(Monteiro) Línguas Selvagens
(Monteiro) Línguas Selvagens
(Monteiro) Línguas Selvagens
Resumo: No artigo, discuto como, de acordo com Barbara Cassin, a metafísica da tradição foi
marcada por um regime discursivo com base nos imperativos de significado e significação, ao qual
eu nomeio, no desenvolvimento da presente investigação, como masculino. Tendo em vista uma
visada filosófica sobre o problema da linguagem, pretendo explorar as consequências políticas
desse projeto que historicamente excluiu e silenciou mulheres ao aliar uma linguagem logocêntrica
ao falocentrismo de uma cultura patriarcal, sendo este corolário daquele. Mobilizando referências
da filosofia, da psicanálise, e também do campo da arte, tanto da literatura quanto das artes visuais,
busco, no texto, interrogar se haveria – ou o que caracterizaria – uma experiência feminina da
linguagem que nos permita pensar uma saída para fora da tirania do sentido legada por Aristóteles
ao pensamento ocidental.
Palavras-chave: linguagem; feminino; psicanálise; Barbara Cassin; arte.
Quando Donana levantou a cortina que separava o cômodo em que dormia na cozinha, eu
já havia retirado a faca do chão e embrulhado de qualquer jeito o tecido empapado, mas
não havia conseguido empurrar de volta a mala de couro para debaixo da cama. Vi o olhar
assombrado de minha avó, que desabou sua mão grossa na minha cabeça e na de Belonísia.
Ouvi Donana perguntar o que estávamos fazendo ali, porque sua mala estava fora do lugar e
que sangue era aquele. “Falem”, disse, nos ameaçando arrancar a língua, que estava, mal ela
sabia, em uma de nossas mãos (Itamar VIEIRA JR., 2019, p. 16).
Na crítica a esta exigência aristotélica, a filósofa constrói o argumento de que haveria duas
posições distintas em relação à linguagem, como proponho diferenciar na primeira seção do
artigo. Comecemos pela primeira delas. Trata-se do projeto de adequação chamado por Cassin
de regime parmenídeo-aristotélico da linguagem, um esquema da Antiguidade do mundo grego
em favor do acordo perfeito entre aquilo que se fala e o seu significado correspondente. Esse
acontecimento teria instituído uma compreensão específica sobre um logos de caráter universal,
assentado sob o modelo discursivo da “decisão do sentido”, expressão que também nomeia seu
livro Décision du sens (La): le livre Gamma de la Métaphisique d’Aristote (CASSIN; Michel NARCY,
1989), escrito em colaboração com Narcy, que pode ser compreendido a partir da passagem
acima. A decisão do sentido seria o fundamento do homem enquanto animal dotado de logos.
Nesse sentido, são conhecidas as definições que caracterizavam o homem2 como um animal
produzido no entrecruzamento entre linguagem (λόγον δὲ μόνον ἄνθρωπος ἔχει τῶν ζῴων/ “E só o
homem, de dentre todos os seres vivos, possui a palavra”) (ARISTÓTELES, 1998, p. 55) e estatuto político
(ὁ ἄνθρωπος φύσει πολιτικὸν ζῷον / “O homem é, por natureza, um ser vivo político”) (ARISTÓTELES,
1998, p. 53). Desse modo, Aristóteles acreditava que os humanos nasciam naturalmente falantes, ou
seja, que a linguagem fosse algo desde sempre introjetado nos indivíduos, como fica evidente nesta
passagem em que define o homem como o ser vivo que possui a palavra. Para Aristóteles, os seres
humanos são um todo falante, eles já nascem na linguagem.
Dessa forma, podemos conceber a filosofia grega da tradição, pensamento fundado
pela separação radical entre ser e não ser e sedimentado como discurso regulado pela
primazia do sentido e com base no princípio da não contradição, como uma disciplina calcada
na centralidade do logos, na lógica dual e binária e no privilégio de valores normativos como
dimensões positivas e dominantes. Assim, Cassin aponta que essa concepção é falocêntrica,
1
Grafo sem acento para manter a escrita original da autora.
