
11 Sobre a muito debatida questão de o particípio ativo masculino plural se poder
referir a sujeitos femininos, vide bibliografia citada por Fraenkel (1962, 2ª ed., vol.
2), no seu comentário ao v.565 do Agamémnon de Ésquilo.
12 Como é sabido, o cão aparece, desde sempre, associado a Hécate: este ani-
mal pressentia e anunciava, com uivos e latidos, a chegada da deusa, de noite, às

253
raciocínio, é verosímil que δεί[πν]ου (linha 17) se esteja a referir ao
δεῖπνον Ἑκάτης que normalmente se colocava nas encruzilhadas para
apaziguar a deusa e mantê-la à distância 13. Um escólio a Lícofron 14
diz que Sófron, nos seus mimos, aludiu ao sacrifício de cães a Hécate,
facto que vem também corroborar estas suposições.
Com a descoberta deste último fragmento de Sófron, a maior par-
te da crítica acreditou estar perante o texto que servira de base ao
Idílio A Feiticeira, mais concretamente à cena de magia que ocupa
todo o início do poema 15.
A dependência de Teócrito relativamente ao mimógrafo siracusano
do séc. V a.C. encontra-se atestada nos comentários antigos ao Idílio
2. Um escoliasta refere, no argumento do poema 16, que o tema da
magia provém dos mimos de Sófron: τὴν δὲ τῶν φαρμάκων ὑπόθεσιν
ἐκ τῶν Σώφρονος Mίμων μεταφέρει. Do argumento chega-nos uma
outra informação mais específica: τὴν δὲ Θεστυλίδα ὁ Θεόκριτος
ἀπειροκάλως ἐκ τῶν Σώφρονος μετήνεγκε Mίμων17. Embora a crítica
contida no advérbio ἀπειροκάλως não seja facilmente inteligível 18,
uma vez que nada há na Téstilis de Teócrito que possa ser visto como

encruzilhadas (vide, e.g., Virgílio, Eneida, 6.257-258); quando Hécate deixava as suas
moradas subterrâneas para vir presidir a cerimónias mágicas, trazia consigo uma
matilha barulhenta de cães infernais (vide, e.g., Apolónio de Rodes 3.1216-1217); a
própria deusa aparecia frequentemente aos feiticeiros sob a forma de uma cadela
(vide, e.g., Luciano, O Mentiroso, 14). Muitos são também os autores que referem
o sacrifício de cães a Hécate (vide, e.g., Plutarco, Moralia, 280c; Pausânias 3.14.9;
Ovídio, Fastos, 1.389).
13 Para outras referências ao δεῖπνον Ἑκάτης, vide, e.g., Plutarco, Moralia 708f-709a
ou Luciano, Diálogos dos Mortos, 1.1; 22.3.
14 Sch. Lyc. 77 Scheer.
15 Para os versos do Idílio 2 de Teócrito que contêm a cena de magia (vv.1-63),
vide Gow 1952, 2ª ed., vol.I: 16-20.
16 Sch. KEA. Os escólios de Teócrito são citados pelos manuscritos medievais
que os conservam.
17 Sch. KEAG.
18 Os estudiosos têm tentado explicar esta apreciação pouco elogiosa da Téstilis
de Teócrito. A opinião mais aceite é a de que o escoliasta se estaria a referir ao facto
de a escrava de Simeta ser uma personagem muda, quando em Sófron teria certa-
mente existido diálogo entre as intervenientes nos procedimentos mágicos. A este
respeito, o comentário alvitrado por Gow (1952, 2ª ed., vol.II: 35, n.1) parece-nos o
mais sugestivo: “(…) the point might merely be the borrowing of the name from a
character in Sophron totally dissimilar”.

254
ἀπειρόκαλον, o escoliasta faz-nos saber que a personagem teocritiana
de Téstilis deriva dos mimos de Sófron.
Com base neste comentário antigo, é comum os críticos modernos
afirmarem que Teócrito foi buscar a Sófron o nome da escrava de
Simeta. Esta é, de facto, a interpretação mais atrativa das palavras do
escoliasta. Não será, no entanto, de excluir um outro entendimento
da frase, que passa por admitirmos, como fez Séchan19 , que τὴν
Θεστυλίδα pode significar ‘a sua escrava’. Nesse caso, a dívida de
Teócrito a Sófron teria consistido apenas no uso de uma figura que
auxilia a protagonista na execução dos ritos mágicos.
Não temos razões para duvidar das palavras dos comentadores
antigos, até porque se nos afigura muito plausível que Teócrito tives-
se querido render homenagem a um escritor seu conterrâneo, mas
a verdade é que também não podemos assegurar que as 19 linhas
do papiro de Oxirrinco pertencem, de facto, ao mimo que serviu de
modelo ao poeta alexandrino. Uma leitura apressada do fragmento
em causa poderia induzir-nos a acreditar que a sua relação com o
Idílio 2 é muito estreita, já que nas duas obras encontramos menção
ao mesmo animal (cão) e – ao que parece – à mesma deusa (Hécate),
bem como ao uso do louro e à existência de figuras que prestam
auxílio na realização dos ritos, isto só para citarmos os aspetos mais
evidentes. No entanto, uma análise mais cuidada dos dois textos
revela-nos inúmeras e substanciais divergências, que passam, desde
logo, pela natureza e propósito dos rituais evocados, mas também
pela escolha e pela utilização dos vários ingredientes ao longo das
duas operações mágicas. Se em Sófron são descritas as premissas
de um sacrifício verosimilmente purificatório 20, numa cena em que
se acredita existir um exorcismo de Hécate 21, em Teócrito, por seu

19 Séchan 1965: 70, n.19.


20 A propósito da cerimónia descrita por Sófron entendida como um rito purifi-
catório, vide Hordern 2002.
21 Assume-se normalmente que o fragmento mais substancial de Sófron é um
exorcismo de Hécate porque, como vimos, é costume associá-lo ao título ταὶ γυναῖκες
αἳ τὰν θεόν φαντι ἐξελᾶν, entendido como ‘As mulheres que dizem expulsar a deu-

255
turno, assistimos a uma ação mágica de teor amoroso, que passa
obviamente por ritos de encantamento muito diferentes, e onde
Hécate é apenas invocada. O louro aparece nas duas obras, mas em
Sófron é colocado nas orelhas dos intervenientes na cerimónia e
no Idílio 2 é feito queimar por Simeta. Todas as outras substâncias
que são referidas no texto de Sófron (o sal, o betume, a tocha, o
incenso) estão ausentes da composição teocritiana. No fragmento do
papiro de Oxirrinco imola-se uma cadela, enquanto que em Teócrito
apenas se alude ao cão como o animal que pressente e anuncia a
presença de Hécate. Mas a diferença mais evidente entre os dois
textos parece‑nos mesmo ser o facto de o ritual descrito por Sófron
incluir vários participantes, quando no poema alexandrino todos os
procedimentos mágicos são levados a cabo apenas por duas figuras.
Resumidas que estão as questões mais importantes que envolvem
a problemática da dívida de Teócrito a Sófron, será agora a altura
de fazermos um ponto da situação. Antes de mais nada, parece-nos
prudente assumir que nos movemos num terreno muito complexo,
onde há lugar para pouco mais do que especulações. Valerá talvez a
pena lembrar os únicos elementos realmente seguros de que dispo-
mos: os escólios ao Idílio 2 que nos dizem que Teócrito se inspirou
nos mimos de Sófron e que tomou deste último a figura de Téstilis;
e o título ταὶ γυναῖκες αἳ τὰν θεόν φαντι ἐξελᾶν, cujo sentido está
envolto em incertezas e que, por conseguinte, não pode ser ligado
com segurança a nenhum fragmento do autor, exceto àquele que
é citado por Ateneu. Para além destas informações, o muito que a
crítica tem tentado adiantar sobre o assunto que nos detém nunca
passa de meramente conjetural.
Teócrito conhecia, com toda a certeza, as criações literárias do seu
conterrâneo, que eram tão célebres que até Platão as admirava22.

sa’. Alguns estudiosos duvidam da ligação deste título ao fragmento do papiro de


Oxirrinco. A este respeito, vide, sobretudo, os argumentos de Gow (1952, 2ª ed., vol.
II: 34) e de Tupet (1976: 149).
22 Sabemos, pela Suda, que Platão tinha sempre à mão os mimos de Sófron e
que, não raras vezes, adormecia a lê-los.

256
Nesta conjuntura, parece-nos quase inevitável que, ao propor-se es-
crever uma composição sobre o tema da magia, o poeta alexandrino
tivesse sofrido influências do mimo (ou mimos) que o seu antecessor
dedicara ao assunto. O que não sabemos é se a obra que serviu de
inspiração a Teócrito terá sido aquela a que pertence o fragmento de
Oxirrinco (conhecido por PSI 1214) ou uma outra, entretanto perdida,
já que nada nos impede de supor que Sófron tenha dedicado mais
do que um dos seus trabalhos a matérias mágicas.
Considerando, no entanto, a hipótese de o modelo do Idílio 2 ter
sido, de facto, o mimo publicado em 1933, há que reconhecer que a
dívida de Teócrito ao seu conterrâneo foi muito pequena. Para além
da forma de expressão, a traduzir na perfeição o ritmo acelerado de
uma ação decalcada da vida real, o poeta helenístico teria colhido
no mimo de Sófron tão-somente a ideia geral de uma cerimónia de
magia assistida por uma escrava. Estaríamos, pois, diante de um
caso de imitação muito livre, com Teócrito a suplantar grandemente
o seu antecessor pela originalidade da sua inspiração lírica. Como
bem realçou Bignone 23 , ao pretender comparar as duas criações
literárias que nos detêm, “il carattere lirico amoroso di questo mimo
di Teocrito non deriva da Sofrone”.

Bibliografia

Bignone, E. (1934), Teocrito. Studio Critico. Bari. Gius. Laterza & Figli.
Chantraine, P. (1935), “Un nouveau fragment de Sophron”, Rph 10: 22-32.
Eitrem, S. (1933), “Sophron und Theokrit”, SO 12: 10-29.
Fraenkel, E. (1962, 2ª ed.), Aeschylus. Agamemnon. 2 vols. Oxford: Oxford University
Press.
García Teijeiro, M. (1999), “Il secondo Idillio di Teocrito”, QUCC 61: 71-86.
Gow, A. S. F. (1933), “Sophron and Theocritus”, CR 47: 113-115.
Gow, A. S. F. (1952, 2ª ed.), Theocritus. 2 vols. Cambridge: Cambridge University Press.
Hordern, J. H. (2002), “Love Magic and Purification in Sophron, PSI 1214a, and Theocritus
Pharmakeutria”, CQ 52 (1): 164-173.

23 Bignone 1934: 337, n.1.

257
Kassel, R. & Austin, C. (2001), Poetae Comici Graeci (PCG), Vol. I: Comoedia Dorica,
Mimi, Phlyaces. Berlin: De Gruyte.
Latte, K. (1933), “Zur dem neuen Sophronfragment”, Philologus 88: 259-264.
Lavagnini, B. (1935a), L’ Idillio Secondo di Teocrito. Palermo: Ed. Trimarchi.
Lavagnini, B. (1935b), “Virgilio, Teocrito e Sofrone”, L’Antiquité Classique 4: 153-155.
Legrand, Ph.-E. (1934), “A propos d’un nouveau fragment de Sophron”, REA 36: 25-31.
Norsa, M. & Vitelli, G. (1933), “Da un mimo di Sophron”, SIFC 10: 119-124 e 247-253.
Page, D. L. (1941), Select Papyri. Vol. 3. Cambridge. Mass.: Harvard University Press.
Schneider, R. & Uhlig, G. (1878-1910), Grammatici Graeci. 4 vols. Leipzig: Teubner.
Séchan, L. (1965), “Les magiciennes et l’amour chez Théocrite”, AFLA 39: 67-100.
Tupet, A. M. (1976), La Magie dans la Poésie Latine. Des Origines à la Fin du Règne
d’Auguste. Paris: Les Belles Lettres.
Verdejo Manchado, J. (2010), “Las magas de Sofrón en el papiro PSI 1214 A”, Minerva
23: 81-97.

258
E c o s d a C o m é d i a N o va e m F l áv i o J o s e f o
( AJ 1 8 . 6 5 - 8 0 ) *1

E c h o e s o f t h e N e w C o m e dy i n F l av i u s J o s e p h u s
( AJ 1 8 . 6 5 - 8 0 )

Nuno Simões Rodrigues


Univ. Lisboa, CECH, CH-UL, CEC
ORCID:0000-0001-6109-4096
nonnius@fl.ul.pt

Para a Senhora Professora Doutora Maria de Fátima


Sousa e Silva,
a quem devo a minha introdução no Grupo de Coimbra,
em 1996 e, sobretudo,
muita Amizade.

Resumo: este estudo analisa o episódio da matrona Paulina, em AJ 18.65-


80, avaliando as suas potencialidades historiográficas, quer enquanto
peça de possível ficção na obra de Josefo, quer enquanto exemplo da
receção de influências greco-helenísticas nos textos do historiador.
Conclui-se que, além de outras, uma das principais influências no

*1 Este estudo é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para
a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito dos projetos CH-ULisboa: UIDB/04311/2020
e UIDP/04311/2020; CECH-UC: UIDB/00196/2020; CEC‑ULisboa: UIDB/00019/2020
e UIDP/00019/2020.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_12
passo em análise é a Comédia Nova ática, nomeadamente a obra de
Menandro.

Palavras-chave: Flávio Josefo, Paulina, Fúlvia, Menandro, Historiografia


Helenística, Comédia Nova

Abstract: this essay analyses the passage relating to the matron Paulina,
in AJ 18.65-80, evaluating its historiographic potentialities, both as
a possible piece of fiction in the work of the historian, and as an
example of the reception of Greek-Hellenistic influences in Josephus’
texts. We conclude that, beyond others, one of the main influences
in the passage under analysis is the Athenian New Comedy, namely
the work of Menander.

Keywords: Flavius Josephus, Paulina, Fulvia, Menander, Hellenistic His-


toriography, New Comedy

No livro XVIII das Antiguidades Judaicas, Josefo conta um episódio


que suscita várias reflexões, que consideramos historiograficamen-
te pertinentes. O livro em causa abrange acontecimentos entre os
principados de Augusto e de Gaio Calígula, destacando‑se figuras
como os tetrarcas Herodes Ântipas e Filipe, Salomé I e Pôncio Pilatos
e inclui aquele que é talvez tido como o passo mais conhecido do
historiador judeu: o famoso Testimonium Flauianum (AJ 18.63), que
se refere a Jesus Cristo.
É precisamente na sequência do Testimonium Flauianum, nos
capítulos 65 a 80, que Josefo introduz um tema relacionado com a
prática de cultos orientais em Roma e a forma como isso teria aca-
bado por influenciar ou condicionar a prática do judaísmo na capital
do Império, no tempo de Tibério.
Segundo o historiador, no tempo em que, na Judeia, Pilatos cons-
truiu um aqueduto recorrendo ao dinheiro do templo de Jerusalém
(18.60-62) e em que condenou à crucifixão um homem sábio (sophos
aner) de nome Jesus, por instigação dos próprios Judeus (18.63‑64),
deram-se em Roma acontecimentos relacionados com o culto e o tem-

260
plo de Ísis que tiveram consequências dramáticas para os adoradores
dessa deusa egípcia 1. Conta Josefo que Paulina, uma bela matrona
romana de elevado estatuto jurídico-económico, eventualmente uma
patrícia, estava casada com um Saturnino, homem de estatuto con-
dicente com o dela. No entanto, um outro romano, de nome Décio
Mundo, um eques, ter-se-ia enamorado de Paulina. Tratando-se de
uma mulher casada e de nível sociojurídico superior, Décio Mundo
percebeu que seriam poucas ou nulas as possibilidades que teria
para conquistar Paulina. Josefo esclarece que o estatuto moral da
matrona estava mesmo acima de qualquer forma de corte que Décio
Mundo fizesse à mulher. De acordo com o que diz o historiador,
Décio Mundo tentou seduzir Paulina enviando‑lhe vários presentes.
No entanto, a matrona resistiu sempre a qualquer forma de adulação
ou cortejo. Teria inclusive resistido a uma oferta de duzentas mil
dracmas áticas para se deitar com o cavaleiro (18.65-67).
Décio Mundo estaria obcecado por Paulina, pois ao perceber que as
suas tentativas de sedução eram infrutíferas, teria acabado por entrar
numa forma de depressão, deixando de ingerir qualquer alimento,
o que se manifestou fisicamente no rapaz. No entanto, na casa de
Décio Mundo morava também uma liberta do pai dele, de nome Ida2,
perita em todo o tipo de maleitas e que não se conformava com a
depressão do jovem nem com a decisão que ele tomara de acabar
com a vida por inanição. Com efeito, Josefo sugere que Décio Mundo
seria um homem jovem (chama‑lhe inclusive neaniskos, 18.71), pois
a liberta passou a acompanhá‑lo e a dar-lhe ânimo, para que desse
modo não sucumbisse à decisão de suicídio que parecera tomar.
O comportamento da liberta sugere que a mulher seria uma antiga
escrava da casa (talvez até uma ama), apegada ao jovem e que por
isso decide ajudá‑lo a conquistar e a obter o que deseja. Assim, além

1 Sobre a contextualização destes episódios em Josefo e estrutura do livro XVIII


das Antiguidades, vide Amitay 2014: 101-121.
2 Trata-se por certo de um nomen parlans, visto que, em grego, ide deriva de
idyia (que por sua vez deriva de eidos/eido), que significa “perita”. Essa relação é
confirmada por AJ 18.69.

261
do ânimo que lhe tentava transmitir, a liberta alimentava em Décio
Mundo a expectativa de conseguir de Paulina as relações íntimas
que com ela desejava manter. A troco de 50 mil dracmas de prata, a
liberta promete ao rapaz conseguir‑lhe o que ele deseja (18.68-70).
Flávio Josefo afirma que, uma vez na posse do dinheiro, a mulher
adotou um método diferente do que Décio Mundo usara até então.
A liberta sabia que Paulina era particularmente devota de Ísis, pelo
que decidiu usar essa informação para através dela engendrar um
estratagema que a levasse aos seus objetivos: conversou e subornou
com as 50 mil dracmas áticas os sacerdotes de Ísis (entregando-lhes
25 mil no ato do suborno e os restantes 25 mil depois, caso o plano
resultasse), que se deixaram corromper e decidiram alinhar num
esquema que acabaria por unir Paulina a Décio Mundo (18.71).
Nas Antiguidades, lemos que o mais velho dos sacerdotes de Ísis,
aliciado por tanto dinheiro, acorreu à casa da matrona, dizendo-lhe
que ia ali enviado pelo próprio Anúbis, pois o deus enamorara-se
dela e ansiava por vê-la e estar com ela. Paulina não só acredita na
mensagem que o sacerdote egípcio lhe transmite, como se envaidece
e vangloria junto das amigas por ter sido escolhida pelo deus. Também
por isso, a matrona decide contar ao próprio marido a, segundo ela,
honra de que havia sido alvo. Segundo o texto joséfico, Saturnino,
satisfeito e convicto da castidade da mulher, não se teria importado
que ela se “deitasse com o deus”. Paulina dirigiu-se então ao templo
de Ísis e, depois de ali tomar uma refeição, os sacerdotes fecharam
as portas e apagaram as lâmpadas dentro do edifício. Por sua vez, na
escuridão, Décio Mundo, que se havia escondido dentro do templo,
assomou junto de Paulina e deitou-se com ela. A matrona, pensan-
do que se tratava de Anúbis, não só se entregou ao homem, como
passou a noite a “servi-lo” (18.72-74).
Antes de amanhecer, Décio Mundo abandonou ainda incógnito
o templo de Ísis e Paulina dirigiu‑se para a sua casa, onde contou
tudo ao marido. Mais tarde, relatou o sucedido também às amigas,
voltando a jactar-se, agora pela noite de amor que passara com o
“próprio Anúbis”. Nestas, instalou-se um sentimento ambíguo de ma-

262
ravilhamento e incredulidade (por se tratar da história de um deus
que mantivera relações sexuais com uma mulher da intimidade delas,
dando assim consistência às narrativas que elas apenas conheciam
dos mitos) e de credulidade (por a sua interlocutora ter fama de
mulher séria, casta, digna e honesta e, por isso, dificilmente passar
por mentirosa) (18.75-76).
A narrativa de Josefo entra numa nova fase quando, três dias de-
pois, segundo o historiador, Décio Mundo encontra Paulina e, não
resistindo a engrandecer-se com o feito, ao mesmo tempo que trans-
pira um certo sentimento de vingança, lhe diz: “Paulina, não só me
poupaste duzentas mil dracmas, quando podias tê-las acrescentado ao
teu próprio património, como ainda me concedeste os serviços que
te solicitava. Como desdenhavas de Mundo, fiz-me chamar Anúbis,
pois não me importam os nomes, mas sim o prazer que resulta de
ações concretas” (18.77).
Só naquele momento, Paulina tomou consciência do engodo em
que caíra. Ultrajada, rasgou as vestes (em sinal de vergonha) e regres-
sou a casa, contando tudo ao marido e implorando-lhe por justiça.
Saturnino dirigiu-se então ao imperador, que na ocasião era Tibério,
e este decide inquirir os factos. Depois de obter dos sacerdotes de
Ísis uma confissão (provavelmente através de tortura), o imperador
condena-os à morte, bem como a Ida, ordenando a crucifixão de todos
os culpados. Mas o Príncipe foi além disso, decretando também a
destruição do templo de Ísis e determinando que a estátua da deusa
fosse lançada ao Tibre. Quanto a Mundo, Tibério ordena o seu exílio,
pois considerou que a paixão o havia cegado e levado a envolver-se
em planos tão sórdidos quanto aqueles. No final do relato, Josefo
classifica as ações dos sacerdotes de Ísis como hybris, salientando-se
desse modo a insolência que ali estava em causa (18.77-80).
A principal reflexão que este episódio nos suscita prende-se com a
sua verosimilhança histórica. Esta, por sua vez, relaciona-se, quanto a
nós, com uma outra questão: o carácter tópico que parece dar forma
ao episódio. A hipótese de a narrativa de Paulina dever mais à ficção
do que à História constrói-se sobre o seguinte: por um lado, o facto

263
de lermos no mesmo livro XVIII das Antiguidades, logo de seguida,
entre os capítulos 81 e 85, um outro episódio que parece duplicar
o que antes lemos sobre aquela matrona e Décio Mundo; por outro,
a existência de uma forte possibilidade, baseada nas evidências do-
cumentais, de a história dessas duas figuras ter sido construída com
recurso a elementos que aparentam provir de outras fontes, como a
mitologia, a lírica, a novela e o drama 3, nomeadamente a comédia.
Para abordarmos a questão da verosimilhança histórica, fundamental
para a credibilidade de Flávio Josefo não só como historiador e como
fonte histórica – se adotarmos essa perspetiva na nossa avaliação do
autor das Antiguidades –, mas também como escritor – numa outra
plataforma de apreciação –, há que investigar se os acontecimentos
ou outros elementos mencionados e relatados em AJ 18.65-80 são
tratados ou referidos noutras fontes e em que tipos de fontes. Esta
é, aliás, uma das questões fulcrais para a definição dos métodos a
ser utilizados na abordagem do Testimonium Flauianum, incluído
nos parágrafos imediatamente anteriores ao episódio de Paulina. Por
norma, esse passo é precisamente apresentado como certificação
histórica ou contributo imprescindível para a discussão da questão
do Jesus histórico numa outra fonte que não o corpus bíblico. Daí
também o apertado crivo científico‑historiográfico de que tem sido
alvo ao longo dos séculos e que o tem fragilizado, sobretudo na se-
quência da crítica interna do texto, feita através das rigorosas análises
filológicas a que tem sido sujeito. Considerado apócrifo por uns,
o Testimonium Flauianum é tido como autêntico por outros 4. No
caso do episódio de Paulina, que é aqui o centro da nossa análise,
cumpre‑nos seguir o método inverso do que acontece com os textos
bíblicos, que, como referimos, reclamam a historiografia de Josefo

3 É também a hybris que reconhecemos na reação de vaidade e de jactância de


Paulina perante as amigas, por duas vezes. Talvez Josefo recorra aqui a um mecanismo
de intertextualidade que funciona como paródia da tragédia ática.
4 Sobre a apocrifia do Testimonium Flauianum, vide, e.g. Norden 1913: 637-666;
Eisler 1930: 1-60; sobre a autenticidade do passo, vide, e.g. Burkitt 1913: 135-144;
Dornseiff 1955: 245-250; Victor 2010: 72-82.

264
para certificar ou corroborar a validade histórica dos Evangelhos.
Assim, procuramos noutras fontes elementos que possam certificar
ou confirmar o que é relatado pelo historiador flávio no episódio
em questão.
O episódio, tal como aquele que é relatado de seguida, serve
de enquadramento à expulsão dos Judeus (e de praticantes de ou-
tros cultos orientais) de Roma, durante o principado de Tibério.
Historicamente, é ponto assente entre os especialistas que tal ocor-
reu em 19 d.C. 5 Com efeito, este acontecimento não é negado, mas
as razões para o sucedido vão, evidentemente, além do que Josefo
apresenta nestes capítulos. Sobre a matrona ali referida, Paulina,
pouco ou nada conseguimos aferir, no estado atual dos nossos co-
nhecimentos. Eventualmente, poderá aparecer uma inscrição que
ateste a existência histórica desta mulher além de qualquer dúvida.
No entanto, o marido, Saturnino, é provavelmente mencionado nou-
tras fontes. E. Groag (PIR II A.1528 6 ) sugere tratar‑se de um dos
irmãos Gaio ou Lúcio Sêncio Saturnino, tendo o primeiro deles sido
cônsul em 4 d.C. Um terceiro irmão destes, Gneu Sêncio Saturnino,
foi legado propretor na Síria, entre 19 e 21 d.C. Estas referências
estão de acordo com a caracterização joséfica de Paulina, enquanto
mulher de elevado estatuto sociojurídico 7.
Por si mesma, a existência histórica de figuras mencionadas no
episódio, como Saturnino ou Tibério, porém, não é suficiente para
aferir a sua verosimilhança enquanto descrição de factos reais. Não
nos faltam textos ou exemplos, sobretudo no domínio da Antiguidade,
em que personalidades históricas são envolvidas em narrativas fic-
cionais ou pseudo‑históricas, numa tentativa, assumida ou não – de
acordo com os objetivos de cada texto –, de garantir credibilidade ao
que é narrado. No caso do episódio de Paulina, como assinalámos,

5 Vária bibliografia trata esta problemática. Um estudo recente e que reúne referên-
cias anteriores sobre ela, Amitay 2014: 101‑121. Vide também Rodrigues 2007: 439-463.
6 Groag 1933.
7 Rodrigues 2007: 442.

265
é sobretudo o seu carácter tópico que nos faz pôr em causa o que
Josefo ali conta. Vejamos como e comecemos pela duplicação do
episódio no mesmo livro XVIII das Antiguidades.

a) A duplicação do episódio de Paulina

Na sequência do que lemos no episódio de Paulina, entre os


capítulos 81 e 84 das Antiguidades Judaicas, encontramos aquele a
que podemos chamar “o episódio de Fúlvia”. Neste novo caso, Josefo
escreve acerca de um judeu pouco piedoso que fugira da sua pátria
para Roma. Esse judeu apresentava-se como um perito na lei de Moisés
e, tendo-se aliado a três outros indivíduos do mesmo tipo, persuadiu
uma prosélita romana de nome Fúlvia, a (alegadamente) oferecer ao
Templo de Jerusalém ouro e púrpura. Depreende-se de Josefo que
Fúlvia era uma matrona de elevado estatuto jurídico‑económico.
Talvez por isso, a intenção dos homens era burlar Fúlvia, pois o ouro
e a púrpura angariados junto da matrona serviram na verdade para
satisfazer a ganância da quadrilha envolvida e não como oferenda
ao Templo de Jerusalém (18.81-82).
Tendo descoberto a burla, Fúlvia fez queixa ao marido, cujo nome
era, segundo Josefo, “Saturnino” e o qual era próximo do impera-
dor, Tibério. Saturnino denunciou então a situação ao príncipe, o
que teve como consequência a expulsão da comunidade judaica de
Roma. Quatro mil desses judeus teriam sido compulsoriamente alis-
tados pelos cônsules romanos no exército e enviados para a ilha da
Sardenha. Alguns, porém, recusando-se a servir o exército romano,
por incompatibilidade com as suas crenças religiosas, teriam sido
ainda mais severamente punidos. Josefo remata o capítulo do se-
guinte modo: “Assim, por causa da perversidade de quatro homens,
os Judeus foram banidos da Cidade” (18.84).
Como facilmente se percebe, a descrição do episódio de Fúlvia
é razoavelmente mais austera e contida do que a do de Paulina.
No segundo caso, Josefo limita-se a enunciar os factos essenciais,

266
sem os desenvolver, e, sobretudo, de modo a explicar a expulsão
dos Judeus, cujo ónus ele coloca em indivíduos, se não claramente
identificados, cuidadosamente definidos e enquadrados. Este acon-
tecimento, que como assinalámos sabemos ter ocorrido em Roma,
no tempo de Tibério, mais concretamente em 19 d.C., é também re-
ferido noutras fontes antigas, nomeadamente em Tácito (que refere
que nessa ocasião não só os Judeus, mas também os adeptos dos
cultos egípcios teriam sido banidos da Urbe, o que vai ao encontro
do registado nas Antiguidades e acaba por dar mais consistência
aos dois episódios narrados por Josefo no livro XVIII, cf. Tac. Ann.
2.85), em Suetónio (Tib. 36) e em Díon Cássio (42.18.5). Também em
Séneca lemos um passo que parece convergir para o acontecimento
que agora tratamos (Ep. 108.22). A expulsão dos cultos orientais de
Roma no tempo de Tibério terá deveras acontecido e uma das razões
para o acontecimento deverá ter sido o facto de esse tipo de ritos
e práticas religiosas conhecer nessa ocasião um êxito significativo
na Cidade, levando a um aumento crescente de adeptos, inclusive
entre romanos, que, inevitavelmente, ou abandonavam as crenças
tradicionais de Roma ou/e contribuíam para a fortificação de co-
munidades de inspiração oriental na capital. Estas mesmas razões,
que convergem para a problemática do proselitismo, são também
as aduzidas como explicação para o processo de expulsão por dois
dos restantes historiadores (Tácito e Suetónio) 8.
De qualquer modo, de momento não é a expulsão de 19 d.C.
que nos ocupa ou as suas motivações. Centramo-nos nas narra-
tivas que lhe servem de etiologia e na sua função e construção
historiográficas. Como assinalámos, a narrativa de Fúlvia parece
ser uma duplicação da de Paulina: ambas se centram em matronas
romanas de alto estatuto económico e sociojurídico. Mais, ambas
as mulheres se interessam por cultos/religiões orientais (o culto
de Ísis e o culto de Javé); ambas são ludibriadas por indivíduos
de origem comum às dos cultos que elas professam; ambos os

8 Sobre esta questão, vide Mohering 1959: 293-304; e Williams 1989: 765-784.

267
casos chegam aos ouvidos do imperador; ambos terminam com a
expulsão das respetivas comunidades de Roma (levando a que um
caso particular e privado tenha repercussões gerais e públicas); e
ambas as matronas são casadas com um cidadão romano de nome
“Saturnino”. Em síntese, Josefo parece contar exatamente a mesma
história, com personagens mais ou menos comuns e desenlace seme-
lhante 9.
O último aspeto elencado, i.e. o do nome do marido das ma-
tronas, é um dos mais complexos de tratar nesta questão. Alguns
autores sugerem que o facto de tanto o marido de Paulina como o
de Fúlvia se chamarem Saturnino se deverá a uma mera coincidência,
tese que temos dificuldade em aceitar 10. Dificilmente, num contexto
desta natureza, a coincidência é explicação científica plausível ou
admissível para o que lemos na narrativa joséfica. Outros autores,
porém, consideram que o marido de Paulina e o marido de Fúlvia
eram exatamente o mesmo homem: Saturnino. Assim sendo, a mulher
seria também apenas uma, chamada “Fúlvia Paulina”. Com efeito,
conhecemos uma inscrição que refere uma Baebia Fuluia Claudia
Paulina Grattia Maximilla (CIL VI.1361) 11. Mas, ainda assim, esta
também não nos parece uma explicação razoável, pois implicaria
que a mesma mulher teria sido vítima do mesmo esquema por duas
vezes, em dois contextos semelhantes. Além de que exigiria que
fosse simultânea ou alternadamente uma devota de Ísis e de Javé,

9 A proximidade entre as duas narrativas levou, inclusive, mas sem qualquer


fundamento científico, Heidel 1920: 38‑47, a considerar que, na verdade, Fúlvia teria
sido convidada pelos quatro judeus a tornar-se prostituta sagrada. Esta considera-
ção deverá derivar tanto da narrativa de Paulina, cuja interação sexual com Décio
Mundo/“Anúbis” sugere uma prática dessa natureza, tal como ela terá eventualmente
sido conhecida em algumas regiões próximo-orientais, como da referência de Tácito
à eliminação da prostituição entre as mulheres de estatuto equestre, em Roma, que
é feita pelo historiador precisamente no mesmo capítulo em que refere a eliminação
do judaísmo e dos cultos egípcios, Tac. Ann. 2.85. No entanto, sabemos que, nesta
época, o judaísmo não conhecia qualquer forma de prostituição sagrada, o que des-
monta por completo a hipótese de Heidel, tornando-a desprovida de sentido. Vide
ainda Smallwood 1956: 314-329.
10 E.g. Feldman 1965: 59, n. c.
11 Rogers 1932, 252-256.

268
o que também não nos parece verosímil 12. Mais provável seria uma
eventual ligação familiar entre ambos os Saturninos, casados com
mulheres diferentes, todavia ambas interessadas em espiritualidades
orientais, talvez até fomentadas pelo ambiente familiar em que se
encontravam e eventualmente inter-influenciadas. Não esquecemos
que um Sêncio Saturnino foi por esses anos propretor na Síria e que
a prosopografia romana nos dá conta de pelo menos três irmãos
Saturninos, o que valida a hipótese de Fúlvia e Paulina serem mu-
lheres de irmãos diferentes. Já quanto a Bébia Fúlvia Cláudia Paulina
Grátia Maximila, ela poderá nem sequer estar relacionada com as
matronas a quem Josefo se refere.
Apesar destas considerações, no entanto, apenas uma explicação
para a duplicação do episódio nos parece razoável. Josefo relata dois
casos muito semelhantes, em que um sugere ser decalcado do outro.
Deste modo, admitindo ou não a existência de dois escândalos em
Roma relacionados com os cultos orientais que teriam culminado
na expulsão das respetivas comunidades (na verdade, não consegui-
mos saber ao certo se de facto foi assim que tudo aconteceu, pois
nenhuma outra fonte o confirma) e na eventual falta de informação
concreta (ou interesse nela), parece-nos que Josefo recriou uma (ou
até ambas) das etiologias recorrendo a retórica literária. Por outras
palavras, Flávio Josefo ficcionou e “fabulou” por completo uma ou
ambas as narrativas. Ou então, possuindo alguma informação, re-
criou o restante de modo a compor as suas etiologias para ambas as
expulsões. Esta hipótese parece-nos mais válida quando analisamos
o modo como os dois episódios são narrados, a posição em que o
historiador os coloca na narrativa geral (primeiro, o caso egípcio, mais
rico em pormenores, e, só depois, o caso judaico, mais despojado de
elementos; ambos, eventualmente, após o Testimonium Flauianum)
e a forma como os compõe, sobretudo o primeiro. Com efeito, uma
análise filológica mais demorada permite-nos detetar no episódio de

12 Vide também Williams 1989: 765-784; Amitay 2014: 101‑121.

269
Paulina a segunda característica tópica a que nos referíamos acima:
o recurso a elementos narrativos literários pré‑existentes.

b) A contaminação de elementos literários: da mitologia à


comédia

Uma leitura atenta dos capítulos 65 a 80 do livro XVIII das


Antiguidades permite‑nos identificar na narrativa uma série de
elementos que nos ajudam a consolidar uma hipótese em torno
do carácter eventualmente ficcional da etiologia da expulsão dos
adoradores de Ísis da cidade de Roma em 19 d.C., tal como Flávio
Josefo a apresenta.
A um nível mais geral de leitura, há que referir que o tema da
sedução e da conquista da mulher amada era bem conhecido em
Roma, sobretudo através de Ovídio. Na Arte de amar, texto composto
no tempo de Augusto, o poeta fornece uma série de elementos para
a concretização do jogo amoroso que vão ao encontro do que lemos
no texto historiográfico de Josefo. Entre esses, está o método para
que um homem conquiste uma mulher, que pode mesmo ser uma
matrona ou mulher casada (Ars 1.593‑604; cf. 1.1‑34, em que o poeta
começa por descartar as matronae do seu “manual”; mas contradiz-
-se no final do livro I). Depois, o facto de se salientar a escuridão
como amiga da conquista amorosa (1.249-252), o que coincide com o
cenário da união de “Anúbis” a Paulina (18.74). Referem-se ainda os
templos e outros espaços de religiosidade como lugares particular-
mente apetecíveis para a conquista amorosa. Entre eles, as festas de
Adónis, os sábados judaicos e os templos de Ámon (1.75-79), todos
espaços/tempos de religiosidade oriental consonantes com o ambiente
do episódio de Paulina (e de Fúlvia). Por fim, há que referir o tema
dos males de amor que atormentam os rapazes enamorados (1.721-
736) e a importância do papel das servas na sedução das matronas

270
(1.351-396). Também estes estão presentes quer em Ovídio quer no
episódio joséfico 13.
A um nível mais específico, um dos tópicos que se destaca é o
que diz respeito ao alegado interesse de Anúbis por uma mortal, tal
como lemos no episódio em análise. Se prescrutarmos a mitologia
egípcia, pouco encontramos sobre eventuais relações de natureza
sexual entre deuses e humanos, quando comparada com a mitologia
grega, e.g. É verdade que no tempo de Hatshepsut (XVIII Dinastia,
sec. XV a.C.), sobretudo, difundiu-se no Egipto o mito do nascimento
divino do faraó, que implicava a conceção do rei, nascido da união
de Ámon-Ré com uma mortal14. Mas ainda assim a mitologia egípcia
é razoavelmente contida e lacónica na difusão desta temática.
Com efeito, o sistema religioso egípcio, mitologia incluída, distingue
de forma muito clara a fronteira entre o universo dos deuses e o dos
homens. A promiscuidade entre imortais e mortais, todavia, é comum
no universo helénico e, por arrastamento, romano. Neste sentido, as
religiões e sistemas mitológicos greco-romanos estão mais próximos
do que lemos nas mitologias do espaço mesopotâmico, anatólico e
siro-palestinense do que do egípcio. Assim sendo, a forma como
Josefo conta o episódio de Paulina parece recuperar tradições mito-
lógicas greco-romanas, fazendo de Anúbis uma divindade semelhante
a outras do espaço helénico ou romano, em que deuses se enamoram
de mulheres mortais e tudo fazem para delas se aproximarem 15 .
É inevitável não perceber nesta composição narrativa uma crítica mais
ou menos velada do historiador judeu a uma crença religiosa, de
que Paulina e Saturnino são eco, que aceita a ideia de que um deus
pode apaixonar-se por uma mulher mortal, revelar‑se em epifania

13 Sobre a eventual relação intertextual de Josefo com Ovídio, vide Gossmann


1989: 83-86.
14 James 1971: 83-91. No caso de Hatshepsut, uma rainha, naturalmente. Mas a
difusão deste mito deverá estar relacionada precisamente com a questão do género
ou identidade do rei, com o objetivo de legitimar o seu poder.
15 A este propósito recordamos a receção de Ísis em contexto greco-romano e
as consequentes formas que se traduziram numa interpretatio helenística da deusa
faraónica. Vide e.g. Teixeira 2013: 271-282.

271
aos humanos e manter contacto tão íntimo com eles quanto o que
uma relação sexual implica. Para os Judeus, essa seria uma ideia, no
mínimo, criticável. É em mitos como o de Zeus e Alcmena (a mãe de
Héracles), por exemplo, que a história de Anúbis e Paulina parece
radicar 16. Esse mito era originalmente grego, como atestam e.g. as
referências em Píndaro (Nem. 10.15; Isth. 7.5; Pyth. 9.84-85) e uma
tragédia perdida de Eurípides, Alcmena. Mas esta seria conhecida da
audiência romana de Plauto 17. Com efeito, o facto de Plauto o recu-
perar na peça Anfitrião – um dos exemplos da comédia latina mais
bem conhecidos e difundidos desde a Antiguidade – e de Ovídio, já
no tempo de Augusto, o retomar nas Metamorfoses, revela o grau de
conhecimento que a sociedade romana, em que Josefo se integra na
época em que redige as Antiguidades Judaicas, teria deste mito e,
desse modo, reforça a possibilidade de ele ter sido intencionalmente
utilizado pelo historiador judeu, ao serviço de um objetivo concreto
e de uma agenda político-ideológica que estaria por detrás da com-
posição do episódio de Paulina nas Antiguidades: desacreditar os
cultos egípcios, justificar a sua expulsão pelo Príncipe e dar contexto
à expulsão dos Judeus, eles próprios vítimas de burlões que, apesar
de originários da sua própria comunidade, eram semelhantes a idó-
latras e aos puerilmente crentes egípcios. Alguns investigadores vão
mais longe: partindo do princípio de que o Testimonium Flauianum
é autêntico e não apócrifo, a inclusão da história de Paulina no
seu seguimento poderá ter como intenção principal parodiar um
tema essencial do cristianismo então emergente, a Anunciação, e

16 Esta ideia era defendida já no século II (ou IV) pelo pseudo-Hegesipo, que na
versão que escreveu da obra de Josefo adaptou (omitindo, e.g., a personagem Ida)
o episódio em análise, escrevendo o seguinte: amplexum petenti non negat, refert
tamen utrum deus possit homini misceri. Ille promit exempla quod et Iouem summum
deorum Alcmena susceperit et Leda eiusdem concubitu potita et plurimae aliae. Além
de Alcmena, Hegesipo chama também Leda à colação para esta comparação. Leda é,
como sabido, protagonista de uma união com Zeus, assumindo este a forma de cisne.
Hegesipo vai mais longe, amplificando o tópico com outro ineditismo: a gravidez de
Paulina que resulta da união com Mundo/Anúbis. Sobre esta questão, vide Bell Jr. 1976:
16-22.
17 Wright 2019: 151-153.

272
assim satirizar a seita que na época estava a ganhar importância e a
distinguir-se da comunidade judaica 18. Deste modo, os capítulos 64
a 84 das Antiguidades constituiriam uma trilogia de crítica/sátira/
paródia ao cristianismo, ao isidismo e aos judeus apóstatas. Segundo
essa leitura joséfica, pelo efeito nefasto destas três práticas, a que
seriam todavia alheios, os Judeus acabaram por pagar com a expul-
são da Cidade.
Outra história de igual matriz erótica, contada pelo pseudo-Calís-
tenes, a propósito de Alexandre‑o‑Grande, aproxima-se também da
narrativa sobre o dolo de Paulina e poderá estar na base da com-
posição. Nessa narrativa, mais próxima da novela ou do romance 19,
o rei egípcio Nectanebo II engana Olímpia, mulher de Filipe da
Macedónia e futura mãe de Alexandre, fazendo-a crer, recorrendo
a magia, que o deus Ámon se enamorara dela e pretendia por isso
unir-se-lhe. Olímpia alinha no engodo e acaba por se deitar com o
egípcio disfarçado de Ámon, acabando por engravidar dele (Ps.-Call.
1.4-7). Ainda que o texto do pseudo-Calístenes possa ser posterior às
Antiguidades, não deixa de ser sintomático que nele reconheçamos
o topos do dolo, reforçando assim a hipótese de o passo historio-
gráfico ser produto de uma composição essencialmente contruída
com elementos topo-retóricos. Destaque-se ainda o ambiente egípcio
comum a ambas as narrativas.
Outro tópico que detetamos na história de Paulina, assim como
na de Fúlvia, está relacionado com a indignação e ultraje de que
ambas as matronas sentem depois de descobrirem que foram enga-

18 Vide e.g. Bell Jr. 1976: 16-22; vide também Amitay 2014: 101‑121. Esta hipótese
é reforçada pela leitura que Hegesipo faz do episódio, ao atribuir uma gravidez a
Paulina, e que referimos acima. Talvez a adaptação signifique que o passo era assim
entendido por aquele autor, na sua época. E talvez o fosse porque seria esse de facto
o objetivo de Josefo. Se a isso acrescentarmos a informação dada por Josefo, de que
os sacerdotes de Ísis e Ida foram crucificados, a ideia de paródia do cristianismo
ganha ainda mais argumentos.
19 Há que não esquecer a importância dos elementos romanescos na obra de
Josefo, o que corresponde a uma característica particularmente helenística. Sobre
esta questão, vide o incontornável Moehring 1957, em particular a p. 57, que trata a
probabilidade da influência da história de Nectanebo neste episódio.

273
nadas. Segundo Josefo, ao se aperceberem do sucedido, ambas têm
a mesma reação: contar o dolo aos “respetivos” maridos, os quais,
por sua vez, denunciam a situação ao imperador, o que acaba na
expulsão das comunidades isíaca e judaica de Roma. A atitude de
Paulina e de Fúlvia recorda a de Lucrécia, figura tutelar da cultura
romana, cuja lenda é contada sobretudo por Tito Lívio (1.34-60).
Depois de ter sido violada por Tarquínio, e antes de se suicidar, a
preocupação principal da matrona Lucrécia, segundo o historiador
romano, é contar o que se passou ao marido e a alguns familiares
para que eles tratem de vingar o ultraje de que fora alvo. Este era
não só um tema bem conhecido em Roma, como até fundacional
para os Romanos. A corte em que Josefo escreve conhecia-o bem.
A denúncia do acontecimento na lenda de Lucrécia parece assim ser
consonante com as revelações feitas por Paulina e Fúlvia aos “dois
Saturninos”.
Por fim, toda a estrutura narrativa do episódio de Paulina (so-
bretudo os aspetos que lhe são exclusivos e que não se encontram
no de Fúlvia) parece ser transferida de um outro veio literário, mas
igualmente bem conhecido em Roma por meio das influências e
adaptações de que foi alvo entre os autores latinos: a comédia grega
tardia ou Comédia Nova ateniense.
Se nos abstrairmos dos elementos religiosos do episódio, nome-
adamente as questões em torno do culto e dos sacerdotes de Ísis,
o que nos resta é uma estrutura que se pode resumir ao seguinte: um
jovem romano da ordem equestre (de um estatuto jurídico-económico
relativamente elevado, portanto) enamorado de uma matrona romana
casada (de estatuto socioeconómico ainda mais elevado), perante
as tentativas frustradas de sedução, alinha no plano de uma liberta
da sua casa para enganar e seduzir a mulher amada. Por sua vez,
a liberta engendra um esquema complexo, quase inverosímil, com
recurso a ajuda de terceiros e a troco de dinheiro, para conseguir
que a matrona caia nos braços do jovem enamorado e assim o desejo
erótico dele se concretize. Apesar do desenlace pouco cómico de
toda a situação, designadamente a crucifixão a que quer os sacer-

274
dotes de Ísis quer Ida, a liberta, foram condenados, o facto é que o
argumento de base do episódio de Paulina em Josefo corresponde
à estrutura de um enredo próprio da Comédia Nova.
Na verdade, o recurso de Josefo à comédia grega não parece ser
exclusivo deste episódio. Há algumas décadas, M. Braun detetou
influências de Aristófanes (logo, da Comédia Antiga) no livro IV das
Antiguidades, mais concretamente no passo parafrásico das relações
mantidas pelos Israelitas com mulheres moabitas, no contexto do
episódio de Balaão (4.132-133; cf. Nm 25.1-2). Nesse passo, numa
considerável amplificação do texto bíblico original, Josefo inova, o
que aliás não é raro nele 20, e escreve que os jovens de Israel ter-
-se-iam enamorado das jovens de Moab, desejando-as. Depois de os
seduzirem e de os deixarem cegos de paixão, porém, as Moabitas
decidiram abandonar os rapazes, que tudo faziam para que isso não
acontecesse, fazendo-lhes promessas, propondo-lhes inclusivamente
casamento e oferecendo-lhes os seus bens, tendo Javé como testemu-
nha. As Moabitas acabam por chantagear os Israelitas, exigindo‑lhes
que reneguem a religião de Israel e se adaptem às práticas de Moab,
e eles, por paixão, cedem às condições impostas pelas jovens. Como
escreveu M. Braun: “The narrative motif which Josephus has intro-
duced into the Balaam story can already be found in Aristophanes’
Lysistrata. There are also the women break off relations with their
husbands and threaten to leave them unless they fulfil a certain
political condition. In both plots the result of the stratagem is the
same: the submission of the men to the demands of the women” 21.
O recurso a autores gregos pré-helenísticos por Josefo está
bem atestado e estudado. Há que referir, porém, que se os Poemas
Homéricos, os trágicos (Sófocles em particular) e os historiadores
(sobretudo Tucídides) parecem ter sido modelos e fontes de inspi-
ração frequente de Josefo, Aristófanes e os comediógrafos em geral

20 Como vários autores têm demonstrado. Vide e.g. Rodrigues 2000.


21 Braun 1938: 104.

275
são menos percetíveis 22. A relativa abundância de textos gregos ar-
caicos e clássicos na obra joséfica levou mesmo alguns especialistas
a dissertarem e a considerarem a possibilidade de os passos em que
eles se detetam não serem originalmente autógrafos mas dos chama-
dos “assistentes” do historiador 23. Esta hipótese não é descabida de
pertinência, tanto mais que o próprio Josefo refere ter recorrido a
ajuda dessa natureza. Com efeito, no Contra Ápion, o escritor con-
fessa ter tido o apoio de synergoi (colaboradores) que o ajudaram
com a língua grega (CA 1.50). A tese, porém, é contestada por outros
investigadores (com os quais concordamos), que consideram que a
probabilidade de tais alusões, referências ou influências ser de facto
joséfica é bastante elevada, dadas as várias circunstâncias culturais
em que a produção destes textos se insere – entre elas, a prática de
imitar autoridades literárias como Tucídides –, não havendo neces-
sidade de considerar a mão de terceiros no processo de composição
dos textos do historiador judeu 24.
Depois da análise do episódio de Paulina no livro XVIII das
Antiguidades que aqui apresentamos, consideramos estar em con-
dições de afirmar que não terão sido apenas os autores gregos dos
períodos arcaico e clássico a influenciar Flávio Josefo. Também auto-
res do período helenístico, como Menandro, terão marcado o estilo
e as composições do historiador sob análise. Com efeito, na obra
desse comediógrafo de meados-finais do século IV a.C., encontramos
indícios suficientes para considerar que a história de Paulina é forte-
mente marcada pela sua influência. Menandro pertence ao movimento
literário‑cultural conhecido como Comédia Nova, que emergiu em
Atenas, em pleno domínio macedónico. A Comédia Nova consiste na
adaptação e reelaboração do género dramático cómico, em que os
textos de profunda crítica política ou de paródia de outros géneros

22 Sobre esta questão, vide Rodrigues 2003: 237-252.


23 O mais conhecido dos defensores desta tese é um dos principais tradutores de
Josefo, Thackeray 1929: 124.
24 Entre esses, vide e.g. Rajak 1983: 233-236; sobre a problemática, vide Rodrigues
2003: 237-252.

276
(como a tragédia), como eram os da Comédia Antiga, dão lugar a
composições preenchidas por caracteres humanos e naturalistas,
mas fictícios. Estes são frequentemente personagens-tipo, inseridas
em cenários coevos da audiência a que são apresentadas. Os novos
textos são parcos em obscenidades, mas originam argumentos con-
venientemente apolíticos, complexos e não raramente inverosímeis,
ainda que pouco fantásticos. O centro da nova comédia desloca-se
assim da polis para o oikos, onde tudo gira em torno da família e
das suas vicissitudes domésticas: os oikeia pragmata 25. Como nota
M. F. Sousa e Silva, este é o tempo do protagonismo dos idiotai 26.
Menandro, o representante mais bem conhecido deste novo género
dramático, é particularmente sintomático desse novo ambiente cul-
tural ateniense. Todas as peças que dele nos chegaram são histórias
erótico-amorosas e os enredos giram em torno desse tópico central.
Casamentos, desencontros e enganos amorosos fazem parte dessas
peças, mostrando o interesse que os Atenienses da época por eles
tinham. De acordo com a moral do tempo, a comédia menândrica
está repleta de desvios, mas também de virtudes, perdão, genero-
sidade, família e comunidade 27. É essa característica que justifica a
existência de personagens-tipo, como “o jovem apaixonado, lamechas,
débil e dependente para a realização dos seus propósitos amorosos”
(como os que reconhecemos em O Misantropo ou em A rapariga de
Samos) 28 e o escravo astuto “com tendência para a mentira ou para
a criação de tramóias e enganos”, “coscuvilheiro e autor de enre-
dos” (como os que aparecem nas peças já referidas ou ainda em O
Escudo e Arbitragem) 29. Este tipo de carácter teve fortuna na histó-
ria da comédia e revelou-se, em particular, em Roma, pela mão de,

25 Vide e.g. Lowe 2007: 65-71. A evolução da comédia grega que desembocará
na Comédia Nova é um processo culturalmente complexo. Sobre essa problemática,
vide e.g. Silva 1995: 35-53; Silva 2006: 13-43.
26 Silva 2006: 15.
27 Lowe 2007: 71-72; MccBrown 2001: 53-64.
28 Silva 2006: 29.
29 Silva 2006: 30.

277
e.g., Terêncio e Plauto, em cujas palliatae (como As Duas Báquides,
O Soldado fanfarrão ou Epídico) estas personagens-tipo ressurgem
ou se mantêm 30 . Isso significa que os temas/tópicos da Comédia
Nova seriam bem conhecidos entre os Romanos da República e do
Alto Principado, em cujo ambiente Josefo escreve as Antiguidades.
A este propósito e perante estes dados, somos levados a concluir o
seguinte: além das comparações óbvias e já deduzidas, a história da
matrona sexualmente usada por um deus falso ecoa mesmo o enredo
da mais famosa peça de Terêncio, O Eunuco, igualmente baseada em
originais da Comédia Nova, nomeadamente de Menandro 31. Nesta
peça, um jovem apaixona-se por uma rapariga, mas não sabe como
abordá-la. Por sugestão do seu escravo, o jovem decide disfarçar-se de
eunuco para se introduzir na casa da ama da rapariga, que é escrava,
e assim possuí-la sexualmente. Por conseguinte, neste enredo, um
alegado eunuco (tal como um alegado deus egípcio) violenta uma
jovem (inocente como uma matrona). Ao compararmos a peça de
Terêncio baseada em Menandro com o texto de Josefo, parece-nos
que este é também uma paródia daquela.
Perante estes dados, será difícil não reconhecermos em Décio
Mundo (o jovem apaixonado) e em Ida (a escrava/liberta astuta),
e até mesmo em Paulina (a mulher alvo da paixão), personagens
compostas com base em caracteres-tipo da Comédia Nova e, depois,
da comédia latina.

Conclusões

Ao analisarmos a história de Paulina e Décio Mundo, parte da


genialidade de Josefo parece estar em transformar oikeia pragmata
num assunto de Estado tão grave quanto a expulsão de toda uma
comunidade e seus cultos da Cidade. Outra parte, está sem dúvida

30 Pociña 2006: 79-108; Lowe 2007: 88.


31 Lowe 2007: 127-128.

278
no aproveitamento de caracteres e situações da comédia para contar
um episódio de desfecho particularmente terrível, como é a crucifi-
xão dos culpados. Mas até esse artifício parece não ser desprovido
de intencionalidade, indo ao encontro da agenda de Josefo, que é
a de desacreditar e criticar negativamente os cultos isíacos ou to-
das as práticas religiosas que não se coadunavam com o judaísmo,
além de uma possível paródia ao cristianismo emergente. Aliás, a
atitude de Josefo está de acordo com a fina ironia que transparece
noutros escritos do judaísmo helenístico, nomeadamente no livro
da Sabedoria, nos seus capítulos 13 a 15 32. Neste sentido, Josefo
parece simplesmente estar a ser o que cultural e naturalmente é: um
homem do seu tempo.
Deste modo, parece evidente a função retórica do episódio. Sem
que possamos negar ou rejeitar de forma veemente e indubitável o
que é contado em Antiguidades Judaicas 18.65-80, quer ao nível das
pessoas referidas, quer ao nível dos acontecimentos relatados, as cir-
cunstâncias tópicas e retóricas com que o episódio é narrado levam-nos
a investir numa hipótese de ficcionalização de uma etiologia para um
acontecimento que de facto abalou Roma em 19 d.C., no tempo de
Tibério: a expulsão de cultos orientais da cidade. Muito provavelmente,
essa expulsão relacionou-se com questões eminentemente políticas,
estando associada a um crescimento rápido e eventualmente desme-
surado de comunidades e práticas que poriam em perigo o equilíbrio
social e cultural romano. A expulsão teria assim sido essencialmente
uma questão de controlo social. Ao escrever sobre ela, cerca de oito
décadas depois, Josefo, um judeu instalado na corte imperial e bem
relacionado com o poder romano, evita acentuar esses aspetos, que
surgiriam inclusivamente como negativos para a comunidade judaica
de Roma do seu tempo. Compreende-se assim por que razão insere o
historiador o episódio de Paulina, que resulta na expulsão dos cultos
egípcios da Cidade, antes e repleto de mais pormenores – inclusiva-
mente eróticos e romanescos, muito ao gosto da historiografia patética

32 Ironia que já Ramos 2006: 17-18 notou.

279
do período helenístico e, portanto, passíveis de suscitar mais interesse
numa audiência desse tempo – do que o episódio de Fúlvia, que re-
sulta na expulsão dos Judeus e proibição dos seus ritos. Assim, depois
de ter retoricamente preparado o caminho e de ter concentrado toda
a atenção da sua audiência numa história maliciosa e de contornos
brejeiros, Josefo apresenta a causa da expulsão dos Judeus de Roma
em 19, lançando as culpas não na sua comunidade, mas num certo
judeu e seus três compatriotas cúmplices33. Esta individualização evita
a generalização.
Se considerarmos a autenticidade do Testimonium Flauianum, cla-
ramente relacionado com a emergente comunidade cristã, dissidente
da judaica, também a sua inclusão e localização nas Antiguidades
ganha novo sentido e pertinência. Caso a consideremos apócrifa,
percebemos que a escolha do autor para a sua inserção na obra
joséfica também não foi aleatória ou desprovida de sentido.
Os instrumentos que Flávio Josefo reúne para criar uma etiologia,
na qual pretende concentrar a atenção da sua audiência (o episó-
dio de Paulina), de modo a desvalorizar e desaperceber a outra (o
de Fúlvia) – afinal o historiador era judeu –, são sobretudo os da
retórica literária, na qual integramos a contaminação de outros gé-
neros literários e a inclusão de motivos e tópicos bem conhecidos.
Assim, a poesia lírica e dramática, a mitologia, a novela ou roman-
ce são aqui chamados à colação, numa técnica bem conhecida dos
leitores de Josefo. Ainda que, pela proximidade com a novela do
pseudo‑Calístenes, alguns considerem ser a História de Alexandre
um dos modelos aqui preponderantes 34, uma análise mais profunda
leva-nos a considerar a Comédia Nova, sobretudo a de Menandro e
seus sucedâneos, a forma que acabou por dar a estrutura de base
ao episódio analisado. A este propósito, vêm as palavras de B. P.
Reardon: “Ancient prose fiction can be viewed in several perspectives.
On one level, it is an extension of New Comedy: simple entertain-

33 Rutgers 1998: 176-177; Amitay 2014: 101-121.


34 Vide e.g. Moehring 1957: 57.

280
ment, with no pretensions to significance.” 35 Josefo, porém, parece
ter outorgado à sua prosa de base cómica um significado. Sobretudo
isso. Esta evidência, a que acrescem alguns outros elementos 36 ,
leva-nos a considerar a história de Paulina (e, por consequência, a
possibilidade de também a de Fúlvia) um texto mais ficcional do
que histórico, ainda que o objetivo que preside à sua composição
seja o de se definir e consagrar como historiografia.

Bibliografia

Amitay, O. (2014), “Paulina and Fulvia: Hidden Agenda in Josephus 18.65-84”, Ancient
World 45: 101‑121.
Bell Jr., A. A. (1976), “Josephus the Satirist? A Clue to the Original Form of the
‘Testimonium Flauianum’”, The Jewish Quarterly Review 67.1: 16-22.
Braun, M. (1938), History and Romance in Graeco-Oriental Literature. Oxford: Basil
Blackwell.
Burkitt, F. C. (1913), “Josephus and Christ”, Theologisch Tijdschrift 47: 135-144.
Dornseiff, F. (1955), “Zum Testimonium Flavianum”, Zeitschrift f. d. neutest. Wiss. 46:
245-250.
Eisler, R. (1930), “Flavius Josephus on Jesus Called the Christ”, Jewish Quarterly Review
21: 1-60.
Feldman, L. H. (1965), Josephus. Jewish Antiquities. Books XVIII-XIX. Cambridge, Mass.-
London: Harvard University Press.
Gossmann, H.-C. (1989), “Die Möglichkeit der literarischen Abhängigkeit des Josephus
von Ovid: Dargestellt am Beispiel der Sintfluterzählung”, Zeitschrift für Religions-
und Geistesgeschichte 41-1: 83‑86.
Groag, E. et al. (1933), Prosopographia imperii romani saec. I, II, III. Berlin/Leipzig:
Walter de Gruyter.
Heidel, W. A. (1920), “Why were the Jews banished from Italy in 19 A.D.?”, American
Journal of Philology 41: 38‑47.
James, T. G. H. (1971), Miti e leggende dell’antico Egitto. Milano: Arnoldo Mondadori
Editore.

35 Reardon 2001.
36 Há outros elementos que nos levam a avaliar o episódio de Paulina com des-
confiança relativamente à sua validade historiográfica, como: o lançamento da estátua
de Ísis ao rio, que é um tema mais judaico do que romano, por não se coadunar com
os conceitos de pietas e euocatio próprios dos Romanos; e a forma como o adultério
parece ter sido considerado no tempo de Tibério, que também não se coaduna com
a reacção de Paulina, Saturnino e até Tibério à proposta de “Anúbis”; cf. Tac. Ann.
2.85; Suet. Tib. 35. Vide Rodrigues 2007: 444-445.

281
Lowe, N. J. (2007), Comedy. Cambridge: Cambridge University Press.
MccBrown, P. G. (2001), “Love and Marriage in Greek New Comedy”, in E. Segal (ed.),
Oxford Readings in Menander, Plautus, and Terence. Oxford, Oxford University
Press, 53-64.
Moehring, H. W. (1957), Novelistic Elements in the Writings of Flavius Josephus. Chicago:
Univ. of Chicago.
Mohering, H. R. (1959), “The persecution of the Jews and the adherents of the Isis cult
at Rome A.D. 19”, Nouum Testamentum 3: 293-304.
Norden, E. (1913), “Josephus und Tacitus über Jesus Christus und eine messianische
Prophetie”, Neue Jahrbüch. f. d. klass. Altertum 31: 637-666.
Pociña, A. (2006), “La recepción de Menandro en Roma”, in A. Pociña, B. Rabaza, M. F.
Silva (eds.), Estudios sobre Terencio. Granada: Imprensa da Universidade de Granada,
79‑108.
Rajak, T. (1983), Josephus. The Historian and His Society. London: Duckworth.
Ramos, J. A. (2006), “Ironia e alteridade: estratégias de hermenêutica e identidade no
judaísmo helenista”, in AA. VV., Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José
Amadeu Coelho Dias. Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 5-18.
Reardon, B. P. (2001), “Preface”, in I. L. E. Ramelli, I Romanzi Antichi e il Cristianesimo.
Contesto e Contatti. Madrid, Signifer Libros, 11.
Rodrigues, N. S. (2003), “A recepção da cultura grega em Flávio Josefo: literatura,
mitologia e religião”, Euphrosyne 31: 237-252.
Rodrigues, N. S. (2007), Iudaei in Vrbe. Os Judeus em Roma de Pompeio aos Flávios.
Lisboa: FCG/FCT.
Rodrigues, N. S. (2000), O rei Saul segundo Flávio Josefo. Lisboa: Colibri.
Rogers, R. S. (1932), “Fulvia Paulina C. Sentii Saturnini”, American Journal of Philology
53: 252-256.
Rutgers, L. V. (1998), The Hidden Heritage of Diaspora Judaism. Leuven: Peeters.
Smallwood, E. M. (1956), “Some notes on the Jews under Tiberius”, Latomus 15: 314‑329.
Silva, M. F. S. (2006), “Menandro e a comédia grega – o fim de um trajecto”, in A. Pociña,
B. Rabaza, M. F. Silva (eds.), Estudios sobre Terencio. Granada: Imprensa da
Universidade de Granada, 13-43.
Silva, M. F. S. (1995), “Mulheres na Assembleia. Embrião de uma nova fase na evolução
do género cómico”, Biblos 71: 35-53.
Teixeira, C. (2013), “The Cult of Isis in Rome: Some Aspects of its Reception and the
Testimony of Apuleius’ Asinus Aureus”, in R. Sousa, M. C. Fialho, M. Haggag, N. S.
Rodrigues (eds.), Alexandrea ad Aegyptum. The Legacy of Multiculturalism in
Antiquity. Porto: Edições Afrontamento/CITCEM/CECHUC, 271-282.
Thackeray, H. St. J. (1929), Josephus, the Man and the Historian. New York: Jewish
Institute of Religion Press, 1929.
Victor, U. (2010), “Das Testimonium Flavianum. Ein authentischer Text des Josephus”,
Nouum Testamentum 52: 72-82.
Williams, M. H. (1989), “The expulsion of the Jews from Rome in A.D. 19”, Latomus
48: 765-784.
Wright, M. (2019), The Lost Plays of Greek Tragedy. Vol. 2 – Aeschylus, Sophocles and
Euripides. London: Bloomsbury Academic.

282
O vinho como fonte de prazer e elixir
de males, em três epístolas de Álcifron

Wine as a Source of Pleasure and an Elixir


o f E v i l , i n T h r e e E p i s to l e s b y A l c i p h r o n

Adriano Milho Cordeiro


CECH
ORCID: 0000-0003-1098-8473
adrianomilhocordeiro@gmail.com

Festa dies Veneremque vocat cantusque merumque


(O dia de festa convida Vénus, o canto e o vinho)
Ovídio, Amores 3.10.47

Resumo: Qualquer obra literária é suscetível de ser analisada através


do estudo parcial dos assuntos que nela se podem distinguir. O
epistolário atribuído a Álcifron (Cartas de Pescadores, Camponeses,
Parasitas e Cortesãs) apresenta uma estrutura cerrada, embora cada
signo gravado nas missivas nos remeta para outro pertencente a uma
unidade superior ou inferior. A sua leitura produz o mesmo efeito que
a ilusão ótica de uma imagem refletida numa série de espelhos e que
dependendo do imaginário pessoal, pode ser refletida até ao infinito.
Porém, a hermenêutica das epístolas (4.8, 4.13 e 4.14), conquanto
subjetiva não permite incertezas: o vinho é uma bebida que provoca
sensações, intimamente ligadas ao ócio e ao festim, é fonte de prazer
e alívio de sofrimentos intrínsecos às agruras da vida. Cada carta é
como uma peça de um ‘puzzle’ que encaixa na perfeição, brindando-
-nos com uma visão panorâmica, homogénea e bem estruturada de

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_13
fragmentos da condição humana. Aliás, mais do que epístolas, Álcifron
apresenta-nos esboços de cenas e situações capturadas em tempo
real, descritas com alguma vivacidade, em que a estrutura formal é
um mero pretexto existente ao serviço da narração.

Palavras-chave: Álcifron, cartas, cortesãs, Segunda Sofística, vinho

Abstract: Any literary work is likely to be analyzed through the partial


study of the subjects that can be distinguished in it. The epistolary
attributed to Alciphron (Letters of Fishermen, Peasants, Parasites, and
Courtesans) presents a closed structure, although each sign engraved
in the missives refers us to another belonging to a higher or lower
unit. Its reading produces the same effect as the optical illusion of
an image reflected in a series of mirrors and that depending on the
personal imaginary, can be reflected to infinity. However, the her-
meneutics of the epistles (4.8, 4.13, and 4.14), although subjectively,
does not allow uncertainties: wine is a drink that causes sensations,
closely linked to idleness and feast, is a source of pleasure and relief
from sufferings intrinsic to the hardships of life. Each card is like a
piece of a puzzle that fits perfectly, toasting us with a panoramic,
homogeneous, and well-structured view of fragments of the human
condition. Moreover, more than epistles, Alciphron presents us sketches
of scenes and situations captured in real-time, described with some
vivacity, in which the formal structure is a mere pretext existing in
the service of narration.

Keywords: Alciphron, letters, courtesans, Second Sophistic, wine

A identidade de Álcifron

Apesar da total ausência de dados biográficos acerca de Álcifron,


tal facto não nos impede de enquadrá-lo quer no espaço quer no
tempo. A estudiosa Ruiz García assevera que

“de Alcifrón tan sólo sabemos que se llamaba Alcifrón, válganos la


perogrullada. Lo demás es puro malabarismo filológico. El bizantino

284
Isaac Tzetzes, de pasada, le otorga la etiqueta de rhétor, palabra
que acompaña también a su nombre en algunos de los manuscri-
tos conservados, todos ellos muy tardíos, Eustacio de Tesalónica,
erudito arzobispo que vivió en el siglo XII, lo califica ciertamente
de attikistés en sus comentarios a Homero. Nada más se sabe fuera
de estas magras noticias.” 1

Álcifron é incluído habitualmente na denominada Segunda


Sofística 2 (séculos II e III d.C.). O corpus literário da sua autoria
chegado até nós permite afiançar que foi talvez o mais eminente
entre os epistológrafos gregos.
Salienta-se que, nas epístolas de Aristéneto, existem duas cartas
entre Luciano 3 e Álcifron. 4 Ainda assim não podemos inferir que
Álcifron tenha sido contemporâneo de Luciano e, para emaranhar

1 Vide Ruiz García 1988: 127.


2 Acerca da vida e obra de Álcifron, Sánchez 2004: 70 afirma que se trata de um
“autor que se incluye habitualmente en la llamada Segunda Sofística, aunque nada se
sabe de forma directa sobre su vida, y cuya cronología se data a caballo entre el siglo
II y el III.” Na nota 4 deste seu trabalho e ainda sobre esta matéria escreve Sánchez
2004: 70: “Cf., entre otros, A. R. Benner – F. H. Fobes, The letters of Alciphron, Aelian
and Philostratus, Cambridge, Massachusetts, 1962 (=1949), p. 32ss.; B. Baldwin, “The
date of Alciphron”, Hermes 110, 1982, p. 253s. (quien asegura que Alcifrón escribiría
no más tarde de la primera década del siglo III); o P. Rosenmeyer, Ancient epistolary
fictions: the letter in Greek literature, Cambridge, 2001, p. 256s. Siguiendo esta pro-
puesta cronológica se ha elegido a Alcifrón para este estudio por ser el más antiguo
testimonio que tenemos.”
3 Afirmam Benner & Fobes 1949: 6-8 que “Possibly, like Lucian, he came from
Syria./ In speculation as to his date the starting point has most frequently been his
similarity to Lucian, which has long been recognized; for some half-dozen passages
in his letters the Works of Lucian afford striking parallels, and minor resemblances
are numerous. Did Lucian draw from Alciphron, or did Alciphron draw from Lucian,
or did Lucian and Alciphron draw from a common source? The first of these suppo-
sitions – that Lucian drew from Alciphron – was defended by Bergler and by Reitz
but probably has no defenders to-day. The second – that Alciphron drew from Lucian
– was defended by Bergler in one passage and by Wagner and Seiler, and has been
argued at great length by Reich. The third – that Lucian and Alciphron drew from a
common source – has been defended by Passow and, more recently, by Kock, who
found the common source in comedy.”
4 Veja-se Vieillefond 2018: 12 e 43. Ruiz García 1988: 129 declara em relação a
este assunto: “Un escritor tardio, Aristéneto, datable en el siglo V d. C., imagina un
intercambio epistolar entre Luciano y Alcifrón. Esta atribución ficticia indica que por
entonces se les consideraba coetáneos. Pero nada más.”

285
ainda mais a matéria em estudo, não temos sequer a certeza abso-
luta em que época viveu Aristéneto. Vieillefond apresenta-nos, em
relação a Aristéneto e Álcifron, um conjunto de suposições, sendo
as dúvidas muitas e as certezas absolutas poucas. 5
Vieillefond apresenta uma certeza em relação a Aristéneto:

“Quoi qu’il en soit, tout porte à croire que le recueil d’ Aristénète


doit bien se situer peu après le début du VI e siècle: disons dans le
premier quart de ce siècle.
A cette époque-là, malgré tous les efforts de l’administration
impériale pour éradiquer la culture classico– païenne par des me-
sures terribles, celle-ci se maintenait vigoureusement. Encore en
546, dans son Histoire de l’Église écrite en syriaque, l’évêque Jean
d’Éphèse se désolait de voir qu’autour de lui le paganisme subsis-
tait toujours. Il dénonçait «un certain nombre d’hommes illustres
et notables, avec une foule de grammairiens, de sophistes, de sco-
lastiques et de médecins».
En fait c’est dans une époque de renaissance, c’est-à-dire de
retour à l’antiquité glorieuse, de culte des grands classiques,
eux-mêmes enrichis des prosateurs prestigieux de la seconde
sophistique, que se situe Aristénète. Mais, nous le verrons, il ne
se contente pas d’imiter: sa langue, mélange de modernisme et
d’antiquaille, et parfois son invention, lui donnent une allure ba-
roque vraiment fort curieuse et pittoresque.” 6

Em relação à existência de Álcifron diz-nos Ozanam

“de l’ auteur de ces lettres, il est, d’ une certaine manière, fort


significatif que nous ne connaissions que le nom, accompagné du
commentaire «rhéteur», ou «atticiste». Nous ignorons tout de sa vie,
de sa carrière, et même son pays. Les critiques en sont donc réduits

5 Cf. Vieillefond 2018: IX-XI.


6 Vide Vieillefond 2018: XI.

286
à interroger l’ oeuvre à la recherche de quelques indices. Mais elle
aussi semble se dérober. Certes il est parfois question de dates et
de pistaches, un des pêcheurs ramène dans son filet le cadavre d’un
chameau, mais ces quelques notations sont bien rapides et il semble
aventureux d’en déduire qu’Alciphron a une origine orientale, voire
syrienne, comme on l’a parfois pensé.” 7

Proclama Ruiz García: “nuestro autor [Alcifrón] ha permanecido


en un total anonimato durante siglos, al no aparecer citado en otras
fuentes ni conservarse textos suyos por transmisión indirecta.” 8
Desde a circunstância da saída do prelo da editio princeps até hoje,9
a influência da obra de Álcifron foi diminuta na literatura ocidental.
Assim, acrescenta Ruiz García, “por todo ello nos encontramos ante
un escritor del que no sabemos nada sobre su peripecia vital ni
tampoco sobre la fortuna de su obra.”10 Como afirmam Benner &
Fobes, “A terminus ante quem for the life of Alciphron is therefore
still to seek.” 11

Álcifron, escritor

De Álcifron conservou-se apenas uma obra, constituída por uma


coleção de cartas que se distribuem por quatro livros de diferentes
extensões. 12 Relativamente ao seu alinho, seguiu-se um critério
taxionómico: a atividade desenvolvida por cada um dos correspon-
dentes. 13 Os grupos sociais dos intervenientes são pescadores (22

7 Cf. Ozanam 2004: 15-17.


8 Veja-se Ruiz García 1988: 129.
9 Sobre as fontes manuscritas e impressas relativas às cartas de Álcifron veja-se
Ruiz García 1988: 165-168.
10 Vide Ruiz García 1988: 129.
11 Cf. Benner & Fobes 1949: 18.
12Na atualidade são 123 cartas, encontrando-se algumas delas em estado frag-
mentado.
13 A atribuição de uma carta a um grupo ou a outro é por vezes discutível.

287
cartas), camponeses (39 cartas), parasitas (42 cartas) e cortesãs (19
cartas e o fr. 5). 14 É possível traçar uma linha fronteiriça entre as
duas primeiras categorias e as restantes. De um lado temos os labo-
riosos, do outro, os ociosos. Os parasitas e as cortesãs encontram-se
melhor repercutidos e constituem a parte mais elaborada de toda
a obra. Cada livro, ao tratar de forma monográfica um setor social,
provoca a impressão de oferecer variações sobre um mesmo tema
e ao mesmo tempo fornece-nos curiosos detalhes a respeito dos
costumes da Antiguidade greco-latina. Todas as figuras expressam
os seus sentimentos numa linguagem graciosa e elegante, mesmo
quando as matérias são de índole lasciva. As personagens são, de
certa forma, dispostas acima do seu padrão comum, sem qualquer
estupro da verdade.
Em termos de forma as epístolas de Álcifron ostentam uma beleza
rara e a linguagem utilizada apresenta-se em puro e requintado dia-
leto ático. 15 A cidade de Atenas é com poucas exceções a que mais

14 A edição seguida por nós é a de A. R. Benner, A. R. & Fobes, F. H. (1949) The


Letters of Alciphron, Aelian and Philostratus with an English Translation. Londres:
Harvard University Press.
Segundo Ruiz García 1988: 166-167 “M. A. Schepers publicó dicha correspondencia
completa y la dividió en cuatro libros, según la disposición actual, en dos ediciones
sucesivas y muy próximas en el tiempo (Groninga, 1901, y Leipzig, 1905). Esta pauta
ha sido seguida por A. R. Benner y F. H. Fobes, quienes, en 1949, dieron a conocer
la producción alcifronea en una versión más fidedigna y que corrige en varios pasa-
jes las lecciones de Schepers. Hoy por hoy es la edición crítica más autorizada que
poseemos.” Sobre este assunto veja-se ainda Ozanam 2004: 17-24.
15 Segundo Ruiz García 1988: 140-141 “este autor se mueve en un universo cerrado.
El único marco físico presente en su obra es el Ática y, en particular, su capital. Desde
un punto de vista cronológico también se atiene a unos límites precisos. Conviene
tener presente un dato importante: él nos evoca un mundo que ya había desaparecido
desde hacía unos quinientos años. A pesar del inmovilismo propio de las sociedades
tradicionales, el desfase temporal es enorme. Sin embargo, esta actitud no es un rasgo
peculiar suyo. En la literatura griega se observan dos tendencias: una, que mueve al
escritor a inspirarse en el pasado, y otra, que le insta a reflejar el hic y el nunc. En
la primera corriente cabría incluir a la épica y la tragedia, salvo honrosas excepcio-
nes. En la segunda a la lírica y la comedia. Alcifrón opto por volver la vista hacía
atrás.
Toda su correspondencia pone de manifiesto su deseo de recrear un mundo per-
dido para siempre. Con amorosa delectación intenta reproducir hasta en los mínimos
detalles la vida en el Ática a finales del siglo IV y, en consecuencia, resucita a algunos
de sus protagonistas, unos, históricos, otros, fruto de la imaginación.”

288
nos surge nas cartas. 16 O período temporal situa-se após o reinado
de Alexandre, o Grande. Em muitas epístolas os caracteres desenha-
dos17 por Álcifron aproximam-se dos da comédia grega e muitas das
cenas descritas são teatrais. A informação a respeito das personagens
e costumes traçados deriva da comédia nova. 18 Não podemos negar
que as cartas de Álcifron, embora escritas muito posteriormente,
contêm informações deveras preciosas acerca da vida privada dos
atenienses daquele tempo. A linguagem de Álcifron é requintada
e de uma permanente lisura, nunca chegando a ser excessiva em
qualquer situação. Não foi por acaso que Stephan Bergler observou

16 Diz-nos Ruiz García 1988: 143-144 que Álcifron “dentro de su geografía per-
sonal distingue tres sectores: la ciudad, el campo y el mar. Entre ellos se perfila una
clara oposición; el concepto de ciudad – o lo que es lo mismo en su mente, Atenas,
encarnación física de esta entelequia – versus los otros términos. Alcifrón utiliza con
toda propriedad los términos pólis y ásty. El primero, como es sabido, se emplea
para designar un sistema concreto de organización social, fruto de una convención,
aceptada por una colectividad humana. El segundo se refiere al conjunto inanimado
que constituye el paisaje urbano. El hecho de frecuentar este espacio y de convivir
con sus moradores desarrollada en el individuo unas maneras y unos hábitos proprios
de dicho tipo de comunidad. Estos modales se calificaban el empleo del adjetivo
astikós, que encierra unas connotaciones de distinción y de buen tono, esto es, las
formas corteses propias de la crianza en una urbe. Algunos ejemplos ilustrarán esta
concepción. Filócomo (II 28) le confiesa a un amigo no haber penetrado jamás en
un núcleo urbano (ásty) e ignorar en qué consiste eso que suele llamarse una ciudad
(pólis). Aquí se contraponen con toda claridad los dos términos griegos. El resto de
la carta es muy revelador sobre esta cuestión. El joven desea vehementemente com-
probar cómo viven unos seres humanos en el interior de un recinto amurallado y en
qué se diferencia la pólis de la vida en el terruño.” Ruiz García 1988: 143 esclarece
que o binómio grego pólis y ásty encontra-se igualmente em latim: “civitas/urbs. De
este último vocablo surge el adjetivo urbanus, que se puede considerar como un
calco semántico de ástikós.”
17 Cf. v. 361 “ut pictura poesis” da Arte Poética de Horácio.
18 Para Ruiz García 1988: 142-143 “la concepción del espacio en Alcifrón es impor-
tante. En todas sus historias hay un hic bien definido y personalizado. Creemos que
ello se debe, en parte, a la influencia de la Comedia Nueva. Su impacto es tal en este
escritor que sus cartas muchas veces son auténticas escenas teatrales.”

289
que a obra de Álcifron está para a obra de Menandro, 19 assim como
a de Luciano está para a de Aristófanes. 20

19 De acordo com Silva 2007: 10-12, “o nome de Menandro soa como um dos mais
aplaudidos da chamada Comédia Nova ateniense, uma fase no trajecto do género que
granjeou, no seu tempo, uma reconhecida popularidade. Mas apesar do sucesso obti-
do, a Comédia Nova não impressiona, em igual medida, o estudioso ou sobretudo o
espectador moderno. Se avaliada em contraste com os êxitos obtidos por Aristófanes
e os seus contemporâneos, ela é pálida, débil, discreta, apertada numa convenção
estreita e responsável por uma certa monotonia. [...] Foi, antes de mais, o desfecho
da Guerra do Peloponeso um passo decisivo no início de uma nova era na existên-
cia da Hélade. [...] O prestígio de uma pólis democrática como Atenas, [...] ruiu. [...]
Já o último Aristófanes é, da mudança, um testemunho evidente. [...] O epíteto de
«universalista», em vez de «política», cabe melhor à nova literatura, que [...] deu voz
à mudança profunda que se operou sobre os padrões clássicos da vida grega. [...]
A substituir a função protectora do Estado, o homem volta-se com esperança para
a família e para os amigos, as únicas promessas activas e confiáveis de solidariedade
e filantropia. Ao mesmo tempo a comédia dava um passo no sentido de secundarizar
a fantasia e de dar prioridade ao «realismo», deslocando o seu olhar atento das crises
colectivas e seus agentes para os problemas comezinhos do quotidiano, sentidos
num mundo que tendia a ser global. Acima de tudo, é o amor que motiva os enredos
como o sentimento cuja realização proporciona, nos indivíduos e no núcleo familiar,
estabilidade e ventura. A nova odisseia humana é sobretudo íntima, doméstica, mas
superiormente controlada por um acaso (Tyche) que a não poupa ao imprevisto e
ao descontrolo, de modo a tornar profundamente dramática a aventura da existência
humana.”
20 Trata-se de uma questão de estilo. Em Pompeu et al. 2017: 37 podemos ler:
“sobre os elogios tecidos por Plutarco ao estilo de Menandro e aos seus principais
méritos, vide infra 73-76; e sobre os excessos de linguagem de Aristófanes, vide
supra 15, 19-24.”
Afirma AAVV 1844: 103 “the new Attic comedy was the principal source from which
the author derived his information respecting the characters and manners which he
describes, and for this reason these letters contain much valuable information about
the private life of the Athenians of that time. It has been said, that Alciphron is an
imitator of Lucian; but besides the style, and, in a few instances, the subject matter,
there is no resemblance between the two writers: the spirit in which the two treat their
subjects is totally different. Both derived their materials from the same sources, and
in style both aimed at the greatest perfection of the genuine Attic Greck. Bergler has
truly remarked, that Alciphron stands in the same relation to Menander as Lucian to
Aristophanes. The first editions of Alciphron’s letters is that of Aldus, in his collection
of the Greek Epistolographers, Venice, 1499, 4to. This edition, however, contains only
those letters which, in more modern Editions, form the first two books. Seventy-two
new letters were added from a Vienna and a Vatican MS. By Bergler, in his edition
(Leipzig, 1715, 8vo.) with notes and a latin translation. These seventy-two epistles
form the third book in Bergler’s edition. J. A. Wagner, in his edition (Leipzig, 1798,
2 vols, 8vo., with the notes of Bergler), added two new letters entire, and fragments
of five others. One long letter, which has not yet been published entire, exists in
several Paris MSS.”

290
O vinho como fonte de prazer e elixir de males

A literatura epistolar de temática erótica21 durante a denominada


Antiguidade tardia constitui um corpus reduzido, lavrado pelas mãos
de Álcifron, Eliano, Filóstrato, Aristéneto e Teofilacto. 22 A cúpida
cortesã,23 personagem tão comum nas comédias de Menandro, Plauto
e Terêncio, é representada nas cartas de Álcifron como uma figura
convencional e de carácter contraproducente. Báquis e Glícera cons-
tituem duas exceções.24 O conceito de amor encontra-se reduzido ao
âmbito do prazer. Afirma Ruiz García que “el único objetivo perse-
guido es la posesión física. Este planteamiento demasiado reductivo
cancela la posibilidad de expresar otros sentimientos y de introducir
un análisis psicológico de los protagonistas, los cuales actúan como
unas marionetas guiadas indefectiblemente por sus instintos.” 25 Ao
ser abordada apenas a dimensão erótica “se empobrece el panorama
representado y se limita la casuística de las situaciones.” 26

Na carta 8 27 do livro 4, o jovem Simalião queixa-se da cortesã


Pétale, pois acredita que esta sente um certo prazer e gabar-se pe-

21 Na opinião de Martínez Hernández 2000: 22-23, “algunos estudiosos [...] dudan


de que la carta erótica, un producto de ficción altamente literario, pudiera tener
existencia real en la sociedad griega antigua, donde el bajo nivel cultural y la estricta
reclusión social de la mujer impedirían un intercambio epistolar real y extendido. Pero
es innegable que existen numerosas noticias de autores que cultivaron específica-
mente el género epistolar erótico. Muchas nos han llegado a través de la enciclopedia
bizantina que denominamos la Suda (s. X). Según la misma sería el orador Lisias (ca.
458-380 a. C.) el autor griego más antiguo que escribiría hasta seis cartas eróticas.
Ninguna nos ha llegado completa, pero sabemos de una que era un vituperio de la
hetera Metanira y otras, encomios de jóvenes amados. De la época de Lisias (siglos
V y IV a. C.) tenemos otros testimonios, como el de Ateneo de Náucratis (ca. 200 d.
C.), según el cual Céfalo y Alcidamante escribieron encomios en forma epistolar a
diversas heteras.”
22 Vide Sánchez 2004: 69. Veja-se ainda Sánchez 2011: 99.
23 Cf. Cordeiro 2010: 60.
24 Veja-se Ruiz García 1988: 147.
25 Idem, Ibidem.
26 Idem.
27 Neste trabalho apresenta-se apenas o resumo das cartas 8, 13 e 14 do Livro 4
da obra de Álcifron e não a tradução correta e integral das mesmas.

291
rante alguns clientes do facto de ele rondar continuamente a porta
da sua casa. Os servos que lhe levam mensagens e que pela sua
condição lhe suscitam pena, ironicamente são mais afortunados do
que ele. Acreditava que o vinho puro 28, que pela tarde de anteontem
havia tomado em considerável quantidade em casa de Eufrónio, seria
um remédio para os seus males, pois confiava que o aliviaria das
preocupações durante a noite. No entanto, o seu efeito foi de sinal
contrário, pois acrescentou-lhe pesar ao ponto de os seus prantos e
gemidos suscitarem a compaixão dos que mais o consideravam e o
riso dos restantes. Restou-lhe um lenitivo e uma pequena recordação
que já se apresentava emurchecida: a coroa de Pétale. Lembrança da
penosa discussão que sustentaram durante o banquete e que levou
Pétale a arrancá-la dos seus próprios cabelos, arrojando-a para dar a
entender que lhe causava desagrado tudo o que procedia de Simalião.
Que Afrodite não lhe fizesse pagar a altivez, deveria Pétale implorar!
Qualquer outro escreveria insultos e ameaças. Em vez disso, ele,
Simalião, em tom de prece e de súplica, porque a ama, faz o contrá-
rio, para perdição sua. Teme que, se o mal aumenta, imitará algum
daqueles que foram desafortunados nas suas queixas amorosas. 29
Nesta epístola Álcifron rememora-se o assunto do idílio XI de
Teócrito, 30 onde o jovem Ciclope cura o sofrimento de um amor

28 Relativamente ao ato de ingerir vinho puro, em AAVV 2012: 55, pode ler-se o
seguinte: “The alcoholic beverage of choice for both the ancient Greeks and Romans
was wine, customarily diluted with water, except perhaps in the case of Macedonians
who were reputed to drink their wine akratos, or unmixed. Distilled spirits, such
as brandy and whisky, had not yet been invented, and beer was looked upon as a
swinish potation better left to barbarians”.
29 O suicídio por amor tem um ilustre precedente em Safo. Cf. Ruiz García 1988:
288-289.
30 Na opinião de Frederico Lourenço 2020: 294-295 “o Idílio XI entra em diálogo
com Homero, mas de forma inesperada. A personagem central é Polifemo, o Ciclope
repulsivo da Odisseia, que surge aqui sob a forma de um moçoilo apaixonado pela
elusiva Galateia, a quem ele dedica um canto cheio das mais absurdas ingenuidades.
O poema é fundante, a todos os níveis, do género bucólico, pois dele fez Vergílio
uma versão homossexualizada na Bucólica II, donde passou, novamente com vestes
heterossexuais, para a poesia quinhentista portuguesa, com imitação direta na Écloga
IV de António Ferreira. Mas a imitação mais subtil está no Canto XIII das Metamorfoses
de Ovídio, onde o poeta romano faz a caricatura maliciosa de um tique poético já
presente em Teócrito: o uso e abuso do grau comparativo dos adjetivos. Dedicado

292
não correspondido, não pelo vinho, mas através do cultivo da arte
das Musas:

“Outro fármaco não há que cure o amor, ó Nícias, / nem un-


guento, segundo me parece, nem pó para aplicar, / a não ser as
Musas. Indolor e suave é este remédio / para os homens, mas não
é fácil de encontrar. / Sei que estás bem consciente disto, pois és
médico / e és excecionalmente amado pelas nove Musas. / Deste
modo o Ciclope, meu conterrâneo, aguentou / facilmente – o antigo
Polifemo – quando amou Galateia, / quando à volta da boca e nas
têmporas lhe crescia a barba. / Não amava com maçãs, nem com
rosas ou madeixas de cabelo, / mas com autêntica loucura. Tudo o
resto para ele não contava. / Muitas vezes regressaram as ovelhas
por si próprias ao redil, / vindas da verde pastagem. Ele, por seu
lado, cantava / Galateia na praia cheia de algas, derretido de amor,
/ logo desde manhã, com uma flecha da grande Cípris. / Mas encon-
trou o remédio; e sentado numa rocha / elevada, olhava para o mar
e assim cantava: / [...] Assim Polifemo apascentava o seu amor com
música. / E passou melhor do que se tivesse gastado dinheiro.” 31

Na carta de Álcifron o ambiente descrito é mais tenso e o aumento


do mal poderá levar ao suicídio. O lenitivo utilizado pelos dois jovens
para a cura do sofrimento causado por um amor não correspondido
é diferente: Simalião ingere vinho puro para combater a paixão. O
gigante compõe poesia. Simalião é mais hiperbólico e extasiante.
Polifemo, mais razoável e mélico.
Ambos os textos, epístola e idílio, se apresentam como casos fi-
gurados, mas intensamente reais, recordando cada um per si o que
um amor desmedido pode originar.

a Nícias, um médico-poeta, o poema de Teócrito é como que um pequeno tratado


sobre o subjetivismo e sobre a ironia resultante de não nos vermos como os outros
nos veem. Se a última irónica é dirigida ao próprio dedicatário, tal não destoa num
poema em que a paixão da ironia serviu tão bem a ironia da paixão.”
31 Cf. a tradução de Frederico Lourenço 2020: 321-327.

293
Na carta 13 do livro 4, uma cortesã relata a uma jovem amiga
um passeio efetuado com umas companheiras pelas proximidades
da cidade. O cenário descrito é tipicamente mediterrânico, suave e
belo, apelativo à adoração de Pã e das Ninfas. Na paisagem havia
saliências rochosas, fontes fluíam água puríssima 32 e alguns jacintos
e flores de várias cores alegravam a vista. Um convite à comida e à
bebida. O vinho era muito doce e abundante, italiano de origem. 33
Como não se estabeleceram regras sobre a quantidade a beber,
cometeram-se excessos. 34 Por estarem na companhia de Dioniso, o
desejo assomou as cortesãs que, por isso, se entregaram a joguetes
amorosos. No meio de toda aquela embriaguez, o bosque servia
de tálamo. Depois de um breve trato com Afrodite, retomou-se de
novo a bebida. Após nova contenda e satisfeitos os apetites, conti-
nuaram a beber jovialmente, nem sequer desejando ocultar-se umas
das outras, entregando-se ao prazer sem nenhum sentido de pudor,
ao ponto de a situação degenerar em bacanal. Mas o maldito galo
dos vizinhos cantou, pondo um ponto final na orgia. Como a amiga

32 Descrição típica de um locus amoenus. Cf. Ruiz García 1988: 297.


33 Por exemplo Horácio em 2.7.21-22 declara que o encher de taças leves com
um Massico, traz o esquecimento: “oblivioso levia Massico / ciboria exple”. Nestes
versos da ode 7 do Livro 2, o venusino refere-se ao vinho Falerno, feito com uvas
das encostas do Monte Massico, um pouco ao norte de Nápoles, na Campânia. Para
a civilização romana a denominação ‘Falerno’ tornou-se sinónimo de luxo. Era con-
siderado o melhor vinho de todos por concordância universal.
34 Relativamente ao excesso de bebida, em AAVV 2012: 55, pode ler-se: “The ancient
Greeks were unfamiliar with modern concepts of alcoholism, but they were well aware
of self-destructive drinking and the effects of habitual drunkenness. In the Odyssey.
*Homer makes a speaker note that wine is a bane to those who drink it excessively,
and identify overindulgence as the cause of *Centaur Eurytion’s vile behaviour (21.
293-8). In *Hades, Homer’s Elpenor admits that heavy drinking was a key factor in
his fatal plunge from *Circe’s roof (Od. 11. 61). *Pythagoras (1) is credited with the
dictum that drinking to achieve drunkenness is a training-ground for madness, and he
advises drunkards to take an unflinching look at their inebriate behaviour if they wish
to alter it (Stob. Flor. 3. 18. 23, 33). In the Republic, *Plato (1) writes about men who
welcome any excuse to drink whatever wine is available (475a). *Aristotle’s treatise
On Drunkenness has been lost, but his extant works confirm an abiding interest in
wine’s pernicious effects. *Plutarch’s Moralia deplores the vicious cycle exhibited by
habitual drunkards who seek wine in the morning to remedy their hangovers, noting
that wine not only reveals the character but can it as well (127f, 799b-c). […] The
ancient Romans were as interested in the harmful effects of excessive drinking and
chronic intoxication as their Greek counterparts.”

294
não tinha estado na festa, tudo isto lhe foi descrito com detalhe! Se
o real motivo da sua ausência havia sido alguma maleita, deveria
procurar melhorar rapidamente. Porém, se esteve em casa porque
aguardando a chegada do homem que amava, tinha toda a razão
para ficar em retiro.

Na carta 14 do livro 4, Mégara escreve a Báquis criticando-a


porque não consente a si mesma separar-se do seu amante nem um
instante. Mégara conta-lhe que as amigas e ela própria resolveram
participar num estupendo banquete, pleno de todo o tipo de deleites:
canções, piadas, bebida, perfumes, coroas, doces até o galo cantar.
Estávamos reclinadas à sombra de uns loureiros e sentimos a tua
falta, Báquis. Em muitas ocasiões nos divertimos, bebendo. Poucas
situações foram tão agradáveis como esta. O que proporcionou maior
distração foi uma renhida competição que se estabeleceu entre Triálide
e Mírrina acerca das nádegas. Proclamámos Triálide como vencedora.
Depois de termos passado toda a noite sem dormir, de termos
falado mal dos nossos amantes e de suspirarmos por encontrar outros
(na verdade, é sempre mais agradável ter um novo amor), pusemo-nos
em movimento, já algo bebidas. Pelo caminho de regresso, enquanto
bebíamos trago atrás de trago, passámos pela casa de Dexímaco, na
Passagem Dourada, 35 sob o pretexto de irmos à árvore da castida-
de 36 que fica perto da casa Ménefron. Bem, Taís está loucamente
apaixonada por ele e, por Zeus, com razão, pois o jovem recebeu a
herança de um pai rico.
Durante as Adónias vamos organizar um festim em casa do amante
de Tétale, no bairro de Colito. É ela a responsável por vestir o amado

35 Em relação a este local e à árvore da castidade, Ruiz García 1988: 303 assinala
que existem duas referências na obra de Álcifron: Livro III, carta 5 e Livro IV, carta 14.
36 Também conhecida por vitex, agno-casto, anho-casto, agno-puro, árvore-da-
-castidade, pimenteiro-silvestre, pimenteiro.

295
de Afrodite.37 Báquis, procura vir com o teu jardinzito,38 a figurinha
do teu Adónis particular que agora cultivas, de maneira a que todas
nos divirtamos bebendo na companhia dos amantes.

Em suma, nas três cartas de Álcifron, o vinho é fonte de prazer


e também panaceia para alguns males inerentes às agruras da vida.
É igualmente uma bebida mítica e dionisíaca que provoca sensações
e impulsiona comoções, estreitamente conectadas com o lazer e o
folguedo. Na Antiguidade greco-romana, vinho e pão em sentido
sociocultural eram muitas vezes vistos como “marcadores da iden-
tidade de sociedades ditas ‘civilizadas’, por contraste com as tidas
por ‘silvestres’.39 Os poetas do período romano anteriores a Álcifron
favorecem os efeitos do vinho e usam a embriaguez para fazer avan-
çar o enredo das histórias de amor que criam. 40
A estrutura formal das missivas de Álcifron é um pretexto para
nos contar uma história inebriante, capaz de mover o leitor. Aliás,
todas as epístolas de Álcifron são breves composições de sofisticada
retórica, esboços de pequenas cenas que retratam a condição humana
tal como na comédia grega antiga.
Cada carta aqui mencionada é uma breve peça sublime que re-
presenta a comédia da vida, acompanhada de vinho, claro!

Bibliografia

AAVV. (1844), Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology: Abaeus-
Dysponteus. London: William Smith, LLD.

37 Uma figurinha representando Adónis.


38 Segundo García 1988: 304, neste passo Álcifron refere-se “a un curioso rito
ligado con la historia de este personaje mítico. Durante las fiestas de su nombre, en
plena canícula, las mujeres plantaban en diversos recipientes unas semillas de trigo,
cebada, lechuga e hinojo. Luego exponían estos «jardines» en el techo de sus casas,
donde germinaban en muy poco tiempo. Con la misma rapidez se agostaban por el
calor y, de esta manera, conmemoraban la prematura desaparición de Adonis.” Cf.
Detienne 1972: 187 e ss.
39 Vide Soares 2014: 17.
40 Cf. Martin 2010: 62.

296
AAVV. (2012, 4.ª ed.), The Oxford Classical Dictionary. Oxford: Oxford University Press.
Benner, A. R. & Fobes, F. H. (1949), The Letters of Alciphron, Aelian and Philostratus.
London: Harvard University Press.
Cordeiro, A. M. (2010), O Truculento de Plauto. Coimbra: CECH.
Martínez Hernández. M. (2012), Cartas Eróticas Griegas, Antología. Madrid: Ediciones
Clásicas.
Lourenço, F. (2020), Poesia Grega de Hesíodo a Teócrito. Lisboa: Quetzal.
Martin, D. (2010), When to say when: wine and drunkenness in roman society. Missouri:
University of Missouri.
Ozanam, Anne-Marie (2004), Alciphron, Lettres de pêcheurs, de paysans, de parasites et
d’hétaires. Paris: Les Belles Lettres.
Pompeu, A. M. C. et al. (2017), Epítome da comparação de Aristófanes e Menandro.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra; Annablume Editora.
Ruiz García, E. (1988), Teofrasto, Caracteres, Alcifrón, Cartas de pescadores, campesinos,
parasitos y cortesanas. Madrid: Editorial Gredos.
Sánchez, A. V. (2004), “La expresión del lamento en la epistolografía griega de tema”
in Myrtia. Saragoça: Universidad de Zaragoza, 269-102.
Sánchez, A. V. (2011), Mal de amores en las Cartas eróticas de Filóstrato: teoría retórica
y teoría epistolar. Saragoça: Universidad Zaragoza.
Soares, C. et al. (2014), Ensaios sobre património alimentar Luso-brasileiro. Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra; Annablume Editora.
Vieillefond, Jean-René (2018, 3.ª ed.), Aristénète, Lettres d’Amour. Paris: Les Belles
Lettres.

297
(Página deixada propositadamente em branco)
E v o l u ç ã o n o t e m p o e n o e s pa ç o :
P l u ta r c o e a a ç ã o d e A l e x a n d r e p e r a n t e
o s b á r b a r o s d e r r o ta d o s *1

e vo l u t i o n ov e r t i m e a n d s pac e :

P l u ta r c h a n d A l e x a n d e r ’ s b e h av i o u r towa r d s
t h e d e f e at e d b a r b a r i a n s

“Não se lhe pode [a Plutarco] negar, no entanto,


atrativo e uma fidelidade
evidente a uma tradição de que Heródoto,
o pai da História, foi o fundador:
a par da narrativa dos factos, importa avaliar
a tradição acerca deles.”

Maria de Fátima Silva 2019: 15


sobre a Vida de Alexandre de Plutarco

Delfim F. Leão
Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-8107-9165
leo@fl.uc.pt

Ália Rodrigues
Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-9787-4331
alia.rodrigues@uc.pt

*1 Investigação desenvolvida no âmbito do projeto “Rome our Home: (Auto)bio-


graphical Tradition and the Shaping of Identity(ies)” (PTDC/LLT-OUT/28431/2017),
financiado pela FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia. Este trabalho faz também
parte do projeto “Crises (staseis) e mudanças (metabolai). A democracia ateniense
na contemporaneidade”, apoiado por CAPES (Brasil) e FCT (Portugal) (2019-2021).

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_14
Resumo: O artigo discute o retrato de Plutarco de um Alexandre retórico
na oração epidíctica Sobre a fortuna e virtude de Alexandre e de um
Alexandre biográfico na Vida de Alexandre. Em particular, vamos
focar-nos sobre o retrato de Alexandre como uma ilustração do no-
mothetes platónico, sobretudo no primeiro caso. Discutimos depois a
campanha pan-helénica que o tornou hegemon dos Helenos, analisando
a forma como a política de Alexandre – ou a do Alexandre retórico
figurado por Plutarco – evoluiu da oposição tradicional de gregos e
bárbaros para um programa de fusão étnica e cultural marcado pela
homonoia e koinonia. Assim, quer intencionalmente ou não, estes
princípios motivados por mudanças potenciadas ao longo do tempo
e do espaço acabariam por se tornar na base do cosmopolitismo do
período helenístico. Este programa filosófico e ético, porém, corres-
ponde sobretudo a um exercício de ‘soft power’, estando claramente
ao serviço do reforço da presença e consolidação do poder grego na
Ásia. A abordagem alternativa, nota Plutarco, seria o recurso à força
(Alex. 47.5; De Al. Magn. fort. 329c).

Palavras-chave: Alexandre, nomothetes, ‘Grecidade’, bárbaros, cosmo-


politismo

Abstract: The paper discusses Plutarch’s portrait of a rhetorical Alexander


in the epideictic oration, On the Fortune and Virtue of Alexander, and
the biographical Alexander in the Life of Alexander. In particular, we
wish to focus on Alexander portrayal as an illustration of the Platonic
nomothetes, especially in the former. We will then discuss the panhe-
llenic campaign that made Alexander hegemon of Hellas, analysing
the ways in which his policy – or that of the Plutarchan rhetorical
Alexander – evolved from the traditional Greek-barbarian dualism
into a programme of ethnic and cultural fusion marked by homonoia
and koinonia. Intentionally or not, these principles were motivated
by changes over time and space that would become the basis of the
cosmopolitanism of the Hellenistic period. This philosophical and
ethical programme, however, was above all an exercise in ‘soft power’,
clearly intended to strengthen the presence and consolidation of Greek
power in Asia. The alternative approach, Plutarch notes, would have
been the use of force (Alex. 47.5; De Al. Magn. fort. 329C).

Keywords: Alexander, nomothetes, Greekness, Barbarians, cosmopolitanism

300
1. Considerações preliminares: Plutarco e o Alexandre retó-
rico 1 como nomothetes platónico

Plutarco explora a figura de Alexandre em dois contextos diferen-


tes: na oração epidíctica Sobre a fortuna e virtude de Alexandre e nas
Vidas de Alexandre e de César, a versão biográfica que o compara com
o governante romano. Em ambos os relatos, Alexandre é caracteriza-
do como tendo conseguido exportar a ideia da “Grecidade”, através
do ensino e conhecimento da língua grega, do treino militar e do
governo pela lei (Alex. 47.5-6; De Al. Magn. fort. 328E, 343a13A-C).
Contudo, fora da Grécia continental, ele não procura apenas agir
como os bárbaros agem, mas segue também o procedimento e as
sanções de um código sócio-legal estrangeiro, como é exemplo no
caso do casamento com Roxana (47.8). No entanto, ambos os rela-
tos sublinham também aspetos diferentes do macedónio: enquanto
o primeiro explora a imagem do governante como um hellenikos
nomothetes e um ‘filósofo em armas’ num discurso mais estilizado
e apologético, no caso do Alexandre biografado, o efeito domador
ou civilizador sobre os conquistados é mais complexo 2. Whitmarsh
(2002) já abordou especificamente este desenho plutarqueano de um
Alexandre-Jano, argumentando que a representação de Plutarco cria
mais incertezas do que o esperado pelo simples dualismo grego/
bárbaro. Para usar as palavras do próprio (ib. 191): “Alexander is
both Hellenizing barbarians and barbarizing Hellenes”. Pelling (2016:
46), por outro lado, nota que nada há de controverso seja em relação
ao ‘helenismo’ de Alexandre seja com o mundo que ele conquistou,
mas que a ênfase é colocada no próprio Alexandre, ou seja, “it is
Alexander that has gone to pieces” 3.

1 Expressão utilizada por Koulakiotis 2008: 411.


2 Liparotti 2017b argumenta que, na Vida de Alexandre como no Sobre a virtude
ou fortuna de Alexandre Magno, Plutarco desenha a imagem de um rei-filósofo ins-
pirada sobretudo nas filosofias de Platão, Aristóteles e Diógenes.
3 Tal como Pelling 2011: 23 observa: “under Caesar as under Alexander, history
comes close to being the story of this one man”. As diferenças entre o Alexandre
retórico e o Alexandre biografado é nítida. Esta discrepância deriva sobretudo das

301
Assim, no caso do par Alexandre – César, os protagonistas inspiram
as pessoas não por causa das suas leis ou instituições, mas sim pelo
seu carisma (Caes. 16.1; Alex. 41.1). Consequentemente, o narrador
não presta tanta atenção às conquistas legislativas como aos duros
desafios éticos colocados por circunstâncias políticas específicas, de
forma que a glória ética não depende tanto do seu papel enquanto
educadores como do carisma político revelado pelas suas ações.
A visão de Alexandre como civilizador e libertador da barbárie
é veiculada sobretudo na oração epidíctica, ou seja, no contexto de
uma narrativa de cariz triunfalista e apologético. É, também, neste
contexto que surge a primeira ocorrência do paralelo entre a ativi-
dade colonizadora de Alexandre e a cidade cósmica de Zenão (De
Al. Magn. fort. 329A-F) 4, tendo sido esta a primeira vez que o im-
pério de Alexandre é interpretado como a sublimação histórica do
projeto filosófico de Zenão, contemporâneo do próprio Alexandre.
Antes de Plutarco, outros autores tinham já veiculado esta imagem
de Alexandre como o embaixador da união entre Gregos e Bárbaros 5,
mas Plutarco é o primeiro a integrar este evento numa narrativa do
cosmopolitismo, talvez com o intuito de emular o exemplo Romano

diferenças dos géneros epidítico e biográfico. Sobre este último, Sorabji 2006: 10,
172-177, no seu estudo de teorias sobre o ‘self’, refere que Plutarco foi o primeiro
pensador a estabelecer a ligação entre ‘self’ ou narrativa quando, no seu tratado Sobre
a Tranquilidade (473B-474B), observa que, para alcançar a tranquilidade, precisamos
de usar as nossas memórias para tecer a vida num todo unificado, tanto o bom como
o mau. Sobre outras tensões presentes na Vida de Alexandre, vide também Mossman
2006: 292.
4 Plutarco estabelece também este paralelo em relação à figura de Licurgo (Lyc.
31.2), embora de forma menos desenvolvida. Para a citação completa, vide infra nota
14. De acordo com Baldry (1959), além de Diogénes de Laércio (7.32-3), Plutarco é
uma das poucas fontes para o pensamento político de Zenão e, segundo o mesmo,
esta analogia de Plutarco teria gerado uma tradição de interpretações erróneas sobre
o pensamento político de Zenão. Vide também Schofield 2000. Este último 2000: 453
também notou que a ideia de que a ‘cidade cósmica’ é mais vantajosa do que o oposto
é um “later development” no contexto do pensamento político helenístico, tal como,
de resto, este trabalho também procura demonstrar.
5 Erastótenes apud Estrabão 1.4.9 e Arriano 7.11.9. Estrabão (1.4.9), aliás, nota
que Erastóstenes critica a divisão de Alexandre entre gregos e bárbaros, devendo a
distinção antes ser entre maus e civilizados, na medida em que tanto há ‘maus’ entre
gregos e ‘civilizados’ entre os bárbaros (πολλοὺς γὰρ καὶ τῶν Ἑλλήνων εἶναι κακοὺς
καὶ τῶν βαρβάρων ἀστείους).

302
com a criação de um precedente ético 6. O embaixador humano da
cidade cósmica de Zenão (De Al. Magn. fort. 329A-F) é assim mais
visível na versão retórica que Plutarco faz de Alexandre do que na
Vida 7 . Isto também se aplica à interpretação de Plutarco (De Al.
Magn. fort. 329A-C) da comunidade ideal de Zenão, na medida em
que Alexandre conseguiu não só substituir as comunidades locais
pelo modelo cosmopolita, mas também colocar gregos e bárbaros
sob a sua própria autoridade (grega). É assim, por esta razão, como
nota Pelling (2016: 43) que não podemos confundir a interpretação
plutarquiana do legado de Alexandre, ou seja, ‘o modelo cosmopoli-
ta’, com um projeto político ‘multicultural’ de horizontalidade social
e políticas entre Gregos e Bárbaros, na medida em que o ponto de
partida e de chegada não se alteram: “os Gregos e os bárbaros que
os não distinguissem (...) pelo vestuário, mas que reconhecessem
o helénico pela virtude (arete) e o bárbaro pelo vício (kakia); (Al.
Magn. Fort. 329C)” 8.
A versão plutarquiana retórica de Alexandre como fundador de
cidades e criador de leis tem como objetivo enquadrar Alexandre
na categoria mais ampla do hellenikos nomothetes utilizada noutras
passagens da obra de Plutarco (e.g. Num. 1.5; Sol. 16.4–5). O traço
de nomothetes atribuído ao Alexandre retórico, nota Koulationis

6 Algo semelhante sucedeu na vida do rei-legislador Numa Pompílio. Nota Gabba


1984: 84 que Plutarco, além de ser a primeira fonte a atribuir a criação de todos
os collegia a Numa, é também o primeiro a avançar com uma explicação de cariz
filosófico e sociológico, integrando assim esta reforma num plano político maior
que visava criar uma estrutura para a paz social e doméstica, através da eliminação
de diferenças étnicas pela introdução de uma diferenciação de outra natureza, neste
caso, a profissional.
7 Vide supra nota 4.
8 Para a versão portuguesa da obra A Fortuna ou a Virtude de Alexandre Magno,
usa-se a tradução de Liparotti 2017a. Algo semelhante é também referido em Reg.
et imp. Apophth. 182C. De resto, Pelling 2016 demonstrou esta atitude relativamente
depreciativa ou desinteressada em relação aos ‘bárbaros’ é prevalente em toda a
obra de Plutarco. Vide também Nikolaidis 1986: 231 e Schmidt 2004: 230 (passim),
que seguem semelhantes linhas de argumentação. As duas exceções a este tipo de
abordagem é o Egito, cuja admiração é visível em Sobre Ísis e Osíris, e a figura de
Anacársis na qual Plutarco reconhece uma clarividência superior à dos gregos, algo
já presente na própria tradição associada a esta figura. Para uma visão global do
tratamento de Anacársis em Plutarco, vide Leão 2019.

303
(2008: 411), não tem qualquer “precedent in the historiographical
and literary tradition” sobre o próprio Alexandre, mas também
acrescenta que “this image is not found in the rest of the Plutarchan
corpus and is probably an innovation by the ‘rhetorical’ Plutarch”.
Esta inusitada justaposição entre Alexandre e a figura do legislador9
tem, em primeiro lugar um propósito claramente enfático próprio
do género epidíctico, mas possui também como objetivo estabelecer
um paralelo não só entre um modelo político grego e platónico de
cariz civilizador e apolítico, mas também acrescentar um elemento
que é essencial à figura do legislador e, no caso, à figura idealizada
de Alexandre: intencionalidade, dimensão teleológica10. Esta reinter-
pretação das conquistas de Alexandre como parte de um projeto de
homonoia e koinonia de larga escala, ou o sonho estóico de Zenão,
intencionalmente concebido, faz parte da retórica de justificação das
ações de conquista de Alexandre como um evento necessário para
a realização do desígnio pan-helénico11 ou, como Pelling (2016: 42)
colocou, do “Macedonian white man’s burden”. Esta versão plutar-
quiana de Alexandre como nomothetes invoca também outros debates
geralmente associados à figura do legislador e que figuram de forma
proeminente na obra de Plutarco: a necessidade antropológica de
administrações políticas e leis (sobretudo na ausência de liderança
política), a importância de estabelecer um sistema de educação ca-
paz de assegurar a estabilidade constitucional 12, a polémica entre
‘fazedores’ e ‘teorizadores’ e o uso legítimo de força. Estes elementos

9 O mesmo se verificou em relação à figura do segundo rei de Roma, Numa


Pompílio. Vide supra nota 6.
10 A associação destas características à figura do legislador está relacionada com
a equiparação desta com a imagem do demiurgo platónico ao qual o próprio Plutarco
faz referência na Vida de Licurgo (29.1). Este paralelo tem sido estudado desde os
anos 50 por Morrow 1953 e, mais tarde, também por Laks 1990, 2000.
11 O mesmo se aplica às Vidas Paralelas de Licurgo e Numa, cujas analogias
com a figura do legislador platónico convertem tanto o legislador espartano como o
segundo rei de Roma em representantes históricos do ideal político e constitucional
platónico. Vide infra nota 15.
12 Sobre a importância da fixação de um sistema de educação aquando da intro-
dução de uma reforma constitucional, vide Lyc. 13.1-4; 14.1 e a crítica a Numa por
não ter feito o mesmo durante o seu reinado Comp. Lyc. – Num. 26 (49.4).

304
são frequentemente destacados na caracterização de Alexandre: este
grego converteu ‘barbárie’ em civilização através da introdução da lei
(Alex. 47.5-6, De Al. Magn. fort. 328A-B, E, 343a13A-C), sendo que a
importação do sistema de educação macedónio era vista não só como
um benefício civilizador para as comunidades bárbaras, mas também
como um meio de manter e gerir a paz social num contexto onde
tensões políticas são obviamente eminentes (Alex. 47.5). Relativamente
à polémica entre ‘fazedores’ e ‘teorizadores’, os legisladores e, no
caso, também Alexandre, são particularmente enaltecidos. Por exem-
plo, sobre a inutilidade da Magna Charta platónica da Constituição
Mista em comparação com os feitos de Alexandre, Plutarco observa
que “embora, entre nós, poucos sejam os que leem as Leis de Platão,
milhares de homens fizeram e fazem uso das leis de Alexandre” 13.
O mesmo disse Plutarco acerca dos legados legislativos e políticos
dos políticos legisladores Licurgo (31.2) e Numa Pompílio (20.8) 14.
Outro elemento geralmente associado à figura do legislador é o uso
legítimo de força de forma ‘programática’ de modo a persuadir as
pessoas a aceitarem um modelo político superior, ou seja, expressões
de uso de bia (βία) “força” por parte de Alexandre serão geralmente
justificadas pela necessidade governativa. Aqui Plutarco segue o mo-
delo platónico de legislador que também faz um uso discricionário
da força de acordo com a conveniência 15.

13 De Al. Magn. fort. 328E: καὶ τοὺς μὲν Πλάτωνος ὀλίγοι νόμους ἀναγιγνώσκομεν,
τοῖς δ’ Ἀλεξάνδρου μυριάδες ἀνθρώπων ἐχρήσαντο καὶ χρῶνται.
14 Respetivamente: Lyc. 31.2: ‘Tal foi a proposta de constituição que Platão,
Diógenes e Zenão e todos quantos, ao tentarem dizer sobre este tema são exalta-
dos, apesar de terem legado apenas escritos e palavras. Licurgo, por seu lado, nem
escritos nem palavras deixou, mas trouxe à luz do dia uma constituição inimitá-
vel’ (ταύτην καὶ Πλάτων ἔλαβε τῆς πολιτείας ὑπόθεσιν καὶ Διογένης καὶ Ζήνων καὶ
πάντες ὅσοι τι περὶ τούτων ἐπιχειρήσαντες εἰπεῖν ἐπαινοῦνται, γράμματα καὶ λόγους
ἀπολιπόντες μόνον. ὁ δὲ οὐ γράμματα καὶ λόγους, ἀλλ’ ἔργῳ πολιτείαν ἀμίμητον εἰς φῶς
προενεγκάμενος); Num. (20.6): ‘[Numa] representou o paradigma e confirmação clara
da afirmação de Platão que, vivendo muito depois, ousou expressar sobre política’
(ἐναργὲς ἐξήνεγκε παράδειγμα καὶ τεκμήριον τῆς Πλατωνικῆς φωνῆς, ἣν ὕστερον ἐκεῖνος
οὐκ ὀλίγοις χρόνοις γενόμενος ἐτόλμησεν ἀφεῖναι περὶ πολιτείας). Traduções de Ália
Rodrigues.
15 O dualismo peitho e bia atravessa todo o pensamento político de Platão e tem
recebido muita atenção por parte dos estudiosos. Como o tratamento deste tema

305
O retrato de Alexandre como embaixador da cidade cósmica de
Zenão faz assim parte da agenda política e ética de Plutarco: em
primeiro lugar, o seu contributo para a história do conceito intelec-
tual do nomothetes deve ser entendido, antes de mais, no âmbito da
tradição platónico-aristotélica e, em segundo lugar, e, em segundo
lugar, no contexto literário seu contemporâneo. O mesmo se verificou
em relação à versão plutarquiana da biografia de Numa Pompílio,
o segundo rei de Roma, que Plutarco associa à figura do legislador
também de forma completamente original, pois não só não consta nas
fontes sobre Numa, como esta figura não tem precedentes na tradição
política romana. A centralidade literária desta ideia é revelada pela
forte agenda política ligada a este conceito em Fílon de Alexandria
e Flávio Josefo, para quem o conceito de nomothetes platónico 16
constitui um topos retórico, um poderoso trunfo para a negociação da
identidade cultural. Assim se, por um lado, o contributo de Plutarco
continua e reproduz o conceito de nomothetes platónico, por outro,
segue também a tradição intelectual grega, isto é, a assimilação en-
tre o nomothetes e o filósofo-rei platónico. Deste ponto de vista, o
inesperado traço do nomothetes aplicado por Plutarco ao Alexandre
retórico recupera a ideologia ateniense e platonizante do nomothetes,
a qual igualmente encarna com a sua própria agenda ético-política:
o processo em curso de representação de uma certa identidade do
passado através de um diálogo com a identidade do presente.

escapa ao âmbito do presente trabalho, referimos apenas a título de exemplo o estudo


de Lane (2010) na qual se argumenta que este dualismo é explorado sobretudo na
República, no Político e nas Leis e que o uso de persuasão é apenas uma forma
suspensa de força. Exemplos do recurso à força por parte de Alexandre na Vida:
14.7.2, 47.5.4, 51.11; e nas orações: 327a, 327b, 332c. Vide também Liparotti 2014,
Chrysanthou 2019.
16 Morrow 1960, Laks 2000, Neschke-Hentschke 1995 e, de maneira mais
enfática, Lane 2012, facultam uma visão abrangente sobre a questão do legislador pla-
tónico.

306
2. Alexandre e a estratégia da campanha pan-helénica

A proposta de uma união pan-helénica permeia muitos dos autores


dos séculos V e IV, a ponto de se tornar numa ideologia bastante
difundida nos círculos intelectuais 17. Embora esteja para além do
âmbito desta análise abordar esta questão em pormenor, é de qual-
quer forma útil recordar alguns aspetos relacionados com a formação
deste princípio propagandístico, cujas raízes apelam ao patriotismo
grego 18. Além disso, também contava com o apoio popular, porque
mesmo um cidadão anónimo podia observar empiricamente os efei-
tos positivos da unidade derivada quer da memória da resistência
grega às invasões persas, quer do empobrecimento generalizado
causado pela Guerra do Peloponeso. No entanto, uma questão que,
em termos teóricos, parecia perfeitamente clara enfrentava, na prá-
tica, o enorme obstáculo da fragmentação do sistema da pólis. Por
esta razão, para se chegar à unidade grega seria necessário fazer-se
sentir a ação de poderosos fatores externos: o perigo iminente de um
invasor estrangeiro devastador ou a capacidade de alguém se impor
como hegemon aos outros estados gregos. Os Persas justificaram o
primeiro cenário, representando, por esta mesma razão, a imagem
básica do inimigo bárbaro; do outro lado, as campanhas vitoriosas
de Filipe II deram-lhe o poder e o enquadramento formal para se
tornar o líder natural dos gregos nesta campanha pela civilização.
Filipe utilizou assim a ideologia pan-helénica para reforçar a sua
posição como líder e para preparar a invasão da Ásia, embora o
seu assassinato o impedisse de pôr em prática esse plano. Caberia
então a Alexandre implementar esta ambiciosa campanha que, aliás,
servia igualmente as suas inclinações expansionistas e o desejo de
imitar os seus antepassados (especialmente a presumida ligação com

17 Recupera-se aqui o essencial da linha argumentativa desenvolvida em Leão


2012: 15-31, embora com um enquadramento renovado e abordagem de novos aspe-
tos de análise.
18 Para um estudo extensivo sobre este tema, vide Ferreira 1992.

307
Héracles e Aquiles) 19. Além disso, as fontes antigas indicavam, por
vezes, a Guerra de Troia como a causa última da inimizade entre
Gregos e Persas 20, não sendo por isso improvável que, na mente de
Alexandre, a campanha contra a Ásia pudesse representar uma es-
pécie de reposição gloriosa daquele conflito. Nesta perspetiva, não
será, portanto, surpreendente que, segundo Plutarco, o primeiro
passo por ele dado depois de atravessar o Helesponto tenha sido o
de fazer uma paragem em Troia, para prestar homenagem a Atena e
aos heróis caídos, particularmente a Aquiles (Alex. 15.8).
Depois dessa breve paragem, Alexandre juntou-se ao grosso das
tropas e preparou-se para enfrentar a primeira batalha, algo muito
importante psicologicamente porque marcaria a entrada na Ásia e a
afirmação do seu génio militar, capaz de alcançar a vitória mesmo
em circunstâncias extremamente desfavoráveis. Com efeito, os Persas
aguardavam as forças invasoras ao longo das margens do rio Granico.
Parménion, um dos generais de Alexandre, aconselhou-o a esperar
pelo dia seguinte, mas Alexandre decidiu prosseguir imediatamente.
As forças persas tinham, nas suas fileiras, milhares de mercenários
gregos de infantaria, que também eram combatentes experientes.
Plutarco (Alex. 16.13-14) afirma que os mercenários pediram ao
macedónio que lhes poupasse a vida, mas Alexandre carregou fu-
riosamente sobre eles, movido mais pela raiva do que pela razão 21.

