Homenagem a M.F. Sousa e Silva
Homenagem a M.F. Sousa e Silva
Homenagem a M.F. Sousa e Silva
ESTUDOS
EM HONRA DE
MARIA DE FÁTIMA SILVA
Volume I
FREDERICO LOURENÇO
SUSANA MARQUES
(COORD.)
Este volume reúne estudos diversos nas áreas das Literaturas Grega e
Contemporânea.
I N V E S T I G A Ç Ã O
edição
Imprensa da Universidade de Coimbra
Email: imprensa@uc.pt
URL: http//www.uc.pt/imprensa_uc
Vendas online: http://livrariadaimprensa.uc.pt
coordenação editorial
Imprensa da Universidade de Coimbra
C onceção gráfica
Imprensa da Universidade de Coimbra
revisão
Daniela Pereira
I magem da C apa
Laura Adai - Unsplash
I nfografia
Margarida Albino
E xecução G ráfica
KDP
ISBN
978-989-26-2144-9
ISBN D igital
978-989-26-2145-6
DOI
https://doi.org/10.14195/978-989-26-2145-6
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para
a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projeto UIDB/00196/2020
Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra
FREDERICO LOURENÇO
SUSANA MARQUES
(COORD.)
(Página deixada propositadamente em branco)
Sumário
PREFÁCIO.................................................................................... 9
PUBLICAÇÕES DE MARIA DE FÁTIMA SOUSA E SILVA. . ................ 11
TABVLA GRATVLATORIA............................................................. 27
LITERATURA GREGA................................................................... 31
A paleta homérica – Ana Paula Pinto & João Carlos Onofre Pinto.....33
5
Ecos da Comédia Nova em Flávio Josefo (AJ 18.65-80) – Nuno
Simões Rodrigues.......................................................................... 259
O vinho como fonte de prazer e elixir de males, em três
epístolas de Álcifron – Adriano Milho Cordeiro.......................... 283
Evolução no tempo e no espaço: Plutarco e a ação de Alexandre
perante os bárbaros derrotados – Delfim F. Leão
& Ália Rodrigues. . .......................................................................... 299
Plutarco e Heródoto: entre biografia e história –
Joaquim Pinheiro........................................................................... 321
FILOSOFIA................................................................................ 481
CULTURA.................................................................................. 517
6
ARTE . . ....................................................................................... 557
7
(Página deixada propositadamente em branco)
P r e fác i o
Frederico Lourenço
Susana Marques Pereira
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_0
(Página deixada propositadamente em branco)
P u b l i c aç õ e s d e M a r i a d e F át i m a S o u s a
e S i l va
Publicações
Traduções
1978
Aristófanes. As mulheres que celebram as Tesmofórias. Coimbra: INIC.
1980
Aristófanes. Os Acarnenses. Coimbra: INIC.
11
1984
Aristófanes. A Paz. Coimbra: INIC.
1985
Aristófanes. Os Cavaleiros. Coimbra: INIC.
1988
Aristófanes. As Mulheres no Parlamento. Coimbra: INIC.
1989
Aristófanes. As aves. Lisboa: Edições 70.
Menandro. O Díscolo. Coimbra: INIC.
1994
Heródoto. Histórias. Livro I (em colaboração com M. H. Rocha Pereira e José Ribeiro
Ferreira). Lisboa: Edições 70.
1996
Cáriton. Quéreas e Calírroe. Lisboa: Cosmos.
1997
Heródoto. Histórias. Livro III (em colaboração com Carmen Soares). Lisboa: Edições 70.
1998
Eurípides. Ifigénia em Áulide, introd. e trad. de C. A. Pais de Almeida, com revisão
e notas de M. F. S. S. Coimbra: Gulbenkian / JNICT.
1999
Teofrasto. Os Caracteres. Lisboa: Relógio d’Água.
2000
Menandro. A Rapariga de Samos. Madrid: Ediciones Clásicas.
Aristófanes. Os cavaleiros. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
2001
Heródoto. Histórias. Livro IV (em colaboração com Cristina Abranches). Lisboa:
Edições 70.
2002
Aristófanes, Lisístrata. Madrid: Ediciones Clásicas.
2006
Aristóteles. História dos animais I. Lisboa: INCM.
Aristófanes. Comédias I. Lisboa: INCM.
2007
Menandro. Obra completa. Lisboa: INCM.
Heródoto. Histórias. Livro V (em colaboração com Cristina Abranches). Lisboa:
Edições 70.
2008
Aristóteles. História dos animais II. Lisboa: INCM.
2010
Aristóteles. Partes dos animais. Lisboa: INCM.
Aristófanes. Comédias II. Lisboa: INCM.
12
Aristófanes. Comédias II. Lisboa: INCM.
Eurípides. Tragédias II (coord.). Lisboa: INCM.
2014
Aristófanes. Rãs. Coimbra: IUC.
Teofrasto. Caracteres. Coimbra: IUC / Annablume.
2015
Aristófanes. O dinheiro. Coimbra: IUC.
2016
A História das plantas de Teofrasto (em colaboração com Jorge Paiva). Coimbra:
Gulbenkian / IUC.
2017
Plutarco. Epítome da Comparação de Aristófanes e Menandro (em colaboração com
Ana M. Pompeu, M. Aparecida Silva). Coimbra: IUC.
2018
Pseudo-Eurípides. Reso. Coimbra: IUC.
Eurípides. Tragédias III (coord.). Lisboa: INCM.
2019
Aristófanes. Comédias III. Lisboa: INCM.
Plutarco.Vidas Paralelas.Alexandre e César (em colaboração com J. L. Brandão). Coimbra:
IUC.
2020
Teofrasto. Causas das plantas (em colaboração com Jorge Paiva). Coimbra: IUC.
2021
Aristóteles. Geração dos Animais. Lisboa: INCM.
1977
“A Pnix aristofânica”, Humanitas 29-30: 121-143.
1979
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1985
“Elementos visuais e pictóricos na tragédia de Eurípides”, Humanitas 37-38: 9-86.
1986
“Políticos e mulheres na comédia grega”, Línguas e Literaturas 3: 127-151.
1987
Crítica do teatro na comédia antiga. Coimbra: INIC.
“Crítica à retórica na comédia de Aristófanes”, Humanitas 39-40: 43-104.
13
“Comédia grega antiga – um conceito de cómico”, Revista da Universidade de Aveiro
4-5: 89-111.
1991
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“Sacrifício voluntário. Teatralidade de um motivo euripidiano”, Biblos 67: 15-41.
1993
“Etéocles de Fenícias. Ecos de um sucesso”, Humanitas 45: 49-67.
1995
“Dario, o Grande-Rei, personagem em Histórias de Heródoto”, Máthesis 4: 63-88.
”A história de Polícrates de Samos. Mais um capítulo na biografia da humanidade”,
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”Ecos da tradição na viagem cómica de Dioniso em Rãs”, in As Línguas Clássicas –
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“Mulheres na Assembleia. Embrião de uma nova fase na evolução do género cómico”,
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1996
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“Philia e suas condicionantes na Hécuba de Eurípides”, in Eros e Philia na Cultura
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1997
Crítica do teatro na Comédia Antiga, 2 ed. Lisboa: Gulbenkian / JNICT.
“L’esclave dans la comédie d’Aristophane: potentialités d’un type populaire”, in
Aristophane: La langue, la scène, la cité. P. Thiercy, M. Menu (eds.). Bari, Levante
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“Cambises no Egipto. Crónica de um rei louco’, in Historiografía y Biografía. J. A.
Sánchez Marín, J. Lens Tuero, C. López Rodríguez (eds.). Madrid, Ediciones Clásicas:
1-14.
“O sério e o risível em Mulheres na Assembleia’, in Sociedad Política y Literatura:
Comédia Griega Antigua. A. López Eire (ed.). Salamanca, Logo: l73-181.
“No inferno com Luciano’, in Actas do II Colóquio Clássico. J. M. Torrão (ed.). Aveiro,
Universidade de Aveiro: 25-43.
1999
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2000
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“O desafio das diferenças étnicas em Heródoto. Uma questão de inteligência e de
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“O soldado fanfarrão. Potencial cómico de um modelo épico”, Florentia Iliberritana
12: 365-392.
“O desafio das diferenças étnicas em Heródoto. Uma questão de inteligência e de
saber.2”, Humanitas 53: 3-48.
14
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2004
“Ecos da Odisseia na Helena de Eurípides”, Máthesis 13: 227-242.
“Os Cavaleiros de Aristófanes. Um padrão de caricatura biográfica do político’, in O
retrato e a biografia como estratégia de teorização política. A. Pérez Jiménez, M. C.
Fialho (eds.). Coimbra, IUC: 23-35.
2005
“O motivo do sonho no romance de Cáriton”, in O romance antigo. Origens de um
género literário. F. Oliveira, P. Fedeli, D. Leão (eds.). Coimbra, IUC: 49-62.
“Ilíada, um terreno de glória”, Minerva (Valladolid) 18: 25-38.
“Representações de alteridade no teatro de Eurípides: o bárbaro e o seu mundo”, in
Génese e Consolidação da Ideia de Europa. I. M. H. Rocha Pereira, M. C. Fialho, M.
F. Silva (eds.). Coimbra, IUC: 187-237.
“O estrangeiro na Comédia Grega Antiga”, in Génese e Consolidação da Ideia de Europa.
I. M. H. Rocha Pereira, M. C. Fialho, M. F. Silva (eds.). Coimbra, IUC: 239-264.
“Sentido de permanência e o risco de esquecimento de Sófocles’, in Sófocles. XXV
Centenário do nascimento. A. Nascimento (ed.). Lisboa, Colibri: 15-22.
“Nomos e sexo na comédia de Aristófanes”, Humanitas 57: 39-55.
Ensaios sobre Eurípides. Lisboa: Cotovia.
Ésquilo, o primeiro dramaturgo europeu. Coimbra: IUC.
“Eurípides, Orestes. Crime, remorso e justiça”, in Vt par delicto sit poena: crime e justiça
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2006
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Pociña, B. Rabaza, M. F. Silva (eds.). Granada, Universidad de Granada: 13-43.
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Greco-Latino y su recepción en la tradición ocidental. F. De Martino, C. Morenilla
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“Ser ateniense, uma honra em risco? O testemunho de Acarnenses de Aristófanes”,
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“Bacantes de Eurípides. Símbolos em confronto”, Synthesis 14: 11-30.
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“Um deus em busca de identidade: Dioniso em Rãs”, Minerva 20: 53-64.
“’Aqui’ e ‘lá’: a construção de uma utopia em Aves”, Máthesis 16: 81-95.
“Helena, um exemplo de futilidade feminina e de exotismo bárbaro”, in O mito de
Helena de Tróia à actualidade. I. J. V. Bañuls, M. C. Fialho, A. López, F. De Martino,
C. Morenilla, A. Pociña, M. F. Silva (eds.). Coimbra, IUC: 89-103.
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“Epinício 11 de Baquílides a Alexidamo de Metaponto, luta de rapazes, Jogos Píticos”,
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“O retrato dramático do sistema judicial ateniense. Factores de bloqueio e de corrupção”,
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“Eneias, um herói da Ilíada”, Cadmo 18: 121-132.
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A. Ramos, M. C. Fialho, N. S. Rodrigues (eds.). Lisboa, CECH, CH: 279-291.
“A ágora de Atenas. Coração de uma urbe cosmopolita’, in Espaços e paisagens.
Antiguidade clássica e heranças contemporâneas. I. F. Oliveira, C. Teixeira, P. Barata
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“Sob o sol quente de Atenas”, in O sol Greco-romano. M. C. Fialho, J. Encarnação, J.
Alvar (eds.). Coimbra, IUC: 63-76.
“Conflicto de generaciones en la casa de los Atridas. La version de Esquilo de una vieja
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Levante Editori: 355-372.
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“Língua, identidade e convivência étnica nas Histórias de Heródoto”, Humanitas 61:
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“O difícil fluxo de gerações: mito e progresso na Cultura Grega”, Revista Portuguesa
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2010
“A fortuna de um autor chamado Menandro”, Revista Portuguesa de História do Livro
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M. Harris, D. Leão, P. J. Rhodes (eds.). London, Duckworth: 77-93.
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“O caso de Orestes: dois tribunais, duas sentenças”, in Retórica e Teatro. A palavra em
acção. B. F. Pereira (ed.). Porto, Universidade do Porto: 43-61.
“Helena en tiempo de guerra: símbolo de muerte e artifice de salvación”, in La
redefinición del role de la mujer por el escenario de la Guerra. F. De Martino, C.
Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 309-324.
“La Commedia Antica. Un canale de pubblicità nella polis”, in Antichità y pubblicità.
F. De Martino (ed.). Bari, Levante Editori: 261-306.
“Euripides y el espectáculo de la violência”, in Mito y Performance. De Grecia a la
Modernidad. A. M. González de Tobía (ed.). La Plata, Centro de Estudios Helénicos:
109-129.
“Heródoto e o Oriente: uma lição de história”, Phoînix 16.2: 41-59.
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in onore de Livio Rossetti. S. Giombini, F. Marcacci (eds.). Città del Castelo, Aguaplano:
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17
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“Una adaptación de la trophos en la novella de Caritón”, in La Mirada de las mujeres.
F. De Martino, C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 403-420.
“The foreigner living in Athens: a dramatic type character of the last quarter of the 5 th
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Clásicas: 201-218.
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“Comédia e comida: Aristófanes e o quotidiano alimentar ateniense”, in Práticas
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“O plágio: um mal na comédia grega do séc. V a. C.?”, in Mundus uult decipi. Estudios
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“El Télefo de Euripides. Motivos de un éxito’, in Textos fragmentarios del teatro griego
antiguo: problemas, estudios y nuevas perspectivas. A. Melero, M. Labiano, M.
Pellegrino (eds.). Lecce, Pensa Multimedia: 213-235.
“A rainha regente, um ‘tipo’ esquiliano”, in El logos femenino en el teatro. F. De Martino,
C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 303-322.
“Ésquilo, Suplicantes. Um exercício de mestria cénica”, Humanitas 64: 21-41.
“O futuro de Atenas em mãos femininas: Eurípides, Íon”, in Narrativas do poder feminino.
M. J. Lopes, A. P. Pinto, A. Melo, A. Gonçalves, J. A. Silva, M. Gonçalves (eds.). Braga,
Universidade Católica Portuguesa: 67-78.
“O Hades e a polis: o tema utópico da catábase”, Kleos (UFRJ) 16-17: 13-45.
“Reinventar a cidade nas Aves de Aristófanes”, Phoînix 18. 2 (UFRJ): 49-61.
“Registo e memória. Arriano e Plutarco sobre Alexandre”, in Mnemosyne kai sophía. J.
A. Ramos, N. S. Rodrigues (eds.). Coimbra, IUC: 127-148.
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“Madres de Guerra. Eurípides, Andrómaca y Troyanas”, in Palabras sabias de mujeres.
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“The rhetorical agon as dramatic condiment in the Epitrepontes of Menander”, in Retórica
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“Da democracia à politeia: a imagem de uma velha conquista europeia”, in Representações
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“Da violência à civilização. Hércules, o Super-homem da Antiguidade”, Humanitas 65:
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“Penteu de Bacantes: o fracasso do poder”, in A representação dos deuses e do sagrado
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18
2014
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“Osadías dramáticas en Eurípides. El Frigio en el Orestes”, in A la sombra de los héroes.
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“O pirata no romance grego: um modelo de marginalidade e vandalismo”, in Violência
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“Atenas. Perfil de uma cidade modelo”, Delphica 2: 5-17.
“Medo e esperança em Tucídides: dois factores dinâmicos de progresso e de história’,
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“Tipos citadinos nos Acarnenses de Aristófanes”, Phoînix 21. 1: 55-71.
“La pareja de esclavos: una apertura convencional en la comedia antigua”, in Teatro y
Sociedad en la Antiguedad Clásica. En el umbral de la obra. Personajes y situaciones
en el prólogo. F. De Martino, C. Morenilla (eds.). Bari, Levante Editori: 279-293.
“Koinonia e politeia: a função das mulheres na polis. Aproximações e diferenças entre
as Mulheres na Assembleia e a República” (em colaboração com M. G. Moraes
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esposas. V. H. Méndez Aguirre, M. Irigoyen Tronconis (eds.). Ciudad de México,
UNAM: 153-214.
“Plutarco, Vidas de Teseu e Rómulo: os alicerces de duas culturas paralelas”, in Grécia
e Roma no universo de Augusto. A. M. Pompeu, F. E. Sousa (eds.). Coimbra, IUC /
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“La locura de Orestes en el teatro de Eurípides”, in Agon: competencia y cooperación
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“Aristófanes e a arte de construir o cómico”, Kléos 19: 49-81.
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“A paixão na cena de Eurípides”, in Diferença sexual e desconstrução da subjectividade
em perspectiva. Z. Assis, M. G. Santos (eds.). Belo Horizonte, D’Plácido Editora:
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“Historias de amor y adulterio. Las Fedras y las Estenebeas de Eurípides”, Revista de
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“Deconstruir y reconstruir la ciudad: Politea y kratos en Aves de Aristófanes’, in XXIII
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25
(Página deixada propositadamente em branco)
T a b v l a G r at v l ato r i a
27
Cristina Abranches Guerreiro Jaime Rocha
Cristina Martins Javier Campos Daroca
Cristina Robalo Cordeiro Joana Brites
Cristina Santos Pinheiro Joana Nazaré de Castro Soares Mor-
Daniela Pereira gado
Delfim Ferreira Leão Joana Vieira Santos
Diogo Ferrer João Carlos Onofre Pinto
Embaixada da Grécia – Portugal João da Costa Domingues
Emilio Suárez de la Torre João Gouveia Monteiro
Fábio de Souza Lessa João Nunes Torrão
Fátima Velez de Castro João Nuno P. Corrêa-Cardoso
Félix Jácome João Paulo Cabral de Almeida Ave-
lãs Nunes
Fernanda Bernardo
Joaquim Pinheiro
Fernanda Delgado Cravidão
Jorge Alarcão
Fernanda Lapa
Jorge Deserto
Fernando Catroga
Jorge M. C. Almeida e Pinho
Fernando de Jesus Regateiro
Jorge Paiva
Fernando Matos Oliveira
José Amado Mendes
Fernando Taveira da Fonseca
José Augusto Bernardes
Fiona Macintosh
José Augusto Martins Ramos
Francesco de Martino
José Carlos Seabra Pereira
Francisco Oliveira
José Luís Brandão
Francisco Pato de Macedo
José Manuel Azevedo e Silva
Frederico Lourenço
José Maria Pedrosa Cardoso
Graça Capinha
José Oliveira Barata
Graça Rio-Torto
José Pedro Paiva
Graciela Zecchin de Fasano
José Pedro Serra
Heitor Emanuel de Castro Soares
Morgado José Ribeiro Ferreira
Helena Costa Toipa Judith Geiger
Hélia Correia Júlia Araújo Borges
Henrique Jales Ribeiro Leonor Santa Bárbara
Irene Vaquinhas Lorna Hardwick
Isabel A. Santos Lucía P. Romero Mariscal
Isabel Caldeira Luciano Lourenço
Isabel Ferreira da Mota Luciene Lages da Silva
Isabel Nobre Vargues Lúcio Cunha
Isabel Pereira Luís António Umbelino
Isaltina Martins Luís Miguel Henriques
Jacinta Maria Matos Luís Reis Torgal
28
Luísa Severo Buarque de Holanda Martinho Soares
Manuel José de Sousa Barbosa Miguel Carvalho Abrantes
Manuel Portela Milagros Quijada Sagredo
Margarida Miranda Miriam Carrillo Rodriguez
Maria Alegria Fernandes Marques Nair de Nazaré Castro Soares
Maria Antónia Lopes Nuno Simões Rodrigues
Maria António Hörster Olga Maria de Castro Soares
Maria Aparecida Ribeiro Osvaldo Manuel Silvestre
Maria Carmen de Frias e Gouveia Paula Barata Dias
Maria Cecília Miranda Coelho Paulo Estudante
Maria Clara Keating Paulo Farmhouse Alberto
Maria Cristina Pimentel Paulo Sérgio Margarido Ferreira
Maria das Graças Morais Augusto Pedro C. Carvalho
Maria de Fátima Gil Raquel Vilaça
Maria de Lurdes Póvoa F. Roxo Regina Anacleto
Mateus Renan Lipparotti
Maria do Rosário Morujão Rita Marnoto
Maria do Rosário Neto Mariano Rodrigo Furtado
Maria Fernanda Brasete Rogério Madeira
Maria Helena Coelho Rogério Sousa
Maria Helena Horta Simões Rómulo Pianacci
Maria Helena Santana Rosana Baptista dos Santos
Maria João de Castro Soares Rui Bebiano
Maria João Silveirinha Rui Cascão
Maria José Azevedo Santos Rui Tavares de Faria
Maria José Ferreira Lopes Rute Soares
Maria Luísa de Castro Soares Sandra Pereira Vinagre
Maria Mafalda Viana Sérgio Dias Branco
Maria Manuel Borges Sofia Frade
Maria Manuela Tavares Ribeiro Stéphanie Urdician
María Teresa Amado Rodríguez Stephen Harrison
Marília Pulquério Futre Pinheiro Stephen Wilson
Mário de Gouveia Susana Marques
Mário Magalhães Lopes da Silva Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa
Mário Montenegro Vasco Gil Mantas
Mário Pereira Soares Victor Gabriel de Castro Soares
Mário Santiago de Carvalho Morgado
Marta González González Virgínia Soares Pereira
Marta Teixeira Anacleto Zélia de Sampaio Ventura
Marta Várzeas
29
(Página deixada propositadamente em branco)
LITERATURA GREGA
(Página deixada propositadamente em branco)
A pa l e ta h o m é r i c a *1
Homer’s Palette
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_1
plasticidade poética da língua grega arcaica. Simultaneamente, pro-
curamos perceber como a notação homérica da cor se aproxima ou
diverge daquela que, na contemporaneidade, as línguas modernas
traduzem, e a investigação e a experimentação estética no âmbito das
artes visuais interpretam.
É, pois, através da análise circunstanciada dos campos lexicais e
semânticos associados às referências de cor, e da transfiguração
simbólica do real apreendido que eles operam, que nos propomos
tentar a revisitação do poeta – em diálogo com as grandes questões
filosóficas e científicas à volta da cor e da visão.
Palavras-chave: Homero, memória cultural, referências cromáticas,
ontologia da cor
34
1. O testemunho dos Poemas Homéricos
35
vários aglomerados urbanos sobrepostos, e dos fabulosos achados
do “Tesouro de Príamo”, do seio árido da terra foram trazidos à luz
por sucessivas campanhas de escavação vários edifícios, segmentos
de estruturas defensivas, largos fossos, portas colossais, torres e
canalizações, trechos reconhecíveis de traçados viários, armas, ade-
reços e os mais variados objetos domésticos, além de fragmentos de
cerâmicas e ossos. A “vasta” e “fértil” Troia, palco privilegiado onde
até os venturosos deuses sempiternos se comoveram com as trági-
cas misérias dos mortais, resgatada do pó dos tempos e despida de
ornatos poéticos, surge-nos agora à consciência como uma opulenta
metrópole anatólia da Idade do Bronze. Surpreendentemente, também,
do lado oposto do Egeu, quase cada um dos inúmeros topónimos
do Catálogo das Naus (Il. 2), durante séculos apreciados como um
exercício de encantamento poético, aparece agora confirmado, com
a exatidão próxima da de um recenseamento, nas tabuinhas de argila
de Linear B das mais recentes escavações de Tebas 1. Aprofundando,
sem a apagar, a aura do seu incomparável estatuto poético, constan-
temente enriquecida pelo caudal fértil de outras inspirações artísticas,
os Poemas Homéricos deixaram, pois, recentemente de ser apenas o
mais antigo testemunho literário e o mais sólido referente cultural
do Ocidente, para começarem a ser também aceites como iniludível
documento histórico.
36
decorrentes da vitória do espírito apolíneo sobre o dionisíaco2. Outros
filósofos – nomeadamente Edmund Husserl, Martin Heidegger, Martin
Buber3, Maurice Merleau-Ponty e Emmanuel Levinas – se lhe seguiram
na crítica àquilo a que Xavier Zubiri chamou a “tirania da vista” 4.
Estas críticas remetem-nos a um importante filão associado à
visão: a ideia da hierarquia dos sentidos, com profundas raízes na
história da filosofia. Desde muito cedo se estabeleceu um estatuto
superior à visão e ao ouvido, com claras vantagens para a primeira.
Um dos fragmentos de Heraclito diz que “os olhos são testemunhas
mais exatas que os ouvidos”: ỏφθαλμοὶ γὰρ τῶν ὤτων ἀκριβέστεροι
μάρτυρες (fragm. 101a Diels-Kranz). Por sua vez, Platão concede à
visão o estatuto de “a mais fina das sensações”: ὄψις γὰρ ἡμῖν ὀξυτάτη
τῶν διὰ τοῦ σώματος ἔρχεται αἰσθήσεων (Fedro, 250 D); diz também
que o olho é “o mais afim ao sol”: ᾿Αλλ’ ἡλιοειδέστατόν γε οἶμαι τῶν
περὶ τὰς αἰσθήσεις ὀργάνων (República, 508B 3-4). Muito significa-
tiva e influente é a posição de Aristóteles, no início da Metafísica
(980a21), ao defender a supremacia da visão sobre os demais sentidos:
“Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Sinal disso é o
37
prazer que nos proporcionam os nossos sentidos; pois, ainda que
não levemos em conta a sua utilidade, são estimados por si mesmos;
e, acima de todos os outros, o sentido da visão. Com efeito, não só
com o intento de agir, mas até quando não nos propomos fazer nada,
pode-se dizer que preferimos ver a tudo mais. O motivo disto é que,
entre todos os sentidos, é a visão que põe em evidência e nos leva
a conhecer maior número de diferenças entre as coisas” 5.
Na verdade, as mencionadas críticas favoreceram em simultâneo a
tomada de consciência de aspetos matriciais da nossa cultura ocidental,
moldada nos Poemas Homéricos.
Dado o seu muito recuado enquadramento histórico, Homero tende
a exprimir uma mais acurada sensibilidade e atenção ao universo
de referenciais concretos, comparativamente muito mais presentes e
detalhados no discurso do que as entidades abstratas 6. Na descrição
da realidade circundante, que o testemunho poético imortaliza – ora
nos cenários de batalha da Ilíada, onde a inquietação de Aquiles
prenuncia ruína generalizada, ora na Odisseia através da atribulada
politropia de Ulisses de regresso ao lar – preponderam claramente
sobre as restantes as notações relativas à visão, seguidas das da
audição e eventualmente do tato, a par das muito raras gustativas
ou olfativas.
A extraordinária riqueza lexical com que os Poemas Homéricos
exprimem e matizam o alcance sensitivo da visão parece traduzir a
inequívoca relevância que desde o início da cultura europeia a vista
assume sobre as restantes faculdades da perceção humana.
5 Πάντες ἄνθρωποι τοῦ εἰδέναι ὀρέγονται φύσει. Σημεῖον δ’ ἡ τῶν αἰσθήσεων ἀγάπησις·
καὶ γὰρ χωρὶς τῆς χρείας ἀγαπῶνται δι’ αὑτάς, καὶ μάλιστα τῶν ἄλλων ἡ διὰ τῶν ὀμμάτων.
Οὐ γὰρ μόνον ἵνα πράττωμεν ἀλλὰ καὶ μηθὲν μέλλοντες πράττειν τὸ ὁρᾶν αἱρούμεθα
ἀντὶ πάντων ὡς εἰπεῖν τῶν ἄλλων. Αἴτιον δ’ ὅτι μάλιστα ποιεῖ γνωρίζειν ἡμᾶς αὕτη τῶν
αἰσθήσεων καὶ πολλὰς δηλοῖ διαφοράς (Metafísica, 980a). Não obstante isto, nas obras
Sobre a Sensação e Sobre a Memória, Aristóteles reserva uma atenção bastante especial
ao sentido do tato, atribuindo-lhe um papel fundamental na vida sensitiva-vegetativa
(a vida de segundo grau). Na história da filosofia moderna encontramos também
algumas interessantes exceções na valorização dos outros sentidos que não a visão,
nomeadamente Étienne Bonnot de Condillac e Maine de Biran.
6 Para a formação arcaica do espírito grego, vd. Snell 1992: 20 sqq.
38
Na verdade, a par das centenas de ocorrências que em cada um
dos poemas se registam dos radicais do verbo ὁράω, nas suas múl-
tiplas variantes (regulares e supletivas 7, com e sem contração, com
diéctase, com e sem aumento, simples ou com prefixos)8, a traduzir
possivelmente a notação básica mais neutra do exercício do olhar que
se aplica a uma realidade externa ao sujeito (muitas vezes reforçada
na dicção poética pela fórmula recorrente, de pendor pleonástico,
“ver com os olhos” 9 ), o texto homérico oferece-nos um conjunto
alargado de outras formas verbais que conotam de algum modo esse
movimento expressivo de encontro entre o ser animado que percebe
e a realidade percebida 10.
Assim, proximamente ligada à família dos radicais supletivos do
verbo ὁράω11, surge a forma verbal ὄσσομαι: as ocorrências parecem
39
regularmente veicular a notação figurada de uma visão interior, que
se antecipa, por intuição ou pressentimento, aos factos 12.
Os contextos 13 em que ocorre a notação verbal ἀθρέω, de eti-
mologia obscura 14 , sugerem de alguma forma a estranheza ou
perplexidade com que o olhar capta um aspeto insólito da realidade.
A traduzir o deslumbramento causado por uma visão inesperada,
maravilhosa, e geralmente fomentada pela manifestação mais ou me-
nos secreta de uma divindade, ocorre a forma verbal θεάομαι (usada
na variante ática θηέομαι) 15, um provável denominativo formado do
radical que em Grego veicula a notação fundamental da divindade
(θεός, θεά).
12 Vd. Il. 1.105 (virando-lhe um olhar nefasto, Agamémnon dirige-se a Calcas); Il.
14.17 (o mar fica roxo na previsão dos ventos); Il. 24.172 (Íris, mensageira de Zeus,
garante a Príamo que não se aproxima para lhe prever o mal); Od. 1.115 (Telémaco
apercebe-se da presença de Atena enquanto está a ter uma visão interior do pai); Od.
2.152 (duas águias fitam terrivelmente a assembleia dos itacenses, prevendo a morte);
Od. 10.374 (Ulisses confessa a Circe que se atormenta interiormente, prevendo o mal);
Od. 18.154 (alertado pelo mendigo para os riscos de um revés, Anfínomo afasta-se
cabisbaixo, tomado de pressentimentos); Od. 20.81 (Penélope deseja ser arrebatada
para a morte a pensar em Ulisses).
13 E.g. Il. 10.11 (Agamémnon olha com espanto para a planície troiana), Il. 12.391
(Gláucon retira-se para que nenhum dos Aqueus perceba com surpresa que foi atin-
gido); Il. 14.334 (Hera manifesta a Zeus o receio de ser insolitamente observada em
liberdades amorosas com o esposo pelos restantes deuses); Od. 12.232 (Ulisses não
conseguiu surpreender-se com a imagem terrível de Cila); Od. 19.478 (Penélope nem
se surpreendeu, nem se apercebeu do tumulto próximo).
14 Possivelmente comportando a mesma raiz dos verbos ἐνθρέω (lançar-se) e
θρήσκω (prestar culto), vd. Chantraine, 1984: 28, s.v.
15 Il. 7.444 (os deuses observam com admiração os trabalhos dos Aqueus); Il.
10.524 (os Troianos espantam-se dos trabalhos dos que avançaram para as naus); Il.
15.682 (homens e mulheres maravilham-se com a perícia de um cavaleiro); Il. 22.370
(os Aqueus arrebatados contemplam Heitor); Il. 23.728 (as hostes contemplam as
movimentações da corrida); Il. 23.881 (o povo deslumbra-se com a prova de tiro); Od.
2.13 (o povo contempla a graciosidade de Telémaco, aumentada por Atena); Od. 5.74
(o prazer com que um mortal contemplaria Ogígia) e Od. 5.75 e 76 (Hermes contempla
extasiado as belezas de Ogígia); Od. 6.237 (Nausícaa deslumbra-se da graciosidade de
Ulisses, aumentada por Atena); Od. 7.133 e 134 (Ulisses deslumbra-se dos requintes
do palácio de Alcínoo); Od. 8.265 (Ulisses deslumbra-se com a perícia das danças
feaces); Od. 10.180 (os Itacenses deslumbram-se com o porte do veado); Od. 15.132
(Pisístrato deslumbra-se com as ofertas de hospitalidade de Menelau a Telémaco);
Od. 17.64 (os pretendentes contemplam a graciosidade de Telémaco, aumentada por
Atena); Od. 17.315 (Eumeu garante ao mendigo que se teria deslumbrado com o porte
anterior do cão de Ulisses); Od. 24.90 (a sombra de Agamémnon ilustra a de Aquiles
sobre a admiração que causaram aos Aqueus os seus Jogos fúnebres).
40
Na mesma esfera semântica, e com ela aparentadas etimologica-
mente, estão documentadas as variantes θαυμανέω16 e θαυμάζω, 17
derivações do tema nominal θαῦμα – que por sua vez revela par-
ticular produtividade em fórmulas recorrentes do campo da visão,
como θαῦμα ἰδέσθαι18, μέγα θαῦμα τὸδ’ ὀφθαλμοῖσιν ὁρῶμαι 19, ou
16 Um hapax, em Od. 8.108 (os Feaces avançam para o recinto público, para se
admirarem com os jogos).
17 Vd. Il. 2.320 (Ulisses relata como os prodígios de Zeus maravilham os mor-
tais); Il. 5.601 (Diomedes nota que Heitor suscita a admiração dos aqueus); Il. 10.12
(Agamémnon maravilha-se com a multiplicidade de fogueiras na planície troiana); Il.
13.11 (Poséidon olhava admirado para a batalha dos exércitos); Il. 18.467 (Hefesto
profetiza o espanto que há-de tocar os homens que vierem a contemplar as armas de
Aquiles); Il. 18.496 (na descrição do escudo, estão gravadas mulheres que assistem
maravilhadas às danças dos mancebos); Il. 24.394 (os Troianos pasmavam de ver Heitor
a combater); Il. 24.629 (Príamo encara maravilhado Aquiles, alto e belo); Il. 24.631
(Aquiles encara maravilhado o nobre aspeto e as palavras de Príamo); Od. 1.382 (os
pretendentes olham admirados para Telémaco); Od. 3.373 (Nestor olha maravilhado
para Atenas metamorfoseada, que se afasta); Od. 4.44 (Telémaco e Pisístrato olham
deslumbrados o palácio de Agamémnon); Od. 4.655 (Noémon confessa a admiração
por ter visto em Ítaca Mentor); Od. 7.43 (Ulisses maravilha-se com a paisagem de
Esquéria); Od. 7.145 (os Feaces observam com surpresa e deslumbramento o estra-
nho que abraça os joelhos de Arete); Od. 8.265 (Ulisses maravilha-se a assistir às
danças dos Feaces); Od. 8.459 (Nausícaa olha maravilhada para Ulisses); Od. 9.153
(os Itacenses maravilham-se das belezas da ilha dos Ciclopes); Od. 13.157 (os Feaces
irão contemplar com espanto a petrificação dos colegas); Od. 16.203 (Ulisses lembra
que não fica bem a Telémaco ficar tão surpreendido com a presença do pai); Od.
18.411 e Od. 20.269 (os pretendentes observam com admiração a desenvoltura de
Telémaco); Od. 19.229 (as gravações realistas da fíbula de Ulisses causam a quem as
vê grande admiração); Od. 24.370 (Telémaco surpreende-se com a aparência do pai).
18 Usada na Ilíada no contexto do deslumbramento dos homens perante objetos
heroicos de peculiar valor (vd. Il. 2.725, sobre as rodas de ouro do carro de Hera;
Il. 10.439, sobre as armas de ouro de Reso; Il. 18.83, sobre as armas de Aquiles,
que Heitor despiu na batalha a Pátroclo; Il. 18.377 sobre as trípodes com rodas que
Hefesto fabricara, para se automoverem no palácio divino), na Odisseia ela tende a
aparecer sobretudo no contexto da produção de têxteis delicados (Od. 6.306, sobre
a lã purpúrea que Alceste fia à luz do fogo doméstico; Od. 7.45, sobre as edificação
muralhada da cidade feace; Od. 8.366, sobre as vestes resplandecentes com que as
Graças cobrem a nudez de Afrodite; Od. 13.108 sobre as tramas de púrpura que as
náiades tecem no reduto das grutas de Fórcis, em Ítaca).
19 Vd. Il. 13.99 (Poséidon incita os Aqueus com a visão extraordinária do sucesso
dos Troianos); Il. 15.286 (Toante exprime a perplexidade de ver Heitor ferido regres-
sar ao combate); Il. 20.344 (Aquiles estranha o súbito desaparecimento de Eneias,
na neblina); Il. 21.54 (Aquiles exprime espanto por ver voltar ao combate o jovem
Licáon); Od. 19.36 (Telémaco manifesta estranheza pelo extraordinário brilho na
sombria sala de banquetes).
41
em expressões de tipo análogo, mas de menor representatividade
formular 20.
Já a etimologia do verbo σκέπτομαι, fundada num primitivo
nome-raiz21 com inúmeros compostos e derivados documentados na
morfologia grega, sugere a notação do olhar que se dirige intencio-
nalmente para, que observa cautelosamente, examina, esquadrinha
ou vela; essa mesma componente semântica, recorrendo em várias
formas verbais paralelas de outras línguas indo-europeias 22, surge
confirmada nas ocorrências contextuais homéricas 23.
A forma verbal δενδίλλω, de etimologia desconhecida (mas aparen-
temente construída como forma expressiva por reduplicação silábica)
ocorre em Homero como um hapax; tendo em conta o contexto 24,
as glosas posteriores de Hesíquio associam-na à intensidade com
que o olhar do sujeito prende o dos seus interlocutores, piscando
(emitindo sinais) ou incidindo fixamente.
O termo αὐγή, com que frequentemente se traduz em poesia o cla-
rão da luz do Sol, de etimologia obscura, fundou na morfologia grega
um vasto conjunto de derivados, sobretudo adjetivos; enquanto seu
denominativo ocorre igualmente como um hapax25 o verbo αὐγάζομαι,
que comporta a notação de discernir com clareza, ver claramente.
20 Como θαῦμα βροτοῖσιν (Od. 11.287), θαῦμα μ’ἔχει (Od. 10.326) e θαῦμα τέτυκτο
(Il. 18.549, Od. 9.190).
21 Possivelmente *σκεπ-yο-μαι, retirada, com um mecanismo de inversão das
consoantes oclusivas π e κ corrente em indo-europeu, de um primitivo nome-raiz,
não registado na língua grega, mas em sânscrito (spás), avéstico (spas), e latim
(haru-spex). A forma nominal masculina grega daqui derivada, σκοπός, por sua vez,
encontra possíveis paralelos no sânscrito spása, e em vários termos de uma família
de palavras germânica que se especializou na expressão da noção de “profecia”. Vd.
Chantraine 1984, s.v. σκέπτομαι.
22 Como o latim specio, o avéstico spasyeiti e o sânscrito pásyati, “ver”.
23 Vd. Il. 16.361 (Heitor, protegido pelo escudo, observava bem o voo das fle-
chas); Il. 17.652 (Ájax aconselha Menelau a verificar com cuidado se Antíloco ainda
está vivo no meio da confusão da batalha); Od. 12.247 (Ulisses vela pela nau e pelos
companheiros, perante os perigos de Cila).
24 Vd. Il. 9.180 (Nestor tenta persuadir os embaixadores, fitando seriamente cada
um nos olhos).
25 Cfr. Il. 23.458 (Idomeneu pergunta aos companheiros se é apenas ele o único
a vislumbrar ao longe os cavalos). Para a etimologia, Chantraine 1984: 137, s.v. αὐγή.
42
Em proximidade semântica documenta-se ainda o verbo arcaico
λεύσσω: etimologicamente26 derivado do adjetivo λευκός (que desde a
poesia homérica traduz a referência cromática do branco luminoso)27,
parece conotar uma certa qualidade luminosa do olhar 28, ou a inci-
siva atenção prestada a um pormenor pelos dinamismos da visão 29.
A forma verbal δέρκομαι, por sua vez, aparentada 30 com o nome
δράκων, serpente, oferece na morfologia grega raiz a um conjunto
lexical de particular expressividade, onde estão representadas vá-
rias formas adjetivas e verbais derivadas, a conotarem a vivacidade
ameaçadora e paralisante do olhar 31 ; ao seu radical de perfeito
δέδορκα se associa também o vocábulo expressivo, de valor adver-
bial, ὑπόδρα, com que a poesia homérica traduz formularmente, no
espaço fixo que antecede a cesura pentemímere 32, … δ’ἄρ’ ὑπόδρα
ἰδὼν33, a violência de um olhar que mede sobranceiro a fragilidade
43
de um interlocutor; todos os contextos épicos 34 do verbo valorizam
essa notação disfórica de violência, ruína e desgraça.
Já a forma παπταίνω, de etimologia desconhecida, correspondendo
com grande probabilidade a uma formação intensiva com redupli-
cação e sufixação (πα-πτ-αίνω) 35, denota por sua vez regularmente
a ansiedade colocada no olhar que procura, movendo-se inseguro
em várias direções 36.
E o elenco das formas poderia exponencialmente ampliar-se, se
considerássemos como nos Poemas Homéricos ocorrem ainda vários
34 Cfr. Il. 1.88 (Aquiles garante proteção a Calcas, enquanto contemplar a luz sobre
a terra); Il. 3.342 (Alexandre e Menelau confrontam-se, observando-se terrivelmente);
Il. 11.37 (a Górgona de aspeto terrível olha fixa e terrivelmente); Il. 13.86 (a tristeza
toma o coração dos Troianos que contemplam esgotados o combate); Il. 14.141 (o
coração de Aquiles exulta ao contemplar a desgraça); Il. 17.675 (fala-se do olhar
da águia predadora, a que nada escapa); Il. 22.95 (fala-se da serpente que fita com
olhar medonho); Il. 23.815 (fala-se de Diomedes e Ájax, que avançam, com olhares
terríveis, ávidos de guerra); Od. 5.84 e Od. 5.158 (fala-se de Ulisses, que fita o mar);
Od. 10.197 (Ulisses narra aos companheiros o que viu com os olhos); Od. 16.439
(Eurímaco garante a Telémaco proteção enquanto contemplar a luz sobre a terra);
Od. 19.446 (fala-se do javali que lança fogo do olhar). Além destes, ocorrem ainda
variantes derivadas como ποτιδέρκομαι, (Il. 16.10 e Od. 17.518).
35 Chantraine 1984: 856, s.v. παπταίνω.
36 Cfr. Il. 4.200 (o arauto obedece a Agamémnon e vai procurar entre os Aqueus
Macáon); Il. 4.497 (Ulisses arremessa a lança, olhando em várias direções); Il. 8.269
(Teucro, protegido pelo escudo de Ájax, lança a sua seta, depois de olhar em várias
direções); Il. 11.546 (Ájax perturba-se na refrega, olhando em todas as direções); Il.
12.333 (Menesteu encurralado olhando em todas as direções); Il. 13.551 (Antíloco
desarma o adversário morto, olhando em todas as direções); Il. 13.649 (Harpálion
retira-se frustrado, olhando em todas as direções); Il. 14.507 (todos os Troianos temem
a morte, e olham em todas as direções); Il. 15.574 (Antíloco arremete, olhando em
todas as direções); Il. 16.283 (convencidos da presença de Aquiles em combate, todos
os Troianos temerosos olham em todas as direções); Il. 17.84 (Heitor olha sombrio e
inquieto para as falanges dos exércitos); Il. 17.115 (Menelau olha em todas as dire-
ções à procura de Ájax); Il. 17.604 (Heitor retrocede, olhando ansioso); Il. 17.674
(Menelau avança, olhando em todas as direções, como a águia); Il. 22.463 (Andrómaca
corre a procurar ansiosamente com o olhar Heitor, arrastado na planície); Il. 23.464
(Idomeneu antecipa os resultados da corrida, olhando a pista em todas as direções);
Il. 23.690 (Euríalo que olhava em todas as direções é atingido por um golpe de Epeu);
Od. 11.608 (no Hades, Héracles olha terrivelmente em todas as direções, pronto para
atirar); Od. 12.233 (Ulisses afadiga os olhos a procurar Cila); Od. 19.552 (olhando em
todas as direções, Penélope verifica que os gansos permanecem vivos); Od. 22.24 (os
pretendentes procuram aflitos pelas paredes as armas); Od. 22.43 (os pretendentes
procuram aflitos forma de escapar à morte); Od. 22.380 (Médon e Fémio retiram-se
para o pátio, olhando em todas as direções); Od. 22.381 (Ulisses procura por todo o
lado vestígios de mais pretendentes); Od. 24.179 (Anfimedonte reconta a Agamémnon
a chacina, e como Ulisses atingiu Antínoo, depois de olhar em todas as direções).
44
outros passos onde verbos sensitivos que aprendemos a interpretar
como de cariz mais abstratizante – como ἀίω37, αἰσθάνομαι, γιγνώσκω,
εὑρίσκω, νοέω, φαίνω ou φράζω – podem de algum modo sugerir,
sobretudo a partir das suas variantes perfectivas, uma perceção da
realidade mentalmente processada por intermédio da visão. Mesmo
sem explorar à exaustão a análise dos campos lexicais dos verbos
que denotam o exercício da vista, e o seu cotejo com aqueles que
traduzem as restantes apreensões sensoriais, incomparavelmente
menos abundantes, podemos concluir que a mundividência arcaica
dos Poemas Homéricos atesta claramente uma fase de relevância da
visão sobre os restantes sentidos.
A excecional variedade das notações visuais, associadas muitas vezes,
como vimos, a modalizações concretas e expressivas da faculdade da
visão, comporta, no entanto, muitas vezes uma proporcional dificuldade
de identificação do exato matiz semântico implicado nas variantes. A
tentativa de restituir às palavras homéricas o significado e luminosi-
dade original corresponderá sempre, na verdade, a um exercício mais
ou menos fruste, e frustrante, de aproximação hermenêutica, que não
consegue anular a componente subjetiva das representações mentais
dos leitores e tradutores, construídas por séculos de sedimentação
de experiências culturais e linguísticas, e assumidas mais ou menos
inconscientemente por cada um dentro da sua própria comunidade
linguística. Contrariamente à nossa intuição básica de que a expressão
linguística é unívoca, intemporal e imutável – as palavras assumem,
na moldura mais ou menos definida das suas peculiares coordenadas
históricas e identitárias, a natureza mutável de um ser vivo, gregário,
que se vai desenvolvendo e adquirindo, no desenrolar do tempo e da
teia de relações que tece com os outros, a sua peculiar configuração. E
a releitura de um testemunho antigo comporta sempre uma inalienável
traição à verdade original que nele surge cristalizada.
45
3. Dualidades da cor
46
A primeira e surpreendente impressão de quem contacta com os
Poemas Homéricos é a de que a fronteira cromática primordial se
estabelece pela contundente oposição entre claro e escuro, fundada
na bipolaridade, real e simbólica, da noite e do dia.
Perfilam-se, na verdade, muito produtivos, e quase sempre inva-
dindo, em estreita proximidade, a esfera um do outro na tessitura
poética, os campos lexicais e semânticos da luz e da treva. No grupo
dos primeiros, surgem, nuclearmente associados à raiz do aoristo assig-
mático φάε, “brilhar” (que na Odisseia 4.502 denota a ação iluminadora
da Aurora 39), e aos seus cognatos φαίνω, “aparecer”, “distinguir-se
à vista”, e πιφαύσκω, “fazer brilhar”, “manifestar”, os substantivos
φάος40 , luz, e φάεα (defetivo neutro plural), “olhos brilhantes” 41 ,
com os derivados adjetivos φαεινός, φαέθων, φαάντατος, φανερός e
-φανής42, “(muito) brilhante”, “luminoso”; também ocorrem, vincula-
dos a outras raízes como λάμπω, “resplandecer”, os nomes λαμπάς e
λαμπτήρ, “archote” ou “lanterna”, e o adjetivo λαμπρός, “resplande-
cente”; vinculados aos nomes ἧμαρ e ἡμέρα, “dia”, documentam-se
derivados adjetivos (ἠμάτιος, diurno) e adverbiais (αὐτῆμαρ, “no
mesmo dia”, πανῆμαρ, “todo o dia”, ἐξῆμαρ, “por seis dias”, ἐννῆμαρ,
“por nove dias”); o nome, muito frequente, αὐγή, “luz do sol”, origina
o denominativo αὐγάζω43.
Já na órbita das trevas, fundada sobre os esteios nominais dos
lexemas νύξ, “noite”, (com seu amplo conjunto de derivados e
47
compostos 44 ), σκιά, “sombra” (com os denominativos σκιάω 45 e
σκιάζω, “sombrear”, “encher(-se) de sombras”, e os derivados adje-
tivos σκιερός e σκιόεις, “sombrio”), e σκότος, “a sombra [da morte]”
(com os derivados adjetivos σκότιος, “sombrio”, e σκοτομήνιος, “sem
luar”), sobressaem ainda outros termos expressivos, como ἔρεβος46,
“obscuridade subterrânea” (com seu derivado ἐρεβεννός, “sombrio”,
“obscuro”, epíteto frequente da noite47), e a forma adjetiva ἀμαυρός,
“obscuro”, de etimologia desconhecida 48.
Esta notação dúplice de claro-escuro, manifesta passim em todo o
testamento homérico, assume peculiar poder evocativo nas fórmulas
recorrentes do nascer do dia 49 ou do cair da noite 50 , que muitas
vezes balizam no contínuo poético momentos de mais expressivo
dramatismo.
48
A ela se associam ainda, claramente explicitadas, a notação cro-
mática do branco e do negro. O branco luminoso, traduzido nos
Poemas Homéricos sobretudo pela notação adjetiva λευκός51, associa-
-se regularmente a realidades da natureza 52, mas também se aplica
a criações humanas 53; equivalente registo semântico é ainda veicu-
lado por outras formas adjetivas (como ἀργηννός, ἀργής e ἄργυφος),
retiradas como derivados de um tema original ἀργ-, a comportar o
significado generalizado de “brancura resplandecente” 54; todos am-
51 Chantraine 1984: 632-33 (s.v. λευκός) nota que o adjetivo, já documentado desde
o micénico como atributo de tecidos, e animais (bovinos), traduz a noção de “bran-
cura resplandecente”; apresentando grande extensão em processos de composição e
derivação na língua grega, com particular incidência no âmbito da antroponímia, tem
documentada correspondência exata em formas adjetivas e verbais do sânscrito, latim,
irlandês, lituano, e antigo alto alemão, pelo que se pode fundamentar a suposição de
uma raiz originária indo-europeia *leuq-/*louq.
52 Como o leite, 4 ×; a água, 2 ×; o marfim, 2 ×; as presas das feras, 7 ×; os
ossos dos mortos, 7 ×; a flor da oliveira, 1 ×; o grão e a farinha da cevada, 10 ×; os
cumes montanhosos, 1 ×; a neve, 1 ×; a claridade, 1 ×; a acalmia, 1 ×; os braços das
mulheres, 50 × (em 48 das ocorrências, toma-se por referência o epíteto λευκώλενος;
regularmente atribuído a figuras femininas: contra as vinte e quatro ocorrências
associadas, em fórmulas simples ou compostas, ao nome de Hera, o epíteto atribui-se
ainda a Helena, a Andrómaca, às servas, a Nausícaa e a Arete; pode traduzir-se como
“de níveos braços”, “de alvos braços”); a pele humana, 1 ×; os carneiros sacrificiais,
1 ×; o sinal na fronte de um cavalo, 1 ×; as pedras, 2 ×; as nuvens de pó provocadas
pela agitação dos cavalos, 1 ×.
53 Como produtos têxteis (velas de barcos, 8 ×; vestes fúnebres, 1 ×; um caldeirão
intocado pelo fogo, 1 ×; as gravações de estanho de um escudo, 1 ×; a cidade, 1 ×; o
véu resplandecente de Hera, 1 × (notar a curiosidade de dele se dizer, em Il. 14.185,
λευκὸν δ’ἦν ἠέλιος ὤς, “era branco como o Sol!”).
54 O tema reflete-se, de forma simples, no adjetivo ἀργός (que em grego se traduz
simultaneamente como “dotado de uma brancura resplandecente”, aplicado a animais,
nomeadamente bois e gansos, e como “rápido”, funcionando como um epíteto regu-
lar dos cães no texto homérico) ou alargado em ἀργυ-, em múltiplos termos gregos,
como ἀργυρός, “de prata”, com seus derivados, e ἄργυφος, “de um branco resplande-
cente”. Chantraine supõe na origem deste tema uma raiz indo-europeia que exprimia
a dualidade da brancura luminosa e da rapidez do raio. A este tema primitivo se
associam formas documentadas em sânscrito (árjuna-, “branco, claro”), latim (argu-
tus, “claro”, arguo, “tornar claro, revelar”, e, com um infixo -nt-, argentum, “prata”),
messápio (argorian, “prata”, e “argora-pandes”), e gaulês (arganto-, “prata”), o que
parece comprovar uma origem comum indo-europeia. No entanto, não se encontra
reconstituído um termo indo-europeu generalizado para referenciar a prata: se o
grego, o latim, o gaulês e o messapiano deram preferência a uma raiz nominal *arg-,
traduzindo o brilho da cor branca, outras línguas (o germânico, o báltico e o eslavo,
por exemplo) denunciam a utilização de uma raiz completamente diferente – o que,
segundo Chantraine 1984 (s.v. ἄργυρος), parece traduzir a modesta importância deste
metal entre os povos indo-europeus.
49
pliam nos Poemas Homéricos a notação da brancura ao universo da
natureza (a conotar os rebanhos de ovelhas, os gansos, o relâmpago
de Zeus e o Noto).
Já o espectro semântico do negro se alimenta sobretudo 55 da
vinculação primordial ao adjetivo μέλας56, “negro”, “escuro”: retirado
de uma raiz indo-europeia que deixou vestígios em báltico e litua-
no, e provavelmente aparentado na esfera do Grego com μολύνω,
“sujar”, ocorre como epíteto muito regular das naus (em mais de 50
ocorrências), da noite, da terra, do destino, das nuvens, do sangue,
e do vinho, mas também se aplica às ondas e à agitação das águas,
às águas das nascentes, às dores e às fúrias, a pedras e raízes, a uma
águia, à cinza e à poeira, a carneiros e ovelhas sacrificiais, e à morte.
50
A corroborar a notação desta primeira alternância dual, sobres-
sai de seguida na órbita semântica da cor uma nova e inequívoca
fronteira, a dividir especularmente o universo poético homérico.
Reproduzindo um esquema imagético recorrente nas narrativas
míticas da Antiguidade, impõe-se, com efeito, uma divisória nítida,
especular 57, entre a esfera dos seres divinos, dispensadores de dá-
divas, eternos habitantes olímpicos, dotados de imortalidade e de
bem-aventurança, e a dos seres humanos, os industriosos e infelizes
habitantes da terra, inscritos na fatal finitude da sua mortalidade 58.
Enquanto a primeira surge simbolicamente nimbada pelo brilho do
ouro 59 (e, em menor escala, o da prata 60) – que, pelo seu cunho de
excelência e incorruptibilidade, se presta a descrever a sublimidade
da natureza divina – a segunda surge marcada pela omnipresença
51
mais opaca do bronze 61 e pela discretíssima ocorrência do ferro 62,
quase sempre representações disfóricas de dureza e violento domínio.
E se o cenário olímpico de eterna bem-aventurança,
61 A forma nominal masculina χαλκός, que figura desde o grego micénico como
a denominação comum do cobre e do bronze (uma liga metálica que associa cobre
e estanho) revelou na morfologia grega grande produtividade em processos de com-
posição e derivação. A etimologia do termo, muito debatida entre os especialistas, é
obscura: propuseram-se, entre outras hipóteses, a associação a uma raiz indo-europeia
*ghel(e)gh- (que traduziria a denominação do “ferro”), ou a uma raiz de origem
obscura que traduzisse a noção fundamental de “cor vermelha” (associado ao termo
grego χάλχη ou χάλκη, “múrice”), ou a uma língua do Próximo Oriente (fenício, ara-
maico, sumério, anatólio). Inclinado para a hipóteses de que a técnica de utilização
do cobre e do fabrico da liga de bronze, documentada já numa fase muito antiga da
civilização egeia, tenha sido determinada pelas ricas minas de cobre de Chipre, e
pela influência do Próximo Oriente. Chantraine (1984: 1243-44, s.v. χαλκός) defende
que o termo, e a técnica metalúrgica que ele designa, devem ter chegado ao mundo
grego como empréstimo muito antigo (pré-micénico) de uma língua e civilização que
não é possível determinar com exatidão.
62 Chantraine (1984: 1002, s.v. σίδηρος) nota que o termo, de etimologia desconhe-
cida, deveria corresponder a um empréstimo antigo de uma língua não indo-europeia;
o testemunho da Poesia Homérica apresenta o ferro como um metal raro, e, contra-
riamente ao bronze, difícil de trabalhar e ausente dos campos lexicais da metalurgia.
63 Assente entre nuvens douradas (Il. 14.343, Il. 14.351, Il. 18.206-07), o palácio é
dourado (Il. 13.22), com o pavimento de ouro (Il. 4.2), as paredes resplandecentes (Il.
8.435), o mobiliário de ouro (Il. 8.436). Em Od. 8.273 sqq., pela sensibilidade poética
de Demódoco, propõe-se a descrição do palácio de Hefesto, o deus artífice, que cumula
de benesses aqueles por quem se desvela, mas suporta no requinte da sua morada
etérea, de chão de bronze (Od. 8.321), a mais humilhante das experiências afetivas,
obrigado a expor em público a desdita do desprezo adúltero da esposa, e a regatear
perante a chacota dos pares divinos a compensação devida à sua honra maltratada;
dado o preferencial âmbito de ação do deus, a descrição do palácio inclui detalhes
sobre a oficina de ferreiro, a forja e a bigorna, e o trabalho dos metais. Também na
Odisseia o palácio de Alcínoo, rei dos ditosos Feaces (que, aparentados com os deu-
ses, gozam de uma vida de ininterrupta bem-aventurança, sem os duros cuidados do
52
as vestes 64, as armas 65 e objetos vários 66 com os quais os deuses
exercem a sua divina influência. De igual modo apresentam notável
frequência os atributos divinos que se apresentam morfologicamente
como derivados ou compostos deste tema 67. Mesmo Zeus, o mais
elevado e poderoso dos imortais, fundando numa distinta categoria
de predicados a sua excelência inter pares, garante, pelas correntes
(Il. 8.19) e pulseiras (Il. 15.19) de ouro inquebrantável com que dis-
ciplina os deuses, pela balança com que pondera as circunstâncias
(Il. 8.69, Il. 12.209), e indiretamente, pela terrível égide franjada 68
trabalho), em Esquéria, multiplica a utilização do ouro, nos umbrais, nas portas, nas
alfaias domésticas, na estatuária decorativa (cfr. Od. 7.86 sqq.).
64 E.g. as vestes de Zeus (Il. 8.43), os cintos de Calipso (Od. 5.231) e de Circe
(Od. 10.543-44); as pregadeiras com que Hera prende a túnica (Il. 14.180); as san-
dálias de Hermes (Il. 24.341-42; v 45), e as de Hera (Od. 11.604; apesar de o epíteto
χρυσοπέδιλος não voltar a documentar-se nos Poemas Homéricos, as quatro ocorrên-
cias registadas em Hesíodo parecem fundamentar a sua inscrição na lista de epítetos
distintivos da deusa, a traduzir a ideia da excelência na notação do metal raro com
que se concebem as suas sandálias).
65 E.g., o chicote de Zeus (Il. 8.44) e o de Poséidon (Il. 13.26), a espada de Apolo
(Il. 5.509), o elmo de Atena (Il. 5.744), as armas de Poséidon (Il. 13.25).
66 E.g., as suas alfaias domésticas do Olimpo (Il. 4.3); o trono de Hera, de Ártemis
e de Aurora (Il. 1.611, Il. 5.529 e Od. 10.541); muitas partes do carro de Hera (Il.
5.724-31); as rédeas dos seus cavalos (Il. 6.205); os arreios dos cavalos de Ares e Hera
(Il. 5.358, Il. 5.362, Il. 5.720 sqq., Il. 8.383) e até as crinas dos cavalos de Poséidon
(Il. 13.24) e as correntes com que os prende (Il. 13.36); a roca de Hera e Ártemis
(Il. 20.70 e Il. 16.183; a lançadeira de Calipso (Od. 5.62); o bastão de Hermes (Od.
5.87, Od. 10.331, Od. 14.172, Od. 24.3), os cestos (Od. 10.355) e as taças de ouro
(Od. 10.315 e Od. 10.357) de Circe; e as obras artísticas que se criam nas forjas de
Hefesto (Il. 18.416, Il. 18.474, Il. 18.561).
67 A saber, χρυσέη, dito de Afrodite (11 ×); χρυσάορος, de Apolo (2 ×); χρυσηλά-
κατος, de Ártemis (3 ×); χρυσήνιος, de Ártemis (1 ×) e Ares (1 ×); χρυσόθρονος, de
Hera (3 ×), Aurora (10 ×) e Ártemis (2 ×); χρυσοπέδιλος, de Hera (1 ×); χρυσόρραπις,
de Hermes (3 ×); χρυσόπτερος, de Íris (2 ×).
68 Símbolo de um poder superlativo, capaz de alterar mesmo as circunstâncias
mais complexas, a égide, brandida regularmente nos Poemas Homéricos por Zeus (daí
dotado do epíteto distintivo αἰγίοχος, com 56 ocorrências nos Poemas Homéricos) – e
algumas vezes emprestada a Atena, interpretada como mandatária superior de Zeus, ou
como herdeira dos seus excecionais poderes (Il. 5.738-42, Il. 18.204, Il. 21.400) ou a
Apolo (Il. 15.308, Il. 24.20) – surge descrita (Il. 2.446-48, Il. 5.738-42, Il. 24.20) como
um prodigioso objeto, cuja visão infundia terror: ao centro comportava a cabeça mons-
truosa de uma das Górgonas, emoldurada de assustadoras representações alegóricas
do Medo, da Discórdia, da Violência e da Perseguição. Parece andar simbolicamente
associada, como uma arma mágica, ao poder excecional de Zeus sobre todas as for-
ças da natureza, nomeadamente os elementos atmosféricos. O sentido próprio “de
pele de cabra” aparece já documentado em Heródoto, 4.189, e Eurípides, Cycl. 360,
53
(cedida por regra à filha Atena) e pelo cetro (oferecido como sinal
de legitimação suprema aos reis dos Argivos 69, e em particular ao
Atrida Agamémnon70), todos de ouro, a mesma notação superlativa.
Na esfera humana, exibem excecionalmente objetos de ouro os mais
distintos dos mortais, sobretudo os reis, que muitas vezes merecem
na dicção homérica o expressivo título de “criados por Zeus” 71, ou
“aqueles a quem se estima” (θεὸν ὣς τιμᾶν, 8 ×)/ “a quem se contempla
(θεὸν ὣς εἰσορᾶν, 3 ×) como deuses”. Em contextos de batalha, o ouro
surge sobretudo 72 em armas 73, despojos e prémios conquistados 74,
compensações de resgate75 e desagravo76, ofertas77, e ainda objetos
embora lhe tenham sido associados outros, de origens pouco claras, nomeadamente
em vocábulos técnicos; vd., a propósito, Chantraine 1984 (s.v. αἰγίς).
69 Cfr. Il. 2.196-197, Il. 2.268, Il. 6.159, Il. 9.156, Il. 9.298, Od. 3.412; σκηπτοῦχος,
detentor do cetro é, pois, epíteto distintivo dos reis (Il. 1.279, Il. 2.87, Il. 14.93; Od.
2.231, Od. 5.9, Od. 8.41 e Od. 8.47).
70 Cfr. Il. 9.38. O cetro dourado de Zeus surge replicado como símbolo de legiti-
mação divina não só por reis, mas também por sacerdotes (Il. 1.15, Il. 1.374), arautos
(Od. 2.37), profetas e adivinhos (Od. 11.91), e juízes (Od. 11.569); são de outra
natureza os cetros (bastões) dos aedos e mendigos. Notar ainda que, até pela sua
representatividade política no mundo homérico, Micenas tem o epíteto de πολύχρυσος
Μυκήνη, rica em ouro (Il. 7.180, Il. 11.46; Od. 3.304).
71 Διοτρεφής (43 ×), διοτρεφής βασιλεύς (12 ×).
72 Excecionais ocorrem os testemunhos de adereços usados por guerreiros aris-
tocráticos, como as fitas de ouro no cabelo do filho de Pântoo, em Il. 17.50-51, ou
a pregadeira de ouro artisticamente gravada da túnica de Ulisses (Od. 19.226-30);
equivalente adereço tem o cinto guerreiro de Menelau (Il. 4.133).
73 Cfr. Il. 4.112, Il. 6.236, Il. 6.320, Il. 8.193, Il. 10.437-39, Il. 11.25, Il. 11.30, Il.
11.297, Il. 18.612, Il. 19.381, Il. 20.268, Il. 20.270, Il. 21.165, Il. 22.316, Il. 23.503;
Od. 11.10.
74 Cfr. Il. 2.873-75, Il. 9.137, Il. 9.279, Il. 9.365, Il. 23.269, Il. 23.549, Il. 23.614, Il.
23.751, Il. 23.796-97; Od. 14.324. Neste âmbito, sobressai, pela conotação infamante,
o ouro que a aleivosa Erífile recebe pela vida do marido, em Od. 11.327.
75 Cfr. Il. 11.133, Il. 22.50, Il. 22.340, Il. 22.351, Il. 24.232
76 Cfr. Il. 9.122, Il. 9.126, Il. 9.264, Il. 9.268, Il. 19.247; Od. 22.58b.
77O episódio da oferta da panóplia de Glauco ao opositor Diomedes (Il. 6.119-
236) detalha como, defrontando-se como inimigos no campo de batalha, o Grego
Diomedes e o Lício Glauco reconhecem acidentalmente, após a enunciação da
genealogia do último, que estão ligados por um vínculo de hospitalidade que uniu
no passado os seus avós. Assumindo o dever moral herdado dos antepassados, ambos
renovam as sagradas obrigações de hospitalidade familiar: renunciam às primitivas
intenções hostis, e trocam simbolicamente, em sinal de amizade, as armas; e assim,
pelas armas de bronze de Diomedes, Glauco entrega sem hesitar as suas armas de
ouro, dez vezes mais valiosas. Para a discussão desta extravagância narrativa, que
provavelmente obedece a um intuito humorístico do poeta, e corresponde a um género
54
rituais78. No âmbito doméstico, e sobretudo nos palácios mais opulen-
tos (o de Príamo na Ilíada; os de Nestor e Menelau79, e o de Ulisses
na Odisseia), muitas vezes interpretado como sinal extraordinário de
estatuto e favor divino – e ocorrendo como produto de heranças 80, de
gestas heroicas81, de ofertas de hospitalidade 82 ou propiciação83, de
típico de narrativa popular, interpolada no poema, vd. Kirk, 1990, pp. 190-91, ad Il.
6.234-36.
78 Cfr. Il. 3.248, Il. 9.670, Il. 11.633-34, Il. 11.774, Il. 23.196, Il. 23.219, Il. 23.243,
Il. 23.253, Il. 24.110, Il. 24.285, Il. 24.795; Od. 24.74.
79 A errância de Telémaco fora de Ítaca permite trazer à atenção do auditório os
cenários contrastantes da sagrada Pilos arenosa (Od. 3), e da ravinosa Lacedemónia
(Od. 4). Pilos está marcada pela sóbria humildade dos domínios de Nestor, que pro-
move na praia aos deuses sacrifícios isentos, e oferece generosamente ao filho do
companheiro os prudentes cuidados de uma família de substituição; a descrição do
palácio só recorrerá mais tarde, quando, empenhado no escrupuloso cumprimento
dos deveres de hospitalidade, Nestor recusa a hipótese desonrosa de deixar os hós-
pedes pernoitarem na embarcação. Em Esparta impressiona a luxuosa exuberância
das acomodações de Menelau (cfr. Od. 4.72 sqq.), que tanto contrasta com o angus-
tiado cenário de Ítaca: chama aqui a atenção, como nota irónica, a circunstância
de Menelau se empenhar a preparar o sucesso matrimonial dos filhos (Hermíone e
Megapentes), acompanhado da adúltera Helena, que, responsável pela tragédia troiana,
continua a exercer, inconsequente, sobre os homens, e até sobre os jovens visitan-
tes, a sua sedução fatal. Também Menelau, multiplicando a opulência das ofertas, e
o tempo de hospitalidade, apesar da trágica experiência que teve com a morte do
irmão, não vê os perigos em que coloca o jovem Telémaco e a família, isolados um
do outro.
80 Cfr. Il. 10.315, Il. 10.379.
81 E.g., Il. 2.229; Il. 9.126; Il. 9.268; Il. 9.137; Il. 9.365; Od. 21.10; xxi 10,
82 E.g., Il. 6.220; Od. 2.338, Od. 3.308, Od. 4.129 sqq., Od. 4.615, Od. 5.38, Od.
8.393, Od. 8.431, Od. 8.440, Od. 9.203, Od. 10.35, Od. 10.45, Od. 13.11, Od. 13.136,
Od. 13.218, Od. 13.368, Od. 15.115-16, Od. 15.207, Od. 16.231, Od. 23.341, Od.
24.275.
83 Cfr. Il. 19.247; Od. 3.274, Od. 3.384, Od. 3.426, Od. 3.435, Od. 3.437, Od.
16.185. Note-se, como especialmente relevante, a coleção de dádivas preciosas pro-
digalizadas a Penélope no contexto da corte dos pretendentes (Od. 18.293-94, Od.
18.295-96, Od. 18.298).
55
comércio84 ou de roubo85 – o ouro pode evidenciar-se em móveis86,
baixelas 87, e outros objetos de arte 88.
A par das notações lexicais do ouro, sobressaem, muito mais fre-
quentes, e generalizadas no universo humano 89, as referências ao
84 Cfr. Od. 15.460; ocorrem ainda referências ao soldo pago por alguma tarefa
mais complexa, como em Od. 4.526.
85 Cfr. Od. 15.447.
86 Sobressai, pela sua excecionalidade, a cama de Ulisses, construída sobre uma
oliveira enraizada, e artisticamente gravada pelo herói “com entalhes de ouro, prata
e marfim” (Od. 3.200). O tema simbólico da cama, reincidindo transversalmente na
Odisseia, assume nos tempos de paz uma singular relevância: sendo o coração da
casa, onde os homens depõem as preocupações quotidianas, retemperam as forças, e
aguardam as surpresas do futuro imediato, ela ocorre também, no seio das relações
estabilizadas pelo vínculo matrimonial, como a certeza da continuidade geracional.
No enquadramento singular da cultura aristocrática arcaica, a cama é o conforto
supremo que o hospedeiro concede ao hóspede, sinal da confiança sem reservas
de quem acolhe, que se traduz ritualmente na disponibilidade generosa de armar,
no pórtico ou junto da lareira, espaços sagrados, um patamar amovível de conforto,
bem guarnecido de mantas de lã e peles, e macios lençóis frescos, para quem chega
sujeito a uma qualquer premente necessidade. No contexto temático específico do
tardio regresso de Ulisses, a cama do rei ausente recorre como o espaço de intimidade
sofrida, onde Penélope esgota, dentro dos limites da sua incomparável fidelidade, a
consciência desesperada de uma solidão que parece estar votada a não ter fim. Em
simultâneo, ela surge no imaginário libidinoso dos violentos pretendentes como o
espaço vazio que deve ser usurpado à força. A relevância simbólica da cama, que
atravessa todas as camadas de significação da Odisseia, amplia-se ainda no momento
crucial do reconhecimento dos esposos. Depois das atribuladas cenas do confronto
no mégaron e da chacina (Od. 20-22), Penélope é despertada pela leal Euricleia do
leito, onde se esgota a chorar, com a insólita notícia de que os deuses propiciaram
o desfecho de muitas dores, trazendo para casa Ulisses, e castigando às suas mãos
a prepotência criminosa dos pretendentes. Mas a legitimação dessa notícia dar-se-á
apenas por meio do sinal definitivo da cama, quando, reagindo sem o saber a uma
provocação intencional da esposa, o herói denuncia com a sua irada surpresa a
partilha de um segredo que apenas os esposos partilhavam (Od. 23.109-10): o leito
conjugal não poderia jamais ser removido do espaço do tálamo nupcial, porque tinha
sido contruído (Od. 23.183 sqq.) pelas mãos habilidosas de Ulisses, no início do seu
casamento, desbastando uma oliveira ainda solidamente enraizada, onde se esculpe
a base da cama. Enumerados com clareza os sinais, os esposos reconciliam-se e vão
fruir na cumplicidade da cama a harmonia conjugal restituída. A digressão poética
sobre a história da construção do leito empresta fundamento à notação poética de que
a cama, inamovível e enraizada na solidez da terra, a partir da qual se criou depois
toda a restante estrutura habitável do palácio, é a metáfora objetivada da lealdade
viva, inamovível e inabalável onde repousa o verdadeiro amor dos cônjuges.
87 Cfr. Od. 3.41, Od. 3.50, Od. 3.478, Od. 4.53, Od. 4.58, Od. 6.79, Od. 6.215, Od.
7.173, Od. 15.84, Od. 15.136, Od. 15.148, Od. 20.261, Od. 22.10.
88 Cfr. Il. 5.425; Od. 6.232, Od. 19.34, Od. 23.159.
89 Notar que um dos epítetos recorrentes dos Aqueus é χαλκοχίτωνες, “vestidos de
bronze” (33 ×). No universo Olímpico, o bronze só excecionalmente ocorre vinculado,
como atributo disfórico (χάλκεος, de bronze), à figura do “funesto” (οὖλος, βροτολοι-
56
bronze e ao ferro. Numa amálgama expressiva, a filigrana da formu-
laridade poética, fundindo mecanismos de sinédoque e de sinestesia,
veicula simultaneamente, com os traços associados ao tato (a conotar
a solidez e a dureza dos instrumentos metálicos fabricados), outros
que se prendem com a perceção visual, ora do brilho, ora da notação
cromática. A exuberância de fórmulas epitéticas relativas ao bronze
combina um primeiro conjunto de atribuições que veicula a referência
à dureza 90 e outro – contendo vários epítetos indistintamente asso-
ciados ao bronze e ao vinho – que evoca uma notação cromática 91
de um tom escuro, afogueado, rubro, provavelmente próximo daquilo
que modernamente simplificamos com a notação de vermelho. De
forma equivalente, o muito mais limitado formulário relativo ao ferro
repete a mesma dualidade semântica 92 , e aponta prioritariamente
57
para uma gradação fosca, escura, possivelmente correspondendo à
modulação do cinzento.
4. Complementos e refrações
ao “céu de ferro” (Od. 15.329, Od. 17.565), como aliás a do “céu de bronze” (Il. 5.504,
Od. 3.2), sugere a impressão visual de um céu ameaçador, carregado de sombras.
93 Que as línguas modernas nomeiam ora pelo parentesco com flores (o portu-
guês amarelo e o castelhano amarillo) ou com frutos (o grego moderno κίτρινος),
ora com a raiz indo-europeia que conotaria o brilho amarelado, *ghel- (através do
latim galbinus, o francês jaune, o italiano giallo, o romeno galben, o inglês yellow,
o alemão gelb, o holandês geel).
94 Chantraine 1984: 763, s.v. No âmbito da antroponímia, registam-se Ξάνθος
(esta designação com acento recessivo, já registada no micénico kasato, serviu de
nome não só a vários homens, mas também a um rio na Tróade, uma cidade na Lícia,
e ao especial cavalo de Aquiles), Ξάνθιππος, Ξανθίππη, Ξανθεύς, Ξανθίας, Ξάνθιχος,
Ξανθώ, Ξάνθυλλα, Ξανθάριον, etc. Em textos pós-homéricos expande o seu âmbito
58
divindades (uma vez a Radamanto e outra a Deméter, traduzindo
neste caso metaforicamente, num símile de grande encanto bucólico,
o sugestivo amadurecimento das searas) e pessoas (particularmen-
te Menelau, mas também Agamede, Aquiles, Ulisses 95 e Meleagro);
também se documenta ainda associado ao pelo “fulvo” do cavalo
alazão (Il. 9.407, Il. 11.679). Esta última associação parece permitir-
-nos inscrever o adjetivo no campo dos semitons alaranjados 96, ou
arruivados, uma vez que são recorrentes nos Poemas, para conotar
o mesmo brilho dourado do pelo de animais (leões, cavalos, touros
e bois)97, os adjetivos αἶθοψ e αἴθων, “afogueado”, “ardente”, ambos
aparentados com o verbo αἴθω, “incendiar”. A conotar a tonalidade
rica do amarelo, ocorrem ainda as notas descritivas do açafrão, ou
κρόκον, que se detalham nos Poemas associadas à pletórica abundân-
cia da natureza, ora na cena íntima de Hera e Zeus, ocultados por
uma nuvem de ouro e reclinados sobre a terra que se desentranha
de flores (a flor de lótus, o açafrão e os jacintos, Il. 14.384), ora na
59
fórmula epitética recorrente da Aurora κροκόπεπλος, “de manto de
açafrão” 98.
Pela sua proximidade semântica com a esfera da luz, e surpre-
endidas sobretudo no seio da natureza – que a paleta expressiva
de Homero não se cansa de descrever com requinte – ocorrem por
fim as sugestões cromáticas do verde, particularmente discretas: no
contexto dos organismos vegetais, recorrem, associadas à raiz do
verbo θάλλω, “reverdecer”, “florescer”, a variante prefixada ἀναθάλλω
(dita do cajado cortado que não reverdecerá mais), os substantivos
neutro θάλος (2 × metaforicamente aplicados pelos pais aos filhos
que os continuam) e masculino θαλλός (1 × dito dos rebentos fres-
cos dados como alimento ao gado), “rebento”, e o adjetivo θαλερός,
“florescente”, “vigoroso”, aplicado recorrentemente aos jovens na flor
da idade. O adjetivo χλωρός, “verde”, “pálido”, “amarelado”, usa-se 12
× numa fórmula regular, para a qualificar o pálido terror que toma
os homens; 2 × recorre a conotar a cor pálida (amarelada?) do mel;
também 2 × aplicado ao ramo verde de oliveira; a variante feminina
χλωρηίς, “amarelento”, da verdura, ocorre uma vez aplicado ao rou-
xinol. Na descrição do exuberante pomar dos Feaces, de inesgotável
fecundidade, descreve-se como “as uvas maduras”, σταφῦλαι, rivali-
zam na videira com as ὄμφακες, “uvas verdes”. Por último, γλαυκός,
“verde pálido”, “verde acinzentado”, ocorre uma vez como epíteto
de θάλασσα (o mar, seio materno de Aquiles) 99. O seu enigmático
98 Cfr. Il. 8.1, Il. 19.1, Il. 23.227 e Il. 24.695. Apesar do preconceito cultural que
nos convida a acreditar que a mais regular das fórmulas epitéticas da Aurora, ῥοδο-
δάκτυλος Ἠώς, de róseos dedos, comporta a notação da cor rosa (vermelho pálido)
a que as línguas modernas associam lexicalmente o termo generalizado “rosa” – rosa
(em português, castelhano, italiano, corso e alemão), rose (em francês e inglês), roze
(em holandês), ροζ, (em grego moderno), roz (em romeno), e różowy (em polaco) –
é possível que a notação antiga reconhecesse nela, e na sua primitiva raiz nominal,
ῥόδον, outra variedade tonal (o amarelo?). A gradação amarelada coincide, de resto, com
outra das notações epitéticas regulares da Aurora, a de trono dourado (χρυσόθρονος),
que se associa dez vezes à deusa, contra três atribuições a Hera e duas a Ártemis.
99 Comentadores e lexicógrafos antigos apresentaram para o adjetivo neste con-
texto vários significados possíveis: Hesíquio interpreta-o como sinónimo de λευκός
(assumindo os significados de “claro, brilhante, radioso, cintilante”) e simultaneamente
de ἱσχυρός, φοβερός (“terrível, assustador”); na Suda, surge traduzido por λευκός “bri-
lhante”, opondo-se a κυάνεος, “azul escuro”. Apresentado literariamente como epíteto
60
composto, γλαυκῶπις, exclusivamente atribuído à deusa Atena, e
desde a Antiguidade controversamente interpretado 100, parece per-
mitir introduzir na paleta homérica a tonalidade indefinida e clara
do “azul esverdeado”, ou do “verde acinzentado”.
Variantes refratadas da esfera sombria do bronze, parecem ser
as modulações cromáticas compreendidas numa ampla escala de
tons de vermelho, púrpura e rubro. Semanticamente associada, so-
bretudo no contexto bélico da Ilíada, à trágica evidência do sangue
que inunda a terra, confirmando a absoluta falência do destino dos
infelizes mortais, esta gama de cor tende a associar os mesmos epí-
tetos recorrentes da forma nominal αἶμα, que sintomaticamente são
μέλας, “negro”, κελαινός, “sombrio”, e κελαιναφής, “nebuloso”101. Em
equivalente enquadramento expressivo da paleta, recorrem múltiplas
notações adjetivas, que conotam quer a sensibilidade a fenómenos
da natureza, quer o conhecimento de técnicas de transformação. Ao
primeiro grupo pertencem os adjetivos αἴθοψ, “ardente”, “flamejante”,
do mar, o adjetivo parece ter passado a conotar a sua cor azulada; posteriormente é
aplicado a ἅλς, e κύματα (por Sófocles e Eurípides), e encontra-se frequentemente
documentado em jónico-ático referenciando a cor azul-acinzentada dos olhos; com este
significado permanece ainda em Grego moderno. A atribuição posterior de γλαυκός
ou de epítetos compostos da mesma raiz à folhagem das oliveiras e à lua ou ao luar
possivelmente combina os significados “resplandecente”, e “cinza-azulado”. O termo
simples desempenha um papel importante na morfologia grega, e em particular na
onomástica, com referências já documentados em micénico.
100 Sendo possível que o epíteto γλαυκῶπις, comportando como primeiro elemento
de composição o nome γλαῦξ, -κός, assuma um sentido ritual original de “de cara
de coruja”, “de olhos de coruja”, “de aspeto de coruja”, não está ainda, no entanto,
confirmada a existência de um estádio teriomórfico da religião grega ou pré-grega. O
composto deve ter posteriormente assumido o sentido de “de olhos faiscantes, cinti-
lantes, terríveis”, pelo que também passou, por influência próxima de γλαυκός e seus
empregos, a atribuir-se à folhagem da oliveira, à lua, etc., e a assumir em determinados
contextos uma conotação colorista, “de olhos cinza-azulados ou cinza-esverdeados”.
101 As duas formações nominais ocorrem como variantes, por derivação e com-
posição, de uma primitiva raiz de etimologia obscura, já documentada em micénico
para descrever a cor dos bois; aplicada em Homero associada ao sangue, à noite, e a
uma vaga na tempestade, será retomada pelos poetas posteriores associada ao mundo
subterrâneo e seus habitantes, e sobreviverá na onomástica grega (vd. Chantraine,
1984, s.v. κελαινός). A forma composta, que recorre onze vezes como epíteto distintivo
de Zeus todo poderoso (capaz de dominar até os elementos atmosféricos imprevi-
síveis), quase sempre em contextos que conotam hostilidade ou violência do deus
sobre terceiros, aparecerá sete vezes, por extensão de sentido, associada ao sangue.
61
cor de fogo, derivado do verbo αἴθω, “arder” (11 × aplicado ao bron-
ze, 24 × ao vinho); ἐρυθρός, “rubro”, derivado de vocalismo zero da
raiz indo-europeia presente no verbo ἐρεύθω, “ruborizar” (com um
paralelo exacto no latim ruber), aplicado recorrentemente ao vinho (6
×), mas também ao néctar (2 ×) e ao bronze (1 ×); οἴνοψ, “da cor do
vinho” (composto pela junção das duas raízes nominais, οἶνος vinho,
e ὄψ, aspeto, visão), que ocorre nos Poemas Homéricos como epíteto
distintivo do mar alto (19 ×). O adjetivo φοινός, “ensanguentado”,
de etimologia incerta, e muitas vezes erroneamente interpretada (ou
como aparentado de φόνος ou de φοίνιξ) ocorre uma vez atribuído
aos focinhos ensanguentados dos lobos que devoram a presa. No
segundo grupo, a traduzir já o conhecimento técnico da tinturaria,
incluem-se, além das múltiplas ocorrências do adjetivo πορφύρεος,
derivado do substantivo πορφύρα102 (e aplicado a produtos têxteis,
mantas, tapeçarias e véus, 13 ×; mas também ao sangue, 1 ×, à bola de
Nausícaa, 1 ×; às nuvens, 1 ×, ao mar, 1 ×; às ondas, 5 ×; ao arco-íris,
1 ×; e à morte, 3 ×), as variantes criadas a partir de φοίνιξ, “purpúreo”,
“da Fenícia” (porque a técnica tintureira na Antiguidade tinha pecu-
liar qualidade em Tiro, na Fenícia): os Poemas documentam φοίνιξ
(dito de um cavalo, 1 ×; da tinta com que se tinge o marfim, 1 ×; e
de partes da indumentária guerreira – cinturões, crinas de elmos, e
correias – tingidas de púrpura, 4 ×), φοινικόεις (dito de feridas cober-
tas de sangue, 1 ×; de rédeas, túnicas e mantas tingidas de púrpura,
5 ×); φοινήεις (dito de serpentes avermelhadas, 2 ×); φοινικοπάρηος,
“de faces/proas purpúreas” (dito de naus, 2 ×). Aparece ainda como
estrutura morfológica equivalente o composto μιλτοπάρηος, “de fa-
ces/proas purpúreas” (dito de naus, 2 ×), que inclui como primeiro
termo de composição o substantivo feminino μίλτος, “tinta vermelha”
(produzida a partir do cinábrio, um sulfureto de mercúrio, também
chamado mínio ou vermelhão).
62
No enquadramento da mesma moldura semântica dos tons som-
brios, recorre, muito discutida, sobretudo a partir das investigações
de William Ewart Gladstone 103 , a modulação cromática do azul,
e, possivelmente refratada a partir dela, a do violeta. Os Poemas
Homéricos elencam na verdade, no seu léxico de cores, o azul, numa
variante que sugere quase sempre uma tonalidade profundamente
escura, muito próxima do negro, sustentada sobre o tema nominal
masculino κύανος, que se documenta com frequência desde os tem-
pos micénicos, para designar uma substância ou mineral de cor azul
escura, utilizada para decoração 104. O termo, um provável emprés-
timo do hitita kuwanna, “azurite”, deu origem, no grego alfabético,
a um grupo considerável de compostos 105, e a um único derivado,
κυάνεος, usado desde Homero para designar os objetos decorados
por esmaltagem, ou que possuem uma coloração azul escura, sombria
ou negro-azulada; assim, a par das ocorrências em que descrevem
elementos decorativos (do escudo de Agamémnon, 4 ×; da cornija
do palácio feace, 1 ×), as vestes de luto de Tétis, 1 ×), também qua-
lificam aspetos da natureza, sobretudo ligados ao céu (as nuvens, 7
×); e ao mar (o areal de uma praia, 1 ×), mas também a conotar o
cabelo empastado de sangue de Heitor (1 ×), e o cabelo, e a barba
de Ulisses 106. Os epítetos derivados κυανοχαῖτα / κυανοχαίτης, “de
cabeleira azul”, de Poséidon, e κυανῶπις, “de olhos azuis escuros”
63
ou “de rosto azul escuro”, dito de Anfitrite, como a alusão às vestes
de luto de Tétis (1 ×), parecem simbolicamente confirmar o meca-
nismo semântico de identificação das divindades com os espaços
que tutelam; desse mesmo mecanismo de analogia também pode
estar marcada a notação do sobrolho azul escuro dos deuses – Zeus
e Hera – enfurecidos (3 ×).
Próxima do azul escuro, e surpreendida como um fenómeno de
florescência da natureza, ocorre a notação da cor roxa ou violeta:
criada a partir da raiz nominal neutra ἴον, “violeta” (aparentada com
o latim uiola, a partir de uma provável raiz mediterrânica comum) a
notação, surpreendente e geralmente interpretada como excêntrica,
documenta-se nas formações adjetivas derivada ἰόεις (1 × aplicada ao
ferro107), e compostas ἰοδνεφής (1 × à lã tingida, e outra à lã espessa
dos carneiros do Ciclope) e ἰοειδής (3 × aplicada ao mar alto), todas
a comportar equivalente significado (“violáceo, escuro”).
5. Conclusão
64
Manifestando a permeabilidade das línguas a aspetos de ordem
simbólica, as referências cromáticas representam, em contextos
diferenciados, não só processos de continuidade, mas também de
surpreendente rutura.
Não pode deixar de se fazer uma breve referência ao mundo da
cor e da visão em ambiente extra-literário. Na modernidade e contem-
poraneidade tem-se mantido um discreto mas rico filão da discussão
sobre a cor, tanto no plano científico como no filosófico, marcado
desde logo pela controvérsia Newton-Goethe 109. Enquanto a física
newtoniana nos apresentou a cor como um fenómeno associado a
um determinado comprimento de onda da luz refletida, os filósofos
têm continuado a levantar questões relativas à ontologia da cor: o
que é uma cor? As cores existem realmente? Devem ser encontradas
fora ou “apenas” dentro da nossa mente? (cfr. Chirimuuta, 2015,
1). O espectro taxonómico de posições inclui irrealistas, realistas,
mentalistas, externalistas, fisicalistas, disposicionalistas, primitivistas
ou relacionalistas (cfr. Cohen, 2009, 1-15). Como quer que seja, o
que este filão tem mostrado é que a riqueza da cor resiste a uma
abordagem única, seja ela científica, filosófica ou outra. Com Zubiri
(1983), diremos que as coisas, e especialmente a cor, nos dão que
pensar, tanto científica como filosoficamente.
Mas, ao lado da racionalidade científica e filosófica, há que reivin-
dicar uma racionalidade poética e literária. E aí Homero – considerado
cego pela mais antiga tradição – surge-nos como aquele que continua
a ensinar-nos a ver.
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66
Hearts and Minds in Greek Tragedy:
M e ta n o i a i n T e x t a n d P e r f o r m a n c e
Lorna Hardwick
Open University, APGRD
ORCID: 0000-0003-0210-1107
lorna.hardwick@open.ac.uk
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_2
It is a great pleasure as well as an honour to be part of the tribute
volume to the work of Professor Maria de Fatima Silva. Those of us
who have had the privilege of working with her over many years have
not only benefited from her scholarship and expertise in teaching
and research but have also gained a friend who has enriched our
lives as well as our learning. Her own work has been characterised
by its combination of detailed philological analysis with understand-
ing of dramaturgy, theatre and audiences. Above all she has inspired
us by her determination that the texts and cultures of antiquity can
be a crucible for forging a deeper humanistic understanding of the
histories of human beings and their potential in the future.
*
* *
68
‘repentance’. Yet even in 1518 the radical theologian Martin Luther
had challenged the traditional Christian interpretation of metanoia
as involving contrition, confessions and penance. He argued instead
that the ancient Greek connotation of ‘change of mind’ (derived from
nous, mind) should be retained.1 Here, I focus on the classical usage
in which metanoia does indicate change of mind but my interest is
in the manner and circumstances of the change and the context and
occasion in which it is communicated, both by the subject as agent
vocalised by the author of the text and by subsequent translators
and practitioners.
A very large study would be needed to list and explore all the
occasions of metanoia in Greek tragedy. I have chosen these two
plays because taken together they provide a richly layered texture of
allusions and philological and dramatic interactions, both intertextual
and intratextual. They are ‘thick’ texts with which to work. In both
Agamemnon and Iphigenia at Aulis the action hinges on occasions
when protagonists do change their mind, or are induced to do so,
and the consequences are far-reaching for the ancient narratives and
for subsequent receptions. In contrast, however, there are other plays
where failure to change a protagonist’s mind is the crux. For example,
in Sophocles’ Antigone both Antigone and Creon’s resolves are tested
through successive episodes in which their entrenched positions and
preconceptions are challenged. Antigone does not change her mind
about her obligation to provide some kind of funerary rite for her
brother and in that sense chooses her fate. Creon is also intransigent
in his determination to discover and condemn the perpetrator of the
attempted burial of Polyneices. Only at the very end of the play does
he relent – ‘since my opinion has come round to this, I who bound
her will untie her in person, lines 1108-9’. 2 By then it is too late to
save Antigone or his own son or his wife.
1 Letter to John von Staupitz, May 30, 1518, Luthers Works vol. 48, Letters, 65-70.
2 Tr. Harrison 2003: 83
69
Creon’s ‘tragedy’ is that he failed to change his mind. In that he
reflected the attributes of political leadership that were admired at
the time. For example, in his History of the Peloponnesian War, the
historian and former general Thucydides, who was roughly a contem-
porary of Sophocles, commented on several occasions on the dangers
of sudden or frequent changes of mind. In an extended dramatization
of the Assembly debate about the fate of Mytilene he attributes to
the Athenian demagogue Cleon the argument that if the Assembly
changed its decision to kill the adult males of Mytilene it would be
allowing itself to be seduced by the attractions of arguments put
forward by rhetoricians and in ‘theatrical shows’ – ‘any novelty in an
argument deceives you at once but when the argument is tried and
proved you become unwilling to follow it’ (Thuc. 3.38).3 Thucydides
himself was often critical of Cleon but in his account of the Last
Speech given by Pericles he has Pericles, whom he greatly admired,
make a similar point in respect of the Athenian arche over the other
Greek poleis: ‘your empire is now like a tyranny; it may have been
wrong to take it; it is certainly dangerous to let it go’ (Thuc. 2. 63).
This parallels the political stance of Creon in Sophocles’ Antigone.
The statesmanlike imperative is not to change course. Thucydides,
who was no friend of the demos, criticised the Assembly for its
changes of mind, when it first held Pericles to account and fined
him but then shortly afterwards ‘as is the way with crowds they
again elected him to the generalship and put all their affairs into
his hands’ (Thuc. 2. 65). That aside marks one of Thucydides’ few
direct authorial comments.
It is clear, therefore that in ancient Athens, as in modern times,
intransigence and changes of mind and their consequences were
matters of political and social import. The distinctive contribution
of tragedy is its formal and lexical capacity to explore the nuances
and the twists and turns of dilemmas and to present their affective
3 English translations of Thucydides are taken from the version by Rex Warner,
1954, London: Penguin.
70
and rational hinterlands through the reworking of mythical narratives
rather than through the pressing but sometimes ephemeral situations
of their own present.
*
* *
71
which would be known to the spectators, who were aware of the
events in the Trojan narrative via the Epic Cycle, the Homeric poems
and other aspects of the cultural memory. The spectators do not,
however, know precisely how the play will handle those elements
and so must hold their breath and keep silent as they discover not
only what happens, but how. Thus the Watchman’s characterisation
of Clytemnestra and her authority lays the ground for the encounter
between Agamemnon and Clytemnestra as Agamemnon prepares to
enter the house after his return.
The Chorus that follows adds a further dimension to the narrative
and to the dense concentration of emotions that add to the sense of
foreboding (lines 40 ff ). The opening lines of the Parodos evoke im-
ages from the natural world that are both emotive and metaphorical.
The Chorus sings of the might and power of the Greek fleet but the
allusion to the vultures, apparently fierce and vengeful, is also the
vehicle for shifting the mood, since the savage birds also ‘sorrow for
their young at home’ and their exertions on behalf of their young
are said to be wasted. The cries of the birds turn into a lament that
in its turn conjures up the Furies, the agents of vengeance. This im-
age foreshadows the second and third plays of the trilogy in which
Orestes kills his mother Clytemnestra and is pursued by the Furies.
The register of lament continues with another image from the natural
world – the slaughter by the powerful eagles of the pregnant hare
(lines 115-6) and the evocation of the resentment of Artemis against
this brutality.
The Choral song then returns to the events at Aulis when the
Greek fleet was becalmed and morale in the army collapsed (‘foul
idleness/Causing the men to stray’). When he hesitates to allow his
child Iphigenia to be sacrificed in order to placate the gods and re-
vive the winds, Agamemnon’s leadership is put under pressure – the
soldiers beat the ground with their staffs, a gesture of rebellion. He
weighs the dilemma and acknowledges that his heart must be heavy
whichever alternative he follows. It will be heavy if he betrays the
fleet and destroys the alliance of the Greeks. Equally if he butchers
72
his child, he will ‘smear a father’s hands in a daughter’s blood bath
at the altar’. However, Agamemnon’s deliberation is short-lived. He
acknowledges to the army that ‘it is right for you to insist on a sac-
rifice of virgin blood’. The Chorus continues as a quasi-messenger
speech. It sings a graphic narrative which is both full of pathos and
also semi-pornographic in its visual focus:
73
After a prayer her father told his attendants
To lift her like a goat
Face downwards over the altar……
[Iphigenia is muzzled, specifically to prevent her uttering a curse
on the house of Atreus]
She waits voiceless under the constraint of the gag
As her saffron-dyed robe trailed down
She hit each of the sacrificers
With a pitiable shot from her eye
Like the subject of a painting
Ever wishing to speak
For she had often sung to them at her father’s house
In the men’s lavish quarters, still unviolated and with pure
voice’. (tr. P. De May, 2003, 23).
74
to speak and her recourse to visual signs.6 She is presented through
the gaze of the spectators at the sacrifice but they are in their turn
presented by implication through her gaze. The language suggests
violation and imports into the scene echoes of the visual nature of
non-consensual sex as well as of non-consensual killing. 7
Thus in the parodos the Chorus turns the clock back. It commu-
nicates Agamemnon’s intransigence when challenged to assert his
own waning power over the army and adds another dimension to
the sense of foreboding expressed in the Watchman’s speech. The
action of the play then returns chronologically to the present with-
out specifically linking Clytemnestra or evoking her emotions at the
context and manner of the death of her daughter.
Clytemnestra’s Beacon speech (rhesis) begins at line 281. It plays
on the several twists and turns in chronology and focus. In describing
her own situation she manipulates the perceptions of the spectators
within the play – the Elders of Argos (the Chorus), and of the spec-
tators external to the play, those in the theatre. She begins by saying
that with the passage of time, ‘people’s timidity dies away’. She can
then speak of her own situation and her suffering as a lone woman,
beset by ‘festering rumours’. This repeated phrase insinuates the idea
of the poisonous effects of the years in which she has been left in
Argos. The sub-text is of the equally poisonous effects of the loss
of her daughter Iphigenia, sacrificed by Agamemnon to obtain a fair
wind for Troy so that the Greeks could sail on from Aulis. The dilem-
ma faced by Agamemnon in making up his mind and the brutality
of the sacrifice was graphically described by the Chorus earlier in
the play (lines 218ff ). This ‘back-story’ is unspoken by Clytemnestra
6 Raeburn and Thomas ad loc., point out that in her brightly coloured dress
Iphigenia is conspicuous and that her eyes emit rays of light that illuminate the object
seen (which aligns with Greek theories of vision, Raeburn and Thomas 2011: 94-5).
7 This provides a comparison and contrast with the dramatic and verbal strate-
gy deployed by Euripides in Iphigenia at Aulis, to which I shall return later in this
discussion
75
but is part of her consciousness and that of the spectators, internal
and external to the play.
At Agamemnon’s return, Clytemnestra changes the focus of her
address which is initially to the Chorus of Elders (lines 855ff ) and
speaks to Agamemnon himself. She asks him to dismount from his
chariot but not to touch the ground with ‘the foot that has conquered
Troy’. Instead, he must enter the house by walking on the tapestry
of precious cloths that she has ordered to be spread before him.
Ambiguously she asserts that only in this way this can justice be done.
When Agamemnon demurs it is for two reasons – the first is that he
believes he should not follow such female pampering; honour should
be paid to him in more appropriate ways. The second ground for his
hesitation is that he knows that the honour he is being offered in un-
Greek. Laying out such a carpet for him to walk on involves revering
him like a god. In the stichomythia that follows, Clytemnestra asks
him what Priam, the great king of Troy, would have done if offered
such an honour. Agamemnon admits that Priam would have walked
on the cloths. The desire not to be vanquished in competition with
Priam over comes Agamemnon’s hesitation. He is also motivated by
Clytemnestra’s rhetorical demand that he should not heed criticism
from others. Agamemnon is still aware that Clytemnestra is winning
the argument, asserting her power, but there is a certain quid pro
quo in that he is also bringing into his house Cassandra, his Trojan
concubine, part of the booty of war. He can therefore present to
himself his action as representing a kind of victory over Clytemnestra,
rather than a submission to her authority:
‘This girl, a flower picked out from our horde of booty and
Given to me by the army, comes with me.
Now, since I am forced to heed you in this matter,
I will enter the halls of my house, trampling on this purple’.
76
ened his mind in Aulis and convinced him to sacrifice his daughter.
It is his pride and his desire for the show of power that convinces
him to overcome his scruples, change his mind and enter his house
with a symbolic trampling of the tapestries. The Chorus comment
that, in spite of this apparently triumphant return and entrance, they
still feel fear and foreboding – ‘time has now grown old’. Cassandra’s
prophecy to the Chorus (beginning at line 1214) is that ‘you will see
Agamemnon dead’. Clytemnestra’s account of the killing of Agamemnon
(beginning at lines 1372) is partly a kind of Messenger Speech, partly
a defiant self-justification. Her extended exchange with the Chorus
repeatedly invokes the sacrifice of Iphigenia and depicts her hand
as ‘the craftsman of justice’. Agamemnon did not change his mind
again about the sacrifice and he pays the price. The internal spec-
tators, the Chorus, re-situate the events in a continuing process of
brutality and revenge. The external spectators, in the ancient theatre
and subsequently are also compelled resituate their own emotions
and moral judgements, to endure their own metanoia.
8 Aeschylus’ Agamemnon dates from 458 BCE. Iphigenia at Aulis was Euripides’
last and probably unfinished play, performed posthumously in about 405 BCE at
the Great Dionysia in Athens where it won first prize. Euripides’ Iphigenia at Tauris
probably dates from 413/412 BCE and dramatizes the form of the myth in which
Iphigenia was spirited away from Aulis by Artemis and became a priestess of the
goddess among the Taurians (in the Crimea) before escaping once more to become
Artemis’ priestess in Attica (for discussion of the ancient sources for that part of the
myth and their sometimes contradictory perspectives on Agamemnon’s motives and
decisions, see further Collard and Morwood 2017: 3-6
77
to Troy before turning the lens on the consequences, culminating in
Clytemnestra’s entrapment of Agamemnon and his murder following
his return from Troy. Euripides’ treatment of metanoia permeates
Iphigenia at Aulis and shapes its dramatic structure. Metanoia in the
play has three main focal points: Agamemnon’s dilemma; Achilles’
decision about what (not) to do; Iphigenia’s change of mind about
how to regard her approaching and inevitable death. Here, I shall
explore only the first and third of these, since Achilles’ attitudes and
actions are not treated by Aeschylus and are less densely layered
by Euripides.
The text of Euripides’ play presents many problems, partly because
it was unfinished at his death and possibly prepared for performance
by other hands, including his son, and partly because of the inter-
polations and corruptions in the transmission of the manuscripts. 9
For the purposes of this discussion, I shall not address the section
of the play from lines 1531 onwards, which focuses on her disap-
pearance. Textual issues from the earlier part of the play are not
central to my discussion – in fact, questions of possible interpolation
actually serve to emphasise the continuing importance attached to
the theme of metanoia.
Euripides focuses on Agamemnon’s indecision in the opening se-
quence of the play, which serves as a kind of prologue. The Old Man
observes that Agamemnon is repeatedly erasing what he has written
on his pine – tablet, flinging it on the ground and weeping (lines
28ff ). Agamemnon then recounts how he resisted the pronouncement
by the seer Calchas that Iphigenia must be sacrificed to Artemis and
instead instructed the herald Talthybius to dismiss the army. However,
Agamemnon then gave in to the persuasion of his brother Menelaus
and wrote to his wife, Clytemnestra, to instruct her to bring Iphigenia
to Aulis on the pretext that she would be married to Achilles. He then
writes again to Clytemnestra to countermand his order but the Old
9 See further Collard and Morwood 2017: ix. They point out that of the play’s 1629
lines only about 200 have not been revised or deleted by various scholars.
78
Man carrying the message is intercepted by Menelaus (lines 303 ff) and
the two brothers engage in an extended agon in which Agamemnon
asserts he will not sacrifice his child, only to be interrupted by her
arrival at Aulis. In a self-serving speech Agamemnon laments that
although he has the dignity of his rank he is actually a slave to the
masses (line 450). Menelaus then experiences a change of mind and
urges Agamemnon not to kill his daughter but instead to disband the
expedition – ‘Let it go from Aulis!’ (line 495). The argument swings
to and fro, with each brother’s change of mind inverting reason and
emotion. The exchange ends with Agamemnon then taking a stand
against his brother, arguing that if he fails to sacrifice her the army
will turn against them and they will both be killed.
When Clytemnestra and Iphigenia come to him Agamemnon ini-
tially maintains the charade that his daughter is to be married to
Achilles. When Iphigenia discovers the truth she pleads for her life
and Agamemnon goes through a further process of apparent un-
certainty before he reasserts the political imperative that means he
cannot defy the will of the army. Achilles briefly plans to intervene
but he is persuaded not to act because in the key metanoia episode
in the play Iphigenia accepts her fate. She shifts her position from
one of seeing herself as the victim: ‘my blood is being shed, I am
being destroyed, in impious slaughter by an impious father’ (lines
1316-8, tr. Collard and Morwood). After emerging from her retreat
into the shelter of the hut, Iphigenia interrupts the stichomythic
exchanges between Achilles and Clytemnestra with her assertion
that her decision is that she will die – ‘I want to do just this, glori-
ously, putting all meanness of spirit wholly aside’ (line1375). 10 Her
reasons for becoming complicit with her own death are that this
will ensure the progress of the fleet to Troy and victory over the
Trojans – ‘through my death I shall ensure all that and my fame as
10 At lines 1183-4 Clytemnestra foresees the effect that the sacrifice of Iphigenia
will have on herself. This is another example of the use of foreshadowing in Greek
tragedy.
79
the liberator of Greece will be blest’ (lines1383-4). The word trans-
lated as ‘fame’ is kleos in the Greek. In using the term for herself,
Iphigenia takes over a male concept of everlasting fame, glory and
reputation. This concept is recurrent in the language of the play. At
the beginning of the play the Chorus in lines 563-7 has already al-
lied the achievement of lasting glory (kleos) through the cultivation
of reputation (doxa). They proclaim that this is underpinned by an
educated upbringing (paideia) that develops virtue and merit (arete).
The cluster of attributes praised by the Chorus includes a sense of
shame, which is equates with wisdom. Most important of all for the
thread of metanoia that runs through the play, the Chorus alludes to
the grace (charis) through which obligation is recognised through
the exercise of the mind (gnomon).
Underlying Iphigenia’s change of mind are two arguments presented
by her that are somewhat different from one another and yet com-
plementary. The first is that one person should not save themselves
at the cost of the benefit to the whole community. The second is that
it is not right that she, as a woman, should be valued against the
lives and prosperity of men. On the contrary, one man’s life is to be
valued above that of many women. She elides the value of the lives
of men with the ideal of her native land, the ‘fatherland’ (patridos).
There are a number of different aspects to this change of mind
which have been interpreted and elaborated in different ways by
scholars as well as in staging and other creative responses to the
play. The first point to be made is that in the play Euripides dram-
atizes the development of a consensual dimension in Iphigenia’s
contemplation of her death. This is in contrast to Aeschylus’ treatment
in the Agamemnon in which she is given no voice and is depicted
entirely as the victim. Euripides presents this dimension through
verbal debate and reflection, in contrast to the visual treatment in
Aeschylus’ play, and it is on words and concepts that the metanoia
in his play hinges. The second important point depends on the first,
that idealisation of Iphigenia’s viewpoint has been regarded by
scholars and by creative interpreters as a forerunner of the gendered
80
subservience of women to the demands of the ‘fatherland’ that has
subsequently characterised both totalitarian and other supposedly
liberal societies. It can of course be argued that her viewpoint is
the result of her rationalisation of the inevitability of her death, that
it is indirectly enforced on her. Nevertheless there is an element of
consensual pride in her decision, however problematic this may be
and the ways in which it is staged and critiqued provide an index
to the viewpoint of the interpreters. Edith Hall has discussed how
Iphigenia’s speech can no longer be regarded as an ‘uncomplicated
patriotic celebration of a Greek heroine’s selfless heroism in offering
herself for immolation on the altar of her country’ (Hall, 2010, 290).
This is perhaps especially the case in the light of twentieth-century
Nazi and Stalinist propaganda and brainwashing. Hall’s sums up the
metanoia as the result of Iphigenia’s real problem, which is ‘how to
die with honour in an ignoble cause for the sake of unworthy men’
(Hall, 2010, 290).
Iphigenia at Aulis has been extensively revived and adapted. 11 In
recent years film has become important as a medium in the reception
and interpretation of the sacrifice, for example in Iphigenia, directed
by Michael Cacoyannis and released in 1978. Modern associations
of the metanoia trope have been explored in translations adapted
for staging in the theatre, for example Don Taylor’s 1990 transla-
tion was staged at the National Theatre in London in 2004, directed
by Katie Mitchell. In the 1990s Ariane Mnouchkine director of the
company Theatre du Soleil, staged Iphigenia at Aulis as a prelude to
her production of the Oresteia, Les Atrides, eventually making it a
ten hour four play cycle.12 Each of these examples raises significant
questions about the ways in which medium and cultural/political
81
contexts shaped the interpretation and the creative dynamic. The
significance of film and adaptations of the play at times of politi-
cal and social crisis has been explicitly noted by scholars. 13 Here, I
would like to comment briefly on two aspects.
The first aspect is the interpretation of Iphigenia’s change of
mind that is offered by Taylor in his translation and transplanted to
the stage in Katie Mitchell’s 2004 production. Taylor translates the
concept of kleos in terms of the everlasting fame that Iphigenia envis-
ages: ‘I shall become famous as the woman who set Greece free’ 14.
The lexical choices made by Taylor situate Iphigenia’s speech at the
intersection between quasi-fascist adulation of fatherland and the
desire to rationalise an inevitable death that she hopes to approach
with dignity. Her interjection, ‘What nation is better than Greece’,
and her rhetoric to her mother, ‘When you gave me birth mother, it
was as a Greek woman, part of the Greek nation’, are set alongside
her aspiration: ‘If I must die let me do it decently, with dignity and
courage’ 15. Iphigenia stakes her claim to a dual kleos, one of the
everlasting fame sanctioned by masculinist values, but also one that
proclaims the special role of female roles in the nation. Of course
this smacks of indoctrination and complicity and Taylor has made
the sinister modern implications clear in his Introduction to his
translation:
‘she offers herself as a patriotic icon, and ……makes crudely
rabble-rousing speeches full of lines reminiscent of the things Hitler
said at Nuremberg….that Greeks must always dominate barbarians.
In performance, the speech is genuinely frightening. As we see the
13 See further the discussion of the impact of the play in the 1990s and subse-
quently and the prominence of Irish adaptions in Collard and Morwood 2017: 42-45
and the exploration of the relationship between the play and narratives of human
origins and cultures of violence in Michelakis 2013: 198 ff.
14 Taylor 2004: 52.
15 Taylor’s language and rhythms at this point recall for readers and listeners on
English the opening words of the 1914 sonnet ‘The Soldier’ by the World War 1 poet
Rupert Brooke ‘If I should die, think only this of me…There shall be/In that rich
earth a richer dust concealed; /A dust whom England bore, shaped, made aware’.
82
young girl transforming herself before our eyes into a fascist poster
or a Nazi statue of German womanhood sacrificed for the greater
Reich’. 16
Taylor’s reference to ‘rabble-rousing’ resonates with the comments
by Edith Hall on how the tragedy portrays the political manipulation
of a volatile unruly mob [sc. the army] by fraudulent politicians. 17
Both Cacoyannis’ film and Mitchell’s stage production underline
those elements.
The second aspect that is crucial to modern receptions of the play
by creative practitioners and by scholars is interest in the relationship
between interpretation of Iphigenia’s metanoia and deep-seated aspects
of cultural and human concerns. Pantelis Michelakis notes that at one
level the sacrifice of Iphigenia relates to the sacrifice of innocents in
Cyprus or Vietnam. 18 He then digs deeper and refers in his discus-
sion of Cacoyannis’ film to its relationship to contemporary European
concerns with origins and cultural anxieties: ‘Cacoyannis’ Iphigenia
focuses on a story of origins. Aulis is the site where the Trojan war
began [sc and from which] much of Western culture and literature
has arguably originated…..the film uses the tragically inflected
story of Iphigenia’s sacrifice at Aulis to illustrate a grand narrative
about how human culture is founded on violence’. Michelakis goes
on to relate this narrative about the violent foundations of culture
to the ideas of modern thinkers such as Freud, Darwin, Frazer and
Girard, arguing that Cacoyannis’ film moves out from a specific set
of historical circumstances to engage with a larger configuration
16 Taylor 2004: xvi. For extended treatment of Nazi appropriation of Greek tra-
gedy, see Fisher-Lichte 2017: especially ch. 5. Fischer-Lichte’s study also addresses
appropriation of tragedy in the post-war German Democratic Republic under Soviet
domination, as well as documenting its role in dissent and resistance to totalitarian
regimes.
17 Hall, 2010, 290. The pattern of manipulation is similar to that categorised by
Thucydides.
18 The director Cacoyannis was a Greek Cypriot and the film was made at a time
when conflict between Greeks and Turks in the island of Cyprus was intense.
83
of cultural anxieties 19. Don Taylor made an analogous point in the
Introduction to his translation when he used the subject matter of
Euripides’ play as an analogy not only with the specific context of
the melange of emotion and psychological manipulation that led to
the willingness of soldiers in World War 1 to go to their deaths, but
also with the Biblical archetype of the willingness of Abraham to
sacrifice his son Isaac, a willingness invoked by Wilfred Owen in
his poem Abraham and Isaac in which he lamented how this led to
the killing of ‘half the seed of Europe one by one’ 20. The treatment
of metanoia in Aeschylus and Euripides has in its turn seeded and
destabilised the narratives surrounding human violence, its rationales
and its complicities throughout the ages.
Bibliography
84
¿Monodein: threnein? Tradiciones poéticas
e n l a m o n o d i a t r ág i c a *1
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_3
monodies, some of their most characteristic traditional functions, as
well as others that reveal a new inspiration.
I. El concepto de monodia
1 Es muy posible, sin embargo, que Platón esté pensando también en las mono-
dias trágicas; famosas fueron en la antigüedad algunas monodias de Eurípides, cuya
ejecución, como solos virtuosos, es posible que entrara a formar parte de ciertos
agones musicales.
86
ésta mantuvo con la tragedia en su búsqueda de definición propia 2.
En Ranas, la monodia forma parte de la competición entre Esquilo
y Eurípides (1331-1363) a propósito de quien compone mejor las
partes cantadas (μέλη)3 de sus tragedias (ΑΙ. Τὰ μὲν μέλη σου ταῦτα·
βούλομαι δ᾽ἔτι / τὸν τῶν μονῷδιῶν διεξελθεῖν τρόπον, “E. Éstos son tus
cantos líricos. Pero todavía quiero examinar el tipo de tus monodias”,
1329-1330), y parodias de monodias, especialmente de Eurípides, se
encuentran en diversos pasajes de comedias de Aristófanes, como Aves
226-259, Tesmoforintes 1065-1068 y Ranas 1331 ss.4 De otro lado, el
término μονῳδία o el verbo correspondiente aparecen mencionados
en diversos pasajes de las obras de Aristófanes, como Ranas 849,
944, 1330, Tesmoforiantes 1077 y Paz 1012.
