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Revista Labirinto

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Labirinto

Contos de Samsara 15
Copyright © 2024 Contos de Samsara

15ª edição

Editora:
Michele Fernandes

Consultora literária:
Milena Maria Testa

Revisão:
Monique Bonomini
Michele Fernandes

Diagramação:
Michele Fernandes

Imagem da capa:
Filipo Brazilliano

Parceria:
Coletivo Escreviventes
Alerta de conteúdo sensível:

Informamos que alguns contos deste exemplar


exploram temas que podem causar desconforto,
como estupro, assassinato e suicídio.
Sumário
EDITORIAL, MICHELE FERNANDES 5
A SALA ESCURA, ALINE GONÇALVES 7
DORME, BEBÉ, RAFAELA LACERDA 11
SE SE SE SE, THAÍS CAMPOLINA 12
PLANO B: O GUIA DO LABIRINTO,
JOÃO FRANCISCO SANTOS DA SILVA 18
A MATRIZ, CRIS ROSA 22
UM MÊS E MEIO, JOANA ROCHA 24
LINHAS DO TEMPO, LUCIANA MORAIS 29
NADA É COMO ANTES, CHIRLES OLIVEIRA 33
TEODÓSIO, O MAIOR, MÁRCIA VIEIRA ÁVILA 36
JUNTOS SOMOS DISTÂNCIA, ROSA MORENA 39
O INVERNO DA VIDA, PAULA CAMPOS 42
A DOR NÃO SENTE NOSSOS CORAÇÕES,
CHARLES PENA 46
VESTÍGIOS, CIDINHA RIBEIRO 51
O LABIRINTO DE ESPELHOS, OLINDA PINA GIL 55
LAR AÇUCARADO LAR, MARYSE BRITO 59
FAÇA-SE O VERBO, DEANNA RIBEIRO 64
BANDEIRAS RASGADAS, VERA DE ANGELIS 66
O LABIRINTO E A CORDA, CELSO JOABE 70
APOENA, ELAINE PEREZ 74
MINHA ANALISTA E EU, ELENA CHACON 77
FOLHA, CRISLAINE GRUBER 81
O QUE DEUS UNE, THAIS SILVA DE CASTILHO 84
SINAL PERDIDO, JOANA PATACAS 87
OS CAMINHOS DENTRO DE SI, DANIELE RANGEL 91
O LABIRINTO DE IRACEMA, OLIVALDO JÚNIOR 95
O CORAÇÃO HUMANO, OLÍVIA BATISTA 101
A BAILARINA DO CADERNO, JENNY RUGERONI 104
VIAGEM POR LUGAR NENHUM, BRUNO ANDANTE 108
CRISTO-VÃO, CAMILLE PERISSÉ 115
VÃO, VILMA MARTINS SCHIANTE 117
O QUE SE ESCONDE NA LUZ, ANTÓNIO A.
GUERREIRO 121
OLHAR O CÉU, MARIBEL VAZQUEZ 125
SUBMISSÃO, ALEXANDRA FERREIRA 129
EU, O MINOTAURO, RAFAEL DUARTE OLIVEIRA
VENANCIO 133
ÚLTIMO LABIRINTO, MAFALDA CARMONA 137
FEITIÇO, DIANA SILVA 141
PENSAMENTO DESCUIDADO, MARA VANESSA
TORRES 147
ESCURO NO FIM DO TÚNEL, FERNANDA GERMANO 152
CALEIDOSCÓPIO, CECÍLIA ROGERS 156
SAÍDA!, LEIDE FREITAS 158
Editorial
Michele Fernandes
Às vezes, a gente se perde…

Os fios de Ariadne nos escapam das mãos, as saídas se disfarçam, os pés


cansam de percorrer sempre os mesmos corredores…

Quando me sinto assim, me valho da caneta ou do lápis ou do teclado e


uso da escrita para desembaralhar o emaranhado que está na cabeça.
Acho que o cérebro é bem assim: um conjunto de trilhas, alguns com
portas fechadas, e, de vez em quando, a gente esbarra na parede dura,
esmurra até cansar e desistir. Mas os traços da caneta são como a
criança, com a revista na mão, brincando de descobrir caminhos. Tá
bom, com o celular (mas na minha infância eram aquelas revistas
Coquetel). E eu, de caneta na mão, volto a ser criança. A escrita tem
esse poder de achar saídas.

Lancei a ideia de uma edição que falasse de Labirinto, e 86 contistas


aceitaram esse desafio, porém apenas 40 encontraram a saída. E o que
segue é o percurso-texto de cada um dos selecionados.

Talvez essa trilha seja também o mapa para alguém que se sinta perdido.

Às vezes, a gente se encontra!

5
Sobre a autora:
MICHELE FERNANDES é escritora
gaúcha, autora de “Conta Comigo!
Três Vezes Mulher” (Voz de Mulher)
e de “Eu prefiro o meu próprio crime”
(Arpillera). Como autista, em 2024,
lançará um romance que fala desse tema.
Revisora, leitora crítica e coordenadora
do Coletivo Escreviventes, faz da
literatura
a sua vida.

IG: https://www.instagram.com/michelefernandes.escritora/

6
A Sala Escura
Aline Gonçalves
Era uma sala escura. De paredes pretas. Sem nervuras. Só breu. Havia
uma cadeira. Uma teia. Uma aranha. Havia uma janela. Era estranho.
Dava para ver lá fora. Mas, não dava para ver o céu. Fazia frio lá dentro.
Urgência de mantas sobre as peles. Sobre todos os móveis, pairavam
véus. Parecia a casa de alguém que se mudara há pouco. Muito a se
fazer. Objetos a serem distribuídos para lugares devidos ainda
desconexos. Parecia também a casa de alguém deposto. Um exílio sem
mais o quê. Utensílios sem lugar ou função. Talvez a lápide de um
morto. Era escura e úmida. Tomada de mofo. Buracos grandes de bolor
verde, como um queijo caro. Lá dentro, as lágrimas eram de sangue. E a
chuva, de vidro. Lá dentro, o sal era arsênico. E o açúcar, um lugar
invisível. Era tão grande, tão imensa. Era tão pequena. E incômoda. Ela
ali vivera, como a bailarina de corda. Toda dona da sua caixinha de
música. Toda presa num estojo redondo.

Quando entrava na casa, sentia um arrepio. Parecia brasa. Parecia frio.


Como um estalagmite solto do alto de uma mina explorada, planando
como uma seta, incolor, abstrata, quase estocada sobre a coluna ereta.
Um pequeno desvio, meio vulto, meio espinho, desaparecia
descongelado virando água sobre os pés e evaporando; um nada tudo.
Um nada frígido. Um nada cortante feito brasa na palha seca.

7
Aurora era só sapatos. Seus sapatos rasos, de cor lilás. Ela ainda tinha a
altura dos seus joelhos e o tom pueril de quem espera instruções afixadas
no rosto. Aurora com sua pasta executiva e seu dia de trabalho cheio, era
ali, do tamanho dos seus joelhos. Toda menina. Toda indefesa. Tremia as
carnes feito um filhote de gato a pular pela décima vez a janela proibida.
Ainda assim, bebia o leite. Bebia em gotas. Era-lhe noite, na casa de
cortinas abertas. Em algum lugar lá fora, onde a janela não avistava,
brilhava um sol, num céu com nuvens. Fazia um silêncio barulhento. Ela
abriu o armário porque tinha sede e mesmo sabendo que ele ia tinir, fez-
se na ponta dos pés e forçou os cotovelos para que, com a força da
mente, evitasse o som estridente que ecoou inócuo na residência. O
gesto repetiu-se ao abrir a torneira, ao lavar o caneco, ao secar o
utensílio, ao dobrar o pano de prato. O gesto ecoou ao roçar seus
sapatos, quase sem sola, no assoalho. Aurora, com seu blazer de moça
adulta, pôs-se a saltear os corredores. Ela estaria lá. Talvez no quarto de
costura. Talvez no sótão, a guardar as roupas. Talvez na cadeira velha de
balanço escura. Eram só portas abertas, mas pareciam muros.

