Filme - Filhos Da Esperança
Filme - Filhos Da Esperança
Filme - Filhos Da Esperança
v. 7, n. 7, 2019
Subjetividade, ética
e tecnologia:
expansões e limites
ISSN 2674-8142
Psicanálise e Cinema Rio de Janeiro v. 7 n. 7 100 p. 2019
CÍRCULO PSICANALÍTICO DO RIO DE JANEIRO – CPRJ
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Assistente de Publicações – Ana Carla Teodoro
Revisão de Textos – Pedro Henrique Rondon e Natalie Lima
Capa e diagramação – Marisco Design
Apresentação.............................................................................................................. 7
Esperança .................................................................................................................83
Diana Dadoorian
Comissão Organizadora
7
O show dos horrores
Sergio Gomes* 1
“Como posso, nesse caso, dizer, ou vir a supor, que vejo o mun-
do pela pupila do meu globo ocular? Com certeza, não de uma
maneira essencialmente diferente da maneira como o vejo pela
janela ou, digamos, por um buraco de uma tábua atrás da qual
está o meu olho”.
Ludwig Wittgenstein, Observações filosóficas, 1976, p. 84
A televisão faz parte do cotidiano de todos nós há quase cem anos. Ela mudou
nosso dia a dia e a forma como vemos e percebemos o mundo. Ela transfor-
mou nossa subjetividade, ajudou a criar outras, estabeleceu parte da nossa so-
ciabilidade, fomentou o capitalismo, o marketing, a moda, o cinema, o
jornalismo, o entretenimento e até mesmo influenciou nossa sexualidade. En-
fim, a televisão mudou nossos hábitos. Foi instalada em local nobre e de desta-
que na sala de estar, recebeu status de eletrodoméstico d
e primeira necessidade e se tornou um bem de consumo, com o objetivo de
*
Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Doutor em
Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), coorde-
nador do Nebulosa Marginal: Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicanálise.
9
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES
1
Jornal O Globo, “Inventada em 1925, a TV só pegou mesmo depois da Segunda Guerra
Mundial”, Caderno Cultura, 13/08/2013. Disponível em: <https://glo.bo/2Sqe8pn>.
Acesso em: 30 mar. 2019.
10
O SHOW DOS HORRORES
2
BEZERRA, J. História da televisão. Disponível em: <https://bit.ly/2E5srrC>. Acesso em: 30
mar. 2019.
3
PINTO, Tales dos Santos. Breve história da televisão. Site do “Brasil Escola”. Disponível em:
<https://bit.ly/2HbApzr>. Acesso em: 30 mar. 2019.
4
Um exemplo disso é o uso cada vez mais compulsivo das webcams no nosso cotidiano. Desde a
aurora do século XXI, as webcams são pequenas câmeras filmadoras que nos permitem filmar e
transmitir (ao vivo) tudo o que acontece na vida do seu usuário. Hoje em dia, é impossível andar
na rua, assistir a um show ou um espetáculo teatral sem que haja usuários filmando, fotografan-
do e ou transmitindo ao vivo o evento para algum sistema de notícias ou espaço virtual pessoal.
11
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES
O que você faria se um dia descobrisse que tudo o que viveu até hoje fosse
completamente falso e irreal? Seus pais, sua vida, sua casa, seus amigos, seu
trabalho, tudo não passasse de uma encenação em um mundo além da nossa
imaginação? É disto que se trata em O show de Truman (The Truman Show,
1998, direção Peter Weir, roteiro de Andrew Niccol5). O filme foi exibido no
final da década de 90 do século passado. Dizendo desse modo, parece ser um
filme antigo e, na verdade, já se passaram 21 anos desde a sua exibição nos ci-
nemas e na televisão aberta (poderia perfeitamente ser exibido como um clás-
sico nos dias atuais), mas permanece cada vez mais atual. Senão, vejamos.
Sabemos de imediato que desde a concepção do nosso personagem, do
parto, as primeiras vivências da infância, os traumas, sua casa, seu trabalho,
sua esposa, seus amigos, é tudo fake (falso) e absolutamente arquitetado pelo
“criador” do “reality show” – Christof. Eis como ele apresenta a sua criação nos
primeiros minutos do filme: “Estamos cansados de assistir atores e suas emoções
artificiais. Cansado das pirotecnias e dos efeitos especiais. Embora o mundo em
que ele habita seja, em alguns aspectos, artificial, não há nada de artificial com
Truman. Sem textos, sem colas. Não é um Shakespeare, mas é original. É uma
vida”. Ou seja, não se trata de encenar (acting) um personagem. Truman é, em
si mesmo, um personagem, ele encena a sua própria vida sem saber que encena.
Para o psicanalista Christopher Bollas (1998), uma das formas mais sin-
gulares de constituição do self, é permitir-se “ser um personagem” (be a charac-
5
O roteiro original não foi pensado para o filme, mas elaborado por Andrew Niccol em 1991,
para um episódio da série fantástica “Além da Imaginação”. Tratava-se de um filme de ficção
científica, no qual a história se passava originalmente em Nova York. Scott Rudin comprou esse
roteiro e o apresentou aos dirigentes da Paramount Pictures. No início, o diretor Brian De Pal-
ma se interessou pelo projeto antes de Peter Weir assumir a direção e a produção, escolhendo o
ator Jim Carrey para o papel do personagem-título. Assim, Andrew Niccol reescreveu o roteiro
ao mesmo tempo em que os cineastas esperavam que a agenda de Carrey ficasse livre para as
filmagens.
12
O SHOW DOS HORRORES
para a sensação percebida por Truman quando algumas coisas sem sentido
passam a cair do céu, quando a chuva cai apenas sobre ele ou quando ele passa
a ouvir a conversa da equipe de produção que descreve seu trajeto até o seu
monótono trabalho. Ao chegar ao prédio onde trabalha, a equipe de cenografia
está atrasada preparando o elevador que Truman usará, sendo surpreendidos
pelo seu olhar incrédulo e, no instante seguinte, um elevador se materializa à
sua frente. É esse sentimento de irrealidade e ao mesmo tempo de paranoia
que começa a dominá-lo. Começa a questionar a esposa, o melhor amigo e
acha que está enlouquecendo. Descobre, em uma cena primorosa, que pode
controlar carros e ônibus em meio ao trânsito, uma vez que não pode morrer
(ele é o personagem principal do reality show).
Os erros da equipe de produção seguem até a surpreendente volta do seu
pai, dado como morto em um acidente de barco em alto mar quando Tru-
man era uma criança. Ele o reencontra vestido como um mendigo que tenta
avisá-lo da realidade/falsidade da sua vida. Acredito que neste momento ele
vivencia a experiência de um “conhecido não pensado”, ou seja, mais um
sentimento de estranheza tal como formulado por Bollas (2015). Ele sabe
que há algo de errado, mas lhe custa acreditar no que seus instintos dizem.
No entanto, passa a perceber que a cidade é monótona, previsível, tudo se
repete: os mesmos carros passam todos os dias nos mesmos horários; o vizi-
nho e seu cachorro estão fazendo as mesmas coisas; o jornaleiro passa entre-
gando o jornal no mesmo horário pedalando sua bicicleta, enfim, tudo é
igual, nada muda, como se ele vivesse diariamente um “dèjá vu”. Em meio a
esse sentimento de estranheza, Truman busca sair de Seahaven, mas não
consegue achar um voo sequer disponível para outra cidade. O ônibus que
ele consegue pegar, quebra. O trânsito em que se encontra, de uma hora para
outra paralisa. Até mesmo um incêndio florestal de grandes proporções e um
aparente vazamento da fictícia usina nuclear são usados para impedir que o
personagem se ausente da cidade. Truman está preso em seu mundo além da
imaginação, como um rato de laboratório, sem escolhas, sem poder cons-
truir um novo destino à sua vida. Puro horror!
Em determinada noite, não se dando por vencido, nosso personagem
consegue enganar o olhar das câmeras e escapa à vista de todos, forçando
Christof a tirar o programa do ar pela primeira vez em trinta anos de exibi-
ção. Isto causa um surto na audiência, por um lado, e a alegria de todos os
que desejam que Truman se liberte daquela prisão, por outro. Para surpresa
de todos, ele enfrentará o seu pior pesadelo, a fuga pelo mar, fazendo com
que Christof o leve até as últimas consequências para tentar demovê-lo da
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O SHOW DOS HORRORES
O filme O show de Truman nos faz pensar sobre as teses acerca da sociedade do
espetáculo, conforme Guy Debord (1997) nos apresentou. Nesta sociedade,
caberia questionar se podemos mesmo transformar tudo à nossa volta em algo
visível ao olhar de todos? Uma sociedade na qual se expõe a qualquer momen-
to a sua intimidade, dos livros aos filmes, das festas ao nosso sagrado sono, dos
bares ao sexo com nossos parceiros e parceiras. Em nossos dias, não haveria
mais espaço para o privado. Tudo estaria explícito nas redes sociais, nas mídias
de massa, sejam elas facebook, youtube ou instagram. Se não há espaço para o
privado, o nosso “eu”, o nosso self, estaria naufragado no espaço público e re-
duzido a um mínimo em que jamais saberíamos onde encontrar a nossa essên-
cia. Nosso “eu”, por conseguinte, estaria esvaziado, atendendo ao apelo da
sociedade do espetáculo e do consumo (GOMES, 2004).
