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Mesa Farta Pretagô: Afrotempos: Criação e Deslocamentos Em, Do Grupo (Porto Alegre, Brasil)

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OUTROS TEMAS E-ISSN 2237-2660

Afrotempos: criação e deslocamentos


em Mesa Farta, do grupo Pretagô
(Porto Alegre, Brasil)
Thiago Pirajira ConceiçãoI
I
Universidade Federal de Pelotas – UFPel, Pelotas/RS, Brasil
RESUMO – Afrotempos: criação e deslocamentos em Mesa Farta, do grupo Pretagô (Porto
Alegre, Brasil) – O presente artigo, que faz parte de uma pesquisa de doutorado, reflete sobre al-
guns aspectos cosmogônicos de Exu, orixá iorubano, e suas relações com o espetáculo Mesa Farta,
do grupo de teatro Pretagô (Porto Alegre-Brasil). Discutem-se os fundamentos míticos-filosóficos
que compreendem o saber de matrizes africanas; identificam-se estratégias cênicas desenvolvidas no
processo de criação que organizam um modo de pensar a própria prática cênica, desde pressupostos
distanciados das noções teatrais e performativas eurocentradas. Verifica-se que a noção de afrotem-
po, tramada como estratégia negra de relação com o processo de criação agenciado pelas(os) artistas
do grupo, possibilita novas abordagens do fazer e do inscrever uma ética e uma filosofia negras no
campo das artes cênicas
Palavras-chave: Exu. Teatro Negro. Performance. Afrorreferência. Afrotempos.
ABSTRACT – Afrotempos: creation and displacements in Mesa Farta, by the Pretagô group
(Porto Alegre, Brazil) – This article, which is part of a doctoral research, reflects on some cosmo-
gonic aspects of Exu, a Yoruban orisha, and his relations with the spectacle Mesa Farta (‘Plentiful
Table’), by the theater group Pretagô (Porto Alegre-Brazil). The mythic-philosophical foundations
that constitute knowledge of African origins are discussed; scenic strategies developed in the process
of creation, that organize a way of thinking about scenic practice itself, based on assumptions dis-
tanced from Eurocentric theatrical and performative notions, are identified. It appears that the no-
tion of afrotempo (‘Afro-time’), conceived as a Black strategy for relating to the creation process
managed by the group’s artists, enables new approaches to doing and inscribing Black ethics and
philosophy in the field of performing arts.
Keywords: Exu. Black Theater. Performance. Afroreference. Afrotempos.
RÉSUMÉ – Afrotempos: création et déplacements à Mesa Farta, par le groupe Pretagô (Porto
Alegre, Brésil – Cet article, qui s’inscrit dans le cadre d'une recherche doctorale, réfléchit sur
certains aspects cosmogoniques d’Exu, un orixá yoruban, et ses relations avec le spectacle Mesa
Farta, de la troupe de théâtre Pretagô (Porto Alegre-Brésil). Les fondements mythico-
philosophiques qui composent la connaissance des origines africaines sont discutés; Les stratégies
scéniques développées au cours du processus de création sont identifiées et organisent une manière
de penser la pratique scénique elle-même, basée sur des hypothèses éloignées des notions théâtrales

Thiago Pirajira Conceição – Afrotempos: criação e deslocamentos


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em Mesa Farta, do grupo Pretagô (Porto Alegre, Brasil)
Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 14, n. 1, e131511, 2024.
Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2237-2660131511vs01
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et performatives eurocentriques. On voit que la notion d'afrotempo, conçue comme une stratégie
noire de relation au processus de création géré par les artistes du groupe, permet de nouvelles
approches du faire et d'inscrire l'éthique et la philosophie noires dans le champ des arts du spectacle.
Mots-clés: Exu. Théâtre Noir. Performance. Afroréférence. Afrotempos.

Este artigo apresenta alguns aspectos constitutivos do espetáculo Mesa


Farta, do grupo Pretagô1, com perspectivas cosmológicas negras desde o
fundamento mítico do orixá Exu. A reflexão faz parte de uma pesquisa de
doutorado, intitulada Afrotempos: criação, deslocamentos e produção de vida
nas artes da cena (Conceição, 2023), que tratou dos modos de criação de ar-
tistas da cena negras e negros e como estas/estes experimentam o trabalho
prático e atribuem sentidos, a partir das poéticas de seus processos e obras.
O objetivo geral da pesquisa foi refletir sobre as estratégias de fuga das cap-
turações da modernidade realizadas por estas/estes artistas por intermédio
de suas práticas performativas.
Foram realizadas entrevistas coletivas semiestruturadas, inspiradas nos
modelos propostos por Valdete Boni e Sílvia Jurema Quaresma (2005), e,
também, por Jean-Claude Kaufmann (2013). Tais entrevistas foram realiza-
das em formato online, durante o período de pandemia da Covid-19. Ao
mesmo tempo, a pesquisa propôs a cosmovisão do orixá Exu como metodo-
logia, amparada por alguns vetores inspiradores para as apostas e abordagens:
a dimensão da encruzilhada (caminhos artísticos, escolhas, vetores operantes);
comunicação (entrevistas, conversas, observação das obras-narrativas); contra-
dição-ambivalência (dialética dos arcabouços teórico e prático); dinamismo
(movimento e contexto das obras, deslocamento, criação, ficção).
A partir desses vetores, foram sinalizados os princípios constituintes de
uma metodologia que foi, ela mesma, uma estratégia de fuga, performance.
Dessa forma, apostou-se em um modo de trabalho circunscrito a um desejo
duplo, por um lado, procurando erradicar os problemas metodológicos presen-
tes em abordagens mais tradicionais de pesquisa, como os modelos estruturais
que destinam uma aplicabilidade desde lugares marcados (observador / obser-
vado); por outro lado, tentando mostrar a trama de um caminho de relação ou
de produção de dados inspirado no próprio fundamento mítico negro.
Ao partir dessa aposta, no caso do espetáculo Mesa Farta, a minha re-
lação, como integrante do grupo e diretor do espetáculo, pôde amenizar as