2
Uso “o homem” propositalmente para mostrar que, apesar de Aristóteles utilizar frequentemente o termo ánthropos
que, em grego, não é nem do gênero feminino nem do masculino, não se referindo especificamente nem aos
homens nem às mulheres, mas ao humano como tal, as traduções do filósofo, bem como a sua recepção,
costumam usar a palavra “homem” como sinônimo do étimo ánthropos. Portanto, acompanhando as traduções do
grego, grafo a palavra homem e não ser humano para nuançar a dupla exclusão das mulheres, a um só tempo
da linguagem e da política.
universal – registro masculino da linguagem, e outra que podemos definir como sofística e
psicanálise – não universal – registro feminino da linguagem. Lalíngua, como categoria do
feminino, nomearia uma linguagem para além da efetividade, uma linguagem permeada por
equívocos e indomesticável ao imperativo do significado: onde lalíngua fala, há gozo com a
linguagem, e não um sentido que garante a comunicação. Como afirma Cassin:
Nada de espantoso no fato de que, do lado mulher, isso falha “de maneira louca, enigmática”:
isso falha porque toda a realidade, todo o universo é uma flor de retórica macho, blá-blá-blá
do ser, e isso falha simultaneamente porque o gozo, enquanto por essência ele não convém, é
feminino (CASSIN, 2017, p. 206-207).
Seguindo a trilha aberta por Lacan no “Seminário XX: mais, ainda”, Cassin propõe que
o lado feminino da linguagem – enquanto lalíngua – seja uma possibilidade de um gozo outro
com a linguagem, para além do gozo fálico. Em “A significação do falo”, Lacan deixa claro que
o que ele compreende como falo não é um órgão, mas um significante “destinado a designar,
em seu conjunto, os efeitos de significado” (LACAN, 1998, p. 697). Ou seja, na teoria lacaniana, o
falo se torna um operador lógico-discursivo, o significante por excelência a partir do qual todos
os significantes ganham inteligibilidade e significação dentro de uma universalidade simbólica.
Em contraposição a essa perspectiva, Cassin propõe uma outra relação com a linguagem, que
produziria “um outro gozo, para além do falo, próprio então às mulheres, sem equivalente no
homem, e fora da linguagem” (CASSIN, 2017, p. 196).
Desse modo, o minucioso trabalho de Cassin é mostrar como o discurso da filosofia
recalcou as potências insubmissas da linguagem em favor de um logos masculino, organizado
e regido pela totalidade fálica. Por outro lado, o saber-fazer com a linguagem da sofística, que
ela alia a um domínio feminino, teria sido obliterado e permanecido inconsciente ao longo da
história. Como ela afirma, “o homem falha e goza como filósofo, a mulher fala e goza como
sofista” (CASSIN, 2017, p. 209). A mulher como sofista fala, mas sua fala não obedece ao discurso
normativo. Ao contrário, ela opera segundo:
Um discurso que age mais do que exprime, e não por persuasão, mas por performance; um logos-
pharmakon com efeito sobre o outro e efeito-mundo; pelas mesmas estipulações antiaristotélicas:
performance-enunciação-homonínia-significante. Mas elas se tornaram, em nossa época, ou
seja, com o inconsciente como furo soprador, ab-aristotélicas, de tal forma que elas retornam na
decisão do sentido para afundamentá-lo inteiramente (CASSIN, 2017, p. 211).
É curioso que a imagem mais conhecida que temos desse outro “aparato similar” esteja
presente em uma outra gravura, feita pelo francês Jacques Arago que, em expedição científica
para o Brasil entre 1817 e 1818, desenhou o famoso retrato dessa mulher negra que se tornaria
símbolo da resistência ao silenciamento dos povos negros instituído pelo colonialismo, o retrato
da Escrava Anastácia, como nos mostra Grada Kilomba (2019), filósofa, artista e psicanalista
portuguesa com ascendência em Angola e São Tomé e Príncipe, em Memórias da plantação:
episódios de racismo cotidiano (KILOMBA, 2019, p. 35-36), originalmente sua tese de doutorado
em Filosofia na Universidade de Berlim. Curioso justamente porque se trata, mais uma vez, de um
objeto que impede a fala4 de uma mulher, e não de um homem, ainda que a política colonial
tenha sido responsável pela desumanização bárbara tanto de homens quanto de mulheres.
