Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Arquitectura Tradicional Portuguesa - II. Casa Térrea - Etnográfica Press

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 229

24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II.

Casa térrea - Etnográfica Press

Etnográfica
Press
Arquitectura tradicional portuguesa | Ernesto Veiga de
Oliveira, Fernando Galhano

II. Casa térrea


p. 215-390

Texte intégral
1 Expressão do clima, da natureza do solo e, sobretudo, da
paisagem humana, económica e cultural, peculiar da região
em que surge, a casa popular do Sul, comparada com a do
Norte que atrás descrevemos, apresenta características
totalmente diversas, no que se refere nomeadamente à sua
forma essencial, aos materiais típicos de construção que nela
se usam e às suas funções, sublinhando expressivamente os
contrastes geográficos entre duas zonas.
2 A casa do Sul, onde se desconhece praticamente o granito e é
raro o xisto, onde de um modo geral escasseiam os
afloramentos de rocha e onde, em seu lugar, abundam os
terrenos argilosos, utiliza, na sua construção, materiais
dóceis, calcários moles e friáveis e mármores, onde estes
existem, arenitos vermelhos – a pedra boreira – no Sul do

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 1/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Algarve, com a sua amostra mais notável na Sé e muralhas


de Silves, o tijolo e sobretudo a taipa, que se encontra já na
Estremadura, mas que na planura alentejana e no Algarve
constitui o material característico e mais corrente na
edificação local.
3 Com o tijolo, por seu turno, que se combina com a Caipa e
que, como ela, oferece uma plasticidade que permite todas as
fantasias, constroem-se, além de paredes, arcos e abóbadas,
nichos e poiais, e sobretudo chaminés de formas ricas e
variadas que aparecem como motivos e elementos normais
destas casas, de belos efeitos e de um pitoresco quase
cenográfico que a caiação acentua, na valorização dos planos
combinados de luz e sombra.
4 É fora de dúvida que a explicação fundamental do uso geral e
quase exclusivo destes materiais na construção do Sul está
na escassez da pedra ao mesmo tempo que na abundância de
terras próprias para a sua preparação que se verificam
nestas regiões, uso esse que se apoia na velha tradição
arquitectónica local; mas a partir desse facto ele explica-se
também por razões funcionais activas, que são as suas
qualidades isoladoras do calor.
5 A casa do Sul é sempre rebocada e caiada, exterior e
interiormente, geralmente a branco, mas por vezes também
a cores vivas, sobretudo certos elementos ou partes. Esta
caiação, que constitui também um meio de defesa contra a
luz e o calor, renova-se a cada passo, e é geralmente feita
pelas mulheres, constituindo uma das suas fainas
domésticas regulares normais; ela acentua o pitoresco da
construção, aveludando superfícies, arredondando ângulos,
boleando arestas, disfarçando falhas, com a espessura das
suas camadas sucessivas, e dá-lhes um aspecto asseado e
fresco que contrasta flagrantemente com o que apresenta
geralmente a casa do Norte.
6 Esta casa, como a do Norte e segundo o costume geral do
País, é normalmente de planta rectangular simples; mas, ao
contrário daquela, e designadamente nos casos
propriamente rurais, ela é aqui de um só piso térreo. Isto
explica-se, sem dúvida, em parte, pela natureza do material

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 2/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

corrente de que ela é feita, cuja fragilidade não consentiria


uma edificação elevada; mas o facto relaciona-se também
certamente com a sua especialização funcional
característica : a casa do Sul não possui nem precisa de lojas,
porque normalmente se destina exclusivamente à habitação
das pessoas, que a ocupam inteiramente, ficando os celeiros,
palheiros, currais e outras dependências de lavoura em
edifícios próprios e independentes.
7 O chão destas casas é muias vezes de terra batida, ou
calcetada com pedra miúda, recoberto de lajes, ou ainda, e as
mais das vezes, de tijolo ou ladrilho. Exteriormente, as
janelas, não raro, mostram frisos ornamentais de caliça que
a caiação vai disfarçando.
8 Mas a acção dos factores naturais manifesta-se, na casa do
Sul, por outras formas além daquelas que derivam
directamente da natureza dos materiais nela usados, e que
influem também no seu aspecto e na sua estrutura: própria
de uma região quente e seca, de luminosidade intensa e fraca
pluovisidade, e em que a madeira não abunda, esta casa
possui janelas em pequeno número e de dimensões
reduzidas; com frequência, sobretudo no Alentejo e nas
casas arruadas das aldeias, não existem aberturas na
frontaria, além da porta de entrada; e muitas vezes, em vez
de janelas, vêem-se alguns raros postigos espalhados nas
fachadas.
9 O seu telhado, mesmo nas construções de importância
secundária (e com a única excepção de certas casas da serra
algarvia, que mostram aberturas de colmo), é de telha, que é
normalmente caleira e que em algumas regiões assenta em
canas, deixando coar uma luz difusa e colorida. Ele é
predominantemente de uma só água, sendo porém muito
frequentes também, tal como sucede no Norte, os telhados
de duas águas; mas enquanto ali estes são assim
estruturalmente, partindo essas duas águas de um único
cume assente sobre a trave mestra, no Sul elas constituem,
em muitos casos, dois telhados de uma só água encostados
um ao outro, a partir de uma parede alta, situada a meio do
edifício; e isto é particularmente evidente em certos casos,

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 3/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

de resto muito frequentes, em que esses dois telhados se


apoiam em paredes contíguas mas de alturas diferentes.
10 Estes telhados têm pouca inclinação, e encontram a sua
expressão mais acabada nos terraços abertos – as açoteias –
da casa do Algarve (que já se encontram no Baixo Alentejo)
que, como no Norte de África, donde possivelmente provêm,
se utilizam como local para a seca do peixe e do figo, e
recreio das pessoas – que aí tomam o fresco depois do pôr
do Sol –, e que, comunicando com a cisterna, permitem a
recolha de uma maior quantidade de águas pluviais, para o
abastecimento anual da casa.
11 A casa do Sul é, pois, uma casa térrea, feita de materiais
leves e de grande plasticidade, que permitem todas as
fantasias de estilo e que funcionam ao mesmo tempo como
isoladores do calor, rebocadas e caiadas exterior e
interiormente, com poucas janelas, muitas vezes mesmo
apenas com a porta de entrada na frontaria, incluindo na sua
estrutura arcos de tijolo e, por vezes mesmo, abóbadas; e
com telhado de duas águas ou terraços (que no Norte de
África se vêem mesmo em substituição daquele) e pavimento
de terra, calçoto ou, preferentemente, tijolo ou ladrilho.
Como seu elemento característico fundamental, a chaminé
que toma o valor de peça de luxo e que está na base do asseio
característico das cozinhas.
12 E assim, « no aspecto mais cuidado, menos rústico, dos
edifícios do Sul, próprios das planuras que a Natureza e a
História abriram a mais amplas influências mediterrâneas»,
lê-se a influência de civilizações superiores: romana e árabe.
13 A cozinha, na casa do Sul, embora menos significativamente
do que no Norte – talvez porque, e mormente no Alentejo, a
família tem menos coesão que ali – pode também
considerar-se a divisão principal da casa, a um tempo
cozinha, sala de estar, de trabalhar, onde se recebe quem
chega de fora, etc. A lareira é normalmente ao nível do solo,
numa banqueta de tijolos; mas, sobretudo no Baixo Alentejo,
são frequentes as pequenas fornalhas, também de tijolo, com
cerca de 60 cm de altura, rebocadas e caiadas, que, com as
cantareiras, formam conjuntos muito pitorescos e

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 4/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

harmoniosos. As lareiras são sempre abrigadas pela


chaminé, que interiormente mostra um pano, o qual se
apoia nas paredes da casa ou em muros laterais de suporte;
um friso, a que no Alto Alentejo se dá o nome de gerlanda,
estribado em cachorros, corre sob a sua verga frontal e
prolonga-se muitas vezes, à mesma altura, a toda a volta da
cozinha. Em todas as chaminés em que o fogo arde à vista,
para que o calor não deteriore as paredes, de materiais
pouco resistentes, existe uma laje de espessura média, de
tijolo, ardósia, granito ou calcário, que faz o papel de
isolador ; a essa peça, que pela sua função se aproxima da
«borralheira» nortenha, dão-se os nomes de « trafogueiro »,
« boneca » e ainda, mais raramente, «sempre-noiva». Essas
« bonecas » são por vezes de contornos simplesmente
geométricos; outras, porém, são antropomórficas e sugerem
a sua filiação nas divindades – Lares – dos Romanos que
presidiam à vida familiar.
14 A existência normal da chaminé na casa do Sul, escoando
todo o fumo para o exterior e impedindo que ele invada a
casa, como sucede no Norte, está na base da limpeza
impecável que caracteriza as suas cozinhas, e que a caiação
regular e constante acentua ainda mais.
Des. 86 – Ferreira de Alentejo, Monte do Outeiro
(parte antiga)

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 5/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

15 Por toda a parte, nas gerlandas e prateleiras, brilham os


serviços de cobre, estanho, latão e também de ferro e barro;
a um canto, os poiais e pilheiras com as quartas e potes de
água, de barro ou cobre – a louça de arame –, etc. E muitas
vezes, nos montes avultados e ricos, vê-se a meio a mesa,
que em casos raros é de pedra.
16 Os fornos são sempre exteriores, construídos ao ar livre e
separados da casa, em pequenos edifícios redondos e
autónomos, e quase sempre bem rebocados e caiados, como
as demais dependências. Nos montes pequenos, eles
reduzem-se ao forno propriamente dito; nos maiores são
construções de mais vulto, com um telheiro e alpendre na
sua frente, e com um poial de cada lado, onde se pousam os
tabuleiros com as bolas de pão, e onde, no dizer de Silva
Picão, dormem malteses ou passantes. Com frequência, as
pessoas, com a preocupação de não sujarem a cozinha,
preparam os alimentos no exterior, na boca dos fornos ou
em pequenos nichos construídos para esse fim junto à casa.
17 A nota mais característica da casa do Sul, designadamente
do Algarve, é sem dúvida a chaminé, que se pode considerar
de uso absolutamente normal e geral nessa zona, mesmo nas
casas mais pequenas e modestas; e essas chaminés do Sul,
que ultrapassam decididamente a sua função e representam
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 6/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

o principal ornamento dos edifícios sobre que incide o


espírito inventivo dos construtores locais, são por Virgílio
Correia consideradas «porventura as mais interessantes de
todo o mundo»1; «alma da casa», diz Amorim Girão, « nela
se põem todos os cuidados arquitectónicos ; e não é raro que
os mestres-de-obras, para se assegurarem do esmero que
precisam de pôr na construção, perguntem primeiro ao
proprietário quantos dias quer de chaminé ». Este mesmo
autor vê nelas « um acentuado cunho oriental, em que já se
tem entendido surpreender reminiscências dos minaretes
muçulmanos ». A chaminé alentejana primitiva parece ter
sido em tronco de pirâmide quadrangular, semelhante à
forma minhota; mas aqui ela implanta-se e faz parte do
alçado ou frontaria da casa, e encontra-se junto à porta da
entrada. Esta forma, porém que não permite fantasias além
de datas, iniciais e certos desenhos, nos «panos» voltados
para a rua (e que vão desaparecendo sob as sucessivas
camadas de cal), tem má tiragem, e encontra-se em
decadência, surgindo outros tipos que tendem a prevalecer.
Des. 87

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 7/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 88 – Mourão, Amareleja, cozinha abobadada

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 8/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

18 Actualmente, segundo a classificação de Mello de Mattos2 –


de resto aplicável às chaminés portuguesas de todas as áreas
e épocas –, encontram-se tipos muito variados de chaminés
que, nas suas linhas gerais, se podem classificar, quanto à
base, em rectangulares, quadradas e circulares e, quanto à
forma, em prismáticas, cilíndricas e piramidais.
19 Estas chaminés, conforme os diferentes tipos, apresentam
remates em forma de cúpula, com pináculos, etc ; as de base
rectangular imitam muitas vezes pequenas casas com janelas
de adufas de tijolo; as prismáticas mostram fustes com
molduras de estuque; nas cilíndricas, em geral, a
ornamentação reserva-se para as aberturas de saída do
fumo, etc. Nestas últimas, a única cobertura possível é a
hemisférica, sem ornatos terminais de fantasia, como nas
prismáticas e nas piramidais, em que a cobertura superior
conserva vestígios das arestas.
20 Os modelos dos motivos ornamentais foram de certo
procurados nos edifícios que os canteiros conheciam : torres
de igreja em miniatura, cata-ventos, pombais, telhados
mouriscos, etc.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 9/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

21 Os respiradouros aparecem ora seguidos, com grades de


gaiolas ou frestas, ora dispostos em denteados triangulares,
simples ou cruzados.
22 Como decoração, elas mostram molduras de argamassa ou
gesso, grafitti com iniciais e datas, ou embelezando as
esquinas; muitas vezes, essas inscrições vêm acompanhadas
de desenhos de instrumentos de trabalho – martelos,
machados, etc.
23 Em Évora e Eivas, aparece um tipo peculiar em forma de
caixa que se encosta às paredes de um rés-do-chão. Noutros
lugares, umas têm sobre o paralelepípedo do tronco quatro
pares de tijolos caiados e encostados ao alto; outras,
parecem berços, agulhas de campanários, torres sineiras,
marabutos, pombais; algumas são largas e por vezes com
ressalto, com um pesado alargamento no alto, muitas delas
ricamente eleboradas ; outras, nas faces mais largas, têm as
gradarias de tijolo das rótulas conventuais e o desenho
geométrico das rexas das açoteias e mirantes, etc.
24 Mais raramente, ocorrem duplas chaminés – uma
ornamental, e, colado a ela, o chupão tradicional que fazia a
tiragem.
25 Em certas povoações, vêem-se, nas casas seguidas de cada
rua, séries de chaminés todas iguais, formando um conjunto
uniforme; noutros locais, pelo contrário, cada qual prima
por ter uma chaminé diferente e mais rica que a do vizinho.
E é no Algarve que a riqueza e a variedade de desenhos
atinge o máximo, a ponto de se poder dizer que é o traço
mais notável da casa e da paisagem dessa província.
26 Passaremos em seguida a estudar a casa do Sul segundo os
vários tipos sob que ela nos aparece, que correspondem às
diversas regiões naturais em que essa zona do País se divide,
individualizadas por traços bem definidos: a Estremadura, o
Ribatejo, o Alentejo e o Algarve.

Zona alentejana
27 A paisagem, alentejana é de uma grande sobriedade de
linhas: a planície – a « peneplanície » – aberta em campos
de cereal e pousio, a perder de vista, e montados de
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 10/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

sobreiros e azinheiros verde-escuros contra um céu límpido


e brilhante, implacável para quem tem de andar ao ar livre,
porque « no Alentejo não há sombra, senão a que cai do
céu ».

Des. 89 – Serpa, Monte da Cascalheira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 11/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

28 Muito distantes uns dos outros, perdidos na vastidão,


grandes centros urbanos, cidades, vilas ou aldeias, muito
aglomerados, braquejando na extensão verde ou queimada
das searas; e aqui e além um ou outro monte, ou seja, o
conjunto de edifícios que forma a unidade agrícola – a
herdade.
29 Esta planície absorveu totalmente o litoral – o litoral
alentejano, linear, fechado, hostil, que é a zona mais
desértica do País.
30 A penetração romana foi muito sensível nesta região, e
deixou inúmeros vestígios; mas o domínio árabe prolongado
e de influências mais fundas do que no resto do País alterou
fundamentalmente o povoamento primitivo. Os nossos
primeiros reis, para consolidarem a Reconquista numa
região plana, árida e pouco povoada, adoptaram o sistema
das doações de grandes domínios a magnates e a ordens
religiosas ou militares, imobilizando a terra antes do seu
povoamento. Este facto está na origem do latifúndio
alentejano, de que descendem as actuais herdades – a
grande propriedade de cereal e gado em regime extensivo de
cultura, que é característica da região. Em muitos casos, as
aldeias surgiram mais tarde, estranguladas no latifúndio,
habitadas por uma população de trabalhadores rurais
assalariados – os ganhões ou ganadeiros – que servem as
herdades próximas, mas que não possuem um palmo de
terra, porque para eles não há terra hereditária nem

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 12/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

disponível; algumas dessas aldeias situam-se mesmo nas


terras de qualquer grande proprietário, e os seus habitantes
pagam-lhe uma renda ou foro. É evidente que existe também
a pequena propriedade, no caso mais vulgar perto dos
centros urbanos, produto da remissão desses foros e hoje do
desbarato da grande propriedade; mas na verdade pode
dizer-se que o Alentejo rural se partilha fundamentalmente
entre os dois extremos: o grande proprie- tário – senhor de
vastos domínios, que em muitos casos explora a sua
propriedade por sistemas racionalizados, mas que com
muita frequência a aluga a um rendeiro – e o trabalhador
amarrado à terra, mas que nada possui.
Des. 90

Des. 91

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 13/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 126 – Alentejo

Foto 127 – Alentejo

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 14/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 128 – Alentejo

Foto 129 – Alentejo

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 15/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 130 – Alcoutim, Corte Serrano

Foto 131 – Avis

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 16/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 132 – Avis

Foto 133 – Avis

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 17/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 134 – Elvas

Foto 135 – Elvas, Caia

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 18/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 136 – Elvas

Foto 137 – Elvas, São Vicente

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 19/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 138 – Elvas, Santa Eulália

Foto 139 – Santiago de Cacém, Alvalade

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 20/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 140 – Santiago de Cacém. Porto Covo

Foto 141 – Fronteira, Cabeço de Vide

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 21/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 142 – Monsaraz, Reguengos de Monsaraz

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 22/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 143 – Nisa, Arês

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 23/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 144 – Aljustrel

Foto 145 – Moura, Santo Aleixo

Foto 146 – Mértola, São João dos Caldeireiros

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 24/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto : 147 – Mourão

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 25/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 148 – Estremoz, Santa Vitória do Ameixial

Foto 149 – Vila Franca de Xira, Porto Salvo

Foto 150 – Olhão

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 26/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 151 – Olhão

Foto 152 – Tavira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 27/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 153 – Tavira Santa Catarina

Foto 154 – Tavira, Murteira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 28/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 155 – Lagoa, Alcantarilha

Foto 156 – Castro Marim, Montes Castelhanos

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 29/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 157 – Monchique, Alferce

Foto 158 – Lagos. Bensafrim

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 30/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 159 – Silves

Foto 160 – Faro, São Lourenço

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 31/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 161 – Vila do Bispo, Pedralva

Foto 162 – Loulé, Corte Garcia

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 32/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 163 – Loulé

Foto 164 – Loulé

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 33/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 93 – Quinta da Zorra, Ourique, Panoias

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 34/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 94 – Monte da Quintã, Mértola

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 35/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 96 – Beja, Salvada, Monte Coelho, na Foz do


Tejes e Cobres

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 36/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 97 – Santiago de Cacém, Quinta da Zorra,


Panoias

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 37/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

31 É nesta província que se encontra a densidade populacional


mais baixa do País, e esse facto desde sempre se atribui às
condições sociais que a dominam. A população concentra-se
nos aglomerados urbanos, ou dispersa-se nos montes. As
aldeias, geralmente grandes, limpas e bem arruadas, de
casas térreas imaculadamente caiadas – no Alentejo as casas
caiam-se constantemente –, têm elas próprias o carácter de
pequenos aglomerados urbanos: são habitadas por operários
rurais que não possuem terras nem alfaias, que apenas
ganham o seu salário e com ele compram tudo o que
necessitam, num puro regime de economia quantitativa. As
suas casas, por isso, são unicamente de habitação e não de
lavoura; a própria ferramenta agrícola fica na herdade. Mas
de facto elas não bastam às necessidades de pessoal da
grande exploração agrícola e, por isso, de uma maneira
geral, cada herdade tem, como centro, casas da malta –
instalações onde vivem ganhões que nela trabalham.
32 A tendência natural para as realizações plásticas, por
instinto e tradição, que fazem do artesanato alentejano uma
das manifestações mais notáveis da arte popular nacional, é
também patente no estilo da casa alentejana, na fantasia dos
seus pormenores – especialmente as enormes chaminés que
já referimos, implantadas na fachada frontal e que, além de
funcionais, são carregadas de intenção decorativa. E também
os nichos, os poiais, os arcos, as abóbadas, os efeitos
extraídos da combinação do ladrilho e da brancura das
paredes caia- das, etc. E o próprio arranjo da casa: as louças
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 38/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

de cobre e estanho em prateleiras, na cozinha; os grandes


potes de barro, nos poiais; esteiras no chão, mobília
simples – cadeiras com assento de palha entrançada, que em
Évora são decoradas com motivos fitográficos policromados,
bancos, arcas e arquibancos, peças de madeira nas paredes,
de fabrico pastoril: colhereiras, copeiras, etc., vasos com
flores por todos os lados – e notavelmente essas jarras
enormes de barro que se vêem nas adegas, alinhadas a par
umas das outras, e que fazem pensar nos celeiros do palácio
de Cnossos, dos reis de Creta, com os seus enormes pithoï ou
dolii para cereais.
Des. 98

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 39/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 40/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 99 – Mértola, Monte da Espragosa

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 41/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 100 – Estremoz

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 42/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

33 Deste modo, e relativamente ao Alentejo, consideraremos a


seguir separadamente a casa rústica e a casa urbana, que
mostram certos pormenores diferenciais muito
característicos.
34 A casa rural é o monte. Os montes podem ser casas
solarengas, às vezes com dois ou três andares, com terreiro e
pátio murado, até casas térreas mais ou menos modestas e
pequenas, ajustadas às necessidades das lavouras
respectivas, ou apenas para habitação de ganadeiros,
guardas ou pastores.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 43/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

35 A casa do monte pequeno em geral é térrea e corresponde


nas suas linhas essenciais à construção do Sul que atrás
descrevemos. No Baixo Alentejo elas mostram por vezes uma
planta em que as divisões se sucedem umas às outras, com a
entrada pela cozinha ou sala de fora. Outras vezes existe a
meio da largura do edifício uma parede que sobe até ao
telhado, fazendo o cume; os compartimentos ficam atrás e à
frente dessa parede; a entrada e comunicação com as
restantes divisões faz-se pela sala de fora – cozinha – ou por
um corredor, ficando a cozinha neste caso geralmente atrás.
Pelo Sul do concelho de Beja, esta última planta, em que a
entrada se faz por um corredor, é mais frequente: nos velhos
montes um corredor largo passava entre um quarto e a
amassaria-celeiro ficava um pouco estrangulado pela parede
central e dava depois comunicação para a cozinha e a
cavalariça situadas à retaguarda. Como única abertura, havia
a porta, pois os próprios machos saíam pelo corredor. Os
celeiros prolongavam para um lado esta construção com a
entrada igualmente pelo interior, num nítido intuito de
defesa. Actualmente, nos montes pequenos desta região, a
cavalariça fica geralmente num acrescento do lado oposto
aos celeiros, que cobre também um palheiro. Ao longo do
litoral, nos pequenos montes de faixas e cunhais pintados a
azul e/ou ocre, a entrada situa-se, pelo contrário, numa das
empenas laterais. E um pouco por toda a parte, um banco ou
um « alegrete » de flores, alonga-se encostado à casa.
36 O monte grande compreende a casa de habitação – do
senhorio ou do lavrador que explora a terra – com a sua casa
de entrada – onde estão as cantareiras de louça, cobre ou
estanho –, a sua enorme despensa – onde se acumulam
provisões para alimentar cem ou duzentos homens, fumeiros
de matanças de doze a vinte cabeças, potes de azeite, queijos,
trigo, ovos, etc. –, a cozinha – com a lareira descomunal,
servindo também de refeitório do pessoal –, a amassaria,
casa do fabrico do pão, etc. Mas além da casa de habitação,
senhorial ou de rendeiro, o monte compreende as
acomodações agrícolas e pecuárias, e as instalações para a
multidão de clientes – criados e outros assalariados que não

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 44/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

vivem em qualquer povoação próxima, artífices de vários


mesteres, etc. –, às vezes centenas de pessoas (como uma
aldeia do Norte). São os celeiros, a queijaria ou rouparia,
onde se fabrica o queijo, o forno do pão abrigado pelo
telheiro onde dormem os mendigos e os malteses, as
cavalariças e cocheiras, etc. E à volta, é a eira de terra batida
com as enormes «serras» de palha, as pilhas de lenha, a
malhada dos porcos, todas as dependências, enfim, que
constituem a grande unidade rural alentejana. Mas a casa é
acima de tudo o reflexo da vida e da paisagem humana: o
monte alentejano e, nomeadamente, o monte de grande
vulto – compreendendo as habitações e cómodos para
recolha e guarda de gados, produtos da terra e alfaias, em
diferentes edifícios, normalmente térreos, a cada um dos
quais corresponde uma dependência de lavouras, dispostos
num vasto recinto de limites pouco determinados –, aberto à
vastidão das searas, é um exemplo muito certo do tipo
complexo de casa de pátio aberto, que traduz a vida da terra
e se ajusta perfeitamente às condições da grande
propriedade explorada em regime capitalista e industrial de
cultura extensiva em grande escala, numa região em que o
problema do aproveitamento do espaço não existe – ao
mesmo tempo que uma forma especial de concentração de
povoamento localizada numa grande unidade agrária.

Zona algarvia
37 A planície alentejana termina nas elevações da serra
algarvia. Desta para o Sul desde o anfiteatro luminoso da
zona calcária do « Barrocal », seguido pelas terras planas,
intensamente agricultadas, e pelos salgados e sapais junto ao
mar. Para o « Serrenho », o Algarve é o Barrocal e a planície.
A serra pobre e triste, onde apenas no fundo dos vales
sinuosos se junta um pouco de terra e há água para regar
umas « hortas », é, com efeito, um mundo áspero, estranho à
alacridade do casario disperso entre pomares com hortas
viçosas onde não falta a água, onde tudo é límpido e claro, e
onde do chão ressequido e vermelho crescem alfarrobeiras
sempre verdes.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 45/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 101 – Olhão, Pechão

38 A habitação da serra, e mesmo a do litoral ocidental,


diferencia-se, pela sua falta de cuidado, da do Algarve
Central e Oriental. Nas pequenas aldeias da serra (montes de
dez a vinte casas, com os palheiros redondos ao pé), os
edifícios, reflectindo a pobreza do « Serrenho », ficam com
frequência com a pedra a nu, ou apenas com desenhos
caiados sobre as portas, e não têm chaminés nos telhados,
que são por vezes de colmo.
39 Pelo litoral ocidental, zona despida e ventosa, que prolonga
até à costa sul a vastidão alentejana, a casa pouco difere da
dos montes dessa província; a fachada é baixa, com beiral –
a platibanda divulga-se agora – e são raras e recentes as
chaminés decoradas características do resto do Algarve.
40 É com efeito, neste anfiteatro algarvio virado a sul, que a
casa reúne as formas e elementos mais característicos da
província. As casas antigas da zona central, alvejando entre
pomares de figueiras e amendoeiras, repetem uma planta
que mostra para a frente uma sala para a qual abrem as
portas de duas alcovas situadas no fundo. Estas alcovas são
normalmente abobadadas, uma com abóbada de berço, e a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 46/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

outra artesonada, onde dormem os pais. É sobre a abóbada


destes dois pequenos compartimentos que fica a açoteia. Da
sala passa-se para a cozinha; e ao lado ou atrás desta, está a
cabana (estábulo) e o palheiro (este situa-se muitas vezes
sobre a cabana). Muitas destas casas já perderam, com
acrescentos e modificações, esta divisão interior.
Des. 102 – Lagoa, Alcantarilha

Des. 103 – Faro, Santa Bárbara de Nexe, Sítio da


Aldeia

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 47/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 105 – Faro, Santa Bárbara de Nexe, Pé do


Cerro

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 48/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

41 Muitas vezes, um muro baixo e caiado veda um pequeno


terraço diante da casa. Por cima dele, dos bancos caiados,
que ladeiam a porta, vê-se a encosta arborizada e o
almeixar – onde secam o figo –, o céu azul, a mancha branca
da casa vizinha, meio escondida na verdura. Mais recente e
muito mais vulgar é o tipo de casa que apresenta uma planta
com dois quartos de dormir para a frente, e a cozinha e a sala
de jantar para a retaguarda.
42 A fachada frontal mostra duas janelas com a porta a meio,
abrindo esta para o corredor que dá comunicação aos quatro
compartimentos. Quando se toma necessário ampliar a sua
capacidade como em casas de comércio ou quintas, a casa
prolonga-se para um dos lados, ganhando um ou dois
compartimentos – armazém ou celeiro à frente, e cabana à
retaguarda. A metade frontal da casa, correspondente aos
quartos, é coberta por um tecto de vigas de madeira e
ladrilho que forma o pavimento da açoteia. Na retaguarda
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 49/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

eleva-se um sobrado baixo, de telhado a uma água com


pouca inclinação, dividido a meio pela escada estreita, que
sobe da cozinha para a açoteia ; este sobrado é aproveitado
para quarto de arrumos (casa de despejo) e palheiro.
43 A última forma deste tipo de casa, num modelo muito
uniforme que se repete com insistência não só pelo centro e
Oriente algarvio, mas também pelo barlavento, tem o andar
térreo coberto integralmente por uma placa de cimento que
faz à frente a açoteia ou varanda e atrás o pavimento do
andar. Estas casas, cuja fachada é profundamente decorada
com cunhais e guarnições, molduras, platibandas
trabalhadas e coloridas, etc., difundem-se profusamente pelo
triângulo Loulé-Alportel-Faro, e quase constituem a
totalidade das construções de certos lugares como, por
exemplo, Santa Bárbara de Nexe.
44 Na parte ocidental da província a açoteia é rara. O telhado é
aí muitas vezes a uma única água – na Carrapateira têm
quase todos essa forma – com as telhas assentes em canas,
contínuas ou em grupos (em «pulo de rato ») amarradas por
cordas de palha ou arame. Opondo-se a esta forma
elementar de cobertura, os telhados de certos centros
urbanos, especialmente os de Tavira, são a quatro águas,
com a grande inclinação das construções setecentistas. A
forma especial destes telhados, que interiormente
correspondem a tectos de masseira, revela, segundo Orlando
Ribeiro, influências extremo-orientais.
45 Os elementos mais característicos da casa algarvia em geral
são porém, sem dúvida, a chaminé, a que já nos referimos, a
açoteia e as platibandas. A açoteia é um terraço situado no
alto da casa, em lugar do telhado, e que serve de local de
secagem de certos produtos alimentares, e sobretudo como
logradouro onde se goza a fresca nas horas em que o sol ali
não bate, e donde se pode comunicar com a vizinhança.
Muito frequente no centro e sotavento algarvios, mormente
a leste de Loulé, ela é rara no barlavento. Como dissemos, o
seu pavimento, nas casas mais antigas da zona litoral,
assenta sobre as abóbadas que constituem o tecto das
alcovas da casa e, mais tarde, sobre uma cobertura de traves

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 50/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

de madeira e ladrilho que, em tempos recentes, foram


substituídas por uma placa de cimento que recobre todo o
térreo. A escada de acesso à açoteia parte quase sempre da
cozinha e termina numa pequena casota que lhe abriga a
saída – o pangaio. A açoteia é a marca distintiva do tipo tão
curioso da casa de Olhão, que alguns consideram caso único
no mundo, e de que Fernando Lopes sugere a linha
evolutiva: sobre o tecto horizontal e ladrilhado do
« pangaio » espaçoso que abriga a escada que sobe do
interior (há aqui também escadas exteriores que partem do
pátio) realizou o Olhanense mais um terraço. O mirante
conseguido foi-se alargando a tal ponto que sobre ele foi
possível construir novo mirante (o contramirante). Ambas
as construções têm acesso exterior por escadas caprichosas
assentes em arcos ou cachorros. E o resultado « são milhares
de cubos em equilíbrio instável [...] num mar revolto de
planos [...] Dum prédio para o outro, as açoteias e fachadas
imbricam-se, acavalam-se, sobrepõem-se, desarticulam-se,
anuladas pela brancura e pela miragem as leis da perspectiva
e do volume»3.
Des. 106 – Loulé, Goncinha

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 51/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

46 A platibanda esconde muitos dos telhados a duas águas; ela


difunde-se agora com grande rapidez, indicando o beiral, no
geral, as casas mais antigas.
47 O esmero da sua conservação, e a intenção decorativa que a
cada passo se nota na casa algarvia, é uma das suas
características : nas caiações ainda mais frequentes que no
Alentejo, em que a brancura é realçada pela vegetação viçosa
que a cerca, e quebrada pelo azul das faixas e rodapés; no
colorido álacre das recentes fachadas urbanas; nos ornatos
das platibandas e cornijas; e principalmente na decoração
das chaminés, que atinge por Loulé a sua maior riqueza,
transparece um sentido estético que se revela até em
pormenores inesperados, como nesses pavimentos de cal e
areia, calcados por uma esteira de palma, que deixa na
massa fresca a marca do seu tecido, ou até no calcetamento
de velhos pátios, em que o tamanho dos blocos irregulares é
escolhido de molde a formar desenhos.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 52/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 107 – Faro, Santa Bárbara de Nexe

Des. 108 – Olhão, Pechão

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 53/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 109 – Olhão, Quelfes, Brancanos

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 54/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Zona ribatejana e estremenha


48 Por toda a vasta zona que se estende para o Sul e Norte do
Tejo, a casa ora se aproxima da alentejana, ora ganha feição
regional mais definida. Pela extensa planície ribatejana, a sul
do rio, ao contrário do que sucede com tantos elementos que
dão à região um carácter único e inconfundível, a casa não
mostra particularidades marcantes. Além dos grandes
montes que lembram os alentejanos, mas de carácter muito
mais diluído e em que surgem com frequência construções
com um ou dois andares, e algumas casas de madeira
erguidas sobre palafitos em certas zonas ribeirinhas do Tejo,
habitações de gentes com actividades com ele relacionadas, o
tipo de casa disseminado pela planície é uma pequena
construção térrea, que repete, mais pobre em pormenores, o
pequeno monte alentejano. O próprio conjunto das
construções urbanas, de rés-do-chão e andar, não atinge aí o
jogo de planos, rico e variado, que se observa a norte do rio.
49 A casa saloia distingue-se pelas suas proporções
harmoniosas, pela justa colocação de portas e janelas, pela
curvatura acentuada do telhado, de nítido gosto pombalino e

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 55/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

adornado muita vez com caudas-de-andorinha muito


recurvadas. Quando de rés-do-chão e andar, estão em baixo
a cozinha e a sala, enquanto os quartos ficam no sobrado,
com escada exterior e por vezes com alpendre. Na cozinha,
sobre a lareira alta (a uns 60 cm do pavimento) é agora
frequente cozinharem em pequenas fornalhas; e para a
lareira abre a boca do forno, construído fora da parede. A
chaminé, de uso geral, tem a forma delgada, e termina sem
chapéu por uma estreita fenda que acompanha o recorte
curvo ou direito do seu cimo. Poiais de pedra e armários de
parede completam a parte arquitectónica da cozinha.
50 Pormenores curiosos alargam o interesse destas casas, com
as caleiras inclinadas de telha que se vêem em certos locais,
assentes em pedras salientes da parede lateral, que apanham
as pingas do telhado e impedem que elas caiam no do
vizinho; ou os pares de delgados cachorros metidos aos lados
das janelas, na face superior dos quais se abre uma meia
cana e que parecem feitos para neles passar uma vara donde
penderia qualquer colgadura ; ou ainda os poderosos
contrafortes ou gigantes que, nos pequenos « montarecos »
das imediações de Lisboa, reforçam, as paredes de taipa,
certamente em reminiscência do terramoto de 1755.