En su aclaración del término, diversos Lexica de la antigüedad,
como La Suda y Focio, identifican el término con su contenido más
habitual, el treno (μονωιδεῖν· τὸ θρηνεῖν), y el modo de ejecución,
el canto a cargo de un solista 5 . Hesiquio une ambos conceptos
con la glosa μονοθρηνεῖν6; de igual manera, el escolio al v.112 de
la Andrómaca de Eurípides señala que μονωιδία ἐστὶν ὠιδὴ ἑνὸς
προσώπου θρηνοῦντος.
En la crítica moderna, la delimitación de la monodia es en mu-
chas ocasiones imprecisa, en particular cuando la monodia está
en contacto con un canto amebeo. Es el caso, por ejemplo, de la
que canta Yocasta al comienzo del primer episodio de Fenicias,
considerada por algunos como monodia pero por otros como una
87
ejecución monódica que forma parte de un canto amebeo más am-
plio (291-353), en el que quedarían integrados los versos de llamada
del coro que la preceden. De hecho, hay bastante unanimidad a la
hora de aceptar que la monodia es una parte que se desgajó del
canto amebeo, y también, siguiendo la opinión de Aristófanes, que
fue principalmente Eurípides quien dio entidad a la monodia como
μέρος de la tragedia, al menos si juzgamos por las tragedias que
han llegado hasta nosotros 7. Barner, en su estudio de la monodia,
sostiene que, convencionalmente, podemos entender por monodia
“eine vom Schauspieler gesungene (‘lyrische’ oder ‘melische’) Partie
von grösserem Umfang und relativer Eigenständigkeit” 8.
88
Por lo que se refiere a música y danza, las monodias se cantaban
acompañadas generalmente por el aulos, algunas veces por la lyra o
la kithara, en lo que no se diferenciaban del coro. Distinta debía de
ser la situación por lo que respecta a los modos tonales. En los
pseudoaristotélicos Problemata (922b) se afirma que los modos hipo-
dóricos y los hipofrigios eran propios de las partes cantadas a cargo
del actor, pero no de las partes que cantaba el coro. Asociada a la
música estaba la danza, de la que debieron de existir tipos distintos.
Aristófanes, en Ranas 849, menciona las monodias “cretenses”, que
debían de estar acompañadas de una danza muy movida. Pero los
detalles nos faltan. Muchas veces la monodia contiene indicaciones
sobre la forma musical de presentación (de corros que bailan en
derredor canta repetidamente Casandra en la segunda parte de su
monodia en Troyanas 325 ss.), los instrumentos que la acompañan,
flauta, lira o siringe (así, en Helena 167 ss.); con mucha mayor fre-
cuencia la monodia se refiere al propio canto con términos como
μέλος, θρῆνος, αὐδᾶν, ἀείδειν, μελῳδός (βάρβαρος βοά en la monodia
del frigio, Orestes 1385), sin que por ello podamos hacernos una
idea exacta de la expresión que cobraba el canto.
La representación a través de palabra, música y movimiento de una
determina acción sobre la escena alcanzaba en la monodia trágica
su expresión máxima, pues, como señalan los pseudoaristotélicos
Problemata 918b, el actor imita, pero el coro imita menos: ὁ μὲν γὰρ
ὑποκριτὴς ἀγωνιστὴς καὶ μιμητής, ὁ δὲ κορὸς ἧττον μιμεῖται. Es este
carácter básico mimético de la monodia el que explica que muchas
de ellas sean astróficas, pero el poeta podía construir una monodia
dotándola de responsión estrófica; es lo que hace Eurípides con la
monodia de Electra en la parodos de la obra homónima, que, al modo
esquileo, tiene mesodoi intercalados (en los dos primeros sistemas,
125 ss., 150-156) y un refrán al comienzo de cada unidad métrica
(en el primer par, 112 ss., 127 ss.) 9. Nada más tradicional.
89
En cuanto a métrica, lenguaje y estilo, las monodias tienen un
cercano parentesco con los cantos del coro (metros líricos y vocali-
zación doria10), y como todo el lenguaje poético griego, la monodia
utiliza también formas fuertemente estilizadas como son las formas
del lenguaje ritual (sobre todo, tal y como éstas aparecen en los
trenos), las diversas figuras de repetición de palabras, y ciertos ras-
gos de estilo de la épica (vocabulario, epítetos, fórmulas, sintaxis).
Entre las figuras de repetición de palabras están a) la frecuencia de
formas flexivas semejantes; b) las preguntas al comienzo de la mo-
nodia con la que hace su entrada en escena un personaje (adónde,
dónde, quién); c) apóstrofes e interjecciones donde cobra expresión
el pathos del que canta y su respuesta emocional ante la situación
de necesidad en que se encuentra 11. La variedad y colorido de las
exclamaciones de la abubilla en Aves de Aristófanes (227 ss.) es
un reflejo paródico de este rasgo de estilo de la monodia trágica y
un testimonio insuperable: el aria que canta la abubilla se sitúa en
la línea de las monodias de Eurípides que dan forma a la primera
escena de la parodos, antes de la entrada del coro, donde cobra
expresión la atmósfera de la que parte el drama 12. La parodia de
Aristófanes en Ranas 1331-1363 refleja lo que podrían considerarse
como los elementos de estilo más característicos de la monodia, al
90
menos de las monodias más novedosas de Eurípides, como la que
canta el frigio en Orestes13.
La crítica moderna es unánime al considerar que la monodia del
frigio es una muestra de la influencia que los cambios musicales de
finales de siglo operaron sobre formas poéticas contemporáneas,
como el nomos citaródico y el ditirambo; también, naturalmente,
sobre los elementos cantados de tragedia y comedia 14 . Esta mo-
dernidad se plasmó no solo en lo rítmico-musical, sino también en
la tendencia a desarrollar un estilo monódico: las extensas partes
ecfrásticas del que Kranz denominó “estilo bello” 15 parecen estar
relacionadas con claridad con el estilo del “nuevo ditirambo”. La rica
polimetría y los frecuentes cambios de ritmo –adaptaciones necesarias
a los cambios experimentados por la música– fueron característicos
de este “nuevo ditirambo”, cuyo máximo exponente fue Timoteo de
Mileto. Igualmente, el predominio de voces femeninas –más altas y
más suaves– no solo en las partes monódicas, sino tambien en los
coros, creciente en las obras de Eurípides a partir de la década de los
veinte, es un fenómeno que debe ser relacionado con la influencia
de los nuevos modos y estilos musicales 16.
91
III. Motivos tradicionales y contaminación de géneros en la
monodia trágica
17 Para una reconstrucción histórica del treno como género poético puede verse
Cannatà Fera 1990: 7-46.
92
taciones tienen lugar en presencia del muerto 18, aunque como se
ha señalado antes, Ifigenia lleva a cabo un acto ritual por alguien
que no ha muerto, sino que ella cree que ha muerto, su hermano
Orestes 19. Un caso especial lo representa la tragedia Orestes (960-
1012), en la que Electra se lamenta anticipadamente por su propia
muerte: ya que Orestes ha de morir, y con él la propia Electra, nadie
de la familia podrá después entonar el treno.
Cantos de muerte en un sentido amplio pueden considerarse
además de las monodias de Polixena (Hécuba 197-215), de Electra
(Orestes 960-1012) y de Ifigenia (Ifigenia en Áulide 1475-1499)
antes mencionadas, la que canta Evadne para dar expresión a su
deseo de morir en la pira en la que arde el cadáver de su marido
(Suplicantes 990-1030). La muerte está presente también en la mo-
nodia de Heracles (Traquinias 983-1043) y en la que canta Hipólito
en la tragedia de igual nombre (1347-1388), en la que entona Áyax
(en especial 394-400) e incluso en la de Filoctetes (a partir del v.
1084), en las tragedias homónimas.
Algunas de las monodias que hemos mencionado representan una
especie de muestra prealejandrina de mezcla de géneros. Es el caso
de la que canta Evadne en Suplicantes, donde se funden motivos
del canto de boda y de la lamentación por el muerto. La monodia
de Evadne vive de la tensión entre ambos temas, del contraste –tra-
dicional en la lamentación mortuoria– entre el “en otro tiempo” y
el “ahora”, que Eurípides desarrolla aquí en forma quiasmática: al
comienzo de la estrofa está el recuerdo de la boda, la dicha mayor
del “en otro tiempo”, a ella le sigue su anhelo de morir; la antistrofa
comienza con la idea de la muerte, con la descripción del fuego en
el que arde el cadáver de su esposo y al que Evadne se va a arrojar,
93
a ella le sigue la idea de la luz y los cantos de boda, pues la muerte
es vista como un himeneo 20.
La monodia de Evadne es un canto en responsión estrófica, com-
puesto principalmente en gliconios, un metro popular, que Eurípides
utiliza con frecuencia en las tragedias de su etapa media y tardía de
creación 21. La responsión estrófica acentúa la ironía estilística de
una entrada así construida –en una forma rítmica estricta– para dar
expresión a unos sentimientos impetuosos, que rallan en la locura
(ἐκβακχευσαμένα, 1001)22. La muerte de Evadne es anunciada como
un segundo matrimonio23 y su canto, de hecho, presenta algunos de
los motivos y de las características del canto de boda, entre ellos, el
elogio de los esposos, tanto de Capaneo (998-999) como de Evadne
(1013-1015, 1029-1030), el recuerdo del esplendor de la boda (990-
999) 24, la alusión a la luz (que aquí une la ceremonia del pasado
con el fuego de la pira a la que se va a arrojar Evadne: τί φέγγος,
τίν᾽ αἴγλαν, 990 // ἴτω φῶς γάμοι τε, 1025); sobe todo, las referencias
directas a la unión carnal de los esposos (1019-1021: σῶμά τ᾽ αἴθοπι
φλογμῷ / πόσει συμμείξασα φίλον / χρῶτα χρωτὶ πέλας θεμένα, “unien-
do amorosamente mi cuerpo al de mi esposo en el fuego ardiente”).
Con un carácter muy distinto al que tienen otros cantos de boda
presentes en la tragedia, como la monodia de Casandra en Troyanas
llamando al coro y a su madre a celebrar su unión con Agamenón, el
solo de Evadne, que tiene detrás un lamento fúnebre de ausentes (el
94
de las madres argivas por sus hijos muertos), es fundamentalmente
la expresión de un impulso y una tensión eróticos.
La monodia de Casandra en Troyanas 308-341 es un canto de
boda que tiene detrás el modelo popular del himeneo 25, adaptado
aquí a una tragedia de catástrofe. Como en Persas, espera, anuncio
y reacción a la catástrofe constituyen los tres momentos básicos
de la acción. Así, tras la destrucción de Troya, una vez sorteadas
las principales cautivas y tras el anuncio de Taltibio, Casandra ir-
rumpe en escena agitando una antorcha y cantando y danzando
mientras invoca a Himeneo; en un fuerte contraste con el escena-
rio de dolor, muerte y devastación que recorre la obra, la entrada
de Casandra reviste las características de un canto tradicional de
celebración que cobra un significado profundamente irónico en la
obra.
El canto es autoreferencial en sus alusiones a diversos momentos
y costumbres que acompañaban el rito del matrimonio, que se dis-
tribuía en varios días 26. La ceremonia comenzaba con la conductio
(nymphagogia) de la novia desde la casa del padre a la del marido,
al atardecer, a la luz de las antorchas, que portaba la madre, y era
acompañada del canto del himeneo 27 . El canto era entonado por
un exarchos y los otros participantes respondían en coro en una
estructura antifonal. A la llegada del cortejo o durante la primera
noche de bodas, delante del lecho de los esposos, se entonaba el
epitalamio, mientras a la mañana siguiente se cantaba el diegerti-
kon, también llamado orthrion, atestiguado en un fragmento trágico
del siglo V, Esquilo, fr. 43 Radt. Las invocaciones a Himeneo (310:
ὦ Ὑμέναι᾽ ἄναξ, 314: Ὑμήν, ὦ Ὑμέναι᾽ ἄναξ, 322: ὦ Ὑμέναιε, 331:
Ὑμήν, ὦ Ὑμέναι᾽, Ὑμήν), el makarismos de los esposos (311-312:
25 Cf. Maas 1914. Algunas comedias de Aristófanes (Pax 1332 ss., Av. 1720
ss.) contienen también cantos de boda que debían de tener detrás modelos popu-
lares.
26 Puede verse Contiades-Tsitsoni 1990: 33-41.
27 En las fuentes antiguas el nombre “himeneo” se utiliza para referirse a expre-
siones mélicas diferentes. Sobre la confusión entre himeneo y epitalamio puede verse
Muth 1977.
95
μακάριος ὁ γαμέτασς· / μακαρία δ᾽ ἐγώ), las alusiones a la ceremo-
nia nupcial (λέκτροις, 313; ἁ γαμουμένα, 313; ἐπὶ γάμοις ἐμοῖς, 319;
παρθένων ἐπὶ λέκτροις, 323; νύμφαν, 337; ἐμῶν γάμων, 339; εὐνᾷ,
339) en particular, a las antorchas (φῶς, 308; φλέγω, 308; λαμπάσι,
309; ἀναφλέγω πυρὸς φῶς, 320) y al baile, con exhortaciones al
canto y a los movimientos de danza, (πάλλε πόδα. / αἰθέριον ἄναγε
χορόν, 325; ἄγε σύ, Φοῖβε, 329; χόρευε, 332; ἕλισσε τᾷδ᾽ ἐκεῖσε μετ᾽
ἐμέθεν ποδῶν / φέρουσα φιλτάταν βάσιν, 332-333; μέλπετ᾽, 339),
característicos del himeneo, son aquí reproducidos de forma con-
tinua para dar expresión a un canto estilísticamente tradicional,
pues está compuesto en responsión estrófica (un sistema), con
predominio de gliconios y un fuerte uso de las distintas figuras de
repetición de palabras (anáfora, aliteración, homoioteleuton, gemi-
nación).
Casandra asume en su monodia funciones que en un canto de
boda tradicional eran competencia de otros: ella es la que porta las
antorchas y la que dirige el coro; su canto contribuye así a focalizar
el himeneo sobre quien lo canta y a aislar la escena de la atmósfera
que la rodea. La entrada de Casandra es excepcional, como lo son
los poderes que presiden su figura: presa del enthousiasmos, como
una ménade (εὐἅν, εὐοἵ exclama en 326), Casandra se imagina en el
templo de Apolo (329) e insta al dios a dirigir el coro. Su aislamiento
al cantar este solo queda acentuado por el silencio de la joven so-
bre lo que vendrá después –la ruina sobre la estirpe de los Atridas
que su unión con Agamenón va a traer–, y la celebración del rito de
tránsito que su himeneo trae consigo cobra una expresión siniestra
para el espectador.
Este llamar la atención sobre sí mismo del que canta una mo-
nodia, la creación de una atmósfera que tiene como centro al
que canta y su visión particular de la situación en que se en-
cuentra, sentida muchas veces como incomunicable, la unión
para ello de motivos tradicionales diversos que permitían sor-
prender al espectador se hace par ticularmente visible en las
monodias de la parodos, un lugar reservado tradicionalmente al
96
coro 28. La monodia que canta Electra dando comienzo a la parodos
en la tragedia homónima de Eurípides es una muestra clara de estas
características y de las potencialidades de la monodia para crear una
perspectiva definida en la entrada de la tragedia.
Electra aparece en escena tras la conclusión del prólogo para
entonar el treno anunciado al padre muerto. Porta el agua para las
libaciones y comienza a cantar. El espectador espera que la pro-
tagonista entone el treno tradicional, pero la monodia de Electra
convoca motivos tradicionales que no solo pertenecen a la esfera
ritual del treno.
Para empezar, el refrán que repite al comienzo de cada una de
las unidades métricas que componen el primer par (σύντειν’ -ὥρα-
ποδὸς ὁρμάν· ὤ, / ἔμβα, ἔμβα κατακλαίουσα· ἰώ μοί μοι. “acelera –¡es
hora!– el ritmo de tu pie, ¡oh, camina, camina, llorando! ¡Ay de mí,
ay de mí!, 112-114), en dímetros anapésticos acatalécticos, contiene
expresiones que evocan un canto de trabajo, como el coloquial ἔμβα,
el uso de una frase nominal, los imperativos asindéticos y la excla-
mación. El canto comienza, pues, con una tensión notable entre dos
focos distintos; de un lado, Electra, que soporta trabajos horribles,
lejos del palacio paterno y unida a un humilde campesino, a quien
sus conciudadanos llaman la “desdichada Electra 29; de otro, su pa-
dre, Agamenón, muerto injustamente a manos de su esposa y Egisto
(122-124). De igual manera ocurre al final del primer sistema: Electra
utiliza la forma tradicional de la plegaria para invocar la ayuda de
Zeus, y de nuevo hay una tensión entre la lamentación por sí misma
(Electra ruega a Zeus que la libre de sus fatigas (ἔλθοις τῶνδε πόνων
ἐμοὶ / τᾷ μελέᾳ λυτήρ, “ven a librarme a mí, la desdichada, de estos
esfuerzos”, 135-136) y la venganza del padre muerto (137-139). En
28 Los tres poetas trágicos utilizan este recurso, y así monodias en la parodos las
encontramos en Andrómaca, Hécuba, Troyanas, Electra, Helena, Andrómeda, Ión e
Hipsípila de Eurípides, y en la Electra de Sófocles y Prometeo encadenado de Esquilo.
29 Se podría afirmar que hay cierta continuidad entre la segunda escena del pró-
logo, donde el diálogo entre el campesino y Electra se agota en la descripción de los
trabajos de la joven, y el comienzo de esta monodia de la parodos.
97
esta tensión entre dos polos que preside el canto en el primer siste-
ma, es la lamentación por la propia Electra la que domina.
La adaptación de elementos tradicionales a la situación de la
protagonista que esta monodia recrea se da también en el mesodo
astrófico del primer par (ἴθι τὸν αὐτὸν ἔγειρε γόον, / ἄναγε πολύδακρυν
ἁδονάν, 125-126: “Vamos, levanta el mismo lamento de siempre, sus-
pira el placer del abundante llanto”), donde hay claros ecos, como
se ha señalado, de elementos tomados del área semántica del matri-
monio, impregnados, claro está, de un significado distinto. Así, ese
ἔγειρε del verso 125 30, o el ἄναγε del verso siguiente, que también
aparece, profusamente repetido, en la monodia que canta Casandra
en Troyanas, al exhortar a bailar y a acompañar con la danza el
himeneo que está entonando (308, 325, 329 -ἄγε-, 332). Disimulados
en la monodia de Electra, estos elementos que evocan un canto de
boda debían de tener la misión de proyectar un significado concreto
para el espectador 31 en una tragedia donde el matrimonio cobra un
protagonismo significativo.
A partir del verso 141 (segundo sistema) el canto de Electra se
convierte en una lamentación por el padre muerto, con ecos claros
del treno tradicional: la llamada al muerto y la descripción de los
actos rituales que acompañaban dicha lamentación alcanzan dentro
de la monodia una independencia en sí mismos 32; pero la compa-
30 De Poli 2012: 125-127 señala las semejanzas con el canto popular del orthrion.
El autor menciona los paralelos que ofrece la presencia del verbo ἐγείρω en la mono-
dia de Electra con Danaides de Esquilo, fr.43 Radt: κἄπειτα δ᾽ εἶσι λαμπρὸν ἡλίου
φάος / ἕως ἐγείρηι πρευμενεῖς τοὺς νυμφίους / νόμοισι θέντων σὺν κόποις τε καὶ κόπαις
(“y después surgirá espléndidamente la luz del sol hasta que se despierte –diciendo:
“Felices sean los esposos, con los muchachos y las muchachas, según la costumbre–”);
también con Safo fr. 30.6-9 Voigt.
31 No son pocos los críticos que señalan el protagonismo que el matrimonio tiene
en esta tragedia, donde desde el comienzo de la obra el poeta subraya la situación
de Electra por lo que se refiere a la ausencia de un auténtico matrimonio, presentán-
dola casada con un campesino pero sin la posibilidad de hijos que puedan heredar
la casa paterna.
32 Características formales del treno como canto de lamentación tradicional eran
las apelaciones, las invocaciones, las exclamaciones de dolor y las diversas figuras de
repetición de palabras; desde el punto de vista del contenido, las fórmulas de inicio
del canto, las llamadas a participar en el lamento, las alusiones a los gestos de dolor
98
ración de Electra con el cisne quejumbroso contenida en el mesodo
de este segundo par (150-156), símbolo de una lamentación eterna
y no cambiante, vuelve a proyectar el foco de atención sobre quien
domina en esta parodos, Electra, a quien el poeta presenta como
una voz autorizada en el lamento de sus desgracias y renuente a los
consejos, una heroína resistente a compartir la visión negativa de la
utilidad de su canto que el coro, en su entrada, va a traer.
El treno domina en cierto modo sobre otros cantos tradicionales
que dan forma a la monodia en la tragedia griega, pero cobra signi-
ficados distintos al combinarse con motivos tradicionales distintos,
como los procedentes de cantos relacionados con la ceremonia del
matrimonio, cantos de trabajo, plegarias. En otros casos la monodia
trágica trae a expresión elementos característicos del himno, como
es el caso en la que canta Creusa en Ión, o en la que entona el joven
protagonista en la parodos de la obra, con Apolo como centro am-
bas 33. Un dios que se oculta en la obra y que provoca sentimientos
opuestos en madre e hijo, desprecio e injuria en la primera, devoción
y confianza en el segundo. La inclusión de dos monodias a cargo
de los dos protagonistas en la obra es una manifestación más de las
múltiples “repeticiones” presentes en esta tragedia, a través de las
cuales el poeta proyecta visiones distintas de los mismos hechos y
establece un juego dual de perspectivas 34.
La monodia de Creusa es una especie de anti-himno, en el que
los elementos que ensalzan al dios se mezclan con la censura por
el papel terrible que este ha jugado en la vida de la joven. Apolo es
invocado como divinidad que se complace en la música (881-885) y
en el canto del peán (906), pero entre ambas invocaciones se sitúan
la descripción del rapto y la violación de Creusa, el nacimiento y
y a las circunstancias concretas del canto para enfatizar la vivencia trágica del que
cantaba o el intento de consuelo. Puede verse al respecto Schauer 2002.
33 La misma polifuncionalidad de los géneros poéticos es explotada en la monodia
que canta Ifigenia en Ifigenia en Áulide 1475-1496, donde se mezclan la celebración
de la diosa Ártemis, la celebración de la victoria y la propiciación al sacrificio.
34 Sobre este aspecto de la obra puede verse Quijada Sagredo 2011; para la
monodia de Creusa en particular, 59-62.
99
la exposición de Ión. La tradicional hypomnesis del himno alcanza
un valor irónico en este canto, donde por primera vez en la obra
Creusa utiliza el término αἰδῶς para calificar la conducta de Apolo
(ἀδικία en 254, 341, 355, 384, 447, 449; αἰσχύνη en 288, 367). Apolo
y su trono son descritos con rasgos físicos radiantes (887, 909), pero
su comportamiento no excluye la violencia y sus actos conllevan la
injusticia, al dejar morir a su propio hijo pero conceder a Juto uno
que habitará la casa.
La monodia de Ión es un canto de trabajo con el que el joven
acompaña su tarea como servidor del templo de Apolo35; al tiempo,
se convierte en un peán que Ión entona para ensalzar al dios 36. La
estructura de la monodia es compleja: A) los primeros veros consti-
tuyen un astrophon en anapestos en recitativo (82-111), donde Ión
describe el escenario (el templo de Apolo en Delfos), el momento (la
salida del sol), la actividad profética de la Pitia (94-1010) y la tarea
que está realizando (limpiar la entrada al santuario). B) La sección
siguiente está construida en veros líricos en responsión estrófica, un
sistema (112-143), y es la que más propiamente contiene elementos
típicos del peán, en particular por la presencia de un ephymnion
(125-127 = 141-143) métricamente diferenciado del contexto 37, que
algunos consideran como un breve himno délfico a Apolo. C) La
tercera parte la constituye un largo epodo en anapestos líricos (144-
183), donde se describen las tareas concretas que acompañan su
100
labor, la aspersión de agua y las tentativas para mantener alejadas
del templo las aves que se acercan.
Son numerosos los elementos que acercan el canto de Ión a las
características propias del himno (apóstrofes e invocaciones, epíte-
tos característicos, exhorataciones); en particular, la presencia del
refrán da cuenta de los ecos que este himno tiene del canto popular
y de la intención de Eurípides de acercarlo al peán. Pero Eurípides
construye un peán “privado”, un canto que es una caracterización
efectiva de la vida interior del joven 38. En este sentido, la forma de
monodia que adopta este “peán” debía de contribuir a que el es-
pectador sintiera que el himno se había convertido aquí no en una
celebración colectiva, en el reflejo de unas convenciones sociales
que perduran en el tiempo, sino en la expresión de la interioridad
de un joven solitario, presa de las circunstancias cambiantes que
marcan la vida de los individuos.
La elección de la monodia para dar forma a motivos y temas
tradicionales que muchas veces eran ejecutados por un coro, o por
un coro acompañado por un solista, fue utilizada por los poetas
trágicos para lograr efectos dramáticos sorprendentes. Muchos de
ellos derivaban de la yuxtaposición de motivos diferentes o de su
mezcla en el interior de la monodia; en otras ocasiones, del lugar de
aparición o de la función de la monodia, donde vinieron a sustituir
a los que tradicionalmente eran propios del coro. A medida que los
cambios musicales afectaron a la profesionalización del actor en las
décadas finales del siglo V, la monodia se fue convirtiendo en un
elemento polifuncional a través del cual formas fijas de la tradición
poética griega se desacralizaron o alcanzaron significados nuevos,
convirtiendo al personaje que cantaba en el foco aural y emocional
de la representación.
101
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103
(Página deixada propositadamente em branco)
L a c a í d a d e t r o ya y e l c a m p o s e m á n t i c o
d e kairós e n Agamenón d e E s qu i lo
T h e F a l l o f T r oy a n d t h e S e m a n t i c F i e l d o f K a i -
ró s i n A e s c h y l u s ’ A g a m e m n o n
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_4
En un reportaje no tan reciente, Luciano Cánfora ha sostenido
que la razón principal de sus estudios de filología griega ha sido el
hecho de que el mundo antiguo no es de ningún modo un cemen-
terio, sino un territorio de debate. Es una afirmación enérgica para
aplicar a una literatura repleta de muertes y guerra, al menos, en lo
que constituye su canon.1 Creo que a pesar de ello, y especialmente
en la tragedia, estamos en territorio polémico.
La Guerra de retaliación –como la Guerra de Troya– y la guerra
interna por el poder y el patrimonio dentro de una estirpe –como
la guerra de Tebas– ofrecieron a Esquilo un versátil campo temático
para especular con el presente ateniense en la escena trágica ¿La
guerra con sus muertes fue realmente tan central en el mundo griego
antiguo o su centralidad es consecuencia del énfasis puesto en la
historia militar por los escritores antiguos y por algunos estudiosos?
La tragedia parece también haberla considerado un asunto de capital
importancia. Esta afirmación parece particularmente vigente para la
más famosa trilogía esquilea con su concatenación de crímenes y
fúnebres resultados.
Orestíada comienza con el anuncio del triunfo aqueo y, en con-
secuencia, del nóstos de Agamenón, un maldecido regreso a casa del
rey, después de la victoria largamente esperada contra los troyanos.
Así como en la tradición épica la caída de Troya lanza a los aqueos
a su desastroso regreso, del mismo modo, en Agamenón de Esquilo,
esta caída, como punto de partida de la ligazón de acciones en la
trilogía, 2 abre el capítulo final en la vida de un héroe aqueo. En
los primeros ochocientos versos de la obra, mientras se espera el
ingreso de Agamenón a escena, el espectador escucha una serie de
106
reflexiones sobre su victoria reciente que proyectan una sombría
imagen de la destrucción de Troya sobre Argos.
La imagen de la caída de Troya en la literatura griega clásica ha
resultado un hecho contradictorio. Por una parte, es difícil conciliar
su carácter de éxito bélico con la oclusión de su relato en Homero.3
Por otra parte, en Agamenón, Esquilo abordó la destrucción de la
ciudad como el mayor fracaso del personaje que titula el drama. 4
Resulta notable que, tanto la caída de la ciudad, como el regreso
del héroe y las acciones a partir de allí desencadenadas, se vinculen
desde la perspectiva humana con kairós y sus derivados.
En toda tragedia resulta esencial el modo en que la dimensión
temporal acelera o desacelera la llegada a una solución. En este
sentido, la palabra kairós, que Chantraine, 5 ha definido como “el
punto justo que toca a su fin”, es decir como sinónimo del tiempo
dramático por excelencia, expresa el tiempo de crisis, que en Esquilo
implica una concatenación inexorable de crímenes y correcciones a
esos crímenes.
En Agamenón, kairós aparece en pasajes breves, pero fundamen-
tales, que exponen cómo Troya significó para los personajes del
mito, ese punto de crisis, el punto final revelador de sus terribles
condiciones personales. Troya simboliza la simbiosis entre la guerra,
el destino de la ciudad y el destino personal, en ese esquema ago-
biante y opresivo en que el dramaturgo concede forma al exceso
humano y su drástica solución. 6
107
La construcción dramática del “punto justo que llega a su fin”,
se compone de un mosaico de “recepciones” o “recolecciones” de
la caída de Troya, distribuidas entre el recuerdo del coro sobre un
augurio distante (vv. 104-159); luego, una visión de Clitemnestra
acerca de los acontecimientos (vv. 281-316), un informe del heraldo
(v. 551 y ss.) y, finalmente, un reporte en boca del propio destructor
de la ciudad (v. 810 y ss.).
La primera recolección corresponde a la párodos en que el augurio
con aves resulta la forma metafórica de demostrar que los Αtridas
son predadores (48-55) y que devorarán a los troyanos. No sólo la
interpretación de Calcas no releva de esta terrible visión, sino que,
en el mejor cuño homérico, la conducta humana es colocada en el
ámbito animal. 7 El pasaje contrapone un símbolo de fertilidad y
procreación con los predadores que exterminan. Sin duda, se trata
de un modo de resolver la destrucción de la estirpe, que la guerra
tiene como objetivo, en la imaginería. Dentro de la sofisticada com-
posición de la párodos de la obra, la estructura que contiene el
augurio distante, entre los vv. 104-159, se caracteriza por insertar
una tríada lírica, con hexámetros dactílicos que le otorgan un tenor
narrativo resaltado por el léxico épico. 8 La primera estrofa contiene
los elementos esenciales:
108
ῶν ὁ κελαινός, ὅ τ᾽ ἐξόπιν ἀργᾶς, 115
φανέντες ἴκταρ μελάθρων χερὸς ἐκ δοριπάλτου
παμπρέπτοις ἐν ἕδραισιν,
βοσκόμενοι λαγίναν, ἐρικύμονα φέρματι γένναν,
βλαβέντα λοισθίων δρόμων. 120
αἴλινον αἴλινον εἰπέ, τὸ δ᾽ εὖ νικάτω.
9 La identificación de los Atridas con águilas de dos tipos: el águila negra rapaz y
asesina (Agamenón) y el águila blanca (Menelao), menos belicosa, también preanuncia
la potencial disparidad de destinos entre ambos hermanos en el mito.
10 Las traducciones de los textos nos pertenecen.
109
universo de las palabras una agresiva afirmación del poder de los
Atridas y su efecto sobre Troya. También la insistencia en la mano y
la lanza (σὺν δορὶ καὶ χερὶ πράκτορι/χερὸς ἐκ δοριπάλτου) que trans-
forman la amenaza colectiva en la mano individualmente peligrosa
sobre algún ser en particular. La antistrofa y el epodo acentúan estos
elementos y la reiteración del efimnio, αἴλινον αἴλινον εἰπέ, τὸ δ᾽ εὖ
νικάτω, instala un tono de lamento funeral lúgubre y quejumbroso,
que ruega el triunfo del bien. 11
El cúmulo de elementos antitéticos simplemente subraya la escasa
claridad en los acontecimientos de Argos. El augurio es la expresión
imagística de la amenaza de Agamenón sobre Troya, vuelta una cace-
ría atroz. Por una parte, se trata de un efecto analéptico fundado en
la necesidad de instaurar narrativamente el inicio de la guerra para
demostrar su concatenación con el presente de Argos. 12 El augurio
ofrece una doble vertiente, es analéptico porque el coro se remonta
al tiempo del origen del conflicto; pero a su vez, el augurio, pro-
lépticamente, apela al desenlace. La conexión con el segundo canto
de Ilíada es evidente. 13 Por otra parte, en cuanto al espacio, Troya
aparece como un sitio distante y, sin embargo, con un peso inevitable
sobre Argos. De este modo, ambas ciudades, la ciudad destruida del
110
mito y la ciudad del rey destructor, se proyectan sobre la ciudad de
los espectadores. 14
La idea de exterminio de la estirpe porque las águilas devoran
las crías no posee una interpretación unívoca, más bien podríamos
hablar de una polisemia, ya que resulta inexorable que se extienda a
Ifigenia, también ella un retoño inocente, como joven hija sacrificada
por Agamenón en pos de la guerra. En versos anteriores (vv. 49-50),
con la imagen de los padres llorando los hijos perdidos, ya se abría
esta interpretación directa. Finalmente, desde el punto de vista de
los hechos, la interpretación del augurio apela a tres situaciones en-
cadenadas por una causalidad estricta: Ifigenia, Troya, Agamenón. En
esta secuenciación, la problemática estirpe de los Atridas encapsula a
Troya, de cuya destrucción sólo queda como evidencia el personaje
que expone la dimensión sacrílega de la acción de Agamenón, es
decir, Casandra. Todos los matices iliádicos de la nefasta apropiación
de Criseida estarán aplicados a la escena de Casandra. 15
A través de estas variadas, pero contradictorias, recolecciones,
Esquilo proyecta una sombra sobre los eventos en Argos. La caída de
Troya actúa como un motor dramático y su efecto se observa en la
acción. Pero Esquilo construye una imagen de la caída de Troya en
cada pieza de la trilogía que se integra a la trama completa. Además
de la breve referencia al caballo de madera (v. 825), el dramaturgo
emplea pocos detalles específicos, no expone nada sobre la muerte
de Príamo ni la actitud de Neoptólemo. Por un lado, la conquista de
Troya aparece como algo lejano y con gran imprecisión geográfica y,
111
por otro lado, la recuperación de Helena ha desaparecido del con-
texto. La caída de Troya es presentada con matices muy generales
o poco específicos, de manera que se convierte en una presencia
“espectral” en el drama, cuya configuración y contornos no son fá-
ciles de discernir.
La sola mención de Troya supone, además, un esquema perma-
nente de retribución: los griegos castigaron a los troyanos, pero los
sacrilegios de los griegos serán castigados por los dioses, con los
terribles y desdichados nóstoi que sufrieron. El texto dramático jue-
ga permanentemente con la imagen de la justicia cumplida y de la
justicia abusada. Algo similar a lo que sucede con el rol de Atenea
en Homero, en que la diosa aparece instalada como la principal
auxiliadora de los aqueos, aunque este papel de la divinidad dista
mucho de ser permanente. 16
En la recolección que Clitemnestra presenta en su discurso inicial
asocia a los griegos con los vencidos troyanos, es decir, estos griegos
victoriosos son presa de la misma necedad que los troyanos cuando
festejaron la huida de los griegos, ingresaron el caballo, celebraron
y, luego, fueron asesinados mientras dormían. La original imagen tra-
zada por la reina, en la que griegos y troyanos son tan inconciliables
como el aceite y vinagre (vv. 322-325), resulta una ironía trágica que
se prolonga en los festejos de victoria superpuestos a los funerales.
Los vv. 338-344 recuperan la referencia épica a los sacrilegios
cometidos en Troya, de manera que el contenido irónico de la oda
coral subsiguiente resulta incrementado. Cada referencia a que los
troyanos pagaron el doble por su crimen contra la hospitalidad es
colocada como una ofensa contra Zeus xenios y, por tanto, anuncia
también para los griegos un pago duplicado por los sacrilegios (v.
537). La suma de factores ensombrecedores, junto a los victoriosos,
genera una emocionalidad pendular en Agamenón, de manera que
16 Atenea también es expuesta como la que impone los castigos sobre Áyax Locrio,
cuyo aciago destino será compartido por todos los aqueos que lo acompañaron, por
su ofensa contra Casandra.
112
la muerte del personaje parece un movimiento más en ese fluctuar
de crímenes y justicia. Se trata de matices ya desplegados en Ilíada
en las horrísonas imágenes de los guerreros como monstruos o
animales. 17
De manera que, si vamos sumando las imágenes lumínicas, la
observación de los astros como señal, las imágenes de la fertilidad
interrumpida, la rapacidad atroz en la naturaleza vuelta especular-
mente sobre los humanos, asistimos a una ubicación cósmica de la
caída de Troya, en la que el más brillante éxito bélico adquiere la
configuración más oscura. También es cierto que la exposición agó-
nica de la contraposición griegos/troyanos procurará una síntesis
final, en que vencedores y vencidos adolecen de la misma capacidad
sacrílega y sus destinos meramente lo comprueban. 18
Todo el lenguaje metafórico se dirige a la construcción de una
red de cacería en el discurso de Clitemnestra que no deja de ser,
básicamente, una red lingüística. Como sostiene Anderson, los grie-
gos enredan Troya, y Clitemnestra enreda a Agamenón. El lenguaje
metafórico se sirve, además, de la imagen de las antorchas que
anuncian la llegada de los griegos y de las imágenes del dormir y
el despertar, con una intencional insistencia en un modo de comu-
nicar la victoria griega que parece contaminado con usos orientales.
También Heródoto refiere esta estrategia comunicativa desarrollada
por Mardonio para anoticiar a Jerjes de sus movimientos (9.3.1). 19
17 A modo de ejemplo sirvan las líneas del canto 7.255-257, en que Áyax y Héctor
se acometen como jabalíes o leones ὠμοφάγοισιν, “carnívoros”.
18 Sobre la dimensión cósmica de los sucesos en la Orestíada, cf. pace, De Santis
2003. También observaciones en Garvie 1996: 137-146.
19 De tal modo se conjugan la intención de Clitemnestra de inculpar a Agamenón
por su molicie oriental y un trasfondo político, en que el poder de Clitemnestra en
Argos se relaciona con la comunicación simbólica y no con la comunicación directa.
Sobre las formas de gobierno implícitas en los modos de comunicación elegidos por
los poderosos en la tragedia, muy interesantes observaciones en Steiner 2012: 482.
Por otra parte, no podemos aseverar que Esquilo estuviese informado de que una
antorcha sobre el monte Sinón hubiese anunciado para Troya la partida de la flota
griega, pero es curioso cómo el dramaturgo aprovecha algo que aparece en detalle
en Ilioupersis 22-23.
113
La oda coral que se inicia en el v. 355 propone una vuelta al tema
de la caída de Troya como simple expresión desiderativa irrealizable
“que los aqueos no hayan saqueado la ciudad y los templos”. De
tal manera, el informe del mensajero continúa el esquema binario
en que todo lo positivo es pasible de interpretación negativa. La
eulogía que el personaje desarrolla sobre Agamenón, contrasta con
su propia confesión e inclusión en el saqueo de los altares, además
del comentario sobre el desastroso naufragio, causado por los dio-
ses y padecido por los aqueos, que certifica el castigo futuro para
Agamenón.
No es necesario insistir en la escena de la alfombra roja en la
que Agamenón es presentado como un rey oriental, con hábitos
lujosos, que también lo muestran diferente, “extraño” a los ojos
griegos. Como escena dramática de exposición de la culpa ya ha
sido suficientemente analizada.20 Interesa, más bien, destacar cómo
la caída de una ciudad por la recuperación de una mujer comienza
a verse como una retribución excesiva que será cuestionada en las
piezas siguientes de la trilogía y cómo este rey, tras tantos años de
permanencia en el Asia Menor, muestra el extraño comportamiento
muelle y lujurioso que viene de Oriente (al menos, esa parece la per-
cepción griega). Se trata de una presentación de extranjería, que no
condice con el nuevo sistema legal, más racional, que Esquilo desea
proponer. La escena se carga de contenidos homéricos, Agamenón
viene con la victoria en los labios, pero compara a la armada griega
con un león sediento de sangre en consonancia con la monstruosa
visión que Zeus atribuye a Hera en el canto 4 de Ilíada (vv. 34-36),
cuando le imputa un deseo cruel de devorar crudos a Príamo y a
sus hijos, como único modo de apaciguar su ira. Este informe de
Agamenón es el último sobre la caída de Troya al que accedemos
antes de su muerte. Curiosamente, antes de pisar la alfombra que
Clitememnestra le ofrece, ella misma menciona, como ejemplo, la
conducta que habría tenido Príamo como vencedor en el v. 935. La
114
sola recuperación del rey derrotado en ese momento abre una clara
interpretación: si troyano es igual a aqueo, la derrota de Agamenón
es inminente.
Las tres recolecciones sobre la caída de Troya mencionadas ofre-
cen una perspectiva polémica y variada del mismo hecho, visto por
los expectantes argivos, por la esposa insomne y por un protago-
nista como el heraldo, que trae el anuncio del arribo del líder. Las
versiones se complementan como alegatos de un juicio hasta que
ingresa el imputado a escena acompañado por la testigo, muda por
el momento, de todos los actos impíos. A partir de esta instancia no
es necesario ya otro comentario sobre Troya, sino que el momento
llegue a su fin.
En el texto homérico, el objetivo bélico de destruir la ciudad se
constituye como un hecho exofórico a su narrativa, que intensifica
la tensión y la emoción de la contingencia no narrada. En tanto que
la tragedia Agamenón, lo ubica como un pasado inmediato. Por un
efecto dramático intencional es Clitemnestra quien expresa en pre-
sente y con una deixis explícita del día, el momento de la toma de
Troya (Τροίαν Ἀχαιοὶ τῇδ᾽ ἔχουσ᾽ ἐν ἡμέρᾳ./“Los aqueos toman Troya
en este día.” v. 320). Sin embargo, el hecho es naturalmente anterior
y determinante de las acciones siguientes en el presente de la dra-
matización. En ese tiempo peculiar, el éxito bélico se convierte en
kairós trágico para el personaje protagónico y acarrea consecuencias
interpretativas.
La tensa y morosa espera del ingreso del rey a escena coloca en
boca del coro dos registros de vocablos vinculados a kairós, justa-
mente, en el anuncio de su ingreso:
115
¡Salve, mi rey, destructor de Troya, vástago de Atreo! ¿Cómo
debo saludarte? ¿Cómo debo honrarte, de modo de no exceder-
me ni disminuir lo oportuno de la gratitud? 21
116
γνώσῃ δὲ χρόνῳ διαπευθόμενος
τόν τε δικαίως καὶ τὸν ἀκαίρως πόλιν οἰκουροῦντα πολιτῶν.
vv. 807-809
22 Como aclaran Raeburn & Thomas 2011: 152, el coro no da nombres en este
pasaje, pero “πόλιν οἰκουροῦντα: the metaphor interestingly melds the king’s polis
with his oikos, […] In the presence of δικαίως, the melding may suggest that at this
stage of the Oresteia, there is still no independent polis-justice independent from the
king’s house – a situation which will change in Eumenides”.
117
como “un perro que sostiene los establos”. En la típica urdimbre
esquilea, las imágenes entretejen referencias múltiples y derraman
sobre Agamenón la vigilancia perpetua de los dos guardianes, los
verdaderos “perros”, inactivos hasta ese momento, que atacarán a
quien ingresa a la casa. 23
Se suele insistir en la oscuridad del contenido del tercer estásimo
(975-1034), que desplaza la expectativa positiva desarrollada en la
párodos a través de la invocación a Zeus como garante del orden. A
la significativa presencia de la palabra kairós antes del ingreso de
Agamenón a escena hay que vincular el tono trenético del estásimo
y la inversión de la imagen nupcial ínsita en el carro portando a
la joven Casandra. 24 De tal manera, bajo el espectro de una boda
inadecuada, se restringe la posibilidad del banquete de bienvenida
al rey. El cierre del estásimo brinda otra oscura referencia:
23 Cf. Bailly 1959: 1357, sobre οἰκουρός, -ον: “qui garde la maison, en parlant d’un
chien de garde […] qui reste a la maison […] oisif”
24 Sobre la tergiversación del banquete ritual de boda o de bienvenida al rey
y el contenido trenético del coro, véase De Santis 2016: 66: “Pero en lugar de una
celebración con música y comida, es el thymós del Coro el que entona un himno
(hymnodeí), que es un thrénos de la Erinia calificado a su vez por autodídaktos y
anéu lýras.” Es decir, el coro percibe la presencia de la Erinia que trastoca la alabanza
en premonitorio lamento fúnebre.
25 ἐκτολυπεύσειν, literalmente “ovillar la lana”, consecuente con la red discursiva
y de cacería que desarrolla Clitemnestra, impone un sofisticado lenguaje metafórico:
la oscuridad del corazón, cuyas emociones no son claras, y el ardor de la mente que
no cesa de pensar y conjeturar con pesimismo sobre el porvenir.
118
El usufructo del campo semántico de kairós no se reduce a la
expresión adverbial, sino que resulta altamente significativo cómo a
partir del concepto se señala un mayor o menor nivel de conciencia
respecto de la vecindad de la muerte. Casandra, en un discurso de
atroz claridad lógica suplica:
119
acciones de aspecto perfectivo (πέπληγμαι, οὐτασμένος), de cuyo
resultado no existe ni duda ni escapatoria.
En otros dos textos el sentido de los derivados de καιρός asegura
que se refiere a una “finalidad concretada”. Ambos textos correspon-
den a Clitemnestra y le confieren un valor estratégico artero:
28 En la lectura del verso 1658 la edición de Smith registra: παθεῖν εἴξαντες ὥρᾳ:
χρῆν τάδ᾽ ὡς ἐπράξαμεν no aparece καιρὸν, sin embargo Raeburn & Thomas (2011:
240) que siguen la edición de Page, aun señalando dudas, prefieren el texto arriba
citado. En el comentario proponen στείχετ’, αἱδοῖοι γέροντες, πρὸς δόμους, πεπρωμένοις/
πρὶν παθεῖν εἴξαντες < >καιρόν χρῆν τάδ’ ὡς ἐπράξαμεν y traducen “Go home, reverend
elders, and yield to fate before you suffer <All things require their > moment: these
things were necessary, as we performed them”. De esta manera, los crímenes de
Clitemnestra se definen como algo necesario, hecho “oportunamente” y la tragedia
no es más que la representación de ese momento crítico y único.
120
Aunque la reconstrucción καιρὸν χρῆν es obviamente conjetural
para estas líneas corruptas, resulta muy coherente con la recurrencia
del uso del término que hace Clitemnestra, ya que, por una parte,
desalienta la reacción del coro que ha insistido en su ancianidad –
no puede comportarse heroicamente – y debe obedecer a los nuevos
poderosos. Por otra parte, señala el momento álgido de la venganza,
el fin de la tensa espera de los guardianes.
La muerte de Agamenón es lo menos glorioso que pueda suceder
a un guerrero. Como tal, Agamenón podía aspirar a una muerte bella
en el libre espacio exterior del campo de batalla. Una muerte en el
interior y a manos de una mujer es lo más indigno y “antihomérico”.
Aunque las mujeres traidoras ya habían aparecido en Homero, como
la reina despechada que traiciona a Belerofonte, entre otras; ellas no
asesinan directamente. La magistral organización de la tragedia de
Esquilo vuelve el kairós glorioso del derribador de Troya coincidente
con el momento oportuno de su caída. De tal manera, el problema
del desarrollo temporal de las acciones dramáticas diseñado por el
dramaturgo resulta también un problema de discernimiento humano
del punto que llega a su fin, de la coincidencia entre acción y mo-
mento, entre palabra y momento de su enunciación.
Podemos preguntarnos qué habría sido de Troya sin Agamenón y,
del mismo modo, qué significaría la figura mítica de Agamenón sin
Troya: una ciudad sofisticada y transgresora y su terrible asolador.
A Esquilo, la guerra de Troya le brindó ocasión (kairós) para ofrecer
con este personaje el punto en el tiempo de encuentro fatal con el
propio destino y para el despliegue del número de atrocidades de
las que un ser humano es capaz. En la simbiosis que cada personaje
esquileo ofrece entre ser agente de una justicia superior y ser cul-
pable de sus propios actos, el dilema humano de discernir el punto
exacto de la acción personal se abastece con kairós y sus deriva-
dos. Trágicamente, la oportunidad humana jamás se escabulle del
dios.
Tal como lo expresó Cánfora, la literatura griega, con Troya en
particular, brindó combates y un cementerio o, al menos, túmulos
121
memoriales, para nada silenciosos y estáticos, sino cargados de po-
lémica e interrogantes.
Bibliografía
122
Las guerras de Esquilo y el léxico
de la violencia contra las mujeres
ORCID: 0000-0002-3712-0677
martagzlez@uma.es
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_5
and the lexicon used (especially ambiguous terms such as hybris and
gamos) are the common thread of the proposal.
1 Loraux 1981.
2 Sobre las mujeres en la guerra en la Grecia antigua, vid. recientemente Payen
2015 y Georgoudi 2015. Vid. también Schaps 1982 sobre la diferente situación en las
guerras exteriores y defensivas.
124
Los tesalios estaban en una guerra sin cuartel contra los focen-
ses, pues estos habían matado en un día a todos los gobernantes
y tiranos tesalios de las ciudades focenses y los tesalios habían
ejecutado a doscientos cincuenta rehenes focenses; a continuación,
se lanzaron con todo el ejército a través de la Lócride decretando
que no se perdonara la vida de ninguno de los que estaban en edad
militar y que se sometiera a esclavitud a niños y mujeres (παῖδας
δὲ καὶ γυναῖκας ἀνδραποδίσασθαι). Entonces, uno de los tres gober-
nadores, Daifanto, hijo de Batilio, [[244C]] convenció a los focenses
para que salieran a enfrentarse en la batalla contra los tesalios y
que todas las mujeres y niños de la Fócide, reunidos en un único
lugar, amontonaran cantidad de leña y dejaran guardianes con la
orden de que, si se enteraban de que los hombres eran vencidos,
inmediatamente prendieran fuego a la madera y quemaran comple-
tamente sus personas. Todos votaron esta resolución excepto uno
que se levantó para decir que era justo que las mujeres dieran su
consentimiento; en caso contrario, debían renunciar y no obligarlas
por la fuerza. Cuando se comunicó este plan a las mujeres ellas se
reunieron, votaron a favor [[244D]] y alabaron a Daifanto por haber
decidido lo mejor para la Fócide. Dicen que los niños, reunidos por
su cuenta, votaron lo mismo.
Después de todo esto, los focenses se lanzaron al combate cerca
de Cleonas de Hiámpolis y vencieron. A la votación los griegos la
llamaron “Desesperación focense”, y las mayores de todas las fies-
tas, las Elafebolia en honor de Ártemis en Hiámpolis, las celebran
todavía hoy en recuerdo de aquella victoria 3 .
125
res o patrióticos 4 . Ni estas mujeres eran nuevas Ifigenias, ni los
niños nuevos Meneceos. Asistimos a algo bien distinto: una acción
desesperada provocada por el miedo a la esclavitud y el miedo a la
violación. Es extremadamente importante señalar que lo que Plutarco
dice que los tesalios habían decidido, que se pasara por las armas a
todos los varones en edad militar y se sometiera a esclavitud a niños
y mujeres (παῖδας δὲ καὶ γυναῖκας ἀνδραποδίσασθαι), se dice en unos
términos muy precisos, empleando el verbo ἀνδραποδίζω, que solo
muy pálidamente queda recogido en la traducción como “esclavizar”.
Como ha estudiado Kathy Gaca, en las guerras de devastación el
objetivo era capturar, dominar y explotar a mujeres y niñas, lo que
requería como paso previo el exterminio de los varones de todas
las edades 5. A esa práctica es a la que se refieren los autores con
el término andrapodismós, una selección sistemática de mujeres
jóvenes y niños con fines de explotación, como fuerza de trabajo,
pero también sexual 6. Lo que dice Plutarco, y que aparece solo en
su versión, que las mujeres e incluso los niños celebraron también
una asamblea para apoyar esa decisión de inmolarse, es anecdótico:
lo importante es atender a la suerte que esperaba a mujeres y niños
y que era considerada peor que la muerte. Es este, por tanto, un
ejemplo elocuente de lo que las mujeres se jugaban en las guerras
defensivas.
El mismo Plutarco ofrece otro ejemplo famoso, que tiene gran
interés dada la escasez de testimonios explícitos. Se trata de una
historia, tomada de Polibio, en la que parece que se asume que parte
de la fortuna del soldado vencedor está en poder usar sexualmente
a las mujeres de la ciudad vencida: En cuanto a Quiómara, la mu-
jer de Ortiagonte, sucedió que se convirtió en prisionera de guerra
junto con otras mujeres cuando los romanos y Gneo vencieron en la
guerra a los gálatas en Asia. El comandante que se apoderó de ella
126
se aprovechó de su suerte (ἐχρήσατο τῇ τύχῃ), como suelen hacer los
soldados (στρατιωτικῶς), y la deshonró (κατῄσχυνεν) 7 . A falta de
un verbo con el sentido inequívoco de “violar”, el autor recurre a
καταισχύνω, “deshonrar, o arrojar vergüenza sobre alguien”. Ese com-
portamiento es descrito con el adverbio στρατιωτικῶς, como suelen
hacer los soldados. Es fácil, pues, entender el miedo de las mujeres y
niñas en una situación como la que se describe en Siete contra Tebas,
de Esquilo, con un ejército amenazador a las puertas de la ciudad.
127
a imaginar muy vivamente la violación de niñas de poca edad. Casi
al final de esa intervención coral, las muchachas mencionan a las
jóvenes, convertidas en esclavas, † sufridoras de un lecho ganado
por la lanza / de un hombre que ha tenido suerte †, de un enemigo
vencedor, († τλήμονες εὐνὰν αἰχμάλωτον / ἀνδρὸς εὐτυχοῦντος †, ὡς
/ δυσμενοῦς ὑπερτέρου, Sept. 364-366 9). Vemos, como en el caso de
Quiómara, una expresión en la que la “fortuna” del soldado va li-
gada a la posibilidad que se le ofrece de violar a las mujeres de la
ciudad vencida. Esos versos cierran en ring-composition la alusión
que el coro de muchachas hacía, unos versos antes, a las violacio-
nes de las que serían víctimas si el ejército atacante se imponía al
ejército defensor de Tebas10. Esclavitud y violación eran la suerte
que esperaba a las mujeres cuando la ciudad, o el país, en el que
vivían era atacado y caía en manos del ejército enemigo y, aunque
sabemos que la violación de las mujeres en tiempos de guerra era,
y es, lo común, estas expresiones referidas a la tyche del vencedor
tienen un aire muy inquietante.
Por otra parte, la asociación de las mujeres con la esclavitud no
se limita al destino que les espera tras una guerra perdida, sino
que, en ocasiones, su situación tras un matrimonio adquiere también
tonos de esclavitud, según vemos en algunas reflexiones recogidas
en la tragedia. A modo de ilustración, recordemos a Medea cuando,
en la pieza homónima de Eurípides (Med. 230-234), afirma que las
mujeres son los más desgraciados de los seres y tienen que pagar
una gran suma para encontrar dueño. ¿No resulta extraña esta afir-
mación? Normalmente se paga por un esclavo, no por un amo; sin
embargo, esto es lo que dice Medea: de cuantas criaturas tienen vida
e inteligencia, / las mujeres somos las más desgraciadas. / En primer
lugar tenemos que, con gran gasto, / comprar un esposo y adquirir un
amo de nuestro cuerpo (πόσιν πρίασθαι δεσπότην τε σώματος λαβεῖν).
Estas palabras de la protagonista no son parte de la trama, sino un
128
detalle menor dentro de una gran historia de traición, venganza y
filicidio, pero son importantes porque forman parte de lo dado por
supuesto, es decir, de la mentalidad estructural.
129
griegas esclavizadas por hombres griegos 11) y que no es, por tanto,
una coincidencia que Eurípides, a mediados de los años 20 de ese
siglo, comenzara a componer tragedias sobre el destino de las esclavas
troyanas12. Insistiendo una vez más en que estos pasajes de los que
estoy hablando, independientemente del efecto que pudieran tener
en el auditorio y que podemos imaginar diferente según el sexo, no
constituían el núcleo del argumento, sino algo dado por descontado
(si se nos pidiera relatar el argumento de Medea o de Ifigenia en
Áulide no nos referiríamos a esos detalles), quiero centrarme ahora
en mostrar que tampoco Esquilo fue ajeno a esta realidad.
130
El argumento es bien conocido. En la corte de Susa se recibe la
noticia inesperada de la derrota de Jerjes en Salamina y toda la obra
es un lamento por la enorme pérdida de vidas entre la juventud persa,
al mismo tiempo que una loa a la fuerza de Atenas. La reina Atosa,
viuda de Darío y madre de Jerjes, es el personaje central, utilizado
por Esquilo para caracterizar un modo de actuar en lo político en-
teramente opuesto al de los griegos; así, Atosa aparece preocupada
por el lamentable aspecto de su hijo, pero no por una rendición de
cuentas por su fracaso, ejercicio al que los gobernantes bárbaros
no estaban sometidos. En línea con la pintura que Homero trazó de
los troyanos, también Esquilo consigue que nosotros (y, con toda
probabilidad, los griegos de entonces) sintamos una gran empatía
hacia los vencidos y su dolor.
En relación con el asunto que nos ocupa, las mujeres de los
griegos eran en las Guerras Persas y, en concreto, en la batalla de
Salamina, mujeres en una guerra defensiva. En consonancia con la
situación de la Hélade, víctima de un ataque externo, los versos
402-405 de Persas, recogen el peán entonado por los griegos tal y
como lo menciona el mensajero: Hijos de los helenos, adelante, /
mantened libre la patria, mantened libres / a vuestros hijos y mujeres
y los templos de los dioses patrios / y las tumbas de los antepasados:
ahora es el combate por todo esto. Este canto de guerra en el que los
soldados se animan al grito de preservar libre la patria, los hijos y
las mujeres, tiene una contrapartida en el deseo de Atosa, expresado
no aquí, sino en Heródoto (3.134.20 ss.), de tener esclavas griegas,
de Laconia, de Argos, del Ática, de Corinto. Volviendo a Esquilo, y
por lo que se refiere a las mujeres de los bárbaros, en Persas vemos
cómo se dice de ellas que sufren la ausencia de los maridos y los
hijos (Pers. 59-64): Tal es la flor de la tierra persa, / flor de hombres
que se ha ido / por los que toda la tierra de Asia / que los ha nutrido
se lamenta con violento póthos / y los padres y las esposas cuentan
los días / y tiemblan al alargarse el tiempo. Los guerreros persas
son “la flor” de su país, una metáfora recurrente para los jóvenes de
ambos sexos, y por ellos sienten póthos los padres y las esposas. En
131
el verso 252 se anunciará que esa flor ha caído (τὸ Περσῶν δ’ ἄνθος
οἴχεται πεσόν) y, poco después, se lamentará el coro por las mujeres
que la guerra ha dejado viudas (ἀνάνδρους).
Así, en Persas hay una breve mención tanto a las mujeres grie-
gas como a las persas y a cómo podría influir en ellas el devenir
de la guerra: al final, las griegas no pierden la libertad y las persas
lamentan la muerte de sus maridos e hijos, pero no van a ser escla-
vizadas por los vencedores al haberse disputado la batalla lejos de
su tierra. Una perspectiva distinta, desde el punto de vista de las
mujeres, y mucho más detallada, es la que nos ofrece Esquilo en
Siete contra Tebas (467 a.C.). Esta pieza es la tercera, y única con-
servada, de una tetralogía vencedora de la que formaban parte Layo
y Edipo y el drama de sátiros La Esfinge. En ella asistimos al miedo
de un coro de muchachas ante la posibilidad de que la ciudad caiga
en manos del ejército invasor. En esta pieza el miedo a la violaci-
ón es muy explícito. Remito a un trabajo anterior para un análisis
detallado de la intervención del coro en los versos 287-368 14; baste
ahora recordar que, como ya he señalado más arriba, en ese canto
las muchachas de Tebas imaginan al ejército atacante entrando en
la ciudad, arrastrando por sus cabellos a las mujeres de todas las
edades, rasgando sus vestidos, incluso sacando de sus habitaciones
a niñas de muy corta edad a cuya violación se alude de manera cla-
ra. A esas niñas se refiere el poeta con el término, “fruto”, aunque
el verso en cuestión haya sido entendido habitualmente en sentido
literal y las traducciones de Esquilo hablen de frutos derramados
por el suelo en la idea de que el ejército atacante echaba a perder
el fruto y las cosechas atesoradas en las despensas. Sin embargo, la
propuesta que planteo, la de entender καρπός de forma figurada en
referencia a las niñas todavía sin madurar, entiendo que, además de
los argumentos expuestos en el citado trabajo, puede verse refor-
zada atendiendo a otra obra de Esquilo, Suplicantes, a la que voy a
referirme a continuación. En ella, Dánao afirma, en referencia a sus
132
hijas, que es muy difícil velar por esos “frutos delicados” sobre los
que caen las miradas lujuriosas de los hombres, unas muchachas a
las que se refiere como καρπώματα (Suppl. 996-1001).
Aunque el tema de Siete contra Tebas y de Suplicantes es muy
diferente, resulta interesante analizar de un modo conjunto los dos
coros de muchachas. Propondré ahora reconsiderar Suplicantes
(463 a.C.) y ofrecer una nueva perspectiva para entender cuál es el
motivo de la huida de las Danaides. Esta pieza, que tiene un final
abierto, formaba parte de una tetralogía ganadora que se completaba
con Danaides y Egipcios y el drama de sátiros Amimone, ocupando
en ella, probablemente, el primer lugar. En esta obra, las hijas de
Dánao, acompañadas de su padre, llegan como suplicantes a Argos,
huyendo de una unión con los hijos de Egipto y solicitando la pro-
tección del rey Pelasgo. Se ha escrito mucho sobre los motivos del
tajante rechazo de las Danaides a unirse a sus primos y, quizá, de-
bería descartarse que se trate de un rechazo genérico al matrimonio,
ya que su odio no va dirigido a la raza de los hombres, como el de
Hipólito hacia la de las mujeres en la obra homónima de Eurípides,
sino a una unión violenta, en nada diferente a aquella que temen
las muchachas del coro de Siete contra Tebas. Existen razones para
argumentar en esa dirección y para afirmar que, en este asunto,
entender que el término gámos significa, sin matices, “matrimonio”,
es un punto de partida erróneo.
Es cierto que ya en el comienzo de la obra (Suppl. 9) el coro
de Danaides se refiere a la indeseada unión con sus primos como
gámos. Muy poco después, califica al enjambre de hijos de Egipto
como hybristés (Suppl. 30) e, inmediatamente, señala que la unión que
pretenden es contra su voluntad, aékōn (Suppl. 39). Las palabras de
las jóvenes no dejan lugar a dudas, pero, además, el término hybris
reaparece con insistente frecuencia a lo largo de toda la pieza15. En
15 v. 30, en boca del Coro y en referencia a los Egipcios; v. 81, en boca del
Coro y hablando de esa unión indeseada; v. 104, idem; v. 426, en boca del Coro y
en referencia a los Egipcios (ὕβριν ἀνέρων); v. 487, en boca del rey y en referencia
a los Egipcios (ὕβριν μὲν ἐχθήρειεν ἄρσενος στόλου); v. 528, en boca del Coro y en
133
Suplicantes el empleo repetido del término hybris puede llevarnos
a postular que, en el contexto de esta pieza, gámos no significa
“matrimonio”, sino una unión sexual que, al estar bajo el signo de
la hybris, es una violación 16 . Es imposible hacer una traducción
palabra a palabra, sobre todo si estamos tratando con términos que
forman parte del vocabulario cultural, por eso hay que atender a
todo el contexto. Se ha dicho que en Suplicantes existe un conflicto
entre la hybris y la díke17, también lo hay entre la bía y la peithó,
y podríamos decir que una unión sexual bajo el signo del primero
de cualquiera de estos dos pares es una violación, mientras que una
unión sexual bajo el signo del segundo elemento de cualquiera de las
dos parejas es ya algo reconocible bajo el término de “matrimonio”.
En griego, sin embargo, gámos puede referirse a cualquiera de los
dos supuestos, lo que alimenta la ambigüedad.
Sin embargo, no es solo el empleo de hybris lo que conduce en
esta dirección, sino que hay otros indicios igualmente claros. Así,
en los versos 333-337 el rey Pelasgo y el coro se cruzan unas pala-
bras muy interesantes. A la pregunta de por qué huyen, el coro de
referencia a los Egipcios (ἄλευσον ἀνδρῶν ὕβριν); v. 817, en boca del Coro y en
referencia a los Egipcios (γένος γὰρ Αἰγύπτιον ὕβριν); v. 845, en boca del Coro y en
referencia a los Egipcios (δεσποσίῳ ξὺν ὕβρει); finalmente, v. 880, aunque el texto
presenta problemas, la referencia es del Coro hablando de los Egipcios. Para el texto
de Suplicantes, particularmente problemático por lo dañado que está en muchos
lugares, sigo la edición de West 21998.
16 En apoyo de esta interpretación pueden tomarse dos pasajes de Eurípides.
El primero de ellos, de Ifigenia entre los Tauros, vv. 13-17. En esos versos Ifigenia
recuerda los acontecimientos que llevaron a su padre Agamenón a reunir una flota
con la que ir a Troya; en su referencia a Helena y al deseo de venganza de Agamenón
para contentar a Menelao, no habla de un matrimonio, sino de una violación, unión
sexual llevada a cabo con hybris: ὑβρισθέντας γάμους. En el segundo caso, de la obra
Ion, habla el coro de una infeliz doncella (παρθένος μελέα, v. 503), en referencia a
Creúsa, que tuvo un hijo de Apolo, un parto denominado ultraje de bodas amargas,
es decir, resultado de una unión violenta o violación (πικρῶν γάμων ὕβριν, v. 506).
En contra, véase Lembke 2009: 198-203, que defiende que el rechazo de las hijas de
Dánao a la unión con sus primos es una demostración de la incapacidad de asumir
el paso a la edad adulta. La autora se desentiende de las innumerables alusiones a la
violencia que caracteriza a los Egipcios y concluye que “Two resolutions are possible
for the Suppliants: death or love. In the play’s own terms: an insanely murderous
defense of childishness or growing up” (Lembke 2009: 201).
17 Robertson 1967: 377.
134
Danaides responde que para no convertirse en esclava del linaje de
Egipto (ὡς μὴ γένωμαι δμωῒς Αἰγύπτου γένει, 335) y cuando el rey
insiste y quiere saber si es por odio, o porque se trata de una unión
contra la ley, el coro responde con otra pregunta, ¿quién querría
ganarse parientes que se convirtieran en amos? (τίς δ’ ἂν φιλοῦσ’
ὄνοιτο τοὺς κεκτημένους; 337). Esta forma de ver las cosas recuerda
las palabras de la Medea de Eurípides que recordábamos más arriba:
en ocasiones, lo que las mujeres consiguen al casarse es un amo, un
dueño de su cuerpo.
Hasta qué punto esa unión con los Egipcios es tan indeseada
como la que imaginan las muchachas del coro de Tebas, se ve en el
canto de las hijas de Dánao a partir del verso 776, cuando expresan
su deseo de morir como una opción preferible antes que someterse
a los Egipcios. El coro dice desear convertirse en humo negro, en
polvo (recordemos cómo la metamorfosis, a veces, aunque no siem-
pre, sirve como medio de evitar la violación, como en el caso de
Dafne 18), cualquier cosa antes que sucumbir a la violencia de una
unión indeseada, πρὶν δαΐκτορος βίαι / καρδιᾶς γάμου κυρῆσαι, Suppl.
798-799 (nótese el empleo de gámos con el valor que ya he señalado
de “unión violenta”). Mejor la muerte, mejor servir de alimento a los
perros y de banquete a los pájaros: la muerte libera de las desgracias
dignas de lamento (τὸ γὰρ θανεῖν ἐλευθεροῦ- /ται φιλαιάκτων κακῶν,
Suppl. 802-803). Aunque no estamos en un contexto de guerra, por
más que la llegada de los Egipcios pueda suponer para los habitantes
de Argos una amenaza bélica, lo que las Danaides están expresando
es su deseo de sufrir el destino de los hombres vencidos, no el de
las mujeres: morir y ser devoradas por perros y aves antes que sufrir
la violencia sexual. Se trata de la misma idea que encontramos en el
coro de Siete contra Tebas: Sin duda, lo aseguro, el que ya está muerto
/ tiene mejor suerte que estas (ἦ τὸν φθίμενον γὰρ προλέγω / βέλτερα
τῶνδε πράσσειν, Sept. 336-337) dice el coro en referencia a las niñas
a las que imagina violadas por los soldados del ejército atacante.
135
Finalmente, cuando el heraldo de los Egipcios trata de llevarse a
las muchachas, amenaza con arrastrarlas por los cabellos (ὁλκὴ γὰρ
οὔτοι πλόκαμον οὐδάμ’ ἅζεται, Suppl. 884) y arrancar sus ropas (εἰ
μή τις εἰς ναῦν εἶσιν αἰνέσας τάδε, / λακὶς χιτῶνος ἔργον οὐ κατοικτιεῖ,
Suppl. 903-904), exactamente la misma escena que imagina el coro
de Siete contra Tebas, aunque aquí no es una suposición, sino una
amenaza explícita del agresor.
Las hijas de Dánao son presentadas como muchachas “en flor”.
Su padre es muy claro al respecto cuando al final de la obra, cuan-
do reciben el apoyo de la ciudad de Argos, las alienta a no hacer
nada que pueda acarrearle a él vergüenza. A vosotras os animo a
no avergonzarme, / vosotras que tenéis esa edad en flor (ὥραν),
atractiva para los hombres. / No es en absoluto fácil de custodiar
la fruta delicada (τέρειν’ ὀπώρα). / Las fieras se afanan por ella y
también los hombres, ¿cómo no? / Y todo animal salvaje, el que vuela
y el que camina sobre la tierra. / Cipris anuncia los frutos ofrecidos
(καρπώματα) que destilan su savia (Suppl. 996-1001). En estos ver-
sos, las alusiones a la fruta deseada por el enemigo hacen imposible
no recordar los versos de las muchachas del coro de Tebas que he
recordado más arriba y en los que defendí que καρπός debía ser en-
tendido no en sentido literal, sino metafórico, en alusión a las niñas.
Utilizando una imagen parecida, la de la flor de la juventud, la flor
de los jóvenes cae en el campo de batalla, mientras que la de las
muchachas es arrancada por los soldados victoriosos. Los animales
salvajes se ceban con el cuerpo del guerrero caído en combate; otros
animales salvajes lo hacen con el de las muchachas todavía vivas,
lo que hace comprensible esa idea repetida de que es mejor morir
que sufrir tal violencia.
El final de Suplicantes, con todos sus problemas, de los cuales no
es el menor que no es un verdadero final (al menos no lo era para
el público del 463 a.C., que vería cómo Esquilo resolvía el enredo
en las piezas posteriores), puede servir como apoyo de esta idea de
que las hijas de Dánao no rechazan el matrimonio, sino una unión
sexual contra su voluntad. Tanto las palabras del coro, invocando a
136
Ártemis para que no se cumplan los ritos de Afrodita “bajo el signo
de la violencia” (ἐπίδοι δ’ Ἄρτεμις ἁγνὰ / στόλον οἰκτιζομένα, μηδ’ ὑπ’
ἀνάγκας / τέλος ἔλθοι Κυθερείας, Suppl. 1030-1032), como el encomio
a Hera y a Afrodita, junto con la referencia a Peithó, por parte del
coro secundario de sirvientas19 (Suppl. 1034-1051), señalan el camino
hacia un gámos sin violencia ni hybris.
No es esta la primera vez que los coros de doncellas de Esquilo
son estudiados de manera conjunta. La doncella (parthénos) tiene un
estatus de gran relieve en la vida religiosa, e incluso política, de la
ciudad y el modo en el que los coros de muchachas de Siete contra
Tebas y Suplicantes representan en escena esa relación única entre la
virgen y el estado ha merecido, con razón, una cuidadosa atención.
Sin embargo, sugerir que estos coros escenifican la transición a la
edad adulta, incluso que representen “a temporary period of wildness
in a young woman’s coming of age” 20 entiendo que es reduccionista
y que supone cerrar los ojos a la evidente violencia contra la que
estas muchachas se manifiestan con una claridad patente. Sus mie-
dos no son irracionales 21, sino que hablan de algo que el público
de entonces, como el de ahora, conoce muy bien. Es cierto que las
doncellas en la tradición literaria griega aparecen con frecuencia
como fieras que hay que domar (Anacreonte PMG 335), y eso mismo
puede hacer muy difícil trazar una línea entre el empleo metafórico
de imágenes que implican violencia y la denuncia explícita de vio-
137
lencia real y no metafórica. Hablando del coro de Siete contra Tebas,
decir que “their virginity is a perfect symbol for the sanctity of the
innermost part of the city where the drama takes place, while their
fear of rape corresponds on a personal level to the public violation
of the citadel” 22 es muy cierto, pero es también quedarse solo al
principio del camino. El miedo del coro de muchachas a la violaci-
ón se corresponde, en el nivel público, con el miedo al saqueo de
la ciudad, pero lo que realmente cuenta es que se trata de miedos
fundados, ya que una y otra cosa sucederán si la guerra se pierde.
4. Conclusiones
138
que el miedo expresado por el coro era un miedo conocido por
los asistentes a la representación, que lo habían sentido solo trece
años antes, durante las Guerras Persas, y que ellos mismos habían
provocado al infligir tales atrocidades a otros griegos. Pudiera ser,
señala Meineck, incluso, que entre el público hubiera responsables
de barbaridades como las que se anuncian en escena 24.
Suplicantes, por su parte, seguramente haría reflexionar a parte
del público, no solo sobre la institución del asilo, tan querida por
los griegos, sino también sobre las diferentes circunstancias en las
que podían tenían lugar los matrimonios. Podemos imaginar que
el público de entonces, especialmente el femenino, no dejaría de
empatizar con las mujeres de estas piezas teatrales y conocería muy
bien el miedo del que hablan 25.
Si en los estudios sobre la tragedia griega se leen siempre lamentos
sobre la pérdida de dos de los componentes principales de la misma,
música y danza, no es menos cierto que para desentrañar el sentido
del tercer elemento, sí conservado, la palabra, necesitamos algo más
que un diccionario. En estas páginas he reflexionado, especialmente,
sobre dos palabras concretas: hybris (que puede significar insolencia,
pero, contextualmente, también violación 26 ) y gámos (que puede
significar matrimonio, pero también simple unión sexual, pacífica o
violenta). Ni siquiera hace falta que ambos términos vayan unidos
para que el sentido de gámos sea el de una unión sexual violenta.
A los ejemplos que ya he dado más arriba, quisiera añadir uno más.
En la Helena de Eurípides, en el verso 191, el coro, para describir un
grito de dolor lo compara con el que emite una ninfa, o náyade, que
139
huye por las montañas y denuncia con gritos la violación a la que
Pan la somete (Πανὸς ἀναβοᾶι γάμους). ¿Cómo vamos a hacernos una
idea de lo que el poeta dice si al traducir no tenemos en cuenta la
situación y hablamos de “los amores de Pan”, o “el abrazo de Pan”?
Propongo, pues, que el asunto concreto de la violencia sexual
contra las mujeres, especialmente en contexto de guerra, sea tenido
en cuenta junto a todas las demás perspectivas. No en lugar de, sino
además de ellas. Es, entiendo, un elemento estructural y quizá por
ello pase tantas veces desapercibido. Como señalaba más arriba, si se
trata de la trama de Siete contra Tebas, por ejemplo, habrá quienes
digan que apenas existe acción (“reproche” que también se hace a
Suplicantes, curiosamente), o se dedicarán páginas a la descripción,
bellísima y llena de significado, de los escudos de los atacantes,
pero del miedo de la mitad de la población no se dirá nada, o se
calificará de histérico. Nada justifica esa perspectiva. Tanto si nos
colocamos en la piel de los espectadores de entonces, como si nos
acercamos a estas obras con las inquietudes actuales, la violencia
contra las mujeres en la guerra es un tema nuclear.
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141
(Página deixada propositadamente em branco)
O q u e o s o l h o s v e e m n a H e l e na
d e E u r í p i d e s *1
W h at t h e E y e s C a n S e e i n E u r i p i d e s ’ H e l e n
Jorge Deserto
Univ. Porto, CECH
ORCID: 0000-0001-6755-9771
jdeserto@gmail.com
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_6
do texto ou até mesmo, em determinados momentos, confrontar o
próprio texto e, portanto, tornar a sua leitura mais ampla e mais rica.
A minha proposta, neste artigo, é a de trabalhar a dimensão visual
(entendida como aquilo que, durante a representação, seria oferecido
ao olhar dos espectadores) de uma peça tão variada e desafiadora
como a Helena de Eurípides. Se há uma indiscutível riqueza, a este
nível, quer nos figurinos, quer na movimentação, ela torna-se ainda
mais decisiva numa obra que, desde o início, nos propõe que descon-
fiemos daquilo que os olhos veem e nos ensina que o olhar pode não
ser a fiel testemunha que nos permite encarar o mundo sem descon-
fiança.
Palavras-chave: Tragédia grega, Eurípides, Helena, opsis, objetos de
cena
144
Introdução
Olhar para o teatro grego como algo que deve ser fruído pelo olhar
é certamente, não será necessária grande soma de argumentos para
o demonstrar, uma forma de enriquecer a leitura que fazemos destas
obras. No fundo, antes de qualquer outra consideração ou argumento,
a própria designação theatron, o lugar a partir do qual se olha, a partir
do qual se assiste ao espetáculo, reivindica essa importante parcela
de importância concedida ao olhar. Compreende-se, assim, que uma
das mais consistentes tendências dos tempos mais recentes seja olhar
para a tragédia grega (bem como para a comédia, mas, na comédia,
ao longo do tempo, tem sido mais natural e constante, pela própria
natureza exuberante de algumas propostas cénicas, a atenção aos as-
petos mais materiais da conceção do espetáculo) conferindo acrescida
importância ao cenário, aos figurinos, aos objetos de cena ou à movi-
mentação das personagens, ou seja, a tudo aquilo que, no momento
da representação, seria predominantemente absorvido pelos olhos e
não pelos ouvidos. O primeiro pressuposto deste breve texto, sem
qualquer particular originalidade, é o de que a Helena de Eurípides,
como qualquer outra das tragédias gregas, ganha em significados e
em linhas de leitura produtivas se for submetida a esse exercício.
Podemos até, sem qualquer receio de erro ou exagero, defender que,
neste exemplo particular da arte de Eurípides, uma específica atenção
àquilo que está diante dos olhos da audiência pode, além de corroborar
e ajudar a interpretar o texto, criar algumas linhas de tensão – que
acabam por interpelar de um modo inesperado as palavras que são
ditas em cena. Por isso, e porque este aspeto particular – a tensão a
que é permanentemente sujeito o olhar dos espectadores – me pare-
ce importante, tentarei explorá-lo um pouco mais do que apenas os
elementos relativos a adereços ou à movimentação de cena, também
eles claramente eloquentes e reveladores, mas funcionando num grau
menor de amplitude e de relevância.
O aspeto que, antes de todos os outros, ajuda a dar forma a
essa tensão que perpassa ao longo da Helena de Eurípides – e que,
145
convém sublinhá-lo, não lida apenas com a configuração do olhar
da audiência, embora se jogue muito nessa vertente particular do
espetáculo – prende-se com o modo, definidor e fundador da própria
dinâmica da peça, como Eurípides refaz a narrativa mitológica em volta
de Helena, criando um jogo em que o ato de refazer nunca desfaz
completamente o que antes existia. É este movimento incompleto,
esta construção de realidades em espelho que facilmente coloca o
espectador numa situação de alguma incomodidade, alimentada por
sinais contraditórios ou, pelo menos, não coincidentes – e, neste
ponto, aquilo que cabe à fruição do olhar ganha um papel relevante
na construção dessa incomodidade.
Antes de avançarmos mais, pensemos no seguinte: a narrativa
tradicional que nos conduz à guerra de Troia tem como gatilho fun-
damental o rapto de Helena, rainha de Esparta, levada do seu palácio
pelo príncipe troiano Páris – e se, sobre a vontade de Helena em
todo este processo, nem todas as versões parecem coincidir senão
neste ponto particular, da manchadíssima reputação já ninguém a
livra. Reparemos agora no que faz Eurípides: ele propõe-nos que,
neste seu drama, a intriga em torno da guerra de Troia seja fechada
por um rapto de Helena, o único que, nesta versão, verdadeiramen-
te acontece, já que o outro, o que conduz a mulher de Menelau a
Troia, fica agora envolto num nevoeiro quase tão imaterial como a
figura que, em vez de Helena, é levada por Páris para as margens
do Escamandro.
Como entender este novo rapto, aquele que agora reconduz os
acontecimentos à situação original? Podemos tentar lê-lo como forma
de criação de um efeito de circularidade, um percurso que se fecha
de um modo aproximado àquele com que a tradição o havia aberto.
Esta é, como se vê, uma circularidade predatória, já que a intriga que
conduz ao segundo rapto também, de caminho, reduz o primeiro a
um fingimento. No entanto, como uma incomodativa semente, algo
sobrevive, quase como se fosse uma marca de Helena e da influência
que ela exerce: para contar a história desta mulher, mesmo numa
versão em que ela se cobre de virtudes, é sempre preciso raptá-la.
146
De algum modo, algo nos avisa que em volta de Helena perdura
sempre este perfume algo malsão, esta aura de perigo e de incerteza.
Por outro lado – numa interpretação que não anula a anterior,
mas com ela convive em sã harmonia – podemos igualmente olhar
para este segundo rapto numa lógica substitutiva, como um lance da
intriga que aparece em vez de outro, algo que, em simultâneo, desau-
toriza, emenda e reconstrói aquela que era a versão mais conhecida
por todos. De algum modo, esta leitura até encaixa no paralelo que
é recorrentemente feito – e de forma absolutamente justa – entre
a intriga desta tragédia e a Odisseia, entre a situação de Helena,
nesta versão, e aquela que é vivida pela Penélope homérica. Sem
forçar demasiado, este rapto, que agora ocupa o lugar do inicial, é
um pouco uma forma de tecer de novo a intriga, depois de a haver
desmanchado – e esse ato de desmanchar e fazer de novo cola-se
a Penélope, bem o sabemos, como uma segunda pele. É certo que
Penélope não precisa de ser raptada para reconstruir a sua casa, mas
Helena, por mais que os nossos olhos tentem descortinar nela toda
a soma de virtudes, nunca será uma Penélope.
Desfazer o que está e colocar em seu lugar outra coisa. Parece
fácil, mas nunca é. E, neste caso, Eurípides claramente não quer que
seja: os vincos do passado, as marcas de uma tradição duradoura e
insistente continuam à vista. Eurípides, sempre tentado a descon-
certar-nos, durante largo tempo não coloca uma intriga no lugar de
outra: coloca-a ao lado da outra, a disputar-lhe o lugar, a respirar no
mesmo espaço onde o ar se rarefaz. É nessa tensão que o espectador
mergulha, é para essa tensão que o seu olhar é desafiado, de um
modo particularmente inteligente e intrigante.
Helena
Quando a peça abre, uma mulher, que está sozinha em cena, fala
connosco. Os monólogos iniciais, este dispositivo que Eurípides tão
largamente soube aproveitar, desenvolvem com o espectador uma
147
relação dúbia, já que não podem deixar de mostrar-se conscientes
– não explicitamente, mas no laço implícito que se estabelece entre
quem fala e quem ouve – do seu artificialismo e da sua teatralidade.
Por que razão há-de alguém, num determinado dia, rememorar em
voz alta o lugar onde se encontra, a sua identidade, as circunstâncias
da sua vida? Como espectadores, sabemos que é por nossa causa, por
algum lado tem de começar a desenrolar-se o fio que nos vai puxar
para dentro do drama – resta-nos fazer a nossa parte, fingirmos que
tudo aquilo é natural e deixarmos que o jogo prossiga.
A mulher que fala nestes versos iniciais (1-67) refere essencial-
mente duas coisas, ambas surpreendentes: o lugar onde se encontra
e aqueles que nele vivem, por um lado, a sua identificação e um
breve relance pela sua história, por outro. Esse relance, com todo o
seu efeito de contextualização, mas também com novos dados, que
completam e ampliam o que foi dito, vai ter continuidade no diálogo
com Teucro, que vem imediatamente a seguir (68-163).
O lugar, aquele onde decorre a ação, é o exótico Egipto, junto do
palácio que havia sido morada de Proteu. Não é claro que este lugar,
em nada habitual na tragédia1, seja usado visualmente para criar um
efeito particular de exotismo. É certo que estamos um bocado limi-
tados quanto ao que seria a skenographia, cuja criação Aristóteles
atribui a Sófocles, mas talvez não devamos esperar demasiado dela,
eventualmente um conjunto de painéis pintados, possivelmente
amovíveis, colocados nas paredes da skene2. Mesmo que deixemos a
nossa imaginação seguir esse caminho (e poderíamos legitimamente
fazê-lo), esta presença do Egipto parece-me aqui funcionar, não tanto
como forma de distanciamento ou exotismo, mas, antes disso, como
uma forma de conexão à tradição homérica, que Eurípides pretende
148
sublinhar de forma evidente 3. Nesta leitura, o Egipto funciona como
uma âncora que dá alguma segurança ao espectador, já que Helena,
esta nova Helena, não é colocada num lugar arbitrário e completa-
mente inesperado. Devo conceder, no entanto, que, ao lado do efeito
de reconhecimento, a que atribuo particular importância, o Egipto
não deixa de ser, ao mesmo tempo, suficientemente remoto, incerto
e desconhecido e pode, por isso, representar, em simultâneo, uma
ameaça credível. Eurípides, como é óbvio, faz isso de forma sinuosa:
num primeiro momento, Helena é arrebatada para o Egipto para aí
encontrar um refúgio, até vir, um dia, a ser resgatada por Menelau.
Este é, portanto, um lugar que, no início, oferece proteção. No en-
tanto, como acontece, por regra, nesta peça, as coisas tendem a não
ser permanentes, o certo e o incerto parecem estar em constante
movimento. Por isso, também o Egipto, com a morte de Proteu, se
muda de refúgio em ameaça, com o surgimento de um pretendente
que obriga Helena a procurar guarida na proteção algo incerta de
um túmulo a que as circunstâncias conferem o sagrado papel de um
altar, num mundo que se torna subitamente mais hostil.
Mais do que o país onde tudo acontece, o que prende a atenção
do espectador é esta figura feminina que fala. Percebemos rapida-
mente – porque o diz – que se trata de Helena, a filha de Tíndaro
(ou de Zeus, como também conta, não sem uma ponta de descren-
ça), refugiada no Egipto, enquanto a ilusão de um eidolon empnoun
acompanhou Páris e arrastou o sofrimento para Troia. Enquanto
aguardava o regresso incerto de Menelau, Helena perdeu a bondosa
proteção de Proteu, cuja morte de lhe trouxe a perseguição do filho
deste, Teoclímeno, pretendente à sua mão. Procurou, por isso, refúgio
junto do túmulo do anterior rei, onde agora a vemos.
3 Stavrinou 2015: 109-113 sublinha que lhe parece haver suficientemente exotismo
neste Egipto para que a alteridade do lugar fique devidamente sublinhada. Parece-lhe
igualmente que a imagem de um Egipto protetor se sobrepõe à noção de ameaça,
até porque mesmo Teoclímeno não é ameaçador pela sua condição de bárbaro, mas
pela sua atração por Helena.
149
Voltemos à disposição do espaço. O eixo que visualmente nos
conduz acaba por acolher essa dualidade que já aqui se associou
ao remoto Egipto onde tudo se passa: proteção e ameaça, numa
sequência que parece sempre periclitante. O olhar do espectador
divide-se entre o palácio de Teoclímeno, representado pela fachada
colorida da skene, ao fundo, e pelo túmulo de Proteu, que mais
provavelmente se encontrará na zona central da orchestra4. Parece-
me claro que se torna necessário algum afastamento entre palácio
e túmulo, de modo a que, para os espectadores, se torne mais clara
a polaridade entre os dois lugares – e também para dar consistên-
cia, em termos de movimentação em cena, a alguns momentos em
que esse jogo de aproximação e esquiva se torna particularmente
relevante, como acontece com a ocasião em que pela primeira vez
se encontram Helena e Menelau (541-556). É necessário que o olhar
do espectador dissocie os dois lugares (isso leva a que não possam
estar demasiado próximos), de modo a que se torne mais visível
como o palácio, anteriormente protetor, se tornou agora hostil e
ameaçador para Helena, enquanto a proteção é representada agora
por um lugar claramente mais precário, um túmulo e um leito feito
de folhas. Temos a noção de que chegamos junto de Helena num
momento em que a pressão se torna cada vez mais insustentável 5.
Os espectadores olham para esta mulher e, no cumprimento do
contrato de confiança a que o teatro os habituou, acreditam que é
Helena, a filha de Tíndaro, a que reinou em Esparta. No entanto, a
4 É essa a opinião de Allan 2008: 30-1 e Marshall 2014: 199-204. Burian 2007:
37 partilha a mesma opinião, ainda que com um grau menor de segurança. O único
passo que pode mais legitimamente suscitar dúvidas é aquele em que Teoclímeno
afirma que mandou erigir o túmulo do pai junto da entrada do palácio (1165), mas
esta é certamente uma afirmação que não tem de ser entendida à letra.
5 Também neste ponto se pode ler um dos paralelos homéricos com que Eurípides
longa e conscientemente se delicia. Também Penélope, no momento em que Ulisses
regressa, se encontra naquele ponto extremo em que se vê obrigada a quase ceder às
investidas dos Pretendentes. Como sabemos, este aproximar do abismo antes de uma
salvação in extremis tornou-se, ao longo dos tempos, recurso habitual de qualquer
autor ou argumentista de histórias de aventuras. Sobre as ligações, múltiplas e con-
sistentes, entre a Helena e a Odisseia, que não pretendo aprofundar aqui, vejam-se,
entre outros, Meltzer 1994 e Holmberg 1995.
150
tensão causada por esta nova versão não deixa, inevitavelmente, de
transmitir-se a quem assiste. Helena está ali. Não vemos outra, mas
sabemos que existe um eidolon empnoun, uma imagem que respira
e, por isso, com vida, que, noutro lugar que não este Egipto, conti-
nuou e continua a fazer tudo aquilo que a tradição nos havia narrado
como ações de Helena. O que acontece, portanto, aos espectadores
desta obra de Eurípides é que olham para Helena enquanto ela, à
distância, assiste ao decurso da sua vida, que parece desenvolver-
-se imparável e independente da sua vontade. Essa dissociação
entre o eu que fala e o meu nome, essa fama perversa que continua
associada à rainha de Esparta, tem sido largamente sublinhada e
é cabal testemunho da precária identidade desta figura. Mas esse
é o desafio que os espectadores também enfrentam, à medida que
vão sendo convidados a ver esta nova fase da narrativa da expe-
dição troiana e se habituam, não sem esforço, a esta nova Helena,
a única que a peça lhes mostra, condenada a um vazio existencial
em que contempla, com natural sofrimento, a versão famosa de si
própria.
O grau de tensão torna-se ainda mais evidente mais adiante, quando
aqueles que legitimamente poderiam reconhecê-la (Teucro, Menelau)
se recusam a fazê-lo. Ainda que, tal como nós, estejam a vê-la, porque
acreditam nos seus olhos. Eles veem agora Helena (enfim, parece mes-
mo Helena), mas também viram Helena quando conquistaram Troia.
E sabem quanto lhes custou e ainda custa aquela vitória. Para Teucro,
a Helena que viu em Troia e que lhe causou sofrimentos sem fim,
sofrimentos que ainda duram, é bem mais credível que esta mulher,
inesperadamente encontrada num lugar remoto. Para Menelau, a
Helena que o acompanhou no barco e que com ele naufragou, aquela
que agora aguarda numa gruta, a que o fez reduzir a cinzas uma
cidade é muito mais credível do que esta que agora lhe aparece,
pronta a cair-lhe nos braços 6.
151
Para os espectadores, o desafio é diferente. No mundo desta peça
não conhecem outra Helena que não esta, a que virtuosamente, no
Egipto, espera. A outra Helena, o eidolon, é uma abstração que já
parece gasosa antes de efetivamente o ser. A linha tensional que
se cria é, portanto, outra e desenha-se duplamente. Por um lado,
o público acompanha e tenta entender a incredulidade de Teucro
e Menelau – que recusam aceitar o que os olhos lhes mostram –
com a vantagem de ser conhecedor da falsidade do eidolon, mas,
ao mesmo tempo, tentando incorporar e dar sentido a este mundo
completamente novo onde agora encontra Helena. Por outro lado,
vai descobrindo, em alguns casos ao mesmo tempo que a rainha de
Esparta, os estragos que a fama de Helena continua a fazer. Helena
está no Egipto, isso é certo. Mas, ao mesmo tempo, Teucro sofre as
consequências da morte de Ájax, ruínas ocupam o lugar de Troia,
Leda pôs termo à vida. Eurípides reconstrói a tradição e mostra-nos
uma nova Helena (é um facto, estamos a vê-la), mas, ao mesmo
tempo, mantém tudo aquilo que construiu a fama da outra Helena.
Estas duas verdades, paralelas e inconciliáveis, fazem o seu cami-
nho impossível e avançam em simultâneo, até ao momento em que
um Menelau admiravelmente confuso quase parece sucumbir a um
excesso de Helenas claramente para lá do suportável.
O espectador lida com ambas, aquela que faz parte do seu patri-
mónio, esta que, agora, mais próxima, mais visível, desafia a anterior.
O público, mais confiante nos seus olhos, tem diante de si uma
Helena com corpo, voz, movimentos, sentimentos. E no entanto,
apesar dos olhos, que não enganam, uma sensação inquietante vai
invadindo quem vê: de uma certa maneira, esta Helena do segmento
inicial da peça não existe.
been misled for years by an image of Helen (as she [Helen] well knows) is told to
believe his own eyes.”
152
Menelau
153
do palácio, quer, mais adiante, pelo modo como a sua aparência as-
susta Helena e como ele próprio, pouco depois, foge a reconhecer a
mulher. Não há aqui uma harmoniosa Nausícaa que acolha este náu-
frago – o que ele encontra é apenas uma multiplicação de Helenas,
e de problemas. A comparação com a Odisseia, que o espectador é,
de forma evidente, convidado a fazer, funciona aqui, sem dúvida,
como um modo de diminuir Menelau.
Para o propósito deste texto, aquilo que é mais relevante, no
modo como a figura de Menelau confronta o olhar do espectador, é
a forma como se apresenta vestido. A condição de náufrago privou-
-o de todos os bens e riquezas (e isso inclui as vestes adequadas
ao seu estatuto social) e leva a que se apresente diante dos nossos
olhos, como o próprio diz, vestido com despojos do navio (421-2).
Eventualmente estaria vestido com farrapos provenientes do que
restara das velas do navio, como se aventa frequentemente 9. Como
se compreende, não é a matéria do traje de Menelau o mais impor-
tante, mas sim a indiscutível importância que este adquire ao longo
da peça e o conjunto vasto de referências de que é objeto.
Para além de, como já vimos, o próprio Menelau chamar a aten-
ção para a sua aparência degradada, também Helena (544-5; 554) e
Teoclímeno (1204) reagem impressionados na primeira vez que veem
o rei de Esparta, o que mostra como o dramaturgo quer sublinhar o
poderoso impacto das roupas que cobrem Menelau. Além disso, no
momento em que o plano de fuga gizado por Helena exige que a
pretensa morte de Menelau ocorra convincentemente num naufrágio,
os farrapos, que até aí podiam ser vistos como fonte de vergonha,
transformam-se no mais adequado adereço para a cena que é ne-
cessário representar, como o próprio Menelau tem o cuidado de
sublinhar (1079-80).
9 Cf. Burian 2007: 213 e Allan 2008: 197. Ambos os comentadores referem um
passo de Aristófanes (Th. 934-5), no qual, após a paródia a Helena, Critila designa
como aner…histiorraphos o falso Menelau que havia tentado libertar o Parente. Não
é claro que uma referência como esta possa ser tratada como informação objetiva,
longe disso.
154
Esta insistência em regressar, em momentos distintos da ação, à
aparência do rei de Esparta não deixa de ser um tanto intrigante,
pelo menos se pensada à luz de uma representação e não apenas
de um texto. De facto, por que razão insistir tanto na aparência de
Menelau quando ela está à vista desde o momento da sua entrada
em cena e, portanto, exerce continuamente o seu efeito sobre os
olhos da audiência? 10
Uma primeira hipótese pode levar-nos a supor que a insistência
decorre de um menor poder do efeito visual, que tem de ser, assim,
reforçado pelas palavras. A aceitarmos esta possibilidade, teríamos
de pensar que os famosos farrapos euripidianos seriam mais um
exagero aristofânico do que algo claramente visível e distinguível
na caracterização, fosse porque a dignidade inerente à tragédia im-
pediria uma excessiva degradação na aparência das personagens,
fosse porque o próprio espetáculo e a dimensão do teatro onde ele
decorria não permitia que a caracterização da personagem fosse tão
visível e evidente que dispensasse a menção por palavras – ou seja,
o theatron seria, afinal, um lugar onde não se veria grande coisa. O
já respeitável axioma de Oliver Taplin, segundo o qual, na tragédia
grega, tudo o que tem significado ao nível da ação está presente no
texto 11, merece consideração, até porque nos recorda o profundo
peso da palavra na experiência teatral grega. Mas pode, ao mesmo
tempo, ser produtivamente discutido e até desafiado12. No caso que
agora se discute, parece-me suficientemente seguro que a aparência
de Menelau deveria tornar claramente visível a diferença entre o seu
aspeto e aquele que se esperaria que tivesse o soberano de Esparta
e vencedor de Troia. Aliás, só assim se consegue retirar sentido,
de forma completa, da sua mudança de aparência na parte final
10 Zuckerberg (2016: 215) coloca nestes termos a sua perplexidade: “The characters
in the play continually call attention to Menelaus’ wretched appearance. As a reader of
the text these reminders are helpful; as an audience member who can see Menelaus’
costume, the constant references to it might have seem redundant.”
11 Taplin 1977: 28.
12 Veja-se, por exemplo, Marshall 2014: 191-6.
155
da peça, a que voltarei adiante. Assente esta convicção, teremos de
abordar a partir de uma segunda hipótese o problema colocado há
pouco: Eurípides faz questão de sublinhar várias vezes a aparência
miserável de Menelau porque quer tornar visível, sem qualquer
ambiguidade, a sua relevância enquanto dispositivo teatral (ou seja,
enquanto elemento visual criador ou cocriador de sentido) e porque,
de algum modo, como sugere Marshall 13, o dramaturgo se apropria
aqui, para os seus próprios fins, de uma forma de caracterização que,
no passado, havia sido longamente parodiada na comédia 14. O que
acontece na Helena é que a questão da aparência de Menelau se joga
em mais do que um tabuleiro, dos farrapos que vemos no início aos
que vão ajudar a construir o dolo – são os mesmos e, no entanto, a
utilidade que lhes é dada como que os transfigura. A riqueza deste
elemento de caracterização insere-o numa moldura mais ampla, em
que se discute, num permanente quadro de incerteza, aquilo que os
olhos veem e aquilo que os olhos parecem ver.
Assentemos, portanto, no princípio de que os espectadores veem
os farrapos de Menelau e sentem com clareza que aquela imagem
contribui – entre outros aspetos, não é certamente fator único – para
a corrosão da personagem que se prepara, nesta metade inicial da
peça, para um percurso emocional sinuoso, em forma de montanha
russa, que o leva de náufrago desamparado e escorraçado a vencedor
de uma guerra que, subitamente, acaba de perder todo o sentido, isto
depois de ter assistido, com natural ansiedade, a uma inexplicável
e constrangedora multiplicação de Helenas.
156
Há, ainda assim, um pequeno pormenor, naquilo que os olhos dos
espectadores veem, que contribui para tornar a imagem de Menelau
um bocadinho mais complexa. A partir do texto só se percebe mais
tarde, mas Menelau entra em cena com uma espada. Significativamente,
ela só começa a ser referida, e profusamente, quando, após o reco-
nhecimento, o percurso do rei de Esparta começa a ganhar outra
cor. Se nos guiarmos apenas pelo texto, damos por ela quando, no
momento em que Helena e Menelau celebram o pacto suicida, a
rainha afirma que a espada de Menelau lhe dará a morte (837); mais
adiante, o próprio Menelau, na rhesis dirigida a Teónoe, relembra o
pacto e exibe a espada que, de acordo com ele, trará a morte a ambos
(983); um pouco depois, é Menelau quem, num assomo de coragem,
propõe ocultar-se no palácio e matar o rei com a sua espada (1043);
por fim, já depois de estabelecido o plano de Helena, a rainha sugere
que Menelau aguarde os acontecimentos sob a proteção do túmulo
de Proteu e também da sua espada (1086, única ocasião em que se
usa phasganon e não xiphos, como nas referências anteriores). Em
suma, é certo que o texto chama a nossa atenção, de forma mais
do que suficiente, para a espada que Menelau traz consigo. No en-
tanto, antes do reconhecimento, nunca as palavras referiram aquele
objeto. Mas desde a entrada de Menelau, o desamparado náufrago
em farrapos, que a espada estaria certamente bem visível aos olhos
dos espectadores: durante o momento em que é escorraçado pela
porteira, durante toda a confusão que ele vive em seguida, diante de
uma Helena supranumerária. Ao longo de todo este tempo, a espada
é um adereço dissonante, perante o qual, na melhor das hipóteses,
os espectadores não podem deixar de sentir uma certa perplexidade.
O desaparecimento do eidolon e o reconhecimento, imediatamente
a seguir, constituem o ponto de viragem e só após este momento a
espada é referida. Agora ela existe e cumpre uma função. Durante
toda a parte inicial, este adereço de Menelau esteve igualmente à
vista e, com isso, exibiu eloquentemente a sua inutilidade. Veja-se
como esta é uma forma hábil de esboroar por completo a identidade
de uma personagem.
157
Helena e Menelau
158
Helena, como vimos, vê a sua identidade manter-se periclitante,
a roçar a não existência, em toda a parte inicial da peça, separada
do seu nome e da fama que ele arrasta consigo. Em todo esse seg-
mento, no entanto, enquanto a identidade da rainha espartana luta
por se afirmar, a imagem que os espectadores dela têm preserva,
intacta, a beleza e a figura da mulher cuja mão foi disputada pelos
melhores de entre os Gregos, tal como agora desperta o desejo do
faraó. Aqueles que chegam não a reconhecem como Helena, a que
fez cair Troia, mas veem nela alguém que claramente parece Helena,
que é tão igual que se torna uma incomodativa presença. A Helena
só não é permitido ser Helena – e com isso se afunda numa dolorosa
impossibilidade de existir, obrigada a manter-se como angustiada
espectadora do seu nome.
Pouco a pouco, os acontecimentos vão resolvendo este problema.
Mas o plano de fuga, para ter sucesso, exige mais. Para que a revi-
ravolta seja completa, para que a rainha de Esparta possa readquirir
por inteiro o seu estatuto, as circunstâncias exigem que a sua imagem,
aquilo que nós vemos dela, sofra uma considerável degradação, é
certo que fruto de um plano engenhosamente elaborado, mas nem
por isso menos eloquente em termos visuais. Esta outra Helena, cada
vez mais próxima de poder livremente ser ela mesma, carrega novas
vestes, com o negro sombrio do luto, o seu rosto é desenhado por
uma nova máscara, na qual estão cortados os belos cabelos, em cuja
face se desenham as lágrimas e as marcas cortantes das unhas 15 .
Esta impressionante imagem de sofrimento – com a qual somos con-
vidados a lidar com alguma distância, sem envolvimento emocional,
nós que, como espectadores, somos cúmplices da artimanha –, esta
súbita degradação de um símbolo de beleza representa o passaporte
para que Helena possa recuperar a sua identidade e apresenta-se
como um eloquente contraste entre aquilo que vemos e aquilo que
159
sabemos. É a última imagem que temos dela na peça – e em nenhum
outro momento da ação ela terá sido tão verdadeiramente Helena.
Como já sugeri há pouco, o processo semelhante de reconstrução
de identidade de Menelau segue uma via paralela, mas de sentido
oposto. Para dizer a verdade, a recomposição da imagem de Menelau
opera-se em dois níveis e o primeiro deles, mais subtil, não muda
a imagem, mas apenas a função desta. No desenvolvimento do pla-
no, os farrapos que vestem o rei de Esparta, e que até aqui apenas
simbolizavam a vergonha por ter descido tão baixo, tornam-se, de
um momento para o outro, uma das chaves que vão abrir a possi-
bilidade de regresso. Sem mudar nada, ainda disforme e andrajoso,
Menelau é agora o ‘Náufrago’, personagem de relevante importância
nesta trama de vida ou de morte, e já não o rei errante que, caído
em desgraça, não sabe sequer o valor do seu nome. Há ocasiões em
que morrer – só por palavras, não exageremos – pode ser a melhor
forma de voltar à vida.
Num momento em que o teatro era uma arte nova, a dar os pri-
meiros passos, ainda que já surpreendentemente seguros e adultos,
Eurípides dá-nos, enquanto espectadores, uma eloquente lição acerca
da abissal diferença entre um conjunto de farrapos e um adereço
teatral. Quando os andrajos que envolvem o corpo do rei de Esparta
se mudam em adereço, o primeiro passo da transformação de Menelau
está dado – e os nossos olhos testemunham que, mesmo nada mu-
dando de forma visível, muita coisa muda.
A transformação de Menelau, no entanto, não se fica por aqui.
Um segundo movimento, de matriz mais explicitamente homérica,
leva a que, dentro do palácio, por intervenção de Helena, Menelau
sofra ampla transformação, em muito semelhante a vários dos mo-
mentos em que Ulisses se vê rejuvenescido ao longo da Odisseia. O
processo é narrado por Helena às mulheres do Coro (1374-84): o rei
de Esparta está agora completamente armado, tem vestes condignas
com o seu estatuto, a própria Helena o banhou. Um novo Menelau
surge, renascido, depois de recuperar, pela aparência, todo o seu
estatuto de guerreiro e de rei. Quando o vemos pela última vez, no
160
cortejo que se dirige ao navio que vai proporcionar a fuga, é um
homem com a imagem de um grande chefe grego que está diante
dos nossos olhos. No caso desta figura, a recuperação da imagem
faz-se associando-a à representação estereotipada que os espectado-
res mais facilmente ligariam a uma personagem da sua natureza e
condição.
E quanto a Helena? Nesta peça, a recuperação da identidade e da
liberdade parece levar a rainha espartana a abdicar, por iniciativa
própria e de forma momentânea, é certo, daquilo que mais tradicio-
nalmente marca a sua imagem, a beleza que a todos deleita e que
todos cobiçam. Dito de outro modo, para ser Helena a filha de Tíndaro
tem de deixar de ser Helena. Há algo de muito amargo em tudo isto.
Epílogo
161
Bibliografia
162
T r o i a , pa r a d i g m a d e c i d a d e a n i q u i l a d a
n a t r ag é d i a g r e g a *1
T r oy a s a P a r a d i g m o f t h e A n i h i l i t e d C i t y
i n G r e e k T r ag e dy
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_7
própria experiência histórica de destruição de cidades em tempos
de guerra.
164
cionadas na tragédia sempre sobrevivem e nunca são destruídas.
Tebas, por exemplo, está constantemente sob ameaça nas tragé-
dias conservadas (Sete Contra Tebas, de Ésquilo; Antígona e Rei
Édipo de Sófocles; As Fenícias, Héracles e Bacantes, de Eurípides)
e, ainda assim, nunca é arruinada. Atenas em Heraclidas e na
fragmentária Erecteu, ambas de Eurípides, salva-se do perigo de aniqui-
lamento.
Somente Troia, de todas as principais cidades trágicas, é com-
pletamente arruinada. Levando em consideração que Troia não era
originalmente uma cidade grega, David Carter3 sustenta que exis-
tia um padrão na tragédia segundo o qual a polis grega sempre se
salvava, ainda que estivesse em crise ou sob ameaça de destruição.
A repreensão sofrida pelo poeta trágico Frínico por ter representado,
em 494 a.C.,4 a queda de Mileto, cidade grega, pode reforçar a nossa
impressão de que tal padrão existiu 5, ainda que não possamos estar
seguros uma vez que muitas tragédias se perderam. 6
As histórias acerca de Troia forneceram matéria-prima para a
produção trágica.7 O tema do aniquilamento de Troia, e suas conse-
quências imediatas, por sua vez, está substancialmente presente, dentre
as tragédias conservadas, em Agamémnon de Ésquilo, As Troianas e
Hécuba de Eurípides. As Troianas é situada temporalmente no breve
instante entre a queda de Troia e as derradeiras manifestações da
aniquilação física da cidade, mostrando o destino das nobres troianas
3 Carter 2006.
4 As datas neste texto são todas a. C.
5 “The only tragedy known to have centred around overthrow of a Greek polis
(Phrynichos’ Capture of Miletos) caused the tragedian to be fined” (Seaford 2012:
206, n. 1).
6 Ésquilo e Sófocles apresentaram, cada um, Epigonoi, que poderia ter dramati-
zado a destruição de Tebas, ainda que não possamos estar completamente seguros
devido à escassez de fragmentos pertencentes a estas tragédias. Em Sete Contra Tebas,
a audiência poderia ter imaginado a ruína de Tebas se interpretarmos os versos
840-844 e 902-903 enquanto menções à futura destruição desta cidade grega pelos
epigonoi.
7 Anderson 1997: 105 estima que um quarto de toda a produção teatral de Sófocles
tenha sido dedicada ao mito de Troia, ao passo que Ésquilo e Eurípides teriam reser-
vado um quinto das suas obras a esta temática.
165
transformadas em cativas de guerra dos vencedores gregos. O recor-
te temporal em As Troianas é, portanto, um pouco anterior do que
vemos em Hécuba. Nesta última, a destruição da cidade de Príamo
está consumada, ainda que muito recentemente, dado que a cidade
ainda arde (ver o verso 477). Ainda em Hécuba, os gregos já saíram
de Troia e estão na costa da Trácia, ao passo que em As Troianas
ainda estão na cidade de Heitor. Agamémnon, por sua vez, inicia
com o Vigia identificando o sinal de fogo que anunciara a queda
de Troia. A chegada dos aqueus e de Agamémnon a Argos forma
o próximo acontecimento da peça. Presumivelmente, eles tardaram
alguns dias para chegar a solo grego, ainda que Clitemnestra dis-
curse como se a tomada da cidade tivesse acontecido no mesmo dia
dos demais eventos da peça (ver o verso 320). Estas três tragédias,
portanto, lidam com os eventos do saque de Troia e seu imediato
desenlace, o que nos fornece o critério para privilegiar estas peças
na nossa discussão sobre o aniquilamento de Troia na tragédia
grega. 8
No primeiro tópico deste texto, mostraremos que a recorrência
do tema, em Ésquilo, da vitória dos gregos sobre os troianos como
uma conquista de aniquilamento, leva-nos à conclusão de que esta-
mos diante de um motivo que objetivava inserir a Guerra de Troia
166
na reflexão mais ampla proposta pela Oresteia: a possibilidade de
se estabelecer uma instituição jurídica humana que pudesse decidir
com legitimidade a correta justiça que deveria nortear a punição de
um determinado crime. Assim, a atitude excessiva dos gregos contra
Troia poderia ter sido vista por parte da audiência como um paralelo
para a tensão causada pelas punições desmedidas, incluindo o assas-
sinato de Clitemnestra, que caracterizam o historial da família dos
Atridas. Eurípides, como será discutido no segundo e terceiro tópicos,
explora o fim de Troia a partir da ótica das mulheres vencidas como
uma maneira de evidenciar as dificuldades morais inerentes a uma
conquista que arrasa o inimigo completamente. Como será sustentado,
as peças troianas de Eurípides não desenvolvem uma crítica à guerra
per se, antes mostram os horrores da dissolução completa do vínculo
entre indivíduo e cidade, que é resultado, não da simples conquista,
mas do aniquilamento de uma cidade. Por fim, argumentaremos que
este tema também possuía ressonância na realidade histórica, dada
a ameaça de aniquilamento de cidades gregas durante as Guerras
Pérsicas e a Guerra do Peloponeso.
1. Agamémnon de Ésquilo
167
antístrofe do primeiro estásimo conclui o seu pensamento sobre o
receio diante daqueles que prosperam sem justiça com a afirmação
de que “eu não seja destruidor de cidades” (μήτ’ εἴην πτολιπόρθης
472). Diferentemente da Ilíada, ser um saqueador de cidades adquire
uma clara conotação negativa neste passo de Ésquilo, o que nos leva
à constatação de que de Homero a Ésquilo o tema da destruição de
uma cidade tornou-se mais ambíguo e problemático. 10
No início do segundo episódio de Agamémnon, o Arauto de Argos
anuncia a chegada do esposo de Clitemnestra. O tom do anúncio é,
aparentemente, triunfante, porém algum gosto amargo transborda
por entre os feitos de glória:
10 Ver Fartzoff 2009: 170-171, que serviu de base para a construção deste parágrafo.
11 West 2008 coloca o verso 527 entre colchetes por suspeitar de sua autenticidade.
12 Denniston, Page 1957: ad 525.
168
trazer (1421), num exemplo significativo pois usado em referência
a uma cidade grega.
O supracitado verso 527 de Agamémnon pode ser considerado
justamente uma dessas manifestações do aniquilamento de Troia.
Em que pese o facto de estas linhas indicarem que a ação de
Agamémnon foi fruto da “picareta de Zeus” (526), a destruição de
altares e templos dos vencidos pesará na mudança de fortuna que
marcará o penoso retorno de muitos gregos para casa após a Guerra
de Troia. 13 É digno de nota que existe um verso similar a este em
Os Persas de Ésquilo: “e os altares foram destruídos e as estátuas
dos deuses desenraizadas” (βωμοὶ δ’ ἄιστοι, δαιμόνων θ’ ἱδρύματα
/ πρόρριζα 811-812). Nesta última peça, o fantasma do Rei Dario
reflete sobre as motivações divinas da inesperada derrota do seu
povo contra os gregos sob o comando de Xerxes. Uma das razões,
pensa Dario, liga-se à destruição de templos e estátuas, vista como
atitude de soberba e que fere a vontade dos deuses, como pode ser
entendido pelo verso 808.
É certo, no entanto, que a semelhança entre o verso 527 de
Agamémnon e 811 de Persas tem sido usada como argumento contra
a autenticidade da linha 527, que teria sido incluída tardiamente por
influência justamente do verso dos Persas. 14 Denniston e Page 15
sustentam, todavia, que o conteúdo da linha 527 alinha-se perfei-
tamente com outros passos de Agamémnon que enfatizam o modo
169
ímpio com o qual os gregos arrasaram a cidade de Troia. Uma destas
passagens é particularmente interessante, pois deixa clara a relação
entre o sofrido regresso dos gregos e seus atos de crime contra os
deuses. Trata-se das palavras de Clitemnestra, em 338-350, advertindo
os gregos a serem piedosos mesmo na qualidade de vencedores. Este
discurso está marcado pela repetição de palavras religiosas (euse-
bousi…theous 338; theon…hidrumata 339; theois 345), acentuando
o significado religioso dos acontecimentos pertinentes à queda de
Troia. 16
O espírito de Agamémnon relativamente à Guerra de Troia é ex-
presso, ainda, pelo Arauto, quando este informa as notícias acerca da
tempestade que vitimizou muitos gregos, mas que deixou incólume
a nau de Agamémnon. O Arauto começa a dizer que “não é próprio
manchar um dia auspicioso com o anúncio de más notícias” (636-637),
segue então por lamentar a sua sorte de ter de fornecer à cidade
notícias sobre “as abomináveis calamidades de um exército caído”
(639), que acarreta “ferida pública aberta no flanco da cidade” (640).