Ora, desde a aurora dos primeiros programas de televisão, os telespecta-
dores já haviam sido transformados em consumidores de mercadorias. Mesmo
quando não consomem produtos ou bens e serviços, consomem o que veem
pela tela. Na verdade, são consumidores vorazes de tudo o que pode ser absor-
vido pelo “olho que tudo mostra”, reféns incomensuráveis do “olho que tudo
vê”. Como diz a psicanalista Maria Rita Kehl, “da indústria cultural à sociedade
do espetáculo, o que houve foi um extraordinário aperfeiçoamento técnico dos
meios de se traduzir a vida em imagens, até que fosse possível abarcar toda a
extensão da vida social”. Ou seja, a alienação do trabalhador foi completa
quando ele foi transformado em consumidor, pois “ainda quando não conso-
me as (outras) mercadorias propagandeadas pelos meios de comunicação,
consome as imagens que a indústria produz para seu lazer (KEHL, 2004, p.
44). Para a autora, o trabalhador ou cidadão comum não só consome as ima-
gens que lhe são projetadas, mas também se identifica com elas. Por isso, ve-
mos ao longo do filme o grande contingente de telespectadores acompanhando
o dia a dia e até mesmo velando o sono de Truman, onde quer que estejam. São
como zumbis petrificados pelo ato de espiar a intimidade do próximo, sem
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SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES
saber que o próximo são eles mesmos, enjaulados em suas casas e reféns da
sociedade do espetáculo.
Para Guy Debord, o espetáculo fomentado pela sociedade de consumo tem
um único objetivo: o lucro ou, dito em suas palavras “o espetáculo não é um con-
junto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas imagens”
(DEBORD, 1997, p. 14). As imagens são os objetos de consumo tanto quanto os
objetos de consumo são mostrados por meio de imagens. O telespectador fica
alienado vivendo em torno dos objetos de consumo, ou, conforme afirma De-
bord, “a alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta
de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele contem-
pla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da
necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo”
(DEBORD, 1997, p. 24). Aqui temos os espectadores do Show de Truman que,
paralisados diante do espetáculo, deixam de viver suas próprias vidas, para viver
a vida do objeto contemplado. Assim, o espetáculo “constitui o modelo atual da
vida dominante na sociedade. É a afirmação onipresente da escolha já feita na
produção, e o consumo que decorre dessa escolha” (DEBORD, 1997, p. 14-15).
A sociedade do espetáculo transformou o nosso “eu” em um “eu” tão mí-
nimo, para usar a expressão de Christopher Lasch (1986), que para conseguir-
mos enxergá-lo, nos expomos em horário nobre. Somos, ao mesmo tempo,
reféns da cultura do narcisismo, também igualmente defendida por Christo-
pher Lasch (1983), a partir do momento em que invertemos o espaço público
com o espaço privado. Tudo pode na cultura das massas. Tudo é espetáculo.
Tudo é um show dos horrores!
Foi o que a pesquisadora Paula Sibilia (2008) denominou igualmente de “o
show do eu”, ao analisar as formas pelas quais transformamos nossa intimida-
de em um espetáculo, assim como produzimos formas de espetacularização da
nossa intimidade.
18
O SHOW DOS HORRORES
Não é isso que vemos na personagem da Meryl cada vez que ela fala com
Truman e expõe um produto de consumo? Não sou contra o consumo. Vive-
mos em um mundo onde adquirir objetos ou bens é resultado do nosso traba-
lho e da nossa inserção no mundo. Sou contra o consumo despudorado com
que vigiamos a vida íntima das pessoas, ou o modelo que diz que só seremos
felizes se adquirirmos tal ou qual objeto. Esta é a verdadeira face perversa do
espetáculo.
Utopia? Claro que não. Quando O show de Truman passou nos cinemas,
não sabíamos que estávamos rumando para esse futuro. Somos filhos do “Show
de Truman” na medida em que estamos nos expondo vinte e quatro horas por
dia, gozando com a exposição da nossa intimidade ou com a da intimidade
alheia. Vivemos uma tirania da intimidade e uma hipertrofia do eu, que nos
diz a todo instante que para sermos alguém no mundo da realidade comparti-
lhada, devemos nos exibir e nos mostrar, não havendo mais espaço para a pri-
vacidade e a intimidade em nossas vidas. Basta olharmos em volta – quer dizer,
basta olharmos para dentro da world wide web ou dos aplicativos de celular.
Está tudo lá!
Os mesmos facebook, instagram e whatsapp dispõem de sistemas para
transmissão ao vivo do que está acontecendo. Se usarmos essa tecnologia com
ética e responsabilidade, poderemos ter a tecnologia nos ajudando a diminuir
as diferenças vividas nas grandes e pequenas cidades e os abusos de poder. Se
a usarmos para a banalidade da intimidade, quebraremos a barreira entre o
público e o privado, tornando-nos o meio para “o olho que tudo vê”.
O “Show de Truman” apontava para um mundo distópico, autoritário, ca-
racterísticas de um certo mundo totalitário no qual o privado tornou-se públi-
co. Big brother? Esqueçam! Quem precisa de um show de televisão quando
temos smartphones, tablets e computadores de última geração? Qualquer um
de nós pode acessar pornografia de altíssima qualidade e com todos os tipos de
escolhas objetais, com apenas um clique ou dois nos aparelhos eletrônicos. É
assim que Truman experimenta um certo enlouquecimento, uma “loucura da
visão”, no sentido em que ela faz com que o olhar se dirija para o mundo visível
para vê-lo e, ao mesmo tempo, que não haja visibilidade sem uma coexistência
radical entre meu olhar e o mundo. A visão nos dá a certeza de que há o ser,
mas o ser da visão é sempre ser para mim. Por isso Truman tem sensação de
enlouquecimento. Ele vê mas não acredita no que vê. É tão ilusório que é im-
possível que seja verdade.
para o ponto de vista do próprio Truman). O que é visível e real só pode sê-lo
para aqueles que estão fora do domo, ou seja, os telespectadores ao redor do
mundo que vigiavam cada minuto da sua vida. E como dizem os ditados
populares, “o pior cego é aquele que não quer ver” e “nem tudo o que reluz é
ouro”. Se prestamos atenção, a cultura popular tem lá as suas verdades. No
entanto, as teses sobre a visão foram muito bem representadas pelo pensa-
mento de Merleau-Ponty.
No seu esforço de apreender o mundo, Merleau-Ponty (1992) se deparou
com o caráter paradoxal da visão. Por um lado, ver nos dá a certeza de que a
percepção se abre sobre coisas ou alcança objetos. Por outro, devemos colocar
essa certeza em suspenso se quisermos descrever como as coisas nos aparecem
como presença, possibilitando o acesso ao sentido originário ou pré-objetivo
do aparecer da coisa visível desprovida de prejuízos. Para o filósofo, o mundo
parece ser aquilo que vemos. Se isso for verdade, significa dizer que as coisas
mesmas são o que nós vemos, mas estas coisas que estão no mundo e que nos
cercam, não possuem aparência visível se não forem percorridas por um olhar
e não podemos admitir que um olhar se realize se as coisas não forem apari-
ções visíveis para ele.
Para Merleau-Ponty, aquilo que é visível tem sempre aspectos invisíveis.
Os olhos que se dirigem ao mundo para ver ganham uma relação de proximi-
dade com as coisas visíveis, mas também ganham uma relação de distância
daquilo que não se vê, revelando uma cegueira da visão. As limitações de nos-
so olhar atual não conseguem ver o visível na sua plenitude. Para Merleau-
-Ponty, se é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos
aprender a vê-lo, para que esta tarefa se realize no mundo de Truman, foi pre-
ciso adicionar um outro elemento: o pensar.
O psicanalista Thomas H. Ogden (2010), afirma que há três formas de
pensar coexistindo e de modo recíproco, uma vez que elas criam, preservam e
negam aspectos da experiência de pensar.
Para ele, o pensamento mágico é aquele que recorre à fantasia onipotente
para criar a realidade psíquica que o indivíduo vive como sendo “o mais real”
do que a realidade externa. Essa forma de pensamento substitui a realidade
externa real pela realidade inventada, mantendo assim a estrutura existente do
mundo interno. O pensamento mágico subverte a oportunidade de aprender a
partir da experiência vivida com os objetos reais, portanto, ele não funciona no
sentido de que nada se pode construir sobre ele a não ser mais camadas de
construções mágicas. Ele tem apenas um único objetivo: evitar enfrentar a ver-
dade da experiência interna e externa da pessoa. Nesse sentido, o pensamento
21
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES
Abril de 2019
Sergio Gomes
sergiogsilva@uol.com.br
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Referências
BALINT, M. A falha básica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
BAUDRILLARD, J. A sociedade de consumo. São Paulo: Martins Fontes, 1981.
BOLLAS, C. Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.
24
O SHOW DOS HORRORES
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SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA SERGIO GOMES
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Dos primórdios do reality show
aos tempos de pós-verdade
_____________
Mariana Bricio* 6
*
Psicóloga e psicanalista, membro associado da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de
Janeiro (SPCRJ), especialista em Transtornos Alimentares pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Jornalista especializada em Jornalismo Impresso pelo Jornal O
Dia/Faculdade da Cidade.
