Saúde Da Mulher
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Resumo
Introdução: A violência contra mulheres é reconhecida como um tema de direitos humanos e de
saúde pública, sendo os serviços de saúde fundamentais para identificação e acolhimento dos casos.
Este artigo descreve as percepções dos/as profissionais da saúde sobre a violência contra as mulheres.
Método: Foram realizadas entrevistas com 26 profissionais que atuam em diferentes serviços numa
região do sertão de Pernambuco, analisadas pela técnica de análise de conteúdo. Resultados:
Destacaram-se três eixos de análise: compreensão da violência contra as mulheres; conhecimento
da rede e das legislações; e atendimento às mulheres em situação de violência. Discussão: Verificou-
se que os/as profissionais têm dificuldade em reconhecer tipos de violência, apresentam uma visão
preconceituosa em relação à mulher e desconhecem a rede e as legislações pertinentes. Conclusões: É
fundamental os/as profissionais terem informações sobre violência, rede de serviços e leis, bem como
reconhecerem-se como atores importantes na identificação e no enfrentamento da violência.
Palavras-chave: violência contra a mulher, serviços de saúde, profissionais da saúde
Abstract
Introduction: Violence against women is recognized as a human rights and public health issue, and
health services are fundamental to identify and host cases. This article describes the perceptions
of health professionals about violence against women. Method: Interviews were carried out with
26 professionals working in different services in a region of the hinterland of Pernambuco, analyzed
by the content analysis technique. Results: Three axes of analysis were highlighted: understanding
of violence against women; knowledge of the network and legislation; and assistance to women
in situations of violence. Discussion: It was verified that professionals have difficulty in recognizing
types of violence, present a prejudiced vision in relation to women, and are unaware of the network
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Introdução
A violência contra as mulheres é um fenômeno social que vem ganhando visibilidade nos
últimos anos e, desde a década de 1990, é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) como um tema de direitos humanos e de saúde pública, atingindo uma ampla quanti-
dade de mulheres ao redor do mundo (Organização Pan-Americana de Saúde, 2015).
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
conhecida como a Convenção de Belém do Pará, realizada em 1994 e ratificada no Brasil
pelo Decreto nº 1.973, de 1996, define violência contra a mulher como qualquer conduta de
ação ou omissão, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, seja no âmbito público ou no privado.
Segundo o Mapa da Violência, o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking dos países que mais
cometem violência contra as mulheres. O Mapa também aponta que, apesar de o local mais
comum de acontecer violência contra mulheres ainda ser a via pública, a residência da vítima
aparece em 27,1% dos casos, sendo um dado relevante, pois o domicílio não é proeminente
nas violências contra homens (Waiselfisz, 2015). Conforme estudo do Instituto de Pesquisa
Econômica e Aplicada (IPEA), o índice de violência doméstica com vítimas femininas é três
vezes maior que o registrado com homens. Os dados avaliados na pesquisa mostram tam-
bém que, em 43,1% dos casos, a violência ocorre na residência da mulher, e, em 36,7% dos
casos, a agressão se dá em vias públicas (Cerqueira et al., 2019).
Ainda segundo o Mapa da Violência, em 67,2% dos casos, o agressor era parceiro, ex-par-
ceiro ou parente imediato da mulher (Waiselfisz, 2015). No estudo do IPEA, 32,2% das situa-
ções de violência foram cometidas por pessoas conhecidas, 29,1% por pessoa desconhecida
e 25,9% pelo cônjuge ou ex-cônjuge da mulher. Com relação à procura pela polícia após a
agressão, muitas não fazem a denúncia por medo de represália ou impunidade: em 22,1%
Cenário da Pesquisa
Participantes
Na pesquisa geral do doutorado, participaram 60 profissionais, identificados/as e selecio-
nados/as a partir dos critérios de inclusão: atuar em algum serviço da rede pública de saúde;
atuar em um dos municípios localizados na região do Sertão de Pernambuco escolhida para
a pesquisa; ter no mínimo 18 anos de idade; e concordar em participar do estudo. No en-
tanto, apenas 26 participaram da fase da entrevista. A escolha foi aleatória, de acordo com a
disponibilidade dos/as profissionais.
Entre os/as 26 participantes, foram 20 mulheres e seis homens, com idade entre 22 e 58
anos. Do total, seis profissionais têm nível médio, 17 têm ensino superior completo e três
têm pós-graduação. Dos/as profissionais de nível superior ou com pós-graduação, as forma-
ções são: cinco assistentes sociais, duas psicólogas, sete enfermeiros/as, dois biomédicos/as,
duas nutricionistas, uma pedagoga e um administrador. Os/as profissionais de nível médio
foram três técnicos de enfermagem e três agentes comunitários de saúde. O tempo de atu-
ação na área variou de 1 mês a 30 anos.
Os/as profissionais atuam em diferentes órgãos na área da saúde da região pesquisada,
como: Hospital; Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Transtorno e Álcool e Outras Drogas
(AD); Laboratório Municipal; Equipes de Saúde da Família (ESF); Núcleos de Apoio à Saúde
da Família (NASF); e Secretarias Municipais de Saúde, em cargos de gestão/coordenação de
políticas, como o Programa Saúde na Escola (PSE) ou a Vigilância Epidemiológica.