19 Flower 2000: 101-102, afirma que, embora a verdadeira motivação dos dois
soberanos macedónios não seja segura, não é improvável que, para além do desejo de
realizar grandes feitos, Filipe e Alexandre também tivessem tido em conta que, como
descendentes de Héracles, deveriam imitar o filo-helenismo deste último. Aquiles,
por seu lado, era uma referência constante para Alexandre: segundo Plutarco (Alex.
5.8), Lisímaco – um dos educadores do futuro rei – teria dado a si mesmo o título
de Fénix, o de Aquiles ao seu jovem aluno, e o de Peleu a Filipe. Plutarco sustenta
ainda (Alex. 24.10-14) que, durante o cerco de Tiro, Alexandre arriscaria a sua vida
para salvar Lisímaco, que insistiu em segui-lo em campanha, argumentando que ele
não era nem mais fraco nem mais velho do que Fénix, que acompanhou Aquiles
a Troia.
20 E.g. Heródoto (1.4-5), que vê as invasões de Dario e Xerxes como consequên-
cias desse confronto passado.
21 Hammond 1997: 69 acredita que esta crítica implícita à forma ‘apaixonada’
como Alexandre reagiu foi formulada por Aristobulo, que seria a fonte do relato de
Plutarco neste contexto.

308
Cerca de dois mil homens daquele contingente acabariam sendo
presos e enviados para a Macedónia, onde serviriam como escravos.
Não há razão para ver nesses mercenários uma oposição grega
organizada, porque, por definição, os mercenários lutam pela pessoa
que lhes paga, sem qualquer motivação ideológica que não seja o
lucro rápido. Ainda assim, o tratamento duro que lhes foi imposto
por Alexandre foi certamente motivado pelo facto de esses homens
serem gregos e, portanto, de a sua primeira obrigação ser a de lu-
tar ao lado dos companheiros na procura de um objetivo comum 22.
Além disso, que o desígnio pan-helénico estava então na mente de
Alexandre é claramente demonstrado pelas instruções que ele deu
relativamente à partilha dos despojos (Alex. 16.17-18):

κοινούμενος δὲ τὴν νίκην τοῖς Ἕλλησιν, ἰδίᾳ μὲν τοῖς Ἀθηναίοις


ἔπεμψε τῶν αἰχμαλώτων τριακοσίας ἀσπίδας, κοινῇ δὲ τοῖς ἄλλοις
λαφύροις ἐκέλευσεν ἐπιγράψαι φιλοτιμοτάτην ἐπιγραφήν· “Ἀλέξανδρος
[ὁ] Φιλίππου καὶ οἱ Ἕλληνες πλὴν Λακεδαιμονίων ἀπὸ τῶν βαρβάρων
τῶν τὴν Ἀσίαν κατοικούντων”.

No intuito de integr ar os Gregos na vitória, enviou, aos


Atenienses em particular, 300 escudos do saque, e sobre os outros
despojos mandou gravar, em grande estilo, esta inscrição come-
morativa: “Eis o que Alexandre, filho de Filipe, e os Gregos, com
exceção dos Lacedemónios, capturaram aos bárbaros que habitam
a Ásia” 23 .

Após vários outros recontros, a grande batalha com Dario III teve
lugar em Gaugamelos. Pouco antes do confronto decisivo, Alexandre
fez um discurso de encorajamento aos diferentes contingentes das
suas tropas que gritaram, em resposta, a confiança que tinham nele
para os liderar contra os bárbaros (Alex. 33.1). Por conseguinte e

22 Em vez disso, aliaram-se aos bárbaros contra os outros gregos; cf. Arriano, 1.16.6.
23 Para a versão portuguesa da Vida Alexandre, usa-se a tradução de M. F. Silva,
em Silva & Brandão 2019.

309
segundo Plutarco, neste momento determinante da sua campanha
Alexandre continuava a mover-se dentro do quadro ideológico do
desígnio pan-helénico. Além disso, esta posição seria ainda mais
reforçada pelas suas ações imediatamente posteriores a ter obtido
a vitória (Alex. 34.2–3):

φιλοτιμούμενος δὲ πρὸς τοὺς Ἕλληνας, ἔγραψε τὰς τυραννίδας


πάσας καταλυθῆναι καὶ πολιτεύειν αὐτονόμους, ἰδίᾳ δὲ Πλαταιεῦσι
τὴν πόλιν ἀνοικοδομεῖν, ὅτι τὴν χώραν οἱ πατέρες αὐτῶν
ἐναγωνίσασθαι τοῖς Ἕλλησιν ὑπὲρ τῆς ἐλευθερίας παρέσχον. ἔπεμψε
δὲ καὶ Κροτωνιάταις εἰς Ἰταλίαν μέρος τῶν λαφύρων, τὴν Φαΰλλου
τοῦ ἀθλητοῦ τιμῶν προθυμίαν καὶ ἀρετήν, ὃς περὶ τὰ Μηδικά, τῶν
ἄλλων Ἰταλιωτῶν ἀπεγνωκότων τοὺς Ἕλληνας, ἰδιόστολον ἔχων ναῦν
ἔπλευσεν εἰς Σαλαμῖνα, τοῦ κινδύνου συμμεθέξων.

Desejoso de ganhar o reconhecimento dos Gregos, escreveu-lhes


a dizer que todas as tiranias tinham sido abolidas e que eram livres
de se governar de acordo com as próprias leis. Aos Plateenses em
particular anunciou que lhes ia reconstruir a cidade, porque os
antepassados deles tinham posto o seu território à disposição dos
Gregos para a luta pela liberdade. Mandou também ao povo de
Crotona, na Itália, parte do saque, em homenagem ao empenho e à
excelência de Failo, o seu atleta, que, nas guerras médicas, quando
todos os outros Italiotas recusaram ajudar os Gregos, apetrechou
um navio a expensas próprias e navegou para Salamina, para par-
ticipar nessa hora de perigo.

Ao dar estas instruções, Alexandre estava também a deixar bem


claro o propósito de promover uma conexão entre as Guerras
Persas e a campanha que estava agora a travar: as promessas feitas
aos Plateenses faziam lembrar a Batalha de Plateias; os despojos
enviados para Crotona comemoravam o embate de Salamina. Desta
forma, estabelecia, por um lado, uma ligação direta entre dois dos
momentos mais críticos, no passado, da resistência grega conjunta

310
ao avanço persa e, por outro, a vitória de Gaugamelos. Em comum,
todos eles tinham o resultado altamente positivo fruto da formação
de uma aliança pan-helénica contra os bárbaros.
A derrota dos Persas abriu o caminho ao controlo de toda a Ásia,
incluindo as cidades da Babilónia, Susa e Persépolis. Ao longo destas
conquistas, Alexandre pôs em prática algumas decisões que devem
ser entendidas dentro ainda da mesma lógica de retaliação contra
o invasor bárbaro: após a captura de Susa, ordenou a devolução a
Atenas das estátuas de Harmódio e Aristogíton, bem como também
a de Ártemis, que Xerxes tinha roubado 24. Mas o ato mais simbólico
da vitória grega diz respeito à conquista de Persépolis e à destruição
do palácio imperial. A este propósito, as palavras de Demarato de
Corinto (um antigo amigo de Filipe), proferidas quando contemplou
Alexandre sentado no trono de Dario pela primeira vez (Alex. 37.7),
são particularmente enfáticas:

Λέγεται δὲ καθίσαντος αὐτοῦ τὸ πρῶτον ὑπὸ τὸν χρυσοῦν


οὐρανίσκον ἐν τῷ βασιλικῷ θρόνῳ, τὸν Κορίνθιον Δημάρατον, εὔνουν
ὄντ’ ἄνδρα καὶ πατρῷον φίλον Ἀλεξάνδρου, πρεσβυτικῶς ἐπιδακρῦσαι
καὶ εἰπεῖν, ὡς μεγάλης ἡδονῆς ἐστεροῖντο τῶν Ἑλλήνων οἱ τεθνηκότες
πρὶν ἰδεῖν Ἀλέξανδρον ἐν τῷ Δαρείου θρόνῳ καθήμενον.

E conta-se que, quando se sentou pela primeira vez debaixo do


dossel de ouro que cobria o trono real, Demarato de Corinto, um
amigo leal de Alexandre como o tinha sido do pai, com uma co-
moção de velho se lavou em lágrimas e declarou que tinham sido
privados de uma enorme alegria os Gregos mortos antes de verem
Alexandre sentado no trono de Dario.

Esta opinião é expressa por alguém que tinha simpatias óbvias


pela Macedónia e pela Liga de Corinto. No entanto, Plutarco revela,

24 Cf. Arriano, 3.16.

311
num passo da Vida de Agesilau (Ages. 15.3) que, na sua opinião e
na de muitos gregos contemporâneos desses acontecimentos, havia
mais razões para verter lágrimas pelos Gregos (e em particular pe-
los Espartanos) que pereceram em Leuctras, Queroneia, Arcádia e
Corinto, do que pelo facto de não terem vivido para ver Alexandre
sentado no trono de Dario. Isto significa, claro, que nem todos os
gregos viram o macedónio como o hegemon natural dos Hellenes.
Quanto à ideia de queimar o palácio de Persépolis, a tradição
está dividida. A explicação oficial – e a mais provável – é que o in-
cêndio foi uma retaliação contra as invasões persas, em particular
por causa dos sacrilégios cometidos contra os templos gregos. Além
disso, este ato destrutivo produzia em si mesmo um poderoso efeito
psicológico, capaz de reforçar a sujeição dos asiáticos e a sua lealda-
de a Alexandre contra os Espartanos e outras ameaças de rebelião.
No entanto, havia também outra versão, ecoada no testemunho de
Plutarco (Alex. 38), segundo a qual a decisão de queimar o palácio
fora tomada sob a influência de Taís (uma famosa cortesã ateniense)
num momento de imponderação, por um Alexandre toldado pela
bebida, que rapidamente se arrependeu do passo que acabara de
dar. O mais provável, porém, é que o gesto tenha sido premeditado
e que esta segunda versão seja apenas uma forma de romancear um
acontecimento que resultou na destruição de uma das maravilhas
arquitetónicas do mundo antigo. De resto, não é improvável que,
antes do incêndio, Alexandre tivesse aberto o palácio à pilhagem
desordenada dos Macedónios, como é sugerido pelo facto de muitos
pequenos objetos de ouro e de pedras preciosas terem ficado esque-
cidos no chão, como se depreende das escavações arqueológicas 25.

25 Hammond 1997: 114-115. Plutarco (Alex. 38.6-7; cf. 24.1-3) declara também
que os macedónios insistiram na destruição do palácio, porque pensavam que esta
decisão exprimia a intenção de Alexandre de regressar a casa, em vez de ficar entre
os bárbaros. Mais adiante (Alex. 40.2), diz-se que o próprio Alexandre teria criticado
(ainda que apenas um tanto ligeiramente) os seus companheiros por terem adotado
uma forma de vida luxuosa, comparável à dos bárbaros que haviam derrotado.

312
3. Alexandre e o caminho em direção ao cosmopolitismo

Após os acontecimentos referidos na secção anterior, a coligação


pan-helénica tinha atingido os principais objetivos que, em primeira
linha, justificaram a sua intervenção: como hegemon dos Gregos,
Alexandre assegurara a libertação das cidades gregas da Ásia Menor
e a vingança contra os Persas. Prova de que o primeiro objetivo fora
concluído pode encontrar-se na decisão de Alexandre de dispensar
os aliados no ano de 330, em Ecbátana, embora muitos veteranos
tivessem decidido permanecer 26. Isto não significava necessariamen-
te que tivesse abandonado em definitivo os ideais pan-helénicos,
que poderiam ser-lhe úteis novamente, se necessário 27 . Contudo,
a partir desta altura Alexandre acabaria por mostrar-se cada vez mais
permeável à influência oriental, assumindo, portanto, uma atitude
que estava de certa forma em desacordo com a propaganda da uni-
dade dos Gregos contra os bárbaros. No entanto, contribuiria para
a gradual fusão étnica e cultural de gregos e asiáticos 28 , abrindo

26 Arriano, 3.19.5-6; Diodoro, 17.74.3.


27
Flower 2000: 115-135, sustenta, com algum excesso de boa vontade, a perspetiva
de que o ideal pan-helénico teria permanecido em grande parte intacto.
28 Por duas vezes, Plutarco refere-se a Alexandre como representante de ‘Europa’
enquanto conceito geográfico e cultural estabelecendo assim uma correspondência
direta entre Macedónio/Grego e Europa: ‘Aí Alexandre disse, em ar de troça: ‘É este o
homem, meus senhores, que se preparava para atravessar da Europa para a Ásia”’ (Alex.
9.10: ὁ δ’ Ἀλέξανδρος ἐφυβρίζων “οὗτος μέντοι” εἶπεν “ἄνδρες εἰς Ἀσίαν ἐξ Εὐρώπης
παρεσκευάζετο διαβαίνειν, ὃς ἐπὶ κλίνην ἀπὸ κλίνης διαβαίνων ἀνατέτραπται”), ‘é des-
se modo que os reis inteligentes ligam a Ásia à Europa’ (De Al. Magn. Fort. 329E9:
οὕτως ἔμφρονες βασιλεῖς Ἀσίαν Εὐρώπῃ συνάπτουσιν). Além destas, as poucas vezes
que encontramos este termo em Plutarco (mais 10 vezes) é também geralmente por
oposição à Ásia: e.g. Plut. Them. 16.3, 16.4, Per. 17.1, Arist. 9.5, Pyrr. 12.3, Pomp. 45.5,
Cons. ad Apoll. 121D1-5, Adv. Col. 1114B7, com exceção da passagem no De exilio
607B10, em que a oposição é com a Fenícia/Φοῖνιξ. A mesma aceção de ‘Europa’ já se
verificava, de resto, em Heródoto e em Tucídides, ou seja, também nestes autores os
contextos de ocorrência do termo Εὐρώπη são também contextos de oposição entre
Europa e a Ásia, no caso o Império Persa: e.g. Her. 1.4.4; 1.4.15, 1.103.16, inter alia,
Thuc. 1.89.2, 2.97.5, 2.97.2, sendo que, nas duas últimas referências, o polo oposto
é o reino Odrísio (conjunto de tribos trácias). Nota-se assim a baixa frequência des-
te termo em historiadores em que o ‘outro’ nunca chega a ocupar uma posição de
relevo como Tucídides (3 ocorrências) ou Plutarco (12 ocorrências), por oposição a
Heródoto (53 ocorrências) em que os paralelos entre os Gregos e os Persas são uma
constante ao longo da obra.

313
assim o caminho para o cosmopolitismo da era helenista. Esta é uma
questão complexa e muito debatida, que está para além do âmbito
deste documento, mas vale a pena evocar alguns dos sinais exterio-
res desta mudança e também as reservas que terá inspirado entre os
Gregos, especialmente entre os veteranos macedónios.
Apesar do facto de Aristóteles – um dos mestres de Alexandre
– ter expressado a opinião de que os Gregos eram superiores aos
bárbaros 29, a verdade é que o jovem rei logo mostrou um desejo de
aplicar medidas conciliatórias, motivado ora por um simples prag-
matismo político, ora talvez mesmo por uma convicção crescente 30.
É provável que a realidade envolvesse uma combinação em graus
variáveis destes dois fatores, mas mesmo assim é certo que várias
das medidas de Alexandre resultaram numa promoção eficaz de uma
fusão progressiva entre gregos e asiáticos 31.
Isto reflete-se, por exemplo, na distribuição de funções admi-
nistrativas, repartidas entre os macedónios em quem o rei confiava
(geralmente recrutados entre o seu círculo de pessoas mais próximas),
mas também entre os persas que eram mantidos como sátrapas; na
decisão de permitir que Ada de Halicarnasso o adotasse como filho

29 E.g. Pol. 1252b. Plutarco sustenta (Alex. 8.4) que Alexandre, com o passar do
tempo, se tornaria de alguma forma mais distante de Aristóteles, embora ainda o
admirasse; este pormenor pode sugerir que Alexandre também se tornaria progres-
sivamente mais distante dos seus ensinamentos. Guthrie 1981: 36-43 acredita que o
comportamento do antigo discípulo para com os bárbaros poderá ter, de alguma forma,
chocado Aristóteles. Esta ‘viragem’ relativamente aos ensinamentos do mestre, bem como
a circunstância de Calístenes (um aluno e sobrinho de Aristóteles, que acompanhou
Alexandre em campanha) ter acabado por morrer no contexto da oposição ao ritual
da proskynesis (Alex. 54.3), explicam o facto de a figura de Alexandre se ter tornado
algo odiosa para o Peripatos, embora não seja certo que o efeito sobre Aristóteles
tenha sido o mesmo. Em todo o caso, há que reconhecer que a natureza exata dos
ensinamentos de Aristóteles e a influência que poderão ter tido sobre a atuação ética
e política de Alexandre é muito incerta e, já desde a Antiguidade, objeto de grande
especulação. Para um estudo recente sobre esta matéria, vide Gómez Espelosín 2019.
Sobre a educação de Alexandre em geral, vide síntese de Silva 2019: 31-36.
30 O problema das verdadeiras intenções de Alexandre continua a suscitar contro-
vérsia entre os estudiosos e tem raízes distantes no tempo. Vide Tarn 1933 e Badian
1958, para um exemplo de duas visões clássicas e completamente opostas do suposto
‘sonho’ de Alexandre de construir uma humanidade fraterna.
31 Para um conspecto das fontes que abordam a relação entre Alexandre e os
bárbaros, vide Heckel & Yardley 2004: 175-188.

314
(Alex. 32.7) 32, ou na forma como demonstrou respeito para com a
mãe e esposa de Dario (Alex. 21.1-3; 30.1-10). Formalmente, Alexandre
perfilharia também aspetos do vestuário e protocolo persas, sendo o
mais controverso a tentativa de implementar o ritual da proskynesis
(“adoração, obediência”). Muito tem sido especulado em relação ao
simbolismo desta cerimónia, embora pareça errado ligá-la a uma
simples estratégia de deificação da parte de Alexandre, como argu-
mentam algumas fontes. De facto, os Persas usaram o ritual como
uma forma de reverência estatutária sem necessariamente implicar
– mesmo quando era dirigido ao soberano – a ideia de que era equi-
valente à adoração de um deus 33. No entanto, o mesmo ritual que
na perspetiva de um persa representava simplesmente um cerimonial
antigo, para um grego simbolizava uma humilhação, porque só os
deuses podiam ser dignos de proskynesis. Assim, Alexandre acabaria
por enfrentar a resistência de Gregos e Macedónios, embora a sua
intenção pudesse ter sido apenas a de colocar todos os seus súbditos
numa posição semelhante em relação ao soberano 34.
Planos idênticos de fusão étnica e cultural motivaram provavel-
mente a promoção de casamentos mistos entre gregos e asiáticos (em
Susa, em 324), envolvendo quase uma centena de hetairoi e philoi
de Alexandre, e mulheres nativas de elevado estatuto. As cerimónias
foram patrocinadas diretamente pelo soberano35. Com esta iniciativa,
Alexandre pretendia certamente reforçar a justeza da sua reivindica-
ção do trono dos Aqueménidas, mas afigura-se provável que visasse
também criar uma nova geração de governantes, originada pela fusão
de dois blocos étnicos tradicionalmente inimigos. O mesmo objetivo
estava por detrás da fundação de novas cidades, que não só permi-

32 Sobre o significado político e estratégico da adoção de Alexandre por Ada, vide


Bosworth 1988: 49, 229-230; Carney 2005; Sears 2014.
33 Heródoto (1.134) explicava nesses termos a lógica que assistia ao ritual da
proskynesis.
34 Cf. Plutarco, Alex. 41.1; 74.1-3.
35 Foi então que casou com a Estatira, filha de Dario III. De acordo com Plutarco
(Alex. 70.3), a cerimónia contou com a presença de nove mil convidados, todos eles
homenageados com presentes.

315
tiria a fixação de populações nómadas e potencialmente perigosas,
como também facilitaria a coexistência pacífica entre guarnições e a
população local, transformando estes centros urbanos em focos de
irradiação cultural e vitalidade económica da Grécia 36.
Um raciocínio semelhante justifica a decisão de industriar jovens
nativos asiáticos na língua e nas táticas militares dos vencedores
(Alex. 47.5-6):

οὕτω δὴ καὶ τὴν δίαιταν ἔτι μᾶλλον ὡμοίου τε τοῖς ἐπιχωρίοις


ἑαυτόν, ἐκείνους τε προσῆγε τοῖς Μακεδονικοῖς ἔθεσιν, ἀνακράσει
καὶ κοινωνίᾳ μᾶλλον δι’ εὐνοίας καταστήσεσθαι τὰ πράγματα
νομίζων ἢ βίᾳ, μακρὰν ἀπαίροντος αὐτοῦ. διὸ καὶ τρισμυρίους
παῖδας ἐπιλεξάμενος ἐκέλευσε γράμματά τε μανθάνειν Ἑλληνικὰ καὶ
Μακεδονικοῖς ὅπλοις ἐντρέφεσθαι, πολλοὺς ἐπιστάτας καταστήσας.

Chegado a este ponto, ajustou mais ainda o seu estilo de vida


ao padrão local, ao mesmo tempo que procurava adaptar os usos
orientais aos dos Macedónios, convencido de que, na sua ausência,
era mais pela fusão e pela confluência do que pela força que conse-
guiria uma estabilidade política baseada na harmonia. Foi também
por essa razão que selecionou 30.000 rapazes e deu instruções
para que aprendessem o grego e a manejar as armas macedónias,
nomeando uma série de instrutores para esse projeto.

Com esta iniciativa, à semelhança do bom legislador helénico 37,


Alexandre estava de facto a estabelecer um sistema centralizado de
educação, destinado a formar na cultura grega e nos conhecimentos
militares macedónios os jovens asiáticos mais promissores. O nome
dado a estes trinta mil paides era bastante significativo: de facto, ao
chamar-lhes Epigonoi (‘os descendentes’ ou ‘a nova geração’), estava a

36 Hammond 1989: 264-267. De acordo com Plutarco (De Al. Magn. Fort. 328E),
Alexandre teria fundado setenta novas cidades.
37 Vide pp. 288-289 acima.

316
levar à prática o projeto de os tornar no pilar da nova realidade polí-
tica e militar, a ponto de poderem substituir as falanges macedónias,
se por algum motivo fosse necessário 38. Este ponto, precisamente,
constituía uma nota de preocupação para os veteranos de Alexandre.
Os primeiros sinais de descontentamento foram sentidos em vários
quadrantes. Um exemplo notável é a morte prematura do seu amigo
Clito39, por ter manifestado em público aqueles medos que eram par-
tilhados por muitos outros companheiros: o abandono das tradições
macedónias; o crescente autoritarismo que tinha afastado Alexandre
do círculo mais próximo dos seus velhos amigos; a pretensão de ser
o filho do deus Ámon. Razões idênticas levaram alguns hetairoi e
Calístenes, em particular, a oporem-se à introdução da proskynesis40.
A situação atingiu proporções de alarme quando, em fevereiro
de 324, numa altura em que o exército ainda estava estacionado em
Susa, os Epigonoi foram apresentados a Alexandre, com a galhardia
e o garbo próprios de quem tinha acabado de terminar quatro anos
de treino. E assim, quando no Verão desse mesmo ano, em Ópis,
Alexandre anunciou numa reunião a decisão de enviar de volta à
Macedónia aqueles veteranos que, depois de generosamente recom-
pensados, já não estavam aptos para campanhas tão duras, em vez
da alegria esperada quase teve de enfrentar um motim (Alex. 80.1-9).
O fosso de entendimento entre as expectativas de Alexandre e as

38 Em contraste e por zombaria, os Macedónios chamavam a esses jovens os


“dançarinos pírricos” (Alex. 71.3: πυρριχιστάς).
39 Plutarco, Alex. 50-51; Arriano, 4.8.1-9.4; Cúrcio Rufo, 8.1.19-2.10. Esta morte
abalaria profundamente Alexandre, porque ocorreu numa altura em que o governan-
te tinha perdido o controlo de si próprio, num ataque de raiva impulsionado pelos
combates e pelo excesso de bebida. Vide Chrysanthou 2019, para uma análise sobre
a forma como a narrativa de Plutarco faculta um repertório de reflexões que aprofun-
dam a compreensão do caráter de Alexandre e das ações moralmente desconcertantes
por ele tomadas.
40 Plutarco, Alex. 54.2-55.4; Cúrcio Rufo, 8.5.5-6.1; Justino, 12.7.1-3. Stadter 2015: 78
argumenta que a hostilidade e violência de Alexandre contra Filotas, Clito, Calístenes
e outras pessoas que lhe eram próximas, bem como a sua defesa das práticas bárba-
ras, revelam traços bárbaros do seu caráter, apesar dos ensinamentos que tivera de
Aristóteles. E isso leva-o a formular esta questão programática que seria colocada por
Plutarco nesta biografia em particular: “could Alexander conquer himself as well as
the external enemy, that is, could he conquer the barbarian within himself?”

317
dos Macedónios mostra que ele já não estava tão próximo dos seus
soldados como antes e que eles alimentavam ressentimentos antigos
em relação à sua progressiva orientalização. O rei acabou por resolver
a tensão e cerca de dez mil veteranos embarcariam no caminho de
regresso a casa. Antes disso, porém, Alexandre não desperdiçou a
oportunidade de celebrar uma grande festa de reconciliação, à qual
assistiram muitos convidados, incluindo Macedónios, Gregos, Persas,
além de representantes de outras etnias asiáticas.

Considerações finais

É provável que as decisões tomadas por Alexandre ao longo deste


trajeto temporal e espacial fossem resultado da constatação de que
a sua autoridade estava a ser minada, pelo que não é impensável
supor que a política de abordagem étnica tenha sido concebida, em
primeiro lugar, como forma de assegurar a estabilidade do seu go-
verno, desta maneira reduzindo um potencial risco de revolta. Mesmo
assim, a política asiática de Alexandre conduziu efetivamente a uma
aproximação prática de gregos e asiáticos na partilha do governo e
da administração de um vasto território. E desta forma, é inegável
que, tendo começado com uma experiência pan-helénica que o levou,
como hegemon da Hélade, mais longe do que qualquer outro grego
antes chegara, Alexandre – ou talvez o retórico Alexandre concebido
por Plutarco – evoluiu para uma inovadora expressão política de fusão
étnica e cultural, em que a homonoia e a koinonia eram o elo mais
forte. Intencionalmente ou não, estes princípios, que surgiram como
resultado de mudanças produzidas ao longo do tempo e potenciadas
pela sua disseminação num amplo espaço, acabariam por se tornar
a base do cosmopolitismo do período helenístico.

318
Bibliografia

Badian, E. (1958), “Alexander the Great and the unity of mankind”, Historia 7: 425-444.
Baldry, H. C. (1959), “Zeno’s ideal State”, JHS 79: 3-15.
Bosworth, A.B. (1988), Conquest and Empire. The Reign of Alexander the Great.
Cambridge: University Press.
Carney, E. (2005), “Women and Dunasteia in Caria”, AJPh 126.1: 65-91.
Chrysanthou, C.S. (2019), “Reading history ethically: Plutarch on Alexander’s murder
of Cleitus (Alex. 50-52.2)”, Ploutarchos, n.s., 16: 45-56.
Ferreira, J. R. (1992), Hélade e Helenos. I – Génese e evolução de um conceito. Coimbra:
Instituto Nacional de Investigação Científica; CECH.
Flower, M. (2000), “Alexander the Great and Panhellenism”, in A.B. Bosworth & E.J.
Baynham (eds.), Alexander the Great in Fact and Fiction. Oxford: University Press,
96-135.
Gabba, E. (1984), “The collegia of Numa: problems of method and political ideas”, JHR
74: 81-86.
Gómez Espelosín, F. J. (2019), “Aristóteles, Alejandro y la politeía griega”, Gerión 37/2:
343-362
Guthrie, W.K.C. (1981), A History of Greek Philosophy. Vol. VI. Cambridge: University Press.
Hammond, N.G.L. (1989), Alexander the Great. King, Commander and Statesman.
Bristol: Classical Press.
Hammond, N.G.L. (1997), The Genius of Alexander the Great. London: Bloomsbury
Academic.
Heckel. W. & Yardley, J.C. (2004), Alexander the Great. Historical Sources in Translation.
Malden: Blackwell.
Koulakiotis, E. (2008), “Greek lawgivers in Plutarch: a comparison between the
biographical Lycurgus and the rhetorical Alexander”, in A. Nikolaidis (ed.), The
Unity of Plutarch’s Work: ‘Moralia’ Themes in the ‘Lives’. Features of the ‘Lives’ in
the ‘Moralia’. Berlin: Walter de Gruyter, 237-253.
Laks, A. (1990), “Legislation and demiurgy: on the relationship between Plato’s Republic
and Laws”, CAnt. 9: 208-229.
Laks, A. (2000), “The Laws”, in C. Rowe & M. Schofield (eds.), The Cambridge History
of Greek and Roman Political Thought. Cambridge: University Press, 258-292.
Lane, M. (2010), “Persuasion et force dans la politique platonicienne” (tradução francesa
de Dimitri El Murr)”, in A. Brancacci et alii (eds.), Aglaïa: autour de Platon. Mélanges
offerts à Monique Dixsaut. Paris: Vrin, 133-166.
Lane, M. (2012), “Founding as legislating: the figure of the lawgiver in Plato’s Republic”,
in L. Brisson & N. Notomi (eds.), Dialogues on Plato’s Politeia. Sankt Augustin:
Academia Verlag, 104-114.
Leão, D. (2012), A Globalização no Mundo Antigo: do ‘polites’ ao ‘kosmopolites’. Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra.
Leão, D. (2019), “Anacharsis: la sagesse atypique de l’étranger avisé”, in D. Leão & O.
Guerrier (eds.), Figures de sages, figures de philosophes dans l’œuvre de Plutarque.
Coimbra: Coimbra University Press, 57-70.
Liparotti, R. M. (2014), “Dioniso e ira unidos num crime: a subversão da arete de
Alexandre Magno”, in F. de Oliveira, M. de Fátima Silva & T.V.R. Barbosa (eds.),

319
Violência e transgressão: uma trajetória da Humanidade. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 171-188.
Liparotti, R. (2017a), Plutarco. A Fortuna ou a Virtude de Alexandre Magno. Tradução
do Grego, introdução e comentário. Coimbra e S. Paulo: Imprensa da Universidade
de Coimbra e Annablume.
Liparotti, R. (2017b), “Alexandre rei-filósofo: da Filosofia à prática”, Ploutarchos, n.s.,
14: 47-68.
Mossman, J. (2006), “Travel writing, history, biography”, in B. McGing & J. Mossman
(eds.), The Limits of Ancient Biography. Classical Press of Wales: Swansea, 281-303.
Morrow, G. (1953), “The demiurge in politics. The Timaeus and the Laws”, Proceedings
and Addresses of the American Philosophical Association, 27: 5-23.
Morrow, G. (1960), Plato’s Cretan City. A Historical Interpretation of the ‘Laws’. Princeton:
University Press.
Neschke-Hentschke, A. (1995), Platonisme politique et théorie du droit naturel. Louvain:
Peeters.
Nikolaidis, A. G. (1986), “Ἑλληνικός – Βαρβαρικός: Plutarch on Greek and barbarian
characteristics”, WS 99: 229-244.
Pelling, C. (2011), “Plutarch’s method of work in the Roman Lives”, in Plutarch and
History. Swansea: Classical Press of Wales, 1-44. [publicação original de 1979]
Pelling, C. (2016), “Plutarch the multiculturalist: is West always best?”, Ploutarchos 13:
33-51.
Sears, M.A. (2014), “Alexander and Ada reconsidered”, CPh 109: 211-21.
Schmidt, T. (2004), “Barbarians in Plutarch’s political thought”, in L de Blois, J. Bons
Ton Kessels & Dirk M. Schenkeveld (eds.), The Statesman in Plutarch’s works.
Leiden-Boston: Brill, 227-36.
Schofield, M. (2000), “Epicurean and Stoic political thought”, in C. Rowe & M. Schofield
(eds.), The Cambridge History of Greek and Roman Political Thought. Cambridge:
University Press, 435-456.
Silva, M. F. & Brandão, J. L. (2019), Plutarco. Vidas Paralelas: Alexandre e César.
Tradução do Grego, introdução e comentário. Coimbra: Imprensa da Universidade
de Coimbra.
Sorabji, R. (2006), Self: Ancient and Modern Insights about Individuality, Life, and
Death. Oxford: Clarendon Press.
Stadter, P. (2015), “Barbarian comparisons”, Ploutarchos, n.s., 12: 65-82.
Tarn, W. (1933), “Alexander the Great and the unity of mankind”, PBA 19: 123-166.
Whitmarsh, T. (2002), “Alexander’s Hellenism and Plutarch’s textualism”, CQ 52.1: 174-
-192.

320
P l u ta r c o e H e r ó d o t o :
e n t r e b i o g r a f i a e h i s tó r i a *1

P l u ta r c h a n d H e r o d o t u s :
F r o m B i o g r a p h y to H i s to ry

Joaquim Pinheiro
Univ. Madeira, CECH
ORCID: 0000-0002-5425-9865
pinus@uma.pt

Resumo: Nas Vidas Paralelas e nos Tratados Morais, Plutarco usa muitas
vezes Heródoto como fonte. Apesar disso, critica, no tratado De ma-
lignitate Herodoti, a metodologia e as opções de Heródoto, fazendo
uma leitura que, em muitos casos, é sobretudo ética e cultural. A nossa
reflexão visa analisar a proximidade entre a biografia e a história
por meio da avaliação que Plutarco fez da historiografia herodotiana.

Palavras-chave: Plutarco, Heródoto, biografia, historiografia, ethos

Abstract: Plutarch’s Vitae and Moralia often uses Herodotus as a histo-


rical source. Despite this, he criticizes in the treatise De malignitate

*1 Este estudo foi desenvolvido no âmbito do Projeto “Roma nosso lar: tradição (auto)
biográfica e consolidação da(s) identidade(s)” (PTDC/LLT-OUT/28431/2017), financiado
pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal). Acrescente-se que, o autor
deste texto não adota o chamado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990). A
ortografia seguida é da responsabilidade da Imprensa da Universidade de Coimbra,
que, enquanto instituição pública, o exige por imposição legal a que está obrigada.
Na preparação deste trabalho, foi muito útil a consulta da recolha bibliográfica
que está disponível em: https://www.arts.kuleuven.be/oudegeschiedenis/documenten/
pdf/bibliography.pdf.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_15
Herodoti Herodotus’ methodology and options, making a reading
that, in many cases, is above all ethical and cultural. Our reflection
aims to analyse the proximity between biography and history through
Plutarch’s assessment of Herodotean historiography.

Keywords: Plutarch, Herodotus, biography, historiography, ethos

Na Antiguidade Clássica, a historiografia e a biografia não apre-


sentavam um modelo único. Tucídides constrói um modelo diferente
de Heródoto, Xenofonte desenvolve características que o distinguem,
tal como fará Plutarco em relação à biografia dos períodos clássico e
helenístico. Acredita-se que durante o período helenístico a distinção
entre os dois géneros se tenha acentuado, mas, numa fase prévia, a
proximidade era evidente. De tal maneira que H. Homeyer sustenta que
as primeiras manifestações biográficas são as narrações sobre Ciro e
Cambises em Heródoto, uma constatação que o leva a considerar, com
algum exagero, o “pai da biografia” 2. Neste breve estudo, interessa-
-nos, sobretudo, explorar algumas das características partilhadas pela
narrativa histórica e biográfica, bem como pela própria metodologia
de investigação, dando maior relevo à escrita biográfica 3. Para essa
abordagem, recorremos ao tratado A malícia de Heródoto (De Herodoti
malignitate), de Plutarco, que está estruturado em duas partes: uma
primeira que apresenta as características próprias e as razões da malí-
cia (kakoetheia) de um historiador (854E-856E) e uma segunda parte,
mais extensa, que identifica e examina descrições da obra de Heródoto
que merecem ser criticadas por algum tipo de falácia ou inexatidão
(856E-874C).

2 Homeyer 1962: 75-85.


3 Recuperamos algumas reflexões feitas em Pinheiro 2008 e 2013.

322
No tratado A malícia de Heródoto 4, Plutarco lança duras críticas
à historiografia de Heródoto, acusado de ser um philobarbaros 5 ,
e enuncia alguns dos critérios que devem ser usados por um bom
historiador e que ele próprio terá supostamente seguido. No entan-
to, como tem sido reconhecido em vários estudos 6, nem o próprio
Plutarco conseguiu evitar alguns dos erros que aponta a Heródoto 7.
Na biografia de Címon 8, Plutarco mostra a sua intenção de respei-
tar a verdade e de não esconder os defeitos das suas personagens,
mesmo daquelas que merecem os mais nobres elogios, até porque
a perfeição humana é algo em que parece não acreditar. Ainda em
relação ao elogio, considera que aquele que não precisa do elogio
dos outros está mais preparado para a arete do que quem se auto-
elogia 9, evidenciando a forma cuidadosa com que trata a questão
do elogio ou do protagonismo. É por isso que advoga uma correta
análise das personagens e dos factos, para não se incorrer na censura
nem no elogio. Por conseguinte, percebemos quais são as diretrizes
que a historiografia deve seguir a partir das razões que Plutarco
apresenta para acusar Heródoto de malícia, a saber: 1) recurso, de
forma intencional, a expressões caluniosas, em vez de optar por
vocábulos mais razoáveis ou moderados; 2) exposição aprofunda-

4 Este e os tratados Sobre Tucídides de Dionísio de Halicarnasso e Como se deve


escrever história de Luciano são os três únicos tratados completos sobre a arte de
escrever história que nos chegaram da Antiguidade. Sobre estes tratados e a exis-
tência de outros atribuídos a Teofrasto e a Praxífanes, vide Hershbell 1997: 225,
n. 1; Nikolaidis 1997: 329 acredita que a preservação dos tratados Como distinguimos
a história do que é verdadeiro e Como distinguimos a verdade, 124 e 225 no Catálogo
de Lâmprias, respetivamente, nos ajudariam a perceber os critérios históricos de
Plutarco e, por consequência, a forma como teria selecionado as suas fontes.
5 857A; em De Alex. fort aut uirt. 344B, o mesmo vocábulo é aplicado à tuche,
sendo sintomático que Plutarco não volte a usar mais este adjetivo na sua obra. Com
este adjetivo, Plutarco aponta uma das características das Histórias: o olhar sobre
o Outro; a propósito deste tema, vide Silva 2000 e 2001, Soares 2005 e Figueira &
Soares 2020.
6 Russel 2001: 61 sumaria as críticas que Plutarco lança ao malicioso historiador;
vide ainda o estudo C. Pelling 2002a.
7 Num estudo recente, Chrysanthou 2020: 49-79 explora este aspeto, em parti-
cular nas biografias.
8 Cf. Cim. 2.4-5.
9 Cf. Comp.Arist.-Cat.Ma. 5.3.

323
da de más ações de indivíduos, mesmo quando não são relevantes
para a indagação histórica, ao contrário daquilo que Tucídides fez,
segundo Plutarco 10, com Cléon ou com Hipérbolo, apesar dos de-
feitos e erros que cometeram 11; 3) omissão de atos belos e bons, o
que pode prejudicar a narrativa histórica (“elogiar sem vontade não
é mais conveniente do que deleitar-se com a censura” 12), uma vez
que isso é feito em detrimento de atos dignos de serem narrados; 4)
aceitação de uma versão desfavorável quando há duas ou mais sobre
uma ação, considerando Plutarco que, ao contrário dos sofistas, um
historiador deve seguir a verdade e, em caso de dúvida, não aproveitar
a versão mais desfavorável, um procedimento que, de forma correta,
Éforo e Tucídides seguiram. Além destas críticas, Plutarco denuncia
os autores que recorrem ao vitupério, com malícia, por meio de uma
estratégia retórica que se revela capciosa: misturar censuras vãs e
muitos louvores como meio de credibilizar os vitupérios 13.
Além destas considerações, Plutarco defende, de novo, que a
tuche não deve servir para explicar os sucessos, pois não se pode
tirar valor à arete, um tema que também desenvolve nos tratados
A fortuna ou a virtude de Alexandre Magno e A fortuna dos Romanos.
O mais importante é, no caso de haver versões duvidosas, escolher
a que oferece melhores garantias e a que se aproxima mais da ver-
dade. Por isso, Tucídides e Xenofonte, ao contrário de Heródoto, são
para Plutarco modelos de bons historiadores. Consegue-se perceber,
com estes critérios, que, quando há opiniões divergentes, Plutarco

10 Neste ponto, Plutarco considera o historiador Filisto um bom exemplo; quanto


a Tucídides, cita-o várias vezes, com especial incidência nas biografias de Péricles e
Nícias, qualificando-o de “homem sábio” (andra sophrona, Per. 11.1); sobre a presença
de Tucídides na obra de Plutarco, vide Pelling 2002b.
11 Sobre este assunto, Plutarco escreve: “Na verdade, as digressões e as distorções
da história sucedem mais em mitos e em relatos antigos, e ainda em elogios. Porém,
aquele que junta um parêntesis à narrativa para blasfemar e censurar parece cair
numa imprecação da tragédia” (855D).
12 855E.
13 Um dos historiadores que recorreu a este método, segundo Plutarco, foi
Aristóxeno de Tarento, um discípulo de Aristóteles.

324
segue a da maioria 14, procurando inquirir sobre a probabilidade e
a plausibilidade da fonte 15. Contudo, por vezes torna-se difícil fa-
zer coexistir a acribia histórica e a valorização moral, uma vez que
Plutarco nem sempre consegue, na avaliação “científica” das fontes,
pôr de lado o seu julgamento moral. Do mesmo modo, é necessário
não esquecer que, tal como na seleção das biografias existe uma
apreciação pessoal, também as fontes não são imunes à subjetividade
de Plutarco, como acontece com qualquer outro autor.
Se por algum motivo a transmissão textual não nos permitisse o
acesso aos nove livros das Histórias de Heródoto, certamente que o
tratado A malícia de Heródoto seria uma fonte relevante para conhe-
cermos o historiador de Halicarnasso, embora ficássemos com uma
avaliação um pouco tendenciosa por parte de Plutarco. O pormenor e
a estrutura da refutação, respeitando a ordem dos livros de Heródoto,
revela, desde logo, que conhecia muito bem a narrativa historiográ-
fica. Embora atribua a Tucídides maior credibilidade, Heródoto é
mais vezes citado 16. Além disso, como pretende apontar exemplos
da malícia de Heródoto, seleciona algumas descrições ou episódios
que servem para reforçar a sua argumentação. Este método de ajus-
tamento ou de adaptação do material narrativo à argumentação é
recorrente em Plutarco e revela que aquilo que avalia como um de-
feito em Heródoto é por ele próprio também usado, em particular,
nas biografias. Saliente-se que Plutarco, sem querer rivalizar com
o historiador de Halicarnasso, se insere na tradição exegética das
Histórias ao fazer um escrutínio da narrativa e da sua metodologia.
No final da época clássica, com Ctésias de Cnido e Aristóteles já

14 Dem. 23.4.
15 Sobre alguns dos critérios usados por Plutarco nas Vitae, vide Nikolaidis 1997:
329-341, que valoriza o trabalho de Plutarco, não se coibindo de apontar diversos
aspetos que podem ter deformado a exatidão histórica, sem que isso coloque em
causa o valor do seu trabalho.
16 Heródoto é citado cerca de 260 vezes; Tucídides 130 vezes, Xenofonte 120
vezes; reconhecemos que o número de citações tem de ser interpretado com muita
cautela, se considerarmos que Dionísio de Halicarnasso, por exemplo, não é muitas
vezes referido, mas supomos que terá sido muito útil na hora de escrever o tratado
Questões Romanas; da Época Helenística, o historiador mais citado é Políbio (50 vezes).

325
havia começado a crítica da obra de Heródoto, continuando nos
séculos seguintes, entre gregos e romanos, como sucede na obra
Sobre as mentiras de Heródoto, de Élio Arpocrácio 17 . Numa outra
perspetiva, mas que também nos ajuda a compreender as raízes da
historiografia e a sua receção, houve, em especial no século I a.C.,
uma certa tendência para a comparatio entre Heródoto e Tucídides18.
Acredita-se que essas obras possam ter exercido alguma influência
em Plutarco, mas parece-nos que o tratado A malícia de Heródoto
não surge como resposta a essa tradição ou com a clara intenção de
se posicionar nesse debate comparativo. Por se querer recuperar o
passado glorioso da Grécia, a crítica à obra de Heródoto parece ter
sido um tema recorrente da Segunda Sofística, se tivermos em conta
alguns textos de Élio Aristides ou o opúsculo Como se deve escrever
história de Luciano.
Apesar das críticas que tece, Plutarco reconhece, certamente, a
validade do registo histórico de Heródoto, até pela sua proximidade
em relação aos acontecimentos e às próprias fontes. Por isso mes-
mo, no processo de elaboração das biografias de Temístocles ou
Aristides, por exemplo, Plutarco socorreu-se de Heródoto como uma
das principais fontes. Na verdade, resumir a historiografia a mera
fonte para a escrita das vidas não nos parece o mais correto. Ainda
que, de forma um pouco superficial, se possa dizer que a biografia
se concentra no retrato ou no agente da ação e a história na ação
propriamente dita, essa distinção não é, de todo, rigorosa. A inter-
secção entre história e biografia é, sem dúvida, evidente, sobretudo
ao nível da metodologia de investigação. O que se pesquisa sobre
um facto histórico pode, de facto, ser relevante para a construção
biográfica e, simultaneamente, para a narrativa histórica. Acresce
que a biografia constitui, como sucede com as Vidas Paralelas, um
valioso documento histórico.

17 Para mais dados, vide Momigliano 1984: 141.


18Dionísio de Halicarnasso, no Sobre Tucídides, mostra-se a favor de Heródoto,
mas Diodoro Sículo prefere Tucídides.

326
Além de Heródoto e Plutarco inscreverem as suas obras em géne-
ros literários distintos, quando se apontam diferenças entre os dois é
preciso ter em conta que o historiador de Halicarnasso escreveu num
momento de afirmação da hegemonia ateniense, enquanto Plutarco
convive com o domínio romano. Retomando o tema da possível moti-
vação de Plutarco ao escrever este tratado, isso parece estar enunciado
no seu incipit: defender a memória dos antepassados das difamações
de Heródoto 19. Esta forma de recuperar o passado glorioso dos gre-
gos 20 é também um recurso de Plutarco para manter a identidade
helénica num contexto cultural complexo 21 , uma vez que se está
sob domínio romano. Um sinal muito significativo disso é a crítica
que Plutarco 22 faz à forma caluniosa como Heródoto desvaloriza ou
desvirtua os princípios do Oráculo de Delfos, colocando em causa
a sua credibilidade. Ora, no tempo de Plutarco, a religiosidade de
Delfos, em declínio, concorria com novos cultos e teria dificuldade
em sobreviver, querendo, no contexto cultural já referido, retomar
o seu prestígio, como se deduz do tratado O desaparecimento dos
oráculos do Queronense.
Resulta evidente que a distinção entre histor ia e bios 23 ,
proposta por Plutarco no prólogo da biogr af ia de Alexan-

19 Cf. 854F.
20 O volume editado por Georgiadou & Oikonomopoulou 2017 reúne vários
estudos que procuram interpretar a presença desse passado na obra de Plutarco.
21 Whitmarsh 2013: 57-85 usa mesmo o conceito de ‘resistência cultural’.
22 Cf. 860D.
23 Apesar de aqui distinguir historia de bios, refira-se que nas cinquenta e duas
ocorrências da palavra historia nas Vitae – distribuídas por vinte e sete biografias –
nem sempre o sentido semântico é igual: em Sol. 2.1, Per. 2.4 e Cat. Mi. 12.2 historia
surge com o sentido de “conhecimento” que se adquire por meio da experiência e
do contacto direto. Pode também significar “narração” ou “compilação de narrações”,
em especial quando Plutarco se refere às fontes (cf. Thes. 26.3, Rom. 2.8, Aem. 19.7,
Pomp. 37.3, Cat. Ma. 12.6, Dem. 30.1, Ant. 82.4, Them. 32.4). Por sua vez, em Dem.
2.1, Cat. Mi. 12.1; Thes. 1.2, Nic. 1.5, Cim. 2.5, Fab. 1.1 e Aem. 1.1, chama historia
ao texto que pretende escrever, mas também aí parece estar mais próximo do sen-
tido herodotiano de “pesquisa” do que de “obra histórica”. Sobre este assunto, são
de grande utilidade os estudos de Valgiglio 1987: 50-70, Desideri 1992: 4537-4545,
Gómez & Mestre 1997: 209-228 e Duff 2002r: 18-22. Sobre a conceção de história
em Plutarco, além das semelhanças e diferenças entre biografia e historiografia na
Antiguidade, vide Press 1982: esp. 71-74. Neste estudo, o autor afirma que historia

327
dre24, não tem os limites bem definidos25. Não se pode simplesmen-
te dizer que as Vitae são um exercício biográfico, mas é imperioso
aduzir que Plutarco desenvolve um labor profundo de indagação
histórica, de forma a compreender a phusis e o ethos do ser humano,
entrando muitas vezes no campo da filosofia. O modo como histó-
ria, biografia/ethos e filosofia aparecem associados na construção
da paideia faz-nos lembrar as palavras de Dionísio de Halicarnasso:
“Também Platão disse isto: a poesia, por embelezar inúmeras ações
dos antigos, educa os que nasceram mais tarde; então, a educação
é a procura dos caracteres; Tucídides, ao discorrer sobre a história,
parece ter dito que a história é filosofia a partir dos exemplos” 26.
Quanto a Plutarco, julgamos poder afirmar que ele prefere introduzir
nas biografias elementos dramáticos, problematizando a relação que
a arete e a tuche têm com os acontecimentos. Põe a descoberto, em
geral, as emoções e os desejos (pathe), em vez de se deter na prag-
matike historia como podemos confirmar na biografia de Alexandre.
Transparecem, por isso, muitos traços psicológicos na descrição das
biografias, traços que são resultado da aventura de cada indivíduo
e que dão uma tonalidade trágica à narrativa.
A declaração de que não pretende escrever histórias, mas vidas,
segundo o estilo de Políbio 27, serve de aviso para o leitor da altura

podia ter três sentidos: pesquisa, género literário e narrativa ou história (p. 23-60).
Segundo Hershbell 1997: 230 e 233: “no doubt that Plutarch understood history as
research or inquiry after the facts. He could also think of «history» as «story», what
is told or narrated (...) it is tempting to conclude that for Plutarch the difference
between history and biography was that between a study of past events, and a study
of human character. History has no concern with ethical judgements; biography does”.
24 Pelo seu valor, transcrevemos as palavras de Russel 2001: 102 sobre o sentido
de bios neste prólogo: “bios means roughly, ‘way of life’, whether in an individual
or in a society (...) It also has some connotations of ordinary life, and is associated
with the realm of comedy rather than with the grand topics of epic or, for the matter,
history (...) Thus to describe the bios of a great man was to say ‘what sort of man he
was’ (poios tis en) and regard him, in a sense, as one of ourselves”.
25 Pelling 2002c e 2002d, ao analisar as fontes e a forma como elas terão condi-
cionado a composição de Plutarco (e.g., técnicas de simplificação e de compressão
cronológica), conclui que o género biográfico tem uma natureza flexível e versátil.
26 Ars Rhet. 11.2.
27 10.21.

328
e para o atual leitor, que devem ter em conta a intencionalidade de
Plutarco, ainda que possam lamentar o facto de ele nem sempre ter
sido fiel no uso das fontes ou não ter sido mais preciso e exaustivo
na identificação de personagens ou no relato de acontecimentos que
incorporam os bioi. Não deve o leitor esperar um relato completo dos
grandes feitos, pois a virtude (arete) e o vício (kakia) podem ser me-
lhor observados nas pequenas demonstrações do carácter humano28.
Convicto disso, será a partir de pequenos episódios (pragma brachu),
que são normais na vida quotidiana, e muitas vezes anedóticos, que
Plutarco delineará o ethos, embora saibamos que a caracterização
global do indivíduo se faz com base em ações grandiosas, dignas
de figurar na história, tal como os agentes que as protagonizam 29.
Se tivermos em conta que os géneros literários, como aludimos
antes, não teriam uma divisão rígida e que haveria uma espécie de
contaminatio entre eles30 – assim acontece com o encómio, a novela
e a biografia romanceada – percebe-se a necessidade de classificar o
género usado por Plutarco como biografia política31, biografia ético-
-moral ou simplesmente biopsicografia 32 , especificando-se, desse
modo, a natureza e o conteúdo das suas biografias, que transformam

28 Em Nic. 1.1-5, lembra, de igual modo, aos leitores que não tem a intenção de
rivalizar com Tucídides ou Timeu, mas de procurar pormenores que exemplifiquem
o carácter e o comportamento do biografado, deixando de referir aquilo que não
contribui para essa análise. As palavras ou discursos são, por vezes, mais reveladores
do carácter de um indivíduo do que os feitos (cf. De Alex. fort. aut virt. 330E, Phoc.
5 e Comp. Dem. -Cic. 1.4.) e do que a própria fisionomia (cf. Cat. Ma. 7.3; De tuenda
san. 137E).
29 Cf. Demetr. 1.5-8, Pomp. 8.7 e Nic. 1.5.
30 Cf. Gallo 2000: 9-17; considerando o que Rossi 1971 propõe para as leis (escri-
tas ou não) dos géneros literários na Antiguidade (na época arcaica: leis não escritas,
mas os autores tinham consciência delas e respeitavam-nas; na época clássica: leis são
escritas e respeitadas; na época helenística: as leis são escritas mas não respeitadas),
I. Gallo, seguindo a mesma formulação, afirma que na época de Plutarco “si potrebbe
parlare di leggi non scritte, ma rispettate, come in epoca arcaica”. Saïd 2002 reflete
sobre a proximidade entre história e tragédia.
31 Expressão mais usada para designar a biografia plutarquiana, embora, na nossa
opinião, não se possa entender com essa expressão que Plutarco seguia uma estra-
tégia política, mas apenas que a politeia e o seu exercício servem de base para a
caracterização do ethos.
32 Inspiramo-nos na designação “biopsicologia” usada por Becchi 2001.

329
a indagação histórica num meio para o objetivo central: aprofundar
o ethos. Essas características também se podem aplicar, de alguma
maneira, à narrativa histórica. A designação de biografia histórica
aplica-se às biografias, mas, como P. Stadter demonstrou, encontra-
-se a mesma metodologia nos perfis do tratado As virtudes das
mulheres33. Por sua vez, a opinião de B. Scardigli sobre o binómio
historia-bios e a sua presença nas biografias é bastante elucidativa:
“Plutarch occupies an intermediate position and represents a special
case, both because he discusses the difference between history and
biography and because he knows and uses historical writings.”34
Esta opinião tem claramente em conta a influência peripatética na
elaboração dos bioi e não neglicencia a tarefa de pesquisa levada a
cabo por Plutarco.
Como referimos, história e biografia têm em comum a procura de
fontes para sustentar ou refutar uma tese ou ideia. Parece óbvio que
Plutarco tinha à sua disposição mais elementos sobre as vidas gregas
do que sobre as romanas. Terá mesmo tido alguma dificuldade em
reunir documentação para escrever a vida dos heróis romanos 35, pois
não saberia suficiente latim36 nem o acesso aos textos era fácil.37 Aliás,
essa pode ser uma razão para, como Plutarco explica no prólogo
do par Teseu-Rómulo, escolher o herói grego em função do romano,
ou seja, só depois de reunir os elementos necessários para compor

33 Stadter 1965: 7, 9-12, 125-140.


34 Scardigli 1995: 7.
35 Pelling 2002c: 1 considera que a pesquisa prévia sobre a história de Roma
não terá sido muito profunda; Mazza 1995: passim demonstra que Plutarco omite
ou simplifica vários elementos característicos da época tardo-republicana (e.g., o
contraste entre ao proletariado urbano e o rural, a heterogeneidade da população de
Roma, secundarização dos equites ou dos socii Italici); cf. Pelling 2002e define esta
simplificação histórica com a expressão “bouledemos conflict”.
36 Russel 2001: 54, n. 27, por exemplo, faz referência aos erros na tradução das
fontes latinas; em Quaest. Rom. 280A-B e Quaest. conv. 726D-727A, por exemplo,
manifesta algum desconhecimento das etimologias ou simplesmente desvaloriza esse
tipo de análise; para exemplos de palavras gregas na língua latina vide Quaest. Rom.
274C, Num. 7.10, Marc. 8.7, Rom. 15.4; mostra-se relutante em aceitar que a língua
latina descende da grega (cf. Marc. 22.7).
37 Em Quaest. conv. 675 afirma, com orgulho, ter consultado poucas obras, por-
ventura para valorizar a sua capacidade individual e a sua erudição.

330
a biografia romana selecionaria, com alguma facilidade, uma figura
da história helénica. O prólogo da biografia de Demóstenes, onde
Plutarco afirma ter um conhecimento insuficiente da língua latina,
assume especial interesse se tivermos em conta que as Vidas Paralelas
retratam heróis romanos e que para isso terá tido necessidade de ler
muitos textos em língua latina. Como poderia aprofundar elementos
históricos ou literários ao abordar a vida dos romanos sem conhecer
a língua de Vergílio? Talvez por não a dominar em pleno se tenha
limitado a descrever o seu carácter e as suas carreiras, como acon-
tece na biografia de Cícero, fazendo o mesmo na de Demóstenes.
A produção literária destes dois oradores não é comparada nem
aprofundada, focando-se apenas em aspetos relacionados com a
conduta pública e privada de ambos.
Quanto aos métodos de trabalho de Plutarco, parece que tinha um
problema de documentação em Queroneia, pois fala-nos, com alguma
inveja, daqueles que vivem em cidades célebres, onde o ambiente
cultural e a quantidade de informação favoreciam os escritores. 38
Aproveitaria certamente as suas viagens a Atenas e a Roma para
juntar alguma documentação ou tirar notas para a sua produção
literária, pois a dimensão erudita das suas obras faz supor que terá
usado muitos textos. Por exemplo, no tratado O desaparecimento de
oráculos, pede aos seus conhecidos de Atenas que lhe enviem livros.
Na linha de vários estudos, podemos pensar que muitas das obras
dos autores mencionados não foram realmente consultadas e que se
limitou a usar fontes intermédias ou excerpta. Acreditando-se que
trabalharia em simultâneo nas diversas vidas, a documentação teria
um uso abrangente e não apenas exclusivo de uma ou outra biogra-

38 Cf. Dem. 2.1; apesar de ser o próprio Plutarco a afirmá-lo, parece-nos um pouco
estranho que um homem com reduzidos conhecimentos da língua latina se tivesse
lançado numa empresa tão grande e exigente como as Vidas Paralelas. Sabendo-se
que é pouco normal Plutarco fazer apontamentos autobiográficos, coloca-se a hipó-
tese de essa declaração ser uma forma de captatio benevolentiae. Abreviando esta
problemática, parece-nos que Plutarco, quando avisa os leitores sobre o nível dos seus
conhecimentos da língua latina, tenta justificar o facto de não se alongar na biografia
de Cícero em análises sobre a extensa obra deste. Muito provavelmente o problema
da falta de livros não existiria, pois facilmente os poderia encontrar em Atenas.

331
fia. A documentação usada serviu certamente para várias biografias,
o que explica as repetições que se podem encontrar.
Quando ele próprio não leu um autor que cita, faz referência a
uma fonte de segunda-mão. 39 Outras vezes, reproduz quase literal-
mente um autor mas sem o nomear. 40 Quando não confia na fonte
Também não se coíbe de dizer que ela lhe merece pouca credibili-
dade 41. Assume, quando não tem ao seu dispor todos os elementos,
que não pode tomar uma posição sobre uma questão, como aconte-
ce, por exemplo, no momento em que refere o que Ésquines disse
sobre a mãe de Demóstenes: “Quanto ao que o orador Ésquines
disse acerca de sua mãe – que seria filha de um tal Gílon, banido
da cidade por acusação de traição, e de uma mulher bárbara – não
podemos dizer se se trata de uma afirmação verdadeira ou, antes,
falsa e caluniadora”. 42
Plutarco faz uso de alguns dos métodos próprios de um historiador,
nomeadamente a referência a diferentes versões e a sua consequen-
te análise, manifestando, em alguns casos, ter a preocupação de
contar a verdade 43. Por isso mesmo, como fazem Arriano, Apiano
e Díon Cássio, Plutarco inclui geralmente a lista dos historiadores
do período imperial 44. Na verdade, Plutarco salienta e desenvolve
questões históricas, mas com uma perspetiva moralista, centralizada
no carácter de personagens. 45 Contudo, não é isto que o afasta do
género historiográfico, que também não deixa de ter uma preocupa-
ção moralista, dando, além disso, prioridade à utilidade (opheleia),

39 Cf. Dem. 5.7; 10.2; 30.1; Rom. 17.5; Sol. 6.7 e 11.2.
40 Cf. Dem. 16.3-5 (cf. Dem. Ep. 237).
41 Cf. Per. 28.3.
42 Dem. 4.2 (tradução de Várzeas 2010).
43 Cf. Dem. 20.1; note-se que para Plutarco a verdade pode ser difícil de encon-
trar, mas como objeto de procura filosófica ela existe (cf. De adul. 49C, De exil. 559C,
Quaest. conv. 684D e Quaest. Plat. 1000B-D).
44 Por exemplo, Moxon et al. 1986, ao estudar a presença da história na literatura
greco-romana, também inclui Plutarco na lista dos que merecem um estudo sobre a
historical writing, tal como Heródoto, Tucídides, Xenofonte.
45 E.g. Sull. 12.7-9.

332
em detrimento do deleite (terpsis) 46. Qualquer leitor nota, como já
mencionámos, que Plutarco considera relevante recuperar os feitos
do passado para a pedagogia do presente, sublinhando os padrões
sociais e individuais que se repetem ao longo do tempo. Ora, este não
é mais do que um topos da historiografia grega 47, que prova a sua
utilidade a partir da análise dessas repetições históricas, apontando
causas e consequências. Se é verdade que também a historiografia
tem, por vezes, um tom moralista, o que mostra uma similitude com
as biografias, não podemos ignorar que para Plutarco a ética mora-
lista assume-se como um leitmotiv da sua composição, capaz de o
levar a sacrificar o rigor da descrição dos factos históricos.
De facto, o carácter moralizador ou didático pode estar presente
na narrativa histórica. Apesar de a biografia se concentrar mais na
caracterização de uma figura, a história também nos lega interessantes
retratos humanos. Parece-nos que, se é verdade que o móbil princi-
pal da escrita histórica não é produzir avaliações morais ou éticas,
também não é totalmente correto afirmar-se que não as faz, até pela
tendência de moralização do passado feita pelos historiadores gre-
gos. Nesse sentido, concordamos com E. Valgiglio: “la grande storia
fa, si, anche emerger il carattere dell’uomo, ma in línea subordinata
e marginale; in linea primaria stanno le praxeis in riferimento alle
nazioni, ai popoli, agli stati, e non in relazione agli individui che
sono oggetto specifico della biografia”48. Note-se, ainda, que usar
o número de ocorrências de palavras com a raiz histor– não pode
servir de argumento para considerar um autor mais histórico ou mais
biográfico. Basta lembrar que na obra de Tucídides, que ninguém
duvida de que é um historiógrafo, os vocábulos historia e historein
nunca aparecem!

46 Quanto à opheleia e à terpsis na história, vide Políbio 15.36.3-7.


47 Cf. e.g. Tucídides 1.22.4 e 2.48.3: considera que a sua obra pode ser útil no
caso de situações similares às que relata se repetirem no futuro.
48 Valgiglio 1987: 54-5.

333
A escrita histórica e biográfica transmite aos leitores do seu
tempo e aos vindouros uma memória49 com uma evidente função
didática, um pouco à semelhança do princípio “aprender com o pas-
sado”, e, por outro, muitas vezes a correção dos hábitos é mais fácil
de se fazer a partir de maus exemplos do que com base nos bons
exemplos. Quanto a Plutarco, numa época de conflitos e de crise
de valores, a apresentação de homens maioritariamente virtuosos
não refletiria com exatidão a realidade, algo que não seria o seu
objetivo, se atendermos à ênfase que coloca na imitação dos valores
pela praxis. Embora haja a tendência de olhar para o passado como
algo glorioso e modelar, não pode o historiador ou biógrafo apagar
os exemplos menos edificantes. Seguindo este princípio, não deixa
de ser curioso que Plutarco critique Heródoto por este fazer refe-
rência a alguns factos desfavoráveis às cidades gregas, como Tebas
e a própria região da Beócia, incorrendo na manipulação histórica.
Como referimos, é necessário ter noção da evolução do género his-
toriográfico e, além disso, é complicado fazer juízos de valor sobre
os métodos de Heródoto e Plutarco, uma vez que épocas diferen-
tes exigem respostas diferentes. Confrontam-se, na verdade, duas
formas de fazer investigação e de conceção histórica. Ainda assim,
diríamos que o olhar do Outro 50, o não-grego, está tão presente na
obra de Heródoto, como a consciência do poderio romano está na de
Plutarco.
No final do tratado A malícia de Heródoto51, Plutarco afirma que
o historiador foi um autor hábil, com uma escrita agradável e relatos
graciosos, ou seja, uma narrativa sedutora pela sua capacidade lite-

49 E.g. Tácito considera que o vício deve ser recordado para a posteridade (cf.
Ann. 3.65).
50 Para Dewald 1990: 276: “it makes central to the Histories the otherness of
Herodotus, multiple informants as voices he has listened to and is transmitting in
turn to us. In Herodotus’ narrative we are apparently encountering the polyvocalism
of the world itself”.
51 Cf. 874A-C.

334
rária 52. Por isso, avisa os leitores de que devem ter cuidado com a
blasfémia ou difamação (blasphemia) e a maledicência (kakologia).
Caso contrário, tomarão por verdadeiras as informações que carecem
de provas ou fontes seguras e que não passam de meras opiniões,
apenas assombrando o passado glorioso das poleis e dos gregos,
segundo Plutarco. Estamos, assim, perante um tratado que constitui
um documento interessante sobre a receção da historiografia no
período imperial.
Tem este tratado sido interpretado, por vezes, como um exercí-
cio de retórica ou valorizado pelo seu conteúdo historiográfico53.
Estas duas perspetivas são conciliáveis e revelam a abrangência que
caracteriza, em geral, muitos dos tratados de Plutarco. Parece-nos,
contudo, que a razão do tratado se encontra definida na parte ini-
cial 54 quando se assume o objetivo de defender o passado helénico
e, por conseguinte, a verdade (aletheia). Se todo o enquadramento
é dado pela reflexão historiográfica e alicerçado numa estrutura que,
do ponto de vista retórico, é irrepreensível, também não deixa de nos
chamar a atenção a forma como Plutarco alude a aspetos identitários
e culturais do passado grego, de forma a reforçar o seu valor num
contexto político e social complexo 55. Plutarco e Heródoto tiveram,
certamente, objetivos diferentes, mas partilharam metodologias de
trabalho para a narrativa de factos, como o manuseamento das fon-
tes. Se Heródoto é muitas vezes criticado pela sua falta de acribia,
também na obra de Plutarco são identificadas várias incorreções ou
omissões. Da leitura do tratado A malícia de Heródoto percebemos
que a exegese histórica não se baseia apenas em factos, mas funda-
-se, em vários casos, numa ideologia de valorização da história grega,

52 Plutarco, no tratado Não se pode viver agradavelmente segundo Epicuro, elogia


a capacidade narrativa de Heródoto (1093b) e em 1106f-1107a considera-o mais sábio
(sophoteros) que outros.
53 Sobre as motivações de Plutarco para escrever o tratado A malícia de Heródoto,
vide Seavey 1991, Marincola 1994, Ramón Palerm 2000 e Sierra 2014.
54 Cf. 854F.
55 Vide a leitura que Silva 2010 faz sobre a questão cultural e a mensagem de
resistência de Plutarco.

335
que representa uma memória que interessa manter e consolidar em
tempos imperiais. Entendemos, por isso, que a retórica epidíctica do
tratado não será um fim, mas um recurso ao serviço dos princípios
que Plutarco pretende defender junto dos seus destinatários.

Bibliografia

Becchi, F. (2001), “Biopsicologia e giustizia verso gli animali in Teofrasto e Plutarco”,


Prometheus 27: 119-135.
Chrysanthou, C. S. (2020), “Plutarch and the “Malicious” Historian”, ICS 45.1: 49-79.
Desideri, P. (1992), “I documenti di Plutarco”, ANRW II.33.6: 4536-4567.
Dewald, C. (1990), “’I didn’t give my own genealogy’: Herodotus and the authorial
persona”, in Hérodote et les peoples no Grecs. Entretiens sur l’Antiquité Classique
35. Genève: Fondation Hardt, 267-289.
Duff, T. (2002r), Plutarch’s Lives. Exploring Virtue and Vice. Oxford: Oxford University
Press.
Figueira, T. & Soares, C. (eds.) (2020), Ethnicity and Identity in Herodotus. New York:
Routledge.
Gallo, I. (2000), “I generi Letterari nel Corpus Plutarcheo: Aspetti e Problemi”, in I.
Gallo & C. Moreschini (eds.), I generi Letterari in Plutarco (Atti del VIII Convegno
Plutarcheo, Pisa, 2-4 giugno 1999). Napoli: M. D’Auria, 9-17.
Georgiadou, A. & Oikonomopoulou, K. (eds.) (2017), Space, Time and Language in
Plutarch. Millennium-Studien 67. Berlin-Boston: De Gruyter.
Gómez, P. & Mestre, F. (1997), “Historia en Plutarco: los Griegos y los Romanos”, in C.
Schrader et al. (eds.), Plutarco y la Historia. Actas del V Simposio Español sobre
Plutarco (Zaragoza, 20-22 de junio de 1996). Zaragoza: Monografías de Filología
Griega, 209-228.
Hershbell, J. (1997), “Plutarch’s Concept of History: Philosophy from Examples”, AncSoc
28: 225-243
Homeyer, H. (1962), “Zu den Anfängen der griechischen Biographie”, Phil. 106: 75-85.
Marincola, J. M. (1994), “Plutarch’s Refutation of Herodotus”, AncW 25: 191-203.
Mazza, M. (1995), “Plutarco e la política romana. Alcune riconsiderazioni”, in I. Gallo
& B. Scardigli (eds.), Teoria e Prassi Politica nelle Opere di Plutarco, Atti del V
Convegno plutarcheo (Certosa di Pontignano, 7-9 giugno 1993). Napoli: M. D’Auria,
245-268.
Moles, J. (1993), “Truth and Untruth in Herodotus and Thucydides”, in C. Gill & T. P.
Wiseman (eds.), Lies and Fiction in the Ancient World. Austin: Liverpool University
Press, 88-121.
Momigliano, A. (1984), “El lugar de Heródoto en la historia de la historiografía”, in
Historiografía Griega. Barcelona: Crítica, 134-150.
Moxon, I. et al. (1986), Past perspectives: Studies in Greek and Roman Historical Writing.
Cambridge: Cambridge University Press.

336
Nikolaidis, A. (1986), “Ellenikos-Barbarikos. Plutarch on Greek and Barbarian
Characteristics”, WS 20: 229-244.
Nikolaidis, A. (1997), “Plutarch’s criteria for judging his historical sources”, in C. Schrader,
V. Ramón & J. Vela (eds.), Plutarco y la Historia. Actas del V Simposio Español sobre
Plutarco (Zaragoza, 20-22 de junio de 1996). Zaragoza: Monografías de Filología
Griega, 329-341.
Pelling, C. (2002a), “Truth and fiction in Plutarch’s Lives”, in Plutarch and History.
Swansea: The Classical Press of Wales and Duckworth, 143-170.
Pelling, C. (2002b), “Plutarch and Thucydides”, in Plutarch and History. Swansea: The
Classical Press of Wales and Duckworth, 117-141.
Pelling, C. (2002c), “Plutarch’s method of work in the Roman Lives”, in Plutarch and
History. Swansea: The Classical Press of Wales and Duckworth, 1-44.
Pelling, C. (2002d), “Plutarch’s adaptation of source-material”, in Plutarch and History.
Swansea: The Classical Press of Wales and Duckworth, 91-115.
Pelling, C. (2002e), “The moralism of Plutarch’s Lives”, in Plutarch and History. Swansea:
The Classical Press of Wales and Duckworth, 237-251.
Pelling, C. (2007), “De malignitate Plutarchi: Plutarch, Herodotus, and the Persian
Wars”, in E. Bridges, E. Hall & P. J. Rhodes (eds.), Cultural Responses to the Persian
Wars. Oxford: Oxford University Press, 145-164.
Pinheiro, J. (2008), “A escrita biográfica de Plutarco”, in P. Morão & C. Infante do Carmo
(orgs.), ACT 16 – Escrever a vida: Verdade e ficção. Porto: Campo das Letras, 317-337.
Pinheiro, J. (2013), Tempo e espaço da paideia nas Vidas de Plutarco. Coimbra: Imprensa
da Universidade de Coimbra, Classica Digitalia.
Press, G. (1982), The Development of the Idea of History in Antiquity. Kingston-Montreal:
McGilI-Queen’s University Press.
Ramón Palerm, V. (1997), “Lengua, texto e ironía en Plutarco. Notas críticas al De
Herodoti malignitate”, in C. Schrader, V. Ramón & J. Vela (eds.), Plutarco y la
historia. Actas del V Simposio Español sobre Plutarco. Zaragoza: Monografías de
Filología Griega, 415-423.
Ramón Palerm, V. (2000), “El De Herodoti malignitate de Plutarco como epideixis
retórica”, in L. van der Stockt (ed.), Rhetorical Theory and Praxis in Plutarch’s. Acta
of the IVth Internacional Congress of the Internacional Plutarch Society. Louvain:
Peeters, 387-398.
Rossi, L. (1971), “I generi letterari e le loro leggi e non scritte nelle letteratura classiche”,
BICS 18: 69-94.
Russel, D. (2001, 2ª ed.), Plutarch, foreword and bibliography by Judith Mossman.
London: Bristol Classical Press.
Saïd, S. (2002), “Herodotus and tragedy”, in E. J. Bakker, I. J. F. de Jong e H. van Wees
(eds.), Brill’s Companion to Herodotus. Leiden-Boston-Köln: Brill, 117-147.
Scardigli, B. (ed.) (1995), Essays on Plutarch’s Lives. Oxford: Clarendon Press.
Seavey, W. (1991), “Forensic Epistolography and Plutarch’s De Herodoti Malignitate”,
Hellas 2: 33-45.
Sierra, C. (2014), “Plutarco contra Heródoto: razones de una censura”, Talia dixit 9:
23-46.
Silva, M. A. (2010), “Da malícia de Heródoto: Discurso e Resistência cultural em Plutarco”,
Mimesis (Bauru) 31: 33-52.

337
Silva, M. F. (2000), “Os desafios das diferenças étnicas em Heródoto. Uma questão de
inteligência e saber” (1), Humanitas 52: 3-26.
Silva, M. F. (2001), “Os desafios das diferenças étnicas em Heródoto. Uma questão de
inteligência e saber” (2), Humanitas 53: 3-48.
Soares, C. (2005), “A visão do ‘outro’ em Heródoto”, in M. C. Fialho, M. F. Silva & M.
H. Rocha Pereira (eds.), Génese e consolidação da ideia de Europa. Vol. I: De Homero
ao fim da época Clássica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 95-176.
Valgiglio, E. (1987), “Historia e bios in Plutarco”, Orpheus VIII: 50-70.
Várzeas, M. (2010), Plutarco. Vias Paralelas – Demóstenes e Cícero, Coimbra: Centro de
Estudos Clássicos e Humanísticos.
Whitmarsh, T. (2013), “Resistence is futile? Greek literary tactics in the face of Rome”,
in Les Grecs Héritiers des Romains. Entretiens sur l’Antiqitué Classique 59. Genève:
Fondation Hardt, 57-85.

338
LITERATURA LATINA
(Página deixada propositadamente em branco)
Amphitruo d e P l au to y l a c o n s t ru c c i ó n
de l a “romanidad”

A m p h i t ru o b y P l au t u s a n d t h e b u i l d i n g
of “romanity”

Aldo Rubén Pricco


Univ. Nacional de Rosario
ORCID: 0000-0002-2589-4755
aldopricco@gmail.com

Resumen: El patrocinio estatal romano de los espectáculos inscriptos


en los ludi scaenici habilita una literatura dramática que, inserta en
el imaginario social de la república, no puede menos que avenirse a
los principales enunciados del discurso oficial del mos maiorum para
subsistir. Así, los dramaturgos de la palliata, reciclando las fuentes
de la “Comedia Nueva”, componen fabulae aparentemente desligadas
de la serie social romana. Sin embargo, Amphitruo de Plauto puede
leerse como una contribución no inocente a la causa y el fervor bé-
licos propios del contexto de las guerras púnicas.
En términos bajtinianos, bajo un formato cómico que se ajusta a la
clasificación−sanción del prólogo enunciado por Mercurius en cuanto
a la calidad de tragicomedia (v. 63), ese acontecimiento de escritura y
espectacularidad denominado Amphitruo se sustenta en una dialéctica
social que responde a los dichos del poder habilitante para la escena,
es decir, una dinámica intertextual cuyos límites se dilatan en una zona
de intersección de dicta sociales legitimados: una contraseña que solo
conocen los que pertenecen al mismo campo social. La característica
distintiva de estos enunciados ejemplares reside precisamente en el
hecho de que ellos establecen una multitud de conexiones con el

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_16
contexto extraverbal de la cavea y si se los separa de esa dimensión
pierden casi todo su sentido.
En este trabajo se describen y analizan procedimientos dramatúrgico-
-retóricos acerca del locus del adulterio y el engaño que ameritan la
indagación sobre cómo se construye la alusión a la preservación de
la tradición.
Palabras clave: Plauto, palliata, imaginario social, retórica, dicta

Abstract: The sponsorship of the spectacles by the Roman State laid within
in the ludi scaenici allows for dramatic literature that, in the social
imaginary of the republic, cannot but agree to the main statements of
the official speech of the mos maiorum to subsist. Thus, the playwri-
ghts of the palliata, recycling the sources of the “New Comedy”, make
up fabulae, apparently unlinked to the social roman series. However,
Amphitruo by Plautus can be read as a non-innocent contribution to
the cause and frenzy of war in the context of the Punic Wars.
In terms of Bajtin, under a comical format that adjusts itself to the
classification-sanction of the prologue formulated by Mercurius in
regard to the quality of the tragicomedy (v. 63), this case of writing
and spectacularity named Amphitruo sustains itself in a social dialec-
tic that answers to the speech of the enabling power for the scene,
that is to say, an intertextual dynamic whose limits are diffused in
an intersection of dicta: a password that is only known by those
who belong to the same social field. The distinctive characteristic of
these exemplary formulations resides precisely in the fact that they
establish a multitude of connections to the extraverbal context of the
cavea and if they are disjointed, they lose almost all meaning.
Described and analyzed in this work are the dramaturgical-rhetorical
proceedings on the locus of adultery and cheating that merit looking
into how the allusion to preservation of tradition is built.
Keywords: Plautus, palliata, social imaginary, rhetoric, dicta

1. Perspectiva teatrológica

El tratamiento tradicional de la literatura dramática plautina ha


privilegiado aquellos aspectos textuales lindantes con la crítica lite-

342
raria, la filología y otras matrices de instrumentales de análisis en
vinculación, asimismo, con los estudios culturales. Sin embargo, esa
indagación –por cierto valiosa− constituye un grupo de puntos de
vista que no incluyen de un modo evidente y explícito las reflexio-
nes y producciones teóricas de la Teatrología, por un lado, y de los
estatutos propios de la práctica teatral, por otro. Situados nosotros
en la tensión y préstamos entre el componente verbal y las hipótesis
sobre la relación scaena/histriones/cavea, podemos proponer una
perspectiva que atienda en parte la compleja constitución de los textos
dramáticos antiguos de acuerdo con presupuestos de performance.
En virtud de ese posicionamiento, cabe consignar que en el estudio
de la comedia romana utilizamos como insumo teórico la categoría
“teatralidad” del modo que propone Dubatti.1 Este investigador teatral
argentino sostiene que la condición de “teatralidad” es el resultado
de la simultaneidad de tres acontecimientos. En primer lugar sucede
el convivium, la copresencia pactada de personas ante un evento
espectacular, lo que supone roles de comportamiento diferenciado
y una “zona de veda” del espacio del auditorio. En segundo lugar,
se dispara la poíesis o fictio, es decir, la producción somática y
semiótica en el espacio y tiempo de la escena que han de llevar a
cabo los agentes actorales. En tercer término, y como instancia in-
dispensable, la expectación, entendida como la atención voluntaria,
sostenida y satisfactoria de los espectadores hacia el suceso teatral.
Los tres hechos constituyen la unidad mínima de la existencia de la
noción de teatralidad y configuran un punto de partida de nuestras
investigaciones en tanto sostenemos que la fictio plautina se confor-
ma no solo desde la traducción y reescritura de la Néa, sino también
desde una compositio dramatúrgica que construye permanentemente
su auditorio por medio de dispositivos de atracción destinados a
estimular la expectación: si el convivium resulta imprescindible,
los dicta plautinos y su eventual actio operan desde estatutos de
seducción, desde una constante captatio benevolentiae que apela a

1 Dubatti 2020.

343
tendencias perceptuales, idiosincrasias y hábitos de consumo espec-
tacular de los destinatarios.
Si bien las distintas culturas teatrales han provocado diferentes
acontecimientos dramatúrgicos, actorales y espectatoriales, el man-
tenimiento de la pretensión de control de esa alteridad llamada
“público” ha permanecido asentado sobre similares patrones de orden
estético, en el sentido etimológico de “percepción de un fenómeno”.
Cuando decimos control nos referimos a la ineludible obligación que
la escena (actores, escenario, director) tiene de convocar al consumo
perceptual de su propia presencia, es decir, de seducir.
Plauto, por decorum, 2 sabe qué conviene a la escena para la re-
presentación: como hombre de teatro y no solo dramaturgo, escribe
en función de intereses de seducción escénica. No pretende dar a
conocer meramente una fabula, sino –sobre todo porque vivía de
eso− que el público la acepte y la consuma. Por ello en el entramado
textual se advierten mecanismos retóricos de sostenimiento de la
videncia-audición que no prescinden (tal vez sin un conocimiento
teórico cabal de parte del autor) de máximas y leyes de la percepción
inscriptas en la actualidad en teorías de la psicología de la percep-
ción 3 y en el imaginario de la recepción. Por ello, sostenemos que
Plauto se ha valido –aún sin saberlo− de la utilización de principios
constructivos en su textualidad que se han proyectado mayormente
hacia el espacio de la confrontación (convivium y expectación) de la
obra con el público: se singulariza, así, un auditorio, el de la república.

2. Tópico amoroso y adecuación genérica

A pesar de lo particular del recorte de obras que forman el cor-


pus plautino, es decir, la ausencia de una dramaturgia completa que
permita escudriñar la obra del Sarsinate como un sistema en el que

2 Pricco 2016.
3 Arnheim 2001; Gombrich 1999.

344
las partes responden a un plan general, seguimos sosteniendo que
las comedias de las que se dispone para el estudio pueden leerse
desde panoramas orgánicos. 4
El patrocinio estatal de los espectáculos inscriptos en los ludi
habilita una literatura dramática que, inserta en los imaginarios 5 de
la república romana no puede menos que avenirse a los principales
enunciados del discurso oficial del mos maiorum para subsistir. De
tal modo hemos concebido en otras oportunidades 6 el rol de las
personae servus, senex, adulescens, miles, parasitus y meretrix en
tanto máscaras portadoras de semas presentes en el extratexto y en
las instituciones como sustento de una lógica que reafirma en el
universo de ficción los comportamientos esperables y las sanciones
y justificaciones de conducta pertinentes. Al mismo tiempo estaría-
mos en condiciones de observar cómo una recurrencia parlamentaria
que estructura doxas de los imaginarios sociales romanos supone
un instrumento de vinculación del convivium con la escena cómica.
En esa línea, y si recurrimos a las instancias de identificación que
las piezas teatrales conllevan para el logro de la expectación, con-
sideramos que el discurso erótico y las relaciones amorosas de los
personajes plautinos revisten diversas formas vinculadas con la mo-
ralidad, en modalidades que poseen estrecha relación con el formato
dramático. Habría, a nuestro entender, una correspondencia entre el
tipo de comedia y los enunciados referidos a las relaciones amorosas
sostenida por la especie teatral que, a partir de distribución de roles,
situaciones y características de las máscaras, asume una individualidad
particular que la posiciona como distinta dentro del corpus.
Así como hemos podido visualizar Stichus y sus aparentemente
inconexas partes como un recorrido con coherencia temática dada por
tres maneras de diseñar teatralidad, es decir, como tres paradigmas
de comedia posibles de ser leídos como un despliegue de habilidad

4 Pricco 2014.
5 Castoriadis 2013.
6 Rabaza et altri 1998; 1994; Pricco 2005.

345
dramatúrgica que somete a la audiencia a una variación dramática
acorde con las características de un theatron disperso que concede
expectación parcial de acuerdo con intereses volubles, 7 del mismo
modo podríamos asignar a ciertas obras la condición de paradigma
del tratamiento del amor de acuerdo con la relación especie/discurso.
Sobre la base de una lógica que propone la ostentación como
descarga y ejemplo de lo admisible en términos de comportamiento
social, la asimétrica relación entre amantes depende de la índole de
tragicomedia de Amphitruo, mientras que la equidad de los sujetos
que se aman hacen de Rudens una comedia, a la vez que la asimetría,
sexualidad dual y diferencias de condición jurídica y social convierten
a Casina en una farsa.
Si se conviene que en Ampitruo el eje de la relación es la pie-
tas, la anagnórisis de un amor entre iguales resulta fundamental en
Rudens, mientras que lo prohibido y la lascivia parecen poblar las
situaciones equívocas de Casina. Entre esas lecturas nos interesa
plantear aquí alguna hipótesis fiable sobre Amphitruo. Más allá de
las innumerables versiones que el suceso mítico ha merecido, el locus
del adulterio y el engaño amerita algún detenimiento que indague
sobre cómo se construye la alusión a la preservación de la tradición.
En el caso de Amphitruo, y en el marco de un juego en el que los
dioses devenidos humanos no cesan en su divinidad, el vínculo entre
los personajes reproduce las atribuciones que el discurso masculino
ha naturalizado para el rol femenino.
Luego de la noche de amor (que Iuppiter se ha encargado de mo-
delar a su gusto en temporalidad) y en pleno tópico de despedida el
dios-actor-in fabula establece el rol que le cabe a la mujer en 499-500:

I upp. Bene vale, Alcumena, cura rem communem, quod facis;


atque inperce quaeso: menses iam tibi esse actos vides.

7 Pricco 2016.

346
I upp. Adiós Alcumena. Cuidá bien la propiedad común como
lo sabés hacer:
Y, te pido, cuidate bien: ya ves que tenés los meses hechos.

Además de cuidar el patrimonio familiar, la uxor debe reemplazar al


padre en el rito de levantar al recién nacido tal como se observa en 501:

mihi necesse est ire hinc; verum quod erit natum tollito
M e resulta necesario irme de aquí; encargate de levantar lo que
nazca.

Ante la pregunta de la heroína acerca del apuro del falso Amphitruo,


la respuesta de este recurre a las consabidas obligaciones militares
en 502-05:

I upp. Edepol haud quod tui me neque domi distaedeat;


sed ubi summus imperator non adest ad exercitum,
citius quod non facto est usus fit quam quod facto est opus.

I upp: Por Pólux no es porque fastidiado de vos ni de la casa,


sino que cuando el sumo general no está frente a su ejército,
más rápido ocurren cosas que no deberían ocurrir.

El mismo argumento se expone en 524 y ss.:

c lanculum abii a legione: operam hanc subrupui tibi,


ex me primo <ut> prima scires, rem ut gessissem publicam.
ea tibi omnia enarravi. nisi te amarem plurimum,
non facerem.

A escondidas me vine de la legión: para vos le quité a mi obli-


gación unos momentos. Para que en primer lugar supieras por
mí las primicias de cómo llevé adelante el negocio público.
Todo esto te lo conté con detalle. Si no te amara muchísimo no
lo hubiera hecho.

347
Como corresponde al género, la máscara Mercurius/servus-in
fabula introduce apartes que aligeran el tenor de lo dicho por su
padre en una maniobra destinada a provocar la eventual hilaridad
del público en 506-7 y en 526 respectivamente:

M erc. Nimis hic scitust sycophanta, qui quidem meus sit pater.
observatote <eum>, quam blande mulieri palpabitur

M erc: Bastante astuto es este impostor, aunque sea mi padre.


Observen qué suavemente acaricia a la mujer

Merc. Facitne ut dixi? timidam palpo percutit

M erc. ¿Acaso no lo hace como dije? Conmueve a la tímida con


una caricia

Desde esta perspectiva, el reproche de la matrona presenta su


insatisfacción en 513-14:

A LC. prius abis quam lectus ubi cubuisti concaluit locus.


Heri venisti media nocte, nunc abis. Hocin placet?

Te vas antes de calentarse el lugar del lecho donde te acostaste.


Ayer viniste a medianoche, ahora te vas. ¿Acaso, cómo quedar
contenta con esto?

Mientras, se reitera la alusión al deber militar contrapuesto al


sufrimiento convertido en leve retención como se puede observar
en 527 y ss.:

Iupp. Nunc, ne legio persentiscat, clam illuc redeundum est mihi


n e me uxorem praevertisse dicant prae re publica.
Alc. Lacrimantem ex abitu concinnas tu tuam uxorem. Iupp. Tace,

348
ne corrumpe oculos, redibo actutum. Alc. Id actutum diu est.
Iupp. Non ego te hic lubens relinquo neque abeo abs te. Alc.
Sentio,
nam qua nocte ad me venisti, eadem abis. Iupp. Cur me tenes?

I upp. Ahora, para que la legión no lo advierta, debo volver-


me allí a escondidas, para que no anden diciendo que yo
preferí a mi mujer antes que el servicio público. Alc. Vos te
vas y dejás a tu mujer bañada en llanto. Iupp: Callate, no
echés a perder tus ojos, voy a volver enseguida. Alc. Ese
“enseguida” es largo tiempo. Iupp. Yo no te dejo aquí por
mi gusto, ni me alejo de vos. Alc. Lo percibo, porque en la
noche en que viniste a mí, en esa misma te vas. Iupp. ¿Por
qué me retenés?

De todos modos, a la esposa fiel y consecuente le basta que el


amor prosiga independientemente de las presencias físicas, como
manifiesta en 543 cuando Iuppiter pregunta si quiere algo:

I upp. Numquid vis? Alc. Vt quom absim me ames, me tuam te


absente tamen.

I upp. ¿Por ventura querés algo? Alc. Que por más que yo esté
ausente, me ames, a mí, la tuya, aunque vos estés ausente.

El decir amoroso de Alcumena, a pesar de los amagos afectivos


que remiten a la noche breve de amor con el esposo-dios mediante
la mención a la brevedad del contacto y al tiempo que tendrá que
estar sin la compañía del amante, se repliega hacia una zona del
discurso habilitada para la persona consistente en la reafirmación
de la relación conyugal como tributaria de la pietas y del officium.
En ese sentido, el soliloquio de 633-40 se abastece de la aceptación
del dolor como natural y derivado del breve placer, al tiempo que
regulariza la soledad femenina durante la guerra:

349
A lcumena. Satin parva res est voluptatum in vita atque in aeta-
te agunda
praequam quod molestum est? ita cuique comparatum est in
aetate hominum;
ita divis est placitum, voluptatem ut maeror comes consequatur:
quin incommodi plus malique ilico adsit, boni si optigit quid.
nam ego id nunc experior domo atque ipsa de me scio, cui vo-
luptas
parumper datast, dum viri mei mihi potestas videndi fuit
noctem unam modo; atque is repente abiit a me hinc ante lucem.
sola hic mihi nunc videor, quia ille hinc abest quem ego amo
praeter omnes.

A lcumena. ¿No son bastante pequeños los placeres que nos


son dados a gozar en la vida cuando son comparados con las
pesadumbres de las que está llena la existencia humana? Así les
agradó a los dioses, de tal modo que la tristeza sea compañera
del placer: cuanto mayor es el bienestar experimentado más
grande resulta el dolor que le sigue. En efecto, ahora yo pruebo
eso en casa y lo sé por mí misma, a quien el placer le fue dado
momentáneamente, mientras tuve la posibilidad de ver a mi mari-
do tan solo una noche; y este, de repente, se fue de aquí, de mí,
antes del amanecer. Ahora me parece que acá estoy sola, porque
aquel a quien yo amo más que a todos está ausente de este lugar.

3. Configuración discursiva, evaluación social y complicidad


scaena/cavea

Si fuera plausible que Plauto, los espectadores y los personajes,


como entes abstractos, entraran en contacto por primera vez, sin
ninguna esfera de acción unificadora, y que las palabras que se uti-
lizaran en la obra sean tomadas como del diccionario, sería difícil
que el resultado fuera una obra de arte, e imposible que resultara

350
una obra poética: una obra poética es –en términos de Voloshinov−8
un condensador poderoso de evaluaciones sociales no articuladas:
son estas evaluaciones sociales las que organizan la forma como su
expresión directa.
Los juicios de valor determinan la selectio y el ordo de las palabras
por el autor y la recepción (coselección) por parte del oyente. El
texto de Plauto releva enunciados de la tradición textual y palabras
del contexto de la vida en el que estas han ingresado y han quedado
impregnadas de juicios de valor. De esta manera se seleccionan esos
juicios de valor asociados con los lexemas desde el punto de vista
de los portadores que encarnan esos juicios. Se puede decir que el
poeta-dominus gregis trabaja siempre en conjunción con la simpatía
o antipatía, el acuerdo o desacuerdo de su oyente. La simple selec-
ción de un adjetivo o una metáfora es ya un acto evaluativo activo,
orientado en ambas direcciones: hacia el espectador y hacia el per-
sonaje. El público y la máscara son participantes constantes en el
hecho creativo, que ni por un instante deja de ser un acontecimiento
de una comunicación activa que los involucra a los tres.
Por estas razones sostenemos una vez más que la palliata resulta
una traducción-adaptación que filtra componentes helénicos para
facultar enunciados del extratexto latino como citas referenciales
directas en los personarum dicta. De ese modo es posible leer la
compensación de la pérdida de la compañía del amado por el con-
suelo de la virtud guerrera y el renombre y la gloria tal como vemos
en 641 y ss.:

A lc. plus aegri ex abitu viri, quam ex adventu voluptatis cepi.


sed hoc me beat
saltem, quom perduellis vicit et domum laudis compos revenit:
id solacio est.
absit, dum modo laude parta
domum recipiat se; feram et perferam usque

8 Voloshinov 1999: 186-188.

351
abitum eius animo forti atque offirmato, id modo si mercedis
datur mi, ut meus victor vir belli clueat.
satis mi esse ducam.

A lc. Sentí más dolor por la partida de mi marido que placer


por su llegada. Pero al menos eso me contenta: venció a los
enemigos y vuelve a casa poseedor de renombre. Eso es un con-
suelo. Que esté ausente, con tal que se acoja a la casa, una vez
producida su gloria. Voy a llevar e incluso soportar su partida
con el ánimo fuerte y firme, si, al menos me fuera dada esta
retribución: que mi marido fuera renombrado vencedor de la
guerra. Voy a considerar que eso es bastante para mí.

Pretendemos decir que el típico soliloquio de Alcumena está


conformado por una serie de locuciones significativas para los es-
pectadores y las doxas que cimientan sus creencias: un contexto
extraverbal del enunciado que comprende tres factores:

1. el campo espacial común de los interlocutores, es decir, la


ciudad y el consecuente convivium durante los ludi dado por las
convenciones de expectación y de oferta poética;
2. el conocimiento y comprensión de la situación compartida
por los interlocutores: una sociedad que soporta las consecuencias
de la segunda guerra púnica y, posiblemente, los avatares de la
guerra romano-siria;
3. la evaluación común de esos interlocutores en lo referente a
las lecturas de lo “militar” como valor supremo y a lo “femenino”
como sostén ineludible de esa asignación.

Estos enunciados –esperables, por otra parte− que dependen de


lo conjuntamente “visto”, “sabido” y “evaluado” poseen anclaje en las
expectativas del theatron y sus presupuestos. No habría –de ningún
modo− “reflejo”: el discurso plautino resuelve la situación conflictiva
de la esposa engañada y abandonada provisoriamente, llevándola a

352
una conclusión evaluativa que equilibra y justifica los desajustes. De
esta manera es considerada la virtus según Alcumena en 648 y ss.:

v irtus praemium est optimum;


virtus omnibus rebus anteit profecto:
libertas salus vita res et parentes, patria et prognati
tutantur, servantur:
virtus omnia in sese habet, omnia adsunt
bona quem penest virtus.

L a virtud es el premio óptimo; en verdad la virtud antecede a


todas las cosas: libertad, salud, vida, propiedad y padres; patria
y descendientes Están protegidos, están atendidos. La virtud tie-
ne a todo en sí misma; todas las cosas buenas están presentes
para aquel en cuyo poder está la virtud.

Los coparticipantes del hecho teatral saben, entienden y evalúan


una situación de manera análoga en relación con los límites de lo
decible y pensable de las imposiciones circulantes. El enunciado
depende de la pertenencia real y tangible de los coparticipantes
del fenómeno teatral a uno y al mismo segmento de dichos cultu-
rales de los imaginarios. Al mismo tiempo el dictum proporciona a
esa comunidad material de espectadores una expresión claramente
axiológica y un desarrollo ideológico ulterior que compromete la
atribución de valores positivos e inexorables a la libertad, la salud,
la vida, la propiedad, los antecesores, la patria y los hijos: toda una
constelación semiótica de hábitos y prescripciones de pensamiento
y conducta social.
La causa extraverbal no es externa: no opera desde afuera a la
manera de una fuerza mecánica. La situación entra en el enunciado
como una parte constitutiva esencial de la estructura de su significa-
do. Esto implica dos partes: una realizada o actualizada en palabras
y otra presupuesta, como la pietas que origina la conducta de la
matrona de acuerdo con los dicta de 831 y ss.:

353
A lc. Per supremi regis regnum iuro et matrem familias
Iunonem, quam me vereri et metuere est par maxume,
ut mi extra unum te mortalis nemo corpus corpore
contigit, quo me impudicam faceret.

A lc. Juro por el poder real del supremo rey y por Juno, madre
de familia, a la que yo por igual venero y temo sobremanera,
que, aparte de solamente vos, ningún mortal me tocó el cuerpo
con su cuerpo, con lo cual me hubiera hecho impúdica.

De modo similar ocurre en 839:

A lc. Non ego illam mihi dotem duco esse, quae dos dicitur,
sed pudicitiam et pudorem et sedatum cupidinem,
deum metum, parentum amorem et cognatum concordiam,
tibi morigera atque ut munifica sim bonis, prosim probis.

A lc. Respecto de mí, yo no considero que sea dote aquella que


se dice dote, sino la honestidad, el pudor y el deseo sosegado,
el temor de los dioses, el amor de los padres y la concordia de
los parientes; complaciente con vos, y que sea generosa con los
buenos; que sea útil a los honrados.

En estos pasajes el disvalor de la falta de pudicitia se hace evidente.


El presupuesto estaría compuesto de las nociones de “matrimonio”,
“adulterio”, “institución familiar”, “progenie”. Es por ello que en boca
de Alcumena aparece la vergüenza y la firmeza ante la acusación de
adulterio proveniente del malentendido. Al respecto vemos en 882
y ss. la irritación de la esposa:

A lcumena Durare nequeo in aedibus. ita me probri,


stupri, dedecoris a viro argutam meo!
ea quae sunt facta infecta ut reddat clamitat,
quae neque sunt facta neque ego in me admisi arguit;

354
atque id me susque deque esse habituram putat.
non edepol faciam, neque me perpetiar probri
falso insimulatam, quin ego illum aut deseram
aut satis faciat mi ille atque adiuret insuper,
nolle esse dicta quae in me insontem protulit.

A lcumena. No puedo permanecer en esta casa. ¡A tal punto


estoy acusada yo por mi marido de una acción vergonzosa, de
adulterio, de deshonor! Lo que en verdad ha ocurrido, me grita
que no ha ocurrido. Me acusa de lo que no pasó y de delitos que
no he cometido. Y piensa que voy a ser indiferente a eso. ¡Por
Pólux! No lo voy a hacer ni voy a soportar haber sido acusada
falsamente de una acción vergonzosa sin que yo lo abandone o
él me dé una satisfacción y además jure que se arrepiente de lo
que dijo en contra de mí, que soy inocente.

El enunciado opera como un entimema: Alcumena es una ma-


trona, por lo tanto es virtuosa. Ahora, nada mejor que una entidad
divina para poner las cosas en su lugar. Como sabemos, es el mismo
Iuppiter quien, abandonando la investidura cómica y en seria actitud,
habilita la disculpa para la mujer engañada en 1131 y ss:

I uppiter Bono animo es, adsum auxilio, Amphitruo, tibi et tuis:


nihil est quod timeas. hariolos, haruspices
mitte omnes; quae futura et quae facta eloquar,
multo adeo melius quam illi, quom sum Iuppiter.
primum omnium Alcumenae usuram corporis
cepi, et concubitu gravidam feci filio.
tu gravidam item fecisti, cum in exercitum
profectu’s

I uppiter. Estate de buen ánimo, Anfitrión, estoy para auxiliarte


a vos y a los tuyos: nada hay que tener miedo. Dejá a un lado a
todos los adivinos y arúspices; voy a exponer lo que habrá de

355
ser y lo que fue, incluso mucho mejor que aquellos, porque soy
Júpiter. Lo primero de todo: hice uso del cuerpo de Alcumena y
por concúbito la dejé grávida con un hijo. Del mismo modo vos
la dejaste embarazada cuando te fuiste hacia tu ejército

Al mismo tiempo, la entidad divina “purifica” el comportamiento


de la uxor mediante el pedido de “reconciliación” y la confesión de
inocencia o no desviación en 1141 y ss.:

t u cum Alcumena uxore antiquam in gratiam


redi: haud promeruit quam ob rem vitio vorteres;
mea vi subactast facere.

Vos volvé a tu antigua gracia con tu mujer Alcumena: nada ha


hecho por lo cual pudieras acusarla de inmoralidad; fue empu-
jada a hacerlo por mi fuerza

La eximición de culpa y de responsabilidad comporta, asimismo,


un plus, una proyección que bien puede aplicarse al campo extra-
textual como símbolo de la gestación de héroes militares, tal como
observamos en el parlamento del dios en 1138-40:

u no partu duos peperit simul.


eorum alter, nostro qui est susceptus semine,
suis factis te immortali adficiet gloria.

e n un solo parto, al mismo tiempo, dio luz a dos; uno de ellos,


el que fue engendrado con nuestra simiente con sus acciones
te va a enriquecer con gloria inmortal.

Este episodio de la infidelidad modalizada de Alcumena opera, a


nuestro juicio, como una circunstancia de ejemplaridad reforzada por
la presencia de los entes divinos devenidas figuras humanas en el
juego erótico. Más allá del juego de los dobles caro a los hábitos de

356
consumo de ficción y de actividad lúdica del quid pro quo inherente
al género y a las expectativas de los destinatarios, hay en Amphitruo
una posibilidad de insistir en el imaginario de la res publica con el
necesario equilibrio cósmico. El caos de la “caída” de Alcumena en
la trampa amorosa de Iuppiter conlleva el imprescindible reacomo-
damiento cósmico del canónico final de la comedia.
Este incidente de la uxor engañada a su pesar y sin la concien-
cia de la eventual falta no responde a una novedad ficcional, sino
a una puesta en visión para el convivium de un elemento artístico
que se convierte en objeto de oferta y de demanda y, por ende, está
sometido a las leyes socioeconómicas del contexto de producción
en lo que concierne a su valor y su circulación en la sociedad ro-
mana de la república. No podemos obviar en este punto un factor
social ineludible: la obra plautina está sometida a la influencia del
patrocinio, de modo que, en virtud de la supervivencia de histriones
y dramaturgos, no puede sustraerse de las doxas circulantes y de la
formación ideológica de la que participa y a la que contribuye con
sus dicta. Estos enunciados provienen de la voz senatorial revestida
de una investidura cómica que despliega estrategias de seducción
aparentemente inocentes o solo participantes de un entretenimiento
de masas durante las ferias.
Así como el prólogo de Poenulus, en cuanto a la caracterización
de las matronae (tacitae spectent, tacitae rideant 9), no tendría sen-
tido si no se basara en verosímiles 10 de gran aceptación para una
eventual respuesta mediante la risa y/o la simpatía, Amphitruo no
resulta tampoco un discurso autosuficiente. Surge, ciertamente, de una
situación pragmática extratextual y mantiene con ella la más estrecha
relación dado que, tanto en los diálogos como en los soliloquios, se
construyen juicios y evaluaciones sobre la uxor que se refieren a un
cierto todo en el que el discurso se compromete directamente con

9 Verso 32: “Que las matronas calladas observen y oigan el espectáculo, en silen-
cio se rían”.
10 Consideramos aquí “verosímil” como una creencia extendida al modo de una doxa.

357
un acontecimiento de la vida de Roma y se mezcla con él en el juego
de los procesos de identificación puestos en funcionamiento en la
teatralidad. No hay fenómeno puramente lingüístico y espectacular,
sino otro que liga las experiencias del espectador con los discursos
que tejen la trama de sus consilia y de sus acta.
En ese sentido, los discursos sobre el amor en Amphitruo coin-
ciden con los esperables de la imagen ideal de matrona, es decir,
ser una esposa pia, pudica y uniuira que cumple su papel en la
casi negación de su sexualidad en el recordado verso 840: sedatum
cupidinem, el “deseo sosegado” constituyente de su entidad.
Es posible que el esposo, alterado por creer que su mujer lo ha
engañado, dude de las cualidades de aquella. Sin embargo, la ancilla
Bromia, va a insistir, cerca del descubrimiento de la verdad, en las
virtudes de su ama tal como se aprecia en 1084 y ss.:

Amph. At me uxor insanum facit


suis foedis factis. Brom. At ego faciam, tu idem ut aliter praedices,
Amphitruo, piam et pudicam esse tuam uxorem ut scias.
De ea re signa atque argumenta paucis verbis eloquar.

A mph. Pero mi mujer me vuelve loco con sus horribles acciones.


Brom. Pero yo voy a hacer que vos mismo lo andes pregonando
de otra manera, Anfitrión, que sepas que tu mujer es piadosa
y púdica. Sobre este asunto te voy a explicar las señas y las
pruebas.

4. Conclusiones

En Amphitruo las cualidades de Alcumena como esposa pia, pu-


dica y univira resultan condiciones ineludibles fusionadas por la
intervención divina que, mediante el mea vi subactast facere del verso
1143 (“por mi fuerza fue empujada a hacerlo”), son purificadas y rea-
condicionadas para el regreso a la vida puramente terrena. Después

358
de todo, el tránsito de Alcumena por aquel “desvío” no hace más
que garantizar, como exemplum, el rol que le cabe a la proveedora
de hijos para las agendas bélicas por el dominio del Mediterráneo:
progenie que, metáfora del hijo divino mediante, podrá ser capaz
de conferir la heroicidad que la situación impone y construir, por
ende, “romanidad”.
Desde esa perspectiva, Amphitruo se erige como una contribución
no inocente a la causa y el fervor bélicos. No importa que el amante
deje el lecho con sus obligaciones a medio camino puesto que lo hace
en función del imperativo mayor: así, el tópico de la mujer llorando
en la despedida (v. 529: Lacrimantem ex abitu concinnas tu tuam
uxorem: “Desde tu partida dejás llorando a tu esposa”), en vez de
remitir al sufrimiento femenino, proyecta la contraparte de un plan
geopolítico expansionista que subsume toda experiencia amorosa
y sus manifestaciones en una única opción, la de cumplir con el
placer erótico pero en la brevedad de una noche expandida por la
disposición divina pero insuficiente. Lo relevante es aquella guerra
continua de la que la peripecia alcuménica es solo una pausa que
a modo de una digressio instala el deber ser en medio de la guerra.
En términos bajtinianos,11 bajo un formato cómico que se aviene
a la clasificación-sanción del prólogo enunciado por Mercurius en
cuanto a la calidad de “tragicomedia” (v. 63), este acontecimiento de
escritura y espectacularidad denominado Amphitruo se sustenta en
una dialéctica social que responde a los dichos del poder habilitante
para la escena: una dinámica intertextual cuyos límites se dilatan
en una zona de intersección de decires sociales legitimados. Una
contraseña que solo conocen los que pertenecen al mismo campo
social. La característica distintiva de estos enunciados conductuales
reside precisamente en el hecho de que ellos establecen una mul-
titud de conexiones con el contexto extraverbal de la cavea y si se
los separa de ese contexto corren el riesgo de perder casi todo su
sentido. A sabiendas de esa necesaria adecuación –lo aptum− a las

11 Bajtin 1999.

359
firmes representaciones y estereotipos que portan los agentes de la
cavea, la estrategia dramatúrgica hace su diagnóstico y construye su
mecanismo de seducción sin contradecir los presupuestos culturales.
Por consiguiente, la poíesis diseña creencia y contribuye a conformar
criterios de “romanidad”.
Si hubiese alguna incertidumbre, es el propio vir quien en 1144-45
no solo acepta en la fabula la verdad de lo acontecido, sino que, en
una fusión orgánica de fictio y de realidad convencional-metateatral,
cierra el espectáculo y pide el aplauso en nombre de Iuppiter:

A mph. Faciam ita ut iubes et te oro, promissa ut serves tua.


ibo ad uxorem intro, missum facio Teresiam senem.
Nunc, spectatores, Iovi summi caussa clare plaudite.

A mph. Voy a hacer las cosas como me mandás y te pido que


mantengas tus promesas. Me voy adentro con mi mujer. Hago
caso omiso al anciano Tiresias. Ahora, espectadores, aplaudan
abiertamente a causa del supremo Júpiter.

Como se puede constatar, el panorama orgánico del que hablába-


mos como hipótesis al principio de este trabajo estaría configurado
tanto por la isotopía de los enunciados referidos a la modalidad del
comportamiento de la esposa como por la correspondencia entre
esa instancia y el formato-especie teatral, en consonancia con los
preliminares de los imaginarios.
Si cupiese alguna duda, a esas afirmaciones se suman en el cierre
de la pieza las voces plenamente autorizadas para la sanción y la
administración de verdad patrimonio del marido y del dios superior:
dos paradigmas de la voluntad masculina que no ofrecen flancos
para polémicas.

360
Bibliografía

Arnheim, R. (2001), Arte y Percepción visual. Madrid: Alianza.


Bajtin, M. (1999), Estética de la creación verbal. México: Siglo XXI.
Castoriadis, C. (2013), La institución imaginaria de la sociedad. México: Tusquets.
Dubatti. J. (2020), Teatro y territorialidad, Perspectivas de Filosofía de Teatro y Teatro
Comparado. Barcelona: Gedisa.
Gombrich, E. (1999), El sentido del orden. Madrid: Debate.
López, A. y Pociña, A. (2007), Comedia romana. Madrid: Akal.
Pricco, A. (2016), “El decorum del discurso plautino ante una recepción dispersa: el
diseño de una cavea ridens en Stichus”. Anales De Filología Clásica 1.29: 67-78.
Pricco, A. (2012), “Ars retórica/ars teatral y el decorum como factor de escritura: una
traducción argentina de Miles gloriosus para la escena”, in A. López, A. Pociña y M.
F. Silva (coords.), De ayer a hoy. Influencias clásicas en la literatura. Coimbra:
Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis, 419-428.
Pricco, A. (2005), “La dinámica entre escena y espectadores. Un caso de la comedia
plautina”, in J. Dubatti (org.), Escritos sobre teatro I. Teatro y cultura viviente:
poéticas, política e historicidad. Buenos Aires: Ed. Nueva Generación/CIHTT/Escuela
de Espectadores, 31-54.
Rabaza, B. et altri (1998), “El personaje meretrix y la regulación del comportamiento
ajeno”, in B. Rabaza y A. Pociña (ed.), Estudios sobre Plauto. Madrid: Ed. Clásicas,
201-230.
Rabaza, B. et altri (1994), “El servus en la palliata plautina: la servi facultas como
ficción del espacio de poder”, in AAVV, Homenaje a A. Barbagelata, Tomo 1. Buenos
Aires: Wendt y Royo, 265-271.
Voloshinov, V. N. (1999), “Apéndice I. El discurso en la vida y el discurso en el arte
(acerca de la poética sociológica)”, in Freudismo. Un bosquejo crítico. Buenos Aires:
Paidós, 167-202.

361
(Página deixada propositadamente em branco)
O cinismo, Menipo e a identidade romana
Os testemunhos de Diógenes Laércio,
C í c e r o e V a r r ão *1

Cynicism, Menippus and Roman Identity


The Accounts of Diogenes Laërtius, Cicero
and Varro

Paulo Sérgio Margarido Ferreira


Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0003-4244-5625
pmf@fl.uc.pt

Resumo: Tomando em consideração o que se sabe sobre o cinismo e as


informações veiculadas por Diógenes Laércio, procura esta reflexão
compreender a atitude de Menipo de Gádaros relativamente ao cinismo,
perceber se foi o criador da sátira menipeia ou se as anedotas que sobre
ele circulavam inspiraram a posterior criação do género, e estudar o modo
como Cícero e Varrão, um moralista conservador romano, perspetivavam
Menipo, e, deste modo, o enquadravam na moral identitária romana. Como
veremos, há divergências desde logo no que toca ao modo de encarar
os deuses e o consumo de vinho, mas a parte construtiva da crítica é
uma possibilidade no Menipo do tradicionalista Varrão.

Palavras-chave: cinismo, Menipo, sátira menipeia, Cícero, Varrão, crítica


construtiva

*1 Trabalho realizado no âmbito do Projeto Rome our Home: (Auto)biographical


Tradition and the Shaping of Identity(ies) (PTDC/LLT-OUT/28431/2017). Trata-se da
primeira parte de uma reflexão mais ampla e preparatória da tradução portuguesa
de Séneca, Diui Claudii apocolocyntosis.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_17
Abstract: Taking into account what is known about Cynicism and the
information conveyed by Diogenes Laertius, this reflection seeks to
understand the attitude of Menippus of Gadara towards Cynicism, to
understand whether he was the creator of Menippean satire or the
anecdotes that circulated about him inspired the subsequent creation
of the genre, and to study the way in which Cicero and Varro, a con-
servative Roman moralist, viewed Menippus, and thus framed him in
Roman moral identity. As we will see, there are disagreements from
the outset regarding how to face the gods and wine consumption, but
the constructive part of the criticism is a possibility for the Menippus
of the traditionalist Varro.

Keywords: Cynicism, Menippus, Menippean satire, Cicero, Varro, cons-


tructive criticism

Quando se fala em Menipo de Gádaros (floruit na primeira metade


do séc. III a.C.), que a maior parte considera um escritor cínico da
primeira metade do séc. III a.C., muitas são as dúvidas que em torno
dele subsistem: seria um filósofo cínico 1 ou “a degenerate Cynic” 2,
alguém que se limitaria a adotar os comportamentos cínicos, para
cair no ridículo, revelar a incoerência da seita e satirizá-la? Teria
escrito sátiras menipeias, que misturariam prosa e verso, ou seriam
os aspetos mais ou menos sérios e anedóticos, mais ou menos reais
ou fabulosos da sua vida que teriam inspirado a posterior criação
do referido género? 3

1A ideia de que Menipo seria um filósofo cínico pode, p. ex., ser encontrada
em Varrão (<Menippus> ille nobilis quondam canis, Taphe Menippou, frg. 516 v. 1
Bücheler ou Cèbe), Luciano (como veremos adiante) e Dobbin 2012: 210.
2 A expressão é de Dudley 1998: 70.
3 Navia 1996: 156-7, depois de aludir às obras que D.L. 6.101 atribui a Menipo,
informa: “But of such writings, nothing has survived, except for very few fragments,
fewer in his case than those of other Cynics.” Apesar disso, sustenta que “Menippus’
style and choice of subjects were imitated by important classical writers”, e ainda: “The
νόμισμα that he found everywhere was worthless and worthy of the most decisive
defacing, and this defacing he undertook by writing mordant satires.” Dudley 1998:
70 adverte: “Very scanty fragments of Menippus survive, and it is highly speculative
proceeding to try to reconstruct his works from Varro or even from Lucian.” Dobbin
2012: 210, p. ex., diz de Menipo que é o “originator of a literary genre alternating

364
I. O cinismo

A forma “cínico” provém da grega kynikos, que é um adjetivo


que deriva do nome grego que significa cão (kyon, kynos). Descreve
alguém cuja aparência e/ou o comportamento se assemelham aos
de um cão. O cão defeca, urina e copula em público e esgaravata
no lixo em busca de restos ou comida. Antístenes (meados do séc.
V – meados do séc. IV), por alguns considerado o fundador do ci-
nismo, era conhecido como ‘o absoluto cão’, e Diógenes de Sinope
(c. 404-c. 323 a.C.) tinha a alcunha de ‘o cão’, pelo seu comporta-
mento resmungão e mordente 4 . Além disso, o comportamento do
último era ainda inspirado pelo do rato que vagueava, não receava
o escuro e não estava nada preocupado com sofisticados aposentos
ou sofisticadas refeições 5. A observação de um caracol teria levado
Diógenes a recorrer a uma dorna de barro para dormir [coisa que
Crates (c. 360-280 a.C.) considerava um luxo]. No fundo, o que os
cínicos pretendiam dizer era que, do mesmo modo que os animais
viviam de acordo com a sua natureza, devia o homem seguir a sua
própria, que tinha uma forte componente animalista, e se não devia
preocupar com as convenções sociais.
Não é possível fazer remontar a um autor, a um local e a uma
data precisa a origem do cinismo, uma vez que algumas das atitudes
que o conformam eram já rastreáveis em figuras míticas e indivíduos
muito anteriores aos pensadores tradicionalmente considerados cíni-
cos. Héracles, pelo seu cosmopolitismo, pela recusa em se submeter
à autoridade alheia e pela sua capacidade de suportar o sofrimento
e a dureza, não só prefigurava os ideais cínicos da askesis e ponos

passages of prose with poetry”, mas reconhece: “His own efforts in this hybrid genre
are lost…”
4 As ocorrências de kyon e de canis com o valor de ‘cínico’ podem ser encon-
tradas em Aristóteles, Rh. 3.10.7; Plutarco, Mor. 717c, 956b; Varrão, Men. 516 Cèbe;
Horácio, S. 2.2.56; Marcial 4.53.8, 14.81.2; Suetónio, Ves. 13. D. L. 2.66 diz que Diógenes
chamou a Aristipo ‘o cão real’ (435-355 a. C.; cf. Hor. Ep. 1.17.13). Demétrio, para o
Vespasiano de Díon 66.13.3 (cf. Suetónio, Ves. 13), é “o cão que late”.
5 Cutler 2005: 20.

365
mas também se constituía como o grande modelo mítico dos cínicos.
Os estoicos valorizavam em Hércules os trabalhos em prol dos ou-
tros. Ao séc. VI a.C. remontava o Cinosarges (‘Parque do Cão Ágil’),
isto é, um complexo composto por um gymnasium e um templo
de Héracles (o grande modelo mitológico de “bastardo”), que, com
a proibição aprovada no séc. V que impedia os “bastardos” (filhos
resultantes da união entre homens livres e escravas, ou prostitutas,
ou estrangeiras) de frequentarem os gymnasia, passaram a ser os
únicos locais onde aqueles podiam exercer atividade física e pra-
ticar o culto. Este complexo não estava aberto exclusivamente aos
“bastardos” no sentido mais estrito anteriormente considerado, mas
também a todos quantos se sentiam estranhos à comunidade de ci-
dadãos. Heraclito, que atingiu o auge da sua atividade filosófica por
volta de 500 a.C., aparece referido em As cartas cínicas (trocadas
entre cínicos e entre estes e seus contemporâneos) como um cínico.
Se se considerar como cínica a valorização do individualismo e do
egoísmo, facilmente se vislumbrará em Trasímaco de Calcedónia,
um sofista que tinha como propósito tirar partido dos outros, via
na justiça uma arma ao serviço dos poderosos (Platão, R. 1.343b) e
proclamava que “o poder tem razão” e “bem” e “mal” eram termos
sem significado, um precursor do cinismo. 6
Como o budismo, o cinismo defendia que uma das chaves para a
felicidade era a restrição dos desejos; como os sofistas e talvez por
influência egípcia e babilónica, preocupou-se mais com o estudo da
civilização humana e da vida humana em geral do que com o da
natureza (física) e a ação do homem sobre essa mesma natureza com
vista ao avanço da humanidade; não tinha preocupações religiosas,
ria-se da mitologia e das suas fábulas e contradições; valorizava
sobretudo a ação humana na criação (não se importava com a me-
tafísica e desvalorizava a ação divina) e admitia a possibilidade de
a civilização poder mudar e progredir; realçava a importância da
retórica, do treino e da pedagogia; na esteira de Sócrates, denun-

6 Navia 1996: 3.

366
ciava a submissão injustificada do homem às convenções sociais e
políticas, e alguns dos seus membros eram mais adeptos do registo
oral e não-oral (gestual e comportamental) do que do escrito; em
contraste com o platonismo, não acreditava em absolutos externos
e, como os epicuristas e os hedonistas, sustentava que a experiência
dos sentidos era o meio para se alcançar o conhecimento; cínicos e
estoicos criticavam os falsos valores subjacentes às crenças políticas,
filosóficas e religiosas ortodoxas; como as filosofias helenísticas, en-
carava o cosmopolitismo como algo que se opunha ao nacionalismo
e entendia que, quando a vida deixava de fazer sentido, se justificava
o suicídio (muitas vezes à fome), mas, em contraste com certas filo-
sofias helenísticas, repudiava os deveres para com o estado; como
sucedeu com muitos dos evangelhos relativamente a Jesus de Nazaré,
muito do que nos chegou acerca do cinismo é uma interpretação
posterior daquilo que os cínicos disseram.
Embora tenha havido quem, partindo do pressuposto de que
Cinosarges estaria para o cinismo como a Academia para o plato-
nismo, o Liceu para o aristotelismo, o Jardim para o epicurismo e o
Pórtico para o estoicismo, e tomando em consideração as afinidades
entre o cinismo e certas correntes filosóficas, tenha considerado o
cinismo uma escola filosófica, e o mimógrafo Labério tenha associado
os cínicos às latrinas e tenha empregado a expressão Cynica hae-
resis, ‘Seita cínica’ (Compitalia, frg. 3 Ribbeck) para se lhes referir,
a verdade é que Varrão, numa obra intitulada De Philosophia, onde
considerou 288 escolas filosóficas a partir do τέλος de cada uma,
nelas incluiu o cinismo, não como hairesis, mas como modo de vida
(Agostinho, C.D. 19.1.2-3). Os cínicos pautavam-se pela oposição
a todo o tipo de dogmas difundidos pelas instituições educativas,
jurídicas e religiosas do seu tempo. Além disso, “Cynicism rejects
systems, categories and universal transcendent truths – not least
with regard to its own philosophy. If Cynicism has a philosophy
at all it is an anti-philosophy, that is, anti philosophy as absolute
laws or binding faith. And although Cynics shared certain beliefs
and attitudes in common, there was no school or central doctrine

367
to study or learn. Cynicism was a very loose set of values, beliefs,
and attitudes, which could be interpreted and practiced according
to the individual’s own will.” 7 Em contraste com as demais escolas,
o cinismo distinguia-se por pormenores estilísticos [humor perverso
e corrosivo, liberdade e franqueza de discurso (parrhesia), diatribe,
criada por Bíon de Borístenes (c. 335-c. 245 a.C.; Bíon, de acordo
com Diógenes Laércio (daqui em diante D. L.) 4.7.46ss., era ateu,
predador sexual de rapazes e atacava deuses e Homero8), solilóquio],
pelo espetáculo em público, pelo individualismo, pelo comportamento
associal, pela falta de organização e coesão social dos seus membros
e pela independência (daí a competição entre os seus membros en-
quanto pedintes, que muitas vezes eram recompensados pelos seus
serviços como filósofos ou animadores). Ao contrário de quem en-
tendia que a civilização progredia de forma linear para um fim, os
cínicos defendiam que a evolução se fazia por meio de ciclos com
princípio, altos, baixos e fim, e que cada indivíduo ou geração tinha
as mesmas oportunidades de triunfar ou falhar 9. Em contraste com
Aristóteles, admitia Diógenes que o casamento envolvia o homem
que persuadia e a mulher que se deixava persuadir. A verdade dos
cínicos reside nos graus e nas virtudes relativas, mas não é algo ab-
soluto. Um pouco mais exigentes do que os epicuristas, os cínicos
submetiam-se a condições difíceis para que as dificuldades os não
apanhassem desprevenidos (Diógenes pedia a uma estátua, para se
habituar às recusas. Além disso, sentia indiferença pelas opiniões,
pelos insultos a que o seu modo de vida se prestava e aos perigos
que dele advinham.). D. L. 7.3 informa que o espírito pudico e
reservado de Zenão estava nos antípodas da anaischuntia dos cíni-
cos e foi motivo de divergência relativamente ao seu mestre cínico
Crates. Em contraste com o estoicismo, não acreditava que a vida

7 Cutler 2005: 12.


8 Weinbrot 2005: 24-26 não só recorda o que a tradição nos diz de Bíon de
Borístenes como dá preciosas informações sobre a receção do referido escritor cínico
na tradição satírica ocidental.
9 Cutler 2005: 16.

