00 - ARAUJO João - Brevis Articulus - 2024
00 - ARAUJO João - Brevis Articulus - 2024
00 - ARAUJO João - Brevis Articulus - 2024
Brevis Articulus
A Ciência que se reinventa
pela defesa de nossos Patrimônios
@ Direitos reservados: João Araújo / Viola Urbana Produções
Pesquisa, coordenação editorial e arte final: João Araújo
Ilustrações: Adriano Alves / Marcelo Bicalho / Yuri Garfunkel
Araújo, João.
Brevis Articulus A Ciência que se reinventa pela defesa
de nossos Patrimônios [livro eletrônico] / João Araújo –
Belo Horizonte: Viola Urbana Produções, 2024.
PDF
ISBN 978-65-999305-1-5
Unde id venire
("De onde veio isso")
Em 2023, resolvemos aprofundar vários temas, pois o acervo de fontes cresceu e quanto
mais a metodologia era testada, mais se mostrou reveladora: passamos, então, a abranger com mais
detalhes toda a História dos cordofones. Assim, graças a generosidade de André Viola (portal Viva
Viola) e Cléber Vianna (portal Casa dos Violeiros), nasceram os Brevis Articulus, publicações
semanais internéticas, na mesma linha do livro: "às vezes brincando... mas sempre no fundo, de
verdade!".
E então foi assim que, em 2024, tivemos que revisar e ampliar toda a monografia original
(para inserir os aprofundamentos) e, a pedido de Cléber Vianna, revisamos também os Brevis
Articulus, para ficar tudo coerente... Ao final, pensamos: por que não disponibilizar também?
[Nota da coordenação: neste livro, com base em alguns estudos linguísticos, usa-se o dístico "nomenclatura" (em
MAIÚSCULAS) para o termo mais remoto, ou estatisticamente mais observado, que aponte ter sido refletido em
outras línguas pelos tempos (reflexos por sua vez chamados "variações"), enquanto palavras de outros idiomas e
grafias diferentes do português formal são destacadas em itálico. Exemplo: "[...] a nomenclatura CITARA refere-se à
vertente observada desde a kethara assíria, kithara grega, cithara latina e outras variações surgidas posteriormente".
Títulos em geral são grafados em Negrito com uma maiúscula, mas para os capítulos foi usada liberdade artística. As
"aspas" indicam termos e expressões já citados anteriormente, e/ou significados diferentes do convencional, como
sentidos figurados, gírias, expressões populares e similares. Os [colchetes] indicam apontamentos diretos do autor ao
leitor. As fontes de referência são todas listadas ao fim do livro, em formato ABNT de apontamentos].
João Araújo é músico, produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor. Pioneiro mundial em ações
pelo reconhecimento das violas como Patrimônio Imaterial. A chatice e o atrevimento são de
nascença; tentar aprender e evoluir sempre, a partir da Música, vem desde 1980; primeiro CD, ano
2000 (e já se vão mais 14, além de 05 DVDs e 06 EPs); primeiro livro, 2012 (e depois mais cinco,
com este); somam-se shows, palestras, produções, coordenação de projetos, publicações,
movimentos, prêmios... Dentro e, às vezes, até fora do país, com muita dedicação às nossas violas.
Auribus
("Orelhas")
André Viola
Diretor Executivo do Portal Viola Viva - violaviva.com.br
"Temos em mãos uma obra inédita, com detalhes riquíssimos sobre a Viola Caipira, seus
antepassados de cordas e os seus dignos executores, tidos como violeiros, o que prestigia de forma
memorável os admiradores da cultura. Não só da vertente caipira ou sertaneja, como soe melhor
dizer, mas da cultura em geral, pois foi pensado e escrito de forma acadêmica, com um linguajar
acessível a todas as compreensões!
A viola de 10 cordas é a atriz principal desse roteiro, que de tão bem elaborado, nos faz
viajar no tempo e no espaço, entendendo-a em sua mais estrita conjuntura de criação e evolução
ao longo de sua vida na cidade e no campo. A maestria e precisão de dados inseridos pelo autor
nessa magnífica obra são de uma qualidade ímpar, o que nos faz entender o quão estudado em suas
raízes a viola foi contemplada.
Dessa forma cremos que, em forma de tesouro, A Chave
do Baú de conhecimentos é entregue ao digníssimo leitor com
laços e fitas, e cremos que o mesmo se encantará a cada parágrafo
lido. João Araújo, mineiro da gema, entre tantas atividades
culturais importantes que vem desenvolvendo ao longo de sua
vida, em seu livro prestigia a todos com a sua intelectual forma de
relatar os fatos na coerência adquirida em seus profícuos estudos.
Registramos as nossas mais sinceras homenagens por tão exemplar
trabalho apresentado. O Sucesso é a sua marca, o prazer do leitor,
a sua recompensa!".
Index
1. Incipt Columna ("Começa a Coluna") ...... p.9
2. “São Gonçalo”: o Beato além das Lendas ....... p.11
3. Viola ou Viola? ....... p.14
4. Cornélio Pires e a moda-de-viola ....... p.17
5. Quem foi o Maior: Tião, Renato ou Bambico? ....... p.19
6. Violas Pretas: antes do Samba, das Modinhas e do Choro ....... p.22
7. Seria o caipirismo “fake news”? ....... p.26
8. Existiram antes de existirem de fato ....... p.31
9. A Importância das Violas ....... p.35
10. Lendas e Tradições ....... p.42
11. Chora, Viola! (a mais remota citação) ....... p.45
12. O Curioso caso da Violetta ....... p.49
13. Quatro Violeiros esquecidos pela História ....... p.54
14. Origens pouco conhecidas do nome Viola ....... p.57
15. Quando um modelo se tornou “Viola Caipira” ....... p.61
16. Um Juiz Violeiro ....... p.64
17. A la Rodrigo: uma Armação quase Ilimitada ....... p.67
18. Violas dedilhadas e o Eruditismo ....... p.72
19. Beaurepaire-Rohan e a distorção de “Caipira” ....... p.75
20. A origem histórica das modas-de-viola ....... p.81
21. Uma Família de Violas Dedilhadas ....... p.85
22. Debret e as verdadeiras Raízes ....... p.90
23. Batuques, Lundus, Modinhas, Violas Pretas ....... p.93
24. ORGANA: um ancestral das Violas pouco conhecido ....... p.99
25. Instrumentos Musicais, Mediadores Sociais ....... p.106
26. Violas Hoje: Rio de Violas (RJ) ....... p.111
27. GUITARRAS x VIOLAS: uma disputa ancestral ....... p.114
28. Violla de Júnior: 12 Cordas ilustres e com muita História ....... p.130
(livro-fonte)
motivos; então, o querer sempre saber mais e divulgar (na intenção de colocar a viola sempre “pra
cima”) é uma consequência natural.
No caso de quem descobre e consegue confirmar informações pouco difundidas, o desejo
de divulgar é ainda maior, quase uma obrigação. A descoberta e desenvolvimento de itens que
possam ser comprovados pela indicação de fontes de época exige muita leitura e método científico
(“metodologia”). Só que a divulgação não precisa ser, obrigatoriamente, uma coisa “chata”, com
palavras e conceitos difíceis: pode (e deve) ser transmitido com o mesmo amor, a mesma paixão
que sempre nos moveu. Todos gostamos de contar e ouvir histórias: a única diferença é que nos
dedicamos a só contar aquelas que podemos provar, as que conseguimos encontrar indicações,
evidências, registros. Talvez não sejam tão fantasiosas, “perfeitas e agradáveis” como as que
normalmente são contadas sobre violas, mas são boas histórias. E verdadeiras, que é o mais
importante!
A partir das violas dedilhadas (diferente das “de arco”, das orquestras), em determinado
ponto descobrimos que as histórias das duas se cruzam e se complementam: na verdade, como
todos os cordofones... Só que partimos das que talvez sejam os cordofones menos estudados do
mundo: antigamente se aprendia “de pai pra filho” ou nas Folias de Reis e tradições similares;
depois, também nas chamadas “orquestras de viola” (uma utilização diferente da palavra
"orquestra", tipo de coisa que nos dedicamos a descobrir por que acontece); e, final e felizmente,
hoje em dia temos à disposição vários “professores” ou “instrutores”, além de vários tipos de
conteúdo disponíveis pela internet (e olha nós aqui também, inserindo conteúdos científicos
embasados no “pacote”)...
Percebeu que até para deixar claro quais são as "violas" que amamos (pois há outras
“violas”, e vamos falar bastante disso), cabe apontar dados históricos, ou seja, coisas que
aconteceram na História dela? Afinal, este é um nome citado desde o começo do Brasil: pode-se
dizer que as histórias (as delas e a nossa) se misturam, ou que as violas são testemunhas de toda a
História brasileira... (aqui, "História" e "história" numa mesma frase, fazemos por querer mesmo,
assim como estas constantes inserções entre aspas e entre parênteses: é para brincar, mas também
para o leitor ficar atento!). Descobrimos, inclusive, que instrumentos musicais costumam ser
assim, "testemunhas", desde os mais remotos tempos, por todo o mundo... Laurentino Gomes,
jornalista paulista que homenageamos na abertura, tem toda a razão: é preciso estudar História...
Só se acrescenta, no caso das violas, que somos um povo naturalmente “contador de causos”, de
histórias sobre elas: o que precisamos é afinar a linguagem, para nos entendermos, aprendermos a
separar o que é lenda do que tem fundamento... e nos divertimos juntos.
O próprio título do nosso livro tem a ver com isso. A “chave do baú” é um apelido que
inventamos para uma coisa complicada, científica: uma metodologia que desenvolvemos para
poder embasar, com segurança, mistérios (ou “tesouros”) ainda pouco explorados sobre as “nossas
violinhas”, pelos séculos. Nem é tão fantasioso assim, pois o processo realmente se parece com
uma “caça ao tesouro”. O processo científico “meio chato”, cheio de regras e “especificidades”
(opa... desculpa por este “palavrão” ...) pode ser tão divertido quanto uma aventura. Vários
caçadores já trilharam alguns caminhos antes de nós, caminhos que usamos para iniciar nossas
buscas e, com as novas ferramentas de pesquisa e comprovação desenvolvidas, conseguimos ir
além do que outros foram e encontrar "tesouros" então "perdidos"... Entendeu?
Na verdade, não nos atrevemos apenas a chafurdar, conferir e colecionar dados poucos
divulgados de toda a História das nossas violas (e dos ancestrais dela): ao mesmo tempo, também
damos dicas de como usar a ferramenta para pesquisar qualquer outra coisa que se queira. Ou seja:
não só trazemos o peixe, mas, aos que tiverem interesse e dedicação, ensinamos como pescar.
Que tal? Bora nessa? Seja bem vindo. Qualquer dúvida, faça contato, critique, sugira, peça
indicações de leituras: o que temos é para as violas, e pelas violas. Estamos à disposição, com
muita dedicação... E por aí vem muitas prosas, então...
Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando!
ou “Pero Gonçalo Thelmo”, galego-espanhol beatificado bem antes (1254) e preferido de Filipe II
de Espanha (no período que espanhóis governaram também Portugal, entre 1580 e 1640). Os
portugueses teriam redirecionado a ação também (ou em preferência) ao beato português (em clara
resistência ao que queriam os espanhóis), e assim nenhum dos dois beatos veio a ser canonizado.
Em 1615, o Papa teria esclarecido dúvida ao apontar que Gonçalo teria sido dominicano e, a partir
de então, o culto a este último passaria a predominar, inclusive com a transferência de algumas
atribuições anteriores de outros “santos”: por exemplo, a de protetor dos “marinares” (profissionais
ligados às ações marítimas), mesmo que Gonçalo só tenha tido registros de viagens por terra: um
tipo de incoerência muito encontrada em lendas. Como diria o povo, "o santo é de barro...", então,
vamos devagar no trato... mas segue o andor.
No contexto nacionalista da disputa, faria sentido também juntar o “beato preferido” à
"viola", que era o nome de cordofone popular mais usado pelos portugueses. Aquelas atribuições
somadas não foram observadas antes daquela época, nas muitas narrativas sobre a vida inteira de
Gonçalo, sem contar que o nome “viola” só tem registros em Portugal a partir do século XV, dois
séculos após a morte de Gonçalo... (e dá-lhe sacudir o andor, ao desmentir lendas... sorry!)
Sobre ser casamenteiro, a relação observada seria que a data da Festa de Gonçalo foi
designada para tentar encobrir o paganismo ancestral das Festas das Regateiras, onde mulheres
buscariam graças de casamentos e/ou filhos por meio de demonstrações públicas bem
despudoradas, entre elas doces e outros objetos em formato fálico (que representariam a
fertilidade), costume ainda observado. A imagem de Gonçalo, então, entrou nesta “roubada”,
passando a ser alvo das fiéis e nada tímidas regateiras até hoje...
[Convenhamos: a história verdadeira é tão divertida quanto as inventadas, não? A diferença
é que é embasada, tem fundamento em registros de época].
A confusão depois só aumentaria, precisando pesquisar e não ter preguiça para entender:
em 1621, o Regimento dos Tanoeiros (de Portugal) já se referia a uma “dança pelo dia de S.
Gonçalo”; em 1627 teria ganho o título de “Venerável” um que viria a ser o único “santo de
verdade” entre três nomes semelhantes: São Gonçalo Garcia, indiano, canonizado (mas só em
1827); depois, em data estimada a 1690, o importante jesuíta português Antônio Vieira (1608-
1697) parecia fazer uma defesa de canonização ao citar várias vezes “santo, e admiravelmente
santo” em seu Sermão de São Gonçalo; porém, curiosamente citou a possibilidade das pessoas
serem “[...] santos sem aspirar a canonização”, o que deve ter colaborado muito com a confusão
entre beato ou santo. [Semanticamente danadinho, então, o padre Antônio: era "dos nossos"!].
Ou seja: é compreensível o surgimento e divulgação de tantas lendas, por quem não
pesquisar com atenção e honestidade, né? A partir de certa época haveria “Gonçalo santo de
verdade”, indiano; “Gonçalo espanhol”; e “Gonçalo português” ... No Brasil, registros de Festas
de São Gonçalo a partir de 1718 (para Gonçalo do Amarante, na Bahia) e em 1745 (para Gonçalo
Garcia, em Pernambuco). Aquelas festas, depois perseguidas e proibidas, teriam muita adesão
pública, com dança nas ruas e violas sendo tocadas, mas não haveria nelas ainda as “Danças de
São Gonçalo”, cujo mais remoto registro que encontramos no Brasil foi em anúncio do jornal O
Cearense, o tal que destacamos na abertura deste Brevis Articulus.
Sugerir que as “Danças de São Gonçalo” teriam sido tradições brasileiras desde os tempos
dos jesuítas, só pela imaginação caipirística (caipirismo que, inclusive, aponta ter sido inventado
a partir do século XX): como sabemos, a História não é como gostaríamos ou imaginamos que
tivesse sido, e não adianta tentar inventar "outra História" para faturar mais: fatos não têm efeito
retroativo. E fatos não mentem nunca. Checamos, entre outros, uns muito citados registros de uma
dança “d’escudos à portuguesa” apontada para 1583 pelos padres Cristóvão Gouveia e Fernão
Cardim mas, além de não haver nos registros citação a Gonçalo, não faria sentido ligar os relatos
ao beato, porque o culto ainda não teria sido autorizado (só o foi bem depois, a partir de 1627,
como dissemos). Os padres até podiam ser meio "danadinhos", mas cultuar antes do autorizado
pelo Papa seria demais... Além disso, danças similares existiriam pelo menos desde a expulsão dos
mouros em 1492: seriam chamadas de “autos”, segundo inclusive pesquisas de Curt Lange. Danças
para Gonçalo, portanto, só após o século XVII e sobre as circunstâncias e detalhes que já citamos.
Um dado coerente seria a devoção por Gonçalo de Amarante enquanto protetor dos
viajantes, e inclusive várias cidades foram batizadas com seu nome pelo Brasil: registros apontam
que ele teria realmente passado muitos anos viajando, tendo peregrinado até Jerusalém (por terra)
e, naturalmente, sabemos que voltou de lá para Portugal: é bastante chão, então, não se pode negar
que de viagens ele deveria mesmo entender bem.
A ligação de "violas" às Danças de Gonçalo ("violas" que não seriam as atuais, do modelo
Viola Caipira) é importante, pode e deve ser respeitada, preservada e defendida. Só não é
necessário inventar nada: as verdadeiras histórias ajudam, inclusive, a mostrar o valor de fatos
históricos comprováveis e até (quem sabe?) a aumentar o interesse por eles, para que nos
acostumemos a não a viver com menos do que verdades, e não sermos enganados... Mas aí já são
outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
3. Viola ou Viola?
1
Vídeo disponível em: https://youtu.be/orzj1FF2jhw
Não é simples de demonstrar e talvez por isso nunca vimos ninguém fazer antes; entretanto,
não “inventamos mais uma teoria”, pois de lendas o mundo já está cheio: botamos a cuca para
funcionar e elaboramos uma metodologia (um método científico de estudo) para dar segurança nas
afirmações, aplicado em um conjunto de dados e fontes significativo, exaustivo. Assim, partimos
de princípios da Metodologia Dialética (cujos fundamentos viriam do século IV aC. mas que é
utilizada até hoje, como destacado na abertura) e fomos além, ao contextualizá-la ao estudo de
instrumentos musicais. Juntamos também uma coleção de fontes e registros que ultrapassa várias
vezes as publicadas antes, inclusive em número de línguas, teorias, tipos de Ciências: para Platão
e para nós, portanto, quanto mais “fenômenos circundantes”, melhor. A tal “chave do baú” nada
mais é do que a própria metodologia, descrita e até ensinada em nosso livro, só que narrada em
formato artístico, lúdico, como uma “caça ao tesouro”: porque "se não divertido, não faz sentido"
para um artista, concorda? Por isso às vezes até inserimos rimas enquanto escrevemos (é
divertido!). Parte de nós é sempre artista, assim como também "arteira" (que quer dizer "moleque,
bagunceira", no falar interiorano de Minas Gerais).
Mergulhamos fundo: para ter segurança, seria preciso buscar desde as origens já citadas
das "violas", em paralelos com a História dos cordofones ocidentais. Se fôssemos pensar apenas
em "violas" dedilhadas, as portuguesas apareceriam só a partir do século XV, segundo apenas
quatro registros conhecidos, nos quais, embora não haja descrições sobre a forma de tocar,
entende-se que teriam sido dedilhadas pela ligação com o canto, em praças públicas e igrejas.
Aquelas "rodas de viola ancestrais" teriam sido, inclusive, perseguidas e até proibidas, segundo
aqueles registros.
O que outros pesquisadores ocidentais não apontam ter feito, talvez por focarem nas
friccionadas (que é o mais usual, como comentamos), é que "violas" já apareceriam, no mesmo
século XV, em texto em latim em Nápoles (Itália), e teriam sido tanto dedilhadas quanto
friccionadas, segundo o respeitado musicólogo belga Johannes Tinctoris (ca.1435-1511). Outra
análise que juntamos (que aponta também ter sido desprezada pela maioria) é a equivalência dos
nome viola e vihuela: este último, um nome espanhol que teria registro desde cancioneiros
trovadorescos do século XIII, e que no século XVI atingiria o auge em dedilhados espanhóis, pelos
vários métodos publicados. As similaridades em diversas línguas, por sua vez, fomos buscar no
século XII, na origem de uma profusão de nomes surgidos em latim, occitano, catalão (línguas que
influenciaram tanto o espanhol quanto o português). Talvez os estudiosos considerem vihuelas
como “instrumentos diferentes das violas” não só pelo nome, mas também por terem tido 6 ordens
de cordas, como os alaúdes árabes: isso pode acontecer quando se considerar que violas dedilhadas
portuguesas teriam tido, sempre, apenas cinco ordens... Mas é um equívoco: observamos inclusive
que vários registros portugueses dos séculos XV e XVII não apontam armações de cordas, nem
outros detalhes... E as brasileiras, então, se consolidaram com vários tipos de armações! É certo
também que não podemos olhar o passado baseados nos dados modernos, ou seja, nos que se
consolidaram posteriormente.
Um fato de destaque é que, literalmente, no século XIII (estimado ao ano de 1240), o Libro
de Apolonio, escrito em espanhol, teria registro das seguintes variações: vihuella, vihuela, viuela
e também ... viola! Alguma dúvida, então, sobre a equivalência entre as mais remotas vihuelas e
violas? Afinal, como dissemos, o mais remoto registro do nome viola (para instrumento musical)
viria de textos em latim, depois em occitano e, como já dissemos, tanto o espanhol quanto o
português tiveram grande influência daquelas línguas.
[Anota aí: "occitano" é também chamado langue d'oc, provençal, romance, "língua dos
trovadores": surgiu a partir do vulgare (o latim popular), no verdadeiro "caldeirão" onde os
mambembes trobadores ("inventores") cozinharam juntos diversos dialetos em evolução,
principalmente no auge do Trovadorismo, entre os séculos XII e XIII].
Dois outros registros, não citados em estudos sobre nenhum dos tipos de violas, nos
trouxeram ainda mais luz: um manuscrito escrito em latim, que observamos na Encyclopédie de
La Musique (Lavinag, 1925): nesta publicação francesa, consta que em 1496 um certo Villanueva
teria conhecido um mouro, citado apenas como Fulan (sim, mouros eram tratados como "fulano"
mesmo, este apelido vem disso), que teria sido grande instrumentista em [...] cytharam, violam et
his similia instrumenta (“cithara, viola e instrumentos similares”). E outro registro, também pouco
citado nos estudos, já do século XVI, onde desde o título de seu método o musicólogo italiano
Francesco Milano apontou: Intavolatura de Viola o vero Lauto (que traduzimos como “Tablatura
de Viola ou [na verdade, de fato] Alaúde”). Neste último caso, com um pouco de matemática muito
básica, conclui-se: se para o italiano Milano a viola (dedilhada) era como o alaúde e se para os
espanhóis vihuela e viola eram nomes equivalentes (além de similares aos alaúdes em número de
cordas e afinação), então... O fato é que as muitas evidências apontam que viola e vihuela teriam
sido, no princípio, dois nomes um pouco diferentes para instrumentos iguais, e ambos similares
aos alaúdes: a principal diferença estaria no formato das caixas, pois os instrumentos "europeus"
seriam cinturados e, com o tempo, migrariam todos para fundos paralelos, como são hoje.
Ora... (e ainda com um pouco de matemática bem básica), propomos uma grande soma e
cruzamento entre: registros já citados (de Tinctoris, dos portugueses, de Villanueva e Milano),
com outros registros como os dos italianos Giovani Lanfranco (em 1533) e Silvestro Ganasi (em
1542), estes dois últimos os mais remotos em estudos sobre violas de arco. Somar e cruzar ainda
com os diversos métodos de vihuelas dedilhadas publicados no século XVI e, por fim, com o
método El Melopeo y Maestro, publicado por Domenico Cerone já em 1613 (onde ainda
discorreria que vihuelas seriam tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco). A somatória de
todos estes registros nos dá certa segurança de perceber que, entre os séculos XV e XVI, violas ou
vihuelas seriam tocadas das duas formas, tanto por espanhóis, quanto por italianos e portugueses.
E que viria daquela época e localidades a origem da atual bivalência do nome (apontando que, de
todas, as vihuelas espanholas seriam bem mais antigas).
Já o fato desta bivalência (um mesmo nome para dedilhados e friccionados por arco) ter
sobrevivido apenas na língua portuguesa, tem a ver com uma peculiar expressão do nacionalismo
português, que também identificamos por dezenas de registros... Mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando...
Jorginho do Sertão, música de domínio público facilmente encontrada pela internet). Mesmo que
o nome “moda-de-viola” tenha sido usado antes, é indiscutível o aumento de referências
encontradas após os investimentos do empresário paulista: referências que atestamos em centenas
de publicações como os principais jornais da época, por grande parte do Brasil. Estes periódicos
estão disponíveis, para quem quiser conferir, também pela internet, no site da Biblioteca Nacional
Digital [sorte da nossa geração ter tal acervo à disposição, azar de quem inventou e segue
enganando com lendas, mitos e outras mentiras].
Assim, "moda-de-viola" teria se tornado, por sua vez, um novo “genérico popular”
(curiosamente, como eram os dois termos originais), e que ainda é utilizado, após mais de um
século. Infelizmente, é muito utilizado como genérico pela falta de conhecimento de pessoas que
não se preocupam com os usos mais corretos das palavras: chamam tudo de "moda de viola", ou,
pior ainda, de "moda"... O povo gosta de agir assim, claramente por não ter hábito de leitura, de
conferência de informações... a gente até entende. Aliás, por isso sempre trazemos informações
comprováveis: é para que se tenham leituras boas à disposição; se optam por não querer ler, nada
podemos fazer.
O que interessa é que Cornélio teria tornado popular o nome “moda-de-viola”. Não a
técnica de tocar e cantar daquela forma: ele só teria, inteligentemente, “dado nome para a criança”
(afinal, ele foi o "pai" de muita coisa, àquela época...).
Reflexos da dedicação de Pires quanto às modas-de-viola (e o uso deste nome como
genérico) podem ser observados, por exemplo:
- na década de 1950, Maynard Araújo teria afirmado “[...] não há moda sem viola”;
- na década de 1960, segundo Biaggio Baccarin (diretor da Gravadora Chantecler de 1961
a 1973), “[...] no início, nos selos dos discos tinham que constar as palavras ‘moda-de-viola’ senão
não vendia”, segundo declaração que teria sido feita ao Dr. Roberto Corrêa (2011);
- em 1966, Geraldo Vandré teria argumentado sobre a criação da música Disparada (em
parceria com Théo de Barros), que teria sido feita “[...] com a ideologia da moda-de-viola”,
segundo matéria da revista O Cruzeiro, de 12 de novembro daquele ano.
Como se vê, é possível “contar histórias sem ferir a História”, bem diferente do que o
próprio Cornélio chamou de “causos e mentiras”; e são histórias interessantes também. O que
talvez admire é que ninguém tenha percebido isso antes, mas nós entendemos que a diferença
esteja na metodologia científica que desenvolvemos... Já por “metodologia” ser um nome técnico
e “chato”, o fantasiamos como A Chave do Baú (onde pesquisar então seria uma "caça aos
tesouros”, com os quais enchemos o tal "baú"); mas veja que bacana: nem estas fantasias são de
todo mentiras: realmente, para quem mergulha no assunto, a metodologia pode se tornar uma
“chave” para abrir vários “baús”; e as leituras realmente podem revelar “tesouros” como este que
descrevemos neste Brevis Articulus, e vários outros. Já no livro (e mais ainda, na nossa monografia
Linha do Tempo da Viola no Brasil, só que nesta em linguagem acadêmica), estes resumos são
bem mais detalhados: convidamos a conferirem tudo, mas aí são várias outras prosas...
Então, muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
Entre os mais citados, o mineiro José Dias Nunes “Tião Carreiro” (1934-1993) é o mais
conhecido no meio do caipirismo. Segundo o site oficial teria criado, em 1959, o ritmo "pagode
de viola": a alcunha teria sido sugerida por Teddy Vieira, diretor da gravadora, e com apoio
estrutural de empresa, difundiu-se bastante a partir da década de 1970. Não por coincidência, um
"novo ritmo ao violão" tinha sido lançado um ano antes (1958), por João Gilberto, e a Bossa-Nova
já fazia sucesso, quando teria "surgido a ideia" de criar também um "novo ritmo na viola". Fatos
como estes não vimos ninguém apontar, mas a nós não escaparam. No livro A Chave do Baú
apontamos ainda, e também de acordo com centenas de dados levantados, que após a gravadora
começar a utilizar em discos de Tião o nome “viola caipira” (em 1976, LP “É disso que o povo
Gosta...”) cresceram substancialmente as citações, pelo Brasil, e ele acabou por se consolidar
como o modelo mais famoso da Família das Violas Brasileiras. Ainda apontamos, cientificamente,
que embora o caipirismo tenha sido inventado no início do século XX (com a lucrativa sugestão
de que “sempre teria existido”), o “pagode de viola” e o nome “viola caipira” são modernidades
consolidadas bem depois, ligadas também a lucrativas ações comerciais: não há, portanto, nada de
“tradição” em nada disso, embora muitos assim o defendam (ou será que defendem "os lucros em
se defender tradições"?). A questão é que, para se dizer algo sobre o passado, com honestidade, é
preciso ler e refletir sobre fontes de época, e não usar apontamentos modernos, ou seja, inventados
posteriormente aos fatos passados. É preciso estar atento aos dados e a tudo mais, principalmente
a artimanhas comerciais (pois estas costumam ser as maiores motivadoras de muitas ações).
Já Renato Andrade (1932-2005), contemporâneo e conterrâneo de Tião, não cantava, só
solava (a chamada “música instrumental”). Bem menos lembrado pelos defensores do caipirismo,
mas muito referenciado pelos que são capazes de avaliar Música via Conhecimento teórico musical
(e não por gosto pessoal), "Seu Renato" deixou a impressão que poderia tocar o que quisesse na
viola (no caso, chegamos a vê-lo tocando ao vivo, além dos seus vídeos da internet). Com auxílio
do Itamaraty, ele teria viajado por cerca de 36 países estrangeiros, apresentando-se em salas de
concerto e mostrando toques de viola em vários de nossos ritmos, além de peças eruditas
conhecidas mundialmente. Não me lembro de tê-lo visto tocando exatamente algum "pagode de
viola", mas penso que se quisesse, tocaria com grande maestria, como tudo o mais que fazia na
viola. Ele também pesquisava e às vezes até aprimorava ritmos e toques antigos pouco conhecidos,
colaborando com seus registros para que não fossem totalmente perdidos, esquecidos na História
e/ou pelos lucros do mercado caipirista... (ok, ok: já repetimos "lucro" demais, maneiremos...).
Por fim, e mais ou menos na mesma época de atuação, há um que destacamos como um
“oásis da aceitação geral”, por ser respeitado e referenciado por público e crítica: o paulista
também genial, chamado Domingos Miguel dos Campos “Bambico” (1944-1982). Especialista em
gravações em estúdio, tocava sozinho (instrumentais), tocava e cantava em dupla e também parece
que conseguiria tocar o que quisesse na viola. No caso, só é um pouco mais difícil avaliar
tecnicamente porque não são conhecidos muitos registros de Bambico em estilos diferentes. Sua
peça mais conhecida, o "Brincando com a Viola", até teria muito a ver com chorinhos, no nosso
entendimento... Porém, seus registros de atuação junto aos que praticavam o caipirismo aponta
ligação mais constante de seu nome e de suas qualidades musicais ao estilo. Em outras palavras: é
mais conhecido pelas músicas "que o caipirismo mais precisa divulgar" (e não citei "lucro" agora,
percebeu? Ops...).
Quem foi o melhor? Pedimos desculpas, mas não vemos importância alguma em fazer tal
eleição. Entre outros aspectos das genialidades dos três, um é importantíssimo para a música de
viola de hoje; outro é importantíssimo pela difusão para a viola dentro e, mais ainda, fora do país;
e o outro é importantíssimo, entre outras coisas, para a boa qualidade de gravações deixadas para
a posteridade (além de, em visão particular nossa, ser muito importante pela versatilidade).
Isto sem contar Almir, Tavinho, Gedeão, Goiano, Ivan, Roberto... E vários outros valores
que vem surgindo com altíssimo nível (citar nomes é um problema, pois qualquer lista acaba por
ser injusta, incompleta). Todos são orgulhos para as violas e para o Brasil: na verdade, cada
executante e defensor da viola tem alguma contribuição válida, acrescenta um pouco. Por isso,
inclusive, cobramos muita responsabilidade de todos os envolvidos (cobramos com proposital
chatice, provocações, etc.). Que possam pensar além de só ganhar dinheiro: é lícito lucrar, não há
problema, mas que sejam honestos e corretos com a História das violas, que também ajudam a
contar a verdadeira História do Brasil. Ser honesto, aliás, nem deveria ser "opção" e sim escolha
natural e primordial, por todos.
Que bom que temos os registros e repertórios de Tião, Renato e Bambico (e tantos outros)
para podermos apreciar como ouvintes, para estudarmos e nos aprimorarmos como tocadores, para
termos histórias diferentes para contar (e para estudá-las também). Só poderíamos gostar mais se
os três estivessem vivos hoje para tentarmos montar um show com eles juntos no palco, tocando,
cantando, deliciando a todos (mas aí já é mais a parte de produtor/gestor falando...).
Para não ficar “em cima do muro”, tentaremos responder: seria possível uma competição
mais precisa, mais correta? Tecnicamente, se déssemos aos tocadores um período igual de tempo
para estudar uma determinada peça (que fosse, evidentemente, mais difícil de executar), para que
depois a apresentassem ao vivo, um após o outro, nas mesmas condições técnicas de apresentação
(mesmo palco, som, etc.), talvez pudéssemos avaliar qual deles cometeria menos erros e/ou qual
apresentaria performance mais vistosa ou criativa. Para avaliar, entretanto, seria preciso ter
conhecimento teórico musical, e não apenas “achâncias”, “gostâncias”, defesas de interesses
comerciais e outras motivações.
Também para não ficar “em cima do muro”: que critérios poderiam ser utilizados para
escolher entre Tião, Renato e Bambico, já que os três já “viajaram fora do combinado”?
Poderíamos aplicar o critério de versatilidade, de diversidade, pois estas são das principais
características da cultura brasileira. Neste aspecto, apontaríamos ligeira preferência por Bambico,
por parecer que tocava e cantava relativamente bem, tanto ao vivo quanto em estúdio. No caso,
aplicando nosso conhecimento e experiência também em gravações, um "mundo" no qual podemos
afirmar que, técnica e financeiramente, faz diferença ser especializado. Se Bambico era muito
chamado para gravações (como dizem teriam sido também Julião, Goiano e outros), significaria
uma expertise a mais, um talento extra que, num critério de seleção por diversidade de saberes e
fazeres, faria diferença. O assunto, inclusive, dá outras prosas: mas aí são outras...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
6. Violas Pretas:
antes do Samba, das Modinhas e do Choro
(Será que “deu um branco” na História?)
ainda não eram citados "lundu", "batuque" ou "festejo" (nos significados que ganharam
posteriormente), mas que, pelas descrições, é possível identificar similaridades com danças dos
pretos, relatadas desde os primeiros séculos, tanto aqui quanto em Portugal.
Já desde o início do século XIX, "lundu" e "batuque" aparecem em várias descrições de
exploradores estrangeiros, por várias partes do Brasil. Os instrumentos musicais mais citados
seriam as chamadas "violas": teriam sido, na verdade, pequenas guitarras, chamadas em português
de "descantes", "machinhos", "machetes", “bandurras”, "guitarrilhas" (nomes inclusive citados
desde os poemas de Gregório de Mattos). Além, naturalmente, de existirem outros instrumentos,
bem menos citados, como os de percussão, característicos da musicalidade africana: deste prisma
(e não de registros) se observa ter surgido outro equívoco muito observado nos dias de hoje, que é
o de se entender que "batuque" se referia a tambores e similares, certamente pela fama alcançada
pelo surgimento e ascensão do samba. Nosso batuque, entretanto, não era de tambores (ver ao final
o quadro-resumo que organizamos, sobre o século XIX).
Analisando significativo número de registros (isso, se não forem "todos"), "batuque", na
verdade, teria sido o nome de reuniões onde se praticavam diversas atividades de recreação,
principalmente relacionadas à música, como tocar, cantar e dançar. Em destaque por narradores
que teriam visto as coisas como de fato eram no século XIX, nas reuniões haveria danças com
movimentos sensuais, em ritmos de influência africana, tocados sob direção de "violas" e
acompanhados, às vezes, também por algumas percussões, além de palmas, estalos de línguas, etc.
Exemplos e descrições da musicalidade inata dos pretos e dos tipos de instrumentos e recursos
utilizados destacamos inclusive em outro Brevis Articulus, a partir de narrativa do pintor francês
Jean Baptiste Debret (1768-1848), às páginas 128 e 129 do segundo volume do livro Voyage
Pittoresque et Historique au Brésil ("Viagem pitoresca e histórica ao Brasil"). Confira.
Analisando a somatória de um número expressivo de narrativas (e nunca de apenas
algumas), os mais citados instrumentos-base seriam as pequenas violas. Observamos alguns
pesquisadores que apontam que “lundu” teria sido uma dança com violas e que “batuque” seria
dançado apenas por uma pessoa, ao som de kalimbas (ou marimbas), certamente baseados apenas
em ilustrações e citações dos cientistas bávaros Spix & Martius (3 volumes do livro Reise in
Brasilien 1817 a 1820) e do desenhista e pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858), em
seu livro Malerisch Reise in Brasilien. Rugendas, que como Spix & Martius presenciou algumas
variações pontuais da manifestação, inclusive citou mandolines (bandolins, em alemão), muito
provavelmente a referência mais próxima que teria das pequenas "violas" vistas. Além disso, teria
afirmado bem claramente, à página 25 da edição de 1835 do citado livro: [...] Der gewôhnlichste
Tanz der Neger ist die Batuca (“A dança mais comum dos negros é o Batuca [batuque]”). Por
distrações em dados históricos, ou visões incompletas que surgem quando se analisam poucos
registros, é que perseguimos o maior número possível deles (como se vê no quadro ao final,
conseguimos elencar e traduzir cerca de 30 fontes, só no século XIX). E só assim podem ser
encontrados verdadeiros “tesouros”, perdidos até por pesquisadores muito mais experientes que
nós.
Tanto a reunião, quanto o ritmo quanto a dança eram mais chamados de "batuque", e
algumas vezes aconteceria também de o nome “lundu” ser entendido como alguns dos significados
(reunião, dança e/ou ritmo). O fato é muito similar ao que ainda acontece atualmente com o nome
"pagode", no Brasil: a equivalência inclusive ainda resiste, bravamente, em algumas poucas
regiões interioranas da Bahia e de Minas Gerais, como na região onde Tião Carreiro passou a
infância, onde "pagode" (e, às vezes, também "batuque") ainda é nome de uma reunião para cantar,
tocar (viola) e dançar. "Pagode" também é hoje nome de um ritmo de viola (sugerido pela
gravadora de Tião Carreiro) e de “sambas populares”, de onde se ouve “vou tocar ou dançar um
pagode”. Reunião, ritmo e dança: qualquer dos três é às vezes chamado de “pagode”; é o que se
entende também das dezenas de narrativas de quem viu e relatou os “batuques”, no início do século
XIX no Brasil.
Já como nome de ritmo, "lundu" foi mais citado que "modinha" em livros de Domingos
Barbosa (ca.1740-1800), mas apenas no segundo volume, póstumo: o Viola de Lereno publicado
em 1826. O primeiro volume é de 1978, porém, segundo os subtítulos, seriam ambos livros de
"cantigas" (não seriam livros de modinhas, nem de lundus). Alguns autores apontam que, seja em
Portugal ou Brasil, as modinhas teriam sido tocadas em violões, instrumentos que alcançariam
inegável hegemonia, mas que só se consolidariam a partir da década de 1820 (bem depois de
Domingos Caldas ter morrido, por exemplo), segundo levantamentos de vários tipos de estudos e
dados que cruzamos em nossas pesquisas. E sim: apontam que teriam sido tocadas em violões,
apesar do nome do livro de Caldas ser VIOLA (de Lereno). Acrescentamos que entre os relatos
do início do século XIX, no Brasil, há descrições de canções dolentes tocadas à viola, que seriam
melhor ditas as tais “cantigas”, normalmente executadas antes (ou como “introdução”) dos
"folguedos", "batuques" ou "lundus").
Estudiosos também indicam (corretamente) a origem do samba a partir dos batuques e
lundus; porém, às vezes, citam equivocadamente que teriam sido tocados com cavaquinho,
instrumento cujo apontamento mais remoto (e único, por décadas) seria de 1822, em Lisboa, pelo
italiano Adrien Balbi (1782-1848). Aquele criativo estrangeiro em terras lusitanas nunca teria
vindo à Colônia e possivelmente nem saberia a diferença entre uma machete e um cavaquinho, à
época (até porque cavaquinhos mais parecem nem terem existido ainda, não se encontrando outros
registros, como dissemos, até cerca de duas décadas depois da citação de Balbi). "Dar um cavaco
(ou cavaquinho)" significaria "dar opinião em assunto alheio sem ser convidado", segundo jornais
lidos tanto lá quanto cá, e é o que (brincando) gostamos de dizer que Balbi teria feito: deu um
"pitaco" sobre o que não entendia. Só que portugueses gostaram, pois "cavaquinho" agrada mais
que "machinho/machete" (que então era nome de instrumento ligado a pretos brasileiros); assim
como até o século XIX o nome "guitarra" não agradava aos portugueses, pois era nome de
instrumento espanhol... Entendeu como funciona? É o nacionalismo expresso por determinados
nomes de instrumentos (os que mais agradam). Foi assim que emergiram, e até hoje sobrevivem,
"cavaquinhos" por lá, que acabaram vindo também pra cá.
Equívocos e falta de apontamento de dados como estes são compreensíveis, vez que
estudos sobre as violas brasileiras antes dos nossos eram ainda pouco aprofundados, a maioria
apenas sobre o modelo Viola Caipira (modelo que, óbvia e comprovadamente, ainda não existia e
muito menos teria sido o utilizado pelos escravizados nos primórdios do Brasil): na verdade, eram
cordofones chamados "violas", “machetes” ou “machinhos” os mais tocados por pretos, em
execuções das verdadeiras raízes da música “popular” brasileira. E não apenas no meio rural: nas
ruas e Igrejas também dos maiores centros, inclusive na capital do Império (Rio de Janeiro).
Aqueles toques de viola precederam tanto o SAMBA, quando o CHORO, quanto as MODINHAS.
Será que a cor da pele daqueles tocadores, cantores e dançarinos tem alguma coisa a ver
com o fato de hoje isto quase não ser divulgado e reconhecido?
No início do século XIX, ultrajantes anúncios em jornais (de venda e de fugas de
escravizados, tratando-os como se fossem animais domésticos), fornecem dezenas de registros de
"tocadores de viola" ou "tocadores de machetes". Há registros também como "tocadores de viola"
de pretos forros, chamados "barbeiros", que prestavam pequenos serviços como corte de cabelo,
aplicação de emplastos para doenças, extração de dentes, etc. Aqueles "barbeiros" tocariam à porta
(e/ou “à margem”) de eventos festivos, fantasiados como podiam e com os instrumentos que
conseguiam, músicas instrumentais que teriam sido muito mal executadas, segundo narrativas de
época: daí alguns estudiosos apontarem, equivocadamente, que poderiam ter sido os precursores
do carnaval, não da música popular brasileira (que foi o caso de Márcia Taborda, pesquisadora
carioca que escreveu uma boa tese sobre a História dos violões, na qual incluiu dados sobre violas,
antecessoras dos violões).
Entretanto, teria fugido (talvez do tom de pele dos estudiosos?) que há vários registros
também de barbeiros e outros pretos e pardos que teriam tocado em eventos religiosos, dentro e
fora das igrejas, inclusive nas Folias do Divino (estas apontadas corretamente por estudiosos como
precursoras dos desfiles de rua). Músicas condizentes ao serviço litúrgico, ou apenas para
recreação, também eram tocadas pelos pretos, com formações instrumentais reduzidas e nada
barulhentas, nas quais teriam sido protagonistas instrumentos chamados de “violas”... Entendeu
ou precisa que desenhe?
Outra evidência importante são tocadores que são expoentes históricos: Gregório de
Mattos, o “Boca do Inferno” (muito citado como o mais importante poeta do século XVII) e seu
irmão Euzébio de Matos, também poeta e cantador, mas religioso dedicado; Domingos Caldas
Barbosa, já citado, que fez grande sucesso em Portugal na metade final do século XVIII; Joaquim
Manoel Gago da Câmara, que também fez sucesso em Portugal, já no início do século XIX; e o
Padre José Maurício Nunes Garcia, grande músico, compositor, arranjador e regente, que chegou
a Mestre de Capella do Império, também no início do século XIX.
Todos pretos, todos tocadores de viola: o que indica que, matematicamente (ou
“estatisticamente”), se havia tantos expoentes e tantas violas sendo tocadas, teria havido grande
atividade daquele tipo manifestação: exatamente o que apontam os registros sobre danças, festejos,
batuques ou lundus, de longe a maior manifestação musical dos primeiros séculos. Aqueles
expoentes merecem muito mais homenagens, ou, pelo menos, mais citações e reconhecimentos...
Mas aí são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
"[...] Basta assinalar que em certas porções do grande território devassado pelas bandeiras e entradas
– já denominado significativamente Paulistânia – as características iniciais do vicentino se desdobram
numa variedade subcultural do tronco português, que se pode chamar de 'cultura caipira'"
Haveria de fato diferença entre “interioranos” e pessoas “da cidade”? Haveria algum
preconceito, contra o qual Pires se arvorou tanto a defender? Muito provavelmente sim, tanto
naquela época quanto até hoje; entretanto... a “pegadinha histórica” é que isto não teria evidência
de ter existido exatamente como Cornélio interpretou. Repetimos: a visão interpretativa é genial e
acabou por originar o atual “entendimento coletivo” da existência de uma “cultura ancestral que
precisaria ser defendida": assim, não apenas os que sofrem preconceito, mas vários outros
membros da sociedade se sentem incentivados a também defender a suposta “cultura”, pois (sem
dúvida) toda luta contra preconceitos é nobre, louvável, digna. Além disso, também proporciona,
a quem “adere à luta”, se sentir importante e mais próximo de seus pares: neste ponto é uma
questão de ego, inerente a todo ser humano. Somam-se aos nobres e altruístas outros “simpáticos
à causa” que a defendem também (e fortemente) pelo mercado de consumo relacionado. Conforme
já dissemos, tudo isso é totalmente permitido pelas leis brasileiras, não importando muito se teria
ou não base histórico-científica.
Outra “pegadinha histórica” é que o termo “caipira” (termo forte, que o inteligente e
perspicaz Cornélio Pires escolheu como “marca”), na verdade já existia desde cerca de 100 anos
antes (localizamos registros a partir de 1822) e nunca teria sido utilizado da forma que Pires
interpretou, e sim com outros significados. As primeiras décadas apontam “caipira”
principalmente como um apelido político (por exemplo, como hoje são chamados de “tucanos” os
partidários do PSDB). Não se observava antes, quanto a “caipira”, preconceito ou pejorativismo,
inclusive as pessoas se auto-indicavam pelo apelido (como em divulgações atuais do citado
partido, o pássaro tucano costuma ser representado). Mais ainda: um barco de origem nordestina,
com o nome de Sumaca Caipira, por exemplo, tem vastos registros de viagens comerciais entre
várias regiões do Brasil entre 1824 e 1836... Sabia? Por acaso parece um tipo de atividade que
envolveria pessoas perseguidas, que sofriam preconceito? E analisando comercialmente: acha que
alguém manteria em um barco um nome cujos potenciais contratantes pudessem ter rejeição,
preconceito, perseguição? Por outra lado, e se fosse um nome que significasse apoio político
contrário à maioria dos ex-colonizadores? Naturalmente, pode ter sido apenas um nome que o
dono gostava (não descobrimos porquê o utilizava); mas, com certeza, não atrapalhava seus
negócios.
Uma divisão social onde realmente haveria preconceito só faz mais sentido a partir da
consolidação das fases da Revolução Industrial: um grande evento histórico que deu origem ao
atual capitalismo, em especial a criação e venda de produtos em série, de comércio livre. Há
registros a partir da década de 1850, por exemplo, de pessoas chamadas de “caipiras” por serem
proletários (“trabalhadores simples, de base”), mas que não teriam sido apenas os ligados à
atividade rural, muito menos apenas os de pequenas propriedades, mas também estrangeiros e
pretos escravizados e/ou forros. E não somente em São Paulo, mas por várias regiões brasileiras...
Portanto, se era uma possível “cultura”, teria sido uma cultura de proletários brasileiros em geral,
não apenas rurais. Entretanto, Cornélio e estudiosos que vieram depois fazem questão de indicar,
seletivamente, apenas o recorte do preconceito, que realmente teria acontecido contra rurais
paulistas (mas não apenas).
Outra ideia genial é alegar que o termo “caipira” teria sido originário do tronco linguístico
tupi-guarani. Esta alegação muito apontada sugere ligação histórica desde os primórdios indígenas
brasileiros: o tipo de insinuação foi apresentado por Pires, por exemplo, em seu livro Conversas
ao Pé do Fogo, onde muito inteligentemente introduziu com a frase “[...] nada tenho deduzido
com certeza”, mas logo em seguida o autor apresentou termos que segundo ele “[...] encontramos
no tupy-guarany”. Não conseguimos encontrar aqueles termos, das formas e significados como
foram colocados, nem em dezenas de publicações feitas até a época (ou seja, que poderiam ter sido
consultadas por Pires), nem em dicionários sérios de tupi-guarani até os dias atuais... até podemos
apresentar o estudo sobre aqueles "chutes" de significados, mas são outras prosas...
São várias as inconsistências históricas e todas elas poderiam (e deveriam) ter sido
apresentadas por historiadores e outros pesquisadores desde a época de Pires, porém... As obras
dele não eram científicas, lembra? Não há nada de errado dele ter feito interpretações pessoais via
ações artísticas. E se estava a vender bem, “que mal tem”, não é o que dizem?
Cornélio contava com colaborações conceituais e também práticas de seu primo Amadeu
Amaral, este considerado por muitos um grande estudioso, e que chegou a publicar um Dialeto
Caipira baseado em pesquisas literárias e também de campo que teria feito em uma pequena região
do interior paulista. O mais curioso, entretanto, é que Amadeu Amaral não apontou origens seguras
do principal termo de seu trabalho (o termo “caipira”), nem os significados já existentes pelo
menos desde 1822 (conforme levantamos). Amadeu Amaral também não teria descoberto ou não
quis apontar, por exemplo, recolhas de época, feitas junto a indígenas (!), pelos padres José de
Anchieta e João Daniel, e de estudiosos estrangeiros como Saint-Hilaire e Carl Martius.
O caso de Amadeu Amaral é um pouco mais sério, por serem trabalhos considerados
“científicos” (porém, “científicos” à maneira dele, e naquela época). Todo ser humano (inclusive
estudiosos) pode às vezes se enganar, mas as colocações de Amaral e Pires já datam de mais de
100 anos: muito mais curioso (e sério) é que centenas de estudos posteriores não tenham sequer
questionado tantas inconsistências gravíssimas. Por outro lado, como já apontamos, as histórias
são agradáveis, convenientes, fazem sentido, defendem “inclusão social” e... vendem bem até hoje.
Então...
Já o que aponta colaborar muito para que aquelas histórias sejam consideradas como se
fossem “verdades científicas” (o que nunca foram) é o apoio de estudiosos importantes, a partir da
década de 1960, onde se destaca o sociólogo (carioca, que às vezes se dizia ser de Minas Gerais),
Dr. Antônio Cândido. Este, em seu livro Os Parceiros do Rio Bonito, de 1964, citou as
interpretações artísticas de uma suposta “cultura caipira” de Pires como se fosse realidade
científica, e de notório conhecimento. E ainda mais: acrescentou que seria aplicável a toda uma
grande região chamada “paulistânia”, outro conceito apenas citado por Cândido, sem apresentação
de comprovações e desenvolvimentos científicos. Neste último caso, a princípio, Candido não
citou sequer o nome do autor em que teria se baseado para sugerir ligação da “paulistânia” a uma
suposta “região caipira”, um autor que só após algumas décadas Candido teria assumido
publicamente: o eugenista paulista Alfredo Ellis Jr., um professor de Candido cujas ações e
posicionamentos políticos eram similares a entendimentos de supremacia de classes (o eugenismo)
depois também utilizados por Hitler. A luz destas informações, não divulgadas por caipiristas,
entende-se porque Cândido não deu o devido crédito do autor, mesmo em um trabalho com
fundamento científico, onde dar créditos é mais do que desejável: costuma ser obrigatório, em
pesquisas sérias... Ainda hoje relutamos (por puro nojo) até em citar certos nomes e teorias, mas
os citamos pela ética (sempre apontar fontes): a diferença é que se fosse para usá-los como
argumento de um desenvolvimento, não usaríamos certas fontes nem para ganhar muito dinheiro.
Já Candido foi corajoso (e ardiloso, por não citar literalmente o nome do autor, só o conceito) e
deu "certo", pois centenas de estudiosos acabariam por não questionar suas fontes e seguem
segundando aquela conveniente colocação: só se observam elogios eloquentes e até ampliações
sobre o que apontou Candido!
O bandeirantismo foi realmente um fato histórico relacionado a uma grande área... Mas,
para defender que uma possível “cultura específica, única” teria surgido em toda aquele extenso
território, o mínimo que um estudioso sério precisaria fazer seriam pesquisas de campo por toda a
área alegada: coletar, apresentar e contextualizar dados. Para alegar que teria sido diferente do
resto do Brasil, a pesquisa de campo teria que ter sido feita por todo o país, também apontando e
contextualizando as diferenças, por grande número de dados coletados. Candido não teria feito
nada disso: apontou pesquisas que fez apenas em algumas poucas localidades (chegou a confessar
no livro que não teria visitado nem próximo do suficiente), e na verdade nem perto esteve de uma
verdadeira atestação científica, num único trabalho que teria feito sobre o tema. Ellis Jr. também
não teria feito pesquisas de campo, só teria selecionado literaturas onde bandeirantes teriam sido
citados como heróis. E não se sabe, até hoje, de estudiosos e fiéis que teriam feito pesquisas
comparando todo o Brasil para comprovar a real existência de alguma “cultura diferente,
específica”, oriunda dos bandeirantes devassadores, que teria sido multiplicada por tão vasta região
(e são muitos os fiéis que secundam, defendem e até acrescentam teorias ao entendimento
coletivo). Normalmente, o fazem via estudos teóricos, sem apontamento de registros de época
anteriores a Pires (e quase todos a partir do que Candido apontou por poucas frases).
É fato que há várias pessoas, em várias regiões do Brasil, que se autoproclamam “caipiras”
já há algumas décadas. Então... "a voz do povo é a voz de Deus?" E também é fato que para “ser
caipira” hoje basta querer e defender a causa (ou não se declarar contra, publicamente). É, portanto,
bastante similar ao que acontece em partidos políticos, seitas religiosas e torcidas de times de
futebol: basta querer e dizer que crê. Por todo o país há de fato interioranos, além de descendentes
destes, e também pessoas que passam a viver no interior, ou simplesmente são simpáticos a causa:
alguns, urbaníssimos, mas que se declaram ter “alma caipira”. Repetimos: mesmo que Cornélio
Pires nem imaginasse tamanha repercussão pelos tempos, a ideia dele foi genial, pois tudo foi e
continua sendo "dentro da lei".
A alegação de alargamento territorial do conceito, sugerida por Cândido, também é muito
bem inventada, concordam? Conveniente, agradável a centenas de corações “saudosos da roça”
e/ou simpáticos à causa (principalmente paulistas e paulistanos), ou ainda a vários outros
estudiosos, que se ancoram na importância acadêmica do nome do Dr. Cândido e de outros que
vieram acumulando-se com o passar dos anos... Sem contar, naturalmente, que foi historinha ainda
melhor para ajudar a “vender” muitas coisas até hoje em dia; ou, no caso do Dr. Candido, a
conseguir votos para sua campanha a Deputado Estadual, que aconteceu na época da publicação
de seus estudos. A respeito, conseguimos levantar denúncias de sociólogos e críticos literários
pouquíssimo citados pelos caipiristas, como Max Luiz Gimenes (2018) e William Santana Santos
& Luiz Carlos Jackson & Luiza Moreira (2019).
Entendemos que o caipirismo não seria exatamente fake news, como se conceitua hoje, pois
foi proposto originalmente em textos artísticos, sem nenhuma intenção de ser verdade histórica e
científica; portanto, “acredita quem quiser” (e é bom lembrar, vivemos num país também com
“Liberdade de Credo/Culto”). Também pode, quem quiser, replicar e ampliar teses e invenções em
novos estudos e até em textos livres (pela chamada “Liberdade de Expressão”).
Por outro lado, o simples fato ser apontado em estudos considerados “científicos” não
comprova o caipirismo, ainda mais por citações curtas: não há registros de época anteriores ao
início do século XX, além de alguns agravantes, como a existência de vários contextos históricos
que descomprovam. Além disso, o agravante maior, que é o “entendimento coletivo” ser bastante
conveniente e rentável, podendo, provavelmente por isso, praticamente não ter sido sequer
contestado, apesar das tantas inconsistências. A renda (ou seja, o comércio que ajuda a sustentar
famílias), ainda hoje é mais valorizado que verdades históricas, comprováveis. Tudo "serto",
então? (nessa, fazemos homenagem ao "sertão").
É importantíssimo lembrar que a Sociologia é uma ciência séria e, como todas, permite (e
até incentiva) a criação de teorias; destas teorias, entretanto, espera-se que sempre sejam
embasadas com o maior número possível de dados comprováveis. Quem se arvora a apoiar
qualquer teoria também deve sempre se armar (e até aumentar) o número de dados e de
desenvolvimentos comprobatórios, o que não aconteceu com a conveniente teoria apresentada pelo
grande estudioso, mas ainda assim um ser humano, Antônio Cândido (nem pela centena de outros
seres humanos que o secundam até os dias atuais).
Observe que vários fatos “desagradáveis” que apresentamos aqui não são divulgados,
apesar da relativa fama que o caipirismo alcançou inclusive até entre acadêmicos: é por isso o
tratamos como “entendimento coletivo”, pois não é uma realidade cientificamente comprovada;
ao contrário, dados históricos a descomprovam. É só uma versão que agrada a muitos.
Após duzentos anos de uso do termo “caipira” no Brasil e em Portugal, nos colocamos a
reinvestigá-lo por sua utilização no modelo que se tornou o mais famoso da Família das Violas
Brasileiras, família também pouco ou quase nada aprofundada em estudos anteriores porque o
modelo Viola Caipira acompanha, pelo nome, o citado “entendimento coletivo” e seus atrativos.
O modelo tornou-se com o tempo o mais rentável comercialmente e os demais modelos foram
sendo deixados de lado, a começar por estudiosos. Um dos principais fatores é que entre os
seguidores de Antônio Candido e Cornélio Pires estão os doutores Ivan Vilela e Roberto Corrêa,
dois dos maiores formadores de opinião do meio da viola (por seus inegáveis méritos e talentos),
e ambos apresentaram seus doutoramentos centrados no caipirismo e no modelo Viola Caipira.
O atrativo comercial implantado por Cornélio Pires, somado a um falso “aval científico”
de vários estudiosos importantes, a partir da década de 1960, chamou a atenção também de
empresas que resolveram investir na expansão do mercado “caipira” para uma versão atrelada ao
termo “sertanejo” que romperia preconceitos, pelo uso de novas roupagens: a “música sertaneja”,
estilo hoje chamado “sertanejo universitário”. Poderia alguém alegar, principalmente em textos
livres, a existência de uma “cultura sertaneja”? Sim: em obras artísticas, praticamente tudo pode...
E em várias matérias de jornal até hoje em dia se observam apontamentos similares. De certa
forma, por exemplo, a mesma liberdade teria sido o que inspirou, entre vários outros, o carioca
Euclides da Cunha e o mineiro João Guimarães Rosa, e os seus diferentes “sertões”, citados em
seus livros.
Supostas culturas alavancadas pelo mercado de produtos artísticos (como a cultura
“caipira” e sua cópia expansiva, a “sertaneja”), entretanto, só podem ser entendidas como “culturas
de mercado”, não como verdadeiras culturas ancestrais. E assim, mais uma vez apontamos a
genialidade de Pires, que implantou uma "cultura de mercado" mais de 50 anos da prática se tornar
"moda", a partir principalmente dos estadunidenses.
Outra curiosa “pegadinha histórica”, entre tantas incoerências que atestamos, surgiu ao
compararmos a História dos cordofones e a História ocidental desde o século II aC.: atestamos
diversas vezes que nomes e características de instrumentos populares mudam quando há comoções
sociais significativas... Mas o nome Viola Caipira não “caiu no gosto popular” desde 1901 (mais
remoto registro que observamos), sendo que nem o próprio Cornélio Pires, nem a maciça maioria
dos brasileiros o utilizava: a consolidação do nome do modelo só viria a acontecer a partir de
meados da década de 1970, também por motivações comerciais, após surgir em discos de Tião
Carreiro e em contexto histórico-social de concorrência com o citado estilo “sertanejo”, em
ascensão justo naquela década... Não sabia disso também, né? Mas aí são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
É sempre bom lembrar que em outras regiões europeias, desde o século XVII a tendência
geral é de separar, por nomes distintos, as maneiras de tocar os instrumentos: para os dedilhados,
o mais observado são variações da nomenclatura GUITARRA (que teve clara primazia e
“investimento” dos espanhóis); e, para os friccionados por arco, nomes similares à VIOLA (teve
primazia e investimento dos italianos, na hoje chamada “família dos violinos”).
A consolidação atual destas nomenclaturas e suas correspondentes características
organológicas passaram por fases de transição que teriam durado longos períodos, em
comportamentos atestáveis que inclusive constatamos ser um padrão histórico dos cordofones.
No livro e em outros trabalhos listamos cerca de quinze evidências baseadas em registros
observados entre os séculos XV e XIX e em apontamentos de vários autores importantes: estes,
principalmente portugueses, brasileiros e espanhóis, mas também fizemos paralelos com fontes de
outras nacionalidades / línguas / culturas. Vários pesquisadores apontam ter chegado a conclusões
semelhantes; cada um por sua vez analisando centenas de dados e evidências, às quais, então, agora
somamos este apontamento do pesquisador João Branco.
O principal fator histórico-social se baseia em dissidências dos portugueses, tanto com
espanhóis (com os quais tem vários capítulos como concorrentes, desde o surgimento de Portugal
como reino independente, no século XII) quanto com árabes (mouros invasores da Península por
cerca de 700 anos). Assim explica-se, portanto, que portugueses não quisessem utilizar nomes
ligados àquelas culturas dissidentes em seus instrumentos populares; instrumentos que, conforme
atestamos na História Ocidental desde o século II aC., sempre demonstraram reflexos das
“realidades sociais” (como se referiu Branco), ou dos “contextos histórico-sociais” que
testemunharam, como dizemos hoje em dia. Tudo isso, contextualizamos que seja em
concordância de que "fenômenos circundantes são cruciais a qualquer estudo", como sugeriu o
filósofo grego Platão, cerca de quatro séculos antes de Cristo. Ou seja: o contexto histórico-social
envolvendo portugueses e espanhóis é fenômeno circundante importante no estudo dos cordofones
utilizados, inclusive nos nomes que aqueles povos preferiam.
Mas... Será que não estaríamos a ser prepotentes (arrogantes, megalomaníacos) ao afirmar
que fomos capazes de ver o que centenas de competentes estudiosos não viram?
Bom... em nossa defesa, quanto aos estudiosos de outras culturas não ligadas às línguas
portuguesa e espanhola, a explicação nos parece bem clara: eles simplesmente teriam
desconsiderado a nomenclatura VIOLA para dedilhados, admitindo (e estudando bastante) apenas
as VIOLAS de arco. Quase todos teriam considerado, por exemplo, as violas dedilhadas
portuguesas e brasileiras como “só um tipo diferente de GUITARRA”. Isto, de certa forma, não
seria totalmente errado, em alguns recortes históricos... Mas há o fato que, a partir da consolidação
das guitarras em seis cordas (apelidadas “violões”), nossas violas dedilhadas passaram a se tornar
instrumentos consideravelmente diferentes, principalmente pelo tipo e armação de cordas
(metálicas, em trios e pares), além dos nomes, naturalmente; e assim passaram a se caracterizar
como instrumentos de fato, atestáveis. Pelo menos desde o século XIX pode-se comprovar que as
violas dedilhadas não são mais "guitarras".
Em tempo: o comportamento de estrangeiros e o fato de chamarmos as guitarras de
“violão” já são, em si, evidências de que o uso do nome “viola” para dedilhados é hoje específico
da língua portuguesa e refletiria, portanto, uma ação (ou preferência) de povos que falassem esta
língua. Violas italianas e vihuelas espanholas, também dedilhadas, caíram em desuso a partir do
século XVII, e não teria sido por coincidência, mas pela ascensão da guitarra de cinco ordens, a
chamada "guitarra barroca", antecessora mais famosa dos violões.
Já quanto a estudiosos portugueses e brasileiros (mas não apenas eles), comprovamos, por
grande número de publicações reinvestigadas, que é muito comum acontecerem equívocos de
avaliação histórica dos nomes e características de instrumentos. Ou seja: é mais comum do que se
desejaria os estudiosos confundirem instrumentos que existem em suas épocas com citações de
nomes iguais ou semelhantes, mas relativos a tempos mais remotos, antecessores. Assim,
estudiosos portugueses, no século XX, por atestarem a existência das violas naquela época em que
viviam, apontam terem suposto que elas teriam existido por lá desde “sempre” (ou seja, desde os
mais remotos registros do termo “viola” em línguas antecessoras do português, no século XII).
Entretanto, estudiosos teriam feito esta suposição sem atentarem à falta de registros do nome
“viola” para instrumentos musicais em Portugal até o século XV e na falta de registros sobre
detalhes específicos (diferenciadores) daquelas “violas” pelo menos até o século XVIII. Assim
como estudiosos brasileiros, também no século XX, ao constatarem a existência e predominância
do modelo Viola Caipira, teriam imaginado (ou escolheram indicar?) que este teria sido o mesmo
(e único) modelo de violas dedilhadas desde registros do nome VIOLA feitos a partir do século
XVI, igualmente alijados de descrições e outras atestações. Neste último caso, estudiosos
brasileiros teriam procurado informações em publicações portuguesas e, como a maioria destas
apontariam existência de “instrumentos chamados de viola”, os brasileiros também teriam
sucumbido ao mesmo tipo de equívoco: o de inconsistência de contexto com dados de época. Só
que nós não fazemos o que a maioria fez e faz, entende? Assim, entendemos ser normal chegarmos
a outras conclusões, baseadas em registros e sem considerar teses e teorias.
Não nos baseamos apenas em outros “mapas de tesouro”, de outros estudiosos, mas
principalmente em nossa Metodologia, nossa “chave”, que testamos considerável e
exaustivamente, além de termos colecionado, checado e organizado um banco de dados (fontes e
estudos de época, em suas línguas originais) significantemente maior do que todos os diversos
estudos que pudemos conseguir. Outro diferencial nosso é que, ao contrário da maciça maioria,
avaliamos as possibilidades todas juntas, ou seja, violas dedilhadas e friccionadas, por todas as
variações de nomes que tiveram nas principais línguas ocidentais, desde remotas eras,
contextualizando em uma somatória os aspectos históricos, sociais, linguísticos, literários,
estatísticos e outros. Estes diversos contextos (ou “fenômenos circundantes”) são perfeitamente
aplicáveis à História das violas e demais cordofones, mas não teriam sido considerados de forma
tão profunda e exaustiva antes (pelo menos, não encontramos citações e desenvolvimentos no
mesmo nível de profundidade, além de atestarmos vários equívocos, principalmente em
apontamentos de nomes).
Não é tão impossível, portanto, que por realizarmos estudos mais abrangentes possamos
ver além do que já teria sido publicado, até porque o objetivo de pesquisarmos foi exatamente este:
buscar o que outros poderiam ter deixado passar: detalhes que chamamos figurativamente de
“tesouros perdidos”, com os quais acabamos por “encher um baú”...
Quanto à ação nacionalista (ou patriótica) portuguesa, demonstrada pela preferência de uso
de um nome genérico (para não "dar palco" a nomes de culturas dissidentes), as evidências vão
desde a falta de detalhes nos registros (ou, quando existem, serem características similares às de
outros instrumentos, não apontando, portanto, “violas” como instrumentos diferentes); a
preferência portuguesa por utilizar um nome utilizado por italianos (viola) e não um nome
espanhol (guitarra ou vihuela); chamar de “violas pequenas” ou “violas grandes”, quando os
espanhóis diferenciavam guitarras e vihuelas por nome, tamanho e armações de cordas; e até a
adesão pelo nome guitarra, pouquíssimo utilizado pelos portugueses para dedilhados até o século
XIX, mas então escolhido para um instrumento que se tornaria uma referência cultural portuguesa,
junto com o fado, que é a “guitarra portuguesa”: esta, porém, que é substancialmente diferente das
cinturadas guitarras espanholas e, ao mesmo tempo, claramente inspirada na english guitar (um,
então, conveniente nome, de uma cultura de boas relações com Portugal, à época).
É importante tornar a citar que o restante do território europeu consolidou principalmente
pela nomenclatura GUITARRA (e variações, conforme cada língua) instrumentos de caixa com
cintura e outras características típicas dos instrumentos espanhóis. E apenas a “guitarra”
portuguesa apresenta hoje caixa arredondada, vez que a citada english guitar caiu em desuso após
o surgimento daquele instrumento dos fadistas portugueses... Guitarra Portuguesa que, entretanto,
e curiosamente, veio a se consolidar pela armação em seis ordens, como os violões (porém, em
duplas de cordas metálicas, como as violas dedilhadas). Nada seria por coincidência, mas são
outras prosas a serem contadas por aqui depois...
[Em um raro apontamento do qual não podemos provar (mas que é engraçado de citar),
parece até algum tipo de pilhéria ou “piada interna” dos portugueses, ao finalmente aderirem ao
nome "guitarra"; mais piada ainda, há os que chegam a invocar teorias de continuidade do nome
“guitarra” (da guitarra portuguesa) desde cítara (a partir de cithara, do latim, esta que tem registros
pelo menos desde o século II aC.). O nome cítara para cordofone com braço tem registros em
Portugal (e exatamente como sinônimo de “viola”), pelo menos a partir do século XVIII, segundo
dicionários de Bluteau. Já sobre o nome inglês guitar (e variações) são vários os registros que
apontam histórico de continuidade pelos séculos, naquela e outras línguas chamadas “germânicas”
ou “não latinas”, como cittern e gittern. Quer dizer: os ingleses até poderiam alegar provável
“evolução” de citara até guitar, mas mesmo assim acabaram por aderir ao uso de guitar também
para os cinturados espanhóis. Já os portugueses acharam melhor serem os únicos a chamar de
“guitarra” um arredondado... Consegue ver risadas silenciosas entre os bigodes dos patrícios? Ou
estaremos aqui a “viajar” demais?].
Voltando ao atestável, mais exemplos: em fins do século XV o musicólogo belga Johannes
Tinctoris (ca.1435-1511), no tratado De inventione et uso musicae, em latim teria listado algumas
características de dedilhados com braço, onde apontou procedência italiana para a cetula e
procedência catalã para guitherra ou guitherna. Os apontamentos de Tinctoris não são completos,
inclusive utilizou nomes um pouco diferentes de outros registros... mas pode-se afirmar que a
cetula e a guiterna não seriam cinturadas, e que as procedências apontadas (italiana e espanhola)
são confirmáveis. Já o museólogo alemão Athanasius Kircher (1602-1680), às páginas 476-479 do
livro Musurgia Universalis (de 1650), apontou cythara (“cítara”) como dedilhado com braço de
procedências “[...] Germanae, Gallicae, ItaIicae, Anglicae, Hispanicae, Turcicae, Persicae,
Africanae (“germânica, galega, italiana, anglicana [inglesa], hispanica, turca, persa e africana”).
Aquelas seriam regiões, não os atuais países relacionáveis; mas Kircher separou por desenhos bem
detalhados as “germânicas” (de caixa arredondada) e as “hispânicas” (de caixa cinturada). Ou seja:
dedilhados com braço chamados “cítaras” em Portugal, pela proximidade com a Hyspania, seriam
mais provavelmente cinturados (como indicado depois por Bluteau) e não de caixa arredondada.
Até o controverso historiador e biólogo italiano Fillippo Bonanni (1638-1725), em seu Gabinetto
Armonico (de 1722), neste caso nomes e desenhos não deixam dúvida: chitarra spagnola
(cinturada) e ceteras (arredondadas). Portugueses apontam que citaras citadas em textos em
português “poderiam ter vindo” da italiana cetera e seriam arredondadas, ao invés de aceitar
registros explícitos de citaras como cinturadas, equivalentes à violas dedilhdas. Afinal, só assim
o nome das “guitarras” portuguesas poderia ter vindo das “cítaras” e não das guitarras inglesas...
Entendeu a preferência pela teorização, ao invés de registros? Que aquele “jeitinho português”
ainda prevalece, num nacionalismo expresso pelos nomes?
É natural que os portugas não queiram admitir que copiaram a guitarra inglesa, assim como
copiaram vihuelas e guitarras espanholas por séculos, só mudando nomes e pequenos detalhes;
nem que para isso se tenha que desconsiderar centenas de registros de época: faz parte do
nacionalismo deles. E convenhamos, em usar semântica para mascarar a História eles sempre
foram muito bons, como por exemplo chamar de "descobrimentos" para mascarar o que na verdade
sempre foram invasões...
Registros e contextos apontam que até meados do século XVIII não existiriam violas
dedilhadas “de fato”, apenas “outros instrumentos, chamados de viola” e, particularmente,
entendemos até certa beleza, brio e inteligência na ação que aponta ter surgido natural e
tacitamente (pelos menos, não foram observadas orientações públicas e/ou oficiais, nem outros
tipos de registros neste sentido). É uma espécie de bom exemplo de ação tácita e coletiva de amor
à Pátria, que em alguns pontos talvez possa ser útil a todo o Mundo (o sentimento nobre, não as
interpretações enganosas de dados históricos, naturalmente). Falaremos mais disso, mas aí são
outras prosas.
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
dados de época, é que "etimologistas amadores" escorregam... Por exemplo: viola já seria nome
de uma flor desde pelo menos desde o século VI, segundo citação de Isidoro de Sevilha: a menos
que, artisticamente, se queira interpretar uma flor como algum tipo de "transgressão", viola não
teria nada a ver com violare antes...
Além do próprio termo viola (em latim, occitano, catalão e até em texto em espanhol),
levantamos cerca de duas dezenas de variações surgidas nos séculos XII e XIII, no auge do
Trovadorismo, que é o contexto histórico-social do surgimento de tantos nomes derivados em
línguas diferentes, como: vielle e violle (em francês), fidil ou fidli (em dialetos ancestrais do
inglês), videle, fithele e vigele (em dialetos ancestrais alemães), vihuela (em espanhol).
Não é difícil perceber (até por serem tantas as variações de nomes) que aqueles
instrumentos teriam testemunhado a História ocidental durante os primórdios de várias nações
após a queda de Roma, além de serem, obviamente, os antecessores dos friccionados e (para nós),
também dos dedilhados atuais... E isso é só um resumo óbvio e já relativamente conhecido sobre
a importância das VIOLAS...
O que aparentemente menos se sabe (pois não se vê em outros estudos) é:
Só a partir do século X se pode afirmar que haveria instrumentos tocados por arco em
território europeu: antes, portanto, do já citado século XII, quando surgiram VIOLAS, porém elas
teriam sido tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco em algumas culturas (como outros
instrumentos com braços, antes delas). VIOLAS apontam ter começado a se dividir em quatro
tamanhos, como são hoje, a partir do século XVI, mas só a partir do século XVIII as orquestras
modernas ascenderiam. Por causa dos dados mais modernos, a maioria dos estudiosos parece
supor, equivocadamente, que todas as VIOLAS ancestrais teriam sido "de arco"... mas não é o que
atestamos: além de vários registros sem detalhamentos, as vihuelas espanholas ("tetra-avós" dos
cordofones atuais), por exemplo, teriam sido tanto dedilhadas quanto friccionadas pelo menos
desde o século XIV, ou seja: bem antes (e, portanto, influenciadoras), por exemplo, das "vovós"
viola da braccio e viola da gamba italianas, e das violas (dedilhadas) portuguesas (estas, por sua
vez, “mães” das brasileiras).
As vihuelas espanholas teriam sido "vovozinhas super poderosas” por um tempo, mas
caíram em desuso a partir do século XVII, substituídas pela preferência espanhola por novas
guitarras (nome antes usado para instrumentos com quatro ordens de cordas, então ressignificado
para as de cinco ordens), ficando, provavelmente por isso, as vihuelas esquecidas e
desconsideradas por muitos estudiosos... Neste período nosso "olhar múltiplo" precisa ficar
especialmente atento para mesmas nomenclaturas tendo significados diferentes conforme a época!
Como dissemos, é História: não é exato, matemático...
Só lembrando: até o século XVI haveria na Hyspania os cinturados: guitarras pequenas,
de 4 ordens de cordas (similares a mandoras árabes em armação de cordas, só que estas últimas
teriam caixas periformes e abauladas) e as tais vihuelas, também cinturadas, de 6 ordens (similares
aos alaúdes, estes também árabes e também abaulados). Dá para entender a concorrência, a rejeição
expressa nos formatos de caixa preferidos? As guitarras pequenas e as vihuelas sumiram dos
registros espanhóis com a ascensão, inclusive entre vários outros povos europeus, de uma “nova
guitarra espanhola”, de tamanho e armação de cordas intermediários aos instrumentos antecessores
e que reinaria até meados do século XVIII. Alguns as chamam hoje de “guitarra barroca”, e os
portugueses as chamavam de “viola” (assim como a alaúdes e vihuelas). E sim: a armação de
violas dedilhadas mais famosa hoje, de 10 cordas em 5 ordens, “teria vindo” (ou melhor dizendo,
“primeiro teria surgido”) a partir daquelas guitarras, porém já existiriam (e também com cordas
metálicas) nas primeiras bandoras inglesas, só que estas tinham caixas em formato com gomos,
como pequenas nuvens arredondadas ou ovalares, do século XVI (e neste último caso, nova
representação imagética de rejeição, pelo formato de caixas especiais, utilizados pelos ingleses).
Além disso, voltando às vihuelas, poucos teriam atentado que a nomenclatura VIOLA teve
equivalentes nas principais línguas europeias, principalmente as que influenciaram a língua
espanhola (latim, occitano, catalão). Ou seja: vihuelas teriam sido nada mais, nada menos que
outro nome para “violas"; e por influência das vihuelas, vieram a existir as duas maneiras de tocar
violas atuais, embora grande parte do Ocidente pareça considerar só as “de arco”, e nossas violas
como "guitarras". Isto é significativo: só os portugueses chamariam para sempre os cinturados
dedilhados de "violas": pense nisso... (nós pensamos até os cabelos embranquecerem mais do que
já eram antes...).
Os não-portugueses teriam alguma razão, pois o normal seria que nossos patrícios também
tivessem passado, com o tempo, a chamar suas violas dedilhadas de GUITARRA ou similar, como
fizeram até os italianos, que também não eram grandes fãs dos espanhóis (passaram a adotar o
nome chitarra); este nome não era tão similar a GUITARRA quanto de outras línguas (e é natural
que italianos preferissem uma ligação mais direta à cithara, em latim); porém, pelo menos
separava, por nomes diferentes, os dedilhados dos friccionados por arco italianos (que seguem
com nome de viola até os dias atuais). É preciso contextualizar ainda (e ninguém disse que
descobertas são fáceis e simples de explicar), que italianos demonstrariam preferência por
dedilhados de caixas mais arredondadas, o que também aponta rejeição à preferência espanhola
por cinturados. Para entender melhor, é preciso estudar pelo menos um pouco o verdadeiro "barril
de pólvora" que se tornou a península itálica desde a queda de Roma, com destaque às inúmeras
invasões e guerras ocorridas já no século XIV; estas se agravaram, no XVI, com as investidas do
Imperador Carlos V, este que, entre outros territórios, comandou a reunificada Hyspania... e nesta
última, que se tornou uma potência, havia vihuelas... Observe um longo período de transição que
culmina em fatos do século XVI: consegue perceber porque italianos não "morreriam de amores"
por vários povos, com destaque a espanhóis? E porque então sua preferência quanto aos
instrumentos mais populares é diferente da espanhola?
Já GUITARRA é uma nomenclatura ligada aos espanhóis desde os mais remotos registros
conhecidos do termo, no século XIII: em espanhol, no Libro de Apolonio (estimado ao ano 1240)
e também no texto em latim Ars Musica, do padre espanhol Iohannes Zamorensis (c.1240-c.1316).
Quanto ao formato, a partir do século XIV (Libro de Buen Amor, de Juan Ruiz) há registros da
rejeição aos instrumentos árabes, que se materializou com o passar dos séculos na preferência e
investimento dos espanhóis em caixas cinturadas, com fundos planos. Na verdade, ao cruzarmos
o formato cinturado com as preferências de nomes observamos motivações nacionalistas de vários
povos: a regra aponta que se buscou, com o tempo, rejeitar o formato que sempre foi característico
de instrumentos árabes, invasores por cerca de 700 anos. Formatos diferentes apontam rejeição a
dissidentes só que, além dos mouros (dissidentes comuns), havia dissidentes entre os europeu, e aí
somam-se e cruzam o contexto geral com contextos regionais, específicos de cada povo / cultura.
Assim, observando o recorte maior de séculos envolvido, espanhóis se direcionaram para formatos
cinturados, seguidos por franceses e portugueses, enquanto italianos, alemães e ingleses, por
rejeição aos espanhóis, se direcionaram a formatos arredondados / ovalares. O fato comum é que
todos os europeus se direcionaram para caixas com fundos paralelos, lisos (bem diferentes,
portanto, dos abaulados árabes). Quanto aos portugueses, apesar de seguirem uma parte da "onda"
com a qual se identificavam (cinturados, em rejeição aos árabes, contexto comum entre europeus),
rejeitaram sumariamente tanto árabes quanto espanhóis, pelo nome escolhido (contexto regional,
específico dos portugueses).
Estudiosos não apontam ter observado (ou terem dado muito valor) à diferenciação clara,
tanto imagética quanto dos nomes, entre instrumentos europeus e árabes: por exemplo, nem
mesmo quando apontam terem observado a “coincidência” de armação e afinação entre alaúdes e
vihuelas... Não era coincidência, era contexto histórico-social: uma rejeição expressa pela
preferência por instrumentos com caixas e nomes diferentes, mas que pudessem facilmente
substituir os árabes (ou seja, rejeição e também concorrência). Além disso, muitos se confundiram
por não se aprofundar nas variações de nomes (que é um tipo de estudo que carece bastante
dedicação, e aponta não ter sido satisfatoriamente feito antes, no Ocidente); mas nada muda o fato,
atestado por registros, de que as vihuelas, mesmo após terem caído em desuso por espanhóis,
apontam ter “seguido caminho” com italianos e portugueses, por ambas as formas de serem
tangidas, apesar de chamadas, nas duas últimas regiões, de “violas”. Em seguida, no século XVII,
emergiriam as guitarras espanholas de cinco ordens, e italianos passariam a chamar suas "violas"
de chitarras (conforme já citado, separando por nomes diferentes as duas maneiras de tocar),
enquanto para portugueses continuaria tudo sendo "viola". Os nomes apontam, assim, terem sido
parte de ações nacionalistas, em reflexos de contextos histórico-sociais. Quanto ao contexto
específico português ficamos seguros em apontar porque, de dezenas de evidências observadas em
registros, observarmos este tipo de contexto como um “padrão”, que se repetiu várias vezes na
História dos cordofones.
Outro "elo perdido" que estudiosos teriam deixado passar (por não considerarem também
possíveis VIOLAS dedilhadas nas equações investigativas) é que vihuelas / violas não "teriam
vindo" dos alaúdes, posto terem formatos diferentes; mas exatamente por estas claras diferenças,
aqueles instrumentos europeus apontam terem surgido para substituir instrumentos árabes / persas
(também chamados muçulmanos, "mouros", invasores). O contexto geral incluiu também
substituir pequenos rababs árabes (que se consolidaram como friccionados) por gigas e rotas,
além de substituir "alaúdes curtos" (mandoras árabes, dedilhados periformes), por guitarras
(espanholas, dedilhadas, cinturadas) e, em outras regiões (as em dissidência aos espanhóis), por
CITARAS / CEDRAS / CITOLAS. Estas chegariam (mas após séculos de ligação com vários
formatos), na hoje chamada “família dos cistres”, de caixa arredondada. Portugueses, por melhor
exemplo de contextos gerais e regionais somados e cruzados, chamariam (e ainda chamam) seus
cistres de "guitarras portuguesas", mas os cinturados não seriam chamados guitarra, como
espanhóis escolheram chamar. Por outro lado, aquela opção espanhola a partir do século XVII
influenciou variações em outras línguas como guitar (inglês), guiterre (francês), Gitarre (alemão):
observe que ingleses e alemães sempre preferiram arredondados, mas aderiram a opções cinturadas
espanholas, apontando que ao século XVII o contexto regional daqueles povos se modificou um
pouco, mas não o de portugueses (que não aderiram ao nome, seguindo com o genérico "viola") e
italianos (que optaram pelo nome chitarra, conforme já apontado várias vezes). A opção espanhola
se consolidou na virada do século XVIII para o XIX, após novas mudanças adotadas, mas
mantendo o nome guitarra (que então em segunda ressignificação passou a nomear instrumentos
com seis cordas simples, apelidados então, pelos dissidentes portugueses, de “violão” ou "viola
francesa", enquanto os italianos seguiram com o nome chitarra). O contexto geral, então,
novamente seria outro: as fases da Revolução Industrial, mas alguns contextos regionais
continuariam mais fortes que o geral.
Deu para entender? Já havia, no século XVIII, guitarras espanholas chamadas "viola" pelos
portugueses (as de cinco ordens): daí, surgiu uma "nova viola", diferente... mas a antiga era muito
boa, bem apreciada; o que fazer? Surgiu assim um apelido para as novas guitarras espanholas (de
seis cordas): um apelido jocoso ("violão"), e/ou um apelido que apontasse uma procedência falsa
("viola francesa"), ambos que mantiveram ligação ao nome nacionalista "viola", e nunca pelo
verdadeiro nome (guitarra), usado pelos espanhóis... Entendeu o contexto regional forte, de
rejeição, ainda valendo, ou precisa que desenhe? E entendeu que os nomes continuaram fazendo
parte da equação, desobedecendo regras normais linguísticas, como as de simples tradução? Por
que portugueses traduziriam guitar e guittern (do inglês) para "guitarra", mas não o fizeram antes
com guitarra, do espanhol (simplesmente o mesmo nome)? Para esclarecer definitavamente,
permita repassar alguns dados e fatos:
Espanhóis aponta ter seguido um caminho que fica claro pelos registros, pois foi em textos
em espanhol que aponta ter surgido uma diferenciação de tratamento entre instrumentos mouriscos
e latinos, a partir do século XIV (o citado Libro de Buen Amor, do padre trovador Juan Ruiz), ou
seja: separar instrumentos europeus dos árabes, inclusive pelos nomes, sendo que a mais destacada
diferença seriam os formatos.
Os portugueses teriam um mesmo tipo de motivação (rejeição nacionalista também contra
mouros), mas contra espanhóis a rejeição aponta ter-se tornado até maior, com o passar dos
séculos, por exemplo por capítulos bem específicos como espanhóis terem governado Portugal
entre 1580 e 1640. Estes contextos todos são refletidos nos cordofones preferidos, em destaque
nos nomes escolhidos.
Alguns estudiosos defendem uma evolução da nomenclatura CITARA a guitarra para
contextualizar as “guitarras portuguesas”, mas a sustentação desta interpretação não se comprova:
a começar pela falta de registros contundentes de cítaras arredondadas (como dito, a nomenclatura
foi usada para vários tipos de formato de caixa nos primeiros séculos desde a ascensão de
cordofones com braço europeus, portanto, só o nome não prova nada). E mais: há apontamentos
dos próprios portugueses, que pelo menos desde o início do século XVIII chamariam suas violas,
cinturadas, de “citaras” (como nos dicionários portugueses, de Bluteau). De fato, o que os registros
e contextos atestam é que, quando da ascensão dos violões (séculos XVIII / XIX), existiam as
arredondadas english guitterns, de um país então muito ligado a Portugal, e portugueses já tinham
o costume de "pegar emprestado" instrumentos de outras culturas e praticamente só mudar o nome.
Já o acontecido entre ingleses, segundo registros em dialetos ancestrais ao inglês e outras línguas
chamadas germânicas, é que desde o século XIII emergiram nomes como cithern, quittern e
gittern, a princípio indistintamente quanto a formatos, mas que gradualmente apontariam para
caixas arredondadas: por isso existiriam gitterns ("guitarras") inglesas, arredondadas, assim como
citherns alemãs e citaras italianas. A partir do século XVII, GUITARRA, em algumas regiões,
passaria a ser nomenclatura tanto de arredondados quanto de cinturados (por causa das guitarras
espanholas), e mais tarde (a partir do século XIX) os arredondados ingleses cairiam em desuso
junto com a ascensão das "guitarras" portuguesas: este último fato se soma à atestação geral, pois
a queda de uso de um instrumento aponta reflexos de contextos histórico-sociais.
Então, atenção: gittern, guitar e similares, durante certo período, principalmente em terras
britânicas, no início seria usado para instrumentos com vários tipos de caixas; depois, por um
período seria nome tanto de arredondados quanto de cinturados; e após a queda das arredondadas
guitarras inglesas passaria a ser nome apenas de cinturados... olhar múltiplo, lembra? E atento aos
recortes de tempo.
O comportamento português é entendido como “anomalia” ou “exceção” porque além das
english guitterns terem caído em desuso, não restam outros cistres (ou seja, cordofones de caixa
arredondada) chamados de “guitarra” além do cistre português. Exceções atestadas pelas
divergências histórico-sociais entre espanhóis e portugueses, e de todos os europeus com árabes
(mouros, muçulmanos), apontam uma circunstância que poderia ser entendida como quebra da
“regra” (ou “padrão”) mas, de fato, as exceções vêm confirmar a regra principal, que são os
reflexos dos contextos nos instrumentos. A complexidade está no cruzamento entre contextos
gerais e específicos, por exemplo: a opção espanhola por cinturados depois foi seguida por outras
culturas, até os dias atuais (mas não pelos portugueses, repetimos), vindo então a consolidar-se,
assim como a separação entre nomes de dedilhados e friccionados (outra tendência geral não
seguida pelos portugueses). Mais uma evidência do padrão é que nomes, formatos de caixa e
maneiras de tocar dos instrumentos árabes apontam ter-se mantido praticamente os mesmos desde
pelo menos o século XIV: isso atesta-se pela regra porque árabes estiveram à parte das influências
histórico-sociais sofridas por europeus.
Perguntas similares às já feitas se repetem: por que outras culturas substituiriam (ou
“nacionalizariam”) nomes e, às vezes, alguns detalhes organológicos em instrumentos? Por que
estas ações podem ser consideradas como um “padrão” da História dos cordofones, desde os mais
remotos registros conhecidos?
Os registros históricos indicam que não pode ter sido coincidência: novos nomes e algumas
preferências teriam emergido em diferentes culturas, para cordofones semelhantes, sempre que
aconteceram eventos de grande impacto social (embora, ao mesmo tempo, alguns resquícios
históricos seguiriam por períodos mais longos). A evidência é clara: formatos, principalmente,
afastariam semelhanças de ligação a outras culturas, como hastes sinuosas e cascos de tartaruga
das lyras gregas as diferenciariam de ketharas de procedência mesopotâmica; e fundos planos e
caixas arredondadas ou cinturadas diferenciariam instrumentos europeus dos de procedência
[...] Unde arbitror quod fila chordarum citharae ideo fides dicantur, quoniam et mortua sonum reddant
(“Portanto, penso que as cordas da cithara são chamadas de fides porque emitem som mesmo já estando mortas”).
[Aurelius Ambrosius, em De Obitu Theodosii (ca.340-ca.397)].
sozinha, mesmo depois de “morta” (uma “grande viagem” do criativo bispo, naturalmente) ... Ou,
se preferir termos técnicos, apenas uma “figura de linguagem”: a princípio não era para ter sido
levada “ao pé da letra”, mas... adivinha se o religioso apontou que estava a usar só um artifício
literário? Não apontou. Além do mais, naquela época, sermão era sermão e pronto: cumpra-se!
O bispo também não detalhou, mas como a maioria das cordas utilizadas na época seriam
feitas com tripas de animais, muito provavelmente ele tenha querido dizer que, mesmo depois dos
animais mortos, as cordas feitas de suas tripas ainda soavam “vivas” ao serem tocadas (à época
ainda não haveria registros das chamadas “cordas simpáticas”, metálicas, que vibrariam por
proximidade às cordas principais mesmo sem serem tocadas diretamente: estas, só a partir do
século XVI, na região hoje chamada Inglaterra).
Daí, até ser inventado depois que instrumentos “tocariam sozinhos”, de alguma maneira
incrível, basta pensarmos que madeiras como as utilizadas em instrumentos sofrem influência de
variações de clima (temperatura, pressão e similares): é possível que algum som seja emitido em
função daquelas variações climáticas ou, simplesmente, que algum inseto ou outro tipo de pequeno
ser (vivo) esbarrasse nas cordas, fazendo-as soar, mas sem serem vistos. Nada demais... Entretanto,
inventar uma história fantástica a respeito é muito mais curioso, concordam? Não daria muito mais
“visualizações, comentários e curtidas” do que a verdade chata, fria, científica?
Sobre a cithara de Ambrosius, também não detalhada, entende-se que fosse uma espécie
de “tatara-tarata-avó” das nossas violas e violões, só que àquela época ainda seriam como pequenas
HARPAS (sem caixa, nem braço). De qualquer forma, um cordofone dedilhado, ancestral: não é
interessante como as lendas acompanham instrumentos por tantos séculos? Temos visto: não só as
irrelevantes e enganosas lendas, mas muitos resquícios são observáveis por séculos, em nomes e
outros detalhes dos instrumentos.
Por outro lado... Deu pra entender a mensagem intrínseca de Ambosius? "Na lata e sem
filtros", seria mais ou menos: “Vai, meu filho: lute e morra pelo imperador, que até depois de
morto você ainda será visto como importante (um mártir), e poderá assombrar os inimigos. Vai na
fé, que tá tudo certo!"...
Achou que "viola que toca sozinha" era “folclore brasileiro”? Parece que não, né? Uma
lenda inventada para fazer a cabeça do povo séculos atrás, repetida por vários tipos de interessados
em divulgar aqueles tipos de mensagem... mas também por pessoas relativamente “inocentes”, que
acham bonito ignorar o Conhecimento científico, talvez por pura preguiça, ou para sentirem-se
mais importantes ao agir assim... é meio sombrio, mas vai saber? Como acontece com várias
lendas, o contexto original teria se perdido, mas curiosa e figurativamente ainda parece servir para
incentivar “soldados” a “serem mártires" e morrer "pela tradição”... São muitas as histórias bem
inventadas, agradáveis, convenientes... E se Ambrosius podia “viajar” numa figura de linguagem,
então nos damos o direito de também fazê-lo um pouco, aqui e agora, até porque não corremos
nenhum risco de alguém seguir o que falamos, pois somos nada, somos ninguém.
Pra que se preocupar de onde teria vindo lendas, não é mesmo? E elas sempre podem dar
alguma graninha, agradar aos "parças", gerar likes, etc... Então, não se preocupe: “Vai na fé, que
tá tudo certo!”. Nessa linha de reflexão há muitas prosas, mas são outras...
Agradecemos por ler até aqui... E vamos proseando...
“[...] Algumas vezes, [Nóbrega] estando em Piratininga com poucos irmãos, mais afastado de negócios,
se metia na sacristia com um devoto amigo, que lhe tangia uma viola às portas fechadas
e ele, entretanto, se estava desfazendo em lágrimas com muita serenidade.”
[José de Anchieta, em carta, citando época estimada entre 1562 e 1570]
menores), mas a escolha recairia na facilidade prática de apenas repetir os mesmos desenhos dos
acordes (mudando a afinação), além da escolha pela timbragem, pelo uso de mais cordas soltas
durante as execuções. O timbre das cordas soltas é, sem dúvida, um brilho a mais, e se tornou
característico das violas, mas, naturalmente, remete às HARPAS, CITARAS, LYRAS e ROTTAS
ancestrais, instrumentos sem braços cujas cordas eram sempre "soltas", ou seja, emitiriam apenas
uma nota cada uma. Em tempo, não à-toa sobrevive o termo "harpejo", que em qualquer
instrumento significa executar nota por nota (modernamente, as notas dos acordes, uma a uma, em
sequência).
Nos modelos remanescentes da família das violas portuguesas, como já citado, só teria
sobrevivido uma “afinação aberta. Já na Família das Violas Brasileiras (postulação científica
nossa), no modelo Viola Caipira, afinações abertas aparecem bastante: além citadas (e mais
conhecidas) Cebolão e Rio Abaixo, há a Rio Acima (em Dó maior) e outras, assim como há
afinações que refletem a afinação do violão (não aberta, chamada “Natural” pelos violeiros). São
várias afinações pelo Brasil, o que também aponta que as violas não são um instrumento único,
padronizado (como o violão), mas uma Família: semelhantes, mas com pequenas diferenças, que
refletem resquícios de vários capítulos da História dos cordofones (como nos atrevemos a
contextualizar cientificamente pela primeira vez em 2021, em nossa monografia).
Sobre os mais remotos registros da afinação Cebolão no Brasil, nossa melhor aproximação
científica (como sempre, investigando o não abordado ou não aprofundado por outros), vem de
pesquisas de campo da década de 1940, realizadas em Goiás, pelo folclorista carioca Luiz Heitor
Correia de Azevedo “Luiz Heitor” (1905-1992), onde curiosamente a afinação seria chamada
“maxabomba” ou “italiana”. Também haveria por lá, na época, as afinações “paulista” e
“paulistinha”, mas ambas seriam diferentes da Cebolão atual. Isto aponta probabilidade de que a
Cebolão tenha vindo a se tornar famosa depois daquela época. Em contexto histórico-social, após
a chamada Guerra Paulista, na década de 1930, quando paulistas arvoraram separar-se do resto do
país, haveria o início de buscas de identidades mais paulistas, às vezes ignorando e até mascarando
dados históricos. A afinação das violas pode ter sido então assumida a partir daquela época, com
o nome de Cebolão, mas consideramos os dados ainda insuficientes para atestação.