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SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIANA BRICIO
nós nos perguntamos se a vida de Truman é menos autêntica por ser criada em
um estúdio de televisão e transmitida 24 horas por dia, o que de fato se dá
quando nos deparamos com o formato televisivo dos reality shows, que combi-
nam realidade, documentário e ficção. A mistura foi tamanha em O show de
Truman que, como forma de promover o filme, o diretor produziu um “falso
documentário”, que seria utilizado como estratégia promocional de lançamen-
to. A ideia de usar o “falso documentário” não foi adiante por decisão do de-
partamento de marketing da Paramount, mas algumas cenas verdadeiras
tornaram-se ficção e entraram no filme.
O show de Truman foi exibido em 1998. Vinte anos se passaram e, nesse
período, as transformações do mundo foram radicais e intensas. Em 1998, Bill
Clinton estava às voltas com charutos, escândalos sexuais e Monica Lewinsky.
Desabava o Edifício Palace II, no Rio. Titanic levava multidões às salas de cine-
ma. Ronaldo passou mal na final da Copa da França e o time do Brasil voltou
desmoralizado, em meio a teorias conspiratórias que especulavam sobre a in-
disposição súbita envolver uma transação milionária com o patrocinador ou o
flagra da traição da jovem namorada loira com um famoso jornalista de televi-
são. Fernando Henrique foi reeleito presidente logo no primeiro turno. Morre-
ram os cantores Frank Sinatra, Tim Maia e Nelson Gonçalves. O avanço
tecnológico era lento se compararmos com a velocidade dos dias de hoje. Os
PCs já faziam parte da rotina doméstica e do trabalho, mas a internet ainda era
discada e vivíamos lidando com disquetes, torres, gabinetes e superaqueci-
mento de placas. Contudo, se você já tinha aposentado o seu 486 e utilizava
um Pentium, estava antenado com o melhor da tecnologia de computadores.
Bill Gates era o rei do pedaço e Steve Jobs ainda lutava para tornar o Macintosh
competitivo o suficiente.
No ano 2000, a TV Globo lançava No limite, primeiro reality show brasi-
leiro, em que duas equipes enfrentavam situações de aventura, até mesmo
cruéis, em um cenário inóspito. Quem não se lembra que uma das provas foi
comer olho de cabra cru? Na guerra pela audiência, Silvio Santos saiu na fren-
te. Juntou subcelebridades confinadas em uma locação e lançou a Casa dos
Artistas. Para rebater, a Globo colocou no ar o hoje já velho conhecido BBB,
mas com uma tacada de mestre: o elenco do programa não era composto por
artistas decadentes conhecidos do grande público. Eram anônimos, pessoas
comuns, que passaram a ser a estrela do show. Depois disso, nunca mais as
pessoas comuns abriram mão de estar em evidência ou aceitaram sair de cena.
O fenômeno dos reality shows se espalhou por todo o mundo. Em 1999,
ou seja, um ano depois do lançamento do filme – para termos uma ideia de
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DOS PRIMÓRDIOS DO REALITY SHOW AOS TEMPOS DE PÓS-VERDADE
como o filme foi precursor – o BBB foi patenteado pela holandesa Endemol.
Em 2005, a psicanalista Maria Rita Kehl e o jornalista Eugênio Bucci lançaram
juntos o livro Videologias, em que fazem uma reflexão sobre os meios de co-
municação de massa e a sociedade de consumo e do espetáculo. Apresentando
a televisão como o principal instrumento de consolidação de ideologias no
Brasil, Bucci e Kehl (2005, p. 144) analisam os realities e nos dizem que “o que
interessa ao espectador fiel é a esperança de que a exibição, pela televisão, da
banalidade de um cotidiano parecido com o seu ponha em evidência migalhas
de brilho e de sentido que sua vida, condenada à domesticidade, não tem”.
Ainda de acordo com os autores, “os reality shows são o sintoma do sofrimen-
to do sujeito contemporâneo, que perdeu a dimensão pública de seus atos e de
sua existência, e tenta substituí-la pela dimensão espetacular, do aparecimento
de sua imagem corporal” (KEHL, 2005, p. 160).
Retomando a questão da falsificação da realidade, Truman começa a des-
confiar que “as coisas não são bem assim” quando os erros e as falhas surgem.
Logo no começo do filme, um holofote, que durante a noite é uma estrela no
céu de Seahaven, despenca no meio da rua. Curioso, Truman Burbank exami-
na a peça. Procura o vizinho, que já não está mais ali. Desapareceu como em
um passe de mágica. O mesmo se dá com o casal do “bom dia, e no caso de não
os ver mais hoje, boa tarde e boa noite”. Todos saíram de cena rapidamente,
inclusive Pluto, o cão do Sr. Spencer. Aos poucos, o espectador do filme vai se
dando conta, junto com Truman, de que as pessoas na rua agem de forma me-
cânica e que, se imprevistos acontecem, os habitantes da cidade não são espon-
tâneos e mal conseguem reagir. Se algo sai do previsto, instala-se uma correria
entre os figurantes e a produção para corrigir o erro. A mesa de lanche exposta
ao fundo do cenário é constrangedora, assim como a entrada de Truman em
uma loja e sua mudança do comportamento rotineiro, deixando os atores-ven-
dedores atônitos. Os erros de continuidade são propositais e estão de acordo
com o roteiro originalmente escrito. Um mesmo figurante é visto como cartei-
ro, massagista e padre. Em Seahaven, as falhas tecnológicas e técnicas da pro-
dução são o que possibilitam a Truman questionar sua existência e o mundo
no qual está inserido. Na vida de Truman, uma roupa, um acessório de cozi-
nha ou um achocolatado não são apenas utensílios do dia a dia, mas produtos
comercializados em um constante merchandising. Nem a cervejinha com o
melhor amigo escapa da estratégia de comercialização do maior show de tele-
visão. Somente por conta dessas imperfeições é que Truman começa a juntar
as peças do seu quebra-cabeça existencial e perceber que ficção e realidade se
conjugam.
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SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIANA BRICIO
na pós-verdade são verdades que “colam”, que podem circular e produzir pu-
blicidade e consumo. A pós-verdade desbanca a verdade. A informação é su-
pervalorizada, mas o conhecimento é descartado (TIBURI, 2017, p. 110). O
conteúdo importa pouco, e a autoria do texto prevalece sobre haver um emba-
samento que ampare determinada opinião. Agora, não é qualquer informação.
Fakenews, as notícias falsas, estão recheando de mentiras os arcabouços tradi-
cionais de informação. Ainda para Tiburi, vivemos em um momento no qual
“falamos muito e dizemos pouco” (2017, p. 114) e que emitir informação é
mais uma modalidade de compulsão dos dias de hoje. A tecnologia dos algo-
ritmos escolhe para os sujeitos o que eles verão nas redes sociais e este conteú-
do é considerado verdadeiro simplesmente porque foi dito por alguém.
Voltando a Dunker (2017, p. 13), a pós-verdade seria então uma espécie
de segunda onda do pós-modernismo [...]. Assim como a pós-modernidade
trouxe o debate relevante sobre, afinal, como deveríamos entender a moderni-
dade e principalmente o sujeito moderno, [...] a pós-verdade inaugura uma
reflexão prática e política sobre o que devemos entender por verdade e sobre a
autoridade que lhe é suposta.
meiro, que ela requer uma vida em estrutura de show. Nada mais contemporâ-
neo do que a exposição de si nas redes sociais. O paradoxo é que, ao mesmo
tempo em que o sujeito precisa desesperadamente ser visto pelo outro, o se-
gundo aspecto da pós-verdade é corroborar a recusa deste outro e estimular a
cultura da indiferença, que provoca no sujeito que foi ignorado reações de
ódio ou violência. É uma descrição autêntica de Christof, o diretor de O show
de Truman – tão narcisicamente apaixonado e obcecado por sua criatura que
deixou de tratá-la como sua criação. Tentou de várias formas retirar de Tru-
man sua humanidade, sua espontaneidade e sua curiosidade. Chegou até mes-
mo a criar um “falso” trauma no mar para que Truman não ousasse sair de
Seahaven. Chegam a ser grotescos os cartazes que estão presos na agência de
viagens, com anúncios que mostram como viajar pode ser perigoso ou trágico.
O conceito de pós-verdade ainda é muito novo e está sendo construído.
Contudo, autores como Tiburi e Dunker, que são muito atuantes nas redes
sociais, estão particularmente ligados à construção de subjetividades e à ques-
tão ética. Para tentar dar uma amarração teórica final a este tema, que é em-
brionário ainda, vou pincelar alguns pontos dos dois autores sobre o assunto.