A cada passo, o ouvia. Sim. Aquele sorrisinho maroto abafado por mãos
infantis. Mais meio metro, vinham-se as notas do barulhinho sonoro.
Quase contagiante. Quase verdadeiro. Estavam em seus tímpanos os
sons da garota. De suéter cinza e dorso franzino. A garota de covas,
com olhos com brilho. Estava em seu rosto, o tom fosco. Enquanto seu
sapato roxo tocava o chão, esgueirava-se pelas beiradas à sua procura.
Cadê a menina a pregar-lhe uma peça? Nem atrás das portas. Nem
debaixo das camas. Cadê a menina de tranças?

8
À procura do fantasma, embrenhou-se fundo na casa. Uma bola de
futebol vinda com o vento se choca com seus tornozelos. Tem cheiro
de suor. E o suor tem cheiro de infância e a infância cheirava esperança.
Vê-se no quarto escuro, a claridade se fora no meio do dia e a luz não
acende. Aurora tenta manter a calma, mas ela tem agora o tamanho dos
seus joelhos. Sua língua se enrola e não é possível gritar socorro. A
maçaneta travada. Só resta a mobília. Só resta o assoalho. A bola e as
bonecas antigas. O fantoche mira-a, lânguido no encalço do seu
ventríloquo e a boneca Emília, por detrás das treliças, lembra-a de que
estão todos entre as grades. A luz pisca, e a porta se abre. Rangendo,
rangendo... um sorriso sardônico. Cadê a menininha?

A cadeira de balanço antiga. Madeira escura. Almofada no assento, com


uma flor bordada. Um grande trevo vermelho. Artesanato. Quase
relíquia. Não era verde, era vermelho. Desde que tinha o tamanho dos
seus joelhos, indagava-se. “Aurora, querida, só sabe o porquê o artista”.
Ferida. Um trevo bordado à mão na cor de uma ferida. Uma das
grandes. Trec...trec... rangia o objeto vagarosamente para lá e para cá,
numa harmonia perfeita com aquela mudez sarcófaga. Numa sintonia
cúmplice com aquelas pesadas pálpebras que lentamente se abriam e se
fechavam, sem dormir ou acordar. Lá estava, no seu lugar.

As palavras não faziam sentido e as emoções afloradas faziam-na


esquecer do pouco que era dito. E cometia gafes, parecendo alheia,
enquanto estava tão sobremaneira inteira, tão perpetuamente partida.
Esquecera-se do motivo, sempre fútil. Mas nunca vazio. Há coisas mais
irreversíveis do que a morte. Daí, Aurora nada diz além de “sim” e
“não” com voz de mocinha no intuito de corresponder a toda sorte.

9
Depois, desce as escadas onde já ficara ajoelhada, passa pela sala onde
alguém morrera, pisa o chão das cadeiras quebradas e encontra o jardim
dos pedidos de socorro até sair pela porta onde adquire seu tamanho
normal e volta a ter 1,80m e voz adulta.

Mas não é o país das Maravilhas.

Compete com a loucura entre chapéus e luvas.

Ela quase sai. Avista a rua. E os carros. E o uber a que recorrera. Vê o


motorista, bem à sua frente, ruivo, de barba verdadeiramente vermelha,
mexer no celular, olhar para os lados. Ela recebe a notificação e nem
avista. Atém-se à vista do ir e vir do mundo vivo, porém a mudez gelada
que assopra às suas costas gruda feito piche e embola seus sapatos e
ideias. Ela está presa. No labirinto.

Sobre a autora:
ALINE GONSÇALVES, mineira,
especialista em Direito Civil, Psicopedagoga.
Membro da Academia de Ciências e Letras de
Conselheiro Lafayette. Autora dos romances
“Anjo Proibido” e “A Distância dos Íntimos”,
o infantil “Bebelle em O Mundo Azul contra o
Gigante Invisível”, além de diversos contos
publicados em periódicos mineiros e na página
Intimismos (@intimismosalinegoncalves),
texto selecionado para integrar o livro “Cartas
de uma Pandemia” (editora Claraboia),
curadora da Mostra Literária Conselheiro
Lafaiete- MOLIETE. Mãe da Blanche Belle.
IG: https://www.instagram.com/aline.alvesgoncalves.escritora/

10
Dorme, Bebé
Rafaela Lacerda
Estás atrasada, Desculpa, este bairro é um labirinto, perdi-me, Punhas o
mapa no telefone, Para a polícia vir atrás de mim? Não, obrigada, Modo
incógnito. Eles são estúpidos, não dão por isso, Não quero ser presa,
Não arriscas nada. Nem pareces minha filha, sorri ela com um suspiro
benevolente. Se calhar, é porque não sou, retorna a mais nova com o
azedume crispado no sobrolho. E, sem dar tempo ao previsível, «que
queres dizer com isso», arremessa, Por que é que nunca vi isto?, inquire,
num acto de prestidigitação, ao sacar de uma folha desbotada. Aquela
que parecia uma banal conversa de mãe e filha fica tão gelada como a
lâmina do bisturi que aguarda mais um trabalho ilegal em cima da
marquesa.

Onde é que descobriste isso?, foi o que saiu da boca da mais velha,
obviando um desconhecimento inexistente. Andava à procura de um
livro no escritório para um trabalho da escola e caiu isto de uma
prateleira. Li. Não sabia que havia segredos lá em casa, E não há,
Excepto este, não é?, Filha, eu, Não me chames aquilo que não sou,
Não digas isso. Já me basta saber que nem devia estar aqui, que, Para,
não é nada disso, Não é? Já te esqueceste do que está aqui escrito?,
Claro que não, mas, Eu avivo-te a memória, Não é preciso, Faço
questão, Não quero, Quero eu. Abre a carta e começa a leitura.

11
Cara cria, se estás a ler isto é porque tiveste a infelicidade de nascer.
Tentei por todos os meios proteger-te dessa atrocidade, mas, desde
que os fascistas chegaram ao poder, a vida não tem sido fácil. Agora
não nos deixam abortar, não interessa o problema. Não interessa se
ainda não fiz os dezasseis anos, não interessa se o gajo que me
deixou assim era um cabrão bêbado que me apanhou a caminho da
escola e ainda me espatifou o telemóvel para não pedir ajuda. Nem
lhe vi a cara. Não interessa o que sofri naquele dia, não interessa o
que tu vais sofrer se nasceres. Não interessa. Só interessa sermos
cidadãos de bem, daqueles que protegem a vida. A minha mãe não
quis saber, só disse que era uma vergonha. Não queria que também
tivesses uma a ter vergonha de ti. Então fui à dona Alzira, lá do beco
de trás. Custou-me as poupanças todas que tinha e ainda mais o que
roubei à minha avó e ela nunca soube. Fez o que tinha a fazer, doeu
como o raio, mas apareceu a polícia e engaiolou-me. Não demorou
três semanas, o julgamento. E ainda dizem que a justiça é lenta neste
país. Vinte anos, anunciou a juíza. Que eu era o primeiro exemplo de
que a moral e os bons costumes tinham voltado ao nosso país.
Aquela puta. Aposto que, se precisar, vai ao estrangeiro fazer um
aborto e numa clínica de luxo. Claro que não tinha dinheiro para um
advogado, agora já não há direito a um advogado da segurança social.
Claro que não conhecia ninguém que me pudesse valer, claro que a
minha mãe fez questão de deixar de o ser. Uma semana depois da
sentença percebi que a velha da Alzira não fez nada além de me
deixar toda arrombada. Tu continuavas a crescer aqui dentro e, na
choldra, não havia nada que eu pudesse fazer. Andavam, ainda
andam, todos contentes, dizem que vou ter um bebé, que vou ser
mãe. Uma miúda ser mãe? Odeio tudo o que me fazes lembrar, como