Na década de 1950 a afinação já teria aparecido com o nome de “Cebolão”, segundo outras
pesquisas de campo: as do folclorista paulista Alceu Maynard de Araújo (1913-1974). Aqueles
relatos são importantes para atestar que haveria diversos modelos diferentes de violas pelo Brasil;
por exemplo, só no Estado de São Paulo haveria três modelos bem diferentes: um modelo mais
rústico, um modelo industrializado, e um modelo típico do litoral paulista, este último hoje
consolidado pelo nome Viola Caiçara. Estes dados, entretanto, não são considerados assim em
centenas de publicações focadas no caipirismo, que ainda hoje sugerem que o modelo Viola
Caipira seria o único e/ou o mais remoto e gerador dos demais. Mas falando de coisa boa, tempo
bom foi aquele, em que folcloristas buscavam e se embasavam em registros e não apenas em
lendas...
Observamos ainda que a “viola chorosa” (ou, “que fazia chorar”) estaria literalmente na
mais remota citação ao nome do instrumento registrada no Brasil, referente aos últimos anos de
vida do jesuíta português Manuel da Nóbrega (1517-1570). O texto destacado na abertura deste
Brevis Articulus foi observado no livro Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões
do Padre Joseph de Anchieta, S. J. (1554-1594), edição organizada pelo crítico literário e
historiador baiano Júlio Afrânio Peixoto (1876-1947); além de, em narrativa quase igual, no livro
Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, do clérigo português Simão de
Vasconcellos (1597-1671). Estas citações também foram observadas por dois importantes
musicólogos contemporâneos: os doutores Paulo Castagna e Marcos Tadeu Holler, que apontam
que os escritos originais de Anchieta teriam se perdido, restando, portanto, só cópias. Isso nos
obriga a lembrar que há possibilidade de o termo original utilizado por aquele padre espanhol não
ter sido exatamente “viola”, mas vihuela ou talvez até guitarra, este último que observamos em
outra publicação do mesmo Anchieta, de 1595: Arte da Gramática da Língoa mais usada no
Brazil.
Nunca queremos enganar ninguém: diferentes cordofones eram chamados de “viola” à
época, pelos portugueses, e a verdade mais verdadeira é que “violas” não teriam mesmo existido
com alguma diferenciação a outros cordofones antes do século XVIII: teria havido apenas o nome
“viola”, empregado para diversos tipos de cordofones. Isto é das muitas coisas que temos coragem
de afirmar pois contextualizamos cientificamente, mas não foi visto antes em outros estudos. É,
ora pois, a partir de citações posteriores à época original que apontamos que mais provavelmente
teria sido “viola” o nome utilizado, somado à prática atestada em cerca de três séculos, por dezenas
de registros. Isto é muito diferente de “criar lendas”, pois os registros existem e nós sempre os
apontamos clara e metodicamente.
Aquela que seria, então, a provavelmente mais remota citação, também não é assim
apontada em estudos (ainda?), mas tivemos a perspicácia de nos aprofundarmos nas análises:
Anchieta teria citado Nóbrega adoentado a partir de 1560 (conforme confirmado pelo próprio
Nóbrega, no livro Cartas do Brasil, segundo edição já de 1931, também organizada por Afrânio
Peixoto), sendo que a única carta conhecida onde Anchieta teria citado Nóbrega doente, e que eles
dois estariam juntos, seria a intitulada “Ao geral Diogo Lainez, de Piratininga, março de 1562,
recebida em Lisboa a 20 de setembro do dito ano”. Por isso, ousamos afirmar que a citação só
poderia ter sido feita entre 1562 e 1570, sendo assim a mais remota conhecida do nome "viola",
até então.
Ciência de verdade é assim: “até então...”, pois vai que alguém descobre documentos que
possam desmentir ou acrescentar algo? Por isso, seguimos atentos, pesquisando. É curioso: poucos
percebem que a verdadeira prática científica não se limita “ao que já passou e/ou já foi estudado”,
mas um observar contínuo, sempre aberto a novos dados. É "um pouco" diferente de criar lendas,
concorda?
A nossa “sorte” em atestar o mais remoto registro de “viola” no Brasil, quando tantos já
teriam lido os mesmos registros, vem da metodologia que até ensinamos a usar no livro A Chave
do Baú; essa tal “chave” nada mais é que uma metodologia científica, que consiste de mergulhar
atrás dos registros, o máximo que se conseguir, para então organizá-los e analisá-los em ordem
cronológica, aplicando contextos histórico-sociais. No livro é quinem demonstramos aqui, com a
mesma linguagem solta e brincalhona, e não por coincidência: somos honestos, embora precisemos
vender livros. A diferença é que nos embasamos em fatos e registros comprováveis para tentar
vender nosso “peixe”, nunca em lendas.
Também por honestidade, confessamos que nem tínhamos observado que as "violas"
estariam “ligadas a lágrimas” desde o começo da nossa História: foi o violeiro e produtor
botucatuense Osni Ribeiro quem nos apontou, brincando, a “coincidência”. Dar sempre o devido
crédito, para nós é mais que obrigação: é ética, é compromisso com a honestidade (outro
comportamento bem diferente de se criar e espalhar lendas...).
Isto tudo acabou por se tornar também uma história agradável, daquelas de se contar “à
beira do fogo”, concorda? Com a diferença de que tem lastro histórico em registros apontáveis; ou
seja, não é necessário inventar lendas: as violas já têm ótimas histórias, verdadeiras e interessantes
por si só. Daí, até vermos como estes instrumentos chamados de viola se desenvolveram até os
dias atuais, há muitas outras boas histórias para contar... Mas aí são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui e vamos proseando...
* Relação das principais afinações, número de cordas e demais detalhes de todas as violas portuguesas e brasileiras,
baixe de graça em PDF a cortesia de João Araújo / Viola Urbana Produções:
https://www.facebook.com/groups/ViolaBrasileiraEmPesquisa/permalink/1232039824397441/
um importante religioso (tanto que chegou a ser canonizado); porém, àquela época, viola (em
latim) seria apenas o nome de uma flor. Só se conhecem os seguintes registros de cordofones
dedilhados daquela época, que em latim seriam: harpa, cithara, lira, chelys ou testudo, psalterium;
ou ainda fides ("cordas") e seu diminutivo fidicula, estes que apontam terem sido genéricos, e que
traduzimos como "cordofones".
Só bem mais tarde é que teriam surgido lendas, não se sabe de onde (como é bastante
comum nas lendas), de que a viola e até o violino seriam chamados de “violeta” por que seriam
delicados como uma flor... Também como é comum nas lendas, faz sentido e é uma história
“agradável de contar”, sobretudo para quem quer explicações rápidas e fáceis. A realidade nem
sempre é simples, mas pode ser interessante também, conforme temos relatado por aqui. E,
diferente dos consensos mais populares, entendemos que uma verdade, mesmo estimada, deveria
valer muito mais do que uma invenção criativa...
Fugindo então das lendas e mitos, violeta teria sido observado em registros de época
brasileiros e portugueses, no século XIX, como sinônimo de “viola de arco”, o que nos aguçou a
curiosidade: outro “diminutivo de viola”, em italiano? Àquela época não faria sentido, pois
“violino” (que também seria “diminutivo de viola”) já estaria consolidado! Então, dá-lhe
reinvestigar:
Os termos violette e violetta foram observados como genéricos para friccionados por arco
na publicação Scintille di Musica (“Faíscas de Música”), do italiano Giovanni Maria Lanfranco
(1490-1545). Naquela publicação, significariam duas pequenas "famílias de instrumentos”,
diferenciadas pelos tamanhos, cada família com três modelos: os instrumentos menores (portanto,
mais agudos) seriam Canto, Mezzana e Basso; teriam três cordas, exceto o Basso, que teria quatro
cordas assim como violoni, violone e violono, estes últimos que comporiam, então, a segunda
“pequena família” de friccionados, também em três tamanhos diferentes, estes três maiores e com
sonoridade mais grave que os da família anterior, segundo Lanfranco (1533, p.134-136).
[E não se assuste com o último tipo de notação: é simplesmente o nome do cabra
(Lanfranco), seguido pelo ano da publicação (1533) e das páginas onde lemos o que citamos, para
que assim qualquer possa conferir. Procedimento científico normal e muito honesto, se não está
acostumado pode ser porque tem lido mais lendas que textos sérios...].
Naquele método não foi observado o uso do nome viola, mas foi apontado que cordofones
friccionados e dedilhados (estes últimos, com “cordas geminadas”, ou seja, duplas de cordas)
usariam la medesima accordatura (“a mesma armação de cordas”). E ainda observamos liuto
(“alaúde”) utilizado como genérico, sinônimo de liras ou cítaras, e entendemos que poderiam ter
sido também sinônimo de vihuelas espanholas, pois estas também tinham armação e afinação igual
às dos alaúdes, à época. Duas descobertas interessantes, portanto: ajuda a comprovar que naquela
época “violas” já seriam tanto dedilhadas quanto friccionadas, na península itálica, além de uma
possível indicação de onde teria vindo a “inspiração” dos portugueses para mais tarde chamarem
de "violão" as guitarras espanholas de 6 cordas, surgidas no século XVIII: os nomes italianos
violoni, violone e violono.
É bem provável que Lanfranco tenha inventado (ou proposto) aquela subclassificação da
cabeça dele, pois apenas alguns anos depois, violetta e outros termos já não apareceriam no hoje
muito referenciado método do veneziano Silvestro Ganasi (1492-1550): Regola Rubertina –
Regola che insegna sonar de viola darcho tastada (“Regra para tocar viola de arco com trastes”,
em italiano). Já naquele método, o genérico viola foi o mais observado, com seu plural viole; além
de, uma vez cada, serem observados os nomes viola da gamba e violone, este último um
instrumento que teria seis cordas afinadas como o alaúde, a única coincidência então com o que
Lanfranco tinha citado antes. Duvidou? É só ver Ganasi (1542, p.6-8).
Tentativa pessoal de Lanfranco ou não, a concepção de “pequenas famílias de instrumentos
de arco” teria encontrado ecos históricos, apontados, por exemplo, pelo Dr. Rubens Russomano
Ricciardi: este maestro e pesquisador paulista, em suas pesquisas sobre instrumentos coloniais
brasileiros, afirmou que “rabeca” seria nome utilizado tanto para violinos quanto para violas; e
“rabecões”, para violoncelos e contrabaixos (ver Ricciardi, 2000, p.9). O pesquisador, assim como
Paulo Castagna, apontou que violetta teria sido observado em inventários e outros registros do
século XVIII.
[Aproveitamos para louvar e creditar um pouco da grande contribuição destes jovens
doutores “livres docentes não à-toa”, grandes “caçadores de tesouros”, por suas contribuições.
Sim, é um pouco de "puxação de saco" nossa, mas eles merecem...].
A diferença de significados entre o século XVI (uma “família de friccionados agudos”) e
o século XVIII (sinônimo de viola friccionada) foi observada também na 4ª edição do The Harvard
Dictionary of Music (2003, p.953), mas aqueles estadunidenses também não foram a fundo na
situação, poucas vezes observada na História dos cordofones, de um nome "sumir" e reaparecer
vários séculos depois (coisas nós reinvestigamos com muito carinho e novos e atentos olhares).
Nossa reinvestigação passou então pela observação e cruzamento de que no século XVIII,
em Portugal, violeta não teria sido observado como sinônimo de viola pelo lexicógrafo londrino
Rafael Bluteau (1638-1734). Aquele dicionarista, que por décadas teria pesquisado e publicado
significados de palavras em português, admitia até que violas (dedilhadas e cinturadas, no caso)
fossem chamadas de citaras, mas quanto a violeta só evocou nomes de flores em latim, como viola
galathiana (“violeta de outono”), viola agrestis (“violeta do campo”) e viola sativa (“violeta
doméstica”), como se vê em Bluteau (1720, v.8, p. 510-511). É compreensível: se fosse fácil de
achar, tantos grandes pesquisadores, há tantos séculos, já teriam desembolado este novelo; nós,
porém, contamos com visões, curiosidades e teimosias de brasileiro: o que percebemos ser pouco
estudado é onde gostamos de mergulhar!
Algumas informações desencontradas e imprecisas apontam ter distorcido o caminho de
registros da violetta e talvez por isso a verdadeira história teria passado despercebida pela maioria
dos estudiosos. Em 1913, em seu Real-Lexikon der Musikinstrumente (“Enciclopédia Real de
Instrumentos Musicais”), o grande musicólogo alemão Curt Sachs opinou que a chamada english
violett (“violeta inglesa”) só poderia ter sido, segundo ele, a própria viola d’amore, entre outros
motivos porque os ingleses teriam sido os primeiros a terem usado Resonanzsaiten (“cordas
simpáticas”, em alemão). “Cordas simpáticas” seriam cordas que soavam junto das principais
mesmo sem serem tocadas diretamente (ver na imagem destacada), mas Sachs não citou fontes
sobre aquela afirmação, vista em Sachs (1913, p.129-130). Alguns anos depois, já considerando
então apenas a viola d’amore (ou seja, sem citar mais a english violett), Sachs indicou como o
mais remoto registro o ano de 1679, na publicação Evelyn’s Diary: um diário do escritor inglês
John Evelyn (1620-1706). Como argumento de que as cordas simpáticas teriam sido introduzidas
bem mais tarde na viola d’amore, Sachs apontou que vários especialistas em viols, como o músico
francês Jean Rousseau (1644-1699) não as teriam citado em suas publicações (não confundir este
Rousseau violinista com o famoso filósofo francês, que viveu no século seguinte).
Entende-se que até hoje seja fácil concordar com Sachs; não apenas pela credibilidade e
pelo grande número de fontes que ele normalmente citava, mas porque faz sentido: duas “violas
pequenas”, ambas com cordas simpáticas, mesmo com sobrenomes diferentes (“inglesa” e “do
amor”) poderiam ter sido um mesmo instrumento... A metodologia que utilizamos, entretanto,
indica a busca e checagem, à exaustão, dos mais remotos registros, o que significa analisar as
publicações em suas línguas originais. Agir assim sempre revela alguns detalhes a mais...
Desta forma foi que confirmamos, das fontes apontadas por Sachs, que realmente a mais
remota citação a cordas simpáticas teria sido do musicólogo alemão Michaele Prӕtorio (1571-
1621) em seu Syntagmatis Musicis: uma subclassificação onde vários instrumentos diferentes,
tanto dedilhados quanto friccionados, as usariam, segundo Prӕtorio (1615, p.439). Na mesma
fonte, entretanto, observamos citação ao nome violetta picciola, que para ele teria sido deroselbem
Bass Tenor und Discantgeige ("o mesmo que bass tenor ou discantgeige"), violino, rebecchino,
viola da braccio (ou seja, bem diferente do que apontou Sachs).
Quanto ao uso de cordas simpáticas em Violas d’Amore, teria passado despercebido a Sachs
que o violinista Rousseau na verdade teria se referido a elas, segundo trecho do Traité de la Viole:
[...] Le Pere Kircher dit queles Violes des Anglois estoient cy-devant montées en partie de
semblables chordes [...] de laton, qu'on appelle Viole d'Amour (“O padre Kircher apontou que as
Violas dos ingleses eram até então parcialmente montadas com cordas semelhantes [...] de latão,
na chamada Viole d'Amour"), isso segundo Rousseau (1687, p.22, grifo nosso). Este último dado,
por sua vez, fomos confirmar na fonte então apontada por Rousseu: Athanasius Kircher, na
publicação Musurgia Universalis, realmente teria citado que os Angli (“ingleses”, em latim), entre
as várias nações que teriam incrementado mudanças aos chelys (friccionados, também chamados
viola por Kircher), [...] chordas chordis addunt (“adicionavam cordas [metálicas] às cordas [de
tripa]”) e as alinhavam, segundo Kircher (1650, p.486).
Entre diversas fontes investigadas, como a descrição Sympathy in Sounds citada no livro A
brief introduction to the Skill of Musick por John Playford (1667, p.A3[17]), foi percebida outra
pista exatamente em fonte que Sachs apontou como embasamento para afirmar (no caso,
equivocadamente) de que [...] Not until 1741 was there any mention of sympathetic strings on the
viola d’amore (“Até 1741 não há menção de cordas simpáticas na Viola d’Amore”), segundo Sachs
(1940, p.366): o livro Music Saal, do músico alemão Joseph Majer (1689-1768), referenciado para
aquela afirmação de Sachs, realmente apontou o uso das cordas simpáticas... mas em dois tipos de
Viola d’Amore, de tamanhos diferentes, que ele distinguiu como Brazzen oder Violen (“de braço
ou viola”) e Violinen (“violino”), ver Majer (1741, p.103). Assim, haveria dois instrumentos com
cordas simpáticas, ou “dois tipos de Viola d’Amore”, que Sachs não teria considerado,
possivelmente por entender que em 1741 o nome violino já teria o significado moderno. Na
verdade, violinos com cordas simpáticas teriam sido bastante raros, se é que existiram, além de
outros detalhes que descobrimos.
A prática de checar referências nos habilita a apontar que Sachs, como sempre, teria
acertado na maioria dos levantamentos; por exemplo, quanto ao remoto uso de “cordas metálicas
simpáticas” relacionado a ingleses, mesmo sem tê-lo apontado por meio de Rosseau e Kircher,
como fizemos. Sachs, entretanto, não teria atentado mais profundamente ao padrão de
desenvolvimento dos nomes em várias línguas ao mesmo tempo, que descobrimos por aplicarmos
A Chave do Baú.
Para confirmar, descobrimos, segundo referências citadas no artigo Les Violes de Paul
Garnault (?-?), da Encyclopédie de la Musique, que certa english violet (em inglês), também
chamada violetta marina (em italiano), teria sido instrumento similar à Viola d’Amore, pois
também armaria com cordas simpáticas: criação creditada ao italiano Pietro Castrucci (1679-
1752), quando este teria trabalhado em Londres como líder de orquestra do compositor alemão
George Frideric Handel (1685-1759). A nomenclatura bilíngue (inglês/italiano), observada em
partituras e outros textos, confirma o que Garnault e Majer apontaram. Handel teria utilizado o
novo instrumento a partir de 1730, assim como o compositor alemão Johan Sebastian Bach (1685-
1750). Garnault informou ainda que o instrumento, que teria dimensões menores que a viola da
gamba, faria parte de uma série de outros, como a criação francesa viola pícola ou pardessus de
viole (“viola pequena” ou “viola acima, mais aguda”), que teriam surgido no início do século
XVIII, num período em que, além da experimentação de novas sonoridades por compositores e
maestros de destaque, teria havido certa rejeição liderada por gambistas e luthiers da época contre
les entreprises du violon (“contra as empreitadas [avanços] do violino”), segundo Lavignac
(1925b, p. 1790-1792). A nossa reinvestigação de detalhes sobre esta fase de transição, em fontes
de várias línguas, também agregou bastante ao estudo geral das violas (todas elas) e ao
entendimento e atestação de padrões históricos dos cordofones europeus. Entre as fontes
investigadas para cruzamentos sobre as violettas destacamos o Biographie Universelle des
Musiciens do musicólogo belga François-Joseph Fétis (1867, v2, p.210), o Dictionnaire de
Musique do linguista francês Hugo Riemann (1899, p.127) e The History of the Music do
musicólogo estadunidense Waldo Pratt (1907, p.304).
Constatou-se, portanto, que a violetta não teria sido exatamente uma viola, nem um violino,
mas um dos vários instrumentos surgidos no século XVIII com dimensões menores que as violas
da época (por isso, o nome no diminutivo, mas diferente de violino, nome que já era usado para
"pequenas violas"). Teria sido o final da fase de transição, antes da ascensão dos violinos
modernos. Violettas utilizariam cordas simpáticas assim como as Violas d’Amore, que então já
teriam registros há alguns anos. Na partitura original da peça Chalimeaux, do compositor alemão
Johann Friedrich Fasch (1688-1758), por exemplo, são citadas violas (na partitura geral / título) e
violettas em parte específica, referente às notas mais agudas executadas na peça.
O equívoco (e/ou generalismo) aponta ter surgido a partir de apontamentos populares, o
acontece bastante em dicionários e textos livres, onde não se baseia em pesquisas, pois no mesmo
século XVIII, conforme já citado, o nome violeta já teria registros no Brasil. Esta pouca acuidade
no trato de nomes colabora para aumentar a complexidade já existente pela bivalência
friccionado/dedilhado do nome viola. Estudiosos brasileiros teriam entendido corretamente que a
violeta seria friccionada por arco, como Castagna (2000, p.337), Ricciardi (2000, p.9) e Corrêa
(2014, p.25), porém não teriam ido mais a fundo no curioso significado de “diminutivo de viola”,
em italiano e até mesmo em português, em tempos que violino já o significaria. Colabora com os
apontamentos equivocados repetidos pelos tempos o fato de que violeta foi apontado como
sinônimo de “viola friccionada” em dicionários, por exemplo, no século XIX, no Diccionario
Musical de Raphael Coelho Machado (1855, p.268) e o Grande Dicionario Portugues de
Domingos Vieira (1874, p.959). São vários os casos em que dicionários apontam significados
equivocados e distorcidos de nomes, mas aí são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... e vamos proseando...
XIX, por exemplo, tendo alguns chegado a afirmar (e seguem teimando) que os escravizados
tocariam mais instrumentos de percussão ou marimbas.
Dizemos que “seguem teimando” porque desde 2021 disponibilizamos farto levantamento
de registros (que precisam ser analisados em conjunto, como numa somatória), pois constatamos
que talvez os equívocos sejam por se basearem em poucos registros. No mínimo, entendemos ser
necessário citações de instrumentos e das reuniões citadas por Lindley (1806, p.127), Koster
(1816, p.241), Freyreiss (1968[1814], p.122), Wied-Neuwied (1825, p.91), Saint-Hilaire (1847-
1848, p.160) e Mattos (1836, p.37). Estes, apontamos nas referências ao final, entre outros listados
cronologicamente em nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil. E em outro Brevis
Articulus, apontamos um quadro geral das fontes do século XIX (sugerimos conferir).
Nas reuniões dos pretos (de longe, a manifestação artística mais evidente em toda a Colônia
nos primeiros séculos), há vários registros de instrumentos de harmonia: cordofones com pelo
menos dois tamanhos distintos, usados tanto para cantigas mais dolentes (na verdade, as mais
prováveis origens das modinhas) quanto para animadas danças (que eram chamadas por vários
nomes, além de "batuque" e "lundu").
Os instrumentos eram chamados de “violas”, em português; a partir do século XVIII,
seriam também chamados discante, machinho ou machete; e, nos relatos de estrangeiros, no século
XIX, variações da nomenclatura GUITARRA conforme cada língua, como gittern ou guitar (em
inglês); guiterre ou guitare (em francês); chitarra (em italiano) e Guitarre ou Gitarre (em alemão).
Além disso, antes dos mais remotos registros conhecidos sobre o choro, há registros destas mesmas
pessoas pretas (escravizados e forros), tocando "violas" em eventos populares e/ou religiosos
(estes, tanto dentro quanto fora das igrejas, em procissões, folias, etc.).
A precariedade anterior de divulgação de dados, sobretudo sobre violas dedilhadas, além
de preconceitos diversos e interesses comerciais, apontam ter sido as causas desta atual
desconsideração histórica geral. Ajudar a suprir esta lacuna é dos principais objetivos de nossas
pesquisas (para não dizer “de toda nossa carreira”).
Em nossa metódica reinvestigação a estudos aproximadamente dos últimos 60 anos (e à
todas as fontes apontadas por estes, além de muitas outras), que no conjunto acabaram por nos
levar a paralelos com a História dos cordofones ocidentais, constata-se, por exemplo, que não há
evidências de violões no Brasil antes da década 1820, e que estes teriam vindo a se consolidar por
aqui só a partir de 1840. Já a primeira menção a um possível “cavaquinho” aponta o ano de 1822,
tendo demorado também alguns anos até se observar a sua consolidação, que teria se dado primeiro
em Portugal; portanto, é bom considerar com precisão os inúmeros registros de instrumentos
“chamados de viola” por aqui, mesmo com poucos detalhes tendo sido apontados (mas que são
suficientes para evidenciação e atestação).
Esta afirmação se ancora em estudos e registros de respeitáveis portugueses, espanhóis,
brasileiros e outros, sobre dados levantados (e checados, um a um, sempre confirmados a pelo
menos mais de uma fonte). Observamos instrumentos remanescentes, métodos, romances,
registros de alfândega, periódicos e contextualizações histórico-sociais. Nosso acréscimo à
equação investigativa, no caso, além das fontes e estudos já publicados, foram exaustivos
levantamentos em periódicos, hoje disponíveis pela internet na Biblioteca Nacional Digital. Um
detalhado apontamento de dados e suas fontes, em ordem cronológica, desde o início da Colônia,
foi o ponto de partida, que publicamos na monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil.
Neste Brevis Articulus destacamos quatro grandes personagens até lembrados, mas
curiosamente não tão citados como "tocadores de viola" fora de estudos específicos sobre estes
instrumentos. Seriam, provavelmente, os quatro maiores violeiros da nossa História, por terem
sido pilares da nossa música popular (sim, nos atrevemos a afirmar: “música popular”, às vezes
tão popular que era executada nas ruas!). Dados, há: não podemos afirmar com certeza porque a
maioria não cita (só "desconfiamos").
GREGÓRIO DE MATTOS GUERRA (1636-1696): soteropolitano muito citado como
grande poeta, o "Boca do Inferno" (e seu irmão, Eusébio) têm registros e apontamentos como
tocadores de viola por: Nuno Marques Pereira (1939 [1823]); Manuel Pereira Rebello
([MATTOS], 1882, p.23); Dr. Paulo Castagna (1995, p.4); Fernando da Rocha Peres (jornal Folha
de São Paulo, 20 de outubro de 1996); José Ramos Tinhorão (1998, p.55-76); Dr. Francisco Topa
(1999); Dr. Rogério Budasz (2001, p.12) e Dr. Ivan Vilela (2011, p.123).
DOMINGOS CALDAS BARBOSA (1740-1800): carioca, autodenominado "Lereno
Selinuntino", o padre e poeta árcade famoso até em Portugal foi citado como tocador de viola por:
Luís da Câmara Cascudo (2005 [1954], p.584); Bruno Kiefer (1977); José Ramos Tinhorão (1998,
p.115-125); Adriana de Campos Rennó (1999); Dr. Rogério Budasz (2001, p.73-76); Dr. Paulo
Castagna (2006) e Dr. Ivan Vilela (2011, p.124-127).
JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA (1767-1830): o "Padre Mestre" carioca (tocador,
maestro, compositor, arranjador e Mestre de Capella Real de D. João VI) em violas de arame teria
aprendido a tocar e depois dado aulas por décadas, segundo: Manoel Araújo Porto Alegre (1856,
p.359); Innocencio Francisco da Silva (1859, p.203-246); Manoel Duarte Moreira de Azevedo
(1861, p.295; 1877, p.323); Joaquim Manoel de Macedo (1876, p.481); Alfredo Maria Adriano
d'Escragnolle Taunay (1895, [tomo IV], p.229); Dra. Cleofe Mattos (1996, p. 44) e Dra. Márcia
Taborda (2004, p.14-16).
JOAQUIM MANOEL GAGO DA CÂMARA (ca.1771-ca.1838): também carioca, ligado
às mais remotas modinhas brasileiras e que também foi destaque em Portugal, foi citado
unicamente por Adrien Balbi (1822, p. 213) como tocador (e até "inventor"!) de um cavaquinho;
porém, as demais citações da época apontaram que tocasse pequenas guitares (que apontam ter
sido "pequenas violas", machetes ou machinhos), pelos franceses Louis Claude Desaulses de
Freycinet (1827, p.216) e sua esposa Rose, segundo Budasz (2001, p.72); ou que ele tocaria "viola
ou bandurra", como citaram os portugueses Manuel du Bocage (1867, v.2, p.243), Inocêncio
Francisco da Silva e Feliciano de Castilho Barreto e Noronha, segundo Du Bocage (1867, v.2,
p.244-245). A estes citadores estrangeiros, secundaram o entendimento de Joaquim como tocador
de viola os brasileiros José Ramos Tinhorão (1998, p.115); Dr. Rogério Budasz (2001, p.72); Dra.
Márcia Taborda (2004, p.41); Dr. Marcelo Fagerlande (2005) e Dr. Eric Martins (2005, p.21).
É preciso reconhecer que José Ramos Tinhorão (1928-2021) já defendeu a origem da
música popular brasileira a partir das que nós chamamos “Violas Pretas” (ou seja, “violas tocadas
pelos pretos”), porém o jornalista paulista não teria apontado tantos dados e desenvolvimentos
metodológico-científicos quanto agora acrescentamos.
E é agora também que chegamos a algumas questões: terá sido coincidência que tantos
pretos tenham apresentado tanta excelência musical que seus registros prevaleçam até hoje, tendo
vivido em épocas que "violas" eram tão tocadas? E terá sido também por coincidência que suas
relações com os instrumentos sejam tão pouco lembradas, a não ser Domingos Caldas? (este, mais
difícil negar, vez que as duas edições de seu livro trazem como título VIOLA de Lereno).
Por que será que “dá este branco” na mente de tantos estudiosos e historiadores, já há algum
tempo? E por que será que nem os pretos parecem querer saber ou se importar com estas coisas?
Não sabemos. O que podemos fazer é apresentar dados e perguntas: mais que isso, são outras
prosas...
Muito obrigado por ler até aqui e vamos proseando...
conjunto inteiro e não apenas esta ou aquela vertente ou recorte. Ou seria como olhar, também lá
do alto, um grande rio, mas observá-lo inteiro, desde a nascente até a foz, sem perder de vista
sequer um ribeirãozinho da rede de afluentes.
A cronologia apontou que o mais remoto registro literal do nome viola, para instrumento
musical, seria o destacado aqui na abertura, que teria sido observado em manuscritos em latim
estimados ao século XII. Sem dúvida faz sentido, portanto, que estudiosos procurassem a origem
em nomes semelhantes que tivessem registros antes daquela data, e assim conferimos os mais
remotos registros dos nomes fidula (sec. IX) e vidula e phiala (sec. XI), em textos em latim...
Neste ponto já começam os entendimentos conflitantes, pois fidula foi observado num
livro-poema escrito em dialeto alemão antigo: o Liber Evangeliorum (“Livro dos Evangelhos”),
do religioso alemão Otfried de Weissenburg (790-870). Detalharemos um pouco mais a frente,
mas esta famosa fonte já deveria servir de alerta aos estudiosos, pois não apenas no título do livro,
mas durante o poema todo há farto uso do latim, principalmente em outros nomes de instrumentos
listados no mesmo verso que fidula! Muitos juram até hoje que o termo seria “original alemão”,
desprezando o contexto histórico-social de que, à época, haveria forte influência da poesia moura,
e do “latim dos padres”, do qual também vamos falar mais adiante. O texto, inclusive, é uma
enorme poesia nos moldes Trovadorescos. Apesar das evidências de empréstimo do latim, difícil
é ver um linguista apontar isso, principalmente os alemães...
Fazem algum sentido também alegações de origem do nome viola a partir de vidula, por
este parecer ser variação de vitula, embora este último só tenha registro, como nome de
instrumento musical, a partir do século XIII: ele existiria em latim desde muito tempo antes, com
outro significado (o verbo vitular seria “dar demonstração de júbilo, alegria”, de onde ainda
sobrevive vitela, que é a "carne de bovino jovem"). Também faz algum sentido pensar em origem
a partir de termos como viula / viulha (de textos em catalão e occitano), que também só teriam
registros conhecidos a partir do século XIII naquelas duas línguas ancestrais dos atuais idiomas
francês, espanhol, português... Só que estudiosos anteriores não teriam contado com a nossa
astúcia de colocar todos os termos, de todas as línguas envolvidas, em ordem cronológica: nós,
atrevidos, constatamos que viola já teria tido registros em occitano e catalão antes de viula /
viulha... Então, “desculpa aí, mas não cola!”, pois registro é registro...
[Acrescentamos, a princípio apenas como curiosidade, que o nome viola já seria utilizado
pelo menos desde o século VI, em Latim, mas como nome de uma flor, conforme já citamos aqui
em outros Brevis Articulus. Pelo bom número de registros e evidências, viola é de origem latina,
sem dúvida... pelo menos, a princípio... Mas, com certeza, não só do latim ...].
Tudo faz algum sentido, porém nenhuma teoria aponta ser decisiva, incontestável
(principalmente de “linguistas”, que é como chamamos aqui os especialistas em estudos sobre
palavras). Principalmente quando cruzamos as teorias com visões musicológicas (o que é natural,
por esta última ser a especialização mais indicada quando o assunto é “instrumentos musicais”) e
de História / Sociologia, que são ciências aplicáveis e aceitas como parâmetros de base em todo e
qualquer estudo sobre a antiguidade.
O que o nosso olhar abrangente (aquele do telescópio, lembra?) vem trazer para as
equações investigativas ocidentais são fatos e evidências históricas bem consistentes ("xô,
teorias!"); por exemplo, o expressivo número de nomes similares, ligados à nomenclatura VIOLA,
surgidos praticamente ao mesmo tempo em diversas línguas, todos de instrumentos musicais.
Ainda no século XII, logo após o citado viola (em latim) e citando apenas o mais remoto
registro de cada nome, encontramos em sequência cronológica: violle, vièle (em francês); fidil /
fidli (em irlandês antigo); viella (em latim); videle, fithele, fidele (em alemão antigo); viola (em
catalão e occitano); phigile, vigele (em alemão); figella (em latim); vihola, vieula (em occitano).
E logo a seguir, estimados ao século XIII: fiola, vitula (em latim); vielle (em francês);
viella, viula (em catalão); vielle (também em latim); viulha (em occitano), vihuela, viola e
variações (em espanhol); vioel (em holandês antigo).
[Consegue perceber as evoluções dos nomes, pelos séculos, em paralelos nas diferentes
línguas? Sugerimos dar outra lida nos dois parágrafos anteriores: é importante entender bem...].
Levantamos e checamos cada registro daqueles termos por diversas fontes e citações, que
as estimam, como já dissemos, como entre os séculos XII e XIII; e consideramos que estes dois
séculos possam ser considerados uma simultaneidade (quer dizer, “quase ao mesmo tempo”), se
comparados à História Ocidental toda (por aquela visão global, lembra? Sempre ela!). Também
acrescentamos (e é bom considerar todas as listas) que muitas vezes os termos apareciam em textos
de certa língua, mas que a influência de outras línguas seria latente. Assim aprendemos a ficar
sempre ligados, e céticos (“chatos”, mesmo) no trato com registros históricos de nomes de
instrumentos.
Para refrescar alguns conhecimentos básicos de História: até o século V, quando o Império
Romano caiu, os romanos dominavam grande parte do que chamamos hoje “território europeu” e
tentavam impor o latim como língua universal; mesmo após a queda, o latim não seria banido com
os romanos, pois seguiu sendo a língua praticada pelos padres, pelo mesmo vasto território. Os
mesmos padres que teriam sido os maiores responsáveis por textos escritos, inclusive sobre música
e/ou que continha citações de instrumentos musicais. Após a queda também não haveria ainda
países hoje consolidados (como França, Alemanha, Inglaterra, Espanha, Itália, Portugal, etc.):
haveria diversos povos (como francos, germanos, godos, celtas, etc.) então a desenvolver suas
culturas, com muitas disputas por espaços. As atuais línguas começaram a se desenvolver mais a
partir do tal século V, após terem se livrado dos romanos, e naturalmente não foi “do dia pra noite”:
várias adequações aconteceram até as consolidações (sem contar que novas palavras sempre
continuariam surgindo). Destacamos, por exemplo, que línguas como as atuais "inglesa" e "alemã"
tiveram complexos desenvolvimentos a partir de vários dialetos. E sim, se pensou na figura da
lendária Babel bíblica, deveria ser mesmo parecido...
Um fato que veio “bagunçar” ainda mais este caldeirão de idiomas / culturas surgiu a partir
do século VIII: a invasão árabe (muçulmana, “moura”), que durou até o século XV (!). Pense bem:
são muitos séculos de mais uma cultura, bastante diferente, que embora poucos comentem, pelo
menos em termos gerais de música e construção de instrumentos era bem mais avançada... Ah,
sim: nosso poderoso telescópio registra também as épocas, pois organizamos tudo em ordem
cronológica, lembra? Pense num telescópio bem bacana, que tem até gravador e tradutor
acoplado...
Pois bem: são estes contextos histórico-sociais que nos trouxeram a resposta para uma
pergunta bem técnica: “por que diabos teriam surgido tantos nomes diferentes em apenas dois
séculos?”... E a resposta é clara: os Trovadores teriam “bagunçado ainda mais” a vida de
praticamente todos os povos / reinos, viajando de lá pra cá, literalmente “fazendo arte” no meio da
rua, com poesias, músicas e outras performances onde misturavam palavras árabes (no início),
com o latim popular e os tais dialetos diferentes em desenvolvimento... Não é difícil de entender,
é? Queria-se repassar mensagens e histórias, então utilizavam-se todas as línguas (ou rudimentos
delas) que existiam, à época, como se conseguia, para facilitar a comunicação. Não faria sentido
sair cantando / declamando em árabe / hebraico, nem no então rejeitado latim, ou em uma das
línguas conhecidas apenas: a solução natural foi misturar tudo.
Inclusive, um dos mais famosos intercâmbios de línguas, chamado “língua dos
Trovadores”, seria o tal occitano (também citado como langue d’oc, provençal ou romance,
dependendo do tipo de estudo, região e época). Aquela remota “língua nascida de intercâmbios”
teria surgido na região que hoje corresponderia às fronteiras da Cataluña/Espanha com a França e
que, não por coincidência, são grandes influências das línguas faladas hoje nestes lugares, assim
como em Portugal e outras regiões que faziam parte da grande península Hyspanica (nome dado
pelos romanos) ou Iberica (nome dado pelos gregos). O occitano e suas variações se espalharam
por toda a Europa então conhecida, como um “mexidão" ou "sopa" de línguas, graças aos
Trovadores. O afirmamos porque, ao colocar em ordem cronológica o grande número de registros,
observamos que a partir do século IX a maioria seria poesias, escritas até por religiosos, onde se
“[...] Mas também o que nos dirão da monotonia e insipidez dessas intérminas e uniformes modulações
da viola caipira seguindo o sapateado do fandango, obrigada sempre às improvisações poéticas e desafios
que formam a fama e o goso de tantos de nossos homens dos campos?”
[Jornal curitibano A República (editorial), 08/07/1901]
Estado de São Paulo: “‘Ao Rei dos Violões’ – Fábrica de violões, violas, cavaquinhos e
bandolins” (Estadão, nº 17282, p.10). Entretanto, outro fato que também atestamos é que nenhuma
daquelas fábricas utilizava ainda o nome “viola caipira” que, inclusive, aponta ter sido raro entre
a população em geral até meados da década de 1970!
Também é um fato a colaborar com entendimentos equivocados que antes de 1901 as
“violas” já teriam sido ligadas ao termo “caipira”: encontramos o mais remoto registro (de alguma
ligação, mas ainda sem uso literal do nome “viola caipira”) na frase “Um amarelo caipira de viola
ao peito”, do periódico carioca Jornal do Commercio (11/04/1846, nº101, p.2).
A pergunta é: estes poucos fatos são suficientes para provar que existiria “viola caipira” e
que era assim que eram conhecidas as violas naquelas épocas?
Já sobre o entendimento coletivo de que a “viola caipira” teria chegado ao Brasil com os
jesuítas e que faria parte de uma “tradição de raiz”, devemos às colocações do genial empresário
paulista Cornélio Pires: sua interpretação e incansável defesa do que ele apontou que significaria
o termo “caipira” (sugerindo que seria de origem indígena e que, portanto, representaria uma
cultura ancestral, inclusive a ser preservada) não pode ser citado por adjetivo inferior a “genial”
(comercialmente falando). Um entendimento criativo, que faz sentido (para quem não buscar ler
dados comprováveis) e que é bastante agradável, conveniente a uma população que sempre careceu
de inclusão social e que nunca teve grande hábito de leitura e de reflexão. Muito conveniente
também para quem queira faturar com a ideia, até os dias atuais.
Não à toa Pires vendeu muito: era muito inteligente e trabalhador. Não à toa recebeu apoio,
anos mais tarde, até de estudiosos, que se basearam sem questionamentos naquela interpretação
para ancorar até teorias científicas ... mas...
Um dos aspectos mais geniais de Cornélio Pires é que ele sabia que não precisava apontar
dados comprováveis, estudos, embasamento científico: seus textos eram artísticos (ou “casos e
mentiras”, como ele mesmo apontou no livro As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho
- o queima campo, publicado em 1921). Pires nunca foi “científico” e nunca defendeu que teria
sido. Genial! O povo acreditar no que ele dizia é fácil de entender... Agora, porque tantos
estudiosos continuam defendendo até hoje, sem buscar comprovação científica das alegações,
achamos um pouco mais difícil de entender (e mais difícil ainda é provar).
Um fato que se pode citar sem medo de errar é que o caipirismo de Pires “vendia” muito
bem (e continua “vendendo”), mas não há qualquer evidência de uma “cultura caipira” (sequer
citação) antes de Cornélio Pires. A evidência maior, portanto, é que ele inventou uma "cultura"
para alavancar vendas. Tão bem inventado que “pegou” e aponta não ser interessante contestar,
até hoje. Aquele tipo de procedimento comercial depois se tornou comum, e hoje é chamado
"cultura de mercado" (ou "indústria de cultura"), mas Pires foi tão à frente de seu tempo que não
se observa ninguém comentando aquele provável pioneirismo brazuca. Até porque, como
dissemos, houve depois o que se considera equivocadamente como "aval científico" de sociólogos,
folcloristas e outros.
Voltando o foco para as violas, é fato (segundo centenas de registros de acesso público e
gratuito) uma curiosa estatística: entre os anos de 1930-1939, em periódicos de todo o Brasil,
encontramos o nome “Cornélio Pires” citado 704 vezes; no mesmo período, a palavra “caipira”
teria tido 10.162 citações (!), mas o termo “viola caipira”, apenas UMA citação. Esta, inclusive,
sem nada a ver com instrumento que teria existido e sido executado de fato no Brasil, mas numa
comparação, em matéria sobre um professor de guitarra portuguesa, do jornal carioca Correio da
Manhã (21/03/1930, nº 10808, p.7).
Não é interessante? Observe que a única citação de “viola caipira” nos jornais, naquele
trecho, seria de 1930... Depois, enquanto o caipirismo e seu criador eram cada vez mais fartamente
citados, durante nove anos nem foi encontrada outra citação do termo “viola caipira” ... Será, então,
que existiam mesmo "violas caipiras", chamadas por este nome?
É fato: no auge do caipirismo, nem por Cornélio Pires, nem pela população em geral as
violas foram chamadas de “viola caipira” contundentemente; portanto, a evidência é que não teria
sido o nome do instrumento, como depois se tornou. Na mesma base de dados, mas incluindo
citações em livros, discos e outras fontes, descobrimos que entre 1900 e 1959 houve citações ao
termo “viola caipira” ... Mas não teriam sido sequer uma citação por ano!
Quais teriam sido os nomes, então? Sem qualquer dúvida, o mais apontado é apenas “viola”
(inclusive, desde o século XVI), e poucas citações a "viola cabocla”, “viola paulista”, “viola
sertaneja”, entre outros. Já de 1959 e 1969 apareceria (e até um pouco mais que “viola caipira”),
o nome “viola brasileira” (confira o quadro ao final deste Brevis Articulus).
Infelizmente mal interpretado e defendido até por grandes estudiosos, a década de 1960
não foi a década da “viola caipira”: houve, realmente, um aumento de uso deste nome naquela
década (porém, um aumento para cerca de 4 citações por ano, apenas); só que, ao mesmo tempo,
se constata uma dicotomia (uma espécie de “disputa” ou “dúvida pública”) entre “viola caipira” e
“viola brasileira”. A década, portanto, seria na verdade de “avivamento” daquela dúvida entre os
dois nomes. Ambos aparecem juntos em várias publicações, denotando que não havia uma
denominação certa: ao contrário, haveria, comprovadamente, uma dúvida. Este fato é visto, além
das matérias de jornais, por exemplo, a partir de 1959, na contracapa do LP Exaltação à Viola, do
maestro Élcio Alvares (em texto do jornalista Vicente Leporace); também, em 24 de agosto de
1963, em artigo do maestro Theodoro Nogueira (Anotações para um Estudo sobre a Viola),
publicado no Jornal A Gazeta de São Paulo e replicado, em parte, em 1971 na contracapa do disco
Bach na Viola Brasileira; em 1964, no artigo Estudo sobre a Viola, da Revista Brasileira de
Folclore, onde Rossini Tavares de Lima utilizaria inclusive uma abordagem tripla: “viola caipira,
sertaneja ou brasileira”; e em 1968, na contracapa do disco Canto Geral, onde Geraldo Vandré
apontou a expressão “viola caipira ou brasileira, como queiram”.
Como se constata, jornalistas, maestros, folcloristas e artistas ainda não afirmavam
categoricamente que a viola era “viola caipira”. Este é um fato, comprovado não só por estes
exemplos, mas por mais de uma centena de outros registros.
Mas então, afinal: quando é que o modelo mais conhecido (famoso, comercial) de nossas
violas se “tornou” Viola Caipira? (sempre lembrando que nunca teria havido apenas um modelo).
É do nosso banco de dados bem considerável que trazemos, com coragem e ineditismo, as
evidências: um aumento expressivo de citações a partir da década de 1970, que depois cresceria
cada vez mais até chegar ao panorama atual.
A este respeito conseguimos contextualizar, histórica e socialmente, a evolução do estilo
hoje chamado “sertanejo universitário” (aproximadamente a partir de 1972), que, entre outras
mudanças quanto aos antigos “caipiras”, trouxeram a substituição das violas e violões por guitarras
elétricas em suas formações de palco; também se observa uma resposta comercial, executada pela
gravadora onde o artista mais famoso era Tião Carreiro e que a partir de 1976 (disco É isso que o
povo Quer) começou a utilizar o termo “viola caipira” em capas, encartes, letras de músicas, etc.
Naturalmente, a fase de transição foi longa (nada, na verdade, é simples e rápido, inclusive
de se explicar, de comprovar). A fase remete, inclusive, a disputas de mercado com registros que
observamos desde 1966, na época do grande sucesso da música Disparada... Mas aí já são outras
prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
algumas coisas, mas não dá pra ficar abusando da educação e atenção de um ídolo o tempo todo,
concordam?
Listamos centenas de citações ao termo “viola”, como instrumento musical, em nossa
monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil e assim também vários “causos” interessantes,
pitorescos, alguns com dados até reveladores sobre a História das violas, e sobre a História do
Brasil. Se o Dr. Romildo ou qualquer um quiser, estão lá à disposição.
Alguns daqueles “causos” mais curiosos trazemos aqui para os Brevis Articulus, como
então é o caso: uma publicação que observamos no acervo público do Jornal A Província de São
Paulo (hoje, conhecido como “Estadão”), de 05 de julho de 1878 (Anno IV, nº 1009). A coluna se
chamava Sessão Livre, e o texto traria como título apenas "Xiririca". Uma carta enviada à
redação do jornal, de autor que teria preferido ficar incógnito (ou “anônimo”). Aquele autor fizera
pesadas críticas a certo juiz Bernardo da Gama de Souza Franco, do qual não conseguimos muitas
informações; já sobre a citada “comarca de Xiririca”, descobrimos que hoje se chamaria
“Eldorado”, ao sul do Estado de São Paulo.
O que mais nos interessa são as curiosas citações feitas sobre a atuação de “Sua Senhoria”
(que é como o autor se referiu ao juiz). Trazemos aqui um bom trecho, do qual adequamos algumas
palavras aos atuais formatos da língua portuguesa, sendo que as que no original estavam grifadas
em itálico, mantivemos da mesma forma.
Entendemos que o texto pode trazer alguma visão sobre costumes da época e região.
Acrescentamos que no século XIX não se observava em registros tanto “preconceito contra o
caipira”, como é hoje em dia, por tantos, aclamado; mas havia, sim, textos com indícios claros de
preconceito contra interioranos, além de "caipira" ser ainda, prioritariamente, um apelido político.
Aliás, um desenvolvimento sobre preconceitos contra caipiras se observa no citado livro do Dr.
Romildo. Além deles, destacamos em nossa citada monografia estudo que não tínhamos visto ter
sido feito antes, a partir de relação de registros sobre o termo “caipira” desde 1822. Em nosso
amplo banco de dados, aplicamos várias técnicas científicas, como matemática-estatística,
contextos histórico-sociais e outras, e observamos que “caipira” na verdade nunca teria sido termo
original indígena: teria surgido como um apelido político, até assumido pelos partidários, tendo
migrado após a Revolução Industrial para uma ressignificação mais ofensiva, mas não apenas a
pequenos agricultores, e sim ao todo do proletariado ligado a atividades rurais, que inclui pretos,
estrangeiros e outros. Observamos ainda que o termo não seria utilizado apenas em São Paulo,
onde até passou a predominar, com o tempo; mas era utilizado em praticamente todo o país.
No texto original que trataremos aqui, o termo “caipira” sequer foi apontado; mas em
paralelos feitos com a viola (ritmos e outros detalhes) pode ser inferido algum preconceito. A
viola, no caso, teria sido tocada por um “magistrado” (ou seja, certamente alguém de leitura e
conhecimento), fato inclusive criticado pelo ácido autor, que citou até frase do advogado e filósofo
romano Cícero. Ele na verdade não identificou Cícero diretamente, mas por coincidência já
conhecíamos a frase e resolvemos até destacá-la na abertura deste Brevis Articulus. A “treta”
política era grande, já teria tido vários capítulos anteriores, e o autor “que não gostava de fandangos
em audiência” chegou a definir seu texto como amostra do panno, ou seja, um exemplo
(“amostra”) de como teria sido o juiz (o “pano”), alvo de seu dissabor e crítica:
“Pois acha que ficou bonito para S. S. mostrar-se em plena audiência, a 7 de maio, que é
tocador de viola?
Pode ser grande habilidade e apreciável talento o tocar bem uma viola, mas que o juiz possa
exibi-los em audiência, executando peças de fandango, eis o que não nos parece digno de aplausos.
Se S. S. em algum batuque se prestasse a dirigir a orchestra, e mesmo a dançar seu
rasgadinho, tocando sua viola, provavelmente os circunstantes se deleitariam muito; mas em
audiência...
Quereria com isso S. S. tornar sabido que com o direito também faz fandango, como com
a viola toca rasgados e modinhas de batuqueiro?
Quereria S.S. fazer como outros, que metem a viola no sacco, meter também as leis e a
jurisprudência dentro da viola?
Mas tudo isso não é por certo ato de juiz que conhece seus deveres e procura atrair o
respeito de seus jurisdicionados.
Se o que fica exposto não basta para atestar o bom senso do juiz de Xiririca, ainda temos a
dizer que as audiências são o lugar em que S. S. faz praça de seus bons costumes e sensatez:
inúmeras vezes S. S. se apresenta em mangas de camisa, assim a modo de rapaz dado a capoeira,
e que não sabe dar-se o respeito e respeitar os outros.
A justiça em mangas de camisa, e algumas vezes vestida de roupa sem asseio, não pode
agradar às autoridades superiores, ao público, aos empregados e partes que a procuram: enfim, a
justiça em mangas de camisa e tocando viola, ou dentro desta, é um atentado à sociedade e às leis.
[...]
Ora eis aí como procede o Sr. Dr. juiz municipal do infeliz termo de Xiririca!
[assinado por] Um que não gosta de fandangos em audiência”.
Pedindo permissão para um exercício livre, conjectural, uma vez que o “enfezado” autor
citou (na verdade, por duas vezes) que o magistrado usaria “mangas de camisa” e que seria “rapaz
dado a capoeira”, talvez uma das motivações dos ataques possa ter sido a cor de pele; talvez por
isso também não o tenha xingado de “caipira”, ou talvez ainda porque o próprio autor se
considerasse um “caipira”, codinome político que observamos em vários outros textos da mesma
coluna, e com estilo sarcástico que consideramos similar (mas aí só Romildo para atestar se
estamos falando pouca ou muita bobagem nessa nossa “análise de discurso”). O fato, sem
conjecturas, é que não conseguimos informações sobre o juiz-alvo, muito menos sobre o anônimo
autor.
Já a maneira como os preconceitos entrariam depois para a interpretação que se tornou o
entendimento coletivo hoje chamado "caipirismo" é bem interessante, mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
On nomme Guitarres à la Rodrigo, celles qui sont montees avec douze cordes;
pour les trois premiers rangs deux cordes à l'unisson,
et pour les deux derniers rangs trois cordes dont il y en a deux à l'unisson et une a L'octave.
(“Chamamos de Guitarras à la Rodrigo as que são montadas com doze cordas;
para as três primeiras ordens, duas cordas em uníssono,
e para as duas últimas ordens, três cordas das quais há duas em uníssono e uma em oitava”).
[Michel Correte, Les dons d’Apollon, 1762].
mais... Júnior da Violla é dos pesquisadores mais atentos e precisos que, felizmente, temos; e está
aí à disposição, vivo e acessível até pelas redes sociais, defendendo as violas dia-a-dia. Atualize-
se!
Melhor que apenas obedecer a uma “ordem de um mestre” foi poder colocar em prática
nossa técnica metodológica. Embora a descoberta possa ser considerada pequena (inclusive
comparado ao tanto de trabalho que deu), o importante é que um exercício e a comprovação, mais
uma vez, da eficácia da visão, da metodologia. Por ter sido trabalhoso, é meio complexo; então,
por favor fique atento: mergulhamos atrás do que escreveram dois estadunidenses (em 2002), que
citaram o que escreveu um francês (em 1762) e um português (em 1995); este, citou outro
português (de 1870), e este último que citou o que transcreveu um alemão (em 1790) sobre o que
outro alemão tinha apontado (em 1776)...
Complexo? Sim, um pouco... mas para encontrar tesouros que tanta gente boa não teria
encontrado antes, não se pode esperar que seja fácil. A principal diferença de nosso método é que,
enquanto estudiosos citam esta ou aquela fonte, nós mergulhamos em cada citação, vamos até cada
fonte mais antiga possível, na língua original, e tentamos descobrir e analisar TODAS,
individualmente e também em conjunto, cruzando e organizando tudo em ordem cronológica. Isso
faz muita diferença e é, em resumo, A Chave do Baú (a tal metodologia).
Ah, sim: é importante apontar que o livro The Guitar and its Music, dos citados
estadunidenses (Tyler & Sparks), é um excelente estudo, até de destaque entre mais de uma centena
que analisamos em línguas estrangeiras. Uma pequena conjectura que fizeram, a partir de fontes
em francês e português (línguas não nativas daqueles autores) não desmerece nada, pois
pesquisadores são seres humanos. Especiais, sem dúvida: mas humanos. Tyler & Sparks citaram
o mais remoto registro que se tem notícia sobre a armação a la Rodrigo (que é o destacado na
abertura), onde observa-se, entretanto, que não teria havido detalhes sobre o tal “Rodrigo”. O
difícil acesso àquele método, do francês Michel Correte, devemos à gentileza do doutorando Felipe
Barão, um brasileiro “já agora meio português”, estudioso principalmente das violas Toeiras
portuguesas, a quem agradecemos muito pelas “aulas”, trocas e ajudas.
Entendemos, pela pesquisa, que a maior probabilidade é que mais uma denominação teria
“surgido na boca do povo” e a origem teria se perdido no tempo, que é característica comum da
oralidade... Infelizmente não é raro (e acontece há séculos), estudiosos tentarem "adivinhar"
origens de nomes por semelhanças, coincidências ou teorias até criativas, mas sem base sólida em
registros. Por isso é importante fazer levantamentos como este que agora apresentamos, mesmo
que complexos, trabalhosos e que não mudem em nada (ou quase nada) a História: servem também
para pegarmos as “manhas” (e as manhãs também, diria Renato Teixeira na guarânia “Tocando
em Frente”?). E serve ainda para alertar quanto a dados de época.
Desfazendo o novelo, partimos da "citada citação" de Tyler & Sparks, que foi: “Correte
não aponta a origem do nome popular francês [a la Rodrigo], mas PODE BEM ter tido alguma
conexão com o guitarrista português Rodrigo Antônio de Meneses, conhecido por ter feito tournée
europeia como concertista na década de 1760 e depois feito sucesso na Alemanha, especialmente
na cidade de Leipzig, em 1766” (Tyler & Sparks, 2002, p.204)2.
É muito importante observar a condicional que apontamos com maiúsculas e numa
tradução bem “abrasileirada”: não é uma afirmação! Nestes casos, entende-se que poderia ter sido
uma conclusão dos autores a partir de alguma fonte lida, e que, no caso, foi mesmo apontada: o
livro História da Música Portuguesa, de João de Freitas Branco; fomos então conferir e,
realmente, Branco deu notícia sobre o citado guitarrista, mas sem informar nada sobre a armação
a la Rodrigo; além de, na verdade, também não ter “dito por si”, mas segundo o que teria lido em
outra fonte, conforme se observou em Branco (1995, p.198).
2
No original: “Correte does not give the origin of the instrument’s popular French name, but it may well have had
some connection with the Portuguese guitarist Rodrigo Antônio de Meneses, who is known to have toured Europe as
a concert performer during the 1760’s and who subsequently enjoyed great success in Germany, especially in the city
of Leipzig in 1766”.
Então, tivemos que seguir a nova pista informada por Branco, que foi o livro Os Músicos
Portugueses, de Joaquim Vasconcelos; lá, realmente, estava o apontamento sobre o sucesso de
Rodrigo Meneses, suas apresentações na Alemanha, em especial na cidade de Leipzig, no ano de
1766, segundo Vasconcelos (1870, p.269). Novamente, nada havia sobre armação a la Rodrigo e,
mais uma vez, o autor não teria dito por si, mas apontou onde teria lido. Desta forma, chegamos
ao livro Historisch Biographisches Lexicon (“Léxico Biográfico-Histórico”), de Ernst Luwig
Gerber, onde, em bom alemão, uma pequena nota confirmava o já dito antes sobre Rodrigo (o
tocador). Ali também não foi citada a armação de cordas usada e foram apontadas duas outras
fontes: “[...] A descrição do próprio instrumento pode ser encontrada em Hillers Nachr. B. 1. p. 39
e em Walther, no artigo ‘Chitarra’” segundo Gerber (1790, v1, p.928)3.
[Que raiva! Além de ainda não atender nosso objetivo, Gerber citou duas fontes sem
detalhamentos, como se a gente fosse obrigado a conhecer de memória quem seriam aqueles tais
de “Hiller” e “Walther”... Não é à-toa que muitos estudiosos às vezes desistem: é muito mais fácil
criar uma história do que vascular a verdade por fontes sérias!].
Mas somos brasileiros: pesquisa daqui, googla dali, descobrimos: Joahan Gotfried Walther,
em seu livro Musicalisches Lexicon (“Léxico Musical”), fez somente um pequeno verbete
Chitarra, onde apontou nomes que ele entendia serem equivalentes em várias línguas; entre mais
algumas informações, apontou que a Chitarra armaria em 10x5: portanto, e mais uma vez, sem
nada sobre a la Rodrigo, ou qualquer Rodrigo, então segundo Walther (1732, p. 159). Finalmente
esclarecedora foi a outra fonte apontada antes, por Gerber: John Adams Hiller, no livro
Nachrichten und Anmerkungen (“Notícias e Notas”), que faz parte uma série onde ele registrou
detalhes de concertos que teria visto. Pelo sucesso do desempenho de Rodrigo em Leipzig (que
descobrimos então que teria sido em 27 de julho de 1766), Hiller resolveu descrever em detalhes
o instrumento utilizado: seria similar ao alaúde, mas com: fundo plano, cordas de tripa e a afinação
"Lá-Ré-Sol-Si-Mi" (uma afinação que segundo ele seria diferente das convenções, na época... mas
que pra nós é bem comum, similar à dos violões e é chamada “afinação Natural” em algumas
violas). Hiller chegou a rascunhar, junto ao texto, um pequeno trecho de partitura, para ilustrar que
“[...] Cada ordem tinha duas cordas, exceto a quinta, que é única; os pares mais graves trazem uma
corda a uma oitava, o resto está em uníssono” segundo Hiller (1766, v1, p.39)4. Portanto, não:
definitivamente Rodrigo Meneses não usava a armação a la Rodrigo!
Observa-se, amarrando as pontas desta pequena reinvestigação, que tanto Hiller quanto Correte
na verdade registraram as guitarras mais utilizadas como 9x5, como o modelo de viola português “da
Ilha da Madeira” ainda hoje preserva. Muito interessante, não? Como dissemos, “guitarras” eram
“violas” para os portugueses, e para cada variação de guitarra encontrada na História, costuma-se
encontrar uma “viola” correspondente... Mais interessante ainda é que sobre guitarras e vihuelas do
século XVI também existiriam correspondências em instrumentos árabes, antecessores, mas estes
últimos com caixas abauladas (a saber, respectivamente, os menores mandora ou bandurria e o alaúde,
este com braço e caixa maiores). Entendeu que o que acontecia é que uma cultura buscava substituir
instrumentos dos dissidentes com algumas mudanças, inclusive dos nomes, mas que no caso dos
portugueses só se trocava o nome?
[Houve mais uma pequena “raiva de pesquisador”, porque Hiller indicou como fonte o próprio
livro de Walther (porém, inseriu mais detalhes que este): um livro que tínhamos gasto um tempão para
descobrir; ou seja, se tivéssemos, por sorte, encontrado o livro de Hiller antes, menos tempo teria sido
investido, mas... “faz parte!”. E, de qualquer forma, teríamos obsessivamente conferido os dois...].
Os dois (Hiller e Walther) citaram ainda o Gabinetto Armonico, de Fillipo Bonani, onde
realmente se encontra uma pequena citação e uma ilustração de uma Chitarra Spagnola, porém com
armação 10x5 segundo Bonani (1722, [figura 97, p.225]). Esse negócio de prestar atenção à armação
de cordas (número total e divisão por ordens) nós consideramos determinante, embora ainda não seja
3
No original: “Von dem Ins strumente selbstfindet man die Beschrei bung in Hillers Nachr. B. 1. S. 39, und im Walther
unter dem Artikel Chitarra”.
4
No original: “Jedes Chorde hat zwen Saiten, auzer bem sunsten, welches nur einsach ist; die benden tiessten Chore
haben die hohere Octave ben sich, die ubrigen sind im Cinflange (Cinslange)”.
consenso nos estudos da ciência musicológica específica, chamada “organologia”: azar de quem não
considera como diferença, não é mesmo? Pois, por estes detalhes, temos atestado muitas coerências e
revelações históricas, inéditas.
É isso: quem teria visto Rodrigo Meneses tocar em Liepzig (e, que por sorte e alegria nossa,
entendia de música / musicologia, além de ser atento e detalhista) não o teria visto usando ordens
triplas, e registrou apontamento que só podemos entender que teria sido preciso. Estudiosos
portugueses, naturalmente, louvaram o raro sucesso de um concertista patrício, mas sem citar cordas e
ordens; já Tyler & Sparks, que teriam encontrado a mais remota citação em um método francês,
tentaram fazer uma conexão direta, a partir do nome “Rodrigo”, com o talentoso e notável português,
mas... deram mesmo foi um "chute" bem longe da "meta". Assim, inclusive, nascem várias lendas, mas
é importante lembrar: os estadunidenses NÃO AFIRMARAM nada: repetir o que eles apontaram sem
atenção a este detalhe, como se tivesse sido uma “afirmação baseada em fontes” (e, sobretudo, sem
checar aquelas fontes) é que seria um problema. Um problema infelizmente recorrente e muitas vezes
danoso à História, não apenas a dos instrumentos.
Por último, para atender ainda ao mestre Júnior da Violla, o instrumento remanescente mais
antigo que teria sido armado em 12 cordas em 5 ordens estaria hoje no Museu Nacional da Escócia, e
tem data de criação estimada entre 1740 e 1750 (exatamente naquela "fase de transição" que citamos
aqui no início, lembra?). A propriedade (ou autoria de confecção) teria sido atribuída a certo Josef
Dörfler, do qual não encontramos informação sobre ligações com música (ou qualquer outra profissão).
Em portais eletrônicos sobre árvores genealógicas, encontramos uma pessoa com este nome, que teria
nascido na hoje chamada República Tcheca (vizinha da Alemanha) e que teria tido um filho em 1761:
este, então, há alguma possibilidade de ter sido o tal, mas... não se pode garantir.
O fato é que encontramos detalhadas descrições sobre aquela “12x5 mais antiga que se tem
notícia”, tanto no site do Museu Santa Cecília, da Universidade de Edimburgo, quando no artigo The
Early wire strung guitar (“As mais antigas guitarras de cordas de arame”), de Darryl Martin. A
alegação a Josef Dörfler (que não foi feita por Martin, é importante citar) teria vindo de inscrições
gravadas no instrumento, onde se leria IOZE DOR V segundo Martin (2006, p.130-131), ou seja: daí
até afirmar que significaria “Josef Dörfler” haveria alguma "criatividade" aplicada. Como dissemos,
lendas são criadas facilmente: “... é preciso estar atento e forte” (como diz Caetano Veloso em seu pop-
rock “Divino Maravilhoso”). Em profundas análises feitas (inclusive datação de carbono!), Martin
concluiu, e não teria dúvidas, que o instrumento seria de fabricação ibérica, mais provavelmente
portuguesa: nada a ver, portanto, com a Alemanha ou outras regiões. O pesquisador apontou que o
nome do instrumento seria chitarra ou guitarra, mas na verdade, à época (século XVIII), segundo
diversos registros, chitarra seria o nome na península itálica; guitarra, na parte espanhola da península
ibérica; e na parte portuguesa, o instrumento seria chamado de "viola"... Mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
(Espetáculo "Concertos para Viola Urbana e Orquestra", Belo Horizonte / MG, 2015)
Embora apresentado como tese de doutoramento de Roberto Corrêa, aprovada por uma
grande universidade paulista, a década na verdade não teria sido de “avivamento da viola caipira”
(vez que o nome ainda não estaria consolidado), mas sim de um avivamento das violas enquanto
instrumentos musicais capazes de executar qualquer estilo, e se estava a começar a discutir
publicamente qual o nome mais adequado, além de se começar a estudar as origens do instrumento.
O autor da tese, compromissado publicamente com o caipirismo e grande formador de opinião no
meio da viola (por inegáveis méritos próprios), sendo secundado por centenas, ainda não veio a
público explicar-se sobre a discrepância entre sua tese e os dados históricos comprováveis (na
verdade, ignora ou até bloqueia quem refute aqueles equivocados apontamentos). Entretanto, o
mesmo vem desde o ano de 2016 citando mais detalhes de outros modelos de violas, e atualmente
apresenta espetáculo onde reúne em cena quase todos os modelos (o pesquisador ainda parece
desconhecer ou rejeitar dados históricos sobre o modelo Viola 12 Cordas, que realmente requer
mais profundidade, honestidade e especialização nas análises). Ou seja, a tendência é que em breve
ele se renda de vez à realidade histórica: só esperamos que não queira anunciar a descoberta como
de sua autoria, vez que ignora nossos aprofundamentos, descobertas e provocações.
Voltando ao tema (embora "pesquisas" também tenha a ver com “eruditismo”), em 1971,
também sobre a obra do grande compositor alemão Johan Sebastian Bach (1985-1750), foi lançado
o disco Bach na Viola Brasileira, pelo maestro paulista Ascendino Theodoro Nogueira (1913-
2002). Da melhor maneira que conseguiu, Theodoro transcreveu peças para viola dedilhada, a
partir de partituras que originalmente tinham sido criadas por Bach para outros tipos de
instrumentos, como violinos. As transcrições foram interpretadas e gravadas pelo violonista
Geraldo Ribeiro.
Haveria algum motivo para peças de Bach serem transcritas para instrumentos populares
como violas dedilhadas? Entendemos que sim, pois entre as décadas de 1920 e 1930 o guitarrista
espanhol Andrés Segovia (1893-1987) tinha encantado boa parte do mundo ao traduzir peças de
Bach para violão, colaborando muito para que aquele “irmão mais novo das violas e guitarras”
(apelidado pelos portugueses de “violão” ou “viola francesa” desde o início do século XIX) seja
hoje muito bem aceito em salas de concerto e, principalmente, em escolas de música. Não temos
dúvida que a intenção de Theodoro Nogueira teria sido atingir um reconhecimento semelhante
para as nossas violas, que então ele estava a pesquisar desde pelo menos 1963, e que ele sabia não
serem bem conhecidas sequer no Brasil, muito menos pela comunidade erudita musical ocidental.
Chegamos a localizar versão original (não divulgada antes em outros estudos) do artigo Anotações
para um estudo sobre a viola, de Theodoro, publicado em 24 de agosto de 1963 no jornal A
Gazeta, que traz interessantes apontamentos, além de boas referências. Inclusive transcrevemos o
artigo original e o deixamos à disposição, em nossas redes sociais, especialmente para os leitores
de nossos Brevis Articulus.
Este teria sido o caminho que as violas estariam a traçar, naturalmente, até serem
envolvidas em uma ação de mercado, que atrelou às vendas o sobrenome “caipira” e todo um
contexto de caipirismo, como se fosse “defesa de tradição ancestral”: o caipirismo, na verdade, é
um grande entendimento coletivo, desmentido por registros de época, que leva muitos a quererem
cercear o instrumento a determinados estilos e toques: um público fiel, fervoroso, mas pouco dado
a leituras de verdades históricas comprováveis. Gosta mesmo é de historinhas convenientes...
Por um lado, se não fosse impossível que o resto do mundo levasse a sério um entendimento
coletivo desmentido por fatos e dados históricos, talvez pudéssemos apresentar como “ineditismo
histórico mundial” o atrelar um instrumento musical a um determinado estilo, e seu nome a um
entendimento dito “folclórico ancestral”, porém consolidado apenas desde a década de 1970... Ou
seja: muito provavelmente seria o primeiro “folclore com valor retroativo” da História Mundial...
Não deixaria de ser ousado querer que o resto do mundo considerasse séria uma interpretação
furada assim, pois, pelo menos em nossas profundas pesquisas sobre a História dos cordofones
ocidentais, desde o século II aC. não encontramos nada semelhante... Mas, naturalmente, o resto
do mundo não cairia facilmente nesta história agradável e conveniente às vendas: talvez, só em
outros lugares onde se tivesse uma população de DNA religioso histórico, com pouquíssimo hábito
de leitura e que aprecie histórias agradáveis e convenientes, independente de confirmações por
registros de época. Não podemos negar que parece uma espécie de “inclusão social”, mas foi
inventada em função de uma, sem dúvida, genial estratégia comercial. Quem pouco lê jamais
buscaria pesquisar dados históricos para comprovar nada, ainda mais sendo agradável a egos e
outros interesses (como aos bolsos de quem lucra com o caipirismo de alguma forma). Afinal, “se
vende bem, que mal tem”?
De fato, o que constatamos e contextualizamos cientificamente (e pela primeira vez na
História), é que no Brasil, assim como em Portugal, as violas dedilhadas teriam evoluído como
Famílias de modelos de instrumentos similares, unidos pelo forte nome “viola”, e cujas diferenças
correspondem a contextos histórico-sociais com resquícios de fases históricas dos cordofones
ocidentais. Um tesouro histórico, portanto: e não um representante de culturas inventadas e ações
interesseiras (sejam comerciais, acadêmicas e/ou de defesa de egos).
O século XXI, na verdade e felizmente, aponta para um retorno ao que estava a surgir e
crescer na década de 1960 e que, graças aos novos estudos, não deverá ser novamente apagado por
entendimentos coletivos e interesses sem base em dados atestáveis. Desde 2005, ações espontâneas
vêm aproximando cada vez mais as violas dedilhadas do mundo musical normal e suas aplicações
múltiplas, em especial, também junto a verdadeiras orquestras.
“Verdadeiras” porque faz parte do entendimento coletivo chamar grupos formados por
apenas um tipo de instrumento de “orquestras de violas”... O mais preciso seria chamar estes
grupos de naipes (termo que aponta origem árabe) ou ensembles (termo francês), vez que a
principal característica das verdadeiras orquestras (conhecidas, talvez, no mundo todo) seja a
variedade de instrumentos, para prover variadas texturas à execução (e aos ouvidos e mentes,
naturalmente). Para aplicar o entendimento correto, entretanto, é necessário ter conhecimento
mínimo de música de verdade (um mínimo de leitura, hoje disponível gratuitamente até na grande
rede chamada internet).
Não é curioso que “orquestra” (a nomenclatura erudita convencional) chame a atenção e a
querência, mesmo de quem não parece estar interessado em ler (para se inteirar sobre música de
verdade, pelo mundo afora)? Este empréstimo do nome “orquestra” (de certa forma, até arrogante
ou pretensioso), pode nos deixar curiosos se teria alguma ligação com a aproximação natural das
violas (e outros instrumentos) com o eruditismo, com a prática de se estudar... Mas,
provavelmente, será apenas coincidência. Ou não? O assunto sugere até um Brevis Articulus
específico, outras prosas...
Presente nas grades como instrumento digno de bacharelados, mas infelizmente ainda em
pouquíssimas universidades, só aos poucos as fundamentações científicas e as práticas vão
apontando recuperação do lugar normal de qualquer instrumento musical com a capacidade que as
violas dedilhadas também têm.
Uma das ações mais diretas quanto à recuperação da normalidade seria o Reconhecimento
Oficial das violas como Forma de Expressão digna de registro junto aos Livros de Patrimônio
Imaterial, que pode levar até ao reconhecimento mundial pela UNESCO. Quando conseguido, as
escolas, a mídia e a opinião pública tenderão a voltar olhos para as curiosas (e exclusivas,
mundialmente) violas dedilhadas brasileiras e portuguesas; e trabalhamos para que atestações não
faltem para atender tais curiosidades. Já tentamos o Reconhecimento Oficial em 2017, tendo sido
conseguido apenas no âmbito Estadual, em Minas Gerais (em 2018); entretanto, para o
Reconhecimento Nacional ainda falta conscientização, interesse e engajamento pela classe
envolvida. Lerem um pouco mais sempre ajuda, e é por isso que nos dedicamos, voluntariamente,
à disponibilização gratuita de textos fundamentados. O tempo certo há de vir e já está a apontar...
só que aí já são outras prosas... Por hora, parabéns e sucesso ao Vinícius Muniz. Indicamos o
estudo e a aquisição (quem sabe, até como presente?) de seu belo trabalho.
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
On doit s'honorer des critiques, mepriser la satire, profiter de ses fautes et faire mieuax.
(“Devemos ficar honrados pelas críticas, desprezar as sátiras, aproveitar nossas faltas e fazer melhor”).
[creditado ao poeta francês Jean-Baptiste-Louis Gresset (1709-1777)
por Beaurepaire-Rohan, no prefácio do Diccionario de Vocabulos Brazileiros, 1889].
dos termos realmente indígenas caapora e curupira. Sobre Martius, o militar-dicionarista aponta
ter desconsiderado que o citado Glossaria é um estudo sobre línguas indígenas com citações em
outras três línguas (alemão, latim e português), além de também não considerar as diversas línguas
dominadas por Saint-Hilaire. O principal: o dicionarista desprezou que os estrangeiros apontaram
frutos de seus contatos diretos com indígenas, com os quais teriam recolhido os termos originais.
Saint-Hilaire chegou a apontar ter levado consigo dois indígenas para a França, ainda citados em
seus relatos da década de 1830, o que Martius também teria feito (só que para a Alemanha): teria
sido, portanto, um período considerável de contato direto com pelo menos uma língua indígena,
por professores universitários versados em várias outras línguas.
Não, não teriam sido estudos “etimológicos” propriamente ditos, os dos botânicos:
entende-se que Beaurepaire-Rohan (e depois Amadeu Amaral) assim os apelidaram como tentativa
de diminuir o valor dos esforços dos estrangeiros. Há neste sentido, nos dias atuais, diversas
citações sobre apontamentos pessoais de Hilaire, que são bastante convenientes para justificar um
“preconceito histórico”. Preconceito dos europeus quanto a nativos, certamente havia... A questão
é: isso muda a credibilidade dos registros e de estudos tão bem referenciados que ainda podem ser
checados? Ou teria mais crédito distorcidos e tendenciosos, sem apontamentos sem fontes?
Na verdade, é de inegável valor os estudos sobre aqueles termos (e diversos outros), mas
ao invés de considerar a legitimidade das fontes, a escolha dos brasileiros foi (e ainda é, às vezes)
de acreditar e divulgar outros significados: fantasiosos, apontados em dicionários por também não-
etimólogos, às vezes sem formação alguma; cheios de opiniões e teorias agradáveis, feitas sem
indicação precisa de fontes nem desenvolvimentos (o que é típico em conjecturas e invenções).
Deu para entender? Por algum motivo, desprezam-se os apontamentos dos estrangeiros,
não lhes citando os nomes e trabalhos, tirando sarro de suas capacidades, etc. Isto é fato... Já os
motivos deste tipo de atitude, repetidos ainda nos dias atuais, não podemos provar; talvez, por
“ciúme” dos estrangeiros terem pesquisado a sério e com competência línguas nativas brasileiras?
Talvez por descobertas e opiniões “desagradáveis” encontradas nos textos deles? Talvez pelos
apontamentos dos estrangeiros não se alinharem ou até desmascararem objetivos de entendimentos
específicos? Vai saber...
O visconde-militar-dicionarista iniciou seu verbete com a frase: “Caipira: s. m. [substantivo
masculino] (S. Paulo) nome com que se designa o habitante do campo” (onde o grifo em
sublinhado é nosso). Já o jesuíta português João Daniel (1722-1776), assim como Saint-Hilaire
(em citação ao próprio João Daniel) e ainda Martius teriam utilizado expressão semelhante, mas
não igual: "habitador de matos"... além de ter-se referido ao termo caapora, não a “caipira”. Os
dois termos são claramente diferentes, mas sem justificativa (talvez, por conveniência?) parece
fazer-se de conta que naquele caso seriam iguais, numa prática que ainda existe: uma imprecisão
chamada pseudoetimologia (e que preferimos chamar de “etimologia popular criativa”).
O mais importante é que todos os registros antigos se referiam a indígenas: a ligação de
“caipira” a “qualquer tipo de ser humano habitante de qualquer tipo de campo” já foi um
“entendimento peculiar” de Beaurepaire-Rohan que, mais tarde, aponta ter sido conveniente aos
propósitos de Amadeus Amaral; este ainda fez pior: resolveu “traduzir”, por sua conta, como
“habitante da roça” em seu Dialeto Caipira. Esta reinterpretação (também "peculiar") aponta ter
sido conveniente aos propósitos de Amadeu Amaral, que seguiu distorcendo significados,
arbitrariamente. Assim, a “mata mais densa”, segundo os indígenas, teria se tornado sinônimo de
“campo” e, enfim, de “roça” de homem branco paulista, e tudo isso sem apontamento de registros,
desenvolvimentos nem justificativas. Não é observado em registros de época: só na opinião
daqueles intrépidos críticos de etimologistas, que não teriam tido contato com indígenas (e na
conveniente crença de quem opta por seguir cegamente, até hoje).
Na sequência, após ter indicado “S. Paulo” no início do verbete, o militar-dicionarista
listou, com a grafia de 1899:
“[...] Equivale a Labrego, Aldeão e Camponez em Portugal; Roceiro no R. de Jan., Mat.
Gros. e Pará; Tapiocâno, Babaquára e Muxuango em Campos dos Goytacazes; Mattuto em Minas-
Geraes, Pern., Par de N., R. Gr. do N. e Alagoas; Casaca e Bahiano no Piauhy; Guasca no R. Gr.
do S.; Curau em Sergipe; e finalmente Tabaréo na Bahia, Sergipe, Maranhão e Pará”.
É bastante peculiar a lista apresentada, onde se vê o que poderíamos também chamar de
“apelidos”: algumas vezes é apontado mais de um apelido por Estado, possivelmente tendo em
comum apenas que todos seriam relacionados a interioranos. Entre os estudos sobre palavras
antigas que conferimos (desde Isidoro de Sevilha, do século VI), esta talvez seja a mais criativa
citação, com a diferença que Isidoro apontou muitas fontes, a maioria delas checável até os dias
atuais. Vosso amigo Visconde, por outro lado e dizendo bem no popular, “viajou nas batatas” por
conta própria, "sem medo de ser feliz"...
Ainda pela interpretação “peculiar” e pessoal de Beaurepaire-Rohan, “caipira” só poderia
ter tido origem no Brasil e, a partir daqui ter chegado a Portugal. Ele não teria considerado que o
caminho inverso seria tanto possível quanto o de contextualização mais provável (portugueses
inventarem apelidos pejorativos contra brasileiros, a partir de nomes indígenas sobre lendas, seres
fantásticos, etc.). Para o dicionarista, portanto, parece que o Atlântico seria "mão única"...
Uma pequena análise sobre contextos histórico-sociais desde que D. João VI trouxe a sede
do Reino para o Brasil (1808) é suficiente para entender a animosidade dos gajos contra brasileiros;
entretanto, contextos histórico-sociais não são observados nas publicações dos brasileiros que
citamos aqui. O militar também parece não ter tido acesso, por exemplo, ao jornal O
Constitucional, de 03 de julho de 1822, onde em resenha da página 37 há evidências de que
“caipora” já teria sido um apelido político utilizado contra os defensores da Monarquia plena desde
antes daquela data, assim como “caipira” também apareceu como apelido político, por exemplo,
no jornal O Tamoyo de 02 de setembro de 1823, à página 06.
Seguindo a somatória de interpretações "peculiares" (infelizes, ou distorcidas por alguma
razão), o dicionarista apontou que o que foi apontado pelos indígenas serviria automaticamente
para todo tipo de ser humano, ou seja, que o “mato fechado” daqueles seria a mesma coisa que “o
campo” dos brancos. O criativo militar teria chegado à conclusão também que aqueles apelidos de
interioranos pelo Brasil seriam, todos, equivalentes a “caipira”. Sequer lembrou-se de citar o uso
de “caipira” como apelido político, que àquela altura (1889) já era apontado em vários dicionários,
além de jornais e outras literaturas, tendo registros pelo menos desde a Guerra dos Dois Irmãos
em Portugal (1832-1834).
Parece, a princípio, que pudesse ter escapado ao esforçado “colecionador de termos”, entre
outros detalhes, que “caipira” teve registro em jornais de várias regiões do Brasil além de São
Paulo, como Pará, Pernambuco, Mato Grosso, Paraná, Maranhão e, com grande incidência, no Rio
de Janeiro, Estado natal e no qual mais teria vivido Beaurepaire-Rohan. Não se concebe,
entretanto, que o dicionarista não tivesse pesquisado em jornais: portanto, sua lista só pode
significar que os locais relacionados aos termos seriam “os de maior incidência deles”, mas não
seriam de uso exclusivo daquelas regiões. O apontamento de apelidos que seriam utilizados em
regiões diferentes aponta também que não havia exclusividade. Além de tudo isso, “caipira” não
era aplicado somente a pessoas do meio rural, mas... para Amadeu Amaral (e tantos outros que o
seguem até hoje), parece ter sido (e ainda ser) conveniente não considerar nenhuma destas
reflexões óbvias, embasadas no próprio dicionário mais antigo: muitos são os que ainda apontam,
"peculiarmente" que existiria uma “cultura caipira paulista”, inclusive com um “dialeto” próprio...
Muito curioso é que se o dialeto de Amadeu Amaral era “caipira”, então “caipira” teria
sido o termo mais importante daquela publicação, certo? Pois exatamente daquele termo não é
apontada a origem, e sim como “[...] palavra de aspecto indígena, real ou aparente” e, conforme já
dito, o autor zombou da “imaginação dos etimologistas”. Quais etimologistas? Se Amadeu Amaral
os verificou, não os quis apontar... Entretanto, também curiosamente (ou “peculiarmente”), não
teve dúvida em apontar que “caipora” derivaria de caapora “mais de acordo com a etimologia”,
segundo ele, citando aquele termo entre nomes de demônios dos “caipiras paulistas” (e, portanto,
não de indígenas): “o caipora, o currupira, o saci, o bitatá”. Para Amadeu Amaral, portanto,
“caipora” vir de caapora seria normal; mas “caipira” vir de curupira seria “imaginação dos
etimologistas”; ele inclusive separou bem os dois termos, sempre de acordo com significados
colhidos em dicionários (!). Amadeu Amaral parece ter grafado erroneamente “currupira” e
“bitatá” (este último, ao invés de “boitatá”), mas pode ter sido erro gráfico ou de revisão da edição
que checamos. Se não foi erro gráfico, apontaria que o autor não teria lido com atenção as grafias
apontadas nas fontes, ou seja, que não estaria acostumado a observar cada letra, o que é
imprescindível e fundamental a qualquer estudo sério sobre palavras...
Podemos dizer que se Amadeu Amaral fosse um linguista (o que não apontou ser, mas
muitos o consideram), teria sido, por sua vez, um estudioso bem seletivo e despreocupado em
apontar fontes e desenvolvimentos científicos... Mas que se julgou capar de organizar um léxico,
apontando significados de diversas palavras. Tanta incoerência para tentar provar a existência de
uma “cultura”? Pelo menos é o que apontam os fatos. Destaca-se que ambos os dicionaristas
diminuíram a importância e até criticaram “etimologistas”, mas de fato eles também não teriam
formação (nem competência, o que se comprova pelas publicações) sequer para tentar fazer o que
fizeram. Como ainda assim o fizeram, entende-se que teriam tido fortes motivações.
Não se pode provar por quê, mas, no mínimo, imaginamos que seria difícil justificar, por
exemplo: como termos que significavam “indígenas do mato mais profundo”, que depois geraram
um apelido político, poderiam ter mudado para “habitante da roça paulista”?... Seria necessário
apontar, pelo menos, vários registros indicando a transição e algum contexto (como nós fazemos,
quando há mesmo ressignificações). A aquela “transição mágica”, porém, temos que apontar
crédito a Amadeu Amaral e a Cornélio Pires, pois, graças ao empenho deles, a partir do início do
século XX o significado popular de "caipira" passou a ser o mais visto em dicionários (!), diferente
dos demais significados mitológicos e fantásticos dados aos demais termos, que são os nomes de
“demônios” que Amadeu Amaral fez questão de separar de “caipira”: corupira, caapora e
"caipora". É fato: a citada “cultura” só teria “passado a existir” depois de Cornélio, Amadeu e dos
muitos que os secundaram, sem contestação.
[Isso teria algum problema? Afinal, palavras mudam de significado às vezes, pelos séculos,
principalmente por passarem por línguas e culturas diferentes... Sim, acontece: só que no caso de
"caipira", evidencia-se a dedicação pela mudança de significado a partir de um interesse comercial
explícito (venda de livros, palestras, discos, cursos, aulas, shows, etc.). Seria problema? Tudo
indica que não, afinal, o que é o chamado "natal" senão uma interpretação peculiar para justificar
e alavancar o maior período de vendas anuais em grande parte do mundo?].
Amadeu Amaral era um ser humano. Apesar de ter se esforçado, não pode ser considerado
um cientista, pois não apontou claramente, naquele livro, desenvolvimentos que teria feito para
justificar afirmações e, sobretudo, fontes de época nas quais teria se embasado. Sequer os dados
de sua “pesquisa de campo” teriam sido apresentados, demonstrados, usados nas justificativas de
significados arbitrados no livro. Quantas localidades teriam sido pesquisadas? Quantas e qual tipo
de pessoas foram entrevistas? Qual a representatividade estatística delas pelo menos quanto ao
Estado de São Paulo?
Cornélio Pires teria se embasado ainda menos em dados (se é que pesquisou), mas é sempre
bom lembrar que suas publicações eram claramente artísticas, inclusive cheia de anedotas. Foi um
empresário genial, visionário e obstinado, mas um vendedor: jamais um cientista, um estudioso.
Algum problema está em quem entendeu (e ainda entende) as colocações daqueles distintos
senhores como científicas; isto aponta ter começado com o muito respeitado sociólogo Dr. Antônio
Candido, que entre as décadas de 1950 e 1960 teria apontado em sua tese de doutoramento, e
depois no livro Parceiros do Rio Bonito, que a “cultura caipira” seria um dado científico válido.
Ainda pior, Candido, ao “peculiarmente” (ou convenientemente) também entender que “caipira”
seria de origem paulista, indicou associação daquela dita “cultura” a uma grande região chamada
“paulistânia” (outro “entendimento peculiar”). Tudo isso, Candido apontou no livro via citações
simples e curtas, sem apresentar desenvolvimentos, nem comprovações científicas básicas como,
por exemplo, pesquisa de campo suficiente para apontar as diferenças e semelhanças entre a
“cultura” da região alegada e as do restante do país. Uma pesquisa de campo teria sido feita em
área estatisticamente irrisória, se comparado à enorme área alegada. Destaca-se que, neste último
caso, a ampliação arbitrária (de um entendimento particular de um vendedor, para uma extensa
área “de dominação ou incidência”), seria bastante agradável aos eleitores de São Paulo, onde
Candido foi candidato a Deputado...
Apesar de tudo isso, vários estudiosos e outras pessoas acharam (e ainda acham) agradável
secundar aquele ainda mais peculiar entendimento de Candido, sem discussão. Sejam quais forem
as intenções e/ou afinidades, certo é que o procedimento não foi científico... E nem sequer próximo
de evidenciar qualquer verdade.
Toda “interpretação” ou “entendimento peculiar” só causa problema se, por acaso, alguém
depois resolver utilizar como embasamento de novas colocações e propósitos. O bom mesmo,
independentemente de quem tenha escrito alguma coisa, é sempre checar fontes,
desenvolvimentos, possível evidência de verdade histórica por vários ângulos; e, se for mesmo
utilizar as colocações, apresentar todo o desenvolvimento, principalmente caso não tiver sido
apresentado antes. Naturalmente, apontando claramente todas as fontes consultadas. Se não, o
risco de dar seguimento a equívocos é bastante grande. Ou seja: “fazer melhor”, conforme a citação
da abertura... lembra?
Naturalmente, o Brasil tem liberdade de Credo: cada um pode acreditar no que quiser,
independentemente de comprovações. Também é o Brasil um país capitalista, onde se aceitam
vários tipos de ações de venda (marketing) igualmente sem a obrigação de terem fundamentação
científica válida, nem historicamente comprováveis: “compra” quem quiser, sejam as ideias ou os
produtos e serviços ofertados. E de forma alguma é crime gostar de histórias agradáveis,
convenientes, que fazem tão bem a egos e bolsos.
Está tudo certo: então, muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
5
Sobre a tradução: fidicen (na flexão fidicinem) é muito traduzido como “tocador de cordofone”, porém, como em
fontes observadas desde Cicero (ca.106-ca.46 aC.), entende-se que naquele caso Cambrensis não teria se referido ao
tocador, mas ao tipo de toque: um toque "de cordas", diferente de tibicen ("de sopro"). Estes são os dois tipos mais
citados na antiguidade, tanto que confundidos algumas vezes. Pelo observado na sequência do texto, a referência teria
sido ao “tocar fides (cordas) acompanhado de canto (cano, em latim, na flexão cine)”. Já sobre praecentorem, palavra
hoje não apontada em dicionários, entende-se como relativa a praeceptor (“instrutor, professor”).
partir do início do século XX, aqui no Brasil: incidência que creditamos à dedicação do genial
empresário cultural paulista Cornélio Pires (1884-1958), conforme citamos no nosso livro A
Chave do Baú.
Frisa-se: Cornélio Pires aponta ter batizado de “moda-de-viola” uma maneira específica de
tocar viola e cantar em duetos simultâneos; estes que, até hoje, seriam principalmente duetos
terçados paralelos (ou seja, cada nota musical da melodia, tanto dos instrumentos quanto dos
cantos, é acompanhada de um par, este de notas em intervalos de terça ou sexta, maior ou menor,
na maioria das vezes).
O inteligente e perspicaz empresário tenha sido capaz de observar e, se não tiver criado,
pelo menos divulgou com grande ênfase um interessante nome para o fenômeno (ou “técnica”).
No entendimento popular, até os dias atuais, utiliza-se o termo “moda-de-viola” sem muito critério,
muitas vezes para qualquer tipo de música executada com violas dedilhadas. Em nossa observação,
também provavelmente pioneira, esta generalização teria acontecido por curiosa coincidência de
certo “legado” dos significados originais dos termos: “moda”, pelo menos desde o século XVIII,
teria sido utilizada por portugueses como genérico para qualquer tipo de canção; e “viola”, do
século XIV ao XIX, foi muito utilizado pelos portugueses como genérico para qualquer tipo de
cordofone portátil, como alaúdes, guitarras e vihuelas. Afirmamos que nossa observação pode ser
pioneira porque um dos nossos generosos consultores, o Dr. Rafael Garcia, que fez inclusive
dissertação de Mestrado sobre “moda-de-viola” (esta grafia, ligada por dois hifens, foi aprendida
com ele, inclusive), nos disse nunca ter ouvido falar de análises sobre a coincidência antes de nós.
É curioso... mas não é lenda nem invenção: é atestável por vários registros de época e por
contextos histórico-sociais: chamar pelo genérico “moda” simplesmente “qualquer música” tocada
por “violas” (ou seja, “por qualquer cordofone portátil com braço”), faz sentido a portugueses que
historicamente apontam não gostar de chamar seus cordofones por nomes que remetessem a
culturas dissidentes, como a moura e a espanhola.
A junção de dois genéricos teria então gerado um terceiro nome: um nome composto que,
parecendo sina, castigo ou "legado", depois se tornaria também um genérico, na boca do povo.
Isso aponta como são passíveis de serem “joios” os entendimentos que não se baseiam em
registros, os famosos “boca a boca” (e que parecem acontecer “só nas bocas” mesmo, sem passar
pelos cérebros) ...
[Naturalmente, este último comentário incluímos como provocação, como fazemos muito
aqui, pedindo e já contando que ninguém nos leve a mal pela brincadeira].
A existência daquele determinado tipo de execução de “voz e cantos em duetos paralelos”,
mesmo com um nome específico e oportunamente criado, não comprova que tenha sido inventado
no Brasil, como vários caipiristas gostam de acreditar. No máximo, do nome "moda-de-viola" há
evidência estatística que aponta que teria surgido na época de Cornélio Pires... mas só aquele nome.
Para desdizer o enganoso entendimento, “bastaria” apontar existência anterior da técnica: não é
fácil, nem se explica com poucas palavras, mas é possível de ser feito. Façamo-lo, pois!
A quem estudar pelo menos um pouco de História da Música tonal ocidental não é difícil
constatar que as modas-de-viola refletem um período acontecido entre as já muito estudadas fases
evolutivas chamadas MONOFONIA e POLIFONIA: a monophonia (“um som”, em grego), teria
ocorrido em tempos de predominância de cantos em uníssono, como os chamados solos a Capella
e o Canto Gregoriano; e a poliphonia (“vários sons”), seria a última fase evolutiva, que é a
praticada até hoje, quando variações de melodias se intercalam e se completam em acordes,
contracantos e outras técnicas, por exemplo, e com destaque, nas execuções orquestrais. Entre
outras atestações, só das linhas melódicas ainda serem chamadas de “vozes”, mesmo quando
executadas por instrumentos musicais, evidencia-se que a origem veio das práticas de canto,
antecessoras históricas.
O desenvolvimento teria começado em estudos dos intervalos musicais, que teriam sido
mais enfatizados em território europeu a partir do monge italiano Guido D’Arezzo (992-1050),
autor de publicações como o Micrologus, do qual conferirmos edição de 1026. Não se acredita
que teria sido por coincidência o aumento de investimentos em um tipo de música diferente da
árabe/moura, exatamente na mesma época de outras ações de rejeição a aqueles "hereges e infiéis",
como as Cruzadas. Alguns estudiosos apontam, com certa razão, que notações em pauta com
intervalos musicais já seriam estudados desde Boethius, no século VI (publicação De Institutione
Musica), mas entende-se ser importante observar que estudos anteriores aos de D’Arezzo ainda
não utilizariam sete notas, as quais inclusive se credita a ele ter dado nomes (Dó-Ré-Mi-Fá-Sol-
Lá-Si), a partir de iniciais de um Hino a São João (na História, se tem "João" no meio, normalmente
é porque é "bão", diga-se de passagem e de brincadeira...). Mas concluindo o parágrafo de forma
bem séria, sobretudo entende-se que por serem estudos oriundos da Igreja, presente e influente por
todo o território europeu, a difusão dos estudos de D'Arezzo teria sido bem mais significativa que
de outros estudos, como o citado, de Boethius, e o também muito citado Musica Enchiriadis, de
autor desconhecido, também estimado ao século XI.
Execuções de solos de instrumento de corda com cantos em paralelo, com aplicação de
intervalos musicais (chamados “duetos”), como são as modas-de-viola, apontam características da
época do Trovadorismo, antecessor da polifonia e até da utilização de acordes como bases para
cantos e solos: uma fase evolutiva apontada como HOMOFONIA (homophonia, “mesmo som”,
em grego); ou seja, não era mais apenas uma "voz": seriam várias, mas ainda em paralelo, onde
acompanhamento e solo seriam como um "mesmo som". Assim, localizamos no tempo práticas
como as modas-de-viola aproximadamente entre os séculos XI (quando já seriam divulgados pela
Igreja estudos sobre intervalos) e o século XII, quando localizamos mais remotos estudos sobre
acordes, por exemplo, no tratado Quӕstiones in musica, atribuído ao padre francês Rudolf of St.
Trond (1070-1138).