O primeiro capítulo do livro se intitula “A máscara: colonialismo, memória, trauma e
descolonização” e constrói uma reflexão teórica sobre os efeitos da mudez imposta aos indivíduos
negros escravizados tendo como ponto de partida esse sádico objeto. Como coloca Kilomba
(2019, p. 33-34):
Há uma máscara da qual ouvi falar muitas vezes durante minha infância. A máscara que
Anastácia era obrigada a usar. Os vários relatos e descrições minuciosas pareciam me advertir
que aqueles não eram meramente fatos do passado, nas memórias vivas enterradas em nossa
psique, prontas para serem contadas. Hoje quero recontá-las. Quero falar sobre a máscara do
silenciamento. Tal máscara foi uma peça muito concreta, um instrumento real que se tornou
parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos. Ela era composta por um pedaço
de metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a língua e o maxilar e
fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo e a outra em torno do
nariz e da testa (…) A boca é um órgão muito especial. Ela simboliza a fala e a enunciação.
No âmbito do racismo, a boca se torna o órgão da opressão por excelência, representando
4
É sabido que a Máscara de Flandres tinha outra função em particular: impedir que os escravizados comessem
terra, alimentos, ingerissem álcool ou guardassem pedras preciosas. Embora o motivo da punição tenha a ver
com a perda de lucro e prejuízo econômico para o senhor, a própria Kilomba não deixa de sublinhar o seu valor
alegórico enquanto censura da fala e impedimento da enunciação.
Em uma perspectiva warburgiana da história das imagens, a articulação entre esses dois
instrumentos – o primeiro, destinado a punir as mulheres de língua afiada, as tais resmungonas,
e o segundo, a máscara do silenciamento posta na boca de Anastácia, que servia para punir
os sujeitos negros durante a escravidão – mostra o nexo indissociável entre a opressão patriarcal
e a opressão racial, o que em termos contemporâneos podemos chamar, segundo o conceito
proposto por Kimberlé Crenshaw (1989, p. 140), de interseccionalidade.
Ao justapor, à maneira do Atlas Mnemosyne (WARBURG, 2010),5 essas gravuras produzidas
em um intervalo de dois séculos, o projeto patriarcal/colonial de silenciamento de corpos não
masculinos e não brancos ganha inteligibilidade. Isso porque a imagem também não diz algo
de algo, como o logos aristotélico, mas, enquanto organismo atravessado por falhas, fissuras,
disjunções, ela deixa entrever os sintomas e os traumas que persistem na história, isso que “não
cessa de não acontecer”. A imagem é dialética e, nela, o passado se choca a todo tempo com
o presente, justamente o que Kilomba salienta ao afirmar que “aqueles não eram meramente
fatos do passado”, mas eventos capazes de serem atualizados ao pousarmos os olhos sobre a
gravura (KILOMBA, 2019, p. 33).
Como fica evidente na passagem acima, o corpo feminino é submetido aos mais atrozes
experimentos científicos e sabemos, como afirmara Primo Levi (1991), que onde se faz violência
ao homem – melhor dizendo, ao humano – se faz violência à linguagem (LEVI, 1991, p. 71). A
língua da paciente, “dura, inchada, azulada”, esquadrinhada minuciosamente, classificada
como esse músculo inerte e morto, que cai para o lado, é o emblema de um programa que
buscou transmutar a opressão sofrida por mulheres em desvios e patologias. Os sintomas
histéricos, que despontavam em um psiquismo desestruturado, não eram propriedades de
“resmungonas”, “mulheres de língua afiada” ou algo do tipo, mas sinais desencadeados face
ao extremo de seu silenciamento histórico.
