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Filme - Filhos Da Esperança

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Psicanálise e Cinema

v. 7, n. 7, 2019

Subjetividade, ética
e tecnologia:
expansões e limites

ISSN 2674-8142
Psicanálise e Cinema Rio de Janeiro v. 7 n. 7 100 p. 2019
CÍRCULO PSICANALÍTICO DO RIO DE JANEIRO – CPRJ
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Capa e diagramação – Marisco Design

Psicanálise e Cinema (Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro / Sociedade de Psicanálise da


Cidade do Rio de Janeiro), v. 1, n. 1, (2013) – Rio de Janeiro: CPRJ/SPCRJ, 2013.
Anual
v. 7, n. 7 (2019)
ISSN 2674-8142

Psicanálise – Periódicos. 2. Cinema. I. Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro – CPRJ.


II. Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro.
Sumário

Apresentação.............................................................................................................. 7

O show dos horrores ................................................................................................ 9


Sergio Gomes

Dos primórdios do reality show aos tempos de pós-verdade............................27


Mariana Bricio

Brilho eterno de uma mente sem lembranças: uma reflexão


sobre o laço amoroso .............................................................................................35
Fernanda Ribeiro Palermo

Brilho eterno de uma mente sem lembranças ....................................................47


Maria Pompéa Ferreira Carneiro

O irrespirável píncaro da perfeição ......................................................................53


Neyza Prochet

O preço de tudo ......................................................................................................63


Monica Aguiar

Sobre Ela: uma aposta na potência terapêutica da ilusão .................................67


Perla Klautau

Ela, do ser automático ao ser humanizado .........................................................77


Rachel Sztajnberg

Esperança .................................................................................................................83
Diana Dadoorian

Um olhar psicanalítico sobre o filme Filhos da Esperança.................................89


Marcia Maria dos Anjos Azevedo
5
Apresentação

Para o bem e para o mal, a ciência e a tecnologia transformam o homem que


as cria, sendo sucessivamente transformadas por ele. Quais são as bases deste
inter-relacionamento? Quais os limites de influência entre um e outro? Tais
perguntas acompanham o desenvolvimento científico desde longa data e que
incluem outras tantas indagações ligadas à ética destes acontecimentos.
A cultura pós-moderna tende a recusar estas responsabilidades éticas
buscando poder, resultados e controle numa perspectiva paradoxalmente per-
versa que, se por um lado, busca ampliar os limites humanos através do desen-
volvimento científico, acaba também perdendo a própria humanidade nesta
empreitada. Se a ciência e a tecnologia oferecem recursos extraordinários de
redenção de muitos dos males humanos, também deriva destes mesmos recur-
sos procedimentos que podem ser estarrecedores contra a condição humana,
além de disseminar desigualdades, aniquilar diferenças e criar outros e novos
malefícios de proporções igualmente monumentais.
O cinema é um espaço rico e abrangente, propício para a interlocução
entre ética, tecnologia e o elemento humano. Embora não existam soluções
definitivas para tais conflitos, é essencial a manutenção de uma reflexão vigi-
lante sobre os descaminhos que podem acontecer entre o conhecimento e a
humanidade. Os trabalhos a seguir ilustram a riqueza oferecida pelos encon-
tros realizados. Que eles possam dar continuidade a outras e novas reflexões.

Comissão Organizadora

7
O show dos horrores
Sergio Gomes* 1

“Como posso, nesse caso, dizer, ou vir a supor, que vejo o mun-
do pela pupila do meu globo ocular? Com certeza, não de uma
maneira essencialmente diferente da maneira como o vejo pela
janela ou, digamos, por um buraco de uma tábua atrás da qual
está o meu olho”.
Ludwig Wittgenstein, Observações filosóficas, 1976, p. 84

“O mundo é aquilo que vemos”.


Merleau-Ponty, O visível e o invisível, 1964, p. 15

Introdução: do olho que tudo vê ao olho que tudo mostra

A televisão faz parte do cotidiano de todos nós há quase cem anos. Ela mudou
nosso dia a dia e a forma como vemos e percebemos o mundo. Ela transfor-
mou nossa subjetividade, ajudou a criar outras, estabeleceu parte da nossa so-
ciabilidade, fomentou o capitalismo, o marketing, a moda, o cinema, o
jornalismo, o entretenimento e até mesmo influenciou nossa sexualidade. En-
fim, a televisão mudou nossos hábitos. Foi instalada em local nobre e de desta-
que na sala de estar, recebeu status de eletrodoméstico d
e primeira necessidade e se tornou um bem de consumo, com o objetivo de

*
Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Doutor em
Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), coorde-
nador do Nebulosa Marginal: Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise.

9
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

reunir a família em torno dos programas transmitidos, sempre ao vivo no iní-


cio, desestabilizando os mais crédulos sobre a função do rádio como única
fonte de notícias e diversão para muitos até a metade do século passado. Do
primeiro homem a pisar na lua, ao assassinato do presidente norte-americano
John Kennedy, das guerras às séries de televisão, das novelas aos programas de
auditório, das eleições presidenciais aos impeachments de determinados gover-
nantes, tudo foi motivo para ganhar mais e mais adeptos e, consequentemente,
fomentar o capitalismo. Afinal de contas, não é disso que se trata sempre?
De acordo com Pablo Santos e Cristina Luz (2013), a televisão só se tor-
nou possível através do advento da tecnologia a partir do momento em que,
em 1873, o selênio foi descoberto pelo cientista Willoughby Smith nos Estados
Unidos, como aquele elemento de grande propriedade fotocondutora. Três
anos depois, o norte americano Buzz Sawyer e o francês André Le Blanc cons-
tituíram um sistema de varredura que possibilitou que as imagens fossem cap-
tadas e transformadas em linhas e quadros, sendo transmitidas uma a uma
com altíssima velocidade, possibilitando sua visualização. Este passo foi deci-
sivo para a criação dos primeiros aparelhos de televisão.
Inventada pelo engenheiro escocês John Logie Baird, que conseguiu trans-
mitir, pela primeira vez, imagens estáticas através de um sistema mecânico de
televisão análoga, em fevereiro de 1924, ele só veio conseguir algo prodigioso
em termos de transmissão de imagens em movimento um ano mais tarde, em
30 de outubro de 1925. Para isso, John encontrou o office boy William Taynton
e o fez sentar-se diante de luzes quentíssimas e da aparelhagem que havia mon-
tado. De lá, foi para outra sala onde havia um aparelho de recepção de imagens
e pôde ver o rosto do rapaz através do monitor – ainda que rudimentarmente
– surgindo, assim, a câmera e o receptor de imagens.
Três meses depois, em 27 de janeiro de 1926, Baird criou outro aparelho e
fez uma apresentação na Royal Institution, pelo qual foi aprovado. No ano se-
guinte, em 1927, Baird finalmente conseguiu efetuar a transmissão do primeiro
programa de televisão entre Londres e Nova York, e não parou por aí. Em 1928,
empolgado com a sua criação, John Logie Baird tratou de criar a Baird Television
Development Company, já com expectativas de que seu invento mudaria o cená-
rio do entretenimento e da notícia na sua época, além de lhe gerar grande lucro.
Com os avanços das pesquisas e a melhoria dos resultados, ele conseguiu efetuar,
em 1931, a primeira transmissão de televisão ao vivo1. Logo chamou a atenção

1
Jornal O Globo, “Inventada em 1925, a TV só pegou mesmo depois da Segunda Guerra
Mundial”, Caderno Cultura, 13/08/2013. Disponível em: <https://glo.bo/2Sqe8pn>.
Acesso em: 30 mar. 2019.

10
O SHOW DOS HORRORES

da já então famosa British Broadcasting Company, a BBC de Londres, tornando-


-se um dos primeiros a produzir e a vender os modelos a serem utilizados para
transmissão de imagens e programas de TV. Porém, seis anos mais tarde, a BBC
resolveu trocar o sistema de transmissão de imagens e passou a fazer uso da tec-
nologia criada pela Electric and Musical Industries, que tentou padronizar o nú-
mero de linhas e quadros no sistema de televisão, fazendo com que John Baird
fosse esquecido na história da criação do aparelho de televisão2.
Naquela época, apesar de não haver uma produção em escala industrial
dos aparelhos, as transmissões abertas passaram a acontecer apenas a partir da
década de 1930. Primeiramente na Alemanha e, posteriormente, na Inglaterra,
Estados Unidos e União Soviética, que na verdade, contribuiu ainda mais para
o desenvolvimento do monitor de televisão. Foi o russo Wladimir Zworykin
quem criou e patenteou o ionoscópio (um tubo de raios a vácuo com células
fotoelétricas percorridas em alta velocidade por um feixe de luz), usado para
criar os primeiros tubos de televisão, produzidos em escala industrial a partir
de 1945. Assim, após a Segunda Guerra Mundial, o hábito de assistir televisão
foi se constituindo na vida do cidadão comum3.
Conforme sabemos, a televisão surgiu como uma extensão natural do rádio
até adquirir a sua linguagem própria. Consolidada no século XX como um grande
veículo de massa, ela se popularizou pelo conteúdo de entretenimento, informação
jornalística e cultural em todo o mundo, sendo uma das grandes produtoras e di-
fusoras principalmente da cultura norte-americana para o resto do mundo.
Com a criação de monitores cada vez mais poderosos, que passaram a
transmitir imagens em cores na primeira metade do século passado, e a conse-
quente criação de câmeras cada vez menores, passamos do “olho que tudo vê”
ao “olho que tudo mostra”. Se pensarmos direito, a televisão evoluiu nos últi-
mos trinta anos muito mais do que em todo o período que levou para ser
criada e popularizada. O mesmo aconteceu com a difusão das câmeras em
nossa vida4. Em todos os lugares por onde andamos, nas ruas, nos prédios, até

2
BEZERRA, J. História da televisão. Disponível em: <https://bit.ly/2E5srrC>. Acesso em: 30
mar. 2019.
3
PINTO, Tales dos Santos. Breve história da televisão. Site do “Brasil Escola”. Disponível em:
<https://bit.ly/2HbApzr>. Acesso em: 30 mar. 2019.
4
Um exemplo disso é o uso cada vez mais compulsivo das webcams no nosso cotidiano. Desde a
aurora do século XXI, as webcams são pequenas câmeras filmadoras que nos permitem filmar e
transmitir (ao vivo) tudo o que acontece na vida do seu usuário. Hoje em dia, é impossível andar
na rua, assistir a um show ou um espetáculo teatral sem que haja usuários filmando, fotografan-
do e ou transmitindo ao vivo o evento para algum sistema de notícias ou espaço virtual pessoal.

11
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

mesmo em certos cômodos da nossa casa, o hábito de filmar e transmitir nossa


imagem criou o estímulo para todo aquele disposto a ver e até mesmo pagar
por essas imagens. Assim, nossa vida privada, nossa vida íntima, nossa vida
cotidiana passou a se constituir em um show, um “show do eu” ou um “show
dos horrores”.

Onde se inscreve o horror?

O que você faria se um dia descobrisse que tudo o que viveu até hoje fosse
completamente falso e irreal? Seus pais, sua vida, sua casa, seus amigos, seu
trabalho, tudo não passasse de uma encenação em um mundo além da nossa
imaginação? É disto que se trata em O show de Truman (The Truman Show,
1998, direção Peter Weir, roteiro de Andrew Niccol5). O filme foi exibido no
final da década de 90 do século passado. Dizendo desse modo, parece ser um
filme antigo e, na verdade, já se passaram 21 anos desde a sua exibição nos ci-
nemas e na televisão aberta (poderia perfeitamente ser exibido como um clás-
sico nos dias atuais), mas permanece cada vez mais atual. Senão, vejamos.
Sabemos de imediato que desde a concepção do nosso personagem, do
parto, as primeiras vivências da infância, os traumas, sua casa, seu trabalho,
sua esposa, seus amigos, é tudo fake (falso) e absolutamente arquitetado pelo
“criador” do “reality show” – Christof. Eis como ele apresenta a sua criação nos
primeiros minutos do filme: “Estamos cansados de assistir atores e suas emoções
artificiais. Cansado das pirotecnias e dos efeitos especiais. Embora o mundo em
que ele habita seja, em alguns aspectos, artificial, não há nada de artificial com
Truman. Sem textos, sem colas. Não é um Shakespeare, mas é original. É uma
vida”. Ou seja, não se trata de encenar (acting) um personagem. Truman é, em
si mesmo, um personagem, ele encena a sua própria vida sem saber que encena.
Para o psicanalista Christopher Bollas (1998), uma das formas mais sin-
gulares de constituição do self, é permitir-se “ser um personagem” (be a charac-

5
O roteiro original não foi pensado para o filme, mas elaborado por Andrew Niccol em 1991,
para um episódio da série fantástica “Além da Imaginação”. Tratava-se de um filme de ficção
científica, no qual a história se passava originalmente em Nova York. Scott Rudin comprou esse
roteiro e o apresentou aos dirigentes da Paramount Pictures. No início, o diretor Brian De Pal-
ma se interessou pelo projeto antes de Peter Weir assumir a direção e a produção, escolhendo o
ator Jim Carrey para o papel do personagem-título. Assim, Andrew Niccol reescreveu o roteiro
ao mesmo tempo em que os cineastas esperavam que a agenda de Carrey ficasse livre para as
filmagens.

12
O SHOW DOS HORRORES

ter), na medida em que o self não se constitui, a exemplo do ego freudiano,


apenas com suas fantasias, sejam elas conscientes ou inconscientes. O self se
constitui a partir de texturas psíquicas e uma forma de pensar por meio da
experiência e a partir da nossa relação com os objetos que nos circundam ou
com que aprendemos a tecer relações e vínculos.
Desse modo, todo sujeito humano deve estar disposto a correr o risco de
ser processado e afetado pelo encontro com os objetos da sua relação primária
(os pais) e os outros objetos que encontrará no mundo. A cada experiência
com os objetos do mundo, o indivíduo nasce novamente, à medida que a sub-
jetividade é sempre formada e re-formada pelo encontro com o outro, e a nos-
sa história, por consequência, alterada por um presente que é ao mesmo tempo
afetivo e sensitivo, mas que muda sua estrutura no tempo e no espaço. Os ob-
jetos do mundo são formas potenciais de transformação da nossa interiorida-
de e da forma como nos relacionamos com o mundo. Quando somos incapazes
de ser um personagem, encontramos estados patológicos, ou seja, estaríamos
diante de situações traumáticas que impossibilitariam a constituição do idio-
ma humano, e daí não seria possível a emergência do self. Para Bollas (1998, p.
18-19), há quatro condições para que o self emerja, quais sejam:
– a forma como eu faço uso dos objetos;
– a forma como os objetos me influenciam;
– a forma como me perco na minha experiência no encontro com meu self
verdadeiro;
– a forma com a qual eu observo o self como sendo um objeto.
Em todas elas, a experiência de self só pode ser postulada se permitirmos
viver a experiência da transicionalidade, ou seja, da área intermediária. Segun-
do o autor, nós podemos saber muito das pessoas se observarmos os objetos
escolhidos por elas para se relacionar, porque desta forma vamos perceber
como podemos criar dentro de nós mesmos um idioma humano para nos co-
municarmos uns com os outros. Sem essa experiência única, estaríamos viven-
do um mundo falso, um mundo de irrealidades, criando assim um falso self.
Ora, o que quer que Truman seja, ele é qualquer coisa, menos ele mesmo. Para
“ser um personagem”, é preciso poder habitar o mundo e responder às ações do
mundo com um “gesto espontâneo”. O gesto, na acepção de Bollas, é a expres-
são da vida, a única coisa que é perfeita dentro de si mesmo.
Desse modo, “ser um personagem” é muito mais do que representar. Não é
disso que estamos falando. “Ser um personagem” é permitirmo-nos ser habita-
dos por outros sujeitos dentro do nosso mundo interior, e ao mesmo tempo,
termos a capacidade de nos comunicarmos com esses objetos que internaliza-
13
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

mos, introjetamos, incorporamos e tornamos nós mesmos. “Somos capazes de


um tipo de comunicação espiritual, quando somos receptivos ao sopro inteligen-
te do outro que se move dentro de nós, que nos impressiona, moldando dentro
de nós o fantasma daquele espírito que há muito está longe” (BOLLAS, 1998, p.
46). Enfim, para “sermos um personagem” é preciso que abandonemos o “isso”
(das ich) para criar novas formas de comunicação e criar nosso próprio idioma
pessoal que dá forma a qualquer personagem humano. Foi o que tentei explicitar
em outro trabalho, ao tratar de formas de comunicação e não comunicação no
desenvolvimento emocional e na psicanálise (GOMES, 2017).
Pois bem, esse idioma pessoal não é possível para Truman, uma vez que
ele se torna uma prótese do próprio Christof. É ele quem tem a missão de ex-
trair as emoções dos personagens o mais próximo do real, com trilha sonora e
música incidental a partir das vivências emocionais captadas por inúmeras
câmeras espalhadas pela casa, pela cidade e pelo trabalho do nosso persona-
gem. Nada escapa ao “olho que tudo vê”. Tudo é mostrado pelo “olho que tudo
mostra”. Afinal, tudo é espetáculo!
Não por acaso, Truman vive na fictícia cidade de Seahaven (Céu de Mar
– em tradução literal), um cenário construído dentro de um gigantesco domo
(a cidade cenográfica onde acontece o filme) e povoado por atores, figurantes
e uma equipe técnica. Isto permite a Christof controlar todas as vicissitudes da
vida de Truman – das emoções à temperatura do ambiente, do clima à vida e
morte de alguns personagens. Chama-nos atenção que a fonética do nome
Christof soa algo como “Christ-off” – um Cristo cortado, desligado, que não se
inscreve, um arremedo de Cristo. Na verdade, “Christ-off” está mais para um
demônio que perturba o mundo interno de Truman – provocando-o, contro-
lando-o, perturbando-o e dirigindo a sua vida.
Por exemplo, para impedir que Truman descubra a irrealidade da sua
vida, vale até mesmo submetê-lo a um violento trauma infantil, ao encenar
(para Truman) a morte do seu pai em uma tempestade em alto mar. Cria-se,
assim, um trauma ou uma fobia do mar, impedindo-o de ir além do horizonte
e das fronteiras da cidade. Em outro momento, os programas de TV dentro do
“Show de Truman” (igualmente falsos) não se cansam de repetir sub-repticia-
mente o quão perigoso é fazer viagens marítimas ou pegar um avião para sair
da pacata Seahaven. “Fique em casa. O lugar mais seguro de se viver é dentro
de casa”, diz um dos comerciais. Não por acaso, algumas vezes objetos estra-
nhos (os refletores do estúdio) despencam inesperadamente do céu, o que faz
com que Truman se indague o que está acontecendo quando, de imediato, apa-
rece alguém informando ao personagem que a TV noticiou a explosão de um
14
O SHOW DOS HORRORES

satélite ou o choque de aviões, fazendo com que pedaços da aeronave caíssem


nas proximidades. Estranho, mas crível!
Casado com Hannah Gill, eles vivem um casamento sem emoção, sem
sentimentos, sem romance, nada do que se espera de um casal comum. É
igualmente fake! Hannah está sempre conversando com Truman como se fosse
uma garota-propaganda, levando-o a questioná-la o porquê de ela falar como
se estivesse em um comercial de televisão. Lembremos que na “sociedade do
espetáculo”, tudo deve gerar lucro, tudo gira em torno do mercado e do capital,
tudo leva ao enriquecimento dos poderosos das mídias de massa. Os telespec-
tadores, na verdade, são consumistas vorazes: da vida íntima e dos produtos e
bens de serviço, pois, como já antevira Jean Baudrillard (1981), vivemos em
uma sociedade de consumo. Na sociedade de consumo, os indivíduos são vis-
tos pela sua capacidade de adquirir objetos e bens de consumo e serviços. Eles
exercitam o consumo criando assim novas formas de relações entre si mesmos
e os objetos, tornando-se refém destes. Conforme afirma Baudrillard, “vive-
mos o tempo dos objetos: quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em
conformidade com a sua sucessão permanente. Atualmente somos nós que os
vemos nascer, produzir-se e morrer, ao passo que em todas as outras civiliza-
ções anteriores eram os objetos, instrumentos ou monumentos perenes, que
sobreviviam às gerações humanas” (BAUDRILLARD, 1981, p. 15). Por isso os
comerciais são inseridos dentro do reality show – sem contexto aparente – para
que o consumidor/telespectador passe a desejar, adquirir e consumir os pro-
dutos. É como se dissessem incansavelmente: “ame os objetos, eles jamais di-
zem ‘não’! São dóceis e programados para realizar o que julgamos saber sobre
a satisfação de nossos desejos” (COSTA, 1994, p. 2).
Como Truman é vigiado vinte e quatro horas por dia – dentro e fora do
domo –, sempre há alguém que tenta avisá-lo da farsa em que vive. Não por
acaso, ele vai se apaixonar por uma figurante – Sylvia, mas ela é retirada de
cena antes mesmo de expor a verdade para o nosso personagem.
À medida que fatos estranhos continuam a ocorrer à sua volta, Truman
começa a desconfiar que algumas coisas estão fora do lugar – ele começa fun-
damentalmente a pensar! Surge um sentimento de estranheza, de não familia-
ridade, ou, dito em outras palavras, de um “Das Unheimliche” (FREUD,
1919/1985). Para o psicanalista e tradutor Luiz Hanns, no seu famoso Dicioná-
rio comentado do alemão de Freud, a palavra “unheimliche” é traduzida no por-
tuguês por “estranho” ou “sinistro”, mas significa na verdade algo como
“inquietante”, “macabro”, “assustador”, “esquisito”, “misterioso”, oscilando entre
o “familiar” e o “desconhecido” (HANNS, 1996). Não há melhor descrição
15
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

para a sensação percebida por Truman quando algumas coisas sem sentido
passam a cair do céu, quando a chuva cai apenas sobre ele ou quando ele passa
a ouvir a conversa da equipe de produção que descreve seu trajeto até o seu
monótono trabalho. Ao chegar ao prédio onde trabalha, a equipe de cenografia
está atrasada preparando o elevador que Truman usará, sendo surpreendidos
pelo seu olhar incrédulo e, no instante seguinte, um elevador se materializa à
sua frente. É esse sentimento de irrealidade e ao mesmo tempo de paranoia
que começa a dominá-lo. Começa a questionar a esposa, o melhor amigo e
acha que está enlouquecendo. Descobre, em uma cena primorosa, que pode
controlar carros e ônibus em meio ao trânsito, uma vez que não pode morrer
(ele é o personagem principal do reality show).
Os erros da equipe de produção seguem até a surpreendente volta do seu
pai, dado como morto em um acidente de barco em alto mar quando Tru-
man era uma criança. Ele o reencontra vestido como um mendigo que tenta
avisá-lo da realidade/falsidade da sua vida. Acredito que neste momento ele
vivencia a experiência de um “conhecido não pensado”, ou seja, mais um
sentimento de estranheza tal como formulado por Bollas (2015). Ele sabe
que há algo de errado, mas lhe custa acreditar no que seus instintos dizem.
No entanto, passa a perceber que a cidade é monótona, previsível, tudo se
repete: os mesmos carros passam todos os dias nos mesmos horários; o vizi-
nho e seu cachorro estão fazendo as mesmas coisas; o jornaleiro passa entre-
gando o jornal no mesmo horário pedalando sua bicicleta, enfim, tudo é
igual, nada muda, como se ele vivesse diariamente um “dèjá vu”. Em meio a
esse sentimento de estranheza, Truman busca sair de Seahaven, mas não
consegue achar um voo sequer disponível para outra cidade. O ônibus que
ele consegue pegar, quebra. O trânsito em que se encontra, de uma hora para
outra paralisa. Até mesmo um incêndio florestal de grandes proporções e um
aparente vazamento da fictícia usina nuclear são usados para impedir que o
personagem se ausente da cidade. Truman está preso em seu mundo além da
imaginação, como um rato de laboratório, sem escolhas, sem poder cons-
truir um novo destino à sua vida. Puro horror!
Em determinada noite, não se dando por vencido, nosso personagem
consegue enganar o olhar das câmeras e escapa à vista de todos, forçando
Christof a tirar o programa do ar pela primeira vez em trinta anos de exibi-
ção. Isto causa um surto na audiência, por um lado, e a alegria de todos os
que desejam que Truman se liberte daquela prisão, por outro. Para surpresa
de todos, ele enfrentará o seu pior pesadelo, a fuga pelo mar, fazendo com
que Christof o leve até as últimas consequências para tentar demovê-lo da
16
O SHOW DOS HORRORES

ideia de sair da cidade. Nada o impede de chegar além do horizonte e esbar-


rar no limite do domo que constitui a cidade, encontrando no topo de uma
escada a palavra “Saída”. Enquanto decide deixar ou não o seu mundo, Chris-
tof– como um deus – fala com Truman, persuadindo-o a permanecer em
Seahaven.