É bom lembrar que a música original dos menestréis mouros, invasores da Península
Ibérica (música então chamada “atonal”), não aponta o uso de acordes. Deles também teria vindo
a liberdade de fazer música “fora dos domínios da Igreja”, à qual não estavam subordinados por
serem de outras culturas, a maioria muçulmanos. Acordes teriam sido inseridos, portanto, por
europeus, mas que acabaram por aderir à prática trovadoresca mambembe, originalmente moura,
e por isso aqueles e outros "sucessos mouros" teriam despertado reações na então dominadora
Igreja. Evidencia-se o início do uso de acordes também pelos chamados toques “rasgados”
(rasgueados, em occitano, catalão e espanhol), quando todas as cordas são tocadas ao mesmo
tempo: depois, já em época de polifonias, observam-se mais narrativas de toques “ponteados”
(punteados).
Este desenvolvimento, com apontamento de alguns registros, talvez já fosse suficiente;
entre outros estudiosos, foi também apontado pela musicóloga espanhola Rosário Martinez em sua
embasada tese Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media, de
1981; mas o bom mesmo é encontrar registros de época para sustentar definitivamente, concorda?
Pois recentemente encontramos talvez o mais remoto registro... e foi por pura sorte,
enquanto estávamos a “dar mais uma olhada” em fontes sobre os termos fides ("cordas", em latim)
e fidicula, seu diminutivo. Em coincidência já um pouco assustadora, aqueles dois nomes em latim
teriam sido utilizados exatamente como genéricos (!) pelos romanos, para designar cordofones e,
até hoje, são equivocadamente traduzidos como se tivessem sido lyra, cithara ou outros
instrumentos, mas é pura superficialidade, puro “joio”: só se pode afirmar, com base nos registros,
que teriam sido “cordofones” (ou seja, instrumentos de corda) e não especificamente liras, citaras
e outros instrumentos já existentes, inclusive citados algumas vezes junto a fides (quando, portanto,
não poderiam ter sido a mesma coisa).
Não podemos deixar de dar crédito ao musicólogo estadunidense William Smythe Babcock
Mathews “W.S.B. Matheus” (1837-1912); em publicação de 1891 do livro A Popular History of
the Art of Music (“Uma História Popular da Arte da Música”), à página 46 nos chamou a atenção
o uso do nome latino fidicula, embora ali com a flexão grafada incorretamente (“fidiculare”,
quando deveria ser fidiculam) e com apontamento de data também equivocado, em inglês: eleventh
century (“século XI”, quando na verdade descobrimos que foi no século XII).
Os pequenos equívocos (sejam gráficos ou do próprio autor) não fariam muita diferença,
pois nossa metodologia aponta para a checagem de originais, pelos menos os mais remotos que
conseguimos: foi assim que chegamos ao texto destacado na abertura deste Brevis Articulus, que
teria sido escrito em latim pelo religioso e historiador britânico Giraldi Cambrensis (citado às vezes
como “Geraldus Cambrensi”, “Gerald Barry” ou “Gerald of Wales”) e que, conforme também já
destacamos, teria nascido no século XII (ano 1146), não no século XI, como equivocadamente
apontado na edição investigada do livro de Mathews. Na verdade, não são raras, e são
compreensíveis as traduções equivocadas do latim feitas por ingleses, alemães e outros nativos das
línguas "germânicas".
Observamos mais alguns equívocos de tradução do latim para o inglês (como o termo
tibicinem, relativo a instrumentos de sopro e não o correto, fidicinem) e, principalmente, um
fundamental equívoco de interpretação: para Mathews, na narrativa de Cambrensis o Rei Richard
de Clare, em deslocamento entre a Inglaterra e o País de Gales, “[...] dispensou seus assistentes e
perseguiu indefeso sua jornada, precedido por um menestrel e um cantor, um acompanhando o
outro com um fiddle” (Mathews, 1891)6; fiddle, no caso, é também um genérico (!) muito usado
em textos em inglês para cordofones friccionados por arco (em alemão vê-se usar o equivalente
fidel, e em textos em espanhol e português já vimos fidula).
Estes últimos genéricos (!) são outros exemplos de “interpretações superficiais populares”
(ou “joio”, como estamos a dizer aqui), por sua vez mais prejudiciais por serem largamente
utilizados até por estudiosos: atenta-se que ao tempo das fidiculas ainda não haveria registro de
utilização de arcos em território europeu, tendo aquelas sido, portanto, instrumentos dedilhados.
Cada vez mais espantoso, portanto, se mostra o uso de nomes sem fundamentação correta, se
pensarmos nas fidiculas como possíveis “tataravós” das atuais violas, estas que séculos mais tarde
sofreriam o mesmo problema (de apontamento inadequado de nomes), pelo fato de serem tocadas
de duas maneiras diferentes (dedilhadas e/ou friccionadas). Isso acabou por se consolidar no nome
bivalente vihuela (em espanhol, usado até o século XVI) e “viola” em italiano (até o século XVI),
além de ainda ser bivalente em português até os dias atuais. Sim, esta é a origem da nossa atual
bivalência, ou “um mesmo nome para dois instrumentos tocados de maneiras diferentes”, que
detalhamos em nosso livro A Chave do Baú e até em um Brevis Articulus específico: são prosas
passadas...
Voltando a Mathews, e o engano dele na tradução/interpretação: na verdade, pelo contexto
e análise do discurso original em latim, Cambrensis teria utilizado uma figura de linguagem, não
tendo se referido à presença física de músicos. O trecho completo descreveu a insensatez de um
monarca ao entrar numa floresta com poucos homens, desarmados: aqueles homens teriam seguido
o líder deles “como as notas do cordofone seguiam as do canto” (conforme já destacado e
traduzido, na abertura desta nossa prosa). O equívoco, que também observamos em outras
traduções convencionais, é de considerar que em toda e qualquer circunstância o termo fidicinem
significaria “tocador de cordofone”: neste caso, como em outros, nossa experiência como
instrumentista (em especial, tocador de viola, com muito orgulho) faz uma diferença raramente
observada entre estudiosos (favor conferir os rodapés sobre as traduções que fizemos).
Esta descoberta já seria, em si, bastante interessante, pois cita duetos similares aos das
modas-de-viola modernas, certo? Porém mais se descobriu nos relatos do religioso Cambrensis,
que teria viajado bastante pelo então território europeu da época e, para nossa sorte, teria bom
conhecimento musical e atenção a detalhes. No capítulo “Canções Sinfônicas e Cantilenis
Organicis” (esta última expressão, que traduzimos do latim como “Cantorias Populares”),
descreveu que entre povos ancestrais da hoje chamada Grã Bretanha haveria cantos coletivos bem
“diferentões”, por não serem em uníssono, mas com muita vocum varia (“variação de vozes”).
Cambresis também apontou que ainda mais ao Norte, “além da Humbria, nos limites de York”,
6
No original: "he dismissed his attendants and pursued his journey undefended, preceded by a minstrel and a singer,
the one accompanying the other on the fiddle".
haveria ainda outro tipo de canto harmonizado, com uma particularidade: seria “a duas vozes,
diferentes apenas pelos tons e modulações variadas: uma abaixo, mais murmurante, e outra, acima,
ambas ao mesmo tempo emocionantes e deliciantes”7. Este trecho checamos também a partir de
transcrições de vários manuscritos que teriam sido investigados pelo clérigo e historiador inglês
James F. Dimock (1810-1876), livro Giraldi Cambrensis Descriptio Kambriae da compilação
Chronicles And Memorials of Great Britain and Ireland during the Middle Ages (“Crônicas e
Memórias da Grã Bretanha e Irlanda durante a Idade Média”), publicada em 1868. Normalmente
cruzamos informações de no mínimo duas fontes e traduzimos aplicando análises de discurso (e/ou
"literatura comparada") pelo tipo de texto e, claro, pela nossa vivência musical / literária que já
passa de quarenta anos... (aí, sim, é que tem muita "prosa passada"...).
Cambrensis ainda teria acrescentado, sobre aquela curiosa técnica, que quase todos
(inclusive as crianças), pela prática por longa data não cantavam em uníssono ou em múltiplas
vozes, mas só saltem dupliciter (“em duetos”); e que, por ter observado apenas em populações
mais ao Norte, poderia ter sido herdado de dinamarqueses, noruegueses e similares, que teriam
influenciado mais aquela região (o que é também apontado por historiadores atuais).
Dos registros de Cambrensis (portanto, do século XII), temos notas musicais emitidas por
cordofones em correspondência a notas cantadas, e cantos em duas vozes, não tendo sido
infelizmente apontado quais os intervalos musicais utilizados nos duetos, apenas que uma das
“vozes” (entenda-se “linha melódica”) seria mais grave e com menos volume que a outra, o seu
par direto, agudo: exatamente o que ainda acontece nas modas-de-viola e outros duetos terçados,
em vozes hoje chamadas popularmente “terça abaixo” e “terça acima” (às vezes, mesmo quando
outros intervalos são utilizados), ou “primeira e segunda vozes".
Para situar como aquele costume pode ter chegado a Portugal, onde pelo menos a partir do
século XVIII já seriam observados registros de modinhas cantadas em duetos terçados, segundo
Castagna (2003, p.2) e, de lá, para as modas-de-viola brasileiras, acrescentamos que a cultura celta
(de povos de regiões chamadas Galia, depois também Normandia, onde hoje seriam a Bélgica,
Dinamarca, Noruega e vizinhanças), aponta ter-se espalhado por grande parte do território
europeu, incluindo a península Ibérica (termo grego) ou Hyspanica (termo romano). Outro fator
de expansão do tipo de cantoria, já citado, teriam sido os Trovadores: estes, com poesias / cantos
acompanhados por cordofones, teriam surgido a partir do século VIII pela chamada Invasão Moura
da mesma Península (que inclui a região já chamada Lusitania, pelos romanos: hoje, Portugal). O
trovadorismo, então já largamente encampado por europeus, atingiu o auge nos séculos XII e XIII
também por praticamente todo o território europeu da época, inclusive o arquipélago britânico.
Trovadores teriam influenciado a mescla de costumes e de línguas em evolução, não sendo
coincidência que exatamente no citado auge do Trovadorismo se tenham registros do surgimento
do nome viola para instrumentos musicais, em latim, occitano, catalão e espanhol, além de mais
de uma dezena de variações próximas em outras línguas em evolução à época... mas aí já são outras
prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
7
No original: "[...] binis tamen solummodo tonorum differentiis, et vocum modulando varietatibus; una inferius
submurmurante, altera vero superne demuleente pariter et delectante".
dedilhados quanto friccionados por arco (pouquíssimos estudiosos pelo Ocidente teriam relatado
e considerado a fundo nas equações investigativas este resquício histórico).
Resquícios de todas aquelas fases se comprovam via instrumentos remanescentes, registros
de época e contextos histórico-sociais como a contínua disputa entre espanhóis e portugueses e as
fases da Revolução Industrial (que trouxeram grandes mudanças sociais, exatamente e também
não por coincidência quando se constata o já citado período de transição).
O nome "viola" acabou por se tornar um elo, pela preferência portuguesa praticada por
séculos; e ajuda a contextualizar a classificação mais plausível dos conjuntos de cordofones,
reforçada pela coerência com a História brasileira, cuja principal característica é a diversidade:
nosso conjunto é bem diferente, portanto, da família das violas portuguesas, que apresentam
consolidações relativamente mais padronizadas.
Descartando nomenclaturas genéricas e/ ou afetivas como "viola cabocla", "viola divina"
e similares, além de modelos que (ainda?) não se consolidaram por mais regiões do território
brasileiro (como as raras “Violas de Queluz”, ainda radicadas em Minas Gerais), formam hoje a
Família das Violas Brasileiras, pela ordem cronológica dos resquícios históricos:
apoio também via pantomimes (“gestos, movimentos”) e por batidas que servissem de percussão
também improvisada, de objetos feitos de ferro, conchas, caixas, latas, madeiras e outros.
- outro grupo (ou “nação”) não seria cantante, só usaria palmas expressivas e bem
sincronizadas. O francês os apontou como mais bárbaros, mas nos parece mais conjectural ainda,
pois o não uso da voz em alguma execuções não prova nada, inclusive que não cantariam em outras
circunstâncias; e a musicalidade africana é complexa e diversificada, ou seja: um aparentemente
“simples bater de palmas” não significa que seriam pouco evoluídos.
O francês descreveu aqueles dois primeiros grupos como ensemble parfait (“conjunto
perfeito”): se observarmos bem, uma soma das execuções listadas (cantoria e percussões
improvisadas, respostas em coro, bater de palmas sincronizado) ainda pode ser observada em rodas
de samba, pagodes, siriris, cururus, calangos e outras manifestações regionais pelo Brasil.
Outras nações, que Debret apontou como Benguehs et Angolais (“Benguelas e
Angolanos”), seriam mais musicais, segundo ele, por serem também notáveis construtores de seus
próprios instrumentos, dos quais ele listou quatro tipos:
- marimba (hoje citada por alguns como kalimba);
- viole d'Angola, espèce de lyre à quatre cordes ("Viola de Angola, espécie de lira de quatro
cordas"), que indica que seria instrumento dedilhado;
- violon (espécie de "violino", de uma só corda tocada por um pequeno arco, cujo corpo
seria um côco, segundo o francês, mas que poderia ter sido uma pequena cabaça);
- oricongo (que pelas descrições e imagens seria um berimbau).
Alguns daqueles quatro tipos de instrumentos também teriam sido vistos por outros
visitantes estrangeiros: a ilustradora britânica Maria Graham, em 1821, conforme seu livro
Journal of a voyage to Brazil (na publicação de 1824, ver página 199); o padre Robert Walsh,
segundo o livro Notices of Brazil in 1828 1829 (publicação de 1830, volume 2, ver página 186) e
o botânico austríaco Johan Emanuel Pohl, entre 1817 e 1821, segundo seu livro Reise im innern
von Brazilen (1832, volume 2, páginas 70-71). Em todos os livros só foram observadas ilustrações
de marimbas e berimbaus. Debret chegou a registrar desenhos de cordofones arredondados e
abaulados, mas muito bem acabados, que não seriam jamais os rústicos, dos escravizados (era
costume incrementar alguns desenhos depois, para inserir nos livros, quando então seriam
utilizados modelos de instrumentos europeus, não os realmente vistos por aqui).
Curiosamente, um pouco antes (em 1757), outro explorador francês, identificado apenas
como “M. de la Flotte”, teria visto, tanto no Brasil quanto na Índia, instrumentos que descreveu
como mauvaise guitarre (“guitarra rústica”) e como espéce de guitare (“uma espécie de guitarra”).
Nas narrativas do que teria visto na Índia, Flotte descreveu que os instrumentos seriam como
“cabaças grandes com cabo comprido onde se prendem uma, duas ou três cordas” e que
acompanhariam cantos. Na Índia, outra coincidência seria que o que ele chamou de indiens (sem
citação sobre cor da pele nem se seriam escravizados) também executariam danças com
movimentos lascivos, como observado por dezenas de narrativas de nossos batuques e lundus por
aqui. Estas descrições de Flotte observamos no livro Essais historiques sur l’ude précédés d’um
journal devoyages (em edição de 1769, páginas 211 a 216).
De todas estas fontes, traduzimos por “cabaça” os termos em inglês gourd e calabash; em
francês, calebasse e em alemão, Kurbisschale (literalmente, "casca de abóbora"). Estas
pouquíssimas citações seriam as únicas desde banza (citada uma vez em um poema creditado a
Gregório de Mattos, do século XVII) e as Violas de Cabaça construídas pelo luthier e violeiro
paulista Levi Ramiro a partir da década de 1980. Banzas realmente teriam sido instrumentos
africanos com cabaças utilizadas como caixas, famosos em Portugal (onde Gregório teria
estudado) e que apontam ter influenciado o banjo estadunidense, inicialmente também feito com
cabaças; entretanto consideramos o número de citações no Brasil muito pequeno, indicando que
não teriam sido de fato “Violas de Cabaça” as utilizadas por Gregório de Mattos: nos poemas só
foram observadas como citações claras a instrumentos musicais os nomes descante, machinho,
guitarra, guitarrilha, bandara e, mais vezes, “violas”. E também concluímos que Violas de Cabaça
não teriam existido nos primeiros séculos, mas o boato (ou equívoco) teria sido forte o suficiente
para o surgimento no Brasil, séculos depois, estando o modelo hoje consolidado.
Voltando a Debret, na ilustração Planche 41, indicada no trecho analisado e aqui destacada
na abertura, observam-se três pretos: uma mulher adulta assentada, tocando marimba; um senhor
mais idoso, em pé, de olhos fechados, tocando um berimbau; e um jovem, também em pé,
carregando uma cana de açúcar. Debret legendou assim a ilustração:
"[...] representa a desgraça de um velho escravo negro reduzido à mendicância. A cegueira
trouxe sua emancipação: generosidade bárbara muitas vezes repetida no Brasil pela avareza. Seu
pequeno guia carrega uma cana de açúcar, esmola destinada à alimentação comum. A musicista
toca marimba e, pela atração da harmonia musical, aproxima seu instrumento do companheiro,
sobre quem lança um olhar fixo e delirante”.
Debret ainda acrescentou: “marimba, espèce d'harmonica, é constituída por lâminas de
ferro fixadas a uma tábua de madeira, e apoiadas por um cavalete. Cada uma dessas lâminas vibra
ao ser pressionada pelos polegares do tocador, que as forçando à flexão produzia um som
harmônico. Uma grande parte de uma cabaça, montada como fundo do instrumento, lhe daria som
mais profundo, quase como o de uma harpa...".
Consideramos praticamente perfeita esta descrição da marimba... mas outros apontamentos
de Debret nos deram trabalho, por exemplo: quanto ao berimbau, teria citado que a corda seria
similar à de um tympanon, que em francês e em latim se parece com “tímpanos” (hoje, para nós,
nome dos "tambores das orquestras", além de uma membrana do ouvido). Não seria estranho um
instrumento de percussão com cordas? Então, pesquisamos até descobrir que tympanon também
seria utilizado antigamente como nome de cordofones sem braço, de caixas trapezoidais (o saltério
tipo dulcimer), chamado ainda de cimbalo (de cymbalum, em latim), outro termo relacionado a
instrumentos de percussão, em outras línguas... Atualmente, na Bahia, parece ter sobrevivido uma
contração dos nomes tímpano + cimbalo, nos "timbalos" (da banda Timbalada), mas seria
necessário um estudo etimológico para apontar mais claramente. De qualquer forma, concluímos
que de forma geral faz algum sentido, porque os cordofones seriam "percutidos", ou seja, "batidos"
por pequenos objetos, verdadeiros "martelinhos", como também acontece com pianos. E sim:
quem pesquisa nomes de instrumentos a fundo às vezes encontra estas encruzilhadas!
Já outro apontamento complicado foi de que a marimba se parecesse com uma harmonica
(nome que hoje, para nós, significaria uma gaita de boca, instrumento de sopro); este deixou ainda
mais “pano para manga”:
Uma possibilidade (apenas por causa do nome) seriam as chamadas “harmônicas de vidro”,
já existentes e relativamente famosas na Europa na época, mas cujo som seria emitido pelo contato
das mãos com peças de vidro, portanto, sem emissão de notas “pinicadas”, como nas harpas (esta
foi a comparação apontada por Debret). Não podendo, então, ser “harmônicas de vidro”, as
"pianolas" (pianos automáticos) seriam um pouco similares às harmônicas de vidro, na mecânica
giratória, mas pianolas não teriam sido inventadas ainda, só havendo registros a partir do final
daquele século XIX. Então, por fim, encontramos um ancestral dos xilofones (classificação
popular da família das marimbas), também africano e com ressonância ligada a cabaças, porém
pelo nome de balafon. Assim, sobre a espèce d'harmonica apontada por Debret então, por
enquanto, para nós é um mistério... até porque provavelmente ele tenha querido dizer apenas
“instrumento de harmonia” (inclusive, no mesmo trecho se referiu a "som harmônico").
Desconfiamos ainda que o francês possa ter feito alguma possível ligação à organa, nome ancestral
de vários tipos de instrumentos, também chamada symphonia (deste nome até harmonica, há um
certo pulo, mas há jurisprudência histórica em registros). Os nomes organa e symphonia estariam
inclusive ligados à ancestralidade de cordofones com caixas cinturadas, como nossas violas, entre
vários outros instrumentos: uma ancestralidade que nos dedicamos a estudar e descobrimos
detalhes que poucos teriam observado... Mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado pela atenção até aqui... E vamos proseando!
hominem te memento (solicitado a antigos escravos romanos por seus senhores): ambas as
expressões serviriam para lembrar que, apesar de tudo, éramos (e continuamos, todos) a ser
humanos, mortais. Naturalmente, não nos atrevemos a desmentir o (agora) ídolo nosso (que
esperamos que continue a ser paciente conosco após esta publicação), mas nos atrevemos, sim, a
questionar algumas de suas colocações.
Não cabe aqui, nem estamos a fim de ir muito a fundo: tivéssemos onde publicar artigos a
serem revisados por cientistas, até poderíamos tentar fazê-lo. Abordaremos apenas alguns detalhes,
especificamente quanto ao capítulo “Grande Lundum editado por Edward Laemmert no Rio de
Janeiro – o gênero popular brasileiro entre o batuque e o samba”, do citado livro do professor
Ricciardi (o de 2015). Naquele capítulo há desenvolvimento detalhado e embasado sobre
diferenças entre batuque, lundum e modinha, ao qual, entretanto, apontamos aqui alguns
requestionamentos (e seguimos não conseguindo evitar este nosso termo inventado).
A primeira e mais importante questão vem de nossas principais descobertas (e, por isso,
também defesas): questionamos apontamentos de alguma possível “viola caipira” antes da década
de 1970, como se fosse o único (e até predecessor) de todos os demais modelos atuais da Família
das Violas Brasileiras (postulação inédita nossa, baseada em centenas de fontes que apresentamos
em nossa monografia). Não entendemos que possam ser consideradas, muito menos citadas como
“violas caipiras”, as “violas” apontadas em escritos dos primeiros séculos por aqui. Entendemos
ser este um grave equívoco: olhar o modelo mais famoso e mais conhecido modernamente como
se já existisse na antiguidade, principalmente antes do caipirismo, inventado só no século XX
(inclusive o termo “caipira” já existiria desde o início do século XIX sem nunca antes ter
significado, nem de longe, uma “cultura”, como ainda é defendido por muitos). O entendimento
coletivo hoje muito replicado, por influência principal de teorias sociológicas, não tem
comprovação por registros de época. E ninguém tem o poder de inventar uma verdadeira cultura:
para se afirmar é necessário provar que teria existido, não apenas imaginar, acreditar e sair dizendo
(e faturando em cima). O que se faz muito é inventar "culturas de mercado", com fins de
faturamento: estas não são culturas de fato, e jamais podem ser consideradas ancestrais, ou seja,
como se fossem capazes de retroagir no tempo.
Sobre a utilização de guitarras (chamadas de “violas” por portugueses e brasileiros) em
batuques, pelo menos no início do século XIX, pudemos observar (sempre em tradução nossa),
entre outros registros:
- em 1806, o comerciante inglês Thomas Lindley (ca.1772-?), à página 127 de seu
Narrative of a Voyage to Brasil descreveu guitars na Bahia, em uma dança com movimentos
sensuais a qual chamou negro dance e que seria, para ele, [...] a mixture of the dances of Africa,
and the fandangoes of Spain and Portugal (“uma mistura de danças africanas e fandangos
espanhóis e portugueses”);
- entre 1809 e 1815, o português Henry Koster “Henrique da Costa” (1793-1820), à página
241 de seu Travels in Brazil (pela edição em inglês que conseguimos acesso), apontou detalhes
de uma dança de “escravos de cor”, no nordeste do Brasil, com lascivious attitudes (atitudes
lascivas) e cantos que conteriam indecent allusions (“alusões indecentes”), conduzidos por um
guitar player (“guitarrista”);
- entre 1814 e 1815, o naturalista alemão Georg Wilhelm Freyreiss (1789-1825), à página
542 de seu Reisen in Brasilien (“Viagem ao Brasil”) citou Guitarre (em alemão) para
instrumentos usados na dança que chamou de Batuca, em Minas Gerais;
- entre 1815 e 1817, o etnólogo alemão Maximilian Alexander Philipp zu Wied-Neuwied
(1782-1867), à página 91 de seu livro Travels in Brazil (novamente, só conseguimos a edição em
inglês), teria chegado a registrar literalmente o termo “viola” ao lado de guitar, em duas descrições
de baduccas, que seriam reuniões presenciadas no Rio de Janeiro;
- em 1819, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), à página 60 do
segundo volume de seu Voyage aux sources du Rio de S. Francisco et dans la province de Goyaz
também registrou o nome “viola” ao lado de guitare (em francês), instrumentos que teriam sido
vistos em Minas Gerais, além da interessante narrativa de uso do mesmo tipo de instrumento para
a complainte (“lamentosa”) modinha e em seguida para o obscene batuque (os dois termos
sublinhados foram grafados em português, segundo a edição em francês que checamos);
- em 1823, o militar português Raimundo José da Cunha Mattos (1776-1839), à página 37
de seu Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão pelas províncias de Minas Gerais e
Goiaz, apontaria excelente noção sobre instrumentos tocados por vadios em batuques em Minas
Gerais, ao chamar os instrumentos de “[...] machete, bandurra ou viola”.
Como se observa pela pequena amostragem acima (há muitas mais em nossa monografia e
até por aqui, em outro Brevis Articulus), pessoas de diversas nacionalidades, níveis e tipos de
Conhecimento narraram, com detalhes bastante similares, fatos observados em diversas regiões do
Brasil. A nós se torna difícil entender, portanto, que nos batuques houvesse kalimbas, sequer
citadas nestas e várias outras fontes, como afirmou o professor Ricciardi (e que ele nos perdoe o
atrevimento); pelo menos, não naquele período, do qual há significativo número de registros.
Sobre instrumentos utilizados por pretos à época (também já detalhados antes em outro
Brevis Articulus), destacamos narrativa do pintor francês Jean Baptiste Debret (1768-1848), às
páginas 128 e 129 do segundo volume de seu livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.
Debret descreveu quatro instrumentos: marimba (hoje apontada às vezes como kalimba, onde a
música é feita a partir do friccionar de dedos em segmentos metálicos presos à borda de cabaças
grandes); viole d'Angola, espèce de lyre à quatre cordes ("Viola de Angola, espécie de lira de
quatro cordas"); violon ("violino" de uma corda, cujo corpo seria um côco atravessado por uma
vara, tocado por um pequeno arco) e oricongo (que pelas descrições e desenho seria um berimbau).
Aqueles instrumentos, citados também por outros exploradores estrangeiros, infelizmente não
teriam sido todos registrados via pinturas / desenhos; praticamente só Rugendas teria feito
desenhos de batuques que apontam kalimbas / marimbas, talvez daí o equívoco em pensar que
aqueles instrumentos desenhados (e não "pequenas violas") predominassem nos batuques.
Rugendas, apesar das ilustrações, em narrativas de seu livro Malerisch Reise in Brasilien deixou
claro que as danças eram acompanhadas por instrumentos que ele chamou de mandoline
(“bandolim”, em alemão), certamente a referência mais próxima que ele teria de pequenos
cordofones como os vistos, comandando os batuques / lundus.
Aos dados apontados pelo professor e maestro Ricciardi, consideramos importante ainda
acrescentar que os mais remotos registros que encontramos de “modinhas” transcritas em pauta,
no Brasil, foram:
- em 1806, o médico e naturalista alemão Georg Heinrich von Langsdorff (1774-1852),
Cônsul da Rússia, durante expedição pela Vila de Nossa Senhora do Desterro da Ilha de Santa
Catarina, fez o registro em pauta musical de uma Brasiliaansche Aria (“ária brasileira”, em
holandês), no livro Reis rondom de Wereld, in de Jaren 1803 tot 1807 (“Viagem ao Redor do
Mundo de 1803 a 1807”). O viajante grafou “modinha”, em português, no alto da partitura, assim
como a letra da música, sem apontar autor. Em 6/8, tom de Fá maior ou Ré menor (clave de sol
com um bemol), abaixo da linha melódica do canto é apontada uma harmonia simples, para piano
(claves de Sol e de Dó). Ainda incluiu: “[...] Talvez uma ária brasileira seja mais agradável aos
meus leitores do que uma simples descrição: portanto, não hesito em acrescentar uma aqui” 8 além
da informação “[...] Os instrumentos musicais mais usados são a guitarra e o dulcimer” 9. É bem
possível que Langsdorff tenha visto similaridade das marimbas a um dulcimer (saltério cujas
cordas seriam tocadas via pequenos martelos). Esta informação, entretanto, vem logo após
apontamento de que os instrumentos eram utilizados em reuniões onde também se dançava e se
contavam anedotas, que pela descrição seriam batuques (termo que porém aquele alemão não
citou);
8
No original: "Misschien zal voor mijne lezers eene Brasiliaansche aria aangenamer zijn, dan eene kale beschrijving:
ik aarzel daarom niet, er eene hiernevens te voegen".
9
No original: "De gebruikelijkſte ſpeeltuigen zijn de guitar em het hakkebord".
- entre 1820 e 1822, coleção de vinte peças que teriam sido compostas pelo VIOLEIRO
Joaquim Manoel Gago da Câmara (ca.1771-ca.1738), transcritas para piano pelo compositor
austríaco Sigismund von Neukomm (1778-1858), trazidas a conhecimento público pelo Dr.
Marcelo Fagerlande (artigo Joaquim Manoel, improvisador de modinhas, de 2005).
Sobre a não utilização dos nomes “batuque” e lundum (e/ou similares) antes do século
XVIII, bem pontuada pelo professor Ricciardi, nos chama a atenção, entretanto, citações de
“embigadas”, em poema atribuído ao VIOLEIRO Gregório de Mattos (1636-1695), livro Obras
Poéticas, de 1992, numa dança que ele denominou, à época, “cãozinho”: o mesmo nome de uma
das “danças à viola” (assim como “arromba”, “canário” e “guandu”), também executadas em
Portugal no século XVIII, segundo o dicionarista inglês Rafael Bluteau (1638-1734) em seu
Vocabulario Portuguez, e Latino. Também acrescentamos que Gregório apontou sim, o nome
"lundu": só que seria nome de uma doença venérea; a nós não espanta que um nome de doença
venérea não fosse utilizado para as reuniões, danças e ritmos dos pretos, àquela época, e menos
ainda nos espanta que tenha mudado de significado, "na boca do povo", após alguns séculos.
O que queremos destacar é que, embora sem os nomes mais “modernos”, descrições e
outros nomes evidenciam similaridade de danças lideradas por instrumentos chamados "viola"
pelo menos desde o século XVII. Aliás, o que não faltam em poesias atribuídas a Gregório “Boca
do Inferno” são narrativas sensuais sobre várias situações, incluindo diversas danças; e o também
sonetista, quando queria ser sério, teria aplicado também em cantigas dolentes a sua “viola” (citada
ainda como “bandara”, “guitarrilha”, "guitarra" e "descante", mas nunca “viola de cabaça”, é
sempre bom lembrar!).
O último ponto que acrescentamos, por termos atestado várias vezes, é que nomes variam
de significado com o passar dos anos, por vários fatores, sobretudo em intercâmbios de línguas
diferentes, como as africanas e o português (ou as Línguas Gerais). Não estar atento aos contextos
históricos (tanto de nomes quanto de significados) pode confundir entendimentos. É importante
também considerar que a África sempre foi um grande continente, do qual habitantes de várias
nações diferentes foram sequestrados (fato muito bem observado, por exemplo, por Debret, que
citamos acima). Foram, portanto, vários dialetos africanos misturados: é bastante plausível surgir
mais de um nome para coisas semelhantes.
São fenômenos circundantes aos instrumentos musicais, além de seus nomes (sobre os
quais apresentamos desenvolvimentos várias vezes), também os nomes de ritmos, danças e
similares. Nomes claramente diferentes como calundu, lundu (ou lundum e similares), festejo,
batuque, fandango, cantiga, moda e modinha, entre outros, pelos séculos, podem ser oriundos de
diversas línguas diferentes (nossa pesquisa não abrange línguas africanas). À parte dos
fundamentos etimológico daquelas línguas, entretanto, evidencia-se (num resumo analítico-
científico baseado na somatória de grande número de dados) que todos aqueles nomes tem relação
com atividades musicais típicas de pretos, presentes por praticamente todo o Brasil e que tocavam
principalmente cordofones, entre outros instrumentos, mas não apenas instrumentos “de batucada”
(de percussão) para acompanhar cantos e danças.
A posterior ligação do termo “batuque” às batucadas, hoje consolidada, também ajuda a
interpretar equivocadamente que os pretos só tocassem instrumentos percussivos nos batuques
ancestrais brasileiros. Nunca é demais repetir: é preciso analisar o passado como ele teria sido, não
como as coisas se tornaram depois. Debret teria observado em detalhes, no início do século XIX,
diferentes tipos de acompanhamento (bater de palmas, sons com a boca, canto improvisado,
percussão com diversos tipos de peças, entre outras), tendo inclusive ensaiado uma possível
identificação das nações africanas diferentes representadas, segundo ele, por aquelas
performances. O mais importante é que não existiria ainda o samba, nem as modinhas,
conceituados só algumas décadas depois: não se pode interpretar aqueles “batuques” como se já
tivessem sido o moderno “batuque do samba” (apesar do nome ter continuado): é preciso observar
com muito cuidado o maior número possível de descrições de cada época, para contextualizar.
Há que se considerar que, a partir dos registros mais remotos que se tem conhecimento,
nomes hoje consolidados, oriundos de diversas línguas diferentes, teriam passado por várias fases
de amadurecimento: fases de transição, com mesclas de várias línguas, em muita transmissão oral
envolvida, até atingirem os modernos significados a eles atribuídos. É até muito provável, por
exemplo, que o que se citava como “modinha” em meados do século XVIII não fosse ainda,
exatamente, o que veio a se tornar a partir do início do século XIX (quando, inclusive, a sociedade
europeia passava por significativas mudanças sociais, por causa da Revolução Industrial).
Nenhuma teoria, entretanto, é capaz de mudar o fato de que Domingos Caldas Barbosa (em
1798, no seu Viola de Lereno) não usou os termos “modinha” e lundum para suas CANTIGAS
(os termos são observados apenas no segundo volume, uma edição póstuma, de 1826). No mesmo
século XVIII, em diversas e abrangentes publicações, o já citado e importante dicionarista Bluteau
não citou “modinha”, apenas “moda” (um genérico a “qualquer canção tocada à viola ou ao
cravo”); portanto, segundo registros, “moda” teria sido usado bem antes de “modinha”: “moda”
continua tendo o mesmo uso genérico, mas “modinha” se tornou um estilo, mais ligado a canções
dolentes, melancólicas. Disso conclui-se que nem no passado, nem atualmente, “moda” e
“modinha” significariam “a mesma coisa”. Naturalmente, teorias podem tentar explicar/justificar
estes fatos: é lícito tentar, só não se pode negar ou ir contra registros, se não é “teoria furada”.
Entre outras questões, acrescentamos: afinal, onde Domingos Barbosa terá aprendido a
tocar viola e criar versos? Teria um preto presenciado aquilo muitas vezes, tendo nascido no Rio
de Janeiro aproximadamente entre 1738 e 1740? Ou seja, haveria muitos pretos bons de viola e de
versos na época dele? Estas questões caberiam também para Joaquim Manoel Gago da Câmara,
Gregório e seu irmão Euzébio, e o Padre Mestre Maurício Nunes, mas destes há registros (embora
pouco divulgados) sobre quem os teriam ensinado a tocar instrumentos chamados “viola”: todos
teriam sido professores “mulatos”, como eles mesmo. Será coincidência ou amostra estatística
terem existido e sobrevivido até hoje registros sobre aqueles pretos tão bons de viola, de música,
de versos? Por que não teriam sobrevivido registros assim de tocadores de kalimba / marimba,
nem de “batuqueiros” percussionistas?
Ainda sobre variedade de significados pelos tempos, cruzamos com os atuais do termo
“pagode”: sem contar fora do Brasil, onde seria nome de templos, "pagode" refere-se desde pelo
menos o início do século XX (registros em Minas Gerais e na Bahia), a uma reunião para se tocar,
cantar e dançar (exatamente como os batuques, nome que inclusive ainda é usado para alguns
pagodes, e para o ritmo de viola tocado neles). Hoje, pagode é alcunha de alguns ritmos: primeiro,
um ritmo de viola, criado por Tião Carreiro em 1959; alguns anos depois (década de 1970),
gradualmente passou a ser usado também como nome do samba mais comercial, de onde se diz
“dançar um pagode, pagodear”, que seria o mesmo que “sambar”: assim, vê-se que “pagode”
também se desenvolveu popularmente tanto como nome de reuniões para “folguedos”, quanto
nome de ritmos e nome de dança.
Pela somatória de dezenas de registros, “batuque” e lundum também teriam tido
significados variados e próximos: seriam tanto nomes das reuniões (para cantar, dançar, tocar,
“folguedear”), quanto dos ritmos tocados e ainda de danças observadas naquelas reuniões. E,
apesar de depois utilizado também pelos brancos, teriam se originado dos afrodescendentes.
Pode-se dizer que não seria “música brasileira popular” porque seria oriunda da África, se
há registros de pretos, como os chamados “barbeiros”, entre outros, adaptando-se para tentar
sobreviver um pouco melhor a demandas musicais dos brancos, tanto dentro quanto fora das
igrejas? Pode-se alegar (e provar) que o temperamento tonal musical não estaria presente nas
“violas” dos batuques do início do século XIX? Sim, pode-se teorizar. Tudo pode. Só afirmamos
(com as devidas ressalvas) que o assunto aponta não ter sido bem pesquisado antes, e que há crédito
histórico a ser apontado aos VIOLEIROS pretos brasileiros, que seriam nossa verdadeira raiz
musical, com as que chamamos, atrevidamente, de “violas pretas”. Deles, há mais prosas, mas são
outras...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
10
No original: "[...]quod proprie simphoniæ dicuntur et sunt, id est qualiter eaedem voces sese in unum canendo
habeant. Haec namque est, quam diaphoniam cantilenam vel assuete organum nuncupamus".
Ressalvas, porque no próprio Musica Enchiriadis já haveria uma citação que Grout & Palisca (e
a maioria) parecem não ter considerado:
“[...] Para vozes humanas, e em alguns instrumentos musicais, não apenas duas e duas, mas
também três e três podem ser misturadas daquela maneira [organum]” 11.
De fato, a ligação do nome organa a instrumentos musicais aponta ter sido ainda anterior
àquele século X. Conseguimos identificar no século VI um interessante estudo a respeito, por sua
vez apontando ligações ainda mais anteriores (que viriam desde os textos bíblicos). Preste atenção:
sem citar o nome organa, o profeta Daniel (que se estima teria vivido no século VII aC.), teria
citado algumas vezes a seguinte lista de instrumentos “[...] tuba, fistula, citara, sambuca, saltério
e sinfonia” (Daniel, capítulo 3, versículos 5, 7, 10 e 12, em latim, segundo a Bíblia Vulgata
Online)12.
Infelizmente não temos competência para traduzir a partir dos originais (que teriam sido
em hebraico ou aramaico), mas observamos que o musicólogo alemão Curt Sachs (1881-1959), no
livro The History of Musical Instruments, fez apontamento que inclui o que teriam sido os tais
nomes originais: “[...] assim que ouvir o som da qarnã, masroqitâ, quatros, sabka, psantrin,
sumponiah e todos os tipos de zmãrâ vocês devem se prostar” (Sachs, 1940, p.83)13. Veja que são
igualmente seis instrumentos, e que a versão bíblica que transcrevemos antes apontou
“latinizações” (ou seja, uma versão latina dos nomes originais).
Entendemos que teria sido algo similar o que Santo Isidoro de Sevilha apontou muito antes
de Sachs, ainda no século VI (ca.560-ca.636) e, apesar de algumas ressalvas, creditamos ao
sevilhano possivelmente o tal primeiro estudo sobre o nome organa. Em seus textos hoje
conhecidos como Etymologiae, sobre a lista de instrumentos da "orquestra" de Nabucodonosor (a
apontada pelo profeta Daniel), Isidoro chamou a atenção para “modulações entre cantos e
instrumentos musicais” (estes últimos, que ele teria chamado genericamente de organum, mas o
mais correto seria o plural, organa). Aquelas mesmas modulações (que como já citamos, também
constariam do Musica Enchiriadis séculos depois) foram descritas assim por Isidoro: “[...] Num
salmo cantado, após as modulações dos instrumentos é que a voz do cantor segue; quando o canto
precede, a arte de modulação dos instrumentos é imitada” 14. Desde Isidoro, portanto, os
instrumentos musicais é que dariam “a guia” para os cantos, e seriam dos instrumentos que teria
vindo o nome organum: um detalhe que, portanto, estudos que apontam origens a partir do canto
precisariam rever, mas que a nós não passou despercebido...
[Sim, não escondemos: adoramos descobrir essas lacunas deixadas por tantos estudiosos,
por tanto tempo! Não é por mal, por favor desculpa aí...].
Voltando do momento de megalomania comercial: a lista de instrumentos sonum vocis
animantur (“animados pela voz”), segundo Isidoro, teria sido um pouco diferente do citado na
Bíblia, e os complementos introduzidos são interessantes para nossas reanálises. Observe bem
como ele discorreu:
“[...] tuba, calamus, fistula, organa, pandoria e instrumentos similares. Organum é um
nome geral para todos os instrumentos musicais. Os gregos também usavam outro nome, para
instrumentos com folles [bolsas], mas chamar de organum é o costume mais popular [...] Calamus
é o nome de uma árvore [planta] que aquece [acalanta?], como as vozes ao se somarem [...]
Sambuca na música é uma espécie de sinfonia, uma madeira quebradiça, da qual são feitos os
11
No original: "Possunt enim et humanæ voces et in aliquibus instrumentis musicis non modo binæ et binæ, sed et
ternæ ac ternæ hac sibi collatione misceri".
12
No original: "[...] tubæ, et fistulæ, et citharæ, sambucæ, et psalterii, et symphoniæ".
13
No original: "As soon as you hear the sound of the qarnã the masroqitâ the qatros the sabka the psantrin the
sumponiah and all kinds of zmãrâ (instruments?) you shall prostrate yourselves".
14
No original: "Nam canticum Psalmi est, cum id quod organum modulatur, vox postea cantantis eloquitur. Psalmus
vero cantici, cum quod humana vox praeloquitur, ars organi modulantis imitatur".
canos [tubos]. Pandoria, assim chamado pelo inventor [Pan], quem primeiro adaptou as palhetas
díspares para a música e as compôs [montou] com arte estudiosa” 15.
Observa-se que Isidoro relacionou ao organum (ou “às organas”, já que o plural cabe
melhor), só instrumentos de sopro, mas citou sambuca, que tem ligação também com liras e
saltérios, cordofones dedilhados cujas partes estruturais também seriam canos ou tubos feitos do
mesmo tipo de planta. E, naturalmente, não teriam sido criadas por nenhum deus ou personagem
“Pan” (partes lendárias e mitológicas assim precisamos descartar). O religioso, que depois chegaria
a ser canonizado pela Igreja Católica, foi bastante secundado nos séculos seguintes, por seus
inegáveis méritos. Seu trabalho teria sido dos primeiros de carácter “etimológico”, por assim dizer,
pois tentava analisar origens das palavras desde textos mais antigos. Embora farto de citações a
fontes que apontou ter lido, Isidoro algumas vezes aplicava teorias próprias, sem apontar fontes
específicas nem desenvolvimentos, e também citava mitos antigos como se fossem verdades.
Mesmo com estas ressalvas, entendemos que se pode confiar em vários apontamentos dele, como
muita gente boa confia (filtrando alguns apontamentos, naturalmente).
Conseguimos atestar organa antes de Isidoro (apenas o nome, sem detalhamentos), por
exemplo, em versos do Apotheosis, do poeta romano Aurelius Prudentius (ca.348-ca.413): [...]
organa, sambuca, cithara calamosque tubasque (lista onde se observam cordofones junto a
prováveis sopros); e, no mesmo século VI de Boethius e de Isidoro, em verso da Carmina do bispo
italiano Venantius Fortunatus (ca. 530-ca.609): [...] hinc puer exiguis attemperat organa cannis
(“Então o garotinho temperava [afinava? polia?] os tubos das organas”). Observamos mais
algumas citações na compilação de textos de religiosos De Cantu et Musica Sacra, do musicólogo
alemão Martino Gerberto (1720-1793): desta forma colecionamos, organizamos e cruzamos um
acervo significativo de fontes, com olhares atentos a múltiplos conhecimentos e possibilidades.
No séc. X, Odo de Clúnia (ca.818-942), outro religioso e musicólogo, ainda citaria
Boethius, Isidoro e outros antepassados, mas apontou descrições sobre a organa, que então seria
um cordofone. E, finalmente, a partir do século XI se observam esculturas e desenhos sobre
organas, então já como um cordofone de caixa cinturada (como as atuais violas e guitarras): nas
primeiras daquelas fontes, organas grandes, ao colo de duas pessoas assentadas, com uma
manivela numa extremidade, para acionamento de uma roda; aquela roda (ou disco) friccionava
cordas, enquanto o outro músico (na outra extremidade do instrumento) acionaria teclas para
alterar as notas de apenas uma das três cordas (as demais soariam soltas, acionadas pela roda mas
sem serem alteradas pelas teclas).
O detalhe de execução de notas alteradas em apenas uma das cordas, enquanto as demais
soariam soltas (portanto, em suas notas originais), é importante para entendermos a ligação de
outros instrumentos cujos nomes manteriam ligação com as organas, como os sopros apontados
por Isidoro. É o caso, entre os séculos XI e XII, da mais remota citação conhecida a um complexo
instrumento nominado musa pelo musicólogo Johannes Afflighemensis “John Cotton” (ca.1053-
ca.1121), em De Musica cun Tonario: “[...] é soprado pela respiração humana como a tíbia
[instrumento de sopro], regulado [coordenado] pela mão como a phiala e animado por um folle
[bolsa] como a organa" 16. Alegando que in musa multimoda conveniunt instrumenta (“na musa
muitos tipos de instrumentos se misturam”), John Cotton teria descrito, portanto, algo bem
próximo às atuais gaitas-de-foles, apontando que o folle viria das organas “dos gregos”. Este
último detalhe, exatamente como Santo Isidoro apontou cerca de 500 anos antes. Nas gaitas-de-
15
No original: "[...] quae spiritu reflante conpleta in sonum vocis animantur, ut sunt tubæ, calami, fistulæ, organa,
pandoria, et his similia instrumenta. Organum vocabulum est generale vasorum omnium musicorum. Hoc autem, cui
folles adhibentur, alio Graeci nomine appellant. Ut autem organum dicatur, magis ea vulgaris est Graecorum
consuetudo. [...] Calamus nomen est proprium arboris a calendo, id est fundendo voces vocatus [...] Sambuca in
musicis species est symphoniarum. Est enim genus ligni fragilis, unde tibiæ conponuntur. Pandorius ab inventore
vocatus [...] qui primus dispares calamos ad cantum aptavit, et studiosa arte conposuit".
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No original: "[...] humano siquidem inflatur spiritu ut tibia, manu temperatur ut phiala, folle excitatur ut organa".
foles, assim como nas flautas múltiplas, observa-se que só um dos sons soprados tem notas
variadas durante a execução.
[Parada para respirar e refletir: é complexo, não? Mais nomes e tipos de instrumentos vão
se juntando e parece ser tudo aleatório... Inclusive, é assim que a maioria dos estudiosos parecem
entender, pois não encontramos estudo similar ao nosso, em profundidade. Entretanto, percebemos
muito claramente que haveria um “esqueleto lógico” ligando tantas possibilidades, que ainda
vamos tentar esclarecer mais... portanto, calma e perseverança!].
A mais antiga escultura de uma organa (como cordofone) teria sido observada na Igreja de
Saint Georges de Bocherville, na França, segundo o musicólogo e etnólogo francês Edmond de
Coussemaker (1805-1876) em seu livro Mémoire sur Hucbald et sur ses Traités de Musique
(edição de 1841, ver páginas 168-169). À época do livro ainda se acreditava, equivocadamente,
que o musicólogo francês Hucbald (ca.840-ca.930) teria sido o autor do já citado Musica
Enchiriadis e Coussemaker inclusive apontou desenvolvimento de que a escultura representaria
um instrumento que usaria a técnica descrita como organum ou diaphonia no Enchiriadis, porém
sem apontar que instrumentos antecederiam a técnica de canto. E não apenas Coussemaker: entre
vários outros estudiosos, a pesquisadora espanhola Rosário Martinez, em sua tese de doutoramento
Los instrumentos musicales en la plástica española durante la Edad Media, apresentou um vasto
banco de dados de esculturas, desenhos e até várias versões diferentes de manuscritos onde há
citações de organas ou symphonias (cinfonias, em espanhol) e algumas de suas peculiaridades,
como nomes relacionados, em várias línguas, por séculos. Ou seja: os dados foram observados, a
ligação lógica entre eles é que faltou ser mais desenvolvida, o que conseguimos somando
conhecimentos e olhares de outras Ciências a conceitos até básicos da musicologia. Nestes novos
estudos, destaca-se o aprofundamento sobre os nomes de instrumentos. Vejamos, a começar pelos
nomes latinos, cujos mais observados de ligação às organas foram symphonia e sambuca rotata:
- "sinfonia", assim como hoje, já remeteria à execução de mais de uma nota musical ao
mesmo tempo; isso gera confusão para estudiosos não-músicos, por poder às vezes se referir à
organa (instrumento) e, outras vezes, poder se referir a um conjunto de vozes e/ou de instrumentos
a executar música, pois em todos estes casos haveria várias notas tocadas simultaneamente, ou
seja, “sinfonias”;
- sambucus (e calamus) se referem a árvores ou plantas das quais se fabricavam partes de
cordofones como liras e saltérios, mas com as quais também se fabricariam diferentes tipos de
"flautas" (chamadas em latim cannis, fistula, tibia e outros);
- rotata ("de roda"), porque cordas eram friccionadas por uma roda (ou "disco", conforme
já descrevemos).
Neste ponto, os próprios nomes já dizem muito sobre as interrelações dos instrumentos,
concorda? E desenhos e esculturas ajudam os entendimentos. Após os primeiros cordofones
chamados organa (que precisariam de duas pessoas para serem tocados), o tamanho teria
gradativamente diminuído até próximo ao dos atuais, portáteis; mas as organas apontam ter
influenciado, com o passar do tempo, bem mais que só cordofones...
A principal característica do nome organa, como qualquer genérico, é poder ser usado para
quaisquer instrumentos; mas se observou-se que todos que se relacionariam com aquele nome
teriam em comum alguns resquícios que sobreviveriam por séculos: resquícios tanto de
características físicas quanto de nomes antigos. É muito curioso, além de complicado, mas é uma
grande aula, que a nós serve para entender muito da História de vários instrumentos musicais.
Os antigos nomes latinos teriam sido depois substituídos ou traduzidos em várias outras
línguas, para diferentes instrumentos que foram surgindo: um conjunto que parece aleatório, à
primeira vista, mas agora que apontamos o caminho cronológico de evolução, quase todos fazem
claro sentido:
- viola de roda, sanfonia (em catalão);
- syphonie, cyfonie, chifonie, vielle à roue (em francês);
- simfonia, cinfonia, zanfonia, viola de ruedas, zarrabete (em espanhol);
Há, entretanto, um ponto principal, nefrálgico e lógico: são sempre instrumentos capazes
de emitir mais de uma nota ao mesmo tempo, ou seja, de emitir "sinfonias" (no mais antigo
significado deste nome, em hebraico, grego, latim e outros idiomas).
O mais interessante de observar, à esta altura, é que o nome original era um genérico, que
foi utilizado indevidamente para instrumentos específicos, mas que com o passar do tempo
manteve sua característica de representar vários instrumentos diferentes, porém todos com uma
ligação... Percebeu? Uma das várias "aulas" que as organas ministram é que há um padrão de
continuidade: mesmo quando há interferência e equívocos pelos humanos, a continuidade se
mostra em alguns "resquícios históricos" (como nós chamamos), tanto em nomes como
características dos instrumentos.
Agora, analisando por grupos que apontam ter em comum algumas reminiscências
"organológicas" (sem qualquer intenção de trocadilho, pois é assim mesmo que são chamadas,
apontando também que tudo viria de organa / organum):
- tirando a manivela, a roda e as teclas (que foi o que acabou acontecendo), as organas de
a partir do século IX ainda poderiam executar músicas: primeiro, pelo dedilhar de suas cordas e,
um pouco depois (a partir do século X), as mesmas cordas também poderiam ser tocadas por arco,
de onde se observa ter surgido a intermediária nickelharpa: esta teria o mesmo formato, mas seria
menor, portátil; e ainda teria teclas, mas seria tocada por arco (ao invés da antiga roda). Um pouco
depois (a partir do século XII), e finalmente sem as teclas, também teríamos as atuais violas, que
já citamos, tanto as dedilhadas quanto friccionadas, embora quase todos estudiosos estrangeiros
desconheçam violas dedilhadas (estamos inclusive a tentar ajudá-los nisso com nossos estudos!).
- de cordas acionadas via pinças e “pequenos martelos” (que também seriam plectros, como
dissemos), já teriam existido saltérios tipo dulcimer, com registros até antes das organas
"cordofônicas"; e, depois delas, teclas acionariam cordas dos cravos (“pinçados”) e pianos
(“martelados”);
- instrumento ainda acionados por manivela e roda, temos o chamado realengo (ou realejo);
Já hydraulos antigos, que inicialmente eram construídos para soarem via correntes de água
e/ou ar, cujas notas eram emitidas automaticamente, sem interferência humana, são citados como
“os primeiros órgãos”, mas é importante observar: apesar de também terem sido chamados organa
(por este ser um nome genérico), hydraulos antiquíssimos não teriam sistema de teclas, estas cujo
mais remoto registro conhecido é o das organas com cordas (século IX). É um equívoco sobre o
qual alertamos, porque nomes de instrumentos (como "órgão" e equivalentes modernos) não são
capazes de retroagir pela História, e entendemos que tantos se equivocam porque o
desenvolvimento de organa pelos tempos não é simples de entender e não teria sido estudado antes
como pode ser. Além disso, nomes de instrumentos também apresentam um padrão de serem
pouco apontados com atenção e assertividade, pelos séculos (padrão que chamamos
"generalismo").
Conseguiu entender agora as minúcias, os resquícios nos nomes e/ou nas características
físicas (“organológicas”), rompendo séculos? Se não entendeu, sugerimos dar mais algumas lidas:
são muitos dados, que envolvem várias línguas, talvez algo tenha escapado e/ou não tenhamos
sido capazes de descrever clara e satisfatoriamente. Se e quando entender, parabéns: você pode
então estudar a História dos instrumentos musicais a partir das mais profundas raízes: registros
escritos de seus nomes! Mas não apenas por eles, e sim com eles somados a outros detalhes e
contextos. Pelo que percebemos, poucos teriam tido coragem de mergulhar tão fundo antes... mas
aí já são outras prosas.
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
17
Cronologia estatística de apontamentos de Virdung (1511); Judenkunig (1523); Agricola (1542[1529]); Bermudo
(1555); Zacconi (1596); Amat ([1596]); Cerone (1613); Praetorius (1619); Mersenne (1636), Kircher (1650); Simpson
(1659); Printz (1690); Bonanni (1722); Majers (1741); Gerberto (1774:1784); Rocha (1752); Laborde (1780); Burney
(1782); Forkel (1788;1801); Gunn (1789); Ribeiro (1789); Coussemaker (1841); Fetis (1869:1872); O’Curry (1873);
Engel (1883); Hipkins (1888); Weber (1891); Riemann (1899); Pedrell (1901); Pratt (1907); Schlesinger (1910);
Galpin (1911); Sachs (1913;1940); Lavignac (1920;1925); Winternintz (1961); Dart (1948); Wright (1977); Martinez
(1981); Page (1982:1983); Tyler & Sparks (2002); Margerum (2010); Young (2015); Zwilling (2015); Rei-Samartim
(2020); Pittaway (2021:2022); Araújo (2021); Ferreira (2022).
brincalhona, pois somos também (e principalmente) artista: por isso gostamos de fantasia e leveza
como facilitador. Trouxemos estes mesmos princípios para os Brevis Articulus.
Portanto, não estamos a inventar nada, apenas damos passos além do que vimos já ter sido
feito, para que outros curiosos possam se inteirar e, que sabe, até darem sequência no processo.
Deixamos disponível à Humanidade também um banco de dados somado (estudos e fontes) bem
maior do que encontramos nos estudos pesquisados. Os dados foram checados, retraduzidos,
organizados cronologicamente e reanalisados no contexto do novo e grande conjunto formado,
pois foi assim que a estratégia (ou metodologia, ou “chave”) nos indicou que precisaria ser feito.
Não observamos que já tivesse sido feito assim antes e, principalmente por isso, o fazemos.
O principal ponto de partida foi o texto destacado na abertura, da antropóloga carioca
Elizabeth Travassos, infelizmente falecida em 2013. Naquele artigo, de rara lucidez, profundidade
e honestidade científica sobre o assunto à época (2006), foi encontrado no livro Artifícios e
Artefactos, que nos foi presenteado por um dos colaboradores de nossa monografia e de quem,
num erro grave nosso, não nos lembramos quem tenha sido, para creditar devida e nominalmente:
que possa receber o agradecimento, aceitar nossas desculpas e aprovar o que fizemos a partir
daquela ajuda.
É uma pena que aquele artigo parece não ter influenciado estudos sobre violas que vieram
depois (e antes dos nossos): o problema é que, àquela época, a História das violas brasileiras já
vinha sendo apontada de forma imprecisa, deturpada... Observamos alguns autores que até teriam
entendido equivocadamente as colocações de Travassos (ou as teriam distorcido propositalmente,
o que não temos como provar). E desconfiamos que, mesmo que tenham tido acesso, os principais
“formadores de opinião” do meio das violas não abririam mão de seus compromissos pessoais com
o caipirismo: um entendimento coletivo sem fundamentação em registros de época nem
desenvolvimentos embasados cientificamente, ou seja, totalmente contrário aos padrões adotados
naquele artigo.
Voltando à “vaca fria” (ou, antes que ela esfrie), o tal artigo, de poucas páginas, tem mais
referências de época que algumas teses acadêmicas que já tivemos o desprazer de ler. E profundos
desenvolvimentos, como o trecho destacado na abertura... Só que a Dra. Travassos não facilitou
nosso trabalho, pois sobre o assunto “mediadores sociais” apontou pouco mais que algumas linhas
além de, como alguns fazem às vezes, não citar as fontes de suas (para nós) importantíssimas
afirmações. Fossem outros os autores, consideraríamos (entre vários palavrões proferidos) que
teria sido alguma “sacação” (distorção, invenção)... Entretanto, após atestar a profundidade e
coerência geral do artigo, e checar as dezenas de referências sem encontrar um equívoco, distorção
ou inconsistência sequer, não nos restou dúvida: aquela jovem senhora saberia, e muito, sobre o
que tinha escrito! Uma consulta rápida ao currículo dela, pela internet, indicou o mesmo: teria sido
uma estudiosa séria, honesta e muito embasada... precisa dizer que a admiração foi automática?
Por que ela, então, não teria indicado referências para aquele trecho? Talvez nunca teremos
certeza, mas por estudos antropológicos que investigamos (na busca por algo similar), o trecho
aponta ser um resumo de muitos estudos e fontes: não seria fácil referenciar tudo sem acrescentar
um grande desenvolvimento, que precisaria ser tão extenso quanto o próprio artigo curto que a
Dra. estava a escrever, além de extrapolar o tema proposto. Isso acontece: veja quantas palavras
precisamos utilizar aqui neste parágrafo para tentar explicar nossa hipótese sobre o tal! Em minerês
seria bem mais fácil: “o pobrema é que o trem era muito dus cabeludo... mas tinha sustança!".
Por falar em não fugir ao tema, o que interessa é que mergulhamos naqueles apontamentos
da Dra. Travassos e, ao buscar comprovações científicas, acabamos por concluir que a
Metodologia Dialética teria muitas similaridades: pode até não ser o mesmo caminho que
Travassos percorreu, mas chegamos às mesmas conclusões.
Os fundamentos da Dialética são creditados ao filósofo grego Platão (ca.428 aC.-ca.328
aC.) e tem muito a ver com o Mito da Caverna, por exemplo; e desde o século XIX é metodologia
largamente aceita para aplicação em pesquisas científicas. Viu como funciona? Um grego teria
tido uma ótima “sacada” (como se fosse no voley), então alemães “mataram no peito,
arredondaram a bola e colocaram no chão” (como fosse no futebol) e assim, a partir de então,
outros vem “usando a mesma jogada”: quem é íntegro e elegante dá os créditos devidos e segue as
regras gerais da tal “jogada”, podendo até inserir umas pitadas de talento a mais... E sabemos que,
em esportes e em ciências, brasileiros costumam dar show, pois somos reconhecidamente muito
criativos... (se não percebeu, aqui gaiatamente estamos a nos "auto-puxar o saco": é nóis, brou!).
Por isso, não apenas em estudos sociológicos (como os de Hegel e Marx) encontramos
vestígios de aplicação da Metodologia Dialética: em várias outras áreas da Ciência, incluindo
naturalmente a Musicologia (a que mais estudamos, e na qual nos embasamos). Pesquisar e citar
os registros mais remotos sobre um assunto é muito utilizado como argumento de fundamentação,
mesmo que vários digníssimos pesquisadores não citem que isso faz parte de uma metodologia
(talvez nem percebam: é aquela falta de compromisso que citamos antes); mas pode conferir, é
muito comum: até em textos livres costuma-se apontar, mesmo que apenas como “curiosidade”.
[Ah, sim: caso a esta altura esteja a pensar que falar tanto sobre a metodologia esteja fora
do assunto “instrumentos musicais, mediadores sociais”, por favor, lembre-se que tudo aqui partiu
de reestudos sobre as Violas Brasileiras (!), que atestamos, pela primeira vez na História dos
cordofones ocidentais, como "mediadoras", conforme vários contextos histórico-sociais
exaustivamente levantados... Entendeu ou precisa que desenhe?].
A Metodologia Dialética aponta, em resumo, que “nenhum objeto de estudo deve ser
analisado à parte de seus fenômenos circundantes”. Já para descobrir as tais “relações sociais” que
a Dra. Travassos citou, entendemos seria necessário identificar a época e o local que os
instrumentos teriam sido utilizados (relações sociais dependem muito disso, mas não apenas...).
Somando as coisas, concluímos: “objeto de estudo? Instrumentos musicais, ok, tá fácil”;
“fenômenos circundantes? Hum...” (e pausa grande, para pensar) ... Após muita reflexão,
concluímos que os fenômenos circundantes seriam, entre outros: dados históricos, sociais, as
diferentes línguas, análise de discurso de diferentes tipos de textos (tratados musicais, poesias,
prosas, lendas...), estatística analítica (pela quantidade de textos diferentes) e outros “fenômenos”
... vários outros... Putz!...
Naquele ponto, deveríamos ter percebido que a tarefa era inglória; que provavelmente não
tivesse sido feita antes por ser muito complexo; e que, portanto, muitos não iriam entender e/ou
dar valor. Ainda mais na nossa época, em que as pessoas cada vez leem menos... E mesmo os que
leem, certamente iriam dizer: “Ninguém fez assim antes, de onde tirou isso?” ... Não percebemos
tudo isso a tempo e, também por sermos muito teimosos, seguimos pesquisando.
O que interessa é que os caminhos científicos e os dados históricos existem e, na verdade,
já vinham sendo intuídos e/ou indicados superficialmente há séculos, por vários estudiosos, em
várias culturas diferentes. Então, respondemos sobre quem vier desdenhar: “Pare de encher o saco
e vá estudar: desminta as fontes e embasamentos apresentados, antes de vir criticar” (e sim: aqui,
até para xingar às vezes usamos rimas!).
Na verdade, o que não falta na História são malucos que acrescentaram novas visões ao
que existia antes: portanto, que o tempo seja o juiz, e indique se é válido (ou não) o que fazemos.
Enquanto isso, vamos aprimorando, aprofundando, pesquisando...e proseando!
Também nos ajudaram a ter segurança alguns vestígios encontrados em estudos sobre as
violas dedilhadas (nosso ponto de partida), um deles em particular: o capítulo “Cronologia”,
encontrado entre as páginas 112 a 121 da dissertação de Mestrado em Música Viola – do sertão
para as salas de concerto: a visão de quatro violeiros, de Andréa Carneiro de Souza, depositado
em 2002. Por que? Porque àquela altura já tínhamos vislumbrado que organização cronológica de
dados é fundamental para analisar relações histórico-sociais e outros fenômenos circundantes: eles
costumam se estender por grandes períodos, em fases de transição que às vezes duram séculos.
Estudar apenas curtos períodos de maior citação de um instrumento seria pouco eficaz: o ideal é
buscar o mais remoto registro conhecido e ir analisando pelos séculos o que foi acontecendo. Se
possível, analisar também o antes e o depois da História daquele instrumento, e ainda de outros
aos quais possa estar relacionado...
Para tanto, portanto (e, ainda gaiatamente rimando, “rimanto”), era preciso montar uma
vasta cronologia de dados, de registros históricos e também de estudos já feitos: estes últimos, para
observar como pesquisadores teriam analisado os dados antes, para localizar possíveis lacunas.
Esta parte é importante, pois estudiosos costumam secundar-se em cadeia (um péssimo costume,
diga-se de passagem): se um se equivoca (por exemplo, numa tradução ou interpretação), é grande
o risco de outros seguirem se equivocando pelos tempos, se os seguidores não conferirem as
origens (as traduções e contextos originais, principalmente). De fato, a aplicação de cronologias
já nos chamava a atenção antes que soubéssemos postular com total clareza sua importância: nossa
monografia original é uma Linha do Tempo da Viola no Brasil; ela foi depositada em 2021, mas
se baseia em estudos começados em 2015, e sempre colecionamos fontes conforme suas datas!
Partimos, então, daquele citado capítulo “Cronologia” (e outros trabalhos que também
listavam fontes em ordem cronológica) para checar tudo e incrementar mais dados. E foi muito
grata a nossa surpresa ao descobrir que o tal capítulo havia sido, de certa forma, “exigido” pela
orientadora da dissertação de Andréa Carneiro (violeira carioca, a quem agradecemos pelo
atendimento a nossas consultas). Quem foi a tal orientadora de Andréa? Ninguém menos que a
nossa “ídola”, a saudosa Dra. Elizabeth Travassos...
Coincidências à parte, também entendemos estar no caminho certo por vários outros
indícios. O vasto estudo sobre contextos histórico-sociais na Humanidade está exemplificado (em
resumo) nas primeiras páginas do livro A Chave do Baú, onde apontamos o paralelo: “Eventos
de Grande Impacto Social” / “Reflexos em Instrumentos Musicais”. O assunto não é novidade,
pois nos estudos sobre a História da Arte já existe até a consolidada separação por períodos
chamados “renascimento”, “barroco” e outros: uma classificação que parte dos mesmos princípios.
Nós "apenas" buscamos nos aprofundar no que poderiam ter tido reflexos diretos nos instrumentos
musicais populares (como indicou Travassos), focando nos cordofones, pois só temos uma vida,
não dá pra abraçar tudo... Além do mais, cordofones apontam ser os que mais tiveram modificações
pelos séculos... mas não deu para fugir de outros instrumentos, cujas histórias "circundantes"
observamos se somarem e se cruzarem.
À luz do significativo banco de dados levantado, observamos coerências atestáveis: sempre
que um número expressivo de pessoas sofria mudanças socioculturais (como invasões e tragédias,
entre outros eventos), instrumentos apontam reações via mudanças, principalmente organológicas
e nos nomes, assim como outros tipos de mudanças, em outros aspectos sociais, são apontados por
diversas áreas da Ciência. O caminho é seguro, visto que atestável continuamente desde
primórdios da História.
As mais óbvias alterações talvez fossem as variações de nomes, posto haver diversas
línguas envolvidas, mas aí vislumbramos uma complexidade que aponta não ter sido bem
observada antes (possivelmente, nem pela Dra. Elizabeth Travassos): a língua talvez seja a maior
expressão cultural de um povo, quer seja por imposição de dominadores quanto por resistência de
oprimidos. Acabamos por concluir que nomes de instrumentos musicais, ao contrário do que se
pensava antes, nunca foram fortuitos, aleatórios ou casuais.
Concluímos, por centenas de testes e atestações, que de forma alguma as variações de
nomes por diversas línguas devem ser analisadas superficialmente, como por exemplo: “Ah... as
vihuelas espanholas eram chamadas de 'violas' pelos portugueses, então era um simples
bilinguismo, uma tradução óbvia do espanhol para a língua portuguesa...”. A este respeito, além
da questão de que portugueses não citavam guitarras grandes e pequenas quando estas coexistiam
com as vihuelas (só citavam “violas”), há muito mais do que já foi apontado até agora por
estudiosos: a histórica dissidência entre espanhóis e portugueses é longa, inclusive com guerras e
outras disputas que acarretaram consideráveis impactos sociais em ambos os povos. Além disso,
abrindo-se o leque de observação (como indica a metodologia, sempre ela), um pouco mais a frente
(entre os séculos XVII e XVIII), descrições de “violas” portuguesas apontariam detalhes
praticamente idênticos aos das guitarras espanholas. Aquelas guitarras, então, eram praticadas em
grande parte do território europeu e chamadas por nomes bem similares, em outras línguas, como
guitare (em francês), Guitarre e/ou Gitarre (em alemão), guittern ou guitar (em inglês) e até
chitarra (em italiano). Não se conhecem registros de vihuelas naquela época posterior (teriam
caído em desuso pelos espanhóis), mas os portugueses continuavam a chamar apenas de “violas”
seus dedilhados portáteis, desprezando termos como guitarras e até alaúdes (estes que também
teriam registros, em outras regiões, mas praticamente não aparecem em textos em português e
espanhol, até o século XVIII, pelo menos). Teria sido mesmo, então, um "bilinguismo"? Ou uma
tradição portuguesa peculiar, de se agarrar a um nome independente de diferenças claras dos
instrumentos? Ou será invenção, bobagem ou loucura nossa?
Ou, quem sabe... talvez... a complicada relação histórica com mouros e espanhóis possa ter
influenciado uma tácita reação patriótica / nacionalista dos portugueses, em não citar os nomes
originais dos instrumentos?... Aliás, mais do que apenas “não citar”: “fazer de conta” que eles
seriam todos “violas”, um nome surgido no latim e usado também em italiano (uma cultura bem
mais “simpática” aos portugueses que a cultura espanhola). Esta opção seria, inclusive, válida
desde o século XIV até os dias atuais... Quem sabe?
Para atestação, contextos histórico-sociais semelhantes foram observados em vários
períodos históricos longos e conturbados, como o da dominação grega, depois a romana, o de
domínio da Igreja Católica, o da invasão moura, as fases da Revolução Industrial, entre outros.
Todos, sempre com reflexos verificáveis por alterações ocorridas em instrumentos musicais
populares, incluindo seus nomes.
Com relação aos cordofones pudemos constatar, em resumo e já descrevendo alguns passos
dados além do que apontou Travassos, destacamos ("postulamos") dois fenômenos importantes:
1 - cordofones reagem historicamente a eventos sociais de significativo impacto social via
alterações em formatos, nomes, surgimento, ascensão e/ou queda de preferência, entre outros
reflexos atestáveis pela estatística de registros;
2 – ao mesmo tempo, e apesar das alterações, alguns resquícios históricos costumam
permanecer por grandes períodos, tanto em nomes quanto em outras características. Este fato torna
bem complexo o estudo, mas pode e deve ser pesquisado e atestado, até mesmo para melhor
entendimento e confirmação de padrões e outras peculiaridades.
Sobre o primeiro fenômeno, já demos exemplo aqui (dedilhados portáteis chamados de
“viola” só em língua portuguesa, a partir de determinada época, pelo contexto de dissidência entre
portugueses e espanhóis). Sobre o segundo fenômeno, entendemos, por exemplo, que não seria
por acaso que instrumentos europeus como vihuelas, guitarras e as diversas violas tenham se
consolidado com caixas cinturadas e fundos paralelos, enquanto instrumentos árabes sempre
apresentaram formatos sem cinturas, periformes com fundos abaulados: uma reação em
concorrência / rejeição aos invasores árabes é notória, justificável e apontada por vários registros
e estudos; porém, ao mesmo tempo, detalhes como armação de cordas em seis ordens e até
afinações com intervalos de quartas (constatadas desde alaúdes mais antigos) sobrevivem em
instrumentos europeus até os dias atuais (é o que chamamos de "resquício histórico").
Para confirmar a regra, mas sem ser exatamente um exceção (e que por sua vez comprova
que o tema é complexo), não seria por acaso que várias violas dedilhadas, tanto portuguesas quanto
as nossas, hoje apresentem cinco (e não seis) ordens de cordas além de, diferentemente do restante
da Europa, dedilhadas terem o mesmo nome das friccionadas por arco: a disputa Portugal/Espanha
contextualiza, e a peculiaridade de ser fato sobrevivente apenas na língua portuguesa mais do que
denuncia: há quebras de padrão que só aconteceriam em casos especiais... mas este “caso especial”
seria contexto histórico-social específico ao povo português, quer dizer: está previsto na primeira
"regra". Os padrões postulados ajudam muito a identificar e atestar até exceções, e tudo sempre se
ampara, afinal, em amplas análises sobre os fenômenos circundantes (sempre eles): portanto, não
seriam verdadeiras "exceções", pois remeteriam também à regra geral, primordial, confirmando-
a. Estes princípios deram margem a descobertas de vários tesouros... mas aí são outras prosas...
Por enquanto, muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
"A Rua das Violas, hoje Teófilo Ottoni, antes denominou-se de Domingos Coelho e dos Escrivães.
O nome lhe adveio da circunstância de habitarem nela fabricantes desse instrumento musical".
[Rodolfo Amorim Garcia (1873-1949), Annais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1937].
de 600 violeiros em Uberlândia, em 2017 (recorde mundial concedido pelo Guiness Book em 2018)
ou o Reconhecimento Oficial como Forma de Expressão válida ao Registro nos Livros de
Patrimônio Imaterial (o único Estado brasileiro até agora a reconhecer e que também foi
oficializado em 2018). Isto só para citar dois eventos recentes, ocorridos em Minas Gerais. Sem
querer ser covarde, é importante lembrar (não ao pesquisador mineiro, que bem sabe, só deve ter
esquecido, por causa do entusiasmo), mas aos demais que nos leem, que também vêm de nascidos
em Minas Gerais iniciativas de âmbito nacional, que infelizmente duraram pouco, como o Festival
Nacional Voa Viola (2010 e 2012) e o Prêmio Nacional de Excelência da Viola (2011 e 2013).
O movimento carioca tem, sem dúvida, grande valor e torcemos que continue para sempre;
mas nunca é demais lembrar que há alguns outros Estados onde violeiros também vem tentando
se organizar como classe:
Em Caxias (RS), os "Violeiros da Serra Gaúcha" já vêm há alguns anos com boas
realizações, onde se destaca Valdir Verona, de atividade intermitente e variada, inclusive junto ao
quarteto Violas ao Sul, que junta violeiros de Porto Alegre e outras regiões do Rio Grande do Sul.
Isso, sem contar as sementes lançadas por Luciano dos Santos, de Sapiranga: além das “orquestras”
que ajudou a implantar, de 2004 a 2011 seu Grupo de Viola Gaúcha espalhou shows de violas
tocando música gaúcha (!) pelo Estado.
No Paraná houve entre 2004 e 2009 o grande projeto educativo Viola Lindeira, que atingiu
mais de 1200 alunos, coordenado por membros da chamada “Orquestra Paranense de Viola”, onde
se destacou Ricardo Denchuski; e, em 2017, o 1º Encontro Paranense de Violas: um grande
encontro, que reuniu representantes das várias vertentes violeiras atuantes no Estado, onde se
destacam, pela visão e iniciativa, Maikel Monteiro e José Cândido de Morais. Sem contar que no
litoral (e incluindo aí também o litoral paulista), verdadeiros heróis como Rodolfo Vidal pelejam
há décadas pelas Violas Brancas (Caiçaras / Fandangueiras), o que não deixa de ser um certo
“movimento”.
Ainda lembramos que, na década de 1960, de Pernambuco surgiu o Movimento Armorial,
nem sempre corretamente reconhecido, onde se destacaram violeiros como Heraldo do Monte e
Antônio Madureira; e também do Nordeste, mas já em 2020, aconteceu a 1ª Mostra de Violas
Instrumentais Nordestinas, um grande encontro multiestatal, capitaneado por Rainer Miranda
Brito, que lançou a semente para uniões futuras na região (oxalá!). Na Bahia, desde que o Samba
de Roda do Recôncavo conseguiu Reconhecimento como Patrimônio Imaterial (inclusive mundial,
em 2005), levando consigo “de tabela” (ou, oficialmente, "como bem associado”) as Violas
Machetes, sempre há realizações em certa continuidade pelos anos, dentro das limitações de heróis
como Milton Primo.
Mineiros e paulistas não demonstram historicamente grandes indícios de verdadeiros
movimentos de união da classe, mas algumas realizações são de valor inegável, como os dois já
citados, nacionais, por iniciativas de mineiros; e em São Paulo, os espaços para shows de viola
mantidos há décadas pelos sistemas SESI e SESC, além de eventos como o Prêmio Inezita
Barroso e o festival Revelando São Paulo.
Entendemos que ainda falte “consciência de classe”, principalmente consciência nacional;
por exemplo, nossa proposta de batalharmos todos juntos pelo Reconhecimento Nacional da Viola
como Patrimônio Imaterial não encontrou ecos suficientes e se encontra arquivada, sem que a
classe demonstre se importar (nem mesmo os mineiros, embora pudessem testemunhar que há
benefícios por terem conseguido o mesmo citado Reconhecimento Oficial no âmbito Estatal). A
maioria dos mineiros parece continuar sendo “solidária só no câncer” (como teria dito Otto Lara e
imortalizado Nelson Rodrigues). Já alguns paulistas que acreditarem que seriam heróis
conquistadores, que depois teriam se travestido em humildes “caipiras” (um milagre da genética,
talvez?), quem sabe não devessem finalmente assumir também a dívida social dos crimes
cometidos pelos bandeirantes e se juntarem para dar alguma contrapartida?
[Naturalmente, estas últimas citações são só brincadeiras provocativas: por favor, não atire
neste atrevido mensageiro, como já há alguns que o fazem nas “redes fake anti-sociais” e “grupos
de zap das famílias”: seja melhor e desdiga (se puder) os registros históricos que apontamos:
questionamentos e dados que não tenhamos visto são sempre bem vindos!].
Falando sério, o ideal seria que cada um se visse como um morador da Nação, não só de
seu Estado; e cercado de irmãos (e não concorrentes) por todos os lados. Tentassem juntar forças
em prol de todas as violas, por todo o Brasil. Entretanto, mesmo com algumas críticas, entendemos
ser louvável que eventos e movimentos significativos estejam a acontecer: significa que a fase de
transição está em processo; ou, no popular: “enquanto há vida, há esperança”, “onde há fumaça,
há fogo” e similares. Parafraseemos, então: "onde há violas, há fogo e esperança!".
Não: os violeiros cariocas ainda não teriam se dado conta da importância histórica de violas
registradas em abundância no Rio de Janeiro (antiga “Capital do Império”): violas pretas,
antecessoras do samba, do choro, das modinhas. Não se dão conta, apesar de sempre citarmos em
nossas publicações e de ter existido até uma “Rua das Violas” por lá (como destacamos na
abertura): que violas teriam sido aquelas? As Machetes são excelentes “Violas do Rio” a serem
lembradas, já que o Brasil parece tê-las “esquecido” (talvez por terem sido “Viola Pretas”, como
gostamos de apontar, também como provocação) ...
Mas os cariocas estão no bom processo, e entendemos que com coração puro. Há
representantes no movimento que merecem todo o respeito: destacamos os queridos, de perfis
inclusive acadêmicos, Andréa Carneiro e Bruno Reis, além de Henrique Bonna que, mesmo não
sendo “acadêmico”, está sempre antenado com as pesquisas e tudo o mais que rola sobre a viola
pelo Brasil. Cariocas ainda não teriam percebido (ou dado o devido valor) à ligação de violas com
outros cariocas importantíssimos, historicamente, como o Padre Mestre José Maurício Nunes
Garcia, Domingos Costa Barbosa, Joaquim Manoel, o “Chalaça” (amigo de D. Pedro I), entre
vários outros violeiros pretos e pardos de destaque.
Há uma dificuldade a ser vencida, não apenas por cariocas, mas por quase todos os
brasileiros: os registros de época mais numerosos viriam de estrangeiros, do início do século XIX
(estes, que de fato relataram “guitarras” e nomes similares, em suas diversas línguas originais).
Muitos interpretaram e traduziram equivocadamente aqueles registros como “cavaquinho” ou
“violão”, mas em nossos estudos já atestamos, com base em centenas de dados e contextualizações
histórico-sociais que, na verdade, teriam sido cordofones chamados de “viola” por portugueses e
brasileiros. Pode-se até ser dito que não teriam sido “violas”, é verdade... mas era assim que eram
chamadas, assim se consolidaram e foi assim que nasceriam depois as nossas violas dedilhadas: se
aquelas não eram violas, então as atuais também não seriam. Assim, melhor não dar tiro em
mensageiros nem em ninguém, muito menos nos registros históricos.
Nosso sonho profético? Um dia, uma grande escola de samba (tradição carioquíssima)
fazer em um desfile de carnaval uma homenagem-denúncia sobre as violas dos escravizados,
predecessoras dos cavaquinhos e violões (e do samba, e do choro, e das modinhas...). Um grande
desfile, com todos os pretos maravilhosos que por aqui já passaram sendo lembrados e
reverenciados, para que o Brasil possa finalmente vislumbrar um pouco do que o preconceito
velado tem deixado como esquecido... Já vemos, em sonho, até os carros alegóricos... Mas aí já
são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
[...] The author has suggested a western Asiatic origin of the word:
Ossetic fandir (related with pandur), Tawgy féandir, Jenissei dialect of Samojedic jedilo,
Old Nordic fidlu, Anglo-Saxon fidele. Later on, the word lost its dental between the two vowels
and became fele in Norwegian, viéle in Old French and viola in Italian.
plectros, que são pequenos objetos como dedeiras e palhetas); e VIOLA, também com suas
variações pelos idiomas, que na maior parte do mundo representa instrumentos friccionados
(tocados por arco) mas, para brasileiros e portugueses, também representa dedilhados (o que é, no
mínimo, estranho...).
[Usamos maiúsculas para o que tratamos como "NOMENCLATURA", quer dizer que
aquele termo inclui "variações" em diversas línguas; estas últimas, grafamos sempre em itálico,
apontando a qual língua correspondem].
Como discorremos no nosso livro A Chave do Baú, uma exceção deste tipo de “ordem
ocidental” seriam as nossas violas dedilhadas (que, na verdade, deveriam ser chamadas
GUITARRA, como na maior parte do mundo). Este fenômeno aponta ter sido causado por uma
ação tácita portuguesa, de cunho nacionalista, e que é a verdadeira origem das nossas queridas
violas; só não espalhem isso, pois estudiosos ainda não querem aceitar nossas descobertas e
desenvolvimentos... Então, enquanto eles acham que mandam, fica sendo segredo nosso, ok?
Separadas, então pela nomenclatura e pela forma de tocar, estariam as cinturadas
GUITARRAS e VIOLAS... Mas... desde quando? Como teria se dado isso? Prepare-se para uma
longa viagem, pois não sabemos explicar com poucas palavras, até porque envolve séculos de
registros observados muito detalhadamente (e sem os detalhes, não dá entender, nem explicar).
Entre nossos pontos de partida está a visão destacada na abertura, do musicólogo alemão
Curt Sachs (1881-1959), mas fomos muito além do que ele apontou. O trabalho todo de Sachs é
incontestavelmente valioso, embora não se encontre pela internet muitos apontamentos sobre sua
biografia... Entendemos certo desprezo por ele ter lançado com o austríaco Erich Moritz von
Hornbostel (1877-1935) a proposta de classificação mais famosa (mas também mais contestada)
da História, chamada Hornbostel-Sachs (1914). A ousadia deles foi propor uma classificação
organológica de todos os instrumentos musicais do mundo. Não encontramos tradução completa
em português, mas fizemos questão de analisar e cruzar o original em alemão com algumas
traduções e estudos a respeito em francês, inglês e espanhol. Realmente, a ideia foi muito boa, mas
a realização deixou a desejar, a começar pelos nomes selecionados como títulos das classes, que
eles apontam não terem estudado a fundo. É uma das evidências de que não teria havido antes
outro maluco como nós, e é por isso que mergulhamos no estudo de nomes de instrumentos...
O mais importante é que o trabalho de Sachs vai muito além da Hornbostel-Sachs.
Atestamos desde o Real-Lexikon der Musikinstrumente, de 1913, onde já propunha zugleich ein
Polyglossar für das gesamte Instrumentengebiet (“ao mesmo tempo um poli glossário para
instrumentos de todos os tipos”) e fomos até o “História dos Instrumentos Musicais”, de 1940 (o
apontado na abertura): foram, portanto, várias décadas durante as quais Sachs pesquisou
esculturas, desenhos, manuscritos e estudos, que vem deste a extinta cultura suméria (de cerca de
4000 aC.); o autor passou por fontes e citações em aramaico, hebreu, egípcio, grego e latim até as
línguas europeias. Não, não podemos deixar de louvar e elogiar estes esforços e descobertas... E
se nos dá alguma “invejinha” do trabalho dele? Ah... pode colocar é “invejona” aí, por nossa conta:
Se algum dia crescermos, queremos ser como ele!
Além da Hornbostel-Sachs, chegamos a Sachs por citação da Dra. Julieta de Andrade no
livro Cocho Mato-grossense: um alaúde brasileiro, publicado em 1981. Andrade creditou Sachs
junto a alguns outros estudiosos: os franceses Albert Lavignac (1846-1916), Andre Schaeffner
(1895-1980) e Lionel Laurencie (1861-1930), além do também alemão Hugo Riemann (1849-
1919) e o português Mário de Sampayo Ribeiro (1898-1966). Além daquele estudo, e
coincidentemente publicado também em 1981 (mas sem citações de um no outro), a espanhola
Rosário Martinez, em sua tese Los instrumentos musicales en la plástica española durante la
Edad Media: los cordófonos apontou que a “teoria de Sachs” seria la más acertada entre cerca de
15 estudos de linguistas, historiadores, filósofos e musicólogos que pesquisou. Por fim, não o
estudo de Sachs, mas análises similares foram observadas, das quais se destaca a tese A Guitarra
na Galiza, depositada em 2020 pela Dra. Isabel Rei-Samartim, que por sua vez indicou duas outras
fontes: a italiana Ella B. Nagy e o galego Antonio Uxio Mallo.
Listamos estes estudos para denotar que diversos pesquisadores apontaram visões similares
a partir de fontes diferentes, sem que tenham se investigado mutuamente. Todos (Sachs, Andrade,
Martinez, Rei-Samartim) e vários outros apontaram possíveis origens das “violas”; todos
apontaram ligações e paralelos, indo até além do convencionado na etimologia (que é a ciência
que estuda a evolução histórica das palavras e que, na verdade, ainda não aponta origem
consistente do nome “viola” para instrumentos musicais). Aliás, em nossa opinião não solicitada,
acrescentamos que dificilmente se conseguiria fazê-lo via visões linguísticas tradicionais.
Sim: buscamos também estudos linguísticos, para tentar somá-los aos musicológicos, e até
conseguimos agregar alguns progressos; mas há o impasse de que aqueles estudos, assim como os
sociológicos em geral, embasam-se por característica (e, talvez, por comodidade?) em teorias
postuladas nos últimos três séculos. Nada contra teorias: nós as estudamos também, às vezes até
profundamente... mas nossa conclusão é que os registros existentes (ou “resistentes”), muito mais
antigos que as teorias, não precisam delas para nos contarem a História dos cordofones: por si, os
dados já nos apontam informações suficientes, desde que se organize um número
significativamente representativo. Não vimos ter sido feito em nenhum entre centenas de estudos
que checamos, e exatamente por este motivo resolvemos apurar, retraduzir e organizar um banco
de dados que abrangesse todos aqueles, e ainda mais alguns outros estudos e registros.
O que praticamente todos os estudiosos apontam é apenas que nomes de instrumentos
musicais apresentam muitas variações, pelos séculos e pelas diversas culturas e línguas envolvidas,
aparentemente sem nenhuma ligação lógica: nomes diferentes para instrumentos similares, nomes
similares para instrumentos diferentes, nomes de uma língua utilizados em outras, às vezes para
instrumentos similares, às vezes totalmente diferentes... Enfim, uma “confusão” (termo que
observamos citado em várias línguas), parecendo ser aleatória, não é mesmo? Sim... porém
descobrimos que não quer dizer que, por parecer bagunçado, não tenha nenhuma “gerência”...
A “gerência”, referida de forma brincalhona, cientificamente se expressa por padrões
observáveis e atestáveis a partir do citado (e significativo) banco de dados. Há coerências que, ao
cruzarmos com estudos históricos, sociais, literários, estatísticos e outros (a partir da base na
Musicologia, obviamente), comprovamos e entendemos serem incontestáveis. Uma delas é que
instrumentos musicais apontam sempre terem estado em contínua “evolução” (este termo, não
apenas no sentido de “melhoras”, mas, sobretudo, no sentido de “mudanças, alterações”), mas que
não são aleatórias: variações de nomes de instrumentos (assim como alterações físicas, ascensões
e quedas na preferência e outras características) sempre coincidem com contextos histórico-
sociais. Cientificamente, os fatos apontam que não pode ser coincidência, pelos fenômenos serem
observados desde os mais remotos registros conhecidos: só que é preciso aplicar o tal do olhar
múltiplo e bem atento, "de soslaio", que não teria sido aplicado antes com a profundidade
necessária.
Em nossa equação investigativa (então, bem "diferentona"), alguns fatores se destacam e
alguns estudiosos até já teriam percebido alguns detalhes; por exemplo: os ciclos evolutivos,
incluindo os nomes, normalmente levam muito tempo em transição, por isso os reflexos nos
instrumentos não são sempre correspondentes às épocas de grandes impactos sociais (não é
"ciência exata"); entretanto, os ciclos sempre surgem como reflexos de eventos de grande impacto
social em muitas pessoas, ao mesmo tempo. E também às vezes os reflexos se sobrepõem, se
somam, se cruzam (aí entra o olhar de soslaio que citamos). Podemos afirmar que os fatores são
observáveis em toda a História dos cordofones e, embora na História das Artes até sejam citados
alguns ciclos (como Renascimento, Barroco e outros), alguns estudos (principalmente linguísticos
e sociológicos) não costumam considerá-los realmente a fundo, assim como a cruzamentos com
múltiplas Ciências, visões e outros contextos de um banco de registros referente a toda a História,
a partir de estudos em várias línguas. São muito observados estudos que abrangem só o viés de
algumas culturas / línguas / regiões / períodos, quando na verdade a História europeia tem vários
episódios comuns a todo o território, desde o pioneirismo comercial fenício até praticamente os
dias atuais.
Importante: vertentes de nomes como as destacadas na abertura, que Sachs observou com
perspicácia e que outros também tentaram relacionar, não fazem parte da etimologia convencional.
A visão, inclusive, aponta ser mais assertiva se for mais abrangente, a partir de análises
multidisciplinares: uma técnica que ainda não teria nome (pois não se conhece quem a tenha
desenvolvido, antes de nós) e que arbitramos chamar de Onomato-Organologia (em homenagem
à tradição de uso de termos oriundos do grego para nomes de Ciências). Se algum dia viermos a
ter apoio acadêmico-financeiro, poderemos aprofundar ainda mais o estudo e até postular esta
“técnica complementar à organologia”, mas não há problema: o que interessa é que nos baseamos
em contextos histórico-sociais, dados e estudos de todas as línguas envolvidas. Não é em “uma”
Ciência apenas, menos ainda em teorias de nenhuma delas (nem mesmo teorias da Musicologia /
Organologia convencionais!), mas em fatos atestáveis e contextos largamente aceitos nas diversas
áreas do Conhecimento, como História, Sociologia, Estatística, Literatura Comparada, Análise de
Discurso e outras.
Um dos padrões que descobrimos e atestamos é que nomes de instrumentos apontam
tendência de se bifurcarem, ou seja: a partir de um determinado ponto, partirem para dois caminhos
paralelos de evolução. As línguas envolvidas também têm seu histórico de evoluções, numa parte
onde a Linguística ajuda muito a entender, porém esta se dedica a todas as palavras, em conjunto.
No caso dos nomes de instrumentos musicais, observa-se ser necessário avaliar as evoluções de
nomes em paralelo cruzado com as organológicas, além de outras aspectos onde se destacam os
contextos histórico-sociais: tudo, tanto de forma abrangente quanto individualidades (haja
soslaio...). Isso tudo vai além das convenções. Neste ponto, atrevidamente, propomos novas
técnicas que talvez possam ser úteis até para pesquisas de outras áreas do Conhecimento... (e sim,
atrevimento aqui não falta!).
Sachs apontou que haveria nomes iniciados pela letra “f” (e/ou pela sonoridade desta) e
que mais tarde, para instrumentos similares, teria havido a migração para nomes iniciados pela
letra “v”: esta é de fato uma das muitas evidências de bifurcações históricas entre instrumentos
musicais (e vamos falar muito disso neste Brevis Articulus). Ao fenômeno, o alemão ligou a origem
da nomenclatura VIOLA, mas considerou esta apenas para friccionadas por arco. A substituição
(de iniciados por "f" para iniciados por "v") é mesmo fato em algumas línguas chamadas
“germânicas”, em especial no idioma alemão (de Ahd, passando por Mhd, até o alemão moderno),
mas a Sachs faltou considerar que não apenas daquele tronco linguístico depende a História dos
cordofones, mas também do latim: este, inclusive, tem fundamental importância, por ter sido
imposto a todo o território europeu, pelos romanos, por cerca de sete séculos, e a Igreja ainda
seguiu utilizando como língua oficial por mais de mil anos.
Na verdade, a História dos cordofones aponta ter sido afetada por várias sociedades,
simultaneamente; por exemplo, o impacto social causado pelos Trovadores, com auge entre os
séculos XII e XIII, influência sequer citada por Sachs e não considerada a fundo pela maioria dos
estudiosos, enquanto causadora de reflexos nos instrumentos. A maioria dos estudiosos também
aponta não ter observado que sempre teria existido a dualidade de significado da nomenclatura
VIOLA, pois sempre teriam existido dedilhadas entre as friccionadas, embora estas tenham sido
bastante investigadas (aí é a Musicologia / Organologia, além da Literatura, que nos trazem
ferramentas científicas e entendimentos muito seguros).
Ainda teria faltado considerar nas vertentes apontadas que os termos latinos fides e seu
diminutivo fidicula (ambos iniciados com a letra “f”), embora genéricos (ou seja, dos quais não se
pode apontar a qual instrumento específico se referiam), também entraram no caminho histórico
de nomes e com considerável importância, dado o já citado longo histórico de influência do latim
(do século II aC. até o V, pelo Império Romano e, depois, pela Igreja por mais mil anos, isso para
citar só até o chamado fim da Idade Média, no século XV).
Sachs aponta ter-se fiado apenas no fato que, assim como em variações dialetais alemãs
pelos séculos, em latim a utilização da letra “v” também é tardia (veio a existir para distinguir
alguns usos da letra “u”), além de que “f” e “v” têm, em algumas línguas, a mesma pronúncia. Mas
isso não é suficiente e, principalmente, não é sustentado pelo amplo banco de dados de registros
que apuramos (que inclui vários registros que Sachs não aponta ter considerado). Uma evolução
espontânea de iniciais “f” a “v” é uma teorização linguística / etimológica muito observada, mas
falta aceitar pelo menos o fato, comprovado por registros e evidências até os dias atuais, de que
nomes de instrumentos, diferente de outras palavras, nunca seguiram algumas teorias linguísticas...
E para aceitar isso é preciso também aceitar que, entre todas as artes, a música sempre foi a mais
influenciada e mais influenciadora das sociedades e que, por isso, reflete mais diretamente grandes
mudanças sociais. Pelo que temos observado, poucos “estariam preparados” para encarar estes
fatos com a profundidade científica que merecem, inclusive musicólogos... Porém,
independentemente de qualquer tipo de teoria, de qualquer área, uma das muitas evidências que
descomprovam o entendimento mais apontado é que os instrumentos continuaram a ser chamados
por nomes iniciados pela letra “f”, em várias línguas, “desobedecendo” assim, na prática, a regra
teórica de que teriam que ter migrado para iniciais em “v”... (Que "danadinhos", os instrumentos,
não? Que falta de respeito com as teorias!)...
Falando sério, é por exemplos assim que se evidenciam padrões como o de bifurcações,
observáveis e atestáveis por registros históricos. Uma das bifurcações é até muito apontada, que é
entre línguas "latinas" e "germânicas", mas nem esta os "desrespeitosos" nomes de instrumentos
obedecem à risca.
Como evidência de que estudiosos não teriam percebido a devida profundidade histórico-
social contida em nomes de instrumentos, destacamos o equívoco de apontar nomes de
instrumentos específicos para categorias de instrumentos. Sachs (já em 1940), por exemplo, em
texto em inglês apontou classificação dos cordofones por categorias (ou “famílias”, embora não
tenha utilizado este termo) denominadas zithers (“cítaras”), lutes (“alaúdes”), lyres (“liras”) e
harpes (“harpas”), seguindo o que já tinha apontado antes, em alemão, na tal Hornbostel-Sachs
(1914).
[Neste ponto, "zero de inveja nossa": consideramos este tipo de uso, infelizmente ainda
praticado, muito impreciso e prejudicial a estudos e entendimentos gerais].