Se não soubéssemos que os gregos foram afinal vitoriosos em Troia,
suporíamos que o Arauto teria vindo relatar a derrota de um exército
em guerra no estrangeiro! Certamente, Ésquilo quis apresentar uma
imagem realista da guerra, o que inclui sofrimentos e perdas tam-
bém do lado dos vencedores. Ao fazer isso, convidou o seu público
a refletir sobre este “dia auspicioso” (euphemon emar 636), no qual
coincidem salvação, regresso de Troia, ruína e assassinato. 17
As apreciações, ora positivas, ora negativas, sobre a Guerra de
Troia em Agamémnon, foram classificadas de maneira especialmente
lúcida por Leahy.18 Seguindo este estudioso, podemos discernir três
significados básicos da saga de Troia na economia da primeira peça
16 Note que este discurso de Clitemnestra é tido pelo Coro como sensato: “Senhora,
falas com a sensatez de um homem sábio” (351).
17 “The victory transmitted by the fire is both Agamemnon’s over Troy and
Klutaimestra’s over Agamemnon (1378), who is therefore both winner and loser”
(Seaford 2012: 180).
18 Leahy 1974.
170
da Oresteia. O sentido positivo da tomada de Troia, que enfatiza a
missão chefiada pelos Atridas para recuperar Helena, conferindo
glória para si mesmos e para a armada ao vencer o inimigo com
ajuda dos deuses. É a versão da Guerra de Troia contada sobretudo
pelo próprio Agamémnon quando regressa a Argos (810-854). O se-
gundo significado pode ser tido como “realista”. Como comentamos
acima, esta abordagem reforça os efeitos corrosivos e nocivos desta
guerra para argivos e troianos. Neste âmbito, trata-se de uma guerra
levada a cabo para reaver uma mulher vista como indigna e que gera
insatisfações populares contra os Atridas. Esta versão da empresa
bélica está presente no relato de Clitemnestra (320-354) e nas partes
corais, como no primeiro estásimo que expõe o descontentamento
popular com a expedição 19 e no segundo estásimo, nomeadamente
entre os versos 783 e 804. 20
O terceiro sentido da Guerra de Troia no Agamémnon discutido
por Leahy diz respeito a uma tentativa de síntese dos dois outros
significados supracitados. Neste caso, a vontade de Zeus ganha
destaque enquanto razão para a punição de Páris e dos troianos.
O desígnio divino reequilibraria a ordem cósmica, conferindo certo
sentido ao sofrimento humano, bem como restabeleceria a fronteira
entre homens e deuses. Trata-se, aqui, do entendimento de que Troia
foi conquistada, como vimos, “com a picareta de Zeus, administrador
de justiça” (525-526).
Eurípides, por sua vez, explora o contraste entre a visão posi-
tiva e negativa da tomada de Troia, e as consequências realistas e
práticas da guerra para vencedores e vencidos, ainda que, muitas
vezes, a razão última para a queda de Troia resida na vontade dos
deuses, como argumenta François Jouan. 21 Vejamos como o tema
do aniquilamento de Troia aparece na obra de Eurípides.
19 O sofrimento dos argivos gera “uma dor ressentida [que] marcha secretamente
contra os demandantes Atridas” (450-451).
20 Este segundo significado da Guerra de Troia também focaliza a maneira como
Troia foi saqueada, ainda que este ponto não seja devidamente realçado por Leahy 1974.
21 Jouan 2007: 172-74.
171
2. Hécuba de Eurípides
22 Tradução de Hécuba de Eurípides por Fialho e Coelho 2010. Texto grego por
Diggle 1984.
23 As Troianas (809-820), contudo, menciona a destruição de Troia por Héracles.
Os antigos, como observa Jouan 2007: 158, questionaram a estranha lógica de Troia
ter sido arrasada duas vezes em um curto intervalo de tempo.
172
Polimestor na restauração de Troia aparece como uma hipótese
implausível, uma espécie de argumento malicioso para esconder os
motivos mesquinhos que o levaram a assassinar o filho de Hécuba.
O sacrifício de Políxena, que constitui a segunda linha temática
de Hécuba, também está ligado ao motivo da destruição de Troia.
O morto Aquiles exige o sacrifício de Políxena como “vítima propí-
cia e troféu de honra para o seu túmulo” (τύμβωι φίλον πρόσφαγμα
καὶ γέρας λαβεῖν 41). Após uma assembleia disputada com opiniões
favoráveis e contrárias, a armada aqueia estacionada na Trácia con-
corda com o pedido de Aquiles, sendo que esta decisão coletiva
é enfatizada em diversos momentos no início da peça: pelo Coro
(107-109), por Hécuba (188-190; 195-196) e por Odisseu (218-221).
O sacrifício de Políxena constitui uma espécie de “obrigação” (cha-
ris) da armada grega em prestar tributo da sua “amizade” (philia)
a Aquiles, uma vez que o Pelida tinha sido um guerreiro decisivo
na vitória sobre Heitor e, consequentemente, sobre Troia. 24 Esse é
precisamente o teor do argumento de Odisseu quando ele infor-
ma a Hécuba da decisão dos aqueus (299-331). Segundo o pai de
Telémaco, existiria uma espécie de acordo entre os soldados gregos
que, uma vez conquistada Troia, o melhor dos guerreiros receberia
Políxena como prémio e vítima (304-305). Portanto, é fundamental,
para Odisseu e para a maioria dos gregos que votaram a favor do
sacrifício na assembleia, honrar Aquiles e respeitar os laços de gra-
tidão que vinculam os combatentes. 25
Desde há muito que a crítica aponta dificuldades em Eurípides
conferir unidade a uma peça que articula o mito de Polidoro, o sa-
crifício de Políxena e a brusca passagem de Hécuba de vítima dos
sofrimentos pela morte dos filhos a agente de uma vingança quase
24 Sobre o papel central da charis como uma obrigação entre as figuras aristo-
cráticas em Hécuba, ver Stanton 1995.
25 Esta é razão para a necessidade do sacrifício de Políxena em Hécuba. Certos
comentadores, por exemplo Franciscato 2014: 26, atribuem, equivocadamente, a exi-
gência do sacrifício da jovem também à interrupção, por parte de Aquiles, dos ventos
favoráveis à navegação. Como demonstra o verso 900, contudo, é uma divindade que
recusa facultar os ventos apropriados à armada grega estacionada na costa da Trácia.
173
selvática.26 O sofrimento de Hécuba, elemento essencial da coerência
temática do drama, é motivado pela morte de três entes queridos:
os dois filhos, Políxena e Polidoro, e a cidade de Troia, cujo ani-
quilamento é frequentemente lamentado por Hécuba e pelas cativas
troianas que formam o Coro.27 Assim, o terceiro estásimo de Hécuba
ilustra a indissociabilidade entre indivíduo e cidade, um elemento
que esquecemos facilmente quando nos concentramos em figuras
trágicas extraordinárias, porém conflitivas para a cidade e a comuni-
dade, como Ájax e Medeia.28 É por esta razão que a ruína da cidade
é tão lamentada quanto a desgraça das protagonistas nas peças do
ciclo troiano que contam a sorte final de Troia. O Coro entrelaça,
no belo canto seguinte, a tomada de Troia com a abrupta passagem
de esposas a cativas levadas à força pelos vencedores:
1ª Estrofe
Tu, ó Ílion, minha pátria, não serás contada entre as cidades
indestrutíveis, tal é a nuvem dos Helenos que te cobre, depois de
te devastar pela lança, ai pela lança! Arrasada foi a coroa das tuas
muralhas. A cinza te suja de alto a baixo e te enegrece. Desgraçada,
jamais voltarei a pisar o teu solo! (905-913).
2ª Antístrofe
Deixando o querido leito, com uma simples túnica, à maneira
de uma donzela dórica, fui dirigir súplicas – em vão – a Ártemis
venerável. Ah, desafortunada! Arrastada sou, depois de presenciar
a morte de meu esposo, até ao alto mar. Tinha os olhos fixos na
cidade, lá ao longe. E o navio tomava o seu rumo de regresso e da
174
terra de Ílion me apartava. Desgraçada, à dor eu sucumbia (933-
-942).
3. As Troianas de Eurípides
175
pouca ação. Lamento pela ruína de Troia. 31 A peça aborda este tema
sob a ótica da parte dos vencidos que escapou ao aniquilamento: as
mulheres troianas. Elas, contudo, não se viram isentas da servidão:
a peça inicia justamente quando estas mulheres estão sendo atribu-
ídas a seus novos mestres gregos. O foco da peça concentra-se nas
reações da protagonista, Hécuba, diante de um duplo sofrimento: 32
a sua dor de ver seu estatuto desmoronar de nobre rainha a serva
de um grego, bem como o horror de contemplar a sua cidade com-
pletamente destruída e seu marido morto. A ação progride com a
interação de Hécuba com o Coro, Taltíbio, e três outras mulheres,
Andrómaca, Helena e Cassandra.
Em Sete Contra Tebas de Ésquilo, Etéocles, o rei tebano, adverte
as mulheres do Coro que as cidades somente são abandonadas pelos
deuses após serem conquistadas (216-217). Esse é o caso precisamen-
te do que se passa em As Troianas. No prólogo, Poséidon anuncia
que irá “abandonar a ilustre Ílion e os altares que me pertencem,
pois, quando a desgraça da devastação se apodera de uma cidade,
o culto dos deuses é afectado, e não quer aceitar honrarias” (25-27).
Troia é, assim, uma cidade sem ritos e sem deuses desde o início
da peça. 33 Ao sair de cena no fim do prólogo, Poséidon preludia,
em tom gnómico, o seguinte: “louco entre os mortais é aquele que
arrasar cidades, templos e túmulos, lugares consagrados dos que já
partiram. Quem os devastar, mais tarde há-de perecer por sua vez”
(95-97). Não obstante a dificuldade no estabelecimento do texto
original relativamente à sintaxe e pontuação destas três linhas, pa-
rece claro que, para Poséidon, o “louco” (μῶρος) é quem saqueia
31 “Lament appears to be the only song left for a city that has lost all its men”
(Weiss 2018: 102). Para o conjunto de As Troianas como uma peça de lamento, ver
Suter 2003.
32 “Il portatore principale della linea del pathos nelle Troiane è la protagonista,
Ecuba” (Di Benedetto 2018: 27).
33 Mikalson 1991: 53 comenta que Euripides “portrays, in the fullest detail found
in Greek literature, a city which lacks entirely the goodwill and help of the gods”.
Ainda sobre a enorme distância entre deuses e homens em As Troianas, ver Werner
2011: 133-34.
176
cidades e, também, quem profana (ou desola) templos e tumbas.
Nesse sentido, “louco” não é meramente quem saqueia cidades, mas
quem as destrói (ou tenta destruir) completamente, incluindo seus
espaços sagrados. 34
Taltíbio, no êxodo, conclama seus companheiros a incendiar, uma
vez mais, a cidade de Troia. 35 O Arauto grego utiliza aqui o verbo
kataskapto (1263) que, como vimos anteriormente, também está pre-
sente em Agamémnon e em outras tragédias, aludindo, precisamente,
à devastação total. Uma destruição assim também afeta templos e
tumbas, como Poséidon tinha anunciado no prólogo. Além disso,
as palavras do deus podem ser relacionadas com o facto de, como
afirma Hécuba, Príamo morreu “sem sepultura” (ataphos 1313) 36 .
A referência ao templo deve, naturalmente, ser ligada ao que é dito
no prólogo por Atena, de que seu templo foi ultrajado (69) “quando
Ájax arrastou Cassandra à força” (70). A deusa associa-se a Poséidon
precisamente no seu intento de ensinar aos aqueus a respeitarem os
lugares sagrados (ver 86-87). Nesse sentido, o final de As Troianas
reforça o quadro de despovoação e destruição muito bem qualificado
por Hécuba quando ela diz estar numa “cidade deserta” (eremopolis
603) 37.
A questão moral que emerge relativamente aos vencedores em
As Troianas não consiste, portanto, no mero facto de que os gregos
promovem guerras ou mesmo que saqueiem cidades. As Troianas
não é propriamente uma tragédia que denuncia a “selvajaria” de
34 West 1980: 15: “the fool is not ‘whoever sacks cities’, but ‘whoever sacks cities
laying waste shrines and tombs’. αὐτὸς ὤλεθ’ ὕστερον then follows in an asyndeton
which can be classified as explanatory (‘he is a fool because …’)”.
35 Estudiosos têm especulado se a audiência teria visto fogo ou fumo vindos da
cenografia da peça. Em caso afirmativo, este seria um significativo complemento visual
ao motivo do aniquilamento de Troia. Kovacs 2018: ad 1263, no entanto, argumenta
que o público não veria nenhuma ação relativa ao incêndio.
36 As mulheres do Coro igualmente lamentam que seus esposos troianos morreram
“sem sepultura” (athaptos 1085).
37 O termo eremopolis é bastante significativo, pois o campo lexical da eremia
marca, em As Troianas, como observa David 2009: 277, “l’anéantissement de la cité”.
177
toda e qualquer guerra, como tantas vezes se afirma. 38 O problema
reside numa vitória do aniquilamento que destrói a cidade inimiga,
incluindo os seus espaços sagrados, os seus habitantes e mesmo
o seu nome (ver os versos 1278, 1319, com a significativa palavra
anonymoi em 1322). 39
É importante ter em mente que a ruína completa de uma cidade
não era, para a audiência de As Troianas, um motivo meramente lite-
rário. De início, o temor de se ter a cidade ou mesmo toda a Hélade
aniquilada pelos persas foi real durante as Guerras Pérsicas. Além do
receio de a Grécia se tornar uma escrava dos bárbaros, como diz o
emissário de Plateias em Tucídides,40 existia o medo de a Hélade ser
reduzida às cinzas pelos persas (um tópico enfatizado por Heródoto,
por exemplo em 7.8; 8.50-64). Os Persas de Ésquilo, somente sete anos
após a Batalha de Plateias, contém diversas referências à salvação
dos gregos diante da ameaça do extermínio por parte dos invasores
persas. Logo após o Mensageiro anunciar que “os deuses salvaram
a cidade de Palas” (347), a mãe de Xerxes responde com palavras
que transparecem a catástrofe que poderia ter acontecido: “Atenas
escapou, portanto, à destruição” (348). 41
38 Por exemplo, David 2009: 278. Fialho 2016: 81 pensa que, nas peças troianas,
Eurípides põe “o mito ao serviço de uma veemente crítica da guerra”. Uma variante
desta leitura “pacifista” de Eurípides concebe As Troianas como uma espécie de
admoestação do poeta contra as ambições de guerra por parte de Atenas. Nesta última
linha, segue, por exemplo, Sutter 2003: 19, qualificando As Troianas como “a proleptic
lament for Athens”. Green 1999 oferece uma competente e necessária crítica à leitura
“pacifista” de As Troianas. Em linhas similares a Green, segue Kovacs 2018: 2-16.
39 Ainda que tenha vivido em um contexto histórico distinto, vale a pena lembrar
a observação de Políbio de que destruir templos e estátuas do inimigo seria uma ati-
tude reprovável, que não se adequaria às necessidades da guerra. Para o historiador
grego, “os homens virtuosos não devem guerrear contra os faltosos para destruí-los
ou exterminá-los, mas para corrigir ou emendar seus erros” (5.11.5). Tradução por
Sebastiani 2016. Faz parte do argumento deste artigo que a abordagem de Eurípides
sobre o aniquilamento de Troia guarda semelhança com esta censura de Políbio das
guerras de extermínio.
40 Tucídides 3.56.4.
41 Tradução de Os Persas por Pulquério 1998. Rosenbloom 2003: 189 argumenta
que o Coro dos Sete Contra Tebas recuperou elementos, como incêndio e destruição
de lugares sagrados, que a audiência poderia ter associado com o saque de Atenas
pelos persas em 480/479. Em linhas similares, ver Silva 2005b: 24-25.
178
O impacto do horror da ruína de uma cidade não foi apenas
corrente na época do conflito contra os persas. Não obstante a
afirmação feita por Sage, 42 de que a tendência da guerra entre os
gregos seria de conquista do terreno de batalha antes do que a ex-
terminação do inimigo, houve casos de guerras de aniquilamento
durante a Guerra do Peloponeso. Em 427, isto é, somente doze anos
antes de As Troianas, aconteceu a traumática conquista da cidade de
Plateias pelo exército espartano. Tucídides descreve nestas linhas o
derradeiro destino desta cidade da Beócia:
179
distanciamento que poderia tornar tolerável, para a audiência grega,
imaginar ou ressentir os temores da ruína completa de uma pólis.
Diante deste referencial histórico, percebe-se como, em tempos
de guerra, o destino individual está ligado à sorte do coletivo e da
cidade. A atenção dos cantos corais, especialmente o segundo (799-
859) e terceiro estásimos (1061-1122), repousa nesta espécie de
destino em comum entre, de um lado, a cidade destruída e privada
dos seus homens e, de outro lado, as mulheres que veem seus esta-
tutos arruinados de esposas de uma cidade próspera para servas de
um oikos grego. De forma a reforçar esta conexão, o poeta reserva,
para o tempo da ação da peça, os últimos incêndios e destruições
das muralhas e edifícios troianos, assim como o sepultamento da
última esperança de reconstruir Troia, Astíanax, filho de Heitor e
Andrómaca.
Astíanax e a sua descendência, com efeito, representavam, para
Hécuba, o desejo de refundação de Troia (703-705). Essa esperança,
contudo, acaba logo em seguida, pois Taltíbio anuncia a iminente
morte do pequeno Astíanax pelos aqueus. 45 Este desfecho contrasta
com outra peça de Eurípides, Andrómaca, na qual Tétis, enquanto
dea ex machina, regenera a combalida casa de Éaco ao criar um oi-
kos a partir da sobrevivência do filho de Andrómaca e Neoptólemo,
Molossos, e do novo casamento de Andrómaca com Heleno, irmão
de Heitor. As novas bodas e a sobrevivência de Molossos garantem,
assim, a continuidade da família real troiana e, de certo modo, sua-
180
vizam a ruína completa de Troia e da sua nobreza em comparação
com As Troianas e Hécuba.
181
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183
(Página deixada propositadamente em branco)
D e v o lta a o a g u i l h ã o d a s v e s pa s .
Origens e fortuna de um motivo
a r i s t o fâ n i c o
B ac k to t h e S t i n g o f t h e W a s p s .
O r i g i n s a n d F at e o f a n A r i s to p h a n i c T h e m e
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_8
imagem política) e de ataque pessoal (moral ou poético), não deixando
de lado a literatura científica que, ao tempo, se acumulara sobre esse
inseto.
1 Vd. Jesus 2010: 13-16, para a discussão e bibliografia fundamental sobre o assunto.
186
não de novidade extrema, mas de equilíbrio entre o gosto de ambos,
poeta e público. Aristófanes testa os diferentes menus de cómico,
procurando averiguar qual o que mais agrada ao seu público e mais
facilmente lhe garantiria o primeiro prémio. O recurso ao coro te-
riomórfico de homens-vespa é de facto de funcionalidade cómica
nuclear, bem como a principal estratégia dessa conciliação drama-
túrgica.
Se Aves e Rãs têm coros que, na verosimilhança da ficção, são
constituídos por animais de facto, não é esse o caso do coro de
Vespas. Formam-no juízes que apenas são caraterizados como esse
inseto como forma de concretização cénica do que neles é uma ca-
racterística psicológica (psicossocial, diríamos): o seu génio violento,
irritadiço e vingativo. Ao vestir de vespas o seu coro de velhos juízes,
Aristófanes está a aproveitar a cor cénica, o movimento e os sons
de uma tradição que remontava às mais antigas manifestações pré-
-cómicas e que colhe igualmente testemunho nas artes plásticas2.
Uma alegoria animal que – isso pretende demonstrar o presente
estudo – desde muito cedo adquiriu significado misto: símbolo do
coletivo (e, portanto, imagem política) e de ataque pessoal (moral
ou poético) de motivação erotizante. Uma imagem poderosíssima e
de fácil decifração que, no que toca a géneros literários, foi funda-
mental para a épica, a literatura popular (fábula) e a poesia iâmbica
(invetiva), e que extravasa as fronteiras temporais da comédia antiga
em vários séculos e em ambos os sentidos da linha cronológica.
Só no v. 225 da comédia de 422 a.C. surge a primeira referência
direta às vespas, quando Bdelícleon, empenhado em evitar a todo
187
o custo que o pai Filócleon saia para o tribunal, refere o pavor que
sente ante a chegada inevitável e anunciada dos seus companheiros,
como ele juízes populares (Ar. V. 223-229). Imediatamente antes da
entrada do Coro, os versos citados, de teor profundamente sinesté-
sico, concentram já os termos fundamentais da simbologia que este
encerra, a da cólera, pessoal e política, no sentido mais imediato
de uma irascibilidade natural (ἤν τις ὀργίσῃ, v. 223) – conceito, o
de ὀργή, que abaixo se discutirá. O sintagma ἔσθ’ ὅμοιον σφηκιᾷ
(v. 224) concretiza a natureza especial deste coro, não de animais, mas
de indivíduos travestidos de animais, como forma de manifestação
cénica do génio que os carateriza. Mais do que génio, neste ponto
em específico τὸ γένος (v. 223) remete para a raça dos Atenienses,
desses cidadãos envelhecidos de classe média-baixa que a comédia
parodia, ao mesmo tempo que condena a sua manipulação às mãos
dos poderosos como Cléon, que deles e do seu poder legal de jura-
dos populares se servem para efetivar a sua política de bastidores.
Fica garantida, desde o início, a representatividade deste coro de
vespas, que talvez por isso, na primeira vez que é mencionado, é
caraterizado como σφηκιά (à letra, “vespeiro”).
Completam este quadro inicial dois outros elementos simbólicos
e linguísticos recorrentes na comédia. O primeiro, e talvez o mais
eficaz em termos cénicos, é o aguilhão ou ferrão (κέντρον, v. 225),
que alguns críticos chegaram a identificar com o falo, elemento tra-
dicional da comédia. Mas tal identificação, como bem demonstrou
D. M. MacDowell 3, não se sustenta ante o próprio texto. Adiante,
Xântias comenta ao patrão, apavorado, que “os gajos têm ferrões a
sério!” (καὶ κέντρ’ ἔχουσιν, v. 420); e mais tarde, na Parábase, é o
Corifeu quem se refere à “garupa” que têm no traseiro (πρόσεστι
τοῦτο τοὐρροπύγιον, v. 1075), termo que alude normalmente à cauda
ou mesmo ao ânus dos animais 4. Recorrentemente mencionado, o
188
aguilhão é ao mesmo tempo elemento de figurino e símbolo primeiro
da alegoria estruturante da peça, a que assenta na fisionomia e no
comportamento das vespas. O segundo tem que ver com a expressão
linguística dessa cólera, com recurso a diversas formas do adjetivo
ὀξύς e compostos seus. O superlativo ὀξύτατον (“bem afiado”) não
deixa dúvidas, a início, sobre o caráter destes homens e da classe
social e profissional que representam, eles que, como os animais de
que foram caraterizados, parecem atacar indiscriminadamente quem
deles se aproxima. Mais do que o adjetivo em si, nas diferentes formas
da sua flexão, o comediógrafo serve-se sobretudo de dois compostos
para a caraterização destes homens-vespa: ὀξύθυμος (τοὐξύθυμον...
κέντρον, vv. 406-407; τρόπος ὀξυθύμων, vv. 454-455; ζῷον... ὀξύθυμόν,
vv. 1104-1105), junto com o verbo ὀξυθυμεῖσθαι (ὀξυθυμηθεῖσά μοι,
v. 501) 5, e ὀξυκάρδιος (σφῆκες ὀξυκάρδιοι, v. 430) 6.
É na Parábase que o próprio Coro se apresenta e define, revelando
o significado dos trajes que enverga e confirmando as impressões e
receios de Bdelícleon e dos seus escravos até então (vv. 1071-1080).
À idade avançada e ao ofício judicial dos integrantes deste coro,
já conhecidos da plateia, acrescentam-se noções de patriotismo na
primeira pessoa. O Corifeu insiste na noção de raça (ἀνδρικώτατον
γένος, v. 1077) e apresenta-se a si próprio e aos companheiros como
representantes dos Ἀττικοὶ μόνοι δικαίως ἐγγενεῖς αὐτόχθονες (v. 1076),
de acordo com a tradição antiga de que apenas as tribos de Atenas
eram autóctones, sendo as demais o resultado de movimentos mi-
gratórios posteriores 7. Dito argumento tradicionalista de autoctonia
leva-os a recordar um período histórico para eles dino de memória,
sobre o qual já meio século havia transcorrido – o da luta contra os
desse coro, como tradicionalmente era de esperar, e a ele parece aludir o Corifeu,
versos antes, epiditicamente (καὶ κατ’ αὐτὸ τοῦτο μόνον ἄνδρες ἀλκιμώτατοι, v. 1062).
5 Cf. Ar., Thesm. 466-468: Τὸ μέν, ὦ γυναῖκες, ὀξυθυμεῖσθαι σφόδρα/ Εὐριπίδῃ,
τοιαῦτ’ ἀκουούσας κακά,/ οὐ θαυμάσιόν ἐστ’, οὐδ’ ἐπιζεῖν τὴν χολήν.
6 Este último composto, considera-o Taillardat 1965: 197 uma “paródia do estilo
nobre”, mencionando o paralelo de Ésquilo (Sept. 906, e não 406, como por lapso se
imprimiu): ἐμοιράσαντο δ’ ὀξυκάρδιοι / κτήμαθ’, ὥστ’ ἴσον λαχεῖν.
7 Cf. Lys. 2.17, Eur. Ion 589-590, Thuc. 1.2.5, Isocr. 4.24, Pl. Menex. 237b.
189
Persas. Se é certo que os Persas haviam atacado e incendiado Atenas
em 480/79 – e a descrição aristofânica (vv. 1075-1080) recorda mesmo
a que, pouco tempo antes, elaborara Heródoto para esse evento 8 – o
texto parece antes uma amálgama de lembranças já turvadas pelo
tempo de distintos recontros militares com os Persas, com Maratona
à cabeça 9. Dramaticamente, porém, interessa mais atentar na forma
como a descrição desenvolve a alegoria comportamental das vespas,
transformando a cidade no próprio vespeiro e a sua geração autóc-
tone nos insetos que o habitam e recuperando a ação simbólica da
sua destruição pelo fumo e pelo fogo, com que Bdelícleon já tinha
ameaçado o Coro (τῦφε πολλῷ τῷ καπνῷ, v. 457).
Adiante (vv. 1102-1113), o Corifeu procede ao alargamento da
imagem, explicando porque razão eles são τἄλλ’ ὅμοια πάντα σφηξί
(v. 1106; cf. ὅμοιον σφηκιᾷ, v. 224). O assunto, desta feita, versa
sobre o caráter e o modo de vida (τοὺς τρόπους καὶ τὴν δίαιταν, v.
1103) que partilham estes juízes e as vespas. Quanto ao primeiro
aspeto, ἠρεθισμένον (v. 1104), ὀξύθυμόν e δυσκολώτερον (v. 1105)
são os compostos que definem o génio deste grupo de indivíduos,
unânimes na descrição de uma irritabilidade incontrolável que se
traduz, no seu caso específico, na obsessão pela condenação dos
arguidos. A novidade diz respeito ao segundo aspeto, o seu modo
de vida, importante na medida em que desloca a metáfora para o
8 Cf. Hdt. 8.50-54, 9.13.2. MacDowell 1971, repr. 2003: 271 (ad v. 1079) refere-
-se em particular ao termo πυρπολῶν (li.: “ateando fogo”), utilizado por Heródoto
em 8.50.1. Anos mais tarde, a mesma estratégia militar de ataque ao inimigo no seu
próprio território, com recurso à imagem do incendiar do cortiço das vespas – única
forma de as destruir – é utilizada por Xenofonte (Hell. 4.2.12), quando Timolau de
Corinto se refere aos planos de assalto aos Espartanos, no contexto da Guerra Coríntia
(em 394): ὁρῶ δ’ ἔγωγε, ἔφη, καὶ ὁπόσοι σφῆκας ἐξαιρεῖν βούλονται, ἐὰν μὲν ἐκθέοντας
τοὺς σφῆκας πειρῶνται θηρᾶν, ὑπὸ πολλῶν τυπτομένους· ἐὰν δ’ ἔτι ἔνδον ὄντων τὸ πῦρ
προσφέρωσι, πάσχοντας μὲν οὐδέν, χειρουμένους δὲ τοὺς σφῆκας.
9 É o próprio Bdelícleon, num dos muitos momentos em que fala sobre o que
o pai, doente, quer ouvir, que se refere ao Troféu de Maratona, símbolo máximo
do orgulho da geração de Filócleon e dos juízes seus companheiros (ἄξια τῆς γῆς
ἀπολαύοντες καὶ τοῦ’ν Μαραθῶνι τροπαίου, v. 711). Tratava-se de uma coluna de
mármore que envergava uma estátua de Nike, da qual a arqueologia pôde encontrar
vestígios, também referida por Aristófanes em Eq. 1333-1334. Sobre este troféu, vd.
West 1969: 7-19, idem 2009: cap. II, e Krentz 2010: 130-132.
190
plano coletivo (político). Dito de outra forma, a gestão e defesa do
vespeiro é imagem direta da pólis, em concreto da vida judicial da
cidade. O quotidiano destes juízes, que na ficção da comédia podiam
desempenhar as suas funções em três tribunais distintos 10, é comum
aos animais gregários (καθ’ ἑσμοὺς ὥσπερ εἰς ἀνθρήνια, v. 1107), e
o texto reforça a ideia de multidão, própria de um enxame 11, pela
alusão ao desconforto destes juízes, sempre muitos para os espaços
pequenos que lhes cabe ocupar (vv. 1109-1110). Finalmente, o ganha-
-pão, conseguido exclusivamente por via do suborno para depósito
de voto condenatório, dado uma e outra vez pelo verbo κεντέω (e.g.
πάντα γὰρ κεντοῦμεν ἄνδρα κἀκπορίζομεν βίον, v. 1113).
No seu clássico estudo sobre as imagens de Aristófanes, J.
Taillardat 12 referia já o caráter proverbial que, para os Gregos do
século V, devia ter a vespa13. Entre os argumentos textuais que apre-
sentava, conferia destaque a um verso da Lisístrata, de 411 a.C. (ἢν μή
τις ὥσπερ σφηκιὰν βλίττῃ με κἀρεθίζῃ, v. 475), que a seu juízo, porque
aparentemente isolado da ação da comédia nesse momento, pode
apenas entender-se como o recurso da Corifeia a um provérbio. Se
tem razão o Autor quando argumenta a propósito do uso proverbial
da frase com a sua presença na Suda (s.v. σφηκιά) – sem a identifi-
cação do passo aristofânico nesse léxico –, não podemos deixar de
olhar para a ocorrência na comédia de 411 como recuperação de uma
imagem do património cómico do próprio Aristófanes, comum também
à tragédia. Sófocles, em drama desconhecido (fr. 778 Radt), pode
10 Como bem adverte MacDowell 1971: 275 (ad v. 1108), dos três tribunais referidos
apenas o primeiro (o do Arconte-chefe) devia estar em funcionamento ao tempo da
estreia da comédia, e encarregava-se sobretudo de processos familiares, como era o
caso – apetecível para estes juízes cómicos – da partilha de heranças. Sobre as três
instituições mencionadas, vd. MacDowell 1971: 273-275 (ad v. 1108).
11 Cf. Neste ponto e já no v. 1080, Aristófanes usa o termo ἀνθρήνιον para se referir
ao vespeiro, em vez do mais comum σφηκείον. Os termos derivam de duas espécies
de vespas, cujas designações tendem, contudo, a ser usadas indiscriminadamente.
Vd. Beavis 1988: 187-188.
12 Taillardat 1965: 210-211 e n. 3.
13 Vd. também Beavis 1988: 193.
191
ter usado a imagem com idêntico sentido proverbial 14 – ἢ σφηκιὰν
βλίττουσιν εὑρόντες τινά. O verbo βλίττω deve ter, neste contexto, o
sentido de “destruir uma colmeia [mais do que um vespeiro] para lhe
retirar o mel”15, como na Lisístrata e em Cavaleiros (ἀλλὰ καθείρξας
αὐτὸν [τὸν δῆμον] βλίττεις, v. 794), onde se trata de uma metáfora
para a delapidação dos bens do povo pelos poderosos. As vespas,
essas, com a carga semântica de irascibilidade que é basilar na co-
média homónima, encontramo-las já na primeira comédia aristofânica
conservada, Acarnenses (de 425 a.C.), na qual Diceópolis se refere ao
bando de flautistas que acompanha o Beócio com a imagem desses
animais (οἱ σφῆκες, οὐκ ἀπὸ τῶν θυρῶν; i – “essas vespas, não estão
à porta?”: v. 864). Bem assim, em Pluto (já de 388), a Pobreza define
os seus súbditos como ἰσχνοὶ καὶ σφηκώδεις καὶ τοῖς ἐχθροῖς ἀνιαροί
(“magros, com cinturinha de vespa e mordazes para os inimigos”,
v. 561) 16. Juntos, estes passos aristofânicos resumem o essencial da
alegoria sociopolítica de Vespas a que nos temos vindo a referir:
irritabilidade, violência contra os inimigos, pobreza (quase miséria)
de uma classe e, não menos importante, o empenho na defesa do
coletivo, pela imagem do vespeiro (σφηκιά), símbolo do oikos, em
particular, e da pólis, em geral. A outro nível, pelo lapso temporal
que representam, tornam a imagem que nos importa transversal à
carreira aristofânica, ao longo de pelo menos 40 anos.
Ainda em contexto dramático, A. H. Sommerstein 17 sugeriu
que Aristófanes pudesse ter colhido num passo das Suplicantes
14 Pace Taillardat 1965: 210, n. 4, para quem o fragmento deve ser lido “au sens
propre”. Em sentido concreto parece-nos antes que há que ler um trecho do Ciclope
euripidiano, de data incerta, relativo à descrição do ferimento do monstro por Ulisses
e os companheiros (εἰ τοῦ Κύκλωπος τοῦ κακῶς ὀλουμένου / ὀφθαλμὸν ὥσπερ σφηκιὰν
ἐκθύψομεν – “se, tal como se faz a um vespeiro, for para encher de fumo o olho do
maldito Ciclope”, vv. 474-475), prova ainda assim da familiaridade da imagem em
contexto dramático. Sobre o drama satírico e as dificuldades da sua datação, vd.
Soares 2009: 33.
15 LSJ explica assim a etimologia do verbo, a partir de μέλι: *μλίτ-yω.
16 Tradução de Silva 2015: 78. Crémilo, na resposta à deusa, explica a metáfora:
ἀπὸ τοῦ λιμοῦ γὰρ ἴσως αὐτοῖς τὸ σφηκῶδες σὺ πορίζει (“É decerto à fome que tu lhes
dás a tal elegância de vespa!”, v. 562).
17 Sommerstein 1983: 169-170 (ad. v. 225).
192
de Eurípides – que o autor considera terem estreado nas Grandes
Dionísias de 423, no ano anterior a Vespas, portanto – a ideia do
coro de homens-vespa. No passo em causa (Eur. Supp. 240-243),
Teseu dirige-se a Adrasto, o comandante do coro das sete viúvas dos
Epígonos que haviam atacado Tebas para recuperar o poder para
Polinices. Divide a raça dos homens em três grupos (ricos, pobres
e governantes), de acordo com a sua utilidade para a cidade. Pese
embora a referência aos κέντρα κακά (literalmente, “aguilhões ter-
ríveis”, v. 245) e às “palavras dos dirigentes perversos” (γλώσσαις
πονηρῶν προστατῶν, v. 246), e sendo verdade que o trecho encerra
(como todo o drama euripidiano de que faz parte) a problemática
do conflito social entre pobres (explorados) e ricos (exploradores),
como em Vespas, parece-nos forçado apenas por tal coincidência e
pelo uso da palavra κέντρον, sem referência sequer a um contexto
animal, ver neste passo a inspiração para toda uma obra teatral. Por
último, está longe de ser unânime a data de 423 para a estreia de
Suplicantes, que Sommerstein aceita a partir da edição de C. Collard18,
ao passo que os críticos oscilam entre uma datação mais remota, com
privilégio para o ano de 424, e outra mais recente, entre 417-416 19.
O facto é que talvez seja mesmo impossível, neste como em tantos
outros casos, localizar as origens da imagem da vespa, desde logo
porque, mais do que literárias, elas devem ser populares, do âmbito
da etnografia e da oralidade. Seja como for, a alegoria surge já em
dois momentos da Ilíada, em dois símiles nos quais vale a pena
demorar-se. O primeiro, no contexto do ataque troiano à muralha
dos Aqueus, é proferido por Ásio ante a bravura dos Gregos que
resistem, em especial de Polipetes e Leonteu (Il. 12. 167-172),
193
οὐδ’ ἀπολείπουσιν κοῖλον δόμον, ἀλλὰ μένοντες
ἄνδρας θηρητῆρας ἀμύνονται περὶ τέκνων,
ὣς οἵ γ’ οὐκ ἐθέλουσι πυλάων καὶ δύ’ ἐόντε
χάσσασθαι πρίν γ’ ἠὲ κατακτάμεν ἠὲ ἁλῶναι.
194
κινήσῃ ἀέκων, οἳ δ’ ἄλκιμον ἦτορ ἔχοντες
πρόσσω πᾶς πέτεται καὶ ἀμύνει οἷσι τέκεσσι.
τῶν τότε Μυρμιδόνες κραδίην καὶ θυμὸν ἔχοντες
ἐκ νηῶν ἐχέοντο· βοὴ δ’ ἄσβεστος ὀρώρει.
22 Apud Brügger 2018: 123. A influência na épica posterior foi grande. Só nos
Posthomerica de Quinto de Esmirna (séc. IV AD), a fórmula σφήκεσσιν ἐοικότες surge
por três vezes (8.41, 11.146, 13.55).
195
importantes como prova da antiguidade de uma alegoria que, como
parecem demonstrar os passos antes citados da tragédia e da comé-
dia áticas, devia ser de decifração automática para os espectadores.
De resto, a paródia da épica homérica ocupa um importante espa-
ço na comédia de 422 a.C., para mais relacionada com o elemento
animal. Basta lembrar o sonho que assaltara, na noite anterior, o
escravo Xântias: uma águia pairava sobre a ágora com uma serpente
nas garras, que logo se transformou num escudo de bronze, objeto
que a criatura deixou em seguida cair ao chão – clara paródia a Il.
12.200-229 e, como no passo homérico, premonição do falhanço de
uma empresa. De relação mais imediata ainda é um dos estratagemas
de fuga de Filócleon (vv. 179-189), ao esconder-se debaixo de um
burro – versão cómica da fuga de Ulisses da gruta do Ciclope, na
Odisseia (9.424-463) 23.
Finalmente, outro género literário deve acrescentar-se à colação.
Esopo e as suas historietas têm uma presença notória na comédia24,
no contexto de cenas de banquete entre homens ilustres – que,
no enredo cómico, apenas se ensaiam como parte do processo de
reeducação social de Filócleon. Oportuna numa comédia assente na
metáfora e na alegoria animais, é certo, a presença das vespas em
duas fábulas do corpus esópico que nos chegou (235-236 Hausrath)
legitima a popularidade desse animal, embora pouco acrescente
enquanto imagem política e símbolo do coletivo 25.
23 Deve ter razão MacDowell 1971: 155-156, que não vê razões linguísticas que
sustentem a paródia de um passo literário em específico, da Odisseia ou qualquer
outro, preferindo ler a cena como um gracejo circunstancial sobre um episódio da
épica bem conhecido. A outro nível, Aristófanes poderia ter em mente o Ciclope de
Eurípides – onde, porém, não se recorre ao episódio da fuga da caverna sob as ove-
lhas – ou mesmo o Ulisses de Cratino (frs. 143-157 K-A).
24 Com quatro ocorrências: Αἰσώπου γελοῖον (vv. 566, 1259), Αἴσωπον (vv. 1401,
1446).
25 Na fábula 235, umas vespas oferecem proteção a um agricultor contra os ladrões,
prometendo afastá-los com o seu aguilhão (τοῖς κέντροις τοὺς κλέπτας ἀπώσεσθαι)
em troca de água – o que o agricultor recusa. No núm. 236, uma cobra suicida-se
por não suportar as picadas contínuas de uma vespa (συνεχῶς τῷ κέντρῳ πλήσσων
ἐχείμαζε), morrendo ambas.
196
Os testemunhos que até aqui recuperámos situam a alegoria que
nos importa num âmbito essencialmente político, como política é
a ação de Vespas e de todo o teatro ático. Uma imagem que, mais
ou menos desenvolvida, tem como ingredientes fundamentais (1) o
temperamento irascível do animal, sobretudo quando atacado, (2) a
sua vida gregária e (3) a defesa do coletivo, por via do aguilhão – já
seja o núcleo familiar, ou a totalidade da pólis –, que desse modo se
transforma em arma punitiva. O elucidativo trabalho de D. S. Allen26,
movendo-se sobretudo entre os testemunhos da oratória e os da co-
média de 422 a.C., deixou claro que a ὀργή, a emoção principal que
move Filócleon e os jurados do Coro – que, nessa manhã, surgem
em cena “armados de uma ração de cólera para três dias” (ἔχοντας
ἡμερῶν ὀργὴν τριῶν πονηράν, v. 243) – era na verdade necessária
ao bom funcionamento do sistema democrático, elemento regulador
da máquina judicial e um tópico recorrente no discurso político
ateniense. Para essa conclusão concorre um conjunto de passos dos
textos dos oradores áticos – eles que, na realidade das instituições
atenienses, seriam os encarregados de convencer os jurados de que
Filócleon e o Coro são o retrato cómico – nos quais é frequente o
apelo à ὀργή pessoal e coletiva como justificação da condenação
de um arguido 27. Trata-se afinal, como na tragédia, de vingança ou
retribuição, de um processo social e jurídico regulador que assenta,
na base, no pagar na mesma moeda.
Só em Vespas, de todas a comédia judicial por excelência, o termo
ὀργή surge sete vezes (não contando os seus cognatos), e em todas
elas se refere a Filócleon ou ao Coro28. No fundo, como Demóstenes
197
apela aos seus jurados que se armem de cólera para deliberar (ἀλλὰ
πᾶσιν ὁμοίως ὀργιστέον29), também Aristófanes é claro quando afirma,
pela boca do Coro, que “qualquer cidadão que não tenha aguilhão,
não deve tocar no trióbolo” (ἂν μὴ ‘χῃ τὸ κέντρον μὴ φέρειν τριώβολον,
v. 1121). Digamos, numa palavra, que o comediógrafo aproveitou
algo de comum e orgânico que havia na lógica judicial para nis-
so basear toda a peça, transferindo a ação da pólis para o oikos.
E é dessa transposição que surge a comédia, como acontece com a
tragédia30. A derradeira solução paliativa engendrada por Bdelícleon,
a simulação do tribunal doméstico, é prova disso mesmo: da ine-
vitabilidade da ὀργή e da impossibilidade da sua cura. Bdelícleon
parece alinhar, afinal, com uma corrente minoritária que condenava,
pelo menos em teoria, o uso das emoções no exercício das funções
judiciais, do qual seria exemplo Antifonte, que apelava diretamente
à necessidade de que as deliberações não fossem emocionalmente
motivadas: ἀλλὰ πρότερόν γ’ εὖ βουλεύσασθε, καὶ μὴ μετ’ ὀργῆς καὶ
διαβολῆς, ὡς τούτων οὐκ ἂν γένοιντο ἕτεροι πονηρότεροι σύμβουλοι
(De caede Her. 71).
Críticos houve, como se disse, que identificaram o aguilhão do
figurino do Coro da comédia aristofânica com o tradicional falo.
Ultrapassada a questão, porquanto o texto de Vespas não parece
sustentá-la em termos cenográficos, o certo é que os espectadores
fariam tal associação semântica. O assunto, de resto, foi alvo de di-
versos estudos31, dos quais destacamos o de E. Csapo32, que se serve
1080), termos que, como abaixo se discutirá, quase substituíram o primeiro a partir
do período helenístico.
29 Vd. nota 27.
30 Apud Allen 2003: 85: “Anger might be useful in the polis, but in the household,
as tragedy portrays it, it is ultimately destructive.” Como que consciente da metáfora
política, Aristóteles (HA 627b) considera que “os zangãos, se em pequeno número,
são favoráveis ao enxame, porque tornam as abelhas mais laboriosas” (κηφῆνες δ’
ὀλίγοι ἐνόντες ὠφελοῦσι τὸ σμῆνος· ἐργατικωτέρας γὰρ ποιοῦσι τὰς μελίττας.). Trad.
de Silva 2008: 186.
31 Reckford 1977: 235 sqq., 522 n. 16 (bibliografia), Henderson 1991: 122, Padel
1992: 118, 121-122.
32 Csapo 1993: 6-7 + plate 1.
198
do testemunho de Aristófanes (em distintas peças) e da iconografia
conservada 33 para concluir não apenas que “o Coro de Vespas era
certamente fálico”, mas também que, se em muitos casos as suas
autorreferências ao aguilhão dizem na verdade respeito aos falos,
o texto parece confirmar a existência do aguilhão como segundo
acessório de figurino, na parte traseira (e.g. vv. 225, 1075), revestido
muito embora de igual carga semântica 34. Poder-se-ia assim falar –
pelo menos simbolicamente – de um coro duplamente fálico. Se a
assimilação de qualquer objeto ou parte do corpo de propensa forma
fálica, já de si, permite um segundo sentido implícito, a relação do
aguilhão e das vespas que o envergam com o ataque de natureza
sexual parece textualmente confirmada na comédia em mais do que
um ponto, como sucede quando o Coro despe os casacos com que
entrou em cena e revela a sua caraterização de vespa, realçando o
“o aguilhão irritadiço (...) em riste” (κέντρον ἐντέτατ’ ὀξύ, v. 407).
O testemunho científico de Aristóteles 35 bastaria para confirmar
aquilo que, na prática cénica, seria uma opção óbvia: o entendimen-
to do particípio do verbo ἐντείνω como referindo-se ao pénis ereto.
Assim procedemos também nós, na montagem da peça com o grupo
Thíasos, em 2008.
Com efeito, em diversos momentos Filócleon e o Coro se gabam de
uma virilidade que já ninguém lhes reconhece. Quando, na segunda
Parábase, o Corifeu lamenta os tempos idos da juventude, os tempos
em que defenderam a cidade contra os Persas, lamenta a perda de
uma coragem também evidente ao nível do desempenho sexual (καὶ
199
κατ’ αὐτὸ τοῦτο μόνον ἄνδρες ἀλκιμώτατοι, v. 1062), apanágio de uma
raça de Atenienses que parece não encontrar paralelo nas mais novas
gerações. Uma raça caraterizada pela sua virilidade (ἀνδρικώτατον
γένος, v. 1077), por oposição aos zangãos (κηφῆνες, v. 1114) da nova
elite ateniense (demagogos, a nova geração de educação sofística),
que não têm aguilhão (οὐκ ἔχοντες κέντρον, v. 1115) e, como no reino
animal que lhes serve de imagem, vivem às custas dos exemplares
coletores da espécie 36. É por isso que Filócleon, abandonados os
tribunais, é ensinado pelo filho a comportar-se como essas novas eli-
tes, sendo recorrentemente caraterizado de velho e impotente, como
fica claro numa das cenas finais, com uma flautista, à qual pede que
trepe até si segurando na sua cordinha (τῇ χειρὶ τουδὶ λαβομένη τοῦ
σχοινίου37, v. 1342).
O até aqui exposto associa à imagem da vespa um segundo sen-
tido, não isolado do político que primeiro e mais naturalmente se
concluiu. Desta feita, trata-se de um sentido essencialmente erótico,
de masculinidade violenta, que cedo se terá associado ao universo
da poesia iâmbica. Para ele pode também concorrer uma ressonân-
cia linguística, para a qual primeiramente chamou à atenção D. S.
Allen 38, e que aqui pretendemos desenvolver. Pergunta a autora se
pode ter relevância que o genitivo de “vespa” (σφηκός) seja tão pró-
ximo ao nominativo do termo σφῆκος (“colar de figos”), dando os
exemplos de Bdelícleon, que antecipa a chegada do Coro ao ouvir “o
crepitar de ramos de figueira” (θρίων τὸν ψόφον), ou da criança que
acompanha os juízes populares e pede ao pai figos secos (ἰσχάδας,
200
v. 297). Tem razão a autora quando interpreta o último pedido como
uma alusão à idade avançada dos homens-vespa e à sua impotência
sexual, sobretudo a partir do sentido de “secar” (ἰσχαναίω) presente
no termo e da sua utilização referente aos genitais femininos, em
especial os de mulheres maduras 39. Tematicamente, a possibilidade
de estar também implícito nos conceitos de figo (σύκον) e sicofanta
(συκοφάντης) o ritual do pharmakos, a que em boa hora alude 40,
aumenta consideravelmente o conjunto de termos e ideias que nos
remetem para o universo do iambo grego da época arcaica. Em es-
pecial para Hipónax, o efésio, cujos fragmentos 5-12 West têm sido
relacionados com dito ritual, poeticamente utilizado como invetiva
contra Búpalo, o principal alvo do seu psogos, a acreditar na tradição
pseudobiográfica.41 Figos ou figueiras são de facto referidos pelo
iambógrafo, mesmo em fragmentos com possibilidade de interpretação
erótica, como é o caso do fr. 48 West (= 58 Medeiros), onde συκῆν
μέλαιναν foi interpretado como referente ao “grande falo” (σύκινος)
que desfilava nas Dionísias Rurais42. Ou o mais polémico συκοτραγίδες
do fr. 167 West (= 174 Medeiros), que Suetónio e Eustácio parecem
atribuir a ambos, Arquíloco e Hipónax – mas que quase de certeza
39 Cf. Allen 2003: 89-90 e n. 42. Semelhante utilização erótica dos figos secos
pode ver-se já em Acarnenses (797-808), onde Diceópolis oferece ἰσχάδες às filhas
do Megarense, que entram em cena mortas de fome e disfarçadas de porquinhas
(χοιρίδια) – termo, o último, com igualmente óbvia leitura erótica.
40 Allen 2003: 89. De origens agrárias, a cerimónia do pharmakos inclui-se entre
os ritos de purificação mais selváticos da religião grega, cuja etiologia pode estar no
sacrifício primeiro de um indivíduo chamado Pharmakos que, surpreendido a roubar
as taças de Apolo, foi apedrejado até à morte pelos companheiros de Aquiles (cf.
Istros, 334 FGrH fr. 50). Em Atenas, celebrava-se no primeiro dia das Targélias ou em
qualquer momento de calamidade pública. Um homem ou uma mulher (às vezes um
casal), dos mais disformes, sobre quem recaía toda a responsabilidade da doença de
que padecia a comunidade, recebiam como última refeição figos, um bolo de cevada
e uma ração de queijo, e em seguida obrigados a atravessar as ruas da cidade, ao
longo das quais a multidão os açoitava com ramos de figueira, em especial na zona
genital. Em Atenas, desfilavam ainda com um colar de figos ao pescoço. Podiam no
final ser lapidados até à morte, sendo o seu cadáver atirado ao mar. Sobre o ritual e
a sua presença na religião grega vide Burkert 1993: 176-179.
41 Vd., sobre o assunto, Jesus 2008: 42-44, com n. 27 para a principal bibliografia.
42 Apud Medeiros 1961: 96. Vd. Pestalozza 1951: 318.
201
é um neologismo do primeiro –, magistralmente traduzido por W. S.
Medeiros por “vergôntea dos rilha-figos” 43.
Quanto às vespas, a sua associação ao universo do iambo, e às
figuras de Arquíloco e Hipónax em particular, é literariamente tar-
dia, surgindo pela primeira vez, de forma explícita pelo menos e
associada a Arquíloco, num passo de Calímaco (fr. 380 Pf. = Archil.
test. 36 Gerber), que se refere à arte do iambógrafo como contendo
“a mordaz cólera de um cão e o aguçado aguilhão de uma vespa,
e de ambos o veneno em sua boca” (εἵλκυσε δὲ δριμύν τε χόλον
κυνὸς ὀξύ τε κέντρον / σφηκός, ἀπ’ ἀμφοτέρων δ’ ἰὸν ἔχει στόματος).
Contudo, pode a sua antiguidade remontar a tempos anteriores a
Aristófanes, a meados do século V a.C. Com efeito, a fragmentária
comédia Arquílocos de Cratino (frs. 1-16 K-A) desenvolveria um agon
entre dois semi-coros e, simultaneamente, dois géneros literários: a
invetiva de sabor arquiloquiano, representada por um grupo de po-
etas iâmbicos, por um lado, e Homero e Hesíodo, por outro – com
vitória, naturalmente, do primeiro grupo. De resto, como o poeta de
Paros em face de Licambas (fr. 23.14-15 West), também o Arquíloco
cómico afirma saber “pagar na mesma moeda” a quem lhe faz mal
(Cratin., fr. 6.2 K-A). Noutro fragmento, comodamente intitulado
“salsa de Tasos” (fr. 6 K-A), teria Cratino desenvolvido a imagem de
um assado onde a própria família de Licambas é a carne que grelha,
vítima dos virulentos ataques do iambógrafo 44 . Mas importa-nos
sobretudo o fr. 2 K-A, quando menciona um “enxame de sofistas”
(σοφιστῶν σμῆνος), expressão que levou A. Barchiesi a considerar a
possibilidade de um coro “do tipo com aguilhão” 45. De ser assim, não
seria descabido pensar que Aristófanes tivesse esse espetáculo em
43 Vd. Medeiros 1961: 232-233; idem 1969: 80-81. O sentido literal seria o de
“come-figos” (συκοτραγέω), também relacionado com o passivo σύκομαι, tardiamente
utilizado pelo epigramatista Páladas (βρώματά μοι χοίρων συκιζομένων προέθηκας,
AP 9.487, v. 1), poeta já dos séc. IV AD e ele próprio bom conhecedor da tradição
iâmbica antiga.
44 Sobre a comédia em discussão, vd. Silva 1987: 16-19 (com notas para bibliogra-
fia). E, sobre o fr. 6 K-A de Cratino, em específico, Pretagostini 1982: 43-52.
45 Barchiesi 2001: 150, n. 3.
202
mente aquando da conceção do seu corpo de juízes-vespa, embora
não haja forma de o demonstrar com segurança.
Especialmente devedores da tradição biografista que líamos em
Calímaco – a mesma que, como demonstrámos em seu momento,
se prolongou no tempo e chegou ao Renascimento, por via da sua
receção intermédia no iambo romano 46 – são três epigramas hele-
nísticos mais tardios, todos eles epitáfios, coligidos na Antologia
Grega 47. Num deles, atribuído a Getúlico (7.71) 48, aconselha-se o
transeunte a passar com pés de lã perto do túmulo de Arquíloco,
para não despertar “as vespas que rodeiam o seu túmulo” (τύμβῳ
σφῆκας ἐφεζομένους, v. 6). Imagem que constava já de outros dois
epitáfios, anteriores no tempo mas do mesmo século I AD: um de
Filipo (7.405), no qual pertence a Hipónax a tumba que se acon-
selha evitar para não despertar a “vespa adormecida” (σφῆκα τὸν
κοιμώμενον, v. 4); e outro de Leónidas (7.408) – que deve mesmo
ter sido a inspiração dos demais –, com alusão à “pungente vespa
que descansa” (πικρὸν… σφῆκ’ ἀναπαυόμενον, v. 2) e que convém a
todo o custo não atiçar. A alegoria das vespas, ainda que não con-
cretizada, está também implícita noutras composições do mesmo
género e ao longo dos períodos helenístico e bizantino. Textos nos
quais é uma constante o uso do adjetivo πικρός (e derivados), em
termos semânticos já um elemento-chave da imagem do aguilhão
na comédia, aí dado sobretudo por via de distintas formas de ὀξύς
e derivados, como antes se viu. Assim, em AP 7.352 (epigrama sem
certezas atribuído a Melegaro, do séc. I a.C.), refere-se o πικρὸς
Ἀρχίλοχος (vv. 7 e 9); Getúlico alude à πικρὴν μοῦσαν (AP 7.71.1-2);
e Juliano, já no século VI da nossa era, à πικροχόλου… στόματος de
Arquíloco (AP 7.69.4). Continua a estar em causa, como bem defendeu
46 Vd. Jesus 2007: 241-256, repr. in Jesus 2008: 55-65, com notas, para a bibliografia
essencial. Katz 2008: 207-213 estuda o caso específico de Horácio, a partir de Epist.
1.19.23, passo que entende como programático da inspiração arquiloquiana no vate
romano e como atualização da imagem da vespa, aí aplicada a si próprio.
47 Sobre estes textos, o seu contexto e sentidos, vd. Rosen 2007: 459-476.
48 O epigrama de Getúlico, em específico, é analisado por Brown 2001: 429-432.
203
G. Brown a propósito do epigrama de Getúlico, a noção de “afiado”,
“aguçado” ou “pungente”, literalmente aplicado às flechas na épica
(e.g. πικρὸν ὀϊστόν, Il. 4.118) e, metaforicamente, à palavra que fere
como flechas, já em Eurípides (γλώσσης πικροῖς κέντροις, HF 1288)49.
Estamos, afinal, no vasto domínio das imagens da palavra poética
como arma, um lugar-comum em toda a poesia grega 50.
Arquíloco e Hipónax, a partir da comparação que pela primeira
vez lemos em Calímaco, são agressores que não deixaram de o ser
mesmo depois da morte, tal a violência proverbial dos seus iambos
e da raiva que os movera contra os Licâmbidas e Búpalo e Átenis,
respetivamente 51. Uma raiva que, chegados ao período helenístico,
é preferencialmente χόλος52, e às vezes θύμος53, mas não mais ὀργή,
que parecia ser, como vimos na comédia de Aristófanes, o termo
mais frequente na época clássica. Esta evidência, só por si, denuncia
o conhecimento dos textos dos dois iambógrafos arcaicos por parte
destes autores tardios, porquanto é sobretudo o primeiro termo –
na sua versão feminina (χολή), o que por eles deve ter sido mais
utilizado, a avaliar pelas ocorrências nos fragmentos conservados54.
Muito mais poderia dizer-se sobre aquela que, como ficou de-
monstrado, é uma alegoria evidente, por um lado, e transversal à
204
literatura grega, por outro. Ficou claro que não se trata de uma
criação aristofânica, desde logo na medida em que este tipo de
imagens animais têm origens populares que se perdem nos tempos
e nas geografias. Da mesma forma, nem sequer a ideia de dotar de
aguilhão um coro de comédia pode, sem mais delongas, ser conside-
rada um inédito aristofânico. Seja como for, os exemplos que fomos
apreciando harmonizam-se com relativa facilidade em torno a dois
conceitos-chave: o poder da palavra violenta, por um lado – seja o
da retórica judicial, ou o da poesia invetiva – e a noção de coletivo,
de um grupo de indivíduos que, regra geral, se move impulsiona-
do por uma raiva (ὀργή, χολήν ou θυμός) em tudo paralela à que
sempre se reconheceu nesse animal. Dois sentidos que, longe de se
autoexcluírem, parecem antes complementar-se nos exemplos estu-
dados. Os Mirmidões na Ilíada, os juízes-vespa ou o poeta iâmbico,
valorações morais à parte, partilham uma mesma intenção de corrigir
por via da punição, de um ataque que, como o aguilhão das vespas,
é pungente e difícil de evitar.
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207
(Página deixada propositadamente em branco)
A r i s t ó fa n e s e P l atã o :
do poder das mulheres na pólis.
Paródia e Utopia
A r i s to p h a n e s a n d P l ato :
T h e P ow e r o f W o m e n i n t h e P o l i s .
P a r o dy a n d U to p i a
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_9
natureza, será a salvação para a Atenas do primeiro quartel do séc.
IV a.C.? Ou não passará de uma utopia, resultante de uma releitura
filosófica da comédia de Aristófanes.
O presente artigo é mais um contributo para a reflexão sobre as propos-
tas apresentadas por Aristófanes e por Platão. Pese embora o número
considerável de estudos sobre a temática em apreço, pretende-se aqui
apresentar e aprofundar linhas de comparação entre os dois autores,
respondendo às questões levantadas, de forma a analisar, por um lado,
a dimensão paródica subjacente à manutenção do poder da pólis nas
mãos das mulheres e recordar, por outro, a natureza utópica do tratado
platónico.
Palavras-chave: mulheres, paródia, utopia, Aristófanes, Platão
210
Introdução
211
irem, disfarçadas de homens, tomar parte da assembleia na Pnix e
aí reclamarem o governo da pólis para o seu domínio. Da proposta
de governo apresentada resulta a aceitação de uma ginecocracia4
que comicamente põe fim a uma democracia desacreditada por uma
sucessão de governos corruptos e inaptos.
Proposta semelhante é a que apresenta Platão no Livro V da sua
República. 5 A teoria comunitária de bens e mulheres que o filósofo
defende estabelece um paralelo interessante com a peça de Aristófanes.
O parentesco “é inegável, que várias gerações de filólogos ponderaram
já, entre a comédia aristofânica e a República de Platão”. 6 Entre os
estudiosos da matéria, questiona-se sobre quem terá lançado, ainda
que rudimentarmente, as bases de um ‘radicalismo comunista’ no
projeto inovador para a sociedade ateniense e terá influenciado tanto
Aristófanes como Platão. Numa primeira leitura, importa atentar no
estado democrático a que a pólis foi votada, durante a Guerra do
Peloponeso e durante o momento pós-guerra. Numa leitura de natu-
reza filosófica, conceber o pensamento comunista ao serviço de uma
atuação meramente política legitima a consideração de Aristóteles
que “atribui expressamente a Platão a revolução radical da família,
[referindo-se] à sua formulação num projeto de Constituição”, 7 a
qual veio a traduzir-se na teoria comunitária de bens, mulheres
e filhos. 8
212
Embora haja semelhanças evidentes entre os dois textos e alguns
investigadores insistam numa informação de Aulo Gélio, 9 há que
considerar a validade do argumento da datação cronológica de am-
bas as obras. “Desde meados do século XVIII que o problema foi
delimitado com lucidez: se, por um lado, são óbvios os pontos de
contato entre os dois textos – ainda que diferentemente valorizados
pelas sucessivas leituras de que foram objeto –, a conclusão, que pa-
receria inevitável, de que se tratasse de mais uma paródia do cómico
à teoria desenvolvida por Platão no Livro V da República, esbarra
com um primeiro, e decisivo, argumento, qual é a impossibilidade
de datar o tratado platónico de época anterior a 393-392 a.C., data
da apresentação da comédia. A cronologia é, portanto, um elemen-
to definitivo para excluir a dependência direta do texto cómico em
relação ao filosófico”. 10
Além do elemento distintivo apontado por Silva, importa ainda
referir que a atribuição de um qualquer poder decisor às mulheres
não constitui novidade para o público de Aristófanes, pelo menos
desde 411 a.C., ano em que leva à cena Lisístrata; esta comédia,
talvez de grande impacto político na Atenas do último quartel do
século V a.C. 11, apresenta o estratagema de um grande número de
mulheres que se predispõem a pôr fim à guerra do Peloponeso
através de uma greve ao sexo. Mas colocar o governo da pólis nas
213
mãos das mulheres “c’est bien l’image d’un monde à l’envers que
propose Aristophanes aux spectateurs athéniens dans son Assemblée
des femmes, une comédie qui abolit en même temps le pouvoir
masculin, la proprieté et le mariage, ces trois fondements de la cité
grecque.” 12
No Livro V da República, Platão concebe um mundo às avessas 13,
na medida em que as prerrogativas masculinas são ocupadas pelas
mulheres, conforme o aplaudido pelo público de Aristófanes, assente
numa teoria comunitária, segundo a qual homens, mulheres e filhos
detêm um estatuto igualitário. O filósofo “constrói, com os pressu-
postos de uma politeia, um artefacto – que deverá corresponder à
escultura da ‘mais bela’ pólis, isto é, a cidade, cuja politeia, sendo
reta e boa, será definida do mesmo modo –, que estará sempre dis-
ponível à ‘contemplação’ de todos aqueles que desejarem agir em
consonância com a justiça.” 14
214
inícios do século IV a.C. implica uma mudança. Praxágora, pro-
tagonista da comédia aristofânica – fazendo-se eco de discussões
que adivinhamos ativas na cidade concreta –, tem consciência da
necessidade de se impor um outro rumo ao governo de Atenas.
Referindo-se àqueles que têm as mais altas funções no Estado,
a ateniense exclama (104-109):
215
ao anterior. Confia-se noutro, é pior a emenda que o soneto. Sem
dúvida que é difícil abrir os olhos a gente cabeçuda como esta:
dos que vos são dedicados, vocês têm medo; dos que não querem
nada convosco, andam de joelhos atrás deles. Tempos houve em que
nem sabíamos o que era uma assembleia; apesar disso, o patife do
Agírrio não nos fazia o ninho atrás da orelha. Agora que as temos,
se um fulano se cose com as massas, cobrem-no de elogios; se não
se aproveita, diz-se que, quem procura ganhar a vida como membro
da assembleia, merece a morte. […] Mais: Essa aliança, quando foi
discutida, argumentou-se que era o fim da cidade, se se não fizesse;
afinal, quando se fez, arrependeram-se logo, e aquele orador que
os tinha convencido a fazê-la não teve outro remédio senão pôr-se
ao fresco. É preciso apetrechar uma frota: o pobre vota a favor,
os ricos e os lavradores votam contra. Vocês viravam-se contra os
Coríntios, e eles contra ti, povo de Atenas. Se eles agora estão de
boa catadura, põe-te tu também de boa catadura com eles. O Argivo
é uma besta, mas Hierónimo um alho. Uma esperança de salvação
surge, logo Trasibulo vai aos arames por não ter sido ouvido nem
achado. […] E são vocês, meu povo, os culpados de tudo. Quando
recebem, sem salários, os fundos do Estado, só pensam no vosso
próprio interesse. É ver quem se enche mais! E o Estado, como
Ésimo, lá vai tem-te-não-caias. Mas se acreditarem no que vos digo,
ainda se podem salvar. É às mulheres, na minha opinião, que se
deve confiar a cidade. Tanto mais que, nas nossas casas, é a elas
que confiamos a administração doméstica. […] Que os hábitos de-
las são melhores que os nossos é o que agora passo a demonstrar.
Para começar, mergulham a lã em água quente, à moda antiga,
todas elas, e não se vê que estejam dispostas a mudar. Ao passo
que a cidade de Atenas, mesmo se uma coisa dá resultado, não se
julga a salvo, se não engendrar qualquer inovação. Fazem os seus
grelhados sentadas, como dantes; trazem fardos à cabeça, como
dantes; celebram as Tesmofórias, como dantes; cozem bolos, como
dantes; estafam os maridos, como dantes; metem amantes em casa,
216
como dantes; compram gulodices, como dantes; gostam de uma boa
pinga, como dantes; pelam-se por fazer amor, como antes. Por isso
é a elas, meus senhores, que temos de confiar a cidade, sem mais
discussão, sem sequer nos preocuparmos com o que pensam fazer.
Demos-lhes carta branca para governar. Consideremos apenas estes
pontos: primeiro, que, se são mães, vão dar tudo por tudo para
salvarem os soldados; segundo, no que respeita à comida, quem
mais solícito que uma mãe para reforçar uma ração? Para arranjar
umas massas, ninguém mais furão que uma mulher; no poder, não
há quem lhe faça o ninho atrás da orelha, porque a fazer o ninho
atrás da orelha quem é que lhes leva a palma?! Bom, o resto passo-
-o por cima! Vão pelo que vos digo, que ainda hão de levar uma
vidinha regalada.” 16
217
interesses e do bem comuns, Praxágora entende que a Atenas devam
ser restituídas a estabilidade e a força de um passado perdido. Cabe,
pois, às mães e às esposas atenienses, segundo as suas palavras, o
novo governo da pólis e tal medida não virá a ser lamentada nem
pelos maridos nem pelos filhos.
A perspetiva de um novo modelo de governo para a pólis é tam-
bém motivo de reflexão para Platão, na República. A crise que Atenas
vivencia constitui, para o filósofo, uma perda da unidade – “Ora nós
teremos algum maior mal para a cidade do que aquele que a dilace-
rar e a tornar múltipla, em vez de una? Ou maior bem do que o que
a aproximar e tornar unitária?” (462b) –, pelo que importa projetar
um Estado perfeito. No plano de Platão, as mulheres adquirem um
papel significativo, mas não do mesmo modo como Aristófanes pro-
põe a ginecocracia em Mulheres na assembleia. “Ao refletir sobre a
posição que à mulher pode caber em sociedade, Platão está apenas
preocupado em definir o perfil social da mulher-guardiã, aquela que
desenvolverá uma atividade paralela à dos guardiães masculinos do
rebanho (República 451c)”. 17 A esta preocupação, norteada por um
critério meritocrático, que domina o pano de fundo da República,
Aristófanes responde com um plano de ‘substituição’, isto é, o seu
plano não é ‘inteiramente democrático’, porque exclui desde logo
os homens, ao abrir o acesso à gestão da cidade à mulher ateniense
no seu todo e sem condições de limite.
Na conceção da cidade ideal, a proposta de governo de Platão é
de base comunista; aí mulheres e homens – apenas os guardiães –
detêm o mesmo poder e desempenham as mesmas funções. Não se
diferencia a atuação de uns e de outros, porque o objetivo que lhes
é comum é o mesmo, a unidade. A propósito desta idealização, Saïd
assinala que “ce récit, inspiré du mythe athénien de l’autochtonie,
préfigure, sur le plan de la fiction et pour l’ensemble de l’État, la
fusion de la cité et de la famille.” 18 Sendo assim, a governação da
218
pólis entrega-se a mulheres e a homens e garante-se, ato contínuo,
a unidade que Platão lamenta ameaçada. No Livro V da República,
o filósofo não se debate sobre um novo modelo de governo, muito
embora subjaza à sua reflexão uma linha de atuação comunista.
Parece que perspetiva a sua ‘cidade ideal’ mais como um progra-
ma ético do que político. Morrison 19 questiona precisamente esta
hipótese:
19 2007: 232.
20 Silva & Augusto 2015: 160.
219
ganha outra dimensão: enquanto Aristófanes lhe dá total protago-
nismo e exclusividade na atuação política, Platão atribui-lhe nesta
atuação igualdade face ao homem. 21 O papel relegado para segun-
do plano, que a tradição22 insiste em conceder à figura feminina,
parece esvair-se. Pelo menos na comédia aristofânica e na kallipolis
platónica.
21 Rodrigues 2001: 98 afirma que “nos textos utópicos de Platão, a mulher grega
está longe de ser desprezada. Aliás, é-lhe reconhecido um valor imensamente neces-
sário à constituição da cidade ideal. Há mulheres dotadas para a medicina, outras
para a música, outras para a ginástica, outras para a guerra; e até mesmo mulheres
filósofas. Apesar de Platão não duvidar da inferioridade das mulheres em relação
aos homens, afirma que essa inferioridade é qualitativa e não quantitativa, admitin-
do assim a possibilidade de as mulheres acederem, na cidade ideal que projeta, às
duas funções de que estão completamente excluídas na cidade real: a política e a
guerra.”
22 Silva 1979-1980: 98 regista que “o reconhecimento da mulher como um ele-
mento social capaz de tomar parte ativa na organização e gerência da πόλις sofreu
uma marcha lenta e difícil, porque tinha atrás de si toda uma tradição desfavo-
rável.”
23 Franco de Sá 2017: 27.
220
ção política e isso é expressamente claro no Livro V. As mulheres,
detendo a mesma capacidade que os homens e tendo sido instruídas
e formadas segundo os mesmos modelos educativos, devem ocupar
cargos diretivos no governo da pólis. Propõe-se, dentro da classe dos
guardiães, um sistema de procriação e casamento que visa a eugenia
e idealiza-se a concretização de uma unidade família-Estado que não
passa de uma utopia.
A comunidade de bens permite aos guardiães a dedicação exclusiva
à causa pública e ao cumprimento devido da cidadania. Integrando a
classe dos guardiães homens e mulheres, o desempenho de funções
governativas da politeía é da responsabilidade de ambos os sexos,
indistintamente. No fundo, como assinala Saïd, 24 «Platon ne fait ainsi
que transposer dans son utopie un “ideal de militantisme” partagé
par les Grecs comme par les Romains. Il s’inspire aussi de la consti-
tution de Sparte, telle du moins que Plutarque l’évoque dans sa Vie
de Lycurgue.» Assim, uma teoria comunitária de bens, mulheres e
filhos faz sentido se nenhum destes elementos for sobrevalorizado ou
hostilizado, isto é, tem de haver um desprendimento total da matéria
e das emoções, porque tudo está ao mesmo nível. Prevalece a utopia.
Também Aristófanes se refere a esta teoria comunitária em Mulheres
na assembleia, afastando-se, porém, pela paródia, do idealismo da
kallipolis platónica. Num primeiro momento as palavras de Praxágora
expressam o desejo de um comunismo igualitário radical:
24 2013: 216.
221
escravos, e outros nem sequer um criado. O que eu quero estabe-
lecer é um padrão único de vida comum, igual para todos.” 25
25 589-594.
222
galãs.” 26 A paródia a que se propõe a comédia não deixa de ser
ela própria uma pré-constatação da dimensão ridícula da utopia
platónica.
223
Não se faz referência explícita ou denotativa, nem neste passo, nem
noutros do Livro V da República, à importância da experiência que
a mulher desenvolve no oikos na manutenção do poder. O estatuto
igualitário que Platão lhe atribui parece dispensar as funções que
Aristófanes naturalmente evoca nas suas comédias. Às mulheres da
‘cidade real’ se confia a administração do oikos, às da ‘cena cómica’,
a ekklesia e o governo de Atenas, e às da kallipolis, a permanência
no espaço público e sua guarda, a participação na caça e na guerra.
A idealização platónica de um poder feminino assenta em metáfo-
ras várias que se vêm demarcando ao longo do diálogo de Sócrates.
A metáfora ‘dos cães’, referida primeiramente no Livro III (404 a),
é retomada no Livro V para sustentar a metáfora ‘dos rebanhos’ e
justificar a igualdade do poder entre mulheres e homens:
224
– É tudo em comum – respondeu ele – exceto que utilizaremos
os seus serviços tendo presente que elas são mais débeis, e eles
mais fortes.” (451 c-e)
“Cremes
Que a mulher – dizia ele – é um modelo de bom senso, que só
traz fortuna. Que não anda por aí a badalar aos quatro ventos os
225
mistérios das Tesmofórias, enquanto tu e eu, quando estamos no
conselho, não fazemos outra coisa.
Bléfiro
Quanto a isso, verdade seja dita, não mentiu.
Cremes
Depois pôs-se a dizer que eles emprestam umas às outras rou-
pa, joias, dinheiro, louças, só lá entre elas, sem testemunhas; que
devolvem tudo, ninguém fica defraudado, como – eram palavras
dele – é uso e costume cá entre nós.
Bléfiro
Lá isso é, e com testemunhas e tudo!
Cremes
E foi em frente com um nunca acabar de elogios às virtudes
femininas. Que elas não se metem em denúncias, nem em proces-
sos, nem em sabotagens à democracia. Um canto de louvores!” 30
30 442-454.
31 Cf. Mossé 1983: 39-61.
226
fil de la tradition d’un peuple connu pour son gout de l’innovation
et pour ses idées folles. Et la forme même que prend cette innova-
tion est dictée par l’évolution d’un État où les vrais hommes ont été
écartés au profit des efféminés, où la parole politique a fait place à
un bavardage peu viril.” 32
Estender o poder também ao feminino surge como resposta
viável ao governo da pólis. Esta é uma premissa válida tanto para
o público de Aristófanes, como para Platão. O primeiro parodia e
satiriza o estado da democracia ateniense no período pós-Guerra
do Peloponeso ao ponto de propor que seja confiado às mulheres o
governo de Atenas, o segundo idealiza uma ‘cidade feliz’, onde ho-
mens e mulheres podem assumir conjuntamente as rédeas do poder
e da governação e viver numa comunidade aberta que define a nova
‘liberdade democrática’.
Conclusão
227
lância da kallipolis que projeta na República. Embora o filósofo não
idealize uma ginecocracia, é evidente a influência que as comédias
aristofânicas têm no seu pensamento, pelo menos relativamente ao
tema em apreço.
Além da relação que entre a comédia de Aristófanes e o diálogo
de Platão se estabelece sob vários aspetos, sobre alguns dos quais
se tentou dar conta ao longo deste capítulo, importa concluir que
na base das Mulheres na assembleia e da República está uma mesma
constatação, a de que Atenas está a mudar. A realidade sociopolítica
do último quartel do século V a. C., vivida por Aristófanes e por
Platão, e o estado em que a pólis se encontra nas primeiras décadas
do século IV a. C., ao qual não é indiferente nem o poeta cómico
nem o filósofo, são as causas da apresentação de novos projetos
para reabilitação da cidade. Talvez por isso a comédia seja o melhor
mecanismo de crítica e de denúncia – ou não fossem a paródia e a
sátira meios eficazes de ensino e de aprendizagem – que estimula a
renovação. Ou, pelo menos, a sua idealização utópica.
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229
(Página deixada propositadamente em branco)
A s p a l av r a s d o m u n d o h e r o i c o n a e p o p e i a
alexandrina
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_10
Abstract: The words allow the heroes of the Alexandrian epic to main-
tain the cohesion of the group and to find the ideal strategy for
peaceful contact with the other countries. Jason is a leader worried
about the group’s opinion and at the same time interested in keeping
always diplomatic relations with foreigners. To better understand the
heroic world of this Hellenistic epic, we analyse the epithets of the
discourse every time an Argonaut speaks within the group or with
those from others countries. This study allows us to consider humi-
lity and tolerance as heroic values working together with boldness
and critical assessment of situations. Among all values, meilichie,
which means diplomatic approach and gods’ reverence, stands out
as the main defining feature of a world located in the opposite place
of war.
232
Alexandria do século III a.C., se falar da viagem em busca do velo
de ouro, realizada pela geração anterior à homérica 3.
São heróis do poema os tripulantes da nau Argo, que chegam a
Iolco, vindos de várias partes do mundo grego, para ajudar Jasão
nesta demanda que os levará aos confins do mundo, a Cólquida.
Eleito pelos companheiros como chefe4, Jasão sobressai não pela ex-
celência bélica e desejo de glória 5, como o herói homérico, mas pelo
cuidado com a vida dos que lidera6, pela valorização da sua opinião7
e pela procura constante de concórdia 8, num percurso dinâmico de
aprendizagem para todos os Argonautas 9. Se, por um lado, Jasão é
capaz de ouvir os companheiros com tolerância, também com os que
233
são externos ao grupo opta pela via do bom entendimento, sejam
eles gregos ou não 10. As palavras integram-se na dimensão heroica
como veículo de rejeição da guerra 11.
São vários os epítetos das palavras proferidas pelos Argonautas.
Organizámo-los em duas partes: primeiro, os que qualificam o dis-
curso destes entre si; a seguir, os que qualificam as palavras trocadas
entre os jovens gregos e aqueles que vão encontrando ao longo da
viagem 12.
O diálogo travado entre os Argonautas é introduzido por dativos
instrumentais positivos e negativos; estes são: discurso arrogante e
insustentável, μῦθος ὑπερφίαλος e ἄσχετος (1.1334), discurso funesto,
κακὸς μῦθος (1.1337), e palavras deletérias, ὀλοὰ ἔπεα (3.384).
Positivos são: palavras ousadas, θαρσαλέα ἔπεα (2.639, 1218) e pa-
lavras brandas 13, μειλίχια ἔπεα (2.621).
234
Os qualificativos negativos traduzem as dúvidas, as contradições e
os receios inerentes ao ser humano. Todos se reportam a momentos
difíceis, estrategicamente ultrapassados por Jasão, que prova que a
tolerância deve ser apanágio de um chefe14. Arrependido por ter acusa-
do Jasão de ter abandonado Héracles15, Télamon refere-se às palavras
de censura que dirigira àquele como arrogantes e insustentáveis. Os
lemas ὑπερφίαλος e ἄσχετος têm grande relevo no poema, constituin-
do dois traços do mundo adverso que os jovens gregos enfrentam.
Assim, o primeiro caracteriza o povo dos bébrices (2.129, 758), o rei
da Cólquida (3.15; 4.1083) e as provas impostas por Eetes a Jasão
(3.428). A arrogância define, portanto, a conduta não heroica. Por sua
vez, ἄσχετος qualifica também as referidas provas (3.60616, 104817,
132218) e ainda a morte de Absirto (4.62219, 74220). O insustentável
é, tal como a arrogância, aquilo que o herói tem de ultrapassar e
que não o pode definir21. Télamon prova uma evolução positiva no
14 Somos da opinião, como noutros estudos já defendemos, que Jasão não tem
falta de características heroicas; cf., e.g., Sousa 2013a . Para uma perspetiva sucinta e
clara das várias interpretações suscitadas pelo comportamento desta personagem no
poema, cf. Mori 2008: 83, n. 132.
15 Sobre a figura de Héracles, ver Júnior 2018.
16 Seguimos a interpretação de Hunter 1989: 163. No entanto, como o filólogo
explica alguns interpretam como insustentáveis não os planos de Eetes, mas os planos
dos gregos que haviam chegado à Cólquida. O paralelo com os outros passos em
que o adjetivo qualifica as provas impostas por Eetes contraria, em nossa opinião,
esta leitura.
17 Em 3.1048 Hunter 1989: 214 propõe “irresistible” para verter o qualificativo,
considerando em 2015: 167 a propósito de 4.622, que este é o sentido mais comum
do adjetivo.
18 Neste verso constrói-se como que uma hipálage, pois o adjetivo não qualifica
as provas, mas a lança de Jasão no momento em que combate os touros.
19 Hunter 2015: 167 em 4.622 opta pela tradução “ceaselessly” por ser epíteto do
odor exalado pelo cadáver de Absirto. No entanto, esta opção tem o inconveniente
de fazer desaparecer a conexão, que nos parece intencional, entre os termos quali-
ficados com o adjetivo ἄσχετος.
20 Neste passo Hunter 2015: 188 propõe como tradução “intolerable actions”.
Voltamos a reiterar o inconveniente assinalado na nota anterior.
21 Na Ilíada a arrogância pode caracterizar os heróis: têm-na, segundo o narra-
dor, Diomedes (5.881) e, segundo Menelau, Aquiles (21.224), e os troianos (13.621).
No entanto, na Odisseia, como na Argonáutica, ὑπερφίαλος pertence ao universo
não heroico. Assim, neste poema, o lema qualifica os Ciclopes (9.106); eventualmen-
te alguns homens da Esquéria (6.274); e sobretudo os pretendentes (1.134; 3.315;
235
seu processo de aprendizagem quando se revela arrependido. Jasão
responde de forma cautelosa, qualificando apenas de funesto o que
lhe havia sido dito, muito embora não deixe de inserir as palavras
do companheiro no âmbito do κύδος (1.1337) 22. Assim, ao mesmo
tempo que dissipa com prudência uma tensão, revela que a perce-
ção clara de um ultraje deve originar a manifestação de humildade
e tolerância, apresentadas no poema como valores heroicos deste
novo mundo 23.
O lema ὀλοός24, epíteto das palavras que Télamon, pleno de cólera,
não chega a dizer a Eetes, define o mundo não heroico25. O deletério
4.774, 790; 11.116; 13.373; 14.27; 15.12, 315, 376; 16.271; 18.167; 20.12, 291; 21.289;
23.356), e, entre eles, Antínoo (2.310). Bowie 2013: 168 considera-o um epíteto for-
mular quando atribuído aos pretendentes, mas em 14.27 coloca a hipótese de exprimir
o ponto de vista do porqueiro Eumeu. Aliás, o epíteto, se, como explicam os escó-
lios, derivar etimologicamente de φιαλή, é um qualificativo óbvio dos pretendentes
como pessoas que sem educação se encostavam à panela alheia, ἀπαιδεύτως ἐν τῇ
φιάλῃ προσκαθημένους (Scholia in Odysseam 310.3). Chantraine 1999: 1158 refere
as duas etimologias possíveis: além desta, ὑπερφυής, luxuriante como superbus.
Por sua vez, ἄσχετος complementa-se sempre, na Odisseia (na Ilíada surge como
epíteto de πένθος em 16.549 e 24.708, e do μένος de Hera em 5.892) com μένος
como acusativo de relação: insustentável no ímpeto. Os contextos remetem para a
forma como um dos pretendentes, neste caso, Antínoo caracteriza Telémaco (2.85,
303; 17.406), usando ironia, segundo os escoliastas (Scholia in Odysseam 2.85 d2); e
para a caracterização de Ciclope, nas palavras de Ulisses, quando escapa do monstro
e fala com a sua κραδίη (20.19). A única contextualização positiva do lema está na
fala de Nestor que destaca as qualidades heroicas dos aqueus considerando-os insus-
tentáveis no ímpeto (3.104). Os escólios interpretam o sintagma neste passo como
equivalente a viris, ἀνδρεῖοι, bastante fortes, δυνατώτεροι, excessivamente poderosos,
ἄγαν καρτερικοί, ou invencíveis na força, τὴν ἰσχὺν ἀκράτητοι (Scholia in Odysseam
3.104 c1,c2).
22 O verbo κυδάζω tem esta única ocorrência no poema, estando ausente dos
modelos homéricos. O κύδος equivale a uma λοιδορία, ultraje, entre os siracusanos,
como explicam os escólios que remetem para S. Aj. 722 (Scholia uetera in Apollonii
Argonauticam 1.1337). Segundo Mori 2008: 83, a reação de Jasão “is marked by ratio-
nalization and the inclination toward compromise”. Mori 2005 analisa esta reconciliação
à luz do interesse que a época helenística tinha no conceito de utilidade moral da
épica.
23 E não será a ἀμηχανίη deste herói uma consequência de serem valores heroicos
a humildade e a tolerância? Jackson 1993: 30-31 defende que ἀμήχανος é uma variante
do homérico πολύμητις aplicado a Ulisses.
24 Chantraine 1999: 793 traduz o adjetivo por “destructeur, mortel” e considera-o
epíteto do destino, da morte e do fogo.
25 Depois da violenta reação de Eetes à explicação de Argo sobre as pretensões
dos jovens gregos recém-chegados, Télamon sente tal indignação que quase profere
palavras deletérias, sendo travado por Jasão: o coração do Eácida intumescia sobre-
236
caracteriza os perigos da missão26, a consternação sentida no seio do
grupo 27 e ainda o caráter do rei da Cólquida (2.890, 1202; 3.614) 28.
Aquilo que é destrutivo constitui um risco que o herói deve evitar,
se puder, daí que Jasão impeça Télamon de ter uma iniciativa assim
qualificada. A atitude heroica é, portanto, conciliadora e construtiva:
não se alcança a conciliação a partir daquilo que é deletério.
Todos estes lemas, usados sempre em dativo instrumental para
introduzir o discurso, descrevem pela negativa o novo mundo heroi-
co. Assim, este caracteriza-se por ser propício (não funesto, κακός)
e por se alcançar com uma atitude construtiva (não deletéria, ὀλοός),
humilde (não arrogante, ὑπερφίαλος) e tolerante (não insustentável,
ἄσχετος).
Na Odisseia os epítetos ὑπερφίαλος e κακός são dos mencionados
os únicos que se enquadram em contexto discursivo, qualificando a
forma de falar dos pretendentes (ὑπερφίαλοι μῦθοι, 4.774; ἔπεα κακά,
24.161), os quais são, como as provas e as dificuldades que Jasão
enfrenta em Ea, um dos obstáculos do herói, definindo, deste modo,
também, o mundo não heroico que tem de ser dominado.
Têm conotação positiva os adjetivos ousado e brando, que qua-
lificam o discurso dos Argonautas entre si. O primeiro 29 é epíteto
das palavras do grupo que tenta animar Jasão, aparentemente de-
salentado com a empresa assumida (2.621), e do discurso de Peleu
maneira/ lá do fundo. Bem no seu íntimo ansiava por lhe dizer/ deletérias palavras
frente a frente, mas o Esónida deteve-o (3.382-4). Repare-se que é de novo Jasão quem
impede o Argonauta de agir contra o seu estatuto heroico, contribuindo, uma vez
mais, para o percurso de aprendizagem do companheiro.
26 Os perigos da missão qualificados como deletérios são: a passagem pelas
Simplégades (2.420), as provas em Ea (3.408, 906, 1028, 1049, 1338; 4.1033), o dragão
insone que vigia o velo (4.155), a tempestade que desvia a embarcação para a Líbia
(4.1232), a noite sem luz ao largo de Creta (4.1696).
27 Esta consternação é desencadeada, por exemplo, pela morte de Tífis, o piloto
da nau (2.858), e pelo medo da sentença de Zeus (4.584).
28 Este adjetivo está particularmente associado ao assassinato de Absirto, qualifican-
do o sangue do morto (4.559) e o medo dos Argonautas depois de terem perpetrado
este assassínio (4.584, 669).
29 O adjetivo θαρσαλέος, tal como κερδαλέος e σμερδαλέος que comentaremos
a seguir, pertence ao que Chantraine 1999: 1026 qualifica como adjetivos épicos e
jónicos em -αλέος.
237
que se apercebe do desânimo dos companheiros depois de ouvirem
Argo explicar quão cruel era Eetes e que ser aterrador guardava o
velo (2.1218). No primeiro contexto a ousadia é a resposta às pala-
vras brandas de Jasão a Tífis (2.639), ainda em sobressalto por ter
acabado de transpor as rochas do Bósforo; explica o narrador que
o herói estava a experimentar os companheiros, ao mostrar arre-
pendimento de ter aceitado a missão. Neste caso, como noutros que
analisaremos, a brandura é uma estratégia de atuação que tem como
objetivo o interesse comum.
Nos dois passos referidos vemos que a finalidade do discurso
ousado é dissipar o desânimo, confirmando-se que o desalento não é
um estado de espírito definidor dos heróis alexandrinos. Aliás, atuar
com ousadia é o que se espera: Fineu aconselha-o a Jasão (2.420-1),
que, no episódio mencionado em que as brandas palavras exprimem
um falso desalento, reconhece que a sua ousadia cresceria com o
incentivo do grupo (2.641); e o mesmo radical do adjetivo, ou seja,
o radical θαρσ- surge no advérbio para descrever uma das manobras
do herói no momento da realização das provas em Ea (3.137030).
O adjetivo brando, ao contrário de ousado, não qualifica apenas
as palavras dos Argonautas entre si, qualifica também o discurso
destes no contacto com as outras comunidades 31 . Assim, quando
perante Eetes Jasão evita as palavras deletérias de Télamon, a sua
opção é a brandura (3.385), estratégia que, como Hera explica a
30 Neste verso Hunter 1989: 250 interpreta o adjetivo como “confident [in the
outcome of his trick]”. Vian 2009: 149 considera que o termo provoca um efeito de
surpresa e define a manobra como uma prova de audácia, que consiste em Jasão se
esconder e ficar imóvel durante alguns minutos. Achamos, contudo, preferível uma
tradução que consiga manter a relação com os outros contextos, de modo a tornar
mais clara esta subtil linha de leitura.
31 Existem outros contextos, de que não nos ocuparemos, em que o epíteto bran-
do está associado a situações de intimidade familiar ou à relação entre o divino e o
humano. Referimo-nos aos episódios em que Jasão se despede da mãe (1.294) e em
que se encontra com Medeia (3.1102). O objetivo é sempre o de conquistar a simpatia
do interlocutor: seja a mãe que se inquieta com a partida do filho, seja a princesa
que Jasão quer seduzir. No âmbito do contacto dos deuses com os homens, brando
qualifica o discurso dos seguintes seres divinos com os Argonautas: as deusas tutelares
da Líbia (4.1317), Egle (4.1431) e a ninfa que aparece em sonhos a Eufemo (4.1740).
238
Atena, não resultaria com o rei colco (3.14-5). Jasão também recorre
a este tipo de abordagem com Medeia, quando sente a indigna-
ção da jovem, receosa de que ele a entregasse ao irmão Absirto
(4.394) 32.
Mas, para entender a dimensão política deste conceito, além dos
contextos discursivos 33 do adjetivo, há que refletir sobre todas as
resoluções morfológicas do radical μειλιχ- que remetam para a forma
como o homem se dirige aos outros 34. Nestas circunstâncias estão
o advérbio μειλιχίως (3.319) 35 e o verbo μειλίσσω com a aceção de
239
falar com brandura (1.650; 4.416, 1012, 1026)36, além do substantivo
μειλιχίη (2.1279; 3.586) 37.
Etálides, porta-voz de Jasão, usara este tipo de abordagem com
as lémnias (1.650) e Argo também percebe a conveniência de usar
brandura com Eetes, fazendo uso dela (3.319 38). Medeia fala assim
aos Argonautas em Drépane, pedindo que não a entregassem aos
colcos, que tinham ido em sua perseguição até ao reino de Alcínoo
para a resgatar (4.1012) 39. A colca volta a provar a sua visão política
quando propõe à rainha de Drépane esta forma de abordagem como
a ideal para persuadir Alcínoo a protegê-la (4.1026). Os próprios
colcos, com a confirmação do casamento entre Jasão e Medeia, ao
desistirem da missão, pedem com brandura a Alcínoo que os deixe
ficar como seus aliados (4.1210).
O adjetivo θαρσαλέος está ausente do contexto discursivo os
Poemas Homéricos, mas caracteriza o herói, sobretudo na Ilíada
(e.g. 5.602; 10.223; 19.169). A brandura como epíteto do discurso
surge na Odisseia, quando Ulisses quer dissipar o desespero e o
medo dos companheiros e quando ensina a Telémaco que esta é a
melhor forma de se dirigir a alguém (16.279). Assim, por exemplo,
na ilha de Circe, fala brandamente aos companheiros quando lhes
entrega um veado para saciarem a fome (10.173); e, perto de Cila e
240
Caríbdis, fala-lhes de novo brandamente para que aqueles, apesar
do sobressalto, voltem a pegar nos remos (12.207).
Medeia mostra conhecer as vantagens desta atitude, quando
projeta adotá-la por dolo com Absirto (4.416). Também Ulisses na
Odisseia recorre dolosamente a uma forma branda de falar: é assim
que diz ao Ciclope que o seu nome é Ninguém (9.363). E também
Penélope usa a brandura com astúcia no trato com os pretenden-
tes, de modo a conquistar-lhes oferendas (18.283). Mas o recurso
a uma ardilosa brandura apresenta na Argonáutica uma diferença
linguística: Medeia planeia falar a Absirto dessa forma usando a voz
ativa 40, enquanto as restantes ocorrências do verbo μειλίσσω com
a aceção de falar com brandura 41 estão na voz média 42. A opção
pela voz ativa anula o interesse do sujeito 43, o que talvez seja uma
forma subtil de não ver Medeia como o único agente do assassínio
de Absirto, já que a morte deste deve ser considerada do interesse do
grupo 44.
Como estratégia política a brandura resulta da perceção de como
é vantajoso reagir numa determinada situação 45, ou seja, do que é
40 O cuidado com a estrutura poética leva a que na aceção do verbo como apa-
ziguar também haja uma voz ativa (4.708).
41 Discordamos de Mori 2008: 121, que considera que os termos com o radical
μειλιχ- sejam sempre “overly suggestive of deceit”. A atitude dolosa parece-nos existir
apenas no contexto com a voz ativa.
42 Esta questão não se coloca em Od. 9.363 ou 18.283, que apresentam o dativo
instrumental explicativo da forma como as personagens falam. Na Odisseia o lema
μειλίσσω também está na voz média (3.96; 4.326).
43 Estamos claramente a falar, nos outros seis contextos, de uma média, que
Rodríguez Alfageme 2017: 222 designa como média de interesse. Mesmo construído
com a completiva substantiva, a voz do verbo é a média.
44 Cf. Jackson 1993: 29ss. Lembremos que o grupo tinha ouvido as palavras de
Peleu, que os persuadira da vantagem de eliminar um chefe: lançar entre os homens por
ele liderados o desânimo e o medo (4.497-500). O facto de os Argonautas esperarem
um sinal de Medeia para avançar sobre os colcos (4.482-487) permite perceber que
todos são coniventes com o crime. Aliás, Zeus castiga-os a todos por este assassínio
sem poupar nenhum deles; cf. Sousa 2013a.
45 Chantraine 1999: 519 traduz este adjetivo proveniente de κέρδος (ganho, lucro,
vantagem) por “que cherche à gagner” ou “avantageux”. Para Vian 2009: 33 o sentido
habitual do adjetivo é “rusé”, mas neste passo o filólogo defende a sua tradução por
“habile” ou “avisé”. Pensamos que a ideia de conveniência se ajusta melhor ao que é
“vantajoso” ou ao “que procura lucrar”.
241
conveniente. Com efeito, Jasão, depois de falar a Eetes com pala-
vras brandas, volta a dirigir-se-lhe, no mesmo encontro ainda, com
palavras qualificadas como κερδαλέα, com as quais lhe explica que
aceitava as provas impostas (3.426). O uso deste lema surge apenas
neste passo da Argonáutica 46. Em nossa opinião, a complementari-
dade dos conceitos advém da Odisseia, na qual os lemas κερδαλέος e
μειλίχιος qualificam o modo de Ulisses falar com Nausícaa (6.148)47.
A brandura discursiva implica, portanto, uma boa perceção da con-
veniência de evitar uma reação hostil por parte do interlocutor ou
pelo menos de não a agravar.
No poema alexandrino o oposto de palavras brandas é palavras
medonhas, σμερδαλέα ἔπεα48, usado uma única vez para caracterizar
o modo como o rei da Cólquida fala com Jasão (3.433), depois de
este lhe dirigir as já mencionadas palavras brandas (3.385) e con-
venientes (3.426).
A brandura no diálogo – seja entre os Argonautas seja entre estes
e outros – é a apologia da palavra que substitui, desta forma, o con-
fronto pelas armas. Esta oposição é clara num passo em que o radical
μειλιχ- aparece no poema numa construção sintaticamente particular
e sem equivalência no modelo homérico. No passo o adjetivo μείλιχος
tem valor adverbial 49 e serve, juntamente com o verbo ἀντιάω, para
242
descrever o modo como Cízico acolhe os Argonautas (1.971). O
contexto explica que o rei poderia receber os recém-chegados com
guerra ou com brandura, ficando assim evidente que estas são duas
possibilidades antagónicas no contacto com os povos. Mais adiante
na viagem, Anceu coloca aos companheiros a questão de ponde-
rarem se seria melhor abordar Eetes com diplomacia ou optar por
uma arremetida diferente (2.1279-80) 50. Exprime a primeira ideia o
termo μειλιχίη e cabe a ὁρμή o sentido oposto 51. A necessidade de
escolher entre uma e outra significa que as estratégias se excluem 52.
No segundo e último passo em que o substantivo μειλιχίη apa-
rece cria-se uma tradição ancestral, em que Frixo sobressai como
o mais dotado de μειλιχίη e de θεούδεια (3.586). A associação dos
dois conceitos compreende-se melhor se tivermos presente a ou-
tra conotação do verbo μειλίσσομαι [usar a voz média]: “apaziguar
os deuses”. Embora não justifique, o narrador apresenta Frixo em
50 Estas palavras de Anceu são comentadas por Vian 1973: 101-2. O estudioso
explica a leitura de Fränkel, que defende a existência de um verso depois do 1278,
em que o Argonauta perguntaria a Jasão ἀμφ’ ὅρμῳ, pois como piloto da nau não lhe
caberia colocar questões sobre a estratégia que o chefe adotaria com o soberano de Ea.
No entanto, Vian defende que não há qualquer incongruência: “Bref, les v. 1271-1285
ne comportent aucune absurdité; mais, bien que seules soient rapportées les paroles
d’Ancaios, c’est à un véritable dialogue en raccourci qu’ils nous font assister: Apollonios
de Rhodes a rarement été plus concis” (1973: 102). Em nossa opinião, além de conciso,
o passo prova que os Argonautas exprimiam as suas opiniões ao líder do grupo.
51 Os Scholia uetera in Apollonii Argonauticam explicam esta forma de testar
(ἀποπειραθείημεν) Eetes como uma abordagem suave (πράως προσφερόμενοι). Por
sua vez, o substantivo ὁρμή tem na Ilíada a aceção de esforço feito em combate (e.g.
4.466) e arremetida de um guerreiro (e.g. 9.355).
52 Na Ilíada brandura e guerra não são incompatíveis: Agamémnon usa a expressão
brandura de guerra, μειλιχίῃ πολέμοιο (15.741); e Andrómaca, depois da morte do mari-
do, elogia-o dizendo que ele nunca fora brando na aflitiva batalha (24.739). Macleod
1982: 152 considera que a expressão οὐ μείλιχος equivale a ἀμείλιχος do verso 734
deste mesmo canto, para a qual remete. Parece-nos, todavia, que assim não é, porque
os três contextos do adjetivo com o alfa privativo na Ilíada (na Argonáutica como
na Odisseia nem ocorre) são marcadamente negativos pela entidade que qualificam:
Hades, apresentado também como indomável, ἀδάμαστος (9.158), a Erínia (9.572) e
um senhor a lidar com um escravo (24.734). Quando se diz que Pátroclo se distingue
como μείλιχος no trato para com todos os mortais, o sentido do epíteto não é bélico:
Menelau apresenta esta qualidade de Pátroclo como reflexo da sua sabedoria (17.671)
e a cativa Briseida como forma de recordar as suas qualidades (19.300). Aliás, o uso
de palavras brandas por Pisandro e Hipóloco, que esperam que Agamémnon lhes
poupe a vida (11.137), prova que, embora seja possível usar de brandura na guerra,
não se espera que o herói homérico atue desse modo.
243
3.586 como aquele que apazigua os deuses e concilia os homens,
temente aos primeiros (θεουδής) e diplomata nas relações com os
segundos (μειλίχιος). Ora, estando esta personagem na origem da
missão dos Argonautas, os jovens que partem para resgatar o velo
do carneiro de Frixo devem ser detentores das mesmas qualidades.
E, de facto, os Argonautas apaziguam Hefesto e Cípris (1.859-60),
Apolo (2.692), a alma de Esténelo (2.923), Hécate (3.1035) e falam
brandamente com Hipsípile (1.650), com Eetes (3.385) e com Medeia
em Drépane (4.394). Por sua vez, o epíteto θεουδής, que designa
a qualidade daquele que possui θεούδεια, surge como qualificativo
de Ídmon (2.849), dos Argonautas (2.1180) e de Alcínoo (4.1123 53).
Na Odisseia, este adjetivo, para além de integrar um verso formular
(6.121; 8.576; 9.176; 13.202), encontra-se em dois passos que podem
ter sugerido a Apolónio a inserção do conceito no âmbito político:
Ulisses compara Penélope ao soberano temente aos deuses (19.109)
e Euricleia atribui ao rei de Ítaca esta qualidade (19.364).
Em suma, a Argonáutica apresenta aos governantes ptolemaicos
uma história épica com vários tipos de liderança: Jasão, o chefe de
uma arriscada expedição que, ao longo da viagem, atua com ousadia
(θαρσαλέως), avalia as situações, identificando um ultraje (κύδος)
e sente necessidade de falar com palavras convenientes (κερδαλέα
ἔπεα), sendo sempre humilde (não arrogante, ὑπερφίαλος), tolerante
(não insustentável, ἄσχετος), diplomático (μειλίχιος) e temente aos
deuses (θεουδής); Alcínoo, soberano temente aos deuses e diplomá-
tico na forma como lida com os colcos e com os Argonautas; Eetes,
arrogante, deletério, antidiplomático pelo uso que faz de palavras
medonhas e sacrílego pela violação das sagradas leis de hospitalidade.
53 Hunter 2015: 234 explica o uso do adjetivo neste verso remetendo para o
verso 1100 do livro IV, em que Alcínoo exprime o seu receio de ir contra a justiça
certeira de Zeus, Διὸς δείδοικα δίκην ἰθεῖαν ἀτίσσαι. Aliás, o radical do verbo δείδω
presente na fala do rei entra na composição do adjetivo θεουδής (Chantraine 1999:
256). Alcínoo está a desempenhar o papel dos reis justiceiros referidos em Hes. Th.
86-87 (Hunter 2005: 232) e mencionados no pacto entre colcos e mínias (AR 4.347).
244
Quererá Apolónio com este confronto de carateres suscitar a
reflexão dos Ptolemeus que, à maneira egípcia, se deificavam e, ao
mesmo tempo, salvaguardavam a sua cultura, que era grega? Não
será este poema uma proposta de reflexão sobre o modo de gerir as
tensões de um império tão vasto, ambicioso e multicultural como o
egípcio? O contacto com culturas distintas, línguas diferentes, perigos
naturais a que cada elemento do grupo está sujeito, pondo à prova
a sua resistência e fazendo emergir incertezas e dúvidas próprias da
natureza humana, era o desafio constante que, em Alexandria, enfren-
tavam todos aqueles que constituíam os pilares culturais e políticos
do reino ptolemaico. Apesar de este novo herói ser tão diferente do
homérico, Apolónio, ao evocar o mundo homérico como referente
poético, faz assentar no legado cultural helénico mais antigo, ao qual
o Egito estava miticamente ligado54, os alicerces do Novo Mundo, que
deveria ter deixado à Humanidade um património cultural mundial
de valor inestimável: o Mundo Alexandrino.
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54 Alexandria era, no século III a.C., cultural e historicamente, uma cidade egípcia
e grega: na Odisseia o próprio Menelau explica a Telémaco que andou errante pelo
Egito, no regresso a casa, depois da guerra (4.83), e, na versão contada por Heródoto
(2.112-20), Proteu, rei do Egito, retém Helena no seu reino, não a deixando partir
com Páris para Troia. Sobre a ligação do Egito ao passado grego da Guerra de Troia e
sobretudo às figuras mitológicas de Helena e Menelau, veja-se Stephens 2010: 59-61.
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247
(Página deixada propositadamente em branco)
A dívida de A Feiticeira de Teócrito
a o f r a g m e n t o PSI 1 2 1 4 d e S ó f r o n
T h e D e b t o f T h e o c r i t u s ’ T h e S o rc e r e r e s s
T o S o p h r o n ’ s PSI 1 2 1 4
Cláudia Cravo
Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-4691-3070
claudiacravo@hotmail.com
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_11
Abstract: Scholia testify Sophron’s influence on Theocritus, especially on
his Idyll 2, The Sorceress. Although we have no reason to doubt them,
even because it is very likely that Theocritus would have wanted to
pay tribute to a writer from his own land, the fragments that came to
us from the 5th century BC mimographer do not allow us, however,
to recognize with certainty the precise relationship between the two
Syracusan authors. First published in 1933, the fragment of Sophron
known as PSI 1214 contains a scene of magic, a fact that induced
most critics to believe it was the text on which the poem of Theocri-
tus was based. It is our purpose to gather the concrete testimonies
that involve this problem and expose the uncertainties that prevent
us from affirming that the nineteen lines of the Oxyrynchus papyrus
(PSI 1214) belong, in fact, to the mime that served as a model for
the Alexandrian poet.
1 Para o que nos resta da obra de Sófron, veja-se a edição de Kassel & Austin
2001, vol. I: 187-253.
2 O artigo não aparece no texto de Ateneu, mas este mesmo título é citado com
artigo por Apolónio Díscolo (Dos advérbios, 186 Schneider & Uhlig), precisamente
como exemplo da forma dórica ταί.
250
φαντι ἐξελᾶν, o autor siracusano teria escrito: ὑποκατώρυκται δὲ
ἐν κυαθίδι τρικτὺς ἀλεξιφαρμάκων. A tradução mais imediata do
título do mimo será ‘As mulheres que dizem expulsar a deusa’,
com τὰν θεόν a servir de complemento direto do verbo, mas a
verdade é que, sem conhecermos o conteúdo exato da obra em
causa, esta é tão-somente uma das interpretações possíveis da
frase. Vários helenistas avançaram com propostas diferentes3, que
passam, algumas delas, pelo entendimento de τὰν θεόν como sujei-
to de ἐξελᾶν; mas também por outras significações admitidas por
este mesmo verbo, cujo sentido não é preciso; ou até pela iden-
tificação da deusa designada por τὰν θεόν com entidades muito
diversas.
Apesar de todas as incertezas que rodeiam o título ταὶ γυναῖκες
αἳ τὰν θεόν φαντι ἐξελᾶν, o fragmento a que Ateneu o associa sugere
que o conteúdo do mimo assim denominado estaria relacionado com
temas mágicos. Não é, por isso, de estranhar que, quando, nos anos
vinte do século passado, se descobriu um passo de Sófron com a
descrição de uma cerimónia de magia, a tendência fosse imediata-
mente para associá-la ao título conhecido. Este fragmento, que nos
chega de um papiro de Oxirrinco, foi publicado pela primeira vez,
alguns anos depois, por Norsa e Vitelli 4. Porque é, de longe, o mais
importante fragmento de Sófron e porque os especialistas discutem
há muito o seu interesse como modelo de Teócrito, impõe-se que o
citemos aqui 5:
251
τὰν τράπεζαν κάτθετε
ὥσπερ ἔχει· λάζεσθε δὲ
ἁλὸς χονδρὸν ἐς τὰν χῆρα
καὶ δάφναν πὰρ τὸ ὦας.
5 ποτιβάντες νυν πὸτ τὰν
ἱστίαν θωκεῖτε. δός μοι τὺ
τὤμφακες· φέρ’ ὧ τὰν σκύλακα.
πεῖ γὰρ ἁ ἄσφαλτος; : οὕτα.:
ἔχε καὶ τὸ δάιδιον καὶ τὸν
10 λιβανωτόν. ἄγετε δὴ
πεπτάσθων μοι ταὶ θύραι
πᾶσαι· ὑμὲς δὲ ἐνταῦθα
ὁρῆτε καὶ τὸν δαελὸν
σβῆτε ὥσπερ ἔχει. εὐκαμίαν
15 νυν παρέχεσθε ἇς κ’ ἐγὼν
πὸτ τάνδε πυκταλεύσω.
πότνια, δεί[πν]ου μέν τυ κα[ὶ]
[ξ]ενίων ἀμεμφέων ἀντά[
]ν . . ν· καὶ κα αμῶν δέπ.[
252
Sófron 8. É de realçar que as interpretações do dito fragmento são
feitas, na maioria das vezes, com o pressuposto de que ele pertence,
de facto, ao mimo de que conhecemos o título. Porque assentam
numa especulação, teremos de aceitá-las sempre com grandes
reservas.
Não pretendendo repetir as ideias formuladas pelos diversos estu-
diosos que propuseram interpretações pormenorizadas do ritual aqui
apresentado 9, convirá, no entanto, tecermos algumas considerações
gerais que ressaltam da leitura do fragmento em questão.
Pelo que nos é dado inferir, existe uma figura principal que orienta
uma ação mágica e que, nesse papel, dá instruções a um número
impreciso de ajudantes e ordens diretas a alguém em particular (δός
… φέρ’ … ἔχε, linhas 6-9), figura que, ao que parece, pronuncia uma
única palavra na linha 8 (οὕτα)10. Não nos é permitido divisar qual o
sexo dos vários participantes na cerimónia, mas o uso do particípio
ποτιβάντες (linha 5), no masculino do plural, sugere o envolvimento
de homens 11. Percebemos que todo o ritual tem lugar no interior
de uma casa cujas portas, num primeiro momento, se encontravam
fechadas e que depois vão ser abertas (πεπτάσθων μοι ταὶ θύραι πᾶσαι,
linhas 11-12). A referência à tocha (τὸ δάιδιον, linha 9) indica que
a ação se passa de noite. É-nos ainda possível perceber que o rito
envolve o sacrifício de uma cadela (τὰν σκύλακα, linha 7), o que
leva a crer que a πότνια invocada na linha 17 seja Hécate, a deusa a
quem aquele animal se encontrava associado12. No seguimento deste
8 Lavagnini 1935a.
9Vide ainda a análise posterior de Tupet 1976: 147-149 e, mais recentemente, as
de Hordern 2002: 167-169 e de Verdejo Manchado 2010.
10 Uma vez que não podemos ter certezas quanto à pontuação do texto, parece-
-nos também admissível a hipótese de todo o fragmento ser um monólogo e a palavra
οὕτα ter sido proferida pela pessoa que dirige as operações, como resposta à sua
própria pergunta.
11 Sobre a muito debatida questão de o particípio ativo masculino plural se poder
referir a sujeitos femininos, vide bibliografia citada por Fraenkel (1962, 2ª ed., vol.
2), no seu comentário ao v.565 do Agamémnon de Ésquilo.
12 Como é sabido, o cão aparece, desde sempre, associado a Hécate: este ani-
mal pressentia e anunciava, com uivos e latidos, a chegada da deusa, de noite, às
253
raciocínio, é verosímil que δεί[πν]ου (linha 17) se esteja a referir ao
δεῖπνον Ἑκάτης que normalmente se colocava nas encruzilhadas para
apaziguar a deusa e mantê-la à distância 13. Um escólio a Lícofron 14
diz que Sófron, nos seus mimos, aludiu ao sacrifício de cães a Hécate,
facto que vem também corroborar estas suposições.
Com a descoberta deste último fragmento de Sófron, a maior par-
te da crítica acreditou estar perante o texto que servira de base ao
Idílio A Feiticeira, mais concretamente à cena de magia que ocupa
todo o início do poema 15.
A dependência de Teócrito relativamente ao mimógrafo siracusano
do séc. V a.C. encontra-se atestada nos comentários antigos ao Idílio
2. Um escoliasta refere, no argumento do poema 16, que o tema da
magia provém dos mimos de Sófron: τὴν δὲ τῶν φαρμάκων ὑπόθεσιν
ἐκ τῶν Σώφρονος Mίμων μεταφέρει. Do argumento chega-nos uma
outra informação mais específica: τὴν δὲ Θεστυλίδα ὁ Θεόκριτος
ἀπειροκάλως ἐκ τῶν Σώφρονος μετήνεγκε Mίμων17. Embora a crítica
contida no advérbio ἀπειροκάλως não seja facilmente inteligível 18,
uma vez que nada há na Téstilis de Teócrito que possa ser visto como
encruzilhadas (vide, e.g., Virgílio, Eneida, 6.257-258); quando Hécate deixava as suas
moradas subterrâneas para vir presidir a cerimónias mágicas, trazia consigo uma
matilha barulhenta de cães infernais (vide, e.g., Apolónio de Rodes 3.1216-1217); a
própria deusa aparecia frequentemente aos feiticeiros sob a forma de uma cadela
(vide, e.g., Luciano, O Mentiroso, 14). Muitos são também os autores que referem
o sacrifício de cães a Hécate (vide, e.g., Plutarco, Moralia, 280c; Pausânias 3.14.9;
Ovídio, Fastos, 1.389).
13 Para outras referências ao δεῖπνον Ἑκάτης, vide, e.g., Plutarco, Moralia 708f-709a
ou Luciano, Diálogos dos Mortos, 1.1; 22.3.
14 Sch. Lyc. 77 Scheer.
15 Para os versos do Idílio 2 de Teócrito que contêm a cena de magia (vv.1-63),
vide Gow 1952, 2ª ed., vol.I: 16-20.
16 Sch. KEA. Os escólios de Teócrito são citados pelos manuscritos medievais
que os conservam.