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fronteiras entre objeto de pesquisa e pesquisador, distanciando-me dos mé-
todos científicos tradicionais de pesquisa. Tal relação, feita na coletividade e
nas trocas conjuntas em um processo de criação, tem sua particularidade no
que toca às produções de artistas negras e negros, confrontando o próprio
paradigma de pesquisa eurorreferenciado. Assim, assumo aqui minha postu-
ra como pesquisador de um campo e de um objeto dos quais não me dis-
tancio. Ao partir dessa percepção de inseparabilidade, de uma coexistência
criativa negra, o aspecto a ser abordado neste artigo se refere à estratégia de
criação do espetáculo como modo operante de uma prática de resistência ao
racismo, tomando referenciais mítico-ancestrais negros como apresentados
na concepção da obra do grupo Pretagô. Dessa forma, ao destacar tais estra-
tégias, evidencia-se um modo de percepção sobre o processo de criação que
aduz a um tempo criativo negro nas artes da cena, um tempo de especula-
ção e investigação, arranjado por uma experiência coletiva, assegurada nos
sujeitos, em seus repertórios individuais, organizados em uma vivência cole-
tiva, constituindo a noção de afrotempo como um referencial ético e estéti-
co para se pensar a arte produzida por artistas negras, negres e negros.
As discussões sobre práticas e performances negras no campo das artes
cênicas vêm apontando caminhos frutíferos amparados por experimentações
e novas proposições conceituais e metodológicas. A encruzilhada do conhe-
cimento nas artes da cena, entendida aqui como “ponto de encontro de di-
ferentes caminhos, que não se fundem numa unidade, mas seguem como
pluralidades” (Anjos, 2006, p. 21), fornece elementos, proposições, pesqui-
sas, processos que vêm articulando as corporeidades negras e suas subjetivi-
dades como criadoras de novas epistemes, metodologias em seus processos.
Tomadas por distintas abordagens, concepções, contextos e realidades,
as pesquisas negras na área revelam consensos que articulam uma insepara-
bilidade do corpo, dos modos culturais e suas práticas coletivas no fazer cê-
nico. Ao passo que as corporeidades negras, seus saberes e tematizações, car-
regam e tensionam um tempo negro africano “impregnado de Força Vital”
(Oliveira, 2006, p. 52), com seus reflexos e grafias de um tempo também
“prenhe de ancestralidade” (Oliveira, 2006, p. 52), tais pesquisas apontam
caminhos de produção de conhecimentos relevantes na área, que organizam
éticas, estéticas e políticas da/na cena. As práticas em pesquisas afrorreferen-
ciadas vêm exemplificando figuras míticas ancestrais e suas ligações com as

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instâncias desses fazeres. É possível notar, em artigos publicados na área, es-
sa incidência, como de Exu e performatividade no terreiro (Silva et al.,
2022), dramaturgias corporais e suas relações com os batuques (Silva; Rosa,
2017), a encenação teatral desde o candomblé (Barbosa, 2021), dramatur-
gia, candomblé e ritual (Ferreira, 2023).
No confronto com visões hegemônicas, caminhos epistêmicos, inseri-
dos na encruzilhada do conhecimento negro nas artes cênicas, descortinam
e aprofundam as discussões do campo, sem abandonar o rigor científico na
proposição de metodologias, abordagens e teorizações. Nessa seara, inserem-
se as proposições de afrotempo como uma epistemologia desestabilizadora,
amalgamada nas intrínsecas relações entre ancestralidade, mito, ética e cria-
ção negras, corroborando com os estudos da área, fortalecendo e tensionan-
do a produção dos saberes da cena.

Mesa Farta

Mesa Farta é um espetáculo criado pelo Pretagô, um grupo de teatro


fundado por artistas negras e negros que pesquisa a representação e a repre-
sentatividade das subjetividades negras nas artes, fundado em 2014 por es-
tudantes do curso de graduação em Teatro da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. O grupo possui variadas inspirações, que são experienciadas
de maneira bastante intuitiva e, ao mesmo tempo, radical2, em seus proces-
sos de criação de espetáculos. As e os artistas, que possuem diferentes traje-
tórias, embora tenham a formação universitária em comum, mergulham em
diferentes estratégias de criação nos diferentes processos do grupo, atrelando
assim um caráter improvisacional e experimental às criações dos espetáculos.
Desde sua fundação, o grupo desenvolve seus trabalhos (espetáculos, per-
formances, oficinas, cursos, debates) de forma independente, sem financia-
mentos ou patrocínios. Como possibilidade de organização e produção, o
grupo vem estabelecendo parcerias com outros artistas, grupos, empreende-
dores e instituições, a fim de conseguir concretizar seus projetos. Com Mesa
Farta não foi diferente, a montagem do espetáculo só foi possível por in-
termédio de uma campanha virtual de doações organizada pelos integrantes,
para angariar recursos para essa produção.

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Imagem 1 – Da esquerda para a direita: Manuela Miranda, Bruno Fernandes, Laura Lima, Silvana Rodri-
gues. Registro do processo de criação de Mesa Farta, grupo Pretagô. Casa de Cultura Mário Quintana,
Porto Alegre-Brasil. Dezembro de 2019. Fonte: Foto de Anelise De Carli.

O processo de criação ocorreu entre os meses de novembro de 2019 e


fevereiro de 2020, com uma frequência de três ensaios de três horas cada,
durante a semana. Os ensaios ocorreram nas dependências da Casa de Cul-
tura Mário Quintana (CCMQ)3, no centro de Porto Alegre, e a pré-estreia
de duas apresentações ocorreu na segunda quinzena do mês de fevereiro de
2020, na programação do festival Porto Verão Alegre4. Após as duas apre-
sentações no mês de fevereiro, o grupo retomaria o trabalho de ensaios, no
mês de março, para cumprir a temporada de estreia nos finais de semana do
mês de abril do mesmo ano. No entanto, no dia 11 de março de 2020, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia mundial de
Covid-19, causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2)5, o que fez com que
toda a cadeia de trabalhadores da cultura fosse imediatamente atingida, sen-
do o setor cultural o primeiro a ter as atividades interrompidas.
O espetáculo, conforme relato dos artistas criadores, surge de diversos
desejos, de ordens individual e coletiva. No tocante ao desejo coletivo, este-
ve a vontade de o grupo criar um novo espetáculo, pois desde 2017 o grupo
não havia adentrado em um processo de criação. Durante esse período sem
criações, e mesmo tendo apresentações ocasionais dos outros trabalhos do
grupo, todos os integrantes tinham o consenso da necessidade de iniciar um
novo processo. A criação desse trabalho também foi pensada como produ-

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ção de dados para a pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da UFRGS. Os caminhos abertos pelas rela-
ções com conceitos de matrizes negras, a partir da relação com textos, pales-
tras e falas de pesquisadoras e pesquisadores, além de filmes, músicas e per-
formances, foram articulando o desejo de criação de Mesa Farta como pos-
sibilidade de colocar em prática tais noções e suas acepções.
Mesa Farta é apresentado em palco italiano, com duração aproximada
de 70 minutos. O elenco original é formado pelas atrizes Laura Lima, Ma-
nuela Miranda, Silvana Rodrigues e pelo ator Bruno Fernandes, integrantes
do grupo Pretagô. Em apresentações onde foram necessárias substituições,
estiveram no palco as atrizes Camila Falcão e Kyky Rodrigues, também in-
tegrantes do grupo. A dramaturgia do espetáculo foi composta por 16 cenas
autônomas, sem ligação sequencial entre elas. Desse modo, foram criadas
cenas coletivas, imagéticas, sem texto, outras cenas coletivas que resultaram
de improvisações tematizadas com elementos disparadores como a) orixás;
b) almoço em família c) genocídio branco. Tais cenas coletivas foram inter-
caladas ao longo do roteiro por monólogos extraídos de textos clássicos da
dramaturgia euro-ocidental, como Medeia de Eurípedes, Dona Rosita sol-
teira de Frederico Garcia Lorca, A vida é sonho de Pedro Calderón de la
Barca, Medeamaterial de Heiner Müller. Desde seu início, o grupo constrói
suas dramaturgias a partir de relatos pessoais, experiências individuais e co-
letivas, misturadas a outras histórias, textos e memórias. No caso de Mesa
Farta, trabalhamos também com textos clássicos eurorreferenciados.
Não há estrutura fixa de cenário, apenas objetos: duas mesas retangula-
res que em algumas cenas formam uma única, conectada pelo sistema de
travas; quatro bonecos brancos que ficam presos no urdimento pelo sistema
de roldanas para caírem no chão em determinadas cenas. Além destes, al-
guns outros objetos como talheres, livros, copos, e alimentos, que são con-
sumidos em cena. Há recurso visual de projeção no ciclorama ao fundo e
disposição de dois microfones com pedestais em cada lateral frontal do pal-
co. A trilha sonora, criada pelo músico João Pedro Cé e por mim, diferen-
temente dos demais espetáculos do grupo, é gravada com mixagens eletrôni-
cas, beats sonoros misturados com ritmos como funk carioca, rap, rhythm
and blues, hip hop e efeitos disparados ao vivo quando as atrizes e o ator fa-
lam nos microfones.