12
é que algum dia podia ter o mínimo de afecto por ti? Como é que podia
ser mãe? Com tudo o que isso implica. Por isso, acabou-se. Esta noite
consegui finalmente arrancar o parafuso da cama. Ando nisto há um
mês, mas a ferrugem não dava uma folga. Passei a noite a afiar a ponta,
no chão. Está boa, parece uma faca. É só acabar de escrever esta carta e
já o espeto nos pulsos antes de tocar a alvorada. Com sorte, não
sobrevives até me encontrarem. Com sorte, não vais passar a vida num
orfanato à espera de seres adoptada por uns ricaços quaisquer, enquanto
a direcção mete mais um cheque ao bolso todos os meses para fingir
que toma muito bem conta de ti até fazeres dezoito anos e depois te dar
um chute no cu, porque já és demasiado velha para alguém te querer
adoptar e já não tens serventia para engrossar a conta bancária da
honrada instituição. A doutora Isabel disse-me que eras fêmea, apesar
de lhe ter implorado que o não fizesse. Com sorte, não tens de passar
por aquilo que eu passei. Com sorte, não tens de fazer parte deste
mundo. Quem sabe noutras circunstâncias poderíamos ser amigas, até
te poderia amar, mas não consigo ir além do ódio, do nojo. Lamento.
Por mim, por ti. Adeus.

Tira os olhos raivosos da carta e olha para a mulher mais velha. Não
tens nada para me dizer?, O que queres que te diga?, Eu sou filha de
uma violação, é isso? De um aborto mal feito? De uma presa suicida?
Uma assassina que me queria matar? E agora fazes abortos
clandestinos neste vão de escada. És a doutora Isabel, não és? Ante o
silêncio e as lágrimas, repete. És tu, não és? Fala. Um silêncio, uma
inspiração, uma fungadela. Desde que li essa carta, jurei que mais
nenhuma miúda ia morrer à conta desta loucura de regime em que
vivemos. Em que nem respirar em liberdade podemos, em que
espreitamos por cima do ombro para ver quem nos segue. Em que,
para chegar aqui, tenho de inventar um caminho novo todos os dias

13
e… Sabes porque é que nada disto te aflige? Porque tens dinheiro. E o
dinheiro faz vista grossa a tudo. Ah, e eu tenho o nome da minha mãe.
E a mesma profissão, não te esqueças, filha, Não me chames filha,
Chamo, porque és. Pari-te. Saíste daqui de dentro, Então e, Essa cria…
Essa cria sou eu.

Sobre a autora:

RAFAELA LACERDA nasceu em


Lisboa, em 1984. Escreve teatro, romance,
conto e poesia. Tem uma peça publicada
na colectânea da terceira edição do
laboratório de escrita para teatro do Teatro
Nacional D. Maria II. Tem contos
publicados em revistas literárias e um
poema na fanzine Poética do Tumulto, em
homenagem aos 50 anos do 25 de Abril, da
editora Traça. É autora do blogue
«Avulso». Bióloga de formação, trabalha
como investigadora. É mãe do Fausto.

IG: https://www.instagram.com/rafaelalacerda_rafa/

14
Se se se se
Thaís Campolina
posso escorregar no banho e bater a cabeça no box do banheiro. morrer
pelada, vendo um labirinto de miolo, condicionador e sangue se diluir
na água morna. posso esquecer de levar o lixo para fora e em dois dias
encontrar larvinhas vivendo tranquilamente na área. com um passo em
falso, posso cair na escada e acabar batendo a cabeça na pior quina do
prédio. alguém pode me matar por engano, porque eu me perdi e fui
parar no lugar errado na hora errada. um motorista distraído pode me
pegar de surpresa no meio da rua, frear bruscamente e morrer de susto,
enquanto eu grito aaaaaaaaaaaaa sem nunca ser atingida. posso comer
uma broa, me engasgar e tossir até morrer. posso estar com a glicose
descontrolada e continuar comendo doce sem nem imaginar o risco que
corro a cada trufinha que decido mandar pra dentro. não posso
esquecer de dar comida para os gatos. posso ter uma dívida crescendo
exponencialmente sem nunca saber disso. aquela vez que comi uva
depois de tirar o mofo de seus galhos com água pode me matar de
botulismo. posso ficar sete dias sem dormir e me acabar zumbi assim.
posso perder um dente, depois outro dente, depois mais outro e, com
inflamação dos três buracos, sentir uma febre tão alta e uma alucinação
tão intensa que eu acabaria arrancando todos os meus outros dentes por
conta própria em um surto. posso ver alguém morrer na minha frente
sem poder fazer alguma coisa para ajudar. posso esquecer de fechar a
janela do apartamento e um marimbondo cavalo entrar em casa sem que
eu perceba e me ferroar de madrugada. posso ter um branco e não
lembrar que tenho alergia a camarão e me esbaldar em bobó até a glote
se tampar. essa fincada no peito pode ser ataque cardíaco e não gases

15
como todo mundo está cansado de dizer que é. posso levar um choque
ao colocar meu celular para carregar. o próximo avião em que eu entrar
pode cair. posso dormir tempo demais e acordar fraca e cair de cabeça
no vaso ao levantar da cama apertada para fazer xixi. posso ser presa
porque uma homônima cometeu um crime horrível perto da minha
casa. posso frear na estrada para salvar um cachorro e capotar meu
carro trinta e quatro vezes. posso esquecer de desejar feliz aniversário
pra minha mãe. essa dor de cabeça estranha que eu sinto nesse exato
momento pode ser na verdade um avc. posso não lembrar de acordar
para ir ao trabalho e perder o emprego, porque me ligaram, ligaram e
ligaram e eu não percebi, porque nunca tiro o celular do modo avião.
posso confundir sexta com sábado, desligar o despertador, acordar
atrasada, sair de casa desesperada e ser atropelada por um ônibus lotado.
posso ter um vizinho assassino estuprador stalker que cismou comigo
por causa de um bom dia. posso esquecer de ir ao médico ginecologista
mais um ano. posso trombar em um poste e morrer eletrocutada por
um fio solto. posso sair para ir na padaria e ser atacada por um homem
em plena luz do dia. posso ter uma doença silenciosa que está me
matando sem eu saber. posso tomar meu remédio errado. posso entrar
em combustão espontânea. não posso esquecer de tomar o ansiolítico
de novo. posso dormir dirigindo sem nem estar cansada. posso falar
demais e ganhar um calo nas cordas vocais. posso me imaginar
brincando de ioiô com a desgraça. o ioiô vai e volta. vai e volta. vai e
volta. até que se embaraça nos meus dedos. o ioiô me aperta, me prende
a circulação. o ioiô arruma um jeito de me fazer bater as botas de uma
maneira muito mais ridícula do que eu sequer fui capaz de imaginar.

16
Sobre a autora:
THAÍS CAMPOLINA
(Divinópolis/1989) é autora do livro de
poesia “eu investigo qualquer coisa sem
registro” (Crivo Editorial, 2021), da
plaquete artesanal “noticiosas” (2023) e do
ebook “Maria Eduarda não precisa de uma
tábua ouija” (2020). Também é mediadora
de leitura nos clubes Cidade Solitária, Leia
Mulheres Divinópolis e Casa das Poetas.

IG: https://www.instagram.com/thacampolina/

17
Plano B:
o guia do labirinto
João Francisco Santos da Silva
Os dias passaram-se tristes e vazios. Sem noção do tempo transcorrido,
poderiam ter sido dez dias ou dois meses, só agora ele conseguira
disposição e coragem para voltar à casa. Diferente da casa de sua
infância, nos últimos tempos tornou-se bagunçada e solitária. Primeiro
foi a mãe, e agora seguia o pai. Mesmo parecendo quase sem sentido,
lhe era obrigatório retornar mais uma vez àquela casa. Lá estavam
guardadas muitas de suas próprias memórias, e outras tantas das que
faltavam de seu pai.

