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A Despatologizacao Das Identidades TRANS

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Journal of Social Sciences, Humanities and

Research in Education
Copyright1:

The depathologization of TRANS identities and brazilian


psychology in the face of the struggle for rights LBGTQI+

A despatologização das identidades TRANS e a psicologia brasileira frente a luta


pelos direitos LBGTQI+

Ana Kelma Cunha Gallas2


Anna Karitha Meneses Brito3
Francisco Marcelo Vieira da Silva4

Data de Submissão: 21 jul. 2019. Data de Aprovação: 28 set. 2019. Data de Publicação: 30 dez. 2019.

ABSTRACT: Due to the advance of the right and RESUMO: Devido ao avanço da direita e do
conservatism on the national political scene, the country conservadorismo no cenário político nacional, o país
faces systematic reviews of its sexual policies (VELASCO E enfrenta revisões sistemáticas de suas políticas sexuais
CRUZ; CODAS, 2015). Since 2011, attacks on LGBTQI + (VELASCO E CRUZ; CODAS, 2015). Desde 2011, os
rights and citizenship have intensified in the social field, ataques aos direitos e à cidadania LGBTQI+ vem se
especially through campaigns against the so-called “gender intensificando no campo social, especialmente, por
ideology”, a term used by movements opposing the meio de campanhas contra a chamada “ideologia de
legitimacy of sexual and gender identities. The present gênero”, termo de que se servem os movimentos
study aims to highlight some of the historical landmarks contrários a legitimidade das identidades sexuais e de
that contributed to the institutionalization of gênero. O presente estudo tem como objetivo
transsexuality as a pathology; discuss the prospects for evidenciar alguns dos marcos históricos que
implementing the transsexualizing process in a country contribuíram para a institucionalização da
refractory to sexual diversity and debate, within the scope transexualidade como patologia; discutir as
of Gender Theories, what place Psychology occupies in the perspectivas de implementação do processo
process of depatologizing transsexuality. As a research transexualizador em um país refratário à diversidade
method, a critical review of the literature was adopted, sexual e debater, no âmbito das Teorias de Gênero, qual
which seeks to analyze the current state of research in o lugar que a Psicologia ocupa no processo de
relation to trans identities published in documents, as well despatologização da transexualidade. Como método de
as to identify how Gender Theories have contributed to the pesquisa, foi adotado a revisão crítica da literatura que
process of depatologization of these identities. The busca analisar o estado atual das pesquisas em relação
research aimed, above all, to discuss trans identities and às identidades trans publicados em documentos, bem
the importance of Psychology professionals in the fight for como identificar de que modo as Teorias de Gênero têm

1 Atribuição CC BY: Este é um artigo de acesso aberto e distribuído sob os Termos da Creative Commons Attribution License. A licença
permite o uso, a distribuição e a reprodução irrestrita, em qualquer meio, desde que creditado as fontes originais.
1 Professora Orientadora do trabalho. Mestre em Antropologia e Arqueologia pela Universidade Federal do Piauí. Professora
orientadora do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) do Centro Universitário Santo Agostinho. Pesquisadora
do SEXGEN - Grupo de Pesquisa Sexualidades, Corpo e Gênero (UFPA), ComGênero – Comunicação, Gênero, Corpo e Sexualidade
(UESPI), e coordena o Diversidade (UNIFSA). E-mail: kelmagallas@outlook.com.
2 Aluna de graduação do Curso de Psicologia do Centro Universitário Santo Agostinho. Bolsista PIBIC/UNIFSA. E-mail:
annakaritha@hotmail.com.
3 Aluno de graduação do Curso de Psicologia do Centro Universitário Santo Agostinho. Bolsista PIBIC/UNIFSA. E-mail:
psmarcelovieira@gmail.com.

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the depatologization of trans identities in Brazil. contribuído para o processo de despatologização dessas
Considering Gender as a useful theoretical-methodological identidades. A pesquisa visou, sobretudo, debater as
tool for those who work with theoretical and analytical identidades trans e a importância dos profissionais de
objects related to the field of Social and Human Sciences, Psicologia na luta pela despatologização das
this research articulated three analytical categories: identidades trans no Brasil. Considerando Gênero como
Gender, Identity, Transsexuality. uma ferramenta teórico-metodológica útil para os que
trabalham com os objetos teóricos e analíticos
Keywords: Genre. Gender Identity. Transsexuality. relacionados ao campo das Ciências Sociais e Humanas,
Pathologization. Psychology. esta pesquisa articulou três categorias analíticas:
Gênero, Identidade, Transexualidade.