A classificação apontada por Sachs é coerente e fácil de entender (e talvez por isso ele
tenha optado por ela): colocando em ordem cronológica e utilizando nomenclaturas para sintetizar
as variações de nomes, HARPAS seriam cordofones de porte maior, com formato geral triangular,
sem caixa nem braço, onde a ressonância se dá pelas estruturas, ocas; CITARAS seriam como
versões menores, portáteis, das HARPAS, mas com formato similar ao da letra "u" e cuja
ressonância seria um pouco maior na parte estrutural inferior, mais larga; LYRAS seriam como
versões de CITARAS, mas cujas estruturas seriam onduladas (em contexto de rejeição /
concorrência grega às ketharas mesopotâmicas / hebraicas, "avós" das CITARAS); das lyras
gregas surgiria um modelo com as primeiras caixas ocidentais mais destacadas, em formato de
cascos de tartaruga, e por isso chamadas kellys (em grego) e depois chellys / testudo (em latim).
Caixas similares já existiriam em cordofones com braços, de culturas dissidentes dos gregos, sendo
então outro contexto de rejeição. Finalmente, ALAÚDES já teriam braços, e caixas de ressonância
também similares a cascos de tartaruga (não por coincidência, mas por já existirem desde os
sumérios). Sachs ainda apontaria divisão entre ALAÚDES (que para ele significaria “todos os
dedilhados com braço”) e fiddles (que seriam todos os friccionados por arco).
Dos nomes apontados, apenas para fiddle (e sua variação fidle, em alemão) não
encontramos registros ancestrais como dos demais. Encontramos, outrossim, fidula (em latim),
século IX: ancestral o suficiente para percebermos que teria influenciado depois o surgimento de
nomes como fidli e fithele / fidele (em irlandês, anglo-saxão e outros ancestrais da língua inglesa),
e assim influenciado a criação dos genéricos fiddle e fidle, mas por estudiosos, a partir do século
XVIII: o que consideramos um equívoco grave, pois fidula nem era friccionado por arco, quando
surgiu. Entendeu como usar nomes de instrumentos existentes como classificadores pode ser
problemático? Que uma imprecisão pode (como foi) ser secundada pelos séculos, por não serem
conferidas as fontes?
Haveria dúvidas sobre qual a origem mais remota entre harfe (em alemão) e harpa (em
latim), mas de qualquer forma já haveria antes άρπα ("arpa", em grego); lira é observado em latim
a partir de λίρα ("lyra", em grego), assim como cithara, a partir de κιθάρα ("kithara"); neste último
caso, a substituição da letra grega “k” pela latina “c” é observada em várias palavras, então...
agradeçamos aos estudos linguísticos! É importante observar que, por exemplo, cithara não deve
ser utilizado para nome de instrumento surgido antes do domínio de Roma, posto que nem existiria
ainda ("muito obrigado", História... e também a lógica de análises de discurso!). Já lute (“alaúde”),
latinização de al’ud (“bastão ou vara flexível, normalmente de madeira”, em árabe / hebraico), é
também bastante antigo, mas nem de longe representaria todos os cordofones com braço, pois tem
características organológicas muito específicas, inclusive claramente rejeitadas pelos europeus
(organologia, "muito obrigado!").
A principal crítica é que aqueles nomes são, originalmente, de instrumentos específicos,
com características distintas conforme períodos históricos e contextos, todos atestados nos
registros. E pior: ao utilizar fiddle (e similares) como genéricos para friccionados, despreza-se, por
exemplo, que na cadeia histórica houve o termo latino fides, utilizado para cordofones dedilhados.
Neste último aspecto, uma incoerência clara, pois por iniciarem com a letra "f", fides (e fidicula)
teriam que entrar na cadeia de nomes semelhantes, mas aponta ter sido deixado de fora pela maioria
dos estudiosos, inclusive Sachs: só entenderam nomes de VIOLAS como relativos a friccionados
por arco (neste ponto da nossa brincadeira fica complicado fazer agradecimentos individuais, pois
é um combo de analises linguísticas, literárias, organológicas, estatísticas e até nossa experiência
de compositor e escritor... "muito obrigado" então a todas as Ciências envolvidas, em massa!).
É curioso (para não dizer lamentável) que até os dias atuais tantos estudiosos, mesmo os
mais atentos à etimologia dos nomes (embora às vezes tratando-a de forma intuitiva) não atentem
para utilizações mais assertivas, ou seja: utilizar os nomes em suas formas, contextos de épocas e
línguas originais (ou, pelo menos, as mais remotas conhecidas). A maioria dos estudiosos, além
de usar nomes de instrumentos pré-existentes como genéricos (como Sachs), utiliza até traduções
atualizadas (modernas) para nomes de instrumentos antigos, e genéricos como nomes de
instrumentos específicos, entre outras arbitrariedades. É compreensível e às vezes até faz sentido
(por exemplo, para facilitar o entendimento de leitores da língua específica do estudo), mas à luz
de estudos mais aprofundados o comportamento aponta ser inacurado e danoso. Entendendo que
já haveria uma "confusão" natural e ancestral, na verdade o que fazem é tornar ainda mais confuso
o estudo.
Em resumo: traduzir e “inventar” nomes de instrumentos atrapalha muito, e já há séculos,
por isso nos atrevemos a questionar e demonstrar os prejuízos, além de, naturalmente, os benefícios
do comportamento mais assertivo. Todas as análises críticas de fontes e estudos nos foram
positivas, apesar das inacurâncias, pois ajudaram a fortalecer entendimentos sobre os padrões
observáveis, nos levando assim à constatação do citado "dueto” histórico que ainda prevalece,
entre GUITARRAS e VIOLAS (e assim, finalmente, chegamos ao tema proposto, sorry...)
[Pedimos desculpas por demorar, mas era preciso antes explanar (e conforme alertado, não
é possível fazê-lo com poucas palavras): não se pode rebater levianamente e até desdizer tantos
estudiosos respeitados: é preciso provar que “temos garrafas vazias para vender”, como o diz o
ditado popular; não estamos a brincar, principalmente em termos de registros históricos e aplicação
de metodologia científica (já na hora de escrever, até que brincamos bastante... sorry again...)].
A origem do citado “dueto VIOLA x GUITARRA” pode ser apontada a partir dos escritos
sumérios, os mais remotos registros de nomes que se tem notícia: já teria havido instrumentos com
braço e poucas cordas naquela civilização que, numa adaptação ocidentalizada, seriam chamados
pan-tur. Aqueles mesopotâmicos teriam sucumbido aproximadamente em 1900 aC., após
sucessivas disputas com outros povos, entre os quais se destacam os assírios, pois destes haveria
(a ainda há) cordofones sem braços chamados kethara: estes seriam, portanto, bem diferentes dos
sumérios antecessores, o que se entende por contexto de rejeição. Para se ter ideia, os egípcios,
nas mesmas épocas, fornecem registros do nefer (praticamente igual ao pan-tur sumério) e do
latim: phiala e vidula, este último o mais remoto registro conhecido da parte da bifurcação que
nos traria, esta sim, até VIOLA (que como nome de instrumento, tem registros a partir do século
XII)... e não por coincidência: a partir do século IX, com eventos como as Cruzadas, o latim aponta
ter tido um reavivamento de uso, e assim ascenderiam nomes latinos para os "novos" instrumentos
que emergiram na Europa, os com braços mais longos: nomes latinos que se tornariam
nomenclaturas (ou seja, influenciariam variações em outras línguas), a saber: CITARA (século
IX), CEDRA, CITOLA e VIOLA (século XII) e GUITARRA (a partir do século XIII).
Enganam-se, entretanto, os que apontam que a inicial “v” anularia a outra vertente paralela,
dos iniciados pela sonoridade de “f” (que, àquela altura, já viria de mais de 15 séculos, sendo,
portanto, mais natural que não desaparecesse). O já citado “auge do Trovadorismo” (séculos XII
e XIII) traria uma avalanche de nomes parecidos para cordofones similares, nas diversas línguas
em evolução pelo território europeu, onde podem ser observadas ambas as partes da bifurcação
seguindo e se consolidando (e não uma vertente suprimindo a outra). Pontuando os mais remotos
registros observados de cada nome, após o citado phiala (século IX, em latim, por um britânico),
observa-se a cronologia das variações iniciadas por "f": no século XII, os já citados fidil / fidli (em
anglo-saxão / irlandês), fighile (em alemão) e figella (em texto em latim, por um alemão); no século
XIII, fiðele, transcrito fidele ou fithele (em anglo-saxão) e fiola (em texto em latim, por um
dinamarquês, é que ainda utilizado no País de Gales, onde o "f" tem som de "v"); e no século XV,
figel (em alemão), fidella (em latim). Por fim, a aquele caminho, juntar-se-iam a partir do século
XVIII os já citados genéricos fiddle / fidel (que além de usados genericamente, também são
apontados para violinos ou rabecas, até os dias atuais). Como se demonstra, a bifurcação pela
inicial “f” ainda segue representada, sem ter sido substituída por nomes iniciados por "v", bastando
observar os históricos de registros nas diversas línguas relacionáveis, pelos séculos.
E a outra parte da bifurcação, o caminho das iniciais em “v”? Pela ordem, após vidula (em
latim, no século IX) também se observa a continuação da vertente: no século XII, viola e depois
viella (em latim), violle e viele (em francês), videle (em alto-alemão médio), viola (em catalão),
vihola, viola, vieula (em occitano); no século XIII, vitula (em latim), vielle (em francês), viella e
viula (em catalão), viulha (em occitano), vihuella, viola e similares (em espanhol), vioel (em
holandês). No século XIV, com a Peste Negra e a consequente queda nas práticas trovadorescas,
só teriam sido surgido duas novas variações: vióle (em francês, atualmente em uso) e viuola, depois
finalmente o atual viola (em italiano), sendo importante acrescentar neste século já haveria
significativa presença da nomenclatura GUITARRA, de certa forma "concorrendo" como nome
de instrumentos muito similares; no século XV, viola / violla (em português); por fim, viol e vialle,
em línguas inglesas, que só teriam sido observadas a partir do século XVI, substituídos a partir do
século XVIII pelo já tão citado genérico fiddle (neste último caso, observa-se inclusive um nome
iniciado por "f" substituindo os iniciados por "v", exatamente o contrário do apontado por teorias
linguísticas... sem dúvida são danadinhos, estes nomes de instrumentos!). Lembrando que esta lista
é dos mais remotos registros apurados: cada nome seguiria por longos períodos nas respectivas
línguas, influenciando novos nomes e mesmo assim mantendo a tendência de bifurcação. Como
visto, a bifurcação não corresponderia sempre à divisão entre línguas latinas / germânicas, embora
esta teria sido a maior tendência.
Estes foram os caminhos paralelos que se consolidaram e que hoje apontam para um
reverso, sempre por causa de contextos histórico-sociais (no caso, a globalização, seguida e
ampliada pela ascensão da rede mundial de computadores): o nome viola vem gradativamente
sendo o mais usado em diversas línguas para os friccionados equivalentes (um dos quatro do naipe
das cordas das orquestras), sem traduções nem variações, ou seja: naquela forma latina mais
remota mesmo. O processo é similar ao que também aponta acontecer com harpa e lyra, nomes
ancestrais de instrumentos sem braço... mas repare que não acontece a mesma literalidade com
nomes como kethara / kithara ou cithara, também ancestrais, e não seria por coincidência: nunca
é!
Junto com as novas CITARAS, e também com braços longos, porém significativamente
diferentes, se destacariam as chamadas organa ou symphonia, nomes genéricos que a partir
daquela época passaram a ser apontados para cordofones específicos, com registros a partir do
mesmo século IX (é sério que alguém acredita que teria sido coincidência?). Aqueles nomes
carregariam resquícios que viriam pelo menos desde o século IV, e passaram a ser apontados para
formatos que refletiam as caixas de ROTTAS antecessoras (organas cinturadas seriam as mais
observadas, no princípio, mas depois haveria também algumas retangulares). Tocadas de maneira
totalmente diferente das dedilhadas CITARAS, organas teriam cordas acionadas por uma roda (ou
disco): seriam, então, "friccionadas" (mas não por arco), e nos braços longos teriam o mais remoto
sistema de teclas para alterar notas que se conheçam registros. Soma-se que, a partir do século X
(e, portanto, ainda nos mesmos contextos histórico-sociais já apontados), começariam a surgir os
mais remotos registros conhecidos de instrumentos tocados por arco no território europeu (e por
praticamente todo ele, simultaneamente). Arcos seriam usados primeiro nos mesmos instrumentos
até então apenas dedilhados, em outra reação nos instrumentos que aponta influência moura,
porque até então, por séculos, europeus apontavam preferência por dedilhados.
[Parece "informação demais", né? Sabemos disso, mas todos estes fatos e dados se
cruzariam nos séculos seguintes: se não olhar pelo menos "de soslaio" a tudo, fica difícil entender
os desenvolvimentos que se seguiram... Os registros estariam à disposição há muito tempo, talvez
não tão facilmente acessáveis como hoje em dia (pela internet, e até gratuitamente), e não se
observou outro estudo que aponte ter percebido todas as interrelações, sobretudo de nomenclaturas
e reflexos histórico-sociais, além das violas dedilhadas, que são uma "luz" exclusiva de falantes
da língua portuguesa: o desembolar deste novelo, portanto, é coisa "só nossa", por enquanto... ouvi
palmas?].
Este grande desenvolvimento, feito até aqui, foi para introduzir a conclusão de que, então
a partir do século IX, CITARAS com braços e diversos formatos de caixa se bifurcariam em
CEDRAS e CITOLAS (pelas variações de nomes mais observadas), seguidas pelo surgimento da
nomenclatura VIOLA, em continuidade da bifurcação ancestral. Como já citado, as três últimas
nomenclaturas têm registros a partir do século XII; depois, surgiria GUITARRA (pelo menos, os
mais remotos registros conhecidos seriam a partir do século XIII) e obedecendo também a
bifurcação ancestral (ou vertente paralela), porque, apesar de bifurcações e alterações de
preferências acontecidas no meio do caminho (sempre, por causa de contextos histórico-sociais),
guitarra aponta continuação de cithara e esta, de kithara e kethara, onde tudo começou.
Entre os séculos IX e XV considera-se impossível, pelos registros até então conhecidos,
relacionar seguramente formatos de caixas a nomenclaturas específicas. Alguns estudiosos até
tentam, mas usando-se (como se deve sempre) um leque investigativo amplo, principalmente
quanto a períodos históricos das diversas culturas em intercâmbio, não se atesta: aquele período
aponta ter sido especial, na História, justificável pelo grande número de eventos de grande impacto
social. As relações diretas entre nomes, tamanhos, formatos de caixa e maneiras de tocar, até então
relativamente bem observáveis, só voltariam a ser constatadas com segurança a partir do século
XV (em contexto com a expulsão dos mouros, entre outros eventos de grande impacto por
praticamente toda a Europa) e quando, também não por coincidência, observou-se que cairiam em
desuso as nomenclaturas CEDRA e CITOLA. A nomenclatura CITARA, entretanto, seguiria por
mais alguns séculos, em algumas culturas... adivinha se teria contexto histórico-social
correspondente?
Embora complexo, entendemos que fica menos difícil entender se não se perder os
paralelos com a História: na Idade Média houve eventos de grande comoção social por
praticamente toda a Europa (que são já largamente estudados, inclusive a divisão entre "baixa" e
"alta" Idade Média é apontada exatamente para a viradas dos séculos IX e X... e "muito obrigado",
História!); assim, nada mais normal que os instrumentos também espelhassem com alterações
como a ascensão de instrumentos com braços longos e diversos tipos de caixas diferentes das
mouras, que justificam surgimento de novos nomes, somado ainda à ascensão do uso de arcos em
alguns modelos (tudo sempre em rejeição e concorrência aos dissidentes). Tantas novidades
levaram, naturalmente, muito tempo para serem assimiladas e se consolidarem (tanto nas
sociedades, em geral, quanto nos instrumentos, em reflexo das sociedades): "muito obrigado",
Sociologia, pelos estudos sobre as sociedades antigas!
A regra "geral" (ou "maior") seria sempre a de continuidade, só quebrada por contextos
histórico-sociais, as vezes gerais (de todo o território europeu), às vezes específicos de alguma
região: assim, a não equivalência ao observado antes e após a Idade Média se justifica, e o
surgimento / ascensão / queda de uso de alguns instrumentos e/ou de seus nomes atestam padrões
também observados desde antes e que depois continuariam. Naturalmente, sem observar
profundamente os nomes utilizados nas diversas línguas, pelos séculos, em paralelo às demais
características, não se consegue observar o todo com clareza.
CITARA e GUITARRA continuariam em significativo uso (a primeira nomenclatura, por
apenas mais alguns séculos, enquanto a segunda segue forte até os dias atuais). Ambas
gradualmente dirigiram-se para instrumentos dedilhados, enquanto VIOLA evoluiria como
nomenclatura principalmente de friccionados por arco, embora também para dedilhados, em
algumas culturas / regiões: este último detalhe (a bivalência de um mesmo nome para duas formas
de tocar, que não deixa de ser certa "bifurcação"), poucos estudiosos apontam ter percebido,
indicando VIOLAS, pelas diversas variações, sempre como tocadas por arco: este é um
entendimento que consideramos um grave equívoco, descomprovado principalmente pela longa
fase de transição, já citada, de que arcos surgiram em instrumentos que antes eram apenas
dedilhados, e portanto continuariam assim, bivalentes, por longo período (se não observar pelo
menos do século X até os dias atuais, pela Europa e suas Colônias, não se consegue ver bem o
panorama geral). A visão equivocada é desmentida por registros observados em algumas épocas e
regiões, em destaque as vihuelas espanholas do século XVI (quando as dedilhadas seriam inclusive
mais citadas, portanto, preferidas sobre as de arco naquela região); além das nossas violas,
bivalentes desde o século XV até os dias atuais, para brasileiros e portugueses. Neste ponto, os
"tupiniquins" e "lusitanos" tem potencial vanguarda na organologia ocidental, pois nosso dia-a-dia
traz informações importantes, verdadeiras "dicas", como resquícios históricos nos nomes e
organologia dos instrumentos, com as quais o restante do Ocidente não tem tanto contato. Só que,
para perceber com clareza, é preciso estudar, atestar e aceitar que bifurcações e resquícios
históricos são padrões na História dos cordofones, com olhar "de soslaio" pelo que aconteceu por
toda a História: it's mole não... mas é cientificamente atestável!
As dedilhadas CITARAS e GUITARRAS então já apontariam bifurcação com as VIOLAS
(que seriam bivalentes, quanto à maneira de tocar), e outra "rebifurcação" ainda surgiria e se
cruzaria. Uma outra bifurcação também por nomes, mas ao mesmo tempo por formatos de caixa:
se por um lado os espanhóis acabaram optanto pelo formato cinturado para suas guitarras, outras
culturas apontariam preferência para formatos arredondados e ovalares (principalmente italianos,
ingleses e alemães, por suas vezes em concorrência / dissidência aos espanhóis). Pelo estudo
aprofundado das nomenclaturas se consegue ver mais claramente porque mais tarde se veriam
como preferidas as arredondadas citaras italianas, que nas línguas germânicas (como alemão e
inglês) seriam chamadas citterns e/ou gitterns: os italianos naturalmente usariam nome quase igual
ao latino original, enquanto os demais usariam nomes com resquícios menos influenciados pelo
latim, mas apontando ligação com ambas as vertentes ancestrais. Ou seja, cruzaram-se bifurcações:
de um lado, pelos nomes (primeiro entre cithara / guiterna, em latim, e desta última surgindo a
rebifurcação guitarra / gittern); por outro lado, bifurcação pelos formatos de caixa (arredondados
e cinturados). O fenômeno poderia ser entendido como "natural" (ou seja, aleatório), como parece
ser tratado, até hoje, por estudiosos; porém, se fosse, seria um "aleatório" a se repetir desde pan-
tur e kethara (cerca de pelo menos uns 2.000 anos aC.), e por isso concluímos que seja um padrão
histórico, e não aleatoriedade ou coincidência.
Como já alertado, a vertente da bifurcação ancestral relativa às GUITARRAS é mais
complexa que a das VIOLAS, mas é compreensível porque haveria contextos histórico-sociais
vencedor da citada Guerra, D. Pedro I), aponta registros irrefutáveis, sendo reflexo somado de
tantas comoções sociais a ascensão da guitarra portuguesa e a queda da guitarra inglesa.
Não se entende que os portugueses tivessem consciência de tudo isso, nem naquela época
nem até os dias atuais (até porque não haveria estudos semelhantes, antes dos nossos). Inclusive,
observamos uma engraçada possibilidade: de que os portugueses, de nacionalismo inato, por
séculos rejeitariam nomes de procedência espanhola (mascarando-os como o genérico "viola");
mas numa espécie de "pilhéria" a aqueles dissidentes, adotariam o nome "guitarra" para
instrumentos de caixa arredondada (as, então, oportunas guitarras inglesas, bem diferentes das
guitarras espanholas que já eram chamadas de "viola" pelos portugueses, por rejeição). Quer dizer:
"se os espanhóis tem a 'guitarra' deles, nós também teremos a 'nossa', ora pois!".
Bem mais sério que essas conjecturas (que só apontamos para fazer graça), observa-se que
tendências ancestrais (continuidade, bifurcações, resquícios históricos) se manifestaram mais uma
vez, e naquele caso envolvendo duas línguas bem diferentes (inglês / português), o que segundo
estudos linguísticos convencionais não é nada comum: o normal seria uma palavra da língua
espanhola ser adotada na língua portuguesa, por serem ambas línguas latinas, e bem similares (o
nome "guitarra", inclusive, é literalmente o mesmo); mas os fatos apontam circunstância bem
distinta e evidenciam, na verdade, que o nome do cordofone que ascendeu ("guitarra portuguesa")
aponta coerência com o padrão de bifurcações. Desfazendo o novelo, permita-nos repetir: temos
primeiro o par bifurcado cithara / guiterna; depois, enquanto de um lado cithara se bifurcaria entre
cedra e citola, guiterna se dividiria entre guitarra e gittern (neste ponto, seguindo a tendência de
separação entre línguas latinas e germânicas, "muito obrigado", Linguística!); ao mesmo tempo, a
bifurcação se encaminharia também pelo formato caixa (arredondadas / cinturadas). Isso tudo em
coincidência e atestação pelos contextos histórico-sociais entre espanhóis e seus dissidentes, dos
quais os portugueses apontam ser os maiores. Entende-se que se não fosse por contexto de
ascensão do capitalismo (onde um instrumento representativo da cultura representa entrada de
divisas), os portugueses provavelmente seguiriam rejeitando o nome "guitarra" (como o fazem até
hoje, quanto aos cinturados); porém, o antigo contexto de concorrência, somado aos reflexos da
Revolução Industrial, encaminharam a ascensão da guitarra portuguesa que, na verdade, denuncia
e atesta, pelo nome e pelo formato, os padrões ancestrais, em cruzamento peculiar e especial
naquela cultura / região (bifurcações, uso inacurado de nomes, resquícios históricos, continuidade,
reflexos de comoções sociais). Foi por isso que, mais uma vez, os nomes de instrumentos se
mostraram "danadinhos" e desobedeceram às convenções linguísticas...
Poder-se-ia dizer que a guitarra portuguesa descenderia das CITARAS, ao invés das
guitarras inglesas, como a alguns portugueses agradaria mais apontar? Sim... mas só pelos nomes,
que sem dúvida apontam ligação ancestral; porém, é preciso observar que houve bifurcações
específicas a partir do século IX, ligadas à ressignificação da nomenclatura CITARA e, entre elas,
a parte da bifurcação que se encaminhou para o formato arredondado é atestável, contínua e
largamente, a partir do século XV em instrumentos italianos, alemães e ingleses (com destaque
nestes últimos), mas não em portugueses, que seguiram na preferência por cinturados até o século
XIX (a data de ascensão da guitarra portuguesa, o nome e a estatística de registros pelos séculos
são claros). Um apontamento significativo é que no início do século XVIII o dicionarista Bluteau
(Vocabulario Portuguez, e Latino, 1720, v.8, p.508) indicou que as cinturadíssimas "violas
portuguesas dedilhadas" seriam ainda chamadas de citharas, um nome então fora de contexto de
época, de região e de relação com formato de caixa: um comportamento historicamente
característico dos portugueses, entendido como compreensível pela especial somatória de
contextos histórico-sociais deles. Outra incoerência do apontamento de ligação continuada entre
CITARAS e guitarras portuguesas é que portugueses não apresentam histórico de
desenvolvimento de instrumentos característicos: ao contrário, é típico dos portugueses chamar
por outros nomes instrumentos pré-existentes, com alterações não tão impactantes. É bem
diferente, por exemplo, das alterações e investimentos feitos pelos séculos por espanhóis em suas
guitarras (ascenderam sobre vihuelas, mudaram tamanho e armações de cordas, aprimoraram
na maioria dos estudos, mas não aos nossos, porque várias vezes observamos um nome de
instrumento surgir, mas demorar bastante tempo até significar correspondência a características
organológicas depois consolidadas (até porque o passado quase nunca equivale ao acontecido
depois, pois os processos e contextos se modificam, se somam e se cruzam). Não se pode entender
que registros escritos do nome violino (e variações) realmente existentes desde o século XVI já
representassem o instrumento depois consagrado. Assim como, naturalmente, não teriam sido
“violinos” as abauladas rababs (“rabecas”) mouras, que teriam chegado ao território europeu a
partir do século VIII, nem as GIGAS, chamadas por alguns lyras bizantinas: estas últimas,
europeias (num contexto de concorrência e/ou rejeição às primeiras, mouras), e todas apontando
terem sido "vovós" (antecessoras e influenciadoras), mas só muito tempo depois os cinturados
violinos modernos alcançariam o que se tornaram, inclusive por mais uma evidência: violas de
arco atravessariam os séculos praticamente com o mesmo tamanho (e formato, naturalmente), mas
faria sentido, no início, serem chamadas por diminutivos (como violino, violette, violini) pois
seriam bem menores que as suas (delas) "parceiras de bifurcação" (então, por nomes e tamanhos),
as bem maiores violas da gamba.
Chegamos, enfim, ao aprofundamento proposto, sobre o padrão histórico de bifurcações,
que ilustram o grande caminho que nos traz à atual consolidação: instrumentos mais populares
(dedilhados, apontados pela nomenclatura GUITARRA) e instrumentos mais eruditos, das
orquestras, friccionados por arco (apontados pela nomenclatura VIOLA). Esta é a bifurcação com
o caminho atestável mais longo, caracterizada pelas duas vertentes de nomenclaturas e formas de
tanger, sendo que tem o mesmo formato (cinturado). Bifurcações intermediárias também
sobrevivem, como a dos dedilhados com caixas arredondadas ("cistres"), que também apontam
duas das principais diferenciações "bifurcativas", por assim dizer (nomenclatura e formato).
Também sobrevivem exceções, onde se destacam instrumentos portugueses (violas dedilhadas,
guitarras arredondadas). Tudo, sempre, justificável por contextos histórico-sociais. É um estudo
complexo, mas coerente e atestável "de cabo a rabo" na História dos cordofones ocidentais. Ao
passo que nos nomes se observam os resquícios de atestação mais longa pelos séculos, registros
remotos só deles seriam sempre insuficientes para atestarem como teriam sido os instrumentos:
entretanto, muitos entre grandes estudiosos se equivocam, apontando entenderem (por falta de
aprofundamento no estudo dos nomes) que panoramas do passado teriam sido como os que depois
se consolidaram. A partir de contextos histórico-sociais se observa e se atesta que seria impossível
ter acontecido como tantos apontam... Mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
desde o século XVI até os dias atuais, e depois listamos as mais remotas citações à nomenclatura
VIOLA desde o século XII. Cada item com sua respectiva transcrição e/ou tradução a partir de
diversas outras línguas, quando foi o caso. E com as respectivas fontes claramente apontadas, para
quem quiser conferir. Sim, sim: “o bagulho é sinistro”, como diriam alguns: em tempos de muita
canalhice e enganação, não brincamos com informação histórica, muito menos com a inteligência
de quem nos lê.
O que mais interessa é que aqueles instrumentos do catálogo Gianinni existiram, eram
diferenciados principalmente pelas armações de cordas e teriam estado à venda por grande parte
do Brasil. Adicionamos ao "caldeirão de pesquisa" um tempero que chamamos de “o pulo do gato”
de quem quiser entender a História dos cordofones: uma vez que um instrumento tem registro
continuado (em qualquer época ou lugar), a tendência é que ele siga existindo por muito tempo: às
vezes com outros nomes, em regiões ligadas culturalmente, às vezes com pequenas alterações, etc.
A “pá de cal” (ou seja, a marca definitiva de morte científica, até para pesquisadores experientes)
acontece quando não se distingue o que seria “variação pontual” e o que seria “característica
relevante, continuada”, esta última só atestada por número significativo de evidências, de dados,
referências... Entendeu porque sempre citamos várias fontes, de diferentes autores e épocas? Sem
base em muitos registros, de várias línguas, épocas e visões científicas somadas e cruzadas, não se
consegue enxergar corretamente o panorama geral.
É aí que "a vaca torce o rabo", além de tossir e quase engasgar, pois estamos a tratar de
instrumentos populares, construídos sem regras rígidas, por povos criativos (os brasileiros, então,
são dos mais criativos). Para ser sério e honesto, como é nossa intenção, não se pode desprezar
nenhum fato... e a liberdade de construção e utilização de instrumentos é fato até os dias atuais;
muito mais, imagine, quando nem existia internet... Ou melhor: imagine quando não existia ainda
nem fotografias para base de comparação na construção de um instrumento musical... já pensou?
Pode ser que esteja pensando: mas e a iconografia? Sobre esculturas, desenhos, pinturas,
iluminuras e similares é bom considerar que teriam sido feitos por artistas sem compromisso
formal de refletir a realidade das peças retratadas. E nem sempre tudo estaria "em pose" para
criarem suas peças com todos os detalhes. Pior ainda: a característica de todo artista, desde sempre,
é de "criar", de gerar algo novo, e não apenas "retratar" o real (pois este último, qualquer um
poderia ver). A arte sempre teve tendência de ser única, exclusiva, diferente, inovadora.
E creia também: vários pesquisadores pelo mundo se fiam em iconografias e se dão mal há
séculos, principalmente quando imaginam, sem checar exaustivamente, que os instrumentos
retratados teriam existido de fato e que teriam exatamente as características mostradas em peças
artísticas. Pior é quando se considera que aqueles instrumentos retratados teriam os nomes que
apareciam em registros escritos da mesma época... Esta última correlação está longe de ser
garantida: mesmo que um pintor ou escultor registrasse nas obras o nome que ele achava que os
instrumentos teriam, seria o nome utilizado apenas naquela região, época e língua específicos. O
que observamos, diferentemente até do que vários linguistas defendem, é que nomenclaturas de
instrumentos circulavam por longos períodos, com muitas variações, muitas vezes pela influência
de várias línguas diferentes ao mesmo tempo.
[Estudar isso “né brinquedo não”... Além disso, por sermos também artistas, podemos
afirmar que é bom desconfiar de nós às vezes: nosso principal compromisso quando estamos a
fazer arte é com a arte em si; e arte não é ciência: ela está, ao contrário, longe de ser precisa ou
previsível. Observe, por exemplo, que escrevemos sobre coisas muito sérias, mas não conseguimos
escapar de fazer piadas, inserir rimas, trocadilhos, duplos sentidos, etc. Alma de artista é
incorrigível, "danadinha"...].
No caso, nós sabemos nos portar como “não artistas” quando precisamos (pois não somos
"só artistas") e por isso afirmamos que o mais seguro (ou “menos inseguro”? Ops, escorregou...)
é cruzar todo tipo de dado comprovável que for possível conseguir. Um grande e variado número
deles. Também é bom sempre duvidar de tudo e só apontar o que parecer ser mesmo incontestável,
mas apresentando todas as evidências e desenvolvimentos, sem preguiça. É uma pena, pois as
pessoas comuns cada vez gostam menos de ler: ao contrário, adoram histórias curtas, fáceis de
entender, sem se importar se seriam inventadas ou não... É neste ponto que vários pesquisadores
tem opção de escolher entre “serem honestos e aprofundados” ou “ganhar dinheiro e notoriedade”:
a última opção é bem mais fácil, basta dizer o que o povo quer ouvir, do jeito que gostam que seja
dito. Já a opção de ser honesto e claro, é bem mais "chata", complexa e, às vezes, desagradável a
alguns...
Voltando às cordas (mas não como nos ringues de luta), além daqueles instrumentos “de
fábrica” do catálogo Gianinni, acrescentamos que teriam existido ainda, na época, algumas violas
12x5: estas já existiriam em Portugal pelo menos desde meados do século XVIII e, por aqui, as
mais antigas “Violas de Queluz” (do século XIX) também teriam evidência de terem sido 12x5;
portanto, um registro escrito de “viola de 12 cordas”, sem mais detalhes, não comprovaria com
precisão como teria sido o instrumento. Entendeu? Citar “viola 12 cordas” poderia significar “viola
de cinco ou de seis ordens” (e com duplas ou trios de cordas); ou poderia até, por equívoco de
quem citou, ser um violão... Sério: não seria mais fácil ignorar os registros, pois daria muito
trabalho investigar? Pois é o que parece ter sido feito pela maioria dos pesquisadores...
Soma-se que, a partir da década de 1980 (quando começaram pra valer as pesquisas sobre
violas brasileiras), já haveria interesse comercial (e/ou afetivo, quase religioso, talvez?) em
divulgar o modelo mais conhecido (leia-se “o mais vendido”), o tal modelo Viola Caipira. Nesta
ação haveria um equívoco básico (para não dizer “tosco”, pois não queremos ser rudes) de pesquisa
histórica: imaginar que o passado teria sido igual aos dados conhecidos no presente. O pesquisador
Roberto Corrêa, por exemplo (um dos maiores formadores de opinião do meio da viola, por seus
merecidos méritos e talentos), em 2014 defendeu em seu doutoramento que a década de 1960 teria
sido de “avivamento da viola caipira”, sendo que, à luz das fontes de época, os instrumentos ainda
não seriam chamados daquela forma, pela maioria: prevalecia o nome geral “viola”, mas o pior é
que dezenas de registros apontam que, na verdade, na época haveria dúvida pública entre os nomes
“viola caipira” e “viola brasileira”. Sequer na época em que Cornélio Pires fundou e defendeu sua
interpretação pessoal, conhecida como caipirismo (entre 1910 e 1945) as violas eram chamadas
“violas caipiras”, e nem pelo próprio empresário paulista. Corrêa, portanto, teria desprezado todos
estes registros.
O entendimento equivocado (porém, agradável de ser aceito pelos caipiristas, “afetivo-
quase-religiosos”), é que as violas teriam sido como o violão: um modelo padronizado,
praticamente único. Violas de 12 cordas (assim como outros modelos de viola) foram então
convenientemente sendo “esquecidas”, principalmente pelos poucos que se empenharam em
pesquisar as violas brasileiras nas últimas décadas. Se estiver em dúvida sobre estas afirmações,
não é tão difícil esclarecer e qualquer um pode conferir, como nós fizemos: não são muito mais
que 50 os trabalhos acadêmicos depositados por brasileiros desde a década de 1980 e, antes destes,
só há alguns poucos artigos desde a década de 1960 (exatamente quando estudiosos discutiam
sobre o melhor nome, viola “caipira” ou “brasileira”).
Muitíssimo curioso é que a maioria dos pesquisadores indicam, por exemplo, a variedade
de afinações das nossas violas como se fossem curiosidades: longe disso, as afinações diferentes
(sem contar os formatos, mais variados ainda) são indício claro de que as violas tem
comportamento histórico muito diferente dos violões, estes que, enquanto "guitarras", usam a
mesma afinação desde o século XVII, similar à de vihuelas e de alaúdes antecessores.
Pesquisadores também apontam, às vezes, alguns modelos diferentes de violas como tendo sido
gerados depois e/ou por causa do “divino” modelo Viola Caipira, num equívoco inacreditável de
falta de fundamentação em registros de época. Os diferentes modelos são também indicados como
“curiosidades” regionais, naquela inegada característica de liberdade popular para fabricação, que
comentamos há pouco, mas que no caso dos modelos da Família das Violas Brasileiras não cabe,
por critérios que sempre (re)citamos feito mantra: significativo número de registros, nomenclatura
continuada, estudos existentes, evidência em outros Estados além do considerado “de origem”. Se
a fabricação popular é puramente aleatória, como tantos aspectos tem continuidade? (e nem
estamos a falar ainda de aspectos repetidos observáveis desde os primórdios da História dos
cordofones, estamos a falar só dos últimos séculos...).
Claramente os apontamentos cientificamente muito equivocados (mas convenientes ao
caipirismo) demonstram, entre outros fatores, uma falta de entendimento (ou de conhecimento) da
tendência de continuidade histórica demonstrada por cordofones há séculos: basta comparar com
as violas portuguesas, consolidadas por lá também em uma família de instrumentos similares, e se
perguntar: por que raios aconteceria diferente por aqui, se estivemos sob o jugo português do
século XVI ao XIX? Quantos detalhes da nossa cultura (além da obviedade de falarmos a mesma
língua) são necessários para atestar que temos, sim, algumas características próprias, mas que o
“grosso” das nossas origens, a maior quantidade de influências, devemos diretamente aos
portugueses? Ok: rejeitar o colonizador é compreensível e até, de certa forma, nobre... Mas
desprezar ou querer deturpar fatos e registros históricos é muito sério: é desonestidade intelectual.
Uma atenuante (antes que dê vontade de sair estrangulando pesquisadores por aí) é um
comportamento muito observado: pesquisadores costumam segundar outros, mais antigos e que já
tenham atingido notoriedade pública e/ou acadêmica. É considerado normal que pesquisas se
baseiem em outras, anteriores, porém se um grande estudioso se equivoca (ou distorce, ou despreza
algum fato por alguma motivação) é grande a possibilidade de serem secundados naquelas
colocações equivocadas, sem discussão nem conferência de dados, lógica, et cetera. Entendemos
que não deveria ser assim: diferentemente, ao se basear em visões de terceiros, por mais
competentes que eles possam ser, é desejável que sejam checadas fontes de época, estudar bem o
desenvolvimento (tenha ou não sido apresentado) e até criticar e/ou acrescentar algo ao que já fora
feito (neste último caso, talvez seja exagero nosso, mas é o que fazemos sempre).
Acreditem: há até doutoramentos aprovados por grandes universidades onde quase não
encontramos citações a fontes de época: tudo na base do “copiei e colei” de visões de
pesquisadores famosos, contemporâneos! Pior ainda: como somos “chatos”, conferimos todas as
citações e observamos um grande número de “links quebrados” (ou seja, citações cujas fontes
apontadas não são localizadas, ou não comprovam o que foi citado). E é... nem sabemos como
melhor descrever... Incrível? Frustrante? Vergonhoso? Escolham o termo que preferirem. Para nós
é tudo isso, além de outros adjetivos ainda piores ...
Dentro de todo este cenário, entretanto, há um trabalho a ser louvado, relembrado,
comemorado. Trata-se do conjunto de esforços do professor, violeiro e pesquisador Júnior da
Violla, de São Paulo (SP). Artigos, TCC com revisão voluntária apresentada após alguns anos do
primeiro depósito (fato raríssimo no meio) e atuação continuada, diária, pelas redes sociais
virtuais. Não que seja imprescindível, mas agrega bastante valor também o fato de Júnior ser
bacharel em Música (pela FAAM) e formado também em Música Antiga (pela EMESP).
Atestamos literalmente “palavra por palavra” o trabalho, pois tivemos a honra de fazer
revisão ortográfica do TCC que depois, revisado e atualizado, foi disponibilizado em 2020; e mais
honra ainda de travar com (ou seria contra?) Júnior da Violla verdadeiras batalhas de discussões
sobre descobertas e métodos de pesquisa, até os dias atuais. Nós, que de bobos só temos o jeito de
andar, procuramos sempre extrair e aprender ao máximo o (algumas vezes) até irritante
pragmatismo de Júnior quanto às análises de fontes. Isto se reflete em vários dos procedimentos
que hoje adotamos (a culpa, portanto, é muito dele...)
Entretanto, só amadurecemos de fato as visões quando depois mergulhamos também à
procura de dados sobre as Violas 12 Cordas (não só por sermos chatos, mas porque mergulhamos
atrás de cada modelo consolidado a fim de atestar nossa postulação de uma Família de Violas
Brasileiras). Foi então que compreendemos, na prática, a complexidade do assunto: há poucos
registros; não existiriam pesquisas similares para comparações; e várias armações de cordas eram
possíveis, sendo que poucas fontes teriam apontado estas variações em detalhes. Foi então que
também viemos a reconhecer ainda mais a importância do trabalho de Júnior da Violla, que
entendemos que ainda precisa ser mais valorizado publicamente, sobretudo no meio da viola.
Se estaríamos a exagerar aqui porque falamos de um amigo? Ah, não existe qualquer
possibilidade disso! Nossa relação quanto a pesquisas sempre foi muito mais pautada por “tapas”
do que por “beijos” (como se diz no popular, mas que nunca aconteceu literalmente, nem tapas e
muito menos beijos). Inclusive, em nossa insignificante opinião, o trabalho de Júnior ainda está
longe de ser perfeito: esperamos que possa melhorar muito quando ele resolver partir para uma
dissertação de mestrado ou, até melhor, uma tese de doutoramento. E afirmamos isso, para ele e
para todos, sem qualquer medo de sermos interpretados como arrogantes, embora quem não gosta
de algumas verdades que apresentamos, parece gostar de nos acusar de arrogância por puro
prazer... Parece que estes “someliers de humildade alheia” acham mais fácil atirar no mensageiro,
ao invés de ler e conferir a seriedade e exatidão da mensagem (os dados levantados). "Faz parte?"
Não sabemos se faz parte, se é obrigatória tanta ignorância, mas sabemos que é triste. Muito triste.
Desabafos à parte e seguindo na argumentação sobre o trabalho de Júnior e de outros que
poderão vir, um fato muito mais importante é que agora existe à disposição um banco de dados
muito maior e muito mais organizado do que existia cinco anos atrás. Só a ampliação de fontes em
diversas línguas, já retraduzidas e reinterpretadas à exaustão, que contextualizam as violas com a
História ocidental do cordofones, já pode municiar e embasar bem melhor a já boa visão pioneira
de Júnior da Violla. Isto, naturalmente, se ele quiser utilizar o que disponibilizamos, pois passa
longe de ser garantido: como dissemos, e agora exemplificamos, o mais provável é que Júnior da
Violla não aceite nossas sugestões. “Apesar dessas teimosias” (escrevemos entre risos, como se
não fôssemos também muito teimosos), a ele se deve respeito e até gratidão, pois entendemos que
“o justo é o justo” embora, infelizmente, são raros os trabalhos "justos" (honestos) quando se trata
de violas brasileiras.
A Júnior da Violla devemos, entre outras, atestações via instrumentos remanescentes (além
de fotos e até vídeos), como de uma Viola 12 Cordas, em seis duplas de cordas, utilizada pela
dupla Mandy & Sorocabinha, na década de 1930. Sim: curiosamente, no início do caipirismo
utilizava-se o modelo, que conforme citamos depois teria sido “esquecido” por conveniência
comercial e afetiva, sendo que é muito provável que outras duplas também utilizassem, à época
(conforme letra de música destacada na abertura). Além disso, um acervo considerável de fotos e
dados de instrumentos similares, nacionais e estrangeiros, parece estar sendo preparada pelo
pesquisador. Uma coleção que certamente seria inédita no mundo (ops... isso talvez seja spoiler,
foi mal!).
Em recente entrevista, Júnior revelou que uma de suas motivações iniciais (que remontam
ao ano de 2011), teria sido a procura por um instrumento que fosse capaz, ao mesmo tempo, de
executar peças típicas tanto para violão quanto para viola, para facilitar as aulas que ministra já há
décadas (Júnior é pioneiro também em aulas pela internet). Suas primeiras referências de utilização
similar teriam sido:
- uma viola 12x6 de Heraldo do Monte, que curiosamente teria sido sugerida ao guitarrista
pernambucano em 2004 pelo Dr. Ivan Vilela, pesquisador e grande formador de opinião no meio
da viola (por seus também merecidos talentos e méritos) e que, entretanto, não se pronuncia a
respeito da comprovada existência histórica do modelo;
- uma viola de Zeca Collares, confirmada em postagem do ano de 2009, no Youtube, onde
se lê que o músico buscava poder utilizar ao mesmo tempo, num instrumento, tanto a afinação
Cebolão (aberta, refletindo um acorde Mi maior) quanto a Rio Abaixo (também aberta, mas em
Sol Maior);
- e ainda teria sido referência para Júnior o pequeno modelo de violão estadunidense
chamado Mini-Maton.
Atualmente utilizam Viola de 12 Cordas regularmente, entre outros, o citado
pernambucano Heraldo do Monte; os mineiros Zeca Collares, Luiz França e Francisco Furtado
Filho; os paulistas Bruno Sanches, Diogo Matias, Guilherme de Camargo, Ricardo Vignini e
Thiago Paccola e o gaúcho Valdir Verona. Já teriam fabricado Violas de 12 cordas, entre outros:
as fábricas Giannini, Del Vecchio, Xadrez, a antiga Casa Lira e alguns protótipos pela Rozini,
além dos luthiers paulistas Luciano Queiroz e Levi Ramiro e o luthier mineiro Gianelho
Rodrigues.
Levi Ramiro, especialista e na verdade precursor das Violas de Cabaça, mesclou modelos
ao criar, desde 2017, Violas de Cabaça com 12 cordas, inclusive uma hoje incorporada a shows
dos paulistas André Moraes e César Petená. O recente espetáculo didático lançado pelos dois
últimos violeiros se tornou assim o primeiro na História a utilizar em cena, ao mesmo tempo, todos
os modelos da Família de Violas Brasileiras, mas os violeiros, embora tendo formação acadêmica,
não têm por hábito dar crédito a João Araújo por ser o primeiro a defender (desde 2015) e a
contextualizar cientificamente (desde 2021) a tal Família. Se eles desconhecem que sustentar
ideias como estas num país que sempre superestimou o modelo Viola Caipira é caso até de ameaças
de morte? Não sabemos. Sabemos que, ao serem cobrados, o argumento deles é que os modelos
sempre teriam existido (o que é verdade) é que por isso eles só reverenciam os chamados “mestres”
de cada modelo. Muito educados, não comentaram conosco que João Araújo é muito chato (outra
verdade) e que por isso optam por não praticar a devida cortesia (na verdade, ética) científica. Na
prática, para quem não sabe nada fica parecendo ter sido tudo ideia e desenvolvimento deles... Já
sobre o "chato" que, então, quase literalmente se mata pela Ciência, é bem fácil dizer que “é
arrogante, pretencioso, megalomaníaco...”.
[Esta “pitanga chorada” aqui é para lembrar quanto ainda é difícil defender a Ciência,
principalmente no meio violeiro, mesmo entre os que tem alguma visão científica e, portanto, o
quanto é importante dar crédito a Júnior da Violla pela “picada” que abriu nesta verdadeira
“selva”].
Voltando a detalhes que vários “incorteses e antiéticos” na verdade nunca teriam tido
competência para desenvolver, e que por isso parecem ficar é de recalque, a contextualização
histórica do modelo Viola de 12 Cordas é bem vasta (bem maior que a do modelo Viola Caipira,
por exemplo) e, em si, aponta um resumo sobre a História das violas dedilhadas e cordofones
correlatos. A mais remota referência de armação em seis ordens viria dos alaúdes, consolidação
estimada a desde o século XIV (para ser preciso, os alaúdes utilizariam, como até hoje, 11x6, ou
seja, uma das ordens seria singela). A mesma armação de cordas continuaria, a partir daquele
século até fins do século XVI, nas vihuelas espanholas, comprovada por vários métodos e estudos
como os de Bermudo, Milan, Fuenllana e Amat. Este último, em catalão, não citou seis ordens
para a vihuela, mas a chamou de vandola; ao método dele, que se tornou o mais famoso e replicado,
é inclusive creditado o início da queda de uso das vihuelas... Entretanto, na Itália, há registros no
século XV (pelo musicólogo belga Johannes Tinctoris, no tratado De inventione et uso musicӕ)
que “violas” seriam tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco, exatamente como as vihuelas;
no século XVI, seis ordens duplas (ou “geminadas”) seriam utilizadas em instrumentos chamados
violone (segundo Lanfranco e Ganasi) e “viola, o mesmo que alaúde” foi o tema de método de
Milano. Assim, muito provavelmente (por causa das evidências na Itália), teriam sido também de
seis ordens as “violas” portuguesas mais antigas que se tem registros, do século XV, até porque
ainda no século XVI, em Portugal, o Regimento dos Violeiros especificaria a armação como “a
oficial” para violas. Ainda se observa que no mesmo século XVI haveria bandoras inglesas tanto
com seis quanto com cinco ordens (neste caso, há inclusive instrumento remanescente).
Depois, durante a fase de transição que apontou o retorno do uso de seis ordens em
cinturados espanhóis (entre 1760 e as primeiras décadas do século XIX, quando se consolidou o
atual violão 6x6), as guitarras “românticas” 12x6, também chamadas pelos portugueses de
“violas”, teriam tido seu auge no ano de 1799, conforme apontado, entre outros, por Paulo Romão
(2011) e teriam registros de uso pelo menos até o ano de 1826, conforme método de Dionísio
Aguado & Garcia, manuscrito apontado por Tyler & Sparks (2002). Seis ordens duplas também
ascenderiam a partir do século XIX e ainda resistem nas chamadas guitarras portuguesas: estas,
inspiradas mais diretamente nas english guitterns, hoje extintas, embora sejam cistres, ou seja, de
caixa arredondada e não cinturada como as violas e guitarras. Amarra o histórico o fato que as
english guitterns ascenderam na preferência britânica a partir do século XVII, herdando algumas
características da citada Família das bandoras, entre elas o uso da armação 12x6 de cordas
metálicas, a mesma das guitarras portuguesas que ascenderam no século XIX, ao passo que as
"inglesas" caíram em desuso. Em nossas pesquisas atestamos que sempre que um instrumento
surge, ascende, cai de uso ou sofre alterações significativas (inclusive, de nomes) há paralelo com
eventos de grande comoção social: é o caso do grande período (entre meados do século XVIII e
início do século XIX), no qual surgiu e se consolidou a Revolução Industrial, trazendo alterações
significativas a toda a sociedade ocidental (como o capitalismo), atestáveis até os dias atuais.
Todo este lastro histórico não deixa dúvidas de porque teria surgido, em Portugal, e depois
se consolidado no Brasil, o modelo Violas de 12 Cordas: violas que seriam ilustres desconhecidas
se não fosse o teimoso talento científico e grande dedicação inicial e ainda praticada por Júnior da
Violla.
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
[...] it is generally allowed that the Troubadours, by singing and writing in a new tongue,
occasioned a revolution not only in literature but the human mind.
“(... é geralmente aceito que os Trovadores, cantando e escrevendo em uma nova língua,
ocasionaram uma revolução não apenas na literatura, mas também na mente humana)”.
[Charles Burney, A General History Of Music, 1782]
[...] As the origin of Songs and the formation of the Language of every country are so
nearly caeval, I hope the reader will allow me to bestow a few pages upon a subject, which though
it be thought not absolutely necessary for a musical historian to trace, yet it lies so near his path
that he can hardly proceed on his way without its being often impressed upon his mind, fortuitously
(“Como a origem das Canções e da formação da Língua de cada país são quase
contemporâneas, espero que o leitor me permita dedicar algumas páginas a um assunto que,
embora não seja considerado absolutamente necessário para um historiador musical traçar, fica tão
perto de seu caminho que ele dificilmente pode prosseguir sem que fortuitamente [pontualmente]
se impressione”).
Concordamos muito com Burney que o assunto esteja “no caminho” de todo interessado
pela História dos instrumentos; mas, apesar disso, em cerca de uma centena de estudos que
pesquisamos, das principais línguas europeias, ele teria sido o único musicólogo a dedicar maior
profundidade ao estudo histórico das poesias. O único, portanto, a se aproximar da nossa maneira
de analisar o fenômeno histórico chamado Trovadorismo: um evento de grande impacto social,
principalmente em seu auge (entre os séculos XII e XIII), e que por isso teria gerado grandes
reflexos na sociedade europeia e, assim, também nos instrumentos musicais populares.
O musicólogo analisou de forma científica um assunto que mais poderia ser considerado
das áreas de “literatura” e/ou “linguística”, apresentando uma cronologia de registros em latim e
em variações de francês, inglês, italiano, catalão (inclusive manuscritos). Daquela forma, foi capaz
de apontar contextos histórico-sociais relacionados às poesias (e/ou prováveis letras de canções)
desde os Gregos, passando pelos Árabes e os Romanos até chegar ao chamado vulgare (o latim
popular) e sua influência no que Burney chamou de “nova língua dos Trovadores” (que seria a que
definimos aqui como occitano e/ou suas outras alcunhas). Qualquer semelhança entre alguns dos
caminhos de Burney e parte da nossa metodologia também não acreditamos que seja mera
coincidência, e sim comprovação da nossa lógica científica em comum. É bom atestar paralelos
com os bons, embora, com todo o respeito, "nóis é marrento” e procuramos sempre ir além do que
já tenha sido pesquisado. No mínimo, porque vivemos cerca de 200 anos depois que Burney se
foi, e temos maior facilidade de acesso, além de nos dedicarmos a um número maior de fontes que
ele e vários outros estudiosos antigos que investigamos à fundo.
Na verdade, conforme várias das citações de Burney que conferimos e outras que
acrescentamos (como poesias em dialetos alemães, em espanhol e em português, que o inglês não
citou ter pesquisado), nosso desenvolvimento é que teria havido uma grande fase de transição,
iniciada com a queda de Roma (século V); em seguida, a ascensão das diversas culturas então
libertas, mas ainda sob influência da Igreja Católica (que mantinha o latim em uso todo o vasto
território antes dominado); e depois somou-se a influência da invasão dos mouros-árabes (século
VIII ao XV), com seus instrumentos e musicalidade superior (principalmente em liberdade de uso),
tudo levado de forma mambembe de reino a reino, que viria a dar origem ao tal do Trovadorismo
(este que, já então amplamente incorporado pelos europeus, teria atingido o citado auge nos
séculos XII e XIII).
Tantos séculos de atrito entre culturas diferentes trouxeram reações no cenário social
europeu, que, para resumir, viriam culminar por exemplo no chamado “final da Idade Média”
(século XV). E sim: contextos histórico-sociais já são estudados há muito tempo, delimitando
períodos já muito apontados: o que fazemos é ir mais a fundo, em reflexos específicos, observáveis
em instrumentos musicais.
Instrumentos musicais populares (com suas fases próprias de desenvolvimento) teriam
refletido contextos histórico-sociais do auge do Trovadorismo, entre outros aspectos, pelo
surgimento de um turbilhão de nomes similares (nas diferentes línguas, das citadas culturas
emergentes) e também pela queda em desuso de alguns instrumentos, enquanto outros surgiram
e/ou tiveram alterações. É o caso dos alaúdes e similares, de caixa de ressonância em formato de
pera (ou gota d’água) cortada ao meio longitudinalmente, e de fundo abaulado: por terem sido
introduzidos pelos invasores árabes, teriam sido substituídos gradativamente (mas não ao aponto
Foi exato este o caso: Burney teria identificado, entre trovadores, além dos violars: juglars
(que para ele teriam sido tocadores de instrumentos de sopro); musars (para ele, tocadores de
outros instrumentos) e comics (comediantes). Dos quatro nomes, Burney só teria acertado
“comediantes”: uma grande “queimação” dele, portanto...
Com certa dificuldade, alguma sorte e muita atenção (pois poucos o citaram), conseguimos
localizar um texto muito semelhante, só que em francês, de Cesar de Nostradamus (1553-1629),
que foi filho do famoso astrólogo. À página 132, em publicação de 1614 de seu livro L'histoire et
Chronique de Provence ("A História e Crônica de Provença"), encontramos:
[...] sur leurs lyres & instruments, dont ils furent appellez Troubadours (c'est à dire
Inventeurs) Violars, Iuglars, Musars & Comics, des violons, fleuttes, instruments musicaux & des
Comedies.
(“[...] em suas liras e [outros] instrumentos, os depois chamados Trovadores - que quer
dizer Inventores - Violars, Juglars, Musas e Comediantes, com seus violons, flautas e [outros]
instrumentos de música e comédias”).
Um “bombomzinho”, este último texto, não? Sim... Só que temos que desembalar antes de
comer, como qualquer bombom: Nostradamus não citou mais detalhes sobre os instrumentos, nem
fontes, nem datas específicas; mas apontou narrativas de personagens que comprovam que o texto
se relacionava ao século XII, então, ok!... Atentos, percebemos que citou violon, um nome que em
francês, no século XVII do autor, até poderia significa “violino” (na verdade, ainda seria mais
"viola pequena"... mas que no século XII, ainda nem seria utilizado! Talvez por isso, e por também
ter citado fleuttes (“flautas”), César Nostradamus tenha enganado Burney (se é que este o teria
lido, pois não o citou)... (Ah, estes estudiosos às vezes desatentos com a precisão de citações!).
Bom... Mesmo em um texto em francês, já tínhamos percebido termos que também teriam
chamado a atenção e o respeito de Burney (pois não os teria traduzido para o inglês), que aparecem
em occitano ou catalão (para nós, que falamos português, termo "latinos" como aqueles nos
“saltam aos olhos”). Bom, bom, então: descascado o bombom, era mesmo dos bons! Com destaque
à citação de lyres (instrumentos mais conhecidos como dedilhados, na antiguidade): uma citação
feita por Nostradamus, mas não por nosso então já “menos-ídolo” Burney.
Os apontamentos equivocados de Burney foram depois citados, sem muitos
questionamentos, por vários pesquisadores como o escocês John Gunn (em 1789) e os ingleses
Carl Engel (em 1883), Francis Weber (em 1891) e Christopher Page (já em 1987). Nenhum deles
apontou ter investigado o texto em francês de César Nostradamus, nem os equívocos de Burney,
e muito menos um detalhe a mais que observamos: Burney citou como ingenious and probable
(“genial e provável”) uma opinião do filólogo francês Pierre-Alexandre Levesque de La Ravallière
(1697-1762), que então achamos interessante fuçar e confirmamos no livro Les Poesies du Roy de
Navarre (“As Poesias do Rei de Navarre”).
Em publicação de 1742, Ravallière teria arriscado o que chamou de uma nouvelle
etimologie (“nova etimologia”) para o termo jongleurs (em francês): que poderia ter sido
originalmente ligado a ongles (“unhas”), ou seja, ligado a músicos que tocassem instrumentos
dedilhados. O bom desenvolvimento, feito via citações a dicionários e poemas antigos, é que
anteriormente o termo teria significado Enchantieres & Multeplieres (“encantadores e
multiplicadores”) de palavras; à medida que aquele tipo de talento começou a ficar mais raro,
teriam sido substituídos por outros membros das trupes bem menos qualificados, e assim o nome
teria passado, com o tempo, a ser aplicado para significar “malabaristas”, também no sentido
figurado de bourder & mentir (“trapacear e mentir”). Entendeu? Os novos declamadores,
“encantadores de palavras”, não seriam tão bons quanto os antigos: seriam, portanto, “trapaceiros,
mentirosos”. Todos os trovadores se fantasiariam e fariam brincadeiras, inclusive os músicos, e
por isso todos teriam passado a serem vistos como jongleurs (“malabaristas”), mas este nome seria
aplicado tanto no sentido figurado (de fazer malabarismos com vários tipos de arte) quanto no real
(brincar com malabares e outros objetos).
Entende-se que “tocar com as unhas” poderia, então, ser um indicador de que os juglars
(das fontes de César Nostradamus e de Burney) pudessem tocar instrumentos dedilhados,
distinguindo-os assim dos violars, que então tocariam friccionados... Só é preciso estar atento:
nem todas as “violas” teriam sido friccionadas por arco, como destacamos sempre! Neste caso,
basta cruzar registros do mesmo século XII, em textos em latim, occitano e catalão (e que nem
Ravallière nem os demais indicaram ter pesquisado). Vantagem então para os marrentos, atentos
ao latim e às demais línguas que este tanto influenciou!
Como os estudiosos apontam terem tido foco em variações da nomenclatura VIOLA apenas
como instrumentos friccionados por arco, não teriam levantado e organizado um banco de dados
como o nosso, nem teriam atestado a evolução histórica do significado de jongleurs de Ravallière
(apontam sequer ter levado em consideração). Estes dados todos se complementam e se cruzam, e
as opções múltiplas se confirmam quando analisamos tudo assim, em conjunto: uma preciosa visão
que teria se perdido na História até agora.
Fomos ainda mais um pouco além e observamos que o termo violars não teria sido
observado literalmente em outras fontes antigas além das que César Nostradamus e Burney teriam
pesquisado. Segundo especialistas em línguas provençais, entre os séculos XII e XIII outros termos
próximos é teriam sido apontados para “tocadores”: François Raynouard (1843, p.561) apontou
viulaire e violador; ambos os termos foram confirmados por Frederic Mistral (1879, p.1128), que
acrescentou violaire e os três termos foram confirmados por Emil Levy (1915, p. 791). Já o
musicólogo Francis Galpin (1911, p.88) teria observado os termos vilours e vidulators, este último
bastante próximo a vidulatores, mencionado pelo filólogo John de Garlande, segundo Bárbara
Rubin (1981, p.82-83).
Observa-se, entretanto, que apesar da não observação literal de violars, as pronúncias dos
demais termos seriam todas relativamente próximas, e sabe-se que o occitano teria sido língua
antiga comum na fronteira entre catalães e franceses. Sem contar que em poesias (que são a maioria
das fontes da época), as variações orais por causa de adequação a métricas e rimas, ao serem
transcritas, apontariam grafias variadas (que Burney também apontou, e confirmamos por nossa
experiência em composição de poemas e letras de músicas).
Mesmo com o Trovadorismo já a caminho do desaparecimento (que teria se dado após a
chamada Peste Negra, no século XIV), o nome viola teria sido ainda o mais observado nos reinos
de Navarra e de Aragon, em mãos de juglares (“trovadores”, em espanhol), provenientes de
territórios franceses e italianos, segundo pesquisas muito embasadas da Dra. Martinez (1981,
p.1042-1044).
Já em textos em português só se conhecem registros do nome "viola" a partir do século
XV, o que é muito significativo, pois Portugal se estabeleceu como Reino independente também
a partir do século XII. Estudiosos portugueses como Veiga de Oliveira apontam entenderem que
"violas portuguesas" teriam existido continuamente, desde o século XII, mas não há registros... e
pior: há vários registros de vihuelas espanholas (em alguns textos, chamadas até de "viola" mesmo,
literalmente), que no século XV seriam tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco, assim como
as portuguesas... Assim como, e com registros conhecidos também a partir do século XV
(Tinctoris), violas italianas também seriam bivalentes... Para nós fica claro que, pelo nacionalismo
inato português (que, portanto, ainda estaria vigente no século XX de Veiga de Oliveira) seria
melhor acreditar numa longa existência de violas portuguesas do que admitir que teria sido apenas
um nome italiano pegado por empréstimo e aplicado sobre verdadeiras vihuelas espanholas... (aí
são outras prosas...).
Ficaremos, por enquanto, nas muitas evidências de instrumentos chamados “viola” a partir
do occitano durante o Trovadorismo, das quais é preciso estar atento quanto a descrições, pois no
começo poderiam ter sido tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco. Há ainda as variações da
nomenclatura VIOLA em textos em francês, dialetos alemães, variações da atual língua inglesa,
em italiano... mas aí também já são outras, muitas, prosas!
Muito obrigado por ter lido até aqui... E vamos proseando...
Art. 216: constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade,
à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira
(CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988)
estudiosos possam conferir dados e registros de época que contextualizamos e até aprofundar os
estudos que nos atrevemos a lançar em publicações como o livro A Chave do Baú e aqui nos
Brevis Articulus semanais.
No caso, entre os tais dos “resquícios históricos” estariam os trios de cordas metálicas, que
pelos registros até então conhecidos só teriam surgido em Portugal a partir de meados do século
XVIII (ver João Leite Pita da Rocha, 1752; Manoel da Paixão Ribeiro, 1789), mas que refletiriam
o observado desde o século XVII nas chitarras italianas (ver Darryl Martin, 2006; John Griffiths,
1989). Por enquanto, só nós temos apontado esta ligação histórica das violas portuguesas com as
chitarras italianas e outros cordofones da terra da pizza, nos séculos XV e XVI, com base em
contextos histórico-sociais da época envolvendo Portugal-Espanha-Itália (ver Johannes Tinctoris,
De inventione et uso musicӕ, ca.1486; Lanfranco, 1533; Ganasi, 1542; Milano, 1536, entre outras
referências que sempre citamos). Se os resquícios desaparecerem, junto com os modelos (como já
desapareceram os das também extintas violas portuguesas 12x6), vamos acabar por parecer mais
malucos do que somos...
[Em tempo, para os que não leram nosso livro ainda: o mais comum (ou mais divulgado),
tanto em Portugal quanto aqui, é violas armarem com duplas de cordas, como o nosso famoso
modelo top star de vendas, o Viola Caipira. Com uma ordem tripla, sobrevivem os modelos
brasileiros Viola Nordestina e Viola Branca (“Caiçara” e “Fandangueira”); duas ordens triplas
sobrevivem nos modelos portugueses Viola da Terra e Viola Toeira e na mineirinha brasileira
Viola de Queluz; com três trios, agora então não há mais sobrevivente em Portugal e no Brasil].
Sim, sim: você tem razão, estamos a exagerar um pouco mesmo... Há que, por caridade,
desculpar nossa dor tão sensacionalista! Não se pode negar que trios de cordas continuam
representados... Mas convenhamos: o único modelo brasileiro com dois trios de cordas (Viola de
Queluz) hoje em dia praticamente só resiste em peças de coleção, sendo pouco eficazes, na prática,
as ações pelo renascimento dele na região de origem (Conselheiro Lafaiete, MG) e nada além dos
limites da nossa terra, a dos comedores de pão-de-queijo. Por este motivo, inclusive e apesar de
muito “nossa”, não listamos a mineira Viola de Queluz em nossa postulação científica inédita de
uma Família das Violas Brasileiras. As Violas de Queluz, então, não podemos deixar sumir de
jeito algum: ainda nem teriam o resquício histórico delas devidamente entendido pelos mais
famosos pesquisadores do assunto no Brasil (que talvez, por alguma mórbida coincidência, são
ambos também nascidos em Minas Gerais). A nossa dor é um tanto de vergonha também,
principalmente por nossos conterrâneos, famosos e teimosos...
Mudemos nós então o rumo da prosa para celebrar a prometida notícia boa: bons ventos
nos chegam d’além mar, mas, curiosamente, por um brasileiro. Um pernambucano arretado,
comedor de sarapatel, mas radicado em Portugal desde 1996; por lá, Mestre José Wellington do
Nascimento (ou apenas “Wellington Nascimento”, como assina no Facebook), já vem aprontando
das boas em termos de cantorias e toques de violas, e também de vida acadêmica, da qual, para
resumir, vamos citar apenas a ótima dissertação de mestrado depositada em 2012 na Universidade
dos Açores, em Ponta Delgada: Viola Da Terra, Património e Identidade Açoriana.
Como se percebe desde o título da dissertação, não é à toa que Mestre Wellington faz parte
da equipe que está a inventariar o que estão a chamar “Violas da Terra dos Açores”, com vistas ao
Reconhecimento Oficial como Patrimônio Cultural Imaterial pela Secretaria de Cultura do
Governo de Portugal (via Diretório Geral do Patrimônio Cultural).
[Precisa explicar que esta é a tal da grande e boa notícia? E... ouviremos “vivas”, ou será
que gastamos aqui os parágrafos de introdução sobre desaparecimento de modelos de violas para
nada?].
A ação lançada em 03 de junho de 2023 tem potencial de colaborar, e muito, com o fim do
desaparecimento de modelos de violas (e dos resquícios históricos que eles representam e atestam).
É preciso, portanto, contextualizar algumas coisas, que faremos a partir de informações que Mestre
Wellington, mui generosamente, nos concedeu em entrevista exclusiva para este Brevis Articulus.
Duvidou? Confira nas referências ou até no portal internético oficial do IPHAN. E permita-
nos refrescar as memórias: MÁRIO Raul de Morais ANDRADE (São Paulo, 9 de outubro de 1893
– São Paulo, 25 de fevereiro de 1945) foi um poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo,
historiador de arte, crítico e fotógrafo brasileiro (os negritos são em explícita “causa própria”
nossa, pois como diz o ditado, “farinha pouca, nosso pirão na frente”). Sim, senhoras e senhores:
naturalmente não são todos, mas quando alguns pesquisadores falam e são ouvidos, por mais
malucos que a princípio possam parecer, o trem costuma andar bem, e nos trilhos... (“trem” aqui,
como “trem de ferro” mesmo, não no contexto de mineirice, porque as palhaçadas já cansaram...
quer dizer... ops...).
Já em caminho de finalizar nossa prosa, apresentamos um resumo cronológico de ações
nacionais relacionadas a “Violas a Patrimônio” pelo Brasil, pois faz parte de contexto: em 2004,
o Samba do Recôncavo Baiano foi reconhecido oficialmente (trazendo como um chamado “Bem
Associado”, as Violas Machetes); em 2005, o modo de fazer e tocar Viola de Cocho; em 2011, o
Fandango Caiçara (onde as Violas Caiçaras são também um “Bem Associado”), foi reconhecido
por aqui e entrou até para a “Lista de Melhores Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial
da Humanidade” pela UNESCO.
[Pausa para reler o último parágrafo e perceber que, de maneira direta, apenas o modelo
Viola de Cocho já teria efetivamente sido Reconhecido: confira!].
Além de estudos em andamento (como das Violas de Buriti, desde 2019, e a possibilidade
de Violas Nordestinas poderem vir a entrar, como Bem Associado ao Repente, este reconhecido
oficialmente em 2021), em 2017 foi protocolado Requerimento para Reconhecimento de todos os
modelos de viola brasileiros (a tal da nossa Família das Violas Brasileiras), todas em conjunto,
como Forma de Expressão válida aos Livros de Registro. Uma iniciativa maluca do músico,
produtor, gestor cultural, pesquisador e escritor mineiro João Araújo (é nóis mess!). O
requerimento atualmente encontra-se arquivado, por pura falta de interesse da classe.
O único Estado brasileiro (até agora) a reconhecer oficialmente as violas como Patrimônio
Cultural Imaterial é Minas Gerais, desde 2018, num Dossiê onde é negado o crédito pela iniciativa
registrada oficialmente pela Assembleia Legislativa de MG (!) como Projeto de Lei 1921, de
2015. Aquele PL também foi fruto das insistências e até “brigas” do mesmo maluco, que vos
escreve aqui usando este divertido, mas descarinhosamente chamado “plural de falsa humildade”,
muito comum nos textos científicos.
Uma curiosidade que a História provavelmente há de contar no futuro sobre “Violas a
Patrimônio” é que tanto o Projeto de Lei realmente originário de tudo, quanto a oficialização por
Minas Gerais quanto, agora, o início dos processos em Portugal recaíram em meses chamados
“junho”. Tais coincidências são boas para se criarem lendas: por exemplo, que Santo Antônio
(casamenteiro) poderia estar agindo pelas violas, para se vingar de São Gonçalo, considerado o
oficial “dos violeiros”, mas que nunca nem foi santo e que teria andado a fazer uns casamentos. E
sim: como se vê, criar lendas é fácil, basta ser um pouco criativo e querer.
Finalizando com falares de coisas boas e fundamentadas, que é sempre o melhor, nossa
alegria com a (sem dúvida) ótima notícia vinda dos Açores é também porque em 2017 chegamos
a convidar, em Almada (Portugal), violeiros portugueses a entabularmos, juntos, ações de defesa
de nossas violas, todas elas juntas, como vistas a no futuro serem reconhecidas como Patrimônio
Imaterial da Humanidade... Ou seja, o mesmo filme já teria sido visto antes, né? Entretanto
daqueles, como também dos brasileiros, não conseguimos ecos de apoio continuado (ao contrário,
há quem até fale mal de nós, pode isso?), mas entendemos que a semente foi lançada: um dia, com
muita fé (e, mais ainda, café) há de gerar frutos, como os que já parecem estar a surgir. Esperamos
que os registros históricos possam apontar, no futuro, de onde teriam vindo esta maluquice. Oxalá
e eparreia-aiá: serão bons assuntos para outras prosas...
Por enquanto, muito obrigado por ter lido até aqui... E vamos proseando...
Precisamos (e queremos) aproveitar para dar outros dois créditos: primeiro, que nos
inspiramos em recente resumo sobre o assunto que fizemos em postagem Facebook do amigo e
“sócio” Aurélio Miranda, do Matogrosso do Sul; e, para não mentirmos sozinhos, credibilizamos
atualizações sobre estudos e fofocas musicais ocidentais contemporâneas com o super competente
mestre Matheus Bitondi, de São Paulo (este último, candidatíssimo ao Prêmio Nobel da Paciência,
por sempre nos atender em nossas inortodoxas demandas, sejam musicais, linguísticas,
acadêmicas, o que for... acho que se consultarmos até sobre ufologia ele nos atenderia).
Já que começamos do final, seguiremos nossa viagem nesse “trem” de trás pra frente
mesmo: segundo o sítio oficial apoiado pela família do artista, Tião Carreiro teria inventado o tal
"Pagode de Viola" em 1959. Coincidência ou não, o criativo e marcante toque de viola teria
surgido, então, logo em seguida a um verdadeiro marco da música brasileira: a bossa-nova,
caracterizada por um também “toque diferente”, só que ao violão, trazido a público com sucesso
a partir de 1958 pelo baiano João Gilberto (1931-2019). Só em 1958, a emblemática interpretação
ao violão da música Chega de Saudade (de Jobim e Vinícius) teve duas gravações, a segunda
delas cantada pelo próprio João, de maneira considerada bastante inusitada à época, tendo tido
enorme reação positiva de crítica e de público, como ainda é, até os dias atuais.
Além de terem sido duas “maneiras diferentes de tocar”, criadas e lançadas na mesma
época, via cordofones populares (violão e viola), destacamos entre as possíveis coincidências que
quem teria ajudado a dar nome ao novo toque de Tião, além de ter sido autor de duas das primeiras
composições gravadas sobre o novo ritmo (“Pagode” e “Pagode em Brasília”, ambas em 1959),
foi o paulista Teddy Vieira (1922-1965). Teddy, à época, era diretor na gravadora de Tião, a
Chantecler, ou seja: talvez possa ter sido mais do que uma simples coincidência, não?
Será que um diretor de uma grande gravadora teria percebido que um novo ritmo estava a
balançar as estruturas da música brasileira, já então com reflexos até no exterior, e assim teria
resolvido dar ideia de se inventar também um novo ritmo para a viola, com objetivo de também
faturar algum com a nova onda, a nova bossa?
Não temos como provar, mas entendemos que, sendo um bom diretor como parece ter sido,
é bem possível que Teddy e sua equipe tenham pensado exatamente da forma descrita. Assim
como, quando o estilo hoje chamado “sertanejo universitário” começou a fazer sucesso (alguns
anos mais tarde, no início da década de 1970), a mesma gravadora teria investido ainda mais na
viola, para rivalizar com as guitarras em ascensão, e de destaque naquele estilo que rapidamente
se tornou sucesso de vendas. Terão também passado a divulgar com grande ênfase o nome “viola
caipira” (pouco usado até aquela época), para aproveitar a já comprovadamente lucrativa sugestão
de ligação com uma suposta cultura ancestral que o entendimento coletivo sobre o termo "caipira"
gosta de apontar. E ainda fortaleceram a divulgação empareada da “viola caipira que toca pagode
de viola”, que sabemos que gera bons dividendos até os dias atuais. Destas ações que apontam um
olhar comercial bem atento da mesma gravadora e envolvendo o mesmo artista, a partir da década
de 1970, podemos apontar dezenas de referências de época, se necessário.
Deixamos perguntas e apontamos fatos, dados e registros para cada um poder pensar a
respeito, se quiser. Até onde entendemos, este tipo de demonstração baseada em registros não é
teorizar, e não teria sido apresentado assim por ninguém antes: exatamente por isso é que
pesquisamos e trazemos a público.
Musicalmente (quer dizer, “com base em teoria musical”), o Pagode de Viola teria alguma
coisa a ver com a bossa-nova? Hum... Nunca vimos ninguém falar nada assim também, será que
devemos nos atrever? A resposta é fácil: "É claro que devemos!".
Observemos que, pela definição destacada na abertura, faria parte do Pagode de Viola
alguns chamados “contratempos ao violão”: um tipo de toque hoje conhecido como Cipó Preto.
Trata-se, como bem apontou nosso ídolo Romildo, de acentos (ou “ataques”, ou “toques secos”)
dos acordes do violão nos chamados “tempos fracos” dos compassos, caracterizando assim os
chamados “contratempos” (para ser fiel à nomenclatura mais convencional, pois não conseguimos
evitar citação das fontes que lemos, e pedimos desculpas se isso incomodar). A “criação”, ou
“adequação ao toque da viola” do tal Cipó Preto é requisitada pelo maestro Itapuã Ferrarezi,
embora sem que tenha sido ele a dar este nome. Itapuã teria assumido inspiração no ritmo cubano
Rumba (segundo entrevista concedida a Roberto Corrêa, em 2014), mas, na verdade, o tipo de
acento deslocado é observado tanto em rumbas, quanto em reggaes e até em xotes e lundus, mesmo
quando executados por outros instrumentos, não apenas por violões. Chamamos atenção que
guardem na memória: é observado em ritmos que apontam ter tido origens africanas...
Ora... Quais teriam sido as novidades apresentadas por João Gilberto? Qual teria sido essa
tal de “bossa” nova, tecnicamente falando? Pelo que pesquisamos, estariam entre as “novidades”
o deslocamento de ataque, por acordes e pelo canto, ao ritmo base (que seria o samba, outro ritmo
de origem africana). Não são coincidências interessantes? Ah, sim, não podemos esquecer: o
Pagode de Viola também segue, de forma geral, a “linha mestra” rítmica do samba, chamada
popularmente de “sincopada”, embora a definição teórica de síncope não seja exatamente o que
mais caracteriza o samba. Chamam de “sincopado”, no caso, mais no sentido popular de “meio
desencontrado”. E também não podemos deixar de observar que o nome “pagode” sempre teria
sido, desde bem antes de 1959, o nome dado a reuniões de pessoas para tocar, cantar e dançar.
Nestas reuniões se tocaria “samba”, segundo os cariocas, com certa razão; mas como bons
mineiros que somos, sabemos que em Minas Gerais (inclusive na região onde Tião Carreiro
nasceu), se tocava em reuniões similares um ritmo ainda chamado de “batuque” (que, infelizmente,
está quase a cair em desuso).
Sim: o mesmo “batuque” largamente citado por exploradores estrangeiros em várias
regiões do Brasil, no início do século XIX: reuniões, danças e cantos embalados harmonicamente
por pequenos cordofones, chamados de “machinho”, “machete” ou... “violas”! Alguns cariocas e
seguidores fiéis costumam afirmar que a reunião (e o ritmo, e a dança) já eram chamados de
“pagode” desde os primórdios, mas a verdade, segundo os registros, é que o nome teria sido
“batuque” (ou baduca, e outras variações próximas, observadas em textos estrangeiros). Algumas
vezes, conforme alguns apontamentos, “lundu” ou similar teria sido usado com os mesmos
significados (dança, ritmo, reunião), mas “pagode”, sem dúvida, é um termo bem mais moderno.
[Pedimos desculpas mesmo, e de novo, mas não conseguimos deixar de citar fatos e dados
comprováveis, "de época": por favor, sejam misericordiosos com esta nossa fraqueza... É que
sempre optamos por “referenciar a verdadeira História”, ao invés de inventar histórias...].
Também não nos fugiu à observação que, na verdade, a técnica de João Gilberto teria
similaridades com registros anteriores: por exemplo, "contratempos" que o paraibano José Gomes
Filho “Jackson do Pandeiro” (1919-1982) já teria trazido a público desde 1953, em músicas dele
como Forró em Limoeiro e Sebastiana; esta última, onde o mote-refrão é exemplo claro de
"contratempos": “... e gritava a, é, i, ó, u, ipisilone...”. Se tiver dúvida, cada letra do “a-e-i-o-u”
aponta exatamente o espaço entre tempos da música, que dão a sensação de “desencontro”.
Sim, Jackson do Pandeiro também chamou a atenção da crítica e do público à época, por
seu talento. Não tanto quanto a bossa-nova depois chamaria, alavancada pelo interesse carioca
explícito, mas chamou. A diferença técnica é que Jackson acentuava contratempos com as notas
cantadas; já João Gilberto, também nordestino, também os acentuava pelo canto (que fazia questão
de interpretar mais retilíneo e com volume baixo, mas isso não interfere na acentuação rítmica em
relação aos tempos do compasso), mas também “redividia” com os acordes, atrasando ou
antecipando os ataques com relação ao que é o mais convencional (que é aplicar os acordes nas
chamadas “cabeças dos tempos”, sem "sincopar"). João Gilberto não fazia acentos constantemente
com os acordes, como um “Cipó Preto”, mas aqui e ali, “caía” com eles “fora do tempo”, para dar
brilho e caracterizar sua interpretação criativa, especial e muito aplaudida.
Outra característica marcante de João Gilberto foi a utilização de acordes considerados
mais sofisticados, com escalas e intervalos tipicamente utilizadas pelos jazzmen, assim como
também fez muito outro grande nome da bossa-nova, o carioca Antônio Carlos Brasileiro de
Almeida Jobim "Tom Jobim" (1927-1994). Jobim assinou os primeiros sucessos de João Gilberto,
que não apresentava composições próprias, mas de bobo não tinha nada, e conseguiu a simpatia
do, então já internacionalmente conhecido, Tom Jobim. Que Jobim estudava Debussy e muito jazz,
até poderíamos demonstrar, mas ainda é cedo para chegar lá e fugiria um pouco do tema. Quem
quiser, pode encontrar em nossos canais nosso estudo Cadências Melódicas (é a partir deste nosso
atrevido e profundo estudo sobre melodias que atestamos evidências de similaridade).
Já quanto às harmonias, o Pagode de Viola (lançado a partir de composições autorais), se
atém mais a acordes simples, até os dias atuais. Às vezes, acordes com as principais três notas
básicas, que inclusive equivalem às notas das cordas soltas das afinações mais usadas em violas
(1ª, 3ª e 5º notas da escala maior tonal, ou seja, intervalos de terças sobrepostas, ou de terças e
quintas). Emitir aquelas três notas é o mínimo exigido para caracterizar o que Caetano chamou de
“acorde perfeito maior” e é por isso que afinações da maioria das violas são chamadas “abertas”
(quer dizer que soltas elas já representam um acorde maior). Isso é bem básico, e bem diferente
por ser menos sofisticado que os tetracordes e acréscimos jazz-bossa-novísticos...
Destacamos, entretanto, que no Pagode de Viola há uma célula em repetição bem
característica, baseada em dois acordes (“graus I-V-I” ou “tônica-dominante-tônica”, segundo as
teorias da chamada Harmonia Funcional). Coincidência ou não, o mesmo tipo de estrutura (com
apenas aqueles dois tipos de acordes), é a fundamentação de outro ritmo que citamos, o tal
“batuque mineiro”, mas também aparece em diversos ritmos mais simples, antigos e até
considerados folclóricos, como o cururu citado por Romildo, na definição destacada na abertura.
Outro acréscimo (ou anexação) que ocorre no Pagode é o chamado recortado, uma técnica
que consiste em abafar as cordas com a mão que comanda o ritmo (não a que desenha os acordes,
mas a outra) e que, no caso do toque da viola, marcam exatamente o tempo forte e o contratempo
logo em seguida. Naquela repetição característica do Pagode, marca também a troca entre os dois
acordes na viola; diferente do Cipó Preto (feito ao violão), a troca de acordes na viola acontece
bem na chamada “cabeça” dos tempos, portanto, não há "desencontros", ou "contratempos" na
execução dela, só do violão: uma coincidência interessante porque ilustra nosso texto, onde tanto
falamos de “tempos fortes” e “contratempos”...
Caso tenha dificuldade de entender, observe atentamente as violas, quanto aos grupos de
quatro recortados (ou “abafados de mão”) num Pagode de Viola (é fácil perceber pelo “tchapt-
tchapt”, o som característico de cordas abafadas): pensando em grupos de quatro tempos, se estiver
bem tocado, o primeiro recorte é no tempo 1; o segundo, entre os tempos 1 e 2; o terceiro, no
tempo 3 (quando vai perceber que o acorde muda); e o quarto tchapt seco vem logo a seguir, no
“contratempo” entre os tempos 3 e 4.
Isto, naturalmente, num Pagode tradicional, em dois ou quatro tempos, como o samba
também é, porque tem “um maluco” por aí”... (é nóis mess) que, apenas como exercício, compôs
um “pagode ternário”, ou seja, um pagode em três tempos, aplicando recortados entre os tempos
2 e 3... O vídeo, de gravação caseira, se chama Trepagode e está em nosso Canal Youtube.
[E sim: por causa daquele vídeo, e outros, fomos “apredejados pela internet” por
autoproclamados “entendedores e defensores da tradição”; mas não chegou (daquela vez) a sermos
ameaçados de morte, então, meno male... A intenção é sempre pura (mas atrevida) de demonstrar
que, se Tião criou, outros podem criar, pois os estudos sobre teoria nos habilitam a entender o que
foi feito e até tentar ir além. Tentamos fomentar estudos, pois colhemos muito deles. Não
“sacaneamos” (por assim brincando dizer) apenas Tião: via estudos e apontamentos, brincamos
também com todos os demais citados neste texto e até Bach (!), além de outros, que estudamos de
maneira séria, principalmente pelo que nos revelam e habilitam nossos estudos sobre melodias.
Desculpa aí...].
Tecnicamente, no Pagode de Viola há o que chamamos de um “interlúdio de expressão”,
fartamente repetido entre as estrofes cantadas, que estaria entre características que Romildo
chamou de “ornamento”. Analisando aquele tal interlúdio em uma música em tom “Mi maior”
(representado pela letra E), o acorde dominante correspondente seria o chamado “Si com sétima
menor” (B7): deste último, entretanto, Tião usou, ao invés de apenas um acorde, uma variação
criativa, onde os dedos ficam deslizando por notas contíguas. Da criativa variação se pode dizer
que seja composta de dois acordes relacionados ao B7 convencional: um acorde que seria um “Si
com sexta” (B6) e outro, um “Si suspenso com sétima menor” (Bsus4 / 7).
[Não: provavelmente ninguém nunca tenha citado isso assim antes, pelo menos pelo que
monitoramos das raríssimas análises de acordes publicadas por “violeiros”. Caso tenha curiosidade
em comprovar, apresentamos em nosso Canal Youtube também o vídeo O mito do Trítono e o
Pagode de Viola, onde demonstramos nota por nota este curioso desenvolvimento, que
entendemos tenha sido criado instintivamente pelo criativo Tião Carreiro].
O que interessa é: aquelas variações do acorde até podem não conter intervalos típicos do
jazz, como na bossa-nova, mas alguma sofisticação, mesmo que intuitiva, coincidência ou não
também é observada no Pagode de Viola...
Os tais intervalos hoje chamados de “típicos de jazz” (ou “escalas do jazz”), eram já
famosos na época do lançamento da bossa-nova. Os mais observados seriam o emprego de sétima
maior ou com nona (no acorde tônico), e inserção de nonas, sextas, décimas primeiras e décimas
terceiras aos demais acordes. No caso, acordes com estas notas “mais sofisticadas” apareceriam
nos solos até improvisados, principalmente dos jazzistas estadunidenses mais solistas, e foram
depois incorporadas aos acordes por instrumentistas mais ligados às harmonias como o pianista
estadunidense Bill Evans (1929-1980). Do jazz, passaram depois a ser usados, tanto os acordes
quanto as escalas, em diversos estilos, como no blues e no soul (por lá) e na bossa-nova e na
chamada MPB, por aqui. Ninguém nos perguntou, mas em nossa visão, às vezes usa-se demais
estas notas dissonantes, inserindo tensão onde as músicas não pedem (analisamos tensão e
resolução o tempo todo, principalmente nas melodias, o que vemos poucos fazerem no Brasil)...
Mas o que queremos ainda perguntar é: aquelas escalas, acordes e outras características
teriam sido usados pela primeira vez no jazz?
Em nossa última estação deste “trem das lacunas em marcha-ré”, chegaríamos finalmente
à França de entre os séculos XIX e XX, em harmonias do pré-anunciado Debussy... mas que, na
verdade, intervalos hoje chamados “típicos do jazz” até Bach já teria utilizado antes, pontual e
didaticamente (como fazia muito). Poderíamos até apontar alguns exemplos, mas não queremos
chocar demais e teríamos que gastar vários parágrafos sobre nosso ainda desconhecido estudo
sobre melodias, o já citado “Cadências Melódicas”.
O fato é que, como pesquisadores atentos e por procurarmos nos especializar em melodias,
observamos alguns detalhes que não vemos ser comentados por musicólogos e outros curiosos no
último século, que se baseiam mais em estudos harmônicos. Sim: “há caroços embaixo deste angu”
também, mas vamos seguir o tema aqui, sem desviar tanto, pois já estamos a apontar lacunas
demais...
Menos complicado de apontar é que já há certo consenso geral, nos estudos ocidentais
(segundo Bitondi, o potencial Nobel da Paciência), que Debussy teria influenciado o jazz, não
apenas pelo uso dos tais intervalos, mas pela sua importância na aplicação de “cenas e cores” às
composições: "cenas e cores" quer dizer, mais ou menos, "texturas musicais" que teriam surgido
no contexto do chamado Impressionismo, período histórico-artístico em que a arte “impressionou”
o mundo (desculpem este e outros trocadilhos, é que achamos bem divertido fazê-los... e se não
for divertido, não serve para um artista e "arteiro"). As artes plásticas daquela época, em várias
partes do mundo, a partir da França refletiram (ou foram refletidas?) pela sociedade, e a música de
Debussy teria refletido ou traduzido o Impressionismo também visto em quadros, roupas, etc. Mais
uma vez vamos evitar de apontar aqui alguns experimentos similares observados antes em peças
de Bach, para não “bach-gunçar” demais a prosa... (ops...).
Deixaremos, porém, como “cereja do bolo”, uma citação que raras vezes vimos ser feita:
uma composição de Debussy chamada Golliwog’s Cake Walk, que teria sido criada entre os anos
de 1906 e 1908 para sua irmã Claude-Emma (ou “Chou-Chou”, para os íntimos). Golliwog teria
sido um brinquedo da irmã, quando ainda bem pequenina. A música pontua categoricamente a
ligação do compositor erudito francês com o Cake Walk, uma dança pela qual escravizados
parodiavam os brancos, no ritmo estadunidense chamado ragtime, reconhecidamente precursor e
influenciador do jazz. Nem precisávamos apontar registros de época como este, mas não
conseguimos evitar de ir além do que lemos. Aquela música, entre outras, aponta, portanto:
influências de musicalidade afrodescendente nos trabalhos do francês e que, coincidência ou não,
teria depois influenciado (ou “ecoado”, talvez?) na música preta estadunidense, e que por sua vez
teria saído a lançar sementes pelo tempo, encontrando ecos em outros estilos pelo mundo.
No Brasil, não teria sido só no samba e depois na bossa-nova: bem antes a música preta já
fazia das boas por aqui, em instrumentos chamados “violas” e em ritmos semelhantes ao pagode
de Tião, embora nós, diferente dos estadunidenses, pareçamos ter mais resistência em admitir
publicamente a nossa excelente raiz preta, que era violeira... Mas aí já são outras lacunas, outras
prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... e vamos proseando!
“[...] Com estes dados e documentos e milhares de outros de história da arte, chegamos à conclusão de que
guitarra italiana, guitarra espanhola, guitarra francesa, viola portuguesa, viola brasileira
foram nomes diferentes de um mesmo instrumento”.
[Theodoro Nogueira, Anotações para um Estudo sobre a Viola, Jornal A Gazeta, 24/08/1963).
Mário de Andrade aponta ter influenciado outros, vez que no mesmo ano de 1943 pode
inclusive ter tido acesso a uma publicação do musicólogo e folclorista carioca Luiz Heitor Correia
de Azevedo (1905-1992): interessantes colocações sobre violas do artigo Violas de Goiaz, a partir
de pesquisas de campo realizadas em Goiânia (GO), publicado na Revista Cultura Política.
Artigo curto, sem conteúdo histórico considerável, mas onde destaca-se que o nome “viola caipira”
não estava ainda consolidado: muito longe disso, aliás.
Depois, em 1955, chegaria a vez do já citado Maynard Araújo começar a publicar detalhes
sobre violas observadas em suas, então, substanciais pesquisas de campo: substancias porque
declarou ter entrevistado um total de 818 violeiros (!), entre 1946 e 1948 (pelo interior de São
Paulo) e, entre 1951 e 1953, “[...] pelos 4 ventos do Brasil”, segundo ele. Em 29/05/1955 publicou
um resumo no jornal Correio Paulistano - Pensamento e Arte e, entre 1958 e 1959,
detalhamentos em diversas publicações na Revista Sertaneja. Foi nestas últimas publicações que
comentou sobre o pedido feito por Mário de Andrade, e que estaria juntando dados, mas ainda
estaria longe de terminar a tal pesquisa histórica solicitada. Realmente, suas poucas citações sobre
origens da viola são bastante equivocadas, a luz dos dados que hoje em dia temos à disposição.
Mas suas pesquisas de campo são úteis: comprovam, por exemplo, que haveria naquela época
vários modelos de viola pelo Brasil. Também apontam que os modelos mais arcaicos, mais
interioranos, eram bem diferentes do modelo industrializado, que curiosamente foi o que acabou
por se consolidar depois com o tal nome mais famoso, Viola Caipira.
Embora não aponte ser fruto de estudo aprofundado, cabe também citar, por causa da ordem
de fatos, um depoimento feito em 1959 pelo ator e radialista mineiro Vicente Leporace (1912-
1978), no encarte do LP Exaltação à Viola (Chantecler, CMG 2041). Naquele LP ("Long Play",
em inglês, que significa "execução de longa duração"), músicas arranjadas pelo maestro paulista
Élcio Alvarez (1922-1992) e interpretadas por orquestra além de, pontualmente, também por coro,
além de solos de viola do multi-instrumentista paulista Ângelo Apolônio “Poly” (1920-1985). No
texto do encarte, que não observamos ter sido considerado em estudos caipirísticos, Leporace
apontou à época que “[...] até hoje não houve um dicionarista, um estudioso de lexografia que
tenha prestado atenção maior à viola!”. Uma informação considerável, vez que realmente não
encontramos citação do termo em dicionários até cerca de duas décadas depois daquele 1959.
Leporace ainda levantou dúvida sobre o nome do instrumento (entre “viola brasileira” e “viola
caipira”) e por causa daquela dúvida, resolveu postular um conceito próprio, um tanto lúdico, de
“viola caipira”.
A dicotomia de nomes (brasileira/caipira) acabou por ecoar bastante nos 15 anos seguintes,
segundo centenas de publicações que observamos (e listamos com detalhes, em nossa monografia).
A repercussão se espalhou a partir de músicos e pesquisadores cujas opiniões e trabalhos foram
considerados interessantes pela mídia. Além dos próprios Leporace, Élcio Tavares e Poly, teriam
citado a dúvida nas décadas seguintes: Theodoro Nogueira, Rossini Tavares, Guerra-Peixe, Renato
Almeida, Mário de Andrade, Geraldo Vandré e outros.
É assim que chegamos, em 1963, ao nosso destaque de abertura: o pioneiro estudo do
maestro paulista Ascendino Theodoro Nogueira (1913-2012). Algumas citações referenciadas a
fontes de época em outras línguas teriam sido suficientes para ele perceber que “viola” (até
determinada época) teria sido apenas um nome diferente, e não um instrumento diferente de outros
existentes. Theodoro citou alguns folcloristas e outros que o teriam ajudado na pesquisa, além das
poucas fontes que teria conseguido para embasar seu estudo.
Infelizmente, o próprio Theodoro teria acabado por prejudicar a difusão de seus
interessantes apontamentos, pois em 1971 os publicou novamente, mas com algumas inserções e
modificações, no encarte do LP Bach na Viola Brasileira. Assim, muito provavelmente por ter
sido visto apenas como uma resenha de apresentação de discos (como acontecido com Leporace
antes), não teria chamado muito a atenção de pesquisadores. Alguns nem chegam a citar o estudo
de Theodoro mas, entre os que o fizeram, observamos: Rosa Nepomuceno (1999, p.74); Saulo
Dias (2010, p.225); Rui Torneze (2010, p.7); Vinícius Pereira (2011, p.93); Roberto Corrêa (2014,
p.169); Romildo Sant’anna (2015 [2000], p.296); César Petená (2017, p.15) e Laís Fujiyama
(2018, p.7). Todos estes, entretanto, não apontam ter percebido que o texto de 1971 não seria
exatamente o original e, portanto, que suas diferenças quanto ao texto de 1963 poderiam ser
importantes. Entre as diferenças, por exemplo, vê-se evidência da dicotomia de nome do principal
modelo da Família das Violas durante o período, além da importante participação de Theodoro na
discussão (dada a importância de seu nome e a inusitância do uso de violas em músicas “eruditas”).
Estes últimos detalhes, entre outros, nos levaram a buscar atestações e contextualizações deste
importante e (até então) não divulgado capítulo da História de nossas violas. A década de 1960 até
teria sido estudada, mas a teoria apresentada não se atesta pelos dados de época, sendo assim
descomprovada pelo grande número de dados existentes.
É preciso ressaltar que a maioria das pesquisas brasileiras sobre violas se evidenciara pelo
viés do caipirismo, liderado por formadores de opinião muito importantes (por seus justos
méritos). A visão, muito secundada, de que o modelo Viola Caipira teria tido um “avivamento”
exatamente na década de 1960, lançada pelo Dr. Roberto Corrêa, principalmente em termos de
nomenclatura é desatestada por dados de época, que, diferentemente, apontam que naquela década
teria havido, na verdade, uma dúvida pública sobre o melhor nome para o modelo mais conhecido.