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Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje: afrofutu-
rismo, desordem e recomeço

Diante daquilo que muitas pessoas entendem como apocalipse, pairam


as letras deste texto. Ensaio o pensamento que voleia e conduz à tradução
dos dedos que socam as letras do teclado no atento exercício de achar um
modo de desaprender o arquivo onde estou. Arquivo este que conta a histó-
ria do mundo exclusivamente pela perspectiva colonial, escravagista, de ex-
trema violência e exploração contínuas, que mantêm a vida de pessoas ne-
gras aprisionadas a esta narrativa. Segundo Hartman (2020, p. 4), “O ar-
quivo, nesse caso, é uma sentença de morte, um túmulo, uma exibição do
corpo violado, um inventário de propriedade, um tratado médico sobre go-
norreia, umas poucas linhas sobre a vida de uma prostituta, um asterisco na
grande narrativa da História”.
Pensar o arquivo como esse documento histórico, que rege a infindável
produção de violências e destituição da humanidade de pessoas negras, traz
a estes sujeitos uma inexorável questão: como (é possível) escapar dessas vio-
lências? No caso do trabalho produzido por artistas negros, e mais especifi-
camente na criação do espetáculo Mesa Farta, essa pergunta foi demarcado-
ra do modo como o processo se desvelou. Na mesma medida em que o gru-
po vem desenvolvendo um trabalho de pesquisa estética e de linguagem em
seus espetáculos – um modo próprio de criar –, percebeu-se a necessidade
de alterar de forma radical suas inspirações, suas escolhas e caminhos já
construídos, e de certa forma correspondente à expectativa racista e homo-
geneizante que caracteriza, por assim dizer, uma temática e estética únicas
que artistas negras, negros e negres devem criar. De certa forma, ao lança-
rem-se a um novo desafio, por um processo novo, foi possível revelar um
outro modo de contar suas próprias histórias, escapando das expectativas
coloniais, detidas a um mercado artístico que já previa os elementos estéti-
cos abordados nos espetáculos do grupo em trabalhos anteriores.
O provérbio yorubá, que compõe o título desta seção, apresenta deslo-
camentos temporais que me remetem a pensar sobre formas amplas e diver-
sas de tratar os processos de criação do espetáculo e que deram corpo à pes-
quisa de doutorado. Nela, podemos destacar alguns pontos que apresento
como modo ficcional, mas também como maneira de pensar e experimentar

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aquilo que venho chamando de simultaneidade. A ideia de simultaneidade
está diretamente ligada às subjetividades negras desde suas experiências na
diáspora brasileira. Condiciona a particularidade de pensar o corpo negro
desde diversas possibilidades das quais menciono e tensiono duas, que estão
diretamente ligadas na medida em que são consequências estruturais da co-
lonização antinegra: a concomitância do estado de dor diante do trauma co-
lonial e a sua relação com todos os processos de resistência e de reinvenção,
que criam modos possíveis de, mesmo diante da violência, organizar estraté-
gias de produção de vida (Conceição, 2019).
A experiência de simultaneidade também fala sobre o passado de coloni-
zação que segue sendo atualizado nos corpos negros e nos demais corpos racia-
lizados através da plantação cognitiva (Mombaça, 2020), que suspende a pró-
pria ideia de tempo quando reafirma a consciência de que a plantação como
um lugar físico geográfico também é recuperada como modo ontológico, filo-
sófico, antropológico de construção de um agora. Nessas relações, a autora diz
[...] marcada como está pelo fenômeno despossessivo da escravidão e pela con-
tinuidade da violência antinegra no período subsequente à abolição formal dos
campos de plantação escravistas, a experiência negra põe em questão, de modo
necessário, as noções aparentemente transparentes de agência e consentimento.
É certo que as formas de coerção foram atualizadas e que migramos de um sis-
tema de captividade total para um outro de captividade fractal, no qual a vio-
lência nos atinge de outras maneiras, construindo assim umas formas de assime-
tria internas ao diagrama da negritude que possibilitam, em nível coletivo, a
concomitância de nossa morte e de nosso sucesso (Mombaça, 2020, p. 6).
Desse modo, é possível evidenciar que todos os esforços das/nas catego-
rias coloniais operam como capturadores das subjetividades das pessoas ne-
gras. Ao mesmo tempo que a violência é reativada pela memória colonial, as
presenças negras reoperam tecnologias ancestrais, ou seja, uma série de rela-
ções criativas e inventivas, como estratégias de sobrevivência e recriação. Nos
repertórios e arcabouços subjetivos e culturais africanos e afrobrasileiros, ha-
bitam feitiços e magias que possibilitam as descapturações e fugas dos domí-
nios hegemônicos. A fuga pode ser entendida de forma radical, pois destrói
inicialmente o sentido colonial da linguagem, como processo de libertação.
Ao reconectar com as encantarias e fundamentos ancestrais, a brancura é con-
testada. Foi percebido, ao longo do processo de criação de Mesa Farta, que,
ao criar uma temporalidade para o espetáculo, organizada pelos desejos, so-

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nhos, devaneios, pesadelos, fantasmas e mistérios narrados pelo elenco, a
própria marca racial dos sujeitos negros não foi necessariamente determinante
para pensar a cena como uma eterna resposta à violência racista. Em Mesa
Farta, a ficção da raça é posta à prova por outra. A imaginação radical negra,
que, segundo Grilo (2021, p. 1), “[...] busca uma caudalosa geração de per-
cepções dissidentes em oposição à visão hegemônica que exila corpos melani-
zados deste mundo” serve no espetáculo como lugar seguro para a reorganiza-
ção das subjetividades em liberdade para se tornar temática de cena ou não.

Imagem 2 – Kyky Rodrigues (substituindo Silvana Rodrigues). Fonte: Foto de Thalles Matos.