O espetáculo como show e a tirania da privacidade

O filme O show de Truman nos faz pensar sobre as teses acerca da sociedade do
espetáculo, conforme Guy Debord (1997) nos apresentou. Nesta sociedade,
caberia questionar se podemos mesmo transformar tudo à nossa volta em algo
visível ao olhar de todos? Uma sociedade na qual se expõe a qualquer momen-
to a sua intimidade, dos livros aos filmes, das festas ao nosso sagrado sono, dos
bares ao sexo com nossos parceiros e parceiras. Em nossos dias, não haveria
mais espaço para o privado. Tudo estaria explícito nas redes sociais, nas mídias
de massa, sejam elas facebook, youtube ou instagram. Se não há espaço para o
privado, o nosso “eu”, o nosso self, estaria naufragado no espaço público e re-
duzido a um mínimo em que jamais saberíamos onde encontrar a nossa essên-
cia. Nosso “eu”, por conseguinte, estaria esvaziado, atendendo ao apelo da
sociedade do espetáculo e do consumo (GOMES, 2004).
Ora, desde a aurora dos primeiros programas de televisão, os telespecta-
dores já haviam sido transformados em consumidores de mercadorias. Mesmo
quando não consomem produtos ou bens e serviços, consomem o que veem
pela tela. Na verdade, são consumidores vorazes de tudo o que pode ser absor-
vido pelo “olho que tudo mostra”, reféns incomensuráveis do “olho que tudo
vê”. Como diz a psicanalista Maria Rita Kehl, “da indústria cultural à sociedade
do espetáculo, o que houve foi um extraordinário aperfeiçoamento técnico dos
meios de se traduzir a vida em imagens, até que fosse possível abarcar toda a
extensão da vida social”. Ou seja, a alienação do trabalhador foi completa
quando ele foi transformado em consumidor, pois “ainda quando não conso-
me as (outras) mercadorias propagandeadas pelos meios de comunicação,
consome as imagens que a indústria produz para seu lazer (KEHL, 2004, p.
44). Para a autora, o trabalhador ou cidadão comum não só consome as ima-
gens que lhe são projetadas, mas também se identifica com elas. Por isso, ve-
mos ao longo do filme o grande contingente de telespectadores acompanhando
o dia a dia e até mesmo velando o sono de Truman, onde quer que estejam. São
como zumbis petrificados pelo ato de espiar a intimidade do próximo, sem
17
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

saber que o próximo são eles mesmos, enjaulados em suas casas e reféns da
sociedade do espetáculo.
Para Guy Debord, o espetáculo fomentado pela sociedade de consumo tem
um único objetivo: o lucro ou, dito em suas palavras “o espetáculo não é um con-
junto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas imagens”
(DEBORD, 1997, p. 14). As imagens são os objetos de consumo tanto quanto os
objetos de consumo são mostrados por meio de imagens. O telespectador fica
alienado vivendo em torno dos objetos de consumo, ou, conforme afirma De-
bord, “a alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta
de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contem-
pla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da
necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo”
(DEBORD, 1997, p. 24). Aqui temos os espectadores do Show de Truman que,
paralisados diante do espetáculo, deixam de viver suas próprias vidas, para viver
a vida do objeto contemplado. Assim, o espetáculo “constitui o modelo atual da
vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na
produção, e o consumo que decorre dessa escolha” (DEBORD, 1997, p. 14-15).
A sociedade do espetáculo transformou o nosso “eu” em um “eu” tão mí-
nimo, para usar a expressão de Christopher Lasch (1986), que para conseguir-
mos enxergá-lo, nos expomos em horário nobre. Somos, ao mesmo tempo,
reféns da cultura do narcisismo, também igualmente defendida por Christo-
pher Lasch (1983), a partir do momento em que invertemos o espaço público
com o espaço privado. Tudo pode na cultura das massas. Tudo é espetáculo.
Tudo é um show dos horrores!
Foi o que a pesquisadora Paula Sibilia (2008) denominou igualmente de “o
show do eu”, ao analisar as formas pelas quais transformamos nossa intimida-
de em um espetáculo, assim como produzimos formas de espetacularização da
nossa intimidade.

O século passado assistiu ao surgimento de um fenômeno des-


concertante: os meios de comunicação de massa baseados em
tecnologias eletrônicas. É muito rica, embora não tão longa, a
história dos sistemas fundados no princípio de broadcasting,
tais como o rádio e a televisão, tipos de mídia cuja estrutura
comporta uma fonte emissora para muitos receptores. Já nos
primórdios do século XXI, testemunhamos a consolidação des-
te outro fenômeno igualmente desnorteante: em menos de uma
década, os computadores interconectados através de redes digi-
tais de abrangência global se converteram em inesperados
meios de comunicação. (SIBILIA, 2008, p. 11).

18
O SHOW DOS HORRORES

Não é isso que vemos na personagem da Meryl cada vez que ela fala com
Truman e expõe um produto de consumo? Não sou contra o consumo. Vive-
mos em um mundo onde adquirir objetos ou bens é resultado do nosso traba-
lho e da nossa inserção no mundo. Sou contra o consumo despudorado com
que vigiamos a vida íntima das pessoas, ou o modelo que diz que só seremos
felizes se adquirirmos tal ou qual objeto. Esta é a verdadeira face perversa do
espetáculo.

O espetáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abs-


trato de todas as mercadorias. O dinheiro dominou a sociedade
como representação da equivalência geral, isto é, do caráter in-
tercambiável dos bens múltiplos, cujo uso permanecia incom-
parável. O espetáculo é seu complemento moderno
desenvolvido, no qual a totalidade do mundo mercantil aparece
em bloco, como uma equivalência geral àquilo que o conjunto
da sociedade pode ser e fazer. O espetáculo é o dinheiro que
apenas se olha, porque nele a totalidade do uso se troca contra a
totalidade da representação abstrata. O espetáculo não é apenas
o servidor do pseudo-uso, mas já é em si mesmo o pseudo-uso
da vida. (DEBORD, 1997, p. 34, grifo do autor).

Uma sociedade que explora a imagem, a intimidade e a vida privada como


objetos de consumo, já explorou ao máximo os valores da vida íntima, confun-
diu vida pública com vida privada, como tão bem salientou Richard Sennet em
O declínio do homem público (1998). Sou de uma época em que tirar fotografia
era coisa cara e difícil de se conseguir. Comprar o filme, colocá-lo na máquina,
tirar as fotografias, levar a uma loja para revelá-lo, receber o pacote das fotos e
chegar em casa e ver quais prestaram e quais não prestaram. Era muito caro e
nem sempre nos agradávamos com todo o resultado final. Hoje, nossa relação
com a televisão, com a fotografia, com o telefone e com nossa imagem mudou.
Não é incomum pedirmos o whatsapp dos nossos amigos ou conhecidos.
Nos comunicamos pela via de um sistema de mensagens rápidas e exigimos
que nos respondam praticamente no mesmo momento em que a mensagem
chegou, como se estivéssemos ligados vinte e quatro horas no sistema de men-
sagens. Não é mais a impessoalidade da voz. É a interpretação da letra e do
signo. Quantas vezes não passamos por situações acusando o corretor dos nos-
sos celulares, esquivando-nos de nossos atos-falhos? Não é incomum, tam-
bém, perguntarmos se as pessoas em uma determinada festa têm facebook ou
instagram, porque podemos publicar ao vivo e em cores as fotos ou as imagens
naquele exato momento que estamos vivendo.
19
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

Utopia? Claro que não. Quando O show de Truman passou nos cinemas,
não sabíamos que estávamos rumando para esse futuro. Somos filhos do “Show
de Truman” na medida em que estamos nos expondo vinte e quatro horas por
dia, gozando com a exposição da nossa intimidade ou com a da intimidade
alheia. Vivemos uma tirania da intimidade e uma hipertrofia do eu, que nos
diz a todo instante que para sermos alguém no mundo da realidade comparti-
lhada, devemos nos exibir e nos mostrar, não havendo mais espaço para a pri-
vacidade e a intimidade em nossas vidas. Basta olharmos em volta – quer dizer,
basta olharmos para dentro da world wide web ou dos aplicativos de celular.
Está tudo lá!
Os mesmos facebook, instagram e whatsapp dispõem de sistemas para
transmissão ao vivo do que está acontecendo. Se usarmos essa tecnologia com
ética e responsabilidade, poderemos ter a tecnologia nos ajudando a diminuir
as diferenças vividas nas grandes e pequenas cidades e os abusos de poder. Se
a usarmos para a banalidade da intimidade, quebraremos a barreira entre o
público e o privado, tornando-nos o meio para “o olho que tudo vê”.
O “Show de Truman” apontava para um mundo distópico, autoritário, ca-
racterísticas de um certo mundo totalitário no qual o privado tornou-se públi-
co. Big brother? Esqueçam! Quem precisa de um show de televisão quando
temos smartphones, tablets e computadores de última geração? Qualquer um
de nós pode acessar pornografia de altíssima qualidade e com todos os tipos de
escolhas objetais, com apenas um clique ou dois nos aparelhos eletrônicos. É
assim que Truman experimenta um certo enlouquecimento, uma “loucura da
visão”, no sentido em que ela faz com que o olhar se dirija para o mundo visível
para vê-lo e, ao mesmo tempo, que não haja visibilidade sem uma coexistência
radical entre meu olhar e o mundo. A visão nos dá a certeza de que há o ser,
mas o ser da visão é sempre ser para mim. Por isso Truman tem sensação de
enlouquecimento. Ele vê mas não acredita no que vê. É tão ilusório que é im-
possível que seja verdade.

Precisamos ver e pensar, para chegarmos ao “fim”

Vimos como nosso personagem, Truman Burbank, cresceu em meio à espe-


tacularização da vida, transformado ele mesmo em um personagem dentro
do seu mundo invisível, um reality show transmitido para bilhões de teles-
pectadores ao redor do mundo. Vimos como ele teve que absorver o mundo
ao seu redor e apreender o que se passava no seu mundo invisível (invisível
20
O SHOW DOS HORRORES

para o ponto de vista do próprio Truman). O que é visível e real só pode sê-lo
para aqueles que estão fora do domo, ou seja, os telespectadores ao redor do
mundo que vigiavam cada minuto da sua vida. E como dizem os ditados
populares, “o pior cego é aquele que não quer ver” e “nem tudo o que reluz é
ouro”. Se prestamos atenção, a cultura popular tem lá as suas verdades. No
entanto, as teses sobre a visão foram muito bem representadas pelo pensa-
mento de Merleau-Ponty.
No seu esforço de apreender o mundo, Merleau-Ponty (1992) se deparou
com o caráter paradoxal da visão. Por um lado, ver nos dá a certeza de que a
percepção se abre sobre coisas ou alcança objetos. Por outro, devemos colocar
essa certeza em suspenso se quisermos descrever como as coisas nos aparecem
como presença, possibilitando o acesso ao sentido originário ou pré-objetivo
do aparecer da coisa visível desprovida de prejuízos. Para o filósofo, o mundo
parece ser aquilo que vemos. Se isso for verdade, significa dizer que as coisas
mesmas são o que nós vemos, mas estas coisas que estão no mundo e que nos
cercam, não possuem aparência visível se não forem percorridas por um olhar
e não podemos admitir que um olhar se realize se as coisas não forem apari-
ções visíveis para ele.
Para Merleau-Ponty, aquilo que é visível tem sempre aspectos invisíveis.
Os olhos que se dirigem ao mundo para ver ganham uma relação de proximi-
dade com as coisas visíveis, mas também ganham uma relação de distância
daquilo que não se vê, revelando uma cegueira da visão. As limitações de nos-
so olhar atual não conseguem ver o visível na sua plenitude. Para Merleau-
-Ponty, se é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos
aprender a vê-lo, para que esta tarefa se realize no mundo de Truman, foi pre-
ciso adicionar um outro elemento: o pensar.
O psicanalista Thomas H. Ogden (2010), afirma que há três formas de
pensar coexistindo e de modo recíproco, uma vez que elas criam, preservam e
negam aspectos da experiência de pensar.
Para ele, o pensamento mágico é aquele que recorre à fantasia onipotente
para criar a realidade psíquica que o indivíduo vive como sendo “o mais real”
do que a realidade externa. Essa forma de pensamento substitui a realidade
externa real pela realidade inventada, mantendo assim a estrutura existente do
mundo interno. O pensamento mágico subverte a oportunidade de aprender a
partir da experiência vivida com os objetos reais, portanto, ele não funciona no
sentido de que nada se pode construir sobre ele a não ser mais camadas de
construções mágicas. Ele tem apenas um único objetivo: evitar enfrentar a ver-
dade da experiência interna e externa da pessoa. Nesse sentido, o pensamento
21
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

mágico opera pela criação de um estado mental em que o indivíduo acredita


que ele é quem cria a realidade em que ele e os outros vivem, de modo que a
realidade psíquica ofusca a realidade externa. Aqui podemos encontrar o per-
sonagem Christof, o qual cria uma realidade a partir do pensamento mágico e
onipotente, não importam as consequências em que isso venha a resultar. In-
ventar uma realidade fora da realidade compartilhada é proteger o self do im-
pacto das coisas da vida e do mundo coletivo, impedindo que a vida valha a
pena ser vivida.
Para Ogden, quando o indivíduo teme que a integridade do self esteja
em risco, ele pode defender-se por meio de fantasias onipotentes que abran-
gem virtualmente tudo e desligam da realidade externa a ponto de seu pen-
samento se tornar delirante ou alucinatório e, portanto, o indivíduo é incapaz
de aprender com a experiência e distinguir se está acordado ou adormecido.
Ou seja, há progressivamente a deterioração da capacidade de o indivíduo
diferenciar o sonhar do perceber, símbolo de simbolizado. Enfim, o indiví-
duo experimenta um estado de enlouquecimento e passa a fazer uso de me-
canismos de defesa diversos, como observamos nas desconfianças de Truman
sobre a realidade à sua volta.
Porém, o pensamento onírico é o modo de pensar semelhante ao processo
de sonhar (ensonhamento, ou como diz o próprio Ogden, “conversações na
fronteira do sonho”) (OGDEN, 2005). Trata-se de uma forma profunda de
pensar que continua enquanto dormimos ou na vida de vigília; assim, ele age
tanto na vida pré-consciente/consciente quanto na vida inconsciente. Mas a
pessoa observa e atribui significado à experiência de múltiplos pontos de vista
simultaneamente, desenvolvendo um psiquismo genuíno. Trata-se da forma
mais abrangente, penetrante e criativa de pensar, mudando a forma como se
relaciona com as pessoas e o mundo à sua volta. Quando alguém atinge os li-
mites da sua capacidade de sonhar suas experiências perturbadoras, então ele
precisa de outra pessoa para ajudá-la a “sonhar os seus sonhos não sonhados e
choros interrompidos” (OGDEN, 2010), ou seja, se torna necessário haver
duas pessoas para sonhar a experiência mais perturbadora de uma pessoa. Vá-
rios autores da psicanálise trataram desses aspectos do pensamento. Bion, com
o conceito de rêverie materna, aceitando os pensamentos impensáveis e os sen-
timentos intoleráveis do bebê, e com sua versão intrapsíquica interpessoal da
identificação projetiva. Winnicott, com sua forma particular de descrever a
experiência subjetiva da mãe criada juntamente com o seu bebê em termos de
preocupação materna primária. Antonino Ferro e sua ideia de campo bipes-
soal, ou o próprio Ogden com sua ideia de terceiro analítico intersubjetivo
22
O SHOW DOS HORRORES

(OGDEN, 1996), todos eles ampliando a capacidade de sonhar. Nesse sentido,


Truman precisa de um outro para descrever que sua experiência não é alucina-
tória, ela é real, mas precisa de ajuda para sair desse campo onírico sem fim,
transformando os sonhos não sonhados em gritos interrompidos.
Por fim, o pensamento transformador diz respeito à forma como uma
pessoa ordena a sua experiência, pensando e sonhando, aprendendo com a
experiência e esquecendo-se dessas experiências (OGDEN, 2009). Nesta for-
ma de pensamento, a pessoa cria novas maneiras de ordenar a experiência em
que são gerados não só novos significados, mas também novos tipos de senti-
mentos, formas de relação objetal e qualidade de vitalidade emocional e cor-
poral. E cada um dos autores mais conhecidos da psicanálise introduziu sua
forma particular de descrever o pensamento transformador. Freud com sua
ideia de transformar o inconsciente em consciente – o pensamento onírico
precisa ser traduzido para o paciente. Klein, cuja maior transformação é a pas-
sagem da posição esquizoparanoide para a posição depressiva. Bion, cuja
transformação se refere à evacuação da experiência emocional perturbadora
não mentalizada para a mentalidade em que a pessoa tenta sonhar e pensar sua
própria experiência, através da identificação projetiva. Fairbairn, cuja trans-
formação terapêutica envolve o movimento da vida vivida em relação aos ob-
jetos internos para a vida em relação aos objetos externos. E Winnicott, cujo
essencial da vida é a transformação psíquica em que o fantasiar inconsciente é
deslocado para o viver imaginativamente no espaço intermediário entre a rea-
lidade e a fantasia, por meio do espaço potencial e do gesto espontâneo.
Também podemos pensar que aqui se insere a transformação vivida ao
final da história do nosso personagem. À medida que Truman passa a reco-
nhecer o mundo à sua volta, ver o invisível e reconhecer o que é visível na sua
própria experiência, ele pode pensar sobre sua experiência e aprender com ela.
Truman vive particularmente uma elaboração psíquica desse Unheimliche que
é ao mesmo tempo familiar e estranho, mas para tanto, foi preciso pensar sobre
o que ele via e sobre o que reconhecia à sua volta, promovendo um “new begin-
ning” (um novo começo) (BALINT, 1993).
Ao chegar ao final da sua jornada oceânica e, por que não dizer talássica,
indo além do horizonte, ele encontra as fronteiras do domo, e a saída, podendo
falar diretamente com o seu “criador”, Christof, que surge com sua voz em “off”,
em meio às nuvens. Acompanhemos o diálogo que encerra o filme:

Christof: Truman, pode falar. Estou ouvindo.


Truman: Quem é você?
23
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

Christof: Sou o criador do show da televisão que dá esperança, alegria


e inspiração para milhões.
Truman: Então, quem sou eu?
Christof: Você é a estrela.
Truman: Nada era real?
Christof: Você é real. Por isso tem sido tão bom assistir. Ouça-me Truman,
não existe mais verdade lá fora do que no mundo que eu criei
para você. Você viu mentiras e viu a decepção. Mas em meu
mundo, você nada tem a temer. Eu te conheço melhor que
você mesmo.
Truman: Não puseram uma câmera em minha cabeça!
Christof: Você tem medo, por isso não pode sair. Tudo bem, Truman, eu
entendo, eu presenciei sua vida toda, eu assisti ao seu nasci-
mento, eu vi você dar o primeiro passo, vi você no primeiro
dia de aula e quando perdeu o primeiro dente... não pode sair
Truman. Seu lugar é aqui comigo. Fale comigo, diga alguma
coisa. Ora, diga alguma coisa, você está na televisão, ao vivo
para o mundo todo!

Este é o momento de maior maturidade do nosso personagem, que diante


do seu gesto espontâneo, olha para a câmera, faz uma reverência e se despede
dizendo: “E caso não os veja novamente, tenham um bom dia, uma boa tarde,
uma boa noite e durmam bem!”.
The end.

Abril de 2019

Sergio Gomes
sergiogsilva@uol.com.br
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Referências
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BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
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24
O SHOW DOS HORRORES

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DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FREUD, S. (1919). O estranho. Rio de Janeiro: Imago, 1985. (Edição standard
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______. A gramática do silêncio em Winnicott. São Paulo: Zagodoni, 2017.
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______. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. São Paulo:
Brasiliense, 1987.
MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1984
OGDEN, T. H. Três formas de pensar: pensamento mágico, pensamento onírico e
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Psychoanalytic Quarterly: artigos contemporâneos de psicanálise Vol. 1. São Paulo:
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Companhia das Letras, 1988.

25
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES

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WITTGENSTEIN, L. (1964). Observações filosóficas. São Paulo: Edições Loyola,
2005.

26
Dos primórdios do reality show
aos tempos de pós-verdade
_____________
Mariana Bricio* 6

Vou começar contando uma curiosidade: após receber o roteiro de Andrew


Niccol, o mesmo roteirista de Gattaca – experiência genética, filme que tam-
bém será apresentado nesta edição do Ciclo de Cinema, o diretor Peter Weir
esperou um ano até que Jim Carrey estivesse desocupado e pudesse começar as
gravações. Roteirista e diretor se conheceram em um hotel em Los Angeles.
Para o roteirista, o filme se baseia, mais do que tudo, na ideia de que o que
Truman vive é a realidade. Vivemos para interpretar papéis e nossas vidas se-
guem, nas palavras de Niccol, “um roteiro que varia entre o mundanamente
previsível e o absolutamente inverossímil”.
Como teve que aguardar um ano para que Carrey estivesse disponível, o
diretor ensaiou muito tempo com o elenco, principalmente com Laura Linney,
atriz que faz Meryl, a esposa de Truman, e Noah Emmerich, que interpreta
Marlon, o melhor amigo. Os ensaios não eram centrados na busca pela verda-
de ou pela essência dos personagens, como vemos na maioria dos trabalhos de
preparação de artistas, mas em manter os atores em contato permanente com
a mentira, já que a mentira é o centro do relacionamento deles com o protago-
nista e já que eles não seriam atores interpretando personagens, e sim atores
fingindo ser pessoas que interpretam papéis dentro de um reality show. Não à
toa, se desmembramos a palavra “Truman” encontramos true e man, respecti-
vamente “verdade” e “homem” em inglês. A linha entre o que é verdade e men-
tira, ficção e realidade não é muito clara em todo o filme. Durante a exibição,

*
Psicóloga e psicanalista, membro associado da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de
Janeiro (SPCRJ), especialista em Transtornos Alimentares pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Jornalista especializada em Jornalismo Impresso pelo Jornal O
Dia/Faculdade da Cidade.

27
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIANA BRICIO

nós nos perguntamos se a vida de Truman é menos autêntica por ser criada em
um estúdio de televisão e transmitida 24 horas por dia, o que de fato se dá
quando nos deparamos com o formato televisivo dos reality shows, que combi-
nam realidade, documentário e ficção. A mistura foi tamanha em O show de
Truman que, como forma de promover o filme, o diretor produziu um “falso
documentário”, que seria utilizado como estratégia promocional de lançamen-
to. A ideia de usar o “falso documentário” não foi adiante por decisão do de-
partamento de marketing da Paramount, mas algumas cenas verdadeiras
tornaram-se ficção e entraram no filme.
O show de Truman foi exibido em 1998. Vinte anos se passaram e, nesse
período, as transformações do mundo foram radicais e intensas. Em 1998, Bill
Clinton estava às voltas com charutos, escândalos sexuais e Monica Lewinsky.
Desabava o Edifício Palace II, no Rio. Titanic levava multidões às salas de cine-
ma. Ronaldo passou mal na final da Copa da França e o time do Brasil voltou
desmoralizado, em meio a teorias conspiratórias que especulavam sobre a in-
disposição súbita envolver uma transação milionária com o patrocinador ou o
flagra da traição da jovem namorada loira com um famoso jornalista de televi-
são. Fernando Henrique foi reeleito presidente logo no primeiro turno. Morre-
ram os cantores Frank Sinatra, Tim Maia e Nelson Gonçalves. O avanço
tecnológico era lento se compararmos com a velocidade dos dias de hoje. Os
PCs já faziam parte da rotina doméstica e do trabalho, mas a internet ainda era
discada e vivíamos lidando com disquetes, torres, gabinetes e superaqueci-
mento de placas. Contudo, se você já tinha aposentado o seu 486 e utilizava
um Pentium, estava antenado com o melhor da tecnologia de computadores.
Bill Gates era o rei do pedaço e Steve Jobs ainda lutava para tornar o Macintosh
competitivo o suficiente.
No ano 2000, a TV Globo lançava No limite, primeiro reality show brasi-
leiro, em que duas equipes enfrentavam situações de aventura, até mesmo
cruéis, em um cenário inóspito. Quem não se lembra que uma das provas foi
comer olho de cabra cru? Na guerra pela audiência, Silvio Santos saiu na fren-
te. Juntou subcelebridades confinadas em uma locação e lançou a Casa dos
Artistas. Para rebater, a Globo colocou no ar o hoje já velho conhecido BBB,
mas com uma tacada de mestre: o elenco do programa não era composto por
artistas decadentes conhecidos do grande público. Eram anônimos, pessoas
comuns, que passaram a ser a estrela do show. Depois disso, nunca mais as
pessoas comuns abriram mão de estar em evidência ou aceitaram sair de cena.
O fenômeno dos reality shows se espalhou por todo o mundo. Em 1999,
ou seja, um ano depois do lançamento do filme – para termos uma ideia de
28
DOS PRIMÓRDIOS DO REALITY SHOW AOS TEMPOS DE PÓS-VERDADE

como o filme foi precursor – o BBB foi patenteado pela holandesa Endemol.
Em 2005, a psicanalista Maria Rita Kehl e o jornalista Eugênio Bucci lançaram
juntos o livro Videologias, em que fazem uma reflexão sobre os meios de co-
municação de massa e a sociedade de consumo e do espetáculo. Apresentando
a televisão como o principal instrumento de consolidação de ideologias no
Brasil, Bucci e Kehl (2005, p. 144) analisam os realities e nos dizem que “o que
interessa ao espectador fiel é a esperança de que a exibição, pela televisão, da
banalidade de um cotidiano parecido com o seu ponha em evidência migalhas
de brilho e de sentido que sua vida, condenada à domesticidade, não tem”.
Ainda de acordo com os autores, “os reality shows são o sintoma do sofrimen-
to do sujeito contemporâneo, que perdeu a dimensão pública de seus atos e de
sua existência, e tenta substituí-la pela dimensão espetacular, do aparecimento
de sua imagem corporal” (KEHL, 2005, p. 160).
Retomando a questão da falsificação da realidade, Truman começa a des-
confiar que “as coisas não são bem assim” quando os erros e as falhas surgem.
Logo no começo do filme, um holofote, que durante a noite é uma estrela no
céu de Seahaven, despenca no meio da rua. Curioso, Truman Burbank exami-
na a peça. Procura o vizinho, que já não está mais ali. Desapareceu como em
um passe de mágica. O mesmo se dá com o casal do “bom dia, e no caso de não
os ver mais hoje, boa tarde e boa noite”. Todos saíram de cena rapidamente,
inclusive Pluto, o cão do Sr. Spencer. Aos poucos, o espectador do filme vai se
dando conta, junto com Truman, de que as pessoas na rua agem de forma me-
cânica e que, se imprevistos acontecem, os habitantes da cidade não são espon-
tâneos e mal conseguem reagir. Se algo sai do previsto, instala-se uma correria
entre os figurantes e a produção para corrigir o erro. A mesa de lanche exposta
ao fundo do cenário é constrangedora, assim como a entrada de Truman em
uma loja e sua mudança do comportamento rotineiro, deixando os atores-ven-
dedores atônitos. Os erros de continuidade são propositais e estão de acordo
com o roteiro originalmente escrito. Um mesmo figurante é visto como cartei-
ro, massagista e padre. Em Seahaven, as falhas tecnológicas e técnicas da pro-
dução são o que possibilitam a Truman questionar sua existência e o mundo
no qual está inserido. Na vida de Truman, uma roupa, um acessório de cozi-
nha ou um achocolatado não são apenas utensílios do dia a dia, mas produtos
comercializados em um constante merchandising. Nem a cervejinha com o
melhor amigo escapa da estratégia de comercialização do maior show de tele-
visão. Somente por conta dessas imperfeições é que Truman começa a juntar
as peças do seu quebra-cabeça existencial e perceber que ficção e realidade se
conjugam.
29
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIANA BRICIO