Instrumentos
Utilizaram-se como instrumentos de coleta de dados um questionário sociodemográfico
e uma entrevista semiestruturada. O questionário foi utilizado para a caracterização dos/as
participantes, incluindo perguntas como: idade, grau de escolaridade, tempo de atuação na
Questões Éticas
Para o acesso aos/às participantes, foram solicitadas previamente autorizações das
Secretarias Municipais de Saúde. No momento da coleta de dados, foi esclarecido que a
Resultados e Discussão
Ao apontar que a mulher gosta de apanhar, a profissional traz um discurso baseado em es-
tereótipos que foram construídos e reproduzidos ao longo do tempo na sociedade. Diminuir
o fenômeno da violência contra mulheres a esse fato é negar uma dinâmica complexa que
envolve articulações necessárias para a compreensão do fenômeno, a partir de questões
sociais, culturais e históricas.
Conforme Medeiros e Santos (2020), existem vários motivos que levam mulheres a não
denunciar a violência. Os/As autoras/es refletem sobre a importância de informar a socieda-
de de que a mulher que não denuncia, não é porque deseja continuar na situação em que
está, mas pode ser por medo, desamparo ou até mesmo porque o agressor prometeu que o
episódio violento não aconteceria novamente. Neste sentido, é fundamental desconstruir a
ideia historicamente consolidada de que a mulher em situação de violência sente prazer, e
interromper a reprodução de ditados como “mulher de malandro gosta de apanhar”.
Dessa forma, segundo Schraiber e D’Oliveira (2003), seja por dificuldades das mulheres,
seja porque não podem ainda confiar nos serviços de saúde, as mulheres geralmente não
contam que vivem em situação de violência. Isso torna mais importante o conhecimento
dos/as profissionais sobre o que é e quais as tipificações da violência contra as mulheres,
pois assim poderão identificar e intervir adequadamente nos casos.
Segundo Schraiber e D’Oliveira (2003), para abordar o problema da violência nos serviços
de saúde, os/as profissionais devem ter informações técnicas, bem como conhecer a rede de
apoio local (jurídica, policial, psicossocial, entre outras) para decidir junto da mulher sobre
a melhor alternativa para cada situação. Além disso, as autoras ressaltam a importância de
existir fluxos e instrumentos de registro predefinidos para referenciar o caso.
Parece-nos que se trata de uma contradição, posto que os/as profissionais citam diversos
casos da não efetividade dos atendimentos na delegacia:
A questão daqui, da nossa região, é que não tem Delegacia da Mulher. Acredito que tem
muito policial machista, que termina culpabilizando a mulher (Psicóloga, CAPS, 37 anos).
O caso vai pra delegacia, aí eles prendem. Às vezes paga fiança, não sei, por falta de
prova, vai e libera, e pronto (Técnica de Enfermagem, CAPS, 29 anos).
Geralmente, aqui, se você chegar na Delegacia e falar que foi agredida, não sei o quê, não
sei o quê... Acho que eles vão dizer: “Tua culpa” (Técnica de Enfermagem, Laboratório,
28 anos).
Nesse sentido, quando as políticas públicas atuam em parceria, os atendimentos às ne-
cessidades da população são mais efetivos e integrais. Afinal, as redes não têm condições de
solucionar todas as questões de forma isolada, por isso existe a necessidade dos serviços de
saúde atuarem em conjunto. Conforme Arboit et al., (2017), a falta de articulação entre os
serviços é obstáculo para a realização da assistência à mulher em situação de violência. Para
as autoras, essa desordem pode levar os/as profissionais a não conseguirem identificar quais
os serviços a que podem recorrer e, com isso, não conseguem desenvolver ações efetivas de
atenção a essa população.
Os/as profissionais que trabalham no Hospital mencionam que a Polícia (tanto Civil quanto
Militar) encaminha muitas mulheres, no intuito de realizar o laudo pericial (exame de corpo de
delito). Eles/as, por sua vez, falam que encaminham todos os casos para o CREAS. Por outro
lado, não souberam dizer se já receberam algum relatório do CREAS informando o andamento
dos casos. Segundo uma profissional: “Não existe pra onde você encaminhar a não ser esse:
CREAS. A gente faz um Relatório e encaminha pro CREAS” (Assistente Social, Hospital, 35 anos).
Ressalta-se que, nos municípios onde a pesquisa foi realizada, não há nenhum serviço
especializado, ou seja, equipamentos que atendam exclusivamente mulheres em situação
de violência, como Casa-Abrigo, Casa de Acolhimento Provisório, Centro Especializado de
Atendimento à Mulher (CEAM), nem DEAM, conforme preconizado pela Política Nacional de
Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Brasil, 2011a).