Nesse sentido, a psicanálise, enquanto um dispositivo clínico centrado na relação
entre alguém que fala e alguém que escuta, invertia completamente a cena citada por Didi-
Huberman. Não mais o corpo feminino mudo, sujeito aos gestos bárbaros da racionalidade
5
Trata-se do grandioso método em montagem proposto pelo historiador alemão Aby Warburg (2010) para construir
uma história da arte para além das categorias historiográficas tradicionais, baseando-se em tempos intervalares e
em elementos que se repetem anacronicamente ao longo da história. Vem sendo especialmente recuperado com
a obra do filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman.
científica. Freud compreendera que falar poderia ser uma cifra para deixar os sujeitos menos
assujeitados ao trauma e, ao travar essa luta no campo da linguagem, “foi pela palavra que
ele tomou a histérica. Compreendeu que uma simples frase podia ser ‘como uma bofetada em
cheio no rosto’” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 215).
O famoso “sonho da injeção de Irma”, sonho paradigmático através do qual Freud
apresenta seu método de decifração na Interpretação dos sonhos, contém um elemento
interessante para o desenvolvimento das reflexões que estou propondo aqui. No universo onírico
do psicanalista, espécie de imagem inaugural do inconsciente, Freud vê Irma, uma antiga
paciente que apresenta uma grave infecção na garganta. Ao conduzi-la até a janela para
examiná-la, ele pede que ela abra a boca que, depois de alguma resistência, “se abre com
facilidade” (Sigmund FREUD, 2016, p. 128).
Segundo o relato do sonho, ele vê “uma grande mancha branca, e noutra parte, sobre
estranhas estruturas curvas que imitam de maneira evidente os cornetos nasais, vejo amplas crostas
cinzas esbranquiçadas” (FREUD, 2016, p. 129). A mancha branca na boca de Irma pode ser pensada
como efeito do mal-estar da linguagem; sua infecção na garganta, longe de ser produzida por
algum vírus ou bactéria, é, na verdade, uma patologia às custas do sofrimento psíquico imposto
pelo silenciamento. Freud conclui que o fato de “não ter aberto a boca como deveria” teria sido o
motivo do fracasso do seu tratamento. Como escrevi em minha tese de doutorado O que a Esfinge
ensina a Édipo: sobre os limites da interpretação na arte contemporânea:
A série de associações do sonhador o conduz a decifrar o sonho a partir de uma transferência
da culpa que ele próprio, Freud, sentia ao não ter completado o tratamento de Irma,
deslocando essa culpa para a própria paciente, que não teria “aberto a boca como deveria”,
isto é, por ter se recusado a falar o suficiente na busca pela cura de sua histeria (Juliana de
Moraes MONTEIRO, 2021, p. 77).
6
Tradução para women of color, expressão que engloba mulheres negras, indígenas, latinas.
Todas as histórias se contariam de outro modo, o futuro seria imprevisível, as forças históricas
mudariam, mudariam de mãos, de corpos, outro pensamento jamais pensado transformaria o
funcionamento de toda sociedade. De fato, vivemos precisamente esta época em que a base
conceitual de uma cultura milenar está sendo minada por milhões de topos de uma espécie
nunca conhecida (CIXOUS, 1995, p. 16).
Uma das formas que as mulheres têm utilizado para combater o silêncio e a brutalidade
de um logos que as constrange e as impede de se constituir como sujeitas falantes é a arte.
Nos últimos anos, venho trabalhando a partir da hipótese na qual a expressão artística passa a
ser um procedimento que visa subverter uma linguagem normativa. Muitas experiências e obras
de arte, sobretudo da arte contemporânea, são compreendidas justamente como operações
linguísticas que, ao invés de escamotearem as falhas do discurso, se pautam justamente por
sublinhá-las e jogar com elas, criando, nesse gesto, múltiplos efeitos poéticos.
A poeta, escritora e ensaísta argentina Tamara Kamenszain (2015), também bastante
influenciada pela psicanálise e pela filosofia, faculdade que chegou a cursar e abandonou
quando se radicou no México, fala, em uma entrevista sobre seu trabalho e, em particular, sobre
a poesia de Alejandra Pizarnik, a respeito de uma grandiosa imagem do que seria o caráter da
poesia que, acredito, poderíamos endereçar para a arte em geral. Kamenszain salvaguarda
um aspecto profanatório da poesia e, segundo ela, “o desafio da literatura é estar alerta às
armadilhas da linguagem” (KAMENSZAIN, 2015, p. 128). Nesse sentido, “a poesia é um trabalho
contra a linguagem e não a favor” (KAMENSZAIN, 2015, p. 128-129).