Até alguns dados apontados pelo grande violeiro e pesquisador atestam que havia vários modelos
de viola, mas que o modelo mais conhecido não seria ainda chamado de “Viola Caipira”. Leporace
(não citado por Corrêa) já teria vislumbrado o fato em 1959 e isso se comprova ter durado até
meados da década de 1970 por muitos registros, que Corrêa não considerou.
A fim de presentear os leitores de nossos Brevis Articulus, e por termos conseguido fotos
do estudo original pela generosíssima ajuda dos funcionários do Museu Zequinha de Abreu, de
Santa Rita do Passa Quatro (SP), resolvemos publicar uma transcrição integral, com as ilustrações,
e acrescentada de comentários nossos, inclusive comparando com as diferenças observadas depois,
em 1971. Deixamos o PDF à disposição para baixar gratuitamente em alguns dos diversos Grupos
Facebook que monitoramos, como o grupo Viola Brasileira em Pesquisa. O prometido acesso
então pode ser feito, entre outros, pelo link:
https://www.facebook.com/groups/ViolaBrasileiraEmPesquisa/permalink/1331472464454176
Em 1964 (portanto, logo após a publicação do artigo de Theodoro), o folclorista paulista
Rossini Tavares de Lima (1915-1987) publicou seu Estudo sobre a Viola, na Revista Brasileira
de Folclore, onde citou que Theodoro Nogueira “[...] foi o primeiro compositor a contribuir para
a integração da viola caipira, sertaneja ou brasileira na música erudita atual” (como se observa,
havia dúvida sobre o nome mais apropriado, com Rossini tendo apontado três possibilidades). Sem
dúvida o estudo de Theodoro teria então influenciado o artigo de Rossini, mas as citações históricas
neste último também foram poucas, sem apontamento de fontes e sem fundamentações.
Embora sem ligação direta com as violas, uma publicação também de 1964 viria marcar
até os dias atuais o caminho das violas brasileiras: trata-se do livro Os Parceiros do Rio Bonito,
do sociólogo carioca Antônio Cândido de Mello e Souza (1918-2017). Com indicação de ter sido
fruto de pesquisa de campo culminada em tese de doutoramento, citações simples (sem
desenvolvimentos científicos nem apontamentos de dados de época) feitas naquele livro apontam
serem consideradas como fatos, por muitos. Estes entendem que teria sido uma espécie de “aval
científico” a interpretações publicadas em textos artísticos e defendidas enfaticamente, por
motivações financeiras, entre 1910 e 1945 pelo empresário cultural paulista Cornélio Pires
(1884/1958). Qualquer pessoa honesta observa que não há qualquer possível aval científico de fato
no apontamento, principalmente por ser baseado em publicações artísticas de um empresário.
Candido ainda sugeriu ampliação do conceito para uma grande “região caipira” que ele entendeu
ter surgido a partir do século XVIII, que seria a “paulistânia”, em outro apontamento sem base
científica válida, segundo registros de época.
É importante lembrar que foi apenas uma tese, e que no livro de Candido as supostas
interligações são apenas citadas, sem apontamento de desenvolvimento científico nem dados de
época (o que torna qualquer tese sem valor algum). O tratamento no livro foi como se fosse
“notório conhecimento público”: assim Candido teria inaugurado um entendimento coletivo ainda
vigente hoje, onde, simplesmente pelo sobrenome “caipira”, o modelo mais famoso das violas
estaria, talvez por mágica, ligado a uma “cultura ancestral”. Entre centenas de citações por
pesquisadores, não se observa nem uma vez citação à tese de doutoramento original, apenas ao
citado livro, onde desenvolvimentos e fontes de época simplesmente não existem. O importante
estudioso inclusive parece ter publicado apenas este único trabalho sobre o tema, tendo mudado
os rumos da carreira após não ter conseguido se eleger a Deputado por São Paulo: uma candidatura
que teria acontecido exatamente na época que teria depositado sua tese (década de 1950)...
Coincidência?
Já sobre o conceito “paulistânia”, teria sido baseado em textos do eugenista paulista
Alfredo Ellis Jr. (1896-1974), professor de Candido estrategicamente não citado no livro. Ellis Jr.
teve carreira política e com suas ideias até ajudou a levar os paulistas à guerra contra o restante do
país na década de 1930, mas antes de Candido nem Ellis Jr. nem ninguém jamais teria alegado
ligação da “paulistânia” com o caipirismo, além de, naturalmente, não ser provado haver cultura
diferente do resto do país naquele território; e muito menos que paulistas seriam superiores a outros
seres humanos: aliás, este tipo de pensamento podre, eugenista, hoje em dia pode até dar cadeia...
Terá sido também por coincidência que Candido ocultou o nome de Ellis Jr. no livro dele?
Mesmo sem provas, sequer evidências de época (por isso o chamamos "entendimento
coletivo"), o caipirismo "paulistânico" demonstra historicamente ser útil para vendas, e mesmo
que não tenha sido suficiente para eleger Candido, antes ajudou até a levar os paulistas à guerra.
A força da interpretação do termo "caipira" feita por Cornélio, e sobretudo as vendas que
conseguiu por meio daquela interpretação, foram observadas pelo mercado, e utilizadas tanto na
proposta de um estilo que alargaria o interesse de outras classes além dos "caipiras" (o hoje
chamado "sertanejo universitário"), quanto para a ação de contrapartida comercial deste novo e
ainda muito rentável estilo, ao ser agregado ao nome "viola caipira", que passou, a partir de meados
da década de 1970, a ser difundido largamente. Em resumo deste trecho: Cornélio vendeu tanto
que o mercado, atento, decidiu investir no estilo Sertanejo, modernizando-o (para vender mais):
este usava guitarras (na moda, à época) e assim os que investiam em música de viola (como a
gravadora de Tião Carreiro) em contrapartida passaram a investir literalmente nas "violas caipiras
que tocam pagode". Percebeu que estratégias como as hoje chamadas "estratégias de marketing",
já existiam naquela época? Pois é... "estudos de mercado" foram feitos: o que faltou antes de nós
é aqueles capítulos terem sido investigados e inseridos em estudos sobre violas.
O nome Viola Caipira na verdade só viria a se consolidar, como hoje é conhecido, por
ações comerciais, mas a maioria dos pesquisadores e outros adeptos do caipirismo sugere entender
que teria existido “desde sempre” no Brasil: seria como se todas as “violas” (nome realmente
mencionado no Brasil desde o século XVI), tivessem sido “violas caipiras”, ou que deste modelo
moderno teriam sido gerados os demais modelos, embora comprovadamente mais antigos,
diferentes e que nunca teriam sido citados por este nome antes. Se fossem simples equívocos,
seriam o de interpretar o passado como se pudesse ter sido equivalente ao presente: mas isso é
aspecto muito básico para que tantos pesquisadores não tenham percebido... As evidências, então,
são de que o caipirismo tem atração comercial e afetiva suficiente para gerar e manter, sem
comentários e questionamentos, este (no mínimo) "estranho" entendimento coletivo.
O que nos interessa mais é apontar que o caipirismo acabou por tirar a atenção de estudos
sobre outros modelos de violas; principalmente, diminuiu a possibilidade de perceber dezenas (se
não centenas) de evidências de que, na verdade, o que sempre existiu no Brasil, assim como em
Portugal, é a presença de uma Família de Violas, com vários modelos diferentes, interligados por
contextos musicológicos e históricos atestáveis.
Esta postulação é inédita nossa, mas podem querer "fazer de conta” que não a publicamos
e tentarem tomar de nós qualquer crédito... Parece piada, mas é trágico, pois já aconteceram coisas
semelhantes antes, e a resistência ao Conhecimento é um fato, principalmente quando há interesses
comerciais contrários envolvidos... O que é uma grande bobagem, pois somos um país capitalista,
então não há motivos para esconder, pois está tudo "dentro da lei". É que a genial ideia caipirista
foi lançada também com contextos de religiosidade (pela ligação com jesuítas), somada à uma
suposta defesa de "tradição ancestral" (pela ligação do nome aos indígenas): histórias que são todas
muito bem inventadas, e defendidas até por grandes pesquisadores. Esclarecer publicamente todas
estas circunstancialidades talvez possa ser entendido, pelos interessados, como muito prejudicial
às vendas... além de mexer com a segurança e com o ego de muitos, que teriam que admitir estarem
enganados já há cerca de 100 anos.
[Não é à-toa que adotamos o personagem de não ter “papas na língua”, de ser provocador:
é um tanto por autodefesa... e outro tanto, confessamos, por chatice, pirraça e anarquismo mesmo.
Por favor, se possível, nos desculpem].
Felizmente nem todos os estudos sobre viola se dedicaram ao caipirismo: por exemplo, em
1981 foi publicado o livro Viola de Cocho, um alaúde brasileiro, fruto de pesquisas da
musicóloga paulista Dra. Julieta de Andrade. Outros dois estudos pioneiros são o de Cíntia Ferrero
(sobre Violas Brancas, em 2007) e o de Cássio Nobre (sobre Violas Machetes, em 2008).
Coincidência ou não, estes três modelos de violas são hoje abordados em dossiês de
Reconhecimento oficial de Patrimônio Imaterial.
Apesar da afirmação da citada Dra. Julieta de que as violas “teriam vindo dos alaúdes”
(colocação consensualmente rejeitada pelos musicólogos mundiais, até porque os formatos de
caixa e outros detalhes são muito diferentes), do estudo dela “pescamos”, por assim dizer, dicas
sobre variações de nomes de cordofones pelos séculos, por várias línguas de culturas diferentes
(que chamamos "vertentes"): esta visão, depois atestamos ter sido apontada originalmente pelo
musicólogo alemão Curt Sachs (1881-1959), no livro The History of Musical Instruments.
Aprofundamos, desenvolvemos e alargamos muito aquele princípio, mas, naturalmente, não
“inventamos nada do zero”. Não podemos negar que graças a estudos pioneiros e corajosos
(embora pouquíssimo considerados pela maioria) é que hoje atrevidamente chegamos a desafiar
colocações tradicionais da Musicologia, Linguística e outras Ciências, com descobertas inéditas
advindas de um banco de dados que não teria sido antes aplicado, revisado e contextualizado na
História dos cordofones ocidentais.
[Atrevidos? Talvez até arrogantes? Sim... mas é porque atestamos tudo cientificamente,
não por conveniência comercial ou pelo que mais nos agradasse. Buscamos e organizamos dados
e contextos como aponta não ter sido feito antes. Somos honestos, mas de bobos só temos o jeito
de andar e a chatice de ficar sempre provocando ("ops"...)].
Nossos aprofundamentos partiram do pequeno acervo de estudos brasileiros sobre violas,
de onde selecionamos estatisticamente os 13 mais citados. As datas de depósito deles apontam as
primeiras décadas do século XXI e entre aqueles importantes nomes estariam (pela ordem
cronológica de depósitos): Rogério Budasz, Andréa Carneiro de Souza, Eric Martins, Cíntia
Ferrero, João Paulo Amaral, Gisela Nogueira, Cássio Nobre, Adriana Ballesté, Sandro Dias,
Marcus Ferrer e, curiosamente, o estudo sobre violões de Márcia Taborda (que teve apontamentos
históricos sobre violas ainda inéditos, em 2014). Nas 13 “fontes-base”, principalmente,
reinvestigamos TODAS as citações, checando-as uma por uma desde as possíveis publicações
originais, ou as mais remotas conhecidas / conseguidas. Aquelas fontes nos levaram a textos em
diversas línguas europeias como latim, occitano, catalão, espanhol, francês, italiano e variações do
inglês e do alemão pelos séculos. Retraduzimos tudo com atenção a detalhes às vezes não
observados normalmente em traduções convencionais, por aplicarmos também nossas
experiências em visões musicológicas, de poeta/compositor e de escritor (análise de discurso,
percepção artística, etc.). Várias descobertas e decisões investigativas sobrevieram destes
processos, como a posterior ampliação de busca de registros sobre o termo “viola” em todas as
línguas relativas, desde o latim do século II aC., pois atestamos pouca consideração a violas
dedilhadas pelo restante do Ocidente. E também a evolução da nossa metodologia, que assim foi
sendo testada e confirmada várias vezes. Esta tal “metodologia” nada mais é que A Chave do Baú
que escolhemos para dar nome ao nosso livro. E ela “abre” mesmo: se ainda não perceberam,
sugerimos assuntar melhor o conteúdo!
Desenvolvemos assim uma visão bem embasada dos estudos sobre as violas no Brasil. Um
exemplo é uma corrente de busca de brasileiros por possíveis origens das violas citadas nos
primeiros séculos: vários apontam ter buscado informações em estudos e registros de portugueses,
dos quais se destacam Ernesto Veiga de Oliveira (1910-1990) e Manuel Morais. A corrente foi
observada em estudos de Paulo Castagna, Marcos Holler, José Ramos Tinhorão e outros, mas,
apesar da pista que Theodoro Nogueira apontou em 1963 (que, conforme já dissemos, é pouco
conhecida), não se teria observado que as violas portuguesas (e, portanto, também as nossas) não
existiriam antes de meados do século XVIII, senão apenas um nome “viola” aplicado a vários
cordofones procedentes de culturas concorrentes de Portugal.
Pode parecer um detalhe pequeno, quase de semântica, mas esta constatação nos guiou para
outras contextualizações histórico-sociais, que revelaram verdadeiros “tesouros perdidos” por toda
a História dos cordofones. Incluindo um aprofundamento de estudo sobre nomenclaturas de
instrumentos que ainda não teria sido feito por musicólogos, linguistas nem outros estudiosos.
[Sim, sim, não conseguimos evitar: parecemos atrevidos demais (pra não dizer arrogantes
e megalômanos), mas é a pura verdade. Não por sermos melhores que ninguém, mas por termos
vislumbrado outros caminhos, e por isso mergulhamos neles. São basicamente estes os nossos, na
verdade, poucos méritos, além de tentar compartilhar as descobertas ao máximo, sobretudo com
nossos pares que não tem muito hábito de leitura... (este último está mais para "loucura" do que
para "mérito", inclusive)].
Nosso destaque final é sobre os maiores formadores de opinião do meio, os doutores Ivan
Vilela e Roberto Corrêa, ambos com carreiras multitalentosas (como músicos, arranjadores,
produtores, pesquisadores e outras atividades). As duas carreiras apontam início na década de 1980
e ambos obviamente entraram na nossa lista dos “13 mais”, porém com destaque, por serem, de
longe, os mais citados e secundados. Não apenas em trabalhos sobre violas, mas de diversas outras
áreas, tanto no Brasil quanto no exterior. Estas duas maiores referências (por seus inegáveis e
múltiplos méritos) aparecem não só em citações quanto nos principais eventos sobre a viola nas
últimas décadas... Não duvide, cheque: a primeira parte de nossa monografia traz apontamentos
de "violas” desde o século XVI até o ano de 2021 no Brasil: não é brinquedo não...
Grandes poderes, maiores responsabilidades, diria o tio do Homem-Aranha (e/ou algum
provérbio antigo não muito bem identificado hoje em dia): os doutoramentos depositados
respectivamente em 2011 por Vilela e 2014 por Corrêa são, de longe, os mais citados, mas, na
verdade, ambos tiveram foco no caipirismo, amparados por teorias sociológicas e não em
Musicologia (que seria a base mais indicada para estudos sobre instrumentos musicais). Ambos
assumiram, sem contestações nem dúvidas, a interpretação pessoal de Cornélio Pires, reforçada
pelas citações simples de Antônio Cândido e dezenas de estudiosos famosos (na maior parte,
sociólogos e folcloristas). Também não indicaram fontes de época anteriores ao século XX. Sim:
em algumas áreas da Ciência é aceito que um estudo se baseie em teorias modernas de terceiros
(principalmente se estes forem famosos e respeitados) ... Mas para falar de História, de passado, é
no mínimo "muito recomendável" apresentar evidências em registros de época.
Em resumo: para aqueles dois pilares da viola atuais, "viola seria a caipira, por ser da região
caipira 'paulistânia', e ser a mais importante, posto que a mais conhecida". Ao assumirem suas
opções de “caipiras com orgulho”, colaboram decisivamente para o afastamento de estudos sobre
outros modelos e de constatações importantíssimas, embotadas por um entendimento coletivo que
aponta o foco das equações investigativas para modelo Viola Caipira.
De certa forma, “bom pra nós”, por deixarem porteira aberta para nossas descobertas (nós,
que a princípio, somos infinitamente menos habilitados que eles e tantos outros); por outro lado,
enquanto aqueles dois importantes nomes não estiverem dispostos a discutir e, possivelmente,
rever algumas de suas colocações, mais tempo levará para que a sociedade em geral descubra
vários detalhes importantíssimos sobre nossas violas. Estas são tesouros, verdadeiras testemunhas
vários “alguéns” resolvam ler e conferir os dados que apresentamos, seja nessa geração ou nas
seguintes.
Logo a seguir à promessa feita, e em função dela, começamos a publicar a série de textos
“Violas pela Paz”, que ainda deixamos disponíveis na página e grupo Facebook criado para aquele
fim. Até uma canção-tema com aquele nome compusemos, após proposta do parceiro cearense
Aloísio Cavalcante Jr. (canção que também segue disponível para audição no Canal João Araújo
Viola Urbana, no Youtube). Nela, apesar da gravação caseira, nos esmeramos para executar
contrapontos entre a melodia cantada e os toques da viola, a fim de representar que a harmonização
entre visões diferentes é possível, desde que haja cuidado e respeito (além de querência,
naturalmente). Respeito era a temática dos textos “Viola pela Paz”, e que acabaram por esbarrar
já num tipo de dualidade: a falta de hábito de leitura pela maioria do público alvo, que gera uma
estranha aversão ao Conhecimento, aos estudos, aos dados de época... Dualidade, porque por um
lado existe grande curiosidade, busca por respostas, origens, comprovações... mas quando alguém
pesquisa e descobre respostas, a curiosidade parece não ser grande o suficiente para fazer as
pessoas lerem e conferirem, para entenderem o que é apresentado. Será que o bom mesmo é
permanecer na dúvida? Sem dúvida, para os que lucram com ela, é bom que muitos permaneçam
na dúvida... (desculpe o jogo de palavras, é que achamos divertido brincar com o texto, já que aqui
pode, e nos textos acadêmicos não...).
Voltando ao monitoramento: entre 2017 e 2018 observamos o desenrolar do péssimo
costume: “tretas” públicas, também nas redes, mas envolvendo principalmente política.
Claramente isso é implantado para tentar descredibilizar verdades e conceitos já consolidados há
séculos, querendo sugerir que nada é verdade, nada tem valor. Entre os conceitos e práticas
indiscutivelmente válidas que são combatidos, estão o respeito, a tolerância, a Ciência como um
todo, a leitura, os dados históricos, etc. A culpa, entretanto, não é só de quem tenta gerar caos para
tentar validar ideias sórdidas e distorcidas: é muito, também, de quem não tem hábito de leitura e
reflexão, e por isso vai “ao vento” das fake news feito veleiro sem leme...
Tornou-se isso já uma espécie de “epidemia”, que se agravou pelo distanciamento ocorrido
durante a verdadeira pandemia, que sofremos todos entre 2019 e 2020. Assim, de nossa parte,
acabamos por decidir que seria melhor parar de publicar textos que convidavam os violeiros a
darem bom exemplo para a sociedade, uma vez que a maioria das pessoas, inclusive violeiros,
estavam divididas, se engalfinhando mutuamente pela defesa de algum candidato a chefe do
executivo (diga-se de passagem, quando quem manda mesmo neste país são os parlamentares...
Vai entender... só mesmo vivendo sem ler e refletir tais disparates coletivos acontecem!).
Seria uma utopia muito maluca nossa, nadar contra esta corrente, não? Mais maluco ainda,
querer propor isso por meio de textos, numa sociedade cuja maioria não tem hábito de leitura, em
redes onde prevalecem memes, gifs, vídeos curtos? Pois foi por isso que paramos com o “Violas
pela Paz”... mas os textos continuam lá, até como registro histórico.
Como se percebe, nossa batalha é antiga: insistimos em propor publicamente uma
aproximação maior entre estudos e experiências, História de verdade e lendas, tradição e evolução
continuada. Leituras e reflexões. Insistimos em inserir dados de época na equação popular das
crenças puras e sem embasamentos concretos. É no que acreditamos: a soma dos vários tipos de
conhecimentos, um auxiliando o outro, para evoluírem (e assim evoluirmos juntos). Por isso
resolvemos trazer para este Brevis Articulus algumas análises que já fazíamos àquela época, hoje
mais embasadas e ampliadas, por causa do grande número de registros e estudos que colecionamos.
Com o particular de que nossa análise científica vai se embasar, neste texto, mais pela observância
geral, oriunda do tal monitoramento. Vamos lá?
Entendemos ser fato conhecido e aceito por todos que as violas, tanto no Brasil quanto em
Portugal, sempre atuaram em cenas distintas: instrumentos chamados de “violas” teriam sido bem
aceitos tanto em festas religiosas quanto populares (navegando, por assim dizer, entre o “Sagrado”
e o “profano”); e também atuavam tanto nas cortes quanto no meio do povo. Entre as diversas
referências a respeito, destacamos (por ser menos conhecidos) mais de uma dezena de registros do
início do século XIX, de vários exploradores estrangeiros: eles narraram pretos tocando violas
tanto em eventos religiosos, dentro e fora das igrejas, quanto tocando “profanamente”, nas ruas e
em reuniões chamadas “batuques”.
[É bom sempre lembrar: “batuques”, à época, não seriam os toques de tambor, como quase
todos equivocadamente depois passaram a entender. É preciso analisar o conjunto das fontes de
época, e muitos apontar considerar poucas fontes: “batuques” teriam sido, na verdade e na
somatória de narrativas, reuniões para tocar, cantar e dançar, e eram guiadas por instrumentos
chamados “violas”. Indicamos para referência, entre outros: livro Voyage dans les provinces de
Rio de Janeiro et de Minas Gerais, do explorador francês Saint-Hilaire (1830, tomo II, p.240-
242) e o Notas Dominicaes, do também francês Louis-François Tollenare (páginas 135-150 da
edição de 1905, mas referente a fatos de 1817). Mais referências, ver pelo menos outros Brevis
Articulus que publicamos, ou seja, outras prosas].
Fenômeno similar aos "batuques" ainda acontece com o termo “pagode”, que no Brasil é
nome de ritmos (um ritmo de viola, e depois também nome do samba mais comercial), mas
também de dança (“dançar um pagode”) e de reuniões para cantar, tocar, dançar (por exemplo, na
Bahia, e no Norte de Minas, quando ainda é utilizado inclusive o termo "batuque", tanto para as
reuniões quanto para o ritmo, ainda liderado por violas).
Já para entender o que “guiava” execuções similares, num século XIX onde já reinava a
música tonal por aqui, como ainda reina, é preciso pensar na função de um instrumento de
harmonia, que aponta a tonalidade a ser seguida, seja lá em qual tom e se estivessem bem afinados
ou não os instrumentos. Várias e várias narrativas apontam que primeiro começava um canto-base
com uma guitarra (ou variações deste nome segundo a língua do narrador, inclusive alguns citaram
o nome “viola”, em português / italiano). Não, não era a “batucada” que guiava: eram os
cordofones.
Ousamos afirmar, por nossa experiência e visão agora treinada cientificamente, que até os
dias atuais há muita "des-paridade" (com licença de inventar este termo, e com hífen de ênfase, só
porque é mais divertido escrever assim). Queremos dizer: há uma não-paridade, um dúbio ainda
presente no ar... E entendemos ser normal e coerente, pelo que temos visto da História dos
cordofones ocidentais: a tendência é sempre de continuidade de algumas características, até que
(ou a não ser que) algum evento de grande impacto social atue. Entendemos inclusive que a recente
pandemia trará mudanças no cenário (no caso, praticamente mundial), mas historicamente estas
mudanças não são automáticas: tendem a levar alguns anos, talvez décadas... mas que haverá
mudanças significativas nos cordofones, nos próximos anos, acreditamos que haverá.
Quem sabe não será uma nova fase, de reavaliação geral de bases científicas, de reestudos,
reconsiderações? Faria sentido, pois nossos atrevidos e pioneiros estudos nasceram durante (e por
causa) da pandemia. Também faria sentido, num sentido de ação-reação, a Ciência sair fortalecida,
após tenebroso período de grande negação pública: já aconteceu antes, e estamos cada vez mais
“conectados” o tempo todo (no caso, a sensibilidade pela tragédia também esteve conectada,
diariamente, praticamente on line). Ou seja: foi um período de enorme comoção social mundial, e
tais capítulos históricos sempre coincidem com reações em instrumentos musicais.
Voltando às dualidades históricas envolvendo nossas violas, apesar dos registros históricos
e das similaridades indiscutíveis, há até quem duvide que nossas violas tenham origem nas
portuguesas... Já vimos declarações neste sentido, e sérias, ou seja: acreditando mesmo! Se isso
não é certificado de pouca ou equivocada leitura, e de seguir impropérios feito manada, não
sabemos o que é...
Pontuemos mais alguns exemplos históricos de dualidade:
- o instrumento popularmente considerado “divino”, das folias e outras manifestações
folclóricas ligadas ao catolicismo, também seria um manancial de histórias de "pactos” para se
tocar melhor;
- o instrumento considerado por alguns como “de serviçais” (leia-se “de pretos, patifes,
marginais”) também teria sido tocado por nobres, moças e padres: por exemplo, no século XVIII,
violas saíram da Colônia para ser atração até em Lisboa, onde pretos como Domingos Barbosa e
Joaquim Manoel tocaram supostas “modinhas e lundus” (na verdade, seriam "cantigas") com
grande sucesso, a ponto de incomodar o famoso poeta português Du Bocage, que aos dois pretos
dedicou versos bem perversos (ops, jogo de palavras de novo, agora rimando: desculpe, é que a
citação a poesias nos inspirou!);
- Cornélio Pires (que não tocava viola, mas foi um dos pioneiros em produções importantes
que as davam destaque), embora endeusado por muitos, foi criticado por alguns por levar as violas
para o disco a partir de 1929: a principal crítica era que, para "caber" nos discos, as longas modas-
de-viola originais tiveram que ser limitadas a cerca de 4 minutos de duração;
- no “mundo das duplas”, menos se valoriza (até hoje) os violeiros "solteiros", ou seja, os
solistas, sejam cantadores ou os que tocam mais música instrumental. Na mesma época do mineiro
Tião Carreiro (o genial inventor do Pagode de Viola), seu conterrâneo Renato Andrade (muito
menos lembrado, mas também um gênio nas performances), teria chegado a levar viola solo a mais
de 36 países pelo mundo, tocando de tudo, inclusive peças eruditas, que relia com maestria (e
rimamos de novo, sorry...).
[Um raro parêntese nesta última dualidade talvez tenha sido Bambico, que tocava
instrumentais, mas também cantava, era bom de estúdio e de palco, em vários ritmos, sozinho, em
dupla... É menos conhecido ainda pelo público em geral, mas muito respeitado por todos que
procuram saber a fundo sobre violas. Aos três grandes expoentes, inclusive, é possível
“monitorar”, por assim dizer, via vídeos disponíveis pela internet].
- na década de 1960, com os solos de Heraldo do Monte em Ponteio (de Edu Lobo &
Capinam) e, sobretudo, em Disparada (Geraldo Vandré & Théo de Barros), a viola "ficou famosa"
e logo foi criticada por algumas duplas auto-entendidas como “defensoras da tradição” como em
"Viola Cabocla" (de Tonico & Piraci), música que começa com "não era lembrada, veio para a
cidade sem ser convidada..." e termina com "... voltou pro sertão, trazendo a medalha".
Provocações como as daquela letra não fazem sentido, na verdade, pois as violas historicamente
sempre estiveram também nos grandes centros. Inclusive as primeiras que, tendo vindo do
estrangeiro, só podem ter chegado pelos grandes portos (centros urbanos), e só depois chegariam
ao interior. Equivocam-se (ou querem enganar alguém?) muitos, inclusive estudiosos, ao afirmar
que violas teriam “vindo da roça”: só se fosse a “roça portuguesa”, que realmente era bem mais
rural que urbana nos primeiros séculos desde a invasão ao Brasil. Além disso, não há “competição
por medalha”, a não ser nas cabeças pouco pensantes de alguns: instrumentos musicais populares
tendem a transitar por todas as situações sociais, adaptando-se (e sendo refletidos) a cada uma
delas, desde os mais remotos registros conhecidos da Humanidade.
- na década de 1970 veio a apropriação indébita feita pelo estilo hoje conhecido por
"sertanejo universitário", inspirado na cultura country estadunidense, que substituiu violas por
guitarras elétricas nas formações. Este estilo é criticado e até odiado por muitos caipiristas. Não é
bom nem falar muito a respeito, pois os radicais costumam se inflamar, mas as evidências (canto
em duetos terçados, formato melódico-harmônico, etc.) nunca deixaram dúvida de que o “sertanejo
universitário” surgiu como nova roupagem ao caipirismo, em função do sucesso comercial deste:
em especial, as vendas significativas de discos de Cornélio Pires. Aquele grande sucesso comercial
pode até não ser muito citado por tradicionalistas, mas este tipo de fato não passa despercebido de
concorrentes de mercado, que costumam reagir e lutar para conseguir também um "pedaço do
bolo" (ou seja, fatia do faturamento): é próprio do capitalismo, e é normal. Não há motivo para
não considerar estes fatos, que são também contextos histórico-sociais;
- na década de 1980, o fenômeno Almir Sater, principalmente pelas novelas de TV, foi (e
ainda é) criticado pelos mais radicais por tocar ritmos diferentes, e sozinho, temas instrumentais,
mas é considerado praticamente tão “referência” quanto Tião Carreiro, segundo enquetes públicas
que fizemos enquanto coordenadores do Prêmio Nacional de Excelência da Viola nos anos de
2010 e 2013.
“culturas de mercado” (que não são culturas de verdade). O passado deixa rastros, resquícios
inclusive nos nomes e detalhes dos instrumentos musicais populares (estudo ao qual atrevida e
pioneiramente nos dedicamos).
O nome do principal modelo de viola só emergiria e/ou se modificaria conforme algum
evento social de grande impacto, o que o caipirismo imaginado por Pires (e depois superlativado
por Antônio Cândido) não foi; já a ascensão do sertanejo hoje chamado “universitário” teria sido
fenômeno social considerável, agravado por uma reação em forma de investimento da gravadora
que desde a década de 1960 já vinha investindo numa “nova maneira de tocar viola” (o "pagode
de viola"). Coincidência ou não, aquela ação surgiu logo em seguida à “nova maneira de tocar
violão” lançada pela internacionalmente conhecida (e também lucrativa) Bossa Nova. A mesma
gravadora que divulgava o artista de maior venda do segmento violeiro (Tião Carreiro), a partir do
crescimento do sertanejo moderno começou a investir no "pagode tocado por viola caipira” ...
Coincidência?
Gostamos sempre de frisar que querer ganhar dinheiro não é, nem nunca foi, ilegal: faz
parte do capitalismo em que vivemos no Brasil há tempos. Por outro lado, para se alegar que teria
existido uma “cultura caipira ancestral” seria necessário existir dados de época, que não existem
(ao contrário, existem dados e registros que descomprovam a invenção). A função da Ciência é
contextualizar e tentar deixar as coisas bem claras, para que cada um possa tirar suas conclusões,
checando os fatos e contextos apresentados. E é isso que procuramos fazer.
A sempre boa notícia é que, conforme observamos com olhar histórico-científico e sempre
costumamos celebrar, a Família das Violas Brasileiras está a retomar o caminho normal de todo
instrumento musical popular, que é o de vencer séculos levando consigo resquícios identificáveis.
Ou seja, a sina de ser capaz de ajudar a contar muito do que passaram as sociedades nas quais os
instrumentos “viveram” (por assim, figurativamente, dizer). No nosso caso, ser capaz de contar
muito da História do Brasil, do diverso e multicultural Brasil, e também seguir contando a coerente
História dos Cordofones Ocidentais.
Alguns modelos talvez até possam ter ficado pra trás, pelo entendimento coletivo chamado
caipirismo ter prevalecido por algumas décadas, mas, com a atual retomada do caminho, é possível
até que modelos reapareçam, no futuro, como é o caso de algumas violas que não tem mais
registros na região Norte do país, mas que já tiveram e podemos provar... Só que aí já são outras
prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
europeu como sendo tocado por arco, mas teria sido antes também dedilhado, pelos árabes / persas,
algumas vezes citados como tambura ou mandora, segundo pesquisadores como Paul Garnault
(artigo “Les Violes”, Encyclopédie de la Musique, 1925).
O que teria acontecido a partir do século X com "rotas, gigas e rabecas" (nomes, então, já
nas variações em língua portuguesa) seria o mesmo que acontece com nossas violas brasileiras e
portuguesas: um mesmo nome para instrumentos tocados de duas formas bem diferentes. Só que,
além da nomenclatura VIOLA apontar não ter nada a ver com aqueles três pioneiros nomes,
haveria uma lacuna de séculos até outras evidências conclusivas de bivalidade de nome. Isto
sozinho não atesta cientificamente, mas corrobora com o fato (que comprovamos por várias outras
atestações) que algumas características de cordofones podem romper séculos e, em vários casos,
até resquícios nos nomes são observáveis, mesmo em línguas diferentes.
[Desculpem a empolgação, mas não podemos deixar de citar que este aspecto é muito
bacana: pense bem nos instrumentos a revelarem, silenciosamente, a História (tanto a deles mesmo
quanto a das sociedades que testemunharam) ...].
Mas voltando à prosa: registros indiscutíveis de bivalidade viriam a partir das vihuelas
espanholas, que pelos menos no século XIV tem registros de terem sido também tanto dedilhadas
quanto friccionadas por arco, como apontou, entre outros, o padre-poeta castelhano Juan Ruiz
(conforme destacado na abertura). A semelhança dos nomes (violas / vihuelas) não deixa dúvidas,
até porque atestamos a evolução de vários nomes similares a partir do século XII em latim,
occitano e catalão, línguas comprovadamente influenciadoras do espanhol e do português (entre
outras línguas, chamadas “latinas”). Aliás, há até textos em espanhol apontando "violas".
Aquelas vihuelas de nome bivalente quanto a forma de tocar já teriam sido bem estudadas
antes de nós pelos britânicos Thurston Dart (artigo La viole da Gamba, da Revista Storia degli
strumenti musicali, 1961) e Ian Woodfield (livro La viola da gamba dalle origine al
Rinascimento, 1999) e, também, mas com citação de contextos histórico-sociais e mais
litogravuras, pelo australiano John Griffiths (artigo Las vihuelas em la epoca de Isabel, 2010).
É curioso observar que aqueles “gringos” tenham escrito livros e artigos em italiano e
espanhol... Não encontramos os mesmos trabalhos em inglês, mas não faz falta: é até louvável o
esforço deles em usar línguas latinas e são todos bons estudos, bem embasados... mas apesar disso,
teria escapado àqueles grandes estudiosos o caminho que as vihuelas dedilhadas teriam traçado até
chegarem às nossas violas, portuguesas e brasileiras. A língua portuguesa, não por coincidência,
seria a única a ainda preservar, até os dias atuais, um nome igual, tanto para violas dedilhadas
quanto para friccionadas por arco: por isso é legítimo e coerente que caiba a um brasileirinho
atrevido (e não a outros estudiosos pelo mundo) que “desembole este novelo” a partir desta “ponta
solta”: é nóis!
As nossas “violas” teriam os mais remotos registros conhecidos em escritos portugueses
do século XV, segundo pesquisas de Veiga de Oliveira (Instrumentos Populares Portugueses,
1964) e Manuel de Morais (artigo A Viola de Mão em Portugal, 1985). A princípio, aqueles
registros não especificariam claramente se teriam sido violas dedilhadas ou friccionadas, mas em
seguida as evidências se confirmariam e as “violas” dedilhadas se tornariam o principal cordofone
em Portugal, com vários registros remanescentes dos séculos XVI e XVII. O que pesquisadores
não teriam percebido é que outros cordofones dedilhados (como alaúdes, vihuelas e guitarras),
com vários registros em outras regiões europeias, praticamente não teriam sido citados por
portugueses, e que as “violas” citadas por estes teriam as mesmas descrições e desenhos daqueles
outros instrumentos...
Ou seja: as evidências são que “viola” teria sido apenas um nome genérico dado a todos os
cordofones com braço, não tendo existido, de fato, “violas” diferentes dos demais cordofones
largamente utilizados; isso, por enquanto, só nós temos a audácia de afirmar categoricamente, e
provar por registros... (conforme já avisamos, somos atrevidos: vai desculpando aí, por favor...).
Embora, por exemplo, Manoel de Morais tenha afirmado que “viola é empregado como
nome genérico de uma família de instrumentos de corda com braço”, pesquisadores demonstram
apego ao nome “viola” e seguem tratando-as como se tivessem existido de fato nos primeiros
séculos (do XIV ao XVII). Apontar que elas não existiriam (senão, somente o nome) significa
enfrentar um problema complexo, pois desde o século XIX até hoje, as violas existem... Uma
possível lacuna precisa então ser explicada, contextualizada, “provada” (por assim dizer): é muito
mais fácil assumir que elas “sempre teriam existido”, até porque, há registros do nome. Além disso,
até agora ninguém teria se atrevido a contestar, via estudo de nomes (é nóis, de novo)...
É por isso que, por enquanto, só nós postulamos e contextualizamos que violas dedilhadas
portuguesas (e brasileiras), de fato, só podem ser consideradas que existiriam a partir de quando
seja possível atestar detalhes que as diferenciassem das guitarras espanholas e outros cordofones:
isto só teria acontecido a partir de meados do século XVIII, quando as guitarras espanholas então
dominavam a cena. Àquela época, na chamada Península Ibérica, são conhecidos poucos registros
de alaúdes, vihuelas e guitarras pequenas (estas últimas que teriam mudado de nome para
descante, machinho, machete, rajão, braguinha e similares). O máximo que pesquisadores (no
caso, portugueses e brasileiros) apontam é um bilinguismo (entre vihuelas e violas, ou entre
guitarras e violas), que parcialmente faz algum sentido entre os séculos XVII e XIX; porém, na
verdade, ampliando o recorte histórico, teria havido um “multilinguismo”, onde o nome “viola”
teria sido utilizado para alaúdes, vihuelas e guitarras de vários tipos: um multilinguismo do qual
não se conhecem registros de instrumentos chamados “violas” que fossem diferentes daqueles
outros cordofones, bastante populares por grande parte do território europeu da época.
Entre as complexidades que outros pesquisadores não enfrentam estão:
- estudos organológicos sequer hoje em dia apontam consenso de que número de cordas e
de ordens sejam diferenciadores de instrumentos (“azar o deles”, é o que pensamos);
- estudos linguísticos, até os dias atuais, não apontam consenso nem significados
musicologicamente concisos sobre origens do nome “viola” (“azar o deles também”);
- são raros os estudiosos, até os dias atuais, que apontam lidar bem, na prática, com as
diferenças entre “presente” e “passado”, expressas em características organológicas e etimológicas
de instrumentos musicais. Ao contrário, o que mais se observa são estudiosos agirem como se um
instrumento que eles têm contato, no presente deles, sempre tivesse tido aquele formato e aquele
nome da língua usada em suas publicações contemporâneas. Simplificando: o que mais se vê é o
apontamento de nomes modernos para instrumentos antigos, sugerindo que sempre teriam sido a
mesma coisa, pelos tempos: é um equívoco básico de contexto histórico.
Estes não seriam, entretanto, equívocos infantis, ou toscos; afinal, estamos a falar de
inúmeros estudiosos, vários deles muito competentes, dedicados e respeitados (o que seria de nós
se tantos outros não tivessem deixado bons trabalhos para conferirmos?). Teriam sido mais como
“pequenos deslizes”, provavelmente pela louvável intenção de querer traduzir melhor para os
leitores o complexo assunto. A “pegadinha”, no entanto, é que se não analisarmos muito bem o
passado (que inclui os nomes corretos, nas línguas em que foram registrados), perdemos muito do
caminho histórico percorrido. Alguns estudiosos até criticam deslizes assim quando cometidos por
terceiros, mas, curiosamente, costumam também cair no mesmo tipo de armadilha: a do contexto
histórico incorreto dos nomes aplicados.
É importante observar que o que desenvolvemos (a partir de vários estudos de terceiros)
foi uma prática de olhar multidisciplinar (ou “multitemático”) cuja importância e aplicabilidade
poucos estudiosos teriam tido antes a perspicácia de perceber e de se aprofundar (dito assim para
não afirmar, mais uma, vez que somos os primeiros a chegar tão longe: uma brincalhona falsa
modéstia). O fato é que, por enquanto, pelas apropriações indébitas e tentativas de
descredibilização que já começam a surgir quanto aos nossos estudos, faz-se necessário reforçar o
aspecto do ineditismo metodológico e deixar a modéstia para outras oportunidades.
Ajuda-nos a atestar nossa atrevida afirmação (de que pesquisadores não teriam percebido
ou não quiseram apontar que não existiram “violas” de fato, até determinado período histórico) se
analisarmos com bastante atenção e profundidade o que teria acontecido quanto a nomes e
instrumentos similares... Todas estas informações estão nos diversos registros de época, e todas
coincidem com contextos histórico-sociais (sendo dos maiores deles a rixa histórica entre
portugueses e espanhóis).
Nomes apontam reflexos dos contextos (na verdade, desde sempre na História dos
cordofones), e não os utilizar e considerar corretamente nas equações investigativas são equívocos
lamentáveis, secundados por centenas de estudiosos de várias áreas, há séculos; entretanto, não
podem ser imputados como “má fé” ou “incompetência”, vez que só agora estamos a divulgar
nossa metodologia recém desenvolvida (ela, a tal que chamamos de A Chave do Baú). Não teria
havido estudo tão abrangente e aprofundado antes, principalmente quanto à análise de históricos
de nomenclaturas. Apontamos estes equívocos para justificar porque nossa metodologia é capaz
de ajudar a descobrir tesouros que tantos outros pesquisadores ocidentais não teriam descoberto:
não é questão de ser “melhor” (estamos longe disto), mas questão de atrevimento, perspicácia,
teimosia... no popular? É questão de ser "chato” quanto a dados e registros (incluindo cada letra,
de cada nome de instrumento) e contextos histórico-sociais...
Voltando à prosa: na península itálica, entre os séculos XIII e XVI, interessantes registros
atestam que “viola” por lá também teria sido nome bivalente quanto à forma de tocar, não por
coincidência exatamente como as vihuelas espanholas. Neste caso, por não termos observado em
outros estudos, listamos os dados e apontamos o desenvolvimento:
- estimado ao ano de 1240, no Libro de Apolonio (segundo manuscritos arquivados na
Biblioteca de El Escurial, na Espanha) haveria entre variações (como vihuela e viuela) também a
grafia literal viola: era o latim expresso naquele texto em espanhol, o mesmo latim que é a base da
língua italiana;
- estimado ao ano de 1350, o poeta italiano Giovani Boccacio, em seu livro Decameron,
apontou viuolas que teriam sido utilizadas para acompanhamento de cantos (mais provavelmente,
portanto, aquelas teriam sido dedilhadas);
- estimado ao ano de 1486, em Nápolis, o belga Johanes Tinctoris (em De inventione et
usu musice) em latim apontou que viola seriam cordofone de procedência espanhola; seriam tanto
sine arculo (“sem arco”, ou seja, dedilhadas, principalmente em cantilenas italianas e espanholas),
e cum arculo (“com arco”, utilizadas para acompanhar declamações de poesias); o musicólogo
acrescentou que rebecum (“rebecas”) e liutum (“alaúdes”) seriam em quase tudo similares às
violas, a não ser que as últimas seriam cinturadas (atestando espelhamento espanhol quanto aos
instrumentos abaulados, de procedência árabe). Tinctoris se declarou tocador de rebecum e de
viola e é considerado um dos mais respeitados musicólogos surgidos após o padre italiano Guido
D’Arezzo (este último, considerado dos pioneiros em estudos que depois originariam a atual
música tonal ocidental). Observamos ainda que Tinctoris teria tido a rara atenção de optar por
escrever em linguam vulgarem (“latim popular”), aproximando-se assim das nomenclaturas
originais dos instrumentos, aos quais ainda tentou apontar, segundo o que entendia, as regiões de
procedência mais prováveis (como se percebe, não “inventamos a roda”, apenas ficamos muito
atentos ao que fizeram os bons, e tentamos nos aprofundar, a partir do que vemos ser feito).
- em 1533, Giovani Lanfranco (Scintille di Musica) não citou viola, mas apontou, em sua
proposta de sub-classificação para friccionados, os nomes violoni, violone e violono, que seriam
todos de Braccio & de Arco. Os violones teriam a mesma afinação de alaúdes, com a diferença
que teriam cordas geminadas (duplas de cordas). Temos aí uma evidência de espelhamento entre
dedilhados e friccionados por arco, assim como antes se observava em instrumentos espanhóis;
- em 1536, Francesco Milano (Intavolatura de Viola o vero Lauto) já apontou desde o
título de seu método que a viola a que se referia seria o mesmo que alaúdes, portanto, seriam
dedilhadas (e não friccionadas por arco);
- estimado ao ano de 1542, Silvestro Ganasi (Regula Rupertina, o método antigo mais
referenciado até os dias atuais), utilizou a nomenclatura viola darcho mas também citou violone
como um instrumento de afinação e armação de cordas iguais aos dos alaúdes, como fizera poucos
anos antes o citado Lanfranco.
quando novamente as guitarras espanholas manteriam o nome ("a marca") e mudariam de armação
(para 6 cordas simples), definitivamente partindo para a abrangência observada hoje em
praticamente o mundo todo. Os portugueses passariam a chamar aquelas então “ainda mais novas
guitarras” de “violão” ou “viola francesa” (este último nome, num procedimento similar à
descaracterização sem fundamento adotada por espanhóis antes, quanto a Flandres). Ou seja:
portugueses optaram por seguir utilizando, pura e simplesmente, o nome genérico “viola” para
todos os cordofones, acrescentando apenas variações como "viola francesa" e aplicando assim
nova "fake news medieval", semelhante à aplicada antes por espanhóis, com o apelido "vihuelas
de Flandres": ambas, claramente para mascarar a origem correta de instrumentos típicos de
dissidentes. Espanhóis não queriam "dar palco" aos instrumentos árabes, e portugueses também
não, assim como aos instrumentos espanhóis. Estes capítulos de rejeições, contextualizáveis
histórico-socialmente, são claramente observáveis por nomes utilizados nos instrumentos (eles,
portanto, não são simples traduções, nem aleatoriedades ou confusões, conforme demonstramos).
Portugueses agiram diferentemente do que acontecia em outras regiões com as quais
tinham contato. Mesmo que de maneira tácita (posto que não se observem leis ou orientações
publicadas neste sentido), a escolha do nome foi uma ação continuada por séculos, cujo cunho
aponta para um peculiar tipo de expressão de nacionalismo português, atestado por vários registros
históricos. Além disso, outros contextos histórico-sociais, de outras regiões e épocas, apontam
reflexos semelhantes em instrumentos populares de vários povos, praticamente em toda a História
dos cordofones europeus.
Até aqui já deve ter dado para perceber porque então surgiu esta "anomalia histórica", que
são as violas dedilhadas. Ajudará mais ainda um aprofundamento sobre a verdadeira origem das
violas, tanto portuguesas quanto brasileiras... Mas aí já serão outras prosas...
Por enquanto, muito obrigado por ter lido até aqui. E vamos proseando...
portuguesas e registros que não seriam exclusivamente das baianas (como os de Câmara Cascudo
e Maynard Araújo, ambos da década de 1950); mas observa-se, nas referências apontadas em todos
eles, que parecem não considerar um significativo número de citações por várias partes do Brasil,
principalmente no Rio de Janeiro, no século XIX.
Veja, por exemplo, citações que envolveriam pequenos cordofones em "batuques e
lundus", que levantamos em nossa monografia: Lindley (1806, p.191); Freyreiss ([1815], p.542);
Koster (1816, p.241); Tollenare ([1817], p.137); Pohl ([1819], p.608); Spix & Martius (1823,
p.294); Neuwied (1825, p.33: p.91); Walsh (1830, v2, p.137); Debret (1839, v2, p.128); Rugendas
(1835, p.25); Mattos (1836, p.37); Gardner (1846, p.49); Saint-Hilaire (1848, v2, p.60); Gonzaga
(1863, p.185) e Wells (1874, p.198).
[Sim: nós não brincamos quando o assunto é levantar referências... Observe que foram
pessoas de línguas, culturas e formações científicas diferentes que, por várias regiões do país,
durante décadas, teriam feito descrições muito semelhantes. Talvez estas informações tenham se
perdido no tempo porque não teriam sido feitas boas traduções antes; ou, também, pela maior
manifestação musical dos primeiros séculos no país (como já foi dito por outros, além de nós) ter
vindo dos pretos. Será que ainda existe preconceito?].
Faz muita diferença se forem considerados só alguns poucos registros, separadamente (que
é um procedimento equivocado, incompleto). Nós retraduzimos tudo que conseguimos a partir dos
originais (em inglês, alemão, francês, italiano, espanhol, etc.) e contextualizamos com olhares
musicológicos, histórico-sociais e outras coerências. É verdade que aqueles instrumentos não
foram todos citados literalmente como "machetes": na maioria das vezes os estrangeiros utilizaram
variações da nomenclatura GUITARRA (dependendo da língua do autor); há também quem tenha
descrito como “bandolim” ou “banjo”, por exemplo, que seriam os cordofones de pequeno porte
mais conhecidos por alguns estrangeiros, mas sem registros efetivos de terem existido por aqui, à
época. Alguns chegaram ainda a grafar “viola”, em português (que era como os portugueses e
brasileiros chamavam), tendo sido poucos os registros de machete ou machette. Um destaque foi
guitarre de poche (“guitarra de bolso”, em francês, apontado por Saint-Hilaire), que foi inclusive
quem melhor descreveu os instrumentos vistos. Antes de nós, aqueles instrumentos teriam sido
traduzidos por aqui às vezes como “cavaquinho” ou “violão”, instrumentos que entretanto não têm
registros de terem existido antes de 1820... Sobre este contexto histórico equivocado, assim como
ligação com “maRchetaria” e outras esdruxulices, nem vamos comentar mais...
O que interessa é que a maioria das descrições feitas no século XIX (um número
significativo de fontes) se referiu a atividades dos pretos em grupos onde se tocava, cantava e
dançava. E nas quais termos próximos a “batuque” e “lundu” aparecem várias vezes, além de
“fandango” (pois alguns entenderam que esta dança europeia seria parecida). Alguns daqueles
estrangeiros também interpretaram equivocadamente que “batuque” e “lundu” seriam danças
distintas, com base em pequeno número de amostras (e de Conhecimento) dos narradores. Além
de considerar o nível de Conhecimento musical que cada narrador teria, é importante analisar o
máximo possível de registros, e cruzar tudo por vários ângulos e contextos: dá trabalho, mas o
resultado é muito mais seguro e esclarecedor.
Não faz sentido as machetes (ou “machinhos”, ou “machetinhos”) existirem
comprovadamente no século XVII em Portugal (ou até antes) para depois reaparecerem
“milagrosamente” no século XX, na Bahia: não é assim que a História demonstra acontecer com
cordofones populares... ou, pelo menos, não é o que temos visto desde os textos em latim mais
antigos que conseguimos levantar e retraduzir, de cerca de dois séculos antes de Cristo: a tendência
mais observada é de continuidade por longos períodos, mesmo que com nomes e detalhes um
pouco diferentes. No caso das machetes baianas, o nome até se manteve, o que é indício de
continuidade, embora sozinho não se pode afirmar que significaria exatamente os mesmos
instrumentos. A questão é que poucos se aventuram a pesquisar a fundo nomes de instrumentos e
seus contextos pelos séculos, com tanta variedade a ser estudada: é mais difícil mesmo.
Na verdade, ao analisarmos pelo espectro mais amplo (de períodos, regiões, culturas, tipos
de registros), percebemos que pequenos cordofones cinturados, de fundo plano e com poucas
cordas, chamados guitarras, teriam registro na península hispanica pelo menos desde o século
XVI, segundo Milan (1536), Bermudo (1555) e Amat ([1596]); apontam terem surgido num
contexto de rejeição / concorrência com cordofones árabes, “pequenos alaúdes” que teriam sido
diferentes: de caixas periformes, com fundos abaulados. Estes últimos teriam sido chamados
mandurra (que remete à pandura grega, e mais remotamente ao sumério pan-tur) e/ou bandurrias
(uma “espanholização” de mandurra). Árabes (chamados “mouros”) foram invasores que desde o
século VIII teriam levado seus cordofones (entre outros costumes) para o território europeu: este
é o contexto histórico-social (de rejeição e/ou concorrência) que justifica porque, com o tempo,
surgiriam instrumentos similares, mas que gradualmente apontariam principalmente caixas
diferentes (ovalares, arredondadas ou cinturadas, sempre com fundo plano), e que ganharam a
preferência dos europeus.
Outro contexto histórico-social também justifica porque, em 1822, o italiano Adrien Balbi
(1782-1848), em Lisboa e sem nunca ter visitado a Colônia, apontou que um preto brasileiro
(Joaquim Manoel) teria tocado (e até inventado!) um “cavaquinho”: um instrumento que, segundo
o italiano, teria sido uma petite viole française (“pequena viola francesa”). O autor aponta que
estaria totalmente engajado com costumes portugueses, entre eles o de dar outros nomes a
instrumentos de procedência e/ou preferência de dissidentes. Já outros autores da época, que
efetivamente teriam visto Joaquim tocar (e muito bem), chamaram o instrumento de guitarre (em
francês), e bandurra ou viola (em português). Portugueses até acham que haveria “dúvida
razoável” nesta questão, mas entende-se que faz muita diferença termos várias narrativas de quem
teria visto o instrumento contra a de apenas um, que não o teria visto... além da diferença de que
portugueses utilizariam nomes como forma de expressão de nacionalismo (no caso, rejeição contra
a Colônia que estava em vias de se tornar independente).
Ora... “viola francesa” (ou “violão”) são apelidos utilizados pelos portugueses, e que não
tem qualquer fundamento quanto à procedência real das guitarras: estas seriam espanholas, e já
teriam feito sucesso pelo território europeu. Passaram de armação com 4 ordens de cordas
(espelhando manduras), depois 5 ordens (as chamadas “guitarras barrocas”), até finalmente
chegarem ao modelo com 6 cordas simples, o tal “violão”, de mais sucesso ainda (como é até
hoje).
Não é que os portugueses não soubessem que eram guitarras: é que eles não queriam “dar
palco” a nomes usados por dissidentes. O nome “viola” (já utilizado na península itálica) foi o que
escolheram, se agarrando a ele praticamente para todos os tipos de cordofones portáteis com braço:
esta foi a solução que satisfez o (em nossa opinião) até bonito nacionalismo (ou patriotismo)
português. Bonito e louvável, mas é bom observar: para portugueses, até hoje, nada vale mais do
que os nomes que eles usam. Costumam até hoje simplesmente desprezar o que aconteceu em
outras culturas / países / regiões, principalmente com quem tiverem divergências. Por outro lado,
o que entendemos ser mais correto é observar o máximo possível do que ocorre pelo menos no
território europeu, nas diversas línguas, por grandes períodos de tempo. Entende-se, inclusive, que
estudos de um brasileiro como nós, que não repete o que eles gostam de acreditar, serão
desprezados por lá por muito tempo (sem contar algumas hostilidades que já começam a chegar)...
mas, paciência: é assim que os portugueses sempre foram.
Em caso similar ao das “violas” (dedilhadas), o nome “cavaquinho” também teria agradado
mais ao patriotismo português pois, no século XIX, “machete” se tornou o nome da "viola" típica
dos pretos brasileiros (segundo diversos anúncios de jornal, de várias regiões do Brasil, disponíveis
para consulta pela Biblioteca Nacional Digital). Não: portugueses também não “dariam palco” a
um nome que então se tornou “mais brasileiro” (pois eles tinham também suas "machetes"); pior
ainda: um instrumento de pretos, alguns que tocavam muito bem... E assim surgiu o "cavaquinho",
puramente a partir de um nome e curiosamente que talvez armasse em seis cordas, no início (como
a “viola francesa”). Aquelas “pequenas violas” teriam passado pela armação com cinco cordas
(ver Regimento dos Ofícios de Guimarães, 1719) e hoje o cavaquinho acabou por se consolidar,
tanto por lá quanto por cá, em 4 cordas simples. Apesar do cavaquinho, os portugueses não
abandonaram o nome “machete”, que também sobrevive, junto com “braguinha”, “rajão” e outros:
todos, pequenos cinturados muito similares... E é aí que ocorre um equívoco de alguns estudiosos,
por pensarem que aqui no Brasil “cavaquinho” e “machete” também seriam equivalentes. Não
seriam: na verdade, nunca foram e continuam não sendo.
É também pelo contexto histórico-social diferente que nossas machetes teriam se
desenvolvido, muito provavelmente a partir da mesma época (início do XIX), para 10 cordas em
05 duplas, a armação mais famosa entre "violas" dedilhadas (armação, porém, introduzida pelas
guitarras espanholas, chamadas de “viola” pelos portugueses); machetes, assim, são hoje bem
diferentes do cavaquinho e das machetes mais antigas. São diferentes também das pequenas
guitarras espanholas e das que estes chamavam bandurrias (as mandoras árabes): nossas machetes
são particulares e talvez só os charangos, famosos pela América Latina, usem a mesma armação
em instrumentos de pequeno porte... Não pesquisamos esta parte latino-americana a fundo, ainda,
pois temos um defeito de fábrica: temos apenas uma vida! Mas devagarinho vamos somando
registros.
Percebe a minúcia? Brasileiros, bem diferentes dos portugueses, não teriam o mesmo tipo
(se é que temos algum tipo) de expressão de nacionalismo pelos nomes dos instrumentos. E
tínhamos muitos pretos (muito mais do que brancos), chamando os instrumentos de “machete” (e
também “viola”, por herança do costume português). Quando surgiram os “cavaquinhos”
portugueses, diferente dos gajos os brasileiros não teriam a mesma predisposição quanto ao uso
de nomes, apesar da língua ser a mesma: a solução popular surgida aqui, então, foi separar, de
alguma forma, dois instrumentos que para nós seriam diferentes entre si; no caso, foi pela armação
de cordas, além dos nomes: por um lado, o cavaquinho; e por outro, acabamos por juntar "viola"
com "machete", gerando Viola Machete, que hoje é um dos modelos da Família das Violas
Brasileiras.
No fundo, no fundo, todos seriam “pequenas guitarras”, até o ukulelê hawaiano: cinturados
pequenos, com pequenas diferenças conforme respectivas culturas e contextos histórico-sociais.
Com o abandono do uso pelos espanhóis (a partir do século XVII), as pequenas guitarras
emergiram com outros nomes em Portugal, tendência similar ao acontecido com as violas
dedilhadas (que seriam, no início, apenas um nome dado por portugueses a vihuelas, guitarras e
até alaúdes).
A esta altura dá pra entender porque se observam, em escritos mais antigos, nomes no
diminutivo como “guitarrilha”, “bandurra”, “bandurrilha”... certo? Seriam instrumentos
pequenos... E se tivessem sido tocados por pretos brasileiros? Será que não poderiam ser
considerados “machetes” também? Isso ninguém, além de nós, teria tido atrevimento de apontar...
Os três diminutivos buscamos de instrumentos que teriam sido tocados por um importante
poeta, segundo textos próprios e/ou a ele alegados: Gregório de Mattos, o “Boca do Inferno” (que
teria vivido aproximadamente entre 1636 e 1696). Ele é considerado “apenas poeta”, segundo a
maioria dos atuais estudos sobre a História do Brasil... Não músico, sequer “violeiro”: apenas
poeta. Entretanto, além daqueles diminutivos, há vários registros do nome “viola” no tempo em
que Gregório viveu (inclusive é mais citado nos textos dele, onde encontramos também "descante"
e "machinho", mas não “machete”). Entre outros pretos que teriam sido excelentes músicos
destacam-se Euzébio de Mattos (irmão de Gregório), Padre José Maurício Nunes e o citado
Joaquim Manoel: todos, com registros de que teriam utilizado “violas”, ou “violas de arame”: não
teriam sido, aquelas todas ou a maioria delas, “machetes”?
A mais remota citação literal que conseguimos descobrir (até agora) de “machetes e
machinhos” (que teriam sido “violas pequenas”) aponta para 1712, em Lisboa, em dicionário de
Bluteau (como já citamos). Em terras brasileiras, “violas ou machinhos” teriam sido observados a
partir de 1744 e “machete de tocar”, desde cerca de 1790, em documentos alfandegários (ver
Pereira, 2013); entretanto, o nome “viola” já apontaria para instrumentos de tamanhos variados
desde 1572, no Regimento dos Violeiros segundo Morais (1985), enquanto “violas pequenas” já
constariam literalmente desde o ano de 1700, segundo os mesmos citados documentos de
alfândega.
De onde teria vindo o nome “machete”, que Veiga de Oliveira (1964) apontou que “...
parece ser uma palavra arcaica, caída em desuso, e subsistente nas Ilhas e no Brasil”? Resolvemos
pesquisar...
Começamos sempre pelos usos gerais: “machete” seria antes o nome de um facão ou
marreta (como aponta para um diminutivo, preferimos dizer que seria um “machado pequeno”).
Teria vindo de “macho” (masculus em latim), segundo a maioria dos linguistas, e só apontaria
significado como “instrumento musical” na língua portuguesa... disso a princípio desconfiamos,
mas atestamos, pois, em textos em catalão e espanhol realmente não encontramos. Na verdade, faz
sentido, pelo que já apontamos: espanhóis abandonaram as pequenas guitarras (e as vihuelas,
maiores) a partir do século XVII, em função de um investimento nas “novas guitarras”, de tamanho
intermediário e com 5 ordens de cordas. E não teriam nunca usado nome nem parecido com
“machete”: os dedilhados de braço curto teriam sido chamados pelos espanhóis de guitarras,
manduras ou bandurrias. Por outro lado, como guitarra se tornou "outro instrumento" (maior e
com mais cordas), "calhou" de passarem a ser chamados por outros nomes onde continuariam a
ser usados, principalmente Portugal, que já tinha tradição de chamar por outros nomes, mais
"próprios", instrumentos utilizados por dissidentes. Uma evidência é que chamou (e ainda chama)
de "violas", tanto dedilhadas como friccionadas: exatamente como os italianos, que não eram tão
dissidentes quanto os espanhóis.
Fuça daqui fuça de lá, acabamos por encontrar edição do ano de 1788 do livro Allgemeine
geschichte der Musik (“História Geral da Música”), do musicólogo alemão Johan Nicoulau Forkel
(1749-1818). Forkel é considerado por alguns um dos fundadores da musicologia moderna e, por
isso, já tínhamos pesquisado antes uma edição daquele livro, do ano de 1801, mas só na edição
mais antiga constaria estudo sobre certo machol (inclusive com desenhos). O alemão teria
pesquisado o nome em várias fontes (que não tivemos como checar, seriam manuscritos) e ele nem
teria chegado a uma conclusão: apenas apontou que, sem dúvida, teria sido um cordofone de
pequeno porte e que seria também chamado schalischim; mas já valeu, porque os apontamentos
foram bem fundamentados e referenciados: entre as fontes apontadas, confirmamos que algumas
indicariam equivalência também a machalah, em hebraico (bem próximo, portanto, de machol).
A ligação com língua árabe fez acender, para nós, uma luz: já consegue perceber? Não? Então
sigamos, que um pouco mais a frente vamos esclarecer...
Seguindo na "fuçância", encontramos alguns entendimentos diferentes dos de Forkel: Curt
Sachs, em 1913, apontou que machol [...] wird heute nicht mehr als Name eines Instruments (“não
é mais considerado nome de instrumento”) e o mesmo autor, em 1940, no excelente livro The
History of Musical Instruments, nem citou mais machol. O alemão Wolfgang Printz (1690)
entendeu que michol e schalisim seriam tocados por arco e machol seria instrumento de percussão,
enquanto o português Ernesto Vieira (1899) entendeu ser “[...] uma flauta mencionada no texto
hebraico da Bíblia”.
Atentos à citação do autor português (nome hebraico, bíblico), fomos conferir a Vulgata
online, versão em latim, chamada também “Bíblia Constantina”: nos textos oficiais, daquela fonte,
nada... Mas em comentários de estudiosos, lá mesmo, encontramos que Maeleth, além de ser nome
de uma das filhas de Ismael, equivaleria ao hebraico machalath, instrumento musical que teria
sido citado em salmos de David. Vimos vários comentários no mesmo sentido, feitos por autores
diferentes (em inglês, francês e italiano), naquele website sério, e por isso os consideramos
relativamente consistentes. Mas... se não constava na Bíblia em latim, como poderia na língua
portuguesa ter acontecido a evolução de maeleth / machalath / machol até machete? Bom, a
pronúncia pode ter evoluído pelos tempos, mais ou menos como: "machol, machalat, maeleth,
machalete, machete"... Mas vai pensando aí, enquanto seguimos no desenvolvimento...
Primeiro precisávamos “tirar a prova” do que apontou Forkel, pois não acreditamos
cegamente em ninguém (nem em nós mesmos). Não podendo, como dissemos, conferir os
manuscritos, fomos procurar livros sobre textos bíblicos em hebraico (não “livros em hebraico”,
pois não temos competência para ler diretamente naquelas línguas, mas “sobre textos em
hebraico”, escritos em línguas que pudéssemos entender). Acabamos por encontrar um excelente,
em alemão, de 1777: Einléitung zu dem Neu-Testamentlichen Gebrauch der Psalmen Davids
(“Introdução ao uso dos Salmos de Davi no Novo Testamento”), do teólogo alemão Friedrich
Christoph Oetinger (1702-1782). Estava lá: tanto para o Salmo 53 quanto para o 88 (eles diferem
em um número dos da Bíblia em latim): [...] Meister in der Musik aus Machalath (“mestre em
música de Machalath”), sendo que Oetinger ainda detalhou: Machalat ist ohne Zweifel ein
musicalisch Instrument zum Trauerspiel, leannot, das ist, ein Schwermuthsinstrument, einen zu
demüthigen, einen traurig zu machen (“Machalat é sem dúvida um instrumento musical dramático,
'magro', isso é, melancólico, entristecedor”). Já havíamos percebido similaridade do verbo machen
("mudar algo, tornar" em alemão), usado na frase na composição de "entristecedor", mas é só
coincidência. No caso, nossa tradução se reforçou por citação em latim também encontrada no
mesmo livro, sobre os significados de machalat... [cruzamento de alemão com latim dá o quê,
“alemin”? “latimão”? Aí não sabemos... Mas sabemos que foi assim...].
Estava lá também, dos Salmos indicados então pelos números 45 e 69: schalischim seria o
mesmo que schoschannim [...] welches ein Instrument von 3 Saiten Tönen oder Ecken bedeutet,
so auch das weibIitche Geschlecht tractiren konnte (“instrumento de 3 cordas, tons ou cantos,
ligado ao gênero feminino”); feminino, porque shoschannim seria também o nome de uma flor,
um tipo de lírio. Conferimos, e realmente significaria “flor” até hoje; e vários teriam entendido
apenas assim, desprezando o significado de instrumento musical, inclusive lá na citada Vulgata
online, em latim; só que nessa última fonte mesmo (aquele website que consideramos sério), dois
estudiosos (o francês Fulcran Vigouroux e inglês Leo Haydock) já alertariam, em comentários,
que poderia ter sido também instrumento musical e não apenas uma flor...
[Para nós, uma interessante "coincidência", pois já havíamos percebido, há tempos, que
“viola” teria sido antes o nome de flor, em latim (um tipo de “violeta” com três cores, segundo
Isidoro de Sevilha, no século VI, e que ainda é chamada de "viola tricolor", ou "amor-perfeito").
Só emergiu como nome de instrumento a partir do século XII, segundo os registros que apuramos,
e os dois significados ainda convivem. Um cordofone com nome de flor, pra nós, então, “tá
tranquilo”... mas percebeu como buscamos a fundo os paralelos e cruzamentos de nomes?].
O que não estava tranquilo, e nosso principal problema, foram as posições contrárias de
Curt Sachs, tanto para machalat (do qual Sachs não apontou conclusão, mas desaconselhou
traduzir como “instrumento musical”), quanto para schalischim (do qual foi categórico em afirmar
que não seria instrumento musical). Respeitamos demais os apontamentos de Sachs (assim como
boa parte dos musicólogos ocidentais): ele talvez seja o musicólogo mais completo da História,
tendo mergulhado em línguas que outros sequer citam, como grego, hebraico, aramaico, etc.
Consultamos ótimos levantamentos deste autor de 1913 a 1940: perceba que é muito tempo
pesquisando, descobrindo, publicando! Merece todo respeito.
E nós o respeitamos muito, mas... Sachs era um ser humano: já tínhamos inclusive
encontrado brechas de análises dele a partir de originais em línguas latinas (ele, que era alemão).
Assim, "respeitando, mas desconfiando", checamos a análise sobre schalischim: Sachs afirmou
que o termo só teria aparecido uma vez na Bíblia hebraica (em Samuel 1, cap.18, v.6), com a grafia
salisim, termo que ele apontou que teria a ver com o número “três”, deixando para nós uma dica
importante... lembra que Oetinger também tinha apontado "três cordas, tons ou cantos"? Pois é...
Mas Sachs apontou não ter visto ocorrências do termo nos Salmos, só no livro de Samuel...
Uma vez mais confrontando com a Vulgata em latim, salisim teria sido traduzido lá como
sistri, assim como por Wolfgang Printz (1690, p.28), mas esse nome sistri já é nosso conhecido:
embora alguns confundam às vezes a nomenclatura por ter sido usada para instrumentos de
percussão hebreus e egípcios antigo (inclusive Sachs), não há dúvidas, por grande número de
registros analisados, que tenha se ressignificado depois para nome de cordofone e seria uma das
variações em latim a partir de kithara (grego), que gerou cithara (em latim), esta que se
ressignificou para nome de instrumentos com braço a partir do século IX; das então "novas
citharas" vieram cedra, cetra, citola, sitola, citra, cistro, sistro... E sim: daqueles instrumentos
teria sido gerada, bem depois, o nome da atual “família dos cistres”, de caixa arredondada
(bandolins, banjo, guitarra portuguesa). "Fechou" a ideia, para você também? Para nós, "lacrou":
sem dúvida se tratava de pequenos cordofones dedilhados.
Sachs aponta ter visto schoschannim (na grafia sosanim) nos Salmos 45 e 69 e nem fez
análises mais aprofundadas, mas indicou que significaria liles (“lírios”, em inglês, outro nome de
flor) e que teria sido de instrumento musical. Ou seja: para Sachs, só faltou ter observado que os
nomes tinham relações (e, como dito, a ele teria faltado também ter observado alguns salmos).
Neste raro caso, pela somatória geral concluímos serem mais consistentes os já citados
apontamentos de Oetinger, que até não poderia saber tanto sobre instrumentos musicais como
Sachs (alguém saberia?), mas teria sido professor de hebraico e especialista em Salmos. Somamos
que as machetes sobrevivem até hoje, e que este nome, para instrumento musical, surgiu na língua
portuguesa sem apontar ter vindo do latim, occitano ou catalão, nem é usado assim em espanhol,
italiano, francês (línguas também influenciadas pelo latim).
Entre os vários aspectos que analisamos até podermos apontar que o diminuitivo machete
teria evoluído a partir de machol e machalat (hebraicos), também vem o fato que a região chamada
"lusitânia" (assim como toda a península hispânica) sofreu invasão muçulmana por cerca de sete
séculos e até a Bíblia foi retraduzida para árabe / hebraico, à época... As línguas árabes
influenciaram palavras em toda a região, e portugueses são muito ligados aos textos bíblicos, além
de, como já dissemos, as "pequenas guitarras" terem caído em desuso pelos espanhóis, restando
aos portugueses continuar usando outros nomes (os portugueses não usariam guitarra para
cinturados, pois remeteria a espanhóis; só bem mais tarde o utilizariam, e para guitarras
portuguesas, de caixas arredondadas). Assim conseguimos amarrar as diversas pontas, e
acreditamos não seria por coincidência tudo convergir. Até o fato de ser difícil de descobrir, pois
carece de especialização e atenção às variações de nomes, estudo que não vimos ter sido feito tão
profundamente antes de nós: isto justifica o motivo de ter-se perdido no tempo as origens do nome.
E mais ainda: outros capítulos similares sobre nomes de instrumentos, na História dos cordofones,
também ajudam a dar segurança... Mas aí já são outras prosas!
Muito obrigado por ter lido até aqui... E vamos proseando...
“[...] deste modo fomos belamente até a residência do Caeté, onde o padre Gonçalo de Veras,
que também era vigário da vara para os brancos, nos agasalhou com toda a satisfação,
não faltando as danças dos moradores que, à boca da noite,
vieram com suas violas fazer festa a seu vigário-geral”.
[João Felipe Bettendorf, Crônica da Missão do Maranhão, 1690/1695]
três volumes do livro Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato
Grosso e Cuiabá 1783-1792. Aquelas “violas”, entretanto, teriam sido cordofones bem diferentes,
com corpo retangular e sete cordas, cada corda com sua própria haste, que pela classificação
Hornbostel & Sachs seria um 321.1 Bogenlauten (“alaúde arcado”). Alguns estudiosos apontam
para aquele tipo de instrumento o nome pluriarc ("múltiplos arcos", em latim), mas nos parece um
pouco fortuito um instrumento de origem africana com nome em latim... Enfim, aproveita-se mais
do registro o fato de ser mais um indicativo de que se chamava de “viola” a qualquer cordofone,
entre os séculos XV e XVIII (um costume antigo de portugueses). O livro também aponta que por
lá “cordas de violas” seriam feitas de intestinos (tripas) de macacos chamados “guariba”.
Mais um século passado e, em 1828, em Santarém (PA), referindo-se a indígenas chamados
tapuios, o fotógrafo francês Hercule Florence (1804-1879) teria afirmado que eles desejariam
pouca coisa da vida, entre elas, “uma viola”. Vimos no livro Viagem Fluvial do Tietê ao
Amazonas (1825-1829), em português, sendo um raro caso onde não teríamos conseguido a
versão original para checar, portanto, neste caso confiamos na tradução do Visconde de Taunay.
Alguns anos depois, em 1849, o explorador inglês Henry Walter Bates (1825-1892),
durante viagem pelo Estado do Pará (passando de barco pela região de Cametá) nos traz o registro
de um tocador e cantador por nome de João Mendez. No livro The Naturalist on the River
Amazonas também se observa a curiosa denominação wire guitar or viola (“guitarra de arame ou
viola”) que elimina qualquer possibilidade de ter sido um violão, apesar deste, àquela época, já ser
utilizado no Brasil.
Em 02 de setembro de 1868 saiu o artigo “O Correio Mercantil e o sr. Amaro Bezerra”, no
Jornal do Commercio (RJ), replicado sete anos depois no jornal A Provincia de São Paulo
(depois chamado "O Estadão"). No artigo, o apontamento de “violas e guitarras” que teriam sido
tocadas na região amazônica, segundo o Dr. José Maria de Albuquerque e Mello (?-?), que teria
sido “[...] juiz de direito, ex-chefe de polícia do Amazonas, ex-deputado geral”.
Já em 1876, segundo a edição que conseguimos acesso, o livro Os Selvagens teria sido
baseado em viagens feitas pela região amazônica, e o folclorista mineiro José Vieira Couto de
Magalhães (1837-1898) apontou “violas” como companheiras fiéis dos indígenas tapuios em
viagens de canoa, no Pará. Couto Magalhães indicou que aquelas “violas” seriam chamadas
guararápeva e que armariam com três cordas de tripa. O pesquisador paulista José Ramos
Tinhorão (1928-2021), no livro História Social da Música Popular Brasileira, criticou
severamente aquele apontamento de uso de violas por indígenas, que para ele seria impossível,
pois não haveria registros. Nós realmente observamos apenas mais um apontamento, feito pelo
botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que em 1818 (portanto, cerca de 60 anos
antes do apontamento de Couto de Magalhães), teria visto os instrumentos numa aldeia onde hoje
seria Nova Almeida (ES). Aqueles indígenas, então sudestinos, fabricariam guitares muito bem
feitas, segundo Saint-Hilaire, com madeira de pés de genipapo e também de outra madeira branca,
chamada tajibibuia (a mesma ainda utilizada nas Violas Brancas do litoral de São Paulo e do
Paraná). O livro é Voyage dans le district des diamans et sur le littoral du Brésil (“Viagem ao
território dos diamantes e ao litoral do Brasil”).
Ainda observamos que termo semelhante ao apontado por Couto de Magalhães teria sido
registrado antes, em 1867, no livro Glossaria linguarum Brasiliensium, do botânico alemão Carl
Martius (1794-1868): “[...] guara-peba: vióla i. e. [id est, ‘isto é’] arco chato (Uira-para),
Guitarre”. São, portanto, alguns raros registros de “violas” ligadas à indígenas, que Tinhorão
aponta não ter tido acesso.
Em 1883, observamos entre “violeiros” (fabricantes, revendedores ou ambas as coisas?) de
várias regiões do país citados no Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Imperio
do Brazil, organizado pelo tipógrafo alemão Eduard von Laemmert (1806-1880), constariam os
nomes de Francisco Alves dos Santos e Raymundo Ernesto Pereira de Souza, ambos de Belém do
Pará.
Já entre 1973 e 1978, em pesquisas de campo sobre Violas de Cocho convertidas pela Dra.
Julieta de Andrade no livro Cocho Mato-Grossense, um alaúde brasileiro há a citação, entre
outros exemplos de modelos de violas com número diferente de cordas: “[...] a viola do Carimbó
de Vigia, Pará, apresenta cinco cordas simples”. Infelizmente a pesquisadora não informou a fonte
das informações e também não foi observado na sua lista de referências nenhuma que possibilitasse
o rastreamento e conferência. Teria sido, se verdade, a última citação de violas na Região
Amazônica, pois, entre 2011 e 2013, a equipe que cuidava da identificação do Carimbó como bem
cultural candidato ao Registro nos Livro de Patrimônio Imaterial, em dossiê IPHAN apontou a
triste constatação de que violas (e rabecas, e pandeiros) “[...] já não mais seriam observados nas
formações” ([IPHAN], 2013, p.39).
Mesmo com a fama que o modelo Viola Caipira desenvolveu aproximadamente nos
últimos 50 anos, por motivações econômico-financeiras, em nossos monitoramentos percebemos
pouquíssimos registros de violas e/ou violeiros da Região Norte. Dois ou três, se tanto, é o que
podemos dizer: e mesmo assim, oriundos de outras regiões, tendo ido morar no Norte. Pelo menos,
violeiros que tocam por lá não estariam muito presentes hoje nas mídias e redes sociais virtuais.
O ponto é que algum modelo de viola teria existido por lá, por séculos, e teria desaparecido,
ao contrário do que aconteceu nas demais regiões brasileiras. Uma lástima, para quem se importa.
Não temos como atestar ainda as possíveis motivações do fenômeno, pelos registros
levantados, que são verdadeiras raridades em pesquisas (o tipo de raridade às quais mais nos
dedicamos). Naturalmente, há a distância física e contextos histórico-sociais que apontam alguns
outros aspectos culturais específicos da Região Norte, e não podemos deixar de observar que
existem poucos dados porque as pesquisas sobre violas dedilhadas têm, na histórica maioria das
vezes, o foco no modelo Viola Caipira: na verdade não só as do Norte, mas todos os demais
modelos são pouquíssimo (re)conhecidos. Infelizmente.
Um apontamento que podemos agregar é que da Região Norte (na antes chamada "Grão-
Pará e Maranhão") haveria o mais remoto registro de animosidade contra jesuítas, que culminaria
na expulsão e banimento dos padres. Em 1757, o português Francisco Xavier de Mendonça
Furtado (1701-1769) escreveu o Directorio que se deve observar nas povoaçoes dos Indios (às
vezes citado como “diretório dos índios” ou “diretório pombalino”), que foi aprovado e assinado
pelo seu irmão (o Marquês de Pombal) e pelo Rei, Dom José I, no ano seguinte, em 17 de agosto
de 1758. Entretanto, a ligação direta entre os padres e as “violas” ainda carece de mais
comprovações... seria só coincidência? Desconfiamos...
... Mas podemos afirmar que “violas” teriam existido pelo Norte, mesmo que, a princípio,
apenas “instrumentos chamados de viola” (que é o que os registros apontam ter acontecido em
Portugal e também no resto do Brasil, nos primeiros séculos). A verdadeira origem de nossas violas
dedilhadas teria sido exatamente a partir de um nome forte “viola”, mas “genérico”, que só bem
depois continuaria a ser adotado para instrumentos de verdade, distinguíveis, únicos (hoje
consolidados). Esta origem só nós temos divulgado, por termos pesquisado com muito afinco, e é
o que postulamos e contextualizamos cientificamente por nossos estudos ainda pouco conhecidos
e quase nada apoiados publicamente.
A motivação comercial e a preferência também afetiva em torno do modelo Viola Caipira
não são ilegais: longe disso, como sempre destacamos; mas a falta de conhecimento, citações e
apoios aos demais modelos comprovadamente prejudicam a sobrevivência deles e do valor
histórico que representam. Este sempre foi, inclusive, o principal argumento para nossa defesa
solitária do Reconhecimento oficial das violas como Patrimônio Imaterial do Brasil, desde 2015.
Nossa ação, ao descobrir e divulgar a contextualização científica de toda uma Família das Violas
Brasileiras é no sentido de alertar que alguns modelos (verdadeiros tesouros culturais brasileiros)
correm o risco de simplesmente desaparecer com os anos, como parece ter acontecido com as
violas da região Norte. Com os modelos, se vão os resquícios históricos dos quais eles são provas:
este é o tipo de prosa que sempre levantamos aqui, e são várias outras prosas...
Muito obrigado por ter lido até aqui... e vamos proseando...
[...] Por mais que rebusque o etymo de “caipira”, nada tenho deduzido com firmeza.
Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos no tupy-guarany “capiabiguara”.
Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste caso temos a raiz “Caí”
que quer dizer: “Gesto do macaco occultando o rosto”, “Capípiara”, quer dizer o que é do mato.
“Capiâ”, de dentro do mato: faz lembrar o “capiáo”, mineiro.
“Caapi” – “trabalhar na terra, lavrar a terra” – “Caapiára”, lavrador.
[Cornélio Pires, Conversas ao pé do fogo, 1921]
poderiam pescar regionalismos de verdade nas páginas que se seguem” (páginas, no caso, de outro
livro dele, chamado As estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho, de 1924).
[Como já deve ter notado, apontamos os termos exatamente como foram lidos, mas
indicamos em itálico grafias diferentes do português formal, para que se perceba que estamos
atentos. O procedimento é comum em textos científicos, chamado sic ("assim, desta forma", em
latim)].
Cornélio usou o termo “lexicógrafo”, que na verdade significa “organizador de conjuntos
de palavras em publicações como dicionários”; porém, como as línguas indígenas são antigas e o
objetivo seria possível origem do termo “caipira”, o mais correto seria levantar registros de época,
pois nunca se deve analisar o passado com base no que é conhecido (dito, escrito) no presente. A
Ciência mais correta, portanto, seria a etimologia e, curiosa e acertadamente, Pires até utilizou no
início do trecho destacado na abertura o termo etymo, que em grego e em latim significaria algo
como “verdadeiro, original”.
Estes pequenos equívocos (ou confusões com os significados de palavras) teriam sido
graves se cometidos por um estudioso, mas é sempre bom lembrar: Cornélio Pires nunca teria sido
nada sequer próximo de um cientista ou pesquisador; inclusive, jamais teria se autodesignado
assim, além de deixar o fato bem claro. Há muitos que gostariam, por conveniência, que ele tivesse
sido mesmo um pesquisador e, de certa forma endeusando-o, até “forçam a barra”, mas o fato é
que as publicações dele eram artísticas. Cornélio era tão consciente da liberdade com a qual podia
agir que, no trecho citado por último, de 1924, afirmou que o que narrava seriam “casos e
mentiras”. Genial vendedor, agitador cultural incansável, visionário em várias coisas... Mas
estudioso de verdade, pesquisador, Cornélio nunca teria sido: basta observar com atenção,
honestidade e imparcialidade os registros.
Seguindo, então, na observação da série de pequenos equívocos (ou seriam “sutilezas
geniais”?), no texto destacado, logo após afirmar “não ter deduzido nada com clareza”, o autor
listou uma série de termos que, conforme sublinhamos, afirmou: “encontramos no tupy-guarany”...
Chamou-nos muito a atenção esta última afirmação: "encontramos" onde? Quais as fontes? Quais
dicionários, ou quais conhecedores de idiomas indígenas Cornélio Pires teria consultado? Após
assegurarmos que ele, na verdade, não teria consultado nenhum fonte, concluímos que teriam sido
“chutes” (em uma gíria moderna), porque quem não teria “deduzido nada com clareza”, mas ainda
assim tentou apontar significados, estaria, confessadamente, “chutando” ...
Cornélio não precisava citar fontes de referência, nem nunca teria se dado a tal tipo de
trabalho, pois, como enfatizamos, suas publicações eram artísticas, livres, “não-científicas” ... Por
isso, inclusive, chama ainda mais a atenção o fato de dezenas de publicações, até os dias atuais,
citarem apontamentos de Cornélio como se fossem verdade científica... É no mínimo estranho este
tipo de comportamento, principalmente por grandes estudiosos...
A própria interpretação de existência de uma “cultura caipira ancestral”, defendida com
afinco por Cornélio, é largamente apontada como se fosse verdade científica, e já há décadas, por
estudiosos e outros tipos de pessoas sérias... Tivemos a curiosidade até de perguntar ao “oráculo
moderno”, o senhor Google: “Quais os maiores sociólogos brasileiros de todos os tempos?” e a
resposta aponta que todos, sem exceção, confirmariam (aparentemente, sem discutir sequer uma
linha!) a interpretação lançada por Cornélio Pires. Vários outros estudiosos (antropólogos,
folcloristas e até musicólogos) também fazem o mesmo.
Ora... Se é apoiado por tantas pessoas sérias, então devemos facilmente confirmar por
registros de época tudo o que disse Cornélio, certo?
Não, não é assim... Aliás, muito longe disso! Por este motivo chamamos o caipirismo de
“entendimento coletivo”: é um entendimento secundado por muitos, mas que, historicamente, não
se comprova ter realmente existido antes de Cornélio. Pior: vários registros e contextos histórico-
sociais apontam diferente... É estranho, muito estranho...
Chegamos a identificar que a mais remota (e muitíssimo citada) referência de certo “aval
científico” teria vindo do sociólogo carioca Antônio Cândido, no livro Os Parceiros do Rio
Bonito, publicado em 1964. O livro teria sido fruto de uma tese de doutoramento, depositada em
1954, embora entre dezenas de estudos que conferimos ninguém referencia a tal tese (da qual
também não conseguimos acesso): cita-se tão somente o livro. Um livro onde, curiosamente, sobre
“cultura e região caipira” só se observam citações curtas, de pouquíssimas linhas, como se fossem
conhecimentos de “notório saber” (ou seja, que nem precisariam ser detalhados). Não há
desenvolvimentos científicos e, às vezes, nem citação clara de autores e/ou fontes sobre os dois
conceitos (Cândido inclusive omitiu por décadas o autor no qual baseou o conceito "paulistânia")...
Isso seria muito "estranho" para uma tese de doutoramento (para não dizer inaceitável), e num
livro correspondente entende-se, em boa-fé, que aqueles apontamentos teriam sido aprovados
antes por revisores sérios e de comprovada competência, professores-doutores de uma grande
universidade. Sinceramente, não é também muito estranho?
[Explicamos esta última "estranheza" nossa: “teses” são muito utilizadas em várias áreas
do Conhecimento. O procedimento normatizado (e muito digno, na nossa opinião) seria: identificar
a problemática, levantar fontes para embasamento e então desenvolver cientificamente as
justificativas da hipótese apresentada. Se for feito a partir de algum conceito já estudado antes, o
correto é descrever pelo menos de onde a ideia original teria vindo, ou seja, a tal da "fonte"
(desenvolvimentos, estudo, autor, ano, etc.). Entendemos que o caipirismo seria difícil de
comprovar cientificamente, posto não ser originalmente embasado em estudos... Mas... nem tentar
explicar nada, e ainda assim ser tão replicado? Não é estranho?].
Se aqui, nos Brevis Articulus (textos que até poderiam ser totalmente livres), apontamos e
explicamos tudo, é por questão de retidão, de não querer enganar ninguém (quem duvidar, basta
seguir as fontes e concluir por si mesmo). Ou seja, entende-se que um posicionamento ético,
honesto e isento precisa estar acima até do que determinam regras artísticas, como as de textos
escritos; por isso espera-se que “doutores” e demais estudiosos no mínimo expliquem e apontem
os dados que atestam que o caipirismo teria existido antes de Cornélio Pires. E eles sabem que
deveriam fazer, mas não fazem... é estranho ou não?
Enfim... Por tantas informações e procedimentos “no mínimo estranhos”, e porque o termo
“caipira” se consolidou, a partir da década de 1970, como sobrenome do principal modelo de
nossas violas, resolvemos tomar de empreitada o levantamento e checagem de fontes que Cornélio
Pires poderia ter consultado. Lembrando que instrumentos devem ser estudados sob bases
Musicológicas (não teorias sociológicas), no nosso caso agregamos à Musicologia (base e
fundamento) fenômenos circundantes aos instrumentos segundo a História, Sociologia,
Linguística e outras Ciências, com destaque aos nomes, porque observamos que o
desenvolvimento destes teriam sido pouco estudados na musicologia e na linguística ocidental.
Com a metodologia aplicada a nomes de instrumentos, partimos para tentar descobrir as origens
do nome "caipira".
Avaliamos, então, os termos destacados na abertura, uma vez que em nenhum dicionário
sério de tupi-guarani eles constam como Cornélio os citou (inclusive os vários dicionários hoje
disponíveis pela internet). Não observamos ninguém que tenha apontado mais este outro fato
“estranho”, um grande mistério com o qual, entretanto, tantos defensores do caipirismo não
parecem se importar (ou, talvez, sequer teriam percebido?). Ninguém se manifesta, nem depois
que começamos a apontar, comprovar e denunciar publicamente estas estranhezas. O assunto
parece "tabu" ou “dogma”: um mistério! Mais uma vez, é est... (nem precisa completar, né?...).
Bom... Mistérios nós gostamos bastante de pesquisar: são nossos preferidos, pois
costumam envolver tesouros perdidos! Seguindo a metodologia, levantamos considerável lista de
fontes que teriam sido publicadas antes e que, portanto, Cornélio poderia ter consultado: de relatos
de quem conviveu com indígenas, passando por estudos aprofundados sobre aquelas línguas e até
alguns dicionários. Além de publicações em português, conseguimos algumas com paralelos em
latim, espanhol e outras línguas europeias, e até um livro inteiro que teria sido traduzido para tupi-
guarani, até chegarmos ao Dialeto Caipira, publicado por Amadeu Amaral (primo de Cornélio
Pires), em 1920. Curiosamente, parece que as opiniões dos dois primos não se afinavam
plenamente, no início... Mas depois chegaram a ser sócios numa editora. Hoje em dia, estudos de
Amadeu Amaral são constantemente citados em argumentos a favor do caipirismo de Cornélio.
Checamos palavra por palavra, comparando ao que apontou Cornélio, cerca de duas
dezenas de fontes, de desde o século XVI, a saber:
Do Principio e Origem dos Indios do Brazil (Fernão Cardim, 1584); Arte da Gramatica
da Lingoa mais usada no Brazil (José de Anchieta, 1595); Historia Naturalis Brasiliae
(Guilherme Piso, 1648); Arte de Grammatica da Lingua Brasilica (Luis Figueira, 1687); Arte
de la Lengua Guarani (Antonio Ruiz de Montoya, 1724); Tesouro descoberto no Rio Amazonas
(João Daniel, 1975 [1757-1776]); Diccionario Portuguez, e Brasiliano (atribuído a José Mariano
da Conceição Veloso, 1795); Diccionario da Língua Portugueza (Antônio de Moraes Silva,
1831); Voyage dans le district des Diamans et sur le littoral du Brésil (Auguste de Saint-Hilaire,
1833); Novo Diccionário Critico e Etymológico da Língua Portugueza (Francisco Solano
Constâncio, 1836 e 1858); Diccionario da Lingua Tupy chamada Lingua Geral (Antônio
Gonçalves Dias, 1858); Chronica da Companhia de Jesus (Simão de Vasconcellos, 1865);
Glossaria Linguarum Brasiliensiun (Carl Martius, 1867); O Selvagem (José Vieira Couto de
Magalhães, 1876); História Geral do Brazil (Varnhagen, 1877) “Manuscripto Guarani” e
“Vocabulário” (artigos de Baptista Caetano de Almeida Nogueira, 1879); Voyage a Rio-Grande
do Sul (Brésil) (Auguste Saint-Hilaire, 1887); Diccionario de vocabulos brasileiros (Henrique
Beaurepaire-Rohan, 1889); O Dialeto Caipira (Amadeu Amaral, 1920).
Consideramos ainda, como cruzamento investigativo, o Vocabulário Elementar da
Língua Geral Brasílica, de José Joaquim Machado de Oliveira, publicado já em 1936, mas que,
na verdade, é também um apanhado de citações como as encontradas nas fontes acima listadas.
Apesar de nossas atentas e dedicadas buscas, o máximo que encontramos foram
aproximações. Só que elas, no conjunto, nos dão uma boa noção do que Cornélio teria feito: confira
abaixo, onde indicações entre parênteses significam “pode ser conferido em...”, ou seja, aí estão
as trilhas ("fontes"); duvidou de nós, basta conferir (e se precisar, é só pedir que até enviamos a
fonte em PDF, porque é assim que gente séria deve fazer).
- “aldeão” seria taiguar ou tabaiguá, segundo Almeira Nogueira (1879, p.475); biguá seria
“ave palmípede”, segundo Beaurepaire-Rohan (1889, p.39), ambas citações únicas, enquanto
guara foi largamente indicado para animais como lobos, e ainda um peixe e uma ave (Piso, 1648,
p.160:204). Não dá nem para imaginar de onde teria vindo o capiabiguara com o significado de
“aldeão”, apontado por Cornélio: essa, portanto, ele chutou longe...
- caí / cái foi realmente citado, mas secundária e pontualmente, como nome de macaco
(assim como cairara e caíra) e também como adjetivo (envergonhado, medroso), mas seu
principal significado, fartamente apontado, remeteria a fogo e derivados segundo Cardim (1881
[1584], p.80-86); Veloso (1795, p.66); Martius (1867, p.37); Almeida Nogueira (1879, p.64). O
que se atesta é que se caí fosse mesmo “raiz etimológica”, como apontado, seria relativa a fogo,
queimada ou similar e Cornélio, por algum motivo, apontou um significado pouquíssimo
utilizado... Talvez fizesse sentido um nome de algum tipo de macaco de pelo avermelhado como
fogo, mas, da forma que Cornélio apontou, é distorção. Foi, portanto, mais ou menos como ter
várias bolas de futebol perfeitas à disposição, e escolher, por algum motivo, uma bola furada para
chutar...
- caapi, caa-apiá e/ou capiá seria “herva” ou “capim” segundo Piso (1648, p.52); Saint-
Hilaire (1833, p.361); Martius (1867, p.388); ou ainda “herva forte, malvaisco” segundo Cardim
(1925, p.131), esta última que entretanto seria caapeba para Piso (1648, p.43). Os termos
encontrados teriam sido todos substantivos, e observou-se que as línguas apontam formatos
diferentes para substantivos e verbos, enquanto Cornélio apontou caapi como verbo (arar a terra).
Já o adjunto adverbial capiã, apontado por Cornélio como “de dentro do mato”, pode-se dizer que
se aproxima um pouco de caapor (“o que tem no mato”) mas passa longe de caayguar (“o que é
do mato”), segundo Cardim (1584, p.81) e Almeida Nogueira (1879, p.63). O “capiau” de Cornélio
até pode ter tido alguma ligação, originalmente, mas conclui-se que, além das diferenças de
algumas letras, há nas alegações diferenças nas funções sintáticas, ou seja: “chutou perto”, mas
errou...
- caa py'r, caa-pyir e caa-piir poderiam ser “limpar o mato, sachar, capinar” segundo
Montoya (1724, p.101), Veloso (1795, p.9:49:70), Dias (1858, p.35) e Almeida Nogueira (1879,
p.63); já Martius (1867, p.37) especificou caapyim-pyir, que faz mais sentido, pois o caa ("mato")
seria "mata fechada, selva", da qual não faria sentido carpir, uma ação mais adequada ao caapyim
("capim" ou "mato menos denso"). Beaurepaire-Rohan (1889, p.39) apontou que carpir também
poderia ter vindo do latim carpere. Já segundo Saint-Hilaire (1887, p.249), caipi seria ainda um
“casaco”. Alguns autores indicaram o mesmo significado, e outros, não: isso caracteriza que o
significado não era o utilizado na maioria das vezes, concreta e consistentemente, como parece
que Cornélio quis dar a entender... Por fim, ainda se discute se o significado de "limpar o mato",
para os indígenas, teria exatamente o mesmo sentido que o moderno capinar do homem branco...
Mas este foi, sem dúvida, o melhor chute de Cornélio!