A intimidade da vida cotidiana, nesse sentido, assumiria uma radicali-


dade e potência discursiva intrínseca à cena, na qual performar a si mesma,
sem corresponder às expectativas dos regimentos da cena e do tempo colo-
nial, corrobora o ato de produzir imagens e gestos a partir de suas próprias
memórias, de prazer, de deleite e relaxamento. Na cena, denominada Torta
de morango (Imagem 2), a atriz prepara uma torta de morango, seu doce
predileto, com morangos, nata, pão de ló e açúcar. Ao fundo, no ciclorama,
são projetadas imagens da atriz quando criança em animação, criando efei-
tos como se ela estivesse voando e observando a atriz adulta, tranquila, pre-
parando aquilo que mais gosta de comer. A potência da intimidade compar-
tilhada reforça o discurso que busca promover para mulheres negras ima-
gens positivadas para suas existências, enigmáticas, disruptivas ou, como
afirma Grilo (2021, p. 3), na busca daquilo que aponta como alumiação, o
“[...] ato de desentranhar beleza das coisas por meio de experiências im-
pregnadas de algo maravilhoso que, de repente, toca e encanta, exigindo de
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nós uma apreciação pela vida por meio dos sentidos da alma, da pele, do ta-
to, dos cheiros, dos gostos e dos sons”.
Na busca por uma narrativa que se desoriente do concreto hegemôni-
co, as epistemes negras se desenham em suas práticas colaborativas, estabele-
cidas na junção dos corpos e das ideias amparadas pelas místicas e mitos
presentes na trama corpo-espaço-imaginação em Mesa Farta. A poética ins-
crita nesses encontros de textos, falas, gestos, cenas, evidencia uma cena
fronteiriça, híbrida, territórios e espaços-tempos outros, ou ainda, amparada
pela Pedagogia das Encruzilhadas, de Luiz Rufino (2017, p. 109),
[...] parida no entre, na fresta, no viés, se encanta no fundamento da casca
da lima, é um efeito de cruzo que provoca deslocamentos e possibilidades,
respondendo eticamente àqueles que historicamente ocupam as margens, e
arrebatando aqueles que insistem em sentir o mundo por um único tom.
Exu, mais do que inverter, bagunça, confunde, cruza: encruzilhada.
Transgride na medida em que propõe atravessamentos e no confundir dis-
solve a visão unilateral, hegemônica, exclusiva. Exu é muitos, é caminhos
abertos, fonte de vida, é boca. Uma trama faminta de saberes que se expe-
rimentam nas mais diferentes possibilidades, sabores, odores cheiros, cores,
sons. Com erros e acertos em um jogo no qual as dinâmicas e regras vão se
construindo no próprio jogar, que acenam para um território de experimen-
tação. Como um contínuo oceânico. Nossos segredos estão no oceano. O
mar guarda nossa memória e nossa força. A mera inversão pode pressupor
alguma analogia de simples troca, de substituição, ainda sim em uma rela-
ção binária ocidental. A magia negra revela uma trama autoral: de desestabi-
lização (destruição do concreto colonial), instauração da encruzilhada como
campo de múltiplas possibilidades e que conota o poder de escolha dos ca-
minhos. E imagina-se nesse intento a liberdade, restitui a liberdade ao corpo
colonizado de onde surge uma nova episteme. Exu é quebranto, antídoto e
cura. É o romper com a lógica colonial.
Um dos elementos constituintes na relação de Exu-mundo, deliberado
no movimento contínuo, estabelece possibilidades conectadas ao sentido de
transformação e indagação do status quo. Ao questionar a realidade, provocar
conflitos, rasuras, caos, estamos estabelecendo alguma relação com os princí-
pios éticos de Exu. Sobretudo ao tratar da própria ideia de transformação
como radicalidade, na medida em que a destruição da matéria pode promo-

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ver o movimento necessário para a modificação e, por conseguinte, um novo
começo. Em uma das cenas iniciais do espetáculo Mesa Farta, compreendidas
em um bloco que denominamos como prólogo, ou seja, a abertura, o início,
anunciamos já, desde seu ponto de partida, um fim para este mundo
Estamos aqui, sobre a mesa. Sobre a mesa. Sobre a mesa. Estamos nos rebelando e
destruindo tudo aquilo que um dia ousou decidir sobre nós nesta mesa. Os con-
tratos estão todos aqui. Todos aqui. Todos aqui. E nós vamos rasgar, queimar,
destruir todos aqueles que não nos humanizam e vamos criar, assinar e dar fé a no-
vos contratos que nos favoreçam e nos dignificam! (Mesa Farta, 2020).
A mesa, objeto real, imaginário e imaginado, elemento cênico e arranjador
metafórico da narrativa do espetáculo, toma a própria dimensão de mundo,
operando como o lugar pertencido àqueles que detêm o poder. A mesa assume o
sentido metafórico de poder, sendo ela mesma destinatária dos papéis e docu-
mentos que organizam o tempo e as condutas sob as quais vivemos. Ao tomar a
mesa como esse lugar emblemático, limítrofe, as cenas que se apresentam ao
longo do espetáculo se referenciam a esse objeto e o tornam material e imaterial.
A mesa, como metáfora, estabelece o deslocamento da posição do sujeito sem fa-
la para aquele que pode falar, do sujeito sem poder para aquele que detém o po-
der, para o sujeito faminto para o sujeito que tem fartura. A mesa então se apre-
senta como lugar de um devir negro, de imaginação. A mesa aqui possui a am-
bivalência e o movimento de Exu, por ser ela mesma encruzilhada, morada e o
princípio causador desses movimentos/deslocamentos. Poderia ser a mesa um
objeto que reorganiza o tempo.

Imagem 3 – Rasgando os contratos. Da esquerda para a direita: Camila Falcão, Laura Lima,
Bruno Fernandes, KyKy Rodrigues. (2023). Fonte: Foto de Thalles Matos.

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Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 14, n. 1, e131511, 2024.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/presenca
E-ISSN 2237-2660
O título Mesa Farta traz em si uma metáfora que se faz de forma en-
cruzilhada6, nas ondas simultâneas e ambíguas. Inicialmente corresponde ao
objeto mesa, repleto de alimentos. Metaforicamente, a mesa farta é uma
imagem que representa o desejo de fartura de vida, de prosperidade, de ex-
periências positivas, de axé – a potência vital. Por outro lado, pode ser en-
tendida também como um local, um tempo, ou ainda, um espaço que está
inconformado, rebelado, em aspecto de recusa. Metáfora aqui entendida e
composta por ambiguidade, sensualidade e desterritorialização da/na lin-
guagem, como “[...] processo de torção, no qual algo é dito do real ao mes-
mo tempo que dito de outro jeito, estranhando o familiar, ou seja, visando
uma realidade outra, virtual” (Gauthier, 2004, p. 133).

Imagem 4 – Da esquerda para a direita: Silvana Rodrigues, Laura Lima, Manuela Miranda, Bruno Fer-
nandes, em Mesa Farta (2020), grupo Pretagô. Teatro Renascença, Centro Municipal de Cultura Lupicí-
nio Rodrigues, Porto Alegre-Brasil. Fonte: Foto de Anelise De Carli.