No quarto do pai, remexendo na gaveta da mesa de cabeceira, se


deparou com uma caderneta vermelha. Ficou curioso com o título
escrito a mão na capa: “Plano B: o guia do labirinto”. Naquele
momento, a curiosidade suplantou transitoriamente sua tristeza. Riu
consigo mesmo ao lembrar que seu pai sempre tinha um plano B para
as situações imprevistas da vida. Então, respirou fundo e vorazmente
foi lendo o pequeno guia elaborado pelo pai.

As páginas misturavam frases manuscritas, com recortes de jornais e


fotos de pessoas, algumas conhecidas, outras não. Para um guia, num
primeiro momento, parecia mais um quebra-cabeça. No final da leitura,
percebeu que, para seu pai, tinha servido apenas como gabarito de um
jogo de memória nunca usado.

18
A caderneta, acomodada no fundo da gaveta, estava bem escondida.
Escondê-la pode ter sido a derradeira negação de seu pai. Devia estar
muito assustado ao perceber que entrava no labirinto. Homem criativo,
detalhista e precavido, esse era o seu pai antes de perder-se dentro de si.
Talvez para aguentar o tranco, mentiu para si mesmo que possuía um
plano B para sair de lá.

Os primeiros registros em sua caderneta são de 10 de outubro de 2009.


Começavam assim: “Meu nome é João Mendes. Nasci em 2 de novembro de
1931. Fui contador autônomo por 46 anos. Há dez anos estou aposentado.
Tenho apenas um filho. Ele se chama Pedro Mendes. Sou viúvo. Minha
mulher morreu em 11 de março de 2007. Ela se chamava Beatriz. Somente
três pessoas vêm aqui em casa me ver. Meu cunhado (irmão de minha
mulher), ele se chama Mário Barbosa, meu filho e a funcionária que vem todos
os dias cozinhar, lavar roupa e limpar a casa. Ela se chama Terezinha. Os três
têm a chave de casa”. Mais adiante continuava assim: “Levanto da cama e
pego os comprimidos que estão separados ao lado do copo d’água e tomo-os.
O banheiro é a porta que fica ao lado do guarda-roupa. Devo deixar a porta do
banheiro sempre aberta, para não ter perigo de ficar preso. Vou até o banheiro
e sento no vaso. Depois puxo a descarga. Me limpo com papel higiênico que
está ao lado do vaso. Primeiro lavo as mãos com sabonete. Depois lavo meu
rosto. Escovo os dentes. Penteio o cabelo. Volto para o quarto. Na porta do
lado esquerdo do guarda-roupa é onde estão as roupas de ficar em casa (Aliás,
não posso mais sair de casa. Mas, se sair, na página 11 tem o meu endereço
completo e os telefones de meu filho e do meu cunhado). Tiro o meu pijama e
visto a calça e a camisa. Guardo o pijama no local em que estava a roupa de
ficar em casa...”.

19
Ao longo de mais de vinte páginas o pai havia escrito toda a sua rotina,
tudo que fazia, passo a passo, durante as 24 horas do dia. Parece que foi
uma tarefa rápida e sem revisões posteriores. Deve ter sido muito difícil
para ele imaginar que precisaria de lembretes de seu nome ou até
mesmo da foto de seu único filho para reconhecê-lo. A última data
registrada na caderneta é a de 19 de novembro de 2009. Ele não tinha
intenção de fazer um diário. Queria ter um roteiro para seguir, mas não
o seguiu. Depois de feito, deixou de lado o seu Plano B. Provavelmente,
o guia foi perdido junto com todo o resto do que lhe pertencia. E no
final de vida, quando mais precisou dele, já desconhecia a sua existência.

O pai bem que tentou. Mas o fio guia foi roto, deixando-o perdido no
labirinto. No final, roupas sujas, excrementos pelo quarto, remédios não
tomados, agressividade com as pessoas próximas. Partiu, perdido e
internado em uma casa de repouso. Não reconhecia mais ninguém, nem
a ele mesmo. Morreu em 28 de setembro de 2014, quase cinco anos
depois de ter entrado e percorrido solitariamente o labirinto.

Se para o contador autônomo o guia não foi útil, para o filho serviu de
fio condutor para reencontrar o pai numa fase na qual ele já vislumbrava
a entrada do labirinto. O que mais angustiou o filho foi imaginar o
quanto seu pai devia ter se debatido, esbarrando nas paredes e se
desorientando cada vez mais lá dentro. Talvez, desespero parecido
àquele experimentado durante um pesadelo recorrente no qual não se
consegue sair dele durante uma noite inteira.

O labirinto é hermético. Segredo guardado a sete chaves. Nenhum dos


que por lá se perderam voltaram para descrever o que sentiram, se
sofreram ou se, em vão, pediram ajuda. Quem sabe haja uma porta
secreta de saída. Se houver esta porta, ela fica do outro lado de lá. Ainda
inacessível para os que estão do lado de cá.

20
Sobre o autor:
JOÃO FRANCISCO SANTOS DA
SILVA nasceu em Curitiba e reside em
Campo Grande, MS. É médico
acupunturista. Escreve contos, crônicas e
histórias infantis. Em 2023, teve contos
publicados nas antologias: “Coletânea de
contos de humor” e “Micro contos”,
ambos pela Editora Persona. Já teve
oportunidade de publicar três contos na
Revista Contos de Samsara em três
edições. Atualmente, colabora escrevendo
histórias curtas em um blog cultural
(https://www.blogdoalexfraga.com.br).

IG: https://www.instagram.com/joaofranciscosantosdasilva/

21
A Matriz
Cris Rosa
A cada estrondo na rua, meu coração bate rápido e meu braço fica
dormente. A cada som de batidas na porta perco o fôlego, vejo tudo
girando ao meu redor. Ouço o som de passos que preenchem o vazio.
Tem alguém me perseguindo — eu sei. E não é de hoje. “Pai nosso que
está no céu, livrai-me do mal. Amém.” “Ave Maria cheia de graça. Ave
Maria cheia de graça. Ave Maria cheia de graça, rogai por nós na hora da
morte. Amém.” Vou em direção à porta. Não tem ninguém. Uff. Que
alívio. Estou segura. Ao menos pensei que estivesse — ao atravessar o
corredor, falta energia. Direita. Direita. Esquerda. Sinto um calafrio
angustiante. Uma silhueta enorme se coloca à minha frente. “Pai nosso
que está no céu, livrai-me do mal. Amém.” “Ave Maria cheia de graça.
Ave Maria cheia de graça. Ave Maria cheia de graça, rogai por nós na
hora da morte. Amém.” A silhueta humanoide se afasta dando-me
passagem. A luz retorna. Direita. Esquerda. Reto. Giro 180° no meu
próprio eixo. Minha imagem reflete um corpo humanoide com a cabeça
de tamanho desproporcional e coberta com uma capa. Sou uma fera.
Uma monstra. Corpo de mulher, cabeça de touro. Uma mescla de pavor
e de horror toma conta de mim. Meu instinto manda eu ir em frente. A
reta sempre me deixa desorientada, eu me perco e me encontro várias
vezes no meu próprio labirinto. Direita. Esquerda. Reto. Direita.
Esquerda outra vez. Chego à matriz – uma fonte luminosa. Mergulho.
Uma mão iluminada surge e me toca. Minhas mãos se tornam luz, assim
como o meu corpo inteiro. Na minha fronte, surge uma meia lua fixa e
brilhante. Em meu colo, um medalhão espelha meus olhos e me vejo:
— Não sou tão monstruosa quanto eu imaginava.