Palavras-chaves: Gênero. Identidade de Gênero.


Transexualidade. Patologização. Psicologia.

INTRODUÇÃO patologia, e, posteriormente, discutir as perspectivas


de implementação do processo transexualizador em
Temas como direitos igualitários, sobretudo um país hostil à diversidade sexual, e debater, no
para as minorias sexuais e de gênero, estão no fulcro âmbito das Teorias de Gênero, qual o lugar que a
das tensões decorrentes do avanço do Psicologia ocupa no processo de despatologização
conservadorismo e dos valores propagados pela da transexualidade.
extrema-direita na Europa e no Brasil (LÖWY, 2015). Como método de pesquisa, foi adotado a
Fenômeno social relacionado à exacerbação de revisão crítica da literatura que busca analisar o
posicionamentos fascistas em nosso país estado atual das pesquisas em relação às identidades
(MESSENBERG, 2017), e às transformações trans publicados em documentos, bem como
subjetivas provocadas pela hegemonia neoliberal em identificar de que modo as Teorias de Gênero têm
vários países (DARDOT; LAVAL, 2016), o contribuído para o processo de despatologização
conservadorismo impacta diretamente as políticas dessas identidades.
públicas voltadas para as chamadas minorias sexuais
e de gênero, provocando uma série de reflexões no A PATOLOGIZAÇÃO DAS IDENTIDADES
âmbito acadêmico, especialmente, no Brasil, com a TRANS
recente ascensão de um governo mais alinhado com
a extrema-direita. Embora os direitos alcançados pelas pessoas
Uma das repercussões desse processo no LGBTQI+, a transexualidade permaneceu
cenário político nacional, são as revisões enquadrada no rol das doenças até a 5ª edição do
sistemáticas de suas políticas sociais e sexuais Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos
(VELASCO E CRUZ; CODAS, 2015). Desde 2011, os Mentais (2013), sendo vista por instituições médico-
ataques aos direitos e à cidadania LGBTQI+ vem se psiquiátricas como uma forma de transtorno mental.
intensificando no campo social e política, Em junho de 2018, a Organização Mundial de Saúde
especialmente, por meio de campanhas contra a retirou a Transexualidade da lista de doenças
chamada “ideologia de gênero”, termo de que se mentais, da Classificação Internacional de Doenças –
servem os movimentos contrários a legitimidade das o CID-11. Como estratégia para garantir e/ou
identidades sexuais e de gênero, e questionado incentivar políticas públicas para a população trans
pelos pesquisadores no âmbito acadêmico. (LONGO, 2018), a transexualidade passou a ser
Considerando que, no Brasil, o debate sobre a definida como “incongruência de gênero”, sendo
despatologização das identidades trans ocorre em considerada uma condição relativa à saúde sexual.
um cenário social refratário às manifestações da Apesar dessa grande conquista, é preciso
sexualidade e do gênero que escapam à norma avaliar a sua repercussão nas instituições,
heterossexual (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2007), o especialmente as de saúde pública, e na sociedade,
presente estudo tem como objetivo evidenciar uma vez que existem muitas questões ainda a serem
alguns dos marcos históricos que contribuíram para debatidas e desconstruídas para garantir a dignidade
a institucionalização da transexualidade como e os direitos dessa população. No campo social, a