Zona do litoral central


51 Por toda a região gandaresa, entre as bacias do Vouga – a ria
de Aveiro – e do Mondego, de areias pliocénicas e recentes,
divulgou-se um tipo geral de casa térrea, que mostra sobre
os caminhos ou estradas uma fachada simples mas muito
cuidada, com frisos e guarnições ricas e profusas, cornijas e
cunhais, e paredes de adobo cru nas fachadas secundárias e
nas que dão para um pátio situado nas traseiras. As portas e
janelas alinham-se na frontaria, em número e ordem que
variam conforme os locais; à casa propriamente dita segue-
se o portal largo, muitas vezes em arco, que dá acesso ao
pátio, através do coberto, a que por Estarreja dão o nome de
arrumada. O pátio é fechado, total ou parcialmente, pelos
anexos da lavoura, alpendres e cortes, frequentemente com
telhados de uma só água, e sem reboco.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 56/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

52 O telhado destas casas é simples, normalmente de duas


águas, quase sempre em telha marselha, e apenas nos anexos
menores se emprega ainda a velha telha caleira ; os beirais
são cuidados, e não raro acompanham a saliência dos
cunhais, com os bicos rematados por telhas recortadas e
reviradas em cauda de andorinha; com muita frequência,
sobre os telhados, nos remates dos cumes, vêem-se figuras
decorativas, pináculos, pombas, águias, leões, gatos, etc.
53 Na Gândara, ao lado das vertentes do telhado do corpo
frontal, é muito corrente um rebordo de caliça, espécie de
guarda-vento muito baixo, para prisão das telhas; e em
certos lugares como Covões e Palhaça, na passagem para as
terras bairradinas, onde geralmente uma água do telhado da
ala lateral, onde ficam as cozinhas, dá para terrenos alheios,
um conduto especial feito de telhas caleiras assentes na
própria espessura das paredes, que dele para cima estreitece,
apanha os pingantes dessa vertente.
54 Este tipo de casa apresenta-se sob grande número de
formas, conforme as diversas regiões, especialmente no que
se refere à ordenação da fachada, à disposição interior, à
localização do celeiro, que constituem, em certos casos,
variantes locais muito definidas. Na região gandaresa,
algumas dessas formas interessam sobremaneira, já porque
representam a sua adaptação às condições mesológicas e
culturais locais, já pelo rigor com que exprimem esses
pressupostos, designadamente no que se refere ao material
de que são feitas, ao ajustamento do seu plano interior, à
agricultura da região, e até às circunstâncias peculiares do
povoamento dessa zona. A casa gandaresa apresenta uma
feição original, em que coexistem os caracteres das casas de
pátio e das casas de fachada. De facto, todos os edifícios que
a compõem dispõem-se de maneira a formar um pátio
interior fechado, onde se empilham os produtos com que se
prepara a grande massa de estrumes indispensáveis à
agricultura das areias; por outro lado, na sua forma mais
típica, ela possui sempre uma frontaria que se distingue pelo
esmero do seu acabamento, que se pode relacionar com as
condições em que surge – produto do povoamento recente,

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 57/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

operado ao longo de vias de comunicação. Nos aglomerados


urbanos e, de um modo geral, nas casas situadas à face de
caminhos públicos, a fachada frontal prevalece sobre o pátio,
que as mais das vezes fica para as traseiras e mal se
adivinha; mas nas casas pobres, ou isoladas no meio das
terras – e sobretudo nas que parecem mais antigas ou
concebidas segundo a mais antiga tradição – o pátio, pelo
contrário, evidencia-se com grande nitidez, e elas aparecem
fechadas no quadrado dos velhos muros de adobo cru, sem
qualquer fachada à vista e quase sem rasgos para o exterior,
além do portão de entrada.
55 Todos os edifícios que formam o conjunto da casa gandaresa
são térreos, à excepção do sobrado em que se seca o feijão e
se guardam outros produtos agrícolas, que, conforme as
diversas zonas, ora fica sobre a parte de habitação, ora num
sector próprio, mas também elevado.
56 Os elementos fundamentais da casa gandaresa em geral,
além dos caracteres comuns das casas-pátio, parecem ser
uma fachada frontal, composta de um motivo típico de
janela-porta-janela, e um celeiro com postigos, que ora se
situam a seguir a esse conjunto ora sobre ele. Marcando
particularismos locais diferenciados, notam-se inúmeras
variantes destes motivos; por outro lado, novos elementos
aparecem também com toda a regularidade, em
combinações especiais, conforme as zonas, como sejam, por
exemplo, os largos portões de acesso ao pátio, que se rasgam
na fachada frontal, a meio, a um lado, ou a seguir a ela, num
muro, etc.
57 Do Vouga para o Sul, até à Caniceira, e para o interior, até à
Camarneira, onde se notam já influências da casa
bairradina, a casa apresenta-se com um tipo muito
uniforme. É por Mira que essa uniformidade mais se
manifesta: a casa rural típica mostra aí, para a estrada, uma
fachada térrea e comprida, com o motivo janela-porta-
janela, o portão e um lanço de parede com dois óculos ao
alto, um pouco abaixo do beiral. Esta fachada corresponde a
um corpo rectangular que abriga a parte de habitação,
compreendendo a sala e a meia sala (esta última com

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 58/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

funções imprecisas), e no outro lado dois celeiros, um térreo


e outro elevado, este com postigos. A parte de habitação
prolonga-se para a retaguarda por um corpo perpendicular,
de telhado mais baixo, Onde se localiza uma ou, mais
vulgarmente, duas cozinhas; esse corpo vira para o pátio um
alpendre estreito, para onde dá a cozinha.
58 O largo portão abre para uma passagem coberta, o telheiro,
que leva ao pátio. Os telhados, de duas águas, têm
geralmente pequena inclinação ; toda a construção é de
adobo, e no exterior apenas a frontaria é rebocada; mas esta
oferece quase sempre um bom acabamento, com molduras
de portas e janelas, frisos de beirais e pilastras, muitas vezes
ornamentadas, e frequentemente de cantaria lavrada, e
postigos de formas variadas, redondos, em cruz,
quadrifólios, etc.
59 Como dissemos, é frequente a existência de duas cozinhas,
uma mais tosca, ou cozinha do forno (pois é nela que se
encontra o forno, ou para ela que ele abre a sua boca quando
é construído no exterior, o que é muito corrente), e a cozinha
melhor, onde se come quando há gente de fora; a lareira ou
borralho fica sempre a um canto, ligeiramente mais alta que
o pavimento, e é de ladrilho ou tijolo. As chaminés são
grandes e alongadas, quase sempre perpendiculares ao cume
do telhado; elas correspondem à cozinha melhor, e a sua saia
apoia-se num pião ou coluna de madeira, por vezes
torneada, que remata num prateleiro onde se dispõem
pratos. Os celeiros por vezes não têm postigos, outras vezes
só têm um, e outros, ainda, mostram janelos para a frente;
numa faixa de transição aparece um celeiro sobradado sobre
a parte de habitação ou mesmo a todo o comprimento da
casa, com janelo na empena ou sobre as aberturas da
frontaria. Em certos locais falta o celeiro lateral; outras
vezes, a frontaria mostra portas e janelas, além do motivo
típico a que aludimos, às quais correspondem divisões
interiores suplementares, etc.
60 Ao sul desta área, na região da Tocha, a casa toma aspectos
diferentes: o celeiro localiza-se por cima da habitação, pelo
aproveitamento do sótão sobradado e, correspondendo a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 59/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

esta nova planta, as frontarias são mais altas. Os óculos ou


janelas ficam quase sempre sobre o motivo típico janela-
porta-janela, que persiste, e a casa toma por vezes o aspecto
de um prédio de andar; é também frequente o janelo na
empena. Desaparece o corpo da retaguarda, onde, na casa de
Mira, se situa a cozinha: aqui, nas casas mais antigas, ele é
substituído por um bloco independente e contíguo, mais
baixo mas no seguimento da fachada frontal; nas casas mais
recentes, ela fica inclusa no bloco principal. Como não
existem os celeiros laterais, o portal desloca-se para fora da
fachada da casa propriamente dita, e abre-se ao lado, a
seguir à casa ou a meio do muro do pátio, conforme a
localização do prédio em relação ao caminho.
61 Entre os casos em que a cozinha está incorporada no bloco
principal, aparece nos arredores da Tocha um tipo de casa
em que a chaminé faz, desde baixo, um recanto saliente, que
se vê na fachada lateral que corresponde à cozinha;
interiormente, nesse canto, situa-se o borralho, deixando à
cozinha o espaço rectangular amplo e livre; a saia da
chaminé apoia-se num barrote lançado entre os dois lados
do recanto.
62 Nas áreas onde aparece a vinha em escala apreciável, estes
mesmos tipos de casa adaptam-se a essa nova feição
agrícola, e designadamente o celeiro gandarês transforma-se
em adega, conservando embora o seu aspecto exterior. Mais
para o interior, na zona da Bairrada e de Cantanhede, a casa,
embora continue a ser fundamentalmente térrea, mostra
uma frontaria mais elevada do que na Gândara, com dois ou
mais janelos ao nível do andar, que correspondem ao sótão
sobradado de arrumos, mais alto e amplo do que ali.
63 Tipo intermédio com rés-do-chão e andar, mas em que o
sector de habitação é o térreo, e o andar sobradado é um
sótão de arrumos ou palheiro.
64 A norte da ria de Aveiro, numa zona limitada que coincide
com o concelho da Murtosa, encontra-se uma casa que,
embora se possa aproximar do tipo que descrevemos, mostra
certos caracteres especiais que a individualizam e
distinguem marcadamente – designadamente a existência de

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 60/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

um alpendre térreo, que lhe confere grande beleza. Essas


casas, que se apresentam sob três classes, representando o
progressivo desenvolvimento do mesmo conceito
arquitectónico, constam de um corpo rectangular, composto
de cozinha e sala, recoberto por um telhado singelo de
quatro águas; na classe mais simples, na fachada principal,
que dá para a eira ou pátio das traseiras, vêem-se, em cada
extremidade, dois quartos muitos pequenos, recobertos pelo
prolongamento do telhado, e que deixam entre si o alpendre
a que aludimos; na classe seguinte, um acrescento onde se
situam duas alcovas abrindo para a sala, desenvolvendo-se a
cozinha simetricamente ao conjunto frontal dos cubículos e
alpendre. Encontramos aqui, pois, o motivo da sala e das
duas alcovas, que já observáramos em outras regiões do
Norte do País; no lugar da cozinha das casas da classe
anterior, aparece agora uma nova divisão, a sala do meio,
que serve sobretudo de arrumação ; na classe mais
desenvolvida, a casa é formada por um conjunto que
compreende uma casa da classe mais simples, à qual se
acrescentou, encostado a um dos topos, um outro corpo
rectangular, geralmente mais alto e com ligeiro avanço, que
abriga a sala e duas alcovas ao fundo.
65 O telhado, de quatro águas e principalmente o das casas de
segunda classe, tem uma forma mais particular; mas é o
alpendre – que, com as suas colunãs brancas, tem uma
expressão acolhedora e muito pitoresca – o elemento
característico e mais notável destas casas. Ele constitui a sua
verdadeira entrada, que abre para as traseiras, e serve de
local abrigado de trabalho e, sobretudo, para recolha do que
seca na eira, para onde dá sempre imediatamente; ele
mostra à frente um pequeno muro baixo – o poal – em que
assentam as colunas ou prumos que sustentam o frechai do
telhado, e que deixa a passagem aberta a um ou aos dois
lados, sendo muitas vezes fechado, quando chove, por
esteiras de tabua ou empanadas de madeira.
66 As colunas são feitas de tijoleiras revestidas de argamassa
amarela e caiadas, com capitéis de singelos frisos variados; o

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 61/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

tecto é geralmente forrado e o pavimento lajeado a pedra ou


ladrilhado.
67 A chaminé aparece excepcionalmente ; mas, numa
propositada aparência de esmero, que prenuncia o costume
do Sul, para que a cozinha fique limpa, as pessoas não a
utilizam, e preparam a comida numa segunda cozinha – a
cozinha velha. Por vezes há ainda uma terceira cozinha, fora,
onde se queima combustível mais grosseiro; de resto, nota-
se uma tendência geral acentuada para a construção de
anexos seguidos, cada vez mais pequenos. A lareira – o
larareiro –, geralmente de barro, é ligeiramente mais alta
que o chão, e situa-se sempre a um canto da cozinha; o forno
fica num anexo contíguo, mas a sua boca abre para a lareira.
68 Na sala, em certas casas antigas, o tecto é por vezes decorado
com pinturas, e vêem-se frequentemente nichos embutidos
nos muros, a que chamam cantareira ou copeira, que vêm
quase até ao chão, com uma prateleira a meio e por vezes
belos ornatos de estuque ou madeira pintada. Esta divisão
não é utilizada para quaisquer fins propriamente
domésticos, e tem funções apenas cerimoniais, em relação
com a visita pascal, a velada fúnebre, ou outras solenidades,
servindo então a cantareira de local onde se coloca o
crucifixo, os castiçais, etc., que são de uso; e por isso ela é
conhecida pela designação de sala do senhor. Neste sentido,
pode dizer-se que esta sala é a dependência mais importante
da casa, cuja estrutura é assim determinada por um
elemento de natureza simbólica que se manifesta
funcionalmente. Este carácter da sala é comum na casa rural
portuguesa do Norte, e em geral na área do «compasso»
pascal; mas em nenhum outro sítio, ele atinge, como sucede
aqui, o nível de uma designação específica e expressa, que
afirma nitidamente o conceito que nos outros casos vive
apenas de um costume tácito.
69 Na região de Leiria encontra-se um tipo de casa térrea tendo
à frente um pequeno alpendre, que lembra bastante o da
casa da Murtosa, acolhedor e abrigado, embora mais rústico.
Como ali, tais casas estão a desaparecer.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 62/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press
1
A região e a casa gandaresa
I – A região gandaresa
70 Gândara é um topónimo que se aplica a muitos lugares do
Noroeste Peninsular; neste estudo, porém, referimo-nos em
especial à zona do nosso país compreendida entre as bacias
do Vouga e do Mondego, que se distingue, no conjunto
provincial da Beira Litoral, por um certo número de
características muito peculiares.
71 Este topónimo constitui sem dúvida mais um exemplo da
passagem de um apelativo a nome geográfico, que é
frequente entre nós e em outros países4 : gândara, ou
gandra, é uma expressão que designa de um modo geral
qualquer terreno arenoso pouco produtivo, ou mesmo quase
estéril5 ; ela parece ascender a uma base ganda, de substrato
alpino-pirenaico, a qual está implícita na palavra gandadia,
que Plínio diz ser usada pelos mineiros das Astúrias6 ; para o
nosso estudo, contudo, a origem da palavra tem um
interesse secundário7.
72 A sub-região gandaresa, que aqui temos em vista,
corresponde na realidade ao sentido da palavra gândara : é
uma faixa de terreno arenoso, relativamente plano e pouco
fértil, orientada no sentido norte-sul e cortada por alguns
vales pouco profundos, entre os quais sobressaem os da
ribeira de Mira e do rio Boco.
73 Esta faixa é formada por areias pliocénicas e por areias
recentes do litoral, que recobrem a superfície ocupada
outrora por um prolongamento do anticlínal, cujo
enrugamento ao norte da foz do Mondego forma a serra de
Buarcos8. A faixa pliocénica fica compreendida entre uma
tira de areias recentes, com a largura média aproximada de
5 km, que se estende desde o cabo Mondego até à ria de
Aveiro, e uma zona interior mais movimentada e elevada, em
que predomina o jurássico, embora entremeado com
manchas de pliocénico9. Os limites desta faixa pliocénica,
que constitui propriamente a região gandaresa, e cuja
largura média regula 10 km, nem sempre são fáceis de
identificar ; pela escassez de fósseis, as suas areias

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 63/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

confundem-se facilmente com as areias das dunas costeiras,


tanto mais que os ventos as arrastam, quando não estão
fixadas pela vegetação. Mas de um modo geral as areias
pliocénicas mostram aptidões agrícolas superiores às das
areias costeiras recentes, onde predomina o pinhal10.
74 Embora se trate de uma região bastante homogénea, vêem-
se alguns afloramentos do jurássico inferior e do cretáceo, de
margas e arenitos que facilmente se confundem com o
conjunto das areias pliocénicas11. Os cursos de água
serpenteiam longamente através do terreno, por causa dos
obstáculos que lhes oferecem as dunas do litoral, e põem a
descoberto grés e argilas mais produtivas do que os terrenos
pliocénicos, e também margas que constituem excelente
adubo ou correctivo para as areias (embora sejam, em si
mesmas, improdutivas). Às vezes, as águas descobrem
também calcários liásicos e turonianos, de que os habitantes
fazem cal12.
75 A despeito da designação unitária de Gândara, abrangendo
toda a sub-região compreendida entre os campos do
Mondego, ao sul, a Bairrada, a leste, a ria de Aveiro, ao
norte, e o mar, a oeste, o contraste entre as areias do litoral e
as areias do pliocénio determina uma diversidade flagrante
de tipos de vida e de aspectos culturais, particularmente
sensível no que se refere à habitação. Assim, enquanto que
os habitantes do litoral, de economia preponderantemente
piscatória, constroem casas de madeira sobre estacaria – os
conhecidos palheiros –, a gente do interior,
predominantemente agricultora, constrói casas de adobe,
que obedecem a conceitos totalmente diferentes. Quando
falamos de «casa gandaresa », temos em vista não os
palheiros, mas unicamente um certo tipo de habitação rural
do interior, que, apresentando-se como um produto
característico de adaptação às condições ambientais, seja
directamente, pela utilização dos materiais específicos locais
que estão na base da composição do adobe, seja
indirectamente, como forma ajustada às necessidades
económico-sociais da região, a exprime verdadeiramente.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 64/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

76 As condições naturais da região gandaresa não são das mais


propícias à ocupação humana; só à custa de enorme
tenacidade é possível extrair da magra terra uma produção
remuneradora, e esta só o é porque a modéstia daqueles que
a trabalham assim a considera. Ainda hoje, os concelhos
compreendidos na sub-região gandaresa apresentam uma
densidade populacional inferior à de todos os concelhos
circunvizinhos. É certo que ela está longe de ser tão baixa
como a de outros concelhos do País; mas se pensarmos que
os principais produtos da agricultura gandaresa são o milho,
o feijão e a batata, e que a criação de gado bovino está
relacionada com os subprodutos deste tipo de agricultura,
poderemos imaginar a imensa solidão que ali deve ter
reinado antes da descoberta da América, quando o milho e a
batata eram desconhecidos entre nós e por conseguinte esta
região era um vasto deserto improdutivo e sem recursos.
Uma lenda curiosa, relacionada com a origem da povoação
da Tocha, é certamente prova da baixa densidade
demográfica da região no passado; segundo ela, um fidalgo
galego, vendo-se um dia em situação angustiosa, prometeu a
Nossa Senhora elevar-lhe um templo no lugar mais ermo
que encontrasse; levado nas suas andanças até à região
gandaresa, não teve o fidalgo dúvida de que nenhum ponto
podia ser mais próprio do que aquele para o cumprimento
da sua promessa, e por isso edificou uma ermida no local
onde actualmente se ergue a igreja da Tocha13.
77 Aliás – e embora haja núcleos de população já antigos na
região, como Mira, por exemplo14 –, a distribuição do
povoamento da Gândara, em dispersão aglomerada e
orientada ao longo de caminhos, parece indicar que ela é um
facto recente, e que se desenvolveu rapidamente. Grande
parte das povoações são inteiramente constituídas por casas
alinhadas à face de estradas ou largos caminhos; e alguns
centros maiores, como Mira e Tocha, têm a forma de
estrelas, com um largo central que é fundamentalmente um
ponto de convergência de vias de comunicação, donde
irradia o povoamento, que segue as estradas que dele
partem. Isto leva a crer que os caminhos são anteriores a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 65/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

essas povoações, e que foram eles quem determinou o seu


aparecimento – e não o contrário, tal como sucede
normalmente nos casos de povoamentos antigos; as
povoações não representam o desenvolvimento de núcleos
de velha data, donde nascessem estradas para as ligar umas
às outras: elas foram-se certamente constituindo a partir de
qualquer instalação de pioneiros que assentaram arraiais
junto de caminhos já existentes ou no ponto de partida de
outros que rasgaram depois em vista de colonização das
areias, para aí tentarem a vida, depois que o conhecimento
do milho e da batata a tornaram possível, e quando a pressão
demográfica nos concelhos vizinhos empurrou para essas
vastas regiões os excedentes humanos a quem faltava espaço
na sua terra natal15.
78 De resto, a maneira como a casa desta região se apresenta –
casa de pátio, de carácter acentuadamente rural e feita de
um material pobre, mas que vira para a rua uma frontaria
airosa e esmerada, de feição urbana nitidamente intencional,
em que se sente a preocupação da aparência e da vizinhança
e a subordinação ao interesse pela via pública, enquanto as
demais fachadas mostram o adobe à vista, sem reboco nem
qualquer cuidado – parece também indicar que aqui a casa
foi subordinada originariamente à estrada, isto é, que o
povoamento resulta de vias de comunicação pré-existentes,
rasgadas antes de existirem povoações, para a colonização de
areias desertas. E a própria uniformidade do tipo de casa em
cada região parece também apontar uma difusão muito
rápida, por assim dizer uma criação instantânea ou pelo
menos a partir de um modelo único. E admitindo-se que
esse povoamento resulte fundamentalmente da instalação
nas areias gandaresas dos excedentes populacionais dos
concelhos vizinhos, explicar-se-ia o facto de encontrarmos
na casa gandaresa inúmeras formas, estruturas e elementos
das casas das regiões limítrofes do Sul do Vouga, de
Cantanhede, e do Sul do Mondego.
79 A pobreza desta zona de areias, a que em Mira dão o nome
de areolas, acentuada mais em certas áreas, como a da
Tocha16, permite apenas uma agricultura precária. A

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 66/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

propriedade é pequena e muito dividida; todos têm


praticamente casa sua, e mais ou menos terra; cada qual faz
a sua parte, e aluga a outro, que tenha de sobra, o mais que
lhe for necessário para se aguentar, pagando em milho a
renda combinada. As propriedades nunca formam conjuntos
unidos, e os campos dispersam-se, separados por valas que
também servem de drenos, ou muros de adobos, em locais
mais próximos de habitações17.
80 Excluindo a orla interior, onde aparece « vinho e fruta»,
toda a região gandaresa assenta a sua economia no milho,
feijão e batata18, e nos produtos da sua pecuária, a que se
acrescentam ainda pequenas terras de arroz. A rega, pelo
sistema de engenhos, uma mais farta estrumação e a
adubação química aumentaram muito a produção. Nestas
areias magras, onde para se conseguir qualquer proveito é
necessária uma estrumação abundante, o próprio mato é
escasso ou nulo, e a massa vegetal do estrume é constituída
pela fagulha de pinheiro, de inferior qualidade19. Mas
mesmo esta é insuficiente, e as pessoas têm de comprar
estrumes fora da região. Na parte sul da Gândara recorre-se
aos fortes estrumes curtidos dos campos do Mondego
(palhas de milho e arroz, de gado vacum e cavalar), que são
trazidos em camionetas ou carros de bois, com três a quatro
horas de marcha, e misturados aos da casa; e também ao
limo da ria de Aveiro, que vem em camionetas, mas que em
tempos se ia buscar à Quintã em carros de bois. Mais para o
Norte, em áreas mais próximas de Aveiro, é este limo o
grande recurso; parte é comprado, mas muito é apanhado
pelo próprio agricultor, que para isso possui barco na Barra
ou na Quintã20. A barrinha de Mira e as lagoas fornecem
também a sua parte deste adubo.
81 O junco, aproveitado especialmente para cama dos suínos,
contribui também para engrossar o volume dos estrumes.
Além do que se cria nas terras encharcadas da região, vem
muito em barcos dos lados da Murtosa, que fica a cerca de
50 km de distância, e é carregado em carros de bois perto de
Vagos.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 67/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

82 Mato, fagulha e junco são empilhados no pátio da casa, indo


daí, aos poucos, para os currais. A fagulha também por vezes
se estende nos pátios, ou mesmo no terreno que geralmente
a ele fica contíguo, para a retaguarda.
83 Nesta região de pequenos lavradores, poucos são aqueles
que possuem mais de duas vacas e duas crias. Os mais
pequenos limitam-se a um único animal, pelo que é
frequente verem-se carros de bois de varais.
84 O gado é muitas vezes de meias, tendo o meeiro metade do
lucro da vaca e da cria. Um terço do leite é para o
proprietário; este, está no role, ou sociedade, que é uma
« mútua » de gado.
85 Na zona interior, onde há vinho, e onde parece haver
lavouras maiores, predomina o gado marinho, de trabalho.
Mais para oeste, na zona essencialmente gandaresa,
predomina o gado leiteiro turino, empregue também em
trabalhos mais ligeiros. O leite é vendido em postos de
recepção das empresas de lacticínios21.
86 O gado marinho, que vem do Sul do Mondego, é negociado
nas feiras de Cadima (a 13 do mês) e Arazede (a 24). Para o
turino, a melhor feira é a de Porto Mar, a 11 e 30 do mês.
87 A forragem que ocupa toda a terra durante o Inverno é uma
mistura de cevada e aveia, que crescem depressa, e trevo e
serradela, que vêm mais tarde, com os arrebentaços das
primeiras. Também misturam com muita frequência algum
tremoço-bravo, que em parte é segado para o gado, ou
poupado para enterrar como estrume. A sementeira destas
forraginosas é feita a lanço: a semente cobre-se passando
sobre ela o velho arado de madeira a que se aplica um pau
atravessado que alisa a terra, desfazendo o combro, ou então
à enxada. Para complemento deste penso, compram palha
de arroz fora da região.
88 Para o milho, o estrume é levado para os campos com muita
antecedência, e empilhado; sobre estas pilhas, baixas e
largas, lançam terra e semeiam couves em Fevereiro. Todas
estas pilhas são minúsculas hortas viçosas. Pouco antes das
sementeiras, cortam esse estrume, misturando-o com
tremoço verde ou limo. Para a sementeira, lavram com

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 68/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

charrua, fazendo em seguida regos largos com o arado


munido de um feixe de varas de vide preso entre a teiró e a
rabiça. As mulheres fazem então a estercada, levando em
cestos o estrume das pilhas, e distribuindo-o à mão pelo rego
fora; em seguida espalham o adubo químico ; e depois, com
o milho no avental, deixam cair quatro ou cinco grãos sobre
o rego, no lugar em que, com o pé, haviam coberto o estrume
com terra; e em seguida, alagam, igualmente com o pé, o
combro do rego sobre a semente.
89 A batata é plantada em covas. As mulheres põem no fundo
uma camada de limo ou tremoço, cobrindo-a com outra de
estrume, trazido na própria ocasião do curral, e sobre elas
espalham o adubo químico, compostos de super e sulfato de
amónio. Deitam depois um pouco de terra, dispõem três ou
quatro pedaços de batata, e o homem então cobre-os com a
enxada, alisando a terra. Chegam a tirar trinta sementes.
90 Para o arroz, depois de espalharem cal em pó sobre a terra
encharcada, fazem a cava das lamas, que é um trabalho em
grupo, feito geralmente por ajuda mútua vicinal. Metem
depois a água nos canteiros, nivelam – ao que dão o nome
de: fazer a rebaixa – e em seguida semeiam, a lanço22.
91 Para aumentar os recursos da casa, os proprietários
pequenos dão dias fora. O que porém contribui em larga
escala para o equilíbrio das contas caseiras nesta região sem
indústria é o dinheiro que vem do Alentejo. Um grande
número de homens forma, com efeito, um largo contingente
de emigrantes periódicos – os caramelos –, que ali
trabalham de Janeiro a Junho, todos os anos.
92 O material de construção específico da casa desta área é o
adobo ou adobe feito com areia ligada com cal extraída das
manchas de calcáreos liássicos ou turonianos abundantes na
região23, ou feitos de barro.
93 Não é fácil precisar-se a origem do adobo. Nas regiões áridas
do Norte de África e da Ásia, é frequente construir-se com
terra. Umas vezes, o barro é amassado com água, e socado
entre tábuas colocadas no próprio lugar das paredes; é, entre
nós, o caso mais corrente no Alentejo e Algarve, havendo
ainda muitos vestígios deste sistema de construção na

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 69/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Estremadura. Entre nós, ele leva o nome de taipa. Outras


vezes – como acontece na Gândara –, o barro, misturado ou
não com cal, conforme a composição do material
empregado, é amassado, metido em formas, e, depois de
seco ao sol, utilizado na construção. Este sistema parece ter
também já sido usado pelos Índios Pueblos, do Novo
México, antes da chegada dos Europeus24, devendo portanto
admitir-se como provável, a seu respeito, a invenção
independente da mesma técnica nos povos da América e
naqueles em que se filia o nosso conhecimento do adobo,
num caso típico de paralelismo cultural – para não falarmos
numa criação única, anterior ao povoamento daquele
continente, a partir da qual se teria dado a sua difusão lá e
aqui, o que retrotrairia as suas origens a uma data
antiquíssima, mas que nos parece uma hipótese difícil de
aceitar. Em todo o caso, o facto de o nome adobo ser de
origem árabe – attob –, leva a crer que foram os
Muçulmanos os introdutores desta técnica entre nós.
94 Antigamente, faziam-se adobos de barro arenoso, a que por
vezes juntavam palha, que, depois de enformados e secos ao
sol, constituíam um material razoável. Em paredes velhas, é
ainda fácil observar tais adobes, negros ou avermelhados,
mais ou menos corroídos pelo tempo. Hoje, os adobes de cal
e areia são feitos pelos próprios para seu uso, o que é ainda
muito corrente, ou são comprados nas « olarias ». É nos
arredores de mira onde se encontram mais e maiores olarias,
que fornecem três tipos de « adobos de cal » : adobo de casa,
com 0,45 x 0,30 x 0,15 m, usado para as paredes exteriores
das habitações ; adobo de muro, com 0,45 x 0,21 x 0,15 m,
para paredes interiores, de currais e mais dependências, e
muros de vedação ; e adobo de três quartos, que substitui o
primeiro em construções mais económicas, e que tem uma
largura intermédia entre os outros dois tipos, com cerca de
0,25 m. O adobo de mais confiança é o que se faz em casa,
pois o que se compra tem geralmente uma percentagem de
cal insuficiente.
95 Misturada e amassada a areia e a cal, lança-se a massa nas
formas de madeira, pousadas num terreno plano, alisa-se a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 70/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

superfície e levantam-se aquelas, segurando-as pelas pegas.


O adobo fica a secar e a ganhar consistência durante umas
três semanas pelo menos25.
96 Embora o consumo do adobe ainda seja apreciável,
principalmente para paredes de currais e muros de vedação,
o tijolo está a ser agora o material mais usado na construção
das habitações.
97 Nas zonas afastadas de locais em que existe pedra, como
sucede em grande parte da região, o próprio alicerce é de
adobe. A humidade do solo vai-o, porém, desfazendo, até à
altura de 0,80 a 1 m ; é para evitar os inconvenientes e
perigos que podem resultar deste mal – a tinha do adobo –
que as Câmaras Municipais começam a exigir alicerces de
pedra.
98 Nas áreas em que a pedra está próxima, como a da Tocha e
Arazede, e certamente com receio da «tinha», constroem-se
com esse material os alicerces e um metro de parede, e
utiliza-se o adobo apenas daí para cima; e este sistema
parece ser tradicional.
99 Em lugares onde existe calcário, é com pequenos blocos
dessa pedra, ligados com barro, que se constroem as paredes
da habitação. Mas mesmo aí é quase geral o emprego do
adobo nos currais e outras dependências menores.
100 É logo ao erguer as paredes da casa que se colocam entre os
adobos os chaços de pinho onde pregam depois a caixa das
portas e janelas, ou as suas dobradiças. Presentemente,
preferem encher o espaço que era reservado ao chaço com
argamassa de cimento, em que fica logo cravada a ferragem
respectiva.
101 Nas casas mais antigas, que se apresentam quase sempre
com uma feição muito tosca e humilde, as guarnições de
todas as aberturas eram de tábuas de pinho. Essa forma
mantém-se ainda em todos os rasgos das fachadas laterais e
da retaguarda; na fachada frontal, porém, a regra é serem de
cantaria lavrada, e muitas vezes ornamentada.
102 Para aliviar a padieira (padial), que é sempre de madeira, é
costume geral fazerem um archete de adobos postos de

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 71/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

cutelo, ou colocarem dois adobos inclinados um para o


outro, em asa de cesta.
103 Um archete largo cobre igualmente com frequência a
abertura do telheiro para o pátio. Com mais frequência, e
principalmente se essa abertura é grande, o espaço é vencido
por uma trave que sustenta o telhado ou uma pequena altura
de parede sob este, trave que é amparada por uma escora de
cada lado.
104 Nas duas paredes compridas, o frechai pousa sobre a última
fileira de adobo, ficando, porém, nas empenas, metido na
espessura da parede. Na parede frontal, para dar a saliência
da cornija, a última fiada de adobos fica puxada para o
exterior. Nas cozinhas e dependências de construção menos
cuidada, não há frechais: os barrotes ficam entalados entre
os adobos.
105 Exteriormente, apenas são rebocadas a fachada frontal, as
paredes das empenas, e o espaço coberto pelo alpendre. No
interior, são rebocados os quartos e salas, e muitas vezes
também a cozinha melhor. No geral, toda a habitação é
forrada e soalhada, à excepção das cozinhas, que são térreas
e de telha-vã. As portas interiores têm apenas taramelos de
madeira.
106 A cobertura é agora quase sempre de telha marselha. Apenas
numa ou noutra dependência menor, currais ou galinheiros,
se emprega ainda a velha telha caleira26. Ao lado das
vertentes dos telhados do corpo principal, é muito vulgar
haver um rebordo de caliça, espécie de guarda-vento muito
baixo, prendendo as telhas.
107 Em certos lugares (como por exemplo os arredores de
Covões e da Palhaça), onde existe o corpo da retaguarda com
as cozinhas, e uma vertente do telhado deste último corre
para terreno dos vizinhos, uma caleira especial apanha os
pingantes : ela é de telhas caleiras que formam um conduto
inclinado, assentes na própria espessura da parede, que, dele
para cima, é mais delgada.

II – A casa gandaresa

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 72/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

108 A casa gandaresa pode considerar-se uma categoria regional


dentro do tipo geral das casas de pátio fechado, que sob
outras formas se manifesta em muitas regiões do País e nos
demais países europeus, visto que, de acordo com a sua
definição27, todos os edifícios que a constituem se dispõem
de maneira a formar um pátio interior, onde se acumulam os
produtos com que se prepara a grande massa de estrumes
necessários à agricultura das areias. Todos esses edifícios –
casa de habitação, cozinha, lojas, celeiros, telheiros ou
cobertos, currais e galinheiros, etc. – dão para esse pátio
interior, que marca a unidade do conjunto, e confere à casa
gandaresa um acentuado cunho de casa agrícola. Quando os
diferentes elementos não são suficientes para fechar o pátio,
a cerca completa-se com muros; e sucede também por vezes
que as traseiras do pátio dão para uma horta igualmente
murada, dispensando então que o pátio seja fechado desse
lado.
109 Deve, porém, notar-se que, aqui, a casa, embora do tipo de
pátio, derivado das condições particulares do povoamento
da região e das exigências da sua agricultura específica,
apresenta também, ao mesmo tempo, certas características
de casa de fachada, com uma frontaria que se distingue pelo
esmero do seu acabamento, relacionado com a atitude
psicológica própria das condições em que ela surge. Nos
aglomerados urbanos e de um modo geral nas casas situadas
à face de caminhos públicos, esta última feição sobreleva
decisivamente, e a fachada frontal prevalece sobre o pátio,
que na maioria dos casos fica para as traseiras e mal se
adivinha. Pelo contrário, nas casas isoladas no meio das
terras de cultura, o pátio evidencia-se com grande nitidez,
sobressaindo visivelmente, e elas aparecem fechadas no
quadrado dos muros e edifícios de paredes de adobe, sem
qualquer fachada à vista do público e quase sem rasgos para
o exterior, além do portão de entrada; e é de notar que isto –
que de resto acontece tanto na região gandaresa como nas
áreas vizinhas – se vê sobretudo nas casas que parecem mais
antigas ou concebidas de acordo com a mais antiga tradição.
Aparecem também casos híbridos, em que coexistem e se

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 73/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

fundem os dois movimentos: casas igualmente fora de


caminhos, em que portanto é ainda sensível o pátio, mas que
mostram também uma fachada para o exterior, muitas vezes
mesmo com o típico motivo gandarês da janela-porta-janela,
que adiante estudaremos, cuja localização, ali, não
corresponde a nenhuma necessidade funcional.
110 Nesta casa-pátio, como de resto na generalidade das casas
do mesmo tipo que se conhecem por toda a parte28, todas as
construções são térreas. Tanto pessoas como animais e
arrecadações estão instalados em edifícios apenas do rés-do-
chão ; só o sobrado que serve para secar o feijão ou guardar
outros produtos agrícolas foge a esta regra, ficando ora sobre
a casa de habitação, ora em edifício próprio, mas neste caso
também elevado e com aberturas para fora. E, além desta
característica, que é comum a todas as casas-pátio em geral,
a casa gandaresa distingue-se pela existência de certas
feições especiais que nela se mostram regularmente e a
individualizam nitidamente dentro do conjunto provincial, e
que a seguir descreveremos.
111 Contudo, não se pode falar num tipo definido e único de casa
gandaresa, mas apenas numa certa estrutura e linhas gerais
características e, principalmente, em determinados
elementos típicos que aparecem agrupados de modo diverso,
conforme as várias zonas, dentro do conjunto gandarês. E
assim definida, esta casa não é exclusiva da região
gandaresa : tais elementos, com efeito, aparecem igualmente
nas casas das áreas limítrofes, de Cantanhede, de Vagos até
Aveiro e ao Vouga, e mesmo, muito esporádica e
diluidamente, ao norte desse rio, e ainda ao sul do Mondego,
etc., por vezes mesmo em combinações semelhantes a
algumas que se vêem na Gândara29. E assim, dada a data
provavelmente mais recente do povoamento desta, e por
outro lado o ajustamento deste tipo de casa às condições
económico-naturais dessas regiões limítrofes, pode supor-se
que elas são aí mais antigas, tendo-se difundido daí para a
Gândara, onde conheceram em seguida a maior voga, por aí
responderem do mesmo modo perfeito às suas condições
naturais, económicas, culturais e de povoamento.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 74/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

112 Os elementos fundamentais da casa gandaresa em geral, a


que atrás aludimos, que se acrescentam aos caracteres
comuns das casas-pátio, parecem ser nomeadamente uma
fachada frontal, composta de um motivo típico de janela-
porta-janela, e um celeiro com postigos, que ora se situam a
seguir àquele conjunto, ora sobre ele, um telhado de duas
águas e outros elementos ainda, que aparecem com toda a
regularidade, mas em combinações especiais que marcam
particularismos locais diferenciados. É precisamente com
base nestes últimos, e também na disposição especial dos
elementos comuns, que estabelecemos, dentro da categoria
geral da casa gandaresa, dois tipos locais, que passamos a
descrever, e que designaremos respectivamente por Casas de
Mira e Casas da Tocha, segundo as localidades de vulto em
que elas ocorrem com maior frequência – que
consideraremos seus centros culturais, se não de difusão –, e
que, dentro de cada um, mostram muitas variantes locais ou
gerais, das quais indicaremos as mais notáveis ou
significativas.

Casas de Mira
113 A casa de Mira mostra para a estrada uma fachada térrea e
comprida, na qual as aberturas se dispõem numa ordem
certa – janela, porta, janela –, formando um conjunto que
constitui um elemento característico, e por fim um lanço de
parede apenas com dois óculos ao alto, um pouco abaixo do
beiral. Esta fachada corresponde a um corpo rectangular que
abriga, de um lado, a parte de habitação, com as janelas e a
porta, e do outro, o celeiro, com os postigos; entre as duas,
rasga-se o portão, numa passagem coberta – o telheiro –
para o pátio, que fica nas traseiras. A parte de habitação, de
alto pé-direito, prolonga-se para a retaguarda por um corpo
perpendicular de telhado mais baixo, onde se localiza uma
ou mais vulgarmente duas cozinhas, e muitas vezes, entre
estas e o corpo frontal, um quarto; e a ele seguem-se não
raro outras dependências, em sucessivos edifícios pequenos
e cada vez mais baixos. O corpo da retaguarda forma um dos
lados do pátio, e vira para ele um alpendre estreito, para o

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 75/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

qual abre a porta da cozinha. Os outros dois lados são


fechados pelos currais, pocilga, galinheiro, cobertos, e outras
dependências menores, e por muros. É vulgar a existência de
uma horta ou campo a seguir ao pátio. Os telhados do corpo
frontal e da ala da retaguarda – mesmo os dos vários
pequenos edifícios que se lhe seguem – são sempre de duas
águas, e, sobretudo nas casas mais antigas, não muito
inclinados; toda a construção é de adobe, e no exterior
apenas a fachada frontal é rebocada; mas esta oferece
geralmente um bom acabamento, com as molduras de
janelas e porta, frisos de beirais e pilastras muitas vezes
ornamentadas e de cantaria lavrada.
Des. 110 – Mira, Ermida

Des. 111 – Planta de uma casa de Mira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 76/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

114 A casa é pois uma construção em L, com pátio fechado à


retaguarda, que não se nota da rua. A parte da habitação é
formada por dois compartimentos no corpo da frente – a
sala, com janela e porta para a rua, e a meia-sala, com a
outra janela – e pela cozinha ou cozinhas no corpo da
retaguarda, e um ou mais quartos entre estas e a sala, na
qual se abre a porta interior de passagem. O telheiro, além
de passagem coberta para o pátio, serve também de abrigo e
arrumação. A seguir ficam os dois celeiros, o de baixo com
porta para o pátio, e o de cima, iluminado pelos dois óculos,
com acesso por uma escada que parte geralmente do
telheiro.
115 Notamos assim nesta casa os seguintes elementos: o motivo
exterior característico de janela-porta-janela, numa fachada
cuidada, a que corresponde interiormente uma planta
compreendendo a sala e a meia-sala; na mesma fachada, o
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 77/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

portão, a meio, dando para o telheiro coberto e o pátio; os


celeiros laterais, térreo e sobradado, este iluminado por
pequenos óculos altos, que abrem para a rua, do outro lado
do portão ; e o corpo da retaguarda, com as cozinhas e as
demais dependências, abrindo para o pátio, e mostrando
para fora paredes cegas, de adobe sem reboco.
Des. 112 – Casa de Mira

116 Sala – De acordo com a regra geral, na casa rural


portuguesa, a sala tem aqui funções essencialmente
cerimoniais, relacionadas em especial com certas
solenidades, festas familiares, casamentos, etc., e sobretudo
a velada fúnebre.
117 Meia-sala – A meia-sala faz sobretudo de quarto de dormir e
arrecadação de géneros, sendo frequente ela servir só para
este fim. Em Lagoa, a meia-sala, que é de dimensões maiores
do que as habituais, utiliza-se para aí se colocar o corpo do

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 78/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

defunto durante a velada fúnebre, deixando-se assim livre a


sala.
118 Quarto ou quartos de dormir – O quarto ou os quartos de
dormir situam-se na ala da retaguarda, entre a sala e a
cozinha, abrindo para uma passagem com porta para a sala.
As filhas da casa dormem sempre em quartos para ficarem
mais « resguardadas » ; se não há aposentos que cheguem
para todos, são de preferência os pais quem dorme em
colchões ambulantes (Ermida).
119 Cozinhas – É muito frequente a existência de duas cozinhas,
das quais uma faz mais das vezes de sala onde se come. Na
cozinha mais tosca, ou cozinha do forno (pois é nela que se
encontra o forno, ou para ela que ele abre a boca, quando é
construído no exterior, o que é corrente), é onde se cozinha
para os animais, e também onde normalmente se preparam
as refeições. Embora seja nela que estão geralmente as
pessoas da casa, quando vem gente de fora passa- – se
sempre para a cozinha melhor. Por isso nos disseram que
esta está sempre « mais esmeradinha ».
120 Ambas as cozinhas são de telha-vã, mesmo na generalidade
das casas boas. A luz entra por um pequeno postigo para as
traseiras, muitas vezes sem qualquer vidraça. A lareira, ou
borralho, fica sempre a um canto do compartimento; é de
ladrilho ou tijolo, e eleva-se em geral uns 12 a 20 cm acima
do pavimento, com uma guia de madeira. A boca do forno do
pão abre para este borralho. A saia da chaminé que cobre
esta lareira apoia-se no pião de madeira, que é uma coluna,
por vezes torneada, e remata numa prateleira onde se
dispõem pratos.
121 À volta da cozinha há cantareiras de madeira, pregadas em
chaços metidos no meio dos adobes, onde se guarda a louça.
Assentes na grelha, ou trempe, vêem-se os tachos e panelos ;
mas as velhas panelas de três pernas, que se colocavam
directamente sobre o lume, já raramente se encontram.
122 As chaminés saem fora e acima do telhado, e são grandes e
de forma alongada, quase sempre perpendiculares ao cume
do telhado; à cozinha do forno falta com frequência a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 79/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

chaminé, escapando o fumo por uma simples abertura


obtida com telhas que se levantaram.
123 Celeiros – Os celeiros, além da sua função específica, servem
de sítio onde dormem os rapazes, quando não há quartos
que cheguem para todos, o que é frequente. Mais para o
interior, onde a cultura da vinha tem progressiva
importância, o celeiro térreo desempenha as funções de
adega, e toma esse nome.
124 Pátio – O pátio é o local central, para onde se vira toda a
vida da casa. Sem qualquer pavimentação, o seu chão é de
terra, as mais das vezes arenosa. Para ele abrem todas as
dependências menores a que aludimos – currais, pocilga,
galinheiro, alpendres, telheiros, cobertos, lojas, etc. – além
das cozinhas e partes de habitação ; para o exterior, pelo
contrário, o pátio tem apenas o portão, rasgado ao fundo do
telheiro coberto de entrada. Não raro, à sua volta ou em
qualquer lado, vê-se uma parreira, montada em grossas
colunas de adobe. Por todo ele, madeiras, lenhas, e
principalmente pilhas de junco, mato ou fagulha de
pinheiro – por vezes parte desta espalhada no chão como um
fofo tapete – aguardam a altura de serem levadas para as
cortes ou para os campos.
Des. 113 – Casas do tipo de Mira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 80/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

125 Telheiro – Como dissemos, o telheiro, além de passagem


coberta do exterior para o pátio, serve também de abrigo,
para o carro ou a gente que entra, e ainda de arrumação,
quando é largo. O carro, muitas vezes, arruma-se num
segundo telheiro, que borda o pátio, a seguir aos currais.
Des. 114 – Casas do tipo da Tocha

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 81/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

126 Alpendre – O alpendre fica no pátio, a par do corpo da


retaguarda, no vértice formado por este e pelo corpo frontal;
e vai até à altura da porta da cozinha ou das duas cozinhas. É
um simples prolongamento da água do telhado, apoiado em
colunas de adobe, ou mesmo apenas em toscos prumos de
madeira.
127 Em conclusão, pode dizer-se que, a despeito do esmero da
frontaria, que faz crer num certo conforto interior, estas
casas são de um modo geral pobres, e a vida dos seus
moradores é rude e sóbria; e isto toma-se mais evidente
ainda nas casas que parecem ser mais antigas, muito baixas,
pequenas e toscas.
128 Este tipo de casa, que atrás definimos, aparece bem
caracterizado em toda a zona de Mira, na própria vila –
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 82/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

onde, porém, naturalmente, a maioria das casas têm uma


feição puramente urbana e por isso diferente –, e sobretudo
nos seus arredores, podendo considerar-se aí o seu centro
cultural; ele alastra daí para o Norte até aos limites da região
gandaresa, e deles para cima até ao Vouga, transpondo
mesmo, em casos raros, isolados, e menos típicos, esse rio;
para o Sul, ele estende-se até alturas da Caniceira, onde
parece começar a área da casa da Tocha; para leste, ele
atinge na Camarneira os limites da região gandaresa por esse
lado, mostrando aí influências da casa bairradina de
Cantanhede30. Mas aparecem também muitas casas deste
tipo fora da sua área, na região gandaresa do Sul e de Leste,
onde domina o tipo de Tocha, espalhadas por toda a parte,
embora, aí, elas constituam sempre as construções mais
recentes31 ; nesses casos, geralmente, alguns dos elementos
característicos do tipo de Mira aparecem mais ou menos
dominados pelas formas locais. Por outro lado, mesmo na
sua área própria, o tipo de Mira apresenta muitas vezes
variantes consideráveis, quer no que respeita à forma
daqueles elementos ou à ordem segundo a qual eles se
dispõem, quer na inclusão de elementos estranhos, que em
certos casos constituem a adaptação de elementos típicos de
outras áreas gandaresas – e que, num caso como no outro, se
podem considerar formas características locais; são algumas
dessas formas, que nos parecem mais definidas e
significativas, que passamos a indicar.