O conceito de linguagem ao qual ela faz referência é, naturalmente, a ideia aristotélica da
linguagem, na qual haveria uma adequação perfeita entre o plano do significado (logos/definição)
e o plano do significante (ónoma/nome), concepção linguística balizada pelo ajuste sem resíduos
entre um nome e sua definição correspondente, isto é, um logos que diz e significa algo que tem
um único e irrevogável sentido para si e para outrem. O que reivindico aqui, na mesma direção da
teórica argentina, é um outro tipo de linguagem, uma contralinguagem feminina que, tal como a
escrita de Pizarnik, teria a capacidade de “empurrar os limites até onde vai a língua, dar um passo
além, não crer nesse limite” (KAMENSZAIN, 2015, p. 129). Para Kamenszain, é a poesia; para as
nossas considerações, uma postura dita feminina diante do logos. Podemos falar nessa língua não
sobre algo ou de algo, mas fazendo experiência “da” linguagem mesmo, de que “há” linguagem
e que ela pode ser compartilhada. Como afirma Kamenszain:
A poesia não dá testemunho sobre isto ou aquilo; a poesia é a boca, é a única possibilidade
de testemunhar. A poesia é a única que pode, depois que já sabemos que não se pode dizer
nada, alcançar a verdade, inclusive como ausência de sentido. De modo que a poesia é uma
boca que se abre ou que está sempre aberta, que não pode fechar, que quando fecha, vira
estereótipo e quer “dizer algo” (KAMENSZAIN, 2015, p. 129).
Como Cassin, Pizarnik, Kamenszain, Cixous, Anzaldúa, Kilomba, Federici e tantas outras,
as mulheres encontraram também, ao saírem de seu silenciamento histórico, uma boca, uma
boca que se recusaram a manter fechada. Embora partindo de repertórios distintos e vindo
de origens diferentes umas das outras, as intelectuais que comparecem aqui propuseram, na
singularidade de cada pensamento teórico, formas próprias de lidar com suas inquietações
diante da linguagem e, sem exceção, se confrontaram com o fato de serem mulheres em
um mundo habitado pelo logos e pela razão masculina. Ao falarem, produziram inventivas
experiências de linguagem, que reverberaram no pensamento e na cultura, para além do
campo do logocentrismo e do falocentrismo. Essa boca, através da qual se fala uma língua
feminina, é a poesia, a literatura, as artes visuais e – por que não? – a filosofia, se ela, em um
mundo vindouro, se deixar ser uma boca feminina na qual “quando está sempre aberta, entram
nela todas as moscas” (KAMENSZAIN, 2015, p. 129).
Garotas falantes
Ao concluir Jacques, o sofista, Cassin assente que “a mudança de época se assinala sem
surpresa, mas, com vigor, pela presença pesada do sujeito, por mais barrado que ele seja, no
lugar do político” (CASSIN, 2017, p. 212). Nesse sentido, há um deslocamento produzido pelas
intervenções teóricas que diagnosticaram “a babaquice de Aristóteles” (CASSIN, 2017, p. 212), a
babaquice metafísica que alinhou o trinômio homem/linguagem/política como se essa relação
fosse dada de forma neutra e natural.
O sujeito barrado, uma invenção da psicanálise lacaniana, é aquele que nasce dividido
pela linguagem, ou melhor, que surge no momento mesmo da sua queda. No momento em
que se torna um sujeito falante, ele desaparece face ao significante que passa a representá-
lo. Lacan o expressa através do matema S → ($). Compreender essa formulação implica
entender que não se nasce sujeito, o sujeito é efeito do encontro com o Outro, que o aliena
de si, produzindo uma relação de desencontro entre sujeito e objeto. Desse modo, o sujeito da
psicanálise lacaniana é um sujeito irreconciliavelmente dividido.