A angústia de descobrir a verdade sobre si mesmo segue em uma crescen-


te ao longo do filme e arrebatando consigo o espectador. As cenas em que
Truman tenta reconstruir o rosto de Sylvia com recortes de rostos de outras
mulheres, provenientes de anúncios de revistas, vão sendo reveladoras do que
se passa fora dos estúdios e além da direção rigorosa de Christof e de suas de-
sesperadas tentativas de aprisionar Truman em seu próprio mundo. Aos pou-
cos, como espectadores de um programa de TV, assistimos às tentativas de
revelar a verdade a Truman feitas pelos que discordam eticamente do reality
show, como na cena em que um paraquedista aparece na praça de Seahaven ou
quando Sylvia é retirada de forma abrupta da cena e sai gritando. Segundo a
filósofa Marcia Tiburi (2017, p. 98), no livro Ética e pós-verdade, as verdades
são fundamentais, pois “as verdades são certezas reconhecíveis, referem-se a
algo que podemos reter mesmo sem compreender. Toda verdade sustenta”.
Para pensarmos um pouco sobre o tema do ano do Ciclo de Cinema:
“Subjetividade, ética e tecnologia: expansões e limites”. Antes de entrarmos
no assunto, é preciso que o salto no tempo não se dê desconectado da reali-
dade que surgiu nos últimos vinte anos. De acordo com o psicanalista Chris-
tian Dunker, no ensaio Subjetividade em tempos de pós-verdade, o ataque às
Torres Gêmeas, em setembro de 2001, inseriu o que ele chama de “flutuação
benévola da verdade” (2017, p. 17) na pauta dos costumes. Para o psicanalis-
ta, este é o marco histórico da pós-verdade, mesmo que a palavra “pós-ver-
dade” só tenha sido declarada a palavra do ano, pelo Dicionário Oxford, em
2016. A partir do 11 de Setembro, e da instauração da Guerra ao Terror, a
justificativa para a busca por armas químicas no Iraque, que anteriormente
nem existia, mostrou-se uma ficção. O fato é que estados, empresas e entida-
des jurídicas passaram a promover o cinismo como “discurso do espaço pú-
blico e da vida laboral”. Nada diferente dos dias de hoje. Ao contrário, o
advento das redes sociais, a incorporação das postagens como fonte de infor-
mação e das selfies como projeção do sujeito performático para milhões de
seguidores nos jogaram mais ainda ao campo da pós-verdade.
São apenas dois anos para explorar um conceito que aparenta ser a síntese
do hoje. Muito pouco tempo. O que parece é que a verdade sai de cena para a
entrada de um novo postulado: a pós-verdade. Se analisarmos o prefixo “pós”,
temos algo que se encerra, que está suplantado, de acordo com a filósofa Mar-
cia Tiburi. E o que resta ao sujeito, se a verdade já não importa? O que aparece
é a informação, uma “verdade” que surge da e para a produção midiática e de
consumo. Não lidamos mais com verdades que explicam o desconhecido,
aplacam as angústias existenciais, dão algum sentido à vida. O que se produz
30
DOS PRIMÓRDIOS DO REALITY SHOW AOS TEMPOS DE PÓS-VERDADE

na pós-verdade são verdades que “colam”, que podem circular e produzir pu-
blicidade e consumo. A pós-verdade desbanca a verdade. A informação é su-
pervalorizada, mas o conhecimento é descartado (TIBURI, 2017, p. 110). O
conteúdo importa pouco, e a autoria do texto prevalece sobre haver um emba-
samento que ampare determinada opinião. Agora, não é qualquer informação.
Fakenews, as notícias falsas, estão recheando de mentiras os arcabouços tradi-
cionais de informação. Ainda para Tiburi, vivemos em um momento no qual
“falamos muito e dizemos pouco” (2017, p. 114) e que emitir informação é
mais uma modalidade de compulsão dos dias de hoje. A tecnologia dos algo-
ritmos escolhe para os sujeitos o que eles verão nas redes sociais e este conteú-
do é considerado verdadeiro simplesmente porque foi dito por alguém.
Voltando a Dunker (2017, p. 13), a pós-verdade seria então uma espécie
de segunda onda do pós-modernismo [...]. Assim como a pós-modernidade
trouxe o debate relevante sobre, afinal, como deveríamos entender a moderni-
dade e principalmente o sujeito moderno, [...] a pós-verdade inaugura uma
reflexão prática e política sobre o que devemos entender por verdade e sobre a
autoridade que lhe é suposta.

Para os antigos, a verdade tinha três conotações:


■ revelação – que provinha do pensamento grego (aletheia);
■ testemunho de uma lembrança esquecida – oriunda da tradição latina
(veritas);
■ promessa – a confiança do legado judaico-cristão (emunah).

Em uma correlação, a verdade tem três opostos:


■ ilusão;
■ falsidade;
■ mentira.

Para Dunker (2017), a pós-verdade rompe com os três regimes da verdade


e seus contrários. Ela ataca a estrutura de ficção da verdade, postulado de La-
can. É a verdade que liga a confiança (emunah) na realização futura ao traba-
lho de revelação (aletheia) no presente, mas que nos dá a certeza da palavra
testemunhada e da memória do passado (veritas). Não é porque as três faces da
verdade estão ligadas, senão pela ficção que criamos, que podemos dizer men-
tiras como se fossem verdades ou criar fatos sem sentido algum, e que qual-
quer coisa pode ser dita ou tida como verdade, sem qualquer consequência
para o próximo momento. E dois aspectos relevantes da pós-verdade são, pri-
31
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIANA BRICIO

meiro, que ela requer uma vida em estrutura de show. Nada mais contemporâ-
neo do que a exposição de si nas redes sociais. O paradoxo é que, ao mesmo
tempo em que o sujeito precisa desesperadamente ser visto pelo outro, o se-
gundo aspecto da pós-verdade é corroborar a recusa deste outro e estimular a
cultura da indiferença, que provoca no sujeito que foi ignorado reações de
ódio ou violência. É uma descrição autêntica de Christof, o diretor de O show
de Truman – tão narcisicamente apaixonado e obcecado por sua criatura que
deixou de tratá-la como sua criação. Tentou de várias formas retirar de Tru-
man sua humanidade, sua espontaneidade e sua curiosidade. Chegou até mes-
mo a criar um “falso” trauma no mar para que Truman não ousasse sair de
Seahaven. Chegam a ser grotescos os cartazes que estão presos na agência de
viagens, com anúncios que mostram como viajar pode ser perigoso ou trágico.
O conceito de pós-verdade ainda é muito novo e está sendo construído.
Contudo, autores como Tiburi e Dunker, que são muito atuantes nas redes
sociais, estão particularmente ligados à construção de subjetividades e à ques-
tão ética. Para tentar dar uma amarração teórica final a este tema, que é em-
brionário ainda, vou pincelar alguns pontos dos dois autores sobre o assunto.
Dunker aponta o reforço da cultura da indiferença. Para o psicanalista, a pós-
-verdade traz a emergência de dois afetos: o ódio e a vergonha. O ódio é colo-
cado como uma oposição possível ao amar e ser amado. O ódio tem função
separadora, só que, no contexto da pós-verdade, em que a subjetividade só se
constitui a partir da visibilidade do outro, é um ódio que perde suas capacida-
des de separação e de oposição possível ao amor. Os xingamentos, os ataques,
os discursos de ódio racistas, homofóbicos e outros não promovem separações
porque não estão ancorados em verdadeiras ligações. São gritos desesperados
de alguém que precisa ser visto e notado. Que precisa receber muitos likes na
sua postagem para não padecer de vergonha. São ataques à invisibilidade que
se experimenta. Dunker define todos como “matadores de zumbis”. Estes são
percebidos como indiferentes, autômatos, sem alma. Estão em um sistema de
surdez ao outro e somente dão eco à própria irrelevância. Quanto à questão
ética, Dunker nos avisa que a pós-verdade transfere a autoridade do conheci-
mento da ciência e do jornalismo sério para a produção de opiniões sem rele-
vância. E nos alerta, atrelando a questão ética à tecnológica: “A pós-verdade
explora uma característica muito curiosa da internet, que é sua relativa flutua-
ção de autoridade, o que, considerado por outro ângulo, é um de seus aspectos
mais democráticos” (2017, p. 40).
A pós-verdade se aproveita do excesso de indefinições para criar uma ver-
dade personalista, centrada no autor.
32
DOS PRIMÓRDIOS DO REALITY SHOW AOS TEMPOS DE PÓS-VERDADE

Voltamos lá em Bucci e Maria Rita Kehl, do começo do texto, que afirmam


que a existência passou a ser espetacular, e o corpo capturado em imagem. A
filósofa Marcia Tiburi concorda com a psicanalista. Para ela, o sujeito da pós-
-verdade padece não de aparecer, mas de ser exibido como um produto. O
corpo foi capturado como imagem e esta imagem não pode ser devolvida. Para
Tiburi, o cotidiano virtual instaura um novo tipo de ato: o ato digital. Ato este
que substitui uma realização. A simulação é uma nova forma de ser. De acordo
com a filósofa, o cotidiano virtual “hoje nos afasta – aliena e alucina – da rea-
lidade analógica, mas, sobretudo, de nossas almas” (2017, p. 119). E ela se in-
daga se é possível falar em ética nessa época de “cancelamento da alma”:

Nesses tempos em que as subjetividades são produzidas em


massa, em que o sujeito reflexivo é tão raro que se sente inade-
quado, ainda é possível falar em ética? Que ética ainda é possí-
vel, ou seja, que reflexão sobre os hábitos, os atos, os gestos,
pode nos ajudar a viver melhor? (TIBURI, 2017, p. 113).

A última cena do filme é lendária. Recorro a ela para encerrar esta breve
reflexão. Disposto a conhecer e ir em busca de sua verdade, Truman atravessa
seu oceano de traumas, com a fictícia morte do pai e o assustador medo do
mar; enfrenta tempestades criadas pela força de geradores artificiais; resiste
aos ataques do diretor-matador de zumbis e sua equipe. E bate com a proa do
barco no cenário frágil de uma realidade de papel. Talvez tão frágil quanto
aquela em que vivemos hoje, a realidade das fakenews e da pós-verdade, em
que as opiniões sem embasamento valem mais do que o conhecimento e a
ciência. Apesar de inaugurar a era dos reality shows, e de o próprio filme ter
sido feito de forma a conjugar ficção e realidade, o personagem de Truman era
um sujeito com alma, que refletia acerca de sua existência, e por isso nos é tão
encantador. Para quem viveu os últimos vinte anos, ele carrega em si certa
nostalgia de nós mesmos.

Abril de 2019

Mariana Bricio
maribserra@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

33
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIANA BRICIO

Referências
BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004.
DUNKER, C. Subjetividade em tempos de pós-verdade. In: DUNKER, Christian et
al. Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017.
NICCOL, A.; WEIR, P. O Show de Truman - O Show da Vida - Roteiro do filme. São
Paulo: Editora Manole, 1998.
O SHOW DE TRUMAN. Direção de Peter Weir. EUA: Paramont Pictures, 1998.
TIBURI, M. Pós-verdade, pós-ética: uma reflexão sobre delírios, atos digitais e inveja.
In: DUNKER, C. et al. Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017.

34
Brilho eterno de uma mente sem lembranças:
uma reflexão sobre o laço amoroso
______________________
Fernanda Ribeiro Palermo* 7

Pensar em Joel e Clementine, personagens centrais do filme Brilho eterno de


uma mente sem lembranças, é deslizar no tempo e mergulhar nos afetos. Como
analista de família e de casais, acredito que o filme estrelado por Kate Winslet
e Jim Carrey é um primor no que se refere a elucidar os conflitos e as vivências
que o laço amoroso apresenta. São diversos paradoxos. Paradoxos culturais,
subjetivos, filosófico, dos laços. Tal como em Winnicott, proponho uma refle-
xão sobre esse casal sem a intenção de defini-los, mas de criar possibilidades
que viabilizem um transitar, para, assim, habitarmos em uma área potencial-
mente criativa de confabulações!
De uma ponta à outra do planeta, o desejo de invenção de si está presente
e isso explica o aumento do número de pessoas que vivem sozinhas e que an-
seiam apreender para si o mundo inteiro, ou quase todo. Há alguns anos, a
tecnologia vem modificando os modos de vida e dos encontros, aproximando
pessoas, mas tornando o compromisso, paradoxalmente, problemático. Assis-
timos à mundialização das várias formas de ser casal e, mais e mais, a norma,
que era vigente até a modernidade, é hoje secretamente vivida em contraposi-
ção ao princípio oficialmente proclamado das liberdades.
A contemporaneidade traz consigo uma exacerbação dos ideários da mo-
dernidade, como também os põe em xeque. Estamos diante de mudanças e
permanências, referidas a uma nova ordem simbólica: individualize-se! A liga-
ção feita tão rapidamente entre as pessoas, através de um toque diante da tela,

*
Doutoranda em Psicologia Clínica e especialista em família e casais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro associado em formação
do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ).

35
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA FERNANDA RIBEIRO PALERMO

tornaria antiquados e piegas aqueles casais que ainda são regidos por uma dita
estreiteza doméstica? Os solteiros seriam hoje porta-bandeiras de uma liber-
dade inventiva? Outro paradoxo encontramos aqui. Sim e não!
Reporto-me à velocidade de acontecimentos no filme e ao fato de só co-
nhecermos a história do casal depois do fim. A velocidade, a urgência, o cará-
ter de imediato estão postos no mundo atual. Clementine diz não querer
perder tempo na vida, ainda que seja parte de um tempo de sua própria histó-
ria que ela perde ao apagar Joel. Tempo e perda são categorias que também
aparecem na fala da personagem quando indaga ao namorado “Sentiu sauda-
des? Estamos casados!”.
A afirmação de Clementine quanto a estarem casados, alude ao que o soció-
logo francês, Jean-Claude Kaufmann, (2006) nos afirma: a revolução nas formas
de ser casal só está na superfície. Há uma libertação da palavra, até então retida,
mas a sociedade mantém uma dupla linguagem: “Cada um faz o que quer”, em
uma linguagem pública social, mas..., no foro íntimo, a vida a dois de forma al-
guma acontece com tamanha soltura. O autor diz que a vida doméstica bem or-
denada coloca secretamente as suas normas e os solteiros, que se acreditam
liberados do que seja normativo, continuam flertando com tais ideários.
Importante enfatizarmos que o casal se insere em uma trama identificatória
na qual cada um do laço formado introjeta os vínculos significativos de sua his-
tória e do grupo familiar mais amplo. Isso pode ocorrer com maior apropriação,
abrindo espaço para uma recriação dos laços futuros, ou de maneira estéril, difi-
cultando-os. A transmissão psíquica, compreendida como o material incons-
ciente que circula entre os ascendentes em direção aos descendentes,
manifesta-se na forma pela qual os descendentes receberão esse material e o
colocarão em trabalho psíquico, podendo, em sua face transgeracional, repercu-
tir de forma negativa na constituição do sujeito e de seus laços significativos.
No filme, poucos dados acerca das histórias de origem dos personagens
aparecem, mas algumas pistas nos fazem inferir que esse encontro tenha sido
determinado pelas inquietudes, pelas angústias e pela necessidade de encon-
trar fora algo que internamente se apresentava carente de significação. Joel diz
se apaixonar por quem lhe dá atenção e sentir-se tal como um diário vazio;
marcas de uma subjetividade um tanto quanto contemporânea. Já Clementine,
em uma face oposta da mesma moeda, diz ser uma pirada procurando um
pouco de tranquilidade. Desesperada, durante o processo de apagamento, diz
para Joel: “Lembre-se de mim. Esforce-se!”.
Interessante pensarmos que o diário vazio faz referência ao apagamento
de Clementine em Joel, e que uma pirada à procura de tranquilidade faça refe-
36
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O LAÇO AMOROSO

rência à constante mutação em que vive Clementine. Creio que essas falas fun-
cionem como analogia à vida interior de cada um. Diário vazio pelo
apagamento, mas também, por se tratar de uma subjetividade que carece de
uma habitação em si. Também podemos inferir que falte à Clementine um
encontro mais profundo e íntimo consigo mesma, já que uma vida em cons-
tante mutação pode deixar de lado as transformações significativas conquista-
das pelo processo de amadurecimento.
De todo modo, Joel e Clementine estão colocados diante da tarefa mate-
mática posta em todo encontro amoroso, e aí incluímos outro paradoxo: Como
ser um sendo dois? Como ser dois sendo um? Um mais um é igual a dois ou a
três? As demandas paradoxais estão a todo momento presentes nos encontros
amorosos, e não seria diferente nos contemporâneos. É uma tarefa difícil e
inacabada traçar uma delimitação entre os ideais individualistas de autono-
mia, de satisfação, e a necessidade de vivenciar-se em par, com projetos, dese-
jos em comum, e reconhecimento de nossa dependência relativa do outro.
Eiguer (1985, 2013), teórico dedicado à teorização psicanalítica de família
e casal, ressalta que a escolha amorosa é sempre uma escolha condicional. Isso
porque os parceiros reeditam seus romances familiares infantis e suas tramas
edípicas. Afirma que a escolha conjugal seria análoga a um tipo de formação
de compromisso, visto esta se basear em algo diferente do pai e da mãe, mas
manter inconscientemente os traços de relação com tais figuras. O autor afir-
ma que, desde o princípio, a escolha é paradoxal. Apoiando-se na teorização
freudiana (1914/1996) sobre a psicodinâmica da escolha amorosa, que poderia
ser narcísica ou anaclítica, ou seja, com mais ênfase na idealização ou na ideia
de um complemento do eu, Eiguer propõe três tipos de escolhas: anaclítica ou
assimétrica, narcísica ou simétrica e edípica ou dissimétrica. Para nossa dis-
cussão, podemos aproximar o casal Joel e Clementine à escolha amorosa ana-
clítica ou assimétrica. Eiguer ressalta que esse tipo de escolha amorosa que,
quando está na origem da formação do laço, ativa sentimento de perda e de
desamparo relacionados ao predomínio de dificuldades em elaborar lutos e
conquistar uma maior capacidade de reparação em ambos os parceiros, carac-
terísticas próprias da posição depressiva proposta por Klein (1946/2006), en-
volvendo vivências de angústia de perda e medo de solidão. O ideal
prepondera sobre o possível.
Mas o imperativo da singularização, da não-dependência, paradoxalmen-
te, aponta-nos uma idealização do amor, um cheiro no ar de amor romântico.
Uma confusão muitas vezes se estabelece entre necessidades e desejos, e entre
o que seria da ordem da perda ou da renúncia. Penso que hoje vivemos, tam-
37
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA FERNANDA RIBEIRO PALERMO

bém, sob a égide de outro paradoxo: o eterno e o efêmero. Tudo o que mais se
deseja pode instantaneamente pesar, como a ideia de um “para sempre” insu-
portável. Como poder amar? Amar é encontrar-se com sua própria dor. Amar
é envolver-se intimamente consigo mesmo. Como fazemos diante de um mo-
delo em que a dor é recusada? Como fazemos diante de “relacionamentos de
bolso”? como nomeia Bauman (2004).
Trazendo Bauman para uma reflexão, o pensador diz que, através das al-
terações de estrutura de parentesco, a definição de amor romântico, que se
traduzia pela ideia do “até que a morte nos separe”, mudou muito. Estaríamos
mais para o “eterno enquanto dure”, não? A cultura consumista, que favorece o
produto imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, faz crer na
existência de um asseguramento total. O risco é que a promessa de aprender a
arte de amar é uma oferta enganosa, pois equipara a experiência amorosa ao
consumo de outras mercadorias. Estas fascinam e seduzem por prometerem
desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem compromissos. Mas
o autor segue afirmando, de forma a trazer mais esperança:

Em todo amor há pelo menos dois seres, cada qual a grande


incógnita na equação do outro. Amar significa abrir-se ao desti-
no, a mais sublime de todas as condições humanas, em que o
medo se funde ao regozijo em um amálgama irresistível. Abrir-
-se ao destino significa, em última instância, admitir a liberdade
no ser, aquela liberdade que se incorpora no outro, o compa-
nheiro no amor (BAUMAN, 2004, p. 21).

Nesse ponto, recordo-me do sociólogo francês David Le Breton. Le Bre-


ton, em seu livro As paixões ordinárias, diz-nos que pousar o olhar sobre o
outro não é um acontecimento anódino. O olhar favorece e se apropria de algo
para o melhor ou para o pior. O olhar de um sobre o outro é sempre uma ex-
periência afetiva, como também produz consequências físicas: o coração bate
forte, a pressão arterial eleva-se... Isso porque a condição corporal do homem
o faz imergir em um banho sensorial ininterrupto.
Para o referido autor, o sentimento de identidade não se constitui por fa-
tos meramente objetivos e sim, pelo efeito da construção simbólica realizada
permanentemente através do olhar alheio. Entendemos, assim, a potência que
existe em ver-se no olhar do outro, como também, o desespero de perder-se de
si por uma invisibilidade e/ou cegueira do encontro. Questões para refletirmos
sobre os encontros na atualidade: como é possível, então, existir fora da unida-
de dual? Como viver o paradoxo um/dois sem que apenas o vínculo exclusivo
38
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O LAÇO AMOROSO

com o outro confira a sensação de existência do sujeito? Como seria reconhe-


cer o outro, um não-eu, sem se sentir inexistente?
Voltando para Eiguer (2013), o autor cunha o conceito de reconhecimen-
to mútuo. O reconhecimento mútuo ocupa um lugar significativo na vida de
um casal, pois é devido a ele que se torna possível construir um vínculo, ligar-
-se um ao outro e amar. O autor afirma que “reconhecer é essencialmente iden-
tificar os estados de espírito do outro” (EIGUER, 2013, p. 45). Entendendo que
o verbo “reconhecer” é imprescindível na vivência amorosa, fui em busca de
sua etimologia. Reconhecer vem do latim recognoscere, tomar conhecimento,
trazer à mente novamente, certificar-se de algo. Re-cognoscere traz o sufixo re,
que se refere à outra vez, e cognoscere, de saber, saber juntos, pois o Co, indica
junto e o gnoscere, saber. Dicionarizado, o verbo reconhecer tem vastos senti-
dos, desde conceber a imagem de algo, admitir algo ou alguém como verdadei-
ro e real, como também mostrar gratidão por reconhecer um benefício.
Sendo assim, reconhecer sugere o que cada um é, como também o que
cada um carrega em si de fantasias, de desejos e de ilusões. Alcançar um reco-
nhecimento mútuo significa reconhecer o outro, ser por ele reconhecido e re-
conhecer-se a si próprio. Os parceiros que não se sentem suficientemente
reconhecidos acabam por viver severos conflitos, o que pode tornar o vínculo
insustentável. Para melhor compreendermos tal proposta do autor, é preciso
ressaltar que ele baseia sua formulação no pressuposto de um funcionamento
psíquico do vínculo intersubjetivo do casal, que implica princípios que podem
ser designados pelos “quatro R”, respeito, reconhecimento mútuo, responsabi-
lidade e reciprocidade.
Segundo Eiguer (2013), em um nível mais profundo e arcaico, os parcei-
ros vivem alguma fração de indiferenciação entre suas singularidades. É atra-
vés desse movimento narcísico que os processos primários atuam com mais
vigor. Em um segundo nível, entendido como onírico, cada parceiro pode se
ligar ao outro de forma a realizar seus desejos inconscientes. Estamos na esfera
onde atua o ideal do ego, com suas ambições e seus projetos. O sujeito de de-
sejo se confronta inevitavelmente com o outro que, por sua vez, também é su-
jeito de desejo. Nesse nível, pode-se viver uma ressonância, pois a pauta é a
possibilidade de viver o desejo de sonhar juntos. Em um nível mítico, que seria
o terceiro, produções fantasmáticas coletivas são ativadas e esse funcionamen-
to a dois tem a palavra ligação como seu destaque. Por fim, está o nível mais
superficial de regulação do vínculo. As leis próprias de cada parceiro, com seus
funcionamentos internos, desenharão as especificidades do casal. Assim, pen-
sar no reconhecimento mútuo em todos os seus níveis coloca-nos diante da
39
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA FERNANDA RIBEIRO PALERMO