Na segunda cena do espetáculo, surge o título do espetáculo projetado


no ciclorama ao fundo (Imagem 4), no que os atores respondem, diante do
público, à pergunta o que é Mesa Farta? A pergunta, feita durante os ensaios,
foi um dispositivo para que o elenco pudesse atribuir diferentes sentidos a
essas palavras e viabilizasse uma cena que revelasse ao público a capacidade
imaginativa e inventiva do elenco, dado que suas individualidades e perso-
nalidades estão em evidência, na medida em que não há personagens: atrizes
e atores narram e performam a si mesmos. Mais do que uma única defini-
ção, fixa, categórica, o que se apresenta como cena é um campo de possibi-

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lidades, plural, indefinido, em processo. Mesa Farta, segundo o elenco, po-
deria ser muitas coisas, ou ainda, nenhuma delas
Silvana: Mesa Farta é trabalhar, trabalhar com aquilo, aqueles e aquelas que a gen-
te gosta, não porque é necessário, mas porque a gente gosta. Mesa farta é um lindo
pôr do sol depois de um dia de chuva intensa. É uma chuva fresquinha, é um arco-
íris, é um passarinho fazer ninho bem na frente da nossa casa, da nossa porta. Me-
sa farta é a Rihanna lançando um álbum novo com 12 faixas inéditas e uma 13ª de
bônus. Mesa farta é dançar numa festa até acenderem todas as luzes.
Bruno: Mesa Farta é o triunfo da imaginação sobre a realidade. É poder falar sobre
o que a gente quiser, tudo que a gente pensa do mundo, mas sempre dando dois
passos à frente. É uma mesa, farta, cheia de comidas gostosas, de salgados, de do-
ces. É o sonho…
Laura: sonho de morango, sonho de creme, sonho de chocolate…
Manuela: sonho de avelã com nutella...
Silvana: sonho realizado.
Laura: é um bom emprego...
Bruno: férias remuneradas! É um cartão de vale-refeição que todo mês é recarrega-
do…
Silvana: é plano de saúde…
Manuela: plano odontológico…
Silvana: é graduação, mestrado, doutorado…
Bruno: pós-doutorado…
Laura: é verão, sol, praia…
Todas: sim, praia!
Manu: Mesa farta é o leite, o deleite, o gozo. É ficar de quatro e ser a própria me-
sa. Mesa Farta é não nos prender na retina…
Bruno: Mesa Farta é sexo, é prazer, é aquela tremedeira gostosa
Silvana: Mesa Farta… é teatro (Cena II, espetáculo Mesa Farta, 2020. Arquivo do
Grupo Pretagô).
Nesse sentido, a metáfora localiza-se no ímpeto da imprevisibilidade,
rompimento, da mudança, do fim, “como emergência de um sentido ainda
desconhecido” (Gauthier, 2004, p. 133). Podemos pensar que o título do
espetáculo, mais do que centralizar uma ideia única que sintetiza ou define
o que pode vir ser a fábula a ser contada, pode nos oferecer uma relação
complexa, enredada, múltipla a ser posta em discussão. Cada uma das três
camadas de sentido apontadas aqui pode compor os vetores de um dos sím-
bolos de Exu, o falo de três pontas. Podemos compor, a partir dessas metá-
foras, dos diferentes textos e seus variados sentidos, camadas que coabitam e

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assim dilatam as imagens – possibilidades múltiplas que a narrativa do espe-
táculo instaura, ao refutar uma compreensão único nas falas do elenco.
Proponho aqui a relação com Exu refletindo-o como uma ideia filosó-
fica que se opõe a matrizes e cosmovisões de inteligibilidade coloniais (Are-
da, 2008), ou como “[...] a protomatéria criadora e a partir de seus efeitos
que se desencadeiam toda e qualquer forma de mobilidade e ação criativa”
(Rufino, 2015, p. 1). Busco pensar em outras formas e construções de per-
cepções para experimentar a existência no mundo nos processos criativos a
partir de Exu, desde sua potência desestabilizadora, que atua e transforma a
realidade em movimento desviante, comprometendo assim uma reescrita
deste mundo em que vivemos. Para Rufino (2015, p. 2),
Exu enquanto orixá compreende-se como um princípio cosmológico. Dessa
forma, é sobre a sua figuração e seus efeitos que no complexo cultural nagô
se compreendem os princípios explicativos de mundo acerca da mobilidade,
dos caminhos, da imprevisibilidade, das possibilidades, das comunicações,
das linguagens, das trocas, dos corpos, das individualidades, das sexualida-
des, do crescimento, da procriação, das ambivalências, das dúvidas, das in-
ventividades e astúcias.
Esse fundamento, que estabelece o caos para organizar, configura-se
em possibilidades criativas para assentar os conhecimentos e condições para
o ato criador no processo de criação. Pode também servir como instrumen-
to para perspectivar ou, melhor dizendo, sentir-olhar o mundo e as coisas
do mundo, em específico neste caso, as obras artísticas e seus processos cria-
tivos. Se Exu é a agência do caos, daquele vazio que pode vir a ser, lugar ini-
cial, poderíamos tomá-lo como suporte de interpelação do mundo, de in-
terpelação das artes, de e interpelação das categorias de conhecimento. As-
sim, comprometer-se com Exu é comprometer-se com o não sabido, com a
experiência no seu mais profundo sentido, balizadora da criação. Ao pensá-
lo como matriz filosófica, avistamo-lo, assim, de acordo com o pensamento
iorubano, como
[...] o poema que vem a enigmatizar os conhecimentos existentes no mundo.
Exu faz isso eximiamente ao instaurar a dúvida, as incertezas, ao nos lançar
na encruzilhada. Esse último termo é um dos simbolismos de seus domínios
e potências, a encruzilhada tanto nos apresenta a dúvida, como nos apresen-
ta caminhos possíveis. Porém, entre o que está presente na cosmologia ioru-
bana e o que foi ressignificado nas bandas de cá do Atlântico há algumas

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questões. Esses nós, atados no ir e vir dos cursos da diáspora africana e nas
complexidades dos cotidianos coloniais dão o tom das problemáticas que
envolvem a formação da sociedade brasileira e a presença das sabedorias afri-
canas aqui reinventadas (Rufino, 2015, p. 2).
Tais aproximações entre Exu, poema, movimento e sentidos de uma
humanidade apontam caminhos desviantes para aproximações com algumas
cenas do espetáculo, que parte de um título, ou de um nome, ou de uma
determinação.
Na primeira cena do espetáculo, ao abrirem-se as cortinas, vemos as
atrizes e o ator próximos uns aos outros, em uma imagem estática e que, aos
poucos, em uma movimentação conjunta, como uma respiração e pulso em
uníssono, afastam-se e aproximam-se. Aos poucos apontam para um deter-
minado ponto do espaço e na sequência apontam individualmente para di-
versos pontos. Ao vermos essas movimentações, é possível associá-las aos di-
ferentes caminhos apontados como a encruzilhada de Exu. Isso confirma
que, mais de que um único caminho, a narrativa será apresentada de múlti-
plas formas, em diferentes abordagens. Confere-se ainda a própria reflexão
das escolhas dos caminhos do grupo, que não se organiza, na cena e nas vi-
das, a partir de um tempo sequencial, ocidental.