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transexualidade permanece imersa em econômicos e mesmo psicológicos das pessoas que
controvérsias decorrentes da (in)inteligibilidade dos vivem essa condição. Um dos desdobramentos dessa
corpos que não se enquadram no binarismo cis perspectiva essencialista e heteronormativa, de
heterossexual (TEIXEIRA, 2012; BENTO, 2014), acordo com Galli et al (2013) se refere ao
carregando estigmatizações, tabus e preconceitos, reconhecimento social, médico e jurídico da
que repercutem violentamente no campo social. De transexualidade mediante a submissão compulsória
acordo com a Associação Nacional de Travestis e das pessoas trans ao diagnóstico, sendo a
Transexuais - ANTRA5 (2018) só no ano de 2017 transexualidade compreendida como a experiência
ocorreram 179 assassinatos de pessoas trans no do corpo errado e sua cura/correção se daria através
Brasil, sendo 169 travestis ou mulheres transexuais, da operação de transgenitalização.
e 10 homens transexuais. Esses dados são bem
menos expressivos do que ocorrem na realidade, A DESPATOLOGIZAÇÃO DAS IDENTIDADES
considerando a subnotificação dos casos de violência TRANS E O PROCESSO
LGBTQI+fóbica no Brasil. TRANSEXUALIZADOR
Nas últimas décadas, travestis, drags queens,
drag kings e os/as transexuais têm sido objeto de O debate sobre gênero está imerso em
estudo e intervenção de um saber que se orienta intensas discussões que oscilam entre as noções
pela medicalização das condutas (BENTO, 2006). Ao naturalizantes da noção macho-pênis-homem e
romper com a pressuposta continuidade entre sexo, fêmea-vagina-mulher e os questionamentos
gênero, práticas sexuais e desejo (PETER e MEYER, referentes ao caráter de constituição sociocultural
2011), por intermédio dos quais, a identidade é dos gêneros e do próprio sexo. Para a Teoria Queer,
reconhecida e adquire um efeito de substância tais categorias nada mais são do que efeitos de
(BUTLER, 1993; CASTEL, 2001; ARÁN, 2006), a instituições, práticas e discursos de origens bastante
transexualidade passou a ocupar um lugar difusas (GALLI et al, 2013). Butler (1993) citada por
desafiador no campo social. Peter e Meyer (2011), compreende a
Os termos homossexualidade e heteronormatividade como um conjunto de regras
transexualidade são algumas das invenções recentes linguísticas que forjam, organizam e exigem dos
da Ciência Moderna criadas para categorizar os corpos uma performatividade “coerente” às suas
sujeitos que não se enquadram na visão genitálias. Isso implica, socialmente, em atribuições
hegemonicamente binária e heteronormativa. ao comportamento e postura “masculina” ao corpo
Compreendidas por muitas instituições e estudiosos detentor de um pênis e, “feminina”, ao corpo
como “inversões sexuais”, a transexualidade e a detentor de uma vagina. A performatividade diz
homossexualidade passaram a ser vistas como respeito à forma como essas regras e
expressões antagônicas do que foi instituído como comportamentos são constantemente reiterados,
normal, a saber, a heterossexualidade (AYOUCH, repetidos e ratificados, assumindo uma aparência de
2015). Qualquer possibilidade que divergisse desse normalidade.
parâmetro era fatalmente enquadrada como algo No que diz respeito ao diagnóstico, Bento e
patológico, subversivo, abjeto. Como dito por Arán Pelúcio (2014) entendem que utilizá-lo como
et al (2009), por contrariar a suposta “coerência instrumento desloca as pessoas LGBTQI+ do lugar de
essencial” entre sexo biológico e gênero defendida vítima para o de cúmplice do Estado e dos interesses
pelas práticas discursivas do século XIX, coube à biopolíticos hegemônicos, aceitando que suas
transexualidade ocupar o espaço que foi aberto pela verdades são ahistóricas e atemporais. Para essas
despatologização da homossexualidade: a patologia autoras, o Estado não é substância ou algo abstrato
não era mais a orientação sexual, mas a identidade que paira sobre nós, mas é histórico e é construído a
de gênero. partir de cada ato que fazemos. Portanto, seria
Bento (2012) argumenta que o DSM, o CID e o preciso e pertinente que compreendêssemos que a
SOC foram instrumentos que institucionalizaram a retirada do gênero do DSM e dos protocolos não
identidade trans como enfermidade e que implica em desobrigar o Estado de custear os
negligenciaram aspectos culturais, sociais, processos transexualizadores, já que o direito à