- “lavrador” (enquanto “capinador”, ou unkrautjater, em alemão) seria melhor apontado
como caapim-pyrçaba segundo Carl Martius (1867, p.37), enquanto Veloso (1795, p.70) teria
apontado caa pyrcara; talvez, mas sem que tenha sido observado nas fontes, poderia ser “caapiir-
piára” por comparação a tupipiára (“o [sagrado] que mora em casa”) e i-pipiára (“o que é
aquático”), estes dois últimos segundo apenas Almeida Nogueira (1879, p.546). Cornélio cravou
capipiára como “o que é do mato” e caapiara como “lavrador”, em conjecturas de montagem de
palavras que até podem fazer sentido no pensar do homem branco, falante de português, porém
que apontam não fazerem qualquer sentido em falares indígenas. Curiosamente, naquele então
“chute duplo”, Cornélio apontou que haveria diferenças de significado entre dois termos com
poucas letras diferentes, o que, entretanto, ele não levaria em consideração várias vezes, como
outras palavras com caa / cai. Ou seja: normalmente, para ele poucas letras diferentes não
significariam tanto, a não ser quando julgasse conveniente chutar...
Atesta-se, portanto, que teria estado longe uma possível ligação de “caipira” com origem
direta ao tupi-guarani. E os exercícios conjecturais “chutísticos” de Cornélio, agora provamos,
teriam sido ainda mais longe da meta...
Teriam sido os termos recolhidos por Cornélio diretamente com pessoas? Amadeu Amaral
afirmou ter feito assim, para escrever seu já citado Dialeto Caipira e muitos, até hoje, entendem
que aquele processo tem grande valor, por envolver uma conveniente “sabedoria popular”. É bom
pensarmos bem nisso, pois existem, historicamente, armadilhas de rejeição ao Conhecimento, ao
estudo, à leitura (por darem mais trabalho), por alguns que não querem que as pessoas leiam e
reflitam por si mesmas para assim manipular mais facilmente os entendimentos.
Sim: o que “antigos” em geral dizem tem valor, mas precisa ser analisado com importantes
contextualizações: é preciso, de um número significativo de afirmações equivalentes ou similares,
considerar das pessoas entrevistadas as idades, onde e quando teriam vivido, quais línguas
falavam, entre outras características. É um processo válido e até científico, mas apenas para o
recorte de tempo, região e demais características de um certo conjunto / grupo de pessoas: a visão
de uma ou outra pessoa, isolada, vale muito pouco. Para falar de significados de termos indígenas,
saem na frente aqueles que teriam convivido com eles, mais ainda os que aprenderam as línguas,
e estudos fundamentados (como algumas das fontes que investigamos). Cornélio Pires não apontou
nada disso, nem precisava; ao contrário, indicou claramente que falava de sua própria cabeça,
opiniões sem certeza de quem não teria estudado o assunto, mas que demonstrou ter interesse em
apontar significados (interesses que se observam teriam sido pessoais, comerciais).
Podemos afirmar que as intenções do empresário “deram certo”, pois centenas de pessoas,
inclusive grandes pesquisadores, apontam acreditar (talvez por alguma razão mágica?) não só
naqueles significados, mas em tudo que Cornélio defendeu.
A verdade é que qualquer um pode dar “chutes” quanto a origens de palavras, com base
em similaridades e boa lógica, principalmente pessoas inteligentes como Cornélio (infelizmente
acontece muito, até os dias atuais). E estas pessoas acreditam que podem estar certas, assim como
outras que concordarem com seus "chutes".
Nunca é demais lembrar: Cornélio defendeu suas interpretações em publicações artísticas,
não-científicas (cheias de anedotas, inclusive). As interpretações agradaram a muitos, ele vendeu
bem e quem o secunda na crença do caipirismo também faz suas vendas até hoje em dia: está tudo
certo, não há qualquer ilegalidade em querer vender, nem em crer no que se quiser. Conjecturar
sem estudar nada e sem apresentar dados de época talvez possa ser considerado “falsa ideologia”,
mas, sobretudo em publicações artísticas / humorísticas como as de Cornélio, a sociedade aceita
sem problema (na verdade, muitos gostam e consomem os "casos e mentiras", que fazem parte do
fazer artístico)... Então, está tudo certo, nada de estranho, não é?
Agora... Por que Cornélio Pires teria interesse em que “caipira” fosse termo original
indígena? E por que tantos estudiosos aceitam até hoje aqueles entendimentos, até como se fosse
fundamento científico atestado, indiscutível, quando sempre houve dados que os descomprovam?
Será possível que tantas pessoas tão inteligentes (a começar do próprio Pires) não teriam percebido
que o entendimento é alinhado a conceitos como "cultura ancestral a ser preservada", e que isso
ajuda nas vendas?
O que nem Cornélio, nem Amadeu Amaral e parece que ninguém depois teria observado
(ou teria tido coragem de divulgar) é que “caipira” (e também “caipora”) já existiam desde pelo
menos 1822 (mais de oitenta anos antes de Cornélio começar a implantar sua interpretação
diferente) e nunca teriam sido termos indígenas originais: seriam empréstimos, adaptações,
alterações com a intenção de apelidar, pejorativa e politicamente, brasileiros e outros defensores
de D. João VI (e/ou da monarquia plena e tradicional). Também por isso, até hoje, ninguém
conseguiu atestá-los como termos da língua tupi-guarani, embora vários ainda gostem, como
Cornélio gostava, de “chutarem” como se fossem. É muito estranho, mas há certa coerência de
interesses desde o início, em toda as estranhezas, percebeu?
Cornélio, vendedor inteligentíssimo (até genial, na nossa insignificante opinião), percebeu
a força do termo "caipira" (quer soubesse ou não dos significados que já existiam), se abraçou
fervorosamente a ele e acabou, após cerca de 35 anos de aplicação conveniente, promovendo uma
distorção para um novo significado, que se mostra útil para alavancar vendas e agradar afetividades
até os dias atuais. Acreditando na suposta origem ancestral, ou “de raiz”, alavancou defesa contra
preconceitos e até alguma inclusão social de um povo cuja maioria não tem hábito de leitura, de
checagem de informações (principalmente se elas, à princípio, agradam e são convenientes, pra
quê atestar, não é mesmo?). Estes, então embasados em uma suposta “sabedoria popular
suficiente” (defendida por muitos, até hoje) não precisariam dar tanto valor à leitura, à reflexão, à
checagem de dados históricos; já os que tem competência e dos quais se espera que chequem os
dados, se o fazem, acham conveniente não divulgar a verdade: é uma genial estratégia comercial,
autossustentável!
A genialidade também teria sido conveniente ao candidato a deputado por São Paulo (Dr.
Antônio Cândido); e depois dele, tantos outros, sabe-se lá porquê (mas desconfia-se dos reais
motivos). Pela interpretação genial inventada por Cornélio, bons motivos não faltariam: defesa de
uma “cultura ancestral” (que paradoxalmente correria risco de extinção, mas quem se importa com
"pequenas" incoerências como esta, não é?); inclusão social dos mais simples (e incentivo também
que continuem sem ler nem questionar muito as coisas); combate a preconceitos; valorização dos
antigos... E, claro: alavancar vendas: dos melhores motivos para defender a causa. O melhor de
tudo é que são ações permitidas pelas leis.
Diferentemente do entendimento coletivo, há registros suficientes e até estudos sobre o
termo “caipira” feitos por pesquisadores sérios e competentes: estes últimos também não seriam
“etimólogos”, mas seriam experimentados em várias línguas e teriam convivido com indígenas,
inclusive aprendendo as línguas. Já explicitamos isso no livro A Chave do Baú e até em um Brevis
Articulus específico, portanto, são outras prosas...
Muito obrigado por ter lido até aqui - e vamos proseando...
1960”, defendido pelo pesquisador. Já atestamos por registros que, na verdade, o nome “viola
caipira” ainda não estaria consolidado àquela época (as utilizadas em Disparada eram chamadas
apenas "violas"): ao contrário, desde pelo menos 1959 até meados da década de 1970 haveria uma
dúvida pública sobre o melhor nome, entre “viola brasileira” e “viola caipira”. Detalhamos
inclusive as citações ao termo em nossa monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil (2021).
Corrêa, apesar do equívoco histórico a respeito do nome "viola caipira", percebeu bem dois
aspectos importantes: primeiro, o envolvimento de Vandré e do Trio Novo (Théo de Barros, Airto
Moreira e Heraldo do Monte, que estiveram juntos desde a criação de Disparada), com a
multinacional Rhodia (Companhia Química Rhodia Brasileira), que à época promovia uma grande
tournée nacional chamada Mulher, este Super-Homem. Corrêa também discorreu que Duprat,
(já em 1970), estaria às voltas com a divulgação do disco Nhô Look e que, bem mais que um
simples lançamento, apontou uma intenção maior, de “dar nova roupagem”, ou “um novo olhar,
em todos os sentidos", para a música “caipira” que já existia, de estilo geral simples, rústico. Desde
o título daquele disco, inclusive, se observa: “nhô” remete ao falar interiorano, equivale a "senhor";
e “look”, em inglês, usado no mundo da moda até os dias atuais, significa “o olhar” (no sentido de
estar bem vestido, bem arrumado aos olhares das outras pessoas).
Dois aspectos nos levaram a destacar o trecho da abertura deste texto: no princípio, tanto o
estilo “mais antigo” quanto o então “mais moderno” (a nova proposta de olhar) seriam chamados
de “música sertaneja”; e, embora Duprat tivesse bom conhecimento de organologia (ciência que
trata da classificação e descrição de instrumentos musicais), por algum motivo teria apontado
instrumentos bem diferentes (violas, violões, violões 12 cordas, guitarras) num mesmo contexto,
como se não fizesse diferença. Por que Duprat distorceria os fatos?
A intenção de Duprat aponta ter sido claramente comercial: a música caipira (alavancada
de 1910 a 1945 com muito labor pelo visionário empresário artístico Cornélio Pires), ainda seria,
nas décadas de 1960 / 1970, significativa em termos de vendas (de shows, palestras, livros, discos,
etc.). E nenhum sucesso de vendas passa despercebido de potenciais concorrentes...
O que teria passado despercebido, por pesquisadores, é que não teria sido iniciativa
individual de Duprat uma “repaginação estética” da música caipira visando agradar a um público
maior: por trás do disco e do “movimento Nhô Look” estaria a mesma multinacional Rhodia, como
alguns anos antes (à época de Disparada).
Cabe uma explicação: a empresa química, além de cosméticos, lançou no mercado
brasileiro tecidos com materiais sintéticos como o nylon e o poliester, por isso o investimento em
eventos ligados à moda; roupas e acessórios (“looks”), cosméticos e outras peças eram produtos
feitos pela Rhodia. Ela promovia diversos eventos ligados à música pelo atrativo destes de público,
às vezes junto com os desfiles, como festivais, tournées e outros. É relativamente fácil entender as
ações de marketing pelo próprio site oficial da Rhodia, porém, lá não constam em detalhes a
tournée de 1966 (com Vandré e o Trio Novo) nem a de 1970 (com Duprat). Uma significativa
característica das duas tournées é que haveria apresentações de duplas caipiras (ou “sertanejas”,
como ainda eram chamadas) junto a outras músicas também utilizando violas nas formações, mas
em outras “roupagens”, ou seja, outros ritmos e interpretações mais sofisticadas. Estas informações
colhemos de diversas fontes como o livro A Era dos Festivais, de Zuza Homem de Mello (que
viveu e trabalhou com música na época), entre outras. Acrescentamos ainda, e em destaque por
serem mais recentes (portanto, abrangendo outras fontes, mais antigas, e com visões que partem
de várias outras regiões do país): a dissertação Música Caipira e Música Sertaneja, depositada
no Rio de Janeiro em 2005 por Elizete Santos e o artigo Da Cultura Popular ao Erudito,
publicado na Bahia em 2017 por Lucas Schafhauser e Ângela Fanini.
Fato é que Disparada foi um grande sucesso, ao qual o conhecido envolvimento político
histórico de Vandré só veio a colaborar e, até hoje, faz parte dos repertórios de violeiros, adeptos
da MPB em geral e, naturalmente, da música nordestina, o que efetivamente a canção é, embora
até seus autores a tenham citado como uma espécie de “moda de viola que não deu certo”. O título
original, inclusive, teria sido Moda para Viola e Laço, que indica que falar de violas, à época,
seria interessante comercialmente. Disparada, já com uma “nova roupagem” de uso de violas e
seguindo uma trilha de sucesso comercial da música nordestina no sudeste (que passa, por
exemplo, por Luiz Gonzaga), “bombou” (como se diria hoje)... E isso também não passaria
despercebido aos concorrentes, ao mercado.
[Sobre origem e entendimentos distorcidos sobre modas-de-violas (que Disparada não
passa nem perto de ser), recomendamos, como sempre, lerem o livro A Chave do Baú ou o Brevis
Articulus que fizemos, sendo que, podendo comprar o livro, melhor, pois ajuda a manter os
aprofundamentos que fazemos aqui de graça].
Sempre recorremos a registros de época e a contextos histórico-sociais que apontem
reflexos em instrumentos musicais, por questão de fidelidade metodológica e de honestidade,
clareza, embasamento científico. Quanto a contextos, o que a virada para a década de 1970 aponta
é que fatores mundiais já vinham apontando mudanças na Música Ocidental desde o fim da
segunda Guerra Mundial (1945). Na década de 1960, os Beatles estavam em plena evidência, assim
como nos EUA o movimento hippie e o rock, todos com guitarras elétricas, como no Festival
Woodstock (1969). No Brasil, teria sido época de ditadura ou “governo militar”, um período
politicamente conturbado (que na verdade duraria até 1985); inclusive, em 1967 já tinha ocorrido
por aqui a “Passeata contra as Guitarras”. Após o movimento Jovem Guarda, seguiram-se outros
nos quais guitarras estariam em destaque, como o “Iê-iê-iê” e o Tropicalismo, sendo que neste
último movimento já teria havido participação ativa do maestro Rogério Duprat, daí seu nome
surgir para a implantação da ideia de um “novo sertanejo”, que vendesse bem também para as
classes média e alta. Vender sempre teria sido a principal motivação, e não era ilegal (além de
continuar não sendo).
A empreitada com Duprat não teria tido, aparentemente, o sucesso pretendido, mas logo
em seguida (a partir de 1972), uma dupla que anteriormente teria sido “caipira” despontaria com
várias características do novo formato: Léo Canhoto & Robertinho teriam iniciado a migração das
formações de palco para “guitarras, baixo e bateria” (como os Beatles e tantos mais que os
seguiram), abdicando da antiga formação com violas e violões. No novo estilo, várias
características de movimentos anteriores (Jovem Guarda, Tropicalismo, Iê-iê-iê), como o
romantismo das letras, além de outras aproximações com a cultura estadunidense: roupas e cabelos
compridos como os hippies e até esquetes realizadas durante os shows (similares a cenas de filmes
sobre o Velho Oeste estadunidense, inclusive com sons de tiros).
O sucesso teria sido imediato, com outras duplas logo aderindo (como Milionário & Zé
Rico, que até no visual eram muito parecidos). Outros estrangeirismos foram sendo integrados,
como influências da música mexicana e sul-americana, e assim surgiu o estilo de maior retorno
comercial no Brasil, o hoje chamado “sertanejo universitário”.
Musicologicamente, a presença ou não de violas nas formações diferencia claramente os
dois estilos, entre outras diferenças que normalmente são mais citadas, como as temáticas das
letras. Claramente se observa que uma comoção social de grande impacto mundial aconteceu um
pouco antes (as chamadas “Grandes Guerras”, 1918 e 1945), e que instrumentos musicais
populares teriam reagido (como observamos ter sempre acontecido em toda a História Ocidental
dos cordofones, a que nos dedicamos a estudar a fundo). A principal reação foi a ascensão das
guitarras elétricas, que no caso do Brasil teve reflexo na ascensão de preferência por elas, em
substituição a violas e violões.
De similar nos dois estilos, praticamente só resistiria a predominância do canto duetado em
terças, que em outro Brevis Articulus também já detalhamos: a técnica teria registros pelo menos
desde o século XII, na península britânica, tendo chegado até Portugal da influência celta e da
atuação do Trovadorismo medieval ibérico (em si, este último, outro fator histórico-social de
grande impacto), e de Portugal chegou até aqui, Não: as modas-de-viola e os duetos terçados
paralelos não são originalmente brasileiros, sequer portugueses.
Alguns autores que aparentemente se arriscam a escrever sobre música sem nunca terem
tocado nada (nem estudado, nem procurado ajuda de quem conhece melhor o assunto), querem
inferir que o estilo chamado caipira teria “evoluído” para o sertanejo universitário; ou que seriam
a mesma coisa, ou ainda que seriam duas pequenas variações de um mesmo estilo. Seriam
equívocos lamentáveis ou, como Duprat fez, "esquecer diferenças" por interesses comerciais?
Difícil provar o que realmente seja, só que, para quem estuda Música e História a sério, o
acontecido de verdade é claro, e atestável.
Já outros autores tentam inferir que só o sertanejo universitário teria cunho comercial, e
que o caipirismo seria “puro”, natural, cultural... "esquecendo-se" que, na verdade, a interpretação
de uma suposta “cultura caipira ancestral” não tem registro anterior a Cornélio Pires (ao contrário,
o termo “caipira” tem registros de uso com outros significados, e mesmo assim só desde o século
XIX, com evidência de nunca ter sido original indígena). “Esquecem-se” também que Cornélio
foi um estupendo vendedor, e que a ele se devem as principais escolhas do que seria “caipira” ou
não, no início (afinal, veio dele a origem da nova interpretação do que seria "caipira").
O caipirismo é, na verdade, um entendimento coletivo conveniente: sem comprovação
histórica, mas com ótima resposta comercial, amparado em apelos sentimentais (inclusão social,
religiosidade, ego e outros) de vários aficionados. Uma prova do aspecto comercial dominante
também no estilo caipira é o ritmo “pagode de viola”, criado só em 1959 e que, graças aos
investimentos da gravadora (que contava com o grande artista Tião Carreiro), hoje se alinha entre
os principais “ritmos caipiras”... Ora.. o caipirismo não seria ancestral? Como um ritmo inventado
tão depois se tornou o mais celebrado? E por que outros novos ritmos não apareceram?
As respostas podem ser observadas na sequência de alguns fatos: o “pagode de viola” (um
“novo toque de viola”), teria surgido em tempo de resposta comercial a um “novo toque de violão”
que acabara de ser lançado, a chamada Bossa Nova... mas centenas de matérias de jornais apontam
que, à época (1959), as violas ainda não eram chamadas contundentemente de “violas caipiras”, e
as gravadoras não usavam este nome nas divulgações. Isso só veio a acontecer, e com muita ênfase,
a partir de meados da década de 1970, ou seja: após a ascensão de Léo Canhoto & Robertinho e
suas guitarras. Só após o sucesso do “novo sertanejo” as ações de concorrência comercial se
voltariam para a viola “caipira” (com ênfase neste sobrenome, aproveitando o mesmo sucesso
comercial anterior de Cornélio Pires, também inspirador dos concorrentes em ascensão). Já
abordamos isso mais em detalhes em outro Brevis Articulus aqui, chamado “Como um modelo se
tornou viola caipira”.
Não ficando nem em cima, nem em nenhum dos lados comerciais do “muro”, afirmamos:
tanto o sertanejo “universitário” quando o sertanejo “dito raiz”, se fossem “culturas” em algum
possível entendimento, seriam culturas inventadas e divulgadas por interesses comerciais, ou seja,
a chamada "indústria da cultura" ou "cultura de mercado". Repetimos: nunca foram ilegais, mas
nunca foram "culturas" surgidas naturalmente, muito menos ancestrais (fatos, registros e contextos
apontam as épocas claramente). São ações toleradas pelas leis, que acontecem há tempos pelo
mundo capitalista (o que, cientificamente, também fazem parte dos contextos históricos, junto a
outros comportamentos sociais). O impacto social do estilo sertanejo universitário é atestável até
os dias atuais, por ser ainda o estilo mais rentável no Brasil. E que venham (mais) ameaças e
rejeições por afirmarmos e comprovarmos isso, tudo bem: todos temos que morrer um dia...
Após o surgimento do lucrativo estilo "sertanejo universitário", o investimento em favor
do “pagode de viola” (surgido em concorrência ou reflexo da Bossa Nova) teve renovado e
comprovado contexto a partir de 1976 com o início da utilização do nome “viola caipira” em discos
e músicas de Tião Carreiro (LP É isso que o povo quer): isto foi fator preponderante para a
consolidação daquele nome composto para o principal modelo da Família das Violas Brasileiras,
postulação científica nossa... mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
e valorização das violas; ambos comprometidos e apaixonados pelas violas, como nós também. A
diferença é que os dois tem foco no caipirismo.
[Ouvi palmas? Deveria. O amigo que agora lê, por favor, pare onde estiver e bata palmas
por estes dois corajosos, dedicados e visionários batalhadores. Merecem muito!].
Já aprofundamos e dissecamos aqui nos Brevis Articulus, por exemplo, estudos inéditos
mundialmente, como os curiosos casos das organas, das violettas, das origens das modas-de-viola
e outros. E testemunhamos acontecimentos históricos de 2023 como mais uma edição do Rio de
Violas (no Rio de Janeiro), e a primeira iniciativa de salvaguarda das violas portuguesas como
Patrimônio Imaterial (nos Açores), entre outros acontecimentos que vamos citando,
contextualizando e comemorando.
Há mais, muito mais. Por exemplo, neste ano, pela primeira vez na História, a Família das
Violas Brasileiras foi representada de forma completa (ou seja, todos os modelos juntos num
mesmo palco), e outros eventos assim devem seguir acontecendo. Sobre este feito, é uma pena que
uma evolução moral e ética ainda não acompanhe os responsáveis, que estão a “fazer história” e
se esquecem de dar o crédito devido a quem primeiro teve coragem de defender a visão... Afinal,
quem corajosamente enfrenta todos (de doutores a “achistas” em geral) para atestar e divulgar a
verdadeira História das nossas violas?
Para a História (por exemplo, para aqueles estudiosos sérios do futuro que citamos), ficarão
os fatos, com os registros das datas. Nada passa despercebido a quem é sério com registros
históricos, a História se conta de forma clara e honesta há séculos, para quem a queira ler com
honestidade (ou seja: sem considerar invenções, distorções, mitos, lendas).
Temos ainda para contar que vários grupos de violeiros pelo Brasil já estão a abandonar a
ideia pouco correta de se autoproclamarem “orquestras”; que também nestes grupos já surgem
maestros (de fato), que estão a estudar opções de regências (de verdade) para as especificidades
das músicas tocadas por violas; que alguns violeiros já estão a entender que, além das suas
excelentes performances instrumentais, pode ser útil à comunidade (e até mais lucrativo a eles
mesmo) também apresentar algumas performances cantando, pois somos um país muito cantante
(o canto atrai público e interesse); e até alguns adeptos ao caipirismo mais conscientes estão a
pensar melhor antes de simplesmente repetir “ladainhas” infundadas, relacionadas às violas, que
dominaram a cena nos últimos 50 anos.
Especificamente, até o caipirismo tem sido rediscutido: isso é normal em praticamente
todos os assuntos e deveria ser sempre assim... O que não é normal é o caipirismo não ter sido
questionado antes, publicamente, sendo tratado como se fosse uma espécie de "dogma", como
acontece nas religiões.
Agora... Adivinha quem foi o primeiro maluco a ter coragem de questionar apontamentos
sobre o caipirismo? Sugerimos checar diversos dos Brevis Articulus aqui: encontrar-se-ão
facilmente os embasamentos, as fundamentações carinhosamente levantadas a respeito (mas nem
sempre citadas com tanto carinho, pois gostamos de provocar, de "chutar canelas").
Entendemos que o caipirismo nunca deixará de existir, nem deixará de ser lucrativo, e
provavelmente vai continuar sendo fundamentado mais na base da “fé” que qualquer outra coisa...
Só é preciso lembrar que foi sem dúvida uma ideia genial, mas de um excepcional empresário e
vendedor: portanto, ser ligada ao comércio sempre fará sentido. Querer que tivesse sido “cultura
ancestral”, por outro lado, pode ser chamado de equívoco, mentira, engodo, esperteza comercial,
arrogância, egocentrismo, falsa inclusão social... (escolham a definição que preferirem).
O que importa é que já se começa a entender as violas com coerência histórica, o que vai
muito além do caipirismo e é muito mais importante. Em tempo: temos vários amigos, além de
conhecemos pessoas às quais admiramos e respeitamos, que amam o caipirismo: só o que
esperamos delas é que sejam sempre verdadeiras, com embasamentos honestos e que não se
deixem enganar por apontamentos equivocados. Nada mais nem nada menos que isso... A não ser,
claro, que possam um dia nos perdoar, pois o que fazemos é só Ciência, nada pessoal.
Por fim, para hoje, temos alegria em anunciar mais um marco, que entrará para a História
na data de 23 de agosto de 2023: pela primeira vez nossas descobertas foram apresentadas ao
universo acadêmico, especificamente em uma aula optativa para diversas grades / áreas científicas.
Este tipo de aula já é típico do projeto VIVA MÚSICA, da Escola de Música da Universidade
Federal de Minas Gerais.
Vez que aquela conceituada Universidade mantém dois tipos de cursos de Música
(“orquestral” e “popular”), revelaremos parte de nossas descobertas a partir das origens comuns
(os nomes) tanto das violas de arco quanto das violas dedilhadas. Possivelmente seja a primeira
vez que elas serão apresentadas juntas, em um mesmo estudo e agora, numa mesma aula. Vamos
contextualizar o desenvolvimento histórico que culmina no curioso fato de dois instrumentos tão
diferentes terem se consolidado com “um mesmo nome”, uma questão que, se foi levantada antes,
ainda não teria sido esclarecida.
[Atualizando, a aula está disponível, gratuitamente, em nosso Canal Youtube, acesso pelo
link: https://youtu.be/uvGLc1TMw1E?si=l9UgWL1zmZfuN19C ].
É uma conquista para as violas, todas elas: representa uma nova maneira pela qual precisam
ser vistas. Atrevidamente, mas de forma embasada, as violas levantam discussão sobre estudos já
feitos pelo mundo ocidental e requisitam seu merecido espaço nas narrativas oficiais, desde as
importantíssimas abordagens acadêmicas até o (re) conhecimento pela população em geral. Nem
o Brasil nem o resto do mundo conhecem direito as violas brasileiras e portuguesas: isso já vem
de séculos, com um agravante de distorção por motivações comerciais nos últimos 50 anos, por
aqui (o caipirismo). O caminho da descoberta será, portanto, longo; mas cada passo é um passo à
frente, podemos e devemos celebrar. Até onde elas vão chegar serão outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
“[...] para uns é uma vihuela, para outros uma guitarra [...]
Para um português esta contenda não faz qualquer sentido,
já que, tanto no séc. XVI como actualmente
se designa este instrumento simplesmente por viola...”
[Manuel de Morais, artigo A Viola de Mão em Portugal, 1985]
ao mesmo tempo o vero lauto (“como alaúdes”, ou seja, dedilhadas, segundo Milano) e da braccio
(“braço”) e da gamba (“perna”), ou seja, friccionadas por arco, segundo Ganasi (1542).
Isso sem contar pelo menos duas outras citações que observamos em outras línguas: geige
seria nome de dedilhados quanto de friccionados, em latim e em alemão, segundo Hanz
Judenkuning (Utilitis et Compendiaria Introducto, 1523); e em inventários do Rei Henrique VIII,
a citação [...] Gitterons […] caulled Spanishe Vialles (“Gitterons chamados Vialles espanholas”),
onde Gitterons aponta para “guitarras”, instrumentos dedilhados. Esta última citação vem de fontes
levantadas pelo grande musicólogo inglês Francis Galpin (Old English Instruments, 1911) que
entretanto, como tantos outros, não teria considerado existência de violas dedilhadas, apontando
equivocadamente aquelas vialles gitterons como friccionadas por arco.
Há que se considerar que o uso de arcos em território europeu só teria registros a partir do
século X, em instrumentos que inicialmente teriam sido apenas dedilhados e que por grande
período continuariam a ser tocados de ambas as maneiras. As atestações foram apontadas por
estudiosos sérios e muito embasados, de várias regiões da Europa, desde o século XIX, ou seja: a
bivalência teria registros bem antigos e já bem estudados, além de continuar em Portugal e no
Brasil até os dias atuais, portanto, estudiosos contemporâneos já poderiam ter percebido, se não
tivessem o foco distorcido por imaginarem que só teriam existido "violas" friccionadas por arco.
Bastam, entretanto, os apontamentos que fizemos (de entre os séculos XIII e XVI, pela
ordem cronológica em espanhol, depois italiano e depois em português), para atestar que é por isso
que temos hoje o paradoxo, tema de nossa aula e deste Brevis Articulus; com agravantes de
atestação como o de que, a partir do século XVII, com a queda das vihuelas, cordofones cinturados
com braço passaram a ser chamados de guitarra na hyspania, alcançando fama suficiente para
serem seguidos por nomes muito similares como guitarre (francês), Guitare (alemão), Guitar
(inglês); na Itália, a partir do mesmo século XVII, as violas dedilhadas passaram a ser chamadas
chitarras e só portugueses então continuaram a usar um mesmo nome “viola” para dedilhadas e
friccionadas por arco. Contextualizamos que este peculiar comportamento português tem
explicações e atestações que apontam nacionalismo ou patriotismo... Mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
trabalho pesquisar verdades do que inventar lendas... Ao contrário, uma coisa que afasta as pessoas
é quando um autor se atém ao que seja comprovável, que é a principal diferença entre a Ciência e
as lendas, invenções, mitos, interpretações, distorções e similares.
O apontamento de dados comprovados causa às vezes algum desconforto, principalmente
a quem tem foco em vendas e/ou desenvolveu com o tempo afinidade por um assunto, e vê suas
lendas mais queridas serem questionadas, desmentidas, “descomprovadas”... Mas entendemos ser
apenas uma má impressão inicial: a Ciência historicamente não costuma atrapalhar vendas. Senão,
por exemplo, como continuaríamos a ter a época de Natal como a mais lucrativa do ano para o
mercado em geral, se nunca foi comprovado cientificamente qual o dia de nascimento do Cristo?
Na verdade, o próprio Aniversariante se torna secundário no contexto comercial, e o que se defende
é o curioso (e lucrativo) costume de se presentear todo mundo, exatamente na data de aniversário
de Um que teria pregado, entre outras coisas, o desapego aos bens materiais... Não é um paradoxo
interessante, que a poucos parece incomodar? Pois é! A Ciência não atrapalha vendas: nestas, a
"lógica" que impera é a de "vender o máximo possível, e que se dane o resto".
Assim é o marketing capitalista e assim tende a continuar. Ele pode até se adaptar, ou seja:
com o tempo, a tendência é que até dados históricos corretos possam entrar no contexto (assim
esperamos), e até ajudar a alavancar mais vendas. Num meio de tanto marketing visceral e
intuitivo, estima-se que, por esperteza, logo alguns observarão que a verdade pode ajudar a vender,
e talvez até mais do que o costumeiro embasamento em lendas criativas, agradáveis, mas sem
registros: "se vender bem, que mal tem", não é mesmo?
Voltando aos curiosos fenômenos históricos que observamos, entre eles está a característica
dos cordofones populares sempre poderem “contar suas histórias”, contar as fases históricas que
já teriam vivido, fomentando a descoberta científica de dúvidas às vezes ainda não respondidas,
mas que podem ser (se mergulhamos fundo nos fatos e registros).
As duas violas de Cacique & Pajé, por exemplo, nos despertam que teria havido um período
histórico em que o violão ainda não existiria, quando, portanto, teria sido comum serem utilizadas
duas violas (ou “dois instrumentos chamados de viola”, como na verdade era o que acontecia, no
início). A ascensão do violão a partir de 1820 em praticamente em todo o mundo ocidental, após
período de transição de cerca de 70 anos, é cientificamente apontada por alguns pesquisadores,
tendo se consolidado como cordofone portátil mais utilizado no Brasil só a partir de 1840. As
evidências foram apontadas, por exemplo, pelo Dr. Carlos Azevedo & Souza, em pesquisa feita
em 2003 sobre anúncios de aulas; pela Dra. Márcia Taborda, em pesquisa de 2004 sobre a história
do violão, onde levantou peças remanescentes de museus, registros escritos e outras fontes; pelo
Dr. Renato Varoni, em artigo publicado em 2015 sobre incidências dos termos “violão” e “viola”
em 10 romances do século XIX e até por gaúchos como Cezimbra Jacques, que apontou que a
viola desapareceria dos registros por lá a partir de 1840, em função da ascensão da sanfona /
acordeon.
A partir destes e outros apontamentos, atestamos as origens de cada informação e
acrescentamos mais algumas centenas, como matérias de periódicos de todo o Brasil, do acervo
da Biblioteca Nacional Digital, hoje disponíveis para consulta pela internet. Não temos dúvida:
antes de 1820 não haveria ainda violões no Brasil. Somado ao fato de que o cavaquinho também
só tem registros a partir de 1822, e que outros tipos de cordofones, se existiram por aqui antes, não
tem registros conhecidos, podemos apontar que duplas semelhantes, anteriores a esta data,
provavelmente só usariam “viola com viola”, como Cacique & Pajé teriam resolvido fazer mais
de um século depois.
Será por isso que a dupla sempre foi bem aceita, apesar de serem diferentes? Será porque
eles valorizariam uma tradição anterior? Não cremos, pois o que apresentamos é uma das
postulações científicas contextualizadas pela primeira vez em nossos trabalhos: sequer os
pesquisadores listados teriam somado suas informações para intentarem checar tudo e ir além no
desenvolvimento. Mas é um embasamento muito melhor do que não citar nenhum, ou alegar
alguma “divindade” aos artistas, como brincamos aqui antes... (era brincadeira, viu?).
E por que ambos tocariam viola? Por que não uma viola com uma flauta, ou rabeca, por
exemplo? Ou até um violão e um saxofone, como a dupla Jararaca & Ratinho, que em 1922 já
fazia sucesso no Rio de Janeiro, com o mesmo estilo de anedotas, patacoadas e canções rancheiras
depois largamente apregoado por Cornélio Pires?
Esta reflexão já nos traz vários aspectos históricos bastantes interessantes. Como sempre,
funciona mais ou menos assim: “pergunte às violas, que elas são capazes de responder, pois são
testemunhas da História”...
Para começo de prosa, as violas respondem que nas execuções específicas de modas-de-
viola, o comum é apenas um dos instrumentistas tocar, fazendo na viola as dobras melódicas em
terças que espelham o canto, tudo sincronizado. Sobre esta técnica, que muitos acreditam que
poderia ser invenção brasileira, já discorremos aqui em outros Brevis Articulus que já existiria,
pelo menos, desde o século XII, ao norte da península britânica, segundo relatos bem detalhados
do historiador Giraldi Cambrensis (ca.1146-ca.1223), em seus manuscritos chamados Descriptio
Kambriae.
Não seriam apenas modas-de-viola a serem tocadas no repertório atual, mas sem dúvida é
o jeito de tocar mais antigo e peculiar, que se destaca entre os demais ritmos. Cornélio Pires,
inteligentíssimo e já muito atento a detalhes intuitivos de marketing, não apenas as introduziu nas
primeiras gravações em disco, como, se não tiver inventado, enfatizou o nome “moda-de-viola”
(outra prova de grande visão de marketing, que é usar boas marcas, e investir bastante na
divulgação delas. Neste sentido, a principal "marca" em que Cornélio investiu foi "caipira").
Assim, forçou-se a presença de pelo menos uma viola na formação (se não, não seria moda “de
viola”, concorda?). Ainda outra boa noção de marketing é que o estilo precisava ser o mais
exclusivo possível, então toda a interpretação passou a indicar contextos que apontariam para o
interior paulista (como a viola, diferente do que usavam os nordestinos Jararaca & Ratinho). Não
interessava que a moda-de-viola já existisse há séculos, ou que o termo “caipira” já fosse usado
com outros significados e nem fosse indígena originalmente: interessava que tudo fosse
“embalado” no contexto comercial de um produto exclusivo, diferenciado. Desde seus primeiros
livros o resultado de vendas teria sido excelente, e Cornélio manteve a defesa da ideia em
publicações e até ampliou seu conceito para outros produtos, como discos (afinal, seria uma
“cultura”, algo muito abrangente). E assim o fez durante cerca de 35 anos.
Agora há pouco indicamos que seriam dois cantores em dueto, por uma verdadeira tradição,
milenar; e a partir de Cornélio, as “regras da suposta cultura” (mesmo as regras que não tem
registro de terem existido antes), passaram a ser ditadas por ele, pela visão que ele defendia: entre
elas, a que uma dupla tocasse e cantasse. Pode ter havido de fato, no início do século XX, uma
tradição do chamado “canto de mano”? Sim, naturalmente. A sobrevivência desta expressão
popular, inclusive, aponta isso e faz sentido cientificamente, pois vozes de “manos” (irmãos)
tendem, por semelhança de DNA, a serem mais fáceis de serem timbradas juntas. A timbragem de
praticamente qualquer tipo de voz ou instrumento musical pode ser adaptada para soar bem em
conjuntos, via bastante treino, mas sendo vozes “irmãs” já se parte de princípio mais favorável.
Esta ação instintiva também foi citada naquela mesma remota fonte, do século XII, e hoje é
estudada cientificamente, em aulas de interpretação musical.
Ao largo dos séculos anteriores, entretanto, não teria sido tradição que dois instrumentos
semelhantes tocassem em dupla: ao contrário, instrumentos de timbragens diferentes é que se
complementariam, possivelmente já desde os gregos. Atestamos que pelo menos desde os tempos
de Plautus (230aC.-180aC), passando depois por Cícero e diversos outros romanos, já haveria
fartas citações de duetos instrumentais com fides (cordas) e tíbias (sopros) e pode-se afirmar que
àquela época seria aquela a “tradição”. Já nos também fartos registros de poesias trovadorescas de
entre os séculos XII e XIII, em diversas línguas, observam-se emparelhamentos de dedilhados e
friccionados por arco, que seguiu do século XIV ao XVI inclusive com estes dois tipos diferentes
de instrumentos tendo o mesmo nome em algumas línguas, como geige (em alemão), vióle (em
francês), viol (em inglês), vihuela (em espanhol) e, antes de todos, viola (em latim, occitano,
catalão, espanhol, italiano e português). Só não se assuste, pois registros destes nomes como
instrumentos dedilhados, só nós descobrimos. Esta descoberta já denunciamos inclusive de ser a
origem das bivalentes “violas” que temos até nossos dias, na língua portuguesa, e que seriam a
verdadeira origem de nossas violas dedilhadas, que não são mais bivalentes no resto do ocidente
desde o século XVII.
Já no Brasil, conforme citamos, não conhecemos registro de dois instrumentos semelhantes
em dueto que seja anterior ao início do século XX, já sob a batuta de Cornélio Pires. Pode haver,
mas duvidamos que sejam muitos, senão pesquisadores teriam observado, como nós apontamos
verdadeiras “tradições” de desde cerca de 2000 anos atrás. Quando é mesmo tradição, e não uma
criação de marketing, consegue-se descobrir registros (escritos, esculpidos, desenhados, etc.). No
caso do século XX, há centenas de jornais disponíveis para consulta, onde atestamos a atuação de
Cornélio, mas só a partir dele, para várias características hoje chamadas “tradição”: é a tal da "raiz
rasa", como costumamos brincar, por pura anarquia e provocação...
A introdução do violão, após 1840, atestaria mais uma vez a força do carácter comercial
na equação, posto que teria então conseguido desbancar uma das violas do caipirismo (o que é
muito significativo, pois então teria sido uma "quebra de tradição"). Na verdade, o violão alçou
lugar de cordofone portátil preferido para quase todos os estilos, já tendo surgido com herança das
chamadas “guitarras barrocas”, bastante famosas antes dos violões. Entre as heranças, técnicas de
construção apuradas, métodos, etc. Na verdade, “violão” ou “viola francesa” são apenas nomes
que os portugueses criaram para as guitarras espanholas de seis cordas, numa estratégia
portuguesa que também seria instintiva, mas contrária ao marketing normal, pois o que
portugueses faziam (e ainda fazem) desvaloriza a "marca" correta, “guitarra”: uma marca que os
espanhóis apontam vir investindo pelo menos desde o século XVI.
O mais interessante, e que nunca vimos ninguém citar, é que a introdução do violão no
estilo caipira também aponta um sentido de recuperação, mesmo que tímido, da verdadeira
tradição histórica, que é de instrumentos se complementarem por timbragens diferentes: o violão
complementa com seu timbre mais grave as notas mais agudas, predominantes da viola. Esta
tendência não seria aleatória, assim como a diversidade tímbrica das orquestras modernas (as
verdadeiras orquestras, não os grupos de violas assim chamados): também desde os mais remotos
registros de instrumentos tocados em grupos, citados até em textos bíblicos, se observa
continuamente que a variedade de timbres sempre pareceu ser o mais agradável ao ouvido humano
(uma atestação científica já moderna), e podemos até detalhar o assunto em outro Brevis Articulus,
assim como outra parte da mesma excelente “reflexão de mano” com Jefferson Cária: instrumentos
escavados em peça única, desde as violas de cocho até os charangos... mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
muito mal explicado ("tradição")... Isso não seria (ou "poderia, talvez" ser), um certificado de “pós-
graduação” em ignorar Conhecimento?
Já para o que é sério (a Ciência), na prática nunca houve conceitos indiscutíveis, nem os
que seriam mesmo “sagrados” conforme alguma religião, lembrando que, a princípio, apesar de
vários comportamentos se assemelharem, não entendemos que o caipirismo seja (ainda?)
oficialmente uma religião... Só, com certeza, não é uma cultura ancestral comprovável. Optamos
por definir como um "entendimento coletivo", surgido de uma interpretação particular, que agrada
a muitos egos e bolsos desde o início do século XX. O respeito ao caipirismo, entretanto, é o
mesmo que temos por qualquer religião: cada um creia no que quiser, afinal, nossas leis protegem
a chamada “Liberdade de Credo / Culto”.
Já tendo desenvolvido e denunciado em prosas passadas as incoerências científicas do
caipirismo, com fartas bases em fatos e dados (tanto aqui, em diversos Brevis Articulus, quanto
em nosso livro A Chave do Baú), nos pareceu um desafio interessante aprofundar
desenvolvimento sobre as orquestras e seus contextos históricos. Bora fazer limonada boa, a partir
de um limão podre?
A começar, como sempre, com o histórico de registros da palavra: orchestra seria a versão
em latim de orkhestra (ὀρχήστρα, em grego): em ambas as línguas significaria o lugar, o espaço
físico onde se posicionava o grupo de músicos que acompanhava óperas, peças de teatro, etc.
Alguns teatros ainda mantem reservados deste tipo, logo a frente do palco, às vezes como um
“fosso”, às vezes no mesmo nível dos pisos. Antes destes usos, ainda na Grécia antiga, teria sido
o nome do espaço já em semi-círculo (!) onde se posicionavam grupos de cantores e dançarinos,
sendo que ὀρχέομαι ("orkheomai", em grego), já teria, entre vários significados, o de “dançar”.
Curiosamente, aqueles grupos mais antigos seriam chamados khoros (em grego), chorus (em
latim), que após passar pelas línguas antecessoras chega ao português como “coro” ou “coral”,
mas tendo assumido o significado apenas de “grupo de cantores”. Os dançarinos, portanto,
“dançaram nessa”, mas ainda sobrevive o significado antigo em suas "coreografias"; assim como
o nome “orquestra” chega a nós como “grupo de músicos”... mas não “qualquer grupo" de
"quaisquer músicos”, é bom sempre lembrar!
Além de ter um significado bem específico, não é uma convenção linguístico-musical só
popular, muito menos regional. Pode-se dizer que a partir da segunda metade do século XVIII, o
modelo das orquestras veio se desenvolvendo com reconhecimento e seguimento na maior parte
do mundo, principalmente pelos chamados “eruditos” (ou "estudiosos"). Esta ascensão e
consolidação se deu principalmente a partir da península itálica (violas de arco e da gamba, século
XV), seguidas por uma longa fase de transição até a definitiva ascensão do violino moderno,
acontecida a partir da citada segunda metade do XVIII. A fase de transição (de cerca de 300 anos,
portanto) teria sido pouco aprofundada nos estudos ocidentais até agora (pelo menos, nós
levantamos vários dados que nunca tínhamos visto serem citados antes) e, por ter relação direta
com as violas, não contamos ainda, a verdadeira história dos violinos seria boa de ser contada num
próximo Brevis Articulus... seriam (ou serão) outras prosas...
Um fato é que praticamente “o mundo todo” sabe que orquestras são grupos de músicos e
instrumentos bem diversos, que tocam música estudada, chamada “erudita”. Um dos principais
períodos da música erudita (entre 1730 e 1820) é denominado “Clássico” e, como em algum tipo
de “maldição do uso equivocado de nomes para coisas musicais”, popularmente se vê muito as
pessoas chamarem de “música clássica” a qualquer música tocada por orquestras... O “ser
clássico”, na boca do povo, assume mais o sentido geral de "ser especial, sofisticado" mas, com
relação à música, é uma distorção, e "talvez poderia" comprovar falta de conhecimento musical e
preguiça de ler (em plena era de informações à distância de um clique...).
Os instrumentos das verdadeiras orquestras são agrupados por semelhança, no que em
português chamamos naipes: tem o naipe das cordas (violino, viola, cello, baixo), o naipe das
madeiras (flauta, oboé, fagote, etc.), o naipe dos metais (trompete, trompa, trombone, tuba, etc.),
naipe das percussões...
Uma orquestra poderia até ser entendida como um conjunto de naipes: esta palavra, mais
provavelmente originada do árabe (os etimologistas ainda não apontam com certeza) é
interessante, pois só em português seria utilizada, figurativamente, para coisas musicais: em
espanhol, catalão e na possível origem árabe estaria relacionada aos naipes das cartas dos baralhos
e similares (pelo que conseguimos apurar).
[Chatíssimos em sempre querer ir um pouco além, criticamos a alcunha “naipe das cordas”,
e a chamamos, quando podemos, de “naipe dos arcos”, pois há outras “cordas” possíveis, como as
harpas e, talvez, até os pianos, pois na essência entendemos que pianos sejam cordas percutidas
por teclas... Mas isso também é assunto para outras prosas...].
O que importa agora: as “orquestras de violas”, como se apresentam hoje em dia, seriam,
no máximo, um naipe: mesmo assim, os naipes de verdade são grupos de instrumentos
semelhantes, mas não todos iguais. Observa-se que há variações até entre instrumentos dos
mesmos naipes, no mínimo uns são mais graves, outros mais agudos. Esta variação graves-agudos,
que é característica de toda orquestra (de verdade), também não teria se consolidado por acaso: na
verdade, já viria desde antes de se chamarem “orquestra” os grandes grupos de instrumentos /
instrumentistas.
Quer falar de tradição de verdade? Então vamos falar de séculos passados, com registros
atestáveis, sem nada inventado por conveniência.
Por exemplo, podemos começar dos textos bíblicos: no livro do profeta Daniel (capítulo 3,
versículos 5, 7, 10 e 12) há quatro vezes a descrição de um grupo de instrumentos da época do Rei
Nabucodonosor. Checando a Vulgata Online (versão atual da Bíblia católica), em latim se
observa: [...] in hora qua audieritis sonitum tubæ, et fistulæ, et citharæ, sambucæ, et psalterii, et
symphoniæ, et universi generis musicorum, cadentes adorate statuam auream, quam constituit
Nabuchodonosor rex (“... quando ouvirdes o som do [tipo antigo de] trompa, e do [tipo antigo de]
oboé, e da cítara, e da sambuca, e do saltério, e da sinfonia, e de toda espécie de instrumentos,
prostrai-vos e adorai a estátua de ouro que o rei Nabucodonosor ergueu”).
Apesar do nosso foco em cordofones, acabamos por estudar bastante todos estes outros
instrumentos, daí chegamos a esta tradução e ao entendimento sobre aquela sequência: aponta ter
se referido não a um desfile, mas à forma mais usual de execuções musicais antigas em grupo
(desde a época dos sumérios, 4000 anos antes de Cristo). A saber: abre-se com dois sopros de
diferentes tamanhos (grave/agudo), depois três cordofones também diferentes entre si e, quanto à
sinfonia, entendemos seria uma referência à descrição feita em seguida, “toda espécie de
instrumentos” (juntos)... mas pode também ser entendido como nome de um instrumento musical
específico, que emitiria vários sons (várias notas musicais) ao mesmo tempo.
O trecho já teria sido investigado por vários estudiosos, pelo menos desde o século VI, mas
alguns com opiniões sem muito sentido à luz dos atuais conhecimentos. Concordamos com
análises de musicólogos do porte do inglês Francis W. Galpin e, principalmente, do alemão Curt
Sachs, este que chegou a apontar uma versão com os nomes dos instrumentos em aramaico (uma
das muitas línguas antigas que ele teria investigado, para entender melhor os instrumentos
musicais). É do livro dele The Hystory of Musical Instruments (na edição de 1940, ver páginas
83 a 85) que indicamos para conferência uma análise bem embasada (apesar que precisamos
discordar do entendimento dele sobre sambuca). O citado trecho: [...] as soon as you hear the
sound of the qarnay the masroqitay the qatros the sabka the psantrin the sunponiah y and all
kinds of zmaray you shall prostrate yourselves (nomes em aramaico seriam os em negrito, e a
tradução para português seria a mesma que apontamos dois parágrafos antes, a partir do latim).
Outro exemplo que destacamos viria do século IX, de livro-poema do religioso alemão
Otfried de Weissenburg, o Liber Evangeliorum (“Livro dos Evangelhos”), escrito em dialeto
alemão antigo (Ahd), com títulos e algumas inserções em latim. Apesar do tema ser o mesmo
(bíblico/religioso), com sua liberdade artístico-poética o padre-poeta apontou: [...] Sih thar ouh ál
ruárit, thaz organa fuárit, lira ioh fidula, ioh mánagfaltu suégala, harpha ioh rotta, ioh thaz io
guates dohta – um trecho que, contrariando traduções convencionais, após consulta a diversas
fontes e somando nossa visão musicológica, traduzimos como “[Em si], nessa altura todos
chegavam perto, a organa conduzia, lira e fidula, e uma suégala múltipla, harpa e rota, a glória
sempre boa”.
Naquele século IX, portanto, a figura da organa já apareceria: um cordofone com braço e
caixa cinturada, tão grande que era tocado por duas pessoas, onde uma acionaria, por uma
manivela, uma roda que friccionaria três cordas; das três, apenas uma teria notas modificadas via
um sistema rústico de teclas fixado pelo longo braço. Já comentamos sobre este "antecessor das
violas" aqui nos Brevis Articulus, são prosas passadas também... só que denotamos agora que
organa aponta ter surgido naquela poesia por interpretação equivocada de Otfried: os termos
sambuca ou mesmo symphonia só bem depois viriam a ser sinônimos de organa, mas não antes, à
época de Nabucodonosor. Equívocos de contexto histórico assim infelizmente são mais comuns
do que se imagina... Só não esqueçamos que era um texto artístico, estes que sempre tiveram
licença para não ser, exatamente, expressões da verdade dura e crua.
Na sequência dos versos de Otfried, após organa há mais dois cordofones: lira e fidula,
esta última que afirmamos sem medo, embora pareça que só nós tenhamos observado, que seria
uma contração métrico-poética de fidicula, termo genérico usado pelos romanos para cordofones
pequenos, dedilhados; depois, suégala (um tipo de flauta com dois ou três tubos), e depois mais
dois cordofones, sem braços: harpa e rotta (esta, portátil, parecida com citaras e liras ancestrais,
mas com estrutura e caixa de ressonância mais abrangente). Não se teria evidência ainda de
instrumentos tocados por arco em território europeu, embora muitos estudiosos entendam que
aquela fidula seria a ancestral mais direta da viola de arco (e sim, somos chatos, sempre apontamos
estes equívocos, porque poucos os teriam observado e denunciado antes). O que importa: foi mais
um conjunto bem variado em texturas e tamanhos de instrumentos, aquele apontado por Otfried.
Outro exemplo, também um longo poema, é o Libro de Buen Amor (“Buen Amor” foi um
governante, como Nabucodonosor). Do padre castelhano Juan Ruiz, Harcipreste (cargo religioso)
de Hita (cidade espanhola), a narrativa que não acreditamos tenha sido um verdadeiro desfile,
posto que muito extenso e variado, mas que é das mais ricas fontes sobre instrumentos antigos.
Alguns detalhes, descontados contextos poéticos e generalismos, ajudam a entender muito da
História dos cordofones. É dele, por exemplo, que temos o diferenciatório vihuela de arco / vihuela
de pendola que, somado a outras fontes, apontam a origem da atual bivalidade do nome “viola”,
em português, tanto para dedilhados quanto para friccionados por arco (uma anomalia que só
portugueses e brasileiros mantem viva, e que revela a origem de nossas violas dedilhadas). Isso
também são prosas já contadas aqui (hoje estamos especialmente saudosistas...).
Citado e transcrito por diversos estudiosos, sobre o poema de Juan Ruiz indicamos para
conferência o doutoramento de Rosário Martinez: Los instrumentos musicales en la plástica
española durante la Edad Media: Los cordófonos, de 1981, pelo vasto acervo de fontes citadas,
as quais atestamos praticamente na totalidade. Na verdade, nenhum estudo que investigamos teria
sido suficientemente abrangente, principalmente quanto a violas dedilhadas: espanhóis e
portugueses não costumam citar-se mutuamente, alemães e ingleses pouco citam fontes em línguas
latinas (ou, se as citam, às vezes traduzem mal), etc. Desta forma, perdem não apenas visões
diferentes, como fontes de outros estudos. É por isso que conseguimos descobrir verdadeiros
tesouros, pois juntamos tudo em um único banco de dados, e conferimos cada tradução em cada
língua desde os registros mais antigos que conseguimos, sem restrições nem preconceitos; e ainda
somamos outros tipos de visões científicas, além de nossas vivências, que também são variadas.
Ah, sim, claro: também submetemos tudo ao crivo de nossa obsessiva chatice pessoal, pois esta,
alguma coisa de útil precisava ter, não é mesmo?
A Dra. Martinez, que teria investigado nada menos que três diferentes códices
(manuscritos) com segmentos do poema, também concluiu que Juan Ruiz apontou ter tentado
fazer, de fato, uma lista de todos os instrumentos musicais conhecidos à época (pelo menos, todos
que citou teriam sido observados também em outras fontes). A relação em forma de poesia,
entretanto, não teria sido aleatória: embora não ainda no formato dos atuais naipes de orquestra,
Ruiz teria organizado, via estrofes, instrumentos que se “acoplariam” bem (numa expressão
espanhola utilizada por Martinez que aqui pegamos emprestada). Primeiro: atambores, guitarra
morisca, laud (“alaúde”), guitarra latina, rabé (“rabeca”), rota, saltério, vihuela de pendola;
depois: canno (tipo de flauta), arpa, rabé morisco, tamborete, vihuela de arco; seguiriam então:
panderete, organa, dulçema (“dulcimer”), albogon (tipo de flauta), baldosa, mandurria
(cordofones dedilhados árabes, "pequenos alaúdes") cinfonia, odreçillo (possivelmente uma gaita
grande, ou até uma organa); e ainda trompas, annafiles (outro tipo de flauta), atarabales
(atabaques, tambores). Em tempo: os diversos "tipos de flautas" teriam tamanhos diferentes.
Por último destaque, outro poema: de certo Eberhard Cersne, do qual não descobrimos
muita coisa... só que teria posto versos em data estimada a 1404, e teria apontado como título
Minneregeln (que traduzimos como “Regras da Memória Afetiva”), segundo manuscrito não
identificado, mas que teria sido observado na Biblioteca Nacional de Viena por August Ambros
(1880, p.509). É também uma grande lista de instrumentos variados, porém o autor apontou vários
nomes antigos, inclusive tendo usado como base a variação dialetal alemã mais antiga (Ahd), que
àquela época já estaria em desuso, além de vários nomes em latim. Destacando apenas um verso
onde são apontados cordofones: […] Noch dan quinterna gyge videle lyra rubeba ("E ainda
quinterna, giga, videle, lira, rabeca”), no qual se observa que, mesmo entre poucos instrumentos,
há mesclas de tipos e tamanhos diferentes. Alguns dedilhados (quinterna e lira) e outros mais
conhecidos como friccionados por arco (giga e rabeca), além de videle: deste, entende-se ser
variação em alemão de VIOLA, e assim poderia ser tanto dedilhado quanto friccionado por arco
(segundo nossas pesquisas). Há, todavia, certa dúvida geral, pois seriam nomes antigos (até pela
temática e línguas usadas no poema), mas não é apontado exatamente a qual época se referem, e
nomes podem significar instrumentos um pouco diferentes, dependendo da época e local onde
teriam sido utilizados. Além disso, algumas das grafias seriam os registros mais remotos que se
tem notícia: isto é comum acontecer em poemas populares (nomes um pouco diferentes surgirem),
até os dias atuais, pelas adequações das palavras às métricas e rimas, e faz parte dos motivos de
terem surgido tantas variações, pelos tempos (poemas são maioria entre as fontes mais antigas).
Observamos outras listas, em diversas línguas, além de dezenas de citações que
investigamos, principalmente de “violas” (e variações nas diversas línguas), que na maioria das
vezes foram citadas junto a outros instrumentos, bem diferentes. A conclusão mais tranquila de se
apontar é que instrumentos musicais sempre foram agrupados por suas diversidades de timbres e
texturas, caracterizadas por diferentes tamanhos, armações de cordas, formas de execução. É por
isso que não nos estranha que as orquestras de verdade tenham evoluído desta forma, pois é
comprovadamente mais agradável ao ouvido humano que graves, agudos, texturas e outras
diferenças se completem, se misturem. Este é, por exemplo, um dos principais tipos de estudos
que fazemos para criar arranjos para orquestras e podemos citar, entre nossos “livros de cabeceira”,
o Orchestration, de Walter Piston, publicação de 1969.
Já o que nos estranha, e muito, ao confrontar o presente com registros históricos, é por que
alguém chamaria de “orquestra” um grupo homogêneo de instrumentos... Seria para dar a
impressão de ser “chique”? Seria algum tipo de arrogância, de “se acharem” tão bons quanto uma
orquestra? Não temos como comprovar. Só podemos afirmar que, na tradição "de verdade”, não
haveria evidência... Restaria, talvez (sempre "poderia, talvez"), inventar uma “tradição”...
Em defesa dos caipiristas, podemos dizer que até teriam de onde herdar este tipo de uso
inacurado (ou inventado) de nomes, pois portugueses sempre tiveram o hábito de não usar nomes
“ao pé da letra” (ou seja, pelos significados corretos). Por exemplo, portugueses têm o péssimo
costume de, já há séculos, usarem genéricos como “moda” (para qualquer tipo de música) e “viola”
(para qualquer tipo de cordofone). Este último costume, inclusive, contextualizamos que entre os
séculos XV e XVIII acabaram por ser a verdadeira origem de nossas violas dedilhadas, que
inicialmente teriam sido apenas um nome genérico, por opção nacionalista portuguesa... Mas aí
também já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
séculos da Era Cristã (no caso, Cícero referiu-se à república romana). A influência em Cícero seria
tão latente que ele, assim como Platão, escreveu em forma de diálogos, como no caso dos dois
textos citados. Platão, por sua vez, escrevia diálogos pela influência de seu mentor, Sócrates:
dialogar como um meio para evolução intelectual. Platão colocou Sócrates, figurativamente (pois
este último já estaria morto) como o personagem principal do texto, que representaria também a
voz figurativa das ideias próprias de Platão: este que, notadamente, teria ido além do que
desenvolveu seu mentor.
O título original de "A República" é Πολιτεία (“Politeía”, em grego), e embora o radical
polis seja, corretamente, muito relacionado a “cidade”, antes e acima disso significa “vários,
diversos”. Sim, a cidade teria sido o núcleo político-econômico grego, mas também significaria
“coletivo, grupo de pessoas” (no caso, seria o principal coletivo, a mais importante polis). Politeía
é sobre a "cidade", ou seja, sobre como poderia ou deveria ser uma “cidade ideal” à luz do
Conhecimento mais amplo. E também não nos foge (nem a outros estudiosos, embora poucos), a
percepção que aquela “cidade” também poderia ser fictícia, num paralelo (artístico, no caso) com
o indivíduo, com a governança que cada um deve ter de sua própria vida...
[Acha que complicamos um pouco? Pois é... Trata-se de um dos textos mais discutidos, e
há poucos consensos a respeito. Humildemente (ou com grande dose de coragem, talvez?)
ousamos afirmar que não teria sido escrito para deixar tudo claro a todos que o lessem. Sim, que
Platão teria deixado claro, logo no início, que falava da cidade, física, afastando a possibilidade de
estar a usar metáforas... porém... lembra que citamos que o texto todo (10 livros!) seria narrado
por alguém que já teria morrido, à época? Isso é totalmente metafórico... Além disso, também já
citamos que aqui vamos falar sobre um dos vários “mitos” utilizados por Platão... Entendeu? O
cabra falou de coisas sérias, palpáveis, mas sem assumir diretamente a autoria, colocando
artisticamente "um morto para falar"; criticou a visão poética da época (que segundo ele poderia
às vezes ser muito ilusória, imitativa), mas usou metáforas, mitos e alegorias (verdadeiras
parábolas) para exemplificar seus raciocínios... Tem ou não tem "caroço nesse angu"?].
Nossa experiência como escritor / compositor / poeta nos alerta: “aí tem” (ou “tinha”)
alguma coisa a mais: algo pairava por detrás da simples realidade das palavras escritas... E alguns
analistas, muito mais competentes que nós, também chegaram à mesma conclusão. A nós, fica
muito claro na leitura e análise completa do texto (neste caso, em português, pois não temos
competência para ler tudo em grego); confiamos em traduções e análises sérias, entre as quais
destacamos as de Maria Helena da Rocha Pereira, em publicação de 1949. Aquela portuguesa teria
consultado um respeitável número de fontes, e acrescentou generosas notas de rodapé, inclusive
com termos originais gregos e análises das traduções feitas. Conferimos também algumas outras
traduções e citações em inglês, espanhol e francês, além de conferir que Maria Pereira é muito
respeitada pelo que publicou, além de demonstrar ser uma pesquisadora metódica. Enfim:
confiamos e até recomendamos a leitura.
A República, podemos dizer, é na verdade sobre justiça, sobre buscar a mais alta expressão
do Bem, apontado claramente no texto (“Bem” que seria a somatória das maiores virtudes: o bem
viver, o bem entender a Humanidade e a Vida). Entendemos que abrangeria a busca por
praticamente todos os tipos de Conhecimento, ou o máximo deles que se conseguisse. Não teria
sido por acaso que, a partir da crítica ao modelo de educação daquela época (que era baseado em
“ginástica” e “música”), estas duas áreas e várias formas e noções de matemática, sociologia e até
astrologia foram listadas e analisadas no texto. E a conclusão foi que os mais aptos a governar
seriam os... “filósofos”, ou seja, os “amigos/amantes de todos os Conhecimentos”!
Tudo, naturalmente, conforme os entendimentos e contextos da Atenas daquela época. E
tudo também num contexto de apontar a melhor forma de governança de uma "cidade ideal” (pelas
aspas, entendam que estamos a piscar um olho para quem nos lê, coisa típica de mineiro). E sim:
desconfiamos de tudo e de todos, até de nós mesmos...
Ora, nos permitam o atrevimento de irmos além do que a maioria aponta: o tempo todo é
apontado no texto de Platão um paralelo entre como seriam as pessoas e como deveria ser a cidade
ideal, e assim ambos os assuntos ("pessoas" e "cidades") são ao mesmo tempo dissecados,
explicados, contextualizados; entretanto, o tal "modelo de governança" proposto teria sido bem
diferente do praticado, por exemplo, na própria Democracia grega, assim como na Monarquia e
outras formas de governo. Platão discorreu sobre o fomento de um segmento da sociedade,
selecionado até com algum eugenismo e preparado desde a infância com formação científica
(“filosófica”) mais ampla que a usual na época: daquela casta de pessoas especialmente
selecionadas e preparadas é que deveriam ser escolhidos os governantes... Não temos certeza em
outras culturas, mas no Ocidente nos parece que este modelo nunca teria sido colocado em prática!
Utopia pura, portanto, enquanto reformulação social e política... Mas e quanto à uma possível
reformulação dos indivíduos, será que teria sido seguido, utilizado, desenvolvido pelos tempos?
Vê-se pela História, em muitos tipos de monarquias e impérios, herdeiros sendo
doutrinados por conjunto de Conhecimentos bem similar ao proposto por Platão (só que, no caso,
considerava-se o laço consanguíneo ou alegadas iluminações Divinas como suficientes para
seleção). Também ainda hoje, há um formato ocidental de educação que, na totalidade, é similar
em tempo previsto e disciplinas sugeridas por Platão, inclusive a preparação física (infelizmente,
o ensino curricular de música caiu de uso em algumas nações, como no Brasil).
[É possível que o aprendizado de música possa levar o povo a pensar demais, como vemos
aqui agora: exatamente um músico a pensar além das caixinhas! E isso talvez não seja interessante
a alguns “governantes”...].
A música era importante não apenas naquela época, quando seria a “arte das Musas” e onde
as palavras (poesias) seriam indissociáveis dos sons (junto com a ginástica, a música seria a base
da formação das pessoas das classes mais altas, exatamente o que criticou Platão). O filósofo
grego, que sem dúvida considerava a música muito importante, segundo vários de seus textos, em
Politeía ainda teria proposto um alargamento de conceito, com análises pormenorizadas sobre
“palavras, harmonias e ritmos”. As palavras, quando muito ilusórias, seriam alvo de crítica por
Platão; mas, no entendimento moderno, refletiriam melodias... e daí temos o conceito muito
respeitado até os dias atuais, que é da música ser entendida como uma somatória de “melodia,
harmonia e ritmo” (três conceitos que tem hoje significados mais modernos que naquela época).
Como curiosidade, e para não dizer que desta vez não falamos de flores (ops: de flores,
não, de instrumentos!), Platão apontou uso só de instrumentos “com menos cordas e harmonias”
que harpas, sugerindo praticamente apenas λίρες (“liras”), κιθάρες (“kitharas, cítaras”) e
instrumentos de sopro como αυλός (“aulos”, tipo antigo de oboé) e συριγξ (“siringe”, tipo antigo
de flauta de Pan). Criticamos esta colocação de Platão, que provavelmente estaria ligada à proposta
de ampliação de campos a serem estudados: ele entenderia que devessem ser estudados
instrumentos menos abrangentes, para dividir o foco entre as diversas matérias, mas a nosso
entendimento, a Música deveria (e ainda deve) ser o mais abrangente e variada possível, para
estimular ao máximo a atividade cerebral, o que inclusive é coerente e auxiliaria na assimilação
do aumento de Conhecimentos e especialidades proposto. Desculpa aí, "seu Platão", mas não
somos tão "platônicos" a ponto de não refletir sobre o que apontou...
Naturalmente, contextualizações específicas à política (como as de Cícero, no século I aC.),
sociológicas (como as de Hegel e Marx, já no século XIX), entre outras, não são equivocadas: a
visão de Platão abrangeria estes particulares também. Só não entendemos que fosse exclusiva
sobre nenhum segmento, mas a todos, em conjunto.
O desenvolvimento apresentado por Platão nos parece muito claro sobre a ampliação do
Conhecimento ao máximo possível, só que aquele nível de complexidade não teria sido totalmente
entendido, causando vários subentendimentos, posto que superficiais (isso, na nossa humilde-
atrevida visão e revisão). Neste caso, há outros, além de nós, que também entendem que até poder-
se-ia analisar pormenores, porém sempre com o máximo possível de observação aos chamados
“fenômenos circundantes” de cada objeto de estudo (este último apontamento que é o
desenvolvimento das ideias de Platão, hoje institucionalizado na chamada Metodologia Dialética).
Se Platão teve coragem de questionar o sistema na época dele, mesmo após Sócrates ter
sido levado à morte pelo mesmo motivo (questionamentos críticos), por que nós não teríamos
coragem de questionar até Platão, além dos entendimentos que terceiros fizeram sobre o que ele
disse? Nos baseamos em várias alegorias do texto, como o "Sol", lá apontado como fonte maior
(de luz, calor e, na alegoria, de Conhecimentos, estes a serem, portanto, estudados), citado em
vários daqueles “livros” (ou “capítulos”, em nossa moderna forma de ler). Também entendemos,
como exemplo, citação do conceito Dialético, a maior das filosofias geradas a partir de Platão, que
ele teria apontado como "é necessário intercambiar e aprimorar ângulos de visão" ou, literalmente,
"é preciso elevar aos poucos os olhos": do "lodo bárbaro" para “as alturas”. Estava ou não a falar
de desenvolvimentos individuais, de uma busca máxima possível de Conhecimento?
[Por falar em altura, a esta altura precisamos pedir desculpas por alongarmos a análise ao
texto todo, e não apenas ao Mito da Caverna, que é o tema proposto aqui. É que naturalmente
surgiu esta ampliação de contexto, inclusive por aplicarmos nossas metodologias na análise
histórica dos termos (do grego, passando pelo latim até chegar ao português), e assim tivemos que
inserir pitadas de nossas experiências com textos e artes: não poderíamos deixar de apontar alguns
detalhes que pouco vimos serem abordados antes, principalmente nos resumos encontrados pela
internet, até em preparatórios para vestibulares (o Mito da Caverna costuma cair sempre nestas
provas). Por isso tudo, esperamos que possam nos desculpar por alongarmos a prosa!].
Para quem já leu ou vai ler mais sobre o tal Mito, avisamos, então, que estamos a inserir
aqui algumas percepções que não observamos muito por aí, mas que entendemos estariam de
acordo com nossa checagem atenta ao texto completo, onde o Mito está inserido.
Chegando finalmente ao tema: para começar, Platão (usando a fictícia boca de Sócrates),
iniciou o livro VII deixando bem claro que a seguir falar-se-ia sobre a educação formal e a falta
dela. Descreveu homens que seriam algemados “de pernas e pescoços” desde a infância, ao fundo
de uma caverna: haveria lá uma fogueira e, entre ela e os algemados, um muro. Entre a fogueira e
o muro, pessoas desfilariam carregando sobre as cabeças “toda espécie de objetos”, representados
por “estatuetas de homens e de animais, feitas de pedra e de madeira”. As sombras daqueles objetos
seriam projetadas pela luz da fogueira até o fundo da caverna, à vista dos algemados (só a sombra
dos objetos, não de quem os carregavam, que o muro não permitiria serem vistos). Os carregadores,
alguns falariam algumas coisas, conversariam, enquanto outros, não. As vozes seriam ouvidas
pelos algemados (achamos interessante que Platão descreveu até o eco, típico de cavernas).
Pausa para uma gargalhada que demos quando estávamos a ler: Glaucon, que seria um dos
irmãos de Platão e estaria na posição de dialogar diretamente com Sócrates, àquela altura teria
dado uma “tirada” sensacional: “Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses que tu falas...”;
ao que Sócrates, bem menos moleque que nós, teria respondido sério: “Semelhantes a nós!” (com
a conotação, portanto, de que a princípio, quando em tenra idade, todos seríamos como os
algemados).
Então, “Sócrates via Platão” (ou vice-versa?), seguiu-se a descrição de que, portanto, os
algemados só conheceriam sombras e algumas vozes, não seres de verdade (este seria um paralelo
a quem estaria “algemado”, a vida inteira, na semiescuridão da ignorância, da falta de
Conhecimento). Seguindo na narrativa, foi proposto que um dentre os algemados fosse solto, e
olhasse as figuras e a fogueira, do outro lado do muro: aquele um ficaria aparvalhado, os olhos
doeriam por causa da luz da fogueira e, olhando para as estatuetas, não as reconheceria por serem,
então, mais nítidas que as sombras que até então conheceria... (aquele liberto custaria a entender a
“farsa”, diríamos nós). Após, se então arrastassem o tal para fora da caverna, onde a luz do sol
seria ainda mais desagradável à primeira vista dele, levaria ainda mais tempo que da primeira vez
até poder vislumbrar tudo, o mundo real...
[Achamos estranho que a primeira reação do liberto não fosse brigar com os que os
mantinham todos presos, nem procurar alguma pedra para quebrar os grilhões dos companheiros,
mas... a alegoria não é nossa, então, que siga o “estranho quadro, de estranhas pessoas”].
Platão deu ênfase ao que aconteceria com a visão, ou seja, com os olhos daquele
“selecionado” que teria tido contato com a realidade exterior: continuando a narrativa, se aquele
voltasse ao fundo da caverna, novamente sua visão seria prejudicada, pela readaptação após ter
visto a luz do sol. Com tal visão novamente “cheia de trevas”, se fosse julgar ou descrever as
sombras, como fazia antes, causaria risos e seus colegas considerariam que não valeria a pena sair
da caverna, pois suas vistas seriam prejudicadas (como teria sido a do selecionado). Assim, se
alguém tentasse soltá-los e arrastá-los para fora, aqueles, se pudessem, matariam quem tentasse
demovê-los (de suas “visões tradicionais” sobre o que era verdade ou não, diríamos nós, embora
ninguém nos está a perguntar nada...).
[Podemos, inclusive, testemunhar que, figurativamente, o mesmo teria acontecido pelos
séculos até hoje: é o que acontece com os que não descobrem a “luz do sol” (que seria a educação,
o Conhecimento), e se baseiam nas “sombras do fundo da caverna” (que é a falta e/ou a rejeição
ao Conhecimento)].
A conclusão de Platão é muito interessante, já que exorta aos que tiverem contato com a
verdadeira luz que sejam inteligentes para entender a complexidade do processo todo, inclusive as
fases necessárias para adaptação dos olhos na “passagem da luz à sombra e da sombra à luz”. Isso,
se quiserem fazer o Bem, ou seja, ajudar a educar outros. E, conforme destacamos na abertura,
entender que a educação (o Conhecimento, a inteligência) não é uma dádiva que introduzimos a
quem não a tem, mas que apenas se auxilia, a quem já tem olhos, a olhar para os lugares certos e
de forma mais adequada.
É belo, coerente, verdadeiro e muito útil o tal Mito da Caverna, afinal.
Chegamos então ao fim? Ainda não... Pedimos licença para ir um pouco além, mas na
mesma alegoria (dificilmente pesquisamos alguma coisa sem acrescentar reflexões e cruzamentos
com mais dados). Acontece que à época de Platão ainda não haveria, entre outras coisas, a ganância
institucionalizada e exacerbada que tomou conta a partir das fases da Revolução Industrial, dos
séculos XVIII e XIX. A visão de produção e comercialização em série, hoje chamada Capitalismo,
sem dúvida mudou o mundo. E nós, atrevidos, entendemos que pelas várias mudanças históricas
na sociedade, algum adendo ao texto original de Platão seja então aceitável...
Nossa colaboração é que, aproveitando a alegoria já existente de uma “fogueira” na
caverna, diríamos que de uns tempos para cá motivações políticas, ególatras e/ou financeiras nos
trariam uma situação a mais: as algemas até podem ter sido retiradas, em alguns casos, mas muitos
prisioneiros são como se tivessem sido levados apenas até a beira da fogueira. Ali, “no quentinho”,
teria muito mais luz e calor que no antigo fundo da caverna, e já se teria consciência que os desfiles
de estatuetas seriam enganosos: então, até ali já estaria bem melhor... e eles diriam: “Pra que buscar
o sol? Luz demais, besteira isso, é querer demais... Temos que ser humildes!”.
Isso porque, hoje em dia, algumas pessoas já saberiam ler algumas coisas, superficialmente,
e até escrever “malemal” o nome; não está bom? Eles, agora tão “mais sábios” que antes,
consultando-se entre si, pela sabedoria popular concordariam que já está ótimo! Já dá pra assinar
cédula de eleição, como pedem os "Coronéis"... e assinar também o contracheque da “merreca”
que a eles é tão generosamente oferecida. Já pensou? Quem antes só conheceria sombras e ecos
confusos, agora elege, trabalha e até ganha salário! E ainda “sabe” até ler e escrever? Tá bom
demais! Que não venham com essa de querer conhecer esse tal de “sol”, que só serve para
atrapalhar as vistas, agora que já estão vendo muito mais e melhor que antes...
É isso que nós vemos hoje em dia, também quanto aos estudos sobre instrumentos musicais
(que interrelacionamos a várias outras Ciências, dentro da mesma linha original do pensamento
platônico) ... Mas aí já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando...
espanholas; e as aspas na versão portuguesa, vamos deixar para explicar um pouco mais à frente,
só para fazer suspense...).
Dando apenas uma "pincelada rápida" no começo do começo dos cordofones, os mais
remotos registros escritos (sumérios e egípcios) indicam para desde cerca de 6000 anos atrás a
existência de alguns tipos de cordofones, que gostamos de listar como numa linha evolutiva.
Utilizando nomenclaturas que se consolidaram depois, mas com muita consciência porque
estudamos praticamente todas as variações surgidas, apontamos primeiro as HARPAS (a partir de
nome tardio, grego); quando menores e portáteis, CITARAS (esta nomenclatura, a partir do latim)
e LYRAS (também surgido mais tarde, e também grego); estes portáteis, quando apresentavam
caixas de ressonância ao longo das cordas, e caixas um pouco diferentes, seriam SALTÉRIOS
(nomenclatura a partir do hebraico, que aponta ter-se ressignificado de nome de cordofones
maiores para nome de portáteis).
Haveria também instrumentos com braços: além do citado pan-tur sumério, nome próximo
da latinização nefer seria o utilizado pelos egípcios, e surgiria a bifurcação pandir / fandir na região
do Cáucaso. Até a época da influência grega (entre os séculos VIII e II aC.), teria ido tudo
relativamente bem: teria surgido o nome grego kellys, latinizado como chelys e apelidado testudo
(os três nomes significam “tartaruga”), para LYRAS às quais fossem acopladas caixas, muito
provavelmente porque já se morria de inveja dos mesopotâmicos e seus muito bem feitos
instrumentos com caixas abauladas (também como cascos de tartaruga). Importante observar que
os gregos não adeririam aos braços, só a caixas acopladas aos seus "sem braços" preferidos; para
ficar bem seguro nesta parte, sugerimos conferir excelente artigo de Carin Zwilling, de 2015 (uma
brasileira boa de Musicologia, História e até de etimologia, coisa rara no meio).
A "bagunça" aponta ter começado com os romanos: para demonstrar que eram “os tais”,
começaram a querer impor que tudo fosse traduzido para o latim. O problema é que textos antigos
em latim apontam uso de vários nomes sem critério, sem que tivessem sido observadas diferenças
entre alguns instrumentos. Não que esperássemos que todos conhecessem de organologia (a
ciência que estuda características dos instrumentos e que ainda nem existiria), mas, por exemplo
de bons apontamentos que poderiam ter sido feitos por todos, o filósofo Marcus Tullius Cícero
citava música / instrumentos musicais com tanto cuidado que até nos ajudam hoje a atestar, por
exemplo, que fides e fidicula teriam sido genéricos. Sugerimos ler pelo menos o De Legibus II.
Poucos, entretanto, interpretam Cícero com olhar musicológico agregado à análise dos discursos...
Em textos romanos surgiriam, a partir dos gregos kithara e pandora, os latinos cithara e
pandorion (além de fides e seu diminutivo fidicula). É compreensível que quisessem substituir
antecessores, por rejeição à nomes oriundos de outras culturas (contexto histórico-social), mas,
para quem vai pesquisar muito depois, é exigida muita atenção. Infelizmente, o péssimo hábito de
não se aprofundar no histórico de nomes não durou só nos primeiros séculos: até os dias atuais
muitos ainda fazem e até acham bonito. Entendemos que o generalismo, as traduções e as
invenções tornam mais difícil entender reflexos histórico-sociais que os instrumentos
testemunharam por séculos, e que são atestáveis também nos nomes (muitas vezes, mais neles que
em outras características). É uma canseira, e uma pena que tantos não percebam isso e tomem mais
cuidado (o pior são os que não tem noção alguma do assunto, nem querem ler para ter, e ficam
bravos conosco por denunciarmos equívocos de tantos, por séculos).
Pitangas já devidamente choradas, sigamos com o andor: depois da queda de Roma, nas
línguas não-latinas (chamadas “germânicas”, mas não só as alemãs), a partir de outra variação do
grego kithara (a latina quinterna / guiterna) surgiram citterns / quitterns / gitterns que mais tarde
apontariam para instrumentos com caixas arredondadas, os preferidos de italianos, alemães e
ingleses. Foram os antecessores da hoje chamada “família dos cistres” (bandolins, banjos,
“guitarras” portuguesas, etc.). E, como se vê, as últimas aspas continuam: mantenhamos o
suspense um pouco mais, enquanto vamos proseando...
O formato arredondado de caixas seria um “meio termo”, mas assim como o formato
cinturado também indica rejeição aos instrumentos árabes (que sempre foram periformes e com
fundos abaulados). Assim, “guitarras” ainda não seriam cinturadas como são em grande parte do
Ocidente, mas também arredondadas. Observe que do latim guiterna também surgiria, no século
XIII, o nome espanhol guitarra, estes que optariam, com ênfase e antecedência histórica, por
cordofones cinturados. E sim, não é "à toa" que algumas culturas fizeram opções diferentes
daquela espanhola: tudo é por contexto histórico-social (no caso, rejeição ou concorrência entre
dissidentes, em algum recorte histórico).
Poucos apontam ter percebido estas nuances, advindas de estudos atentos sobre os nomes
(também), e não é mesmo fácil de perceber: pode-se dizer que tudo parecia uma grande bagunça,
por exemplo: “liras gregas” originais seriam sem braço, mas “liras bizantinas”, surgidas mais tarde,
seriam com braço e tocadas por arco; “cítaras”, até o século IX, seriam só as sem braços, mas este
nome depois ascenderia, ressignificado, para cordofones com braços longos... Nomes de
instrumentos parecem “terra sem lei”: não à toa poucos têm a (in)sanidade de estudá-los com
profundidade, e sobram “chutes” feitos até por linguistas respeitados... Musicólogos, então, o que
mais se vê é apontarem que seria uma indecifrável "confusão" (vimos esta palavra apontada como
definição em diversas línguas).
Não por coincidência, mas por um reflexo histórico-social relacionado à Revolução
Industrial, entre os séculos XVIII e XIX ocorreria a transição, seguida de consolidação das
guitarras espanholas (apelidadas “violões” pelos portugueses), assim como da chamada “família
dos violinos”, das orquestras (estas, a partir de investimento inicial maior italiano, mas então já
com apoio de orquestras e compositores famosos da França, Inglaterra, Alemanha).
Resumidamente, o que aconteceu é que, como a maioria das coisas, instrumentos passaram a ser
vistos também como “produtos”; e produtos precisam de bons nomes e investimento (estudos,
aprimoramentos, divulgação) para serem mais e melhor vendidos, revertendo em divisas para as
regiões que mais investiram neles.
Entretanto, desde pelo menos o século XIV já se observaria tendência de separação, na
Hyspania, entre “guitarras latinas” e “guitarras mouriscas”: assim se originou a preferência
espanhola pelo formato cinturado de caixas. A rixa com os mouros é claramente apontada, por
exemplo, por Juan Ruiz em seu Libro de Buen Amor. Crawford Young (2015) fez uma boa análise
de nomes e imagens, mas, como vários outros, não incluiu nas equações os reflexos dos contextos
histórico-sociais nos nomes, que são bem claros: árabes muçulmanos, chamados “mouros”, foram
invasores do território europeu entre os séculos VIII e XV: teriam levado para lá cordofones
dedilhados de caixas periformes, com fundos abaulados, especialmente em dois tamanhos que
seriam chamados, numa adequação à nossa língua, algo próximo de rabab e mandura (os de braço
curto) e al’ud (“alaúde”), os de braços mais longos. Em rejeição e/ou concorrência a aqueles
instrumentos dos invasores, após alguns séculos surgiriam cordofones espanhóis com caixas
cinturadas e fundos planos, mas cujas demais características seriam quase idênticas às dos
antecessores mouros, inclusive os dois tamanhos: guitarra (menor) e vihuela (maior), citados e
detalhados, por exemplo, por Juan Bermudo em sua Declaracion de los Instrumentos Musicales,
de 1555.
As guitarras traçariam (a partir do século XVI), uma história de sucesso: primeiro,
pequenas, com 4 ordens de cordas, concorrendo claramente com bandurrias (nome espanhol para
as citadas manduras árabes). Aquelas guitarras pequenas chegariam até a ficar “famosinhas” por
outras terras além das espanholas, mas depois (a partir do século XVII), cairiam em desuso, assim
como as vihuelas, quando então ambas foram substituídas por guitarras com 5 ordens, a tal
“guitarra barroca” (nome inventado depois, e que não deveria, mais é muito citado até hoje, porque
aquelas, sim, se tornaram bem famosas). Àquela segunda época, fora do território espanhol, há
inúmeros registros, inclusive métodos de guitare (em francês), Guitarre e/ou Gitarre (em alemão),
chitarra (em italiano) e até gittern, cittern e guitar (em inglês) mas, neste último caso, foram três
nomes apontados tanto para cinturadas quanto arredondadas.
Atente que, mesmo com as pequenas variações dos nomes, boa parte da Europa da época
teria se rendido à preferência espanhola / catalã “guitarra”; entretanto, apesar de vizinhos "parede
e meia" (como se diz em Minas), os portugueses não teriam ido “na mesma onda”. Uma boa fonte
para visualizar o panorama geral é o livro The Guitar and its Music: from the renaissance to the
classical era, de Tyler & Sparks (2012), pelo grande número de fontes apontado.
É importante observar que o que caiu em desuso, na prática, foi a utilização do nome
guitarra para cinturados pequenos, e vihuela para os maiores. Instrumentos similares continuaram
existindo, fora do território espanhol, com outros nomes. Por exemplo: para os menores, com o
tempo surgiriam nomes como os portugueses descante, rajão, braguinha, machinho, machete,
cavaquinho e até a versão hawaiana ukulelê (os dois últimos, já a partir do século XIX). Na Itália,
desde o século XIV, e em Portugal, desde o século XV, há registros de "violas", que seriam
correspondentes às antecessoras vihuelas espanholas (uma evidência disso é que nas três culturas
os nomes teriam sido bivalentes, ou seja, um mesmo nome para dedilhados e para friccionados por
arco). A diferença é que na Itália, a partir do XVII, acompanhando outros europeus, o nome dos
dedilhados cinturados mudou, separando-os assim, também pelos nomes, dos friccionados por arco
(que continuaram violas): assim surgiram as chitarras italianas, nas quais praticamente só o nome
mudou, pois seriam similares às violas dedilhadas italianas antecessoras, assim como às vihuelas
espanholas de antes e, mais ainda, às então guitarras "barrocas". As mudanças em várias regiões a
partir daquela mesma época denotam adesão à preferência espanhola por cinturados, mas para
portugueses a separação de maneiras diferentes de tanger por nomes diferentes nunca viria a
acontecer, e a bivalidade inclusive ainda continua: é por isso que temos ainda “violas” e “violas”.
Como apontamos, as histórias se entrelaçam, é preciso ter sempre “um olho no peixe, outro
no gato”. Um destaque é que, como o charango latino americano (que com o tempo teria mais
cordas acrescentadas), “machete” viria a se tornar a nossa Viola Machete, não sendo, portanto, por
coincidência que estes instrumentos, cinturados e de tamanho menor, tivessem tido armações com
4 ordens antes, e hoje armem em 10x5: são exatamente as antigas armações (primeiro das pequenas
manduras e guitarras, depois das "guitarras barrocas" que emergiram e, como enfatizamos,
ficaram famosas a ponto de terem suas armações copiadas em outros cordofones). Faz sentido
porque, assim, o repertório de um instrumento antigo pode ser facilmente tocado por outros,
modernos, e aconteceu várias vezes na História dos cordofones (por exemplo, com as LYRAS,
substituindo citaras ancestrais, instrumentos europeus substituindo mouros, etc.).
Finalmente, as guitarras espanholas mudariam mais uma vez (uma terceira
ressignificação do nome), não por coincidência na já citada virada dos séculos XVIII e XIX,
passando a armar com 6 ordens (seis cordas simples), que é o “violão” atual, e que acabou por
“dominar a zorra toda” de lá pra cá. Só não aconteceu “do dia para a noite”: durante o período de
transição entre a “guitarra chamada barroca” e o “chamado violão” (aproximadamente entre 1760
e 1830, pelos registros que colecionamos), teriam surgido também versões com cinco cordas
simples e até de 12x6 (uma revisitação à antiga armação das vihuelas e alaúdes). Poucos além dos
citados Tyler & Sparks (2012) teriam observado registros de todas estas variações de armações
acontecidas durante a fase de transição (e, naturalmente, nós fomos um pouco além dos
estadunidenses, porque somos "marrentos", além de conhecermos a fundo as violas dedilhadas, o
que a maioria dos estudiosos ocidentais despreza...).
Lembrando que as guitarras seriam simplesmente chamadas de “viola” em Portugal, por
lá há registros desde o século XVIII de armações em 12 cordas em 5 ordens (onde, portanto, duas
ordens são triplas). Estas, diferente das guitarras espanholas, apontariam uso de cordas metálicas,
conforme apontaram Pita Rocha (1752) e Paixão Ribeiro (1789) e seriam as primeiras violas
portuguesas "de fato", pois seriam as primeiras diferenciáveis de outros instrumentos que já
existiam.
É bom prestar atenção em alguns detalhes pouco apontados nos demais estudos: as violas
12x5 portuguesas seriam afinadas e tocadas exatamente como as guitarras espanholas da época (o
citado método de Pita Rocha é tradução equivalente à parte sobre guitarras de cinco ordens de
famoso método de Amat, de cerca de 150 anos antes). A armação 12x5 teria sido citada pelo
francês Michel Courrete depois (em 1762) e, sabe lá Deus porquê, ele apontou que seria chamada
“à la Rodrigo”. Muita gente boa, até hoje, acredita que a invenção da armação teria sido
portuguesa, mas não se atesta (já esclarecemos isso por aqui, em um Brevis Articulus específico).
Também já denunciamos que ordens triplas com cordas de metal já seriam utilizadas bem antes,
em chitarras italianas; além disso, pares de cordas metálicas constariam, desde o século XV, em
bandoras inglesas (ver Martin, 2006).
Não teria sido, portanto, uma “criação portuguesa", mas as violas 12x5 seriam de fato as
primeiras “violas” dedilhadas portuguesas com significativas e atestáveis diferenças das guitarras
espanholas e outros cordofones existentes. Esta é a nossa descoberta sobre a origem das violas
dedilhadas: até então teriam sido apenas “um nome nacionalista” utilizado pelos portugueses para
os diversos cordofones existentes. Também não é nenhum “grande feito” nosso: apenas olhamos
por ângulos diferentes e mais amplos os registros e contextos que outros já poderiam ter percebido
(por exemplo, alguns dizem que teria sido bilinguismo, mas comprovadamente era um
"multilinguismo").
Outra constatação nossa é que, historicamente, a visão portuguesa sempre foi diferente,
exclusiva: pelo menos entre os cordofones populares, ainda não encontramos um que eles tenham
inventado a partir do zero, ou tenham implementado modificações e evoluções expressivas, só nos
nomes (e apenas nomes diferentes não tornam diferentes os instrumentos em si). Os portugueses
podem até ficar chateados conosco, mas é o que a História aponta; e aqui nem cabe crítica negativa,
antes ao contrário: entendemos que não usar nomes relacionáveis a culturas dissidentes seja uma
forma peculiar de nacionalismo, de patriotismo português, que entendemos ser até admirável. Há
que ser contextualizado que, entre outros contextos relativos só aos portugueses, em 1755
aconteceu o chamado Grande Terramoto, que teria praticamente destruído Lisboa: a comoção
social foi grande, por longo período, vez que a reconstrução não teria sido rápida, nem fácil.
Enquanto isso, a Revolução Industrial estaria em curso: a soma de todos os contextos traria
diversas mudanças sociais específicas dos portugueses e, como sempre, eventos de grande
comoção social são refletidos de alguma forma nos cordofones populares.
Entre reflexos da Revolução Industrial, destaca-se que, pelo potencial financeiro /
comercial intrínseco, ter um instrumento diferenciado ajudaria a destacar um país ou região. Os
espanhóis já estariam a explorar e lucrar com esta visão há tempos, mas sua guitarra "definitiva"
surgiu exatamente naquele período; italianos já investiam em seus friccionados por arco, que
também emergiram a partir do século XVIII (quando finalmente alcançaram a textura aguda
desejável nos violinos); ingleses já teriam feito tentativas de aprimoramentos e caracterização em
seus arredondados / ovalares (caixas com desenhos especiais, com gomos) que, não por
coincidência, cairiam em desuso pela ascendência da guitarra inglesa, arredondada. Métodos de
aprendizado, aprimoramentos de fabricação e aumento das preferências de uso são atestações
destes fatos, observadas em fartos registros.
Tecnicamente, instrumentos com diferentes armações de cordas seriam “instrumentos
diferentes”, na antiguidade. Sim: tamanho e armações de cordas são diferenciadores, embora
alguns estudiosos parecem ainda não entender assim, pelo mundo. Uma evidência se aponta por
diversos métodos publicados onde o número de cordas era indicado desde o título, obviamente
para que o potencial cliente não tivesse dúvida sobre a qual(is) instrumento(s) se referia o método.
Destacamos o já citado método de Amat, onde no extenso título fez-se questão de indicar Guitarra
española y vandola (estas últimas que teriam seis ordens, ou seja, como vihuelas), além de
instrumentos de cinco órdenes y de quatro. Outra evidência que não deixa dúvida de que armações
de cordas é diferenciador está na prática de execução de instrumentos mas, infelizmente, muitos
que os estudam não desenvolvem também a habilidade, prazer e honra que é tocar algum
instrumento. Se não considerarmos detalhes de números de ordens e de cordas, somado a outros
contextos (aos quais agregamos as variações de nomes), grande parte da História das guitarras,
violas e outros cordofones simplesmente passa despercebida.
Teriam sido, portanto, “instrumentos diferentes”, mas chamados originalmente de
“guitarra” (que aponta ter sido o investimento espanhol, como numa “marca”). Já “violão” e “viola
francesa” são apelidos criados pelos portugueses, dissidentes dos espanhóis que demonstram
historicamente não gostar de “dar palco pra inimigo” pelo nome dos instrumentos. Por que aqueles
apelidos teriam surgido? Há registros de violones italianos, que podem ter influenciado, mas o
mais provável é porque portugueses então já chamavam as antigas guitarras (de 5 ordens) de
“viola”: e a “nova guitarra”, com 6 cordas simples, evoluiu com o tempo para caixas um pouco
maiores, se tornando mais diferentes ainda e com mais sucesso pelo território europeu...
[Entendeu o princípio de ação e reação, dentro do contexto de nacionalismo português?
Entendeu até certo pejorativismo no aumentativo “violão” e na tentativa de disfarçar a verdadeira
origem pelo nome “viola francesa”, sendo que o nome “guitarra” já era utilizado há séculos pelos
espanhóis? Entendeu como a História das guitarras se cruza com a das violas? Percebeu porque é
importante estudar os nomes nas línguas originais e estar atento a fenômenos circundantes, como
a História específica de cada região? São muitas reflexões, esperamos que estejam acompanhando
bem...].
Conclui-se, sem qualquer dúvida, que a origem das guitarras se deve aos espanhóis, até por
reconhecimento aos esforços que empreenderam por séculos.
Mas e as tais das aspas que ficamos devendo?
Os portugueses teriam começado a investir em algumas diferenças para suas violas
dedilhadas, mas não teriam seguido no projeto, mesmo quando não haveria mais “concorrência”
com as guitarras espanholas (porque estas mudaram pela segunda e última vez). Entendemos que
seguir com a estratégia (de investir nas violas) realmente não teria sido a melhor, porque
“instrumentos chamados de viola” existiam também no Brasil, a então enorme ex-Colônia (já que
se libertou exatamente naquele período, em 1822). A comoção social em Portugal mais uma vez
teria sido grande, pela perda da Colônia, aumentada pela Guerra dos Dois Irmãos (1832 a 1834),
e em ocasiões como aquelas é compreensível o nacionalismo ficar latente; e quando há grande
comoção social, instrumentos reagem de alguma forma: estes contextos todos apontam ter levado
à ascensão da “guitarra” portuguesa (e finalmente vamos desvendar o motivo das nossas aspas).
Pra começar, afirmamos (e que alguns portugueses um dia possam nos perdoar), que a
origem das guitarras portuguesas aponta indubitavelmente ser direta das já citadas english guitars
ou english gitterns (“guitarras inglesas”), de caixas arredondadas, de expressivos registros entre o
século XVII e o início do século XIX. Guitarras portuguesas, de caixas arredondadas, claramente
em reação / concorrência às cinturadas guitarras espanholas: já vimos este filme antes, certo? Tudo
corrobora coerências: um povo que não tem histórico de criação de instrumentos novos, mas de
chamá-los por nomes nacionalistas, em época de grande comoção social, com nacionalismo
aflorado, enquanto outros europeus investiam em instrumentos como produtos de identidade
nacional com sucesso, entre os quais, seus grandes dissidentes, os espanhóis...
Gostamos de apontar (mas brincando), que os portugueses pareciam estar “a tirar sarro”
dos espanhóis, ao finalmente passarem a utilizar abertamente o nome “guitarra”, porém para um
instrumento bem diferente, de caixa arredondada. Pode parecer que tenha sido apenas uma
coincidência, vez que uma tradução natural de guitar / gittern para o português seria “guitarra”:
só que, em termos de histórico de nomes de instrumentos, sempre desconfiamos de
“coincidências”. Se existiram, são raras: naquele caso, atestamos que bifurcações por nomes e
tipos de caixas já vinha acontecendo há séculos, portanto não seria coincidência... nunca é!