Imagem 5 – Da esquerda para a direita: Manuela Miranda, Bruno Fernandes, Laura Lima, Silvana Rodri-
gues, em Mesa Farta (2020), grupo Pretagô. Teatro Renascença, Centro Municipal de Cultura Lupicínio
Rodrigues, Porto Alegre-Brasil. Fonte: Foto de Anelise De Carli.

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A localização em um tempo espaço ordinário, aqui, esvai-se nessa pri-
meira interlocução com a obra, a partir de como ela se autodefine. Embora
a palavra definição e seu sentido mais duro e analítico não sejam os desejos
de afirmação deste texto, a possibilidade de argumentar uma obra protago-
nizada por artistas negras e negros, que é articulada e definida por estas e es-
tes, torna-se imprescindível que a capacidade de se nominar componha o
processo. Colocar-se, determinar-se, pode ser visto como um possível cami-
nho desviante das pertenças colonizadoras. Assim, o próprio sentido de de-
finição aqui cumpre um outro papel a partir da ficção, apartado do senso es-
truturante e aproximado de uma ruptura de sentido linguístico, na qual,
dentro do desenho ao qual se destinam os sentidos da obra, promulga-se
“[...] que a redenção colonial, em certa perspectiva, fracassou e que as tra-
vessias dos tumbeiros codificaram o oceano enquanto encruzilhada” (Rufi-
no, 2015, p. 2).
Nominar o espetáculo Mesa Farta, a partir de sua constituição metafó-
rica, torna-se um primeiro movimento estratégico: escorregar das captações
da razão. Esvair-se do olhar hegemônico que interpela e aprisiona os modos
de criação negra em uma única categoria. Promover o desvio, não responder
às expectativas, estabelecer rotas de fuga configuram, nos processos criativos
negros, espaços de liberdade. Afinal, como aponta hooks (2018, p. 103),
“não é fácil dar nome a nossa dor, teorizar a partir desse lugar”. Permito-
me, em diálogo com a autora, afirmar que, para além da dor, também não é
fácil nomear e se experimentar a partir de nossas vivências, referências, sem
corroborar, em algum nível, com o que está posto e é esperado de nós, pes-
soas negras. No caso de Mesa Farta, a quebra da expectativa em relação a
um possível modo operante de linguagem e estética desenvolvidas em espe-
táculos anteriores, refunda a potencialidade criativa, amalgamada no devir,
que é pensamento e gesto incapturável.

Exu como rota de fuga e poesia

Pensar a figura de Exu como rota de fuga compreende a possibilidade


de entender os princípios regentes das cosmovisões negras como movimen-
to, contradição dialética, princípio vital incapturável e incoerente diante de
todos os métodos, estratégias, e conhecimento sofisticados de apropriação
das subjetividades negras, potência criadora e distribuidora que opera para

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além do princípio religioso. Tradutor, tradutório e tradução, guardião da
casa do futuro (Silva, 2015). Fundamento ontológico negro, assenta-se co-
mo devir ao mesmo tempo que tensiona e desfaz, a partir dos encantamen-
tos, as estruturas hegemônicas e a colonialidade. Exu é anti binário, Exu é
anti patriarcado capitalista fundado pelo eu ocidental. Sendo assim, Exu
pode ser tomado aqui como um caminho em construção, como um campo
aberto para possibilidades ou ainda como lugar eternamente espiralar: ruas e
esquinas, vida e morte, choro e riso, começo e fim eterno desprendido da
pele ou da representação. Escorre, desvia, ludibria, enrola, destrói os doutri-
namentos linguísticos e de linguagem que dominam. Desorganiza a matéria
e o espaço-tempo para reorganizar e desorganizar novamente. Experimenta-
ção, nesse sentido, de liberdade e exercício de Justiça: rota de fuga ao status
quo. Fuga como Liberdade. Fuga anarquicamente desfazedora da/na lin-
guagem.
É possível aproximar Exu à ideia de ruptura e reinvenção das narrativas
negras. No ato de reinscrever sua narrativa, no qual são grafadas informa-
ções positivas, desestabilizam-se os estigmas postos ao corpo e articulam-se
novas formas de estar no mundo. O imaginário dessa construção, a forma
poética na qual se inscrevem essas elaborações, abrigam o ato transgressor
de, na poesia dos corpos, aderirem um compromisso com a emancipação.
Nesse sentido, parece-me importante remontar algumas breves relações com
a experiência da poesia negra, realizada por poetas que, em seus atos de es-
crita, criam e recriam sentidos para a experiência de ser negro. Na poesia,
como diz Conceição Evaristo (2011, p. 9),
A palavra poética é um modo de narração do mundo. Não só de narração,
mas, antes de tudo, a revelação do utópico desejo de construir outro mundo.
Pela palavra poética, inscreve-se, então, o que o mundo poderia ser. E, ao
almejar um mundo outro, a poesia revela o seu descontentamento com uma
ordem previamente estabelecida. [...] Para determinados povos, principal-
mente aqueles que foram colonizados, o poema torna-se um lugar de trans-
gressão. Pela criação poética pode ser dada uma nova autoria, assim como
outra interpretação da história a um relato que, anteriormente, só trazia o
selo do colonizador.
De acordo com a autora, a poesia configura um ato anticolonial se
pensarmos no contexto do espetáculo. Escrever poesia, criar um espetáculo,
adentrar em um processo criativo artístico, pode libertar a narrativa escrita

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(o espetáculo, a performance) e a quem escreve (cria, inventa). É um movi-
mento duplo, simultâneo. A experiência da criação pode também dar outros
sentidos às narrativas postas, como um quebranto, um olhar desde o corpo
subalternizado, o olhar ao qual se compromete a criação do espetáculo Mesa
Farta. A título de exemplo, podemos perceber, no fazer poético de artistas
atuais, a potência com que a inscrição narrativa transgride as narrativas ofi-
ciais e reinventa sentidos às expressões e palavras. Podemos pensar a experi-
ência de fuga ou de escapar como um ato emancipatório. A noção positivada
de escapar reincide nos processos históricos da experiência negra, desde a
imagem colonizada do negro fujão, que deu fuga, que é vista, desde o olhar
descolonizado, como o negro que se libertou. Na poesia negra, essa relação
também é presente. A relação do tempo também pode ser destacada quando
se remonta à herança de um passado de luta por emancipação, como legado
para a experiência do presente
A nossa Classe Média
Ainda tá na Idade Média
Sigo sem fazer média
Por isso sou acima da média
Nego Drama, não
Nego em Ação
Tocando o Terror nos Comédia

Eu sou frio, grosso, rude


Sem sentimento e calculista
Qualquer B.O, nós resolve na pista
Eu sou tipo inverno russo
Vou acabar com esses nazista!

Nos deixaram à própria sorte


Não deram nem um biscoito
Morrem de medo da vingança
Hoje nos veem e ficam afoito
Sexta feira 13 é teu dia do azar
Desde maio de 1888

[...]