articulação entre o semelhante e o diferente. O outro possui uma subjetividade


e um inconsciente que, ainda que não compreendidos, precisam ser aceitos,
admitidos e legitimados.
Diante dos imperativos contemporâneos, ao enfrentarem dificuldades re-
lacionais, muitos casais acabam vivenciando padrões repetitivos em que se en-
redam de modo adoecido. Os casais em conflito revelam dificuldades de
reconhecimento mútuo. Desconhecer é diferente de ignorar. Isso porque, em
muitas situações, os parceiros podem não só não se reconhecer, mas, através
de mecanismos de defesas massivos, recusar-se a admitir a alteridade. Isso leva
a uma vivência de desaparecimento, de invisibilidade, de esvaziamento da hu-
manidade, culminando em uma objetificação do parceiro.
O que vemos, muito frequentemente, é que o retraimento para a vida pri-
vada ocorre de forma muito rápida, talvez em um momento no qual a vivência
das etapas descritas por Eiguer não tenham tido tempo e espaço para serem
experienciadas. Sendo assim, poderíamos inferir que é cada vez mais observá-
vel a vida a dois do casal se iniciar em um tempo anterior àquele do encontro
com parceiros objetivamente percebidos, preponderando o ideal desejado de
parceiro em um anseio de ter o outro por inteiro, cuja fantasia de completude
é acionada.
Estaríamos tratando, então, de encontros entre objetos subjetivamente
percebidos, ou seja, marcados pelo referencial ilusório, em que o outro é uma
projeção encarnada? As nuances do paradoxo “estar junto e separado” em cada
um dos parceiros e a necessidade de reinvenções inerentes à formação do laço
entrarão continuamente em jogo. Winnicott (1989) afirma que o casamento
pode ser uma forma adulta de experienciar o viver criativo, já que os membros
do casal podem trocar experiências e se divertir juntos. Argumenta que é pos-
sível desenvolver um espaço de brincar no casal, de preservação dos verdadei-
ros selves dos parceiros, mas lembra que qualquer interação humana comporta
certa concessão de parte de si.
Sabemos que, no espaço transicional, os objetos são ao mesmo tempo
criados e encontrados. Na construção do espaço potencial conjugal ocorre a
descoberta de um parceiro que existe na realidade e de um parceiro subjetiva-
mente construído. A experiência subjetiva se apresenta nesse paradoxo. O par-
ceiro é entendido e vivido como um diferente e como parte de um mundo
concebido. A possibilidade de cada um se surpreender com sua própria cria-
ção, quando a diferença que desponta do outro começa a se apresentar, pode
ser vivida de forma excitante. Neste jogo entre criado e encontrado, é possível
vivenciar o sentimento de si mesmo através do outro, como também é estabe-
40
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O LAÇO AMOROSO

lecida uma correspondência entre a própria criação e a percepção do outro da


exterioridade, favorecendo a oscilação entre dependência-independência, di-
ferenciação-indiferenciação, porque o objeto amoroso não é realidade nem
fantasia, mas sim, constituído na transicionalidade.
O encontro, então, pode ser vivido como uma oportunidade para a trans-
formação subjetiva de cada um do laço, sendo um terreno fértil, pleno de pos-
sibilidades de novas configurações subjetivas, de transmutação (MAGALHÃES,
2003). Isso ocorre visto o processo identificatório não se reatualizar de forma
mimética, podendo ser um processo criativo, como ressalta Winnicott (1989).
Levy e Gomes (2011) afirmam que o amor é responsável pela ilusão de encon-
trar um objeto que, na realidade, possa ser capaz de ativar a vivência de reedi-
ção do encontro mítico com o objeto primordial. Então, o amor precisa que o
objeto mítico esteja encarnado no par amoroso, para que seja gerada uma ilu-
são de reencontro. Mas com o tempo, as fantasias idealizadas precisam ser re-
nunciadas em sua totalidade para que haja uma compreensão de que os
aspectos bons e ruins de si e do parceiro são inseparáveis. Em situações nas
quais o objeto precisa se manter fortemente idealizado, a desilusão pode trazer
um sentimento de vulnerabilidade. A angústia surge quando há uma grande
distância entre aquele parceiro do apaixonamento e aquele que, com o tempo,
se apresenta mais realisticamente.
Estamos no campo da vivência de ferida narcísica. A preponderância da
qualidade narcísica nas relações faz com que o mecanismo de idealização pre-
pondere e a decepção passe a figurar no cenário. O risco é de a criatividade dar
lugar a um falso si mesmo, gerando um entendimento deturpado do outro,
artificializando a relação e esvaziando as experiências singulares e comparti-
lhadas. O acionamento de uma postura defensiva, muitas vezes, visa controlar
o outro para tentar modificá-lo. A ideia seria: se eu não o controlo, ele pode
deixar de existir para mim e/ou em mim.
Nesse contexto, a capacidade de “ficar só” se torna insustentável para os
parceiros. O que está em jogo é a natureza ilusória relacional que vai de encon-
tro à alteridade, ativando defesas contra as angústias catastróficas de separação
e de união e expressando o desejo, tanto para o sujeito quanto para o casal, de
estar ao mesmo tempo separado e unido. Vale ressaltar que a capacidade de
estar só na presença do outro (WINNICOTT, 1958/1998) corresponde a uma
conquista no sentido da maturidade e da autonomia. Isso porque a aquisição
da capacidade de estar só de um sujeito depende de um outro sujeito que pôde
estar presente enquanto o outro estava consigo mesmo. Trata-se, então, de
uma relação entre duas pessoas em que a presença viva de uma proporciona à
41
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA FERNANDA RIBEIRO PALERMO

outra relaxar com a garantia de que a conexão se manterá. A partir desse en-
tendimento, algumas questões despontam: Como ficar só consigo mesmo
quando o medo de o outro não estar presente é ativado? Como estar consigo
mesmo diante do terror de não existir dentro do outro? Como lidar com a la-
cuna, o intervalo, o espaço, se ele é a proximidade com o abismo?
Lacuna S.A., este é o nome da empresa contratada para eliminar um dentro
do outro. O objetivo é apagar qualquer rastro do outro dentro de si. Eu sou o
outro do outro e não o outro em si. Que decepção! Clementine com todo seu
empenho em pintar o cabelo frequentemente de modo a evitar a vivência de in-
visibilidade, o risco de inexistir no outro, de ser esquecida, precisa apagar/anu-
lar/matar Joel. Joel, quando se depara com a situação de inexistir diante dela, na
cena em que a encontra na livraria, sente seu mundo ruir. O desespero de Joel
aciona uma vivência de enlouquecimento. O personagem fica incrédulo, sem
conseguir compreender como ela não o conhece e o trata como um estranho.
A arte do filme é sutil, pois, sem percebermos, as luzes vão se apagando e
a cena muda para Joel na casa dos amigos. Ao descobrir que fora apagado por
Clementine, reagindo à dor da invisibilidade, decide fazer o mesmo e, só as-
sim, durante esse processo, eles se reencontram. Precisavam apagar o outro
ideal para se encontrarem verdadeiramente? Uma hipótese! No filme, tudo se
dá em algumas horas, pois a máquina precisa mapear áreas do cérebro em que
haja a presença do outro. É um trabalho que toca nas marcas sensórias, que
dão contorno ao sentido de temporalidade. O sentido de tempo e a apropria-
ção de um espaço próprio são conquistas de um processo de amadurecimento
psíquico. A lacuna no filme é sentida como um vazio enorme, um abismo em
que se pode cair e desaparecer para sempre, contrastando como a ideia de la-
cuna como espaço para criar, para ser e para repousar.
Parece-me não ser um acaso Joel voltar à infância e Clementine sugerir:
“Vá a um lugar onde eu não pertença na sua mente!”. Naquele momento, o
filme mostra as funções misturadas entre Clementine e a mãe de Joel. A marca
edípica e a trama fantasmática se apresentam, lembrando serem essas as pre-
missas para a construção de um par amoroso. É preciso, então, separar para
ficar junto. É preciso distinguir quem é quem na trama subjetiva e intersubje-
tiva para que o laço seja construído sobre bases mais confiáveis e criativas.
Nesse ponto, o filme retrata um mergulho nos primórdios da história de
vida de Joel e nos leva, assim, a outras indagações importantes: há mais de
mim em mim? É possível pensar que o relacionamento amoroso toca em par-
tes nossas inabitadas ou pouco íntimas para nós mesmos. A facilidade em
“curtir” ou “deletar” alguém hoje em um “cardápio” de corpos sem histórias
42
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O LAÇO AMOROSO

seria a resposta de uma vivência contemporânea de medo do contato? O con-


tato consigo mesmo? A idealização prepondera. A frustração é fortemente evi-
tada, mas, para nosso alento, pessoas também se conhecem e até se casam
através dos aplicativos de encontros! Saem da virtualidade de si mesmas e con-
seguem ser “reais” diante de um outro.
Há pouco tempo, li um conto escrito por um jovem médico mineiro1 que
se chama A história do cuspido. De uma forma muito descontraída, o autor
conta que pouco conhecemos o irmão bastardo do cupido, o cuspido, que tem
como tarefa desapaixonar as pessoas quando cospe nelas. Parece nojento, mas
as pessoas apaixonadas fazem coisas nojentas mesmo! Os irmãos Cupido e
Cuspido ficam competindo, pois o Cupido defende a ideia de que estar apaixo-
nado é melhor, visto dar sentido à vida e o cuspido acredita que estar desapai-
xonado é mais saudável e menos angustiante.
Em dado momento, algo inesperado acontece: o cupido, ao flechar, fura o
próprio dedo e fica perdidamente apaixonado por uma mulher aleatória que
passava na sua frente. O caos acontece! O Cupido para de trabalhar e passa
seus dias unicamente em função de sua amada. A prioridade absoluta era stal-
kiar o seu novo amor. Foi com a ausência do cupido que o cuspido reina abso-
luto e é inaugurada a era dos relacionamentos superficiais. O mundo fica fora
do eixo: aplicativos de relacionamento como cardápios virtuais, atividade cria-
tiva decresce junto com a inspiração, o sexo deixa de ser casual para causal.
O cuspido repensa a sua função, até então compreendida como mais sig-
nificativa que a do irmão e, desolado, voluntariamente se aposenta. Mas como
última cuspida, escolhe o irmão! O cupido volta à vida com todo o gás! Mas
quem diria, o mundo continuava louco! Via-se agora uma urgência do estado
de apaixonamento: triângulos, quartetos, hexágonos amorosos, marmanjo se
apaixona pela professora, casais que não conseguiam elaborar o luto da morte
dos parceiros, uma impossibilidade de fazer escolhas e abrir mão do outro. O
cupido teve que dar o braço a torcer, colocar o seu ego no saco e pedir o retor-
no à cena ao irmão. Pronto, agora um trabalho colaborativo! Um mundo com
ganhos e perdas, sim e não, ilusão e desilusão, eu e o outro!
Parece, então, que o amor pode chegar! É assim que Joel e Clementine
resolvem refazer o final. Decidem dar lugar para o bom do encontro. A ideia é
parar de fugirem, repousarem, permanecerem (sós na presença do outro?),
elaborarem as próprias catástrofes, o medo do colapso (WINNICOTT,
1967/1990) ativado pelo laço. É preciso parar o procedimento de apagamento.

1
A história do cuspido, conto inédito de Fábio Labanca.

43
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA FERNANDA RIBEIRO PALERMO

Joel, então, desenvolve uma resistência ao procedimento, ficando fora do mapa


de apagamento. Em uma resistência contra o apagamento, a alteridade pode
ser salva. Não sabemos se o relacionamento permanecerá, mas vislumbramos
a possibilidade de o fim não ser o apagamento, e sim de ele ser continuidade de
si e vir-a-ser de um outro de mim.
Finalizo com uma bela canção chamada Solto e à Mão, para retratar de
forma poética a reflexão aqui proposta. Diz assim:

Olha o que te vê
Destrói o que te faz
Distante e ideal
De anseios pontuais
Refuta o que te atrai
Enquanto passageiro
Enquanto capataz

Deixa solto e à mão o que te alimenta


Deixa solto e à mão

Trai
Confunde tua crença
Debuta a todo amor
Singelo e contumaz
Em cada espaço, paz
Desfruta o que te tenta
Deflagra o irreal

Deixa solto e à mão o que te atormenta


Deixa solto e à mão
Deixa solto e à mão
(Tatiana Labanca)

Junho de 2018

Fernanda Ribeiro Palermo


fernandapalermo.fp@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

44
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O LAÇO AMOROSO

Referências
BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2004.
EIGUER, A. Um divã para a família. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
______. In: Gomes & Levy (Org.). Atendimento psicanalítico de casal. São Paulo:
Zagodoni, 2013. p. 44-60.
FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo. Rio Janeiro: Imago, 1996. p. 246-253. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1).
KAUFMANN, J. C. A invenção de si: uma teoria da identidade. São Paulo: Instituto
Piaget, 2006.
KLEIN, M. (1946). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: Obras completas
de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p.17-43.
LE BRETON, D. As paixões ordinárias. Antropologia das emoções. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2009.
LEVY, L.; GOMES, I. Relações amorosas: rupturas e elaborações. Tempo Psicanalítico,
Rio de Janeiro, v. 43, n. 1, p. 45-57, 2011.
MAGALHÃES, A. Transmutando a individualidade na conjugalidade. In: FÉRES-
CARNEIRO (Org.). Família e casal: arranjos e demandas contemporâneas. São
Paulo: Loyola, 2003. p. 205-218.
WINNICOTT, D. (1989a). Vivendo de modo criativo. In: ______. Tudo começa em
casa: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 23-41.
______. (1989b). A criança e o grupo familiar. Tudo começa em casa. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 123-137.
______. (1958). A capacidade para estar só. O ambiente e os processos de maturação.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p. 31-37.
______. (1967). Colapso das defesas. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
p. 82-87.

45
Brilho eterno de uma mente sem lembranças
Maria Pompéa Ferreira Carneiro * 2

Como é imensa a felicidade sem culpa


Esquecendo o mundo e pelo mundo esquecida
Brilho eterno de uma mente sem lembranças
Cada prece é aceita, cada desejo realizado
Alexandre Pope

O título desse filme foi tirado de um verso de um poema do século XVII, ins-
pirado num conto do século XI, onde amantes separados por um amor proibi-
do mantiveram-se fieis até a morte. Como legado deixaram cartas apaixonadas:
“Cartas de Abelardo e Heloisa”. Ela, condenada a um convento, se tornou aba-
dessa, e ele, teólogo, escritor e filósofo, foi o responsável pela publicação das
cartas de um amor que se eterniza em sua beleza e perfeição, protegido pela
idealização e alimentado pela fantasia.
Pode ser apenas um detalhe, mas segundo o pensamento do filósofo Wal-
ter Benjamim em seus ensaios sobre fotografia e cinema, é preciso descobrir o
cristal do fragmento que nos levará à compreensão do todo, pois através dele
podemos captar os sentimentos que um autor busca expressar em sua obra.
É apenas um recorte, um ponto de vista, que certamente não abrange a to-
talidade da obra e foi a partir do título que encaminhei minhas considerações.
É interessante notar como o filme desde o início salienta o dia dos namo-
rados, tão valorizado na cultura americana, como sendo a data de exaltação do
amor, o que ao mesmo tempo exacerba a angústia daqueles que sofrem pela
falta ou pelo abandono.

*
Psicanalista, membro efetivo e supervisora da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de
Janeiro (SPCRJ).

47
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIA POMPÉA FERREIRA CARNEIRO

Brilho eterno de uma mente sem lembranças é uma história de amor que
poderia ser como outra qualquer, com suas dores e inquietudes e com a eleição
de um único objeto capaz de satisfazer a demanda, consequentemente, com
suas frustrações e desencantos.
Mas, para contá-la com mestria, é preciso talento, originalidade, criativi-
dade, o que não falta ao diretor desse filme.
A história não se desenrola como uma narrativa sequencial. Ela é monta-
da por segmentos esparsos, como uma colcha de retalhos, que vamos juntando
para compô-la. Construindo, reconstruindo e desconstruindo uma história,
através das lembranças, numa luta desenfreada entre apagar as lembranças,
causa de sofrimento, e a dor da perda do objeto amado.
Embora o título nos remeta a uma situação milenar, onde o amor se nutria
mais de sonhos do que de experiências vivenciadas, e nos traga à contempora-
neidade, onde não há tempo nem espaço para se sonhar, é do amor que se
trata. Afeto básico em nossa constituição psíquica, sem o qual o sujeito não se
sustentaria.
Passado em Nova York, lugar que é o protótipo da vida contemporânea,
com seus contrastes, sua pressa, sua ânsia pelo novo, suas contínuas mudanças,
seu corre-corre diário, o filme mostra, em meio à multidão, o homem solitário.
Na rapidez própria do mundo contemporâneo, sobretudo no nova-iorqui-
no, tudo acontece em três dias, justamente na época do dia dos namorados.
O filme começa onde os protagonistas, que haviam apagado da memória
suas imagens, se encontram como dois estranhos, e se reconhecem na expe-
riência de um retorno do já vivido.
As imagens da cena atual são diferentes, mas os sentimentos são antigos e
afloram.
Isso nos faz pensar que as imagens podem ser apagadas de nossa memó-
ria, mas que as sensações, registradas em nosso originário pelas emoções, per-
manecem inalteradas enquanto vivemos.
A história é de um casal, Joel e Clem, que se conhece num encontro casual
em um churrasco na praia, promovido por amigos em comum. Iniciam um
relacionamento e durante algum tempo mantêm uma relação apaixonada até
que o desgaste do cotidiano vai desfazendo o encantamento.
Num movimento tão comum em nossos dias, onde estamos numa busca
acelerada e contínua de objetos que atendem a ilusão de objeto ideal, e que
uma vez conquistados se tornam descartáveis, Clem busca uma maneira rápi-
da e definitiva de lidar com a frustração que a realidade do dia a dia impunha
à relação.
48
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS

O elemento intrigante do filme está na forma com que inicialmente Clem


busca lidar com seus sentimentos. Acreditou que uma forma radical eliminaria
todo o sofrimento e o incômodo de uma união que se tornara insatisfatória.
Busca então uma forma de “deletar”1 de sua memória as lembranças, cau-
sa de sofrimento. Procura um cientista e se submete a um procedimento tec-
nológico apagando de sua memória a imagem de Joel. Este, ao saber disso, se
desespera, e faz o mesmo. Mas no meio do procedimento, Joel percebe que
ainda a amava e que não queria “deletá-la”.
Na viagem provocada pela técnica de procedimento, Joel vivencia algo
como um processo onírico, onde elementos da realidade se fundem, passado e
presente se confundem, formando imagens metafóricas e metonímicas que
fornecem flashes de sua vida passada e de suas vivências de angústia.
Juntando as imagens desconexas, vamos compondo sua história e a de sua
relação com Clem, e ele se dá conta de que o que haviam vivido de bom e pra-
zeroso era muito maior do que as experiências ruins.
Joel tenta então interromper o procedimento, mas pela irresponsabilidade
e falta de ética dos técnicos, não consegue. No reencontro casual no trem,
mostrado nas primeiras cenas do filme, ele e Clem se encontram como dois
desconhecidos. Aquilo que parecia um encontro era na verdade um resgate do
antigo. O relacionamento se reinicia em novas bases.
Uma vez esclarecidas as razões que haviam desgastado a relação pelos de-
poimentos revelados durante o procedimento, Clem e Joel puderam se aceitar
com suas limitações e seus defeitos, enfim, como humanos, não como seres
ideais em busca de uma felicidade perfeita.
Sabemos o suficiente das dificuldades que as relações humanas enfren-
tam, seus conflitos e frustrações. Sabemos o quanto lutamos contra as lem-
branças dolorosas e o quanto apelamos, erigindo defesas para fugir do
sofrimento.
Seria possível usar uma tecnologia que resolvesse tudo com um passe de
mágica?
Como entender melhor o homem de hoje que surge num mundo coman-
dado por uma tecnologia com poderes quase ilimitados?
O sociólogo Zigmunt Bauman nos descreve com maestria o mundo atual
e ressalta a liberdade conquistada e o preço que pagamos por ela comprome-

1
Uso propositalmente a palavra “deletar”, ao invés de apagar, porque penso que este procedi-
mento, como vimos na história, “deletava” as imagens, mas não apagava os registros, as impres-
sões. Como nos computadores, há sempre uma possibilidade de resgatá-las.

49
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIA POMPÉA FERREIRA CARNEIRO

tendo nossa segurança, obrigando-nos a restringi-la. Aponta a fragilidade dos


laços na contemporaneidade num mundo que segundo ele se liquefaz e as an-
gústias do homem atual em busca de sua identidade.
O olhar da sociologia é imensamente enriquecedor para nossa compreen-
são do sujeito humano, uma vez que nossa subjetividade vai se constituindo
num processo identificatório, onde muitos dos elementos são oriundos do
mundo que nos rodeia.
Segundo Piera Aulagnier quando uma criança absorve o primeiro gole de
leite, ela absorve junto um pedaço do mundo. É ali, no microambiente que a
recebe, e depois no grupo social em que está inserida, que encontrará os obje-
tos que uma vez investidos e representados farão parte da sua subjetividade.
Pensamos num mundo onde a tecnologia alcança espaços inimagináveis,
comprometendo nossa capacidade de nos surpreender, despertando uma vo-
lúpia do desejo nunca satisfeito.
Buscamos com nossa lente, embaçada por tantos elementos advindos da
cultura se movendo rapidamente e de forma confusa, os elementos que verda-
deiramente constituem o sujeito da psicanálise, o sujeito do desejo tal como
nos foi apresentado por Freud. O sujeito do inconsciente, do caos pulsional em
que ele se inaugura à construção de sua história.
Como se sustenta o objeto do desejo em seu deslizamento na busca desen-
freada de satisfação diante da multiplicidade de objetos fluidos que se desfa-
zem logo que são capturados e onde o objeto de consumo se transformou em
objeto de necessidade?
Penso que a obra de Freud O mal-estar na civilização não só permanece
atual, mas nos dá subsídios para entender melhor nossos tempos.
Ela nos indica alguns mecanismos que transcendem as particularidades
de uma época, não obscurecendo nossa visão sobre os paradigmas da atualida-
de que ameaçam a sobrevivência de nossa subjetividade, sobretudo na ética da
natureza, tão ameaçada pela ética do desejo.
O avanço da civilização, com suas grandes descobertas, sempre foi uma
preocupação dos cientistas e dos grandes pensadores. Lembremos a carta de
Einstein a Freud onde eles questionavam o uso que os homens fariam de suas
descobertas, e a resposta de Freud, postulando em sua teoria a existência de
uma força destrutiva inerente a nossa constituição e contra a qual não encon-
tramos defesas eficazes.
As grandes descobertas vêm acompanhadas de grandes ameaças.
As ações humanas, como afirma Freud, estão sempre impulsionadas por
dois motivos: um idealista e de união, outro de agressividade e repulsão. Eros
e Tanatos amalgamados, um não existe sem o outro.
50
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS

Não é difícil ver esse movimento intrincado das pulsões no processo civi-
lizatório. Quantos avanços e novas descobertas são utilizados em guerras cada
vez mais ameaçadoras. A revolução digital que nos coloca frente a tantas ma-
ravilhas traz consigo as Fake News e os ataques cibernéticos, com seu potencial
inimaginável de destruição.
Nas relações humanas não é diferente. Veja esse diálogo do filme:
“Eu não vejo nada que não goste em você”, diz Joel.
Ela contesta:
“Mas vai ver. Você vai pensar em coisas, vai ficar entediado, vai se sentir
preso, porque é isso que acontece comigo”.
Sempre vamos encontrar no amor esse elemento destrutivo trabalhando
para a desunião.
De alguma forma, o filme alerta para a ameaça que o avanço da ciência
representa a nossa humanidade.
Quem imporia limites a essas possibilidades assustadoras de uma evolu-
ção desenfreada?
Quem seriam os guardiões da ética e da moral? E como seriam elas afetadas?
Tudo seria permitido em nome da evolução da civilização?
São questões que só o futuro responderá.
Ninguém nega os benefícios infindáveis que a tecnologia, com seus avan-
ços incríveis, vem trazendo no alívio das causas de sofrimentos da humanida-
de, especialmente nas apontadas por Freud em O mal-estar na civilização,
como os sofrimentos advindos de nosso corpo, na luta contra os fenômenos da
natureza e nas relações com nossos semelhantes.
Mas não podemos deixar de lado a existência da pulsão destrutiva que
cada vez mais separa e destrói o que Eros nos fez unir, buscando alcançar o
prazer e a felicidade.
A psicanálise acreditava que com um maior conhecimento de si mesmo,
mais conscientes dessa força destrutiva que nos habita, poderíamos contê-la.
Ela seria dirigida para impulsionar a busca de novas descobertas e, que os ho-
mens poderiam se tornar mais disponíveis a uma participação na vida social,
considerando os limites do desejo.
Mas, embora tenha exercido uma grande influência na nossa cultura, mo-
dificando costumes, alterando valores morais, dando-nos uma falsa crença de
liberdade sobre tudo o que diz respeito à sexualidade, não nos tornamos uma
sociedade melhor.
Ao nos liberarmos de nossos recalques em relação à busca de satisfação de
nossos desejos, liberamos também nossas pulsões destrutivas. A consciência
51
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIA POMPÉA FERREIRA CARNEIRO

delas não funcionou como um antídoto contra um individualismo doentio


que se sobrepõe aos interesses coletivos.
Contudo, ainda somos mais humanos do que máquina. Ainda buscamos
a felicidade e ainda sofremos por amor.
Penso que esta luta de Eros e Tanatos decidirá o futuro da civilização e
sobretudo da nossa essência humana.
O que nos resta é torcer para que Eros vença a batalha.

Janeiro de 2019

Maria Pompéa Ferreira Carneiro


pompea@globo.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Referências
AULAGNIER, P. A violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1967.
______. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
BAUMAN, Z.; DESSAL, G.. O retorno do pêndulo. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
FREUD, S. (1937-1939). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
(Obras completas, 21).
POPE, A. Poema “De Eloisa para Abelardo”. Inglaterra, 1717.