Como conceber, tendo em vista essa abordagem sobre a relação entre os indivíduos
e a linguagem, uma experiência dita feminina, uma vez que o processo afeta homens e
mulheres? Seguindo a trilha de Cassin no seu livro sobre Lacan, não estamos falando de homens
e mulheres empíricos, mas de uma posição diante do logos: ela pode ser masculina (Filosofia,
regime parmenídeo-aristotélico) ou feminina (Sofística, Psicanálise). Trata-se, justamente, de
uma experiência feminina quando a linguagem não serve apenas à lógica da comunicação,
da transmissão de mensagem, da decisão pelo sentido. Nomeamos feminino o fracasso da
linguagem, compreendido não mais como mera negatividade do poder do logos, mas como
uma possibilidade para fora da perspectiva logo-falocêntrica (Jacques DERRIDA, 1992)7 que
vingou no pensamento ocidental.
É porque o logos não se esgota ao “dizer algo de algo”, que falamos em pura perda:
estamos sempre aprendendo a falar e, a cada vez que falamos, nos encontramos com a
possibilidade de falar ou de não falar. Portanto, a experiência masculina é uma experiência da
posse do logos, à maneira da célebre definição aristotélica: “o homem é o ser vivo que possui
a palavra”. Em outra direção, a experiência feminina com a linguagem pode ser pensada a
partir de uma impropriedade absoluta. Contra a posse da linguagem, temos uma expropriação
e um despojamento da linguagem que faz surgir o advento de uma potência. Na conferência
Experimentum linguae: a experiência da língua, proferida em 1990, no congresso “Lacan avec
les philosophes”, o filósofo italiano Giorgio Agamben afirma que:
Fazer a experiência da língua, arriscar-se no experimentum linguae, isso quer dizer: fazer a
experiência de uma faculdade ou potência, arriscar-se em um experimentum potentiae, da
potência enquanto tal. O experimentum é importante, porque nele nós fazemos a experiência
de uma pura possibilidade. É a experiência graças à qual nós podemos dizer: eu posso. É o
dom e o advento de uma potência. Pois se nós não pudéssemos ter uma outra experiência da
linguagem que não aquela das proposições significantes, se nossas palavras lidassem sempre
com uma referência factual, então em algum lugar se abriria para nós esse espaço vazio, essa
abertura que nos permite dizer: eu posso (AGAMBEN, 2018, p. 7-8).
A boca que se abre para dizer “eu posso falar” mostra, na verdade, um embate contra
o logos hegemônico. Ao dizermos “eu posso”, acabamos por desnaturalizá-lo e, com isso, a
concepção de que já se nasce falando ou, ainda, de que já se nasce sendo detentor do
poder de falar, sucumbe. O percurso que conduz até a fala não elimina as falhas, os silêncios,
tampouco escamoteia os lapsos, os balbucios, o momento em que as palavras se quebram
dos nossos lábios, para usar a bela expressão de Martin Heidegger lembrada por Agamben na
mesma conferência. Fazer a experiência da língua implica, antes, habitar a linguagem como
potência, isto é, como possibilidade de falar, mas também, paradoxalmente, como possibilidade
de não falar. Ou, ainda, como uma fala que seja sobre a impossibilidade de falar sobre algo.
É justamente nesse espaço vazio, na decalagem entre o dito e o não dito, que nos
tornamos intimamente próximos da nossa própria língua, nos tornamos garotas falantes.8 A
filósofa afro-estadunidense bell hooks (2019) descreve o que seria essa passagem da seguinte
forma: “Foi como uma voz saindo de mim que eu sabia que estava lá. E eu estava ouvindo essa
voz pela primeira vez. Eu estava falando com minha própria voz” (hooks, 2019, p. 78). Ouvir a voz
pela primeira vez não é sinônimo de “possuir as palavras”; ao contrário, só reforça o fato de que
essa experiência da linguagem não é algo dado, mas pertence, antes, à esfera do confronto
e da luta, que podemos caracterizar como uma experiência da potência, do poder falar e
também do poder não falar, sem que um possa se subsumir no outro. Poder não falar não é o
mesmo que ser aniquilado pelo silêncio e pela mudez, é uma operação interna que desativa os
imperativos de efetividade da linguagem logocêntrica. É ainda hooks que aponta para outra
dimensão do regime discursivo, no qual as palavras “são uma ação – uma resistência”, e a
linguagem “um lugar de luta” (hooks, 2019, p. 74).