Na primeira resposta
Os bico já se assusta

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Chupa!
Eu não vou abaixar a cabeça pra nenhum filho da... p*ta
E tu? Sabe quem eu sou?
Então me escuta

Bruno Negrão, senhor


Bisneto daquela preta
Que no engenho do teu bisavô
Deu fuga
[trecho da poesia BISNETOS] (Bruno Negrão, 2018).
Nessa poesia, podemos notar a transgressão do sentido da fuga, do es-
cape. Fuga como possibilidade simultânea de ser, de resistir, de forjar-se li-
vre, de reinventar-se em movimento. Dessa maneira, a poética de Exu pode
exercer a função de escapar dos estigmas racistas e pode dar a possibilidade
de construir identidades moventes. Exu como fuga/liberdade de uma impo-
sição colonizadora. A fuga do real hegemônico que constrói outros reais
equivalentes. Pode, em Mesa Farta, atribuir sentido ao abandono de um
modo próprio de construir dramaturgia, totalmente autoral, para, libertan-
do-se dessa prisão, poder inclusive tomar textos clássicos europeus como ba-
se para cenas. Assim é feito em quatro cenas do espetáculo, em formato de
monólogos, privilegiando-se a relação das atrizes e do ator com as palavras
escritas por dramaturgos europeus.

Imagem 6 – Manuela Miranda (ao centro) como Medeia, Laura Lima (à esquerda), Silvana Rodrigues (à
direita). Mesa Farta (2020). Fonte: Foto de Anelise De Carli.

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Essa contradição pode ser derivada e ser sentida ao tomarmos a própria
contradição em Exu, que se faz em movimento ao dilema central da coloni-
zação. Valer-se de trechos de um texto hegemônico em Mesa Farta é menos
ceder ao colonialismo e mais sobrepor-se a ele, como desobediência das ex-
pectativas criadas sobre artistas negros que atuam contra as incidências do
racismo e que teriam, como regra, não utilizar textos de autorias brancas. O
trabalho desenvolvido pelas atrizes e ator em suas cenas-monólogos trata-se,
portanto, de um exercício de liberdade radical. Ir ao inesperado, confron-
tando e desviando-se do já sabido.
A poética de Exu, para a experiência negra, pode tomar um sentido
existencial, a impossibilidade de capturação na forma linguística e corporal,
por nela existir a possibilidade de simultaneidade, de sentidos plurais que
dialogam e constroem múltiplas dimensões do ser. A capacidade de elaborar
e refletir esses aspectos apresenta a abertura como fiel às narrativas negras,
que se escapam dos condicionamentos hegemônicos. Existem múltiplas his-
tórias que contam os corpos negros na diáspora, que levam em considera-
ção, desde a construção da experiência negra na diáspora brasileira (formada
a partir do encontro de múltiplos povos de África), até as cosmovisões de
mundo africano, que elaboram a complexidade e múltiplos sentidos.

Das rupturas como liberdade: a queda do corpo branco

Tentar fugir das estatísticas das mortes coloca como desafio uma espé-
cie de invenção constante para a pessoa negra lidar com essa regra. A sensa-
ção de “escapar a todo instante” dos métodos de opressão carrega inclusive
uma capacidade de romper com o que se é para forjar um outro eu, capaz
de triunfar ante a sentença mortal. Ao longo do espetáculo, vemos corpos
brancos que despencam do teto em direção ao chão. A metáfora aqui apon-
ta para uma radical provocação: e se a colonização violentasse pessoas bran-
cas? E se o mundo fosse antibranco? Ao mesmo tempo, os corpos que des-
pencam do teto afirmam que um futuro para pessoas negras vivas, não abar-
caria a branquitude. Uma imaginação radical negra que existe por sobre o
corpo branco. Em Mesa Farta, esse afrotempo, a queda do corpo branco se
faz.

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Imagem 7 – Silvana Rodrigues (ao fundo), Manuela Miranda (de costas). Mesa Farta (2020).
Fonte: Foto de Anelise De Carli.

Frantz Fanon (2008), em Peles negras, máscaras brancas analisa as rela-


ções na construção do mundo moderno sobre a égide da noção inventada
de raça e seus efeitos díspares na formulação do negro e do branco. Para o
autor, as condições do presente estão presas, entre outros fatores, a um pas-
sado no qual reside a grande problemática. Ele diz que o
[...] problema aqui considerado situa-se na temporalidade. Serão desaliena-
dos pretos e brancos que se recusarão enclausurar-se na Torre substanciali-
zada do Passado. Por outro lado, para muitos outros pretos, a desalienação
nascerá da recusa em aceitar a atualidade como definitiva (Fanon, 2008, p.
187).
Ele reivindica a condição de humano. Para além, propõe o rompimen-
to com o passado, como possibilidade de liberdade. O passado que o autor
se refere diz sobre a concepção de desumanidade destinada ao negro. Há
uma crítica ao pensamento moderno e à invenção de raça, autoria do ho-
mem branco. Essa é a crítica central do autor. Libertar-se da prisão do ho-
mem branco possibilitaria romper com a narrativa posta. Não ser mais ne-

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gro. Ser, então, homem. A ideia de homem apresenta uma universalidade da
existência. Caminhos abertos. E essa ideia se afirma quando diz que o “[...]
negro, mesmo sendo sincero, é escravo do passado. Entretanto sou um ho-
mem, e neste sentido, a Guerra do Peloponeso é tão minha quanto a desco-
berta da bússola” (Fanon, 2008, p. 186). O autor reivindica o direito de au-
toria do mundo. Ou ainda “sou um homem e é todo o passado do mundo
que devo recuperar” (Fanon, 2008, p. 187).
Nessa relação que Fanon apresenta, Mesa Farta imagina de forma radi-
cal um contrassenso da humanização. Essa invenção, como narrativa, à qual
se refere o autor, criou um sistema perverso no qual as categorias possuem
destinos opostos: ao branco, vencer, e, ao negro, ser derrotado. “A desgraça
do homem de cor é ter sido escravizado” (Fanon, 2008, p. 190). Ao romper
com a condição de negro, que acarreta a prisão a um passado de dor, o au-
tor apresenta uma condição livre, aberta, universal, como homem, aquele
que possui humanidade “[...] se o branco contesta minha humanidade, eu
mostrarei, fazendo pesar sobre sua vida todo o meu peso de homem, que
não sou esse y’a bon banania que ele insiste em imaginar” (Fanon, 2008, p.
190). Na cena ópera, criada como recusa radical à violência a partir da di-
nâmica de inversão de Exu, as atrizes e o ator cantam uma ópera satírica
composta por uma letra que apresenta uma inversão no mundo, na qual a
violência colonial recai sobre corpos brancos, a distopia é branca.
Vemos corpos brancos mortos
Crianças brancas mortas
Mulheres brancas mortas
Todos os dias

Vemos jovens brancos mortos


Gestantes brancas mortas
Sem anestesia mortas
Gritando de dor

Mortos, mortos pelo estado


Mortos pela polícia
Pela prefeitura
E as milícias
Brancos encarcerados mortos
Ativistas brancos mortos

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Vereadora branca morta
Somos todas elas

Temos um genocídio em curso


Com alvo bem definido
Vejam o absurdo

Onde está a culpa?