Dunker aponta o reforço da cultura da indiferença. Para o psicanalista, a pós-
-verdade traz a emergência de dois afetos: o ódio e a vergonha. O ódio é colo-
cado como uma oposição possível ao amar e ser amado. O ódio tem função
separadora, só que, no contexto da pós-verdade, em que a subjetividade só se
constitui a partir da visibilidade do outro, é um ódio que perde suas capacida-
des de separação e de oposição possível ao amor. Os xingamentos, os ataques,
os discursos de ódio racistas, homofóbicos e outros não promovem separações
porque não estão ancorados em verdadeiras ligações. São gritos desesperados
de alguém que precisa ser visto e notado. Que precisa receber muitos likes na
sua postagem para não padecer de vergonha. São ataques à invisibilidade que
se experimenta. Dunker define todos como “matadores de zumbis”. Estes são
percebidos como indiferentes, autômatos, sem alma. Estão em um sistema de
surdez ao outro e somente dão eco à própria irrelevância. Quanto à questão
ética, Dunker nos avisa que a pós-verdade transfere a autoridade do conheci-
mento da ciência e do jornalismo sério para a produção de opiniões sem rele-
vância. E nos alerta, atrelando a questão ética à tecnológica: “A pós-verdade
explora uma característica muito curiosa da internet, que é sua relativa flutua-
ção de autoridade, o que, considerado por outro ângulo, é um de seus aspectos
mais democráticos” (2017, p. 40).
A pós-verdade se aproveita do excesso de indefinições para criar uma ver-
dade personalista, centrada no autor.
32
DOS PRIMÓRDIOS DO REALITY SHOW AOS TEMPOS DE PÓS-VERDADE
A última cena do filme é lendária. Recorro a ela para encerrar esta breve
reflexão. Disposto a conhecer e ir em busca de sua verdade, Truman atravessa
seu oceano de traumas, com a fictícia morte do pai e o assustador medo do
mar; enfrenta tempestades criadas pela força de geradores artificiais; resiste
aos ataques do diretor-matador de zumbis e sua equipe. E bate com a proa do
barco no cenário frágil de uma realidade de papel. Talvez tão frágil quanto
aquela em que vivemos hoje, a realidade das fakenews e da pós-verdade, em
que as opiniões sem embasamento valem mais do que o conhecimento e a
ciência. Apesar de inaugurar a era dos reality shows, e de o próprio filme ter
sido feito de forma a conjugar ficção e realidade, o personagem de Truman era
um sujeito com alma, que refletia acerca de sua existência, e por isso nos é tão
encantador. Para quem viveu os últimos vinte anos, ele carrega em si certa
nostalgia de nós mesmos.
Abril de 2019
Mariana Bricio
maribserra@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
33
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIANA BRICIO
Referências
BUCCI, E.; KEHL, M. R. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2004.
DUNKER, C. Subjetividade em tempos de pós-verdade. In: DUNKER, Christian et
al. Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017.
NICCOL, A.; WEIR, P. O Show de Truman - O Show da Vida - Roteiro do filme. São
Paulo: Editora Manole, 1998.
O SHOW DE TRUMAN. Direção de Peter Weir. EUA: Paramont Pictures, 1998.
TIBURI, M. Pós-verdade, pós-ética: uma reflexão sobre delírios, atos digitais e inveja.
In: DUNKER, C. et al. Ética e pós-verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017.
34
Brilho eterno de uma mente sem lembranças:
uma reflexão sobre o laço amoroso
______________________
Fernanda Ribeiro Palermo* 7
*
Doutoranda em Psicologia Clínica e especialista em família e casais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), membro associado em formação
do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ).
35
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA FERNANDA RIBEIRO PALERMO
tornaria antiquados e piegas aqueles casais que ainda são regidos por uma dita
estreiteza doméstica? Os solteiros seriam hoje porta-bandeiras de uma liber-
dade inventiva? Outro paradoxo encontramos aqui. Sim e não!
Reporto-me à velocidade de acontecimentos no filme e ao fato de só co-
nhecermos a história do casal depois do fim. A velocidade, a urgência, o cará-
ter de imediato estão postos no mundo atual. Clementine diz não querer
perder tempo na vida, ainda que seja parte de um tempo de sua própria histó-
ria que ela perde ao apagar Joel. Tempo e perda são categorias que também
aparecem na fala da personagem quando indaga ao namorado “Sentiu sauda-
des? Estamos casados!”.
A afirmação de Clementine quanto a estarem casados, alude ao que o soció-
logo francês, Jean-Claude Kaufmann, (2006) nos afirma: a revolução nas formas
de ser casal só está na superfície. Há uma libertação da palavra, até então retida,
mas a sociedade mantém uma dupla linguagem: “Cada um faz o que quer”, em
uma linguagem pública social, mas..., no foro íntimo, a vida a dois de forma al-
guma acontece com tamanha soltura. O autor diz que a vida doméstica bem or-
denada coloca secretamente as suas normas e os solteiros, que se acreditam
liberados do que seja normativo, continuam flertando com tais ideários.
Importante enfatizarmos que o casal se insere em uma trama identificatória
na qual cada um do laço formado introjeta os vínculos significativos de sua his-
tória e do grupo familiar mais amplo. Isso pode ocorrer com maior apropriação,
abrindo espaço para uma recriação dos laços futuros, ou de maneira estéril, difi-
cultando-os. A transmissão psíquica, compreendida como o material incons-
ciente que circula entre os ascendentes em direção aos descendentes,
manifesta-se na forma pela qual os descendentes receberão esse material e o
colocarão em trabalho psíquico, podendo, em sua face transgeracional, repercu-
tir de forma negativa na constituição do sujeito e de seus laços significativos.
No filme, poucos dados acerca das histórias de origem dos personagens
aparecem, mas algumas pistas nos fazem inferir que esse encontro tenha sido
determinado pelas inquietudes, pelas angústias e pela necessidade de encon-
trar fora algo que internamente se apresentava carente de significação. Joel diz
se apaixonar por quem lhe dá atenção e sentir-se tal como um diário vazio;
marcas de uma subjetividade um tanto quanto contemporânea. Já Clementine,
em uma face oposta da mesma moeda, diz ser uma pirada procurando um
pouco de tranquilidade. Desesperada, durante o processo de apagamento, diz
para Joel: “Lembre-se de mim. Esforce-se!”.
Interessante pensarmos que o diário vazio faz referência ao apagamento
de Clementine em Joel, e que uma pirada à procura de tranquilidade faça refe-
36
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O LAÇO AMOROSO
rência à constante mutação em que vive Clementine. Creio que essas falas fun-
cionem como analogia à vida interior de cada um. Diário vazio pelo
apagamento, mas também, por se tratar de uma subjetividade que carece de
uma habitação em si. Também podemos inferir que falte à Clementine um
encontro mais profundo e íntimo consigo mesma, já que uma vida em cons-
tante mutação pode deixar de lado as transformações significativas conquista-
das pelo processo de amadurecimento.
De todo modo, Joel e Clementine estão colocados diante da tarefa mate-
mática posta em todo encontro amoroso, e aí incluímos outro paradoxo: Como
ser um sendo dois? Como ser dois sendo um? Um mais um é igual a dois ou a
três? As demandas paradoxais estão a todo momento presentes nos encontros
amorosos, e não seria diferente nos contemporâneos. É uma tarefa difícil e
inacabada traçar uma delimitação entre os ideais individualistas de autono-
mia, de satisfação, e a necessidade de vivenciar-se em par, com projetos, dese-
jos em comum, e reconhecimento de nossa dependência relativa do outro.
Eiguer (1985, 2013), teórico dedicado à teorização psicanalítica de família
e casal, ressalta que a escolha amorosa é sempre uma escolha condicional. Isso
porque os parceiros reeditam seus romances familiares infantis e suas tramas
edípicas. Afirma que a escolha conjugal seria análoga a um tipo de formação
de compromisso, visto esta se basear em algo diferente do pai e da mãe, mas
manter inconscientemente os traços de relação com tais figuras. O autor afir-
ma que, desde o princípio, a escolha é paradoxal. Apoiando-se na teorização
freudiana (1914/1996) sobre a psicodinâmica da escolha amorosa, que poderia
ser narcísica ou anaclítica, ou seja, com mais ênfase na idealização ou na ideia
de um complemento do eu, Eiguer propõe três tipos de escolhas: anaclítica ou
assimétrica, narcísica ou simétrica e edípica ou dissimétrica. Para nossa dis-
cussão, podemos aproximar o casal Joel e Clementine à escolha amorosa ana-
clítica ou assimétrica. Eiguer ressalta que esse tipo de escolha amorosa que,
quando está na origem da formação do laço, ativa sentimento de perda e de
desamparo relacionados ao predomínio de dificuldades em elaborar lutos e
conquistar uma maior capacidade de reparação em ambos os parceiros, carac-
terísticas próprias da posição depressiva proposta por Klein (1946/2006), en-
volvendo vivências de angústia de perda e medo de solidão. O ideal
prepondera sobre o possível.
Mas o imperativo da singularização, da não-dependência, paradoxalmen-
te, aponta-nos uma idealização do amor, um cheiro no ar de amor romântico.
Uma confusão muitas vezes se estabelece entre necessidades e desejos, e entre
o que seria da ordem da perda ou da renúncia. Penso que hoje vivemos, tam-
37
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA FERNANDA RIBEIRO PALERMO
bém, sob a égide de outro paradoxo: o eterno e o efêmero. Tudo o que mais se
deseja pode instantaneamente pesar, como a ideia de um “para sempre” insu-
portável. Como poder amar? Amar é encontrar-se com sua própria dor. Amar
é envolver-se intimamente consigo mesmo. Como fazemos diante de um mo-
delo em que a dor é recusada? Como fazemos diante de “relacionamentos de
bolso”? como nomeia Bauman (2004).