22
Sobre a autora:
CRIS ROSA é cearense, feminista e
graduada em Letras (UFC). Dedica-se à
escrita e ao artesanato. Tem vários textos
publicados em coletâneas e revistas
literárias, incluindo algumas edições da
Contos de Samsara. É autora do livro
metamorfoseAr...se (2023), obra poética de
produção artesanal e de publicação
independente. Integra coletivos de
mulheres escritoras. Está se redescobrindo
como uma mulher autista.

IG: https://www.instagram.com/crisrosa33/

23
Um Mês e Meio
Joana Rocha
Não saía há um mês e meio.

Primeiro, uma constipação, depois, fortes dores menstruais impossíveis


de ignorar. A morte do gato também não passou ao lado. Dias em casa,
no quarto, na cama.

Um mês e meio a tentar esquecer aquela palavra que ressoou no meu


cérebro como algo fascinante mas irremediavelmente perigoso.

Deitada, de olhos postos no teto, procurava uma boa desculpa para me


manter fechada em casa mais tempo. Desta vez, não a encontrei.

Para evitar partilhar um banco de autocarro e sentir olhares


reprovadores durante a viagem preferi ir a pé, mesmo que levasse o
dobro do tempo.

Regressei a casa extenuada. Mais um dia doloroso, como os outros,


desde há um mês e meio. As pernas, os braços, as costas, tudo doía e o
suor escorria pelo pescoço até desaguar num pequeno lago no umbigo.

24
Arrastei-me até ao quarto. Sentei-me na berma da cama, por fazer, e
deixei-me cair de costas.

Aquele dia tinha sido particularmente difícil, talvez porque, naquele mês
e meio, me habituara ao meu tempo e aos ruídos de uma casa vazia.
Durante esse período, evitei que qualquer som relacionado com o mar
se esgueirasse pelos ouvidos e que me fizesse lembrar o motivo da
minha reclusão. Olhava a ventoinha, tentando arejar os pensamentos e
continuar a fingir que não acontecera nada naquele dia.

Estendida, de braços e corpo esparramados, centrava-me agora na


dança que o meu cabelo fazia acima de mim com o ar do ventilador.
Lembrou-me aquelas tardes de verão à beira mar, quando o vento
soprava baixinho levantando a areia do chão.

Antes de me fechar em casa, há um mês e meio, o mar ganhou outro


significado. E aquela palavra, que quase consegui que se descolasse do
meu cérebro durante esse tempo, estava de volta.

Bastou voltar ao liceu por um dia para escancarar-se à minha frente.


Não tinha sido um engano, não tinha sido proferida numa conversa
paralela, foi-me dirigida. Cuspiram-na para os meus ouvidos, e
esfregaram-na com a boca na minha mente, até se formar uma espiral de
letras, e eu me deixar entrar num labirinto sem saída de bocas, ouvidos
e, no centro, a palavra.

Passei um mês e meio a tentar esquecer o tumulto de emoções que


aquele conjunto de letras me causava.

Adorava o mar e, por isso, apelidarem-me de baleia era quase um elogio.


Eram mamíferos belíssimos, grandiosos e podiam ser, também,
assustadores para quem os enfrenta num barquinho.

25
A mãe chamou-me para jantar. Ignorei-a e arrastei as banhas que me
caíam pelas pernas abaixo até à casa de banho.

Abri a torneira de água fria da banheira, que era grande como eu. Tinha
sido um presente dos pais, uma forma de me dizerem que podia
continuar obesa, que me aceitavam. Mas só depois de terem tentado
tudo para que o deixasse de ser. E ainda acredito que este presente teve
o dedo daquela psicóloga com quem pensam que eu não sei que falam.

A banheira já estava cheia. Coloquei um pé e depois o outro


agarrando-me com esforço ao corrimão até conseguir sentar o meu
corpo pesado sem escorregar.

Para cima e para baixo, para um lado e para o outro, ia fazendo a água
transbordar enquanto imaginava a beleza do fundo do mar.

Não o via há mais de sete anos, desde que a gordura se foi amontoando
toda por baixo da pele e que deixei de ter um fato de banho que me
servisse.

— Luísa, acorda querida ou vais atrasar-te. Tenho de sair, e o teu pai


já foi.

Com o sono a prender-me os olhos, esbocei um meio sorriso e agradeci


por me despertar.

O sol já ia alto quando consegui colocar o meu corpo fora de casa.


Segui pelo passeio estreito, pois não havia outro. Mas não me queixava,
suportava as dores nos tornozelos, nos joelhos e nas costas com alguma
determinação.

26
Embora fosse outubro, estava quente. Felizmente, algumas nuvens
cobriram o sol, estendendo-me um caminho menos penoso. Observei
as casas vizinhas e numa varanda vi um gato parecido com o meu
falecido, branco com uma mancha preta no olho. Por um momento,
senti alguns remorsos.

As pessoas que passavam por mim desviavam-se e, como sempre,


olhavam-me como se fosse uma aberração. Desta vez, não desejei ser
uma formiga e desaparecer num buraco da calçada. De cabeça erguida,
sentia, orgulhosamente, as minhas carnes balançarem para a direita e
para a esquerda como se tivesse colocado o mais belo vestido de baile e
por cima os meus compridos cabelos esvoaçavam, formando um manto
inquieto que me cobria as peles.

Ouvi as gaivotas e estremeci. Depois vi-o e os meus lábios sorriram,


como se umas estacas os tivessem puxado de repente para cima.

Desci as escadas e senti a areia penetrar entre os dedos dos pés.

Respirei fundo.

Olhei em redor, e a praia estava vazia. Pela primeira vez, tive pena de
não ver ninguém à volta, logo naquele dia em que me sentia tão bonita.

Empurrada pelo vento salgado, continuei. Atrás, ia deixando restos de


mim, depositados nas pegadas que gravara na areia.

Finalmente, senti o mar galgar-me as pernas. Estava gelado e revolto.

Continuei até ter água pelos ombros. Levantei os pés e senti a ligeireza
do meu corpo dentro da água. Há muito tempo que não me sentia tão
leve, tão livre. Podia apenas ser. Sem peso, sem forma, sem dor.

27
De olhos fechados e ouvidos cheios de gaivotas, sorri com a boca toda
e mergulhei. Emergi. Olhei para trás, ao fundo a praia e o rasto de
espuma que as barbatanas formavam. Ia ter saudades de algumas coisas.
Mergulhei.

Sobre a autora:
JOANA ROCHA nasceu na ilha Terceira,
Açores, em 1980 e vive em Lisboa.
Licenciada em Serviço Social, pós-graduada
em Migrações, Inter-etnicidades,
Transnacionalismo e em Mediação
Familiar. Trabalha na área social e de saúde
desde 2004, exercendo funções de
coordenação, assistente social e
supervisora. Apaixonada por literatura, tem
publicado contos em revistas digitais. Em
2023, foi uma das vencedoras da 3ª edição
do Prémio Literário Luís Vilaça, com o
conto “O céu de Gracinda”.

IG: https://www.instagram.com/joana.rocha.80/

28
Linhas do Tempo
Luciana J. Morais
As mãos que costuram são os olhos;
As agulhas, o pensamento;
O tecido, o próprio ato de existir.
Andreone T. Medrado

Três pares de mãos e a tessitura. A linha que une as gerações é a linha


que tece a vida. Simboliza e significa a existência. A família. A história
escrita no movimento das agulhas expõe as belezas, curas e amores. Faz
a volta, passa por dentro, ajusta o nó na agulha, passa por baixo, laça e
volta, entra por cima... Repete. De novo. Até compreender. É a
meditação das mulheres desde sempre. Algo mágico e simbólico
acontece. O gesto manual de tecer apresenta um registro das marcas da
genealogia feminina. A entrega e conexão ao movimento é a
possibilidade de ressignificar a subjetividade.