5 A Associação Nacional de Travestis e Transexuais da cidadania da população de Travestis e Transexuais,


(ANTRA) é uma rede nacional que articula em todo o Brasil fundada no ano de 2000, na Cidade de Porto Alegre.
127 instituições que desenvolvem ações para promoção Informações disponíveis: https://antrabrasil.org/sobre/

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saúde integral não deve ser condicionado ao parecer terapêutico protege verdadeiramente: as
médico-psiquiátrico ou à submissão. pessoas trans ou a ordem social? Não se trata
O diagnóstico nas mãos de pessoas de um sofrimento de gênero dado de antemão
transfóbicas seria um instrumento formidável para a que necessitaria respostas médicas, mas é, ao
revés, a acumulação de adversidades sociais,
patologização da transexualidade, tendo em vista
familiares, médicas e jurídicas que provoca uma
que o diagnóstico reforça a ideia de que a avaliação vulnerabilidade (AYOUCH, 2015).
psicológica elucida as forças desconhecidas pelas
pessoas trans; que essas pessoas deliram ou são Esmiuçando as origens discursivas da pratica
disfóricas em seu próprio corpo; que sua história, seu psiquiátrica direcionada a pessoas trans, chegamos a
modo de ser, sua família e a forma como assimilou o um denominador comum: considerar a
gênero estão, de alguma forma, deturpados transexualidade como patologia produz uma série de
(Butler,2009). De forma semelhante, Cavalcanti e aparatos e instituições que produzem a(o) sujeita(o)
Sousa (2016) dizem que o psiquiatra, por sua a que esperam “cuidar”. Queremos com esse
“perspicácia técnica”, estabelece uma relação de argumento lembrar o que fora dito por Miguel Misse
poder diante de pessoas que se reconhecem como (2010): que a patologização gera inclusive uma
trans, no sentido de que ele é quem “valida” quais forma única de pensar e lidar socialmente com
vivências são “verdadeiras ou não” para atender os corpos e transições de gênero. A subjetividade
critérios de transexualidade, invalidando, em humana, produzida e moldada a partir do entorno
contrapartida, algumas experiências trans. social e das relações de poder que se manifestam
Alinhados a essa percepção, Peter e Meyer entre os sujeitos, grupos e instituições, passa a ser
(2011) argumentam que o Processo entendida como um circuito fechado, natural e
Transexualizador é fruto de imposições individual, e as normas estabelecidas e os chamados
heteronormativas e do discurso biomédico, uma vez “bons costumes”, dependentes do desejo e da
que seu objetivo é ajustar o corpo do sujeito à vontade de cada ser humano (TOLEDO, 2013).
“norma” binária de gênero e que tal procedimento Na experiência trans torna-se visível o modo
constitui um paradoxo: ao mesmo tempo que esse como o dispositivo médico-jurídico opera,
processo rompeu com as representações seculares associando-se ao discurso médico, cujo eixo central
de corpo sexuado natural, ele “restaura” a é a concepção da relação corpo-sexo-gênero. Os
heteronormatividade. Butler (2003), por sua vez, nos diversos procedimentos, tanto corporais (acesso a
convida a conceber que aquilo que é comumente endocrinologia, intervenções cirúrgicas “secundaria”
visto como “fracasso”, por se desviar da norma, pode como próteses ou mastectomias e outras
ser uma estratégia de resistência e oposição aos modificações) como jurídicos (retificação de registro
limites rígidos do binarismo que constitui o gênero. civil e de demais documentações) são
Ayouch (2015) discute que a percepção da fundamentados, ainda, no laudo psiquiátrico. A
transexualidade proposta pela medicina não figura da(o) psiquiatra é colocada como pilar do
consegue dar conta das demandas das pessoas trans suposto cuidador, no qual, a partir de sua
pois, a despeito do que acreditam os médicos e a “perspicácia técnica”, seria possível validar quais
primeira geração de trans, nem todas elas veem vivências da pessoa trans são verdadeiras e quais
sentido em fazer a cirurgia de mudança de sexo. não são. Por consequência, seria desse profissional
Adotando uma leitura Psicanalítica, Ayouch (2015) da Psiquiatria a decisão sobre quem deve passar pelo
argumenta que há uma necessidade narcísica de processo de transição e quem não deve, por ser um
repetir as performances e a certeza de pertença a um embuste (SOUSA e CAVALCANTI, 2016). Nesse
gênero, mas ela é, na verdade, uma postura sentido, Ayouch (2015) nos lembra que, para os
identitária defensiva, imaginária que estabelece a médicos que trataram a primeira geração de pessoas
ilusão de uma essência masculina ou feminina tanto trans, só existe dois sexos, subtendendo a lógica de
entre pessoas cis quanto de pessoas trans. que a mudança de sexo só ocorreria com a mudança
dos órgãos genitais.
[...] os corpos trans inovam e inventam novas Para Arán et al (2009), o diagnóstico
organizações das relações entre normas e
psiquiátrico não só patologiza como também cria um
transgressões. Comparam ofertas locais e
internacionais, viram experts do fato
estigma à transexualidade, atribuindo uma patologia
transidentitário, que é irredutível ao binarismo às pessoas trans sem questionar ou considerar as
transexual. Cabe perguntar quem o escudo questões contextuais históricas, políticas e