Variantes gerais e locais:


129 Celeiros : a) Celeiros sem óculos, ou apenas com um – Por
toda a parte, vêem-se casas cujo celeiro sobradado tem
apenas um postigo, ou até nenhum. A norte de Calvão e pela
zona de Sanchequias, Rines, Vila Mar, e também Sosa, os
celeiros com dois óculos são mesmo raros; em várias casas,
os rasgos da iluminação são apenas meio adobe tirado;
contudo, mesmo aí, as casas melhores mostram geralmente
os dois ou pelo menos um dos postigos.
130 b) Celeiros com janela para a frente – Por vezes,
iluminando o celeiro térreo, aparece uma janela igual às

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 83/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

outras a seguir ao portão, sem que isso porém implique


qualquer diferença de estrutura (desenho 113, n.° 3) ; e se em
certos casos essa dependência é utilizada como quarto de
dormir, o certo é que a sua função essencial continua a ser a
de celeiro, explicando-se a janela talvez apenas pelo desejo
de enriquecer a frontaria da casa. Estas casas com celeiro
térreo de janela para a frente são sobretudo ferquentes na
zona de Ouca, Bustos, Covão do Lobo, Sanheira, etc. ; em
Bustos, a entrada dessa divisão faz-se sempre pelo telheiro.
131 c) Celeiro sobradado sobre a parte de habitação, ou mesmo
a todo o comprimento da casa – Em muitas casas,
aproveita-se não apenas, nos termos que indicamos como
regra mais geral, o vão do telhado que corresponde ao
celeiro térreo, mas também aquele que corresponde à parte
da habitação ; e, mais raramente, esse aproveitamento
abrange até o espaço correspondente ao telheiro,
apresentando-se como sótãos sobradados para arrecadação a
todo o comprimento do prédio. Esta variante encontra-se em
casas dispersas mais ou menos por toda a área da casa de
Mira, especialmente naquelas cujo telhado tem grande
inclinação, e que são, de um modo geral, mais recentes,
mostrando aí, como processo normal de iluminação, um
janelo rasgado na empena (desenho 113, n.° 4).
132 Este celeiro sobradado sobre a habitação constitui, como
veremos a seguir, um elemento típico da casa da Tocha, a
qual, por seu turno, parece filiar-se na casa bairradina de
Cantanhede. E de facto, a atestar essas influências, na zona
Camarneira, na faixa leste da área da casa de Mira que
confina com a região de Cantanhede, esta variante aparece
não só com uma densidade que nos leva a definir, em função
dela, um tipo local, mas sobretudo nas casas mais antigas32 ;
e mostra mesmo, em vez de janela na empena, postigos
rasgados sobre a porta e janelas da frontaria, que são a
solução específica de iluminação do sótão, nas casas da
Tocha e de Cantanhede.
133 d) Ausência de celeiro lateral – De Sosa a Bustos são
frequentes casas sem celeiro, podendo, em alguns casos, o
facto explicar-se pela pequenez da unidade rural, que o

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 84/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

dispensa, ou do prédio, que o não consente. Outras vezes,


nomeadamente em Bustos, numa solução que de certo modo
se aproxima da que é peculiar à casa da Tocha, aproveita-se
para o celeiro o sobrado sobre a habitação, sem porém que
isso tenha o menor reflexo sobre a altura da fachada.
134 Localização do portão – Em certos lugares, como Lagoa, por
exemplo, nas imediações de Mira, é frequente o portão
situar-se fora do corpo da casa, a seguir a ela, ficando assim
o celeiro lateral contíguo à parte da habitação (desenho 113,
n.° 1).
135 Por outro lado, em Febres, o celeiro muitas vezes não existe
como tal, sendo, substituído por um quarto amplo, de
dimensões iguais às da sala, e o portão situa-se então em
perfeita simetria a meio da fachada (des. 113, n.° 7).
136 Variantes na divisão interior que se reflectem na
frontaria – Certas casas, cuja meia-sala é de dimensões
consideravelmente maiores que a habitual, mostram mais
uma porta, na fachada frontal, que faz a saída directa desse
compartimento para a rua (des. 113, n.° 2).
137 Outras vezes, como por exemplo em Febres, onde isso é
muito frequente, existe um quarto contíguo à meia-sala, que
provoca o aparecimento de mais uma janela na fachada, a
seguir ao motivo habitual do conjunto janela-porta-janela
(des. 113, n.° 6).
138 Outras vezes ainda, como sucede em Covões, onde a divisão
interior das casas não obedece a um plano regular, as
fachadas, correspondentemente, mostram com frequência
mais uma janela de cada lado daquele motivo, (des. 110, n.°
8) ; por vezes mesmo, tal como atrás dissemos, existe
também um compartimento com porta directamente para a
rua, além da sala.
139 Variantes na divisão interna que não se reflectem na
fachada – Na zona de Boco, Bustos, Mamarrosa, Sobreiro,
etc., há muitas casas que em vez de meia-sala apresentam
duas alcovas a abrir para a sala, numa solução que
encontramos também como um elemento típico da casa da
Tocha (des. 113, n.° 5).

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 85/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

140 Cozinhas – Dissemos que por toda esta área é muito


frequente a existência de casas com duas cozinhas, que se
situam no corpo da retaguarda; contudo, na zona noroeste, a
segunda cozinha é rara. Deve em todo o caso notar-se que o
facto de se ver só uma chaminé não indica necessariamente a
cozinha única, pois, como vimos, muitas vezes, a cozinha do
forno mostra apenas, para a saída do fumo, umas telhas
levantadas.
141 Finalmente, fazendo excepção à regra que mencionámos, em
Sanchequias, povoação de aspecto pobre, abundam casas
cujas frontarias são de um acabamento muito tosco e
descuidado, embora mostrem igualmente o típico motivo
gandarês da janela-porta-janela, que é em si mesmo um
elemento essencialmente de aparato. Pelo contrário, na zona
de Febres, onde as casas deste tipo parecem ser mais
antigas, encontram-se exemplares com padieiras, frisos de
beirais, postigos, etc., em estuques ou calcário profusamente
ornamentados (des. 113, n.° 10) ; os postigos aqui são de
iluminação da sala).

Casas da Tocha
142 Ao sul do extenso pinhal que separa Mira da Tocha, o tipo de
casa que descrevemos perde o carácter de padrão local que
tinha no Norte, embora subsista em numerosos casos
isolados, nomeadamente nas construções mais recentes; e, a
partir da Caniceira, surge um novo tipo de casa – a casa da
Tocha –, também de pátio fechado e que sem dúvida
mantém com a de Mira certas afinidades que lhe advêm de
um estilo comum a ambas, mas sensivelmente diferente dela
em muitos dos seus elementos e sobretudo no modo como
tais elementos se dispõem.
143 Na Caniceira, a casa que nos dizem corresponder ao modelo
local tradicional e mais antigo, consta de um corpo principal
que mostra o motivo geral gandarês da janela-porta-janela,
traduzindo-se interiormente numa planta que compreende a
sala e dois quartos pequenos que abrem para ela, tendo em
cima o sobrado, que serve de celeiro e em muitos casos toma
o aspecto de um andar, iluminado por óculos, postigos ou j

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 86/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

anelos abertos para a rua sobre aquele motivo33, e outras


vezes na empena, e com a escada de acesso a partir de um
dos quartos; e ao lado deste corpo principal, um bloco anexo,
mais baixo e pequeno, onde fica a cozinha, a que por vezes se
seguem mais dependências menores. Nestas casas, os dois
quartos situam-se a um lado da sala, oposto àquele em que
se rasga a porta interior que comunica com a cozinha; e
exteriormente, a primeira janela do corpo principal
corresponde a um deles, e a porta e a janela a seguir, à sala; a
cozinha, no bloco anexo, tem uma porta e janela próprias
(des. 114, n.° 1).
144 Em casas mais modernas, a cozinha fica incorporada no
bloco principal, ao qual portanto se reduz toda a casa
propriamente dita; e então a escada de acesso ao sobrado
parte dela para cima. Interiormente, a planta é semelhante à
das velhas casas que têm a cozinha no anexo lateral; e,
correspondentemente, a primeira janela é um dos quartos, a
porta a seguir é da sala, e a outra janela é da cozinha, que
comunica com a sala por uma porta interior. Nesta mesma
categoria, aparecem também casas, geralmente mais
recentes e avultadas, em que a planta interior comporta
maior número de divisões, a que corresponde
consequentemente um maior número de rasgos exteriores
(des. 114 n.os 4 e 5).
145 Tanto nas casas mais antigas como nas outras, o portão de
acesso ao pátio abre-se num muro, ao lado da casa, mas não
na fachada; e os fornos são quase sempre exteriores, com a
sua boca dando para o borralho; este, como nas casas de
Mira, fica sempre a um canto da cozinha.
146 Em confronto com a de Mira, a casa da Tocha mostra
portanto as seguintes diferenças fundamentais: a)
desaparecimento do celeiro lateral, e localização desta
divisão por cima da habitação, pelo aproveitamento do sótão
sobradado; e, correspondendo a esta nova planta, casa com
frontarias mais altas, por vezes constituindo ou tendo o
aspecto de um verdadeiro andar, quase sempre com óculos
ou janelos sobre o motivo típico janela-porta-janela, que
persiste, e também muitas vezes j anelo na empena: b)

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 87/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

desaparecimento do corpo da retaguarda, onde, na casa de


Mira, se situa a cozinha; aqui, nas casas mais antigas, sua
substituição por um bloco anexo e independente, contíguo
ao principal e mais baixo, no prolongamento da fachada
frontal; nas mais recentes, a cozinha fica inclusa no corpo da
casa, que se reduz apenas a essa parte; c) deslocação do
portal para fora da fachada da casa: não existindo os celeiros
laterais, o portal abre-se, aqui, ao lado a seguir à casa ou a
meio de um muro do pátio, conforme a localização do prédio
em relação ao caminho público; d) interiormente,
desaparecimento da meia-sala, e generalização duma planta
em que aparece um conjunto regular, formado pela sala com
dois pequenos quartos ou alcovas que abrem para ela
(semelhante à que encontramos acidentalmente nas casas do
tipo de Mira, nomeadamente na região de Bustos).
147 A casa assim descrita na sua estrutura geral encontra-se,
com pequenas variações, da Caniceira para o Sul até à
Tocha – embora, a partir da primeira destas povoações, se
note a tendência para baixarem no limite oriental da região
gandaresa, atingindo a zona de Cantanhede, segundo uma
área que coincide aproximadamente com a própria
delimitação administrativa do concelho de Cantanhede34.
148 Na Caniceira, vêem-se muitas casas deste tipo com a empena
voltada para o caminho e à face deste, mostrando então
quase sempre um janelo alto; e, a seguir, o muro do pátio
com o portal de entrada. A frontaria da casa fica assim
virada para o interior do pátio, que se situa entre ela e as
traseiras da casa vizinha (porque isto acontece geralmente
em várias casas seguidas, dando mesmo um aspecto peculiar
a certos arruamentos da aldeia). Trata-se de um exemplo em
que na realidade prevalece o pátio, embora a fachada seja
sugerida pela empena que dá para o caminho (des. 114, n.°
2).
149 Entre a Tocha e Arazede, esta variante não se acusa; mas
vêem-se muitas vezes, longe dos caminhos, velhas casas em
que prevalece nitidamente o pátio, desenhado na unidade
fechada do quadrado dos edifícios e muros em que a fachada
desaparece ou perde a sua importância, embora também, em

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 88/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

alguns casos, a parte de habitação mostre o motivo da


janela-porta-janela virado para o exterior, e seja até
geralmente rebocada.
150 Nesta zona, predominam francamente as casas com a
cozinha incorporada no bloco principal, parecendo mesmo
serem raras as que têm o anexo lateral; e, dentro da primeira
forma, aparece, pelos arredores da Tocha, uma variante
notável que merece ser posta em destaque: na fachada
lateral que corresponde à cozinha, ocupando quase a sua
metade, a chaminé faz, desde baixo, um recanto saliente, que
sobe acima do telhado. Interiormente, situa-se nesse recanto
o borralho, deixando-se à cozinha o espaço rectangular
amplo e livre; a sala da chaminé apoia-se num barrote – em
tempos mais recentes uma viga de cimento –, lançado entre
os dois lados do recanto, e em alguns casos ela é escondida
por uma parede vertical que disfarça o recanto, com uma
finalidade apenas estética. Deve porém dizer-se que
actualmente já quase ninguém constrói casas com este tipo
de chaminé (des. 114 n.° 6).
151 Na zona interior da região gandaresa, em Arazede, Vila
Franca, Cadima, etc., a construção é de pedra, mal talhada e
ligada com barro; o adobe usa-se geralmente apenas em
muros, currais, pocilgas, e outras dependências menores;
apesar disso, porém, os caracteres e elementos fundamentais
da casa da Tocha do tipo da Caniceira mantêm-se. Em
Arazede, contudo, as casas têm uma feição urbana mais
acentuada, contíguas umas às outras à face das ruas,
entremeadas com casas de natureza diferente, mal se
adivinhando o pátio, situado nas traseiras; os celeiros altos
constituem um verdadeiro andar, em que predominam os
janelos, embora se vejam ainda com relativa frequência
óculos pequenos, redondos ou quadrangulares, ao contrário
do que sucede em Vila Franca e Cadima, onde se vêem
apenas janelas nos sobrados altos.
152 De Arazede para o Sul, até Carapetos, aparecem ainda com
maior ou menor densidade certos elementos da casa da
Tocha, mas não existe um tipo homogéneo e uniforme;
óculos, celeiros, conjunto janela-porta-janela, etc., jogam de

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 89/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

maneira indiferente e confusa; pode apenas dizer-se que a


cozinha fica sempre no bloco principal. E, por altura de
Carapetos, ao mesmo tempo que vamos penetrando
progressivamente na paisagem do « Campo » – os Campos
do Mondego –, a casa local acaba por perder qualquer
parentesco sensível com as que encontramos na Gândara,
embora perdurem alguns desses elementos, que se vêem
mesmo ao sul daquele rio35 .
153 Da Tocha para o Sul, até ao limite da região gandaresa, na
Cova de Serpe, as casas apresentam ainda os elementos
fundamentais do tipo da Tocha, mas notam-se, em relação a
ele, certas peculiaridades. Assim, a sua altura diminui
consideravelmente, os óculos altos desaparecem
completamente, e rareiam os sobrados; quando estes
existem, a sua iluminação faz-se sempre por um janelo na
empena. Além disso, em certos lugares, as fachadas
mostram, com grande regularidade, uma variante do motivo
gandarês da frontaria, que consta de janela-porta-janela-
porta.
154 Com muita insistência, nota-se a inclusão da cozinha no
bloco principal, com a chaminé no topo correspondente do
edifício, embora sem nunca fazer o recanto característico dos
arredores da Tocha. E do mesmo modo, quase sempre a
fachada se prolonga por um anexo menor, geralmente o
curral.
155 Interiormente, em relação a esta casa em geral, a planta
assemelha-se à das casas da Tocha, com os dois quartos ao
fundo da sala (des. 114, n.° 7) ; e isto vê- – se já em casas que
parecem ser as mais antigas.
156 Toma-se bastante frequente, principalmente por Bom
Sucesso e Casal Novo, esse género de casas em que prevalece
o pátio sobre a fachada, com a frontaria virada para o pátio e
mostrando para o caminho apenas paredes cegas ou com
raros rasgos muito exíguos em qualquer altura; esta feição
vê-se de um modo geral por toda a Gândara, e notamos
mesmo na Caniceira um tipo especial, em grande número,
que voltava para o caminho a empena da casa, com o janelo
do celeiro alto, ao lado do muro onde se abria o portal do

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 90/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

pátio; mas nesta zona, estes pátios não são tão fechados
como mais ao norte, os edifícios são mais baixos, e o
conjunto tem um aspecto mais antigo e rústico.

2
Casas da Murtosa
157 Prosseguindo no estudo da habitação em Portugal,
consideraremos aqui uma série de casas que aparecem numa
área bem delimitada do concelho da Murtosa, e que
apresentam certos pormenores característicos muito
definidos, que as distinguem e individualizam numa
categoria à parte.
158 Embora, como veremos, essa área seja bastante reduzida,
tais casas mereceram a nossa atenção não só pela beleza e
interesse de alguns desses pormenores, mas também pela
sua perfeita integração na paisagem natural e humana local
e pelas grandes afinidades estruturais que apresentam com
outras que se podem considerar o tipo de casa corrente na
região – do qual parecem mesmo ter sido o modelo –, e
ainda pela nitidez com que acentuam o significado
fundamentalmente cultural de certos elementos da casa em
geral, transcendendo assim os limites em que elas ocorrem.
159 Estas casas apresentam-se sob três formas diversas, que
representam o progressivo desenvolvimento do mesmo
conceito, e que analisaremos a partir do tipo mais simples
para o mais elaborado.

1.° tipo
160 As casas deste tipo constam de um corpo rectangular
principal, dividido em cozinha e sala, ao qual se encostam,
em cada extremidade da fachada principal, à frente, dois
quartos muito pequenos, que deixam entre si um espaço
alpendrado (foto. 178).
161 O telhado do edifício é a quatro águas, duas pequenas,
triangulares, nas fachadas de topo, e duas maiores, nas
fachadas largas, atrás e à frente; esta última prolonga-se, de
modo a cobrir o alpendre e os dois quartos pequenos, que
têm por isso o tecto inclinado. Este telhado impõe um beiral
que se lhe adapte, e que resulta em linha quebrada na parte
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 91/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

correspondente aos topos do edifício – horizontal sobre o


corpo principal, e inclinado sobre os quartos (des. 114).
Des. 115

2.° tipo
162 Do 1.° tipo, que compreende as casas mais pequenas, passa-
se para este outro, em que se incluem casas com uma
organização mais diferenciada, por um simples acrescento
nas traseiras, que, em relação ao corpo central principal, se
desenvolve simetricamente e de modo semelhante ao corpo
frontal das casas do 1.° tipo, que se mantém.
163 A casa fica ssim formada por esse corpo frontal, estreito,
compreendendo, como naquelas, o alpendre e os dois
quartos, iguais aos daquelas; pelo corpo central principal,
onde continua a situar-se a sala; e pelo corpo da retaguarda,
estreito como o frontal, que compreende duas alcovas no
alinhamento da sala e abrindo para ela, e a cozinha, que na
generalidade dos casos para ali se deslocou ; no corpo
central, o lugar desta é ocupado por uma divisão de
arrumações, contígua à sala, a que se dá o nome de despensa
ou sala do meio. Cada uma das alcovas tem um postigo
rasgado nas traseiras da casa, alto, de modo a evitar os
olhares indiscretos de quem passa fora (des. 116).
Des. 116

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 92/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

164 No telhado nota-se o prolongamento de ambas as águas


maiores, cobrindo os corpos da frente e da retaguarda. Daí a
linha quebrada característica do beiral das fachadas laterais,
horizontal a meio sobre o corpo central, e inclinado para a
frente e para trás (des. 117).
Des. 117

165 O alpendre é geralmente mais comprido que o das casas do


1.° tipo, e nunca deixa de ter colunas ou esteios sustentando
o frechal.
166 O conjunto da sala e das duas alcovas da retaguarda, que
aqui apareceu, constitui um elemento que se generalizou na
região, e que, como veremos, se encontra mesmo em casas
que já não apresentam as características das velhas casas de
alpendre.

3.° tipo
167 O tipo mais desenvolvido destas casas, que aparece com
grande frequência, é formado por um conjunto que
compreende uma casa igual às do 1.° tipo, à qual se
acrescentou, encostado a um dos topos, outro corpo
rectangular, que abriga a sala e as duas alcovas ao fundo36, e
cuja fachada se segue à fachada do alpendre da casa simples
do 1.° tipo, com um pé direito sensivelmente mais alto, e
oferecendo geralmente um ligeiro avanço sobre ela37 (foto
180 e des. 118).
Des. 118

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 93/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

168 Pormenores da construção, caracteres funcionais e


nomenclatura
169 Nas antigas casas destes tipos, as paredes mestras são de
adobos de barro postos ao baixo, com malhetes de pedra
intercalados, para lhe conferirem maior resistência; os
adobos são feitos de barro amassado, moldados em formas
de madeira e secos ao sol, e ligados com argamassa de cal e
areia. O barro vinha dos solões ou maninhos, que são
terrenos não salgados junto à ria, os quais, por serem de
fraca qualidade, dão apenas junco e mau pasto. As
argamassas são de areia amarela de Santo Amaro ou
esbranquiçada da Esgueira, que é trazida em barcos38.
170 As demais divisórias interiores são de adobos mindões, do
mesmo material, mas mais delgados. Todas as paredes são
revestidas com argamassa de cal e areia, interior e
exteriormente.
171 Nas casas mais recentes destes tipos, os adobos de barro
foram substituídos por adobos de cal e areia.
172 Por baixo do beiral correm fortes cimalhas, de perfil muito
recortado, por vezes com vários frisos, e os cunhais são
salientes; raras são as portas e janelas que não têm alizares,
mas os postigos da retaguarda não mostram geralmente
qualquer ornato. Estes elementos são caiados a branco,
enquanto que as paredes são agora de cores variadas, sendo
o cinzento o mais frequente; primitivamente, porém, eram
todas caiadas de branco.
173 O telhado é de telha caleira, a que dão o nome de telha de
Fontela, e tem as formas particulares que descrevemos,
impostas pela estrutura dos diversos tipos destas casas. Às
duas águas pequenas chamam meias-rodas. O beiral é
formado por capas e canudos, e é assente na grossa cornija,

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 94/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

mesmo nas partes inclinadas correspondentes aos corpos


estreitos da frente e da retaguarda.
174 Nas casas antigas, de adobo de barro, os caboucos, pouco
profundos39, saem acima do solo uns 20 ou 30 cm, e são de
lousa ou de pedra vermelha de Eirol. Nas dos adobos de cal
os alicerces são deste mesmo material em grande número
delas.
175 As padieiras são de castanho, geralmente arqueadas; sobre
elas colocam-se archetes de tijoleiras40, que sustentam a
parede acima delas, e aliviam a padieira.
176 Os ares, isto é, as traves e barrotamento do telhado, são de
castanho, e o resto dos madeiramentos, em baixo,
geralmente de pinho. Os caibros são feitos de duas peças:
uma que vai do cume até à parede mestra divisória, e aí se
fixa ao frechal, chamada a terça ; outra, que prolonga a
primeira até ao frechai das paredes exteriores (dos corpos da
frente e da retaguarda). Sobre os caibros está pregado um
forro, o guarda-pó, em que assenta a telha caleira41. Na
cozinha, a asna horizontal que trava as paredes chama-se
triz, e é utilizada para nela se dependurar o porco, quando
da matança.
177 Os pequenos janelos dos quartos junto do alpendre, a janela
da sala nas paredes laterais, nas casas do 1.° e 2.° tipo, e as
duas janelas grandes da sala nova, abrindo para a frente, nas
casas do 3.° tipo, são sempre de guilhotina com portadas
interiores42. Os postigos ou frestas para a retaguarda são
também geralmente de guilhotina, com um vidro único em
cada folha, e sem portadas.
178 As portas exteriores são de uma só folha, com as dobradiças
firmadas em tacos de madeira embutidos nas paredes; as
portas interiores têm tranquetas ou taramelas de madeira.
179 Os quartos e salas são forrados, e o forro é sempre direito,
não se vendo tectos de masseira43 ; nos quartos pequenos,
dos lados do alpendre, o tecto é inclinado, acompanhando a
água do telhado. O chão é agora soalhado; antigamente,
porém, ele era de terra batida, sobre a qual se estendia uma
camada de junco seco, que se substituía, quando muito
moído. A cozinha é de telha-vã, e tem geralmente o chão de

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 95/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

terra batida, mas também muitas vezes soalhado ou


ladrilhado.

Alpendre
180 O alpendre, que tem uma expressão acolhedora e por vezes
proporções muito harmoniosas, é a verdadeira entrada da
casa; ele dá sempre imediatamente para a eira, da qual está
separado parcialmente por um pequeno muro baixo – o poal
–, onde assentam as colunas que sustentam o frechai do
telhado, e que deixa uma abertura de passagem a um ou aos
dois lados; não vimos nenhum que a tivesse a meio (foto
182).
181 As colunas são feitas de tijoleiras revestidas de argamassa
amarela, com capitéis de formas singelas e variadas. Nos
alpendres muito curtos não existem colunas; o frechai
aguenta-se sem qualquer apoio a meio.
182 Contudo, nas casas mais pobres, não existe poal, e as
colunas podem ser substituídas por esteios de granito ou
prumos de madeira.
183 O pavimento do alpendre é geralmente ladrilhado com
tijoleiras, ou lajeado com uma pedra acinzentada; poucos
ficavam em terra batida. O tecto era forrado por cima dos
caibros, e só raros se apresentavam em telha-vã.
184 O alpendre serve para nele se recolher aquilo que seca na
eira – milho, feijão, etc. ; muitos deles são fechados, quando
chove, por esteiras de tábua ou empanadas de madeira,
presas às colunas. De resto, a água do telhado voltada ao
Sul – que cobre o alpendre – é também normalmente
utilizada para secagem.
185 Do alpendre entra-se para a sala ou salas e para a cozinha,
conforme os diversos tipos de casas, por portas como as que
descrevemos atrás; os quartos pequenos, na grande maioria
dos casos, não têm portas para o alpendre: o seu acesso faz-
se por portas abertas na sala e na cozinha ou na despensa.

Cozinha
186 A cozinha, como dissemos, é de telha-vã e geralmente térrea,
embora apareçam algumas soalhadas ou ladrilhadas a tijolo;
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 96/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

a sua iluminação faz-se por um postigo para a retaguarda44.


187 Grande número delas não têm chaminé, saindo o fumo por
um respiro que se obtém pelo levantamento de quatro ou
cinco telhas, que ficam soerguidas. A chaminé, contudo,
parece ser também um elemento tradicional conhecido, e,
quando existe, a sua saia, que estreita para cima, é feita de
adobos mindões pousados numa trave que apoia um
extremo na parede mestra e outro num pião ou prumo de
madeira; exteriormente, ela termina por um um capuz de
telha ou tijolo com fendas laterais. No lugar do Monte,
algumas chaminés apresentam mesmo um esmero de feitura
que revela claramente uma preocupação estética apreciável,
mas embora assim seja, são uma excepção e representam um
género que foi posto de parte.
188 O lareiro ou lareira situa-se sempre a um canto da cozinha.
(des. 114/115). Ele fica ao nível ou ligeiramente mais alto do
que o chão, e era primitivamente de barro; ainda hoje, são
raros os de ladrilho ou tijolo, e muito raros os feitos de uma
pedra de granito. O forno está geralmente construído num
compartimento anexo contíguo à cozinha, ou no exterior,
sob o coberto, mas sempre abrigado por uma construção. A
sua boca porém abre sempre para o lareiro ; em algumas
casas antigas, ele encontra-se na própria cozinha, e, noutros
casos, além do fomo grande situado no compartimento da
retaguarda, há outro pequeno, na lareira.
189 É frequente as pessoas não utilizarem a cozinha, preparando
e comendo normalmente as refeições noutro local, e
utilizando a cozinha como sala de costura ou trabalho; ela
fica desse modo preservada, numa propositada aparência de
esmero. Uma segunda cozinha, construída a seguir à casa e a
que se dá o nome de cozinha velha, é onde vulgarmente se
cozinha, se come e se reza o terço. Por vezes há ainda uma
terceira cozinha, fora, onde, na época própria, se gastam,
como combustível, «troços» de couves e « rameiras » verdes
dos valados, que fazem muito fumo. De resto, há uma
tendência geral acentuada para a construção de anexos
seguidos, cada vez mais pequenos.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 97/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

190 Na cozinha encontra-se a mesa, o armário, as caixas para o


cereal, mochos diversos, um escabelo ou banco comprido,
com ripas nas costas e grades aos lados, e com o assento de
levantar, que em baixo é uma arca de arrumação ; a
masseira, agora sobre uma mesa, mas dantes pousada no
chão, amassando a mulher de joelhos, a salgadeira, etc.,
além da diversa utensilagem do pão e das outras actividades
domésticas: o machão, ou espátula, para a massa; a bandeja,
para bandejar o pão e se fazerem os bolos; a pá, de madeira,
em duas peças – cabo e pá propriamente dita –, para se tirar
o pão do forno; o redoiro, pau com que se mexe o brasido e a
que se amarram ramos de loureiro ou urtigas para se varrer
o interior do forno ; o barril e caneco, para a água, o
camareiro de madeira para a lavagem dos porcos, a selha
(redonda) e a escudela (rectangular), de madeira, servindo
de bacias, o colhereiro de parede, muito tosco, etc.
191 O prato da comida é colocado a meio do pavimento da
cozinha, junto à lareira, e todos se agrupam em volta,
sentados em mochos feitos de toros de árvore, com a tigela
de barro vermelho pousada nos joelhos. Quando o prato era
de peixe, ou, por ocasião da matança ou nos domingos
subsequentes, de rojões de porco, comiam todos da bacia ; se
era de carne, a mãe cortava a parte de cada um, e cada qual
comia-a na sua tigela, à mão ou com a ajuda da navalha.
Para se beber, suspendia-se o comer; o pai punha um pedaço
de broa no meio da bacia, em cima da comida; o vinho era
servido à volta, e as pessoas só recomeçavam a comer
quando o pai tirava esse bocado de broa.

Quartos
192 Os quartos e alcovas são, como dissemos, soalhados e de
tecto forrado. Os da frente têm este inclinado, e um pequeno
janelo de guilhotina, com portadas interiores, voltadas para
a eira; os das traseiras têm postigos altos, também de
guilhotina, muitas vezes com folhas de um vidro único, ou
frestas só com portadas. Abrem para a sala e cozinha ou
despensa, e raríssimas vezes têm porta directamente para o

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 98/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

alpendre; no lugar que esta ocuparia, vê-se em geral um


pequeno armário de parede, sem portas.
193 Nos quartos encontra-se a cama, de ferro ou de madeira, e a
arca; o arranjo é pobre: a roupa de fora dependura-se em
cordéis, coberta com papéis, ou pousase em cadeiras. Há
também por vezes nichos, ou armários de parede com
portas, para guardar roupas ou outras coisas.
194 Num dos quartos que dão para a sala, dormem os pais; no
outro, as filhas ou filhos mais velhos; as restantes pessoas,
de menor importância, distribuem-se pelos demais
cubículos.

Sala
195 A sala é a dependência central destas casas, e a única que
revela qualquer preocupação de luxo. O seu tecto é direito e
liso, de forro, e, por vezes, em casas antigas, decorado com
pinturas. Quase sempre soalhada, conhecemos casos em que
ela é ainda de terra batida45. Além das portas para a cozinha
ou despensa, para o alpendre e para o quarto ou alcovas, ela
tem, nas casas do primeiro tipo, uma janela na fachada
lateral, e geralmente um postigo para a retaguarda; nas casas
do 3.° tipo, ela situa-se no corpo do edifício mais alto e
saliente, ao lado da primitiva casa de alpendre simples, e
abre para a frente uma porta de entrada ladeada por duas
janelas amplas.
196 Na sala de algumas velhas casas – especialmente do 1.° tipo,
ou na casa primitiva dos conjuntos do 3.° tipo – vêem-se
frequentemente, na parede que corresponde às traseiras,
nichos embutidos nos muros, a que chamam cantareiras ou
copeiras, vindo quase até ao chão e com uma divisória a
meia altura, e mostrando belos ornatos de massa ou madeira
pintada (fotos. 181 e 184). Como mobiliário corrente,
encontra-se nela geralmente uma cómoda com imagens e
gravuras religiosas nas paredes.
197 Esta sala não é utilizada para quaisquer fins propriamente
domésticos, e tem funções apenas cerimoniais, em relação
nomeadamente com a visita pascal ou com a caleda fúnebre
por ocasião da morte de pessoas da casa, que aí se expõem, e

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 99/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

neste sentido pode dizer-se que ela é a divisão mais


importante da casa. A cantareira ou copeira é, nessas
circunstâncias, o local onde se colocam o crucifixo, os
castiçais, as jarras com flores, etc., que são de uso.
198 É este mais um exemplo em que um elemento de natureza
espiritual se manifesta funcionalmente, determinando a
própria estrutura da casa. A sala das casas de Aldoar, de
Esposende, da Maia, etc., que estudámos noutros locais46,
tem uma finalidade cerimonial idêntica, claramente marcada
pelo maior cuidado da sua decoração, pelo luxo excepcional
do seu mobiliário e pela existência regular e expressiva do
santuário como elemento central. Em muitos outros sítios,
de igual modo, o mesmo princípio ocorre, embora menos
clara e acentuadamente, e pode dizer-se que este carácter da
sala é comum na casa rural portuguesa do Norte, e em geral
na área de «compasso» pascal. Mas em nenhum outro local
ela atinge como aqui o nível de uma designação específica e
expressa, a afirmar nitidamente o conceito que nos outros
casos vive apenas de um costume tácito: Na Murtosa, a sala é
conhecida pelo nome de Sala do Senhor.
199 A despeito do que acabamos de dizer, porém, e certamente
devido à exiguidade extrema destas casas e às prementes
necessidades de espaço, é frequente a sala ser usada como
compartimento de arrumos, e nela colocam muitas vezes um
armário e caixas de cereal. Este facto, contudo, longe de
invalidar a afirmação do seu carácter fundamentalmente
cerimonial, mostra que ela é uma divisão reservada, onde
não decorre a vida normal da casa.

Despensa ou sala do meio


200 Vimos que nas casas dos 2.° e 3,° tipo aparece, entre outras,
uma divisão, que nas primeiras ocupa o lugar da cozinha das
casas do 1.° tipo, que se transferiu para a retaguarda, e nas
últimas resulta da transferência da primitiva Sala do Senhor
para o novo corpo da casa, mais importante e aparatoso: é a
sala do meio ou despensa, que por razões semelhantes existe
também nas casas de grandes dimensões, onde são possíveis
mais compartimentos; às vezes mesmo, além dela ainda há

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 100/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

outra divisão da mesma natureza, a que é vulgar chamarem


celeiro.
201 Apesar do seu nome, esta sala não serve de despensa ou
celeiro em sentido restrito; mas de facto ela constitui uma
arrumação importante, onde se encontram caixas de cereal e
toda a espécie de objectos, sendo além disso uma divisão de
passagem da sala para a cozinha.
202 Passamos agora a descrever dois exemplares de casas
grandes de lavoura desta série, ambas sitas no Bunheiro, em
que as necessidades de maior espaço impuseram novos
elmentos, que vieram articular-se no esquema fundamental
das casas típicas do 2.° tipo.
203 a) É uma das grandes casas de lavoura da freguesia (des.
119). Aparenta ter sido construída duma só vez, à excepção
da cozinha, que pode ser um acrescento ulterior, e ter
originariamente ocupado o lugar do «celeiro» que lhe fica à
frente, incluído presentemente no corpo principal da casa;
contudo, os actuais proprietários nunca a conheceram
noutro sítio.
204 O corpo principal da casa compreende uma sala nova, a
velha Sala do Senhor, e um primeiro e segundo celeiros –
este último ocupando possivelmente, como dissemos, o
lugar da primitiva cozinha. Nas traseiras, existem dois
quartos ou alcovas pequenas, abrindo para a sala nova; o
longo compartimento de arrumos, com porta para o exterior,
atrás da Sala do Senhor e do primeiro celeiro; a cozinha,
com o cubículo contíguo onde está o forno, com a boca a
abrir para a lareira, correspondendo, ambos, ao segundo
celeiro.
Des. 119

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 101/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

205 Na velha Sala do Senhor há um nicho e uma copeira


embutida na parede, com ornatos de madeira (foto 184) ;
estes mesmos ornatos embelezaram outra copeira ou janela,
agora entaipada. O celeiro junto à sala tem uma vedação de
madeira, que deve ser recente, formando um corredor que
conduz ao outro celeiro, junto à cozinha. Nos quartos
pequenos, de cada lado do alpendre, há os usuais armários
de parede.
206 O telhado tem uma pequena ala lateral sobre a cozinha e
compartimento anexo onde está o forno, que apoia a
hipótese da sua construção mais recente.
207 b) Casa da Rua do Forno (des. 120 e foto 182). – Esta casa,
embora seja uma variante do 2.° tipo, tem a cozinha no
corpo principal e central do edifício, que compreende, a
seguir a ela, a sala do meio, servindo de celeiro, e depois a
sala principal, fazendo-se a passagem desta para a cozinha
através da sala do meio. Na cozinha existe um pequeno forno
na própria lareira e, além disso, abre-se a boca de um outro
forno grande, construído no topo do longo compartimento
de arrumos da retaguarda, que corresponde, nas traseiras, à
cozinha e sala do meio.
Des. 120

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 102/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

208 A cozinha é de telha-vã, e não tem chaminé : o fumo escapa-


se pelo sistema habitual do respiro de telhas levantadas. No
quarto pequeno junto a ela (utilizado agora como despensa),
há um pequeno armário de parede, tal como sucede em
muitos casos. A parte da casa onde se situam a sala nova
principal e as alcovas foi restaurada; só estas divisões são
forradas; as paredes divisórias da sala e alcovas são de
tabique, o que de nenhum modo se pode considerar
tradicional ou corrente.
209 Estes dois exemplos mostram, claramente a força de
persistência de um estilo local, traduzido aqui no plano da
casa, que se mantém mesmo quando as circunstâncias
impõem considerações imprevistas, e a despeito da
imperfeição das soluções de adaptação a essas novas
exigências.