Voltando a só falar sério, portugueses como Nuno Cristo (2021), afirmam que não: por
grande número de registros de nomes realmente atestados, ele, mais que outros, desenvolveu que
guitarras portuguesas teriam vindo de antigas cítaras, não das guitarras inglesas. O que
observamos, entretanto, é que o exaustivo número de fontes escritas apontado por Nuno
(praticamente não haveria registros das artes plásticas, o que já é significativo) por si atesta que
muito raramente os portugueses teriam utilizado o nome GUITARRA antes do século XVIII (ao
contrário do que grande parte do continente fez, a partir do século XVII). Nuno também ajuda a
atestar como os “gajos” expressam seu nacionalismo de forma peculiar, e isso até os dias atuais,
em especial por considerarem que os nomes que utilizam seriam soberanos, indiscutíveis. É assim,
ascensão da guitarra portuguesa (olha uma queda de uso aí, somando nas atestações), enquanto as
guitars cinturadas seguiram. Só portugueses seguiriam chamando dedilhados cinturados de
“viola”, só portugueses chamam um instrumento de caixa arredondada pela nomenclatura
GUITARRA até hoje ... Por que?
Quando acrescentamos à equação investigativa contextos histórico-sociais, surgem
panoramas esclarecedores: a evolução em paralelo das culturas “germânicas” e “latinas” nem
precisa explicar, vai muito além da intensidade de influência do latim nas línguas: são rixas
antiquíssimas, assim como as existentes entre portugueses e espanhóis, e de todos com os invasores
mouros. Um contexto importante, porém mais regionalizado, é a reaproximação de Portugal com
a Inglaterra, apoiadora de Dom Pedro I, "vencedor" na Guerra dos Dois Irmãos, de entre 1832 a
1834 (se é que alguém pode mesmo ser dito "vencedor", pois toda guerra é uma grande "perda");
qualquer forma, aquele foi mais um evento em que o nacionalismo português foi ferido, pois
perderam uma guerra para o governante da ex-Colônia: e a reação, nos instrumentos, foi a ascensão
das guitarras portuguesas (que, inclusive, apontam nacionalismo desde o nome composto).
Apesar de ter havido anteriormente em Portugal instrumentos apontados pela nomenclatura
CITARA, foi após o expressivo retorno da influência inglesa que ascendeu a guitarra portuguesa,
para depois se tornar uma “expressão de identidade nacional”, junto com o fado: este é outro “filme
já visto”, de investimentos em determinado tipo de músicas e instrumentos, por um povo, logo
após as fases da Revolução Industrial apontarem sua consolidação (o capitalismo atual).
Portugueses apontam historicamente uma forma peculiar de nacionalismo expresso pelos
nomes dos cordofones populares, atestável pelo surgimento de anomalias exclusivas como as
“guitarras” portuguesas arredondadas (entendeu agora as aspas?), assim como a continuidade de
“violas” como nome bivalente (para dedilhadas e friccionadas por arco), quando praticamente o
mundo todo separa os instrumentos por nomes diferentes para cada maneira de tanger. Lembra
que lá no início citamos o paralelo ancestral pan-tur / kethara? Não seria à toa que aquele padrão
seria quebrado apenas por portugueses: mas é também por contextos histórico-sociais específicos
e atestáveis, não por coincidência ou aleatoriedade.
O fato é que instrumentos há séculos apontam que quando surgem, ascendem, caem em
desuso ou mudam (inclusive de nome), atestam-se contextos histórico-sociais que justificam tais
transições.
Por falar em nomes que permanecem, guitarras elétricas sempre mantiveram a
nomenclatura de origem espanhola (!) embora tenham surgido nos Estados Unidos da América em
meados do século XX, já com o capitalismo mais do que consolidado. O respectivo contexto
aponta a grande comoção social causada pelas duas guerras mundiais, seguidas por movimentos
pela paz como o hippie (ação/reação). A Música reagiu pela ascensão do rock, onde as guitarras
elétricas aparecem com destaque, junto com evoluções eletrônicas, o que inclui aprimoramento de
comunicações e trocas de informações mais globais (outro contexto da época, que se cruza e se
soma). Todos aqueles contextos ainda se relacionam, por exemplo, ao fenômeno Beatles (e não
seria coincidência), mas aí já são outras prosas.
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
diversas línguas, mas não são. Mais importante ainda é refletir: afinal, por que raios um árabe e
um europeu teriam precisado interagir? Por que cada um não ficou no seu próprio lugar, falando
só nas suas próprias línguas?
Bom, se gosta de respostas simples, aqui tem uma: todas as vezes que interações de povos
muito diferentes aconteceram na História da Humanidade foi devido a eventos históricos que
causaram grandes impactos nas sociedades envolvidas (como invasões, calamidades e outros).
Caso tenha interesse, nas primeiras páginas do livro A Chave do Baú até apontamos um apanhado
sobre os principais eventos históricos e os impactos observados em instrumentos musicais. Talvez
também façamos um Brevis Articulus a respeito, mas são outras prosas...
Primeiro (e é importante chamar prestar atenção nisso), não teria sido por coincidência que
onde se constatam os mais remotos registros escritos houve também desenvolvimento maior que
nas demais regiões. Sim, pode conferir: quem “escreveu e leu”, aponta também ter feito
descobertas e invenções pioneiras como a roda, evolução na utilização do fogo e outras
constatações de desenvolvimentos do ser humano primitivo. E até hoje, de forma geral, onde há
mais desenvolvimento, há mais interesse (inveja, talvez?) de outros povos. Entre os mais antigos,
Sumérios tiveram menos sorte que egípcios: tanto foram invadidos e saqueados até que a
civilização foi extinta, restando o que arqueólogos ainda tentam descobrir e traduzir por completo.
Entendeu porque nosso ponto de partida “História / Sociologia”?
Após a invenção da escrita, destaca-se um evento de grande interação, com impacto
considerável para várias sociedades então distantes e bem diferentes: os fenícios, ali pelo século
XVII aC., teriam saído a navegar pelo Mar Mediterrâneo, com fins de comércio. A mistura de
línguas foi tão latente que a eles devemos o início de investimento num conjunto de códigos (letras,
palavras) que pudesse ser utilizado como padrão, como facilitador das comunicações (costuma-se
dizer "alfabeto fenício", mas o evitamos pela imprecisão: "alfa" e "beta" são letras gregas surgidas
depois, que os fenícios, obviamente, não utilizariam). Dos fenícios, os gregos (já entre os séculos
XVIII e II aC.) entre outras coisas herdaram o costume de “visitar” as mesmas tão distantes terras
e de querer inventar uma língua geral, mais padronizada, o que acabaram mesmo por criar. Isso
teria ido até que um macedônio de sangue mais quente (Alexandre, chamado “o grande”, já no
século IV aC.) dominou os gregos e depois partiu para dominar e explorar, pela força, o que tivesse
de valor onde os gregos (e fenícios) tinham “visitado” antes. Em seguida, de Alexandre os romanos
herdariam a sede de conquistas pela violência, e a partir do alfabeto grego derivaram o latim, que
inclusive tentaram impor a toda a vasta região, sempre buscando “ao infinito e além”.
Pronto: assim tentamos apontar, em síntese, porque linguistas classificam como “tronco
indo-europeu” línguas tão diferentes, de povos tão distantes como asiático-árabes (sumérios e
fenícios) e de toda a atual Europa, inclusive seus limites mais longínquos como o Norte
(arquipélago britânico), as fronteiras com a Rússia, etc. Para nossos estudos, destaca-se a diferença
causada pela maior ou menor influência do latim, que subdivide línguas indo-europeias até hoje
entre “germânicas” (inglês, alemão, holandês, etc.) e “latinas” (italiano, francês, espanhol,
português, etc.).
Os instrumentos musicais diferentes que chegaram ao território europeu, e os que depois
surgiram, foram sofrendo mudanças junto com as diversas línguas que começariam de fato a
evoluir só após quedarem-se livres de Roma (século V), apesar da Igreja ainda ter mantido o latim
por praticamente todo o território. Todas aquelas línguas foram influenciadas pelo latim (e este,
pelo grego): umas mais e outras menos, mas todas foram. E daí, a partir do século VIII, ocorreu
mais um evento de grande impacto: a Invasão Moura ("olha os árabes aí, gente"...). Aquela invasão
foi decisiva para nossos objetos de pesquisa, pois então surgiram cordofones que apontam ter
inspirado diretamente (no contexto histórico-social de reação aos invasores) o surgimento e
evolução dos instrumentos europeus ("avós" dos atuais, consolidados).
Para estudar instrumentos tantos séculos depois, há ainda outro complicador de origem
humana: uma mania que alguns tem, há séculos, de inventar significados para palavras (e pior: se
a “invenção” for criativa e agradável aos que gostam de respostas fáceis, são replicadas sem
escrúpulo algum). Já fizemos até um pequeno ensaio a respeito, em nosso livro A Chave do Baú:
uma série de nomes, de diversas línguas, que com o tempo foram sendo considerados por
significados que “parecem muito” terem sido, vistos séculos depois... Destacamos desde Isidoro
de Sevilha, que no século VI teria apontado alguns significados sem atestação em registros antigos
em sua Etymologiarum sive originum (“Etimologias ou Origens”), um texto que conferimos tanto
por Lyndsay (1911) quanto por Gerberto (1784); até alguns significados "intuídos" por um dos
maiores organólogos do mundo até agora (na nossa não solicitada e insignificante opinião): o
alemão Curt Sachs, em seu The History of Musical Instruments (“A História dos Instrumentos
Musicais”): nesta publicação, já da década de 1940, Sachs apontou tradução de pan-tur (cordofone
sumério de três cordas, braço e caixa de ressonância) como “pequeno arco”, porém, não há
atestação de que teria sido tocados por arco. Naturalmente, o pan-tur inteiro pode ser apontado,
figurativamente, como um "arco" (sem flecha), pois seria como um "pau com cordas": mas não
teria sido tocado por arco, como se observa também em outros instrumentos dos primeiros séculos.
Sachs também foi dos que usaram genéricos (como o inglês fiddle, o alemão fidel e o latino fidula)
para descrever todos os instrumentos tocados por arco: estes termos simplesmente não tem
registros antes do século IX, de onde viria fidula, do clérigo alemão Otfrid de Weissenburg em seu
Liber Evangeliorum (“Livro dos Evangelhos”). O problema é que aquela fidula simplesmente não
aponta ter sido tocada por arco... Entendeu a bagunça? Muitos chamam os friccionados por arco
por um genérico que teria sido, na origem, nome de um dedilhado. Defendemos que criar e seguir
usando genéricos é um grave equívoco: só complica mais o que já é complexo por natureza, que
são nomes nas línguas originais. Mas, por enquanto, parece que só nós teríamos percebido isso,
pois nomes de instrumentos ainda são tratados de forma muito superficial, até por estudiosos.
É exatamente por causa da complexidade inata e de tantas superficialidades históricas que
decidimos estudar e tentar desvendar o "novelo". A fim de não sermos enganados pelas verdadeiras
“cascas de banana” que até estudiosos muito sérios e competentes ajudam a deixar pelo caminho,
desenvolvemos uma busca pelas mais remotas fontes a partir de diferentes línguas, épocas e tipos
de estudo; retraduzimos com olhar bem atento, organizamos cronologicamente e trabalhamos com
a média estatística deles (por outra Ciência então agregada, a Matemática-Estatística, também
aceita em todas as áreas do conhecimento), de olho nos registros históricos e nos grandes impactos
sociais históricos dos povos envolvidos. Não, não é algo de se explicar por poucas frases: bem
longe disso, aliás... Esperamos que compreendam...
Entendemos serem normais alguns pioneirismos, pois no considerável acervo que
levantamos pouquíssimos parecem ter realmente abraçado a complexidade, e nenhum teria
apontado contextos, metodologias e dados atestáveis como fazemos. Entretanto, intuições e
principalmente fontes apontadas por estudiosos de várias épocas e nacionalidades (como Du
Cange, Praetorius, Gerberto, Ambros, Engels, Fetis, Martinez e o próprio Curt Sachs, entre outros)
foram cruciais para desenvolvermos e atestarmos nossas visões. Ao mesmo tempo, lacunas de
tantos grandes pesquisadores ajudam a atestar que nossa visão não teria sido aplicada antes. E sim,
também como teria dito Platão, em A República, o que fazemos é apenas apontar o olhar, que
todos tem, para “ângulos atestáveis” (este último trecho preferimos apontar nós, enquanto Platão
teria dito “ângulos mais corretos”).
Um ditado popular decretaria que “toda regra tem exceção”; entretanto, cientificamente,
entende-se que se uma exceção não foi prevista é porque a regra não foi bem elaborada. Alguma
possível exceção, portanto, testaria a regra (no nosso caso, até “atestaria” a tal, com desculpas pelo
"trocadálho"... ops...).
Naturalmente (e estatisticamente) pensando, se há um número expressivo de “exceções não
bem explicáveis” é porque a regra está errada: portanto, analisar possíveis exceções deve fazer
parte de todo bom desenvolvimento. E assim, neste Brevis Articulus vamos analisar algumas das
exceções interessantes que encontramos e inserimos na equação investigativa.
Nosso começo foram as violas dedilhadas: das portuguesas, observamos anomalias que já
deciframos por aqui, como a consolidação de “violas e violas” (ou seja, dois instrumentos tocados
de maneiras bem diferentes, com o mesmo nome) e uma “guitarra portuguesa” com caixa
arredondada. Outra anomalia (ou “exceção”) sobrevivente só na língua portuguesa é o próprio
nome forte “viola”, preferido pelos portugueses em detrimento aos dos cordofones existentes, que
se tornou a origem de nossas violas dedilhadas. Todas estas exceções são explicáveis pela
característica histórico-social particular dos portugueses, com atestação por vários registros, pelos
séculos. E se mostram coerentes (portanto, em evidência de atestação) com outros casos similares,
como o verdadeiro surgimento do modelo Viola de Cabaça no Brasil só a partir da década de 1980,
após uma lenda ter sido criada por Rebello (em 1882): este, equivocadamente apontou origem ao
século XVII, a partir de apenas uma citação em poesia de Gregório de Mattos, o que atesta que o
nome “viola” prevaleceu por muitos séculos nas mentes, para (novamente) só depois ter originado
um instrumento de fato (somado ao fato de que “cabaça” é também um nome forte). Outro caso
semelhante é o da Viola de Buriti, que não tem caixa cinturada, mas que, além de consolidada com
o mesmo “nome forte” (viola), é tocada até hoje tanto dedilhada quanto friccionada por arco,
resquício que remonta pelo menos às vihuelas espanholas (século XVI). E ainda em outra
"exceção" atestatória, a consolidação do nome “viola caipira”, acontecida de fato só a partir da
década de 1970, mas que, antes de nossas descobertas e denúncias, muitos entendiam que teria
sido anterior, relativo à uma suposta “cultura” representada pelo termo “caipira”: um nome
também muito forte, que só a partir do século XX começou a ser interpretado e defendido como
se fosse de origem indígena direta, mas que já atestamos que nunca teria sido.
Tantas possíveis “exceções” (se considerarmos toda a História Ocidental dos cordofones)
talvez sejam o motivo de lá fora não serem muito estudadas nossas violas, mas, na verdade, o fato
é que tudo isso atesta e confirma nossa metodologia, nossas "regras" postuladas: tudo se relaciona
a continuidades quebradas por contextos histórico-sociais, que é a nossa "regra maior".
Há vários outros exemplos na História dos cordofones que analisamos bem mais
profundamente que os estudos investigados. Quase todos já mereceram aqui Brevis Articulus
específicos (afinal, esta ação é para apontar aprofundamentos). São “prosas passadas”, portanto, o
caso das ORGANAS, um destaque por serem antecessoras dos atuais cinturados com braços e seu
nome ser, de longe, o mais confundido pelos séculos. Há também o caso das CITARAS, hoje
entendidas às vezes até como saltérios (cordofones com caixa ao longo das cordas, sem braços),
mas que teria sido só nome de cordofones sem braços nem caixas antes, e após o século IX, ter-se
ressignificado como nome dos primeiros cordofones com braços longos a surgirem no território
europeu. E sim: observamos e contextualizamos que às vezes nomes de instrumentos sofrem
ressignificações, mas nunca aleatoriamente, pois sempre há contextos histórico-sociais em
paralelo.
Não somos malucos de ir contra consolidações ocorridas popularmente, após longos
períodos (até porque é científico, pois é estatístico); mas apontamos equívocos recorrentes, que
apontam terem se tornado um padrão histórico. Por exemplo, a variação cithara não faria sentido
(pois nem teria existido) antes do domínio dos romanos, que converteram kithara do grego (assim
como outras palavras gregas com a letra “k” (kapra) também foram convertidas para “c”, em
latim). Cithara foi, por séculos, nome de instrumentos sem braços e é assim que deveria ter sido
utilizado sempre: o fato de passarem a ser muito apontados depois, como se um nome pudesse ter
"valor retroativo no tempo” (o que é impossível), atesta dois aspectos: o contexto histórico-social
do reavivamento do uso do latim a partir do século IX e a histórica falta de precisão de apontamento
de nomes, que nos trouxeram à citada (e respeitada por nós) consolidação popular da
ressignificação da nomenclatura CITARA, então para instrumentos com braço. Ou seja, não se
discute com fatos históricos: atesta-se, analisa-se e se considera na equação (senão, vira uma
exceção causadora de "teoria furada"). Não: neste caso, a exceção confirma a regra, que é que
instrumentos sofrerem alterações (como surgimento, ascensão e queda de uso, e de características,
inclusive nomes) conforme eventos de grande impacto social. E eventos assim, nos séculos IX e
X, não tão atestados que historiadores separam Idade Média "alta" e "baixa" a partir daquele
período.
Outra concernente “prosa passada” sobre exceções é o grande capítulo das guitarras
espanholas, com seu histórico de manterem um mesmo nome desde o século XIV (pequenos
cinturados com 4 ordens de cordas), mudando para 5 ordens entre os séculos XVII e XVIII (as
famosas, chamadas modernamente “guitarras barrocas”) até, finalmente, mudarem para 6 cordas
simples a partir do século XIX (o mais famoso ainda, chamado “violão” pelos portugueses). O
nome guitarra carrega resquício de kithara e cithara: para montar esta equação é preciso observar
que a letra “c” substituiu, em latim, além da citada letra grega kapra, às vezes também a letra
gama: todas estas letras, em algumas palavras, teriam pronúncia próxima (que inclusive ainda
resiste em português), uma pronúncia chamada "oclusiva velar" (segundo estudos linguísticos).
Ou seja: na transmissão oral, seriam como palavras equivalentes, mas faladas por pessoas de
"sotaques" diferentes, o que é normal em regiões extensas, com influência de várias culturas (como
francos, germanos, godos, celtas, etc.). Soma-se que as guitarras surgiram depois, e seriam
diferentes (teriam braços), o que justifica o surgimento de um nome diferente, vez que os
instrumentos coexistiriam (o que acabou ocorrendo por séculos): daí, a "kithara / cithara com
braços" emergiria com nome apenas um pouco diferente (a pronúncia da primeira letra), por
determinado povo de sotaque / influência cultural específicos: eis a origem do nome espanhol
guitarra, cujos mais remotos registros apontam o século XIII, quando em latim já haveria guiterna
/ guiterra, e em francês, guiterre.
De fato, pela vasta extensão de território (que implica influências culturais distintas,
expressas nas línguas), variações sempre surgiriam pelos tempos (somado a registros escritos por
autores que não observariam bem os contextos de região e época para os nomes, ou fariam
transcrições adaptadas, "traduzindo" termos ouvidos em cada região). Assim, por exemplo, cithara
teria registros diferentes, dependendo do sotaque regional e possivelmente por alguma pequena
diferença física (organológica) dos instrumentos, como: citram / citam (os mais remotos
observados, do século VIII), e cetra, cedra, citola, citula, cetola e outros similares (estes últimos
registros, a partir do século XII). Às vezes mesmos nomes seriam grafados com inicial "s", quando
se observa que a pronúncia original (equivalente a kithara) então se distorceria e multiplicaria
porque a letra "c" latina tem outras possibilidades de pronúncia (que também são ainda
observáveis, em português). Surgiriam também em latim, com registros anteriores a guitarra,
variações como guiterna / guiterra / quinterna e similares, tudo dentro da mesma lógica que
chamamos aqui de "sotaques" (este termo, num paralelo com os tempos modernos, para facilitar a
explanação). Também se conclui ser normal que os povos preferissem nomes personalizados, mais
identificados com suas formas de falar, à medida que evoluíam os sentimentos nacionalistas (e
então, automática e gradativamente, costumes de outras regiões / línguas / culturas foram sendo
rejeitados). A observação e reflexão atentas cruzam, portanto, as transcrições (grafias) dos
registros escritos com as possibilidades de variação de pronúncias, estas últimas típicas da
transmissão oral.
[Pausa rápida, para um destaque: percebeu a soma e cruzamento de Ciências? Linguística,
História, impactos Sociais, Literatura comparada... E como tudo aponta e justifica resquícios nos
nomes e outras características dos instrumentos, pelos séculos?].
Entendemos que esta pequena análise histórico-social-linguística deixa um pouco menos
complexo o entendimento de porquê dois caminhos paralelos anteriores ao surgimento do nome
guitarra (caminhos que chamamos “bifurcação", outro padrão histórico) surgiram a partir de
cithara nas línguas germânicas (cittern / quitern / gittern) e latinas (cedra, citola, guitarra).
Quando adicionamos a visão organológica na equação (embasada em registros escritos e das artes
plásticas, estatisticamente somados e cruzados) observa-se que com o passar do tempo que: a
preferência se direcionou, em algumas regiões / culturas, para os de caixa arredondada (italianos,
ingleses, alemães) enquanto em outras, para caixas cinturadas (opção espanhola, seguida por
portugueses, franceses e outros); entretanto, a partir do século XVII vários aderiram à preferência
espanhola (da nomenclatura GUITARRA para cinturados) enquanto os portugueses, apesar da
língua ser muito parecida com o espanhol, só usariam o nome "guitarra" a partir do século XIX, e
em suas guitarras portuguesas, de caixa arredondada (caracterizando uma exceção). Quando enfim
inserimos os contextos histórico-sociais na mesma equação, fecha-se o quadro todo, por
justificarem paralelos com aquelas preferências por nomes e formatos: entre outros contextos,
temos a Hyspania em ascensão no século XVI, enquanto lusitanos rejeitavam nomes espanhóis
em concorrência explícita (a dissidência na verdade já viria desde que os primeiros se lançaram
como reino independente, no século XII, mas se agravaria porque entre 1580 e 1640 espanhóis
governaram também Portugal). Temos na mesma época também italianos, ingleses e alemães, que
tiveram divergências com espanhóis, rejeitando o formato cinturado: este panorama mudaria um
pouco, a partir do século XVII, com aqueles povos até apontando uso de guitarras cinturadas,
inclusive chamadas por variações da nomenclatura espanhola; porém, cinturados dedilhados nunca
seriam os preferidos daqueles povos. As exceções, portanto, ajudam a atestar a influência dos
contextos histórico-sociais na equação total.
Ainda podemos destacar outras “exceções atestatórias”, como as chitarras italianas,
surgidas no século XVII e cinturadas como as guitarras espanholas (e não arredondadas como as
citaras / cetulas lá deles, italianos). Aquele povo não teria aderido tão diretamente à nomenclatura
espanhola como visto em francês, inglês e alemão, mas a coerência se observa pela maior
influência, no italiano, do latim cithara. Também a lacuna deixada pelos espanhóis, ao
redesignarem o nome guitarra para cinturados de 5 ordens, abriu caminho (a partir do mesmo
século XVII) para a ascensão de nomes portugueses para cinturados como as guitarras espanholas
anteriores (cinturados pequenos, de 4 ordens): emergiriam então nomes como discante, machinho,
machete, braguinha, rajão e mais tarde até cavaquinho e ukulelê. E ainda, a partir do século XIX,
novamente os espanhóis ressignificariam o nome guitarra para seis cordas, deixando assim espaço
para o verdadeiro surgimento das violas dedilhadas portuguesas, que simplesmente mantiveram o
nome genérico já utilizado (“viola”) e a armação de cordas antecessora, 10x5. Percebeu as
exceções atestando a regra, neste recorte pelos contextos de dissidências entre povos?
Ainda de carona na longa e importante jornada das guitarras espanholas, desvendamos em
paralelo o novelo também das vihuelas deles, que teriam caído em desuso, junto com as guitarras
menores, no já tão citado século XVII, pela preferência de continuidade de uso do nome forte
guitarra para um então novo instrumento, com 5 ordens (também já citado várias vezes). As
vihuelas, na verdade, apontam terem continuado em outras regiões, com nome um pouco distinto,
mas que continuaria único, bivalente (para dedilhados e friccionados por arco): para o nome das
então "vihuelas fora da Hyspania" foi utilizada a variação viola na península itálica, pela já
apontada ligação direta com o latim, e tem registros nos séculos XV e XVI (ver Tinctoris,
Lanfranco, Ganasi); além deles, com o mesmo nome "viola" e também bivalente, as "vihuelas"
emergiriam em Portugal, a partir do século XV (ver Oliveira e Morais). Já das violas d'arco
italianas (enquanto as dedilhadas mudaram de nome para chitarras), surgiria a atual "família dos
violinos", que traz um acréscimo de complexidade no entendimento do caminho histórico, pois
entre o surgimento (no século XVI) do nome antes genérico violino (“pequena viola”), até a atual
consolidação, há um período de transição de cerca de 250 anos: violino só passaria a ter o
significado atual, como nome do instrumento moderno específico, a partir de meados do século
XVIII.
Um dos mais impactantes contextos histórico-sociais teriam sido as fases da Revolução
Industrial (entre o início do XVIII e o início do XIX) sendo que, naquele período, praticamente
todos os cordofones europeus mudaram muito. Não teria sido, portanto, aleatório: mesmo o
complicado cenário (de registros em tantas línguas diferentes e por tantos séculos) se demonstra
atestável por análises cruzadas abrangentes (no caso, é preciso considerar períodos desde alguns
séculos antes até alguns séculos depois, na História de cada instrumento).
Outra evidência atestável é que o que antes de nós parece ter sido entendido como
"aleatoriedade" coloca-se em xeque pela atual tendência de padronização, em praticamente todas
as línguas pelo mundo, dos nomes harpa e lyra. Até as violas de arco das orquestras, conforme
demonstramos em nosso livro A Chave do Baú, apontam que seus nomes estão num caminho de
padronização: um retorno literal à forma "viola” em diversas línguas. Se os nomes diferentes nas
várias línguas teriam surgido aleatoriamente, por que após vários séculos estariam a apontar voltas
a formatos mais remotos, a não ser porque contextos histórico-sociais sempre teriam atuado?
Lembrando que a globalização é tendência já de várias décadas, agravada pela ascensão da internet
por praticamente o mundo todo: este contexto histórico-social faz muita diferença, pois a sociedade
mundial está a mudar por causa da globalização e assim, como sempre, instrumentos seguem
refletindo grandes mudanças sociais, inclusive pelos nomes.
Destacam-se ainda mudanças de nomes de friccionados em geral num período de transição,
a partir do século XVI: na península itálica eram utilizados os nomes viola da braccio e alto (este
último, a partir de contralto, classificação de voz menos aguda que soprano). Os termos braccio e
alto apontam terem influenciado nomes de instrumentos equivalentes em outras línguas, mas que
nos últimos tempos também apontam estarem a retornar ao mais original, o latino viola, observável
desde o século XII (e por isso apontando ter influenciado o occitano, catalão e outras línguas
surgidas a partir do latim, e antecessoras e também influenciadoras do italiano). Retornos ao uso
de nomes mais remotos é o contrário de ser aleatório, pois as línguas continuam diferentes e cada
vez mais consolidadas (assim como o natural nacionalismo dos países)... E é aí que entra o contexto
histórico-social: embora a globalização, pela evolução geral das comunicações, já venha sendo
observada há algum tempo, houve no meio do caminho histórico o já citado forte período da
Revolução Industrial (quando nomes viraram “marcas”, que ajudam a melhor vender produtos):
assim, passado o período mais forte daquela então nova influência, o que se vê é uma globalização
absurda (até on line, ou seja, em tempo real), mais forte ainda que o capitalismo consolidado
(embora também motivada e alimentada por ele, enquanto ampliação de mercados). Os
instrumentos simplesmente não poderiam deixar de continuar reagindo a episódios histórico-
sociais tão expressivos, na mesma proporção de complexidade deles, por se cruzarem.
Excepcionalmente (pois não advém diretamente de registros históricos), apontamos como
provável última evidência uma premonição, que talvez nem estejamos vivos para atestar: com a
recente pandemia, que afetou muito a vida de grande número de pessoas, por todo o planeta, a
tendência é que instrumentos musicais reajam, de alguma forma. Como será, exatamente, não
temos como apontar... Mas quem sabe a próxima reação já esteja a começar conosco, e seria um
período de requestionamentos, reestudos e reescrita da História dos cordofones, e até de alguns
capítulos pouco abordados da História, refletidos por eles? Isso, sem dúvida, é papo para outras
prosas (só esperamos poder contá-las!).
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
“
Onomatorganologia? Não, você nunca ouviu falar, porque acabei de inventar. Achei
divertido lançá-lo exatamente em um 'primeiro de abril', e utilizando linguagem coloquial,
brincalhona... Fala a verdade, o academicismo às vezes não cansa um pouco? Por outro lado,
muitos gostam de textos leves, despretensiosos, ‘engraçadinhos’... E além disso, estamos numa
rede social, então relaxa. E curta (‘curta, comente, compartilhe, se inscreva no canal, clique no
sininho’, et cetera).
Onomatorganologia não ‘vem’ do grego, eu é que quis fingir 'trazê-lo' de lá, porque quis e
pronto: onoma, ‘nome’; organo, ‘instrumento musical’; logia (a partir de logus), ‘estudo, ciência,
escrita’. Seria, se ou quando vier a existir, ‘a ciência que estuda o desenvolvimento histórico-social
dos instrumentos musicais com ênfase em seus nomes’... Por enquanto, me dedico mais aos
‘cordofones’, que quer dizer 'instrumentos musicais de cordas’.
Uma besteira sem tamanho, não é? Afinal, já existem ciências que estudam palavras, entre
as chamadas ‘linguísticas’, especialmente ramos como a etimologia (etimo, ‘origem’), filologia
(filos, ‘amor’) e a abrangente lexicografia (lexico, ‘conjunto’; graphien, ‘escrita’). E também já há
ciência que estuda características dos instrumentos musicais, a ‘xará’ de nome mais curto,
organologia, ramo da musicologia.
Sobretudo, convenhamos: quem sou eu ‘na fila do pão’ para me meter a questionar ciências
consolidadas há tantos séculos? É óbvio que só posso estar querendo aparecer...
Bom... sou muito é ‘curioso’: periergos (em grego), curiosus (em latim), neugierig (em
alemão), inquisitive (em inglês), curiós (em catalão), curieux (em francês)... Um curioso em várias
línguas, mas nada mais que um curioso. Só não tenho preguiça de ler e refletir.
Também sou brasileiro, terra onde vejo ser cultivada popularmente a 'cultura da
bipolaridade', quero dizer: onde só se pode gostar de algo se for ‘A’ ou ‘B’... por exemplo, quanto
a política, religião, time de futebol... Em quase tudo, só pode ‘preto ou branco’, ‘homem ou
mulher’, ‘bom ou mal’... Me cresci (sobretudo, no abdômen) não vendo considerações de mais
que duas posições antagônicas para cada situação embora, curiosamente, várias vezes uma
palavras é escrita de várias formas, como abdôme / abdômen / abdômem (com ou sem acento
circunflexo)... Este é o meu país, minha língua: somos nós! Cheios de incoerências, mas se a gente
falar sobre elas, podemos ser mal entendidos, hostilizados até. Mesmo no meu caso, que demonstro
todo dia que amo nosso país, nossa língua, nossa cultura diversa (e maluca).
Posso dizer que sou anarquista: ser anarquista hoje é estudar, é ler e refletir por conta
própria; é ver que o radicalismo da bipolaridade só pode estar errado, pois gera divisão, violência,
argumentos estúpidos e sem fundamentos, etc. Ser anarquista é defender que quem procura o
Conhecimento, sem preguiça e com honestidade, pode achá-lo; que a Ciência nunca foi estática,
resolvida, definitiva: ao contrário, sempre evolui, ad infinitum...
[E sim: as citações em outras línguas, principalmente em grego e latim, são para tirar sarro
mesmo, ou para ‘me amostrar’, como se diz em algumas regiões brasileiras (e cá estou eu agora,
incorrigivelmente, me amostrando também por gírias)].
Pois bem: se a Ciência sempre evolui, porque devemos acreditar que as ciências existentes
seriam perfeitas, inquestionáveis? Afinal, o próprio substantivo scientia (latim para
'conhecimento') passou a ter o significado atual só após determinada época, em substituição ou
complemento ao nome antes usado, ‘filosofia’ (do grego e do latim philo, ‘amor’ + sophia,
‘conhecimento’): um nome que, portanto, tinha a ver com todos os conhecimentos. O conceito
atual de “ciência” é, portanto, uma evolução ou dissidência de ‘filosofia’, que perdeu tanto status
que hoje é considerada apenas uma das muitas ‘ciências’... Entende o paradoxo? Entendeu que o
normal é as coisas evoluírem, se modificarem, às vezes, muito?
[E convenhamos mais uma vez: ‘filosofar’ em pleno ‘primeiro de abril’ merece um Nobel,
não? Eu sei, eu sei: só não sou perfeito porque sou humilde, é meu principal defeito. O outro, é ser
mentiroso... (às vezes!)].
Mas chega de encher linguiça: os ramos da linguística são excelentes, mas tem por padrão,
na maioria das vezes e já há séculos, estudar em separado cada língua (ou, no máximo, um grupo
de línguas relacionáveis); teorias são mais valorizadas que registros de época; e não é muito
comum cruzarem entendimentos com outras Ciências. Aprofundamentos, na Linguística, são
complicados, pois palavras são usadas para tudo: já pensou se um dicionarista (‘lexicógrafo’) fosse
estudar a fundo todas as Ciências envolvidas, para cada palavra, de cada língua, de todas as épocas?
Cientificamente, mas ao mesmo tempo brincando, na gíria moderna pode-se dizer que "não rola"...
Pois bem: a linguística ainda não postulou origens satisfatórias do nome ‘viola’ para
instrumentos musicais e, atrevidamente, afirmo que dificilmente vão descobrir usando as
metodologias convencionais, pois o nome aponta ter surgido a partir de várias línguas diferentes,
ao mesmo tempo. Já a organologia, muito boa e séria também, ainda não conseguiu consenso
mundial de parâmetros, principalmente porque instrumentos musicais populares (como as violas
dedilhadas) parecerem sempre ter sido uma bagunça: assim, poucos tem paciência de os estudarem
a fundo. Aliás, poucos pelo mundo a fora tem sequer ideia do que sejam violas dedilhadas: para
eles, seriam tipos de guitarras...
Sim, minha empreitada começou a partir das violas dedilhadas (que já há algum tempo não
são guitarras) e cujo nome só existiria na língua portuguesa (ponto para o curioso, que então está
na vanguarda mundial).
Como também sabemos que ‘aprender com antigos mestres’ seria saudável, fui consultar
quem primeiro estudara cordofones pelo Ocidente: os mestres estrangeiros praticamente só teriam
estudado violas tocadas por arco, e os de língua portuguesa teriam se atido... (ops... desculpe, termo
erudito demais, vou melhorar) ... teriam ‘se baseado apenas’ nos próprios umbigos, para ser
honesto, mas sem querer ser desagradável nem rude. A verdade é que pouquíssimos teriam
procurado vestígios das nossas violas na História dos cordofones... Mas ‘que os há, os há’ (aqui
vou manter, achei que ficou legal o eruditismo: brinquei com las brujas, percebeu?).
Outrossim... (putz, de novo? sorry)... Entretanto... (que m...!)... Enfim: ‘mas’ vários mestres
teriam buscado coerência em datas remotas de registros de nomes de instrumentos! Boa ideia! De
onde tantos teriam tirado isso? Quase nenhum entrega a rapadura... Talvez porque tenham ido por
caminhos intuitivos: quando é por instinto, mesmo estudiosos costumam não saber explicar.
Acontece muito.
Fuça daqui fuça dali, descobri que o filósofo grego Platão, cerca de cinco séculos antes de
Cristo, teria partido de ideias mais antigas ainda, que depois foram evoluindo (!) até o que se chama
hoje de Metodologia ‘Dialética’ (de ‘diálogo’, ‘debate’): esta que seria ‘a arte de pensar, questionar
e hierarquizar ideias’... Ah, aí eu exultei quase orgasticamente! A principal postulação, evoluída
com o passar dos séculos, seria algo como: ‘... nada pode ser bem compreendido sem considerar
os fenômenos circundantes ao objeto de estudo’! Finalmente encontrei quem falasse a minha
língua!
É isso. Quer estudar algo? Fique de olho no que está rolando em volta daquilo. E o que
sempre rola à volta instrumentos musicais? Depende da época, região, utilização deles pela
sociedade, nomes que foram tendo, evolução de formatos e características... Tudo isso, que
circunda a História dos instrumentos, faz parte deles (e, no caso deste 'circunda', uma circuncisão
como a peniana não é recomendada, nem tem nada a ver: estou só brincando com as palavras).
Naturalmente, os mestres também estudavam nomes antigos por serem, os nomes e eles
mesmo também, ‘diferentões’ (leia-se "anarquistas", se concordar). E os mestres também
gostavam de se amostrar via outras línguas... Nem vem, que os caras eram humanos: não me venha
com argumentos semânticos contra um escritor, poeta, compositor. Os anarquistas antigos (como
eu também), sabemos que ‘se amostrar’ dá trabalho, mas é divertido e afasta alguns invejosos, pois
parece que incomoda que a gente estude tanto. E isso tudo já vem de séculos, não fui eu quem
inventei.
Buscar nomes remotos, em línguas antecessoras, ajuda a identificar e entender o que rolava
desde as respectivas épocas passadas... O complicado é que há poucos registros, às vezes pouco
legíveis, escritos em línguas antigas, às vezes feitos por quem não tinha boa noção de Música,
Linguística, História, Sociologia (mas achava que entendia e gostava de escrever a respeito). Se
liga: não existia nem luz elétrica, muito menos as Ciências como são hoje... Mas já existiam os
“achistas”, essa verdadeira praga.
Sim, o caminho é este: os fenômenos circundantes são vários e os dados não são perfeitos:
bipolaridade, portanto, nem pensar, não cabe! É desafiante, ‘multipossível’ (com permissão de
inventar, anarquicamente, alguns termos como este). Alguns ‘fenômenos circundantes’ são bem
óbvios e já são observados há algum tempo, embora superficialmente: aspectos musicológicos
(naturalmente), somados com históricos, sociais, linguísticos e... matemáticos! Sim, porque
quando não se tem todos os registros que teriam existido, opta-se pela maioria estatística entre os
que se consegue, para uma então 'melhor aproximação possível' da realidade. A matemática é
chamada ‘ciência exata’, mas nada poderia ser mais paradoxal, pois nela existem: limites de
funções, números complexos, a própria estatística e outras particularidades matemáticas que
apontam não a realidade ‘nua e crua’, mas as melhores aproximações científicas.
Não encontrei linguistas dispostos a aceitar que a musicologia explica melhor (e que o
'curioso' aqui, modestamente, sabe alguma coisa, por ter cerca de 45 anos de vivência musicológica
atenta, e de muita leitura e escrevinhação). Também não achei muitos musicólogos que estariam
tão dispostos a estudar e agregar fundamentos de várias outras ciências, sobretudo acatar História
e Sociologia como fundamental em suas equações investigativas (além do que, dá um trabalhão!).
Sobretudo, não encontrei ninguém que apresentasse um banco de dados amplo, sem preconceitos,
sem bipolaridades e organizado cronologicamente (que é o que se entende que exigiria o
alargamento da Metodologia Dialética que desenvolvemos).
Na real? Um monte de cientistas brilhantes, pelos séculos... Mas ensimesmados
('nelestados', talvez seja um termo melhor?) nas próprias Ciências, culturas e épocas. E quase
nenhum sabendo algo sobre violas dedilhadas... A solução foi pegar um pouquinho de cada um,
pois não é de se desperdiçar tanto conhecimento, talento e dedicação.
Por isso, ciências e entendimentos enferrujados, individualmente, não serviriam: mas
peguei o melhor que pude, de cada uma. Se (ou quando) os estudos individuais evoluem a partir
dos conhecimentos primordiais, abrindo ao máximo o compartilhamento com outras ciências e
visões, o conjunto passa a fazer bem mais sentido.
Ou, talvez, poderia eu mesmo inventar uma nova ciência... Mas aí ficaria parecendo
gaiatice de primeiro de abril. Entendeu como cheguei aqui?
O curioso aqui escreve textos, poemas, música na pauta e sem ela, toca um pouco de vários
cordofones, lê fluentemente em algumas línguas, entende um pouco de matemática (que até
estudou um pouco na faculdade), estuda História, Sociologia, Linguística, Literatura... Lê e estuda
feito louco. Na verdade, estudo sobre muita coisa como um maluco e sou anarquista por natureza.
Só isso.
"
É isso: foi este o texto brincalhão, de 01/04/2023. Agora... se nossa postulação séria for
aprovada por “pares” da Ciência (professores doutores), serão outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui... E vamos proseando!
cordas, afinações, funções sociais. Pode-se dizer que, de forma geral, foi esta a origem dos
cordofones europeus com braços: a concorrência (ou rejeição) a instrumentos árabes.
Os tais pesquisadores “vasculhadores” traduziram nomes para as línguas usadas em suas
publicações. João Araújo, que está a questionar estes e outros comportamentos, alerta: traduzir,
usar nomes genéricos e/ou nomes modernos para instrumentos antigos é um grave equívoco, pois
resquícios históricos, contidos nos nomes, acabam por se perder; apesar disso, respeitamos a forma
exata que aparecem nas, sem dúvida, sérias e bem embasadas pesquisas. Assim, então, listamos
apontamentos sobre os três mais remotos friccionados por arco europeus:
rotte, geige, rebec: em inglês, por Carl Engel, em Early History of Violin Family, 1883;
crowth, gige, rebec: em alemão, por Curt Sachs, Real-Lexikon der Musikinstrumente,1913;
crouth, gigue, rebec: em francês, por Paul Garnault, na Encyclopédie de la Musique et
Dictionnaire du Conservatoire, de 1925;
rota, giga, rabé: em espanhol, por Rosário Martinez, na tese Los instrumentos musicales en la
plástica española durante la Edad Media, de 1981.
Conforme já explanado, nenhum dos acima seriam ainda “violinos” (nem de longe): rababs
e gigas teriam caixas periformes, e rottas, embora algumas até fossem cinturadas, não teriam
braços. Pode-se dizer que foram "antecessores e influenciadores"? Sim... mas não que seriam
"violinos" (e acreditem, há quem o aponte!). Só a partir do século XII teriam começado a surgir
variações da nomenclatura VIOLA, esta que só depois, a partir do século XVI, influenciaria o
nome das "pequenas violas", como já dissemos. Até o surgimento dos violinos modernos, teriam
se passaram ao todo cerca de mil anos, desde os primeiros friccionados em território europeu.
O mais remoto registro escrito de uso de arcos teria sido do século XIII, no manuscrito
Summa Musicӕ, creditado a certos “Perseus e Petrus”. Em latim, a frase: [...] arcus dat sonitum
phiale seria seguida pela descrição rotule monochorde, então a tradução completa seria: “o arco
[é usado para] dar [gerar] som na phiala, um monocórdio com roda”. Este mesmíssimo texto, além
de citações muito similares, teria sido replicado por séculos, tendo sido inclusive creditado a outros
autores… Resultado? Vários estudiosos ainda sustentam que, por isso, phiala teria sido uma
“viola”, e que seria tocada só por arco, por todo o território europeu, “pelos séculos e séculos
amém”. É a questão de desconhecimento de que violas, assim como outros instrumentos, terem
sido tanto dedilhadas quanto friccionadas por arco. Também é questão de desconsiderar (ou
desconhecer) que um nome pode ter significados diferentes em cada cultura e época.
Há muitos equívocos de interpretações daquele famoso texto que o estudo das variações de
nomes de instrumentos nos ajuda a esclarecer de vez: primeiro, o equívoco de entender que phiala,
que já tinha sido citado pelo menos um século antes por John Cotton (ca.1053-1121) no manuscrito
De musica, teria sido o mesmo instrumento naquele outro tempo, em outra região; outro equívoco
é não contextualizar corretamente que são citados phiala e vielle, um ao lado do outro, e que seriam
dois instrumentos diferentes, o que leva até um terceiro equívoco recorrente, que é não atentar à
descrição da phiala de “Perseus e Petrus”: sem dúvida, a confusão maior é pela citação de um
"arco", junto com uma "roda", esta realmente presente na organa ou simphonia, que depois seria
chamada "viola de roda"... mas naquele texto, o tal “monocórdio com roda” não poderia ter sido
como uma "viola": primeiro, que a fricção das cordas era pela citada roda, portanto, não haveria
arco envolvido; e também não haveria descrição de instrumentos como violas, nem muito menos
de organas, com uma corda só (neste último caso nem faria sentido, conforme já desenvolvemos
aqui em outro Brevis Articulus). O que corrobora ainda mais na atestação dos equívocos é que
teriam existido instrumentos monocordes, tocados por arco, mas tão grandes e pesados (em média
dois metros de comprimento) que as citadas “rodas” então serviriam para facilitar a locomoção
deles. Aquela phiala (século XIII) não teria sido, então, como "violas", mas como “trombetas
marinas”, citadas por vários pesquisadores, conforme suas línguas (monochordo em latim e
italiano, trumscheit / trumbscheit em alemão, marine trumpet em inglês, trompette marine em
francês, trompeta marina em espanhol). Para confundir mais um pouco os menos atentos, o mesmo
nome foi citado também para um possível instrumento de sopro, por Virdung (em 1511) e Bonanni
(em 1722) mas, de qualquer forma, sem dúvida teria existido antes o comprido cordofone de uma
corda só, friccionado por arco.
Violinos modernos surgiriam bem depois da transição caracterizada por propostas de
classificação de “violas” por tamanhos. Primeiro, dois nomes genéricos, sendo os italianos os de
registros mais remotos: da braccio (“de braço”) e da gamba (“da perna”, indicando serem estas
maiores). A fase de transição fica bem clara ao analisarmos a cronologia de registros em várias
línguas e épocas, por autores que apontam entender um pouco do assunto mais porque também
tocavam instrumentos (faz muita diferença).
Johannes Tinctoris (em De inventione et uso musicӕ, 1486), em latim apontaria violas
tanto cum arculo como sine arculo ("com" e "sem arco"), mas as diferenciava das rebecum
(“rabecas”) pelo fundo plano e formato cinturado de caixas (inclusive confessando serem ambos
instrumentos que preferia tocar). Sebastian Virdung (Musica getutscht und ausgezogen, 1511)
apontou Groß Geigen ("geige grave", que seriam maiores e cinturados) e Clein Geigen ("geige
agudo", menores e periformes, que seriam as chamadas "liras bizantinas" em algumas culturas),
além da tal trumbscheit ("tromba marina"). Por desenhos apresentados juntos, Virdung aponta ter
percebido similaridade entre os cinturados e as organas com roda e manivela (esta que ele chamou
de lyras). Naquele e outros registros observamos, na língua alemã, fenômeno similar ao já
apontado para violon (em francês) e violino (em italiano): o nome geige depois se consolidaria
como nome de violinos modernos, mas anteriormente só significaria, genericamente, "friccionado
por arco". O que para muitos pode parecer simples curiosidade ou coincidência, para nós é
atestação de padrão de resquícios históricos em nomes: geige, em alemão (assim como guige, em
francês) remete ao ancestral latino GIGA, um dos três primeiros tocados por arco, lembra? É por
isso que apontamos em maiúsculas o termo que representa a nomenclatura, ou seja, o termo mais
remoto, que inspirou surgimento de outros, em diversas línguas, pelos tempos.
Depois, registros de época apontam caminhos trilhados bem antes da consolidação do
violino moderno, onde se observa que em culturas diferentes uma mesma tendência foi se
desenvolvendo. Apontamos os instrumentos sempre do mais grave ao mais agudo, na cronologia:
1529: proposta de Martinus Agricola (Musica Instrumentalis), que em alemão também
considerava todos friccionados como geige e já utilizava comparação com a classificação de vozes
dos coros, por nomes em latim: bassus, tenor, altus, discantus.
1533: proposta sêxtupla de Giovani Lanfranco (Scintille di musica), que em italiano as
considerava todas como “violetta da braccio e da arco”: violono, violone, violoni (os mais graves)
e basso, mezzana, canto (os mais agudos). Repare que dos primeiros três nomes haveria de onde
portugueses se inspirassem para o apelido "violão", lançado séculos depois.
1542: proposta do muito citado italiano Silvestro Ganasi (Regola Rubertina): basso, tenor,
alto, soprano (também com nomes de classificações de vozes).
1636: proposta já citada, de Mersenne, em francês: violes / violons.
1650: proposta apontada, inclusive por desenhos, por Athanasius Kircher (Musurgia
Universalis, 1650), que em latim considerava todos como “chelys” ou “viola”: dodecachorde,
hexacorde, maioris ou violone, minor, linterculus.
1659: proposta de Christopher Simpson (The Division-Violist), em inglês: consort-basse,
viol e lyra-viol.
1667: proposta do já citado John Playford, em inglês: basse-viol, tenor-viol e treble-viol.
Além de não se observar um consenso, como já comentamos cada autor traduzia para suas
línguas (ou inventava, talvez?) alguns nomes, o que facilita confusões até os dias atuais. Nenhum
dos instrumentos mais agudos citados acima pode ser considerado como o violino moderno (sequer
pesquisadores italianos teriam sugerido o termo violino, inclusive), mas muitos equivocadamente
apontam que já haveria violinos. É importante denotar que, apesar daqueles instrumentos serem
de tamanho e formato geral praticamente igual aos modernos, não atingiam ainda a textura sonora
aguda requerida. Um experimento científico de 2018, de um grupo de chineses liderados por
Hwan-Ching Tai, comprovou que até alguns instrumentos de Stradivarius (falecido em 1737)
ainda não se teria chegado aos níveis dos modernos violinos: portanto, tanto tecnicamente quanto
como nosso estudo dos nomes aponta, seriam apenas "pequenas violas".
Depois, numa fase final do período de transição (portanto, logo antes da atual
consolidação), no início do século XVIII teria havido clara disputa de espaço entre diversas
"pequenas violas". Esta fase foi apontada por alguns estudiosos, sendo o mais completo
desenvolvimento observado em artigo de Paul Garnault, da Encyclopedie de La Musique (1925),
que em francês listou e detalhou: Viola di Bordone, Fagotto, Baryton de viole, Viola di Pardone,
Viola Pomposa, Viole d’amour, Quinton, Pardessus de viole e Violetta Marina.
A violetta marina não deve ser confundida com a trombeta marina citada antes, mas é
possível que o sobrenome tenha sido inspirado naquela: segundo a Dra. Martinez e outros,
“marina” não se referiria a “do mar”, mas aponta ter sido a partir de “de Maria”, por ser tocado
por freiras, religiosas que seriam “filhas de Maria”... Observamos Pratt (1907. p.107), em inglês
apontar o mais antigo também por nun's fiddle ("friccionado das freiras"); Sachs (1913), em
alemão, apontar Nonnenngeige ("geige das monjas") e Marientrompete ("trumpete de Maria"),
este nome que talvez possa ter sido o motivo de citação como instrumento de sopro, por alguns
poucos pesquisadores. Além disso, um italiano (povo católico fervoroso) estaria envolvido com a
criação da violetta...
Violetta Marina (em italiano) ou English Violett (em inglês) aponta capítulo especial, ao
final da citada fase de transição: capítulo sobre o qual fomos mais a fundo por termos observado
muitas informações desconexas. A criação do instrumento é creditada ao músico italiano Pietro
Castrucci (1679-1752), e o nome bilingue do instrumento é porque então ele atuava como líder da
orquestra do compositor alemão George Frideric Handel: este teria utilizado o novo instrumento
até com destaque em suas orquestras, a partir de 1730, assim como o famoso compositor, também
alemão, Johan Sebastian Bach.
Violetta também significa “pequena viola”, em italiano, e é talvez o campeão em equívocos
(tanto que a origem correta é desconhecida da maioria, que a confunde com violas e violinos).
Utilizaria “cordas simpáticas” (isto é, cordas extras, que vibrariam junto com as cordas normais
sem serem tocadas diretamente) assim como as violas d’amore, mais antigas (o que também aponta
ter confundido estudiosos). Entre as várias fontes que cruzamos, nesta conclusão que
aparentemente é descoberta inédita nossa (detalhada em Brevis Articulus específico) apenas
Joseph Majer (Music Saal, 1741) teria atentado que, embora ambas utilizassem cordas simpáticas,
violetta não seria exatamente uma viola d’amore, tanto que as distinguiu em alemão como Violinen
(“pequena viola”) e Brazzen oder Violen (“viola de braço”).
Na verdade, violetta não teria sido nem uma viola d’amore nem uma viola, pois já teria
tamanho um pouco menor que estas últimas… mas também ainda não seria como o violino
moderno (no caso, as próprias cordas simpáticas já diferenciavam). Poucos indicam perceber estes
pormenores, principalmente quanto ao desenvolvimento histórico de nomes de instrumentos,
assunto ao qual nos dedicamos enfaticamente. É por isso que desenvolvemos, aprimoramos e
divulgamos nossa metodologia, nossos estudos inéditos que atrevidamente se propõem até
revolucionários (e haja brasa para tanta sardinha, e farinha para nosso pirão…).
Só da segunda metade do século XVIII para cá teria ocorrido a consolidação, não apenas
dos violinos modernos, mas de praticamente todos os cordofones como hoje os conhecemos. Não
por coincidência, teria sido em paralelo com a consolidação das fases da Revolução Industrial…
mas aí já são outras prosas.
Muito obrigado por ler até aqui… E vamos proseando!
duplas de cordas dos predecessores cravos (e sim, estes dois últimos instrumentos tem cordas, que
são acionadas pelas teclas: abra a mente e as caixas deles e verá). O contexto histórico social aponta
que a rejeição aos invasores árabes se expressou via opção de formatos de caixa diferentes, rejeição
cujo mais remoto registro explícito pode ser observado no extenso poema Libro de Buen Amor,
de Juan Ruiz (estimado ao século XIV). As duplas de cordas resistem até os dias atuais, por
exemplo, em bandolins, guitarras portuguesas e nas nossas violas dedilhadas. O contexto histórico-
social aponta a mudança para cordas singelas dos violões em paralelo com a evolução das fases da
Revolução Industrial (entre os séculos XVIII e XIX). Soma-se ainda o contexto da ascensão
espanhola, um certo “império de destaque” no território europeu entre os séculos XVI e XVIII,
cujas concepções já vinham influenciando outras culturas.
Por isso, quando hoje atestamos a sobrevivência de violas dedilhadas portuguesas e
brasileiras com cinco ordens duplas e formato cinturado (como as guitarras chamadas "barrocas",
de entre os séculos XVII e XVIII) e guitarras portuguesas com seis ordens duplas (como as
antecessoras guitarras inglesas) podemos identificar que algo teria acontecido especificamente em
Portugal, pois as guitarras espanholas passaram, desde o século XIX, para seis cordas singelas, e
aquele "violão" predomina desde então em grande parte do mundo. O contexto histórico-social de
disputa com espanhóis é atestado por vários capítulos desde o surgimento dos lusitanos como reino
independente, lá nos idos do século XII. Não por coincidência, a “guitarra” portuguesa (único
instrumento desta nomenclatura com caixa arredondada) ascendeu na mesma época que as
modernas guitarras espanholas: também armando com seis ordens, porém duplas, aponta a
rivalidade e atesta que instrumentos populares reagem a contextos histórico-sociais, tanto em
características organológicas (formatos, armações de cordas, afinações, etc.) quanto em nomes.
A “outra face da moeda” (ou “postulação cruzada”, como chamamos), é que, apesar das
mudanças em reflexo a contextos histórico-sociais, algumas características vencem os tempos, que
é o caso das afinações em quartas, presentes desde os periformes da "família dos alaúdes", e que
passou para cinturados como guitarras e vihuelas até o século XVI, também nas demais guitarras
desde aquela época e continua em uso até os dias atuais. Ou seja: mudanças de formato apontam
rejeição aos árabes, mas algumas afinações e armações de cordas resistem até os dias atuais. A
continuidade também se soma na atestação geral das postulações, pois aponta que algumas
características foram mantidas para permitir que novos instrumentos pudessem facilmente
substituir os rejeitados (ou substituídos por algum outro contexto), pelo menos nos inícios das
transições. Teria sido assim, por exemplo, tanto com lyras gregas (com estruturas diferentes de
ketharas mesopotâmicas, mas com as mesmas armações de cordas); ou com as primeiras guitarras
portuguesas, que mantinham afinações abertas como as guitarras inglesas (arredondadas), estas
que por sua vez mantiveram a mesma afinação das antecessoras bandoras (de caixas em formato
de pequenas nuvens, arredondadas / ovalares).
2 - Evolução do número de cordas pelos tempos: uma continuidade histórica também pode
ser constatada por toda a História de cordofones com braço, onde primeiro haveria três cordas em
ancestrais como o pant-tur sumério, nefer egípcio, pandur caucasiano, pandura grega; e depois o
número de cordas aponta ter aumentado, gradativamente: o mesmo tipo de evolução gradual, a
partir de três cordas (ou ordens) é observado, com o passar dos séculos, em históricos de alaúdes,
guitarras, violinos e outros. E alguns cordofones sem braço também, como citaras, liras e rottas.
Assim como afinações, o resquício nos números de cordas denota a característica de concorrência
/ rejeição, motivada por contextos histórico-sociais: tendo armações e afinações similares, novos
instrumentos podem substituir mais facilmente os antigos, enquanto outras características
garantem a rejeição (ou personalização, nacionalização), como formatos de caixa: nestes, a
mensagem imagética é a mais explícita, mas também há rejeição representada por pequenos
detalhes gerais e, naturalmente, por nomes diferentes.
3 – Resquícios em nomes por diversas línguas, por séculos. Estes são os resquícios aos
quais mais nos dedicamos, por não termos observado estudos consistentes neste sentido.
Observamos, inclusive, uma tendência de bifurcações de nomes, em diversas línguas, que refletem
contextos histórico-sociais. Desde o pan-tur (sumério, com braço) e kethara (assíria, sem braço),
onde a segunda civilização se impôs sobre a primeira, atestam-se concorrências que incluiriam
bifurcações por nomes, formatos e maneiras de tocar desde, portanto, pelo menos 1800 anos antes
da Era Cristã. Observamos bifurcação pela letra inicial a partir de fandur / pandur (em dialetos da
região do Cáucaso), continuada em nomes gregos (pandura / *phandura, estes instrumentos ao
mesmo tempo concorrendo com kithara, ou seja, a bifurcação antiga somada à nova, pelas iniciais
dos nomes); em seguida, continuação das duas bifurcações, em latim (pandorion / fides, pelas
iniciais de instrumentos com braços, além de cithara, para os sem braços), até finalmente
bifurcações em paralelo com a evolução das principais línguas europeias, estas largamente
apontadas por linguistas como bifurcadas entre "latinas" e "germânicas" (destaque para bifurcação
pelas iniciais em “v” e “f”, que já detalhamos em outros Brevis Articulus).
As bifurcações coincidem com eventos de grande impacto social, desde as disputas
mesopotâmicas, seguidas por impactos que atingiriam praticamente todo o território europeu
simultaneamente, como: fenícios comercializando, depois as influências grega, romana, da Igreja
Católica, Invasão Moura, invasões às Américas, Revolução Industrial, guerras mundiais,
globalização. Nas primeiras páginas do livro A Chave do Baú apontamos um cronograma dos
principais eventos de grande impacto e os reflexos observados em instrumentos musicais.
Não podemos (nem queremos) deixar de dar alguns créditos, pois evoluímos
consideravelmente a partir de visão do musicólogo alemão Curt Sachs (The History of Musical
Instruments, de 1940). Aquele desenvolvimento é pouco creditado na organologia ocidental, mas
observamos alguns apontamentos similares, e assim nos aprofundamos na busca por atestações
gerais, indo bem além do que todos os anteriores apontam ter ido. Além disso, também evoluímos
bastante a partir do apontamento destacado na abertura, de Elizabeth Travassos.
Quando um instrumento muda de nome e/ou de características expressivas (como formatos
de caixa), mas mantém outras (como armação de cordas e afinação), caracteriza-se que a alteração
teria sido por motivação não técnica (como rejeição, concorrência, nacionalismos), principalmente
quando as mudanças não alteram significativamente o resultado sonoro final. Ou seja: os novos
instrumentos seriam significativamente diferentes, mas poderiam facilmente substituir os
anteriores. O estudo destas alterações também aponta que, apesar de a princípio até parecer ser
aleatório, resquícios muitas vezes atravessam séculos, apontando a tendência primordial de
continuidade... E, ao mesmo tempo, apontam que quando há mudanças, há reflexos de grandes
comoções sociais. A somatória e cruzamento destes dados são ainda pouco estudados, além de por
nós, e por isso mergulhamos, atestando por exemplo:
- a já citada afinação em intervalos de quartas, utilizada em alaúdes há séculos, ainda se
mantém em instrumentos de nomes e formatos bem diferentes, como guitarras... e ao mesmo
tempo, “guitarra” guarda, no nome, resquícios em cadeia do latino cithara, do grego kithara e do
assírio kethara, que representam episódios de grande impacto social;
- armações com duplas de cordas (ou “ordens duplas”), também presentes nos antigos
alaúdes, foram mantidas em instrumentos europeus de formatos e nomes diferentes como as
vihuelas e depois as diversas guitarras, estas últimas porém cinturadas, refletindo pelos formatos
a rejeição a árabes invasores;
- enquanto vihuela guarda resquício do latino viola, observado para instrumentos musicais
desde o século XII, guitarra surgiria pelo menos a partir do século XIII, num contexto de
continuidade de bifurcação que já viria de séculos antes (a já citada, entre pan-tur e kethara),
mesmo sofrendo reflexos de outros contextos como o do auge do trovadorismo, este exatamente
nos séculos XII e XIII;
Juntando, numa lista só, resquícios de organas / sinfonias observáveis pelos séculos, temos:
flautas múltiplas, instrumentos com foles, cordofones (dedilhados e friccionados), instrumentos
tocados por teclados e por manivelas... Ah, sim, também o mais óbvio, que é o resquício pelos
nomes: organum ou organa se reflete em “órgão” (em português), além dos similares em diversas
outras línguas ocidentais modernas. Orgãos modernos tem teclas, e ancestrais tinham tubos, onde
as teclas acionariam sistemas pneumáticos, como das gaitas-de-foles. Assim é possível entender
porque o nome “sanfona” tem resquícios de simphonia, e as sanfonas hoje em dia tem foles e teclas
(características ligadas à nomenclatura desde séculos antes).
E porque a nomenclatura “viola” acabou se direcionando para cordofones cinturados, como
eram também as organas? Como dissemos, são resquícios de vários séculos, então fique atento
que precisaremos rastrear toda a história das "cinturas": organas (a partir do século IX) seriam
cinturadas, assim como algumas rottas, portáteis preferidos pelos europeus desde o século V (não
por coincidência, estas ascenderam a partir de quando caiu o Império Romano); antes das rottas,
a preferência aponta ter sido por dois tipos: citharas (retangulares, como ketharas assírias e
kitharas gregas eram deste séculos antes) e lyras (as primeiras a apresentarem estruturas
curvilíneas, e que surgiram, não por coincidência, com os gregos). As organas a partir do século
IX, portanto, apontam ter refletido os dois formatos dos antecessores preferidos: haveria as com
caixas retangulares e, em maior número de registros, as cinturadas, porém com a diferença
fundamental das organas terem braços, além de serem acionadas por uma roda; soma-se que eram
chamadas também sambuca (um tipo ancestral de sabugueiro, material usado para estruturas desde
as citharas e liras antigas, por isso incluímos estas últimas neste desenvolvimento). Assim, com o
passar do tempo, surgiria o nome composto sambuca rotata (“sambuca de roda”), e partir do século
XII nomes como vielle a roue (“viola de roda”, em francês) e viola de roda em catalão; depois a
roda, as teclas e a manivela cairiam em desuso, o tamanho das organas diminuiria (coerente com
o que estava a acontecer por todo o território europeu, onde os instrumentos com braço surgiriam
e ascenderiam na preferência exatamente a partir daquele mesmo século IX) e assim restou...
VIOLA, nomenclatura de um cinturado com cordas! Mais um dado histórico ainda se soma à
equação: como já explanado, arcos emergiriam na Europa a partir do século X, e então seriam
utilizados em instrumentos existentes, o que ocorreu também nas organas: isto se atesta pela
sobrevivência de nyckelharpas, que nada mais são que organas pequenas, ainda com teclas, mas
sem a roda, que foi substituída pelo arco na fricção das cordas.
Há alegações até sobre hydraulos, instrumentos movidos a água e ar, bem ancestrais, mas
aí entendemos haver um equívoco: só poderiam ser ligados a organas se considerar como nome
genérico, ou seja, “qualquer instrumento musical” (como observamos registros a partir do século
IX, por Aurelianus Reomensis). Muitos apontam, mas hydraulos não seriam “órgãos” (como os
modernos): é preciso analisar o grande histórico a partir de organa / organum até chegar a “órgão”,
que facilmente pode enganar, se não for observado o panorama completo, do grande recorte de
tempo. Entre os poucos autores que apontaram desconfiança de que hydraulos não fossem
"órgãos" estão Pratt (1907, p.54) e Sachs (1940, p.120-125), mesmo assim os dois não apontam
ter observado o histórico todo, a partir do latim.
Por último, incluímos (por nossa conta e esforço de pesquisa) o nome “harmônica”, que
remete a “harmonia, sinfonia” e também à “gaita” (no caso, tanto a “de boca” quanto a "sanfona
ou cordeona gaúcha"). O árabe algaita remete a “palha”, e pequenas partes de vegetais ("palhetas")
eram inicialmente utilizados nas estruturas de ambos os tipos de "gaitas", assim como em bocais
dos instrumento de sopro, e ainda como plectros para dedilhar desde cordofones antigos (como
citaras, liras e saltérios), até cordofones modernos: destes, destacamos as famosas palhetas das
guitarras elétricas (hoje mais feitas com plástico duro)... Opa! Então já se sabe de um pequeno
elemento comum a vários instrumentos bem diferentes, de várias épocas... mas ainda há outro
elemento comum, mais importante: é só seguir lendo.
Tratamos aqui de características organológicas muito diferentes, certo? Em alguns casos,
os nomes apontam relação mais diretas, em outros, nem tanto: pelos séculos, estas relações às
vezes foram se perdendo, mas durante muito tempo mantiveram ligação clara. Aparentemente,
portanto, não haveria nada em comum a todos aqueles instrumentos, certo?
Atestamos, entretanto, que desde os mais remotos registros conhecidos das symphonias e
organas, todos os instrumentos relacionados indicam emitir mais de uma nota ao mesmo tempo.
Este tipo de sonoridade, inclusive, sempre pôde ser identificado por qualquer pessoa, sem que
precisasse ser muito conhecedor de música, e realmente vários não-tão-especialistas apontaram
aqueles nomes, segundo os mais remotos registros.
Em especial, no caso das organas com cordas (as tais, a partir do século IX), assim como
nas gaitas-de-foles e até algumas flautas múltiplas, uma característica comum é que apenas um
dos sons apresentariam variações das notas emitidas, enquanto as demais cordas ou sopros soariam
soltos, ou seja, nas notas originais, fixas. As mais remotas teclas das organas acionavam apenas
uma das três cordas. A sonoridade é bem característica, nestes casos; porém, de forma geral,
percebeu a continuidade da coerência mesmo entre diferentes formatos, tipos de emissão de som
e nomes?
Os instrumentos mais remotos, ligados à nomenclatura ORGANA, mesmo sendo
diferentes, seriam instrumentos capazes de emitir “sinfonias”, ou seja, mais de um "som" (nota
musical) simultaneamente. Os capazes de mais de três notas simultâneas são hoje inclusive
chamados “instrumentos de harmonia”, ou “harmônicos”. Esta característica agrega também o
conceito teórico muito estudado até hoje, de organum como “harmonia de vozes, sinfonia,
diafonia”, ou seja, “mais de uma voz sendo emitida ao mesmo tempo”. Entendemos que não pode
ser coincidência.
Algumas vezes um nome consolida-se com ressignificação, tanto naturalmente quanto por
secundamentos em cadeia de equívocos ou distorções. Em todos os casos, há reflexos de contextos
histórico-sociais, como por exemplo organa ser o preferido por povos de línguas latinas, enquanto
symphonia ser o mais observado em línguas germânicas. Entende-se, portanto, que em estudos
modernos, quando contextos antigos já não fazem mais sentido, os nomes devem ser apontados o
mais assertivamente possível, conforme os registros, e com bastante atenção, a fim de evitar
distorções aos entendimentos. É o caso, já várias vezes explanado, de usar nomes conforme o
significado que tiveram em cada época, de preferência sem os traduzir.
Um dos exemplos de equívoco / distorção mais observado é chamar antigos saltérios de
“cítaras”: SALTÉRIOS teriam caixas de ressonância paralelas às cordas, enquanto CITARAS não
teriam, assim como as antecessoras kithara grega e kethara assíria. As diferenças já teriam sido
apontadas por Santo Agostinho e Cassiodoro, no século VI, quando as distorções também apontam
ter começado, e por autor importante: Isidoro de Sevilha, um dos fundadores da etimologia
moderna, mesmo apontando ter lido Agostinho e Cassiodoro, inventou de apontar outros
significados para cythara, entendendo que seria um nome genérico, quando o verdadeiro genérico
era fides. Daí, muitos secundaram Isidoro, apontando cithara como genérico (além de para as
verdadeiras citaras, apontavam o mesmo nome para liras, saltérios e rottas). Até que, a partir do
século IX, a ascensão de instrumentos com braço suscitou um "novo" nome para aqueles, que se
tornariam a nova preferência. Fartos registros apontam então a ressignificação da nomenclatura
CITARA para cordofones com braço, que dura até os dias atuais em alguns instrumentos, como
arredondados italianos. Esta verdadeira "confusão" é pouco esclarecida, inclusive por linguistas, e
o mais apontado é que CITARA teria sido mesmo um genérico (mas inicialmente não foi).
Acrescenta-se que houve um reavivamento de uso do latim principalmente pelas Cruzadas, entre
outros contextos histórico-sociais: assim, o equívoco de Isidoro de Sevilha (século VI), agravado
a partir do século IX, foi ainda reforçado pela classificação Hornbostel-Sachs (1914) que é ainda
muito citada, principalmente criticada (infelizmente, não pelo uso indevido de nomes que
apresenta, mas por outras incoerências). Costuma-se, por isso, apontar CITARA como genérico a
qualquer cordofone, o que incluiria saltérios... Mas atestamos que isto é um secundamento de
equívocos históricos, injustificável à luz dos registros e recursos modernos de investigação.
suficientes, mas é preciso analisar com atenção, pois diversos estudiosos citam estes mesmos
trabalhos, mas não teriam observado a falta de registros de instrumentos que correspondessem às
chamadas “violas dedilhadas” portuguesas antes do século XVIII. O que existiria, na verdade,
seriam outros instrumentos (alaúdes, vihuelas, guitarras) chamados de “viola” pelos portugueses:
aqueles todos, com nomes, descrições e histórias bem claras, inclusive que os portugueses mesmo
reconhecem; mas de “violas”, que fossem algo diferentes daqueles outros instrumentos, não se
conhecem registros, pelo menos até hoje...
Sobraria então para nós apontar “a partir de quando, então, pode-se afirmar que teriam
surgido as violas dedilhadas?” (pois elas, sem dúvida, resistiram e hoje são diferentes de guitarras
espanholas principalmente... pela armação de cordas!).
As mais remotas evidências observamos em outros dois trabalhos também muito citados,
mas que não vimos terem sido analisados com profundidade de contextos: o método Liçam
Instrumental da Viola Portuguesa, de João Leite Pita da Rocha, de 1752, aponta que as violas
portuguesas daquela época seriam, nada mais, nada menos, que guitarras espanholas (com duas
cordas a mais, mas no mesmo número de ordens), posto que o método é praticamente a tradução
para português, item por item, da parte das guitarras de famoso método de Juan Amat, estimado
ao ano de 1596, cujo extenso título começa por Guitarra espanhola e vandola... O sistema
“copiei, traduzi e colei” de Rocha também nos traria, numa então rara inserção própria (que parece
que a maioria não teria percebido), a informação de que as violas portuguesas armariam com cinco
ordens, como as guitarras espanholas, porém duas destas ordens seriam triplas: um único detalhe
diferente, portanto, das espanholas (que usavam duplas de cordas), viria a ser diferenciador. Um
detalhe relacionado exatamente à armação de cordas...
Aquela informação seria corroborada por outro método português, o Nova Arte de Viola,
de Manoel da Paixão Ribeiro, de 1789: nele, um desenho de uma viola portuguesa com a citada
armação 12x5 (as duas ordens triplas seriam as superiores) e a informação de que haveria as opções
de uso de cordas de tripa (como sempre foram as das guitarras espanholas) e/ou também de cordas
metálicas, “de arame”. Estas duas características (armação diferente de cordas, e uso de versão
metálica delas) seriam as mais remotas evidências de diferenças entre guitarras espanholas
(“barrocas”) e violas portuguesas, mas que só se consolidariam mesmo a partir do início do século
seguinte (XIX), pois portugueses continuariam a chamar tudo de "violas": enquanto não surgisse
pelo menos o apelido "violão", ou "viola francesa", não se pode dizer que haveria verdadeiras
"violas portuguesas", ou seja, violas portuguesas diferenciáveis de outros instrumentos.
Como se vê novamente, se não considerarmos armações de cordas como diferenciador,
aquele importante capítulo histórico fica difícil de dissecar (e a maioria dos estudiosos realmente
aponta não ter percebido: seríamos os primeiros a publicar este desenvolvimento). Seria um
capítulo importante, aos que como nós entenderem que seriam as mais remotas indicações de
origem das violas dedilhadas (como instrumentos físicos diferenciáveis, não apenas como nome
genérico aplicado a outros cordofones). Antes de nós, só observamos apontamentos de que "violas"
teriam existido desde sempre, ou pelo menos desde o século XV (dos mais remotos registros
conhecidos).
Após a consolidação do violão em seis cordas singelas, as "violas" (na verdade, “guitarras
barrocas” chamadas de viola pelos portugueses) simplesmente seguiriam como eram, mas então
tornando-se instrumentos diferenciáveis, únicos: não por alguma grande alteração nelas (no
máximo, usavam cordas metálicas), mas porque as guitarras espanholas mudaram de armação,
tornando-se então diferenciáveis os dois instrumentos (diferenciáveis, principalmente, pelas
armações de cordas). Como evidência, observa-se que sobreviveriam mais modelos com 10x5 que
com 12x5 na família das Violas Portuguesas (enquanto no Brasil a armação 12x5 caiu em desuso).
O capítulo é atestável, portanto, pelo trajeto histórico das armações de cordas, cruzado com os
nomes utilizados e os contextos histórico-sociais. Cordas a mais significam maior custo, e mais
trabalho para montar e manter o instrumento afinado: uma vez que não significassem mais
diferenciação de instrumentos espanhóis, gradualmente perderia sentido manter seu uso, a não ser
por alguns, por "tradição"... E como seria uma "tradição portuguesa", brasileiros com o tempo
parariam de usar, até por rejeição a costumes de nosso ex-colonizador. Ainda em cruzamento,
observamos que o nome "guitarra", até então rejeitado pelos portugueses para seus cinturados, foi
o mais observado para cordofones brasileiros entre 1820 e 1840, que é a partir de quando, então,
se atesta por aqui a ascensão do "violão".
Teria havido ainda, durante o citado período de transição de cerca de 70 anos (coletamos,
traduzimos e organizamos registros entre 1760 e 1826), também guitarras de 12 cordas em 6
ordens duplas, naquele então retorno às seis ordens (que teriam sido usadas antes por alaúdes e
antigas vihuelas, como citamos no início). Ora: aquelas guitarras 12x6 também seriam chamadas
de “violas” pelos portugueses, e algumas ainda sobrevivem em museus, mas o tipo de armação
aponta ter caído em desuso pela ascensão, a partir do mesmo século XIX, das "guitarras
portuguesas", que como as antecessoras "guitarras inglesas" também armariam em 12x6 (mas
ambas com caixas arredondadas). Observa-se diferenciação principal, imagética, pelos formatos
de caixas de guitarras portuguesas (arredondadas), além do sobrenome e as afinações, que
gradualmente se afastariam das originais, abertas (das guitarras inglesas) para as atuais, exclusivas;
mas entre guitarras portuguesas e violas 10x5 (já até mais utilizadas por brasileiros) e violões 6x6
(espanhóis) há também clara diferenciação por armações de cordas. Nunca é demais lembrar que
o período histórico (do início do século XVIII até o início do XIX) remete às fases da Revolução
Industrial, esta que trouxe grandes mudanças sociais (o capitalismo), e instrumentos populares
sempre reagiriam a tais fenômenos, por toda a História. Os reflexos dos contextos histórico-sociais
se atestam por investimentos em instrumentos característicos, a fim de serem produtos identitários
e de atração de divisas, exatamente em época de ascensão do capitalismo (por exemplo, não apenas
a guitarra portuguesa, como o próprio violão espanhol e o violino moderno italiano, todos
ascendendo durante o mesmo período).
No Brasil, como dito, fenômenos um pouco diferentes aconteceriam (apontando então
reflexos histórico-sociais distintos dos de Portugal): aqui, as violas 12x5 não teriam continuidade
como lá, sendo hoje representadas apenas pelas chamadas Violas de Queluz, do século XIX, hoje
remanescentes como peças de museus e de colecionadores, e praticamente só no Estado de Minas
Gerais; já as Violas 12 Cordas (em seis duplas, ou seja, 12x6), que caíram em desuso em Portugal,
se consolidaram aqui como um dos modelos da Família das Violas Brasileiras, sendo hoje
tocadas e fabricadas em vários Estados.
Outra particularidade brasileira, e também contextualização inédita nossa, é que a Família
das Violas Brasileiras apresenta diversidade muito maior que a família portuguesa, em tamanhos,
formatos, armações de cordas e outros detalhes (condizente com nosso território, muito maior, e a
consequente maior diversidade cultural brasileira). Graças à técnica metodológica que
desenvolvemos, onde armações de cordas são observadas como diferenciadores às vezes até
fundamentais, conseguimos contextualizar todas as características das violas dedilhadas por
resquícios da História dos Cordofones europeus. Isto também explica o conjunto agrupado aqui
em torno do nome forte adotado pelos portugueses (“viola”): lá, num contexto de nacionalismo
(rejeição a nomes espanhóis e árabes), e aqui por continuidade da nossa língua comum. Só que aí
já não é mais apenas sobre armações de cordas: aí são outras prosas...
Muito obrigado por ter lido até aqui, e vamos proseando...
[...] Que responderá a isto o *Caipora Semanario, e a servil recova de que he almucavar?
Fallão ou não verdades os Redactores do Constitucional? São eles os desorganizadores,
ou são os Caiporas, Semanário Cívico, e sua gente? Quem forma os Partidos, aquelles ou estes?
Citem-nos os Caiporas huma só linha da nossa Folha, em que não preguemos União e mais União.
[...] E quantas vezes nos tem insultado os Caiporas? [...] Basta com o Semanario, e Caiporas!
(*Assim chamaremos, d’hoje em diante os inimigos do Brasil, e da Nação).
[Semanário O Constitucional, 03/07/1822, nº 37, p.1]
diversos idiomas, entre eles o latim e até tupi / guarani / língua geral. Alguns anos depois, já de
volta à França, e após bem referenciada pesquisa (que confirmamos item a item, como fazemos
sempre, mas nem sempre constatamos semelhante perfeição), o pesquisador concluiu que "caipira"
não seria termo original indígena; e também apontou que seria utilizado como apelido político, por
pessoas do mesmo viés político que já citamos, então chamados "miguelistas". Tudo isso está bem
apontado no livro Voyage dans les provinces de Saint-Paul et Saint-Catherine (publicação em
francês, de 1851, no Tomo I ver páginas 238-239, inclusive o rico rodapé).
Saint-Hilaire não fez desenvolvimento tão completo quanto o que hoje apresentamos, pois
além de aparentemente não ter lido aquela e/ou outras matérias similares em jornais, o termo
“caipora” já apareceria corrompido de significado em dicionários a partir de meados da década de
1820, como ainda o é hoje em dia. Dicionários não etimológicos, algumas vezes mais atrapalham
que ajudam e assim parece que, até hoje, só João Araújo conseguiu perceber que "caipora" e
"caipira" teriam o mesmo significado e propósito, quando foram criados, e teriam sido criados pelo
"homem branco português", não por indígenas. Não encontramos registro dos dois termos antes
do início do século XIX, embora sejam, no mínimo, “curiosos” os muitos exercícios de "etimologia
intuitiva" em que várias pessoas acreditam (muito provavelmente só por ser conveniente
acreditarem).
Um dos exercícios criativos mais vistos é que "caipira" teria algo a ver com "carpir" ou
"capinar". Seriam mutações bem interessantes: a partir de caa, do tupi/língua geral original, o
“brotamento espontâneo” das letras "r" ou "i" em substituição a uma letra “a” anterior. Mais
interessante: teria sido apenas em uma palavra, posto que caa teria seguido em outras até hoje,
como caapi (cipó amazonense) ou simplesmente teria sumido um “a”, sem brotar nenhuma outra
letra, como em “capim”, que viria de caapim sem ter-se tornado "caIpim".
O moderno “exercício etimológico livre”, embora muito secundado, nunca teria sido
atestado por registros de época e estudos sérios. Não atestamos, por exemplo, em cerca de duas
dezenas de publicações até 1930, que poderiam ter sido fontes das invenções. Mais incrível ainda
é o fato de ser usado, e há mais séculos, o termo carpere (“arrancar, colher, arranhar”, em latim).
Devemos acreditar que o latim teria influenciado menos a língua portuguesa que uma língua
indígena? Para muitos, parece conveniente dizer que a resposta é sim...
Mais interessante e estarrecedor ainda? Entre informações sugeridas num mesmo
dicionário (o de Beaurepaire-Rohan, Diccionario de Vocabulos Brazileiros, conferimos edição de
1899), “caipira” ter sido apontado como nome paulista teria agradado, mas "carpir" ter raiz em
carpere não teria agradado tanto... De que poderíamos chamar isso? Talvez, “pesquisa seletiva”?
Ou "apontamento por conveniência"? Ah, sim: "caipira" comprovadamente era, na época, utilizado
em grande parte do Brasil, segundo milhares de matérias de jornal que conferimos...
Não sabemos o que é mais difícil acreditar: como durante cerca de 90 anos (entre 1820 e
1910) ninguém antes teria percebido que “caipira” teria algo a ver com "carpir"; ou como
"brotaram letras" em apenas algumas palavras e noutras não; ou ainda como pira teria variado de
seu significado mais observado em tupi (relacionado a “peixe”) e cai, que sempre teria existido,
teria variado, seletivamente, de seu significado mais observado (que seria relacionado a “fogo,
queimar”); ou, finalmente, se os romanos teriam sido influenciados pela língua indígena séculos
antes da invasão (mais chamada “descobrimento”) do Brasil...
Compadres caipiristas parecem achar cômodo aceitar todas estas, literalmente, "incríveis"
possibilidades; ou, se não todas, qualquer uma delas, tanto faz (além de nós, não observamos quem
já tivesse questionado publicamente). E assim estudiosos e famosos seguem defendendo a
“etimologia instintiva / seletiva”, sem apresentar comprovações de época, nem desenvolvimentos.
Por brasileiros, a mais remota citação escrita do termo caipira, claramente como um
apelido político e inclusive assumido por quem escreveu (que, portanto, não se sentia ofendido
pela alcunha), vimos no jornal paulista O Tamoyo (12/09/1823, nº 5, p.6).
Numa análise que, curiosamente, os chamados grandes pesquisadores não costumam citar
quando tratam deste tema (sequer os ditos "historiadores"), contextos histórico-sociais apontam
É bom lembrar, em tempos de memória histórica tão fraca (ou tão deturpada, talvez?), que
o que chamamos aqui de "proletários" (quer dizer, trabalhadores mais simples, “chão de fábrica”)
abrangeria também pretos e até estrangeiros. Em São Paulo, por causa do Ciclo do Café, haveria
mais proletários ligados à atividade rural, é fato... Mas o pejorativo não se aplicaria só a pequenos
produtores. É bom lembrar também que a maioria dos brasileiros seria rural, interiorana: a divisão
de classes estava apenas começando e faz muito menos sentido antes da Revolução Industrial
(consolidada a partir do século XIX). Pergunte ao seu "compadre", o seu pesquisador de estimação:
mesmo os defensores do caipirismo deveriam confirmar que não faz sentido um "preconceito
ancestral contra interioranos" (se não for inconveniente confirmar isso, por algum motivo).
Imaginar que teria existido uma cultura ancestral "caipira", que seria uma "raiz" brasileira,
é genial, posto que criativo, agradável e lucrativo, mas não se atesta. É incrível, entretanto, que
tantos doutores não admitam isso publicamente, e, ao contrário, gostem até de se autodeclarar
"caipiras de fato"... Por que será?
Por vários motivos consideramos genial a interpretação lançada e defendida arduamente,
por décadas, pelo empresário Cornélio Pires:
- com excelente e até precoce visão de “marcas”, o empresário teria percebido que “caipira”
seria uma "marca forte", e que passaria facilmente como “original indígena”; assim poderia alegar
ligação com os primórdios brasileiros, e, portanto, com uma suposta “cultura ancestral”;
- ao recontextualizar um preconceito parcialmente existente (de que “caipiras” seriam
perseguidos e menosprezados), Pires não apenas "levantou a moral" de uma classe simples, mas
também atraiu a simpatia de outros, das demais classes sociais, dada a nobreza da causa. Esta
“isca” foi mordida e cuspida fora por um “peixe grande”, o então já bom vendedor de livros
Monteiro Lobato, o único além de nós que parece ter denunciado a engenhosa estratégia de
Cornélio; Lobato inclusive tentou combatê-la, posto que ameaçava suas vendas. Não, não teria
sido puro preconceito de Lobato, como é muito apontado, embora ele fosse eugenista declarado:
mas principalmente por óbvias motivações financeiras. A prova disso é que Lobato, que chegou a
afirmar que “meu Urupês veio estragar o caboclo de Cornélio”, calou-se a partir de quando se
tornou sócio de Amadeu Amaral, primo e mentor de Cornélio Pires, em uma editora que então
passaria a publicar livros dos dois grandes vendedores. Afinal, “se vende bem, que mal tem?”... E
assim o alegado “preconceito” de Lobato teria acabado... Teria mesmo existido?
- Cornélio aponta ter tido plena consciência de que podia lançar sua reinterpretação sem se
preocupar com fundamentações científicas, pois suas publicações eram artísticas: no livro As
estrambóticas aventuras do Joaquim Bentinho chegou a afirmar que seus registros tinham
pretexto de serem “casos e mentiras”, e que lexicógrafos (elaboradores de dicionários) é que
deveria “pescar regionalismos de verdade” neles.
Outra grande “sacada” de Pires foi induzir a ligação com o Divino, com a religiosidade
católica fervorosa brasileira, ao apontar recontextos que remeteriam aos primeiros tempos do
Brasil-Colônia, como de danças. Neste sentido, colaboram lendas como as do chamado “São
Gonçalo”, que além de nunca ter sido santo (apenas beato), desde o século XVI é citado via
diversas lendas. Pesquisamos alguns relatos sérios sobre a interessante vida de Gonçalo, onde não
encontramos nenhuma citação de atividade musical pelo beato, como o famoso Sermão de São
Gonçalo, do jesuíta português Antônio Vieira (estimado ao ano de 1690). Realmente, no Brasil há
Danças de São Gonçalo praticadas não só desde a época de Cornélio Pires, como um pouco antes;
estas danças tem registros pelo menos a partir de 1621, em Portugal, mas no recontexto genial é
sugerida como se fosse ligada aos primeiros jesuítas, por um (!) apontamento que realmente citou
uma dança, mas sem qualquer citação a Gonçalo, de Fernão Cardim (1584). Em contexto histórico-
social normalmente “não lembrado” (ou convenientemente não considerado) pelos defensores do
caipirismo, danças similares teriam existido, como celebrações de vitórias em guerras importantes
e, especificamente em Portugal e na Hispania, desde a expulsão dos mouros, em 1492. Para
conferência deste dado pouco citado, e pela boa pesquisa histórica sobre danças, sugerimos ler
Curt Lange (Danças Coletivas Públicas do período Colonial, artigo de 1969).
É genial ou não? Cornélio apontou que teria plena consciência do que estava a fazer; e
defender uma “cultura inventada", que sempre teria sido "perseguida e/ou menosprezada, em
perigo de extinção" ajudou muito nas vendas. Ele só talvez nem imaginasse que, com o passar dos
anos, tantos outros “compadres” seguiriam suas reinterpretações livres: estas que agradam muito
até hoje, tanto para elevar o moral de quem não gosta de ler quanto de quem quer continuar
faturando com a ainda conveniente história.
Prova-se ser boa estratégia para vender aulas, palestras, defender teses em faculdades e até
candidaturas, como teria sido o caso de Antônio Cândido... Sabia? Foi! E aquele carioca, que
gostava de dizer que era mineiro, foi candidato por São Paulo, exatamente à época que defendeu
seu doutoramento. Utilizou ainda, em soma e cruzamento, outras interpretações lendárias antigas,
como a de que os paulistas teriam DNA superior e que os bandeirantes teriam sido grandes heróis.
Achamos essa estratégia nojenta, principalmente pela alegada e covarde "superioridade genética",
o mesmo tipo de argumento de um babaca austríaco que causou a morte de milhões de pessoas na
segunda guerra mundial... Mas o fato é que agrada a muitos egos paulistanos desde a década de
1930 (quando também causou mortes) até os dias atuais, então, a estratégia deu "serto", né?
É tudo mais ou menos como a história de "Papai Noel": outra criativa interpretação livre,
sustentada e "vendida" por décadas, que agrada a muitos. Apenas uma história, também genial e
também criada para alavancar vendas, que agrada e é multiplicada pelas afinidades e interesses de
muitos, principalmente interesses comerciais.
Nada disso é ilegal, pois somos um país capitalista. E temos liberdade de Credo também,
portanto, cada um pode "crer" no que quiser. É permitido tentar vender o que se quiser para quem
quiser "colocar fé" numa boa história. Tudo certo, portanto. E faz sentido: afinal, o caipirismo teria
sido criado e sempre foi utilizado para alavancar lucros: Cornélio vendeu muitos livros, palestras,
apresentações, discos... Antônio Cândido, tentou ser eleito... O estilo chamado “sertanejo
universitário”, pegando carona em algumas características, vendeu e ainda vende muito... Inezita
tinha um programa de TV para alavancar... Diversos “caipiras” atuais, embora moderníssimos, já
tiveram discos para vender, e ainda têm suas aulas, apresentações, palestras e outras "vendas" a
alavancar. Tudo pelas vendas: e tudo conforme as leis.
É bom lembrar que a ideia genial hoje contempla ainda que, para ser “caipira”, basta alegar
qualquer ligação interiorana (quem nunca a tem?), ou mesmo só afinidade, e pronto: já se pode
começar a faturar. Já os que aparentemente não teriam nada “para vender”, faturam em satisfação
dos próprios egos, como nobres participantes ou apoiadores de uma “cultura oprimida que não se
pode deixar desaparecer”... É estranheza em cima de estranheza: afinal, se é antiquíssima, por que
teria chance de sumir? Que raiz rasa seria essa?
Felizes também estariam muitos por não precisarem ler, pesquisar e refletir (a tradição oral
é suficiente e, afinal, há diversos “doutores” que defendem o caipirismo). Ler e refletir dá muito
trabalho. E ainda é possível "faturar" muitos “compadres e comadres”, gente simples, todos
“humildes”: receptivos amigos, “irmãos caipiras” por praticamente todo o Brasil. É outra
característica da genialidade da ideia, pois realmente pode-se dizer que havia (e ainda há) pelo
Brasil uma classe interiorana: pacata, muito trabalhadora, ligada ao ruralismo, de muito valor, mas
pouco reconhecida pelo restante da população. Caracteriza-se ainda certo preconceito... Só que
antes, a classe rural teria sido a esmagadora maioria, assim como a agricultura era desenvolvida,
na prática, muito mais por escravizados sequestrados. E antes, “mais antes ainda” (que seria a
verdadeira cultura ancestral), a maioria das características alegadas ao caipirismo eram
praticamente todas dos indígenas: estes não eram, portanto, “caipiras”, e são a nossa verdadeira
raiz, somada depois aos pretos, que então se tornaram maciça maioria nos primeiros séculos.
É bom lembrar ainda que, para se fazer parte hoje de uma verdadeira classe “caipira” (ou
seja, interiorana), algum faturamento só é conquistado com muito suor: tem que pegar na enxada
de sol a sol, não basta apenas se autoproclamar “caipira”.
Imaginar que o passado teria sido exatamente como o presente é equívoco muito básico,
principalmente se apontado por estudiosos, por isso entendemos que não sejam simples enganos:
só pode haver conveniência na manipulação da verdade.
Os que ignoram a verdade estão felizes e os que faturam, quer ignorem conscientemente
ou não, estão mais felizes ainda... A genial interpretação tem várias “meias verdades” em
paralelo... Está tudo certo legalmente... Então, por que questionar?
Bom, quem estuda um pouco de História e qualquer Ciência percebe que a função do
pesquisador sempre foi questionar e apontar verdades atestáveis, independentemente de lucros e
outros interesses. E não há problema algum em praticar Ciência, afinal, o Natal também é uma
história agradável criada e sustentada por milhares: ninguém deixa de faturar se apontamos que,
na verdade, o Aniversariante não teria nascido de fato naquela data, e que é estranho que se defenda
que todo mundo mereça ganhar presentes se o aniversário é Dele, que teria pregado desapego a
bens materiais... não é mesmo? Então, sem problemas: podemos relatar o estranho caso do “bom
velhinho” que rouba a cena do Filho do Homem, pois todo mundo sabe que é só um embuste
comercial para alavancar vendas; e tudo bem, segue o andor...
Nossa maior motivação é que o Brasil aponta precisar, mais do que nunca, de práticas
científicas honestas: leitura, estudar e refletir sobre a História, esclarecimentos de equívocos e
enganações, verdades demonstráveis por dados (e não apontadas por teorias e entendimentos
coletivos convenientes, mesmo que sejam defendidos por pessoas importantes).
Nós “temos fé” em dados históricos e honestidade de pesquisa, e na função histórica da
Ciência. Acreditamos que interesses capitalistas, ególatras e corporativistas costumam ser
colocados acima de quase tudo, sobretudo da Ciência, e que podem embotar, mascarar ou até iludir
entendimentos. E sabemos que a maioria dos brasileiros não tem hábito de ler, não se preocupa
em checar fontes e dados, preferindo acreditar em histórias agradáveis, ainda mais se muitos
"compadres" também acreditarem.
Quanto mais "compadres" apoiarem, mais "verdade" alguma coisa seria? É o que parece,
mas na verdade as coisas não são assim, automáticas. Muitos podem estar enganados e inocentes
(ou quase inocentes) no processo: estes, principalmente (mas também toda a sociedade), merecem
ter a oportunidade de saber as verdades. É, por isso tudo, também dever cívico e moral, além de
científico, apontar equívocos e confrontar com verdades atestáveis.
O que vão fazer depois de saberem a verdade, em parte é problema de cada um; mas por
outra parte é um problema para toda a sociedade. Além disso, há outros embustes semelhantes por
aí, aos quais a forma mais honesta de pensar e agir (leitura e reflexão sobre dados reais) pode e
deve ser aplicada. Já quando é algo relacionado a algum suposto "divino", ainda mais se deve
procurar dados e apontamentos claros pois, afinal, somos um país de fé: de muitas delas... Mas aí
já são outras prosas...
Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando...
18
Ver relação de fontes no rodapé 17.
O mais provável desenrolar aponta ter sido: “cordas que emitem som” teriam
gradativamente conquistado tanta importância que demandou serem carregadas junto, onde os
humanos fossem; para facilitar a demanda, teriam sido então construídas versões menores,
portáteis... que, entretanto, proporcionariam menos som que as maiores: então, teria surgido a
necessidade de ampliação de volume, das “caixas de ressonância” das portáteis. Também ter-se-ia
descoberto que seria possível usar menos cordas para conseguir efeitos similares e até melhores,
apertando-as ao longo de braços. Embora faça sentido, na verdade esta análise de esculturas e
desenhos ancestrais é conjectural, pois entende-se que não existam registros suficientes para
atestação: pedimos desculpas e compreensão com este pequeno "ensaio", quanto àquela primeira
parte da História, e prometemos que é o máximo que vamos conjecturar, a partir daqui.
Algo concreto e que chama a atenção é que, sejam quantos milênios tenham sido
necessários para os desenvolvimentos, vários dos instrumentos antigos não teriam saído de cena,
e então conviveriam com os novos (e assim é até os dias atuais). Indicamos isto como um padrão
histórico primordial: a continuidade. Infere que quando há alteração na tendência, há algum
causador extra-natural (que chamamos contextos histórico-sociais). Outro padrão primordial é que
as características mais assertivas de um instrumento (inclusive seus nomes) estão diretamente
relacionadas à época e local onde foi apontado, onde teria existido... mas, ao mesmo tempo, a
continuidade histórica tenderia a transcender alguma coisa deles.