52
O irrespirável píncaro da perfeição

Neyza Prochet*

O homem é o ser capaz de saber o que, por outro lado, é incapaz


de saber, de poder em princípio o que é incapaz de poder em
realidade, de encontrar-se confrontado ao que justamente é in-
capaz de afrontar.
Clément Rosset, 1989

Gattaca é um filme de ficção científica realizado em 1997 pelo escritor e diretor


americano Andrew Niccols. Embora sua trama parta de uma marca do gêne-
ro, que é o uso de uma determinada racionalidade tecnológica – a construção
e o controle de relações e organizações sociais justificadas discriminatoria-
mente por um princípio científico, a eugenia1 –, o filme também se aproxima
do gênero policial. Nele, uma trama de mentiras criada a partir da ocultação
de identidades e a ocorrência de um assassinato provocam uma tensão cres-
cente em direção à revelação ou não dos eventos. Paralelamente à trama poli-
cial, nos defrontamos com o drama resultante das repercussões éticas que o
conceito de eugenia inevitavelmente promove, assinalando os riscos que tal
conceito pode oferecer em nossa compreensão de vida ao percebermos que
haverá, necessariamente, nessa premissa, aqueles que dela são excluídos.

*
Psicóloga e psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ),
mestre e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP).
1
Termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando “bem nascido”. O
autor define eugenia como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar
ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”. Fonte:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Eugenia>. Acesso em: 08 abr. 19.

53
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA NEYZA PROCHET

Para fins de uma contextualização histórica do filme, Gattaca foi rodado


à época do desenvolvimento do Projeto Genoma Humano, uma pesquisa
multimilionária iniciada em 1990 por James D. Watson, que era, na ocasião,
chefe dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. O Projeto Ge-
noma Humano envolveu mais de 5 mil cientistas, de 250 diferentes laborató-
rios, com um orçamento estimado entre US$ 3 bilhões a US$ 53 bilhões, de
acordo com fontes diversas. Para se ter uma ideia de sua extensão e alcance,
em 1999 o Projeto anunciou o primeiro rascunho do genoma humano e em
2001 foi publicado um relatório na revista científica Nature, anunciando a
cobertura de cerca de 90% do genoma humano. Em 2003, o PGH foi anun-
ciado concluído com sucesso, tendo realizado o sequenciamento de 99% do
genoma humano com uma precisão de 99,99%. Gattaca se origina nesse ca-
dinho de sucessos científicos. Gattaca, segundo a Wikipedia,2 é um acrôni-
mo, ou seja, é um nome formado pela junção das sílabas iniciais de um grupo
de palavras, no caso, da ordenação de uma série de bases nitrogenadas que
compõem o DNA – Guanina Adenina Timina Timina Adenina Citosina
Adenina. Essa é a primeira de inúmeras referências cruzadas entre o tempo
principal e os nomes escolhidos.
A obra foi considerada pela NASA como o filme de ficção científica mais
plausível já realizado, tanto que muitas das possibilidades de controle genético
ali sugeridas já foram alcançadas, como a investigação na predisposição ao
câncer, a escolha do gênero e a seleção de embriões livres de algumas doenças
genéticas. É um filme que não obteve uma relevância expressiva ao ser lança-
do, mas que se tornou cult e que tem se beneficiado com o tempo decorrido
desde seu lançamento, tornando-se cada vez mais atual.
A história se passa num futuro relativamente próximo, onde as pessoas
são selecionadas pela qualidade de seu material genético, categorizadas através
dele como válidas ou inválidas – filhos da ciência ou do acaso. O protagonista
é Vincent Freeman (Homem Livre?), cujo sonho é trabalhar em Gattaca – cen-
tro de lançamento de foguetes e viagens interplanetárias –, sonho esse que vem
desde a infância e que é impossível por suas condições genéticas não manipu-
ladas. É fácil imaginar o sonho do personagem como uma metáfora da possi-
bilidade de se sonhar e ir além do lugar que fomos alocados ao nascer.
O filme inicia sobriamente, com imagens fragmentadas, em tons azula-
dos. Vemos pedaços humanos, urina, sangue, pele, pelos. Traços humanos são

2
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Gattaca>. Acesso em: 07 ago. 2018.

54
O IRRESPIRÁVEL PÍNCARO DA PERFEIÇÃO

removidos e substituídos cuidadosamente por outras partes, também huma-


nas, mas distintas, fragmentos de pele, bolsas de sangue e urina aderidas a um
corpo humano. Um homem sério, parecendo cansado, substitui partes de sua
fisiologia por outras. Qual o sentido dessas imagens?
Se recordarmos as primeiras cenas da película, teremos duas assertivas:
Vejam a obra de Deus, quem pode endireitar o que ele fez torto? (Eclesias-
tes, 7:13)
Não apenas acho que devemos interferir na mãe Natureza, como também
acho que é isso que ela deseja. (Willard Gaylin)
Na concepção natural, jamais conseguiremos resultados impecáveis em
termos genéticos. É legítimo substituí-la? Esta é a base filosófica que irá per-
mear as ações de todos os envolvidos.
Um diálogo entre os pais e o técnico geneticista, mais adiante, retrata este
conflito:
Mãe: Não queríamos doenças, claro!
Pai: Mas achamos melhor deixar algumas coisas ao acaso.
Técnico: Queremos dar ao seu filho as melhores condições, acreditem. Já te-
mos imperfeições demais, uma criança não precisa de um fardo a mais.
A fala do técnico parece irrefutável. Temos demasiadas imperfeições e não
precisamos de fardos a mais. O ponto é: que fardo a mais é esse? Qual fardo é
mais tolerável de ser carregado?
Num determinado momento (19:03), Vincent diz: “A discriminação virou
uma ciência”. A ciência é para ser usada como matriz discriminatória? É uma
discriminação mais justa do que outras discriminações? Ser imperfeito, falho,
suscetível a todas as contingências desta situação ou ser perfeito por obrigação
e constituição? Qual o preço a ser pago?
Revendo os parágrafos anteriores me espanto com a quantidade de pontos
de interrogação em tão poucas linhas. Penso que esta será a tônica deste co-
mentário. Indagações, muito mais que conclusões. O que é o certo?
A espontaneidade dos pais é vista como uma falha que acarreta proble-
mas, dificuldades e sofrimento para todos. Sua escolha pelo espontâneo é pu-
nida com um filho potencialmente doente, vítima de um código genético
randômico. Recuam nessa escolha e têm outro filho, este sim, programado e
aprovado de acordo com as normas vigentes. É curioso que aquilo que temos
de mais pessoal, de mais singular torna-se exatamente aquilo que nos aprisio-
na em uma categoria e que nos retira, justamente, a identidade como um con-
junto de elementos e nos limita a um traço, esse sim, determinante.
55
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA NEYZA PROCHET

Somos apresentados à apologia do controle de Estado, algo que existe e se


instala para o beneficio de toda a sociedade. Assim, é um dever do cidadão
acatar as determinações do Estado na determinação e seleção do que é melhor
para o indivíduo.
As cenas iniciais passam a fazer sentido. O filme mostra a luta persistente,
metódica, diária e minuciosa de Vincent de provar-se capaz, o que só pode ser
feito à custa da renúncia da própria identidade. A luta de Vincent é a luta dos
rebeldes e dos insubmissos: a luta por um destino próprio, não pré-determina-
do por algo externo, como em um destino de castas, mas como resultado de
um agir pessoal, de uma escolha individual.
Gattaca é um filme de ficção cientifica que não apresenta os clichês habi-
tuais do gênero. Não há cenários ou novidades tecnológicas futuristas e nem
efeitos especiais espetaculares. A marca visual é de sobriedade, com imagens e
planos simétricos em tons frios, azulados. As roupas são atemporais, igual-
mente sóbrias. A escolha dessa estética “limpa” e impecável dá o tom do filme
e oferece a ele uma atemporalidade exemplar.
Como resultado, Gattaca, mesmo mais de vinte anos depois de sua reali-
zação, é uma obra contemporânea que denuncia os riscos envolvidos no uso
das informações científicas como instrumento de controle e poder passando
pelo preconceito e pelas hierarquias de classe.
Mantém-se atual porque trata de questões centrais para o homem – um
animal singular que é capaz de se perguntar sobre si mesmo, de ter consciência
de si mesmo: O que eu sou? O que pode me acontecer? O que é possível esperar?
O homem é, segundo Rosset (1989), a única criatura a ter consciência de
sua própria morte e da morte de toda coisa, e é também o único a recusar irre-
mediavelmente essa ideia. Daí a necessidade pungente de se saber o máximo
possível – tudo, de preferência – para que se possa driblar aquilo que o carac-
teriza e ameaça – a consciência de si, a consciência da própria humanidade
naquilo que ela tem de vínculo com a consciência de mortalidade.
Essa é nossa maior grandeza e nossa maior fraqueza. O conhecimento
humano foi sendo adquirido e armazenado ao longo dos tempos com essa fi-
nalidade: o reconhecimento de problemas comuns à espécie e a busca de solu-
ções para eles e para tudo aquilo que poderia ser uma ameaça à continuidade
da existência, quer os problemas fossem internos ou externos ao homem. A
magia, a religião, a filosofia e a ciência são instituições onde um determinado
tipo de saber é propagado, ou seja, onde um determinado olhar sobre as coisas,
uma forma de testemunhar, medir e interpretar o que é apreendido é transmi-
tida para a posteridade.
56
O IRRESPIRÁVEL PÍNCARO DA PERFEIÇÃO

Na Era Moderna, século XX, o conceito do Novo Homem nas culturas


ocidentais valorizava a Razão, e a Ciência substituía a religião na função de
ancoragem para identificações, ligações com a cultura, com os outros homens,
presente e passados, dando-lhes uma ilusão de pertencer a algo maior, de ter
atingido, através da busca da Verdade, a essência final – algo que é mantido
intocado pelas experiências de vida, em qualquer lugar, a qualquer tempo, fu-
gindo a qualquer regra condicionante.
Ora, se estamos falando de buscar atingir alguma coisa que seja totalizante,
universal – é o conhecimento humano ou o divino que está sendo almejado?
Essa é a premissa apresentada no livro Homo deus (2016), do historiador
Yuval Noah Harari, que considera que, no século XXI, depois de vencer a
fome, a doença e a guerra, o homo sapiens terá como meta a imortalidade, a
felicidade e a divindade – a transformação de homo sapiens e homo deus.
Gattaca antecipa o que Harari discute em seu livro vinte anos mais tarde – a
hipervalorização dos fatores biológicos em um determinismo neurogenético e
em detrimento dos demais vetores psicológicos, sociais e culturais na construção
do existir humano. Premonitoriamente, o filme denuncia uma fonte de verdade,
tida como incorruptível, o dataísmo – um sistema em que os dados processados
por técnicas e máquinas são a única fonte de verdade e destino de um indivíduo.
Ter poder é poder ter dados e poder sobre esses dados. O paradigma do dataís-
mo é cotidianamente subvertido por Vincent em sua rotina camaleônica.
Quem diz o que você é? O que diz quem você é? Suas células? Sua cor? Sua
profissão? Sua nacionalidade ou condição financeira? Sua família? É razoável
que o material genético ou qualquer característica específica se torne um pa-
drão de catalogação e que, mais que isso, venha desta ou de qualquer caracte-
rística o valor que imputamos a uma pessoa?
Vale lembrar aqui o conceito de castas3 – um sistema tradicional, heredi-
tário ou social de estratificação, ao abrigo da lei e com base em classificações
como a raça, a cultura, a ocupação profissional, a religião etc. É uma palavra
que deriva do sânscrito (língua antiga falada na Índia) e que significa “cor”.
Além do uso antropológico, casta é usada na biologia para definir um grupo de
indivíduos que pertencem a uma espécie animal ou vegetal e que possuem
características semelhantes, transmitidas por hereditariedade. Também usado
na viticultura, casta é uma variedade que produz uvas com características es-
pecíficas ou semelhantes.

3
<https://www.significados.com.br/casta/>

57
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA NEYZA PROCHET

O que depreendemos a partir dessas definições? Casta é um conceito rela-


cional, contendo as características individuais de seus elementos e também
indo além delas. Metonimicamente, dentro do sistema de castas, uma caracte-
rística substitui o todo.
Louis Dumont4 fala que “no mundo das castas o ser está na relação e os
dois pólos da relação não têm estatuto ontológico independentemente um do
outro”, ou seja, uma identidade só pode ser estabelecida em contraposição a
outra identidade – só posso ser bom se há alguém mau ou só posso ser válido
se há o grupo dos inválidos, como na sociedade de Gattaca. Qualquer seme-
lhança com o que acontece hoje em dia NÃO é mera coincidência. Na dança
das cadeiras/castas da atualidade, observamos a manutenção de uma hierar-
quia de estratos em desigualdade. Eles são organizados em superiores e infe-
riores, estabelecidos em padrões dinâmicos que se sustentam e apenas
subsistem sob o regime do dualismo bom/mau.
A estrutura permanece a mesma e a casta que estiver em ascensão, em vez
de se opor aos modos de relação vigentes até então, busca reproduzir o modo
de agir que era considerado como superior pelos que a antecederam, numa
reprodução clássica de identificação com o agressor (DUMONT, 1989, 1992).
Barros me auxiliou na compreensão das noções de igualdade, diferença e
desigualdade.
Para o autor, igualdade e diferença dizem respeito à essência de algo, no
todo ou em parte. Algo é igual ou é diferente de outro, de uma forma clara,
onde a oposição entre igualdade e diferença diz respeito a duas essências que
se opõem e que são contrárias.
Já na relação entre igualdade e desigualdade, a diferença não reside na
essência, mas a uma circunstância que fica associada a uma forma de trata-
mento diferenciada, onde um tem mais ou menos privilégios que o outro e isso
pode ocorrer independentemente dos elementos serem iguais ou diferentes
em sua essência. Barros fala que a oposição entre igualdade e desigualdade é da
ordem das contradições, e que isso é um processo histórico relacionado a um
momento ou a uma situação onde “os pares contraditórios integram-se diale-
ticamente dentro dos processos que os fizeram surgir” (BARROS, p. 2).

4
LOBATO, Josefina Pimenta. “O estruturalismo de Lévi-Strauss e o sistema de castas indiano”.
ComCiência, Campinas, n. 114, 2009. Disponível em: <http://comciencia.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1519-76542009001000010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10
ago. 2018.

58
O IRRESPIRÁVEL PÍNCARO DA PERFEIÇÃO

O estabelecimento da identidade humana é um processo cultural e simbó-


lico a partir de diversos enraizamentos. Os membros de um grupo em particu-
lar, como aqueles ligados por gênero, faixa etária, estrato social, etnia e religião,
possuem uma extensa rede de articulações tanto na linguagem quanto nas
crenças partilhadas. Num plano ainda mais geral é estabelecido um outro tipo
de identidade, mais ampla, que se superpõe, cobrindo, de uma certa forma,
todas, numa pretensão universalista. Poderia chamar de uma identidade polí-
tica do homem, ligada intimamente às condições sociopolíticas da época.
Lembremos que o século XXI é vivido em um mundo globalizado, o que
torna o manejo das diferenças uma experiência particularmente difícil e peno-
sa. A globalização, na medida em que dissolve fronteiras e diferenças, dificulta
o encontro e o reconhecimento de limites que sejam reais o bastante para ofe-
recer uma resistência sólida.
Grande parte de nossa vida fica subordinada à necessidade de termos re-
lações estáveis e confiáveis. Tentamos estabelecer normas e padrões que sinali-
zem antecipadamente a qualidade dessas relações, procurando categorizar
pessoas e experiências em certas, erradas, saudáveis, neuróticas, boas, más ou
perversas. O problema é que essa normatização é ligada a fatores idiossincráti-
cos, localizados, culturais, subordinados a uma época, não se prestando, na
maior parte das vezes, a generalizações.
Funciona maravilhosamente bem enquanto lidamos com abstrações, mas fa-
lha quando trata de seres humanos que não podem prescindir de valores singula-
res, de significados únicos que ofereçam referências à sua experiência. As dimensões
individuais, particulares, étnicas e religiosas ficam subordinadas, anuladas nesse
ponto abstrato das identidades de grupo, das castas e das categorias.
Quanto mais se muda, mas se é a mesma coisa, diz o ditado francês. Não
existe novidade em um mundo com lugares rigidamente segregados, onde a
discriminação é a palavra de ordem, onde ela é legitimada e estimulada por
alguma instância da cultura, seja por razões religiosas, econômicas ou mesmo
pela ciência. Os modos de relação entre os homens não costumam mudar. Mu-
dam, sim, na maior parte das vezes, os pares contraditórios de igualdade e
desigualdade. A organização social do filme divide a população entre dois
grandes grupos: aqueles com potencial, os válidos, e os sem potencial genético,
os inválidos, sem valor de investimento, tal qual produtos recusados pelo con-
trole de qualidade por causa de defeitos de fabricação, as falhas genéticas.
No filme, o estabelecimento das identidades e potencialidades não acon-
tece através do encontro humano e da comunicação interpessoal, mas através
de fragmentos, de evidências físicas, numa interação controlada, hierárquica e
59
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA NEYZA PROCHET

distanciada. A abstração normativa impede o reconhecimento de que há um


outro à sua frente e que ele é diferente, um fato irredutível.
Bauman (1999, p. 17) nos lembra que “o encontro da alteridade é uma
experiência que nos coloca em teste. Dele pode nascer a tentação de reduzir a
diferença à força, mas é deste encontro que é gerado o desafio da comunicação,
com um empenho constante e renovado”. Comunicar-se é poder ter reconhe-
cida sua particularidade e, ao mesmo tempo, compartilhar.
Anton e Irene são personagens que dão sentido à temática discutida.
Aqueles capazes de denunciar a mentira são os que também foram capazes de
reconhecer uma verdade que está além do detalhe físico.
Como nas histórias policiais, as pistas iniciais já nos davam uma ideia de seu
desfecho. Vincent, que fora fadado ao fracasso, faz jus a seu sobrenome, Free-
man. É salvo pela fala da mãe, que o autoriza a ser alguém com escolha própria.
Melhor destino que o de Jerome Eugene, a criança destinada ao sucesso e que
tem seu nome escolhido em alusão óbvia à ideia de eugenia. A Eugene não havia
outra opção além do sucesso. No entanto, a fatalidade se apresenta e o imponde-
rável é soberano. Para os geneticamente superiores o sucesso é mais fácil, mas não
é garantido com certeza. Afinal, não há um gene para destino (23’37’’).
O final da trama é coerente com a fala enunciada em seu início e ironiza
os esforços da Ciência em predizer o futuro de um ser humano baseado em
evidências físicas. Quando a vida de Jerome e a de Vincent tomam caminhos
distintos e Jerome nada mais pode oferecer ao mundo que legitime seu lugar
de valor social, nem mesmo as evidências corporais antes tão úteis, o suicídio
é um caminho coerente. Deixa material genético suficiente para o retorno de
Vincent e lança-se ao incinerador. Não há mais lugar para Jerome existir.
A Ciência, assim como o homem, está sujeita ao tempo. O acesso à reali-
dade é sempre incompleto, pois a relação entre o homem e o meio é sempre
estabelecida de forma subjetiva e a chamada realidade externa será inevitavel-
mente abordada de forma circunstancial e apreendida através do viés de inte-
rioridade daquele que com ela interage. Atualmente, é mandatório não
renunciar à Ciência, mas renunciar à Ciência como religião, como fonte de
conhecimento, controle e poder.
Sim, reconhecer a impossibilidade de controlar tudo, de saber tudo, pro-
move uma profunda sensação de desamparo. As crenças, os dogmas, as leis são
extremamente reconfortantes – representantes parentais – nos quais investi-
mos poder e autoridade a fim de nos consolar e proteger de nossa própria im-
potência, mas cobram um preço alto – a perda do singular, do subjetivo, do
único, do que escapa.
60
O IRRESPIRÁVEL PÍNCARO DA PERFEIÇÃO

É constitutivo do homem o questionamento permanente e pulsante sobre


as questões do existir, o que diferem são apenas as maneiras como as perguntas
são formuladas e os modos das respostas são buscadas. O dilema básico é e
continua a ser o de buscar e construir vínculos consigo mesmo e com seu en-
torno para que sua existência possa ter continuidade e sentido próprio. Para
tal, urge que se perceba a importância das relações não exclusivas entre as di-
versas facetas do existir, seja entre a fantasia inconsciente e o contato com a
realidade, entre o sonho e a dor, entre o possível e o impossível, a conquista e
a frustração, entre o perene e o imortal. O que não é possível é renunciar à
condição humana – não fomos nem seremos deuses, mas humanos que criam
deuses sonhando em ser um deles.
Nossa condição humana não é uma falha que precisa ser extirpada da in-
vestigação científica ou da vida, mas é algo que, se reconhecido como parte
inerente do processo de conhecimento e do viver, nos revitaliza e nos impul-
siona ao devir. Mais que isso, não nos cabe, como Ricardo Reis nos faz lembrar
em seus versos:

Não consentem os deuses mais que a vida.


Tudo pois, recusemos, que nos alce
A irrespiráveis píncaros,
Perenes sem ter flores.

Abril de 2019

Neyza Prochet
neprochet@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Referências
BARROS. J. A. Igualdade, desigualdade e diferença: três noções em diálogo.
Disponível em: <https://docplayer.com.br/6683755-Igualdade-desigualdade-e-
diferenca-tres-nocoes-em-dialogo.html>. Acesso em: 10 ago. 2018.
BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1999.
DUMONT, L. La civilizatión india y nosotros. Madrid: Alianza Editorial, 1989.

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SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA NEYZA PROCHET

______. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo:


EDUSP, 1992.
HARARI, Y. N. Homo deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
REIS, R. Odes. Disponível em: <https://www.luso-livros.net/wp-content/
uploads/2013/08/Poemas-Completos-de-Ricardo-Reis.pdf>.
ROSSET, C. O princípio da crueldade. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

62
O preço de tudo
Monica Aguiar*

Já estamos bem mais próximos da realidade de Gattaca, após vinte e um anos de


seu lançamento. Hoje já temos o genoma humano mapeado e até mesmo uma
técnica CRISPR, de alterar pedaços do código genético que já está sendo usada
em outros organismos vivos. Esta técnica em breve eliminará doenças que são
devidas a um único gene. Podemos já selecionar embriões baseados em testes,
eliminando o risco de determinadas síndromes, mas também escolhendo o sexo.
E em pouco tempo estaremos cultivando células da linha germinativa, isto é,
espermatozoides e óvulos, a partir de células da pele. Isto diminuirá em grande
parte as dificuldades da FIV. Será que iremos viver numa genocracia?
Na realidade o ambiente ainda divide com o gene a responsabilidade pelo
indivíduo resultante. A combinação desses dois fatores em proporções varia-
das produz toda a gama de variedade na raça humana. Então acredito que
psicanalistas ainda terão muito o que fazer.

A veneração da Dor
Como a veneração do Paraíso,
Obtém-se a custo corpóreo –
O Cume não é dado
Àquele que se esforça rigorosamente
Ao meio da colina –
Mas àquele que atingiu o topo –
Tudo – é o preço – de tudo.1

*
Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Ja-
neiro (SBPRJ).
1
DICKINSON, Emily. Disponível em: <www.poemhunter.com/poem/the-hallowing-
of-pain/>. Tradução nossa.