368
fosse pré-determinada pelo destino e na ação da Fortuna, e estava
desprovido da dimensão “evangélica” estoica. O cinismo não zom-
bava de quem acreditava nos deuses e das próprias divindades, ao
passo que o estoicismo legitimava filosoficamente a religião nacional
romana 10. Enquanto o estoicismo defendia que cada pessoa podia
ser livre independentemente da sua condição social (cf. escravos),
os cínicos, considerando embora que cada pessoa podia ser feliz
independentemente das circunstâncias, entendiam que a igualdade
era marca da condição de todo o ser humano.
Um dos filósofos mais insistentemente associados aos primórdios
da referida seita é um filho de mãe trácia, Antístenes (séc. V-IV); foi
aluno de Sócrates; entendia que a coragem e a resiliência socráticas,
a autossuficiência, o distanciamento, o despojamento, a frugalidade,
a austeridade física e os prazeres da vida simples eram meios para
se alcançar a virtude; ensinava em Cinosarges e foi professor de
Diógenes de Sinope (c. 404-c. 323 a.C.). Diógenes, que Sloterdijk
considera um denunciante descarado e honesto de convenções e re-
gras sociais, éticas e decadentes 11, foi mestre de Crates (c. 360-280
a.C.), que, por sua vez, ensinou Zenão (c. 334-262 a.C.), o fundador
do estoicismo.
Os ensinamentos dos cínicos passavam de geração em geração
sobretudo por meio de mitos, anedotas, aforismos (chreiai), com o
seu humor negro, caráter surpreendente ou paradoxal e seriedade
ética, mas também se escreveram obras que, entretanto, se perderam.
Crates, por exemplo, teria escrito tragédias, elegias, cartas e paródias.
Cutler sustenta que, mais tarde, os cínicos recorreram à retórica e aos
métodos de ensino sofistas para questionar “their imputed wisdom,
elusive knowledge, questionable values, compromises, and their quest
for wealth”12. Em Platão, encontrou e criticou Antístenes “pride, fal-
sehood, pretentiousness, arrogance, mystification, superstitious and

10 Cèbe 1975: 348.


11 ap. Navia 1996: 6.
12 Cutler 2005: 10.

369
religious humbug, the worship of the state, contempt toward what
is concrete, and the misuse of language for the purpose of hiding
one’s own confusion.” 13 Na crítica às falsas ideias subjacentes a
certa ortodoxia política, filosófica e religiosa, os cínicos adotavam
uma atitude ridicularizadora e de desprezo, ao passo que os estoicos
procuravam refutar essas ideias com argumentos racionais e com
a contraposição da sua verdade. Ao despertar das consciências do
adormecimento intelectual e do enfado moral, o cinismo, enquanto
filosofia pragmática, respondia, por vezes de forma muito prática,
a determinadas circunstâncias e fazia diagnósticos, mas não criava
paradigmas novos 14 . O desapego, o minimalismo e as condições
de vida precárias dos cínicos faziam com que caíssem no ridículo.
É ainda motivo de ridículo o facto de Diógenes desprezar e adotar
determinados comportamentos e, desse modo, se enredar em con-
tradições e funcionar como exemplo a contrario sensu 15. As ações
dos cínicos enquadravam-se no seu estilo retórico e funcionavam em
contraponto com a liberdade de expressão.
Dos cínicos, a ideia que passou foi a de que eram amorais e não
tinham qualquer respeito por áreas que distinguiam o homem dos
animais, como a mitologia, a religião, a filosofia, a arte, a ciência, a
literatura, por sentimentos, como o amor e a amizade, ridicularizavam
sacrifícios, preces, boas maneiras, o respeito pelos pais, eram avessos
a todo o tipo de organização social (não cumpriam as regras do es-
tado) e até ao desporto, eram individualistas, anarquistas, não viam
qualquer problema em assaltar templos, cometer incesto, comer a
carne de qualquer animal, praticar canibalismo, dar traques, defecar,
urinar e masturbar-se em público, lamber purulentas feridas (muitas
destas atitudes para satisfazer as necessidades sexuais e valorizar
o lado animal do indivíduo), insultar e espancar, mas, como algu-
mas destas informações são veiculadas por detratores do cinismo,

13 Cutler 2005: 15.


14 Cutler 2005: 20.
15 Cutler 2005: 36.

370
devem ser encaradas com reservas. Várias destas atitudes decorrem
do facto de os cínicos se perspetivarem como cidadãos do mundo
e, por conseguinte, adotarem as práticas de outros povos. Apesar
disto, Diógenes condenava as pessoas depravadas e as outras, que
nada faziam para impedir as primeiras de se comportarem de forma
depravada e nutria amizade pelas pessoas; Crates e Demónax reco-
mendavam a philanthropia e a afabilidade 16; Crates e sua esposa
Hiparquia davam apoio a pobres e doentes; Apolodoro de Seleuceia,
contemporâneo de Panécio, definia o cinismo como um atalho para
a virtude (D. L. 7.121); e os cínicos entendiam que o mundo não
tinha sido criado apenas para as pessoas e, por isso, criticavam os
interesses mesquinhos dos homens. Os cínicos valorizavam a aske-
sis ‘treino’, o ponos ‘sofrimento físico’, a parrhesia ‘liberdade e a
franqueza de falar de forma oportuna’, a anaideia ‘descaramento’,
a apatheia ‘o desprezo pelas paixões’, a autarkeia ‘autossuficiência’
e a karteria ‘resiliência, autocontrolo’, e criticavam o typhos ‘fumo,
vaidade, engano’.
No que toca à atitude dos Romanos face ao cinismo, notou Griffin
que oscilou entre a atração e a repulsa17. Para tal, contribuiu a difi-
culdade em distinguir, de certas atitudes cínicas, determinadas ideias
estoicas, o facto de se acusarem estoicos de adotarem comportamentos
cínicos e de se classificarem como “estoicos” os filósofos sediciosos
(estoicos, cínicos ou a mistura de ambos)18. A conduta grosseira era
um critério de distinção dos cínicos relativamente aos estoicos. A
Cynicorum ratio opõe-se ao decorum e à uerecundia romanos relati-
vamente aos costumes, às práticas cívicas, à reputação e às convenções

16 Dudley 1998: 43, 161.


17 Griffin 1993. Estes dois parágrafos resumem o estudo de Griffin.
18 Griffin 1993: 242-243 exemplifica isto com o contraste entre Fam. 9.22, onde
Cícero atribui aos estoicos uma atitude adversa ao eufemismo, e Off. 1.128, onde se
lê: “Na realidade, não deveríamos prestar grande atenção aos cínicos ou a alguns
estoicos (que na prática procedem como cínicos) quando nos censuram e ridiculari-
zam pelo facto de considerarmos ser vergonhosa a simples menção de alguns atos
que não são imorais, enquanto que, em relação a outras coisas que são imorais, não
hesitamos em chamá-las pelo devido nome.” Trad. de Gomes 2000: 61; adapt. ao AO
1990 é minha. Griffin 1993: 247.

371
sociais, mas, em Off. 1.148, Cícero abre exceções, quando se refere a
Sócrates e Aristipo, e, ao cabo, caminho aos posteriores retratos cínicos
idealizados e usados pelos estoicos para o ensino (cf. perspetiva de
Séneca sobre Diógenes em Ben. 5.4.3-4, 5.6, Ep. 90.14, Dial. 9.8.3-5). A
libertas promiscua dos cínicos compromete a auctoritas romana (Sén.
Ep. 29.3). Sén. Ep. 5.2 e Musónio Rufo 6 defendem que o filósofo se
não deve excluir da norma. Em Ben. 2.17.2, Séneca critica o esforço
dos cínicos para alcançarem a gloria egestatis, “glória da indigência”,
isto é, uma vertente do exibicionismo cínico (cf., contra a exibição
dos filósofos da incompta frugalitas, Ep. 5.1-5), e, em Dial. 9.8.9-
9.9.2, distingue a parsimonia dos maiores, que elogia, da verdadeira
paupertas. Os Romanos não aceitavam o afastamento cínico da vida
política. Em Dial. 10.14.2, Séneca afirma que o propósito dos estoicos
é vencer a natureza humana, e o dos cínicos é ultrapassá-la (hominis
naturam cum Stoicis uincere, cum Cynicis excedere).
Mas a parte do cinismo relacionada com a moral prática (herdeira
da tradição socrática que via na ação humana o objeto da filosofia),
que desprezava a lógica e a física, afigurava-se útil ao estoicismo para
triunfar numa Roma que era sobretudo célebre pelos exemplos (cf.
anti-intelectualismo de Séneca em Ep. 82.19-24 e Ben. 7.1.4-5, 7.8.2).
Além disso, importa notar a presença do ridículo e da metáfora no
cinismo, na menipeia e na sátira tradicional romana (cf. associação,
feita por Apuleio, Fl. 20, entre Crates e a sátira). A eloquência do
cínico Demétrio influenciou a prosa filosófica de Séneca. Pontos de
confluência entre o cinismo e a tradição romana eram a importân-
cia dada ao treino do corpo para suportar a dureza, as dificuldades
e adversidades (cf. Cícero, Tusc. 2.35; Sén. Ep. 18.5-13; Plínio, Ep.
3.11.6; D. L. 6.27, 59, 7.172), a frugalidade e a austeridade.

II. Menipo

Quando se pensa na figura de Menipo, importa perceber o que


o tornou alvo do desprezo dos filósofos e muito admirado pelos

372
escritores 19. De ascendência fenícia e natural de Gádaros, na Cele-
Síria, Menipo foi, de acordo com R. L. Hunter, um “influential Cynic
writer, probably of the first half of the 3rd cent. BC” 20. A ideia de
que Menipo tinha sido um cínico já estava presente em D. L. 6.99.
Muito do que julgamos saber sobre Menipo foi-nos veiculado por
D. L. (talvez tenha vivido na primeira metade do séc. III d.C.), base-
ado sobretudo em Díocles, e a modalização da formulação com que
se inicia este parágrafo tem que ver com o facto de a fidedignidade
não dever ser o principal critério para julgar esta fonte, mas, como
bem observa Cutler, o que nele é de valorizar são “a flavor and fe-
eling for the minutia of these philosophers’ lives” 21.
D. L. informa que a escravatura tinha sido uma condição comum
a Bíon de Borístenes e a Menipo (4.46, 6.99). As origens humildes
eram fator de exclusão social e, por conseguinte, propícias a criar
frequentadores do Cinosarges. Aulo Gélio 2.18.6-7 esclarece que a
referida condição precedeu o momento em que Menipo se teria tor-
nado filósofo. De Menipo, ainda diz D. L. 6.99 que se teria tornado
tebano.
De Diógenes cínico, diz D. L. 6.20 que era filho de um banqueiro
que, segundo uns, tinha alterado a moeda corrente, mas, segundo
outros, teria sido o próprio Diógenes quem teria desejado tal e,
por isso, teria com o pai andado errante; outros, por fim, atribuíam
a Diógenes a cunhagem de moeda falsa. Quanto a Menipo, afirma
D. L. 6.99 que não tinha qualquer seriedade, era petulante a pedir,
emprestava dinheiro ao dia, concedia empréstimos na finança e nos
seguros marítimos, exigia garantias e deste modo enriqueceu. Dudley
admite a possibilidade de esta faceta ser apócrifa, pois foi veiculada
pelo pouco confiável Hermipo22. Dos comportamentos de Diógenes

19 Ao considerar os cínicos que, no período helenístico (c. 300-50 a.C.), exerce-


ram uma profunda influência literária, refere Desmond 2008: 12: Onesícrito, Cércidas,
Bíon, Teles, Menipo, Enómao e Meleagro.
20 OLD 959, s.u. Menippus.
21 Cutler 2005: 35.
22 Dudley 1998: 70.

373
e de Menipo, é possível depreender, desde logo, o contraste com a
habitual pregação cínica do despojamento, da frugalidade e da liber-
tação das paixões e ainda, respetivamente, a falta de respeito pelas
normas financeiras que regem a sociedade e a tentativa de delas tirar
partido. Em bom rigor, o comportamento de Diógenes é legalmente
mais condenável do que o de Menipo, que, do ponto de vista ético,
revela uma articulação pouco recomendável da pedinchice com o
empréstimo a juros. Em todo o caso, ambos revelam incoerência
com as palavras. Afigura-se, por conseguinte, pertinente perguntar:
pretenderão ambos, enquanto exemplos de desrespeito pelas nor-
mas financeiras e aproveitamento das práticas monetárias e como
indivíduos que acabam “castigados” pela sua ambição, instruir quem
os conhece ou visará Menipo imitar o comportamento dos cínicos e
cair no ridículo para criticar os mais conhecidos membros da seita?
São questões de difícil resposta, mas o facto de se não encontrar
em Menipo qualquer proposta edificante é para Relihan o sinal de
que apenas pretende parodiar a filosofia e realçar as incoerências
dos cínicos 23.
Importa, contudo, ressalvar que o cinismo de Menipo se reflete
na sua atitude relativamente ao mundo, mas não no modo de vida,
pois, ao contrário do que sucede com Diógenes, não temos notícia
de que tenha usado cajado e sacola, ou de que, embora tenha men-
digado, tenha pedido especificamente comida 24.
D. L. 6.100 informa que Menipo foi vítima de uma maquinação que
o despojou de todos os bens. Embora os cínicos não acreditassem na
Fortuna, a verdade é que, sem entrar em grandes pormenores e sem
aludir à referida divindade (Tyche), Laércio sugere que Menipo foi
vítima da inconstância da referida entidade, cuja roda está sempre
pronta a girar. Além disso, mais do que as palavras, funciona a vida
de Menipo como exemplo dos perigos em que incorre quem se fia
das riquezas e das paixões.

23 Relihan 1993: 39.


24 Navia 1996: 157. Sobre outros adereços dos cínicos, v. Navia 1996: 4.

374
No resumo mais geral da vida de Menipo, D. L. 6.110 ainda infor-
ma que, desesperado com a situação, Menipo pôs termo à vida por
enforcamento. A perda dos bens não se contava entre os motivos
que, para os cínicos, justificavam o suicídio, mas a consciência da
incoerência pode ter contribuído para este desfecho. Na poesia que
lhe dedica, D. L. reconhece que a morte de Menipo representa o
renegar da natureza de cão.
Laércio diz que havia quem sustentasse que as obras que a Menipo
se costumavam atribuir não tinham, na realidade, sido escritas por
ele, mas, em jeito de brincadeira, por Dionísio e Zópiro de Cólofon,
que lhas teriam confiado para que as divulgasse. Em 6.99, admitira,
no entanto, D. L. que a derisão era a marca dos livros de Menipo, e
conclui que treze são os livros do cínico (6.101): O mundo subter-
râneo (Νέκυια), Testamentos; Epístolas fictícias da parte dos deuses;
Contra os físicos, os matemáticos e os gramáticos; Sobre o nascimento
de Epicuro e Sobre as honras que lhe prestavam os Epicuristas a vinte
de cada mês, etc.
Importa desde já notar que há quem admita a existência de uma
lacuna antes das corruptas referências a Epicuro 25, que, no caso de
serem fidedignas, se enquadrariam na crítica aos epicuristas.
Quanto à Νέκυια, seguramente parodiaria, na tradição de Crates,
a descida de Ulisses aos infernos em Homero, Od. 11, e a importân-
cia do submundo nos mitos de Platão. A referida obra de Menipo
talvez tenha, como outra relativamente contemporânea, os Silloi de
Tímon de Fliunte, descrito a difícil situação dos filósofos no Hades e
influenciado Horácio, S. 2.5, Séneca, Apoc., e várias obras de Luciano.
Os Testamentos (Diathekai) talvez fossem uma paródia dos testa-
mentos dos filósofos, seguramente falsos e cómicos.
Talvez as Cartas artificialmente escritas como se fossem de deuses
fossem do tipo das “Epístolas Saturnais”, Epistolaì Kronikaí que, em
Luciano, Saturnalia, Crono troca com o seu sacerdote e profeta e

25 Cf. Relihan 1993: 229 n. 3.

375
com os ricos. É ainda possível que as primeiras tenham inspirado
as segundas.
D. L. 6.29-30 conta que Menipo, na Venda de Diógenes (Diogenous
prasis), relatara que, quando capturado, posto à venda e interrogado
acerca do que sabia fazer, Diógenes respondera que sabia coman-
dar os homens e ordenara ao arauto que o divulgasse, para o caso
de haver alguém interessado em comprar um mestre; impedido de
se sentar, argumentara que também os peixes, independentemente
da posição em que se encontrassem, se vendiam; manifestara o
seu espanto pelo facto de, na compra de uma panela ou de uma
sertã se avaliar pelo seu tinir o seu estado, e, no caso do homem,
se fazer depender a compra do aspeto exterior apenas; dissera ao
seu comprador que lhe obedecesse, do mesmo modo que se devia
obedecer a um escravo que fosse piloto ou médico. Num provável
eco das histórias sobre Platão, D. L. informa, em 6.74, que Menipo
havia sido capturado por piratas e vendido a um certo Xeníades de
Corinto, que não só lhe confiou a administração doméstica como a
educação dos filhos e considerava que tinha em casa uma espécie
de génio bom. A obra de Menipo talvez tenha sido a principal fonte
de informação para a história da captura de Diógenes de Sinope por
piratas e a sua venda para a escravatura 26. Esta obra talvez tenha
influenciado Luciano, Filosofias em leilão, mas Dudley sustenta que,
na primeira, Diógenes alcançaria uma elevação digna de admiração,
ao passo que, na segunda, seria, como os restantes filósofos, alvo
de crítica. 27
Ateneu 14.629F e 14.664E ainda fala num Symposion, onde a
ekpyrosis estoica aparecia descrita como uma dança, e num Arcesilaus,
que seguramente retrataria o chefe da Academia e satirizaria a vida
tranquila desta escola.
À teoria de G. Knaack, que, baseada na alusão ao prandium cani-
num de Men. 575 Cèbe, defendia que Hydrokyon se teria inspirado

26 Navia 1996: 157.


27 Dudley 1998: 71.

376
no Symposion de Menipo, Cèbe contrapõe que a paternidade é de
Varrão28. N’O hidrocão (Hydrokyon; Men. 575 Cèbe) – que, tomando
em consideração a chamada “pedagogia do vinho”, talvez se enqua-
drasse num banquete – talvez se possam vislumbrar as divergências
entre os cínicos, que defendiam a abstenção de vinho e bebiam água,
e Varrão que, na esteira de muitos médicos e filósofos (Platão, Smp.
4.176D; Xenofonte, Smp. 2), era pelo consumo moderado da referida
bebida alcoólica e lhe elogiava algumas propriedades [Men. 575 Cèbe;
cf. Men. 111 ss. (Est modus matulae. Περὶ μέθης. “Tem capacidade
limitada o penico. Sobre a embriaguez”)]. A instância de enunciação
– um cínico, como pretendem uns, ou o próprio Varrão, segundo
outros – compara o mau vinho à água do prandium caninum.
Há ainda quem admita a possibilidade de Menipo ter escrito Περὶ
θυσίων, ‘Sobre os sacrifícios’; há quem admita a possibilidade de
Menipo não ser o autor das obras perdidas que lhe são atribuídas29.
Estrabão 16.2.29 e Estêvão de Bizâncio, s. u. Γάδαρα, caracterizam
Menipo como spoudogeloios, isto é, alguém ‘que mistura o agradável/
engraçado com o sério’. Marco Aurélio 6.47 afirma que nem Menipo,
um dos encarniçados trocistas da vida perecível e efémera do ho-
mem, escapou à morte. Ao comentar Virgílio, Ecl. 6.31, Pseudo-Probo
afirma que Menipo usou omnigenum carmen 30 , e esta afirmação
pode significar que Menipo se inspirou em vários géneros (e é bom
recordar que o termo carmen podia abranger vários géneros líricos,
narrativos e dramáticos) ou simplesmente usou vários tipos de metro.
No plano das influências, vale a pena recordar o reconhecimento,
por parte de Cícero, em Ac. 1.8, da influência que sobre ele exerceu
Menipo: Et tamen in illis ueteribus nostris, quae Menippum imitati
non interpretati quadam hilaritate conspersimus, multa admixta ex
intima philosophia, multa dicta dialectice, quae quo facilius minus

28 Cèbe 1999: 2100.


29 J. Geffcken, “Menippos Περὶ θυσίων”, Hermes 66, 1931, 347-354 (encontrei esta
informação em Goulet-Cazé 1993: 131). Weinbrot 2005: 27.
30 ap. R. L. Hunter (OLD 959, s.u. Menippus).

377
docti intellegerent, iucunditate quadam ad legendum inuitati. Naqueles
textos que eu escrevi há anos, em que imitei, mas não traduzi, a obra
de Menipo, usei uma linguagem plena de humor, mas inseri muitas
referências a ideias filosóficas, disse muita coisa em estilo dialético,
para facilitar o entendimento aos menos cultos, e atraí-los para a
leitura pelo aprazível da linguagem. 31
Se o humor parece ser um traço menipeu, a inclusão de mui-
tas ideias filosóficas talvez seja da exclusiva responsabilidade de
Cícero 32, que também teria aproveitado de Menipo o estilo dialético
subjacente ao diálogo ou às explicações de natureza linguística, e
a linguagem aprazível. Talvez o passo sugira que, para os antigos,
Menipo, eventualmente até na linha do que inicialmente dissemos do
próprio cinismo, não primaria pela apresentação e desenvolvimento
de ideias filosóficas (ainda que refletisse “certain universal aspects
of the philosophical spirit” 33), mas por uma reação de tipo cínico
às circunstâncias que se lhe deparariam.
Aulo Gélio 2.18.7 e Macróbio 1.11.42 informam que os livros de
Menipo foram emulados por Marco Varrão (116-27 a.C.) nas suas
sátiras, às quais alguns chamavam “Cínicas”, e o próprio Varrão,
“Menipeias”. Daqui talvez se possa depreender que Menipo teria
escrito menipeias, às quais Varrão possivelmente teria acrescentado
erudição. No caso de se poder identificar, ainda que parcialmente,
Luciano com Menipo, o grande mérito deste, de acordo com Dudley,
talvez tenha sido, num desenvolvimento de tendências presentes no
Euthydemus e no Menexenus platónicos, a adaptação cómica e a
hibridização (prosímetro) de géneros cultivados por filósofos, como
o diálogo, habituado a refletir sobre os deuses, a Natureza e o Ciclo
do Universo (testemunho de Luciano em Bis accusatus), e a carta34.

31 Trad. de Segurado e Campos 2012: 215; a adaptação ao AO 1990 é minha.


32 Sobre a falta de erudição em Diógenes, v. Cèbe 1998: 1985.
33 Navia 1996: 5.
34 Dudley 1998: 73-74.

378
Mas, com o que da obra de Menipo nos chegou, esta conclusão talvez
se possa considerar abusiva.

III. A figura de Menipo e a sátira menipeia

3.1. A figura de Menipo em Varrão

Ao considerar a compreensão de Varrão relativamente à parrhesia


dos Cínicos e ao modo como invetivavam os corruptos e viciosos,
o choque do erudito com a falta de moderação e de civilidade dos
cínicos, a simpatia do primeiro pelo entusiasmo dos últimos e a imi-
tação, quando a mostarda lhe chegava ao nariz, da sua veia crítica,
escreveu Cèbe: “Et ce n’est pas pour rien qu’il s’était mis sous le pa-
tronage de Ménippe dont, sans nul doute, il démarquait usuellement
le ton et les procédés (plus encore que les motifs) dans l’ouvrage qui
nous intéresse.” 35 Destas palavras, é possível depreender que, para
o Varrão de Cèbe, não haveria grande diferença entre os cínicos e
Menipo, ou, pelo menos, não haveria uma diferença maior do que
aquelas que se poderiam encontrar entre os diversos cínicos.
Uma vez que Varrão, de acordo com Cèbe, não encontraria subs-
tanciais diferenças entre os cínicos e Menipo, talvez se possa admitir
a possibilidade de, em Men. 75 Cèbe (Caue canem), ser a referida
personagem ou alguém com ela em mente, a, em estilo herói-cómico,
recorrer a um registo elevado (comparação com a torrente do rio
que, quando embate num escolho rochoso, se torna branca) para
descrever a virulência dos ataques cínicos aos viciosos. Mas isto não
passa de conjetura.

35 Cèbe 1975: 315. E continua: “Somme toute, une fois de plus, son attitude
fait songer à celle d’Horace, qui raille les manières excessives des Cyniques, mais
approuve leur croisade contre le vice et se sert d’eux pour administrer à ses lecteurs
une leçon morale. Encore était-il sans doute moins rebuté que le délicat Horace par
les outrances de ces aboyeurs.”

379
Se, em Men. 82 Cèbe (Cynicus), como entende o editor, “la négli-
gence des Romains à l’égard des choses divines” e o incumprimento
dos deveres de estado relativamente ao culto se afiguram como “un
signe très alarmant de leur dégénérescence” 36, facilmente se perce-
be que esta não era uma das preocupações dos primeiros cínicos
gregos, mas do tradicionalista Varrão. O próprio Cèbe reconhece, de
resto, que quem fala não pode ser um cínico, mas um defensor da
ideologia tradicional romana, que criticaria a atitude cínica.
Há quem considere, à luz do Icaromenippus de Luciano, a meni-
peia Endymiones ‘Endimiões’ de Varrão, com base no pressuposto
de a ação de cada um dos textos ter que ver com a Lua, de em
ambos se descrever a visão da terra a partir de um ponto superior
(epískopos ou katáskopos) e de o texto de Varrão eventualmente
retratar personagens cujos temperamentos se assemelhassem, em
um ou mais aspetos, a Endímion/ Endimião, o jovem e belíssimo
pastor por quem a Lua/ Selene se tinha perdido de amores e que,
por intercessão desta, tinha obtido de Zeus um sono eterno, que o
conservava sempre jovem. Noutras versões, teria sido já em pleno
sono do jovem que Selene se teria apaixonado por ele. A sua amante
ter-lhe-ia dado cinquenta filhas.
Quanto a O cínico cavaleiro (Hippokyon), de que restam dois
fragmentos (Men. 220 e 221 Cèbe), o editor cuida tratar-se de uma
crítica à oligarquia dirigente, ao funcionamento das instituições
por volta de 70 a.C., ao laxismo subjacente à abertura das portas
do senado a pessoas sem grandes méritos (eventualmente libertos
e pedarii) e à hipocrisia que recorre a pretextos como a falta de
riqueza para dele excluir os indivíduos com méritos. 37 O problema

36 Cèbe 1975: 346.


37 Cèbe 1983: 1033 e 1038. F. Della Corte, referido por Cèbe, enquadrou a sátira
na sequência das reformas judiciárias de Gaio Graco (123) – que Varrão considerava
a causa das guerras civis –, de Quinto Servílio Cepião (106) e de Sula (81) – que
aos senadores deu o lugar dos cavaleiros nos júris permanentes –, e sustentou que
trataria a situação dos senadores que, por não terem exercido uma magistratura curul
ou não estarem ainda inscritos no album senatorium, não tinham voto deliberativo e
só podiam apoiar algum dos pareceres emitidos, coisa que faziam apenas por meio

380
é que os fragmentos subsistentes não permitem ter uma perspetiva
profunda sobre o modo como era feita a crítica. 38
A influência dos cínicos e da menipeia em Varrão é muito signifi-
cativa, mas o que para o nosso propósito mais interessa é a presença
mais explícita de Menipo na obra do reatino.
A figura de Menipo é o pretexto de uma menipeia de Varrão,
intitulada Ταφὴ Μενίππου, Taphê Menippou, “A tumba de Menipo”,
que reconstituiria uma celebração, feita por romanos do séc. I a.C.
junto do túmulo do próprio Menipo talvez em Tebas, e as palavras
de um daqueles (eventualmente do próprio Varrão, que pretenderia
dinamizar um debate aberto a todos os intelectuais; Men. 519 Cèbe),
no aniversário da morte de ille nobilis quondam canis, aquele célebre
‘cão’ de outrora, que deixara os homens que viviam sobre a terra-
-bola (Men. 516 Cèbe) 39.
Na boa linha dos laudatores temporis acti da sátira tradicional
romana, esta de Varrão estrutura-se a partir da antítese tunc, ‘en-
tão’… nunc, ‘agora’, mas, considerados embora em contraste com o
passado, o presente e a atualidade são o principal tema desta sátira.
Ora entre os exemplos de frugalidade (Men. 523 Cèbe) dos antigos
encontram-se precisamente as suas casas, tão simples quanto o tú-
mulo de Menipo (Men. 524-526 Cèbe).
Em Men. 517 Cèbe, é-nos dito que Diógenes conhecia a literatura
para uso doméstico, isto é, prático, e que outro (hunc), provavelmen-
te Menipo, a conhecia para falar com pessoas ilustres. É certo que
D. L. 6.104 informa que Diógenes cínico eliminou a música, a astro-

dos pés (discessio, ‘passar para o lado daquele que se apoia’). Varrão, de acordo com
Cl. Nicolet, citado com aprovação por Cèbe 1983: 1035, “a voulu parler des ‘cheva-
liers’ qui ‘votent’ à pied, c’est-à-dire des chevaliers en attente, nondum a censoribus
in [equitum turmas] lecti, mais qui, parce qu’ils avaient vocation au cheval public,
pouvaient se dire déjà equites designati”.
38 Os editores interrogam-se se Kynistor, kynodidaskalikon, kynorhetor, ‘O cínico
sábio, o ensinamento do cínico, o cínico orador’ são títulos de três menipeias ou se
o primeiro é uma má leitura do terceiro ou o título de um dos livros do segundo. A
primeira parte do título (Men. 230 Cèbe) trata de astronomia, um tema caro à diatribe
cínica e ao erudito Varrão.
39 A reconstituição do contexto pode ser encontrada em Cèbe 1998: 1981.

381
nomia, a geometria e a dialética, mas, em contraste com Antístenes,
que advertia que a literatura poderia causar distração (D. L. 6.103),
Diógenes conhecia os hábitos dos animais, citava Homero, inter-
pretava alegoricamente os mitos, escreveu diálogos e tragédias, que
talvez não passassem de paródias burlescas, e dominava o modo
paródico. A primeira parte e a comparação não indiciam a presença
de qualquer crítica a Diógenes. Quanto a Menipo, já vimos que teria
escrito diversas obras, e dele haverá o Amigo de dizer, em Luciano,
Nec. 2, que é philókalos, ‘amante da beleza’, ‘dotado de bom gosto’. É
possível que, ao aludir aos conhecimentos literários de Diógenes e de
Menipo, Varrão – de quem Quintiliano dizia que era uir Romanorum
eruditissimus, o varão mais erudito dos Romanos (Inst. 10.1.95), e cuja
erudição seria seguramente superior às dos dois cínicos considera-
dos – talvez indicie o desejo de fazer entroncar a sua vasta erudição
numa vertente, mais limitada embora, da tradição cínica e menipeia.
De Men. 518 Cèbe, sed ut canis sine coda, que o editor enquadra
no grupo dos que elogiam Diógenes 40, conclui o investigador que
“rien ne permet de déterminer quel personnage il désigne” 41. Relihan
e Cèbe entendem que o cão proverbialmente não morde quando
abana a cauda, pois este é um sinal de satisfação do animal relati-
vamente à presença humana. Correlativamente, a ausência de cauda
significa uma atitude ameaçadora 42. Importa, desde já, notar que,
do ponto de vista da etologia canina, a segunda afirmação não tem
qualquer fundamento. Cèbe ainda informa que os cínicos mordiam
os amigos e os inimigos.
Ao considerar a relação entre Zenão, fundador do estoicismo, e
seu mestre Crates, cínico, D. L. 7.4 sustenta que o primeiro escreveu
a República ἐπὶ τῆς τοῦ κυνὸς οὐρᾶς, sobre a cauda do cão. Dudley
admite a possibilidade de Zenão já ter abandonado a seita, mas ain-

40 Cèbe 1998: 1981.


41 Cèbe 1998: 1987.
42 Relihan 1993: 44; Cèbe 1998: 1987.

382
da se não ter libertado da cauda do cão 43. Talvez se possa ver na
expressão uma referência às ideias dos cínicos. À luz deste passo,
é de admitir a possibilidade de o fragmento varroniano se referir a
Menipo, que, apesar das aparências cínicas, já não comungaria das
ideias da seita. O problema é que não sabemos se Varrão se está a
referir a Menipo.
Ao comentar o Men. 528 Cèbe, onde alguém se queixa de a
quantidade de glutões em Roma incendiar os preços do trigo, isto é,
fazer encarecer os géneros e de, por ação daqueles, só ver os nédios
papa-figos e tordos a voarem, o editor-comentador nota que a crítica
à gula é comum na menipeia e admite a possibilidade de se seguir
uma crítica a um verdadeiro discípulo de Diógenes, de Menipo ou
dos antepassados romanos44. Por aqui se vê que, para o investigador,
a crítica de Varrão ao presente encontra em Diógenes, em Menipo e
nos maiores o contraponto positivo, isto é, o exemplo construtivo.
Em Men. 538 Cèbe, pode ler-se:

saltem infernus tenebrio, κακὸς δαίμων, atque habeat homines solli-


citos, quod eum peius formidant quam fullo ululam, ao menos um
velhaco infernal, um génio maléfico, e que mantenha os homens
inquietos, visto que o temem mais do que o pisoeiro à coruja.

Em contraste com quem vê no passo uma crítica à superstição,


que, uma vez desaparecida a religio, infundia nos homens, para os
manter na linha, receio, alega Cèbe que, ao contrário do frg. 484-
-489 Max de Lucílio, não emprega Varrão o plural no início, que os
singulares se não devem considerar coletivos, e interpreta assim o
passo: “Ménippe n’est plus parmi nous pour nous morigéner et on
ne saurait dire que son enseignement a eu le succès qu’il méritait.
Puisse-t-il du moins (saltem) se glisser fréquemment hors des enfers

43 Dudley 1998: 98.


44 Cèbe 1998: 1998.

383
pour jouer les trouble-fête sur la terre.”45 Em abono desta interpreta-
ção, recorda a Suda, s. u. φαίος, para sustentar a ideia de que Menipo
se via como uma espécie de espião, enviado pelo submundo, para
observar o comportamento humano e, por isso, se vestia como um
papão ou um espantalho 46. A referida interpretação, ainda segundo
o editor-comentador, fazia jus à agressividade e à consequente fama
de “terrores” de que gozavam os cínicos, tanto mais que, quer como
vivo quer como morto, continuará o Menipo de Luciano a atormentar
os ricos e poderosos nos infernos (Nec. 12; DMort. 2). Cèbe ainda
compara Menipo com o cínico Alcidamante, de quem Luciano diz,
em Symp. 12: “… é extraordinariamente “perito em vozeirão” e o mais
ladrador de todos os… cães, qualidade em que todos o julgavam
superior e altamente temível” 47.
Importa ter presente que Varrão, muito mais tradicionalista e
conservador, difere de Luciano no modo de encarar os deuses e dos
cínicos por exemplo na tolerância relativamente ao consumo mo-
derado de vinho (os cínicos defendiam a abstenção de vinho), mas
o primeiro e o segundo aproximam-se quando descrevem Menipo
como alguém que suscita desassossego nas personagens, vivas
num caso e mortas no outro, com quem interage. Além disso, a im-
pressão que causava não divergia substancialmente da de (outr)os
cínicos.
Em Men. 539 Cèbe, lê-se: inde putidas uuas acinis electis et comestis
extendit in lectis quasdam, depois, uma vez escolhidos e comidos os
bagos, espalha algumas uvas podres sobre os leitos. Para escarnecer
da pobreza da refeição, mesmo para os padrões cínicos, o senhor
da casa ou algum comensal antecipa-se a comer os bagos bons e
proporciona aos restantes convivas ou mostra-lhes uvas em escassa
quantidade e impróprias para consumo. Cèbe conclui: “Varron tourne

45 Cèbe 1998: 2015.


46 Cf. Relihan 1993: 45 ss.
47 Trad. de Magueijo 2013: 209-210.

384
par là en dérision la frugalité cynique lorsqu’elle est mise en avant
pour légitimer l’avarice et la goujaterie.” 48
Esta interpretação é muito interessante, pois, embora o editor-
-comentador não estabeleça uma ligação específica a Menipo, poderia
ajudar a compreender a expressão canis sine coda, isto é, o indiví-
duo que, renegando o desprendimento e frugalidade cínicos, deles
se serve para não ter de gastar mais com os convidados ou para se
satisfazer previamente com o que de melhor tem o banquete para
oferecer. Esta interpretação é atraente, mas o problema é que não
sabemos se aquela expressão se refere a Menipo, se, ao descrever o
comportamento do anfitrião ou de algum comensal indelicado, Varrão
teria, ou não, em mente o comportamento do próprio Menipo ou de
algum (outro) cínico. D. L. revela – como já vimos – incoerências
entre certos valores cínicos e os comportamentos de Diógenes e de
Menipo.
Em suma: dada a escassez de informação veiculada acerca de
Menipo, não só não é possível ter grandes certezas sobre o teor da
sua obra, como, a julgar pelos testemunhos de Varrão e D. L., não é
possível determinar se ele estaria mais distante dos (outros) cínicos
do que eles andariam uns dos outros; em todo o caso, é notória
uma incoerência entre os valores cínicos e o que D. L. nos diz da
vida de Menipo, incoerências essas do tipo das que encontramos em
(outros) cínicos. Se seria algum arremedo, com o intuito de ridicula-
rizar a seita, não é possível determinar. Quanto à parte construtiva
da crítica, não se vislumbra no testemunho de D.L. e, sendo embora
possível na menipeia de Varrão, o caráter fragmentário do texto não
nos permite tirar uma conclusão segura.
No retrato que faz dos “satiriques schizothymes”, W. A. Pannenborg
cataloga um conjunto de características que, depreendemos, os apro-
ximam das ideias mais negativas e tradicionalmente associadas aos
cínicos, mas Cèbe entende que Varrão era dos sentimentais, escrevia sá-
tira com humor, porém não era um rematado nem um grande satírico,

48 Cèbe 1998: 2017.

385
pois a sua própria natureza, mais até do que os constrangimentos
gerados pelo contexto romano, não só o impedia de criticar aberta
e publicamente e com agressividade as pessoas como, no caso de
se irritar, o levava a uma autocensura, de forma a nunca perder por
completo o controlo 49. Inegável é a vertente construtiva, subjacente
p. ex. à atitude para com o vinho e os deuses, presente na sátira do
tradicionalista e aristocrático Varrão.

Bibliografia

Abreviaturas

OCD Hornblower, S., & Spawforth, A. (eds.) (2003, 3ª ed.), The Oxford Classical
Dictionary. Oxford, University Press.

Estudos, edições e traduções

Cèbe, J.-P. (1975), Varron, Satires Ménippées, vol. 3. Rome: École Française de Rome.
Cèbe, J.-P. (1983), Varron, Satires Ménippées, vol. 6. Rome: École Française de Rome.
Cèbe, J.-P. (1998), Varron, Satires Ménippées, vol. 12. Rome: École Française de Rome.
Cèbe, J.-P. (1999), Varron, Satires Ménippées, vol. 13. Rome: École Française de Rome.
Cutler, I. (2005), Cynicism from Diogenes to Dilbert. Jefferson, North Carolina-London:
McFarland & Co.
Desmond, W. (2008), Cynics. Stocksfield: Acumen.
Dobbin, R. (2012), The Cynic Philosophers from Diogenes to Julian. London: Penguin.
Dudley, D. R. (1998, 2ª ed.), A History of Cynicism. From Diogenes to the 6th Century
AD. Repr. 2003. Bristol: Bristol Classical Press.
Gomes, C. H. (2000), Cícero. Dos Deveres. Lisboa: Edições 70.
Goulet-Cazé, M.-O. (1993), “Les Premiers Cyniques et la Religion”, in M.-O. Goulet-Cazé
& R. Goulet (eds.), Le Cynisme Ancien et ses Prolongements. Paris: PUF, 117-158.
Griffin, M. T. (1993), “Le mouvement cynique et les Romains: attraction et répulsion”,
in M.-O. Goulet-Cazé & R. Goulet (eds.), Le Cynisme Ancien et ses Prolongements.
Paris: PUF, 241-258.
Magueijo, C. (2013), Luciano de Samósata. Luciano [VI]. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra.

49 Cèbe 1975: 351-2.

386
Navia, L. E. (1996), Classical cynicism: a critical study. Westport, Connecticut-London:
Greenwood Press.
Relihan, J. C. (1993), Ancient Menippean Satire. Baltimore and London: The Johns
Hopkins University Press.
Segurado e Campos, J. A. (2012), Marco Túlio Cícero. Textos filosóficos. Lisboa: Gulbenkian.
Weinbrot, H. D. (2005), Manippean Satire Reconsidered: Baltimore: The Johns Hopkins
University Press.

387
(Página deixada propositadamente em branco)
M o n ta n h a s e m P l í n i o o A n t i g o *

T h e M o u n ta i n s i n P l i n y t h e E l d e r

Francisco Oliveira
CECH
ORCID: 0000-0003-4871-243X
foliveir@fl.uc.pt

Resumo: O trabalho baseia-se num corpus textual resultante de leitura


pessoal e da pesquisa, na História Natural, de todas as ocorrências
dos termos latinos para designar montes e montanhas e seus correlatos
(collis, iugum, mons, montani, montanus, montosus e montuosus), e
de algumas montanhas e cordilheiras mais conhecidas e marcantes
(Aetna, Alpes, Apenninus, Atlas, Caucasus, Corycus, Ida, Inalpinus,
Pyrenaeus, Taurus). As ocorrências de promunturium não foram con-
sideradas, exceto quando especificamente identificados como montes.
Para a compreensão da temática, anote-se que Plínio segue o critério
geográfico de Estrabão ao seriar as montanhas ao lado dos habitan-
tes, mares, cidades, rios, etc. Isto é, na metodologia usada “não se
compreende a geografia física (situação, mares, montanhas, rios)
separadamente da económica (portos e distâncias) e da humana (ha-
bitante, cidades e povos)” 1.

* Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para
a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto CECH-UC: UIDB/00196/2020.
This research is financed by national funds through the Foundation for Science and
Technology, FCT, I.P., in the framework of the CECH-UC project: UIDB/00196/2020
1 Oliveira 1994: 33. Cf. Nat.3.47: Igitur ab amne Varo Nicaea a Massiliensibus con-
ditum, fluvius Palo, Alpes populique Inalpini multis nominibus, sed maxime Capillati,
oppido Vediantiorum civitatis Cemenelo, portus Herculis Monoeci, Ligustina ora.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_18
Não admira, por isso, que o tema da montanha ofereça colorações
várias, desde as puramente geográficas às históricas, morais, culturais
e económicas.
Que o ponto de vista económico está presente, mesmo quando en-
volto em tonalidade moralista ou sujeito a um critério de seriação
baseado no extraordinário, no inabitual, no paradigmático, eis uma
das novidades que é preciso ressaltar, sobretudo quando se ouve que
os antigos não tinham um critério ou um pensamento económico.
Palavras-chave: diatribe, economia, geografia, montanha, Roma

Abstract: This contribution is based on a textual corpus resulting from


personal reading and research, in Natural History, of all occurrences of
the Latin terms to designate hills and mountains and their correlates
(collis, iugum, mons, montani, montanus, montosus and montuo-
sus), and some of the most well-known and striking mountains and
mountain ranges (Aetna, Alpes, Apenninus, Atlas, Caucasus, Corycus,
Ida, Inalpinus, Pyrenaeus, Taurus). The occurrences of promuntu-
rium were not considered, except when specifically identified as
mounts.
For the understanding of the subject, it should be noted that Plinius
the Naturalist follows Strabo’s geographical criterion when serializing
the mountains next to the inhabitants, seas, cities, rivers, etc. That
is, “physical geography (situation, seas, mountains, rivers) is not un-
derstood separately from the economic (ports and distances) and the
human (inhabitants, cities and peoples) geography”.
It is not surprising, therefore, that the mountain theme offers different
colors, from purely geographical to historical, moral, cultural and
economic.
That the economic point of view is present, even when wrapped in a
moralistic tonality or subject to a criterion of serialization based on
the extraordinary, the unusual, the paradigmatic, this is one of the
novelties that must be emphasized, especially when it is heard that
the ancients did not have a criterion or an economic thought.
Keywords: diatribe, economy, geography, mountain, Rome

390
1. Montes como realidade geográfica e científica

Na sua descrição do orbe terrestre, cuja esfericidade acentua, Plínio


releva a existência de imensas montanhas altaneiras e de imensos
territórios planos (2.160), bem como de regiões especialmente monta-
nhosas, como a provínica da Tingitânia (5.17: provincia ... montuosa).
O desejo de conhecer a altura das montanhas é reportado por
Plínio ao grego Dicearco de Messina (fl. 320-300 aC), que, por ordem
régia, considerou o Pélio como a mais alta das montanhas. Plínio
aproveita para o corrigir, declarando que, por experiência própria,
essa primazia deve ser dada aos Alpes (2.162; cf. 3.132, 37.23).
É também com base na experiência pessoal que afirma existirem
terramotos em zonas montanhosas (2.194: nec montuosa tali malo
carent), que o próprio naturalista experienciou nos Alpes e nos
Apeninos (2.195: exploratum mihi est Alpes Appenninumque saepius
tremuisse). A correção de informações anteriores significa que o
conhecimento geográfico na época de Plínio superara o de épocas
anteriores, alargando-se a regiões tão remotas como a Mauritânia e
até a partes mais longínquas da África (5.14: o Atlas), à Índia (2.184)
e à Etiópia, cujas montanhas mais altas e com vulcões são indicadas
(2.205, 237-238; cf. 6.188: continui montes ardentibus similes rubent).
Além de serem incluídas na narrativa geográfica –como o Pindo,
o Eta, as montanhas da Ftiótide na descrição da Grécia (4.28-29), os
montes da Samaria onde se situavam as cidades de Sebale e Mágala
(5.69), os vários montes da região entre Cárax e os Ictiófagos do
Golf Pérsico (6.147-150)–, as montanhas parecem por vezes ser uma
forma de a natureza equilibrar o excesso de istmos, baías e ensea-
das, como no Peloponeso, com os seus 76 montes a travar o avanço
do mar sobre a terra (4.22), ou como o Tauro, que se estende da
costa mediterrância em direção ao oriente, em luta constante com
o elemento aquático e assumindo vários nomes (5.97-99: mediam-
que distrahens Asiam, nisi opprimenti terras occurrerent maria ...
de industria rerum natura subinde aequora opponente ... effugiens
quoque maria).

391
A preocupação de assinalar a ordem de grandeza, como no caso
do Pélio, é generalizada, desde a Itália (3.48: Appenninus mons
Italiae amplissimus; cf. 3.117: Padus, e gremio Vesuli montis cel-
sissimum in cacumen Alpium) até regiões mais distantes, como a
Escandinávia (4.96. mons Saevo, inmensus nec Ripaeis iugis minor
... alterum orbem terrarum eam appellant), a Germânia (4.100: mons
Masicytus ... nullo inferius nobilitate Hercynium iugum), a África,
com o monte Atlas (5.14: de excelsitate eius), e a Índia (6.74: mons
altissimus Indicorum Capitalia).
As montanhas aparecem muito ligadas à hidrografia em vários
passos que anotam a existência de fontes ou nascentes mesmo nos
cumes mais elevados (2.223: exilire fontes atque etiam in Aetnae
radicibus, flagrantis), o que implica uma explicação para tal fenó-
meno (2.166):

... atque etiam in summis iugis erumpente, quo spiritu acta et ter-
rae pondere expressa siphonum modo emicat tantumque a periculo
decidendi abest, ut in summa quaeque et altissima exsiliat.

... e, brotando até nas montanhas mais altas, jorra sob a pressão do
referido sopro e do peso da terra, como se de um sifão se tratasse,
e é de tal modo inexistente o perigo de derrocada que irrompe
nas maiores alturas.

Noutros casos são assinaladas montanhas onde nascem rios, como


em 3.117, sobre o Pó; 4.79, sobre o Istro ou Danúbio (Ortus hic in
Germania iugis montis Abnovae); 5.110 sobre a Jónia e o monte Tmolo
(ex quo profluente Pactolo eodemque Chrysorroa ac fonte Tarni); 5.113,
sobre o Meandro (amnis Maeander, ortus e lacu in monte Aulocrene);
5.115, sobre o Caístro da região de Éfeso (adluitur Caystro, in Cilbianis
iugis orto); 6.29, sobre um rio na Hibéria (discreta ab iis amne Ocazane
in Cyrum Caucasis montibus defluente); 6.48, sobre as fontes do Indo,
na região do monte Paropâniso, onde habitam os Bactrianos; 6.65,
sobre o Ganges, nascido nos montes Cíticos, segundo alguns.

392
Também é explicitada a relação entre clima e relevo, pois as in-
flexões e cumes das montanhas condicionam o regime dos ventos
(2.115); são atingidas por raios (2.113); no caso dos montes Rifeus,
na região cítica, o seu término assinala uma mudança climática (6.34:
fluvius Carambucis, ubi lassata cum siderum vi Ripaeorum montium
deficiunt iuga). De resto, as montanhas aparecem ligadas a tempes-
tades, como na Índia (9.5: tunc deiectae montium iugis procellae),
e, para além de observatório metereológico (5.80, monte Cásio, na
Síria), fornecem prognósticos sobre o tempo através de certos ruídos
(18.360) e da sua relação com as nuvens (18.356-357):

356. cum in cacuminibus montium nubes consident, hiemabit.


si cacumina pura fient, disserenabit. .... 357. Nebulae montibus
descendentes aut caelo cadentes vel in vallibus sidentes serenitatem
promittent.

Quando as nuvens ficam imóveis sobre os cumes das montanhas,


é sinal de mau tempo. Se os cumes ficam sem nuvens, haverá acal-
mia. Nevoeiro a descer das montanhas ou a cair do céu ou imóvel
sobre os vales, é anúncio de acalmia.

As montanhas relacionam-se ainda com fenómenos de vulcanis-


mo, e Plínio mostra-se especialmente impressionado com a visão
noturna do fogo, como no caso do Etna, sempre a arder (2.236: ar-
det Aetna noctibus semper). Assim no monte Quimera, na região de
Fasélis, na Lícia, e próximo da cidade de Heféstio (2.236 e 5.100); na
Etiópia (2.238: maximo tamen ardet incendio Theon ochema dictum
Aethiopum iugum torrentesque solis ardoribus flammas egerit; 6.197:
mons excelsus aeternis ardet ignibus, Theon Ochema dictus Graecis);
na Bactriana (2.237: flagrat in Bactris Cophanti noctibus vertex); na
Sicília, o Etna (2.234 e 236: in Aetnae radicibus, flagrantis in tantum,
ut quinquagena centena milia passuum harenas flammarum globo
eructet ... Aetna noctibus semper tantoque aevo materia ignium sufficit;
3.88 sobre o vulcão do monte Etna – mons Aetna, nocturnis mirus

393
incendiis–, com permanentes chamas e um ruído que se ouve até às
colinas Gémeas, atualmente nos montes Cammarata; nas ilhas Eólias,
e nelas Hiera, consagrada a Vulcano, com o seu vulcão sobre uma
colina, Estrôngile com o Stromboli, e Líparis, cujos famosos vulcões
iluminavam as noites (3.93: appellata Hiera, quia sacra Volcano est,
colle in ea nocturnas evomente flammas).
Não faltam sequer referências a fenómenos de erosão ou transgres-
são, como quando Plínio se compraz a descrever o quadro dantesco
da luta entre a terra e o mar e se refere às Colunas de Hércules,
atualmente conhecidas como Estreito de Gibraltar, resultado da fúria
do oceano contra as montanhas que vedavam o acesso do Atlântico
ao Mediterrâneo (6.1: inripuisse fractis montibus Calpeque Africae
avolsa tanto maiora absorbuisse quam reliquerit spatia).
Merece ênfase a descrição do curso do Eufrates pela cordilheira
do Tauro, uma espécie de luta épica entre dois gigantes 2, ora ven-
cendo um, ora vencendo outro (5.83-85):

85. Arabiam inde laeva, Orroeon dictam regionem, trischoena


mensura, dextraque Commagenen disterminat, pontis tamen, etiam
ubi Taurum expugnat, patiens. apud Claudiopolim Cappadociae
cursum ad occasum solis agit. primo hunc illic in pugna Taurus au-
fert victusque et abscisus sibimet alio modo vincit ac fractum expellit
in meridiem. ita naturae dimicatio illa aequatur, hoc eunte quo
vult, illo prohibente ire qua velit. a catarractis iterum navigatur.

A partir daí, com a largura de 3 arpentes (sc. c.174m), serve de


limite à Arábia na região chamada dos Órreos, mas consentindo
uma ponte até no sítio onde vence o Tauro. Em Claudiópolis da
Capadócia vira o seu curso em direção ao ocaso do sol; aí, pela
primeira vez nessa luta, o Tauro leva a melhor; e, vencido e dividi-
do em si mesmo, vence o Eufrates de outra maneira: quebrando-o,

2 Murphy 2004: 148-151.

394
empurra-o para sul. Assim se equilibra esta batalha da natureza,
indo este por onde quer, impedindo-o aquele de ir por onde queria.
A partir das cataratas torna a ser navegável.

Quanto aos nomes atribuídos a montanhas de regiões tão diver-


sas, e apesar das reticências quanto a citar termos locais, como a
propósito da África (cf. 5.1: populorum eius oppidorumque nomina
vel maxime sun ineffabilia praeterquam ipsorum linguis), Plínio não
deixa de recordar amiúde os nomes pré-romanos, como no caso do
Atlas, cuja designação indígena seria Díris, actual Adiris (5.13); ou
do Cáucaso, cuja designação cita significaria branco, coberto de neve
(6.50: Scythae ipsi Persas Chorsaros et Caucasum montem Croucasim,
hoc est nive candidum) 3.
As montanhas relacionam-se ainda com a existência de povoados
(3.109: os Sabinos habitam em colinas húmidas; 6.47: nas alturas do
Cáucaso, até à Bactriana, vivem os Mardos, povo selvagem, indepen-
dente; 6.48: os Bactrianos habitam vertentes do monte Paropâniso);
e com o nome dos seus habitantes, conhecidos como montani ‘mon-
tanheses, serranos’ (6.73-75, sobre os povos serranos entre o Indo e
o Iómanes, afluente do Ganges, alguns deles livres de reis: Gentes
montanae ... hos Indus includit montium corona ... incolae liberi
et regum expertes multis urbibus montanos optinent colles ... quos
claudit mons altissimus Indicorum Capitalia).
Plínio regista mesmo a questão da erosão dos solos nas colinas
por motivo de lavoura, quando diz que esse problema não existe

3 Mesmo omitindo por vezes designações bárbaras (3.28 ignobilium ac barba-


rae appellationis; mas não em 4.97 barbara Austeravia), na sua enciclopédia Plínio
amiúde transmite o nome primitivo (4.27 Locri deinde Epicnemidii cognominantur,
olim Leleges), popular (2.210 qui volgo morticini appellantur) ou local (2.107 orygem
appellat Aegytus feram; 4.27 postea Maliacus sinus ab incolis dictus; 4.53 Teleboides
eaedemque Taphiae ab incolis; 6.36 sobre o mar Cítico: pluribus nominibus accola-
rum appellatum celeberrimum est duobus, Caspium et Hyrcanium; 6.71: Indus, incolis
Sindus appellatus; 27.101: Limeum herba appellatur a Gallis). Comum é registar a
designação em grego, à míngua de nome latino (21.50: chrysocome sive chrysitis non
habet Latinam appellationem), ou sobrepor a latina à grega, como em 22.135 (est et
herba phoenice appellata a Graecis, nostris vero hordeum murinum; cf. 32.140; 32.154).

395
quando se lavra com a técnica correta (17.29, perite; cf. 17.170: rasgar
sulcos perpendiculares à base). E, no domínio agrário, anota-se que
as colinas suportam maior número de árvores de plantio do que as
planícies (17.92: iam per se colles minora quaerunt intervalla); que,
segudo Magão, em colinas com solos secos e argilosos, o plantio da
oliveira devia fazer-se entre o outono e o solstício de inverno (17.128,
olea); a poda do ulmeiro em colinas e terrenos secos será diferente
da poda dos de planície e terrenos húmidos (17.201: ulmus); a lavra
deve adaptar-se ao terreno, dispensar os bois e lavrar só com sachos
em zonas montanhosas (18.178-179: montanae gentes sarculis arant).
De igual modo regista fenómenos geológicos de grande dimensão,
como o colapso de parte do monte Taigeto causada por um terra-
moto (2.191); a existência de mar até aos montes da Etiópia (2.201);
o completo desaparecimento do monte Epopo, nas ilhas Pitecusas,
por um fenómeno de vulcanismo (2.203); o surgimento de uma ilha
montanhosa por ocasião de terramoto, a ilha Próquite (2.203); a
colisão de duas montanhas perto de Mútina, atual Módena, no segui-
mento de um terramoto (2.199); a derrocada dos montes escavados
para mineração do ouro na Hispânia (33.66: ruina montium; 73:
mons fractus cadit ... ruinam naturae; 74: ruinam iugis montium;
76: ruptusque mons diluitur); a já referida abertura das Colunas de
Hércules entre duas montanhas, Ábila em África, Calpe na Europa,
o que mudou a face da natureza (3.4).
Em suma, o valor das montanhas é referido por Plínio no elogio
da Itália, onde consta que para a sua glória contribuem os seus
montes cheios de desfiladeiros (37.201).

2. Montes como limites de regiões e nações

O termo finire ‘delimitar, servir de limite ou fronteira’, verbo


correspondente ao substantivo finis e a derivados como finitimus,
confinis e confinium, bem como os verbos disterminare e determi-
nare ‘delimitar, separar por limites’, derivados de terminus ‘marco,

396
termo’4, relacionam-se com montanhas em 3.115, sobre a oitava região
da Itália (Octava regio determinatur Arimino, Pado, Appennino); em
5.61 (ubi montes finiunt Thebaidem); em 5.97, sobre a Panfília e a
Lícia (Taurus mons ... disterminat); em 6.37 (Caspium mare gentesque
quae circa sunt et cum iis Armeniam, determinatas ab oriente oceano
Serico, ab occidente Caucasi iugis...). Mas outros termos assinalam
o início ou o limite de regiões ou territórios em correlação com
montanhas, como discernere, excludere, incipere. E que estas são
fronteiras que a natureza desejaria invioláveis, reservando-as para
si, fica bem explícito em 36.1-2, passo que havemos de reencontrar
no capítulo 6.
As montanhas, a par dos cursos de água 5 , aparecem recorren-
temente como importantes marcos na descrição geográfica para
assinalar limites entre províncias, regiões e nações. Assim acontece
para delimitar a Tarraconense e estabelecer a sua fronteira com a
Lusitânia (3.6: amne Ana discreta); ou para separar as Hispânias
das Gálias (3.18: ab Alpibus ad fines Hispaniae ulterioris; 3.29-3.30:
Pyrenaei montes Hispanias Galliasque disterminant; 3.29: ad finem
Castulonis; 3.43: ab Inalpino fine); ou a Gália da Itália (3.31 ab
Italia discreta Alpiumque vel saluberrimis Romano imperio iugis);
para delimitar a Gália (4.105: Vniversa oram ¯|XVII| . ¯L Agrippa,
Galliarum inter Rhenum et Pyrenaeum atque oceanum ac montes
Cebennam et Iures, quibus Narbonensem Galliam excludit) e a Hispânia
e indicar as respetivas distâncias (4.110: A Pyrenaei promunturio
Hispania incipit ... a Pyrenaeo per oceanum; cf. 4.114-115 e 118);

4 Cf. Nat.3.3: hinc intranti dextera Africa est, laeva Europa, inter has Asia.
termini amnes Tanais et Nilus. A importância dos marcos dos terrenos, a assinalar os
limites da propriedade, está bem atestada em 18.8 (Numa institui as Terminalia, festas
privadas em honra do deus Terminus). Do domínio agrícola e privado, o termo terá
transitado para a ideia geral de limite ou fronteira (cf. 6.120: ductu Pompei Magni
terminus Romani imperi, Oruros; 7.117: quanto plus est ingenii Romani terminos in
tantum promovisse quam imperii).
5 Os cursos de água são de importância extrema na geografia pliniana, em
domínios como a economia e o urbanismo, e em especial como orientadores da
descrição e traçado de fronteiras e limites; neste caso, ver, por exemplo, 3.16; 3.115;
3.127; 4.38; 5.142; 6.9; 7.30.

397
a Índia oriental (6.56: Hemodi montes adsurgunt Indorumque gens
incipit; 6.25: Armenia autem Maior incipit a Parihedris montibus;
6.60: par labos sit montes enumerare. iunguntur inter se Imavus,
Hemodus, Paropanisus, Caucasus a quibus tota decurrit in planitiem
inmensam et Aegypto similem); a Europa citerior (1.118: a Cerauniis
montibus incipit) ou a Fenícia (36.190: Phoenice ... finitima Iudaeae
intra montis Carmeli radices).

Embora constituam obstáculos por vezes difíceis de transpor, as


montanhas também oferecem desfiladeiros ou passagens emblemá-
ticas como os de São Bernardo (3.123: iuxta geminas Alpium fores),
os das Termópilas (4.28: Thermopylarum angustiae), e as célebres e
controversas Portas do Cáspio (5.99, 6.30, 40) ou do Cáucaso (6.30,
40) ou da Cilícia (5.91, 99) 6, as Portas da Arménia (5.99), as Portas
da Hibéria (6.40) 7, as Portas do Amano, na zona da Síria (5.91, cf.
5.80, da Síria). Ou, no polo oposto, fornecem lugares de difícil aces-
so, como a capital dos Partos, Persépolis (6.115: qua vero ipsa subit
ad Medos, Climax Megale appellatur locus arduo montis ascensu
per gradus, introitu angusto, ad Persepolim, caput regni, dirutam
ab Alexandro).
O facto de tanto gregos como latinos darem um nome específico
aos habitantes de regiões montanhosas (3.124: Oromobiorum stirpis
... a Graecia interpretatione etiam nominis vitam in montibus degen-
tium; 3.111, sobre o Piceno: Cuprenses cognomine Montani; 3.135:
Ligures et qui Montani vocantur; 4.108: saltus Pyrenaeus infraque

6 A controvérsia sobre a identificação destas 3 Portas é referida em 5.99 (Portarum


tamen nomine unitatem sibi vindicans, quae aliubi Armeniae, aliubi Caspiae, aliubi
Ciliciae vocantur); 6.30 (Portae Caucasiae, magno errore multis Caspiae dictae); 6.40
(Corrigendus est in hoc loco error multorum, etiam qui in Armenia res proxime cum
Corbulone gessere. Namque ii Caspias appellavere Portas Hiberiae, quas Caucasias
diximus vocari).
7 Para o Naturalista, a controvérsia vinda das fontes antigas, e em especial das
ligadas à expedição de Alexandre Magno, cuja importância científica é reconhecida
em 6.40 (sunt autem aliae Caspiis gentibus iunctae, quod dinosci non potest nisi
comitatu rerum Alexandri Magni), pode ser corrigida graças à expedição de Nero,
isto é, graças ao alargamento do conhecimento geográfico promovido pelo Império
Romano, que assim suplanta as façanhas de Alexandre. Ver Oliveira 2020.

398
Monesi, Oscidates Montani; 5.100, sobre a Lícia: nunc sunt montana
Gagae, Corydalla, Rhodiopolis), indicia que os mesmos teriam um
modo de vida singular e percebido como diferente. É também o caso
dos Inalpini, os habitantes dos Alpes (3.37, 47: populique Inalpini
multis nominibus), e dos Transmontani das Astúrias (3.28).
Sem discutir a questão, admito subjazer aqui a ideia de que habitar
sobre um colina pode ter motivações defensivas, como no caso de
Cárace, construída numa colina artificial na confluências dos rios
Tigre e Euleu (6.138).

3. A montanha como fator económico

Os produtos da montanha aparecem com frequência altamente


valorizados e específicos, avultando os usos medicinais, e é indicado
o preço e a forma como se podem falsificar (adulterare).
Há, todavia, a consciência de que, no caso da agricultura, colinas
e montanhas condicionavam as técnicas de cultivo. Assim, como já
antes se entreviu, na escolha dos solos para cada cultivo, ter-se-á
em conta, por exemplo, que as colinas dão um trigo mais robusto,
embora em menor quantidade (18.166, triticum).

3.1. Zoologia e produtos animais terrestres e aéreos

Na zoologia, são qualificados como excelentes, apesar de pouco


corpulentos, os bovinos dos Alpes, muito aptos para o trabalho e a
produção leiteira (8.179); aí também existem cabras e gamos (8.214),
lebres brancas (8.217), javalis (11.280: apros in Pamphylia et Ciliciae
montuosis); os ricos prados de montanha, dos Alpes aos Apeninos,
fornecem bons queijos, em especial de ovelha (11.240-241); o mel
do monte Carina, em Creta, nunca atingido por moscas, pela sua
singularidade é ótimo para fins medicinais (21.79); o monte Pélio

399
fornece pastos de ditamno que tornam o leite da suas vacas uma
mezinha para todas as doenças (25.94).
No número de aves inserem-se sobretudo as usadas na alimenta-
ção: o tetraz (tetrao urogallus) e outras aves comestíveis dos Alpes
e regiões setentrionais (10.56), e a pêga, entre os Apeninos e Roma
(10.77). Sobressaem as aves canoras, suscetíveis de fornecer iguarias
muito exóticas, como no caso do banquete do ator Clódio Esopo
(10.141-142) e do flamingo louvado pelo gastrónomo Apício, o qual
se encontra nos Alpes, tal como o francolim, o corvo, a gralha de
bico amarelo e o lagópode, e até a íbis do Egito (10.133-134; ver
tradução dos dois passos no capítulo 6.1).
O Etna é louvado por produzir caracóis de primeira qualidade,
os quais tinham virtudes medicinais importantes, como nas dores
do estômago e na hemoptise (30.44, coclea).

3.2. Flora, produtos vegetais, campos e pastagens

Plínio o Antigo apresenta o catálogo da flora específica de mon-


tanha e de planície em 16.73-74:

73. Nunc celeberrimis arborum dictis quaedam in universum


de cunctis indicanda sunt. montes amant cedrus, larix, taeda et
ceterae, e quibus resina gignitur, item aquifolia, buxus, ilex, iu-
niperus, terebinthus, populus, ornus, carpinus. est in Appennino
et frutex, qui vocatur cotinus, ad linamenta modo conchylii colore
insignis. 74. montes et valles diligit abies, robur, castaneae, tilia,
ilex, cornus. aquosis montibus gaudent acer, fraxinus, sorbus, tilia,
cerasus. non temere in montibus visae sunt prunus, punicae, oleas-
tri, iuglans, mori, sabuci. descendunt et in plana cornus, corylus,
quercus, ornus, acer, fraxinus, fagus, carpinus. subeunt et in mon-
tuosa ulmus, malus, pirus, laurus, myrtus, sanguinei frutices, ilex
tinguendisque vestibus nascentes genistae.

400
73. Indicadas as árvores mais célebres, convém considerar
algumas generalidades a respeito de todas elas. Têm preferência
por montanhas o cedro, o larício, a taeda e as restantes que pro-
duzem resina, tal como o azevinho, o buxo, a azinheira, o zimbro,
o terebinto, o choupo, o freixo silvestre, a carpa. Nos Apeninos
também existe um arbusto que se chama fustete, muito bom para
tingir tecidos de linho ao jeito da púrpura. 74. Têm preferência
por montes e vales o abeto, o carvalho, o castanheiro, a tília, a
azinheira, o corniso. Com montanhas húmidas deleitam-se o ácer,
o freixo, a sorveira, a tília, a cerejeira. Não é fácil encontrar nas
montanhas a ameixoeira, a romanzeira, zambujeiros, a nogueira,
amoreiras, sabugueiros. Também descem até à planície o corniso,
a aveleira, o carvalho, o freixo silvestre, o ácer, o freixo, a faia,
a carpa. E sobem até zonas montanhosas o olmo, a macieira, a pe-
reira, o louro, o mirto, o corniso sanguíneo, a azinheira e as giestas
usadas para tingir vestuário.

Por outro lado, há consciência das diferenças existentes na mes-


ma árvore, conforme são de planície ou de montanha, e esta parece
levar a palma (16.77):

quaecumque communia sunt montibus planisque, maiora fiunt et


aspectu pulchriora quae in campestribus, meliora autem fructu,
materie crispiora quae in montibus, exceptis malis pirisque.

Em relação a todas as plantas comuns a montes e planícies, as


do campo são maiores e de aspeto mais bonito, mas são maiores os
frutos e mais rija a madeira das árvores de montanha, com exceção
da macieira e da pereira.

As montanhas estão ligadas às ideia de raridade da flora (16.265:


silvestrium arborum remotarumque, ut in saltus devios montesque),
e de excelência, que fui registando ao longo do trabalho através dos
epítetos, juízos de valor e superlativos utilizados, recordando agora

401
que é proclamada a excelência da montanha para a produção de
frutos e árvores em geral (17.18: praefert ... et montuosa planis); e
uma das razões da excelência dos campos itálicos é que declivam
lentamente desde o sopé das montanhas em direção ao sul (17.36).
Como exemplo de raridade, o Atlas oferece a planta que recebeu
o nome do médico que a descobriu, Eufórbio, e o seu suco mere-
ce admiráveis elogios pelas vantagens em doenças oftalmológicas
e contra serpentes e venenos (5.16, herba euphorbea). De resto, a
medicina é descritor comum a muitas plantas 8.
O monte Pélio produz um espinheiro ou buxo espinhoso também
chamado pyxacanthus chironius, cuja raiz serve para a contrafação
do remédio lycion, proveniente da Índia (12.31). O ásaro nasce em
montanhas cobertas de sombra (12.47, asarum). O incenso dos
Atramitas, da tribo dos Sabeus, nasce espontaneamente em montes
muito altos e em colinas, em especial na região de Sariba, sendo
objeto de monopólio e de interditos religiosos (12.52-54, t(h)us).
A Arábia importa da Índia o bratus, semelhante ao cipreste, nascido
no monte Escancro, para bebidas e perfumes (12.78).
De resto, a Arábia, região que se estende a partir do Líbano até ao
mar da Arábia e podia englobar a Etiópia, é célebre pelas odoríferas:
a canela, mais espessa na montanha que na planície, com preço entre
5 e 50 denários a libra, usada para gastronomia, medicina, perfumaria
(12.95-97, sobre a casia verdadeira); a moringa oleífera, que produz
o myrobalan, óleo mais espesso do que o de outras regiões, por vir
da montanha, usado em medicina e perfumaria, (12.102); o caniço,
que brota entre o Líbano e o Antilíbano, usado na perfumaria (12.104,
calamus); o estoraque do monte Cásio, na região da Síria próxima da
Judeia, de odor muito agradável, e o do monte Amano, só usado em
perfumaria, que chega aos 17 denários, sendo objeto de falsificação
(12.124-125, styrax); o gálbano do mesmo monte Amano, que vale

8 Martini 1997 150-151 recorda Dioscórides da Cilícia, contemporâneo do


Naturalista, que no seu tratado de medicina, De materia medica, “conhece 950 subs-
tâncias curativas, 600 das quais derivadas de plantas, 80 de animais e 50 de minerais”.

402
5 denários e afugenta as serpentes, não servindo para medicina, tão
só para perfumaria (12.126-127, galbanum); o enanto, uma inflores-
cência da vinha selvagem das montanhas da Média utilizada só em
medicina (12.133, oenanthe); a ameixoeira das colinas de Damasco
(13.51, pruna); goma de olmeiro ou de zimbro do monte Córico, na
Cilícia, usada para as feridas das gengivas de crianças, valendo 3
denários (13.67, ulmus, iuniperus).
É também numerosa a flora atribuída a montanhas de outras regi-
ões. Assim, formando florestas, no Atlas existe uma árvore peculiar,
a cidreira, semelhante a um cipreste, cuja madeira era empregue em
ebenestaria e sobretudo em mesas que chegavam a valer em Roma
mais de um milhão de sestércios, o preço de um latifúndio (13.91-92,
citrus); a procura era tal que a mais apreciada, a do monte Ancorário,
na Mauritânia, se esgotou (13.95).
A vinha de colinas e encostas é muitas vezes especialmente
apreciada, como no caso da Campânia (cf. 3.6, vitiferi colles), onde
existiam, como noutras regiões itálicas, ótimas colinas bem expostas
ao sol, um dos fortes motivos para o elogio da Itália (3.41, aprici
colles). Não admira que afamadas castas de uvas se multiplicassem,
como a excelente casta amineia do monte Vesúvio e das colinas de
Sorrento, na Itália (14.22). Mas muitas outras, embora menos nobres,
como a casta eugenia, transportada das colinas de Taormina para os
montes Albanos (14.25); a visulla, das colinas da Sabina (14.28). Entre
as castas regionais, citem-se a capnios, a buconiates e a tharrupia
das colinas de Túrio, que se vindimam na época das geadas (14.39).
Para os vinhos mais afamados, o de Pucino, numa encosta reocho-
sa da Ilíria, era o preferido de Lívia Drusila e considerado o vinho
mais adequado para fins edicinais (14.60); o famoso Falerno provi-
nha de encostas onde também se davam o Caucino e o Faustiniano
(14.62-63: summis collibus Caucinum gigni, mediis Faustinianum,
imis Falernum); o terceiro lugar era disputado entre os vinhos dos
montes Albanos e de Sorrento e os dos montes Mássico, da região
de Sinuessa, e Gauro, nas enconstas fronteiras a Pozzuoli e Baias
(14.64). Entre as uvas de mesa, são de montanha a rética, dos Alpes

403
Marítimos *(14.41). A montanha suscita ainda a procura de soluções
para evitar a congelação do vinho dos tonéis de madeira, acendendo
fogueiras em redor, como nos Alpes (14.132), em cuja cercania se
desenvolveu uma técnica para conservar uvas passas (15.66).
Numerosas outras produções de montanha se nos oferecem: o bál-
samo da Judeia, que cobre as colinas à maneira das vinhas (12.111);
o figo vermelho do Ida da Tróade (15.68, ficus); o pez-resina betu-
mar vasilhame para vinho, sendo o do Ida da Tróade o preferido na
Ásia (14.128: pix); uma variedade de loureiro (laurus Alexandrina),
utilizada em cerimónias triunfais, nos jardins e como símbolo de paz,
que existe no Ida e só se dá em terrenos montanhosos (15.131); um
bosque no Aventino, de nome Loreto, onde existira uma floresta de
loureiro (15.138: Loretum in Aventino vocatur ubi silva laurus fuit);
as glandíferas, que constituíam o pão das Hispânias e variavam da
planície para a montanha (16.15-16, glans); o vime, que os romanos
iam buscar à colina Querquetulana, isto é, Viminal (16.37); o pinheiro
alvar, que aprecia as alturas e o frio, bom para construção civil por
ser facilmente trabalhado, mas também para fins fúnebres (16.40,
picea), tal como o abeto, indicado para construção naval (16.41-42,
abies); para calafetagem de navios é usada a zopissa, resina tirada
do pinheiro alvar, que, embora menos grosso que o da planície, da-
ria mais produção na montanha (16.60); o freixo do Ida da Tróade
é o que mais madeira produz (16.62, fraxinus), e é mais espesso na
montanha (16.64); mais raiado e mais duro é o ácer ou bordo de
montanha, usado para obras mais elegantes, cujo valor vem logo a
seguir ao da cidreira (16.66-67, acer); o buxo, muito abundante nos
Pirenéus e no monte Citoro, na Paflagónia, fornece madeira muito
apreciada e é usado em jardinagem e para dar sabor ao mel (16.70-71,
buxus); o olmo dá madeira e serve de esteio às vinhas, e tem uma
espécie arbórea, de montanha, e outra arbustiva, campestre (16.72,
ulmus); o laburno dos Alpes oferece madeira muito dura (16.76,
laburnum); de várias árvores da floresta se servem os montanheses
para fazer recipientes (16.128: lagoenas et alia vasa nectunt); o cedro
nasce nos montes da Lícia e da Frígia (16.137, cedrus); o loureiro

404
do Olimpo é especialmente vocacionado para cerimónias religiosas
(16.137, laurus); o cipreste, que nasce espontaneamente no Ida e
nas Montanhas Brancas de Creta, sempre com neve, fornece madeira,
tem função religiosa, fúnebre, serve de muro separador nos campo e
deixa-se talhar (16.139-142, cupressus); a hera, consagrada no tirso
de Liber Pater, na Índia só nasce no monte Mero (16.144, hedera); o
larício dos Alpes, dos Apeninos, do Jura e dos Vosgos produz madeira
muito apreciada (16.197, larix); o framboeseiro do Ida da Tróade é
usado em oftalmologia, contra a erisipela e as dores de estômago
(16.180, rubus Idaeus; cf. 24.123); os seis frondosos lódãos da casa
de Licínio Crasso no Palatino, a que ele atribuía valor inestimável
(17.2-6, lotos); há excelente trigo ‘de três meses’ nos Alpes e em
zonas montanhosas da Sicília e da Acaia (18.69-70, trimestre, sc. triti-
cum); a erva cantábrica, talvez a campainha, descoberta no tempo de
Augusto, usada contra as mordeduras de serpentes (25.85, cantabrica;
cf. 25.101); a espelta ou alica, que merece a palma entre todas as
produções da Itália9, aprecia campos no sopé de montes cobertos
de nuvens, como na região da Campânia, onde os inconvenientes do
terreno esponjoso e montanhoso se tornam vantagens em termos de
fertilidade (18.109-110, montium culpa in bonum cedit); o centeio,
cereal considerado detestável, usado só em época de carestia, existe
no sopé dos Alpes, onde os Taurinos lhe chamam casia e o utilizam
como estrume (18.141, secale); aí também se dão o milho painço e o
milho miúdo (18.182 panicum miliumque); o esparto cobre monta-
nhas na Hispânia Citerior e tem numerosas aplicações: leitos, fogo,
iluminação, calçado, vestuário de pastores (19.26-27, spartum); a
magydaris, planta da família das apiáceas abundante no Parnaso, por
vezes designada como laserpicium por servir para a contrafação do
mesmo, é muito útil e usada em numerosos medicamentos (19.46);
uma variedade de espargo selvagem das montanhas tem sabor muito
especial (19.145, asparagus, cf. 19.54); a ligústica, da família das api-

9 Laus Italiae que evoca o tópico de 17.36: idem agrum optimum iudicat ab
radice montium planitie in meridiem excurrente, qui est totius Italiae situs.

405
áceas, acaso o aipo silvestre ou levístico selvagem, cresce nos montes
da Ligúria (19.165, ligusticum silvestre); o serpão e o sisímbrio dão-
-se em muitas montanhas, na Trácia, em Sícion e no Himeto (19.172:
serpullo et sisymbrio montes plerique scatent); as rosas de cem péta-
las do Pangeu são usadas para coroas (21.17, centifolia, sc. rosa); o
orégão de cultivo tem uma espécie específica, da montanha, eficaz
contra as serpentes, picadelas de vespas e insetos, e também diurética,
purga os lóquios depois do parto, favorece a digestão e o apetite,
boa contra luxações (20.173, cunila sativa); são muito apreciados os
lírios ou narcisos de cor púrpura dos montes da Lícia (21.25, lilium e
narcissus); o açafrão do monte Córico, na Cilícia, é o mais reputado
de todos, seguido do do Olimpo e do de Centuripos, no Etna, muito
sujeitos a contrafação (21.31, crocum silvestre); a valeriana ou nardo
céltico das zonas soalheiras dos Alpes da Panónia coloca-se na roupa
por ser muito apreciado o seu aroma, o que lhe confere um preço
elevadíssimo (21.43, saliunca); os juncos dos Alpes Marítimos, mais
grossos do que o normal, são usados para redes de pesca, cestaria
e mechas (21.114, iuncus); o timo branco, que vegeta em colinas e
é o melhor de todos, usado em oftalmologia, na alimentação e em
variadas mèzinhas (21.154, thymum candidum).
Já abordado em referências anteriores (21.160 para o habrotonum
de montanha ou santolina, considerado feminino, com numerosas
aplicações medicinais; 23.8 sobre o enanto, excelente perfume de vinha
selvagem de montes de Antioquia e Laodiceia), o uso medicinal das
plantas, correspondente a uma farmacopeia ainda maioritariamente
botânica, aparece sistematizado no livro XXIV, dedicado à medicina
retirada das árvores silvestres, que a natureza prodigaliza a todos
sem necessidade de as irem buscar a terras longínquas (24.1-5). Esse
livro inclui ervas tidas como mágicas (24.156 ss.). Daí e dos livros
posteriores colijo o seguinte elenco, iniciado a propósito da cura
da tísica (24.28):

silvas eas dumtaxat, quae picis resinaeque gratia radantur, uti-


lissimas esse phthisicis aut qui longa aegritudine non recolligant

406
vires satis constat et illum caeli aera plus ita quam navigationem
Aegyptiam proficere, plus quam lactis herbidos per montium aestiva
potus.

É geralmente reconhecido que as florestas que unicamente são


sangradas por causa do pez e da resina, são extremamente bené-
ficas para os tísicos ou que não recuperaram as forças depois de
uma doença prolongada, e que os ares desse céu lhes são mais
vantajosos do que um cruzeiro no Egito, mais do que uma poção
de leite de ervas das pastagens de verão das montanhas. 10

E, falando de resinas, muito receitadas para feridas e úlceras, as das


montanhas são as preferidas (24.34: in omni autem montana potius
quam campestris); o helianthes ou helliocalis, cujo nome significa
flor do sol e beleza do sol respetivamente, nascido nas montanhas da
Cilícia próximas do mar, com folha semelhante à do mirto, confere
beleza física aos reis da Pérsia (24.165), efeito de magia atribuído a
outras plantas, como o tordilon (tórdilo ou tordílio, uma umbelífe-
ra), também chamado syreon, do qual Plínio apenas sabe que nasce
nos montes e que favorece a menstruação, a expetoração e os rins,
servindo também para cataplasmas (24.177).
Do mesmo modo, e contra o que se passava na sua época, no
livro XXV, com continuação nos seguintes, o Naturalista começa
logo por elogiar a investigação botânica, que no seu tempo parecia
secundarizada, com o fito de descobrir novos remédios para a saúde
humana (25.2-3):

2. non aeque haec cura eorum mira est in iis, quae satu blan-
diuntur aut cibo invitant: culmina quoque 3. montium invia et
solitudines abditas omnesque terrae fibras scrutati invenere, quid

10 Vejo neste passo uma referência à transumância, como em 21.57, sobre a


Narbonense: e longinquis regionibus pecudum milibus convenientibus, ut thymo ves-
cantur; cf. 12.22 aestivant pastores.

407
quaeque radix polleret, ad quos usus herbarum fila pertinerent,
etiam quadripedum pabulo intacta ad salutis usus vertentes.

E não suscita igual admiração o cuidado que tiveram nas plantas


cujo plantio causa prazer ou que convidam para a mesa: perscru-
taram até os mais ínvios cumes das montanhas e os desertos mais
remotos e todas as franjas de terra para descobrir a capacidade de
cada raiz, que utilidade tinham os rebentos das plantas, converten-
do em utilidade para a saúde os prados não tocados pelo pastio
dos quadrúpedes.

A preocupação com a vida humana leva Plínio a tratar inclusive


de plantas maléficas (alucinogéneas, abortivas, psicotrópicas, usa-
das na magia 11 e em filtros amorosos) e venenosas, em nome da
vantagem do suicídio em certas circunstâncias (cf. 24.163, sobre a
ophiusa, planta das serpentes), antes de indicar as que são salutares
à vida (25.24-25).
A mais célebre de todas, moly, acaso alho amarelo ou alho doura-
do, foi, segundo Homero, descoberta por Mercúrio, cresce no monte
Cilene e é eficaz contra as maiores maleitas (25.26). A planta chamada
peónia, do nome do seu descobridor, nascida em lugares montanhosos
sombrios, afasta os pesadelos (25.29, paeonia) 12. Teucro descobriu
a teucrion ou heminion ou splenion, planta lamiácea usada para
curar o baço, e dela existe uma segunda variedade, a carvalhinha,
que merece louvor, nas montanhas da Lícia e da Pisíada (25.45-46); o
melhor heléboro-branco ou erva-besteira, usado para fumigações das
casas e do gado, como purgativo, incluindo para favorecer o trabalho
intelectual, e contra a epilepsia, é o do monte Eta (para a variante
negra é o do monte Hélicon, louvado por numerosas plantas), mas

11 Sobre rituais mágicos na farmacopeia botânica, ver Martini 1977, esp. 139-153.
12 Afirma Plínio que a mais antiga descoberta botânica foi esta, de Péon, médico
dos deuses; o sintagma paeoniae herbae significa ‘plantas medicinais’. Sobre a peónia,
ver Martini 1977: 42-46.

408
também se encontra no Parnaso e é suscetível de falsificação (25.48-
49); em regiões de montanha nasce a valeriana grega ou hipericão,
polemonia ou philetaeria, cuja descoberta é reivindicada pelos reis
homónimos (25.64); a centáuria mais famosa nasce em colinas da
Arcádia, mas existe noutros montes, como Fóloe, Liceu e Alpes, e
é extremamente eficaz para cicatrizar feridas de humanos e ovinos
(25.67, centaureum); para a medicina respiratória descobriu Clímeno
a planta homónima, acaso a madressilva, em regiões florestadas e
montanhosas, com o inconveniente de tornar os homens estéreis
(25.70, clymenus); também de um rei tomou o nome a genciana, muito
abundante em lugares húmidos no sopé dos Alpes, com propriedades
inflamatórias mas perigosa para as grávidas (25.71, gentiana; 26.163,
elimina marcas no rosto); a eufórbia tirou o nome do médico que
a descobriu no monte Atlas, sendo usada contra venenos e sujeita
a falsificação (25.77-78, euphorbea); o ditamno aromático, que dis-
pensa todos os medicamentos quando na primavera se bebe leite de
vacas que dele se alimentaram, floresce nos montes Parnaso, Pélio
e Telétrio (25.94, dictamnus); uma apiácea similar à cenoura, que
nasce espontaneamente em terrenos de colinas, sendo usada contra
mordeduras de serpentes em homens e animais (25.111, daucus); o
peucédano, brinça ou funcho de porco, brota nos montes, à sombra,
e é muito usado em medicina e em particular contra as serpentes
(25.117, peucedanus); a cacália ou leontice, geralmente de montanha,
serve de loção capilar e de mezinha para tosse e garganta (25.135,
cacalia sive leontice, e 26.29, cf. cf. 26.163, para as rugas); o melhor
hissopo é o do Tauro, bom para tísica e prurido na cabeça (25.136,
hysopum); o rábano-silvestre nascido em terrenos montanhosos é
purgante geral e para a bílis (26.72-74, raphanus silvestris, gr. apios
ischas ou raphanos agria); no mesmo tipo de terrenos cresce o sa-
tirião, um afrodisíaco e anafrodisíaco, conforme o excipiente (26.97,
satyrion); a aethiopis, variedade de salva (a da Etiópia é a melhor),
vegeta no monte Ida de Creta e é usada em ginecologia, na ciática,
pleurisia e inflamações da garganta (27.11-12), e ainda na magia
(26.18), tal como a desconhecida theangelis dos montes do Líbano

409
e de Dicte, em Creta, que fornece aos magos a capacidade de adi-
vinhação (24.164); a asclépia cura cólicas e feridas provocadas por
serpentes (27.35, asclepias); a alga conferva dos rios alpinos é mara-
vilhosa a curar fraturas (27.69, conferva); em penedos de montanhas
marítimas brota a empetros, calcifraga em latim, com o significado
de quebra-pedra, benéfica para a bílis e glândula pituitária e para os
cálculos renais (27.75: Empetros, quam nostri calcifragam vocant);
as montanhas também oferecem a orion, uma das espécies do po-
lígono, boa para a ciática (27.113-115: Tertium genus orion vocant);
o holostheon, uma espécie de tanchagem, cresce em colinas com
terra e tem usos médicos na cura de ferimentos e rupturas (27.91);
a planta do Ida, talvez a gilbardeira, controla problemas intestinais,
as regras e todas as hemorragias (27.93, Idea herba, cf. 14.108); o
potirion, planta de difícil identificação, ou phrynion ou neuras, que
se encontra em colinas húmidas, e tem uma raiz ótima para feridas,
em particular de nervos (27.122-123); a phyllon originária de monta-
nhas rochosas, acaso uma euforbiácia, determina o sexo das crianças
conforme o sexo da própria planta, sendo tomada em infusão de
vinho (27.125); por fim, o smyrnion, cujo nome grego evoca Esmirna
e mirra, de cujo odor se aproxima, dá-se em colinas pedregosas, com
numerosos efeitos curativos, diuréticos, emenagogos, antidiarreicos,
entre outros. (27.133-134).
Um passo sumaria a importância económica, civilizacional, ideo-
lógica e política da troca de produtos vegetais entre todas as partes
do império romano (27.2-3):

2. Scythicam herbam a Maeotis paludibus et Euphorbeam e


monte Atlante ultraque Herculis columnas ex ipso rerum naturae
defectu, parte alia Britannicam ex oceani 3. insulis extra terras
positis, itemque Aethiopidem ab exusto sideribus axe, alias praeterea
aliunde ultro citroque humanae saluti in toto orbe portari, inmensa
Romanae pacis maiestate non homines modo diversis inter se ter-
ris gentibusque, verum etiam montes et excedentia in nubes iuga
partusque eorum et herbas quoque invicem ostentante! aeternum,

410
quaeso, deorum sit munus istud! adeo Romanos velut alteram lucem
dedisse rebus humanis videntur.

2. Ver a erva da Cítia ser transportada desde a lagoa Meótida e a


eufórbia desde o monte Atlas e de além das Colunas de Hércules e
do exato sítio onde a natureza termina, e, em outra parte do globo,
a erva britânica 3. ser trazida de ilhas do oceano situadas para além
das terras; e de igual modo a aethiopis, desde a zona queimada
pelos astros (sc. tórrida), e outras ainda, de todas as partes, de
um lado para o outro, em todo o orbe, serem transportadas para o
bem-estar da humanidade, com a imensa majestade da paz romana a
mostrar, uns aos outros, não apenas homens de terras e nações tão
afastadas entre si, mas também montanhas e cumes que se projetam
para além das nuvens, com os seus produtos e plantas. Eterna seja,
eu imploro, esta dádiva dos deuses! Na verdade, estes parecem ter
oferecido os romanos como uma segunda luz para a humanidade!

3.3. Água e produtos aquáticos, incluindo sal

Na vasta matéria exposta no livro II sobre água salgada e doce,


sobre fontes e águas termais, sobressaem alguns apontamentos que
merecem destaque para a nossa temática: a existência de inúmeras
fontes termais nos cumes dos Alpes (2.227, in iugis Alpium); de três
fontes no monte Liberoso, da Táuride, as quais causam uma morte
invitável e sem dor (2.231) 13.
A água aparece como um elemento importante na vida romana
para bebidas e preparados frios, para o que se ia buscar gelo às
montanhas (19.55-56; cf. 32.64); os Pirenéus oferecem águas termais,
uma fonte de saúde que dá renome a muitas regiões da Itália (31.4-

13 Plínio não emite qualquer juízo de valor sobre este apontamento ditado pelo
gosto dos mirabilia, mas poderá estar implícita a utilização desta água como meio
de suicídio.

411
5) e de zonas tão longínquas como a Síria, junto do Tauro, que tem
nascentes boas para os cálculos (31.9).
Enquanto elemento essencial para garantir saúde e permitir o ur-
banismo, a água é transportada por aquedutos e canais subterrâneos
para Roma, que vai buscar a mais fresca e salubre de todas águas
aos montes da região dos Pelignos, com o aqueduto Aqua Marcia
(31.41).
Logicamente, a importância da água para a vida humana também
é visível nos textos onde se trata de como encontrar água salubre,
inclusive em zonas montanhosas (31.43-49), de que cito 31.43 e 48:

43. Non ab re sit quaerendi aquas iunxisse rationem. reperiuntur


in convallibus maxime et quodam convexitatis cardine aut montium
radicibus. multi septentrionales ubique partes aquosas existimave-
re, qua in re varietatem naturae aperuisse conveniat. in Hyrcanis
montibus a meridiano latere non pluit; ideo silvigeri ab aquilonis
tantum parte sunt. at Olympus, Ossa, Parnasus, Appenninus, Alpes
undique vestiuntur amnibusque perfunduntur, aliqui ab austro,
sicut in Creta Albi montes. nihil ergo in his perpetuae observationis
iudicabitur. (...) 48. rubra saxa optimas speique certissimae, radices
montium saxosae et silex hoc amplius rigente.

43. Não será despropositado acrescentar o método para desco-


brir água. Encontra-se sobretudo nos vales e como que no vértice
das saliências ou no sopé dos montes. Muitos consideraram que as
vertentes setentrionais são em qualquer lugar ricas em água, e é
assunto sobre o qual convém desvendar a diversidade da natureza.
Nos montes da Hircânia não chove no lado meridional, razão pela
qual só há florestas do lado do aquilão. Mas o monte Olimpo, o
Ossa, o Parnaso, os Apeninos, os Alpes estão cobertos de florestas
e cheios de correntes de água por todo o lado; outros têm-nas do
lado sul, como é o caso das Montanhas Brancas, em Creta. Por con-
seguinte, é matéria onde não se ajuizará de acordo com qualquer

412
regra universal. (...) 48. Rochas vermelhas dão esperança muito
segura de águas excelentes; bases rochosas de montanhas e sílex,
ainda mais, de água gelada.

Consequentemente, o Naturalista regista as amigdalites causadas


por águas insalubres do Pó na região dos Alpes, maleitas que, num
registo folclórico, as mulheres do campo pensavam afugentar usando
colares de âmbar (37.44).
Plínio anota, ainda, o aparecimento de fontes no seguimento de
deflorestação no monte Hemo, na Trácia, e ao mesmo tempo observa
que a água surge em torrente quando se desflorestam as encostas das
colinas (31.53); e o aparecimento ou desaparecimento de correntes
de água por efeito de terramotos nos montes Feneu, da Arcádia, e
no Córico (31.53-54).
Em relação com a água surge o sal nativo, como o que mana dos
montes para os rios Oco e Oxo (31.75) ou o que forma montanhas
como a de Orómeno, na Índia (31.77).

3.4. Minerais, pigmentos e terras

A exploração mineira é notoriamente um dos interesses de Plínio,


que assinala a existência de minas, as matérias primas e produtos
derivados, o modo de mineração e a linguagem técnica, as conse-
quências ecológicas e os interditos existentes. Vamos cingir-nos
especificamente aos passos onde essa atividade é, de form explícita,
relacionada com montanhas 14.
No livro VII da História Natural, o catálogo dos inventores in-
clui Cadmo, que no monte Pangeu descobriu as minas de ouro e
sua fundição (7.197), bem como os Dátilos de Creta, que, segundo
Hesíodo, no monte Ida descobriram o ferro (7.197).

14 O leitor interessado poderá consultar a lista dos passos relevantes em Bayer


2004: 1104-1109, s.v. Bergbau.

413
Os produtos minerais são objeto de numerosas referências, como
a propósito da fertilidade mineral da Hispânia Citerior, incluindo o
conventus Bracarum, até ao Douro e a partir dos Pirenéus (4.112:
omnis, quae dicta regio a Pyrennaeo, metallis referta auri, argenti,
ferri, plumbi nigri albique) e do Pangeu, na Grécia, onde minas de
ouro e a prata foram pela primeira vez descobertas (7.197).
A Hispânia, particularmente nas zonas montanhosas, é rica em
ouro (33.67: cetero montes Hispaniarum, aridi sterilesque et in qui-
bus nihil aliud gignatur, huic bono fertiles esse coguntur), que se
extrai de três maneiras, em especial pelo processo da ruina montium
‘derrocada das montanhas’ no noroeste peninsular (33.66, 74, 76),
trabalho de gigantes descrito com pormenor e riqueza de terminologia
local (33.70-78, cavantur montes, agogae ‘canais para escoamento de
águas’, arrugia ‘galeria de mina’, cuniculus ‘galeria de mineração’,
gandadia ‘argila rochosa’, palaga ou palacurna ‘lingote de ouro’,
urium ‘terra que cobre o minério’, balux ‘areia de ouro’).
Os montes da Hispânia também abundam em prata, e da melhor
(33.96 pulcherrimum), produzida em poços desde a época de Aníbal
e até em zonas montanhosas, como Baebelo, a atual Castulo, onde a
montanha foi escavada até à profundidade de 1.500 pés, uns 444m
(33.96-97).
Também nas montanhas entre o Indo e o Iómanes habitam serranos
que exploram minas de ouro e prata (6.173-174), bem como na região
montanhosa entre as Portas do Cáucaso e os montes Gurdínios, onde
as nações indómitas dos Valos e dos Suanos exploram ouro (6.30).
Nas minas de ouro e prata forma-se também o jalde, espécie de
ocre usado como pigmento na pintura; a variedade de jalde mar-
móreo encontra-se em montes a 20 milhas de Roma e é adulterado
para passar por jalde escuro, que é mais caro (33.158-160: sil ...
marmorosum ... pressum).
O terceiro metal em ordem de valor é o cobre, e, pela qualidade,
sobressai o salustiano dos Alpes, onde rapidamente se esgotou (34.3,
aes), tal como o auricalco, que, por cansaço, a terra deixou de gerar
(34.2, aurichalcum).

414
O ferro encontra-se na Cantábria, onde existe uma montanha
altíssima, os montes Triano na região de Bilbau, toda ela desse mi-
nério (34.149, ferrum).
O enxofre, com múltiplas aplicações, do lazer à medicina, é ex-
plorado por mineração nas colinas Leucogeias da zona de Nápoles
(35.174, sulp(h)ur; cf. 18.114), donde também se retira a greda ou
cré para misturar com sêmola (18.113-114).
Plínio reconhece ainda o valor económico das terras, a ponto de
escrever sobre o que viria a ser chamado cimento pozolânico (35.166):

Verum et ipsius terrae sunt alia commenta. quis enim satis


miretur pessumam eius partem ideoque pulverem appellatam in
Puteolanis collibus opponi maris fluctibus, mersumque protinus fieri
lapidem unum inexpugnabilem undis et fortiorem cotidie, utique si
Cumano misceatur caemento?

Na verdade a própria terra suscita outras invenções. De facto,


quem se cansaria de admirar como a pior parte dela –que, por
isso, nas colinas de Putéolos, se chama pó–, se opõe às ondas do
mar ao ser submersa e de imediato se tornar uma pedra maciça,
inexpugnável pelas ondas, cada dia mais dura, sobretudo quando
misturada com pedra britada de Cumas?

De resto, Plínio tem verdadeiro interesse pela durabilidade na


construção civil, como quando se reporta à resistência dos materiais
das chamadas Torres de Aníbal (cf. 2.181: in Africa Hispaniaque
turrium Hannibalis), colocadas no cimo dos montes e feitas de
terra (35.169: spectat etiam nunc speculas Hannibalis Hispania ter-
renasque turres iugis montium inpositas). O mesmo para o tijolo,
especialmente quando feito à base de almegre, o qual, sobretudo
para edifícios públicos, chegava a ser preferido à pedra, como no
caso da muralha em frente do monte Himeto (35.171-172: latericios
parietes ... aeterni, si ad perpendiculum fiant).

415
E, ligadas à construção mas também a numerosos outros domínios,
restam as pedras, abordadas no livro XXXVI e XXXVII. Trata-se de
material muito caraterístico de montanhas, não admirando, portanto,
que as informações sejam muitas.
Logo na introdução do livro XXXVI, cuja tradução apresentaremos
no capítulo 6, sobre montanha e moralidade, Plínio relaciona a mon-
tanha com a produção de pedras e gemas, mármores e cristal (36.1-3),
tudo artigos ligados ao luxo em geral (ver sintagmas sucinis atque
crystallinis murrinisque, deliciarum causa, ad voluptates, gaudia)
e em particular ao luxo gastronómico, assinalado pelas expressões
frigidos potus e ut bibatur glacie, e ao luxo da construção 15.
Além destes símbolos de vida faustosa tão ligados às montanhas,
muitos outros produtos minerais com estas se relacionam. É o caso
da pedra ónix, exclusiva dos montes da Arábia, utilizada para ânforas,
taças e vasos, unguentários, mobiliário de luxo e colunas decorativas
(36.59-60, onyx); dos mármores do Himeto (36.7); das três pirâmi-
des do Egito construídas em zonas montanhosas (36.76, pyramis),
sendo a mais alta a de Quéops, feita com pedra da Arábia (36.78);
da magnetite, também chamada sideritis e heraclion, descoberta no
monte Ida da Tróade por um pastor homónimo (36.127, magnes); da
existênciade dois montes junto do rio Indo, um que repele o ferro,
outro que o atrai (2.211); das pedras de afiar do Taigeto, distinguidas
com o segundo lugar (36.164, operarii lapides).
A sienite, uma rocha granítica, talvez granito-rosa, é referida a
propósito da feitura e embarque de um obelisco em dois navios
muito largos, sendo trazidos de um monte a pedra de construção e
os suportes onde o obelisco foi deitado para ser transportado através
de um canal artificial que ia até ao Nilo (36.63-68, syenites).
Mas, entre todas, e objeto do livro XXXVII, sobressaem as pedras
preciosas, que teriam sido usadas pela primeira vez por Prometeu
quando incrustou num anel de ferro o fragmento de uma rocha do

15 Para os mármores, cf. 36.6, 48, 114 (seis colunas de mármore do Himeto na
scaena do teatro de Escauro).

416
Cáucaso (37.2; cf. 33.8). São enumeradas: o excelente cristal de rocha
dos Alpes (37.23, crystallum, e 27) e o cristal de peso extraordinário
extraído de poços nas montanhas de Amaia, na Lusitânia (37.25),
usado para vasos (trulla) que podiam valer 150.000 sestércios, tal
o furor que causavam (37.29); do âmbar amarelo, alegadamente
produzido numa floresta de uma montanha na Índia (37.39, elec-
trum); das esmeraldas extraídas em colinas perto de Copto, no Egito
(37.65, smaragdus), ou no Monte das Esmeraldas (Smaragdites), na
Calcedónia, ou mesmo no Taigeto (37.73); da pedra carquedónia, isto
é, de Cartago, carbúnculo que surge nas montanhas dos Nasamões e
serve, como a anterior, para taças e, com menos qualidade, para sine-
tes (37.104, carchedonia; cf. 92: carbunculi ... quos et Charcedonios
vocavere); da callaina das montanhas do Cáucaso, esverdeada e
semelhante à turquesa, existente também em rochedos inacessíveis
e gelados da Germânia, onde é símbolo de riqueza e estatuto social,
sendo contrafeita com vidro (37.110-112: callaina, e viridi pallens);
da belenite, que no Ida de Creta tem cor ferrosa (37.170, dactylus; da
ágata, que se encontra nas cercanias do Etna e no Parnaso (37.141).
Refiram-se, finalmente, as pedras a que é atribuída função mági-
ca: o asbesto de montes da Arcádia e do Acidane da Pérsia, usado
na entronização de reis (37.146-147, asbestos); o mithrax, pedra
multicolor, que surge em montanhas do Mar Rubro, evocando uma
opala (37.173).

4. A montanha e o imaginário

Como espaço do incacessível (cf. 6.144, sobre Petra, ópido circun-


datum montis innacessis) e como limite, a montanha sugere também
a separação entre o real e o mítico, fechando e abrindo as portas ao
fabuloso. Assim, para além dos míticos Arimaspos e dos selváticos
montes Rifeus, na Cítia –e em contraste absoluto com esta parte do
mundo maldita pela natureza (4.88, referindo-se à região de Pteróforo:
pars mundi damnata a rerum natura et densa mersa caligine)–,

417
habitam os famosos e utópicos Hiperbóreos (4.89: Pone eos montes
ultraque Aquilonem gens felix, si credimus, quos Hyperboreos appella-
vere, annoso degit aevo, fabulosis celebrata miraculis). A existência
de montes ou colinas surge noutros exemplos de povos caraterizados
por uma aura quase mítica: os Atacoros, entre os Seres, que, prote-
gidos por colinas soalheiras, ao abrigo de ventos prejudicias, levam
uma vida similar às dos Hiperbóreos (6.55: apricis ab omni noxio
aflatu seclusa collibus, eadem, qua Hyperborei degunt, temperie); o
famoso vale de Tempe, um desfiladeiro da Tessália, é protegido por
uma espécie de círculo de montanhas (4.31: attollentibus se dextra
laevaque leniter convexis iugis); na Idumeia, região da Palestina, para
além do monte Árgaris (5.68-69), regista-se a cidade de Íope (atual
Jaffa), de Fenícios, assente numa colina em frente de um rochedo
onde se mostram os vestígios dos grilhões de Andrómeda e se venera
a fabulosa Ceto (5.69) 16; os povos Egipães e Sátiros que, na região
do promontório de Hesperu Ceras, nos confins da África, habitam
em colinas revestidas de sombras amenas, o que, como nos textos
anteriores, prefigura um locus amoenus idílico e tendencialmente
utópico (6.197).
E colocamos aqui montanhas longínquas e pouco conhecidas,
como os montes Sevo e Ripeus, em controversas regiões da Jutlândia,
Noruega e Escandinávia (4.94-97, transgressisque Ripaeos montes ...
mons Saevo ibi)17, ou os montes Hémodos e Malo, os atuais Himalaias,
nas proximidades do Ganges, com suas gentes e povos civilizados
(6.64).
Da mesma maneira, em África, a descrição da pouco conhecida
região do Atlas surge envolta na recorrência do adjetivo fabulosus18,
incluindo no superlativo (5.5-7):

16 Cf. T. Kaizer, “Interpretations of the myth of Andromeda at Ioppi”, in: doi.


org/10.4000/syria.939, consultado no dia 8.8.2020, às 17:20.
17 Veja-se a discussão relativa à localização destas regiões em Grane 2012.
18 Oliveira 2007: 38.

418
5. ... infestum, multo tamen magis Autololum gente, per quam
iter est ad montem Africae vel fabulosissimum Atlantem ...
6. E mediis hunc harenis in caelum attolli prodidere, asperum,
squalentem qua vergat ad litora oceani, cui cognomen inposuit,
eundem opacum nemorosumque et scatebris fontium riguum qua
spectet Africam, fructibus omnium generum sponte ita subnascenti-
bus, ut numquam satias voluptatibus desit. 7. incolarum neminem
interdiu cerni; silere omnia haut alio quam solitudinum horrore;
subire tacitam religionem animos propius accedentium praeterque
horrorem elati super nubila atque in vicina lunaris circuli.

5. ... região perigosa, sobremaneira por causa da nação dos


Autóloles, através da qual passa o caminho para a mais lendária
montanha de África, ou seja o Atlas.
6. Segundo se conta, este monte eleva-se até ao céu no meio das
areias, áspero, despido do lado da encosta voltada para as praias
do oceano ao qual deu o nome, sombrio e coberto de florestas,
refrescado por água que brota de fontes na encosta voltada para
África, aí nascendo espontaneamente frutos tais que nunca ficam
por saciar os apetites. 7. Durante o dia não se descortina nenhum
habitante. Tudo está em silêncio, na ausência de outro terror que
não seja o dos lugares desertos; são tomadas de uma superstição
oculta as almas dos que se aproximam, para além do terror em
relação à montanha que se eleva acima das nuvens e até às proxi-
midades do círculo lunar.

Assim, o caráter utópico do Atlas contrapõe-se às regiões que o


precedem –como a de Lixos, em relação à qual são usadas expressões
derrogativas como portentosa Graeciae mendacia de his ... mons-
trifica (5.4), ... solitudinibus ... infestum ... solitudinum horrores
... horrores (5.6-7)–, ou que se lhe seguem (5.8: spatium ad eum
inmensum incertumque).
A importância da descrição do Atlas, apresentada como digressão
(5.6-16: et satis superque de Atlante), decorre de se tratar de um

419
território recém conquistado pelos romanos e, portanto, a passar da
fase do conhecimento lendário para a do conhecimento racional 19.
Nele se apresentam muitos dos tópicos ligados à ideia de monta-
nha, usando como fonte o próprio Suetónio Paulino (5.14: primus
Romanorum ducum transgressus quoque Atlantem aliquot milium
spatio): árvores caraterísticas, neve, ervas medicinais, habitantes semi-
-selvagens, temor dos lugares ermos. Fica assim o Atlas desprovido
do caráter religioso que as fontes antigas, em especial gregas, e as
lendas lhe atribuíam.
Selvagens são também os habitantes de montanhas nos confins
da Albânia, na Ásia (6.29: rursus ab Albaniae confinio tota montium
fronte gentes Silvorum ferae); os habitantes do Alpes e da Gália
Comata usam cabeleiras longas (11.130).
Outros traços ligados à montanha são a longevidade, como os 150
anos de vida dos habitantes do monte Tmolo (7.159), ou os 110, 120
e 140 de Veleia, situada sobre colinas, na região de Placência (7.163);
o caráter híbrido, congruente com a descoberta do combate a cavalo,
dos tessálios do monte Pélion, conhecidos como centauros (7.202);
a adaptação a condições de trabalho difíceis, como lutar contra
pragas de gafanhotos no monte Cadmo, invocando Júpiter (10.75).
Mas a montanha também pode ser um elemento nobilitante, como
se deduz de passos como 5.65, sobre a Arábia setentrional estéril,
conhecida somente devido ao monte Cásio (nec nisi Casio monte
nobilis).
A descrição da Índia (6.71-80), na zona entre o Indo e o Iómanes,
onde vivem povos de montanha (6.73: gentes montanae), também
oferece um conjunto de notas que parecem indiciar uma tipificação
de traços, alguns utópicos, dos habitantes de montanha: a qualificação

19 Todavia, o conhecimento do Atlas na época de Cipião Emiliano fica registado


em 5.9-10, com a tentativa de exploração e circumnavegação de África feita pelo seu
protegico Políbio, que tomou o Atlas como ponto de referência para as distâncias
das terras para sul e para o interior. Em 5.8 noticia-se idêntica circumnavegação às
ordens do cartaginês Hanão. Ver Carey 2003: 38-39: “only serves to enhance the sense
of Roman triumph”.

420
dos Cetribonos como silvestres, a supor, portanto, a existência de bos-
ques e uma espécie de theriodes bios condizente com a proximidade
de inúmeras feras (6.73); a confinação a um território previsivelmente
de difícil acesso e desértico (6.73: hos Indus includit montium coro-
na circumdatos et solitudinibus ... iterumque solitudines); a ligação
entre vida na montanha e liberdade no caso dos Morunos (6.74: hi
montium, qui perpetuo tractu oceani in ora pertinent, incolae liberi
et regum expertes multis urbibus montanos optinent colles); a abun-
dância de metais preciosos (6.74); a existência de lendas e a riqueza
fabulosa de flora e fauna (6.79):

nec non et Nysam urbem plerique Indiae adscribunt montemque


Merum, Libero Patri sacrum, unde origo fabulae, Iovis femine
editum; item Aspaganos gentem, vitis et lauri et buxi pomorumque
omnium in Graecia nascentium fertilem.

A maioria também atribui à Índia a cidade de Nisa e o monte


Mero, consagrado a Liber Pater, donde a origem da fábula que
o diz nascido da coxa de Júpiter; e ainda a nação dos Aspagãos,
fértil em vinha e louro e buxo e em todos os restantes frutos que
nascem na Grécia.

Colinas e montanhas assumem ainda um caráter religioso, pri-


meiro pela ligação a determinados teónimos e mitónimos, como as
Musas nascidas no monte Hélicon (4.25: Musis natalem in nemore
Heliconis); pelo seu mistério e como lugar de rituais vários, como se
pode ver nos seguintes passos: 2.240: saxum quondam ibi sacrum;
3.69: os montes Albanos como centro sacrificial dos povos latinos;
6.79: montemque Merum, Libero Patri sacrum; 6.198: sacer mons
opacus silva repertus; 7.19: sacrificio annuo, quod fit ad montem
Soractem Apollini; 10.75: ab Iove precibus inpetrant Cadmi montis
incolae; 15.134, cf. 4.7, sobre a importância religiosa do loureiro do
Parnaso, dedicado a Apolo; 16.242: antigo culto de Diana, venerada
pelos latinos num bosque da colina de Túsculo chamada Corne; 12.94:

421
culto imperial no Palatino, onde Augusta construiu um templo em
honra do imperador Augusto. Em segundo lugar, pela inacessibilida-
de, várias vezes enfatizada (12.5: Alpibus coercitas ... inexsuperabili
monumento; 36.1: montes natura sibi fecerat ... quos transcendisse
quoque mirum fuit) e visível até no facto de ser preciso perfurar
montanhas para realizar grandes obras de engenharia, dignas de ad-
miração e mesmo prodigiosas (36.121: miracula ... magnifica), como
esgotos subterrâneos (36.104: subfossis montibus); aquedutos como
Aqua Marcia (36.121-123: cuniculis per montes ... montes perfossos);
a drenagem do lago Fucino (36.124: montem perfossum); as vias que
cortam as montanhas (36.125).
Que a montanha faz parte do imaginário romano, mostra-o Plínio
com algumas referências à arte romana, a começar pela notação
de que na pedra chamada panchrus, talvez uma opala de variadas
cores, dedicada a Vénus e portanto favorecedora da fecundidade,
e considerada sagrada, se descortinavam figuras de montes e vales
(37.178-179). E, na verdade, quando os não tinham à vista, os ro-
manos gostavam de os ver representados nos seus aposentos ou de
criar novas técnicas de pintura e artes decorativas que imitavam os
mármores e pedras das montanhas (35.3: spatia montes in cubiculo
dilatantia), elas próprias tornadas motivo de pintura, sob iniciativa
do pintor de paredes Estúdio, da época de Augusto (35.116).
Apreciados eram também motivos mais ou menos lendários que
envolviam montanhas, como a apoteose de Hércules depois da sua
morte no monte Eta, do pintor Andróbio, quadro exposto no pórtico
de Otávia (35.139); ou a escultura transportada no terceiro triun-
fo de Pompeu, aquele que já merecera o troféu colocado sobre os
Pirenéus, a representar uma montanha quadrada, em ouro, enfeita-
da com animais e flora que fazem parte do imaginário condizente,
a saber, cervos, leões, frutos de toda a espécie, uma vinha na orla
(37.14: montem aureum quadratum cum cervis et leonibus et pomis
omnis generis circumdata vice aurea).

422
5. Montanha e história

Sirva este breve apontamento para mostrar como a montanha está


ligada a alguns momentos importantes da história de Roma, e é esse
motivo que leva a algumas anotações, como a já referida colisão de
duas montanhas perto de Mútina, no seguimento de um terramoto,
um ano antes da guerra social (2.199); a reiterada referência ao
troféus de Pompeu nos Pirenéus e nos Alpes que celebram vitórias
sobre inúmeros povos (3.18: Pompeius Magnus tropaeis suis, quae
statuebat in Pyrenaeo; 3.136: inscriptionem e tropaeo Alpium; 7.96:
excitatis in Pyrenaeo tropaeis; 37.16: imago, quam Pyreanaei iugis
inposuisti?). De glória alcançada por conquistas se trata também a
propósito do monte Atlas, englobado na Mauritânia, submetida a
Roma no tempo de Cláudio (5.11: Romana arma primum Claudio
principe in Mauretania bellavere ... Atlantem penetrasse in gloria
fuit). Em 5.13-14 é especificado que o primeiro romano a ir para
além do Atlas foi Suetónio Paulino.
As montanhas também evocam as expedições romanas na Arménia
com a sua faceta de alargamento do conhecimento geográfico (5.83:
Domitius Corbulo, in monte Aga, Licinius Mucianus sub radicibus
montis, quem Capoten appellant; ver também 6.40 sobre as Portas
do Cáspio, entre montanhas intransponíveis).
Montanhas e colinas permitem ainda recordar alguns dos eventos
mais importante que afetaram a cidade de Roma diretamente: a exis-
tência de povoados pré-romanos no local onde se ergueria Roma, entre
eles Antípolis, que será englobada no Janículo (3.68); as secessões
da plebe para o monte Janículo (16.37) e para o Sacro e o Aventino
(19.56: nemo Sacros Aventinosque montes et iratae plebis secessus cir-
cumspexerit?); a travessia dos Alpes pelos invasores gauleses (12.5),
cartagineses e cimbros (36.2: in portento prope maiores habuere Alpis
ab Hannibale exsuperatas et postea a Cimbris: nunc ipsae caeduntur
in mille genera marmorum); o primeiro triunfo celebrado nos Montes
Albanos, o de Papírio Masão sobre os Corsos (15.126).

423
Da saga de Alexandre é recordada a sua vitória sobre Persépolis,
que parecia inexpugnável, no cimo de um monte inacessível (6.115).
Também o poderio persa é lembrado, quando se recorda o canal
aberto por Xerxes no sopé do monte Atos (4.37).
Mas o motivo serve também para ilustrar a efemeridade e queda
dos impérios, como quando se escreve que, apesar do seu enorme
poderio, capaz de conquistar montanhas tão importantes e longín-
quas como o Tauro e o Cáucaso, afinal o Império Macedónico caiu,
num dia apenas, às mãos de Paulo Emílio (4.39: Haec est Macedonia
terrarum imperio potita quondam ... Taurum, Caucasum transgressa,
haec in Bactris, Medis, Persis dominata toto oriente possesso).

6. Montanha e moralidade

Tendo em conta as vertentes económicas e a excelência e preço


das suas produções, não admira que o tema da montanha enquadre
momentos em que valores éticos e morais se perfilam, em especial
os ligados ao usufruto imoderado, requintado ou até socialmente
provocatório dos mesmos.
Um dos passos mais significativos nesta perspetiva, no geral e no
particular, é o início do livro XXXVI, onde se deixa entender que o
homem violou a própria natureza ao ir buscar às montanhas rique-
zas que a mesma aí escondera exatamente por as querer intocadas,
enquanto colocadas em zonas limite, logo vedadas e inacessíveis
(36.1-3):

1. Lapidum natura restat, hoc est praecipua morum insania,


etiam ut gemmae cum sucinis atque crystallinis murrinisque si-
leantur. omnia namque, quae usque ad hoc volumen tractavimus,
hominum genita causa videri possunt: montes natura sibi fece-
rat ut quasdam compages telluris visceribus densandis, simul ad
fluminum impetus domandos fluctusque frangendos ac minime
quietas partes coercendas durissima sui materia. caedimus hos

424
trahimusque nulla alia quam deliciarum causa, quos transcendisse
quoque mirum fuit. 2. in portento prope maiores habuere Alpis ab
Hannibale exsuperatas et postea a Cimbris: nunc ipsae caeduntur
in mille genera marmorum. promunturia aperiuntur mari, et rerum
natura agitur in planum; evehimus ea, quae separandis gentibus
pro terminis constituta erant, navesque marmorum causa fiunt,
ac per fluctus, saevissimam rerum naturae partem, huc illuc por-
tantur iuga, maiore etiamnum venia quam cum ad frigidos potus
vas petitur in nubila caeloque proximae rupes cavantur, ut biba-
tur glacie. 3. secum quisque cogitet, et quae pretia horum audiat,
quas vehi trahique moles videat, et quam sine iis multorum sit
beatior vita.

1. Resta a natureza das pedras, isto é, a maior fonte de insâ-


nia de costumes, mesmo passando em silêncio pedras preciosas,
juntamente com artefactos de âmbar ou cristal ou mirra. Tudo o
que até ao presente volume tratámos, pode ser tido como criado
para o homem: a natureza reservara para si as montanhas, quais
complexos destinados a aglutinar os recursos da terra, a domar tam-
bém o ímpeto dos rios e a quebrar as marés e, com a sua matéria
extremamente dura, a conter os elementos minimamente estáveis.
Nós, por nenhum outro motivo além dos prazeres, cortamos e
transportamos as montanhas que somente causavam maravilha com
serem escaladas. 2. Os nossos antepassados quase consideravam um
portento terem os Alpes sido transpostos por Aníbal e depois pelos
Cimbros. Agora as próprias montanhas são cortadas em mil espécies
de mármores. Os promontórios são abertos ao mar e a natureza
é aplanada. Retiramos aquilo que fora colocado como fronteira a
separar nações, e constroem-se navios por causa dos mármores e,
através dos mares –o elemento mais cruel da natureza–, os cimos
das montanhas são transportados de um lado para outro, e isso
ainda merece maior benevolência do que ir até às nuvens buscar
um vaso para bebidas frias e cavar rochas nas cercanias do céu para
uma bebida gelada. 3. Medite cada um no custo que ouve para tais

425
façanhas, nas enormes massas que vê serem tiradas e transportadas,
e como, sem isso, a vida de muitas pessoas seria mais feliz!

Este passo contém, por outro lado, um conjunto de referências


que, no enquadramento sobre o tipo de vida que conduz à felicida-
de, remetem diretamente para a temática da diatribe cínico-estóica,
concretamente nas teses 20e (a procura de metais preciosos é
perniciosa), 30 (devemos satisfazer as necessidades da forma mais
simples possível), 31f (abster-se de bebidas refrescadas com neve),
34 (devemos evitar o luxo, que aumenta as necessidades), 35 (contra
o luxo da habitação), 38 (contra o luxo da baixela), 39 (contra luxo
do vestuário e requintes de toilette) 20 . São lemas que por vezes
permitem exprimir ideias que quase aproximaríamos das preocupa-
ções ecológicas modernas.
E, no domínio do luxo de construção, o monte Célio viu aparecer
pela primeira vez uma moradia com todas as paredes cobertas por
mármores, a casa de Mamurra, cavaleiro romano, apaniguado de Júlio
César (36.48), seguindo a invenção da técnica de cortar o mármore
em placas para revestir paredes (37.47).

6.1. Contra o luxo gastronómico

Na ideia de que a gula procura sempre novos sabores, Plínio refere


o fígado de um peixe tipo enguia ou lampreia do lago Brigantino,
atual lago Constança, da Récia, um dos lagos dos Alpes (9.63). Ou os
caríssimos viveiros de peixes de mar mandados construir por Lúcio
Licínio Luculo, os quais implicaram a perfuração de um monte junto
de Nápoles (9.170) 21.
Muitas das diatribes respeitantes à alimentação, por um lado filiam-
-se na realidade romana do pronunciamento dos censores através

20 Classificação de acordo com Oltramare 1926 49-65.


21 Ver Nat.18.7 sobre o tamanho das piscinae, maiores do que latifúndios.

426
das chamadas leis sumptuárias, as quais, sob a capa da interdição
por razões de moralidade, escondiam motivações económicas, em
especial no domínio da importação de artigos de luxo, com conse-
quente saída de divisas 22; por outro, evocam de forma muito viva a
realidade social da acumulação de riqueza em Roma com a conse-
quente vida de luxo e ostentação, numa sociedade em que ostentar
era afirmar-se socialmente, o que leva Plínio a verberar o consumo
ostentatório, causador de fraturas sociais claras.
Ora a montanha fornecia muitos alimentos suscetíveis de gerar
clivagens sociais no respetivo consumo. Veja-se o passo que trans-
crevo (10.133-134):

133. Phoenicopteri linguam praecipui saporis esse Apicius do-


cuit, nepotum omnium altissimus gurges. attagen maxime Ionius
celeber et vocalis alias, captus vero obmutescens quondam existi-
matus inter raras aves, iam et in Gallia Hispaniaque. capitur circa
Alpes etiam, ubi et phalacrocoraces, avis Baliarium insularum pe-
culiaris, sicut Alpium pyrrhocorax luteo rostro niger, et praecipua
sapore lagopus.... 134. est et alia nomine eodem, a coturnicibus
magnitudine tantum differens, croceo unctu cibis gratissima. vi-
sam in Alpibus ab se peculiarem Aegypti et ibim Egnatius Calvinus
praefectus earum prodidit.