[Pausa para refletir: percebeu que é preciso "um olho no gato, outro no aquário" o tempo
todo, quando se analisa o tema? Na verdade, qualquer estudo histórico é semelhante... O mais
importante é que quando fenômenos se repetem por toda a História, não se pode considerar que
seja "coincidência": é o que chamamos de "padrão". Então, esqueça as "lacrações" modernas, abra
a mente e vem com a gente!].
Aproximadamente 2000 anos antes de Cristo destaca-se reflexo de contexto histórico-
social, que foi a dominação dos assírios, que após várias guerras e invasões teriam assumido a
região suméria (estes últimos, que acabaram extintos). Dos assírios se conhece registro de
ketharas, que inclusive ainda resistem na região. Portáteis sem braços, entende-se que exatamente
por serem diferentes do pan-tur sumério (com braço) teriam ascendido na preferência assíria: não
se conhecem registros, à época, de cordofones com braço assírios, mas existiriam "com e sem
braços" tanto no Egito, à mesma época, quanto na Babilônia, civilização que emergiria depois dos
assírios, na mesma Mesopotâmia.
Observamos diversas vezes pela História fenômenos de ascensão e queda de preferência
por determinado tipo de cordofone: um determinado povo, ao dominar outro, insere novos
costumes em substituição, onde se destaca uso de nova língua (a do dominador). Isso é bem óbvio,
porém percebemos que o comportamento dos nomes de instrumentos é um pouco diferente do que
aponta a linguística tradicional para todas as palavras. Faz bastante diferença partir da Musicologia
(a Ciência mais adequada para estudos sobre instrumentos musicais), somando e cruzando na
equação visões históricas, sociais, literárias e outras; e assim postulamos mais um padrão histórico,
diretamente relacionado a nomes de instrumentos (vai anotando aí, que daqui a pouco os padrões
vão se cruzar, se somar, se misturar...).
Um próximo evento de grande impacto social teria sido a grande atuação naval e comercial
dos fenícios, por cerca de 1400 anos, entre 1700 e 300 aC. (aplica-se, no caso, a regra de que antes
da Era Cristã os anos devem ser apontados de maneira retroativa... Achamos isso meio estranho,
pois na verdade o Tempo só segue em frente, mas paciência, né? É assim que a Ciência indica
fazer). Voltando aos fenícios: teriam sido séculos de comércio por um grande território ligado ao
Mar Mediterrâneo (regiões hoje chamadas africanas, europeias, asiáticas, orientais, etc.). Aos
fenícios também é creditado o início do desenvolvimento de uma língua mais centralizadora, que
pudesse ser usada em toda a vasta região, para facilitar a comunicação entre pessoas de culturas
tão diferentes. Instrumentos musicais também teriam sido comercializados, sendo observados
ancestrais similares em praticamente todas aquelas distantes regiões que, se tiveram contato antes,
não teriam sido tanto como aconteceu a partir dos fenícios. Assim como todas as invenções e
se observam tantos avanços gerais do Conhecimento, mas não se pode deixar de dar crédito por
avanços nas áreas de combate e na área administrativo-estrutural (como estradas, aquedutos,
técnicas de subsistência e outras). O "código alfabético" latino usado na época aponta influência
do grego, mas teria havido uma imposição do latim como língua oficial em todo o território
dominado (o contexto de rejeição, portanto, é expressivo). Foram feitas muitas traduções de textos
gregos para o latim, às vezes adaptadas / corrompidas, e várias sobrevivem até os dias atuais: não
apontam ter tido objetivo de assimilação, desenvolvimento e intercâmbio de conhecimentos entre
os povos, mas de beneficiar o domínio, às vezes até pela descaracterização cultural dos dominados.
Instrumentos musicais apontariam, então, reações a aquele outro cenário social, inclusive
nos nomes: harpa, cithara, lira e chelis (sem braços) seguiriam similares, em reflexo da
sobreposição do latim ao grego; já entre os instrumentos com braço, enquanto pandorion dava
seguimento à bifurcação ancestral (a partir da pandura grega), pelo lado da "phandura", que viria
desde os caucasianos com som da letra “f” na inicial, não teria equivalente exato em latim; mas
haveria o genérico fides ("cordas") e seu diminutivo fidicula, utilizados para todos os tipos de
cordofones. Musicólogos, linguistas e outros estudiosos apontam não terem observado tão a fundo,
mas pelo paralelo com contextos histórico-sociais, observa-se que o uso daqueles genéricos aponta
rejeição nacionalista de alguns romanos a nomes de outras línguas (comportamento similar ao
visto depois em outros capítulos históricos). O uso de genéricos pode ter um pouco a ver com o
fato de que, em geral, romanos seriam menos letrados que gregos: mas observa-se também que
teria havido apenas uma possível ascensão de instrumentos novos: o psalterium, similar às kitharas
e lyras gregas, mas com caixas de ressonância abrangendo todas as cordas. O nome psalterion já
teria registros anteriores em hebraico e grego, mais provavelmente para HARPAS (maiores e sem
caixas), e considera-se o número de registros conhecidos, muito influenciados pelo uso inacurado
de nomes, insuficiente para atestar que teria sido uma invenção romana, assim como a versão do
mesmo, tocada por pequenos martelos (e não diretamente pelas mãos), que mais tarde teria
registros por nomes como o latino dulcimer.
Próximo evento, a influência da Igreja Católica Romana, que ascendeu após a queda do
Império Romano (século V) e que foi mais impactante até pelo menos o século XV, num longo
período de cerca de 1000 anos conhecido como “Idade Média”. A Igreja manteria o latim como
língua oficial de suas práticas, incluindo registros escritos que seriam os de maior número por todo
o território europeu. Poucos além dos religiosos saberiam ler e escrever, numa época de povos
ainda em guerras por espaço e consolidação de suas culturas nos territórios então tomados dos
romanos.
Entre os reflexos, pode-se dizer que até o século VIII a Igreja praticamente determinaria o
que se fazia musicalmente no território europeu. Só então a chamada Invasão Moura (árabe,
muçulmana) iria influenciar também significativamente o cenário, e também até o século XV, em
concorrência com a influência da Igreja. O choque entre aquelas culturas bem diferentes refletiu
em capítulo importante para o surgimento dos cordofones considerados originalmente europeus:
os árabes teriam levado seus instrumentos e sua relação com a música (ambos os casos em que
eram mais evoluídos e livres), causando diversos reflexos aos europeus. Não por coincidência, a
partir do século IX surgiriam ações mais contundentes de rejeição pela Igreja (como as Cruzadas),
assim como como a ascensão de estudos da música europeia hoje chamada “tonal” (considerando
a evolução maior a partir de Guido D’Arezzo, padre italiano, cuja divulgação dos estudos por todo
o território europeu aponta ações da Igreja). Também a partir daquele período temos os registros
mais remotos conhecidos da ascensão de instrumentos com braços mais longos e do uso de arcos
em território europeu. Os impactos sociais ocasionariam um longo período de transição, quando
instrumentos antes apenas dedilhados passariam a também ser tocados via fricção por arco. A
princípio, continuariam a ser chamados pelos mesmos nomes, como o caso da rotta, o cordofone
europeu mais observado em registros entre a queda de Roma e a Invasão Moura: um portátil sem
braços, que emergiu com uma somatória de características dos antecessores lira, cithara e
psalterium. Já entre os emergentes cordofones com braço, a rabab árabe, de braço curto, aponta
logo ter sido espelhada por GIGAS, europeias praticamente idênticas, e ambas gradativamente
passariam de apenas dedilhadas a predominantemente friccionadas por arco. Com braços mais
longos, alaúdes árabes (dedilhados), apontam ter influenciado surgimento de equivalentes
europeus, a princípio chamados pala nomenclatura CITARA, esta que então aponta ter sofrido
ressignificação (de nome de instrumentos sem braços para com braços). O formato periforme e
com fundo abaulado, até hoje típico dos instrumentos árabes, aponta ter sido rejeitado pelo
surgimento de vários formatos diferentes, que gradativamente passariam a portarem fundos
paralelos, entre outras caracterizações "mais europeias": destacam-se entre os formatos surgidos
os arredondados e ovalares (em espelhamento mais direto aos árabes) e os cinturados e
retangulares, estes apontando resquícios diretos dos dois formatos de rottas antecessoras, assim
como da principal diferença entre as mais antecessoras ainda, cithara e lira (aqui apontando nomes
em latim, pela época em foco). A cithara antiga, sem braços, tinha formato geral mais retangular
e a lira, os gregos a teriam lançado com estruturas onduladas, curvilíneas. Nota-se, portanto, o
padrão histórico de continuidade de algumas características resistindo aos reflexos de comoções
sociais, embora estas últimas causem modificações mais contundentes, como a ascensão e queda
de uso das rottas.
Sempre é bom lembrar que instrumentos mais antigos conviveriam com novos, por longos
períodos: por isso apontamos os reflexos por períodos estimados das ascensões e quedas de
preferência, não simplesmente pelas datas dos registros mais remotos observados (estas últimas,
entretanto, estimam os paralelos aos contextos histórico-sociais). Assim, por exemplo, haveria
fartos registros de rottas aproximadamente entre os séculos V e IX (quando apontam ter
gradativamente ascendido em preferência sobre liras, citharas e psalterios, que por sua vez
passariam a aparecer menos em registros conhecidos, mas não sumiriam). Há um complicador,
que outros estudiosos não apontam ter atentado, de que rottas seriam constante e equivocadamente
chamadas pelos nomes dos antecessores, similares (este é outro padrão, repetido e danoso, que o
identificamos por "generalismo"). Da mesma forma, a partir do século IX, enquanto registros de
rottas apontam gradativamente diminuírem, registros de cordofones com braços surgem e
gradativamente foram aumentando, os escritos (onde o generalismo continuaria, e envolvendo
então mais equívocos que antes, pois novos instrumentos surgiram) quanto em registros das artes
plásticas (desenhos, esculturas e similares).
Capítulo especial de contexto histórico-social refletido se observaria entre os séculos XII e
XIII: teria sido o auge do Trovadorismo, quando a prática mambembe, originalmente moura,
estaria já muito incorporada pelos europeus. Atesta-se, por exemplo, por diversos textos rimados
(tipo de poesias que não teriam registros entre europeus antes da Invasão Moura) escritos até por
padres, desde o século IX (Otfried). Aquelas poesias, e/ou eventuais letras de música, atestam
intercâmbios (chamados “empréstimos” por alguns linguistas) entre o latim popular e diversas
línguas então em evolução, e instrumentos musicais apontariam reflexos por uma profusão de
registros de nomes inter-relacionados, em latim, occitano, catalão e as mais antigas versões de
francês, alemão e línguas "britânicas" ancestrais (anglo-saxão, irlandês, galês entre outras). Entre
aqueles registros, se destacam variações da nomenclatura VIOLA, surgida a partir do século XII,
que catalogamos em nosso artigo Chronology of Violas according to Researchers (2023). Na
mesma época, CITARA aponta ter começado a se bifurcar entre CEDRAS e CITOLAS, e no
século XIII emergiria a nomenclatura GUITARRA (sempre, em nossos textos, nomenclaturas em
maiúsculas apontam que teriam variações próximas em diversas outras línguas. O critério é o do
mais remoto registro encontrado que aponte ter influenciado variações posteriores).
O Trovadorismo diminuiria muito em função de outro evento de grande impacto, a
chamada Peste Negra, do século XIV, que também traria grandes comoções e mudanças sociais.
É a partir daquele século, por exemplo, que se observa (em poema do padre espanhol Juan Ruiz,
o Libro de Buen Amor) a expressão de preferência por instrumentos não árabes: o texto é sutil,
neste aspecto, como caberia a um bom padre, mas é claro no sentido de separação de costumes.
Constatam-se também ainda muita diversidade (de nomes, formatos, armações de cordas e outras)
social, a citada Revolução Industrial, cujas fases são estimadas entre os inícios dos séculos XVIII
e XIX. Aquele longo e impactante evento traria, entre outras características, a visão de produção
e venda em série, na qual instrumentos musicais também foram inseridos, em reflexo. Àquela visão
capitalista se somaria o antigo nacionalismo, num entendimento de que, se uma determinada região
se especializasse em determinados instrumentos e estilos (investindo na fabricação, ensino, prática,
etc.) agregar-se-iam divisas e se destacariam características culturais exclusivas, identitárias (um
verdadeiro "ganha-ganha", diríamos modernamente). Durante aquela fase, instrumentos musicais
mais populares apontariam reflexo e testemunho, por exemplo: na consolidação das orquestras
modernas, após séculos de investimento capitaneado por italianos nas antigas vihuelas de arco
(menos preferidas pelos espanhóis que as dedilhadas deles), até o desdobramento (ou rebifurcação)
em quatro tamanhos, que levou ao atual naipe de cordas; reflexo também pelo surgimento e
ascensão do citado “violão”, ou guitarra espanhola de seis cordas; além da citada “guitarra
portuguesa”, que junto ao fado, não por coincidência ascenderiam a partir da mesma época. Ainda
outro reflexo é a citada queda de uso da english guittern ("guitarra inglesa"), de caixa arredondada,
pois conforme observamos e demonstramos, sempre coincidiria com a época dos contextos
histórico-sociais o surgimento, ascensão ou queda de uso de instrumentos, assim como alterações
dos mesmos, inclusive em nomes (a tendência natural é que reflexos sejam observáveis logo após
a consolidação dos eventos, por serem consequência deles). E sempre há alguma continuidade, em
alguns detalhes: no caso das guitarras portuguesas, há a significativa alteração de preferência dos
portugueses (de cinturados para arredondados), comprovando a força de motivação pelo contexto
histórico-social (de concorrência aos espanhóis); porém, ao mesmo tempo, resquícios denunciam
a ancestralidade nelas a partir das guitarras inglesas, pela nomenclatura (que antes era rejeitada,
mesmo com a proximidade entre as línguas espanhola e portuguesa), pela armação de cordas
(12x6) e pelas primeiras afinações utilizadas, abertas. Os contextos sempre esclarecem: a caixa
arredondada e as seis duplas de cordas metálicas das guitarras inglesas atendiam a demanda de
rejeição/concorrência portuguesa aos violões espanhóis: porém, as afinações abertas eram (e ainda
são) utilizadas em violas dedilhadas, bem mais nas "brasileiras" do que nas "portuguesas"; assim,
a posterior alteração de afinações das guitarras portuguesas (para não abertas) aponta coerência
com o objetivo de investir nela como expressão nacional portuguesa (inclusive, desde o nome),
que demanda ser exclusiva no máximo possível de detalhes.
Por fim, destacam-se as grandes comoções sociais causadas pelas guerras mundiais do
século XX, seguidas por movimentos pela paz: como reflexo, o surgimento e ascensão das
guitarras elétricas, que ascenderam com avanços eletrônicos, pois paralelamente (e também um
pouco “transversalmente”), haveria tendência cada vez maior de globalização, fomentando
evoluções nas comunicações e tecnologias eletrônicas em geral (foi quando, por exemplo,
surgiram os primeiros computadores, mas ainda sem internet). Entende-se "também
transversalmente" porque não se pode negar que a globalização esteja ligada à expansão de
mercados, que por sua vez é característica do capitalismo. A globalização, hoje praticamente “on
line 24 horas”, reflete então nos instrumentos numa tendência de consolidação de formatos,
armações, afinações, técnicas e até de alguns nomes, com HARPA, LYRA e VIOLA que apontam
estarem a retornar a suas grafias ancestrais, mesmo nas mais variadas línguas modernas (e, mais
uma vez, desobedecendo as teorias linguísticas gerais). Também se atesta o testemunho (ou
espelhamento ao contexto) por avanços tecnológicos, como o surgimento de versões digitais, tanto
dos instrumentos, fisicamente, quando das suas sonoridades (por exemplo, hoje é possível escrever
e executar simulações de orquestras inteiras via programa de computador, com timbres
relativamente bem aceitáveis, se usadas tecnologias e equipamentos de ponta).
Para finalizar, apontamos que aconteceu, recentemente, outro evento de grande impacto
mundial, que foi a pandemia: tudo indica, pela coerência histórica continuada, que nos próximos
anos deverá acontecer algum tipo de reflexo nos cordofones populares, provavelmente na maior
parte do mundo (como foi a pandemia). Difícil é prever exatamente como e quando, mas a História
aponta que deverá acontecer. Talvez (quem sabe?), uma nova mudança já esteja acontecendo, em
"[...] Observou-se, segundo centenas de registros levantados, que na verdade outros instrumentos
(como alaúdes, vihuelas, guitarras) tinham e continuam tendo características organológicas identificáveis,
enquanto das "violas" não foram observadas descrições nem imagens que comprovariam a existência física
de um instrumento diferente dos demais, antes de meados do século XVIII"
[João Araújo, Linha do Tempo da Viola no Brasil, 2021]
A nós cabe, portanto, primazia e atrevimento, mas com a segurança que a investigação
científica nos dá, em afirmar: “na verdade, não existiriam violas, só instrumentos diferentes, todos
chamados de violas”. Não apenas o afirmamos, mas, naturalmente, desenvolvemos e atestamos
por registros e por contextos histórico-sociais. Isso por sermos melhores pesquisadores? De forma
alguma, e muito longe disso: é apenas porque seguimos um caminho científico diferente, mais
amplo, com paralelos a outras áreas da Ciência, somados à Musicologia (como História,
Sociologia, Linguística, Literatura e outras); com destaque, um aprofundado estudo sobre nomes
de instrumentos, em fontes e estudos nas principais línguas europeias desde o latim do século II
aC. Ao que percebemos nas fontes, nunca tinha sido feito assim antes e por isso nos esforçamos
por fazê-lo: não por querer "aparecer", mas porque a Ciência nos apontou uma lacuna a ser
preenchida.
Percebemos inclusive que pouquíssimos estudiosos teriam investigado a fundo as violas
dedilhadas, a não ser alguns portugueses e brasileiros, e estudos sobre as vihuelas espanholas, estas
que teriam caído em desuso (por espanhóis) a partir do século XVII. Mesmo assim, como citamos,
os portugueses usando sua visão peculiar, e brasileiros os secundando, sem questionamentos.
Por nossa inovadora maneira de investigar, inclusive, não admiramos que nossos
apontamentos não sejam reconhecidos (ainda), embora tenham profundo embasamento e
desenvolvimento científico. Afinal, são séculos de análises feitas antes, por estudiosos dedicados
e, por inegáveis méritos, muito famosos: é normal que demore algum tempo até que sejamos
conferidos, compreendidos e, caso merecedores, ser reconhecidos. Estimamos que levará, talvez,
uns 30 anos até que nossos apontamentos sejam melhor considerados, ou seja: nossa monografia,
livros como a A Chave do Baú, artigos científicos e estes Brevis Articulus aqui seriam,
provavelmente, de fato destinados a quem nos lerá no futuro, quando infelizmente não teremos a
oportunidade de esclarecer dúvidas, corrigir possíveis equívocos nossos e colaborar mais para o
avanço da Ciência. Paciência, cest la vie, shit hapens...
Então, "caros amigos que nos leem no futuro" (esperamos, que estejam melhor que o nosso
presente): em termos da História das violas dedilhadas portuguesas e brasileiras, o que a maioria
dos estudiosos aponta até agora é um equivocado, embora aparentemente óbvio, “bilinguismo
português”, ou seja: que os portugueses utilizariam uma simples e inocente tradução (por exemplo,
usar “viola” ao invés de vihuela). Isso provavelmente seria fato, mas só em recortes históricos
curtos (o que não é recomendável que se considere em investigações científicas): em alguns
períodos, realmente pode se dizer que haveria "bilinguismo" entre vihuelas espanholas e "violas"
portuguesas (termos etimologicamente ligados); porém, em recorte maior (e mais adequado), seria
também entre guitarras e "violas" (?), e ainda haveria "bilinguismo" também entre alaúdes e
"violas" (?)... Ou seja: na verdade, não haveria bilinguismo, mas um tipo de "multilinguismo" onde
o nome "viola" seria sempre o preferido, e não como tradução simples ou alguma incrível mutação
etimológica ("alaúde" e "guitarra" tem enormes distâncias etimológicas de "viola"). É importante
ressaltar que um nome diferente não torna instrumentos diferentes, seria necessário existirem
diferenças físicas atestáveis; assim como um nome igual não comprova que instrumentos sejam
iguais, como é o caso, também de herança portuguesa, das “violas” de arco e as “violas” dedilhadas
(por isso, inclusive, surgiram "sobrenomes", ou seja, o apontamento de nomes compostos, onde o
segundo nome denota diferenças entre os instrumentos). O fato é que não seriam conhecidas
características diferenciadoras nas chamadas “violas dedilhadas portuguesas" até, pelo menos,
meados do século XVIII: o próprio apontamento equivocado de um bilinguismo colabora na
atestação de que não haveria instrumentos diferentes, apenas o nome "viola", utilizado para
instrumentos existentes, cujos nomes verdadeiros o nacionalismo português sempre rejeitaria (até
os dias atuais, inclusive), para não dar crédito (sequer referência) a culturas dissidentes pelos
nomes dos instrumentos. No popular, dizemos "para não dar palco a inimigos".
Em nossos desenvolvimentos observamos que na verdade teria havido, pelos portugueses,
uma ação patriótica (ou nacionalista), popular e tácita, corroborada por registros e por contextos
PERÍODO 1 (entre meados do século XV até fins do século XVI): as violas dedilhadas ainda não
existiriam, só instrumentos chamados de “viola” pelos portugueses.
O início é estimado ao ano de 1455, data do mais remoto registro conhecido de “violas”,
que teria sido apontado pelo militar português Brito Rebelo (1830-1920) no livro Curiosidades
Musicais - um guitarreiro do século XV. Não tivemos acesso ainda ao original, mas confiamos
nas citações dos portugueses Ernesto Veiga de Oliveira (livro Instrumentos Musicais Populares
Portugueses, ano 2000, ver páginas 163 e 164) e Manoel Morais (no citado artigo A Viola de
Mão em Portugal c.1450-1789, de 1985, ver página 397); além dos secundamentos feitos nas
décadas seguintes por grandes pesquisadores brasileiros como Paulo Castagna (dissertação Fontes
bibliográficas para a pesquisa da prática musical no Brasil nos séculos XVI e XVII, 1991, ver
página 221); José Ramos Tinhorão (livro História Social da Música Popular Brasileira, 1998,
ver páginas 26-27) e Rogério Budasz (livro A Música no tempo de Gregório de Mattos, 2004,
ver página 09).
Todos estes estudiosos, entre outros, apontaram que teriam existido “violas dedilhadas” em
Portugal desde o século XV, mas nenhum deles foi capaz de apontar diferenças entre aquelas
possíveis “violas” e outros instrumentos existentes (ao contrário, todos sempre apontaram
descrições dos outros instrumentos para as supostas "violas"). Os outros instrumentos, bem
investigados e descritos, seriam alaúdes (de caixas periformes) e vários cinturados, com fundos
paralelos: guitarras espanholas de quatro ordens, vihuelas de seis ordens e depois (a partir do
século XVII) as guitarras também espanholas, chamadas hoje “barrocas”, com cinco ordens de
cordas. Além, naturalmente, das violas de arco, bem diferentes pela maneira de serem tocadas.
Não é curioso que para todos os demais instrumentos sejam apontadas classificações claras, a partir
de diferentes nomes e características, mas das supostas “violas dedilhadas” não haver nenhuma
característica diferenciatória, a não ser o nome? E não é mais curioso ainda que só “violas”, quando
detalhadas, teriam exatamente as mesmas características de algum daqueles outros instrumentos?
Que “violas” teriam sido aquelas? Nós respondemos sem medo: nenhuma! Haveria apenas
o nome “viola”, que realmente já seria utilizado para cordofones desde o século XII conforme
registros em latim, occitano, catalão e até em espanhol (ver detalhes em nosso artigo Chronology
of Violas according to Researchers, de 2023). Assim como nas vihuelas espanholas, “viola” era
nome bivalente, ou seja, utilizado tanto para friccionados por arco quanto dedilhados, basta ver
métodos como os dos espanhóis Fuenllana (1554), Bermudo (1555), Amat (1596) e Cerone (1613).
No território italiano também haveria registros de bivalência do nome quanto ao modo de tocar,
desde aproximadamente 1486 (ver Tinctoris, De Inventione et usu musicae). A bivalência se
encerraria a partir do século XVII por quase todo o território europeu, só seguindo até os dias
atuais por causa dos portugueses, que optaram por mantê-la. Observe que o comportamento
português, quanto a nomes de cordofones, normalmente é diferente!
Portugueses simplesmente teriam optado por utilizar o nome “italiano” (e/ou latino) “viola”
para evitar nomes espanhóis como vihuela e guitarra, e até árabes como alaúde (este, que
apontamos aqui por esta latinização de al'ud). Isso, por contextos histórico-sociais claros de
disputa, de rivalidade. Entre as dezenas de evidências deste peculiar comportamento português,
destacamos que eles utilizariam expressões como “violas grandes” e “violas pequenas”, enquanto
outros povos diferenciariam muito bem vihuelas e alaúdes (maiores, com mais cordas) das
primeiras guitarras (menores e com menos cordas). Neste particular, jamais interpretaríamos o
uso do genérico como falta de acuidade intelectual de um povo que teria sido o primeiro a se
levantar como Reino Independente no território europeu, entre várias outras grandes realizações:
ao contrário, damos ênfase exatamente ao forte e inato nacionalismo dos lusitanos.
Particularmente, achamos bonito e temos até inveja daquele senso português de defesa da pátria,
da língua e cultura próprias, que praticam até os dias atuais, por mais que às vezes seja incoerente
(talvez, até desonesto) querer desvirtuar entendimentos sobre fatos e registros históricos.
O término do primeiro período é estimado a 1596, quando se observa início da gradativa
decadência de registros de vihuelas e guitarras espanholas (de quatro ordens de cordas), em função
da ascensão da guitarra espanhola de cinco ordens (estes instrumentos todos que, para os
portugueses, seriam “violas”). As hoje chamadas “guitarras barrocas” (deixando claro que usar
nomes modernos para instrumentos antigos não é recomendável) apontariam registros por grande
parte do território europeu aproximadamente por um século e meio, a partir daquela época,
segundo, além dos estudos já citados, também outros importantes e isentos como a Encyclopedie
de la Musique (na edição de 1920, volume 4, ver páginas 2023 a 2027).
PERÍODO 2 (entre o século XVII até a primeira metade do século XVIII), começariam a ser
observadas duas características que posteriormente viriam a distinguir as violas portuguesas de
outros instrumentos: os usos de “cordas de arame” e o de “ordens triplas de cordas”.
A gama de instrumentos diferentes chamados de “viola” pelos portugueses teria
gradativamente se tornado menor, dada a já citada ascendência das guitarras de cinco ordens de
cordas, que teriam trazido decadência, entre espanhóis, de alaúdes, vihuelas e guitarras menores,
de quatro ordens. A ressignificação do nome guitarra para instrumentos maiores e com mais
cordas que as antecedentes de mesmo nome não caracterizaria, na verdade, o desaparecimento
total das anteriores, que já teriam relativa fama pelo território europeu: na verdade, abriu a
oportunidade daquelas menores virem a ter, com o tempo, outros nomes consolidados fora do
território espanhol. Em Portugal, as antes chamadas “violas pequenas”, "discantes", “machetes”
ou “machinhos”, com o passar do tempo, e algumas pequenas alterações, também seriam
apontadas como “braguinha”, “rajão” e, mais no futuro ainda (a partir do século XIX), até
“cavaquinho” e ukulelê (pelos hawaianos).
No Brasil, “violas pequenas” teriam mais remoto registro conhecido na Lista dos itens
musicais encontrados no Registro dos Generos de varias fazendas que se despachaò nesta
Alfandega do Rio de Janeiro – ano de 1700, segundo Mayra Cristina Pereira (tese A Circulação
de Instrumentos Musicais no Rio de Janeiro, 2013, ver página 127). Igual aos portugueses, logo
depois seriam observados aqui registros de "violas pequenas", "discantes", “machinhos” e
“machetes”, mas não os demais nomes observados em Portugal, sendo que “cavaquinho” só teria
sido utilizado aqui algumas décadas depois de ter surgido por lá, causando a ascensão de dois
instrumentos diferentes: o cavaquinho (4 cordas simples) e as Violas Machetes (10 cordas em 5
ordens).
Gradativamente, duas características teriam começado a surgir neste período,
especificamente em violas dedilhadas portuguesas: trios de cordas (em duas das cinco ordens) e
arame ao invés de tripa (esta, a preferência espanhola), embora cordas de arame já fossem
utilizadas em cordofones europeus há algum tempo. Observa-se que ordens com trios de cordas
(sem citação ao material delas) foram citadas no método Liçam Instrumental creditado a João
Leite Pita Rocha (1752, ver página 2); e violas também com dois trios de cordas, e indicações de
que cordas de arame dariam menos despesa e seriam mais duráveis, apareceriam no método Nova
Arte de Tocar Viola, de Manuel da Paixão Ribeiro (1789, ver página 6). Estes dois métodos são
muito citados por estudiosos, porém sem que indiquem ter percebido que aquelas teriam sido as
primeiras características de “violas” que definitivamente as distinguiriam de guitarras e outros
cordofones da época. Entre vários estudiosos podemos destacar grandes investigadores como o
português Veiga de Oliveira (2000 [1964], p.158-161) e os brasileiros Paulo Castagna (1992, p.2)
e Júnior da Violla (2020, p.19 a 25).
Duplas de cordas metálicas em cinco e seis ordens (e afinações abertas, como utilizadas
ainda hoje em violas dedilhadas brasileiras) já seriam utilizadas desde o século XVI na família das
bandoras inglesas (estas que teriam caixas com gomos, como pequenas nuvens arredondadas /
ovalares); a armação de cordas 12x6 e afinações abertas das bandoras seguiriam nas arredondadas
english guitterns ("guitarras inglesas") até o século XIX, segundo, entre outros, Francis Galpin
(livro Old English Instruments, 1911, p.31) e Curt Sachs (The History of Musical Instruments,
1940, p.373); já trios de cordas metálicas seriam utilizadas desde o século XVII nas chitarras
italianas, cinturadas, também com cinco ou seis ordens, segundo Tyler & Sparks (The Guitar and
its Music, 2002, páginas 199 a 210) e Darryl Martin (artigo The early wire-strung guitar, 2006,
página 125).
No Brasil não foram observados muitos detalhes dos instrumentos chamados de “viola”
neste período, mas pode-se apontar terem existido pelo menos dois tamanhos: os nomes mais
utilizados seriam “violas” e “machetes”, estas últimas que teriam sido menores e predominariam
em mãos de afrodescendentes. Podemos também apontar resquícios históricos das ordens triplas
metálicas por algumas Violas de Queluz remanescentes (as mais antigas, que apresentariam 12
cravelhas, mesmo quando efetivamente armassem com apenas cinco pares de cordas) e também
nas Violas Nordestinas dos repentes, que ainda utilizam uma ordem tripla.
O período se destaca porque os portugueses ainda continuariam chamando de “viola”
outros cordofones: assim, existiriam “violas portuguesas” (com pequenas diferenças), mas
existiriam ainda guitarras “chamadas de viola”. É um claro período de transição na História das
violas dedilhadas, assim como das famílias de instrumentos que aquelas gerariam, posteriormente,
mantendo o nome genérico-nacionalista português, mas então para instrumentos que se tornariam
efetivamente existentes, posto que diferenciáveis.
PERÍODO 3 (entre meados do século XVIII e início do século XIX): violas dedilhadas evoluiriam
finalmente para instrumentos diferenciáveis, porque a nomenclatura guitarra, em segunda
ressignificado pelos espanhóis, passou a ser apontada para cinturados com a armação 6x6 (6 cordas
em 6 ordens), então apelidados como “violão” ou "viola francesa" pelos portugueses (ainda e
também em contexto de histórico-social de rejeição / concorrência a espanhóis).
Ao fim deste outro período de transição, a ascensão do “violão” proporcionou a caída em
desuso das antecessoras guitarras espanholas de cinco ordens: pelo menos, é assim que a maioria
dos estudiosos ocidentais aponta... entretanto, aquele instrumento (que também era chamado de
“viola” pelos portugueses), não teria desaparecido, apenas teria continuado como era ou, se tanto,
alterado pelo uso de cordas metálicas ao invés das de tripa espanholas: cinco ordens duplas
sobrevivem até os dias atuais, entre os modelos mais conhecidos de violas dedilhadas, tanto em
Portugal quanto no Brasil. É uma grande lição histórica dos instrumentos populares: conservar
alguns resquícios por longos períodos, resquícios que são verdadeiras atestações das comoções
sociais que teriam testemunhado.
Sobre a fase de transição (das guitarras de cinco ordens até a consolidação do violão, com
seis ordens ou seis cordas singelas), procedemos a estimação cientifica pelo cruzamento e
somatória de várias fontes, reanalisadas e organizadas cronologicamente (que é o que orienta a
metodologia que desenvolvemos):
- entre aproximadamente 1752 e 1764 teriam sido publicados, em Madrid (na Espanha),
dois métodos citando vandolas de seis ordens: um por Pablo Minguet (conferimos edição de 1754)
e outro por Andrés de Sotos (deste, conferimos a edição de 1764). Os dados foram analisados,
entre outras fontes, também na Encyclopédie de la Musique (1920, v.4, p.2025). Consideramos a
questão do nome vandola para instrumentos de seis ordens, citado desde Amat ([1596]), como
ainda pouco profundada em estudos e que provavelmente mereça no futuro um artigo específico
nosso; mas o fato é que são apontamentos sobre instrumentos cinturados espanhóis de seis ordens,
que não se conhecem registros de terem sido questionados e que então, por mais de um século,
não se conheceriam outros registros: no mínimo, atestam o retorno no pensar coletivo da época;
- em 1760, anúncio do jornal Diario Noticioso Universal, também de Madrid, apontaria a
venda de uma vihuela de 6 órdenes, do luthier Granadino (?-?), segundo Pascual (1983, p.2-3) e
Tyler & Sparks (2002, p.195). Nos anos seguintes haveria mais alguns apontamentos de vihuelas,
seguidos a partir de 1762 só por citações a "guitarras de seis ordens" (sem detalhamentos de
número de cordas). Destacamos o mais remoto também porque aponta que nome vihuela não teria
sido observado para dedilhados, então, desde Cerone (1613), reforçando o retorno das seis ordens
ao pensamento coletivo naquela época;
- entre 1770 e 1780 seria um período estimado do surgimento do violão, bastante citado
por estudiosos, mas com apontamentos equivocados de origem francesa ou italiana. Destacamos
entre os apontamentos o artigo Stalking the oldest six-string guitar escrito entre 1972 e 1974 pelo
estadunidense Thomas F. Heck (1943-2021), no qual ao final o próprio pesquisador apontou
dúvidas sobre as procedências (mas não quanto às datas de fontes que consultou). Quem,
entretanto, pesquisasse com atenção a preferência e modos de utilização do nome guitarra,
ressignificado duas vezes pelos espanhóis pelo menos desde o século XIV, não teria qualquer
dúvida da origem do “violão” (ou “nova guitarra”), que seria então a terceira versão da série de
guitarras espanholas;
- de 1773 a 1787 seriam os três possivelmente mais antigos violões remanescentes
encontrados em museus europeus também segundo Márcia Taborda (tese Violão e Identidade
Nacional, de 2004, ver página 47), que checamos e confirmamos por outras citações e por portais
internéticos dos museus;
Paralelo aos apontamentos anteriores, há ainda declarações do método Principios para
tocar la guitarra de seis órdenes, do compositor italiano Federico Moretti (1769-1839), que
relatou que em 1799 seriam utilizadas seis ordens na Espanha e que na Itália, em 1792, ainda não
se utilizariam seis, apenas cinco ordens (menos por ele próprio, pois desde 1787 já tocaria com
sete ordens simples).
De todas estas informações e mais algumas, concluímos que as seis ordens teriam
gradativamente voltado aos cinturados a partir dos espanhóis, após estes mesmos terem lançado
antes guitarras de cinco ordens, de sucesso por mais de um século, comprovável por métodos
publicados em inglês, italiano, alemão, francês e outros. A ação de modificar novamente guitarras
que já eram famosas pode parecer aleatória ou até equivocada, a princípio, mas chamamos a
atenção mais uma vez ao contexto histórico-social: entre outros (como a ainda vigente rivalidade
com portugueses), estariam em desenvolvimento as fases da Revolução Industrial, com a nova
ideia de produção e vendas em série. Instrumentos musicais, assim como outros produtos,
significariam então atração de divisas a quem os produzisse melhor, em primazia, e com
características únicas e exclusivas, além de também colaborar com a distinção da cultura de um
determinado povo ou nação.
Outro capítulo da fase de transição (estimada até o início do século XIX) aponta ênfase ao
ano de 1799 para guitarras 12x6, que alguns estudiosos chamam de “guitarras clássico-
românticas”, como Paulo César Veríssimo Romão (1799, O Ano dos Métodos para Guitarra de
Seis Ordens, 2011, p.2). Aquelas guitarras “intermediárias” (vez que depois também seriam
superadas pela consolidação do violão), teriam originado “violas portuguesas” espelhadas, que
hoje só sobrevivem em museus e coleções, mas que no Brasil se consolidariam como o atual
modelo Viola de 12 Cordas da Família das Violas Brasileiras. As atestações mais remotas aqui
são a partir da década de 1920, por instrumento sobrevivente que teria sido utilizado pela dupla
paulista Mandy & Sorocabinha, segundo Júnior da Violla (As seis ordens de uma ilustre
desconhecida, 2020, p.68): mas é preciso considerar que vários registros desde o século XIX
apontariam simplesmente “violas de 12 cordas”, o que não atesta (nem descomprova) se teriam
tido cinco ou seis ordens.
Em coerência com a ação patriótica executada pelo menos desde o século XV, os
portugueses também não chamariam as novas guitarras pelo nome espanhol, pois continuaria
remetendo aos dissidentes (então, mais ainda, pela fama somada de todas as versões históricas de
guitarras). O procedimento teria sido similar ao acontecido antes com machinhos / machetes, no
século XVII: quando espanhóis deixavam de chamar um modelo de “guitarra”, seus espelhos
seguiriam sendo utilizados em Portugal, porém, sempre com outros nomes: para as novas guitarras
espanholas, os apelidos adotados pelos portugueses (até os dias atuais) seriam “viola francesa” e
“violão” (claramente derivadas da nomenclatura “viola”, já utilizada para as guitarras anteriores).
Ressalta-se que não há evidência de origem do violão a partir da França, e sim, por aquele apelido
(que então sugere procedência falsa), uma continuação da ação de rejeição nacionalista portuguesa
pelos nomes utilizados. Mesmo o termo “guitarra francesa”, apontado por alguns estudiosos como
tendo sido bastante utilizado, só observamos poucas vezes apontado por portugueses: não aparece
em dicionários do século XVIII, como os de Bluteau (1716 a 1789), nem foi citado por Ignácio
Roquette (Nouveau Dictionnaire Portugais Francais, editado a partir de 1836). Observamos
apenas uma citação no século XIX, por Raphael Machado (Dicionário Musical, 1855, p.263) e
uma já no século XX, por Veiga de Oliveira (2000 [1964], p.214). No Brasil, apenas 20 citações
do nome “guitarra francesa”, entre 1810 e 1849, entre centenas de fontes pesquisadas, como
periódicos (jornais e revistas).
Ainda no Brasil, em confirmação de que a nomenclatura patriótica era contexto histórico-
social relativo a portugueses, entre as décadas de 1810 e 1830 observou-se que “guitarra” teria
sido o nome de cordofone mais citado, com larga vantagem aos demais; só a partir de 1818 teriam
começado a surgir os primeiros (e pouquíssimos) registros de “viola francesa”, “guitarra francesa”
e “violão”, segundo dados disponíveis na Biblioteca Digital Nacional. Destaca-se a acurância dos
reflexos de contextos histórico-sociais em instrumentos, pois até 1822 ainda fomos Colônia
portuguesa, mas nossas comoções sociais seriam diferentes (inclusive, a própria rejeição a alguns
costumes do colonizador faz parte dos contextos só nossos). A década de 1840 é apontada como
de evidência da consolidação do violão no Brasil por vários estudos: análises de anúncios de aulas
de música, por Carlos Eduardo Azevedo e Souza (tese Dimensões da vida musical no Rio de
Janeiro, 2003, p.289); investigações gerais, incluindo peças de museu, de Márcia Taborda (tese
Violão e Identidade Nacional, 2004) e análises de romances por Renato Castro (artigo Musical
artefacts in literary texts, 2015, p.39). De nossa parte, além de somar e cruzar aqueles estudos,
ampliamos a atestação por meio do já citado acervo de periódicos, onde milhares de registros
corroboram aquela e outras estimações de datas.
A partir daquela época também teriam começado a surgir os registros de “sobrenomes”,
alguns deles que se consolidariam depois nos modelos de violas hoje vigentes: “Machete” e “12
Cordas”, observados a partir de 1827; “Viola de Cocho”, a partir de 1851; “viola sertaneja”, a
partir de 1870; “viola cabocla”, 1876; “Viola de Queluz”, 1884.
No início do século XIX talvez pudesse ter sido alcançada certa “vitória” da ação de
resistência portuguesa expressa pelo nome genérico nacionalista: eles teriam, finalmente,
instrumentos de verdade (e não apenas o nome "viola") para representá-los, exato em época de
ascensão do pensamento capitalista; entretanto, não é o que registros apontam e também conforme
relataram, entre outros, os já citados Manuel da Paixão Ribeiro (1789, p.2) e Veiga de Oliveira
(2000[1964], p.165). Se as violas já estariam em decadência no tempo de Paixão Ribeiro (1789),
mais ainda estariam com a ascensão do violão... mas não na Colônia Brasil, que se tornou
independente a partir de 1822: aqui haveria muitas "violas", conforme já dito, com destaque pelas
machetes, dos pretos. E portugueses sabiam disso, até porque por lá já fariam sucesso, na mesma
virada de século, pretos brasileiros e exímios violeiros como Domingos Caldas e Joaquim Manoel.
Daí se observa que o instrumento que Portugal viria a adotar como identitário acabaria
sendo a chamada “guitarra portuguesa”, que ascendeu exatamente a partir do início do mesmo
século XIX. Faz parte dos contextos histórico-sociais espelhados nos instrumentos, naquela época,
a reaproximação com a Inglaterra capitaneada por D. Pedro I, desde ações pela Independência do
Brasil (1822), levada a Portugal após a vitória na Guerra dos Dois Irmãos (1834), daquele nosso
então ex-Imperador (pois abdicou ao trono, em 1831). Exatamente a partir daquela época é
estimado o início da fabricação das “guitarras portuguesas” por lá, embora já existissem antes,
segundo por exemplo Silva Leite (1796); aquelas “guitarras” seriam arredondadas, similares
inclusive no nome à english guitar ou “guitarra inglesa”, esta que a partir de então cairia em desuso
(ver Oliveira, 2000[1964], p.197): conforme postulamos, surgimentos, alterações, ascensões e
quedas de uso de instrumentos apontam reflexos de eventos de grande comoção social.
Com referência a aqueles instrumentos de caixa arredondada e armando com seis ordens
duplas de cordas metálicas, o nome “guitarra” passou a ser observado frequentemente em
apontamentos portugueses, bem diferente do tratamento dado às antigas guitarras, cinturadas, cujo
nome pouquíssimo se observa desde o século XV: por serem instrumentos de caixas muito
diferentes, atesta-se a rejeição portuguesa ao uso do nome guitarra para seus cinturados preferidos
até então, as chamadas “violas” (mas só aos cinturados, por serem preferência explicitada por
espanhóis). Nomes em línguas germânicas como guitar, gittern, cittern e similares, também
traduzidos como guitarra, viriam de uma bifurcação por caminho diferente do percorrido pelas
línguas latinas, mas todos teriam vindo primordialmente da bifurcação entre latinos (cithara e
guiterra / guitherna), que por sua emergiram da kithara grega e kethara assíria. Dois destaques
quanto a este capítulo histórico: portugueses aceitariam a variação cithara para suas violas
cinturadas dedilhadas, mas não “guitarra”, segundo Rafael Bluteau (1720, v.8, p.508); e alguns
estudiosos como Nuno Cristo (artigo Em defesa da Cithara lusitânica, 2021) defendem que a
“guitarra portuguesa” teria vindo de CITARAS de desde o século XV, embora não haja registros
continuados (só de variações da nomenclatura, que sozinhas não são atestadoras), enquanto as
relações de portugueses com a Inglaterra e os caminhos de registros de instrumentos de caixas não
cinturadas naquela região sejam vastos. Ou seja: mais uma vez se atestam visões diferentes
professadas por portugueses, então continuadas até os dias atuais. O nacionalismo se expressa
claramente pela intenção de não admitir que simplesmente copiaram as guitarras inglesas, com
algumas pequenas alterações (o mesmo que teriam feito com relação às primeiras "violas"
dedilhadas, cópias de similares de culturas dissidentes).
Mesmo com a preferência pelo violão e ainda que tenha tido menor evidência em alguns
centros, "violas" foram apontadas na maioria das regiões brasileiras, tocando repertórios
diversificados, com destaque aos pretos (cantigas e temas mais ritmados de danças, em desfiles,
dentro e fora das igrejas, etc.). Inclusive no maior polo comercial do século XVIII, surgido em
função do Ciclo do Ouro (Vila Rica, atual Ouro Preto, em Minas Gerais), ver Castagna & Souza
& Pereira (2008); além de capitais como a do Império, Rio de Janeiro, segundo a já citada Mayra
Pereira (2013). Não se atestam, portanto, equivocadas alegações de que “a viola teria migrado para
o interior”: são colocações oportunas para a defesa de um suposto caipirismo ancestral, que
igualmente não se atesta por registros de época, mas que faz parte do entendimento coletivo ainda
defendido por estudiosos (principalmente ligados à bases sociológicas) e outros fiéis ao lucrativo
caipirismo. A invenção desta "cultura de mercado" demarcaria o início da última fase.
PERÍODO 4 (entre o início do século XX e o início do século XXI): a grande ascensão de um dos
modelos da Família das Violas Brasileiras.
Surgiu, gradativamente, o modelo mais conhecido e de maior evidência, hoje consolidado
pelo nome Viola Caipira: o mais remoto registro deste nome composto observamos em 1901,
entretanto, até a década de 1970, o nome mais empregado seria simplesmente “viola”, além de
apelidos afetivos como “viola paulista”, “viola sertaneja”, “viola cabocla” e “viola brasileira”, para
modelos com pequenas diferenças. Com modelo de fabricação similar ao de guitarras espanholas
10x5 (assim como violas portuguesas), e desenvolvido na capital São Paulo por imigrantes como
Del Vecchio e Giannini a partir de 1900, o modelo não equivaleria a artesanais preexistentes,
inclusive as chamadas “viola paulista”, que seriam as logicamente mais relacionáveis ao
caipirismo (embora atesta-se que este não preza por lógicas, nem por atestações científicas). Uma
atestação, embora desprezada ou não entendida corretamente por adeptos ao caipirismo, é indicada
por pesquisa de campo realizada na década de 1950 por Alceu Maynard de Araújo (ver compilação
de artigos A Viola Cabocla, 1964). Entender e divulgar que, por ter-se consolidado com o nome
Viola Caipira o modelo teria sido ancestral, ou único, é um equívoco de análise histórica muito
básico, talvez só explicável por motivações financeiras e outras conveniências.
As violas tiveram grande salto de popularidade com os registros em discos, a partir de 1929,
graças a Cornélio Pires, empresário cultural apontado em dezenas de estudos (lembrando que entre
aquelas, haveria Violas 12 Cordas, como já citado). Entretanto, só a partir de meados da década
de 1970, com a ascensão de uso por gravadoras como a de Tião Carreiro, o modelo Viola Caipira
teve este nome consolidado, e foi crescendo em número de adeptos e de potencial econômico, com
tudo o está relacionado ao capitalismo vigente no país já desde àquela época (como fabricação em
série, avanços tecnológicos, ações de marketing e outros investimentos). O mesmo aponta ter
acontecido com o caipirismo, cujos produtos (livros, métodos, discos, apresentações, etc.) já
vinham provando ser de bom atrativo comercial desde os tempos de Cornélio Pires. O capítulo é
claramente atestador de que as violas não mudaram pela criação do caipirismo: inclusive, elas nem
seriam chamadas de "violas caipiras" durante as primeiras décadas do caipirismo, só a partir da
ação de mercado capitaneada pelas gravadoras, em contexto histórico-social de concorrência à
ascensão do estilo hoje chamado "sertanejo universitário", ainda o mais lucrativo do Brasil. Apesar
do esforço de Cornélio (cerca de 35 anos lucrando com o caipirismo), atesta-se que não teria havido
comoção social suficiente para ser refletida em instrumentos, ao passo que os contextos somados
da década de 1970 tiveram reflexos por terem sido quase mundiais, com destaque para a ascensão
das guitarras elétricas, estas que se sobrepuseram às violas na preferência popular. Assim surgiu a
reação de concorrentes, que passaram a investir em peso no "pagode", tocado por "violas caipiras".
E mais uma vez vemos ascensões, quedas e alterações em instrumentos, inclusive nos nomes, em
paralelos a eventos de significativa comoção social.
Já a partir de 2015 (num provável início de transição para novo ciclo), uma cadeia de
acontecimentos vem apontando novas perspectivas, com a correta ampliação de visão para além
do modelo Viola Caipira:
- em 2015 e 2016, o Projeto SESC Sonora Brasil levou mais de 500 apresentações de
vários modelos da Família das Violas Brasileiras pelas cinco regiões do Brasil, colaborando para
divulgação da diversidade e dos próprios modelos, individualmente, conforme também apontam
Roberto Corrêa (ver artigo Cinco ordens de cordas dedilhadas, 2015) e Denis Rilk Malaquias
(teses Música Caipira de Concerto, 2019, p.46);
- a proposição em Minas Gerais, e depois em âmbito nacional, pelo reconhecimento oficial
das violas como Forma de Expressão válida aos registros em Livros de Patrimônio Imaterial, que
temos a honra de ter introduzido nos anos de 2015 em Minas Gerais e em 2017 no âmbito Nacional,
via IPHAN;
- artigos acadêmicos de estudiosos importantes, como os já citados Roberto Corrêa (As
Violas do Brasil, 2017) e Paulo Castagna (Viola Brasileira, 2017).
Os demais modelos além da Viola Caipira (a saber: Brancas “Fandangueira” e “Caiçara”,
Buriti, Cabaça, Cocho, Machete, Nordestinas e 12 cordas) continuam a sobreviver, com atrativo e
reconhecimento público menores, mas representando a verdadeira abrangência da História das
violas, e os testemunhos históricos destas que remetem à todas as fases da História dos cordofones.
Chegam aos dias atuais também com indícios de uma nova fase histórica, quando se espera será
mais considerada, estudada, preservada e reconhecida toda a Família das Violas Brasileiras.
Nova fase que deverá ser apontada no futuro a partir da postulação científica apresentada por João
Araújo, em 2021 (monografia Linha do Tempo da Viola no Brasil)... Mas aí já são outras
prosas...
Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando...
(1549-1759)”. Ou, a quem preferir, também muita coisa se encontra no livro Os Jesuítas e a
Música no Brasil Colonial, do mesmo Holler, publicado em 2010. Na verdade, este foi dos
primeiros livros que adquirimos, há quase vinte anos atrás, quando começamos nossas buscas pelo
que hoje sabemos serem certificações, atestações, dados fundamentados, “provas”...
Sim, “provas” (ou, pelo menos, algo muito próximo disso). É que víamos muito, quando
começamos (e talvez ainda paire pelo ar, “na cabeça do povo”), mitos sobre os jesuítas e as violas
brasileiras. Assim que vimos o título do livro de Holler, não tivemos dúvida: naquele livro tinham
que estar os registros, as “provas” da relação dos padres com as violas, desde o início da Colônia.
“Raiz” mais profunda não poderia existir, certo?
Não. Na verdade, nem perto disso... Certo, mesmo, é só que já tínhamos alguma noção da
lógica das coisas, das pesquisas, da História em si... mas o livro, embora muito bom, foi
decepcionante para nossos objetivos práticos, diretos: entre vários outros instrumentos musicais,
na verdade, as citações nominais a “violas” nas listas dos bens dos jesuítas são quase zero. Durante
algum tempo ficamos com este dilema na cabeça: “Como assim? Então não haveriam tantas
violas? Elas não deveriam ter sido as de maior número nos inventários?”.
Hoje, já vasculhamos detalhada e profundamente não só os trabalhos de Holler e outros
grandes pesquisadores do assunto, como Paulo Castagna e Rogério Budasz (fomos atrás inclusive
da maioria dos originais citados por eles, hoje digitalizados e disponíveis para baixar pela internet).
Uma lista sobre citações ao termo “viola” no Brasil desde o século XVI, que achamos seja
exaustiva, disponibilizamos e é a principal parte de nossa monografia Linha do Tempo da Viola
no Brasil, que estamos a publicar e revisar desde 2021. E sim, não é mais preciso pesquisar tudo
como fizemos, a não ser que se faça questão de: já deixamos tudo “mastigado”, inclusive com
traduções contextualizadas musicologicamente, a partir de várias línguas. E não precisa agradecer:
fazemos por entender que seja nossa missão. Se somos abençoados em conseguir desenvolver as
habilidades necessárias, deve ser por alguma razão, que não seria a de guardar só pra nós.
Por tanto empenho, incluive aos desdobramentos que não pararam de surgir, vários
entendimentos se tornaram bem claros. Dois deles, destacamos: um, que investigações sérias e
honestas são muito trabalhosas, mas os dados de época conhecidos são suficientes para que, com
dedicação e honestidade, se consiga entender e atestar um panorama seguro do passado; já o outro
destaque, fruto do primeiro, é perceber porque “histórias inventadas” (lendas, mitos e outros fake
news) são criadas e, principalmente, porque elas passam de “boca-em-boca” (e também, hoje em
dia, de “postagem-a-postagem”, pelas redes sociais), sem que a maioria sequer questione
(principalmente se forem histórias bem inventadas, emotivas, curiosas e que agradem alguns
interesses como egos e/ou finanças).
Criar histórias é fácil: já a História, de verdade, é complexa de se entender, e mais ainda de
se atestar; principalmente porque, na maioria das vezes, a História não é direta (ou seja, não aponta
respostas simples, na base do “preto ou branco”). O passado sempre aponta longas e intricadas
transições: as coisas não foram acontecendo como as “lacrações” de hoje em dia, quando as
pessoas têm contato com algum segmento de informação e logo tascam um julgamento superficial
do tipo “...ah, então foi assim”. O passado, na verdade, está pouco se lixando se a gente “tem
direito a ter opinião”: ele aconteceu do jeito dele, no tempo dele, com a multiplicidade de fatores
que teve que acontecer. E pronto: a gente que “se vire” para tentar encontrar, cruzar e somar todos
os diversos fatores... ou então, que façamos nossos julgamentos “segundo nossas opiniões e
critérios preferidos”; mas o passado, na verdade, não está nem aí pra nós... Imagino ele morrendo
de rir das nossas pequenices (se comparadas ao enorme universo de informações do qual ele, o
passado, é feito).
Voltando, após um parágrafo de “filosofâncias não tão vãs”, chegamos ao grande capítulo
dos jesuítas no Brasil, iniciado em 1949: estariam, segundo o que já expomos, num período em
que a Companhia tinha sido criada há 15 anos, e as proibições às práticas musicais existiriam, mas
podemos dizer que “não tinham pegado”, como se diz que acontece ainda com algumas leis
brasileiras; porém, não é porque era aqui: na verdade, o tal “jeitinho brasileiro” nunca teria sido
perseguição só viria a ser encerrada em 1814, pelo Papa Pio VII. Por termos levantado alguns
registros que são pouco citados, achamos pertinente citar a sequência de fatos cujos registros
organizamos:
- em 1757 o Governador e Capitão-Mor do Grão-Pará e Maranhão, um português por nome
Francisco Xavier de Mendonça Furtado (1701-1769), escrevinhou o Directorio que se deve
observar nas povoaçoes dos Indios (às vezes citado como “Diretório dos Índios” ou “Diretório
Pombalino”, embora não tenha sido Pombal a criá-lo), onde já se amaldiçoava a atuação jesuítica
e propunham-se severas punições; aquele Directorio só foi aprovado pelo irmão do Governador
(o Marquês de Pombal) e pelo Rei (Dom José I) no ano seguinte, em 17 de agosto de 1758;
- menos de um mês após a assinatura do Directório, teria ocorrido um atentado contra o
Rei, em Lisboa; assim, em 14 de setembro de 1758, já sairia a primeira Ordem Régia de reclusão
dos jesuítas, exatamente na região de Mendonça Furtado (o Grão Pará e Maranhão). Coincidência
ou não, é exatamente da Região Norte que hoje se tem menos registros sobre "violas", das quais
nada sobreviveu (inclusive já escrevemos um Brevis Articulus a respeito, confira);
- cerca de mais um ano se passaria até que em 03 de setembro de 1759 surgiria a Lei que
baniu os jesuítas de todas as Colônias ligadas a Portugal; em 1770 aconteceria o banimento dos
territórios espanhóis e, em 1773, a extinção da Companhia de Jesus, pela bula Dominus ac
Redemptor, do Papa Clemente XIV.
[Além das fontes apontadas, cruzamos informações de artigos como: A Língua Geral
como Identidade Construída, de Maria Cândida Barros e equipe, publicado na Revista de
Antropologia da USP em 1996; Os Jesuítas no Brasil: entre a Colônia e a República, de Carlos
Menezes Souza e Maria Cavalcante, publicado pela Unesco em 2016 e Apóstolos Divinos ou da
Coroa: Jesuítas no Brasil e Paraguai, de Alice Faria Signes, publicação UFRJ de 2011: como
sempre, se quiser sinta-se como nosso convidado e confira].
O que nos chama a atenção, pela Linha do Tempo caprichada que montamos (em nossa
monografia, ver Araújo, 2021), é que, por exemplo: de 40 inventários dos autos de sequestros dos
bens jesuíticos registrados entre 1759 e 1780 (bem pesquisados por Holler, Castagna e outros),
apenas uma "viola" teria sido listada: exatamente uma “violla quebrada”, na Fazenda de Santa
Cruz, Rio de Janeiro, segundo inventário de 6 de maio de 1768 (e, talvez, daquela teria vindo a
inspiração para a música Viola Quebrada, feita mais tarde pelo pesquisador Mário de Andrade,
com arranjo de Heitor Villa-Lobos)... Isso, enquanto instrumentos chamados “viola” foram citados
em diversos registros da época.
Outra observação é que, em documentos de alfândega pesquisados por Mayra Pereira (tese
A Circulação de Instrumentos Musicais no Rio de Janeiro, de 2016), no período da perseguição
teria sido registrada apenas uma “viola de páo [pau]”, em uma lista de exportações portuguesas de
1767... enquanto até 1744 (antes da perseguição) e após 1777 (exatamente quando D. Maria I
assumiu o trono), teria havido vários registros de "violas". Naturalmente, neste caso, é preciso
considerar que podem não ter sobrevivido todos os registros alfandegários e que o período
histórico teria sido de grande dificuldade em Portugal, causada pelo chamado “Terramoto” de
1755; entretanto, no citado registro de 1767 (portanto, no auge da perseguição), há outros
instrumentos, como flautas e rabecas, que também foram citadas nos demais períodos: só as
menções a violas e suas cordas teriam sido muito maiores antes e depois do período de perseguição.
Há inclusive, na somatória geral daqueles registros de alfândega, um curioso e significativo
número de citações a “cordas de cítaras”, sem que haja citações a tantos instrumentos com este
último nome, mas sim de “violas” (os instrumentos mais citados)... E sabemos que, segundo Rafael
Bluteau e seu Vocabulário Portuguez, e Latino, publicado durante grande parte do século XVIII,
os portugueses chamariam “violas” também de “cítaras”...
Com efetiva citação a "violas", no período da perseguição, observamos apenas mais dois
registros, ambos em Minas Gerais: em 1769, violas tocadas por escravizados, na região do Alto
São Francisco, segundo Rubens Ricciardi (tese Manuel Dias de Oliveira: um compositor
brasileiro dos tempos coloniais, do ano 2000); e em 1761, na cidade mineira de Vila Rica (atual
Ouro Preto), testamento indica a atuação do luthier Domingos Vieira, fabricante de diversos tipos
de "violas": ele teria falecido em 1771, mas a oficina teria funcionado pelo menos até 1777,
segundo artigo de Paulo Castagna e equipe (Domingos Ferreira: um violeiro português em Vila
Rica, de 2018).
Entendemos que os registros apontam certa ligação de instrumentos chamados "violas"
com os jesuítas, não apenas pela maioria dos mais remotos registros terem vindo deles (maioria,
pois há registros de outros tipos de fontes e, após o século XVIII, com o banimento, as fontes
jesuíticas secaram). Entendemos que possa ter havido alguma colaboração até com o surgimento
da guitarra espanhola de 6 cordas ("violão"), mas somado a outras motivações, naturalmente, pois
como dissemos, a História nunca é só “branco ou preto”. A perseguição teria se dado na mesma
época da transição do surgimento e ascensão do violão, e teria causando comoção social
relativamente significativa, pois os jesuítas teriam boa influência pela Europa: no mínimo,
portanto, seriam muito conhecidos, seus textos divulgados, etc.. Sempre lembrando, os
portugueses, inclusive jesuítas, chamavam as guitarras espanholas da época de “violas” e não se
pode negar que essa ação nacionalista (pelo uso do nome "viola" como genérico) atrapalharia a
identificação e reconhecimentos públicos de instrumentos que na verdade seriam de procedência
espanhola: já a distinção clara de um instrumento, a começar pelo nome, ajudaria a trazer divisas
ao país de procedência (um tipo de pensamento capitalista já crescente, à época). Os espanhóis
claramente investiam na marca “guitarra” para seus principais cordofone desde, pelo menos, o
século XIV, e mesmo a chamada "guitarra barroca" já sendo um sucesso, acabaram por proceder
modificações significativas: isto é evidência de que teria havido motivações, mas aí já são outras
prosas...
Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando...
quando são simples "achismos", para que as pessoas não sejam enganadas). Ninguém deveria agir
assim, muito menos um considerado “historiador, sociólogo, antropólogo, etnógrafo" (se é que foi
mesmo, pois são muitas especializações apontadas, seriam necessários muitos anos de Faculdade
para conseguir tantos títulos)... A verdade é que muitas pessoas parecem querer ser enganadas,
gostam de acreditar em suposições e lendas como se fossem verdades: então... "segue o andor".
Por outro lado, até porque pesquisas realmente teriam sido feitas, às vezes algumas
intuições tem algum fundamento e são passíveis de atestação: seria o caso, no mesmo trecho de
abertura, de que o violão teria vindo da Espanha e que haveria dissidências com mouros. Outro
trecho bem apontado, na frase final daquele mesmo verbete, seria: “[...] não conheço referência ao
violão, anterior ao século XVIII”. Realmente não haveria, mas para afirmá-lo sem riscos de
fomentar lendas é preciso contextualizar, desenvolver, apontar fontes. Já outras alegações como
“o violão é urbano, a viola é interiorana”, possivelmente inspirada no que Cascudo teria lido de
Amadeu Amaral (livro A poesia da Viola, de 1921) é totalmente desprovida de atestação, vez que
o violão acabou por atingir a preferência também nos rincões do Brasil, a partir de 1840, enquanto
as violas, embora em menor número, nunca deixaram de existir nos grandes centros urbanos, como
Vila Rica (maior centro urbano durante o Ciclo do Ouro), Rio de Janeiro, São Paulo e outros. E as
violas não são originárias do Brasil, seja do interior ou dos centros urbanos: vieram de Portugal e,
assim como lá, aqui foram evoluindo em coerência com as diferentes extensões territoriais e
diversidades culturais.
É preciso, portanto, ler com bastante atenção e conferir informações sempre: comparar
vários dados de época e contextos, para não sair espalhando lendas... Só que, infelizmente, até
estudiosos deixam de conferir e apontar dados (por equívoco, preguiça ou conveniência).
Para um aprofundamento, como nos propomos a fazer aqui nos Brevis Articulus, sobre as
origens do “violão”, precisamos antes repassar algo que já citamos no livro A Chave do Baú: a
histórias das guitarras espanholas, com curiosos capítulos desde cerca do século XIII (mais
remotos registros do nome) até a já citada consolidação do instrumento, a partir da década de 1820.
Pensa que confundimos guitarra com violão? Não... Na verdade, buscamos até certa
especialização pioneira no estudo de nomes de instrumentos: “violão” é um dos apelidos que os
portugueses teriam inventado para as guitarras espanholas desde a época da última transição delas,
que foi bem estimada por Cascudo como "a partir de meados do século XVIII". Outro apelido que
atestamos teria sido “viola francesa”, enquanto alguns apontam que “guitarra francesa” também
teria sido utilizado, porém o encontramos muito pouco em textos portugueses, e o contexto
histórico-social não o indica... "já-já" explicaremos melhor este último, mas podemos adiantar: o
apelido que incluiria o nome “guitarra” seria muito pouco utilizado por portugueses, e há
justificativas (fique ligado nisso).
Temos descoberto muitos pontos interessantes que ainda não teriam sido apontados em
outros estudos, a partir de profundo estudo de nomes de instrumentos de desde pelo menos o século
II aC. (somado e cruzado a outras informações, inclusive conceitos oriundos de outras Ciências).
Fizemos reinvestigações atentas de fontes das diversas línguas envolvidas, tanto registros quanto
de estudos. Um dos pontos interessantes é que a nomenclatura GUITARRA (quer dizer, os
diversos nomes equivalentes, nas diversas línguas), assim como o formato de caixa cinturado e de
fundo plano, acabaram por se tornar os preferidos para cordofones portáteis populares por
espanhóis, e foram assimilados por grande parte do território europeu, a partir do século XVII.
Entendemos, pelos contextos histórico-sociais, que aquela preferência se deveu à rejeição (e/ou
concorrência) espanhola quanto aos periformes e abaulados instrumentos dos invasores mouros,
numa expressão de nacionalismo ou patriotismo.
Antes um pouco, no século XVI, guitarras seriam cordofones de tamanho menor, com 4
ordens de cordas (3 ordens duplas, uma singela) e dividiriam espaço com vihuelas de 6 ordens (5
duplas e uma singela). Aqueles instrumentos espanhóis, dedilhados e de caixa cinturada,
concorreriam com instrumentos “mouros” que teriam sido largamente utilizados no território
europeu inclusive pelos Trovadores (mouros, invasores da Península entre os séculos VIII e XV).
entre os dois anteriores. A mudança incluiu a curiosa manutenção do nome guitarra para o novo
instrumento (o que chamamos de "ressignificação do nome", observado também em outros
capítulos históricos). O passado quase nunca se consolidaria em curtos períodos, normalmente há
longas fases de transição, onde se atestam vários fatores influenciadores, quase nunca um só.
Naquele caso, com o passar do tempo, a escolha de nome explicitada por Amat aponta ter
colaborado muito, pois seu método foi muito reproduzido, tendo sido os registros mais remotos
observados em outras línguas: chitarra spagnola em italiano (por Montesardo, 1606); guitarre em
francês (por Moulinie, 1629); Gitarre em alemão (por Doremberg, 1652) e guitar em inglês (por
Corbetta, ca.1677). Nesta pequena lista se observam resistência de alguns povos, que demoraram
mais que outros para aderir às cinturadas espanholas. Também aponta ter colaborado o fato da
guitarra predecessora, de 4 ordens, já ter feito relativo sucesso antes, pelo território europeu. Entre
outras fontes, estes apontamentos podem ser checados no embasado livro de Tyler & Sparks, The
Guitar and its Music, de 2002.
Denotamos também que a ressignificação do nome guitarra pelos espanhóis não causaria
a extinção dos instrumentos antecessores em outros territórios: as vihuelas dedilhadas, por
exemplo, seguiriam existindo na península itálica também até o século XVII, assim como as de
arco (que existem até hoje); lá, ambas também seriam chamadas “violas”, assim como depois e até
os dias atuais, pelos portugueses e por nós. Já os cinturados de menor porte seriam chamados pelos
portugueses “violas pequenas”, desde antes, e a partir do século XVII ascenderiam outros nomes
como "discante", “machinho”, “machete”, “rajão”, “braguinha” e até “cavaquinho” e o hawaiano
ukulelê (estes dois últimos, a partir do século XIX). Faz sentido que aqueles instrumentos não
fossem chamados de “guitarra” (pois o nome sofreu ressignificação, para instrumento maior e com
mais cordas), mas, organologicamente, são variações com pequenas diferenças das também
pequenas guitarras antecessoras. Um ponto importante é que, desde sempre, não seriam chamadas
de "guitarra" por portugueses...
Chegaríamos então ao século XVIII, quando espanhóis investiam cada vez mais em suas
guitarras, então com cinco ordens de cordas, e estas continuavam fazendo sucesso; mesmo assim,
de meados do século XVIII até o início do século XIX outra fase de transição aconteceu:
novamente foram feitas alterações organológicas no instrumento de preferência, que passaria no
fim a armar com seis cordas simples (o tal “violão” moderno). E, novamente, o nome guitarra foi
o escolhido pelos espanhóis para seguir identificando o então novo instrumento, com
aprimoramento de técnicas de construção e novos métodos passando a ser desenvolvidos.
Destacamos um ponto: seis ordens de cordas eram utilizadas nas antigas vihuelas, então, ninguém
culparia os espanhóis se resolvessem voltar também com aquele nome: mas o fato é que decidiram
seguir investindo no nome guitarra. Isso é significativo.
Acrescentamos que, como antes, o instrumento antecessor (guitarra de cinco ordens, então
já consolidada em cinco duplas) não deixaria de existir em outras regiões: no caso dos portugueses,
as guitarras anteriores, já chamadas de “violas”, simplesmente continuaram como eram… no
máximo, armariam com cordas metálicas, mas a diferença mais significativa é que, então,
passariam a ser “violas” de fato, e pela primeira vez: não teriam mais equivalência a guitarras
espanholas, pois estas mudaram de armação, nem a outros instrumentos existentes. É o que
atrevidamente apontamos como a verdadeira origem de nossas violas dedilhadas: a princípio
apenas um nome genérico, passariam a existir de fato só a partir da consolidação das novas
guitarras espanholas de seis cordas (início do século XIX), porque só então seriam relacionáveis
diretamente o nome "viola" e um instrumento correspondente, distinto de outros. Portugueses já
teriam começado a introduzir, desde meados do século XVIII, pequenas particularidades nas suas
“violas”, como duas ordens triplas e utilização de cordas metálicas (que italianos já usariam desde
o século XVII, enquanto cordas metálicas já seriam usadas por ingleses desde o XVI); mas os
gajos seguiriam chamando de “violas” todos os cordofones portáteis, inclusive variações surgidas
durante a fase de transição, como guitarras de cinco cordas simples (raramente apontadas em
registros, mas teriam existido) e guitarras de seis duplas de cordas (estas, com auge em 1799 e
significativo uso pelo menos até 1826, data estimada ao Method complète pour la Guitarre, do
espanhol Aguado y Garcia). Aquelas 12x6 (doze cordas em seis ordens) não sobreviveram em
Portugal (embora ainda haja um modelo das Ilhas Terceiras em 15x6), sendo predominantes as
10x5, seguidas por algumas com 12x5: ou seja, apesar das diferenças observadas no século XVIII,
consolidaram-se mais as 10x5 e só o uso de cordas metálicas, hoje utilizadas em todos os modelos,
prevaleceu como "de característica portuguesa com certeza".
A pergunta que parece que só nós fazemos é: “por que os espanhóis teriam resolvido mudar
pela segunda vez a configuração de cordofones que então faziam sucesso até em outras terras?”
Como sempre, as respostas são complexas: normalmente, uma somatória de vários fatores,
que só são atestáveis via análise de longos períodos (as tais "fases de transição"). Entre os fatores,
numeramos dois que consideramos principais, suficientes para trazer uma luz embasada:
a) um mesmo tipo de mudança nas guitarras (a armação de cordas), e também mantendo o
nome preferido, já teria sido feito antes pelos espanhóis, com sucesso comprovado;
b) estava-se em pleno período da Revolução Industrial, e a mentalidade capitalista já
indicaria que ter um produto característico favoreceria comercialmente a região de criação e de
maior investimento naquele produto. O mesmo entendimento aponta ter sido o de italianos, que
das violas da gamba e da braccio investiriam até conseguir, na mesma fase de transição, violinos
satisfatoriamente agudos, que ascenderam, culminando no atual naipe das orquestras modernas; e
pelos portugueses, que apesar de gostarem tanto de "violas" dedilhadas, à época elas seriam muito
usadas na Colônia Brasil, e assim resolveram investir na “guitarra portuguesa”. Eventos de grande
impacto social (como a Revolução Industrial) sempre causariam reflexos em instrumentos
musicais (ascensão ou queda de preferência, e alterações, inclusive nos nomes).
Ainda dentro da visão capitalista de “produto”, portugueses prejudicariam a divulgação das
guitarras (chamando-as de “violas”), e teriam considerável influência, pela circulação de seus
costumes (ver sobre os jesuítas e as violas, em outro Brevis Articulus). Já a ação espanhola (de
novamente alterar suas guitarras) não resolveu o problema do uso "fake" de nome pelos
portugueses, porque estes continuariam a chamá-las "viola" ("francesa") ou "violão" ("viola
grande"): mas uma “nova guitarra” sem dúvida colaborou para que não pudessem mais ser tão
confundidas com “violas” portuguesas. Era, portanto "outro instrumento"... mas, na prática, a
diferença era basicamente a armação de cordas: é por isso que defendemos as armações como
diferenciador, embora muitos estudiosos não concordem (e azar o deles).
Já o retorno ao uso de seis ordens (usadas antigamente em alaúdes e vihuelas) facilitou a
utilização do novo produto espanhol pela Europa, vez que alaúdes não teriam caído tanto de uso
em outras regiões (como italianas, alemãs e francesas), até o século XVIII (a rejeição maior aponta
ter sido mesmo ibérica). E haveria outros instrumentos "concorrentes", por assim dizer, também
com seis ordens de cordas, como as citadas english guitterns ("guitarras inglesas"). Assim,
tablaturas / partituras, ou mesmo o repertório informal de outros instrumentos poderiam
simplesmente ser tocados pela “nova guitarra / violão”. Observa-se que a própria guitarra
portuguesa se consolidou também em seis ordens (só que duplas), que possibilitava que
substituíssem o lugar de cena de outros instrumentos (ou, simplesmente, de serem a versão "que
os portugueses poderiam chamar de deles" de dedilhados portáteis que faziam tanto sucesso por
toda a Europa).
O violão se consolidou e teve grande ascensão a partir do início do século XIX,
conquistando significativo uso por grande parte do território europeu, incluindo Portugal e terras
invadidas, como as Américas. Uma ascensão na preferência geral: porém, as violas dedilhadas
sobreviveram e hoje ajudam a contar e atestar toda a História (tanto a dos cordofones quanto das
comoções sociais que testemunharam). Mais tarde, a partir de meados do século XX, o violão
ainda viria a inspirar o surgimento da “guitarra elétrica” estadunidense, em contexto histórico-
social da ascensão do rock (entre outros estilos). Ela também se tornou um grande sucesso, talvez
até maior que suas avós “acústicas”… Mas aí já são outras prosas…
Muito obrigado por ler até aqui, e vamos proseando...
I have chosen this fiddle among the many, because it is a good illustration of the oval vielle of the twelfth,
thirteenth and fourteenth centuries, and because the name "viola" is written in the MS. just above it.
(“Escolhi este fiddle entre vários porque é uma boa ilustração da viola oval [?] dos séculos XII, XIII e XIV, e porque
o nome 'viola' está escrito no manuscrito, logo acima").
[Kathleen Schlesinger, Instruments of Modern Orchestra and Early Precursors of Violin, 1910]
quer fôssemos ou não perguntados). Observa-se que o conservacionismo, assim como certas
formas imprecisas de apontamento de nomes, impera há muito tempo, não apenas na Musicologia
como em outras áreas do Conhecimento. Isto serve como alerta para nós: é de se esperar, portanto,
certa resistência a nossos questionamentos atrevidos e embasamentos inéditos, vários deles por
estudos de nomes de instrumentos (estudos que nunca vimos terem sido feitos tão profundamente).
Outra boa surpresa foi o exemplo em destaque na abertura que, até certo ponto, colabora
com constatações que fizemos por centenas de outros apontamentos: a maioria dos estudiosos
europeus, embora sérios e dedicados como Schlesinger, teriam se equivocado (como ela) ao
considerar instrumentos citados pela nomenclatura VIOLA apenas como friccionados por arco,
deixando assim as violas dedilhadas fora das equações investigativas.
[De certa forma, “é até bom para nós”, pois nos deixaram um caminho praticamente inédito
na musicologia ocidental... e por isso mergulhamos fundo nele!].
Tanto no apontamento em destaque quanto no restante dos livros constata-se a maneira
como a pesquisadora veria todas as vielles (“violas”, em francês) dos séculos XII ao XIV. A base
seria aquele instrumento visto em um manuscrito identificado como Sloane 3983, estimado ao
século XIV e referente à região belgo-francesa Flandres: um instrumento que, segundo ela, seria
um fiddle (ou seja, "um instrumento tocado por arco"). Um dos argumentos seriam dois furos no
formato da letra "C" de uma caixa de ressonância metade ovalar, metade achatada (como um
quadrado com cantos arredondados). Ainda segundo aquela pesquisadora, instrumentos tocados
por arco não teriam bocas redondas nas caixas; esta é uma tese que até poderia explicar o
desenvolvimento daqueles desenhos, pelos séculos, mas que não comprova que todos os
instrumentos teriam sido assim no passado; principalmente durante um grande período de transição
pouco aprofundado antes de nós, inclusive pela inglesa, mas que registros (como vários que ela
mesmo listou) e contextos histórico-sociais (de consenso público mundial) apontam ter existido.
O desenho, no manuscrito, não indicaria como teria sido o fundo do instrumento (se plano
ou abaulado, por exemplo). Quatro cordas, que passariam por um cavalete (onde, entretanto,
haveria cinco furos representados) e que se estenderiam pelo tampo, onde não se vê muito
claramente, mas parece que seriam fixadas na lateral inferior ou no fundo. Na "cabeça" (ou "mão")
do instrumento, no formato de um trevo de três folhas, apenas três (?) tarraxas grandes, desenhadas
de forma livre, artística. O citado arco não constaria da transcrição do desenho feita por
Schlesinger, mas por outra cópia (MS Latin 7330, Biblioteca Nacional da França, do portal BnF
Gallica) confirmamos tanto o desenho quanto o nome arc ("arco", em latim), ao lado (e não acima)
do nome viola; deste, embora não tenha apontado referências, a pesquisadora demonstrou saber
que teria surgido a partir do século XII, o que confirmamos (certamente ela observou a estatística
dos manuscritos que pesquisou, e foram mais de 500!).
Nós, atrevida e pioneiramente, afirmamos: "ledo engano coletivo da grande maioria dos
estudiosos": eles apontam só violas de arco, muito provavelmente porque a família dos
instrumentos tocados por arco se tornou destaque nas orquestras, estudada nas universidades, etc...
E as violas dedilhadas seriam apenas "instrumentos populares".
Dizemos “a maioria dos estudiosos”, mas a verdade é que, além dos poucos estudos
específicos sobre violas e vihuelas dedilhadas, em mais de uma centena dos mais citados estudos
europeus, apenas três teriam citado as dedilhadas; e sempre com poucas linhas, como se fossem
apenas curiosidades. Encontramos uma citação por século (!), e todas em inglês, o que talvez até
possa significar terem sido secundamentos. Fato é que nenhum teria ido mais a fundo na pesquisa,
o que acontece mais do que deveria. São elas, as três citações: Carl Engel (Researches into the
Early History of the Violin Family,1883, p.122) chegou a citar até as violas brasileiras; já Curt
Sachs (The History of Musical Instruments, 1940, p.274) e Tyler & Sparks (The Guitar and its
Music, 2002, p.191) citaram apenas violas portuguesas... (nem precisamos contar que percebemos
isso porque saímos “caçando de vela acesa” nossas violas pela História, né? Sobre-entenda-se...).
A verdade é que nem todas as VIOLAS (e variações desta nomenclatura, nas diversas
línguas) seriam tocadas por arco. E há evidências pelo menos desde o século X, nos primeiros
instrumentos tocados por arco, com continuidade até os dias atuais; no caso, sobrevive só na língua
portuguesa, mas “bom pra nós também” que os portugueses, por nacionalismo, teriam optado por
esta forma anômala e bivalente de chamá-las, enquanto o resto da Europa, desde o século XVII,
aponta opção diferente: nas demais culturas, chama-se dedilhados cinturados por variações da
nomenclatura GUITARRA (a partir da preferência espanhola, iniciada no século XIV). O contexto
histórico-social da anomalia, se expresso num falar mais coloquial, seria que portugueses e
espanhóis “nunca se bicaram” (ou seja, são dissidentes históricos).
Vários estudiosos, inclusive Schlesinger, atestaram por centenas de registros (escritos,
desenhados, pintados, esculpidos), investigados por toda a Europa, que os arcos só teriam registro
no território europeu a partir do século X e que os primeiros instrumentos nos quais teriam sido
utilizados arcos (rabab, rotta, giga) teriam sido apenas dedilhados, anteriormente. Teriam passado
a ser tocados de ambas as formas por um longo período (a tal transição que falamos, lembra?), e
eram chamados pelos mesmos nomes, estes que chamamos "nomes bivalentes quanto à forma de
tocar".
Dado o desconhecimento de muitos daquela atestação (embora tenhamos chegado aos
dados por apontamentos de vários pesquisadores, de várias épocas e culturas diferentes), não nos
custa repetir aqui alguns destaques dos que investigaram aqueles três primeiros a serem tocados
por arco, pelas línguas que usaram nas respectivas publicações:
- rebec, rotte, geige (em texto em inglês), apontamento de Carl Engel (Researches into the
Early History of the Violin Family,1883, p.152);
- rebec, crowth, gige (em texto em alemão), por Curt Sachs (Real-Lexikon der
Musikinstrumente, 1913);
- rebec, crouth, gigue (em texto em francês), apontados por Paul Garnault, na Encyclopedie
de la Musique de Lavignac (1925, p.1760);
- rabé, rota, giga (em texto em espanhol), por Rosario Martinez (tese Los instrumentos
musicales en la plástica española durante la Edad Media: Los cordófonos, 1981, p.888). Esta,
que informou ter investigado cerca de 1000 registros das artes plásticas (!), além de centenas de
fontes escritas e da qual se destacam análises de linguistas de cada nome de instrumento: como
dissemos, de mulheres encontramos vários estudos raros e muito aprofundados.
Denota-se que o fato de registros apontarem “a partir do século X” não comprova que os
arcos não fossem utilizados antes, pelo território europeu; mas atestam, pela estatística, que àquela
época estariam no início da transição (pois gradativamente os registros com arcos foram
aumentando de número). Outro levantamento de centenas de registros que colabora na atestação é
que antes do século VIII (Invasão Moura), europeus teriam clara preferência por instrumentos sem
braços, onde se destacavam os chamados pela nomenclatura ROTTA (a partir do latim chrotta).
Aqueles instrumentos apontam influência somada de LYRAS, CITHARAS e SALTÉRIOS
ancestrais, todos sem braços.
O que estudiosos apontam não terem considerado a fundo é o quadro maior, somado e
cruzado: só se conhecem registros da nomenclatura VIOLA a partir do século XII, com a
significativa característica de ter surgido com muitas variações, nas diversas línguas, até o século
XIII. É preciso considerar junto, nas análises, uma clara disputa de espaço entre os então novos e
ascendentes cordofones com braço: dedilhados como CITARAS (nomenclatura que se
ressignificou, a partir do século IX, para indicar exatamente os "novos" instrumentos com braço);
CEDRAS e CITOLAS (bifurcação surgida das CITARAS, com registros também a partir do século
XII); e GUITARRAS (nomenclatura com registros a partir do século XIII). O contexto histórico-
social daqueles surgimentos teria sido primeiro a ascensão de nacionalismos e o reavivamento de
uso do latim, nos séculos IX e X, somado ao Trovadorismo: este, que causou grande impacto social
por artistas viajarem pelas diversas regiões, narrando (poética e musicalmente) várias
características e costumes via mesclas do latim popular e as línguas e dialetos então em
desenvolvimento. Isso inclui, por exemplo, o nome viola observado literalmente em registros mais
remotos em latim, occitano, catalão e ainda em espanhol (neste último caso, junto a viuela, vihuela
e similares); violle e viele em francês; videle em alemão antigo; fidele / fithele em inglês "anglo-
saxão", entre outras variações.
Embora a fase de transição ainda estive em curso, a maciça maioria dos estudos (antes dos
nossos) aponta ter entendido que uma separação seria latente e indiscutível, pela qual VIOLAS
seriam apenas friccionados por arco, desde sempre... O pior (e que evidencia que teriam sido
traídos pela visão moderna), é que ao não considerarem VIOLAS dedilhadas nas equações, vários
estudiosos apontam até que alguns instrumentos com registros anteriores ao século XII (!) também
teriam sido friccionadas por arco, mesmo que não existam indicações claras em registros (os quais,
naturalmente, conferimos), como os dos nomes latinos vidula e phiala (século XI) e,
principalmente, fidula (século IX). O levantamento, tradução e organização das fontes nas línguas
originais foi inclusive a motivação de nosso artigo Chronology of Violas according to
Researchers (ver Ferreira, 2023).
Por serem tantos, os equívocos nos obrigam a detalhar melhor alguns registros mais
remotos, por exemplo: em reinvestigação atenta observamos, sem ter sido apontado por outros
estudos, que realmente o nome phiala foi ligado a arcos, mas cerca de dois séculos após o mais
remoto registro (já citado), além do texto apontar clara ressalva: [...] Arcus dat sonitum phiale,
rotule monochorde (“O arco gera som na phiala, um monocórdio com rodas”). Este seria,
inclusive, o mais remoto registro escrito de uso de arcos: já no século XIII (!), no texto Summa
Musicӕ, creditado a certos “Perseus e Petrus” (?-?). Além de não ser atestação válida (pois não se
pode garantir que aquela phiala seria igual à citada cerca de 200 anos antes, em outra região,
mesmo apontada pelo mesmo nome), não há evidência de verdadeiras VIOLAS que tivessem tido
só uma corda em qualquer época, nem organas (antecessoras das violas que realmente teriam
rodas, mas para friccionar no mínimo três cordas, e não faria sentido usarem também arcos).
Aquela phiala do século XIII tem probabilidade maior, portanto, de ter sido como uma tromba
marina, com a citada “roda” então servindo para facilitar a locomoção do instrumento, que seria
de grandes dimensões (posteriormente, trombas marinas seriam monocórdios tocados por arco
citados várias vezes, e teriam tido mais de dois metros de comprimento).
Já sobre fidula, confirmado em poema do padre alemão Otfrid ([863-871]), teria sido
entendida como palavra original alemã, mesmo que não tenha sido observada em nenhum outro
registro antigo naquele idioma... Confirmamos, outrossim, fiþele, transcrito fidele / fithele a partir
de manuscrito em inglês antigo, mas já do século XII: um nome próximo, mas longe de ser igual.
Aquele remoto e solitário registro de fidula aponta ter inspirado a criação de genéricos modernos
como fidel (em alemão) e fiddle (em inglês), sempre apontados para friccionados por arco (hoje,
também utilizados como sinônimo de “violino” e/ou “violino rústico, rabeca”). Nem aquela fidula
do século IX, nem citações de nomes parecidos como fidele / fithele até o século XIV tem evidência
em registros de terem sido instrumentos tocados por arco. Encontramos mais uma citação remota
de fidula, no século X, no tratado em latim De Musica, do padre, regente e musicólogo francês
Odo de Clúnia: este apontou cithara sive fidula ("cithara ou fidula") ou seja, que a fidula seria
como uma citara, dedilhada... Percebe a gafe histórica? Na verdade, teria sido um dedilhado,
segundo apontamentos de quem entendia de música: mas a partir do nome fidula criaram um
genérico para friccionados por arco, sendo que nem há evidência de uso de arcos antes do século
X (entre outras evidências que apontam que seria na verdade uma redução métrico-poética de
fidicula, genérico latino para dedilhados).
Alguns estudiosos respeitados até reconhecem que a fidula original não teria sido tocada
por arco, mas, curiosamente, ainda utilizam largamente fiddle como genérico para friccionados em
seus textos... O já citado Carl Engel chegou a fazer pequeno desenvolvimento, com apontamento
de fontes de a partir do século XIV, onde de certa forma defendeu (ou justificou) o uso genérico,
tanto em alemão quanto em inglês... só que as fontes apontadas pelo próprio autor indicam na
verdade o já citado fiþele, transcrito fidele ou fithele porque o caractere antigo, anglo-saxão, caiu
em desuso. Daqueles até fidel e fiddle há um considerável coeficiente de adaptação / arbitrariedade
que na verdade demonstra que os nomes não foram investigados como deveriam. Rastreamos esta
prática, que consideramos equivocada e danosa, desde fins do século XVIII, quando John Hawkins
ainda não usaria exatamente o genérico fiddle, mas chamaria tocadores de fidlers (A General
History of the Science and Practice of Music, 1776); então, poucos anos depois, observamos que
Charles Burney (A General History of Music, 1782) já usaria muito o tal genérico, assim como
vários autores que vieram depois.
O uso de genéricos, na verdade, aponta ser um padrão histórico. Outro muito utilizado na
língua inglesa, antes de fiddle, foi viol: parece viola, mas não é, certo? Entendemos que surgiu não
por preguiça de acrescentar uma letra a mais, e sim para evitar termos em outras línguas (naquele
caso, viola, do latim e várias línguas latinas). Vimos algumas outras vezes na História dos
cordofones o mesmo tipo de tradução arbitrária, que acrescenta certo nacionalismo (por maior
exemplo, as nossas violas dedilhadas na verdade teriam sido antes apenas um nome arbitrado,
nacionalista, como já demonstramos algumas vezes). Apesar do dano causado pelo uso de
genéricos, observamos que a mudança de viol para fiddle também aponta certo nacionalismo, vez
que o segundo termo tem ainda mais “cara de língua inglesa”, por assim dizer.
Obsevamos viol (então, com mais "cara de latino") desde o muito citado musicólogo
alemão Michaele Prӕtorio “Michael Praetorius” (Syntagmatis Musicis, de 1619): naquela
publicação predominantemente em latim, o autor apontou vários nomes em alemão, e vez ou outra
“escorregavam” alguns nomes em italiano e francês, às vezes até misturando as línguas, como em
viol de bracie e viol bastarda. Estes dois seriam os mais remotos registros de viol, e talvez tenham
surgido por equívoco (do próprio autor ou de quem reproduziu o texto), pois não seria totalmente
de nenhuma língua europeia, e muito menos do inglês, já que é quase igual à forma latina (viola).
Não nos interessa investigar muito a fundo origens de genéricos, pois desencorajamos o uso, mas
o certo é que os ingleses apontam ter gostado do nome viol, pelo menos a partir de Christopher
Simpson (The Division-Violist, 1659), quando já seria utilizado tanto como se fosse “viola” quanto
"friccionados em geral".
Embasados em nossos estudos sobre nomenclaturas, apontamos que o uso de genéricos,
assim como traduções e apontamentos de nomes modernos a instrumentos antigos é altamente
prejudicial, facilitando equívocos de entendimento em cadeia. Variações de nomes pelos tempos
já são complexas de entender por si mesmos, sem precisar de inventar mais "confusões" (que é
como a maioria trata o complexo assunto). Diferentemente, descobrimos que, longe de serem
confusões (ou aleatoriedades), nomes em suas formas / línguas originais carregam resquícios
históricos atestadores, que não deveriam ser desprezados nem mascarados por outros nomes, mas
destacados e estudados, como fazemos (e por isso descobrimos vários "tesouros perdidos").
Alguns instrumentos se consolidariam, com passar do tempo, como predominantemente
como tocadas por arco, como as rabecas, enquanto suas “irmãs gêmeas mouras” (as mandoras),
seguiriam como dedilhadas. É uma divisão natural por nomes e formas diferentes de serem
tangidos, pois os instrumentos seriam praticamente iguais em formato, número de cordas e mais
alguns detalhes... Mas não quer dizer que seria sempre assim: pelo lado dos cordofones europeus,
CITARAS e GUITARRAS seriam sempre dedilhadas, mas quanto a VIOLAS, a maioria delas
passaria a ser tocada por arco, após alguns séculos, mas não todas... Se olharmos com bastante
atenção e buscando o máximo de abrangência (de períodos históricos e culturas envolvidas), na
História Ocidental as VIOLAS jamais teriam deixado de ter seu nome ligado à ambas as formas
de tocar (e não apenas por arco) em algumas culturas, numa bivalidade continuada, atestável por
registros.
Para atestar, entretanto, é preciso abrangência nas análises e não se deixar levar por
suposições, traduções e muito menos por panoramas modernos: apontamos que a fase de transição
teria sido especialmente longa em algumas regiões / culturas porque no século XIV ainda haveria
citação de vihuelas de arco e vihuelas de pendola (dedilhadas), e a bivalidade é citada em textos
em espanhol pelo menos até o início do século XVII: o período tem registros desde o Libro de
Buen Amor, de Joan Ruiz (estimado ao século XIV), passando por Juan Bermudo (Declaracion
de los Instrumentos Musicales,1555) até Domenico Cerone (El Melopeo y Maestro,1611).
A variação vihuela para dedilhados então cairia em desuso pelos espanhóis, mas nos
séculos XV e XVI haveria "violas e violas" na península itálica (ou seja, instrumentos de mesmos
tamanhos, formatos e armações de cordas das vihuelas espanholas, e também tocados de ambas as
formas). Neste caso, a conferência precisa passar pelo menos por Tinctoris (De inventione et uso
musicae, 1486), Francesco Milano (Intavolatura de Viola o vero Lauto, 1536) e Silvestro Ganasi
(Regola Rubertina, 1542).
Pelo menos mais dois registros do século XVI apontam a bivalidade de nome para
dedilhados e friccionados por arco: em um registro, o alaudista alemão Hanz Judenkünig (1450-
1526) apontou os mesmos desenvolvimentos teóricos para geiges (friccionados) e alaúdes
(dedilhados), em seu método Utilitis et Compendiaria Introducto (ca.1523); e em outro registro,
em inventários do Rei inglês Henrique VIII, falecido em 1547, haveria o apontamento [...]
Gitterons […] caulled Spanishe Vialles (“Gitterons chamados Vialles Espanholas”), onde
gitterons aponta para a nomenclatura GUITARRA, sempre referente a instrumentos dedilhados.
Este registro estaria em manuscritos pesquisados pelo musicólogo inglês Francis Galpin (Old
English Instruments, 1911) que, entretanto, apontou aquelas vialles como se tivessem sido
friccionadas por arco... Para quem não sabe, Galpin foi um grande pesquisador, que merece todo
respeito, mas nessa ele vacilou! Vários outros antes dele também vacilaram, assim como outros,
até os dias atuais; e cada vez que um grande estudioso se equivoca, a tendência é que o equívoco
seja multiplicado (secundado) por muito tempo.
Nos séculos XVI e XVII, além das violas de arco, as violas dedilhadas portuguesas teriam
bom número de registros: entende-se que estudiosos do restante da Europa possam ter desprezado
aqueles registros de portugueses porque, na verdade, teriam sido outros instrumentos chamados de
"violas”; todavia, a partir de meados do século XVIII, as violas dedilhadas portuguesas
começariam a ter características diferenciadoras de outros instrumentos similares, culminando no
fato de que, do início do XIX até os dias atuais, tanto em Portugal quanto no Brasil violas
dedilhadas passaram a efetivamente existir: não seriam mais apenas um nome sem
correspondência a instrumentos distintos, pois os espanhóis abandonaram o formato com duplas
de cordas e ressignificaram o nome guitarra para um instrumento de seis cordas simples (o violão
moderno). Por isso, a partir do século XIX guitarras espanholas e violas dedilhadas se tornaram
substancialmente diferenciáveis, mas mesmo assim as violas dedilhadas portuguesas não entrariam
nas equações investigativas dos estudiosos do resto da Europa. E olha que nós procuramos...
Ou seja: continuamente na História haveria instrumentos apontados pela nomenclatura
VIOLA que seriam bivalentes (um mesmo nome para instrumentos tocados de duas formas
diferentes); por isso, registros onde a forma de tocar não fosse apontada claramente não seriam
atestação da forma de tanger, muito menos comprovaria que em todas as regiões e épocas aqueles
instrumentos teriam sido tocados só de uma das duas formas.
Nem outras curiosidades históricas (ou exceções) teriam chamado a atenção dos estudiosos
pelos tempos, como as chamadas "liras bizantinas" e “liras de braço”, que portam nomenclatura
de dedilhados (LYRA), mas eram tocadas por arco. A justificativa para aquela ressignificação de
nomenclatura é que surgiria pelos bizantinos, que passariam a priorizar a língua grega sobre o
latim a partir do século IX (quando houve o chamado Grande Cisma). Aquelas "liras" são exceções
pontuais vez que, comparado ao restante da Europa, tem bem menos registros e em poucas regiões
/ culturas. Elas equivalem à geige (em alemão) e guigue (em francês), dois genéricos (!) com
resquícios das variações da nomenclatura ancestral GIGA, nomes de dedilhados sem braços: todos,
portanto, sofreram ressignificação (exatamente como aconteceu com CITARA) e ainda hoje são
apontados até para violinos modernos. É importante observar que as "liras" bizantinas tinha caixas
periformes, portanto, jamais foram como violas nem violinos (para mais detalhes e fontes, confira
Brevis Articulus específico que publicamos a respeito).
O mais provável é que vários nomes não tenham sido estudados a fundo por se referirem a
instrumentos populares, que não faziam parte das orquestras e do círculo dito "erudito" (o que é
um equívoco porque antes do moderno eruditismo, as Histórias dos instrumentos se cruzavam e se
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