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subjetivas desses indivíduos. Assim, a definição do estabelecendo diretrizes éticas a serem observadas
diagnóstico reforçaria concepções normativas pelos(as) psicólogos(as) em suas práticas no
relacionadas aos sistemas de sexo-gênero baseada acolhimento às demandas relacionadas à
na matriz binária heterossexual, caracterizada por transexualidade . Nesse documento, é apresentado
uma regulação da sexualidade pelos padrões de o desafio à Psicologia para garantir à população trans
“normalidade” e “anormalidade”. o respeito à dignidade e o acesso aos serviços
No Brasil, para uma pessoa ser identificada públicos de saúde. Nesse sentido, considerando a
como transexual e ter acesso às tecnologias de autonomia das pessoas trans para buscar apoio e
redesignação de sexo, o diagnóstico de patologia acompanhamento psicológico na rede de saúde
mental deve ser emitido por uma equipe oficial de pública e privada, os/as psicólogas/os devem
psiquiatras, psicólogos e endocrinologistas. Em considerar as inúmeras variáveis presentes no
decorrência disso, cabe ao “verdadeiro transexual” discurso de pessoas que pleiteiam a cirurgia
convencer através da performance de gênero de que transexualizadora. E, nesse sentido, a psicoterapia é
é um “verdadeiro homem” ou uma “verdadeira citada como uma das medidas para subsidiar a
mulher” – de forma estereotipada – para fazer jus ao realização do processo transexualizador. Na Portaria
diagnóstico e assim se distinguir dos homossexuais, M.S. nº 1.707/2008, a psicoterapia consiste no
travestis, transvestidos e fetichista (AYOUCH, 2015). acompanhamento do usuário no processo de
O diagnóstico é uma forma de não reconhecer elaboração de sua condição de sofrimento pessoal e
a pluralidade das vivências sexuais, e fomenta a social, antes e após a tomada de decisão da cirurgia
normalidade compulsória da heteronormatividade de transgenitalização e demais alterações somáticas.
(PETER; MEYER, 2011), deixando àqueles que não se O processo psicoterapêutico não se restringiria,
enquadram na premissa sexo-gênero-sexualidade – portanto, à tomada de decisão sobre cirurgias de
culturalmente instituída e socialmente naturalizada transgenitalização e demais maneiras de
– à margem. Para Ayouch (2015) e Bento (2016), não modificação corporal.
há base científica para se definir objetivamente um Com o objetivo de garantir a efetividade dos
diagnóstico de transexualidade, mas sim uma princípios do SUS, as diretrizes nacionais para a
elaboração protocolar baseada nas convenções realização do processo transexualizador foram
hegemônicas sociais, religiosas e morais de gênero. regulamentadas pelo Ministério da Saúde (MS), por
O que existe são tentativas de determinados grupos meio da Portaria nº 457/2008. Essa portaria define
e discursos – médicos, religiosos, políticos e jurídicos como Unidade de Atenção Especializada no Processo
– para adequar os sujeitos em alguma das categorias Transexualizador a unidade hospitalar que oferece
criadas e para punir essas “transgressões assistência diagnóstica e terapêutica especializada
criminosas” e, portanto, estão legitimadas e aos indivíduos com indicação para a realização do
autorizadas todas as violências contra essas processo. Em 2011 e 2012, o Relatório do Ano
existências (OLIVEIRA; GROSSI, 2014). Temático de Avaliação Psicológica do Sistema
Conselhos de Psicologia, registrou-se a
PSICOLOGIA E PROCESSO recomendação a elaboração de uma Resolução
TRANSEXUALIZADOR sobre a atuação dos/as psicólogos/as no
atendimento a transexuais e transgêneros,
Na última década tivemos fortes especialmente, na avaliação psicológica do usuário
transformações políticas e sociais relacionadas com em processo transexualizador no SUS. As Resoluções
a ascensão da questão LGBTQI+ no cenário nacional nº 1.482 de 1997, e, a de nº 1.955 de 2010, dispõe
– desde a criação de redes movimentos e instituições que o/a psicólogo/a deve ser membro da equipe
da sociedade civil marcadamente pró-LGBT, ainda multidisciplinar necessária ao acompanhamento das
nos anos de 1990; à constituição de ações pessoas transexuais que busquem os serviços de
governamentais e políticas públicas de promoção da referência.
cidadania LGBTQI+, tecendo relações entre os Conforme as considerações, o CFP orienta o/a
movimentos e ativismos LGBTQI+ junto ao poder psicólogo/a tanto a considerar como respeitar a
público brasileiro (ARAGUSUKU, 2015). Alinhado à diversidade subjetiva da pessoa que livremente
perspectiva da despatologização das identidades optar pelo processo transexualizador, garantindo o
sexuais, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) tem direito constitucional à saúde, ao atendimento
se posicionado de forma contundente contra o humanizado e livre de discriminação por orientação
preconceito e a discriminação às pessoas LGBTQI+, sexual e identidade de gênero, conforme assegura a