No que se refere à principal falta da rede, a maioria dos/as profissionais menciona a
DEAM: “[A Delegacia da Mulher] resolveria muitas coisas. Porque uma delegada boa, ela vai
atrás e bota o indivíduo na cadeia” (Técnico de Enfermagem, Hospital, 58 anos). Para outra
profissional: “Está pra vim pra cá a Delegacia da Mulher e eu acho que vai ser muito bom, vai
ser demais, vai ser bom mesmo” (Técnica de Enfermagem, CAPS, 29 anos).
No que se refere ao conhecimento das legislações específicas sobre a violência contra
as mulheres, a maioria dos/as profissionais admite ter pouca ou nenhuma informação. Em
relação à Lei Maria da Penha, destacam-se os seguintes relatos:
Eu só sei que ela protege a mulher contra a violência física, e acredito que a verbal tam-
bém. Não tenho muito conhecimento (Enfermeiro, CAPS, 33 anos).
Não. Eu acho que não [conhecer a lei] (Técnica de Enfermagem, CAPS, 29 anos).
Não, poderia conhecer mais. Eu acredito que, porque a minha prática não ter aprofunda-
do tanto num caso assim, eu não tenho tanto conhecimento (Psicóloga, NASF, 28 anos).
No estudo realizado por Teixeira e Paiva (2021), os/as profissionais relataram conhecer
“muito pouco” a respeito das políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mu-
lher e das legislações específicas.
A pesquisa realizada por Acosta et al. (2018) aponta que os/as profissionais têm uma
visão centrada nos agravos físicos. Assim, entende-se que a não compreensão dos tipos de
Em 2011, todas as violências passaram a fazer parte da Lista Nacional das Doenças e Agravos
de Notificação Compulsória, a partir da Portaria nº 104. Dessa forma, a notificação de vio-
lência é obrigatória e compulsória a todos/as os/as profissionais de saúde, sejam de estabe-
lecimentos públicos ou privados. Deve-se notificar caso suspeito ou confirmado de violência
doméstica, intrafamiliar, sexual, autoprovocada, tortura, entre outras.
O desconhecimento dos/as profissionais em relação às legislações específicas sobre as
questões da violência contra as mulheres tem como principal consequência a subnotifica-
ção dos casos. Neste sentido, há um abismo enorme entre o que os números expressam e
a realidade. Ou seja, se a partir dos dados existentes o Brasil configura no 5º lugar entre os
países que mais cometem violência contra a mulher (Waiselfisz, 2015), imagina-se qual seria
a posição se os números fossem mais fidedignos.
cia sofrida. Por isso, é papel dos/as profissionais ficarem atentos/as aos sinais de que pode
haver uma situação de violência como principal desencadeador dos sintomas.
Para Duarte et al. (2019), todos/as os/as profissionais de saúde devem receber treina-
mentos para saber identificar e manejar o caso de violência de maneira adequada, desde
o momento da chegada ao serviço, para ser possível estabelecer uma relação de confiança
com a paciente.
Uma profissional que atua no CAPS do município menciona que, mesmo não trabalhando
num local específico para atendimento às situações de violência, já atendeu várias mulheres
que desenvolveram algum transtorno mental como consequência da violência sofrida: “. . .
porque ele bebia, e aí, quando ele bebia, batia nela. Hoje ela se cansou, e deu parte dele, e
ele foi preso. Hoje ela tem transtorno mental” (Psicóloga, CAPS, 37 anos).
A profissional menciona também casos em que a mulher não relatou estar em situação de
violência, mas que ela suspeitou que, por trás da queixa principal, pudesse haver agressões:
“Teve uma paciente, muito deprimida, e eu comecei a investigar, e aí depois eu descobri um
abuso sexual. De familiares. Já era coisa muito antiga” (Psicóloga, CAPS, 37 anos).
Para Teixeira e Paiva (2021), é fundamental a capacidade dos/as profissionais para iden-
tificar a violência, mesmo quando as mulheres não relatam de maneira espontânea. Assim,
os/as profissionais da pesquisa apontaram a importância do vínculo e da “escuta atenta”
para a construção de uma relação com as pessoas que buscam o cuidado. A partir dessa
escuta, é possível identificar situações de violência.
A identificação de violência como desencadeadora ou causadora de sintomas, especifica-
mente relacionados à saúde mental, é fundamental para um atendimento efetivo e integral
do caso. No que se refere à ligação entre violência e transtornos mentais, o estudo realizado
por Mendonça e Ludermir (2017) aponta que a incidência dos transtornos mentais comuns
(TMC) foi de 44,6% entre as mulheres que relataram violência nos últimos 12 meses antes
Considerações Finais
Referências
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Sobre os autores:
Kalline Flávia Silva de Lira: Mestre em Direitos Humanos, pela Universidade Federal de Pernambuco.
Doutora em Psicologia Social, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da
Autarquia Educacional do Araripe (AEDA), Pernambuco. E-mail: kalline_lira@hotmail.com, Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-2927-4748
Ricardo Vieiralves de Castro: Mestre em Psicologia Clínica, pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro. Doutor em Comunicação, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor
associado do Instituto de Psicologia e da Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador do Laboratório de Estudos Contemporâneos da UERJ
(LABORE). E-mail: ricardo.vieiralves@gmail.com, Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0040-8669