133. Apício, o mais cotado palato de entre todos os perdulá-


rios, ensinou que a língua do flamingo tem um sabor particular.
O francolim da Jónia –o mais reputado, e além disso canoro, mas
que emudece quando capturado, outrora colocado entre as aves ra-
ras–, até já é capturado perto dos Alpes, tal como o corvo marinho
de faces brancas, ave específica das ilhas Baleares, e dos Alpes são
também a gralha negra de bico amarelo e o lagópode, de sabor pe-
culiar. ... 134. Também existe uma outra desta mesma espécie, que

22 Elenco das leis sumptuárias em Rotondi 1966 98-99; para a relação entre legis-
lação sumptuária e razões económicas, ver exemplos em F. Oliveira 1992 138-139.

427
só difere da codorniz pelo tamanho: com tempero de açafrão, não
há alimento mais agradável. Escreveu Egnácio Calvino, seu prefeito,
que ele mesmo avistara nos Alpes uma íbis específica do Egipto.

A classificação deste passo como invetiva melhor se comprenderá


se tivermos em conta o banquete do ator Clódio Esopo, realmente
simbólico, que numa patina, caçarola avaliada em 100.000 sestércios,
serviu somente aves canoras que imitassem a voz humana, cada uma
delas ao preço de 6.000 sestércios 23.
Um outro passo mistura mar e montanha na mesma invetiva, a
propósito do consumo de ostras, num quadro verdadeiramente an-
titético (32.64):

Dos eorum medica hoc in loco tota dicetur. stomachum unice


reficiunt, fastidiis medentur, addiditque luxuria frigus obrutis nive,
summa montium et maris ima miscens.

Vamos indicar neste ponto todas as propriedades medicinais


das ostras: restabelecem o estômago de maneira sem igual; curam
o fastio; e o luxo acrescentou-lhes o frio ao cobri-las de gelo, mis-
turando o cume dos montes com o fundo do mar.

Finalmente, num passo de grande relevância social que aborda


o preço dos alimentos tirados das plantas, as dificuldade de sub-
sistência de alguns estratos populacionais, incluindo a plebe, e as
extravagâncias gastronómicas (19.54: heu prodigia ventris!), nem a
água, trazida das montanhas sob a forma de gelo, escapa ao luxo e
à clivagem social inerente (19.55-56):

aquae quoque separantur, et ipsa naturae elementa vi pecuniae


discreta sunt. hi nives, illi glaciem potant poenasque montium in

23 Sobre a importância simbólica da gastronomia em Roma, ver Inês de Ornellas


e Castro 2011.

428
voluptatem gulae vertunt. servatur rigor aestibus, excogitaturque
ut alienis mensibus nix algeat. decocunt alii aquas, mox et illas
hiemant. nihil 56. utique homini sic, quomodo rerum naturae,
placet. etiamne herba aliqua diviti tantum pascitur? nemo Sacros
Aventinosque montes et iratae plebis secessus circumspexerit?

Até as águas são classificadas e os próprios elementos da na-


tureza são separados pela força do dinheiro. Aqui bebe-se neve,
ali bebe-se gelo e transforma-se em prazer da gula o que é castigo
das montanhas. O frio é conservado para as épocas de calor e
imaginam-se processos de manter a neve fria para meses que lhe
não são próprios: uns fazem ferver a água e de imediato a congelam
– nada causa agrado ao homem no seu estado natural. Pois ainda
existe uma planta que só para o rico é cultivada?! Não há ninguém
que tenha em conta os montes Sacro e Aventino e as secessões da
plebe tomada de ira?

No pensamento do Naturalista, essas desigualdades –que já abor-


dara a propósito dos rábanos cultivados em Ravena (19.54: mirum
esset non licere pecori carduis vesci: non licet plebei!)–, podem fazer
surgir revoltas semelhantes às secessões da plebe, quando a plebe
romana saiu de Roma em protesto e foi estabelecer-se nas colinas
vizinhas, assim transformadas em símbolos de desunião cívica.
Como se vê e se confirma com o passo já citado mo início do
capítulo 6, relativo ao transporte de mármores tirados das mais altas
montanhas (36.2: nunc ipsae caeduntur in mille genera marmorum),
o Naturalista faz o paralelo com a água, que, sob a forma de gelo,
era também um elemento de luxo ligado à montanha (36.2-3).

6.2. Contra o luxo da habitação, mobiliário, vestuário e moda

O uso que é dado a certos produtos e artefactos ligados à monta-


nha, especialmente vegetais e minerais, suscita considerações morais

429
e críticas que, como já vimos, se enquadram nas teses da diatribe
cínico-estóica sobre o luxo da habitação, mobiliário, vestuário e
moda, e têm subjacentes os lemas da autarcia e da ascese, suge-
rindo não se procurar longe o que está perto, não gastar dinheiro
quando se tem à mão o que a natureza fornece gratuitamente e sem
esforço.
Selecionei um passo que reúne algumas dessas pistas, na sequência
da descrição da vida simples –o tópico conhecido como theriodes
bios– que os primeiros homens levavam nas florestas, antes da busca
desenfreada de artigos de luxo (12.2):

quo magis ac magis admirari subit his a principiis caedi montes in


marmora, vestes ad Seras peti, unionem in Rubri maris profunda,
zmaragdum in ima tellure quaeri.

Por isso, depois de tais inícios, ainda maior admiração causa ver
cortar os montes por causa do mármore, buscar vestuário entre os
Seres, procurar pérolas nos abismos do Mar Rubro, esmeraldas nas
profundezas da terra.

Alhures, Naturalista censura a paixão pelas mesas de cidreira,


luxo generalizado que as mulheres censuram nos homens (13.91):

Atlans mons peculiari proditur silva, de qua diximus. confines


ei Mauri, quibus plurima arbor citri et mensarum insania, quas
feminae viris contra margaritas regerunt.

O monte Atlas é lembrado pela sua floresta peculiar, que já


tratámos. Com ele confinam os Mauritanos, donde vem a árvore da
cidreira e a paixão pelas respetivas mesas, paixão que as mulheres
lançam contra os maridos em contraponto às pérolas delas.

E, na questão dos mármore, fica mesmo a sensação de que a sua


procura nas alturas, para satisfazer o luxo, provoca como que uma

430
úlcera nas montanhas e desperta um sentimento quase ecológico
da parte do Nauralista, também cáustico e irónico em relação aos
costumes (36.125):

et inter plurima alia Italiae ipsius miracula marmora in lapicidinis


crescere auctor est Papirius Fabianus, naturae rerum peritissimus,
exemptores quoque adfirmant compleri sponte illa montium ulcera.
quae si vera sunt, spes est numquam defutura luxuriae.

E entre outros prodígios da mesma Itália, diz o autor Papírio


Fabiano, muito conhecedor das coisas da natureza, que o mármore
cresce nas pedreiras, e até os cabouqueiros afirmam que essas feri-
das dos montes se recompõem espontaneamente. Se isso é verdade,
há esperança de que tal nunca falte ao luxo!

Os metais em geral e os preciosos em particular, a par dos cris-


tais para taças destinadas a bebidas geladas, trazidos de montanhas
como os Alpes, são também visados por nada contribuirem para a
felicidade, pois sem eles a vida seria muito mais feliz (36.2-3), e
com eles, como no caso da prata, vive-se numa verdadeira insânia
(33.95-97). Perfurar a terra, penetrar nas suas vísceras e arrancá-las,
abrir as suas veias para retirar ouro, prata, bronze, chumbo através
da perfuração de galerias (cuniculi), isso é prova de total ingratidão
para com benemerência da natureza, cujos dons o homem transfor-
mou em prazeres, ganância, luxo e opulência (2.157-159).

7. Conclusões

Do exposto, podemos tirar algumas inferências, logo para afirmar


que mesmo um tema muito circunscrito, como é o da montanha, não
abordado sequer por Beagon e só enquanto barreira geográfica por
Murphy, permite entrever a enorme riqueza de informação contida

431
na História Natural 24. E, quanto ao conhecimento geográfico, que
se reflete em outros ramos do saber, da zoologia e da botância à
medicina e à mineralogia, prova-se que a expansão romana foi uma
fonte extraordinária de conhecimento, que se foi alargando com as
ações políticas, militares, diplomáticas e comerciais.
Na visão do mundo permitida pelo tema da montanha sobressai
a imagem de excelência da Itália, logo pela sua geografia (37.201:
montium articulis) e pela excelência de muitos produtos de monta-
nha, a qual também representa, no imaginário romano, não somente
momentos importantes da história local, como ainda a utopia de
uma vida simples, sem o luxo moderno, que é verberado através de
muitos lemas da invetiva cínico-estóica.
Destaca-se, sem dúvida, uma visão romanocêntrica do mundo
em geral e da montanha em particular, mas esse mundo não exclui
nem a sabedoria grega nem a bárbara, como se vê logo no rastreio
da terminologia, que tanto utiliza simplesmente a grega, por vezes
sobrepondo-lhe a latina, como regista os nomes locais.
E, o que não é de somenos, a visão do Naturalista, sendo filtrada
por considerações moralistas e retóricas, não deixa de estar extre-
mamente atenta às questões económicas, com a apresentação dos
produtos, artefactos, preços, processos de controlo e deteção de
adulterações, em domínios que vão dos usos quotidianos dos produ-
tos de montanha aos mais elaborados, como a metalurgia, a pintura,
a arquitetura e decoração, e sobretudo a medicina.
Finalmente, essa perspetiva económica é filtrada por uma sensibi-
lidade ecológica que se entrevê e por uma consciência social muito
explícita, à qual repugnam as desigualdades decorrentes do luxo e
da ostentação, causadores de divisões e perigos sociais.

24 Beagon 1992; Murphy 2004: 148-154.

432
Bibliografia

(para a História Natural, a edição base é a da Teubner, mas foram compulsadas as


edições Budé, incluindo comentários e notas, juntamente com a Loeb e os volumes
publicados pela Gredos)

André, J. (1956), Lexique des termes de botanique en latin. Paris: Klincksieck.


Bayer, K., Brodersen, K. (2004), C. Plinius Secundus d. A., Naturkunde. Gesamtregister.
Puster: Artemis & Winkler.
Beagon, M. (1992), Roman Nature. The Thought of Pliny the Elder. Oxford: Oxford
University Press.
Carey, S. (2003), Pliny’s Catalogue of Culture. Art and Empire in the Natural History.
Oxford: Oxford University Press.
Castro, I. O. (2011), De la table des Dieux a la table des Hommes. La symbolique de
l’alimentation dans l’antiquité romaine. Paris: L’harmattan.
Clifford, H. T., Bostock, P. D. (2007), Etymological Dictionary of Grasses. Berlin: Springer
Verlag.
Grane, Th. (2012), “Pliny and the wandering mountain. A new interpretation of Pliny’s
account of the northern Barbaricum with an archaeological comment”, Analecta
Romana Instituti Danici 37: 7-28.
Martini, M. C. (1977), Piante medicamentose e rituali magico-religiosi in Plinio. Roma:
Bulzoni Editore.
Murphy, T. (2004), Pliny the Elder’s Natural History. Oxford: Oxford University Press.
Oliveira, F. (2020), “Mobilidade e saber em Plínio o Antigo”, in A. Rebelo e M. Miranda
(coords.), O mundo Clássico e a universalidade dos seus valores. Coimbra: Imprensa
da Universidade de Coimbra, 227-246.
Oliveira, F. (1994), “Lusitânia rural em Plínio o Antigo”, in J-G Gorges e M. Salinas de
Frías (eds.), Les campagnes de Lusitanie romaine. Madrid: Casa de Velázquez, 31-44.
Oliveira, F. (1992), Idées politiques et morales de Pline l’Ancien. Coimbra: Imprensa da
Universidade.
Oliveira, F. (2007), “Fabula em Plínio, o Naturalista”, in A. A. Nascimento (ed.), Os
clássicos no tempo: Plínio, o Velho, e o Humanismo Português. Lisboa: Centro de
Estudos Clássicos, 33-43.
Oltramare, A. (1926), Les origines de la diatribe romaine. Genève: Imprimeries populaires.
Rotondi, G. (1966), Leges publicae populi romani: elenco cronologico con una introduzione
sull’attività legislativa dei comizi romani. Hildesheim: G. Olms.
Rosumek, P. & Najock, D. (1996), Concordantia in C. Plinii Secundi Naturalem Historiam.
Hildesheim: Olms-Weidmann.

433
(Página deixada propositadamente em branco)
A mesa como elemento caracteriz ador
e i d e n t i tá r i o n a R o m a d o p o e ta M a r c i a l *

T h e T a b l e a s a C h a r ac t e r i s i n g a n d I d e n t i ta ry
Element in the Poet Martial‘s Rome

José Luís Brandão


Univ. Coimbra, CECH 1
ORCID: 0000-0002-3383-2474
iosephus@fl.uc.pt

Resumo: Tendo em conta que a mesa é fonte de inspiração frequente


na literatura latina, debruçamo-nos sobre representativos epigramas
de Marcial que contêm informação relevante sobre a cozinha roma-
na, inserindo-os numa tradição literária (comédia, sátira, biografia,
romance) onde a comida aparece como elemento de caracterização
ética e identitária de povo e de uma elite. Deste modo, o objetivo é,
mediante a análise deste testemunho frequentemente crítico sobre os
hábitos da elite romana, perceber a forma como os pratos se tornam
motivo recorrente de caracterização moral e social.

Palavras-chave: Marcial, alimentação, Roma, principado, epigrama

Abstract: Taking into account that the table is a frequent source of ins-
piration in Latin literature, I focus on selected epigrams of Martial

* Aqui expresso minha homenagem à Doutora Maria de Fátima Silva, com admi-
ração pelo seu saber, gratidão pelos conhecimentos que me transmitiu ao longo dos
tempos e amizade resultante de muitos e gratos anos de convívio.
1 Este texto foi elaborado no âmbito do projeto Rome our Home: (Auto)biogra-
phical Tradition and the Shaping of Identity(ies) (PTDC/LLT-OUT/28431/2017) e do
projeto DIAITA do CECH.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_19
containing relevant information about Roman cuisine. Then I insert
them into a literary tradition (comedy, satire, biography, novel) whe-
re food appears as an element of ethical characterization and an
identifier of people and an elite. Thus, the objective is, through the
analysis of this critical testimony about the habits of the Roman elite,
to understand how dishes become a recurring motive for moral and
social characterization.

Keywords: Martial, food, Rome, principate, epigram

Hominem pagina nostra sapit (10.4.10)

O poeta Marcial apresenta-nos ao longo dos seus livros de epigra-


mas um retrato de Roma viva, com os tipos que se podiam observar
na Urbe, as curiosidades da vida social e política, o mundo das
relações pessoais e públicas, os espaços abertos e fechados frequen-
tados pelos diferentes grupos, os percursos feitos pelas pessoas ou
pelos livros, bem como uma infinidade de elementos do quotidia-
no, artefactos e perecíveis necessários a qualquer comunidade. Tal
constitui um rico acervo de elementos materiais e imateriais que
nos faculta um vislumbre da vida real na Roma do século I da nossa
era 2. Na procura de justificar as escolhas temáticas dos epigramas,
Marcial afirma que não trata de seres mitológicos, mas de pessoas
autênticas. E ao afirmar Hominem pagina nostra sapit (10.4.10), joga
com o duplo sentido de sapire “ter gosto” e “saber, compreender” 3:
“A minha página tem sabor humano” ou “A minha página compreende

2 Para uma visão global da vida em Roma nos epigramas de Marcial, vide Castagnoli
1950: 67-78; Lana 1955: 225‑249; Paoli 1956: 552‑567; Marache 1961a: 38‑53, 1961b:
12-13; Mohler 1967: 239-263; Augello 1968-69: 234-270; Dolç 1974: 109‑125, 1989:
11‑22; Adamik 1975: 55‑64; Pailler 1981: 79‑87; Watson 1983: 258‑264; Medeiros 1988:
1-15; Garrido-Hory 1981: 300‑306; Pimentel 1992: 165-186, 2000: 221-230, 2004: 13-31,
2012: 121-133; Prior 1996: 121-141; Robert 2004a: 48-68, 2004b: 69-86; Leão 2004:
191­- 208; Fitzgerald 2007: 139-166; Spisak 2007: 15-99; Rimell 2008: 94-139; Torrão-
Andrade 2008: 63-79; Howell 2009: 73-100; Roman 2010: 88-117; Torrão-Costa 2010:
53-368; Graça 2011: 169-365; Brandão 2012: 135-161; Cesila 2017: 77-276.
3 Vide Gowers 1993: 39.

436
o homem” 4. Uma parte desse sabor diz, pois, respeito, em sentido
restrito, ao que se comia e bebia na Urbe.
Devido ao realismo e ao gosto pelos pormenores de erudição,
Marcial acaba por transmitir transmitir informação variada e relevante
sobre a mesa romana sobre a mesa romana: porque, em Roma, levava
vida de cliente, de que tanto se queixa, e era presença assídua de
diferentes patronos; porque muitas das situações que capta, para
satirizar ou celebrar, se passam à mesa; porque, tendo uma quinta
nas proximidades de Roma, refere os produtos da terra próprios ou
alheios; porque descreve vilas aprazíveis; porque compõe dois livros,
os Xenia e os Apophoreta, totalmente preenchidos com versos que
acompanham os presentes oferecidos pela festa das Saturnais, or-
ganizados por títulos, e porque, em suma, se integra numa tradição
literária em que o tema do simpósio estava presente desde a lírica
grega 5. No caso dos Xenia, trata-se de presentes de comida, vinhos
ou de elementos relacionados com o banquete 6 e na ordem em que
são servidos: aperitivos, gustatio (13.1-60); pratos principais (aves,
peixes e mariscos, caça) (61-105) e a comissatio, onde abunda o
vinho, as rosas e os perfumes (106-127).
Nos outros doze livros de epigramas, as indicações dos pratos
e dos vinhos aparecem integradas no contexto próprio, conforme
se trata de quadros da vida romana, de elementos caracterizadores
de tipos sociais, de sinais estilo de vida ideal ou censurável. Os
pratos descritos pelo poeta figuram, como observa Marina Sáez 7 ,
sobretudo nos epigramas de tema satírico8, o que não é estranho, se

4 Vide Castagnoli 1950: 67-78; Terzaghi 1934: 257.


5 Retomando topoi consagrados, como a alusão às normas do convívio – a inter-
pelação do escravo, o menu, a mistura de água com vinho, salas de jantar – e aos
adornos próprios do simpósio, como elementos vegetais, perfumes e a música. Vide
Marina Sáez 1991: 130.
6 Marcial usa o termo Xenia especificamente com o sentido de presentes de
comida no contexto das Saturnais: vide Leary 2001: 1-3.
7 Marina Sáez 1991: 11.
8 A autora nota a ausência do menu nos epigramas onde o tema é o simpósio, ao
contrário dos epigramas de tema satírico onde a comida é integrada.

437
pensarmos que escrever sobre comida está na tradição desse outro
género literário – a sátira – cujo nome terá, na origem, implicações
gastronómicas 9.
As referências gastronómicas inserem-se, pois, numa tradição bem
definida na Literatura Latina. Já Plauto as usara para estabelecer a
diferença entre a vida à romana, por vezes designada de bárbara
(com papas, alho, lentilhas e porco) 10, e vida à grega (pergraeca-
ri), considerada amiúde fonte de ruína, que privilegiava consumo
de peixes, aves e mariscos 11. Horácio integrara amiúde comida nas
suas sátiras fazendo jus às origens do género 12. Em Petrónio o tipo
de pratos servidos e o cerimonial à volta deles caracterizam o novo
rico Trimalquião. No início do século seguinte, o biógrafo Suetónio,
de acordo com os objetivos da biografia antiga13, integrará o regime
diário entre os elementos definidores do ethos dos biografados14 – e,
no extremo, toda a Vida de Vitélio gira à volta do vício da gula 15.
Embora as atitudes de anfitriões e de convivas sejam amiúde objeto
do humor do poeta epigramático, o Marcial faz repetidamente uma
advertência que convém ter em conta: quando se trata de vitupério,
os nomes são fictícios. Empregando uma metáfora culinária, declara
que usa innocuos sales ‘o sal inofensivo’, o chiste que diverte sem

9 De Satura, que segundo Festo e Diomedes aponta na origem para a ideia de


um prato de primícias compósito. Vide Leigh 2006: 44 ss.
10 Como as papas tradicionais designadas por puls (cf. ex. Most. 828; ou Poen.
54), o alho (que comem os remadores romanos em Poen. 1309-14), lentilhas (Most.
62), porco (Most. 40; Curc. 323 e 366; Capt. 847-850, 903-5).
11 Cf. por exemplo, Mos. 23-24; 39-48; 64-67; Cas. 493-494; Capt. 846-851. Vide
Gowers 1993: 60-61.
12 Cf. S. 2.2; 2.3; 2.4; 2.6; 2.7; 2.8.
13 Definidos por exemplo em Plutarco (Alex. 1.1).
14 Cf. Jul. 53; Aug. 76-77; Cl. 33; 44.2; Nero 27.2-3; Gal. 12.3.
15 Cf. Vit. 7.1; 7.3; 13; 14.2; 17.2. Era natural que os mais ricos tentassem imitar os
requintes dos banquetes de Nero na chamada cenatio rotunda da sua Domus Aurea,
cuja abóbada rodava continuamente à semelhança do universo, e cujo artesoado do
tecto permitia derramar flores e perfumes sobre os comensais (Suet. Nero 31). Vitélio
é apresentado pelo biógrafo como admirador de Nero. Estereótipos usados para Nero
servirão também para caracterizar outros imperadores, como Cómodo e Heliogábalo
na História Augusta. Vide Brandão 2018: 35-51.

438
atingir ninguém vivo16, porque o seu objectivo é outro (10.33.9-10):
Hunc seruare modum nostri nouere libelli, / parcere personis, dicere
de uitiis.17 «Os meus livros sabem guardar esta justa medida: / poupar
as pessoas, apontar os vícios».

1. As delícias dos parasitas

Um tópico fértil na poesia de Marcial é o dos caçadores de ban-


quetes, que, logo pela manhã, cercavam as vítimas de todo o tipo
de atenções nos locais públicos na esperança de um convite. Sélio,
nome repetido (2.14; 2.27; 2.69), representa o tipo do parasita que
se não cansa de elogiar e aplaudir até ver garantido o convite para
o jantar (2.27) 18 . As termas são um dos locais propícios para o
assédio (9.19) 19 , e os implacáveis parasitas cercam a vítima de
toda a espécie de atenções até esta se mostrar vencida pelo cansaço
(12.82) 20. Outros procuram potenciais anfitriões em locais inespe-
rados (11.77): Vacerra passa as horas sentado nas latrinas públicas
à espera de algum convite 21.
Tongílio disfarça a gula sob aparência de uma febre, porque a
que a cura prescrita está nas termas, onde pode encontrar quem o
convide (2.40) – e o poeta inclui como remédio a ementa desejada,
própria de uma mesa requintada:

16 Cf. 3.99: Irasci nostro non debes, cerdo, libello. / Ars tua, non uita, est carmine
laesa meo. / Innocuos permitte sales. / Cur ludere nobis / non liceat, licuit si iugulare
tibi? Vide Pavanello 1994: 161‑177; Deschamps 1981: 353‑368; Sullivan 1991: 63-64.
17 Cf. 1. Prol.; 2.23; 7.12; 9.95. Vide Brandão 1997: 177-195.
18 Laudantem Selium cenae cum retia tendit / accipe, siue legas siue patronus
agas:/ «effecte! grauiter! cito! nequiter! euge! beate! / hoc uolui!». «Facta est iam tibi
cena, tace.».
19 Laudas balnea uersibus trecentis / cenantis bene Pontici, Sabelle./ Vis cenare,
Sabelle, non lauari.
20 Effugere in thermis et circa balnea non est / Menogenen, omni tu licet arte uelis
..... Omnia laudabit, mirabitur omnia, donec / perpessus dicas taedia mille «ueni!».
21 In omnibus Vacerra quod conclauibus / consumit horas et die toto sedet, /cena-
turit Vacerra, non cacaturit.

439
Vri Tongilius male dicitur hemittritaeo.
Noui hominis fraudes, esurit atque sitit.
Subdola tenduntur crassis nunc retia turdis,
hamus et mullum mittitur atque lupum.
Caecuba saccentur quaeque annus coxit Opimi,
condantur parco fusca Falerna uitro.
Omnes Tongilium medici iussere lauari:
o stulti, febrem creditis esse? Gula est.

Tongílio arde, incorretamente se diz, em febre, das semiterçãs. /


Conheço a ronha do tipo: ele tem é fome e sede. / É a forma de
estender agora arteiras redes aos gordos tordos, / e de lançar o
anzol ao salmonete e ao robalo. / Filtrem-se os vinhos cécubos
que o ano de Opímio apurou, / Coem-se os escuros falernos
em exíguas garrafas de vidro. / Todos os médicos prescreveram
a Tongílio os banhos. / Ó palermas, pensam que é febre? É só
vontade de comer!

A metáfora do lançamento da rede, repetida em outros locais


(2.27; 2.40.3; 2.47.1; 3.58.26), aproxima Tongílio dos caçadores de
heranças, um tipo igualmente frequente na sátira e nos epigramas 22.
O poeta aproveita o ensejo para indicar os melhores remédios, isto
é, os pratos e os vinhos próprios da mesa opulenta.
Com efeito, o tordo é claramente distintivo da boa mesa23 e caro24,
mencionado em outro epigrama (3.77.1) a par da lebre, do javali,
das galinhas da Numídia e dos faisões. Nos Xénia, tanto figura nas

22 Vide Williams 2004: 107-108. De facto, o epigrama tem semelhanças com 11.86:
Partenopeu finge ter tosse, mas afinal é semelhante: non est haec tussis, Parthenopaee,
gula est!. Logo pode ser uma forma de atrair os caçadores de heranças, que, na espe-
rança de serem contemplados no testamento, o convidem para jantar: Interpretação
de Friedlaender, citado por Williams 2004: 145.
23 Cf. Hor. Ep. 1.15.41.
24 Varrão, ao descrever (em De re rustica) o próspero negócio da sua tia da venda
de tordos (3.2.14-5; 3.4.1), afirma esta ave pode render 3 denários. Mas um pavão
rende 50 (3.6.3). A luxuria sendo algo mau é proveitosa para quem a fornece.

440
entradas, a gustativo, (13.51) 25, como é integrado entre os acepipes
reservados para uma fase posterior do banquete (as matteae) (13.92).
E diz o poeta que, em seu entender, o tordo é a melhor mattea en-
tre as aves, assim como a lebre o é entre os quadrúpedes (13.92) 26.
É, pois, o presente adequado para oferecer a amigos poderosos
na festa dos familiares, os Caristia, a 22 de fevereiro (9.55) 27. Era
considerado um presente tão apreciado, que Horácio o recomenda
na sátira (S. 2.5.10) como engodo eficaz para ser enviado por um
caçador de heranças a um velho rico.
Entre os pratos cobiçados pelos parasitas, figuram os peixes mais
requintados, como é o caso do mullus, ‘salmonete’. Este peixe é bas-
tante apreciado (2.40.4), e aparece reiteradamente nos epigramas como
sinal de mesa rica por oposição à pobre (2.43.11; 2.45.5; 7.78.3). Era
por isso muito caro (11.49.9). Marcial censura um tal Caliodoro por
vender um escravo por mil e duzentos sestércios para jantar bem uma
vez. Mas conclui que não jantou bem, pois comprou apenas um salmo-
nete (10.31). Segundo Plínio (Nat. 9.66), havia o requintado costume
de o trazer vivo para o banquete, para os convivas se deleitarem ao
vê-lo mudar de cor enquanto asfixiava, prática a que alude Marcial
nos Xenia (13.79): Spirat in aduecto, sed iam piger, aequore mullus;/
languescit. Viuum da mare: fortis erit «Na água com ele apanhada,
respira o salmonete, mas a custo/ e desfalece. Deita-o vivo ao mar
e ganhará vigor!» 28. Era um peixe muito apreciado pelo imperador
Tibério, o que motiva a anedota do pescador de Cápreas contada
por Suetónio (Tib. 60) 29.

25 Servido com aspárgos: cf. Macr. 3.13.12. Também no epigrama acima transcito,
2.40, parece fazer parte da gustatio. Os tordos seriam dispostos num arco (cf. corona
em 3.47.10), e, por isso, Marcial, em Xenia (13.51), diz com graça que em vez de uma
coroa de rosas e nardo, como era próprio de um banquete, prefere uma coroa de tordos.
26 Vide André 1981: 122; Leary 2001: 104.
27 Mas quando estes são oferecidos por uma tal Pôncia (6.75), o poeta diz que
não os vai comer nem oferecer: é que Pôncia é o nome de uma célebre envenenadora
(cf. Juv. 6.638).
28 Trad. de D. Leão.
29 O esforçado homem, depois de subir as altíssimas escarpas para oferecer ao
imperador o melhor peixe que pescara, um enorme mullus, é fustigado na cara com

441
Tal como acontece no epigrama citado, o mullus aparece em
Marcial algumas vezes emparelhado com o lupus (2.37; 2.44; 11.49.9),
o ‘robalo’. Este é uma das prendas caras que lhe exige a amante Fílis
[11.49 (50).9]. Os robalos mais apreciados eram, segundo Plínio (Nat.
9.61), os chamados lanati ou lanei, ‘de lã’, por causa da suavidade
das postas, associação de que Marcial faz eco nos Xenia (13.89) 30.
A mesa sumptuosa pode ser fautora de distorção na relação entre
anfitrião e conviva. A amizade, valor bastante prezado por Marcial, e
tratado em numerosos epigramas, não se afere pela quantidade dos
convites da parte do anfitrião (7.76.), mas também não se alimenta
da boa mesa (9.14):

Hunc, quem mensa tibi, quem cena parauit amicum


Esse putas fidae pectus amicitiae?
Aprum amat et mullos et sumen et ostrea, non te.
Tam bene si cenem, noster amicus erit.

E ste tipo que a tua mesa, o teu jantar tornou amigo, / julgas que
é fiel, do coração, à amizade?/Amigo, sim, do javali e salmone-
tes e tetas de porca e ostras, não de ti. / Se eu jantar assim tão
bem, meu amigo ele será.

Neste epigrama são referidas outras iguarias que são objeto da


afeição do parasita. O aper, ‘javali’, era próprio de um banquete lu-

a dádiva e também com uma lagosta enorme que tinha capturado, porque, na sua
inocência, tinha mostrado o meio de chegar até junto do imperador.
30 Marcial refere-se também às águas doces e salgadas da foz do Timavo. Com
efeito, este peixe podia ser criado em viveiro, como se sugere em 10.30.21, mas eram
mais apreciados, por uns, os que eram capturados no Tibre, entre as duas pontes
(Plin. Nat.. 9.169; Macr. 3.16.13), e, por outros, os capturados no mar (Col. 8.16.4), e
especialmente nos estuários dos rios, como o Timavo, que desagua no golfo de Trieste.
Este estuário apresentava condições muito favoráveis, pois o robalo se alimentava
num lago, formado perto do mar com mistura de água doce e salgada, como refere
o poeta em 13.89. Vide, sobre estes dois peixes, André 1981: 99-100; Williams 2004:
139; Leary 2001: 138-139 e 149-150.

442
xuoso: «animal nado para os banquetes», dirá Juvenal (1.139-141) 31.
Começou a ser servido inteiro, segundo Plínio (Nat. 8.210) 32, por
Públio Servílio Rulo, na geração anterior a Cícero. Era preparado no
espeto, como mostra Marcial num epigrama dos Apophoreta (14.221),
ou no forno. Por isso, Marcial nos Xenia (13.93) pode comparar o
tamanho de um javali oferecido com o do mítico animal que Meleagro
matou em Cálidon na Etólia 33.
Sendo um prato caro (7.78.3), era engodo usado como oferta por
caçadores de heranças (12.48). O tema dos herediptae é, em outro
epigrama, cruzado com o mito de Meleagro, para caracterizar o ta-
manho do javali que o próprio poeta diz ter oferecido a Gárrico em
troca da promessa de o mencionar num testamento: mas o ingrato
nem sequer o convidou para o banquete onde serviu animal (9.48):
De quadrante tuo quid sperem, Garrice? Nulla / de nostro nobis un-
cia venit apro «Como posso eu esperar, Gárrico, um quarto de teus
bens?! / Nem do meu próprio javali um cagagésimo recebi!» (vv. 11-
12). Em contrapartida, celebra o exemplar oferecido por um amigo.
Mas, como a preparação requerida (com pimenta, falerno e garum)
fica demasiado dispendiosa, o poeta comenta: ad dominum redeas,
noster te non capit ignis; / conturbator aper: uilius esurio «Regressa
ao teu senhor, não cabes na minha cozinha, / javali dissipador: fica-
-me mais barato passar fome» (7.27.9-10) 34.
O sumen, ‘tetas de porca’, era famosíssimo. Estava entre a iguarias
prescritas pelas leis sumptuárias 35, mas já aparece referido no início
do séc. II a.C., em Plauto 36, portanto antes destas leis, comparando

31 Sed quis ferat istas / luxuriae sordes? Quanta est gula quae sibi totos/ ponit
apros, animal propter conuiuia natum!
32 Solidum aprum Romanorum primus in epulis adposuit P. Seruilius, pater eius
Rulli, qui Ciceronis consulatu legem agrariam promulgauit.
33 Vide André 1981: 115-116; Leary 2001: 154-156.
34 Trad. de Delfim Leão.
35 Cf. Plin. Nat. 8.209; 11.211.
36 Pseud. 166; Curc. 323; Capt. 904. E sobreviveu por centenas de anos nos registos
literários dos hábitos gastronómicos dos romanos ricos. Permanece no séc. IV d.C.
Ainda figura no Édito Máximo de Diocleciano (301d.C) para a fixação dos preços
máximos. Vide D’Arms 2004: 431-434.

443
as cronologias 37 . Em Marcial é um presente de requinte (7.78.3),
um prato cobiçado e levado para casa à socapa por convivas ávidos
(2.37.2). Era servido ora como integrante da gustatio (10.48.12; 13.44),
ora como prato principal (11.52.13). Tornava-se sinal de sumptuo-
sidade (luxuria) e de gula: pelo sacrifício que implicava. Plutarco,
nos Moralia38, descreve em tom bastante crítico o ato de pontapear
a porca prestes a dar à luz para destruir a ninhada, pois acreditava-
-se, segundo Plínio (11.211), que eram mais saborosos os úberes do
animal que acabara de parir e que não tivesse aleitado. Marcial, em
Xenia (44), descreve tetas de porca ainda a escorrer leite: talvez uma
simulação com leite colocado depois da cozedura, à semelhança de
outras farsas do género exemplificadas no romance de Petrónio 39.
Outra entrada de luxo referida são as ostras (cf. 3.45.6; 7.78.3).
Faziam também parte da gustatio segundo Plínio o Moço (Ep.
1.15.3), mas Marcial, nos Xenia (13.82), integra ostras do Lucrino
no decorrer da refeição. As mais apreciadas eram as provenientes
deste lago (3.60.3; 12.48.4; 13.82), junto a Baias, onde encontravam
as condições ideais de cultivo, segundo Plínio o Velho (Nat. 32.59).
Teria sido Sérgio Orata o primeiro a criar viveiros de ostras naquela
zona em 105 a.C. (Plin. Nat. 9.168; Col. 8.16.7), e Plínio diz que o
fez não por gula, mas por cobiça (nec gulae causa, sed avaritiae),
antevendo o lucro proveniente do seu engenho 40.
Sélio (2.11; 2.14; 2.27), Vacerra (11.77) ou Menógenes (12.82) tor-
nam-se estereótipos de caçadores de jantares. Gorados os esforços, a
ansiedade e frustração de Sélio são expressas através de um percurso
circular, repetindo os mesmos lugares, lavando-se em diversas termas

37 Tudo indica que a única lei sumptuária que existia era a lei Ópia de 215 a.C.
que versava sobre vestuário e carruagens das mulheres. A Lex Orchia, sobre o luxo
da mesa (limitava o número de convidados), seria de de 181, portanto depois da
morte de Plauto. Só temos pormenores da Lex Fannia de 161 (Macr. 3.17.3). Sobre
este assunto vide Gowers 1993: 70-71.
38 De esu carnium 2.1.
39 Vide André 1981: 138; Leary 2001: 95-96; Williams 2004: 239.
40 Vide Andrews 1948: 299-303; André 1981: 105-106; Leary 2001: 141-142.

444
(2.14)41. Quando todos já se recolheram com os seus convidados, Sélio
erra só e cabisbaixo (2.11): Maerosis igitur causa quae? Domi cenat
(«Qual é, pois, a razão da tristeza? Janta em casa». A expressão cenare
domi aparece diversas vezes repetida nos epigramas42: o domicenium
é caracterizado como tristis em 5.78.143 e considerado por um certo
parasita como punição divina por ter sido incapaz de conter e flatu-
lência no templo de Júpiter (12.77)44.
É natural que quem não foi convidado fique deveras ofendido 45.
Mas também há aqueles que fingem ser bastante requestados (5.47;
12.19) e há certas atitudes desdenhosas, que soam a hipocrisia (2.69;
6.51), como a retratada em 2.69, onde se faz uma comparação irónica
do protagonista com Apício: Inuitum cenare foris te, Classice, dicis:/
si non mentiris, Classice, dispeream. / Ipse quoque ad cenam gaudebat
Apicius ire; / cum cenaret, erat tristior ille, domi «Dizes que jantas
fora, Clássico, contra a vontade; / raios me partam, Clássico, se não
mentes. / Até o próprio Apício adorava ir jantar: / se jantava em
casa, ficava assaz aborrecido». O nome deste famoso gastrónomo já
se tornara exemplo proverbial de requinte à mesa para Séneca (Ep.
120.19) e de gula para Marcial (2.89.5; 3.22.5) e Juvenal (4.23) 46.
Também a avidez dos convidados é objeto de censura. A gula
providencia fácil caricatura (11.86; 12.41). O vício é ilustrado com

41 Nil intemptatum Selius, nil linquit inausum,/ cenandum quotiens iam uidet
esse domi.(...)/ Nam thermis iterumque iterumque iterumque lauatur... Inspirado na
técnica de ancorar a sátira sobre topografia, com antecedentes em Catulo 55, o epi-
grama constitui uma interessante fonte de informações sobre a Urbe, neste caso o
Campo de Marte. Vide Williams 2004: 68-69; Lopes 2021: 244-246.
42 2.14.2; 2.79.2; 3.50.10; 5.47.1; 5.50.1; 6.94.2; 11.24.15; 12.19.2. Como nota
Williams (2004: 63), tem o sentido negativo de que não recebeu convites, com o
estigma que isso implica, oposto à socialmente digna cenare foris 2.53.3, 2.69.1,9.10.1.
Marcial poderá ter mesmo cunhado o termo domicenium.
43 Si tristi domicenio laboras.
44 ...Riserunt homines, sed ipse diuom / offensus genitor trinoctali / adfecit domi-
cenio clientem (vv. 4-6).
45 Como o caso de Carcopino, que se mostra furioso com o poeta quando este o
não convida: 5.50; cf. 2.11.
46 A propósito de quem o escoliasta diz: fuit nam exemplum gulae. Vide Williams
2004: 223.

445
referência jocosa a Apício, que, depois de quase arruinado, não po-
dendo suportar a perspetiva de passar fome e sede, bebeu veneno:
– extrema gulodice! (3.22).

2. Pratos de anfitriões mesquinhos

Outro tema recorrente é o da mesquinhez dos patronos, que por


vezes faziam distinções entre o que eles próprios comiam e o que
davam aos clientes, no que toca ao requinte da comida e da bebida
servidas. O tema, comum nos poetas satíricos, é frequente em Marcial
(2.43; 3.60; 3.82; 4.68; 4.85; 6.11; 10.49) 47.

Dic mihi, quis furor est? turba spectante uocata


solus boletos, Caeciliane, uoras.
Quid dignum tanto tibi uentre gulaque precabor?
boletum qualem Claudius edit, edas. 48

D iz‑me cá: que loucura é esta? Com a turba dos convidados a


olhar, / só tu, Ceciliano, devoras cogumelos. / Que hei‑de eu
desejar digno de tal bandulho e da tua glutonaria /Que um co-
gumelo como o que Cláudio comeu, o comas tu.

A alusão, neste epigrama (1.20), à morte do imperador Cláudio,


em 54 d.C., que a tradição histórico-biográfica atribui a um cogume-
lo envenenado, serve também o propósito de indicar que se tratava
de uma iguaria digna da mesa imperial. Suetónio (Cl. 44.2) informa
que Cláudio era auidissimus ciborum talium ‘assaz guloso por tais
iguarias’. Trata-se de boleti próprios da mesa requintada (3.45.6),

47 Cf. Juv. 5. Plínio o Moço, o amigo de Marcial, deplora o mesmo vício e diz-se
incapaz de incorrer em tal mau gosto (Ep. 2.6). Vide Howell 1980: 151-154; Fitzgerald
2007: 85-88; Leigh 2015: 44-45.
48 1.20. Para outros exemplos de avareza no jantar, cf. 1.43: Mancino serviu um
só javali, sem mais nada, a sessenta pessoas.

446
onde faziam parte da gustatio (Plin. Nat. 16.31). Eram muito caros,
como diz o poeta nos Xenia (13.48), e ele próprio os considera
superiores a túberas ou turfas (13.50) 49. Em outro epigrama de te-
mática semelhante (3.60.3-10), o poeta faz o confronto de ementas
de um só banquete:

Ostrea tu sumis stagno saturata Lucrino,


Sugitur inciso mitulus ore mihi:
Sunt tibi boleti, fungos ego sumo suillos:
Res tibi cum rhombost, at mihi cum sparulo:
Aureus inmodicis turtur te clunibus implet,
Ponitur in cauea mortua pica mihi.
Cur sine te ceno, cum tecum, Pontice, cenem?
Sportula quod non est, prosit: edamus idem.

Tu consomes ostras engordadas no lago Lucrino / A mim, resta-


-me chuchar um mexilhão, depois de ter quebrado a sua concha;
/ Tu tens boletos, eu consumo cogumelos que se dão aos porcos;
/ Tu bates-te com um rodovalho, mas eu nem com uma bremazi-
ta / Uma rola dourada, de coxas desmedidas, atesta a tua pança
/ A mim toca-me a pega morta na gaiola 50 .

Estão em presença dois tipos de jantares num mesmo banquete.


A violência do contraste expressa a desconsideração e arrogância,
tema também desenvolvido na Sátira 5 de Juvenal 51. Ao primor das
ostras do Lucrino (que vimos no texto anterior), opõe-se o mexilhão
(mitilus, mys, musculus 52 ), ou, em outro epigrama de teor seme-

49 Trata-se de um tipo de cogumelo identificado como Agaricus Caesareus. O


Trimalquião de Petrónio (38.4) diz que recebe semente de boletos da Índia. Vide
Howel 1980: 152-153; André 1981: 43; Leary 2001: 100.
50 Trad. de Paulo Ferreira.
51 Juvenal evoca cada detalhe e cada fase do banquete, representa o cliente a
sofrer a indignidade de receber uma ração de comida inferior à do patrão ou vinho
de pior qualidade. Vide Leigh 2015: 44-45.
52 Cf. Pl. Rud. 297; Hor. S. 2.4.28; Apul. Apol. 39.3; Apic. 9.418. Vide André 1981: 104.

447
lhante, a peloris, ‘amêijoa’ aguada (6.11.5). Aos boletos opõem-se os
cogumelos chamados suilli, embora tal distinção não seja tão clara
ou marcada em outros autores 53. Aos ruinosos rodovalhos, opõe-se
a brema do mar, sparus, sparulus, peixe duro e pouco apreciado,
cuja referência em Marcial se reduz a este passo 54.
O rhombus, “rodovalho”, caracteriza, segundo o poeta, a mesa rica
(3.45.5); um presente maior que o prato, por grande que este seja,
diz Marcial com graça nos Xenia (13.81); um prato que, pela sump-
tuosidade, causa escândalo e ruína, segundo Horácio (S. 2.2.95-99).
Este poeta em outra sátira (S. 1.2.115-116) coloca o rodovalho ao
nível do pavão, com a reflexão moralista de que quem tem fome não
desdenha outros alimentos para procurar estas espécies requintadas55.
Outra ave de luxo era a rola, um acepipe celebrado desde Plauto.
Na Mostellaria (47), figura ao lado de peixe e aves domésticas como
comida fina e exótica, por oposição ao nacional cheiro a alho. Marcial
coloca a rola na boa mesa, onde é alvo de furto (7.20.15) e considera-
-a prenda digna de amante (3.82.21) 56. O preço é superior ao dos
pombos. Nos Xénia, a rola é integrada na gustatio (13.53), juntamente
com o papa-figo (13.49; cf.13.5.1), tordos (13.51) e patos (13.52).
Nesta fase do banquete o poeta diz que, se a come, já não prova a
alface nem os caracóis 57. Em oposição à áurea rola apresenta-se a
pega engaiolada: neste caso, a única referência à ave no poeta, o
que sugere que não teria importância gastronómica 58.
O mesmo se passa com o vinho servido. Alguns oferecem zurrapa
aos convidados, enquanto eles próprios bebem verdadeiros néctares:
3.49; 3.82.22-27; 4.85.

53 André 1981: 43.


54 Vide André 1981: 102.
55 Num esuriens fastidis omnia praeter / pauonem rhombumque? Os melhores
exemplares provinham de Ravena, segundo Plínio (Nat. 9.169). Vide André 1981:
101; Leary 2001: 140-141.
56 Cf. Pl. Bac. 68.
57 Vide André 1981: 121; Leary 2001: 105-6.
58 André (1981: 125) coloca a pega entre as aves consumidas pelo povo.

448
3. Iguarias furtadas

Um tema largamente tratado é o furto de comida nos banquetes.


Assim a normal prática dos apophoreta, tornava-se ocasião de abuso
por parte de alguns. Enquanto censura um conviva, Marcial faz o
elenco dos pratos servidos, com efeito devastador (2.37):

Quidquid ponitur hinc et inde uerris,


mammas suminis imbricemque porci
communemque duobus attagenam,
mullum dimidium lupumque totum
muraenaeque latus femurque pulli
stillantemque alica sua palumbum.
Haec cum condita sunt madente mappa,
traduntur puero domum ferenda:
nos accumbuimus otiosa turba.
Vllus si pudor est, repone cenam:
cras te, Caeciliane, non uocaui.

Varres o que quer que seja servido, daqui e dali, / tetas de porca
e costeletas de porco, / fancolim para dois, / meio salmonete
e um robalo inteiro, / filete de moreia e coxas de frango, /
pombo a escorrer com guarnição. / Tudo isto, embrulhado num
guardanapo húmido,/ é passado ao teu escravo para levar para
casa;/ e nós todos, deitados à mesa, impávidos a olhar!/ Se
tens alguma vergonha na cara, devolve o jantar: / não foi para
amanhã, Ceciliano, que eu te convidei.

O tema é tratado na Antologia Palatina (11.11, 11.20, 11.205),


mas a acutiliante formulação deste epigrama é de Marcial, como nota
Williams (2004: 138): só pelo último verso compreendemos que o

449
poeta é o anfitrião 59. O catálogo das iguarias furtadas é expressivo
do valor e do grau de atrevimento, também pelo efeito cumulativo.
Além das tetas de porca60, de que já falámos, temos o imbrex, à letra
“telha de cobertura”, certamente uma parte em forma de telha, que
aqui é traduzido por ‘costeletas’, seguindo a sugestão de André (1981:
137), mas, que para outros poderá tratar-se de orelha de porco 61.
Depois vem a attagena, “francolim”, um parente da perdiz raro
em Itália, segundo Plínio (Nat. 10.133), mas que se podia encontrar
nos Alpes, na Gália ou na Hispânia, pelo que Marcial, cantor orgu-
lhoso das riquezas da sua pátria, certamente o conheceria. Mas o
mais refinado era o da Iónia, segundo Horácio, Ovídio e Plinío 62,
secundados por Marcial nos Xenia (13.61). Desta ave Apício (6.218;
220) apresenta duas receitas 63.
Entre os peixes roubados, não podiam faltar os já referidos sal-
monetes e o robalo, mas neste epigrama soma-se ainda a muraena,
‘moreia’. Eram particularmente apreciadas as da Sicília 64, predileção
refletida nos Xenia (13.80). Em Horácio (S. 2.8. 44-50), um anfitrião
enfadonho dá uma receita de molho para a moreia que não difere
muito das seis receitas de Apício (10.2.1-6) 65.

59 A estratégia de passar as iguarias ao escravo acompanhante atrás das costas é


também o tema de 3.23.
60 Mammas suminis. Mammas pode ser pleonástico ou referir-se especificamente
aos mamilos, pelo que suminis seria indicaria porca por sinédoque. Vide Williams
2004: 139.
61 Vide Williams 2004: 136-139.
62 Cf. Hor. Epod. 2.54 ss; Ov. Fasti 6.175; Plin. Nat. 10.133.
63 Vide André 1981: 122; Leary 2001: 114-115; Agnolon 2017: 227-228.
64 Designadas por flutae. Cf. Varr. R. 2.6.3; Plin. Nat. 9.169; Juv. 5.99; Macr. 3.15.7-8.
65 Hor. S. 2.8. 44-50: ...”haec grauida” inquit/ “capta est, deterior post partum
carne futura./ his mixtum ius est: oleo, quod prima Venafri/ pressit cella; garo de
sucis piscis Hiberi;/ uino quinquenni, uerum citra mare nato,/ dum coquitur–cocto
Chium sic conuenit, ut non/ hoc magis ullum aliud–; pipere albo, non sine aceto,/
quod Methymnaeam uitio mutauerit uuam. «Esta (sc. moreia) – disse ele – foi cap-
turada prenhe; a sua carne seria pior depois do parto. O molho foi misturado com
estes ingredientes: azeite, do da primeira moagem de um lagar do Venafro, garum
de mistura de peixe ibérico, vinho de cinco anos, mas nascido deste lado do mar,
durante a cozedura – depois de cozida, convém que seja o de Quios e mais nenhum
– pimenta branca, não sem vinagre, do resultante da fermentação da uva de Metimna».

450
E seguem-se as aves. As galinhas, apesar de não serem naturais
de Itália, facilmente foram assimiladas e figuram desde Plauto (Capt.
849). São apresentadas em dezassete receitas de frango em Apício,
confecionado de diversas formas, embora assado só apareça uma vez
(6.241). Em Marcial, tal como em outros autores 66, o frango aparece
como prato principal de um jantar moderado (10.48.17; 11.52.14) 67.
Por último, neste epigrama é referido o pombo, um prato de luxo
delicado, segundo Horácio (Serm. 2.8.91). Corresponderá ao pombo
torcaz (Columba palumbus), um dos presentes para os convidados
honrado com um dístico nos Xenia (13.67), onde se qualifica de
torquatus. Neste dístico o poeta acrescenta um dado inesperado: que
enfraquecem a virilidade. Tal efeito contrasta com reputação de sen-
sualidade atribuída a esta ave nos epigramas, onde é repetidamente
associada aos beijos apaixonados (11.104.9; 12.65.8) 68.
A tender para o sórdido é o furto de Santra (7.20) de comida
meia consumida, que inclui javali, lebre, bolos, uvas, grãos de romã,
pele de uma vulva de porca, boletos, uma rola sem cabeça, tudo
isto embrulhado num guardanapo – depois, como este se rompe,
usa as pregas da roupa. Quanto ao vinho que subtrai, verte-o para
uma bilha que traz consigo. Para cúmulo, de regresso a casa, põe o
despojo à venda, no dia seguinte. Trata-se do cruzamento do topos
dos furtos nos banquetes com outro muito frequente no poeta: o da
miséria dos arruinados 69.

Eram servidas grelhadas ou cozidas (Apic. 10.449-454). Vide André 1981: 100; Leary
2001: 139-140.
66 Cf. Hor. Serm. 2.2.121; Juv. 11.71; Petr. 46.2.
67 Embora nos Xenia (13.45) seja apresentado como parte da gustatio, colocada
em comparação com outras aves exóticas mais caras – que o poeta ofereceria, se
tivesse possibilidade, de acordo com o reiterado topos da pobreza pessoal (13.6;
14.132; 14.153). Vide André 1981: 127-129; Leary 2001: 96-97; Williams 2004: 139.
68 Leary (2001: 121-122) alvitra que tal efeito poderá resultar da punição para o
sacrilégio. De facto, este epigrama é precedido de outro (13.66) em que se proíbe
que viole com dente perjuro as «tenras pombas» (columbini) a quem se iniciou nos
ritos da deusa de Cnidos, isto é, Afrodite.
69 Há o tipo do que furta objectos nos banquetes: tal como o Asínio Marrucino de
Catulo (12), Hermógenes rouba sempre o guardanapo (8.59); um fulano que arrebata
tudo o que pode (8.59): copos, colheres, guardanapos, capas, lucernas, sandálias.

451
4. Leituras de empanturrar

Numa época em que a leitura seria feita em alta voz e a poesia


era para ser ouvida, nos banquetes, nas termas, ou outros espaços
públicos, O Bilbilitano, consciente da qualidade dos seus versos e
exigente no labor limae, critica amiúde os maus poetas e recita-
dores 70 e zurze nos que aproveitam todas as oportunidades para
massacrar os ouvidos dos presentes 71.
O banquete pretende por tradição promover o ambiente de tertúlia.
Mas acontecia que o cliente tinha amiúde de ouvir recitar volumes
descomunais (3.45; 3.50) e aplaudir a contragosto as prepotências
dos novos-ricos (3.82). Ligurino representa o tipo de anfitrião que
se aproveita dos convidados para impor os seus versos (3.44; 3.45;
3.50). Assim, as iguarias de eleição que já conhecemos perdem o
sabor perante o recital (3.45.3-6):

Illa quidem lauta est dapibusque instructa superbis,


sed nihil omnino te recitante placet.
Nolo mihi ponas rhombos mullumue bilibrem
nec uolo boletos, ostrea nolo: tace.

(...) É certo que ela (a mesa) foi abundantemente provida de


soberbas iguarias, mas nada, mesmo nada me agrada quando
te pões a recitar. / Não quero que me sirvas rodovalho nem o

Cota vai descalço para os jantares para evitar os furtos de calçado (uma vez que os
convivas se descalçavam no início do banquete): 12.87.
70 Os pretensiosos que não produzem (4.33; 6.14; 10.102), autores de maus versos
(7.3; 5.73; 11.93), os que não se atrevem a recitar (2.88; 8.20), os que plagiam o poeta
(1.52; 1.66), como faz Fidentino (1.29; 1.53; 1.72), apesar de recitar mal (1.38). Sobre
as leituras públicas e privadas em Roma vide Ferreira 2016: 151-179.
71 1.63; 2.71; 3.18; 3.44; 3.45; 3.50; 4.41; 4.80; 6.41.

452
salmonete de duas libras / e nem quero cogumelos, ostras dis-
penso: cala-te! 72 .

O mesmo Ligurino encarna em outro epigrama (3.50) o cruza-


mento entre o tema da leitura com o da mesquinhez dos patronos:

Haec tibi, non alia, est ad cenam causa uocandi,


uersiculos recites ut, Ligurine, tuos.
Deposui soleas, adfertur protinus ingens
inter lactugas oxygarumque liber:
alter perlegitur, dum fercula prima morantur
tertius est, nec adhuc mensa secunda uenit:
et quartum recitas et quintum denique librum.
Putidus est, totiens si mihi ponis aprum.
Quod si non scombris scelerata poemata donas,
cenabis solus iam, Ligurine, domi.

C om este, e não outro intuito, me convidas para jantar:/ para


recitares, Ligurino, os teus versinhos. / Mal pousei as sandálias,
logo é trazido entre as alfaces / e a salmoura avinagrada 73 um
enorme livro; / outro é completamente lido, enquanto os primei-
ros pratos demoram, / um terceiro também e ainda nem chegou
a sobremesa;/ e recitas um quarto e, por fim, um quinto livro.
/ Seria um enjoo se tantas vezes servisses javali. / Por isso, se
não ofereces os celerados poemas às cavalas, / passarás Ligurino
a jantar em casa sozinho 74 .

72 Trad. de P. Sérgio Ferreira.


73Oxygarum: produto obtido a partir do garum, vinagre e especiarias, que servia
de molho para a alface. André 1981: 194.
74 Trad. de P. Sérgio Ferreira.

453
Para um poeta que associa a sua arte à da culinária, quando diz
que antes quer agradar aos convivas que aos cozinheiros (9.81) 75,
parece implícita uma ligação entre a qualidade da cozinha e da poesia
de Ligurino. O tipo de ementa caracteriza negativamente o anfitrião
com ambições de poeta, que em vez de javali, serve cavala (scomber),
um dos peixes vulgares mais consumidos76. Noutro epigrama (4.86),
Marcial, dirigindo-se ao seu próprio livro aconselha-o a agradar ao
douto Apolinar 77 , se não quer acabar a servir de embrulho para
cavalas. Mas, pelo contrário, se o jantar é bom, o aplauso, quando
existe, pode não ser para os méritos literários do anfitrião (6.48):
Quod tam grande sophos clamat tibi turba togata, / non tu; pompo-
ni, cena diserta tua est «Se a turba de toga com grandes bravos te
aclama, / não és tu, Pompónio, eloquente é o teu jantar».
Aos banquetes sumptuosos opõe Marcial o convívio sem artifícios,
com pratos simples (5.78; 10.48; 11.52) 78, onde o conviva se sinta
livre e não tenha de ouvir récitas intermináveis (5.78.23-25). Fazendo
eco a Catulo 13, no convite que dirige ao amigo Júlio Cereal (11.52:
Cenabis belle, Iuli Cerealis, apud me), refere pratos modestos que
servem para caracterizar a franqueza, a simplicidade e a amizade:
alface, alhos-porros, atum (cordula), mas maior que a cavala (lacer-
tus), cobertos de ovos com folhas de arruda 79, queijo fumado do
Velabro (Velabrense) 80, azeitonas do Piceno 81 – produtos de Itália.
Quanto ao resto, o poeta diz que vai mentir para que o amigo ve-
nha, estabelecendo o contraste com o típico jantar mais sumptuoso:

75 Vide Torrão 2000: 455-462.


76 Cf. 4.86.8. Vide André 1981: 102; Ferreira 2016: 160 e 165.
77 Talvez Lúcio Domício Apolinar, cônsul de 97.
78 Para uma exploração metafórica destes epigramas, vide Gowers 1993: 245-267.
79 Esta planta, muito usada e de diversas maneiras pelos romanos na culinária,
tem várias referências em Marcial: 10.48.11; 11.31.17; 11.52.8. A popularidade desta
planta, que para nós é tão desagradável pelo cheiro, sugere o quanto os gostos dos
romanos diferiam dos nossos: vide André 1981: 203-204.
80 Cf. 13.32. O queijo fumado era uma prática comum em Itália até aos nossos
dias: o do Velabro era o mais apreciado: vide André 1981: 153-154; Leary 2001: 82-83.
81 Cf. 5.78.29; 9.54.2.

454
promete, então, peixe, marisco, tetas de porca, aves de capoeira e
de caça. Mas, mais importante, promete-lhe que nada recitará (plus
ego policeor: nil recitabo tibi), mesmo que o amigo lhe leia as suas
obras.

Em suma, os pratos podem servir para caracterizar mais ou menos


indiretamente quem os oferece ou quem os consome. Por vezes, há
mesmo comparação explícita. No epigrama 1. 41, o poeta satiriza
um fulano que se considera urbanus (janota) chamando-lhe uerna
(parolo) e, entre diversas comparações, assimila-o aos «que aos
grupos /de paspalhos vende chícharo cozido» 82 e «como o cozinhei-
ro que salsichas (tomacla ) fumegantes / serve rouco, em tabernas
quentes» 83. Trata-se, portanto, da associação da polidez do fulano a
comida consumida na rua por gente vulgar.
Também a qualidade/origem do vinho é metáfora do bom ou
mau gosto: ao falerno, oriundo da Campânia, que era muito bom 84,
opõe o poeta o vaticano, muito mau (1.18); um veneno (6.92.3), ou
um acetum (‘vinagre’ 10.45.5 e 12.48.13-14). O sabino é mau: Cota
serve-o aos convivas em copos de ouro, mas o vinho é de chumbo
(10.49). Misturar falerno com vaticano é crime de lesa-majestade
(1.18.1-2, 5, 7-8):

Q uid te, Tucca, iuuat uetulo miscere Falerno


in Vaticanis condita musta cadis?
(...)
D e nobis facile est, scelus est iugulare Falernum
et dare Campano toxica saeua mero.

82 Sobre a referida leguminosa, o cicer, nos diz também o poeta (1.103.10) que se
vendia muito barata: ao preço de um asse, o mesmo preço das prostitutas mais vis.
Mas era também símbolo de uma mesa simples (5.78.21) – a do poeta – por oposição
às opulentas. Já Petrónio (66.4) a coloca também num banquete como guarnição de
torta de queijo fria. André 1981: 37.
83 Vide Howel 2009: 82.
84 Cf. Plin. Nat.14.62.

455
Conuiuae meruere tui fortasse perire:
amphora non meruit tam pretiosa mori.

«Porque te agrada, Tuca, misturar com o anoso falerno/ vinho


novo guardado em vasilhas de vaticano? (...) Por mim, tudo
bem; mas é um crime assassinar um falerno / e dar venenos
horríveis a um campano puro. / Os teus convidados mereceram
talvez perecer: / uma ânfora tão preciosa não mereceu morrer».

Considerações finais

Os pratos, pelo seu valor intrínseco, funcionam muitas vezes


como elementos reveladores de virtudes e de vícios. Mencionar al-
guns acepipes remete, só por si, para a noção de luxuria tratada na
tradição satírica romana: basta pensar nas tetas de porca, nas aves
e peixes criados em viveiros e no facto de só se consumirem certas
partes muito específicas (como fígados, miolos, línguas), de peixes
e aves censuradas pelas leis sumptuárias.
Além disso, havia o requinte do exotismo contrastante com a au-
tenticidade da mesa simples romana e o sacrifício da beleza de certos
animais. O exotismo sai caro, é revelador de costumes degenerados
e é destrutivo. Séneca (Ep. 89.22) censurara a devastação operada
por terra e por mar, para depois só se aproveitar uma ínfima parte85.
Ficou famoso um banquete de Vitélio (em 69 d.C.), o “imperador
dos gastrónomos” 86 cuja sumptuosidade se manifesta na gula, que,
à semelhança do banquete de Tigelino descrito por Tácito (Ann.

85 Ad uos deinde transeo quorum profunda et insatiabilis gula hinc maria scru-
tatur, hinc terras, alia hamis, alia laqueis, alia retium uariis generibus cum magno
labore persequitur: nullis animalibus nisi ex fastidio pax est. Quantulum [est] ex istis
epulis [quae] per tot comparatis manus fesso uoluptatibus ore libatis? quantulum ex
ista fera periculose capta dominus crudus ac nauseans gustat? quantulum ex tot
conchyliis tam longe aduectis per istum stomachum inexplebilem labitur? Infelices,
ecquid intellegitis maiorem uos famem habere quam uentrem?
86 Como o classifica Dalby 2001: 74.

456
15.37.2-7), terá mandado servir, segundo Suetónio, scarorum ioci-
nera, phasianarum et pauorum cerebella, linguas phoenicopterum,
murenarum lactes a Parthia usque fretoque Hispanico per nauarchos
ac triremes petitarum «fígados de escaro, miolos de faisão e pavão,
línguas de flamingo, intestinos de moreia, mandados trazer pelos co-
mandantes e trirremes desde a Pártia até ao estreito de Gilbraltar» 87.
Ao servir o fígado de escaro trazido de longe, Vitélio é secundado
por Marcial, que, nos Xenia (13.84), diz: Hic scarus, aequoreis qui
venit adesus ab undis, / visceribus bonus est, cetera vile sapit. («Este
escaro, que chega roído das ondas do mar, / tem boas as entranhas;
o resto é de reles sabor») 88.
Quanto à beleza do pavão (13.70), o poeta expressa o paradoxo
que é enviar ao cozinheiro uma tão admirável ave, no que parece ser
um eco da sátira de Horácio (S. 2.2.23-29). Com efeito também este
poeta se interroga sobre a razão de comer um animal cuja verdadeira
beleza é bem melhor que o sabor ilusório, quem nem é superior
ao de uma galinha. E, logo no epigrama seguinte, Marcial (13.71)
estabelece o contraste entre a beleza da plumagem do flamingo,
de cuja cor tira o nome, e o facto de a língua ser delícia para os
gulosos, deixando implícita a condenação do sacrifício da ave por
tão pequeno proveito, com a interrogação: ... Quid si garrula lingua
foret? «Que seria se a língua pudesse falar!» 89. A condenação de tal
extravagância está também explícita em Plínio, e, segundo ele era
um preceito de Apício, que classifica como «a mais profunda goela
de todos os dissipadores» (10.133)90. Portanto, tais pratos têm em si
uma carga moral e jurídica, ancorada numa tradição literária que os
torna eloquentes – podem revelar os mores (10.4).

87 Suet. Vit. 13.2. Cf. D. C. 65.2.2-3.2. Vide Brandão 2018: 43-45.


88 Vide Venini 1977: 130.
89 Trad. de Delfim Leão. Há quem veja aqui conotações sexuais. Vide Leary 2001:
125-9.
90 Phoenicopteri linguam praecipui saporis esse Apicius docuit, nepotum omnium
altissimus gurges.

457
Por outro lado, a boa mesa pode tornar-se má, se não for acom-
panhada do bom gosto, das leis que regulamentam a amicitia, e
mesmo opressora, se é demonstração de arrogância de anfitriões
sobre convivas. Como sugere Cícero (Fin. 2.25), o prato principal de
um bom jantar é a boa conversação 91. Mas, na imensa quantidade de
epigramas, há atitudes contraditórias, como contraditória é a alma
humana: por exemplo, a imposição de leituras pode ser insuportável,
apesar da boa mesa (3.45.3-6), ou pode ser aplaudida por causa dos
pratos oferecidos (6.48). E o sujeito poético não desdenha colocar-se
entre aqueles que censura. Se, como dizia o Bilbilitano no epigrama
com que começámos (10.4), a sua poesia tem sabor humano, esta,
acrescenta ele, dará a conhecer ao leitor os seus próprios costumes92.

Bibliografia

Edições e comentários usados

Citroni, M. (1975), Epigrammaton liber I. Introduzione, testo, apparato critico e comento.


Firenze: La Nuova Italia.
Coleman, K. M. (2006), M. Valerii Martialis Liber Spectaculorum. Edited with introduction,
translation and commentary. Oxford: University Press.
Howell, P. (1980), A Commentary on Book One of the Martial. London: The Athlone
Press.
Leary, T. J. (1996), Martial Book XIV. The Apophoreta. Text with introduction and
commentary. London: Duckworth.
Leary, T. J. (2001), The Xenia. Text with introduction and commentary. London: Duckworth.
Muecke, F. (1993), Horace.Satires II. With Introduction, Translation and commentary.
Warminster: Aris & Phillips
Pimentel, M.C., Leão, D., Brandão e J. L., Ferreira, P. S. (2000; 2001; 2004), Marcial,
Epigramas vol. I-IV. Lisboa: Edições 70.
Shackleton Bailey, D. R. (1990), M. Valerii Martialis Epigrammata. Teubner: Stuttgart.
Williams, C. A. (2004), Martial Epigrams, Book Two. Edited with introduction, translation
and commentary. Oxford: Oxford University Press.

91 Muecke 1993: 228.


9210.4.8-12: Hoc lege, quod possit dicere vita ‘Meum est.’ / Non hic Centauros,
non Gorgonas Harpyiasque / Invenies: hominem pagina nostra sapit. / Sed non vis,
Mamurra, tuos cognoscere mores / Nec te scire: legas Aetia Callimachi.

458
Estudos

Adamik, T. (1975), “Martial and the vita beatior”, AUB 3: 55‑64.


Agnolon, A. (2017), A festa de Saturno. São Paulo: Edusp.
André, J. (1981, 2ª ed.), L’alimentation et la cuisine à Rome. Paris: Les Belles Lettres.
Andrews, A. C (1948), “Oysters as a Food in Greece and Rome”, CJ 43: 299-303.
Augello, G. (1968-69), “Roma e la vita romana testimoniata da Marziale”, ALGP 5-6:
234-270.
Brandão, J. L. (1997), “Marcial e o público e os críticos: autodefesa do poeta”, Humanitas
49: 177-195.
Brandão, J. L. (2012), “Marcial e a Urbe: o meio físico e histórico-social dos epigramas”,
in C. Pimentel, J.L Brandão, P. Fedeli (eds.), O poeta e a cidade no mundo romano.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 135-161.
Brandão, J. L. (2018), “O Vitélio de Suetónio: uma vida centrada na gula”, in C. Soares,
C. S. Ribeiro (coord.), Mesas luso-brasileiras: alimentação, saúde & cultura. vol. II.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 35-51.
Castagnoli, F. (1950), “Roma nei versi di Marziale”, Athenaeum 28: 67‑78.
Cesila, R. T. (2017), Epigrama. Catulo e Marcial. Campinas-Curitiba: Ed. Unicamp – Ed.
U. Federal do Paraná.
Dalby, A. (2001), “Dining with the Caesars”, in H. Walker (ed.), Food and the Memory.
Proceedings of the Oxford Symposium on Food and Cookery. Trowbridge: Prospect
Books, 64-87.
D’Arms, J. H. (2004), “The culinary reality of Rome. Upper-class convivia: integrating
texts anda images”, Comparative Studies in Society and History 46: 428-450. (artigo
póstumo)
Deschamps, L. (1981), “L’influence de la diatribe dans l’oeuvre de Martial”, Atti del
Congresso Internazionale di Studi Vespasianei. Rieti: Centro di Studi Varroniani,
353‑368.
Dolç, M. (1974), “Due passioni di Marziale: Roma e Hispania”, Colloquio italo‑spagnolo
sul tema: Hispania romana (Roma, 15‑16 de maggio 1972), RAL 200: 109‑125.
Ferreira, P. S. (2016), “As recitationes na cultura romana”, Humanitas 68: 151-179.
Fitzgerald, W. (2007), Martial. The world of the epigram. Chicago-London: Univ. of
Chicago Press.
Garrido-Hory, M. (1981), “La vision du dépendant chez Martial à travers les relations
sexuelles”, Index 10: 300‑306.
Gowers, E. (1993), the Loaded table.Representaions of Food in Roman Literature. Oxford:
Clarendon Press.
Graça, I. (2011). Roma na poesia de Marcial: imagens e ecos de um espaço físico e social.
Dissertação de doutoramento. Universidade de Aveiro.
Hinds, S. (2007), “Martial’s Ovid / Ovid’s Martial”, JRS 97: 113-154.
Howell, P. (2009) Martial. London: Bristol Classic Press.

459
Lana, Í. (1955), “Marziale poeta della contraddizione”, RFIC 33: 225‑249.
Leão, D. F. (2004), “Zoilo e Trimalquião: duas variações sobre o tema do novo-rico”,
Humanitas 56: 191-208.
Lopes, M. J. (2021), “Paraplein é preciso. Os dramas de cenari domi Segundo Marcial
e Luciano”, in Soares et al. (Coords), Mesa dos Sentidos & Sentidos da Mesa. Vol. II.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 237-250.
Leigh, M. (2015), Food in Latin Literatture, in J. M. Wilkins and S. Hill (eds), A companion
to food in ancient world. Oxford: Blackwell, 43-52.
Marache, R. (1961a), “La revendication sociale chez Martial et Juvénal”, RCCM 3: 38‑53.
Marache, R. (1961b) “La poésie romaine et le problème social à la fin du Ier siècle:
Martial et Juvénal”, IL 13: 12-19.
Marina Sáez, R. M. (1991), “El tema simposíaco en la poesía latina, de Horácio a Marcial
I: los elementos externos del simposio”, Myrtia 6: 129-147.
Medeiros, W. (1988), “O poeta que buscava um amor”, Biblos 64 1‑15.
Medeiros, W. (2004), “A cinza falante do poeta”, Humanitas 56: 5-11
Mohler, S. L. (1967), “The cliens in the time of Martial”, in Classical Studies in honor
of John C. Rolf. New York: Books for Libraries Press, Inc., 239-263.
Pailler, J.-M. (1981), “Martial et l’espace urbain”, Pallas 28: 79‑87.
Paoli, U. E. (1956), “Il poeta di Roma vivente”, Avventure e segreti del mondo greco e
romano. Firenze: Le Monnier, 552‑567.
Pavanello, R. (1994), “Nomi di persona allusivi in Marziale”, Paideia 49: 161‑177
Pimentel, C. (1992), “Marcial anacronizado: um cronista de hoje na Roma de ontem”,
Euphrosyne NS. 20: 165-186.
Pimentel, C. (2000), “Quid non longa dies, quid non consumitis anni? O tempo dos homens
e o tempo das cidades nos Epigramas de Marcial”, Euphrosyne NS 28: 221-230.
Pimentel, C. (2004), “Política e história nos Epigramas de Marcial”, Humanitas 56: 13-
31.
Pimentel, C., Leão, D. F., e Brandão, J. L. (coord.) (2004), Toto notus in orbe Martialis.
Celebração de Marcial 1900 anos após a sua morte. Coimbra: IEC – CECH / Lisboa:
DEC –CEC (=Humanitas 56: 5-326).
Pimentel, C. (2012), “A Roma dos Flávios: gente e sentimentos nos epigramas de Marcial”,
in C. Pimentel, J.L Brandão e P. Fedeli (eds.), O poeta e a cidade no mundo romano.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 121-133.
Prior, R. E. (1996), “Going around Hungry: Topography and Poetics in Martial 2.14”,
AJPh 117: 121-141.
Rimell, V. (2008), Martial’s Rome. Empire and the ideology of Epigrami. Cambridge,
University Press.
Robert, J.-N. (2004a), “Société et cultus a l’époque de Martial”, Humanitas 56: 48-68.
Robert, J.-N. (2004b), “Virtus romana et taedium uitae. Remarques sur l’évolution des
mentalités et de la morale à l’époque de Martial”, Humanitas 56: 69-86.
Roman, L. (2010), “Martial and the city of Rome”, JRS 100: 88-117.
Spisak, A. L. (2007), Martial. A social guide. London: Duckworth.
Sullivan, J. P. (1991), Martial: the unexpected classic. A literary and historical study.
Cambridge: University Press.

460
Torrão, J. (2000), “Marcial entre o público e os críticos ou a difícil escolha entre agradar
aos convivas ou aos cozinheiros”, in De Augusto a Adriano. Actas de Colóquio de
Literatura Latina. Lisboa: Euphrosyne-CEC, 455-462.
Torrão, J. e Andrade, A. (2008), “Os labirintos da cidade: Marcial em Roma”, Ágora 10:
63-79.
Torrão, J. e Costa, J. (2010), “Inveja e emulação em... Marcial: a vida e seus costumes
temperados com sal romano”, in Belmiro Fernandes Pereira e Jorge Deserto (Orgs.),
Symbolon II. Inveja e emulação. Porto: FLUP, 71-101.
Watson, L. C. (1983), “Three women in Martial”, CQ 33: 258‑264.

461
(Página deixada propositadamente em branco)
V i s i ó n d e a s p e c t o s d e l t e at r o
g r e c o r r o m a n o e n A p u l e yo Met. X

V i s i o n s o f t h e G r e c o - R o m a n T h e at r e
in Apuleius Met. X

Aurora López
Univ. Granada
ORCID: 0000-0002-2102-5544
auroral@ugr.es

Andrés Pociña
Univ. Granada
ORCID: 0000-0001-5413-0351
apocina@ugr.es

Resumen: Análisis de los tres relatos que contiene el libro X de Las


Metamorfosis o El asno de oro de Apuleyo desde la perspectiva de su
relación con el desarrollo histórico del teatro grecolatino, así como
del conocimiento y manejo del mismo por parte de Apuleyo.

Palabras clave: Metamorfosis X, Relatos, Tragedia, Comedia, Pantomima

Abstract: Analysis of the two inner tales of the book X of Metamorpho-


ses (chs. 2-12 and 23-28) and the ecphrasis of the pantomime “The
judgement of Paris” (chs. 29-34) from the perspective of the history
of the ancient greek and roman theater, absolutely changed in the
time of Apuleius, but perfectly known by the writter.

Keywords: Metamorphoses X, Tales, Tragedy, Comedy, Pantomime

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_20
Son muchos los años que la autora y el autor de este trabajo
llevamos manteniendo una profunda amistad con Maria de Fátima
de Sousa e Silva, surgida en sus momentos iniciales de un común
interés por las literaturas de Grecia y de Roma, y de forma muy
especial por sus teatros, ante todo desde el punto de vista de la
pervivencia de ambos a lo largo de los siglos y hasta el nuestro. Es
este un aspecto de nuestras biografías que las lectoras y los lectores
de este Homenaje que ahora se publica con motivo de la jubilación
de la Dra. Silva conocen sobradamente, porque las actividades uni-
versitarias realizadas por iniciativa nuestra en Portugal, en España y
en otros países, y las publicaciones resultantes, alcanzan un número
admirable. En la base de esta relación académica e investigadora
que nos unió desde hace años, residió siempre un deseo de romper
la frontera tradicional entre España y Portugal en el mundo de los
estudios de Filología clásica, y contribuir a hacer posible una co-
nexión más estrecha no sólo en el ámbito obviamente fraterno de
ambos países, sino también en el de los países de habla española y
portuguesa de América. Nuestros deseos se han ido cumpliendo en
buena medida, y cuando llega el momento de la jubilación acadé-
mica de la Dra. Silva, pues la del Dr. Pociña ya se cumplió hace tres
años, la de la Dra. López hace dos, esta especie de introducción, ya
demasiado larga, quiere servir de fiel promesa de que vamos a seguir
unánimemente manteniendo el propósito de continuar nuestro ya
duradero programa, y seguiremos propiciando nuevas manifestaciones
de Clastea, hasta que nos lo permitan nuetras vidas, y mantenien-
do siempre vivas las fructuosas relaciones de las Universidades de
Coimbra y de Granada con las de Aveiro, Valencia, Mar del Plata,
Rosario, Santiago de Compostela, Clermont Ferrand, São Miguel
de Azores.
El término habitual en español para señalar el retiro de la acti-
vidad docente activa es jubilación. Jubilación, alegría inmensa, es
la que debe sentir nuestra queridísima amiga Fátima, al observar el
muy meritorio currículo docente e investigador que ha desarrolla-
do en la Universidd de Coimbra, que sin duda tiene que estar muy

464
orgullosa de contar en su profesorado con una figura tan ilustre y
tan entregada.

* * *

1. Apuleyo y su conocimiento del desarrollo histórico del teatro.

Como es bien sabido, en el siglo II d.C. asistimos a un decidido


cambio, podríamos decir una verdadera revolución, en el desarrollo
de la literatura latina, que se manifiesta por un profundo gusto por
los autores latinos arcaicos, en detrimento de los grandes autores
de la tradicionalmente llamada Edad de oro. Testimonio de esa evo-
lución de la literatura son tres escritores de géneros muy distintos:
Aulo Gelio, con una obra difícil de encuadrar en un género determi-
nadado, sus muy eruditas Noches áticas; Frontón, con su famoso y
curioso Epistolario; Apuleyo, ahora el más vigente de los tres gracias
a sus abundantes y variadas obras literarias. De la aportación de los
tres autores, de manera especial la de Aulo Gelio, para nuestro co-
nocimiento de los gustos arcaizantes del siglo II sigue siendo obra
fundamental, a pesar del tiempo transcurrido desde su publicación,
la excelente monografía de René Marache La critique littéraire de
langue latine et le développement du gout archaïsant au IIe siècle de
notre ère1; de ella queremos destacar la visión de estos tres escritores
como poseedores de unos profundos conocimientos de las literatu-
ras griega y latina, que hacen de sus obras, muy variadas entre sí,
verdaderas fuentes de información sobre ambas.
El conocimiento moderno del teatro de la Roma antigua, al que
hemos dedicado muchos años de nuestra investigación, tiene por
desgracia que basarse en el estudio de tragedias y de comedias en
estado penosamente fragmentario: de todo el teatro producido en
latín, desde su nacimiento en el año 240 a.C., hasta el siglo I d.C. tan

1 Marache 1952.

465
sólo piezas muy fragmentarias nos han dejado sus tragedias, y sus
diferentes clases de comedia, palliatae, togatae, Atellanae, mimos,
que hacen que por ejemplo el largo volumen que dedicamos ambos
a todo el desarrollo de la comedia romana 2, sea algo así como un
osario de restos cómicos diseminados, entre los que por fortuna
emergen con luz propia las veintiseis comedias completas de Plauto
y de Terencio. Solamente en el siglo I, las ocho tragedias del filósofo
Séneca, unidas a la falsamente atribuida a él titulada Hércules en el
Eta, y con estas nueve la tragedia pretexta Octavia 3 completan el
elenco del teatro latino representado por obras completas.
Para el estudio del teatro fragmentario latino, fundamental en
nuestros primeros avances sobre el tema4, fue fundamental el siem-
pre problemático, con frecuencia adusto, empleo de la información
proporcionada por los escritores romanos, por sus eruditos, por sus
gramáticos: pronto comprendimos que, para moverse con comodidad
por las simpáticas comedias de Plauto, era indispensable por ejemplo
dominar toda la complicada herencia de Marco Terencio Varrón 5, y
que para decir algo sensato sobre el teatro latino republicano es
siempre preciso leer toda la ingente obra de Cicerón, sirviéndose de
él como informador y crítico conocedor directo del mismo 6.
Estos fueron nuestros itinerarios para el acercamiento al teatro
latino, por los que nos movimos durante muchos años. Y allí estaban,
deteniéndonos continuamente, grandes ilustradores del teatro que les
era propio, como Varrón, como Cicerón, como Horacio, como Tito
Livio, como Ovidio, como Aulo Gelio, que nos trajo a la memoria hace
un instante la obra fundamental de René Marache antes recordada, y

2 López & Pociña 2007.


3 Cf., además de diversos trabajos publicados por A. Pociña y A. López, nuestro
artículo López & Pociña 2011.
4 Así, en una edición crítica sobre todos los autores de la comedia togata con-
sistió al tesis doctoral de A. López 1983. Y uno de los primeros libros de A. Pociña
fue el dedicado a los fragmentarios comienzos de la épica, la tragedia y la comedia
de Roma, Pociña 1988.
5 Cf. Pociña 1988: 91-121 (“Varrón y el teatro latino”).
6 Cf. Pociña 2006.

466
también la de Apuleyo. Pero Aulo Gelio y Apuleyo, ya en el siglo II
d.C., nos llevan a un mundo en el que el teatro antiguo, o para ser
más precisos, los teatros griego y romano clásicos, son ya creacio-
nes de tiempos pasados, cuya pervivencia empieza a vislumbrarse
en estos autores, pero que veremos llegar hasta nuestros días. Y fue
esa pervivencia en los siglos siguientes, cada vez más alejados de la
Grecia y de la Roma clásicas, que crearon sus sorprendentes obras
dramáticas, quien nos llamó poderosamente la atención en nuestros
últimos veinte y pico años de investigación. En estudios diversos
sobre esa pervivencia transcurre nuestra relación fundamental con
la doctora María de Fátima Silva, como podrán certificar ya siempre
muchos trabajos y diversos volúmenes colectivos que editamos con-
juntamente7. Esta es la razón de que le dediquemos este artículo, que
sin duda está resultando particularmente personal en su desarrollo.
Pero yendo ya con Aulo Gelio y con Apuleyo, hay un hecho que
resulta muy llamativo. Viven ambos escritores en ese peculiar ambiente
literrio cuyo “gusto arcaizante” ha analizado y presentado con tan
grande acierto René Marache. Como todo el mundo sabe, o por lo
menos sabía cuando las Noches áticas de Gelio eran libro de lectura
culta frecuente, por ejemplo editadas para el ámbito hispanoparlante
por la popular Colección Austral 8 , el erudito tiene conocimientos
variadísimos sobre los dramaturgos griegos y romanos, y no pierde
ocasión de transmitirlos, resultanto de este modo uno de nues-
tros grandes informadores9. En el caso de Apuleyo, de una forma
bien distinta, alusiones y apreciaciones sobre el teatro surgen con
gran frecuencia en sus obras más cercanas a nuestra afición, en la

7 López, Pociña & Silva 2012; Pociña, López, Morais & Silva 2015; Pociña, López,
Morais, Silva & Finglass 2018.
8 Aulo Gelio 1952; era el n. 1128 de la conocida Colección Austral, con una selec-
ción y prólogo de José María de Cossío. Pero ya antes las Noches áticas conocían un
importante precedente en ámbito español con su ed. en dos vols. en Madrid, Editorial
Viuda de Hernando, 1893 (1921), con traducción de F.rancisco Navarro y Calvo. En
la actualidad, a pesar de no ser ya autor que acostumbre ser consultado o citado,
existen diversas ediciones, totales o parciales.
9 Cf. por ejemplo L. Holford-Strevens 1988.

467
Apología, en El asno de oro, en Flórida. Lo que nos llama la atención
es que, incluso teniendo en cuenta la presencia de lo arcaizante en
los dramaturgos primitivos, lo cierto y verdad es que son autores de
tragedias y de comedias que ya han desaparecido de la experiencia
dramática del tiempo presente; su conocimiento por Aulo Gelio se
basa por supuesto en la admiración por los autores y las obras, pero
se trata de un conocimiento enciclopédico, erudito, de profesor:
a fin de cuentas, una pervivencia de tipo enciclopédico. En el caso
de Apuleyo, en cierto modo él mismo sigue siendo un actor, un ac-
tor que atrae al público que va a disfrutar con sus discursos en los
teatros del África, pero tiene un conocimiento preciso del teatro an-
tiguo como si siguiera de actualidad; pervive en él un conocimiento
amplísimo del teatro de siglos antes. Y nos lo demuestra a lo largo
de todo un libro, el X, de su obra para nosotros más famosa, El asno
de oro, en el que aparta con admirable frecuencia del hilo del interés
central, las aventuras de Lucio convertido en asnos, para introducir
tres relatos que guardan una relación llamativa con el teatro de los
tiempos pasados y de su propio tiempo.

2. Met. X 2-12: una tragedia convertida en comedia

Inmenso interés para nuestro conocimiento sobre cómo un mito


antiguo, convertido en tragedia griega clásica, va dando lugar a re-
escrituras diferentes tanto desde el punto de vista argumental como
desde el literario, nos lo ofrece lo que podríamos llamar el relato
de “la Fedra de Apuleyo” (X 2-12), como hace con acierto el gran
especialista en la obra que nos ocupa, Maaike Zimmerman, en el
Apéndice I de su excelente edición del libro X del Asno de oro, do-
cumento básico para lo que muy resumidamente vamos a decir en
estas páginas 10. Desde el punto de vista literario, como una de las
grandes reescrituras antiguas del tema de Fedra fue analizado con

10 Zimmerman 2000: 417-444.

468
todo detalle en una de las ponencias 11 que aportamos al Congreso
internacional organizado por nosotros, con el título “Fedras de ayer
y de hoy. Poesía, teatro y cine ante un mito clásico” 12, celebrado
en Granada en el año 2005; a este trabajo remitimos para todo el
desarrollo del tema, del que solamente vamos a tocar ahora conta-
dos aspectos.
Especial atención hemos de poner en el modo de introducir el
relato. Lucio el asno ha venido a caer en poder de un soldado, que
lo lleva a una pequeña ciudad, cuyo nombre no se nos dice. Se alojan
en una posada, el soldado va a presentarse a su comandante, y es el
propio Lucio quien comienza el relato con estas palabras:

Recuerdo unos hechos criminales y espantosos que al cabo de


unos cuantos días salieron a la luz en aquel mismo lugar, y para
que vosotros también los leáis, los incluyo en el libro.
Un propietario tenía un hijo adolescente con una excelente
formación literaria y que, por esta misma razón, destacaba por su
piedad filial y por su respeto, hasta tal punto que cualquiera desea-
ría haber engendrado también a este o a uno igual. Como su madre
había fallecido hacía tiempo, había decidido él volver a contraer
matrimonio y, después de casarse con otra, había tenido otro hijo
que había sobrepasado ya también los doce años de edad. Pero la
madrastra, que dominaba en casa de su marido más por su belleza
que por sus buenas costumbres, ya sea por su deshonestidad natu-
ral, ya porque la empujara el destino a la infamia más vil, puso sus
ojos sobre su hijastro. Sabe desde este momento, excelente lector,
que estas leyendo una tragedia, no un cuento, y que subes desde
el calzado plano de la comedia a los altos coturnos 13

11 Cf. Pociña 2007.


12 Cf. Pociña & López 2007.
13 La trad. esp. es de J. Martos, tomada de su ed. de Apuleyo 2003.

469
Apuleyo, que posee unos amplios y profundos conocimientos de
los desarrollos históricos de las literaturas griega y latina, está en-
gañando al lector por medio del relato que pone en boca de Lucio
el asno. Advierte que va a recordar un scelestum ac nefarium faci-
nus, y empieza por sus comienzos, presentando a un padre, con dos
hijos, habidos de dos esposas sucesivas, pero de repente llega a la
presentación de la segunda de ellas, que obviamente es la madras-
tra, nouerca, del primero, hermosa, pero depravada. Un excelente
lector, con una cultura literaria grecolatina, no necesita más para
saber que está en el ámbiro familiar de las Fedras clásicas, sea el
Hipólito conservado de Eurípides o la Fedra de Séneca. Entonces,
Apuleyo-Lucio hace patente al lector que es ese mito teatral en lo
que está pensando, porque le advierte que va a leer una tragoedia,
no una fabula, término que nuestro traductor ha reproducido por el
español “cuento”, pero que también podría entenderse como “come-
dia”; y entonces, para señalar el paso de un género literario a otro,
utiliza la tradicional diferenciación entre tragedia y comedia a partir
de los diferentes calzados de una y otra, el coturnus y el soccus14.
Pero Apuleyo sabe muy bien que ese complicado núcleo familiar,
que evoca en el lector, sin darles nunca nombre, el caso de Teseo y
Fedra, no pueden considerarse en modo alguno personajes de una
tragedia, de acuerdo con los presupuestos de la retórica grecoro-
mana, debido a su carácter de gentes de la vida corriente, no de la
alta alcurnia, que habían diferenciado siempre los miembros de los
repartos de las tragedias y las comedias.
Sin entrar en otros detalles, vemos que el planteamiento literario
de Apuleyo consiste en incluir un relato nuevo, absolutamente al
margen del desarrollo normal de los avatares de Lucio el asno (y
que, además, no existe en la versión griega de la novela), y comienza
partiendo del tema tradicional del enamoramiento de Fedra de su
hijastro Hipólito; sin embargo, ante el fracaso de la nueva madrastra,
igual al de sus precedentes, el argumento toma otros derroteros, in-

14 Cf. Pociña 1974.

470
terviniendo nuevas circunstancias, como el envenenamiento, nuevos
personajes, como el esclavo de la madrastra, la aparición del senador
médico; en fin, de forma fundamental, el desenlace afortunado, al no
ser real el envenemiento, que hace contundente y definitivamente
que lo que empezó siendo presentado como una tragedia, acabe
conviriténdose en una comedia por su obvio feliz desenlace.
Un nuevo modo, sin duda, de enfrentarse literariamente a un
antiguo mito, lleno de atractivos, que había producido insuperables
resultados sobre todo en el género trágico, primero en Grecia, des-
pués en Roma. Pero Apuleyo considera que el tema sigue abierto, y lo
somete a un nuevo desarrollo de su propia creación. Evidentemente,
siempre es posible juzgar el resultado: G. F. Gianotti escribe al res-
pecto: “Il grande tema tragico di Fedra, dopo le edizioni illustri di
Euripide e di Seneca, si riduce a un fatto di cronaca nera, si traferisce
dalla reggia di Teseo a un’imprecisata civitatula di provincia e scarica
il suo pathos in una serie doviziosa di particolari scandalistici” 15.
Es una opinión, respetable como todas las opiniones correctamente
planteadas, formuladas y defendidas, pero el análisis basado en la
comparación valorativa no nos parece un procedimiento aconsejable
en los estudios de pervivencia literaria.
Apuleyo ha creado un relato breve a partir de los precedentes
trágicos de Grecia y de Roma, de cuyo detalle ya nos hemos ocupado
con detalle en nuestra anterior aproximación al tema 16 , pero lle-
gado a un punto se ha despreocupado del género literario original,
lo que le ha ofrecido la posibilidad de modificar el argumento en
todo lo que le ha parecido oportuno, y por supuesto le ha permitido
cambiar los personajes, sea por supresión de algunos existentes (¡no
hay nodriza de la madrastra enamorada!) o por creación de otros
(el senador médico). De este modo, en el relato de la madastra en-

15 Gianottti 1986: 104.


16 Cf. Pociña 2007. párrafo 3: “¿Eurípides Hip. I, Sófocles, Eurípides Hip. II, Ovidio
o Séneca?”, pp. 274-278, donde merece la pena destacar el artículo de Cristóbal Pérez
1976, que basándose en la comparación de los textos de la Fedra de Séneca y el rela-
to de Apuleyo, sostiene que la fuente fundamental de éste es la tragedia del latino.

471
venenadora de Apuleyo está inaugurada y ejemplificada la curiosa
y sorprendente historia de las incontables reescrituras del tema de
Fedra e Hipólito desde el mundo antiguo hasta nuestros días17, con
cambios argumentales y supresión o creación de personajes, muy
llamativos y significativos, en reescrituras como, por poner unos po-
cos ejemplos sobresalientes, Phèdre de Jean Racine (1677), Fedra de
Gabriele D’Annunzio (1909), Fedra de Miguel de Unamuno (1912),
Desire under the Elms de Eugene O’Neill (1924), Fedra de Salvador
Espriu (1937), Ippolito de Elena Bono (1951), Fedra entre los vascos
de César Miró (1962), Fedra de Domingo Miras (1973), Una altra
Fedra, si us plau de Salvador Espriu (1978), Faidra de Yannis Ritsos
(1978), Phaedra’s Love de Sarah Kane (1996), etc.

3. Met. X 23-28: Una comedia que se convertirá en tragedia

Los capítulos que van del 13 al 23 nos llevan de nuevo al desar-


rollo normal de la historia de Lucio el asno. El soldado que por el
momento había conseguido hacerse su amo se marcha a Roma, no
sin antes venderlo a dos hermanos, uno pastelero, el otro cocinero,
esclavos de un amo rico. Comienzan unos días felices para nuestro
asno, que, dando rienda suelta a la parte humana de su mente, se
dedica despreocupadamente a comer los suculentos manjares que
preparan los dos hermanos. Llega a tanto su voracidad, que aquellos
se percatan de la misteriora merma de sus alimentos, y empiezan a
sospechar entre ellos que uno de ambos debe ser el causante de la
desaparición. Al fin, con enorme sorpresa, descubren que es el asno,
de quien nunca se habría sospechado, quien da cuenta de aquellos
alimentos preparados para seres humanos. Primero con sus sorpren-
dentes comidas, después con otras imitaciones de actitudes propias
de humanos, Lucio gana una popularidad que acaba convirtiéndolo

17 Cf. Pociña & López 2016: 11-27 – cap. 1, “Reescrituras del tema de Fedra e
Hipólito”.

472
en un rentable espectáculo para su amo. Después de trasladarse a
Corinto, tiene lugar el famoso episodio del enamoramiento del asno
por parte de una rica matrona, que acaba manteniendo relaciones
sexuales con él. Y es entonces cuando, ante el proyecto de su amo
de sacar mayor beneficio vendiendo esta nueva faceta sorprendente,
exponiendo a Lucio a mantener una relación sexual en un teatro
con una mujer condenada a las fieras, a fin de ofrecer la historia
de esta mujer, con un parecido obvio a la de la madrastra del relato
anterior18, Apuleyo nos introduce en el nuevo relato, más breve, que
leemos en los capítulos 23-28.
Este es el argumento: una mujer, que tiene un hijo, está de nuevo
embarazada; su marido emprende un viaje al extanjero, pero le deja
ordenado que, si pare una niña, se deshaga de ella. Nace, en efecto,
una niña, pero la madre no le da muerte ni la expone, sino que la
deja en manos de unos vecinos. Pasa el tiempo, la criatura se con-
vierte en una adolescente, y la madre confiesa a su hijo que es hija
suya, y por lo tanto hermana de él; como buen hermano, se hace
cargo de ella, y la casa con un buen amigo. Todo estupendo, si no
fuera porque entran en juego, como nos advierte Apuleyo, Fortuna
y Riualitas, la fortuna y los celos. La mujer del bondadoso hermano,
que desconoce esta condición suya de hermano de la joven ya casada,
movida por su innata maldad y por unos celos atroces, inicia una
cadena de envenemientos, primero de la joven, después otros cuatro
más, dando lugar a una auténtica novela negra. Descubierta tras el
quinto envenenamiento, la celosa esposa asesina es condenada a
las fieras. Y, curiosamente, ella será objeto del obsceno espectáculo
de una relación sexual que ha de mantener con Lucio el asno, en
público, en el teatro.
Es lástima que Apuleyo no haya sido tan explícito en el comien-
zo de este relato como había sido en el del anterior, al advertirnos

18 Cf. la estupenda comparación del sentido conjunto de los dos relatos en


Zimmerman 2000: 400-444, Appendix III “Generic shifts of the two inner tales of this
book, and the function of these tales”.

473
que íbamos a leer una tragoedia. Sin embargo, cualquier conocedor
de la comedia grecoromana, y en especial esos lectores cultos que
Apuleyo toma en consideración, entienden perfectamente, como
señala con precisión M. Zimmerman 19, que nos encontramos ante
un argumento típico de la Comedia Nea griega, y por supuesto de
la Palliata latina. El tema frecuente del abandono de una criatura,
sobre todo si es una niña, al nacer, coincidiendo con un viaje a un
lugar lejano de una personaje, son elemento frecuente de muchos
argumentos cómicos; en el caso de esta pobre chica, que gracias a
su madre tiene la suerte de no acabar de forma desgraciada como
resultado de una exposición desafortunada que no sucede, podría
llegar a buen fin, gracias a la intervención de su hermano, que la
casa con un amigo. Sin embargo no tiene en cambio la fortuna de
ser objeto de una anagnórisis total, completa, que hiciera saber que
era hermana de su hermano, lo que la habría librado de los celos
criminales de su terrible cuñada. Muy pronto, después de un capítulo
tan sólo, finaliza la historia afortunada de la muchacha y empieza el
protagonismo fundamental de su criminal cuñada, encadenando un
envenenamiento sobre otro, hasta un total de cinco, en que consiste
el núcleo fundamental del nuevo relato. Pasamos de este modo de
una comedia a una tremenda tragedia: del mismo modo que en el
relato de los capítulos 2-12, pero en sentido contrario; parte Apuleyo
de una historia que parece paráfrasis de una obra teatral clásica,
para luego desviarse de ella en la parte que resulta creación suya,
pasando de una tragedia a una comedia, o de una comedia a una
tragedia, y construyendo de este modo dos relatos que tienen muy
poca relación con el hilo argumental de El asno de oro, ninguna en
el caso del primero, muy escasa en el del segundo.

19 Zimmerman 2000: 443; consúltense también sus acertados comentarios al cap.


23 de Met., pp. 290-303.

474
4. Met. X 29-34: Apuleyo-Lucio nos cuenta la representación
de una pantomima

A diferencia de lo que había hecho con el relato de la relación


bestial entre Lucio el asno y la fogosa matrona, Apuleyo tuvo el buen
gusto de no incluir como aventura final de las andanzas de Lucio
la proyectada representación en un teatro, ante las multitudes, de
su ayuntamiento con la terrible mujer enveneadora del relato que
acabamos de recordar. Por el contrario, tenemos la suerte, verdadera
fortuna, de que, mientras espera temeroso lo que pueda ocurrirle,
Lucio nos relata con todo detalle la puesta en escena de una pan-
tomima, que nosotros, al ponerla como texto final de nuestro libro
Comedia romana, calificamos como “la más interesante, detallada y
bonita descripción de un espectáculo teatral que pueda leerse en un
escritor latino” 20. Sin proponérselo, o tal vez con plena consciencia
de lo que hacía, Apuleyo, que con los dos relatos incluidos antes en
el libro X del Asno de oro hacía gala de un conocimiento profundo de
lo que habían sido la tragedia y la comedia grecolatinas del pasado,
nos llevaba a un espectáculo de su tiempo, una pantomima, que en
la consideración de la Retórica clásica ya no pertenece al mundo de
la literatura por carecer por completo de texto literario.
De la mano, o mejor con el relato, de Lucio-Apuleyo asistimos
a una representación de un Juicio de Paris, supuestamente en un
teatro de Corinto, en el siglo II d. C., que para nuestro modo de
ver sigue siendo un espectáculo dramático, pero que para Auleyo
y sus contemporáneos, Auro Gelio, Frontón y otros amantes de las
letras, ya no tiene relación literaria con las tradicionales tragedias,
comedias y mimos de Grecia y de Roma, que ya han comenzado su
interesante camino por las sendas de la pervivencia teatral universal.
He aquí la versión de este tercer relato de Met. X, ahora en la
versión española de Juan Martos:

20 López & Pociña 2007: 338.

475
He aquí que había llegado ya el día destinado a la represen-
tación y soy traladado al recinto del teatro entre el fervor del
pueblo, que me acompaña en procesión. Y mientras las primicias
del espectáculo estaban dedicadas a la ejecución de unas danzas
por parte de unos profesionales de la escena, estaba yo entre tan-
to plantado ante la puerta, placidamente ocupado en alcanzar el
pasto constituido por unas exuberantes hierbas que brotaban en
la misma entrada, al tiempo que continuamente recreaba mis ojos
curiosos con la agradable contemplación del espectáculo a través
de la puerta abierta. Pues, en efecto, había unos niños y niñas en
la flor de la corta edad; de llamativa belleza, espléndido vestido
y gracioso paso, iban a bailar la danza pírrica de origen griego, y
así, en formación, fueron recorriendo bellas figuras, ya torciéndose
en un círculo cerrado, ya enlazándose en filas transversales, tanto
apiñados en un cuadrado vacío como escindidos en dos grupos
separados. Pero cuando el sonido de la trompeta, que anuniaba el
fin, acabó con las intrincadas maniobras de sus alternantes evo-
luciones, se echó abajo el telón y se enrollaron las cortinas para
dejar dispuesto el escenario.
Había un enorme monte de madera como aquel famoso Ida
que cantara el poeta Homero, construido con una excelsa técnica,
cubierto de follaje y de árboles vivos y que destilaba las aguas de
un río desde lo alto de su cumbre, de una fuente que manaba gra-
cias a las manos de su creador. Unas poquitas cabrillas pastaban
las hierbas y un jovencito, hermosamente vestido con una túnica
como el pastor frigio Paris, con unos ropajes orientales que le caían
desde los hombros y con la cabeza cubierta con una tiara de oro,
representaba ser el mayoral de aquel ganado. Se presenta entera-
mente desnudo a no ser por una clámide de efebo que le cubría
el hombro izquierdo, un bello muchacho que resaltaba entre todos
por su rubia melena y entre cuyos cabellos destacaban unas alitas
de oro unidas por su exacta similitus:la vara de su caduceo daba
a entender que se trataba de Mercurio. Este, después de avanzar

476
con unos pasos de danza sosteniendo en su diestra una manzana
cubierta de láminas de oro, se la hace llegar al que parecía Paris
mientras le da a entender mediante gestos cuáles eran los mandatos
de Júpider; y violviéndose sin más, elegantemente, se aleja de la
vista del público.
Sigue una chica parecida por la honesta expresión de su rostro
a la imagen de la diosa Juno, puesto que, en efecto, le ceñía la
cabeza una diamdema blanca; llevaba también un cetro. Irrumpió
otra que se podría pensar que era la diosa Minerva, con la cabeza
cubierta con un reluciente casco –a este casco lo envolvía, a su
vez, una corona de olivo-, portaba un escudo y blandía una lanza
y era como ella cuando lucha.
Después de estas se introdujo otra que sobresalía por su belleza,
digna de asombro y que, con el encanto sobrenatural de su tez,
representaba a Venus tal como era Venus cuando era virgen, mos-
trando una perfecta hermosura en su cuerpo, desnudo y descubierto
salvo por una delgada túnica de seda que dejaba en penumbra su
pubis admirable. El viento curioso, jugueteando, henchía estas ves-
tiduras lleno de deseo, de tal manera que desvelaba, al apartarlas,
la flor de su tierna edad, o bien soplaba contra ellas retozando, de
forma que, ciñéndola estrechamente, se dibujaran claramente las
delicias de sus miembros. Por otro lado, la imagen de la diosa ofre-
cía colores distintos a la vista: su cuerpo era blanco, como bajado
del cielo; el vestido, azul oscuro, como salido del mar.
A cada una de las doncellas que representaban a las diosas las
acompañaban sus propios acompañantes; a Juno, Cástor y Pólux,
cuyas cabezas cubrían unos cascos ovales que se distinguían por
cimeras de estrellas: también estos muchachos Castores eran pro-
fesionales de la escena. Esta chica, avanzando al son de una flauta
jonia que tocaba diverss melodías, le promete al pastor mediante
pudorosos gestos y expresándose con una mímica serena y sin
afectación que, si hacía recaer en ella el premio de la belleza, le
otorgaría a su vez ella el gobierno de toda Asia.

477
En cuato a aquella a la que había convertido en Minerva su
atuendo bélico, la custodiaban dos muchachos, el Terror y el Miedo,
acompañantes armados de la diosa batalladora, bailando con las es-
padas desnudas. A su espalda, un flautista tocaba el belicoso modo
dorio,y, mezclando con los pesados tonos graves unos estridentes
toques agudos que parecían de trompetas, estimulaba el ardor de
la rápida danza. Ésta, sin dejar de mover la cabeza y con unos ojos
de mirada amenazadora, mediante un tipo de mímica vetiginosa y
retorcida le mostraba resueltamente a Paris que gracias a su apoyo,
se le entregaba la victoria en la hermosura, sería un valiente y se
cubriría de gloria con sus trofesos guerreros.
Pero he aquí que Venus con el apoyo entusiasta de las gradas
se planta encantadoramente en el mismo centro de escenario son-
riendo dulcemente mientras se desparrama a su alrededor una
multitud de felicísimos pequeñuelos: se diría que aquellos niños de
bien torneados miembros y blancos como la leche eran verdaderos
cupidos que acababan de llegar volando desde el cielo o del mar,
puesto que en las alitas y las flechitas y en todo el resto de su
atuendo resultaban perfectamente acordes con esta imagen, y con
unas brillantes antorchas iban iluminándole el camino a su dueña,
que parecía dirigirse a un banquete de bodas. Irrumpe también un
hermoso grupo de jóvenes doncellas; por un lado las agraciadas
Gracias, después las bellísimas Horas, que mientras adoraban a la
diosa lanzando flores, tanto trenzadas como sueltas, habían for-
mado un artístico coro para agradar así a la dueña de los placeres
con la con la frondosidd de la primavera. Las flautas de muchos
agujeros estaban ya entonando dulcemente las melodías lidias; y
mientras estas embelesaban encantadoramente los corazones de los
espectadores, Venus mucho más encantadora, empezó a moverse
apaciblemente y a avanzar despacio, con paso vacilante, ondulando
blandamente el torso y balanceando letamente la cabeza, y comenzó
a responder con la delicada expresión de su cuerpo a los suaves
sonidos de las flautas y a hacer gestos con las pupilas, que ya se

478
cerraban languidamente, ya amenazaban duramente, y a bailar así
únicamente con los ojos.
En cuanto hubo hecho todo esto frente al juez, pareció que por
los gestos de sus brazos le prometía que, si fuese preferida a las
otras diosas, le daría a Paris una novia de excepcional belleza y
entreamente igual a ella misma. Entonces el joven frigio le entregó
de todo corazón a la muchacha la manzana de oro que sostenía,
como si fuera la piedrecita con la que votaba su victoria.
[.....]
Cuando acabó aquel juicio de Paris, Juno sale del escenario
junto con Minerva, afligidas y como si se hubieran encolerizado, al
mismo tiempo que manifestaban con sus gestos su indignaciñón por
haber sido rechazadas; Venus, en cambio, gozosa y jovial, manifestó
su alegría bailando con todo el coro.
Entonces, de lo más elevado de la cima del monte y a través de
un conducto escondido brotó hasta lo más alto azafrán disuelto en
vino y, al derramarse por todas partes, empapó con esta lluvia per-
fumada a las cabrillas que pacían alrededor, hasta que con aquellas
manchas que mejoraban su apariencia mudaron su blancura natural
por un color anaranjado. Y mientras todas las gradas estaban ya
agradablemente perfumadas, un torbellino de tierra recibió el des-
censo de aquel monte de madera 21 .

Bibliografía

Apuleyo (2000), Metamorphoses Book X. Text, Introduction and Commentary M.


Zimmerman. Groningen: Egbert Forsten.
Apuleyo (2003), Las Metamorfosis o El asno de oro. Introducción, texto latino, traducción
y notas de Juan Martos, 2 vols. Madrid: C.S.I.C.
Apuleyo (2012), Apulei Metamorphoseon libri XI. Recognovit berevique adnotatione
critica instruxit M. Zimmerman. Oxonii: E Typographeo Clarendoniano.
Aulo Gelio (1952), Noches áticas (Selección). Selección y prólogo de José María de
Cossío. Buenos Aires: Espasa Calpe.

21 Met. X 30-34, trad. esp. de J. Martos.

479
Aulo Gelio (1893), Noches áticas. Traducción de Francisco Navarro y Calvo. Madrid:
Editorial Viuda de Hernando (reed. Madrid,1921).
Cristóbal Pérez, V. (1976),“Tratamiento del mito en las novelle de las Metamorfosis de
Apuleyo”, CFC 10: 309-373.
Gianotti, G. F. (1986), “Romanzo” e ideologia. Studi sulle ‘Metamorfosi’ di Apuleio.
Napoli, Liguori.
Holford-Strevens, L. (1988), Aulus Gellius. London: Duckworth.
Marache, R. (1952), La critique littéraire de langue latine et le developpement du gout
archaïsant au IIe siècles de notre ère. Rennes: Plihon Editeur.
López, A. (1983), Fabularum togatarum fragmenta (Edición crítica). Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca.
López, A & Pociña, A. (2007), Comedia romana. Tres Cantos: Akal Editor.
López, A & Pociña, A. (2011), “Nuevas perspectivas de estudio de las Tragedias de
Séneca”, Humanitas 63: 283-301.
López, A., Pociña, A & Silva, M. F. (eds.) (2012), De ayer a hoy: influencias clásicas en
la literatura. Coimbra: Universidade de Coimbra.
Pociña, A. (1974) “Caracterización de los géneros teatrales por los latinos”, Emerita 42:
409-447.
Pociña, A. (1988), Comienzos de la poesía latina: épica, tragedia, comedia. Madrid:
Editorial Coloquio.
Pociña, A. (2006), “Cicerón como espectador y crítico teatral”, Veleia 23: 219-246.
Pociña, A. (2007), “De la tragedia al cuento: la madrastra enamorada en El asno de oro
de Apuleyo (Apul. met. 1’, 2-12)”, in A. Pociña, A. López (eds.), Fedras de ayer y de
hoy. Teatro, poesía, narrativa y cine ante un mito clásico. Granada: Editorial de la
Universidad de Granada.
Pociña, A.; López, A. (eds.) (2007), Fedras de ayer y de hoy. Teatro, poesía, narrativa
y cine ante un mito clásico. Granada: Editorial de la Universidad de Granada.
Pociña, A.; López, A. (2016), Otras Fedras. Nuevos estudios sobre Fedra e Hipólito en el
siglo XX. Granada: Editorial Universidad de Granada.
Pociña, A., López, A., Morais, C. & Silva, M. F. (eds.) (2015), Antígona: a eterna sedução
da filha de Édipo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015.
Pociña, A., López, A., Morais, C., Silva, M. F. & P.-J. Finglass (eds.) (2018), Portraits of
Medea in Portugal during the 20th and 21st Centuries. Leiden-Boston: Brill.
Zimmerman, M. (2000), Apuleius Madaurensis Metamorphoses Book X. Text, Introduction
and Commentary. Groningen: Egbert Forsten.

480
FILO S OFIA
(Página deixada propositadamente em branco)
A r i s t ó t e l e s , S ó c r at e s y l o s s o c r át i c o s
sobre la riqueza

A r i s to t l e , S o c r at e s a n d t h e S o c r at i c s o n W e a lt h

Javier Campos Daroca


Univ. Almería-CySoc
ORCID: 0000-0002-9454-9007
jcampos@ual.es

Resumen: Aristóteles ha sido y continúa siendo en los estudios socráticos


fuente de primera importancia sobre las ideas asociadas a la figura de
Sócrates y su valor histórico-filosófico. Pese a la actitud crítica hacia
las ideas morales socráticas que domina el tratamiento aristotélico,
puede encontrarse en su pensamiento económico un importante factor
de continuidad con la tradición socrática de gran actualidad, que este
trabajo se propone explorar.

Palabras clave: Aristóteles, Sócrates, economía antigua

Abstract: In the thriving field of Socratic Studies, Aristotle has been and
remains an important, if hotly debated, source of evidence regarding
both the ethical ideas associated with Socrates and their significan-
ce in the history of philosophy. Notwithstanding Aristotle’s critical
stance towards Socrates’ most characteristic ethical tenets, there is an
identifiable “Socratic facet” in Aristotle’s thought, which surfaces in
his inquiries on economic issues in quite a remarkable way. In this
paper we will explore the Socratic strand in Aristotelian economic
thinking, which proves to be a highly topical subject.

Keywords: Aristotle, Socrates, ancient economy


https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_21
1. Cuestión de método

Un tema como el que proponemos requiere dos precisiones de


método inexcusables que intentaremos solventar de manera breve. La
primera concierne a la figura misma de Sócrates, sobre la cual cabe
decir mucho pero siempre bajo la reserva de que, en realidad, nada
es seguro. En el presente trabajo nos atendremos a lo que puede
considerarse el nuevo paradigma de los estudios socráticos, si bien
su novedad no es del todo novedosa. Se viene configurando desde
al menos la mitad del siglo pasado frente a una tradición de estu-
dios socráticos cuyo vigencia no ha desaparecido en absoluto y que
recibe el título de “la cuestión socrática” o, para ser más precisos,
“la búsqueda del Sócrates histórico”. La historia de este paradigma
ha sido detalladamente estudiada por Dorion, quien, a resultas de la
indagación, ha decretado su defunción por insoluble. 1 La búsqueda
del Sócrates histórico aspira a establecer “lo que Sócrates verdade-
ramente dijo”, más allá de lo que sus discípulos le hicieron decir.
Las modalidades de este paradigma han sido muchas. Consisten
básicamente en recoger los testimonios sobre Sócrates y establecer
entre ellos una jerarquía de fiabilidad que permite privilegiar unos
y desconsiderar otros, y, en fin, buscar en los factores comunes a
los testimonios fiables el acceso al venerado maestro y a lo que
“verdaderamente dijo”. En el nuevo paradigma, el “Sócrates histó-
rico” ha quedado en la quimera que es, y el estudio de Sócrates se
concentra en el análisis de sus representaciones y su contraste, sin
pretensión de lograr un factor común. Más bien pone el acento, muy
posmodernamente, en las diferencias. Sócrates surge del encuentro
de perspectivas que no se pueden del todo conjugar en una figura
biográficamente precisa. No hay, pues, Sócrates alguno fuera de o
más allá del “movimiento socrático”, que es donde surge la urgencia
de divulgar la imagen del maestro y su enseñanza en una intensa

1 Dorion 2011, 2013: 1-27.

484
producción de diálogos que uno de sus mejores estudiosos valora
en cientos de escritos. 2
La segunda consideración está estrechamente ligada a la primera.
Cuando al nombre de Sócrates se une el de Aristóteles lo habitual es
remitir la relación al problema de la “cuestión socrática”. Los pasajes
de las obras aristotélicas en que se hace mención expresa de Sócrates
han sido recopilados y estudiados con el detalle que merecen, pero
los resultados no son demasiado prometedores. 3 Ciertamente, du-
rante un tiempo se llegó a pensar que Aristóteles insinuaba cuándo
hablaba del Sócrates histórico y cuándo del personaje que Platón
hacía aparecer en sus diálogos. O incluso que el testimonio aristoté-
lico podía servir para dirimir las cuestiones suscitadas por versiones
rivales. 4 Pero la tendencia hoy es, más bien, a considerar que el
testimonio del estagirita no tiene demasiado valor para este tipo de
indagación, sobre todo porque en su práctica totalidad parece proce-
der de las lecturas platónicas. Ciertamente se trata de una posición
controvertida, pero ha sido recientemente afirmada con contundencia
por una autoridad como Charles Kahn, quien defiende otro tanto
sobre el testimonio de Jenofonte. 5
Dada nuestra actitud hacia la cuestión socrática, es fácil adivinar
que este enfoque “histórico” de la cuestión no despierta nuestro en-
tusiasmo. Nos inclinamos más bien por explorar lo que podríamos
llamar el “socratismo” de Aristóteles en torno a determinados temas,
es decir, el modo en que las ideas y doctrinas asociadas con Sócrates,
vengan de donde vengan, fueron objeto de discusión por parte del

2 Rosetti 1977: 13-74; 2008.


3 Los textos relevantes se encuentran recogidos y comentados por Deman 1943.
Bataillard 2001: 222-223, señala que los testimonios aristotélicos pueden separarse
en dos clases: los referidos al personaje histórico de Sócrates (localizados sobre todo
en la Retórica); y los que remiten a las tesis filosóficas asociadas con su figura, que
Aristóteles somete a la correspondiente discusión y crítica (Metafísica, Éticas). Sobre
el Sócrates de las Éticas vid. especialmente Chroust 1955, Tessitore 1988, Giannantonni
1990, y Burger 2008. Una evaluación competente de la evaluación aristotélica de
Sócrates en la historia de la filosofía puede leerse en Moore 2019.
4 Vlastos 1993: 81-107.
5 Kahn 2010: 99-11; 397-407.

485
estagirita. De acuerdo con los planteamientos del moderno paradigma
socrático, tomamos como referente no el “pensamiento” de Sócrates
sobre un tema determinado, sino el planteamiento de un problema en
el contexto de la socrática antigua y las orientaciones que siguieron
los diversos autores que rivalizaron en torno a la imagen de uno de
los maestros más desconcertantes que ha dado la historia.
Dada la gran variedad de temas que permitirían explorar el so-
cratismo aristotélico, algunos de ellos brillantemente examinados en
fechas recientes, nos permitimos elegir uno que puede considerarse
menor, aunque para nuestro gusto es de la mayor importancia. Nos
referimos al de la economía, que en su modalidad griega está siendo
objeto de una importante revisión. 6 El tema es en sí controverti-
do, dado que autoridades de peso dudan que se puede hablar con
propiedad de economía o pensamiento económico en la Antigüedad.
En efecto, como es reconocido generalmente, el término griego que
ha dado el nuestro de ‘economía’ (y términos de la misma etimología
en buena partes de las lenguas europeas) resulta ser, por tomar la
imagen de la didáctica de las lenguas, un “falso amigo”. Tomando
como criterio lo que economistas actuales (para ser precisos, una es-
cuela especialmente influyente de esta disciplina) consideran en rigor
economía, Finley llegaba a cuestionar que en la Antigüedad existiera
tal cosa. Obviamente no se trataba de negar que la Antigüedad no
tuviera nada que ofrecer a la historia económica. Lo que faltaba es
atisbo alguno de racionalidad económica en el comportamiento de
los agentes económicos tal como la entiende la modernidad desde al
menos los economistas clásicos. Esa ausencia de racionalidad formal
en la producción, circulación y adquisición de bienes explica, entre
otras cosas, por qué apenas tenemos datos relevantes para una his-
toria económica propiamente dicha. 7

6 Pueden consultarse al respecto las recientes y autorizadas visiones de conjunto


que ofrecen Migeotte 2008, Bresson 2016, von Reden 2015.
7 Finley 1985: 18-29.

486
Para ser fieles al sentido antiguo, valga la precisión sencilla de
que la actividad económica tenía entonces como ámbito inmediato
la gestión doméstica y la administración, es decir, la conservación e
incremento del patrimonio familiar. En lo que a la ideología se refie-
re, la diferencia decisiva está la naturaleza inextricablemente ética y
política de las ideas antiguas, su “encastramiento” y “sustancialidad”,
frente a la orgullosa reivindicación de autonomía libre de cualquier
evaluación ajena (moral sobre todo) que pretende la moderna ciencia
que los toma como objeto. 8
En la medida en que la posición de Finley depende básicamente
de una estipulación de sentido del término “economía”, no es difícil
cuestionar el alcance de sus pretensiones que, de un lado, dependen
del estado de nuestros conocimientos sobre las sociedades antiguas
y, de otro, de la convicción de que no hay otra forma de entender
la economía que como la dicta el pensamiento neoclásico. En este
sentido, la investigación moderna ha aportado no sólo nuevos datos
sobre aspectos relevantes para la historia económica, sino, sobre
todo, alternativas teóricas a la disciplina, entre ellas la conocida
como Nuevo Institucionalismo, que está siendo aplicada con bastante
provecho al estudio de las sociedades antiguas. 9
En el debate sobre la economía antigua toca un papel de con-
siderable importancia a Aristóteles, a quien se debe una reflexión
concentrada, pero de influencia extraordinaria, sobre asuntos como
la naturaleza de los intercambios comerciales y la invención y el uso
de la moneda en los mismos. Que en esa reflexión Aristóteles está
en la línea de la tradición socrática ha sido recientemente mostrado
por Schaps en un trabajo muy clarificador. 10 Por otro lado, si nos
atenemos al sentido antiguo del término, sabemos que la condición

8 Una revisión del debate sobre la naturaleza y modo de abordaje de la eco-


nomía antigua desde finales del siglo XIX puede leerse en Bresson 2016: 1-20 y von
Reden 2015: 91-98. Sobre la importancia de la obra de Finley en la investigación de
la historia económica cf. Cartledge 2002.
9 Bresson 2016: 18-27; von Reden 2015: 98-105, y Föllinger 2015.
10 Schaps 2003.

487
“económica”, es decir, familiar, de Sócrates fue objeto de una aten-
ción considerable, tal vez excesiva, por parte de Aristóteles y sus
discípulos. La oikonomía antigua concernía también al gobierno de
la familia, esposa, hijos y servidumbre. Por Aristóteles precisamen-
te sabemos que la de Sócrates fue una familia muy particular. En
el Liceo estaban muy interesados en historias que corrían sobre la
supuesta bigamia de Sócrates, que Aristóteles trató con detalle en
uno de sus diálogos de título Sobre la nobleza, y, tras él, filósofos
y eruditos como Demetrio de Falero, Aristóxeno y Calístenes. En el
caso de Aristóxeno de Tarento, sabemos que este dato sirvió para
difundir una imagen poco halagüeña de Sócrates en una biografía
que todavía estaba circulando en el siglo III de nuestra era. Parece
claro que estas noticias no pueden venir de Platón, sino de un co-
nocimiento de la literatura socrática de la primera mitad del siglo
IV a.C. que en su mayor parte está perdida. 11

2. Sócrates y la economía: el “momento socrático”

Haciéndonos eco de un clásico de la historia del pensamiento


político, creemos que puede hablarse de un “momento socrático”
de la economía antigua. Este momento socrático es objeto más de
representación que de reflexión. Se muestra, en efecto, de la manera
más espectacular en el modo en que Sócrates se enfrenta a la cues-
tión de la riqueza en los escritos que lo retratan en su carácter y
comportamiento. Y decimos espectacular con todas su implicaciones,
porque su actitud en este sentido está en la raíz de la performance
cínica del desprecio de la riqueza, así como de buena parte de las
ideas asociadas al ideal de la vida filosófica en lo que concierne al
trato apropiado con las posesiones.

11 Sobre estos fragmentos (frs. 91-94 Ross3), vid. R. Laurenti 1987: 741-821. Sobre
la recepción hostil por parte de Aristóxeno, cuyas noticias se deben sobre todo a la
Historia filosófica de Porfirio de Tiro, vid. Huffman 2011, quien sospecha que es posi-
ble que se deba a este último una parte importante del cuadro negativo de Sócrates.