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Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, instituída da Psicologia no Brasil o oferecimento de qualquer
pela Portaria nº 675/GM, de 31 de março de 2006, e tipo de prática de reversão sexual, alinhando-se às
o Código de Ética Profissional do/a Psicólogo/a. E normativas internacionais, especialmente, ao
que o trabalho do mesmo deve se pautar na Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
integralidade do atendimento psicológico e na Mentais (DSM), da Associação Psiquiátrica Norte-
humanização da atenção, não estando Americana (APA), que é responsável pelo Código
condicionado, restrito ou centralizado no Internacional de Doenças, o CID.
procedimento cirúrgico de transgenitalização e
demais intervenções somáticas, aparentes ou não, CONSIDERAÇÕES FINAIS
conforme determinação da Portaria MS nº
1.707/2008. Em janeiro de 2018 o Conselho Um dos pontos de reflexão sobre o
Federal de Psicologia estabeleceu normas de diagnóstico refere-se ao potencial deste
atuação para os profissionais psicólogos/as em instrumento de produzir um estigma social, em
relação às pessoas transexuais e travestis. decorrência da rotulação que abre espaço para que
Entre os artigos da resolução, o documento atores sociais sintam-se autorizados em criar e
estabelece que, em sua prática profissional, os/as atribuir uma série de ideias que hostilizam e
psicólogos/as atuarão segundo os princípios éticos cerceiam os direitos básicos das pessoas trans, o que
da profissão, contribuindo com o seu conhecimento inclui, muitas vezes, o direito à tutela de crianças, ao
para uma reflexão voltada à eliminação da transfobia emprego, à moradia, assistência médica e financeira,
e do preconceito e, não, de sua possível “cura”. A dentre outros (BUTLER, 2009).
resolução proíbe que psicólogos/as proponham, Ao figurar no DSM, a vivência trans é tratada
realizem ou colaborem, sob uma perspectiva como uma comorbidade, com descrições
patologizante, em eventos ou serviços privados, universalizantes e indicação de possíveis
públicos, institucionais, comunitários ou tratamentos. Acontece que os modos de
promocionais, as chamadas terapias de conversão, identificação da comorbidade acabam gerando algo
reversão, readequação ou reorientação de como um checklist que a(o) sujeita(o) deveria
identidade de gênero das pessoas transexuais e preencher para ganhar o laudo psiquiátrico que lhe
travestis. Na prática, essa norma veio a asseguraria direitos básicos como o acesso a saúde e
complementar a Resolução 01/99 que impede o uso ao sistema jurídico. Se por um lado a relação com um
de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, espaço de saúde pode garantir mais segurança na
manter ou reforçar preconceitos, estigmas, transição, configurando-se como espaço de cuidado,
estereótipos ou discriminação, vedando a por outro, a lógica da patologização, ao engessar a
colaboração com eventos ou serviços que visão única de quem seria realmente apta(o) a
contribuam para o desenvolvimento de culturas transicionar, abre um enorme espaço para que
institucionais discriminatórias. Apesar disso, a profissionais de saúde se creiam detentores do
Resolução CFP nº 01/99 vem sendo alvo de várias poder de decisão sobre transições alheias.
reações de setores conservadores da sociedade A Psicologia e o Conselho Federal de Psicologia
brasileira nos últimos anos. O movimento encontra estão no centro de tensões normalizadoras que
ecos dentro da própria comunidade profissional. Em ecoam da sociedade brasileira, que tem se mostrado
2017, uma Ação Popular, movida por um grupo de mais susceptível ao modelo que pressupõe um
psicólogos/as defensores/as do uso de terapias de vínculo de coerência entre o corpo, o sexo e o
reversão sexual, e, em setembro do mesmo ano, a gênero. A heteronormatividade, presente nesses
Justiça Federal da Seção Judiciária do Distrito discursos, têm concebido as transexualidades como
Federal, acatou parcialmente o pedido liminar, um desvio do padrão, e, não, como uma expressão
reabrindo o debate sobre o uso de terapias de identitária válida como qualquer outra, resultado da
reversão sexual. Em resposta, o CFP ingressou no STF complexidade humana, que deve ser respeitada e
solicitando a suspensão dos efeitos da sentença e a reconhecida como legítima. Dessa forma, os/as
extinção da Ação Popular para manter integralmente psicólogos/as devem pautar sua prática de modo a
a Resolução do CFP. Somente em 24 de março de expandir as possibilidades de cada uma das
2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu subjetividades que se apresentam diante de sua
liminar favorável ao Conselho Federal de Psicologia prática, evitando criar balizas ou cortes que
(CFP), mantendo a íntegra da Resolução CFP nº enquadrem as pessoas trans dentro do universo
01/99, que determina que não cabe a profissionais binário masculino versus feminino. Nesse sentido, as