Localização, orientação, conjunto


210 A região da Murtosa, que nos ocupa, é uma zona de aluviões
recentes, fresca e desabrigada dos ventos, de terrenos planos
e pouco arborizados. As actividades fundamentais da sua
população são a agricultura, à base do milho, e as fainas
características da ria: pesca, colheita de limos, etc.
211 A propriedade é pequena e muito parcelada, explorada
geralmente pelo dono com a ajuda do seu grupo familiar. Os
núcelos urbanos alongam-se em estrela, junto às estradas e
caminhos, num tipo característico de povoamento
aglomerado com tendência para a dispersão.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 103/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

212 A gente é muito prolífica, especialmente na classe


piscatória ; mas apesar de isso, a população mantém-se
estacionária, por causa da grande emigração para o Brasil e
E.U.A. ; o homem emigra sozinho e, mais tarde, a mulher e
os filhos vão ter com ele. Contudo, como pensa sempre vir
morrer à terra, compra ou constrói casa, que muitas vezes
fica desabitada, porque os filhos já não voltam, e os velhos
não abandonam a família. Há por essa razão um aumento
sensível do número de habitações, a que não corresponde
um aumento de população.
213 As casas que atrás analisamos, que pertencem a esta
paisagem, são quase sempre construídas num pequeno
terreno, marginando o caminho ou a estrada, sem
comunicação directa com as demais terras de cultura, que
ficam pela vizinhança; a forma desse terreno é que
condiciona a localização da casa e das demais dependências
agrícolas anexas, mas, sempre que é possível, procura-se
colocá-la com a fachada das traseiras encostada ao limite
norte, de modo a aproveitar o sol em todo o resto do espaço;
e de facto, na generalidade dos casos, a fachada do alpendre,
que dá imediatamente para a eira, fica virada ao Sul.
214 A fachada das traseiras fica por isso quase sempre junto de
terrenos alheios, ou de qualquer caminho público; mas como
as casas são sempre rectangulares e além disso procuram
uma orientação determinada, nem sempre se ajustam ao
alinhamento desses caminhos, e é notória a falta de ordem
dos arruamentos; frequentes vezes as casas situam-se de
esguelha sobre a rua, para onde encostam apenas um
cunhal.
215 Estas casas nunca têm porta para a rua: elas situam-se no
quinteiro – que é o terreno a que aludimos, junto ao
caminho –, e da rua entra-se para este através de um
coberto, onde se rasga o portal de entrada, sempre
alpendrado.
216 Quando a casa é de certa importância – entende-se que de
lavradores –, e o terreno tem bastante frente para o caminho
público, ficam-no marginando os currais ; o largo portão do
coberto é então muitas vezes reentrante, com as ombreiras

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 104/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

ou paredes laterais cortadas nos ângulos, para mais fácil


entrada dos carros47 (foto. 183).
217 No quinteiro, encontram-se os restantes anexos da casa:
falámos já da tendência para a construção de dependências
cada vez mais pequenas, que se seguem à casa, no seu
próprio alinhamento, das quais uma ou duas servem
geralmente de cozinha; estas construções, e bem assim os
currais e a latrina, são de adobo de barro sem revestimento,
e têm telhado a duas águas. Além delas, dispersos pelo
quinteiro, vêem-se as medas de palha, as pilhas de junco
para a cama do gado, o poço com a bomba de madeira, o
cabanal (cabana a duas águas) de palha milha, que serve
também de abrigo a alfaias, lenhas e estrumes – e ainda,
coloda à casa, frente ao alpendre, que parece prolongá-la, a
ampla eira48.
218 Da descrição e considerações que acabámos de fazer, vê-se
que, de facto, estas casas traduzem bem as condições
naturais da região em que ocorrem, adaptando-se
perfeitamente a elas e às formas fundamentais da vida local.
219 O emprego do adobo de barro, preparado com materiais que
ali se encontram, e que são utilizáveis apenas em
construções térreas, como estas; as suas dimensões, forma, e
orientação, plenamente funcionais, constituindo por si só
uma defesa contra o terrível vento dominante – a nortada –,
que nenhum obstáculo natural atenua, e a quem, por isso,
opõem uma fachada maciça praticamente sem aberturas
(apenas com os pequenos postigos das salas e alcovas da
retaguarda), sem prejuízo para a orgânica essencial da casa,
e a que uma simples sebe de loureiros, muito frequente,
basta para proteger com relativa eficácia; a sua relação com
a economia característica dessa zona: o quinteiro e a eira,
que elas delimitam e abrigam, no máximo aproveitamento
do sol e do calor; e principalmente o alpendre, que é ao
mesmo tempo o logradoiro da casa, a oficina onde se
preparam os trabalhos da lavoura ou os aprestos da pesca; o
próprio elemento morfológico estético, tão acentuado – a
sua perfeita integração no tipo da paisagem, plana, clara,
aberta –, tudo isto são factores que fazem das casas de

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 105/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

alpendre da Murtosa um produto cultural altamente


significativo dessa região.
220 É pequena a área em que se encontram estas casas de
alpendre; ela reduz-se à faixa compreendida entre a ria e
uma linha que vai de Veiros a Pardilhó, sendo muito raras e
menos características por alturas de Avanca. Os núcleos de
maior densidade são Pardelhas e Bunheiro, onde parece que
noutros tempos quase todas as casas eram desta categoria49.
221 Eram elas de pescadores e de lavradores. Aqueles possuíam
no geral as casas mais pequenas; as do 3.° tipo, com um
corpo lateral mais alto e ligeiramente avançado, eram de
lavradores, cujas maiores posses permitiam uma construção
mais rica.
222 Tudo parece indicar que, entre todas as habitações existentes
nesta zona, as mais antigas são a casa de alpendre, que de
resto já se não constroem nos termos que descrevemos50.
Des. 121

223 À velha casa de alpendre, de adobos de barro, seguiu-se na


região um outro tipo de casa, também térrea, rectangular e a
quatro águas, feita de adobos de areia e cal comprados no
concelho de Aveiro, com caboucos do mesmo material, de
pé-direito mais alteado, alindadas ainda muitas vezes com
azulejos de cores garridas, pelos «brasileiros».
224 A planta destas casas, que geralmente bordam a estrada ou
caminho, para onde abrem o seguimento de numerosas
portas e janelas, acusa, embora sem o alpendre e com porta
para a rua, uma nítida influência das velhas casas de
alpendre que estudámos. Aparecem a mesma sala, com
idênticas funções, a despensa ao lado, ambas com as alcovas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 106/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

ou quartos ao fundo, e os mesmos postigos para a


retaguarda, pelo menos quando as traseiras são viradas ao
norte51. A cozinha é junto à casa, e a latrina continua a ser
fora, do lado oposto ao poço. A lareira elevou-se do chão e
diminuiu de tamanho ; a chaminé, de modo semelhante, é
também mais pequena do que a das antigas casas, quando a
tinham (des. 120). Os currais, quando os há, ficam no
quinteiro, perto da casa.
225 As construções actuais perderam todo o carácter tradicional;
elas são em grande parte de tijolo e cimento, vendo-se
porém ainda muitas de adobo de cal. Os próprios alicerces
são de granito, trazido do concelho de Vila da Feira.

Casas da zona central do litoral português


3

226 Por quase toda a orla litoral do centro do País, desde Aveiro
a Leiria, divulgou-se um género de casa que, à parte
pequenas diferenças locais mais ou menos sensíveis, mostra
evidentes características comuns. Trata-se invariavelmente
duma casa térrea (podendo apenas conter uma parte
sobradada, baixa, sob o telhado, servindo de celeiro ou
arrumação), que mostra quase sempre, para os caminhos ou
estradas que bordeja, uma fachada simples, muito cuidada e
por vezes muito ornamentada, sob o pequeno beiral linear
de um telhado de duas águas, com o cume paralelo à
fachada; para as traseiras, ela possui um pátio rodeado total
ou parcialmente pelos aidos, galinheiros, cobertos, etc., para
o qual se entra por um portão rasgado na fachada frontal da
própria casa ou no muro ou parede que se lhe segue.
227 Já estudámos noutro lugar52 a variante que corresponde à
região gandaresa, e que, na verdade, é também frequente daí
até ao Vouga, especialmente na direcção de Fermentelos. Por
grande parte dessa região este tipo mostra para a frente uma
fachada muito igual, com um motivo janela-porta-janela que
se repete regularmente, e é seguido pelo portão largo que dá
acesso ao pátio através do alpendre, e por um lanço de
parede em que as únicas aberturas são uns postigos

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 107/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

pequenos abertos logo por baixo do beiral, e que iluminam o


celeiro, o qual é, no geral, o único sobrado existente.
228 Hoje estudaremos dois tipos desse mesmo género de casa da
região a sul do Mondego, ao longo do litoral que corresponde
aos concelhos da Figueira da Foz, Pombal e Leiria: um,
próprio de certas áreas deste último concelho, possivelmente
o mais antigo dos dois, em que a fachada é totalmente
diferente da das casas da Gândara, com um alpendre baixo e
acolhedor, a maior parte das vezes ladeado por dois
cubículos baixos, lembrando as casas antigas da Murtosa ; e
outro, que se vê pelos mencionados concelhos da Figueira e
de Pombal, em que, pelo contrário, a fachada se assemelha
muito à das casas da Gândara.
229 Por uma delimitada área do concelho de Leiria, encontra-se
com relativa frequência um tipo especial de casa térrea e
pequena, com alpendre, em que este se abre numa fachada
baixa e lisa, debaixo do beiral corrido a todo o comprimento
do edifício, e que se vira ora para a rua, ora para um pátio
situado nas traseiras. Na sua grande maioria muito pobres e
sem qualquer ornato que enriqueça a singeleza da
construção de adobe, apenas o alpendre, rasgado na
brancura das paredes baixas, alegra um pouco o aspecto
destas casas, com uma nota humilde de harmonia.
Exteriormente, como dissemos, elas têm afinidades e fazem
pensar numas casas também térreas e de alpendre, que
aparecem na Murtosa, e das quais já noutro lugar nos
ocupámos53 ; numas, como nas outras, esse alpendre aparece
do mesmo modo no espaço compreendido entre dois
cubículos laterais, que avançam à frente da fachada; mas
elas distinguem-se entre si por uma diversa localização no
terreno, e frequência de elementos decorativos54.
230 Como exemplo típico desta categoria, descreveremos uma
casa do lugar da Granja perto de Monte Real, na área onde
elas são ainda hoje bastante numerosas.
231 A casa (foto 189), com cobertura de velha telha caleira a duas
águas, situa- – se junto de um dos caminhos principais da
aldeia, virando para aí a fachada baixa de beiral corrido, a
meio da qual se abre o alpendre; ela encosta as empenas às

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 108/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

casas vizinhas, e em alguns casos forma com elas, desse


modo, como que um telhado único, que as recobre a todas; e,
nas traseiras, dá para o pátio fechado, vulgar por todo o
centro litoral do País, com o seu costumado desalinho, entre
as paredes de adobe nu das pequenas dependências agrícolas
que o rodeiam parcialmente, as « alpendradas », e o seu
largo portal, abrindo para um caminho secundário.
232 Interiormente a casa é composta por um corpo central, que
abriga a cozinha, a sala, e um quarto (des. 122), e ao qual se
encosta, à frente, um outro corpo, estreito, formado por dois
cubículos, que deixam entre si o espaço aberto que
corresponde ao alpendre.
233 Este é soalhado, e apresenta-se como um átrio reentrante de
entrada para a sala ou casa de fora, que é o compartimento
principal da casa. Uma das paredes principais desta sala faz
a divisória entre ela e a cozinha, para a qual se passa por
uma porta muito pequena55. No lado oposto, outra parede
separa a sala de um compartimento contíguo, sem janela56,
que serve de quarto de dormir.
234 A cozinha é de dimensões consideravelmente mais reduzidas
que a sala. A lareira, com uma saia muito baixa, apoiada
num prumo de madeira, encosta-se à parede divisória,
ocupando o canto, como é a regra por toda esta área litoral;
ela mal se eleva do chão, e é ladeada por dois bancos, sob a
saia, a qual tem fixada à face mais longa um prateleiro onde
se colocam tachos e louças (des. 122-II).
Des. 122 – 1 – Granja (Leiria). II – Guia (Pombal) –
Casa mais pequena e respectiva cozinha. O banco
da parede não existe em muitíssimos casos

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 109/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

235 A localização da lareira no plano da casa dá origem a que a


chaminé apareça a meio do telhado, no sentido
perpendicular ao cume; e é este um traço característico
constante da habitação tradicional da região.
236 Da cozinha passa-se para o pátio da retaguarda, e para o
cubículo da frente, que ladeia o alpendre desse lado, e que
serve de quarto. O segundo cubículo, do outro lado do
alpendre, é muito comprido e utiliza-se agora como
arrumação : nele esteve em tempos o forno do pão, que
agora fica num coberto fechado, nas traseiras.
237 As paredes da casa são de adobe, com cerca de 50 cm de
espessura; e já acentuámos a sua pouca altura, que reduz as
portas de forma a ser necessário curvar-se para se passar por
elas57. Toda a casa é soalhada e forrada, à excepção do
cubículo que abrigou o forno, que é de terra batida e telha-
vã. A porta da entrada tem uma largura normal; mas, como
rasgos, além dela, apenas dois pequenos postigos se abrem
na fachada, correspondendo aos cubículos.
238 Estas casas de alpendre, mostrando embora certas pequenas
diferenças na sua divisão interior, apresentam sempre os
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 110/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

elementos principais que apontámos, combinados


regularmente de modo idêntico. A cozinha, ao lado da sala,
tem sempre a lareira encostada à parede divisória com
aquela, e puxada ao canto; consequentemente, a chaminé
aparece sempre localizada de igual modo. O compartimento
grande ao lado da sala, no corpo principal da casa, e oposto à
cozinha, é sempre o quarto de dormir, juntamente com os
cubículos – ou apenas um deles –, que ladeiam o alpendre;
mas em inúmeras casas, mais pequenas do que o protótipo
que descrevemos, desaparece o quarto grande, e dorme-se
apenas nos cubículos58. Estes, por vezes, têm porta directa
para o alpendre. É natural que em tempos mais antigos a sua
iluminação fosse feita por postigos pequenos, com
guarnições ou caixilhos de madeira; ainda hoje raras vezes
tais postigos podem merecer o nome de janelos ; e, pelo
contrário, é vulgar eles não existirem, fazendo-se a
iluminação por um vidro colocado entre as telhas.
239 As cozinhas são muitas vezes soalhadas, com a excepção do
espaço onde se encontra a lareira, que é de terra. A lareira é
ao raso do chão, coberta por uma saia baixa que remata à
frente numa trave apoiada num prumo de madeira,
deixando ver, suspensas a meio da parede do fundo, as
correntes de ferro donde se penduram os panelos sobre o
lume; sob ela abrigam-se os bancos compridos, de duas
pernas, que a ladeiam (des. 123) ; e à volta desta divisão
vêem-se arquibancos, mesas, louceiros, por vezes recortados
no alto, cantareiras, etc. Por seu turno, na sala – que, de
acordo com a regra, tem funções predominantemente
cerimoniais em especial relacionadas com a visita pascal –,
vêem-se uma mesa com o crucifixo ou oratório, cadeiras com
o assento de madeira, arcas, que aqui são lisas, com tampa
de rebordo e quatro pés pregados nos cantos inferiores, etc.
Des. 123 – a : Conqueiros – Exemplar de casa com
alpendre na empena. b : Origosa – Casa com
alpendre no canto. (No compartimento de arrumos
há agora uma porta de entrada mais directa para a
cozinha.)

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 111/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

240 O alpendre apresenta-se ora totalmente aberto para a rua,


ora guarnecido por um ou dois piais (poiais), que prolongam
a parede da fachada. Este último caso corresponde em geral
a alpendres mais espaçosos; mas mesmo quando eles são
pequenos, é frequente ver-se um poial curto de um dos
lados, que veda parcialmente a entrada. O pavimento do
alpendre é frequentemente de soalho; há porém, muitos de
terra batida, sendo então costume cobri-la de junco. O tecto
é forrado; e o degrau baixo, na porta da entrada, é quase
sempre de madeira.
241 Nem sempre, porém, o alpendre se situa a meio da fachada;
é frequente, sobretudo em certos lugares, ele aparecer a um
canto do edifício (foto 188), sem que contudo a planta da
casa se modifique, em relação à da casa da Granja atrás
descrita59. Mais raramente, o alpendre vê-se numa das
empenas (foto 187) ; isto sucede principalmente quando a
orientação da casa assim o aconselha, ou quando há
vantagem da sua exposição para esse lado; também nesse
caso a divisão interior se mantém de acordo com o tipo
essencial que descrevemos60.
242 As chaminés destas casas pertencem à categoria mais
simples e sóbria das chaminés estremenhas e de todo este
litoral central: compridas e delgadas com a fenda de saída do
fumo estreita (foto 191), no alto, guarnecida muitas vezes por
duas peças ornamentais, de pedra ou caliça em forma de
pirâmides, nas suas extremidades. Presentemente, algumas
aparecem protegidas, a todo o seu comprimento, por uma
tábua apoiada sobre tijolos e firmada pelo peso de outros
que se colocaram sobre ela (des. 123-b).

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 112/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 124 – a : Lareira e chaminé de uma casa de


Paião. b : Chaminé com a tábua protegendo a fenda
de saida

243 Os fomos ficam sempre em cubículos, separados da cozinha


e com a chaminé própria (quando a têm). Os cubículos com
esse fim não se incluem geralmente na planta da casa:
aparecem ora encostados às traseiras, ora ladeando o
alpendre, ora mesmo em qualquer ponto do pátio, fora do
edifício. Neles se cozinha com frequência.
244 Contrastando com a modéstia e ausência de ornatos
exteriores, nota-se por vezes uma certa preocupação na
arquitectura interior, nomeadamente no que diz respeito aos
tectos ; não raro o da sala é de masseira, com molduras, e o
do alpendre mostra uns ornatos rudimentares; e, em alguns
casos, a porta de entrada é guarnecida com alizares de
madeira recortada.
245 Este tipo de casa, que corresponde a uma classe de
trabalhadores rurais e pequenos lavradores, é ainda hoje
bastante frequente pela zona norte do concelho de Leiria e,
pelo menos até alguns anos, por uma região compreendida
entre a Batalha e a Martingança : mais para o Norte,
encontram-se ainda numerosos exemplares até à Guia,
Carriço e Louriçal ; para o interior, vimos um ao outro até
Albergaria dos Doze. Ele encontra-se em vias de rápido
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 113/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

desaparecimento, que se explica pela inconveniência das


suas condições habitacionais, a pequenez dos quartos de
dormir e a sua pouca altura geral. Quando o adobe de que
elas são feitas começa a desagregar-se e as paredes a ruir, a
casa é condenada, porque não merece arranjo ; e nas
construções que a vêm substituir não aparece, infelizmente,
o mais leve vestígio do seu velho alpendre, que era uma
feição regional modesta, mas graciosa e acolhedora.
246 Na região a sul do Mondego, correspondente aos concelhos
da Figueira da Foz, de Pombal e parte de Leiria, encontra-se,
por sua vez, como dissemos, uma casa dessa mesma
categoria geral própria da área litoral do centro do País, com
uma fachada do tipo gandarês, mas que mostra aqui
diferenças significativas em relação à casa de Gândara. Com
efeito, a porta da entrada não está a igual distância de ambas
as janelas, correspondendo o afastamento maior ao lugar da
chaminé, a qual sai do telhado pela água virada para a rua,
em direcção perpendicular à fachada. Além disso, o portão
abre-se muitas vezes num corpo que se distingue do resto da
fachada, tanto na altura, que é maior, como até num ligeiro
recuo ou avanço, e a sua incorporação no edifício não tem o
carácter de regularidade que mostra por certas zonas da
Gândara, abrindo-se mesmo, muita vez, num simples muro
baixo que se segue à casa, directamente para o pátio. Nota-se
também que o pano de parede correspondente ao celeiro é
muito mais raro, e, quando existe, se situa geralmente logo a
seguir à parte de habitação, antes do portão.
247 A estas diferenças, que se podem constatar do exterior,
corresponde também, no interior, uma planta inteiramente
diferente. Assim, o corpo principal da casa, virado para a
estrada ou caminho, abriga a sala, a cozinha e um celeiro-
arrumação. À sala corresponde a porta e a janela que lhe fica
próxima, enquanto que a janela afastada, muito mais
pequena, pertence à cozinha; é a lareira, pela disposição que
toma ao canto desta, que provoca esse maior afastamento, e
também a colocação característica da chaminé.
248 A este corpo da casa segue-se, na sua retaguarda, um outro
corpo muito estreito, coberto pelo prolongamento da água

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 114/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

posterior do telhado, e dividido em três compartimentos:


dois quartos muito pequenos, e a casa do forno; é desta que
se passa para o celeiro, situado no corpo da frente. O portão
abre para o alpendre, que fica logo a seguir, e ao qual dão
aqui o nome curioso de zambório (des. 125)61.
249 Estas casas são feitas com os diversos materiais que existem
localmente, pedra ou adobe de barro, e muitas vezes de
adobe com o alicerce de pedra, como acontece em tantos
outros sítios da área do adobe; toda a construção é rebocada
e caiada por dentro, à excepção do zambório, em que esses
materiais ficam a nu. Em algumas áreas reduzidas, como por
exemplo em São Paio da Leirosa, as empenas de adobe são
reforçadas com contrafortes do mesmo material, mesmo em
exemplares antigos. Por toda a área da sua difusão, são vulga
res cornijas sob o beiral, e alizares de portas e janelas de
caliça ou pedra calcária; estes ornatos não atingem no geral a
exuberância dos da Gândara, e não existem ou são mais
discretos em casas mais antigas. O telhado, de duas águas, é
ainda, na maior parte dos casos, de telha caleira.
Des. 125 – São Paio de Leirosa

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 115/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 165 – Figueira da Foz. Marinha das Ondas

Foto 166 – Aveiro, Mamodeiro

Foto 167 – Figueira da Foz, Marinha das Ondas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 116/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 168 – Figueira da Foz, Marinha das Ondas

Foto 169 Figueira da Foz, Outeiro do Paião

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 117/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 170 Figueira da Foz, Marinha das Ondas

Foto 171 Figueira da Foz, Marinha das Ondas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 118/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 172 – Pombal, Guia

Foto 173 – Loures

Foto 174 – Leiria, Carvide

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 119/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 175 – Leiria, Vieira

Foto 176 – Leiria, Vieira de Leiria

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 120/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 177 – Pombal, Carriço

Foto 178 – Murtosa

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 121/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 179 – Murtosa, Pardelhas

Foto 180 – Murtosa Pardelhas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 122/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 181 – Murtosa, Pardelhas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 123/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 182 – Murtosa, Bunheiro

Foto 183 – Murtosa, Bunheiro

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 124/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 184 – Murtosa, Bunheiro

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 125/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 185 – Murtosa, Monte

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 126/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 186 – Murtosa, Bestida

Foto 187 – Leiria, Conqueiros

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 127/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 188 – Leiria, Conqueiros

Foto 189 – Leiria, Granja

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 128/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 190 – Leiria, Carvide

Foto 191 – Leiria, Monte Real

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 129/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 192 – Leiria, Vieira de Leiria

Foto 193 – Pombal, Guia

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 130/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 194 – Pombal, Guia

Foto 195 – Póvoa de Varzim, Largo da Lapa

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 131/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 196 – Póvoa de Varzìm. Casas com postigos de


iluminação do falso (R. António Graçia)

Foto 197 – Póvoa de Varzim. Na casa da direita


notam-se as traseiras do falso, erguido acima do
telhado da cozinha (R. Miguel Bombarda)

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 132/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 198 - Póvoa de Varzim, Rua da Lapa

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 133/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 199 – Póvoa de Varzim. À frente vê-se apenas


a parede alteada da fachada, enquanto atrás o
falso constitui já um andar com janelas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 134/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 200 – Póvoa de Varzim. O falso mais alto


implica uma fachada mais elevada, mas a casa
conserva as suas linhas fundamentais

Foto 201 – Póvoa de Varzim, Rua Miguel Bombarda

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 135/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 202 – Póvoa de Varzim. Velhas casas de


pescadores, com o telhado, por excepção, a uma só
água (Trav. da Caverneira)

Foto 203 – Póvoa de Varzim. Mirante recuado (Rua


da Assunção)

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 136/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 204 – Póvoa de Varzim

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 137/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

250 Interiormente, a sala, a cozinha e os quartos são soalhados, o


seu tecto é de forro, pregado aos caibros e acompanhando o
telhado, e há geralmente molduras nas guarnições de portas
e janelas. A cozinha é igual à das casas de alpendre que
descrevemos; neste tipo de casa, porém, talvez denotando
um maior desafogo e outro grau de evolução, a preparação
dos alimentos no compartimento onde se encontra o forno é
mais frequente que naquelas; esse compartimento serve
também de quarto de arrumações, e a sua colocação em
relação à casa é a mesma que nas casas de alpendre.
251 Os quartos são iluminados por postigos pequenos, e nos
exemplares antigos falta mesmo por vezes qualquer
abertura.
252 Estas casas, com o seu pátio idêntico ao das casas de
alpendre, constituem a quase totalidade das habitações
desde a Figueira da Foz até alturas de Monte Redondo,
passando a ser menos frequentes, e por vezes menos
definidas, daí para o Sul – precisamente onde começa a ver-
se a velha casa de alpendre atrás referida. Em inúmeros
casos, elas ficam reduzidas à fachada que corresponde à sala
e à cozinha, com a porta e as janelas na disposição
característica (foto 169).

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 138/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

253 Parecendo, na sua forma mais completa, corresponder a um


nível rural remediado, este tipo divulgou-se pela área litoral
em questão, talvez a partir da primeira metade do século
passado, mantendo o traço originário inalterável até há
poucos anos; só muito recentemente se têm introduzido
algumas modificações na sua planta típica. Destas, a mais
importante é sem dúvida a passagem da cozinha para a
retaguarda; em alguns casos ela passa mesmo para um corpo
estreito lançado para as traseiras, que era vulgar já em
exemplares antigos, abrigando a casa do forno62.
254 A par deste tipo, próprio de gente de nível económico
remediado, há casas mais pequenas e pobres, em cuja
fachada se rasga apenas uma porta e uma janela. Segundo F.
C. Monteiro, seria esta última a forma mais vulgar na área de
Lavos por 1916, e que se substituía por uma casa maior, logo
que a vida o permitia – casa que era sem dúvida a que
acabamos de estudar. Pela sua descrição63, nelas ficava para
a frente a «casa de fora», a toda a largura do edifício, e para
trás a cozinha e dois quartos pequeníssimos, sem janela, e
um deles com entrada pela própria cozinha; desta saía-se
para o pátio através da casa do forno. Cozinhas viradas para
a retaguarda da casa são vulgares em áreas mais para o Sul.
Na zona que aqui estudamos, embora raras, elas existem
também; e vêem-se ainda hoje, com efeito, muitas destas
casas pequenas, de porta e janela, com a chaminé saindo da
água posterior do telhado. É porém possível que a regra não
fosse tão geral como o Autor indica, pois no próprio desenho
que acompanha o artigo citado, das cinco casas
representadas, duas têm chaminé à frente.
255 Não obstante a grande diferença de aspectos que oferecem
os dois tipos de casa de que acabamos de falar, eles têm na
realidade pontos de semelhança fundamentais. Em ambos os
casos, trata-se, com efeito, de uma casa térrea –
característica fundamental –, com o corpo principal
composto por cozinha e sala, numa absoluta identidade dé
disposição. A esse corpo se encosta, também nos dois casos,
outro mais estreito, coberto pelo prolongamento do telhado,
que abriga quartos muito exíguos, iluminados por postigos

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 139/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

minúsculos, ou mesmo destituídos de qualquer abertura


para o exterior. Em ambos é semelhante a colocação da
«casa do forno» e a sua utilização ; e até, como é natural, o
mobiliário e arranjo interior da habitação.
256 É a diversa implantação desse corpo estreito que provoca a
principal diferença entre eles, evidenciada pelo
aparecimento do alpendre.
257 Ao contrário do que sucede com as chaminés das casas de
alpendre, que, como dissemos, se caracterizam pela sua
grande simplicidade, aquelas que guarnecem as casas do
último tipo que estudámos são no geral chaminés altas,
enriquecidas com molduras, continuando embora
normalmente a ter a fenda de saída tradicional; apenas as de
alguns exemplares mais antigos têm a simplicidade das
anteriores.
258 A afinidade entre as casas de alpendre e as casas antigas da
Murtosa a que aludimos, é acentuda em alguns raros casos
pela existência duma terceira água do telhado (foto 192). Em
Carriço (Pombal), há mesmo uma casa grande de telhado a
quatro águas, que reproduz de modo inesperado as casas
grandes da Murtosa, com duas colunas sustentando o frechai
do alpendre. Não temos porém, pelo menos por enquanto,
elementos que expliquem o facto.
259 Todos estes tipos de casas são formas locais de uma
categoria muito geral de casa térrea, feita de materiais
leves – adobo, tijolo ou taipa – que é a casa característica das
áreas mediterrâneas e confinantes, do nosso país (onde além
do mais não abunda a pedra) abrangendo o distrito de
Aveiro, a Gândara, a faixa litoral dos distritos de Coimbra e
Leiria, o Ribatejo, o Alentejo e o Algarve – excluindo
portanto a casa das regiões coimbrã e saloia – que, embora
mostrem sensíveis diferenças nestas diversas partes, se
podem considerar sem dúvida estreitamente aparentadas.

Zona do litoral nortenho


260 Ao longo do litoral nortenho, além de alguns dos mais
importantes portos de pesca do País, onde têm lugar as
formas fundamentais das actividades marítimas, encontram-

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 140/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

se pequenos povoados piscatórios, de aproveitamento local


sem projecção, que a cada passo se deparam em enseadas
mal abrigadas entre a penedia, ou, como sucede entre
Matosinhos e Vila do Conde, aglomerados de relativa
importância, geralmente ligados à aldeia que é a sua
duplicação rural, com o mesmo nome64, por uma estreita
estrada vicinal, serpeando entre campos baixos. Nos casos
mais antigos, definidos e exclusivos, os grupos piscatórios
concentram-se junto à praia, em bairros típicos, ou
dispersam-se na área rural ou urbana mais para o interior,
vendo-se então na praia apenas os barracos de abrigo e
arrecadação, habitação temporária deles ou dos cabaneiros
ou lavradores-sargaceiros da região. Em qualquer dos casos,
porém, a gente do mar constitui um estrato etnocultural à
parte dentro do conjunto provincial; nos centros mistos essa
segregação é nítida: as duas comunidades coexistem, mas
não se fundem nem se confundem, extremadas por uma
tenaz endogamia de grupo, de base económica: os
pescadores dentro da sua tradição de mareantes, com o
sentido agudo do mar e da pesca, a sua psicologia,
linguagem e glotologia, o seu traje, costumes, hábitos e
folclore peculiares, e a gente da terra dentro da sua tradição
agrícola. Esta divisão estende-se às formas materiais da
cultura, e particularmente aos tipos de povoamento e à
arquitectura ; nesses núcleos duplos dos arredores do Porto,
por exemplo, enquanto as casas do aglomerado rural são
típicas casas de lavoura da região, como as que atrás
descrevemos, as do aglomerado da praia (derivadas aliás
certamente, como veremos, dos barracos de abrigo que ali
existiam antes) são esguias e pequenas, de duas águas, a
empena para a rua com uma janela sob o cume, contíguas
umas às outras; e, entre elas, o conviver ruidoso e promíscuo
da gente do mar, sentada no chão, na rua, compondo redes,
fumando, olhando o mar, conversando em grupos na praia
ou na taberna.
261 Mas as próprias populações rurais deste sector conhecem
actividades directamente relacionadas com o mar; da foz do
rio Minho – e já mesmo na costa galega – até ao Sul do

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 141/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Douro, situa-se com efeito a zona principal da apanha do


sargaço para adubo que, menos caracterizada, tem também
lugar na costa de Peniche, Ericeira e Sesimbra. Esta
actividade parece ter originariamente sido – e ainda o é em
alguns lugares – faina de gente da terra, subsidiária da
lavoura, feita pelo agregado rural para consumo próprio;
essas gentes possuem na praia apenas os seus barracos de
abrigo e recolha, «dependências da casa de lavoura», na
expressão de Rocha Peixoto. Desde sempre, porém, os
estratos mais pobres, que, sem terras, eram obrigados a
lançar mão de modos de vida diversos, devem ter-se
dedicado à recolha de algas para a venda, certamente nos
locais onde os lavradores já o faziam, e onde tinham os seus
barracos. E são essas populações que, deslocando-se pouco a
pouco para as areias da beira-mar, onde a sua instalação era
fácil, parecem estar na base da formação de certos
aglomerados costeiros da região. Eles são de formação ou
desenvolvimento recentes, feitos visivelmente nos locais
onde a apanha das algas já se praticava, e às vezes mesmo,
como dissemos, à custa dos primitivos barracos da praia,
que subsistem como tais ou adaptados a residências
permanentes.
262 Estes barracos ora são de madeira, ora de pedra; pelo seu
lado, naqueles núcleos costeiros, sobreleva, conforme os
casos, a feição rural, ou coexistem ambas. E já tivemos
ocasião de referir que a madeira aparece, como regra, nos
aglomerados em que sobreleva a feição marítima, de
cabaneiros e pescadores pobres, que fazem dessas
construções a sua residência permanente65 ; ao passo que a
pedra existe nos barracos dos lavradores. A explicação desta
preferência não nos parece residir apenas, como também já
dissemos, na facilidade maior de se encontrar madeira nos
casos em que ela aparece, porque o pinhal está tão longe aí
como naqueles em que se usa de preferência a pedra, e na
Apúlia inclusivamente aparecem as duas categorias ao
mesmo tempo. Trata-se pois certamente de uma razão de
natureza cultural, e pode supor-se que cada um daqueles
casos corresponde a conceitos diferentes, próprios de duas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 142/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

categorias também diferentes de pessoas: a casa de pedra,


estável como casa de lavrador; a de madeira, como o barco,
para o pescador e cabaneiro pobre, que se acomoda com
uma construção improvisada, precária e descuidada, incerta,
provisória, quase volante, como a sua vida.
263 Esta regra – que de resto deverá ser considerada com
prudência – não é de aplicação geral: ao sul do Ave,
encontram-se aí apenas barracos de pedra, mesmo nos casos
mais antigos e referidos a gentes piscatórias ou cabaneiros.
Trata-se porém de uma sub-região especial, que também
noutros aspectos mostra características próprias e
diferentes.
264 Vê-se, assim, que alguns grupos piscatórios actuais bebem a
sua origem em gentes rurais pela progressiva especialização
de determinados estratos nesse sentido, à semelhança do
que se verificou nos primóridos da nacionalidade66 ; e
também que a actividade sargaceira mostra uma
importância grande no povoamento deste sector costeiro,
que tem lugar a partir dos. locais desertos onde ela antes se
exercia – e às vezes, até, a partir dos seus barracos de
recolha –, e que toma incremento graças a ela.
265 Toda a gente do mar desta área parece sofrer, pelo menos
actualmente, uma grande influência, profissional, étnica e
cultural, da Póvoa de Varzim, que é o centro piscatório mais
importante e mais rigorosamente individualizado do Norte
do País. Por isso, consideraremos em especial a casa poveira,
como caso particularmente caracterizado de arquitectura
piscatória.

4
Casas de pescadores da Póvoa de Varzim
266 A Póvoa de Varzim é, certamente, no seu estrato piscatório,
uma das unidades etnoculturais mais fortemente
individualizadas do País. A actividade específica dessa gente,
que se documenta desde épocas muito remotas, a sua
organização tradicional, os seus aspectos etnográficos e
temperamentais, o seu trajo e glotologia, etc., conferem-lhe
características altamente originais que ainda hoje a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 143/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

distinguem nitidamente dentro do conjunto das populações


de Entre-Douro-e-Minho.
267 Até princípios deste século, a grei poveira apresentava-se
como um núcleo à parte, uma aristocracia popular, definida
por um apuramento extremo de certas qualidades essenciais,
e conservada na pureza do seu sangue por um exclusivismo
cerrado e uma intransigente endogamia de grupo, a partir de
um substrato primitivo multissecular : gente rude, corajosa e
valente, de costumes puros e de fé ingénua, duma vitalidade
exuberante, caldeada na poderosa disciplina da sua profissão
uniforme e violenta, que a todos ligava por um fundo sentido
de solidariedade e fraternidade perante a luta, de respeito
perante o prestígio da idade e da experiência, e de orgulho
de casta perante a igualdade e a majestade do risco que
enfrentavam quotidianamente, nela se desenhou com
particular relevo entre nós o tipo humano do lobo do mar,
destemido e abnegado, que teve a sua expressão mais
acabada no « Cego do Maio » ; a sua vida era dura, proba e
austera, profundamente moldada pelos conceitos e padrões
culturais da classe, que absorviam e dominavam
inteiramente o pensar e o agir individuais.
268 Esta originalidade não podia deixar de se reflectir na
habitação tradicional do poveiro, ajustada a um
comportamento tão vigorosamente traçado. A casa é, entre
todos os aspectos ou elementos paisagísticos, aquele em que
mais visivelmente afloram os condicionalismos naturais,
históricos e sociais, psicológicos e culturais, de qualquer
grupo humano. Por isso, a casa poveira, além de possuir o
particular interesse de um factor de diferenciação dentro do
resto da província, interessa sobremaneira como expressão
palpável de um modo de ser e de viver muito peculiares, que,
nas suas tranformações sucessivas, acompanhou, de um
modo impressionante, a evolução da própria grei poveira e
da sua mentalidade, e o declínio das suas instituições.
269 É nessa base que aqui tentaremos o seu estudo, procurando
reconstituir as velhas formas primitivas de acordo com a
escassa documentação que existe sobre o assunto e os raros
vestígios que delas subsistem, e interpretando as

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 144/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

subsequentes modificações morfológicas em função de um


processo genético de natureza lógica e de fundo social.
270 O núcleo inicial do aglomerado varzinense parece ter-se
elaborado a partir de uma villa urbana fructuária e rústica
do período lusitano-romano, fundada talvez após a dispersão
castreja por qualquer magnate da vizinha cividade de
Terroso67, e da qual foram descobertos vestígios no subsolo
da vila actual no Alto de Martim Vaz e no troço inicial da
Rua da Junqueira68 ; e é presumível que «se se tivesse
podido continuar com a exploração arqueológica, por sob o
pavimento das ruas... da vila, por certo... se encontrariam
mais ruínas da antiquíssima Póvoa »69.
271 A mais antiga indicação toponímica que se conhece
relativamente a qualquer estabelecimento humano nesta
área está num diploma de 953, em que, a propósito das
confrontações da « Uilla de comité », segundo a demarcação
romana, se menciona a « Uilla euracini »70, sendo por isso
lícito supor-se que a designação corresponde ao primitivo
povoado luso-romano, e que este se manteve como tal até
fins do século x.
272 Os Livros de Linhagens referem uma doação feita pelo
conde D. Henrique a D. Guterre do «porto de Varazim »,
que, a ser exacta, «provaria a frequentação da baía poveira
antes da fundação da monarquia»71; o texto é porém
posterior aos factos relatados, e estes não se podem
considerar averiguados, parecendo apenas indicativos de
ermamento, nesse tempo à beira-mar, devido possivelmente
à grande actividade da pirataria sarracena72. Pelo seu lado,
as Inquirições de 1220, que dão conta de uma apreciável
indústria piscatória marítima por parte dos lavradores de
Argivai – cuja freguesia compreendia então o solo da Póvoa
actual –, Gesteira, Santa Cristina, etc.73, são omissas em
relação a Varazim ; mas essa actividade devia fazer-se
através deste porto, que não podia por isso ser deserto nem
todo ele de propriedade particular. De facto, em 1308
encontra-se aqui, pelo testemunho do foral de D. Dinis,
« uma pequena colmeia humana, em estado florescente, e
por isso com longa idade»74 ; e se se pensar que as

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 145/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

« Inquirições » de 1220 são apenas um extracto incompleto


das actas originais, é de admitir que a primeira avançada de
população marítima que veio fixar-se em Varazim, composta
de pescadores dispersos pelo interior de Argivai, se tenha
dado muito antes, talvez no tempo de D. Sancho I, que
fomentou a pesca por toda a costa em geral, e
nomeadamente na foz do Ave75.
273 O texto fundamental relativo a este assunto é, porém, na
verdade, o foral de D. Dinis, de 1308. Por ele, o soberano dá
o reguengo de Varazim de Jusaão aos 54 chefes de família
populares – alguns deles com apelidos ainda hoje em uso –
que lá habitavam, mediante o pagamento de 250 libras
anuais, permitindo-lhes que aí façam uma « pobra » ; e, por
uma cláusula tributária especial, vê-se que existia à data,
além da pesca da sardinha que já seria de uso corrente, uma
pequena navegação costeira, para importação de pão, vinho
e sal, cujo interesse fiscal deixa entrever longo exercício, e
que veio mais tarde a desaparecer, devido talvez à
predominância decisiva da pesca, determinada pelo afluxo
de mais pescadores comparoquianos argivalenses que se
seguiu à constituição da « pobra », atraídos pelas vantagens
do foral76.
274 « Após a outorga» deste diploma, « o rei doou os direitos
que estipulara, a seu filho bastardo Afonso Sanches e
mulher, D. Teresa Martins. Por intermédio deles... o
convento de Vila do Conde, fundado pelos dois, tomou-se
donatário da Póvoa, que continuou com administração
própria, chamando-se no reinado de D. Afonso IV : “ A
Bajlya da poboa nova de Varazim” »77. A Póvoa aparece
assim, no decurso do século xiv, como uma vila cujo
domínio útil (que se traduzia nos rendimentos da pesca) – e
em seguida o direito de exercer justiça e apelações –
pertencia ao Convento das Franciscanas ; mais tarde,
ouvindo as queixas dos seus súbditos « pobradores » contra
a jurisdição do mosteiro, D. Manuel I concede à Póvoa novo
foral, em 1514, estabelecendo a sua autonomia jurisdicional,
que veio a ter plena eficácia em 1537, pela incorporação de
Varazim à coroa e sua anexação à comarca do Porto78.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 146/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