A avó Maria aprendeu com a mãe, Maria, que aprendeu, por sua vez,
com a mãe dela, Maria. A tia solteira, Maria, também ajudou. As irmãs e
as primas faziam a mesma coisa. A hora do bordado como círculo
sagrado, entrelaçava, não só os fios, mas as tramas de todas as mulheres
daquela linhagem.

29
A avó tecia como as Moiras. Acreditava em uma profunda e misteriosa
lei que regia o destino de todos os homens. O trabalho não podia ser
desfeito. A sina é irrevogável. Assim como as Moiras, filhas das
profundezas da noite, a avó continha a sabedoria do poder mais antigo
do Universo, a força da ancestralidade.

— Maria, vai junto com as irmãs preparar o enxoval. Com tantas


mocinhas na casa, já vai ter casamento em breve. — Lembrava a mãe da
aceitação da vida.

E Maria seguia o destino. O matrimônio era o sonho possível para sua


época. Casou-se com um primo distante que a sorte uniu numa festa
tradicional da cidade. Apaixonaram-se e logo recebiam as bênçãos das
famílias. E suas vidas foram bordadas de alegria e amor. Nasceu
Mariana, filha tão desejada. Mas como há uma força invisível que parece
precipitar repentinas mudanças, Maria viu-se viúva com poucos anos de
casada. Fez seu luto e teve forças para seguir e criar a filha envolta em
atenção e cuidados.

— Mariana, vem cá, vamos bordar juntas uma linda história? —


Lembrava a mãe do encanto da vida.

A tecelagem unia mãe e filha, mais uma vez ressignificando,


entrelaçando e criando, como sempre.

Mariana cresceu com muita gratidão a tudo o que pôde ter. Era terna e
grata a Maria, que a criou sozinha, sustentando a sua verdade e o seu
sentimento.

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Mariana viajou o mundo e conheceu muita gente. O coração romântico
soube quando encontrou o amor no labirinto da gótica Catedral de
Chartres, na França. Mariana tecia com o fio de Ariadne. E chegou até o
escolhido pelas linhas da imaginação. Desta viagem, nasce um
compromisso feliz e Marina, o fruto dos que se conheceram em um
caminho simbólico que conduz o buscador ao seu próprio centro e
depois o leva de volta para o mundo.

Pelos labirintos da vida, os fios conduziram Mariana e Marina vida afora


em narrativas de afeto, rebeldia e subversão. A geração de Marina, mais
autêntica, desbrava o mundo costurando experiências, dissabores,
aventuras e protestos.

Marina tornou-se independente, teve muitas oportunidades e sentia-se


livre e feliz. Com uma forte imaginação criativa, era muito intuitiva.
Observadora e centrada, possuía energia suficiente para ir além da
trama, e sentia sua tecelagem como um caleidoscópio de infinitas
possibilidades, cores e formas.

— Marina, me conta da exposição na Holanda com seus mosaicos de


tecidos. — Lembrava a mãe da arte da vida.

Marina tecia como Penélope. Fazia e desfazia. Usava a sua esperteza e


intuição não para esperar por alguém, mas porque assim bem entendia.
Esperava pela hora em que apetecia fazer as coisas. E enquanto isso,
criava. Tecia e criava. O cuidadoso trabalho que resulta em algo maior,
novo, que não é a simples soma de diversos fios e tecidos unidos. E que
pode também ser desfeito.

Em Marina está Mariana e Maria. E ela tece, borda, costura, trama,


entrelaça, perde e acha o fio da meada. E no seu pano-texto cria as
próprias narrativas. Nas memórias contínuas de um tempo circular, a
herança latente e o atavismo feminino são os símbolos de uma
linguagem de outra ordem, que ela honra ao viver quem simplesmente
é. Marina. A viver as entrelinhas do tempo de Ser.

31
Sobre a autora:

LUCIANA MORAIS, revisora de textos.


Autora em plataformas digitais e
antologias. Tripulante do «Clube de leitura
Transatlânticos». Gosta de flores. Consulta
oráculos e toma chá. Medita e faz
artesanato. Vegana e mãe de dois
adolescentes incríveis. Brasileira que vive
em Coimbra desde 2020.

IG: https://instagram.com/luciana_jacome_morais?
utm_source=qr&igshid=OGIxMTE0OTdkZA==

32
Nada é como antes
Chirles Oliveira
Depois de 20 minutos, enfim surgia o garçom com o vinho bordô que
as moças pediram. Uma delas usava o celular compulsivamente,
ignorando completamente o assunto em pauta na mesa.

As outras três amigas permaneceram com os aparelhos sobre a mesa,


com a tela virada para baixo, conforme haviam combinado.

— Solta esse celular! Combinamos que sairíamos como nos velhos


tempos apenas se celulares e homens ficassem longe de nossas mãos.

Uma das amigas revirou os olhos.

— O celular consigo deixar longe, mas homem também já é pedir


demais. Ainda mais com um garçom lindo como esse.

— Nossa! Você não deixa passar nada. Não perdoa nem o garçom.

Todas riram antes do brinde especial a elas e à vida que conquistaram.

A amiga que discutia com o namorado largou o celular e levantou-se


para ir ao banheiro com os olhos lacrimejantes. Pelo visto, aquela
discussão estava longe de acabar. As três que ficaram sentadas se
entreolharam e a mais ponderada do grupo, acenou com a cabeça para
que alguém fosse com ela, não deveriam deixá-la sozinha.

33
Enquanto isso, a atrevida não parava de se insinuar para o garçom
enquanto o rapaz servia a mesa ao lado.

— Você não toma jeito! Por isso vive com o coração em frangalhos. —
disse a amiga com um ar de superioridade e concluiu: — Quando irá
aprender a apreciar sua própria companhia?

— Ai... — soprou a outra franzindo o cenho — e você, quando


aprenderá a curtir o momento? Quem aguenta essa cara azeda o tempo
todo?

A amiga ignorou o comentário enquanto sorvia o último gole do vinho.


No alto dos seus quarenta anos, comentários como aquele não a
incomodavam mais, sabia onde estava e onde desejava chegar, era o que
lhe bastava. Por muito tempo havia permanecido presa em um
emaranhado de relações inúteis, as quais não agregavam nada positivo à
sua vida. Mas, enfim, se libertara daquele labirinto emocional onde
desperdiçara parte de sua vida e agora, tudo que desejava é que suas
amigas também encontrassem a saída.

As outras duas amigas voltaram do banheiro sem entender o clima


hostil que predominava em torno da mesa em que deveria estar
acontecendo um reencontro feliz entre amigas de tantos anos.
Definitivamente, nada seria como antes, dez anos após o término da
faculdade e uma vez desfeito aquele "quarteto fantástico", os interesses
eram outros. Suas cabeças também estavam voltadas para direções
diferentes, não adiantava tentar reatar laços. A vida seguia seu fluxo e
cada uma delas seguia seu próprio caminho.

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Sobre a autora:
CHIRLES OLIVEIRA nasceu em
Itarantim, Bahia. Reside em Vitória da
Conquista. É bacharela em Direito pela
UESB, licenciada em Letras e em Filosofia.
Especialista em Direito do Trabalho e
Violência contra a Mulher e Docência no
Ensino Superior. É poetisa e escritora.
Membro da Academia de Letras do Brasil -
SP. Autora dos livros “Abstrações – Gritos
que ecoam da alma” e “O Reflexo Atual da
Subjugação Feminina”. Cronista do blog
Escritor Brasileiro e colunista na Revista
Escribas.

IG: Instagram.com/chirles.oliveira

35
Teodósio, o maior
Márcia Vieira Ávila
Teodósio era o mestre dos enigmas.

Não havia um único à face da Terra que ele não acertasse à primeira ou
decodificasse em três tempos.