Trazendo Bauman para uma reflexão, o pensador diz que, através das al-
terações de estrutura de parentesco, a definição de amor romântico, que se
traduzia pela ideia do “até que a morte nos separe”, mudou muito. Estaríamos
mais para o “eterno enquanto dure”, não? A cultura consumista, que favorece o
produto imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, faz crer na
existência de um asseguramento total. O risco é que a promessa de aprender a
arte de amar é uma oferta enganosa, pois equipara a experiência amorosa ao
consumo de outras mercadorias. Estas fascinam e seduzem por prometerem
desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem compromissos. Mas
o autor segue afirmando, de forma a trazer mais esperança:
outra relaxar com a garantia de que a conexão se manterá. A partir desse en-
tendimento, algumas questões despontam: Como ficar só consigo mesmo
quando o medo de o outro não estar presente é ativado? Como estar consigo
mesmo diante do terror de não existir dentro do outro? Como lidar com a la-
cuna, o intervalo, o espaço, se ele é a proximidade com o abismo?
Lacuna S.A., este é o nome da empresa contratada para eliminar um dentro
do outro. O objetivo é apagar qualquer rastro do outro dentro de si. Eu sou o
outro do outro e não o outro em si. Que decepção! Clementine com todo seu
empenho em pintar o cabelo frequentemente de modo a evitar a vivência de in-
visibilidade, o risco de inexistir no outro, de ser esquecida, precisa apagar/anu-
lar/matar Joel. Joel, quando se depara com a situação de inexistir diante dela, na
cena em que a encontra na livraria, sente seu mundo ruir. O desespero de Joel
aciona uma vivência de enlouquecimento. O personagem fica incrédulo, sem
conseguir compreender como ela não o conhece e o trata como um estranho.
A arte do filme é sutil, pois, sem percebermos, as luzes vão se apagando e
a cena muda para Joel na casa dos amigos. Ao descobrir que fora apagado por
Clementine, reagindo à dor da invisibilidade, decide fazer o mesmo e, só as-
sim, durante esse processo, eles se reencontram. Precisavam apagar o outro
ideal para se encontrarem verdadeiramente? Uma hipótese! No filme, tudo se
dá em algumas horas, pois a máquina precisa mapear áreas do cérebro em que
haja a presença do outro. É um trabalho que toca nas marcas sensórias, que
dão contorno ao sentido de temporalidade. O sentido de tempo e a apropria-
ção de um espaço próprio são conquistas de um processo de amadurecimento
psíquico. A lacuna no filme é sentida como um vazio enorme, um abismo em
que se pode cair e desaparecer para sempre, contrastando como a ideia de la-
cuna como espaço para criar, para ser e para repousar.
Parece-me não ser um acaso Joel voltar à infância e Clementine sugerir:
“Vá a um lugar onde eu não pertença na sua mente!”. Naquele momento, o
filme mostra as funções misturadas entre Clementine e a mãe de Joel. A marca
edípica e a trama fantasmática se apresentam, lembrando serem essas as pre-
missas para a construção de um par amoroso. É preciso, então, separar para
ficar junto. É preciso distinguir quem é quem na trama subjetiva e intersubje-
tiva para que o laço seja construído sobre bases mais confiáveis e criativas.
Nesse ponto, o filme retrata um mergulho nos primórdios da história de
vida de Joel e nos leva, assim, a outras indagações importantes: há mais de
mim em mim? É possível pensar que o relacionamento amoroso toca em par-
tes nossas inabitadas ou pouco íntimas para nós mesmos. A facilidade em
“curtir” ou “deletar” alguém hoje em um “cardápio” de corpos sem histórias
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BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O LAÇO AMOROSO
1
A história do cuspido, conto inédito de Fábio Labanca.
43
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA FERNANDA RIBEIRO PALERMO
Trai
Confunde tua crença
Debuta a todo amor
Singelo e contumaz
Em cada espaço, paz
Desfruta o que te tenta
Deflagra o irreal
Junho de 2018
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BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS: UMA REFLEXÃO SOBRE O LAÇO AMOROSO
Referências
BAUMAN, Z. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2004.
EIGUER, A. Um divã para a família. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
______. In: Gomes & Levy (Org.). Atendimento psicanalítico de casal. São Paulo:
Zagodoni, 2013. p. 44-60.
FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo. Rio Janeiro: Imago, 1996. p. 246-253. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 1).
KAUFMANN, J. C. A invenção de si: uma teoria da identidade. São Paulo: Instituto
Piaget, 2006.
KLEIN, M. (1946). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In: Obras completas
de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago, 2006. p.17-43.
LE BRETON, D. As paixões ordinárias. Antropologia das emoções. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2009.
LEVY, L.; GOMES, I. Relações amorosas: rupturas e elaborações. Tempo Psicanalítico,
Rio de Janeiro, v. 43, n. 1, p. 45-57, 2011.
MAGALHÃES, A. Transmutando a individualidade na conjugalidade. In: FÉRES-
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Paulo: Loyola, 2003. p. 205-218.
WINNICOTT, D. (1989a). Vivendo de modo criativo. In: ______. Tudo começa em
casa: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2005. p. 23-41.
______. (1989b). A criança e o grupo familiar. Tudo começa em casa. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 123-137.
______. (1958). A capacidade para estar só. O ambiente e os processos de maturação.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. p. 31-37.
______. (1967). Colapso das defesas. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
p. 82-87.
45
Brilho eterno de uma mente sem lembranças
Maria Pompéa Ferreira Carneiro * 2
O título desse filme foi tirado de um verso de um poema do século XVII, ins-
pirado num conto do século XI, onde amantes separados por um amor proibi-
do mantiveram-se fieis até a morte. Como legado deixaram cartas apaixonadas:
“Cartas de Abelardo e Heloisa”. Ela, condenada a um convento, se tornou aba-
dessa, e ele, teólogo, escritor e filósofo, foi o responsável pela publicação das
cartas de um amor que se eterniza em sua beleza e perfeição, protegido pela
idealização e alimentado pela fantasia.
Pode ser apenas um detalhe, mas segundo o pensamento do filósofo Wal-
ter Benjamim em seus ensaios sobre fotografia e cinema, é preciso descobrir o
cristal do fragmento que nos levará à compreensão do todo, pois através dele
podemos captar os sentimentos que um autor busca expressar em sua obra.
É apenas um recorte, um ponto de vista, que certamente não abrange a to-
talidade da obra e foi a partir do título que encaminhei minhas considerações.
É interessante notar como o filme desde o início salienta o dia dos namo-
rados, tão valorizado na cultura americana, como sendo a data de exaltação do
amor, o que ao mesmo tempo exacerba a angústia daqueles que sofrem pela
falta ou pelo abandono.
*
Psicanalista, membro efetivo e supervisora da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de
Janeiro (SPCRJ).
47
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIA POMPÉA FERREIRA CARNEIRO
Brilho eterno de uma mente sem lembranças é uma história de amor que
poderia ser como outra qualquer, com suas dores e inquietudes e com a eleição
de um único objeto capaz de satisfazer a demanda, consequentemente, com
suas frustrações e desencantos.
Mas, para contá-la com mestria, é preciso talento, originalidade, criativi-
dade, o que não falta ao diretor desse filme.
A história não se desenrola como uma narrativa sequencial. Ela é monta-
da por segmentos esparsos, como uma colcha de retalhos, que vamos juntando
para compô-la. Construindo, reconstruindo e desconstruindo uma história,
através das lembranças, numa luta desenfreada entre apagar as lembranças,
causa de sofrimento, e a dor da perda do objeto amado.
Embora o título nos remeta a uma situação milenar, onde o amor se nutria
mais de sonhos do que de experiências vivenciadas, e nos traga à contempora-
neidade, onde não há tempo nem espaço para se sonhar, é do amor que se
trata. Afeto básico em nossa constituição psíquica, sem o qual o sujeito não se
sustentaria.
Passado em Nova York, lugar que é o protótipo da vida contemporânea,
com seus contrastes, sua pressa, sua ânsia pelo novo, suas contínuas mudanças,
seu corre-corre diário, o filme mostra, em meio à multidão, o homem solitário.
Na rapidez própria do mundo contemporâneo, sobretudo no nova-iorqui-
no, tudo acontece em três dias, justamente na época do dia dos namorados.
O filme começa onde os protagonistas, que haviam apagado da memória
suas imagens, se encontram como dois estranhos, e se reconhecem na expe-
riência de um retorno do já vivido.
As imagens da cena atual são diferentes, mas os sentimentos são antigos e
afloram.
Isso nos faz pensar que as imagens podem ser apagadas de nossa memó-
ria, mas que as sensações, registradas em nosso originário pelas emoções, per-
manecem inalteradas enquanto vivemos.
A história é de um casal, Joel e Clem, que se conhece num encontro casual
em um churrasco na praia, promovido por amigos em comum. Iniciam um
relacionamento e durante algum tempo mantêm uma relação apaixonada até
que o desgaste do cotidiano vai desfazendo o encantamento.
Num movimento tão comum em nossos dias, onde estamos numa busca
acelerada e contínua de objetos que atendem a ilusão de objeto ideal, e que
uma vez conquistados se tornam descartáveis, Clem busca uma maneira rápi-
da e definitiva de lidar com a frustração que a realidade do dia a dia impunha
à relação.