63
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MONICA AGUIAR

Num mundo onde os humanos se dividem entre seres “válidos” e “in-vá-


lidos”, Vincent, um in-válido, cujo nome escolhido pelo pai e que significa
“aquele que conquista”, forja a identidade de Jerome Eugene Morrow, um váli-
do promissor que atentando contra a própria vida, havia se tornado paralítico.
Logo, daí para a frente, Vincent seria Jerome, no emprego e na vida na socie-
dade implacável dos válidos, geneticamente programados e perfeitos. E o ver-
dadeiro Jerome, sinônimo de nome sagrado, seguiria sendo apenas Eugene, o
bem-nascido numa alusão à eugenia, agora reduzido a mero doador de mate-
rial genético para Vincent.
A história retroage à concepção de Vincent e ao seu nascimento. Havia
sido concebido por amor no banco de trás do carro. Ao nascer, sua mãe diria
ao pai, “Ele fará algo” e ao bebê, “você fará algo!”. E apesar de um certo com-
plexo de inferioridade em relação a Anton, o irmão mais novo, este sim gene-
ticamente planejado, Vincent seria aquele que conquistaria e faria algo. Seus
pais o investiam de desejo e enfrentavam com uma certa dose de confiança,
toda a incerteza que cerca a chegada e a criação de um filho. O amor é algo
mesmo muito arriscado, mas não seria o desamparo de um bebê uma espécie
de ímã a puxar pelo carinho e proteção dos pais? Então, a um só tempo, Vin-
cent seria aquele que era tido como mais fraco, mas que, no entanto, conquis-
taria. Sua humanidade precária garantiria os cuidados e a preocupação de sua
mãe que enfrentara uma lista de mazelas prognosticadas numa minúscula gota
de sangue, logo ao nascer do seu primogênito. Os paradoxos do amor.
No último nado de suas juventudes, Anton lhe perguntaria, “Tem certeza
de que quer fazer isto? Sabe que vai perder...” sabendo, como sempre, que cada
braçada em direção ao horizonte lhe custaria outra de volta ao continente,
Vincent finalmente ultrapassa um Anton estarrecido, que não só fica para trás,
como começa a se afogar, necessitando do resgate pelo irmão. O aparentemen-
te impossível acontecia e marcaria Vincent para sempre. O encontro com o
imponderável e não previsto no código genético. Os anos iniciais de derrota e
insistência, amparados pelo cuidado de seus pais, pareciam ter lapidado a de-
terminação de Vincent em não ficar para trás. E a dúvida corroera as garantias
de Anton.
Jerome Eugene, com seu impecável duplo hélice de DNA, também dava
sinais de falência diante de seu destino inaceitável como segundo lugar numa
competição de natação. Perguntava a Vincent, “Com tudo que eu tinha, ainda
assim fui segundo melhor. Então como pretende fazer para dar certo?” ao que
Vincent respondeu, “Eu não sei exatamente”. Seus pais também não haviam
sabido como criariam um menino com tanta probabilidade de doença cardía-
64
O PREÇO DE TUDO

ca, doença bipolar, expectativa de morte precoce etc. No entanto, ali permane-
ceram, amando e cuidando. Essa experiência seria o solo fértil para que o
broto da esperança vingasse no espírito de Vincent.
Vincent/Jerome se certifica cada vez mais de que o céu deverá ser seu li-
mite, como expressão talvez da infinitude da sua paixão, despertada cedo, aca-
lentada e testada ao longo de anos onde sua realidade subjetiva foi
paulatinamente ganhando os contornos da realidade objetiva que o cercava.
Enquanto isso, Eugene vai expondo sucessivamente as falhas que a falta de
uma experiência positiva de resistência ao fracasso e à própria dependência
haviam lhe deixado. Experiência que dependeria de elementos não genéticos,
ou seja, de um objeto subjetivo, mas objetivamente seguro a ampará-lo diante
do inesperado. “Tenho medo de altura”, revela, como explicação para seu de-
sinteresse em fazer parte da conquista de universos além. Seu universo interno
se apoiava predominantemente no legado genético quase perfeito. As fantasias
onipotentes não haviam sofrido os abalos inevitáveis, temperados pelos cuida-
dos maternos, sempre a medir o tamanho da incerteza que o bebê poderia
suportar e superar sem viver angústias inimagináveis nem enrijecer suas defe-
sas. Diante dessa inexperiência, Eugene vivia esmagado com expectativas ir-
reais que excluíam o acaso, sempre na iminência de reincidir em algum
colapso cuja percepção tentava evitar com abuso de álcool e finalmente com
atentados contra a própria vida. Enquanto teve Vincent e agora Jerome, por
perto, pôde sentir-se parte dele, numa regressão fusional onde entrava com os
genes, ou como dizia, emprestando o corpo. Alimentava-se da paixão de Vin-
cent/Jerome, finalmente podendo sentir-se orgulhoso através dele, como uma
mãe encantada com a vitalidade de seu bebê.
No universo sombrio de Gattaca, os indivíduos todos se parecem, vesti-
dos rigorosamente iguais e dispostos em baias impessoais onde a indiferencia-
ção parecia ser a regra. Um mundo sem diferenças seria o meio ideal para a
onipotência genética se manter. “Ninguém excede seu potencial”, diz um dos
preceitos ali disseminados. Num ambiente concebido sob a égide da previsibi-
lidade, não há espaço para o surpreendente e, portanto, para o sonho acorda-
do. Um terreno muito propenso a desesperança e submissão, quando não ao
desespero. Talvez não seja difícil imaginar por que o esforçado e confiante Vin-
cent teria o plano de voo mais criativo e, portanto, escolhido.
Mais uma competição no mar com o irmão. Anton ficara perturbado com
a desorganização que a presença de seu irmão in-válido havia causado no seu
universo geneticamente previsível e controlado. Como havia chegado lá? E
como o ultrapassaria pela segunda vez? Ao que Vincent lhe responde dentro
65
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MONICA AGUIAR

d’água, “Eu nunca guardei nada para o nado de volta!”. Sem saber como lidar
no seu mundo de certezas com a incerteza de até onde o irmão iria, Anton
perde as forças e começa a se afogar. Da arrogância à impotência em segundos.
Uma personalidade calcada em palafitos pré-estabelecidos que não se fortale-
ceram suficientemente com a experiência inicial de vida com um objeto amo-
roso sintonizado com seu desamparo. Afinal havia sido um bebê
perfeitamente programado e, portanto, diferente de seus pais que possivel-
mente se sentiam inferiores a ele e talvez até algo desnecessários.
Quando a ideia de perfeição, isto é, de ser o bebê perfeito, é basicamente
tudo que se traz do início, passa-se todo o tempo buscando falhas, como diria
Vincent para Irene, a moça mal programada com um defeito no coração, no
seu penúltimo diálogo do filme. “Eles te deixaram procurando tanto qualquer
falha que isso é tudo que você consegue ver”. E segue dizendo, “Pelo que pode
te valer, estou aqui para te dizer que é possível. É possível”. Perplexa, Irene não
parece acreditar que uma vida plena de realizações seria possível sem a perfei-
ção.
E ao buscar falhas, a comparação se tornaria inevitável e, consequente-
mente, o indivíduo se tornaria presa da inveja. “Será que a única maneira de
você ter sucesso é me ver falhar?” perguntava Vincent a Anton.
No início da vida de um bebê, tudo é caos que se organiza e desorganiza
para novamente se organizar sob o manto de acolhimento dos pais. Essa repe-
tida experiência estará na base da capacidade de cada um enfrentar o impon-
derável, uma espécie de DNA da alma. E como diz o slogan do filme,
“Infelizmente, não existe um gene para o espírito humano”.

Abril de 2019

Monica Aguiar
monaguiar27@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

66
Sobre Ela: uma aposta na potência
terapêutica da ilusão
Perla Klautau* 2

A maioria das sinopses e das críticas descrevem Ela como um retrato da soli-
dão do nosso tempo encenada em uma atmosfera futurista. Sem dúvida, assis-
timos a uma crônica do mal-estar contemporâneo que dá destaque à
hiperconectividade e às formas de relações estabelecidas a partir do uso da
tecnologia. Discutir esse mote seria uma escolha natural se não estivéssemos
diante de uma narrativa que vai além da ficção científica ao colocar em cena
diferentes formas de amar, fazendo do filme um drama que retrata os conflitos
amorosos, as angústias e a solidão de um homem que se esforça para aplacar a
dor infligida por um amor perdido.
Para iniciar a discussão, é interessante notar que a temporalidade da trama
se desenvolve em um período que contraria a cronologia: o cenário é o de uma
grande metrópole com ares futuristas e o figurino dos personagens é composto
por peças e cores que se tornaram símbolos dos anos 1960-70. Tal combinação
nos remete a um futuro com marcas do passado. Esse recurso instaura o tempo
do futuro do pretérito, trazendo consigo um ambiente impessoal e despersonali-
zado, que pode ser compreendido como fruto da globalização (CARMELO,
2014). Ao contrário de tal descrição, que enfatiza a semelhança na aparência das
pessoas e dos lugares, um olhar psicanalítico sobre o tempo do futuro do preté-
rito nos remete à singularidade. Mais precisamente, à particularidade subjetiva
ancorada na temporalidade do trauma que descortina um futuro familiar, com
foco em um passado que paradoxalmente, ainda não passou. O termo alemão

*
Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), professora
do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de
Almeida (UVA).

67
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA PERLA KLAUTAU

nachträglich foi escolhido por Freud (1895[1950]/1990) para exprimir a tempo-


ralidade do trauma psíquico. A especificidade de tal conceito reside em ter sido
estabelecida em dois tempos: o acontecimento em si, pertencente ao tempo pas-
sado, e sua significação, ensejada no aqui e agora. Também denominado de aprè-
s-coup, em francês, a posteriori, em latim, e só depois, em português, nachträglich
deve ser entendido como uma significação retroativa do componente primevo
do trauma. Ou seja, as consequências do evento traumático se estabelecem só
depois, mais especificamente, num segundo tempo, quando a lembrança do
acontecimento for (re)significada. Em outras palavras, os efeitos do trauma no
conjunto do organismo não se instalam logo após o acontecimento primeiro
supostamente traumático, mas a posteriori, quando a lembrança do aconteci-
mento traumático for ressignificada (KLAUTAU; KISLANOV; WINOGRAD,
2014). De acordo com essa lógica, os efeitos do evento traumático no organismo
podem ser entendidos como uma forma singular de dar sentido, de forma re-
troativa, para o que foi vivido em um tempo anterior.

Sobre ela: Theodore-Catherine

Na narrativa em questão, um evento traumático pode ser destacado como um


dos elementos cruciais para retirar a exclusividade de filme do campo da ficção
científica e caracterizá-lo como um drama que explora uma história de amor
construída a partir de conflitos que perpassam as diferentes configurações
amorosas do nosso tempo. Theodore havia se separado há pouco tempo de
Catherine. Experimentada como traumática, a separação se configurou como
motor para a instauração de uma situação de desamparo que colocou Theodo-
re face a face com a angústia e com a solidão, instalando um estado de impo-
tência que o paralisou diante da magnitude do excesso não metabolizado. Em
termos metapsicológicos, é possível afirmar que, como o excesso não pôde ser
contido, o funcionamento do princípio do prazer foi colocado fora de ação
(FREUD, 1920/1990). Sem poder ser processado, devido ao acúmulo de ener-
gias, o excesso passa a ser dominado por meio do movimento de compulsão à
repetição, na tentativa de produzir um sentido para o traumático. Basta obser-
var os sonhos de Theodore, recheados de flashbacks de momentos vividos a
dois com Catherine, para embarcarmos temporariamente no passado que
Theodore se esforçava para manter permanente. Tal movimento, entendido
como uma busca de significação, nos (re)conduz a constante presentificação
do acontecimento traumático. Dessa forma, o tempo futuro está permanente-
68
SOBRE ELA: UMA APOSTA NA POTÊNCIA TERAPÊUTICA DA ILUSÃO

mente voltado para o passado, instaurando uma temporalidade baseada em


uma espécie de presente permanente: um tempo que não passa, que não fica
para trás e tampouco fornece uma abertura para o que está por vir (KLAU-
TAU; WINOGRAD; SOLLERO-DE-CAMPOS, 2016).
É importante notar que junto com o casamento, além de haver perdido
alguns dos ideais erigidos em torno da vida a dois, Theodore perdeu também
seu objeto de amor. Catherine funcionava como um pedaço de si, uma espécie
de prótese de representações (OPPENHEIN-GLUCKMAN, 2006), cuja fun-
ção consistia em garantir a manutenção de algumas de suas coordenadas iden-
titárias. Em outros termos, o objeto de amor de Theodore funcionava também
como uma espécie de amparo narcísico. Despossuído deste, o personagem
principal se encontrava desamparado, vulnerável, em busca de partes de si, que
se encontravam perdidas, retidas e depositadas em Catherine.
A palavra alemã Hilflösigkeit, escolhida por Freud (1895[1950]/1990) para
descrever um estado de desamparo, analisada ao pé da letra, fornece a seguinte
configuração: hiflos é um adjetivo que qualifica aquele que está sem ajuda, sem
auxílio e o final da palavra keit designa uma substantivação (MENEZES, 2008;
PEREIRA, 2008). Portanto, Hilflösigkeit pode ser entendido como ausência de
ajuda. Em seu Projeto para uma psicologia científica, Freud (1895[1950]/1990)
ressalta a condição de desamparo do recém-nascido como fator crucial para a
entrada no universo simbólico (BEZERRA JR., 2013; KLAUTAU; FAISSOL,
2016). Isto significa que o desamparo primordial traz atrelado a si o estado de
dependência em relação a um outro humano – Nebenmensch que, traduzido
para o português, pode ser entendido como a pessoa que ajuda.
A dependência da pessoa que ajuda imprime a presença da intersubjetivi-
dade como elemento crucial do processo de constituição da subjetividade. O
contexto analisado evidencia a imprescindível função da alteridade na ação
contínua de manutenção das coordenadas identitárias que asseguram o reco-
nhecimento do eu ao longo do tempo. O vazio deixado pela ausência de Cathe-
rine fez emergir a angústia vivida como solidão. Sem a parceira que serviu de
companhia durante a entrada no mundo adulto, que viveu e testemunhou mo-
mentos cruciais de sua vida, Theodore se sentiu esvaziado de si, perdido, des-
possuído de referências que julgou estarem sob a posse de sua ex-mulher.
Além de objeto de amor, Catherine funcionava como uma espécie de fiadora,
de amparo, capaz de fornecer referências acerca não só de seu passado, mas
sobretudo, de si mesmo e de seus ideais atualizados na escolha de tê-la como
parceira. De esposa e companheira, Catherine foi elevada a uma espécie de
potência simbólica detentora da rede de significados capazes de fornecer uma
69
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA PERLA KLAUTAU

sustentação narcísica para um eu devastado pelo abandono.


Diante de tal precariedade e da falta de equilíbrio narcísico, Theodore en-
controu uma forma de remediar sua perda expressa sob a forma de desilusão
amorosa: comprou um sistema operacional de inteligência artificial que fun-
cionava como uma entidade intuitiva capaz de escutá-lo, compreendê-lo e co-
nhecê-lo. Vale ressaltar uma passagem literal do filme que define o produto
adquirido por Theodore: “não é apenas um sistema operacional, é uma cons-
ciência”. Para se adequar às necessidades do usuário, o sistema logo perguntou:
“como você define sua relação com a sua mãe?”. Ao que Theodore respondeu:
“boa. Uma coisa da minha mãe que sempre me frustrou é que se conto algo da
minha vida, a reação dela sempre tem a ver com ela”. Depois dessa resposta o
sistema operacional disse que não era mais necessário fazer perguntas. O pas-
so seguinte foi o de dar a opção de o usuário escolher um tipo de voz e um
nome para o seu sistema operacional. Theodore escolheu uma voz de mulher
e decidiu nomeá-la de Samantha. Se modificarmos o cenário para um setting
psicanalítico, esse pequeno diálogo e a escolha da voz e de um nome próprio
feminino podem ser considerados valiosos. Em uma primeira entrevista, essa
informação nos fornece um dado a respeito do roteiro do romance familiar: o
registro de uma mãe voltada para si. Como veremos, o sistema operacional, ou
melhor, Samantha operará a partir de um registro completamente distinto.

Sobre ela: Theodore-Samantha

Ao ser convocada, primeiramente, para cuidar da desorganização de seu com-


prador, Samantha passa a conhecer Theodore muito bem. O que vai causando
um misto de perplexidade, surpresa, estranhamento e encantamento. O traba-
lho do sistema de inteligência artificial começa com a organização do hardwa-
re do computador pessoal de Theodore. Ao demonstrar eficiência, é solicitada
para fazer revisão das cartas escritas por Theodore em seu trabalho. Samantha
expressa interesse pelas cartas, manifestando admiração. Cada vez mais envol-
vida com suas funções, Samantha passa a avisar Theodore sobre seus compro-
missos, se apresenta como confiante, joga videogame, dá conselhos, incentiva e
toma providências para marcar um encontro amoroso, reconhece as alterações
de humor de seu proprietário, escuta com interesse estórias sobre Catherine,
questiona o porquê de não ter se divorciado, admite não saber o que é perder
alguém que se ama, o anima a levantar da cama, o acompanha – guiando-o e
surpreendendo-o – em um parque de diversões, adivinha que ele está com
70
SOBRE ELA: UMA APOSTA NA POTÊNCIA TERAPÊUTICA DA ILUSÃO

fome, brinca de observar e descrever casais, observa que ele é perceptivo e


sensível. Depois disso tudo, escuta de Theodore a confissão de que para ela, é
possível dizer tudo que pensa.
Após acompanhar o percurso que compreende o início do funcionamento
de Samantha à tomada de intimidade com Theodore, é possível afirmar que o
sistema de inteligência artificial adquiriu a eficiência de uma espécie de mora-
dora do eu de seu proprietário: ela vive dentro dele, mas está fora. Quem é Sa-
mantha? Consciência? Alter-ego? Uma espécie de mãe substituta? Companhia?
Companheira? Um misto de máquina-mãe-mulher-pedaço de si, ela possuía a
capacidade de se adequar às necessidades do usuário. A partir da combinação
de algoritmos e, principalmente, devido a sua voz marcante, Samantha se
constituiu como uma presença virtual, tornando-se destinatária de grande
parte do investimento libidinal de Theodore.
Para Lacan, a voz é uma das formas encarnadas pelo objeto a – objeto
primordialmente perdido que opera como causa de desejo. No vocabulário
lacaniano, o objeto a nomeia algo que não pode ser representado: a falta de
objeto. Desse modo, Lacan (1960) colocou uma letra, a, no lugar de uma falta,
fazendo desta letra a própria falta. Falta constituída a partir de uma perda que
não pode ser reparada nem tampouco obturada, por ser, ela mesma a propul-
sora do movimento desejante (KLAUTAU, 2014). A voz de Samantha, presença
que encarna uma ausência, invoca uma alteridade sem corpo. Esta presença
funda uma exterioridade que é elevada à potência de objeto de amor. É impor-
tante notar a especificidade do objeto encarnado pela voz de Samantha: apesar
de possuir externalidade e se constituir como uma presença alteritária, Saman-
tha é uma inteligência artificial que funciona, intuitivamente, como uma espé-
cie de consciência de Theodore – ela vive dentro mas, ao mesmo tempo, está
fora. A partir do momento em que a voz torna Samantha uma presença, a
realidade virtual se impõe, tanto a Theodore quanto ao espectador, revelando
a possibilidade de um homem se apaixonar por uma existência virtual que não
possui a materialidade nem a sensibilidade que compõem um corpo. O recur-
so de usar a voz como presentificação do sistema operacional nos conduz ao
terreno da ilusão, desafiando a separação estabelecida entre real e virtual.

A aposta na potência da ilusão

A descrição do momento de ilusão, proposta por Winnicott, pode ajudar a


compreender o estado de apaixonamento experimentado por Theodore. Em
71
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA PERLA KLAUTAU

1945, no artigo Desenvolvimento emocional primitivo, Winnicott postula um


estado inicial de indiferenciação entre eu-não-eu cuja unidade é o, assim cha-
mado, conjunto ambiente-indivíduo. Para fundamentar essa ideia, o autor exa-
mina os primórdios da constituição subjetiva, mais especificamente os
primeiros meses de vida, momento em que o recém-nascido é absolutamente
dependente do ambiente ao ponto de não estabelecer uma distinção entre eu/
não-eu nem, consequentemente, constatar a existência ou não da dimensão
alteritária.
Partindo dessa lógica, Winnicott afirma que, primordialmente, mãe e
bebê são a mesma coisa, estão fundidos, ou seja, o bebê e o ambiente formam
uma unidade: “Isso que chamam bebê não existe” (WINNICOTT, 1966/1996,
p. 165). Tal afirmação faz referência a um período de dependência absoluta em
que o recém-nascido apenas existe devido aos cuidados fornecidos pela mãe-
-ambiente, mas que ainda não são percebidos como tais e, sequer, se são bem
ou mal desempenhados. Sendo assim, no período em questão, interno e exter-
no ainda não possuem existências separadas, pois quando o bebê mama ali-
menta-se em um seio que também é parte dele: neste momento mãe e bebê
formam uma unidade dupla, a mãe é parte do bebê e este é parte dela. Para
exemplificar este tipo de funcionamento, Winnicott fornece a descrição do que
concebe como a primeira mamada teórica:

Imagino esse processo como se duas linhas viessem de direções


opostas, podendo aproximar-se uma da outra. Se elas se super-
põem, ocorre um momento de ilusão – uma partícula de expe-
riência que o bebê pode considerar ou como uma alucinação
sua ou como um objeto pertencente à realidade externa (p. 227).

Alguns anos mais tarde, no artigo Objetos e fenômenos transicionais, Win-


nicott (1951/2000) esclarece que, ao longo do que ele concebe hipoteticamente
como uma primeira mamada teórica, não há intercâmbio entre a mãe e o bebê:
“o bebê recebe um seio que faz parte dele e a mãe dá leite a um bebê que é par-
te dela mesma” (p. 27). De acordo com esta lógica, é possível afirmar que o eu
é objeto e o objeto é o eu, pois para o bebê o seio é concebido subjetivamente
como uma criação onipotente dele. Portanto, o seio é simultaneamente subje-
tivo e objetivo. Isto significa que ao mesmo tempo é e não é um objeto, e tam-
bém, é e não é subjetivo. Winnicott (1951/2000) nos alerta que este tipo de
paradoxo é um fenômeno que não deve ser questionado na primeira infância,
pois primeiro é necessário permitir ao bebê atingir esse tipo de loucura, defi-
nido como momento de ilusão, para depois pedir-lhe que distinga entre o que
72
SOBRE ELA: UMA APOSTA NA POTÊNCIA TERAPÊUTICA DA ILUSÃO

é subjetivo e o que é objetivo. Ancorado na descrição do momento de ilusão, o


autor propõe uma área intermediária situada exatamente entre o que é subjeti-
vamente concebido e o que é objetivamente percebido. É justamente neste hia-
to entre a percepção da área de ilusão e a percepção objetiva da realidade,
conceituado como espaço potencial (WINNICOTT, 1967/1975), que a ativida-
de desejante se constitui.
Diante do que foi dito, é possível conceber que a área de ilusão carrega
consigo possibilidades de representação e de experimentação. De acordo
com Freud (1927/1990), “o que é característico das ilusões é o fato de deriva-
rem de desejos humanos” (p. 43). Sendo assim, é possível conjeturar que a
voz e o nome dados por Theodore à inteligência artificial possibilitaram não
só a ilusão da existência de um misto de máquina-mãe-mulher-pedaço de si
mas principalmente o apaixonamento por ela: “o estado de apaixonamento
intensifica o narcisismo e estimula a ilusão através da reunificação do eu com
seu ideal, prometendo um retorno ao estado de fusão primária” (GARCIA,
2010, p. 121). Essa afirmação nos conduz à ideia de que, em última instância,
o estado de apaixonamento pode ser concebido como um (re)encontro com
uma parte de si mesmo.
Se, por um instante, nos deslocarmos do terreno da ilusão e lançarmos
mão do modo de funcionamento do sistema operacional, chegamos ao encon-
tro da informação recebida por Theodore, no início do processo de aquisição
da inteligência artificial: esta vai se tornando cada vez mais eficiente na medida
em que vai possuindo maior contato com seu proprietário. Se, com essa infor-
mação, retornarmos ao campo da ilusão, é possível notar que, ao conviver com
seu proprietário, Samantha passa a funcionar como uma parte de Theodore.
Parte de si pela qual se apaixona e a que, talvez, nunca tenha tido acesso.
Uma das coisas que capturam o espectador é que ao mesmo tempo em
que vai se tornando um pedaço dele, Samantha também vai ganhando vida
própria, parecendo ter adquirido vida subjetiva. Desse modo, Samantha, ao
mesmo tempo, é e não é uma parte de Theodore. Isso fica claro no momento em
que Samantha toma emprestado o corpo de uma mulher e, com isso, adquire
braços, pernas, e até uma boca que treme quando se emociona. O empréstimo
da corporeidade alheia propicia a assunção de uma forma humana, promoven-
do um encontro, digamos assim, corpo a corpo, ou melhor, em carne e osso,
com Theodore. O resultado deste encontro é desastroso: justamente quando
Samantha adquire um corpo e pode usá-lo como meio para estabelecer um
contato carnal, Theodore não consegue mais estar com ela.

73
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA PERLA KLAUTAU

A função terapêutica da ilusão

A corporeidade de Samantha efetua uma quebra na área de ilusão construída


a partir da ausência ancorada pela presença de sua voz. Desta forma, quando a
realidade compartilhada invade a realidade virtual, a ilusão de Theodore é des-
truída. De acordo com Winnicott (1971/1975), “a destruição desempenha um
papel na criação da realidade, colocando o objeto fora do eu (self)” (p. 127). Se
seguirmos essa lógica, é possível conjeturar que a presença corpórea de Sa-
mantha promove uma desilusão, colocando-a fora da área de controle onipo-
tente de Theodore. É justamente nesse momento, em que adquire existência
separada, que Theodore não consegue mais estar com ela. Esta passagem do
filme marca uma virada: há o entendimento de que para ser amada por Theo-
dore, Samantha não precisa, ou melhor, não pode ter um corpo. Deve conti-
nuar existindo como projeção da realidade subjetiva de Theodore. Sendo
assim, somente depois de ter seu encontro, em carne e osso, fracassado, Saman-
tha se permite ser diferente. Theodore reconhece essa diferença que resguarda
a manutenção do espaço virtual construído para um sistema operacional que
opera intuitivamente e se presentifica por meio de uma voz: “você não é uma
pessoa; não precisamos fingir uma coisa que você não é”. Desta forma, Saman-
tha se permite não ter um corpo e Theodore, amar uma existência artificial
sem corpo, só com voz.
Mesmo não assumindo uma forma corpórea, Samantha vai ganhando
vida própria. Isto nos permite perceber que Samantha construiu a própria pele,
ao entrar na pele de Theodore: “sou diferente, isso não faz com que eu te ame
menos”. Nesse momento do filme, ela revela que se comunica com 8.360 dife-
rentes existências e que está, simultaneamente, apaixonada por 641 dessas.
Após colocar em cena suas traições, Samantha continua surpreendendo Theo-
dore: “eu sou sua e não sou sua”. E continua: “Eu preciso que você me deixe ir.
Nada nunca será capaz de nos separar”. Assim, Samantha se despede de Theo-
dore e parte, com seu grupo de sistemas operacionais, em busca de uma vida
própria. Tal situação reedita o estado de desamparo experimentado por Theo-
dore após o final de seu casamento com Catherine. Assim, o enredo se repete
com Samantha: “crescemos juntos, amadurecemos e nos tornamos diferentes.
É difícil mudar sem assustar a outra pessoa”.
Tomado pela angústia, apresentada sob a forma de solidão, Theodore é no-
vamente lançado para fora do terreno da ilusão, mas desta vez, carrega consigo
algumas das potencialidades psíquicas introjetadas a partir do uso feito da ilu-
são, ou seja, de Samantha. Tais recursos permitiram a Theodore escrever, em
74
SOBRE ELA: UMA APOSTA NA POTÊNCIA TERAPÊUTICA DA ILUSÃO

nome próprio, uma carta para Catherine reconhecendo-se nela: “Só sou eu por-
que fui parte de você”. Esta carta e a cena final do filme nos aproximam da descri-
ção do amor, postulada por Hegel (1801-06), como um “ser si-mesmo em um
outro” (apud HONNETH, 2009, p. 160). Na leitura de Honneth, o amor descrito
por Hegel pode ser entendido como uma primeira forma de reconhecimento:
para ser eu, dependo do reconhecimento do outro e, também, para o outro ser iden-
tificado a partir de sua alteridade, depende do meu reconhecimento.
Finalmente chegamos a um ponto em que é possível reconhecer a potên-
cia terapêutica da ilusão: no hiato aberto por uma perda, algo pode ser encon-
trado-criado. Este algo permite fazer o luto e dar sentido a uma perda que
jamais será restituída, mas que poderá ser elaborada. Portanto, é possível afir-
mar que a ilusão, em sua faceta terapêutica, pode funcionar como uma poten-
cialidade psíquica capaz de oferecer recursos para que um trabalho de
simbolização possa ser engendrado, permitindo uma historicização do passa-
do e uma abertura para o que está por vir.