17 Sch. KEAG.
18 Os estudiosos têm tentado explicar esta apreciação pouco elogiosa da Téstilis
de Teócrito. A opinião mais aceite é a de que o escoliasta se estaria a referir ao facto
de a escrava de Simeta ser uma personagem muda, quando em Sófron teria certa-
mente existido diálogo entre as intervenientes nos procedimentos mágicos. A este
respeito, o comentário alvitrado por Gow (1952, 2ª ed., vol.II: 35, n.1) parece-nos o
mais sugestivo: “(…) the point might merely be the borrowing of the name from a
character in Sophron totally dissimilar”.
254
ἀπειρόκαλον, o escoliasta faz-nos saber que a personagem teocritiana
de Téstilis deriva dos mimos de Sófron.
Com base neste comentário antigo, é comum os críticos modernos
afirmarem que Teócrito foi buscar a Sófron o nome da escrava de
Simeta. Esta é, de facto, a interpretação mais atrativa das palavras do
escoliasta. Não será, no entanto, de excluir um outro entendimento
da frase, que passa por admitirmos, como fez Séchan19 , que τὴν
Θεστυλίδα pode significar ‘a sua escrava’. Nesse caso, a dívida de
Teócrito a Sófron teria consistido apenas no uso de uma figura que
auxilia a protagonista na execução dos ritos mágicos.
Não temos razões para duvidar das palavras dos comentadores
antigos, até porque se nos afigura muito plausível que Teócrito tives-
se querido render homenagem a um escritor seu conterrâneo, mas
a verdade é que também não podemos assegurar que as 19 linhas
do papiro de Oxirrinco pertencem, de facto, ao mimo que serviu de
modelo ao poeta alexandrino. Uma leitura apressada do fragmento
em causa poderia induzir-nos a acreditar que a sua relação com o
Idílio 2 é muito estreita, já que nas duas obras encontramos menção
ao mesmo animal (cão) e – ao que parece – à mesma deusa (Hécate),
bem como ao uso do louro e à existência de figuras que prestam
auxílio na realização dos ritos, isto só para citarmos os aspetos mais
evidentes. No entanto, uma análise mais cuidada dos dois textos
revela-nos inúmeras e substanciais divergências, que passam, desde
logo, pela natureza e propósito dos rituais evocados, mas também
pela escolha e pela utilização dos vários ingredientes ao longo das
duas operações mágicas. Se em Sófron são descritas as premissas
de um sacrifício verosimilmente purificatório 20, numa cena em que
se acredita existir um exorcismo de Hécate 21, em Teócrito, por seu
255
turno, assistimos a uma ação mágica de teor amoroso, que passa
obviamente por ritos de encantamento muito diferentes, e onde
Hécate é apenas invocada. O louro aparece nas duas obras, mas em
Sófron é colocado nas orelhas dos intervenientes na cerimónia e
no Idílio 2 é feito queimar por Simeta. Todas as outras substâncias
que são referidas no texto de Sófron (o sal, o betume, a tocha, o
incenso) estão ausentes da composição teocritiana. No fragmento do
papiro de Oxirrinco imola-se uma cadela, enquanto que em Teócrito
apenas se alude ao cão como o animal que pressente e anuncia a
presença de Hécate. Mas a diferença mais evidente entre os dois
textos parece‑nos mesmo ser o facto de o ritual descrito por Sófron
incluir vários participantes, quando no poema alexandrino todos os
procedimentos mágicos são levados a cabo apenas por duas figuras.
Resumidas que estão as questões mais importantes que envolvem
a problemática da dívida de Teócrito a Sófron, será agora a altura
de fazermos um ponto da situação. Antes de mais nada, parece-nos
prudente assumir que nos movemos num terreno muito complexo,
onde há lugar para pouco mais do que especulações. Valerá talvez a
pena lembrar os únicos elementos realmente seguros de que dispo-
mos: os escólios ao Idílio 2 que nos dizem que Teócrito se inspirou
nos mimos de Sófron e que tomou deste último a figura de Téstilis;
e o título ταὶ γυναῖκες αἳ τὰν θεόν φαντι ἐξελᾶν, cujo sentido está
envolto em incertezas e que, por conseguinte, não pode ser ligado
com segurança a nenhum fragmento do autor, exceto àquele que
é citado por Ateneu. Para além destas informações, o muito que a
crítica tem tentado adiantar sobre o assunto que nos detém nunca
passa de meramente conjetural.
Teócrito conhecia, com toda a certeza, as criações literárias do seu
conterrâneo, que eram tão célebres que até Platão as admirava22.
256
Nesta conjuntura, parece-nos quase inevitável que, ao propor-se es-
crever uma composição sobre o tema da magia, o poeta alexandrino
tivesse sofrido influências do mimo (ou mimos) que o seu antecessor
dedicara ao assunto. O que não sabemos é se a obra que serviu de
inspiração a Teócrito terá sido aquela a que pertence o fragmento de
Oxirrinco (conhecido por PSI 1214) ou uma outra, entretanto perdida,
já que nada nos impede de supor que Sófron tenha dedicado mais
do que um dos seus trabalhos a matérias mágicas.
Considerando, no entanto, a hipótese de o modelo do Idílio 2 ter
sido, de facto, o mimo publicado em 1933, há que reconhecer que a
dívida de Teócrito ao seu conterrâneo foi muito pequena. Para além
da forma de expressão, a traduzir na perfeição o ritmo acelerado de
uma ação decalcada da vida real, o poeta helenístico teria colhido
no mimo de Sófron tão-somente a ideia geral de uma cerimónia de
magia assistida por uma escrava. Estaríamos, pois, diante de um
caso de imitação muito livre, com Teócrito a suplantar grandemente
o seu antecessor pela originalidade da sua inspiração lírica. Como
bem realçou Bignone 23 , ao pretender comparar as duas criações
literárias que nos detêm, “il carattere lirico amoroso di questo mimo
di Teocrito non deriva da Sofrone”.
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258
E c o s d a C o m é d i a N o va e m F l áv i o J o s e f o
( AJ 1 8 . 6 5 - 8 0 ) *1
E c h o e s o f t h e N e w C o m e dy i n F l av i u s J o s e p h u s
( AJ 1 8 . 6 5 - 8 0 )
*1 Este estudo é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para
a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito dos projetos CH-ULisboa: UIDB/04311/2020
e UIDP/04311/2020; CECH-UC: UIDB/00196/2020; CEC‑ULisboa: UIDB/00019/2020
e UIDP/00019/2020.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_12
passo em análise é a Comédia Nova ática, nomeadamente a obra de
Menandro.
Abstract: this essay analyses the passage relating to the matron Paulina,
in AJ 18.65-80, evaluating its historiographic potentialities, both as
a possible piece of fiction in the work of the historian, and as an
example of the reception of Greek-Hellenistic influences in Josephus’
texts. We conclude that, beyond others, one of the main influences
in the passage under analysis is the Athenian New Comedy, namely
the work of Menander.
260
plo de Ísis que tiveram consequências dramáticas para os adoradores
dessa deusa egípcia 1. Conta Josefo que Paulina, uma bela matrona
romana de elevado estatuto jurídico-económico, eventualmente uma
patrícia, estava casada com um Saturnino, homem de estatuto con-
dicente com o dela. No entanto, um outro romano, de nome Décio
Mundo, um eques, ter-se-ia enamorado de Paulina. Tratando-se de
uma mulher casada e de nível sociojurídico superior, Décio Mundo
percebeu que seriam poucas ou nulas as possibilidades que teria
para conquistar Paulina. Josefo esclarece que o estatuto moral da
matrona estava mesmo acima de qualquer forma de corte que Décio
Mundo fizesse à mulher. De acordo com o que diz o historiador,
Décio Mundo tentou seduzir Paulina enviando‑lhe vários presentes.
No entanto, a matrona resistiu sempre a qualquer forma de adulação
ou cortejo. Teria inclusive resistido a uma oferta de duzentas mil
dracmas áticas para se deitar com o cavaleiro (18.65-67).
Décio Mundo estaria obcecado por Paulina, pois ao perceber que as
suas tentativas de sedução eram infrutíferas, teria acabado por entrar
numa forma de depressão, deixando de ingerir qualquer alimento,
o que se manifestou fisicamente no rapaz. No entanto, na casa de
Décio Mundo morava também uma liberta do pai dele, de nome Ida2,
perita em todo o tipo de maleitas e que não se conformava com a
depressão do jovem nem com a decisão que ele tomara de acabar
com a vida por inanição. Com efeito, Josefo sugere que Décio Mundo
seria um homem jovem (chama‑lhe inclusive neaniskos, 18.71), pois
a liberta passou a acompanhá‑lo e a dar-lhe ânimo, para que desse
modo não sucumbisse à decisão de suicídio que parecera tomar.
O comportamento da liberta sugere que a mulher seria uma antiga
escrava da casa (talvez até uma ama), apegada ao jovem e que por
isso decide ajudá‑lo a conquistar e a obter o que deseja. Assim, além
261
do ânimo que lhe tentava transmitir, a liberta alimentava em Décio
Mundo a expectativa de conseguir de Paulina as relações íntimas
que com ela desejava manter. A troco de 50 mil dracmas de prata, a
liberta promete ao rapaz conseguir‑lhe o que ele deseja (18.68-70).
Flávio Josefo afirma que, uma vez na posse do dinheiro, a mulher
adotou um método diferente do que Décio Mundo usara até então.
A liberta sabia que Paulina era particularmente devota de Ísis, pelo
que decidiu usar essa informação para através dela engendrar um
estratagema que a levasse aos seus objetivos: conversou e subornou
com as 50 mil dracmas áticas os sacerdotes de Ísis (entregando-lhes
25 mil no ato do suborno e os restantes 25 mil depois, caso o plano
resultasse), que se deixaram corromper e decidiram alinhar num
esquema que acabaria por unir Paulina a Décio Mundo (18.71).
Nas Antiguidades, lemos que o mais velho dos sacerdotes de Ísis,
aliciado por tanto dinheiro, acorreu à casa da matrona, dizendo-lhe
que ia ali enviado pelo próprio Anúbis, pois o deus enamorara-se
dela e ansiava por vê-la e estar com ela. Paulina não só acredita na
mensagem que o sacerdote egípcio lhe transmite, como se envaidece
e vangloria junto das amigas por ter sido escolhida pelo deus. Também
por isso, a matrona decide contar ao próprio marido a, segundo ela,
honra de que havia sido alvo. Segundo o texto joséfico, Saturnino,
satisfeito e convicto da castidade da mulher, não se teria importado
que ela se “deitasse com o deus”. Paulina dirigiu-se então ao templo
de Ísis e, depois de ali tomar uma refeição, os sacerdotes fecharam
as portas e apagaram as lâmpadas dentro do edifício. Por sua vez, na
escuridão, Décio Mundo, que se havia escondido dentro do templo,
assomou junto de Paulina e deitou-se com ela. A matrona, pensan-
do que se tratava de Anúbis, não só se entregou ao homem, como
passou a noite a “servi-lo” (18.72-74).
Antes de amanhecer, Décio Mundo abandonou ainda incógnito
o templo de Ísis e Paulina dirigiu‑se para a sua casa, onde contou
tudo ao marido. Mais tarde, relatou o sucedido também às amigas,
voltando a jactar-se, agora pela noite de amor que passara com o
“próprio Anúbis”. Nestas, instalou-se um sentimento ambíguo de ma-
262
ravilhamento e incredulidade (por se tratar da história de um deus
que mantivera relações sexuais com uma mulher da intimidade delas,
dando assim consistência às narrativas que elas apenas conheciam
dos mitos) e de credulidade (por a sua interlocutora ter fama de
mulher séria, casta, digna e honesta e, por isso, dificilmente passar
por mentirosa) (18.75-76).
A narrativa de Josefo entra numa nova fase quando, três dias de-
pois, segundo o historiador, Décio Mundo encontra Paulina e, não
resistindo a engrandecer-se com o feito, ao mesmo tempo que trans-
pira um certo sentimento de vingança, lhe diz: “Paulina, não só me
poupaste duzentas mil dracmas, quando podias tê-las acrescentado ao
teu próprio património, como ainda me concedeste os serviços que
te solicitava. Como desdenhavas de Mundo, fiz-me chamar Anúbis,
pois não me importam os nomes, mas sim o prazer que resulta de
ações concretas” (18.77).
Só naquele momento, Paulina tomou consciência do engodo em
que caíra. Ultrajada, rasgou as vestes (em sinal de vergonha) e regres-
sou a casa, contando tudo ao marido e implorando-lhe por justiça.
Saturnino dirigiu-se então ao imperador, que na ocasião era Tibério,
e este decide inquirir os factos. Depois de obter dos sacerdotes de
Ísis uma confissão (provavelmente através de tortura), o imperador
condena-os à morte, bem como a Ida, ordenando a crucifixão de todos
os culpados. Mas o Príncipe foi além disso, decretando também a
destruição do templo de Ísis e determinando que a estátua da deusa
fosse lançada ao Tibre. Quanto a Mundo, Tibério ordena o seu exílio,
pois considerou que a paixão o havia cegado e levado a envolver-se
em planos tão sórdidos quanto aqueles. No final do relato, Josefo
classifica as ações dos sacerdotes de Ísis como hybris, salientando-se
desse modo a insolência que ali estava em causa (18.77-80).
A principal reflexão que este episódio nos suscita prende-se com a
sua verosimilhança histórica. Esta, por sua vez, relaciona-se, quanto a
nós, com uma outra questão: o carácter tópico que parece dar forma
ao episódio. A hipótese de a narrativa de Paulina dever mais à ficção
do que à História constrói-se sobre o seguinte: por um lado, o facto
263
de lermos no mesmo livro XVIII das Antiguidades, logo de seguida,
entre os capítulos 81 e 85, um outro episódio que parece duplicar
o que antes lemos sobre aquela matrona e Décio Mundo; por outro,
a existência de uma forte possibilidade, baseada nas evidências do-
cumentais, de a história dessas duas figuras ter sido construída com
recurso a elementos que aparentam provir de outras fontes, como a
mitologia, a lírica, a novela e o drama 3, nomeadamente a comédia.
Para abordarmos a questão da verosimilhança histórica, fundamental
para a credibilidade de Flávio Josefo não só como historiador e como
fonte histórica – se adotarmos essa perspetiva na nossa avaliação do
autor das Antiguidades –, mas também como escritor – numa outra
plataforma de apreciação –, há que investigar se os acontecimentos
ou outros elementos mencionados e relatados em AJ 18.65-80 são
tratados ou referidos noutras fontes e em que tipos de fontes. Esta
é, aliás, uma das questões fulcrais para a definição dos métodos a
ser utilizados na abordagem do Testimonium Flauianum, incluído
nos parágrafos imediatamente anteriores ao episódio de Paulina. Por
norma, esse passo é precisamente apresentado como certificação
histórica ou contributo imprescindível para a discussão da questão
do Jesus histórico numa outra fonte que não o corpus bíblico. Daí
também o apertado crivo científico‑historiográfico de que tem sido
alvo ao longo dos séculos e que o tem fragilizado, sobretudo na se-
quência da crítica interna do texto, feita através das rigorosas análises
filológicas a que tem sido sujeito. Considerado apócrifo por uns,
o Testimonium Flauianum é tido como autêntico por outros 4. No
caso do episódio de Paulina, que é aqui o centro da nossa análise,
cumpre‑nos seguir o método inverso do que acontece com os textos
bíblicos, que, como referimos, reclamam a historiografia de Josefo
264
para certificar ou corroborar a validade histórica dos Evangelhos.
Assim, procuramos noutras fontes elementos que possam certificar
ou confirmar o que é relatado pelo historiador flávio no episódio
em questão.
O episódio, tal como aquele que é relatado de seguida, serve
de enquadramento à expulsão dos Judeus (e de praticantes de ou-
tros cultos orientais) de Roma, durante o principado de Tibério.
Historicamente, é ponto assente entre os especialistas que tal ocor-
reu em 19 d.C. 5 Com efeito, este acontecimento não é negado, mas
as razões para o sucedido vão, evidentemente, além do que Josefo
apresenta nestes capítulos. Sobre a matrona ali referida, Paulina,
pouco ou nada conseguimos aferir, no estado atual dos nossos co-
nhecimentos. Eventualmente, poderá aparecer uma inscrição que
ateste a existência histórica desta mulher além de qualquer dúvida.
No entanto, o marido, Saturnino, é provavelmente mencionado nou-
tras fontes. E. Groag (PIR II A.1528 6 ) sugere tratar‑se de um dos
irmãos Gaio ou Lúcio Sêncio Saturnino, tendo o primeiro deles sido
cônsul em 4 d.C. Um terceiro irmão destes, Gneu Sêncio Saturnino,
foi legado propretor na Síria, entre 19 e 21 d.C. Estas referências
estão de acordo com a caracterização joséfica de Paulina, enquanto
mulher de elevado estatuto sociojurídico 7.
Por si mesma, a existência histórica de figuras mencionadas no
episódio, como Saturnino ou Tibério, porém, não é suficiente para
aferir a sua verosimilhança enquanto descrição de factos reais. Não
nos faltam textos ou exemplos, sobretudo no domínio da Antiguidade,
em que personalidades históricas são envolvidas em narrativas fic-
cionais ou pseudo‑históricas, numa tentativa, assumida ou não – de
acordo com os objetivos de cada texto –, de garantir credibilidade ao
que é narrado. No caso do episódio de Paulina, como assinalámos,
5 Vária bibliografia trata esta problemática. Um estudo recente e que reúne referên-
cias anteriores sobre ela, Amitay 2014: 101‑121. Vide também Rodrigues 2007: 439-463.
6 Groag 1933.
7 Rodrigues 2007: 442.
265
é sobretudo o seu carácter tópico que nos faz pôr em causa o que
Josefo ali conta. Vejamos como e comecemos pela duplicação do
episódio no mesmo livro XVIII das Antiguidades.
266
sem os desenvolver, e, sobretudo, de modo a explicar a expulsão
dos Judeus, cujo ónus ele coloca em indivíduos, se não claramente
identificados, cuidadosamente definidos e enquadrados. Este acon-
tecimento, que como assinalámos sabemos ter ocorrido em Roma,
no tempo de Tibério, mais concretamente em 19 d.C., é também re-
ferido noutras fontes antigas, nomeadamente em Tácito (que refere
que nessa ocasião não só os Judeus, mas também os adeptos dos
cultos egípcios teriam sido banidos da Urbe, o que vai ao encontro
do registado nas Antiguidades e acaba por dar mais consistência
aos dois episódios narrados por Josefo no livro XVIII, cf. Tac. Ann.
2.85), em Suetónio (Tib. 36) e em Díon Cássio (42.18.5). Também em
Séneca lemos um passo que parece convergir para o acontecimento
que agora tratamos (Ep. 108.22). A expulsão dos cultos orientais de
Roma no tempo de Tibério terá deveras acontecido e uma das razões
para o acontecimento deverá ter sido o facto de esse tipo de ritos
e práticas religiosas conhecer nessa ocasião um êxito significativo
na Cidade, levando a um aumento crescente de adeptos, inclusive
entre romanos, que, inevitavelmente, ou abandonavam as crenças
tradicionais de Roma ou/e contribuíam para a fortificação de co-
munidades de inspiração oriental na capital. Estas mesmas razões,
que convergem para a problemática do proselitismo, são também
as aduzidas como explicação para o processo de expulsão por dois
dos restantes historiadores (Tácito e Suetónio) 8.
De qualquer modo, de momento não é a expulsão de 19 d.C.
que nos ocupa ou as suas motivações. Centramo-nos nas narra-
tivas que lhe servem de etiologia e na sua função e construção
historiográficas. Como assinalámos, a narrativa de Fúlvia parece
ser uma duplicação da de Paulina: ambas se centram em matronas
romanas de alto estatuto económico e sociojurídico. Mais, ambas
as mulheres se interessam por cultos/religiões orientais (o culto
de Ísis e o culto de Javé); ambas são ludibriadas por indivíduos
de origem comum às dos cultos que elas professam; ambos os
8 Sobre esta questão, vide Mohering 1959: 293-304; e Williams 1989: 765-784.
267
casos chegam aos ouvidos do imperador; ambos terminam com a
expulsão das respetivas comunidades de Roma (levando a que um
caso particular e privado tenha repercussões gerais e públicas); e
ambas as matronas são casadas com um cidadão romano de nome
“Saturnino”. Em síntese, Josefo parece contar exatamente a mesma
história, com personagens mais ou menos comuns e desenlace seme-
lhante 9.
O último aspeto elencado, i.e. o do nome do marido das ma-
tronas, é um dos mais complexos de tratar nesta questão. Alguns
autores sugerem que o facto de tanto o marido de Paulina como o
de Fúlvia se chamarem Saturnino se deverá a uma mera coincidência,
tese que temos dificuldade em aceitar 10. Dificilmente, num contexto
desta natureza, a coincidência é explicação científica plausível ou
admissível para o que lemos na narrativa joséfica. Outros autores,
porém, consideram que o marido de Paulina e o marido de Fúlvia
eram exatamente o mesmo homem: Saturnino. Assim sendo, a mulher
seria também apenas uma, chamada “Fúlvia Paulina”. Com efeito,
conhecemos uma inscrição que refere uma Baebia Fuluia Claudia
Paulina Grattia Maximilla (CIL VI.1361) 11. Mas, ainda assim, esta
também não nos parece uma explicação razoável, pois implicaria
que a mesma mulher teria sido vítima do mesmo esquema por duas
vezes, em dois contextos semelhantes. Além de que exigiria que
fosse simultânea ou alternadamente uma devota de Ísis e de Javé,
268
o que também não nos parece verosímil 12. Mais provável seria uma
eventual ligação familiar entre ambos os Saturninos, casados com
mulheres diferentes, todavia ambas interessadas em espiritualidades
orientais, talvez até fomentadas pelo ambiente familiar em que se
encontravam e eventualmente inter-influenciadas. Não esquecemos
que um Sêncio Saturnino foi por esses anos propretor na Síria e que
a prosopografia romana nos dá conta de pelo menos três irmãos
Saturninos, o que valida a hipótese de Fúlvia e Paulina serem mu-
lheres de irmãos diferentes. Já quanto a Bébia Fúlvia Cláudia Paulina
Grátia Maximila, ela poderá nem sequer estar relacionada com as
matronas a quem Josefo se refere.
Apesar destas considerações, no entanto, apenas uma explicação
para a duplicação do episódio nos parece razoável. Josefo relata dois
casos muito semelhantes, em que um sugere ser decalcado do outro.
Deste modo, admitindo ou não a existência de dois escândalos em
Roma relacionados com os cultos orientais que teriam culminado
na expulsão das respetivas comunidades (na verdade, não consegui-
mos saber ao certo se de facto foi assim que tudo aconteceu, pois
nenhuma outra fonte o confirma) e na eventual falta de informação
concreta (ou interesse nela), parece-nos que Josefo recriou uma (ou
até ambas) das etiologias recorrendo a retórica literária. Por outras
palavras, Flávio Josefo ficcionou e “fabulou” por completo uma ou
ambas as narrativas. Ou então, possuindo alguma informação, re-
criou o restante de modo a compor as suas etiologias para ambas as
expulsões. Esta hipótese parece-nos mais válida quando analisamos
o modo como os dois episódios são narrados, a posição em que o
historiador os coloca na narrativa geral (primeiro, o caso egípcio, mais
rico em pormenores, e, só depois, o caso judaico, mais despojado de
elementos; ambos, eventualmente, após o Testimonium Flauianum)
e a forma como os compõe, sobretudo o primeiro. Com efeito, uma
análise filológica mais demorada permite-nos detetar no episódio de
269
Paulina a segunda característica tópica a que nos referíamos acima:
o recurso a elementos narrativos literários pré‑existentes.
270
(1.351-396). Também estes estão presentes quer em Ovídio quer no
episódio joséfico 13.
A um nível mais específico, um dos tópicos que se destaca é o
que diz respeito ao alegado interesse de Anúbis por uma mortal, tal
como lemos no episódio em análise. Se prescrutarmos a mitologia
egípcia, pouco encontramos sobre eventuais relações de natureza
sexual entre deuses e humanos, quando comparada com a mitologia
grega, e.g. É verdade que no tempo de Hatshepsut (XVIII Dinastia,
sec. XV a.C.), sobretudo, difundiu-se no Egipto o mito do nascimento
divino do faraó, que implicava a conceção do rei, nascido da união
de Ámon-Ré com uma mortal14. Mas ainda assim a mitologia egípcia
é razoavelmente contida e lacónica na difusão desta temática.
Com efeito, o sistema religioso egípcio, mitologia incluída, distingue
de forma muito clara a fronteira entre o universo dos deuses e o dos
homens. A promiscuidade entre imortais e mortais, todavia, é comum
no universo helénico e, por arrastamento, romano. Neste sentido, as
religiões e sistemas mitológicos greco-romanos estão mais próximos
do que lemos nas mitologias do espaço mesopotâmico, anatólico e
siro-palestinense do que do egípcio. Assim sendo, a forma como
Josefo conta o episódio de Paulina parece recuperar tradições mito-
lógicas greco-romanas, fazendo de Anúbis uma divindade semelhante
a outras do espaço helénico ou romano, em que deuses se enamoram
de mulheres mortais e tudo fazem para delas se aproximarem 15 .
É inevitável não perceber nesta composição narrativa uma crítica mais
ou menos velada do historiador judeu a uma crença religiosa, de
que Paulina e Saturnino são eco, que aceita a ideia de que um deus
pode apaixonar-se por uma mulher mortal, revelar‑se em epifania
271
aos humanos e manter contacto tão íntimo com eles quanto o que
uma relação sexual implica. Para os Judeus, essa seria uma ideia, no
mínimo, criticável. É em mitos como o de Zeus e Alcmena (a mãe de
Héracles), por exemplo, que a história de Anúbis e Paulina parece
radicar 16. Esse mito era originalmente grego, como atestam e.g. as
referências em Píndaro (Nem. 10.15; Isth. 7.5; Pyth. 9.84-85) e uma
tragédia perdida de Eurípides, Alcmena. Mas esta seria conhecida da
audiência romana de Plauto 17. Com efeito, o facto de Plauto o recu-
perar na peça Anfitrião – um dos exemplos da comédia latina mais
bem conhecidos e difundidos desde a Antiguidade – e de Ovídio, já
no tempo de Augusto, o retomar nas Metamorfoses, revela o grau de
conhecimento que a sociedade romana, em que Josefo se integra na
época em que redige as Antiguidades Judaicas, teria deste mito e,
desse modo, reforça a possibilidade de ele ter sido intencionalmente
utilizado pelo historiador judeu, ao serviço de um objetivo concreto
e de uma agenda político-ideológica que estaria por detrás da com-
posição do episódio de Paulina nas Antiguidades: desacreditar os
cultos egípcios, justificar a sua expulsão pelo Príncipe e dar contexto
à expulsão dos Judeus, eles próprios vítimas de burlões que, apesar
de originários da sua própria comunidade, eram semelhantes a idó-
latras e aos puerilmente crentes egípcios. Alguns investigadores vão
mais longe: partindo do princípio de que o Testimonium Flauianum
é autêntico e não apócrifo, a inclusão da história de Paulina no
seu seguimento poderá ter como intenção principal parodiar um
tema essencial do cristianismo então emergente, a Anunciação, e
16 Esta ideia era defendida já no século II (ou IV) pelo pseudo-Hegesipo, que na
versão que escreveu da obra de Josefo adaptou (omitindo, e.g., a personagem Ida)
o episódio em análise, escrevendo o seguinte: amplexum petenti non negat, refert
tamen utrum deus possit homini misceri. Ille promit exempla quod et Iouem summum
deorum Alcmena susceperit et Leda eiusdem concubitu potita et plurimae aliae. Além
de Alcmena, Hegesipo chama também Leda à colação para esta comparação. Leda é,
como sabido, protagonista de uma união com Zeus, assumindo este a forma de cisne.
Hegesipo vai mais longe, amplificando o tópico com outro ineditismo: a gravidez de
Paulina que resulta da união com Mundo/Anúbis. Sobre esta questão, vide Bell Jr. 1976:
16-22.
17 Wright 2019: 151-153.
272
assim satirizar a seita que na época estava a ganhar importância e a
distinguir-se da comunidade judaica 18. Deste modo, os capítulos 64
a 84 das Antiguidades constituiriam uma trilogia de crítica/sátira/
paródia ao cristianismo, ao isidismo e aos judeus apóstatas. Segundo
essa leitura joséfica, pelo efeito nefasto destas três práticas, a que
seriam todavia alheios, os Judeus acabaram por pagar com a expul-
são da Cidade.
Outra história de igual matriz erótica, contada pelo pseudo-Calís-
tenes, a propósito de Alexandre‑o‑Grande, aproxima-se também da
narrativa sobre o dolo de Paulina e poderá estar na base da com-
posição. Nessa narrativa, mais próxima da novela ou do romance 19,
o rei egípcio Nectanebo II engana Olímpia, mulher de Filipe da
Macedónia e futura mãe de Alexandre, fazendo-a crer, recorrendo
a magia, que o deus Ámon se enamorara dela e pretendia por isso
unir-se-lhe. Olímpia alinha no engodo e acaba por se deitar com o
egípcio disfarçado de Ámon, acabando por engravidar dele (Ps.-Call.
1.4-7). Ainda que o texto do pseudo-Calístenes possa ser posterior às
Antiguidades, não deixa de ser sintomático que nele reconheçamos
o topos do dolo, reforçando assim a hipótese de o passo historio-
gráfico ser produto de uma composição essencialmente contruída
com elementos topo-retóricos. Destaque-se ainda o ambiente egípcio
comum a ambas as narrativas.
Outro tópico que detetamos na história de Paulina, assim como
na de Fúlvia, está relacionado com a indignação e ultraje de que
ambas as matronas sentem depois de descobrirem que foram enga-
18 Vide e.g. Bell Jr. 1976: 16-22; vide também Amitay 2014: 101‑121. Esta hipótese
é reforçada pela leitura que Hegesipo faz do episódio, ao atribuir uma gravidez a
Paulina, e que referimos acima. Talvez a adaptação signifique que o passo era assim
entendido por aquele autor, na sua época. E talvez o fosse porque seria esse de facto
o objetivo de Josefo. Se a isso acrescentarmos a informação dada por Josefo, de que
os sacerdotes de Ísis e Ida foram crucificados, a ideia de paródia do cristianismo
ganha ainda mais argumentos.
19 Há que não esquecer a importância dos elementos romanescos na obra de
Josefo, o que corresponde a uma característica particularmente helenística. Sobre
esta questão, vide o incontornável Moehring 1957, em particular a p. 57, que trata a
probabilidade da influência da história de Nectanebo neste episódio.
273
nadas. Segundo Josefo, ao se aperceberem do sucedido, ambas têm
a mesma reação: contar o dolo aos “respetivos” maridos, os quais,
por sua vez, denunciam a situação ao imperador, o que acaba na
expulsão das comunidades isíaca e judaica de Roma. A atitude de
Paulina e de Fúlvia recorda a de Lucrécia, figura tutelar da cultura
romana, cuja lenda é contada sobretudo por Tito Lívio (1.34-60).
Depois de ter sido violada por Tarquínio, e antes de se suicidar, a
preocupação principal da matrona Lucrécia, segundo o historiador
romano, é contar o que se passou ao marido e a alguns familiares
para que eles tratem de vingar o ultraje de que fora alvo. Este era
não só um tema bem conhecido em Roma, como até fundacional
para os Romanos. A corte em que Josefo escreve conhecia-o bem.
A denúncia do acontecimento na lenda de Lucrécia parece assim ser
consonante com as revelações feitas por Paulina e Fúlvia aos “dois
Saturninos”.
Por fim, toda a estrutura narrativa do episódio de Paulina (so-
bretudo os aspetos que lhe são exclusivos e que não se encontram
no de Fúlvia) parece ser transferida de um outro veio literário, mas
igualmente bem conhecido em Roma por meio das influências e
adaptações de que foi alvo entre os autores latinos: a comédia grega
tardia ou Comédia Nova ateniense.
Se nos abstrairmos dos elementos religiosos do episódio, nome-
adamente as questões em torno do culto e dos sacerdotes de Ísis,
o que nos resta é uma estrutura que se pode resumir ao seguinte: um
jovem romano da ordem equestre (de um estatuto jurídico-económico
relativamente elevado, portanto) enamorado de uma matrona romana
casada (de estatuto socioeconómico ainda mais elevado), perante
as tentativas frustradas de sedução, alinha no plano de uma liberta
da sua casa para enganar e seduzir a mulher amada. Por sua vez,
a liberta engendra um esquema complexo, quase inverosímil, com
recurso a ajuda de terceiros e a troco de dinheiro, para conseguir
que a matrona caia nos braços do jovem enamorado e assim o desejo
erótico dele se concretize. Apesar do desenlace pouco cómico de
toda a situação, designadamente a crucifixão a que quer os sacer-
274
dotes de Ísis quer Ida, a liberta, foram condenados, o facto é que o
argumento de base do episódio de Paulina em Josefo corresponde
à estrutura de um enredo próprio da Comédia Nova.
Na verdade, o recurso de Josefo à comédia grega não parece ser
exclusivo deste episódio. Há algumas décadas, M. Braun detetou
influências de Aristófanes (logo, da Comédia Antiga) no livro IV das
Antiguidades, mais concretamente no passo parafrásico das relações
mantidas pelos Israelitas com mulheres moabitas, no contexto do
episódio de Balaão (4.132-133; cf. Nm 25.1-2). Nesse passo, numa
considerável amplificação do texto bíblico original, Josefo inova, o
que aliás não é raro nele 20, e escreve que os jovens de Israel ter-
-se-iam enamorado das jovens de Moab, desejando-as. Depois de os
seduzirem e de os deixarem cegos de paixão, porém, as Moabitas
decidiram abandonar os rapazes, que tudo faziam para que isso não
acontecesse, fazendo-lhes promessas, propondo-lhes inclusivamente
casamento e oferecendo-lhes os seus bens, tendo Javé como testemu-
nha. As Moabitas acabam por chantagear os Israelitas, exigindo‑lhes
que reneguem a religião de Israel e se adaptem às práticas de Moab,
e eles, por paixão, cedem às condições impostas pelas jovens. Como
escreveu M. Braun: “The narrative motif which Josephus has intro-
duced into the Balaam story can already be found in Aristophanes’
Lysistrata. There are also the women break off relations with their
husbands and threaten to leave them unless they fulfil a certain
political condition. In both plots the result of the stratagem is the
same: the submission of the men to the demands of the women” 21.
O recurso a autores gregos pré-helenísticos por Josefo está
bem atestado e estudado. Há que referir, porém, que se os Poemas
Homéricos, os trágicos (Sófocles em particular) e os historiadores
(sobretudo Tucídides) parecem ter sido modelos e fontes de inspi-
ração frequente de Josefo, Aristófanes e os comediógrafos em geral
275
são menos percetíveis 22. A relativa abundância de textos gregos ar-
caicos e clássicos na obra joséfica levou mesmo alguns especialistas
a dissertarem e a considerarem a possibilidade de os passos em que
eles se detetam não serem originalmente autógrafos mas dos chama-
dos “assistentes” do historiador 23. Esta hipótese não é descabida de
pertinência, tanto mais que o próprio Josefo refere ter recorrido a
ajuda dessa natureza. Com efeito, no Contra Ápion, o escritor con-
fessa ter tido o apoio de synergoi (colaboradores) que o ajudaram
com a língua grega (CA 1.50). A tese, porém, é contestada por outros
investigadores (com os quais concordamos), que consideram que a
probabilidade de tais alusões, referências ou influências ser de facto
joséfica é bastante elevada, dadas as várias circunstâncias culturais
em que a produção destes textos se insere – entre elas, a prática de
imitar autoridades literárias como Tucídides –, não havendo neces-
sidade de considerar a mão de terceiros no processo de composição
dos textos do historiador judeu 24.
Depois da análise do episódio de Paulina no livro XVIII das
Antiguidades que aqui apresentamos, consideramos estar em con-
dições de afirmar que não terão sido apenas os autores gregos dos
períodos arcaico e clássico a influenciar Flávio Josefo. Também auto-
res do período helenístico, como Menandro, terão marcado o estilo
e as composições do historiador sob análise. Com efeito, na obra
desse comediógrafo de meados-finais do século IV a.C., encontramos
indícios suficientes para considerar que a história de Paulina é forte-
mente marcada pela sua influência. Menandro pertence ao movimento
literário‑cultural conhecido como Comédia Nova, que emergiu em
Atenas, em pleno domínio macedónico. A Comédia Nova consiste na
adaptação e reelaboração do género dramático cómico, em que os
textos de profunda crítica política ou de paródia de outros géneros
276
(como a tragédia), como eram os da Comédia Antiga, dão lugar a
composições preenchidas por caracteres humanos e naturalistas,
mas fictícios. Estes são frequentemente personagens-tipo, inseridas
em cenários coevos da audiência a que são apresentadas. Os novos
textos são parcos em obscenidades, mas originam argumentos con-
venientemente apolíticos, complexos e não raramente inverosímeis,
ainda que pouco fantásticos. O centro da nova comédia desloca-se
assim da polis para o oikos, onde tudo gira em torno da família e
das suas vicissitudes domésticas: os oikeia pragmata 25. Como nota
M. F. Sousa e Silva, este é o tempo do protagonismo dos idiotai 26.
Menandro, o representante mais bem conhecido deste novo género
dramático, é particularmente sintomático desse novo ambiente cul-
tural ateniense. Todas as peças que dele nos chegaram são histórias
erótico-amorosas e os enredos giram em torno desse tópico central.
Casamentos, desencontros e enganos amorosos fazem parte dessas
peças, mostrando o interesse que os Atenienses da época por eles
tinham. De acordo com a moral do tempo, a comédia menândrica
está repleta de desvios, mas também de virtudes, perdão, genero-
sidade, família e comunidade 27. É essa característica que justifica a
existência de personagens-tipo, como “o jovem apaixonado, lamechas,
débil e dependente para a realização dos seus propósitos amorosos”
(como os que reconhecemos em O Misantropo ou em A rapariga de
Samos) 28 e o escravo astuto “com tendência para a mentira ou para
a criação de tramóias e enganos”, “coscuvilheiro e autor de enre-
dos” (como os que aparecem nas peças já referidas ou ainda em O
Escudo e Arbitragem) 29. Este tipo de carácter teve fortuna na histó-
ria da comédia e revelou-se, em particular, em Roma, pela mão de,
25 Vide e.g. Lowe 2007: 65-71. A evolução da comédia grega que desembocará
na Comédia Nova é um processo culturalmente complexo. Sobre essa problemática,
vide e.g. Silva 1995: 35-53; Silva 2006: 13-43.
26 Silva 2006: 15.
27 Lowe 2007: 71-72; MccBrown 2001: 53-64.
28 Silva 2006: 29.
29 Silva 2006: 30.
277
e.g., Terêncio e Plauto, em cujas palliatae (como As Duas Báquides,
O Soldado fanfarrão ou Epídico) estas personagens-tipo ressurgem
ou se mantêm 30 . Isso significa que os temas/tópicos da Comédia
Nova seriam bem conhecidos entre os Romanos da República e do
Alto Principado, em cujo ambiente Josefo escreve as Antiguidades.
A este propósito e perante estes dados, somos levados a concluir o
seguinte: além das comparações óbvias e já deduzidas, a história da
matrona sexualmente usada por um deus falso ecoa mesmo o enredo
da mais famosa peça de Terêncio, O Eunuco, igualmente baseada em
originais da Comédia Nova, nomeadamente de Menandro 31. Nesta
peça, um jovem apaixona-se por uma rapariga, mas não sabe como
abordá-la. Por sugestão do seu escravo, o jovem decide disfarçar-se de
eunuco para se introduzir na casa da ama da rapariga, que é escrava,
e assim possuí-la sexualmente. Por conseguinte, neste enredo, um
alegado eunuco (tal como um alegado deus egípcio) violenta uma
jovem (inocente como uma matrona). Ao compararmos a peça de
Terêncio baseada em Menandro com o texto de Josefo, parece-nos
que este é também uma paródia daquela.
Perante estes dados, será difícil não reconhecermos em Décio
Mundo (o jovem apaixonado) e em Ida (a escrava/liberta astuta),
e até mesmo em Paulina (a mulher alvo da paixão), personagens
compostas com base em caracteres-tipo da Comédia Nova e, depois,
da comédia latina.
Conclusões
278
no aproveitamento de caracteres e situações da comédia para contar
um episódio de desfecho particularmente terrível, como é a crucifi-
xão dos culpados. Mas até esse artifício parece não ser desprovido
de intencionalidade, indo ao encontro da agenda de Josefo, que é
a de desacreditar e criticar negativamente os cultos isíacos ou to-
das as práticas religiosas que não se coadunavam com o judaísmo,
além de uma possível paródia ao cristianismo emergente. Aliás, a
atitude de Josefo está de acordo com a fina ironia que transparece
noutros escritos do judaísmo helenístico, nomeadamente no livro
da Sabedoria, nos seus capítulos 13 a 15 32. Neste sentido, Josefo
parece simplesmente estar a ser o que cultural e naturalmente é: um
homem do seu tempo.
Deste modo, parece evidente a função retórica do episódio. Sem
que possamos negar ou rejeitar de forma veemente e indubitável o
que é contado em Antiguidades Judaicas 18.65-80, quer ao nível das
pessoas referidas, quer ao nível dos acontecimentos relatados, as cir-
cunstâncias tópicas e retóricas com que o episódio é narrado levam-nos
a investir numa hipótese de ficcionalização de uma etiologia para um
acontecimento que de facto abalou Roma em 19 d.C., no tempo de
Tibério: a expulsão de cultos orientais da cidade. Muito provavelmente,
essa expulsão relacionou-se com questões eminentemente políticas,
estando associada a um crescimento rápido e eventualmente desme-
surado de comunidades e práticas que poriam em perigo o equilíbrio
social e cultural romano. A expulsão teria assim sido essencialmente
uma questão de controlo social. Ao escrever sobre ela, cerca de oito
décadas depois, Josefo, um judeu instalado na corte imperial e bem
relacionado com o poder romano, evita acentuar esses aspetos, que
surgiriam inclusivamente como negativos para a comunidade judaica
de Roma do seu tempo. Compreende-se assim por que razão insere o
historiador o episódio de Paulina, que resulta na expulsão dos cultos
egípcios da Cidade, antes e repleto de mais pormenores – inclusiva-
mente eróticos e romanescos, muito ao gosto da historiografia patética
279
do período helenístico e, portanto, passíveis de suscitar mais interesse
numa audiência desse tempo – do que o episódio de Fúlvia, que re-
sulta na expulsão dos Judeus e proibição dos seus ritos. Assim, depois
de ter retoricamente preparado o caminho e de ter concentrado toda
a atenção da sua audiência numa história maliciosa e de contornos
brejeiros, Josefo apresenta a causa da expulsão dos Judeus de Roma
em 19, lançando as culpas não na sua comunidade, mas num certo
judeu e seus três compatriotas cúmplices33. Esta individualização evita
a generalização.
Se considerarmos a autenticidade do Testimonium Flauianum, cla-
ramente relacionado com a emergente comunidade cristã, dissidente
da judaica, também a sua inclusão e localização nas Antiguidades
ganha novo sentido e pertinência. Caso a consideremos apócrifa,
percebemos que a escolha do autor para a sua inserção na obra
joséfica também não foi aleatória ou desprovida de sentido.
Os instrumentos que Flávio Josefo reúne para criar uma etiologia,
na qual pretende concentrar a atenção da sua audiência (o episó-
dio de Paulina), de modo a desvalorizar e desaperceber a outra (o
de Fúlvia) – afinal o historiador era judeu –, são sobretudo os da
retórica literária, na qual integramos a contaminação de outros gé-
neros literários e a inclusão de motivos e tópicos bem conhecidos.
Assim, a poesia lírica e dramática, a mitologia, a novela ou roman-
ce são aqui chamados à colação, numa técnica bem conhecida dos
leitores de Josefo. Ainda que, pela proximidade com a novela do
pseudo‑Calístenes, alguns considerem ser a História de Alexandre
um dos modelos aqui preponderantes 34, uma análise mais profunda
leva-nos a considerar a Comédia Nova, sobretudo a de Menandro e
seus sucedâneos, a forma que acabou por dar a estrutura de base
ao episódio analisado. A este propósito, vêm as palavras de B. P.
Reardon: “Ancient prose fiction can be viewed in several perspectives.
On one level, it is an extension of New Comedy: simple entertain-
280
ment, with no pretensions to significance.” 35 Josefo, porém, parece
ter outorgado à sua prosa de base cómica um significado. Sobretudo
isso. Esta evidência, a que acrescem alguns outros elementos 36 ,
leva-nos a considerar a história de Paulina (e, por consequência, a
possibilidade de também a de Fúlvia) um texto mais ficcional do
que histórico, ainda que o objetivo que preside à sua composição
seja o de se definir e consagrar como historiografia.
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35 Reardon 2001.
36 Há outros elementos que nos levam a avaliar o episódio de Paulina com des-
confiança relativamente à sua validade historiográfica, como: o lançamento da estátua
de Ísis ao rio, que é um tema mais judaico do que romano, por não se coadunar com
os conceitos de pietas e euocatio próprios dos Romanos; e a forma como o adultério
parece ter sido considerado no tempo de Tibério, que também não se coaduna com
a reacção de Paulina, Saturnino e até Tibério à proposta de “Anúbis”; cf. Tac. Ann.
2.85; Suet. Tib. 35. Vide Rodrigues 2007: 444-445.
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282
O vinho como fonte de prazer e elixir
de males, em três epístolas de Álcifron
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_13
fragmentos da condição humana. Aliás, mais do que epístolas, Álcifron
apresenta-nos esboços de cenas e situações capturadas em tempo
real, descritas com alguma vivacidade, em que a estrutura formal é
um mero pretexto existente ao serviço da narração.
A identidade de Álcifron
284
Isaac Tzetzes, de pasada, le otorga la etiqueta de rhétor, palabra
que acompaña también a su nombre en algunos de los manuscri-
tos conservados, todos ellos muy tardíos, Eustacio de Tesalónica,
erudito arzobispo que vivió en el siglo XII, lo califica ciertamente
de attikistés en sus comentarios a Homero. Nada más se sabe fuera
de estas magras noticias.” 1
285
ainda mais a matéria em estudo, não temos sequer a certeza abso-
luta em que época viveu Aristéneto. Vieillefond apresenta-nos, em
relação a Aristéneto e Álcifron, um conjunto de suposições, sendo
as dúvidas muitas e as certezas absolutas poucas. 5
Vieillefond apresenta uma certeza em relação a Aristéneto:
286
à interroger l’ oeuvre à la recherche de quelques indices. Mais elle
aussi semble se dérober. Certes il est parfois question de dates et
de pistaches, un des pêcheurs ramène dans son filet le cadavre d’un
chameau, mais ces quelques notations sont bien rapides et il semble
aventureux d’en déduire qu’Alciphron a une origine orientale, voire
syrienne, comme on l’a parfois pensé.” 7
Álcifron, escritor
287
cartas), camponeses (39 cartas), parasitas (42 cartas) e cortesãs (19
cartas e o fr. 5). 14 É possível traçar uma linha fronteiriça entre as
duas primeiras categorias e as restantes. De um lado temos os labo-
riosos, do outro, os ociosos. Os parasitas e as cortesãs encontram-se
melhor repercutidos e constituem a parte mais elaborada de toda
a obra. Cada livro, ao tratar de forma monográfica um setor social,
provoca a impressão de oferecer variações sobre um mesmo tema
e ao mesmo tempo fornece-nos curiosos detalhes a respeito dos
costumes da Antiguidade greco-latina. Todas as figuras expressam
os seus sentimentos numa linguagem graciosa e elegante, mesmo
quando as matérias são de índole lasciva. As personagens são, de
certa forma, dispostas acima do seu padrão comum, sem qualquer
estupro da verdade.
Em termos de forma as epístolas de Álcifron ostentam uma beleza
rara e a linguagem utilizada apresenta-se em puro e requintado dia-
leto ático. 15 A cidade de Atenas é com poucas exceções a que mais
288
nos surge nas cartas. 16 O período temporal situa-se após o reinado
de Alexandre, o Grande. Em muitas epístolas os caracteres desenha-
dos17 por Álcifron aproximam-se dos da comédia grega e muitas das
cenas descritas são teatrais. A informação a respeito das personagens
e costumes traçados deriva da comédia nova. 18 Não podemos negar
que as cartas de Álcifron, embora escritas muito posteriormente,
contêm informações deveras preciosas acerca da vida privada dos
atenienses daquele tempo. A linguagem de Álcifron é requintada
e de uma permanente lisura, nunca chegando a ser excessiva em
qualquer situação. Não foi por acaso que Stephan Bergler observou
16 Diz-nos Ruiz García 1988: 143-144 que Álcifron “dentro de su geografía per-
sonal distingue tres sectores: la ciudad, el campo y el mar. Entre ellos se perfila una
clara oposición; el concepto de ciudad – o lo que es lo mismo en su mente, Atenas,
encarnación física de esta entelequia – versus los otros términos. Alcifrón utiliza con
toda propriedad los términos pólis y ásty. El primero, como es sabido, se emplea
para designar un sistema concreto de organización social, fruto de una convención,
aceptada por una colectividad humana. El segundo se refiere al conjunto inanimado
que constituye el paisaje urbano. El hecho de frecuentar este espacio y de convivir
con sus moradores desarrollada en el individuo unas maneras y unos hábitos proprios
de dicho tipo de comunidad. Estos modales se calificaban el empleo del adjetivo
astikós, que encierra unas connotaciones de distinción y de buen tono, esto es, las
formas corteses propias de la crianza en una urbe. Algunos ejemplos ilustrarán esta
concepción. Filócomo (II 28) le confiesa a un amigo no haber penetrado jamás en
un núcleo urbano (ásty) e ignorar en qué consiste eso que suele llamarse una ciudad
(pólis). Aquí se contraponen con toda claridad los dos términos griegos. El resto de
la carta es muy revelador sobre esta cuestión. El joven desea vehementemente com-
probar cómo viven unos seres humanos en el interior de un recinto amurallado y en
qué se diferencia la pólis de la vida en el terruño.” Ruiz García 1988: 143 esclarece
que o binómio grego pólis y ásty encontra-se igualmente em latim: “civitas/urbs. De
este último vocablo surge el adjetivo urbanus, que se puede considerar como un
calco semántico de ástikós.”
17 Cf. v. 361 “ut pictura poesis” da Arte Poética de Horácio.
18 Para Ruiz García 1988: 142-143 “la concepción del espacio en Alcifrón es impor-
tante. En todas sus historias hay un hic bien definido y personalizado. Creemos que
ello se debe, en parte, a la influencia de la Comedia Nueva. Su impacto es tal en este
escritor que sus cartas muchas veces son auténticas escenas teatrales.”
289
que a obra de Álcifron está para a obra de Menandro, 19 assim como
a de Luciano está para a de Aristófanes. 20
19 De acordo com Silva 2007: 10-12, “o nome de Menandro soa como um dos mais
aplaudidos da chamada Comédia Nova ateniense, uma fase no trajecto do género que
granjeou, no seu tempo, uma reconhecida popularidade. Mas apesar do sucesso obti-
do, a Comédia Nova não impressiona, em igual medida, o estudioso ou sobretudo o
espectador moderno. Se avaliada em contraste com os êxitos obtidos por Aristófanes
e os seus contemporâneos, ela é pálida, débil, discreta, apertada numa convenção
estreita e responsável por uma certa monotonia. [...] Foi, antes de mais, o desfecho
da Guerra do Peloponeso um passo decisivo no início de uma nova era na existên-
cia da Hélade. [...] O prestígio de uma pólis democrática como Atenas, [...] ruiu. [...]
Já o último Aristófanes é, da mudança, um testemunho evidente. [...] O epíteto de
«universalista», em vez de «política», cabe melhor à nova literatura, que [...] deu voz
à mudança profunda que se operou sobre os padrões clássicos da vida grega. [...]
A substituir a função protectora do Estado, o homem volta-se com esperança para
a família e para os amigos, as únicas promessas activas e confiáveis de solidariedade
e filantropia. Ao mesmo tempo a comédia dava um passo no sentido de secundarizar
a fantasia e de dar prioridade ao «realismo», deslocando o seu olhar atento das crises
colectivas e seus agentes para os problemas comezinhos do quotidiano, sentidos
num mundo que tendia a ser global. Acima de tudo, é o amor que motiva os enredos
como o sentimento cuja realização proporciona, nos indivíduos e no núcleo familiar,
estabilidade e ventura. A nova odisseia humana é sobretudo íntima, doméstica, mas
superiormente controlada por um acaso (Tyche) que a não poupa ao imprevisto e
ao descontrolo, de modo a tornar profundamente dramática a aventura da existência
humana.”
20 Trata-se de uma questão de estilo. Em Pompeu et al. 2017: 37 podemos ler:
“sobre os elogios tecidos por Plutarco ao estilo de Menandro e aos seus principais
méritos, vide infra 73-76; e sobre os excessos de linguagem de Aristófanes, vide
supra 15, 19-24.”
Afirma AAVV 1844: 103 “the new Attic comedy was the principal source from which
the author derived his information respecting the characters and manners which he
describes, and for this reason these letters contain much valuable information about
the private life of the Athenians of that time. It has been said, that Alciphron is an
imitator of Lucian; but besides the style, and, in a few instances, the subject matter,
there is no resemblance between the two writers: the spirit in which the two treat their
subjects is totally different. Both derived their materials from the same sources, and
in style both aimed at the greatest perfection of the genuine Attic Greck. Bergler has
truly remarked, that Alciphron stands in the same relation to Menander as Lucian to
Aristophanes. The first editions of Alciphron’s letters is that of Aldus, in his collection
of the Greek Epistolographers, Venice, 1499, 4to. This edition, however, contains only
those letters which, in more modern Editions, form the first two books. Seventy-two
new letters were added from a Vienna and a Vatican MS. By Bergler, in his edition
(Leipzig, 1715, 8vo.) with notes and a latin translation. These seventy-two epistles
form the third book in Bergler’s edition. J. A. Wagner, in his edition (Leipzig, 1798,
2 vols, 8vo., with the notes of Bergler), added two new letters entire, and fragments
of five others. One long letter, which has not yet been published entire, exists in
several Paris MSS.”
290
O vinho como fonte de prazer e elixir de males
291
rante alguns clientes do facto de ele rondar continuamente a porta
da sua casa. Os servos que lhe levam mensagens e que pela sua
condição lhe suscitam pena, ironicamente são mais afortunados do
que ele. Acreditava que o vinho puro 28, que pela tarde de anteontem
havia tomado em considerável quantidade em casa de Eufrónio, seria
um remédio para os seus males, pois confiava que o aliviaria das
preocupações durante a noite. No entanto, o seu efeito foi de sinal
contrário, pois acrescentou-lhe pesar ao ponto de os seus prantos e
gemidos suscitarem a compaixão dos que mais o consideravam e o
riso dos restantes. Restou-lhe um lenitivo e uma pequena recordação
que já se apresentava emurchecida: a coroa de Pétale. Lembrança da
penosa discussão que sustentaram durante o banquete e que levou
Pétale a arrancá-la dos seus próprios cabelos, arrojando-a para dar a
entender que lhe causava desagrado tudo o que procedia de Simalião.
Que Afrodite não lhe fizesse pagar a altivez, deveria Pétale implorar!
Qualquer outro escreveria insultos e ameaças. Em vez disso, ele,
Simalião, em tom de prece e de súplica, porque a ama, faz o contrá-
rio, para perdição sua. Teme que, se o mal aumenta, imitará algum
daqueles que foram desafortunados nas suas queixas amorosas. 29
Nesta epístola Álcifron rememora-se o assunto do idílio XI de
Teócrito, 30 onde o jovem Ciclope cura o sofrimento de um amor
28 Relativamente ao ato de ingerir vinho puro, em AAVV 2012: 55, pode ler-se o
seguinte: “The alcoholic beverage of choice for both the ancient Greeks and Romans
was wine, customarily diluted with water, except perhaps in the case of Macedonians
who were reputed to drink their wine akratos, or unmixed. Distilled spirits, such
as brandy and whisky, had not yet been invented, and beer was looked upon as a
swinish potation better left to barbarians”.
29 O suicídio por amor tem um ilustre precedente em Safo. Cf. Ruiz García 1988:
288-289.
30 Na opinião de Frederico Lourenço 2020: 294-295 “o Idílio XI entra em diálogo
com Homero, mas de forma inesperada. A personagem central é Polifemo, o Ciclope
repulsivo da Odisseia, que surge aqui sob a forma de um moçoilo apaixonado pela
elusiva Galateia, a quem ele dedica um canto cheio das mais absurdas ingenuidades.
O poema é fundante, a todos os níveis, do género bucólico, pois dele fez Vergílio
uma versão homossexualizada na Bucólica II, donde passou, novamente com vestes
heterossexuais, para a poesia quinhentista portuguesa, com imitação direta na Écloga
IV de António Ferreira. Mas a imitação mais subtil está no Canto XIII das Metamorfoses
de Ovídio, onde o poeta romano faz a caricatura maliciosa de um tique poético já
presente em Teócrito: o uso e abuso do grau comparativo dos adjetivos. Dedicado
292
não correspondido, não pelo vinho, mas através do cultivo da arte
das Musas:
293
Na carta 13 do livro 4, uma cortesã relata a uma jovem amiga
um passeio efetuado com umas companheiras pelas proximidades
da cidade. O cenário descrito é tipicamente mediterrânico, suave e
belo, apelativo à adoração de Pã e das Ninfas. Na paisagem havia
saliências rochosas, fontes fluíam água puríssima 32 e alguns jacintos
e flores de várias cores alegravam a vista. Um convite à comida e à
bebida. O vinho era muito doce e abundante, italiano de origem. 33
Como não se estabeleceram regras sobre a quantidade a beber,
cometeram-se excessos. 34 Por estarem na companhia de Dioniso, o
desejo assomou as cortesãs que, por isso, se entregaram a joguetes
amorosos. No meio de toda aquela embriaguez, o bosque servia
de tálamo. Depois de um breve trato com Afrodite, retomou-se de
novo a bebida. Após nova contenda e satisfeitos os apetites, conti-
nuaram a beber jovialmente, nem sequer desejando ocultar-se umas
das outras, entregando-se ao prazer sem nenhum sentido de pudor,
ao ponto de a situação degenerar em bacanal. Mas o maldito galo
dos vizinhos cantou, pondo um ponto final na orgia. Como a amiga
294
não tinha estado na festa, tudo isto lhe foi descrito com detalhe! Se
o real motivo da sua ausência havia sido alguma maleita, deveria
procurar melhorar rapidamente. Porém, se esteve em casa porque
aguardando a chegada do homem que amava, tinha toda a razão
para ficar em retiro.
35 Em relação a este local e à árvore da castidade, Ruiz García 1988: 303 assinala
que existem duas referências na obra de Álcifron: Livro III, carta 5 e Livro IV, carta 14.
36 Também conhecida por vitex, agno-casto, anho-casto, agno-puro, árvore-da-
-castidade, pimenteiro-silvestre, pimenteiro.
295
de Afrodite.37 Báquis, procura vir com o teu jardinzito,38 a figurinha
do teu Adónis particular que agora cultivas, de maneira a que todas
nos divirtamos bebendo na companhia dos amantes.
Bibliografia
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297
(Página deixada propositadamente em branco)
E v o l u ç ã o n o t e m p o e n o e s pa ç o :
P l u ta r c o e a a ç ã o d e A l e x a n d r e p e r a n t e
o s b á r b a r o s d e r r o ta d o s *1
e vo l u t i o n ov e r t i m e a n d s pac e :
P l u ta r c h a n d A l e x a n d e r ’ s b e h av i o u r towa r d s
t h e d e f e at e d b a r b a r i a n s
Delfim F. Leão
Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-8107-9165
leo@fl.uc.pt
Ália Rodrigues
Univ. Coimbra, CECH
ORCID: 0000-0002-9787-4331
alia.rodrigues@uc.pt
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_14
Resumo: O artigo discute o retrato de Plutarco de um Alexandre retórico
na oração epidíctica Sobre a fortuna e virtude de Alexandre e de um
Alexandre biográfico na Vida de Alexandre. Em particular, vamos
focar-nos sobre o retrato de Alexandre como uma ilustração do no-
mothetes platónico, sobretudo no primeiro caso. Discutimos depois a
campanha pan-helénica que o tornou hegemon dos Helenos, analisando
a forma como a política de Alexandre – ou a do Alexandre retórico
figurado por Plutarco – evoluiu da oposição tradicional de gregos e
bárbaros para um programa de fusão étnica e cultural marcado pela
homonoia e koinonia. Assim, quer intencionalmente ou não, estes
princípios motivados por mudanças potenciadas ao longo do tempo
e do espaço acabariam por se tornar na base do cosmopolitismo do
período helenístico. Este programa filosófico e ético, porém, corres-
ponde sobretudo a um exercício de ‘soft power’, estando claramente
ao serviço do reforço da presença e consolidação do poder grego na
Ásia. A abordagem alternativa, nota Plutarco, seria o recurso à força
(Alex. 47.5; De Al. Magn. fort. 329c).
300
1. Considerações preliminares: Plutarco e o Alexandre retó-
rico 1 como nomothetes platónico
301
Assim, no caso do par Alexandre – César, os protagonistas inspiram
as pessoas não por causa das suas leis ou instituições, mas sim pelo
seu carisma (Caes. 16.1; Alex. 41.1). Consequentemente, o narrador
não presta tanta atenção às conquistas legislativas como aos duros
desafios éticos colocados por circunstâncias políticas específicas, de
forma que a glória ética não depende tanto do seu papel enquanto
educadores como do carisma político revelado pelas suas ações.
A visão de Alexandre como civilizador e libertador da barbárie
é veiculada sobretudo na oração epidíctica, ou seja, no contexto de
uma narrativa de cariz triunfalista e apologético. É, também, neste
contexto que surge a primeira ocorrência do paralelo entre a ativi-
dade colonizadora de Alexandre e a cidade cósmica de Zenão (De
Al. Magn. fort. 329A-F) 4, tendo sido esta a primeira vez que o im-
pério de Alexandre é interpretado como a sublimação histórica do
projeto filosófico de Zenão, contemporâneo do próprio Alexandre.
Antes de Plutarco, outros autores tinham já veiculado esta imagem
de Alexandre como o embaixador da união entre Gregos e Bárbaros 5,
mas Plutarco é o primeiro a integrar este evento numa narrativa do
cosmopolitismo, talvez com o intuito de emular o exemplo Romano
diferenças dos géneros epidítico e biográfico. Sobre este último, Sorabji 2006: 10,
172-177, no seu estudo de teorias sobre o ‘self’, refere que Plutarco foi o primeiro
pensador a estabelecer a ligação entre ‘self’ ou narrativa quando, no seu tratado Sobre
a Tranquilidade (473B-474B), observa que, para alcançar a tranquilidade, precisamos
de usar as nossas memórias para tecer a vida num todo unificado, tanto o bom como
o mau. Sobre outras tensões presentes na Vida de Alexandre, vide também Mossman
2006: 292.
4 Plutarco estabelece também este paralelo em relação à figura de Licurgo (Lyc.
31.2), embora de forma menos desenvolvida. Para a citação completa, vide infra nota
14. De acordo com Baldry (1959), além de Diogénes de Laércio (7.32-3), Plutarco é
uma das poucas fontes para o pensamento político de Zenão e, segundo o mesmo,
esta analogia de Plutarco teria gerado uma tradição de interpretações erróneas sobre
o pensamento político de Zenão. Vide também Schofield 2000. Este último 2000: 453
também notou que a ideia de que a ‘cidade cósmica’ é mais vantajosa do que o oposto
é um “later development” no contexto do pensamento político helenístico, tal como,
de resto, este trabalho também procura demonstrar.
5 Erastótenes apud Estrabão 1.4.9 e Arriano 7.11.9. Estrabão (1.4.9), aliás, nota
que Erastóstenes critica a divisão de Alexandre entre gregos e bárbaros, devendo a
distinção antes ser entre maus e civilizados, na medida em que tanto há ‘maus’ entre
gregos e ‘civilizados’ entre os bárbaros (πολλοὺς γὰρ καὶ τῶν Ἑλλήνων εἶναι κακοὺς
καὶ τῶν βαρβάρων ἀστείους).
302
com a criação de um precedente ético 6. O embaixador humano da
cidade cósmica de Zenão (De Al. Magn. fort. 329A-F) é assim mais
visível na versão retórica que Plutarco faz de Alexandre do que na
Vida 7 . Isto também se aplica à interpretação de Plutarco (De Al.
Magn. fort. 329A-C) da comunidade ideal de Zenão, na medida em
que Alexandre conseguiu não só substituir as comunidades locais
pelo modelo cosmopolita, mas também colocar gregos e bárbaros
sob a sua própria autoridade (grega). É assim, por esta razão, como
nota Pelling (2016: 43) que não podemos confundir a interpretação
plutarquiana do legado de Alexandre, ou seja, ‘o modelo cosmopoli-
ta’, com um projeto político ‘multicultural’ de horizontalidade social
e políticas entre Gregos e Bárbaros, na medida em que o ponto de
partida e de chegada não se alteram: “os Gregos e os bárbaros que
os não distinguissem (...) pelo vestuário, mas que reconhecessem
o helénico pela virtude (arete) e o bárbaro pelo vício (kakia); (Al.
Magn. Fort. 329C)” 8.
A versão plutarquiana retórica de Alexandre como fundador de
cidades e criador de leis tem como objetivo enquadrar Alexandre
na categoria mais ampla do hellenikos nomothetes utilizada noutras
passagens da obra de Plutarco (e.g. Num. 1.5; Sol. 16.4–5). O traço
de nomothetes atribuído ao Alexandre retórico, nota Koulationis
303
(2008: 411), não tem qualquer “precedent in the historiographical
and literary tradition” sobre o próprio Alexandre, mas também
acrescenta que “this image is not found in the rest of the Plutarchan
corpus and is probably an innovation by the ‘rhetorical’ Plutarch”.
Esta inusitada justaposição entre Alexandre e a figura do legislador9
tem, em primeiro lugar um propósito claramente enfático próprio
do género epidíctico, mas possui também como objetivo estabelecer
um paralelo não só entre um modelo político grego e platónico de
cariz civilizador e apolítico, mas também acrescentar um elemento
que é essencial à figura do legislador e, no caso, à figura idealizada
de Alexandre: intencionalidade, dimensão teleológica10. Esta reinter-
pretação das conquistas de Alexandre como parte de um projeto de
homonoia e koinonia de larga escala, ou o sonho estóico de Zenão,
intencionalmente concebido, faz parte da retórica de justificação das
ações de conquista de Alexandre como um evento necessário para
a realização do desígnio pan-helénico11 ou, como Pelling (2016: 42)
colocou, do “Macedonian white man’s burden”. Esta versão plutar-
quiana de Alexandre como nomothetes invoca também outros debates
geralmente associados à figura do legislador e que figuram de forma
proeminente na obra de Plutarco: a necessidade antropológica de
administrações políticas e leis (sobretudo na ausência de liderança
política), a importância de estabelecer um sistema de educação ca-
paz de assegurar a estabilidade constitucional 12, a polémica entre
‘fazedores’ e ‘teorizadores’ e o uso legítimo de força. Estes elementos
304
são frequentemente destacados na caracterização de Alexandre: este
grego converteu ‘barbárie’ em civilização através da introdução da lei
(Alex. 47.5-6, De Al. Magn. fort. 328A-B, E, 343a13A-C), sendo que a
importação do sistema de educação macedónio era vista não só como
um benefício civilizador para as comunidades bárbaras, mas também
como um meio de manter e gerir a paz social num contexto onde
tensões políticas são obviamente eminentes (Alex. 47.5). Relativamente
à polémica entre ‘fazedores’ e ‘teorizadores’, os legisladores e, no
caso, também Alexandre, são particularmente enaltecidos. Por exem-
plo, sobre a inutilidade da Magna Charta platónica da Constituição
Mista em comparação com os feitos de Alexandre, Plutarco observa
que “embora, entre nós, poucos sejam os que leem as Leis de Platão,
milhares de homens fizeram e fazem uso das leis de Alexandre” 13.
O mesmo disse Plutarco acerca dos legados legislativos e políticos
dos políticos legisladores Licurgo (31.2) e Numa Pompílio (20.8) 14.
Outro elemento geralmente associado à figura do legislador é o uso
legítimo de força de forma ‘programática’ de modo a persuadir as
pessoas a aceitarem um modelo político superior, ou seja, expressões
de uso de bia (βία) “força” por parte de Alexandre serão geralmente
justificadas pela necessidade governativa. Aqui Plutarco segue o mo-
delo platónico de legislador que também faz um uso discricionário
da força de acordo com a conveniência 15.
13 De Al. Magn. fort. 328E: καὶ τοὺς μὲν Πλάτωνος ὀλίγοι νόμους ἀναγιγνώσκομεν,
τοῖς δ’ Ἀλεξάνδρου μυριάδες ἀνθρώπων ἐχρήσαντο καὶ χρῶνται.
14 Respetivamente: Lyc. 31.2: ‘Tal foi a proposta de constituição que Platão,
Diógenes e Zenão e todos quantos, ao tentarem dizer sobre este tema são exalta-
dos, apesar de terem legado apenas escritos e palavras. Licurgo, por seu lado, nem
escritos nem palavras deixou, mas trouxe à luz do dia uma constituição inimitá-
vel’ (ταύτην καὶ Πλάτων ἔλαβε τῆς πολιτείας ὑπόθεσιν καὶ Διογένης καὶ Ζήνων καὶ
πάντες ὅσοι τι περὶ τούτων ἐπιχειρήσαντες εἰπεῖν ἐπαινοῦνται, γράμματα καὶ λόγους
ἀπολιπόντες μόνον. ὁ δὲ οὐ γράμματα καὶ λόγους, ἀλλ’ ἔργῳ πολιτείαν ἀμίμητον εἰς φῶς
προενεγκάμενος); Num. (20.6): ‘[Numa] representou o paradigma e confirmação clara
da afirmação de Platão que, vivendo muito depois, ousou expressar sobre política’
(ἐναργὲς ἐξήνεγκε παράδειγμα καὶ τεκμήριον τῆς Πλατωνικῆς φωνῆς, ἣν ὕστερον ἐκεῖνος
οὐκ ὀλίγοις χρόνοις γενόμενος ἐτόλμησεν ἀφεῖναι περὶ πολιτείας). Traduções de Ália
Rodrigues.
15 O dualismo peitho e bia atravessa todo o pensamento político de Platão e tem
recebido muita atenção por parte dos estudiosos. Como o tratamento deste tema
305
O retrato de Alexandre como embaixador da cidade cósmica de
Zenão faz assim parte da agenda política e ética de Plutarco: em
primeiro lugar, o seu contributo para a história do conceito intelec-
tual do nomothetes deve ser entendido, antes de mais, no âmbito da
tradição platónico-aristotélica e, em segundo lugar, e, em segundo
lugar, no contexto literário seu contemporâneo. O mesmo se verificou
em relação à versão plutarquiana da biografia de Numa Pompílio,
o segundo rei de Roma, que Plutarco associa à figura do legislador
também de forma completamente original, pois não só não consta nas
fontes sobre Numa, como esta figura não tem precedentes na tradição
política romana. A centralidade literária desta ideia é revelada pela
forte agenda política ligada a este conceito em Fílon de Alexandria
e Flávio Josefo, para quem o conceito de nomothetes platónico 16
constitui um topos retórico, um poderoso trunfo para a negociação da
identidade cultural. Assim se, por um lado, o contributo de Plutarco
continua e reproduz o conceito de nomothetes platónico, por outro,
segue também a tradição intelectual grega, isto é, a assimilação en-
tre o nomothetes e o filósofo-rei platónico. Deste ponto de vista, o
inesperado traço do nomothetes aplicado por Plutarco ao Alexandre
retórico recupera a ideologia ateniense e platonizante do nomothetes,
a qual igualmente encarna com a sua própria agenda ético-política:
o processo em curso de representação de uma certa identidade do
passado através de um diálogo com a identidade do presente.
306
2. Alexandre e a estratégia da campanha pan-helénica
307
Héracles e Aquiles) 19. Além disso, as fontes antigas indicavam, por
vezes, a Guerra de Troia como a causa última da inimizade entre
Gregos e Persas 20, não sendo por isso improvável que, na mente de
Alexandre, a campanha contra a Ásia pudesse representar uma es-
pécie de reposição gloriosa daquele conflito. Nesta perspetiva, não
será, portanto, surpreendente que, segundo Plutarco, o primeiro
passo por ele dado depois de atravessar o Helesponto tenha sido o
de fazer uma paragem em Troia, para prestar homenagem a Atena e
aos heróis caídos, particularmente a Aquiles (Alex. 15.8).
Depois dessa breve paragem, Alexandre juntou-se ao grosso das
tropas e preparou-se para enfrentar a primeira batalha, algo muito
importante psicologicamente porque marcaria a entrada na Ásia e a
afirmação do seu génio militar, capaz de alcançar a vitória mesmo
em circunstâncias extremamente desfavoráveis. Com efeito, os Persas
aguardavam as forças invasoras ao longo das margens do rio Granico.
Parménion, um dos generais de Alexandre, aconselhou-o a esperar
pelo dia seguinte, mas Alexandre decidiu prosseguir imediatamente.
As forças persas tinham, nas suas fileiras, milhares de mercenários
gregos de infantaria, que também eram combatentes experientes.
Plutarco (Alex. 16.13-14) afirma que os mercenários pediram ao
macedónio que lhes poupasse a vida, mas Alexandre carregou fu-
riosamente sobre eles, movido mais pela raiva do que pela razão 21.
19 Flower 2000: 101-102, afirma que, embora a verdadeira motivação dos dois
soberanos macedónios não seja segura, não é improvável que, para além do desejo de
realizar grandes feitos, Filipe e Alexandre também tivessem tido em conta que, como
descendentes de Héracles, deveriam imitar o filo-helenismo deste último. Aquiles,
por seu lado, era uma referência constante para Alexandre: segundo Plutarco (Alex.
5.8), Lisímaco – um dos educadores do futuro rei – teria dado a si mesmo o título
de Fénix, o de Aquiles ao seu jovem aluno, e o de Peleu a Filipe. Plutarco sustenta
ainda (Alex. 24.10-14) que, durante o cerco de Tiro, Alexandre arriscaria a sua vida
para salvar Lisímaco, que insistiu em segui-lo em campanha, argumentando que ele
não era nem mais fraco nem mais velho do que Fénix, que acompanhou Aquiles
a Troia.
20 E.g. Heródoto (1.4-5), que vê as invasões de Dario e Xerxes como consequên-
cias desse confronto passado.
21 Hammond 1997: 69 acredita que esta crítica implícita à forma ‘apaixonada’
como Alexandre reagiu foi formulada por Aristobulo, que seria a fonte do relato de
Plutarco neste contexto.
308
Cerca de dois mil homens daquele contingente acabariam sendo
presos e enviados para a Macedónia, onde serviriam como escravos.
Não há razão para ver nesses mercenários uma oposição grega
organizada, porque, por definição, os mercenários lutam pela pessoa
que lhes paga, sem qualquer motivação ideológica que não seja o
lucro rápido. Ainda assim, o tratamento duro que lhes foi imposto
por Alexandre foi certamente motivado pelo facto de esses homens
serem gregos e, portanto, de a sua primeira obrigação ser a de lu-
tar ao lado dos companheiros na procura de um objetivo comum 22.
Além disso, que o desígnio pan-helénico estava então na mente de
Alexandre é claramente demonstrado pelas instruções que ele deu
relativamente à partilha dos despojos (Alex. 16.17-18):
Após vários outros recontros, a grande batalha com Dario III teve
lugar em Gaugamelos. Pouco antes do confronto decisivo, Alexandre
fez um discurso de encorajamento aos diferentes contingentes das
suas tropas que gritaram, em resposta, a confiança que tinham nele
para os liderar contra os bárbaros (Alex. 33.1). Por conseguinte e
22 Em vez disso, aliaram-se aos bárbaros contra os outros gregos; cf. Arriano, 1.16.6.
23 Para a versão portuguesa da Vida Alexandre, usa-se a tradução de M. F. Silva,
em Silva & Brandão 2019.
309
segundo Plutarco, neste momento determinante da sua campanha
Alexandre continuava a mover-se dentro do quadro ideológico do
desígnio pan-helénico. Além disso, esta posição seria ainda mais
reforçada pelas suas ações imediatamente posteriores a ter obtido
a vitória (Alex. 34.2–3):
310
ao avanço persa e, por outro, a vitória de Gaugamelos. Em comum,
todos eles tinham o resultado altamente positivo fruto da formação
de uma aliança pan-helénica contra os bárbaros.
A derrota dos Persas abriu o caminho ao controlo de toda a Ásia,
incluindo as cidades da Babilónia, Susa e Persépolis. Ao longo destas
conquistas, Alexandre pôs em prática algumas decisões que devem
ser entendidas dentro ainda da mesma lógica de retaliação contra
o invasor bárbaro: após a captura de Susa, ordenou a devolução a
Atenas das estátuas de Harmódio e Aristogíton, bem como também
a de Ártemis, que Xerxes tinha roubado 24. Mas o ato mais simbólico
da vitória grega diz respeito à conquista de Persépolis e à destruição
do palácio imperial. A este propósito, as palavras de Demarato de
Corinto (um antigo amigo de Filipe), proferidas quando contemplou
Alexandre sentado no trono de Dario pela primeira vez (Alex. 37.7),
são particularmente enfáticas:
311
num passo da Vida de Agesilau (Ages. 15.3) que, na sua opinião e
na de muitos gregos contemporâneos desses acontecimentos, havia
mais razões para verter lágrimas pelos Gregos (e em particular pe-
los Espartanos) que pereceram em Leuctras, Queroneia, Arcádia e
Corinto, do que pelo facto de não terem vivido para ver Alexandre
sentado no trono de Dario. Isto significa, claro, que nem todos os
gregos viram o macedónio como o hegemon natural dos Hellenes.
Quanto à ideia de queimar o palácio de Persépolis, a tradição
está dividida. A explicação oficial – e a mais provável – é que o in-
cêndio foi uma retaliação contra as invasões persas, em particular
por causa dos sacrilégios cometidos contra os templos gregos. Além
disso, este ato destrutivo produzia em si mesmo um poderoso efeito
psicológico, capaz de reforçar a sujeição dos asiáticos e a sua lealda-
de a Alexandre contra os Espartanos e outras ameaças de rebelião.
No entanto, havia também outra versão, ecoada no testemunho de
Plutarco (Alex. 38), segundo a qual a decisão de queimar o palácio
fora tomada sob a influência de Taís (uma famosa cortesã ateniense)
num momento de imponderação, por um Alexandre toldado pela
bebida, que rapidamente se arrependeu do passo que acabara de
dar. O mais provável, porém, é que o gesto tenha sido premeditado
e que esta segunda versão seja apenas uma forma de romancear um
acontecimento que resultou na destruição de uma das maravilhas
arquitetónicas do mundo antigo. De resto, não é improvável que,
antes do incêndio, Alexandre tivesse aberto o palácio à pilhagem
desordenada dos Macedónios, como é sugerido pelo facto de muitos
pequenos objetos de ouro e de pedras preciosas terem ficado esque-
cidos no chão, como se depreende das escavações arqueológicas 25.
25 Hammond 1997: 114-115. Plutarco (Alex. 38.6-7; cf. 24.1-3) declara também
que os macedónios insistiram na destruição do palácio, porque pensavam que esta
decisão exprimia a intenção de Alexandre de regressar a casa, em vez de ficar entre
os bárbaros. Mais adiante (Alex. 40.2), diz-se que o próprio Alexandre teria criticado
(ainda que apenas um tanto ligeiramente) os seus companheiros por terem adotado
uma forma de vida luxuosa, comparável à dos bárbaros que haviam derrotado.
312
3. Alexandre e o caminho em direção ao cosmopolitismo
313
assim o caminho para o cosmopolitismo da era helenista. Esta é uma
questão complexa e muito debatida, que está para além do âmbito
deste documento, mas vale a pena evocar alguns dos sinais exterio-
res desta mudança e também as reservas que terá inspirado entre os
Gregos, especialmente entre os veteranos macedónios.
Apesar do facto de Aristóteles – um dos mestres de Alexandre
– ter expressado a opinião de que os Gregos eram superiores aos
bárbaros 29, a verdade é que o jovem rei logo mostrou um desejo de
aplicar medidas conciliatórias, motivado ora por um simples prag-
matismo político, ora talvez mesmo por uma convicção crescente 30.
É provável que a realidade envolvesse uma combinação em graus
variáveis destes dois fatores, mas mesmo assim é certo que várias
das medidas de Alexandre resultaram numa promoção eficaz de uma
fusão progressiva entre gregos e asiáticos 31.
Isto reflete-se, por exemplo, na distribuição de funções admi-
nistrativas, repartidas entre os macedónios em quem o rei confiava
(geralmente recrutados entre o seu círculo de pessoas mais próximas),
mas também entre os persas que eram mantidos como sátrapas; na
decisão de permitir que Ada de Halicarnasso o adotasse como filho
29 E.g. Pol. 1252b. Plutarco sustenta (Alex. 8.4) que Alexandre, com o passar do
tempo, se tornaria de alguma forma mais distante de Aristóteles, embora ainda o
admirasse; este pormenor pode sugerir que Alexandre também se tornaria progres-
sivamente mais distante dos seus ensinamentos. Guthrie 1981: 36-43 acredita que o
comportamento do antigo discípulo para com os bárbaros poderá ter, de alguma forma,
chocado Aristóteles. Esta ‘viragem’ relativamente aos ensinamentos do mestre, bem como
a circunstância de Calístenes (um aluno e sobrinho de Aristóteles, que acompanhou
Alexandre em campanha) ter acabado por morrer no contexto da oposição ao ritual
da proskynesis (Alex. 54.3), explicam o facto de a figura de Alexandre se ter tornado
algo odiosa para o Peripatos, embora não seja certo que o efeito sobre Aristóteles
tenha sido o mesmo. Em todo o caso, há que reconhecer que a natureza exata dos
ensinamentos de Aristóteles e a influência que poderão ter tido sobre a atuação ética
e política de Alexandre é muito incerta e, já desde a Antiguidade, objeto de grande
especulação. Para um estudo recente sobre esta matéria, vide Gómez Espelosín 2019.
Sobre a educação de Alexandre em geral, vide síntese de Silva 2019: 31-36.
30 O problema das verdadeiras intenções de Alexandre continua a suscitar contro-
vérsia entre os estudiosos e tem raízes distantes no tempo. Vide Tarn 1933 e Badian
1958, para um exemplo de duas visões clássicas e completamente opostas do suposto
‘sonho’ de Alexandre de construir uma humanidade fraterna.
31 Para um conspecto das fontes que abordam a relação entre Alexandre e os
bárbaros, vide Heckel & Yardley 2004: 175-188.
314
(Alex. 32.7) 32, ou na forma como demonstrou respeito para com a
mãe e esposa de Dario (Alex. 21.1-3; 30.1-10). Formalmente, Alexandre
perfilharia também aspetos do vestuário e protocolo persas, sendo o
mais controverso a tentativa de implementar o ritual da proskynesis
(“adoração, obediência”). Muito tem sido especulado em relação ao
simbolismo desta cerimónia, embora pareça errado ligá-la a uma
simples estratégia de deificação da parte de Alexandre, como argu-
mentam algumas fontes. De facto, os Persas usaram o ritual como
uma forma de reverência estatutária sem necessariamente implicar
– mesmo quando era dirigido ao soberano – a ideia de que era equi-
valente à adoração de um deus 33. No entanto, o mesmo ritual que
na perspetiva de um persa representava simplesmente um cerimonial
antigo, para um grego simbolizava uma humilhação, porque só os
deuses podiam ser dignos de proskynesis. Assim, Alexandre acabaria
por enfrentar a resistência de Gregos e Macedónios, embora a sua
intenção pudesse ter sido apenas a de colocar todos os seus súbditos
numa posição semelhante em relação ao soberano 34.
Planos idênticos de fusão étnica e cultural motivaram provavel-
mente a promoção de casamentos mistos entre gregos e asiáticos (em
Susa, em 324), envolvendo quase uma centena de hetairoi e philoi
de Alexandre, e mulheres nativas de elevado estatuto. As cerimónias
foram patrocinadas diretamente pelo soberano35. Com esta iniciativa,
Alexandre pretendia certamente reforçar a justeza da sua reivindica-
ção do trono dos Aqueménidas, mas afigura-se provável que visasse
também criar uma nova geração de governantes, originada pela fusão
de dois blocos étnicos tradicionalmente inimigos. O mesmo objetivo
estava por detrás da fundação de novas cidades, que não só permi-
315
tiria a fixação de populações nómadas e potencialmente perigosas,
como também facilitaria a coexistência pacífica entre guarnições e a
população local, transformando estes centros urbanos em focos de
irradiação cultural e vitalidade económica da Grécia 36.
Um raciocínio semelhante justifica a decisão de industriar jovens
nativos asiáticos na língua e nas táticas militares dos vencedores
(Alex. 47.5-6):
36 Hammond 1989: 264-267. De acordo com Plutarco (De Al. Magn. Fort. 328E),
Alexandre teria fundado setenta novas cidades.
37 Vide pp. 288-289 acima.
316
levar à prática o projeto de os tornar no pilar da nova realidade polí-
tica e militar, a ponto de poderem substituir as falanges macedónias,
se por algum motivo fosse necessário 38. Este ponto, precisamente,
constituía uma nota de preocupação para os veteranos de Alexandre.
Os primeiros sinais de descontentamento foram sentidos em vários
quadrantes. Um exemplo notável é a morte prematura do seu amigo
Clito39, por ter manifestado em público aqueles medos que eram par-
tilhados por muitos outros companheiros: o abandono das tradições
macedónias; o crescente autoritarismo que tinha afastado Alexandre
do círculo mais próximo dos seus velhos amigos; a pretensão de ser
o filho do deus Ámon. Razões idênticas levaram alguns hetairoi e
Calístenes, em particular, a oporem-se à introdução da proskynesis40.
A situação atingiu proporções de alarme quando, em fevereiro
de 324, numa altura em que o exército ainda estava estacionado em
Susa, os Epigonoi foram apresentados a Alexandre, com a galhardia
e o garbo próprios de quem tinha acabado de terminar quatro anos
de treino. E assim, quando no Verão desse mesmo ano, em Ópis,
Alexandre anunciou numa reunião a decisão de enviar de volta à
Macedónia aqueles veteranos que, depois de generosamente recom-
pensados, já não estavam aptos para campanhas tão duras, em vez
da alegria esperada quase teve de enfrentar um motim (Alex. 80.1-9).
O fosso de entendimento entre as expectativas de Alexandre e as
317
dos Macedónios mostra que ele já não estava tão próximo dos seus
soldados como antes e que eles alimentavam ressentimentos antigos
em relação à sua progressiva orientalização. O rei acabou por resolver
a tensão e cerca de dez mil veteranos embarcariam no caminho de
regresso a casa. Antes disso, porém, Alexandre não desperdiçou a
oportunidade de celebrar uma grande festa de reconciliação, à qual
assistiram muitos convidados, incluindo Macedónios, Gregos, Persas,
além de representantes de outras etnias asiáticas.
Considerações finais
318
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320
P l u ta r c o e H e r ó d o t o :
e n t r e b i o g r a f i a e h i s tó r i a *1
P l u ta r c h a n d H e r o d o t u s :
F r o m B i o g r a p h y to H i s to ry
Joaquim Pinheiro
Univ. Madeira, CECH
ORCID: 0000-0002-5425-9865
pinus@uma.pt
Resumo: Nas Vidas Paralelas e nos Tratados Morais, Plutarco usa muitas
vezes Heródoto como fonte. Apesar disso, critica, no tratado De ma-
lignitate Herodoti, a metodologia e as opções de Heródoto, fazendo
uma leitura que, em muitos casos, é sobretudo ética e cultural. A nossa
reflexão visa analisar a proximidade entre a biografia e a história
por meio da avaliação que Plutarco fez da historiografia herodotiana.
*1 Este estudo foi desenvolvido no âmbito do Projeto “Roma nosso lar: tradição (auto)
biográfica e consolidação da(s) identidade(s)” (PTDC/LLT-OUT/28431/2017), financiado
pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (Portugal). Acrescente-se que, o autor
deste texto não adota o chamado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990). A
ortografia seguida é da responsabilidade da Imprensa da Universidade de Coimbra,
que, enquanto instituição pública, o exige por imposição legal a que está obrigada.
Na preparação deste trabalho, foi muito útil a consulta da recolha bibliográfica
que está disponível em: https://www.arts.kuleuven.be/oudegeschiedenis/documenten/
pdf/bibliography.pdf.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_15
Herodoti Herodotus’ methodology and options, making a reading
that, in many cases, is above all ethical and cultural. Our reflection
aims to analyse the proximity between biography and history through
Plutarch’s assessment of Herodotean historiography.
322
No tratado A malícia de Heródoto 4, Plutarco lança duras críticas
à historiografia de Heródoto, acusado de ser um philobarbaros 5 ,
e enuncia alguns dos critérios que devem ser usados por um bom
historiador e que ele próprio terá supostamente seguido. No entan-
to, como tem sido reconhecido em vários estudos 6, nem o próprio
Plutarco conseguiu evitar alguns dos erros que aponta a Heródoto 7.
Na biografia de Címon 8, Plutarco mostra a sua intenção de respei-
tar a verdade e de não esconder os defeitos das suas personagens,
mesmo daquelas que merecem os mais nobres elogios, até porque
a perfeição humana é algo em que parece não acreditar. Ainda em
relação ao elogio, considera que aquele que não precisa do elogio
dos outros está mais preparado para a arete do que quem se auto-
elogia 9, evidenciando a forma cuidadosa com que trata a questão
do elogio ou do protagonismo. É por isso que advoga uma correta
análise das personagens e dos factos, para não se incorrer na censura
nem no elogio. Por conseguinte, percebemos quais são as diretrizes
que a historiografia deve seguir a partir das razões que Plutarco
apresenta para acusar Heródoto de malícia, a saber: 1) recurso, de
forma intencional, a expressões caluniosas, em vez de optar por
vocábulos mais razoáveis ou moderados; 2) exposição aprofunda-
323
da de más ações de indivíduos, mesmo quando não são relevantes
para a indagação histórica, ao contrário daquilo que Tucídides fez,
segundo Plutarco 10, com Cléon ou com Hipérbolo, apesar dos de-
feitos e erros que cometeram 11; 3) omissão de atos belos e bons, o
que pode prejudicar a narrativa histórica (“elogiar sem vontade não
é mais conveniente do que deleitar-se com a censura” 12), uma vez
que isso é feito em detrimento de atos dignos de serem narrados; 4)
aceitação de uma versão desfavorável quando há duas ou mais sobre
uma ação, considerando Plutarco que, ao contrário dos sofistas, um
historiador deve seguir a verdade e, em caso de dúvida, não aproveitar
a versão mais desfavorável, um procedimento que, de forma correta,
Éforo e Tucídides seguiram. Além destas críticas, Plutarco denuncia
os autores que recorrem ao vitupério, com malícia, por meio de uma
estratégia retórica que se revela capciosa: misturar censuras vãs e
muitos louvores como meio de credibilizar os vitupérios 13.
Além destas considerações, Plutarco defende, de novo, que a
tuche não deve servir para explicar os sucessos, pois não se pode
tirar valor à arete, um tema que também desenvolve nos tratados
A fortuna ou a virtude de Alexandre Magno e A fortuna dos Romanos.
O mais importante é, no caso de haver versões duvidosas, escolher
a que oferece melhores garantias e a que se aproxima mais da ver-
dade. Por isso, Tucídides e Xenofonte, ao contrário de Heródoto, são
para Plutarco modelos de bons historiadores. Consegue-se perceber,
com estes critérios, que, quando há opiniões divergentes, Plutarco
324
segue a da maioria 14, procurando inquirir sobre a probabilidade e
a plausibilidade da fonte 15. Contudo, por vezes torna-se difícil fa-
zer coexistir a acribia histórica e a valorização moral, uma vez que
Plutarco nem sempre consegue, na avaliação “científica” das fontes,
pôr de lado o seu julgamento moral. Do mesmo modo, é necessário
não esquecer que, tal como na seleção das biografias existe uma
apreciação pessoal, também as fontes não são imunes à subjetividade
de Plutarco, como acontece com qualquer outro autor.
Se por algum motivo a transmissão textual não nos permitisse o
acesso aos nove livros das Histórias de Heródoto, certamente que o
tratado A malícia de Heródoto seria uma fonte relevante para conhe-
cermos o historiador de Halicarnasso, embora ficássemos com uma
avaliação um pouco tendenciosa por parte de Plutarco. O pormenor e
a estrutura da refutação, respeitando a ordem dos livros de Heródoto,
revela, desde logo, que conhecia muito bem a narrativa historiográ-
fica. Embora atribua a Tucídides maior credibilidade, Heródoto é
mais vezes citado 16. Além disso, como pretende apontar exemplos
da malícia de Heródoto, seleciona algumas descrições ou episódios
que servem para reforçar a sua argumentação. Este método de ajus-
tamento ou de adaptação do material narrativo à argumentação é
recorrente em Plutarco e revela que aquilo que avalia como um de-
feito em Heródoto é por ele próprio também usado, em particular,
nas biografias. Saliente-se que Plutarco, sem querer rivalizar com
o historiador de Halicarnasso, se insere na tradição exegética das
Histórias ao fazer um escrutínio da narrativa e da sua metodologia.
No final da época clássica, com Ctésias de Cnido e Aristóteles já
14 Dem. 23.4.
15 Sobre alguns dos critérios usados por Plutarco nas Vitae, vide Nikolaidis 1997:
329-341, que valoriza o trabalho de Plutarco, não se coibindo de apontar diversos
aspetos que podem ter deformado a exatidão histórica, sem que isso coloque em
causa o valor do seu trabalho.
16 Heródoto é citado cerca de 260 vezes; Tucídides 130 vezes, Xenofonte 120
vezes; reconhecemos que o número de citações tem de ser interpretado com muita
cautela, se considerarmos que Dionísio de Halicarnasso, por exemplo, não é muitas
vezes referido, mas supomos que terá sido muito útil na hora de escrever o tratado
Questões Romanas; da Época Helenística, o historiador mais citado é Políbio (50 vezes).
325
havia começado a crítica da obra de Heródoto, continuando nos
séculos seguintes, entre gregos e romanos, como sucede na obra
Sobre as mentiras de Heródoto, de Élio Arpocrácio 17 . Numa outra
perspetiva, mas que também nos ajuda a compreender as raízes da
historiografia e a sua receção, houve, em especial no século I a.C.,
uma certa tendência para a comparatio entre Heródoto e Tucídides18.
Acredita-se que essas obras possam ter exercido alguma influência
em Plutarco, mas parece-nos que o tratado A malícia de Heródoto
não surge como resposta a essa tradição ou com a clara intenção de
se posicionar nesse debate comparativo. Por se querer recuperar o
passado glorioso da Grécia, a crítica à obra de Heródoto parece ter
sido um tema recorrente da Segunda Sofística, se tivermos em conta
alguns textos de Élio Aristides ou o opúsculo Como se deve escrever
história de Luciano.
Apesar das críticas que tece, Plutarco reconhece, certamente, a
validade do registo histórico de Heródoto, até pela sua proximidade
em relação aos acontecimentos e às próprias fontes. Por isso mes-
mo, no processo de elaboração das biografias de Temístocles ou
Aristides, por exemplo, Plutarco socorreu-se de Heródoto como uma
das principais fontes. Na verdade, resumir a historiografia a mera
fonte para a escrita das vidas não nos parece o mais correto. Ainda
que, de forma um pouco superficial, se possa dizer que a biografia
se concentra no retrato ou no agente da ação e a história na ação
propriamente dita, essa distinção não é, de todo, rigorosa. A inter-
secção entre história e biografia é, sem dúvida, evidente, sobretudo
ao nível da metodologia de investigação. O que se pesquisa sobre
um facto histórico pode, de facto, ser relevante para a construção
biográfica e, simultaneamente, para a narrativa histórica. Acresce
que a biografia constitui, como sucede com as Vidas Paralelas, um
valioso documento histórico.
326
Além de Heródoto e Plutarco inscreverem as suas obras em géne-
ros literários distintos, quando se apontam diferenças entre os dois é
preciso ter em conta que o historiador de Halicarnasso escreveu num
momento de afirmação da hegemonia ateniense, enquanto Plutarco
convive com o domínio romano. Retomando o tema da possível moti-
vação de Plutarco ao escrever este tratado, isso parece estar enunciado
no seu incipit: defender a memória dos antepassados das difamações
de Heródoto 19. Esta forma de recuperar o passado glorioso dos gre-
gos 20 é também um recurso de Plutarco para manter a identidade
helénica num contexto cultural complexo 21 , uma vez que se está
sob domínio romano. Um sinal muito significativo disso é a crítica
que Plutarco 22 faz à forma caluniosa como Heródoto desvaloriza ou
desvirtua os princípios do Oráculo de Delfos, colocando em causa
a sua credibilidade. Ora, no tempo de Plutarco, a religiosidade de
Delfos, em declínio, concorria com novos cultos e teria dificuldade
em sobreviver, querendo, no contexto cultural já referido, retomar
o seu prestígio, como se deduz do tratado O desaparecimento dos
oráculos do Queronense.
Resulta evidente que a distinção entre histor ia e bios 23 ,
proposta por Plutarco no prólogo da biogr af ia de Alexan-
19 Cf. 854F.
20 O volume editado por Georgiadou & Oikonomopoulou 2017 reúne vários
estudos que procuram interpretar a presença desse passado na obra de Plutarco.
21 Whitmarsh 2013: 57-85 usa mesmo o conceito de ‘resistência cultural’.
22 Cf. 860D.
23 Apesar de aqui distinguir historia de bios, refira-se que nas cinquenta e duas
ocorrências da palavra historia nas Vitae – distribuídas por vinte e sete biografias –
nem sempre o sentido semântico é igual: em Sol. 2.1, Per. 2.4 e Cat. Mi. 12.2 historia
surge com o sentido de “conhecimento” que se adquire por meio da experiência e
do contacto direto. Pode também significar “narração” ou “compilação de narrações”,
em especial quando Plutarco se refere às fontes (cf. Thes. 26.3, Rom. 2.8, Aem. 19.7,
Pomp. 37.3, Cat. Ma. 12.6, Dem. 30.1, Ant. 82.4, Them. 32.4). Por sua vez, em Dem.
2.1, Cat. Mi. 12.1; Thes. 1.2, Nic. 1.5, Cim. 2.5, Fab. 1.1 e Aem. 1.1, chama historia
ao texto que pretende escrever, mas também aí parece estar mais próximo do sen-
tido herodotiano de “pesquisa” do que de “obra histórica”. Sobre este assunto, são
de grande utilidade os estudos de Valgiglio 1987: 50-70, Desideri 1992: 4537-4545,
Gómez & Mestre 1997: 209-228 e Duff 2002r: 18-22. Sobre a conceção de história
em Plutarco, além das semelhanças e diferenças entre biografia e historiografia na
Antiguidade, vide Press 1982: esp. 71-74. Neste estudo, o autor afirma que historia
327
dre24, não tem os limites bem definidos25. Não se pode simplesmen-
te dizer que as Vitae são um exercício biográfico, mas é imperioso
aduzir que Plutarco desenvolve um labor profundo de indagação
histórica, de forma a compreender a phusis e o ethos do ser humano,
entrando muitas vezes no campo da filosofia. O modo como histó-
ria, biografia/ethos e filosofia aparecem associados na construção
da paideia faz-nos lembrar as palavras de Dionísio de Halicarnasso:
“Também Platão disse isto: a poesia, por embelezar inúmeras ações
dos antigos, educa os que nasceram mais tarde; então, a educação
é a procura dos caracteres; Tucídides, ao discorrer sobre a história,
parece ter dito que a história é filosofia a partir dos exemplos” 26.
Quanto a Plutarco, julgamos poder afirmar que ele prefere introduzir
nas biografias elementos dramáticos, problematizando a relação que
a arete e a tuche têm com os acontecimentos. Põe a descoberto, em
geral, as emoções e os desejos (pathe), em vez de se deter na prag-
matike historia como podemos confirmar na biografia de Alexandre.
Transparecem, por isso, muitos traços psicológicos na descrição das
biografias, traços que são resultado da aventura de cada indivíduo
e que dão uma tonalidade trágica à narrativa.
A declaração de que não pretende escrever histórias, mas vidas,
segundo o estilo de Políbio 27, serve de aviso para o leitor da altura
podia ter três sentidos: pesquisa, género literário e narrativa ou história (p. 23-60).
Segundo Hershbell 1997: 230 e 233: “no doubt that Plutarch understood history as
research or inquiry after the facts. He could also think of «history» as «story», what
is told or narrated (...) it is tempting to conclude that for Plutarch the difference
between history and biography was that between a study of past events, and a study
of human character. History has no concern with ethical judgements; biography does”.
24 Pelo seu valor, transcrevemos as palavras de Russel 2001: 102 sobre o sentido
de bios neste prólogo: “bios means roughly, ‘way of life’, whether in an individual
or in a society (...) It also has some connotations of ordinary life, and is associated
with the realm of comedy rather than with the grand topics of epic or, for the matter,
history (...) Thus to describe the bios of a great man was to say ‘what sort of man he
was’ (poios tis en) and regard him, in a sense, as one of ourselves”.
25 Pelling 2002c e 2002d, ao analisar as fontes e a forma como elas terão condi-
cionado a composição de Plutarco (e.g., técnicas de simplificação e de compressão
cronológica), conclui que o género biográfico tem uma natureza flexível e versátil.
26 Ars Rhet. 11.2.
27 10.21.
328
e para o atual leitor, que devem ter em conta a intencionalidade de
Plutarco, ainda que possam lamentar o facto de ele nem sempre ter
sido fiel no uso das fontes ou não ter sido mais preciso e exaustivo
na identificação de personagens ou no relato de acontecimentos que
incorporam os bioi. Não deve o leitor esperar um relato completo dos
grandes feitos, pois a virtude (arete) e o vício (kakia) podem ser me-
lhor observados nas pequenas demonstrações do carácter humano28.
Convicto disso, será a partir de pequenos episódios (pragma brachu),
que são normais na vida quotidiana, e muitas vezes anedóticos, que
Plutarco delineará o ethos, embora saibamos que a caracterização
global do indivíduo se faz com base em ações grandiosas, dignas
de figurar na história, tal como os agentes que as protagonizam 29.
Se tivermos em conta que os géneros literários, como aludimos
antes, não teriam uma divisão rígida e que haveria uma espécie de
contaminatio entre eles30 – assim acontece com o encómio, a novela
e a biografia romanceada – percebe-se a necessidade de classificar o
género usado por Plutarco como biografia política31, biografia ético-
-moral ou simplesmente biopsicografia 32 , especificando-se, desse
modo, a natureza e o conteúdo das suas biografias, que transformam
28 Em Nic. 1.1-5, lembra, de igual modo, aos leitores que não tem a intenção de
rivalizar com Tucídides ou Timeu, mas de procurar pormenores que exemplifiquem
o carácter e o comportamento do biografado, deixando de referir aquilo que não
contribui para essa análise. As palavras ou discursos são, por vezes, mais reveladores
do carácter de um indivíduo do que os feitos (cf. De Alex. fort. aut virt. 330E, Phoc.
5 e Comp. Dem. -Cic. 1.4.) e do que a própria fisionomia (cf. Cat. Ma. 7.3; De tuenda
san. 137E).
29 Cf. Demetr. 1.5-8, Pomp. 8.7 e Nic. 1.5.
30 Cf. Gallo 2000: 9-17; considerando o que Rossi 1971 propõe para as leis (escri-
tas ou não) dos géneros literários na Antiguidade (na época arcaica: leis não escritas,
mas os autores tinham consciência delas e respeitavam-nas; na época clássica: leis são
escritas e respeitadas; na época helenística: as leis são escritas mas não respeitadas),
I. Gallo, seguindo a mesma formulação, afirma que na época de Plutarco “si potrebbe
parlare di leggi non scritte, ma rispettate, come in epoca arcaica”. Saïd 2002 reflete
sobre a proximidade entre história e tragédia.
31 Expressão mais usada para designar a biografia plutarquiana, embora, na nossa
opinião, não se possa entender com essa expressão que Plutarco seguia uma estra-
tégia política, mas apenas que a politeia e o seu exercício servem de base para a
caracterização do ethos.
32 Inspiramo-nos na designação “biopsicologia” usada por Becchi 2001.
329
a indagação histórica num meio para o objetivo central: aprofundar
o ethos. Essas características também se podem aplicar, de alguma
maneira, à narrativa histórica. A designação de biografia histórica
aplica-se às biografias, mas, como P. Stadter demonstrou, encontra-
-se a mesma metodologia nos perfis do tratado As virtudes das
mulheres33. Por sua vez, a opinião de B. Scardigli sobre o binómio
historia-bios e a sua presença nas biografias é bastante elucidativa:
“Plutarch occupies an intermediate position and represents a special
case, both because he discusses the difference between history and
biography and because he knows and uses historical writings.”34
Esta opinião tem claramente em conta a influência peripatética na
elaboração dos bioi e não neglicencia a tarefa de pesquisa levada a
cabo por Plutarco.
Como referimos, história e biografia têm em comum a procura de
fontes para sustentar ou refutar uma tese ou ideia. Parece óbvio que
Plutarco tinha à sua disposição mais elementos sobre as vidas gregas
do que sobre as romanas. Terá mesmo tido alguma dificuldade em
reunir documentação para escrever a vida dos heróis romanos 35, pois
não saberia suficiente latim36 nem o acesso aos textos era fácil.37 Aliás,
essa pode ser uma razão para, como Plutarco explica no prólogo
do par Teseu-Rómulo, escolher o herói grego em função do romano,
ou seja, só depois de reunir os elementos necessários para compor
330
a biografia romana selecionaria, com alguma facilidade, uma figura
da história helénica. O prólogo da biografia de Demóstenes, onde
Plutarco afirma ter um conhecimento insuficiente da língua latina,
assume especial interesse se tivermos em conta que as Vidas Paralelas
retratam heróis romanos e que para isso terá tido necessidade de ler
muitos textos em língua latina. Como poderia aprofundar elementos
históricos ou literários ao abordar a vida dos romanos sem conhecer
a língua de Vergílio? Talvez por não a dominar em pleno se tenha
limitado a descrever o seu carácter e as suas carreiras, como acon-
tece na biografia de Cícero, fazendo o mesmo na de Demóstenes.
A produção literária destes dois oradores não é comparada nem
aprofundada, focando-se apenas em aspetos relacionados com a
conduta pública e privada de ambos.
Quanto aos métodos de trabalho de Plutarco, parece que tinha um
problema de documentação em Queroneia, pois fala-nos, com alguma
inveja, daqueles que vivem em cidades célebres, onde o ambiente
cultural e a quantidade de informação favoreciam os escritores. 38
Aproveitaria certamente as suas viagens a Atenas e a Roma para
juntar alguma documentação ou tirar notas para a sua produção
literária, pois a dimensão erudita das suas obras faz supor que terá
usado muitos textos. Por exemplo, no tratado O desaparecimento de
oráculos, pede aos seus conhecidos de Atenas que lhe enviem livros.
Na linha de vários estudos, podemos pensar que muitas das obras
dos autores mencionados não foram realmente consultadas e que se
limitou a usar fontes intermédias ou excerpta. Acreditando-se que
trabalharia em simultâneo nas diversas vidas, a documentação teria
um uso abrangente e não apenas exclusivo de uma ou outra biogra-
38 Cf. Dem. 2.1; apesar de ser o próprio Plutarco a afirmá-lo, parece-nos um pouco
estranho que um homem com reduzidos conhecimentos da língua latina se tivesse
lançado numa empresa tão grande e exigente como as Vidas Paralelas. Sabendo-se
que é pouco normal Plutarco fazer apontamentos autobiográficos, coloca-se a hipó-
tese de essa declaração ser uma forma de captatio benevolentiae. Abreviando esta
problemática, parece-nos que Plutarco, quando avisa os leitores sobre o nível dos seus
conhecimentos da língua latina, tenta justificar o facto de não se alongar na biografia
de Cícero em análises sobre a extensa obra deste. Muito provavelmente o problema
da falta de livros não existiria, pois facilmente os poderia encontrar em Atenas.
331
fia. A documentação usada serviu certamente para várias biografias,
o que explica as repetições que se podem encontrar.
Quando ele próprio não leu um autor que cita, faz referência a
uma fonte de segunda-mão. 39 Outras vezes, reproduz quase literal-
mente um autor mas sem o nomear. 40 Quando não confia na fonte
Também não se coíbe de dizer que ela lhe merece pouca credibili-
dade 41. Assume, quando não tem ao seu dispor todos os elementos,
que não pode tomar uma posição sobre uma questão, como aconte-
ce, por exemplo, no momento em que refere o que Ésquines disse
sobre a mãe de Demóstenes: “Quanto ao que o orador Ésquines
disse acerca de sua mãe – que seria filha de um tal Gílon, banido
da cidade por acusação de traição, e de uma mulher bárbara – não
podemos dizer se se trata de uma afirmação verdadeira ou, antes,
falsa e caluniadora”. 42
Plutarco faz uso de alguns dos métodos próprios de um historiador,
nomeadamente a referência a diferentes versões e a sua consequen-
te análise, manifestando, em alguns casos, ter a preocupação de
contar a verdade 43. Por isso mesmo, como fazem Arriano, Apiano
e Díon Cássio, Plutarco inclui geralmente a lista dos historiadores
do período imperial 44. Na verdade, Plutarco salienta e desenvolve
questões históricas, mas com uma perspetiva moralista, centralizada
no carácter de personagens. 45 Contudo, não é isto que o afasta do
género historiográfico, que também não deixa de ter uma preocupa-
ção moralista, dando, além disso, prioridade à utilidade (opheleia),
39 Cf. Dem. 5.7; 10.2; 30.1; Rom. 17.5; Sol. 6.7 e 11.2.
40 Cf. Dem. 16.3-5 (cf. Dem. Ep. 237).
41 Cf. Per. 28.3.
42 Dem. 4.2 (tradução de Várzeas 2010).
43 Cf. Dem. 20.1; note-se que para Plutarco a verdade pode ser difícil de encon-
trar, mas como objeto de procura filosófica ela existe (cf. De adul. 49C, De exil. 559C,
Quaest. conv. 684D e Quaest. Plat. 1000B-D).
44 Por exemplo, Moxon et al. 1986, ao estudar a presença da história na literatura
greco-romana, também inclui Plutarco na lista dos que merecem um estudo sobre a
historical writing, tal como Heródoto, Tucídides, Xenofonte.
45 E.g. Sull. 12.7-9.
332
em detrimento do deleite (terpsis) 46. Qualquer leitor nota, como já
mencionámos, que Plutarco considera relevante recuperar os feitos
do passado para a pedagogia do presente, sublinhando os padrões
sociais e individuais que se repetem ao longo do tempo. Ora, este não
é mais do que um topos da historiografia grega 47, que prova a sua
utilidade a partir da análise dessas repetições históricas, apontando
causas e consequências. Se é verdade que também a historiografia
tem, por vezes, um tom moralista, o que mostra uma similitude com
as biografias, não podemos ignorar que para Plutarco a ética mora-
lista assume-se como um leitmotiv da sua composição, capaz de o
levar a sacrificar o rigor da descrição dos factos históricos.
De facto, o carácter moralizador ou didático pode estar presente
na narrativa histórica. Apesar de a biografia se concentrar mais na
caracterização de uma figura, a história também nos lega interessantes
retratos humanos. Parece-nos que, se é verdade que o móbil princi-
pal da escrita histórica não é produzir avaliações morais ou éticas,
também não é totalmente correto afirmar-se que não as faz, até pela
tendência de moralização do passado feita pelos historiadores gre-
gos. Nesse sentido, concordamos com E. Valgiglio: “la grande storia
fa, si, anche emerger il carattere dell’uomo, ma in línea subordinata
e marginale; in linea primaria stanno le praxeis in riferimento alle
nazioni, ai popoli, agli stati, e non in relazione agli individui che
sono oggetto specifico della biografia”48. Note-se, ainda, que usar
o número de ocorrências de palavras com a raiz histor– não pode
servir de argumento para considerar um autor mais histórico ou mais
biográfico. Basta lembrar que na obra de Tucídides, que ninguém
duvida de que é um historiógrafo, os vocábulos historia e historein
nunca aparecem!
333
A escrita histórica e biográfica transmite aos leitores do seu
tempo e aos vindouros uma memória49 com uma evidente função
didática, um pouco à semelhança do princípio “aprender com o pas-
sado”, e, por outro, muitas vezes a correção dos hábitos é mais fácil
de se fazer a partir de maus exemplos do que com base nos bons
exemplos. Quanto a Plutarco, numa época de conflitos e de crise
de valores, a apresentação de homens maioritariamente virtuosos
não refletiria com exatidão a realidade, algo que não seria o seu
objetivo, se atendermos à ênfase que coloca na imitação dos valores
pela praxis. Embora haja a tendência de olhar para o passado como
algo glorioso e modelar, não pode o historiador ou biógrafo apagar
os exemplos menos edificantes. Seguindo este princípio, não deixa
de ser curioso que Plutarco critique Heródoto por este fazer refe-
rência a alguns factos desfavoráveis às cidades gregas, como Tebas
e a própria região da Beócia, incorrendo na manipulação histórica.
Como referimos, é necessário ter noção da evolução do género his-
toriográfico e, além disso, é complicado fazer juízos de valor sobre
os métodos de Heródoto e Plutarco, uma vez que épocas diferen-
tes exigem respostas diferentes. Confrontam-se, na verdade, duas
formas de fazer investigação e de conceção histórica. Ainda assim,
diríamos que o olhar do Outro 50, o não-grego, está tão presente na
obra de Heródoto, como a consciência do poderio romano está na de
Plutarco.
No final do tratado A malícia de Heródoto51, Plutarco afirma que
o historiador foi um autor hábil, com uma escrita agradável e relatos
graciosos, ou seja, uma narrativa sedutora pela sua capacidade lite-
49 E.g. Tácito considera que o vício deve ser recordado para a posteridade (cf.
Ann. 3.65).
50 Para Dewald 1990: 276: “it makes central to the Histories the otherness of
Herodotus, multiple informants as voices he has listened to and is transmitting in
turn to us. In Herodotus’ narrative we are apparently encountering the polyvocalism
of the world itself”.
51 Cf. 874A-C.
334
rária 52. Por isso, avisa os leitores de que devem ter cuidado com a
blasfémia ou difamação (blasphemia) e a maledicência (kakologia).
Caso contrário, tomarão por verdadeiras as informações que carecem
de provas ou fontes seguras e que não passam de meras opiniões,
apenas assombrando o passado glorioso das poleis e dos gregos,
segundo Plutarco. Estamos, assim, perante um tratado que constitui
um documento interessante sobre a receção da historiografia no
período imperial.
Tem este tratado sido interpretado, por vezes, como um exercí-
cio de retórica ou valorizado pelo seu conteúdo historiográfico53.
Estas duas perspetivas são conciliáveis e revelam a abrangência que
caracteriza, em geral, muitos dos tratados de Plutarco. Parece-nos,
contudo, que a razão do tratado se encontra definida na parte ini-
cial 54 quando se assume o objetivo de defender o passado helénico
e, por conseguinte, a verdade (aletheia). Se todo o enquadramento
é dado pela reflexão historiográfica e alicerçado numa estrutura que,
do ponto de vista retórico, é irrepreensível, também não deixa de nos
chamar a atenção a forma como Plutarco alude a aspetos identitários
e culturais do passado grego, de forma a reforçar o seu valor num
contexto político e social complexo 55. Plutarco e Heródoto tiveram,
certamente, objetivos diferentes, mas partilharam metodologias de
trabalho para a narrativa de factos, como o manuseamento das fon-
tes. Se Heródoto é muitas vezes criticado pela sua falta de acribia,
também na obra de Plutarco são identificadas várias incorreções ou
omissões. Da leitura do tratado A malícia de Heródoto percebemos
que a exegese histórica não se baseia apenas em factos, mas funda-
-se, em vários casos, numa ideologia de valorização da história grega,
335
que representa uma memória que interessa manter e consolidar em
tempos imperiais. Entendemos, por isso, que a retórica epidíctica do
tratado não será um fim, mas um recurso ao serviço dos princípios
que Plutarco pretende defender junto dos seus destinatários.