275 A « pobra » primitiva parece ter-se situado um pouco para o


interior, a nascente79, e foi a partir daí que se deu a sua
expansão, logo nos primeiros tempos certamente para
poente, em direcção à praia, onde a gente do mar exercia as
suas actividades e onde se encontravam sem dúvida as
instalações próprias da sua indústria80. No decurso do século
xvi desenvolve-se num núcleo urbano na área que
corresponde hoje às imediações da matriz, o qual passa a ser
o centro municipal da vila, onde se agrupam as suas casas
nobres e se erguem, nos fins do mesmo século, os seus Paços
do Concelho81. Por outro lado, no Largo de S. Roque, funda-
se, também por essa altura, a pequena Capela de S. Roque ou
S. Tiago, para o serviço da gente que, como dissemos, já
então vivia certamente por aquelas paragens82. A vila
entretanto prospera e alarga-se, e, no século xviii,
intensifica-se o povoamento da faixa litoral costeira,
formando-se, sobre as areias que bordam a enseada, e em
especial para o Sul, um novo aglomerado que cresce
rapidamente, e onde se instala a população piscatória83. Este
movimento atinge a sua expressão mais acabada com a
construção, no último quartel desse século, da Igreja da
Lapa, para a qual se transfere, com a imagem, que se
encontrava na Capela de S. Roque, a Irmandade de Nossa
Senhora da Lapa, «amparo dos homens do mar » poveiros,
que inicialmente ali se havia instituído e que depois foi
substituída pela Nossa Senhora da Assunção84. Contudo,
nesta data, «ainda era vulgar», como outrora, «a residência
do pescador para o lado nascente da vila, e em lugares e ruas
que hoje são habitadas por outras classes »85. Em breve o
bairro piscatório se encontra nessa zona praticamente
fechada à penetração de elementos estranhos à grei, e os
pescadores desde então por ali se têm mantido, cedendo
pouco a pouco o lugar que ocupavam nos outros sectores às
demais classes de uma população já muito diferenciada.
276 A partir porém de meados do século passado, a feição
balnear da Póvoa e a influência de forasteiros que, em
número crescente e já pelo menos desde finais do século
xviii, ali acorrem e se instalam durante a época de Verão86,

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 147/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

tem determinado, ao mesmo tempo que a urbanização da


zona central da praia e a transformação da Rua da Junqueira
numa artéria comercial, a modificação progressiva e total
das casas dos pescadores que aí se encontravam, no sentido
da sua adaptação a vivendas de aluguer a famílias
veraneantes de fora, hotéis e pensões, casas de diversão e
comércio, etc. ; em breve o bairro norte passa a ser
aproveitado para iguais fins, e, acompanhando a decadência
das instituições e traços característicos tradicionais da
classe, parece começar a vez do próprio bairro sul.
277 Esse bairro foi-se constituindo, no século xviii, por extensos
arruamentos mais ou menos rectilíneos e paralelos uns aos
outros, orientados na direcção norte-sul, segundo a linha do
litoral, ligeiramente encurvada (des. 126) : no alto da duna,
face ao mar, a Rua da Cavemeira, e, atrás dela, a Rua do
Fieiro87 ; a meia altura, a Rua da Lapa; e a seguir, já em
baixo, a Rua da Areia88, a Rua de Trás dos Quintais, a Rua
dos Ferreiros89 e a Rua da Cordoaria. Estas ruas eram, como
hoje ainda, cortadas aqui e além por transversais
rectilíneas – às vezes apenas estreitos carreiros entre os
muros de dois prédios90 – que galgavam o areal em direcção
à praia. As casas dos pescadores, com os seus quintais
alongando-se para as traseiras, encontravam-se nas Ruas do
Fieiro, da Areia e dos Ferreiros, umas à face das outras, de
ambos os lados destas ruas; as ruas intermediárias, da Lapa,
de Trás dos Quintais e da Caverneira, mostravam, apenas os
muros do fundo dos quintais daquelas casas, com as suas
portas de tábuas munidas de toscos $« caramelhos » de pau.
No lado nascente da Rua da Cordoaria viam- – se também
casas; mas do lado oposto, havia só os muros dos quintais
das casas da Rua dos Ferreiros.
278 Este sistema de distribuição corresponde a zonas de
povoamento recente. Ruas paralelas, transversais
perpendiculares, preocupações de alinhamento; as casas são
pequenas, mas os terrenos são amplos, porque o solo
arenoso era de pouco valor; cada unidade imobiliária surge
de uma repartição de terrenos planificada, em talhões mais
ou menos iguais, lotados convencionalmente, e não em

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 148/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

função da lenta, irregular e caprichosa acção de factores


históricos.
Des. 126 – 1 – Rua da Caverneira ; 2 – Rua da
Assunção (antiga do Fieiro) ; 3 – Rua da Lapa; 4 –
Rua 31 de Janeiro (antiga da Areira) ; 5 – Rua de
Trás dos Quintais ; 6 – Rua de Miguel Bombarda
(antiga dos Ferreiros) ; 7 – Rua da Cordoaria ; 8 –
Igreja da Lapa

279 Temos notícia, em relação à casa primitiva do pescador


poveiro nos bairros norte e sul, da existência, ainda em
princípios deste século, de barracas ou casinholos térreos, de
madeira, servindo-lhe, como é a regra na classe, de
habitação e ao mesmo tempo de abrigo para a sua
aparelhagem profissional91, feitos de tábuas de pinho
pintadas a vermelhão92, dispostas horizontalmente, no
sistema de «escama», ou verticalmente, com as juntas
vedadas por estreitas réguas, e apoiadas num soco de pedras,
tosco, irregular e quase rente ao solo. As mais das vezes sem
janela, e apenas com uma porta de postigo à frente93, tais
casas, iguais e contíguas umas às outras, mostravam, para
esse lado, um beiral baixo, de telha caleira, que representava
o remate da água do telhado que para aí corria, com o
aspecto de uma cobertura única e a mesma para todas elas.
280 Extremamente pobres, acanhadas, e mal-amanhadas, essas
casas compunham-se interiormente, na sua maioria, de uma
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 149/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

só divisão94 sem soalho e de telha-vã, sem chaminé, onde


toda a família dormia conjuntamente, em camas de bancos
com colchões de palha95, e onde também se cozinhava, num
espaço reservado para a lareira, e se guardavam cordames,
redes, cortiças, velas e demais aprestos, que se amontoavam
aos cantos ou se penduravam do travejamento96; quando se
acendia o lume, o fumo espalhava-se por toda a casa,
escapando-se apenas pela porta e por entre as telhas;
quando chovia, passava-se o tempo a mudar de poiso, à
procura de sítio onde não pingasse. A exiguidade de espaço
disponível e a deficiência de condições de alojamento
obrigavam a que grande parte dos trabalhos caseiros,
nomeadamente os que diziam respeito à actividade
piscatória – feitura ou compostura e « encasque » de redes,
etc. –, tivesse lugar na rua, em frente à porta de entrada, que
geralmente se conservava aberta. De facto, a rua, sob muitos
aspectos, era o complemento da casa, e a vida diária
passava-se à vista de todos97 ; mas, mais do que a
promiscuidade de vizinhança, esse facto exprimia
principalmente a unidade, a solidariedade e o sentido
comunitário da vida do grupo98, ao mesmo tempo que a sua
pobreza.
281 A existência de construções de madeira é corrente em todo o
litoral, constituindo mesmo até não há muito tempo o tipo
normal de casa da beira-mar, que provém de tempos muito
remotos99. Na Póvoa de Varzim, tais casas – de que já
nenhum exemplar existe – representam, ao mesmo tempo
que certamente uma forma arcaica e cronologicamente
primária, um nível económico definido: as velhas casas de
madeira não seriam sempre necessariamente as casas mais
antigas do pescador da Póvoa, mas sim aquelas que,
reproduzindo a mais antiga tradição, eram principalmente
as mais pobres, elementares e baratas, e, como tais, coevas
ou até por vezes mais recentes do que outras, de pedra e cal,
que com elas alternavam naquelas paragens, e que
progressivamente as foram substituindo100.
282 É destas últimas, que também até princípios deste século
obedeciam a um tipo uniforme101, que passamos agora a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 150/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

ocupar-nos; e sobre elas nos deteremos com minúcia, não só


por serem aquelas que se nos afiguram mais representativas
do viver poveiro característico, mas também porque são elas
que se encontram na origem das várias formas que em
seguida apresenta a casa da Póvoa em geral.
283 Como as primeiras, estas casas eram térreas, baixas e
pequenas, com telhado de telha caleira portuguesa, de duas
águas desiguais, tendo as empenas nas paredes laterais
divisórias, e sendo a água das traseiras a mais comprida.
Elas situavam-se do mesmo modo à face da rua, para onde
mostravam uma fachada nua e pobre, geralmente caiada a
branco, muitas apenas com a porta de entrada, outras com a
porta e uma janela, outras ainda, mais raras, com a porta
entre duas janelas, todas elas com os madeiramentos –
portas, postigos e caixilhos – pintados a vermelhão ou, por
vezes, a cores mais vivas102 (fotos 201 e 202). O beiral, em
alguns casos um pouco saliente, apoiava-se sobre o lintel
destas aberturas, e era igualmente o remate da água do
telhado que corria para a frente da casa. Com certa
frequência, o pavimento da casa ficava um pouco abaixo do
nível da rua: a fachada era então extremamente baixa, e as
pessoas, para entrarem, tinham de se curvar e descer um
degrau, que fazia de soleira103.
284 A porta, de uma só folha, era de tábuas lisas e macheadas,
ligadas por duas travessas onde se firmavam as dobradiças,
e, na sua parte superior, abria-se um postigo largo com uma
simples portada móvel sem vidros, que, quando não havia
janela, era o único rasgo de iluminação à frente da casa104.
(Ver des. 130, exterior).
285 Estas casas mediam cerca de 5 a 6 metros de frente, por 10 a
12 de fundo105 e a parede da frente pouco passava dos 2
metros de altura. Constavam apenas de duas divisões
estruturais: a sala, à frente, abrindo directamente para a rua,
e a cozinha, nas traseiras, tendo também, como único rasgo
exterior, uma porta semelhante à da entrada, igualmente de
postigo, que dava para o « quintal ».
286 A fachada das traseiras, mais baixa que a da frente, era,
como ela, nua e simples: uma parede lisa e pouco cuidada, a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 151/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

porta da cozinha, e, logo acima dela, um pequeno beiral


rematando a longa água do telhado, visível desse lado; o
pavimento ficava aí muitas vezes abaixo do nível do quintal,
e a soleira da porta da cozinha fazia de degrau. O quintal era
uma estreita faixa de terreno arenoso todo murado, da
largura do prédio, que se estendia até à rua paralela àquela
onde se situava a frente da casa, e para a qual comunicava
por uma porta, com um tosco « caramelho » de madeira, de
punho circular106.
287 As paredes do prédio eram de alvenaria de granito, com
cerca de 60 cm de espessura, grosseiramente rebocadas e
caiadas, exterior e interiormente107. A divisória entre a sala e
a cozinha era as mais das vezes um muro de pedra igual aos
outros; mas em muitos casos era uma parede de tabique
grosseiramente revestida e caiada. Aí se abria uma porta de
comunicação, tosca e simples como as portas exteriores, mas
sem postigo.
288 As portas exteriores, além da chave, tinham em baixo
«trinques» de madeira, de punho comprido, que fechavam
por dentro, e à altura normal, « caramelhos » (ver des. 129)
com que se podiam abrir do exterior. As janelas, quando
existiam, tinham portadas lisas, do mesmo modelo primitivo
das portas.
289 A cozinha, muitas vezes, em virtude da topografia local,
ficava num nível sensivelmente inferior ao da sala, sendo
frequentemente necessário descerem- – se um ou vários
degraus para se passar desta divisão para aquela.
290 O chão da cozinha era de terra, enquanto o da sala parece ter
sido sempre soalho108.
291 Nem a sala nem a cozinha tinham tecto, e, interiormente, a
armação do telhado estava à vista: a trave do cume, no alto,
as « linhas » – muitas vezes simples troncos descascados109
– a meia altura, e, sobre elas, os caibros e as tábuas de forro
em que assentavam as telhas; mas enquanto na cozinha
estas tábuas eram espaçadas, deixando nos intervalos as
telhas a descoberto, na sala o forro era contínuo, no sistema
de «escama», em que um dos lados cavalga ligeiramente a
tábua seguinte, vedando inteiramente a vista das telhas.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 152/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Raras vezes a trave do cume se encontrava sobre a parede


divisória entre a sala e a cozinha; pelo contrário, geralmente
ela ficava sobre a sala, não raro mesmo a meio dela. A
« linha » das traseiras é que muitas vezes assentava sobre
aquela divisória; mas outras vezes, as duas « linhas »,
dispostas simetricamente de cada lado da trave do cume,
viam-se ainda sobre a sala. Nestes casos, a água das traseiras
do telhado era muito maior, e vinha sensivelmente mais
abaixo que a da frente. Os caibros da cozinha, embora no
prolongamento dos da sala, partiam da parede divisória, e
apoiavam-se a meia distância em outras traves de « linha ».
292 O elemento característico e verdadeiramente original destas
casas era a armação das « camaretas », por vezes com o
«camarote» a meio, ocupando de lés a lés a parede lateral da
sala, correspondente a uma das empenas. As « camaretas »
são duas alcovas abertas, «com a largura precisa para armar
os bancos e colocar sobre eles as tábuas que, com o colchão e
o travesseiro, cheio de palha solta, constituem a cama do
Poveiro. No camarote do centro fechado (guardava) o
Poveiro as suas melhores roupas »110, e também redes,
aprestos de pesca, e outros objectos. Esta armação firmava-
se toda ela, à frente, num barrote horizontal com as
extremidades fixadas às paredes do topo – a divisória da
cozinha e a que dá para a rua –, a cerca de 1,50 m da parede
lateral, e à altura de cerca de 2 m111 ; este barrote apoiava-se
noutros barrotes dispostos a prumo nos limites dos rasgos
das « camaretas ». A armação, à frente e nas divisórias entre
as camaretas ou entre estas e o camarote, era toda de
madeira112, de tábuas à vista macheadas e pintadas, ou
noutros casos de tabique caiado a branco por dentro e por
fora, e com as molduras de cor113 ; ela tinha um tejadilho
igualmente de tábuas à vista, macheadas e caiadas, assentes
sobre curtos caibros cravados na parede do fundo e apoiados
no barrote corrido da frente (des. 127).
293 Entre este tejadilho e o travejamento do telhado da casa,
com a sua maior altura no topo da empena, medeava um
desvão à vista da sala, à guisa de sótão aberto; nele se
arrumavam redes, cestos, lenha, e, quando a família era

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 153/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

numerosa, aí dormiam mesmo pessoas, geralmente os filhos


da casa114. A esse sótão aberto ascendia-se por um escadote
de madeira, móvel, que, para servir, se apoiava no barrote
frontal da armação115. « As paredes das camaretas estão
cobertas com migalheiros e quadros com imagens dos santos
das suas devoções. À cabeceira o ramo de oliveira benzido no
dia de Ramos »116.
294 Era na sala, tal como a descrevemos, que o Poveiro dormia,
comia, trabalhava, fazia « serões », e guardava as redes,
aprestos marítimos, roupas e demais objectos117. Além das
camaretas e do camarote, via-se ainda aí o paneiro, espé cie
de mesa ou prateleira de tábuas assentes em dois paus
horizontais cravados atrás na parede, e apoiados em duas
pernas à frente, onde se pousavam as redes; caixas ou
caixões «com os arranjos domésticos, servindo também de
bancos » ; por vezes uma cómoda ou uma mesa ; e,
dependurados nas traves, o balaio – tábua suspensa por
cordas, pelas duas extremidades118, onde se colocava o pão, a
cesta, as agulhas de marear e fazer rede – o bicheiro para os
polvos, a roupa de oleado, o ganha-pão ou rodafole para a
apanha do sargaço, etc. Debaixo das camas, guardavam, em
caixas, o peixe seco, e, às vezes, o berço dos filhos e panais
velhos119. No bom tempo, geralmente a porta da casa ficava
aberta durante o dia, por costume e para deixar entrar mais
luz ; mas nos dias chuvosos ela fechava-se, e apenas o
postigo aberto iluminava a sala. À noite «a casa é iluminada
pela luz duma mecha de pano de algodão torcida, envolvida
em... graixa vertida numa candeia bastante primitiva...
dependurada num mancebo »120.
Des. 127

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 154/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 128 Camaretas constituidas por um simples


tapamento de madeira

295 Na cozinha encontrava-se a um canto o forno do pão, de


tijolo121, ao lado da lareira, alta e encostada à parede, e, a
seguir, a instalação para o « encascar » das redes: sobre uma
fornalha de pedra – o forno –, uma caldeira de cobre, ligada
por tubagem adequada a uma comprida masseira de
madeira ou, mais raramente, a um pio de pedra. Dispostas
em roda, viam-se ainda a masseira do pão, o caixão ou arca
onde se guardava o milho, um alguidar para lavar a louça
pousado num banco ou num caixote, ao lado do escudeleiro

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 155/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

ou prateleira para os pratos, as tinas onde se salgava o


peixe122, etc. (des. 129).
Des. 129 – 1 – Forno, lareira e instalação para o
encasque das redes : a – lar ; b – boca do forno; c –
lareira do forno ; d – caldeira; e – forno ; f –
masseira do encasque ; 2 – chaminé ; 3 –
caramelhos ; 4 – escudeleiro

296 Estas cozinhas tinham, sobre a lareira e o forno, uma


chaminé rudimentar, constituída por um simples buraco no
telhado, rodeado superiormente por telha ao alto, e
inclinadas de forma a encostar os topos, saindo o fumo pelas
duas extremidades.
297 O « quintal » era um logradoiro da casa para trabalhos
acessórios da pesca: nele se via um pio de pedra para
« adoçar » as redes, ou seja, um tanque onde elas se
demolhavam em água doce antes da operação do
« encasque », remos, mastros e vergas, o tanque de lavar a
roupa, por vezes um poço, etc.
298 Estas casas, que cronologicamente correspondem ao período
do apogeu da vida poveira característica, e representam
certamente um dos elementos basilares da poderosa tradição
local, eram, apesar de inteiramente ao serviço de gente
muito prolífica e cuja profissão exclusiva implicava

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 156/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

aparelhagem de vulto, de dimensões reduzidas e com


acomodações precárias e inconvenientes. Com frequência,
várias gerações da mesma família – o velho casal, um seu
filho ou filha casados, porventura outros filhos ou filhas
solteiras ou viúvas, e os filhos pequenos desta segunda
geração – habitavam sob o mesmo tecto123, dormindo todas
as pessoas na sala única, com o recato apenas que permitiam
as camaretas124 ; e embora a conduta e a mentalidade do
Poveiro de então fossem regidas pela moral estrita do
« respeito »125, era por vezes difícil evitar uma certa
pormiscuidade.
299 Estas circunstâncias, aliadas às razões de ordem geral que
por toda a parte explicam o declínio das culturas tradicionais
particulares, determinaram aqui, a partir do final do século
passado126, o abandono do plano que vimos descrevendo e a
modificação das velhas casas de camaretas então existentes
no sentido do seu melhor ajustamento às necessidades dos
seus habitantes e às novas noções e condições de vida social
e de convívio que então surgem. A casa muda quando a
classe rompe os seus quadros rígidos, escolhe profissões
diversas, se diferencia economicamente em vários níveis,
adopta princípios e modos de viver estranhos – quando,
numa palavra, a força da tradição cede perante as
considerações utilitárias e o nivelamento cultural do mundo
moderno.
300 Essas modificações, que, desde o simples aumento das
dimensões da casa até à sua divisão interior em vários
compartimentos e à criação dum andar superior, conduzem
à casa actual da Póvoa, multiforme e multifuncional, sem
características definidas, que serve para qualquer classe e
que obedece a planos muito variados e de evidente invenção
pessoal, deram-se porém visivelmente a partir da casa
primitiva, segundo uma evolução lógica que se documenta
numa grande variedade de formas intermediárias, e que
representa o desenvolvimento progressivo de alguns
elementos e conceitos fundamentais daquela casa, em que as
deficiências que mencionámos eram mais sensíveis.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 157/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

301 São essas formas que passamos a descrever, como gradações


sucessivas de um processo genético único127, indicando
especialmente os elementos que o determinaram –
nomeadamente a armação das camaretas e o desvão de
arrumos sobre elas.

A) Evolução da armação das camaretas :


302 A primeira e mais importante modificação que sofre o plano
primitivo é a supressão da armação das camaretas, que
marca o momento da ruptura com a tradição local, e a
implantação de novos conceitos. Aquela armação é
removida, substituindo-se por um tabique ou, por vezes, por
um tapamento de madeira macheada e pintada128, que, como
ela, corre de lés a lés ao longo de uma das paredes laterais da
sala, isolando dois quartos fechados cujas portas respectivas
abrem para esta129. Os quartos, embora pequenos, são
sensivelmente maiores que as anteriores camaretas, porque,
além de terem aumentado em profundidade, ganharam
lateralmente o espaço antes ocupado pelo camarote, quando
este existia. Em cada um deles se vê agora, muitas vezes,
uma cómoda ou uma mesa, e cadeiras.
303 Estas casas, agora geralmente pintadas a cores variadas,
mostram sobre a rua uma fachada de beiral baixo, com uma
porta e uma janela, ou uma porta entre duas janelas. A porta
abre sempre para a sala, correspondendo no primeiro caso a
janela ao quarto, e no segundo, uma ao quarto e outra à sala.
O quarto de trás é sempre interior, e recebe apenas a luz
escassa da bandeira da porta ou de qualquer postigo
envidraçado que às vezes existe no tabique entre os dois
quartos.
304 Os quartos têm sempre tecto horizontal, que primeiramente
era o próprio tejadilho de madeira das camaretas, e que
depois passou a ser de estuque; pelo contrário, a sala é, como
antes, sem tecto, com o madeiramento do telhado à vista.
Nas mais simples destas casas, por cima do tecto dos
quartos, o desvão entre ele e a armação do telhado continua
aberto para a sala, tal como acontecia com as camaretas ;
nele se arrumam igualmente redes e aparelhos de pesca, por

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 158/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

isso se vê sempre, em qualquer canto da casa, uma escada de


encostar130. Noutros casos, o tabique frontal dos quartos
prolongou-se para acima até ao telhado, entaipando o
desvão, que fica sem serventia131 (des. 130). A cozinha, a sua
localização e arranjo interno e externo mantêm-se sem
alteração.
Des. 130 – Planta de uma casa da Rua de 31 de
Janeiro

B) Evolução do desvão de arrumos sobre o


tejadilho das camaretas :
305 Tendo em vista o aumento de espaço para arrecadações, a
sala recobre-se de tecto horizontal, mais alto ou mais baixo,
a princípio certamente de madeira, mas agora na maioria
dos casos estucado, que é o prolongamento do tejadilho das
camaretas, e que, ao mesmo tempo que esconde a armação
do telhado, constitui, pelo lado de cima, um pavimento com
a superfície igual à área conjunta da sala e dos quartos.
Compreendido entre esse pavimento e armação do telhado,
surge assim o esboço dum segundo piso, que serve de sótão
de arrumos e a que se dá o nome de « falso », e ao qual se
ascende por uma escada fixa, em dois lanços, que
geralmente sobe encostada à parede divisória entre a sala e a
cozinha, e nasce da sala a seguir à porta do quarto interior,
que lhe aproveita o vão. É o desenvolvimento e
transformação progressiva desse sótão num verdadeiro

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 159/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

andar superior sobre a sala132 que explicam todas as demais


formas que foi desde então tomando a casa popular poveira.
306 1) Num primeiro estádio desta evolução, o « falso » enxerta-
se nas casas primitivas, pela construção apenas do tecto da
sala e da escada de acesso, sem impor alterações estruturais;
mantém-se a altura das paredes e o mesmo telhado, a sala
fica com um tecto mais baixo, e o « falso » aproveita
simplesmente o vão existente, achatado sob o telhado, sem
quaisquer divisões nem janelas ou postigos (des. 131-1).
307 2) Num estádio a seguir, o « falso » tende a ganhar altura, e
procura soluções de iluminação. Exteriormente a casa alteia
a sua estrutura clássica: embora se possa ainda considerar
térrea, mostra agora sobre a rua uma fachada mais elevada;
o beiral já não assenta sobre as padieiras da porta e das
janelas, tal como sucedia outrora ; entre umas e outras
medeia uma parede lisa, que por vezes atinge uma altura
considerável. Esta maior altura, interiormente, reflecte-se
apenas no pé-direito do falso: o tecto da sala e dos quartos
mantém-se baixo, o mais possível, ao nível da padieira da
porta de entrada.
308 Para o lado das traseiras, esta casa apresenta aspectos
variados, e, por vezes, formas complexas:

a. O falso fica apenas mais alto, mas a casa, à parte a


frontaria mais elevada, conserva as suas linhas
fundamentais (des. 131-II).
b. O telhado da casa quebra-se, e separam-se os telhados
do falso e da cozinha, que se tomam independentes. A
parede divisória entre a sala e a cozinha eleva-se e
atinge a altura dum andar superior; sobre o falso fica
um telhado de duas águas marcadamente desiguais, a
da frente, muito alongada, nascendo no beiral alto, a
das traseiras, muito curta, terminando naquela parede,
ao nível do andar de cima. O telhado da cozinha nasce
muito abaixo, duma altura conveniente nessa parede
divisória. Entre o beiral da água traseira do falso e o
nascimento do telhado da cozinha, há portanto um
grande desnível vertical, constituído pelo
prolongamento da parede divisória entre a sala e a
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 160/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

cozinha, que aí passa a ser uma parede exterior,


geralmente resvestida de chapa zincada, ou mais
raramente de telhas postas ao alto, e onde se rasgam
uma ou duas janelas, que iluminam francamente o falso
(des. 131-III).

Des. 131

309 O falso passou assim a ser um andar, embora, nesta fase,


sem quaisquer divisões ; aí se arrumam redes, cortiças,
aprestos avultados, etc., aí se podem realizar certos
trabalhos domésticos ou profissionais ; e, quando é preciso,
«dorme lá a canalha». É típico o aspecto exterior destas
casas – que se podem considerar a forma intermédia mais
frequente das casas de pescadores da Póvoa, especialmente
nas ruas do bairro sul – térreas à frente mas com o beiral
alto, uma longa água frontal, e nas traseiras um verdadeiro
andar que corresponde ao falso, e que, erguido acima da
altura em que nasce o telhado da cozinha, tem o aspecto
duma água-furtada especial da largura total da casa133 (fotos
197 e 199).
310 3) Na mesma linha de desenvolvimento do falso, aparecem
seguidamente casas em que, naquela parede elevada da
fachada frontal, entre as padieiras da porta e das janelas e o
beiral do telhado, se rasga um postigo ou pequeno janelo
quadrangular ou redondo, para iluminação do falso, que
indica já, nessa fachada, a existência de um piso superior134
(foto 196).
311 4) Noutras casas ergue-se na mesma fachada um «mirante»,
com a altura normal de um andar; este mirante, com a sua
janela, não ocupa a largura toda da casa, mas apenas um
sector a meio, interrompendo o beiral, que subsiste, de cada
lado, à altura do rés-do-chão135.
312 Outra solução, relativamente frequente como a anterior, é a
de uma pequena construção a meio da largura do telhado,
um pouco recuada do beiral, e cujas duas águas se inserem
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 161/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

na água frontal da casa136 (foto 203). Esta solução, que é


muito corrente em todo o Noroeste do País, tem aqui o
interesse de patentear a resistência ao abandono puro e
simples da ideia da casa térrea, aparecendo o andar como
que disfarçado sob as formas antigas. Raríssimas vezes
aparece ainda outra solução, em que, recuada igualmente do
beiral, se levanta uma parede a toda a largura do prédio, de
tabique forrado a chapa ou a telha, onde se abrem duas
janelas137 (foto 198).
313 Muitas outras formas se encontram, em que as ideias
mestras que estão na base desta evolução afloram em
combinações diversas e especiais, documentando com toda a
evidência a unidade do processo genético que apontámos.
Assim, numa casa de esquina, no Largo da Lapa, vemos, na
fachada frontal, a parede acima do lintel da porta e janelas,
lisa e sem aberturas, mas invulgarmente elevada – de facto,
da altura de um verdadeiro andar – ; na realidade, ela
corresponde a esse verdadeiro andar, que, na empena
lateral, tem mesmo uma janela normal, ao nível devido (foto
195). É portanto já uma casa de andar, que contudo, na
fachada frontal, se apresenta ainda como térrea no que
respeita a rasgos, em obediência a um estilo tradicional. E o
mesmo se pode dizer do sentido dos «mirantes» recuados,
de que atrás nos ocupámos.
314 Deve-se notar, como dissemos, que em todos estes tipos de
casa perdura a cozinha das velhas casas de camaretas, térrea,
de telha-vã, a seguir à sala e voltada para as traseiras. A falta
de espaço, contudo, tem obrigado ultimamente a construir
um pequeno acrescento com esse fim, anexo e erguido
longitudinalmente a um lado do quintal.
315 5) Finalmente o falso transforma-se num verdadeiro piso
superior, e a casa passa a ser de rés-do-chão e andar, este
último geralmente com duas janelas.
316 O falso, de entrada recinto sem divisões e utilizado para
arrumação e trabalho, passa a ter utilização mais
diferenciada. Vemos primeiro surgirem divisórias de
tabuinha, provisórias, que isolam um compartimento ou
dois, servindo de quartos, situados ora sob o esconso do

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 162/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

falso, à frente da casa, ora mais raramente nas traseiras,


enquanto o restante espaço livre continua a ser utilizado
para o fim anterior. Essas divisórias tendem a tomar-se
fixas, em tabique, e o falso aparece finalmente, em muitas
casas actuais, arbitrariamente dividido, conservando apenas
dos conceitos antigos um recinto largo e aberto, para as
traseiras, onde se trabalha; e isto sucede mesmo, muitas
vezes, nas casas que já têm um franco andar sobre a rua.
317 Nas Cachinas, zona de povoamento recente138, tributária, sob
o ponto populacional e cultural, da Póvoa de Varzim, e
mesmo, mais especialmente, da gente do bairro sul, que,
emergindo das dunas que afloram sob os seus armamentos,
elas prolongam com a Poça da Barca de permeio, as casas
pertencem, na sua quase totalidade, e com certos caracteres
diversamente acentuados, à categoria que definimos atrás
sob os números B-2-a, isto é : casas que exteriormente
mostram sobre a rua uma fachada térrea mas alta, na sua
maioria com uma porta e uma janela, e com uma parede lisa
mas que por vezes atinge uma altura considerável, mediando
entre as padieiras desses rasgos e o beiral. Interiormente,
essa maior altura reflecte-se apenas no pé-direito do
« falso », que não tem qualquer janela ou postigo: o tecto da
sala e dos quartos é baixo, ao nível da porta de entrada. O
telhado é de duas águas simples, ficando as empenas nas
paredes laterais divisórias das casas contíguas. É típico o
aspecto de longas séries de casas todas de idênticas
proporções, com um telhado aparentemente único onde
apenas se adivinham as secções das paredes divisórias sob as
telhas, e com as fachadas diversificadas por uma grande
variedade de cores garridas, cada uma delas realçada ainda
por barras e madeiramentos pintados de cor diferente.
318 Os caracteres especiais a que aludimos dizem respeito à
forma da sala, que, comparada com a das casas da Póvoa do
mesmo tipo, se apresenta aqui comprida e estreita, reduzida
quase às proporções de um corredor. Informam-nos de que
nunca aqui foram usadas « camaretas ».
319 Na Poça da Barca, a mesma forma predomina, mas aí já se
encontram, ao mesmo tempo que os tipos anteriores, casas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 163/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

do tipo B-2-b, em que o « falso » é iluminado pelas janelas


de um verdadeiro andar superior, em águas-furtadas sobre
as traseiras, que se eleva acima do telhado da cozinha; e
além desse, também numerosas casas de mirante a meio da
fachada (tipo B-4), casas de rés-de-chão e andar, com duas
janelas de frente (tipo B-5), e, de um modo geral, todas as
demais variedades das casas típicas da Póvoa vizinha.
320 Vemos assim que a habitação primitiva da Póvoa foi
transplantada para as Cachinas numa fase intermédia e já
adiantada da sua evolução, em que o « falso » originário se
definira num andar rudimentar de arrumos, sem que porém
o edifício perdesse as características exteriores aparentes de
uma casa térrea, e que nesse tipo ela se fixou e se
generalizou. Na Poça da Barca, mais próxima da vila e em
contacto permanente com ela, a casa não se fixou nessa fase
intermédia, e acompanhou a evolução ulterior da casa
poveira, adoptando mesmo as soluções mais recentes.
321 O sistema geral das alcovas, que compreende várias
categorias, entre as quais se podem incluir as « camaretas »
poveiras, encontra-se, sob diversas formas, em muitas outras
áreas, países e épocas. Além de alcovas-móveis,
distinguiremos as alcovas-armações, de cama fixa ou de
cama móvel, e as alcovas-cubículos, com espaço apenas para
a cama, ou formando um pequeno quarto interior. As
alcovas-móveis são peças especiais de mobiliário, camas
fechadas que se podem deslocar e colocar em qualquer parte
da casa; as alcovas-cubículos apresentam-se como pequenos
recantos ou quartos interiores, com paredes divisórias
argamassadas, que abrem para qualquer dependência, e que
foram previstos e incluídos na estrutura fundamental da
casa; as alcovas-armações consistem numa peça fixa,
montada em barrotes e traves de madeira cravados nas
paredes e pavimento duma sala, mas que não fazem parte da
estrutura da casa; estas últimas podem ainda ser, como
dissemos, de cama fixa ou de cama móvel, conforme a cama
ou catre faz parte da própria armação, ou esta apenas abriga
o espaço onde se instala uma cama móvel e independente.
As « camaretas » poveiras, na sua forma mais simples e que

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 164/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

se nos afigura mais primitiva, parecem sem dúvida dever


incluir-se na categoria das alcovas-armações, de cama
móvel. Contudo alguns exemplares podem considerar-se
como formas intermediárias entre essa categoria e a das
alcovas-cubículos, com acentuação da primeira feição, uma
vez que, nesses casos, a armação, embora não faça parte da
estrutura primordial da casa, forma recantos com paredes de
argamassa, que têm muitas características de pequenos
quartos abertos.
322 Em Portugal, além das « camaretas » poveiras, conhecemos
outros casos que se podem também incluir nessa categoria
intermediária entre as alcovas-armações de cama móvel, e as
alcovas-cubículos, com espaço apenas para a cama. No
concelho de Celorico de Basto, por exemplo, existe uma
velha casa139 que, a um lado da sala, mostra uma armação de
madeira formando duas alcovas contíguas, separadas por
um tapamento de tábuas, cada uma das quais com as
dimensões exactas de uma cama. Os prumos de castanho,
cravados no soalho nas extremidades e a meio (este
recobrindo a vista do tapamento), formam pilastras, com
molduras decorativas nas bases e capitéis: a trave do alto,
fixa às paredes laterais e corrida de lés a lés, a toda a largura
da sala, tem, do mesmo modo, belos frisos ornamentais. O
tecto da sala é de castanho, em forma de masseira, enquanto
que o do recanto das alcovas ao lado é horizontal, contíguo,
mas independente daquele. O conjunto apresenta-se, para lá
do seu aspecto funcional, como um motivo de luxo, e, mais
acentuadamente do que as camaretas poveiras, é uma forma
intermediária entre um elemento estrutural da casa e uma
armação.
323 Por outro lado, os dois quartos, que, na Póvoa, após a
supressão da armação das camaretas, vieram ocupar o lugar
destas últimas, pertencem sem dúvida à categoria das
alcovas-cubículos, integradas na estrutura da casa,
geralmente com o aspecto de pequenos quartos dando para a
sala. E assim, a evolução da casa poveira, que atrás
documentámos, representa, no que se refere à substituição
das « camaretas » pelos dois pequenos quartos, um processo

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 165/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

de transformação de um tipo de alcova-armação de cama


móvel numa alcova-cubículo. Este último sistema encontra-
se, em termos semelhantes, em várias outras áreas
portuguesas, nomeadamente em certos, tipos de casas da
Maia e de Esposende, que noutro lugar descrevemos140.

Casas de madeira
324 No litoral central, encontramos à beira-mar os palheiros de
madeira, de diversos tipos.
325 Embora no interior poucos vestígios restem de casas de
madeira ou materiais vegetais, elas devem ter sido outrora
abundantes por todo o País, conforme se depreende da
profusão com que se encontra o topónimo « cabanas » ou
seus derivados. No litoral, porém, elas são ainda hoje
correntes, e até há menos de um século, constituíam a regra
geral em vários sectores costeiros.
326 Ao norte do Douro, a construção de madeira é representada
sobretudo pelos barracos de abrigo e habitação temporária
de pescadores, cabaneiros e sargaceiros, a que já aludimos,
progressivamente adaptados a habitações permanentes e
substituídos por casas de pedra, e pontos de partida de
novas póvoas marítimas incipientes.
327 Além-Douro, na faixa arenosa compreendida entre este rio e
as «arribas» do Sul, a construção de madeira define-se e
avulta, e surge o «palheiro» de tabuado, de planta
rectangular, assente sobre pilares de pedra, ou, onde é
sensível o movimento das dunas, em estacaria, com telhados
de duas águas por vezes muito inclinadas, de empena sobre a
rua, outrora cobertos de colmo ou estorno e, hoje, de telha.
O tabuado, quase sempre pintado a vermelhão, é disposto
ora horizontal ora verticalmente, e neste caso com
frequência as juntas são tomadas com ripes, também
pintadas a branco ou outra cor; as molduras e caixilharias
destacam-se, pintadas do mesmo modo a branco ou azul,
contra o fundo escuro das casas.
328 Quando o edifício se ergue sobre estacaria, mais ou menos
alta, o espaço térreo sob a casa é geralmente aproveitado

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 166/229
24/06/2023, 13:18 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

para arrumação de aprestos marítimos. Muitas vezes, velhos


barcos fora de uso servem para este mesmo fim.
329 Algumas destas casas, mormente em determinadas
localidades – Esmoriz, Palheiros de Mira, Costa de Lavos,
etc. – têm dois ou mais andares acima da estacaria; elas
mostram na fachada uma varanda também de pau, muitas
vezes corrida, para onde dá a porta de entrada ao nível do
andar; esta varanda não raro é descoberta, mas geralmente
fica abrigada sob uma pala saliente do telhado frontal, e é a
ela que ascende a escada exterior, que parte da rua.
330 Nestas casas de andar, o térreo é por vezes fechado com
paredes, e frequentemente estas – sobretudo em casos mais
recentes – são de pedra; o rés-do-chão que assim se obtém,
que leva o nome de casa de baixo (Costa de Lavos), utiliza-se
do mesmo modo para arrumos diversos. A casa é toda
soalhada, e a parte de habitação – compreendendo a
cozinha, que faz também de entrada e sala comum – e os
quartos situam-se em cima.
331 Ao lado das casas com mais de um andar existem, nos níveis
mais pobres, casas pequenas de um só piso, a que na Costa
de Lavos dão o nome de « recoletas ». Estas são geralmente
térreas, com pavimento de terra batida ou de areia e feno,
mas por vezes também soalhadas, com um ou dois degraus
de madeira de acesso, poucas janelas ou apenas postigos, e
sem chaminés. As divisórias internas são de tabuado ou de
buana – canas ou ripes de pau forrados de jornais (Costa de
Lavos).
332 Interiormente, os palheiros são muitas vezes caiados, ou
pelo menos pintados de branco (de « lavar » – Costa de
Lavos) ; a cozinha, que é, de acordo com a regra, a divisão
mais importante e onde decorre a vida de relação da família,
tem a lareira ou borralho de tijolos – o xógão – para colocar
as panelas quando se tira a comida (Mira), e o chão de terra
batida. O forno é geralmente no exterior, de barro,
encostado às paredes de madeira da casa, mas a abrir para o
interior; e vimos mesmo um caso em Mira em que ele se
situava na varanda. A maioria das casas fica inteiramente
compreendida no corpo rectangular do edifício; mas há

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 167/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

certos casos em que a cozinha se encontra num anexo


lateral, geralmente com um telhado a uma só água.
333 Como é natural, os palheiros construídos sobre estacaria
trazem à mente, buscando as suas origens, hipóteses que os
filiam e fazem derivar das palafitas lacustres pré-históricas.
Encontramos essa sugestão em Rocha Peixoto, Mendes
Correia, João Barreira, Frankowski, etc.141 ; mas todos estes
autores, para lá disto, consideram a construção sobre
estacaria do litoral português fundada apenas em razões
funcionais, relacionadas com a natureza do solo e o clima,
designamente os movimentos das dunas, que ali a impõem.