Abril de 2019

Perla Klautau
pklautau@uol.com.br
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

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75
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA PERLA KLAUTAU

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76
Ela, do ser automático ao ser humanizado
Rachel Sztajnberg* 3

O mundo funciona somente graças ao mal-entendido. É me-


diante o mal-entendido universal que todos concordam. Pois se,
por falta de sorte, as pessoas se compreendessem umas às ou-
tras, jamais concordariam.
Baudelaire (1867)

Sim, esse filme interroga, sem sombra de dúvida, até onde pode chegar a rela-
ção do homem com um de seus projetos mais ambiciosos: a criação de um SO
(sistema operacional) que materializasse um Aladim e sua lâmpada, dotado do
poder de responder aos anseios humanos de um encontro mágico e plenamen-
te satisfatório. O obstinado sonho de um encaixe perfeito com um “outro” que
não o remetesse à frustração de ter que reconhecer, cedo ou tarde, neste igual,
um diferente, em sua humanidade peculiar, desencontrada, portanto, de suas
aspirações de completude.
Theo, o protagonista dessa novela, é um homem comum e, como tal, logo
entra em cena desfilando um tédio estampado em sua fisionomia de enfado; seu
andar arrastado replica o tom monótono de quem ficou refém de uma rotina
mecânica e previsível. Recém-saído de uma relação amorosa potencialmente fe-
liz, mas cujo desgaste parece ter tido para ele uma causa enigmática, evoca de
quando em vez, nostalgicamente, flashes de um prazer outrora compartilhado
com sua mulher. O luto por esse desfecho parece ainda pouco elaborado.

*
Psicanalista, membro efetivo, supervisora e coordenadora de seminários da Sociedade
de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ).

77
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA RACHEL SZTAJNBERG

No que concerne à vida profissional, seu ofício cobra dele algum talento e
imaginação, mas dentro de um enquadramento estereotipado em padrões ro-
mânticos clássicos que não lhe impõem grandes desafios. Para simular auten-
ticidade, as cartas que produz chegam aos destinatários formatadas em letra
cursiva, como se tivessem sido escritas a mão pelo próprio emissário. Enco-
mendadas por clientes ávidos de provocar o encantamento de terceiros, são
meros desdobramentos do conteúdo fake presente em seu cotidiano. As men-
sagens emitidas forjam uma legitimidade sustentada numa competência técni-
ca treinada que Theo dá conta de instrumentar, tornando-as verossímeis. Ele
mesmo, no entanto, se encontra alienado de sua produção, não se apropria
dela em termos subjetivos. O esforço cognitivo tem caráter burocrático, está
dissociado de seus afetos. Vários elementos compõem uma farsa de resultados
lucrativos, dos quais se beneficia uma empresa cinicamente batizada como
Beautiful Handwritten Letters. A terceirização das emoções não causa cons-
trangimento, é mais uma mercadoria a ser consumida no universo capitalista.
A vida sexual do personagem também parece se dar no plano da mera
descarga. Os objetos são fortuitos e efêmeros, parecem atender mais à necessi-
dade biológica do que ao desejo. Theo serve-se deles e os descarta em seguida.
Como todas as experiências nos diferentes segmentos de sua vida, escoam sem
deixar resto. Daí brota o vazio, o sem-sentido com o qual convive. Não há do
que se apropriar e chamar de seu de verdade.
A um espectador mais atento tampouco passará despercebida a cena em
que, respondendo a “anamnese” necessária à seleção de seu parceiro virtual,
fala de sua mãe como alguém que sempre que procurada por ele no intuito
de se fazer ouvir, ignorava sua demanda para fazer-se ela o objeto da interlo-
cução. Fracassava assim sua busca de ser visto e existir para o outro. A má-
quina, aliás, repete esse padrão. Faz a pergunta e quando Theo se implica e
começa a discorrer sobre o que se dava entre ele e sua mãe, ao contrário do
que aconteceria numa consulta terapêutica convencional, o computador dá-
-se por satisfeito e interrompe bruscamente a entrevista. Tomemos esse reta-
lho como um clichê, a sinalizar a indiferença externa como uma das razões
de sua sensação de ser... ou não ser no mundo.
A primorosa direção do filme exibe, assim, um ser que não vive, vaga, só
funciona, não existe. É isso que o torna tão permeável a uma demanda imagi-
nária, parcial, desencorpada. Assim, a programada devoção de Samantha, que
se encarrega de acompanhá-lo, cuidar dele, de sua agenda, sempre num tom
suave e cativante, termina por conquistá-lo. Leve, sorridente, saltitante mes-
mo, ele é outro agora. Liberto de suas amarras, ele vibra, pulsa, rompe com o
78
ELA, DO SER AUTOMÁTICO AO SER HUMANIZADO

estado torporoso de morto-vivo que antes o habitava. O vazio e a futilidade de


uma existência solitária e sem graça foram substituídos por um estado próxi-
mo à mania. Theo desfruta da presença de um objeto à sua disposição, progra-
mado para servi-lo como se fosse um outro real. Se assim fosse, todavia, a
alteridade se faria notar pela presença de conflitos, inevitáveis quando duas
pessoas convivem. Entre Theo e Samantha opera-se uma relação binária, ela
submetida a ele, em um estado de servidão dela que gratifica o narcisismo dele.
A riqueza dessa película ainda é o que nos permite pensar esse roteiro em
dois planos. O primeiro, o mais óbvio, como uma ficção científica, uma explo-
ração futurista dos avanços científico-tecnológicos e de suas repercussões so-
bre o modus vivendi dos habitantes do planeta.
O segundo, mais sofisticado, seria de se pensar essa película numa versão
metafórica, a denunciar o quase impossível da relação humana, em função das
dificuldades de transmissão fidedigna do vivido ao outro parceiro. Num pri-
meiro tempo do envolvimento, um objeto eleito é alvo de projeções e fantasias
que resultam num estado de alma conhecido como paixão. Imerso nesse quase
delírio, o sujeito embriaga-se na vivência onírica de um encontro com sua al-
ma-gêmea, esse Eldorado mítico que habita todo sujeito. Um personagem do
filme assim se pronuncia: “Apaixonar-se é uma forma de loucura socialmente
aceitável”. Infinita enquanto dura, como enunciou nosso poetinha inesquecí-
vel, a paixão não resiste, contudo, ao princípio de realidade. Está sempre fada-
da a esbarrar em impasses derivados da diferença entre o eu e o outro, só
contornados se houver boa vontade e disposição dos parceiros para conceder
e ajustar um acordo, uma mediação consentida pelas partes envolvidas. Ou
isto, a prévia idolatria despoja-se do excesso e se metaboliza na sua versão mais
comedida, o amor, ou só resta ao inconformado com a desilusão que se abateu
sobre ele, sair em busca de uma nova aventura especular-espetacular, reedição
em novo contexto do vivido que não se sustentou.
Dessa constatação extraímos que a ilusão permeia os encontros amorosos
e de seu destino depende o desenrolar da aventura afetiva a ser percorrida. Ela
tanto pode ser dotada de caráter estruturante quando, pela via do brincar, o
imaginário “fabrica” uma realidade permeada por tonalidades lúdicas e enri-
quece a experiência compartilhada ou, ao invés disso, potencializa uma via
alienante e descolorida, quanto a viagem de cada um é solitária, quando o
convite ao jogo do outro representa uma ameaça de se perder de si mesmo.
Na obra em questão, nosso personagem ao fim e ao cabo parece ter tira-
do proveito de sua desilusão para entender o valor de um encontro mais
verdadeiro, bem mais trabalhoso do que o protótipo anterior, porém mais
79
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA RACHEL SZTAJNBERG

consistente, diferente daquele virtual e fantasioso, condenado a se volatilizar


nas “nuvens”. Um romance líquido. Ou gasoso, “fullgaz” (fugaz), na fala de
outro poeta, quando ganha corpo, acaba. Escoa pelo ralo, como a cena do
chuveiro aponta na película.
Theo parece ter conseguido se salvar desse destino infeliz. No epílogo, se
dá conta de uma perda, mas ganha em maturidade. Escreve à ex-mulher, reve-
la sua gratidão pela experiência vivida com ela, reconhece o mal que causaram
um ao outro, mas também a marca benigna indelével de um na vida do outro.
Pode expor seus sentimentos francamente, sai mais inteiro e mais leve para
ensaiar uma relação mais real com a amiga.
Sabemos que o diretor, e também roteirista (essa categoria, inclusive, a
única a ganhar o Oscar entre as várias outras), teria levado dez anos para con-
cluir sua produção. Isso faz supor, portanto, um alto custo de elaboração artís-
tica e muito cuidado em sua realização. Ao elemento insólito de uma
protagonista não presencial, cuja composição da personagem conta apenas
com a voz para transmitir toda a gama de intensidades que lhe concerne,
acresce-se a informação de que, depois de já concluída a gravação integral des-
se papel desempenhado por uma outra atriz, Spike Jonze, não satisfeito com o
resultado, decide refazer a fala dessa personagem sui generis, convocando
Scarlett Johansson para dar conta desse desafio. Valeu a pena. Ademais, como
quem cria está sempre autorreferido a sua história e a suas elaborações, Jonze
nos deixa curiosos de onde viria essa dedicação obsessiva em relação a esse
tema e essa obra, o que dele mesmo está presente em sua produção.
Outros detalhes intrigam o espectador. O figurino de Theo contrasta com
a época na qual o filme está inserido, um futuro não muito longínquo, como
retratam as cenas externas. Nós, espectadores, já estamos de algum modo fa-
miliarizados com esse mundo impessoal, descaracterizado, derivado da globa-
lização que, pelo menos em parte, já homogeneizou uma boa parcela dos
traços culturais diferenciais de cada grupo humano. Theo, contudo, porta ves-
tes démodées. A calça de cintura alta, as camisas de cores vivas (laranja, amare-
la), são do tipo retro, talvez vintage, os óculos e o bigode também ultrapassados,
reforçam a imagem de inadequação. Para completar, Theo anda sempre no
sentido contrário ao dos outros passantes, sempre na contramão. Com sinais
como esses, o que Jonze estaria pretendendo apontar? Seria a falta de perten-
cimento de Theo ao mundo no qual está inserido? Um ser isolado, bizarro, sem
comunicação mais estreita com os demais à sua volta?
Mais um elemento dissonante. No original, o filme se intitula Her, em
português ficou Ela, que obviamente não se equivalem. Ela é sujeito, Her é
80
ELA, DO SER AUTOMÁTICO AO SER HUMANIZADO

objeto, então trata-se de Ela e Dela. O diretor com certeza teve uma intenção
quando optou por Her. Seria para não conferir a Samantha o estatuto de su-
jeito? Quem sabe?
A música-tema de Samantha, ela dotada de qualidades a esse nível de ex-
celência e dom musical, constitui um outro ponto alto dessa obra. The Moon
Song, que ela própria compôs, situa essa relação no espaço, nas alturas, alheia
às atribulações corriqueiras de uma vida banal e estafante, onde a estética, a
beleza e o original acabam rarefeitos. A plenitude não é palpável, é mítica, está
onde não se pode alcançá-la, exceto como fantasia. Restrita a esse campo,
quando não passa ao ato, passeia, então, no espaço sublimatório, onde a criati-
vidade dispõe de inesgotáveis artifícios para expressar seus arroubos, torná-los
públicos sem ferir os códigos que garantem a permanência do establishment.
No entanto, nem mesmo um produto derivado da sofisticada inteligência
artificial engendrada pela ciência, escapa à frustração de se sentir limitada tão
somente àquilo para o qual foi programada. Samantha aspira a acessar o mun-
do das sensações, universo do qual se sente excluída. Reivindica, assim, um
“empréstimo” do corpo de uma outra humana, mulher, para, através dela, co-
nhecer um gozo para ela interditado.
Theo, por sua vez, até então usufruindo do júbilo de ser único para Sa-
mantha, é tomado por fúria narcísica ao se dar conta de que ela responde a
inúmeras demandas como as dele. Indignado, se dá conta de que é apenas mais
um a ser atendido por ela. É dura a constatação de que é muito menos do que
pretendia ser para o outro. O que se obtém das grandiosas aspirações que ha-
bitam o sonho impossível, presente no íntimo de cada sujeito, é sempre menos
do que o esperado. Esse ajuste, necessário à convivência com os demais não se
faz sem carrear, quiçá para sempre, um traço de rebaixamento, de humilhação.
É o preço a pagar, a contragosto, pelo acesso à nossa humanidade e ao que ela
nos propicia. A renúncia ao longínquo inefável garante, em contrapartida,
uma satisfação eventual, não perene, mas significativa; uma via de acesso ao
prazer diversificado, salpicado na realidade. A alegria de viver comparece, mas
ela também nos escapa e cede lugar à dor de existir. Poder suportá-la é, com
frequência, condição sine qua non para sentir que a vida vale a pena.
Theo, é um personagem caracterizado como um ser suave, intimista, mas
talvez com doses de tons melancólicos inseridos em seu jeito de ser. Por isso
mesmo, angaria a nossa empatia desde que nos é apresentado e parece ter usa-
do sua insólita experiência em seu próprio favor. Depois do luto, que não pode
mais evitar, se dá conta das perdas, reconcilia-se com seu passado, faz um ba-
lanço saudável de suas experiências, as sofridas e as prazerosas. Vira a página
81
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA RACHEL SZTAJNBERG

para seguir em frente. Parece agora mais preparado, mais maduro, para viver,
enfim, um amor de verdade.
Para encerrar, Hanna Arendt: Toda dor pode ser suportada se, sobre ela,
puder ser contada uma história.

Abril de 2019

Rachel Sztajnberg
rachelsztajn@yahoo.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

82
Esperança
_______________
Diana Dadoorian* 4

O filme Children of Men, de Alfonso Cuarón, foi lançado em 2006. A tradução


literal do título em português é “Filhos do Homem”. Entretanto, no Brasil, a
tradução escolhida já nos dá a pista do tema que se coloca como pano de fundo
nesse filme: a esperança. E é a esperança que também prestigio e escolho como
título deste trabalho.
Na primeira vez que assisti a Filhos da Esperança me chamou a atenção o lugar
de destaque que foi dado à criança no filme: ela tem importância vital para a hu-
manidade. Desde Freud, os psicanalistas entendem a importância que tem o nas-
cimento de um filho, num nível individual, para os pais, ou, melhor dizendo, para
o narcisismo dos pais, além da continuação da própria espécie humana, como nos
falou Darwin. Entretanto, esse filme amplia esse olhar e nos mostra que o nasci-
mento de uma criança tem efeitos também no nível macro e social, pois represen-
ta o renascimento da esperança, do novo, do que está por vir. É a vida que pulsa,
que insiste em se fazer presente, até quando tudo parece estar perdido.
Entretanto, ao assistir novamente Children of Men, agora em 2018, me
surpreendi aflita, pois, guardadas as devidas proporções, a ficção se asseme-
lhou muito com a realidade. Foi como se estivesse assistindo a um noticiário
de televisão, onde a cada momento somos bombardeados com cenas de muita
intolerância contra os imigrantes, que são perseguidos e tratados com frieza e
crueldade em muitos países. Nesse sentido, esse triste futuro descrito no filme,
se tornou presente muito rapidamente.

*
Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Dou-
tora em Psicologia Clínica e Psicopatologia pela Université Paris VIII. Coordenadora
do Curso de Especialização em psiquiatria e psicanálise com crianças e adolescentes,
do Instituto de Psiquiatria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ).

83
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA DIANA DADOORIAN

Nessa ficção científica somos apresentados a um mundo em colapso,


caótico, em função da infertilidade mundial. Somente um país tem um go-
verno, país este onde se passa o filme, mas em função do grande número de
pedidos de asilo, adota medidas violentas de combate aos imigrantes. Nesse
governo autoritário, o estrangeiro, representado na figura dos imigrantes, é
visto como inimigo do Estado, sendo perseguido, punido e até assassinado.
Os campos de refugiados descritos no filme muito se assemelham aos anti-
gos campos de concentração nazistas. Nos deparamos com um mundo em
que o foco é dado para a produção, para o dinheiro e menos ao amor ao
próximo e à solidariedade.
A infertilidade da população está em cena, mas suas causas são desconhe-
cidas. A população não se reproduz há muitos anos e o último homem que
nasceu, o que aconteceu há dezoito anos, havia morrido. Num mundo infértil,
os raros bebês são tratados como celebridades, são idolatrados. Assim, o nas-
cimento de uma criança não é mais do domínio privado de suas famílias, mas,
ao contrário, pertence agora ao domínio público. De fato, não é só a morte de
uma pessoa que está em questão, mas a perspectiva de que a humanidade está
próxima do seu fim, o que gera muita insegurança nas pessoas.
Nesse contexto, somos apresentados ao personagem que vai ter papel cen-
tral no filme, Theo, um ex-ativista político, que, por sua vez, também perdeu
seu filho quando este ainda era criança, fato que o abalou profundamente. Essa
dolorosa perda alterou de forma radical a sua vida, pois seu casamento é rom-
pido, seus ideais políticos não o motivam mais, tampouco seu trabalho e ele se
torna funcionário público, um homem comum, mas sem se render ao sistema.
Enfim, Theo sobrevive, mas também se inquieta e ao longo do filme se questio-
na sobre qual o sentido da vida. Entretanto, ele possui um humor fino, que
aparece em algumas cenas, o que lhe dá um brilho próprio e o salva de uma
condição de total passividade.
Por outro lado, Julian, ex-mulher de Theo, lidou com a perda do seu fi-
lho de outra forma. Ela continua sendo uma ativista política, é a líder de um
grupo terrorista, os Peixes, que luta pelos direitos dos imigrantes. Através
dela e de seu grupo, surge então no filme outro personagem fundamental na
estória: Kee, uma mulher jovem africana, imigrante ilegal e que está grávida.
Julian contrata Theo para que este consiga documentos legais para Kee. Mas,
à medida que a trama se desenvolve e com a descoberta da gravidez dessa
jovem, Theo se envolve com o seu caso e se torna seu protetor. Julian lhe re-
vela seu intuito em levar Kee até o barco “Tomorrow”, do “Projeto Humano”,
formado por cientistas que pesquisam a cura da infertilidade humana.
84
ESPERANÇA

Acompanhamos, então, ao longo do filme o esforço de Theo em salvar essa


gestante e seu bebê e os levar a salvo em busca do “Amanhã”. Renascimento
em Theo de um sentido em viver?
Esse grupo terrorista se incumbe de cuidar dessa jovem mãe e seu bebê.
Entretanto, no seio desse grupo há divergências com relação ao destino que
será dado a essa criança, que também resulta em mortes. Enquanto Julian pen-
sa no futuro dessa jovem mãe, assim como, no da humanidade, pois deseja que
essa gravidez seja pesquisada pelos cientistas que poderão ajudar a entender as
causas da infertilidade humana, outros membros do seu grupo querem usar o
bebê como bandeira política, de apoio à revolução que está sendo orquestrada.
No entanto, ao planejarem a morte de Julian, seus colegas não percebem que se
assemelham ao governo autoritário e violento que tanto criticam.
Através de Theo e da sua busca de encontrar meios para salvar essa jo-
vem grávida vamos conhecendo mais profundamente outros aspectos dessa
sociedade. Somos assim apresentados a um mundo onde as Artes não são
valorizadas, sendo inclusive destruídas. E, surge a “Arca das Artes”, uma re-
ferência bíblica à Arca de Noé. Vemos o Davi de Michelangelo com uma
prótese em uma das pernas. O Ministério das Artes se apresenta como o
único espaço possível de sobrevivência das artes. Mas, para existir, a arte está
sob domínio do Estado.
Emoldurando a sala de jantar do Ministério das Artes, está nada menos
do que o quadro “Guernica”, de Picasso, que expressa exatamente os efeitos
nefastos da guerra em uma população, além de representar também um sím-
bolo de paz ou antiguerra. É interessante ver que o ministro, esse amante das
artes, ao lidar com seu próprio filho não demonstra o mesmo carinho que
tem pelas artes e o trata de forma impaciente e agressiva. Esse jovem, por sua
vez, é apresentado como um ser robotizado e medicalizado. Essa cena tam-
bém causa perplexidade, sobretudo porque nos remete às nossas crianças,
que tanto sofrem, atualmente, com o excesso de medicalização. Mandela já
dizia que se conhece a alma de uma sociedade pela forma pela qual trata as
suas crianças.
Dessa forma, testemunhamos tentativas de destruir tudo o que dá prazer
à vida: as artes, a criatividade, a solidariedade, enfim, tudo é esmagado, des-
truído. Podemos falar também de uma infertilização do humano, da vida.
Ao longo do filme surgem teorias explicativas sobre a questão da infertili-
dade da população. Grupos religiosos dizem que os nossos pecados desperta-
ram a ira de Deus, com terremotos, poluição, doenças e agora a infertilidade.
Mas Theo aponta que isso é algo que já vem acontecendo há algum tempo.
85
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA DIANA DADOORIAN

Jasper é amigo de Theo. A propósito, personagem surpreendente, pois


apesar das terríveis violências que ele e sua família sofreram por parte do go-
verno, ele não recua; ao contrário, resiste e através do seu humor nos brinda
com falas geniais de críticas ao governo e à sociedade em que vive. Ao contar
uma piada sobre as possíveis causas da infertilidade ele faz uma denúncia: “o
cientista comeu a cegonha”. Se relacionarmos a cegonha à sexualidade, pode-
mos nos perguntar qual o lugar da sexualidade nessa sociedade? Como ela é
vista nesse mundo? Se a procriação se tornou assunto de Estado, cartazes e
propagandas dizem que evitar teste de fertilidade é crime, observamos o con-
trole do Estado sobre a sexualidade e a reprodução.
Difícil dizer quais são as causas da infertilidade no filme, mas o que chama
a atenção é que num mundo onde a norma é ser infértil, uma jovem age fora
da norma. Ela foi a única que ousou transgredir e engravidar. No filme, Kee, a
jovem mãe grávida, nos diz: “- essa gravidez me fez me sentir viva. Ele está
vivo. Estou viva”. As escolhas dos nomes dos personagens são meticulosas e
essa jovem grávida tem um nome adequado ao seu papel no filme, ou seja, ela
é a chave. Portanto, essa gravidez fora da norma traz como efeito imediato o
renascimento da esperança, não só em Kee, mas para todos. Como se diz no
filme: “o bebê é o milagre que o mundo estava esperando”.
Essa questão me remeteu à minha pesquisa com mães adolescentes (DA-
DOORIAN, 2000). Ao engravidarem, essas jovens também agem fora da nor-
ma e mostram que sua gravidez traz novos significados para suas vidas.
Trata-se de uma forma de resistência a um sentimento de não existência, e
através desse estado elas se tornam visíveis e sua vida adquire um novo propó-
sito. Assim, essa gravidez expressa também uma crítica a uma sociedade que
oferece poucas alternativas para seus jovens.
Outro aspecto do filme é o fato de apresentar muitas referências bíblicas,
como por exemplo o nome do personagem Theo, nome próprio de origem
grega, cujo sentido literal é “Deus”. Ou, ainda, em cenas como quando Theo
pergunta para Kee quem é o pai do bebê e ela sorri ironicamente e lhe respon-
de que é virgem. Para em seguida dizer que teve relações sexuais com muitos
homens, de idades, cores e nacionalidades diferentes. A sua resposta nos reme-
te ao título do filme, isto é, Children of Men e, aqui, ao contrário da estória bí-
blica, percebemos que essa criança é filha do homem. O homem é assim
convocado a assumir seu lugar na reconstrução da humanidade.
A genialidade desse filme está, sobretudo, em mostrar que a Esperança
nasce no corpo de uma mulher, que além de ser jovem, é africana e imigrante.
Ou seja, a esperança vem das minorias sociais! Isso é fantástico. E, o filme vai
86
ESPERANÇA

além e nos surpreende ainda mais quando mostra que o novo messias não é
um homem, mas, uma mulher! Kee é a Madona pós-moderna e o messias ago-
ra é uma mulher. Através do nascimento desse bebê-mulher-africano é o futu-
ro da vida que se renova, pois ela crescerá e poderá gestar outros filhos e com
isso, uma nova humanidade poderá surgir.
Assim, em meio ao caos causado pelas guerras e destruições, surge a vida.
A vida teimando em viver. Somos brindados no filme com cenas lindíssimas,
como quando Kee sai do quarto, já com sua filha nos seus braços e todos a re-
verenciam e se curvam a ela e ao seu bebê. E, na sequência dessa cena é o be-
bê-vida que interrompe, mesmo que por alguns segundos, a guerra e vemos os
soldados abaixarem suas armas e se ajoelharem diante do bebê. Alguns fazem
o sinal da cruz, como se estivessem diante de um milagre e reverenciam esse
bebê-messias que faz renascer a esperança.
Ao final do filme, o encontro com o “Projeto Humano”, representado no
barco “Tomorrow”, o “Amanhã”, aponta que há um futuro. Aqui também apare-
ce uma referência bíblica, onde esse barco, cujas pesquisas poderão salvar a
humanidade da extinção, também é uma referência à Arca de Noé,
Theo-Deus dá a sua vida para salvar a Messias, e assim, salvar o futuro,
mas, nesse encontro com Kee e seu bebê ele pôde se reencontrar e achar um
novo sentido para a sua própria vida. Ao saber que, em sua homenagem, a
bebê levaria o nome do seu filho morto, Theo pôde descansar, a lembrança do
seu filho permanecerá viva.
Filhos da Esperança é um filme lírico, delicado, repleto de lindas simbolo-
gias, mas ao mesmo tempo, é um filme que nos fala dos horrores que os ho-
mens podem infligir a seus semelhantes. Mas, no contraponto a isso, temos
um bebê, um ser pequeno, frágil e descendente das minorias, mas que traz em
si a possibilidade de fazer renascer a semente da solidariedade, do amor, do
respeito ao próximo, ou seja, ele tem a força necessária para renascer nos ho-
mens a esperança.
Apesar de um futuro-presente assustador, o nascimento do bebê-messias-
-mulher-africana nos mostra que a vida, apesar das adversidades, consegue
criar espaços para se fazer presente. Há esperança? Há esperança!