48
BRILHO ETERNO DE UMA MENTE SEM LEMBRANÇAS
1
Uso propositalmente a palavra “deletar”, ao invés de apagar, porque penso que este procedi-
mento, como vimos na história, “deletava” as imagens, mas não apagava os registros, as impres-
sões. Como nos computadores, há sempre uma possibilidade de resgatá-las.
49
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIA POMPÉA FERREIRA CARNEIRO
Não é difícil ver esse movimento intrincado das pulsões no processo civi-
lizatório. Quantos avanços e novas descobertas são utilizados em guerras cada
vez mais ameaçadoras. A revolução digital que nos coloca frente a tantas ma-
ravilhas traz consigo as Fake News e os ataques cibernéticos, com seu potencial
inimaginável de destruição.
Nas relações humanas não é diferente. Veja esse diálogo do filme:
“Eu não vejo nada que não goste em você”, diz Joel.
Ela contesta:
“Mas vai ver. Você vai pensar em coisas, vai ficar entediado, vai se sentir
preso, porque é isso que acontece comigo”.
Sempre vamos encontrar no amor esse elemento destrutivo trabalhando
para a desunião.
De alguma forma, o filme alerta para a ameaça que o avanço da ciência
representa a nossa humanidade.
Quem imporia limites a essas possibilidades assustadoras de uma evolu-
ção desenfreada?
Quem seriam os guardiões da ética e da moral? E como seriam elas afetadas?
Tudo seria permitido em nome da evolução da civilização?
São questões que só o futuro responderá.
Ninguém nega os benefícios infindáveis que a tecnologia, com seus avan-
ços incríveis, vem trazendo no alívio das causas de sofrimentos da humanida-
de, especialmente nas apontadas por Freud em O mal-estar na civilização,
como os sofrimentos advindos de nosso corpo, na luta contra os fenômenos da
natureza e nas relações com nossos semelhantes.
Mas não podemos deixar de lado a existência da pulsão destrutiva que
cada vez mais separa e destrói o que Eros nos fez unir, buscando alcançar o
prazer e a felicidade.
A psicanálise acreditava que com um maior conhecimento de si mesmo,
mais conscientes dessa força destrutiva que nos habita, poderíamos contê-la.
Ela seria dirigida para impulsionar a busca de novas descobertas e, que os ho-
mens poderiam se tornar mais disponíveis a uma participação na vida social,
considerando os limites do desejo.
Mas, embora tenha exercido uma grande influência na nossa cultura, mo-
dificando costumes, alterando valores morais, dando-nos uma falsa crença de
liberdade sobre tudo o que diz respeito à sexualidade, não nos tornamos uma
sociedade melhor.
Ao nos liberarmos de nossos recalques em relação à busca de satisfação de
nossos desejos, liberamos também nossas pulsões destrutivas. A consciência
51
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARIA POMPÉA FERREIRA CARNEIRO
Janeiro de 2019
Referências
AULAGNIER, P. A violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1967.
______. Os destinos do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
BAUMAN, Z.; DESSAL, G.. O retorno do pêndulo. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
FREUD, S. (1937-1939). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
(Obras completas, 21).
POPE, A. Poema “De Eloisa para Abelardo”. Inglaterra, 1717.
52
O irrespirável píncaro da perfeição
Neyza Prochet*
*
Psicóloga e psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ),
mestre e doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (USP).
1
Termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando “bem nascido”. O
autor define eugenia como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar
ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”. Fonte:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Eugenia>. Acesso em: 08 abr. 19.
53
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA NEYZA PROCHET
2
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Gattaca>. Acesso em: 07 ago. 2018.
54
O IRRESPIRÁVEL PÍNCARO DA PERFEIÇÃO
3
<https://www.significados.com.br/casta/>
57
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA NEYZA PROCHET
4
LOBATO, Josefina Pimenta. “O estruturalismo de Lévi-Strauss e o sistema de castas indiano”.
ComCiência, Campinas, n. 114, 2009. Disponível em: <http://comciencia.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1519-76542009001000010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 10
ago. 2018.
58
O IRRESPIRÁVEL PÍNCARO DA PERFEIÇÃO
Abril de 2019
Neyza Prochet
neprochet@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Referências
BARROS. J. A. Igualdade, desigualdade e diferença: três noções em diálogo.
Disponível em: <https://docplayer.com.br/6683755-Igualdade-desigualdade-e-
diferenca-tres-nocoes-em-dialogo.html>. Acesso em: 10 ago. 2018.
BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1999.
DUMONT, L. La civilizatión india y nosotros. Madrid: Alianza Editorial, 1989.
61
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA NEYZA PROCHET
62
O preço de tudo
Monica Aguiar*
A veneração da Dor
Como a veneração do Paraíso,
Obtém-se a custo corpóreo –
O Cume não é dado
Àquele que se esforça rigorosamente
Ao meio da colina –
Mas àquele que atingiu o topo –
Tudo – é o preço – de tudo.1
*
Psicanalista, membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Ja-
neiro (SBPRJ).
1
DICKINSON, Emily. Disponível em: <www.poemhunter.com/poem/the-hallowing-
of-pain/>. Tradução nossa.
63
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MONICA AGUIAR
ca, doença bipolar, expectativa de morte precoce etc. No entanto, ali permane-
ceram, amando e cuidando. Essa experiência seria o solo fértil para que o
broto da esperança vingasse no espírito de Vincent.
Vincent/Jerome se certifica cada vez mais de que o céu deverá ser seu li-
mite, como expressão talvez da infinitude da sua paixão, despertada cedo, aca-
lentada e testada ao longo de anos onde sua realidade subjetiva foi
paulatinamente ganhando os contornos da realidade objetiva que o cercava.
Enquanto isso, Eugene vai expondo sucessivamente as falhas que a falta de
uma experiência positiva de resistência ao fracasso e à própria dependência
haviam lhe deixado. Experiência que dependeria de elementos não genéticos,
ou seja, de um objeto subjetivo, mas objetivamente seguro a ampará-lo diante
do inesperado. “Tenho medo de altura”, revela, como explicação para seu de-
sinteresse em fazer parte da conquista de universos além. Seu universo interno
se apoiava predominantemente no legado genético quase perfeito. As fantasias
onipotentes não haviam sofrido os abalos inevitáveis, temperados pelos cuida-
dos maternos, sempre a medir o tamanho da incerteza que o bebê poderia
suportar e superar sem viver angústias inimagináveis nem enrijecer suas defe-
sas. Diante dessa inexperiência, Eugene vivia esmagado com expectativas ir-
reais que excluíam o acaso, sempre na iminência de reincidir em algum
colapso cuja percepção tentava evitar com abuso de álcool e finalmente com
atentados contra a própria vida. Enquanto teve Vincent e agora Jerome, por
perto, pôde sentir-se parte dele, numa regressão fusional onde entrava com os
genes, ou como dizia, emprestando o corpo. Alimentava-se da paixão de Vin-
cent/Jerome, finalmente podendo sentir-se orgulhoso através dele, como uma
mãe encantada com a vitalidade de seu bebê.
No universo sombrio de Gattaca, os indivíduos todos se parecem, vesti-
dos rigorosamente iguais e dispostos em baias impessoais onde a indiferencia-
ção parecia ser a regra. Um mundo sem diferenças seria o meio ideal para a
onipotência genética se manter. “Ninguém excede seu potencial”, diz um dos
preceitos ali disseminados. Num ambiente concebido sob a égide da previsibi-
lidade, não há espaço para o surpreendente e, portanto, para o sonho acorda-
do. Um terreno muito propenso a desesperança e submissão, quando não ao
desespero. Talvez não seja difícil imaginar por que o esforçado e confiante Vin-
cent teria o plano de voo mais criativo e, portanto, escolhido.
Mais uma competição no mar com o irmão. Anton ficara perturbado com
a desorganização que a presença de seu irmão in-válido havia causado no seu
universo geneticamente previsível e controlado. Como havia chegado lá? E
como o ultrapassaria pela segunda vez? Ao que Vincent lhe responde dentro
65
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MONICA AGUIAR
d’água, “Eu nunca guardei nada para o nado de volta!”. Sem saber como lidar
no seu mundo de certezas com a incerteza de até onde o irmão iria, Anton
perde as forças e começa a se afogar. Da arrogância à impotência em segundos.
Uma personalidade calcada em palafitos pré-estabelecidos que não se fortale-
ceram suficientemente com a experiência inicial de vida com um objeto amo-
roso sintonizado com seu desamparo. Afinal havia sido um bebê
perfeitamente programado e, portanto, diferente de seus pais que possivel-
mente se sentiam inferiores a ele e talvez até algo desnecessários.
Quando a ideia de perfeição, isto é, de ser o bebê perfeito, é basicamente
tudo que se traz do início, passa-se todo o tempo buscando falhas, como diria
Vincent para Irene, a moça mal programada com um defeito no coração, no
seu penúltimo diálogo do filme. “Eles te deixaram procurando tanto qualquer
falha que isso é tudo que você consegue ver”. E segue dizendo, “Pelo que pode
te valer, estou aqui para te dizer que é possível. É possível”. Perplexa, Irene não
parece acreditar que uma vida plena de realizações seria possível sem a perfei-
ção.