5
Palheiros e barracos do litoral
334 Quem quer que tenha calcorreado a zona nortenha da nossa
beira-mar não terá deixado de reparar no nítido contraste
existente entre os sectores litorais limitados, a sul e a norte,
pelo rio Douro – ou, mais concretamente, pela praia de
Espinho, alguns quilómetros abaixo desse rio –, que, pelos
aspectos paisagísticos e culturais que apresentam, forma,
cada um deles, um complexo extremamente lógico e
coerente que se opõe, de modo particularmente expressivo,
ao outro que se lhe segue.
335 Do Douro para o Norte, até ao Minho (e seguidamente, já na
Galiza, até à curva do cabo Sillero, baliza meridional das rias
galegas), esse litoral é constituído por uma estreita faixa
arenosa, franjada de penedia baixa, que segue uma linha
sinuosa e irregular, de aspectos sempre variados,
constantemente rasgada de reentrâncias, formando outras
tantas pequenas baías ou recantos de abrigo, e que, para o
interior, se prolonga por uma planície de terras aráveis que
sobem em declive brando, correspondendo a vários níveis de
praias e terraços antigos mais ou menos largos, polvilhada
de velhas povoações e lugarejos rurais, na qual cinco rios
importantes talharam a sua foz, e que, ao norte do Cávado,
termina bruscamente contra a falésia granítica paralela à
costa.
336 Ajustada a esta paisagem assim diversificada, as actividades
humanas são múltiplas, e tomam, cada uma delas, aspectos
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 168/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

vários, de acordo com a própria configuração local. Sem falar


na navegação comercial e na pesca longínqua, apoiadas nas
grandes vilas e cidades portuárias situadas na foz daqueles
rios – Caminha, Viana do Castelo, Esposende, Vila do Conde
e Porto –, de formação muito antiga e povoamento complexo
e diferenciado, encontramos aí, conforme os locais (e muitas
vezes simultaneamente no mesmo ponto), os mais variados
tipos de pesca: pesca do alto e pesca costeira, pesca de beira-
mar, pesca de camboas (pesqueiros naturais ou artificiais),
pesca da praia, etc., e, por outro lado, pesca com linhas de
anzol, com redes de emalhar, com cercos de arrastar para
bordo, com aparelhos fixos, etc. (notando-se precisamente a
falta da pesca de arrasto para terra, impraticável neste litoral
de penedia).
337 Por todo este sector, o barco, embora fundamentalmente
sempre do tipo poveiro (com quilha, roda de proa e cadaste,
popa aguçada e casco de tabuado liso, armado com mastro e
verga para uma vela latina, mas usado também com remos, e
com decoração de siglas e símbolos religiosos), apresenta-se
sob tamanhos muito diversos, conforme as espécies de pesca
a que se destina, e que tomam correspondentemente
diferentes nomes: desde a poderosa lancha de Caminha,
tripulada por quarenta homens e mostrando uma pequena
coberta a meio – a tilha –, para a pesca do alto, e a lancha
poveira, para a grande pesca costeira (ambas praticamente
extintas com a vulgarização dos arrastões nesses dois tipos
de pesca), até aos batéis, catraias, caíques e botes, levando
dois homens, para as pescas terrenhas.
338 Além dos barcos, porém, para essas pescas em águas
abrigadas ou camboas, usam-se ainda, do Lima ao Minho, as
masseiras ou gamelas, embarcações de caixa trapezoidal,
fundo chato e proa e ré cortadas, para dois ou três homens,
que Baldaque da Silva considera de proveniência galega,
introduzidas pela colónia de pescadores de La Guardia que
no decurso do século passado se instalou na Lagarteira e
fundou o povoado piscatório de Âncora.
339 Ao contrário do que sucede em geral nas zonas rurais, aqui o
mar é perfeitamente familiar ao lavrador, que exerce na

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 169/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

praia grande número de actividades : possui barcos e


masseiras; e, grande amador de peixe, com a maior
frequência pratica uma pesca costeira para consumo próprio
e venda vicinal.
340 Ao norte de Viana, continua a vir gente dos altos apanhar
moluscos na penedia, prolongando talvez um gesto do
Asturiense, que tantas marcas por ali deixou dessa
actividade. E sobretudo – o que constitui sem dúvida um dos
caracteres mais originais da região – ocorrem, na praia, duas
fainas agro-marítimas normais e da maior importância, que
alternam ou se sobrepõem às fainas e estâncias piscatórias
propriamente ditas: a apanha do sargaço e a pesca do pilado
ou caranguejo em cardumes – ambos para adubos dos
campos.
341 A apanha do sargaço é – e foi – primordialmente um
trabalho de lavradores em vista das suas próprias terras;
mas desde muito cedo a ela vemos dedicar-se também uma
outra classe rural, de cabaneiros ou trabalhadores pobres e
sem terras, que faz dela uma actividade independente de
procura de um produto para venda.
342 O sistema dos campos talhados em masseira pela
«descoberta» das terras, iniciada, nas dunas da Aguçadora,
por volta de 1880, e que permite uma cultura hortícola
intensiva, por meio de uma adubação muito abundante à
base do sargaço, determina a mutação da primitiva estrutura
socioeconómica destas actividades : ao mesmo tempo que,
em muitas zonas, o lavrador se desinteressa das fainas da
praia, que passam a ser exercidas sobretudo por essa classe
pobre de cabaneiros, vemos, ao lado destes, o pescador, que
de entrada se mantivera alheio a elas, começar a dedicar-se à
apanha do sargaço. E com ele generaliza-se, para a recolha
das algas soltas, feita da praia, o rodafole, saco de rede
entralhado num arco de madeira, preso a um cabo – de tipo
claramente piscatório – que os próprios lavradores adoptam
em substituição da velha graveta de tipo agrícola, que era a
sua primitiva alfaia fundamental.
343 Para a recolha das algas presas aos rochedos ou que flutuam
soltas à distância, usam-se os barcos e masseiras, e ainda,

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 170/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

nas praias abrigadas, com canais entre rochedos, do Lima à


Póvoa – caso único entre nós –, as jangadas de toros ou de
rolos de cortiça, próprias sobretudo para correrem esses
meandros da penedia, nos grandes estos, e que se empregam
também para a caça ao polvo com o bicheiro.
344 Lavradores, sargaceiros e pescadores têm, nos locais
convenientes da costa, barracos de abrigo e recolha de
barcos e de aparelhagem de pesca e de sargaço, ora
dispersos, ora alinhados no alto do fieiro. E, neste sector,
esses barracos, além da variedade de formas que
apresentam, são de dois géneros fundamentais, que
correspondem de modo muito sugestivo aos dois níveis
sociais a que respeitam : barracos de pedra, pertença
originariamente sobretudo do lavradorsargaceiro ; e
barracos de madeira, do pescador e do cabaneiro.
345 Em certas estâncias – em Montedor e em Moledo, nas
Marinhas e em São Bartolomeu, em Fão, em Averomar e ao
sul do Ave (Mindelo, Vila Chã e Angeiras) – o barraco é
sempre de pedra, granito ou xisto, cobertura de uma, duas
ou quatro águas, outrora de colmo ou junco, hoje quase
sempre de telha, por vezes (Fão, por exemplo) de planta
ovalada, e geralmente pertença de lavradores.
346 No Cabedelo de Caminha, e na Foz e Castelo do Neiva, os
barracos são sempre de madeira, pobres e mal-amanhados, e
pertencem sobretudo a cabaneiros e pescadores. O mesmo
sucede na Aguçadoura ; mas aí, testemunhando a
prosperidade da região, esses barracos são amplos e de
construção cuidada, com o seu tabuado fixo entre esteios de
pedra.
347 Muito expressivamente, na Apúlia coexistem barracos dos
dois materiais, estremados de certo modo em duas zonas da
povoação : os de tabuado, que parecem de facto ser
predominantemente residência de pescadores, e os de
pedra – arrecadação de sargaço, jangadas e aparelhos dos
lavradores. Na Amorosa, os de pedra, originariamente dos
lavradores, passaram agora para os sargaceiros e pescadores
que ali se instalaram e se vão fixando mesmo com carácter

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 171/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

permanente na praia, apoiados nessas actividades marítimas


e agro-marítimas versáteis.
348 A explicação da prevalência da casa de madeira entre os
pescadores e cabaneiros está, acima de tudo, evidentemente,
no custo inferior da construção nesse material – de facto,
logo que podem, eles preferem uma casa de pedra e cal. Mas
supomos de considerar também uma razão cultural,
prolongamento de uma tradição anterior : estas casas
representam conceitos diferentes e próprios da classe que
lhes corresponde: a de pedra, estável e sólida, para o
lavrador; a de madeira, como o barco, para o pescador e o
cabaneiro pobre, sem eira nem beira, que a aceitam sem
estranheza e se acomodam com a sua construção
improvisada, incerta, provisória, quase volante, como tudo
na sua vida. E lembramos a frequência com que o pescador
vive em casas de madeira.
349 À grande variedade de aspectos humanos, correspondendo a
uma paralela variedade de condições naturais, que vimos no
Norte, contrapõe-se, do Douro – concretamente de
Espinho – para o Sul, até às arribas que começam em São
Pedro de Muel, uma estrita uniformidade, que por seu turno
se relaciona com uma grande unidade paisagística. O litoral,
neste sector, é uma extensa faixa linear – quase rectilínea –,
lisa e nua, sempre igual, de areias quaternárias, de formação
em certas partes muito recente, sem quaisquer acidentes
geográficos, relevos, baías ou outras reentrâncias, ou mesmo
simples penedos que sirvam de locais de abrigo às
embarcações ; e, a poucos metros da praia, vagas que
escachoam ininterruptamente, logo seguidas da ondulação
do largo, apenas rasgada sobre alguns bancos ou
contrabancos mais altos que os arrais experimentados
evitam.
350 Esta paisagem, interrompida somente pela foz do Vouga e
pelas escarpas do esporão calcário da Boa Viagem entre
Quiaios e a foz do Mondego – que abrigam a enseada de
Buarcos e a planície aluvial desse rio –, continua-se para o
interior numa zona de dunas desertas e igualmente abertas e
desprotegidas, de largura muito variável, que atinge por

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 172/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

vezes alguns quilómetros. E apenas para lá dessas dunas se


encontram estabelecimentos humanos antigos e definidos.
351 Terras rasas e desabrigadas, litoral e dunas são varridos
pelos ventos do mar, que levantam e arrastam as areias em
massas consideráveis. Essa acção dos ventos era
particularmente violenta outrora, antes que a plantação de
extensíssimas matas de pinheiro marítimo e de vegetação
rasteira adequada – que, em alguns pontos, é muito
recente – tenha, em grande medida, operado a fixação das
areias.
352 Neste mar e nestes areais apenas uma actividade é possível
(sem falar nos banhos, de resto perigosos) : a pesca – e
praticamente apenas o arrasto para terra, ou seja, a xávega,
com exclusão de todas as outras categorias que as águas
abrigadas do Norte consentem (e que, por outro lado, é
impraticável naquele litoral de rochedos esparsos) –, e um
único tipo de barco – o grande barco do mar ou de meia-
lua.
353 A arte da xávega compreende o barco e as redes,
intimamente relacionados e que se integram num processo
naval modelado essencialmente pelas condições do quadro
natural em que decorre. A xávega é a mais importante das
nossas pescas costeiras e de arrasto para terra, própria e
praticável apenas nos litorais de fundos limpos e livres de
rochas, em que a rede possa ser largada para lá dos bancos
onde abunda o peixe, a cerca de 2 milhas da costa, e
arrastada para terra sem perigo de se prender ou rasgar.
Além disso, ela é uma pesca de campanha, que pressupõe o
esforço colectivo e a existência de grupos regulares de
pescadores organizados socialmente, nos pontos onde é
praticada.
354 O total desabrigo da praia requer uma manobra difícil e
violenta à largada e chegada dos barcos, que, por falta de
ancoradouros, têm a cada lanço de ser alados e varados em
terra. Eles são por isso de proa e popa elevadas e de bordos
altos, para enfrentarem a rebentação que têm de vencer ao
entrarem na água, de fundo chato e arqueado e sem quilha,
para mais facilmente deslizarem na areia, e sem leme nem

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 173/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

vela, que tomariam a manobra demasiado perigosa e que são


substituídos por pesados e fortes remos com cerca de 10
metros de comprimento.
355 Outrora, ao que parece, os barcos eram mais pequenos, e de
dois remos; os de quatro remos, que hoje predominam por
todo o sector, teriam aparecido pela primeira vez em São
Jacinto em fins do século passado.
356 A rede da xávega compõe-se de um saco terminal amplo, de
malha apertada, aberto apenas à frente, onde, com a alagem,
o peixe acaba por ficar encurralado; dos lados dessa boca
partem as duas compridas mangas, de malha larga, que se
prolongam pelos cabos, com cerca de 3 quilómetros de
comprimento cada um.
357 A companha é um sistema social, de funções bem
diferenciadas a despeito da sua simplicidade, cuja
hierarquização se mede pela importância das
responsabilidades dos seus componentes e se reflecte nos
respectivos salários. Ela compreende o pessoal do mar e o
pessoal da terra, e nas artes maiores compõe- – se de oitenta
pessoas e mais.
358 O pessoal do mar consta do arrais, do calador (que larga a
rede) e dos remadores dos vários remos, que formam uma
unidade com eficácia por vezes mesmo em terra, mormente
em ocasiões festivas: à frente, o castelo de proa e o maião e
atrás os dois da ré, cada um com quatro remadores em pé,
virados para a proa (o revezeiro, à ponta, olhando o mar e a
comandar os outros, o espiador, o dos três e o dos quatro),
três ou quatro sentados, de costas para a proa (o caneiro, o
secundeiro, etc.), e dois ou mais cambeiros, também
sentados, longe do remo, puxando-o com cordas, dos quais
um, do maião, à frente, faz, à largada, de proeiro ou vareiro,
com a vara que faz firmeza na manobra, e ajuda depois ao
lançamento do saco.
359 O pessoal do mar conduz o barco e a pescaria, e em terra
apenas arruma a rede a bordo e ajuda o final da sua alagem ;
o pessoal de terra, composto de rapazitos novos, homens de
idade e mulheres, comandados pelo arrais de terra, auxilia
os movimentos de largada e arribagem, trata da secagem,

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 174/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

reparação e preparação de redes e de todos os actos


respeitantes à venda do peixe.
360 Cada lanço é uma pequena expedição de cerca de uma hora,
que se inicia com o extraordinário espectáculo da largada – o
ala-abaixo do enorme barco, puxado pelos bois, que entram
na água, e empurrado pelo pessoal de terra com a muleta, no
meio da vozearia e da veemente confusão de ordens e
incitamentos, à espera do instante menos perigoso após a
onda, em que ele rompe, para, já vogando, enfrentar logo a
seguir a nova onda, que lhe ergue a proa ao alto.
361 No interior do barco, tudo – bancos, estribeiras, pranchas,
etc. – é perfeitamente adaptado à sua função essencial,
numa estrita economia de espaço, que se foi ajustando à
complexa coordenação dos actos da pesca. Cada membro da
tripulação tem o seu lugar, e a rede vai arrumada segundo
preceitos lógicos rigorosos e sempre os mesmos; no fundo o
cabo terminal e a manga, seguida do saco, que passa em
volta da popa; depois a primeira manga, cortiças de um lado,
chumbos do outro bem alinhados; e finalmente a outra
manga e o cabo inicial – de modo a permitir o seu
lançamento conveniente e desembaraçado.
362 O barco sai deixando em terra a ponta desse cabo inicial – a
mão-de-terra –, a qual se vai desenrolando de bordo à
medida que o barco se afasta, até ao ponto que ao arrais
pareça conveniente para cercar, geralmente a 2 quilómetros
da costa; o barco então vira, à ordem gritada do arrais; e,
pelo calador ajudado por um dos remadores da ré, a
primeira manga é lançada já paralelamente à costa, até que,
« Com Deus ao mar ! », se atira o saco; depois segue a outra
manga; depois o grito terra, e é o regresso, largando-se de
modo idêntico o segundo cabo, a mão-da-barca, cuja ponta
chega à praia com o barco.
363 A despeito da dureza da remagem, e mesmo nos momentos,
sempre graves, da largada e da arribagem, há a bordo uma
atmosfera descontraída e lúdica, de pequenas competições
no remar, brincadeiras, chistes e conversas, liberdades e
familiaridades. Mas a coordenação é perfeita, sob a

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 175/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

autoridade vigilante e benévola do arrais, que se acata e


respeita, mesmo em terra.
364 Depois, é a longa alagem da rede, que vem a arrastar pelo
fundo para terra, puxada por cada um dos cabos, até à
chegada do saco. Essa alagem, de entrada – e ainda hoje em
alguns raros pontos –, era a braço, e por isso as redes eram
então mais pequenas; hoje, por quase toda a parte, ela é a
gado, seis, sete, e às vezes onze e doze juntas a cada cabo. O
sistema ter-se-ia inaugurado nos últimos trinta ou vinte anos
do século passado, na região de Esmoriz ou em São Jacinto,
talvez ao mesmo tempo que o grande barco de quatro remos,
com redes maiores, quando o desenvolvimento da indústria
das conversas, em Espinho, incrementou grandemente a
pesca neste sector.
365 Durante duas ou três horas, num vaivém permanente e
monótono na praia deserta momentaneamente, o gado – ou
o pessoal de terra – puxa os cabos, balizados por cadimes,
até que se avista o saco que se aproxima e finalmente chega,
palpitante de pescado, no meio de uma desordem aparente e
de uma corrida confusa de gado e gente, na qual, contudo,
cada um está a cumprir um lugar necessário no conjunto,
perante a expectativa da companha, do fisco, dos
negociantes.
366 O barco característico da xávega tem sido considerado de
origem mourisca, e difundido a partir do Algarve – tal como,
de resto, o próprio nome da arte. Jaime Cortesão aproxima-o
do barco que se vê nas iluminuras do manuscrito
escurialense das Cantigas de Santa Maria que representam o
milagre acontecido aos pescadores de Faro, quando essa
localidade estava em poder dos Mouros; e, «da permanência
do tipo de barco e da palavra que o designa», conclui pela
provável existência, no século xii, de pequenos povoados de
pescadores mouros e moçárabes que praticariam a xávega
nos nossos litorais. Octávio Filgueiras vai mais longe,
atribuindo ao nosso barco do mar uma remotíssima origem
mesopotâmica (pela sua comparação com a barca de prata
encontrada em Ur) : introduzido entre nós pelos Árabes, na
costa algarvia, ele teria irradiado daí para o Norte, com o

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 176/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

tipo de pesca que lhe está associado (« com fortes


aculturações na época dos Descobrimentos ») polarizando-
se na zona central do País, onde as suas características
respondem eminentemente às condições naturais da área,
provavelmente em Ilhavo (e podemos supor também que em
Ovar e na Murtosa – nos locais abrigados do estuário do
Vouga – e talvez em Vieira), donde mais tarde se expande
para o Norte e para o Sul, com as andanças desses pioneiros
ilhos, varinos e murtoseiros, que enxamearam toda a costa
portuguesa e cujos descendentes vamos encontrar – com os
barcos, redes, formas de viver e até por vezes tipos de casas
dos seus antepassados – do Douro a Santo André.
367 Até tempos muito recentes, este litoral era praticamente
vazio de estabelecimentos humanos qualificados, antigos e
definidos, que se encontravam apenas para lá das referidas
dunas. Entre largos lanços de praia totalmente desertos,
adensavam-se pequenos grupos de casario escuro,
compostos então unicamente de palheiros de tabuado,
dispersos no areal e mais tarde alinhados em arruamentos
mais ou menos regulares, onde se instalavam, durante a
época da safra, as gentes de outros lados, de entrada
sobretudo de Ovar e Ílhavo, e seguidamente dos núcleos
interiores próximos, que aí vinham pescar na época da safra,
atraídos pela abundância da sardinha nestes mares, e que
regressavam às suas casas no fim da temporada, em
Novembro.
368 Durante esse período, mas apenas durante esse período,
estes locais, passados naturalmente os seus obscuros
primórdios e desbravada a duna deserta, conheciam uma
extraordinária animação. Além dos pescadores, que
constituíam já um contingente numeroso, outras pessoas
acorriam, interessadas no negócio da pesca: negociantes que
ali tinham os seus armazéns de salga da sardinha; lavradores
com o seu gado, depois que a alagem das redes e dos barcos
passou a fazer-se por esse sistema, quando no alto da duna o
pendão ou a buzina os chamava, indicando que a companha
saíra ao mar, e que por ali ficavam nas sua abegoarias
enquanto o tempo permitia a largada e arribagem dos

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 177/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

barcos; as pescadeiras, que iam buscar o peixe para o vender


às aldeias do interior; os vendeiros e taberneiros, que
abasteciam o lugar; as autoridades fiscais; e ainda, em pós
destes contingentes, os forasteiros e banhistas, que, em
certos pontos já no século xviii e sobretudo a partir de
meados do século xix, começam a afluir em número sempre
crescente, apoiados de entrada nas instalações dos
pescadores e seguidamente procurando acomodações,
alugando, comprando ou construindo casas, ou fomentando
pensões.
369 Terminada, porém, a época, e durante o Inverno, toda essa
animação e movimento desaparecia e os palheiros ficavam
desertos; as gentes piscatórias nada ali podiam fazer que
lhes aguentasse a vida (difícil, além disso, pelas precárias
condições de habitabilidade, pela falta de água e transportes,
e até pelo perigo ou o medo da pirataria argelina, que até
muito tarde assolou as nossas costas) e regressavam ao
interior, procurando diversos meios de subsistência – já
dedicando-se à pesca noutros locais, já recorrendo a uma
agricultura reduzida, já deslocando-se até à Borda-d’Água e
ao Sado, para a pesca ou o trabalho dos arrozais e das valas;
e o mesmo sucedia naturalmente com os banhistas, que são
também uma forma de população temporária.
370 Esse povoamento inicial, de carácter precário e temporário,
é de natureza semelhante àquele que estudámos ao norte do
Douro, mas difere desse na medida em que, aqui, a gente
que vem à praia é unicamente piscatória, e quaisquer
aspectos agro-marítimos estão totalmente fora de causa; e
enquanto no Norte, onde as povoações eram geralmente
próximas e acessíveis, os barracos da praia eram, sobretudo,
de abrigo momentâneo e de recolha de barcos, aparelhos ou
sargaço, aqui eles serviam, de início, por toda a parte
fundamentalmente, de habitação temporária a esses
pescadores, que residiam normalmente longe do lugar. A
pedra e o barro para adobes faltam totalmente nestes areais
e as ligações entre os povoados do interior e os palheiros que
lhes correspondem à beira-mar eram escassas e precárias –
raras estradas existiam até há pouco, e os caminhos eram

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 178/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

pistas de areia, muitas vezes encharcadas, tomando os


transportes caros e difíceis; e como, por outro lado, a duna
de há longa data se encontrava plantada de pinheiros,
fornecendo abundante madeira – que, pela mesma razão de
carência de transportes, não tinha saída fácil para fora –, os
primitivos barracos da praia, e seguidamente os palheiros
maiores que os substituíram, mesmo de dois e mais pisos, e
de dimensões avultadas, fossem de que nível fossem, eram
sempre em toda a área integralmente de madeira, desde as
estacas ou prumos que lhes serviam de base até à própria
chaminé ; a cobertura era de tabuado, estorno ou junco
(donde provém certamente o nome por que são designados),
e a telha caleira, vinda de fora, só numa fase mais tardia os
vem substituir. E finalmente em múltiplas estações – e
sobretudo de entrada, antes que a arborização das dunas
fixasse as areias e que a concentração e alinhamento das
casas mais para o interior as deixasse menos expostas ao
vento – vemos usar- – se nestes palheiros um sisterma de
construção sobre estacaria, como modo de impedir que as
areias os soterrem, que se apresenta sob vários tipos.
371 É precisamente pelo desenvolvimento destes obscuros
núcleos de barracos ou palheiros que hoje, do mesmo modo
que no passado, se processa o povoamento deste sector
costeiro, o aparecimento de povoações definidas e fixação de
populações diferenciadas e o estabelecimento de relações
estáveis. Erguidos de entrada por gentes de outras partes –
principalmente pescadores – que aí vinham regularmente,
mas apenas em certas épocas, e os utilizavam então apenas
como instalações ocasionais ou temporárias, eles
transformam-se, com a progressiva fixação dessas pessoas,
em verdadeiras casas de residência permanente, que
funcionam depois como pontos de atracção de outras gentes
de várias classes. E assim surgem de facto, a partir deles,
verdadeiras póvoas marítimas, de mais ou menos
magnitude, importância e futuro.
372 O porto de xávega deste sector de que temos notícias mais
recuadas (de resto não coevas) é o do Furadouro, onde se
situavam os palheiros dos pescadores de Ovar, e onde,

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 179/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

segundo consta, em 1600 se armavam quatro companhas,


com duzentos homens, Por essa data inicia-se ali a plantação
da floresta na duna, para a sua fixação, e pouco depois já a
madeira abunda para a construção desses palheiros. Em
meados do século xix, a abertura da estrada até à praia vem
dar grande incremento à povoação da beira-mar, que passa a
ser um dos aglomerados maiores de palheiros de toda a
costa, muito procurado nos fins desse século, como estância
balnear, por veraneantes da região aveirense. Estes, porém,
desde logo desprezam a construção de madeira, e edificam
as suas casas em alvenaria ou adobe, extremando-se do
bairro dos palheiros, que decai.
373 E a partir destes ovarinos que se processa seguidamente o
povoamento do lanço costeiro do Douro ao Vouga. Para o
Norte, eles irradiam até alturas de Espinho, onde se
instalam, dormindo de entrada dentro dos barcos varados
num areal deserto e regressando aos sábados a Ovar, onde
ainda em 1770 baptizam os filhos e enterram os mortos.
Depois dessa data, vemo-los fixarem-se progressivamente
nesta nova praia, que se desenvolve extraordinariamente,
tornando-se um dos grandes portos de pesca do País,
duplicado de uma estância balnear impotante, a que a
indústria conserveira, que ali se instala, dá grande
incremento. Em 1886 havia em Espinho cinco companhas,
com mais de cinquenta homens e vinte e seis a vinte e oito
juntas de bois cada uma, além de uma avultada frequentação
de banhistas vindos de todas as partes do Norte do País e da
Espanha.
Des. 132 – Ovar, Esmoriz

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 180/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

374 Os varinos, agora já de Espinho, por sua vez, fundam mais


ao norte o arraial da Aguda, onde pescam com bateiras
pequenas, e, com os de Ílhavo e Murtosa, vão até ao Douro,
onde povoam a Afurada. E para o Sul, o mais tardar nos
princípios do século xix, tinham já erguido os seus barracos
em Paramos.
375 Enfim, são ainda os varinos quem funda os povoados da
Torreira, já no século xviii, primeiro o da Ria e depois o da
Praia, que no século xix conhece uma grande prosperidade e
é frequentado por banhistas que vêm até lá de barco, pelo
Águeda e o Vouga abaixo. E finalmente, um pouco adiante,
os de São Jacinto ; mas estes, nos princípios do século xix,
eram já habitados, sobretudo por gentes de Ílhavo, que não
viviam na praia e cruzavam cada dia, à ida e à volta, o rio – e
que vão ser agora os grandes povoadores daqui para o Sul.
376 Em todos estes lugares o palheiro é de pau-a-pique, isto é,
com os prumos do edifício enterrados directamente na areia,
e revestido exteriormente de tabuado que vem até ao solo,
possuindo por isso um térreo fechado, que serve geralmente
de arrumação ampla para redes e barcos; e parece-nos lícito
supor que esse tipo representa a difusão de uma primitiva
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 181/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

forma criada no Furadouro e difundida daí juntamente com


a sua gente e os seus barcos de pesca.
377 Em Esmoriz, até fins do século xviii ninguém residia na
praia, inóspita pela violência do giro das areias e pelo perigo
da pirataria; mas já então os varinos, juntos com outros
pescadores do interior próximo, aí pescavam com
chinchorros, dormindo, quando calhava ficarem na praia,
em casernas ou armazéns de redes de madeira. E só depois
daquela data começaram a edificar ali os seus palheiros, e
progressivamente a instalar-se com carácter definitivo no
local, que, a partir sobretudo de 1860, com a construção do
caminho-de-ferro, passa a ser muito frequentado por
veraneantes.
378 A construção em madeira, aqui, tem um carácter especial ;
não só, no pau-a-pique, os prumos encabeçam em fortes
estacas enterradas, que fazem de alicerce, mas cria-se
mesmo, nos começos deste século, um tipo de palafita
original, em que o edifício se ergue sobre vigas pousadas em
pequenos esteios. Os palheiros são portanto independentes
do assento; e de facto, em 1920, devido a dissidências
vicinais, todo um grupo destes palheiros se desloca sobre
rodados, através do areal, fundando mais ao sul o núcleo
costeiro da Cortegaça.
379 Em 1808, a abertura da barra do Vouga toma extremamente
perigosa a travessia do rio naquele ponto, dificultando a
passagem dessa gente de Ilhavo que ia pescar a São Jacinto.
Por isso, logo em Dezembro desse ano os homens da
companha do Luís da Bernarda (Luís dos Santos Barreto)
saem ao mar, rumo ao Sul, levando redes e aprestos, em
demanda de novo varadouro onde se possam instalar e
continuar a exercer uma xávega compensadora, e escolhem
um varadouro no areal limpo, a que dão o nome de Costa
Nova (por oposição à Costa Velha de São Jacinto). À beira-
mar, porém, esses ilhavenses erguem apenas os seus
armazéns de redes, procurando logo de entrada a beira-ria,
do outro lado do areal (que é ali muito estreito), para os seus
armazéns de salga e palheiros de abrigo, que em 1818 são já
em grande número.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 182/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

380 De entrada, na sua maioria, esses pescadores, como dantes,


não residem na praia, e todos os dias atravessam o prado da
Gafanha e a ria para irem trabalhar; em breve a eles se junta
gente da Gafanha, e progressivamente se vai dando a sua
instalação definitiva nos palheiros; no último quartel do
século xix, os pescadores da Costa Nova são sobretudo da
Gafanha, e começa a aparecer gente nascida na Costa Nova –
o que significa que antes de meados do século xix é
certamente a Costa Nova já um verdadeiro povoado. Desde
muito cedo é a praia frequentada por banhistas, que
imprimem uma nova feição ao primitivo núcleo, com
palheiros maiores e mais cuidados, ao mesmo tempo que
levam o pescador a deslocar-se mais para o Sul, onde agora
se situa o seu bairro.
381 Ao mesmo tempo que a de seu irmão Luís, sai de São Jacinto
a companha de José da Silva Barreto, que vara nos areais da
Covas de Lavos, ao sul do Mondego, e aí se instala e ergue os
seus palheiros. O mapa de Adolfo Loureiro, de 1855, acusa
neste local um numerosíssimo aglomerado à beira-mar
(justificando o nome de « Cidade das Estacas» por que ficou
conhecido), relacionado por uma série de casas
disseminadas no areal com outro, ainda então reduzido, à
beira-rio – a Gala.
382 É ainda mais um ilhavense, de nome José da Silva (filho de
outro que em fins do século xviii vem da sua vila nortenha
para a Figueira como calafate), que em 1815 se estabelece em
Lavos, armando uma companha na Costa, cujo pessoal de
entrada dormia em barracos de estorno, erguendo
seguidamente os seus palheiros, semelhantes aos da Cova.
Dos seus três filhos, José e Manuel ficam no local, e, na sua
órbita, vai-se desenvolvendo o povoado, ainda hoje muito
reduzido. O outro filho, José Francisco, emigra para a
Leirosa, por volta de 1865, formando uma companha, de
entrada com gente das imediações, junto com alguns
pescadores que com ele vieram da Costa, os quais do mesmo
modo dormiam em barracos de estorno nas dunas e depois
ergueram os seus palheiros no estilo da região, atraindo

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 183/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

seguidamente outros pescadores de Quiaios, Murtinheira,


Cova, e até da Murtosa, que por ali vão ficando.
Des. 133 – Ovar, Esmoriz

Des. 134 – Furadouro – três palheiros de pescador,


de r/ chão amplo para armazém e andar de
habitação

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 184/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

383 É desnecessário falarmos do processo de povoamento dos


Palheiros de Mira, analisado modelarmente por Raquel
Soeiro de Brito142. Lembramos simplesmente que esta
Autora situa nas primeiras décadas so século xix o início da
frequentação – então ainda apenas temporária – deste lanço
costeiro, por pescadores, começando aí a nascer gente
unicamente a partir de 1835, de entrada (até 1846) quase
sempre apenas durante a época da safra – o que indica que
« os pescadores se deslocavam à praia com as famílias, e
que, durante os meses de bom tempo, uma vida normal
animava a povoação temporária». De 1857 encontrou a
Autora o registo de óbito de uma criança cujos pais haviam
nascido nos Palheiros de Mira – vê-se assim, em resumo,
que os dados coincidem e que a hipótese cronológica da
Autora parece por todos os modos confirmar-se. A partir
de 1860-1870, a povoação está fixada, com pequeno número
de famílias – os homens principalmente pescadores e alguns
seareiros, as mulheres trabalhando sobretudo nos campos. E
mais uma vez os pioneiros deste povoamento são na maioria
ilhavenses (talvez a partir da Costa Nova), a que se juntam
depois outros contingentes, da região e de vários núcleos
piscatórios, Vagueira e Quiaios, Costa de Lavos, etc., que
erguem os seus palheiros e progressivamente se vão fixando.
Des. 135 – Esmoriz

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 185/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

384 E são ainda essas gentes da ria, varinos, ilhavenses e


murtoseiros, rasgando sempre mais longe a sua aventura de
pioneiros, em busca de boas pescarias, quem vai definindo,
nos areais desertos do Sul, as praias piscatórias da Caparica
e de Santo André, para onde levam os seus barcos e as suas
redes e artes, dormindo de entrada em palheiros e barracos
de estorno e dando pouco a pouco origem a povoados fixos.
385 Ao sul do Vouga, da Costa Nova à Leirosa – portanto na zona
de povoamento fundamentalmente ilhavense –, o palheiro,
diferentemente do do Furadouro, é não já de pau-a-pique,
mas de um tipo palafítico erguido a partir de uma grade de
vigas assente sobre estacaria elevada do solo, que a
princípio – e ainda hoje em certos casos – ficava aberta, para
que as areias não se acumulasssem e soterrassem as casas.
386 Rocha Madahil encontrou em Malhada de Ílhavo – que
ainda nos primórdios da monarquia ficava na linha do litoral
marítimo – palheiros de pescadores igualmente sobre
estacaria, que apenas se justificam como reminiscências de
um modo de construir tradicional e que remontaria talvez à
Época do Bronze. A ser assim, pode-se supor que o estilo dos
actuais palheiros que se encontram da Costa Nova para o
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 186/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Sul, a partir de uma colonização inicial predominantemente


ilhavense, traduz também reminiscências de um sistema de
construção que essa gente conhecia e usava na sua terra de
origem desde tempos imemoriais.
Des. 136 – Palheiros de Mira

Des. 137 – Palheiros de Mira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 187/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 205 – Vila do Conde, Mindelo

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 188/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 206 – Póvoa de Varzim, Aguçadoura

Foto 207 – Esmoriz

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 189/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 208 – Ovar, Cortegaça

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 190/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 209 – Ovar, Furadouro

Foto 210 – Aveiro, São Jacinto

Foto 211 – Mira, Praia de Mira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 191/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 212 – Mira, Praia de Mira

Foto 213 – Mira, Praia de Mira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 192/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 214 – Cantanhede, Palheiros da Tocha

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 193/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 215 – Cantanhede, Palheiros da Tocha

Foto 216 – Cantanhede, Palheiros da Tocha

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 194/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 217 – Cantanhede, Palheiros da Tocha

Foto 218 – Figueira da Foz, Cova de Lavos

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 195/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Foto 219 – Leiria, Vieira de Leiria

Des. 138 – Mira, Praia de Mira

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 196/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Des. 139 – Palheiros da Tocha

Des. 140 – Figueira da Foz, Costa de Lavos

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 197/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

387 A área deste tipo de construção e povoamento encontra o seu


limite sul nos aglomerados do litoral de Pedrógão e da Praia
de Vieira de Leiria, onde o pescador de há muito parece ter-
se fixado à beira-mar, e onde o palheiro define um estilo
original, em que o pau-a-pique se combina com o tipo
palafítico, isto é, os prumos do edifício (que ali perto das
águas eram por vezes elevadíssimos), enterrados no solo,
ficam porém descobertos até uma certa altura.
388 De há muito, destes povoados piscatórios ao sul do Vouga se
criou uma corrente migratória interna e periódica – os
caramelos do Mondego e os avieiros da Vieira –, que nas
épocas mortas da safra vão trabalhar nas valas e arrozais do
Sado e na pesca e transportes do Tejo. Aqui os vemos, com a
lembrança bem presente da Vieira, terra de origem dos seus
pais ou avós, vivendo em barcos varados na margem do rio,
com o asseio e a decência que caracterizam também a vida
nos palheiros dessas zonas. Em alguns pontos, porém, eles
fíxaram-se ; e vemos surgir na Borda-d’Agua, igualmente em
tempos muito recentes, os povoados da Palhota,
Escaroupim, Caneiras, etc., onde a estrutura palafítica,
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 198/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

efectivamente do tipo da de Vieira, volta a ser


primordialmente funcional, em vista das dramáticas cheias
do grande rio.
389 Ao norte do Douro, o povoamento menor da costa processa-
se fundamentalmente também a partir das barracas da
praia, mas mostra aqui aspectos particulares, relacionados
com as condições naturais, que apontámos, da região –
nomeadamente, nesse sector nortenho, não apenas a pesca
(e após ela os banhos) funciona como factor primordial de
povoamentos, mas também a apanha do sargaço; e não só
alguns povoados hoje piscatórios nasceram de barracos
primitivamente de lavradores-sargaceiros, mas constituem-
se mesmo outros povoados a partir de barracos
exclusivamente de cabaneiros-sargaceiros, cuja actividade
específica continua a ser a força vital desse povoamento
crescente. O exemplo mais antigo e notável que documenta
este processo, aqui, é o da Póvoa de Varzim.
390 O «porto de Varazim », relacionado com a villa luso-romana
de Euracini, é mencionado nos livros de linhagens referido à
época do conde D. Henrique, mas a nota é digna de pouco
crédito. As Inquirições de 1220 nada dizem directamente a
esse respeito, mas dão conta do exercício da pesca marítima
por gente de Argivai, Gesteira, Santa Cristina, etc., que sem
dúvida se fazia através desse porto. Essa gente tinha aí
certamente os necessários barracos de abrigo e guarda de
aparelhos e barcos – e possivelmente sargaço –, mas não
residia ainda na praia, desguarnecida e aberta às
depredações da pirataria sarracena. O foral de D. Dinis
de 1308, pelo qual o rei dá o reguengo de Varazim aos
cinquenta e quatro chefes de família populares (alguns deles
com apelidos-alcunhas ainda hoje em uso) que ali habitam,
permitindo-lhes que ali façam uma pobra – e que além da
pesca e de uma pequena navegação costeira para importação
de pão, vinho e sal, se refere efectivamente também à
apanha do sargaço, que reserva aos moradores da pobra –,
pressupõe porém já então uma colmeia humana florescente,
e por isso com longa idade. Pode admitir-se, pois, que a
primeira avançada desses pescadores argivailenses que se

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 199/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

vieram fixar em Varazim se deve ter dado no tempo de D.