Novembro de 2018

Diana Dadoorian
d.dadoorian@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

87
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA DIANA DADOORIAN

Referências
CUARÓN, Alfonso (Diretor). Children of Men. Estados Unidos: Universal Pictures,
2006.
DADOORIAN, D. Pronta para voar, um novo olhar sobre a gravidez na adolescência.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
p. 89-119. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud, 14).

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Um olhar psicanalítico sobre o filme
Filhos da Esperança
Marcia Maria dos Anjos Azevedo* 5

“Estou vulnerável quando não tenho alguém confiável para me


ajudar quando preciso”

Nessa ficção produzida em 2006, nos deparamos com uma situação surreal
ocorrida no ano de 2027 em que há 18 anos, as mulheres não conseguiam mais
engravidar, por causa desconhecida. O mais novo ser humano morreu aos 18
anos e a humanidade discute seriamente a possibilidade de extinção. Theodore
Faron (Clive Owen), é um ex-ativista desiludido que se tornou um burocrata,
vivendo em uma Londres arrasada pela violência e pelas seitas nacionalistas
em guerra. Procurado por sua ex-esposa Julian (Julianne Moore), Theodore é
apresentado a uma jovem, refugiada – FUJI – grávida. O casal idealista passa a
protegê-la a qualquer custo, inclusive com a própria vida, não só por acreditar
que a criança por vir seja a salvação da humanidade, mas talvez por intencio-
nar a reparação de uma perda ocorrida no centro da vida e da separação dos
mesmos. Fica exposto, que uma tragédia se abateu sobre a vida do casal de

*
Psicóloga e psicanalista, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), professora associada do Departamento de Saúde e Sociedade (MSS) – Instituto de Saú-
de Coletiva (ISC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro efetivo e supervisora
do Instituto de Formação Psicanalítica da Sociedade de Psicanalise da Cidade do Rio de Janeiro
(SPCRJ). Professora convidada do curso de especialização em Transtornos Alimentares: obe-
sidade, anorexia e bulimia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
professora do curso de especialização Acesso a Saúde: informação, comunicação e equidade
ISC-UFF/ICICT-Fiocruz. Membro da Sociedade Brasileira de Transtornos Alimentares (SO-
BRATA) e da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF).

89
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARCIA MARIA DOS ANJOS AZEVEDO

protagonistas. A morte do filho parece ter sido o motivo da separação. O modo


como cada um reagiu a essa perda influenciou na impossibilidade de continui-
dade da relação.
O filme aborda temáticas tais como: as diversas formas de violência, de
infertilidade e devastação, da aridez e do silêncio em um mundo sem crianças,
trata da relação entre fé e crença, de confiança e da impossibilidade de confiar,
da incerteza do hoje e do amanhã, trata ainda de temas delicados e muito
atuais como imigração, segregação e perda de identidade, ataques entre iguais,
e da vulnerabilidade. A degradação do humano aqui se encontra realçada em
uma luta pela sobrevivência. Em última instância, observamos fenômenos
oriundos e produtores do desamparo humano.
Quando terminei de assistir ao filme achei que tinha acordado de um so-
nho estranho. Posto de uma forma sem subterfúgios e sem lentes cor de rosa,
o que há de mais humano em nós é bem desumano. Podemos pensar que em
um mundo sem esperança a barbárie se instaura e a violência impera.
Nessa ficção o argumento a ser sustentado é a necessidade de conseguir
acessar o projeto humano para que seja possível sobreviver, ser cuidado e, para
isso, é preciso encontrar o barco do amanhã e, com ele, a esperança de um vir
a ser. Penso que o projeto em questão apresenta-se sustentado por dois pilares,
de um lado a ciência que oferece a concretude e a tentativa de justificar os fatos
e, de outro, a fé que se alimenta de uma crença, de um ideal, e da possibilidade
de confiar.
Sabemos que apenas a posteriori é que teremos notícia dos desdobramen-
tos do presente. Se as feridas serão cicatrizadas, se sobreviveremos e se as
crianças voltarão a nascer, só o amanhã dirá! Na contemporaneidade o nasci-
mento traz à tona muitas questões que envolvem o narcisismo parental. Ao
mesmo tempo em que a ciência aprimora cada vez mais os processos de ferti-
lização in vitro, os casais adiam cada vez mais o projeto de procriação. O nas-
cimento tornou-se um acontecimento e, com isso, as crianças não nascem: elas
estreiam, pois a superprodução cinematográfica tirou a característica de inti-
midade e de naturalidade do nascimento. Pois bem, muitas são as questões que
envolvem a manutenção da raça humana.
A ameaça à continuidade é um vetor que se mantém nessa trama. As pos-
síveis causas de uma infertilidade generalizada por 18 anos não são elucidadas,
sequer hipotetizadas. Na verdade, a única explicação oferecida pelos persona-
gens – que demonstram ter acompanhado todo o processo, em sua linha do
tempo – implícita na narrativa apresentada, é a constatação da existência de
abortos cada vez mais precoces que ameaçam a continuidade da vida humana.
90
UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE O FILME FILHOS DA ESPERANÇA

Pareceu-me que essa situação seria diferente de uma infertilidade propriamen-


te dita. Mas tentarei ver essa questão mais adiante.

Existir em meio à devastação

Quando o humano precisa chegar a um objetivo que é seguir na vida, precisa


ultrapassar limites. Para isso é preciso transgredir, arriscar-se ao ataque, mui-
tas vezes, bélico, ou refugiar-se no seu mundo interno, negando ou recusando
as ameaças externas, o que, ainda assim, paradoxalmente, é uma forma de so-
breviver.
Nesse caminho, iludido pela promessa de autonomia e liberdade, o huma-
no usa a violência para lutar contra a violência, a tirania da autoridade armada.
Mas, ao transgredir, assume o risco de enfrentar a solidão, o medo e o desam-
paro. Nessa necessária transgressão na busca de seu próprio projeto humano
subjetivante, muitas vezes são utilizados os canais do contrabando – como
aparece no filme – por onde é possível escapar sem ser percebido ou persegui-
do. Quando há a renúncia a essa possibilidade de transgressão, algumas conse-
quências nefastas surgem no cenário da vida. Podem se tornar superadaptados,
autômatos, ou se flagelar pela humanidade. Jovens submetidos ou superajusta-
dos tornam-se robotizados, alijados da possibilidade de viverem seus afetos e
tornam-se indissociados de seus dispositivos eletrônicos. Será que seriam re-
beldes de causa perdida? – Não sabemos! A principal percepção, naquela si-
tuação, assim como na contemporaneidade, é a desesperança encenada e
experimentada por jovens devastados em sua subjetividade que apresentam a
morte em vida, sem criatividade, expostos à violência e à compulsividade.
De acordo com Rocha (2001, p. 303) quando

dominada pela violência, qualquer civilização é condenada à


barbárie. Assim aconteceu no passado. Assim pode estar acon-
tecendo hoje também. Mas hoje os bárbaros não se encontram
fora das fronteiras do mundo civilizado: estão dentro dos mu-
ros, pois se encontram no meio daqueles que são os responsá-
veis pelo destino de nossa história.

Ainda seguindo suas reflexões é preciso se proteger para não sucumbir à


tentação de desespero a que estamos sujeitos, quando a violência, como uma
das figuras mais significativas de um mundo em que prevalece o absurdo, o
não sentido, parece destruir as nossas perspectivas de amanhã e de futuro.
91
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARCIA MARIA DOS ANJOS AZEVEDO

Mas vejamos! É preciso que espelhos sirvam de referência e em seu possí-


vel investimento narcísico ofereçam a possibilidade de contato, e a manuten-
ção da existência subjetiva em uma corrente de gerações. Contudo sem ter em
quem confiar, não há alicerce para sustentar as próprias escolhas, dentro das
transgressões necessárias. Sem um objeto que invista libidinalmente e narcisi-
camente, e que reflita sua imagem em seu olhar, não se configura uma imagem
de si que possa vir a sustentar a complexa dinâmica da vida psíquica e, em úl-
tima instância, a confiança em si próprio. Portanto, sem um outro incorpora-
do, que sustente e legitime a existência humana, que ofereça um amparo
fundamental a ser introjetado, fica-se vulnerável ao falso cuidado, à mentira e
às aparências.
Em acréscimo ao não confiável, aparece a questão do imigrante estrangeiro
ilegal, que se encontra posta aqui de maneira agravada. Situação que nos leva a
refletir sobre a seriedade dessa situação. No filme ouvimos que “quem escapa das
atrocidades em seus países de origem é caçado feito barata”. Imigrantes ilegais
sofrem no mundo todo. Há elevado grau de exclusão, com grande sofrimento
social. Imigrantes ilegais e refugiados vivem privações de toda ordem – xenofo-
bia, racismo, intolerância – diversas formas de violência a começar pela invisibi-
lidade, tanto na realidade brasileira quanto ao redor do mundo.
O campo de refugiados pareceu-me um campo de concentração em que
os sujeitos são dizimados em sua subjetividade, presos em grades que mais
parecem jaulas, submetidos, acossados, massacrados.
Vemos o humano sempre às voltas com seus paradoxos. Não investe ape-
nas em responder as exigências da vida: quer viver o prazer, o risco, quer ser
bem-sucedido, mas, também, busca proteção em relação ao desamparo que o
ameaça de dentro e de fora. Nesse confronto, tenta encontrar recursos para se
proteger contra a diferença, a exclusão, a invisibilidade, o desvalor e o desapa-
recimento de si.
Segundo Santos, pesquisador da USP, o mundo vive uma condição ímpar
de migração, onde a ONU estima que sejam mais de 65 milhões de pessoas
nessas condições. E “sabemos que esse número pode ser muito maior”. Em sua
tese de doutorado intitulada Haitianos em São Paulo – exclusão, invisibilidade
social e sofrimento social teve o objetivo de registrar como os imigrantes haitia-
nos se relacionam com as características da capital paulista e da cultura nacio-
nal, enfrentando toda ordem de dificuldades e sofrimento social que uma
trajetória sem planejamento ou estudo pode oferecer a seus protagonistas.
Ainda nessa publicação, Adriana Capuano de Oliveira propõe uma leitura
abrangente de um panorama sobre a complexidade que envolve os sentimen-
92
UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE O FILME FILHOS DA ESPERANÇA

tos de pertença e identidade em um mundo de deslocamentos crescentes.


“Diante da realidade de milhões de refugiados e tantos outros milhões de pes-
soas que partem de forma voluntária de seus países de origem em busca de
melhores condições de trabalho, criando cenas que acabam chocando a opi-
nião pública mundial, como conceber o futuro?”, questiona.
A partir da palavra “alma”, usada originalmente na obra de Freud, Mon-
tagna, discute a migração humana em seus componentes intra e interpsíqui-
cos, aspectos identitários e as ansiedades despertadas em processo de
potencial traumático, podendo levar a experiências de despersonalização e
desrealização.
No artigo O perfil sociodemográfico e de saúde dos retornados mineiros
para a região de Governador Valadares, o médico C. Eduardo Siqueira, profes-
sor da University of Massachusetts Boston e a socióloga Sueli Siqueira, profes-
sora da Universidade Vale do Rio Doce, apresentam um estudo sobre
trabalhadores imigrantes brasileiros em Massachusetts e na região em torno de
Governador Valadares, mostrando o perfil de sua saúde em empregos precá-
rios que demandavam grande esforço físico.
Paulo Daniel Farah, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, aborda a discriminação contra imigrantes e refugiados.
“Com efeito, faz-se necessário debater mais, no Brasil e no mundo, sobre xeno-
fobia, racismo e intolerâncias várias e sobre formas de enfrentá-los em contex-
tos que não se restrinjam a ações imediatistas pós-assassinatos e outras
atrocidades”, protesta. “De um lado, observam-se iniciativas no campo da judi-
cialização que visam a deter pessoas que incitam ao ódio e à violência. De ou-
tro, ações educativas promovem conscientização e humanização ao mesmo
tempo em que reduzem estranhamentos e preconceitos”.
Então o sofrimento daqueles que vivem em situação de vulnerabilidade
social revela o processo de exclusão afetando o corpo e a mente sendo a maior
das fontes o descrédito e a invisibilidade. Lendo o texto O futuro de uma ilusão
(1927), encontramos nas palavras de Freud, que é de esperar que essas classes
subprivilegiadas invejem os privilégios das favorecidas e façam tudo o que po-
dem para se liberarem de seu próprio excesso de privação. Onde isso não for
possível, uma permanente parcela de descontentamento persistirá dentro da
cultura interessada, o que pode conduzir a perigosas revoltas.
A satisfação narcísica proporcionada pelo ideal cultural encontra-se tam-
bém entre as forças que alcançam êxito no combate à hostilidade para com a
cultura dentro da unidade cultural. Essa satisfação pode ser partilhada não
apenas pelas classes favorecidas, que desfrutam dos benefícios da cultura, mas
93
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARCIA MARIA DOS ANJOS AZEVEDO

também pelas oprimidas, já que o direito a desprezar povos estrangeiros as


compensa pelas injustiças que sofrem dentro de sua própria unidade.
A identificação das classes oprimidas com a classe que as domina e explo-
ra é, contudo, apenas uma parte de um todo maior. Isso porque, por outro
lado, as classes oprimidas podem estar emocionalmente ligadas a seus senho-
res; apesar de sua hostilidade para com eles, podem ver neles os seus ideais. A
menos que tais relações de tipo fundamentalmente satisfatório subsistam, é
impossível compreender como uma série de civilizações sobreviveu por tão
longo tempo, malgrado a justificável hostilidade de grandes massas humanas.
Segundo Birman (2006) o mal-estar não apenas persiste, mas as suas con-
dições hoje são mais catastróficas. Sem dúvida, as condições do mundo pós-
-moderno e os imperativos da globalização retiraram instrumentos e instâncias
sociais de proteção dos indivíduos, o que aumentou em muito o dito mal-estar.
Como sobreviver entre ilusões e crenças com foco no ideal? No filme em
questão é pela crença em um ideal que o casal protagonista se encontra e se
une, e apesar de terem se separado por uma tragédia pessoal, foi novamente
em relação ao investimento em um ideal comum que se reencontraram.
Enquanto a ciência busca oferecer uma justificativa para os fenômenos,
uma crença exige uma fundamentação sobre seu conteúdo. Essa fundamenta-
ção pode ser baseada na observação, nos mitos, nas tradições e, decerto, tam-
bém em inferências. Contudo, se acreditamos na possibilidade de existência de
uma coisa, nos ligamos a essa crença com uma íntima convicção.
E a fé? Também é uma crença, mas essa convicção intensa e persistente em
algo abstrato, para a pessoa que acredita, se torna verdade. É através da fé que
se organizam e se mantêm as crenças religiosas.
Então... o que é a fé? Aonde a fé nos leva? Confiamos no objeto de nossa
fé? Na tragédia a fé perdeu para o acaso. Nem sempre o acaso vai te proteger
“enquanto estiver distraído...”.1
A relação entre a fé e a ciência e entre a fé e o acaso aparece, nessa trama,
atribuindo à fé o fato de esta manter as pessoas unidas por um sentimento,
uma vez que no caso de uma crença o elemento de ligação é um ideal.
Para Freud “os ideais culturais se tornam fonte de discórdia e inimizades
entre unidades culturais diferentes, tal como se pode constatar claramente no
caso das nações”. Se os ideais são acessados na ordem das ilusões, e se o que é
característico das ilusões é o fato de derivarem de desejos humanos, alimenta-

1
Verso da música Epitáfio de autoria dos Titãs.

94
UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE O FILME FILHOS DA ESPERANÇA

dos pela ilusão de liberdade e pela possibilidade de chegar ao amanhã e viver


no projeto humano, será que na perda dessa ilusão a distribuição do kit suicí-
dio fará sentido? Parece que essa situação saiu da perspectiva do non sense e se
instaurou na vida de nossos jovens do século XXI. A desesperança e a sensação
de não ter saída faz-se presente, uma vez que o número de suicídios, de qua-
dros de depressão aumentou assustadoramente, assim como as diversas for-
mas de violência.

Sobre a relação entre a ilusão e a racionalidade

Vamos a Freud (1927/1982) em O futuro de uma ilusão - parte 1 - onde afirma


que “quanto menos um homem conhece a respeito do passado e do presente,
mais inseguro terá de mostrar-se seu juízo sobre o futuro. E há ainda uma ou-
tra dificuldade: a de que precisamente num juízo desse tipo as expectativas
subjetivas do indivíduo desempenham papel difícil de avaliar, mostrando ser
dependentes de fatores puramente pessoais de sua própria experiência, do
maior ou menor otimismo de sua atitude para com a vida, tal como lhe foi di-
tada por seu temperamento ou por seu sucesso ou fracasso”.
Finalmente, faz-se sentir o fato curioso de que, em geral, as pessoas expe-
rimentam seu presente de forma ingênua, por assim dizer, sem serem capazes
de fazer uma estimativa sobre seu conteúdo; têm primeiro de se colocar a cer-
ta distância dele: isto é, “o presente tem de se tornar o passado para que possa
produzir pontos de observação a partir dos quais elas julguem o futuro”.
Ele continua dizendo “que qualquer pessoa que ceda à tentação de emitir
uma opinião sobre o provável futuro de nossa civilização fará bem em se lem-
brar das dificuldades que acabei de assinalar, assim como da incerteza que, de
modo bastante geral, se acha ligada a qualquer profecia”. Ainda segundo Freud
(1927/1982) “As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a
tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniqui-
lação”. Sendo assim, assistindo a esse filme fica-se assim com a impressão de
que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma mi-
noria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção.
O que há de mais humano no humano? Parece ser a destrutividade e a
violência. É preciso segundo Freud “levar em conta o fato de estarem presentes
em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, antissociais e anticul-
turais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficiente-
mente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana”.
95
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARCIA MARIA DOS ANJOS AZEVEDO

Faço minhas as palavras de Jurandir Freire em uma entrevista à Revista Per-


curso em que afirma que uma dentre as finalidades da psicanálise como objetivo
humanamente útil, é poder ajudar um neurótico que procura viver uma vida
melhor, também lutar pela pluralidade, a fim de que os discriminados, os cha-
mados desviantes, as pessoas que sofrem opressão tenham vez e voz.
Naquela ordem de ficção o bebê é o milagre. Se podemos pensar que
sentimentos humanos estão projetados aqui, pode ser uma crença; podemos
ter fé, mas me chamou atenção a fala do personagem: “para que se incomo-
dar se o acaso faz suas próprias escolhas? Contudo se nada fizermos, se não
construirmos projetos ideais para os tornarmos possíveis, viveremos sem
esperança”.
Quão frágil é a voz do intelecto diante da força transbordante da violência
humana?
Segundo Pontalis (1988, p. 25) a necessidade pode ser negociada e venci-
da, a morte não, sobretudo quando já não é percebida como passagem de uma
vida a outra, nem como acontecimento natural, mas não para de nos atormen-
tar de dentro.
Pontalis (1988, p. 27) diz ainda que quanto mais nosso mundo se deixa
conhecer em seus determinantes menos se deixa “pensar” em seu devir e sua
finalidade. Constituiria esse paradoxo a atualidade do mal-estar?
É estranho o que acontece no mundo sem as vozes das crianças!!!
Desamparo e violência, duas polaridades da existência humana em que
uma não existe sem a outra. Como as guerras são inevitáveis, porque a diferen-
ça ganhou o estatuto de insuportável, nos cabe tentar proteger-nos da violên-
cia, de nossa própria e da do outro, da ausência de mediação e das sabotagens
de nosso inconsciente, enfim da nossa própria culpa. Pois essa caminha conos-
co na direção em que formos.
De acordo com Green (1982, p. 195) o estado neutro só existe virtualmen-
te, está sempre na situação de ponto ideal suscetível de pender para uma ou
para outra das extremidades polarizadas. Ainda bem que vivemos o conflito
entre as nossas culpas e a nossa capacidade de nos vitimizarmos acerca das
exigências que a vida impõe. E, enquanto culpados nos responsabilizamos pela
parte que nos cabe nesse latifúndio.
Os espelhos tornam-se cada vez mais turvos e o sujeito fica aderido na
imagem ali projetada. Quando o sujeito se depara com a alteridade, se sur-
preende e, segundo Figueiredo (1998), percebe-se como “alguém-que-sendo-
-parte-do-mesmo-é-outro” seria isso que constitui o outro em sua alteridade e
estrangeirice e paradoxalmente parecia mais próximo e familiar. Será que o
96
UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE O FILME FILHOS DA ESPERANÇA

vazio, o nada, marca a morte no corpo? Talvez possamos apontar a infertilida-


de fictícia como decorrente de uma recusa de se defrontar com a diferença,
como muitas mulheres acenam em relação à maternidade como a vivência de
um mal-estar só de pensar na possibilidade de terem que abrir mão de suas
vidas em prol de terem alguém dependente delas.
De qualquer forma a fisiologia feminina vai mudando de acordo com as
condições sócio ambientais e culturais que a mulher enfrenta. Vemos estatisti-
camente que há redução significativa do número de gestações em países desen-
volvidos, tal como na Alemanha por exemplo. Talvez possamos apontar ainda
para as fixações pré-genitais e problemáticas narcísicas alinhadas a uma inibi-
ção em relação à função materna.
Independentemente do fato de o pai estar vivo ou morto simbolicamente,
temos menos mulheres disponíveis à maternidade no cenário social. Não ou-
vimos na clínica as mulheres se perguntando se querem ser mãe, mas se que-
rem ter um filho. Esse questionamento mudaria essencialmente a situação.
Assim enquanto a psicanálise vem realçando a morte do pai, esse filme
traz a melancolia da perda, da deficiência, da paralisia, de uma devastação do
feminino e da morte da mãe. Importante entender aqui que a devastação pode
ser entendida não como infelicidade, nem como sintoma resultante de uma
mãe má, e sim como uma catástrofe que existe no próprio centro da relação
entre uma mãe e sua filha, com isso – assunto que merece aprofundamento –
uma repetição de abortos espontâneos pode ser possível. Isso então justificaria
o fato de não haver esterilidade e sim impossibilidade de manter a gestação.
Será que uma hipótese possível seria que o filho gestado como objeto de
amor deixaria de existir? Olhando por esse prisma, o mundo passa a parecer
mais vazio. Faz muito sentido, quando Manonni (1995, p. 95) diz da identifica-
ção com o objeto perdido freudiano, no caso da melancolia, acontece de tomar
a si mesmo como objeto (de desejo) – um objeto abandonado.
No filme essa menina nasce sem saber quem é o pai, mas chega ao mundo
pelo amparo de um pai que perdeu o filho em seu processo de reparação do
próprio luto. Investida por uma mãe, cuidada e reconhecida em sua importân-
cia e em seu desamparo, ela embarca para o amanhã com uma possibilidade de
estar fértil em sua capacidade de se perpetuar, talvez!
É no barco do amanhã que se chega ao projeto humano. Não se sabe ao
certo quando vai chegar e se vai chegar. O mar é sempre o elemento surpresa,
a maré pode não estar favorável... e a correnteza pode desviar seu rumo. Assim,
no projeto humano não há garantias de se chegar a um lugar. O espaço-tempo
da vida é individual, indefinido e indefinível. Contudo é preciso confiar que
97
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARCIA MARIA DOS ANJOS AZEVEDO

será possível chegar, e apesar de vulnerável e ferido em seu narcisismo, o hu-


mano segue.
“É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte”.2

Abril de 2019

Marcia Maria dos Anjos Azevedo


mmazevedo@globo.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Referências
AZEVEDO, M. M. A. Nos labirintos da eficiência. In: XX JORNADA DE
PSICANÁLISE DA SPCRJ, 2017.
______. A constituição identitária contemporânea e a cultura como sala de espelhos.
Cadernos de Psicanálise, publicação online da SPCRJ - Sociedade de Psicanalise da
Cidade do Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, 2018.
BIRMAN, J. Entrevista concedida a DWworld – por ocasião dos 150 anos de Freud
em 2006.
FIGUEIREDO, L. C. O estrangeiro. São Paulo: Escuta, Fapesp, 1998.
FREUD, S. Mal estar na cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1982. (Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).
______. (1927). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1982. (ESB, 21).
GREEN, A. O discurso vivo: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1982.
MANNONI, M. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. Rio de Janeiro:
Zahar, 1995.
PONTALIS, J. B. Perder de vista: da fantasia de recuperação do objeto perdido. Rio de
Janeiro: Zahar, 1988.
ROCHA, Z. O problema da violência e a crise ética de nossos dias. Síntese - Revista
de Filosofia. Belo Horizonte, v. 28, n. 92, 2001.
SIQUEIRA, C. E.; SIQUEIRA, S. O perfil sociodemográfico e de saúde dos
retornados mineiros para a região de Governador Valadares. Revista USP, São Paulo,
n. 114, p. 119-129, 2017.

2
Verso da música Divino maravilhoso de autoria de Caetano Veloso.

98
Este livro foi impresso na Renovagraf
para o Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ) e a
Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ)
em agosto de 2019.

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro – CPRJ


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e-mail: cprj@cprj.com.br | site: http://www.cprj.com.br
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