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338
LITERATURA LATINA
(Página deixada propositadamente em branco)
Amphitruo d e P l au to y l a c o n s t ru c c i ó n
de l a “romanidad”
A m p h i t ru o b y P l au t u s a n d t h e b u i l d i n g
of “romanity”
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_16
contexto extraverbal de la cavea y si se los separa de esa dimensión
pierden casi todo su sentido.
En este trabajo se describen y analizan procedimientos dramatúrgico-
-retóricos acerca del locus del adulterio y el engaño que ameritan la
indagación sobre cómo se construye la alusión a la preservación de
la tradición.
Palabras clave: Plauto, palliata, imaginario social, retórica, dicta
Abstract: The sponsorship of the spectacles by the Roman State laid within
in the ludi scaenici allows for dramatic literature that, in the social
imaginary of the republic, cannot but agree to the main statements of
the official speech of the mos maiorum to subsist. Thus, the playwri-
ghts of the palliata, recycling the sources of the “New Comedy”, make
up fabulae, apparently unlinked to the social roman series. However,
Amphitruo by Plautus can be read as a non-innocent contribution to
the cause and frenzy of war in the context of the Punic Wars.
In terms of Bajtin, under a comical format that adjusts itself to the
classification-sanction of the prologue formulated by Mercurius in
regard to the quality of the tragicomedy (v. 63), this case of writing
and spectacularity named Amphitruo sustains itself in a social dialec-
tic that answers to the speech of the enabling power for the scene,
that is to say, an intertextual dynamic whose limits are diffused in
an intersection of dicta: a password that is only known by those
who belong to the same social field. The distinctive characteristic of
these exemplary formulations resides precisely in the fact that they
establish a multitude of connections to the extraverbal context of the
cavea and if they are disjointed, they lose almost all meaning.
Described and analyzed in this work are the dramaturgical-rhetorical
proceedings on the locus of adultery and cheating that merit looking
into how the allusion to preservation of tradition is built.
Keywords: Plautus, palliata, social imaginary, rhetoric, dicta
1. Perspectiva teatrológica
342
raria, la filología y otras matrices de instrumentales de análisis en
vinculación, asimismo, con los estudios culturales. Sin embargo, esa
indagación –por cierto valiosa− constituye un grupo de puntos de
vista que no incluyen de un modo evidente y explícito las reflexio-
nes y producciones teóricas de la Teatrología, por un lado, y de los
estatutos propios de la práctica teatral, por otro. Situados nosotros
en la tensión y préstamos entre el componente verbal y las hipótesis
sobre la relación scaena/histriones/cavea, podemos proponer una
perspectiva que atienda en parte la compleja constitución de los textos
dramáticos antiguos de acuerdo con presupuestos de performance.
En virtud de ese posicionamiento, cabe consignar que en el estudio
de la comedia romana utilizamos como insumo teórico la categoría
“teatralidad” del modo que propone Dubatti.1 Este investigador teatral
argentino sostiene que la condición de “teatralidad” es el resultado
de la simultaneidad de tres acontecimientos. En primer lugar sucede
el convivium, la copresencia pactada de personas ante un evento
espectacular, lo que supone roles de comportamiento diferenciado
y una “zona de veda” del espacio del auditorio. En segundo lugar,
se dispara la poíesis o fictio, es decir, la producción somática y
semiótica en el espacio y tiempo de la escena que han de llevar a
cabo los agentes actorales. En tercer término, y como instancia in-
dispensable, la expectación, entendida como la atención voluntaria,
sostenida y satisfactoria de los espectadores hacia el suceso teatral.
Los tres hechos constituyen la unidad mínima de la existencia de la
noción de teatralidad y configuran un punto de partida de nuestras
investigaciones en tanto sostenemos que la fictio plautina se confor-
ma no solo desde la traducción y reescritura de la Néa, sino también
desde una compositio dramatúrgica que construye permanentemente
su auditorio por medio de dispositivos de atracción destinados a
estimular la expectación: si el convivium resulta imprescindible,
los dicta plautinos y su eventual actio operan desde estatutos de
seducción, desde una constante captatio benevolentiae que apela a
1 Dubatti 2020.
343
tendencias perceptuales, idiosincrasias y hábitos de consumo espec-
tacular de los destinatarios.
Si bien las distintas culturas teatrales han provocado diferentes
acontecimientos dramatúrgicos, actorales y espectatoriales, el man-
tenimiento de la pretensión de control de esa alteridad llamada
“público” ha permanecido asentado sobre similares patrones de orden
estético, en el sentido etimológico de “percepción de un fenómeno”.
Cuando decimos control nos referimos a la ineludible obligación que
la escena (actores, escenario, director) tiene de convocar al consumo
perceptual de su propia presencia, es decir, de seducir.
Plauto, por decorum, 2 sabe qué conviene a la escena para la re-
presentación: como hombre de teatro y no solo dramaturgo, escribe
en función de intereses de seducción escénica. No pretende dar a
conocer meramente una fabula, sino –sobre todo porque vivía de
eso− que el público la acepte y la consuma. Por ello en el entramado
textual se advierten mecanismos retóricos de sostenimiento de la
videncia-audición que no prescinden (tal vez sin un conocimiento
teórico cabal de parte del autor) de máximas y leyes de la percepción
inscriptas en la actualidad en teorías de la psicología de la percep-
ción 3 y en el imaginario de la recepción. Por ello, sostenemos que
Plauto se ha valido –aún sin saberlo− de la utilización de principios
constructivos en su textualidad que se han proyectado mayormente
hacia el espacio de la confrontación (convivium y expectación) de la
obra con el público: se singulariza, así, un auditorio, el de la república.
2 Pricco 2016.
3 Arnheim 2001; Gombrich 1999.
344
las partes responden a un plan general, seguimos sosteniendo que
las comedias de las que se dispone para el estudio pueden leerse
desde panoramas orgánicos. 4
El patrocinio estatal de los espectáculos inscriptos en los ludi
habilita una literatura dramática que, inserta en los imaginarios 5 de
la república romana no puede menos que avenirse a los principales
enunciados del discurso oficial del mos maiorum para subsistir. De
tal modo hemos concebido en otras oportunidades 6 el rol de las
personae servus, senex, adulescens, miles, parasitus y meretrix en
tanto máscaras portadoras de semas presentes en el extratexto y en
las instituciones como sustento de una lógica que reafirma en el
universo de ficción los comportamientos esperables y las sanciones
y justificaciones de conducta pertinentes. Al mismo tiempo estaría-
mos en condiciones de observar cómo una recurrencia parlamentaria
que estructura doxas de los imaginarios sociales romanos supone
un instrumento de vinculación del convivium con la escena cómica.
En esa línea, y si recurrimos a las instancias de identificación que
las piezas teatrales conllevan para el logro de la expectación, con-
sideramos que el discurso erótico y las relaciones amorosas de los
personajes plautinos revisten diversas formas vinculadas con la mo-
ralidad, en modalidades que poseen estrecha relación con el formato
dramático. Habría, a nuestro entender, una correspondencia entre el
tipo de comedia y los enunciados referidos a las relaciones amorosas
sostenida por la especie teatral que, a partir de distribución de roles,
situaciones y características de las máscaras, asume una individualidad
particular que la posiciona como distinta dentro del corpus.
Así como hemos podido visualizar Stichus y sus aparentemente
inconexas partes como un recorrido con coherencia temática dada por
tres maneras de diseñar teatralidad, es decir, como tres paradigmas
de comedia posibles de ser leídos como un despliegue de habilidad
4 Pricco 2014.
5 Castoriadis 2013.
6 Rabaza et altri 1998; 1994; Pricco 2005.
345
dramatúrgica que somete a la audiencia a una variación dramática
acorde con las características de un theatron disperso que concede
expectación parcial de acuerdo con intereses volubles, 7 del mismo
modo podríamos asignar a ciertas obras la condición de paradigma
del tratamiento del amor de acuerdo con la relación especie/discurso.
Sobre la base de una lógica que propone la ostentación como
descarga y ejemplo de lo admisible en términos de comportamiento
social, la asimétrica relación entre amantes depende de la índole de
tragicomedia de Amphitruo, mientras que la equidad de los sujetos
que se aman hacen de Rudens una comedia, a la vez que la asimetría,
sexualidad dual y diferencias de condición jurídica y social convierten
a Casina en una farsa.
Si se conviene que en Ampitruo el eje de la relación es la pie-
tas, la anagnórisis de un amor entre iguales resulta fundamental en
Rudens, mientras que lo prohibido y la lascivia parecen poblar las
situaciones equívocas de Casina. Entre esas lecturas nos interesa
plantear aquí alguna hipótesis fiable sobre Amphitruo. Más allá de
las innumerables versiones que el suceso mítico ha merecido, el locus
del adulterio y el engaño amerita algún detenimiento que indague
sobre cómo se construye la alusión a la preservación de la tradición.
En el caso de Amphitruo, y en el marco de un juego en el que los
dioses devenidos humanos no cesan en su divinidad, el vínculo entre
los personajes reproduce las atribuciones que el discurso masculino
ha naturalizado para el rol femenino.
Luego de la noche de amor (que Iuppiter se ha encargado de mo-
delar a su gusto en temporalidad) y en pleno tópico de despedida el
dios-actor-in fabula establece el rol que le cabe a la mujer en 499-500:
7 Pricco 2016.
346
I upp. Adiós Alcumena. Cuidá bien la propiedad común como
lo sabés hacer:
Y, te pido, cuidate bien: ya ves que tenés los meses hechos.
mihi necesse est ire hinc; verum quod erit natum tollito
M e resulta necesario irme de aquí; encargate de levantar lo que
nazca.
347
Como corresponde al género, la máscara Mercurius/servus-in
fabula introduce apartes que aligeran el tenor de lo dicho por su
padre en una maniobra destinada a provocar la eventual hilaridad
del público en 506-7 y en 526 respectivamente:
M erc. Nimis hic scitust sycophanta, qui quidem meus sit pater.
observatote <eum>, quam blande mulieri palpabitur
348
ne corrumpe oculos, redibo actutum. Alc. Id actutum diu est.
Iupp. Non ego te hic lubens relinquo neque abeo abs te. Alc.
Sentio,
nam qua nocte ad me venisti, eadem abis. Iupp. Cur me tenes?
I upp. ¿Por ventura querés algo? Alc. Que por más que yo esté
ausente, me ames, a mí, la tuya, aunque vos estés ausente.
349
A lcumena. Satin parva res est voluptatum in vita atque in aeta-
te agunda
praequam quod molestum est? ita cuique comparatum est in
aetate hominum;
ita divis est placitum, voluptatem ut maeror comes consequatur:
quin incommodi plus malique ilico adsit, boni si optigit quid.
nam ego id nunc experior domo atque ipsa de me scio, cui vo-
luptas
parumper datast, dum viri mei mihi potestas videndi fuit
noctem unam modo; atque is repente abiit a me hinc ante lucem.
sola hic mihi nunc videor, quia ille hinc abest quem ego amo
praeter omnes.
350
una obra poética: una obra poética es –en términos de Voloshinov−8
un condensador poderoso de evaluaciones sociales no articuladas:
son estas evaluaciones sociales las que organizan la forma como su
expresión directa.
Los juicios de valor determinan la selectio y el ordo de las palabras
por el autor y la recepción (coselección) por parte del oyente. El
texto de Plauto releva enunciados de la tradición textual y palabras
del contexto de la vida en el que estas han ingresado y han quedado
impregnadas de juicios de valor. De esta manera se seleccionan esos
juicios de valor asociados con los lexemas desde el punto de vista
de los portadores que encarnan esos juicios. Se puede decir que el
poeta-dominus gregis trabaja siempre en conjunción con la simpatía
o antipatía, el acuerdo o desacuerdo de su oyente. La simple selec-
ción de un adjetivo o una metáfora es ya un acto evaluativo activo,
orientado en ambas direcciones: hacia el espectador y hacia el per-
sonaje. El público y la máscara son participantes constantes en el
hecho creativo, que ni por un instante deja de ser un acontecimiento
de una comunicación activa que los involucra a los tres.
Por estas razones sostenemos una vez más que la palliata resulta
una traducción-adaptación que filtra componentes helénicos para
facultar enunciados del extratexto latino como citas referenciales
directas en los personarum dicta. De ese modo es posible leer la
compensación de la pérdida de la compañía del amado por el con-
suelo de la virtud guerrera y el renombre y la gloria tal como vemos
en 641 y ss.:
351
abitum eius animo forti atque offirmato, id modo si mercedis
datur mi, ut meus victor vir belli clueat.
satis mi esse ducam.
352
una conclusión evaluativa que equilibra y justifica los desajustes. De
esta manera es considerada la virtus según Alcumena en 648 y ss.:
353
A lc. Per supremi regis regnum iuro et matrem familias
Iunonem, quam me vereri et metuere est par maxume,
ut mi extra unum te mortalis nemo corpus corpore
contigit, quo me impudicam faceret.
A lc. Juro por el poder real del supremo rey y por Juno, madre
de familia, a la que yo por igual venero y temo sobremanera,
que, aparte de solamente vos, ningún mortal me tocó el cuerpo
con su cuerpo, con lo cual me hubiera hecho impúdica.
A lc. Non ego illam mihi dotem duco esse, quae dos dicitur,
sed pudicitiam et pudorem et sedatum cupidinem,
deum metum, parentum amorem et cognatum concordiam,
tibi morigera atque ut munifica sim bonis, prosim probis.
354
atque id me susque deque esse habituram putat.
non edepol faciam, neque me perpetiar probri
falso insimulatam, quin ego illum aut deseram
aut satis faciat mi ille atque adiuret insuper,
nolle esse dicta quae in me insontem protulit.
355
ser y lo que fue, incluso mucho mejor que aquellos, porque soy
Júpiter. Lo primero de todo: hice uso del cuerpo de Alcumena y
por concúbito la dejé grávida con un hijo. Del mismo modo vos
la dejaste embarazada cuando te fuiste hacia tu ejército
356
consumo de ficción y de actividad lúdica del quid pro quo inherente
al género y a las expectativas de los destinatarios, hay en Amphitruo
una posibilidad de insistir en el imaginario de la res publica con el
necesario equilibrio cósmico. El caos de la “caída” de Alcumena en
la trampa amorosa de Iuppiter conlleva el imprescindible reacomo-
damiento cósmico del canónico final de la comedia.
Este incidente de la uxor engañada a su pesar y sin la concien-
cia de la eventual falta no responde a una novedad ficcional, sino
a una puesta en visión para el convivium de un elemento artístico
que se convierte en objeto de oferta y de demanda y, por ende, está
sometido a las leyes socioeconómicas del contexto de producción
en lo que concierne a su valor y su circulación en la sociedad ro-
mana de la república. No podemos obviar en este punto un factor
social ineludible: la obra plautina está sometida a la influencia del
patrocinio, de modo que, en virtud de la supervivencia de histriones
y dramaturgos, no puede sustraerse de las doxas circulantes y de la
formación ideológica de la que participa y a la que contribuye con
sus dicta. Estos enunciados provienen de la voz senatorial revestida
de una investidura cómica que despliega estrategias de seducción
aparentemente inocentes o solo participantes de un entretenimiento
de masas durante las ferias.
Así como el prólogo de Poenulus, en cuanto a la caracterización
de las matronae (tacitae spectent, tacitae rideant 9), no tendría sen-
tido si no se basara en verosímiles 10 de gran aceptación para una
eventual respuesta mediante la risa y/o la simpatía, Amphitruo no
resulta tampoco un discurso autosuficiente. Surge, ciertamente, de una
situación pragmática extratextual y mantiene con ella la más estrecha
relación dado que, tanto en los diálogos como en los soliloquios, se
construyen juicios y evaluaciones sobre la uxor que se refieren a un
cierto todo en el que el discurso se compromete directamente con
9 Verso 32: “Que las matronas calladas observen y oigan el espectáculo, en silen-
cio se rían”.
10 Consideramos aquí “verosímil” como una creencia extendida al modo de una doxa.
357
un acontecimiento de la vida de Roma y se mezcla con él en el juego
de los procesos de identificación puestos en funcionamiento en la
teatralidad. No hay fenómeno puramente lingüístico y espectacular,
sino otro que liga las experiencias del espectador con los discursos
que tejen la trama de sus consilia y de sus acta.
En ese sentido, los discursos sobre el amor en Amphitruo coin-
ciden con los esperables de la imagen ideal de matrona, es decir,
ser una esposa pia, pudica y uniuira que cumple su papel en la
casi negación de su sexualidad en el recordado verso 840: sedatum
cupidinem, el “deseo sosegado” constituyente de su entidad.
Es posible que el esposo, alterado por creer que su mujer lo ha
engañado, dude de las cualidades de aquella. Sin embargo, la ancilla
Bromia, va a insistir, cerca del descubrimiento de la verdad, en las
virtudes de su ama tal como se aprecia en 1084 y ss.:
4. Conclusiones
358
de todo, el tránsito de Alcumena por aquel “desvío” no hace más
que garantizar, como exemplum, el rol que le cabe a la proveedora
de hijos para las agendas bélicas por el dominio del Mediterráneo:
progenie que, metáfora del hijo divino mediante, podrá ser capaz
de conferir la heroicidad que la situación impone y construir, por
ende, “romanidad”.
Desde esa perspectiva, Amphitruo se erige como una contribución
no inocente a la causa y el fervor bélicos. No importa que el amante
deje el lecho con sus obligaciones a medio camino puesto que lo hace
en función del imperativo mayor: así, el tópico de la mujer llorando
en la despedida (v. 529: Lacrimantem ex abitu concinnas tu tuam
uxorem: “Desde tu partida dejás llorando a tu esposa”), en vez de
remitir al sufrimiento femenino, proyecta la contraparte de un plan
geopolítico expansionista que subsume toda experiencia amorosa
y sus manifestaciones en una única opción, la de cumplir con el
placer erótico pero en la brevedad de una noche expandida por la
disposición divina pero insuficiente. Lo relevante es aquella guerra
continua de la que la peripecia alcuménica es solo una pausa que
a modo de una digressio instala el deber ser en medio de la guerra.
En términos bajtinianos,11 bajo un formato cómico que se aviene
a la clasificación-sanción del prólogo enunciado por Mercurius en
cuanto a la calidad de “tragicomedia” (v. 63), este acontecimiento de
escritura y espectacularidad denominado Amphitruo se sustenta en
una dialéctica social que responde a los dichos del poder habilitante
para la escena: una dinámica intertextual cuyos límites se dilatan
en una zona de intersección de decires sociales legitimados. Una
contraseña que solo conocen los que pertenecen al mismo campo
social. La característica distintiva de estos enunciados conductuales
reside precisamente en el hecho de que ellos establecen una mul-
titud de conexiones con el contexto extraverbal de la cavea y si se
los separa de ese contexto corren el riesgo de perder casi todo su
sentido. A sabiendas de esa necesaria adecuación –lo aptum− a las
11 Bajtin 1999.
359
firmes representaciones y estereotipos que portan los agentes de la
cavea, la estrategia dramatúrgica hace su diagnóstico y construye su
mecanismo de seducción sin contradecir los presupuestos culturales.
Por consiguiente, la poíesis diseña creencia y contribuye a conformar
criterios de “romanidad”.
Si hubiese alguna incertidumbre, es el propio vir quien en 1144-45
no solo acepta en la fabula la verdad de lo acontecido, sino que, en
una fusión orgánica de fictio y de realidad convencional-metateatral,
cierra el espectáculo y pide el aplauso en nombre de Iuppiter:
360
Bibliografía
361
(Página deixada propositadamente em branco)
O cinismo, Menipo e a identidade romana
Os testemunhos de Diógenes Laércio,
C í c e r o e V a r r ão *1
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_17
Abstract: Taking into account what is known about Cynicism and the
information conveyed by Diogenes Laertius, this reflection seeks to
understand the attitude of Menippus of Gadara towards Cynicism, to
understand whether he was the creator of Menippean satire or the
anecdotes that circulated about him inspired the subsequent creation
of the genre, and to study the way in which Cicero and Varro, a con-
servative Roman moralist, viewed Menippus, and thus framed him in
Roman moral identity. As we will see, there are disagreements from
the outset regarding how to face the gods and wine consumption, but
the constructive part of the criticism is a possibility for the Menippus
of the traditionalist Varro.
1A ideia de que Menipo seria um filósofo cínico pode, p. ex., ser encontrada
em Varrão (<Menippus> ille nobilis quondam canis, Taphe Menippou, frg. 516 v. 1
Bücheler ou Cèbe), Luciano (como veremos adiante) e Dobbin 2012: 210.
2 A expressão é de Dudley 1998: 70.
3 Navia 1996: 156-7, depois de aludir às obras que D.L. 6.101 atribui a Menipo,
informa: “But of such writings, nothing has survived, except for very few fragments,
fewer in his case than those of other Cynics.” Apesar disso, sustenta que “Menippus’
style and choice of subjects were imitated by important classical writers”, e ainda: “The
νόμισμα that he found everywhere was worthless and worthy of the most decisive
defacing, and this defacing he undertook by writing mordant satires.” Dudley 1998:
70 adverte: “Very scanty fragments of Menippus survive, and it is highly speculative
proceeding to try to reconstruct his works from Varro or even from Lucian.” Dobbin
2012: 210, p. ex., diz de Menipo que é o “originator of a literary genre alternating
364
I. O cinismo
passages of prose with poetry”, mas reconhece: “His own efforts in this hybrid genre
are lost…”
4 As ocorrências de kyon e de canis com o valor de ‘cínico’ podem ser encon-
tradas em Aristóteles, Rh. 3.10.7; Plutarco, Mor. 717c, 956b; Varrão, Men. 516 Cèbe;
Horácio, S. 2.2.56; Marcial 4.53.8, 14.81.2; Suetónio, Ves. 13. D. L. 2.66 diz que Diógenes
chamou a Aristipo ‘o cão real’ (435-355 a. C.; cf. Hor. Ep. 1.17.13). Demétrio, para o
Vespasiano de Díon 66.13.3 (cf. Suetónio, Ves. 13), é “o cão que late”.
5 Cutler 2005: 20.
365
mas também se constituía como o grande modelo mítico dos cínicos.
Os estoicos valorizavam em Hércules os trabalhos em prol dos ou-
tros. Ao séc. VI a.C. remontava o Cinosarges (‘Parque do Cão Ágil’),
isto é, um complexo composto por um gymnasium e um templo
de Héracles (o grande modelo mitológico de “bastardo”), que, com
a proibição aprovada no séc. V que impedia os “bastardos” (filhos
resultantes da união entre homens livres e escravas, ou prostitutas,
ou estrangeiras) de frequentarem os gymnasia, passaram a ser os
únicos locais onde aqueles podiam exercer atividade física e pra-
ticar o culto. Este complexo não estava aberto exclusivamente aos
“bastardos” no sentido mais estrito anteriormente considerado, mas
também a todos quantos se sentiam estranhos à comunidade de ci-
dadãos. Heraclito, que atingiu o auge da sua atividade filosófica por
volta de 500 a.C., aparece referido em As cartas cínicas (trocadas
entre cínicos e entre estes e seus contemporâneos) como um cínico.
Se se considerar como cínica a valorização do individualismo e do
egoísmo, facilmente se vislumbrará em Trasímaco de Calcedónia,
um sofista que tinha como propósito tirar partido dos outros, via
na justiça uma arma ao serviço dos poderosos (Platão, R. 1.343b) e
proclamava que “o poder tem razão” e “bem” e “mal” eram termos
sem significado, um precursor do cinismo. 6
Como o budismo, o cinismo defendia que uma das chaves para a
felicidade era a restrição dos desejos; como os sofistas e talvez por
influência egípcia e babilónica, preocupou-se mais com o estudo da
civilização humana e da vida humana em geral do que com o da
natureza (física) e a ação do homem sobre essa mesma natureza com
vista ao avanço da humanidade; não tinha preocupações religiosas,
ria-se da mitologia e das suas fábulas e contradições; valorizava
sobretudo a ação humana na criação (não se importava com a me-
tafísica e desvalorizava a ação divina) e admitia a possibilidade de
a civilização poder mudar e progredir; realçava a importância da
retórica, do treino e da pedagogia; na esteira de Sócrates, denun-
6 Navia 1996: 3.
366
ciava a submissão injustificada do homem às convenções sociais e
políticas, e alguns dos seus membros eram mais adeptos do registo
oral e não-oral (gestual e comportamental) do que do escrito; em
contraste com o platonismo, não acreditava em absolutos externos
e, como os epicuristas e os hedonistas, sustentava que a experiência
dos sentidos era o meio para se alcançar o conhecimento; cínicos e
estoicos criticavam os falsos valores subjacentes às crenças políticas,
filosóficas e religiosas ortodoxas; como as filosofias helenísticas, en-
carava o cosmopolitismo como algo que se opunha ao nacionalismo
e entendia que, quando a vida deixava de fazer sentido, se justificava
o suicídio (muitas vezes à fome), mas, em contraste com certas filo-
sofias helenísticas, repudiava os deveres para com o estado; como
sucedeu com muitos dos evangelhos relativamente a Jesus de Nazaré,
muito do que nos chegou acerca do cinismo é uma interpretação
posterior daquilo que os cínicos disseram.
Embora tenha havido quem, partindo do pressuposto de que
Cinosarges estaria para o cinismo como a Academia para o plato-
nismo, o Liceu para o aristotelismo, o Jardim para o epicurismo e o
Pórtico para o estoicismo, e tomando em consideração as afinidades
entre o cinismo e certas correntes filosóficas, tenha considerado o
cinismo uma escola filosófica, e o mimógrafo Labério tenha associado
os cínicos às latrinas e tenha empregado a expressão Cynica hae-
resis, ‘Seita cínica’ (Compitalia, frg. 3 Ribbeck) para se lhes referir,
a verdade é que Varrão, numa obra intitulada De Philosophia, onde
considerou 288 escolas filosóficas a partir do τέλος de cada uma,
nelas incluiu o cinismo, não como hairesis, mas como modo de vida
(Agostinho, C.D. 19.1.2-3). Os cínicos pautavam-se pela oposição
a todo o tipo de dogmas difundidos pelas instituições educativas,
jurídicas e religiosas do seu tempo. Além disso, “Cynicism rejects
systems, categories and universal transcendent truths – not least
with regard to its own philosophy. If Cynicism has a philosophy
at all it is an anti-philosophy, that is, anti philosophy as absolute
laws or binding faith. And although Cynics shared certain beliefs
and attitudes in common, there was no school or central doctrine
367
to study or learn. Cynicism was a very loose set of values, beliefs,
and attitudes, which could be interpreted and practiced according
to the individual’s own will.” 7 Em contraste com as demais escolas,
o cinismo distinguia-se por pormenores estilísticos [humor perverso
e corrosivo, liberdade e franqueza de discurso (parrhesia), diatribe,
criada por Bíon de Borístenes (c. 335-c. 245 a.C.; Bíon, de acordo
com Diógenes Laércio (daqui em diante D. L.) 4.7.46ss., era ateu,
predador sexual de rapazes e atacava deuses e Homero8), solilóquio],
pelo espetáculo em público, pelo individualismo, pelo comportamento
associal, pela falta de organização e coesão social dos seus membros
e pela independência (daí a competição entre os seus membros en-
quanto pedintes, que muitas vezes eram recompensados pelos seus
serviços como filósofos ou animadores). Ao contrário de quem en-
tendia que a civilização progredia de forma linear para um fim, os
cínicos defendiam que a evolução se fazia por meio de ciclos com
princípio, altos, baixos e fim, e que cada indivíduo ou geração tinha
as mesmas oportunidades de triunfar ou falhar 9. Em contraste com
Aristóteles, admitia Diógenes que o casamento envolvia o homem
que persuadia e a mulher que se deixava persuadir. A verdade dos
cínicos reside nos graus e nas virtudes relativas, mas não é algo ab-
soluto. Um pouco mais exigentes do que os epicuristas, os cínicos
submetiam-se a condições difíceis para que as dificuldades os não
apanhassem desprevenidos (Diógenes pedia a uma estátua, para se
habituar às recusas. Além disso, sentia indiferença pelas opiniões,
pelos insultos a que o seu modo de vida se prestava e aos perigos
que dele advinham.). D. L. 7.3 informa que o espírito pudico e
reservado de Zenão estava nos antípodas da anaischuntia dos cíni-
cos e foi motivo de divergência relativamente ao seu mestre cínico
Crates. Em contraste com o estoicismo, não acreditava que a vida
368
fosse pré-determinada pelo destino e na ação da Fortuna, e estava
desprovido da dimensão “evangélica” estoica. O cinismo não zom-
bava de quem acreditava nos deuses e das próprias divindades, ao
passo que o estoicismo legitimava filosoficamente a religião nacional
romana 10. Enquanto o estoicismo defendia que cada pessoa podia
ser livre independentemente da sua condição social (cf. escravos),
os cínicos, considerando embora que cada pessoa podia ser feliz
independentemente das circunstâncias, entendiam que a igualdade
era marca da condição de todo o ser humano.
Um dos filósofos mais insistentemente associados aos primórdios
da referida seita é um filho de mãe trácia, Antístenes (séc. V-IV); foi
aluno de Sócrates; entendia que a coragem e a resiliência socráticas,
a autossuficiência, o distanciamento, o despojamento, a frugalidade,
a austeridade física e os prazeres da vida simples eram meios para
se alcançar a virtude; ensinava em Cinosarges e foi professor de
Diógenes de Sinope (c. 404-c. 323 a.C.). Diógenes, que Sloterdijk
considera um denunciante descarado e honesto de convenções e re-
gras sociais, éticas e decadentes 11, foi mestre de Crates (c. 360-280
a.C.), que, por sua vez, ensinou Zenão (c. 334-262 a.C.), o fundador
do estoicismo.
Os ensinamentos dos cínicos passavam de geração em geração
sobretudo por meio de mitos, anedotas, aforismos (chreiai), com o
seu humor negro, caráter surpreendente ou paradoxal e seriedade
ética, mas também se escreveram obras que, entretanto, se perderam.
Crates, por exemplo, teria escrito tragédias, elegias, cartas e paródias.
Cutler sustenta que, mais tarde, os cínicos recorreram à retórica e aos
métodos de ensino sofistas para questionar “their imputed wisdom,
elusive knowledge, questionable values, compromises, and their quest
for wealth”12. Em Platão, encontrou e criticou Antístenes “pride, fal-
sehood, pretentiousness, arrogance, mystification, superstitious and
369
religious humbug, the worship of the state, contempt toward what
is concrete, and the misuse of language for the purpose of hiding
one’s own confusion.” 13 Na crítica às falsas ideias subjacentes a
certa ortodoxia política, filosófica e religiosa, os cínicos adotavam
uma atitude ridicularizadora e de desprezo, ao passo que os estoicos
procuravam refutar essas ideias com argumentos racionais e com
a contraposição da sua verdade. Ao despertar das consciências do
adormecimento intelectual e do enfado moral, o cinismo, enquanto
filosofia pragmática, respondia, por vezes de forma muito prática,
a determinadas circunstâncias e fazia diagnósticos, mas não criava
paradigmas novos 14 . O desapego, o minimalismo e as condições
de vida precárias dos cínicos faziam com que caíssem no ridículo.
É ainda motivo de ridículo o facto de Diógenes desprezar e adotar
determinados comportamentos e, desse modo, se enredar em con-
tradições e funcionar como exemplo a contrario sensu 15. As ações
dos cínicos enquadravam-se no seu estilo retórico e funcionavam em
contraponto com a liberdade de expressão.
Dos cínicos, a ideia que passou foi a de que eram amorais e não
tinham qualquer respeito por áreas que distinguiam o homem dos
animais, como a mitologia, a religião, a filosofia, a arte, a ciência, a
literatura, por sentimentos, como o amor e a amizade, ridicularizavam
sacrifícios, preces, boas maneiras, o respeito pelos pais, eram avessos
a todo o tipo de organização social (não cumpriam as regras do es-
tado) e até ao desporto, eram individualistas, anarquistas, não viam
qualquer problema em assaltar templos, cometer incesto, comer a
carne de qualquer animal, praticar canibalismo, dar traques, defecar,
urinar e masturbar-se em público, lamber purulentas feridas (muitas
destas atitudes para satisfazer as necessidades sexuais e valorizar
o lado animal do indivíduo), insultar e espancar, mas, como algu-
mas destas informações são veiculadas por detratores do cinismo,
370
devem ser encaradas com reservas. Várias destas atitudes decorrem
do facto de os cínicos se perspetivarem como cidadãos do mundo
e, por conseguinte, adotarem as práticas de outros povos. Apesar
disto, Diógenes condenava as pessoas depravadas e as outras, que
nada faziam para impedir as primeiras de se comportarem de forma
depravada e nutria amizade pelas pessoas; Crates e Demónax reco-
mendavam a philanthropia e a afabilidade 16; Crates e sua esposa
Hiparquia davam apoio a pobres e doentes; Apolodoro de Seleuceia,
contemporâneo de Panécio, definia o cinismo como um atalho para
a virtude (D. L. 7.121); e os cínicos entendiam que o mundo não
tinha sido criado apenas para as pessoas e, por isso, criticavam os
interesses mesquinhos dos homens. Os cínicos valorizavam a aske-
sis ‘treino’, o ponos ‘sofrimento físico’, a parrhesia ‘liberdade e a
franqueza de falar de forma oportuna’, a anaideia ‘descaramento’,
a apatheia ‘o desprezo pelas paixões’, a autarkeia ‘autossuficiência’
e a karteria ‘resiliência, autocontrolo’, e criticavam o typhos ‘fumo,
vaidade, engano’.
No que toca à atitude dos Romanos face ao cinismo, notou Griffin
que oscilou entre a atração e a repulsa17. Para tal, contribuiu a difi-
culdade em distinguir, de certas atitudes cínicas, determinadas ideias
estoicas, o facto de se acusarem estoicos de adotarem comportamentos
cínicos e de se classificarem como “estoicos” os filósofos sediciosos
(estoicos, cínicos ou a mistura de ambos)18. A conduta grosseira era
um critério de distinção dos cínicos relativamente aos estoicos. A
Cynicorum ratio opõe-se ao decorum e à uerecundia romanos relati-
vamente aos costumes, às práticas cívicas, à reputação e às convenções
371
sociais, mas, em Off. 1.148, Cícero abre exceções, quando se refere a
Sócrates e Aristipo, e, ao cabo, caminho aos posteriores retratos cínicos
idealizados e usados pelos estoicos para o ensino (cf. perspetiva de
Séneca sobre Diógenes em Ben. 5.4.3-4, 5.6, Ep. 90.14, Dial. 9.8.3-5). A
libertas promiscua dos cínicos compromete a auctoritas romana (Sén.
Ep. 29.3). Sén. Ep. 5.2 e Musónio Rufo 6 defendem que o filósofo se
não deve excluir da norma. Em Ben. 2.17.2, Séneca critica o esforço
dos cínicos para alcançarem a gloria egestatis, “glória da indigência”,
isto é, uma vertente do exibicionismo cínico (cf., contra a exibição
dos filósofos da incompta frugalitas, Ep. 5.1-5), e, em Dial. 9.8.9-
9.9.2, distingue a parsimonia dos maiores, que elogia, da verdadeira
paupertas. Os Romanos não aceitavam o afastamento cínico da vida
política. Em Dial. 10.14.2, Séneca afirma que o propósito dos estoicos
é vencer a natureza humana, e o dos cínicos é ultrapassá-la (hominis
naturam cum Stoicis uincere, cum Cynicis excedere).
Mas a parte do cinismo relacionada com a moral prática (herdeira
da tradição socrática que via na ação humana o objeto da filosofia),
que desprezava a lógica e a física, afigurava-se útil ao estoicismo para
triunfar numa Roma que era sobretudo célebre pelos exemplos (cf.
anti-intelectualismo de Séneca em Ep. 82.19-24 e Ben. 7.1.4-5, 7.8.2).
Além disso, importa notar a presença do ridículo e da metáfora no
cinismo, na menipeia e na sátira tradicional romana (cf. associação,
feita por Apuleio, Fl. 20, entre Crates e a sátira). A eloquência do
cínico Demétrio influenciou a prosa filosófica de Séneca. Pontos de
confluência entre o cinismo e a tradição romana eram a importân-
cia dada ao treino do corpo para suportar a dureza, as dificuldades
e adversidades (cf. Cícero, Tusc. 2.35; Sén. Ep. 18.5-13; Plínio, Ep.
3.11.6; D. L. 6.27, 59, 7.172), a frugalidade e a austeridade.
II. Menipo
372
escritores 19. De ascendência fenícia e natural de Gádaros, na Cele-
Síria, Menipo foi, de acordo com R. L. Hunter, um “influential Cynic
writer, probably of the first half of the 3rd cent. BC” 20. A ideia de
que Menipo tinha sido um cínico já estava presente em D. L. 6.99.
Muito do que julgamos saber sobre Menipo foi-nos veiculado por
D. L. (talvez tenha vivido na primeira metade do séc. III d.C.), base-
ado sobretudo em Díocles, e a modalização da formulação com que
se inicia este parágrafo tem que ver com o facto de a fidedignidade
não dever ser o principal critério para julgar esta fonte, mas, como
bem observa Cutler, o que nele é de valorizar são “a flavor and fe-
eling for the minutia of these philosophers’ lives” 21.
D. L. informa que a escravatura tinha sido uma condição comum
a Bíon de Borístenes e a Menipo (4.46, 6.99). As origens humildes
eram fator de exclusão social e, por conseguinte, propícias a criar
frequentadores do Cinosarges. Aulo Gélio 2.18.6-7 esclarece que a
referida condição precedeu o momento em que Menipo se teria tor-
nado filósofo. De Menipo, ainda diz D. L. 6.99 que se teria tornado
tebano.
De Diógenes cínico, diz D. L. 6.20 que era filho de um banqueiro
que, segundo uns, tinha alterado a moeda corrente, mas, segundo
outros, teria sido o próprio Diógenes quem teria desejado tal e,
por isso, teria com o pai andado errante; outros, por fim, atribuíam
a Diógenes a cunhagem de moeda falsa. Quanto a Menipo, afirma
D. L. 6.99 que não tinha qualquer seriedade, era petulante a pedir,
emprestava dinheiro ao dia, concedia empréstimos na finança e nos
seguros marítimos, exigia garantias e deste modo enriqueceu. Dudley
admite a possibilidade de esta faceta ser apócrifa, pois foi veiculada
pelo pouco confiável Hermipo22. Dos comportamentos de Diógenes
373
e de Menipo, é possível depreender, desde logo, o contraste com a
habitual pregação cínica do despojamento, da frugalidade e da liber-
tação das paixões e ainda, respetivamente, a falta de respeito pelas
normas financeiras que regem a sociedade e a tentativa de delas tirar
partido. Em bom rigor, o comportamento de Diógenes é legalmente
mais condenável do que o de Menipo, que, do ponto de vista ético,
revela uma articulação pouco recomendável da pedinchice com o
empréstimo a juros. Em todo o caso, ambos revelam incoerência
com as palavras. Afigura-se, por conseguinte, pertinente perguntar:
pretenderão ambos, enquanto exemplos de desrespeito pelas nor-
mas financeiras e aproveitamento das práticas monetárias e como
indivíduos que acabam “castigados” pela sua ambição, instruir quem
os conhece ou visará Menipo imitar o comportamento dos cínicos e
cair no ridículo para criticar os mais conhecidos membros da seita?
São questões de difícil resposta, mas o facto de se não encontrar
em Menipo qualquer proposta edificante é para Relihan o sinal de
que apenas pretende parodiar a filosofia e realçar as incoerências
dos cínicos 23.
Importa, contudo, ressalvar que o cinismo de Menipo se reflete
na sua atitude relativamente ao mundo, mas não no modo de vida,
pois, ao contrário do que sucede com Diógenes, não temos notícia
de que tenha usado cajado e sacola, ou de que, embora tenha men-
digado, tenha pedido especificamente comida 24.
D. L. 6.100 informa que Menipo foi vítima de uma maquinação que
o despojou de todos os bens. Embora os cínicos não acreditassem na
Fortuna, a verdade é que, sem entrar em grandes pormenores e sem
aludir à referida divindade (Tyche), Laércio sugere que Menipo foi
vítima da inconstância da referida entidade, cuja roda está sempre
pronta a girar. Além disso, mais do que as palavras, funciona a vida
de Menipo como exemplo dos perigos em que incorre quem se fia
das riquezas e das paixões.
374
No resumo mais geral da vida de Menipo, D. L. 6.110 ainda infor-
ma que, desesperado com a situação, Menipo pôs termo à vida por
enforcamento. A perda dos bens não se contava entre os motivos
que, para os cínicos, justificavam o suicídio, mas a consciência da
incoerência pode ter contribuído para este desfecho. Na poesia que
lhe dedica, D. L. reconhece que a morte de Menipo representa o
renegar da natureza de cão.
Laércio diz que havia quem sustentasse que as obras que a Menipo
se costumavam atribuir não tinham, na realidade, sido escritas por
ele, mas, em jeito de brincadeira, por Dionísio e Zópiro de Cólofon,
que lhas teriam confiado para que as divulgasse. Em 6.99, admitira,
no entanto, D. L. que a derisão era a marca dos livros de Menipo, e
conclui que treze são os livros do cínico (6.101): O mundo subter-
râneo (Νέκυια), Testamentos; Epístolas fictícias da parte dos deuses;
Contra os físicos, os matemáticos e os gramáticos; Sobre o nascimento
de Epicuro e Sobre as honras que lhe prestavam os Epicuristas a vinte
de cada mês, etc.
Importa desde já notar que há quem admita a existência de uma
lacuna antes das corruptas referências a Epicuro 25, que, no caso de
serem fidedignas, se enquadrariam na crítica aos epicuristas.
Quanto à Νέκυια, seguramente parodiaria, na tradição de Crates,
a descida de Ulisses aos infernos em Homero, Od. 11, e a importân-
cia do submundo nos mitos de Platão. A referida obra de Menipo
talvez tenha, como outra relativamente contemporânea, os Silloi de
Tímon de Fliunte, descrito a difícil situação dos filósofos no Hades e
influenciado Horácio, S. 2.5, Séneca, Apoc., e várias obras de Luciano.
Os Testamentos (Diathekai) talvez fossem uma paródia dos testa-
mentos dos filósofos, seguramente falsos e cómicos.
Talvez as Cartas artificialmente escritas como se fossem de deuses
fossem do tipo das “Epístolas Saturnais”, Epistolaì Kronikaí que, em
Luciano, Saturnalia, Crono troca com o seu sacerdote e profeta e
375
com os ricos. É ainda possível que as primeiras tenham inspirado
as segundas.
D. L. 6.29-30 conta que Menipo, na Venda de Diógenes (Diogenous
prasis), relatara que, quando capturado, posto à venda e interrogado
acerca do que sabia fazer, Diógenes respondera que sabia coman-
dar os homens e ordenara ao arauto que o divulgasse, para o caso
de haver alguém interessado em comprar um mestre; impedido de
se sentar, argumentara que também os peixes, independentemente
da posição em que se encontrassem, se vendiam; manifestara o
seu espanto pelo facto de, na compra de uma panela ou de uma
sertã se avaliar pelo seu tinir o seu estado, e, no caso do homem,
se fazer depender a compra do aspeto exterior apenas; dissera ao
seu comprador que lhe obedecesse, do mesmo modo que se devia
obedecer a um escravo que fosse piloto ou médico. Num provável
eco das histórias sobre Platão, D. L. informa, em 6.74, que Menipo
havia sido capturado por piratas e vendido a um certo Xeníades de
Corinto, que não só lhe confiou a administração doméstica como a
educação dos filhos e considerava que tinha em casa uma espécie
de génio bom. A obra de Menipo talvez tenha sido a principal fonte
de informação para a história da captura de Diógenes de Sinope por
piratas e a sua venda para a escravatura 26. Esta obra talvez tenha
influenciado Luciano, Filosofias em leilão, mas Dudley sustenta que,
na primeira, Diógenes alcançaria uma elevação digna de admiração,
ao passo que, na segunda, seria, como os restantes filósofos, alvo
de crítica. 27
Ateneu 14.629F e 14.664E ainda fala num Symposion, onde a
ekpyrosis estoica aparecia descrita como uma dança, e num Arcesilaus,
que seguramente retrataria o chefe da Academia e satirizaria a vida
tranquila desta escola.
À teoria de G. Knaack, que, baseada na alusão ao prandium cani-
num de Men. 575 Cèbe, defendia que Hydrokyon se teria inspirado
376
no Symposion de Menipo, Cèbe contrapõe que a paternidade é de
Varrão28. N’O hidrocão (Hydrokyon; Men. 575 Cèbe) – que, tomando
em consideração a chamada “pedagogia do vinho”, talvez se enqua-
drasse num banquete – talvez se possam vislumbrar as divergências
entre os cínicos, que defendiam a abstenção de vinho e bebiam água,
e Varrão que, na esteira de muitos médicos e filósofos (Platão, Smp.
4.176D; Xenofonte, Smp. 2), era pelo consumo moderado da referida
bebida alcoólica e lhe elogiava algumas propriedades [Men. 575 Cèbe;
cf. Men. 111 ss. (Est modus matulae. Περὶ μέθης. “Tem capacidade
limitada o penico. Sobre a embriaguez”)]. A instância de enunciação
– um cínico, como pretendem uns, ou o próprio Varrão, segundo
outros – compara o mau vinho à água do prandium caninum.
Há ainda quem admita a possibilidade de Menipo ter escrito Περὶ
θυσίων, ‘Sobre os sacrifícios’; há quem admita a possibilidade de
Menipo não ser o autor das obras perdidas que lhe são atribuídas29.
Estrabão 16.2.29 e Estêvão de Bizâncio, s. u. Γάδαρα, caracterizam
Menipo como spoudogeloios, isto é, alguém ‘que mistura o agradável/
engraçado com o sério’. Marco Aurélio 6.47 afirma que nem Menipo,
um dos encarniçados trocistas da vida perecível e efémera do ho-
mem, escapou à morte. Ao comentar Virgílio, Ecl. 6.31, Pseudo-Probo
afirma que Menipo usou omnigenum carmen 30 , e esta afirmação
pode significar que Menipo se inspirou em vários géneros (e é bom
recordar que o termo carmen podia abranger vários géneros líricos,
narrativos e dramáticos) ou simplesmente usou vários tipos de metro.
No plano das influências, vale a pena recordar o reconhecimento,
por parte de Cícero, em Ac. 1.8, da influência que sobre ele exerceu
Menipo: Et tamen in illis ueteribus nostris, quae Menippum imitati
non interpretati quadam hilaritate conspersimus, multa admixta ex
intima philosophia, multa dicta dialectice, quae quo facilius minus
377
docti intellegerent, iucunditate quadam ad legendum inuitati. Naqueles
textos que eu escrevi há anos, em que imitei, mas não traduzi, a obra
de Menipo, usei uma linguagem plena de humor, mas inseri muitas
referências a ideias filosóficas, disse muita coisa em estilo dialético,
para facilitar o entendimento aos menos cultos, e atraí-los para a
leitura pelo aprazível da linguagem. 31
Se o humor parece ser um traço menipeu, a inclusão de mui-
tas ideias filosóficas talvez seja da exclusiva responsabilidade de
Cícero 32, que também teria aproveitado de Menipo o estilo dialético
subjacente ao diálogo ou às explicações de natureza linguística, e
a linguagem aprazível. Talvez o passo sugira que, para os antigos,
Menipo, eventualmente até na linha do que inicialmente dissemos do
próprio cinismo, não primaria pela apresentação e desenvolvimento
de ideias filosóficas (ainda que refletisse “certain universal aspects
of the philosophical spirit” 33), mas por uma reação de tipo cínico
às circunstâncias que se lhe deparariam.
Aulo Gélio 2.18.7 e Macróbio 1.11.42 informam que os livros de
Menipo foram emulados por Marco Varrão (116-27 a.C.) nas suas
sátiras, às quais alguns chamavam “Cínicas”, e o próprio Varrão,
“Menipeias”. Daqui talvez se possa depreender que Menipo teria
escrito menipeias, às quais Varrão possivelmente teria acrescentado
erudição. No caso de se poder identificar, ainda que parcialmente,
Luciano com Menipo, o grande mérito deste, de acordo com Dudley,
talvez tenha sido, num desenvolvimento de tendências presentes no
Euthydemus e no Menexenus platónicos, a adaptação cómica e a
hibridização (prosímetro) de géneros cultivados por filósofos, como
o diálogo, habituado a refletir sobre os deuses, a Natureza e o Ciclo
do Universo (testemunho de Luciano em Bis accusatus), e a carta34.
378
Mas, com o que da obra de Menipo nos chegou, esta conclusão talvez
se possa considerar abusiva.
35 Cèbe 1975: 315. E continua: “Somme toute, une fois de plus, son attitude
fait songer à celle d’Horace, qui raille les manières excessives des Cyniques, mais
approuve leur croisade contre le vice et se sert d’eux pour administrer à ses lecteurs
une leçon morale. Encore était-il sans doute moins rebuté que le délicat Horace par
les outrances de ces aboyeurs.”
379
Se, em Men. 82 Cèbe (Cynicus), como entende o editor, “la négli-
gence des Romains à l’égard des choses divines” e o incumprimento
dos deveres de estado relativamente ao culto se afiguram como “un
signe très alarmant de leur dégénérescence” 36, facilmente se perce-
be que esta não era uma das preocupações dos primeiros cínicos
gregos, mas do tradicionalista Varrão. O próprio Cèbe reconhece, de
resto, que quem fala não pode ser um cínico, mas um defensor da
ideologia tradicional romana, que criticaria a atitude cínica.
Há quem considere, à luz do Icaromenippus de Luciano, a meni-
peia Endymiones ‘Endimiões’ de Varrão, com base no pressuposto
de a ação de cada um dos textos ter que ver com a Lua, de em
ambos se descrever a visão da terra a partir de um ponto superior
(epískopos ou katáskopos) e de o texto de Varrão eventualmente
retratar personagens cujos temperamentos se assemelhassem, em
um ou mais aspetos, a Endímion/ Endimião, o jovem e belíssimo
pastor por quem a Lua/ Selene se tinha perdido de amores e que,
por intercessão desta, tinha obtido de Zeus um sono eterno, que o
conservava sempre jovem. Noutras versões, teria sido já em pleno
sono do jovem que Selene se teria apaixonado por ele. A sua amante
ter-lhe-ia dado cinquenta filhas.
Quanto a O cínico cavaleiro (Hippokyon), de que restam dois
fragmentos (Men. 220 e 221 Cèbe), o editor cuida tratar-se de uma
crítica à oligarquia dirigente, ao funcionamento das instituições
por volta de 70 a.C., ao laxismo subjacente à abertura das portas
do senado a pessoas sem grandes méritos (eventualmente libertos
e pedarii) e à hipocrisia que recorre a pretextos como a falta de
riqueza para dele excluir os indivíduos com méritos. 37 O problema
380
é que os fragmentos subsistentes não permitem ter uma perspetiva
profunda sobre o modo como era feita a crítica. 38
A influência dos cínicos e da menipeia em Varrão é muito signifi-
cativa, mas o que para o nosso propósito mais interessa é a presença
mais explícita de Menipo na obra do reatino.
A figura de Menipo é o pretexto de uma menipeia de Varrão,
intitulada Ταφὴ Μενίππου, Taphê Menippou, “A tumba de Menipo”,
que reconstituiria uma celebração, feita por romanos do séc. I a.C.
junto do túmulo do próprio Menipo talvez em Tebas, e as palavras
de um daqueles (eventualmente do próprio Varrão, que pretenderia
dinamizar um debate aberto a todos os intelectuais; Men. 519 Cèbe),
no aniversário da morte de ille nobilis quondam canis, aquele célebre
‘cão’ de outrora, que deixara os homens que viviam sobre a terra-
-bola (Men. 516 Cèbe) 39.
Na boa linha dos laudatores temporis acti da sátira tradicional
romana, esta de Varrão estrutura-se a partir da antítese tunc, ‘en-
tão’… nunc, ‘agora’, mas, considerados embora em contraste com o
passado, o presente e a atualidade são o principal tema desta sátira.
Ora entre os exemplos de frugalidade (Men. 523 Cèbe) dos antigos
encontram-se precisamente as suas casas, tão simples quanto o tú-
mulo de Menipo (Men. 524-526 Cèbe).
Em Men. 517 Cèbe, é-nos dito que Diógenes conhecia a literatura
para uso doméstico, isto é, prático, e que outro (hunc), provavelmen-
te Menipo, a conhecia para falar com pessoas ilustres. É certo que
D. L. 6.104 informa que Diógenes cínico eliminou a música, a astro-
dos pés (discessio, ‘passar para o lado daquele que se apoia’). Varrão, de acordo com
Cl. Nicolet, citado com aprovação por Cèbe 1983: 1035, “a voulu parler des ‘cheva-
liers’ qui ‘votent’ à pied, c’est-à-dire des chevaliers en attente, nondum a censoribus
in [equitum turmas] lecti, mais qui, parce qu’ils avaient vocation au cheval public,
pouvaient se dire déjà equites designati”.
38 Os editores interrogam-se se Kynistor, kynodidaskalikon, kynorhetor, ‘O cínico
sábio, o ensinamento do cínico, o cínico orador’ são títulos de três menipeias ou se
o primeiro é uma má leitura do terceiro ou o título de um dos livros do segundo. A
primeira parte do título (Men. 230 Cèbe) trata de astronomia, um tema caro à diatribe
cínica e ao erudito Varrão.
39 A reconstituição do contexto pode ser encontrada em Cèbe 1998: 1981.
381
nomia, a geometria e a dialética, mas, em contraste com Antístenes,
que advertia que a literatura poderia causar distração (D. L. 6.103),
Diógenes conhecia os hábitos dos animais, citava Homero, inter-
pretava alegoricamente os mitos, escreveu diálogos e tragédias, que
talvez não passassem de paródias burlescas, e dominava o modo
paródico. A primeira parte e a comparação não indiciam a presença
de qualquer crítica a Diógenes. Quanto a Menipo, já vimos que teria
escrito diversas obras, e dele haverá o Amigo de dizer, em Luciano,
Nec. 2, que é philókalos, ‘amante da beleza’, ‘dotado de bom gosto’. É
possível que, ao aludir aos conhecimentos literários de Diógenes e de
Menipo, Varrão – de quem Quintiliano dizia que era uir Romanorum
eruditissimus, o varão mais erudito dos Romanos (Inst. 10.1.95), e cuja
erudição seria seguramente superior às dos dois cínicos considera-
dos – talvez indicie o desejo de fazer entroncar a sua vasta erudição
numa vertente, mais limitada embora, da tradição cínica e menipeia.
De Men. 518 Cèbe, sed ut canis sine coda, que o editor enquadra
no grupo dos que elogiam Diógenes 40, conclui o investigador que
“rien ne permet de déterminer quel personnage il désigne” 41. Relihan
e Cèbe entendem que o cão proverbialmente não morde quando
abana a cauda, pois este é um sinal de satisfação do animal relati-
vamente à presença humana. Correlativamente, a ausência de cauda
significa uma atitude ameaçadora 42. Importa, desde já, notar que,
do ponto de vista da etologia canina, a segunda afirmação não tem
qualquer fundamento. Cèbe ainda informa que os cínicos mordiam
os amigos e os inimigos.
Ao considerar a relação entre Zenão, fundador do estoicismo, e
seu mestre Crates, cínico, D. L. 7.4 sustenta que o primeiro escreveu
a República ἐπὶ τῆς τοῦ κυνὸς οὐρᾶς, sobre a cauda do cão. Dudley
admite a possibilidade de Zenão já ter abandonado a seita, mas ain-
382
da se não ter libertado da cauda do cão 43. Talvez se possa ver na
expressão uma referência às ideias dos cínicos. À luz deste passo,
é de admitir a possibilidade de o fragmento varroniano se referir a
Menipo, que, apesar das aparências cínicas, já não comungaria das
ideias da seita. O problema é que não sabemos se Varrão se está a
referir a Menipo.
Ao comentar o Men. 528 Cèbe, onde alguém se queixa de a
quantidade de glutões em Roma incendiar os preços do trigo, isto é,
fazer encarecer os géneros e de, por ação daqueles, só ver os nédios
papa-figos e tordos a voarem, o editor-comentador nota que a crítica
à gula é comum na menipeia e admite a possibilidade de se seguir
uma crítica a um verdadeiro discípulo de Diógenes, de Menipo ou
dos antepassados romanos44. Por aqui se vê que, para o investigador,
a crítica de Varrão ao presente encontra em Diógenes, em Menipo e
nos maiores o contraponto positivo, isto é, o exemplo construtivo.
Em Men. 538 Cèbe, pode ler-se:
383
pour jouer les trouble-fête sur la terre.”45 Em abono desta interpreta-
ção, recorda a Suda, s. u. φαίος, para sustentar a ideia de que Menipo
se via como uma espécie de espião, enviado pelo submundo, para
observar o comportamento humano e, por isso, se vestia como um
papão ou um espantalho 46. A referida interpretação, ainda segundo
o editor-comentador, fazia jus à agressividade e à consequente fama
de “terrores” de que gozavam os cínicos, tanto mais que, quer como
vivo quer como morto, continuará o Menipo de Luciano a atormentar
os ricos e poderosos nos infernos (Nec. 12; DMort. 2). Cèbe ainda
compara Menipo com o cínico Alcidamante, de quem Luciano diz,
em Symp. 12: “… é extraordinariamente “perito em vozeirão” e o mais
ladrador de todos os… cães, qualidade em que todos o julgavam
superior e altamente temível” 47.
Importa ter presente que Varrão, muito mais tradicionalista e
conservador, difere de Luciano no modo de encarar os deuses e dos
cínicos por exemplo na tolerância relativamente ao consumo mo-
derado de vinho (os cínicos defendiam a abstenção de vinho), mas
o primeiro e o segundo aproximam-se quando descrevem Menipo
como alguém que suscita desassossego nas personagens, vivas
num caso e mortas no outro, com quem interage. Além disso, a im-
pressão que causava não divergia substancialmente da de (outr)os
cínicos.
Em Men. 539 Cèbe, lê-se: inde putidas uuas acinis electis et comestis
extendit in lectis quasdam, depois, uma vez escolhidos e comidos os
bagos, espalha algumas uvas podres sobre os leitos. Para escarnecer
da pobreza da refeição, mesmo para os padrões cínicos, o senhor
da casa ou algum comensal antecipa-se a comer os bagos bons e
proporciona aos restantes convivas ou mostra-lhes uvas em escassa
quantidade e impróprias para consumo. Cèbe conclui: “Varron tourne
384
par là en dérision la frugalité cynique lorsqu’elle est mise en avant
pour légitimer l’avarice et la goujaterie.” 48
Esta interpretação é muito interessante, pois, embora o editor-
-comentador não estabeleça uma ligação específica a Menipo, poderia
ajudar a compreender a expressão canis sine coda, isto é, o indiví-
duo que, renegando o desprendimento e frugalidade cínicos, deles
se serve para não ter de gastar mais com os convidados ou para se
satisfazer previamente com o que de melhor tem o banquete para
oferecer. Esta interpretação é atraente, mas o problema é que não
sabemos se aquela expressão se refere a Menipo, se, ao descrever o
comportamento do anfitrião ou de algum comensal indelicado, Varrão
teria, ou não, em mente o comportamento do próprio Menipo ou de
algum (outro) cínico. D. L. revela – como já vimos – incoerências
entre certos valores cínicos e os comportamentos de Diógenes e de
Menipo.
Em suma: dada a escassez de informação veiculada acerca de
Menipo, não só não é possível ter grandes certezas sobre o teor da
sua obra, como, a julgar pelos testemunhos de Varrão e D. L., não é
possível determinar se ele estaria mais distante dos (outros) cínicos
do que eles andariam uns dos outros; em todo o caso, é notória
uma incoerência entre os valores cínicos e o que D. L. nos diz da
vida de Menipo, incoerências essas do tipo das que encontramos em
(outros) cínicos. Se seria algum arremedo, com o intuito de ridicula-
rizar a seita, não é possível determinar. Quanto à parte construtiva
da crítica, não se vislumbra no testemunho de D.L. e, sendo embora
possível na menipeia de Varrão, o caráter fragmentário do texto não
nos permite tirar uma conclusão segura.
No retrato que faz dos “satiriques schizothymes”, W. A. Pannenborg
cataloga um conjunto de características que, depreendemos, os apro-
ximam das ideias mais negativas e tradicionalmente associadas aos
cínicos, mas Cèbe entende que Varrão era dos sentimentais, escrevia sá-
tira com humor, porém não era um rematado nem um grande satírico,
385
pois a sua própria natureza, mais até do que os constrangimentos
gerados pelo contexto romano, não só o impedia de criticar aberta
e publicamente e com agressividade as pessoas como, no caso de
se irritar, o levava a uma autocensura, de forma a nunca perder por
completo o controlo 49. Inegável é a vertente construtiva, subjacente
p. ex. à atitude para com o vinho e os deuses, presente na sátira do
tradicionalista e aristocrático Varrão.
Bibliografia
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387
(Página deixada propositadamente em branco)
M o n ta n h a s e m P l í n i o o A n t i g o *
T h e M o u n ta i n s i n P l i n y t h e E l d e r
Francisco Oliveira
CECH
ORCID: 0000-0003-4871-243X
foliveir@fl.uc.pt
* Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para
a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto CECH-UC: UIDB/00196/2020.
This research is financed by national funds through the Foundation for Science and
Technology, FCT, I.P., in the framework of the CECH-UC project: UIDB/00196/2020
1 Oliveira 1994: 33. Cf. Nat.3.47: Igitur ab amne Varo Nicaea a Massiliensibus con-
ditum, fluvius Palo, Alpes populique Inalpini multis nominibus, sed maxime Capillati,
oppido Vediantiorum civitatis Cemenelo, portus Herculis Monoeci, Ligustina ora.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_18
Não admira, por isso, que o tema da montanha ofereça colorações
várias, desde as puramente geográficas às históricas, morais, culturais
e económicas.
Que o ponto de vista económico está presente, mesmo quando en-
volto em tonalidade moralista ou sujeito a um critério de seriação
baseado no extraordinário, no inabitual, no paradigmático, eis uma
das novidades que é preciso ressaltar, sobretudo quando se ouve que
os antigos não tinham um critério ou um pensamento económico.
Palavras-chave: diatribe, economia, geografia, montanha, Roma
390
1. Montes como realidade geográfica e científica
391
A preocupação de assinalar a ordem de grandeza, como no caso
do Pélio, é generalizada, desde a Itália (3.48: Appenninus mons
Italiae amplissimus; cf. 3.117: Padus, e gremio Vesuli montis cel-
sissimum in cacumen Alpium) até regiões mais distantes, como a
Escandinávia (4.96. mons Saevo, inmensus nec Ripaeis iugis minor
... alterum orbem terrarum eam appellant), a Germânia (4.100: mons
Masicytus ... nullo inferius nobilitate Hercynium iugum), a África,
com o monte Atlas (5.14: de excelsitate eius), e a Índia (6.74: mons
altissimus Indicorum Capitalia).
As montanhas aparecem muito ligadas à hidrografia em vários
passos que anotam a existência de fontes ou nascentes mesmo nos
cumes mais elevados (2.223: exilire fontes atque etiam in Aetnae
radicibus, flagrantis), o que implica uma explicação para tal fenó-
meno (2.166):
... atque etiam in summis iugis erumpente, quo spiritu acta et ter-
rae pondere expressa siphonum modo emicat tantumque a periculo
decidendi abest, ut in summa quaeque et altissima exsiliat.
... e, brotando até nas montanhas mais altas, jorra sob a pressão do
referido sopro e do peso da terra, como se de um sifão se tratasse,
e é de tal modo inexistente o perigo de derrocada que irrompe
nas maiores alturas.
392
Também é explicitada a relação entre clima e relevo, pois as in-
flexões e cumes das montanhas condicionam o regime dos ventos
(2.115); são atingidas por raios (2.113); no caso dos montes Rifeus,
na região cítica, o seu término assinala uma mudança climática (6.34:
fluvius Carambucis, ubi lassata cum siderum vi Ripaeorum montium
deficiunt iuga). De resto, as montanhas aparecem ligadas a tempes-
tades, como na Índia (9.5: tunc deiectae montium iugis procellae),
e, para além de observatório metereológico (5.80, monte Cásio, na
Síria), fornecem prognósticos sobre o tempo através de certos ruídos
(18.360) e da sua relação com as nuvens (18.356-357):
393
incendiis–, com permanentes chamas e um ruído que se ouve até às
colinas Gémeas, atualmente nos montes Cammarata; nas ilhas Eólias,
e nelas Hiera, consagrada a Vulcano, com o seu vulcão sobre uma
colina, Estrôngile com o Stromboli, e Líparis, cujos famosos vulcões
iluminavam as noites (3.93: appellata Hiera, quia sacra Volcano est,
colle in ea nocturnas evomente flammas).
Não faltam sequer referências a fenómenos de erosão ou transgres-
são, como quando Plínio se compraz a descrever o quadro dantesco
da luta entre a terra e o mar e se refere às Colunas de Hércules,
atualmente conhecidas como Estreito de Gibraltar, resultado da fúria
do oceano contra as montanhas que vedavam o acesso do Atlântico
ao Mediterrâneo (6.1: inripuisse fractis montibus Calpeque Africae
avolsa tanto maiora absorbuisse quam reliquerit spatia).
Merece ênfase a descrição do curso do Eufrates pela cordilheira
do Tauro, uma espécie de luta épica entre dois gigantes 2, ora ven-
cendo um, ora vencendo outro (5.83-85):
394
empurra-o para sul. Assim se equilibra esta batalha da natureza,
indo este por onde quer, impedindo-o aquele de ir por onde queria.
A partir das cataratas torna a ser navegável.
395
quando se lavra com a técnica correta (17.29, perite; cf. 17.170: rasgar
sulcos perpendiculares à base). E, no domínio agrário, anota-se que
as colinas suportam maior número de árvores de plantio do que as
planícies (17.92: iam per se colles minora quaerunt intervalla); que,
segudo Magão, em colinas com solos secos e argilosos, o plantio da
oliveira devia fazer-se entre o outono e o solstício de inverno (17.128,
olea); a poda do ulmeiro em colinas e terrenos secos será diferente
da poda dos de planície e terrenos húmidos (17.201: ulmus); a lavra
deve adaptar-se ao terreno, dispensar os bois e lavrar só com sachos
em zonas montanhosas (18.178-179: montanae gentes sarculis arant).
De igual modo regista fenómenos geológicos de grande dimensão,
como o colapso de parte do monte Taigeto causada por um terra-
moto (2.191); a existência de mar até aos montes da Etiópia (2.201);
o completo desaparecimento do monte Epopo, nas ilhas Pitecusas,
por um fenómeno de vulcanismo (2.203); o surgimento de uma ilha
montanhosa por ocasião de terramoto, a ilha Próquite (2.203); a
colisão de duas montanhas perto de Mútina, atual Módena, no segui-
mento de um terramoto (2.199); a derrocada dos montes escavados
para mineração do ouro na Hispânia (33.66: ruina montium; 73:
mons fractus cadit ... ruinam naturae; 74: ruinam iugis montium;
76: ruptusque mons diluitur); a já referida abertura das Colunas de
Hércules entre duas montanhas, Ábila em África, Calpe na Europa,
o que mudou a face da natureza (3.4).
Em suma, o valor das montanhas é referido por Plínio no elogio
da Itália, onde consta que para a sua glória contribuem os seus
montes cheios de desfiladeiros (37.201).
396
termo’4, relacionam-se com montanhas em 3.115, sobre a oitava região
da Itália (Octava regio determinatur Arimino, Pado, Appennino); em
5.61 (ubi montes finiunt Thebaidem); em 5.97, sobre a Panfília e a
Lícia (Taurus mons ... disterminat); em 6.37 (Caspium mare gentesque
quae circa sunt et cum iis Armeniam, determinatas ab oriente oceano
Serico, ab occidente Caucasi iugis...). Mas outros termos assinalam
o início ou o limite de regiões ou territórios em correlação com
montanhas, como discernere, excludere, incipere. E que estas são
fronteiras que a natureza desejaria invioláveis, reservando-as para
si, fica bem explícito em 36.1-2, passo que havemos de reencontrar
no capítulo 6.
As montanhas, a par dos cursos de água 5 , aparecem recorren-
temente como importantes marcos na descrição geográfica para
assinalar limites entre províncias, regiões e nações. Assim acontece
para delimitar a Tarraconense e estabelecer a sua fronteira com a
Lusitânia (3.6: amne Ana discreta); ou para separar as Hispânias
das Gálias (3.18: ab Alpibus ad fines Hispaniae ulterioris; 3.29-3.30:
Pyrenaei montes Hispanias Galliasque disterminant; 3.29: ad finem
Castulonis; 3.43: ab Inalpino fine); ou a Gália da Itália (3.31 ab
Italia discreta Alpiumque vel saluberrimis Romano imperio iugis);
para delimitar a Gália (4.105: Vniversa oram ¯|XVII| . ¯L Agrippa,
Galliarum inter Rhenum et Pyrenaeum atque oceanum ac montes
Cebennam et Iures, quibus Narbonensem Galliam excludit) e a Hispânia
e indicar as respetivas distâncias (4.110: A Pyrenaei promunturio
Hispania incipit ... a Pyrenaeo per oceanum; cf. 4.114-115 e 118);
4 Cf. Nat.3.3: hinc intranti dextera Africa est, laeva Europa, inter has Asia.
termini amnes Tanais et Nilus. A importância dos marcos dos terrenos, a assinalar os
limites da propriedade, está bem atestada em 18.8 (Numa institui as Terminalia, festas
privadas em honra do deus Terminus). Do domínio agrícola e privado, o termo terá
transitado para a ideia geral de limite ou fronteira (cf. 6.120: ductu Pompei Magni
terminus Romani imperi, Oruros; 7.117: quanto plus est ingenii Romani terminos in
tantum promovisse quam imperii).
5 Os cursos de água são de importância extrema na geografia pliniana, em
domínios como a economia e o urbanismo, e em especial como orientadores da
descrição e traçado de fronteiras e limites; neste caso, ver, por exemplo, 3.16; 3.115;
3.127; 4.38; 5.142; 6.9; 7.30.
397
a Índia oriental (6.56: Hemodi montes adsurgunt Indorumque gens
incipit; 6.25: Armenia autem Maior incipit a Parihedris montibus;
6.60: par labos sit montes enumerare. iunguntur inter se Imavus,
Hemodus, Paropanisus, Caucasus a quibus tota decurrit in planitiem
inmensam et Aegypto similem); a Europa citerior (1.118: a Cerauniis
montibus incipit) ou a Fenícia (36.190: Phoenice ... finitima Iudaeae
intra montis Carmeli radices).
398
Monesi, Oscidates Montani; 5.100, sobre a Lícia: nunc sunt montana
Gagae, Corydalla, Rhodiopolis), indicia que os mesmos teriam um
modo de vida singular e percebido como diferente. É também o caso
dos Inalpini, os habitantes dos Alpes (3.37, 47: populique Inalpini
multis nominibus), e dos Transmontani das Astúrias (3.28).
Sem discutir a questão, admito subjazer aqui a ideia de que habitar
sobre um colina pode ter motivações defensivas, como no caso de
Cárace, construída numa colina artificial na confluências dos rios
Tigre e Euleu (6.138).
399
fornece pastos de ditamno que tornam o leite da suas vacas uma
mezinha para todas as doenças (25.94).
No número de aves inserem-se sobretudo as usadas na alimenta-
ção: o tetraz (tetrao urogallus) e outras aves comestíveis dos Alpes
e regiões setentrionais (10.56), e a pêga, entre os Apeninos e Roma
(10.77). Sobressaem as aves canoras, suscetíveis de fornecer iguarias
muito exóticas, como no caso do banquete do ator Clódio Esopo
(10.141-142) e do flamingo louvado pelo gastrónomo Apício, o qual
se encontra nos Alpes, tal como o francolim, o corvo, a gralha de
bico amarelo e o lagópode, e até a íbis do Egito (10.133-134; ver
tradução dos dois passos no capítulo 6.1).
O Etna é louvado por produzir caracóis de primeira qualidade,
os quais tinham virtudes medicinais importantes, como nas dores
do estômago e na hemoptise (30.44, coclea).
400
73. Indicadas as árvores mais célebres, convém considerar
algumas generalidades a respeito de todas elas. Têm preferência
por montanhas o cedro, o larício, a taeda e as restantes que pro-
duzem resina, tal como o azevinho, o buxo, a azinheira, o zimbro,
o terebinto, o choupo, o freixo silvestre, a carpa. Nos Apeninos
também existe um arbusto que se chama fustete, muito bom para
tingir tecidos de linho ao jeito da púrpura. 74. Têm preferência
por montes e vales o abeto, o carvalho, o castanheiro, a tília, a
azinheira, o corniso. Com montanhas húmidas deleitam-se o ácer,
o freixo, a sorveira, a tília, a cerejeira. Não é fácil encontrar nas
montanhas a ameixoeira, a romanzeira, zambujeiros, a nogueira,
amoreiras, sabugueiros. Também descem até à planície o corniso,
a aveleira, o carvalho, o freixo silvestre, o ácer, o freixo, a faia,
a carpa. E sobem até zonas montanhosas o olmo, a macieira, a pe-
reira, o louro, o mirto, o corniso sanguíneo, a azinheira e as giestas
usadas para tingir vestuário.
401
que é proclamada a excelência da montanha para a produção de
frutos e árvores em geral (17.18: praefert ... et montuosa planis); e
uma das razões da excelência dos campos itálicos é que declivam
lentamente desde o sopé das montanhas em direção ao sul (17.36).
Como exemplo de raridade, o Atlas oferece a planta que recebeu
o nome do médico que a descobriu, Eufórbio, e o seu suco mere-
ce admiráveis elogios pelas vantagens em doenças oftalmológicas
e contra serpentes e venenos (5.16, herba euphorbea). De resto, a
medicina é descritor comum a muitas plantas 8.
O monte Pélio produz um espinheiro ou buxo espinhoso também
chamado pyxacanthus chironius, cuja raiz serve para a contrafação
do remédio lycion, proveniente da Índia (12.31). O ásaro nasce em
montanhas cobertas de sombra (12.47, asarum). O incenso dos
Atramitas, da tribo dos Sabeus, nasce espontaneamente em montes
muito altos e em colinas, em especial na região de Sariba, sendo
objeto de monopólio e de interditos religiosos (12.52-54, t(h)us).
A Arábia importa da Índia o bratus, semelhante ao cipreste, nascido
no monte Escancro, para bebidas e perfumes (12.78).
De resto, a Arábia, região que se estende a partir do Líbano até ao
mar da Arábia e podia englobar a Etiópia, é célebre pelas odoríferas:
a canela, mais espessa na montanha que na planície, com preço entre
5 e 50 denários a libra, usada para gastronomia, medicina, perfumaria
(12.95-97, sobre a casia verdadeira); a moringa oleífera, que produz
o myrobalan, óleo mais espesso do que o de outras regiões, por vir
da montanha, usado em medicina e perfumaria, (12.102); o caniço,
que brota entre o Líbano e o Antilíbano, usado na perfumaria (12.104,
calamus); o estoraque do monte Cásio, na região da Síria próxima da
Judeia, de odor muito agradável, e o do monte Amano, só usado em
perfumaria, que chega aos 17 denários, sendo objeto de falsificação
(12.124-125, styrax); o gálbano do mesmo monte Amano, que vale
402
5 denários e afugenta as serpentes, não servindo para medicina, tão
só para perfumaria (12.126-127, galbanum); o enanto, uma inflores-
cência da vinha selvagem das montanhas da Média utilizada só em
medicina (12.133, oenanthe); a ameixoeira das colinas de Damasco
(13.51, pruna); goma de olmeiro ou de zimbro do monte Córico, na
Cilícia, usada para as feridas das gengivas de crianças, valendo 3
denários (13.67, ulmus, iuniperus).
É também numerosa a flora atribuída a montanhas de outras regi-
ões. Assim, formando florestas, no Atlas existe uma árvore peculiar,
a cidreira, semelhante a um cipreste, cuja madeira era empregue em
ebenestaria e sobretudo em mesas que chegavam a valer em Roma
mais de um milhão de sestércios, o preço de um latifúndio (13.91-92,
citrus); a procura era tal que a mais apreciada, a do monte Ancorário,
na Mauritânia, se esgotou (13.95).
A vinha de colinas e encostas é muitas vezes especialmente
apreciada, como no caso da Campânia (cf. 3.6, vitiferi colles), onde
existiam, como noutras regiões itálicas, ótimas colinas bem expostas
ao sol, um dos fortes motivos para o elogio da Itália (3.41, aprici
colles). Não admira que afamadas castas de uvas se multiplicassem,
como a excelente casta amineia do monte Vesúvio e das colinas de
Sorrento, na Itália (14.22). Mas muitas outras, embora menos nobres,
como a casta eugenia, transportada das colinas de Taormina para os
montes Albanos (14.25); a visulla, das colinas da Sabina (14.28). Entre
as castas regionais, citem-se a capnios, a buconiates e a tharrupia
das colinas de Túrio, que se vindimam na época das geadas (14.39).
Para os vinhos mais afamados, o de Pucino, numa encosta reocho-
sa da Ilíria, era o preferido de Lívia Drusila e considerado o vinho
mais adequado para fins edicinais (14.60); o famoso Falerno provi-
nha de encostas onde também se davam o Caucino e o Faustiniano
(14.62-63: summis collibus Caucinum gigni, mediis Faustinianum,
imis Falernum); o terceiro lugar era disputado entre os vinhos dos
montes Albanos e de Sorrento e os dos montes Mássico, da região
de Sinuessa, e Gauro, nas enconstas fronteiras a Pozzuoli e Baias
(14.64). Entre as uvas de mesa, são de montanha a rética, dos Alpes
403
Marítimos *(14.41). A montanha suscita ainda a procura de soluções
para evitar a congelação do vinho dos tonéis de madeira, acendendo
fogueiras em redor, como nos Alpes (14.132), em cuja cercania se
desenvolveu uma técnica para conservar uvas passas (15.66).
Numerosas outras produções de montanha se nos oferecem: o bál-
samo da Judeia, que cobre as colinas à maneira das vinhas (12.111);
o figo vermelho do Ida da Tróade (15.68, ficus); o pez-resina betu-
mar vasilhame para vinho, sendo o do Ida da Tróade o preferido na
Ásia (14.128: pix); uma variedade de loureiro (laurus Alexandrina),
utilizada em cerimónias triunfais, nos jardins e como símbolo de paz,
que existe no Ida e só se dá em terrenos montanhosos (15.131); um
bosque no Aventino, de nome Loreto, onde existira uma floresta de
loureiro (15.138: Loretum in Aventino vocatur ubi silva laurus fuit);
as glandíferas, que constituíam o pão das Hispânias e variavam da
planície para a montanha (16.15-16, glans); o vime, que os romanos
iam buscar à colina Querquetulana, isto é, Viminal (16.37); o pinheiro
alvar, que aprecia as alturas e o frio, bom para construção civil por
ser facilmente trabalhado, mas também para fins fúnebres (16.40,
picea), tal como o abeto, indicado para construção naval (16.41-42,
abies); para calafetagem de navios é usada a zopissa, resina tirada
do pinheiro alvar, que, embora menos grosso que o da planície, da-
ria mais produção na montanha (16.60); o freixo do Ida da Tróade
é o que mais madeira produz (16.62, fraxinus), e é mais espesso na
montanha (16.64); mais raiado e mais duro é o ácer ou bordo de
montanha, usado para obras mais elegantes, cujo valor vem logo a
seguir ao da cidreira (16.66-67, acer); o buxo, muito abundante nos
Pirenéus e no monte Citoro, na Paflagónia, fornece madeira muito
apreciada e é usado em jardinagem e para dar sabor ao mel (16.70-71,
buxus); o olmo dá madeira e serve de esteio às vinhas, e tem uma
espécie arbórea, de montanha, e outra arbustiva, campestre (16.72,
ulmus); o laburno dos Alpes oferece madeira muito dura (16.76,
laburnum); de várias árvores da floresta se servem os montanheses
para fazer recipientes (16.128: lagoenas et alia vasa nectunt); o cedro
nasce nos montes da Lícia e da Frígia (16.137, cedrus); o loureiro
404
do Olimpo é especialmente vocacionado para cerimónias religiosas
(16.137, laurus); o cipreste, que nasce espontaneamente no Ida e
nas Montanhas Brancas de Creta, sempre com neve, fornece madeira,
tem função religiosa, fúnebre, serve de muro separador nos campo e
deixa-se talhar (16.139-142, cupressus); a hera, consagrada no tirso
de Liber Pater, na Índia só nasce no monte Mero (16.144, hedera); o
larício dos Alpes, dos Apeninos, do Jura e dos Vosgos produz madeira
muito apreciada (16.197, larix); o framboeseiro do Ida da Tróade é
usado em oftalmologia, contra a erisipela e as dores de estômago
(16.180, rubus Idaeus; cf. 24.123); os seis frondosos lódãos da casa
de Licínio Crasso no Palatino, a que ele atribuía valor inestimável
(17.2-6, lotos); há excelente trigo ‘de três meses’ nos Alpes e em
zonas montanhosas da Sicília e da Acaia (18.69-70, trimestre, sc. triti-
cum); a erva cantábrica, talvez a campainha, descoberta no tempo de
Augusto, usada contra as mordeduras de serpentes (25.85, cantabrica;
cf. 25.101); a espelta ou alica, que merece a palma entre todas as
produções da Itália9, aprecia campos no sopé de montes cobertos
de nuvens, como na região da Campânia, onde os inconvenientes do
terreno esponjoso e montanhoso se tornam vantagens em termos de
fertilidade (18.109-110, montium culpa in bonum cedit); o centeio,
cereal considerado detestável, usado só em época de carestia, existe
no sopé dos Alpes, onde os Taurinos lhe chamam casia e o utilizam
como estrume (18.141, secale); aí também se dão o milho painço e o
milho miúdo (18.182 panicum miliumque); o esparto cobre monta-
nhas na Hispânia Citerior e tem numerosas aplicações: leitos, fogo,
iluminação, calçado, vestuário de pastores (19.26-27, spartum); a
magydaris, planta da família das apiáceas abundante no Parnaso, por
vezes designada como laserpicium por servir para a contrafação do
mesmo, é muito útil e usada em numerosos medicamentos (19.46);
uma variedade de espargo selvagem das montanhas tem sabor muito
especial (19.145, asparagus, cf. 19.54); a ligústica, da família das api-
9 Laus Italiae que evoca o tópico de 17.36: idem agrum optimum iudicat ab
radice montium planitie in meridiem excurrente, qui est totius Italiae situs.
405
áceas, acaso o aipo silvestre ou levístico selvagem, cresce nos montes
da Ligúria (19.165, ligusticum silvestre); o serpão e o sisímbrio dão-
-se em muitas montanhas, na Trácia, em Sícion e no Himeto (19.172:
serpullo et sisymbrio montes plerique scatent); as rosas de cem péta-
las do Pangeu são usadas para coroas (21.17, centifolia, sc. rosa); o
orégão de cultivo tem uma espécie específica, da montanha, eficaz
contra as serpentes, picadelas de vespas e insetos, e também diurética,
purga os lóquios depois do parto, favorece a digestão e o apetite,
boa contra luxações (20.173, cunila sativa); são muito apreciados os
lírios ou narcisos de cor púrpura dos montes da Lícia (21.25, lilium e
narcissus); o açafrão do monte Córico, na Cilícia, é o mais reputado
de todos, seguido do do Olimpo e do de Centuripos, no Etna, muito
sujeitos a contrafação (21.31, crocum silvestre); a valeriana ou nardo
céltico das zonas soalheiras dos Alpes da Panónia coloca-se na roupa
por ser muito apreciado o seu aroma, o que lhe confere um preço
elevadíssimo (21.43, saliunca); os juncos dos Alpes Marítimos, mais
grossos do que o normal, são usados para redes de pesca, cestaria
e mechas (21.114, iuncus); o timo branco, que vegeta em colinas e
é o melhor de todos, usado em oftalmologia, na alimentação e em
variadas mèzinhas (21.154, thymum candidum).
Já abordado em referências anteriores (21.160 para o habrotonum
de montanha ou santolina, considerado feminino, com numerosas
aplicações medicinais; 23.8 sobre o enanto, excelente perfume de vinha
selvagem de montes de Antioquia e Laodiceia), o uso medicinal das
plantas, correspondente a uma farmacopeia ainda maioritariamente
botânica, aparece sistematizado no livro XXIV, dedicado à medicina
retirada das árvores silvestres, que a natureza prodigaliza a todos
sem necessidade de as irem buscar a terras longínquas (24.1-5). Esse
livro inclui ervas tidas como mágicas (24.156 ss.). Daí e dos livros
posteriores colijo o seguinte elenco, iniciado a propósito da cura
da tísica (24.28):
406
vires satis constat et illum caeli aera plus ita quam navigationem
Aegyptiam proficere, plus quam lactis herbidos per montium aestiva
potus.
2. non aeque haec cura eorum mira est in iis, quae satu blan-
diuntur aut cibo invitant: culmina quoque 3. montium invia et
solitudines abditas omnesque terrae fibras scrutati invenere, quid
407
quaeque radix polleret, ad quos usus herbarum fila pertinerent,
etiam quadripedum pabulo intacta ad salutis usus vertentes.
11 Sobre rituais mágicos na farmacopeia botânica, ver Martini 1977, esp. 139-153.
12 Afirma Plínio que a mais antiga descoberta botânica foi esta, de Péon, médico
dos deuses; o sintagma paeoniae herbae significa ‘plantas medicinais’. Sobre a peónia,
ver Martini 1977: 42-46.
408
também se encontra no Parnaso e é suscetível de falsificação (25.48-
49); em regiões de montanha nasce a valeriana grega ou hipericão,
polemonia ou philetaeria, cuja descoberta é reivindicada pelos reis
homónimos (25.64); a centáuria mais famosa nasce em colinas da
Arcádia, mas existe noutros montes, como Fóloe, Liceu e Alpes, e
é extremamente eficaz para cicatrizar feridas de humanos e ovinos
(25.67, centaureum); para a medicina respiratória descobriu Clímeno
a planta homónima, acaso a madressilva, em regiões florestadas e
montanhosas, com o inconveniente de tornar os homens estéreis
(25.70, clymenus); também de um rei tomou o nome a genciana, muito
abundante em lugares húmidos no sopé dos Alpes, com propriedades
inflamatórias mas perigosa para as grávidas (25.71, gentiana; 26.163,
elimina marcas no rosto); a eufórbia tirou o nome do médico que
a descobriu no monte Atlas, sendo usada contra venenos e sujeita
a falsificação (25.77-78, euphorbea); o ditamno aromático, que dis-
pensa todos os medicamentos quando na primavera se bebe leite de
vacas que dele se alimentaram, floresce nos montes Parnaso, Pélio
e Telétrio (25.94, dictamnus); uma apiácea similar à cenoura, que
nasce espontaneamente em terrenos de colinas, sendo usada contra
mordeduras de serpentes em homens e animais (25.111, daucus); o
peucédano, brinça ou funcho de porco, brota nos montes, à sombra,
e é muito usado em medicina e em particular contra as serpentes
(25.117, peucedanus); a cacália ou leontice, geralmente de montanha,
serve de loção capilar e de mezinha para tosse e garganta (25.135,
cacalia sive leontice, e 26.29, cf. cf. 26.163, para as rugas); o melhor
hissopo é o do Tauro, bom para tísica e prurido na cabeça (25.136,
hysopum); o rábano-silvestre nascido em terrenos montanhosos é
purgante geral e para a bílis (26.72-74, raphanus silvestris, gr. apios
ischas ou raphanos agria); no mesmo tipo de terrenos cresce o sa-
tirião, um afrodisíaco e anafrodisíaco, conforme o excipiente (26.97,
satyrion); a aethiopis, variedade de salva (a da Etiópia é a melhor),
vegeta no monte Ida de Creta e é usada em ginecologia, na ciática,
pleurisia e inflamações da garganta (27.11-12), e ainda na magia
(26.18), tal como a desconhecida theangelis dos montes do Líbano
409
e de Dicte, em Creta, que fornece aos magos a capacidade de adi-
vinhação (24.164); a asclépia cura cólicas e feridas provocadas por
serpentes (27.35, asclepias); a alga conferva dos rios alpinos é mara-
vilhosa a curar fraturas (27.69, conferva); em penedos de montanhas
marítimas brota a empetros, calcifraga em latim, com o significado
de quebra-pedra, benéfica para a bílis e glândula pituitária e para os
cálculos renais (27.75: Empetros, quam nostri calcifragam vocant);
as montanhas também oferecem a orion, uma das espécies do po-
lígono, boa para a ciática (27.113-115: Tertium genus orion vocant);
o holostheon, uma espécie de tanchagem, cresce em colinas com
terra e tem usos médicos na cura de ferimentos e rupturas (27.91);
a planta do Ida, talvez a gilbardeira, controla problemas intestinais,
as regras e todas as hemorragias (27.93, Idea herba, cf. 14.108); o
potirion, planta de difícil identificação, ou phrynion ou neuras, que
se encontra em colinas húmidas, e tem uma raiz ótima para feridas,
em particular de nervos (27.122-123); a phyllon originária de monta-
nhas rochosas, acaso uma euforbiácia, determina o sexo das crianças
conforme o sexo da própria planta, sendo tomada em infusão de
vinho (27.125); por fim, o smyrnion, cujo nome grego evoca Esmirna
e mirra, de cujo odor se aproxima, dá-se em colinas pedregosas, com
numerosos efeitos curativos, diuréticos, emenagogos, antidiarreicos,
entre outros. (27.133-134).
Um passo sumaria a importância económica, civilizacional, ideo-
lógica e política da troca de produtos vegetais entre todas as partes
do império romano (27.2-3):
410
quaeso, deorum sit munus istud! adeo Romanos velut alteram lucem
dedisse rebus humanis videntur.
13 Plínio não emite qualquer juízo de valor sobre este apontamento ditado pelo
gosto dos mirabilia, mas poderá estar implícita a utilização desta água como meio
de suicídio.
411
5) e de zonas tão longínquas como a Síria, junto do Tauro, que tem
nascentes boas para os cálculos (31.9).
Enquanto elemento essencial para garantir saúde e permitir o ur-
banismo, a água é transportada por aquedutos e canais subterrâneos
para Roma, que vai buscar a mais fresca e salubre de todas águas
aos montes da região dos Pelignos, com o aqueduto Aqua Marcia
(31.41).
Logicamente, a importância da água para a vida humana também
é visível nos textos onde se trata de como encontrar água salubre,
inclusive em zonas montanhosas (31.43-49), de que cito 31.43 e 48:
412
regra universal. (...) 48. Rochas vermelhas dão esperança muito
segura de águas excelentes; bases rochosas de montanhas e sílex,
ainda mais, de água gelada.
413
Os produtos minerais são objeto de numerosas referências, como
a propósito da fertilidade mineral da Hispânia Citerior, incluindo o
conventus Bracarum, até ao Douro e a partir dos Pirenéus (4.112:
omnis, quae dicta regio a Pyrennaeo, metallis referta auri, argenti,
ferri, plumbi nigri albique) e do Pangeu, na Grécia, onde minas de
ouro e a prata foram pela primeira vez descobertas (7.197).
A Hispânia, particularmente nas zonas montanhosas, é rica em
ouro (33.67: cetero montes Hispaniarum, aridi sterilesque et in qui-
bus nihil aliud gignatur, huic bono fertiles esse coguntur), que se
extrai de três maneiras, em especial pelo processo da ruina montium
‘derrocada das montanhas’ no noroeste peninsular (33.66, 74, 76),
trabalho de gigantes descrito com pormenor e riqueza de terminologia
local (33.70-78, cavantur montes, agogae ‘canais para escoamento de
águas’, arrugia ‘galeria de mina’, cuniculus ‘galeria de mineração’,
gandadia ‘argila rochosa’, palaga ou palacurna ‘lingote de ouro’,
urium ‘terra que cobre o minério’, balux ‘areia de ouro’).
Os montes da Hispânia também abundam em prata, e da melhor
(33.96 pulcherrimum), produzida em poços desde a época de Aníbal
e até em zonas montanhosas, como Baebelo, a atual Castulo, onde a
montanha foi escavada até à profundidade de 1.500 pés, uns 444m
(33.96-97).
Também nas montanhas entre o Indo e o Iómanes habitam serranos
que exploram minas de ouro e prata (6.173-174), bem como na região
montanhosa entre as Portas do Cáucaso e os montes Gurdínios, onde
as nações indómitas dos Valos e dos Suanos exploram ouro (6.30).
Nas minas de ouro e prata forma-se também o jalde, espécie de
ocre usado como pigmento na pintura; a variedade de jalde mar-
móreo encontra-se em montes a 20 milhas de Roma e é adulterado
para passar por jalde escuro, que é mais caro (33.158-160: sil ...
marmorosum ... pressum).
O terceiro metal em ordem de valor é o cobre, e, pela qualidade,
sobressai o salustiano dos Alpes, onde rapidamente se esgotou (34.3,
aes), tal como o auricalco, que, por cansaço, a terra deixou de gerar
(34.2, aurichalcum).
414
O ferro encontra-se na Cantábria, onde existe uma montanha
altíssima, os montes Triano na região de Bilbau, toda ela desse mi-
nério (34.149, ferrum).
O enxofre, com múltiplas aplicações, do lazer à medicina, é ex-
plorado por mineração nas colinas Leucogeias da zona de Nápoles
(35.174, sulp(h)ur; cf. 18.114), donde também se retira a greda ou
cré para misturar com sêmola (18.113-114).
Plínio reconhece ainda o valor económico das terras, a ponto de
escrever sobre o que viria a ser chamado cimento pozolânico (35.166):
415
E, ligadas à construção mas também a numerosos outros domínios,
restam as pedras, abordadas no livro XXXVI e XXXVII. Trata-se de
material muito caraterístico de montanhas, não admirando, portanto,
que as informações sejam muitas.
Logo na introdução do livro XXXVI, cuja tradução apresentaremos
no capítulo 6, sobre montanha e moralidade, Plínio relaciona a mon-
tanha com a produção de pedras e gemas, mármores e cristal (36.1-3),
tudo artigos ligados ao luxo em geral (ver sintagmas sucinis atque
crystallinis murrinisque, deliciarum causa, ad voluptates, gaudia)
e em particular ao luxo gastronómico, assinalado pelas expressões
frigidos potus e ut bibatur glacie, e ao luxo da construção 15.
Além destes símbolos de vida faustosa tão ligados às montanhas,
muitos outros produtos minerais com estas se relacionam. É o caso
da pedra ónix, exclusiva dos montes da Arábia, utilizada para ânforas,
taças e vasos, unguentários, mobiliário de luxo e colunas decorativas
(36.59-60, onyx); dos mármores do Himeto (36.7); das três pirâmi-
des do Egito construídas em zonas montanhosas (36.76, pyramis),
sendo a mais alta a de Quéops, feita com pedra da Arábia (36.78);
da magnetite, também chamada sideritis e heraclion, descoberta no
monte Ida da Tróade por um pastor homónimo (36.127, magnes); da
existênciade dois montes junto do rio Indo, um que repele o ferro,
outro que o atrai (2.211); das pedras de afiar do Taigeto, distinguidas
com o segundo lugar (36.164, operarii lapides).
A sienite, uma rocha granítica, talvez granito-rosa, é referida a
propósito da feitura e embarque de um obelisco em dois navios
muito largos, sendo trazidos de um monte a pedra de construção e
os suportes onde o obelisco foi deitado para ser transportado através
de um canal artificial que ia até ao Nilo (36.63-68, syenites).
Mas, entre todas, e objeto do livro XXXVII, sobressaem as pedras
preciosas, que teriam sido usadas pela primeira vez por Prometeu
quando incrustou num anel de ferro o fragmento de uma rocha do
15 Para os mármores, cf. 36.6, 48, 114 (seis colunas de mármore do Himeto na
scaena do teatro de Escauro).
416
Cáucaso (37.2; cf. 33.8). São enumeradas: o excelente cristal de rocha
dos Alpes (37.23, crystallum, e 27) e o cristal de peso extraordinário
extraído de poços nas montanhas de Amaia, na Lusitânia (37.25),
usado para vasos (trulla) que podiam valer 150.000 sestércios, tal
o furor que causavam (37.29); do âmbar amarelo, alegadamente
produzido numa floresta de uma montanha na Índia (37.39, elec-
trum); das esmeraldas extraídas em colinas perto de Copto, no Egito
(37.65, smaragdus), ou no Monte das Esmeraldas (Smaragdites), na
Calcedónia, ou mesmo no Taigeto (37.73); da pedra carquedónia, isto
é, de Cartago, carbúnculo que surge nas montanhas dos Nasamões e
serve, como a anterior, para taças e, com menos qualidade, para sine-
tes (37.104, carchedonia; cf. 92: carbunculi ... quos et Charcedonios
vocavere); da callaina das montanhas do Cáucaso, esverdeada e
semelhante à turquesa, existente também em rochedos inacessíveis
e gelados da Germânia, onde é símbolo de riqueza e estatuto social,
sendo contrafeita com vidro (37.110-112: callaina, e viridi pallens);
da belenite, que no Ida de Creta tem cor ferrosa (37.170, dactylus; da
ágata, que se encontra nas cercanias do Etna e no Parnaso (37.141).
Refiram-se, finalmente, as pedras a que é atribuída função mági-
ca: o asbesto de montes da Arcádia e do Acidane da Pérsia, usado
na entronização de reis (37.146-147, asbestos); o mithrax, pedra
multicolor, que surge em montanhas do Mar Rubro, evocando uma
opala (37.173).
4. A montanha e o imaginário
417
habitam os famosos e utópicos Hiperbóreos (4.89: Pone eos montes
ultraque Aquilonem gens felix, si credimus, quos Hyperboreos appella-
vere, annoso degit aevo, fabulosis celebrata miraculis). A existência
de montes ou colinas surge noutros exemplos de povos caraterizados
por uma aura quase mítica: os Atacoros, entre os Seres, que, prote-
gidos por colinas soalheiras, ao abrigo de ventos prejudicias, levam
uma vida similar às dos Hiperbóreos (6.55: apricis ab omni noxio
aflatu seclusa collibus, eadem, qua Hyperborei degunt, temperie); o
famoso vale de Tempe, um desfiladeiro da Tessália, é protegido por
uma espécie de círculo de montanhas (4.31: attollentibus se dextra
laevaque leniter convexis iugis); na Idumeia, região da Palestina, para
além do monte Árgaris (5.68-69), regista-se a cidade de Íope (atual
Jaffa), de Fenícios, assente numa colina em frente de um rochedo
onde se mostram os vestígios dos grilhões de Andrómeda e se venera
a fabulosa Ceto (5.69) 16; os povos Egipães e Sátiros que, na região
do promontório de Hesperu Ceras, nos confins da África, habitam
em colinas revestidas de sombras amenas, o que, como nos textos
anteriores, prefigura um locus amoenus idílico e tendencialmente
utópico (6.197).
E colocamos aqui montanhas longínquas e pouco conhecidas,
como os montes Sevo e Ripeus, em controversas regiões da Jutlândia,
Noruega e Escandinávia (4.94-97, transgressisque Ripaeos montes ...
mons Saevo ibi)17, ou os montes Hémodos e Malo, os atuais Himalaias,
nas proximidades do Ganges, com suas gentes e povos civilizados
(6.64).
Da mesma maneira, em África, a descrição da pouco conhecida
região do Atlas surge envolta na recorrência do adjetivo fabulosus18,
incluindo no superlativo (5.5-7):
418
5. ... infestum, multo tamen magis Autololum gente, per quam
iter est ad montem Africae vel fabulosissimum Atlantem ...
6. E mediis hunc harenis in caelum attolli prodidere, asperum,
squalentem qua vergat ad litora oceani, cui cognomen inposuit,
eundem opacum nemorosumque et scatebris fontium riguum qua
spectet Africam, fructibus omnium generum sponte ita subnascenti-
bus, ut numquam satias voluptatibus desit. 7. incolarum neminem
interdiu cerni; silere omnia haut alio quam solitudinum horrore;
subire tacitam religionem animos propius accedentium praeterque
horrorem elati super nubila atque in vicina lunaris circuli.
419
território recém conquistado pelos romanos e, portanto, a passar da
fase do conhecimento lendário para a do conhecimento racional 19.
Nele se apresentam muitos dos tópicos ligados à ideia de monta-
nha, usando como fonte o próprio Suetónio Paulino (5.14: primus
Romanorum ducum transgressus quoque Atlantem aliquot milium
spatio): árvores caraterísticas, neve, ervas medicinais, habitantes semi-
-selvagens, temor dos lugares ermos. Fica assim o Atlas desprovido
do caráter religioso que as fontes antigas, em especial gregas, e as
lendas lhe atribuíam.
Selvagens são também os habitantes de montanhas nos confins
da Albânia, na Ásia (6.29: rursus ab Albaniae confinio tota montium
fronte gentes Silvorum ferae); os habitantes do Alpes e da Gália
Comata usam cabeleiras longas (11.130).
Outros traços ligados à montanha são a longevidade, como os 150
anos de vida dos habitantes do monte Tmolo (7.159), ou os 110, 120
e 140 de Veleia, situada sobre colinas, na região de Placência (7.163);
o caráter híbrido, congruente com a descoberta do combate a cavalo,
dos tessálios do monte Pélion, conhecidos como centauros (7.202);
a adaptação a condições de trabalho difíceis, como lutar contra
pragas de gafanhotos no monte Cadmo, invocando Júpiter (10.75).
Mas a montanha também pode ser um elemento nobilitante, como
se deduz de passos como 5.65, sobre a Arábia setentrional estéril,
conhecida somente devido ao monte Cásio (nec nisi Casio monte
nobilis).
A descrição da Índia (6.71-80), na zona entre o Indo e o Iómanes,
onde vivem povos de montanha (6.73: gentes montanae), também
oferece um conjunto de notas que parecem indiciar uma tipificação
de traços, alguns utópicos, dos habitantes de montanha: a qualificação
420
dos Cetribonos como silvestres, a supor, portanto, a existência de bos-
ques e uma espécie de theriodes bios condizente com a proximidade
de inúmeras feras (6.73); a confinação a um território previsivelmente
de difícil acesso e desértico (6.73: hos Indus includit montium coro-
na circumdatos et solitudinibus ... iterumque solitudines); a ligação
entre vida na montanha e liberdade no caso dos Morunos (6.74: hi
montium, qui perpetuo tractu oceani in ora pertinent, incolae liberi
et regum expertes multis urbibus montanos optinent colles); a abun-
dância de metais preciosos (6.74); a existência de lendas e a riqueza
fabulosa de flora e fauna (6.79):
421
culto imperial no Palatino, onde Augusta construiu um templo em
honra do imperador Augusto. Em segundo lugar, pela inacessibilida-
de, várias vezes enfatizada (12.5: Alpibus coercitas ... inexsuperabili
monumento; 36.1: montes natura sibi fecerat ... quos transcendisse
quoque mirum fuit) e visível até no facto de ser preciso perfurar
montanhas para realizar grandes obras de engenharia, dignas de ad-
miração e mesmo prodigiosas (36.121: miracula ... magnifica), como
esgotos subterrâneos (36.104: subfossis montibus); aquedutos como
Aqua Marcia (36.121-123: cuniculis per montes ... montes perfossos);
a drenagem do lago Fucino (36.124: montem perfossum); as vias que
cortam as montanhas (36.125).
Que a montanha faz parte do imaginário romano, mostra-o Plínio
com algumas referências à arte romana, a começar pela notação
de que na pedra chamada panchrus, talvez uma opala de variadas
cores, dedicada a Vénus e portanto favorecedora da fecundidade,
e considerada sagrada, se descortinavam figuras de montes e vales
(37.178-179). E, na verdade, quando os não tinham à vista, os ro-
manos gostavam de os ver representados nos seus aposentos ou de
criar novas técnicas de pintura e artes decorativas que imitavam os
mármores e pedras das montanhas (35.3: spatia montes in cubiculo
dilatantia), elas próprias tornadas motivo de pintura, sob iniciativa
do pintor de paredes Estúdio, da época de Augusto (35.116).
Apreciados eram também motivos mais ou menos lendários que
envolviam montanhas, como a apoteose de Hércules depois da sua
morte no monte Eta, do pintor Andróbio, quadro exposto no pórtico
de Otávia (35.139); ou a escultura transportada no terceiro triun-
fo de Pompeu, aquele que já merecera o troféu colocado sobre os
Pirenéus, a representar uma montanha quadrada, em ouro, enfeita-
da com animais e flora que fazem parte do imaginário condizente,
a saber, cervos, leões, frutos de toda a espécie, uma vinha na orla
(37.14: montem aureum quadratum cum cervis et leonibus et pomis
omnis generis circumdata vice aurea).
422
5. Montanha e história
423
Da saga de Alexandre é recordada a sua vitória sobre Persépolis,
que parecia inexpugnável, no cimo de um monte inacessível (6.115).
Também o poderio persa é lembrado, quando se recorda o canal
aberto por Xerxes no sopé do monte Atos (4.37).
Mas o motivo serve também para ilustrar a efemeridade e queda
dos impérios, como quando se escreve que, apesar do seu enorme
poderio, capaz de conquistar montanhas tão importantes e longín-
quas como o Tauro e o Cáucaso, afinal o Império Macedónico caiu,
num dia apenas, às mãos de Paulo Emílio (4.39: Haec est Macedonia
terrarum imperio potita quondam ... Taurum, Caucasum transgressa,
haec in Bactris, Medis, Persis dominata toto oriente possesso).
6. Montanha e moralidade
424
trahimusque nulla alia quam deliciarum causa, quos transcendisse
quoque mirum fuit. 2. in portento prope maiores habuere Alpis ab
Hannibale exsuperatas et postea a Cimbris: nunc ipsae caeduntur
in mille genera marmorum. promunturia aperiuntur mari, et rerum
natura agitur in planum; evehimus ea, quae separandis gentibus
pro terminis constituta erant, navesque marmorum causa fiunt,
ac per fluctus, saevissimam rerum naturae partem, huc illuc por-
tantur iuga, maiore etiamnum venia quam cum ad frigidos potus
vas petitur in nubila caeloque proximae rupes cavantur, ut biba-
tur glacie. 3. secum quisque cogitet, et quae pretia horum audiat,
quas vehi trahique moles videat, et quam sine iis multorum sit
beatior vita.
425
façanhas, nas enormes massas que vê serem tiradas e transportadas,
e como, sem isso, a vida de muitas pessoas seria mais feliz!
426
das chamadas leis sumptuárias, as quais, sob a capa da interdição
por razões de moralidade, escondiam motivações económicas, em
especial no domínio da importação de artigos de luxo, com conse-
quente saída de divisas 22; por outro, evocam de forma muito viva a
realidade social da acumulação de riqueza em Roma com a conse-
quente vida de luxo e ostentação, numa sociedade em que ostentar
era afirmar-se socialmente, o que leva Plínio a verberar o consumo
ostentatório, causador de fraturas sociais claras.
Ora a montanha fornecia muitos alimentos suscetíveis de gerar
clivagens sociais no respetivo consumo. Veja-se o passo que trans-
crevo (10.133-134):
22 Elenco das leis sumptuárias em Rotondi 1966 98-99; para a relação entre legis-
lação sumptuária e razões económicas, ver exemplos em F. Oliveira 1992 138-139.
427
só difere da codorniz pelo tamanho: com tempero de açafrão, não
há alimento mais agradável. Escreveu Egnácio Calvino, seu prefeito,
que ele mesmo avistara nos Alpes uma íbis específica do Egipto.
428
voluptatem gulae vertunt. servatur rigor aestibus, excogitaturque
ut alienis mensibus nix algeat. decocunt alii aquas, mox et illas
hiemant. nihil 56. utique homini sic, quomodo rerum naturae,
placet. etiamne herba aliqua diviti tantum pascitur? nemo Sacros
Aventinosque montes et iratae plebis secessus circumspexerit?
429
e críticas que, como já vimos, se enquadram nas teses da diatribe
cínico-estóica sobre o luxo da habitação, mobiliário, vestuário e
moda, e têm subjacentes os lemas da autarcia e da ascese, suge-
rindo não se procurar longe o que está perto, não gastar dinheiro
quando se tem à mão o que a natureza fornece gratuitamente e sem
esforço.
Selecionei um passo que reúne algumas dessas pistas, na sequência
da descrição da vida simples –o tópico conhecido como theriodes
bios– que os primeiros homens levavam nas florestas, antes da busca
desenfreada de artigos de luxo (12.2):
Por isso, depois de tais inícios, ainda maior admiração causa ver
cortar os montes por causa do mármore, buscar vestuário entre os
Seres, procurar pérolas nos abismos do Mar Rubro, esmeraldas nas
profundezas da terra.
430
úlcera nas montanhas e desperta um sentimento quase ecológico
da parte do Nauralista, também cáustico e irónico em relação aos
costumes (36.125):
7. Conclusões
431
na História Natural 24. E, quanto ao conhecimento geográfico, que
se reflete em outros ramos do saber, da zoologia e da botância à
medicina e à mineralogia, prova-se que a expansão romana foi uma
fonte extraordinária de conhecimento, que se foi alargando com as
ações políticas, militares, diplomáticas e comerciais.
Na visão do mundo permitida pelo tema da montanha sobressai
a imagem de excelência da Itália, logo pela sua geografia (37.201:
montium articulis) e pela excelência de muitos produtos de monta-
nha, a qual também representa, no imaginário romano, não somente
momentos importantes da história local, como ainda a utopia de
uma vida simples, sem o luxo moderno, que é verberado através de
muitos lemas da invetiva cínico-estóica.
Destaca-se, sem dúvida, uma visão romanocêntrica do mundo
em geral e da montanha em particular, mas esse mundo não exclui
nem a sabedoria grega nem a bárbara, como se vê logo no rastreio
da terminologia, que tanto utiliza simplesmente a grega, por vezes
sobrepondo-lhe a latina, como regista os nomes locais.
E, o que não é de somenos, a visão do Naturalista, sendo filtrada
por considerações moralistas e retóricas, não deixa de estar extre-
mamente atenta às questões económicas, com a apresentação dos
produtos, artefactos, preços, processos de controlo e deteção de
adulterações, em domínios que vão dos usos quotidianos dos produ-
tos de montanha aos mais elaborados, como a metalurgia, a pintura,
a arquitetura e decoração, e sobretudo a medicina.
Finalmente, essa perspetiva económica é filtrada por uma sensibi-
lidade ecológica que se entrevê e por uma consciência social muito
explícita, à qual repugnam as desigualdades decorrentes do luxo e
da ostentação, causadores de divisões e perigos sociais.
432
Bibliografia
433
(Página deixada propositadamente em branco)
A mesa como elemento caracteriz ador
e i d e n t i tá r i o n a R o m a d o p o e ta M a r c i a l *
T h e T a b l e a s a C h a r ac t e r i s i n g a n d I d e n t i ta ry
Element in the Poet Martial‘s Rome
Abstract: Taking into account that the table is a frequent source of ins-
piration in Latin literature, I focus on selected epigrams of Martial
* Aqui expresso minha homenagem à Doutora Maria de Fátima Silva, com admi-
ração pelo seu saber, gratidão pelos conhecimentos que me transmitiu ao longo dos
tempos e amizade resultante de muitos e gratos anos de convívio.
1 Este texto foi elaborado no âmbito do projeto Rome our Home: (Auto)biogra-
phical Tradition and the Shaping of Identity(ies) (PTDC/LLT-OUT/28431/2017) e do
projeto DIAITA do CECH.
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_19
containing relevant information about Roman cuisine. Then I insert
them into a literary tradition (comedy, satire, biography, novel) whe-
re food appears as an element of ethical characterization and an
identifier of people and an elite. Thus, the objective is, through the
analysis of this critical testimony about the habits of the Roman elite,
to understand how dishes become a recurring motive for moral and
social characterization.
2 Para uma visão global da vida em Roma nos epigramas de Marcial, vide Castagnoli
1950: 67-78; Lana 1955: 225‑249; Paoli 1956: 552‑567; Marache 1961a: 38‑53, 1961b:
12-13; Mohler 1967: 239-263; Augello 1968-69: 234-270; Dolç 1974: 109‑125, 1989:
11‑22; Adamik 1975: 55‑64; Pailler 1981: 79‑87; Watson 1983: 258‑264; Medeiros 1988:
1-15; Garrido-Hory 1981: 300‑306; Pimentel 1992: 165-186, 2000: 221-230, 2004: 13-31,
2012: 121-133; Prior 1996: 121-141; Robert 2004a: 48-68, 2004b: 69-86; Leão 2004:
191- 208; Fitzgerald 2007: 139-166; Spisak 2007: 15-99; Rimell 2008: 94-139; Torrão-
Andrade 2008: 63-79; Howell 2009: 73-100; Roman 2010: 88-117; Torrão-Costa 2010:
53-368; Graça 2011: 169-365; Brandão 2012: 135-161; Cesila 2017: 77-276.
3 Vide Gowers 1993: 39.
436
o homem” 4. Uma parte desse sabor diz, pois, respeito, em sentido
restrito, ao que se comia e bebia na Urbe.
Devido ao realismo e ao gosto pelos pormenores de erudição,
Marcial acaba por transmitir transmitir informação variada e relevante
sobre a mesa romana sobre a mesa romana: porque, em Roma, levava
vida de cliente, de que tanto se queixa, e era presença assídua de
diferentes patronos; porque muitas das situações que capta, para
satirizar ou celebrar, se passam à mesa; porque, tendo uma quinta
nas proximidades de Roma, refere os produtos da terra próprios ou
alheios; porque descreve vilas aprazíveis; porque compõe dois livros,
os Xenia e os Apophoreta, totalmente preenchidos com versos que
acompanham os presentes oferecidos pela festa das Saturnais, or-
ganizados por títulos, e porque, em suma, se integra numa tradição
literária em que o tema do simpósio estava presente desde a lírica
grega 5. No caso dos Xenia, trata-se de presentes de comida, vinhos
ou de elementos relacionados com o banquete 6 e na ordem em que
são servidos: aperitivos, gustatio (13.1-60); pratos principais (aves,
peixes e mariscos, caça) (61-105) e a comissatio, onde abunda o
vinho, as rosas e os perfumes (106-127).
Nos outros doze livros de epigramas, as indicações dos pratos
e dos vinhos aparecem integradas no contexto próprio, conforme
se trata de quadros da vida romana, de elementos caracterizadores
de tipos sociais, de sinais estilo de vida ideal ou censurável. Os
pratos descritos pelo poeta figuram, como observa Marina Sáez 7 ,
sobretudo nos epigramas de tema satírico8, o que não é estranho, se
437
pensarmos que escrever sobre comida está na tradição desse outro
género literário – a sátira – cujo nome terá, na origem, implicações
gastronómicas 9.
As referências gastronómicas inserem-se, pois, numa tradição bem
definida na Literatura Latina. Já Plauto as usara para estabelecer a
diferença entre a vida à romana, por vezes designada de bárbara
(com papas, alho, lentilhas e porco) 10, e vida à grega (pergraeca-
ri), considerada amiúde fonte de ruína, que privilegiava consumo
de peixes, aves e mariscos 11. Horácio integrara amiúde comida nas
suas sátiras fazendo jus às origens do género 12. Em Petrónio o tipo
de pratos servidos e o cerimonial à volta deles caracterizam o novo
rico Trimalquião. No início do século seguinte, o biógrafo Suetónio,
de acordo com os objetivos da biografia antiga13, integrará o regime
diário entre os elementos definidores do ethos dos biografados14 – e,
no extremo, toda a Vida de Vitélio gira à volta do vício da gula 15.