Sancho I.
Des. 141 – Figueira da Foz, Cova de Lavos

391 O núcleo primitivo da pobra parece ter-se situado a nascente


do ulterior centro da localidade; mas a sua expansão dá-se
daí em direcção à praia – verosimilmente ao ponto onde se
encontram aqueles barracos –, e é dessa zona que surge
verdadeiramente a Póvoa.
392 A Póvoa é doada por D. Dinis a seu filho Afonso Sanches,
que a deixa ao convento de Vila do Conde. D. Manuel,
ouvidas as queixas dos seus moradores contra a jurisdição
do mosteiro, dá-lhes em 1514 novo foral, que confirma os
privilégios anteriores e estabelece a autonomia jurisdicional
da vila. E é por essa data que se desenvolve o núcleo urbano
em volta da matriz, que passa a ser o seu centro nobre e
municipal.
Des. 142 – Praia de Vieira de Leiria

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 200/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

393 No século xvii começa a erguer-se na duna e juncal junto ao


mar a povoação que corresponde agora ao bairro sul,
essencialmente piscatório, onde se fixou a maior parte da
gente que se dedicava à pesca, constituindo um
agrupamento fechado ao convívio e penetração de elementos
estranhos à grei, e os pescadores desde então por aí se têm
mantido, cedendo pouco a pouco o lugar que ocupavam
noutros sectores às demais classes de uma população já
muito diferenciada.
394 Desligados da terra e exercendo uma actividade exclusiva,
foi sem dúvida dessa época para cá que se acentuaram as
características do Poveiro e se apertaram as regras e
preconceitos que anteriormente o regiam : um fundo sentido
comunitário de solidariedade, o « respeito » perante o
prestígio da idade e da experiência, a honestidade e pureza
de costumes, conservados por um exclusivismo cerrado e
uma intransigente e rigorosa endogamia de grupo.
395 A importância da Póvoa como centro piscatório foi
aumentando, tendo o grupo atingido, em fins do século
passado, o apogeu da sua coesão. A influência niveladora do
século actual, o incremento de outras actividades (entre elas
os banhos de mar), os novos costumes de emigrantes de
regresso, etc., desagregaram as suas instituições ; e mais
tarde o aparecimento dos arrastões, impedindo a pesca do
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 201/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

alto e levando a trabalhar em Leixões uma grande parte dos


seus homens – cerca de 1500 –, acabou por apagar, no
agregado poveiro, a sua melhor tradição. A Póvoa é hoje, de
certo modo e em grande medida, o local de habitação de
pescadores de Matosinhos.
396 Até aos princípios deste século, a casa do pescador poveiro
era ainda muitas vezes de tabuado, térrea e acanhada, com
uma única divisão, servindo de residência e de arrecadação
da sua aparelhagem profissional, sem soalho, forro ou
chaminé – expressão certamente da pobreza dessa gente,
mas resíduo também verosimilmente da sua remota
natureza primitiva de barraco. Grande parte dos trabalhos
caseiros passava-se na rua, à porta aberta da casa, em
conjunto com a vizinhança, que, porém, mais do que
promiscuidade, traduzia a unidade, a solidariedade e o
sentido comunitário do grupo. Ao perído áureo da Póvoa
piscatória corresponde porém já uma casa de pedra e cal,
que progressivamente foi substituindo esses miseráveis
barracos: térrea também, mas soalhada e dividida, cozinha
com masseira para o encasque das redes e onde decorre a
vida doméstica normal, essa casa notabiliza-se sobretudo
pelas camaretas, ou alcovas de armação de cama móvel, de
bancos, com o camarote a meio para guarda de redes e
aprestos, abrindo para a sala única e ampla, de sentido
cerimonial segundo a regra, e onde além disso se efectuavam
os « serões » onde se trabalhava em conjunto. E é do
alteamento do tecto e desenvolvimento desta armação que
vai surgindo a casa poveira citadina ulterior, adaptada a
níveis de população muito diferenciados e hoje em
progressiva descaracterização.
397 Mas este mesmo movimento prossegue, e o povoamento
costeiro continua em nossos dias a processar-se tal como no
século xiv em relação à Póvoa. Os aglomerados ao sul do
Ave, por exemplo, não vêm ainda indicados na carta dos
Serviços Geodésicos de 1880, e é mesmo ainda viva nos
velhos, ali, a recordação de um litoral deserto, só com esses
barracos de abrigo dos pescadores e lavradores que residiam
nas povoações correspondentes do interior, e à praia apenas

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 202/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

iam à pesca e à apanha do sargaço (documentando-se esta


última actividade já no século xvii).
398 Só no princípio do século, coincidindo com o abandono das
actividades sargaceiras pelo lavrador, se iniciou a deslocação
de fixação dessa gente piscatória na praia, instalada de
entrada naqueles barracos. Os actuais povoados da beira-
mar – sobretudo Vila Chã e Angeiras (no Mindelo a feição
balnear citadina antecipou-se à formação do aglomerado
piscatório e desviou o curso da sua evolução) – têm carácter
nitidamente piscatório – o conviver ruidoso e promíscuo da
sua gente, sentada no chão, na rua, à porta aberta das casas,
compondo redes, fumando, olhando o mar, em grupos na
praia ou na taberna, nas longas horas de ócio em terra, e
com as suas casas contíguas em arruamentos rectilíneos –,
são inteiramente recentes e encontram-se mesmo no início
da sua formação, visivelmente à custa daqueles barracos:
essas casas, embora de térreo e andar, com a larga porta do
térreo, que continua a ser uma arrumação ampla, e o telhado
de duas águas, de empena para a rua, voltada ao mar, dos
barracos de que elas representam a ampliação e adaptação,
são ainda verdadeiros barracos acrescidos em altura, de uma
forma totalmente estranha ao estilo rural da região e que
imprime às povoações um tom próprio e original.
399 Mais ao norte, em Castelo de Neiva e na Amorosa, abaixo de
Viana do Castelo, em tomo dos barracos que aí existiam, na
duna, começam de modo semelhante a tomar forma duas
povoações em vias de crescimento; mas aqui, como
dissemos, esses barracos eram de sargaceiros e as gentes que
se fixaram são não pescadores, como é o caso normal e mais
corrente, mas sim essa classe profissional indecisa de
cabaneiros, que se vão especializando na apanha do sargaço
ou outras actividades marítimas e agro-marítimas, que lhes
permitem uma vida modesta mas independente.
400 Desde muito cedo, e sobretudo a partir de meados do século
passado, barracos e palheiros em quase todos estes locais de
pesca e de sargaço constituíram pontos de referência ou
mesmo de apoio a gentes do interior, por vezes de muito
longe, que procuram a beira-mar no Verão para banhos e

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 203/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

que, com uma frequentação regular e crescente,


contribuíram para definir e dar consistência aos modestos
povoados em formação.
401 E mesmo esse, agora, o processo fundamental do
povoamento costeiro; mas a sua feição citadina e o ritmo
acelerado em que decorre acabaram por absorver o sentido e
o aspecto originários daqueles estabelecimentos,
modificando inesperadamente uma evolução baseada no
desenvolvimento das suas características intrínsecas.

Notes
1. Virgílio Correia, « Chaminés do Sul », Terra Portuguesa, 2.° vol.,
Lisboa, 1916, págs. 21-27.
2. Mello de Mattos, «As chaminés alentejanas », Portugália, II, pág. 79-
84.
3. E é estranho pensar que ainda no fim do século xviii, no local em que
agora se ergue tão exótico casario, a povoação não passava de um
amontoado de cabanas de madeira, erguidas no areal da praia.
4. O caso da Gândara é comparável ao de Heide no Noroeste Alemão,
onde também, mesmo depois de se ter dado a transformação do
revestimento vegetal, se mantém o velho apelativo já apenas com valor
do topónimo. Ver Hermann Lautensach Portugal auf Grund eigener
Reisen und der Literatur, II parte, 1937, pág. 68, nota 1.
5. Ver Joseph Piel, RPF, II, págs. 182-3.
6. Plínio, História Natural, XXXIII, 70-74, citado por Serafim da Silva
Neto, História da Língua Portuguesa, fasc. 6, Rio de Janeiro, 1954, pág.
281.
7. Para o problema linguístico especial, veja-se a indicação da
bibliografia fundamental em Serafim da Silva Neto, op. e loc. cit.
8. A serra de Buarcos atinge a cota de 253 m. Ver Hermann Lautensach,
op. cit., pág. 68.
9. Ver Amorim Girão, in Guia de Portugal, vol. 3, pág. 116.
10. Ver Paul Chauffat. « Aperçu de la géologie du Portugal » in : Le
Portugal au point de vue agricole, Lisboa, 1900, cap. I, págs. 39-40 ; do
mesmo, « Aperçu de la géologie du Portugal» (Le Port, au point de vue
agr.), págs, 1-48 ; do mesmo. « Étude stratigraphique et paléontologique
des terrains jurassiques du Portugal, I, Le Lias et le Dogger au Nord du
Tage » (Mém, Serv. Géol. Port., Lisboa, 1800) ; do mesmo, « Recueil de
monographies stratigraphiques sur le système crétacique du Portugal »
(Mém, Serv. Géol. Port., 2 vols., Lisboa, 1880 a 1900). Ver também
Aristides de Amorim Girão, Bacia do Vouga, Coimbra, 1922, págs. 13-14.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 204/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

11. Ver Aristides de Amorim Girão, in : Guia de Portugal, vol. 3, pág. 116.
12. Ver Paul Chauffat, « Aperçu de la géologie du Portugal», in : Le
Portugal au point de vue agricole, Lisboa, 1900, pág. 40. Ver também
Hermann Lautensach, op. e loc. cit.
13. Ver Amorim Girão, Guia de Portugal, vol. 3, pág. 117.
14. No Livro Santo de Santa Cruz de Coimbra, fls. 57-57 v., existe um
diploma de doação feito pelo conde D. Raimundo em 1095 a habitantes
de Montemor-o-Velho, que nomeia particularmente um Zalema Godinho
a quem dá e concede a vila de Mira, com todos os seus termos, e um
moinho que está junto à fonte de Caraboi.
15. Foi também o que aconteceu na Gafanha, que é de povoamento
recente feito ao longo de caminhos preexistentes, para colonização das
areias.
16. Mesmo na orla marítima e coberta de pinhal, há vastas superfícies
em que as árvores a custo crescem, talvez por excesso de água no
subsolo.
17. Nos pinhais, a separação é feita por malhões, covas espaçadas de
10 cm e também marcando com balizas os pinheiros nascidos nas
extremas (tirando a casca do lado virado para o vizinho).
18. Na própria expressão regional, o « vinho e fruta» bairradino
contrapõe-se ao « milho, batata e feijão » gandarês ; e o forte das feiras
de Cantanhede, a 6 e a 20 de cada mês, em milho, feijão e batata, vem da
Gândara.
19. Vão buscá-la longe, reunindo-a em paveias com o ancinho, e
carregando estas no carro de bois munido de fogueiros (fiteiros). Há
muitos que a compram a quem a apanha. Agora, depois de protestos e
pedidos, os Serviços Florestais vendem fagulha, que em certos sítios
forma uma camada muito espessa. No pinhal de Mira, que foi da
Câmara, há licença para se tirar a fagulha dois dias por semana.
20. É o que acontece pela zona de Rines e Porto Mar, por exemplo.
21. A « Nestlé », com o fim de auxiliar o lavrador, e garantir para si o
leite, fornece agora ao lavrador a vaca, nas seguintes condições : a Nestlé
paga a vaca; a primeira cria é para a Nestlé ; a segunda, para o lavrador ;
o leite é a meias. Quando, por este sistema a vaca for paga, fica
propriedade do lavrador. Outrora, massava-se o leite em casa, e há ainda
quem possua os cântaros próprios dessa operação.
22. Aos canteiros de arroz dão em Mira o nome de alagamentos ; o
termo local para as terras de cultura do arroz é mesmo terra de arroz ; a
expressão « marinhas » veio do Alentejo, talvez por veículo dos
caramelos de regresso.
23. Ver Paul Chauffat, « Aperçu de la géologie du Portugal », op. cit.,
pág. 40.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 205/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

24. Quando visitámos o Novo México em 1951, fotografámos ruínas de


antigas habitações em Kuaua, próximo da estrada que liga Albuquerque
a Santa Fé, onde existe hoje o monumento a Coronado. Estas ruínas são
do tempo em que os Espanhóis invadiram a região, e portanto anteriores
a qualquer possível influência europeia.
25. No Rolho (Mealhada), região vizinha da Gândara, e onde também se
usa e fabrica o adobo, o seu fabrico é um pouco diferente : « Para a
feitura dos adobes, são preferidos os meses de Verão. São calculadas as
quantidades precisas: a proporção é : 10 camadas de areia barrenta, a
preferida, para 1 metro de cal. Descarrega-se a cal, e distribuem-na sobre
a areia, aproveitando a areia dos bordos para abafar, ficando assim 3
dias. Vem então o argamassar (mistura de cal e areia). Deixam de novo a
massa durante 3 dias, depois do que é amassada muito bem, tendo o
cuidado de desfazer qualquer grumo ou torrão de cal. Esta massa é então
tendida na adobeira, e deixada a secar num lugar plano e previamente
limpo. Assim ficam, cerca de um mês, até serem colocados de face e
limpos, desta maneira permanecendo no tempo quente. Finalmente são
empilhados» (informação de Ana E. Rocha da Silva Poiares, aluna do
curso de Geografia Humana de 1955-56, da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra). A informadora diz ainda que «a construção
em adobes não se pode explicar pela carência de pedra, mas pela
economia». E faz uma referência rápida a galegas e areeiros nos
caneiros.
26. Por Mira, esta telha vinha e ainda vem muitas vezes de Barrim, na
freguesia da Tocha. E de notar o topónimo, em relação com a produção
desse material.
27. Utilizamos aqui a classificação do geógrafo francês Albert
Demangeon, que consta do seu livro intitulado: Problèmes de
Geographie Humaine (2.a edição), Paris, 1943, págs. 230-232. Este
trabalho apareceu pela primeira vez em 1937 sob a forma de
comunicação ao Primeiro Congresso de Etnologia Regional de Paris,
tendo sido publicado nas « Publications du Département et du Musée
des Arts et Traditions Populaires ».
28. Cfr. Albert Demangeon, op. e loc. cit., pág. 281.
29. É fora de dúvida que muito mais ao norte da região gandaresa
propriamente dita se encontram com efeito casas com as frontarias
semelhantes às de Mira, que acusam um parentesco evidente com as
gandaresas. Relativamente pouco numerosas por Vagos, Aveiro, e até
Cacia, elas formam porém a quase totalidade das habitações da área
compreendida entre a Palhaça e Fermentelos. Do mesmo modo, a casa
da zona interior gandaresa não pode deixar, como veremos, de se
considerar estreitamente relacionada com a casa de Cantanhede,
notando-se a influência deste tipo mesmo até à Tocha.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 206/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

30. No livro de Raquel Soeiro de Brito, intitulado : A Ilha de São Miguel


(Estudo Geográjico), I. A. C., Lisboa, 1955, pág. 182 (e estampa IX) a A.
descreve e mostra uma casa das « Lombas » de Povoação, naquela ilha,
cuja fachada se aparenta muito com a casa gandaresa do tipo de Mira,
com o janelo por cima do portal do pátio.
31. Este facto parece indicar um alargamento progressivo da área de
difusão da casa do tipo de Mira na região gandaresa, e talvez o seu
predomínio sobre os demais.
32. Na Quinta da Camarneira notámos uma casa desse género, com
janela na empena, datada de 1893. Mas, de um modo geral, pode dizer-se
que, nestas áreas do adobe, é difícil determinar a idade das construções.
Em todo o caso, é fora de dúvida que, pelo menos na maioria dos casos,
as casas do tipo de Mira que descrevemos, nunca devem ser anteriores ao
último quartel do século xix. Casas mais velhas, que surgem aqui e além,
mostram-se muito diferentes, baixas e pobres, muitas vezes sem
qualquer reboco na fachada, e com os compartimentos reduzidos à
cozinha e sala, geralmente isoladas no meio das terras de cultura ou à
face de caminhos secundários. E cabe perguntar se este tipo elementar
de casa teria sido o das raras e dispersas habitações existentes até àquela
data, antes do povoamento intenso que teve lugar depois dessa época. De
resto, nas regiões limítrofes da Quinta da Camameira, Covões, etc.,
vêem-se muitas casas datadas, do tipo da casa de Mira, e sempre da
época que indicámos conjecturalmente.
33. Casas térreas com postigos ou janelas sob o beiral, para iluminação
de sótãos, nos termos indicados, são raras entre nós. Ao norte da Póvoa
de Varzim, encontra-se um tipo de casa térrea nessas condições, com
pequenos postigos abaixo do beiral, iluminando um sótão de
arrumações, que faz pensar nos postigos ou janelas dos celeiros
gandareses. Mas aqui, tal elemento parece-nos derivar e relacionar-se
com os « falsos » das casas poveiras (Cfr. Ernesto de Oliveira e Fernando
Galhano, «Casas de Pescadores da Póvoa de Varzim », in : Trabalhos de
Antropologia e Etnologia, vol. XV, fase. 3-4, Porto, 1955-57, págs. 219-
264, e fig. 7).
34. Vimos atrás que, justamente por causa deste parentesco, que neste
caso se precisa notavelmente, é de admitir a filiação da casa gandaresa
deste sector na casa da região limítrofe, nomeadamente de Cantanhede,
de povoamento mais antigo.
35. Com efeito, ao sul do Mondego, a casa situa-se do mesmo modo à
face do caminho, com uma fachada térrea onde se vê um motivo de
janela-porta-janela parecido com o da Gândara, seguida de um portão
largo que dá entrada para o telheiro – a que chamam zambório – e pátio;
mas só com o estudo aprofundado do seu interior se poderá chegar a
qualquer conclusão acerca da natureza exacta das relações que ela tem
com a casa gandaresa. De facto, o motivo em questão apresenta-se com

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 207/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

uma estrutura diferente : a porta não fica a igual distância das duas
janelas, porque muitas vezes o borralho da cozinha está entre ela e a
janela, alargando o espaço entre ambas. Também o portão, embora no
prolongamento da fachada (como sucede na casa gandaresa da Tocha), é
geralmente independente desta, com um telhado diferente, acusando
mesmo, frequentemente, um ligeiro recuo. Contudo, parece inegável a
existência de um certo parentesco, se não de origem, pelo menos
derivado de influências ou de sugestões difíceis de precisar.
36. Em muitos casos deste último tipo, os corpos mais altos parecem ser
de construção posterior à do resto da casa, e de facto as informaçõs que
colhemos confirmam esta aparência; contudo, muitos deles são sem
dúvida bastante antigos, e em qualquer hipótese é-nos impossível
afirmar com segurança que algumas destas casas não tenham sido
construídas duma só vez, correspondendo as diferenças de estilo dos dois
corpos apenas a uma diversidade de conceitos.
37. A parede da fachada deste acrescento está geralmente no plano que
corresponde à linha externa do beiral da fachada dos quartos e do
alpendre da casa do 1.° tipo. Nessa maior altura e avanço, em relação à
casa que se nos afigura primitiva (vide nota anterior), sente-se o desejo
de ostentação do proprietário, sobrepondo à humildade da casa baixa, de
beiral corrido, uma fachada mais aparatosa e de tipo urbanístico mais
acentuado.
38. Jaime Valente Matos, aluno de Geografia Humana (curso de 1954)
da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, num trabalho
escolar sobre a casa de Pardilhó, indica, como medidas desses adobos,
60 x 20 x 12 cm.
39. Valente Matos, loc. cit., fala, em relação a Pardilhó, de caboucos de
50 cm de profundidade.
40. Tijoleira é uma espécie de tijolo com cerca de 2 cm de espessura, x
0,30 x 0,15.
41. Ouvimos denominar guarda-posar o acto de colocar esse forro.
42. Valente Matos loc. cit., indica, sempre em relação a Pardilhó, como
medidas das janelas, 60 x 25 cm, e diz que estas tinham portadas, além
das vidraças. As frestas compunham-se apenas de portadas.
43. Excepcionalmente, vimos uma única casa com o tecto de masseira. É
uma casa do 3.° tipo, bastante modificada e talvez menos característica,
cuja parte mais antiga tem na padieira da porta da sala para o alpendre a
inscrição da data de 1798. A velha sala tem com efeito o tecto de
masseira, pintado a cola, com motivos de grinaldas de flores; o forro
parece ser de pinho. Duas janelas, agora parcialmente entaipadas, têm
bancos laterais de pedra tosca. O alpendre não tem a beleza usual, e, em
vez de colunas, tem prumos de madeira mal afeiçoada. O que sobressai
notavelmente nesta casa é o luxo da decoração da sala e a existência de

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 208/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

uma bela copeira ou cantareira de parede, inclusa na estrutura, a atestar


o carácter cerimonial dessa divisão.
44. Nas casas do 2.° tipo, a cozinha situa-se na retaguarda, não dando
para o alpendre, do qual está separada pela despensa ou sala do meio, e
abre para as traseiras, directamente, por uma porta exterior.
45. Valente Matos, loc. cit., fala também em ladrilhos.
46. Esta particularidade ocorre com mais frequência nos locais afastados
do aglomerado de Pardelhas, porque aqui a falta de espaço contraria
qualquer regra ou tendência desta espécie.
47. Valente Matos, loc. cit., referindo-se a Pardilhó, dá ao coberto
também o nome de arrumada, e ainda pátio, se dá para a rua; estaleiro é
o conjunto das medas de palha e caruma, e ao quinteiro chama também
terreiro. Falando nas construções que se situam no quinteiro, diz que os
currais, além de adobo de barro sem revestimento, podem ser de
madeira, e menciona, com o poço, a bomba de picota.
48. Em Estarreja, vimos uma, cujo exterior fazia pensar nestas, mas cuja
divisão interior era totalmente diferente.
49. Parece mesmo que a Câmara não aprova a sua planta, por
insuficiente cubicagem dos quartos.
50. A exposição ao sul é aqui menos certa, porque estas casas
subordinam-se, mais do que as outras, ao alinhamento do caminho, em
prejuízo da orientação Norte-Sul, que naquelas era quase obrigatória. De
resto, a ausência de alpendre torna a eira mais independente da casa, e
liberta-a da preocupação dessa orientação.
51. Valente Matos, loc. cit., mais uma vez referindo-se a Pardilhó,
distingue casas de barro, de adobos de barro, que, tal como as descreve,
parecem ser apenas uma pequena variante das que aqui estudamos ; e
casas de adobo, de adobos de cal e areia, de 60 x 20 x 13 cm, que
representam o tipo de construção actual. A casa tem dois corpos: o corpo
principal, abrangendo a sala e dois quartos ao fundo, mais alto do que o
outro, que compreende outro quarto e a cozinha. As paredes erguem-se
até à altura de 2,50 m e rematam com uma cinta de cimento armado; as
do corpo principal sobem mais 50 cm. Os telhados dos dois corpos são
de duas águas e de telha marselha. As cornijas por baixo do beiral têm
ricas molduras.
A chaminé é mais pequena do que a das casas de barro, mas do mesmo
formato; a lareira é também mais pequena do que ali, e eleva-se cerca de
80 cm do solo. Acima dela uns 20 cm, abre-se a boca do forno, que se
ergue fora, na arrumada ou coberto.
As casas são caiadas de branco, com portas e janelas verdes ou
vermelhas, e tectos pintados de azul-claro.
52. Cfr. Jorge Dias, Fernando Galhano e Ernesto Veiga de Oliveira, «A
Região e a Casa Gandaresa », in : Trabs. Antrop. Etnol, XVII, Porto,

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 209/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

1959, págs. 417-437.


53. Vid. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas da
Murtosa », in : Trabs. Antrop. Etnol, vol. XV, fasc. 3-4, Porto, 1955/57,
págs. 265-285.
54. Este carácter comum das casas desta região explica-se também em
parte pela identidade do material de construção empregado, o mesmo
nível de exploração agrícola, etc.
55. 70 cm de largura por 1,70 cm de altura.
56. Como sucede com frequência nesta região, a iluminação deste
compartimento é feita por um vidro colocado no forro.
57. A porta da cozinha para o exterior tem 1,45 de altura.
58. É o que sucede numa casa da Guia (Pombal) (des. 122-II)
59. O des. 123-b mostra a divisão de uma casa da Ortigosa, onde esta
modalidade abunda, que reproduz efectivamente, nas peças principais, a
planta típica da casa da Granja. De resto, mesmo exteriormente, é muitas
vezes difícil distinguir se o alpendre está a meio da fachada ou ao canto,
porque a casa se encosta a outras com igual aspecto.
60. Veja-se com efeito o des. 123-a, que representa a planta de uma casa
de Conqueiros.
61. Esta descrição corresponde a uma casa que se encontra à beira da
estrada que vai da Marinha das Ondas à Leirosa, a qual se encontra já
parcialmente arruinada, mas que se pode considerar típica. O seu actual
proprietário atribui-lhe com segurança mais de cem anos.
62. A casa toma assim, um pouco, a disposição das casas gandaresas de
Mira, com o corpo estreito estendido para retaguarda; contudo, aqui, não
se vê a série de pequenos edifícios que se seguem a esse corpo, e que ali é
usual.
63. Vid. Revista Lusitana, XIX, pág. 143. O autor do artigo fornece
interessantes informes acerca do arranjo interior da casa de Lavos.
64. De facto, o aglomerado piscatório, nestes casos, é de data recente;
formou-se a partir dos barracos de abrigo que existiam na praia,
residências temporárias de pescadores e lavradores que viviam na
povoação interior.
65. Vimos já as velhas casas dos pescadores poveiros também eram de
madeira, embora possivelmente, pelo seu turno, proviessem de
primitivos barracos de abrigo. Cf. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando
Galhano, Casas de Pescadores da Póvoa de Varzim, nota 25.
66. Alberto Sampaio, «As póvoas martítimas », in : Estudos Históricos e
Económicos, Porto, 1923, págs. 266-268, 320-322.
67. É esta opinião de José Fortes, in : Restos duma Villa Lusitano-
Romana, Porto, 1905, págs. 14 a 43, citado por Fonseca Cardoso, « O
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 210/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Poveiro », in : Portugalia, tomo II, Porto, 1905-1908, págs. 522-523.


Este último autor admite, porém, que essas ruínas representam « uma
parcela da proto-histórica povoação marítima dos velhos oestrimnios
que exerciam a indústria da pesca e da salga de peixe sob o regime
fenício, que dela fizera possessão sua», e que habitavam esta parte da
Ophiusae Frons de Avieno. Fonseca Cardoso sustenta a hipótese da
ascendência semítica fenícia e nórdica normanda do poveiro actual, pela
acção destes dois grupos étnicos sobre o fundo indígena constituído pela
ligação íntima das duas raças neolíticas, dolicocéfala e braquicéfala
mongoloide : « Sobre um estrato indígena já pescador, porção desses
oestrimnios de Avieno, que ensinaram aos Tartésios e aos Tírios o
caminho das ricas Cassitérides, assentaram depois, em épocas mui
diferentes e distanciadas, duas raças humanas também pescadoras e
navegadoras: a fenícia semítica, e a loura teutónica ou normanda. E
assim se produziu o Poveiro, de viver simples, pacífico, exercendo a
pesca como navegante audaz e atrevido».
Numa hipótese como na outra, vemos, pois, que se afirma o substrato
castrejo do Poveiro. De resto, toda a região litoral, compreendida entre o
Ave e o Cávado, foi, desde os tempos pré-históricos, densamente
habitada. Inúmeros vestígios de civilizações dolménicas e castrejas que
por ela se encontram, nomeadamente sobre os areais de Lavra, Póvoa,
Abremar, etc., «atestam a permanência de sociedades humanas
neolíticas, luso-romanas, até hoje». E de facto, certos historiadores,
fundando-se pelo seu lado em razões de parentesco cultural entre o
grupo poveiro e as comunidades serranas minhotas e transmontanas,
filiam o primeiro, tal como parece ser o caso das últimas, nas gentes
célticas de civilização castreja. Com efeito, aqui como ali, deparamos com
o mesmo fundo comunitário, regendo aqui o trabalho e o produto da
pesca, embora se registe aqui uma certa diferenciação de classe que na
serra não existe, conforme a categoria do barco e do pescado – os
« lanchões », os « sardinheiros » e os «pescadores de linha » a
solidariedade social, ainda mais viva que nas sociedades serranas; o
governo independente e o recurso para julgamento de pleitos e testilhas
ao juízo dos « homens de respeito», com repugnância pela justiça
oficial ; a mesma elevação e austeridade moral... o amor à genuinidade
social, e, como consequência, a endogamia... a... fraternidade entre os
seus membros e ainda « certas palavras como o “ campo ”, aplicado a
certo mar ; a “caça”, ao conjunto das redes; a “ ceifa ” ao tempo que uma
“caça” anda no mar sem ser substituída ; ou as siglas representadas por
uma grade ou um arado, que marcam a transição da comunidade agro-
pastoril para a piscatória». Nesta orientação, o processo de assinalar
todos os objectos de propriedade individual, os de família e os de
«companha» com siglas próprias radica na tradição pré-histórica das
marcas do gado, com que se distinguem as reses do clã (vide Fonseca
Cardoso, op. e loc. cit., págs. 523, 530, 539, Jaime Cortesão, «A Póvoa e o
Poveiro », in : O Primeiro de Janeiro de 26 de Julho de 1956, pág. 1 ;

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 211/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Jorge Dias, Rio de Onor, Comunitarismo Agro-Pastoril, Porto, 1953,


págs. 134-135 e 183 (marcas de gado), e Vilarinho da Furna, Uma Aldeia
Comunitária, Porto, 1948, págs. 49-64 e 81-82 (marcas de gado) ; e
Santos Graça, O Poveiro, Póvoa de Varzim, 1932, págs. 17-34).
68. Acerca das escavações na Rua da Junqueira, veja-se padre Brenha,
«A Póvoa já foi romana», in : A Póvoa de Varzim, 2.° ano, n.° 14, 15 de
Maio de 1913 : « No centro desta vila, Rua da Junqueira, em 1898,
fortuitamente se encontraram restos de habitações romanas,
caracteristicamente definidas. O Sr. Manuel Ferreira Barbosa mandou
abrir, em Agosto daquele ano, um poço numa propriedade que possuía
na Rua da Junqueira, desta vila. Quando se procedia a essa obra, os
trabalhadores, a profundidade pouco mais ou menos de oito palmos,
encontraram dentro da área aberta para a perfúração do poço uma
parede orientada de L. para O., com a espessura de três palmos, feita de
pedras não trabalhadas, pedaços de granito rolados, seixos grandes
(material talvez abundante no tempo da construção da mesma) seguros
ou cimentados com terra negra, tendo misturada bastante areia.
Continuando os trabalhadores no abrimento do poço, viram que a parede
chegava até à profundidade de 21 palmos, onde encontraram o alicerce
dela. Nada se podia concluir com relação ao tempo a que se devia
atribuir esta obra, nem pelo modo de construção nem pelos materiais
empregados, e simplesmente se poderia dizer que era de feitoria muito
antiga, dada a grande diferença que havia entre o nível do alicerce e o do
terreno actual (21 palmos ! ) ; mas por um felicíssimo acaso, do lado do
norte da parede foram encontrados, perto da base, restos de cerâmica
romana (tégula, ímbrex, etc.), e (achado importante que pena foi
quebrar-se) um PANELO de barro preto em forma de cântaro, com duas
asas pequenas no pescoço, que mal lhe cabiam dos dedos, colocado
mesmo encostado à parede; ou até parecia que a parede tinha uma
espécie de nicho, onde ele estava, porque apesar da cautela que eu tinha
recomendado no desfazer da parede, lhe quebraram um bocado de bojo,
mostrando que estava meiado duma terra pardacenta, luzidia, húmida e
que, esfregado entre os dedos, era muito macia e tinha bem justaposto na
boca um tijolo... Por esta descrição se vê claramente que o tal panelo era,
quer pela colocação quer pelo conteúdo... uma URNA FUNERÁRIA (ola
ossuária). Desta espécie de umas ou vasos se servia a gente romana de
menos meios para nelas recolherem as cinzas ou ossos de seus
parentes». Veja-se também Viriato Barbosa, À Póvoa de Varzim, Porto,
1941, págs. 11-12, relatando o facto que teve lugar na casa que na data do
livro tinha o n.° 6, da Rua da Junqueira, e era propriedade de seu pai. A
notícia foi publicada nessa altura pelo P° Brenha no jornal local «A
Estrela Povoense », e o jornal «A Independência » também se referiu ao
assunto.
69. Fonseca Cardoso, op. e loc. cit., pág. 523.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 212/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

70. Alberto Sampaio, As Póvoas Marítimas, vol. I, Porto, 1923, pág. 321,
nota 5. O diploma em questão é uma carta de venda do prédio rústico de
Vila do Conde, feito por Flamula Deovota ao Mosteiro de Guimarães, em
que se indicam como limites, a nascente e norte, a Villa Fromarici
(Formariz) e a Villa Euracini ; «estes limites são os antigos – in suos
terminas antiquos ; ora os antigos, para os homens do século x, eram a
anterior sociedade germânica, que se fundira completamente na romana.
Os Suevos e Visigodos, apoderando-se do país romanizado, conservaram
cuidadosamente as limitações anteriores das propriedades, como
dispunha o Código Visigótico ; e isto mesmo estava no seu interesse, pois
assim mais facilmente se efectuaria o lançamento dos tributos; portanto,
dizendo-nos aquele título que a Villa de Comité estava limitada pelos
suos terminus antiquos, indica-nos até onde ascendia essa antiguidade,
quer dizer, o prédio rústico antigo que eles assinalavam tinha sido
fundado e demarcado primitivamente no período romano». (Cfr. Mons.
J. Augusto Ferreira, Vila do Conde e Seu Alfoz, Porto, 1923, págs. 11-12).
Viriato Barbosa amplia o raciocínio à delimitação da Villa Euracini, que
localiza sem dar razões, nas imediações da actual Rua da Junqueira.
« Essa vila, criada junto ao mar, teria certamente como principal
comércio, não obstante o seu carácter agrícola, a produção do sal... As
salinas ficariam a poente, talvez onde a Rua da Junqueira tem o seu
termo » ; o documento de 935, a propósito de Vila do Conde, fala de
salinas e pescarias, e na verdade o sal e o peixe eram elementos
primordiais na vida das « cividades e castros » ; ora, o mesmo grau de
riquezas devia possuí-lo a vizinha Villa Euracini » ; e reforça a sua
hipótese com a consideração de que os terrenos sobre os quais assenta
actualmente a Rua da Junqueira são de aluvião, e de que ainda não há
muito tempo, o mar, nas marés cheias, avançava pelos sítios da Rua do
Tenente Valadim até proximidades do antigo Largo da Bandeira. (Viriato
Barbosa, op. cit., págs. 11, 12 e 13).
71. Alberto Sampaio, op. cit., pág. 322.
72. Ib., pág. 356.
73. Ib., págs. 322-323. As Inquirições de 1220 informam que em Argivai,
onde a coroa possuía vários reguengos, os lavradores de 20 dos 42 casais
existentes, quando iam pescar ao mar, pagavam ao fisco o navão, isto é,
um peixe por cada navio, lancha, ou outra embarcação, ou uma mealha,
se o não faziam à sexta-feira ; os de Gesteira pagavam do mesmo modo o
navão, ou dois soldos por ano por cada embarcação, se não pescavam ; os
de Santa Cristina, chegando o governador da terra, serviam-no de
pescado. E a alternativa da « mealha » ou dos « dois soldos» mostra,
segundo este autor, « um trabalho usual».
74. Ibid., pág. 323.
75. Ibid., págs. 325 e 357.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 213/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

76. Ibid., págs. 323-325. É digna de nota a menção que neste diploma se
faz já da apanha do sargaço na Póvoa : « ...E mando que todo argaço que
seja em termho da dieta pobra o aiam os pobradores dela».
77. Ibid., pág. 325. Veja-se também P.e José Joaquim Martins Gesteira,
Memórias Históricas da Villa da Póvoa de Varzim, Porto, 1852, capítulo
v.
78. Gesteira, op. cit., cap. vi e vii.
79. Manuel Silva, « Terra Enfeudada », in : A Póvoa de Varzim, 3.° ano,
n.° 15, 15 de Junho de 1914. Alberto Sampaio, op. cit., pág. 326, lembra
que ainda hoje se chama « Vila Velha» a um bairro (que corresponde ao
local onde se construiu a igreja nova do Sagrado Coração de Jesus) onde
podia muito bem ter sido a « pobra » de D. Dinis. Viriato Barbosa,
porém, partindo da sua hipótese da localização de Villa Euracini nos
princípios da Rua da Junqueira, entende que a expressão « Varazim de
Jusaão » – isto é, de Jusante ou de Baixo, ou seja : junto ao mar –, que
figura no foral de 1308, significa que a « pobra » de D. Dinis representa o
desenvolvimento daquela villa romana (op. cit., pág. 22), e que portanto
o primitivo aglomerado dos « pobradores » se localizava igualmente
«por esses sítios da Junqueira» (pág. 68). E diz : « Se pudéssemos
recuar... quatro a cinco centenas de anos, veríamos... esta povoação de
pescadores, nos séculos xv e xvi certamente constituída por um
aglomerado de casas térreas marginando a enseada e, a nascente,
agrupando-se em redor da Capela da Madre de Deus» (págs. 38-39).
80. Viriato Barbosa, op. cit., pág, 39, afirma recordar-se de ver na Rua
da Junqueira duas casas térreas (demolidas nos princípios deste século,
que deviam remontar aos séculos xv ou xvi (!) ; e também que, por volta
de 1870/1880, havia ali « uns casebres também com as características
próprias da habitação de pescadores de tempos antigos» (pág. 39). De
resto, ainda hoje existem nessas imediações – por exemplo na Rua e
Beco das Hortas – casas características de pescadores, térreas, contíguas
umas às outras, com fachadas de porta e janela, dispostas a um dos lados
da rua, enquanto o outro mostra apenas traseiras de quintais, e das quais
algumas, na Rua das Hortas, se encontram no alinhamento antigo, mais
recuado que o actual. Contudo, o grande incremento do povoamento da
faixa litoral parece ter-se dado no século xviii. Vide nota 1 da pág. 235.
81. O edifício dos primitivos Paços do Concelho, que se pode ver, quase
intacto, na esquina das actuais Ruas da Igreja e da Conceição, foi
construído pouco depois do fim do reinado de D. Manuel I ; constava de
cinco arcos, três na frente e um a cada lado, na esquina, e tinha um
brasão de armas entre as duas janelas da frente (Gesteira, op. cit., cap.
xix ; e Viriato Barbosa, op. cit., pág. 42). Este último autor, op. cit., págs.
42-43, indica algumas casas nobres sitas naquele mesmo centro, que está
na origem do actual bairro da Conceição, que descreve como sendo «por
via de regra casas sobradadas de acanhadas dimensões e cuja

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 214/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

característica principal era a padieira com entalhes na face exterior, em


que predominavam as linhas curvas». O mesmo autor, sempre dentro da
sua hipótese topográfica, escreve : « O povoado, que primitivamente
tivera fulcro no lugar de Euracini, dos Romanos, estendia-se para o
Nascente e criara no actual bairro da Conceição o seu principal
aglomerado (op. cit., págs. 29 e 30). E esclarece que entre o edifício da
Câmara e a Igreja da Madre de Deus (edificada em 1542 no lugar que
corresponde à esquina poente fronteira ao adro da actual matriz, e que
durante muito tempo se julgou ter sido a primeira matriz da Póvoa,
transferida em 1702 para a Capela da Misericórdia, no lugar da Mata, e
demolida em 1898), tinha começo a Rua da Madre de Deus, artéria de
principal ligação entre aquele bairro e o dos pescadores, por meio de
travessas tortas e mal calcetadas... Os campos de Boído e dos Favais,
onde em parte... veio nos fins do século xviii a ser traçada a Praça Nova
do Almada, dividia os dois bairros» (pág. 43) ; e de facto, ainda hoje se
dá o nome de «Calçada» ao arruamento sul dessa praça. « E como a
enseada era de fácil acesso (pelo lado da terra), a população que
trabalhava no mar podia, sem prejuízo das suas ocupações, estabelecer
moradia até no lugar do Coelheiro (no interior, a nascente)... Não vai
longe o tempo em que, nesse lugar, considerado excêntrico, moravam
pescadores que, na quadra da faina do mar, se entregavam ao seu mister,
e no tempo da falta de peixe, arroteavam a terra» (pág. 39). « Dos
campos circunvizinhos vinham os ribeiros do Boído e dos Favais
encontrar-se no sítio onde algumas centenas de anos mais tarde se
construiu o Largo da Bandeira. Os dois ribeiros, juntando as águas,
passavam desde aquele ponto a formar o Esteiro. Este caminhava até ao
mar pelo leito que veio a ser aproveitado com os aterros feitos, para
formar, em parte, a actual Rua do Tenente Valadim... No lugar onde
vemos construído o Casino, as águas do Esteiro, nesses tempos recuados,
entravam no mar. O assoreamento de toda esta parte, que em tempos
remotos constituía a baía, foi lentamente feito durante alguns séculos...
Assoreada a maior parte da baía, o bairro dos pescadores ia alargando
para o Sul, de maneira a formar, já nos nossos dias, um novo bairro, o
mais típico da nossa gente do mar » (pág. 40).
O distinto investigador povoense, Exm.° Sr. Fernando da Silva Barbosa,
a quem o nosso inquérito tantos esclarecimentos e facilidades fica
devendo, e que pôs à nossa disposição material por ele recolhido para os
seus estudos, no seu trabalho em preparação sobre a topografia histórica
da vila, apoiado em documentação inédita, por ele descoberta, e no
memorial original que serviu de base às Memórias Históricas de
Gesteira, é de opinião de que em 1544 já a Póvoa de Varzim se
encontrava eclesiasticamente independente de Argivai, e de que a
primitiva matriz tinha o seu assento numa ermida da invocação de S.
Tiago que se situava no actual Largo das Dores, antigo lugar da Mata, da
qual apareceram vestígios – nomeadamente uma imagem do Apóstolo, a
que o Livro Costumeiro da Misericórdia atribui a idade de cerca de 8

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 215/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

séculos, e « uma porta de cantaria, em ogiva, com a soleira bastante


gasta... vendo-se, na parte superior externa, duas siglas », e, além dela,
grande quantidade de silharia, também com « siglas » (Bemardino Faria,
« S. Tiago e S. Telmo na Igreja da Misericórida », in A Póvoa de Varzim,
3.° ano, n.° 8, 28 de Fevereiro de 1914, com ilustrações das imagens dos
dois santos e da porta e siglas nos n.° 7 e 8 do 5.° ano, de 13 e 20 de
Fevereiro de 1916). Quando da demolição em 1910 da antiga Capela da
Misericórdia, que incorporara e viera ocupar o lugar daquela ermida, e
que foi substituída então pelo actual templo da Misericórdia. Em 1757, a
matriz da vila é transferida e instalada na actual matriz, então acabada
de construir, por a da Mata ser muito distanciada da vila.
82. A Capela de S. Roque foi fundada em 1596 por Diogo Peres de S.
Pedro e sua mulher Maria Fernandes de Faria, e em 1741 erige-se aí a
Confraria do Apóstolo S. Tiago, « cuja imagem se diz que apareceu na
praia desta vila no princípio do cisma de Inglaterra » (Gesteira, op. cit.,
cap. xvii). Segundo Viriato Barbosa, essa capela foi fundada, com efeito,
«para servir a população do primeiro bairro de pescadores, que era por
esses sítios da Junqueira». (Op. cit., pág. 68).
83. Num manuscrito datado de 1758 da autoria do tenente Veiga Leal,
intitulado Noticia da Villa da Póvoa de Varzim, que o Sr. Fernando da
Silva Barbosa estudou e de que nos dá conhecimento, fala-se na
« divisão » que nessa data se faz « entre as ruas e casas que eram vila
antiga e casas e ruas que de novo há poucos anos se formaram e vão
formando em outro plano mais próximo da praia do mar chamado
Junqueira, nome provindo de ser este sítio algum dia antes de povoado
um juncai ». (A Junqueira era a área compreendida entre a actual rua do
mesmo nome e a Rua dos Ferreiros). « O espaço que divide hoje esta vila
em duas partes é uma calçada de 33 braças ordinárias de comprido, e 2
de largo, com paredes de um e outro lado que tapam uns amenos prados
e férteis campos...» E mais adiante : «... a Rua da Areia, que tem este
nome por ser já formada em areia solta da praia, e em falta de chãos
sólidos para edificação das muitas casas que cada dia se inovam, e
brevemente virá a ser preciso denominar as ruas da areia com
distintivos, porque a Vereança teve e tem a providência de dar arrudos os
chãos para edifícios, que nalguns estão já levantados, e demarcados
outros; mas como se não acham sucessivamente continuados, é tudo ao
presente Rua da Areia...» E numa acta da Câmara da Póvoa de Varzim,
datada de 20 de Outubro de 1767, que o mesmo investigador descobriu e
nos autoriza a publicar em primeira mão, mencionam-se, numa ordem
de ideias semelhante, as « areyas que esta Câmara tinha aforado aos
moradores desta Villa para nellas fazerem cazas para sua vivenda...»,
dizendo- – se que «esta Villa tinha hido em hum grande aumento na
pescaria de sorte que já se compunha do melhor de sette centos fogos», e
que, como « não havia onde comodamente se pudecem idificar cazas
para acomodação do Povo... recorrerão as ditas areyas adonde he muito
conveniente terem as ditas cazas para com mais brevidade acudirem às
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 216/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

suas embarcasoins da pesca por lhe ficarem contíguas a costa do mar...»