Está no passado?
Qual seu compromisso?
Com a transformação?
A música é cantada em tom fúnebre, atores vestidos com roupas pretas
e, ao fundo, projetada no ciclorama, a letra da música. O trecho final, ‘onde
está a culpa? / está no passado / qual seu compromisso? / com a transforma-
ção?’, apresenta o desfecho do questionamento trazido pela cena, atualizan-
do, revivendo, retornando a realidade, marcada de forma impossível. Perce-
be-se uma contraposição a um modelo inventado ao passo que o Fanon,
aludido pelo espetáculo, utiliza-se da palavra imaginar, que se torna revela-
dora no que diz respeito à imposição constante de uma narrativa imaginada
e praticada. Sendo assim, sua proposta de aniquilamento com uma essência
negra diz respeito à destruição de uma narrativa (raça) inventada (Hall,
2020). Nesse sentido, a desestabilização assume uma ruptura, na qual Fa-
non se contrapõe de forma simultânea a partir: da denúncia da narrativa
dominante / racializante; da negação da narrativa dominante (europeia); da
reinvenção de sua existência (liberdade). Ao ficcionar um genocídio branco,
desestabilizam-se essas normas, como um jogo radical.
A cena final do espetáculo, um banquete onde atrizes e atores celebram
suas existências, saboreiam alimentos, brindam e descansam diante do pú-
blico, como um momento de reorganização de uma ordem, que, como en-
sina Exu, antevinda pelo caos e pelo movimento, desloca-se para sua reor-
ganização. Dessa contraposição simultânea, que age de forma cruzada, surge
a possibilidade de liberdade, no espetáculo. Com efeito, evidencia-se outra
questão importante nesse libertar-se: a disputa pela narrativa, pela autoria. A
liberdade que Fanon persegue e que Mesa Farta performa diz respeito ao di-
reito de inventar-se, de criar-se. Da autonomia sobre o próprio existir, sobre
a criação de sua existência.

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Considerações Finais

É interessante pensar que há nos elementos constitutivos do espetáculo


Mesa Farta, a partir de seus enunciados, a eclosão de novos sentidos a partir
da liberdade especulativa dos corpos, e, logo, da possibilidade de fala vinda
destes corpos que vivem e que contam, o que aproxima a capacidade da ra-
zão para o corpo. Somente livre, em Mesa Farta, pode-se falar. Toma-se o
corpo, a atuação e a encenação em Mesa Farta como protagonistas de uma
nova narrativa: que experimenta o processo de suas próprias vidas de modo
a também experimentar uma imaginação radical, na qual o corpo e a fala se-
jam elas mesmas enunciadoras. De onde emergem tanto uma postura e uma
ética artística negra ao passo de outras epistemes.
Romper com o passado não implica negá-lo, mas supõe tomar
uma postura sobre e não mais sob ele. O que está em jogo é a possibilidade
de tramar a criação das(os) artistas do espetáculo Mesa Farta com modos in-
ventivos para se pensar a cena de forma a fugir dos condicionamentos he-
gemônicos nas artes cênicas. Observa-se que, ao experimentar / inventar /
imaginar mundos desamparados das expectativas do mercado da arte que
espera temáticas previsíveis para artistas negras, negres e negros, estes artis-
tam, subvertem a si mesmos, reaprendendo suas próprias condutas e levan-
do estas de forma a radicalizar processos e roteiros dos quais foram forma-
dos. Ao elaborar a noção de afrotempo como uma tecnologia de ver o mun-
do de forma simultânea e de atenção ao processo, confronta-se o racismo de
modo a não somente resistir como resposta unilateral, mas imaginativamen-
te descaptura-se de suas incidências do/no processo de criação. Em Mesa
Farta, nota-se um caminho onde processo e cena, inseparáveis pelos seus
mistérios, confrontam e desestabilizam o tempo ordinário em que vivemos,
apontando assim novas possibilidades para se pensar / performar a cena: de
forma simultânea, resiste às mortes, recusando-as.

Notas
1
Mais informações podem ser obtidas em https://www.grupopretago.com.
Acesso em: 02 jun. 2023.

Thiago Pirajira Conceição – Afrotempos: criação e deslocamentos


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em Mesa Farta, do grupo Pretagô (Porto Alegre, Brasil)
Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 14, n. 1, e131511, 2024.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/presenca
E-ISSN 2237-2660
2
A radicalidade aqui mencionada aduz àquilo que está enraizado em nossos cor-
pos negros a partir de nossas vivências, repertórios e que vem à tona nos pro-
cessos de criação.
3
Espaço Cultural da cidade de Porto Alegre que leva o nome do poeta conheci-
do nacionalmente que morou no prédio quando ainda era um hotel (Hotel
Majestic). A CCMQ é uma estrutura pública administrada pela Secretaria de
Cultura do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Mais informações po-
dem ser obtidas em https://www.ccmq.com.br. Acesso em: 02 jun. 2023.
4
Tradicional festival de artes cênicas da cidade de Porto Alegre, que acontece nos
meses de verão. Mais informações podem ser obtidas em
https://www.portoveraoalegre.com.br. Acesso em: 11 jul. 2023.
5
Fonte: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-03/organizacao-
mundial-da-saude-declara-pandemia-de-coronavirus. Acesso em: 02 jun. 2023.
6
A vistas de entendimento, a ideia de encruzilhada é tomada aqui não como
processo hibridizador ou que tenha o cruzo como resultado exclusivo do en-
contro de diferentes ideias, mas, ao contrário, “como ponto de encontro de di-
ferentes caminhos, que não se fundem numa unidade, mas seguem como plu-
ralidades” (Anjos, 2006, p. 21).

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Thiago Pirajira Conceição é ator, performer, diretor, produtor, curador e pro-


fessor de teatro. Doutor em Artes Cênicas, mestre em Educação e bacharel em
Teatro pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É Professor
Adjunto no curso de Teatro - Licenciatura do Centro de Artes da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel). Líder do Grupo de Pesquisas em Artes, Gênero e Re-
lações Étnico-Raciais (CNPq). Artista cofundador do grupo Pretagô, grupo de cri-
ação e investigação das subjetividades negras nas Artes Cênicas. Artista cofunda-

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em Mesa Farta, do grupo Pretagô (Porto Alegre, Brasil)
Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 14, n. 1, e131511, 2024.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/presenca
E-ISSN 2237-2660
dor do coletivo teatral carnavalesco Bloco da Laje. Ator e produtor no grupo Usi-
na do Trabalho do Ator (UTA). Idealizador e curador da CURA Mostra de Artes
Cênicas Negras de Porto Alegre. Desenvolve formações e acompanhamentos pe-
dagógicos em práticas artísticas que tangenciam o Ensino Relações Étnico-Raciais
(ERER) e a Educação Antirracista.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8410-9449
E-mail: thiagopirajira@gmail.com

Disponibilidade dos dados da pesquisa: o conjunto de dados de apoio aos resulta-


dos deste estudo está publicado no próprio artigo.

Este texto inédito também se encontra publicado em inglês neste número do pe-
riódico.

Recebido em 02 de abril de 2023


Aceito em 18 de setembro de 2023

Editor responsável: Gilberto Icle

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em Mesa Farta, do grupo Pretagô (Porto Alegre, Brasil)
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