Embora as atitudes de anfitriões e de convivas sejam amiúde objeto
do humor do poeta epigramático, o Marcial faz repetidamente uma
advertência que convém ter em conta: quando se trata de vitupério,
os nomes são fictícios. Empregando uma metáfora culinária, declara
que usa innocuos sales ‘o sal inofensivo’, o chiste que diverte sem
438
atingir ninguém vivo16, porque o seu objectivo é outro (10.33.9-10):
Hunc seruare modum nostri nouere libelli, / parcere personis, dicere
de uitiis.17 «Os meus livros sabem guardar esta justa medida: / poupar
as pessoas, apontar os vícios».
16 Cf. 3.99: Irasci nostro non debes, cerdo, libello. / Ars tua, non uita, est carmine
laesa meo. / Innocuos permitte sales. / Cur ludere nobis / non liceat, licuit si iugulare
tibi? Vide Pavanello 1994: 161‑177; Deschamps 1981: 353‑368; Sullivan 1991: 63-64.
17 Cf. 1. Prol.; 2.23; 7.12; 9.95. Vide Brandão 1997: 177-195.
18 Laudantem Selium cenae cum retia tendit / accipe, siue legas siue patronus
agas:/ «effecte! grauiter! cito! nequiter! euge! beate! / hoc uolui!». «Facta est iam tibi
cena, tace.».
19 Laudas balnea uersibus trecentis / cenantis bene Pontici, Sabelle./ Vis cenare,
Sabelle, non lauari.
20 Effugere in thermis et circa balnea non est / Menogenen, omni tu licet arte uelis
..... Omnia laudabit, mirabitur omnia, donec / perpessus dicas taedia mille «ueni!».
21 In omnibus Vacerra quod conclauibus / consumit horas et die toto sedet, /cena-
turit Vacerra, non cacaturit.
439
Vri Tongilius male dicitur hemittritaeo.
Noui hominis fraudes, esurit atque sitit.
Subdola tenduntur crassis nunc retia turdis,
hamus et mullum mittitur atque lupum.
Caecuba saccentur quaeque annus coxit Opimi,
condantur parco fusca Falerna uitro.
Omnes Tongilium medici iussere lauari:
o stulti, febrem creditis esse? Gula est.
22 Vide Williams 2004: 107-108. De facto, o epigrama tem semelhanças com 11.86:
Partenopeu finge ter tosse, mas afinal é semelhante: non est haec tussis, Parthenopaee,
gula est!. Logo pode ser uma forma de atrair os caçadores de heranças, que, na espe-
rança de serem contemplados no testamento, o convidem para jantar: Interpretação
de Friedlaender, citado por Williams 2004: 145.
23 Cf. Hor. Ep. 1.15.41.
24 Varrão, ao descrever (em De re rustica) o próspero negócio da sua tia da venda
de tordos (3.2.14-5; 3.4.1), afirma esta ave pode render 3 denários. Mas um pavão
rende 50 (3.6.3). A luxuria sendo algo mau é proveitosa para quem a fornece.
440
entradas, a gustativo, (13.51) 25, como é integrado entre os acepipes
reservados para uma fase posterior do banquete (as matteae) (13.92).
E diz o poeta que, em seu entender, o tordo é a melhor mattea en-
tre as aves, assim como a lebre o é entre os quadrúpedes (13.92) 26.
É, pois, o presente adequado para oferecer a amigos poderosos
na festa dos familiares, os Caristia, a 22 de fevereiro (9.55) 27. Era
considerado um presente tão apreciado, que Horácio o recomenda
na sátira (S. 2.5.10) como engodo eficaz para ser enviado por um
caçador de heranças a um velho rico.
Entre os pratos cobiçados pelos parasitas, figuram os peixes mais
requintados, como é o caso do mullus, ‘salmonete’. Este peixe é bas-
tante apreciado (2.40.4), e aparece reiteradamente nos epigramas como
sinal de mesa rica por oposição à pobre (2.43.11; 2.45.5; 7.78.3). Era
por isso muito caro (11.49.9). Marcial censura um tal Caliodoro por
vender um escravo por mil e duzentos sestércios para jantar bem uma
vez. Mas conclui que não jantou bem, pois comprou apenas um salmo-
nete (10.31). Segundo Plínio (Nat. 9.66), havia o requintado costume
de o trazer vivo para o banquete, para os convivas se deleitarem ao
vê-lo mudar de cor enquanto asfixiava, prática a que alude Marcial
nos Xenia (13.79): Spirat in aduecto, sed iam piger, aequore mullus;/
languescit. Viuum da mare: fortis erit «Na água com ele apanhada,
respira o salmonete, mas a custo/ e desfalece. Deita-o vivo ao mar
e ganhará vigor!» 28. Era um peixe muito apreciado pelo imperador
Tibério, o que motiva a anedota do pescador de Cápreas contada
por Suetónio (Tib. 60) 29.
25 Servido com aspárgos: cf. Macr. 3.13.12. Também no epigrama acima transcito,
2.40, parece fazer parte da gustatio. Os tordos seriam dispostos num arco (cf. corona
em 3.47.10), e, por isso, Marcial, em Xenia (13.51), diz com graça que em vez de uma
coroa de rosas e nardo, como era próprio de um banquete, prefere uma coroa de tordos.
26 Vide André 1981: 122; Leary 2001: 104.
27 Mas quando estes são oferecidos por uma tal Pôncia (6.75), o poeta diz que
não os vai comer nem oferecer: é que Pôncia é o nome de uma célebre envenenadora
(cf. Juv. 6.638).
28 Trad. de D. Leão.
29 O esforçado homem, depois de subir as altíssimas escarpas para oferecer ao
imperador o melhor peixe que pescara, um enorme mullus, é fustigado na cara com
441
Tal como acontece no epigrama citado, o mullus aparece em
Marcial algumas vezes emparelhado com o lupus (2.37; 2.44; 11.49.9),
o ‘robalo’. Este é uma das prendas caras que lhe exige a amante Fílis
[11.49 (50).9]. Os robalos mais apreciados eram, segundo Plínio (Nat.
9.61), os chamados lanati ou lanei, ‘de lã’, por causa da suavidade
das postas, associação de que Marcial faz eco nos Xenia (13.89) 30.
A mesa sumptuosa pode ser fautora de distorção na relação entre
anfitrião e conviva. A amizade, valor bastante prezado por Marcial, e
tratado em numerosos epigramas, não se afere pela quantidade dos
convites da parte do anfitrião (7.76.), mas também não se alimenta
da boa mesa (9.14):
E ste tipo que a tua mesa, o teu jantar tornou amigo, / julgas que
é fiel, do coração, à amizade?/Amigo, sim, do javali e salmone-
tes e tetas de porca e ostras, não de ti. / Se eu jantar assim tão
bem, meu amigo ele será.
a dádiva e também com uma lagosta enorme que tinha capturado, porque, na sua
inocência, tinha mostrado o meio de chegar até junto do imperador.
30 Marcial refere-se também às águas doces e salgadas da foz do Timavo. Com
efeito, este peixe podia ser criado em viveiro, como se sugere em 10.30.21, mas eram
mais apreciados, por uns, os que eram capturados no Tibre, entre as duas pontes
(Plin. Nat.. 9.169; Macr. 3.16.13), e, por outros, os capturados no mar (Col. 8.16.4), e
especialmente nos estuários dos rios, como o Timavo, que desagua no golfo de Trieste.
Este estuário apresentava condições muito favoráveis, pois o robalo se alimentava
num lago, formado perto do mar com mistura de água doce e salgada, como refere
o poeta em 13.89. Vide, sobre estes dois peixes, André 1981: 99-100; Williams 2004:
139; Leary 2001: 138-139 e 149-150.
442
xuoso: «animal nado para os banquetes», dirá Juvenal (1.139-141) 31.
Começou a ser servido inteiro, segundo Plínio (Nat. 8.210) 32, por
Públio Servílio Rulo, na geração anterior a Cícero. Era preparado no
espeto, como mostra Marcial num epigrama dos Apophoreta (14.221),
ou no forno. Por isso, Marcial nos Xenia (13.93) pode comparar o
tamanho de um javali oferecido com o do mítico animal que Meleagro
matou em Cálidon na Etólia 33.
Sendo um prato caro (7.78.3), era engodo usado como oferta por
caçadores de heranças (12.48). O tema dos herediptae é, em outro
epigrama, cruzado com o mito de Meleagro, para caracterizar o ta-
manho do javali que o próprio poeta diz ter oferecido a Gárrico em
troca da promessa de o mencionar num testamento: mas o ingrato
nem sequer o convidou para o banquete onde serviu animal (9.48):
De quadrante tuo quid sperem, Garrice? Nulla / de nostro nobis un-
cia venit apro «Como posso eu esperar, Gárrico, um quarto de teus
bens?! / Nem do meu próprio javali um cagagésimo recebi!» (vv. 11-
12). Em contrapartida, celebra o exemplar oferecido por um amigo.
Mas, como a preparação requerida (com pimenta, falerno e garum)
fica demasiado dispendiosa, o poeta comenta: ad dominum redeas,
noster te non capit ignis; / conturbator aper: uilius esurio «Regressa
ao teu senhor, não cabes na minha cozinha, / javali dissipador: fica-
-me mais barato passar fome» (7.27.9-10) 34.
O sumen, ‘tetas de porca’, era famosíssimo. Estava entre a iguarias
prescritas pelas leis sumptuárias 35, mas já aparece referido no início
do séc. II a.C., em Plauto 36, portanto antes destas leis, comparando
31 Sed quis ferat istas / luxuriae sordes? Quanta est gula quae sibi totos/ ponit
apros, animal propter conuiuia natum!
32 Solidum aprum Romanorum primus in epulis adposuit P. Seruilius, pater eius
Rulli, qui Ciceronis consulatu legem agrariam promulgauit.
33 Vide André 1981: 115-116; Leary 2001: 154-156.
34 Trad. de Delfim Leão.
35 Cf. Plin. Nat. 8.209; 11.211.
36 Pseud. 166; Curc. 323; Capt. 904. E sobreviveu por centenas de anos nos registos
literários dos hábitos gastronómicos dos romanos ricos. Permanece no séc. IV d.C.
Ainda figura no Édito Máximo de Diocleciano (301d.C) para a fixação dos preços
máximos. Vide D’Arms 2004: 431-434.
443
as cronologias 37 . Em Marcial é um presente de requinte (7.78.3),
um prato cobiçado e levado para casa à socapa por convivas ávidos
(2.37.2). Era servido ora como integrante da gustatio (10.48.12; 13.44),
ora como prato principal (11.52.13). Tornava-se sinal de sumptuo-
sidade (luxuria) e de gula: pelo sacrifício que implicava. Plutarco,
nos Moralia38, descreve em tom bastante crítico o ato de pontapear
a porca prestes a dar à luz para destruir a ninhada, pois acreditava-
-se, segundo Plínio (11.211), que eram mais saborosos os úberes do
animal que acabara de parir e que não tivesse aleitado. Marcial, em
Xenia (44), descreve tetas de porca ainda a escorrer leite: talvez uma
simulação com leite colocado depois da cozedura, à semelhança de
outras farsas do género exemplificadas no romance de Petrónio 39.
Outra entrada de luxo referida são as ostras (cf. 3.45.6; 7.78.3).
Faziam também parte da gustatio segundo Plínio o Moço (Ep.
1.15.3), mas Marcial, nos Xenia (13.82), integra ostras do Lucrino
no decorrer da refeição. As mais apreciadas eram as provenientes
deste lago (3.60.3; 12.48.4; 13.82), junto a Baias, onde encontravam
as condições ideais de cultivo, segundo Plínio o Velho (Nat. 32.59).
Teria sido Sérgio Orata o primeiro a criar viveiros de ostras naquela
zona em 105 a.C. (Plin. Nat. 9.168; Col. 8.16.7), e Plínio diz que o
fez não por gula, mas por cobiça (nec gulae causa, sed avaritiae),
antevendo o lucro proveniente do seu engenho 40.
Sélio (2.11; 2.14; 2.27), Vacerra (11.77) ou Menógenes (12.82) tor-
nam-se estereótipos de caçadores de jantares. Gorados os esforços, a
ansiedade e frustração de Sélio são expressas através de um percurso
circular, repetindo os mesmos lugares, lavando-se em diversas termas
37 Tudo indica que a única lei sumptuária que existia era a lei Ópia de 215 a.C.
que versava sobre vestuário e carruagens das mulheres. A Lex Orchia, sobre o luxo
da mesa (limitava o número de convidados), seria de de 181, portanto depois da
morte de Plauto. Só temos pormenores da Lex Fannia de 161 (Macr. 3.17.3). Sobre
este assunto vide Gowers 1993: 70-71.
38 De esu carnium 2.1.
39 Vide André 1981: 138; Leary 2001: 95-96; Williams 2004: 239.
40 Vide Andrews 1948: 299-303; André 1981: 105-106; Leary 2001: 141-142.
444
(2.14)41. Quando todos já se recolheram com os seus convidados, Sélio
erra só e cabisbaixo (2.11): Maerosis igitur causa quae? Domi cenat
(«Qual é, pois, a razão da tristeza? Janta em casa». A expressão cenare
domi aparece diversas vezes repetida nos epigramas42: o domicenium
é caracterizado como tristis em 5.78.143 e considerado por um certo
parasita como punição divina por ter sido incapaz de conter e flatu-
lência no templo de Júpiter (12.77)44.
É natural que quem não foi convidado fique deveras ofendido 45.
Mas também há aqueles que fingem ser bastante requestados (5.47;
12.19) e há certas atitudes desdenhosas, que soam a hipocrisia (2.69;
6.51), como a retratada em 2.69, onde se faz uma comparação irónica
do protagonista com Apício: Inuitum cenare foris te, Classice, dicis:/
si non mentiris, Classice, dispeream. / Ipse quoque ad cenam gaudebat
Apicius ire; / cum cenaret, erat tristior ille, domi «Dizes que jantas
fora, Clássico, contra a vontade; / raios me partam, Clássico, se não
mentes. / Até o próprio Apício adorava ir jantar: / se jantava em
casa, ficava assaz aborrecido». O nome deste famoso gastrónomo já
se tornara exemplo proverbial de requinte à mesa para Séneca (Ep.
120.19) e de gula para Marcial (2.89.5; 3.22.5) e Juvenal (4.23) 46.
Também a avidez dos convidados é objeto de censura. A gula
providencia fácil caricatura (11.86; 12.41). O vício é ilustrado com
41 Nil intemptatum Selius, nil linquit inausum,/ cenandum quotiens iam uidet
esse domi.(...)/ Nam thermis iterumque iterumque iterumque lauatur... Inspirado na
técnica de ancorar a sátira sobre topografia, com antecedentes em Catulo 55, o epi-
grama constitui uma interessante fonte de informações sobre a Urbe, neste caso o
Campo de Marte. Vide Williams 2004: 68-69; Lopes 2021: 244-246.
42 2.14.2; 2.79.2; 3.50.10; 5.47.1; 5.50.1; 6.94.2; 11.24.15; 12.19.2. Como nota
Williams (2004: 63), tem o sentido negativo de que não recebeu convites, com o
estigma que isso implica, oposto à socialmente digna cenare foris 2.53.3, 2.69.1,9.10.1.
Marcial poderá ter mesmo cunhado o termo domicenium.
43 Si tristi domicenio laboras.
44 ...Riserunt homines, sed ipse diuom / offensus genitor trinoctali / adfecit domi-
cenio clientem (vv. 4-6).
45 Como o caso de Carcopino, que se mostra furioso com o poeta quando este o
não convida: 5.50; cf. 2.11.
46 A propósito de quem o escoliasta diz: fuit nam exemplum gulae. Vide Williams
2004: 223.
445
referência jocosa a Apício, que, depois de quase arruinado, não po-
dendo suportar a perspetiva de passar fome e sede, bebeu veneno:
– extrema gulodice! (3.22).
47 Cf. Juv. 5. Plínio o Moço, o amigo de Marcial, deplora o mesmo vício e diz-se
incapaz de incorrer em tal mau gosto (Ep. 2.6). Vide Howell 1980: 151-154; Fitzgerald
2007: 85-88; Leigh 2015: 44-45.
48 1.20. Para outros exemplos de avareza no jantar, cf. 1.43: Mancino serviu um
só javali, sem mais nada, a sessenta pessoas.
446
onde faziam parte da gustatio (Plin. Nat. 16.31). Eram muito caros,
como diz o poeta nos Xenia (13.48), e ele próprio os considera
superiores a túberas ou turfas (13.50) 49. Em outro epigrama de te-
mática semelhante (3.60.3-10), o poeta faz o confronto de ementas
de um só banquete:
447
lhante, a peloris, ‘amêijoa’ aguada (6.11.5). Aos boletos opõem-se os
cogumelos chamados suilli, embora tal distinção não seja tão clara
ou marcada em outros autores 53. Aos ruinosos rodovalhos, opõe-se
a brema do mar, sparus, sparulus, peixe duro e pouco apreciado,
cuja referência em Marcial se reduz a este passo 54.
O rhombus, “rodovalho”, caracteriza, segundo o poeta, a mesa rica
(3.45.5); um presente maior que o prato, por grande que este seja,
diz Marcial com graça nos Xenia (13.81); um prato que, pela sump-
tuosidade, causa escândalo e ruína, segundo Horácio (S. 2.2.95-99).
Este poeta em outra sátira (S. 1.2.115-116) coloca o rodovalho ao
nível do pavão, com a reflexão moralista de que quem tem fome não
desdenha outros alimentos para procurar estas espécies requintadas55.
Outra ave de luxo era a rola, um acepipe celebrado desde Plauto.
Na Mostellaria (47), figura ao lado de peixe e aves domésticas como
comida fina e exótica, por oposição ao nacional cheiro a alho. Marcial
coloca a rola na boa mesa, onde é alvo de furto (7.20.15) e considera-
-a prenda digna de amante (3.82.21) 56. O preço é superior ao dos
pombos. Nos Xénia, a rola é integrada na gustatio (13.53), juntamente
com o papa-figo (13.49; cf.13.5.1), tordos (13.51) e patos (13.52).
Nesta fase do banquete o poeta diz que, se a come, já não prova a
alface nem os caracóis 57. Em oposição à áurea rola apresenta-se a
pega engaiolada: neste caso, a única referência à ave no poeta, o
que sugere que não teria importância gastronómica 58.
O mesmo se passa com o vinho servido. Alguns oferecem zurrapa
aos convidados, enquanto eles próprios bebem verdadeiros néctares:
3.49; 3.82.22-27; 4.85.
448
3. Iguarias furtadas
Varres o que quer que seja servido, daqui e dali, / tetas de porca
e costeletas de porco, / fancolim para dois, / meio salmonete
e um robalo inteiro, / filete de moreia e coxas de frango, /
pombo a escorrer com guarnição. / Tudo isto, embrulhado num
guardanapo húmido,/ é passado ao teu escravo para levar para
casa;/ e nós todos, deitados à mesa, impávidos a olhar!/ Se
tens alguma vergonha na cara, devolve o jantar: / não foi para
amanhã, Ceciliano, que eu te convidei.
449
poeta é o anfitrião 59. O catálogo das iguarias furtadas é expressivo
do valor e do grau de atrevimento, também pelo efeito cumulativo.
Além das tetas de porca60, de que já falámos, temos o imbrex, à letra
“telha de cobertura”, certamente uma parte em forma de telha, que
aqui é traduzido por ‘costeletas’, seguindo a sugestão de André (1981:
137), mas, que para outros poderá tratar-se de orelha de porco 61.
Depois vem a attagena, “francolim”, um parente da perdiz raro
em Itália, segundo Plínio (Nat. 10.133), mas que se podia encontrar
nos Alpes, na Gália ou na Hispânia, pelo que Marcial, cantor orgu-
lhoso das riquezas da sua pátria, certamente o conheceria. Mas o
mais refinado era o da Iónia, segundo Horácio, Ovídio e Plinío 62,
secundados por Marcial nos Xenia (13.61). Desta ave Apício (6.218;
220) apresenta duas receitas 63.
Entre os peixes roubados, não podiam faltar os já referidos sal-
monetes e o robalo, mas neste epigrama soma-se ainda a muraena,
‘moreia’. Eram particularmente apreciadas as da Sicília 64, predileção
refletida nos Xenia (13.80). Em Horácio (S. 2.8. 44-50), um anfitrião
enfadonho dá uma receita de molho para a moreia que não difere
muito das seis receitas de Apício (10.2.1-6) 65.
450
E seguem-se as aves. As galinhas, apesar de não serem naturais
de Itália, facilmente foram assimiladas e figuram desde Plauto (Capt.
849). São apresentadas em dezassete receitas de frango em Apício,
confecionado de diversas formas, embora assado só apareça uma vez
(6.241). Em Marcial, tal como em outros autores 66, o frango aparece
como prato principal de um jantar moderado (10.48.17; 11.52.14) 67.
Por último, neste epigrama é referido o pombo, um prato de luxo
delicado, segundo Horácio (Serm. 2.8.91). Corresponderá ao pombo
torcaz (Columba palumbus), um dos presentes para os convidados
honrado com um dístico nos Xenia (13.67), onde se qualifica de
torquatus. Neste dístico o poeta acrescenta um dado inesperado: que
enfraquecem a virilidade. Tal efeito contrasta com reputação de sen-
sualidade atribuída a esta ave nos epigramas, onde é repetidamente
associada aos beijos apaixonados (11.104.9; 12.65.8) 68.
A tender para o sórdido é o furto de Santra (7.20) de comida
meia consumida, que inclui javali, lebre, bolos, uvas, grãos de romã,
pele de uma vulva de porca, boletos, uma rola sem cabeça, tudo
isto embrulhado num guardanapo – depois, como este se rompe,
usa as pregas da roupa. Quanto ao vinho que subtrai, verte-o para
uma bilha que traz consigo. Para cúmulo, de regresso a casa, põe o
despojo à venda, no dia seguinte. Trata-se do cruzamento do topos
dos furtos nos banquetes com outro muito frequente no poeta: o da
miséria dos arruinados 69.
Eram servidas grelhadas ou cozidas (Apic. 10.449-454). Vide André 1981: 100; Leary
2001: 139-140.
66 Cf. Hor. Serm. 2.2.121; Juv. 11.71; Petr. 46.2.
67 Embora nos Xenia (13.45) seja apresentado como parte da gustatio, colocada
em comparação com outras aves exóticas mais caras – que o poeta ofereceria, se
tivesse possibilidade, de acordo com o reiterado topos da pobreza pessoal (13.6;
14.132; 14.153). Vide André 1981: 127-129; Leary 2001: 96-97; Williams 2004: 139.
68 Leary (2001: 121-122) alvitra que tal efeito poderá resultar da punição para o
sacrilégio. De facto, este epigrama é precedido de outro (13.66) em que se proíbe
que viole com dente perjuro as «tenras pombas» (columbini) a quem se iniciou nos
ritos da deusa de Cnidos, isto é, Afrodite.
69 Há o tipo do que furta objectos nos banquetes: tal como o Asínio Marrucino de
Catulo (12), Hermógenes rouba sempre o guardanapo (8.59); um fulano que arrebata
tudo o que pode (8.59): copos, colheres, guardanapos, capas, lucernas, sandálias.
451
4. Leituras de empanturrar
Cota vai descalço para os jantares para evitar os furtos de calçado (uma vez que os
convivas se descalçavam no início do banquete): 12.87.
70 Os pretensiosos que não produzem (4.33; 6.14; 10.102), autores de maus versos
(7.3; 5.73; 11.93), os que não se atrevem a recitar (2.88; 8.20), os que plagiam o poeta
(1.52; 1.66), como faz Fidentino (1.29; 1.53; 1.72), apesar de recitar mal (1.38). Sobre
as leituras públicas e privadas em Roma vide Ferreira 2016: 151-179.
71 1.63; 2.71; 3.18; 3.44; 3.45; 3.50; 4.41; 4.80; 6.41.
452
salmonete de duas libras / e nem quero cogumelos, ostras dis-
penso: cala-te! 72 .
453
Para um poeta que associa a sua arte à da culinária, quando diz
que antes quer agradar aos convivas que aos cozinheiros (9.81) 75,
parece implícita uma ligação entre a qualidade da cozinha e da poesia
de Ligurino. O tipo de ementa caracteriza negativamente o anfitrião
com ambições de poeta, que em vez de javali, serve cavala (scomber),
um dos peixes vulgares mais consumidos76. Noutro epigrama (4.86),
Marcial, dirigindo-se ao seu próprio livro aconselha-o a agradar ao
douto Apolinar 77 , se não quer acabar a servir de embrulho para
cavalas. Mas, pelo contrário, se o jantar é bom, o aplauso, quando
existe, pode não ser para os méritos literários do anfitrião (6.48):
Quod tam grande sophos clamat tibi turba togata, / non tu; pompo-
ni, cena diserta tua est «Se a turba de toga com grandes bravos te
aclama, / não és tu, Pompónio, eloquente é o teu jantar».
Aos banquetes sumptuosos opõe Marcial o convívio sem artifícios,
com pratos simples (5.78; 10.48; 11.52) 78, onde o conviva se sinta
livre e não tenha de ouvir récitas intermináveis (5.78.23-25). Fazendo
eco a Catulo 13, no convite que dirige ao amigo Júlio Cereal (11.52:
Cenabis belle, Iuli Cerealis, apud me), refere pratos modestos que
servem para caracterizar a franqueza, a simplicidade e a amizade:
alface, alhos-porros, atum (cordula), mas maior que a cavala (lacer-
tus), cobertos de ovos com folhas de arruda 79, queijo fumado do
Velabro (Velabrense) 80, azeitonas do Piceno 81 – produtos de Itália.
Quanto ao resto, o poeta diz que vai mentir para que o amigo ve-
nha, estabelecendo o contraste com o típico jantar mais sumptuoso:
454
promete, então, peixe, marisco, tetas de porca, aves de capoeira e
de caça. Mas, mais importante, promete-lhe que nada recitará (plus
ego policeor: nil recitabo tibi), mesmo que o amigo lhe leia as suas
obras.
82 Sobre a referida leguminosa, o cicer, nos diz também o poeta (1.103.10) que se
vendia muito barata: ao preço de um asse, o mesmo preço das prostitutas mais vis.
Mas era também símbolo de uma mesa simples (5.78.21) – a do poeta – por oposição
às opulentas. Já Petrónio (66.4) a coloca também num banquete como guarnição de
torta de queijo fria. André 1981: 37.
83 Vide Howel 2009: 82.
84 Cf. Plin. Nat.14.62.
455
Conuiuae meruere tui fortasse perire:
amphora non meruit tam pretiosa mori.
Considerações finais
85 Ad uos deinde transeo quorum profunda et insatiabilis gula hinc maria scru-
tatur, hinc terras, alia hamis, alia laqueis, alia retium uariis generibus cum magno
labore persequitur: nullis animalibus nisi ex fastidio pax est. Quantulum [est] ex istis
epulis [quae] per tot comparatis manus fesso uoluptatibus ore libatis? quantulum ex
ista fera periculose capta dominus crudus ac nauseans gustat? quantulum ex tot
conchyliis tam longe aduectis per istum stomachum inexplebilem labitur? Infelices,
ecquid intellegitis maiorem uos famem habere quam uentrem?
86 Como o classifica Dalby 2001: 74.
456
15.37.2-7), terá mandado servir, segundo Suetónio, scarorum ioci-
nera, phasianarum et pauorum cerebella, linguas phoenicopterum,
murenarum lactes a Parthia usque fretoque Hispanico per nauarchos
ac triremes petitarum «fígados de escaro, miolos de faisão e pavão,
línguas de flamingo, intestinos de moreia, mandados trazer pelos co-
mandantes e trirremes desde a Pártia até ao estreito de Gilbraltar» 87.
Ao servir o fígado de escaro trazido de longe, Vitélio é secundado
por Marcial, que, nos Xenia (13.84), diz: Hic scarus, aequoreis qui
venit adesus ab undis, / visceribus bonus est, cetera vile sapit. («Este
escaro, que chega roído das ondas do mar, / tem boas as entranhas;
o resto é de reles sabor») 88.
Quanto à beleza do pavão (13.70), o poeta expressa o paradoxo
que é enviar ao cozinheiro uma tão admirável ave, no que parece ser
um eco da sátira de Horácio (S. 2.2.23-29). Com efeito também este
poeta se interroga sobre a razão de comer um animal cuja verdadeira
beleza é bem melhor que o sabor ilusório, quem nem é superior
ao de uma galinha. E, logo no epigrama seguinte, Marcial (13.71)
estabelece o contraste entre a beleza da plumagem do flamingo,
de cuja cor tira o nome, e o facto de a língua ser delícia para os
gulosos, deixando implícita a condenação do sacrifício da ave por
tão pequeno proveito, com a interrogação: ... Quid si garrula lingua
foret? «Que seria se a língua pudesse falar!» 89. A condenação de tal
extravagância está também explícita em Plínio, e, segundo ele era
um preceito de Apício, que classifica como «a mais profunda goela
de todos os dissipadores» (10.133)90. Portanto, tais pratos têm em si
uma carga moral e jurídica, ancorada numa tradição literária que os
torna eloquentes – podem revelar os mores (10.4).
457
Por outro lado, a boa mesa pode tornar-se má, se não for acom-
panhada do bom gosto, das leis que regulamentam a amicitia, e
mesmo opressora, se é demonstração de arrogância de anfitriões
sobre convivas. Como sugere Cícero (Fin. 2.25), o prato principal de
um bom jantar é a boa conversação 91. Mas, na imensa quantidade de
epigramas, há atitudes contraditórias, como contraditória é a alma
humana: por exemplo, a imposição de leituras pode ser insuportável,
apesar da boa mesa (3.45.3-6), ou pode ser aplaudida por causa dos
pratos oferecidos (6.48). E o sujeito poético não desdenha colocar-se
entre aqueles que censura. Se, como dizia o Bilbilitano no epigrama
com que começámos (10.4), a sua poesia tem sabor humano, esta,
acrescenta ele, dará a conhecer ao leitor os seus próprios costumes92.
Bibliografia
458
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461
(Página deixada propositadamente em branco)
V i s i ó n d e a s p e c t o s d e l t e at r o
g r e c o r r o m a n o e n A p u l e yo Met. X
V i s i o n s o f t h e G r e c o - R o m a n T h e at r e
in Apuleius Met. X
Aurora López
Univ. Granada
ORCID: 0000-0002-2102-5544
auroral@ugr.es
Andrés Pociña
Univ. Granada
ORCID: 0000-0001-5413-0351
apocina@ugr.es
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_20
Son muchos los años que la autora y el autor de este trabajo
llevamos manteniendo una profunda amistad con Maria de Fátima
de Sousa e Silva, surgida en sus momentos iniciales de un común
interés por las literaturas de Grecia y de Roma, y de forma muy
especial por sus teatros, ante todo desde el punto de vista de la
pervivencia de ambos a lo largo de los siglos y hasta el nuestro. Es
este un aspecto de nuestras biografías que las lectoras y los lectores
de este Homenaje que ahora se publica con motivo de la jubilación
de la Dra. Silva conocen sobradamente, porque las actividades uni-
versitarias realizadas por iniciativa nuestra en Portugal, en España y
en otros países, y las publicaciones resultantes, alcanzan un número
admirable. En la base de esta relación académica e investigadora
que nos unió desde hace años, residió siempre un deseo de romper
la frontera tradicional entre España y Portugal en el mundo de los
estudios de Filología clásica, y contribuir a hacer posible una co-
nexión más estrecha no sólo en el ámbito obviamente fraterno de
ambos países, sino también en el de los países de habla española y
portuguesa de América. Nuestros deseos se han ido cumpliendo en
buena medida, y cuando llega el momento de la jubilación acadé-
mica de la Dra. Silva, pues la del Dr. Pociña ya se cumplió hace tres
años, la de la Dra. López hace dos, esta especie de introducción, ya
demasiado larga, quiere servir de fiel promesa de que vamos a seguir
unánimemente manteniendo el propósito de continuar nuestro ya
duradero programa, y seguiremos propiciando nuevas manifestaciones
de Clastea, hasta que nos lo permitan nuetras vidas, y mantenien-
do siempre vivas las fructuosas relaciones de las Universidades de
Coimbra y de Granada con las de Aveiro, Valencia, Mar del Plata,
Rosario, Santiago de Compostela, Clermont Ferrand, São Miguel
de Azores.
El término habitual en español para señalar el retiro de la acti-
vidad docente activa es jubilación. Jubilación, alegría inmensa, es
la que debe sentir nuestra queridísima amiga Fátima, al observar el
muy meritorio currículo docente e investigador que ha desarrolla-
do en la Universidd de Coimbra, que sin duda tiene que estar muy
464
orgullosa de contar en su profesorado con una figura tan ilustre y
tan entregada.
* * *
1 Marache 1952.
465
sólo piezas muy fragmentarias nos han dejado sus tragedias, y sus
diferentes clases de comedia, palliatae, togatae, Atellanae, mimos,
que hacen que por ejemplo el largo volumen que dedicamos ambos
a todo el desarrollo de la comedia romana 2, sea algo así como un
osario de restos cómicos diseminados, entre los que por fortuna
emergen con luz propia las veintiseis comedias completas de Plauto
y de Terencio. Solamente en el siglo I, las ocho tragedias del filósofo
Séneca, unidas a la falsamente atribuida a él titulada Hércules en el
Eta, y con estas nueve la tragedia pretexta Octavia 3 completan el
elenco del teatro latino representado por obras completas.
Para el estudio del teatro fragmentario latino, fundamental en
nuestros primeros avances sobre el tema4, fue fundamental el siem-
pre problemático, con frecuencia adusto, empleo de la información
proporcionada por los escritores romanos, por sus eruditos, por sus
gramáticos: pronto comprendimos que, para moverse con comodidad
por las simpáticas comedias de Plauto, era indispensable por ejemplo
dominar toda la complicada herencia de Marco Terencio Varrón 5, y
que para decir algo sensato sobre el teatro latino republicano es
siempre preciso leer toda la ingente obra de Cicerón, sirviéndose de
él como informador y crítico conocedor directo del mismo 6.
Estos fueron nuestros itinerarios para el acercamiento al teatro
latino, por los que nos movimos durante muchos años. Y allí estaban,
deteniéndonos continuamente, grandes ilustradores del teatro que les
era propio, como Varrón, como Cicerón, como Horacio, como Tito
Livio, como Ovidio, como Aulo Gelio, que nos trajo a la memoria hace
un instante la obra fundamental de René Marache antes recordada, y
466
también la de Apuleyo. Pero Aulo Gelio y Apuleyo, ya en el siglo II
d.C., nos llevan a un mundo en el que el teatro antiguo, o para ser
más precisos, los teatros griego y romano clásicos, son ya creacio-
nes de tiempos pasados, cuya pervivencia empieza a vislumbrarse
en estos autores, pero que veremos llegar hasta nuestros días. Y fue
esa pervivencia en los siglos siguientes, cada vez más alejados de la
Grecia y de la Roma clásicas, que crearon sus sorprendentes obras
dramáticas, quien nos llamó poderosamente la atención en nuestros
últimos veinte y pico años de investigación. En estudios diversos
sobre esa pervivencia transcurre nuestra relación fundamental con
la doctora María de Fátima Silva, como podrán certificar ya siempre
muchos trabajos y diversos volúmenes colectivos que editamos con-
juntamente7. Esta es la razón de que le dediquemos este artículo, que
sin duda está resultando particularmente personal en su desarrollo.
Pero yendo ya con Aulo Gelio y con Apuleyo, hay un hecho que
resulta muy llamativo. Viven ambos escritores en ese peculiar ambiente
literrio cuyo “gusto arcaizante” ha analizado y presentado con tan
grande acierto René Marache. Como todo el mundo sabe, o por lo
menos sabía cuando las Noches áticas de Gelio eran libro de lectura
culta frecuente, por ejemplo editadas para el ámbito hispanoparlante
por la popular Colección Austral 8 , el erudito tiene conocimientos
variadísimos sobre los dramaturgos griegos y romanos, y no pierde
ocasión de transmitirlos, resultanto de este modo uno de nues-
tros grandes informadores9. En el caso de Apuleyo, de una forma
bien distinta, alusiones y apreciaciones sobre el teatro surgen con
gran frecuencia en sus obras más cercanas a nuestra afición, en la
7 López, Pociña & Silva 2012; Pociña, López, Morais & Silva 2015; Pociña, López,
Morais, Silva & Finglass 2018.
8 Aulo Gelio 1952; era el n. 1128 de la conocida Colección Austral, con una selec-
ción y prólogo de José María de Cossío. Pero ya antes las Noches áticas conocían un
importante precedente en ámbito español con su ed. en dos vols. en Madrid, Editorial
Viuda de Hernando, 1893 (1921), con traducción de F.rancisco Navarro y Calvo. En
la actualidad, a pesar de no ser ya autor que acostumbre ser consultado o citado,
existen diversas ediciones, totales o parciales.
9 Cf. por ejemplo L. Holford-Strevens 1988.
467
Apología, en El asno de oro, en Flórida. Lo que nos llama la atención
es que, incluso teniendo en cuenta la presencia de lo arcaizante en
los dramaturgos primitivos, lo cierto y verdad es que son autores de
tragedias y de comedias que ya han desaparecido de la experiencia
dramática del tiempo presente; su conocimiento por Aulo Gelio se
basa por supuesto en la admiración por los autores y las obras, pero
se trata de un conocimiento enciclopédico, erudito, de profesor:
a fin de cuentas, una pervivencia de tipo enciclopédico. En el caso
de Apuleyo, en cierto modo él mismo sigue siendo un actor, un ac-
tor que atrae al público que va a disfrutar con sus discursos en los
teatros del África, pero tiene un conocimiento preciso del teatro an-
tiguo como si siguiera de actualidad; pervive en él un conocimiento
amplísimo del teatro de siglos antes. Y nos lo demuestra a lo largo
de todo un libro, el X, de su obra para nosotros más famosa, El asno
de oro, en el que aparta con admirable frecuencia del hilo del interés
central, las aventuras de Lucio convertido en asnos, para introducir
tres relatos que guardan una relación llamativa con el teatro de los
tiempos pasados y de su propio tiempo.
468
todo detalle en una de las ponencias 11 que aportamos al Congreso
internacional organizado por nosotros, con el título “Fedras de ayer
y de hoy. Poesía, teatro y cine ante un mito clásico” 12, celebrado
en Granada en el año 2005; a este trabajo remitimos para todo el
desarrollo del tema, del que solamente vamos a tocar ahora conta-
dos aspectos.
Especial atención hemos de poner en el modo de introducir el
relato. Lucio el asno ha venido a caer en poder de un soldado, que
lo lleva a una pequeña ciudad, cuyo nombre no se nos dice. Se alojan
en una posada, el soldado va a presentarse a su comandante, y es el
propio Lucio quien comienza el relato con estas palabras:
469
Apuleyo, que posee unos amplios y profundos conocimientos de
los desarrollos históricos de las literaturas griega y latina, está en-
gañando al lector por medio del relato que pone en boca de Lucio
el asno. Advierte que va a recordar un scelestum ac nefarium faci-
nus, y empieza por sus comienzos, presentando a un padre, con dos
hijos, habidos de dos esposas sucesivas, pero de repente llega a la
presentación de la segunda de ellas, que obviamente es la madras-
tra, nouerca, del primero, hermosa, pero depravada. Un excelente
lector, con una cultura literaria grecolatina, no necesita más para
saber que está en el ámbiro familiar de las Fedras clásicas, sea el
Hipólito conservado de Eurípides o la Fedra de Séneca. Entonces,
Apuleyo-Lucio hace patente al lector que es ese mito teatral en lo
que está pensando, porque le advierte que va a leer una tragoedia,
no una fabula, término que nuestro traductor ha reproducido por el
español “cuento”, pero que también podría entenderse como “come-
dia”; y entonces, para señalar el paso de un género literario a otro,
utiliza la tradicional diferenciación entre tragedia y comedia a partir
de los diferentes calzados de una y otra, el coturnus y el soccus14.
Pero Apuleyo sabe muy bien que ese complicado núcleo familiar,
que evoca en el lector, sin darles nunca nombre, el caso de Teseo y
Fedra, no pueden considerarse en modo alguno personajes de una
tragedia, de acuerdo con los presupuestos de la retórica grecoro-
mana, debido a su carácter de gentes de la vida corriente, no de la
alta alcurnia, que habían diferenciado siempre los miembros de los
repartos de las tragedias y las comedias.
Sin entrar en otros detalles, vemos que el planteamiento literario
de Apuleyo consiste en incluir un relato nuevo, absolutamente al
margen del desarrollo normal de los avatares de Lucio el asno (y
que, además, no existe en la versión griega de la novela), y comienza
partiendo del tema tradicional del enamoramiento de Fedra de su
hijastro Hipólito; sin embargo, ante el fracaso de la nueva madrastra,
igual al de sus precedentes, el argumento toma otros derroteros, in-
470
terviniendo nuevas circunstancias, como el envenenamiento, nuevos
personajes, como el esclavo de la madrastra, la aparición del senador
médico; en fin, de forma fundamental, el desenlace afortunado, al no
ser real el envenemiento, que hace contundente y definitivamente
que lo que empezó siendo presentado como una tragedia, acabe
conviriténdose en una comedia por su obvio feliz desenlace.
Un nuevo modo, sin duda, de enfrentarse literariamente a un
antiguo mito, lleno de atractivos, que había producido insuperables
resultados sobre todo en el género trágico, primero en Grecia, des-
pués en Roma. Pero Apuleyo considera que el tema sigue abierto, y lo
somete a un nuevo desarrollo de su propia creación. Evidentemente,
siempre es posible juzgar el resultado: G. F. Gianotti escribe al res-
pecto: “Il grande tema tragico di Fedra, dopo le edizioni illustri di
Euripide e di Seneca, si riduce a un fatto di cronaca nera, si traferisce
dalla reggia di Teseo a un’imprecisata civitatula di provincia e scarica
il suo pathos in una serie doviziosa di particolari scandalistici” 15.
Es una opinión, respetable como todas las opiniones correctamente
planteadas, formuladas y defendidas, pero el análisis basado en la
comparación valorativa no nos parece un procedimiento aconsejable
en los estudios de pervivencia literaria.
Apuleyo ha creado un relato breve a partir de los precedentes
trágicos de Grecia y de Roma, de cuyo detalle ya nos hemos ocupado
con detalle en nuestra anterior aproximación al tema 16 , pero lle-
gado a un punto se ha despreocupado del género literario original,
lo que le ha ofrecido la posibilidad de modificar el argumento en
todo lo que le ha parecido oportuno, y por supuesto le ha permitido
cambiar los personajes, sea por supresión de algunos existentes (¡no
hay nodriza de la madrastra enamorada!) o por creación de otros
(el senador médico). De este modo, en el relato de la madastra en-
471
venenadora de Apuleyo está inaugurada y ejemplificada la curiosa
y sorprendente historia de las incontables reescrituras del tema de
Fedra e Hipólito desde el mundo antiguo hasta nuestros días17, con
cambios argumentales y supresión o creación de personajes, muy
llamativos y significativos, en reescrituras como, por poner unos po-
cos ejemplos sobresalientes, Phèdre de Jean Racine (1677), Fedra de
Gabriele D’Annunzio (1909), Fedra de Miguel de Unamuno (1912),
Desire under the Elms de Eugene O’Neill (1924), Fedra de Salvador
Espriu (1937), Ippolito de Elena Bono (1951), Fedra entre los vascos
de César Miró (1962), Fedra de Domingo Miras (1973), Una altra
Fedra, si us plau de Salvador Espriu (1978), Faidra de Yannis Ritsos
(1978), Phaedra’s Love de Sarah Kane (1996), etc.
17 Cf. Pociña & López 2016: 11-27 – cap. 1, “Reescrituras del tema de Fedra e
Hipólito”.
472
en un rentable espectáculo para su amo. Después de trasladarse a
Corinto, tiene lugar el famoso episodio del enamoramiento del asno
por parte de una rica matrona, que acaba manteniendo relaciones
sexuales con él. Y es entonces cuando, ante el proyecto de su amo
de sacar mayor beneficio vendiendo esta nueva faceta sorprendente,
exponiendo a Lucio a mantener una relación sexual en un teatro
con una mujer condenada a las fieras, a fin de ofrecer la historia
de esta mujer, con un parecido obvio a la de la madrastra del relato
anterior18, Apuleyo nos introduce en el nuevo relato, más breve, que
leemos en los capítulos 23-28.
Este es el argumento: una mujer, que tiene un hijo, está de nuevo
embarazada; su marido emprende un viaje al extanjero, pero le deja
ordenado que, si pare una niña, se deshaga de ella. Nace, en efecto,
una niña, pero la madre no le da muerte ni la expone, sino que la
deja en manos de unos vecinos. Pasa el tiempo, la criatura se con-
vierte en una adolescente, y la madre confiesa a su hijo que es hija
suya, y por lo tanto hermana de él; como buen hermano, se hace
cargo de ella, y la casa con un buen amigo. Todo estupendo, si no
fuera porque entran en juego, como nos advierte Apuleyo, Fortuna
y Riualitas, la fortuna y los celos. La mujer del bondadoso hermano,
que desconoce esta condición suya de hermano de la joven ya casada,
movida por su innata maldad y por unos celos atroces, inicia una
cadena de envenemientos, primero de la joven, después otros cuatro
más, dando lugar a una auténtica novela negra. Descubierta tras el
quinto envenenamiento, la celosa esposa asesina es condenada a
las fieras. Y, curiosamente, ella será objeto del obsceno espectáculo
de una relación sexual que ha de mantener con Lucio el asno, en
público, en el teatro.
Es lástima que Apuleyo no haya sido tan explícito en el comien-
zo de este relato como había sido en el del anterior, al advertirnos
473
que íbamos a leer una tragoedia. Sin embargo, cualquier conocedor
de la comedia grecoromana, y en especial esos lectores cultos que
Apuleyo toma en consideración, entienden perfectamente, como
señala con precisión M. Zimmerman 19, que nos encontramos ante
un argumento típico de la Comedia Nea griega, y por supuesto de
la Palliata latina. El tema frecuente del abandono de una criatura,
sobre todo si es una niña, al nacer, coincidiendo con un viaje a un
lugar lejano de una personaje, son elemento frecuente de muchos
argumentos cómicos; en el caso de esta pobre chica, que gracias a
su madre tiene la suerte de no acabar de forma desgraciada como
resultado de una exposición desafortunada que no sucede, podría
llegar a buen fin, gracias a la intervención de su hermano, que la
casa con un amigo. Sin embargo no tiene en cambio la fortuna de
ser objeto de una anagnórisis total, completa, que hiciera saber que
era hermana de su hermano, lo que la habría librado de los celos
criminales de su terrible cuñada. Muy pronto, después de un capítulo
tan sólo, finaliza la historia afortunada de la muchacha y empieza el
protagonismo fundamental de su criminal cuñada, encadenando un
envenenamiento sobre otro, hasta un total de cinco, en que consiste
el núcleo fundamental del nuevo relato. Pasamos de este modo de
una comedia a una tremenda tragedia: del mismo modo que en el
relato de los capítulos 2-12, pero en sentido contrario; parte Apuleyo
de una historia que parece paráfrasis de una obra teatral clásica,
para luego desviarse de ella en la parte que resulta creación suya,
pasando de una tragedia a una comedia, o de una comedia a una
tragedia, y construyendo de este modo dos relatos que tienen muy
poca relación con el hilo argumental de El asno de oro, ninguna en
el caso del primero, muy escasa en el del segundo.
474
4. Met. X 29-34: Apuleyo-Lucio nos cuenta la representación
de una pantomima
475
He aquí que había llegado ya el día destinado a la represen-
tación y soy traladado al recinto del teatro entre el fervor del
pueblo, que me acompaña en procesión. Y mientras las primicias
del espectáculo estaban dedicadas a la ejecución de unas danzas
por parte de unos profesionales de la escena, estaba yo entre tan-
to plantado ante la puerta, placidamente ocupado en alcanzar el
pasto constituido por unas exuberantes hierbas que brotaban en
la misma entrada, al tiempo que continuamente recreaba mis ojos
curiosos con la agradable contemplación del espectáculo a través
de la puerta abierta. Pues, en efecto, había unos niños y niñas en
la flor de la corta edad; de llamativa belleza, espléndido vestido
y gracioso paso, iban a bailar la danza pírrica de origen griego, y
así, en formación, fueron recorriendo bellas figuras, ya torciéndose
en un círculo cerrado, ya enlazándose en filas transversales, tanto
apiñados en un cuadrado vacío como escindidos en dos grupos
separados. Pero cuando el sonido de la trompeta, que anuniaba el
fin, acabó con las intrincadas maniobras de sus alternantes evo-
luciones, se echó abajo el telón y se enrollaron las cortinas para
dejar dispuesto el escenario.
Había un enorme monte de madera como aquel famoso Ida
que cantara el poeta Homero, construido con una excelsa técnica,
cubierto de follaje y de árboles vivos y que destilaba las aguas de
un río desde lo alto de su cumbre, de una fuente que manaba gra-
cias a las manos de su creador. Unas poquitas cabrillas pastaban
las hierbas y un jovencito, hermosamente vestido con una túnica
como el pastor frigio Paris, con unos ropajes orientales que le caían
desde los hombros y con la cabeza cubierta con una tiara de oro,
representaba ser el mayoral de aquel ganado. Se presenta entera-
mente desnudo a no ser por una clámide de efebo que le cubría
el hombro izquierdo, un bello muchacho que resaltaba entre todos
por su rubia melena y entre cuyos cabellos destacaban unas alitas
de oro unidas por su exacta similitus:la vara de su caduceo daba
a entender que se trataba de Mercurio. Este, después de avanzar
476
con unos pasos de danza sosteniendo en su diestra una manzana
cubierta de láminas de oro, se la hace llegar al que parecía Paris
mientras le da a entender mediante gestos cuáles eran los mandatos
de Júpider; y violviéndose sin más, elegantemente, se aleja de la
vista del público.
Sigue una chica parecida por la honesta expresión de su rostro
a la imagen de la diosa Juno, puesto que, en efecto, le ceñía la
cabeza una diamdema blanca; llevaba también un cetro. Irrumpió
otra que se podría pensar que era la diosa Minerva, con la cabeza
cubierta con un reluciente casco –a este casco lo envolvía, a su
vez, una corona de olivo-, portaba un escudo y blandía una lanza
y era como ella cuando lucha.
Después de estas se introdujo otra que sobresalía por su belleza,
digna de asombro y que, con el encanto sobrenatural de su tez,
representaba a Venus tal como era Venus cuando era virgen, mos-
trando una perfecta hermosura en su cuerpo, desnudo y descubierto
salvo por una delgada túnica de seda que dejaba en penumbra su
pubis admirable. El viento curioso, jugueteando, henchía estas ves-
tiduras lleno de deseo, de tal manera que desvelaba, al apartarlas,
la flor de su tierna edad, o bien soplaba contra ellas retozando, de
forma que, ciñéndola estrechamente, se dibujaran claramente las
delicias de sus miembros. Por otro lado, la imagen de la diosa ofre-
cía colores distintos a la vista: su cuerpo era blanco, como bajado
del cielo; el vestido, azul oscuro, como salido del mar.
A cada una de las doncellas que representaban a las diosas las
acompañaban sus propios acompañantes; a Juno, Cástor y Pólux,
cuyas cabezas cubrían unos cascos ovales que se distinguían por
cimeras de estrellas: también estos muchachos Castores eran pro-
fesionales de la escena. Esta chica, avanzando al son de una flauta
jonia que tocaba diverss melodías, le promete al pastor mediante
pudorosos gestos y expresándose con una mímica serena y sin
afectación que, si hacía recaer en ella el premio de la belleza, le
otorgaría a su vez ella el gobierno de toda Asia.
477
En cuato a aquella a la que había convertido en Minerva su
atuendo bélico, la custodiaban dos muchachos, el Terror y el Miedo,
acompañantes armados de la diosa batalladora, bailando con las es-
padas desnudas. A su espalda, un flautista tocaba el belicoso modo
dorio,y, mezclando con los pesados tonos graves unos estridentes
toques agudos que parecían de trompetas, estimulaba el ardor de
la rápida danza. Ésta, sin dejar de mover la cabeza y con unos ojos
de mirada amenazadora, mediante un tipo de mímica vetiginosa y
retorcida le mostraba resueltamente a Paris que gracias a su apoyo,
se le entregaba la victoria en la hermosura, sería un valiente y se
cubriría de gloria con sus trofesos guerreros.
Pero he aquí que Venus con el apoyo entusiasta de las gradas
se planta encantadoramente en el mismo centro de escenario son-
riendo dulcemente mientras se desparrama a su alrededor una
multitud de felicísimos pequeñuelos: se diría que aquellos niños de
bien torneados miembros y blancos como la leche eran verdaderos
cupidos que acababan de llegar volando desde el cielo o del mar,
puesto que en las alitas y las flechitas y en todo el resto de su
atuendo resultaban perfectamente acordes con esta imagen, y con
unas brillantes antorchas iban iluminándole el camino a su dueña,
que parecía dirigirse a un banquete de bodas. Irrumpe también un
hermoso grupo de jóvenes doncellas; por un lado las agraciadas
Gracias, después las bellísimas Horas, que mientras adoraban a la
diosa lanzando flores, tanto trenzadas como sueltas, habían for-
mado un artístico coro para agradar así a la dueña de los placeres
con la con la frondosidd de la primavera. Las flautas de muchos
agujeros estaban ya entonando dulcemente las melodías lidias; y
mientras estas embelesaban encantadoramente los corazones de los
espectadores, Venus mucho más encantadora, empezó a moverse
apaciblemente y a avanzar despacio, con paso vacilante, ondulando
blandamente el torso y balanceando letamente la cabeza, y comenzó
a responder con la delicada expresión de su cuerpo a los suaves
sonidos de las flautas y a hacer gestos con las pupilas, que ya se
478
cerraban languidamente, ya amenazaban duramente, y a bailar así
únicamente con los ojos.
En cuanto hubo hecho todo esto frente al juez, pareció que por
los gestos de sus brazos le prometía que, si fuese preferida a las
otras diosas, le daría a Paris una novia de excepcional belleza y
entreamente igual a ella misma. Entonces el joven frigio le entregó
de todo corazón a la muchacha la manzana de oro que sostenía,
como si fuera la piedrecita con la que votaba su victoria.
[.....]
Cuando acabó aquel juicio de Paris, Juno sale del escenario
junto con Minerva, afligidas y como si se hubieran encolerizado, al
mismo tiempo que manifestaban con sus gestos su indignaciñón por
haber sido rechazadas; Venus, en cambio, gozosa y jovial, manifestó
su alegría bailando con todo el coro.
Entonces, de lo más elevado de la cima del monte y a través de
un conducto escondido brotó hasta lo más alto azafrán disuelto en
vino y, al derramarse por todas partes, empapó con esta lluvia per-
fumada a las cabrillas que pacían alrededor, hasta que con aquellas
manchas que mejoraban su apariencia mudaron su blancura natural
por un color anaranjado. Y mientras todas las gradas estaban ya
agradablemente perfumadas, un torbellino de tierra recibió el des-
censo de aquel monte de madera 21 .
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479
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480
FILO S OFIA
(Página deixada propositadamente em branco)
A r i s t ó t e l e s , S ó c r at e s y l o s s o c r át i c o s
sobre la riqueza
A r i s to t l e , S o c r at e s a n d t h e S o c r at i c s o n W e a lt h
Abstract: In the thriving field of Socratic Studies, Aristotle has been and
remains an important, if hotly debated, source of evidence regarding
both the ethical ideas associated with Socrates and their significan-
ce in the history of philosophy. Notwithstanding Aristotle’s critical
stance towards Socrates’ most characteristic ethical tenets, there is an
identifiable “Socratic facet” in Aristotle’s thought, which surfaces in
his inquiries on economic issues in quite a remarkable way. In this
paper we will explore the Socratic strand in Aristotelian economic
thinking, which proves to be a highly topical subject.
484
producción de diálogos que uno de sus mejores estudiosos valora
en cientos de escritos. 2
La segunda consideración está estrechamente ligada a la primera.
Cuando al nombre de Sócrates se une el de Aristóteles lo habitual es
remitir la relación al problema de la “cuestión socrática”. Los pasajes
de las obras aristotélicas en que se hace mención expresa de Sócrates
han sido recopilados y estudiados con el detalle que merecen, pero
los resultados no son demasiado prometedores. 3 Ciertamente, du-
rante un tiempo se llegó a pensar que Aristóteles insinuaba cuándo
hablaba del Sócrates histórico y cuándo del personaje que Platón
hacía aparecer en sus diálogos. O incluso que el testimonio aristoté-
lico podía servir para dirimir las cuestiones suscitadas por versiones
rivales. 4 Pero la tendencia hoy es, más bien, a considerar que el
testimonio del estagirita no tiene demasiado valor para este tipo de
indagación, sobre todo porque en su práctica totalidad parece proce-
der de las lecturas platónicas. Ciertamente se trata de una posición
controvertida, pero ha sido recientemente afirmada con contundencia
por una autoridad como Charles Kahn, quien defiende otro tanto
sobre el testimonio de Jenofonte. 5
Dada nuestra actitud hacia la cuestión socrática, es fácil adivinar
que este enfoque “histórico” de la cuestión no despierta nuestro en-
tusiasmo. Nos inclinamos más bien por explorar lo que podríamos
llamar el “socratismo” de Aristóteles en torno a determinados temas,
es decir, el modo en que las ideas y doctrinas asociadas con Sócrates,
vengan de donde vengan, fueron objeto de discusión por parte del
485
estagirita. De acuerdo con los planteamientos del moderno paradigma
socrático, tomamos como referente no el “pensamiento” de Sócrates
sobre un tema determinado, sino el planteamiento de un problema en
el contexto de la socrática antigua y las orientaciones que siguieron
los diversos autores que rivalizaron en torno a la imagen de uno de
los maestros más desconcertantes que ha dado la historia.
Dada la gran variedad de temas que permitirían explorar el so-
cratismo aristotélico, algunos de ellos brillantemente examinados en
fechas recientes, nos permitimos elegir uno que puede considerarse
menor, aunque para nuestro gusto es de la mayor importancia. Nos
referimos al de la economía, que en su modalidad griega está siendo
objeto de una importante revisión. 6 El tema es en sí controverti-
do, dado que autoridades de peso dudan que se puede hablar con
propiedad de economía o pensamiento económico en la Antigüedad.
En efecto, como es reconocido generalmente, el término griego que
ha dado el nuestro de ‘economía’ (y términos de la misma etimología
en buena partes de las lenguas europeas) resulta ser, por tomar la
imagen de la didáctica de las lenguas, un “falso amigo”. Tomando
como criterio lo que economistas actuales (para ser precisos, una es-
cuela especialmente influyente de esta disciplina) consideran en rigor
economía, Finley llegaba a cuestionar que en la Antigüedad existiera
tal cosa. Obviamente no se trataba de negar que la Antigüedad no
tuviera nada que ofrecer a la historia económica. Lo que faltaba es
atisbo alguno de racionalidad económica en el comportamiento de
los agentes económicos tal como la entiende la modernidad desde al
menos los economistas clásicos. Esa ausencia de racionalidad formal
en la producción, circulación y adquisición de bienes explica, entre
otras cosas, por qué apenas tenemos datos relevantes para una his-
toria económica propiamente dicha. 7
486
Para ser fieles al sentido antiguo, valga la precisión sencilla de
que la actividad económica tenía entonces como ámbito inmediato
la gestión doméstica y la administración, es decir, la conservación e
incremento del patrimonio familiar. En lo que a la ideología se refie-
re, la diferencia decisiva está la naturaleza inextricablemente ética y
política de las ideas antiguas, su “encastramiento” y “sustancialidad”,
frente a la orgullosa reivindicación de autonomía libre de cualquier
evaluación ajena (moral sobre todo) que pretende la moderna ciencia
que los toma como objeto. 8
En la medida en que la posición de Finley depende básicamente
de una estipulación de sentido del término “economía”, no es difícil
cuestionar el alcance de sus pretensiones que, de un lado, dependen
del estado de nuestros conocimientos sobre las sociedades antiguas
y, de otro, de la convicción de que no hay otra forma de entender
la economía que como la dicta el pensamiento neoclásico. En este
sentido, la investigación moderna ha aportado no sólo nuevos datos
sobre aspectos relevantes para la historia económica, sino, sobre
todo, alternativas teóricas a la disciplina, entre ellas la conocida
como Nuevo Institucionalismo, que está siendo aplicada con bastante
provecho al estudio de las sociedades antiguas. 9
En el debate sobre la economía antigua toca un papel de con-
siderable importancia a Aristóteles, a quien se debe una reflexión
concentrada, pero de influencia extraordinaria, sobre asuntos como
la naturaleza de los intercambios comerciales y la invención y el uso
de la moneda en los mismos. Que en esa reflexión Aristóteles está
en la línea de la tradición socrática ha sido recientemente mostrado
por Schaps en un trabajo muy clarificador. 10 Por otro lado, si nos
atenemos al sentido antiguo del término, sabemos que la condición
487
“económica”, es decir, familiar, de Sócrates fue objeto de una aten-
ción considerable, tal vez excesiva, por parte de Aristóteles y sus
discípulos. La oikonomía antigua concernía también al gobierno de
la familia, esposa, hijos y servidumbre. Por Aristóteles precisamen-
te sabemos que la de Sócrates fue una familia muy particular. En
el Liceo estaban muy interesados en historias que corrían sobre la
supuesta bigamia de Sócrates, que Aristóteles trató con detalle en
uno de sus diálogos de título Sobre la nobleza, y, tras él, filósofos
y eruditos como Demetrio de Falero, Aristóxeno y Calístenes. En el
caso de Aristóxeno de Tarento, sabemos que este dato sirvió para
difundir una imagen poco halagüeña de Sócrates en una biografía
que todavía estaba circulando en el siglo III de nuestra era. Parece
claro que estas noticias no pueden venir de Platón, sino de un co-
nocimiento de la literatura socrática de la primera mitad del siglo
IV a.C. que en su mayor parte está perdida. 11
11 Sobre estos fragmentos (frs. 91-94 Ross3), vid. R. Laurenti 1987: 741-821. Sobre
la recepción hostil por parte de Aristóxeno, cuyas noticias se deben sobre todo a la
Historia filosófica de Porfirio de Tiro, vid. Huffman 2011, quien sospecha que es posi-
ble que se deba a este último una parte importante del cuadro negativo de Sócrates.
488
En efecto, si nos atenemos a la versión más aceptada de la opi-
nión común sobre la cuestión, la economía socrática representa
una auténtica inversión de las ideas vigentes sobre el valor de las
cosas para la vida y el sentido de su adquisición por medio del tra-
bajo. 12 En efecto, si el acuerdo general es que la riqueza es un bien
incontestable, y la pobreza un mal con efectos degradantes sobre la
persona que la sufre, y si las reservas frente la riqueza provienen,
sobre todo, de consideraciones prudenciales acerca de la oportuni-
dad y legitimidad de su adquisición y uso, nada más ajeno a esta
apreciación generalizada de la fortuna material que la posición que
encontramos encarnada en Sócrates, tanto en sus actos como en su
predicación. Sócrates no se desentiende más o menos completamente
de la gestión de su patrimonio, sino que defiende ideas que, de un
lado, critican acerbamente la dedicación excesiva a estos menesteres
y, de otro, redefine completamente el sentido de lo que hemos de
entender por riqueza hasta rondar la paradoja. Además, la identidad
filosófica de Sócrates es inseparable de su radical rechazo a hacer
de sus enseñanzas un negocio, frente a la venalidad prácticamente
sin límites de los llamados sofistas. 13
Para precisar esta actitud “antieconómica” de Sócrates atendere-
mos a tres aspectos de la misma. Parte importante de la singularidad
socrática en esta materia tiene que ver, en primer lugar, con el he-
cho de que esta deviniera asunto de debate en el medio literario
de los logoi tan prolíficamente producidos por sus seguidores. En
ellos la economía se hace problema: se discute la condición de esta
actividad como techne y su relación con otros saberes humanos, así
como las directrices que de esa reflexión deben seguirse para una
489
correcta administración de la vida. 14 Así pues, tiene cierto sentido
decir que Sócrates (y los suyos) “inventa(n)” la economía. Y, en efecto,
la oikonomía es en la Antigüedad asunto, sobre todo, de filósofos.
Un segundo aspecto del momento socrático está en su forma de
analizar los hechos de la esfera económica y la focalización en uno
de ellos como el centro del problema. Es la parte adquisitiva la que
atrae en especial el interés de Sócrates y, sobre todo, el extremo en
que la adquisición se incrementa para devenir en riqueza, es decir, la
acumulación significativa y durable de bienes por encima de lo preciso
para cubrir más o menos holgadamente las necesidades humanas.
De manera complementaria, en fin, es también característicamente
socrática la cuestión del uso de posesiones y riqueza, algo que viene
a ser el análogo de nuestro consumo, con la diferencia decisiva de
que el consumo se mide en cantidades y el uso se evalúa según lo
apropiado del mismo. 15
Así pues, es la riqueza lo que atrae el centro de atención (y provoca
la inquietud) de la reflexión socrática y lo que genera su reflexión
económica. Y esto nos lleva al tercer punto del momento socrático
que podemos resumir en su naturaleza protréptica. Toda actividad
económica está sometida al dictamen que deriva de su relación con
el agente de las mismas, que no es tanto el hombre como su alma.
El efecto de tal dictamen concierne incluso al uso del lenguaje, que
en rigor debería corregirse de acuerdo con las directrices adecuadas
490
acerca de lo realmente bueno, de modo que la riqueza no pudiera
decirse propiamente de nada más que del alma y su calidad.
Como referencia fundamental de este momento socrático tomare-
mos un famoso y controvertido pasaje de la Apología platónica que
lo resume de manera espléndida. Sócrates se imagina que le ofrecen
la posibilidad de librarse de la condena a costa de abandonar su
misión en Atenas, pero él responde:
491
Atendamos, en primer lugar, a la naturaleza protréptica del con-
texto. Sócrates cita sus propias palabras como suma de la lección
que va predicando por Atenas para llamar a sus conciudadanos a
una suerte de conversión moral. Es una intransigente exhortación
que resume una enseñanza no menos controvertida no sólo por los
extremos que demanda, sino por la forma de su expresión: “Οὐκ ἐκ
χρημάτων ἀρετὴ γίγνεται, ἀλλ’ ἐξ ἀρετῆς χρήματα καὶ τὰ ἄλλα ἀγαθὰ
τοῖς ἀνθρώποις ἅπαντα καὶ ἰδίᾳ καὶ δημοσίᾳ.”
492
bíblico, la segunda apunta al centro de la revisión socrática de la idea
de riqueza y su recepción en las tradiciones filosóficas que heredan
las inquietudes de Sócrates sobre el modo en que hay que vivir la vida
que merece la pena vivirse. En esta lectura se concentran los aspec-
tos distintivos del momento socrático. Ofrece una reflexión sobre las
actividades adquisitivas y el modo en que las posesiones adquiridas
se hacen de verdad valiosas. El resultado es una revisión radical del
modo en que podemos hablar de la riqueza. Según esta interpretación,
el Sócrates que Platón nos presenta ante el tribunal, afirma que las
riquezas no son bienes: no nos hacen mejores en modo alguno, como
piensa el común de los mortales, sino que su bondad depende de su
relación con el sujeto que las posee o, más específicamente, con algo
que da a ese sujeto entidad ética: su virtud o, para evitar esta palabra
de tan mala prensa, su calidad humana más alta.
La formulación que da Platón a esta predicación socrática tiene
la virtud de su concentración y capacidad de impacto, como una
máxima. Plantea la posición del maestro con una crudeza que parece
destinada a producir el efecto de una revolución o, más adecuada-
mente, una conversión. En efecto, como dice uno de sus enemigos
más cordiales, el petulante Calicles en el diálogo Gorgias, si las ideas
de Sócrates fueran ciertas, la vida humana quedaría “patas arriba”
(anatetrammenos, Plat. Gorg. 481c3). Por ello es interesante seguir la
suerte de ese pensamiento económico tan trastornador en el medio
socrático al que pertenece, y observar las soluciones al dilema del
enriquecimiento cuando lo que se juega es nuestra calidad moral,
que, para Sócrates y tantos de sus discípulos, vale más que la vida
misma. En esta historia podemos considerar a Aristóteles un “socráti-
co” más, y uno de especial calidad por la agudeza con la que señala
dónde se encuentra realmente el problema.
En la versión platónica de la vida del maestro, Sócrates es declara-
damente pobre y hasta hace gala en la Apología de una pobreza que
atribuye a su dedicación a la misión divina, y por ello declara, no sin
ironía, una justa compensación como castigo al delito por el que sus
conciudadanos lo han condenado (Apol. 36b-e). En consecuencia, la
493
solución que da Platón al problema de la riqueza es, por decirlo de
manera terminante, preventiva, por no decir profiláctica. En su dos
grandes proyectos constitucionales, la cuestión de las propiedades y
su acumulación es cuidadosamente tratada con el propósito de evitar
sus perniciosos efectos sobre los gobernantes o la ciudadanía en ge-
neral. El hecho de que la necesidad del intercambio haga imposible
prescindir de prácticas en virtud de las cuales el apetito de riquezas
puede insinuarse en el alma de los ciudadanos hace especialmente
perentoria la necesidad de una regulación rigurosa que, en su caso
más conocido, resulta en el establecimiento de una forma radical
de comunismo entre los gobernantes de la ciudad perfecta. El papel
del afán adquisitivo en la degeneración de los tipos humanos que
desencadenan el proceso de cambio constitucional es igualmente
revelador al respecto. 18
Lejos de esta sospecha platónica ante la acumulación de propie-
dades, que tantos enemigos y simpatizantes le ha atraído, antiguos
y modernos, el Sócrates que nos pinta Jenofonte recoge el reto del
maestro y lo elabora siguiendo líneas definitivamente poco revo-
lucionarias. 19 Este Sócrates, decididamente, no es pobre como su
alias platónico, ni dice de sí mismo tal cosa. Es esa una apreciación
equivocada de quienes no comprenden su acción educativa. En las
Memorables jenofonteas, por ejemplo, Sócrates responde a quien le
reprueba su pobreza que en realidad él es espléndidamente rico, una
afirmación que nunca escuchamos en Platón. Y es que esa riqueza de
Sócrates hay que entenderla en los términos adecuados como una
función del deseo: se define en relación con el tamaño, el número
y la calidad de los deseos y, más importante, la capacidad de domi-
narlos, de modo que un hombre que tiene pocos deseos, que son
494
además fáciles de satisfacer, y cuenta con bienes suficientes para ello
puede considerarse, sin más, rico. Por el contrario, la pobreza afligirá
siempre a quienes, como Critóbulo, rico hasta la indecencia, abun-
dan en deseos refinados, y ello por más riquezas de que dispongan.
Ahora bien, curiosamente, este revisionismo económico derivado de
una redefinición ética de la riqueza permite a Sócrates un trato más
comprensivo, menos riguroso con la misma que el propuesto por su
rival Platón. En su animada conversación con Critóbulo, Sócrates no
duda en dar consejos de economía doméstica para la mejora de la
condición material y financiera del consultante, y hasta de economía
“política” para el bien de la ciudad. Una riqueza conseguida bajo el
gobierno de la continencia y adecuadamente administrada no sólo
es aceptable, sino buena, en la medida en que sirve eventualmente
para subvenir las necesidades de amigos, parientes y conciudadanos.
Jenofonte propondría, pues, una solución lejanamente emparentada
con la versión “redistributiva” de las llamadas economías primitivas.
Pero además de esta naturaleza ética de la riqueza, hay una de
orden práctico-cognitivo de extraordinaria importancia. La condici-
ón de las riquezas está “suspendida” hasta que se activa la relación
con el usuario que las cualifica definitivamente como tales. La clave
está, pues, en el uso de los bienes. Según este segundo criterio, una
gran cantidad de bienes que no son utilizados o, peor, que no se
sabe cómo utilizar, no son propiamente dichos bienes, ni riqueza
en absoluto. Jenofonte lleva esta estrategia a la paradoja al decir
que, de saberlos usar bien, hasta los enemigos pueden considerarse
parte de nuestra fortuna, o que el dinero no lo es, en verdad, si se
acumula sin uso, por no decir que es un mal evidente cuando se usa
para adquirir objetos o contratar servicios perniciosos.
495
Sócrates. Pero, como señalamos arriba, no creemos que el socratismo
del estagirita se resuelva en los pasajes en los que hace mención
explícita del maestro ateniense, como tampoco creemos que lo que le
llega de socratismo sea exclusivamente por mediación de su maestro
directo y del ambiente de la Academia que frecuentó veinte años
de su vida. Como se ha señalado recientemente, 20 en la reflexión
filosófica sobre la riqueza la posición de Aristóteles debe situarse en
el contexto de la familia socrática y del cambio de perspectiva, más
o menos revolucionario, que se asocia a la actitud del maestro, que
hace de la riqueza un problema para la vida que se quiera virtuosa.21
Los lugares donde se concentra la reflexión sobre el intercambio
y la circulación de los bienes son bien conocidos. 22 En el capítulo
5 del quinto libro de la Ética a Nicómaco, en el contexto de la dis-
cusión sobre la justicia en su variedad de reciprocidad por analogía,
Aristóteles se plantea cómo es posible intercambiar de manera justa
cosas esencialmente diferentes, algo que requiere una medida, en
la que las cosas puedan resultar conmensurables y susceptibles de
entrar en una relación de equivalencia. Aristóteles menciona sucesi-
vamente el dinero y la necesidad (χρεία, que hay quien moderniza
en “demanda”), o una combinación de ambas como medida común
entre las cosas que deben intercambiarse (EN 1122a20-21; 25-26;
29-32). La solución está lejos de ser satisfactoria por razones que
tienen que ver con distinciones básicas del propio Aristóteles en las
que aquí no podemos detenernos. 23
Más elaborados son los pensamientos que dedica a este problema
en el primer libro de la Política, donde se desarrollan las implica-
ciones de la necesidad como elemento impulsor del trato social y
20 Schaps 2010.
21 En el siglo I n.e. el epicúreo Filodemo aborda en sendos libros (Sobre la riqueza,
Sobre la administración del patrimonio). En ellos revisa una sólida tradición sobre el
tema que parte de Jenofonte. Vid. Tsouna 2008 y Campos Daroca 2019.
22 El estudio más completo y autorizado del pensamiento económico aristotélico
es el de Meikle 1999, pero la literatura es abundante, vid. Taboa 2016, Basáñez 1994,
1995, Crespo 1993-1994, Natali 1990, y Berthoud 1981.
23 Meikle 1999.
496
el intercambio, y la posibilidad de controlar las derivas viciosas
que surgen cuando el sentido del intercambio se altera y va más
allá de su finalidad propia, que no debería ser otra que suplir las
insuficiencias de la limitación humana. Las distinciones aristotélicas
están destinadas, diríamos que obsesivamente, a proteger una “eco-
nomía”, que podríamos llamar natural (en el sentido aristotélico), de
determinadas prácticas dedicadas a la adquisición, que se subsumen
bajo el nombre de “crematística” y que desvían la actividad de sus
fines adecuados. 24
La complejidad fascinante de estos pasajes aristotélicos reside en
el dinamismo con el que el autor procede a una distinción que se
empeña en dividir lo que a entender de mucha gente son actividades
íntimamente relacionadas e incluso una misma actividad. Y si la gente
tiende a no hacer distinciones, eso quiere decir que alguna verdad
hay en ello. Por eso los conceptos creados para la clarificación pa-
recen estar dotados de una gravitación semántica y axiológica que
hace difícil fijarlos en una distinción que debería separar lo que es
natural de lo que no lo es. El resultado es que cualquiera que lea
estos pasajes puede experimentar una confusión considerable que
las ediciones y traducciones intentan paliar con notas explicativas.
Este empeño aristotélico por domesticar la actividad adquisitiva
obedece sin duda a buenas razones. Cuando Aristóteles introduce
por primera vez la diferencia entre las dos actividades, parece no ver
problema alguno en hacerla, en virtud de la diferente naturaleza de
las artes correspondientes, práctica y productiva respectivamente. Pero
constatamos que la crematística admite diferencias importantes entre
una variedad natural, que se asocia estrechamente a la economía,25 y
una que no lo es, que es la que, en rigor, debería recibir ese nombre,
y que se distingue, de nuevo, por una perversión de medios en fines
que la hace ilimitada (Pol. 1.9, 1256b 40-41). Y cuando, más adelante,
497
Aristóteles procede de nuevo a clarificar la práctica del intercambio,
como una variedad de utilización de las cosas opuesta al uso propio
de las mismas, resulta que también deberemos en este punto hacer
un distingo entre un intercambio “natural”, que hay que acercar a
las prácticas legítimas de la economía (καπηλική), y un intercambio
no natural que recibe el desconcertante atributo de καπηλικόν. La
primera variedad, nos dice enfáticamente Aristóteles, no es una for-
ma de crematística, sino que pertenece con toda propiedad al arte
económica, 26 pero la segunda es una variedad de crematística, de la
no natural, se entiende, y de la peor especie. 27 Aristóteles subraya
de este modo la deriva de una práctica natural que contribuye a la
satisfacción de las necesidades humanas, 28 en una perversa. Esto
puede explicar la desconcertante afirmación de Aristóteles de que
la crematística proviene del intercambio natural, señalando de este
modo al mismo tiempo la continuidad y la diferencia.
En este punto del texto parece que la crematística no se opone
ya propiamente a la economía, sino a la riqueza natural (Pol. 1.9
1257b). El surgimiento de esta especie ilimitada de enriquecimiento
se explica con curioso detalle: en el curso del proceso de intercambio,
se instala una mediación que desdobla el uso de las cosas intercam-
biadas. En efecto, hay un factor que decide la suerte del proceso: la
presencia del dinero que, según Aristóteles, habría surgido con oca-
sión de la extensión de los intercambios de las cosas necesarias y la
abundancia de los excedentes intercambiados.29 Una vez disponible
26 Pol. 1.9, 1257a 5-20. Seguimos aquí la interpretación de Pellegrin 2015: 132.
Otras interpretaciones hacen decir aquí a Aristóteles que el comercio natural es parte
de la crematística, en contradicción flagrante con lo que se lee inmediatamente en
1257a 28.
27 Pol. 1.9 La traducción es controvertida. Seguimos de nuevo la propuesta de
Pellegrin 2015: 133 n. 1, en el sentido de que καπηλικόν debe atribuirse a un sintagma
del tipo εἶδος χρηματιστικῆς.
28 Como señala Meikle 1999: 25 s., en el adjetivo autarkés que describe el límite
de esta actividad debemos poner el énfasis en la segunda parte del compuesto (“bas-
tar”); por ello hay que entender que el adjetivo se refiere a una vida que se basta
con lo suficiente, y no tanto una que sea independiente.
29 Sobre la teoría aristotélica del origen de la moneda, cf. Schaps 2003.
498
este medio tan eficaz de transportar valor, sólo parece hacer falta
tiempo para que el dinero pase de ser medio a fin del intercambio,
y con ello genere su propio arte adquisitivo. La crematística es, nos
dice el autor, sobre todo asunto de dinero, produce dinero y reduce
la riqueza a este elemento, de modo que el desdoblamiento del uso
y del arte de la adquisición acaba desdoblando también la riqueza
misma en una útil y limitada frente a otra riqueza “indefinida” cuya
inutilidad es ejemplificada en la fábula del viejo rey Midas, que moría
de hambre entre sus riquezas, unas riquezas que, por consiguiente,
no merecen tal nombre.
No continuaremos la exposición de ese cambio fatal que transfor-
ma un medio en un fin que es capaz de insinuarse y transformar los
fines propios de una gran variedad de artes, junto con sus actividades
y productos, en una única práctica acumulativa de un sólo objeto.
La medicina, sometida a la mediación monetaria, se metamorfosea
y pasa, de ser un arte que persigue la promoción de la salud, a ser
uno que persigue la riqueza con ocasión de la actividad de sanar,
un arte en el que sanar es casi accidental. En el caso de las artes
productivas, Aristóteles parece avanzar una crítica a la manipulación
de los productos con obsolescencia programada. Sea como sea, lo
fundamental del análisis aristotélico de esta esfera límite de la eco-
nomía antigua está en su inconsistencia última: siendo el dinero una
invención prácticamente inevitable, que sirve a uno de los fines más
propios de la comunidad antigua, los de promover una vida buena
más allá del umbral de subsistencia, resulta, sin embargo, implicado
en una de las transformaciones más graves que pueda sufrir una
sociedad y se convierte en obstáculo para la vida buena. Aristóteles
parece señalar que hay en la moneda una deriva o inercia perversa,
pero parece pensar también que es posible hacer del mismo un uso
adecuado limitado a su papel de facilitar la comunicación de bienes.
De cualquier modo que resolvamos las dificultades de este pen-
samiento que procede como en movimiento, en su esfuerzo por
dilucidar una actividad cuyo dinamismo e inercias tienen efectos de
extraordinaria importancia en las formas de vida de las sociedades
499
sin recurrir a medidas que corten de raíz los males eliminando los
riesgos, Aristóteles continúa un movimiento cuyo impulso primero
hay que situar en algunas orientaciones del movimiento socrático que
se harán especialmente fecundas en el estoicismo de época romana.
En efecto, en torno a la figura de Sócrates y las representaciones
que proliferaron de su vida y sus palabras, la riqueza se hizo algo
más que una cuestión humana especialmente ardua, derivada de la
complicación de la vida y que requiere de especial prudencia; la
riqueza se hizo problema humano, es decir, una cuestión que debe
enfrentar quienquiera que aspire a aclararse sobre sobre el tipo de
comunidad en la que se quiere vivir, y vivir bien.
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Um Ângulo Morto da Memória?
Maine de Biran sobre a Reminiscência,
a M e m ó r i a e o s s e u s F a n ta s m a s *
A M e m o ry ’ s D e a d A n g l e ? M a i n e d e B i r a n
o n R e m i n i s c e n c e , M e m o ry a n d I t s G h o s t s
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_22
Abstract: This paper aims to meditate on the conception of memory
proposed by Maine de Biran. Such conceptualization has two faces:
one forces us to look at the delimitation of “conscious interiority”,
at the problem of the “beginning of the apperceptive self” without
which, strictly speaking, nothing could be said to be remembered;
the other, forces us to contemplate the unusual regions of a kind of
ghostly memory that, paradoxically, seems to be rooted in a kind of
disturbing and unconscious anonymous life that remembers itself in
me without me.
1. Preâmbulo
504
se não comportar, concomitantemente, a continuidade daquele que
recorda. A ideia é simples na sua formulação, mas complexa nas suas
implicações: a afirmação “eu recordo” implica supor como condição
de possibilidade da memória a permanência do “eu” que “se sabe a
recordar”; mas o que tal significa não é evidente e apenas pode ser
abordado no final de uma consideração arquitetónica do estado de
conscium ou compos sui. No contexto do biranismo, tal equivale a
considerar a célebre teoria do esforço apercetivo que corresponde à
descoberta das condições concretas do momento ontogenético do eu2.
A teoria do esforço permanece, porventura, o aspeto mais conhe-
cido da filosofia de Maine de Biran, pelo que não será necessário
determo-nos muito na sua explanação. Ainda assim, importa esclarecer
o que significa afirmar que o eu3 nasce da relação de esforço. Biran
di-lo da seguinte forma: o eu “identificar-se-á completamente com
o sentimento primitivo da nossa existência individual na conceção
reflexiva de uma força que apenas se torna viva ou consciente dela
própria pelo seu desenrolar atual sobre o seu termo de aplicação
apropriado” 4, sendo este termo um corpo interiormente “resisten-
te ou inerte”5 – um corpo próprio. No esforço, modo “real e não um
puro conceito abstrato”6, acontece, então, o reconhecimento primitivo
da individualidade por ela própria (reconhecimento esse que não é
senão o próprio facto de consciência) como princípio de uma força
viva7 ligada a um corpo (distinto, mas não separado) interiormente
apropriado. Neste sentido, pode afirmar-se que é com o esforço
2 Biran 1996: 621: «Je crois prouver que dans l’origine de la vie, lorsque la sen-
sibilité est encore seule en exercice, il y a des affections ou des intuitions simples
sans moi ou sans personnalité individuelle: ce moi a donc une origine; je la cherche
hors des premières sensations et je la trouve dans un premier effort voulu.»
3 Biran 1986: 102. Cf., num mesmo sentido, Biran 2001: 123. «Le sens interne
de l’effort ne peut au contraire être mis en jeu que par cette force intérieure et sui
generis que nous appelons volonté avec laquelle s’identifie complètement ce que
nous appelons notre moi »
4 Biran 1986: 125.
5 Biran 2001: 9
6 Biran 1986: 12.
7 Cf. Biran 1996: 391, passim.
505
apercetivo que se inicia a vida de consciência na qual “tudo se re-
porta a uma pessoa que quer, age, julga o resultado dos seus atos,
distingue, por contraste, os modos forçados da sensibilidade passiva
daqueles que produz voluntariamente (…)” 8 e, ainda, igualmente
inscreve tais modos voluntários no tempo esboçando uma ordem de
sucessão ou trama temporal que determina um antes e um depois.
Eis o ponto fulcral para o tema que aqui nos ocupa.
Tal inscrição sucessiva de modos voluntários (de atos) no tempo
corresponde, antes de mais, a uma repetição: trata-se, de facto, de
uma inscrição consecutiva. Mas tal inscrição repetitiva não é nunca
uma mera pontualidade atomizada de momentos sem ligação, caso em
que não poderia afirmar-se ser uma sucessão “na qual se reconhece
um antes e um depois”. É forçoso que eu reconheça ter efetuado algo
ontem, antes de ter realizado algo depois. A questão da memória é,
precisamente, a de saber como tal é possível: como “sei” que os ato
realizados sucessivamente são sempre os “meus”?
Coerente com a sua teoria do esforço, Biran começa por responder
o seguinte: cada modo pontual “produzido voluntariamente” atualiza
reiteradamente a mesma relação primitiva de esforço. Cada um dos
nossos atos inscreve-se no tempo porque corresponde “ao exercício
da mesma força” sobre o mesmo corpo apropriado – ou seja, cada
um dos nossos modos “voluntários” da “mesma força” supõe a pre-
sença continuada da própria relação de esforço apercetivo. É essa
repetição continuada que torna possível a memória ou a recordação
propriamente dita 9.
Uma primeira tese biraniana sobre a memória encontra-se estabe-
lecida. Podemos resumi-la do seguinte modo: (a) repetir é “inaugurar
uma história, inscrever atos sucessivos no tempo, na trama da nossa
existência e ser capaz de os determinar como passados e presentes”10;
(b) tal determinação implica que os atos ou modos voluntários sejam
506
percebidos como “meus”, o que acarreta a circunstância desse “pas-
sado e presente” dos “meus” atos ser acompanhado forçosamente
pelo reconhecimento originário do próprio ato primitivo do esforço
que funda o eu apercetivo; (c) o mesmo é dizer que me recordo de
ter feito algo no reconhecimento implícito, originário e reiterado do
próprio ato da consciência de si.
Uma precisão deve ser aqui feita: quando se afirma tal reconheci-
mento reiterado da consciência de si ou do eu apercetivo do esforço
não se pretende, de modo algum, sugerir que se recordaria apenso a
cada ação concreta do passado uma espécie de imagem ou represen-
tação de um “eu” que seria mais uma “coisa” a recordar; ao contrário,
do que se trata é do reconhecimento reiterado de um ato (o ato que
sou, o ato do esforço apercetivo) em ato. A este “reconhecimento”11
repetido do eu apercetivo Maine de Biran chama reminiscência e
esclarece-a nestes termos:
507
mória; mas repetir é recordar apenas porque a memória se funda, em
cada uma das suas determinações voluntárias, na reminiscência do
fundo ativo do eu apercetivo. É a relação de esforço que, portanto,
enquanto princípio comum a cada ato realizado, permite compreender
tais atos como tendo sido e, do mesmo modo, permite recordá-los
numa trama temporal. É isto que significa, no fundo, a ideia de que
a memória “é duração medida, distinta da reminiscência que a torna
possível” 13: a memória mede a sucessão na duração incomensurável
da continuidade de si que é reminiscência do esforço. Também aqui
encontramos um aspeto fulcral da análise, que Biran resume nos
seguintes termos essenciais:
13 Devarieux 2009: 43. Tal tempo, poderia ainda acrescentar-se aqui, será, por
essa mesma circunstância, um tempo subjetivo em sentido forte: sendo “memorável”,
é “meu”; e sendo “meu” comporta, com a “minha” finitude, o próprio fim do tempo.
14 Biran 1986: 158.
508
de de ordenar os atos segundo um antes e um depois; (d) ora, tal
possibilidade reclama, para existir, que algo permaneça o mesmo
em cada ato pontual; (e) esse mesmo, enfim, é a própria relação de
esforço, o próprio estado de conscium sui – o próprio eu. Em suma,
a memória depende, em derradeira análise, da presença continu-
ada da reminiscência, que não é a memória, mas a personalidade
(a aperceção ou o sentimento do eu) inerente ao primeiro desenvol-
vimento da mesma força sobre a mesma continuidade de resistência
orgânica interiorizada.
509
tão rigorosamente meu como um ato exerço no presente16. Mas não
se dará o caso de tal garantia poder ser frustrada pelas interrupções
que, com toda a evidência, a assolam regularmente?
Esta é uma dificuldade importante: o ponto crucial da primeira
face de Jano da memória que temos vindo a considerar é o facto de
a reminiscência do esforço primitivo fundar a duração da existência
pessoal e, assim, igualmente a memória, como uma espécie de redo-
bramento temporal da continuidade das condições de possibilidade do
eu apercetivo (as condições da relação de esforço); ora, para que tal
assim ocorra é necessário que a relação de esforço não seja apenas
uma pontualidade, mas ela própria uma continuidade. Mas como se
poderá sustentar que a relação de esforço apercetivo seja uma con-
tinuidade se, com toda a evidência, a respetiva vigência parece ser
regularmente assolada por circunstâncias que a dissolvem, a quebram,
a desfazem? Com efeito, não parece fácil argumentar que estamos
continuamente conscientes de nós próprios… O exemplo preferido
de Biran para ilustrar esta circunstância é o caso do sono. Durante
o sono, o regime do esforço não existe. Dito de outro modo, o eu
apercetivo suspende-se, algo que se confirma na evidente incapaci-
dade em que nos encontramos de exercer qualquer tipo de controlo
sobre as imagens do sonho. O que acontece quando acordamos, no
entanto, é que a linha do esforço está sempre imediatamente presente.
A verdade é que o eu não se desfaz por ação do sono normal. Pelo
contrário, o eu retoma-se como se, na verdade, tivesse permanecido
sem quebras.
Para Biran, esta é uma circunstância decisiva, que se pode explicar
nos seguintes termos: durante o sono, a ausência do eu é simulta-
16 Devarieux 2009: 42. Veja-se igualmente Devarieux 2004: 72-73 Ante esta perspe-
tiva biraniana, poderia argumentar-se criticamente com o caso das “memórias” – que
todos “temos” – de atos realizados por outros e que “fazemos nossos”, sem os termos
efetivamente vivido, ao contá-los como parte do “nosso próprio passado”. Mas mesmo
neste caso de embelezamento do passado (que Biran não comtempla) a tese biraniana
resistiria: quando passa a fazer parte da trama de sucessão das minhas memórias,
mesmo um ato que não vivi concretamente se torna efetivamente “meu” – e se torna
tão real no passado como outra ação qualquer realizada por mim no presente, ainda
e sempre, sobre a reminiscência do esforço apercetivo.
510
neamente ausência do tempo do eu; retomada a relação de esforço,
o tempo do eu retoma-se igualmente, um e outro experimentados
sem quebras porque a consciência de si e o tempo de si são apreen-
sões idênticas e simultâneas. O eu apercetivo, portanto, exerce-se no
presente do tempo que ele próprio inaugura e é nessa medida que
persevera idêntico em cada uma das suas determinações pontuais
repetidas17. É a relação de esforço, portanto, que contém o princípio
da sucessão na continuidade. Mas como exatamente?
A resposta de Biran é, também aqui, particularmente interessan-
te e fértil: o eu não se esquece de si (nomeadamente durante as
interrupções do sono) porque é uma relação ativa que implica a
continuidade de resistência interiorizada de um corpo apropriado.
A proposta é tão curiosa quanto certeira: o eu não se perde de
si porque – digamo-lo assim – não pode olvidar a sua corporeidade
constitutiva, aquela que “aparece” (sem imagem) na própria relação
de esforço como continuidade de resistência interiorizada. Podemos
dizer o mesmo de outro modo: (a) a repetição permite a recordação;
(b) a recordação depende da reminiscência que reatualiza continu-
adamente a relação de esforço; (c) a relação de esforço depende da
continuidade de resistência interiorizada de um corpo que consiste
continuamente. Trata-se de uma tese poderosa. Biran argumenta
que é por implicar o modo de presença de um corpo que oferece à
força da vontade um plano continuado de consistência interioriza-
da, que a relação de esforço primitiva contém o próprio começo da
sucessão dos atos realizados e, portanto, do tempo. O tempo que
se experiencia como trama temporal é, assim, um tempo do corpo.
Melhor: o tempo da memória é o tempo do corpo, porque o tempo
da reminiscência é o tempo da consistência continuada do corpo
511
que nunca se esquece. No fundo, é a consistência do corpo que ex-
plica a circunstância do sono não interromper a continuidade do eu
apercetivo. Ou seja, é por ser corpo que a questão da duração do
eu apercetivo não me tira o sono.
512
parece determinar o sentimento de existência como uma espécie de
fatum do corpo. Tal fluxo caracteriza-se por não ter as “formas” de
causalidade subjetiva (a consciência é incapaz de controlar as res-
petivas origens e combinações fortuitas da vida afetiva), de espaço
(é-nos impossível localizar uma afeção pura no espaço interior do
corpo) e de tempo (vazias de eu, são igualmente vazias de tempo
do eu apercetivo). Ora, assim entendida, a vida afetiva nunca é, em
si mesma, uma recordação 21 para nós que a sofremos. Eis o que
Biran argumenta a este propósito: se o plano da afetividade opera
em mim sem mim como o império inusitado e selvagem de um fa-
tum do corpo da “organização”, se é, deste modo, um plano passivo
e involuntário do nosso existir, se é “vazio de eu” ou de sujeito de
reminiscência 22, então as conjugações, leis e reverberações da vida
afetiva são sofridas, mas nunca, em si mesmas, recordadas. Algo de
diferente será afirmar que recordamos ter sido afetados. Mas neste
caso, argumenta Biran, não é a afeção que se recorda, na medida
em que o eu não a pode repetir sobre o fundo da reminiscência
pessoal; recorda-se ou o resultado de um ato, ou uma modificação
passiva que o eu consegue atribuir, pelo esforço, a dado “ponto” do
“espaço interior” do corpo. Dito de outro modo: não posso recordar
a afeção que provoca um mal-estar determinado; apenas recordo a
modificação passiva sofrida por tal afeção como tendo começado,
por exemplo, no estômago. Em termos biranianos diremos, então,
que é ainda a reminiscência pessoal que funda a reminiscência dita
modal23.
Deste ponto de vista, pois, o assunto de uma “memória afetiva”
parece claro. Mas talvez haja algo mais a considerar (ao mesmo tem-
po com Biran e para lá de Biran) sobre este ponto do debate. Eis
21 Cf. Biran 2001: 223: «(…) Toutes les traces d’impressions ne sont pas des
souvenirs (…).»
22 Biran 2001: 225. « Nous retrouvons des traces de ces affections étrangères à
la conscience dans certains états singuliers où nous nous surprenons quelquefois
pendant la veille, et qui ne nous affectent ni comme tout à fait nouveaux, ni comme
occupant une place dans notre souvenir ».
23 Cf. Biran 1986: 159.
513
uma possibilidade: mesmo aceitando que o jogo das afeções não é
recordação, não se dará o caso de ser ainda uma espécie de duplo
fantasmagórico da memória?
Na impossibilidade de uma exposição completa do que aqui está
em questão, limitar-me-ei a formular os termos em que entendo
esta hipótese de análise. Um primeiro elemento a considerar julgo
ser o seguinte: a teoria biraniana da afetividade mostra-nos que a
corporeidade é, na verdade, uma espécie de estratificação complexa
de vários “corpos”. Não somos apenas um corpo próprio, esse corpo
interiormente consistente do esforço que é um elemento constitutivo
do próprio fato de consciência; somos também um corpo afetivo,
anónimo, um corpo que resiste a resistir na relação de esforço. Um
tal corpo, que melhor seria dito o emblema de um inconsciente so-
mático a operar em nós sem nós, cruza constantemente o plano do
conscium sui e perturba-o. O corpo afetivo é um corpo rítmico que
faz oscilar o humor, que determina as tonalidades afetivas através das
quais percebemos o mundo e os outros, que pode alucinar, descon-
centrar, agitar, desassossegar – e, no limite, enlouquecer-nos. Assim,
pode dizer-se que somos o corpo que faz nascer o eu apercetivo,
mas também o corpo que pode aniquilar a relação de esforço. Ora,
esse corpo noturno sem eu, esse corpo das afeções não sendo, em
si mesmo, recordado, parece-me que não pode deixar de ser uma
espécie de plano sedimentado de uma memória-fantasma do passado
de mim sem mim.
Duas circunstâncias autorizam esta possibilidade de reflexão: a
primeira é o facto de tal corpo afetivo ser, na ordem da existência
(na ordem da consciência de si é o corpo do esforço a evidência
primitiva do corpo), “anterior” ao corpo do esforço. Devemos for-
mular este ponto de modo mais explícito: na ordem cronológica
da vida de cada um de nós, como Biran nota em vários momentos,
há todo um período inicial durante o qual vivemos sem saber que
vivemos – vivit et est vitae nescius ipsae suae 24. É o tempo da nossa
24 Biran 1989: 6.
514
vida em que, digamos assim, vivemos sem termos consciência de
nós, reduzidos, portanto, ao padecimento das oscilações de uma
sensibilidade afetivo-intuitiva. Ora – segundo elemento decisivo –
não se pode negar que tal plano da sensibilidade afetivo-intuitiva,
que marca os primeiros tempos da nossa existência, deixa “atrás de
si vestígios que influem à sua maneira sobre a existência inteira” 25
como marcas de atrações ou repugnâncias, apetites ou necessida-
des, tendências, simpatias, necessidades, disposições, perturbações,
ansiedades, etc. 26. Essa nossa “primeira realidade” afetivo-intuitiva,
de facto, não desaparece quando o esforço apercetivo se constitui,
permanecendo operante ao longo de todo o tempo da nossa vida:
aquele que sente ou sofre a existência será, pois, o mesmo que a
procurará pensar 27; aquele que pensa continuará a ser aquele que
vive e, por essa razão, permanecerá exposto às variações qualitativas
de um fundo vital anónimo que se iniciou num passado impossível
para o eu apercetivo (precede o seu nascimento e, portanto, não é
nunca “recordação”), mas que não cessará recorrentemente de atra-
vessar o estado de conscium sui com a ameaça de lhe substituir um
estado de alienus sui.
A ser verdade o que fica dito, poderia argumentar-se que somos
afetados ao longo do tempo da nossa existência por um tempo
anterior ao tempo do eu, do qual apenas o corpo afetivo parece de-
ter o segredo e os sedimentos. Tal tempo anterior ao eu configura
um passado impossível e estranho, pois o surgimento do plano do
esforço apercetivo, primitivo na ordem do conhecimento, suporia
a ultrapassagem de tal tempo em que se vive sem se saber que se
vive. Mas o fundo afetivo-intuitivo de tal vida anónima anterior ao
esforço perdura. Sabemo-lo porque as potências afetivas continuam
515
a atravessar o plano da consciência 28 e a fazê-lo oscilar com todas
as perturbações que alinhamos com estados em que a vigência do
eu apercetivo se liquefaz, se dissolve, se quebra. É, pois, fantasmago-
ricamente que se sofre o regime de uma vida em nós sem nós que,
por um lado, parece chegar de um passado impossível e, por outro,
se mantém presente no presente como notícia inquietante do que, em
mim, mesmo depois do nascimento da consciência de si, permanece
desta última o ângulo morto. Tal passado impossível é, na verdade,
ainda o presente anónimo de um corpo antigo, de um corpo mais
velho do que o corpo próprio que, se não se recorda, pelo menos
atesta que os seus fantasmas são memoráveis.
Bibliografia
516
CULTURA
(Página deixada propositadamente em branco)
F e s ta e B a n q u e t e :
a f ó r m u l a u g a r í t i c a d e a ss e m b l e i a
dos deuses
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_23
formula to designate the assembly of the gods. And, in addition to the
meeting formula, it serves as a metaphor for a definition of deities
and their relationship with the universe of humans.
520
aparece sempre designado com o nome funcional que corresponde
ao seu papel de herói vencedor e organizador. Este nome é Ba‘al, um
título que significa “Senhor”, conceito de soberania caraterístico do
semítico da costa mediterrânica. Aliás, este título de Senhor acabou
por se tornar a designação principal de Deus na tradição hebraica,
quer com o próprio epíteto de ba‘al quer com o seu sinónimo ’adon
ou ’adonay. Assim veio a substituir completamente o antigo nome
de Javé, na tradição judaica. A tradução grega da Bíblia, a partir do
século III, a.C., generalizou o título de Kyrios e daqui deriva o título
de Dominus, Senhor, que as traduções da Bíblia em grego e poste-
riormente em latim transformaram na designação oficial de Deus.
A imagética de Ba‘al contribuiu, com este processo histórico de epis-
temologia das definições da divindade, para criar, em paralelo com
o nome genérico de Deus, o seu equivalente funcional de Senhor
como uma das suas definições mais relevantes.
Contra este candidato natural, apresenta-se um candidato externo
ao ciclo do panteão. É o mar, que ao longo deste ciclo é tratado pelo
termo ugarítico mais comum para designar o mar: Yamu. Este vem
apoiado e quase pré-escolhido com altos patrocínios dentro do próprio
panteão. Acentuando a tensão dialética que impregna já o tema em
si mesmo, o próprio deus Ilu, que preside à assembleia dos deuses
do panteão de Canaã, se tinha já pronunciado em favor deste outro
candidato, com uma declaração no sentido de excluir Ba‘al que se
tinha tornado para ele persona non grata, pois não gostava do seu
modo de governar 4. E é de sublinhar de imediato a originalidade
estilística da mitografia de Ugarit que escolhe para este anti-herói
mítico a designação mais comum de mar e não o seu equivalente
mais erudito e mais simbólico. Este seria o termo Tehom, que na
Bíblia, uma literatura que tem muitas das suas raízes profundas na
mesma base cultural, é usado de preferência para as semânticas de
cariz mais mitológico ou simbólico relativas ao mar 5.
521
Na Mesopotâmia, a epopeia de criação, que leva como título as
palavras iniciais do seu primeiro verso, Enuma eliš, e que parece
reproduzir dados cuja origem se pode situar igualmente na Síria me-
diterrânica, confirma a opção lexical da Bíblia, dando à sua heroína,
opositora do deus criador Marduk, o nome de Tihamat 6, que não é
senão a forma feminina do mesmo Tehom 7. De qualquer modo, por
razões que ficarão implícitas no seu universo linguístico-cultural, em
Ugarit optaram por uma terminologia que parece ser a mais corrente
para designar a figura mítica do adversário de Ba‘al.
Trata-se de uma mitologia ou antes de uma mitografia destinada
ao consumo cultural no âmbito de uma cidade. Entretanto, o tema
sobre o qual versa a epopeia é saber quem há de assumir a função
transcendente de governar e cuidar do mundo, promovendo criati-
vidade e fertilidade. A tarefa é transcendente, pois diz respeito a
coisas que são do interesse dos homens, da cidade e do mundo,
e até mesmo dos deuses. Com efeito, o destino e bem-estar de todos,
homens e deuses, depende igualmente do bom governo do mundo.
Há que dizer que esta presidência de governação é função de um
executivo divino específico. A sua atribuição não é arbitrária e não
coincide sequer com a função do deus supremo do panteão, a quem
compete presidir e recolher as decisões emanadas da assembleia dos
deuses. O estatuto do deus supremo representa uma outra dimensão
de transcendência. A função deste deus mordomo, mesmo tendo de
cuidar e garantir o bom estado do mundo inteiro, é diferente da do
chefe do panteão. Porém, essa função compromete-o pessoalmente,
mesmo ao nível simbólico, com a mística, a grandeza e as fragili-
dades que são inerentes àquela função. Ele governa e personifica o
ritmo do mundo.
522
As três fases da concorrência pela função de governador do
mundo, de que se compõe o ciclo épico, representam, na verdade,
os momentos cruciais de execução daquela função. Primeiro, é a
escolha e legitimação do candidato; depois, é a construção de um
palácio de governo para Ba‘al; e finalmente a última concorrência,
entre Ba‘al e Motu, que significa e representa a morte.
Para efeitos de pitoresco teatral ainda apareceu um candidato
que não apresentava os requisitos exigidos. Este acabou por ser
recusado, porque, sentado no trono, nem sequer conseguia chegar
com os pés ao estrado real.
Os dois adversários restantes que pareciam ter estatura para as
tarefas pretendidas representavam inimigos e concorrências que
se situavam em âmbitos e modelos muito diferentes de poder e de
ação. O mar é o caos exterior que representa a resistência à função
de governo e de ordem, projeto de governação assumido por Ba‘al.
Na verdade, estes dois concorrentes, o mar e Ba‘al, não são apenas
adversários pelo facto de serem concorrentes ao mesmo cargo. Eles
são realmente opostos quanto a valores, processos e programas.
Não os separam razões estratégicas; são antes razões filosóficas e de
princípio que contrapõem o seu projeto e a sua ação. A morte, entre-
tanto, não é um verdadeiro candidato, pois não concorre à execução
do programa maior de governar o mundo, apenas os compromete
a todos, pois devora os seus executantes e assim atinge o próprio
Ba‘al. Perante a morte, Ba‘al é como um humano comum e também é
engolido por Motu, morrendo ele também. A morte é, portanto, uma
ameaça interior permanente, que faz desmoronar projetos, devorando
até aquele que os pode executar com o máximo de eficácia, Ba‘al.
O mitema central do palácio de Ba‘al, que trata da construção de
um palácio bem apetrechado para uma eficaz função de governo, é
nuclear na epopeia, pois este palácio é a imagem institucional do
sistema simbólico do poder e pretende garantir todas as valências para
uma governação eficaz. Ele é igualmente paradigmático na maneira
como as sucessivas cenas de banquete entre deuses individuais e
em assembleia se sucedem como expressão do que significa ser um
523
deus e de como esta definição de identidade divina é essencial e se
reflete como questão de identidade e destino válida para os humanos.
A assembleia dos deuses é um processo para sistematizar signi-
ficados que se apresentam com a evidência de um postulado, para
organizar interesses e projetos, definindo objetivos estratégicos.
É uma espécie de parlamento onde se elaboram e ratificam decisões.
E estas passam então a ser um programa universal assumido de for-
ma legitimada e eficaz, militante e solidária, combativa e otimista.
É isto o que significa assumir a governação da cidade e do mundo.
A construção do palácio de Ba‘al é, por conseguinte, uma festa ence-
nada com as características de um espaço de governo. E este bloco
de significados equivale para a cidade de Ugarit à definição simbólica
do que é essencial, no que diz respeito aos valores e às intuições
imprescindíveis para promover e garantir bem-estar e igualdade
entre os humanos. E, mesmo que esta literatura seja assumida para
representar e servir no imediato a população de uma cidade-estado
de nível médio em Canaã, o tom que nela ressoa é sempre o de uma
epopeia em que se trata o destino de todos os homens e o de todo
o mundo. É a metafísica em registo de epopeia.
Neste contexto, o banquete define o espaço simbólico deste univer-
so e representa, por conseguinte, a condição estatutária que compete,
desde logo, ao próprio deus supremo do panteão local e regional,
o deus Ilu 8. Este parece dispor de um espaço destinado a manifes-
tações coletivas com comidas e bebidas, músicas e manifestações de
grande emotividade e entusiasmo. Esta mitografia, entretanto, não
especifica qualquer espaço destinado a estas assembleias – banque-
te. O espaço não tem pertinência. O que conta são as personagens;
elas são o tempo, a ação e a sua projeção simbólica; é um tempo
sem espaço e por isso autenticamente humano, histórico, universal.
Por quanto diz respeito ao deus Ilu, o estatuto de grande anfitrião
parece ser o seu tipo de relacionamento com os deuses próximos
que constituem o seu grupo. Em ugarítico, este agrupamento presi-
524
dido pelo deus Ilu é designado com o nome de marziḥu. Este nome
representa uma instituição social festiva e cerimonial que se nos
revela como prática milenar nas culturas de Canaã. Aparece desde
os textos do império de Ebla, cidade-estado próxima do curso do
rio Orontes, na mesma região da Síria ocidental do 3º milénio, não
muito longe da atual cidade de Alepo e da antiga cidade Ugarit.
O mesmo termo aparece ocasionalmente na Bíblia como um ritual
que não está incluído nas listas do culto oficial reconhecido entre
os hebreus. Trata-se de práticas e de agrupamentos sociais, que se
mantêm culturalmente autónomos da organização oficial do culto.
Na tradição bíblica, segundo a vocalização dos massoretas, este
nome seria pronunciado marzeaḥ ( Jr 16,5) ou mirzeaḥ (Am 6,4-7).
Estas são as duas referências hebraicas a um ritual que não parece
ser bem visto e que a Bíblia associa ao culto dos mortos com práti-
cas de excesso severamente criticadas. Para ilustrar o conteúdo que
esta prática deixa na memória bíblica pode servir o texto do profeta
Amós, no século VIII, a. C., onde o termo “orgia” serve para traduzir,
no final, o conceito de marzeaḥ:
525
nem sempre a relação com o culto dos mortos parece ser o elemento
principal a contribuir para a definição desta instituição social 9. Esta
prática situa-se no âmbito das manifestações coletivas e associativas
de devoção em moldes mais ou menos habituais. A ideia central é a
de um grupo algo fechado, que reconhece sobre si a chefia de um
deus e se junta em manifestações coletivas de grande entusiasmo.
Em termos sociais, o espaço do culto dos mortos parece ter sido um
contexto onde estas práticas se prolongaram durante muito tempo 10.
Podendo ser uma imagem de uma assembleia ou dum grupo religio-
so entusiasta e devoto, este tipo de agrupamentos pode exprimir a
modalidade de uma assembleia divina, sublinhando assim a maneira
como a cultura de Ugarit joga com a analogia entre o mundo dos
humanos e o mundo dos deuses. E assim estes banquetes puderam
servir como metáfora também para agrupamentos entre divindades.
A tradução judaico-grega dos LXX escolheu para traduzir a re-
ferência de Jeremias o equivalente grego de thiasos. Em Am 6,7 os
tradutores não viram a mesma palavra hebraica e, como vimos, os
massoretas também a não vocalizaram da mesma maneira. Mas trata-se
do mesmo tipo de agrupamento religioso. O mesmo termo grego de
thiasos aparece como equivalente de marzeaḥ em inscrições bilingues
de Palmira semelhantes outras nabateias 11 . Este mesmo termo de
thiasos aparece diretamente no original grego do livro da Sabedoria,
escrito em Alexandria, e ali designa já, de maneira genérica, práticas
antigas dos cananeus, consideradas desumanas e aberrantes. Neste
contexto o conceito de thiasos tem todo o ar de uma caricatura
projetada em várias direções, que é um recurso habitual neste livro
para tratar conflitos interculturais.
Fora do ciclo de Baal, este conceito usa-se sobretudo tendo
como seu centro as divindades Ilu e Anat. O tipo de religiosidade
representada por Ba‘al não parece prestar-se muito a manifestações
526
deste género. Ba‘al parece uma divindade de tipo mais apolíneo.
A sua soberania conotava facilmente expressões de fidelidade e
apego ao deus. A relação religiosa com Ba‘al é de tipo menos servil
e aparentemente menos ritualizada.
Mesmo com estas conotações semânticas restritivas, nada impede
que estas reuniões nos espaços do deus supremo possam ser consi-
deradas como assembleias plenárias dos deuses 12. Uma assembleia
dos deuses poderia ser vista como a confraria do deus supremo.
Mesmo com o entusiasmo e a referência a alguns traços de excesso,
este banquete de Ilu não parece ter qualquer conotação com o culto
dos mortos. É, antes, um banquete de deuses, que traduz o núcleo
fundamental de um sistema religioso organizado e institucionalizado.
“Estes morfemas designam uma instituição religioso-cultual, cujo
objetivo é procurar e realizar a comunidade com uma divindade que
lhe serve de patrono e que eventualmente dá o nome ao grupo” 13.
Para além deste contexto específico, institucionalizado e, por
vezes, fechado, um banquete constitui sempre uma maneira solene
de exprimir o quotidiano dos deuses. Estes encontram-se a comer e
a beber quando chegam os mensageiros de Yam 14.
A imagem de quotidiano escolhida para apresentar Baal no início
da cena sobre a construção do palácio é aquela em que se serve
comida e bebida e se ouve música. A cena é longa e minuciosamente
descrita, apesar de representar um convívio familiar com as filhas,
pois Ba‘al é uma figura quase solitária, em que as filhas representam
uma espécie de desdobramentos internos das suas funcionalidades e
a alegada irmã é uma alteridade ainda mais convergente e cúmplice,
pois em comparação com as filhas de Ba‘al, ela é, enquanto irmã,
mais autónoma e externa ao círculo familiar 15.
12 Cf. Olmo Lete 1981: 169ss; Dietrich & Loretz 2019: 1120.
13 Fabry 2020: 12.
14 KTU 1.2 I 20ss. Cf. Olmo Lete 1981: 170; Dietrich & Loretz 2019: 1135, 1994: 266.
15 KTU 1.3 I 1-27. Cf. Olmo Lete 1981: 179-180; Dietrich & Loretz 2019: 1135;
Smith & Pitard 2009: 94-125.
527
Um banquete é a fórmula de acessibilidade e de acolhimento
pessoal e familiar entre deuses, apresentado com toda a abertura e
lhaneza. Tal é o banquete que Ba‘al prepara para a receção a Anat
com ritual prévio de perfumes 16.
Pode ver-se até uma espécie de anti-banquete, que consiste
numa referência a sacrifícios corrompidos que Ba‘al detesta 17. Este
pormenor mostra a ligação que existe entre banquete e sacrifício,
conotação semântica que a terminologia bíblica pressupõe e que o
simbolismo comum entre ambos sugere continuamente.
Há banquetes em que se verifica a existência de um processo diplo-
mático destinado à promoção de acontecimentos e decisões importantes.
Tal é o caso do banquete que reúne os deuses para fazer com que o
deus supremo Ilu aceite ratificar a ideia de se construir o palácio de
Ba‘al18. Que este banquete seja importante é o que decorre do facto
de a declaração solene da construção do palácio de Ba‘al ser, logo a
seguir, proclamada pelo deus Ilu, pela sua paredro Achera, como mãe
dos deuses, e pelos restantes deuses em uníssono19.
Num momento análogo e equivalente a este na epopeia babilónica
de Enuma eliš são igualmente os deuses em assembleia que proce-
dem à designação de Marduk para o encarregar do combate com o
qual haveria de conquistar e organizar, criando assim o mundo 20.