E ao buscar falhas, a comparação se tornaria inevitável e, consequente-
mente, o indivíduo se tornaria presa da inveja. “Será que a única maneira de
você ter sucesso é me ver falhar?” perguntava Vincent a Anton.
No início da vida de um bebê, tudo é caos que se organiza e desorganiza
para novamente se organizar sob o manto de acolhimento dos pais. Essa repe-
tida experiência estará na base da capacidade de cada um enfrentar o impon-
derável, uma espécie de DNA da alma. E como diz o slogan do filme,
“Infelizmente, não existe um gene para o espírito humano”.
Abril de 2019
Monica Aguiar
monaguiar27@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
66
Sobre Ela: uma aposta na potência
terapêutica da ilusão
Perla Klautau* 2
A maioria das sinopses e das críticas descrevem Ela como um retrato da soli-
dão do nosso tempo encenada em uma atmosfera futurista. Sem dúvida, assis-
timos a uma crônica do mal-estar contemporâneo que dá destaque à
hiperconectividade e às formas de relações estabelecidas a partir do uso da
tecnologia. Discutir esse mote seria uma escolha natural se não estivéssemos
diante de uma narrativa que vai além da ficção científica ao colocar em cena
diferentes formas de amar, fazendo do filme um drama que retrata os conflitos
amorosos, as angústias e a solidão de um homem que se esforça para aplacar a
dor infligida por um amor perdido.
Para iniciar a discussão, é interessante notar que a temporalidade da trama
se desenvolve em um período que contraria a cronologia: o cenário é o de uma
grande metrópole com ares futuristas e o figurino dos personagens é composto
por peças e cores que se tornaram símbolos dos anos 1960-70. Tal combinação
nos remete a um futuro com marcas do passado. Esse recurso instaura o tempo
do futuro do pretérito, trazendo consigo um ambiente impessoal e despersonali-
zado, que pode ser compreendido como fruto da globalização (CARMELO,
2014). Ao contrário de tal descrição, que enfatiza a semelhança na aparência das
pessoas e dos lugares, um olhar psicanalítico sobre o tempo do futuro do preté-
rito nos remete à singularidade. Mais precisamente, à particularidade subjetiva
ancorada na temporalidade do trauma que descortina um futuro familiar, com
foco em um passado que paradoxalmente, ainda não passou. O termo alemão
*
Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), professora
do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de
Almeida (UVA).
67
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA PERLA KLAUTAU
73
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA PERLA KLAUTAU
nome próprio, uma carta para Catherine reconhecendo-se nela: “Só sou eu por-
que fui parte de você”. Esta carta e a cena final do filme nos aproximam da descri-
ção do amor, postulada por Hegel (1801-06), como um “ser si-mesmo em um
outro” (apud HONNETH, 2009, p. 160). Na leitura de Honneth, o amor descrito
por Hegel pode ser entendido como uma primeira forma de reconhecimento:
para ser eu, dependo do reconhecimento do outro e, também, para o outro ser iden-
tificado a partir de sua alteridade, depende do meu reconhecimento.
Finalmente chegamos a um ponto em que é possível reconhecer a potên-
cia terapêutica da ilusão: no hiato aberto por uma perda, algo pode ser encon-
trado-criado. Este algo permite fazer o luto e dar sentido a uma perda que
jamais será restituída, mas que poderá ser elaborada. Portanto, é possível afir-
mar que a ilusão, em sua faceta terapêutica, pode funcionar como uma poten-
cialidade psíquica capaz de oferecer recursos para que um trabalho de
simbolização possa ser engendrado, permitindo uma historicização do passa-
do e uma abertura para o que está por vir.
Abril de 2019
Perla Klautau
pklautau@uol.com.br
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
Referências
BEZERRA JR., B. Projeto para uma psicologia científica: Freud e as neurociências. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
CARMELO, B. (2014). Amores reais em tempos virtuais. Disponível em: <http://www.
adorocinema.com/filmes/filme-206799/criticas-adorocinema/>. Acesso em: 23 abr.
2019.
FREUD, S. (1895[1950]). Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro:
Imago, 1990. p. 403-466. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas
de Sigmund Freud, 1).
______. (1920). Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p. 17-89.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18).
______. (1927). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1990. p. 13-71.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).
75
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA PERLA KLAUTAU
76
Ela, do ser automático ao ser humanizado
Rachel Sztajnberg* 3
Sim, esse filme interroga, sem sombra de dúvida, até onde pode chegar a rela-
ção do homem com um de seus projetos mais ambiciosos: a criação de um SO
(sistema operacional) que materializasse um Aladim e sua lâmpada, dotado do
poder de responder aos anseios humanos de um encontro mágico e plenamen-
te satisfatório. O obstinado sonho de um encaixe perfeito com um “outro” que
não o remetesse à frustração de ter que reconhecer, cedo ou tarde, neste igual,
um diferente, em sua humanidade peculiar, desencontrada, portanto, de suas
aspirações de completude.
Theo, o protagonista dessa novela, é um homem comum e, como tal, logo
entra em cena desfilando um tédio estampado em sua fisionomia de enfado; seu
andar arrastado replica o tom monótono de quem ficou refém de uma rotina
mecânica e previsível. Recém-saído de uma relação amorosa potencialmente fe-
liz, mas cujo desgaste parece ter tido para ele uma causa enigmática, evoca de
quando em vez, nostalgicamente, flashes de um prazer outrora compartilhado
com sua mulher. O luto por esse desfecho parece ainda pouco elaborado.
*
Psicanalista, membro efetivo, supervisora e coordenadora de seminários da Sociedade
de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ).
77
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA RACHEL SZTAJNBERG
No que concerne à vida profissional, seu ofício cobra dele algum talento e
imaginação, mas dentro de um enquadramento estereotipado em padrões ro-
mânticos clássicos que não lhe impõem grandes desafios. Para simular auten-
ticidade, as cartas que produz chegam aos destinatários formatadas em letra
cursiva, como se tivessem sido escritas a mão pelo próprio emissário. Enco-
mendadas por clientes ávidos de provocar o encantamento de terceiros, são
meros desdobramentos do conteúdo fake presente em seu cotidiano. As men-
sagens emitidas forjam uma legitimidade sustentada numa competência técni-
ca treinada que Theo dá conta de instrumentar, tornando-as verossímeis. Ele
mesmo, no entanto, se encontra alienado de sua produção, não se apropria
dela em termos subjetivos. O esforço cognitivo tem caráter burocrático, está
dissociado de seus afetos. Vários elementos compõem uma farsa de resultados
lucrativos, dos quais se beneficia uma empresa cinicamente batizada como
Beautiful Handwritten Letters. A terceirização das emoções não causa cons-
trangimento, é mais uma mercadoria a ser consumida no universo capitalista.
A vida sexual do personagem também parece se dar no plano da mera
descarga. Os objetos são fortuitos e efêmeros, parecem atender mais à necessi-
dade biológica do que ao desejo. Theo serve-se deles e os descarta em seguida.
Como todas as experiências nos diferentes segmentos de sua vida, escoam sem
deixar resto. Daí brota o vazio, o sem-sentido com o qual convive. Não há do
que se apropriar e chamar de seu de verdade.
A um espectador mais atento tampouco passará despercebida a cena em
que, respondendo a “anamnese” necessária à seleção de seu parceiro virtual,
fala de sua mãe como alguém que sempre que procurada por ele no intuito
de se fazer ouvir, ignorava sua demanda para fazer-se ela o objeto da interlo-
cução. Fracassava assim sua busca de ser visto e existir para o outro. A má-
quina, aliás, repete esse padrão. Faz a pergunta e quando Theo se implica e
começa a discorrer sobre o que se dava entre ele e sua mãe, ao contrário do
que aconteceria numa consulta terapêutica convencional, o computador dá-
-se por satisfeito e interrompe bruscamente a entrevista. Tomemos esse reta-
lho como um clichê, a sinalizar a indiferença externa como uma das razões
de sua sensação de ser... ou não ser no mundo.
A primorosa direção do filme exibe, assim, um ser que não vive, vaga, só
funciona, não existe. É isso que o torna tão permeável a uma demanda imagi-
nária, parcial, desencorpada. Assim, a programada devoção de Samantha, que
se encarrega de acompanhá-lo, cuidar dele, de sua agenda, sempre num tom
suave e cativante, termina por conquistá-lo. Leve, sorridente, saltitante mes-
mo, ele é outro agora. Liberto de suas amarras, ele vibra, pulsa, rompe com o
78
ELA, DO SER AUTOMÁTICO AO SER HUMANIZADO
objeto, então trata-se de Ela e Dela. O diretor com certeza teve uma intenção
quando optou por Her. Seria para não conferir a Samantha o estatuto de su-
jeito? Quem sabe?
A música-tema de Samantha, ela dotada de qualidades a esse nível de ex-
celência e dom musical, constitui um outro ponto alto dessa obra. The Moon
Song, que ela própria compôs, situa essa relação no espaço, nas alturas, alheia
às atribulações corriqueiras de uma vida banal e estafante, onde a estética, a
beleza e o original acabam rarefeitos. A plenitude não é palpável, é mítica, está
onde não se pode alcançá-la, exceto como fantasia. Restrita a esse campo,
quando não passa ao ato, passeia, então, no espaço sublimatório, onde a criati-
vidade dispõe de inesgotáveis artifícios para expressar seus arroubos, torná-los
públicos sem ferir os códigos que garantem a permanência do establishment.