Línguas selvagens não podem ser domadas, elas podem apenas ser decepadas,
é o que sentencia a frase completa de Anzaldúa que nomeia este artigo. Como ultrapassar
a violência imposta pelo logos se o simbólico foi construído por imagens de mulheres cuja
interdição discursiva era figurada em línguas cortadas, decepadas, máscaras e instrumentos de
silenciamento destinados a controlar línguas afiadas?
Em 1968, ano de publicação do Ato Institucional número 5, Lygia Pape (1971) apresentou
Língua apunhalada como parte de uma série intitulada Poemas Visuais. O retrato da própria artista,
que não era afeita a aparecer em suas obras, causa choque e repulsa. Nele, vemos a expressão
7
O filósofo franco-argelino Jacques Derrida expôs, em sua obra, a partir de uma leitura crítica da psicanálise de Freud
e Lacan, mas em diálogo com ela, a sobreposição entre esses dois sistemas, criando o neologismo falogocentrismo,
espécie de nexo indissociável entre os homens, o poder da autoridade e a razão (logos), garantido pela presença
do falo como um significante íntegro e transcendental. Assim, Derrida alia o logocentrismo da metafísica ocidental
ao falocentrismo da cultura que submete mulheres à coerção de um sistema que ata a palavra à lei simbólica,
sendo esta, pela ótica da psicanálise, paterna e masculina.
8
O artigo faz referência a uma expressão de hooks no livro Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra.
do seu rosto com a boca aberta – a boca da arte que está sempre aberta – e um líquido viscoso
e escuro escorre pela sua língua. Em meio ao ano mais violento e repressivo da ditadura militar
brasileira, essa artista cria uma obra marcada pelo feminino na linguagem ou, dito de outro modo,
só no campo do feminino é possível apunhalar a própria língua, mesmo que metaforicamente.
Para quem nunca foi admitido no reino da posse das palavras, só resta uma saída: se despojar ou
violentar a própria língua para falar em uma língua imprópria. A linguagem feminina, longe de ser
um território familiar que nós habitamos e dominamos, é um espaço estranho, permanentemente
ameaçado e invadido por moscas intrusas que entram nas bocas que se recusam a fechar. Como
pontuei em minha tese, já citada neste trabalho, a atividade poética e artística
diz respeito ao despojamento da linguagem familiar, dentro da qual o artista transita como se
dela fosse preciso tomar distância. Assim, ele se apropria no mesmo gesto de se expropriar de
um território familiar e dessa experiência nasce não só a poesia, mas as mais variadas criações
artísticas (MONTEIRO, 2021, p. 148).
Em Torto Arado, romance brasileiro escrito por Vieira Jr., somos apresentados à história das
protagonistas Bibiana e Belonísia, irmãs cujas vidas são radicalmente modificadas por um corte.
É Bibiana quem toma a iniciativa de resgatar uma antiga mala da avó a fim de descobrir algum
segredo enterrado. Ao retirar uma faca de dentro da mala, ela, a mais velha, leva o metal até a
boca, “tamanha era a vontade de sentir seu gosto” (VIEIRA JR., 2019, p. 15). Ao mimetizar o gesto
da irmã, Belonísia, incitada pela curiosidade, repete o mesmo. Mas, em vez de produzir um
pequeno corte causado pelo fio da lâmina como acontece com Bibiana, acaba por decepar
a própria língua, acidente que a deixaria sem poder falar para sempre. Se Jesus, escritora negra
e nomeada doutora Honoris Causa pela UFRJ, afirma que a língua das mulheres é um pavio
que incendeia tudo, Vieira Jr. escreve a narrativa de uma mulher que perde a língua e se torna
privada de ter uma voz.