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próprias tensões profissionais sobre esse tema, de modo velado, mas, escancarado em suas práticas
muitas vezes visto por uma ótica moralizadora, profissionais, de caráter conservador, que reforça as
traduz a necessidade de reflexão (crítica e desiguais relações de poder entre os gêneros. A
autocrítica) dos/as profissionais de Psicologia. A questão LGBTQI+ tem ganhado espaço no sistema
reflexão é necessária para desconstruir as Conselhos, nas produções acadêmicas e nas práticas
perspectivas que ensejam a categorização das profissionais em psicologia, porém é necessário
experiências dos sujeitos conforme às suas discutir o próprio processo de formação acadêmica
genitálias, evitando, sobretudo, abordagens que, desses profissionais, quase sempre, distante das
embora reconheçam a legitimidade da discussões das questões de gênero, em meio à
transexualidade, ainda compreendem que o gênero rearticulação do conservadorismo no país, que
se expressa de forma bem definida entre coisas de coloca em risco os frágeis avanços alcançados nos
menino e coisas de menina. últimos tempos.
Desse processo, evidencia-se a existência de
uma Psicologia que se mantem os seus preconceitos

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How to cite (ABNT)


GALLAS, Ana Kelma Cunha; BRITO, Anna Karitha Meneses; SILVA, Francisco Marcelo Vieira da. The depathologization of TRANS
identities and brazilian psychology in the face of the struggle for rights LBGTQI +. JOSSHE: Journal of Social Sciences, Humanities and
Research in Education. v. 2, n. 2, p. 51-58, jul.-dez., 2019.

JOSSHE v. 2, n. 2, jul.-dez., 2019.

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