Realmente, esta epopeia parece ser a mais ocidental das mitografias
de criação da Mesopotâmia. A deliberação dos deuses é igualmente
feita num banquete, relativamente ao qual o texto da epopeia subli-
nha em perfeito paralelismo que a intenção do evento é realizar uma
assembleia deliberativa dos deuses e que a sua realização prática
foi um banquete 21. No entanto, a importância retórica e imagética
dos banquetes ao longo desta narrativa mítica mesopotâmica é bem
16 KTU 1.3 IV 37ss. Cf. Olmo Lete 1981: 187; Dietrich & Loretz 2019: 1145.
17 KTU 1.4 III 15ss. Cf. Olmo Lete 1981: 197; Dietrich & Loretz 2019: 1156.
18 KTU 1.4 III 38ss. Cf. Olmo Lete 1981: 198-199; Dietrich & Loretz 2019, 1157.
19 KTU 1.4 IV 50ss. Cf. Olmo Lete 1981: 201; Dietrich & Loretz 2019: 1160.
20 Bottero & Kramer 1989: 618ss.
21 Enuma eliš, II, 10; III, 130-138. Cf. Bottero & Kramer 1989: 618-619; 624.
528
menos marcante que no ciclo de Ba‘al. Outros banquetes de menor
abrangência concorrem de igual modo para a transcendência que se
pretende dar à construção do palácio de Ba‘al. Um deles é o banque-
te de receção que Ilu faz para a sua esposa Achera, que ele recebe
individualmente como forma de preparar a grande assembleia 22 .
Particularmente solene é o banquete de receção ao deus Kotharu-
Hasisu, cujo duplo nome significa o Habilidoso e Inteligente. Ba‘al
manda-o vir do Egito, associando-o ao industrioso e criador deus
Ptah de Mênfis. Este banquete tem a importância de servir como
festa de acolhimento ao grande arquiteto 23 e seria a ocasião solene
em que o deus Ba‘al lhe iria fazer pessoalmente a encomenda do
palácio, onde poderia exercer de forma cabal a sua função de rei e
senhor 24. Eis o essencial a este respeito:
529
Entretanto, a expressão definitiva e a fórmula autónoma que
estabelece a consistência do programa ba‘aliano de governação é
precisamente o banquete que celebra e formaliza a inauguração do
palácio real. O programa estava pré-estabelecido, porque decorre
das necessidades tal como são avaliadas naquela cidade e na cul-
tura em que a comunidade dos leitores ou expetadores se sente
representada. O discurso inaugural de Ba‘al é apresentado desta
maneira 25:
25 KTU 1.4 VI 35-59. Cf. Olmo Lete 1981: 206-7; Dietrich & Loretz 2019: 594-595
para o texto; 625-636 para os comentários.
530
com uma faca ao sal, nacos de animal gordo.
Eles bebiam vinho das taças;
dos copos de ouro, o sangue da videira» 26 .
531
“Quero instalar, ó Kotharu, hoje mesmo,
uma janela ainda, ó Kotharu!
Será aberta uma janela no edifício,
como uma claraboia no palácio,
que seja como uma fenda nas nuvens,
conforme a palavra dita por Kotharu”».
30 KTU 1.4 VII 25-42. Cf. Smith & Pitard 2009: 650; 672-683.
31 Bonnet 1992: 285.
532
propriamente para prestar honras de herói vencedor ao deus Ba‘al.
Este sentido de construção de um herói como figura institucional, mais
do que como figura individual, é igualmente muito evidente no dina-
mismo com que a epopeia do Enuma eliš se projeta para uma última
cena semelhante a uma longa celebração litúrgica, com a recitação de
uma solene ladainha dos títulos de Marduk 32. Mesmo assim, Marduk
continua a ser um herói político; o seu destino é incarnar a realeza
na Babilónia. Ba‘al, pelo contrário, é sobretudo um herói místico.
Não é a realeza real sobre a cidade de Ugarit que o move; é o estado
da natureza e do mundo. Cada um sonha conforme a grandeza do
seu pedestal. Os grandes podem satisfazer-se com o tamanho da sua
grandeza. Os pequenos, para serem humanos, têm necessariamente
que a transcender. Por isso, o banquete da assembleia dos deuses
continua, enquanto Ba‘al se entrega às suas tarefas de governação,
percorrendo o mundo e conquistando cidades. Conquistar cidades
é referido por ser o discurso tradicional de eficácia da realeza, pois
Ba‘al não recolhe despojos, apenas transforma.
O terceiro quadro do ciclo de Ba‘al é de ambiente claramente
menos festivo e, por conseguinte, presta-se menos a cenas de ban-
quete, as quais por via de regra exprimem e suscitam alegria. Mesmo
assim, e como o banquete é a expressão do relacionamento e da
sociabilidade, aparecem banquetes que se adaptam às circunstâncias
mais dramáticas daquela fase. Para exemplificar esta outra tonali-
dade, aparece uma espécie de banquete infernal de Motu (a Morte)
que é um banquete universal, anárquico e catastrófico, porque a
morte devora tudo e daí não decorrem festejos nenhuns dignos de
menção 33. Num determinado momento, parece que Motu mostra al-
guma alegria por saber que é um dos convidados de Ba‘al e não se
esquece de mencionar os deuses seus irmãos que o acompanhariam
533
ao banquete34. É uma alegria restrita, individualista e incapaz de ser
partilhada por mais ninguém.
Em KTU 1.5 IV 8ss, há referência a um banquete onde Ba‘al é
assinalado com alguns dos seus servos, mas as quebras na tabuinha
não permitem que o texto resulte mais informativo e mais claro 35.
A cena de banquete mais significativa deste terceiro quadro realiza-
-se com um horizonte de duplo significado. Podemos dizer que este
banquete é como que excessivo nos seus significados. Trata-se, na
verdade, de um sacrifício e um banquete em que, por um lado, se
celebra a morte de Ba‘al e, por outro, sucessivamente se festeja a sua
ressurreição. Ambos os objetivos representam conceitos limite, que
estruturam os simbolismos da mística ba‘aliana que impregna todo
este ciclo 36 . Apesar da solenidade com que é descrito, este ritual
de sacrifício e banquete decorre em plena solidão. Ele é um puro
ritual. A irmã de Ba‘al, Anat, que representa e guarda em si todas as
potencialidades de Ba‘al, esteja ele presente ou ausente, encarrega-
-se de todo o cerimonial e sepulta Ba‘al no lugar mítico da sua
morada, no cimo do monte Safon, onde se encontra a entrada para
a caverna dos antigos reis imortais. Este pode ser comparado com
o espírito dos banquetes de marziḥu, bem conhecidos nas práticas
de grande enraizamento popular. Porém, toda a intencionalidade
implícita faz com que este sacrifício seja sobretudo uma prepara-
ção para a festa da ressurreição de Ba‘al que começa a ressoar em
ecos festivos, apesar de ainda não ter sido narrada. Ela encontra-se
miticamente postulada, enquanto, entre Ilu e Athiratu, se esboça de
novo um processo para a substituição de Ba‘al por alguém que seja
suficientemente “inteligente e perspicaz” 37. Mas, ironicamente, estas
são, no ciclo mítico, qualidades caraterísticas de Ba‘al. E é para ele,
por conseguinte, que toda a dinâmica concorre.
34 KTU 1.5 II 21-22. Cf. Olmo Lete 1981: 217; Dietrich & Loretz 2019: 1177.
35 Cf. Olmo Lete 1981: 219; Dietrich & Loretz 2019: 1179.
36 KTU 1.6 I 18-31. Cf. Olmo Lete 1981: 224; Dietrich & Loretz 2019: 1186.
37 KTU 1.6 I 48. Cf. Olmo Lete 1981: 225; Dietrich & Loretz 2019: 1187.
534
Depois deste sacrifício solene e absolutamente simbólico, porque
singular e solitário, apenas se verifica uma espécie de beberete que
decorre enquanto o deus Shapshu (o Sol) se encarrega de procurar
o Ba‘al desaparecido 38.
No que toca a referências sobre alimentos, a última pode ser a
do próprio Motu que pede um deus para seu alimento, porque até
então apenas tivera homens para comer 39. Esta passagem chama a
nossa atenção, porque, por regra, esta mitografia mantém-se fiel ao
estatuto de discurso rigorosamente mítico das personagens e das
coordenadas. Referências aos humanos ficam normalmente integradas
no âmbito das dimensões implícitas, latentes, urgentes e iminentes;
é o nível do metafórico pertinente. Estamos habituados a ver as metá-
foras do âmbito religioso a fazer uma transposição do imediato para
o ideal. Neste discurso mítico acontece ao contrário: a transposição
metafórica decorre do simbólico ideal para o real imediato. Este é
um dos casos raros em que o discurso mítico, de algum modo, abre
uma brecha e integra vicissitudes relativas aos humanos no domínio
explícito da linguagem mítica. A mesma brecha se abre no discurso
mítico a explicitar uma referência aos humanos com a intervenção
patética do próprio deus supremo Ilu em que este se interroga:
38 KTU 1.6 IV 17ss. Cf. Olmo Lete 1981: 230; Dietrich & Loretz 2019: 1192.
39 KTU 1.6 V 11-25. Cf. Olmo Lete 1981: 233-234; Dietrich & Loretz 2019: 1194.
Cf. ainda KTU 1.6 VI 14-15 (“os meus irmãos”).
40 KTU 1.5 VI 11-23. Cf. Olmo Lete 1981: 222; Dietrich & Loretz 2019: 1182-1183.
535
do Génesis ou com a criação do homem na epopeia de Enuma eliš41.
A mitologia de Ugarit joga menos com a categoria teórica das origens
e metaforiza simbolicamente as realidades históricas, de preferência.
Em suma, verificamos neste ciclo de Ba‘al a existência de três
banquetes estruturantes e estrategicamente situados, um por cada
um dos quadros míticos do ciclo: o banquete de Ilu para proclamar
Ba‘al como candidato à função de governador da cidade e do mun-
do; o banquete de Ba‘al pela inauguração do seu palácio e da sua
função de rei executivo; e o banquete-sacrifício de Anat por ocasião
da morte e como antecipação da ressurreição de Baal.
Como acontece nos textos semíticos do antigo Oriente, o termo
casa de Ba‘al pode significar, segundo os respetivos contextos, um
palácio ou um templo. Para Ba‘al ambos os significados se justificam,
porque, na verdade, ele é deus e é também rei. Por isso mesmo, tem
uma dupla implantação, uma dupla morada. E é precisamente nesse
desdobramento que reside a sua importância cultural e simbólica.
A mais simbólica dentre ambas as moradas é a que se situa nas alturas
do monte Safon, que tanto o coloca no espaço celestial, envolto em
nuvens, como o projeta nas profundezas da terra, que é também um
seu domicílio de referência e condiz bem com a sua identificação
com todo o metabolismo da natureza. É esta a imagética principal
deste deus.
A segunda casa de Ba‘al é o seu templo que se destaca dentro
da cidade de Ugarit e está ao cuidado de um sumo-sacerdote, cuja
habitação se encontrava ao lado do templo. Apesar de o deus Ba‘al
não ter as caraterísticas de uma divindade de modelo caseiro, é ali
o seu espaço personalizado de receção e é dali que decorre a sua
função de governar o mundo. Mesmo que essa função e as tarefas
implicadas se reportem principalmente ao aspeto político, os rituais
de banquete que lhe dão expressão e os dinamizam são banquetes-
-sacrifício e pertencem mais às atividades do templo que às do
palácio. No templo, a extensão e a compreensão dos significados são
41 Enuma eliš, V, 130 – VI, 34. Cf. Bottero & Kramer 1989: 637-640.
536
mais abrangentes e mais universais. Numa palavra, são expressivas
em termos mais míticos. No palácio todo o discurso resultaria mais
cortesão e mais restritivo. Entretanto, o autêntico palácio de Ba‘al
está localizado mais nas coordenadas do mito, nas alturas, enquan-
to o seu templo está localizado no mundo da realidade imediata,
o bairro cultual da cidade de Ugarit. Encontramo-nos assim perante
uma rede de simbologias e esta rede é dialética, por natureza. Ba‘al
reparte, portanto, o seu significado e a sua realidade entre ser um
rei na terra e um deus no céu, ou, ao contrário, entre ser um deus
na terra e um rei no céu.
Esta cumplicidade estrutural insinua e sugere uma consciência
de univocidade entre os sistemas simbólicos pertinentes para os
deuses e para os humanos. A assembleia dos deuses parece ser uma
fórmula especialmente caraterística dos semitas ocidentais, com uma
localização especial nas regiões montanhosas do norte de Canaã 42.
E estas assembleias de deuses traduzem e concentram o sistema
ideal de valores das sociedades humanas. O facto é que as funções
de realeza se apresentam com harmoniosa univocidade nos seus três
níveis, isto é, a realeza de Ilu, a de Ba‘al e a dos humanos. Estes
últimos não são nomeados no que toca ao exercício da realeza, mas
são continuamente sugeridos como os verdadeiros interessados nela.
O título de rei (mlk) é univocamente utilizado para qualquer destes
três níveis. A imagem desta multiplicidade está na maneira como
o próprio exercício das funções de Ba‘al se desdobra em diversas
personagens: Anat, a cunhada dos povos; as noivas, filhas de Ba‘al;
e Kotharu-Hasisu, o grande deus artesão. O poder, que os orientais
exprimem com a fórmula hipostática da realeza, serve-se de muitas
mãos como uma rede de mediações. Com estes matizes, uma realeza
eficaz mas sóbria como é a de Ba‘al traduz o quanto de realismo
humano com ela se pode exprimir.
E o banquete é uma perceção otimista da harmonia entre os dois
patamares de estrutura no horizonte da antropologia e da cosmo-
537
logia. Nestes dois domínios estão representados o patamar mais
imediato da experiência e o patamar mais profundo do sistema de
sentido tal como é intuído e postulado. Temos aqui uma espécie de
cosmopoética para uso de uma cidade-estado de cerca de 20.000
habitantes, com as suas “filhas”, a qual desta maneira assume em
festa a gestão do seu próprio mundo com o sentir de quem está a
governar o mundo inteiro. É a intuição profunda da harmonia entre
o perfeitamente individual e o perfeitamente universal. Os deuses e
os grafismos que se lhes referem são, deste modo, um instrumento
metodológico para a leitura e antecipam já um esboço do horizonte
hermenêutico que se espera e se torna previsível.
E o modo de assembleia é uma fórmula de síntese, que define
o teor da vida em sociedade com as fenomenologias e vicissitudes
que lhe são próprias, Com isto define como dinâmicas integradas
de uma festa as coordenadas, tensas e intensas de um processo de
molduras quanto possível democráticas de interação de agentes di-
versos, sejam eles convergentes ou concorrentes entre si, no governo
e promoção de um teor de vida para o universo. Esta configuração
da assembleia divina parece ser uma marca própria da cultura de
Canaã. É a espiritualidade solidária de uma cidade-estado, segundo
o modelo da costa mediterrânica da Síria.
Cumpre finalmente notar que estamos perante o legado patrimonial
de uma cidade-estado média de aproximadamente 20.000 habitantes,
situada na costa do Mediterrâneo oriental, numa cultura de base
cananaica, entre os séculos XV e XIV, a.C., cerca de mil anos antes
do século de Péricles. E estes textos, provavelmente copiados, foram
registados em seis tabuinhas 43 pelo escriba Ilimalku da corte do rei
Niqmadu II 44 e procedem do repositório da biblioteca-escola inte-
grada na casa do sumo-sacerdote de Ba‘al, anexa ao mesmo templo.
43 São os textos organizados nas edições críticas sucessivas de CTA e KTU 1-6,
que mantiveram coordenadas de organização semelhantes. Para os quadros de equi-
valência com resumo de cada peça literária, cf. Rin; Rin 1996 xxx-lxxxi.
44 Niqmadu II foi rei de Ugarit entre, aproximadamente, 1380 e 1346, num tem-
po de grande esplendor da cidade de Ugarit, na fase inicial da época de El Amarna.
538
Bibliografia
539
(Página deixada propositadamente em branco)
La fuerza a-cósmica. La amenaza
de Tifón y el poder de Zeus
T h e A - C o s m i c P ow e r . T y p h o n ’ s T h r e at
a n d t h e P ow e r o f Z e u s
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_24
entire event. First, we will make some considerations about myth as
an operator of meaning. Secondly, we will work on the inscription of
Typhoon in the territory of a night lineage. We will locate him there
by his own figure, and by his action tending to turn the kosmos into
an a-cosmic stage. Third, already installed in the episode in ques-
tion, we will dedicate ourselves to painting the terrifying landscape
that the battle implies. Finally, we will see how the accumulation of
Chronida’s power against the defeat of Typhon is operated within the
framework of a representations scheme of power.
Introducción
542
frente a la derrota de Tifón en el marco de un esquema representa-
cionista del poder. Zeus personifica el poder porque es el garante
de la justicia y de la preservación de un orden que estuvo a punto
de sucumbir. Es la cabeza visible de un modelo de funcionamiento
de poder vertical que desde esa pirámide gobierna un kósmos que
se mantiene regulado porque él mismo constituye el principio de
inteligibilidad.
1 Tanto este primer punto como el siguiente forman parte de mi tesis doctoral,
con algunas modificaciones propias del presente trabajo. Colombani 2016.
2 Deleuze y Guattari 1997: 13.
3A la manera en que Aristóteles entiende que el amante del mito es, en cierto
modo, filósofo, tal como lo expresa en Metafisica. 982 b.
543
1. al mito como discurso-conglomerado, compuesto de capas
superpuestas de diversos imaginarios (épocas diferentes) y de di-
versa naturaleza (discursos religiosos, poéticos, etc.).
2. al mito como tópos en donde se ponen en juego los conflictos
sociales, lo cual da cuenta de la relación entre mito y sociedad.
3. a las estructuras mentales presentes en Hesíodo: los linajes
como la forma específica del discurso hesiódico que ordenan la
realidad, la clasifican, distribuyen los valores, en definitiva definen
estructuras mentales de juicio, de conocimiento, pragmáticas, etc.
544
una novedad epocal. Nos referimos a la lógica del linaje, apenas
esbozada en párrafos anteriores y presente en sus poemas como un
núcleo que cohesiona la totalidad de la obra.
El linaje constituye el operador discursivo que hilvana esa totalidad
que avanza hacia formas más justas y ordenadas, tanto en el plano
cósmico-divino como en social; forma más ordenada en la medida
en que el linaje positivo, de matriz diurna, triunfa estructuralmente
sobre el negativo, ya sea en el orden de lo cósmico, de lo divino o
de lo humano, vale decir, de los diferentes planos de lo real.
Quedan delineados en los dos poemas dos territorios conceptuales.
Esto no implica que no aparezcan ambigüedades y mezclas, bifurca-
ciones y atajos en el diagrama de fuerzas de esos dos linajes, que,
no obstante, toman un perfil claro que nos permite su utilización
como operador discursivo y de sentido.
Este diagrama de fuerzas constituye la llave que posibilita las
ambiciones de Hesíodo, “por así decirlo unitarias: esas grandes y
complexivas descripciones que, además, al menos en el caso de los
dos primeros poemas, representan una visión idealizada: el progre-
so del mundo consiste en la implantación del orden de Zeus, que
garantiza la justicia” 6. En efecto, para que ese orden cósmico se dé
en los términos de la sucesión cronológica que presenta Teogonía o
de la implementación socio-histórica que Trabajos y Días propone,
es necesario la potencia de la lógica del linaje como operador de
sentido y como condición de posibilidad de un diagrama político
que ubica a las potencias negativas y a las positivas en tópoi diferen-
ciados.
De este modo, el dispositivo del linaje se inscribe en ambos poe-
mas como articulador de su unidad, más allá de la diferencia temática
de uno y otro. La unidad radica en la progresiva organicidad de los
sistemas; en última instancia, la tensión de opuestos que da cuenta
del germen mismo de lo real en su conjunto. Potencias y divinida-
des que se inscriben en uno u otro linaje, reyes, hombres, mujeres,
545
instituciones, comportamientos, estilos de vida, ciudades, que se
pueden leer desde una perspectiva u otra, no hacen sino edificar
una arquitectura explicativa de la complejidad de la realidad a la
hora de dar cuenta de su constitución. Complejidad que se juega en
la dimensión agonística de los contrarios en pugna.
546
ver el texto de Hesíodo como un texto que, siguiendo a Gigon 7 ,
expresa por primera vez el nuevo imaginario filosófico, instaurando
la figura de Zeus-garante.
Aquel proyecto originario de un desplazamiento del khaos al kos-
mos a partir de la voluntad y la inteligencia de Zeus se ve seriamente
interrumpida por las pretensiones del último hijo de Gea. De allí su
fuerza desterritorializante. La amenaza queda claramente atestiguada
en los versos siguientes
547
de su adversario y por ello actúa en consecuencia. Podemos pensar
una función política de carácter terapéutico o reparador por parte de
Zeus, convencido de la importancia del plan estratégico que atraviesa
Teogonía. Quizás la dimensión del adjetivo ὀξὺς, “agudo, penetrante,
afilado”, sea la marca más rotunda de la disimetría estatutaria entre
la acción temeraria de uno y la inteligencia aguda del otro, capaz
de anticipar el peor de los males.
El paisaje del combate está marcado por un pintoresquismo
que pone en alerta los sentidos para poder acompañar el grado de
conmoción y de mutabilidad que la naturaleza sufre a partir de la
contienda. A la metáfora ígnea se asocia el trueno, dominado por el
verbo βροντάω, “tronar”. Un nuevo verbo agudiza los sentidos con
la preparación del combate: el campo lexical del verbo κοναβέω,
“resonar”, devuelve la imagen de la tierra, el mar, las corrientes del
Océano y el cielo reverberando, así como las oscuras y tenebrosas
profundidades de la tierra. No hay distinción entre el arriba y el
abajo, entre lo visible y lo invisible. El kósmos tiembla y truena en
una metáfora visual y sonora que da cuenta de la potencia a-cósmica
del momento.
548
interpelar los sentidos para dar cuenta de la emotividad del momento.
Ni siquiera el Olimpo guarda la calma y, por el contrario, acompaña la
excitación de su Señor y de la naturaleza en su conjunto. El Olimpo
se agita, y la marca lexical del verbo πελεμίζω, “agitarse, moverse con
fuerza”, expresa la mutabilidad infinita de las potencias, la conmoción
vigorosa a partir de la tenebrosa amenaza de la fuerza a-cósmica im-
poniéndose políticamente sobre la mesura del garante de la justicia.
La metáfora ígnea, asociada a una fuerte sensación de ardor y
calor, manifiesta el final del paisaje.
549
el monstruo, así como por el rayo ardiente, κεραυνοῦ φλεγέθοντος.
Festival flamígero atestiguado por el valor del verbo ζέω, “hervir”,
atribuido al suelo, el cielo y el mar. Esto es precisamente una fuerza
avasallante de matriz a-cósmica, un completo trastocamiento on-
tológico de todos y cada uno de los elementos constitutivos de lo
cósmico. La conmoción es tan fuerte que todo muta, causando, quizás
anticipadamente, la conmoción del pensamiento filosófico, afecto a
la quietud y a la conservación de las identidades.
El paisaje es aterrador y por eso mismo está inscrito en un linaje
nocturno. Noche se enseñorea sobre el Olimpo y las potencias sostie-
nen un festival fantasmagórico de fuego, ardor y calor insoportable.
Aludimos a la indistinción en la conmoción entre un arriba-visible
y un abajo-invisible como tópoi de la totalidad del universo. Lo sub-
terráneo sufre idéntica desestabilización y Hades tiembla, τρέε δ᾽
Ἀίδης, así como los Titanes que habitan mansiones subterráneas, por
el inextinguible clamor y la funesta hostilidad, ἀσβέστου κελάδοιο καὶ
αἰνῆς δηιοτῆτος. Dantesco escenario al que solo la fuerza de Zeus,
en su dimensión restauradora del orden, podrá poner fin.
9 En Las redes del poder (1992), Foucault analiza los distintos mecanismos del
funcionamiento del poder y alude a un tipo de poder del orden de la representaci-
ón, donde la figura del soberano es la cara visible de una concentración del mismo.
550
de funcionamiento de poder vertical que desde esa pirámide gobierna
un kósmos que se mantiene regulado porque él mismo constituye el
principio de inteligibilidad.
Recorrer el episodio de la tifonomaquia instalados en el corazón
del combate nos permite inteligir esa acumulación de poder que rea-
firma la consolidación de la soberanía de Zeus, al tiempo que define
políticamente los tópoi diferenciados de lo Mismo y de lo Otro. Tifón
desde su alteridad reafirma la identidad de Zeus.
551
No hacemos referencia a una mera victoria divina, sino a la po-
sibilidad ontológica de que el kósmos permanezca y conserve su
identidad. Retorna también la metáfora ígnea que propusimos como
herramienta interpretativa. Zeus incendió con su arma las divinas ca-
bezas del monstruo siguiendo la huella del verbo πίμπρημι, “quemar,
incendiar”. El modelo que toma la batalla se juega en el escenario
de las llamas como castigo ejemplar. El castigo resulta directamente
proporcional a la falta cometida.
Entonces, fustigándolo con sus golpes, dio por terminado el
episodio. El campo lexical del verbo δαμάζω reafirma el poder de
Zeus, “domar, amansar, someter, dominar, derribar”. En realidad, el
Crónida está derribando cualquier conjura contra el orden que ine-
xorablemente avanza hacia formas más justas y equilibradas. Ese es
el gran mensaje de Teogonía. Al amansar al monstruo, domina toda
forma de Otredad que atenta contra su soberanía regia.
El verbo ἐρείπω, “echar abajo, destruir, aniquilar”, remata la cris-
talización de la soberanía e invierte definitivamente la ecuación
originaria. Tifón pretendía derrotar a Zeus y es el derrotado. El triunfo
del monstruo hubiese invertido el desarrollo teogónico y hubiese re-
trotraído el kósmos a un estado de indefinición que hubiera aniquilado
la progresión exitosa y optimista. Tal como sostiene Gernet, cuando
se refiere a la existencia de dos razas o dos mundos impermeables,
la humana y la divina, recogida por esa especie de filosofía popular
que es la poesía sapiencial 10, la visión del kósmos es optimista ya
que, más allá de los avatares que jaquean la regularidad y norma-
tividad, el orden está asegurado por el principio de inteligibilidad
que Zeus representa desde su soberanía ingentemente construida.
552
Desafiar al Soberano
553
Zeus ha sido provocado y el castigo ejemplar es el rito que cierra
la transgresión; el sufrimiento físico y el dolor del cuerpo, los ele-
mentos constitutivos de la pena. Zeus ha sufrido una afrenta que lo
ha herido en su calidad de Padre. Entonces, el castigo se presenta
como un verdadero arte de las sensaciones. El espectáculo del fuego
es un festival visual que recuerda el “no debes”.
Conclusiones
Bibliografia
Fuentes
554
Estudios
Castoriadis, C. (2006), Lo que hace a Grecia I. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica.
Colombani, M. C. (2005), Hesíodo. Una introducción crítica. Buenos Aires: Santiago
Arcos.
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Deleuze, G., Guattari, F. (1997), Mil Mesetas. Valencia: Pre-textos.
Foucault, M. (1992), Las redes del poder. Buenos Aires: Almagesto.
Gernet, L. (1981), Antropología de la Grecia Antigua. Madrid: Taurus.
Gigon, O. (1985), Los orígenes de la filosofía griega. Buenos Aires: Gredos.
Nietzsche, F. (1972), La Genealogía de la moral. Madrid: Alianza.
Rodríguez adrados, F. (2001), “La composición de los poemas hesiódicos”, EMÉRITA
LXIX.2: 197-223.
555
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ARTE
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C o r p o s at l é t i c o s g r e g o s *1
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_25
nian body – this model was not unique. Thus, our object of study
will consist of Hellenic athletic bodies that diverge from the idealized
model, revealing their plurality and historicity.
1. Introdução:
560
Não podemos deixar de reforçar que o corpo humano é também sim-
bólico, plural e polissêmico. Com isso, não queremos, e nem mesmo
poderíamos negar o seu aspecto biológico. No caso de Atenas, os
corpos nas disputas atléticas comunicam o que a sociedade espera
dos seus cidadãos: força, agilidade, coletividade, desnudamento – o
ato de exibir-se publicamente –, coragem, virilidade, honra, areté....5
Recuperando uma discussão anterior sobre o conceito de corpo
(sôma) para os Helenos 6, salientamos que ele é definido por Bailly 7
como “corpo, em oposição à alma”, seguindo a contraposição entre
corpo (sôma) e alma (psyché) estabelecida no Górgias de Platão (493a).
Já nos poemas homéricos, corpo possui o sentido mais frequente de
“corpo morto, cadáver”. 8 Aqui sôma (cadáver) aparece em paralelo
a démas9, “estrutura corporal, corpo, ser vivo”. Comumente démas
surge em Homero significando estatura, aspecto externo.
Já em Hesíodo, sôma adquire o sentido de “corpo vivo, em par-
ticular do homem” 10, sendo um corpo que se constrói na esfera da
cultura e do trabalho. Passando do arcaico para o período clássico,
o corpo é apresentado como capaz de executar “trabalhos ou exercícios
corporais”; ou ainda como o que proporciona “prazeres” controlados
pelo autodomínio, conforme reflexões de Xenofonte. 11 Essas defini-
ções de Hesíodo e de Xenofonte se vinculam mais estreitamente ao
nosso objeto de estudo, isto é, aos corpos dos atletas.
Em Hipócrates podemos dizer que a experiência vivida por cada
indivíduo deixa a sua marca no corpo e na alma. No que se refere
à relação corpo e alma, o autor afirma estar a alma a serviço do
corpo. 12 Ainda no período clássico, Platão assegura que o corpo
561
é a nossa sepultura 13 e que a alma é superior a ele. 14 Segundo
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima, “seja no Corpus Hipocrático,
seja em Platão o corpo do homem é moldado por valores culturais
significando uma constante coerção e controle de si”. 15
Esta relação tão cara aos Helenos, a entre corpo e alma, também
foi objeto de atenção de Sófocles. Em Édipo Rei, o poeta destaca que
o protagonista se encontra preso em seu próprio corpo; já em Ájax,
a mensagem é a de que os homens fortes são aqueles com grandeza
de alma, não de corpo. 16
Os corpos dos atletas e suas formas de figuração se constituem
em proposta de análise de nosso texto a partir das imagens áticas
pintadas em suporte cerâmico. Assim como Goldhill, partiremos do
princípio de que havia entre os Gregos antigos uma crença artística
que propiciava regras abstratas para o corpo perfeito – aquele que
intitulamos de apolíneo. Essas regras permitiam avaliar um corpo,
real ou esculpido, e discuti-lo.17 Acreditamos que tais regras também
se aplicam à imagética.
Selecionamos para análise um pequeno corpus imagético que
nos permitirá perceber a pluralidade das figurações dos corpos dos
atletas. Dentre as imagens, duas fazem parte do acervo do Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vítima de um
incêndio em setembro de 2018. O parâmetro para refletirmos sobre
a pluralidade de figurações físicas dos atletas será o conjunto de
vasos reunido por John D. Beazley no Fat Boy Group.
13 Pl. Grg. 493a. Cf. Pl. Phdr. 82c-83b. “... esta (a alma) se encontra como que
ligada e aglutinada ao corpo, por intermédio do qual é forçada a ver a realidade como
através das grades de um cárcere, ...”.
14 Pl. Phdr. 79c-80a.
15 Lima 2000: 73.
16 S. OT 1382-1431; Aj. 1239-93. Cf. Lima 2000: 73.
17 Goldhill 2007: 23.
562
2. Corpos atléticos plurais na imagética ática
Figura 1
563
à realização dos exercícios. 18 Seus gestos, movimentos dos corpos
e posicionamento argumentam nossa afirmação de se tratar de uma
cena de treino. A nudez masculina nos remete, de imediato, para a
condição de atleta dos personagens. Por meio da nudez, os artesãos
Gregos transmitiam qualidades viris, como a coragem, a força e a
velocidade.
A cena se passa em um mesmo quadro espaço-temporal, o que
pode ser observado pela sincronia de movimentos e gestos dos per-
sonagens que a compõem, havendo apenas a sutileza por parte do
pintor em agrupar os atletas em duas duplas, separadas pelo banco
contendo os mantos dos competidores no centro da cena, de acordo
com a constituição dos seus corpos.
Ao observarmos a imagem, temos a impressão de que o pintor
optou por marcar diferenças entre as duplas de personagens. Na
direita, vemos os atletas com os corpos representados de forma
mais similar à idealização comum às imagens áticas e praticando
o lançamento do disco e do dardo; enquanto na esquerda, outros
atletas cujos corpos foram apresentados distanciados do referido
padrão geométrico, pois enquanto um deles tende ao extremamente
magro, o outro é gordo. De acordo com Spivey e com Gardiner 19,
há entre eles uma relação de disputa, o que pode ser verificado pelo
movimento dos seus braços. Parece existir também uma referência
ao boxe na imagem, pois um dos atletas (o gordo) segura uma tira
de couro – os himántes, cuja utilidade era firmar a articulação dos
pulsos e estabilizar os dedos da mão. 20
Quanto à dupla posicionada à direita da cena, podemos supor
que o pintor intencionasse enfatizar a beleza dos atletas através da
justa-medida e da simetria das formas e da musculatura, enfatizando
o corpo rígido conforme deveria ser o do cidadão. No corpo dos
personagens estão impressos equilíbrio, força, proporção, movi-
564
mento, além do ideal da kalokagathia21, tão importante para a vida
cívica na pólis, ideal este também explicitado pela nudez do atleta.
Concordamos com Alain Schnapp que “a juventude é um estado de
graça, e as artes plásticas são o meio de valorizar esse momento
particular da vida do cidadão”. 22
Certamente a intenção do artesão tenha sido a de realçar que o
corpo apolíneo, com as formas mais definidas, estivesse mais próxi-
mo dos cidadãos que praticavam o lançamento do disco e do dardo,
modalidades que colocavam mais em relevo o movimento e a flexi-
bilidade corporais, em especial da parte superior do corpo, como
pudemos verificar em Filóstrato.23 A singularidade dessa imagem
é, conforme mencionado, nos permitir visualizar tipos variados de
corpos, isto é, que os corpos são sempre plurais.
Nesse momento, podemos recuperar algumas colocações de Simon
Goldhill. Segundo o helenista, “a forma ideal [dos corpos] não é nem
muito magra nem muito gorda, mas perfeitamente balanceada”. 24
Nesse sentido, os atletas que se encontram na parte esquerda da cena
fogem completamente a essa forma ideal. Segundo ainda Goldhill 25,
os pintores deveriam estar atentos ao modelo de figuração dos cor-
pos, que deveria seguir alguns princípios, a saber:
21 Palavra oriunda da junção dos termos kalós (belo) kai (e) agathós (bom),
qualidades de um kalokagathos, homem bom e belo tanto física quanto eticamente.
Cf. Sousa 2013: 232.
22 Schnapp 1996: 35.
23 Philostr. Gym. 3.
24 Goldhill 2007: 21.
25 Goldhill 2007: 22.
565
3. As coxas são poderosas, as panturrilhas nitidamente deli-
neadas, o pênis pequeno e sempre imberbes, uma referência à
juventude.
566
pesquisa anterior27 atentamos para a construção desse padrão a partir
das formas geométricas do triângulo e do pentagrama estrelado. O
triângulo por ter a sua constituição a partir da tétractys – sequência
dos quatros primeiros números: 1, 2, 3, 4 que em conjunto resultava
no número 10 (1+2+3+4= 10) – estava presente nos demais números
figurados, como o quadrado, o pentágono e, dessa forma, se fazia
presente no plano geométrico das representações do corpo. 28
O método do pentágono regular e do pentagrama (o pentágono
estrelado), formado pelas diagonais de um pentágono regular, foi
o mais usado para a composição das representações gregas, em
especial durante o século VI a.C. e a primeira metade do V a.C. 29,
o que explica as semelhanças dos corpos na cerâmica e também na
estatuária. Não observamos uma mudança evidente nessa forma de
representação durante o período clássico como um todo.
Mas os personagens presentes à esquerda da kýlix que estamos
analisando se distanciam desse padrão de proporções aritméticas e
geométricas. Se os corpos são plurais, conforme já mencionamos,
acreditamos que as suas representações também o são, coexistindo
junto às idealizações dos corpos dos atletas e, por serem padroni-
zadas, se distanciam da realidade cotidiana, que constituem outras
formas de representação. Até mesmo porque os hábitos de exposição
corporal são determinados pela cultura. 30
Esta pluralidade dos corpos se faz presente na imagem pintada
numa oinochoe do “Fat Boy Group” – Figura 2 –, que, segundo John
Boardman, se dedica aos jovens e atletas disformes. 31 Ao invés de
disformes, esses atletas enunciam um modelo diferente de represen-
tação em nossa interpretação.
567
No Beazley Archive, que inclui a maior coleção de imagens de
cerâmica antiga figurativa, encontram-se, numa rápida e simples
pesquisa, 492 vasos áticos que juntos formam o Fat Boy Group.
Como característica comum aos vários personagens pintados nos
vasos desse grupo temos o distanciamento do padrão apolíneo de
figuração dos corpos. Todos são, em essência, fat. Dos 492 vasos,
490 são do estilo chamado de figuras vermelhas 32, 474 foram pro-
duzidos no período compreendido entre 400 e 300 a.C. (século IV
a.C.) e alguns possuem proveniência da região da Itália. É importante
destacar que a circulação dos vasos se dava majoritariamente fora de
Atenas.
A oinochoe que passaremos a analisar é uma das mais de 700
peças – datadas entre o século VIII a.C. e o início da era cristã –
que compõem a Coleção Teresa Cristina com exemplares de origem
greco-romana e etrusca, o maior e mais importante da América
Latina. 33
568
Figura 2 34
FACE A
FACE B FACE C
569
No centro da imagem há um jovem nu, em perfil, com as pernas
fletidas e com os braços estendidos para frente, como se fosse saltar
sobre o marco. A cena denota movimento, o que pode ser compro-
vado pela posição dos braços, pernas e do tórax do jovem. Este
movimento desenvolvido pelo personagem, bem como a sua nudez,
nos possibilita afirmar ser ele um atleta.
Nas extremidades da cena contamos com a presença de dois
outros personagens que se encontram de pé e vestidos. Podemos
associá-los ao conceito de narradores-espectadores proposto por Ann
Steiner. Esses são os narradores anônimos que possuem a finalidade
de indicar aos receptores dos vasos a forma como entender a ação
representada na cena. Segundo ainda a classicista 35, a existência de
dois personagens que assistem a cena central nos dois lados extre-
mos cria um paralelo que estabelece uma relação de sinônimo ou
antônimo – ver faces B e C.
Mas qual seria a função desses narradores-espectadores? Eles atu-
am como marcos que indicam aquilo que é central na representação,
nos remetendo às figuras que respondem à história ou à atividade
que tem lugar no centro da cena. Não podemos perder de vista que
esses espectadores na cerâmica possuem dupla função, pois narram
e participam da ação. Em síntese, o espectador na imagem permite
ao espectador da imagem um acesso distinto ao conteúdo da cena. 36
O fato de serem de faixa etária semelhante à do atleta dificulta a
identificação desses dois últimos personagens. Eles não são atletas,
pois se encontram vestidos. Poderíamos pensar se tratar de instru-
tores (paidotríbai), mas não contamos com nenhum signo de poder
exercido sobre o atleta. Em outras imagens com situação semelhante,
encontramos personagens vestidos portando fita no cabelo, signo
de vitória e possivelmente de mais experiência que o atleta pintado,
e fazendo uso de uma haste para a correção dos movimentos do
570
atleta, signo este claramente de poder. 37 Contudo, os dois perso-
nagens vestidos mantêm cada qual um dos braços erguido, como
se conversassem ou contassem qualquer coisa a respeito do atleta.
Partindo do princípio de que os gestos são polissêmicos, a repre-
sentação dos braços erguidos na cena pode indicar uma situação de
poder sobre o atleta. Defendemos que cada gesto pode ter em si
múltiplos significados que se encontram atrelados à cultura que o
produz.
O corpo deste atleta é totalmente disforme do comum nos vasos
áticos se distanciando dos princípios elencados anteriormente por
Simon Goldhill. Faltam a ele traços mais delineados, equilíbrio e
simetria das formas e da musculatura. Ele não representaria o ide-
al estético da beleza helênica, calcado na noção de justa-medida.
Porém, não é propriamente gordo, como um dos personagens da
imagem anterior, pois não possui um abdômen avantajado. Apresenta
formas desproporcionais, possuindo o tórax mais musculoso que o
restante do corpo. Ele nos parece pesado. Apesar de que Filóstrato38,
ao indicar diferenças entre modalidades esportivas helênicas, afir-
ma que, enquanto o lançamento do disco é uma prova pesada,
como a luta, o salto e o arremesso do dardo se associam à corrida,
pois são modalidades ligeiras. Logo, o salto exigiria corpos mais
leves.
Ainda recorrendo a Filóstrato 39, podemos observar que a muscu-
latura desenvolvida pela prática do salto se concentra nas pernas.
Logo, o incremento no personagem do tórax não é condizente com
as informações fornecidas pelo filósofo.
Defendemos que a cena pintada no vaso se passa no mesmo qua-
dro espaço-temporal, o que pode ser observado pela sincronia de
37 Da mesma forma, os dois personagens não podem ser identificados como pai
ou erastés do atleta também pelo fato de serem imberbes, mesmo em se tratando
de uma imagem que julgamos distanciada do modelo de representação comum na
cerâmica ática.
38 Philostr. Gym. 3.
39 Philostr. Gym. 3.
571
movimentos e gestos dos personagens que a compõem. Em ambos os
vasos analisados – Figuras 1 e 2 –, os jogos de olhares dos persona-
gens são em perfil, o que significa que a comunicação estabelecida
é interna, não permitindo o diálogo com o público receptor.
Outro aspecto a ser destacado é a ausência de cuidado com a
estética da cena pintada. A precariedade da representação dos deta-
lhes – como mãos e rostos, em especial – pode evidenciar a adoção
de técnicas menos refinadas do que as que prevalecem na imagética
ática mais preponderante como, por exemplo, a utilizada nos per-
sonagens posicionados à direita na kýlix analisada na figura 1. Ou
ainda, revelar a qualidade inferir do próprio pintor.
Partidários da defesa de que as imagens revelam a própria socieda-
de que as produziu e que na pólis “o corpo do cidadão é propriedade
pública” 40, conjecturamos hipóteses que possam explicar a opção
pela representação de corpos de atletas fora do padrão estético co-
mum à iconografia ática.
Pensar na produção desses vasos como reveladora de um es-
paço para as vozes dissidentes da democracia se expressar foi o
que de imediato nos ocorreu 41 ou até mesmo a existência, na vida
política ateniense, de espaços para a publicização de opiniões
divergentes e de críticas aos modelos consolidados. Porém, essas
interpretações carecem de dados empíricos, pois contamos somente
com seis vasos no Fat Boy Group cuja proveniência é ateniense 42,
o que não nos autoriza a defesa dessa hipótese. Não nos esqueça-
mos, entretanto, de que o período de produção dessas cerâmicas
é, segundo Beazley, 400-300 a.C. Durante o século IV a.C. Atenas
vive contextos políticos diferenciados: ela reestrutura a sua forma
de governo a partir de 403 a.C. com o retorno da democracia após
os golpes oligárquicos, perde a hegemonia no mundo grego, vive
uma crise expressiva do pós-guerra e ainda vivencia o fim da forma
572
de governo que a singularizou no mundo grego. Certamente esses
vasos permitem uma reflexão acerca desse período de crise de
Atenas.
Se a hipótese de crítica à democracia não se sustenta plenamente,
uma explicação para essa opção poderia ser a necessidade de pôr em
relevo as diferenças entre a idealização e a realidade na figuração
dos corpos dos atletas. Nesta concepção, tais corpos estariam mais
próximos daqueles encontrados no cotidiano grego. Até porque seria
inverossímil aceitar que todos os Helenos fossem belos e portassem
um físico igualmente belo. 43 Não podemos esquecer que “a arte do
pintor consiste em servir-se da observação para ultrapassar a singu-
laridade dos seres e chegar (...) à qualidade estética que transcende
cada detalhe ...”. 44
Não há dúvida de que existia um mercado consumidor para tais
enunciados. Ao observar os 492 vasos que compõem o Fat Boy Group,
verificamos, conforme já dito, que apenas seis circularam em Atenas
dentre o conjunto que conta com a indicação de proveniência. Logo,
o mercado consumidor dessas cerâmicas não era, sobretudo, o ate-
niense. Ao que parece a representação dos corpos pelos e para os
Atenienses primava pela beleza apolínea.
Partimos do princípio de que a principal intenção do pintor era a
de fazer uma crítica direta ao padrão hegemônico de funcionamento
da própria sociedade ateniense. Ao representar um atleta fora dos
padrões estéticos convencionais moldados por uma elite, o pintor,
da mesma forma que o comediógrafo, por exemplo, inquietava a
sociedade e a fazia refletir sobre si mesma. Apontava ainda para
a heterogeneidade dos discursos que compõem a pólis dos Ate-
nienses.
A pesquisa feita no corpus do Fat Boy Group aponta para a pre-
sença de vasos da região da Etrúria, situação idêntica à da kýlix
573
– Figura 1 – que analisamos. 45 Tal informação nos faz pensar que o
modelo de figuração do corpo pintado nos vasos do Fat Boy Group
atendia provavelmente a uma demanda do consumo etrusco ou na
Península Itálica num contexto mais amplo. Ou ainda que, da mesma
forma que tivemos um predomínio do estilo de pintura em suporte
cerâmico coríntio e depois ático, poderíamos estar sob a influência
de um modelo estético etrusco quando da produção desse conjun-
to de vasos. Talvez esse esquema pictórico predominasse entre os
Etruscos e tenha se tornado o referencial para o Fat Boy Group. É
importante mencionarmos a colocação de Dominique Briquel46 acerca
da imagem criada pelos Gregos sobre os Etruscos e que perpetuou
na literatura latina. Segundo a autora, os Gregos propagavam que
os Etruscos banqueteavam duas vezes por dia, expressando um luxo
excessivo e oferecendo elementos para concebê-los como obesos.
O Fat Boy Group pode manter alguma relação com a imagem que
vincula os Etruscos aos excessos nos banquetes.
Significativo é trazermos para a análise a informação já conhe-
cida de que os contatos entre Helenos e Etruscos – ou ampliando,
para as demais regiões da Itália – já se faziam presentes desde o
do período arcaico grego. 47 No que se refere especificamente aos
etruscos, Briquel 48 destaca a existência de uma riqueza em cerâmi-
ca ática das tumbas de Spina ou de Bolonha, atestando as trocas
entre as duas sociedades. Em sentido semelhante, La Genière 49 res-
salta a idêntica qualidade dos vasos que circularam em ambas as
sociedades.
A difusão de imagens gregas na região da Etrúria é indicada por
Pallottino 50 como um indício de uma rede de relações comerciais e
culturais entre Gregos e Etruscos. A figura 1, em certa medida, pode
574
atestar tais contatos. A taça do pintor Fidipo de figuras vermelhas
circulou na Etrúria e contém a típica beleza e riqueza da cerâmica
ática. La Genière51 afirma que a cultura grega não teve dificuldades
de penetrar na Etrúria, reservando algumas formas de vaso à clien-
tela da região.
Todas essas interações, tanto na Etrúria quanto nas outras regiões
da Itália, resultavam de trocas comerciais, da atuação de intermediários
no processo de importação, de encomendas, de ralações religiosas,
de hospitalidade e de aquisição de prestígio social. 52 Não podemos
deixar de elencar ainda a circulação de artesão pelo Mediterrâneo.
Se os compradores – Gregos ou não Gregos – de vasos áticos
escolhiam às vezes tanto a forma quanto a imagem a ser decorada,
e que as suas experiências sociais eram consideráveis no processo
de produção dos vasos, podemos refletir acerca da presença dos
personagens fora do padrão ático apolíneo de representação. Aliamos
a essa colocação as informações anteriores que remetem às relações
entre Gregos e os habitantes das regiões da Itália.
Para tal questão, retornaremos à Coleção do Museu Nacional da
UFRJ. Selecionamos uma oinochoe de figuras vermelhas produzida
no sul da Península Itálica/Itália Meridional (Campânia) durante o
século IV a.C., mesmo período do vaso interpretado anteriormente
– Figura 2. A proposta não é analisar as cenas pintadas nos dois su-
portes, pois elas não fazem parte do repertório dos agônes atléticos
que se encontram no Fat Boy Group. 53
575
Figura 3
FACE A FACE B
576
Tais cenas corroboram a existência para a região da Península
Itálica de um padrão de representação dos corpos que prezava por
uma musculatura mais robusta, atendendo assim a um mercado con-
sumidor diferente do ateniense.
Retornaremos à possibilidade que considera a representação dos
atletas fora do padrão apolíneo como uma caricatura de atletas do
século IV a.C., no contexto ateniense. Neste caso também poderíamos
observar certa proximidade entre os discursos dos pintores e dos
comediógrafos. Também é plausível associar os atletas fora do padrão
apolíneo com os personagens gordos apresentados na comédia, em
especial na comédia nova.
Em As rãs (405 a.C.) de Aristófanes, Ésquilo, em sua defesa, faz
referência aos exercícios físicos. Na mesma obra, Dioniso ri diante
da presença de um atleta gordo que disputava uma prova atlética. 54
Ainda bem próximo da situação encenada nas peças de Aristófanes,
mas se distanciando da caricatura mais explícita e típica das comédias,
podemos pensar na figuração de corpos fora do padrão apolíneo
como uma crítica aos novos grupos sociais vinculados ao comércio
que emergem em Atenas no pós-Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.)
ou ainda como um novo tipo de figuração que atenda às demandas
dos novos mercados consumidores formados por esses novos ricos.
Porém, tal hipótese ainda carece de um estudo mais verticalizado.
Por fim, outra hipótese, que almejamos aprofundar futuramente.
A opção dos pintores em representar atletas com corpos fora do
padrão apolíneo pode nos remeter a uma crítica à paideia ou à falta
dela e, consequentemente, à formação da cidadania num momen-
to em que a pólis enfrentava um processo de crise, ou ao ideal de
pan-helenismo que os Jogos procuravam reforçar. No diálogo entre
Sócrates e Adimanto, na República55, Platão menciona a existência de
um pugilista rico e gordo – piónoin. A referência atesta a existência
de atletas fora do padrão normativo. Observa-se que o pugilista hábil
577
não é gordo, faltando ao atleta obeso a paideia, isto é, a ginástica
e a música. O texto é irônico com o atleta gordo, mas a reforça a
sua existência.
3. Conclusão
578
produzirem as suas obras obedeciam a regras estéticas de propor-
cionalidade, que são variáveis historicamente.
Bibliografia
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E sb o ç o d e r e c o n s t i t u i ç ã o * 1
T h e G r e at A l e x a n d r i a n S e r a p e u m :
A S k e tc h f o r I t s R e c o n s t r u c t i o n
Rogério Sousa
Univ. Lisboa, CECH
ORCID: 0000-0002-8253-1707
solar.benu@gmail.com
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_26
Abstract: Despite the severe destruction that affected the Alexandrian
Serapeum in 391 AD, archaeological research carried out during the
20th century revealed important information that help us to reconstruct
the general layout of the complex. Given the exiguity of the archa-
eological data, the input of the written sources on the Alexandrian
Serapeum is crucial to better understand the meaning of its structures,
allowing us to have a clearer picture of its original arrangement. This
study provides a preliminary sketch of such endeavor.
582
para tal ao cruzamento de fontes arqueológicas, textuais e iconográ-
ficas com o intuito de melhor entender o significado e a função que
cada uma das suas estruturas possuía no complexo.
O complexo sagrado
583
desembarque de César, que se eleva a uma grande altura, de gran-
des dimensões, e de notável beleza, diante do melhor porto, e de
tal modo que outro igual não pode ser visto em nenhuma outra ci-
dade, cheio de oferendas, rico em pinturas e estátuas, inteiramente
decorado com prata e ouro, é um espaço extenso, ornamentado de
modo magnífico e sumptuoso com pórticos, bibliotecas, vestíbulos
e bosques, e propileus e amplos terraços abertos, e pátios ao ar
livre e com tudo o que pode contribuir para usufruto ou contem-
plação, é um farol portador de esperança e segurança a todos os
que zarpam ou entram no porto. 7
584
descrita entusiasticamente pelos autores do século IV, como o faz
Amiano Marcelino:
A escadaria e o propileu
10 22.16.12
11 Bernand 199: 128.
12 Bernand 1996: 125.
585
altura de cem degraus ou mais, com as suas instalações rectangu-
lares estendidas em todas as direcções. 13
586
Pseudo-Calístenes situava aí ‘os obeliscos, que ainda hoje estão no
Serapeum, no exterior do recinto que agora existe’. 16 Provavelmente
ladeavam o propileu monumental, do qual Aftónio nos proporciona
uma das raras alusões:
O pátio porticado
587
Ao progredir para a acrópole, entra-se num único espaço aberto,
delimitado nos quatro lados (…). No meio está o pátio rodeado por
uma colunata. As colunatas estão divididas por colunas idênticas e
em termos de medida são o mais extensas possível. Cada colunata
termina noutra transversal, com uma coluna dupla dividindo uma
colunata da outra. 20
588
estátua de Arsínoe Filadelfa. 23 Estes fragmentos parecem, contudo,
ter sido reutilizados nas fundações do complexo romano, pelo que
já não estariam visíveis aos visitantes do século III e IV.
Sob as colunatas ocultava-se um sem número de divisões. Rufino
de Aquileia refere-se brevemente a elas:
A Biblioteca Filha
589
conhecimento, estimulando toda a cidade para a sabedoria; outros
foram construídos como santuários aos deuses antigos. 25
590
Para que fiquem a saber que os livros sagrados não fazem um
lugar sagrado, mas o propósito dos que frequentam um lugar o
tornam profano, contar-vos-ei uma história. Ptolemeu Filadelfo man-
dou recolher livros por todo o mundo. Quando soube que os Judeus
tinham escritos que versavam sobre Deus e o Estado ideal, enviou
homens da Judeia e fê-los traduzir esses livros, os quais então de-
positou no templo de Serápis, já que era pagão. Até hoje, os livros
traduzidos permanecem no templo. Mas será o templo de Serápis
sagrado por causa dos livros sagrados? Deus nos livre! Embora os
livros tenham a sua própria sacralidade, eles não a partilham com
o lugar, pois aqueles que o frequentam estão contaminados. 28
591
Após a reconstrução do Serapeum no século II, a Biblioteca do
Serapeum era possivelmente a única grande biblioteca de Alexandria.30
Por isso, era seguramente nestas instalações que funcionariam as
principais escolas filosóficas da época, numa singular confluência
multicultural de sábios gregos, egípcios, judeus e romanos.
É interessante constatar que o prestígio que a Biblioteca Filha
do Serapeum gozava entre os autores do século III e IV não parece
ter sido beliscado pelo incêndio que destruiu o Serapeum em 116,
o que parece reforçar a ideia transmitida por Estrabão segundo a
qual, no século I d.C., a importância do recinto parece ter-se eclip-
sado. Se assim foi, é possível que os livros se encontrassem então
nas instalações do Caesareum, como indica Fílon, e só depois da
reconstrução romana se tivessem instalado no Serapeum.
O Templo de Serápis
592
Uma das colunas elevando-se acima das outras ocupa a posição
central, assim atraindo as atenções para o lugar. Qualquer um que
ande pela cidade, pode situar-se onde está simplesmente olhando
para a coluna, pois ela vê-se de todo o lado, e desse modo desta-
ca a acrópole para quem vem da terra ou do mar. (É como se) as
origens do universo rodeassem o capitel da coluna. 32
593
no reinado de Ptolemeu III Evérgeta, é que a estátua foi renomeada
e identificada com Serápis. 36
Atendendo às diferenças detetadas na iconografia é bastante pro-
vável que a estátua original ptolemaica tivesse sido consumida pelo
fogo que destruiu o Serapeum em 116. No entanto, é curioso verificar
que tanto Pseudo-Calístines, 37 como Plutarco, 38 ao se reportarem à
chegada miraculosa da estátua de Serápis a Alexandria, na verdade
a descrevam com os atributos introduzidos na remodelação romana,
parecendo desconhecer por completo que a primeira estátua havia
sido destruída.
As dimensões e os materiais utilizados na estátua provocavam um
vivo assombro nos que a vislumbravam:
594
Já fizemos alusão numa outra publicação, 41 que os lábios entrea-
bertos do deus constituem um elemento importante da iconografia de
Serápis, sugerindo que o deus «falava», um atributo que podia estar
relacionado com a dimensão oracular do seu culto e, mas também
com a importância teológica que a noção de logos, o verbo criador,
possuía na filosofia e teologia alexandrinas.
Um detalhe importante fornecido por Rufino, parece reforçar a
importância desse atributo:
41 Sousa 2013a.
42 Rufino, História Eclesiástica, 11.23.
595
assim o truque, os servidores da fraude diziam: «o sol levantou-se
e despediu-se de Serápis para que possa regressar ao seu lugar». 43
596
e dois obeliscos erguem-se aí, e uma fonte melhor do que a de
Peisistratos. 46
597
Os templos «enigmáticos»
598
robustas, pelo que o edifício que aí se erguia devia ter dimensões
bastante apreciáveis. De planta quadrada, tem características muito
intrigantes. Um sulco percorre diagonalmente o piso, revelando a base
de assentamento de um muro que dividia o edifício em duas partes
(Fig. 10). Uma passagem estreita escavada nas próprias fundações do
edifício passa debaixo deste sulco, estabelecendo uma comunicação
entre as duas salas do edifício. No centro desta passagem abre-se
ainda uma pequena câmara ou cripta, que na Antiguidade estava
totalmente sepultada sob o piso do edifício. Estas características
singulares fazem desta estrutura um espaço extremamente intri-
gante. Uma possível explicação para a existência de uma passagem
subterrânea que ligava as duas salas a uma câmara «secreta» é a sua
utilização oracular. Outra possibilidade é a sua utilização nos rituais
de iniciação, tão característicos do culto de Serápis.
Um tanto estranhamente as fontes clássicas não se reportam a
nenhum destes edifícios. Aftónio, o mais entusiasta dos autores que
descrevem o complexo, referia:
599
se celebravam os mistérios da ressurreição de Osíris. No Serapeum,
a ilha sagrada poderia ter desempenhado uma função idêntica, evo-
cando os mistérios da ressurreição de Serápis.
Quanto ao outro edifício, como referimos, é provável que tenha
sido usado no âmbito das cerimónias iniciáticas ao culto de Serápis
que, em parte, são descritas no Burro de Ouro, de Apuleio. Embora
realizada em Cenchrés, o porto de Corinto, e num santuário de Ísis,
esta iniciação seguia certamente o modelo emanado a partir do pró-
prio Serapeum alexandrino. A iniciação de Lúcio descrita por Apuleio
envolvia efetivamente uma descida ao mundo inferior:
Considerações finais
52 Apol. Met.
53 Sousa 2013: 99-104.
600
sagrado erguido sobre a acrópole alexandrina foi redimensionado
e engrandecido de um modo sem precedentes, o que, por si só,
constitui um fenómeno notável. O culto patrocinado pela casa real
ptolemaica não só conseguiu a proeza de sobreviver à dinastia, como
atingiu, sob ocupação romana, um esplendor que antes nunca teve,
mostrando bem o sucesso que a difusão do culto de Serápis obteve
no Império Romano.
A própria organização do santuário refletia uma sistematização
mais sofisticada do culto. O Templo de Serápis representava o deus
como o cosmocrator, o deus das origens que criou o mundo pelo
poder do logos, a palavra criadora. Sob a cripta, o deus manifestava-se
como Ápis, a manifestação do Sol no mundo inferior que encarnava o
poder de vida, de fecundidade e de ressurreição. No alto da Coluna
de Diocleciano, o deus figurava como o deus soteriológico da luz, o
pilar cósmico que unia o céu e a terra. O grande pátio reunia todas as
estruturas importantes do culto, como o lago sagrado dotado de uma
ilha «ritual» e um edifício imponente onde se realizavam cerimónias
iniciáticas. Em volta, em torno do pórtico, reunia-se a fina flor do
espírito e do engenho humano: a biblioteca «universal», as escolas
filosóficas, as obras de arte, as instalações de cura e de incubação.
Não admira que, para o cristianismo emergente, o prestígio que o
santuário continuava a ter, mesmo após o seu encerramento formal,
exigisse a sua destruição, o que sobreveio em 391. Essa destruição
foi feita de modo tão diligente que literalmente não ficou «pedra
sobre pedra».
As fontes clássicas, muitas delas redigidas por cristãos, transmi-
tem-nos uma visão parcial já que se focam essencialmente sobre
as estruturas «públicas». A grande escadaria, o magnífico propileu,
a Coluna de Diocleciano, o Templo de Serápis, e os pórticos, com
as suas coleções de arte e a Biblioteca Filha são recorrentemente
mencionados pelos diferentes autores. No entanto, é curioso verifi-
car que as fontes são completamente omissas no que diz respeito à
ilha sagrada e ao edifício reservado às iniciações. Essa circunstância
é estranha, já que, na verdade, estas estruturas eram bem visíveis.
601
A sua presença é quando muito evocada recorrendo a alusões muito
vagas que traduzem um fascínio incondicional ou desconfiança.
Ecos sobre o significado destes edifícios «enigmáticos» podem
ser detetados na lenda veiculada por Pseudo-Calístines, acerca do
achamento do Templo de Serápis por Alexandre. Seguindo o voo da
águia, Alexandre teria encontrado um santuário antigo com a está-
tua de Serápis. 54 É provável que um dos edifícios «enigmáticos» do
Serapeum fosse identificado com este templo faraónico «original».
Seria aí onde se concentrariam os muitos monumentos faraónicos
achados no Serapeum. Entre estes figuram pequenos obeliscos,
gárgulas leoninas e outros blocos com inscrições hieroglíficas. Um
número apreciável de esculturas faraónicas foram também encon-
tradas no local incluindo fragmentos de estátuas reais, 55 esfinges 56
e divindades egípcias como Hórus, 57 Sekhmet, 58e Khepri. 59 Parece
improvável que um tal edifício se erguesse sobre a ilha sagrada,
dado o carácter exíguo dos vestígios aí encontrados. Mais prová-
vel é que o templo usado em iniciações correspondesse ao templo
«original» encontrado por Alexandre. A robustez das suas fundações
explicar-se-iam desse modo, já que aí se assentava uma estrutura
robusta, diríamos maciça. Se assim fosse, o templo faraónico era
naturalmente uma invenção romana, já que as fundações também
o são. Fosse como fosse, o templo faraónico e o templo romano
de Serápis erguiam-se um diante do outro, com a ilha sagrada de
permeio. 60
602
Apesar do grau de destruição que atingiu o complexo em 391 d.C.,
o cruzamento dos escassos dados arqueológicos, com referências
literárias e iconográficas e ainda a comparação com outros serapea
dispersos pelo mundo romano, é um trabalho decisivo para continuar
a desvendar significado das suas estruturas que fizeram do Serapeum
um dos recintos templários mais importantes do mundo antigo.
603
Figuras
604
Figura 3. Iconografia romana de Serápis. Desenho do autor.
605
Figura 4. Encosta oriental do Serapeum. Em primeiro plano detetam-se os
vestígios das instalações para albergar os sacerdotes e os guardiões do tem-
plo. Em segundo plano observa-se a Coluna de Diocleciano. Foto do autor.
606
Figura 6. Cripta de Ápis. Foto do autor.
607
Figura 8. Galeria transversal de acesso à «ilha sagrada». Foto do autor.
608
Figura 10. Passagem subterrânea do «edifício enigmático». Foto do autor.
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610
D e n o v o s o b r e o va s o d e v i d r o d e O d e m i r a
e o porto de Pvteoli (pozzuoli)
F u r t h e r C o n s i d e r at i o n s o n O d e m i r a ’ s R o m a n
G l a ss a n d t h e P o r t o f P v t e o l i ( P o z z u o l i )
***
1 Dubois 1907; Picard 1959: 23-51; Sommella 1978; Ostrow 1979: 77-140;
Gianfrotta 2011: 13-40.
2 Oleiro 1963-1964: 101-110.
3 García y Bellido 1954: 212-226.
4 Alarcão 1970: 31-32.
5 Coelho 2012: 64-81.
6 Isings 1957: 121-122.
612
muito recentes7. Não é nossa intenção desenvolver neste artigo uma
análise exaustiva deste corpus de vasinhos, tanto mais que não somos
especialistas dessa matéria complexa que é a da vidraria romana.
Assim, procuraremos apenas esclarecer alguns aspetos relacionados
com a peça achada em Portugal e tratar novamente a representação da
paisagem urbana nela figurada e do grande porto de Puteoli, acerca
do qual os trabalhos arqueológicos dos últimos anos têm fornecido
importantes dados interpretativos 8, embora a topografia da cidade
antiga continue a contar com muitas lacunas.
O conjunto destes vasos pode dividir-se por dois grupos principais,
consoante Puteoli ou Baiae é o tema dominante que apresentam9. O
vaso de Odemira pertence claramente, como os de Praga e Óstia, ao
primeiro grupo. Sublinhamos já que o local pelo qual se identificam
as peças nem sempre corresponde ao local do achado, o que tam-
bém contribui para confusões. Vejamos então quais são, por ordem
do seu achamento, os vasos conhecidos presentemente. O primeiro
vaso a ser descoberto foi o de Roma, em data anterior à da sua pu-
blicação em 1749. Durante muitos anos esteve no Museo Borgiano
di Propaganda, onde já não se encontrava em 1879. Pertenceu en-
tretanto à Coleção Goluchow, na Polónia, fazendo parte desde 1956
do Museu Nacional de Varsóvia 10 . O segundo da série foi o vaso
de Piombino, a antiga Populonia, achado em 1812, o qual, depois
de várias peripécias, inicialmente motivadas por razões de ordem
política, acabou por ser adquirido em 1962 pelo Corning Museum
of Glass, em Nova Iorque 11.
Depois destes exemplares italianos cabe a vez ao vaso de Odemira,
conhecido desde 1867. A ele voltaremos, naturalmente, com maior
desenvolvimento, uma vez que constitui o propósito principal deste
613
artigo, estimulado por uma feliz coincidência. Assim, em quarto lu-
gar situa-se o fragmento de Óstia, achado em 1909 e posteriormente
desaparecido 12. O vaso que vem a seguir na nossa enumeração é o
do Museu Nacional de Praga, cuja primeira notícia remonta a 1924.
É uma excelente peça, provavelmente proveniente de Itália 13 . O
sexto exemplar da série é o de Colónia, achado muito fragmentado,
também no ano de 1924, encontrando-se no Römisch-Germanische
Museum, na mesma cidade 14 . O sétimo é o vaso de Ampúrias
(Emporiae), descoberto entre 1920 e 1930, mas que teve a primeira
publicação apenas em 1941. Conservado numa colecção privada na
região, García y Bellido sentiu, em 1954, algumas dificuldades na sua
descrição 15.
O Reino Unido acrescentou à lista, um fragmento achado em York,
publicado em 1968, e a excelente peça conservada no Pilkington Glass
Museum, em St. Helens, publicada em 1975 por K. S. Painter. Adquirida
na Alemanha e provavelmente incluída em peças idas do Norte de
África, é difícil esclarecer a data e as verdadeiras circunstâncias da
sua descoberta16. Escavações em Brescia, na Itália17, contribuíram
com fragmentos de nada menos de quatro fiaschette, devidamente
estudados a partir de 2002. Até aqui, contabilizando os fragmentos
representativos de peças individuais, o número destes vasos ascende
já a treze, a que devemos acrescentar outros três exemplares, agora
provenientes da Península Ibérica.
Referimos em primeiro lugar o achado de Astorga (Asturica
Augusta), no decurso da escavação de um edifício termal, no final
dos anos 80 do século passado, embora só publicado em 2003.
Trata-se de dois fragmentos, atribuídos à mesma peça, do chamado
614
grupo baiano18. A interpretação dos fragmentos, um muito pequeno,
como pertencentes à mesma peça é contestada por Piero Gianfrotta,
através de pertinentes e irrecusáveis observações 19, com as quais
concordamos. Se o fragmento menor parece pertencer a uma garrafa
do grupo puteolano, como sugere Gianfrotta, será possível que este-
jamos perante o reflexo do desejo de conservar a memória dos dois
portos por parte de alguém que os visitou, adquirindo os dois vasos?
No ano anterior ao da publicação de Astorga, em 2002, uma es-
cavação em Mérida (Emerita Augusta), capital da Lusitânia, levou à
descoberta de mais uma peça numa sepultura de inumação tardia
na zona oriental da cidade 20. Bastante maltratada, a peça pertence
ao grupo puteolano, mostrando junto à extremidade do molhe uma
pequena embarcação e uma corbita, elemento ausente nos restantes
vasos conhecidos. A autora da publicação refere, seguindo Ostrow,
como sendo de oito o total de peças publicadas até ao achado de
Mérida, o mesmo número considerado na dissertação de Ana Coelho21.
No final desta enumeração, talvez fastidiosa mas necessária atendendo
à evolução verificada no conhecimento das fiaschette vitree, o total
é de 16 exemplares (Fig. 1), considerando a hipótese de Astorga
contribuir com duas peças. Novas pesquisas, inclusive nas reservas
dos museus, talvez proporcionem outros achados destes interessantes
artefactos vítreos22, suportes da memória e de uma imagem política
e social da maiestas romana 23, muito para além da simples repre-
sentação convencional do urbanismo de Puteoli e de Baiae.
615
Fig. 1 – Repartição dos achados de vasos com representação
da cidade de Puteoli.
616
Com efeito, ao pesquisarmos materiais para uma palestra foi-nos
comunicada a existência da referida fotografia 24, que identificámos
como sendo do conhecido vaso de vidro, tantas vezes referido em
artigos científicos, sobretudo estrangeiros, como em tempos sublinhou
Bairrão Oleiro, mas nunca ilustrado com uma foto.
O historial da peça, à época muito bem conservada, não é dos
mais claros e obriga a considerar três personagens importantes da
cultura portuguesa do século XIX, Augusto Soromenho, Teixeira de
Aragão e o Marquês Francisco de Sousa-Holstein (Fig. 2). A primeira
referência conhecida ao vaso de Odemira é de 1867, no catálogo da
secção portuguesa da Exposition Universelle de Paris, e até aqui não
há nenhuma novidade. Nesta secção do catálogo, da responsabili-
dade de Teixeira de Aragão, a ficha da peça é lacónica, brevemente
descritiva sem identificar Puteoli, limitando-se a informar que o vaso
seria proveniente de uma mina na zona de Odemira e que pertencia
ao Marquês de Sousa-Holstein 25 . Desde quando? Não nos parece
possível encontrar resposta definitiva para esta pergunta, pelo menos
por ora, embora possamos traçar algumas hipóteses.
617
Fig. 2 – O Marquês Francisco de Sousa Holstein em 1862
(foto de Alfred Fillon).
618
te mineiro parece deslocado, pelo que vários investigadores têm
proposto antes atribuí-lo a um contexto funerário, mais provável e
confirmado noutros casos. Qual foi a relação do Marquês de Sousa
Holstein com o vaso? No artigo publicado pelo professor prussiano
Heinrich Jordan em 1869, o primeiro que analisa cientificamente
o vaso de Odemira 28, repete-se a mesma reduzida informação do
catálogo de Paris, mas inclui elementos novos. Com efeito, Jordan
agradece a Augusto Soromenho os desenhos e as fotografias do
vaso 29, que serviram de base para delinear a excelente litografia de
Wilhelm Loeillot que ilustra o artigo (Fig. 3), artista nunca referido
nas publicações a que acedemos.
619
Cifka, Jacques Francem e Charles Thurston Thompson 30 . Também
sabemos, através do texto de Teixeira de Aragão, quais foram os
motivos expostos em Paris, ainda que sem atribuição de autor. Deste
conjunto de fotografias a única que representa um monumento rela-
cionado com a antiguidade romana, é a fotografia do chamado Templo
de Diana, em Évora 31. O artigo de Jordan foi publicado em Março
de 1869, embora o número da revista corresponda ao ano anterior,
o que permite supor que o material facilitado por Soromenho, em
boas relações com o Marquês de Sousa-Holstein, existisse já um
pouco antes, talvez da autoria de Thompson, dado que o fotógrafo
inglês do South Kensigton Museum, hoje Victoria and Albert Museum,
distinguido com o apoio de Sousa Holstein, se deslocou a Lisboa em
1866, sem que todavia exista qualquer registo de uma foto do vaso
de Odemira ou de obras da Academia 32.
Em 1861, quando Emil Hübner visitou Lisboa ocupado na pre-
paração da edição das inscrições romanas peninsulares 33 , o vaso
ainda não era conhecido, sugerindo que as referidas fotos tenham
sido executadas entre essa data e a exposição parisiense. O marquês
regressara da sua missão diplomática na Itália, relativamente curta, em
1860, ocupando o lugar de vice inspetor da Real Sociedade de Belas
Artes de Lisboa, onde desenvolveu grande atividade no sentido de
aumentar o acervo e introduzir reformas, algo sempre muito difícil em
Portugal 34. Esta intervenção incluiu simultaneamente um programa
de fotografia de peças artísticas pertencentes à Academia. Todavia,
fosse com fosse, a imagem que aqui publicamos não pertence, segu-
ramente, a nenhum dos referidos fotógrafos, como veremos adiante.
Para situarmos melhor o significado da divulgação desta peça no
humilde contexto arqueológico português da época, desde logo dada
620
a conhecer numa exposição de grande impacte internacional, somos
obrigados a recordar alguns acontecimentos que envolveram diver-
sas instituições culturais, por vezes não isentos de conflitualidade e
onde a figura turbulenta de Augusto Soromenho surgia amiúde. Em
1849 fora criada em Setúbal, a Real Sociedade Arqueológica Lusitana
com o objetivo expresso de efetuar escavações nas ruínas de Troia,
então erradamente identificadas com Caetobriga (Setúbal). Esta
sociedade teve como presidente vitalício o Duque de Palmela, pai
de Sousa Holstein, aliás durante um breve período, pois faleceu em
1850. Apesar de alguns resultados bastante interessantes e do apoio
do rei D. Fernando II, a sociedade entrou em crise e extinguiu-se, o
que contribuiu para dispersar parte do espólio 35.
Em 1868 surgiu uma nova agremiação científica, o Real Instituto
Arqueológico de Portugal, que contava entre os fundadores o Marquês
de Sousa Holstein, Teixeira de Aragão e Augusto Soromenho, numa
altura em que se tentava fazer reverter para a Academia Real de
Belas Artes o importante espólio das escavações em Troia, o que seria
determinado em Janeiro de 1869 por portaria governamental36. É
neste cenário um tanto confuso que ocorre a publicação de Jordan,
depois da lacónica notícia que acompanhou a exposição da peça na
mostra de Paris. Sem querer pôr em causa a origem alentejana do
vaso, sempre vagamente referida, mesmo Jordan chega a atribuí-lo,
talvez por referência à Academia, a Lisboa 37, não podemos deixar
de admitir, não fora a ligação do marquês a interesses mineiros em
Odemira, a hipótese do vaso ser proveniente das escavações efetuadas
em Troia, estação arqueológica de onde se conhecem outras peças
também presentes na exposição de Paris.
A qualidade do objeto e a sua novidade, pois os vasos de Roma
e de Piombino eram ainda praticamente desconhecidos, justificava
perfeitamente a sua deslocação a Paris e esta possível opção de
621
Sousa Holstein e dos seus futuros confrades no também episódico
Real Instituto Arqueológico de Portugal. Por outro lado, embora as
parcas informações disponíveis afirmem que a peça foi oferecida pelo
Marquês à Academia, não se trataria apenas de um depósito e não
de uma cedência definitiva? Existem algumas razões para considerar
esta possibilidade. Um pouco antes de 1892, ano em que Hübner
publicou o Suplemento ao CIL II, no qual inclui as rubricas que o
vaso português ostenta (CIL II 6251 1), este já não se encontrava na
Academia Real de Belas Artes, perdendo-se-lhe a pista definitivamente.
Em vão o tentou encontrar García y Bellido, sem resultado apesar
do largo apoio que lhe foi prestado em Lisboa, o mesmo sucedendo
com Bairrão Oleiro 38. Ter-se-ia mantido o vaso na Academia depois
do Marquês ter abandonado, em 1868, por discordar da orientação do
governo da época39, o cargo que desempenhava? Aparentemente tal
não seria possível se a peça se encontrasse numa situação de simples
depósito, podendo reverter ao proprietário, neste caso o Marquês.
Falecido Sousa Holstein em 1878 e a esposa em 1879, foi necessário
proceder a um leilão judicial para liquidar dívidas, o qual teve lugar
em Dezembro de 1879. Não nos consta que nele tivesse figurado o
vaso de vidro de Odemira, apesar da numerosa documentação exis-
tente sobre a venda, na qual se destacou a biblioteca do marquês e
diversas obras de arte 40 . Assim sendo, devemos considerar como
desaparecido este precioso testemunho da vidraria e da história
social romana.
Vejamos então o que se conhece, praticamente sem qualquer divul-
gação entre os arqueólogos, sobre a fotografia do vaso de Odemira,
a única de que temos evidência física e documental. A fotografia
consta de uma montagem em tríptico de três vistas do vaso (26 x 35
cm), de forma a cobrir toda a calote globular do mesmo, translúcida,
permitindo uma leitura de razoável qualidade dos elementos arqui-
622
tetónicos e epigráficos que a preenchem (Fig. 4). A cena representa,
sem razão para quaisquer dúvidas, a zona central da cidade portuária
de Puteoli, no Golfo de Pozzuoli, ou melhor, alguns dos monumentos
e estruturas mais marcantes da paisagem urbana puteolana.
Esta identificação foi assinada por Jordan no seu artigo de 1868
[1869], não merecendo contestação. Como a foto não tem escala, in-
felizmente, devemos obedecer ao que o autor prussiano nos indica,
aliás com alguma insegurança, pois fica a dúvida entre perímetro e o
diâmetro da parte globular do vaso41, embora esta última, de acordo
com as peças conhecidas com medidas seguras, pareça mais indica-
da 42. O cálculo de Ana Coelho, se o que a investigadora indica é a
altura total do vaso 43, não pode corresponder à realidade, embora
se revele aceitável para a parte globular do mesmo.
A gravura que acompanha o artigo, de grande qualidade, supre
as dificuldades apresentadas pelas diferentes secções da fotografia,
pois não é fácil, sobretudo com os materiais da época, conseguir
a iluminação e contraste ideais. Ainda uma observação a propósito
da muito divulgada gravura do artigo de Jordan, na qual se vê, em
escala bastante reduzida, uma representação do vaso. Com efeito,
se compararmos a sua posição nesse desenho com a que mostra em
qualquer das secções da foto, verifica-se uma não correspondência,
afastando, mais uma vez, a possibilidade do material cedido por
Soromenho a Jordan incluir o tríptico fotográfico que aqui trazemos,
indiscutivelmente da autoria do fotógrafo francês Jean Laurent.
623
624
Fig. 4 – Tríptico fotográfico do vaso de vidro de Odemira
(fotos de Jean Laurent).
Figura importante da arte fotográfica da segunda metade do século
XIX, que soube aliar obra artística a um arguto sentido comercial,
Laurent deixou-nos um espólio impressionante constituído por vários
milhares de fotos, sobretudo de paisagens, monumentos e obras de
arte, na maioria referentes a Espanha44, onde se instalou cedo, cons-
tituindo família (Fig. 5). Utilizou correntemente a técnica do colódio
húmido em chapas de vidro, por vezes de grandes dimensões, e cópias
em papel albuminado. Muitas das fotografias foram comercializadas
para visionamento estereoscópico, prática vulgarizada na época45.
Alguns dos seus catálogos anteriores ao de 1879, embora incluam
temas nacionais, não contemplam o vaso de Odemira, o que não
significa que não o tivesse já fotografado.
625
A viagem de Jean Laurent a Portugal teve lugar em 1869, com
início no mês de Março. Esta simples constatação elimina definiti-
vamente quaisquer dúvidas quanto a uma possível colaboração na
exposição de Paris ou no artigo de Jordan, que foi publicado exa-
tamente nesse mês. Melhor ainda, a foto do vaso de Odemira está
claramente identificada no catálogo publicado, tal como o anterior em
Madrid, no ano de 1879, por Alfonso Roswag, familiar do fotógrafo,
explicitando a propriedade do vaso: À S. E. Mr. Le Marquis de Souza-
Holstein. B.235: Verre globulair, de l’époque romaine, vu sur trois
côtés différents; il a été trouvé dans une mine près d’Odmira (sic),
jadis exploité par les Romains46. Julgamos que não é possível duvidar
da autoria da fotografia, tornando ainda mais estranho o facto de
nunca ter sido referida em nenhum trabalho arqueológico, antigo ou
recente. A forma como a peça é indicada estabelece inequivocamen-
te a sua pertença ao Marquês de Sousa Holstein, destacando-a das
peças da Academia juntamente com quatro desenhos de Domingos
Sequeira 47. A hipótese que sugerimos anteriormente parece ganhar
assim suficiente consistência.
A perda de um objeto arqueológico, e os primeiros anos do século
XXI têm sido pródigos em destruições e extravios de vários tipos,
é sempre um sucesso infausto, tão lamentável como de passageiro
impacte sobre a opinião pública, cada vez mais a opinião que se
publica, como alguém disse em Portugal décadas atrás. No caso do
vaso de vidro de Odemira ficou-nos, felizmente, um bom testemunho
iconográfico, do qual talvez um dia se possam registar outros exem-
plares, em Portugal ou em Espanha, sem esquecer que Laurent tinha
agentes que vendiam a sua produção fotográfica em vários países.
Uma última observação acerca da fotografia e de Sousa Holstein, cuja
morte precoce privou Portugal, num período crítico de transição,
de uma mente esclarecida e de uma personalidade ativa. Devemos
considerar que o Marquês nutria pela peça um interesse especial,
626
promovendo o seu registo fotográfico e consequente divulgação.
É possível que tivesse conhecimento do artigo de Jordan, diretamen-
te ou talvez através de Soromenho, não perdendo a oportunidade
oferecida pela presença de Jean Laurent para obter uma imagem de
grande qualidade.
O vaso mostra uma imagem esquemática da paisagem da cidade
portuária de Puteoli, com início no molhe e terminando, à esquerda,
com os anfiteatros, com um corte entre estes motivos bem marcado.
O porto de Puteoli foi, no período republicano tardio e nos primeiros
tempos do Império, o principal porto da Itália, posição que parece
ter mantido até meados do século IV, apesar de algumas prová-
veis dificuldades no século II, aparentemente devido ao resultado
das grandes obras portuárias de Cláudio e de Trajano, em Óstia e
Civitavecchia (Centumcellae). Essencial na estrutura de abastecimento
da Itália, especialmente de Roma, de que era porto anonário, o seu
movimento era intenso e variado. Era também um centro industrial,
nomeadamente de produção de perfumes e de vidros, conhecendo-se
mesmo um Clivus vitrarius48. Esta atividade manteve-se a bom nível
pelo menos até fase avançada do século IV, devendo recair pelos
inícios desse século o fabrico das famosas fiaschette vitree 49, o que
não deixa, pela sua difusão, de constituir um indício da continuidade
da importância da cidade e do seu porto.
Recordamos uma carta de Séneca que refere o entusiasmo da
população quando se avistavam os avisos que precediam a chegada
da frota com o primeiro envio anual de trigo do Egipto 50. O mon-
tante destes cereais recebidos no porto poderia ascender, segundo
cálculos recentes, a um valor anual entre 70000 a 100000 toneladas,
o que equivale a muitas dezenas de navios de dimensões médias 51.
A estes devemos acrescentar os que transportavam os produtos da
627
Hispânia, sobretudo azeite e preparados piscícolas, tráfico sugerido
por um texto de Estrabão que refere os navios da Turdetânia como
sendo em grande número e os maiores que nos primeiros tempos
do Principado aportavam a Itália, a Dicearchia-Puteoli e Ostia,
reflexo seguro da importância e capacidade do porto campanien-
se 52 , de que longamente sobreviveram vestígios da sua grandeza
(Fig. 6).
628
liberto Trimalquião, jactancioso armador e negociante 54, evocando
um cenário passavelmente amoral. Num contexto também cosmopo-
lita, mas a nível superior, onde não faltavam notáveis e imperadores,
não podemos esquecer que a região foi famosa na época romana
como centro de vilegiatura de luxo, sobretudo no final da República
e durante o Alto Império 55, pelas suas belezas naturais, a que não
faltava o toque exótico das manifestações vulcânicas, e pelas águas
termais, o que é claramente indicado na série baiana pela figura
feminina, a nereida Baiae ou a personificação da cidade, segurando
um skyphos, presente no fragmento de Astorga e no vaso romano
ora em Varsóvia 56.
629
Esta dupla circunstância, económica e turística, terá contribuído
também para a produção das fiaschette, fácil de entender pelas ca-
racterísticas da região e dos seus ativos portos, a interpretar como
recordações de viagem, e não como objetos com uma intenção
religiosa ou funerária 57 . Parte das inscrições que alguns vasos
ostentam na parte superior do balão, certamente gravadas a pedido
do comprador, não apoiam tal intenção, ainda que a ideia subjacen-
te de viagem possa ser entendida simbolicamente como passagem
pela vida 58. Seja como for, o achado de peças de vidro em espólios
funerários é normal, não havendo razão para lhes atribuir, neste
caso, significado especial, ainda que a legenda gravada no vaso de
Roma o possa sugerir.
A descrição da imagem urbana presente no vaso de Odemira já foi
feita muitas vezes ao longo de mais de século e meio de investigação
científica. O avanço da arqueologia na zona de Puteoli e de Baiae,
nomeadamente a escavação em terra e a prospeção subaquática, fun-
damental numa área onde os fenómenos tectónicos, especialmente
bradissismos (Fig. 8), alteraram por várias vezes a linha de costa 59,
contribuíram para revisões regulares do que entretanto foi escrito.
Trataremos, assim, de forma sucinta o que se vê no vaso e como
se deve, ou pode, interpretar o que lá está, tarefa que as legendas
indicativas das estruturas que mereceram destaque nem sempre fa-
cilitam. O espaço disponível no vaso, cujo diâmetro parece ter sido
de 10,5 centímetros, obrigou a um tratamento muito simplificado,
estilizado. Por isso não podemos interpretar as figuras como se
estas fossem realistas, como também assim devemos considerar as
representações pictóricas que corresponderão à paisagem portuária
de Puteoli, largamente utilizadas pelos investigadores que se têm
ocupado do assunto 60.
630
Fig. 8 – Planta sumária de Pozzuoli, com a alteração da linha de costa:
1 – Molhe; 2 – Macellum; 3 – Templo de Augusto (Catedral); 4 – Anfiteatro
Flávio; 5 – Anfiteatro Republicano; 6 – Estádio de Antonino Pio.
Imaginando uma chegada a Puteoli por via marítima, uma vez que
o panorama é visto do mar, a primeira estrutura representada é, da
direita para a esquerda, o grande molhe sobre arcadas, corretamente
identificado (CIL X 1640-1641), em mau Latim, como PILAS, ainda que
a colocação do termo entre as colunas possa sugerir tratar-se delas
próprias. Do molhe ainda existiam ruínas importantes no século XIX,
presentes desde o século XVI na iconografia local61, encontrando-se
agora sob o paredão moderno, no qual foram integradas em 1890
(Fig. 9). Obra impressionante, profusamente decorada, poderá re-
montar à época de Augusto62, com importantes trabalhos de restauro
sob Nero, Antonino Pio e Marco Aurélio 63.
631
Fig. 9 – As ruínas do molhe de Puteoli em 1769
(gravura de F. Morghen).
632
Segue-se um primeiro arco de duas aberturas, ostentando sobre o
ático quatro prótomos de cavalos-marinhos, simplificando a quadriga
que aparece na gravura de Bellori66, talvez um grupo escultórico
representando Neptuno no seu carro. As duas colunas honoríficas
sobre o molhe poderão pertencer a Antonino Pio e Marco Aurélio 67,
tanto mais que este tipo de grandes colunas monumentais teve des-
tacada popularidade na arquitetura cívica romana do século II. Na
extremidade esquerda do molhe encontramos um segundo arco, por
vezes interpretado como templo de Ísis, devido à presença do que
parece ser um disco isíaco, idêntico ao que ocorre na decoração do
templo de Serápis 68 , hipótese que a observação de outros vasos,
como os de Praga e Nova Iorque, por exemplo, obriga a descartar.
No vaso do Museu Nacional de Praga o arco aparece coroado
com um grupo escultórico de tritões soprando instrumentos, talvez
grandes búzios, enquanto a palavra RIPA, que no vaso nova-iorquino
surge no interior do arco, sugere que este monumento se situava
à entrada do molhe na marginal de Puteoli (Fig. 10). Todavia, não
podemos deixar de verificar a semelhança entre o arco no vaso de
Odemira e os que figuram nos vasos de Populonia e Ampúrias, todos
diferentes dos restantes, embora ocupem a mesma a sua posição à
entrada do molhe. Na gravura publicada por Bellori, reproduzindo
uma pintura perdida de Roma, dada a conhecer inicialmente por
Tomasso Mamachi 69, a porta monumental do Forum Boarium pode-
ria eventualmente, corresponder ao arco que se discute, embora tal
identificação nos pareça muito forçada.
633
Fig. 10 – Os principais monumentos de Puteoli no vaso
do Museu de Praga.
70 Peluso 2007-2008:50-68.
71 Ostrow1979: 123-124; Sommella 1978: 29-32.
72 Esta é também a opinião expressa pelo Doutor José d’Encarnação quando
lhe apresentámos o problema.
634
bem caracterizado 73. Ainda assim, não queremos deixar de invocar
outras possibilidades: uma leitura relacionada com o Vicus [Anni]
anus referido numa inscrição honorífica de 121, não fora o seu local
de achado, hoje submerso, como a maior parte da zona ribeirinha da
cidade 74; ou antes procurá-lo na área identificada como Anniana
no vaso de Mérida 75; fazer derivar a rubrica no vaso de Odemira
do cognome Hermetianus, usado por uma família de Puteoli com
evidente capacidade para custear a construção de um edifício ter-
mal 76, que parece situado num ponto alto da cidade. Aguardemos
novas descobertas em Pozzuoli antes de arriscarmos uma identificação.
Segue-se o edifício com mais destaque, depois do molhe, no vaso
de vidro de Odemira, o Serapeum, grande templo de uma divindade
alexandrina de natural recepção nos centros portuários 77 , apesar
de algumas opiniões contrárias, apoiadas, sobretudo, na representa-
ção da divindade, edifício sempre valorizado na série de fiaschette
puteolanas, cuja evidente importância permitiu dispensar legenda.
Situar-se-ia numa posição elevada, como sugere a monumental es-
cadaria nas imagens nos frascos de Praga e Pilkington, não muito
longe da margem. Mais à esquerda do templo temos duas colunatas:
a inferior, na falta de legenda, dificilmente pode ser identificada,
apesar das múltiplas hipóteses permitidas pelo vaso de Praga 78.
No registo superior a rubrica indica o SOLARIVM, igualmente
presente noutros vasos, estrutura que também levanta problemas
de interpretação. Grande terraço sobre a cidade ou relógio de sol
monumental, que sabemos, por testemunhos epigráficos ter existido
em Puteoli? Podemos admitir a existência de uma vasta Palestra,
tanto mais que no vaso de Praga ao lado do Solarium se encontra
o Stadium, talvez resultante da transformação do anfiteatro republi-
635
cano, representado, sem legenda, ao lado do Solarium. No vaso de
Praga e num dos fragmentos de Brescia estão representados estádios,
que neste último caso corresponde a um circo, como se depreende
da representação da Spina, decorada com colunas (?) e obeliscos.
A hipótese mais consistente, todavia, é a da sua identificação com o
estádio construído por Antonino Pio junto à Via Domitiana, a oci-
dente da cidade (Fig. 11), edifício de grandes dimensões cujas ruínas,
cobertas pela erupção de 1538, foram escavadas recentemente 79.
636
T que pode corresponder ao relógio. Não podemos deixar de evocar
o Horologium monumental de Augusto, em Roma, do qual o gnómon
era o obelisco egípcio atualmente na Piazza Montecitorio (Büchner
1982). Um monumento deste tipo, e sabemos que o de Puteoli foi
de iniciativa imperial (CIL X 1617), exigia uma área vasta, que bem
poderá corresponder ao Solarium.
637
edifício, comprovam a infelicidade da proposta de García y Bellido
ao querer contrariar a opinião de Jordan.
638
arcos do molhe é arbitrário nas representações existentes e que jun-
to ao molhe, a oriente, existiam grandes viveiros, dos quais ainda
subsistem numerosos vestígios submersos.
Estas estruturas são numerosas na Itália, em particular na Campânia,
destinando-se, neste caso, à piscicultura em ambiente próximo do
natural. Outras hipóteses: será a sua ausência nos vasos de Odemira
e de Pilkington reflexo de fenómenos de bradissismo causadores
da sua destruição, o que permitiria conferir uma datação baixa à
peça 84, ou estamos apenas perante uma simplificação do cenário,
refletindo, talvez, a escolha de um eixo orientado a nordeste, a partir
do molhe, que projete monumentos situados no interior da cidade,
evitando em parte a marginal, tanto mais que essas instalações não
ocupariam a zona portuária do empório, desenvolvendo-se a oriente
do molhe? Na verdade, o vaso de Odemira também não representa
o Emporium, com o seu monumental mercado urbano, apesar da
importância deste edifício (Fig. 14), cujas ruínas tradicionalmente
designadas como Templo de Serápis cedo constituíram elemento
essencial na análise da geologia da zona 85 . Por outro lado não
queremos deixar de sublinhar que a existência de ostriaria na prin-
cipal zona portuária da cidade não parece aceitável, pois prejudicaria
gravemente a manobra e atracagem dos navios.
639
Fig. 14 – As colunas do Macellum em 1836,
com as marcas da submersão (apud Lyell).
640
ção local86, a variedade dos desenhos e das técnicas utilizadas pelos
gravadores sugere alguma diversidade das oficinas e, provavelmente,
também diferenças cronológicas 87, embora não muito acentuadas.
A análise dos materiais utilizados talvez permita avançar nesta questão,
sem que esqueçamos como são poucos os exemplares sobreviven-
tes, produzidos de forma artesanal com todas as variações que tal
circunstância implica.
As pinturas de cenas ditas nilóticas, neste caso não muito corre-
tamente, admitidas como representando Puteoli, registadas em Roma
e Estábia, sobretudo a primeira 88, publicada por Bellori no século
XVII a partir de uma pintura perdida do Esquilino (Fig. 15), apesar
de relevantes para a topografia geral da cidade, não são muito elu-
cidativas quanto ao cenário do vaso de Odemira, com exceção da
imagem do molhe, ainda que na pintura de Estábia, reproduzida por
G. Morghen 89, pareça visível o teatro junto ao mar.
641
Embora consideradas cautelosamente por Ostrow 90, depreende-
-se que a cena das pinturas tem o mesmo motivo pela análise dos
monumentos que o molhe sustenta, assim como por alguns edifícios
que nelas se repetem, como o Forum Boarium, considerando as va-
riantes próprias da imaginação e liberdade naturalmente existentes
neste tipo de testemunhos artísticos. É o caso da ilhota que aparece
na desaparecida pintura romana e também na de Estábia, esta conser-
vada no Museu Nacional de Nápoles (Fig. 16), que talvez possamos
interpretar, não sendo apenas uma fantasia do artista, como a vizinha
ilha de Nisida, e a grande estrutura arquitetónica, à esquerda da
pintura, o palácio imperial, hoje em grande parte submerso junto à
Punta dell’Epitaffio91. Na pintura reproduzida por Bellori, o Templo
de Apolo é, muito provavelmente, o Templo de Augusto, hoje a re-
centemente reconstruída Catedral de Pozzuoli 92.
642
Fig. 16 – Pintura de Estábia, com possível representação de Puteoli
(apud M. Wheeler).
***
643
imperial93. Durante a elaboração do texto tivemos sempre presente a
paisagem do golfo napolitano e as memórias dessa mesma paisagem,
sobretudo de um momento extraordinário vivido à noite no terraço
de uma trattoria nas alturas de Posillipo, quando beleza e história,
pontilhadas pelas luminárias ao longo do litoral, convocaram um
indizível sentimento de plenitude emocionada.
Bibliografia
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Estudos
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647
(Página deixada propositadamente em branco)
LINGUÍ S TICA
(Página deixada propositadamente em branco)
O lugar do input linguístico
e m e ta l i n g u í s t i c o e m t e o r i a s
de aquisição/aprendiz agem de línguas
n ão m at e r n a s . I m p l i c aç õ e s p e dag ó g i c a s
T h e P l ac e o f L i n g u i s t i c a n d M e ta l i n g u i s t i c I n p u t
i n t h e T h e o r i e s o f L a n g uag e A c q u i s i t i o n / L e a r n i n g
o f N o n - n at i v e L a n g uag e s . P a e dag o g i c a l
I m p l i c at i o n s
Cristina Martins
Univ. Coimbra, CELGA-ILTEC
ORCID: 0000-0002-9335-6027
crismar@fl.uc.pt
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_28
Palavras-chave: línguas não maternas, teorias de aquisição e aprendiza-
gem, input linguístico, input metalinguístico
1. Introdução
652
Desde então, os estudos sobre aquisição e aprendizagem (AA 2)
das LNM foram-se afastando das premissas behavioristas e estrutura-
listas, ao mesmo tempo que se foram autonomizando da investigação
que incide mais especificamente sobre o seu ensino, para constituir,
hoje, uma área de inquirição independente desta, inspirada por con-
ceções teóricas diversas e com propostas explicativas alternativas
destes fenómenos na perspetiva do aprendente.
Ainda assim, e apesar desta individualização, a aplicabilidade ao
ensino da investigação em AALNM continua a motivar os proponentes
de alguns dos modelos teóricos mais proeminentes na atualidade 3,
enquanto outros, operando em quadros tradicionalmente avessos a
preocupações deste tipo (como o gerativismo, que adiante se conside-
rará), começam a dar sinais de interesse na aplicação pedagógica das
investigações conduzidas no quadro dos seus modelos explicativos.
A reaproximação dos estudos de AA aos interesses pedagógicos
é naturalmente desejável para quem ensina LNM e se vê confron-
tado com a multiplicidade de orientações pedagógicas atualmente
existentes 4 , também elas alimentadas por inúmeras controvérsias
(entre as quais a que diz respeito à vantagem, ou não, de se ensinar
a gramática da LNM explicitamente). As abordagens pedagógicas
ganharão, certamente, se puderem ser apoiadas por descrições das
características das interlínguas 5 que os aprendentes da LNM vão
653
construindo em diferentes fases da AA, mas beneficiarão igualmente
da ponderação das hipóteses existentes sobre a natureza dos siste-
mas cognitivos ao serviço da AA e das representações linguísticas
com estes compatíveis, contributos que, mesmo que repassados por
divergências, a investigação neste âmbito tem avançado. Assim, e
sendo certo que não existe uma narrativa comum nem sobre como
se adquire/aprende uma LNM, nem sobre como esta se deve ensinar,
a verdade é que é possível, apesar disso, levar em consideração as
perspetivas de vários modelos teóricos de AALNM para sustentar
opções pedagógicas, como se procurará demonstrar.
O presente trabalho não tem por objetivo discutir a validade das
posições teóricas convocadas, mas antes equacionar até que ponto
as conceções alternativas avançadas sobre a natureza dos sistemas
cognitivos ao serviço da AALNM e/ou das representações mentais
que estes computam são compatíveis com o recurso, no ensino, a
distintos tipos de input (meta)linguístico. Este propósito justifica-se
pelo facto de o input ser uma das (poucas) componentes do pro-
cesso de AALNM que pode ser ativamente manipulada em contexto
instrucional. Procurar-se-á, pois, avaliar a interação possível e previ-
sível entre diferentes tipos de input e os sistemas de aquisição e/ou
aprendizagem das representações da LNM perspetivados por diferentes
modelos, nomeadamente os de filiação gerativista e emergentista, a
Skill Acquisition Theory e o paradigma declarativo-procedimental.
2. Conceitos operatórios
sição/aprendizagem. As IL não se confundem, assim, nem com a LM, nem com a LA,
antes constituem sistemas transitórios que, enquanto dura a aquisição/aprendizagem,
se reestruturam permanentemente.
654
por outro, sendo que todos se constituem como recursos educacio-
nais potenciais.
O input negativo, seja implícito ou explícito, caracteriza-se por ser
de natureza reativa. Trata-se do feedback fornecido ao aprendente e
que é espoletado pela presença, na sua produção linguística, de uma
agramaticalidade. É implícito quando assume a forma de recast, sem
comentário metalinguístico (i.e., a repetição do enunciado desviante,
sem a agramaticalidade original), e é explícito quando enquadrado
por um comentário metalinguístico que sinaliza, sem equívocos,
a presença de uma forma não convergente com o alvo (“Não se diz
x, diz-se y”).
Já o input positivo é o demais, i.e., o não reativo, que pode,
igualmente, ser explícito (i.e., metalinguístico, quando assume a
forma de uma explicação gramatical, por exemplo), ou implícito.
É este último o tipo de input que, em contextos não instrucionais (ou
naturalísticos), prevalece, já que corresponde aos usos linguísticos
espontâneos e “normais”, não norteados (pelo menos necessariamen-
te) por um propósito pedagógico. Ainda assim, também em contexto
instrucional o input positivo implícito existe, como é evidente. Aliás,
quando a prática pedagógica segue as orientações das abordagens
comunicativas do ensino de LNM, é mesmo este o tipo de input
que impera. Já os outros três tipos são sobretudo valorizados pe-
las orientações pedagógicas, como o focus on form ou o focus on
forms6, que preveem um efeito positivo do feedback corretivo, por
um lado, e do ensino explícito da gramática, por outro, na AALNM
que ocorre em contexto instrucional.
6 A diferença entre estas duas orientações prende-se com o caráter reativo da focus
on form vs. a natureza proativa da focus on forms. Deste modo, a primeira defende
o ensino explícito da gramática apenas na medida em que o aprendente possa reve-
lar, pelas dificuldades encontradas nas suas atividades linguísticas, dela necessitar,
enquanto a segunda advoga que esse ensino deve, antes, ser preventivo, fornecendo
ao aprendente informação prévia sobre as estruturas que serão previsivelmente (i)
necessárias para desempenhar tarefas comunicativas específicas e/ou (ii) difíceis de
dominar. Cf., sobre esta distinção, Long & Robinson 1998.
655
2.2. Sistemas cognitivos e representações mentais
656
Já os sistemas de processamento são periféricos, no sentido em
que operam na interface entre as representações codificadas nos
sistemas de retenção duradoura e as condições de input e de ou-
tput. Interagindo com recursos atencionais, estes sistemas ora são
responsáveis pela extração e filtragem dos dados linguísticos aos
quais o aprendente está exposto, de modo a transformar o input
em intake10, ora atuam aquando da mobilização das representações
(meta)linguísticas adquiridas/aprendidas para a produção lin-
guística 11.
Os modelos teóricos existentes tendem a fazer incidir o seu foco
em apenas um destes tipos de sistemas ou, então, mais especifica-
mente, nas representações que neles operam, mantendo-se omissos
em relação à natureza e o funcionamento dos demais. Um exemplo
notório é a Input Processing Theory 12 que, centrando-se no proces-
samento do input, mantem neutralidade em relação à natureza quer
do sistema que retém o intake quer das representações linguísticas
correspondentes, o que faz com que este modelo não seja necessa-
riamente incompatível com outros que incidem sobre componentes
distintas do processo de AALNM. Noutros modelos não é sequer
percetível uma fronteira clara entre mecanismos de processamento
e de armazenamento das representações interlinguísticas, conceptu-
alizando-se um sistema em que ambos os mecanismos operam, mas
cujo foco tende, no entanto, a incidir sobre a retenção duradoura do
intake e/ou sobre os formatos representacionais que este assume.
657
Na presente discussão, centrar-nos-emos nos sistemas de arma-
zenamento, a longo prazo, do conhecimento da LNM e nos tipos de
representações mentais com eles compatíveis, já que é sobre a sua
natureza que existe maior e mais assumida controvérsia.
3. Modelos teóricos
13 Chomsky 1965.
14 Fodor chama a esta propriedade informational encapsulation. Para além
disso, especifica: “modular cognitive systems are domain specific, innately specified,
hardwired, autonomous, and not assembled” (Fodor 1983: 37).
658
dados do input, por si só, lhe permitiriam saber (o que constitui o
conhecido problema lógico da aquisição linguística ou problema de
Platão). Capacitando-a para suplantar a pobreza dos estímulos aos
quais está exposta, a GU confere à criança um avanço considerável
na tarefa de aquisição da sua língua materna (LM) e, logo assim, uma
dependência mínima dos dados do input linguístico para esse efeito.
A exposição ao input linguístico, nesta perspetiva, assume dois
propósitos básicos e interrelacionados. O primeiro é o de contribuir
para a seleção, entre a variabilidade (ainda que limitada) das formas
possíveis e previstas na GU, daquela que a gramática específica da
LM efetivamente assume. A partir do modelo Princípios e Parâmetros,
um dos que entretanto foram desenvolvidos no quadro da gramática
gerativa, este processo de seleção passa a corresponder, precisamen-
te, a uma parametrização de propriedades variáveis das línguas que
instancia princípios universais mais latos. A segunda tarefa do input,
com esta relacionada, é a de desencadear o rastilho de operações
tendentes à aquisição implícita e inconsciente dos valores destes
parâmetros, cujas sequências estão já, e igualmente, previstas na
GU. A gramática particular assim adquirida é um sistema finito de
categorias linguísticas parametrizadas e de operações, de natureza
computacional, que permitem, por sua vez, gerar um número ilimi-
tado de enunciados gramaticais 15.
A partir destas premissas básicas se desenvolveram, sobretudo a
partir das décadas de oitenta e noventa do século XX, vários mo-
delos teóricos de aquisição de LNM 16 fundamentalmente centrados
na conceptualização do estádio inicial do processo. Estes modelos
partilham a assunção de que, também na aquisição da LNM (e não
apenas, portanto, na da LM), a GU se encontra disponível e acessível
659
ao aprendente, distinguindo-se, no entanto, em função de vários cri-
térios, entre os quais a forma como se perspetiva esse acesso (total
vs. parcial, direto vs. indireto) e o ponto de partida do processo (a
GU ou a LM)17. Assim, assumido, embora, que o aprendente da LNM
se distingue da criança que adquire a LM, na medida em que enfrenta
a tarefa de adquirir a LNM com a GU já parametrizada, as diferenças
fundamentais entre estes diferentes modelos gerativistas radicam,
na essência, na forma de conceptualizar o modo como, no processo
de aquisição da LNM, interagem a GU e a LM do aprendente, assim
como o peso que cada uma destas componentes assume no processo.
Independentemente, no entanto, destas especificidades, importa
realçar que, para além da previsão do papel da GU no processo de
aquisição da LNM (e do papel, ainda que variável, da LM), nenhum
destes modelos dedica espaço teórico à eventual intervenção de
representações linguísticas explícitas, i.e., metalinguísticas, na re-
estruturação do conhecimento linguístico implicitamente adquirido.
Ainda que a (co)existência, em si, de representações metalinguísticas
não colida com as premissas básicas destes modelos 18, ela revela-
-se, contudo, teoricamente irrelevante, na medida em que, sendo o
conhecimento linguístico implícito representado e computado por
um sistema modular, esse sistema é, e por definição, insensível à
influência de representações de sistemas cognitivos não modulares e
domain general. Deste modo, um eventual efeito de retorno do co-
nhecimento metalinguístico explícito aprendido sobre o conhecimento
linguístico adquirido é uma impossibilidade teórica nestes modelos,
que alguns investigadores assumem, de resto, muito frontalmente 19.
17Para uma apresentação destas posições, cf. Mitchell, Myles & Marsden 2013
ou White 2003.
18 Aliás, segundo Fodor, os sistemas modulares coexistem com mecanismos
cognitivos transversais, i.e., domain general, e informacionalmente não encapsula-
dos, tanto mais que “representations that input systems [modules] deliver have to
interface somewhere, and the computational mechanisms that affect the interface
must ipso facto have access to information from more than one cognitive domain”
(Fodor 1983: 101-102).
19 Por exemplo, Schwartz 1993.
660
Mesmo assim, existem algumas tentativas, no paradigma gerativis-
ta, de avaliação do papel desempenhado, na aquisição da LNM, pelo
feedback negativo e input explícito que estão na origem de represen-
tações metalinguísticas. Nesta linha, White 20, por exemplo, admite
que estes tipos de input podem ajudar o aprendente a identificar os
limites da língua-alvo, pela sinalização das opções de parametrização
que nela não são possíveis, mesmo que não contribuindo, no entanto,
e diretamente, para a aquisição das parametrizações efetivamente
requeridas (o que só o input positivo implícito permite). Dito isto,
e não obstante a admissão deste papel benéfico do feedback nega-
tivo e input explícito, White21 também relata o efeito não duradouro
da sua influência no comportamento linguístico dos aprendentes
da LNM, sugerindo, assim, a ausência de um impacto efetivo das
representações metalinguísticas na competência linguística implícita
dos aprendentes.
Já num modelo mais recente de cariz gerativista, a Interface
Hypothesis22, centrado nas características dos estádios avançados de
aquisição da LNM, existirá, porventura, algum espaço teórico para
acomodar o papel eventual de feedback negativo e de input positivo
explícito. Perspetivando a gramática interiorizada pelo aprendente
como um sistema computacional, este último é constituído por mó-
dulos (fonologia, sintaxe e semântica), que interagem entre si por
meio de interfaces internas, mas que se relacionam, igualmente, com
sistemas cognitivos externos à core grammar, como os que suportam
o conhecimento pragmático-discursivo, por exemplo, fazendo-o por
meio de interfaces externas. Ora, é justamente no conhecimento
de estruturas linguísticas cuja gramaticalidade depende do funcio-
namento das interfaces, quer internas, quer externas, que se têm
registado, na investigação disponível, maiores divergências entre
aprendentes avançados da LNM e falantes para quem esta é, antes,
661
a LM. Neste modelo, não sendo teoricamente fácil de acomodar a
putativa intervenção de representações metalinguísticas explícitas
no funcionamento da core grammar (uma vez que esta é modular),
já seria possível perspetivar a sua ação no domínio das interfaces
externas 23. Mesmo que não seja, ainda, inteiramente claro de que
modo o ensino explícito da gramática, por exemplo, contribuiria para
o funcionamento de um sistema assim concebido, a verdade é que
já existem investigadores 24 que advogam o recurso a esse tipo de
ensino que, infere-se, forneceria ao aprendente formas supletivas e
compensatórias de uma aquisição implícita menos bem-sucedida de
estruturas de interface externa.
Dito isto, também existem teorias de AALNM que rejeitam a pre-
missa de que a GU é um fator interveniente no processo. Nuns casos,
admitindo-se, até, o papel da GU na aquisição da LM, considera-se,
contudo, que o seu acesso fica interditado por constrições maturacio-
nais 25 no caso da AA tardia da LNM. Representativa desta posição
é a Fundamental Difference Hypothesis de Bley-Vroman. O investi-
gador vê a AALNM como resultando da ação combinada da LM do
aprendente e de mecanismos cognitivos gerais, perfilhando, assim,
“a view of foreign language learning in which first language know-
ledge fills the role which Universal Grammar has in child language
acquisition, and in which general problem-solving principles fill
the role of the language-specific learning procedures of children”26.
23 É nesta linha que se inscreve a hipótese de VanPatten & Rothman 2015, por
exemplo, ao sugerirem que são aprendidas, por via explícita, as formas fonomorfoló-
gicas associadas a propriedades gramaticais específicas, como as formas pronominais
que traduzem sujeitos referenciais expressos ou os morfemas dos verbos que carreiam
valores número-pessoais em concordância com o verbo.
24 Por exemplo, Teixeira 2016, Valenzuela & McCormack 2013 e Whong 2013.
25 Esta posição é compatível com a hipótese do período crítico, segundo a qual
existe, em função do amadurecimento biológico do cérebro, uma janela de oportuni-
dade temporal restrita para a aquisição implícita de uma língua, por mera exposição
ao input naturalístico, finda a qual esse tipo aquisição deixa de ser possível. Esta
hipótese é, ainda hoje, e por várias razões, alvo de discussão. Cf. para uma revisão
de posições e de argumentos, Hyltenstam & Abrahamsson 2003 e Long, Granena &
Montero 2018.
26 Bley-Vromen 1990: 5.
662
Noutros casos nega-se a própria existência da GU, que assim não
desempenha qualquer papel nem na aquisição da LM, nem na da
LNM. Neste sentido, assume-se que a AALNM ocorre com recurso a
mecanismos cognitivos gerais, não modulares e não especificamen-
te dedicados à computação e armazenamento de representações
linguísticas. Perfilham esta posição geral, por exemplo, perspetivas
teóricas baseadas nos usos, como o emergentismo27, e também a Skill
Acquisition Theory28. Partilhando este entendimento sobre a arquite-
tura da mente, o emergentismo e a Skill Acquisition Theory diferem,
contudo, e substancialmente, em relação à natureza dos mecanismos
gerais que consideram estar ao serviço da AALNM.
A perspetiva emergentista defende o papel preponderante de
mecanismos implícitos de aquisição linguística, considerando que a
AALNM ocorre através de um processo indutivo e inconsciente que
é altamente sensível a fatores como a frequência e a probabilidade
de ocorrência de padrões de distribuição contextual das construções
existentes no input linguístico. Estas construções correspondem a
associações forma-função, pelo que, postula-se, quanto mais estáveis
e transparentes estas se apresentarem no input da língua-alvo, mais
fácil será a sua aquisição. A exposição reiterada a exemplares de
construções linguísticas específicas reforça, portanto, as associações
forma-função que as definem e, logo assim, a sua retenção a longo
prazo.
O emergentismo também faz previsões sobre o processamento do
input, pondo a hipótese de que os sistemas percetivos incorporam
detetores de sinais (cues) e rotinas de processamento cujos níveis
de ativação variam em função da frequência, da redundância e da
saliência das construções no input e cuja afinação ocorre à medida
que a exposição aos exemplares presentes no input aumenta e, logo
assim, a aquisição da LNM se desenrola. Partindo do princípio de que
tais mecanismos percetivos podem sofrer bloqueios (por influência
663
das rotinas já estabilizadas de processamento da LM, ou por falta
de robustez de determinadas construções no input da LNM), está
prevista, a este nível, o efeito benéfico e compensatório de feedback
corretivo e da explicitação das associações forma-função apropria-
das 29 . É, justamente, no nível do processamento do input que se
prevê a possibilidade de intervenção de mecanismos explícitos,
na medida em que estes promovam o noticing 30, i.e., a tomada de
consciência, por parte do aprendente da LNM, das associações mais
difíceis de adquirir pela mera exposição às construções presentes
no input positivo implícito. Assim sendo, o papel da aprendizagem
explícita é, nesta perspetiva, limitado, circunscrevendo-se a esta
função compensatória.
Já a Skill Acquisition Theory, e sem negar um papel aos meca-
nismos implícitos para a AALNM, visa, antes, explicar o modo como
os aprendentes se socorrem de mecanismos explícitos/declarativos
para o efeito. O modelo é, na verdade, particularmente orientado
para situações de AALNM que dizem respeito a “(a) high-aptitude
adult learners engaged in (b) the learning of simple structures at
(c) fairly early stages of learning in (d) instructional contexts” 31 .