488
En efecto, si nos atenemos a la versión más aceptada de la opi-
nión común sobre la cuestión, la economía socrática representa
una auténtica inversión de las ideas vigentes sobre el valor de las
cosas para la vida y el sentido de su adquisición por medio del tra-
bajo. 12 En efecto, si el acuerdo general es que la riqueza es un bien
incontestable, y la pobreza un mal con efectos degradantes sobre la
persona que la sufre, y si las reservas frente la riqueza provienen,
sobre todo, de consideraciones prudenciales acerca de la oportuni-
dad y legitimidad de su adquisición y uso, nada más ajeno a esta
apreciación generalizada de la fortuna material que la posición que
encontramos encarnada en Sócrates, tanto en sus actos como en su
predicación. Sócrates no se desentiende más o menos completamente
de la gestión de su patrimonio, sino que defiende ideas que, de un
lado, critican acerbamente la dedicación excesiva a estos menesteres
y, de otro, redefine completamente el sentido de lo que hemos de
entender por riqueza hasta rondar la paradoja. Además, la identidad
filosófica de Sócrates es inseparable de su radical rechazo a hacer
de sus enseñanzas un negocio, frente a la venalidad prácticamente
sin límites de los llamados sofistas. 13
Para precisar esta actitud “antieconómica” de Sócrates atendere-
mos a tres aspectos de la misma. Parte importante de la singularidad
socrática en esta materia tiene que ver, en primer lugar, con el he-
cho de que esta deviniera asunto de debate en el medio literario
de los logoi tan prolíficamente producidos por sus seguidores. En
ellos la economía se hace problema: se discute la condición de esta
actividad como techne y su relación con otros saberes humanos, así
como las directrices que de esa reflexión deben seguirse para una

12 Finley 1985: 35-41.


13 La literatura sobre el tema es abundante, vid. Schaps 2003. Incluso Desmond
2006, quien contesta a Finley acerca del consensus antiguo sobre la bondad de la
riqueza, tiene que reconocer en Sócrates un punto de inflexión importante. Sobre
el contraste entre la venalidad sofística y la gratuidad socrática puede encontrarse
abundante información en el trabajo de Blank 1985, donde se recopilan los textos
relevantes.

489
correcta administración de la vida. 14 Así pues, tiene cierto sentido
decir que Sócrates (y los suyos) “inventa(n)” la economía. Y, en efecto,
la oikonomía es en la Antigüedad asunto, sobre todo, de filósofos.
Un segundo aspecto del momento socrático está en su forma de
analizar los hechos de la esfera económica y la focalización en uno
de ellos como el centro del problema. Es la parte adquisitiva la que
atrae en especial el interés de Sócrates y, sobre todo, el extremo en
que la adquisición se incrementa para devenir en riqueza, es decir, la
acumulación significativa y durable de bienes por encima de lo preciso
para cubrir más o menos holgadamente las necesidades humanas.
De manera complementaria, en fin, es también característicamente
socrática la cuestión del uso de posesiones y riqueza, algo que viene
a ser el análogo de nuestro consumo, con la diferencia decisiva de
que el consumo se mide en cantidades y el uso se evalúa según lo
apropiado del mismo. 15
Así pues, es la riqueza lo que atrae el centro de atención (y provoca
la inquietud) de la reflexión socrática y lo que genera su reflexión
económica. Y esto nos lleva al tercer punto del momento socrático
que podemos resumir en su naturaleza protréptica. Toda actividad
económica está sometida al dictamen que deriva de su relación con
el agente de las mismas, que no es tanto el hombre como su alma.
El efecto de tal dictamen concierne incluso al uso del lenguaje, que
en rigor debería corregirse de acuerdo con las directrices adecuadas

14 En efecto, a uno de sus discípulos más entusiastas y adeptos, que proclama-


ba haber recibido la lección definitiva de la oikonomía socrática sobre la verdadera
riqueza, se debe un libro de título Sobre la victoria que recibe en el catálogo que nos
lo transmite el subtítulo de oikonomikós (D.L. VI 16 = fr. 41 Giannantoni). Como ha
señalado Descat 1983: 107-109, se da un desplazamiento de un análisis de la función
a la de un tipo de comportamiento, que puede expandirse a otras esferas de acción.
Una buena revisión de la literatura económica antigua y su recepción puede leerse
en Swain 2016.
15 Por otro lado, el consumo es esencialmente destructivo, como veía bien
Schumpeter, y en este sentido constituye una característica definitiva de formas
de las sociedades modernas, en las que el problema de desembarazarse masiva y
periódicamente de las cosas (y de las personas) es crucial, vid. Brock 2000 sobre la
trascendencia estética de estas tendencias modernas.

490
acerca de lo realmente bueno, de modo que la riqueza no pudiera
decirse propiamente de nada más que del alma y su calidad.
Como referencia fundamental de este momento socrático tomare-
mos un famoso y controvertido pasaje de la Apología platónica que
lo resume de manera espléndida. Sócrates se imagina que le ofrecen
la posibilidad de librarse de la condena a costa de abandonar su
misión en Atenas, pero él responde:

Yo atenienses, os tengo aprecio y os quiero, pero voy a obede-


cer al dios más bien que a vosotros y, mientras aliente y pueda, es
seguro que no dejaré de practicar la filosofía y de exhortaros y de
hacer manifestaciones al que de vosotros vaya encontrando, dicién-
dole lo que acostumbro: ‘Mi buen amigo, ateniense como eres, de
la más grande ciudad y la más famosa en sabiduría y poder. ¿No te
da vergüenza de ocuparte en adquirir más riquezas (χρημάτων) y
más fama y más honores, y, en cambio, no te ocupas ni interesas
por la inteligencia, la verdad y por cómo tu alma puede llegar a ser
lo mejor posible?’ Y si alguno de vosotros me discute y dice que se
ocupa, no pienso dejarlo, sino que lo voy a interrogar, a examinar
y a refutar, y si me parece que no ha adquirido la virtud y dice que
sí, le reprocharé que tiene en menos lo digno de más y tiene en
mucho lo que vale poco. Haré esto con quien encuentre, joven o
viejo, forastero o ciudadano, pero más con los ciudadanos ya que
me sois más próximos por origen. Pues esto lo manda el dios, sa-
bedlo bien, y yo creo que todavía no os ha surgido mayor bien en
la ciudad que mi servicio al dios. En efecto, voy por todas partes
sin hacer otra cosa que intentar persuadiros a jóvenes y viejos a no
ocuparos ni de los cuerpos ni de los bienes antes que del alma ni
con tanto afán, a fín de que ésta sea lo mejor posible, diciéndoos:
“No nace de las riquezas la virtud a los hombres, sino de la virtud,
las riquezas y los demás bienes todos, tanto los privados como los
públicos”. Ap. 29c-30b 16

16 Traducción de Calonge Ruiz 1991.

491
Atendamos, en primer lugar, a la naturaleza protréptica del con-
texto. Sócrates cita sus propias palabras como suma de la lección
que va predicando por Atenas para llamar a sus conciudadanos a
una suerte de conversión moral. Es una intransigente exhortación
que resume una enseñanza no menos controvertida no sólo por los
extremos que demanda, sino por la forma de su expresión: “Οὐκ ἐκ
χρημάτων ἀρετὴ γίγνεται, ἀλλ’ ἐξ ἀρετῆς χρήματα καὶ τὰ ἄλλα ἀγαθὰ
τοῖς ἀνθρώποις ἅπαντα καὶ ἰδίᾳ καὶ δημοσίᾳ.”

La frase esconde una fecunda ambigüedad sintáctica que deja la


traducción abierta a la interpretación. En efecto, tal como aparece
traducida en la versión que hemos aportado, la declaración parece
ir en contradicción con lo que Sócrates nos dice de la relación entre
riquezas y virtud en otros muchos pasajes de Platón y Jenofonte. Ya
en 1925 el editor oxoniense de Platón, John Burnet, señalaba en su
comentario a la Apología que el término agathá, que traducimos por
“bienes”, debería tomarse en función predicativa, de manera que la
traducción correcta puede reformularse tentativamente de la siguiente
manera: “No resulta de las riquezas la virtud, sino que por la virtud
las riquezas y todas las demás cosas resultan buenas para el hombre.”

No trataremos otras posibilidades de resolver la cuestión, como


la de darle a la segunda mención del termino khrémata un valor
metafórico, queriendo decir de este modo que de la virtud provie-
nen las riquezas “espirituales”. Aunque tal interpretación no es en
absoluto imposible, la provocación de la declaración socrática, en
un discurso sin duda muy provocativo, depende de que el término
tenga el mismo sentido en ambas menciones. 17
La diferencia no es una sutileza erudita. Mientras que la primera
nos sitúa ante un impasse filosófico y haría de Sócrates casi un profeta

17 La defensa más elocuente de esta lectura se debe a Burnyeat 2003. Schriefl


2013: 13-71 distingue hasta cinco interpretaciones plausibles del mismo, pero la
opción decisiva sigue dependiendo de si tomamos el adjetivo ἀγαθά en la construc-
ción predicativa. Cf. Griffin 1995 y Taylor 1973.

492
bíblico, la segunda apunta al centro de la revisión socrática de la idea
de riqueza y su recepción en las tradiciones filosóficas que heredan
las inquietudes de Sócrates sobre el modo en que hay que vivir la vida
que merece la pena vivirse. En esta lectura se concentran los aspec-
tos distintivos del momento socrático. Ofrece una reflexión sobre las
actividades adquisitivas y el modo en que las posesiones adquiridas
se hacen de verdad valiosas. El resultado es una revisión radical del
modo en que podemos hablar de la riqueza. Según esta interpretación,
el Sócrates que Platón nos presenta ante el tribunal, afirma que las
riquezas no son bienes: no nos hacen mejores en modo alguno, como
piensa el común de los mortales, sino que su bondad depende de su
relación con el sujeto que las posee o, más específicamente, con algo
que da a ese sujeto entidad ética: su virtud o, para evitar esta palabra
de tan mala prensa, su calidad humana más alta.
La formulación que da Platón a esta predicación socrática tiene
la virtud de su concentración y capacidad de impacto, como una
máxima. Plantea la posición del maestro con una crudeza que parece
destinada a producir el efecto de una revolución o, más adecuada-
mente, una conversión. En efecto, como dice uno de sus enemigos
más cordiales, el petulante Calicles en el diálogo Gorgias, si las ideas
de Sócrates fueran ciertas, la vida humana quedaría “patas arriba”
(anatetrammenos, Plat. Gorg. 481c3). Por ello es interesante seguir la
suerte de ese pensamiento económico tan trastornador en el medio
socrático al que pertenece, y observar las soluciones al dilema del
enriquecimiento cuando lo que se juega es nuestra calidad moral,
que, para Sócrates y tantos de sus discípulos, vale más que la vida
misma. En esta historia podemos considerar a Aristóteles un “socráti-
co” más, y uno de especial calidad por la agudeza con la que señala
dónde se encuentra realmente el problema.
En la versión platónica de la vida del maestro, Sócrates es declara-
damente pobre y hasta hace gala en la Apología de una pobreza que
atribuye a su dedicación a la misión divina, y por ello declara, no sin
ironía, una justa compensación como castigo al delito por el que sus
conciudadanos lo han condenado (Apol. 36b-e). En consecuencia, la

493
solución que da Platón al problema de la riqueza es, por decirlo de
manera terminante, preventiva, por no decir profiláctica. En su dos
grandes proyectos constitucionales, la cuestión de las propiedades y
su acumulación es cuidadosamente tratada con el propósito de evitar
sus perniciosos efectos sobre los gobernantes o la ciudadanía en ge-
neral. El hecho de que la necesidad del intercambio haga imposible
prescindir de prácticas en virtud de las cuales el apetito de riquezas
puede insinuarse en el alma de los ciudadanos hace especialmente
perentoria la necesidad de una regulación rigurosa que, en su caso
más conocido, resulta en el establecimiento de una forma radical
de comunismo entre los gobernantes de la ciudad perfecta. El papel
del afán adquisitivo en la degeneración de los tipos humanos que
desencadenan el proceso de cambio constitucional es igualmente
revelador al respecto. 18
Lejos de esta sospecha platónica ante la acumulación de propie-
dades, que tantos enemigos y simpatizantes le ha atraído, antiguos
y modernos, el Sócrates que nos pinta Jenofonte recoge el reto del
maestro y lo elabora siguiendo líneas definitivamente poco revo-
lucionarias. 19 Este Sócrates, decididamente, no es pobre como su
alias platónico, ni dice de sí mismo tal cosa. Es esa una apreciación
equivocada de quienes no comprenden su acción educativa. En las
Memorables jenofonteas, por ejemplo, Sócrates responde a quien le
reprueba su pobreza que en realidad él es espléndidamente rico, una
afirmación que nunca escuchamos en Platón. Y es que esa riqueza de
Sócrates hay que entenderla en los términos adecuados como una
función del deseo: se define en relación con el tamaño, el número
y la calidad de los deseos y, más importante, la capacidad de domi-
narlos, de modo que un hombre que tiene pocos deseos, que son

18 Esta dimensión del pensamiento platónico, por lo general no muy apreciado,


está siendo intensamente explorado recientemente, vid. Gooch 2007, Helmer 2010,
Schierl 2013, y Fölllinger 2015.
19 Sobre la economía socrática en su versión jenofontea hemos seguido los tra-
bajos de Dorion 2003: 317-346. El Económico jenofonteo ha recibido recientemente
una atención considerable, vid. Danzig 2010 y Kronenberg 2016.

494
además fáciles de satisfacer, y cuenta con bienes suficientes para ello
puede considerarse, sin más, rico. Por el contrario, la pobreza afligirá
siempre a quienes, como Critóbulo, rico hasta la indecencia, abun-
dan en deseos refinados, y ello por más riquezas de que dispongan.
Ahora bien, curiosamente, este revisionismo económico derivado de
una redefinición ética de la riqueza permite a Sócrates un trato más
comprensivo, menos riguroso con la misma que el propuesto por su
rival Platón. En su animada conversación con Critóbulo, Sócrates no
duda en dar consejos de economía doméstica para la mejora de la
condición material y financiera del consultante, y hasta de economía
“política” para el bien de la ciudad. Una riqueza conseguida bajo el
gobierno de la continencia y adecuadamente administrada no sólo
es aceptable, sino buena, en la medida en que sirve eventualmente
para subvenir las necesidades de amigos, parientes y conciudadanos.
Jenofonte propondría, pues, una solución lejanamente emparentada
con la versión “redistributiva” de las llamadas economías primitivas.
Pero además de esta naturaleza ética de la riqueza, hay una de
orden práctico-cognitivo de extraordinaria importancia. La condici-
ón de las riquezas está “suspendida” hasta que se activa la relación
con el usuario que las cualifica definitivamente como tales. La clave
está, pues, en el uso de los bienes. Según este segundo criterio, una
gran cantidad de bienes que no son utilizados o, peor, que no se
sabe cómo utilizar, no son propiamente dichos bienes, ni riqueza
en absoluto. Jenofonte lleva esta estrategia a la paradoja al decir
que, de saberlos usar bien, hasta los enemigos pueden considerarse
parte de nuestra fortuna, o que el dinero no lo es, en verdad, si se
acumula sin uso, por no decir que es un mal evidente cuando se usa
para adquirir objetos o contratar servicios perniciosos.

3. Aristóteles y el “momento socrático”

El caso de Aristóteles puede parecer ajeno a esta tradición si se-


guimos como criterio y guía la aparición o mención de la figura de

495
Sócrates. Pero, como señalamos arriba, no creemos que el socratismo
del estagirita se resuelva en los pasajes en los que hace mención
explícita del maestro ateniense, como tampoco creemos que lo que le
llega de socratismo sea exclusivamente por mediación de su maestro
directo y del ambiente de la Academia que frecuentó veinte años
de su vida. Como se ha señalado recientemente, 20 en la reflexión
filosófica sobre la riqueza la posición de Aristóteles debe situarse en
el contexto de la familia socrática y del cambio de perspectiva, más
o menos revolucionario, que se asocia a la actitud del maestro, que
hace de la riqueza un problema para la vida que se quiera virtuosa.21
Los lugares donde se concentra la reflexión sobre el intercambio
y la circulación de los bienes son bien conocidos. 22 En el capítulo
5 del quinto libro de la Ética a Nicómaco, en el contexto de la dis-
cusión sobre la justicia en su variedad de reciprocidad por analogía,
Aristóteles se plantea cómo es posible intercambiar de manera justa
cosas esencialmente diferentes, algo que requiere una medida, en
la que las cosas puedan resultar conmensurables y susceptibles de
entrar en una relación de equivalencia. Aristóteles menciona sucesi-
vamente el dinero y la necesidad (χρεία, que hay quien moderniza
en “demanda”), o una combinación de ambas como medida común
entre las cosas que deben intercambiarse (EN 1122a20-21; 25-26;
29-32). La solución está lejos de ser satisfactoria por razones que
tienen que ver con distinciones básicas del propio Aristóteles en las
que aquí no podemos detenernos. 23
Más elaborados son los pensamientos que dedica a este problema
en el primer libro de la Política, donde se desarrollan las implica-
ciones de la necesidad como elemento impulsor del trato social y

20 Schaps 2010.
21 En el siglo I n.e. el epicúreo Filodemo aborda en sendos libros (Sobre la riqueza,
Sobre la administración del patrimonio). En ellos revisa una sólida tradición sobre el
tema que parte de Jenofonte. Vid. Tsouna 2008 y Campos Daroca 2019.
22 El estudio más completo y autorizado del pensamiento económico aristotélico
es el de Meikle 1999, pero la literatura es abundante, vid. Taboa 2016, Basáñez 1994,
1995, Crespo 1993-1994, Natali 1990, y Berthoud 1981.
23 Meikle 1999.

496
el intercambio, y la posibilidad de controlar las derivas viciosas
que surgen cuando el sentido del intercambio se altera y va más
allá de su finalidad propia, que no debería ser otra que suplir las
insuficiencias de la limitación humana. Las distinciones aristotélicas
están destinadas, diríamos que obsesivamente, a proteger una “eco-
nomía”, que podríamos llamar natural (en el sentido aristotélico), de
determinadas prácticas dedicadas a la adquisición, que se subsumen
bajo el nombre de “crematística” y que desvían la actividad de sus
fines adecuados. 24
La complejidad fascinante de estos pasajes aristotélicos reside en
el dinamismo con el que el autor procede a una distinción que se
empeña en dividir lo que a entender de mucha gente son actividades
íntimamente relacionadas e incluso una misma actividad. Y si la gente
tiende a no hacer distinciones, eso quiere decir que alguna verdad
hay en ello. Por eso los conceptos creados para la clarificación pa-
recen estar dotados de una gravitación semántica y axiológica que
hace difícil fijarlos en una distinción que debería separar lo que es
natural de lo que no lo es. El resultado es que cualquiera que lea
estos pasajes puede experimentar una confusión considerable que
las ediciones y traducciones intentan paliar con notas explicativas.
Este empeño aristotélico por domesticar la actividad adquisitiva
obedece sin duda a buenas razones. Cuando Aristóteles introduce
por primera vez la diferencia entre las dos actividades, parece no ver
problema alguno en hacerla, en virtud de la diferente naturaleza de
las artes correspondientes, práctica y productiva respectivamente. Pero
constatamos que la crematística admite diferencias importantes entre
una variedad natural, que se asocia estrechamente a la economía,25 y
una que no lo es, que es la que, en rigor, debería recibir ese nombre,
y que se distingue, de nuevo, por una perversión de medios en fines
que la hace ilimitada (Pol. 1.9, 1256b 40-41). Y cuando, más adelante,

24 Sobre los términos, vid. Descat 1988 y Natali 1990: 297-300.


25 Aristóteles reserva para esta variedad la expresión κτητική κατὰ φύσιν, Pol.
1.1256b27, cuyo recurso al intercambio produce una “riqueza verdadera” (Pol. 1.1256b30-
31) que característicamente “no es ilimitada” (Pol. 1.1256b 32).

497
Aristóteles procede de nuevo a clarificar la práctica del intercambio,
como una variedad de utilización de las cosas opuesta al uso propio
de las mismas, resulta que también deberemos en este punto hacer
un distingo entre un intercambio “natural”, que hay que acercar a
las prácticas legítimas de la economía (καπηλική), y un intercambio
no natural que recibe el desconcertante atributo de καπηλικόν. La
primera variedad, nos dice enfáticamente Aristóteles, no es una for-
ma de crematística, sino que pertenece con toda propiedad al arte
económica, 26 pero la segunda es una variedad de crematística, de la
no natural, se entiende, y de la peor especie. 27 Aristóteles subraya
de este modo la deriva de una práctica natural que contribuye a la
satisfacción de las necesidades humanas, 28 en una perversa. Esto
puede explicar la desconcertante afirmación de Aristóteles de que
la crematística proviene del intercambio natural, señalando de este
modo al mismo tiempo la continuidad y la diferencia.
En este punto del texto parece que la crematística no se opone
ya propiamente a la economía, sino a la riqueza natural (Pol. 1.9
1257b). El surgimiento de esta especie ilimitada de enriquecimiento
se explica con curioso detalle: en el curso del proceso de intercambio,
se instala una mediación que desdobla el uso de las cosas intercam-
biadas. En efecto, hay un factor que decide la suerte del proceso: la
presencia del dinero que, según Aristóteles, habría surgido con oca-
sión de la extensión de los intercambios de las cosas necesarias y la
abundancia de los excedentes intercambiados.29 Una vez disponible

26 Pol. 1.9, 1257a 5-20. Seguimos aquí la interpretación de Pellegrin 2015: 132.
Otras interpretaciones hacen decir aquí a Aristóteles que el comercio natural es parte
de la crematística, en contradicción flagrante con lo que se lee inmediatamente en
1257a 28.
27 Pol. 1.9 La traducción es controvertida. Seguimos de nuevo la propuesta de
Pellegrin 2015: 133 n. 1, en el sentido de que καπηλικόν debe atribuirse a un sintagma
del tipo εἶδος χρηματιστικῆς.
28 Como señala Meikle 1999: 25 s., en el adjetivo autarkés que describe el límite
de esta actividad debemos poner el énfasis en la segunda parte del compuesto (“bas-
tar”); por ello hay que entender que el adjetivo se refiere a una vida que se basta
con lo suficiente, y no tanto una que sea independiente.
29 Sobre la teoría aristotélica del origen de la moneda, cf. Schaps 2003.

498
este medio tan eficaz de transportar valor, sólo parece hacer falta
tiempo para que el dinero pase de ser medio a fin del intercambio,
y con ello genere su propio arte adquisitivo. La crematística es, nos
dice el autor, sobre todo asunto de dinero, produce dinero y reduce
la riqueza a este elemento, de modo que el desdoblamiento del uso
y del arte de la adquisición acaba desdoblando también la riqueza
misma en una útil y limitada frente a otra riqueza “indefinida” cuya
inutilidad es ejemplificada en la fábula del viejo rey Midas, que moría
de hambre entre sus riquezas, unas riquezas que, por consiguiente,
no merecen tal nombre.
No continuaremos la exposición de ese cambio fatal que transfor-
ma un medio en un fin que es capaz de insinuarse y transformar los
fines propios de una gran variedad de artes, junto con sus actividades
y productos, en una única práctica acumulativa de un sólo objeto.
La medicina, sometida a la mediación monetaria, se metamorfosea
y pasa, de ser un arte que persigue la promoción de la salud, a ser
uno que persigue la riqueza con ocasión de la actividad de sanar,
un arte en el que sanar es casi accidental. En el caso de las artes
productivas, Aristóteles parece avanzar una crítica a la manipulación
de los productos con obsolescencia programada. Sea como sea, lo
fundamental del análisis aristotélico de esta esfera límite de la eco-
nomía antigua está en su inconsistencia última: siendo el dinero una
invención prácticamente inevitable, que sirve a uno de los fines más
propios de la comunidad antigua, los de promover una vida buena
más allá del umbral de subsistencia, resulta, sin embargo, implicado
en una de las transformaciones más graves que pueda sufrir una
sociedad y se convierte en obstáculo para la vida buena. Aristóteles
parece señalar que hay en la moneda una deriva o inercia perversa,
pero parece pensar también que es posible hacer del mismo un uso
adecuado limitado a su papel de facilitar la comunicación de bienes.
De cualquier modo que resolvamos las dificultades de este pen-
samiento que procede como en movimiento, en su esfuerzo por
dilucidar una actividad cuyo dinamismo e inercias tienen efectos de
extraordinaria importancia en las formas de vida de las sociedades

499
sin recurrir a medidas que corten de raíz los males eliminando los
riesgos, Aristóteles continúa un movimiento cuyo impulso primero
hay que situar en algunas orientaciones del movimiento socrático que
se harán especialmente fecundas en el estoicismo de época romana.
En efecto, en torno a la figura de Sócrates y las representaciones
que proliferaron de su vida y sus palabras, la riqueza se hizo algo
más que una cuestión humana especialmente ardua, derivada de la
complicación de la vida y que requiere de especial prudencia; la
riqueza se hizo problema humano, es decir, una cuestión que debe
enfrentar quienquiera que aspire a aclararse sobre sobre el tipo de
comunidad en la que se quiere vivir, y vivir bien.

Bibliografía

Basáñez, F. (1994), “El lugar epistemológico de “lo económico” en Aristóteles. La Filosofía


de la economía de Aristóteles”, Thémata: Revista de Filosofía 12: 133-170.
Basáñez, F. (1995), “Entre la teoría económica y la economía política: estudios sobre
la Ética a Nicómaco V 5 y Política I 8-10”, Thémata: Revista de Filosofía 13: 37-72.
Bataillard, M.-Ch. (2001), “Le Socrate d’Aristote: fondateur et fossoyer de la morale”,
in G. Romeyer-Dherbey (dir.), Socrate et les socratiques. Paris: Librairie philosophique
J. Vrin, 207-226.
Berthoud, A. (1981), Aristote et l’argent, Paris: La Découverte.
Blank, D.L. (1985), “Socratics Versus Sophists on Payment for Teaching”, CA 4.1: 1-48.
Bresson, A. (2016), The Making of the Ancient Greek Economy. Institutions, Markets,
and Growth in the City-States. Princeton – Oxford: Princeton University Press.
Brock, B. (2000), “Der Barbar als Künstler – Der Künstler als Barbar“, in B. Brock – G.
Koschik (eds.), Krieg + Kunst. München: Fink, 103-21.
Burger, R. (2008), Aristotle’s Dialogue with Socrates. On the Nichomachean Ethics.
Chicago: University of Chicago Press.
Burnyeat, M. F. (2003), “Apology 30b2-4: Socrates, Money, and the Grammar of γἰγνεσθαι”,
JHSt 123: 209-234.
Calonge Ruiz, J. (1981), Apología de Sócrates, en AA.VV. Platón, Diálogos I. Madrid:
Gredos.
Campos Daroca, F. J. (2019), “Epicurus and the Epicureans on Socrates and the Socratics”,
in C. Moore (ed.), Brill’s Companion to the Reception of Socrates. Leiden: Brill, 237-65.
Cartledge, P. (2002), “The Economy (Economies) of Ancient Greece”, in W. Scheidel – S.
von Reden (eds.), The Ancient Economy. Edinburgh: Edinburgh University Press,
11-32.
Chroust, A. H. (1952), “Socrates in the Light of Aristotle’s Testimony”, New Scholasticism
26: 327-336.

500
Crespo, R. F. (1993-1994), “La concepción aristotélica de la economía”, Philosophia
57-56: 9-84.
Danzig, G. (2010), Apologizing for Socrates. How Plato and Xenophon Created our
Socrates. Lanham, MD: Lexington Books.
Deman, Th. (1942), Le témoignage d’Aristote sur Socrate. Paris: Les Belles Lettres.
Descat, R. (1988), “Aux origines de l’oikonomia grecque”, QUCC 28.1: 103-119.
Desmond, W. D. (2006), The Greek Praise of Poverty. Origins of Ancient Cynicism. Notre
Dame, Indiana: University of Notre Dame Press.
Finley, M. I. (1985, 2ª ed.), The Ancient Economy. Berkeley – Los Angeles – London:
University of California Press.
Föllinger, S. (2015), Ökonomie bei Platon. Berlin-Boston: de Gruyter.
Dorion, L. A. (2011), “The Rise and Fall of the Socratic Problem”, in Donald R. Morrison
(ed.), The Cambridge Companion to Socrates. Cambridge: Cambridge University
Press, 1-23.
Dorion, L. A. (2013), L’autre Socrate. Études sur les écrits socratiques de Xénophon.
Paris: Les Belles Lettres.
Garnsey, P. (2007), Thinking about Property: From Antiquity to the Age of Revolution.
Cambridge: Cambridge University Press.
Giannantoni, G. (1990), “Etica aristotelica ed etica socratica”, in A. Alberti (ed.), Studi
sull’etica di Aristotele. Nápoles: Bibliopolis, 303-326
Gooch, P. W. (2007), “Plato on Philosophy of Money”, Philosophy in Contemporary
World 7: 14-20.
Griffin, D. E. (1995), “Socrates Poverty: Virtue and Money in Plato’s Apology of Socrates”,
Ancient Philosophy 15: 1-16.
Helmer, É. (2010), La part du bronze. Platon et l’économie. Paris: Librairie Philosophique
J. Vrin.
Huffmann, C. A. (2011), “Aristoxenus’ Life of Socrates”, in C. A. Huffmann (ed.),
Aristoxenos of Tarentum. A Discussion. New Brunswick and London: Transaction
Publishers, 251-281.
Kahn, Ch. H. (2010), Platón y el diálogo filosófico. El uso filosófico de una forma literaria,
Madrid: Escolar y Mayo Editores.
Kronenberg, L. (2016), Allegories of Farming from Greece and Rome: Philosophical
Satire in Xenophon, Varro and Virgil. Cambridge: Cambridge University Press.
Laurenti, R. (1987), Aristotele. I frammenti dei dialoghi, 2 vols. Nápoles: L. Loffredo.
Migeotte, Leopold (2008), The Economy of the Greek Cities from the Archaic Period to
Early Roman Empire. Berkeley – Los Angeles – Londres: Univ. of California Press.
Moore, Christopher (2019), “Socrates in Aristotle’s History of Philosophy”, Brill’s
Companion to the Reception of Socrates. Leiden: Brill, 211-36
Natali, C. (1990), “Aristote et la chrématistique”, in G. Patzig (ed.), Aristoteles’ “Politik”:
Akten des XI. Symposium Aristotelicum, Friedrichshafen/Bodensee 25.8–3.9. 1987.
Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 297-324.
Pellegrin, P. (2015), Aristote. Les Politiques. Paris: Flammarion.
Rossetti, L. (1977), Aspetti della letterature socratica antica. Chietti: Università degli
Studi G. D’Annunzio.

501
Rossetti, L. (2008), “I Socratici della prima generazione: fare filosofia con i dialoghi
anziché con trattati o testi paradossali”, in Rossetti, L., Stavru, A. (eds.), Socratica
2005. Studi sulla letteratura socratica antica. Bari: Levante Editori, 39-76.
Schaps, D.M. (2003), “Socrates and the Socratics: When Wealth Became a Problem”, CW
96: 131-157.
Schaps, D.M. (2004), The Invention of Coinage and the Monetization of Ancient Greece.
Ann Arbor: The University of Michigan Press.
Schriefl, A. (2013), Platons Kritik an Geld und Reichtum. Berlin-Boston: De Gruyter.
Taboa, A. (2016), “Les métamorphoses de la richesse: économie et chrématisique chez
Aristote”, in H. Helmer (ed.), Richesse et pauvreté chez les philosophes de l’antiquité,
Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 251-274.
Taylor, J. H. (1973), “Virtue and Wealth according to Socrates (Apol. 30 b)”, Classical
Bulletin 49: 49-52.
Tessitore, A. (1988), “Aristotle’s Political Presentation of Socrates in the Nichomachean
Ethics”, Interpretation 16: 3-22.
Tsouna, V. (2008), The Ethics of Philodemus. Cambridge: Cambridge University Press.
Vlastos, G. (1991), Socrates. Ironist and Moral Philosopher. Cambridge: Cambridge
University Press.
Von Reden, S. (2015), Antike Wirtschaft. Berlin-Boston: De Gruyter.

502
Um Ângulo Morto da Memória?
Maine de Biran sobre a Reminiscência,
a M e m ó r i a e o s s e u s F a n ta s m a s *

A M e m o ry ’ s D e a d A n g l e ? M a i n e d e B i r a n
o n R e m i n i s c e n c e , M e m o ry a n d I t s G h o s t s

Luís António Umbelino 1


Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-5242-4863
lumbelino@fl.uc.pt

Resumo: O principal objetivo do presente trabalho é o de analisar a


conceção de memória proposta por Maine de Biran nos seus textos.
Tal conceptualização tem duas faces: uma obriga-nos a olhar para
a delimitação da “interioridade consciente”, para o começo do eu
apercetivo sem o qual, em rigor, nada se poderia afirmar recordado;
a outra projeta o olhar para as regiões insólitas de uma espécie de
memória fantasmagórica que, paradoxalmente, obriga a contemplar
a face perturbadora e inconsciente da recapitulação de uma vida
anónima em mim sem mim.

Palavras-chave: Maine de Biran, Memória, Eu, Afetividade

* Este trabalho retoma e intenta aprofundar teses primeiro esboçadas em Luís


António Umbelino, “It is not the brain that remembers. Notes on Maine de Biran’s
analysis of memory”, in Filipe Martins, Memory and Aesthetic Experience (Porto:
FLUP, 2020).
1 Proyeto de Investigation “Fenomenología del cuerpo y análisis del dolor II” (FFI
2017-82272-P – Espanha.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_22
Abstract: This paper aims to meditate on the conception of memory
proposed by Maine de Biran. Such conceptualization has two faces:
one forces us to look at the delimitation of “conscious interiority”,
at the problem of the “beginning of the apperceptive self” without
which, strictly speaking, nothing could be said to be remembered;
the other, forces us to contemplate the unusual regions of a kind of
ghostly memory that, paradoxically, seems to be rooted in a kind of
disturbing and unconscious anonymous life that remembers itself in
me without me.

Keywords: Maine de Biran, Memory, Self, Affectivity

1. Preâmbulo

A análise biraniana da memória pode ser compreendida como a


explicitação da seguinte afirmação: “não é o cérebro que recorda,
sou eu”. O interesse da abordagem de Maine de Biran será, pois,
o de fornecer uma descrição – que permanece relevante e atual – da
experiência da memória a partir de uma perspetiva da primeira pessoa,
ou seja, na expressão de Biran, a partir de um ponto de vista interior.
Nesta ocasião gostaria de argumentar que tal descrição tem duas
faces, como Jano: uma delas faz-nos olhar para a delimitação bira-
niana da interioridade consciente, para o começo do eu apercetivo
sem o qual, em rigor, nada se poderia afirmar recordado; a outra
face projeta o olhar para as regiões insólitas de uma espécie de
memória fantasmagórica que, paradoxalmente, obriga a contemplar
a face perturbadora e inconsciente da recapitulação de uma vida
anónima em mim sem mim.

2. Repito-me, logo sou: a reminiscência como fundamento da


memória

Consideremos a primeira face do problema, que pode ser intro-


duzida pela seguinte tese orientadora: nada pode ser dito recordado

504
se não comportar, concomitantemente, a continuidade daquele que
recorda. A ideia é simples na sua formulação, mas complexa nas suas
implicações: a afirmação “eu recordo” implica supor como condição
de possibilidade da memória a permanência do “eu” que “se sabe a
recordar”; mas o que tal significa não é evidente e apenas pode ser
abordado no final de uma consideração arquitetónica do estado de
conscium ou compos sui. No contexto do biranismo, tal equivale a
considerar a célebre teoria do esforço apercetivo que corresponde à
descoberta das condições concretas do momento ontogenético do eu2.
A teoria do esforço permanece, porventura, o aspeto mais conhe-
cido da filosofia de Maine de Biran, pelo que não será necessário
determo-nos muito na sua explanação. Ainda assim, importa esclarecer
o que significa afirmar que o eu3 nasce da relação de esforço. Biran
di-lo da seguinte forma: o eu “identificar-se-á completamente com
o sentimento primitivo da nossa existência individual na conceção
reflexiva de uma força que apenas se torna viva ou consciente dela
própria pelo seu desenrolar atual sobre o seu termo de aplicação
apropriado” 4, sendo este termo um corpo interiormente “resisten-
te ou inerte”5 – um corpo próprio. No esforço, modo “real e não um
puro conceito abstrato”6, acontece, então, o reconhecimento primitivo
da individualidade por ela própria (reconhecimento esse que não é
senão o próprio facto de consciência) como princípio de uma força
viva7 ligada a um corpo (distinto, mas não separado) interiormente
apropriado. Neste sentido, pode afirmar-se que é com o esforço

2 Biran 1996: 621: «Je crois prouver que dans l’origine de la vie, lorsque la sen-
sibilité est encore seule en exercice, il y a des affections ou des intuitions simples
sans moi ou sans personnalité individuelle: ce moi a donc une origine; je la cherche
hors des premières sensations et je la trouve dans un premier effort voulu.»
3 Biran 1986: 102. Cf., num mesmo sentido, Biran 2001: 123. «Le sens interne
de l’effort ne peut au contraire être mis en jeu que par cette force intérieure et sui
generis que nous appelons volonté avec laquelle s’identifie complètement ce que
nous appelons notre moi »
4 Biran 1986: 125.
5 Biran 2001: 9
6 Biran 1986: 12.
7 Cf. Biran 1996: 391, passim.

505
apercetivo que se inicia a vida de consciência na qual “tudo se re-
porta a uma pessoa que quer, age, julga o resultado dos seus atos,
distingue, por contraste, os modos forçados da sensibilidade passiva
daqueles que produz voluntariamente (…)” 8 e, ainda, igualmente
inscreve tais modos voluntários no tempo esboçando uma ordem de
sucessão ou trama temporal que determina um antes e um depois.
Eis o ponto fulcral para o tema que aqui nos ocupa.
Tal inscrição sucessiva de modos voluntários (de atos) no tempo
corresponde, antes de mais, a uma repetição: trata-se, de facto, de
uma inscrição consecutiva. Mas tal inscrição repetitiva não é nunca
uma mera pontualidade atomizada de momentos sem ligação, caso em
que não poderia afirmar-se ser uma sucessão “na qual se reconhece
um antes e um depois”. É forçoso que eu reconheça ter efetuado algo
ontem, antes de ter realizado algo depois. A questão da memória é,
precisamente, a de saber como tal é possível: como “sei” que os ato
realizados sucessivamente são sempre os “meus”?
Coerente com a sua teoria do esforço, Biran começa por responder
o seguinte: cada modo pontual “produzido voluntariamente” atualiza
reiteradamente a mesma relação primitiva de esforço. Cada um dos
nossos atos inscreve-se no tempo porque corresponde “ao exercício
da mesma força” sobre o mesmo corpo apropriado – ou seja, cada
um dos nossos modos “voluntários” da “mesma força” supõe a pre-
sença continuada da própria relação de esforço apercetivo. É essa
repetição continuada que torna possível a memória ou a recordação
propriamente dita 9.
Uma primeira tese biraniana sobre a memória encontra-se estabe-
lecida. Podemos resumi-la do seguinte modo: (a) repetir é “inaugurar
uma história, inscrever atos sucessivos no tempo, na trama da nossa
existência e ser capaz de os determinar como passados e presentes”10;
(b) tal determinação implica que os atos ou modos voluntários sejam

8 Biran 1996: 138.


9 Cf. Biran 2001: 9.
10 Devarieux 2009: 41.

506
percebidos como “meus”, o que acarreta a circunstância desse “pas-
sado e presente” dos “meus” atos ser acompanhado forçosamente
pelo reconhecimento originário do próprio ato primitivo do esforço
que funda o eu apercetivo; (c) o mesmo é dizer que me recordo de
ter feito algo no reconhecimento implícito, originário e reiterado do
próprio ato da consciência de si.
Uma precisão deve ser aqui feita: quando se afirma tal reconheci-
mento reiterado da consciência de si ou do eu apercetivo do esforço
não se pretende, de modo algum, sugerir que se recordaria apenso a
cada ação concreta do passado uma espécie de imagem ou represen-
tação de um “eu” que seria mais uma “coisa” a recordar; ao contrário,
do que se trata é do reconhecimento reiterado de um ato (o ato que
sou, o ato do esforço apercetivo) em ato. A este “reconhecimento”11
repetido do eu apercetivo Maine de Biran chama reminiscência e
esclarece-a nestes termos:

Apenas pelo ato ser repetido voluntariamente, a força executora


reconhece-se a mesma na segunda determinação, e é impossível
separar aqui o sentimento de reconhecimento ou de reminiscência
do esforço livremente renovado, porque esta renovação o supõe 12 .

Este é um aspeto decisivo: a reminiscência do esforço sustenta


a inscrição das ações num tempo porque permite dizer de um dado
modo produzido voluntariamente que é uma “segunda determina-
ção” e não a mesma. Não ter memória, neste sentido, significaria
não ter a reminiscência do esforço que permite sequenciar os atos
realizados. Sem a reminiscência não haveria memória, pois cada ato
seria sempre um e o mesmo. A chave está, portanto, na “segunda
determinação”. Recordar é dizer dois sobre a renovação do esforço,
isto é, sobre o reconhecimento renovado da própria presença de si
(do eu apercetivo) em cada efetuação voluntária. A repetição é me-

11 Biran 1986: 157.


12 Biran 1986: 157.

507
mória; mas repetir é recordar apenas porque a memória se funda, em
cada uma das suas determinações voluntárias, na reminiscência do
fundo ativo do eu apercetivo. É a relação de esforço que, portanto,
enquanto princípio comum a cada ato realizado, permite compreender
tais atos como tendo sido e, do mesmo modo, permite recordá-los
numa trama temporal. É isto que significa, no fundo, a ideia de que
a memória “é duração medida, distinta da reminiscência que a torna
possível” 13: a memória mede a sucessão na duração incomensurável
da continuidade de si que é reminiscência do esforço. Também aqui
encontramos um aspeto fulcral da análise, que Biran resume nos
seguintes termos essenciais:

A memória ou a recordação de qualquer modo ativo compre-


ende essencialmente a reminiscência, que distingue apenas uma
segunda determinação de uma primeira, e (…) esta reminiscência
não é senão a personalidade (a aperceção ou o sentimento do eu)
inerente ao primeiro desenvolvimento da força sobre a resistência
orgânica, continuada no desenvolvimento sempre efetuado pelo
mesmo princípio, e seguindo as mesmas condições 14 .

O argumento de Biran é interessante e provocador. Importa ex-


plicitá-lo: (a) a memória inscreve atos numa trama temporal porque
é uma faculdade ativa; (b) sendo uma faculdade ativa, dela participa
continuadamente a estrutura do esforço apercetivo, que é a própria
condição originária de possibilidade do que, em nós, é ativo – ou
seja, de tudo o que em nós é o que é porque tem a participação do eu
apercetivo; (c) deste modo, o que faz com que a inscrição de atos
na trama temporal seja “memória” e não apenas a repetição de uma
simples descontinuidade pontual será, precisamente, a possibilida-

13 Devarieux 2009: 43. Tal tempo, poderia ainda acrescentar-se aqui, será, por
essa mesma circunstância, um tempo subjetivo em sentido forte: sendo “memorável”,
é “meu”; e sendo “meu” comporta, com a “minha” finitude, o próprio fim do tempo.
14 Biran 1986: 158.

508
de de ordenar os atos segundo um antes e um depois; (d) ora, tal
possibilidade reclama, para existir, que algo permaneça o mesmo
em cada ato pontual; (e) esse mesmo, enfim, é a própria relação de
esforço, o próprio estado de conscium sui – o próprio eu. Em suma,
a memória depende, em derradeira análise, da presença continu-
ada da reminiscência, que não é a memória, mas a personalidade
(a aperceção ou o sentimento do eu) inerente ao primeiro desenvol-
vimento da mesma força sobre a mesma continuidade de resistência
orgânica interiorizada.

2.1. Exerço-me logo recordo: o tempo da memória

Se posso recordar um “qualquer ato voluntariamente repetido”


como tendo sido, no passado, realizado por mim antes ou depois de
um outro, é porque “qualquer ato” voluntário implica a reminiscên-
cia da relação de esforço (do eu apercetivo, portanto). Não se trata
aqui, pois, de considerar a memória como função de uma “consci-
ência” representativa (ou re-apresentativa) do passado. O estado de
conscium ou compos sui, em termos biraniano, “nasce” do esforço: é,
portanto, uma relação, um ato, uma unidade dual que corresponde
ao sentimento continuado de si. Compreende-se assim que Biran
nomeie a reminiscência inerente ao ato voluntariamente repetido
como “reminiscência pessoal ou refletida porque é desse modo que
somos capazes de reconhecer a identidade própria do nosso ser ou
de aperceber a nossa existência continuada” 15.
Dir-se-ia que o essencial é, neste ponto, o seguinte: a consciência
de si no tempo continua-se nos nossos atos e a história da nossa
identidade pessoal só é uma sucessão porque sustentada pelo con-
tínuo assegurado pela reminiscência inerente ao esforço apercetivo.
É esta a garantia de que um ato realizado por mim no passado seja

15 Biran 1986: 158-159.

509
tão rigorosamente meu como um ato exerço no presente16. Mas não
se dará o caso de tal garantia poder ser frustrada pelas interrupções
que, com toda a evidência, a assolam regularmente?
Esta é uma dificuldade importante: o ponto crucial da primeira
face de Jano da memória que temos vindo a considerar é o facto de
a reminiscência do esforço primitivo fundar a duração da existência
pessoal e, assim, igualmente a memória, como uma espécie de redo-
bramento temporal da continuidade das condições de possibilidade do
eu apercetivo (as condições da relação de esforço); ora, para que tal
assim ocorra é necessário que a relação de esforço não seja apenas
uma pontualidade, mas ela própria uma continuidade. Mas como se
poderá sustentar que a relação de esforço apercetivo seja uma con-
tinuidade se, com toda a evidência, a respetiva vigência parece ser
regularmente assolada por circunstâncias que a dissolvem, a quebram,
a desfazem? Com efeito, não parece fácil argumentar que estamos
continuamente conscientes de nós próprios… O exemplo preferido
de Biran para ilustrar esta circunstância é o caso do sono. Durante
o sono, o regime do esforço não existe. Dito de outro modo, o eu
apercetivo suspende-se, algo que se confirma na evidente incapaci-
dade em que nos encontramos de exercer qualquer tipo de controlo
sobre as imagens do sonho. O que acontece quando acordamos, no
entanto, é que a linha do esforço está sempre imediatamente presente.
A verdade é que o eu não se desfaz por ação do sono normal. Pelo
contrário, o eu retoma-se como se, na verdade, tivesse permanecido
sem quebras.
Para Biran, esta é uma circunstância decisiva, que se pode explicar
nos seguintes termos: durante o sono, a ausência do eu é simulta-

16 Devarieux 2009: 42. Veja-se igualmente Devarieux 2004: 72-73 Ante esta perspe-
tiva biraniana, poderia argumentar-se criticamente com o caso das “memórias” – que
todos “temos” – de atos realizados por outros e que “fazemos nossos”, sem os termos
efetivamente vivido, ao contá-los como parte do “nosso próprio passado”. Mas mesmo
neste caso de embelezamento do passado (que Biran não comtempla) a tese biraniana
resistiria: quando passa a fazer parte da trama de sucessão das minhas memórias,
mesmo um ato que não vivi concretamente se torna efetivamente “meu” – e se torna
tão real no passado como outra ação qualquer realizada por mim no presente, ainda
e sempre, sobre a reminiscência do esforço apercetivo.

510
neamente ausência do tempo do eu; retomada a relação de esforço,
o tempo do eu retoma-se igualmente, um e outro experimentados
sem quebras porque a consciência de si e o tempo de si são apreen-
sões idênticas e simultâneas. O eu apercetivo, portanto, exerce-se no
presente do tempo que ele próprio inaugura e é nessa medida que
persevera idêntico em cada uma das suas determinações pontuais
repetidas17. É a relação de esforço, portanto, que contém o princípio
da sucessão na continuidade. Mas como exatamente?
A resposta de Biran é, também aqui, particularmente interessan-
te e fértil: o eu não se esquece de si (nomeadamente durante as
interrupções do sono) porque é uma relação ativa que implica a
continuidade de resistência interiorizada de um corpo apropriado.
A proposta é tão curiosa quanto certeira: o eu não se perde de
si porque – digamo-lo assim – não pode olvidar a sua corporeidade
constitutiva, aquela que “aparece” (sem imagem) na própria relação
de esforço como continuidade de resistência interiorizada. Podemos
dizer o mesmo de outro modo: (a) a repetição permite a recordação;
(b) a recordação depende da reminiscência que reatualiza continu-
adamente a relação de esforço; (c) a relação de esforço depende da
continuidade de resistência interiorizada de um corpo que consiste
continuamente. Trata-se de uma tese poderosa. Biran argumenta
que é por implicar o modo de presença de um corpo que oferece à
força da vontade um plano continuado de consistência interioriza-
da, que a relação de esforço primitiva contém o próprio começo da
sucessão dos atos realizados e, portanto, do tempo. O tempo que
se experiencia como trama temporal é, assim, um tempo do corpo.
Melhor: o tempo da memória é o tempo do corpo, porque o tempo
da reminiscência é o tempo da consistência continuada do corpo

17 Talvez o caso da “queda na loucura” seja aquele em que não se acorda do


sono. Biran sanciona esta possibilidade: o aniquilamento do eu apercetivo representa,
nessa circunstância trágica da “loucura completa”, simultaneamente o desaparecimento
do tempo da sucessão ou da memória pessoal. Perdida a certeza de si, extravia-se
o fundamento durável do tempo da existência que depende da reminiscência do eu
apercetivo. Seja como for, o caso normal será o da continuidade do esforço.

511
que nunca se esquece. No fundo, é a consistência do corpo que ex-
plica a circunstância do sono não interromper a continuidade do eu
apercetivo. Ou seja, é por ser corpo que a questão da duração do
eu apercetivo não me tira o sono.

3. A face noturna da reminiscência e o duplo da memória

Antes do esforço não há tempo humano18. Significa isto que “é em


vão que procuraríamos em Biran algo como uma memória afetiva” 19?
À partida assim é, pois, toda a reflexão biranaiana do tema da
memória, como vimos, parece organizar-se a partir de uma distinção
– decisiva para o biranismo – entre o que é ativo e o que é passivo
no homem. A memória, como vimos, é “colocada” por Biran do lado
do “ativo”, porque dela participa forçosamente a reminiscência do
esforço apercetivo. Sem esta condição, o sentimento de algo presente
não existiria e, por consequência, nada poderia ser afirmado temporal.
A esta linha da “existência continuada” ou da reminiscência de
si, contrapõem-se, em linguagem biraniana, a vida afetiva formada
pelas séries impessoais de imagens e modificações sensitivas que
renascem espontaneamente em nós sem nós condicionando a variação
do humor, o temperamento e, de um modo geral, o modo como senti-
mos a existência. A vida afetiva, formada pela conjugação anónima de
afeções puras e de intuições selvagens, funda raízes nas leis próprias
da “organização” e corresponde a um plano impessoal, inconsciente
da existência. Em linguagem biraniana o plano da vida afetiva é
vazio de eu, esquiva-se à reflexão “pela sua própria intimidade”20
e corresponde a uma espécie de fluxo de matéria sensitiva que

18 A ideia, em termos biranianos, é a seguinte: antes do esforço não existe sujei-


to consciente; e sem este nada pode ser dito conhecido ou experienciado. Sendo a
realidade do tempo humano algo de experienciável por alguém consciente de si, sem
esforço esse tempo experienciável não existe.
19 Devarieux 2009: 45.
20 Biran 1984: 29.

512
parece determinar o sentimento de existência como uma espécie de
fatum do corpo. Tal fluxo caracteriza-se por não ter as “formas” de
causalidade subjetiva (a consciência é incapaz de controlar as res-
petivas origens e combinações fortuitas da vida afetiva), de espaço
(é-nos impossível localizar uma afeção pura no espaço interior do
corpo) e de tempo (vazias de eu, são igualmente vazias de tempo
do eu apercetivo). Ora, assim entendida, a vida afetiva nunca é, em
si mesma, uma recordação 21 para nós que a sofremos. Eis o que
Biran argumenta a este propósito: se o plano da afetividade opera
em mim sem mim como o império inusitado e selvagem de um fa-
tum do corpo da “organização”, se é, deste modo, um plano passivo
e involuntário do nosso existir, se é “vazio de eu” ou de sujeito de
reminiscência 22, então as conjugações, leis e reverberações da vida
afetiva são sofridas, mas nunca, em si mesmas, recordadas. Algo de
diferente será afirmar que recordamos ter sido afetados. Mas neste
caso, argumenta Biran, não é a afeção que se recorda, na medida
em que o eu não a pode repetir sobre o fundo da reminiscência
pessoal; recorda-se ou o resultado de um ato, ou uma modificação
passiva que o eu consegue atribuir, pelo esforço, a dado “ponto” do
“espaço interior” do corpo. Dito de outro modo: não posso recordar
a afeção que provoca um mal-estar determinado; apenas recordo a
modificação passiva sofrida por tal afeção como tendo começado,
por exemplo, no estômago. Em termos biranianos diremos, então,
que é ainda a reminiscência pessoal que funda a reminiscência dita
modal23.
Deste ponto de vista, pois, o assunto de uma “memória afetiva”
parece claro. Mas talvez haja algo mais a considerar (ao mesmo tem-
po com Biran e para lá de Biran) sobre este ponto do debate. Eis

21 Cf. Biran 2001: 223: «(…) Toutes les traces d’impressions ne sont pas des
souvenirs (…).»
22 Biran 2001: 225. « Nous retrouvons des traces de ces affections étrangères à
la conscience dans certains états singuliers où nous nous surprenons quelquefois
pendant la veille, et qui ne nous affectent ni comme tout à fait nouveaux, ni comme
occupant une place dans notre souvenir ».
23 Cf. Biran 1986: 159.

513
uma possibilidade: mesmo aceitando que o jogo das afeções não é
recordação, não se dará o caso de ser ainda uma espécie de duplo
fantasmagórico da memória?
Na impossibilidade de uma exposição completa do que aqui está
em questão, limitar-me-ei a formular os termos em que entendo
esta hipótese de análise. Um primeiro elemento a considerar julgo
ser o seguinte: a teoria biraniana da afetividade mostra-nos que a
corporeidade é, na verdade, uma espécie de estratificação complexa
de vários “corpos”. Não somos apenas um corpo próprio, esse corpo
interiormente consistente do esforço que é um elemento constitutivo
do próprio fato de consciência; somos também um corpo afetivo,
anónimo, um corpo que resiste a resistir na relação de esforço. Um
tal corpo, que melhor seria dito o emblema de um inconsciente so-
mático a operar em nós sem nós, cruza constantemente o plano do
conscium sui e perturba-o. O corpo afetivo é um corpo rítmico que
faz oscilar o humor, que determina as tonalidades afetivas através das
quais percebemos o mundo e os outros, que pode alucinar, descon-
centrar, agitar, desassossegar – e, no limite, enlouquecer-nos. Assim,
pode dizer-se que somos o corpo que faz nascer o eu apercetivo,
mas também o corpo que pode aniquilar a relação de esforço. Ora,
esse corpo noturno sem eu, esse corpo das afeções não sendo, em
si mesmo, recordado, parece-me que não pode deixar de ser uma
espécie de plano sedimentado de uma memória-fantasma do passado
de mim sem mim.
Duas circunstâncias autorizam esta possibilidade de reflexão: a
primeira é o facto de tal corpo afetivo ser, na ordem da existência
(na ordem da consciência de si é o corpo do esforço a evidência
primitiva do corpo), “anterior” ao corpo do esforço. Devemos for-
mular este ponto de modo mais explícito: na ordem cronológica
da vida de cada um de nós, como Biran nota em vários momentos,
há todo um período inicial durante o qual vivemos sem saber que
vivemos – vivit et est vitae nescius ipsae suae 24. É o tempo da nossa

24 Biran 1989: 6.

514
vida em que, digamos assim, vivemos sem termos consciência de
nós, reduzidos, portanto, ao padecimento das oscilações de uma
sensibilidade afetivo-intuitiva. Ora – segundo elemento decisivo –
não se pode negar que tal plano da sensibilidade afetivo-intuitiva,
que marca os primeiros tempos da nossa existência, deixa “atrás de
si vestígios que influem à sua maneira sobre a existência inteira” 25
como marcas de atrações ou repugnâncias, apetites ou necessida-
des, tendências, simpatias, necessidades, disposições, perturbações,
ansiedades, etc. 26. Essa nossa “primeira realidade” afetivo-intuitiva,
de facto, não desaparece quando o esforço apercetivo se constitui,
permanecendo operante ao longo de todo o tempo da nossa vida:
aquele que sente ou sofre a existência será, pois, o mesmo que a
procurará pensar 27; aquele que pensa continuará a ser aquele que
vive e, por essa razão, permanecerá exposto às variações qualitativas
de um fundo vital anónimo que se iniciou num passado impossível
para o eu apercetivo (precede o seu nascimento e, portanto, não é
nunca “recordação”), mas que não cessará recorrentemente de atra-
vessar o estado de conscium sui com a ameaça de lhe substituir um
estado de alienus sui.
A ser verdade o que fica dito, poderia argumentar-se que somos
afetados ao longo do tempo da nossa existência por um tempo
anterior ao tempo do eu, do qual apenas o corpo afetivo parece de-
ter o segredo e os sedimentos. Tal tempo anterior ao eu configura
um passado impossível e estranho, pois o surgimento do plano do
esforço apercetivo, primitivo na ordem do conhecimento, suporia
a ultrapassagem de tal tempo em que se vive sem se saber que se
vive. Mas o fundo afetivo-intuitivo de tal vida anónima anterior ao
esforço perdura. Sabemo-lo porque as potências afetivas continuam

25 Biran 2001: 224.


26 Biran 1986: 91. Veja-se também, por exemplo, Biran 1984: 30.
27 Esta é uma questão pertinente, mesmo quando se procede a distinções impor-
tantes no núcleo da sensibilidade afetiva entre afeções particulares e intuições. Cf.
Biran 1984: 12-13; Biran 2001: 215 e ss. Pode consultar-se a este propósito, com
proveito, Azouvi 1995: 272 ss.

515
a atravessar o plano da consciência 28 e a fazê-lo oscilar com todas
as perturbações que alinhamos com estados em que a vigência do
eu apercetivo se liquefaz, se dissolve, se quebra. É, pois, fantasmago-
ricamente que se sofre o regime de uma vida em nós sem nós que,
por um lado, parece chegar de um passado impossível e, por outro,
se mantém presente no presente como notícia inquietante do que, em
mim, mesmo depois do nascimento da consciência de si, permanece
desta última o ângulo morto. Tal passado impossível é, na verdade,
ainda o presente anónimo de um corpo antigo, de um corpo mais
velho do que o corpo próprio que, se não se recorda, pelo menos
atesta que os seus fantasmas são memoráveis.

Bibliografia

Azouvi, F. (1995) Maine de Biran. La science de l’homme. Paris: Vrin.


Biran, M. de (1984), Discours à la société médicale de Bergerac, in ID Œuvres de Maine
de Biran, t. V. Paris: Vrin.
Biran, M. de (1986), Mémoire sur la décomposition de la pensée, in ID Œuvres de Maine
de Biran, t. III. Paris: Vrin.
Biran, M. de (1989), Dernière philosophie: existence et anthropologie, in ID Œuvres de
Maine de Biran, t. X-2. Paris: Vrin.
Biran, M. de (1996), Correspondance philosophique (1805-1824) in ID, Œuvres de Maine
de Biran, t. XIII-3. Paris: Vrin.
Biran, M. de (2001) Essai sur les fondements de la psychologie, in ID Œuvres de Maine
de Biran, t. VII-1. Paris: Vrin.
Devarieux, A. (2004), Maine de Biran. L’individualité persévérante. Grenoble: Million.
Devarieux, A. (2009), “Maine de Biran: mémoire et intériorité», in Questions de style, 6.

28 Biran 1984: 32. Sabemo-los sob a forma de atrações ou repugnâncias inexplicá-


veis em relação a lugares, pessoas ou objetos, sob a forma de apetites ou necessidades
sem porquê, sob a forma de tendências, simpatias, necessidades e disposições que o
plano da consciência de si não controla, sob a forma de alucinações várias, de descon-
centrações incontroláveis, de pequenas e grandes loucuras. O fluxo afetivo antecede o
tempo da consciência. É, neste sentido, um “passado imemorial” que nos acompanha
permanentemente sem implicar qualquer repetição, no presente, de uma presença
que foi. Falta-lhe, é certo, a presença da reminiscência e caracteriza-o a “nulidade
de recordação”; mas prolonga-se ao longo do tempo da existência: “velhos hábitos”
desenvolvem-se “com a energia de uma primeira natureza” do nosso temperamento
que se manterá presente no presente sem índice de passado.

516
CULTURA
(Página deixada propositadamente em branco)
F e s ta e B a n q u e t e :
a f ó r m u l a u g a r í t i c a d e a ss e m b l e i a
dos deuses

Feast And Banquet: The Ugaritic Formula


f o r t h e A ss e m b ly o f t h e G o d s

José Augusto Ramos


Univ. Lisboa, CH-UL
ORCID: 0000-0002-3247-2163
joseramos@letras.ulisboa.pt

Resumo: A festa e o banquete sobressaem nas literaturas pré-clássicas


como um momento privilegiado do ponto de vista social, antropológico
e simbólico. Porém, na literatura mítico-teatral do Ciclo de Ba‘al em
Ugarit, este tópico aparece com tanta frequência e assume tal expres-
sividade e estratégia narrativa que se torna uma autêntica fórmula
para designar a assembleia dos deuses. E, para além de fórmula de
reunião, funciona como metáfora para uma definição das divindades
e da sua relação com o universo dos humanos.

Palavras-chave: festa, banquete, Ba‘al, assembleia, deuses, homens,


universo

Abstract: The feast and banquet stand out in pre-classical literature as


a privileged moment from the social, anthropological and symbolic
point of view. However, in the mythical-theatrical literature of the
Ba’al Cycle in Ugarit, this topic appears so often and assumes such
expressiveness and narrative strategy that it becomes an authentic

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_23
formula to designate the assembly of the gods. And, in addition to the
meeting formula, it serves as a metaphor for a definition of deities
and their relationship with the universe of humans.

Keywords: feast, banquet, Ba’al, assembly, gods, men, universe

O ciclo de Ba‘al é o conjunto literário mais destacado de entre


os textos que, há quase um século, foram descobertos numa cidade
de modelo civilizacional proto-fenício da costa síria no Mediterrâneo
oriental, tendo sido rapidamente decifrados1. O seu nome arqueológico
moderno é Ras Shamra, mas os textos da cidade-estado revelaram
o seu nome antigo de Ugarit 2. Com eles se conservou a mais an-
tiga literatura na escrita alfabética, elaborada na costa oriental do
Mediterrâneo, combinando lógicas e recursos herdados tanto do Egito
como da Mesopotâmia. Trata-se de uma narrativa de teor mítico e de
estilo épico e dinâmica teatral, que dá indícios de ser das produções
mais arcaicas desta literatura, quer o texto conservado nas tabuinhas
de argila seja uma cópia ou uma composição original 3.
Este ciclo desenvolve-se em três etapas, como se fossem três atos
de uma sequência teatral, expondo a concorrência e a luta pelo
poder de governar o mundo com que se confronta o deus semítico
ocidental da meteorologia, Haddu, conhecido na Mesopotâmia como
Hadad. Neste ciclo é ele o candidato natural reconhecido e apto para
assumir esse poder. Por isso é sempre designado com um nome que
enuncia e personifica o caráter natural da sua candidatura. Por isso

1 Um resumo de questões tanto de introdução como de síntese sobre a língua e


cultura de Ugarit e do seu enquadramento no mundo cultural de Canaã pode ver-se
em Rin; Rin 1996: IXss.
2 A tarefa de decifração do alfabeto cuneiforme de Ugarit foi rápida, mas foi
lenta e experimental a organização dos materiais epigráficos. Citaremos assim os tex-
tos segundo a edição KTU, que foi organizada na linha do CTA de A. Herdner. Para
facilitar a tarefa do leitor, referimos as duas traduções mais reconhecidas.
3 Cf. Dietrich & Loretz 2019: 1091. O colofão autoral no fim da última tabuinha
do ciclo de Ba‘al (KTU 1.6 VI 54-58), apesar da solenidade do texto, pode significar
uma autoria do original ou uma autoria técnica da cópia, pois ambas as instâncias
eram consideradas importantes.

520
aparece sempre designado com o nome funcional que corresponde
ao seu papel de herói vencedor e organizador. Este nome é Ba‘al, um
título que significa “Senhor”, conceito de soberania caraterístico do
semítico da costa mediterrânica. Aliás, este título de Senhor acabou
por se tornar a designação principal de Deus na tradição hebraica,
quer com o próprio epíteto de ba‘al quer com o seu sinónimo ’adon
ou ’adonay. Assim veio a substituir completamente o antigo nome
de Javé, na tradição judaica. A tradução grega da Bíblia, a partir do
século III, a.C., generalizou o título de Kyrios e daqui deriva o título
de Dominus, Senhor, que as traduções da Bíblia em grego e poste-
riormente em latim transformaram na designação oficial de Deus.
A imagética de Ba‘al contribuiu, com este processo histórico de epis-
temologia das definições da divindade, para criar, em paralelo com
o nome genérico de Deus, o seu equivalente funcional de Senhor
como uma das suas definições mais relevantes.
Contra este candidato natural, apresenta-se um candidato externo
ao ciclo do panteão. É o mar, que ao longo deste ciclo é tratado pelo
termo ugarítico mais comum para designar o mar: Yamu. Este vem
apoiado e quase pré-escolhido com altos patrocínios dentro do próprio
panteão. Acentuando a tensão dialética que impregna já o tema em
si mesmo, o próprio deus Ilu, que preside à assembleia dos deuses
do panteão de Canaã, se tinha já pronunciado em favor deste outro
candidato, com uma declaração no sentido de excluir Ba‘al que se
tinha tornado para ele persona non grata, pois não gostava do seu
modo de governar 4. E é de sublinhar de imediato a originalidade
estilística da mitografia de Ugarit que escolhe para este anti-herói
mítico a designação mais comum de mar e não o seu equivalente
mais erudito e mais simbólico. Este seria o termo Tehom, que na
Bíblia, uma literatura que tem muitas das suas raízes profundas na
mesma base cultural, é usado de preferência para as semânticas de
cariz mais mitológico ou simbólico relativas ao mar 5.

4 KTU 1.1 IV 13-26.


5 Cf. Waschka 2020: 563-571.

521
Na Mesopotâmia, a epopeia de criação, que leva como título as
palavras iniciais do seu primeiro verso, Enuma eliš, e que parece
reproduzir dados cuja origem se pode situar igualmente na Síria me-
diterrânica, confirma a opção lexical da Bíblia, dando à sua heroína,
opositora do deus criador Marduk, o nome de Tihamat 6, que não é
senão a forma feminina do mesmo Tehom 7. De qualquer modo, por
razões que ficarão implícitas no seu universo linguístico-cultural, em
Ugarit optaram por uma terminologia que parece ser a mais corrente
para designar a figura mítica do adversário de Ba‘al.
Trata-se de uma mitologia ou antes de uma mitografia destinada
ao consumo cultural no âmbito de uma cidade. Entretanto, o tema
sobre o qual versa a epopeia é saber quem há de assumir a função
transcendente de governar e cuidar do mundo, promovendo criati-
vidade e fertilidade. A tarefa é transcendente, pois diz respeito a
coisas que são do interesse dos homens, da cidade e do mundo,
e até mesmo dos deuses. Com efeito, o destino e bem-estar de todos,
homens e deuses, depende igualmente do bom governo do mundo.
Há que dizer que esta presidência de governação é função de um
executivo divino específico. A sua atribuição não é arbitrária e não
coincide sequer com a função do deus supremo do panteão, a quem
compete presidir e recolher as decisões emanadas da assembleia dos
deuses. O estatuto do deus supremo representa uma outra dimensão
de transcendência. A função deste deus mordomo, mesmo tendo de
cuidar e garantir o bom estado do mundo inteiro, é diferente da do
chefe do panteão. Porém, essa função compromete-o pessoalmente,
mesmo ao nível simbólico, com a mística, a grandeza e as fragili-
dades que são inerentes àquela função. Ele governa e personifica o
ritmo do mundo.

6 Cf. Bottero 1989: 602-679.


7 É intrigante ver que a resistência à intervenção de Marduk seja personificada
numa figura feminina. Esta adversária era, na verdade, a mãe universal e assim poderia
representar a resistência a uma nova ordem eventualmente conotada com o masculino,
mesmo que esse novo poder esteja na linhagem do simpático deus Ea, continuado
pelo seu filho Marduk. Mas poderiam estar em jogo razões gramaticais, pois o mar,
mesmo no semítico ocidental, varia entre o género masculino e o feminino.

522
As três fases da concorrência pela função de governador do
mundo, de que se compõe o ciclo épico, representam, na verdade,
os momentos cruciais de execução daquela função. Primeiro, é a
escolha e legitimação do candidato; depois, é a construção de um
palácio de governo para Ba‘al; e finalmente a última concorrência,
entre Ba‘al e Motu, que significa e representa a morte.
Para efeitos de pitoresco teatral ainda apareceu um candidato
que não apresentava os requisitos exigidos. Este acabou por ser
recusado, porque, sentado no trono, nem sequer conseguia chegar
com os pés ao estrado real.
Os dois adversários restantes que pareciam ter estatura para as
tarefas pretendidas representavam inimigos e concorrências que
se situavam em âmbitos e modelos muito diferentes de poder e de
ação. O mar é o caos exterior que representa a resistência à função
de governo e de ordem, projeto de governação assumido por Ba‘al.
Na verdade, estes dois concorrentes, o mar e Ba‘al, não são apenas
adversários pelo facto de serem concorrentes ao mesmo cargo. Eles
são realmente opostos quanto a valores, processos e programas.
Não os separam razões estratégicas; são antes razões filosóficas e de
princípio que contrapõem o seu projeto e a sua ação. A morte, entre-
tanto, não é um verdadeiro candidato, pois não concorre à execução
do programa maior de governar o mundo, apenas os compromete
a todos, pois devora os seus executantes e assim atinge o próprio
Ba‘al. Perante a morte, Ba‘al é como um humano comum e também é
engolido por Motu, morrendo ele também. A morte é, portanto, uma
ameaça interior permanente, que faz desmoronar projetos, devorando
até aquele que os pode executar com o máximo de eficácia, Ba‘al.
O mitema central do palácio de Ba‘al, que trata da construção de
um palácio bem apetrechado para uma eficaz função de governo, é
nuclear na epopeia, pois este palácio é a imagem institucional do
sistema simbólico do poder e pretende garantir todas as valências para
uma governação eficaz. Ele é igualmente paradigmático na maneira
como as sucessivas cenas de banquete entre deuses individuais e
em assembleia se sucedem como expressão do que significa ser um

523
deus e de como esta definição de identidade divina é essencial e se
reflete como questão de identidade e destino válida para os humanos.
A assembleia dos deuses é um processo para sistematizar signi-
ficados que se apresentam com a evidência de um postulado, para
organizar interesses e projetos, definindo objetivos estratégicos.
É uma espécie de parlamento onde se elaboram e ratificam decisões.
E estas passam então a ser um programa universal assumido de for-
ma legitimada e eficaz, militante e solidária, combativa e otimista.
É isto o que significa assumir a governação da cidade e do mundo.
A construção do palácio de Ba‘al é, por conseguinte, uma festa ence-
nada com as características de um espaço de governo. E este bloco
de significados equivale para a cidade de Ugarit à definição simbólica
do que é essencial, no que diz respeito aos valores e às intuições
imprescindíveis para promover e garantir bem-estar e igualdade
entre os humanos. E, mesmo que esta literatura seja assumida para
representar e servir no imediato a população de uma cidade-estado
de nível médio em Canaã, o tom que nela ressoa é sempre o de uma
epopeia em que se trata o destino de todos os homens e o de todo
o mundo. É a metafísica em registo de epopeia.
Neste contexto, o banquete define o espaço simbólico deste univer-
so e representa, por conseguinte, a condição estatutária que compete,
desde logo, ao próprio deus supremo do panteão local e regional,
o deus Ilu 8. Este parece dispor de um espaço destinado a manifes-
tações coletivas com comidas e bebidas, músicas e manifestações de
grande emotividade e entusiasmo. Esta mitografia, entretanto, não
especifica qualquer espaço destinado a estas assembleias – banque-
te. O espaço não tem pertinência. O que conta são as personagens;
elas são o tempo, a ação e a sua projeção simbólica; é um tempo
sem espaço e por isso autenticamente humano, histórico, universal.
Por quanto diz respeito ao deus Ilu, o estatuto de grande anfitrião
parece ser o seu tipo de relacionamento com os deuses próximos
que constituem o seu grupo. Em ugarítico, este agrupamento presi-

8 Cf. KTU 1.1 IV 3-4; Am 6,4-7; Jr 16,5.

524
dido pelo deus Ilu é designado com o nome de marziḥu. Este nome
representa uma instituição social festiva e cerimonial que se nos
revela como prática milenar nas culturas de Canaã. Aparece desde
os textos do império de Ebla, cidade-estado próxima do curso do
rio Orontes, na mesma região da Síria ocidental do 3º milénio, não
muito longe da atual cidade de Alepo e da antiga cidade Ugarit.
O mesmo termo aparece ocasionalmente na Bíblia como um ritual
que não está incluído nas listas do culto oficial reconhecido entre
os hebreus. Trata-se de práticas e de agrupamentos sociais, que se
mantêm culturalmente autónomos da organização oficial do culto.
Na tradição bíblica, segundo a vocalização dos massoretas, este
nome seria pronunciado marzeaḥ ( Jr 16,5) ou mirzeaḥ (Am 6,4-7).
Estas são as duas referências hebraicas a um ritual que não parece
ser bem visto e que a Bíblia associa ao culto dos mortos com práti-
cas de excesso severamente criticadas. Para ilustrar o conteúdo que
esta prática deixa na memória bíblica pode servir o texto do profeta
Amós, no século VIII, a. C., onde o termo “orgia” serve para traduzir,
no final, o conceito de marzeaḥ:

4 «Estendidos em leitos de marfim


e estirados nos seus divãs,
comem os cordeiros do rebanho
e os vitelos do curral.
5 Deliram ao som da harpa e, como David,
inventam para si instrumentos de música.
6 Bebem vinho em elegantes taças,
perfumam-se com óleos preciosos
e não se preocupam com a ruína de José.
7 Por isso, agora, irão para o exílio,
à frente dos exilados
e desaparece a orgia dos dissolutos».

Entretanto, há indícios textuais de presença deste tipo de associa-


ções entre os nabateus, em Palmira, e mesmo nas colónias fenícias. E

525
nem sempre a relação com o culto dos mortos parece ser o elemento
principal a contribuir para a definição desta instituição social 9. Esta
prática situa-se no âmbito das manifestações coletivas e associativas
de devoção em moldes mais ou menos habituais. A ideia central é a
de um grupo algo fechado, que reconhece sobre si a chefia de um
deus e se junta em manifestações coletivas de grande entusiasmo.
Em termos sociais, o espaço do culto dos mortos parece ter sido um
contexto onde estas práticas se prolongaram durante muito tempo 10.
Podendo ser uma imagem de uma assembleia ou dum grupo religio-
so entusiasta e devoto, este tipo de agrupamentos pode exprimir a
modalidade de uma assembleia divina, sublinhando assim a maneira
como a cultura de Ugarit joga com a analogia entre o mundo dos
humanos e o mundo dos deuses. E assim estes banquetes puderam
servir como metáfora também para agrupamentos entre divindades.
A tradução judaico-grega dos LXX escolheu para traduzir a re-
ferência de Jeremias o equivalente grego de thiasos. Em Am 6,7 os
tradutores não viram a mesma palavra hebraica e, como vimos, os
massoretas também a não vocalizaram da mesma maneira. Mas trata-se
do mesmo tipo de agrupamento religioso. O mesmo termo grego de
thiasos aparece como equivalente de marzeaḥ em inscrições bilingues
de Palmira semelhantes outras nabateias 11 . Este mesmo termo de
thiasos aparece diretamente no original grego do livro da Sabedoria,
escrito em Alexandria, e ali designa já, de maneira genérica, práticas
antigas dos cananeus, consideradas desumanas e aberrantes. Neste
contexto o conceito de thiasos tem todo o ar de uma caricatura
projetada em várias direções, que é um recurso habitual neste livro
para tratar conflitos interculturais.
Fora do ciclo de Baal, este conceito usa-se sobretudo tendo
como seu centro as divindades Ilu e Anat. O tipo de religiosidade
representada por Ba‘al não parece prestar-se muito a manifestações

9 Cf. Fabry 2020: 11-16.


10 Cf. Smith 1994: 140-144.
11 Cf. Fabry 2020: 14.

526
deste género. Ba‘al parece uma divindade de tipo mais apolíneo.
A sua soberania conotava facilmente expressões de fidelidade e
apego ao deus. A relação religiosa com Ba‘al é de tipo menos servil
e aparentemente menos ritualizada.
Mesmo com estas conotações semânticas restritivas, nada impede
que estas reuniões nos espaços do deus supremo possam ser consi-
deradas como assembleias plenárias dos deuses 12. Uma assembleia
dos deuses poderia ser vista como a confraria do deus supremo.
Mesmo com o entusiasmo e a referência a alguns traços de excesso,
este banquete de Ilu não parece ter qualquer conotação com o culto
dos mortos. É, antes, um banquete de deuses, que traduz o núcleo
fundamental de um sistema religioso organizado e institucionalizado.
“Estes morfemas designam uma instituição religioso-cultual, cujo
objetivo é procurar e realizar a comunidade com uma divindade que
lhe serve de patrono e que eventualmente dá o nome ao grupo” 13.
Para além deste contexto específico, institucionalizado e, por
vezes, fechado, um banquete constitui sempre uma maneira solene
de exprimir o quotidiano dos deuses. Estes encontram-se a comer e
a beber quando chegam os mensageiros de Yam 14.
A imagem de quotidiano escolhida para apresentar Baal no início
da cena sobre a construção do palácio é aquela em que se serve
comida e bebida e se ouve música. A cena é longa e minuciosamente
descrita, apesar de representar um convívio familiar com as filhas,
pois Ba‘al é uma figura quase solitária, em que as filhas representam
uma espécie de desdobramentos internos das suas funcionalidades e
a alegada irmã é uma alteridade ainda mais convergente e cúmplice,
pois em comparação com as filhas de Ba‘al, ela é, enquanto irmã,
mais autónoma e externa ao círculo familiar 15.

12 Cf. Olmo Lete 1981: 169ss; Dietrich & Loretz 2019: 1120.
13 Fabry 2020: 12.
14 KTU 1.2 I 20ss. Cf. Olmo Lete 1981: 170; Dietrich & Loretz 2019: 1135, 1994: 266.
15 KTU 1.3 I 1-27. Cf. Olmo Lete 1981: 179-180; Dietrich & Loretz 2019: 1135;
Smith & Pitard 2009: 94-125.

527
Um banquete é a fórmula de acessibilidade e de acolhimento
pessoal e familiar entre deuses, apresentado com toda a abertura e
lhaneza. Tal é o banquete que Ba‘al prepara para a receção a Anat
com ritual prévio de perfumes 16.
Pode ver-se até uma espécie de anti-banquete, que consiste
numa referência a sacrifícios corrompidos que Ba‘al detesta 17. Este
pormenor mostra a ligação que existe entre banquete e sacrifício,
conotação semântica que a terminologia bíblica pressupõe e que o
simbolismo comum entre ambos sugere continuamente.
Há banquetes em que se verifica a existência de um processo diplo-
mático destinado à promoção de acontecimentos e decisões importantes.
Tal é o caso do banquete que reúne os deuses para fazer com que o
deus supremo Ilu aceite ratificar a ideia de se construir o palácio de
Ba‘al18. Que este banquete seja importante é o que decorre do facto
de a declaração solene da construção do palácio de Ba‘al ser, logo a
seguir, proclamada pelo deus Ilu, pela sua paredro Achera, como mãe
dos deuses, e pelos restantes deuses em uníssono19.
Num momento análogo e equivalente a este na epopeia babilónica
de Enuma eliš são igualmente os deuses em assembleia que proce-
dem à designação de Marduk para o encarregar do combate com o
qual haveria de conquistar e organizar, criando assim o mundo 20.
Realmente, esta epopeia parece ser a mais ocidental das mitografias
de criação da Mesopotâmia. A deliberação dos deuses é igualmente
feita num banquete, relativamente ao qual o texto da epopeia subli-
nha em perfeito paralelismo que a intenção do evento é realizar uma
assembleia deliberativa dos deuses e que a sua realização prática
foi um banquete 21. No entanto, a importância retórica e imagética
dos banquetes ao longo desta narrativa mítica mesopotâmica é bem

16 KTU 1.3 IV 37ss. Cf. Olmo Lete 1981: 187; Dietrich & Loretz 2019: 1145.
17 KTU 1.4 III 15ss. Cf. Olmo Lete 1981: 197; Dietrich & Loretz 2019: 1156.
18 KTU 1.4 III 38ss. Cf. Olmo Lete 1981: 198-199; Dietrich & Loretz 2019, 1157.
19 KTU 1.4 IV 50ss. Cf. Olmo Lete 1981: 201; Dietrich & Loretz 2019: 1160.
20 Bottero & Kramer 1989: 618ss.
21 Enuma eliš, II, 10; III, 130-138. Cf. Bottero & Kramer 1989: 618-619; 624.

528
menos marcante que no ciclo de Ba‘al. Outros banquetes de menor
abrangência concorrem de igual modo para a transcendência que se
pretende dar à construção do palácio de Ba‘al. Um deles é o banque-
te de receção que Ilu faz para a sua esposa Achera, que ele recebe
individualmente como forma de preparar a grande assembleia 22 .
Particularmente solene é o banquete de receção ao deus Kotharu-
Hasisu, cujo duplo nome significa o Habilidoso e Inteligente. Ba‘al
manda-o vir do Egito, associando-o ao industrioso e criador deus
Ptah de Mênfis. Este banquete tem a importância de servir como
festa de acolhimento ao grande arquiteto 23 e seria a ocasião solene
em que o deus Ba‘al lhe iria fazer pessoalmente a encomenda do
palácio, onde poderia exercer de forma cabal a sua função de rei e
senhor 24. Eis o essencial a este respeito:

«Depois que chegou Kotharu-Hasisu,


colocou um boi diante dele,
um cevado ali na sua frente.
Preparou um trono e fê-lo sentar
à direita do Vitorioso Ba‘al.
Enquanto os deuses comiam,
respondeu o Vitorioso Ba‘al,
replicou o auriga das nuvens:
“[Rápido,] uma casa, ó Kotharu,
rápido, ergue um palácio;
rápido, uma casa me seja construída;
rápido, um palácio me seja erguido,
mesmo nos píncaros de Safon.
Mil jeiras abarcará a casa,
dez mil jugadas, o palácio”».

22 KTU 1.4 IV 27ss.


23 Uma receção semelhante a Kotharu aparece na epopeia de Aqhatu (KTU 1.17
VI 1-6), com um teor de solenidade bem diferente. Cf. Wright 2000: 87-93.
24 KTU 1.4 V 44ss. Cf. Olmo Lete 1981: 204; Dietrich & Loretz 2019: 1163.

529
Entretanto, a expressão definitiva e a fórmula autónoma que
estabelece a consistência do programa ba‘aliano de governação é
precisamente o banquete que celebra e formaliza a inauguração do
palácio real. O programa estava pré-estabelecido, porque decorre
das necessidades tal como são avaliadas naquela cidade e na cul-
tura em que a comunidade dos leitores ou expetadores se sente
representada. O discurso inaugural de Ba‘al é apresentado desta
maneira 25:

«Alegrou-se o Vitorioso Ba‘al:


“A minha casa de prata eu construí,
o meu palácio de ouro”.
A organização da sua casa Ba‘al estabeleceu,
Haddu estabeleceu a organização do seu palácio.
Degolou bois e também ovelhas,
abateu bois e carneiros gordos,
novilhos de um ano,
cordeiros do rebanho e cabritos.
Convidou os seus irmãos para sua casa,
os seus parentes para o seu palácio;
convidou os setenta, os filhos de Athiratu.
Providenciou aos deuses-cordeiros vinho,
providenciou às deusas-cordeiras vinho;
providenciou aos deuses-bois vinho,
providenciou às deusas-vacas vinho;
providenciou aos deuses-tronos vinho,
providenciou às deusas-cadeiras vinho,
providenciou aos deuses-jarros vinho
providenciou às deusas-taças vinho.
E enquanto os deuses comiam e bebiam
dispunham-se mais reses de leite

25 KTU 1.4 VI 35-59. Cf. Olmo Lete 1981: 206-7; Dietrich & Loretz 2019: 594-595
para o texto; 625-636 para os comentários.

530
com uma faca ao sal, nacos de animal gordo.
Eles bebiam vinho das taças;
dos copos de ouro, o sangue da videira» 26 .

Depois de uma quebra na tabuinha que provocou o desapareci-


mento de cerca de dez linhas, prossegue ainda a narrativa a respeito
deste banquete inaugural, com um périplo em que o deus Ba‘al, em
solitário, como compete a um herói do seu quilate, parte em viagem
de conquista. Esta saída de Ba‘al não se situa depois do banquete.
Pelo contrário, esta é a forma que Ba‘al tem de celebrar a transcen-
dência do acontecimento 27:

«O deus Haddu afastou-se da montanha,


enquanto os deuses comiam no monte Safon 28 .
E ele foi de cidade em cidade,
percorreu de lugar em lugar 29 .
Sessenta e seis cidades ele conquistou,
setenta e sete lugares.
De oitenta Ba‘al se tornou dono,
de noventa ele se apoderou.
E assim entrou Haddu para o seu palácio;
Ba‘al, para o interior da casa.
Então disse o Vitorioso Ba‘al:

26 O banquete exprime-se pela dupla complementar de comer e beber. Neste


texto avulta, no entanto, o pormenor com que se narra a distribuição de vinho. Daí
que em cananaico comum tenha ficado para designar o banquete sobretudo o termo
mišteh, que significaria mais “beberete”.
27 KTU 1.4 VII 5-20. Cf. Olmo Lete 1981: 207-208; Dietrich & Loretz 2019: 1168.
28 O monte Safon é a montanha mítica a norte de Ugarit, que funciona como
sendo o santuário celeste de Ba‘al, pouco distante do seu santuário real dentro da
cidade, e que oferece simbolismo mítico aproveitado em todo o mundo do Mediterrâneo
oriental, incluindo a Bíblia, que assume o Safon como expressão do ponto cardeal
Norte e coloca Sião nos píncaros do monte Safon (Sl 48,3).
29 Dietrich e Loretz comentam que este périplo poderia representar um percurso
triunfal da estátua de Ba‘al entre as várias localidades do reino de Ugarit, possivel-
mente durante uma festa de particular relevo como a festa do Ano Novo. Cf. Dietrich
& Loretz 2019: 1163.

531
“Quero instalar, ó Kotharu, hoje mesmo,
uma janela ainda, ó Kotharu!
Será aberta uma janela no edifício,
como uma claraboia no palácio,
que seja como uma fenda nas nuvens,
conforme a palavra dita por Kotharu”».

É com este banquete, desdobrado simultaneamente de uma es-


pécie de cortejo triunfal, que Ba‘al, heroicamente solitário, entra
verdadeiramente no seu palácio e ali fica entronizado 30.
Esta primeira proclamação de Ba‘al como rei pode ter-se trans-
formado numa instituição perpétua de celebração da vitória de
Ba‘al. Só que o momento anualmente institucionalizado para tal não
seria o da vitória sobre o mar nem o da conclusão e inauguração
do palácio. Esses são momentos narrativos, mas não é aí que se
sente e manifesta a transcendência. O facto festivo social e ritual
que acabaria por concentrar todo o simbolismo que se exprime na
mitografia deste ciclo viria a ser o da vitória de Ba‘al sobre a morte
e a sua subsequente ressurreição. Esse era um campo de batalha
e de conquista que os mitógrafos e a gente de Ugarit valorizavam
mais que tudo. A festa da ressurreição de Ba‘al era a grande festa de
afirmação da vida que, atribuindo vários nomes ao herói vencedor
da morte, o Próximo Oriente celebrou formalmente até aos tempos
do helenismo, pelo menos, e que coincidia com o fim da morte da
vegetação e com o recomeço do Ano Novo da natureza. Em Tiro
no tempo de Jesus, eram estas as festas da morte e ressurreição de
Melqart 31, uma das muitas e mais conhecidas divindades locais que,
no Oriente e no Ocidente, beneficiaram do epíteto divino genérico
de Ba‘al.
Para demonstrar a ideia de que este banquete pode constituir uma
estrutura institucional autónoma, aí está o facto de ele não servir

30 KTU 1.4 VII 25-42. Cf. Smith & Pitard 2009: 650; 672-683.
31 Bonnet 1992: 285.

532
propriamente para prestar honras de herói vencedor ao deus Ba‘al.
Este sentido de construção de um herói como figura institucional, mais
do que como figura individual, é igualmente muito evidente no dina-
mismo com que a epopeia do Enuma eliš se projeta para uma última
cena semelhante a uma longa celebração litúrgica, com a recitação de
uma solene ladainha dos títulos de Marduk 32. Mesmo assim, Marduk
continua a ser um herói político; o seu destino é incarnar a realeza
na Babilónia. Ba‘al, pelo contrário, é sobretudo um herói místico.
Não é a realeza real sobre a cidade de Ugarit que o move; é o estado
da natureza e do mundo. Cada um sonha conforme a grandeza do
seu pedestal. Os grandes podem satisfazer-se com o tamanho da sua
grandeza. Os pequenos, para serem humanos, têm necessariamente
que a transcender. Por isso, o banquete da assembleia dos deuses
continua, enquanto Ba‘al se entrega às suas tarefas de governação,
percorrendo o mundo e conquistando cidades. Conquistar cidades
é referido por ser o discurso tradicional de eficácia da realeza, pois
Ba‘al não recolhe despojos, apenas transforma.
O terceiro quadro do ciclo de Ba‘al é de ambiente claramente
menos festivo e, por conseguinte, presta-se menos a cenas de ban-
quete, as quais por via de regra exprimem e suscitam alegria. Mesmo
assim, e como o banquete é a expressão do relacionamento e da
sociabilidade, aparecem banquetes que se adaptam às circunstâncias
mais dramáticas daquela fase. Para exemplificar esta outra tonali-
dade, aparece uma espécie de banquete infernal de Motu (a Morte)
que é um banquete universal, anárquico e catastrófico, porque a
morte devora tudo e daí não decorrem festejos nenhuns dignos de
menção 33. Num determinado momento, parece que Motu mostra al-
guma alegria por saber que é um dos convidados de Ba‘al e não se
esquece de mencionar os deuses seus irmãos que o acompanhariam

32 Cf. Bottero & Kramer 1989: 642-653.


33 KTU 1.5 I 12 – 1.5 II 6. Cf. Olmo Lete 1981: 214-216; Dietrich & Loretz 2019:
1174-1176

533
ao banquete34. É uma alegria restrita, individualista e incapaz de ser
partilhada por mais ninguém.
Em KTU 1.5 IV 8ss, há referência a um banquete onde Ba‘al é
assinalado com alguns dos seus servos, mas as quebras na tabuinha
não permitem que o texto resulte mais informativo e mais claro 35.
A cena de banquete mais significativa deste terceiro quadro realiza-
-se com um horizonte de duplo significado. Podemos dizer que este
banquete é como que excessivo nos seus significados. Trata-se, na
verdade, de um sacrifício e um banquete em que, por um lado, se
celebra a morte de Ba‘al e, por outro, sucessivamente se festeja a sua
ressurreição. Ambos os objetivos representam conceitos limite, que
estruturam os simbolismos da mística ba‘aliana que impregna todo
este ciclo 36 . Apesar da solenidade com que é descrito, este ritual
de sacrifício e banquete decorre em plena solidão. Ele é um puro
ritual. A irmã de Ba‘al, Anat, que representa e guarda em si todas as
potencialidades de Ba‘al, esteja ele presente ou ausente, encarrega-
-se de todo o cerimonial e sepulta Ba‘al no lugar mítico da sua
morada, no cimo do monte Safon, onde se encontra a entrada para
a caverna dos antigos reis imortais. Este pode ser comparado com
o espírito dos banquetes de marziḥu, bem conhecidos nas práticas
de grande enraizamento popular. Porém, toda a intencionalidade
implícita faz com que este sacrifício seja sobretudo uma prepara-
ção para a festa da ressurreição de Ba‘al que começa a ressoar em
ecos festivos, apesar de ainda não ter sido narrada. Ela encontra-se
miticamente postulada, enquanto, entre Ilu e Athiratu, se esboça de
novo um processo para a substituição de Ba‘al por alguém que seja
suficientemente “inteligente e perspicaz” 37. Mas, ironicamente, estas
são, no ciclo mítico, qualidades caraterísticas de Ba‘al. E é para ele,
por conseguinte, que toda a dinâmica concorre.

34 KTU 1.5 II 21-22. Cf. Olmo Lete 1981: 217; Dietrich & Loretz 2019: 1177.
35 Cf. Olmo Lete 1981: 219; Dietrich & Loretz 2019: 1179.
36 KTU 1.6 I 18-31. Cf. Olmo Lete 1981: 224; Dietrich & Loretz 2019: 1186.
37 KTU 1.6 I 48. Cf. Olmo Lete 1981: 225; Dietrich & Loretz 2019: 1187.

534
Depois deste sacrifício solene e absolutamente simbólico, porque
singular e solitário, apenas se verifica uma espécie de beberete que
decorre enquanto o deus Shapshu (o Sol) se encarrega de procurar
o Ba‘al desaparecido 38.
No que toca a referências sobre alimentos, a última pode ser a
do próprio Motu que pede um deus para seu alimento, porque até
então apenas tivera homens para comer 39. Esta passagem chama a
nossa atenção, porque, por regra, esta mitografia mantém-se fiel ao
estatuto de discurso rigorosamente mítico das personagens e das
coordenadas. Referências aos humanos ficam normalmente integradas
no âmbito das dimensões implícitas, latentes, urgentes e iminentes;
é o nível do metafórico pertinente. Estamos habituados a ver as metá-
foras do âmbito religioso a fazer uma transposição do imediato para
o ideal. Neste discurso mítico acontece ao contrário: a transposição
metafórica decorre do simbólico ideal para o real imediato. Este é
um dos casos raros em que o discurso mítico, de algum modo, abre
uma brecha e integra vicissitudes relativas aos humanos no domínio
explícito da linguagem mítica. A mesma brecha se abre no discurso
mítico a explicitar uma referência aos humanos com a intervenção
patética do próprio deus supremo Ilu em que este se interroga:

“Ba‘al está morto. O que será do povo?


O filho de Daganu! O que será da multidão?” 40

Estas exceções ao caráter puramente mítico deste discurso mostram-


-nos como ele se mantém coerente num nível de metáfora simbólica
de movimento inverso. Quem sabe se não será por isso que não temos,
na mitologia de Ugarit, conteúdos de incidência humana direta como
acontece com numerosos conteúdos dos mitos de origem no início

38 KTU 1.6 IV 17ss. Cf. Olmo Lete 1981: 230; Dietrich & Loretz 2019: 1192.
39 KTU 1.6 V 11-25. Cf. Olmo Lete 1981: 233-234; Dietrich & Loretz 2019: 1194.
Cf. ainda KTU 1.6 VI 14-15 (“os meus irmãos”).
40 KTU 1.5 VI 11-23. Cf. Olmo Lete 1981: 222; Dietrich & Loretz 2019: 1182-1183.

535
do Génesis ou com a criação do homem na epopeia de Enuma eliš41.
A mitologia de Ugarit joga menos com a categoria teórica das origens
e metaforiza simbolicamente as realidades históricas, de preferência.
Em suma, verificamos neste ciclo de Ba‘al a existência de três
banquetes estruturantes e estrategicamente situados, um por cada
um dos quadros míticos do ciclo: o banquete de Ilu para proclamar
Ba‘al como candidato à função de governador da cidade e do mun-
do; o banquete de Ba‘al pela inauguração do seu palácio e da sua
função de rei executivo; e o banquete-sacrifício de Anat por ocasião
da morte e como antecipação da ressurreição de Baal.
Como acontece nos textos semíticos do antigo Oriente, o termo
casa de Ba‘al pode significar, segundo os respetivos contextos, um
palácio ou um templo. Para Ba‘al ambos os significados se justificam,
porque, na verdade, ele é deus e é também rei. Por isso mesmo, tem
uma dupla implantação, uma dupla morada. E é precisamente nesse
desdobramento que reside a sua importância cultural e simbólica.
A mais simbólica dentre ambas as moradas é a que se situa nas alturas
do monte Safon, que tanto o coloca no espaço celestial, envolto em
nuvens, como o projeta nas profundezas da terra, que é também um
seu domicílio de referência e condiz bem com a sua identificação
com todo o metabolismo da natureza. É esta a imagética principal
deste deus.
A segunda casa de Ba‘al é o seu templo que se destaca dentro
da cidade de Ugarit e está ao cuidado de um sumo-sacerdote, cuja
habitação se encontrava ao lado do templo. Apesar de o deus Ba‘al
não ter as caraterísticas de uma divindade de modelo caseiro, é ali
o seu espaço personalizado de receção e é dali que decorre a sua
função de governar o mundo. Mesmo que essa função e as tarefas
implicadas se reportem principalmente ao aspeto político, os rituais
de banquete que lhe dão expressão e os dinamizam são banquetes-
-sacrifício e pertencem mais às atividades do templo que às do
palácio. No templo, a extensão e a compreensão dos significados são

41 Enuma eliš, V, 130 – VI, 34. Cf. Bottero & Kramer 1989: 637-640.

536
mais abrangentes e mais universais. Numa palavra, são expressivas
em termos mais míticos. No palácio todo o discurso resultaria mais
cortesão e mais restritivo. Entretanto, o autêntico palácio de Ba‘al
está localizado mais nas coordenadas do mito, nas alturas, enquan-
to o seu templo está localizado no mundo da realidade imediata,
o bairro cultual da cidade de Ugarit. Encontramo-nos assim perante
uma rede de simbologias e esta rede é dialética, por natureza. Ba‘al
reparte, portanto, o seu significado e a sua realidade entre ser um
rei na terra e um deus no céu, ou, ao contrário, entre ser um deus
na terra e um rei no céu.
Esta cumplicidade estrutural insinua e sugere uma consciência
de univocidade entre os sistemas simbólicos pertinentes para os
deuses e para os humanos. A assembleia dos deuses parece ser uma
fórmula especialmente caraterística dos semitas ocidentais, com uma
localização especial nas regiões montanhosas do norte de Canaã 42.
E estas assembleias de deuses traduzem e concentram o sistema
ideal de valores das sociedades humanas. O facto é que as funções
de realeza se apresentam com harmoniosa univocidade nos seus três
níveis, isto é, a realeza de Ilu, a de Ba‘al e a dos humanos. Estes
últimos não são nomeados no que toca ao exercício da realeza, mas
são continuamente sugeridos como os verdadeiros interessados nela.
O título de rei (mlk) é univocamente utilizado para qualquer destes
três níveis. A imagem desta multiplicidade está na maneira como
o próprio exercício das funções de Ba‘al se desdobra em diversas
personagens: Anat, a cunhada dos povos; as noivas, filhas de Ba‘al;
e Kotharu-Hasisu, o grande deus artesão. O poder, que os orientais
exprimem com a fórmula hipostática da realeza, serve-se de muitas
mãos como uma rede de mediações. Com estes matizes, uma realeza
eficaz mas sóbria como é a de Ba‘al traduz o quanto de realismo
humano com ela se pode exprimir.
E o banquete é uma perceção otimista da harmonia entre os dois
patamares de estrutura no horizonte da antropologia e da cosmo-

42 Smith 1994: 112.

537
logia. Nestes dois domínios estão representados o patamar mais
imediato da experiência e o patamar mais profundo do sistema de
sentido tal como é intuído e postulado. Temos aqui uma espécie de
cosmopoética para uso de uma cidade-estado de cerca de 20.000
habitantes, com as suas “filhas”, a qual desta maneira assume em
festa a gestão do seu próprio mundo com o sentir de quem está a
governar o mundo inteiro. É a intuição profunda da harmonia entre
o perfeitamente individual e o perfeitamente universal. Os deuses e
os grafismos que se lhes referem são, deste modo, um instrumento
metodológico para a leitura e antecipam já um esboço do horizonte
hermenêutico que se espera e se torna previsível.
E o modo de assembleia é uma fórmula de síntese, que define
o teor da vida em sociedade com as fenomenologias e vicissitudes
que lhe são próprias, Com isto define como dinâmicas integradas
de uma festa as coordenadas, tensas e intensas de um processo de
molduras quanto possível democráticas de interação de agentes di-
versos, sejam eles convergentes ou concorrentes entre si, no governo
e promoção de um teor de vida para o universo. Esta configuração
da assembleia divina parece ser uma marca própria da cultura de
Canaã. É a espiritualidade solidária de uma cidade-estado, segundo
o modelo da costa mediterrânica da Síria.
Cumpre finalmente notar que estamos perante o legado patrimonial
de uma cidade-estado média de aproximadamente 20.000 habitantes,
situada na costa do Mediterrâneo oriental, numa cultura de base
cananaica, entre os séculos XV e XIV, a.C., cerca de mil anos antes
do século de Péricles. E estes textos, provavelmente copiados, foram
registados em seis tabuinhas 43 pelo escriba Ilimalku da corte do rei
Niqmadu II 44 e procedem do repositório da biblioteca-escola inte-
grada na casa do sumo-sacerdote de Ba‘al, anexa ao mesmo templo.

43 São os textos organizados nas edições críticas sucessivas de CTA e KTU 1-6,
que mantiveram coordenadas de organização semelhantes. Para os quadros de equi-
valência com resumo de cada peça literária, cf. Rin; Rin 1996 xxx-lxxxi.
44 Niqmadu II foi rei de Ugarit entre, aproximadamente, 1380 e 1346, num tem-
po de grande esplendor da cidade de Ugarit, na fase inicial da época de El Amarna.

538
Bibliografia

Bonnet, C. (1993), «Melqart», in E. Lipinski (dir.), Dictionnaire de la civilisation


phénicienne et punique. Turnhout: Brepols, 285-287.
Bottero, J. & Kramer, S. N. (1989), Lorsque les dieux faisaient l’homme: Mythologie
mésopotamienne. Paris: Gallimard.
Dietrich, M., Loretz, O. & Sanmartin, J. (1976), Die Keilalphabetischen Texte aus Ugarit
(KTU), Teil 1: Transkription. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag.
Dietrich, M. & Loretz, O. (2019), Mythen und Epen in ugaritischer Sprache, in O. Kaiser
(Org.), Texte aus der Umwelt des Alten Testaments, Bd. III/2. Darmstadt: WBG
Academic, 1089-1316.
Fabry, H.-J. (2020), «Marzeaḥ», in G. J. Botterweck, H. Ringgren & H.-J. Fabry. (Org.),
Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament. Darmstadt: WBG Academic, V, 11-
-16; com atualização bibliográfica em X, 562.
Herdner, A. (1963), Corpus des tablettes en cunéiformes alphabétiques découvertes à
Ras Shamra-Ugarit de 1929 à 1939. Mission de Ras Shamra X, Bibliothèque
Archéologique et Historique LXXIX. Paris: Imprimerie Nationale et Geuthner.
Olmo Lete, G. (1981), Mitos y leyendas de Canaán, según la tradición de Ugarit. Madrid:
Ediciones Cristiandad.
Rin, S. & Rin, Sh. (1996), Acts of the gods: The ugaritic epic poetry. Philadelphia: Inbal
Publishers.
Smith, M. S. (1994), The ugaritic Baal cycle-I. Leiden: Brill.
Smith, M. S. & Pitard, W. T. (2009), The ugaritic Baal cycle-II. Leiden: Brill.
Waschka, E.-J. (2020), «Tehom», in G. J. Botterweck, H. Ringgren & H.-J. Fabry. (Org.),
Theologisches Wörterbuch zum Alten Testament. Darmstadt: WBG Academic, VIII,
563-571.
Wright, David P. (2000), Ritual in narrative: the dynamics of feasting, mourning, and
retaliation rites in the ugaritic tale of Aqhat. Winona Lake-Indiana: Eisenbrauns.

539
(Página deixada propositadamente em branco)
La fuerza a-cósmica. La amenaza
de Tifón y el poder de Zeus

T h e A - C o s m i c P ow e r . T y p h o n ’ s T h r e at
a n d t h e P ow e r o f Z e u s

María Cecilia Colombani


Univ. Morón, Univ. Nacional de Mar del Plata
ORCID: 0000-0002-6215-0499
ceciliacolombani@hotmail.com

Resumen: Este artículo efectuará una lectura de la tifonomaquia en tér-


minos políticos a partir de los juegos de poder que interactúan en
el episodio. Dividiremos nuestro trabajo en una serie de apartados
tendientes a abarcar la totalidad del acontecimiento. En primer lugar
efectuaremos algunas consideraciones en torno al mito como ope-
rador de sentido. En segundo lugar trabajaremos la inscripción de
Tifón en el territorio de un linaje nocturno. Lo ubicaremos allí por su
propia figura, y por su acción tendiente a convertir el kósmos en un
escenario a-cósmico. En tercer lugar, ya instalados en el episodio en
cuestión, nos dedicaremos a pintar el paisaje aterrador que implica la
batalla. Por último, veremos cómo se opera la acumulación del poder
del Crónida frente a la derrota de Tifón en el marco de un esquema
representacionista del poder.

Palabras clave: Mito, Tifonomaquia, Poder, Legalidad, Justicia

Abstract: This article will make a reading of the Typhonomachia in po-


litical terms, from the power games that interact in the episode. We
will divide our work into a series of sections tending to cover the

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_24
entire event. First, we will make some considerations about myth as
an operator of meaning. Secondly, we will work on the inscription of
Typhoon in the territory of a night lineage. We will locate him there
by his own figure, and by his action tending to turn the kosmos into
an a-cosmic stage. Third, already installed in the episode in ques-
tion, we will dedicate ourselves to painting the terrifying landscape
that the battle implies. Finally, we will see how the accumulation of
Chronida’s power against the defeat of Typhon is operated within the
framework of a representations scheme of power.

Keywords: Myth, Typhonomachia, Power, Legality, Justice

Introducción

El proyecto del presente artículo consiste en efectuar una lectura


de la tifonomaquia en términos políticos a partir de los juegos de
poder que interactúan en el episodio. Dividiremos nuestro trabajo en
una serie de apartados tendientes a abarcar la totalidad del aconte-
cimiento. En primer lugar efectuaremos algunas consideraciones en
torno al mito como operador de sentido. En segundo lugar trabaja-
remos la inscripción de Tifón en el territorio de un linaje nocturno
a partir de nuestro aporte de pensar la arquitectura hesiódica desde
la lógica del linaje. Lo ubicaremos en un linaje tenebroso por su
propia figura, y por su acción tendiente a convertir el kósmos en
un escenario a-cósmico con la paradojal inversión del orden que el
propio universo exige para su consolidación. Tifón es una fuerza
a-cósmica que, como tal, discontinúa la tarea de Zeus como garante
de la justicia y el orden. Aquel proyecto originario de un desplaza-
miento del khaos al kosmos a partir de la voluntad y la inteligencia
de Zeus se ve seriamente interrumpida por las pretensiones del
último hijo de Gea
En tercer lugar, ya instalados en el episodio en cuestión, nos
dedicaremos a pintar el paisaje aterrador que implica la batalla. Por
último, veremos cómo se opera la acumulación del poder del Crónida

542
frente a la derrota de Tifón en el marco de un esquema representa-
cionista del poder. Zeus personifica el poder porque es el garante
de la justicia y de la preservación de un orden que estuvo a punto
de sucumbir. Es la cabeza visible de un modelo de funcionamiento
de poder vertical que desde esa pirámide gobierna un kósmos que
se mantiene regulado porque él mismo constituye el principio de
inteligibilidad.

El mito como operador de sentido 1

Si la característica principal de la filosofía consiste en pensar


con conceptos 2 , podemos sostener que el mito piensa con “imá-
genes”. El mito como lenguaje, como forma peculiar de producción
de sentido, como lógos explicativo 3 , define una concepción del
mundo, una cierta cosmovisión, que, en su caso, se relaciona con lo
mágico-religioso, con dos ámbitos heterogéneos ontológicamente,
con la idea de los dos planos (divino y humano), como tópoi que
representan dos planos diferenciados de ser.
Cuando hablamos de Hesíodo, quien pertenece a un período
instituyente, en el que está cambiando una concepción del mundo
que da espacio a otra nueva, nos encontramos con el lenguaje del
mito, con sus imágenes, pero intentando expresar una concepción
del mundo ya no exclusivamente religiosa, que encontrará en la
filosofía su lenguaje propio.
En este sentido podemos considerar las imágenes de Hesíodo
como pre-conceptos.
A partir de este breve enunciado podemos pensar:

1 Tanto este primer punto como el siguiente forman parte de mi tesis doctoral,
con algunas modificaciones propias del presente trabajo. Colombani 2016.
2 Deleuze y Guattari 1997: 13.
3A la manera en que Aristóteles entiende que el amante del mito es, en cierto
modo, filósofo, tal como lo expresa en Metafisica. 982 b.

543
1. al mito como discurso-conglomerado, compuesto de capas
superpuestas de diversos imaginarios (épocas diferentes) y de di-
versa naturaleza (discursos religiosos, poéticos, etc.).
2. al mito como tópos en donde se ponen en juego los conflictos
sociales, lo cual da cuenta de la relación entre mito y sociedad.
3. a las estructuras mentales presentes en Hesíodo: los linajes
como la forma específica del discurso hesiódico que ordenan la
realidad, la clasifican, distribuyen los valores, en definitiva definen
estructuras mentales de juicio, de conocimiento, pragmáticas, etc.

Estos linajes redefinen el valor que tienen las divinidades y, a


diferencia del estructuralismo, los campos o espacios simbólicos
(los linajes) no son solo expresiones mentales de una mente uni-
versal invariante, sino, más bien, expresiones de un nuevo eîdos 4
(o una nueva institución, la pólis) que se está instituyendo. Una
nueva herramienta, teûkhos, creada desde las propias condiciones
que posibilitan lo social-histórico, eficaz para comprender lo real y
así, en términos foucaultianos, ver el orden de lo visible y el orden
de lo decible; en última instancia para nombrar la nueva trabazón
entre las palabras y las cosas.

4. a los linajes y a las tensiones que parecen estar presentes en


el interior de su lógica: Mismidad-Otredad. Cosmicidad-Acosmicidad.
Sophrosýne-Hýbris, Luminosidad-Oscuridad, Positividad-Negatividad,
Legalidad-Ilegalidad, Límite-Kháos.

La Lógica del linaje 5

A continuación, nos ubicaremos en lo que constituye el pilar fun-


damental sobre el que se asienta nuestra lectura de Hesíodo como

4 Castoriadis 2006. 55.


5 Cf. n. 1

544
una novedad epocal. Nos referimos a la lógica del linaje, apenas
esbozada en párrafos anteriores y presente en sus poemas como un
núcleo que cohesiona la totalidad de la obra.
El linaje constituye el operador discursivo que hilvana esa totalidad
que avanza hacia formas más justas y ordenadas, tanto en el plano
cósmico-divino como en social; forma más ordenada en la medida
en que el linaje positivo, de matriz diurna, triunfa estructuralmente
sobre el negativo, ya sea en el orden de lo cósmico, de lo divino o
de lo humano, vale decir, de los diferentes planos de lo real.
Quedan delineados en los dos poemas dos territorios conceptuales.
Esto no implica que no aparezcan ambigüedades y mezclas, bifurca-
ciones y atajos en el diagrama de fuerzas de esos dos linajes, que,
no obstante, toman un perfil claro que nos permite su utilización
como operador discursivo y de sentido.
Este diagrama de fuerzas constituye la llave que posibilita las
ambiciones de Hesíodo, “por así decirlo unitarias: esas grandes y
complexivas descripciones que, además, al menos en el caso de los
dos primeros poemas, representan una visión idealizada: el progre-
so del mundo consiste en la implantación del orden de Zeus, que
garantiza la justicia” 6. En efecto, para que ese orden cósmico se dé
en los términos de la sucesión cronológica que presenta Teogonía o
de la implementación socio-histórica que Trabajos y Días propone,
es necesario la potencia de la lógica del linaje como operador de
sentido y como condición de posibilidad de un diagrama político
que ubica a las potencias negativas y a las positivas en tópoi diferen-
ciados.
De este modo, el dispositivo del linaje se inscribe en ambos poe-
mas como articulador de su unidad, más allá de la diferencia temática
de uno y otro. La unidad radica en la progresiva organicidad de los
sistemas; en última instancia, la tensión de opuestos que da cuenta
del germen mismo de lo real en su conjunto. Potencias y divinida-
des que se inscriben en uno u otro linaje, reyes, hombres, mujeres,

6 Rodríguez Adrados 2001: 199.

545
instituciones, comportamientos, estilos de vida, ciudades, que se
pueden leer desde una perspectiva u otra, no hacen sino edificar
una arquitectura explicativa de la complejidad de la realidad a la
hora de dar cuenta de su constitución. Complejidad que se juega en
la dimensión agonística de los contrarios en pugna.

Tifón. La fuerza a-cósmica. El momento deconstructivo

A partir del marco teórico precedente se nos impone iniciar el


tratamiento de la tifonomaquia privilegiando dos atajos interpreta-
tivos. Por un lado, incorporaremos a Tifón en el marco de un linaje
negativo desde una doble perspectiva: por su propia figura, y por
su acción tendiente a convertir el kósmos en un escenario a-cósmico
con la paradojal inversión del orden que el propio universo exige
para su consolidación.
En segundo lugar, nos referiremos al paisaje de la batalla como
modelo de esa a-cosmicidad a partir de la subversión estatutaria de
los elementos que componen el universo. Finalmente analizaremos
la acumulación de poder por parte del Crónida a partir de su pre-
sencia en el combate como fuerza territorializante de la cosmicidad
amenazada.
El aspecto monstruoso de Tifón es el primer indicio para su
ubicación en un linaje tenebroso. Hijo de Gea, unida en abrazo
amoroso con Tártaro, potencia subterránea que prolonga la tierra
hacia abajo, Tifón es la representación misma del horror. Dios vio-
lento, de cuyos hombros emergen cien cabezas de serpiente y de
dragón y de sus ojos terribles el fuego lanza destellos, mientras que
de sus cabezas brota un ardiente fuego cuando mira. Una imagen
aterradora para territorializarlo en el tópos nocturno, en el plano
tenebroso de lo Otro y para advertir una asociación vigorosa con el
fuego.
Tifón es una fuerza a-cósmica que, como tal, discontinúa la tarea
de Zeus como garante de la justicia y el orden. Es nuestro propósito

546
ver el texto de Hesíodo como un texto que, siguiendo a Gigon 7 ,
expresa por primera vez el nuevo imaginario filosófico, instaurando
la figura de Zeus-garante.
Aquel proyecto originario de un desplazamiento del khaos al kos-
mos a partir de la voluntad y la inteligencia de Zeus se ve seriamente
interrumpida por las pretensiones del último hijo de Gea. De allí su
fuerza desterritorializante. La amenaza queda claramente atestiguada
en los versos siguientes

Καί νύ κεν ἔπλετο ἔργον ἀμήχανον ἤματι κείνῳ


Καί κεν ὅ γε θνητοῖσι καὶ ἀθανάτοισιν ἄναξεν,
εἰ μὴ ἄρ᾽ ὀξὺ νόησε πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε.

En breve ocurrió un hecho inmanejable aquel día


Y él reinaría entre mortales e inmortales,
Si no lo advirtiera agudamente el padre de hombres y dioses
(Teogonía, 386-389)

Ese hecho inmanejable, ἔργον ἀμήχανον, es la amenaza que implica


la derrota de Zeus en el proyecto político e Teogonía. El adjetivo
ἀμήχανον, “imposible, sin sentido, inmanejable”, representa sin duda
el peligro mayor, esto es, que el poder de Zeus sea quebrantado
por una fuerza hostil cercana al khaos como estado originario de
indefinición de la materia.
El peligro es la victoria de Tifón porque con ello hubiera reinado
sobre hombres y dioses, desconociendo el estatuto real de Zeus, a
quien está dedicado el poema de alabanza 8. Tifón comete un acto
de hybris al enfrentarse al Crónida porque desconoce desde su
soberbia el estatuto regio y la disimetría política que el combate
implica. En cambio, Zeus sí conoce las consecuencias de la victoria

7 Gigon 1985. En esta obra el autor enfatiza su posición de hacer coincidir el


inicio de la filosofía con la figura de Hesíodo.
8 Para una visión completa del poema, Colombani 2005.

547
de su adversario y por ello actúa en consecuencia. Podemos pensar
una función política de carácter terapéutico o reparador por parte de
Zeus, convencido de la importancia del plan estratégico que atraviesa
Teogonía. Quizás la dimensión del adjetivo ὀξὺς, “agudo, penetrante,
afilado”, sea la marca más rotunda de la disimetría estatutaria entre
la acción temeraria de uno y la inteligencia aguda del otro, capaz
de anticipar el peor de los males.
El paisaje del combate está marcado por un pintoresquismo
que pone en alerta los sentidos para poder acompañar el grado de
conmoción y de mutabilidad que la naturaleza sufre a partir de la
contienda. A la metáfora ígnea se asocia el trueno, dominado por el
verbo βροντάω, “tronar”. Un nuevo verbo agudiza los sentidos con
la preparación del combate: el campo lexical del verbo κοναβέω,
“resonar”, devuelve la imagen de la tierra, el mar, las corrientes del
Océano y el cielo reverberando, así como las oscuras y tenebrosas
profundidades de la tierra. No hay distinción entre el arriba y el
abajo, entre lo visible y lo invisible. El kósmos tiembla y truena en
una metáfora visual y sonora que da cuenta de la potencia a-cósmica
del momento.

σκληρὸν δ᾽ ἐβρόντησε καὶ ὄβριμον, ἀμφὶ δὲ γαῖα


σμερδαλέον κονάβησε καὶ οὐρανὸς εὐρὺς ὕπερθε
πόντος τ᾽ Ὠκεανοῦ τε ῥοαὶ καὶ Τάρταρα γαίης.
ποσσὶ δ᾽ ὕπ᾽ ἀθανάτοισι μέγας πελεμίζετ᾽ Ὄλυμπος
ὀρνυμένοιο ἄνακτος: ἐπεστενάχιζε δὲ γαῖα.

tronó áspera y fuertemente; la tierra arededor


espantosamente resonó, y también arriba el ancho cielo
y el mar y las corrientes del Océano y las profundidades de la tierra.
El gran Olimpo se agitaba fuertemente bajo los pies inmortales de
su excitado señor, y además gemía la tierra (Teogonía, 839-843)

Los adjetivos σκληρὸς, “áspero, duro, recio”, y ὄβριμος, “fuerte,


vigoroso”, acompañan el campo lexical de los verbos y contribuyen a

548
interpelar los sentidos para dar cuenta de la emotividad del momento.
Ni siquiera el Olimpo guarda la calma y, por el contrario, acompaña la
excitación de su Señor y de la naturaleza en su conjunto. El Olimpo
se agita, y la marca lexical del verbo πελεμίζω, “agitarse, moverse con
fuerza”, expresa la mutabilidad infinita de las potencias, la conmoción
vigorosa a partir de la tenebrosa amenaza de la fuerza a-cósmica im-
poniéndose políticamente sobre la mesura del garante de la justicia.
La metáfora ígnea, asociada a una fuerte sensación de ardor y
calor, manifiesta el final del paisaje.

καῦμα δ᾽ ὑπ᾽ ἀμφοτέρων κάτεχεν ἰοειδέα πόντον


βροντῆς τε στεροπῆς τε, πυρός τ᾽ ἀπὸ τοῖο πελώρου,
πρηστήρων ἀνέμων τε κεραυνοῦ τε φλεγέθοντος.
ἔζεε δὲ χθὼν πᾶσα καὶ οὐρανὸς ἠδὲ θάλασσα:
θυῖε δ᾽ ἄρ᾽ ἀμφ᾽ ἀκτὰς περί τ᾽ ἀμφί τε κύματα μακρὰ
ῥιπῇ ὕπ᾽ ἀθανάτων, ἔνοσις δ᾽ ἄσβεστος ὀρώρει:
τρέε δ᾽ Ἀίδης, ἐνέροισι καταφθιμένοισιν ἀνάσσων,
Τιτῆνές θ᾽ ὑποταρτάριοι, Κρόνον ἀμφὶς ἐόντες,
ἀσβέστου κελάδοιο καὶ αἰνῆς δηιοτῆτος.

Un ardor por obra de ambos invadió el violáceo ponto,


por el trueno, el relámpago, el fuego del monstruo,
los huracanados vientos, el rayo ardiente.
Hervían el suelo todo, el cielo y el mar;
y olas enormes se lanzaban en derredor y junto a los acantilados
p or ímpetu de los inmortales; hubo un estremecimiento inex-
tinguible;
temblaba Hades, que reina sobre los muertos bajo tierra,
y los Titanes, que están abajo en el Tártaro alrededor de Crono,
p or el inextinguible clamor y la funesta hostilidad (Teogonía,
847-852)

Quizás el juego de las emociones y las imágenes esté abierto


por el termino καῦμα, “ardor”, y por el fuego, πυρός, vomitado por

549
el monstruo, así como por el rayo ardiente, κεραυνοῦ φλεγέθοντος.
Festival flamígero atestiguado por el valor del verbo ζέω, “hervir”,
atribuido al suelo, el cielo y el mar. Esto es precisamente una fuerza
avasallante de matriz a-cósmica, un completo trastocamiento on-
tológico de todos y cada uno de los elementos constitutivos de lo
cósmico. La conmoción es tan fuerte que todo muta, causando, quizás
anticipadamente, la conmoción del pensamiento filosófico, afecto a
la quietud y a la conservación de las identidades.
El paisaje es aterrador y por eso mismo está inscrito en un linaje
nocturno. Noche se enseñorea sobre el Olimpo y las potencias sostie-
nen un festival fantasmagórico de fuego, ardor y calor insoportable.
Aludimos a la indistinción en la conmoción entre un arriba-visible
y un abajo-invisible como tópoi de la totalidad del universo. Lo sub-
terráneo sufre idéntica desestabilización y Hades tiembla, τρέε δ᾽
Ἀίδης, así como los Titanes que habitan mansiones subterráneas, por
el inextinguible clamor y la funesta hostilidad, ἀσβέστου κελάδοιο καὶ
αἰνῆς δηιοτῆτος. Dantesco escenario al que solo la fuerza de Zeus,
en su dimensión restauradora del orden, podrá poner fin.

Zeus. La fuerza cósmica. El momento constructivo

El propio Crónida es quien no permite que se cumpla la posi-


bilidad de que Tifón gobierne, lo cual significaría el triunfo de su
potencia desterritorializante y a-cósmica, como venimos sosteniendo.
Ha llegado el momento de recorrer el segmento constructivo que,
al mismo tiempo indica la acumulación por parte de Zeus de un tipo
de poder del orden de la representación 9. Zeus personifica el poder
porque es el garante de la justicia y de la preservación de un orden
que estuvo a punto de sucumbir. Es la cabeza visible de un modelo

9 En Las redes del poder (1992), Foucault analiza los distintos mecanismos del
funcionamiento del poder y alude a un tipo de poder del orden de la representaci-
ón, donde la figura del soberano es la cara visible de una concentración del mismo.

550
de funcionamiento de poder vertical que desde esa pirámide gobierna
un kósmos que se mantiene regulado porque él mismo constituye el
principio de inteligibilidad.
Recorrer el episodio de la tifonomaquia instalados en el corazón
del combate nos permite inteligir esa acumulación de poder que rea-
firma la consolidación de la soberanía de Zeus, al tiempo que define
políticamente los tópoi diferenciados de lo Mismo y de lo Otro. Tifón
desde su alteridad reafirma la identidad de Zeus.

Ζεὺς δ᾽ ἐπεὶ οὖν κόρθυνεν ἑὸν μένος, εἵλετο δ᾽ ὅπλα,


Βροντήν τε στεροπήν τε καὶ αἰθαλόεντα κεραυνόν,
πλῆξεν ἀπ᾽ Οὐλύμποιο ἐπάλμενος: ἀμφὶ δὲ πάσας
ἔπρεσε θεσπεσίας κεφαλὰς δεινοῖο πελώρου.
αὐτὰρ ἐπεὶ δή μιν δάμασεν πληγῇσιν ἱμάσσας,
ἤριπε γυιωθείς, στενάχιζε δὲ γαῖα πελώρη.