No entanto, nem mesmo um produto derivado da sofisticada inteligência
artificial engendrada pela ciência, escapa à frustração de se sentir limitada tão
somente àquilo para o qual foi programada. Samantha aspira a acessar o mun-
do das sensações, universo do qual se sente excluída. Reivindica, assim, um
“empréstimo” do corpo de uma outra humana, mulher, para, através dela, co-
nhecer um gozo para ela interditado.
Theo, por sua vez, até então usufruindo do júbilo de ser único para Sa-
mantha, é tomado por fúria narcísica ao se dar conta de que ela responde a
inúmeras demandas como as dele. Indignado, se dá conta de que é apenas mais
um a ser atendido por ela. É dura a constatação de que é muito menos do que
pretendia ser para o outro. O que se obtém das grandiosas aspirações que ha-
bitam o sonho impossível, presente no íntimo de cada sujeito, é sempre menos
do que o esperado. Esse ajuste, necessário à convivência com os demais não se
faz sem carrear, quiçá para sempre, um traço de rebaixamento, de humilhação.
É o preço a pagar, a contragosto, pelo acesso à nossa humanidade e ao que ela
nos propicia. A renúncia ao longínquo inefável garante, em contrapartida,
uma satisfação eventual, não perene, mas significativa; uma via de acesso ao
prazer diversificado, salpicado na realidade. A alegria de viver comparece, mas
ela também nos escapa e cede lugar à dor de existir. Poder suportá-la é, com
frequência, condição sine qua non para sentir que a vida vale a pena.
Theo, é um personagem caracterizado como um ser suave, intimista, mas
talvez com doses de tons melancólicos inseridos em seu jeito de ser. Por isso
mesmo, angaria a nossa empatia desde que nos é apresentado e parece ter usa-
do sua insólita experiência em seu próprio favor. Depois do luto, que não pode
mais evitar, se dá conta das perdas, reconcilia-se com seu passado, faz um ba-
lanço saudável de suas experiências, as sofridas e as prazerosas. Vira a página
81
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA RACHEL SZTAJNBERG
para seguir em frente. Parece agora mais preparado, mais maduro, para viver,
enfim, um amor de verdade.
Para encerrar, Hanna Arendt: Toda dor pode ser suportada se, sobre ela,
puder ser contada uma história.
Abril de 2019
Rachel Sztajnberg
rachelsztajn@yahoo.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
82
Esperança
_______________
Diana Dadoorian* 4
*
Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Dou-
tora em Psicologia Clínica e Psicopatologia pela Université Paris VIII. Coordenadora
do Curso de Especialização em psiquiatria e psicanálise com crianças e adolescentes,
do Instituto de Psiquiatria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ).
83
SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA DIANA DADOORIAN
além e nos surpreende ainda mais quando mostra que o novo messias não é
um homem, mas, uma mulher! Kee é a Madona pós-moderna e o messias ago-
ra é uma mulher. Através do nascimento desse bebê-mulher-africano é o futu-
ro da vida que se renova, pois ela crescerá e poderá gestar outros filhos e com
isso, uma nova humanidade poderá surgir.
Assim, em meio ao caos causado pelas guerras e destruições, surge a vida.
A vida teimando em viver. Somos brindados no filme com cenas lindíssimas,
como quando Kee sai do quarto, já com sua filha nos seus braços e todos a re-
verenciam e se curvam a ela e ao seu bebê. E, na sequência dessa cena é o be-
bê-vida que interrompe, mesmo que por alguns segundos, a guerra e vemos os
soldados abaixarem suas armas e se ajoelharem diante do bebê. Alguns fazem
o sinal da cruz, como se estivessem diante de um milagre e reverenciam esse
bebê-messias que faz renascer a esperança.
Ao final do filme, o encontro com o “Projeto Humano”, representado no
barco “Tomorrow”, o “Amanhã”, aponta que há um futuro. Aqui também apare-
ce uma referência bíblica, onde esse barco, cujas pesquisas poderão salvar a
humanidade da extinção, também é uma referência à Arca de Noé,
Theo-Deus dá a sua vida para salvar a Messias, e assim, salvar o futuro,
mas, nesse encontro com Kee e seu bebê ele pôde se reencontrar e achar um
novo sentido para a sua própria vida. Ao saber que, em sua homenagem, a
bebê levaria o nome do seu filho morto, Theo pôde descansar, a lembrança do
seu filho permanecerá viva.
Filhos da Esperança é um filme lírico, delicado, repleto de lindas simbolo-
gias, mas ao mesmo tempo, é um filme que nos fala dos horrores que os ho-
mens podem infligir a seus semelhantes. Mas, no contraponto a isso, temos
um bebê, um ser pequeno, frágil e descendente das minorias, mas que traz em
si a possibilidade de fazer renascer a semente da solidariedade, do amor, do
respeito ao próximo, ou seja, ele tem a força necessária para renascer nos ho-
mens a esperança.
Apesar de um futuro-presente assustador, o nascimento do bebê-messias-
-mulher-africana nos mostra que a vida, apesar das adversidades, consegue
criar espaços para se fazer presente. Há esperança? Há esperança!
Novembro de 2018
Diana Dadoorian
d.dadoorian@gmail.com
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
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SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA DIANA DADOORIAN
Referências
CUARÓN, Alfonso (Diretor). Children of Men. Estados Unidos: Universal Pictures,
2006.
DADOORIAN, D. Pronta para voar, um novo olhar sobre a gravidez na adolescência.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
p. 89-119. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund
Freud, 14).
88
Um olhar psicanalítico sobre o filme
Filhos da Esperança
Marcia Maria dos Anjos Azevedo* 5
Nessa ficção produzida em 2006, nos deparamos com uma situação surreal
ocorrida no ano de 2027 em que há 18 anos, as mulheres não conseguiam mais
engravidar, por causa desconhecida. O mais novo ser humano morreu aos 18
anos e a humanidade discute seriamente a possibilidade de extinção. Theodore
Faron (Clive Owen), é um ex-ativista desiludido que se tornou um burocrata,
vivendo em uma Londres arrasada pela violência e pelas seitas nacionalistas
em guerra. Procurado por sua ex-esposa Julian (Julianne Moore), Theodore é
apresentado a uma jovem, refugiada – FUJI – grávida. O casal idealista passa a
protegê-la a qualquer custo, inclusive com a própria vida, não só por acreditar
que a criança por vir seja a salvação da humanidade, mas talvez por intencio-
nar a reparação de uma perda ocorrida no centro da vida e da separação dos
mesmos. Fica exposto, que uma tragédia se abateu sobre a vida do casal de
*
Psicóloga e psicanalista, doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), professora associada do Departamento de Saúde e Sociedade (MSS) – Instituto de Saú-
de Coletiva (ISC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro efetivo e supervisora
do Instituto de Formação Psicanalítica da Sociedade de Psicanalise da Cidade do Rio de Janeiro
(SPCRJ). Professora convidada do curso de especialização em Transtornos Alimentares: obe-
sidade, anorexia e bulimia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),
professora do curso de especialização Acesso a Saúde: informação, comunicação e equidade
ISC-UFF/ICICT-Fiocruz. Membro da Sociedade Brasileira de Transtornos Alimentares (SO-
BRATA) e da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF).
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SUBJETIVIDADE, ÉTICA E TECNOLOGIA MARCIA MARIA DOS ANJOS AZEVEDO
1
Verso da música Epitáfio de autoria dos Titãs.
94
UM OLHAR PSICANALÍTICO SOBRE O FILME FILHOS DA ESPERANÇA
Abril de 2019
Referências
AZEVEDO, M. M. A. Nos labirintos da eficiência. In: XX JORNADA DE
PSICANÁLISE DA SPCRJ, 2017.
______. A constituição identitária contemporânea e a cultura como sala de espelhos.
Cadernos de Psicanálise, publicação online da SPCRJ - Sociedade de Psicanalise da
Cidade do Rio de Janeiro, v. 34, n. 1, 2018.
BIRMAN, J. Entrevista concedida a DWworld – por ocasião dos 150 anos de Freud
em 2006.
FIGUEIREDO, L. C. O estrangeiro. São Paulo: Escuta, Fapesp, 1998.
FREUD, S. Mal estar na cultura. Rio de Janeiro: Imago, 1982. (Edição standard
brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).
______. (1927). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1982. (ESB, 21).
GREEN, A. O discurso vivo: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1982.
MANNONI, M. O nomeável e o inominável: a última palavra da vida. Rio de Janeiro:
Zahar, 1995.
PONTALIS, J. B. Perder de vista: da fantasia de recuperação do objeto perdido. Rio de
Janeiro: Zahar, 1988.
ROCHA, Z. O problema da violência e a crise ética de nossos dias. Síntese - Revista
de Filosofia. Belo Horizonte, v. 28, n. 92, 2001.
SIQUEIRA, C. E.; SIQUEIRA, S. O perfil sociodemográfico e de saúde dos
retornados mineiros para a região de Governador Valadares. Revista USP, São Paulo,
n. 114, p. 119-129, 2017.
2
Verso da música Divino maravilhoso de autoria de Caetano Veloso.
98
Este livro foi impresso na Renovagraf
para o Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ) e a
Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ)
em agosto de 2019.