Podiam complicar, podiam ainda complicar mais e sempre que


Teodósio era colocado num labirinto, sairia em menos do tempo
recorde pela outra ponta.

Sir John, seu mestre e tutor, passava horas a engendrar todas as


dificuldades, todos os expoentes máximos, tangentes e pontos falsos de
fuga, mas, dia após dia sentia um crescendo de frustração, pois como
cientista-investigador, não via em Teodósio o rato de laboratório que
sempre sonhara.

Por outro lado, Teodósio todos os dias se olhava ao espelho e sentia


que todo o universo olhava e zelava por ele. Sentia-se o mais astuto e
perspicaz rato da história.

Um devorador de enigmas não se apoquenta com novos desafios e


viessem eles em que formato viessem, Mestre Teo (como gostava que
os amigos o chamassem), olhava com os olhos semicerrados; apontava
o seu pequeno nariz para o mais longe que conseguisse do seu felpudo
corpo e cheirava. Inspirava profundamente. Sentia de onde vinha o
vento. E, numa primeira tentativa, saía de imediato do labirinto.

36
Terça-feira de manhã e todos os cientistas que compunham a equipa se
reuniram de urgência de modo a decidir o futuro de Teo.

‘um rato velho que já as sabe todas’

‘rato matreiro que não queremos que influencie os demais’

‘rato que mais parece um bruxo sabido’

E por aí iam as injúrias até se aperceberem que Teodósio estava


petrificado a olhar para eles à porta da gaiola. De mãos descaídas, de pé
nas patas de trás e de boca aberta, incrédulo com o que acabara de
ouvir.

Se não fossem crentes na ciência que estudaram anos a fio, iriam jurar a
um Deus em que não acreditavam que Teo os olhava, os ouvia e os
percebia.

Na manhã seguinte, repararam que a porta estava aberta, gaiola


escancarada. A velha mala tinha desaparecido e com elas todos os
pertences do inquilino mais antigo e mais respeitado de que aquele
laboratório alguma vez tivera memória.

37
Sobre a autora:
MÁRCIA VIEIRA ÁVILA nasceu nos
Açores, estudou Arquitectura e Fotografia
em Lisboa. Cake Designer com marca
própria há mais de 10 anos. Actualmente
faz parte da Equipa Técnica do Espaço do
Tempo. Autora e ilustradora do livro
‘MARAVI a menina da ilha’, 2022.
Cronista e membro da direção no Repórter
Sombra e na Revista Internacional Aorta.

IG: https://www.instagram.com/marcia_vieira_avila/

38
Juntos somos
distância
Rosa Morena
Os sapatos ficaram prontos. Sei que não cabem mais. Percebeu, não foi?
Gostaria de emoldurá-los. Pareceria estranho? Eu poderia olhar para
eles e lembrar que um dia fui feliz.

Está novamente desenhando muros? Acho sem graça. Gosto mais


quando vejo casas em sua prancheta, ou jardins.

Quando acabar pode ir ao sapateiro? Os remédios me deixam tonta,


melhor não sair.

Sua mãe não entende por que nos casamos. O filho de ouro dela, com
uma mulher que se dedica a cuidar de suas tempestades. Tem razão.

Quando está desenhando acho que não me escuta. Antes tinha mais
tempo. Fui eu quem estraguei tudo. Os doentes atrapalham os sãos.

Devia pensar em fazer um escritório para você. Para um arquiteto não


seria problema desenhar paredes de vidro, resistentes a qualquer ruído.
Impenetráveis.

Acha que um dia vou melhorar? Não ser mais a louca da família? Ficaria
sem graça, estou acostumada a esse rótulo.

Então, pretende ficar. Ouvi a conversa com sua mãe, no domingo. Na


saúde e na doença, levou a sério as palavras do padre.

39
Agora, consegui sua atenção, deixou vazar um quase comentário.
Cuidado para não comprometer a estética do desenho. Ia dizer algo que
me magoasse? Os seus olhos castanhos ficaram verdes. Está chateado
comigo? Ontem, estava cansada para... deixa para lá. Tenho medo de
perder você. Benditas as palavras do padre Roni.

A sua barba está cobrindo os lábios. Isso me incomoda. O médico disse


que sou bipolar, falou como se estivesse com pena. Sabia disso?
Lembrei, pediu a sua mãe para ir comigo à consulta. Ser bipolar, devia
ser motivo para anular o nosso casamento. Você foi enganado. Tenho
defeito de fabricação.

Vai colocar jardineira na frente? Ah, lembrei, você não gosta de árvores.
Dão muito trabalho. Concreto em primeiro lugar.

Reparou como minha vida é apenas contemplação? Estou pensando em


emoldurar os sapatos, assim como fiz com o violão quando o coloquei
na parede.

Não gosto quando você fica indiferente, enquanto tento encontrar uma
saída do meu labirinto.

Quando terminar, Casmurro, pegue os meus sapatos.

Ah, seus muros são elegantes. Menti.

40
Sobre a autora:
ROSA MORENA é natural de
Itapipoca-CE. Graduada em
Pedagogia com especialização em
Organização e Gestão da Educação
Básica. Autora de dez livros entre
poemas, contos, literatura infantil e
infantojuvenil.
Artista visual que transita pela
colagem e aquarela. É coordenadora
do Clube de Leitura Conversa e
participa do coletivo Mulherio das
Letras Ceará.

IG: https://www.instagram.com/rosamorena_escritora?
igsh=cnc1OWg1bWhtOGNp

41
O Inverno da Vida
Paula Campos
A pequena vila não passava de uma estrada relativamente estreita que
serpenteava pela serra acima, recortada por cerca de meia dúzia de
ruelas à direita de quem a subia.

O caminho não tinha sido fácil. Perdidas no labirinto de estreitos


caminhos, que ora subiam ora desciam, sem fim à vista. Era assim que
Clara sentia a sua vida ultimamente. Para qualquer lugar para onde se
virasse não vislumbrava uma saída. O trabalho, o companheiro, a vida
financeira, tudo fugia ao seu controlo. Emaranhava-se nos problemas,
sem encontrar solução. O que lhe faltava era um fio de Ariadne, que a
guiasse.

Ao chegarem à pequena praça da Câmara Municipal, estacionaram o


carro e saíram para fruírem do tímido sol de inverno que tão bem sabia
depois de um longuíssimo mês de chuvas intensas e nuvens negras.

Atravessaram o jardim, atapetado por calçada portuguesa e canteiros de


relva verde e bem aparada, passando por alguns bancos de madeira e
árvores recentemente podadas, até ao gradeamento que protegia a praça
do precipício da serra, que descia em escarpa ainda húmida das últimas
chuvas. Sentaram-se nos bancos individuais de pedra que cortavam as
grades de ferro a apreciarem a paisagem. Um deslumbramento. O rio
corria, em baixo, separando a estrada estreitíssima do lado de cá da
pequena praia fluvial do lado de lá. A língua de areia dava rapidamente
lugar à serra que subia, sinuosa e íngreme, até se perder de vista.

42
O velho surgiu de um dos cantos do jardim, junto à pastelaria,
privilegiadamente situada mesmo junto à ravina. Andava na direção
delas e ali parou, procurando conversa.

— Então vieram dar uma voltinha. Não são de cá.

Francisca, pouco dada a falas com estranhos, ofereceu ao homem um


sorriso desencorajador. Mas Clara retorquiu:

— Não, não somos de cá. Viemos passear e apanhar sol.

O homem aproveitou a abertura e por ali ficou à conversa. Era alto e


bem constituído. Apesar da idade avançada e da bengala em que se
apoiava, mantinha uma postura direita e olhava-as nos olhos, sem
constrangimento nem arrogância. Contou uma ou duas anedotas,
declamou uns versos populares sobre a vila e, depois de uma brincadeira
sobre o cemitério que se avistava do outro lado, aconselhou-as a
visitarem o Penedo de Castro.