Zeus, una vez que acumuló su valor, tomó sus armas,


el trueno, el relámpago y el ardiente rayo.
Lanzándose desde el Olimpo, lo hirió, y en derredor todas
las divinas cabezas del terrible monstruo incendió.
Una vez que lo dañó, fustigándolo con sus golpes,
lo derribó, mutilado. Y se lamentaba la enorme tierra. (Teogonía,
853-858)

La huella lexical del verbo κορθύνω, “alzar, amontonar”, nos


ubica en la acumulación del valor que venimos tematizando y en
la consecuente posesión de poder, corroborada por el hecho de
tomar sus armas, ὅπλα. Alzarse con el valor y desplegar el poder
mortífero de sus armas constituyen el pasaporte a una victoria que
conoce su punto de arranque cuando Zeus lo hirió. El campo del
verbo πλήσσω, “golpear, pegar, herir”, abre la metáfora agonística
del enemigo derrotado, cuando en realidad se trata de la derrota de
esa fuerza a-cósmica que jaqueaba el principio de legalidad de lo
real en su conjunto.

551
No hacemos referencia a una mera victoria divina, sino a la po-
sibilidad ontológica de que el kósmos permanezca y conserve su
identidad. Retorna también la metáfora ígnea que propusimos como
herramienta interpretativa. Zeus incendió con su arma las divinas ca-
bezas del monstruo siguiendo la huella del verbo πίμπρημι, “quemar,
incendiar”. El modelo que toma la batalla se juega en el escenario
de las llamas como castigo ejemplar. El castigo resulta directamente
proporcional a la falta cometida.
Entonces, fustigándolo con sus golpes, dio por terminado el
episodio. El campo lexical del verbo δαμάζω reafirma el poder de
Zeus, “domar, amansar, someter, dominar, derribar”. En realidad, el
Crónida está derribando cualquier conjura contra el orden que ine-
xorablemente avanza hacia formas más justas y equilibradas. Ese es
el gran mensaje de Teogonía. Al amansar al monstruo, domina toda
forma de Otredad que atenta contra su soberanía regia.
El verbo ἐρείπω, “echar abajo, destruir, aniquilar”, remata la cris-
talización de la soberanía e invierte definitivamente la ecuación
originaria. Tifón pretendía derrotar a Zeus y es el derrotado. El triunfo
del monstruo hubiese invertido el desarrollo teogónico y hubiese re-
trotraído el kósmos a un estado de indefinición que hubiera aniquilado
la progresión exitosa y optimista. Tal como sostiene Gernet, cuando
se refiere a la existencia de dos razas o dos mundos impermeables,
la humana y la divina, recogida por esa especie de filosofía popular
que es la poesía sapiencial 10, la visión del kósmos es optimista ya
que, más allá de los avatares que jaquean la regularidad y norma-
tividad, el orden está asegurado por el principio de inteligibilidad
que Zeus representa desde su soberanía ingentemente construida.

10 Gernet 1981: 16.

552
Desafiar al Soberano

φλὸξ δὲ κεραυνωθέντος ἀπέσσυτο τοῖο ἄνακτος


οὔρεος ἐν βήσσῃσιν ἀιδνῇς παιπαλοέσσῃς,
πληγέντος. πολλὴ δὲ πελώρη καίετο γαῖα

Una llama se precipitó del soberano fundido por el rayo,


En los valles sombríos y escarpados de la montaña,
Golpeado; ampliamente la enorme tierra ardía (Teogonía, 859-861)

Tifón ha pretendido transgredir el tópos que le corresponde


frente a la soberanía de Zeus Padre, conocedor de designios, y ello
amerita una forma de castigo ejemplar que genere en los mortales
e inmortales esa memoria constante y fija de la que habla Nietzsche
para que ningún mortal ose una gesta semejante.
Se abre entonces el espectáculo del castigo, el ceremonial de la
pena; porque solo el castigo que se compaña con una ritualización que
apela a la percepción del cuerpo supliciado se inscribe en la memoria.
En esta empresa de ficcionar una memoria, “tal vez no haya, en la
entera prehistoria del hombre, nada más terrible y siniestro que su
mnemotécnica. Para que algo permanezca en la memoria se lo graba
a fuego; sólo lo que no cesa de doler permanece en la memoria” 11.
Las imágenes dantescas que estamos visualizando y el destino último
de Tifón es la imagen más rotunda de la relación castigo-cuerpo. El
cuerpo del que ha transgredido una norma ancestral es el teatro de
operaciones de un castigo que hace memoria.
Zeus, en su calidad de garante de la justicia y de los tópoi que
no deben ser transgredidos para que se conserve la armonía del kós-
mos, es quien dispone estas marcas. Entonces, el castigo es el brazo
ejecutor de la memoria que los hombres deben incorporar para no
cometer la falta del hijo de Gea.

11 Nietzsche 1972: 69.

553
Zeus ha sido provocado y el castigo ejemplar es el rito que cierra
la transgresión; el sufrimiento físico y el dolor del cuerpo, los ele-
mentos constitutivos de la pena. Zeus ha sufrido una afrenta que lo
ha herido en su calidad de Padre. Entonces, el castigo se presenta
como un verdadero arte de las sensaciones. El espectáculo del fuego
es un festival visual que recuerda el “no debes”.

Conclusiones

Nuestro trabajo consistió en proponer una lectura del episodio


de la tifonomaquia en clave política, destacando los juegos de poder
a partir de la transgresión de Tifón. Dividimos el artículo en una
serie de segmentos, abarcando los elementos nodulares del conflicto
desde la interpretación política y desde las herramientas filológicas.
Antes de entrar de lleno en la batalla, relevamos la importancia
del mito como operador de sentido, inscrito en la arquitectura dis-
cursiva hesiódica desde la lógica del linaje, para ubicar a Tifón en
la esfera nocturna a partir de su expuesta Otredad.
Analizando el corazón de la contienda, pudimos desenmascarar
un mecanismo de funcionamiento del poder, enmarcado en la lógica
de la representación. Vimos cómo se opera su acumulación en manos
del Crónida, cabeza visible de un dispositivo político que agencia
también los medios del castigo, modo paradigmático de crear una
memoria capaz de impedir que ninguna fuerza a-cósmica se atreva
a retrotraer el orden a un estado originario.

Bibliografia

Fuentes

Hesíodo (2000), Obras y fragmentos. Madrid: Gredo.


Hesiod (2006), Theogony. Works and Days. Testimonia. Trad. y ed. de G. W. Most.
London: Harvard University Press.

554
Estudios

Castoriadis, C. (2006), Lo que hace a Grecia I. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.
Colombani, M. C. (2005), Hesíodo. Una introducción crítica. Buenos Aires: Santiago
Arcos.
Colombani, M. C. (2016), Hesíodo. Discurso y Linaje: una aproximación arqueológica.
Mar del Plata: EUDEM.
Deleuze, G., Guattari, F. (1997), Mil Mesetas. Valencia: Pre-textos.
Foucault, M. (1992), Las redes del poder. Buenos Aires: Almagesto.
Gernet, L. (1981), Antropología de la Grecia Antigua. Madrid: Taurus.
Gigon, O. (1985), Los orígenes de la filosofía griega. Buenos Aires: Gredos.
Nietzsche, F. (1972), La Genealogía de la moral. Madrid: Alianza.
Rodríguez adrados, F. (2001), “La composición de los poemas hesiódicos”, EMÉRITA
LXIX.2: 197-223.

555
(Página deixada propositadamente em branco)
ARTE
(Página deixada propositadamente em branco)
C o r p o s at l é t i c o s g r e g o s *1

Greek Athletic Bodies

À Maria de Fátima Sousa e Silva

Fábio de Souza Lessa


Univ. Federal do Rio de Janeiro, LHIA, CECH
ORCID: 0000-0002-4829-6651
fslessa@uol.com.br

Resumo: Nesse texto, propomos refletir sobre modelos cênicos de figu-


ração dos corpos dos atletas nas imagens áticas em suporte cerâmico
do período clássico (séculos V e IV a.C.). Apesar de existir um modelo
hegemônico de figuração do corpo do atleta – aquele ao qual cha-
mamos apolíneo –, este não era único. Os corpos atléticos helênicos
que se distanciam desse modelo idealizado se constituirão em nosso
objeto de estudo, revelando a sua pluralidade e a sua historicidade.

Palavras-chave: Grécia Clássica, corpo, práticas esportivas, Fat Boy Group

Abstract: In this text, we propose a reflection on the scenic models of


figuration of athletes’ bodies found in Attic vases from the Classical
period (5th and 4th centuries BC). Even though a hegemonic model
of depicting the athlete’s body exists – i.e., what we call the Apollo-

*1 Este texto resulta de discussões efetuadas com as Professoras Doutoras Maria


de Fátima Sousa e Silva e Maria do Céu Fialho quando da realização do meu estágio
pós-doutoral na Universidade de Coimbra.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_25
nian body – this model was not unique. Thus, our object of study
will consist of Hellenic athletic bodies that diverge from the idealized
model, revealing their plurality and historicity.

Keywords: Classical Greece, body, sports practices, Fat Boy Group

1. Introdução:

E, certamente, se quiserem representar formas totalmente belas,


como não é fácil encontrar um único homem com todos os requisitos,
vão buscar aos vários modelos o que cada um deles tem de mais belo
e compõem corpos que possam parecer belos no seu todo. 1

A epígrafe com a qual iniciamos este texto é reveladora de nossa


proposta de trabalho. Iremos refletir sobre a pluralidade de figura-
ção de corpos de atletas Gregos buscando desconstruir o modelo
hegemônico comumente pintado nas cerâmicas áticas do período
clássico. Até mesmo porque, conforme destacou Simon Goldhill,
“o corpo perfeito oferecia ao cidadão grego um modelo difícil de ser
seguido”. 2 Porém, vale ressaltar que essa idealização do corpo do
atleta não foi algo restrito aos artesãos; ela se faz presente também
nas narrativas literárias.
Defendemos que o corpo – sôma – porta em si a marca da vida
social, sendo sempre uma representação da sociedade, isto porque ele
é cultural e historicamente construído.3 Logo, gestos e tratamento do
corpo podem ser concebidos como vinculados ao contexto social. No
caso grego em especial, podemos afirmar que exposto publicamente
“os corpos demonstram que tipo de homem são, e como vivem”.4

1 Xen. Mem. 3.10.2.


2 Goldhill 2007: 20.
3 Rodrigues 1975.
4 Goldhill 2007: 21.

560
Não podemos deixar de reforçar que o corpo humano é também sim-
bólico, plural e polissêmico. Com isso, não queremos, e nem mesmo
poderíamos negar o seu aspecto biológico. No caso de Atenas, os
corpos nas disputas atléticas comunicam o que a sociedade espera
dos seus cidadãos: força, agilidade, coletividade, desnudamento – o
ato de exibir-se publicamente –, coragem, virilidade, honra, areté....5
Recuperando uma discussão anterior sobre o conceito de corpo
(sôma) para os Helenos 6, salientamos que ele é definido por Bailly 7
como “corpo, em oposição à alma”, seguindo a contraposição entre
corpo (sôma) e alma (psyché) estabelecida no Górgias de Platão (493a).
Já nos poemas homéricos, corpo possui o sentido mais frequente de
“corpo morto, cadáver”. 8 Aqui sôma (cadáver) aparece em paralelo
a démas9, “estrutura corporal, corpo, ser vivo”. Comumente démas
surge em Homero significando estatura, aspecto externo.
Já em Hesíodo, sôma adquire o sentido de “corpo vivo, em par-
ticular do homem” 10, sendo um corpo que se constrói na esfera da
cultura e do trabalho. Passando do arcaico para o período clássico,
o corpo é apresentado como capaz de executar “trabalhos ou exercícios
corporais”; ou ainda como o que proporciona “prazeres” controlados
pelo autodomínio, conforme reflexões de Xenofonte. 11 Essas defini-
ções de Hesíodo e de Xenofonte se vinculam mais estreitamente ao
nosso objeto de estudo, isto é, aos corpos dos atletas.
Em Hipócrates podemos dizer que a experiência vivida por cada
indivíduo deixa a sua marca no corpo e na alma. No que se refere
à relação corpo e alma, o autor afirma estar a alma a serviço do
corpo. 12 Ainda no período clássico, Platão assegura que o corpo

5 Lessa 2017b: 37.


6 Lessa 2017b: 36-37.
7 Bailly s.v.
8 cf. Il. 7.79; Od. 11.53.
9 Bailly, s.v.
10 Hes. Th. 649-50; Hes. WD 538.
11 Xen. Mem. 2.8.2 e 1.5.6.
12 Hp. Acut. 4.86.

561
é a nossa sepultura 13 e que a alma é superior a ele. 14 Segundo
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, “seja no Corpus Hipocrático,
seja em Platão o corpo do homem é moldado por valores culturais
significando uma constante coerção e controle de si”. 15
Esta relação tão cara aos Helenos, a entre corpo e alma, também
foi objeto de atenção de Sófocles. Em Édipo Rei, o poeta destaca que
o protagonista se encontra preso em seu próprio corpo; já em Ájax,
a mensagem é a de que os homens fortes são aqueles com grandeza
de alma, não de corpo. 16
Os corpos dos atletas e suas formas de figuração se constituem
em proposta de análise de nosso texto a partir das imagens áticas
pintadas em suporte cerâmico. Assim como Goldhill, partiremos do
princípio de que havia entre os Gregos antigos uma crença artística
que propiciava regras abstratas para o corpo perfeito – aquele que
intitulamos de apolíneo. Essas regras permitiam avaliar um corpo,
real ou esculpido, e discuti-lo.17 Acreditamos que tais regras também
se aplicam à imagética.
Selecionamos para análise um pequeno corpus imagético que
nos permitirá perceber a pluralidade das figurações dos corpos dos
atletas. Dentre as imagens, duas fazem parte do acervo do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vítima de um
incêndio em setembro de 2018. O parâmetro para refletirmos sobre
a pluralidade de figurações físicas dos atletas será o conjunto de
vasos reunido por John D. Beazley no Fat Boy Group.

13 Pl. Grg. 493a. Cf. Pl. Phdr. 82c-83b. “... esta (a alma) se encontra como que
ligada e aglutinada ao corpo, por intermédio do qual é forçada a ver a realidade como
através das grades de um cárcere, ...”.
14 Pl. Phdr. 79c-80a.
15 Lima 2000: 73.
16 S. OT 1382-1431; Aj. 1239-93. Cf. Lima 2000: 73.
17 Goldhill 2007: 23.

562
2. Corpos atléticos plurais na imagética ática

As disputas esportivas têm no corpo do atleta uma de suas falas.


Decodificar essas falas é a proposta de nossa pesquisa. Neste sen-
tido, afirmamos que a figuração do corpo nas imagens áticas cuja
temática são os agônes desportivos segue um padrão geométrico que
reforça as virtudes da força, da virilidade, da coragem, da estética...
Porém, este padrão de figuração do corpo do atleta não era o único
a circular no mundo grego antigo. A kýlix do pintor Fidipo – Figura
1 – que começaremos a analisar nos permite desconstruir a ideia
da existência de um único padrão de representação dos corpos na
imagética ática. A presente taça foi encontrada em Vulci, na Itália, e
data da passagem do século VI para o V a.C.

Figura 1

Localização: London, British Museum – E 6 – 1846. 0512.2,


Temática: práticas esportivas, Proveniência: Vulci (Etrúria),
Forma: Kýlix, Estilo: Figuras Vermelhas, Pintor: Fidipo (artesão: His-
chylos), Data: aprox. 525-475 a.C., Indicação Bibliográfica: Spivey 2005:
61, fig. 9; Gardiner 2002: 59, fig. 2; Osborne 2011: 58, fig. 3.2.; Lessa
2017a: 108, fig. 14; www.beazley.ox.ac.uk/index.htm (vaso num. 200378
– consultado em junho de 2020). Desenho de Lidiane Carolina Carderaro
dos Santos.

Temos quatro personagens jovens em uma cena tipicamente de


treino e não de disputa. Normalmente os pintores davam mais aten-
ção aos preparativos das diversas modalidades do que propriamente

563
à realização dos exercícios. 18 Seus gestos, movimentos dos corpos
e posicionamento argumentam nossa afirmação de se tratar de uma
cena de treino. A nudez masculina nos remete, de imediato, para a
condição de atleta dos personagens. Por meio da nudez, os artesãos
Gregos transmitiam qualidades viris, como a coragem, a força e a
velocidade.
A cena se passa em um mesmo quadro espaço-temporal, o que
pode ser observado pela sincronia de movimentos e gestos dos per-
sonagens que a compõem, havendo apenas a sutileza por parte do
pintor em agrupar os atletas em duas duplas, separadas pelo banco
contendo os mantos dos competidores no centro da cena, de acordo
com a constituição dos seus corpos.
Ao observarmos a imagem, temos a impressão de que o pintor
optou por marcar diferenças entre as duplas de personagens. Na
direita, vemos os atletas com os corpos representados de forma
mais similar à idealização comum às imagens áticas e praticando
o lançamento do disco e do dardo; enquanto na esquerda, outros
atletas cujos corpos foram apresentados distanciados do referido
padrão geométrico, pois enquanto um deles tende ao extremamente
magro, o outro é gordo. De acordo com Spivey e com Gardiner 19,
há entre eles uma relação de disputa, o que pode ser verificado pelo
movimento dos seus braços. Parece existir também uma referência
ao boxe na imagem, pois um dos atletas (o gordo) segura uma tira
de couro – os himántes, cuja utilidade era firmar a articulação dos
pulsos e estabilizar os dedos da mão. 20
Quanto à dupla posicionada à direita da cena, podemos supor
que o pintor intencionasse enfatizar a beleza dos atletas através da
justa-medida e da simetria das formas e da musculatura, enfatizando
o corpo rígido conforme deveria ser o do cidadão. No corpo dos
personagens estão impressos equilíbrio, força, proporção, movi-

18 Schnapp 1996: 46.


19 Spivey 2005: 59; Gardiner 2002: 58.
20 Lessa 2017a: 108-9.

564
mento, além do ideal da kalokagathia21, tão importante para a vida
cívica na pólis, ideal este também explicitado pela nudez do atleta.
Concordamos com Alain Schnapp que “a juventude é um estado de
graça, e as artes plásticas são o meio de valorizar esse momento
particular da vida do cidadão”. 22
Certamente a intenção do artesão tenha sido a de realçar que o
corpo apolíneo, com as formas mais definidas, estivesse mais próxi-
mo dos cidadãos que praticavam o lançamento do disco e do dardo,
modalidades que colocavam mais em relevo o movimento e a flexi-
bilidade corporais, em especial da parte superior do corpo, como
pudemos verificar em Filóstrato.23 A singularidade dessa imagem
é, conforme mencionado, nos permitir visualizar tipos variados de
corpos, isto é, que os corpos são sempre plurais.
Nesse momento, podemos recuperar algumas colocações de Simon
Goldhill. Segundo o helenista, “a forma ideal [dos corpos] não é nem
muito magra nem muito gorda, mas perfeitamente balanceada”. 24
Nesse sentido, os atletas que se encontram na parte esquerda da cena
fogem completamente a essa forma ideal. Segundo ainda Goldhill 25,
os pintores deveriam estar atentos ao modelo de figuração dos cor-
pos, que deveria seguir alguns princípios, a saber:

1. O corpo deve ser magro, mas bem desenvolvido, isto é, encor-


pado pela prática do exercício, mas não gordo ou exageradamente
musculoso;
2. Os músculos devem ser bem trabalhados e o peitoral definido;

21 Palavra oriunda da junção dos termos kalós (belo) kai (e) agathós (bom),
qualidades de um kalokagathos, homem bom e belo tanto física quanto eticamente.
Cf. Sousa 2013: 232.
22 Schnapp 1996: 35.
23 Philostr. Gym. 3.
24 Goldhill 2007: 21.
25 Goldhill 2007: 22.

565
3. As coxas são poderosas, as panturrilhas nitidamente deli-
neadas, o pênis pequeno e sempre imberbes, uma referência à
juventude.

Conforme mencionamos no início deste texto, a idealização do


corpo grego não é algo exclusivo dos pintores áticos, mas também
se faz presente na literatura; vejamos:

Os nossos jovens com cor, bronzeados pelo sol, têm um ar


másculo, cheio de vida, fresco e vigoroso, refletem a boa condição
física, nenhum deles está enrugado ou com peso a mais, mas são
bem constituídos. O que não interessa, o excesso de carne, é dis-
solvido pelo suor, o que sustenta o vigor e a energia é a pureza
que fica do que é mau, restando o que é saudável; tal como os
peneiradores fazem ao trigo, os nossos exercícios fazem aos nos-
sos corpos: atiram fora a palha e a barba, e separam e guardam o
grão limpo. 26

A passagem da obra Anacársis ou Sobre os exercícios físicos de


Luciano de Samósata (século II d.C.) é elucidativa desta questão e
atesta que tal ideal persistiu por séculos após a circulação das imagens
áticas do período clássico. Jovens com cor, ar másculo, vigorosos,
portando boa condição física, nem magros nem gordos, bem cons-
tituídos e imberbes, são alguns dos atributos físicos dos atletas na
idealização de Luciano. Apesar de seu reforço por séculos, padrões
diferenciados de figuração dos corpos coexistiram com a idealização
descrita em textos imagéticos e literários.
Assim, podemos pensar no que, de fato, explica a padronização
da figuração dos corpos atléticos que predomina na cerâmica ática.
Trabalhamos com a hipótese de que a estética do corpo do atleta
vincula-se a um padrão de proporções aritmético e geométrico. Em

26 Lucianus Anach. 25.

566
pesquisa anterior27 atentamos para a construção desse padrão a partir
das formas geométricas do triângulo e do pentagrama estrelado. O
triângulo por ter a sua constituição a partir da tétractys – sequência
dos quatros primeiros números: 1, 2, 3, 4 que em conjunto resultava
no número 10 (1+2+3+4= 10) – estava presente nos demais números
figurados, como o quadrado, o pentágono e, dessa forma, se fazia
presente no plano geométrico das representações do corpo. 28
O método do pentágono regular e do pentagrama (o pentágono
estrelado), formado pelas diagonais de um pentágono regular, foi
o mais usado para a composição das representações gregas, em
especial durante o século VI a.C. e a primeira metade do V a.C. 29,
o que explica as semelhanças dos corpos na cerâmica e também na
estatuária. Não observamos uma mudança evidente nessa forma de
representação durante o período clássico como um todo.
Mas os personagens presentes à esquerda da kýlix que estamos
analisando se distanciam desse padrão de proporções aritméticas e
geométricas. Se os corpos são plurais, conforme já mencionamos,
acreditamos que as suas representações também o são, coexistindo
junto às idealizações dos corpos dos atletas e, por serem padroni-
zadas, se distanciam da realidade cotidiana, que constituem outras
formas de representação. Até mesmo porque os hábitos de exposição
corporal são determinados pela cultura. 30
Esta pluralidade dos corpos se faz presente na imagem pintada
numa oinochoe do “Fat Boy Group” – Figura 2 –, que, segundo John
Boardman, se dedica aos jovens e atletas disformes. 31 Ao invés de
disformes, esses atletas enunciam um modelo diferente de represen-
tação em nossa interpretação.

27 Lessa 2011: 39-41.


28 Segundo os pitagóricos, o dez é o mais perfeito dos números possíveis. Ghyka
1959: 34-5.
29 Van Der Grinter 1966: 13-14.
30 Goldhill 2007: 24.
31 Boardman 1997: 193.

567
No Beazley Archive, que inclui a maior coleção de imagens de
cerâmica antiga figurativa, encontram-se, numa rápida e simples
pesquisa, 492 vasos áticos que juntos formam o Fat Boy Group.
Como característica comum aos vários personagens pintados nos
vasos desse grupo temos o distanciamento do padrão apolíneo de
figuração dos corpos. Todos são, em essência, fat. Dos 492 vasos,
490 são do estilo chamado de figuras vermelhas 32, 474 foram pro-
duzidos no período compreendido entre 400 e 300 a.C. (século IV
a.C.) e alguns possuem proveniência da região da Itália. É importante
destacar que a circulação dos vasos se dava majoritariamente fora de
Atenas.
A oinochoe que passaremos a analisar é uma das mais de 700
peças – datadas entre o século VIII a.C. e o início da era cristã –
que compõem a Coleção Teresa Cristina com exemplares de origem
greco-romana e etrusca, o maior e mais importante da América
Latina. 33

32 O estilo chamado de figuras vermelhas se constitui pela apresentação dos


elementos da decoração em tom claro sobre fundo escuro.
33 Uma parte dessa coleção compunha o dote trazido para o Brasil em 1843 pela
Imperatriz quando do casamento com o Imperador D. Pedro II. Outra resultou do
envio ao Brasil de peças provenientes do Museu Bourbônico – atual Museu Nacional
de Nápoles – pelo seu irmão Ferdinando II de Nápoles. O notável interesse de Teresa
Cristina pela arqueologia, tendo conduzido inclusive escavações em Veios, permitiu
a aquisição do conjunto de peças da Coleção, todas oriundas de sítios arqueológi-
cos da Itália, em especial de Pompeia e Herculano. Até a Proclamação da República
(1889) – quando a Imperatriz deixa o Brasil –, o acervo do Museu Nacional continuou
a ser enriquecido.

568
Figura 2 34
FACE A

FACE B FACE C

Localização: Museu Nacional do Rio de Janeiro – inv. 1447, Temática: salto,


Proveniência: Não fornecida, Forma: oinochoe, Estilo: Figuras Vermelhas,
Pintor: The Fat Boy Painter, Data: 400-300 a.C. (Beazley), início do século V
a.C. (Catálogo do MN/UFRJ), Indicação Bibliográfica: Catálogo da Exposição
Cerâmicas Antigas da Quinta da Boa Vista, Museu Nacional de Belas Artes.
1996: 86; www.beazley.ox.ac.uk/index.htm (vaso num. 230630 – consultado
em junho de 2020); Lessa 2017b: 41, fig. 2. Foto da direita foi cedida
gentilmente pelo Prof. Dr. Antonio Brancaglion Júnior (MN/UFRJ).

34 Tivemos outras duas oportunidades de analisar essa oinochoe do acervo do


Museu Nacional da UFRJ em artigos publicados no Brasil (Lessa 2017b; Lessa 2006),
mas o retorno a ela, com revisões nas interpretações, se justifica pela importância
da divulgação do acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro fora do país e pelo
fato do vaso ter sobrevivido praticamente intacto ao terrível incêndio do Museu em
2 de setembro de 2018.

569
No centro da imagem há um jovem nu, em perfil, com as pernas
fletidas e com os braços estendidos para frente, como se fosse saltar
sobre o marco. A cena denota movimento, o que pode ser compro-
vado pela posição dos braços, pernas e do tórax do jovem. Este
movimento desenvolvido pelo personagem, bem como a sua nudez,
nos possibilita afirmar ser ele um atleta.
Nas extremidades da cena contamos com a presença de dois
outros personagens que se encontram de pé e vestidos. Podemos
associá-los ao conceito de narradores-espectadores proposto por Ann
Steiner. Esses são os narradores anônimos que possuem a finalidade
de indicar aos receptores dos vasos a forma como entender a ação
representada na cena. Segundo ainda a classicista 35, a existência de
dois personagens que assistem a cena central nos dois lados extre-
mos cria um paralelo que estabelece uma relação de sinônimo ou
antônimo – ver faces B e C.
Mas qual seria a função desses narradores-espectadores? Eles atu-
am como marcos que indicam aquilo que é central na representação,
nos remetendo às figuras que respondem à história ou à atividade
que tem lugar no centro da cena. Não podemos perder de vista que
esses espectadores na cerâmica possuem dupla função, pois narram
e participam da ação. Em síntese, o espectador na imagem permite
ao espectador da imagem um acesso distinto ao conteúdo da cena. 36
O fato de serem de faixa etária semelhante à do atleta dificulta a
identificação desses dois últimos personagens. Eles não são atletas,
pois se encontram vestidos. Poderíamos pensar se tratar de instru-
tores (paidotríbai), mas não contamos com nenhum signo de poder
exercido sobre o atleta. Em outras imagens com situação semelhante,
encontramos personagens vestidos portando fita no cabelo, signo
de vitória e possivelmente de mais experiência que o atleta pintado,
e fazendo uso de uma haste para a correção dos movimentos do

35 Steiner 2007: 53 e 55.


36 Steiner 2007: 55-7.

570
atleta, signo este claramente de poder. 37 Contudo, os dois perso-
nagens vestidos mantêm cada qual um dos braços erguido, como
se conversassem ou contassem qualquer coisa a respeito do atleta.
Partindo do princípio de que os gestos são polissêmicos, a repre-
sentação dos braços erguidos na cena pode indicar uma situação de
poder sobre o atleta. Defendemos que cada gesto pode ter em si
múltiplos significados que se encontram atrelados à cultura que o
produz.
O corpo deste atleta é totalmente disforme do comum nos vasos
áticos se distanciando dos princípios elencados anteriormente por
Simon Goldhill. Faltam a ele traços mais delineados, equilíbrio e
simetria das formas e da musculatura. Ele não representaria o ide-
al estético da beleza helênica, calcado na noção de justa-medida.
Porém, não é propriamente gordo, como um dos personagens da
imagem anterior, pois não possui um abdômen avantajado. Apresenta
formas desproporcionais, possuindo o tórax mais musculoso que o
restante do corpo. Ele nos parece pesado. Apesar de que Filóstrato38,
ao indicar diferenças entre modalidades esportivas helênicas, afir-
ma que, enquanto o lançamento do disco é uma prova pesada,
como a luta, o salto e o arremesso do dardo se associam à corrida,
pois são modalidades ligeiras. Logo, o salto exigiria corpos mais
leves.
Ainda recorrendo a Filóstrato 39, podemos observar que a muscu-
latura desenvolvida pela prática do salto se concentra nas pernas.
Logo, o incremento no personagem do tórax não é condizente com
as informações fornecidas pelo filósofo.
Defendemos que a cena pintada no vaso se passa no mesmo qua-
dro espaço-temporal, o que pode ser observado pela sincronia de

37 Da mesma forma, os dois personagens não podem ser identificados como pai
ou erastés do atleta também pelo fato de serem imberbes, mesmo em se tratando
de uma imagem que julgamos distanciada do modelo de representação comum na
cerâmica ática.
38 Philostr. Gym. 3.
39 Philostr. Gym. 3.

571
movimentos e gestos dos personagens que a compõem. Em ambos os
vasos analisados – Figuras 1 e 2 –, os jogos de olhares dos persona-
gens são em perfil, o que significa que a comunicação estabelecida
é interna, não permitindo o diálogo com o público receptor.
Outro aspecto a ser destacado é a ausência de cuidado com a
estética da cena pintada. A precariedade da representação dos deta-
lhes – como mãos e rostos, em especial – pode evidenciar a adoção
de técnicas menos refinadas do que as que prevalecem na imagética
ática mais preponderante como, por exemplo, a utilizada nos per-
sonagens posicionados à direita na kýlix analisada na figura 1. Ou
ainda, revelar a qualidade inferir do próprio pintor.
Partidários da defesa de que as imagens revelam a própria socieda-
de que as produziu e que na pólis “o corpo do cidadão é propriedade
pública” 40, conjecturamos hipóteses que possam explicar a opção
pela representação de corpos de atletas fora do padrão estético co-
mum à iconografia ática.
Pensar na produção desses vasos como reveladora de um es-
paço para as vozes dissidentes da democracia se expressar foi o
que de imediato nos ocorreu 41 ou até mesmo a existência, na vida
política ateniense, de espaços para a publicização de opiniões
divergentes e de críticas aos modelos consolidados. Porém, essas
interpretações carecem de dados empíricos, pois contamos somente
com seis vasos no Fat Boy Group cuja proveniência é ateniense 42,
o que não nos autoriza a defesa dessa hipótese. Não nos esqueça-
mos, entretanto, de que o período de produção dessas cerâmicas
é, segundo Beazley, 400-300 a.C. Durante o século IV a.C. Atenas
vive contextos políticos diferenciados: ela reestrutura a sua forma
de governo a partir de 403 a.C. com o retorno da democracia após
os golpes oligárquicos, perde a hegemonia no mundo grego, vive
uma crise expressiva do pós-guerra e ainda vivencia o fim da forma

40 Goldhill 2007: 27.


41 Lessa 2006: 105-19; Lessa 2017b: 43.
42 Ver tabela 4. Lessa 2017b: 39.

572
de governo que a singularizou no mundo grego. Certamente esses
vasos permitem uma reflexão acerca desse período de crise de
Atenas.
Se a hipótese de crítica à democracia não se sustenta plenamente,
uma explicação para essa opção poderia ser a necessidade de pôr em
relevo as diferenças entre a idealização e a realidade na figuração
dos corpos dos atletas. Nesta concepção, tais corpos estariam mais
próximos daqueles encontrados no cotidiano grego. Até porque seria
inverossímil aceitar que todos os Helenos fossem belos e portassem
um físico igualmente belo. 43 Não podemos esquecer que “a arte do
pintor consiste em servir-se da observação para ultrapassar a singu-
laridade dos seres e chegar (...) à qualidade estética que transcende
cada detalhe ...”. 44
Não há dúvida de que existia um mercado consumidor para tais
enunciados. Ao observar os 492 vasos que compõem o Fat Boy Group,
verificamos, conforme já dito, que apenas seis circularam em Atenas
dentre o conjunto que conta com a indicação de proveniência. Logo,
o mercado consumidor dessas cerâmicas não era, sobretudo, o ate-
niense. Ao que parece a representação dos corpos pelos e para os
Atenienses primava pela beleza apolínea.
Partimos do princípio de que a principal intenção do pintor era a
de fazer uma crítica direta ao padrão hegemônico de funcionamento
da própria sociedade ateniense. Ao representar um atleta fora dos
padrões estéticos convencionais moldados por uma elite, o pintor,
da mesma forma que o comediógrafo, por exemplo, inquietava a
sociedade e a fazia refletir sobre si mesma. Apontava ainda para
a heterogeneidade dos discursos que compõem a pólis dos Ate-
nienses.
A pesquisa feita no corpus do Fat Boy Group aponta para a pre-
sença de vasos da região da Etrúria, situação idêntica à da kýlix

43 Tiverios 2015: 108-10.


44 Schnapp 1996: 35.

573
– Figura 1 – que analisamos. 45 Tal informação nos faz pensar que o
modelo de figuração do corpo pintado nos vasos do Fat Boy Group
atendia provavelmente a uma demanda do consumo etrusco ou na
Península Itálica num contexto mais amplo. Ou ainda que, da mesma
forma que tivemos um predomínio do estilo de pintura em suporte
cerâmico coríntio e depois ático, poderíamos estar sob a influência
de um modelo estético etrusco quando da produção desse conjun-
to de vasos. Talvez esse esquema pictórico predominasse entre os
Etruscos e tenha se tornado o referencial para o Fat Boy Group. É
importante mencionarmos a colocação de Dominique Briquel46 acerca
da imagem criada pelos Gregos sobre os Etruscos e que perpetuou
na literatura latina. Segundo a autora, os Gregos propagavam que
os Etruscos banqueteavam duas vezes por dia, expressando um luxo
excessivo e oferecendo elementos para concebê-los como obesos.
O Fat Boy Group pode manter alguma relação com a imagem que
vincula os Etruscos aos excessos nos banquetes.
Significativo é trazermos para a análise a informação já conhe-
cida de que os contatos entre Helenos e Etruscos – ou ampliando,
para as demais regiões da Itália – já se faziam presentes desde o
do período arcaico grego. 47 No que se refere especificamente aos
etruscos, Briquel 48 destaca a existência de uma riqueza em cerâmi-
ca ática das tumbas de Spina ou de Bolonha, atestando as trocas
entre as duas sociedades. Em sentido semelhante, La Genière 49 res-
salta a idêntica qualidade dos vasos que circularam em ambas as
sociedades.
A difusão de imagens gregas na região da Etrúria é indicada por
Pallottino 50 como um indício de uma rede de relações comerciais e
culturais entre Gregos e Etruscos. A figura 1, em certa medida, pode

45 Cf. Lessa 2017b: 39.


46 Briquel 1999: 183.
47 La Genière 1968: 215-23; Briquel 1999: 106-107; Pallottino 1999: 108.
48 Briquel 1999: 94.
49 La Genière 1968: 215-23.
50 Pallottino 1999: 181-84.

574
atestar tais contatos. A taça do pintor Fidipo de figuras vermelhas
circulou na Etrúria e contém a típica beleza e riqueza da cerâmica
ática. La Genière51 afirma que a cultura grega não teve dificuldades
de penetrar na Etrúria, reservando algumas formas de vaso à clien-
tela da região.
Todas essas interações, tanto na Etrúria quanto nas outras regiões
da Itália, resultavam de trocas comerciais, da atuação de intermediários
no processo de importação, de encomendas, de ralações religiosas,
de hospitalidade e de aquisição de prestígio social. 52 Não podemos
deixar de elencar ainda a circulação de artesão pelo Mediterrâneo.
Se os compradores – Gregos ou não Gregos – de vasos áticos
escolhiam às vezes tanto a forma quanto a imagem a ser decorada,
e que as suas experiências sociais eram consideráveis no processo
de produção dos vasos, podemos refletir acerca da presença dos
personagens fora do padrão ático apolíneo de representação. Aliamos
a essa colocação as informações anteriores que remetem às relações
entre Gregos e os habitantes das regiões da Itália.
Para tal questão, retornaremos à Coleção do Museu Nacional da
UFRJ. Selecionamos uma oinochoe de figuras vermelhas produzida
no sul da Península Itálica/Itália Meridional (Campânia) durante o
século IV a.C., mesmo período do vaso interpretado anteriormente
– Figura 2. A proposta não é analisar as cenas pintadas nos dois su-
portes, pois elas não fazem parte do repertório dos agônes atléticos
que se encontram no Fat Boy Group. 53

51 La Genière 1968: 215-216.


52 Cf. La Genière 1968: 215-223.
53 As suas temáticas são vinculadas aos rituais religiosos com a presença feminina.

575
Figura 3
FACE A FACE B

Localização: Museu Nacional do Rio de Janeiro – inv. 1694, Temática:


feminino x masculino – ritual pré-matrimonial, Proveniência: Campânia,
Forma: oinochoe, Estilo: Figuras Vermelhas, Pintor: não fornecido, Data:
séc. IV a.C.; Indicação Bibliográfica: Catálogo da Exposição Cerâmicas
Antigas da Quinta da Boa Vista, Museu Nacional de Belas Artes. 1996:
110. Foto da Face A foi cedida gentilmente pelo Prof. Dr. Antonio
Brancaglion Júnior (MN/UFRJ).

O que observamos nas cenas pintadas no vaso acima é a figuração


de corpos – masculinos e femininos – fora do padrão apolíneo pre-
dominante na cerâmica ática. Se há, conforme salientou La Genière,
uma incidência do meio social na produção dos pintores, afirmação
com a qual concordamos porque a imagem pressupõe a decodificação
dos seus enunciados por parte dos receptores, podemos defender
que o modelo de representação dos corpos da região da Península
Itálica atendia a padrões aritméticos e geométricos diferentes do
ático e, por isso, os corpos tendiam a ser mais robustos.
Os corpos dos personagens pintados nesta oinochoe apresentam
tórax, abdômen e pernas com musculaturas mais desenvolvidas. O
personagem masculino representado na face B do vaso elucida essa
situação, apesar de não ser propriamente fat. Vale destacar que ele
apresenta signos que remetem a um atleta: nudez, coroa na cabeça e
fitas na perna esquerda e na mão direita. Já a personagem feminina
representada na face A, apesar de vestida, também possui corpo mais
volumoso, se comparado com os vasos áticos.

576
Tais cenas corroboram a existência para a região da Península
Itálica de um padrão de representação dos corpos que prezava por
uma musculatura mais robusta, atendendo assim a um mercado con-
sumidor diferente do ateniense.
Retornaremos à possibilidade que considera a representação dos
atletas fora do padrão apolíneo como uma caricatura de atletas do
século IV a.C., no contexto ateniense. Neste caso também poderíamos
observar certa proximidade entre os discursos dos pintores e dos
comediógrafos. Também é plausível associar os atletas fora do padrão
apolíneo com os personagens gordos apresentados na comédia, em
especial na comédia nova.
Em As rãs (405 a.C.) de Aristófanes, Ésquilo, em sua defesa, faz
referência aos exercícios físicos. Na mesma obra, Dioniso ri diante
da presença de um atleta gordo que disputava uma prova atlética. 54
Ainda bem próximo da situação encenada nas peças de Aristófanes,
mas se distanciando da caricatura mais explícita e típica das comédias,
podemos pensar na figuração de corpos fora do padrão apolíneo
como uma crítica aos novos grupos sociais vinculados ao comércio
que emergem em Atenas no pós-Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.)
ou ainda como um novo tipo de figuração que atenda às demandas
dos novos mercados consumidores formados por esses novos ricos.
Porém, tal hipótese ainda carece de um estudo mais verticalizado.
Por fim, outra hipótese, que almejamos aprofundar futuramente.
A opção dos pintores em representar atletas com corpos fora do
padrão apolíneo pode nos remeter a uma crítica à paideia ou à falta
dela e, consequentemente, à formação da cidadania num momen-
to em que a pólis enfrentava um processo de crise, ou ao ideal de
pan-helenismo que os Jogos procuravam reforçar. No diálogo entre
Sócrates e Adimanto, na República55, Platão menciona a existência de
um pugilista rico e gordo – piónoin. A referência atesta a existência
de atletas fora do padrão normativo. Observa-se que o pugilista hábil

54 Ar. Ra.1006-89 e 1089-93.


55 Pl. R. 422b.

577
não é gordo, faltando ao atleta obeso a paideia, isto é, a ginástica
e a música. O texto é irônico com o atleta gordo, mas a reforça a
sua existência.

3. Conclusão

Iniciamos nossa conclusão ressaltando que as imagens figuradas


nos vasos áticos inundaram tanto os olhos dos cidadãos do perío-
do clássico, como os espaços públicos e privados Gregos. 56 Essa
expressiva diversidade nos permitiu refletir sobre a pluralidade dos
corpos pintados em suporte cerâmico ateniense. Ao analisarmos as
imagens e também as referências advindas da documentação literária
pudemos constatar a dimensão simbólica dos corpos, construídos
cultural e historicamente.
Mesmo ainda não tendo finalizado a presente pesquisa, verificamos
que o padrão hegemônico de figuração dos corpos atléticos, baseado
em modelos aritméticos e geométricos, dialoga com outros esquemas
estéticos de representação corporal. No caso específico das imagens
áticas, tivemos em mente que os objetivo dos pintores foi sempre
valorizar as qualidades atléticas dos jovens pintados nas imagens. 57
A partir da proveniência dos vasos – muitos da região da Itália
– ponderamos sobre a circulação dos mesmos, defendendo que os
mercados consumidores das cerâmicas áticas demandavam mensagens
distintas para os seus diversos receptores. Estudar a circulação desses
vasos e dos seus respectivos pintores pelo Mediterrâneo é fundamental
para a decodificação dos enunciados de suas imagens. Diversas são
as hipóteses que podem explicar a existência de diversos modelos
de figuração dos corpos dos atletas Gregos, conforme vimos, mas o
fundamental é termos em mente que existe um distanciamento entre
idealizações e práticas sociais. Além, é claro, de que os pintores ao

56 Goldhill 2007: 19.


57 Schnapp 1996: 45 e 50.

578
produzirem as suas obras obedeciam a regras estéticas de propor-
cionalidade, que são variáveis historicamente.

Bibliografia

Fontes

Aristófanes (2014), As rãs. Trad. T. Vieira. São Paulo: Cosac.


Filóstrato (1996), Gimnástico. Trad. Francesca Mestre. Madrid: Gredos.
Hesíodo (1981), Teogonia: a origem dos deuses. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Massao-
Ohno.
Hesíodo (2002), Os trabalhos e os dias. Trad. Mary C. N. Lafer. São Paulo: Iluminuras.
Homero (2011), Odisseia. Trad. F. Lourenço. São Paulo: Cia. das Letras.
Homero (2013), Ilíada. Trad. F. Lourenço. São Paulo: Cia. das Letras.
Hyppocrates (1992), Regimen. Trad. W.H.S. Jones. Cambridge-London: Harvard University
Press.
Luciano de Samósata. (2011), Anacársis ou Sobre os exercícios físicos. Trad. Catarina
Lopes Arqueiro. Coimbra: Universidade de Coimbra (Dissertação de Mestrado).
Platão (2002), Górgias. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA.
Platão (2002), Fedão. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA.
Platão (2010), A república. Trad. M. H. da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
Sófocles (2008), Aias. Trad. Flávio R. de Oliveira. São Paulo: Iluminuras.
Sófocles (2001), Édipo Rei. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Perspectiva/FAPESP.
Xenofonte (2009), Memoráveis. Trad. Ana E. Pinheiro. Coimbra: CECH/UC.

Estudos

Bailly, A. (2000), Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette.


Boardman, J. (1997), Athenian red figure vases: The Classical period. London: Thames
and Hudson, 1997.
Briquel, D. (1999), La civilization Étrusque. Paris: Fayard.
Gardiner, E.N. (2002), Athletics in the Ancient World. New York: Dover Publications.
Ghyka, M.C. (1959), Le Nombre d’Or. Paris: Gallimard.
Goldhill, S. (2007), Amor, sexo & tragédia: como os Gregos e romanos influenciaram
nossas vidas até hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
La Genière, J. (1968), Recherches sur l’Âge du fer en Italie méridionale: Sala Consilina.
Naples: Publications du Centre Jean Bérard.

579
Lessa, F.S. (2006), “Corpo e esporte em Atenas: análise de uma enócoa do Museu
Nacional da UFRJ”. Phoînix 12: 105-119.
Lessa, F.S. (2011), Mulheres de Atenas: do gineceu à agorá. Rio de Janeiro: Mauad X.
Lessa, F.S. (2017a), Atletas na Grécia Antiga: da competição à excelência. Rio de Janeiro:
Mauad X.
Lessa, F.S. (2017b), “Rompendo idealizações: os corpos atléticos Gregos”. Revista do
Museu de Arqueologia e Etnologia 29: 36-46.
Lima, A.C.C. (2000). Cultura popular em Atenas no V século a.C. Rio de Janeiro: 7Letras.
Museu Nacional (1996), Catálogo de Cerâmicas Antigas da Quinta da Boa Vista, Museu
Nacional de Belas Artes. Rio de Janeiro: Museu Nacional.
Osborne, R. (2011), The history written on the classical Greek body. Cambridge: Cambridge
University Press.
Pallottino, M. (1999), Etruscologia. Milão: Hoepli.
Rodrigues, J.C. (1975), Tabu do Corpo. Rio de Janeiro: Achiamé.
Schnapp, A. (1996), “A imagem dos jovens na cidade grega”, in G. Levi, J-Cl. Schmitt
(Org.), História dos jovens: da antiguidade à era moderna. São Paulo: Companhia
das Letras, 19-57.
Sousa, L.N. (2013), “O ideal de kalokagathia em Xenofonte: uma análise dos excessos”.
Romanitas – Revista de estudos Grecolatinos 2: 231-245.
Spivey, N. (2005), The Ancient Olympics. Oxford: Oxford University Press.
Steiner, A. (2007), Reading Greek vases. Cambridge: Cambridge University.
Tiverios, M. (2015), “Cuerpos de dioses, héroes y atletas hasta el período helenístico”,
in C. Sánchez Fernández, I. Escobar (coord.), Dioses, héroes y atletas: La imagen
del cuerpo en la Grecia Antigua. Madrid: Comunidad Autonoma Madrid – Servicio
de Documentation y Public, 103-120.
Van Der Grinten, E.F. (1966), On the composition of the medallions in the interiors of
Greek black and red-figured kylixes. Amsterdam: Noord-Hollandsche Uitg.

Sites

The Beazley Archive: www.beazley.ox.ac.uk/index.htm

580
O grande Serapeum de Alexandria:
E sb o ç o d e r e c o n s t i t u i ç ã o * 1

T h e G r e at A l e x a n d r i a n S e r a p e u m :
A S k e tc h f o r I t s R e c o n s t r u c t i o n

Rogério Sousa
Univ. Lisboa, CECH
ORCID: 0000-0002-8253-1707
solar.benu@gmail.com

Resumo: Apesar da severidade da destruição a que o Serapeum alexandrino


foi votado no ano de 391 d.C., as pesquisas arqueológicas empreendidas
durante o século XX permitiram obter informações importantes que aju-
dam a reconstituir a configuração geral do complexo. Face à exiguidade
dos dados arqueológicos, o cruzamento sistemático com as referências
escritas relacionadas com o Serapeum de Alexandria é fundamental para
compreender melhor o significado das suas estruturas, proporcionando-
-nos uma imagem mais completa sobre a sua configuração original. Este
estudo constitui um esboço no sentido de empreender essa tarefa.
Palavras-chave: Serapeum de Alexandria, Serápis, Egipto Greco-Romano

*1 A ideia para empreender o cruzamento das fontes literárias clássicas sobre o


Serapeum de Alexandria com os dados arqueológicos disponíveis no local foi desper-
tada pela apresentação da Professora Doutora Maria Fátima Silva sobre a fundação de
Alexandria, na intervenção que fez por ocasião do Colóquio «Alexandria ad Aegyptum:
A experiência de multiculturalismo na Antiguidade», realizado na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto em 2013. A sua invulgar capacidade para ler os textos
clássicos e devolvê-los com uma compreensão cristalina interpelou-me vivamente,
levando-me, ao longo do tempo, a alargar as minhas pesquisas sobre o Serapeum
alexandrino às fontes escritas clássicas. Dedico-lhe, por isso, este texto, em modesta
homenagem pela beleza com a qual soube envolver a leitura dos textos clássicos.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_26
Abstract: Despite the severe destruction that affected the Alexandrian
Serapeum in 391 AD, archaeological research carried out during the
20th century revealed important information that help us to reconstruct
the general layout of the complex. Given the exiguity of the archa-
eological data, the input of the written sources on the Alexandrian
Serapeum is crucial to better understand the meaning of its structures,
allowing us to have a clearer picture of its original arrangement. This
study provides a preliminary sketch of such endeavor.

Keywords: Serapeum of Alexandria, Sarapis, Greco-Roman Egypt

Em 391 d.C. o Grande Serapeum de Alexandria foi tão severamente


destruído que até as fundações da maior parte dos edifícios foi ar-
rancada, expondo a rocha nua da colina onde assentava o complexo.
O pouco que ainda se conservava no local foi, entretanto, es-
poliado pelos europeus que aí chegaram no final do século XVIII.
Na viragem para o século XX Giuseppe Botti, Theodor Schreiber e
Evaristo Breccia desenvolveram pesquisas arqueológicas no local,
retomadas, na década de 40, por Alan Rowe, 1 as quais revelaram
os depósitos de fundação do Serapeum, constituído por dez placas
em materiais diversos: ouro, prata, bronze, faiança, lama seca ao sol
e vidro. 2 Outro depósito de fundação revelou que a este do tem-
plo ptolemaico de Serápis se erguia um santuário de Harpócrates.
O magro espólio encontrado no sítio arqueológico conserva-se,
na sua maior parte, no Museu Greco-Romano de Alexandria, 3 mas
pouco contribuiu para clarificar a configuração original do recinto.
Recentemente, a análise minuciosa das estruturas preservadas no
complexo permitiu a Judith McKenzie, Sheila Gibson e A. T. Reyes
propor uma reconstituição hipotética do complexo e da sua evolução. 4
O objetivo deste ensaio é o de ampliar esta reconstituição, recorrendo

1 Bernand 1996: 126.


2 Walker, Higgs 2001: 76.
3 Savvopoulos, Bianchi 2012.
4 McKenzie, Gibson e Reyes 2004.

582
para tal ao cruzamento de fontes arqueológicas, textuais e iconográ-
ficas com o intuito de melhor entender o significado e a função que
cada uma das suas estruturas possuía no complexo.

O complexo sagrado

Contrastando com as informações relativamente abundantes so-


bre o Serapeum redigidas ao longo do século IV d.C., as referências
literárias ao santuário são muito parcimoniosas no que toca a épo-
cas anteriores. Estrabão, no início do século I alude brevemente ao
local, referindo que este se erguia no quarteirão antigo da cidade,
Rhacotis (do egípcio Ro-Qued, «A Entrada da Construção»), o quartei-
rão egípcio de Alexandria, o qual evoluíra a partir do assentamento
original que já aí existia antes da sua fundação. Estrabão acrescenta
que o santuário se situava acima dos estaleiros, 5 adiantando que
o Serapeum estava então «quase abandonado», à imagem de muitos
outros edifícios da cidade que «tinham caído em incúria». 6
A corresponder à realidade, este estado de coisas pode ter-se
devido à relativamente recente conquista romana, que sobreveio
com a morte de Cleópatra VIII Filopator em 30 a.C. É possível que
a ocupação romana se tivesse concretizado através de um acintoso
abandono e desinvestimento nas grandes instituições ptolemaicas
de Alexandria. Sintomático a respeito desse suposto abandono é a
flagrante ausência de referências ao Serapeum por parte de Fílon
de Alexandria (20 a.C. – 50 d.C.). Em 38 d.C., o filósofo referia-se
entusiasticamente ao Caesareum, o edifício erguido por Cleópatra
VII em honra de Júlio César junto ao porto real:

Não há recinto sagrado de tal magnitude como o que é cha-


mado o «Bosque de Augusto», e o templo erguido em honra do

5 Str., Chr. 17.1.6.


6 Str., Chr. 17.1.10.

583
desembarque de César, que se eleva a uma grande altura, de gran-
des dimensões, e de notável beleza, diante do melhor porto, e de
tal modo que outro igual não pode ser visto em nenhuma outra ci-
dade, cheio de oferendas, rico em pinturas e estátuas, inteiramente
decorado com prata e ouro, é um espaço extenso, ornamentado de
modo magnífico e sumptuoso com pórticos, bibliotecas, vestíbulos
e bosques, e propileus e amplos terraços abertos, e pátios ao ar
livre e com tudo o que pode contribuir para usufruto ou contem-
plação, é um farol portador de esperança e segurança a todos os
que zarpam ou entram no porto. 7

O entusiasmo que o sábio alexandrino revela a respeito do


Caesareum contrasta vivamente com o completo silêncio a respeito
da famosa Biblioteca de Alexandria (situada no Bruquium, o quar-
teirão real) e do Serapeum, o que pode efetivamente ser lido como
indício de uma acentuada decadência de ambas as instituições na
primeira fase do domínio romano. 8
Este hipotético abandono do Serapeum pode ter também facili-
tado a destruição do santuário em 116 d.C., durante a Guerra de
Kitos, quando revoltosos judeus incendiaram a cidade. Depois de
pacificado o território, o complexo sofreu então uma remodelação
profunda iniciada pelo Imperador Adriano (117-138 d.C.). Embora
se tivesse baseado no mesmo plano, o complexo foi erguido numa
escala ainda mais monumental. 9 É sobretudo esta ampliação que é

7 Fílon, Embaixada a Caio, 22.151.


8 Esta informação é tanto mais desconcertante, quanto foi justamente durante
esse período que a difusão dos cultos alexandrinos por todo o Mediterrâneo teve
lugar. Veja-se, por exemplo, o caso de Pompeia onde, em 79 d.C., se vivia uma autên-
tica «voga» egípcia que se traduzia, não só no culto formal à deusa Ísis, mas também
na adoção de inúmeros motivos egipcizantes patentes na joalharia, na pintura, na
escultura e até na decoração do espaço doméstico. Ver Mol 2016 e Gasparini 2016.
Durante o reinado de Augusto o culto de Ísis já era atestado em territórios tão lon-
gínquos como a própria Galécia. Veja-se o altar de Ísis, atualmente nos muros da Sé
de Braga. Rodrigues 2013: 48.
9 Bagnall, Rathbone 2004: 60.

584
descrita entusiasticamente pelos autores do século IV, como o faz
Amiano Marcelino:

Existem na cidade templos magníficos de grandes dimensões, o


mais notável entre eles é o Serapeum, muito embora as meras pala-
vras não lhe façam justiça, (…) em conjunto com o Capitólio, com
o qual a inestimável Roma se eleva à eternidade, em parte alguma
no mundo inteiro se contempla algo mais magnífico. 10

As escavações arqueológicas mostram que o complexo romano


era, de facto, bastante maior do que o ptolemaico, apresentando duas
grandes escadarias de acesso e um aqueduto. 11

A escadaria e o propileu

O complexo situava-se numa pequena elevação, suficientemente alta


para constituir uma «acrópole». No século IV, o termo é explicitamente
usado pelo retórico Aftónio de Antioquia que intitula «Descrição da
acrópole de Alexandria» o capítulo dedicado ao Serapeum. O autor
afirma ainda que a acrópole remontava a Alexandre e que assim se
designava por assentar numa colina à qual se chegava a partir de
duas vias: uma para os veículos, a outra para peões. 12
Rufino de Aquileia descreve assim a situação do santuário:

Suponho que todos já ouviram falar do Templo de Serápis em


Alexandria e que muitos estão também familiarizados com ele. O
sítio estava elevado, não naturalmente, mas artificialmente, a uma

10 22.16.12
11 Bernand 199: 128.
12 Bernand 1996: 125.

585
altura de cem degraus ou mais, com as suas instalações rectangu-
lares estendidas em todas as direcções. 13

A indicação de Rufino a respeito do carácter artificial da colina é


um tanto surpreendente, já que o Serapeum se elevava, na verdade,
sobre um pequeno promontório rochoso. No entanto, é possível que
essa afirmação se deva ao facto de a remodelação romana ter des-
truído grande partes das estruturas precedentes e se erguer sobre os
escombros das mesmas. Tal foi precisamente o que aconteceu com a
grande escadaria, de maiores dimensões do que a ptolemaica, a qual
sepultou várias estruturas anteriores, como o Nilómetro.
Aparentemente a encosta da acrópole estava ocupada por vários
edifícios que rodeavam o complexo em todas as suas faces:

No plano superior, as estruturas exteriores a toda a volta pro-


porcionavam espaço para salões e santuários, e para apartamentos
espaçosos, que albergavam normalmente os guardiões do templo e
os chamados hagneuontes, ou seja, os que se mantinham puros. 14

Eram possivelmente aqui que também que se situavam as insta-


lações para os peregrinos, provavelmente um sanatorium e quartos
destinados à incubação (Fig. 4). Aftónio, que visitou o Serapeum em
315, descreve assim o acesso ao complexo:

Lances de degraus seguem-se a lances de degraus, sempre em


número crescente conduzindo ao topo, não se detendo sem atingir
os cem degraus, pois este é o número da perfeita medida. 15

13 História Eclesiástica, 11.23.


14 Rufino de Aquileia, História Eclesiástica. 11.23. Os «puros» eram indivíduos
que faziam voto de castidade e viviam em recolhimento no santuário.
15 Kennedy 2003: 119, n. 91.

586
Pseudo-Calístenes situava aí ‘os obeliscos, que ainda hoje estão no
Serapeum, no exterior do recinto que agora existe’. 16 Provavelmente
ladeavam o propileu monumental, do qual Aftónio nos proporciona
uma das raras alusões:

No topo da escadaria está o propileu, delimitado por portões


gradeados de altura moderada e quatro grandes colunas que se
erguem alto, proporcionando diversas entradas para a passagem.
Mais acima, ergue-se o oecus delimitado por muitas colunas meno-
res de cores diferentes, que emprestam ornamentação à decoração.
O tecto do edifício ergue-se numa abóbada e, à volta desta, está
fixado um grande memorial de coisas que existem. 17

Torna-se assim claro que o propileu era, em si mesmo, uma es-


trutura de excecional monumentalidade. Depois das quatro grandes
colunas erguidas à entrada, o visitante entrava num salão circular
coberto por uma cúpula dourada suportada por uma dupla colu-
nata.18 O «memorial de coisas que existem» referia-se provavelmente a
inscrições ou frescos de carácter histórico ou religioso que de algum
modo faziam parte integrante do imaginário fundacional do lugar. 19

O pátio porticado

Sem dúvida a estrutura que mais impressionou os visitantes na


Antiguidade foi o grande pátio porticado (Fig. 1). Relativamente à
configuração do pátio, é de novo Aftónio quem nos dá mais detalhes:

16 García Gual 1988: 86 n. 56. Silva 2013: 26.


17 Aphth, Prog. 39-40.
18 Aphth, Prog. 39-40.
19 Aphth, Prog. 39-40.

587
Ao progredir para a acrópole, entra-se num único espaço aberto,
delimitado nos quatro lados (…). No meio está o pátio rodeado por
uma colunata. As colunatas estão divididas por colunas idênticas e
em termos de medida são o mais extensas possível. Cada colunata
termina noutra transversal, com uma coluna dupla dividindo uma
colunata da outra. 20

Por outro lado, Amiano Marcelino diz-nos que o recinto estava


ricamente decorado com obras de arte:

É adornado com extensos pórticos, e estátuas que quase respi-


ram e um grande número de outras obras de arte. 21

A referência a «estátuas que quase respiram» supõe a existência


de uma vasta colecção de arte helenística, grande parte dela segu-
ramente originária de Alexandria. Um dos modelos mais conhecidos
da estatuária alexandrina é o célebre grupo escultórico do «Menino e
o ganso», que personifica um jogo tipicamente alexandrino: na apa-
rência o grupo parece representar um tema profano, representando
um menino a estrangular um ganso. No entanto, o inverosímil com-
portamento é, na verdade, uma alusão subtil aos poderes demiurgos
de Harpócrates, evocando a criação do mundo.22 Um grupo desta
natureza, representando figuras «que quase respiram», figuraria com
certeza sob os pórticos do Serapeum.
No entanto, as escavações arqueológicas no local pouco revela-
ram dessas obras, a não ser alguns fragmentos, na sua maior parte
originárias de estátuas reais ptolemaicas. Entre estes contam-se a
parte inferior de uma estátua colossal em granito vermelho de um
soberano lágida e um bloco que havia servido de pedestal a uma

20 Aphth, Prog. 39-40.


21 22.16.12
22 Nazaré Ferreira 2013: 142-143. Ver também Sousa 2013a.

588
estátua de Arsínoe Filadelfa. 23 Estes fragmentos parecem, contudo,
ter sido reutilizados nas fundações do complexo romano, pelo que
já não estariam visíveis aos visitantes do século III e IV.
Sob as colunatas ocultava-se um sem número de divisões. Rufino
de Aquileia refere-se brevemente a elas:

Todas as divisões eram abobadadas e decoradas com candeeiros,


escondendo câmaras interiores separadas umas das outras, usadas
para vários serviços e funções secretas (…) O ouro adorna o tec-
to das colunatas e os capiteis das colunas são feitos de bronze,
recoberto de ouro. A decoração do pátio não é toda igual. Partes
diferentes foram feitas de modo distinto. Uma parte foi decorada
com as disputas de Perseu. 24

Esta alusão de Rufino sugere que as paredes das galerias porti-


cadas eram também decoradas com pinturas. Todo o conjunto era
sumptuoso pela riqueza e diversidade da decoração, que incluía a
coleção escultórica protegida pelos pórticos, os tetos ornamentados,
as pinturas murais e o próprio fausto dos materiais usados nos ele-
mentos arquitetónicos.

A Biblioteca Filha

As referências textuais são unânimes quanto à localização da


célebre Biblioteca Filha nos pórticos do Serapeum:

Pequenas estruturas cobertas foram construídas dentro das


colunatas. Algumas são salas de leitura para livros, e oferecem
uma oportunidade aos estudiosos para se dedicarem à pesquisa de

23 Bernand 1996: 128.


24 Rufino de Aquileia, História Eclesiástica, 11.23.

589
conhecimento, estimulando toda a cidade para a sabedoria; outros
foram construídos como santuários aos deuses antigos. 25

Amiano, referindo-se ao passado, indica que aí se chegaram a


guardar 700.000 livros, confundindo o espólio da Biblioteca Filha
com o da Biblioteca de Alexandria situada no Bruquium:

Nele (Serapeum) havia bibliotecas inestimáveis, e o testemunho


unânime dos registros antigos declara que 700.000 livros, reunidos
pela energia incessante dos Ptolemeus, foram queimados na Guerra
Alexandrina, quando a cidade foi saqueada pelo ditador César. 26

Ainda assim, a coleção bibliográfica do Serapeum seria certamente


muito extensa. Atendendo ao contexto ritual e religioso do Serapeum
é muito provável que a colecção reunisse essencialmente textos re-
ligiosos e filosóficos, na sua maior parte de sabor místico/gnóstico.
Naturalmente, toda a bibliografia de pendor neoplatónico, tão cara
à filosofia alexandrina, teria seguramente uma representação muito
importante na Biblioteca Filha.
Sabemos que era aí que se guardavam os originais da Septuaginta,
a tradução grega da Bíblia encomendada por Ptolemeu II Filadelfo.
Tertuliano assevera:

Hoje (os livros da Septuaginta) podem ver-se no Templo de


Serápis, onde se encontra a biblioteca e se guardam os originas
desta versão. 27

João Crisóstomo oferece igualmente um testemunho inequívoco


a este respeito:

25 Aphth, Prog. 39-40.


26 22.16.12
27 Tertuliano, Apologia de Quinto Septimio, 18.

590
Para que fiquem a saber que os livros sagrados não fazem um
lugar sagrado, mas o propósito dos que frequentam um lugar o
tornam profano, contar-vos-ei uma história. Ptolemeu Filadelfo man-
dou recolher livros por todo o mundo. Quando soube que os Judeus
tinham escritos que versavam sobre Deus e o Estado ideal, enviou
homens da Judeia e fê-los traduzir esses livros, os quais então de-
positou no templo de Serápis, já que era pagão. Até hoje, os livros
traduzidos permanecem no templo. Mas será o templo de Serápis
sagrado por causa dos livros sagrados? Deus nos livre! Embora os
livros tenham a sua própria sacralidade, eles não a partilham com
o lugar, pois aqueles que o frequentam estão contaminados. 28

Do mesmo modo como os originais da Septuaginta se conservavam


na Biblioteca Filha, é muito provável que os originais da Aegyptiaca, a
história do Egipto redigida pelo sacerdote egípcio Manéton a pedido
de Ptolemeu II, também aí se conservassem. De resto, é natural que
outros veneráveis textos egípcios estivessem aí guardados, tais como
as próprias fontes historiográficas de Manéton, fundamentalmente
constituídas por listas e anais reais. Do mesmo modo, é mais do que
provável que toda a literatura religiosa egípcia, que era abundante, aí
estivesse reunida. Sabemos que a Biblioteca Filha possuía inscrições
monumentais faraónicas de pendor religioso, como é o caso da Pedra
de Chabaka (716-702 BC). Aí foi redigido um dos mais importantes
textos religiosos egípcios que chegou aos nossos dias. Esta inscri-
ção foi redigida sobre um bloco mandado erguer por Chabaka no
recinto do templo de Ptah, em Mênfis, de onde foi removido, talvez
a mando de Ptolemeu II. Ao que tudo indica a pedra foi encontrada
no Serapeum alexandrino nos finais do século XVIII ou no início
do século XIX, de onde foi expedida para Londres, onde permanece
no Museu Britânico. 29

28 João Cisóstomo, Adversus Judaeos, 1.6.1.


29 Sousa 2011.

591
Após a reconstrução do Serapeum no século II, a Biblioteca do
Serapeum era possivelmente a única grande biblioteca de Alexandria.30
Por isso, era seguramente nestas instalações que funcionariam as
principais escolas filosóficas da época, numa singular confluência
multicultural de sábios gregos, egípcios, judeus e romanos.
É interessante constatar que o prestígio que a Biblioteca Filha
do Serapeum gozava entre os autores do século III e IV não parece
ter sido beliscado pelo incêndio que destruiu o Serapeum em 116,
o que parece reforçar a ideia transmitida por Estrabão segundo a
qual, no século I d.C., a importância do recinto parece ter-se eclip-
sado. Se assim foi, é possível que os livros se encontrassem então
nas instalações do Caesareum, como indica Fílon, e só depois da
reconstrução romana se tivessem instalado no Serapeum.

O Templo de Serápis

A metade setentrional do pátio porticado era dominada pelo


Templo de Serápis. No século II, o templo ptolemaico foi demolido
e o recinto foi ampliado para oriente. Na reconstrução romana do
complexo, o Templo de Serápis ocupava uma posição dominante,
no centro do pátio:

No centro de toda esta área erguia-se o santuário com colunas


preciosas, com o exterior decorado em mármore, espaçoso e mag-
nífico de contemplar. 31

À direita do Templo de Serápis foi erguida a Coluna de Diocleciano


que, pelas suas dimensões, se tornou num dos principais pontos de
referência da cidade (Figs. 1, 4):

30 É improvável que a Biblioteca do Bruquium estivesse ainda em funciona-


mento. El-Abbadi 1992.
31 Rufino, História Eclesiástica, 11.23.

592
Uma das colunas elevando-se acima das outras ocupa a posição
central, assim atraindo as atenções para o lugar. Qualquer um que
ande pela cidade, pode situar-se onde está simplesmente olhando
para a coluna, pois ela vê-se de todo o lado, e desse modo desta-
ca a acrópole para quem vem da terra ou do mar. (É como se) as
origens do universo rodeassem o capitel da coluna. 32

O texto é surpreendentemente claro quanto ao intenso signifi-


cado cosmológico que rodeava a coluna. É provável, que sobre ela
figurasse uma estátua em bronze de Serápis-Hélio, fitando a cidade,
a Ilha de Faros e o mar. As numerosas dedicatórias encontradas no
recinto dedicadas a Zeus-Hélio-Serápis estão provavelmente ligadas
a esta representação do deus que se vislumbrava de toda a cidade.33
Associada ao imaginário solar da coluna, uma grande piscina
lustral escavada diante da sua face norte, acolhia os peregrinos que
aí vinham em busca de cura ou purificação. 34
No templo albergava-se a estátua colossal de Serápis que o re-
presentava entronizado, portanto, como o soberano da criação, o
cosmocrator. Todas as descrições, de um modo ou de outro, aludem
à iconografia de Serápis difundida a partir da remodelação romana:
o deus é coroado pelo modius, com a testa adornada por cinco
madeixas de cabelo e com o tricéfalo Cérbero a seu lado (Fig. 3).
Contudo, durante o período ptolemaico, Serápis não foi represen-
tado com estes atributos. A sua coroa mimetizava a coroa osiríaca
atef, mas a sua forma é tão estilizada que lembra uma flor de lótus.
O cabelo estava penteado com um risco ao meio, em vez das cinco
madeixas de cabelo (Fig. 2).35 A iconografia ptolemaica sugere que,
quando foi executada, a estátua de culto tinha sido concebida como
uma versão helenizada do deus Osíris. Possivelmente só mais tarde,

32 Aphth, Prog. 39-40.


33 Bernand 1996: 128.
34 A inclusão desta estrutura decorre da importância desempenhada pela água
no culto de Serápis. Wild 1981: 30.
35 Walker, Higgs 2001: 73.

593
no reinado de Ptolemeu III Evérgeta, é que a estátua foi renomeada
e identificada com Serápis. 36
Atendendo às diferenças detetadas na iconografia é bastante pro-
vável que a estátua original ptolemaica tivesse sido consumida pelo
fogo que destruiu o Serapeum em 116. No entanto, é curioso verificar
que tanto Pseudo-Calístines, 37 como Plutarco, 38 ao se reportarem à
chegada miraculosa da estátua de Serápis a Alexandria, na verdade
a descrevam com os atributos introduzidos na remodelação romana,
parecendo desconhecer por completo que a primeira estátua havia
sido destruída.
As dimensões e os materiais utilizados na estátua provocavam um
vivo assombro nos que a vislumbravam:

No templo encontra-se a estátua de Serápis, tão grande que a


sua mão direita toca uma parede e a esquerda a outra. Diz-se que
este monstro era feito de todos os tipos de metal e madeira. As
paredes interiores do santuário eram revestidas com placas de ouro
recobertas de prata e bronze, sendo que o último era utilizado para
proteger os metais mais preciosos. 39

Clemente de Alexandria acrescenta ainda algumas indicações so-


bre a variedade de materiais preciosos utilizados na sua confeção:
ouro, prata e chumbo haviam sido aplicados sobre uma estrutura
em madeira. Pedras preciosas como safira, hematite, esmeralda e
topázio foram esmagadas para criar os pigmentos que coloriam a
estátua. Segundo Clemente, das vestes do deus irradiava-se um inten-
so brilho azul-escuro que o autor – segundo diz – pôde vislumbrar
no próprio local. 40

36 As referências a Serápis só são documentadas a partir do reinado de Ptolemeu


III. Walker, Higgs 2001: 73.
37 1. 30 (cf. 1. 33). Silva 2013: 26.
38 Plutarco, Isis e Osíris, 28.
39 Rufino, História Eclesiástica, 11.23.
40 Clemente, Exortação aos gentios, 4.

594
Já fizemos alusão numa outra publicação, 41 que os lábios entrea-
bertos do deus constituem um elemento importante da iconografia de
Serápis, sugerindo que o deus «falava», um atributo que podia estar
relacionado com a dimensão oracular do seu culto e, mas também
com a importância teológica que a noção de logos, o verbo criador,
possuía na filosofia e teologia alexandrinas.
Um detalhe importante fornecido por Rufino, parece reforçar a
importância desse atributo:

Existem também coisas astuciosamente criadas para suscitar o


assombro nos que as vêem. Existe uma pequena janela orientada
para o sol nascente de tal modo que, no dia escolhido para que a
estátua do sol seja transportada para saudar Serápis, a observação
cuidadosa das estações assegura que, quando a estátua se aproxima,
um raio de sol atravessa a janela, iluminando a boca e os lábios
de Serápis, de modo a que para o povo pareça que o sol saúda
Serápis com um beijo. 42

O fenómeno tinha seguramente raízes no ritual faraónico de ilu-


minação da estátua divina por ocasião do Ano Novo, o qual é bem
documentado nos templos egípcios autóctones do Egipto Greco-
-Romano.

Há ainda um outro truque. Como se sabe, os ímanes têm o poder


de atrair o ferro para si mesmos. A imagem do sol foi feita por estes
artesãos com a melhor espécie de ferro de modo a que o íman que,
como referimos tem o poder de atrair o ferro, sendo colocado nas
placas que recobrem o tecto, possa pela força natural, atrair o ferro
para si mesmo e quando a estátua era colocada debaixo, erguia-se e
era elevada no ar. E para que não caísse inesperadamente, traindo

41 Sousa 2013a.
42 Rufino, História Eclesiástica, 11.23.

595
assim o truque, os servidores da fraude diziam: «o sol levantou-se
e despediu-se de Serápis para que possa regressar ao seu lugar». 43

Pela descrição de Rufino, é bastante claro que os sacerdotes do


Serapeum se muniam de conhecimentos astronómicos e técnicos ex-
tremamente avançados, os quais eram ensinados no próprio Museu
alexandrino. Para Rufino eram justamente esses «truques» que ali-
mentavam o temor que a populaça continuava a manter pelo deus.
O próprio Rufino refere:

Há muitas outras coisas construídas no local pelos antigos, com


o intuito de enganar, o que levaria muito tempo a detalhar. 44

Entre essas «coisas», não explicitadas por Rufino, encontrar-se-iam


certamente os autómatos criados a partir da máquina a vapor inventada
por Héron de Alexandria (10-80 d.C.). Para além da obra Pneumatica,
Héron editou uma outra sobre a Fabricação de Autómatos, onde ex-
plorou as aplicações da máquina a vapor: fazia dançar marionetas
e abria automaticamente as portas dos templos. 45 Sem dúvida que
aplicações deste tipo teriam sido usadas também no Serapeum ale-
xandrino, para assombro de todos quantos as vislumbravam.

O «Templo das muitas entradas»

Rufino indica a existência de um outro edifício no pátio sagrado:

Antes de chegar ao centro do pátio há um edifício com muitas


entradas, as quais são designadas pelos nomes dos antigos deuses,

43 Rufino, História Eclesiástica, 11.23.


44 Rufino, História Eclesiástica, 11.23.
45 Bonnard 1980: 664.

596
e dois obeliscos erguem-se aí, e uma fonte melhor do que a de
Peisistratos. 46

Este edifício situava-se na extremidade ocidental do pátio e ocul-


tava o acesso às galerias subterrâneas que irradiavam a partir de
um poço quadrangular (Fig. 5). As «muitas entradas», referidas por
Rufino, poderiam aludir precisamente às galerias subterrâneas às
quais dava acesso.
Uma dessas galerias conduzia a uma cripta escavada debaixo do
próprio Templo de Serápis. Nela foi encontrada a estátua de Ápis
com uma inscrição datada do reinado de Adriano (117-138). Em
diorito negro, a estátua representa o touro com o disco solar sobre
a cornamenta, tal como era representado no Serapeum de Mênfis
(Fig. 6). A manifestação taurina do deus tinha naturalmente uma
relação simbólica com a estátua do deus cosmocrator cultuada no
templo, evocando os poderes regeneradores de Serápis associados
ao mundo ctónico.
Uma outra entrada, desta feita localizada na face sul do poço,
conduz a uma galeria muito mais extensa que atravessa transversal-
mente todo o recinto do templo. As paredes desta galeria apresentam
inúmeros nichos escavados na rocha (Fig. 7). Em alguns deles ainda
foram encontrados pequenos sarcófagos em pedra, possivelmente
usados para a colocação de múmias de animais. 47 Esta prática tinha
lugar anualmente, com o intuito de propiciar a inundação. Os ani-
mais mumificados encarnavam poderes cósmicos associados à cheia,
pelo que se acreditava que através da sua dádiva se canalizavam as
forças universais envolvidas na renovação dos ciclos cósmicos, sobre
as quais presidia Serápis. 48 É muito provável que estas cerimónias
envolvessem uma enorme quantidade de peregrinos que aí acorriam
anualmente.

46 Rufino, História Eclesiástica, 11.23.


47 Bernand 1996: 125.
48 Savvopoulos, Bianchi 2012: 56.

597
Os templos «enigmáticos»

O centro e a parte meridional do grande pátio porticado eram


dominados por duas estruturas «enigmáticas», já que nenhuma das
fontes escritas lhes faz referência. De certa forma, ambas parecem
estar relacionadas com o «Templo das muitas entradas», já que o
acesso às duas estruturas se fazia também a partir daí. Deste edifí-
cio partiam duas outras galerias subterrâneas, ambas com um plano
transversal em L (Fig. 1). 49 Uma, de carácter monumental (Fig. 8),
dava acesso a uma plataforma retangular situada no centro do pátio
(Fig. 9). Esta plataforma estava rodeada por um fosso, possivelmente
cheio de água, formando o que poderá ter sido um lago sagrado.
Atendendo a este contexto «lacustre» é possível que a «fonte melhor
do que a de Peisistratos», mencionada por Rufino, estivesse de algum
modo associada a esta estrutura. 50
O acesso à ilha sagrada fazia-se, portanto, veladamente, sendo
necessário entrar no «Templo das muitas entradas» e daí percorrer
a galeria subterrânea que passava por baixo do fosso e conduzia,
através de uma escadaria, à extremidade meridional da plataforma.
É muito provável que as suas paredes estivessem revestidas de blocos
de pedra, já que uma parte desse revestimento se preserva ainda
na escadaria de acesso à ilha. Quem chegava ao topo da platafor-
ma, via-se então no interior de um pequeno santuário que ocupava
apenas a sua extremidade meridional. Vestígios de uma cripta são
ainda detetáveis neste edifício. Do lado oposto da ilha, detetam-se
fundações de outras estruturas, atualmente impossíveis de reconsti-
tuir. Ao centro, erguia-se uma edícula de planta circular.
Uma outra galeria subterrânea, mais longa e mais estreita do que
a anterior, estava ligada a um edifício situado imediatamente atrás
do lago sagrado. Atualmente subsistem ainda as fundações, que são

49 Ver plano do sítio em Wild 1981: 30.


50 Vestígios de túneis para a circulação de água são visíveis a sul desta plata-
forma, pelo que são consistentes com a existência, neste local, um nimpheum, uma
fonte monumental.

598
robustas, pelo que o edifício que aí se erguia devia ter dimensões
bastante apreciáveis. De planta quadrada, tem características muito
intrigantes. Um sulco percorre diagonalmente o piso, revelando a base
de assentamento de um muro que dividia o edifício em duas partes
(Fig. 10). Uma passagem estreita escavada nas próprias fundações do
edifício passa debaixo deste sulco, estabelecendo uma comunicação
entre as duas salas do edifício. No centro desta passagem abre-se
ainda uma pequena câmara ou cripta, que na Antiguidade estava
totalmente sepultada sob o piso do edifício. Estas características
singulares fazem desta estrutura um espaço extremamente intri-
gante. Uma possível explicação para a existência de uma passagem
subterrânea que ligava as duas salas a uma câmara «secreta» é a sua
utilização oracular. Outra possibilidade é a sua utilização nos rituais
de iniciação, tão característicos do culto de Serápis.
Um tanto estranhamente as fontes clássicas não se reportam a
nenhum destes edifícios. Aftónio, o mais entusiasta dos autores que
descrevem o complexo, referia:

De facto, a beleza (do Serapeum) está para além do poder das


palavras, e se alguma coisa foi negligenciada, tal se deve ao ema-
ravilhamento (que causa). O que não foi possível descrever foi
omitido. 51

É, portanto, possível que tal tenha sido o caso e que, na inca-


pacidade de descrever os edifícios, Aftónio e todos os autores que
escreveram sobre o Serapeum tenham simplesmente optado por
omiti-los.
Comparando o plano das estruturas erguidas na ilha sagrada
com outros templos da tradição faraónica, semelhanças podem ser
encontradas com o Osireum de Abido, também ele dotado de uma
galeria subterrânea em L conduzindo a uma câmara dominada por um
ilhéu que era periodicamente inundado pela água da cheia, e onde

51 Kennedy 2003: 119.

599
se celebravam os mistérios da ressurreição de Osíris. No Serapeum,
a ilha sagrada poderia ter desempenhado uma função idêntica, evo-
cando os mistérios da ressurreição de Serápis.
Quanto ao outro edifício, como referimos, é provável que tenha
sido usado no âmbito das cerimónias iniciáticas ao culto de Serápis
que, em parte, são descritas no Burro de Ouro, de Apuleio. Embora
realizada em Cenchrés, o porto de Corinto, e num santuário de Ísis,
esta iniciação seguia certamente o modelo emanado a partir do pró-
prio Serapeum alexandrino. A iniciação de Lúcio descrita por Apuleio
envolvia efetivamente uma descida ao mundo inferior:

Viajei através dos elementos e regressei. À meia-noite vi o Sol


brilhar com imensa luz e encontrei-me diante dos deuses do mundo
inferior e do mundo superior e adorei-os intimamente. 52

As evidências arqueológicas detetadas no Serapeum de Panóias,


mostram um percurso de natureza idêntica. Embora infinitamente
mais prosaico do que o seu modelo alexandrino, a estrutura dedicada
às iniciações rituais envolvia um percurso que também passava por
três câmaras escavadas na rocha. 53 Naturalmente, no Serapeum
de Alexandria esta estrutura atingia uma monumentalidade verda-
deiramente impressionante o que certamente terá contribuído para
criar o halo de intensa veneração que todos os autores clássicos
testemunham ter existido no santuário.

Considerações finais

A reconstrução romana do Serapeum de Alexandria, empreendida


após a destruição infligida durante a Guerra de Kitos (115-117 d.C.),
não se limitou a recuperar o santuário. Na verdade, o complexo

52 Apol. Met.
53 Sousa 2013: 99-104.

600
sagrado erguido sobre a acrópole alexandrina foi redimensionado
e engrandecido de um modo sem precedentes, o que, por si só,
constitui um fenómeno notável. O culto patrocinado pela casa real
ptolemaica não só conseguiu a proeza de sobreviver à dinastia, como
atingiu, sob ocupação romana, um esplendor que antes nunca teve,
mostrando bem o sucesso que a difusão do culto de Serápis obteve
no Império Romano.
A própria organização do santuário refletia uma sistematização
mais sofisticada do culto. O Templo de Serápis representava o deus
como o cosmocrator, o deus das origens que criou o mundo pelo
poder do logos, a palavra criadora. Sob a cripta, o deus manifestava-se
como Ápis, a manifestação do Sol no mundo inferior que encarnava o
poder de vida, de fecundidade e de ressurreição. No alto da Coluna
de Diocleciano, o deus figurava como o deus soteriológico da luz, o
pilar cósmico que unia o céu e a terra. O grande pátio reunia todas as
estruturas importantes do culto, como o lago sagrado dotado de uma
ilha «ritual» e um edifício imponente onde se realizavam cerimónias
iniciáticas. Em volta, em torno do pórtico, reunia-se a fina flor do
espírito e do engenho humano: a biblioteca «universal», as escolas
filosóficas, as obras de arte, as instalações de cura e de incubação.
Não admira que, para o cristianismo emergente, o prestígio que o
santuário continuava a ter, mesmo após o seu encerramento formal,
exigisse a sua destruição, o que sobreveio em 391. Essa destruição
foi feita de modo tão diligente que literalmente não ficou «pedra
sobre pedra».
As fontes clássicas, muitas delas redigidas por cristãos, transmi-
tem-nos uma visão parcial já que se focam essencialmente sobre
as estruturas «públicas». A grande escadaria, o magnífico propileu,
a Coluna de Diocleciano, o Templo de Serápis, e os pórticos, com
as suas coleções de arte e a Biblioteca Filha são recorrentemente
mencionados pelos diferentes autores. No entanto, é curioso verifi-
car que as fontes são completamente omissas no que diz respeito à
ilha sagrada e ao edifício reservado às iniciações. Essa circunstância
é estranha, já que, na verdade, estas estruturas eram bem visíveis.

601
A sua presença é quando muito evocada recorrendo a alusões muito
vagas que traduzem um fascínio incondicional ou desconfiança.
Ecos sobre o significado destes edifícios «enigmáticos» podem
ser detetados na lenda veiculada por Pseudo-Calístines, acerca do
achamento do Templo de Serápis por Alexandre. Seguindo o voo da
águia, Alexandre teria encontrado um santuário antigo com a está-
tua de Serápis. 54 É provável que um dos edifícios «enigmáticos» do
Serapeum fosse identificado com este templo faraónico «original».
Seria aí onde se concentrariam os muitos monumentos faraónicos
achados no Serapeum. Entre estes figuram pequenos obeliscos,
gárgulas leoninas e outros blocos com inscrições hieroglíficas. Um
número apreciável de esculturas faraónicas foram também encon-
tradas no local incluindo fragmentos de estátuas reais, 55 esfinges 56
e divindades egípcias como Hórus, 57 Sekhmet, 58e Khepri. 59 Parece
improvável que um tal edifício se erguesse sobre a ilha sagrada,
dado o carácter exíguo dos vestígios aí encontrados. Mais prová-
vel é que o templo usado em iniciações correspondesse ao templo
«original» encontrado por Alexandre. A robustez das suas fundações
explicar-se-iam desse modo, já que aí se assentava uma estrutura
robusta, diríamos maciça. Se assim fosse, o templo faraónico era
naturalmente uma invenção romana, já que as fundações também
o são. Fosse como fosse, o templo faraónico e o templo romano
de Serápis erguiam-se um diante do outro, com a ilha sagrada de
permeio. 60

54 1. 30 (cf. 1. 33). Silva 2013: 26.


55Encontraram-se fragmentos de estátuas de Ramsés II (347, 426, CG 620),
Ramsés XI (366), Psamético II (409) 12 20-25. Savvopoulos, Bianchi 2012.
56 349, 351b. Savvopoulos, Bianchi 2012.
57 348/P.9190. Savvopoulos, Bianchi 2012: 177.
58 39067. Savvopoulos, Bianchi 2012: 182.
59 352b. Savvopoulos, Bianchi 2012: 178.
60 A criação de um templo puramente «egípcio» no contexto de um Serapeum
romano é consistente com a «egipcização» de Alexandria, aparentemente intensificada
durante a ocupação romana. Savvopoulos, Bianchi 2012: 20-25.

602
Apesar do grau de destruição que atingiu o complexo em 391 d.C.,
o cruzamento dos escassos dados arqueológicos, com referências
literárias e iconográficas e ainda a comparação com outros serapea
dispersos pelo mundo romano, é um trabalho decisivo para continuar
a desvendar significado das suas estruturas que fizeram do Serapeum
um dos recintos templários mais importantes do mundo antigo.

603
Figuras

Figura 1. O complexo do Serapeum de Alexandria. Desenho do autor a


partir de McKenzie, Gibson e Reyes 2004.

Figura 2. Iconografia ptolemaica de Serápis (a partir da estatueta votiva


em terracota EA 37562, conservada no Museu Britânico).
Desenho do autor.

604
Figura 3. Iconografia romana de Serápis. Desenho do autor.

605
Figura 4. Encosta oriental do Serapeum. Em primeiro plano detetam-se os
vestígios das instalações para albergar os sacerdotes e os guardiões do tem-
plo. Em segundo plano observa-se a Coluna de Diocleciano. Foto do autor.

Figura 5. Poço de acesso às galerias subterrâneas. Na imagem a entrada


para a cripta de Ápis. Foto do autor.

606
Figura 6. Cripta de Ápis. Foto do autor.

Figura 7. Galeria para as múmias animais. Foto do autor.

607
Figura 8. Galeria transversal de acesso à «ilha sagrada». Foto do autor.

Figura 9. Plataforma da «ilha sagrada» rodeada pelo fosso. Foto do autor.

608
Figura 10. Passagem subterrânea do «edifício enigmático». Foto do autor.

Bibliografia
Apuleio (2007), O Burro de Ouro. Trad. de Delfim Leão. Lisboa: Livros Cotovia.
Bagnall, R., Rathbone, D., (2008), Egypt: From Alexander to the Copts – An Archaeological
and Historical Guide. Cairo: The American University in Cairo Press.
Bernand, A. (1996), Alexandrie la Grande. Paris: Hachette.
Bonnard, A. (1980), A Civilização Grega. Lisboa: Edições 70.
El-Abbadi, M. (1992), Life and Fate of the Ancient Library of Alexandria. Paris: Unesco.
Ferreira, L. N. (2013), “Festive Alexandria: Mobility, leisure, and art in the Hellenisitic
Age”, in R. Sousa, M. C. Fialho, M. Haggag, N. S. Rodrigues (eds.), Alexandrea ad
Aegyptum: The legacy of multiculturalism in Antiquity. Porto: University of Porto,
University of Coimbra, University of Alexandria, 134-144.
García Gual, C. (1988), Pseudo-Calístenes. Vida y hazañas de Alejandro de Macedonia.
Madrid: Gredos.
Gasparini, V. (2016), “Il culto di Iside nelle demore di Pompei ed Ercolano”, in F. Poole
(ed.), Il Nilo a Pompei: Visioni d’Egitto nel mondo romano. Museo Egizio: Franco
Cosimo Panini, 121-134.
Kennedy, G. (2003), Progymnasmata: Greek textbooks of prose composition and Rhetoric.
Leiden, Boston: Brill.
McKenzie, J. S., Gibson, S. e Reyes, A. T. (2004), «Reconstructing the Serapeum in Alexandria
from the Archaeological Evidence», The Journal of Roman Studies 94: 73-121.

609
Mol, E. (2016), “La casa di Octavius Quartio a Pompei”, in F. Poole (ed.), Il Nilo a
Pompei: Visioni d’Egitto nel mondo romano. Museo Egizio: Franco Cosimo Panini,
135-162.
Plutarco (2001), Ísis e Osíris. Trad. de Jorge Fallorca. Lisboa: Fim de Século.
Rodrigues, S. (2013), “O culto de Serápis na Península Ibérica”, in R. Sousa, J. R. da
Silva (eds.), Serápis nos confins do Império: O complexo sagrado de Panóias. Vila
Real: Câmara Municipal de Vila Real, Direção Regional de Cultura do Norte, 47-50.
Rougé, J. (1966), Expositio totius mundi et gentium. Paris: Éditions du Cerf.
Savvopoulos, K., Bianchi, R (2012), Alexandrian Sculpture in the Greco-Roman Museum.
Greco-Roman Museum Series 1. Alexandria: The Alexandria and Mediterranean
Research Center.
Silva, M. F. (2013), “On the trail of Alexandria’s founding”, in R. Sousa, M. C. Fialho,
M. Haggag, N. S. Rodrigues (eds.), Alexandrea ad Aegyptum: The legacy of
multiculturalism in Antiquity. Porto: University of Porto, University of Coimbra,
University of Alexandria, 20-34.
Sousa, R. (2007), “O edifício de Taharka no lago sagrado de Karnak: simbolismo e
função ritual”, in J. A. Ramos, L. M. de Araújo, A. R. dos Santos (eds.), Arte Pré-
Clássica: Colóquio comemorativo dos vinte anos do Instituto Oriental da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade
de Lisboa, 279-302.
Sousa, R (2011), O Livro das Origens: O texto teológico da Pedra de Chabaka. Coleção
Textos Clássicos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Sousa, R. (2013a), “Lost in translation: The Hellenization of the Egyptian tradition in
R. Sousa, M. C. Fialho, M. Haggag, N. S. Rodrigues (eds.), Alexandrea ad Aegyptum:
The legacy of multiculturalism in Antiquity. Porto: University of Porto, University
of Coimbra, University of Alexandria, 230-264.
Sousa, R. (2013b), “Panóias: um santuário multicultural”, in R. Sousa, J. R. da Silva
(eds.), Serápis nos confins do Império: O complexo sagrado de Panóias. Vila Real:
Câmara Municipal de Vila Real, Direção Regional de Cultura do Norte, 88-107.
Sousa, R. (2020), «Herodotus’ Memphite sources», in T. Figueira, C. Soares (eds.), Ethnicity
and Identity in Herodotus. Abingdon: Routledge, 201-219.
Stambaugh, J. (1972), Sarapis under the early Ptolemies. Leiden: Brill.
Tertuliano, F. (1789), Apologia de Quinto Septimio. Madrid
Walker, S., Higgs, P. (2001), Cleopatra of Egypt: From History to myth. Londres: The
British Museum Press.
Wild, R. (1981), The water in the cultic worship of Isis and Sarapis. Leiden: Brill.

610
D e n o v o s o b r e o va s o d e v i d r o d e O d e m i r a
e o porto de Pvteoli (pozzuoli)

F u r t h e r C o n s i d e r at i o n s o n O d e m i r a ’ s R o m a n
G l a ss a n d t h e P o r t o f P v t e o l i ( P o z z u o l i )

Vasco Gil Mantas


Univ. Coimbra, CECH, APH
ORCID: 0000-0002-6109-4958
vsmantas@gmail.com

Resumo: Neste artigo estudam-se as condições em que se achou o Vaso


de Vidro de Odemira e publica-se uma fotografia inédita do mesmo.
Analisa-se também a cena urbana do vaso à luz das últimas descobertas
no porto italiano de Puteoli, onde estes souvenirs eram produzidos,
e de outros vasos achados recentemente.

Palavras-chave: Vidro Romano, Sousa Holstein, Fotografia, Puteoli, Cultura

Abstract: In this article, the conditions in which the Odemira Glass


Vase was found are studied and an unpublished photograph of it is
divulged. The urban scene of the vase is also analyzed in the light
of other glass vessels and the latest discoveries of the Italian port of
Puteoli, where these souvenirs were produced.

Keywords: Roman Glass, Souza Holstein, Photography, Puteoli, Culture

É muito numerosa a bibliografia sobre o conjunto de pequenos


frascos globulares de vidro (fiaschette vitree) ilustrados com represen-
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_27
tações, mais ou menos estilizadas, dos portos de Puteoli (Pozzuoli)
e Baiae (Baia), na Campânia 1 . Nesse grupo, aumentado ao longo
dos anos e que conta agora com um total de 16 peças, ainda que
algumas representadas por fragmentos, encontra-se uma, a terceira
a ser divulgada, cujo local de achado se situa em Portugal. Também
o vaso de vidro de Odemira, como é vulgarmente conhecido, conta
com abundante e quase sempre repetitiva bibliografia, permitindo-
-nos desde já sublinhar o artigo publicado por J. M. Bairrão Oleiro
na desaparecida revista Arquivo de Beja, faz agora 56 anos 2. Depois
desta publicação, que se apoia largamente numa outra, de 1954, da
autoria de A. García y Bellido 3, a peça tem sido referida com algu-
ma frequência em Portugal 4, sem que voltasse a surgir um estudo
aprofundado da mesma, apesar de uma recente publicação académica
sobre vidros romanos decorados do território português 5.

***

O historial destas frágeis peças, garrafinhas maioritariamente


atribuídas ao tipo 103 da classificação de Clasina Isings6 , é com
frequência bastante complicado, quando não obscuro, sobretudo no
caso dos achados mais antigos. Escavações clandestinas, mudança
de proprietários e de museus, desaparecimentos, tudo concorre para
dificultar a recuperação das verdadeiras circunstâncias em que se
encontraram alguns destes vasos vítreos, suscitando dúvidas e im-
precisões quanto ao seu percurso, que se vão repetindo apesar das
sucessivas sínteses a que o assunto tem fornecido tema, algumas

1 Dubois 1907; Picard 1959: 23-51; Sommella 1978; Ostrow 1979: 77-140;
Gianfrotta 2011: 13-40.
2 Oleiro 1963-1964: 101-110.
3 García y Bellido 1954: 212-226.
4 Alarcão 1970: 31-32.
5 Coelho 2012: 64-81.
6 Isings 1957: 121-122.

612
muito recentes7. Não é nossa intenção desenvolver neste artigo uma
análise exaustiva deste corpus de vasinhos, tanto mais que não somos
especialistas dessa matéria complexa que é a da vidraria romana.
Assim, procuraremos apenas esclarecer alguns aspetos relacionados
com a peça achada em Portugal e tratar novamente a representação da
paisagem urbana nela figurada e do grande porto de Puteoli, acerca
do qual os trabalhos arqueológicos dos últimos anos têm fornecido
importantes dados interpretativos 8, embora a topografia da cidade
antiga continue a contar com muitas lacunas.
O conjunto destes vasos pode dividir-se por dois grupos principais,
consoante Puteoli ou Baiae é o tema dominante que apresentam9. O
vaso de Odemira pertence claramente, como os de Praga e Óstia, ao
primeiro grupo. Sublinhamos já que o local pelo qual se identificam
as peças nem sempre corresponde ao local do achado, o que tam-
bém contribui para confusões. Vejamos então quais são, por ordem
do seu achamento, os vasos conhecidos presentemente. O primeiro
vaso a ser descoberto foi o de Roma, em data anterior à da sua pu-
blicação em 1749. Durante muitos anos esteve no Museo Borgiano
di Propaganda, onde já não se encontrava em 1879. Pertenceu en-
tretanto à Coleção Goluchow, na Polónia, fazendo parte desde 1956
do Museu Nacional de Varsóvia 10 . O segundo da série foi o vaso
de Piombino, a antiga Populonia, achado em 1812, o qual, depois
de várias peripécias, inicialmente motivadas por razões de ordem
política, acabou por ser adquirido em 1962 pelo Corning Museum
of Glass, em Nova Iorque 11.
Depois destes exemplares italianos cabe a vez ao vaso de Odemira,
conhecido desde 1867. A ele voltaremos, naturalmente, com maior
desenvolvimento, uma vez que constitui o propósito principal deste

7 Popkin 2018: 427-462.


8 Golvin 2008: 157-174; De Gaetano 2013.
9 Painter 1975: 54-67; Fujii 2006: 136-142.
10 De Rossi 1853: 133-136; Froehner 1899: 153-156; Ostrow 1979: 86-88.
11 Sestini 1812; Ostrow 1979: 84-85.

613
artigo, estimulado por uma feliz coincidência. Assim, em quarto lu-
gar situa-se o fragmento de Óstia, achado em 1909 e posteriormente
desaparecido 12. O vaso que vem a seguir na nossa enumeração é o
do Museu Nacional de Praga, cuja primeira notícia remonta a 1924.
É uma excelente peça, provavelmente proveniente de Itália 13 . O
sexto exemplar da série é o de Colónia, achado muito fragmentado,
também no ano de 1924, encontrando-se no Römisch-Germanische
Museum, na mesma cidade 14 . O sétimo é o vaso de Ampúrias
(Emporiae), descoberto entre 1920 e 1930, mas que teve a primeira
publicação apenas em 1941. Conservado numa colecção privada na
região, García y Bellido sentiu, em 1954, algumas dificuldades na sua
descrição 15.
O Reino Unido acrescentou à lista, um fragmento achado em York,
publicado em 1968, e a excelente peça conservada no Pilkington Glass
Museum, em St. Helens, publicada em 1975 por K. S. Painter. Adquirida
na Alemanha e provavelmente incluída em peças idas do Norte de
África, é difícil esclarecer a data e as verdadeiras circunstâncias da
sua descoberta16. Escavações em Brescia, na Itália17, contribuíram
com fragmentos de nada menos de quatro fiaschette, devidamente
estudados a partir de 2002. Até aqui, contabilizando os fragmentos
representativos de peças individuais, o número destes vasos ascende
já a treze, a que devemos acrescentar outros três exemplares, agora
provenientes da Península Ibérica.
Referimos em primeiro lugar o achado de Astorga (Asturica
Augusta), no decurso da escavação de um edifício termal, no final
dos anos 80 do século passado, embora só publicado em 2003.
Trata-se de dois fragmentos, atribuídos à mesma peça, do chamado

12 Vaglieri 1909: 209; Balil 1964: 170.


13 Kadik 1970: 17; Painter 1975: 58.
14 Fremersdorf 1927-1928: 42-43; 1967: 190-192, 195.
15 García y Bellido 1954: 221-222.
16 Painter 1975: 59-60.
17 Roffia 2002: 413-434.

614
grupo baiano18. A interpretação dos fragmentos, um muito pequeno,
como pertencentes à mesma peça é contestada por Piero Gianfrotta,
através de pertinentes e irrecusáveis observações 19, com as quais
concordamos. Se o fragmento menor parece pertencer a uma garrafa
do grupo puteolano, como sugere Gianfrotta, será possível que este-
jamos perante o reflexo do desejo de conservar a memória dos dois
portos por parte de alguém que os visitou, adquirindo os dois vasos?
No ano anterior ao da publicação de Astorga, em 2002, uma es-
cavação em Mérida (Emerita Augusta), capital da Lusitânia, levou à
descoberta de mais uma peça numa sepultura de inumação tardia
na zona oriental da cidade 20. Bastante maltratada, a peça pertence
ao grupo puteolano, mostrando junto à extremidade do molhe uma
pequena embarcação e uma corbita, elemento ausente nos restantes
vasos conhecidos. A autora da publicação refere, seguindo Ostrow,
como sendo de oito o total de peças publicadas até ao achado de
Mérida, o mesmo número considerado na dissertação de Ana Coelho21.
No final desta enumeração, talvez fastidiosa mas necessária atendendo
à evolução verificada no conhecimento das fiaschette vitree, o total
é de 16 exemplares (Fig. 1), considerando a hipótese de Astorga
contribuir com duas peças. Novas pesquisas, inclusive nas reservas
dos museus, talvez proporcionem outros achados destes interessantes
artefactos vítreos22, suportes da memória e de uma imagem política
e social da maiestas romana 23, muito para além da simples repre-
sentação convencional do urbanismo de Puteoli e de Baiae.

18 Amaré, Ortiz e Palomar 2003: 105-113.


19 Gianfrotta 2011: 13-40.
20 Bejarano 2002: 513-532.
21 Coelho 2012: 64-70.
22 Embora o local de produção, Puteoli, não suscite dúvidas, nesta cidade da
Campânia não se encontrou, até hoje, nem sequer um fragmento que corresponda a
estes vasos vítreos.
23 Popkin 2017: 45-62.

615
Fig. 1 – Repartição dos achados de vasos com representação
da cidade de Puteoli.

Passemos então ao tema central deste artigo, o conhecido vaso


de vidro de Odemira cuja forma do gargalo, apesar de quebrado e
algo diferente na ligação com o bojo, permite integrá-lo na forma
103 da classificação de Isings, ainda que o desenho do gargalo, se-
melhante ao exemplar de Ampúrias, sugira uma variante. Foi uma
feliz coincidência o achado de uma fotografia antiga do referido
vaso, conservada no acervo fotográfico da Secção de Arqueologia
do DHEEAA da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

616
Com efeito, ao pesquisarmos materiais para uma palestra foi-nos
comunicada a existência da referida fotografia 24, que identificámos
como sendo do conhecido vaso de vidro, tantas vezes referido em
artigos científicos, sobretudo estrangeiros, como em tempos sublinhou
Bairrão Oleiro, mas nunca ilustrado com uma foto.
O historial da peça, à época muito bem conservada, não é dos
mais claros e obriga a considerar três personagens importantes da
cultura portuguesa do século XIX, Augusto Soromenho, Teixeira de
Aragão e o Marquês Francisco de Sousa-Holstein (Fig. 2). A primeira
referência conhecida ao vaso de Odemira é de 1867, no catálogo da
secção portuguesa da Exposition Universelle de Paris, e até aqui não
há nenhuma novidade. Nesta secção do catálogo, da responsabili-
dade de Teixeira de Aragão, a ficha da peça é lacónica, brevemente
descritiva sem identificar Puteoli, limitando-se a informar que o vaso
seria proveniente de uma mina na zona de Odemira e que pertencia
ao Marquês de Sousa-Holstein 25 . Desde quando? Não nos parece
possível encontrar resposta definitiva para esta pergunta, pelo menos
por ora, embora possamos traçar algumas hipóteses.

24 Informação do Dr. José Luís Madeira, a quem agradecemos cordialmente


também o tratamento das imagens deste artigo.
25 Aragão 1867: 363, nº121.

617
Fig. 2 – O Marquês Francisco de Sousa Holstein em 1862
(foto de Alfred Fillon).

O local indicado para o achado, apesar de desconhecido, não


levanta problemas, pois na área de Odemira houve explorações mi-
neiras na época romana e os testemunhos da romanização, embora
não exuberantes, existem26. Convém, desde já, lembrar que Sousa
Holstein foi detentor de ações da Sociedade Pesquisadora das Minas
de Odemira, pelo menos a partir de 1865, o que permite colocar a
aquisição antes da data da exposição de Paris 27. Já o aparecimento
de um objeto com estas características, frágil e caro, num ambien-

26 Quaresma 2003: 195-198; Correia 2015: 157-158.


27 Xavier 2014: 104.

618
te mineiro parece deslocado, pelo que vários investigadores têm
proposto antes atribuí-lo a um contexto funerário, mais provável e
confirmado noutros casos. Qual foi a relação do Marquês de Sousa
Holstein com o vaso? No artigo publicado pelo professor prussiano
Heinrich Jordan em 1869, o primeiro que analisa cientificamente
o vaso de Odemira 28, repete-se a mesma reduzida informação do
catálogo de Paris, mas inclui elementos novos. Com efeito, Jordan
agradece a Augusto Soromenho os desenhos e as fotografias do
vaso 29, que serviram de base para delinear a excelente litografia de
Wilhelm Loeillot que ilustra o artigo (Fig. 3), artista nunca referido
nas publicações a que acedemos.

Fig. 3 – Figuras do vaso de Odemira no artigo de H. Jordan (gravura de


Wilhelm Loeillot).

A quem atribuir estas fotos? Sabemos que na Exposição de Paris


participaram na representação portuguesa três fotógrafos: Wenceslau

28 Jordan 1868: 91-97, 394, Taf. XI.


29 Jordan 1868: 91.

619
Cifka, Jacques Francem e Charles Thurston Thompson 30 . Também
sabemos, através do texto de Teixeira de Aragão, quais foram os
motivos expostos em Paris, ainda que sem atribuição de autor. Deste
conjunto de fotografias a única que representa um monumento rela-
cionado com a antiguidade romana, é a fotografia do chamado Templo
de Diana, em Évora 31. O artigo de Jordan foi publicado em Março
de 1869, embora o número da revista corresponda ao ano anterior,
o que permite supor que o material facilitado por Soromenho, em
boas relações com o Marquês de Sousa-Holstein, existisse já um
pouco antes, talvez da autoria de Thompson, dado que o fotógrafo
inglês do South Kensigton Museum, hoje Victoria and Albert Museum,
distinguido com o apoio de Sousa Holstein, se deslocou a Lisboa em
1866, sem que todavia exista qualquer registo de uma foto do vaso
de Odemira ou de obras da Academia 32.
Em 1861, quando Emil Hübner visitou Lisboa ocupado na pre-
paração da edição das inscrições romanas peninsulares 33 , o vaso
ainda não era conhecido, sugerindo que as referidas fotos tenham
sido executadas entre essa data e a exposição parisiense. O marquês
regressara da sua missão diplomática na Itália, relativamente curta, em
1860, ocupando o lugar de vice inspetor da Real Sociedade de Belas
Artes de Lisboa, onde desenvolveu grande atividade no sentido de
aumentar o acervo e introduzir reformas, algo sempre muito difícil em
Portugal 34. Esta intervenção incluiu simultaneamente um programa
de fotografia de peças artísticas pertencentes à Academia. Todavia,
fosse com fosse, a imagem que aqui publicamos não pertence, segu-
ramente, a nenhum dos referidos fotógrafos, como veremos adiante.
Para situarmos melhor o significado da divulgação desta peça no
humilde contexto arqueológico português da época, desde logo dada

30 Almeida 2017: 217-219.


31 Aragão 1867: 390-393.
32 Xavier 2014: 263.
33 Hübner 1871: 8-14.
34 Xavier 2014a: 305-307.

620
a conhecer numa exposição de grande impacte internacional, somos
obrigados a recordar alguns acontecimentos que envolveram diver-
sas instituições culturais, por vezes não isentos de conflitualidade e
onde a figura turbulenta de Augusto Soromenho surgia amiúde. Em
1849 fora criada em Setúbal, a Real Sociedade Arqueológica Lusitana
com o objetivo expresso de efetuar escavações nas ruínas de Troia,
então erradamente identificadas com Caetobriga (Setúbal). Esta
sociedade teve como presidente vitalício o Duque de Palmela, pai
de Sousa Holstein, aliás durante um breve período, pois faleceu em
1850. Apesar de alguns resultados bastante interessantes e do apoio
do rei D. Fernando II, a sociedade entrou em crise e extinguiu-se, o
que contribuiu para dispersar parte do espólio 35.
Em 1868 surgiu uma nova agremiação científica, o Real Instituto
Arqueológico de Portugal, que contava entre os fundadores o Marquês
de Sousa Holstein, Teixeira de Aragão e Augusto Soromenho, numa
altura em que se tentava fazer reverter para a Academia Real de
Belas Artes o importante espólio das escavações em Troia, o que seria
determinado em Janeiro de 1869 por portaria governamental36. É
neste cenário um tanto confuso que ocorre a publicação de Jordan,
depois da lacónica notícia que acompanhou a exposição da peça na
mostra de Paris. Sem querer pôr em causa a origem alentejana do
vaso, sempre vagamente referida, mesmo Jordan chega a atribuí-lo,
talvez por referência à Academia, a Lisboa 37, não podemos deixar
de admitir, não fora a ligação do marquês a interesses mineiros em
Odemira, a hipótese do vaso ser proveniente das escavações efetuadas
em Troia, estação arqueológica de onde se conhecem outras peças
também presentes na exposição de Paris.
A qualidade do objeto e a sua novidade, pois os vasos de Roma
e de Piombino eram ainda praticamente desconhecidos, justificava
perfeitamente a sua deslocação a Paris e esta possível opção de

35 Martins 2014: 203-216.


36 Carvalho 1968: 51-52, 66-67.
37 Jordan 1868: IV. Taf. XI – Lissabon.

621
Sousa Holstein e dos seus futuros confrades no também episódico
Real Instituto Arqueológico de Portugal. Por outro lado, embora as
parcas informações disponíveis afirmem que a peça foi oferecida pelo
Marquês à Academia, não se trataria apenas de um depósito e não
de uma cedência definitiva? Existem algumas razões para considerar
esta possibilidade. Um pouco antes de 1892, ano em que Hübner
publicou o Suplemento ao CIL II, no qual inclui as rubricas que o
vaso português ostenta (CIL II 6251 1), este já não se encontrava na
Academia Real de Belas Artes, perdendo-se-lhe a pista definitivamente.
Em vão o tentou encontrar García y Bellido, sem resultado apesar
do largo apoio que lhe foi prestado em Lisboa, o mesmo sucedendo
com Bairrão Oleiro 38. Ter-se-ia mantido o vaso na Academia depois
do Marquês ter abandonado, em 1868, por discordar da orientação do
governo da época39, o cargo que desempenhava? Aparentemente tal
não seria possível se a peça se encontrasse numa situação de simples
depósito, podendo reverter ao proprietário, neste caso o Marquês.
Falecido Sousa Holstein em 1878 e a esposa em 1879, foi necessário
proceder a um leilão judicial para liquidar dívidas, o qual teve lugar
em Dezembro de 1879. Não nos consta que nele tivesse figurado o
vaso de vidro de Odemira, apesar da numerosa documentação exis-
tente sobre a venda, na qual se destacou a biblioteca do marquês e
diversas obras de arte 40 . Assim sendo, devemos considerar como
desaparecido este precioso testemunho da vidraria e da história
social romana.
Vejamos então o que se conhece, praticamente sem qualquer divul-
gação entre os arqueólogos, sobre a fotografia do vaso de Odemira,
a única de que temos evidência física e documental. A fotografia
consta de uma montagem em tríptico de três vistas do vaso (26 x 35
cm), de forma a cobrir toda a calote globular do mesmo, translúcida,
permitindo uma leitura de razoável qualidade dos elementos arqui-

38 García y Bellido 1954: 215-216; Oleiro 1963-1964: 105.


39 Xavier 2014: 120.
40 Xavier 2014: 107-109.

622
tetónicos e epigráficos que a preenchem (Fig. 4). A cena representa,
sem razão para quaisquer dúvidas, a zona central da cidade portuária
de Puteoli, no Golfo de Pozzuoli, ou melhor, alguns dos monumentos
e estruturas mais marcantes da paisagem urbana puteolana.
Esta identificação foi assinada por Jordan no seu artigo de 1868
[1869], não merecendo contestação. Como a foto não tem escala, in-
felizmente, devemos obedecer ao que o autor prussiano nos indica,
aliás com alguma insegurança, pois fica a dúvida entre perímetro e o
diâmetro da parte globular do vaso41, embora esta última, de acordo
com as peças conhecidas com medidas seguras, pareça mais indica-
da 42. O cálculo de Ana Coelho, se o que a investigadora indica é a
altura total do vaso 43, não pode corresponder à realidade, embora
se revele aceitável para a parte globular do mesmo.
A gravura que acompanha o artigo, de grande qualidade, supre
as dificuldades apresentadas pelas diferentes secções da fotografia,
pois não é fácil, sobretudo com os materiais da época, conseguir
a iluminação e contraste ideais. Ainda uma observação a propósito
da muito divulgada gravura do artigo de Jordan, na qual se vê, em
escala bastante reduzida, uma representação do vaso. Com efeito,
se compararmos a sua posição nesse desenho com a que mostra em
qualquer das secções da foto, verifica-se uma não correspondência,
afastando, mais uma vez, a possibilidade do material cedido por
Soromenho a Jordan incluir o tríptico fotográfico que aqui trazemos,
indiscutivelmente da autoria do fotógrafo francês Jean Laurent.

41 Jordan 1868: 91.


42 Ostrow 1979: 81.
43 Coelho 2016: 72.

623
624
Fig. 4 – Tríptico fotográfico do vaso de vidro de Odemira
(fotos de Jean Laurent).
Figura importante da arte fotográfica da segunda metade do século
XIX, que soube aliar obra artística a um arguto sentido comercial,
Laurent deixou-nos um espólio impressionante constituído por vários
milhares de fotos, sobretudo de paisagens, monumentos e obras de
arte, na maioria referentes a Espanha44, onde se instalou cedo, cons-
tituindo família (Fig. 5). Utilizou correntemente a técnica do colódio
húmido em chapas de vidro, por vezes de grandes dimensões, e cópias
em papel albuminado. Muitas das fotografias foram comercializadas
para visionamento estereoscópico, prática vulgarizada na época45.
Alguns dos seus catálogos anteriores ao de 1879, embora incluam
temas nacionais, não contemplam o vaso de Odemira, o que não
significa que não o tivesse já fotografado.

Fig. 5 – O fotógrafo francês Jean Laurent


(apud La Ilustración Nacional, 5 (2), 1887: 20).

44 Xavier 2014: 264-269.


45 Araújo 2011: 87-108.

625
A viagem de Jean Laurent a Portugal teve lugar em 1869, com
início no mês de Março. Esta simples constatação elimina definiti-
vamente quaisquer dúvidas quanto a uma possível colaboração na
exposição de Paris ou no artigo de Jordan, que foi publicado exa-
tamente nesse mês. Melhor ainda, a foto do vaso de Odemira está
claramente identificada no catálogo publicado, tal como o anterior em
Madrid, no ano de 1879, por Alfonso Roswag, familiar do fotógrafo,
explicitando a propriedade do vaso: À S. E. Mr. Le Marquis de Souza-
Holstein. B.235: Verre globulair, de l’époque romaine, vu sur trois
côtés différents; il a été trouvé dans une mine près d’Odmira (sic),
jadis exploité par les Romains46. Julgamos que não é possível duvidar
da autoria da fotografia, tornando ainda mais estranho o facto de
nunca ter sido referida em nenhum trabalho arqueológico, antigo ou
recente. A forma como a peça é indicada estabelece inequivocamen-
te a sua pertença ao Marquês de Sousa Holstein, destacando-a das
peças da Academia juntamente com quatro desenhos de Domingos
Sequeira 47. A hipótese que sugerimos anteriormente parece ganhar
assim suficiente consistência.
A perda de um objeto arqueológico, e os primeiros anos do século
XXI têm sido pródigos em destruições e extravios de vários tipos,
é sempre um sucesso infausto, tão lamentável como de passageiro
impacte sobre a opinião pública, cada vez mais a opinião que se
publica, como alguém disse em Portugal décadas atrás. No caso do
vaso de vidro de Odemira ficou-nos, felizmente, um bom testemunho
iconográfico, do qual talvez um dia se possam registar outros exem-
plares, em Portugal ou em Espanha, sem esquecer que Laurent tinha
agentes que vendiam a sua produção fotográfica em vários países.
Uma última observação acerca da fotografia e de Sousa Holstein, cuja
morte precoce privou Portugal, num período crítico de transição,
de uma mente esclarecida e de uma personalidade ativa. Devemos
considerar que o Marquês nutria pela peça um interesse especial,

46 Roswag 1879: 187, B.235.


47 Roswag 1879: 187, A.712-715; Xavier 2014: 138-140.

626
promovendo o seu registo fotográfico e consequente divulgação.
É possível que tivesse conhecimento do artigo de Jordan, diretamen-
te ou talvez através de Soromenho, não perdendo a oportunidade
oferecida pela presença de Jean Laurent para obter uma imagem de
grande qualidade.
O vaso mostra uma imagem esquemática da paisagem da cidade
portuária de Puteoli, com início no molhe e terminando, à esquerda,
com os anfiteatros, com um corte entre estes motivos bem marcado.
O porto de Puteoli foi, no período republicano tardio e nos primeiros
tempos do Império, o principal porto da Itália, posição que parece
ter mantido até meados do século IV, apesar de algumas prová-
veis dificuldades no século II, aparentemente devido ao resultado
das grandes obras portuárias de Cláudio e de Trajano, em Óstia e
Civitavecchia (Centumcellae). Essencial na estrutura de abastecimento
da Itália, especialmente de Roma, de que era porto anonário, o seu
movimento era intenso e variado. Era também um centro industrial,
nomeadamente de produção de perfumes e de vidros, conhecendo-se
mesmo um Clivus vitrarius48. Esta atividade manteve-se a bom nível
pelo menos até fase avançada do século IV, devendo recair pelos
inícios desse século o fabrico das famosas fiaschette vitree 49, o que
não deixa, pela sua difusão, de constituir um indício da continuidade
da importância da cidade e do seu porto.
Recordamos uma carta de Séneca que refere o entusiasmo da
população quando se avistavam os avisos que precediam a chegada
da frota com o primeiro envio anual de trigo do Egipto 50. O mon-
tante destes cereais recebidos no porto poderia ascender, segundo
cálculos recentes, a um valor anual entre 70000 a 100000 toneladas,
o que equivale a muitas dezenas de navios de dimensões médias 51.
A estes devemos acrescentar os que transportavam os produtos da

48 Plínio NH. 36.26.194; Camodeca 2018: 44-46.


49 Paolucci 2002: 14-169.
50 Séneca Ad. Luc. 77.1.
51 Camodeca 1994: 109-110; Pomey e Tchernia 1978: 233-251.

627
Hispânia, sobretudo azeite e preparados piscícolas, tráfico sugerido
por um texto de Estrabão que refere os navios da Turdetânia como
sendo em grande número e os maiores que nos primeiros tempos
do Principado aportavam a Itália, a Dicearchia-Puteoli e Ostia,
reflexo seguro da importância e capacidade do porto campanien-
se 52 , de que longamente sobreviveram vestígios da sua grandeza
(Fig. 6).

Fig. 6 – Pozzuoli no século XVI: 1 – Templo de Augusto, integrado na


catedral; 2 – Molhe (apud Civitatis Orbis Terrarum, 2, 1575: 51).

Se quisermos imaginar, com as devidas reservas, o ambiente


popular das cidades da região, e não esqueçamos que muito perto
ficava a grande base da Classis Misenensis, a frota pretoriana do
Mediterrâneo Ocidental53, o que também contribuiria para incrementar
os matizes sociais e culturais da zona (Fig. 7), podemos recorrer à
novela de Petrónio, com destaque para o célebre banquete do rico

52 Estrabão Geo. 3.2.6; 3.5.3; Camodeca 2018: 175-180.


53 Starr 1993: 13-26; Parma 1994: 43-59.

628
liberto Trimalquião, jactancioso armador e negociante 54, evocando
um cenário passavelmente amoral. Num contexto também cosmopo-
lita, mas a nível superior, onde não faltavam notáveis e imperadores,
não podemos esquecer que a região foi famosa na época romana
como centro de vilegiatura de luxo, sobretudo no final da República
e durante o Alto Império 55, pelas suas belezas naturais, a que não
faltava o toque exótico das manifestações vulcânicas, e pelas águas
termais, o que é claramente indicado na série baiana pela figura
feminina, a nereida Baiae ou a personificação da cidade, segurando
um skyphos, presente no fragmento de Astorga e no vaso romano
ora em Varsóvia 56.

Fig. 7 – A área do Golfo de Pozzuoli numa imagem de satélite


(NASA ISS004-E-5376).

54 Petrónio Saty. 21-76.


55 André 1993; Lafon 2001: 89-94, 187-195, 229-259.
56 Gianfrotta 2011: 15-16, 25-29.

629
Esta dupla circunstância, económica e turística, terá contribuído
também para a produção das fiaschette, fácil de entender pelas ca-
racterísticas da região e dos seus ativos portos, a interpretar como
recordações de viagem, e não como objetos com uma intenção
religiosa ou funerária 57 . Parte das inscrições que alguns vasos
ostentam na parte superior do balão, certamente gravadas a pedido
do comprador, não apoiam tal intenção, ainda que a ideia subjacen-
te de viagem possa ser entendida simbolicamente como passagem
pela vida 58. Seja como for, o achado de peças de vidro em espólios
funerários é normal, não havendo razão para lhes atribuir, neste
caso, significado especial, ainda que a legenda gravada no vaso de
Roma o possa sugerir.
A descrição da imagem urbana presente no vaso de Odemira já foi
feita muitas vezes ao longo de mais de século e meio de investigação
científica. O avanço da arqueologia na zona de Puteoli e de Baiae,
nomeadamente a escavação em terra e a prospeção subaquática, fun-
damental numa área onde os fenómenos tectónicos, especialmente
bradissismos (Fig. 8), alteraram por várias vezes a linha de costa 59,
contribuíram para revisões regulares do que entretanto foi escrito.
Trataremos, assim, de forma sucinta o que se vê no vaso e como
se deve, ou pode, interpretar o que lá está, tarefa que as legendas
indicativas das estruturas que mereceram destaque nem sempre fa-
cilitam. O espaço disponível no vaso, cujo diâmetro parece ter sido
de 10,5 centímetros, obrigou a um tratamento muito simplificado,
estilizado. Por isso não podemos interpretar as figuras como se
estas fossem realistas, como também assim devemos considerar as
representações pictóricas que corresponderão à paisagem portuária
de Puteoli, largamente utilizadas pelos investigadores que se têm
ocupado do assunto 60.

57 Ostrow 1979: 89.


58 Chevallier 1985: 368-371, 398-400.
59 Mohrange et alii 2006: 93-96; Lina et alii 2009: 44-58; Bozzato e Bandiera
2016: 253-267.
60 Ostrow 1979: 87-89.