Assim, o modelo prevê que, nas fases iniciais da AALNM, são as re-
presentações de natureza declarativa, i.e., o saber sobre as estruturas
linguísticas, que são preferencialmente retidas pelo aprendente. O
conhecimento assim representado é, depois, operacionalizado como
comportamento, i.e., é executado e posto em prática. Para este efei-
to, é necessário que ao aprendente sejam fornecidos não apenas
29 “Implicit learning would not do the job alone. Some aspects of an L2 are
unlearnable–or at best are acquired very slowly–from implicit processes alone. In
cases where linguistic form lacks perceptual salience and so goes unnoticed by learn-
ers, or where the L2 semantic/pragmatic concepts to be mapped onto the L2 forms
are unfamiliar, additional attention is necessary in order for the relevant associations
to be learned. To counteract the L1 attentional biases to allow implicit estimation
procedures to optimize induction, all of the L2 input needs to be made to count (as
it does in L1 acquisition), not just the restricted sample typical of the biased intake
of L2 acquisition” (Ellis & Wulff 2015: 89).
30 Schmidt 1990.
31 DeKeyser 2015: 101.
664
instruções explícitas sobre as estruturas e as regras linguísticas,
mas também exemplos concretos que as ilustrem. À medida que o
comportamento assim gerado vai sendo treinado, vai ocorrendo a
progressiva procedimentalização das representações declarativas que,
deste modo, vão cedendo lugar a representações procedimentais/
implícitas 32. Reiterando o treino, o conhecimento procedimentaliza-
do atinge níveis cada vez maiores e mais afinados de automatização
e de especificidade cognitiva, passando a corresponder a rotinas
conglomeradas (chunks), o que conduz à redução concomitante de
erros de execução e de tempos de reação. Desta forma, o processo
de AALNM, iniciando-se como um saber sobre, permite, com treino
e uso, a construção de um saber como.
Quando não estão reunidas as condições (a) – (d) acima enunciadas,
DeKeyser, proponente do modelo, concede que serão mobilizadas, desde
o início do processo de AALNM, mecanismos procedimentais/implíci-
tos. Admite, igualmente, a possibilidade de papéis complementares de
mecanismos cognitivos explícitos e implícitos no processo, estando os
primeiros particularmente aptos para a assimilação de regras linguís-
ticas mais simples e categóricas (mesmo que abstratas) e os segundos
para a morosa indução probabilística que é exigida por estruturas mais
idiossincráticas, menos regulares e, por isso, mais complexas.
Evidenciando compatibilidade, em muitos aspetos, com as premissas
da Skill Acquisition Theory se apresenta o paradigma declarativo-
-procedimental, no quadro da qual se convoca o papel complementar
dos dois subsistemas de memória de longo prazo (MLP) com estas
mesmas designações na aquisição e aprendizagem de línguas 33.
665
A MLP procedimental suporta mestrias (know how), que correspon-
dem a representações altamente especializadas e também inacessíveis,
em si mesmas, à consciência. Trata-se, nesta medida, de conhecimento
não verbalizável, já que corresponde a algo que simplesmente se faz,
sem se saber como e também sem se saber dizer como. Ao serviço
da aquisição linguística, a MLP procedimental computa os padrões
regulares e sequências previsíveis que caracterizam uma boa parte
dos sistemas gramaticais e que constituem conhecimento implícito.
As representações linguísticas assim caracterizadas (por oposição às
metalinguísticas) são suportadas pela MLP procedimental.
Já a MLP declarativa suporta representações que correspondem
a conceptualizações sobre o mundo, flexíveis e domain general,
passíveis de consciencialização e de verbalização. Neste sentido, são
explicitáveis. No que concerne à linguagem, a MLP declarativa está
particularmente apta para codificar e armazenar informação idiossin-
crática e arbitrária, como a que caracteriza as relações forma-função
dos itens lexicais e as irregularidades morfológicas, por exemplo.
Este subsistema de MLP também codifica e armazena representações
metalinguísticas, i.e., conceptualizações sobre as categorias linguís-
ticas propriamente ditas e sobre o seu funcionamento.
A disponibilidade dos dois sistemas de MLP está sujeita a constri-
ções maturacionais. Assim, a disponibilidade da MLP procedimental é
elevada na infância, declinando com a idade, e a da MLP declarativa
é menor na infância, aumentando na adolescência e no início da
idade adulta. Desta circunstância decorre uma dependência maior
da MLP procedimental na aquisição da gramática da LM e o recurso
preferencial, pelo aprendente tardio de uma língua, à MLP declarativa
para a assimilação das estruturas da LNM, não apenas das idiossin-
cráticas, mas também das regulares e previsíveis. Deste modo, este
salientar as assunções partilhadas pelos dois investigadores. Para uma discussão das
diferenças, cf. Morgan-Short & Ullman 2011.
666
modelo de AALNM reserva um papel de destaque às representações
declarativas, que são também, e tipicamente, explícitas 34.
667
linguísticas, quer nos modelos gerativistas, quer nos emergentistas.
Deste modo, e pese embora as profundas divergências que opõem
estes dois paradigmas, ambos legitimam, teoricamente, o recur-
so privilegiado a input linguístico implícito positivo em contexto
instrucional, em linha com o que é preconizado por abordagens
pedagógicas comunicacionais.
Evoque-se, no entanto, e a este propósito, uma importante adver-
tência de Ellis 36 : “Implicit knowledge is not teachable; it is only
learnable. (…) [W]hile we can teach students explicit knowledge
of grammar we can only facilitate the process of acquiring implicit
knowledge”. No sentido de promover este efeito facilitador, o input
implícito positivo usado em contexto instrucional pode ser modifi-
cado e robustecido com estruturas específicas, assim contribuindo
para desbloquear problemas de aquisição motivados pela pobreza
do estímulo (na perspetiva gerativista) ou pela baixa frequência e/
ou fraca saliência de certas construções (na perspetiva emergentista).
Por outro lado, a investigação de natureza descritiva conduzida à luz
destes e de outros modelos teóricos de AALNM fornece informação
valiosa sobre as características do desenvolvimento interlinguístico
dos aprendentes, que pode e deve ser capitalizada por docentes e
criadores de materiais instrucionais, tendo em vista a eficácia do
ensino de estruturas linguísticas específicas.
Outra afinidade (insuspeita) entre as perspetivas emergentista e
gerativista consiste no papel que ambas reservam ao conhecimento
metalinguístico na AALNM, que oscila entre o residual e o nulo. Ainda
que os investigadores emergentistas e alguns gerativistas 37 estejam
disponíveis para reconhecer graus variáveis de utilidade ao input
explícito e ao feedback corretivo, que contribuirão para assinalar ao
aprendente o que não é possível na língua-alvo e/ou quais as estru-
668
turas mais difíceis de adquirir por mera exposição ao input positivo
implícito, outros investigadores não encontram forma de acomodar,
particularmente nos modelos gerativistas, o conhecimento metalin-
guístico explícito e, logo assim, o ensino explícito da gramática.
Já o mesmo não se dirá da Skill Aquisition Theory e do paradigma
declarativo-procedimental. Não obstante as respetivas especificidades,
qualquer uma destas posições preconiza o papel crucial do conhe-
cimento metalinguístico explícito no processo, legitimando, assim,
teoricamente, opções pedagógicas na linha do focus on form e do
focus on forms que advogam a necessidade de acesso, pelo apren-
dente, a input explícito e a feedback corretivo.
Face à diversidade de teorias de AALNM disponíveis e o aceso
debate que, neste domínio, ainda ocorre, será, para quem ensina
LNM, imprudente assumir a validade absoluta de uma e a conse-
quente desconsideração das demais. Mais relevante do que saber
quem tem razão é, para quem ensina LNM, saber se o uso que faz
dos diferentes recursos disponíveis é legítimo e defensável à luz da
evidência disponível.
E a verdade é que existe evidência para todos os gostos, sendo
também esta uma das razões pelas quais o debate perdura. Admitamos,
no entanto, que muita dessa evidência tem vindo a ser colhida em
componentes específicas e complementares do conjunto das mestrias
e dos conhecimentos implicados não só em saber, mas também em
saber usar uma LNM. Como lembra Whong, “language is not restricted
to the domain of core competence” 38 , pelo que, muito provavel-
mente, haverá, no conjunto desse conhecimento interlinguístico
dos aprendentes, aspetos adquiridos a partir da exposição a input
positivo implícito, i.e., linguístico, e outros aprendidos, com níveis
variados de consciencialização, a partir de feedback corretivo e de
explicações gramaticais, que configuram input metalinguístico. Se
assim é, terá razão MacWhinney 39 ao considerar que é dando aos
669
aprendentes acesso aos dois tipos de input em contexto institucional
que se lhes proporciona o melhor dos dois mundos.
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672
Desvios linguísticos na aquisição
d o p o r t u g u ê s p o r fa l a n t e s e s t r a n g e i r o s :
o c a s o pa r t i c u l a r d o s a p r e n d e n t e s
c h i n e s e s *1
L i n g u i s t i c d e v i at i o n s i n t h e ac q u i s i t i o n
of Portuguese by foreign learners:
t h e s p e c i f i c s i t uat i o n o f C h i n e s e s t u d e n t s
Resumo: Este texto tem como objetivo analisar os desvios mais comuns
na aquisição do Português como língua estrangeira, dando-se espe-
cial relevo aos que são mais característicos de aprendentes chineses.
O trabalho agora apresentado baseia-se não somente na experiência
de 32 anos de ensino do Português como língua estrangeira na Fa-
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_29
culdade de Letras da Universidade de Coimbra, mas ainda em dados
recolhidos nos textos que constam do acervo Corpus de Produções
Escritas de Aprendentes de PL2, da mesma Faculdade. Depois de, bre-
vemente, se apresentar a questão, elencam-se os desvios linguísticos
mais comummente encontrados em aprendentes dos vários níveis
de proficiência do Quadro Europeu Comum de Referência para as
Línguas (Q.E.C.R.L.), que se analisam e explicam. Verificou-se que a
língua de origem ou outra que o aprendente domine pode exercer
influência ou mesmo haver transferência de estruturas ou usos para
o Português. Se essas situações não forem corrigidas atempada-
mente, é possível que sejam, depois, como se provou, muito difíceis
de corrigir até em níveis de proficiência avançados. Pretende-se, deste
modo, chamando a atenção para os tipos de desvios mais frequen-
tes por parte de aprendentes chineses (especialmente nas áreas da
morfossintaxe, léxico e fonética-fonologia), auxiliar tanto os próprios
estudantes como os professores na tarefa de ensino-aprendizagem
do Português como língua estrangeira, que cada vez mais é alvo de
interesse por parte de falantes dessa proveniência.
Abstract: This text aims to analyse the most common linguistic devia-
tions in the acquisition of Portuguese as a foreign language, with
special emphasis on those that are more characteristic of Chinese
learners. This essay is based not only on the experience of 32 years
of teaching Portuguese as a foreign language at the Faculty of Huma-
nities – University of Coimbra but also on data collected in the texts
that are part of the Corpus de Produções Escritas de Aprendentes de
PL2 (Corpus of Written Productions of Portuguese as L2 Learners),
of the same Faculty. After briefly presenting the subject, the linguis-
tic deviations most commonly found among Chinese learners of the
various levels of proficiency of the Common European Framework of
Reference for Languages are analysed and explained. It was verified
that the mother tongue, or another language the learner knows well,
can exert influence or even transfer structures or uses to Portuguese.
If these situations are not corrected as soon as they occur, it will be
very difficult to ban them even at advanced levels of proficiency. It
is intended, therefore, to draw attention to the most common types
674
of deviations on the part of Chinese learners (mainly in the linguistic
areas of morphology, syntax, lexicon and phonetics-phonology), to
assist both the students themselves and the professors in their task
of teaching and learning of Portuguese as a foreign language, which
is increasingly of interest by speakers of this provenance.
Keywords: linguistic deviations, morphology and syntax, lexicon, pho-
netics and phonology, teaching and acquisition of Portuguese as a
foreign language
1 Veja-se também Santos 2016. Este projeto, de acesso livre, resulta, como se lê
na Apresentação dos materiais “do projeto Recolha de Corpora de PL2, iniciado, no
CELGA, em junho de 2008. Trata-se de um acervo de produções escritas da autoria de
458 aprendentes de PL2, alunos que, nos dois períodos de recolha (fase 1, de maio
de 2009 a maio de 2010; fase 2, de janeiro a maio de 2011), frequentavam os vários
níveis de aprendizagem formal (A1 a C1) dos Cursos de Português para Estrangeiros
a funcionar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (…), [e tem] o intuito
de facultar aos jovens investigadores (…) um acervo estruturado de dados empíricos
fiáveis, capazes de sustentar o desenvolvimento de dissertações na área da aquisi-
ção/ aprendizagem de PL2.” A coordenação esteve a cargo da Prof. Doutora Cristina
Martins, docente da mesma Faculdade.
675
razões de espaço não indiquei a referência completa de cada abonação,
que se pode encontrar nesse supracitado corpus. Com as indicações
B2-17, C1-18, etc., estão catalogados os exemplos recolhidos em
produções de estudantes meus, de nível B2 ou C1, nos anos letivos
de 2017/2018 ou 2018/2019, respetivamente.
Tipologia de desvios 2
676
(3) PL2-B1: “E a China tem 5.000 anos históricos e era dominado
pelos Impérios diversos.»
(4) B2-17: “nessa altura foram 23 horas”
(5) B2-17: “Quando eu era errada, senti-me vergonhosa” 5.
(6) B2-17: “Encontrava vice-director da Universidade de Coimbra,
quem é muito simpático e bondoso” 6.
(7) PL2-C1: “Isso era minha inesquecível experiência, e fez-me
decidir só viajar de comboio no futuro.”
Género gramatical 9:
(11) PL2-A2: “Os paisagens daquila cidade é mais bonito do que
minha cidade” 10.
(12) PL2-A2: “…este actividade é muito relaxo e não é muito
sumptuoso e caro”. 11
(13) P L2-B1: “a minha casa (…) fica perta…”
(14) B 2-17: “É mais conveniente para dois pessoas”.
677
(15) B 2-17: “Viajar sozinha nunca foi uma problema para mim.”
(16) PL2-C1: “A minha melhor amiga… se estiveres mal-disposto”.
(17) PL2-C1: ”Quanto ao curso que frequento, acho que é mara-
vilhosa!”
Intensificação de avaliativos:
(31) P L2-A2: “Esta viagem era muito excelente expliência para
mim”. 15
(32) B 2-17: “A comida tailandesa é muito deliciosa”.
678
(33) B2-17: “Portugal é um país muito fantástico e com paisagens
muito maravilhosas”.
Dificuldades no vocabulário:
Confusão entre adjetivos e/ou substantivos
(47) P L2-A2: «achamos este actividade é muito relaxo …”
16 Sobre este assunto veja-se a tese de Mestrado de Yuan Tian (2017). O uso dos
artigos na interlíngua de aprendentes chineses de PLE: contributo para o seu estudo.
Porto, Universidade do Porto.
17 Note-se ainda a falha na concordância de género com a China, que possivel-
mente se pensou no sentido de País, donde dominado. Também se diria, em Português,
anos de História e não com adjetivo.
18 No exemplo 35 há igualmente falta de concordância: deveria ser dois países.
Desviante é ainda “entre deles”, que se esperaria ser entre eles.
19 Cf. atrás o exemplo (29).
20 Acresce aqui o desvio no emprego da preposição, de que se tratou também
anteriormente.
679
(48) P L2-A2: «havia muitos tourísticos».
(49) B 2-17: «Quando eu era errada, senti-me vergonhosa».
(50) B2-17: «Eu estava muito cansativa quando cheguei a Milano».
(51) B2-17: «Vimos locais fascinadores, com povos muito amáveis».
(52) B 2-18: «Quando cheguei a Coimbra senti-me muito emocio-
nante».
(53) B2-18: «Aproveitei a féria de 1 de Novembro para visitar
Aveiro».
Falta da preposição
(58) P L2-C1: «Eu gosto de viajar, não só as partes interiores do
meu próprio país mas também os locais interssantes <pelo>
/por/ todo o mundo.» 21
(59) B 2-17: «gostava de ir todos lugares e ir países diferentes»
(60) B2-17: «Se viajar um país estrangeiro»
(61) B 2-17: «Este ano fui Macau com a minha família»
(62) B2-18: «Gosto Coimbra muito».
680
(63) PL2-B1: «eu conheço algumas culturas portuguesas, mas não
é profunda até eu cheguei a Portugal, eu conheço mais.» 22
(64) P L2-B1: «tenho de ir ao mercado para comprar as comidas».
(65) B 2-17: «Já provei muitas gastronomias portuguesas».
(66) B2-17: «Viajar com a família abrange muitas felicidades (…)
quando estamos com os familiares, temos mais respeitos e
tolerâncias».
(67) B2-17: «partilhamos os nossos tempos com outras pessoas».
(68) B2-17: «as comidas lá são muitas deliciosas e muitas baratas».
(69) B2-18: «As arquiteturas portuguesas são exóticas e bonitas».
(70) B 2-18: «Gosto de gelado”.
(71) P L2-C1: «A China é um país muito grande, e por isso, as
culturas são bem diferentes em diversas regiões».
Falhas de concordância
(72) PL2-A2: «Por causa de encontrarmos-nos com neve, ficávamos
muito contente.
(73) PL2-A2: «Os paisagens daquila cidade é mais bonito do que
minha cidade. Alguns <méses> meses passou, adorei muito
essa cidade, e não <tenha> tinha mais saudade com minha
avó.» 23
(74) P L2-B2:“têm os /meios/ próprios para viver e eles <são>
ficam sempre contente”.
(75) B 2-17: «As viagens são útil».
(76) B 2-17: «Agradeço pelas suas simpatia e amabilidade»
(77) B 2-18: «Quero ser um tradutor no futuro.» [Era uma aluna].
(78) B2-18: «Muitíssima obrigada pelas boas aulas da professora».
(79) B 2-18: «Fiz amigos com outros estudantes chinês» 24.
681
Omissão/Duplicação de advérbio de negação
(80) P L 2-A2: «Nunca não vou esquecer (…): pagei nada.»
682
(91) P L2-B2: «a nossa vida é bastante conveniente».
(92) B2-17: «chegámos tardíssimamente».
(93) B2-17: «A minha querida irmã (…) Cumprimentos.».
(94) B2-18: «Agora posso falar bem português».
(95) B 2-18: «Já estou em Portugal por 4 meses».
(96) B 2-18: «É uma boa experiência para mim porque agora sei
tratar de tudo no meu próprio».
(97) B2-18: «Os povos em Portugal são muito simpáticos».
(98) B2-18: «Os trabalhos faltam de gente qualificada».
(99) B2-18: «Fomos contados o que tinha acontecido».
(100) PL2-C1: «A minha melhor amiga». [numa saudação]
(101) C1-17 [na oralidade]: «Achei muitíssissimo difícil».
Metodologia utilizada
683
não descurando os casos em que há hesitação no uso, evidenciado
em palavras riscadas e entrelinhadas, que têm, no Corpus utilizado
para este trabalho, notações distintas 27 . Dessa tipologia, que se
apresenta na primeira secção, teceram-se algumas conclusões, que
adiante se referem.
As abonações que se extraíram do Corpus (num total de 34),
algumas pertencentes ao mesmo indivíduo, evidenciadas no mesmo
texto ou numa produção suscitada por outro estímulo diferente,
encontram-se distribuídas da seguinte forma, por nível de aprendi-
zagem: A1-2, A2-15, B1-8, B2-3 e C1-6.
O restante número de abonações, quase exclusivamente de B2 (uma
só de C1, numa aluna de Doutoramento em Linguística Portuguesa),
totaliza 68, e é fruto de desvios registados em produções escritas
de estudantes que se encontravam a frequentar as disciplinas de
Estruturas da Língua Portuguesa e/ou Comunicação Oral e Escrita
lecionadas pela autora do presente texto.
684
Desvios atestados
28 Sobre isto lê-se na Gramática de Raposo et al. (2013: 517-8) que “o pretérito
perfeito é usado para localizar temporalmente uma situação como anterior ao momento
da enunciação (ou seja, é um tempo do Passado)” e “apresenta as situações como
estando localizadas temporalmente no passado em relação ao tempo da enunciação
(estando, portanto, terminadas), pelo que veicula essencialmente informação tempo-
ral.”. Normalmente iniciado ou pedido por expressões como na semana passada /
ontem /quando o vi…, etc.
Por sua vez, continuam os Autores, o “pretérito imperfeito é um tempo verbal com
valor semântico de Passado, mas possui igualmente uma forte dimensão aspetual e,
por vezes, modal.” (p. 518). Denota propriedades estáveis dos indivíduos, tomando o
momento da enunciação como ponto de referência (“O João era professor” significa
que já não é ou que morreu). Mesmo com duração longa, esse estado teve um fim.
“Quando os predicados denotam estados temporários ou eventos, o pretérito
imperfeito do indicativo necessita normalmente de um tempo de referência introdu-
zido por um adjunto adverbial ou por uma frase independente com valor temporal.”
(Raposo 2013: 519): A rapariga sentou-se na esplanada. O sol brilhava. (O imperfeito
atribui também duração a uma situação, como com o verbo auxiliar progressivo de
Estar. Ou então, em oração condicional, como situação repetida, habitual: Se o Rui
estava doente, a mãe tratava dele). Se se trata de uma oração subordinada, esta é
tipicamente introduzida por quando, enquanto, ao mesmo tempo que, etc.
29 O Italiano, por exemplo, dispõe de ESSERE e STARE, mas este último verbo
tem mais afinidades com o uso de Permanecer e Ficar do que com o verbo Estar das
línguas portuguesa e espanhola.
685
que aqui consideramos, há somente um verbo correspondente aos
valores que Ser e Estar têm em Português, nomeadamente 是.
Existe uma distinção semântica, em que Ser se relaciona com
predicados estáveis e Estar com predicados episódicos, temporá-
rios, distinção que se faz em função da natureza das propriedades,
mas também dos estados, denotados por estes dois tipos de pre-
dicados, embora (como provou Huback 2011: 105) essa distinção
não consiga abarcar todas as instâncias de uso concreto desses
verbos.
Normalmente, as diferenças entre Ser e Estar são apresentadas no
início da aprendizagem (nos níveis mais elementares) e raramente
são retomadas mais tarde, com prejuízos claros para os aprenden-
tes, que – mesmo em níveis de proficiência avançada – continuam
a cometer desvios neste campo. Seria, certamente, muito produ-
tivo, para além de facultar exercícios e corrigir (explicando-o) o
erro, problematizar – pelo menos nesses níveis mais avançados da
aprendizagem – e especificar os casos em que os dois verbos têm
um uso particular, para levar os aprendentes a compreender que, a
ser possível o emprego de ambos, a carga semântica que lhes está
subjacente é claramente distinta.
O facto de o Português ser uma língua de género gramatical, que
utiliza esse recurso com vários propósitos semânticos, e também a
falta de correspondência entre o género da língua portuguesa e o das
suas congéneres românicas (veja-se o exemplo 11, em que – inver-
samente do que ocorre em Espanhol, Francês, Italiano – as palavras
em -agem são femininas), constituem das maiores dificuldades para
os falantes estrangeiros, mesmo em níveis mais avançados (veja-se o
exemplo 12). Essa dificuldade nota-se, então, não somente nas pala-
vras que não terminam por -o ou -a, tradicionalmente as terminações
de masculino e feminino (que, aliás, explicam os desvios patentes
em 14 e 15), mas igualmente com outros contextos, como se depre-
ende pelos exemplos (16) e (17). No caso (13) o/a aprendente fez
a concordância (errada) com o sujeito, uma vez que a palavra que
sofre o desvio é invariável.
686
As preposições são, sem dúvida, uma das classes gramaticais em
que se verifica maior dificuldade para quem aprende Português. São,
essencialmente, problemáticas as distinções entre por/para, mas a
confusão verifica-se em muitas outras, tal como se evidencia nos
exemplos (18) a (24). Note-se que nos dois últimos exemplos se
encontram construções bastante comuns somente em aprendentes
chineses.
Quanto à frase (22) – «estou satisfeita para» – muitos verbos, de
facto, não levam preposições em Chinês, daí a confusão dos alunos
sobre qual devem escolher. Mas “estar satisfeito/ satisfazer-se” em
chinês é 满意 e usa-se com a preposição 对 que, traduzida para por-
tuguês, é “para”. Parece, portanto, que se trata, neste caso concreto,
de clara transferência da língua materna para a língua que se está a
aprender. Só que em Chinês a ordem sintática normal é preposição
+ verbo: 对...满意..., o que pode constituir uma dificuldade acrescida.
Também a contração ou não de em é fonte de várias dificuldades:
cf. exemplos (20) e (21), em que os aprendentes não têm consciên-
cia do valor semântico que existe, por exemplo, entre “em casa” (na
própria casa de quem fala ou escreve) e “na casa” (que normalmente
constitui uma especificação de outra casa que não é a usual de re-
sidência ou que pertence a outrem).
Um dos desvios mais comuns em aprendentes chineses é a colocação
de muito (e, por vezes, mais) no final da frase – exemplos (25) a (30)
–, como ocorre em Inglês: I enjoyed the film very much ou a anteci-
pação do adjetivo como em different people, entre outros. Também se
torna estranho, em Português, que avaliativos que já têm uma carga de
intensidade quase máxima venham antecedidos do advérbio (também
de intensidade) muito, originando-se assim uma evidente redundância:
por exemplo, “muito delicioso” ou “muito fantástico”.
Atente-se ainda que, no exemplo (27), o verbo gostar surge sem a
preposição que lhe deve estar associada, contrariando o que se lê na
Gramática de Raposo (2013, p. 1531): «Os verbos gostar, precisar e
necessitar selecionam um complemento, obrigatoriamente introduzido
pela preposição de quando este é um sintagma nominal».
687
Este advérbio é, na realidade, um modificador, conferindo valo-
res de intensidade ou de quantificação ao constituinte frásico que
modifica. Por isso, quando “modifica um substantivo (um adjectivo,
um particípio isolado, ou um outro advérbio) coloca-se de regra
antes destes” 30.
Nos exemplos (34) a (46) estão patentes vários casos de “troca”
do uso do artigo definido por indefinido, mesmo num nível de
proficiência intermédio / avançado, ou ainda o seu uso quando se
esperaria a omissão: abonações (34), (36), (38) e (42). Em (39) trata-
-se do grau superlativo relativo de superioridade: o mais + adjetivo
(subentendido “de todos”).
Ao tratar dos artigos (2013: 837-859), a Gramática de Raposo,
refere (concretamente na p. 849): “Quando um especificador (determi-
nante ou quantificador) habilita o sintagma nominal para representar
uma entidade ou um grupo de entidades identificável pelo ouvinte
ou já introduzido no universo do discurso, é [+ definido]; quando,
pelo contrário, o especificador habilita um sintagma nominal para
representar uma entidade ou um grupo de entidades não identificá-
vel pelo ouvinte, ou introduzido pela primeira vez no universo do
discurso, é [– definido].”
Há contextos que distinguem entre estes dois tipos, como a função
de complemento direto em orações impessoais com HAVER, em que
só se permitem os indefinidos: Ex. “Ontem havia o livro interessante
na livraria” é uma frase antigramatical em Português.
“Na função de predicativo do sujeito, o uso de um sintagma
nominal reduzido é mais aceitável com nomes que denotam cargos,
funções, profissões e relações pessoais ou familiares” (Raposo e
tal., 2013, p. 849): “O João é professor catedrático” e não “um”, pois
revela-se muito estranho ao ouvido de um falante nativo de língua
portuguesa a utilização do artigo indefinido nestes casos.
Quanto aos exemplos (47) a (53), há clara confusão entre vocá-
bulos, fruto de deficiente aquisição das diferentes palavras e seu
688
significado. O facto de surgirem, por exemplo, duas ou mais formas
diferentes de adjetivos em língua portuguesa (como cansado / cansa-
tivo, emocionado / emocionante, fascinado /fascinante / fascinador,
vergonhoso / envergonhado, etc.), causa dúvidas no momento de
escolher empregar a forma adequada. Também a confusão entre os
substantivos “férias” e “feriado” levam os aprendentes desta nacio-
nalidade a usar, indevidamente, «a féria» por “o feriado”, como está
patente no exemplo (53), julgando que basta retirar o –s de plural
para referir um dia apenas.
Seria muito benéfico o aluno ser confrontado com exercícios em
que pudesse ficar clara a diferença entre formas semelhantes (mas
de sentido distinto), por exemplo, cansada e cansativa, turista e
turístico, emocionado/a e emocionante, etc.
O mesmo vale, por se tratar de usos afins, para os desvios cons-
tantes dos exemplos (54) a (56).
Ainda no âmbito das preposições (e além do que se viu na sub-
secção dedicada a este assunto), é frequente, por clara analogia com
palavras como naquela, neste, noutro, etc., os alunos chineses “cria-
rem” uma contração entre em e aqui/ali (possivelmente pela ideia
de lugar, que lhes sugere o emprego dessa preposição), donde os
dois exemplos que se encontram na abonação (57). Os aprendentes
imaginam que está subjacente a preposição comummente usada com
indicação de lugar e adicionam-na, contraindo-a, com o deítico.
De (58) a (62) há falta de uma das duas preposições que indicam
deslocação (para, a), com os verbos ir e viajar.
Um dos desvios bastante comuns em aprendentes de língua chinesa
prende-se com o uso do plural em palavras que, normalmente, são
usadas maioritariamente no singular (felicidade, tolerância, respeito,
cultura, gastronomia, etc.), em vocábulos normalmente designados
como “incontáveis”. Entre os exemplos, o (68) apresenta igualmente
um desvio no uso do advérbio de intensidade muito que, como tal é
invariável em género e número, e que funciona como determinante
do adjetivo, que antecede, participando na construção do superlativo
analítico (de intensidade): por ex. baratíssimas.
689
A concordância sujeito verbo, substantivo e adjetivo que este
qualifica, etc., é muitas vezes inexistente, como nos exemplos (67)
a (79). Em (76) existe, efetivamente, a concordância, mas em moldes
que soam estranhos a um falante nativo de Português.
Relativamente ao exemplo (80), há a falta do advérbio de nega-
ção não: Não paguei nada. O facto de, em algumas línguas, não ser
usual empregar duas negativas na mesma frase poderia ter influído
no uso atestado. Num estudante japonês encontrou-se, em algumas
ocasiões, o mesmo desvio: “O terramoto aqui fez vibrar nada”.
Nas abonações (81) a (83) verifica-se a dificuldade em lidar com
os verbos reflexos, tanto mais que o Português tem verbos que po-
dem ou não funcionar desse modo (levantar/levantar-se, limpar/
limpar-se, esquecer/esquecer-se, etc.) e o seu uso é diferente nas
normas portuguesa e brasileira 31. Assim, se no primeiro caso se re-
gista a falta do pronome reflexo, nos dois restantes casos ele está
abonado, erradamente, e parece que tal ocorre – no caso específico
de aprendentes de origem chinesa – essencialmente em verbos que
denotam sensações: sentir, apreciar, etc.
Seria importante que os estudantes fossem confrontados com os
diferentes usos e significados destes verbos e pudessem praticar e
exercitar os seus diferentes usos 32.
A insuficiente distinção entre as oclusivas surdas e sonoras, entre
as fricativas /f/ e /v/ e as líquidas, devido à inexistência de alguns
desses sons na língua de origem dos aprendentes, está patente na
escrita (exemplos 84 a 90), como reflexo claro da oralidade. Para este
aspeto, a prática no laboratório de línguas e a consciencialização do
valor fonológico dessas distinções são fundamentais.
O exemplo (88) poderá ser uma influência da língua inglesa,
levando à prótese de a- (cf. advantage).
690
Merecem ainda um comentário as atestações (91) a (101), ainda
que de tipologia variável. Em (91) encontra-se uma palavra muito
recorrente nas produções escritas e orais de alunos desta proveni-
ência, com o sentido de prático, adequado, entre outros, mas que
é estranho para um falante de Português como língua materna. Em
(92) e (101) encontramos o superlativo com base num advérbio
de modo (com ideia de intensificação) e de um outro superlativo
absoluto sintético, que – em Português – se formam, de facto, maio-
ritariamente em –íssimo.
Os casos (93) e (100), que fazem parte da forma de saudação e
despedida, respetivamente, de cartas informais, parecem estranhos,
na medida em que o artigo inicial em lugar de “Olá”, por exemplo,
ou “Querida”, “Cara”, etc., não se usa em Português, e – no caso
(93) – é claramente inadequado o uso simultâneo de um tratamento
de informalidade e proximidade normal para uma irmã (que se trata
por Querida) e o de uma despedida formal (Cumprimentos). Aliás,
as formas de tratamento constituem, pela sua complexidade, uma
das dificuldades com que se defrontam os aprendentes de todas as
origens ao contactar com a Língua Portuguesa.
Muito provavelmente fruto de transferência da língua ingle-
sa para o Português são os casos seguintes. No exemplo (94),
«Agora posso falar bem português», tal como nem sempre os fa-
lantes de Inglês como língua segunda distinguem os verbos may/
can, também se torna, para os aprendentes de Português como
língua não materna a distinção entre poder/conseguir/saber, que
têm igualmente valores semânticos diversos. Em (95), «Já estou
em Portugal por 4 meses», parece evidente a transferência da
preposição inglesa “for” para “por”, tal como é igualmente clara a
“tradução” de “on my own” (isto é, sozinho/a, por mim próprio/a)
que surge no exemplo (96) «(…) agora sei tratar de tudo no meu
próprio».
Ainda podem evidenciar essa transferência da língua inglesa, que
os aprendentes chineses dominam normalmente com proficiência, o
exemplo (97), em que “people” pode significar, em Português, “povo”
691
e “pessoas”, mas que o aprendente em causa não soube escolher
adequadamente.
Por último, parecem ser traduções quase literais de estruturas
do Inglês, as dos exemplos (98) e (99). Em Português dir-se-ia “Há
falta de gente qualificada para os trabalhos” e nunca «Os trabalhos
faltam (…)». Do mesmo modo, a voz passiva, possível e comum em
Inglês, é – com os verbos do grupo semântico de contar, dizer, etc.
– totalmente inaceitável, preferindo-se o Indicativo, na voz ativa:
“Contaram-nos o que tinha acontecido”. Cientes de que as duas
línguas não maternas em causa (Inglês e Português) são idiomas
europeus, os aprendentes imaginam, certamente, que têm estruturas
afins 33, donde os registos desviantes atestados.
Conclusões
692
Aliás, a influência do Inglês, e respetiva transferência de estruturas
sintáticas e vocabulário, associada a tradução literal para Português,
mostraram ser ainda mais evidentes do que qualquer influência do
Mandarim.
Quanto à eventualidade de a frequência de níveis mais altos do
Q.E.C.R.L. já poder isentar os aprendentes desse tipo de desvios,
nem sempre tal ocorre, uma vez que a influência ou transferência de
outra língua para o Português ou a escolha aleatória de uma possi-
bilidade, por inexistência de uma particularidade afim na língua de
origem (caso do género gramatical, que não existe na língua chinesa),
ocorreu/ocorreram mesmo em níveis mais altos.
Ainda que os desvios que ocorrem em C1 sejam verificados em
estruturas um pouco mais complexas, e haja menos incidência desses
empregos desviantes, parece haver, sob a perspetiva da Linguística
Aplicada, também aí, casos de interlíngua, isto é, a transferência
negativa de aspetos linguísticos particulares da língua materna (ou
outra que se domine) para a língua de aprendizagem, podendo, con-
sequentemente, notar-se alguns possíveis sintomas de fossilização34.
693
plementar – ou até questionar – as regras apresentadas pelos livros
didáticos.
Não existem manuais perfeitos que consigam abarcar toda a va-
riabilidade inerente a qualquer língua, por isso o papel do professor
é imprescindível, como o é a explicação caso a caso, assim como a
prática de exercícios que levem o aprendente a refletir (e não só a
seguir, mecanicamente, um exercício) sobre a regra.
Quando não é possível a imersão num país cuja língua materna
seja o Português, mais necessário se torna possibilitar ao estudante
o máximo de situações reais de contacto com o idioma que aprende,
o que – com as novas tecnologias – se torna cada vez mais fácil.
Um ponto que me parece fundamental é a formação contínua dos
professores de língua portuguesa. A língua é viva e o seu uso altera-
-se, pelo que, sobretudo num professor não nativo de Português,
a formação contínua e o contacto direto, se possível, com falantes
nativos, é de extrema importância, de modo a evitar-se ensinar usos
que se perderam há muito na língua-alvo desse ensino e podem
tornar-se obsoletos 35.
A análise da estrutura das frases é também indispensável, essen-
cialmente em níveis mais avançados. O foco do ensino não deve, nem
pode, ficar somente pelo ensino do léxico e da gramática básica. Há
que ter em conta aspetos como a semântica, a pragmática linguística,
usos sociolinguísticos, etc., que afetam e enformam a comunicação
(Recorde-se o que se disse sobre o uso inadequado das formas de
tratamento associado aos diferentes níveis de língua: familiar, cor-
rente, cuidado, por exemplo 36).
Melhorar a competência discursiva dos alunos, fazer com que sejam
capazes de produzir textos (na oralidade ou na escrita) coesos, coe-
rentes, adequados e corretos é o objetivo primordial de um professor
de língua. Ensinar como organizar os elementos de forma pertinente
e aplicar os conhecimentos adequadamente às novas situações, assim
694
como a compreender o que / por que motivo está errado, é um passo
importante para melhorar a proficiência dos alunos.
Com efeito, a chamada de atenção para a variabilidade das línguas,
para o que está em mudança, para a verdade de que “cada caso é
um caso”, é absolutamente imprescindível neste e noutros aspetos
mais complexos da língua portuguesa. É a estes usos que o profes-
sor deve dar uma atenção particular, acompanhando a progressão
do aprendente, e evitando a tendência (de outro modo inevitável)
para a fossilização.
Bibliografia
695
(Página deixada propositadamente em branco)
ANTIGUIDADE TARDIA
(Página deixada propositadamente em branco)
B a s i l i o a n t e e l T e at r o .
M i m e s i s y K at h a r s i s C r i s t i a n a
v s M i m e s i s y K at h a r s i s D r a m át i c a *1
B a s i l i u s a n d T h e at r e .
M i m e s i s a n d C h r i s t i a n K at h a r s i s
v s M i m e s i s A n d D r a m at i c K at h a r s i s
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_30
Palabras clave: Padres capadocios, Basilio, Teatro, Mimo, Pantomima,
Tragoidoi, Katharsis, Mimesis
Abstract: Starting from some reflections on the importance that the clas-
sics have had for the three Cappadocian fathers, I will analyze some
of the relations of Basil the Great with ancient and coetaneous drama.
Concerning the first, I call attention to the functions that allusions and
quotations from the Attic tragedy (Aeschylus, Sophocles and Euripides)
have in his works, completing in this aspect the previous Jacks’ and
D’Ippolito’s commentaries. Regarding the presence of the 4th Century
dramatic and musical genres in Basil’s works, space limitations prevent
me from commenting such presence, which is specially interesting as
concerns the use of theater elements (especially actors and masks) in
Basilius’ litterary images. I will conclude my reflections by paying a
particular attention to the Christian concept of katharsis and mimesis
in contrast to the drama in the writings of this Capadocian Father.
1 Cf. Pelikan 1993: 8-24; Blázquez 2001: 596-620; Daley 2006: 1-7; Moreschini 2008:
32-36 y, en general, todo el capítulo tercero de este libro (pp. 77-159); Webb 2008b: 65.
700
de que presume Gregorio2, no sería extraño que asistieran a algunos
excerpta dramáticos en la ciudad de los poetas áticos (a cargo de los
tragoidoi3) o a las comedias, mimos y pantomimas de tanto éxito en
los teatros de las ciudades grecorromanas del siglo IV donde vivieron4.
La reivindicación de la cultura clásica, como parte de su identidad gre-
corromana es común a los dos, sin renunciar al compromiso cristiano
en tiempos revueltos como los de la restauración pagana de Juliano,
con quien Basilio y Gregorio coincidieron en Atenas y que decretó la
prohibición a los ‘galileos’ de las lecturas antiguas 5. También participa
2 Greg. Nac., Or. 43 (In laud. Bas.) 21.1-2: Δύο μὲν ἐγνωρίζοντο ἡμῖν ὁδοί· ἡ μὲν
πρώτη καὶ τιμιωτέρα, ἡ δὲ δευτέρα καὶ οὐ τοῦ ἴσου λόγου· ἥ τε πρὸς τοὺς ἱεροὺς ἡμῶν
οἴκους καὶ τοὺς ἐκεῖσε διδασκάλους φέρουσα, καὶ ἡ πρὸς τοὺς ἔξωθεν παιδευτάς.
Τὰς ἄλλας δὲ τοῖς βουλομένοις παρήκαμεν ἑορτάς, θέατρα, πανηγύρεις, συμπόσια. 2
Οὐδὲν γὰρ οἶμαι τίμιον, ὃ μὴ πρὸς ἀρετὴν φέρει, μηδὲ ποιεῖ βελτίους τοὺς περὶ αὐτὸ
σπουδάζοντας. Ἄλλοις μὲν οὖν ἄλλαι προσηγορίαι τινές εἰσιν, ἢ πατρόθεν ἢ οἴκοθεν, ἐκ
τῶν ἰδίων ἐπιτηδευμάτων ἢ πράξεων· ἡμῖν δὲ τὸ μέγα πρᾶγμα καὶ ὄνομα, Χριστιανοὺς
καὶ εἶναι καὶ ὀνομάζεσθαι· (“Se nos abrían dos caminos: el primero y más preciado y el
segundo y que no era de igual valor; aquél conducía a nuestras mansiones sagradas
y a los maestros de allí y este a los educadores de fuera. Así que las otras diversiones
las dejamos a quienes las quisieran: fiestas, teatros, concurrencias y banquetes. 2
Pues nada considero estimable si no lleva hacia la virtud, ni hace mejores a los que
se interesan por ello. Cada cual tiene determinados títulos que les vienen de su patria
o de su familia, de sus propias ocupaciones o de sus hechos; para nosotros el asunto
principal y nuestro título era ser y recibir el nombre de ‘cristianos’”).
3 No hay evidencia segura de reposiciones de dramas clásicos en el siglo IV (cf.
Barnes 2010: 323). En cambio, y por lo que a nuestro tema se refiere, Basilio se refiere
a los tragoidoi en algunas de sus imágenes y como elemento para contrastar sus prin-
cipios. En particular, véase Epist. 42.4, Epist. 51, donde utiliza prostragoidesosin en un
contexto con intencionalidad dramática, al que asocia también los recitados (rhemata);
más clara es la alusión en una imagen de la Hom. de grat. Actione (Migne, 31, p. 232).
4 Esta posibilidad también es sugerida por Webb 2008b: 69. Sobre el mimo y la
pantomima y los tragoidoi, además de las excelentes indicaciones que, respecto de esta
última, nos dan Plutarco (Quaest. Conv. 7.8, 711B-713F) y Luciano (De saltatione), el
lector puede ver las detalladas exposiciones de Beacham 1992: 129-153, Hall & Wiley
2008, Webb 2008a y la excelente síntesis de Puchner 2017: 20-37, dedicadas a estos
géneros, así como la bibliografía recomendada por los tres últimos. Estos géneros
sustituyeron la representación de los dramas clásicos en los teatros de las ciudades
del Imperio sobre todo a partir del s. II d.C. Barnes 2010: 318-322.
5 Los dos debieron reaccionar contra el decreto de Juliano del 17 junio del 362,
vetando a los “Galileos” la lectura de los autores clásicos, aunque el más polémico fue
Gregorio Nacianceno en sus invectivas contra Juliano (Orat. 4 (In Iulianum I) 100-
101, espec. 101: Πόθεν οὖν ἐπῆλθέ σοι τοῦτο, ὦ κουφότατε πάντων καὶ ἀπληστότατε,
τὸ λόγων ἀποστερῆσαι Χριστιανούς; τοῦτο γὰρ οὐ τῶν ἀπειλουμένων ἦν, ἀλλὰ τῶν ἤδη
νενομοθετημένων. Πόθεν, κἀκ τίνος αἰτίας; Τίς Ἑρμῆς σοι λόγιος, ὡς ἂν αὐτὸς εἴποις, τοῦτ’
ἐπὶ νοῦν ἤγαγε; Τίνες Τελχῖνες πονηροὶ, καὶ βάσκανοι δαίμονες; Εἰ βούλει, καὶ τούτου τὴν
αἰτίαν ἡμεῖς παραστήσομεν = “¿De dónde se te ocurrió esto, ¡oh tú, el más vano e insa-
701
de esa misma percepción de lo clásico el más joven de los tres padres
capadocios, Gregorio de Nisa, admirador de los anteriores y cuyos
estudios en Alejandría lo enraizaron bien en el conocimiento de los
clásicos6. Aunque es cierto que la vocación poética de Gregorio de
Nacianzo lo debió hacer más permeable a la influencia de los poetas,
y entre ellos, de los trágicos y comediógrafos. Por otra parte, y como
también ocurrió con Plutarco, los valores éticos y las reflexiones sobre
el hombre con sus limitaciones, sobre la justicia de la divinidad y sobre
el conflicto entre libertad y destino, que ponen a menudo los trágicos
en boca de sus personajes, no debieron dejar totalmente indiferentes
a estos cristianos cultos ante los textos dramáticos. El reverso de la
moneda era, sin embargo, el antropomorfismo y politeísmo de la cul-
tura griega con sus mitos que los alejaron de la perfección platónica
a que aspiraba el Dios judeocristiano, impermeable por completo a
los olores y sabores de la Humanidad.
Así, Basilio Magno, en quien centro estas reflexiones dedicadas
con gran afecto a Maria de Fátima de Sousa e Silva, prestigiosa lec-
tora del teatro antiguo, nos deja en sus obras algunos indicios de su
interés por los textos dramáticos y por los espectáculos de su época.
Aunque menos que en los otros padres capadocios, no faltan en él
referencias a los actores, a los espacios, a los movimientos y figuras
de la pantomima y a las funciones de los personajes del drama como
imagen de sus principios teóricos y de la actividad eclesiástica que
expresan sus cartas, homilías, ensayos y tratados.
Es verdad que no es este santo el más entusiasta de los poetas
dramáticos, mencionados por su nombre en muy contadas ocasiones y
de cuyos textos hay poquísimas citas o alusiones en su extensa obra.
ciable de todos!, privar a los cristianos de los libros? Pues no fue una amenaza, sino
un decreto ya promulgado ¿De dónde, y por qué motivo? ¿Qué docto Hermes, como tú
dirías, té metió esto en la cabeza? ¿Qué miserables Telquines y envidiosos démones? Si
quieres, nosotros te diremos la causa”). Cf. Daley 2006: 31-34 y Elm 2012, espec. caps.
7-9. Interesante es la posición con respecto al legado clásico de Gregorio Nacianceno en
Carm. ad se ipsum 2.1, 25-57, demostrando cómo los cristianos pueden ser helenistas.
6 Cf. McLynn 2018: 30-36. Su pensamiento filosófico y teológico, por otra parte,
es profundamente platónico, tanto en su filosofía como en su estilo. Cf. Ludlow 2007.
702
Ni siquiera aparece el nombre del poeta más próximo al pensamien-
to cristiano, Sófocles 7, que sí es citado por Gregorio de Nacianzo
y cuyas tragedias inspiraron pasajes suyos y de Gregorio de Nisa.
Pero si la cita directa y la mención por el nombre de los dramatur-
gos griegos no es frecuente en los padres capadocios, las imágenes
y metáforas sobre el teatro sí que se acomodan a sus gustos, lo mis-
mo que ocurría con el admirado Plutarco; así echan mano de ellas
a modo de parábola, de ejemplo o de nota erudita, para acercar los
misterios de su doctrina a fieles, presbíteros y amigos o a los lectores
destinatarios de sus sermones, homilías, cartas, recomendaciones y
versos (en el caso del Nacianceno).
7 D’Ippolito 1983: 325 y 331-334 incluye una cita literal oculta del Poliido (fr.
398.5 Radt), aunque esta fuente ya fue advertida por Deferrari en su edición de Loeb
(1924) de las Cartas de Basilio (vol. I, p. 92).
8 Epist. 74.2.
9 Ad adulescentes 6.6 y Epist. 63.
10 Según Jacks 1922: 27-29, por ejemplo, la alusión a los infortunios por disensión
entre hermanos en Ad adulescentes 4.5 tiene que ver con el combate entre Eteocles
y Polinices de los Siete contra Tebas (p.27), aunque no hay más argumentos que el
tema, implícito también en Antígona de Sófocles y parte del desarrollo dramático de
las Fenicias de Eurípides e incluso tal vez argumento imitado en la pantomima; algo
similar sucede con otra posible alusión al Prometeo de Esquilo ( Jacks 1922: 61); en
cuanto a Aristófanes ( Jacks 1922: 28), son probables dos alusiones a Acharn. 595 (De
spiritu Sancto 30.77) y a Nub. 16 y 27 (Hom. in Hexaem. 2.2-3) que D’Ippolito 1983:
312-313 elimina por no ser seguras o, en cualquier caso, tener más relación con los
escolios que con el drama; no son discutibles, en cambio, las referencias a Eurípides,
en Ad adulescentes 6.6, donde parafrasea, con mención del poeta, Hipp. 612 ( Jacks
1922: 28) y 7.5, en que, con ligerísimas variaciones, cita literalmente Rhes. 84 ( Jacks
1922: 29); también en las Cartas se hace eco de este poeta, citándolo por su nombre
en Epist. 63 (fr. 902 Nauck) y tal vez piensa en las Bacantes cuando en Epist. 74 (Ad
703
Como otros cristianos anteriores y coetáneos, Basilio tiene un con-
cepto negativo en general del teatro como actividad humana, punto
de vista que comparte con su amigo Gregorio Nacianceno quien lo
confiesa expresamente al contarle sus planes al regreso de Atenas 11.
A Basilio la aversión además le viene de familia, como desvela
Gregorio de Nisa a propósito del elogio fúnebre a Macrina, hermana
de ambos 12. Y él mismo parece dejarlo claro en Ad adulescentes 4.6,
donde sus críticas tienen que ver con los temas míticos de los dio-
ses y héroes del drama (incestos, placeres de mesa y bebida, luchas
fratricidas y familiares, etc.). Sin embargo, cuando el comunicador, el
predicador o el pedagogo baja al terreno de los ejemplos, el drama
está a veces ahí, como recurso retórico unas veces, como modelo
positivo otras, porque algunos de sus pensamientos confirman sus
ideas, y como instrumento de contraste, las más.
En el primer caso se encuentra el único pasaje donde menciona
a Esquilo, en la carta 74.1, dirigida a un tal Martiniano, a quien le
pide que interceda ante Valente (la carta se data en el 371), para
evitar la situación de crisis a que ha abocado a la ciudad de Cesarea
la división de la Capadocia decretada por el emperador. El santo
recurre a la captatio benevolentiae prescrita por la retórica y espera
que al destinatario de la carta le basten para entender el problema
palabras sencillas, sin necesidad de las patéticas descripciones de
Simónides (alusión quizá a su epigrama a los caídos de Termópilas
o a su treno por los escópadas) ni de los dramáticos lamentos de
704
algunas tragedias de Esquilo, probablemente en consonancia con
la situación que va a pintar Basilio. Este podría ser el caso de la
angustia explícita del Coro en la párodos de los Siete contra Tebas,
suplicando a los dioses su ayuda ante la amenza que supone la
guerra para la ciudad (78-180) o su canto, lleno de terror ante la
posible derrota, en el primer estásimo (287-368) o sus lamentos en
el último estásimo (822-950) que van seguidos por un diálogo lírico
con Antígona e Ismene (911-1004) no menos patético y que reflejan
el estado de inquietud de la ciudad ante el decreto de Creonte y la
decisión de la hija de Edipo; pero también en los lamentos de la
reina Atosa en los Persas o en los trenos del Coro en la Orestíada
o (cuando incluye a otros trágicos en su lista de lamentos célebres
que afectan a toda una ciudad) en la párodos del Edipo Rey (151-
-215) donde el coro describe los horrores de la peste para la ciudad;
o, por último, en la párodos y primer estásimo de las Suplicantes de
Eurípides, explosión del dolor de unas madres privadas del cuerpo
de sus hijos muertos. Todo ello podría haberle venido al pensamiento
a Basilio cuando, con gran habilidad retórica, pide a su amigo que
haga suyas las calamidades de Cesarea:
13 Epist. 74.2: “Tú, sin embargo, no dejes de creer nuestro relato porque sin
duda somos inferiores a Simónides o a algún poeta similar, que supo lamentar con
gran fuerza descriptiva los sufrimientos. Pero ¿a qué digo, Simónides, cuando había
que decir Esquilo o cualquier otro que al modo de aquél, tratando con intensidad la
magnitud de una desgracia, logró mover el llanto con grandes lamentos?”.
705
desmembrado por las ménades (identificadas con demonios), que,
pese a su valor ya tópico, no hay que excluir del todo que sea una
posible alusión a las Bacantes de Eurípides14. La suerte del rey tebano
se rememora ahora con la desmembración de la Capadocia impuesta
por el emperador, fuente de las calamidades económicas y sociales
en que está sumida Cesarea:
«Τὸν σοφὸν ἄνδρα, κἂν ἑκὰς ναίῃ χθονός, κἂν μήποτ’ αὐτὸν ὄσσοις
προσίδω, κρίνω φίλον», Εὐριπίδου ἐστὶ τοῦ τραγικοῦ λόγος. Ὥστε,
εἰ, μήπω τῆς κατ’ ὀφθαλμοὺς ἡμῖν συντυχίας τὴν γνῶσίν σου τῆς
μεγαλοφυΐας χαρισαμένης, φαμὲν εἶναι φίλοι σου καὶ συνήθεις. μὴ
κολακείαν εἶναι τὸν λόγον κρίνῃς 16 .
706
La cita de Eurípides tiene aparentemente esa única función retórica,
pero que comience su carta con ella no deja de ser una exhibición
de su propia competencia literaria griega ante un personaje dota-
do además de cierta formación y prestigio intelectual; aspecto este
que subraya también al referirse a él (esto es exclusivo de Basilio)
como un hombre sabio, cambiando por sophón el adjetivo esthlón
del poeta trágico 17; en cuanto a las intenciones personales, persigue
su confianza y amistad elogiando (con su común amigo Elpidio) la
magnanimidad del político. Llamo la atención sobre el escaso aprecio
que el cristiano tiene por la forma métrica del texto, que le trae sin
cuidado, a pesar de la competencia en este terreno que le reconoce
en su laudatio su amigo Gregorio de Nazancio 18 . El motivo está,
sin duda, en las intenciones de la cita que no son estéticas; por eso
rompe intencionadamente también la estructura del segundo yambo
con el pronombre auton y con el cambio de la forma verbal eisido
(necesaria para conformar la 2ª dipodia: -σοις εἰσίδω) por prosido,
más habitual en su estilo cotidiano que la otra forma 19.
En el mismo descuido incurre con la otra cita textual donde
menciona su fuente. Se trata de la famosa homilía propedéutica Ad
adulescentes (6.6), en la que, para afirmar la obligación que tiene el
cristiano de ser sincero tanto de pensamiento como de palabra en
contraste con el comportamiento de los actores en el teatro, pone
707
como ejemplo de lo que no hay que hacer las palabras de Hipólito
en el v. 612 de la obra euripídea:
20 Naldini 1990: 186 recuerda el valor proverbial del verso y, con sus dudas
sobre la posible fuente de Basilio, no parece aceptar una lectura directa. D’Ippolito
1984: 338 nos advierte también sobre la transgresión de la métrica y la modernización
ática, pero no hace sugerencias al respecto. Como hipótesis sugiero la posibilidad de
que con esta modernización trata voluntariamente de poner distancias con el valor
poético del verso (que está criticando), ya que tampoco las formas de esta palabra
con -ττ- son más abundantes en su prosa habitual que las formas con -σσ- sino todo
lo contrario. En Hom. 7.4 (In divites) donde tiene tal vez en su pensamiento el mismo
verso (cf. Naldini, l.c.), pero sin polemizar con él, utiliza la forma γλώσσῃ, más ajus-
tada al texto de Eurípides (Καὶ τῇ μὲν γλώσσῃ ἐξóμνυσαι, ὑπὸ δὲ τῆς χειρὸς διελέγχῃ
= “Y con la lengua juras, pero eres desenmascarado por la mano”). Obsérvese en
el texto de la homilía el cuidado de Basilio por marcar la oposición entre los dos
elementos con μέν…δέ, lo mismo que en el pasaje que estamos comentando. Jacks
1922: 28-29 llama nuestra atención igualmente sobre determinadas diferencias entre
la cita de Basilio y el verso de Eurípides, pero su apreciación (“It is interesting to
note that the wording of the two statements, though similar, is not quite the same,
ant that Basil by throwing it into indirect speech takes away the requirement of an
absolutely correct quotation which direct discourse would have implied”) es errónea,
ya que la cita se reproduce en estilo directo y las divergencias no son atribuibles a
un malinterpretado estilo indirecto
21 “pero ¿es que uno mismo en particular va a disentir de sí misno y no presentar
su vida ajustada a sus palabras? sino que dirá con Eurípides: «mi lengua ha jurado,
pero mi pensamiento no» ¿Es que va a perseguir la apariencia de bueno en lugar de
serlo? Sin embargo este es el último límite de la injusticia, si en algo debemos hacer
caso de Platón: parecer justo sin serlo”.
708
Por supuesto, tampoco en esta ocasión tiene pretensiones litera-
rias o filológicas, sino que sus objetivos son didácticos y los reviste
con la autoridad que le ofrece la preferencia de Platón y Plutarco
por la prosa frente a la poesía, ya que aquella se libera en favor de
la realidad de las trabas que la ficción impone a ésta. Desde este
punto de vista, el del fondo, Basilio no oculta una disconformidad
radical con Eurípides22, aunque tampoco aquí deja de sorprendernos
con su toque de erudito cuando reclama la autoridad de Platón que,
tanto para él como para los otros capadocios, siempre es la pauta
con que medir el valor de los textos literarios griegos.
En parecidos términos trata nuestro santo otra cita de Eurípides
(ahora anónima, pero identificada con el v. 84 del Reso) que leemos
en la misma obra (7.5):
22 Coincide Basilio, como era de esperar, con Justino, que proclama la lealtad a su
propio pensamiento de los mártires cuando proclaman ante los jueces su fe cristiana
(Apol. 39.3-4: …ἀλλ’, ὑπὲρ τοῦ μηδὲ ψεύδεσθαι μηδ’ ἐξαπατῆσαι τοὺς ἐξετάζοντας,
ἡδέως ὁμολογοῦντες τὸν Χριστὸν ἀποθνήσκομεν. 4 δυνατὸν γὰρ ἦν τὸ λεγόμενον «Ἡ
γλῶσσ’ ὀμώμοκεν, ἡ δὲ φρὴν ἀνώμοτος» ποιεῖν ἡμᾶς εἰς τοῦτο (“… sino que, por no
mentir ni engañar a los jueces, con placer morimos confesando la fe en Cristo. 4 Pues
podíamos hacer nosotros en esta situación el dicho de «la lengua ha jurado, pero no
el pensamiento»”); también con Gregorio Nacianceno en el poema en que reafirma
la coherencia exigible entre el juramento y las acciones que aparecen a la vista de
todos (Carmina, I2. 24, 263-269: {Α.} Ἡ γλῶσσ’ ὀμώμοχ’, ἡ δὲ φρὴν ἀνώμοτος, /πολλοὶ
λέγουσιν. /Ἅπαντα πρόσθεν, ἢ ὅρκος, σοφίζεται. /Μηδεὶς πλανάσθω μηδόλως. /Ὅρκος
μέν ἐστιν, ἡ δὲ διπλόη πόσον / Κακὸν πρόσεστι! /{Β.} Σκοπῶ. Τί δ’ ὅρκος; {Α.} Τῶν
δεδογμένων ὁ νοῦς (“{Α.} La lengua ha jurado, pero la mente sin jurar está, dicen
muchos. Cualquier cosa mejor que un juramento, se enseña. Nadie se equivoque en
absoluto. Hay un juramento, entonces la ambigüedad ¡cuánto mal añade! {Β.} Lo
tengo en cuenta. Pero ¿Qué es un juramento? {Α.} La mente de lo que está a la vista
de todos”); es el poeta de Capadocia el más fiel al texto euripídeo, del que se aparta
ligeramente Justino (aunque respeta el metro) y Máximo de Tiro que, como luego
Basilio, modifica γλῶσσα en γλῶττα y parece menos preocupado por la literalidad
de la cita que por su uso filosófico (Maxim. Tyr., Diss. 40.6: Ἡ γλῶττα ἐπώμοσεν, ἡ
δὲ φρὴν ἀνώμοτος).
709
ὥσπερ χαλινὸν αὐτῷ τὸν λογισμὸν ἐμβάλλοντας, μὴ ἐᾶν ἐκφέρεσθαι
περαιτέρω 23 .
23 Tras poner ejemplos de personajes que refrenaron su cólera, dice: “¿En cuánto
vale la pena que la memoria introduzca alguno de semejantes ejemplos, cuando un
hombre ya está dominado por la cólera? Pues no hay que creer en la tragedia “simple-
mente” cuando dice que “la cólera arma el brazo contra los enemigos”, sino mejor no
dejarse arrastrar del todo hacia la cólera, y, si esto no es fácil, al menos, poniéndole
como freno la razón, no dejar que vaya más allá de lo debido”. La cita se inspira en
el verso 84 del Reso con adaptaciones que comentamos a continuación.
24 Posibilidad que sugiere también D’Ippolito 1983: 339.
710
transformado en adverbio y aplicado a pisteuein, da relevancia esti-
lística a la falta de credibilidad que hay que conceder a la tragedia
en este punto 25. Y, si en el ejemplo del Hipólito ya comentado con-
cluía su enseñanza sobre la fidelidad de la palabra al pensamiento
con la ayuda de Platón, en este pasaje vuelve a hacerlo con él y con
Plutarco, cuando concluye con una comparación (ἀλλ’ ὥσπερ χαλινὸν
αὐτῷ τὸν λογισμὸν ἐμβάλλοντας) tan querida para el Queronense 26.
Especial es, por último, la cita de Sófocles en Epist. 8.12 dirigida
a sus feligreses de Cesarea para justificar su retiro y defender la
Santísima Trinidad y el papel del Espíritu Santo frente a los arrianos
donde el verso trágico queda integrado en el contexto bíblico como
parte de las palabras de Salomón. El texto es el siguiente:
Τοῦτό τοι αὐτὸ καὶ ὁ σοφὸς παρεγγυᾷ Σολομῶν καὶ ποτὲ μὲν ἡμῖν
προφέρει τὸν ἀνεπαίσχυντον ἐργάτην τὸν μύρμηκα καὶ δι’ αὐτοῦ
τὴν πρακτικὴν ὁδὸν ἡμῖν ὑπογράφει, ποτὲ δὲ τὸ τῆς «σοφῆς μελίττης
κηρόπλαστον ὄργανον» καὶ δι’ αὐτῆς τὴν φυσικὴν θεωρίαν αἰνίττεται
711
ἐν ᾗ καὶ ὁ περὶ τῆς ἁγίας Τριάδος ἐγκέκραται λόγος, εἴπερ ἐκ καλλονῆς
κτισμάτων ἀναλόγως ὁ γενεσιουργὸς θεωρεῖται 27 .
27 “Esto mismo también prescribe Salomón y a veces nos trae a colación a la hor-
miga, que no se avergüenza de su trabajo y por medio de ella nos traza el camino de
la vida práctica y otras «la obra modelada con cera de la sabia abeja» y por medio de
ella significa la contemplación natural en la que también está mezclada la doctrina
sobre la Santa Trinidad, si es que a partir de la belleza de sus criaturas se contempla,
por analogía, el hacedor de la existencia”. La distinción del verso mediante comillas
angulares en el texto y la traducción es mía, no de Basilio.
28 Cf. infra, nota 30. Clemente era un asiduo lector del Queronense.
29 D’Ippolito 1983: 339 (“A parte la atticizzazione a livello fonetico (-ττ- per -σσ-),
che vedremo consueta in Basilio…”, cuando en toda la obra de éste aparece la palabra
con -ττ- sólo dos veces, en Ad adulescentes, y 36 con -σσ-).
712
ción 30. Finalmente, hay ligeros recuerdos del verso de Sófocles en
el Comentario al Cantar de los Cantares de Gregorio de Nisa, quien
puede haberse inspirado en su propio hermano 31.
30 Del uso del epíteto aplicado a la abeja (y con la forma μελιττ-) Plutarco es
el primero en utilizarlo, en De am. Prol. 494A: ἀλλὰ τὴν <μὲν> μέλιτταν ἡμεῖς σοφὴν
καλοῦμεν καὶ νομίζομεν ‘ξανθὸν μέλι μηδομέναν’ κολακεύοντες τὸ ἡδὺ καὶ γαργαλίζον
ἡμᾶς τῆς γλυκύτητος…; es indicativo a este respecto que las dos únicas veces en que
Basilio documenta μελιττ-, además del pasaje que comentamos, están en Ad adules-
centes, un escrito del que está demostrada la huella del Queronense. Sin embargo, a
favor de Eusebio, está que utiliza el mismo sintagma citando a continuación el ver-
sículo de Proverbios (Gener. elem. introd. p. 2: ἣν καὶ χαριέντως ἄν τις τῷ τῆς σοφῆς
μελίττης ἀπεικάσειεν φυσικῷ σπουδάσματι, πρὸς ἣν ἀναπέμπων ἡμᾶς ὁ ἐν Παροιμίαις
ἱερὸς λόγος φησὶν…). También encontramos algún ejemplo en Luciano y en Anfiloquio,
con quien Basilio mantuvo correspondencia.
31 Greg. Nyss., GNO 6, p. 269. En este comentario al mismo versículo de Proverbios
Gregorio debe a Sófocles el verbo en la frase κηροπλαστεῖν ἑαυτῷ τὸ κήριον, sugeri-
do por κληρόπλαστον del trágico y tal vez la restitución de la forma con -σσ- en el
sintagma τῆς ἐκείνης σοφῆς μελίσσης; pero esto no es conclusivo, ya que μελισσ- ess
el tema habitual en los tres capadocios y tanto lo uno como lo otro pueden haberse
inspirado en la carta o en información oral de su hermano, por el que sentía especial
veneración.
32 Sobre la importancia de la mímesis desde esta perspectiva, cf. Webb 2008a:
208-209.
713
que inducen los ritmos musicales, las acciones y los cantos con que
la escena produce su catarsis por medio del placer.
Lo primero, la catarsis interpretada así, en este sentido moral, queda
claro en una interesante carta dirigida por el santo de Cesarea a su
mejor amigo, Gregorio Nacianceno cuando, en su retiro restaurador,
intentaba animarlo a seguir su vida monacal:
714
son los elementos estructurales de la pantomima) y los recitados de
los actores; con respecto a estos es significativo que el pensador
cristiano olvida a los de la tragedia para centrarse en los cómicos (ἐν
ῥήμασιν εὐτραπέλων καὶ γελοιαστῶν ἀνθρώπων), una prueba tal vez
de la proyección de sus ideas, fundamentadas en los textos clásicos,
a la experiencias audiovisuales de las ciudades del siglo IV.
En cuanto a la mímesis, las deficiencias de ésta como consecuencia
pedagógica del teatro, encuentra su formulación más explícita de
nuevo en el tratado propedéutico que revisa desde la moral cristiana
los géneros literarios clásicos:
34 La alusión a que los poetas llaman (ὡς αὐτοὶ λέγουσιν) a su dios principal ὑπάτου
Διός (4.6) está inspirada por las lecturas de Homero, pero quizá también de los trági-
cos (cf. A., Ag. 509, E., Rh. 456, precisamente ambos citados o aludidos en esta obra).
35 Ad adulesc. 4: “No elogiaremos, entonces, <en todo> a los poetas, no cuando
insultan, ni cuando se burlan, ni cuando representan (μιμουμένους) a personajes que
aman o se emborrachan, ni cada vez que ponen la felicidad en una mesa repleta o
en cantos lascivos. De estos prestaremos la más mínima atención a los que dicen algo
sobre sus dioses, en especial cuando aluden a que ellos mismos son muchos y estos no
bien avenidos. Pues en aquellos (poetas) el hermano está en contra de su hermano, el
padre contra sus hijos, y estos por su parte sostienen una guerra no declarada contra
los que los engendraron. En cuanto a los adulterios de los dioses, sus amores y actos
sexuales en público – y estos sobre todo del corifeo y más excelso de todos, Zeus, como
ellos mismos dicen-, conductas que cualquiera se sonrojaría incluso contándolas sobre
las bestias, se los dejaremos a los que los de la escena”.
715
Contra lo que pueda parecer, Basilio con este análisis de determi-
nados temas de la poesía, y en especial del teatro, no pone en tela
de juicio los valores estéticos de la lírica y el drama, sino aquellos
temas que pueden provocar una mímesis ajena a la moral cristiana.
Cuando dice que deja para la farándula de los teatros (4.6: τοῖς
ἐπισκηνῆς καταλείψομεν) a calumniadores, amantes, borrachos, y
simposiastas, o a hermanos que luchan contra hermanos e hijos que
se enfrentan a sus padres (probables alusiones a las tragedias de
la saga tebana), así como el politeísmo y los incestos de los dioses,
tan habituales en los dramas de su época, parece excluir de su ideal
pedagógico la comedia, el drama satírico y la tragedia por la nula
ejemplaridad para sus objetivos de esos temas; pero en realidad la
crítica, más que contra la lectura de los textos antiguos, se dirige
contra los espectáculos en que esos temas inmorales constituían el
filón temático habitual dell mimo y la pantomima 36. Es presumible
que otra de las razones para este ataque de los cristianos contra las
representaciones dramáticas de los primeros siglos fuera la burla a
que se sometía en ellos a los rituales cristianos, sus mártires y sus
preceptos más populares37. Pues bien, tal vez Basilio se hace eco
36 A este respecto son ilustrativas las homilías dedicadas a los espectáculos por
el obispo Jacobo de Serugh (c. 500 d.C.) de las que se conservan algunos versos en
siríaco en las que se queja del mensaje nada educativo de estas representaciones
(Moss 1935, introducción al texto y traducción; Hall 2008: 14 y 38-40). Los ejemplos
que el autor menciona, tomados del mito, coinciden con temas míticos y movimientos
obscenos de los géneros cómicos de la época a los que los autores cristianos desde
el siglo II echan en cara su inutilidad para la formación espiritual de los cristianos
y su exaltación de la risa y el ridículo, como simples diversiones que son, que impi-
den la reflexión seria del intelecto (cf. Eriau 1914: 2-3 y caps. 1, frivolidad, cap. 2,
concuspicencia, cap. 3, obscenidad y cap. 5, idolatría, que incluye las exhibiciones
indecorosas de los mitos). Tal vez en estos espectáculos piensa Basilio cuando, entre
las advertencias que hace al monje en su Epist. 22.1-2, incluye evitar la risa y no acep-
tar lo ridículo (Ὅτι οὐ δεῖ γελᾶν, οὐδὲ γελοιαστῶν ἀνέχεσθαι) y los gritos, figuras (el
término schéma también forma parte de la pantomima) y movimientos impropios de
la presencia divina. Gregorio Nacianceno es más explícito en su poema Ad Seleucum
vv. 78-79: (Μίσει θεάτρων, θηρίων, ἱπποδρόμων/ ἄσεμνον ᾠδήν, δύσεριν κακῶν θέαν)
en el que, además, hace una encendida crítica de los mimos y espectáculos que solo
invitan a la obscenidad y el placer (vv. 83-180). Para la actitud negativa de los autores
cristianos hacia estos géneros, cf. Beacham 1992: 138-153.
37 Cf. Greg. Nac., Or. 2.84. Sobre el tema véase Eriau 1914: 68-70.
716
ella cuando requiere humildad y prudencia al destinatario de otra
de sus cartas:
717
Bibliografía
Barnes, T.D. (2010), “Christians and the theater”, in I. Gildenhard & M. Revermann
(eds.), Beyond the Fifth Century. Interactions with Greek Tragedy from the Fourth
Century BCE to the Middle Ages. Berlin-New York: Walter de Gruyter, 314-334.
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718
P a x i m at h i v m : t r aç a n d o o c a m i n h o
d e u m a t i p o l o g i a d e pã o n a t r a d i ç ã o
r o m a n o - m e d i t e r r â n i c a ta r d i a
P a x i m at h i v m : M a p p i n g A n a ly s i s o f B r e a d T y p e s
a s P e r t h e L at e R o m a n - M e d i t e r r a n e a n T r a d i t i o n
https://doi.org/10.14195/978-989-26-1524-0_31
Keywords: bread, paximathium, biscoctus, Mediterranean diet, roman
military diet, monasticism
I. Introdução
720
Porque a investigação é dinâmica, surge, por estímulos incomuns
(um programa de televisão dedicado à culinária grega da diáspora!),
a oportunidade de avançar um pouco mais no estudo deste produto
alimentar. O paximathium dos manuscritos visigóticos, que se encon-
tra também referido em textos disciplinares e regulares da tradição
monástica do Oeste Europeu (ilhas britânicas e Península Ibérica)
antes do séc. X, era por nós associado à especificidade do ambiente
monástico: um termo próprio da cultura monástica grega transliterado
para latim, mas sem continuidade, nem nas línguas românicas nem
na tradição religiosa ou monástica. Constatámos que não era assim,
e que algo une a referência distante ao paximathium produzido nas
montanhas do Bierzo (a Tebaida Hispânica) e a especialidade grega
acarinhada hoje como produto identitário de valor patrimonial.
Neste trabalho, propomos analisar o contexto histórico, sociocultu-
ral da origem deste alimento e proceder ao levantamento documental,
linguístico e literário, que permitem rastrear a presença, o uso e a
viagem desta forma particular de pão pela história e as culturas do
Mediterrâneo.
A interpretação destes dados necessitará da observação da realida-
de hoje, partindo do princípio de que a cultura alimentar observável
resulta de uma dupla mobilidade, simultaneamente diacrónica e
sincrónica: a transmissão intergeracional de aprendizagens, que pre-
serva e mantém um saber fazer ao longo dos tempos; a difusão de
práticas entre comunidades e grupos variados coexistentes entre si,
que aprendem reciprocamente modos de fazer uns do outros, desde
que estes preencham uma necessidade e um uso, ou seja, constituam
um ganho para a comunidade que acolhe uma nova prática.
Há, no entanto, que ter consciência de que estas dinâmicas podem
estar escassamente documentadas em termos formais, pois resultam de
um fluir mais espontâneo do que programado, mais ainda quando se
trata de uma prática alimentar associada a algum tipo de contingência
e de modéstia em termos de público alvo. Podem ser observadas e
caraterizadas, mas é difícil encontrar documentos explícitos que o
testemunhem. Por isso, considera-se relevante observar a realidade,
721
ou seja, o paximadi como ponto de chegada, pois só conhecendo-o
se pode procurar o caminho dos seus elos perdidos, até às práticas
alimentares do mundo antigo mediterrânico.
II. Análise
3 The European food Masters. Taste the Autentik. Rusks, Cretan Barley rusks
http://www.agrocrete.com/efm/efm-products/rusk/ . acesso a 2 de Julho de 2020. PGI
Cretan rusks – “Paximadia”.
4 Dias 2008 2 : 35-42. (acerca da tradição mediterrânica de o pão constituir a
base para “condutos”). Soares 2014: 125-150.
722
que era a base da alimentação. A mesma autora cita Andrew Dalby,
que aponta o cozinheiro Paxamos (ver à frente) como estando na
base da tradição dos paximadia, nome que apresenta vários corres-
pondentes em uso no Mediterrâneo Oriental: no árabe, bashmat ou
baqsimat; em servo-croata peksimet; em romeno pesmet, veneziano
pasimata; turco beksemad 5 . O mesmo Autor (2003: 196) refere a
generalização do seu consumo logo no início do período bizantino,
com o imperador Justino II, nas suas campanhas na Ilíria, a levar os
paximadia no alforge. Kremezi acrescenta à informação de Dalby o
facto de os paximadia representarem um património gastronómico
vivo entre os habitantes das ilhas gregas, uma herança do consumo
massificado da cevada e da escassez de recursos que caraterizaram
endemicamente estes espaços insulares.
Como apontámos na introdução, para um investigador de Estudos
Clássicos familiarizado com o corpus de textos monásticos de Latim
Tardio, o nome de paximadi soou familiar. Havia sido devidamente
classificado, nos recônditos da pesquisa lexicológica do vocabulário
específico do quotidiano monástico, como termo em Latim Tardio e
Medieval de origem grega, integrado na última vaga da helenização
da língua latina ocorrida no contexto da expansão do cristianismo
e do monaquismo.
A partir do séc. IV d.C., a aceitabilidade do cristianismo no império
romano proporcionada pela Pax constantiniana facilitou a difusão
do monaquismo como forma particular de vida cristã. Tendo tido
as suas origens no império romano oriental (Egipto, Ásia Menor),
seduziu muitos cristãos latinófonos, que aproveitaram estes anos
para se deslocarem ao Oriente (os lugares santos, os lugares dos
primeiros mártires, os lugares da vida ascética). Este fenómeno pro-
porcionou uma mobilidade única de pessoas, de escritos, de ideias,
em que cristãos cultos se deslocavam para as comunidades monás-
ticas do Oriente e, produzindo relatos heroicos das maravilhas que
viam, contribuiram para múltiplos fenómenos, de graus diversos, de
723
acomodação desta forma de viver o cristianismo no Ocidente Latino.
O Marselhês João Cassiano, o mais popular destes “correspondentes
dos monges orientais” nas Instituições Cenobíticas 4.14, mas tantos
outros de língua grega rapidamente traduzidos para latim testemunham
o facto de se estar a lidar com uma realidade nova, a ser adaptada
a uma nova cultura. Este grau primeiro de importação de um termo
para designar uma realidade nova está patente nas hesitações quanto
à categorização morfológica de transliteração do termo παξιμάδιον
(2ª declinação ou 3ª declinação?; neutro ou masculino?; grau normal
quando é um, diminutivo quando é plural) 6.
Algumas gerações depois, mas dentro do mesmo contexto cultural,
encontram-se sinais da estabilização do termo em latim, associado a
uma vontade de esclarecer pedagogicamente o seu sentido através
de perífrases (e.g. pane paxmati; quotidiana paximatia). Entra neste
nível a presença do termo nas regras monásticas latinas, um conjunto
vastíssimo de textos produzidos entre o séc. V e VIII, destinados a
prescrever as boas normas de vivência espiritual e prática de uma
6 TLL 10.2 col. 878. Cassiano Inst. Coen. 4.14; Conl. 2.11. Apresenta-se, sumaria-
mente, o contexto do uso do termo em Cassiano (360-435 d.C.), pelo valor seminal
deste autor na difusão da tradição monástica oriental no ocidente: em Inst. Coen.
4.14, o termo surge num segmento que condena a jactância que resulta de um monge
tomar consciência do seu grande valor por trabalhar mais para o mosteiro, o que o
leva a reclamar mais compensações materiais do que o igualmente acordado para
todos (aqui, presumir ter direito a mais do que os dois pães, que se obtêm com uns
tostões): “in nullo tamen inflatur, nec sibi de tantis operis sui quaestu ac sudore
blanditur; sed praeter duo paxamacia, quae tribus uix denariis ibidem distrahuntur,
nihil sibimet amplius unusquisque praesumit”. O contexto do termo em Conl. 2.11 é
precioso: Serapião, já idoso, conta um episódio da sua infância, em que estando sob
tutela do abade Teão, depois da refeição do meio do dia, é tentado a esconder no
regaço um pãozinho para, mais tarde, sem o ancião o ver, poder comê-lo “cum adhuc
essem puerulus, inquit, et cum abbate Theone commanerem, haec mihi fuerat inimici
impugnatione consuetudo ingesta, ut postquam refecissem hora nona cum sene, unum
paxamacium quotidie in sinu meo, latenter absconderem, quod sero, illo ignorante,
occulte edebam”. Também nas Vitae Patrum 5.4.25; 2.19. Vita Melaniae 38 (BHL 5885.
Commonitiones Patrum 1.5; Pascácio de Dume, Verba Patrum 1.3 (tradução latina de
um original grego com várias versões): Vitae Patrum 5.10.65 duos paximates; 93.11
tribus παχαμάδας (PG 65 col 276c); Vitae Patrum 6.3.2 tres paximates. Pseudo-Macário
(Dalby 2013: 54) Apophtegmata Patrum (PG 34.256). Lampe regista ainda παξαμάς
em Efrém Sírio I.228D; Paládio Historia Lausiaca 22; παξαμάτας (PG 65.276c); João
Mosco, Prado Espiritual.184 (CM 87.3056c).
724
comunidade monástica7. As ocorrências não são abundantes, mas são
significativas. Deixa-se por responder, mas devidamente assinalado,
o indício de estas sumárias referências estarem sobretudo associadas
a autores das regiões mais ocidentais e atlânticas da Europa: falamos
de Columbano, nas ilhas britânicas (séc. VI-VII) e de Frutuoso, na
Hispânia visigótica. Do mesmo modo, a deriva posterior do termo
(séc. X-XII) mantém-se dentro dos mesmos limites geográficos. A
interpretação destas pistas requereriam um espaço de que não dis-
pomos, e por isso deixamo-las por agora.
Consultados dicionários de Latim Medieval, do Latim paxama-
dium, com as variantes paxe-; paxi- + -madium; -matum se diz que
é a transliteração grega para o termo biscuit (i.e. biscoctus) e ainda
para panis succinericius, à letra “pão que se coze sob as cinzas 8.
Du Cange não regista a entrada paximadium, mas consultada a
entrada biscoctus, este aparece como sinónimo de panis nauticus.
Regista ainda a citação de Bernardo de Breydenbach “nec alia nobis
erat aqua nisi utribus corrupta, nec panes alii nisi paximates siue
biscoth” (à letra) não tínhamos nada para além de água apodrecida
nos odres e de pão, não tínhamos outros para além de paximades,
ou seja biscoitos” 9. De resto, é em Ducange que se consegue rastre-
725
ar o emprego do biscoctus em contexto de viagem organizada, por
mar ou por terra.
Os dicionários consideram os paximades como um termo varian-
te para biscoitos, no seu sentido etimológico “cozidos duas vezes”
bis – coctus”. A etimologia descreve o processo de confeção, pois a
dupla cocção endurece-os e desidrata-os, o que lhes aumenta a du-
rabilidade. No entanto, a referência de Bernardo de Breydenbach é
ambígua: não sabemos se os marinheiros não tinham pão para além
de paximates ou biscoitos, ou se os marinheiros só dispunham de
paximates, ou seja (id est), de biscoitos”. Ou seja, podemos estar a
falar de produtos diferentes, que podem convergir no processo de
confeção, com dupla cozedura, mas de diferentes massas.
O termo “biscoito” é familiar em Português, hoje com uma se-
mântica afastada da etimologia e da prática gastronómica histórica
que justifica a coerência entre a designação e o produto original:
o “biscoito” é um bolo seco, normalmente doce e levando ovos,
(Biscoito de azeite, Biscoito de amêndoa, Biscoito de canela) mas
não obrigatoriamente (cf. o Biscoito do Louriçal não é doce) feito
de uma fornada, que apresenta durabilidade de algumas semanas a
meses, dependendo do clima e do acondicionamento. E, neste sentido,
se se perdeu no produto atual o modo de confeção, preservou-se o
objetivo: fazer um bolinho cuja secura o leve a durar no tempo. R.
Bluteau (1638-1734), no seu Vocabulário Portuguez e Latino 10 já
regista a polissemia no emprego do termo “biscouto”, mas inicia a
sua entrada a referir “pão nautico” como sinónimo de biscoito:
726
chamar-lhe Panis nauticus à imitação de Plínio.”11. Golodice. Fazem-
se Bicoutos por muitos modos. Há Biscoutos de massa, feitos com
farinha, manteiga de vaca, acúcar, ovos, &c do tamanho de um
dedo, ou argolinhas, &c, Biscoutos de nata, Biscoutos de la Reina,
&c Vid. Arte da Cozinha (remetendo para Domingos Rodrigues,
Arte de Cozinha, 1693”.
727
leite, manteiga, e, no tempo de Bluteau, açúcar) – não falamos do
mesmo se dissermos “pão com manteiga” e “pão de manteiga”, ou “pão
com ovos” e “pão de ovos”– cabendo estes últimos na categoria das
“golodices” de Bluteau e das padarias das gentes civilizadas de Plínio.
Saliente-se o facto de Plínio atribuir ao biscoctus um valor utilitá-
rio: medicinal ou “navegante”, presume-se um bem que se destina às
travessias marítimas, e por isso desidratado. Sabe-se que o biscoito é
o panis nauticus de Plínio na Época Moderna, a forma instrumental
mais saudável de consumir pão em viagem, isto é, sem que ele se
corrompa. Estamos, pois, longe da “golodice” de Bluteau.
O biscoito constituiu a provisão vital das viagens marítimas na
Época Moderna e seguintes, em Portugal e nas nações europeias de
grande tradição em viagens marítimas. Assunto bem documentado,
cabe precisar o processo de fabrico deste biscoito de viagem, assim
chamado porque “cozia duas vezes”, mas sempre em terra 13 . O
biscoito da época moderna, à maneira do paximadi de hoje, cozia
duas vezes, uma rápida e em fogo alto, outra lenta e em fogo lento,
para garantir a sua secagem, durabilidade e resistência. No mar,
bastaria molhá-lo em água ou vinho para ser ingerido 14. Vasconcelos
de Meneses refere uma ração diária de 760 gramas de biscoito, 360
gramas de carne (seca e salgada) e 1,5 l de vinho, água conforme as
possibilidades, para estes homens, acrescentados de porções menores
de outros alimentos, distribuídos em cadência semanal, ou superior,
armazenados ou recolhidos nas etapas da viagem (peixe seco, fru-
tos secos, azeite, frutos e peixe fresco, em ocasião de aguada ou de
pesca). O sustento era contudo, o biscoito, o vinho e a água. Razões
de eficácia explicavam esta dieta: a base da alimentação de uma co-
munidade de marinheiros confinada a pouco espaço em navios de
728
madeira não podia depender de um processo de cocção a executar
em viagem, com a realização do fogo proporcional à tarefa. Além
do risco, seria incomportável aprovisionar combustível e farinha
necessárias (estas corrompiam-se facilmente em alto-mar). Mesmo a
água aprivisionada, apesar de complementada por aguadas pontuais,
degradava-se, particularmente em viagens de longo curso. Transportar
uma versão leve e durável da base alimentar do homem europeu
que era o biscoito era, portanto, uma boa forma de gerir recursos e
condicionantes. Não havia, entre o pessoal de apoio, o ofício de co-
zinheiro, mas havia despenseiros, o que ajuda a confirmar uma dieta
não exclusivamente, mas essencialmente fria, dispensando a cozinha
coletiva (Meneses: 106). Assim, cada marinheiro geria os alimentos
que recebia, havendo até lugar para o comércio ou troca dos bens.
Este “pão navegante” foi-se transformando de acordo com uma
maior mecanização e eficácia nutritiva, e servindo, na Época moder-
na e contemporânea, para a alimentação de exércitos em terra, na
Europa e no Novo Mundo, com uma forma muito semelhante à das
bolachas salgadas vulgarmente conhecidas por “crackers”, ou “bolacha
de água e sal”. Leves, duráveis, facilmente transportadas e calóricas,
constituídas por farinha de trigo, foram nos bordões dos soldados
das guerras contemporâneas, desde a Guerra Civil Americana até
hoje, integrando, em atualizações aproximadas que lhes preservam
a função, as rações de combate 15. O seu fabrico já não tem tanto
729
que ver com uma dupla cozedura, em momentos distintos, mas com
uma cozedura única, lenta e a baixa temperatura, que as desidrata e
endurece. Ou seja, este biscoito conserva o nome de um processo de
fabrico que, de certo modo, foi ultrapassado, apresentando no seu
uso toda a legitimidade de continuação de uma tradição alimentar
adequada ao espaço militar. Vegécio destacara, no seu Tratado De
Re Militari, dedicado à teoria e práticas militares dos romanos, a
importância do bom fornecimento, constante e racionado – isto é,
devidamente medido em porções individuais, “per capita”. Um exército
não pode passar sem fornecimento diário de trigo, vinho, vinagre e
sal, a que se deve juntar a água no Verão (3,3) 16.
Há, no entanto, algumas pontas soltas: por um lado, o panis
militaris e o biscoctus são usados no específico meio militar. Por
outro lado, aparecem, na generalidade dos testemunhos, como feitos
de um cereal, o trigo. Ora, o paximadi, embora com semelhanças
no processo de confeção, usa outros produtos para além do cereal.
Para biscoctus, A. Dalby aponta “dipyros” como termo grego equi-
valente (adj., a concordar com artos, sitos, ou seja “duas vezes sujeito
ao fogo”) 17. O Greek English Lexicon remete-nos para um número
de ocorrências deste adjetivo muitíssimo modesta: Eubulo Cómico,
Alexandre Cómico e Alceu Cómico 18. Dalby aponta para o emprego
do adjetivo em Menandro, no sentido de “duplamente abrasado” em
contexto amoroso. Estes fragmentos foram recuperados a partir da
730
sua inclusão, enquanto alusões, adições especializadas ou argumen-
tos de reforço para o saber dos cultos diletantes protagonistas dos
diálogos em Ateneu de Náucrates, Os Deipnosofistas.
Talvez as referências neles contidas, e o género literário em que
surgem (a Comédia, predisposta ao uso de termos e da linguagem
popular, o que todos percebem) sejam já testemunho da consolidação
de um adjetivo de sentido comum “duplamente passado pelo fogo”
para a realidade do pão. Mas o seu uso para classificar realidades
não alimentares manteve-se, por exemplo, em Marcial, que usa o
termo dypiros para referir uma figuração de Faetonte que alguém
gravou a fogo, portanto, “queimou-o duas vezes” 19.
São complexas as referências aos tipos de pão, com base nas refe-
rências literárias coligidas na riquíssima obra de Ateneu, e referimos
só algumas que nos possam suscitar comentários20: testemunha-se que
o comediógrafo Eubulo refere, na sua obra Ganimedes, o διπύρους
τε θερμούς. “O biscoito quente”. Já Alceu refere que os Dypiroi eram
uns “pães nutritivos” ἄρτοι τρυφῶντες. Amerias (3.81) alude aos
Xeropurites χηροπύριταν, como equivalentes aos autopuroi artoi.
Arriano, um dos intervenientes no diálogo (3.79), observa, com
relevância para a nossa discussão, que todas estas variedades, in-
clusivamente as que Arquéstrato (3.77) atribui aos melhores mestres
19 Marcial 4.47 Encaustus Phaethon tabula tibi pictus in hac est.quid tibi vis, δίπυρoν
qui Phaethonta facis? (Loeb 94: 296-297).
20 Atheneu. Deipn., 3.74, quanto aos cereais usados, referem-se, atribuídos a
Trifão de Alexandria, ο ζυμίτην, ἄζυμον, σεμιδαλίτην, χονδρίτην, συγκομιστόν – “pão
fermentado, pão sem fermento; Chondrita, feito de espelta; Sincomista, feito com
farinha integral, e por isso com efeitos mais laxativos. Ainda o pão de centeio, o pão
de τὸν ἐξ ὀλυρῶν, τὸν ἐκ τιφῶν, τὸν ἐκ μελινῶν. Recebem nomes quanto ao processo
de fabrico: os cozidos no forno ἰπνίτην; os mergulhados em vinho doce, feitos com
flor de farinha ἐσχαρίτας. Famosos são os do mercado de Atenas (agoraioi), mas os
pães ródios não ficam atrás em docura e macieza τοῖς μειλίγμασι καὶ τῇ μαλακότητι dos
Escaritas. O Taburita; o Acaineu, grande, consumido pelas mulheres que celebravam
as Tesmofórias e levava gordura; os Cribanitas, brancos, pequenos e quentes, a sair
do forno de kribanoi, ou klibanoi, (feitos no “klibanon” “forno”, portanto). Depois
dos Dypiroi, seguem-se os Lagana, os Apanthrakis. As crianças são aconselhadas
a comer o Tyronte, ἄρτον γάρ τις τυρῶντα “um pão acabado acabado de assar ao
fogo”. Ainda o pão “autopyros” “cada um assa o seu”, ou “que se assa a si próprio”
mencionado por Alexandre Cómico, λιπῶσι στεμφύλοις a que se parece acrescentar
azeite, depois de assado.
731
da panificação, (“os Fenícios e os Lídios, que são capazes de, uma
vez tomados ao serviço, apresentar um pão diferente para cada dia”
– Soares 2016: 40), pertencem ao “tempo de Saturno”, ou seja, ao pas-
sado. A cidade, agora, “está cheia de pão” (πλήρης γὰρ ἄρτων ἡ πόλις)
e isso leva a que já ninguém faça caso da diversidade mencionada21. É
portanto, dentro da “tradição contemporânea” ao tempo do diálogo,
o global séc. III a.C., que se insere a contribuição de Arquéstrato de
Gela em Ateneu, já traduzida em Português por Carmen Soares 22.
O epítome do sabor, qualidade e do bom gosto é um pão quentinho
e branco, fresco, portanto, de farinha bem peneirada, branca. A ce-
vada, desde que bem peneirada (limpa das impurezas da colheita e
da moagem) pode originar este pão de qualidade. Atenas destaca-se
como a cidade com os melhores mercados de pão.
Reconhecem-se propriedades relevantes no dipyros artos, no
autopyros artos e no xeropyrites artos para radicar nestes alguma pro-
ximidade com os biscocti romanos: são bem cozidos (ou duplamente
passados pelo calor?), são obra individual (e veja-se que a referência
aos autopyroi recorre a uma citação de Alexis suficientemente ambí-
gua τὸν δ’αὐτόπυρον ἄρτον ἀρτίως φαγῶν.” tendo acabado de comer
um bem feito pão autopyros” –“ tendo acabado de fazer e comer o
732
pão?” – enquanto, neste excerto de Ateneu, abundam as referências
ao fabrico, compra e venda de pão como uma atividade de profis-
sionais, externalizada, portanto); são bem secos (xeropyrites?) e são
nutritivos (τρυφῶντες). Mas o que não se diz também é relevante:
não se menciona que são particularmente saborosos nem a que ma-
téria prima recorrem. Refere-se o azeite, que os pode acompanhar.
Não surpreende que, em Ateneu, não haja referências precisas a
um alimento correspondente ao biscoito de uso militar. Os convivas
deste banquete gozam o melhor do mundo antigo, um período de
paz e de abundância, em que a cidade está cheia de pão, e as pesso-
as podem escolher o melhor, elegendo o trigo, ou uma cevada bem
peneirada, o pão fofo de farinha refinada, acabado de sair de fornos
sempre quentes, enriquecido ou a acompanhar delicadezas como
queijo, azeite, especiarias. Ateneu terá como destinatário e horizonte
as elites urbanas, com recursos para cozinharem ou comprarem o
pão diário e fresco, acabado de sair do forno.
Na já referida entrada de Dalby para “Biscuit” encontra-se, depois
de dipyros, o equivalente em Grego paxamas e paximadion, latini-
zado para paximadium na Antiguidade Tardia, com a possibilidade
de ter, na designação do produto, o nome do criador 23: Paxamos
teria sido um mestre de cozinha também mencionado por Ateneu,
Columela, e S. Jerónimo 24. Nos finais do séc. IV, Paxamos está ao
23 Dalby 2013: 54. “It has been conjectured that the name, and so perhaps the
recipe, originated with the cookery author Paxamos”.
24 Paxamos, Ateneu 9.376d. O cozinheiro, de Náucrates, desafia os convivas a
adivinhar o modo de abate de um requintado porco apresentado à mesa depois de ter
sido por si recheado, mencionando que Ulpiano, presente no banquete, e Paxamos,
seu compatriota, saberiam bem o que são isicia, um tipo de conservas de carne. O
Gaditano Columela (séc. I d.C.) inclui Paxamus no número não obscuro de escritores
gregos e romanos “que se dedicaram a instruir o ofício de padeiro, de cozinheiro
e também do celeireiro (daquele que cuida da armazenagem)” (12.4.2) quibus stu-
dium fuit pistoris et coqui nec minus cellarii diligentiam suis praeceptis instruere).
Já S. Jerónimo acusa o monge Joviniano de voltar, como um cão ao seu vómito “Pois
quando Joviniano proclama orgulhoso que é monge, após a túnica baça, os pés des-
calços, o pão e água humildes, (retorna) à roupa alva, ao semblante besuntado, ao
vinho doce e às carnes elaboradas à moda de Apício e Paxamo” (Pl 23:col 280 1.40
Nam cum monachum esse se iactitet: et post sordidam tunicam, et nudos pedes et
cibarium panem et aquae potum ad candidas uestes et nitidam cutem ad mulsum et
elaboratas carnes ad iura Apicii et Paxami…”. Também o Dicionário de Grego Liddel
733
nível de Apício como protagonista do requinte e do luxo culinário
que tanto irritam o austero Jerónimo. Significativamente, Ateneu e
S. Jerónimo coincidem na menção às “carnes processadas” (isicia e
elaboratas carnes), enquanto Columela refere o studium pistoris, e
a diligentiam cellarii isto é, a instrução dos padeiros e o cuidado
do armazenamento. Processar carnes e armazenar alimentos podem
caber dentro de um ofício que tenha por objetivo cuidar da alimen-
tação em grande escala com condições de salubridade, pelo que as
artes atribuídas a Paxamos, a quem se atribui a origem do paxamadi,
ou paximadi, podem ter um fundo de verdade: ou seja, Paxamos ser
significativo, não por uma prática gastronómica, mas por estar na
origem de um processo de conservação.
Contudo, as maiores dificuldades em aceitar esta atribuição residem
no destinatário das artes de Paxamos e na cronologia relativa: sendo
primeiramente referido em Os Deipnosofistas (séc. III a.C.) nunca
é apresentado como autor de um tipo de pão como o paximadi, de
consumo entre um destinatário particular, o mundo militar, e também
não ocorrem descrições com as exatas caraterísticas correspondentes
ao paximadion contemporâneo. Seria natural que as referências elo-
giosas a Paxamos incluíssem a sua criação se, na altura da composição
de Os Deipnosofistas, este singular produto já estivesse consolidado
na cultura gastronómica. Este silêncio comporta ambiguidades, uma
vez que a obra de Ateneu terá por destinatário um público urbano,
culto e a gozar um mundo de abundância e de paz, algo saudosista
em relação à diversidade dos bens gastronómicos de outrora.
Séculos mais tarde, já no mundo bizantino, temos de Paxamos
mais informação: dedicado ao imperador bizantino Constantino
Porfirogénito, o manual anónimo de agricultura do séc. X conhecido
em latim como os Geoponica é composto por vinte livros que com-
pilam excertos de autores tidos como autoridades nos cuidados da
terra. Entre estes especialistas em agricultura, pecuária, produção e
Scott παχαμας (perispómeno) “So called from the baker Paxamos, (Galeno, 14.737)
diminutivo παξιμάδιον (Galeno 14.454).
734
conservação alimentar, que não apresentam obra direta conservada,
encontra-se Paxamos, com dezoito excertos. Percorrida a lista destas
atribuições contidas na edição de Dalby, é difícil encontrar a con-
tinuidade entre os testemunhos anteriores e o trabalho, ainda que
fragmentário, que aqui lhe é atribuído. Os seus interesses dispersam-
-se pela procura da água (2.4); pela prevenção dos infestantes e das
pragas nas culturas e nas colheitas (2.43 ervas daninhas; 13.4; 13.7
roedores; 13.10 formigas; 15.6 como colher mel sem ser picado pelas
abelhas; 15.10 como evitar ser mordido por vespas); vitivinicultura
(4.9 uvas perfumadas; 5.29 segunda poda; 7.3 em que altura do ano
normalmente os vinhos mudam); arboricultura (9.10 quando e como
escolher e apanhar as azeitonas); 10.34 como fazer de uma romãzeira
ácida uma romãzeira doce; 10.54 como secar figos; 10.62 como en-
xertar amendoeiras) e pecuária (14.17 criação de aves; 17.13; como
evitar que o gado coma ossos); 18.21 modo rápido de fazer queijo25.
Não temos sinais de, caso Paxamos tivesse escrito algo sobre ce-
reais, pão, e um tipo de pão, esta informação ter sido considerada
valiosa para o mundo bizantino a ponto de lhe ser atribuída uma
prática de panificação relevante para os exércitos, para as pessoas
comuns, para os monges. Mas os excertos integrados nos Geoponica
dão-nos uma imagem menos sofisticada de Paxamos, alguém que
está para além dos “molhos e das carnes processadas” e se dedica à
fase anterior, a de assegurar a produção e conservação de alimentos.
Aqui chegados, levantamos a possibilidade de a atribuição a
Paxamos da invenção do paximadi ser uma ficção, um modo, o
que é recorrente na história da gastronomia, de nobilitar, firmando
uma paternidade, uma prática alimentar consolidada mas de origem
desconhecida: “pão à maneira, ou em honra de Paxamos”, alguém a
quem se atribui o talento de preservar bens alimentares seria uma
possibilidade.
25 Dalby 2011: 19-35 (Geoponica). O livro II concentra a maior parte das infor-
mações sobre o cultivo de cereais e a panificação.
735
Mas que interesse tinham os monges orientais, semi-analfabetos
(embora quem deles desse testemunho fosse cultivado, particular-
mente na cultura cristã, mas não a ponto de lerem obras técnicas
de conservação alimentar) de dizer que tinham por ração diária “um
pãozinho feito à moda do refinado Paxamos”? São universos culturais
impenetráveis entre si, o da procura do melhor alimento para um
público específico e o do alimento como contingência, restringido
ao mais humilde para não sucumbir de fome. O termo paxamadi,
ou paximadi (esta forma com a vogal da sílaba breve medial tendo
sofrido o fenómeno fonético do itacismo comum no Grego tardio),
pode relacionar-se com o verbo πήγνυμι26, a partir do grau zero da
raiz, que se encontra, não só em nomes, como nas formas tardias
do verbo (πάξ* – adj. πάχνης “sólido”; πάγιος “rijo, firme”. Vb. tardio
πάξαιμι...). Deste modo, mais do que a homenagem a um especia-
lista de renome, o termo paximadi pode ter a ver com a feitura: um
aglomerado da farinha dos cereais disponíveis; da farinha de uma
leguminosa popular no Mediterrâneo oriental, particularmente no
Egipto: o grão de bico; de azeite, vinho, mel, que ajudavam à aglo-
meração de farinhas rústicas, com pouco, ou nenhum glúten.
Porquê, e para quê semelhante produto? Conhecemos a experi-
ência histórica da elaboração de pães com matérias primas que não
sejam cereais: resultam, em regra, da contingência 27.
Procurámos, por isso, encontrar referências que justificassem a
mistura de cereais com leguminosas. As Propriedades dos Alimentos,
livro de Galeno, médico grego originário de Pérgamo mas tendo vivido
na Sicília entre o séc. II e III da nossa Era, recentemente publicado
em Português por Nelson Ferreira 28, permite-nos o foco dietético,
também apontado por Bluteau, como atributo do Biscoito. Este pri-
736
meiro livro concentra-se nos bens que constituem a base da cultura
alimentar do mundo antigo Mediterrâneo, os cereais e as legumino-
sas, suas propriedades e qualidades para gerar saúde. Procurando
identificar, no testemunho de um médico grego da Época Flaviana
romana, formas de validação de um pão que, além de misturado,
passe por dupla cozedura, os resultados são modestos. Galeno repe-
te, grosso modo, a escala de qualificação já identificada em Ateneu:
o melhor pão, e o mais saudável, mais fácil de digerir, é o de trigo
de boa qualidade, quase igualado pelo de cevada bem peneirada
(Ferreira 2020: 102-105; 142 Gal. 481.10.1-484.5). O autopyros e o
sunkomistos, pães de terceira e quarta categoria resultam de um pão
de um cereal com farelo e, no segundo, de mistura de vários cereais,
embora, como o tradutor reconhece (Ferreira 108), Galeno não prime
pela clareza. A uniformidade (a boa ligação da massa, diríamos hoje
a boa amassadura para permitir a decomposição do glúten, mais
abundante no trigo) e o ponto de cozedura são desejáveis (e por
isso o melhor pão é o o cozido no klibanos, a forma redonda com a
tampa cónica, que evita uma crosta muito dura, seguido do cozido
no forno e só depois aquele que se coze diretamente nas brasas).
Refere ainda que o pão ázimo é usado pelos atletas, e que os
gladiadores alimentam-se praticamente só dele (op. cit. 109 Gal.
6488.1-15), insistindo mais à frente (op. cit. 143) que “um pão que
não tenha sido bem cozido nem bem levedado é apropriado para os
atletas” assim como para os ceifeiros e cavadores. Nesta apresentação
das qualidades dos cereais e dos pães, não se fala nas especificidades
da dieta dos militares, ainda que, atendendo ao contexto romano que
rodeia Galeno, isso o fizesse prever. Quando avança para as legumino-
sas (op. cit.: 167 ὀσπιόν “bagos”), ele apresenta-os dizendo “Chamam
‘bagos’ aos grãos dos quais não se produz pão: feijões, ervilhas, grão
de bico, lentilhas, tremoços, arroz, ervilhaca, chícharo, agrião-roxo,
chícharo-preto, feijão-frade, feno-grego, ervilhaca-miúda… (524.5).
Estes dois tipos de sementes, os cereais e as leguminosas ocu-
pam, portanto, lugares estanques na categorização da transformação
alimentar: os primeiros, triturados, servem para fazer pão, bolos,
737
papas. Demolhados e cozidos produzem um alimento de muito difícil
digestão, mas há quem faça. Os segundos são cozidos e transforma-
dos em purés. O grão de bico (op. cit.: 172) é apreciado em sopas
pelas gentes do campo, não sendo, portanto um produto citadino.
O resultado “moído” (ἐρεγμός) do grão de bico é consumido, e pode
acompanhar queijo. Muito nutritivo, provoca pouco movimento intes-
tinal e menor flatulência do que as antes referidas lentilhas e favas,
é um fortificante da atividade sexual, sendo dado a cavalos repro-
dutores. No entanto, o aporte proteico no mundo romano dependia
mais das leguminosas do que da carne, como mostra Brown 29 .
Não está, pois, em Galeno, a justificação da mistura de cereais e de
leguminosas para a obtenção de um pão, mas encontram-se infor-
mações que ressaltam o grão de bico como uma leguminosa de bom
valor nutritivo. Além disso, teremos, mais uma vez, de valorizar o
que, não sendo referido, revela práticas que, conjugadas com outras
fontes, podem explicar o contexto e a origem desta mistura entre
leguminosas e cereais.
III. Conclusão
738
do mundo urbano, buscar o deserto, os lugares pouco habitados, o
espaço rural. Reside talvez aqui a justificação para não se encontrar
nos tratados antigos acerca da agricultura dos cereais, da variedade
dos pães e das suas potencialidades nutritivas, qualquer referência ao
paximadion.
E, de facto, o próprio rastrear do produto útil, prático, funcional e
de uso na alimentação dos exércitos ao serviço do império romano,
o panis nauticus ou o panis subcinericius (succinericius) acusou re-
sultados ténues quando as fontes são as clássicas. Dipyros, autopyros
e xeropyros, encontrados em Ateneu, não apresentam uma descrição
que possa, sem hesitação, fazê-los corresponder ao panis nauticus de
Plínio. O panis nauticus, produto de consumo militar, feito de modo
“biscoctus” é uma invenção romana destinada a prover, e optimizar
o consumo de cereais entre os seus populosos e profissionalizados
exércitos, que atravessaram cronologias e geografias diversas 30.
O biscoctus, o antepassado do contemporâneo termo “biscoito”,
e o termo paximadion, designam produtos diferentes, embora con-
virjam na técnica de obtenção. O termo grego dypiros, encontrado
nas fontes helenísticas como designação para um tipo de pão, não
surge associado a um uso militar, embora outros termos (autopyros,
xeropyrites) apresentem qualidades semelhantes ao biscoctus.
O paximadi tão apreciado pelas diásporas gregas só se encontra
quando se atinge a Antiguidade Tardia do império romano, mas,
mesmo aqui, só no mundo bizantino o termo grego paximathium
surge em contexto militar. Neste domínio, as fontes militares da
Antiguidade tardia romana fazem sobressair um outro termo como
o equivalente ao tardiamente descrito como biscoctus: o bucellum
“pequena boca”, ou seja, “dentada”, “bocado” 31.
739
Coloca-se, por isso, a hipótese de a transmissão dos termos ao
longo de comunidades com duas línguas intercomunicantes entre si
e das práticas gastronómicas atidas ao tratamento do mais nobre dos
alimentos no espaço mediterrânico tenham acompanhado as próprias
dinâmicas sociais e culturais que transformaram o mundo antigo.
O pão das cidades em paz é branco e fofo. A panificação clássica
transmite o valor do trigo, do refinamento da farinha e da frescura
do pão (pão quente) como critérios de qualidade, de valor e de
saúde. Todas estas condições só são possíveis numa sociedade tec-
nologicamente avançada, a viver em conforto e abundância. Assim,
o pão branco e fresco resulta de uma exigente moagem do trigo,
sendo este um bem tão abundante que permite o desperdício de
grande parte dos nutrientes e do volume associados ao grão, e da
proximidade entre a cozedura e o consumo: manter fornos quentes
com pão sempre a sair é um luxo que só a densidade demográfica
de uma comunidade de consumidores sedentários e com recursos
pode garantir. Estes critérios não combinam com a alimentação res-
trita a um uso militar. Apesar disso, algumas vozes como Ateneu e
Galeno falam de produtos nutritivos que resultam do uso da farinha
pouco refinada, mais alimentícia, porque mais pesada. Mas Galeno
diz expressamente que as leguminosas (os bagos) não se usam para
fazer pão.
Em que contexto poderia o grão de bico, e a sua farinha (cujas
qualidades Galeno reforçou) ter passado a fazer parte de um tipo
de pão?
Relembrando as práticas da alimentação militar assinaladas por
Plínio e por Vegécio, os militares romanos recebiam individualmente
as suas rações alimentares: cereal, vinho, vinagre e sal frequente-
mente, água no Verão. O trabalho de moer o cereal e panificá-lo
(em brasas, em fornos portáteis) cabia a cada um, obtendo-se uma
fogaça nutritiva de cereal completo. Era mais seguro distribuir os
eram chamados de buccellarii “os comedores de boucella” (Paulino de Nola Ep. 7.3;
Aecio Medicina 3.701; Photius Livraria 80, citando Olimpiodoro).
740
cereais (trigo e cevada) em grão, mais fáceis de conservar. Em paz e
aquartelados, os militares romanos podem complementar esta dieta
básica com os bens locais, trocados ou comprados entre os habitan-
tes das regiões, ou fornecidos por redes de comerciantes romanos
devidamente estabelecidas. Nestas circunstâncias, a variedade e a
abundância alimentar seria pouco diferente em relação à alimentação
dos civis populares.
Na Antiguidade Tardia ocorrem, no entanto, mudanças severas
nesta civilização do pão amado que enchia as cidades. Por um lado,
ocorrem, a partir do reinado de Cómodo, períodos intermitentes de
escassez de trigo. Por outro, assiste-se à progressiva barbarização das
forças militares romanas: alistamentos de contingentes provinciais
de modo já descentralizado, com a população local a transportar os
seus hábitos e linguagem para os efetivos militares romanos; integra-
ção de auxiliares, grupos de bárbaros a custo familiarizados com o
modo de vida romano; a pressão demográfica destas populações de
estrato social modesto a fazer-se sentir numa importante instituição
como o exército romano. Se os romanos acolheram, de bom grado,
as contribuições das técnicas militares destes grupos (a cavalaria, o
uso do arco), porque não acolheriam as suas práticas alimentares,
mais adaptadas às novas condições? O exército romano tardio a partir
de meados do séc. III está sob pressão: a mobilidade é importante,
nas regiões fronteiriças, no Médio-Oriente e no Danúbio, a insta-
bilidade é grande. Teria este combatente romano tempo para moer
o seu grão e comer a sua dose diária? Seria sempre fácil assegurar
a estes exércitos a dose diária de trigo necessária para fazer andar
as tropas? Por um lado, estes exércitos tardios passam a depender
mais dos fornecimentos locais. Por outro lado, as práticas militares
modificam-se, numa época instável: comer e andar, comer a andar
podem estimular a que se desenvolva um produto que utiliza o cereal
disponível (cevada, se houver sorte trigo), a leguminosa acessível
no local, o vinho, o azeite, o mel. Assim se obtém uma ração de
combate, um alimento completo.
741
Pensamos que as condições convergem no sentido de uma técnica
utilizada na navegação romana, o panis militaris, ter sido adaptada,
como processo de confeção, aos “navios da terra”: militares em grande
mobilidade, com necessidade de aligeirar o trem da logística. Trigo
e cevada, ou cevada e trigo completos, adicionados à leguminosa
gão de bico, saborosa, nutritiva, fortificante, associada à virilidade,
com um consumo regular no Médio Oriente e no Egipto entre as
camadas populares (uma importante fonte de proteínas) tem as vir-
tudes de uma refeição completa 32. Junte-se a leveza, a durabilidade,
a facilidade de transporte, a sua apresentação em pequenas unidades,
a facilitarem a sua ingestão em movimento. É, pois, uma hipótese
que o paximadion tenha sido desenvolvido para servir contingentes
militares em terra (de elevadíssimo número no Oriente, onde os exér-
citos romanos se prolongaram para além do séc. V, e com sucesso,
nos romanos de Bizâncio) e, neste sentido, tenha sido uma variante
do biscoito como integrante da ração militar, este um produto cuja
realização histórica parece evidenciar a preferência pelo trigo. Alguns
contingentes do exército romano, provavelmente os localizados no
Oriente, teriam adotado um consumo local popular (grão de bico
e cevada), eventualmente até na sequência de ruturas no acesso ao
trigo. Como vimos, no séc. XI, o “biscoito dos Muçulmanos” com
que Ricardo I alimentou a sua cruzada usava centeio e farinha de
feijão, o que prova a validade da técnica, e a perceção de que a
sua génese se encontra no Oriente, e mesmo no Egipto. Não deixa
pois, de ser relevante mencionar o enorme peso do grão de bico na
dieta egípcia de hoje, e na margem sul e oriental do Mediterrâneo
como importante fonte de proteínas. Acresce um subtil indício: os
Geoponica mencionam o grão de bico como ração importante para
742
os cavalos. O exército romano tardio aumenta o uso da cavalaria. Em
épocas de instabilidade, a que ponto estaria um contingente militar
com dificuldades em ser abastecido de trigo de usar as provisões
destinadas aos animais?
Uma breve nota para explicar a presença do termo paximathium
nos meios monásticos. Em primeiro lugar, em relação ao ambiente
militar, convergem a geografia, a cronologia e o estrato sociológico:
Antiguidade Tardia Oriental, entre comunidades não urbanas e su-
jeitas a uma disciplina de racionamento alimentar. As comunidades
monásticas nascem no Oriente no séc. IV, entre grupos de cristãos
que rejeitam o conforto das cidades ou são eles próprios de origem
humilde, de cultura essencialmente local e rural. Em segundo lugar,
a mobilidade (a chamada xenitheia – a “desinstalação”; o “abando-
nar a casa” leva-os a ganhar os espaços desérticos, rurais, e, quando
não combatem solitários, sujeitos a privações várias, formam comu-
nidades de rígida disciplina, à maneira militar. Os mosteiros de S.
Pacómio são constituídos por milhares de homens organizados em
decanias, que trabalham, rezam e obedecem. As semelhanças, com
várias motivações que não cabem discutir aqui, entre a disciplina
cenobítica e a disciplina militar foram amplamente reconhecidas.
Parece-nos pois plausível que entre os monges egípcios e sírios
se tivesse também tornado popular uma técnica de transformação
alimentar que dispensa produtos animais, que usa produtos locais,
que economiza o uso do fogo, que se pode racionar e que preenche
as necessidades nutritivas, sem quebrar a obrigatória parcimónia da
alimentação monástica.
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(Página deixada propositadamente em branco)
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