Por aqui se vê que o povoamento da faixa litoral foi feito por aforamentos
e que ele se deve ter intensificado sobretudo no decurso do século xviii.
(Vide nota 4 da pág. 261). Contudo, a casa n.° 41 da Rua da Assunção
apresenta a meio da padieira superior da porta de entrada uma inscrição,
deteriorada e pouco clara, que o Sr. Fernando Barbosa interpreta como
sendo a data de 1600. O estilo de certos pormenores dessa casa,
nomeadamente as padieiras arqueadas da porta e das duas janelas,
parecem indicar um estilo rústico do século xviii, e a inscrição pode
talvez representar a casa de 1800 (fig. 9). A ser porém exacta a leitura
daquele investigador, o facto provaria o povoamento do bairro sul a
partir pelo menos dos princípios do século xvii.
84. Cfr. Fonseca Cardoso, op. e loc. cit., pág. 524, transcrevendo a
informação do investigador povoense Sr. Manuel Silva; e também pág.
519. Veja-se ainda Viriato Barbosa, op. cit., págs. 69-72.
85. Cfr. Fonseca Cardoso, op. e loc. cit., pág. 524.
86. O Sr. Fernando Barbosa indica-nos a acta de uma reunião da Câmara
da Póvoa, de 1776, que já alude à « muita gente que a ela vinha comprar
peixe e também aos banhos do mar » ; e, por outro lado, uma resposta da
mesma Câmara, incluída no Livro de Actas, datada de 1824, que diz que
a vila continha « mais de 6000 habitantes, número que dobra nos meses
de Agosto, Setembro, Outubro e Novembro, com as pessoas que a ela
concorrem a tomar banhos das províncias do Minho e Trás-os-Montes ».
A feição balnear da Póvoa acentua-se principalmente no decorrer da
última metade do século passado após a construção da linha férrea do
Porto à Póvoa e Famalicão : «A praia... da Póvoa... só começou a tomar-
se conhecida como estância balnear marítima há cerca de 40 anos», ou
seja, por volta de 1870 (B.P., « Os banhos atravez da História », in : A
Póvoa de Varzim, 2.° ano, n.° 1, 1.a quinzena de Outubro de 1912). A
urbanização da zona central da praia e a transformação das casas e
barracas de pescadores, que bordavam o areal nessas paragens, em casas
e estabelecimentos para forasteiros, data dessa ocasião ; nos nossos dias,
viam-se ainda áreas de secagem de redes no espaço que corresponde
hoje mais ou menos ao largo fronteiro ao Palácio Hotel e Casino.
87. Actualmente Rua da Assunção.
88. Actualmente Rua de 31 de Janeiro.
89. Actualmente Rua de Miguel Bombarda.
90. O Sr. Fernando Barbosa informa-nos que estes carreiros, a que dão o
nome de « cangostas », que, com a largura de pouco mais de um metro,
atravessam, numa longa enfiada rectilínea que nasce na praia, os
sucessivos blocos compreendidos entre as ruas principais do bairro
piscatório, destinavam-se à passagem dos mastros e varais que se
recolhiam aos quintais, à mão, e tinham por fim evitar que se tivessem
de fazer grandes desvios.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 217/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

91. Existiam, também aqui, face à praia, umas pequenas barracas,


igualmente de madeira e muito toscas, que serviam apenas de
arrecadação de aprestos de pesca. Construções dessa categoria, ou com o
carácter de habitações temporárias, são, sob diversas formas, frequentes
em toda a costa norte, nomeadamente nas povoações de gente que se
dedica à apanha do sargaço, e em que o aglomerado se situa no interior,
havendo por isso necessidade de abrigos junto à praia. « D’ordinário
constituem dependências de casas de lavoura, só utilizadas... nas épocas
de procura do sargaço e em vista da arrecadação volante deste ou como
residência temporária do sargaceiro ». E pois possível que tais barracas
na Póvoa – de que vimos ainda um último exemplar na Poça da Barca, de
costas voltadas para o mar, servindo de oficina de carpintaria marítima
pertencessem a alguns desses pescadores que ainda no século xviii
viviam dispersos pelo interior da vila.
Em Vila Chã, a sul do Mindelo, o povoamento actual está a fazer-se pelo
aproveitamento e adaptação a casas de habitação permanente das
barracas de arrecadação que, em fileira, bordam a enseada, a sul do
povoado antigo. Essas barracas são de paredes de pedra; mas apesar
disso, cabe perguntar se, de modo semelhante, as velhas casas de
madeira da Póvoa se poderão filiar nessas primitivas barracas de abrigo
que havia na praia, ou se, pelo contrário, tais barracas representam a
adaptação de antigos prédios de tabuado, de que fala Rocha Peixoto,
« Os Palheiros do Litoral», in : Portugália, tomo 1, pág. 86.
92. Essa pintura era feita com os restos da infusão de casca de salgueiro
que sobravam da operação do « encasque » das redes (Vide Joaquim
Leitão, « Póvoa de Varzim », in : A Póvoa de Varzim, 2.° ano, n.° 16, 15
de Junho de 1913).
93. Joaquim Leitão, op. e loc. cit., 2.° ano, n.os 16 e 17 de 15 de Junho e 13
de Julho de 1913, insiste na grande largura das portas destas casas, que
constituem a sua « única pretensão ambiciosa», e que, segundo o autor,
ocupam mesmo, em muitos casos, toda a fachada, para que o pescador
«possa entrar com uma coroa de cordas em cada braço, um leme ou um
remo ao ombro...», e além disso, « de olho no secadouro e ancoradouro»,
e sem se mexer do catre ou da lareira, observar o seu barco, o estado do
tempo ou do mar, etc. Com base nos elementos informativos de que
dispomos, não parece que este pormenor se possa considerar de carácter
geral e típico destas casas.
94. Por vezes um tabique de tábuas a prumo isolava a lareira do resto do
compartimento, onde as pessoas dormiam. Joaquim Leitão, op. e loc.
cit., 2.° ano, n.° 17, referindo-se a estas casas, diz que esse
compartimento era « dividido (?) por um leito de bancos ou beliche,
suspenso da parede, e pela lareira...». E Ramalho Ortigão, As Praias de
Portugal, Porto, 1876, pág. 57, escreve a este respeito : «As casas são
interiormente de um grande pitoresco... O mesmo quarto serve de sala,
de alcova, de cozinha. A um lado está o lar, ao outro a cama, um leito ou

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 218/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

um beliche suspenso como a bordo; a prateleira da louça pende de uma


parede; do tecto suspendem-se os molhos das cordas cor de sépia; as
trouxas de roupa, as redes, os cestos, os aparelhos de pesca». E fala nos
« cações escalados que estão secando ao sol estirados nas pontas com
três pregos» e nas «paredes negras e gordurosas».
95. Na nota anterior, citámos a indicação de Joaquim Leitão, que fala de
« leito de bancos ou beliche suspenso da parede», e a de Ramalho
Ortigão que fala de « um leito ou beliche suspenso como a bordo».
Cremos que este « beliche » deve significar a armação das camaretas, de
que nos ocuparemos detidamente a seguir, ao estudarmos a casa
característica do pescador poveiro, de cal e pedra. Todos os nossos
informadores, porém, foram unânimes em afirmar que nas casas de
madeira, rudimentares e pobríssimas, não existiam camaretas ; as
notícias em questão têm possivelmente em vista as demais casas, de cal e
pedra, embora pareçam referir-se, especialmente a de Joaquim Leitão, às
de madeira, que com aquelas alternavam.
96. Vide Joaquim Leitão, op. e loc. cit., 2.° ano, n.° 17.
97. Ibid : « Quem se embrenhar pelos dois arruamentos que formam as
três filas mais ou menos irregulares do bairro, entra desde aí a
surpreender as minudências caseiras de marítimo : criancitas descalças,
corpete e cuecas rachadas a meio das nádegas, urinando de pé, como
homens; um rapazote, atirando uma acha para o fogo em que referve, em
plena rua, verdadeira oficina comunalista, o caldeirão de casca de
carvalho; uma pequenita que passa, a correr com a almotolia do azeite;
uma pobre viúva, de cântaro de folha à cabeça...; interiores húmidos,
onde blusas e calças de baeta, encharcadas da última pescaria, teimam
em secar, onde as mulheres se catam e onde neptunos de... meses
esperneiam por cima de encerados velhos, alumiando com a carnação...
dos seus pezitos... a lobreguidão dos panos brossados a pez ; mulheres de
olhos avermelhados, pelo contacto abusivo da salmoira e da salsugem,
agravam as suas oftalmias crónicas remendando a filharada ou o
homem, na escuridão de porões que sepulta os catres; e... sem pressas
mas sem melancolias, cachimbando, um velhote de matacões grandes e
boina carregada começa pachorrentamente uma rede, com o descanso de
quem tem diante de si outra tanta vida para tecer e romper ». De resto,
ainda hoje, o trabalho feito pelas pessoas sentadas no chão, na sala, à
porta da casa, que está geralmente aberta, à vista da rua e de quem
passa, é um traço característico da vida poveira ; e nas Cachinas,
tributárias da Póvoa sob múltiplos aspectos, vê-se toda a gente na rua, na
lida caseira. Ramalho Ortigão, op. e loc. cit., fala também em « todas as
casas abertas», «em dias de sol».
98. Acerca da solidariedade social e do sentido comunitário no grupo
poveiro, veja-se nota 1 da pág. 230. Como manifestações dessa natureza,
na vida da rua, temos notícia do « encasque » das redes que então aí se
realizava, e que era preparado na «caldeira» e «pio» de qualquer
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 219/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

pescador mais abastado, que as possuía e emprestava aos vizinhos mais


pobres, sem nenhuma remuneração. E vimos que Joaquim Leitão,
referindo-se à vida na rua, fala no « encasque » e chama ao « caldeirão »
« verdadeira oficina comunalista » (nota anterior).
99. Na região da Póvoa encontramos ainda algumas construções de
madeira que apoiaram a nossa investigação, nomeadamente o barracão
da Poça da Barca na que nos referimos na nota 1 da pág. 237, e um
casebre no bairro da China, a sul de Azurara, onde há cerca de trinta
anos todas as casas eram desse material. O nosso estudo foi porém feito
principalmente à base da documentação fotográfica existente no Museu
da Póvoa, comparado com a notícia, de resto lacunar e imprecisa, de
intenção descritiva puramente literária, de Joaquim Leitão, já várias
vezes mencionada, intitulada Póvoa de Varzim, e publicada na revista
«A Póvoa de Varzim », 2.° ano, n.os 14, 16 e 17, de 15 de Maio, 15 de
Junho e 13 de Julho de 1913 ; e 3.° ano, n.os 1, 2 e 4, de 15 de Outubro, 15
de Novembro e 24 de Dezembro do mesmo ano – completadas e
esclarecidas com os informes de alguns poveiros da velha guarda, de
entre os quais destacamos o Sr. José da Costa Novo, que nos dá a honra
de nos chamar seus amigos.
100. Joaquim Leitão, op. e loc. cit., 2.° ano, n.° 16 ; e também Rocha
Peixoto, op. e loc. cit., que diz que « na Póvoa de Varzim, ... o prédio de
tabuado desaparece rapidamente, mal se encontrando já um ou outro
disperso e até, as mais das vezes, adaptado a armazéns de sal e de
pescado» (A este respeito, veja-se o que dizemos atrás, na nota 1 da pág.
237, acerca das origens das casas de madeira).
101. Fonseca Cardoso, op. e loc cit., págs. 517-518, indica um total de
cerca de 1200.
102. Joaquim Leitão, op. e loc. cit., 2.° ano, n.° 16. É típico o aspecto de
certos lanços de ruas da Póvoa, com estas fachadas brancas que parecem
simples muros, apenas com portas de quando em quando, e o mesmo
beiral estreito, corrido para todas elas. Hoje porém predominam as
fachadas de cores variadas e garridas, entre as quais por vezes se vê uma
ou outra rara fachada estreita e branca, como nesses velhos tempos.
103. Nas ruas baixas do bairro sul, aonde, no Inverno, as enxurradas
eram mais violentas, o pavimento dessas casas ficava muitas vezes
inundado, chegando mesmo a verem-se as « masseiras » do « encasque »
vogando dentro delas como se fossem pequenos barcos.
104. Era ao postigo da porta da rua que a rapariga poveira namorava :
«ela de dentro da casa, deixando ver pelo postigo o seu... rosto,... e ele
junto à ombreira de fora» (Santos Graça, op. cit., pág. 177, com uma
gravura).
105. Fonseca Cardoso, op. e loc. cit., pág. 518, baseando-se no Inquérito
Industrial de 1890, indica, como medidas destas casas, além dos 2,5 a
3 m de altura, 3 a 4 m de frente por 6 a 7 de fundo. De facto, vêem-se
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 220/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

ainda algumas casas extremamente estreitas, mas muito raramente. A


média que constatamos é a que consta do texto. O autor tem sem dúvida
em vista as casas de pedra e cal, mas talvez as medidas que dá digam
respeito à média das casas de madeira que mencionámos atrás, que
então ainda ali existiam correntemente, e eram certamente mais
pequenas do que as outras.
106. Vimos já que a uma dessas ruas davam mesmo o nome de Rua de
Trás dos Quintais.
107. É relativamente frequente a existência de tabiques de madeira à
vista separando uma casa da vizinha. Aproveitamento de espaço para
maior rendimento do proprietário, ou restos ou reminiscências de
antigas casas de madeira, em que essa solução seria certamente muito
corrente ?
108. No n.° 115 da Rua de Miguel Bombarda, encontra-se uma destas
casas cuja sala é também térrea como a cozinha; mas de facto são visíveis
os sinais de ter sido originariamente soalhada.
109. Numa casa do bairro sul, a trave era um antigo mastro de lancha,
que ainda se vê no « forro ».
110. Santos Graça, op. cit., pág. 161.
111. De facto, aproximadamente a altura da parede da frente.
112. Os topos e o fundo das camaretas, e o fundo do camarote entre elas,
eram as próprias paredes da casa, sem revestimento de madeira.
113. As camaretas que indicamos, com as divisões de tabique, são as
descritas por Santos Graça, de que de facto encontramos um último
exemplar perfeito na casa n.° 122 da Rua do Norte (actualmente Rua de
Latino Coelho). Cremos porém que o simples tapamento de madeira a
separar as duas camaretas (des. 128), tal como se vê ainda na casa n.° 85
da Rua de Miguel Bombarda, deve também ter sido usado.
114. Nas casas de pescadores da ilha de Marken, no antigo Zuiderzee
(Holanda), de acordo com o exemplar que se encontra no Museu
Holandês ao Ar Livre, de Arnhem, ao fundo da divisão que serve de
cozinha e de quarto, para a qual se entra directamente do exterior, vêem-
se duas alcovas contíguas; e informam-nos de que os filhos da casa
dormiam também no chão sob essas alcovas, devido à falta de espaço, e
porque assim ficavam mais abrigados do frio. (Veja-se o que, a respeito
do costume poveiro de se colocar o berço com os filhos pequenos debaixo
da « camareta », costume parecido com o holandês que aqui apontamos,
mas com sentido diferente evidente, dizem Raul Brandão, Os
Pescadores, Lisboa, 1923, pág. 59, e Cândido Landolt, Folklore Varzino).
De facto, aquelas casas têm acomodações extremamente precárias: além
da divisão que mencionámos, servindo de entrada, cozinha e quarto,
onde se encontram as duas alcovas, existe só uma pequena sala lateral,
que serve apenas para nela se disporem os objectos de adorno e

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 221/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

decoração mais ricos da família. É interessante notar-se que, a despeito


dessa exiguidade especial, o elemento cerimonial prevalece sobre as
considerações de utilidade funcional : uma daquelas alcovas é apenas de
aparato – como a pequena sala lateral –, e enquanto a gente nova dorme
no chão, exibem-se nela as belas cobertas e travesseiras de luxo, das
bodas do casal.
Na casa rústica portuguesa, de um modo geral, a sala tem também
muitas vezes uma função primordial exclusivamente e, por vezes,
expressamente cerimonial, ligada em especial com os actos de carácter
religioso, nomeadamente a visita pascal e a velada fúnebre, e às vezes
casamentos e outras solenidades festivas. A despeito também da falta de
espaço, ela fica à margem do movimento normal da casa, mostra muitas
vezes ornatos estruturais que pelo seu esmero contrastam visivelmente
com a singeleza do resto do edifício ; é lá que se encontram as melhores
peças do mobiliário, etc. ; e, em certas áreas, nela se vê sempre um
oratório, que por vezes se situa mesmo num nicho de parede. Atestando
este carácter cerimonial da sala, essa divisão é conhecida na Murtosa
pela designação de « Sala do Senhor » (Cfr. Ernesto Veiga de Oliveira e
Fernando Galhano, «Casas da Maia e Casas de Esposende », in :
Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. XV, fascs. 1-2, Porto, 1954,
págs. 55-84 ; id., « Um tipo de casa rural dos arredores do Porto», in :
Douro-Litoral, sétima série, VII-VIII, Porto, 1956 ; e id., Casas da
Murtosa, em publicação). Numa ordem de ideias semelhante, vemos na
Dinamarca, numa casa rural de Romo, na Jutlândia do Sul (n.° 19 do
Museu ao Ar Livre de Copenhaga), uma divisão que se chama o « quarto
do morto», porque era ali que se colocava o cadáver até à hora do
funeral.
115. E frequente verem-se um ou dois toros de madeira postos
verticalmente entre o barrote frontal das « camaretas » e o
madeiramento do telhado, servindo de escoras ou travações.
116. A. Santos Graça op. cit., pág. 162.
117. «A família poveira cóme ao centro da casa : um banco, quando não é
o próprio soalho, serve de mesa, sentando-se no chão todos em volta.
Não há garfos ; comem à mão, todos da mesma bacia, bebendo também
pela mesma garrafa» – a garrafa de bojo largo e gargalo estreito, cuja
rolha tem um furo por onde o vinho é coado para demorar a bebida, e
que um pino de pau tapa. O Poveiro tem duas refeições ao dia; o jantar,
ao meio-dia, e a ceia, à noite; quando faz frio, de madrugada, toma umas
migas de unto açucaradas – o regalo com que a mulher o regala quando
ele chega do mar, nas noites frias. Pelo dia fora, se o estômago aperta,
petisca um bocado de broa do « balaio » ; o seu principal alimento é
porém o peixe; deita-se cedo, depois da ceia; se tem de ir amarrar à proa,
deita-se ao pôr do Sol, e toda a família faz o mesmo; e levanta-se também
cedo, à hora da missa primeira.
O Poveiro trabalha, do mesmo modo, geralmente acocorado ou sentado

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 222/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

no chão ou em pequenos bancos, ou caixotes; de dia, como já dissemos


na nota 2 da pág. 239, junto da porta, que está sempre aberta, para se ter
melhor luz, para ver quem passa e, principalmente, por costume. O
homem, em princípio, só trabalha no mar, e em terra e em casa não faz
nada; os trabalhos domésticos, a cozinha, o cuidar dos filhos, etc., e
mesmo aqueles que se relacionam com as redes – o « adoçar » e o
« encascar » são feitos apenas pelas mulheres, a quem compete a
administração do dinheiro, que o homem lhe entrega integralmente,
reservando para si unicamente o « dinheiro das partes», com que paga
os seus cigarros e um copo na taberna. Na realidade, porém, ele também
trabalha em casa, fazendo e compondo redes, de dia e principalmente
nos « serões », que têm lugar a cada passo, à noite, nas casas que tenham
mais espaço livre na sala : reúnem-se duas ou três famílias, e aí reparam
em conjunto as redes que vêm do mar, preparam o fio para as redes
novas, tecem-nas, beneficiam-nas, pisam a casca para o « encasque »,
etc. Os noivos aí ajudam a rapariga a preparar as redes do seu dote. Estes
serões começam à uma hora da madrugada, e acabam ao romper do dia;
todos trabalham, desde os 7 anos de idade, e ao mesmo tempo que
trabalham, contam-se histórias, lendas, casos acontecidos, etc., e no fim,
rezam um padrenosso «pelos que andam nas águas do mar » (A. Santos
Graça, op. cit., págs. 162-165).
118. Numa casa rural de Ostenfeld, no Schleswig do Sul (Dinamarca), (n.
° 25 do Museu ao Ar Livre de Copenhaga), vê-se, no que podemos
chamar uma versão de luxo, uma peça correspondente ao « balaio »
poveiro – de resto conhecido em formas parecidas e sob diversas
designações, em várias outras regiões do País: Duas prateleiras verticais,
onde também se coloca o pão, ligadas por três tábuas verticais, duas nos
topos e uma a meio, recortadas a capricho, donde partem as cordas que
as prendem às traves do tecto.
119. Cfr. Raul Brandão, op. cit., Veja-se também nota 1 da pág. 246, o
costume parecido na Holanda, embora com um sentido diferente.
120. A. Santos Graça, op. cit., pág. 162. A « graixa » é o óleo de resíduos
de peixe, « que enfuma as paredes e cheira que tresanda» (Raul Brandão,
op. e loc cit.).
121. Com efeito, todos os nossos informadores são unânimes em dizer
que cada família cozia sempre a sua fornada periódica. Os fomos de pão
subsistem em muitas casas, e em muitas outras são nítidos os seus
vestígios. Acresce que uma das peças características do mobiliário destas
cozinhas é a caixa, caixão, arca ou tulha, para o milho, e a masseira do
pão.
122. Estas « tinas » eram geralmente barricas que haviam contido
alcatrão, e por isso estanques. Encontram-se ainda hoje numerosos
exemplares, com os aros de madeira, muito deles agora cimentados por
dentro. Santos Graça (op. cit., pág. 163), esclarecendo que a salga da

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 223/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

sardinha se faz em Janeiro, fala também, para este efeito, em cântaros de


barro.
123. Qualquer sítio da sala servia para a gente nova dormir no chão. Uma
mulher recorda-se de, em criança, dormir debaixo do paneiro, enquanto
os pais vedavam a camareta com um pano que fazia de cortina.
124. Vemos aqui mais um caso em que é patente a semelhança de
aspectos culturais na Póvoa de Varzim e na lombada serrana de Trás-os-
Montes : em ambas as áreas, três gerações da mesma família vivem sob o
mesmo tecto, em economia conjunta, e este núcleo articula-se num corpo
social fortemente coerente, dominado decisivamente por um fundo
sentimento de solidariedade e unidade de casta. Falámos na nota 1 da
pág. 230 na hipótese que filia o grupo poveiro, do mesmo modo que as
actuais comunidades serranas minhotas e transmontanas, nas gentes
célticas da civilização castreja, contra a teoria clássica da sua ascendência
fenícia e normanda (sobre um substrato céltico, é certo), sustentada em
primeira mão por Fonseca Cardoso; e vemos aqui mais um elemento que
parece relacionar estas culturas. A despeito porém do seu possível
parentesco de origem, deve dizer-se que a unidade familiar extensa não é
na Póvoa tão perfeita e definida como na serra transmontana, tal como
Jorge Dias a descreveu, e parece mesmo de natureza diferente. Ela
ocorre esporádica e incompletamente, e mais por razões circunstanciais
do que em obediência a uma lei orgânica tradicional e geral da
comunidade. Murdock, de resto, não considera a simples coabitação o
factor definitório do conceito de família extensa (George Peter Murdock,
Social Structure, New York, 1949).
125. O « Respeito » poveiro pode na verdade considerar-se um elemento
cultural basilar da comunidade, que aflora de maneira efectiva em
múltiplas instituições. De certo modo, pode dizer-se que a « grei »
constituía uma gerontocracia de homens de vida austera e de bom
conselho, « os Homens de Respeito», com o prestígio da idade,
experiência ou saber, e probidade. O pescador poveiro nunca recorria aos
tribunais ordinários – as Casas Grandes –, para as soluções das suas
demandas, e considerava fazê-lo uma desonra e uma traição à classe, que
desclassificava um seu membro. As suas questões eram derimidas por
arbitragem, em que intervinham três « homens de respeito» – um
escolhido por cada parte, e o terceiro nomeado pelos outros dois –,
sendo as suas decisões aceites sem discussão. Mais tarde, os « Homens
de Respeito » eram por vezes ouvidos em tribunal, nos julgamentos entre
pescadores, e o seu parecer pesava decisivamente na apreciação do caso.
Ainda hoje, «a arbitragem dos Homens de Respeito prevalece... nas
posturas para a dissolução de sociedade entre companheiros donos de
barco; quando resolvem deitar posturas, nomeiam, na forma já
conhecida, os árbitros, a quem entregam as chaves da fábrica, onde
estão os aprestos marítimos, e indicam quais são os restantes haveres da
sociedade». Era também o « respeito » que mantinha a vigência e

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 224/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

salvaguarda da lei tradicional da comunidade – os preceitos –, por que


se regia a vida social poveira. Os preceitos regulam o amparo e auxílio
que é devido ao companheiro doente, à viúva e ao órfão, e ainda o
socorro a « prestar » na barra ao barco em perigo, e obrigam à
previdência na organização de novos lares. E eis como os Estatutos de
Compromissos da Irmandade da Corporação dos Pescadores desta Vila
da Póvoa de Varzim definem o pescador : « É considerado pescador todo
aquele que sem dolo nem malícia se empregar no exercício da pescaria,
levando a sua vida por este emprego e arte, ao menos a maior parte do
ano»... (Transcrito por Fonseca Cardoso, op. e loc. cit., págs. 519-20).
Na vida privada, familiar e doméstica, encontrámos o « respeito » na
obediência e deferência de tratamento dos pais, padrinhos e pessoas
idosas, na sobriedade da vida, na austeridade dos princípios por que se
regia a conduta das pessoas, no pudor e recato das relações entre os
sexos, na outrora frequente observância da virgindade do próprio
homem antes do casamento, na protecção às raparigas, na condenação
que implicava a frequentação do bordel, que chegava a tomar a forma da
exclusão do rapaz, etc. E, « quando as mulheres se pegavam, as...
velhinhas vinham e apartavam, depois perguntavam quem tinha sido a
causadora do barulho, e obrigavam- – na a ir pedir perdão à ofendida (A.
Santos Graça, op. cit., págs. 17-22 e 65-69). Emílio Willems, no seu
estudo da comunidade de Cunha (Brasil), fala também do « respeito »,
entendido num sentido afim do que indicámos, como lei fundamental da
vida social do grupo.
126. De facto, Santos Graça deixa entender que foi nos últimos anos do
século passado que a casa poveira, sob a influência do emigrante
brasileiro, começou a tomar aspectos diversos (op. cit., pág. 161, nota) ; e
esta opinião é corroborada com o que diz Joaquim Leitão (op. e loc. cit.,
2.° ano, n.° 16, 15 de Junho de 1913).
127. Deve entender-se contudo que as diferentes formas intermédias,
marcando embora estádios logicamente encadeados desta evolução,
aparecem de facto com inteira independência cronológica uns dos
outros – isto é, a ordem lógica não acompanha a cronológica ; assim,
numa casa mais recente do que outra, aparecem soluções que nesta
última já haviam sido superadas; e, em relação a um determinado
elemento, certas inovações, que patenteiam o sentido geral implícito
dessa evolução, vêem-se às vezes num número muito restrito de
exemplares. O que todas elas realmente acusam é a mesma direcção
dentro do processo genético, no sentido da progressiva transformação do
« falso » num verdadeiro andar.
128. Logicamente anterior a esta forma, dão-nos vários informadores de
idade notícia de casas em que se verificou apenas a pura e simples
supressão da armação das « camaretas ». A sala ficou desse modo ampla
e livre, e nela se dispuseram, à mistura com as redes, aprestos e mais
objectos, as camas e outros móveis que então se compraram e que teriam

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 225/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

constituído o luxo e o orgulho dos seus possuidores. Vimos algumas,


embora raras, casas deste género, com uma sala única, sem outras
divisões e que mostravam nas paredes vestígios da primitiva armação
das « camaretas ». Esta fase, contudo, coloca-se fora da escala evolutiva
das modificações da casa poveira, e por isso a excluímos do texto.
129. Estes quartos ocupam assim dois cantos da sala : um, junto à parede
frontal da casa; outro, atrás, junto à parede divisória da cozinha. Por
vezes, num terceiro canto da sala, geralmente também junto à divisória
da cozinha, no canto oposto ao que acabámos de mencionar, existe outro
cubículo. As portas destes quartos são quase sempre de duas folhas, e
têm bandeiras de vidro.
130. Exemplos de casas deste tipo nos n.os 89 e 118 da Rua de Miguel
Bombarda, e n.° 53 da Rua da Lapa.
131. Exemplo de casa deste tipo no n.° 51 da Rua de 31 de Janeiro.
132. Exemplo de uma casa deste tipo, em que o tecto da sala é de
madeira, no n.° 32 da Rua da Lapa. Note-se que o forro nunca recobre a
cozinha, que fica sempre com o telhado à vista; apenas numa casa, vimos
um « falso » que avançava parcialmente sobre a cozinha, que ficava a um
nível inferior ao do resto da casa.
133. Exemplos deste tipo de casas nos n.os 93 da Rua de Miguel
Bombarda, 91 da Rua de 31 de Janeiro, etc.
134. Casas com óculo ou postigo quadrangular, na Rua de António
Graça, entre os n.os 140 e 152, e também diversas na Rua de 31 de
Janeiro, e n.os 70 a 74 da Rua das Hortas. Com óculo ou postigo redondo,
na Rua de Serpa Pinto, n.os 40, 42, etc.
135. Exemplos de mirante prolongando a fachada, a meio, nas casas n.os
112 e 120 da Rua de Serpa Pinto, 136 da Rua de 31 de Janeiro, no beco da
Rua das Hortas, na Poça da Barca, etc.
136. Exemplos deste tipo de casas na Rua da Assunção, n.° 41, e na Rua
de Serpa Pinto, n.° 122.
137. Exemplos desta categoria nas casas n.os 68 da Rua da Assunção e 25
da Rua da Lapa, com « mirantes » revestidos de chapa, recuados, a toda
a largura da fachada.
138. O Sr. Fernando Barbosa esclarece-nos que em 1846 havia 26
famílias poveiras já instaladas ao sul da extrema do concelho, na Poça da
Barca, em consequência do desenvolvimento e expansão da Póvoa, junto
à orla costeira. Nas Cachinas, ainda nada havia, salvo alguma casa
isolada, de lavradores. O documento em que este distinto investigador se
baseia para esta afirmação é uma portaria do Governo Civil, datada de 24
de Janeiro de 1846, presente à sessão da Câmara da Póvoa de 7 de
Fevereiro do mesmo ano, que foi por ele descoberto e estudado em
primeira mão, e do qual, com sua autorização, damos a seguir o teor :
Aquela autoridade determina que «esta Camara informe acerca do
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 226/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

requerimento de Maria Roza Viuva da rua da Poça da Barca, que pelo


Ministerio dos Negocios Ecleziasticos, e da Justiça requereo a
desmembração da sua Caza, e de mais vinte e cinco moradores que
pertencem à freguezia de São João Baptista de Villa do Conde, para ser
anneixada a esta Villa da Povoa por assim a conveniência temporale
espiritual dos moradores da referida rua; allegando a requerente que a
dita rua dista quarto de legoa da Igreja Matriz de Villa do Conde,
mettendo-se de permeio regatos que no inverno fazem o caminho
intranzitavel, de que tem resultado fallecerem sem Sacramento algumas
das pessoas que occupavão as mesmas Cazas, e serem enterrados os
cadaveres d’outras occultamente no Cimiterio desta Villa, sem
assistencia do proprio Parocho » A Câmara informou que era exacto o
alegado pela requerente, «por que sendo certo que a dita rua da Poça da
Barca, bastante extença pertence a esta Villa e freguezia, apenas uma
piquena fração entrou pelos lemittes da freguezia de São João Baptista
de Villa do Conde em que existem os moradores mencionados pela
requerente, sendo conseguintemente de toda a justiça que aquelles
moradores per-tenção a esta Villa ». O mesmo investigador chama ainda
a nossa atenção para um texto que consta do Livro de Atestados da
Câmara, datado de 8 de Agosto de 1849, do qual se conclui que, nessa
época, havia na Poça da Barca apenas uma rua, com essa designação (a
qual representa o prolongamento da Rua da Areia, hoje 31 de Janeiro, da
Póvoa), que deriva do nome « d’um lugar outrora mui pouco habitado
por Ordinário Cabaneiros ». É o seguinte o teor do referido documento :
«A Camara Municipal do Concelho da Povoa de Varzim – Atesta q.e é
verdade nos limites desta Villa da Povoa de Varzim há uma rua
denominada – de Poça da Barca – cujo nome bem de tempos mui
remotos tomando este titulo d’um lugar outrora mui pouco habitado por
Ordinarios Cabaneiros, hoje porem se acha em forma de rua com boas
propriedades e fazendo parte da grande população desta Villa ; quase no
centro porem desta rua se acha um marco que divide as duas freguesias
contíguas – Povoa e Vila do Conde – e a esta ultima fica pertencendo
parte da população daquella rua; não há dúvida que este povo fica
distando meia legua da sua Matriz – V.a do Conde – e por terreno
solitário, e em tempos invernozos de mui incomodo transito, é
igualmente certo que ficão muitas vezes sem sacramentos a tempo, pois
não é porem esperar outra cousa quando para os supplicar é necessário
q.e o portador gaste pelo menos meia hora e muito mais d’outro tanto é
necessário para prontificar o auxílio pedido. O referido é verdade. Povoa
de Varzim em sessão de 8 de Agosto de 1849. Eu Antonio Joaquim de
Sant’Anna Escrivão da Camara o escrevi – José Pedro Carneiro –
Presidente ».
139. No sítio do Coval, freguesia de Tecla.
140. Vide Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas da
Maia» “e” «Casas de Esposende », loc. cit., Note-se que estas duas
regiões enquadram precisamente, a S. e a N., a área da Póvoa de Varzim.
https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 227/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

Uma hipótese a investigar e a esclarecer seria pois a da relação entre as


alcovas-armações de cama móvel – as « camaretas » poveiras –, que
vimos disporem-se sempre duas a duas (e mesmo, nos casos mais
perfeitos, simetricamente de cada lado do «camarote»), e as alcovas-
cubículos das casas da Maia e de Esposende, que se dispõem também
duas a duas, simetricamente de cada lado da porta do corredor ou
escada. Na Póvoa de Varzim vimos mesmo uma casa na Rua da Lapa, n.°
55, portanto em plena área das « camaretas », com a diposição interior
das casas da Maia e de Esposende : ao fundo da sala – e não ao lado –,
duas alcovas-cubículos, a cada lado da porta do corredor que conduz,
entre elas, à cozinha.
Conhecemos, em Portugal, outro caso especial de alcova, na descrição de
uma velha casa de mareantes da Foz do Douro, em que se menciona o
«armário de beliches» no corredor, « onde dormiam os rapazes» (Cfr.
Raul Brandão, op. e loc. cit.) ; é difícil porém afirmar se se trata de uma
alcova-móvel, se de uma alcova-armação, talvez com cama fixa. Neste
caso, seríamos tentados a pensar na influência de conceitos e formas
próprias de culturas marítimas – os beliches de bordo –, na formação
dessa peça mobiliária, tanto mais que toda a casa e vida de casa
traduziam essa influência dominante. A este respeito lembramos
também uma passagem de A. de Musset, que diz : «...une armoire à
alcôve s’ouvrait, contenant deux lits... »
141. Rocha Peixoto, « Os Palheiros do Litoral», in : Portugália, I, pág.
96 ; Mendes Correia, op. e loc. cit.; João Barreira, « Habitação », in :
Guia de Portugal, III ; Eugeniusz Frankowski, Hórreos y Palafitos de la
Península Ibérica, Madrid, 1918, págs. 66 a 69.
142. Raquel Soeiro de Brito, Palheiros de Mira. Origens e Evolução de
Um Aglomerado de Pescadores.

Notes de fin
1 Jorge Dias, F. Galhano e E. Veiga de Oliveira, «A região e a casa
gandaresa », Trabalhos de Antropologia e Etnologia, XVII-1-4, volume
de homenagem ao Prof. Dr. Mendes Corrêa, Porto, 1959.

2 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas da Murtosa »,


in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. XV, fasc. 3-4, Porto,
1955-56.

3 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano «Casas da zona central


do litoral português», in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol.
XVIII, fasc. 3-4, Porto, 1961/62.

4 Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano, «Casas de pescadores


da Póvoa de Varzim », in : Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol.
XV, fase. 3-4, Porto, 1957.

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 228/229
24/06/2023, 13:19 Arquitectura tradicional portuguesa - II. Casa térrea - Etnográfica Press

5 « Palheiros e barracos do litoral», in : Geographica, Revista da


Sociedade de Geografia, n.° 3, Lisboa, 1964.

© Etnográfica Press, 1992

Licence OpenEdition Books

Cette publication numérique est issue d’un traitement automatique par


reconnaissance optique de caractères.

Référence électronique du chapitre


OLIVEIRA, Ernesto Veiga de ; GALHANO, Fernando. II. Casa térrea In :
Arquitectura tradicional portuguesa [en ligne]. Lisboa : Etnográfica
Press, 1992 (généré le 24 juin 2023). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/etnograficapress/6563>. ISBN :
9791036556159. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.6563.

Référence électronique du livre


OLIVEIRA, Ernesto Veiga de ; GALHANO, Fernando. Arquitectura
tradicional portuguesa. Nouvelle édition [en ligne]. Lisboa : Etnográfica
Press, 1992 (généré le 24 juin 2023). Disponible sur Internet :
<http://books.openedition.org/etnograficapress/6508>. ISBN :
9791036556159. DOI :
https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.6508.
Compatible avec Zotero

https://books.openedition.org/etnograficapress/6563 229/229

Você também pode gostar