630
Fig. 8 – Planta sumária de Pozzuoli, com a alteração da linha de costa:
1 – Molhe; 2 – Macellum; 3 – Templo de Augusto (Catedral); 4 – Anfiteatro
Flávio; 5 – Anfiteatro Republicano; 6 – Estádio de Antonino Pio.

Imaginando uma chegada a Puteoli por via marítima, uma vez que
o panorama é visto do mar, a primeira estrutura representada é, da
direita para a esquerda, o grande molhe sobre arcadas, corretamente
identificado (CIL X 1640-1641), em mau Latim, como PILAS, ainda que
a colocação do termo entre as colunas possa sugerir tratar-se delas
próprias. Do molhe ainda existiam ruínas importantes no século XIX,
presentes desde o século XVI na iconografia local61, encontrando-se
agora sob o paredão moderno, no qual foram integradas em 1890
(Fig. 9). Obra impressionante, profusamente decorada, poderá re-
montar à época de Augusto62, com importantes trabalhos de restauro
sob Nero, Antonino Pio e Marco Aurélio 63.

61 Parisi 2008: 193-215.


62 Estrabão Geo.5.4.6; Felici 1998: 324.
63 García Llana 2017: 21-25, 58-64.

631
Fig. 9 – As ruínas do molhe de Puteoli em 1769
(gravura de F. Morghen).

Ao molhe parece referir-se Séneca numa das suas cartas a Lucílio,


ao descrever a chegada da frota do trigo de Alexandria assistida
pela população – omnis in pilis Puteolorum – aí concentrada64. A
obra tinha uma extensão de 372 metros e possuía a extremidade
simulando a proa de um navio, como se vê perfeitamente no vaso
de Populonia. Mais difícil de provar é a existência de uma baliza
luminosa no extremo do molhe, sugerida por uma chama visível
no topo de uma estrutura de pequenas dimensões. Poderá antes
tratar-se de um altar monumental? Na gravura de Bellori nota-
-se, à entrada do molhe, uma estrutura circular com três tambores
que poderá representar um farol. De qualquer forma, sabemos
que no século I existia em Puteoli um farol, que seria monu-
mental 65.

64 Séneca Ad. Luc.77.1.


65 Plínio NH. 5.62.

632
Segue-se um primeiro arco de duas aberturas, ostentando sobre o
ático quatro prótomos de cavalos-marinhos, simplificando a quadriga
que aparece na gravura de Bellori66, talvez um grupo escultórico
representando Neptuno no seu carro. As duas colunas honoríficas
sobre o molhe poderão pertencer a Antonino Pio e Marco Aurélio 67,
tanto mais que este tipo de grandes colunas monumentais teve des-
tacada popularidade na arquitetura cívica romana do século II. Na
extremidade esquerda do molhe encontramos um segundo arco, por
vezes interpretado como templo de Ísis, devido à presença do que
parece ser um disco isíaco, idêntico ao que ocorre na decoração do
templo de Serápis 68 , hipótese que a observação de outros vasos,
como os de Praga e Nova Iorque, por exemplo, obriga a descartar.
No vaso do Museu Nacional de Praga o arco aparece coroado
com um grupo escultórico de tritões soprando instrumentos, talvez
grandes búzios, enquanto a palavra RIPA, que no vaso nova-iorquino
surge no interior do arco, sugere que este monumento se situava
à entrada do molhe na marginal de Puteoli (Fig. 10). Todavia, não
podemos deixar de verificar a semelhança entre o arco no vaso de
Odemira e os que figuram nos vasos de Populonia e Ampúrias, todos
diferentes dos restantes, embora ocupem a mesma a sua posição à
entrada do molhe. Na gravura publicada por Bellori, reproduzindo
uma pintura perdida de Roma, dada a conhecer inicialmente por
Tomasso Mamachi 69, a porta monumental do Forum Boarium pode-
ria eventualmente, corresponder ao arco que se discute, embora tal
identificação nos pareça muito forçada.

66 Ostrow 1979: 88-89.


67 De Maria 1988: 134-136.
68 Ostrow 1979: 108-110.
69 Mamachi 1749: 463-464.

633
Fig. 10 – Os principais monumentos de Puteoli no vaso
do Museu de Praga.

Continuando a avançar para a esquerda encontramos um longo


edifício dotado de pórtico, no centro do qual se vê um hemiciclo
facilmente identificável com a legenda que o coroa, THEATRVM
RIPA, talvez a interpretar isoladamente ou como referência a um
teatro construído junto à margem, como parece ser o caso no vaso
de Odemira. Recordamos que atualmente se propõe localizar um
teatro na zona alta da cidade, nas cercanias do anfiteatro flávio,
entre este e o fórum 70, que evidentemente não pode ser o que se
representa no vaso de Odemira. Sobre o teatro encontra-se um dos
edifícios de Puteoli que tem suscitado mais dúvidas, embora a sua
identificação como edifício termal seja incontestável: TERME ĀANI

vel T R̅ (AI)ANI. Na verdade é difícil interpretar o segundo elemento,
embora seja evidente a existência de um nexo no início da palavra.
As várias propostas de leitura publicadas não são completamente
satisfatórias, privilegiando Traiani, por razões evidentes71, pela qual
poderíamos optar 72.
Na verdade o problema permanece sem solução definitiva, o
que é tanto mais irritante quanto a referência só ocorre no vaso
de Odemira, a menos que se interprete como variante a rubrica
Thermaetane do frasco de Mérida, onde o edifício termal está muito

70 Peluso 2007-2008:50-68.
71 Ostrow1979: 123-124; Sommella 1978: 29-32.
72 Esta é também a opinião expressa pelo Doutor José d’Encarnação quando
lhe apresentámos o problema.

634
bem caracterizado 73. Ainda assim, não queremos deixar de invocar
outras possibilidades: uma leitura relacionada com o Vicus [Anni]
anus referido numa inscrição honorífica de 121, não fora o seu local
de achado, hoje submerso, como a maior parte da zona ribeirinha da
cidade 74; ou antes procurá-lo na área identificada como Anniana
no vaso de Mérida 75; fazer derivar a rubrica no vaso de Odemira
do cognome Hermetianus, usado por uma família de Puteoli com
evidente capacidade para custear a construção de um edifício ter-
mal 76, que parece situado num ponto alto da cidade. Aguardemos
novas descobertas em Pozzuoli antes de arriscarmos uma identificação.
Segue-se o edifício com mais destaque, depois do molhe, no vaso
de vidro de Odemira, o Serapeum, grande templo de uma divindade
alexandrina de natural recepção nos centros portuários 77 , apesar
de algumas opiniões contrárias, apoiadas, sobretudo, na representa-
ção da divindade, edifício sempre valorizado na série de fiaschette
puteolanas, cuja evidente importância permitiu dispensar legenda.
Situar-se-ia numa posição elevada, como sugere a monumental es-
cadaria nas imagens nos frascos de Praga e Pilkington, não muito
longe da margem. Mais à esquerda do templo temos duas colunatas:
a inferior, na falta de legenda, dificilmente pode ser identificada,
apesar das múltiplas hipóteses permitidas pelo vaso de Praga 78.
No registo superior a rubrica indica o SOLARIVM, igualmente
presente noutros vasos, estrutura que também levanta problemas
de interpretação. Grande terraço sobre a cidade ou relógio de sol
monumental, que sabemos, por testemunhos epigráficos ter existido
em Puteoli? Podemos admitir a existência de uma vasta Palestra,
tanto mais que no vaso de Praga ao lado do Solarium se encontra
o Stadium, talvez resultante da transformação do anfiteatro republi-

73 Bejarano 2002: 517-518.


74 Camodeca 2018: 62-66.
75 Camodeca 2018: 58-59; Bejarano 2002: 516, 523-524.
76 Camodeca 2018: 320-325.
77 Tran Tam Tinh 1972: 6-26; Ostrow 1979: 108-110.
78 Bejarano 2002: 528-529.

635
cano, representado, sem legenda, ao lado do Solarium. No vaso de
Praga e num dos fragmentos de Brescia estão representados estádios,
que neste último caso corresponde a um circo, como se depreende
da representação da Spina, decorada com colunas (?) e obeliscos.
A hipótese mais consistente, todavia, é a da sua identificação com o
estádio construído por Antonino Pio junto à Via Domitiana, a oci-
dente da cidade (Fig. 11), edifício de grandes dimensões cujas ruínas,
cobertas pela erupção de 1538, foram escavadas recentemente 79.

Fig. 11 – Ruínas do estádio de Antonino Pio, construído em honra de


Adriano.

No vaso de Pilkington o Stadium parece combinar duas estruturas,


uma de anfiteatro e outra de estádio (Fig. 12), o que pode resultar
da vontade de figurar as duas estruturas no pouco espaço disponível
ou, o que nos parece menos credível, reflita a adaptação do edifício,
sem que se possa ignorar a existência do estádio construído por
Antonino Pio, talvez o que se representa no vaso de Praga. No vaso
do museu inglês, frente ao Solarium, vê-se um elemento em forma de

79 Camodeca 2000-2001: 147-175.

636
T que pode corresponder ao relógio. Não podemos deixar de evocar
o Horologium monumental de Augusto, em Roma, do qual o gnómon
era o obelisco egípcio atualmente na Piazza Montecitorio (Büchner
1982). Um monumento deste tipo, e sabemos que o de Puteoli foi
de iniciativa imperial (CIL X 1617), exigia uma área vasta, que bem
poderá corresponder ao Solarium.

Fig. 12 – Os principais monumentos de Puteoli no vaso


do Museu de Pilkington.

Os registos do vaso de vidro de Odemira terminam com os dois


anfiteatros da cidade, um deles, na posição inferior, topograficamente
bem colocado, é o grande anfiteatro flaviano (Fig. 13), o terceiro em
capacidade no mundo romano 80, identificado pela rubrica AMP(H)
ITEAT(RVM). Por cima vê-se o segundo edifício deste tipo de que
a cidade dispunha, de época republicana ou augustana e mantido,
com alterações, no período imperial 81. Alguns investigadores pre-
tendem ver nele o estádio representado nalguns dos vasos, o que é
facilitado pela ausência de rubrica e pela palma (?) na arena, ainda
que a tipologia pareça inconfundível, apesar da estranha estrutura
sobre a qual assenta. A identificação destes dois edifícios, aos quais
não faltam os mastros para o Velum, como viveiros de pescado,
proposta por García y Bellido e com muita razão contestada por
Bairrão Oleiro82, não é válida. A simples comparação dos anfiteatros
com o teatro e a presença, indiscutível, da legenda identificando o

80 Demma 2007: 27-76.


81 Spinazzola 1915: 409-415; Welch 2007: 222-225.
82 Oleiro 1963-1964: 108.

637
edifício, comprovam a infelicidade da proposta de García y Bellido
ao querer contrariar a opinião de Jordan.

Fig. 13 – Vista aérea do grande anfiteatro flávio em Pozzuoli.


Em segundo plano a acrópole e o molhe moderno.

É certo que, noutros vasos, aparecem estruturas especializadas


para a prática da aquicultura, plataformas palafitas facilmente reco-
nhecíveis e indicadas pela legenda Ostriaria, ausentes do vaso de
Odemira assim como no de Pilkington. Na verdade, no vaso português
falta o registo inferior existente noutros e onde se mostram vivei-
ros estabelecidos em meio aquático, como elemento identitário das
cidades da região, na qual a gastronomia se perfila como relevante
na economia e no estilo de vida. Charles Picard ao analisar o vaso
de Odemira, chamou a atenção para o último arco do molhe, prati-
camente fechado, propondo ver nele um grande tanque ou Piscina
junto à margem 83, o que é possível, tanto mais que o número de

83 Picard 1959: 33.

638
arcos do molhe é arbitrário nas representações existentes e que jun-
to ao molhe, a oriente, existiam grandes viveiros, dos quais ainda
subsistem numerosos vestígios submersos.
Estas estruturas são numerosas na Itália, em particular na Campânia,
destinando-se, neste caso, à piscicultura em ambiente próximo do
natural. Outras hipóteses: será a sua ausência nos vasos de Odemira
e de Pilkington reflexo de fenómenos de bradissismo causadores
da sua destruição, o que permitiria conferir uma datação baixa à
peça 84, ou estamos apenas perante uma simplificação do cenário,
refletindo, talvez, a escolha de um eixo orientado a nordeste, a partir
do molhe, que projete monumentos situados no interior da cidade,
evitando em parte a marginal, tanto mais que essas instalações não
ocupariam a zona portuária do empório, desenvolvendo-se a oriente
do molhe? Na verdade, o vaso de Odemira também não representa
o Emporium, com o seu monumental mercado urbano, apesar da
importância deste edifício (Fig. 14), cujas ruínas tradicionalmente
designadas como Templo de Serápis cedo constituíram elemento
essencial na análise da geologia da zona 85 . Por outro lado não
queremos deixar de sublinhar que a existência de ostriaria na prin-
cipal zona portuária da cidade não parece aceitável, pois prejudicaria
gravemente a manobra e atracagem dos navios.

84 Gianfrotta 2011: 33-35.


85 Lyell 1875: 164-180.

639
Fig. 14 – As colunas do Macellum em 1836,
com as marcas da submersão (apud Lyell).

Do que dissemos deduz-se que permanecem em aberto muitas


dúvidas, apesar das múltiplas análises efetuadas sobre os cenários
urbanos de Puteoli e Baiae apresentados nos vasos. Embora não se
ponha em causa o seu local de origem, apesar da hipótese lusitana
de Kisa e da proposta para considerar o vaso de Colónia uma produ-

640
ção local86, a variedade dos desenhos e das técnicas utilizadas pelos
gravadores sugere alguma diversidade das oficinas e, provavelmente,
também diferenças cronológicas 87, embora não muito acentuadas.
A análise dos materiais utilizados talvez permita avançar nesta questão,
sem que esqueçamos como são poucos os exemplares sobreviven-
tes, produzidos de forma artesanal com todas as variações que tal
circunstância implica.
As pinturas de cenas ditas nilóticas, neste caso não muito corre-
tamente, admitidas como representando Puteoli, registadas em Roma
e Estábia, sobretudo a primeira 88, publicada por Bellori no século
XVII a partir de uma pintura perdida do Esquilino (Fig. 15), apesar
de relevantes para a topografia geral da cidade, não são muito elu-
cidativas quanto ao cenário do vaso de Odemira, com exceção da
imagem do molhe, ainda que na pintura de Estábia, reproduzida por
G. Morghen 89, pareça visível o teatro junto ao mar.

Fig. 15 – Paisagem fantasista de Puteoli, com o Molhe e o Templo


de Augusto (gravura de 1673 de P. Bellori).

86 Kisa 1908: 189-190; Fremersdorf 1967: 190-192, 195.


87 Painter 1975: 65.
88 Bellori 1673: 1.
89 Accademia Ercolanese di Archeologia 1760: 291-295, Tav. LX; Wheeler 1964:
199-200.

641
Embora consideradas cautelosamente por Ostrow 90, depreende-
-se que a cena das pinturas tem o mesmo motivo pela análise dos
monumentos que o molhe sustenta, assim como por alguns edifícios
que nelas se repetem, como o Forum Boarium, considerando as va-
riantes próprias da imaginação e liberdade naturalmente existentes
neste tipo de testemunhos artísticos. É o caso da ilhota que aparece
na desaparecida pintura romana e também na de Estábia, esta conser-
vada no Museu Nacional de Nápoles (Fig. 16), que talvez possamos
interpretar, não sendo apenas uma fantasia do artista, como a vizinha
ilha de Nisida, e a grande estrutura arquitetónica, à esquerda da
pintura, o palácio imperial, hoje em grande parte submerso junto à
Punta dell’Epitaffio91. Na pintura reproduzida por Bellori, o Templo
de Apolo é, muito provavelmente, o Templo de Augusto, hoje a re-
centemente reconstruída Catedral de Pozzuoli 92.

90 Ostrow 1979: 130-137.


91 Gianfrotta 2011: 21-23.
92 Campanelli 2010: 8-13.

642
Fig. 16 – Pintura de Estábia, com possível representação de Puteoli
(apud M. Wheeler).

***

Apesar de desaparecido, o vaso de vidro de Odemira constitui


uma peça importante a situar no exuberante cenário da mobilidade
no mundo romano e das suas várias leituras. Esperamos, com este
artigo, ter contribuído para um melhor conhecimento da sua obscu-
ra história, tanto como do que oferece para reconstituir o cenário
do que foi um dos grandes polos da economia cosmopolita romana
(Dubois 1907 69), largamente resultante do consistente uso do mar,
seja qual for o entendimento que tivermos da estrutura económica

643
imperial93. Durante a elaboração do texto tivemos sempre presente a
paisagem do golfo napolitano e as memórias dessa mesma paisagem,
sobretudo de um momento extraordinário vivido à noite no terraço
de uma trattoria nas alturas de Posillipo, quando beleza e história,
pontilhadas pelas luminárias ao longo do litoral, convocaram um
indizível sentimento de plenitude emocionada.

Bibliografia

Fontes

CIL = Corpus Inscriptionum Latinarum. Berlim.


ESTRABÃO, The Geography of Strabo (H. L. Jones, ed.). Londres. 1960
PETRÓNIO, Satyricon (D. F. Leão, trad.). Lisboa. 2005.
PLÍNIO-O-ANTIGO, Histoire Naturelle ( J. Beaujeu e A. Ernout, eds.). Paris. 1950.
SÉNECA, Ad Lucilium Epistulae Morales (R. M. Gummere, trad.). Londres. 1962.

Estudos

Accademia Ercolanese di Archeologia (1760), Le pitture antiche d’Ercolano 2. Nápoles:


nella Regia Stamperia.
Alarcão, J. de (1970), “Abraded and Engraved Late Roman Glass from Portugal”, Journal
of Glass Studies 12: 28-34.
Almeida, C. de (2017), A divulgação da fotografia no Portugal oitocentista. Protagonistas,
prática e redes de circulação do saber. Évora: Universidade de Évora.
Amaré, M.; Ortiz, M. e Palomar, J. (2003), “Un “souvenir” de Baiae en Asturica Augusta
(Provincia Tarraconense, Hispania)”, Journal of Glass Studies 45: 105-113.
Andre, J. M. (1993), La villégiature romaine. Paris: Presses Universitaires de France.
Aragão, T. de (1867), “Catalogue des objects d’art et d’industrie formant l’histoire du
travail de Portugal”, in Catalogue Spécial de la Section Portugaise a l’Exposition
Universelle de Paris. Paris: Librairie P. Dupont, 345-393.
Araújo, N. (2011), “A singular viagem do fotógrafo Jean Laurent a Portugal, em 1869”,
Cultura, Espaço e Memória 1: 87-108.
Balil, A. (1964), “Sobre la topografía de Puteoli”, Archivo Español de Arqueología 37:
170.

93 Tedesco 2016: 11-22.

644
Bejarano, A. (2002), “Una ampulla de vidrio decorada con la planta topográfica de la
ciudad de Puteoli”, Mérida. Excavaciones Arqueológicas 8: 513-532.
Bellori, G. P. (1673), Fragmenta vestigii veteris Romae. Roma: Typis I. Corvi.
Bozzato, S. e Bandiera, G. (2016), “The Geography of Augustus Between Persistence
and Evolutionary Dynamics. The Phlegraean Fields Between the Augustan Reform
and Current Functional Reorganization”, Bolletino della Società Geographica Italiana
13.9: 253-267.
Büchner, E. (1982), Die Sonnenhur des Augustus. Mogúncia: Philipp von Zabern.
Camodeca, G. (1994), “Puteoli porto annonario e il commercio del grano in età imperiale”,
in Le Ravitaillement en blé de Rome et des centres urbains des débuts de la République
jusqu’au Haut-Empire. Roma: Publications du Centre Jean Bérard, 103-128.
Camodeca, G. (2000-2001), “Lo stadium di Puteoli, il sepulchrum di Adriano in villa
ciceroniana e l’Historia Augusta”, Rendiconti della Pontificia Accademia Romana
di Archeologia 73: 147-175.
Camodeca, G. (2018), Puteoli romana. Istituzioni e società. Nápoles: Saggi.
Campanelli, A. P. (2010), “Il restauro del Tempio-Duomo di Pozzuoli”, L’Architetto
Italiano 6: 8-13.
Carvalho, A. (1968), Acontecimentos, lendas e tradições da Região Setubalense, 1. Setúbal:
Junta Distrital de Setúbal.
Chevallier, R. (1985), Voyages et déplacements dans l’empire romain. Paris: Armand
Colin.
Coelho, A. (2012), Testemunhos artísticos no vidro romano português. Lisboa: Universidade
Nova.
Correia, V. (2015), “Observações sobre a ocupação de época romana no vale do Mira”,
Conimbriga 54: 157-178.
De Gaetano, E. (2013), Reconstructing Pozzuoli: Textual and Visual Reconstruction of
a Roman Port Town. Southampton: Universidade de Southampton.
De Rossi, G. B. (1853), “Topografia delle spiage di Baia grafitta sopra due vasi di vetro”,
Bulletino Archeologico Napolitano 1: 133-136.
De Maria, S. (1988), Gli archi onorari dell’Italia romana. Roma: “L’Erma” di Bretschneider.
Demma, F. (2007), Monumenti pubblici di Puteoli: per un’archeologia dell’arquitettura.
Roma: «L’Erma» di Bretschneider.
Dubois, C. (1907), Pouzzoles antique. Histoire et topographie. Paris: A. Fontemoing.
Felici, E. (1998), “La ricerca sui porti romani in cementizio: metodi e obiecttivi”, in G.
Volpe (ed.), Archeologia Subacquea. Comme opera l’archeologo sottácqua. Storie
dalle acque. Florença: Edizione all’insegna del giglio, 275-340.
Fremersdorf, F. (1927-1928), “Neue Inschriften aus Köln”, Germania 11: 42-43.
Fremersdorf, F. (1967), Die Römischen Gläser mit Schliff, Bemalung und Goldauflagen
aus Köln. Colónia: Verlag der Löwe Hans Reykers.
Froehner, W. (1899), Antiquités. Collection du Château de Goluchow. Paris:Imprimerie
Alsacienne Anc. G. Fischback.
Fujii, Y. (2006), “Report on Four Roman Glass Fragments from the Gorga Collection:
attribution to the “Puteoli-Baiae Group”, in K. Janssens et al. (eds.), Annales du
17 e Congrès de l’Association Internationale pour l’Histoire du Verre. Antuérpia:
University Press Antwerp, 136-142.

645
García Llana, J. (2017), Los puertos del Golfo de Nápoles, Puteoli y la técnica del Opus
Pilarum. Tarragona: Universidade Autónoma de Barcelona.
García y Bellido, A. (1954), “El vaso puteolano de Ampurias”, Archivo Español de
Arqueología 27.89-90: 212-226.
Gianfrotta, P. (2011), “La topografia sulle bottiglie di Baia”, Rivista di Archeologia 35:
13-40.
Golvin, J. C. (2008), “À propos de la restitution de l’image de Puteoli. Correspondances,
ancrages, convergences”, in Roma Illustrata: représentations de la ville: actes du
colloque international de Caen, (6-8 octobre 2005). Caen: Presses universitaires de
Caen, 157-174.
Hübner, E. (1871), Noticias archeologicas de Portugal. Trad. A. Soromenho. Lisboa:
Academia Real das Ciências de Lisboa.
Isings, C. (1957), Roman Glass from Dated Finds. Groninga-Jacarta: J. B. Wolters.
Jordan, H. (1868), “Die Küste von Puteoli auf einem Römischen Glasgefäss”, Archaologische
Zeitung 26: 91-97, 394.
Kadik, J. (1970), Graeco-Roman and Egyptian Glass. Praga.
Kisa, A. (1908), Das Glas im Altertume 1. Lípsia: Hiersemann.
Lafon, X. (2001), Villa Maritima. Recherches sur les villas littorales de l’Italie romaine.
Roma: École Française de Rome.
Lina, A., De Vivo, B., Spera, F. et alii (2009), “Thermodynamic model for uplift and
deflation episodes (bradyseism) associated with magmatic-hydrothermal activity at
the Campi Flegrei”, Earth Sciences Reviews 97: 44-58.
Lyell, C. (1875), Principles of Geology 2. Londres: John Murray.
Mamachi, T. M. (1749), Originum et Antiquitatum Christianorum, Libri XX. Roma: 463-
464.
Martins, A. C. (2014), “A Sociedade Archeologica Luzitana no contexto da arqueologia
de oitocentos”, Setúbal Arqueológica 15: 203-216.
Mohrange, C. et alii (2006), “Rapid sea-level movements and non eruptive crustal
deformation in the Phlegrean Fields caldera”, Italy, Geology 34 (2): 93-96.
Oleiro, J. M. B. (1963-1964), “O vaso de vidro de Odemira”, Arquivo de Beja 20-21:
101-110.
Ostrow, Steven (1979), “The Topography of Puteoli and Baiae on the Eight Glass Flasks”,
Puteoli. Studi di Storia Antica 3: 77-140.
Painter, K. S. (1975), “Roman Flasks with Scenes of Baiae and Puteoli”, Journal of Glass
Studies 17: 54-67.
Paolucci, F. (2002), L’arte romana del vetro inciso a Roma nel IV secolo d.C. Roma.
Parisi, R. (2008), “Da Puteoli a Pozzuoli, e ritorno. Itinerario nell’iconografia della città
flegrea”, in A. Buccaro, C. De Seta (eds.), Iconografia della città in Campania.
Napoli e i centri della provincia. Nápoles: Electa Napoli, 193-215.
Parma, A. (1994), “Classiari, veterani e società cittadina a Misenum”, Ostraka 3.1: 43-59.
Peluso, D. (2007-2008), “L’ubicazione del teatro romano di Puteoli”, Bolletino Flegreo
24-25: 50-68.
Picard, G. Ch. (1959), “Pouzzoles et le paysage portuaire”, Latomus, 18.1: 23-51.
Pomey, P. e Tchernia A. (1978), “Le tonnage maximum des navires de commerce romains”,
Archaeonautica 2: 233-251.

646
Popkin, M. (2017), “Souvenirs and Memory Manipulations in Roman Empire. The Glass
Flasks of Ancient Pozzuoli”, in L. Muntean, L. Plate and A. Smelik (eds.), Materializing
Memory in Art and Popular Culture. Nova Iorque-Londres: Routledge, 45-62.
Popkin, M. (2018), “Urban Images in Glass from the Late Roman Empire: the Souvenirs
Flasks of Puteoli and Baiae”, American Journal of Archaeology 122.3: 427-462.
Quaresma, António (2003), Vila Nova de Milfontes. História. Vila Nova de Milfontes.
Roffia, E. (2002), “Alcuni vetri incisi”, in F. Rossi, F. Morandini, C. Stella (eds.), Nuove
Ricerche sul Capitolium di Brescia. Scavi, studi e restauri. Milão: ET, 413-434.
Roswag, A. (1879), Nouveau guide du touriste en Espagne et Portugal. Itinèraire artistique.
Catalogue. Madrid: J. Laurent et Cie.
Sestini, D. (1812), Illustrazione di un vaso antico di vetro ritrovato in un sepolcro presso
l’antica Populonia. Florença.
Sommella, P. (1978), “Forma e urbanistica di Pozzuoli romana”, Puteoli. Studi di Storia
Antica 2: 1-98.
Spinazzola, V. (1915), “Pozzuoli. Rovine di un secondo anfiteatro”, Notizie degli Scavi
di Antichità 12: 409-415.
Starr, C. G. (1993, 2ª ed.), The Roman Imperial Navy 31 B.C. – A.D. 324. Chicago: Ares
Press.
Tedesco, P. (2016), “Was there the Roman Capitalism?”, Mediterraneo Antico, 19.1-2:
11-22.
Tran Tam Tinh, V. (1972), Le Culte des divinités orientales en Campanie en dehors de
Pompéi, de Stabies et d’Herculanum. Leida, Brill.
Vaglieri, D. (1909), “Ostia”, Notizie degli Scavi di Antichità 6: 209.
Welch, Katherine (2007), The Roman Amphitheatre. From its origin to the Colosseum.
Nova Iorque: Cambridge University Press.
Wheeler, M. (1964), Roman Art and Architecture. Londres: Thames and Hudson Ltd.
Xavier, H. (2014), O Marquês de Sousa Holstein e a formação da Galeria Nacional de
Pintura da Academia Belas Artes de Lisboa. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa.
Xavier, H. (2014a), “D. Francisco de Sousa Holstein”, in Dicionário Quem é Quem na
Museologia Portuguesa. Lisboa: Instituto de História da Arte da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas/NOVA, 305-307.

647
(Página deixada propositadamente em branco)
LINGUÍ S TICA
(Página deixada propositadamente em branco)
O lugar do input linguístico
e m e ta l i n g u í s t i c o e m t e o r i a s
de aquisição/aprendiz agem de línguas
n ão m at e r n a s . I m p l i c aç õ e s p e dag ó g i c a s

T h e P l ac e o f L i n g u i s t i c a n d M e ta l i n g u i s t i c I n p u t
i n t h e T h e o r i e s o f L a n g uag e A c q u i s i t i o n / L e a r n i n g

o f N o n - n at i v e L a n g uag e s . P a e dag o g i c a l

I m p l i c at i o n s

Cristina Martins
Univ. Coimbra, CELGA-ILTEC
ORCID: 0000-0002-9335-6027
crismar@fl.uc.pt

Resumo: Os estudos sobre a aquisição e a aprendizagem de línguas não


maternas (LNM) eclodiram no fim da década de cinquenta do século
passado, motivados por fortes preocupações pedagógicas e ancora-
dos, teoricamente, no estruturalismo e no behaviorismo. Desde então,
esta área de estudos floresceu e sofreu profundas transformações,
descentrando-se do processo instrucional e alimentando-se de contri-
butos teóricos novos e diversos. Um dos efeitos desta intensa atividade
foi, justamente, a proliferação de teorias explicativas da aquisição e
aprendizagem de LNM, de que são importantes exemplos os modelos
gerativistas, o emergentismo, a Skill Acquisition Theory e o paradigma
declarativo-procedimental. Neste trabalho, as assunções destas teorias
são examinadas, na tentativa de identificar as suas implicações peda-
gógicas. De particular interesse reveste-se a compatibilidade de cada
teoria revista com práticas de ensino que se sustentam no recurso a
input linguístico e metalinguístico.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_28
Palavras-chave: línguas não maternas, teorias de aquisição e aprendiza-
gem, input linguístico, input metalinguístico

Abstract: Studies on the acquisition and learning of non-native languages


(NNL) erupted in the late fifties of the twentieth century, with strong
paedagogical concerns and theoretically underpinned by structuralism
and behaviourism. Since then, this field of inquiry has flourished and
undergone profound changes, moving away from its original interest
in instruction, and feeding on new and diverse theoretical contri-
buitions. Precisely one of the effects of this intense activity was the
proliferation of explanatory theories of NNL acquisition and learning,
of which generative models, emergentism, Skill Acquisition Theory and
the declarative-procedural paradigm are important examples. In this
study, the assumptions of these theories are examined in an attempt
to identify their paedagogical implications. Of particular interest is
the compatibility of each of the theories considered with teaching
practices that rely on linguistic and metalinguistic input.

Keywords: non-native languages, acquisition and learning theories, lin-


guistic input, metalinguistic input

1. Introdução

Sendo muito antigo o interesse pela forma como as línguas não


maternas (LNM) são adquiridas/aprendidas por falantes não nativos
em fases mais tardias do desenvolvimento ontogénico, foi a partir
da década de cinquenta do século passado que se assistiu ao estudo
sistemático destes processos. Fundados, teoricamente, nos princípios
do estruturalismo linguístico, por um lado, e do behaviorismo então
dominante na Psicologia, por outro, os modelos vigentes nesta época
(como o método áudio-lingual e a análise contrastiva1) caracterizam-
-se, ainda, pelas suas fortes preocupações pedagógicas.

1 Estes modelos postulavam que a aquisição/aprendizagem de LNM resultaria


da consolidação de comportamentos por via da imitação dos padrões estruturais
presentes no input da LNM e do seu treino reiterado, reforçado por feedback. A

652
Desde então, os estudos sobre aquisição e aprendizagem (AA 2)
das LNM foram-se afastando das premissas behavioristas e estrutura-
listas, ao mesmo tempo que se foram autonomizando da investigação
que incide mais especificamente sobre o seu ensino, para constituir,
hoje, uma área de inquirição independente desta, inspirada por con-
ceções teóricas diversas e com propostas explicativas alternativas
destes fenómenos na perspetiva do aprendente.
Ainda assim, e apesar desta individualização, a aplicabilidade ao
ensino da investigação em AALNM continua a motivar os proponentes
de alguns dos modelos teóricos mais proeminentes na atualidade 3,
enquanto outros, operando em quadros tradicionalmente avessos a
preocupações deste tipo (como o gerativismo, que adiante se conside-
rará), começam a dar sinais de interesse na aplicação pedagógica das
investigações conduzidas no quadro dos seus modelos explicativos.
A reaproximação dos estudos de AA aos interesses pedagógicos
é naturalmente desejável para quem ensina LNM e se vê confron-
tado com a multiplicidade de orientações pedagógicas atualmente
existentes 4 , também elas alimentadas por inúmeras controvérsias
(entre as quais a que diz respeito à vantagem, ou não, de se ensinar
a gramática da LNM explicitamente). As abordagens pedagógicas
ganharão, certamente, se puderem ser apoiadas por descrições das
características das interlínguas 5 que os aprendentes da LNM vão

análise contrastiva previa, em particular, ocorrências de dificuldades e de desvios


de produção motivadas pela falta de coincidência entre as estruturas linguísticas da
LNM e as da língua materna (LM) dos aprendentes, já que a consolidação de novos
comportamentos obrigaria o aprendente a contrariar, nas zonas de não coincidência
entre a LM e a LNM, os já automatizados.
2 A oposição conceptual entre aquisição e aprendizagem de LNM, popularizada
por Krashen (1981), não é pertinente em muitas tradições teóricas, como adiante se
evidenciará. Nestes casos, os termos tendem a ser utilizados como sinónimos, havendo,
no entanto, alguma preferência pelo de aquisição. Cf. Martins 2016.
3 É o caso de VanPatten 1996, proponente do Input Processing Theory e do seu
correlato pedagógico, a Input Processing Instruction Theory.
4 Para uma amostra representativa destas orientações, cf. Larsen-Freeman &
Anderson 2011.
5 Conceito cunhado por Selinker 1972, as interlínguas (IL) correspondem aos
sistemas intermédios de conhecimento linguístico que o aprendente de uma LNM vai
construindo, partindo da sua língua materna (LM), rumo à língua-alvo (LA) de aqui-

653
construindo em diferentes fases da AA, mas beneficiarão igualmente
da ponderação das hipóteses existentes sobre a natureza dos siste-
mas cognitivos ao serviço da AA e das representações linguísticas
com estes compatíveis, contributos que, mesmo que repassados por
divergências, a investigação neste âmbito tem avançado. Assim, e
sendo certo que não existe uma narrativa comum nem sobre como
se adquire/aprende uma LNM, nem sobre como esta se deve ensinar,
a verdade é que é possível, apesar disso, levar em consideração as
perspetivas de vários modelos teóricos de AALNM para sustentar
opções pedagógicas, como se procurará demonstrar.
O presente trabalho não tem por objetivo discutir a validade das
posições teóricas convocadas, mas antes equacionar até que ponto
as conceções alternativas avançadas sobre a natureza dos sistemas
cognitivos ao serviço da AALNM e/ou das representações mentais
que estes computam são compatíveis com o recurso, no ensino, a
distintos tipos de input (meta)linguístico. Este propósito justifica-se
pelo facto de o input ser uma das (poucas) componentes do pro-
cesso de AALNM que pode ser ativamente manipulada em contexto
instrucional. Procurar-se-á, pois, avaliar a interação possível e previ-
sível entre diferentes tipos de input e os sistemas de aquisição e/ou
aprendizagem das representações da LNM perspetivados por diferentes
modelos, nomeadamente os de filiação gerativista e emergentista, a
Skill Acquisition Theory e o paradigma declarativo-procedimental.

2. Conceitos operatórios

2.1. Tipos de input

O input ao qual o aprendente de uma LNM é exposto pode ser de


vários tipos: implícito e explícito, por um lado, positivo e negativo,

sição/aprendizagem. As IL não se confundem, assim, nem com a LM, nem com a LA,
antes constituem sistemas transitórios que, enquanto dura a aquisição/aprendizagem,
se reestruturam permanentemente.

654
por outro, sendo que todos se constituem como recursos educacio-
nais potenciais.
O input negativo, seja implícito ou explícito, caracteriza-se por ser
de natureza reativa. Trata-se do feedback fornecido ao aprendente e
que é espoletado pela presença, na sua produção linguística, de uma
agramaticalidade. É implícito quando assume a forma de recast, sem
comentário metalinguístico (i.e., a repetição do enunciado desviante,
sem a agramaticalidade original), e é explícito quando enquadrado
por um comentário metalinguístico que sinaliza, sem equívocos,
a presença de uma forma não convergente com o alvo (“Não se diz
x, diz-se y”).
Já o input positivo é o demais, i.e., o não reativo, que pode,
igualmente, ser explícito (i.e., metalinguístico, quando assume a
forma de uma explicação gramatical, por exemplo), ou implícito.
É este último o tipo de input que, em contextos não instrucionais (ou
naturalísticos), prevalece, já que corresponde aos usos linguísticos
espontâneos e “normais”, não norteados (pelo menos necessariamen-
te) por um propósito pedagógico. Ainda assim, também em contexto
instrucional o input positivo implícito existe, como é evidente. Aliás,
quando a prática pedagógica segue as orientações das abordagens
comunicativas do ensino de LNM, é mesmo este o tipo de input
que impera. Já os outros três tipos são sobretudo valorizados pe-
las orientações pedagógicas, como o focus on form ou o focus on
forms6, que preveem um efeito positivo do feedback corretivo, por
um lado, e do ensino explícito da gramática, por outro, na AALNM
que ocorre em contexto instrucional.

6 A diferença entre estas duas orientações prende-se com o caráter reativo da focus
on form vs. a natureza proativa da focus on forms. Deste modo, a primeira defende
o ensino explícito da gramática apenas na medida em que o aprendente possa reve-
lar, pelas dificuldades encontradas nas suas atividades linguísticas, dela necessitar,
enquanto a segunda advoga que esse ensino deve, antes, ser preventivo, fornecendo
ao aprendente informação prévia sobre as estruturas que serão previsivelmente (i)
necessárias para desempenhar tarefas comunicativas específicas e/ou (ii) difíceis de
dominar. Cf., sobre esta distinção, Long & Robinson 1998.

655
2.2. Sistemas cognitivos e representações mentais

A partir dos dados do input, desencadeiam-se os processos de aqui-


sição e/ou de aprendizagem das estruturas da LNM com um recurso
necessário a sistemas cognitivos. Na literatura, tende a desenhar-se
uma distinção, embora nem sempre nítida, entre sistemas de pro-
cessamento do input e do output, por um lado, e os que asseguram
a aquisição e/ou aprendizagem propriamente ditas, i.e., a retenção,
a longo prazo, do conhecimento interlinguístico, por outro. Estes últi-
mos são, em alguns casos, entendidos como sistemas computacionais
organizados em módulos (fonologia, sintaxe, semântica), incluindo
mecanismos de processamento das representações que permitem a
comunicação intermódulos 7.
Os sistemas de retenção duradora asseguram, nos modelos exis-
tentes, a aquisição implícita, inconsciente, por via procedimental
e/ou a aprendizagem explícita, consciente, por via declarativa 8 de
representações mentais com distintos formatos, compatíveis com
cada um destes tipos de sistemas. Em termos gerais, dir-se-á que os
mecanismos de aquisição atuam na assimilação de representações
linguísticas, enquanto que os mecanismos de aprendizagem suportam
representações metalinguísticas, correspondendo, estas últimas, a um
saber sobre que toma as primeiras por objeto 9.

7 Jackendoff 1997, Truscott 2015.


8 Não existe, na verdade, uma equivalência conceptual entre os termos implícito,
inconsciente e procedimental, por um lado, e explícito, consciente e declarativo, por
outro. Tratando-se de conceitos que são comummente convocados para sustentar a
distinção entre representações linguísticas e metalinguísticas, respetivamente, eles são
tributários de tradições de investigação distintas remetendo, por isso, para universos
teóricos particulares. Assim, o recurso ao binómio (i) implícito/explícito muito deve
ao paradigma gerativista dos estudos linguísticos, (ii) inconsciente/consciente ao
construtivismo de Piaget e (iii) procedimental/declarativo a estudos sobre inteligência
artificial e sistemas de memória humana. Para uma discussão mais aprofundada das
relações entre estes conceitos, cf. Martins 2008.
9 Em todo o caso, na literatura relativa à oposição conceptual entre o linguístico
e o metalinguístico reconhece-se que nem todas as atividades de natureza metalin-
guística são conscientes. Tarefas de auto- e de heteromonitorização de enunciados,
aquando das atividades de produção e de compreensão de input positivo implícito,
por exemplo, sendo de natureza metalinguística (na medida em que se baseiam numa

656
Já os sistemas de processamento são periféricos, no sentido em
que operam na interface entre as representações codificadas nos
sistemas de retenção duradoura e as condições de input e de ou-
tput. Interagindo com recursos atencionais, estes sistemas ora são
responsáveis pela extração e filtragem dos dados linguísticos aos
quais o aprendente está exposto, de modo a transformar o input
em intake10, ora atuam aquando da mobilização das representações
(meta)linguísticas adquiridas/aprendidas para a produção lin-
guística 11.
Os modelos teóricos existentes tendem a fazer incidir o seu foco
em apenas um destes tipos de sistemas ou, então, mais especifica-
mente, nas representações que neles operam, mantendo-se omissos
em relação à natureza e o funcionamento dos demais. Um exemplo
notório é a Input Processing Theory 12 que, centrando-se no proces-
samento do input, mantem neutralidade em relação à natureza quer
do sistema que retém o intake quer das representações linguísticas
correspondentes, o que faz com que este modelo não seja necessa-
riamente incompatível com outros que incidem sobre componentes
distintas do processo de AALNM. Noutros modelos não é sequer
percetível uma fronteira clara entre mecanismos de processamento
e de armazenamento das representações interlinguísticas, conceptu-
alizando-se um sistema em que ambos os mecanismos operam, mas
cujo foco tende, no entanto, a incidir sobre a retenção duradoura do
intake e/ou sobre os formatos representacionais que este assume.

capacidade de objetificação da linguagem), são, porém, geralmente inconscientes.


Não obstante estas circunstâncias, e atendendo ao âmbito do presente trabalho, a
equivalência funcional entre implícito, inconsciente e procedimental, por um lado, e
de explícito, consciente e declarativo, por outro, é assumida (na linha de Ellis 2009
e de Paradis 2004, 2009), não oferecendo dificuldades, já que casos pontuais de não
convergência serão oportunamente assinalados.
10 Corder 1967.
11 Uma hipótese sobre como ocorre o processamento do output é postulada no
quadro da Processibility Theory de Pienemann 2008.
12 VanPatten & Cadierno 1993 e VanPatten 2002.

657
Na presente discussão, centrar-nos-emos nos sistemas de arma-
zenamento, a longo prazo, do conhecimento da LNM e nos tipos de
representações mentais com eles compatíveis, já que é sobre a sua
natureza que existe maior e mais assumida controvérsia.

3. Modelos teóricos

Como se viu, os sistemas responsáveis pela retenção e/ou com-


putação do conhecimento interlinguístico do aprendente são vistos
na literatura ora como mecanismos de aquisição (procedimental)
de conhecimento linguístico implícito e inconsciente, ora como
mecanismos de aprendizagem (declarativa) de representações metalin-
guísticas explícitas e conscientes. Alguns modelos teóricos de AALNM
preveem, à partida, um papel para mecanismos e representações
dos dois tipos, enquanto outros perspetivam a funcionalidade, na
AALNM, de apenas um destes tipos de sistemas e/ou das respetivas
representações.
Os modelos de matriz gerativista, de grande proeminência nesta
área de estudos, inscrevem-se nesta última categoria. Central nestes
modelos é o conceito de gramática universal (GU) proposto por
Chomsky 13. A GU consiste num sistema de categorias, operações e
princípios hipotéticos, com uma arquitetura modular, especificamen-
te linguísticos (i.e., não partilhados por outros sistemas cognitivos
e insensíveis à sua atividade 14), que determinam as configurações
possíveis (e também impossíveis) de todas as línguas do mundo. Esta
universalidade da GU decorre do seu caráter inato. Assim, cada ser
humano nasce já munido deste conhecimento linguístico genetica-
mente determinado que lhe permite, de modo intuitivo e implícito,
saber mais sobre a estrutura da língua à qual está exposto do que os

13 Chomsky 1965.
14 Fodor chama a esta propriedade informational encapsulation. Para além
disso, especifica: “modular cognitive systems are domain specific, innately specified,
hardwired, autonomous, and not assembled” (Fodor 1983: 37).

658
dados do input, por si só, lhe permitiriam saber (o que constitui o
conhecido problema lógico da aquisição linguística ou problema de
Platão). Capacitando-a para suplantar a pobreza dos estímulos aos
quais está exposta, a GU confere à criança um avanço considerável
na tarefa de aquisição da sua língua materna (LM) e, logo assim, uma
dependência mínima dos dados do input linguístico para esse efeito.
A exposição ao input linguístico, nesta perspetiva, assume dois
propósitos básicos e interrelacionados. O primeiro é o de contribuir
para a seleção, entre a variabilidade (ainda que limitada) das formas
possíveis e previstas na GU, daquela que a gramática específica da
LM efetivamente assume. A partir do modelo Princípios e Parâmetros,
um dos que entretanto foram desenvolvidos no quadro da gramática
gerativa, este processo de seleção passa a corresponder, precisamen-
te, a uma parametrização de propriedades variáveis das línguas que
instancia princípios universais mais latos. A segunda tarefa do input,
com esta relacionada, é a de desencadear o rastilho de operações
tendentes à aquisição implícita e inconsciente dos valores destes
parâmetros, cujas sequências estão já, e igualmente, previstas na
GU. A gramática particular assim adquirida é um sistema finito de
categorias linguísticas parametrizadas e de operações, de natureza
computacional, que permitem, por sua vez, gerar um número ilimi-
tado de enunciados gramaticais 15.
A partir destas premissas básicas se desenvolveram, sobretudo a
partir das décadas de oitenta e noventa do século XX, vários mo-
delos teóricos de aquisição de LNM 16 fundamentalmente centrados
na conceptualização do estádio inicial do processo. Estes modelos
partilham a assunção de que, também na aquisição da LNM (e não
apenas, portanto, na da LM), a GU se encontra disponível e acessível

15 A este poder gerativo se deve o nome pelo qual a teoria linguística de


Chomsky é conhecida.
16 Alguns dos modelos gerativistas mais notórios deste período são a Full Access
(No Transfer) Hypothesis (Epstein, Flynn & Martohardjono 1996), a Full Transfer, Full
Access Hypothesis (Schwartz and Sprouse 1996), a Minimal Trees Hypothesis (Vainikka
and Young-Scholten (1996) e a Valueless Features Hypothesis (Eubank1993/1994). Para
uma apresentação sintética e comparativa de cada um destes modelos, cf. White 2003.

659
ao aprendente, distinguindo-se, no entanto, em função de vários cri-
térios, entre os quais a forma como se perspetiva esse acesso (total
vs. parcial, direto vs. indireto) e o ponto de partida do processo (a
GU ou a LM)17. Assim, assumido, embora, que o aprendente da LNM
se distingue da criança que adquire a LM, na medida em que enfrenta
a tarefa de adquirir a LNM com a GU já parametrizada, as diferenças
fundamentais entre estes diferentes modelos gerativistas radicam,
na essência, na forma de conceptualizar o modo como, no processo
de aquisição da LNM, interagem a GU e a LM do aprendente, assim
como o peso que cada uma destas componentes assume no processo.
Independentemente, no entanto, destas especificidades, importa
realçar que, para além da previsão do papel da GU no processo de
aquisição da LNM (e do papel, ainda que variável, da LM), nenhum
destes modelos dedica espaço teórico à eventual intervenção de
representações linguísticas explícitas, i.e., metalinguísticas, na re-
estruturação do conhecimento linguístico implicitamente adquirido.
Ainda que a (co)existência, em si, de representações metalinguísticas
não colida com as premissas básicas destes modelos 18, ela revela-
-se, contudo, teoricamente irrelevante, na medida em que, sendo o
conhecimento linguístico implícito representado e computado por
um sistema modular, esse sistema é, e por definição, insensível à
influência de representações de sistemas cognitivos não modulares e
domain general. Deste modo, um eventual efeito de retorno do co-
nhecimento metalinguístico explícito aprendido sobre o conhecimento
linguístico adquirido é uma impossibilidade teórica nestes modelos,
que alguns investigadores assumem, de resto, muito frontalmente 19.

17Para uma apresentação destas posições, cf. Mitchell, Myles & Marsden 2013
ou White 2003.
18 Aliás, segundo Fodor, os sistemas modulares coexistem com mecanismos
cognitivos transversais, i.e., domain general, e informacionalmente não encapsula-
dos, tanto mais que “representations that input systems [modules] deliver have to
interface somewhere, and the computational mechanisms that affect the interface
must ipso facto have access to information from more than one cognitive domain”
(Fodor 1983: 101-102).
19 Por exemplo, Schwartz 1993.

660
Mesmo assim, existem algumas tentativas, no paradigma gerativis-
ta, de avaliação do papel desempenhado, na aquisição da LNM, pelo
feedback negativo e input explícito que estão na origem de represen-
tações metalinguísticas. Nesta linha, White 20, por exemplo, admite
que estes tipos de input podem ajudar o aprendente a identificar os
limites da língua-alvo, pela sinalização das opções de parametrização
que nela não são possíveis, mesmo que não contribuindo, no entanto,
e diretamente, para a aquisição das parametrizações efetivamente
requeridas (o que só o input positivo implícito permite). Dito isto,
e não obstante a admissão deste papel benéfico do feedback nega-
tivo e input explícito, White21 também relata o efeito não duradouro
da sua influência no comportamento linguístico dos aprendentes
da LNM, sugerindo, assim, a ausência de um impacto efetivo das
representações metalinguísticas na competência linguística implícita
dos aprendentes.
Já num modelo mais recente de cariz gerativista, a Interface
Hypothesis22, centrado nas características dos estádios avançados de
aquisição da LNM, existirá, porventura, algum espaço teórico para
acomodar o papel eventual de feedback negativo e de input positivo
explícito. Perspetivando a gramática interiorizada pelo aprendente
como um sistema computacional, este último é constituído por mó-
dulos (fonologia, sintaxe e semântica), que interagem entre si por
meio de interfaces internas, mas que se relacionam, igualmente, com
sistemas cognitivos externos à core grammar, como os que suportam
o conhecimento pragmático-discursivo, por exemplo, fazendo-o por
meio de interfaces externas. Ora, é justamente no conhecimento
de estruturas linguísticas cuja gramaticalidade depende do funcio-
namento das interfaces, quer internas, quer externas, que se têm
registado, na investigação disponível, maiores divergências entre
aprendentes avançados da LNM e falantes para quem esta é, antes,

20 Cf. os estudos de White 1991 e Trahey & White 1993.


21 White 1991.
22 Sorace & Filiaci 2006; Sorace 2011.

661
a LM. Neste modelo, não sendo teoricamente fácil de acomodar a
putativa intervenção de representações metalinguísticas explícitas
no funcionamento da core grammar (uma vez que esta é modular),
já seria possível perspetivar a sua ação no domínio das interfaces
externas 23. Mesmo que não seja, ainda, inteiramente claro de que
modo o ensino explícito da gramática, por exemplo, contribuiria para
o funcionamento de um sistema assim concebido, a verdade é que
já existem investigadores 24 que advogam o recurso a esse tipo de
ensino que, infere-se, forneceria ao aprendente formas supletivas e
compensatórias de uma aquisição implícita menos bem-sucedida de
estruturas de interface externa.
Dito isto, também existem teorias de AALNM que rejeitam a pre-
missa de que a GU é um fator interveniente no processo. Nuns casos,
admitindo-se, até, o papel da GU na aquisição da LM, considera-se,
contudo, que o seu acesso fica interditado por constrições maturacio-
nais 25 no caso da AA tardia da LNM. Representativa desta posição
é a Fundamental Difference Hypothesis de Bley-Vroman. O investi-
gador vê a AALNM como resultando da ação combinada da LM do
aprendente e de mecanismos cognitivos gerais, perfilhando, assim,
“a view of foreign language learning in which first language know-
ledge fills the role which Universal Grammar has in child language
acquisition, and in which general problem-solving principles fill
the role of the language-specific learning procedures of children”26.

23 É nesta linha que se inscreve a hipótese de VanPatten & Rothman 2015, por
exemplo, ao sugerirem que são aprendidas, por via explícita, as formas fonomorfoló-
gicas associadas a propriedades gramaticais específicas, como as formas pronominais
que traduzem sujeitos referenciais expressos ou os morfemas dos verbos que carreiam
valores número-pessoais em concordância com o verbo.
24 Por exemplo, Teixeira 2016, Valenzuela & McCormack 2013 e Whong 2013.
25 Esta posição é compatível com a hipótese do período crítico, segundo a qual
existe, em função do amadurecimento biológico do cérebro, uma janela de oportuni-
dade temporal restrita para a aquisição implícita de uma língua, por mera exposição
ao input naturalístico, finda a qual esse tipo aquisição deixa de ser possível. Esta
hipótese é, ainda hoje, e por várias razões, alvo de discussão. Cf. para uma revisão
de posições e de argumentos, Hyltenstam & Abrahamsson 2003 e Long, Granena &
Montero 2018.
26 Bley-Vromen 1990: 5.

662
Noutros casos nega-se a própria existência da GU, que assim não
desempenha qualquer papel nem na aquisição da LM, nem na da
LNM. Neste sentido, assume-se que a AALNM ocorre com recurso a
mecanismos cognitivos gerais, não modulares e não especificamen-
te dedicados à computação e armazenamento de representações
linguísticas. Perfilham esta posição geral, por exemplo, perspetivas
teóricas baseadas nos usos, como o emergentismo27, e também a Skill
Acquisition Theory28. Partilhando este entendimento sobre a arquite-
tura da mente, o emergentismo e a Skill Acquisition Theory diferem,
contudo, e substancialmente, em relação à natureza dos mecanismos
gerais que consideram estar ao serviço da AALNM.
A perspetiva emergentista defende o papel preponderante de
mecanismos implícitos de aquisição linguística, considerando que a
AALNM ocorre através de um processo indutivo e inconsciente que
é altamente sensível a fatores como a frequência e a probabilidade
de ocorrência de padrões de distribuição contextual das construções
existentes no input linguístico. Estas construções correspondem a
associações forma-função, pelo que, postula-se, quanto mais estáveis
e transparentes estas se apresentarem no input da língua-alvo, mais
fácil será a sua aquisição. A exposição reiterada a exemplares de
construções linguísticas específicas reforça, portanto, as associações
forma-função que as definem e, logo assim, a sua retenção a longo
prazo.
O emergentismo também faz previsões sobre o processamento do
input, pondo a hipótese de que os sistemas percetivos incorporam
detetores de sinais (cues) e rotinas de processamento cujos níveis
de ativação variam em função da frequência, da redundância e da
saliência das construções no input e cuja afinação ocorre à medida
que a exposição aos exemplares presentes no input aumenta e, logo
assim, a aquisição da LNM se desenrola. Partindo do princípio de que
tais mecanismos percetivos podem sofrer bloqueios (por influência

27 Ellis 1998, 2002 e 2019.


28 DeKeyser 1998 e 2015.

663
das rotinas já estabilizadas de processamento da LM, ou por falta
de robustez de determinadas construções no input da LNM), está
prevista, a este nível, o efeito benéfico e compensatório de feedback
corretivo e da explicitação das associações forma-função apropria-
das 29 . É, justamente, no nível do processamento do input que se
prevê a possibilidade de intervenção de mecanismos explícitos,
na medida em que estes promovam o noticing 30, i.e., a tomada de
consciência, por parte do aprendente da LNM, das associações mais
difíceis de adquirir pela mera exposição às construções presentes
no input positivo implícito. Assim sendo, o papel da aprendizagem
explícita é, nesta perspetiva, limitado, circunscrevendo-se a esta
função compensatória.
Já a Skill Acquisition Theory, e sem negar um papel aos meca-
nismos implícitos para a AALNM, visa, antes, explicar o modo como
os aprendentes se socorrem de mecanismos explícitos/declarativos
para o efeito. O modelo é, na verdade, particularmente orientado
para situações de AALNM que dizem respeito a “(a) high-aptitude
adult learners engaged in (b) the learning of simple structures at
(c) fairly early stages of learning in (d) instructional contexts” 31 .
Assim, o modelo prevê que, nas fases iniciais da AALNM, são as re-
presentações de natureza declarativa, i.e., o saber sobre as estruturas
linguísticas, que são preferencialmente retidas pelo aprendente. O
conhecimento assim representado é, depois, operacionalizado como
comportamento, i.e., é executado e posto em prática. Para este efei-
to, é necessário que ao aprendente sejam fornecidos não apenas

29 “Implicit learning would not do the job alone. Some aspects of an L2 are
unlearnable–or at best are acquired very slowly–from implicit processes alone. In
cases where linguistic form lacks perceptual salience and so goes unnoticed by learn-
ers, or where the L2 semantic/pragmatic concepts to be mapped onto the L2 forms
are unfamiliar, additional attention is necessary in order for the relevant associations
to be learned. To counteract the L1 attentional biases to allow implicit estimation
procedures to optimize induction, all of the L2 input needs to be made to count (as
it does in L1 acquisition), not just the restricted sample typical of the biased intake
of L2 acquisition” (Ellis & Wulff 2015: 89).
30 Schmidt 1990.
31 DeKeyser 2015: 101.

664
instruções explícitas sobre as estruturas e as regras linguísticas,
mas também exemplos concretos que as ilustrem. À medida que o
comportamento assim gerado vai sendo treinado, vai ocorrendo a
progressiva procedimentalização das representações declarativas que,
deste modo, vão cedendo lugar a representações procedimentais/
implícitas 32. Reiterando o treino, o conhecimento procedimentaliza-
do atinge níveis cada vez maiores e mais afinados de automatização
e de especificidade cognitiva, passando a corresponder a rotinas
conglomeradas (chunks), o que conduz à redução concomitante de
erros de execução e de tempos de reação. Desta forma, o processo
de AALNM, iniciando-se como um saber sobre, permite, com treino
e uso, a construção de um saber como.
Quando não estão reunidas as condições (a) – (d) acima enunciadas,
DeKeyser, proponente do modelo, concede que serão mobilizadas, desde
o início do processo de AALNM, mecanismos procedimentais/implíci-
tos. Admite, igualmente, a possibilidade de papéis complementares de
mecanismos cognitivos explícitos e implícitos no processo, estando os
primeiros particularmente aptos para a assimilação de regras linguís-
ticas mais simples e categóricas (mesmo que abstratas) e os segundos
para a morosa indução probabilística que é exigida por estruturas mais
idiossincráticas, menos regulares e, por isso, mais complexas.
Evidenciando compatibilidade, em muitos aspetos, com as premissas
da Skill Acquisition Theory se apresenta o paradigma declarativo-
-procedimental, no quadro da qual se convoca o papel complementar
dos dois subsistemas de memória de longo prazo (MLP) com estas
mesmas designações na aquisição e aprendizagem de línguas 33.

32 O que, neste quadro, se entende por procedimentalização é esclarecido por


DeKeyser (2003: 329) nos seguintes termos: “after large amounts of communicative
use and complete automatization of the rules, learners eventually lose their awareness
of the rules. At that point they not only have procedural knowledge that is function-
ally equivalent to implicitly acquired knowledge, but even implicit knowledge in the
narrow sense of knowledge without awareness”.
33 Apresentando-se com a mesma designação e partilhando várias assunções bási-
cas, existem, na verdade, dois modelos enquadráveis neste paradigma, um de Ullman
(2004, 2015) e outro de Paradis (2004, 2009). Nesta sucinta apresentação, procura-se

665
A MLP procedimental suporta mestrias (know how), que correspon-
dem a representações altamente especializadas e também inacessíveis,
em si mesmas, à consciência. Trata-se, nesta medida, de conhecimento
não verbalizável, já que corresponde a algo que simplesmente se faz,
sem se saber como e também sem se saber dizer como. Ao serviço
da aquisição linguística, a MLP procedimental computa os padrões
regulares e sequências previsíveis que caracterizam uma boa parte
dos sistemas gramaticais e que constituem conhecimento implícito.
As representações linguísticas assim caracterizadas (por oposição às
metalinguísticas) são suportadas pela MLP procedimental.
Já a MLP declarativa suporta representações que correspondem
a conceptualizações sobre o mundo, flexíveis e domain general,
passíveis de consciencialização e de verbalização. Neste sentido, são
explicitáveis. No que concerne à linguagem, a MLP declarativa está
particularmente apta para codificar e armazenar informação idiossin-
crática e arbitrária, como a que caracteriza as relações forma-função
dos itens lexicais e as irregularidades morfológicas, por exemplo.
Este subsistema de MLP também codifica e armazena representações
metalinguísticas, i.e., conceptualizações sobre as categorias linguís-
ticas propriamente ditas e sobre o seu funcionamento.
A disponibilidade dos dois sistemas de MLP está sujeita a constri-
ções maturacionais. Assim, a disponibilidade da MLP procedimental é
elevada na infância, declinando com a idade, e a da MLP declarativa
é menor na infância, aumentando na adolescência e no início da
idade adulta. Desta circunstância decorre uma dependência maior
da MLP procedimental na aquisição da gramática da LM e o recurso
preferencial, pelo aprendente tardio de uma língua, à MLP declarativa
para a assimilação das estruturas da LNM, não apenas das idiossin-
cráticas, mas também das regulares e previsíveis. Deste modo, este

salientar as assunções partilhadas pelos dois investigadores. Para uma discussão das
diferenças, cf. Morgan-Short & Ullman 2011.

666
modelo de AALNM reserva um papel de destaque às representações
declarativas, que são também, e tipicamente, explícitas 34.

4. O papel do input implícito e explícito nos modelos de AALNM

Como já se deixou antever, a natureza e a arquitetura dos sistemas


cognitivos considerados pelos modelos teóricos revistos determinam,
em larga medida, o seu grau de recetividade a input implícito e/ou
explícito, quer positivo, quer negativo. Embora de modo não linear35,
pode afirmar-se que aos input implícito e explícito se associam, e
respetivamente, mecanismos de aquisição (implícita/procedimental)
e de aprendizagem (explícita/declarativa) das estruturas da LNM.
Pelo que ficou dito, compreende-se em que medida o recurso a
estes distintos tipos de input em contexto instrucional se encontra
diferentemente legitimado pelas abordagens teóricas aqui conside-
radas. Foi inclusivamente possível evidenciar que propostas teóricas
radicalmente distintas na forma como conceptualizam o processo
de AALNM podem sustentar, ainda assim, opções pedagógicas simi-
lares. Referimo-nos, em particular, ao papel fulcral e predominante
reservado aos mecanismos de aquisição implícita de representações

34 No entendimento de Paradis (2004, 2009), o aprendente tardio da LNM tem ape-


nas a MLP declarativa ao seu dispor, pelo que assimila representações metalinguísticas.
Estas podem, no entanto, e com o uso reiterado, vir a registar uma automatização tal
que as torna, para efeitos comportamentais, semelhantes às procedimentais, sofrendo,
nesta aceção, uma “procedimentalização”. Já Ullman (2015) considerara que não ape-
nas a MLP declarativa, mas também a MLP procedimental está disponível na AALNM,
assumindo, cada sistema, papéis que, nuns casos, são complementares (codificando e
armazenando representações relativas a estruturas distintas) e, noutros, redundantes
(criando versões representacionais diferentes das mesmas estruturas). Para Ullman,
a procedimentalização que ocorre ao longo do processo de AALNM traduz-se, mais
propriamente, na dependência crescente do aprendente tardio em relação às repre-
sentações procedimentais em detrimento das declarativas.
35 “Even though implicitly acquired knowledge tends to remain implicit, and
explicitly acquired knowledge tends to remain explicit, explicitly learned knowledge
can become implicit in the sense that learners can lose awareness of its structure over
time, and learners can become aware of the structure of implicit knowledge when
attempting to access it, for example for applying it to a new context or for conveying
it verbally to somebody else” (DeKeyser 2003: 315).

667
linguísticas, quer nos modelos gerativistas, quer nos emergentistas.
Deste modo, e pese embora as profundas divergências que opõem
estes dois paradigmas, ambos legitimam, teoricamente, o recur-
so privilegiado a input linguístico implícito positivo em contexto
instrucional, em linha com o que é preconizado por abordagens
pedagógicas comunicacionais.
Evoque-se, no entanto, e a este propósito, uma importante adver-
tência de Ellis 36 : “Implicit knowledge is not teachable; it is only
learnable. (…) [W]hile we can teach students explicit knowledge
of grammar we can only facilitate the process of acquiring implicit
knowledge”. No sentido de promover este efeito facilitador, o input
implícito positivo usado em contexto instrucional pode ser modifi-
cado e robustecido com estruturas específicas, assim contribuindo
para desbloquear problemas de aquisição motivados pela pobreza
do estímulo (na perspetiva gerativista) ou pela baixa frequência e/
ou fraca saliência de certas construções (na perspetiva emergentista).
Por outro lado, a investigação de natureza descritiva conduzida à luz
destes e de outros modelos teóricos de AALNM fornece informação
valiosa sobre as características do desenvolvimento interlinguístico
dos aprendentes, que pode e deve ser capitalizada por docentes e
criadores de materiais instrucionais, tendo em vista a eficácia do
ensino de estruturas linguísticas específicas.
Outra afinidade (insuspeita) entre as perspetivas emergentista e
gerativista consiste no papel que ambas reservam ao conhecimento
metalinguístico na AALNM, que oscila entre o residual e o nulo. Ainda
que os investigadores emergentistas e alguns gerativistas 37 estejam
disponíveis para reconhecer graus variáveis de utilidade ao input
explícito e ao feedback corretivo, que contribuirão para assinalar ao
aprendente o que não é possível na língua-alvo e/ou quais as estru-

36 Ellis 2014: 11.


37 No caso dos estudos de cariz gerativista, cf., para além de Sutherland 2015
e Teixeira 2016, os incluídos em Whong, Gil & Marsden 2013. Mesmo assim, e como
salienta Whong 2013: 238, “what remains unspoken is an explicit discussion of the
exact relationship between these different types of knowledge”.

668
turas mais difíceis de adquirir por mera exposição ao input positivo
implícito, outros investigadores não encontram forma de acomodar,
particularmente nos modelos gerativistas, o conhecimento metalin-
guístico explícito e, logo assim, o ensino explícito da gramática.
Já o mesmo não se dirá da Skill Aquisition Theory e do paradigma
declarativo-procedimental. Não obstante as respetivas especificidades,
qualquer uma destas posições preconiza o papel crucial do conhe-
cimento metalinguístico explícito no processo, legitimando, assim,
teoricamente, opções pedagógicas na linha do focus on form e do
focus on forms que advogam a necessidade de acesso, pelo apren-
dente, a input explícito e a feedback corretivo.
Face à diversidade de teorias de AALNM disponíveis e o aceso
debate que, neste domínio, ainda ocorre, será, para quem ensina
LNM, imprudente assumir a validade absoluta de uma e a conse-
quente desconsideração das demais. Mais relevante do que saber
quem tem razão é, para quem ensina LNM, saber se o uso que faz
dos diferentes recursos disponíveis é legítimo e defensável à luz da
evidência disponível.
E a verdade é que existe evidência para todos os gostos, sendo
também esta uma das razões pelas quais o debate perdura. Admitamos,
no entanto, que muita dessa evidência tem vindo a ser colhida em
componentes específicas e complementares do conjunto das mestrias
e dos conhecimentos implicados não só em saber, mas também em
saber usar uma LNM. Como lembra Whong, “language is not restricted
to the domain of core competence” 38 , pelo que, muito provavel-
mente, haverá, no conjunto desse conhecimento interlinguístico
dos aprendentes, aspetos adquiridos a partir da exposição a input
positivo implícito, i.e., linguístico, e outros aprendidos, com níveis
variados de consciencialização, a partir de feedback corretivo e de
explicações gramaticais, que configuram input metalinguístico. Se
assim é, terá razão MacWhinney 39 ao considerar que é dando aos

38 Whong 2013: 238.


39 MacWhinney 1997.

669
aprendentes acesso aos dois tipos de input em contexto institucional
que se lhes proporciona o melhor dos dois mundos.

Bibliografia

Bley-Vroman, R. (1990), “The Logical Problem of Foreign Language Learning”, Linguistic


Analysis 20: 3-49.
Chomsky, N. (1965), Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, MA: MIT Press.
Corder, P. (1967), “The Significance of Learners’ Errors”, International Review of Applied
Linguistics in Language Teaching 5: 161-170.
DeKeyser, R. M. (1998), “Beyond Focus on Form: Cognitive Perspectives on Learning
and Practicing Second Language Grammar”, in C. Doughty & J. Williams (eds.),
Focus on Form in Classroom Second Language Acquisition. New York: Cambridge
University Press, 42-63.
DeKeyser, R. M. (2003), “Implicit and Explicit Learning”, in C. J. Doughty & M. H. Long
(eds.), The Handbook of Second Language Acquisition. Malden, MA: Blackwell,
313-348.
DeKeyser, R. M. (2015, 2ª ed.), “Skill Acquisition Theory”, in B. Van Patten & J. Williams
(eds.), Theories in Second Language Acquisition: An Introduction. New York:
Routledge, 94-112.
Ellis, N. (1998), “Emergentism, Connectionism and Language Learning”, Language
Learning 48.4: 631–664.
Ellis, N. (2002), “Frequency Effects in Language Processing. A Review with Implications
for Theories of Implicit and Explicit Language Acquisition”, Studies in Second
Language Acquisition 24: 143-188.
Ellis, N. (2019), “Essentials of a Theory of Language Cognition”, The Modern Language
Journal 103: 39-60.
Ellis, N. & Wulff, S. (2015, 2ª ed.), “Usage-Based Approaches to SLA”, in B. VanPatten
& J. Williams (eds.), Theories in Second Language Acquisition: An Introduction.
New York: Routledge, 75-93.
Ellis, R. (2009), “Implicit and Explicit Learning, Knowledge and Instruction”, in R. Ellis,
S. Loewen, C. Elder, R. Erlam, J. Philp & H. Reinders (eds.), Implicit and Explicit
Knowledge in Second Language Learning, Testing and Teaching. Bristol/Buffalo/
Toronto Multilingual Matters, 1-25.
Ellis, R. (2014), “Grammar Teaching for Language Learning”, Babylonia 2: 10-15.
Epstein, S., Flynn, S. & Martohardjono, G. (1996), “Second Language Acquisition:
Theoretical and Experimental Issues in Contemporary Research” Brain and Behavioral
Sciences 19: 677-758.
Eubank, L. (1993/1994), “On the Transfer of Parametric Values in L2 Development”,
Language Acquisition 3: 183-208.
Fodor, J. (1983), Modularity of Mind. Cambridge: MIT Press.
Hyltenstam, K. & Abrahamsson, N. (2003), “Maturational Constraints in SLA”, in C.
Doughty & M. H. Long (eds.), The Handbook of Second Language Acquisition.
Malden: Blackwell, 539-588.

670
Jackendoff, R. (1997), The Architecture of the Language Faculty. Cambridge, MA: MIT
Press.
Krashen, S. D. (1981), Second Language Acquisition and Second Language Learning.
Oxford: Pergamon.
Larsen-Freeman, D. & Anderson, M. (2011, 3ª ed.), Techniques and Principles in Language
Teaching. Oxford: Oxford University Press.
Long, M. H., Granena, G. & Montero, F. (2018), “What Does Critical Period Research
Reveal about Advanced L2 Proficiency?”, in P. A. Malovrh & A. G. Benati (eds.), The
Handbook of Advanced Proficiency in Second Language Acquisition. Oxford: Wiley
Blackwell, 51-71.
Long, M. H. & Robinson, P. (1998), “Focus on Form: Theory, Research, and Practice”,
in C. Doughty & J. Williams (eds.), Focus on Form in Classroom Second Language
Acquisition. Cambridge: Cambridge University Press, 15-41.
MacWhinney, B. (1997), “Implicit and Explicit Processes – Commentary”, Studies in
Second Language Acquisition 9.2: 277-281.
Martins, C. (2008), Línguas em contacto; “saber sobre” o que as distingue. Análise de
competências metalinguísticas de crianças mirandesas em idade escolar. Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra.
Martins, C. (2016), “O papel diferenciado de subsistemas de memória de longo prazo
nos processos de aquisição e de aprendizagem de uma L2. O modelo declarativo/
procedimental e as suas consequências para o ensino de línguas não maternas”, in
J. N. Corrêa-Cardoso & M. C. Fialho (coords.), A Linguagem na pólis. Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra, 99-120.
Mitchell, R., Myles, F. & Marsden, E. (2013, 3ª ed.), Second Language Learning Theories.
London-New York: Routledge.
Morgan-Short, K. & Ullman, M. T. (2011), “The Neurocognition of Second Language”,
in S. M. Gass & A. Mackey (eds.), Handbook of Second Language Acquisition. New
York: Routledge, 282-299.
Paradis, M. (2004), A Neurolinguistic Theory of Bilingualism. Amsterdam: John Benjamin
Publishing Co.
Paradis, M. (2009), Declarative and Procedural Determinants of Second Languages.
Amsterdam: John Benjamin Publishing Co.
Pienneman, M. (2008), “A Brief Introduction to Processability Theory”, in J.-U. Keßler
(ed.), Processability Approaches to Second Language Development and Second
Language Learning. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 9-30.
Schmidt R. W. (1990), “The Role of Consciousness in Second Language Learning”,
Applied Linguistics 11: 129-58.
Schwartz, B. D. (1993), “On Explicit and Negative Data Effecting and Affecting Competence
and “Linguistic Behavior””, Studies in Second Language Acquisition 15: 147-163.
Schwartz, B. D. & Sprouse, R. (1996), “L2 Cognitive States and the Full Transfer/Full
Access Model”, Second Language Research 12: 40-72.
Selinker, L. (1972), “Interlanguage”, International Review of Applied Linguistics in
Language Teaching 10.3: 209-231.
Sorace, A. & Filiaci, F. (2006), “Anaphora Resolution in Near-native Speakers of Italian”,
Second Language Research 22: 339-368.
Sorace, A. (2011), “Pinning Down the Concept of ‘Interface’ in Bilingualism”, Linguistic
Approaches to Bilingualism 1.1: 1-33.

671
Sutherland, S. (2015), A Generative Second Language Acquisition-Inspired Syllabus: An
Article Remedial Course for Intermediate Adult ESL Learners. Tese de mestrado,
University of Sheffield.
Teixeira, J. (2016), “(Re)thinking the Interface Hypothesis and its Implications for
Language Teaching”, in T. Harrison, U. Lanvers & M. Edwardes (eds.), Breaking
Theory: New Directions in Applied Linguistics. Proceedings of the 48th Annual
Meeting of the British Association for Applied Linguistics. London: Scitsiugnil Press,
93-109.
Trahey, M. & White, L. (1993), “Positive Evidence and Preemption in the Second Language
Classroom”, Studies in Second Language Acquisition 15: 181-204.
Truscott, J. (2015), “Consciousness in SLA: A Modular Perspective”, Second Language
Research 31.3: 413-434.
Ullman, M. T. (2004), “Contributions of Memory Circuits to Language: The Declarative/
Procedural Model”, Cognition 92: 231-270.
Ullman, M. (2015, 2ª ed.) “The Declarative / Procedural Model. A Neurobiologically
Motivated Theory of First and Second Language”, in B. VanPatten & J. Williams
(eds.), Theories in Second Language Acquisition: An Introduction. New York:
Routledge, 135-158.
Vainikka, A. & Young-Scholten, M. (1996), “The Early Stages of Adult L2 Syntax: Additional
Evidence from Romance Speakers”, Second Language Research 12: 140-76.
Valenzuela, E. & McCormack, B. (2013), “The Syntax-Discourse Interface and the Interface
Between Generative Theory and Pedagogical Approaches to SLA”, in M. Whong,
K.-H. Gil & H.Marsden (eds.), Universal Grammar and the Second Language
Classroom. Springer: Dordrecht, 101-114.
VanPatten, B. (1996), Input Processing and Grammar Instruction: Theory and Research.
Norwood, NJ: Ablex.
VanPatten, B. (2002), “Processing Instruction: an Update”, Language Learning 52.4:
755-803.
VanPatten, B. & Cadierno, T. (1993), “Input Processing and Second Language Acquisition:
A Role for Instruction”, The Modern Language Journal 77: 45-57.
VanPatten, B. & Rothman, J. (2015), “Generative Theory and the Explicit-Implicit Debate”,
in P. Rebuschat (ed.), Implicit and Explicit Learning of Languages. Amsterdam-
Philadelphia: John Benjamins.
White, L. (1991), “Adverb Placement in Second Language Acquisition: Some Effects of
Positive and Negative Evidence in the Classroom”, Second Language Research 7:
133-61.
White, L. (2003), Second Language Acquisition and Universal Grammar. Cambridge:
Cambridge University Press.
Whong, M. (2013), “Applied Generative SLA: The Need for an Agenda and a Methodology”,
in M. Whong, K.-H. Gil & H. Marsden (eds.), Universal Grammar and the Second
Language Classroom. Springer: Dordrecht, 231-247.
Whong, M., Gil, K.-H. & Marsden, H. (eds.) (2013), Universal Grammar and the Second
Language Classroom. Springer: Dordrecht.

672
Desvios linguísticos na aquisição
d o p o r t u g u ê s p o r fa l a n t e s e s t r a n g e i r o s :
o c a s o pa r t i c u l a r d o s a p r e n d e n t e s
c h i n e s e s *1

L i n g u i s t i c d e v i at i o n s i n t h e ac q u i s i t i o n
of Portuguese by foreign learners:

t h e s p e c i f i c s i t uat i o n o f C h i n e s e s t u d e n t s

Maria Carmen de Frias e Gouveia


Univ. Coimbra
ORCID: 0000-0002-3720-2824
mariacarmen.defriasegouveia@gmail.com

Resumo: Este texto tem como objetivo analisar os desvios mais comuns
na aquisição do Português como língua estrangeira, dando-se espe-
cial relevo aos que são mais característicos de aprendentes chineses.
O trabalho agora apresentado baseia-se não somente na experiência
de 32 anos de ensino do Português como língua estrangeira na Fa-

*1 O texto baseia-se numa comunicação (por convite) feita pela autora na


Conferência Internacional para a Melhoria Contínua da Qualidade do Ensino de
Português para os Falantes Nativos da Língua Chinesa, que decorreu em Macau, em
26 de outubro de 2017, mas que não teve edição de Atas. Os dados do texto têm
sido continuamente completados e atualizados com base em produções escritas dos
alunos. Foi de enorme importância o bom acolhimento deste estudo por parte dos
estudantes e professores de língua chinesa, a quem muito agradeço, e que corroborou
a validade destas observações.
A autora deste texto não adota o chamado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
(1990). A ortografia seguida é da responsabilidade da Imprensa da Universidade de
Coimbra, que, enquanto instituição pública, o exige por imposição legal a que está
obrigada.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_29
culdade de Letras da Universidade de Coimbra, mas ainda em dados
recolhidos nos textos que constam do acervo Corpus de Produções
Escritas de Aprendentes de PL2, da mesma Faculdade. Depois de, bre-
vemente, se apresentar a questão, elencam-se os desvios linguísticos
mais comummente encontrados em aprendentes dos vários níveis
de proficiência do Quadro Europeu Comum de Referência para as
Línguas (Q.E.C.R.L.), que se analisam e explicam. Verificou-se que a
língua de origem ou outra que o aprendente domine pode exercer
influência ou mesmo haver transferência de estruturas ou usos para
o Português. Se essas situações não forem corrigidas atempada-
mente, é possível que sejam, depois, como se provou, muito difíceis
de corrigir até em níveis de proficiência avançados. Pretende-se, deste
modo, chamando a atenção para os tipos de desvios mais frequen-
tes por parte de aprendentes chineses (especialmente nas áreas da
morfossintaxe, léxico e fonética-fonologia), auxiliar tanto os próprios
estudantes como os professores na tarefa de ensino-aprendizagem
do Português como língua estrangeira, que cada vez mais é alvo de
interesse por parte de falantes dessa proveniência.

Palavras-chave: desvio linguístico, morfossintaxe, léxico, fonética-fono-


logia, ensino-aprendizagem de Português Língua Estrangeira

Abstract: This text aims to analyse the most common linguistic devia-
tions in the acquisition of Portuguese as a foreign language, with
special emphasis on those that are more characteristic of Chinese
learners. This essay is based not only on the experience of 32 years
of teaching Portuguese as a foreign language at the Faculty of Huma-
nities – University of Coimbra but also on data collected in the texts
that are part of the Corpus de Produções Escritas de Aprendentes de
PL2 (Corpus of Written Productions of Portuguese as L2 Learners),
of the same Faculty. After briefly presenting the subject, the linguis-
tic deviations most commonly found among Chinese learners of the
various levels of proficiency of the Common European Framework of
Reference for Languages are analysed and explained. It was verified
that the mother tongue, or another language the learner knows well,
can exert influence or even transfer structures or uses to Portuguese.
If these situations are not corrected as soon as they occur, it will be
very difficult to ban them even at advanced levels of proficiency. It
is intended, therefore, to draw attention to the most common types

674
of deviations on the part of Chinese learners (mainly in the linguistic
areas of morphology, syntax, lexicon and phonetics-phonology), to
assist both the students themselves and the professors in their task
of teaching and learning of Portuguese as a foreign language, which
is increasingly of interest by speakers of this provenance.
Keywords: linguistic deviations, morphology and syntax, lexicon, pho-
netics and phonology, teaching and acquisition of Portuguese as a
foreign language

Ao longo de três décadas a lecionar várias disciplinas do ensi-


no de Português a estrangeiros, foi possível identificar os tipos de
desvios mais comuns na aprendizagem desse idioma, desvios esses
que, normalmente, resultam da dificuldade inerente à própria Língua
Portuguesa e suas estruturas, mas que também podem ser fruto de
influência de particularidades da língua materna dos aprendentes
ou mesmo de outra língua não materna que dominem.
Para a análise que empreendi, extraíram-se dados não só de registos
escritos e orais produzidos por antigos Alunos, mas igualmente do re-
curso online Corpus de Produções Escritas de Aprendentes de PL21.
O mencionado acervo é constituído pelo seguinte número de tex-
tos, segundo o nível de proficiência: A1 – 111, A2 – 117, B1 – 251,
B2 – 91 e C1 – 59, textos esses produzidos por informantes de 39
línguas maternas diferentes. Como é evidente, para o presente estudo
somente se consideraram os estudantes chineses.
Os exemplos com a indicação PL2 são extraídos do corpus men-
cionado, juntamente com o respetivo nível, separado por hífen. Por

1 Veja-se também Santos 2016. Este projeto, de acesso livre, resulta, como se lê
na Apresentação dos materiais “do projeto Recolha de Corpora de PL2, iniciado, no
CELGA, em junho de 2008. Trata-se de um acervo de produções escritas da autoria de
458 aprendentes de PL2, alunos que, nos dois períodos de recolha (fase 1, de maio
de 2009 a maio de 2010; fase 2, de janeiro a maio de 2011), frequentavam os vários
níveis de aprendizagem formal (A1 a C1) dos Cursos de Português para Estrangeiros
a funcionar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (…), [e tem] o intuito
de facultar aos jovens investigadores (…) um acervo estruturado de dados empíricos
fiáveis, capazes de sustentar o desenvolvimento de dissertações na área da aquisi-
ção/ aprendizagem de PL2.” A coordenação esteve a cargo da Prof. Doutora Cristina
Martins, docente da mesma Faculdade.

675
razões de espaço não indiquei a referência completa de cada abonação,
que se pode encontrar nesse supracitado corpus. Com as indicações
B2-17, C1-18, etc., estão catalogados os exemplos recolhidos em
produções de estudantes meus, de nível B2 ou C1, nos anos letivos
de 2017/2018 ou 2018/2019, respetivamente.

Tipologia de desvios 2

Os desvios mais frequentemente encontrados nas produções dos


aprendentes chineses estudadas inserem-se em diversas áreas lin-
guísticas, essencialmente na Morfossintaxe, no Léxico (na sua relação
com a Semântica) e na Fonética e Fonologia.
Vários desses desvios são comuns a outros aprendentes de
Português como língua não materna3 , enquanto outros são muito
mais específicos, ou até exclusivos, de estudantes de língua chinesa.
Pese embora a necessidade de registar, de modo generalizado,
os desvios mais comuns dos aprendentes de origem chinesa, tem-se
absoluta consciência de que há variação nesses desvios, dependendo,
muitas vezes, da região de proveniência desses estudantes.

Troca do Pretérito Perfeito pelo Pretérito Imperfeito do


Indicativo e vice-versa:

(1) PL2-A2: “Por causa de encontrarmos-nos 4 com neve, ficáva-


mos muito contente.”
(2) PL2-A2: “Esta viagem era muito excelente expliência para mim”.

2 Agradeço a preciosa ajuda da Colega e Amiga Doutora Cristina Zhou Miao,


natural da China Continental e professora de língua chinesa no Instituto Confúcio
de Coimbra, na confirmação de algumas particularidades relativas ao idioma chinês.
3 Nomeadamente a troca de pretérito perfeito por imperfeito e vice-versa;
indistinção entre os verbos Ser e Estar; dificuldade em atribuir o género gramatical
correto aos substantivos e adjetivos do português; e emprego de uma preposição
inadequada ou omissão desviante da mesma.
4 Observem-se o emprego errado do verbo reflexo e a falta de concordância
do adjetivo.

676
(3) PL2-B1: “E a China tem 5.000 anos históricos e era dominado
pelos Impérios diversos.»
(4) B2-17: “nessa altura foram 23 horas”
(5) B2-17: “Quando eu era errada, senti-me vergonhosa” 5.
(6) B2-17: “Encontrava vice-director da Universidade de Coimbra,
quem é muito simpático e bondoso” 6.
(7) PL2-C1: “Isso era minha inesquecível experiência, e fez-me
decidir só viajar de comboio no futuro.”

Indistinção no uso dos verbos Ser e Estar 7


(8) PL2-A2: “E nas verias de verão, gosto muito de ir à praia. Eu
gosto de nadar e apanho banho de sol porque o tempo é
muito calor, e acho que é muito relaxada.” 8.
(9) B2-17: “Embora fomos engripados no dia seguinte, acho que
isso é uma experiência muito interessante e inesquecível”.
(10) B2-17: “Quando eu era errada, senti-me vergonhosa”.

Género gramatical 9:
(11) PL2-A2: “Os paisagens daquila cidade é mais bonito do que
minha cidade” 10.
(12) PL2-A2: “…este actividade é muito relaxo e não é muito
sumptuoso e caro”. 11
(13) P L2-B1: “a minha casa (…) fica perta…”
(14) B 2-17: “É mais conveniente para dois pessoas”.

5 Veja-se o exemplo 10 para o uso incorreto do verbo SER por ESTAR.


6Aqui estão patentes ainda a omissão do artigo e um uso incorreto do pro-
nome relativo quem.
7 A este propósito veja-se Gouveia 2018.
8 Atente-se também na troca de /f/ por /v/, aspeto de indistinção fonológica
entre surda/sonora, como também se exemplifica, na subsecção específica, mais adiante.
9Veja-se Ferreira 2011. Padrões na aquisição/aprendizagem da marcação do género
nominal em Português como L 2 (Tese de Mestrado), Coimbra: FLUC.
10 Acresce aqui também a falta de concordância entre paisagens e o adjetivo e a
incorreção no demonstrativo.
11 Relaxante seria o adjetivo esperado.

677
(15) B 2-17: “Viajar sozinha nunca foi uma problema para mim.”
(16) PL2-C1: “A minha melhor amiga… se estiveres mal-disposto”.
(17) PL2-C1: ”Quanto ao curso que frequento, acho que é mara-
vilhosa!”

Emprego de preposição inadequada ou omissão de preposição:


(18) PL2-A2: “e não <tenha> tinha mais saudade com minha avó.”
(19) P L2-A2: “A seguir, eu /costumo/ dar um passeio com o meu
amigo <e> conversar para as nossas coisas.”
(20) P L2-A2: “Às vezes, eu ajudo a minha mãe para fazer os tra-
balhos na casa.”
(21) B2-17: “No último lugar, quando estamos com os familiares,
temos mais respeitos e tolerâncias”. 12
(22) B2-17: “Estou satisfeita para esta viagem”.
(23) B 2-17: “Gosto de viajar pela minha própria”. 13
(24) B 2-18: “Há muitas coisas diferentes com a China”.

Ordem inversa das palavras:


(25) B 2-17: “podemos fazer compras muito”
(26) B2-17: “nós gostamos de comer comidas deliciosas muito”.14
(27) B 2-17: “gosto Coimbra e Portugal muito”
(28) B 2-17: “poderei ajudar os pobres mais”
(29) B2-17: “Diferente pessoa tem a diferente opinião”.
(30) B 2-18: “Em Itália gostei de Milão mais”.

Intensificação de avaliativos:
(31) P L2-A2: “Esta viagem era muito excelente expliência para
mim”. 15
(32) B 2-17: “A comida tailandesa é muito deliciosa”.

12 Os incontáveis, em Portugal, surgem no singular: portanto, respeito e tolerância.


13 Veja-se, adiante, o exemplo (96).
14 Cf. nota 13.
15 Surge ainda o uso desviante do Pretérito Imperfeito do Indicativo em lugar
do Pretérito Perfeito.

678
(33) B2-17: “Portugal é um país muito fantástico e com paisagens
muito maravilhosas”.

Emprego ou omissão do artigo definido e indefinido 16:


(34) P L2-B1: “E a China tem 5.000 anos históricos e era domina-
do 17 pelos Impérios diversos.”
(35) P L2-B1: «Mesmo que dois país tenham a cultura tão diferen-
te, hoje em dia, a relação entre deles está a desenvolver em
paz.» 18
(36) B2-17: “sou um estudante e sou chinês.
(37) B2-17: «fiz a viagem maravilhosa».
(38) B2-17: «ter as surpresas».
(39) B2-17: «é um melhor método para viajar».
(40) B2-17: «é a ótima opção».
(41) B2-17: «tem a opinião diferente».
(42) B 2-17: «diferente pessoa tem a diferente opinião» 19.
(43) B2-17: «Quando encontramos os problemas durante a viagem».
(44) B2-18: «É a sociedade diferente com a China» 20.
(45) B 2-18: «Quero ser um(a) tradutor(a) mais tarde».
(46) B 2-18: «A minha mãe é uma professora, o meu pai um en-
genheiro».

Dificuldades no vocabulário:
Confusão entre adjetivos e/ou substantivos
(47) P L2-A2: «achamos este actividade é muito relaxo …”

16 Sobre este assunto veja-se a tese de Mestrado de Yuan Tian (2017). O uso dos
artigos na interlíngua de aprendentes chineses de PLE: contributo para o seu estudo.
Porto, Universidade do Porto.
17 Note-se ainda a falha na concordância de género com a China, que possivel-
mente se pensou no sentido de País, donde dominado. Também se diria, em Português,
anos de História e não com adjetivo.
18 No exemplo 35 há igualmente falta de concordância: deveria ser dois países.
Desviante é ainda “entre deles”, que se esperaria ser entre eles.
19 Cf. atrás o exemplo (29).
20 Acresce aqui o desvio no emprego da preposição, de que se tratou também
anteriormente.

679
(48) P L2-A2: «havia muitos tourísticos».
(49) B 2-17: «Quando eu era errada, senti-me vergonhosa».
(50) B2-17: «Eu estava muito cansativa quando cheguei a Milano».
(51) B2-17: «Vimos locais fascinadores, com povos muito amáveis».
(52) B 2-18: «Quando cheguei a Coimbra senti-me muito emocio-
nante».
(53) B2-18: «Aproveitei a féria de 1 de Novembro para visitar
Aveiro».

Confusão entre adjetivo/particípio passado/substantivo


(54) PL2-A1: «vazer comprados»
(55) B 2-17: «Outra pessoa pode ajudar-me a tirar fotógrafos»
(56) B 2-17: «Em grupo é mais difícil ser assaltos».

Desvios no emprego das preposições (além dos referidos an-


teriormente)
Contração por analogia
(57) B 2-17: “Fui muito feliz nali na minha cidade e agora estou
naqui noutro país mas também me sinto feliz».

Falta da preposição
(58) P L2-C1: «Eu gosto de viajar, não só as partes interiores do
meu próprio país mas também os locais interssantes <pelo>
/por/ todo o mundo.» 21
(59) B 2-17: «gostava de ir todos lugares e ir países diferentes»
(60) B2-17: «Se viajar um país estrangeiro»
(61) B 2-17: «Este ano fui Macau com a minha família»
(62) B2-18: «Gosto Coimbra muito».

Número dos substantivos: emprego no plural de vocábulos


que usualmente se utilizam no singular e vice-versa

21 Em “interssantes” há desvio por influência da pronúncia do vocábulo.

680
(63) PL2-B1: «eu conheço algumas culturas portuguesas, mas não
é profunda até eu cheguei a Portugal, eu conheço mais.» 22
(64) P L2-B1: «tenho de ir ao mercado para comprar as comidas».
(65) B 2-17: «Já provei muitas gastronomias portuguesas».
(66) B2-17: «Viajar com a família abrange muitas felicidades (…)
quando estamos com os familiares, temos mais respeitos e
tolerâncias».
(67) B2-17: «partilhamos os nossos tempos com outras pessoas».
(68) B2-17: «as comidas lá são muitas deliciosas e muitas baratas».
(69) B2-18: «As arquiteturas portuguesas são exóticas e bonitas».
(70) B 2-18: «Gosto de gelado”.
(71) P L2-C1: «A China é um país muito grande, e por isso, as
culturas são bem diferentes em diversas regiões».

Falhas de concordância
(72) PL2-A2: «Por causa de encontrarmos-nos com neve, ficávamos
muito contente.
(73) PL2-A2: «Os paisagens daquila cidade é mais bonito do que
minha cidade. Alguns <méses> meses passou, adorei muito
essa cidade, e não <tenha> tinha mais saudade com minha
avó.» 23
(74) P L2-B2:“têm os /meios/ próprios para viver e eles <são>
ficam sempre contente”.
(75) B 2-17: «As viagens são útil».
(76) B 2-17: «Agradeço pelas suas simpatia e amabilidade»
(77) B 2-18: «Quero ser um tradutor no futuro.» [Era uma aluna].
(78) B2-18: «Muitíssima obrigada pelas boas aulas da professora».
(79) B 2-18: «Fiz amigos com outros estudantes chinês» 24.

22 Encontram-se aqui ainda os seguintes desvios: “profunda” por profundamente,


o tempo verbal deveria ser Infinitivo (simples ou composto) e não Pretérito Perfeito
do Indicativo. E parece estar elidida, por exemplo, a palavra agora (eu conheço mais).
23 Esperar-se-ia não tenho mais saudades da minha avó.
24 Em Português dir-se-ia fiz amizade.

681
Omissão/Duplicação de advérbio de negação
(80) P L 2-A2: «Nunca não vou esquecer (…): pagei nada.»

Verbos reflexos sem pronome e não reflexos usados como tal 25


(81) PL2-B1: «Mesmo que dois país tenham a cultura tão diferente,
hoje em dia, a relação entre deles está a desenvolver em
paz.»
(82) B 2-17: «vi que cresci-me muito»
(83) B2-17: «senti-me a brisa, apreciei-me a calma»

Desvios de caráter fonético-fonológico, também visíveis na es-


crita (distinção insuficiente de oclusivas surdas e sonoras, fricativas
/f/ e /v/ e líquidas) e fenómenos fonéticos
(84) PL2-A1: «vazer comprados»
(85) P L2-A2: «Esta viagem era muito excelente expliência para
mim».
(86) P L2-B1: «O senhor era o padrão».
(87) B 2-17: «Fiquei muito contende».
(88) B 2-17: «O progresso traz muitas avantagens».
(89) B 2-18: «Fico a estudar no meu quadro».
(90) B2-18: «Venho direitamente para a Faculdade».

Outros usos “estranhos” em Português 26

25 Por exemplo, em “Eu gostaria de tornar-se uma professora”, abonação reco-


lhida em B2, no ano letivo de 2019-2020, há falta de concordância e dificuldade no
emprego dos verbos reflexos, nomeadamente na pronominalização. Sobre este assunto
veja-se a tese de Doutoramento de Zhang Yunfeng 2018.
26 Em Construções de subordinação adverbial introduzidas por conectores:
análise de produções escritas por aprendentes chineses de PLE, que não considerei,
Ren Shanshan notou (p. 81-4) que, nas produções escritas de alunos chineses, os
desvios surgem maioritariamente nas orações concessivas (de aquisição mais tardia),
temporais e condicionais, independentemente do nível de proficiência; há grande
estratégia de simplificação, tendo o uso dos conectores falta de variação (predominam
quando, porque, para, se e embora); os alunos chineses preferem colocar as orações
temporais, concessivas e condicionais em posição inicial, ordem sintática normal
na língua chinesa; as orações finais e causais surgem no final da frase, mas as que
são introduzidas por como surgem sempre em posição inicial; encontrou (p. 82-3) 9
categorias de desvios, que se prendem “com as diferenças tipológicas marcadas

682
(91) P L2-B2: «a nossa vida é bastante conveniente».
(92) B2-17: «chegámos tardíssimamente».
(93) B2-17: «A minha querida irmã (…) Cumprimentos.».
(94) B2-18: «Agora posso falar bem português».
(95) B 2-18: «Já estou em Portugal por 4 meses».
(96) B 2-18: «É uma boa experiência para mim porque agora sei
tratar de tudo no meu próprio».
(97) B2-18: «Os povos em Portugal são muito simpáticos».
(98) B2-18: «Os trabalhos faltam de gente qualificada».
(99) B2-18: «Fomos contados o que tinha acontecido».
(100) PL2-C1: «A minha melhor amiga». [numa saudação]
(101) C1-17 [na oralidade]: «Achei muitíssissimo difícil».

Análise dos desvios atestados

Metodologia utilizada

Procedeu-se a uma leitura exaustiva de todos os textos, dos vários


níveis de proficiência segundo o Q.E.C.R.L., produzidos por alunos
chineses, recolhendo exemplos dos casos em que mais se verificam
desvios linguísticos. Essas abonações foram elencadas por nível
desde o mais elementar até ao mais avançado, de modo a entrever
a possibilidade de alguma evolução (de menor para maior correção
e segurança de uso) no tipo de desvios registados.
Seguidamente, analisou-se cada exemplo, traçando-se uma tipo-
logia dos desvios encontrados – por vezes uma abonação contém
mais do que um, como foi sendo assinalado em notas de rodapé –,

entre o português e a língua chinesa no plano do sistema verbal”[o destaque é da


minha responsabilidade]. Essas 9 categorias, são, por ordem decrescente de frequência:
seleção errada do tempo/modo verbal; desvio relacionado com o uso do infinitivo;
seleção inadequada do conector; erro ortográfico na escrita do conector; duplicação
do conector; inserção indevida do ponto final; posição errada do clítico; adição de
que ao conector; e falta do verbo na oração subordinada.

683
não descurando os casos em que há hesitação no uso, evidenciado
em palavras riscadas e entrelinhadas, que têm, no Corpus utilizado
para este trabalho, notações distintas 27 . Dessa tipologia, que se
apresenta na primeira secção, teceram-se algumas conclusões, que
adiante se referem.
As abonações que se extraíram do Corpus (num total de 34),
algumas pertencentes ao mesmo indivíduo, evidenciadas no mesmo
texto ou numa produção suscitada por outro estímulo diferente,
encontram-se distribuídas da seguinte forma, por nível de aprendi-
zagem: A1-2, A2-15, B1-8, B2-3 e C1-6.
O restante número de abonações, quase exclusivamente de B2 (uma
só de C1, numa aluna de Doutoramento em Linguística Portuguesa),
totaliza 68, e é fruto de desvios registados em produções escritas
de estudantes que se encontravam a frequentar as disciplinas de
Estruturas da Língua Portuguesa e/ou Comunicação Oral e Escrita
lecionadas pela autora do presente texto.

Questões de pesquisa e hipóteses colocadas

Devido às características do Corpus e dos desvios encontrados,


pareceu lícito colocar algumas questões de investigação previamen-
te à análise a empreender: se a língua materna do aluno (ou outra
que domine bem) tem influência nos vários desvios verificados; se
a frequência de níveis mais altos do Q.E.C.R.L. já isenta ou inibe os
aprendentes desse tipo de desvios; e, a verificarem-se esses erros
ou desvios em níveis mais avançados, se será um sintoma de “fossi-
lização”.

27 Cf. Convenções de transcrição, nas páginas explicativas que acompanham o


recurso, a saber, para melhor compreender as abonações recolhidas, < > para palavras
riscadas e / / para acrescentos.

684
Desvios atestados

Nos exemplos (1) a (7) denota-se a confusão, usual em estudantes


estrangeiros, entre o Pretérito Perfeito e Imperfeito, dada a complexi-
dade dos vários tempos de passado no modo Indicativo (no total de 7,
embora o Mais-que-Perfeito simples esteja relegado para a Literatura
e dois ou três casos pontuais: não é comum dizer-se “Ele tivera uma
vida difícil” e sim “Ele tinha tido uma vida difícil”). Os aprendentes
têm consciência de que se trata de tempos de passado, mas não
assimilaram bem o sentido de cada um (situação terminada pontual
vs. situação passada com alguma duração, situação passada que se
repetia, só para aqui referir os casos patentes nos exemplos) 28.
Quanto às abonações (8) a (10), a língua portuguesa (no que res-
peita aos idiomas da Europa, em conjunto com o Espanhol, Galego e
Catalão) é das poucas que dispõe de dois verbos diferentes para dis-
tinguir entre estados permanentes e transitórios29. Por isso os desvios
são frequentíssimos nas produções de falantes das restantes línguas
porque, como no caso específico do idioma materno dos informantes

28 Sobre isto lê-se na Gramática de Raposo et al. (2013: 517-8) que “o pretérito
perfeito é usado para localizar temporalmente uma situação como anterior ao momento
da enunciação (ou seja, é um tempo do Passado)” e “apresenta as situações como
estando localizadas temporalmente no passado em relação ao tempo da enunciação
(estando, portanto, terminadas), pelo que veicula essencialmente informação tempo-
ral.”. Normalmente iniciado ou pedido por expressões como na semana passada /
ontem /quando o vi…, etc.
Por sua vez, continuam os Autores, o “pretérito imperfeito é um tempo verbal com
valor semântico de Passado, mas possui igualmente uma forte dimensão aspetual e,
por vezes, modal.” (p. 518). Denota propriedades estáveis dos indivíduos, tomando o
momento da enunciação como ponto de referência (“O João era professor” significa
que já não é ou que morreu). Mesmo com duração longa, esse estado teve um fim.
“Quando os predicados denotam estados temporários ou eventos, o pretérito
imperfeito do indicativo necessita normalmente de um tempo de referência introdu-
zido por um adjunto adverbial ou por uma frase independente com valor temporal.”
(Raposo 2013: 519): A rapariga sentou-se na esplanada. O sol brilhava. (O imperfeito
atribui também duração a uma situação, como com o verbo auxiliar progressivo de
Estar. Ou então, em oração condicional, como situação repetida, habitual: Se o Rui
estava doente, a mãe tratava dele). Se se trata de uma oração subordinada, esta é
tipicamente introduzida por quando, enquanto, ao mesmo tempo que, etc.
29 O Italiano, por exemplo, dispõe de ESSERE e STARE, mas este último verbo
tem mais afinidades com o uso de Permanecer e Ficar do que com o verbo Estar das
línguas portuguesa e espanhola.

685
que aqui consideramos, há somente um verbo correspondente aos
valores que Ser e Estar têm em Português, nomeadamente 是.
Existe uma distinção semântica, em que Ser se relaciona com
predicados estáveis e Estar com predicados episódicos, temporá-
rios, distinção que se faz em função da natureza das propriedades,
mas também dos estados, denotados por estes dois tipos de pre-
dicados, embora (como provou Huback 2011: 105) essa distinção
não consiga abarcar todas as instâncias de uso concreto desses
verbos.
Normalmente, as diferenças entre Ser e Estar são apresentadas no
início da aprendizagem (nos níveis mais elementares) e raramente
são retomadas mais tarde, com prejuízos claros para os aprenden-
tes, que – mesmo em níveis de proficiência avançada – continuam
a cometer desvios neste campo. Seria, certamente, muito produ-
tivo, para além de facultar exercícios e corrigir (explicando-o) o
erro, problematizar – pelo menos nesses níveis mais avançados da
aprendizagem – e especificar os casos em que os dois verbos têm
um uso particular, para levar os aprendentes a compreender que, a
ser possível o emprego de ambos, a carga semântica que lhes está
subjacente é claramente distinta.
O facto de o Português ser uma língua de género gramatical, que
utiliza esse recurso com vários propósitos semânticos, e também a
falta de correspondência entre o género da língua portuguesa e o das
suas congéneres românicas (veja-se o exemplo 11, em que – inver-
samente do que ocorre em Espanhol, Francês, Italiano – as palavras
em -agem são femininas), constituem das maiores dificuldades para
os falantes estrangeiros, mesmo em níveis mais avançados (veja-se o
exemplo 12). Essa dificuldade nota-se, então, não somente nas pala-
vras que não terminam por -o ou -a, tradicionalmente as terminações
de masculino e feminino (que, aliás, explicam os desvios patentes
em 14 e 15), mas igualmente com outros contextos, como se depre-
ende pelos exemplos (16) e (17). No caso (13) o/a aprendente fez
a concordância (errada) com o sujeito, uma vez que a palavra que
sofre o desvio é invariável.

686
As preposições são, sem dúvida, uma das classes gramaticais em
que se verifica maior dificuldade para quem aprende Português. São,
essencialmente, problemáticas as distinções entre por/para, mas a
confusão verifica-se em muitas outras, tal como se evidencia nos
exemplos (18) a (24). Note-se que nos dois últimos exemplos se
encontram construções bastante comuns somente em aprendentes
chineses.
Quanto à frase (22) – «estou satisfeita para» – muitos verbos, de
facto, não levam preposições em Chinês, daí a confusão dos alunos
sobre qual devem escolher. Mas “estar satisfeito/ satisfazer-se” em
chinês é 满意 e usa-se com a preposição 对 que, traduzida para por-
tuguês, é “para”. Parece, portanto, que se trata, neste caso concreto,
de clara transferência da língua materna para a língua que se está a
aprender. Só que em Chinês a ordem sintática normal é preposição
+ verbo: 对...满意..., o que pode constituir uma dificuldade acrescida.
Também a contração ou não de em é fonte de várias dificuldades:
cf. exemplos (20) e (21), em que os aprendentes não têm consciên-
cia do valor semântico que existe, por exemplo, entre “em casa” (na
própria casa de quem fala ou escreve) e “na casa” (que normalmente
constitui uma especificação de outra casa que não é a usual de re-
sidência ou que pertence a outrem).
Um dos desvios mais comuns em aprendentes chineses é a colocação
de muito (e, por vezes, mais) no final da frase – exemplos (25) a (30)
–, como ocorre em Inglês: I enjoyed the film very much ou a anteci-
pação do adjetivo como em different people, entre outros. Também se
torna estranho, em Português, que avaliativos que já têm uma carga de
intensidade quase máxima venham antecedidos do advérbio (também
de intensidade) muito, originando-se assim uma evidente redundância:
por exemplo, “muito delicioso” ou “muito fantástico”.
Atente-se ainda que, no exemplo (27), o verbo gostar surge sem a
preposição que lhe deve estar associada, contrariando o que se lê na
Gramática de Raposo (2013, p. 1531): «Os verbos gostar, precisar e
necessitar selecionam um complemento, obrigatoriamente introduzido
pela preposição de quando este é um sintagma nominal».

687
Este advérbio é, na realidade, um modificador, conferindo valo-
res de intensidade ou de quantificação ao constituinte frásico que
modifica. Por isso, quando “modifica um substantivo (um adjectivo,
um particípio isolado, ou um outro advérbio) coloca-se de regra
antes destes” 30.
Nos exemplos (34) a (46) estão patentes vários casos de “troca”
do uso do artigo definido por indefinido, mesmo num nível de
proficiência intermédio / avançado, ou ainda o seu uso quando se
esperaria a omissão: abonações (34), (36), (38) e (42). Em (39) trata-
-se do grau superlativo relativo de superioridade: o mais + adjetivo
(subentendido “de todos”).
Ao tratar dos artigos (2013: 837-859), a Gramática de Raposo,
refere (concretamente na p. 849): “Quando um especificador (determi-
nante ou quantificador) habilita o sintagma nominal para representar
uma entidade ou um grupo de entidades identificável pelo ouvinte
ou já introduzido no universo do discurso, é [+ definido]; quando,
pelo contrário, o especificador habilita um sintagma nominal para
representar uma entidade ou um grupo de entidades não identificá-
vel pelo ouvinte, ou introduzido pela primeira vez no universo do
discurso, é [– definido].”
Há contextos que distinguem entre estes dois tipos, como a função
de complemento direto em orações impessoais com HAVER, em que
só se permitem os indefinidos: Ex. “Ontem havia o livro interessante
na livraria” é uma frase antigramatical em Português.
“Na função de predicativo do sujeito, o uso de um sintagma
nominal reduzido é mais aceitável com nomes que denotam cargos,
funções, profissões e relações pessoais ou familiares” (Raposo e
tal., 2013, p. 849): “O João é professor catedrático” e não “um”, pois
revela-se muito estranho ao ouvido de um falante nativo de língua
portuguesa a utilização do artigo indefinido nestes casos.
Quanto aos exemplos (47) a (53), há clara confusão entre vocá-
bulos, fruto de deficiente aquisição das diferentes palavras e seu

30 Cunha & Cintra 1984: 541.

688
significado. O facto de surgirem, por exemplo, duas ou mais formas
diferentes de adjetivos em língua portuguesa (como cansado / cansa-
tivo, emocionado / emocionante, fascinado /fascinante / fascinador,
vergonhoso / envergonhado, etc.), causa dúvidas no momento de
escolher empregar a forma adequada. Também a confusão entre os
substantivos “férias” e “feriado” levam os aprendentes desta nacio-
nalidade a usar, indevidamente, «a féria» por “o feriado”, como está
patente no exemplo (53), julgando que basta retirar o –s de plural
para referir um dia apenas.
Seria muito benéfico o aluno ser confrontado com exercícios em
que pudesse ficar clara a diferença entre formas semelhantes (mas
de sentido distinto), por exemplo, cansada e cansativa, turista e
turístico, emocionado/a e emocionante, etc.
O mesmo vale, por se tratar de usos afins, para os desvios cons-
tantes dos exemplos (54) a (56).
Ainda no âmbito das preposições (e além do que se viu na sub-
secção dedicada a este assunto), é frequente, por clara analogia com
palavras como naquela, neste, noutro, etc., os alunos chineses “cria-
rem” uma contração entre em e aqui/ali (possivelmente pela ideia
de lugar, que lhes sugere o emprego dessa preposição), donde os
dois exemplos que se encontram na abonação (57). Os aprendentes
imaginam que está subjacente a preposição comummente usada com
indicação de lugar e adicionam-na, contraindo-a, com o deítico.
De (58) a (62) há falta de uma das duas preposições que indicam
deslocação (para, a), com os verbos ir e viajar.
Um dos desvios bastante comuns em aprendentes de língua chinesa
prende-se com o uso do plural em palavras que, normalmente, são
usadas maioritariamente no singular (felicidade, tolerância, respeito,
cultura, gastronomia, etc.), em vocábulos normalmente designados
como “incontáveis”. Entre os exemplos, o (68) apresenta igualmente
um desvio no uso do advérbio de intensidade muito que, como tal é
invariável em género e número, e que funciona como determinante
do adjetivo, que antecede, participando na construção do superlativo
analítico (de intensidade): por ex. baratíssimas.

689
A concordância sujeito verbo, substantivo e adjetivo que este
qualifica, etc., é muitas vezes inexistente, como nos exemplos (67)
a (79). Em (76) existe, efetivamente, a concordância, mas em moldes
que soam estranhos a um falante nativo de Português.
Relativamente ao exemplo (80), há a falta do advérbio de nega-
ção não: Não paguei nada. O facto de, em algumas línguas, não ser
usual empregar duas negativas na mesma frase poderia ter influído
no uso atestado. Num estudante japonês encontrou-se, em algumas
ocasiões, o mesmo desvio: “O terramoto aqui fez vibrar nada”.
Nas abonações (81) a (83) verifica-se a dificuldade em lidar com
os verbos reflexos, tanto mais que o Português tem verbos que po-
dem ou não funcionar desse modo (levantar/levantar-se, limpar/
limpar-se, esquecer/esquecer-se, etc.) e o seu uso é diferente nas
normas portuguesa e brasileira 31. Assim, se no primeiro caso se re-
gista a falta do pronome reflexo, nos dois restantes casos ele está
abonado, erradamente, e parece que tal ocorre – no caso específico
de aprendentes de origem chinesa – essencialmente em verbos que
denotam sensações: sentir, apreciar, etc.
Seria importante que os estudantes fossem confrontados com os
diferentes usos e significados destes verbos e pudessem praticar e
exercitar os seus diferentes usos 32.
A insuficiente distinção entre as oclusivas surdas e sonoras, entre
as fricativas /f/ e /v/ e as líquidas, devido à inexistência de alguns
desses sons na língua de origem dos aprendentes, está patente na
escrita (exemplos 84 a 90), como reflexo claro da oralidade. Para este
aspeto, a prática no laboratório de línguas e a consciencialização do
valor fonológico dessas distinções são fundamentais.
O exemplo (88) poderá ser uma influência da língua inglesa,
levando à prótese de a- (cf. advantage).

31 No Brasil é totalmente possível dizer Esqueci meu caderno, enquanto que em


Portugal é só aceitável Esqueci-ME do meu caderno.
32 Veja-se o trabalho de Zhang 2018, já convocado na nota 26.

690
Merecem ainda um comentário as atestações (91) a (101), ainda
que de tipologia variável. Em (91) encontra-se uma palavra muito
recorrente nas produções escritas e orais de alunos desta proveni-
ência, com o sentido de prático, adequado, entre outros, mas que
é estranho para um falante de Português como língua materna. Em
(92) e (101) encontramos o superlativo com base num advérbio
de modo (com ideia de intensificação) e de um outro superlativo
absoluto sintético, que – em Português – se formam, de facto, maio-
ritariamente em –íssimo.
Os casos (93) e (100), que fazem parte da forma de saudação e
despedida, respetivamente, de cartas informais, parecem estranhos,
na medida em que o artigo inicial em lugar de “Olá”, por exemplo,
ou “Querida”, “Cara”, etc., não se usa em Português, e – no caso
(93) – é claramente inadequado o uso simultâneo de um tratamento
de informalidade e proximidade normal para uma irmã (que se trata
por Querida) e o de uma despedida formal (Cumprimentos). Aliás,
as formas de tratamento constituem, pela sua complexidade, uma
das dificuldades com que se defrontam os aprendentes de todas as
origens ao contactar com a Língua Portuguesa.
Muito provavelmente fruto de transferência da língua ingle-
sa para o Português são os casos seguintes. No exemplo (94),
«Agora posso falar bem português», tal como nem sempre os fa-
lantes de Inglês como língua segunda distinguem os verbos may/
can, também se torna, para os aprendentes de Português como
língua não materna a distinção entre poder/conseguir/saber, que
têm igualmente valores semânticos diversos. Em (95), «Já estou
em Portugal por 4 meses», parece evidente a transferência da
preposição inglesa “for” para “por”, tal como é igualmente clara a
“tradução” de “on my own” (isto é, sozinho/a, por mim próprio/a)
que surge no exemplo (96) «(…) agora sei tratar de tudo no meu
próprio».
Ainda podem evidenciar essa transferência da língua inglesa, que
os aprendentes chineses dominam normalmente com proficiência, o
exemplo (97), em que “people” pode significar, em Português, “povo”

691
e “pessoas”, mas que o aprendente em causa não soube escolher
adequadamente.
Por último, parecem ser traduções quase literais de estruturas
do Inglês, as dos exemplos (98) e (99). Em Português dir-se-ia “Há
falta de gente qualificada para os trabalhos” e nunca «Os trabalhos
faltam (…)». Do mesmo modo, a voz passiva, possível e comum em
Inglês, é – com os verbos do grupo semântico de contar, dizer, etc.
– totalmente inaceitável, preferindo-se o Indicativo, na voz ativa:
“Contaram-nos o que tinha acontecido”. Cientes de que as duas
línguas não maternas em causa (Inglês e Português) são idiomas
europeus, os aprendentes imaginam, certamente, que têm estruturas
afins 33, donde os registos desviantes atestados.

Conclusões

Relativamente à possível influência da língua de origem ou de


outra que seja dominada pelo aprendente, ela parece confirmar-se
em vários casos, como a dificuldade no emprego do género, entre
artigos definido e indefinido, verbos reflexos e particípio passado,
uma vez que a língua chinesa normalmente não distingue géneros, não
usa artigos e os verbos reflexos e particípio passado são inexistentes.
Houve, nalguns casos, uma transferência de uma língua a outra,
tal como a tese de Ren Shanshan tinha comprovado.
Parece também, como se vê em vários dos exemplos analisados,
ter de convocar-se a transferência de uma segunda língua, que os
estudantes chineses dominam bem (o Inglês), como ilustram os vários
exemplos com a inversão de muito, entre outros casos. Em chinês
“gostar muito” tem a ordem de “muito … gostar”.

33 Note-se que também para o vocabulário recorrem, não raramente, ao Inglês:


no ano letivo de 2018/2019 um estudante utilizou, na oralidade, a expressão: Vou
estudar muito para ganhar boas marcas, referindo-se a notas, classificações acadé-
micas, “marks” em Inglês. O verbo ganhar também é pouco aceitável neste contexto,
sendo o ideal o verbo ter ou obter.

692
Aliás, a influência do Inglês, e respetiva transferência de estruturas
sintáticas e vocabulário, associada a tradução literal para Português,
mostraram ser ainda mais evidentes do que qualquer influência do
Mandarim.
Quanto à eventualidade de a frequência de níveis mais altos do
Q.E.C.R.L. já poder isentar os aprendentes desse tipo de desvios,
nem sempre tal ocorre, uma vez que a influência ou transferência de
outra língua para o Português ou a escolha aleatória de uma possi-
bilidade, por inexistência de uma particularidade afim na língua de
origem (caso do género gramatical, que não existe na língua chinesa),
ocorreu/ocorreram mesmo em níveis mais altos.
Ainda que os desvios que ocorrem em C1 sejam verificados em
estruturas um pouco mais complexas, e haja menos incidência desses
empregos desviantes, parece haver, sob a perspetiva da Linguística
Aplicada, também aí, casos de interlíngua, isto é, a transferência
negativa de aspetos linguísticos particulares da língua materna (ou
outra que se domine) para a língua de aprendizagem, podendo, con-
sequentemente, notar-se alguns possíveis sintomas de fossilização34.

O que poderá fazer o Professor para minorar ou erradicar


estes desvios?

Tendo de antemão consciência de quais os desvios mais comuns


em aprendentes de uma determinada língua materna, é absolutamen-
te crucial que o professor escolha atividades adequadas a corrigir/
evitar cada desvio específico e utilize informações que possam com-

34 Termo primeiramente utilizado por Larry Selinker, em 1972 (no artigo


“Interlanguage”), para se referir a regras, estruturas ou itens linguísticos da língua
materna que tendem a permanecer na língua segunda (não materna), e situações
essas que nunca (ou muito dificilmente) serão corrigidas com êxito. Sobre a análise
de erros, transferência, interlíngua e fossilização veja-se, por exemplo, Taveira 2014:
46 e segs.

693
plementar – ou até questionar – as regras apresentadas pelos livros
didáticos.
Não existem manuais perfeitos que consigam abarcar toda a va-
riabilidade inerente a qualquer língua, por isso o papel do professor
é imprescindível, como o é a explicação caso a caso, assim como a
prática de exercícios que levem o aprendente a refletir (e não só a
seguir, mecanicamente, um exercício) sobre a regra.
Quando não é possível a imersão num país cuja língua materna
seja o Português, mais necessário se torna possibilitar ao estudante
o máximo de situações reais de contacto com o idioma que aprende,
o que – com as novas tecnologias – se torna cada vez mais fácil.
Um ponto que me parece fundamental é a formação contínua dos
professores de língua portuguesa. A língua é viva e o seu uso altera-
-se, pelo que, sobretudo num professor não nativo de Português,
a formação contínua e o contacto direto, se possível, com falantes
nativos, é de extrema importância, de modo a evitar-se ensinar usos
que se perderam há muito na língua-alvo desse ensino e podem
tornar-se obsoletos 35.
A análise da estrutura das frases é também indispensável, essen-
cialmente em níveis mais avançados. O foco do ensino não deve, nem
pode, ficar somente pelo ensino do léxico e da gramática básica. Há
que ter em conta aspetos como a semântica, a pragmática linguística,
usos sociolinguísticos, etc., que afetam e enformam a comunicação
(Recorde-se o que se disse sobre o uso inadequado das formas de
tratamento associado aos diferentes níveis de língua: familiar, cor-
rente, cuidado, por exemplo 36).
Melhorar a competência discursiva dos alunos, fazer com que sejam
capazes de produzir textos (na oralidade ou na escrita) coesos, coe-
rentes, adequados e corretos é o objetivo primordial de um professor
de língua. Ensinar como organizar os elementos de forma pertinente
e aplicar os conhecimentos adequadamente às novas situações, assim

35 Sobre este tema veja-se Gouveia 2019b.


36 Cf. Gouveia 2019a.

694
como a compreender o que / por que motivo está errado, é um passo
importante para melhorar a proficiência dos alunos.
Com efeito, a chamada de atenção para a variabilidade das línguas,
para o que está em mudança, para a verdade de que “cada caso é
um caso”, é absolutamente imprescindível neste e noutros aspetos
mais complexos da língua portuguesa. É a estes usos que o profes-
sor deve dar uma atenção particular, acompanhando a progressão
do aprendente, e evitando a tendência (de outro modo inevitável)
para a fossilização.

Bibliografia

Cunha, C. & Cintra, L. F. L. (1984, 2ª ed.), Nova Gramática do Português Contemporâneo.


Lisboa: Sá da Costa.
Gouveia, M. C. de F. e (2018), “Using the Verbs Ser and Estar in Portuguese: A Difficult
Task for Non Native Learners”, LiBRI 7.1: 55-69.
Gouveia, M. C. de F. e (2019a), “Aquisição e uso das Formas de Tratamento em Português-
Língua Estrangeira”. 6as. Jornadas de Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas da
Europa Central e de Leste. Studia Iberystyczne/ Estudos Ibéricos 18: 399-412.
Gouveia, M. C. de F. e (2019b), “O que está a mudar em Português Europeu? / What is
changing in European Portuguese?”. Études Romanes de Brno 40.2: 199-215.
Huback, A. P. (2011), “A aquisição de ser e estar no ensino de português como língua
estrangeira”, Revista do GEL 8.1: 91-107.
Mai, R., C. Morais & U. Pereira (2019). Gramática de Língua Chinesa para Falantes de
Português. Aveiro: Universidade de Aveiro.
Martins, C. et al. (coord.) (2008-2011), Corpus de Produções Escritas de Aprendentes
de PL2 (PEAPL2). Coimbra: Universidade de Coimbra / CELGA-ILTEC.
Mateus, M. H. M., Brito, A. M., Duarte, I. & Faria, I. H. (2003, 6ª ed). Gramática da
língua portuguesa. Lisboa: Editorial Caminho.
Raposo, E. B. P., Nascimento, M. F. B. do, Mota, M. A. C. da, Segura. L. & Mendes, A.
(2013). Gramática do Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Santos, I. A., Pereira, I., Martins, C., Lopes, A. C. M., Carapinha, C. & Silva, A. (2016),
“Corpus oral de PL2: um novo recurso para a investigação e ensino”, Revista da
Associação Portuguesa de Linguística 1.10: 745-760.
Shanshan, R. (2015). Construções de subordinação adverbial introduzidas por conectores:
análise de produções escritas por aprendentes chineses de PLE (Dissertação de
Mestrado). Coimbra: Faculdade de Letras de Coimbra.
Taveira, C. A. (2014). Aquisição do Português Língua Não Materna: transferências
Lexicais, Sintáticas e Morfossintáticas (Dissertação de Mestrado). Lisboa: Universidade
Aberta.
Zhang, Y. (2018). Aquisição de SE anafórico por aprendentes chineses de Português L2
(Tese de Doutoramento). Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

695
(Página deixada propositadamente em branco)
ANTIGUIDADE TARDIA
(Página deixada propositadamente em branco)
B a s i l i o a n t e e l T e at r o .
M i m e s i s y K at h a r s i s C r i s t i a n a
v s M i m e s i s y K at h a r s i s D r a m át i c a *1

B a s i l i u s a n d T h e at r e .
M i m e s i s a n d C h r i s t i a n K at h a r s i s
v s M i m e s i s A n d D r a m at i c K at h a r s i s

Aurelio Pérez Jiménez


Univ. Málaga
ORCID: 0000-0002-9743-3042
aurelioperez@uma.es

Resumen: Partiendo de algunas reflexiones sobre la importancia que los


clásicos tuvieron para los tres padres capadocios, analizo algunas de
las relaciones de Basilio Magno con el drama antiguo y de su tiempo.
En relación con el primero, llamo la atención sobre las funciones que
tienen las alusiones y citas de la tragedia ática (Esquilo, Sófocles y
Eurípides), completando en este aspecto los trabajos anteriores de
Jacks y D’Ippolito. En cuanto a lo segundo, las limitaciones de es-
pacio me impiden comentar la presencia de los géneros dramáticos
y musicales en las obras del Capadocio, especialmente interesante
por la utilización de los elementos del teatro (sobre todo actores y
máscaras) en sus imágenes literarias. Concluiré mis consideraciones
prestando una especial atención al concepto cristiano de katharsis y
mimesis en contraste con el drama en la obra de Basilio.