No ensaio “Testemunhar sem língua (o caso Alejandra Pizarnik)”, Kamenszain, muito
influenciada pelas teorias agambenianas, mobiliza uma definição da poesia – que eu insisto
aqui em extrapolar para a arte – como a disposição para “falar pela boca da língua que não
tem” (KAMENSZAIN, 2015, p. 25). Estranho paradoxo esse no qual é preciso perder a língua,
senti-la ausente, para poder falar. Kamenszain aposta que uma experiência masculina com a
língua resvala na tentativa falida de participar de uma totalidade. Segundo ela, para continuar
escrevendo – ou falando – “é preciso que as palavras não sirvam” (KAMENSZAIN, 2015, p. 33).
Para esclarecer esse aspecto, é justamente à psicanálise que a autora recorre. A
experiência que postulamos nesse texto como feminina não é a invenção de uma língua nova,
mas uma outra forma de lidar com a linguagem, capaz de fazer ruir a tradição metafísica ao
inativar seus dispositivos do sentido, da efetividade e da totalidade do logos aristotélico. Essa outra
língua, Lacan nomeou lalíngua, aquela que “fica antes, à frente de toda linguagem articulada”
(KAMENSZAIN, 2015, p. 45), mas também “uma não língua” (KAMENSZAIN, 2015, p. 45), um saber-
fazer com a língua que nada tem a ver com os efeitos de significado ou com dizer-algo-sobre-
algo, legein ti katà tinós, como na leitura aristotélica da formulação de Platão no Sofista. O que é
possível fazer politicamente quando se exclui sujeitas falantes da faculdade do logos?
Nas Metamorfoses (OVÍDIO, 2017), Filomela tem sua língua decepada para não revelar
o nome de seu estuprador, mas consegue revelá-lo bordando-o; em Tito Andrônico (William
SHAKESPEARE, 2009), Lavínia tem a língua cortada pelo mesmo motivo, razão pela qual também
tem as mãos decepadas; mulheres de língua afiada na Europa e mulheres negras escravizadas
trazidas à força para as Américas foram punidas com instrumentos que as impediam de falar;
às histéricas, choques e experimentos científicos eram impostos, deixando a língua contraída e
enrijecida; no campo das artes visuais brasileiras, artistas como Lygia Pape, Anna Maria Maiolino
ou Lenora de Barros ousaram apunhalar, cortar com uma tesoura,9 perfurar ou mastigar a própria
língua.10 Línguas selvagens não podem ser domadas.
Nesse sentido, palavra e pensamento, antes regulados por uma suposta unidade do
logos, estão dissociadas e, a partir dessa íntima fratura, possibilitam novas maneiras de abordar
a linguagem. É porque se reconhece uma cisão originária que podemos fazer uma aposta na
íntegra dos equívocos de cada língua, uma vez que a própria linguagem é resistente ao sentido e
à significação. A Filosofia, ao postular a relação da linguagem com o feminino como problema,
pode chamar para si a tarefa ética de confrontar, evocando mais uma vez a expressão de
Cassin, a babaquice do logos. Assim,
o que tinha sido separado de uma pretensa unidade se reencontra na criação do múltiplo. E o
que opera como um procedimento linguístico da expressão filosófica resulta igualmente como
um dispositivo de criatividade no pensamento – uma poética do pensar (CASSIN, 2018, p. 156).
9
É o que sobra, Série Fotopoemação (1974-2006).
10
Estudo para facadas (2012) e No país da língua grande dai carne a quem quer carne (2006).
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CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA
Não se aplica.
FINANCIAMENTO
Este artigo é parte de uma pesquisa contemplada por edital de Pós-Doutorado FAPERJ Nota 10 (2019), da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
Não se aplica.
Não se aplica.
CONFLITO DE INTERESSES
Não se aplica.
LICENÇA DE USO
Este artigo está licenciado sob a Licença Creative Commons CC-BY 4.0 International. Com essa licença você
pode compartilhar, adaptar, criar para qualquer fim, desde que atribua a autoria da obra.
HISTÓRICO
Recebido em 17/05/2021
Reapresentado em 05/07/2021
Aceito em 17/01/2022