*1 Este trabajo se ha elaborado en el marco del Grupo de Investigación HUM


312 de la J.A., Universidad de Málaga.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_30
Palabras clave: Padres capadocios, Basilio, Teatro, Mimo, Pantomima,
Tragoidoi, Katharsis, Mimesis

Abstract: Starting from some reflections on the importance that the clas-
sics have had for the three Cappadocian fathers, I will analyze some
of the relations of Basil the Great with ancient and coetaneous drama.
Concerning the first, I call attention to the functions that allusions and
quotations from the Attic tragedy (Aeschylus, Sophocles and Euripides)
have in his works, completing in this aspect the previous Jacks’ and
D’Ippolito’s commentaries. Regarding the presence of the 4th Century
dramatic and musical genres in Basil’s works, space limitations prevent
me from commenting such presence, which is specially interesting as
concerns the use of theater elements (especially actors and masks) in
Basilius’ litterary images. I will conclude my reflections by paying a
particular attention to the Christian concept of katharsis and mimesis
in contrast to the drama in the writings of this Capadocian Father.

Keywords: Cappadocian Fathers, Basil, Theater, Mime, Pantomime, Tra-


goidoi, Katharsis, Mimesis

1. Principios generales. Los padres capadocios y el teatro

Aunque con una natural desconfianza y menosprecio hacia la


poesía, heredados de Platón y de los platónicos entre los que tiene
un papel importante Plutarco, los tres grandes padres capadocios no
renuncian en sus obras a ese legado clásico del que formaba parte la
tragedia y la comedia. Entre ellos, los dos amigos, Basilio de Cesarea
y Gregorio de Nacianzo, tenían buenas razones para sentirse atraídos
por el drama antiguo. El primero había seguido en su etapa formativa
las clases de Libanio en Constantinopla y ambos las del prestigioso
sofista Proairesio y de Himerio, gran admirador de la cultura antigua,
en Atenas1. Pese a la vida austera de ambos estudiantes en Atenas

1 Cf. Pelikan 1993: 8-24; Blázquez 2001: 596-620; Daley 2006: 1-7; Moreschini 2008:
32-36 y, en general, todo el capítulo tercero de este libro (pp. 77-159); Webb 2008b: 65.

700
de que presume Gregorio2, no sería extraño que asistieran a algunos
excerpta dramáticos en la ciudad de los poetas áticos (a cargo de los
tragoidoi3) o a las comedias, mimos y pantomimas de tanto éxito en
los teatros de las ciudades grecorromanas del siglo IV donde vivieron4.
La reivindicación de la cultura clásica, como parte de su identidad gre-
corromana es común a los dos, sin renunciar al compromiso cristiano
en tiempos revueltos como los de la restauración pagana de Juliano,
con quien Basilio y Gregorio coincidieron en Atenas y que decretó la
prohibición a los ‘galileos’ de las lecturas antiguas 5. También participa

2 Greg. Nac., Or. 43 (In laud. Bas.) 21.1-2: Δύο μὲν ἐγνωρίζοντο ἡμῖν ὁδοί· ἡ μὲν
πρώτη καὶ τιμιωτέρα, ἡ δὲ δευτέρα καὶ οὐ τοῦ ἴσου λόγου· ἥ τε πρὸς τοὺς ἱεροὺς ἡμῶν
οἴκους καὶ τοὺς ἐκεῖσε διδασκάλους φέρουσα, καὶ ἡ πρὸς τοὺς ἔξωθεν παιδευτάς.
Τὰς ἄλλας δὲ τοῖς βουλομένοις παρήκαμεν ἑορτάς, θέατρα, πανηγύρεις, συμπόσια. 2
Οὐδὲν γὰρ οἶμαι τίμιον, ὃ μὴ πρὸς ἀρετὴν φέρει, μηδὲ ποιεῖ βελτίους τοὺς περὶ αὐτὸ
σπουδάζοντας. Ἄλλοις μὲν οὖν ἄλλαι προσηγορίαι τινές εἰσιν, ἢ πατρόθεν ἢ οἴκοθεν, ἐκ
τῶν ἰδίων ἐπιτηδευμάτων ἢ πράξεων· ἡμῖν δὲ τὸ μέγα πρᾶγμα καὶ ὄνομα, Χριστιανοὺς
καὶ εἶναι καὶ ὀνομάζεσθαι· (“Se nos abrían dos caminos: el primero y más preciado y el
segundo y que no era de igual valor; aquél conducía a nuestras mansiones sagradas
y a los maestros de allí y este a los educadores de fuera. Así que las otras diversiones
las dejamos a quienes las quisieran: fiestas, teatros, concurrencias y banquetes. 2
Pues nada considero estimable si no lleva hacia la virtud, ni hace mejores a los que
se interesan por ello. Cada cual tiene determinados títulos que les vienen de su patria
o de su familia, de sus propias ocupaciones o de sus hechos; para nosotros el asunto
principal y nuestro título era ser y recibir el nombre de ‘cristianos’”).
3 No hay evidencia segura de reposiciones de dramas clásicos en el siglo IV (cf.
Barnes 2010: 323). En cambio, y por lo que a nuestro tema se refiere, Basilio se refiere
a los tragoidoi en algunas de sus imágenes y como elemento para contrastar sus prin-
cipios. En particular, véase Epist. 42.4, Epist. 51, donde utiliza prostragoidesosin en un
contexto con intencionalidad dramática, al que asocia también los recitados (rhemata);
más clara es la alusión en una imagen de la Hom. de grat. Actione (Migne, 31, p. 232).
4 Esta posibilidad también es sugerida por Webb 2008b: 69. Sobre el mimo y la
pantomima y los tragoidoi, además de las excelentes indicaciones que, respecto de esta
última, nos dan Plutarco (Quaest. Conv. 7.8, 711B-713F) y Luciano (De saltatione), el
lector puede ver las detalladas exposiciones de Beacham 1992: 129-153, Hall & Wiley
2008, Webb 2008a y la excelente síntesis de Puchner 2017: 20-37, dedicadas a estos
géneros, así como la bibliografía recomendada por los tres últimos. Estos géneros
sustituyeron la representación de los dramas clásicos en los teatros de las ciudades
del Imperio sobre todo a partir del s. II d.C. Barnes 2010: 318-322.
5 Los dos debieron reaccionar contra el decreto de Juliano del 17 junio del 362,
vetando a los “Galileos” la lectura de los autores clásicos, aunque el más polémico fue
Gregorio Nacianceno en sus invectivas contra Juliano (Orat. 4 (In Iulianum I) 100-
101, espec. 101: Πόθεν οὖν ἐπῆλθέ σοι τοῦτο, ὦ κουφότατε πάντων καὶ ἀπληστότατε,
τὸ λόγων ἀποστερῆσαι Χριστιανούς; τοῦτο γὰρ οὐ τῶν ἀπειλουμένων ἦν, ἀλλὰ τῶν ἤδη
νενομοθετημένων. Πόθεν, κἀκ τίνος αἰτίας; Τίς Ἑρμῆς σοι λόγιος, ὡς ἂν αὐτὸς εἴποις, τοῦτ’
ἐπὶ νοῦν ἤγαγε; Τίνες Τελχῖνες πονηροὶ, καὶ βάσκανοι δαίμονες; Εἰ βούλει, καὶ τούτου τὴν
αἰτίαν ἡμεῖς παραστήσομεν = “¿De dónde se te ocurrió esto, ¡oh tú, el más vano e insa-

701
de esa misma percepción de lo clásico el más joven de los tres padres
capadocios, Gregorio de Nisa, admirador de los anteriores y cuyos
estudios en Alejandría lo enraizaron bien en el conocimiento de los
clásicos6. Aunque es cierto que la vocación poética de Gregorio de
Nacianzo lo debió hacer más permeable a la influencia de los poetas,
y entre ellos, de los trágicos y comediógrafos. Por otra parte, y como
también ocurrió con Plutarco, los valores éticos y las reflexiones sobre
el hombre con sus limitaciones, sobre la justicia de la divinidad y sobre
el conflicto entre libertad y destino, que ponen a menudo los trágicos
en boca de sus personajes, no debieron dejar totalmente indiferentes
a estos cristianos cultos ante los textos dramáticos. El reverso de la
moneda era, sin embargo, el antropomorfismo y politeísmo de la cul-
tura griega con sus mitos que los alejaron de la perfección platónica
a que aspiraba el Dios judeocristiano, impermeable por completo a
los olores y sabores de la Humanidad.
Así, Basilio Magno, en quien centro estas reflexiones dedicadas
con gran afecto a Maria de Fátima de Sousa e Silva, prestigiosa lec-
tora del teatro antiguo, nos deja en sus obras algunos indicios de su
interés por los textos dramáticos y por los espectáculos de su época.
Aunque menos que en los otros padres capadocios, no faltan en él
referencias a los actores, a los espacios, a los movimientos y figuras
de la pantomima y a las funciones de los personajes del drama como
imagen de sus principios teóricos y de la actividad eclesiástica que
expresan sus cartas, homilías, ensayos y tratados.
Es verdad que no es este santo el más entusiasta de los poetas
dramáticos, mencionados por su nombre en muy contadas ocasiones y
de cuyos textos hay poquísimas citas o alusiones en su extensa obra.

ciable de todos!, privar a los cristianos de los libros? Pues no fue una amenaza, sino
un decreto ya promulgado ¿De dónde, y por qué motivo? ¿Qué docto Hermes, como tú
dirías, té metió esto en la cabeza? ¿Qué miserables Telquines y envidiosos démones? Si
quieres, nosotros te diremos la causa”). Cf. Daley 2006: 31-34 y Elm 2012, espec. caps.
7-9. Interesante es la posición con respecto al legado clásico de Gregorio Nacianceno en
Carm. ad se ipsum 2.1, 25-57, demostrando cómo los cristianos pueden ser helenistas.
6 Cf. McLynn 2018: 30-36. Su pensamiento filosófico y teológico, por otra parte,
es profundamente platónico, tanto en su filosofía como en su estilo. Cf. Ludlow 2007.

702
Ni siquiera aparece el nombre del poeta más próximo al pensamien-
to cristiano, Sófocles 7, que sí es citado por Gregorio de Nacianzo
y cuyas tragedias inspiraron pasajes suyos y de Gregorio de Nisa.
Pero si la cita directa y la mención por el nombre de los dramatur-
gos griegos no es frecuente en los padres capadocios, las imágenes
y metáforas sobre el teatro sí que se acomodan a sus gustos, lo mis-
mo que ocurría con el admirado Plutarco; así echan mano de ellas
a modo de parábola, de ejemplo o de nota erudita, para acercar los
misterios de su doctrina a fieles, presbíteros y amigos o a los lectores
destinatarios de sus sermones, homilías, cartas, recomendaciones y
versos (en el caso del Nacianceno).

2. Aproximación de Basilio al teatro antiguo

Con respecto a los dramaturgos de Atenas, Basilio de Cesarea incluye


en sus obras el nombre de Esquilo una vez8 y dos el de Eurípides9,
aunque hay otros pasajes donde se rastrean huellas de otras tragedias
y comedias, hasta llegar, según Jacks, a un total de ocho referencias
relacionadas con el drama antiguo, incluido algún caso discutible10.

7 D’Ippolito 1983: 325 y 331-334 incluye una cita literal oculta del Poliido (fr.
398.5 Radt), aunque esta fuente ya fue advertida por Deferrari en su edición de Loeb
(1924) de las Cartas de Basilio (vol. I, p. 92).
8 Epist. 74.2.
9 Ad adulescentes 6.6 y Epist. 63.
10 Según Jacks 1922: 27-29, por ejemplo, la alusión a los infortunios por disensión
entre hermanos en Ad adulescentes 4.5 tiene que ver con el combate entre Eteocles
y Polinices de los Siete contra Tebas (p.27), aunque no hay más argumentos que el
tema, implícito también en Antígona de Sófocles y parte del desarrollo dramático de
las Fenicias de Eurípides e incluso tal vez argumento imitado en la pantomima; algo
similar sucede con otra posible alusión al Prometeo de Esquilo ( Jacks 1922: 61); en
cuanto a Aristófanes ( Jacks 1922: 28), son probables dos alusiones a Acharn. 595 (De
spiritu Sancto 30.77) y a Nub. 16 y 27 (Hom. in Hexaem. 2.2-3) que D’Ippolito 1983:
312-313 elimina por no ser seguras o, en cualquier caso, tener más relación con los
escolios que con el drama; no son discutibles, en cambio, las referencias a Eurípides,
en Ad adulescentes 6.6, donde parafrasea, con mención del poeta, Hipp. 612 ( Jacks
1922: 28) y 7.5, en que, con ligerísimas variaciones, cita literalmente Rhes. 84 ( Jacks
1922: 29); también en las Cartas se hace eco de este poeta, citándolo por su nombre
en Epist. 63 (fr. 902 Nauck) y tal vez piensa en las Bacantes cuando en Epist. 74 (Ad

703
Como otros cristianos anteriores y coetáneos, Basilio tiene un con-
cepto negativo en general del teatro como actividad humana, punto
de vista que comparte con su amigo Gregorio Nacianceno quien lo
confiesa expresamente al contarle sus planes al regreso de Atenas 11.
A Basilio la aversión además le viene de familia, como desvela
Gregorio de Nisa a propósito del elogio fúnebre a Macrina, hermana
de ambos 12. Y él mismo parece dejarlo claro en Ad adulescentes 4.6,
donde sus críticas tienen que ver con los temas míticos de los dio-
ses y héroes del drama (incestos, placeres de mesa y bebida, luchas
fratricidas y familiares, etc.). Sin embargo, cuando el comunicador, el
predicador o el pedagogo baja al terreno de los ejemplos, el drama
está a veces ahí, como recurso retórico unas veces, como modelo
positivo otras, porque algunos de sus pensamientos confirman sus
ideas, y como instrumento de contraste, las más.
En el primer caso se encuentra el único pasaje donde menciona
a Esquilo, en la carta 74.1, dirigida a un tal Martiniano, a quien le
pide que interceda ante Valente (la carta se data en el 371), para
evitar la situación de crisis a que ha abocado a la ciudad de Cesarea
la división de la Capadocia decretada por el emperador. El santo
recurre a la captatio benevolentiae prescrita por la retórica y espera
que al destinatario de la carta le basten para entender el problema
palabras sencillas, sin necesidad de las patéticas descripciones de
Simónides (alusión quizá a su epigrama a los caídos de Termópilas
o a su treno por los escópadas) ni de los dramáticos lamentos de

Martinianum, p. 29) recuerda el desmembramiento de Penteo por las ménades (lo


que propone Jacks y, pese a su escepticismo, deja en el aire D’Ippolito 1983: 340).
Por último, Jacks 1922: 59 relaciona con ideas presentes en Eurípides y Menandro
las reflexiones de Epist. 160, aunque D’Ippolito 1983: 312, lo excluye con razón.
11 Or. 43 (In laud. Bas.) 25: Ὡς δ’ οὖν ἐπανήκαμεν, μικρὰ τῷ κόσμῳ καὶ τῇ σκηνῇ
χαρισάμενοι καὶ ὅσον τὸν τῶν πολλῶν πόθον ἀφοσιώσασθαι (οὐ γὰρ αὐτοί γε εἴχομεν
θεατρικῶς οὐδ’ ἐπιδεικτικῶς), τάχιστα ἐγενόμεθα ἡμῶν αὐτῶν … (= “Cuando regresamos,
concediendo poco al mundo y a la escena y solo para dar una mínima satisfación a
la gente (pues no éramos particularmente dados al teatro y la exhibición), al punto
nos ocupamos de nosotros mismos…”).
12 Vita Macr. p. 373 GNO, VIII1, p. 373: Hablando de la educación con que su
madre orientó la formación de su hermana, tilda de αἰσχρόν τὰ τραγικὰ πάθη, τὰς
κωμικὰς ἀσχημοσύνας y otras lecturas poéticas. Sobre el tema, cf. Webb 2008b: 67-68.

704
algunas tragedias de Esquilo, probablemente en consonancia con
la situación que va a pintar Basilio. Este podría ser el caso de la
angustia explícita del Coro en la párodos de los Siete contra Tebas,
suplicando a los dioses su ayuda ante la amenza que supone la
guerra para la ciudad (78-180) o su canto, lleno de terror ante la
posible derrota, en el primer estásimo (287-368) o sus lamentos en
el último estásimo (822-950) que van seguidos por un diálogo lírico
con Antígona e Ismene (911-1004) no menos patético y que reflejan
el estado de inquietud de la ciudad ante el decreto de Creonte y la
decisión de la hija de Edipo; pero también en los lamentos de la
reina Atosa en los Persas o en los trenos del Coro en la Orestíada
o (cuando incluye a otros trágicos en su lista de lamentos célebres
que afectan a toda una ciudad) en la párodos del Edipo Rey (151-
-215) donde el coro describe los horrores de la peste para la ciudad;
o, por último, en la párodos y primer estásimo de las Suplicantes de
Eurípides, explosión del dolor de unas madres privadas del cuerpo
de sus hijos muertos. Todo ello podría haberle venido al pensamiento
a Basilio cuando, con gran habilidad retórica, pide a su amigo que
haga suyas las calamidades de Cesarea:

Σὺ δὲ ἀλλ’ ἡμῖν διηγουμένοις μὴ ἀπιστήσῃς ὅτι Σιμωνίδου ὄντως


ἤ τινος τοιούτου μελοποιοῦ ἐδεόμεθα, ἐναργῶς εἰδότος ἐπιστενάζειν
τοῖς πάθεσι. Καίτοι τί λέγω Σιμωνίδην, δέον Αἰσχύλον εἰπεῖν ἢ εἰ δή τις
ἕτερος παραπλησίως ἐκείνῳ, συμφορᾶς μέγεθος ἐναργῶς διαθέμενος,
μεγαλοφώνως ὠδύρατο; 13 .

Parecida motivación retórica (aunque aquí con mayor proyección


dogmática, pues se enfoca desde un punto de vista cristiano la si-
tuación de la ciudad, motivo de la carta) tiene la alusión a Penteo,

13 Epist. 74.2: “Tú, sin embargo, no dejes de creer nuestro relato porque sin
duda somos inferiores a Simónides o a algún poeta similar, que supo lamentar con
gran fuerza descriptiva los sufrimientos. Pero ¿a qué digo, Simónides, cuando había
que decir Esquilo o cualquier otro que al modo de aquél, tratando con intensidad la
magnitud de una desgracia, logró mover el llanto con grandes lamentos?”.

705
desmembrado por las ménades (identificadas con demonios), que,
pese a su valor ya tópico, no hay que excluir del todo que sea una
posible alusión a las Bacantes de Eurípides14. La suerte del rey tebano
se rememora ahora con la desmembración de la Capadocia impuesta
por el emperador, fuente de las calamidades económicas y sociales
en que está sumida Cesarea:

Τί δήποτ’ οὖν ἐπιστέλλω νῦν, παρεῖναι δέον; Ὅτι με κάμνουσα


ἡ πατρὶς ἐπείγει πρὸς ἑαυτήν. Οἷα γὰρ πέπονθεν οὐκ ἀγνοεῖς, ὦ
ἄριστε· ὅτι Πενθέως τρόπον Μαινάδες ὄντως τινές, δαίμονες, αὐτὴν
διεσπάσαντο. Διαιροῦσι γὰρ αὐτὴν καὶ ἐπιδιαιροῦσιν,... 15 .

Sea o no la obra de Eurípides el motivo del recurso retórico de la


sincrisis en este ejemplo de Basilio, lo cierto es que las palabras del
trágico ateniense no eran ajenas al autor cristiano, que lo nombra
en dos ocasiones.
La primera es una cita de una obra perdida (Nauck, TGF, nº 902)
donde vuelve a utilizar Basilio la captatio benevolentiae, aunque
ahora con una mayor implicación personal pues quiere granjearse
el afecto del gobernador de Cesarea:

«Τὸν σοφὸν ἄνδρα, κἂν ἑκὰς ναίῃ χθονός, κἂν μήποτ’ αὐτὸν ὄσσοις
προσίδω, κρίνω φίλον», Εὐριπίδου ἐστὶ τοῦ τραγικοῦ λόγος. Ὥστε,
εἰ, μήπω τῆς κατ’ ὀφθαλμοὺς ἡμῖν συντυχίας τὴν γνῶσίν σου τῆς
μεγαλοφυΐας χαρισαμένης, φαμὲν εἶναι φίλοι σου καὶ συνήθεις. μὴ
κολακείαν εἶναι τὸν λόγον κρίνῃς 16 .

14 Vid. supra nota 10.


15 Epist. 74.1: “¿Por qué por fin me decido a hacerte este encargo, cuando debería
hacerlo personalmente? Porque la patria, fatigada, me apresura a actuar en su ayuda.
Pues no ignoras los grandes sufrimientos en que se encuentra, querido amigo: ¡cómo,
igual que a Penteo las ménades, en realidad algunos, demonios, la desmembraron!
Pues la dividen y vuelven a dividirla, …”.
16 Epist. 63.1: “«Al hombre sabio, aunque viva lejos de la tierra, aunque nunca
lo vea con mis ojos, los considero amigo», es un dicho del trágico Eurípides. Por lo
tanto, si, cuando todavía la ocasión de tenernos a la vista no me ha permitido la

706
La cita de Eurípides tiene aparentemente esa única función retórica,
pero que comience su carta con ella no deja de ser una exhibición
de su propia competencia literaria griega ante un personaje dota-
do además de cierta formación y prestigio intelectual; aspecto este
que subraya también al referirse a él (esto es exclusivo de Basilio)
como un hombre sabio, cambiando por sophón el adjetivo esthlón
del poeta trágico 17; en cuanto a las intenciones personales, persigue
su confianza y amistad elogiando (con su común amigo Elpidio) la
magnanimidad del político. Llamo la atención sobre el escaso aprecio
que el cristiano tiene por la forma métrica del texto, que le trae sin
cuidado, a pesar de la competencia en este terreno que le reconoce
en su laudatio su amigo Gregorio de Nazancio 18 . El motivo está,
sin duda, en las intenciones de la cita que no son estéticas; por eso
rompe intencionadamente también la estructura del segundo yambo
con el pronombre auton y con el cambio de la forma verbal eisido
(necesaria para conformar la 2ª dipodia: -σοις εἰσίδω) por prosido,
más habitual en su estilo cotidiano que la otra forma 19.
En el mismo descuido incurre con la otra cita textual donde
menciona su fuente. Se trata de la famosa homilía propedéutica Ad
adulescentes (6.6), en la que, para afirmar la obligación que tiene el
cristiano de ser sincero tanto de pensamiento como de palabra en
contraste con el comportamiento de los actores en el teatro, pone

gracia de conocer tu magnanimidad, afirmo ser tu amigo y familiar, no pienses que


mis palabras son adulación”.
17 τὸν ἐσθλὸν ἄνδρα, κἂν ἑκὰς ναίῃ χθονός, /κἂν μήποτ’ ὄσσοις εἰσίδω, κρίνω
φίλον (“Al hombre bueno, aunque viva lejos de la tierra/ aunque no lo vea con mis
ojos, lo considero amigo”).
18 Greg, Nac., or. 43 (In laud. Bas.). 23,4: Τίς δὲ γραμματικήν, ἣ γλῶσσαν ἐξελληνίζει
καὶ ἱστορίαν συνάγει καὶ μέτροις ἐπιστατεῖ καὶ νομοθετεῖ ποιήμασιν; (“¿Quién (fue mejor
que él) en la gramática, que permite hablar griego, reunir la historia, pone orden en
los metros y da normas a los poemas?”)
19 Προσιδεῖν aparece, además de en este pasaje, en Ad adulesc. 7.10, Epist.
279.1 y Hom. in illud: Destruam horrea mea 3 (προσιδεῖν) y 4 (προσίδω); en cambio
ni εἰσιδεῖν ni ἐσιδεῖν están documentados en su obra. Es significativo que Gregorio
Nacianceno utiliza la forma con προσ- un par de veces en obras en prosa y con εἰσ-
dos veces en sus trímetros yámbicos.

707
como ejemplo de lo que no hay que hacer las palabras de Hipólito
en el v. 612 de la obra euripídea:

ἡ γλῶσσ᾿ὀμώμοχ᾿, ἡ δὲ φρὴν ἀνώμοτος

Tampoco en este caso le preocupa el respeto al metro, sino que


banaliza el verso introduciendo en el primer hemistiquio la partícula
μέν para favorecer la oposición lengua/pensamiento y sustituyendo
con la forma neoática (más prosaica) la antigua γλῶσσ’, propia de
la lengua poética de Eurípides 20. He aquí el texto:

αὐτὸς δέ τις ἕκαστος διαστασιάσει πρὸς ἑαυτόν, καὶ οὐχὶ τοῖς


λόγοις ὁμολογοῦντα τὸν βίον παρέξεται; ἀλλ’ «ἡ γλῶττα μὲν ὀμώμοκεν,
ἡ δὲ φρὴν ἀνώμοτος» κατ’ Εὐριπίδην ἐρεῖ; καὶ τὸ δοκεῖν ἀγαθὸς πρὸ
τοῦ εἶναι διώξεται; Ἀλλ’ οὗτός ἐστιν ὁ ἔσχατος τῆς ἀδικίας ὅρος, εἴ τι
δεῖ Πλάτωνι πείθεσθαι, τὸ δοκεῖν δίκαιον εἶναι μὴ ὄντα 21 .

20 Naldini 1990: 186 recuerda el valor proverbial del verso y, con sus dudas
sobre la posible fuente de Basilio, no parece aceptar una lectura directa. D’Ippolito
1984: 338 nos advierte también sobre la transgresión de la métrica y la modernización
ática, pero no hace sugerencias al respecto. Como hipótesis sugiero la posibilidad de
que con esta modernización trata voluntariamente de poner distancias con el valor
poético del verso (que está criticando), ya que tampoco las formas de esta palabra
con -ττ- son más abundantes en su prosa habitual que las formas con -σσ- sino todo
lo contrario. En Hom. 7.4 (In divites) donde tiene tal vez en su pensamiento el mismo
verso (cf. Naldini, l.c.), pero sin polemizar con él, utiliza la forma γλώσσῃ, más ajus-
tada al texto de Eurípides (Καὶ τῇ μὲν γλώσσῃ ἐξóμνυσαι, ὑπὸ δὲ τῆς χειρὸς διελέγχῃ
= “Y con la lengua juras, pero eres desenmascarado por la mano”). Obsérvese en
el texto de la homilía el cuidado de Basilio por marcar la oposición entre los dos
elementos con μέν…δέ, lo mismo que en el pasaje que estamos comentando. Jacks
1922: 28-29 llama nuestra atención igualmente sobre determinadas diferencias entre
la cita de Basilio y el verso de Eurípides, pero su apreciación (“It is interesting to
note that the wording of the two statements, though similar, is not quite the same,
ant that Basil by throwing it into indirect speech takes away the requirement of an
absolutely correct quotation which direct discourse would have implied”) es errónea,
ya que la cita se reproduce en estilo directo y las divergencias no son atribuibles a
un malinterpretado estilo indirecto
21 “pero ¿es que uno mismo en particular va a disentir de sí misno y no presentar
su vida ajustada a sus palabras? sino que dirá con Eurípides: «mi lengua ha jurado,
pero mi pensamiento no» ¿Es que va a perseguir la apariencia de bueno en lugar de
serlo? Sin embargo este es el último límite de la injusticia, si en algo debemos hacer
caso de Platón: parecer justo sin serlo”.

708
Por supuesto, tampoco en esta ocasión tiene pretensiones litera-
rias o filológicas, sino que sus objetivos son didácticos y los reviste
con la autoridad que le ofrece la preferencia de Platón y Plutarco
por la prosa frente a la poesía, ya que aquella se libera en favor de
la realidad de las trabas que la ficción impone a ésta. Desde este
punto de vista, el del fondo, Basilio no oculta una disconformidad
radical con Eurípides22, aunque tampoco aquí deja de sorprendernos
con su toque de erudito cuando reclama la autoridad de Platón que,
tanto para él como para los otros capadocios, siempre es la pauta
con que medir el valor de los textos literarios griegos.
En parecidos términos trata nuestro santo otra cita de Eurípides
(ahora anónima, pero identificada con el v. 84 del Reso) que leemos
en la misma obra (7.5):

Πόσου ἄξιον τῶν τοιούτων τι παραδειγμάτων εἰσελθεῖν τὴν μνήμην,


ἀνδρὸς ὑπὸ ὀργῆς ἤδη κατεχομένου; Τῇ τραγῳδίᾳ γὰρ οὐ πιστευτέον
«ἁπλῶς» λεγούσῃ «ἐπ’ ἐχθροὺς θυμὸς ὁπλίζει χέρα», ἀλλὰ μάλιστα μὲν
μηδὲ διανίστασθαι πρὸς θυμὸν τὸ παράπαν, εἰ δὲ μὴ ῥᾴδιον τοῦτο, ἀλλ’

22 Coincide Basilio, como era de esperar, con Justino, que proclama la lealtad a su
propio pensamiento de los mártires cuando proclaman ante los jueces su fe cristiana
(Apol. 39.3-4: …ἀλλ’, ὑπὲρ τοῦ μηδὲ ψεύδεσθαι μηδ’ ἐξαπατῆσαι τοὺς ἐξετάζοντας,
ἡδέως ὁμολογοῦντες τὸν Χριστὸν ἀποθνήσκομεν. 4 δυνατὸν γὰρ ἦν τὸ λεγόμενον «Ἡ
γλῶσσ’ ὀμώμοκεν, ἡ δὲ φρὴν ἀνώμοτος» ποιεῖν ἡμᾶς εἰς τοῦτο (“… sino que, por no
mentir ni engañar a los jueces, con placer morimos confesando la fe en Cristo. 4 Pues
podíamos hacer nosotros en esta situación el dicho de «la lengua ha jurado, pero no
el pensamiento»”); también con Gregorio Nacianceno en el poema en que reafirma
la coherencia exigible entre el juramento y las acciones que aparecen a la vista de
todos (Carmina, I2. 24, 263-269: {Α.} Ἡ γλῶσσ’ ὀμώμοχ’, ἡ δὲ φρὴν ἀνώμοτος, /πολλοὶ
λέγουσιν. /Ἅπαντα πρόσθεν, ἢ ὅρκος, σοφίζεται. /Μηδεὶς πλανάσθω μηδόλως. /Ὅρκος
μέν ἐστιν, ἡ δὲ διπλόη πόσον / Κακὸν πρόσεστι! /{Β.} Σκοπῶ. Τί δ’ ὅρκος; {Α.} Τῶν
δεδογμένων ὁ νοῦς (“{Α.} La lengua ha jurado, pero la mente sin jurar está, dicen
muchos. Cualquier cosa mejor que un juramento, se enseña. Nadie se equivoque en
absoluto. Hay un juramento, entonces la ambigüedad ¡cuánto mal añade! {Β.} Lo
tengo en cuenta. Pero ¿Qué es un juramento? {Α.} La mente de lo que está a la vista
de todos”); es el poeta de Capadocia el más fiel al texto euripídeo, del que se aparta
ligeramente Justino (aunque respeta el metro) y Máximo de Tiro que, como luego
Basilio, modifica γλῶσσα en γλῶττα y parece menos preocupado por la literalidad
de la cita que por su uso filosófico (Maxim. Tyr., Diss. 40.6: Ἡ γλῶττα ἐπώμοσεν, ἡ
δὲ φρὴν ἀνώμοτος).

709
ὥσπερ χαλινὸν αὐτῷ τὸν λογισμὸν ἐμβάλλοντας, μὴ ἐᾶν ἐκφέρεσθαι
περαιτέρω 23 .

En este caso el santo de Cesarea modifica la respuesta de Héctor


al corifeo, que pone en sus manos la única responsabilidad de acción.
El héroe trágico responde como era de esperar: ἁπλοῦς ἐπ’ ἐχθροῖς
μῦθος ὁπλίζειν χέρα (“es simple mi orden frente a los enemigos:
armar el brazo”); sin embargo Basilio adapta el contenido del ver-
so conscientemente, jugando con el parecido entre mythos/thymos,
ο por un lapsus24 de paronomasia asociado al contexto de la cita
(la cólera) y lo propone a los jóvenes como ejemplo de lo que tie-
ne que ser la actitud moral del cristiano ante la ira; un tema este
del control de la ira muy querido igualmente para Plutarco y que
él mismo afronta con detalle en su homilía Adversus iratos 5. En la
cita que comento nuestro autor es más respetuoso con la estructura
métrica del trímetro e incluso mantiene el poetismo khera frente a
la forma ática habitual kheira (de la que ofrece ejemplos en otros
pasajes); pero vuelve a jugar con el verso euripídeo para ajustarlo
a sus intenciones. La principal modificación es el cambio de mythos
en thymos. De las otras, la sustitución del dativo (ep’ekhthrois) por
el acusativo (ep’ekhthrous) puede deberse al uso más frecuente de
este en la prosa (que prefiere también epi tous polemious); el cambio
de hoplizein por hoplizei, adapta el infinitivo, que en la tragedia
desarrolla el contenido de mythos, al nuevo contexto, pues thymos,
convertido en sujeto, requiere la forma personal; y, por último, saca
de la cita literal el adjetivo haplous, atribuido por Héctor a mythos,
pero que tampoco tiene ya razón de ser con thymos; en cambio,

23 Tras poner ejemplos de personajes que refrenaron su cólera, dice: “¿En cuánto
vale la pena que la memoria introduzca alguno de semejantes ejemplos, cuando un
hombre ya está dominado por la cólera? Pues no hay que creer en la tragedia “simple-
mente” cuando dice que “la cólera arma el brazo contra los enemigos”, sino mejor no
dejarse arrastrar del todo hacia la cólera, y, si esto no es fácil, al menos, poniéndole
como freno la razón, no dejar que vaya más allá de lo debido”. La cita se inspira en
el verso 84 del Reso con adaptaciones que comentamos a continuación.
24 Posibilidad que sugiere también D’Ippolito 1983: 339.

710
transformado en adverbio y aplicado a pisteuein, da relevancia esti-
lística a la falta de credibilidad que hay que conceder a la tragedia
en este punto 25. Y, si en el ejemplo del Hipólito ya comentado con-
cluía su enseñanza sobre la fidelidad de la palabra al pensamiento
con la ayuda de Platón, en este pasaje vuelve a hacerlo con él y con
Plutarco, cuando concluye con una comparación (ἀλλ’ ὥσπερ χαλινὸν
αὐτῷ τὸν λογισμὸν ἐμβάλλοντας) tan querida para el Queronense 26.
Especial es, por último, la cita de Sófocles en Epist. 8.12 dirigida
a sus feligreses de Cesarea para justificar su retiro y defender la
Santísima Trinidad y el papel del Espíritu Santo frente a los arrianos
donde el verso trágico queda integrado en el contexto bíblico como
parte de las palabras de Salomón. El texto es el siguiente:

Τοῦτό τοι αὐτὸ καὶ ὁ σοφὸς παρεγγυᾷ Σολομῶν καὶ ποτὲ μὲν ἡμῖν
προφέρει τὸν ἀνεπαίσχυντον ἐργάτην τὸν μύρμηκα καὶ δι’ αὐτοῦ
τὴν πρακτικὴν ὁδὸν ἡμῖν ὑπογράφει, ποτὲ δὲ τὸ τῆς «σοφῆς μελίττης
κηρόπλαστον ὄργανον» καὶ δι’ αὐτῆς τὴν φυσικὴν θεωρίαν αἰνίττεται

25 Comparto con mi querido amigo D’Ippolito (1984: 339-340) que la presentación


anónima de la cita puede deberse a las dudas ya en la Antigüedad sobre la autenti-
cidad del Reso, pero discrepo en sus hipótesis en relación con la Passio Christi cuya
atribución a Gregorio Nacianceno, aunque ha encontrado opiniones a favor en el
último siglo, no parece sostenible en la actualidad (cf. Pollman 2017: 140-157). En
cuanto a su argumento más concluyente de que se trata de una obra de la época de
Basilio (en favor de la autoría de Gregorio), que Basilio coincide con la Passio (donde
se reproduce el mismo verso del Reso como v. 2273) en la lectura χέρα, mientras que
el texto de Eurípides lee χέρας, lectura de los manuscritos L y P, no es sostenible.
En efecto, ambos manuscritos son del s. XIV, mientras los del siglo XIII y resto de
la tradición muestran χέρα y la sustitución del singular por el plural es banal, por lo
que no cabe argüir el argumento de la mayor calidad a veces de la lectio recentior
para concluir que el texto de Eurípides era el de estos dos manuscritos (que, por otra
parte, también recoge una tradición más reciente de la Passio Christi).
26 Platón utiliza la imagen del caballo y la razón que le impone el freno en un
par de ocasiones; en Plutarco, en cambio, se hace habitual tanto en Vidas como en
Moralia: Aem. 27.6 (εὖ μάλα τὸ καύχημα καὶ τὴν ὕβριν ὥσπερ χαλινῷ τῷ λόγῳ κόπτοντι
κεκολασμένους), de Alex. Fort. Aut uirt. 328C (εὖ μάλα τὸ καύχημα καὶ τὴν ὕβριν
ὥσπερ χαλινῷ τῷ λόγῳ κόπτοντι κεκολασμένους), De Is. Et Os. 369C (ὥσπερ οἴαξιν ἤ
τισι πειθηνίοις χαλινοῖς λόγος).

711
ἐν ᾗ καὶ ὁ περὶ τῆς ἁγίας Τριάδος ἐγκέκραται λόγος, εἴπερ ἐκ καλλονῆς
κτισμάτων ἀναλόγως ὁ γενεσιουργὸς θεωρεῖται 27 .

El verso de Sófocles recogido casi literalmente por Basilio dice


así: ξουθῆς (‘dorada’) μελίσσης κηρόπλαστον ὄργανον, en el fragmento
conservado por citas de Clemente de Alejandría (con la lectura facilior
ξανθῆς, que podría estar condicionada por el verso de Simónides
citado en Plutarco 28), Porfirio y los escolios de Eurípides, que ex-
plican el sentido de ὄργανον y presentan el epíteto en masculino/
neutro ξουθοῦ.
Lo extraordinario de este pasaje es que, como he dicho antes,
el Capadocio pone en boca de Salomón a cuyos versículos de los
Proverbios 6.6 y 6.8a corresponden las referencias a la hormiga y
la abeja respectivamente, el verso de Sófocles, pero con dos sig-
nificativas variantes: de nuevo la forma neoática (μελίττης) frente
a la antigua μελίσσης del verso sofócleo (respetada en todos los
testimonios), aunque, contra lo que piensa D’Ippolito 29 , en este
caso Basilio documenta más en su obra la forma con –σσ-; y, lo más
importante, la sustitución del epíteto estético ξουθῆς/ξανθῆς por
σοφῆς, una modificación sin duda consciente, puesto que indica la
superioridad de la vida contemplativa frente a la práctica, represen-
tada por la hormiga. Tanto el adjetivo (sugerido ciertamente por el
contexto del texto bíblico que alude varias veces a la sabiduría de la
abeja), como la forma neoática pueden, sin embargo, ser un eco de
Plutarco o, tal vez mejor, de Eusebio, que utiliza la misma combina-

27 “Esto mismo también prescribe Salomón y a veces nos trae a colación a la hor-
miga, que no se avergüenza de su trabajo y por medio de ella nos traza el camino de
la vida práctica y otras «la obra modelada con cera de la sabia abeja» y por medio de
ella significa la contemplación natural en la que también está mezclada la doctrina
sobre la Santa Trinidad, si es que a partir de la belleza de sus criaturas se contempla,
por analogía, el hacedor de la existencia”. La distinción del verso mediante comillas
angulares en el texto y la traducción es mía, no de Basilio.
28 Cf. infra, nota 30. Clemente era un asiduo lector del Queronense.
29 D’Ippolito 1983: 339 (“A parte la atticizzazione a livello fonetico (-ττ- per -σσ-),
che vedremo consueta in Basilio…”, cuando en toda la obra de éste aparece la palabra
con -ττ- sólo dos veces, en Ad adulescentes, y 36 con -σσ-).

712
ción 30. Finalmente, hay ligeros recuerdos del verso de Sófocles en
el Comentario al Cantar de los Cantares de Gregorio de Nisa, quien
puede haberse inspirado en su propio hermano 31.

3. Teatro y pensamiento cristiano: mímesis y catarsis en Basilio

Si en estos pasajes Basilio aprovecha citas concretas de autores


dramáticos para su predicación cristiana, en otros textos donde el
teólogo juzga las representaciones del teatro es coherente con esa
crítica. Su concepción negativa de la tragedia, la comedia y tal vez
del drama satírico tiene que ver con la función catártica que le atri-
buyen las reflexiones estéticas desde la antigüedad y que Basilio
concede con mayor eficacia moral a otras actitudes ascéticas; pero
sobre todo con los comportamientos miméticos que el teatro suscita
en los espectadores. Esta mímesis, intepretada desde un punto de
vista moral 32 y no estético, favoreció desde Platón y con Plutarco
(autor de referencia siempre para los padres capadocios) la crítica de
estos géneros por parte de Basilio, debido a la mala ejemplaridad a

30 Del uso del epíteto aplicado a la abeja (y con la forma μελιττ-) Plutarco es
el primero en utilizarlo, en De am. Prol. 494A: ἀλλὰ τὴν <μὲν> μέλιτταν ἡμεῖς σοφὴν
καλοῦμεν καὶ νομίζομεν ‘ξανθὸν μέλι μηδομέναν’ κολακεύοντες τὸ ἡδὺ καὶ γαργαλίζον
ἡμᾶς τῆς γλυκύτητος…; es indicativo a este respecto que las dos únicas veces en que
Basilio documenta μελιττ-, además del pasaje que comentamos, están en Ad adules-
centes, un escrito del que está demostrada la huella del Queronense. Sin embargo, a
favor de Eusebio, está que utiliza el mismo sintagma citando a continuación el ver-
sículo de Proverbios (Gener. elem. introd. p. 2: ἣν καὶ χαριέντως ἄν τις τῷ τῆς σοφῆς
μελίττης ἀπεικάσειεν φυσικῷ σπουδάσματι, πρὸς ἣν ἀναπέμπων ἡμᾶς ὁ ἐν Παροιμίαις
ἱερὸς λόγος φησὶν…). También encontramos algún ejemplo en Luciano y en Anfiloquio,
con quien Basilio mantuvo correspondencia.
31 Greg. Nyss., GNO 6, p. 269. En este comentario al mismo versículo de Proverbios
Gregorio debe a Sófocles el verbo en la frase κηροπλαστεῖν ἑαυτῷ τὸ κήριον, sugeri-
do por κληρόπλαστον del trágico y tal vez la restitución de la forma con -σσ- en el
sintagma τῆς ἐκείνης σοφῆς μελίσσης; pero esto no es conclusivo, ya que μελισσ- ess
el tema habitual en los tres capadocios y tanto lo uno como lo otro pueden haberse
inspirado en la carta o en información oral de su hermano, por el que sentía especial
veneración.
32 Sobre la importancia de la mímesis desde esta perspectiva, cf. Webb 2008a:
208-209.

713
que inducen los ritmos musicales, las acciones y los cantos con que
la escena produce su catarsis por medio del placer.
Lo primero, la catarsis interpretada así, en este sentido moral, queda
claro en una interesante carta dirigida por el santo de Cesarea a su
mejor amigo, Gregorio Nacianceno cuando, en su retiro restaurador,
intentaba animarlo a seguir su vida monacal:

Ἡσυχία οὖν ἀρχὴ καθάρσεως τῇ ψυχῇ, μήτε γλώττης λαλούσης τὰ


τῶν ἀνθρώπων, μήτε ὀφθαλμῶν εὐχροίας σωμάτων καὶ συμμετρίας
περισκοπούντων, μήτε ἀκοῆς τὸν τόνον τῆς ψυχῆς ἐκλυούσης ἐν
ἀκροάμασι μελῶν πρὸς ἡδονὴν πεποιημένων, μήτε ἐν ῥήμασιν
εὐτραπέλων καὶ γελοιαστῶν ἀνθρώπων, ὃ μάλιστα λύειν τῆς ψυχῆς
τὸν τόνον πέφυκε 33 .

Con su afirmación Basilio nos deja percibir un preciso conocimiento


de la tradicional kathársis del teatro y de la música, liberadores de
las tensiones del alma; pero eso no significa aceptación; al santo tal
conocimiento le sirve como expediente para proclamar la superio-
ridad catártica que, frente a los efectos relajantes en el alma de los
placeres estéticos causados por los sentidos (especialmente de la vista
y del oído), tienen el silencio y la tranquilidad indispensables para
el intelecto en su aspiración a comprender a Dios. En su escala de
valor, por tanto, la catarsis procedente de los placeres sensuales,
aunque reconocida como tal, queda por debajo de la que propor-
ciona el recogimiento. Pues bien, entre aquellos placeres Basilio
incluye expresamente la contemplación de la belleza y simetría del
cuerpo (aspecto esencial para la pantomima), la música y el canto
(también presentes en esos espectáculos, donde un coro y un actor

33 Epist. 2.2: “La tranquilidad es un principio de purIficación para el alma,


puesto que ni la lengua está chismorreando con los asuntos de los hombres, ni los ojos
mirando por todas partes para observar la belleza y proporciones de los cuerpos, ni
el oído liberando la tensión del alma en audiciones de melodías creadas para placer,
ni en parlamentos de bufones y hombres ridículos, lo que sobre todo es natural que
libere la tensión del alma”.

714
son los elementos estructurales de la pantomima) y los recitados de
los actores; con respecto a estos es significativo que el pensador
cristiano olvida a los de la tragedia para centrarse en los cómicos (ἐν
ῥήμασιν εὐτραπέλων καὶ γελοιαστῶν ἀνθρώπων), una prueba tal vez
de la proyección de sus ideas, fundamentadas en los textos clásicos,
a la experiencias audiovisuales de las ciudades del siglo IV.
En cuanto a la mímesis, las deficiencias de ésta como consecuencia
pedagógica del teatro, encuentra su formulación más explícita de
nuevo en el tratado propedéutico que revisa desde la moral cristiana
los géneros literarios clásicos:

Οὐ τοίνυν <ἐν πᾶσιν> ἐπαινεσόμεθα τοὺς ποιητάς, οὐ


λοιδορουμένους, οὐ σκώπτοντας, οὐκ ἐρῶντας ἢ μεθύοντας
μιμουμένους, οὐχ ὅταν τραπέζῃ πληθούσῃ καὶ ᾠδαῖς ἀνειμέναις τὴν
εὐδαιμονίαν ὁρίζωνται. Πάντων δὲ ἥκιστα περὶ θεῶν τι διαλεγομένοις
προσέξομεν, καὶ μάλισθ’ ὅταν ὡς περὶ πολλῶν τε αὐτῶν διεξίωσι καὶ
τούτων οὐδ’ ὁμονοούντων. Ἀδελφὸς γὰρ δὴ παρ’ ἐκείνοις διαστασιάζει
πρὸς ἀδελφόν, καὶ γονεὺς πρὸς παῖδας, καὶ τούτοις αὖθις πρὸς τοὺς
τεκόντας πόλεμός ἐστιν ἀκήρυκτος. Μοιχείας δὲ θεῶν καὶ ἔρωτας καὶ
μίξεις ἀναφανδόν, καὶ ταύτας γε μάλιστα τοῦ κορυφαίου πάντων καὶ
ὑπάτου Διός, ὡς αὐτοὶ λέγουσιν 34, ἃ κἂν περὶ βοσκημάτων τις λέγων
ἐρυθριάσειε, τοῖς ἐπὶ σκηνῆς καταλείψομεν 35 .

34 La alusión a que los poetas llaman (ὡς αὐτοὶ λέγουσιν) a su dios principal ὑπάτου
Διός (4.6) está inspirada por las lecturas de Homero, pero quizá también de los trági-
cos (cf. A., Ag. 509, E., Rh. 456, precisamente ambos citados o aludidos en esta obra).
35 Ad adulesc. 4: “No elogiaremos, entonces, <en todo> a los poetas, no cuando
insultan, ni cuando se burlan, ni cuando representan (μιμουμένους) a personajes que
aman o se emborrachan, ni cada vez que ponen la felicidad en una mesa repleta o
en cantos lascivos. De estos prestaremos la más mínima atención a los que dicen algo
sobre sus dioses, en especial cuando aluden a que ellos mismos son muchos y estos no
bien avenidos. Pues en aquellos (poetas) el hermano está en contra de su hermano, el
padre contra sus hijos, y estos por su parte sostienen una guerra no declarada contra
los que los engendraron. En cuanto a los adulterios de los dioses, sus amores y actos
sexuales en público – y estos sobre todo del corifeo y más excelso de todos, Zeus, como
ellos mismos dicen-, conductas que cualquiera se sonrojaría incluso contándolas sobre
las bestias, se los dejaremos a los que los de la escena”.

715
Contra lo que pueda parecer, Basilio con este análisis de determi-
nados temas de la poesía, y en especial del teatro, no pone en tela
de juicio los valores estéticos de la lírica y el drama, sino aquellos
temas que pueden provocar una mímesis ajena a la moral cristiana.
Cuando dice que deja para la farándula de los teatros (4.6: τοῖς
ἐπισκηνῆς καταλείψομεν) a calumniadores, amantes, borrachos, y
simposiastas, o a hermanos que luchan contra hermanos e hijos que
se enfrentan a sus padres (probables alusiones a las tragedias de
la saga tebana), así como el politeísmo y los incestos de los dioses,
tan habituales en los dramas de su época, parece excluir de su ideal
pedagógico la comedia, el drama satírico y la tragedia por la nula
ejemplaridad para sus objetivos de esos temas; pero en realidad la
crítica, más que contra la lectura de los textos antiguos, se dirige
contra los espectáculos en que esos temas inmorales constituían el
filón temático habitual dell mimo y la pantomima 36. Es presumible
que otra de las razones para este ataque de los cristianos contra las
representaciones dramáticas de los primeros siglos fuera la burla a
que se sometía en ellos a los rituales cristianos, sus mártires y sus
preceptos más populares37. Pues bien, tal vez Basilio se hace eco

36 A este respecto son ilustrativas las homilías dedicadas a los espectáculos por
el obispo Jacobo de Serugh (c. 500 d.C.) de las que se conservan algunos versos en
siríaco en las que se queja del mensaje nada educativo de estas representaciones
(Moss 1935, introducción al texto y traducción; Hall 2008: 14 y 38-40). Los ejemplos
que el autor menciona, tomados del mito, coinciden con temas míticos y movimientos
obscenos de los géneros cómicos de la época a los que los autores cristianos desde
el siglo II echan en cara su inutilidad para la formación espiritual de los cristianos
y su exaltación de la risa y el ridículo, como simples diversiones que son, que impi-
den la reflexión seria del intelecto (cf. Eriau 1914: 2-3 y caps. 1, frivolidad, cap. 2,
concuspicencia, cap. 3, obscenidad y cap. 5, idolatría, que incluye las exhibiciones
indecorosas de los mitos). Tal vez en estos espectáculos piensa Basilio cuando, entre
las advertencias que hace al monje en su Epist. 22.1-2, incluye evitar la risa y no acep-
tar lo ridículo (Ὅτι οὐ δεῖ γελᾶν, οὐδὲ γελοιαστῶν ἀνέχεσθαι) y los gritos, figuras (el
término schéma también forma parte de la pantomima) y movimientos impropios de
la presencia divina. Gregorio Nacianceno es más explícito en su poema Ad Seleucum
vv. 78-79: (Μίσει θεάτρων, θηρίων, ἱπποδρόμων/ ἄσεμνον ᾠδήν, δύσεριν κακῶν θέαν)
en el que, además, hace una encendida crítica de los mimos y espectáculos que solo
invitan a la obscenidad y el placer (vv. 83-180). Para la actitud negativa de los autores
cristianos hacia estos géneros, cf. Beacham 1992: 138-153.
37 Cf. Greg. Nac., Or. 2.84. Sobre el tema véase Eriau 1914: 68-70.

716
ella cuando requiere humildad y prudencia al destinatario de otra
de sus cartas:

Κατῄσχυνας τὸ τῆς ἁγνείας καύχημα, ἐμωμήσω τῆς σωφροσύνης τὸ


ἐπάγγελμα, ἐγενόμεθα αἰχμαλώτων τραγῳδία, Ἰουδαίοις καὶ Ἕλλησι
δραματουργεῖται τὰ ἡμέτερα 38 .

En cualquier caso estos juicios negativos con los que Basilio se


alinea con la patrística anterior no implican una renuncia total al dra-
ma (naturalmente, al drama literario antiguo) como referencia erudita
(al modo de Plutarco) o como incluso lectura de la que aprovechar
sus reflexiones más serias. De hecho, cuando en Ad adulescentes
4.7 orienta su crítica, por las mismas razones que contra los poetas,
contra historiadores y rétores, indulta aquellas piezas literarias que
enaltecen la virtud y critican el vicio (Ἀλλ’ ἐκεῖνα αὐτῶν μᾶλλον
ἀποδεξόμεθα, ἐν οἷς ἀρετὴν ἐπῄνεσαν, ἢ πονηρίαν διέβαλον 39 ). Y
propone en favor de la lectura de los autores antiguos un criterio
de selección; con ese fin nos regala una bella imagen con las abejas
(4.8), que extraen de las flores sólo lo necesario y bueno para fa-
bricar la miel y dejan el resto: ἡμεῖς τε, ἢν σωφρονῶμεν, ὅσον οἰκεῖον
ἡμῖν καὶ συγγενὲς τῇ ἀληθείᾳ παρ’ αὐτῶν κομισάμενοι, ὑπερβησόμεθα
τὸ λειπόμενον40. Así que, si algo útil puede extraerse de los textos
antiguos (incluido el teatro) y ajustado a los criterios morales del
cristianismo, bien venido sea.

38 Bas., ep. 45.2: “Convertiste en una vergüenza el orgullo de nuestra pureza, te


burlaste de nuestro voto de castidad, nos convertimos en una tragedia (τραγῳδία) de
cautivos y nuestra religión es materia de representaciones dramáticas (δραματουργεῖται)
entre judíos y griegos”.
39 “Pero de sus obras aceptaremos más bien los pasajes donde elogiaron la virtud,
o criticaron la maldad”
40 “También nosotros, si somos sensatos, recogiendo de ellos cuanto nos es pro-
vechoso y tiene que ver con la verdad, pasaremos por encima de lo demás”.

717
Bibliografía

Barnes, T.D. (2010), “Christians and the theater”, in I. Gildenhard & M. Revermann
(eds.), Beyond the Fifth Century. Interactions with Greek Tragedy from the Fourth
Century BCE to the Middle Ages. Berlin-New York: Walter de Gruyter, 314-334.
Beacham, R. C. (1992), The Roman Theatre and its Audience. Cambridge, Mass.: Harvard
University Press.
Blázquez Martínez, J. M. (2001), “La Academia de Atenas como foco de formación
humanística para paganos y cristianos: los casos de Juliano, Basilio y Gregorio
Nacianceno”, Gerión 19: 595-628.
Daley, Br. E. (2006), Gregory of Nazianzus. London-New York: Routledge.
D’Ippolito, G. (1983), “Basilio di Cesarea e la poesia greca”, in AAVV, Basilio di Cesarea:
la sua età e il Basilianesimo in Sicilia. Messina: 309-379.
Elm, S. (2012), Sons of Hellenism, Fathers of the Church, Emperor Julian, Gregory of
Nazianzus, and the Vision of Rome. Berkeley, Los Angeles-London: UCP.
Eriau, J.-B. (2014), Pourquoi les Pères de l’Église ont condamné le théatre de leur temps.
Paris: Angers.
Hall, E. & Wyles, R. (eds.) (2008), New Directions in Ancient Pantomime. Oxford: O.U.P.
Hall, E. (2008), “Introduction: Pantomime, a Lost Chord of Ancient Culture”, in E. Hall
& R. Wyles (eds.), New Directions in Ancient Pantomime. Oxford: O.U.P., 1-40.
Jacks, L.V. (1922), St. Basil and Greek Literature. Patristic Studies, 1. Washington: The
Catholic Univ. Of America.
Ludlow, M. (2007), Gregory of Nyssa, Ancient and (Post)modern. Oxford: Oxford
University Press.
McLynn, N.B. (2018), “The Two Gregories”, in A. Marmodoro & N.B. McLynn (eds.),
Exploring Gregory of Nyssa: Philosophical, Theological, and Historical Studies.
Oxford: Oxford University Press, 29-48.
Moreschini, Cl. (2008), I Padri cappadoci: storia, letteratura, teologia. Roma: Città Nuova
Editrice.
Moss, C. (1935), “Jacob of Serugh’s Homilies on the Spectacles of the Theatre”, Museon
48: 87-112.
Naldini, M. (1990, 2ª ed.), Basilio di Cesarea. Discorso ai giovani. Firenze: Nardini
Editore.
Pelikan, J. (1993), Christianity and Classical Culture. The Metamorphosis of Natural
Theology in the Christian Encounter with Hellenism. New Haven-London: Yale
University Press.
Pollman, K. (2017), The Baptized Muse. Early Christian Poetry as Cultural Authority.
Oxford: University Press.
Puchner, W. & White, A.W. (2017), Greek Theater between Antiquity and Independence:
A History of Reinvention from the Third Century BC to 1830. Cambridge: University
Press.
Webb, R. (2008a), Demons and Dancers. Performance in Late Antiquity. Cambridge,
Mass.: Harvard University Press.
Webb, R. (2008b), “Basil of Caesarea and Greek Tragedy”, in L. Hardwoc & Chr. Stray
(eds.), A Companion to Classical Receptions. Willey: Blackwells, 62-71.

718
P a x i m at h i v m : t r aç a n d o o c a m i n h o
d e u m a t i p o l o g i a d e pã o n a t r a d i ç ã o
r o m a n o - m e d i t e r r â n i c a ta r d i a

P a x i m at h i v m : M a p p i n g A n a ly s i s o f B r e a d T y p e s
a s P e r t h e L at e R o m a n - M e d i t e r r a n e a n T r a d i t i o n

Paula Barata Dias


Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-4730-914X
pabadias@fl.uc.pt

Resumo: Partindo de uma tipologia de pão considerada hoje um produto


da cultura local da ilha de Creta tornado popular entre a diáspora
grega – o paximadi – procuramos, através da análise dos testemu-
nhos documentais gregos e latinos, reconstituir a história do contexto
cultural, económico e social da sua criação, da sua divulgação e
mobilidade pelo espaço mediterrânico da Antiguidade Tardia e do
mundo pós-romano.

Palavras-chave: pão, paximathium, biscoctus, dieta mediterrânica, dieta


militar romana, monaquismo

Abstract: Starting from a type of bread considered today as a local


product of the island of Crete turned popular among the Greek dias-
pora – the paximadi – we seek, through the linguistic and literary
analysis of Greek and Latin documentary testimonies, to recover the
History of the cultural, economic and social context of its creation,
its dissemination and mobility through the Mediterranean landscape
of Late Antiquity and the post-Roman world.

https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_31
Keywords: bread, paximathium, biscoctus, Mediterranean diet, roman
military diet, monasticism

I. Introdução

Um dos fenómenos que suscitou mais curiosidade neste excecional


ano de 2020 foi o de fazer pão em casa, recuperando velhas receitas
e tradições, ou indo em busca do exótico associado a culturas gas-
tronómicas distantes. Fosse como ajustamento a uma vida confinada;
fosse como ocupação de tempos livres, suspenso o ritmo habitual da
rua; fosse, o que nos parece a hipótese mais plausível, como resposta
espontânea de procura de conforto e de segurança no domar de um
gesto milenar da civilização, antigo, básico e essencial: produzir o
próprio pão reflete o desejo de segurança diante de incertezas ou
de crises, em que se retorna ao registo básico da sobrevivência. Que
não faltasse o pão, portanto!
Assim, num dos canais televisivos de culinária, uma cozinheira
nova iorquina de ascendência grega apresentava a receita de paxi-
madi (plural, paximadia), um pão de origem grega muito popular
na cozinha da diáspora, particularmente na Costa Leste dos Estados
Unidos e na Austrália, onde se concentra uma grande comunidade
helénica no Novo Mundo, mas também na Turquia, Chipre, Alexandria
e algumas cidades da costa norte africana, como Tunes, e Tripoli 1.
O nome destes pães soou-nos familiar, com a recordação de termos
encontrado os termos paximathium, paximathia; paxamadia “pãezi-
nhos”; “ração consignada de pão”; “pão quotidiano” entre os alimentos
possíveis dos monges de S. Frutuoso, no Noroeste Hispânico, séc.
VII, a que, em devido tempo, dedicámos algumas observações 2.

1 Existem versões abundantes de paximadia disponíveis na internet. Kochilas


1993: 50; Kremezi 1997: 208–211.
2 Dias 2001: 151, 155; Dias 2008, t. I: 465-519.

720
Porque a investigação é dinâmica, surge, por estímulos incomuns
(um programa de televisão dedicado à culinária grega da diáspora!),
a oportunidade de avançar um pouco mais no estudo deste produto
alimentar. O paximathium dos manuscritos visigóticos, que se encon-
tra também referido em textos disciplinares e regulares da tradição
monástica do Oeste Europeu (ilhas britânicas e Península Ibérica)
antes do séc. X, era por nós associado à especificidade do ambiente
monástico: um termo próprio da cultura monástica grega transliterado
para latim, mas sem continuidade, nem nas línguas românicas nem
na tradição religiosa ou monástica. Constatámos que não era assim,
e que algo une a referência distante ao paximathium produzido nas
montanhas do Bierzo (a Tebaida Hispânica) e a especialidade grega
acarinhada hoje como produto identitário de valor patrimonial.
Neste trabalho, propomos analisar o contexto histórico, sociocultu-
ral da origem deste alimento e proceder ao levantamento documental,
linguístico e literário, que permitem rastrear a presença, o uso e a
viagem desta forma particular de pão pela história e as culturas do
Mediterrâneo.
A interpretação destes dados necessitará da observação da realida-
de hoje, partindo do princípio de que a cultura alimentar observável
resulta de uma dupla mobilidade, simultaneamente diacrónica e
sincrónica: a transmissão intergeracional de aprendizagens, que pre-
serva e mantém um saber fazer ao longo dos tempos; a difusão de
práticas entre comunidades e grupos variados coexistentes entre si,
que aprendem reciprocamente modos de fazer uns do outros, desde
que estes preencham uma necessidade e um uso, ou seja, constituam
um ganho para a comunidade que acolhe uma nova prática.
Há, no entanto, que ter consciência de que estas dinâmicas podem
estar escassamente documentadas em termos formais, pois resultam de
um fluir mais espontâneo do que programado, mais ainda quando se
trata de uma prática alimentar associada a algum tipo de contingência
e de modéstia em termos de público alvo. Podem ser observadas e
caraterizadas, mas é difícil encontrar documentos explícitos que o
testemunhem. Por isso, considera-se relevante observar a realidade,

721
ou seja, o paximadi como ponto de chegada, pois só conhecendo-o
se pode procurar o caminho dos seus elos perdidos, até às práticas
alimentares do mundo antigo mediterrânico.

II. Análise

Com algumas variações locais, o paximadi é composto por fari-


nha de cevada, farinha de grão de bico, um pouco de farinha de
trigo integral, amassadas com água, mel, vinho tinto, azeite, sal e
fermento. A massa, uma vez moldada em rolo, é cozida no forno.
Depois de arrefecida, é cortada em fatias da grossura de um dedo e
estas regressam ao forno brando para desidratar, ou são colocados
ao sol durante muito tempo, resultando um biscoito seco que cabe
numa mão.
Este processo é tradicional na ilha de Creta, onde os paximadia
integram os Produtos de Denominação Geográfica protegida, selo
oficial reconhecido pela UE 3. Em Creta, eles podem ser moldados
com um pequeno bordo, de forma a segurar, ou suportar sobre si,
queijo, azeitonas, tomate, azeite, mel, ervas frescas, frutos. Em suma,
“condimentos”, ou “condutos” 4. Kremezi (1997: 208) dá-nos notícia
de viajantes do Ocidente europeu fazendo o seu grand tour pelas
ilhas gregas, que atestam o uso generalizado dos paximadia, feitos
de cevada, depois fatiados e novamente torrados em forno lento.
Todos comiam estes biscoitos, demolhados em água, a acompanhar
as refeições, pois raramente comiam carne. Coziam-nos três vezes
ao ano e conservavam-nos. Num lugar em que a madeira é um re-
curso escasso pela milenar desflorestação, a lenha tinha de vir de
outra ilha. Assim se reduzia o gasto e o custo de produzir o pão

3 The European food Masters. Taste the Autentik. Rusks, Cretan Barley rusks
http://www.agrocrete.com/efm/efm-products/rusk/ . acesso a 2 de Julho de 2020. PGI
Cretan rusks – “Paximadia”.
4 Dias 2008 2 : 35-42. (acerca da tradição mediterrânica de o pão constituir a
base para “condutos”). Soares 2014: 125-150.

722
que era a base da alimentação. A mesma autora cita Andrew Dalby,
que aponta o cozinheiro Paxamos (ver à frente) como estando na
base da tradição dos paximadia, nome que apresenta vários corres-
pondentes em uso no Mediterrâneo Oriental: no árabe, bashmat ou
baqsimat; em servo-croata peksimet; em romeno pesmet, veneziano
pasimata; turco beksemad 5 . O mesmo Autor (2003: 196) refere a
generalização do seu consumo logo no início do período bizantino,
com o imperador Justino II, nas suas campanhas na Ilíria, a levar os
paximadia no alforge. Kremezi acrescenta à informação de Dalby o
facto de os paximadia representarem um património gastronómico
vivo entre os habitantes das ilhas gregas, uma herança do consumo
massificado da cevada e da escassez de recursos que caraterizaram
endemicamente estes espaços insulares.
Como apontámos na introdução, para um investigador de Estudos
Clássicos familiarizado com o corpus de textos monásticos de Latim
Tardio, o nome de paximadi soou familiar. Havia sido devidamente
classificado, nos recônditos da pesquisa lexicológica do vocabulário
específico do quotidiano monástico, como termo em Latim Tardio e
Medieval de origem grega, integrado na última vaga da helenização
da língua latina ocorrida no contexto da expansão do cristianismo
e do monaquismo.
A partir do séc. IV d.C., a aceitabilidade do cristianismo no império
romano proporcionada pela Pax constantiniana facilitou a difusão
do monaquismo como forma particular de vida cristã. Tendo tido
as suas origens no império romano oriental (Egipto, Ásia Menor),
seduziu muitos cristãos latinófonos, que aproveitaram estes anos
para se deslocarem ao Oriente (os lugares santos, os lugares dos
primeiros mártires, os lugares da vida ascética). Este fenómeno pro-
porcionou uma mobilidade única de pessoas, de escritos, de ideias,
em que cristãos cultos se deslocavam para as comunidades monás-
ticas do Oriente e, produzindo relatos heroicos das maravilhas que
viam, contribuiram para múltiplos fenómenos, de graus diversos, de

5 Dalby 2003: 27; id. 1996: 197.

723
acomodação desta forma de viver o cristianismo no Ocidente Latino.
O Marselhês João Cassiano, o mais popular destes “correspondentes
dos monges orientais” nas Instituições Cenobíticas 4.14, mas tantos
outros de língua grega rapidamente traduzidos para latim testemunham
o facto de se estar a lidar com uma realidade nova, a ser adaptada
a uma nova cultura. Este grau primeiro de importação de um termo
para designar uma realidade nova está patente nas hesitações quanto
à categorização morfológica de transliteração do termo παξιμάδιον
(2ª declinação ou 3ª declinação?; neutro ou masculino?; grau normal
quando é um, diminutivo quando é plural) 6.
Algumas gerações depois, mas dentro do mesmo contexto cultural,
encontram-se sinais da estabilização do termo em latim, associado a
uma vontade de esclarecer pedagogicamente o seu sentido através
de perífrases (e.g. pane paxmati; quotidiana paximatia). Entra neste
nível a presença do termo nas regras monásticas latinas, um conjunto
vastíssimo de textos produzidos entre o séc. V e VIII, destinados a
prescrever as boas normas de vivência espiritual e prática de uma

6 TLL 10.2 col. 878. Cassiano Inst. Coen. 4.14; Conl. 2.11. Apresenta-se, sumaria-
mente, o contexto do uso do termo em Cassiano (360-435 d.C.), pelo valor seminal
deste autor na difusão da tradição monástica oriental no ocidente: em Inst. Coen.
4.14, o termo surge num segmento que condena a jactância que resulta de um monge
tomar consciência do seu grande valor por trabalhar mais para o mosteiro, o que o
leva a reclamar mais compensações materiais do que o igualmente acordado para
todos (aqui, presumir ter direito a mais do que os dois pães, que se obtêm com uns
tostões): “in nullo tamen inflatur, nec sibi de tantis operis sui quaestu ac sudore
blanditur; sed praeter duo paxamacia, quae tribus uix denariis ibidem distrahuntur,
nihil sibimet amplius unusquisque praesumit”. O contexto do termo em Conl. 2.11 é
precioso: Serapião, já idoso, conta um episódio da sua infância, em que estando sob
tutela do abade Teão, depois da refeição do meio do dia, é tentado a esconder no
regaço um pãozinho para, mais tarde, sem o ancião o ver, poder comê-lo “cum adhuc
essem puerulus, inquit, et cum abbate Theone commanerem, haec mihi fuerat inimici
impugnatione consuetudo ingesta, ut postquam refecissem hora nona cum sene, unum
paxamacium quotidie in sinu meo, latenter absconderem, quod sero, illo ignorante,
occulte edebam”. Também nas Vitae Patrum 5.4.25; 2.19. Vita Melaniae 38 (BHL 5885.
Commonitiones Patrum 1.5; Pascácio de Dume, Verba Patrum 1.3 (tradução latina de
um original grego com várias versões): Vitae Patrum 5.10.65 duos paximates; 93.11
tribus παχαμάδας (PG 65 col 276c); Vitae Patrum 6.3.2 tres paximates. Pseudo-Macário
(Dalby 2013: 54) Apophtegmata Patrum (PG 34.256). Lampe regista ainda παξαμάς
em Efrém Sírio I.228D; Paládio Historia Lausiaca 22; παξαμάτας (PG 65.276c); João
Mosco, Prado Espiritual.184 (CM 87.3056c).

724
comunidade monástica7. As ocorrências não são abundantes, mas são
significativas. Deixa-se por responder, mas devidamente assinalado,
o indício de estas sumárias referências estarem sobretudo associadas
a autores das regiões mais ocidentais e atlânticas da Europa: falamos
de Columbano, nas ilhas britânicas (séc. VI-VII) e de Frutuoso, na
Hispânia visigótica. Do mesmo modo, a deriva posterior do termo
(séc. X-XII) mantém-se dentro dos mesmos limites geográficos. A
interpretação destas pistas requereriam um espaço de que não dis-
pomos, e por isso deixamo-las por agora.
Consultados dicionários de Latim Medieval, do Latim paxama-
dium, com as variantes paxe-; paxi- + -madium; -matum se diz que
é a transliteração grega para o termo biscuit (i.e. biscoctus) e ainda
para panis succinericius, à letra “pão que se coze sob as cinzas 8.
Du Cange não regista a entrada paximadium, mas consultada a
entrada biscoctus, este aparece como sinónimo de panis nauticus.
Regista ainda a citação de Bernardo de Breydenbach “nec alia nobis
erat aqua nisi utribus corrupta, nec panes alii nisi paximates siue
biscoth” (à letra) não tínhamos nada para além de água apodrecida
nos odres e de pão, não tínhamos outros para além de paximades,
ou seja biscoitos” 9. De resto, é em Ducange que se consegue rastre-

7Clément 1978: s.v. pax(i)matium paxmatio, Columbano, Regula Coenobialis 16.9;


pane paxmati, Columbano Regula Monachorum 126.1; una paxmate, Columbano Regula
Monachorum; quotidiana paximatia, Regula Communis 9.36; Regula Monachorum 28.11.
8 Niermeyer, citando o Poenit. Gildas c.1 Schmitz I, p. 495 “panis paximatius et
permodicus si quando inueniebatur”; Blaise s.v. “Paximatium” c. paximatius panis, tipo
de biscoito. Howlett, s.v. “Paxamatium” (gr. παξαμᾶς, παξαμάδιον. -τιον) Paximatium
(Grego Medieval παξιμάδι, παξιμάτιν): “tosta (Ing. Rusk) biscoito. Latine panis succi-
nericius, paruus panis. Cit. Poen. Gildas c. I (Niermeyer, supra) “fornicator pane sine
mensura…die dominico, ceteris uero diebus paximati panis mensura utatur” Orderic
Vitalis IX 10, p. 551 (ob. C. 1143: Historia Ecclesiastica 1141 ed. le Provost, 5 vols.
(Paris 1838-1855). Osborne of Canterbury Glouc. Deriv. 482 “caeteris diebus paxmati
panis mensura et misso parum impinguato …utatur”. Gesner: p. 70 s.v. “Paxamacium
uel paximatium” – “Isidorus in Gloss. “est panis subcinericius, aliis est panis sex
unciarium (este Dicionário não regista a entrada Biscoctus). TLL 10.2, col 279 Gloss.
I p. 161 adn. “Panis qui una adpenditur libra, aegyptiaca lingua”.
9 Du Cange, t.2, 1180, Iter Hierosolymis p. 197. Statuta Massiliensis p. 475 “Illud
etiam adiungimus, quod nullus cargator nauis biscoctum faciat, uel fieri faciat, uel
patiatur, in domo sua, uel per suos, et si contra uenerit in X lib. reg. puniatur”. Epistula
Enescalli Prouincie anno 1326 “ipsi pro uiginti diebus se muniant de biscotto cum cotta”.

725
ar o emprego do biscoctus em contexto de viagem organizada, por
mar ou por terra.
Os dicionários consideram os paximades como um termo varian-
te para biscoitos, no seu sentido etimológico “cozidos duas vezes”
bis – coctus”. A etimologia descreve o processo de confeção, pois a
dupla cocção endurece-os e desidrata-os, o que lhes aumenta a du-
rabilidade. No entanto, a referência de Bernardo de Breydenbach é
ambígua: não sabemos se os marinheiros não tinham pão para além
de paximates ou biscoitos, ou se os marinheiros só dispunham de
paximates, ou seja (id est), de biscoitos”. Ou seja, podemos estar a
falar de produtos diferentes, que podem convergir no processo de
confeção, com dupla cozedura, mas de diferentes massas.
O termo “biscoito” é familiar em Português, hoje com uma se-
mântica afastada da etimologia e da prática gastronómica histórica
que justifica a coerência entre a designação e o produto original:
o “biscoito” é um bolo seco, normalmente doce e levando ovos,
(Biscoito de azeite, Biscoito de amêndoa, Biscoito de canela) mas
não obrigatoriamente (cf. o Biscoito do Louriçal não é doce) feito
de uma fornada, que apresenta durabilidade de algumas semanas a
meses, dependendo do clima e do acondicionamento. E, neste sentido,
se se perdeu no produto atual o modo de confeção, preservou-se o
objetivo: fazer um bolinho cuja secura o leve a durar no tempo. R.
Bluteau (1638-1734), no seu Vocabulário Portuguez e Latino 10 já
regista a polissemia no emprego do termo “biscouto”, mas inicia a
sua entrada a referir “pão nautico” como sinónimo de biscoito:

chamam-lhe assim do Latim Bis duas vezes e de coctus cozido, como


quem dissera, Pão duas vezes cozido. Para as pequenas viagens se
coze duas vezes o Biscouto e quatro vezes para as grandes. Panis
biscoctus se acha às vezes neste sentido em alguns Authores, mas
não Clássicos Latinos. Na Vida de S. Bernardo diz Guilherme, Sicut
solent, qui maria transeunt, panem ferre biscoctum. Melhor será

10 Bluteau 1712-1728, t. II: 127.

726
chamar-lhe Panis nauticus à imitação de Plínio.”11. Golodice. Fazem-
se Bicoutos por muitos modos. Há Biscoutos de massa, feitos com
farinha, manteiga de vaca, acúcar, ovos, &c do tamanho de um
dedo, ou argolinhas, &c, Biscoutos de nata, Biscoutos de la Reina,
&c Vid. Arte da Cozinha (remetendo para Domingos Rodrigues,
Arte de Cozinha, 1693”.

Na organização desta entrada, Bluteau, além de não referir o termo


“paximatium” (o que indicia que o termo já perdeu, no Ocidente
latino, a sua vitalidade) é inteiramente fiel ao seu mestre Plínio na
interpretação de “biscoctus”: também este refere “o pão velho ou nau-
tico” no contexto medicinal, inserido num livro da sua enciclopédia
dedicado à utilização dos alimentos como modo de tratar problemas
de saúde. Quando Plínio acede em descrever os tipos de pão (HN
18, 57), classifica-os segundo os alimentos (ab opsonis) que se lhe
juntam, dando o exemplo do panis ostrearius “pão com ostras” e
do “a deliciis” “pão com doces”; conforme o tempo de preparação,
conforme o sabor procurado e conforme o processo de cocção. E
acrescenta: “muitos amaciam-no com ovos, leite, ou mesmo manteiga,
sendo isto próprio das nações pacificadas que se dedicam aos diversos
tipos de padaria”12. Ou seja, num processo gradual de civilização e de
sofisticação associado a uma existência pacífica, as pessoas podem
enriquecer os pães de um modo que estes se aproximam do conceito
de “biscouto” já referido em Bluteau: uma gulodice. Traduzimos a
primeira categoria, “ab opsonis” como “pão com ostras” e “pão com
doces” para estabelecer a diferença: um produto é o pão a que se
junta, depois de cozido, um conduto, “opson”, outro produto é um
pão em que se misturam, no ato de amassar, outros produtos (ovos,

11 Guilherme de S. Thierry 1075-1148: 210 (?). Plínio o Velho HN 22.25 “vetus


aut nauticus panis tusus atque iterum coctus sistit alvum” O pão velho ou nautico
desfeito e novamente cozido para a diarreia”.
12 Começa por dizer que é vão descrever os vários tipos de pão: “Panis ipsius
varia genera persequi supervacuum videtur (…)…para depois detalhar os elementos
que “submetem”, ou “domesticam” o pão. “quidam ex ovis aut lacte subigunt, butyro
vero gentes etiam pacatae, ad operis pistorii genera transeunte cura.”

727
leite, manteiga, e, no tempo de Bluteau, açúcar) – não falamos do
mesmo se dissermos “pão com manteiga” e “pão de manteiga”, ou “pão
com ovos” e “pão de ovos”– cabendo estes últimos na categoria das
“golodices” de Bluteau e das padarias das gentes civilizadas de Plínio.
Saliente-se o facto de Plínio atribuir ao biscoctus um valor utilitá-
rio: medicinal ou “navegante”, presume-se um bem que se destina às
travessias marítimas, e por isso desidratado. Sabe-se que o biscoito é
o panis nauticus de Plínio na Época Moderna, a forma instrumental
mais saudável de consumir pão em viagem, isto é, sem que ele se
corrompa. Estamos, pois, longe da “golodice” de Bluteau.
O biscoito constituiu a provisão vital das viagens marítimas na
Época Moderna e seguintes, em Portugal e nas nações europeias de
grande tradição em viagens marítimas. Assunto bem documentado,
cabe precisar o processo de fabrico deste biscoito de viagem, assim
chamado porque “cozia duas vezes”, mas sempre em terra 13 . O
biscoito da época moderna, à maneira do paximadi de hoje, cozia
duas vezes, uma rápida e em fogo alto, outra lenta e em fogo lento,
para garantir a sua secagem, durabilidade e resistência. No mar,
bastaria molhá-lo em água ou vinho para ser ingerido 14. Vasconcelos
de Meneses refere uma ração diária de 760 gramas de biscoito, 360
gramas de carne (seca e salgada) e 1,5 l de vinho, água conforme as
possibilidades, para estes homens, acrescentados de porções menores
de outros alimentos, distribuídos em cadência semanal, ou superior,
armazenados ou recolhidos nas etapas da viagem (peixe seco, fru-
tos secos, azeite, frutos e peixe fresco, em ocasião de aguada ou de
pesca). O sustento era contudo, o biscoito, o vinho e a água. Razões
de eficácia explicavam esta dieta: a base da alimentação de uma co-
munidade de marinheiros confinada a pouco espaço em navios de

13 O Complexo Real do Vale de Zebro foi constituído, desde D. Afonso V, por


vinte e sete fornos para cozedura dos biscoitos, fornos cerâmicos para elaboração
dos moldes, moinhos de maré, armazéns de trigo e cais de embarque e, em Lisboa,
os Fornos da Porta da Cruz, funcionaram ininterruptamente sob administração real
até ao grande terramoto de 1755.
14 Silva 1992: 105-107. Meneses 1980: 205-211; 13.

728
madeira não podia depender de um processo de cocção a executar
em viagem, com a realização do fogo proporcional à tarefa. Além
do risco, seria incomportável aprovisionar combustível e farinha
necessárias (estas corrompiam-se facilmente em alto-mar). Mesmo a
água aprivisionada, apesar de complementada por aguadas pontuais,
degradava-se, particularmente em viagens de longo curso. Transportar
uma versão leve e durável da base alimentar do homem europeu
que era o biscoito era, portanto, uma boa forma de gerir recursos e
condicionantes. Não havia, entre o pessoal de apoio, o ofício de co-
zinheiro, mas havia despenseiros, o que ajuda a confirmar uma dieta
não exclusivamente, mas essencialmente fria, dispensando a cozinha
coletiva (Meneses: 106). Assim, cada marinheiro geria os alimentos
que recebia, havendo até lugar para o comércio ou troca dos bens.
Este “pão navegante” foi-se transformando de acordo com uma
maior mecanização e eficácia nutritiva, e servindo, na Época moder-
na e contemporânea, para a alimentação de exércitos em terra, na
Europa e no Novo Mundo, com uma forma muito semelhante à das
bolachas salgadas vulgarmente conhecidas por “crackers”, ou “bolacha
de água e sal”. Leves, duráveis, facilmente transportadas e calóricas,
constituídas por farinha de trigo, foram nos bordões dos soldados
das guerras contemporâneas, desde a Guerra Civil Americana até
hoje, integrando, em atualizações aproximadas que lhes preservam
a função, as rações de combate 15. O seu fabrico já não tem tanto

15 Tonnac 2010. Encontram-se preservados em museus (Biscoito da Guerra Civil


Americana, Museu Wentworth de Pensacola, 1862, Flórida Biscuit_de_mer#/media/
Fichier:PensacolaWentworthAug2008Hardtack.jpg; Museu Marítimo de Kronborg,
Dinamarca, 1852 Hardtack#/media/File:Oldest_ship_biscuit_Kronborg_DK_cropped.
jpg. Encontrámos a referência no site do Museu da Marinha Britânica (http://www.
royalnavalmuseum.org/info_sheet_ship_biscuit.htm) de que o Rei Inglês Ricardo I,
quando partiu na terceira Cruzada, (1189-92), levaria nos porões “bisckit of Muslin”
(biscoito de muçulmano). Infelizmente não conseguimos localizar melhor, porque é o
mais antigo documento que conhecemos (além dos paximadi de hoje) que regista o
facto de este biscoito não ser só feito de cereal, mas de conter uma mistura: cevada,
farinha de feijão e centeio. O centeio é um cereal de regiões temperadas-frias, do
centro e do leste europeu, embora fosse originário das regiões montanhosas e inte-
riores da atual Turquia. Daí se pensa ter viajado, na Época Romana, pelo corredor do
Danúbio, até às regiões setentrionais da Europa, sem que, no entanto, fosse muito
apreciado no Mediterrâneo romano, sendo misturado com cevada (Plínio HN 18.40).

729
que ver com uma dupla cozedura, em momentos distintos, mas com
uma cozedura única, lenta e a baixa temperatura, que as desidrata e
endurece. Ou seja, este biscoito conserva o nome de um processo de
fabrico que, de certo modo, foi ultrapassado, apresentando no seu
uso toda a legitimidade de continuação de uma tradição alimentar
adequada ao espaço militar. Vegécio destacara, no seu Tratado De
Re Militari, dedicado à teoria e práticas militares dos romanos, a
importância do bom fornecimento, constante e racionado – isto é,
devidamente medido em porções individuais, “per capita”. Um exército
não pode passar sem fornecimento diário de trigo, vinho, vinagre e
sal, a que se deve juntar a água no Verão (3,3) 16.
Há, no entanto, algumas pontas soltas: por um lado, o panis
militaris e o biscoctus são usados no específico meio militar. Por
outro lado, aparecem, na generalidade dos testemunhos, como feitos
de um cereal, o trigo. Ora, o paximadi, embora com semelhanças
no processo de confeção, usa outros produtos para além do cereal.
Para biscoctus, A. Dalby aponta “dipyros” como termo grego equi-
valente (adj., a concordar com artos, sitos, ou seja “duas vezes sujeito
ao fogo”) 17. O Greek English Lexicon remete-nos para um número
de ocorrências deste adjetivo muitíssimo modesta: Eubulo Cómico,
Alexandre Cómico e Alceu Cómico 18. Dalby aponta para o emprego
do adjetivo em Menandro, no sentido de “duplamente abrasado” em
contexto amoroso. Estes fragmentos foram recuperados a partir da

16 Soares 2014. Vegécio 3.3: desgasta mais frequentemente um exército a penú-


ria do que o combate, pois a fome é mais selvagem do que a guerra “Saepius enim
penuria quam pugna consumit exercitum, et ferro saeuior fames est” (…) por isso,
deve haver cuidado em distribuir rações iguais, com a devida conta para os que se
distinguem no grau e nas tarefas atribuídas “In expeditionibus arduis per capita
magis militum quam per dignitates ab antiquis praebebantur annonae”, de lenha e
forragem (para os animais), de água no verão e, por todo o ano trigo, vinho, vinagre
e sal “Frumenti uero et aceti uel uini nec non etiam salis omni tempore necessitas
declinanda”. As palavras de Vegécio indiciam, ao incluir a lenha nos bens sujeitos a
racionamento, ser responsabilidade de cada soldado a preparação das suas refeições.
Davies 1971: 122-142.
17 Dalby 2013: 53-54.
18 Cock 1976, t. II: Εὐβουλος ἐν Γανυμήδει διπύρους τε θερμούς. Οἱ δίπυροι δ’εἰσί
τινες ἄρτοι τρυφῶντες. Atheneu, Deipn., 3.110a.

730
sua inclusão, enquanto alusões, adições especializadas ou argumen-
tos de reforço para o saber dos cultos diletantes protagonistas dos
diálogos em Ateneu de Náucrates, Os Deipnosofistas.
Talvez as referências neles contidas, e o género literário em que
surgem (a Comédia, predisposta ao uso de termos e da linguagem
popular, o que todos percebem) sejam já testemunho da consolidação
de um adjetivo de sentido comum “duplamente passado pelo fogo”
para a realidade do pão. Mas o seu uso para classificar realidades
não alimentares manteve-se, por exemplo, em Marcial, que usa o
termo dypiros para referir uma figuração de Faetonte que alguém
gravou a fogo, portanto, “queimou-o duas vezes” 19.
São complexas as referências aos tipos de pão, com base nas refe-
rências literárias coligidas na riquíssima obra de Ateneu, e referimos
só algumas que nos possam suscitar comentários20: testemunha-se que
o comediógrafo Eubulo refere, na sua obra Ganimedes, o διπύρους
τε θερμούς. “O biscoito quente”. Já Alceu refere que os Dypiroi eram
uns “pães nutritivos” ἄρτοι τρυφῶντες. Amerias (3.81) alude aos
Xeropurites χηροπύριταν, como equivalentes aos autopuroi artoi.
Arriano, um dos intervenientes no diálogo (3.79), observa, com
relevância para a nossa discussão, que todas estas variedades, in-
clusivamente as que Arquéstrato (3.77) atribui aos melhores mestres

19 Marcial 4.47 Encaustus Phaethon tabula tibi pictus in hac est.quid tibi vis, δίπυρoν
qui Phaethonta facis? (Loeb 94: 296-297).
20 Atheneu. Deipn., 3.74, quanto aos cereais usados, referem-se, atribuídos a
Trifão de Alexandria, ο ζυμίτην, ἄζυμον, σεμιδαλίτην, χονδρίτην, συγκομιστόν – “pão
fermentado, pão sem fermento; Chondrita, feito de espelta; Sincomista, feito com
farinha integral, e por isso com efeitos mais laxativos. Ainda o pão de centeio, o pão
de τὸν ἐξ ὀλυρῶν, τὸν ἐκ τιφῶν, τὸν ἐκ μελινῶν. Recebem nomes quanto ao processo
de fabrico: os cozidos no forno ἰπνίτην; os mergulhados em vinho doce, feitos com
flor de farinha ἐσχαρίτας. Famosos são os do mercado de Atenas (agoraioi), mas os
pães ródios não ficam atrás em docura e macieza τοῖς μειλίγμασι καὶ τῇ μαλακότητι dos
Escaritas. O Taburita; o Acaineu, grande, consumido pelas mulheres que celebravam
as Tesmofórias e levava gordura; os Cribanitas, brancos, pequenos e quentes, a sair
do forno de kribanoi, ou klibanoi, (feitos no “klibanon” “forno”, portanto). Depois
dos Dypiroi, seguem-se os Lagana, os Apanthrakis. As crianças são aconselhadas
a comer o Tyronte, ἄρτον γάρ τις τυρῶντα “um pão acabado acabado de assar ao
fogo”. Ainda o pão “autopyros” “cada um assa o seu”, ou “que se assa a si próprio”
mencionado por Alexandre Cómico, λιπῶσι στεμφύλοις a que se parece acrescentar
azeite, depois de assado.

731
da panificação, (“os Fenícios e os Lídios, que são capazes de, uma
vez tomados ao serviço, apresentar um pão diferente para cada dia”
– Soares 2016: 40), pertencem ao “tempo de Saturno”, ou seja, ao pas-
sado. A cidade, agora, “está cheia de pão” (πλήρης γὰρ ἄρτων ἡ πόλις)
e isso leva a que já ninguém faça caso da diversidade mencionada21. É
portanto, dentro da “tradição contemporânea” ao tempo do diálogo,
o global séc. III a.C., que se insere a contribuição de Arquéstrato de
Gela em Ateneu, já traduzida em Português por Carmen Soares 22.
O epítome do sabor, qualidade e do bom gosto é um pão quentinho
e branco, fresco, portanto, de farinha bem peneirada, branca. A ce-
vada, desde que bem peneirada (limpa das impurezas da colheita e
da moagem) pode originar este pão de qualidade. Atenas destaca-se
como a cidade com os melhores mercados de pão.
Reconhecem-se propriedades relevantes no dipyros artos, no
autopyros artos e no xeropyrites artos para radicar nestes alguma pro-
ximidade com os biscocti romanos: são bem cozidos (ou duplamente
passados pelo calor?), são obra individual (e veja-se que a referência
aos autopyroi recorre a uma citação de Alexis suficientemente ambí-
gua τὸν δ’αὐτόπυρον ἄρτον ἀρτίως φαγῶν.” tendo acabado de comer
um bem feito pão autopyros” –“ tendo acabado de fazer e comer o

21 Trata-se de uma interessante observação acerca da mudança dos gostos a


acompanhar um processo de civilização, em que o padrão da quantidade e da indi-
ferenciação se sobrepõe ao da qualidade e da variação regional. Ontem como hoje,
uma sociedade global de bem-estar tende a desenvolver processos de homogeneiza-
ção alimentar.
22 Soares 2018. Arquéstrato, Iguarias do Mundo Grego frg. 5 “Os melhores e
mais finos de todos (limpos das impurezas da mais comum cevada) podem arranjar-
-se em Lesbos, na colina rodeada pelo mar da famosa Éreso – mais brancos que a
neve pura! Os deuses, se por ventura comem farinha de cevada, é aí que, para eles,
Hermes a vai comprar. Também a há razoável em Tebas das Sete Portas, em Tasos
e noutras cidades – mas assemelha-se a grainhas, quando comparada àquela! Não
tenhas qualquer dúvida a respeito disto. Compra um pão da Tessália, que tenha sido
bem enrolado à mão até formar uma bola, aquele a que os locais chamam krimnites
e outros pão kondrinos. Em segundo lugar o meu elogio vai para o filho da farinha
de trigo de Tégea, o pão escondido. No entanto, quando se trata de pão feito para
vender na praça, é a ilustre Atenas que oferece aos mortais o de melhor qualidade.
Mas em Éritras, de abundantes cachos, um pão branco, a sair do forno no momento
em que atingiu o ponto exato de cozedura, é esse que faz as delícias da refeição.”
(apud Ath. 3. 111f-12b).

732
pão?” – enquanto, neste excerto de Ateneu, abundam as referências
ao fabrico, compra e venda de pão como uma atividade de profis-
sionais, externalizada, portanto); são bem secos (xeropyrites?) e são
nutritivos (τρυφῶντες). Mas o que não se diz também é relevante:
não se menciona que são particularmente saborosos nem a que ma-
téria prima recorrem. Refere-se o azeite, que os pode acompanhar.
Não surpreende que, em Ateneu, não haja referências precisas a
um alimento correspondente ao biscoito de uso militar. Os convivas
deste banquete gozam o melhor do mundo antigo, um período de
paz e de abundância, em que a cidade está cheia de pão, e as pesso-
as podem escolher o melhor, elegendo o trigo, ou uma cevada bem
peneirada, o pão fofo de farinha refinada, acabado de sair de fornos
sempre quentes, enriquecido ou a acompanhar delicadezas como
queijo, azeite, especiarias. Ateneu terá como destinatário e horizonte
as elites urbanas, com recursos para cozinharem ou comprarem o
pão diário e fresco, acabado de sair do forno.
Na já referida entrada de Dalby para “Biscuit” encontra-se, depois
de dipyros, o equivalente em Grego paxamas e paximadion, latini-
zado para paximadium na Antiguidade Tardia, com a possibilidade
de ter, na designação do produto, o nome do criador 23: Paxamos
teria sido um mestre de cozinha também mencionado por Ateneu,
Columela, e S. Jerónimo 24. Nos finais do séc. IV, Paxamos está ao

23 Dalby 2013: 54. “It has been conjectured that the name, and so perhaps the
recipe, originated with the cookery author Paxamos”.
24 Paxamos, Ateneu 9.376d. O cozinheiro, de Náucrates, desafia os convivas a
adivinhar o modo de abate de um requintado porco apresentado à mesa depois de ter
sido por si recheado, mencionando que Ulpiano, presente no banquete, e Paxamos,
seu compatriota, saberiam bem o que são isicia, um tipo de conservas de carne. O
Gaditano Columela (séc. I d.C.) inclui Paxamus no número não obscuro de escritores
gregos e romanos “que se dedicaram a instruir o ofício de padeiro, de cozinheiro
e também do celeireiro (daquele que cuida da armazenagem)” (12.4.2) quibus stu-
dium fuit pistoris et coqui nec minus cellarii diligentiam suis praeceptis instruere).
Já S. Jerónimo acusa o monge Joviniano de voltar, como um cão ao seu vómito “Pois
quando Joviniano proclama orgulhoso que é monge, após a túnica baça, os pés des-
calços, o pão e água humildes, (retorna) à roupa alva, ao semblante besuntado, ao
vinho doce e às carnes elaboradas à moda de Apício e Paxamo” (Pl 23:col 280 1.40
Nam cum monachum esse se iactitet: et post sordidam tunicam, et nudos pedes et
cibarium panem et aquae potum ad candidas uestes et nitidam cutem ad mulsum et
elaboratas carnes ad iura Apicii et Paxami…”. Também o Dicionário de Grego Liddel

733
nível de Apício como protagonista do requinte e do luxo culinário
que tanto irritam o austero Jerónimo. Significativamente, Ateneu e
S. Jerónimo coincidem na menção às “carnes processadas” (isicia e
elaboratas carnes), enquanto Columela refere o studium pistoris, e
a diligentiam cellarii isto é, a instrução dos padeiros e o cuidado
do armazenamento. Processar carnes e armazenar alimentos podem
caber dentro de um ofício que tenha por objetivo cuidar da alimen-
tação em grande escala com condições de salubridade, pelo que as
artes atribuídas a Paxamos, a quem se atribui a origem do paxamadi,
ou paximadi, podem ter um fundo de verdade: ou seja, Paxamos ser
significativo, não por uma prática gastronómica, mas por estar na
origem de um processo de conservação.
Contudo, as maiores dificuldades em aceitar esta atribuição residem
no destinatário das artes de Paxamos e na cronologia relativa: sendo
primeiramente referido em Os Deipnosofistas (séc. III a.C.) nunca
é apresentado como autor de um tipo de pão como o paximadi, de
consumo entre um destinatário particular, o mundo militar, e também
não ocorrem descrições com as exatas caraterísticas correspondentes
ao paximadion contemporâneo. Seria natural que as referências elo-
giosas a Paxamos incluíssem a sua criação se, na altura da composição
de Os Deipnosofistas, este singular produto já estivesse consolidado
na cultura gastronómica. Este silêncio comporta ambiguidades, uma
vez que a obra de Ateneu terá por destinatário um público urbano,
culto e a gozar um mundo de abundância e de paz, algo saudosista
em relação à diversidade dos bens gastronómicos de outrora.
Séculos mais tarde, já no mundo bizantino, temos de Paxamos
mais informação: dedicado ao imperador bizantino Constantino
Porfirogénito, o manual anónimo de agricultura do séc. X conhecido
em latim como os Geoponica é composto por vinte livros que com-
pilam excertos de autores tidos como autoridades nos cuidados da
terra. Entre estes especialistas em agricultura, pecuária, produção e

Scott παχαμας (perispómeno) “So called from the baker Paxamos, (Galeno, 14.737)
diminutivo παξιμάδιον (Galeno 14.454).

734
conservação alimentar, que não apresentam obra direta conservada,
encontra-se Paxamos, com dezoito excertos. Percorrida a lista destas
atribuições contidas na edição de Dalby, é difícil encontrar a con-
tinuidade entre os testemunhos anteriores e o trabalho, ainda que
fragmentário, que aqui lhe é atribuído. Os seus interesses dispersam-
-se pela procura da água (2.4); pela prevenção dos infestantes e das
pragas nas culturas e nas colheitas (2.43 ervas daninhas; 13.4; 13.7
roedores; 13.10 formigas; 15.6 como colher mel sem ser picado pelas
abelhas; 15.10 como evitar ser mordido por vespas); vitivinicultura
(4.9 uvas perfumadas; 5.29 segunda poda; 7.3 em que altura do ano
normalmente os vinhos mudam); arboricultura (9.10 quando e como
escolher e apanhar as azeitonas); 10.34 como fazer de uma romãzeira
ácida uma romãzeira doce; 10.54 como secar figos; 10.62 como en-
xertar amendoeiras) e pecuária (14.17 criação de aves; 17.13; como
evitar que o gado coma ossos); 18.21 modo rápido de fazer queijo25.
Não temos sinais de, caso Paxamos tivesse escrito algo sobre ce-
reais, pão, e um tipo de pão, esta informação ter sido considerada
valiosa para o mundo bizantino a ponto de lhe ser atribuída uma
prática de panificação relevante para os exércitos, para as pessoas
comuns, para os monges. Mas os excertos integrados nos Geoponica
dão-nos uma imagem menos sofisticada de Paxamos, alguém que
está para além dos “molhos e das carnes processadas” e se dedica à
fase anterior, a de assegurar a produção e conservação de alimentos.
Aqui chegados, levantamos a possibilidade de a atribuição a
Paxamos da invenção do paximadi ser uma ficção, um modo, o
que é recorrente na história da gastronomia, de nobilitar, firmando
uma paternidade, uma prática alimentar consolidada mas de origem
desconhecida: “pão à maneira, ou em honra de Paxamos”, alguém a
quem se atribui o talento de preservar bens alimentares seria uma
possibilidade.

25 Dalby 2011: 19-35 (Geoponica). O livro II concentra a maior parte das infor-
mações sobre o cultivo de cereais e a panificação.

735
Mas que interesse tinham os monges orientais, semi-analfabetos
(embora quem deles desse testemunho fosse cultivado, particular-
mente na cultura cristã, mas não a ponto de lerem obras técnicas
de conservação alimentar) de dizer que tinham por ração diária “um
pãozinho feito à moda do refinado Paxamos”? São universos culturais
impenetráveis entre si, o da procura do melhor alimento para um
público específico e o do alimento como contingência, restringido
ao mais humilde para não sucumbir de fome. O termo paxamadi,
ou paximadi (esta forma com a vogal da sílaba breve medial tendo
sofrido o fenómeno fonético do itacismo comum no Grego tardio),
pode relacionar-se com o verbo πήγνυμι26, a partir do grau zero da
raiz, que se encontra, não só em nomes, como nas formas tardias
do verbo (πάξ* – adj. πάχνης “sólido”; πάγιος “rijo, firme”. Vb. tardio
πάξαιμι...). Deste modo, mais do que a homenagem a um especia-
lista de renome, o termo paximadi pode ter a ver com a feitura: um
aglomerado da farinha dos cereais disponíveis; da farinha de uma
leguminosa popular no Mediterrâneo oriental, particularmente no
Egipto: o grão de bico; de azeite, vinho, mel, que ajudavam à aglo-
meração de farinhas rústicas, com pouco, ou nenhum glúten.
Porquê, e para quê semelhante produto? Conhecemos a experi-
ência histórica da elaboração de pães com matérias primas que não
sejam cereais: resultam, em regra, da contingência 27.
Procurámos, por isso, encontrar referências que justificassem a
mistura de cereais com leguminosas. As Propriedades dos Alimentos,
livro de Galeno, médico grego originário de Pérgamo mas tendo vivido
na Sicília entre o séc. II e III da nossa Era, recentemente publicado
em Português por Nelson Ferreira 28, permite-nos o foco dietético,
também apontado por Bluteau, como atributo do Biscoito. Este pri-

26 (Lidell-Scott πήξω ou πάξω, ἔπηξα, πέπηκα) que significa I – fixar, prender; II –


construir, agregar; III (em alimentos) coalhar (o queijo), tornar sólido ou denso – cf.
τὸ πῆγμα “a massa”. Beekes, R. (2010) t.II: 1184: Dór. e Eol. *πάγ- ou *πάκ- “sólido”.
Ex. εὐπηγής εὐπαγής “bem construído”; συμπαγής “junto”; πηγμάτιον “coagulação”.
27 E.g. Pão de bolota, pão de castanha, pão de batata…em regra, estes pães re-
querem um pouco de farinha de cereal, para ligar a massa.
28 Ferreira 2020.

736
meiro livro concentra-se nos bens que constituem a base da cultura
alimentar do mundo antigo Mediterrâneo, os cereais e as legumino-
sas, suas propriedades e qualidades para gerar saúde. Procurando
identificar, no testemunho de um médico grego da Época Flaviana
romana, formas de validação de um pão que, além de misturado,
passe por dupla cozedura, os resultados são modestos. Galeno repe-
te, grosso modo, a escala de qualificação já identificada em Ateneu:
o melhor pão, e o mais saudável, mais fácil de digerir, é o de trigo
de boa qualidade, quase igualado pelo de cevada bem peneirada
(Ferreira 2020: 102-105; 142 Gal. 481.10.1-484.5). O autopyros e o
sunkomistos, pães de terceira e quarta categoria resultam de um pão
de um cereal com farelo e, no segundo, de mistura de vários cereais,
embora, como o tradutor reconhece (Ferreira 108), Galeno não prime
pela clareza. A uniformidade (a boa ligação da massa, diríamos hoje
a boa amassadura para permitir a decomposição do glúten, mais
abundante no trigo) e o ponto de cozedura são desejáveis (e por
isso o melhor pão é o o cozido no klibanos, a forma redonda com a
tampa cónica, que evita uma crosta muito dura, seguido do cozido
no forno e só depois aquele que se coze diretamente nas brasas).
Refere ainda que o pão ázimo é usado pelos atletas, e que os
gladiadores alimentam-se praticamente só dele (op. cit. 109 Gal.
6488.1-15), insistindo mais à frente (op. cit. 143) que “um pão que
não tenha sido bem cozido nem bem levedado é apropriado para os
atletas” assim como para os ceifeiros e cavadores. Nesta apresentação
das qualidades dos cereais e dos pães, não se fala nas especificidades
da dieta dos militares, ainda que, atendendo ao contexto romano que
rodeia Galeno, isso o fizesse prever. Quando avança para as legumino-
sas (op. cit.: 167 ὀσπιόν “bagos”), ele apresenta-os dizendo “Chamam
‘bagos’ aos grãos dos quais não se produz pão: feijões, ervilhas, grão
de bico, lentilhas, tremoços, arroz, ervilhaca, chícharo, agrião-roxo,
chícharo-preto, feijão-frade, feno-grego, ervilhaca-miúda… (524.5).
Estes dois tipos de sementes, os cereais e as leguminosas ocu-
pam, portanto, lugares estanques na categorização da transformação
alimentar: os primeiros, triturados, servem para fazer pão, bolos,

737
papas. Demolhados e cozidos produzem um alimento de muito difícil
digestão, mas há quem faça. Os segundos são cozidos e transforma-
dos em purés. O grão de bico (op. cit.: 172) é apreciado em sopas
pelas gentes do campo, não sendo, portanto um produto citadino.
O resultado “moído” (ἐρεγμός) do grão de bico é consumido, e pode
acompanhar queijo. Muito nutritivo, provoca pouco movimento intes-
tinal e menor flatulência do que as antes referidas lentilhas e favas,
é um fortificante da atividade sexual, sendo dado a cavalos repro-
dutores. No entanto, o aporte proteico no mundo romano dependia
mais das leguminosas do que da carne, como mostra Brown 29 .
Não está, pois, em Galeno, a justificação da mistura de cereais e de
leguminosas para a obtenção de um pão, mas encontram-se infor-
mações que ressaltam o grão de bico como uma leguminosa de bom
valor nutritivo. Além disso, teremos, mais uma vez, de valorizar o
que, não sendo referido, revela práticas que, conjugadas com outras
fontes, podem explicar o contexto e a origem desta mistura entre
leguminosas e cereais.

III. Conclusão

Os dados apresentados fazem-nos chegar a um caminho comple-


xo: o termo grego paximadion na língua grega encontra-se desde
o mundo romano tardio num universo cultural cristão ascético, não
urbano e pouco dado a refinamentos de cultura ou a caprichos
gastronómicos. De facto, o movimento monástico revela, nas suas
origens egípcias, sírias ou palestinianas, uma certa rejeição da cultura
dominante, dos gostos e dos modos de vida das elites, das cidades.
Trata-se também de um movimento cultural que anuncia a decadên-
cia das cidades que é caraterística do mundo pré-medieval: fugir

29 O tegumento do grão de bico é mais fino do que das outras leguminosas.


Normalmente, extrai-se em crú, depois da demolha, e que pratica sobretudo em doça-
ria. No geral, os cozinhados que envolvem grão de bico não implicam o descasque
do grão. Brown 2011: 1-24.

738
do mundo urbano, buscar o deserto, os lugares pouco habitados, o
espaço rural. Reside talvez aqui a justificação para não se encontrar
nos tratados antigos acerca da agricultura dos cereais, da variedade
dos pães e das suas potencialidades nutritivas, qualquer referência ao
paximadion.
E, de facto, o próprio rastrear do produto útil, prático, funcional e
de uso na alimentação dos exércitos ao serviço do império romano,
o panis nauticus ou o panis subcinericius (succinericius) acusou re-
sultados ténues quando as fontes são as clássicas. Dipyros, autopyros
e xeropyros, encontrados em Ateneu, não apresentam uma descrição
que possa, sem hesitação, fazê-los corresponder ao panis nauticus de
Plínio. O panis nauticus, produto de consumo militar, feito de modo
“biscoctus” é uma invenção romana destinada a prover, e optimizar
o consumo de cereais entre os seus populosos e profissionalizados
exércitos, que atravessaram cronologias e geografias diversas 30.
O biscoctus, o antepassado do contemporâneo termo “biscoito”,
e o termo paximadion, designam produtos diferentes, embora con-
virjam na técnica de obtenção. O termo grego dypiros, encontrado
nas fontes helenísticas como designação para um tipo de pão, não
surge associado a um uso militar, embora outros termos (autopyros,
xeropyrites) apresentem qualidades semelhantes ao biscoctus.
O paximadi tão apreciado pelas diásporas gregas só se encontra
quando se atinge a Antiguidade Tardia do império romano, mas,
mesmo aqui, só no mundo bizantino o termo grego paximathium
surge em contexto militar. Neste domínio, as fontes militares da
Antiguidade tardia romana fazem sobressair um outro termo como
o equivalente ao tardiamente descrito como biscoctus: o bucellum
“pequena boca”, ou seja, “dentada”, “bocado” 31.

30 Veja-se o complexo de moinhos de água em Barbegal, no sul de França,


destinado a moer trigo em grande escala, para produzir na proximidade grandes
quantidades de panis nauticus, para suplementação do exército., cf Greene 2000:
29-59; Leveau 1996: 137-53.
31 Dalby 2013: 54. Latin Bucellatum, Greek boukellaton, um produto exclusiva-
mente militar em forma de anel (uma rosquilha?) feito e farinha de trigo. Tornou-se
tão importante para o suscento dos militares que os soldados em exércitos privados

739
Coloca-se, por isso, a hipótese de a transmissão dos termos ao
longo de comunidades com duas línguas intercomunicantes entre si
e das práticas gastronómicas atidas ao tratamento do mais nobre dos
alimentos no espaço mediterrânico tenham acompanhado as próprias
dinâmicas sociais e culturais que transformaram o mundo antigo.
O pão das cidades em paz é branco e fofo. A panificação clássica
transmite o valor do trigo, do refinamento da farinha e da frescura
do pão (pão quente) como critérios de qualidade, de valor e de
saúde. Todas estas condições só são possíveis numa sociedade tec-
nologicamente avançada, a viver em conforto e abundância. Assim,
o pão branco e fresco resulta de uma exigente moagem do trigo,
sendo este um bem tão abundante que permite o desperdício de
grande parte dos nutrientes e do volume associados ao grão, e da
proximidade entre a cozedura e o consumo: manter fornos quentes
com pão sempre a sair é um luxo que só a densidade demográfica
de uma comunidade de consumidores sedentários e com recursos
pode garantir. Estes critérios não combinam com a alimentação res-
trita a um uso militar. Apesar disso, algumas vozes como Ateneu e
Galeno falam de produtos nutritivos que resultam do uso da farinha
pouco refinada, mais alimentícia, porque mais pesada. Mas Galeno
diz expressamente que as leguminosas (os bagos) não se usam para
fazer pão.
Em que contexto poderia o grão de bico, e a sua farinha (cujas
qualidades Galeno reforçou) ter passado a fazer parte de um tipo
de pão?
Relembrando as práticas da alimentação militar assinaladas por
Plínio e por Vegécio, os militares romanos recebiam individualmente
as suas rações alimentares: cereal, vinho, vinagre e sal frequente-
mente, água no Verão. O trabalho de moer o cereal e panificá-lo
(em brasas, em fornos portáteis) cabia a cada um, obtendo-se uma
fogaça nutritiva de cereal completo. Era mais seguro distribuir os

eram chamados de buccellarii “os comedores de boucella” (Paulino de Nola Ep. 7.3;
Aecio Medicina 3.701; Photius Livraria 80, citando Olimpiodoro).

740
cereais (trigo e cevada) em grão, mais fáceis de conservar. Em paz e
aquartelados, os militares romanos podem complementar esta dieta
básica com os bens locais, trocados ou comprados entre os habitan-
tes das regiões, ou fornecidos por redes de comerciantes romanos
devidamente estabelecidas. Nestas circunstâncias, a variedade e a
abundância alimentar seria pouco diferente em relação à alimentação
dos civis populares.
Na Antiguidade Tardia ocorrem, no entanto, mudanças severas
nesta civilização do pão amado que enchia as cidades. Por um lado,
ocorrem, a partir do reinado de Cómodo, períodos intermitentes de
escassez de trigo. Por outro, assiste-se à progressiva barbarização das
forças militares romanas: alistamentos de contingentes provinciais
de modo já descentralizado, com a população local a transportar os
seus hábitos e linguagem para os efetivos militares romanos; integra-
ção de auxiliares, grupos de bárbaros a custo familiarizados com o
modo de vida romano; a pressão demográfica destas populações de
estrato social modesto a fazer-se sentir numa importante instituição
como o exército romano. Se os romanos acolheram, de bom grado,
as contribuições das técnicas militares destes grupos (a cavalaria, o
uso do arco), porque não acolheriam as suas práticas alimentares,
mais adaptadas às novas condições? O exército romano tardio a partir
de meados do séc. III está sob pressão: a mobilidade é importante,
nas regiões fronteiriças, no Médio-Oriente e no Danúbio, a insta-
bilidade é grande. Teria este combatente romano tempo para moer
o seu grão e comer a sua dose diária? Seria sempre fácil assegurar
a estes exércitos a dose diária de trigo necessária para fazer andar
as tropas? Por um lado, estes exércitos tardios passam a depender
mais dos fornecimentos locais. Por outro lado, as práticas militares
modificam-se, numa época instável: comer e andar, comer a andar
podem estimular a que se desenvolva um produto que utiliza o cereal
disponível (cevada, se houver sorte trigo), a leguminosa acessível
no local, o vinho, o azeite, o mel. Assim se obtém uma ração de
combate, um alimento completo.

741
Pensamos que as condições convergem no sentido de uma técnica
utilizada na navegação romana, o panis militaris, ter sido adaptada,
como processo de confeção, aos “navios da terra”: militares em grande
mobilidade, com necessidade de aligeirar o trem da logística. Trigo
e cevada, ou cevada e trigo completos, adicionados à leguminosa
gão de bico, saborosa, nutritiva, fortificante, associada à virilidade,
com um consumo regular no Médio Oriente e no Egipto entre as
camadas populares (uma importante fonte de proteínas) tem as vir-
tudes de uma refeição completa 32. Junte-se a leveza, a durabilidade,
a facilidade de transporte, a sua apresentação em pequenas unidades,
a facilitarem a sua ingestão em movimento. É, pois, uma hipótese
que o paximadion tenha sido desenvolvido para servir contingentes
militares em terra (de elevadíssimo número no Oriente, onde os exér-
citos romanos se prolongaram para além do séc. V, e com sucesso,
nos romanos de Bizâncio) e, neste sentido, tenha sido uma variante
do biscoito como integrante da ração militar, este um produto cuja
realização histórica parece evidenciar a preferência pelo trigo. Alguns
contingentes do exército romano, provavelmente os localizados no
Oriente, teriam adotado um consumo local popular (grão de bico
e cevada), eventualmente até na sequência de ruturas no acesso ao
trigo. Como vimos, no séc. XI, o “biscoito dos Muçulmanos” com
que Ricardo I alimentou a sua cruzada usava centeio e farinha de
feijão, o que prova a validade da técnica, e a perceção de que a
sua génese se encontra no Oriente, e mesmo no Egipto. Não deixa
pois, de ser relevante mencionar o enorme peso do grão de bico na
dieta egípcia de hoje, e na margem sul e oriental do Mediterrâneo
como importante fonte de proteínas. Acresce um subtil indício: os
Geoponica mencionam o grão de bico como ração importante para

32 A associação, numa refeição, entre cereais integrais e leguminosas constitui,


ainda hoje a mais importante técnica gastronómica para satisfazer uma boa nutri-
ção. Entre os pobres da América do Sul, da Índia, do Extremo Oriente e da América
Central (respetivamente arroz com feijão; arroz com lentilhas; arroz ou massa de trigo
com soja; milho e feijão) é o principal motor de combate contra a desnutrição e é
elogiada como uma junção essencial para quem adota dietas que queiram prescindir
da proteína animal.

742
os cavalos. O exército romano tardio aumenta o uso da cavalaria. Em
épocas de instabilidade, a que ponto estaria um contingente militar
com dificuldades em ser abastecido de trigo de usar as provisões
destinadas aos animais?
Uma breve nota para explicar a presença do termo paximathium
nos meios monásticos. Em primeiro lugar, em relação ao ambiente
militar, convergem a geografia, a cronologia e o estrato sociológico:
Antiguidade Tardia Oriental, entre comunidades não urbanas e su-
jeitas a uma disciplina de racionamento alimentar. As comunidades
monásticas nascem no Oriente no séc. IV, entre grupos de cristãos
que rejeitam o conforto das cidades ou são eles próprios de origem
humilde, de cultura essencialmente local e rural. Em segundo lugar,
a mobilidade (a chamada xenitheia – a “desinstalação”; o “abando-
nar a casa” leva-os a ganhar os espaços desérticos, rurais, e, quando
não combatem solitários, sujeitos a privações várias, formam comu-
nidades de rígida disciplina, à maneira militar. Os mosteiros de S.
Pacómio são constituídos por milhares de homens organizados em
decanias, que trabalham, rezam e obedecem. As semelhanças, com
várias motivações que não cabem discutir aqui, entre a disciplina
cenobítica e a disciplina militar foram amplamente reconhecidas.
Parece-nos pois plausível que entre os monges egípcios e sírios
se tivesse também tornado popular uma técnica de transformação
alimentar que dispensa produtos animais, que usa produtos locais,
que economiza o uso do fogo, que se pode racionar e que preenche
as necessidades nutritivas, sem quebrar a obrigatória parcimónia da
alimentação monástica.

Bibliografia

Beekes, R. (2010), Etymological Dictionnary of Greek. Leiden: Brill, t.II: 1184.


Blaise, A. (1975), Lexicon Latinitatis Medii Aeui. Belgium: CC Brepols.
Bluteau, R. (1712-1728), Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, aechitectonico,
bellico botanico, basilico, comico, critico, chimico, dogmatico, dialectico, dendrologico,

743
ecclesiastico, etymologico, economico, florifero, forense, fructifero, autorizado com
exemplos dos melhores escritores portugueses, e latinos. Coimbra: Collegio das Artes
da Companhia de Jesus, t. II.
Brown, M. (2011), “Grain, Pulses and Olives: Na attempt toward a quantitative Approach
to Diet in Ancient Rome”, Journal of the Washington Academy of Sciences 97:
1-24.
Clément, J. M., O.S.B. (1978), Lexique des anciennes règles monastiques occidentales,
t. 2. Belgium: Instrumenta Patristica VIIB, Steenbrugis in Abbadia Sancti Pedr.
Cock, Th. (1976), Comicorum Atticorum Fragmenta. Utrecht: HES publishers, t. II.
Dalby, A. (2013), Food in the ancient world from A to Z. London: Roudledge.
Dalby, A. (2003), Flavours of Byzantium. London: Prospect Books.
Dalby, A. (1996), Sireen Feasts, A History of food and Gastronomy in Greece. London:
Roudledge.
Davies, R. (1971), “Roman Military Diet”, Brittania 2: 122-142.
Dias, P. B. (2002), Regula Monastica Communis ou Exhortatio ad Monachos? (séc. VII
explicit). Problemática. Tradução. Comentário. Coimbra: Colibri. Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra.
Dias, P. B. (2008 a), “As mesas comestíveis da Eneida. Alguns aspectos da culinária
romana” Boletim de Estudos Clássicos 49: 35-42.
Dias, P. B. (2008b), Os Textos Monásticos de Ambiente Frutuosiano (séc. VII), 2 vols.
Fundação Mariana Seixas. Coimbra: Fundação Mariana Seixas.
Domingues, F. C. e Guerreiro, I. (1988), A vida a bordo na carreira da Índia (séc. XVI).
Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical.
Du Cange, Ch. du Fresne (1883-1887), Glossarium ad Scriptores Mediae et Infimae
Latinitatis. Paris: Niort, L. Favre. (n.ed. 10 vols, 1937).
Ferreira, N. (2020), Galeno de Pérgamo. As faculdades dos alimentos. Livro I. Coimbra:
Imprensa da Universidade de Coimbra.
Gesner, Jo. M. (1749), Nouus Linguae Latinae Thesaurus, t.3. Classic Reprint (n.ed.
2018).
Greene K. (2000), “Technological Innovation and Economic Progress in the Ancient
World: M.I. Finley Re-Considered”, The Economic History Review, New Series, 53.1:
29-59 (39).
Guilherme de S. Thierry (1075-1148) Vita prima Sancti Bernardi Claraevallis Abbatis:
Liber primus. CCCM 89. Turnouht: Brepols.
Howlett, D. & Latham R. E. (2018) Dictionnary of Medieval Latin from British Sources,
fasc. IX. Oxford: British Academy, Oxford University.
Kochilas, Diane (1993), The Food and Wine of Greece: More Than 250 Classic and
Modern Dishes from the Mainland and Islands. New York: St. Martin’s Press.
Kremezi, Aglaia (1997), “Paximadia (Barley Biscuits): Food for Sailors, Travellers and
Poor Islanders”. In Harlan Walker (ed.). Food on the Move: Proceedings of the Oxford
Symposium on Food and Cookery, 1996. Proceedings of the Oxford Symposium on
Food and Cookery. Devon: Prospect Books: 208-211.
Lampe, G. W. H. (1961), A Patristic Greek Lexicon. Oxford: Oxford University Press.
Leveau, Ph. (1996), “The Barbegal water-mill in its environment: archaeology and the
economic and social history of antiquity”, Journal of Roman Archaeology 9: 137-53.

744
Meneses, José Vasconcelos e, (1980), Armadas Portuguesas. Alimentação e abastecimento.
Lisboa: Editorial Resistência.
Niermeyer, M. (1976), Mediae Latinitatis Lexicon Minus. Leiden: Brill.
Silva, José Manuel Azevedo e (1992), “Os navios que o descobriram o mundo e a vida
a bordo”, Descobrimentos, Expansão e identidade nacional, Revista de História e
Teoria das Ideias 14: 105-107.
Soares, C. (2018), Arquéstrato, Iguarias do Mundo Grego. Guia gastronómico do
Mediterrâneo Antigo. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
Soares, C. L. (2014), “Pão e vinho sobre a mesa: um “clássico” da alimentação portuguesa”,
in C. Soares, I. C. Macedo (eds.), Ensaios sobre o Património Alimentar Luso-
brasileiro. Coimbra-São Paulo: Imprensa da Universidade de Coimbra, Annablume,
125-150.
Thesaurus Linguae Latinae (1900-1944). Leipzig: Teubner.
Tonnac, J. F. de (dir.) (2010), Dictionnaire universel du pain. Coll. «Bouquins». Paris:
Éditions Robert Laffont.

745
(Página deixada propositadamente em branco)
Frederico Lourenço • Licenciado (1988) e doutorado (1999) pela

Universidade de Lisboa e exerce funções de professor associado na

Universidade de Coimbra desde 2009. Dedica-se ao ensino das línguas

clássicas e ao estudo das literaturas grega e latina. Publicou traduções

de vários autores clássicos (Homero, Eurípides, poetas gregos arcaicos

e helenísticos) e publicou vários volumes da tradução do Novo e do

Antigo Testamentos.

Susana Maria Duarte da Hora Marques Pereira • Professora auxiliar

do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade

de Coimbra, é membro do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos

da FLUC. Fez o seu doutoramento em 2006, na área de Literatura Grega,

tendo apresentado a dissertação ‘Sonhos e visões na tragédia grega’.

De entre o seu trabalho de investigação destaca-se a apresentação de

conferências e estudos, de natureza científica e pedagógica, nas áreas de

literatura grega, estudos de receção dos Clássicos, didática das línguas

clássicas, literatura novilatina em Portugal, geografia estraboniana.


Série Investigação

Imprensa da Universidade de Coimbra
Coimbra University Press
2022

Obra publicada com


Coordenação Científica

Você também pode gostar