— Só falta a neve para aqui termos as montanhas da Suíça.

Estranharam que um homem claramente nascido naquele lugar


soubesse alguma coisa sobre as montanhas da Suíça.

— Fui camionista de longo curso, durante muitos anos, conheço a


Europa quase toda.

E assim lhes foi falando da vida preenchida que levara. Viagens,


mulheres, negócios… Ouviam-no, estupefactas. Não sendo literato, o
homem era um excelente conversador, tinha um discurso fluente e
conhecia o mundo.

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Ainda lhes falou sobre a sua juventude, quando trabalhava na cidade a
uns escassos vinte quilómetros da vila. Puseram-se a imaginar como
seria a viagem, feita de bicicleta, em pleno inverno, por uma estrada em
condições péssimas. Contou-lhes, orgulhoso, como tinha salvo, uma
vez, a vida a um conterrâneo que sofrera um acidente, junto ao rio. Uma
época em que a morte ainda era uma tragédia e em que poucos morriam
sozinhos.

Clara sentiu que também aquele homem deveria ter vivido uma vida de
labirintos. A tranquilidade com que falava mostrava que soubera
escapar-lhes.

A conversa foi esmorecendo e as duas mulheres despediram-se.

Uma pequena volta de carro até fora da vila e, ao retornarem pelo


mesmo caminho, voltaram a ver o velho que descia a estrada, ainda
perto da praça onde o tinham deixado.

Clara fixou-o pelo espelho retrovisor. A imagem daquele homem, agora


velho e sozinho, mas outrora cheio de vida, juventude e força
acompanhá-la-ia durante toda a viagem. Também ela, um dia, seria
assim. Um corpo em que ninguém reconheceria a mulher de agora. E o
labirinto da sua vida transformar-se-ia numa lembrança para contar a
um estranho com quem se cruzasse.

Como seria o inverno da sua vida?

44
Sobre a autora:

PAULA CAMPOS nasceu em Coimbra. É


professora de Português, porque adora ler
e escrever. Publicou, durante cinco anos,
num jornal local, é cronista no Repórter
Sombra e dinamiza atividades literárias em
colaboração com bibliotecas da sua região.
Tem vários textos publicados em
coletâneas e revistas.

IG: https://www.instagram.com/anapaulahortacampos/

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A dor não sente
nossos corações
Charles Pena
Pai! Papai! Papai passou rápido, nem me viu, nem um beijo, ele sempre
me beija quando sai. Que que aconteceu com ele? Num giro de pião ele
sai, passa por mim, sai sem me beijar no rosto.

Penso sou estata?, sou pantasma? Muitas perguntas arrebentam na


cabeça, mamãe chega, não responde, não me vê.

Bota a mão em mim, meu ombro sente o peso, “papai tá grogue, mãe!?”
pergunto.

Vejo seus ombros se moverem, imito pra aprender, calada tava, ficou,
tiro sua mão, entro na frente, olho de remela, vermelho, um brilho
diferente, chorou! Chorou! O pensamento é pólvora pronta a explodir,
cai como bomba, tenho vontade de chorar.

Seguro o choro, ele sempre falava, “segura o choro, seja forte, menina!”
Porque ele não volta e fala pra mamãe também ser forte, parece a
torneira lá de casa, pinga-pinga gotas sorrateiras, eu subo na cadeira, fico
do tamanho de mãe, olho.

De longe, o corpo dele em zigue-zague pega distância, zagueia no meio


do povo, da festa, tromba em um, em outro, para na parede, nada de
desculpa, minha mente vê um labirinto se formar entre nós.

Para na parede, põe as mãos nos ouvidos, segura, aperta, sei bem disso,
sei de sua dor, do barulho de cão na cabeça dele.

46
Mamãe me olha, de olhos vermelhos, cheios d’água, arranca mão nos
olhos, esfrega, esfrega, as mesmas dores parece gritar ali nela.

Num instante, abraça o próprio corpo na intenção de ver o sentimento


ir embora, enquanto eu não tenho dores, não as deles, nem as minhas,
achava legal não sentir, nem desejava a droga de dor estranha deles.

Não tentendia nada, notar a dor, tudo não passava de uma vontade
escondida em mim, entender e sentir o mesmo mal, ser agraciada como
dizia a mãe, por não ter dores, não sentir nada é benção.

Não sabe o quanto eu sonhava em ter, sentir? Mas não tenho, não sinto.

Diagnosticada com disfunção celular, disse o médico, as células da pele


não conversam com o cérebro, por isso não tenho dores no corpo, não
sinto nada.

Minha mente é um labirinto onde a dor se perde e não encontra as


pontes para eu sentir.

Sem dor, eu tripudiava da vida, dos cortes no corpo, e muitas vezes era
internada às pressas.

Já caí de febre alta, de estômago cheio, gases, mas dores, não, nadinha
de nada.

Outro dia, peguei os dois chorando sentados no quarto, ele com os


fones no ouvido, choravam juntinhos, duas torneiras abertas na cama.

Ele olhava os exames, eu não sabia se era dele ou meus, olhavam,


balançava no ar, virava de lado, a cabeça ia junto, e chorava por horas.

47
E, quando entrei, os dois fingiam rir, gargalhar, já sou grandinha, tenho
sete anos, pode contar, pensei, para eles eu contei uma piada, eles caem
na risada quando falei isso.

Bem sei, não existia piada alguma, eu era a piada.

Enquanto a dor não vem, cresço, arrumo namorada, e caso, e chego na


igreja.

Não entro, não dá certo, não planejo ter filhos, eles não terão minha
maldição? Mas minha namorada almeja fazer inseminação.

Não pretendo! Grito quando me propôs isso, não darei ao mundo outro
rato de laboratório, não.

Uma criança neste mundo, amarrada a fios, fios entrelaçados desfilando


energia, assando o cérebro, ardendo os neurônios nas máquinas de
ressonância.

O corpo todo marcado, não daria esse luxo aos cientistas e médicos,
ninguém mais poria fios em mim ou na minha criança.

Desisti na porta, vi o semblante grisalho, os olhos faiscavam, o braço


pronto para me levar ao altar, sonho despedaçado.

Me abraçou, me ouviu, balançou a cabeça, sentamos na escadaria da


praça, choramos.

Choramos feito duas crianças abandonadas à própria sorte, repletas de


nada, ele pôs os fones, eu sem dor alguma chorava, as lágrimas
transbordavam, rasgavam do fundo do peito.

Abracei meu velho, apertei. “Eu te amo, papai.” Ele já sabia, beijou
minha testa, usou-me de escora, levantou com a dificuldade, arrastou-se
à avenida.

48
Ali, parou e nossos olhos se encontraram, nossos sonhos se uniram
naquele momento, algo foi dito, sem som, sem vibração alguma no ar.

Percebi, era tarde, sem tempo, dor, força, somente lágrimas cuspidas
dos olhos quando nos encontraram.

Mamãe sabia que, no fundo, ele tinha desistido dos sons da vida há
muito tempo e perdida esperei me chamar.

Mas, não me chamou, mamãe veio, sentou-se ao meu lado, chorou,


chorou igual a nós. Quando vi, a dor invadia meu peito, senti o peito
roer, o músculo cardíaco se dilacerava, se cortava por dentro, se
contorcia igual à malabarista no picadeiro.

Meus olhos brilharam, pude enfim sentir as mãos de minha mãe em


mim, me apertando, aquilo doía, senti as gotas saltarem dos olhos mais
fortes.

Senti o vento gelar os ossos, o cheiro das coisas à minha volta, sentia o
perfume de mamãe me envolvendo.

O ranger do chão à nossa volta quando os ônibus passavam, olhei e quis


dizer à mãezinha, no entanto, de olhos enterrados no chão, nem
percebeu meu sorriso.

Seus olhos se perdiam nas entranhas do piso malformado, não pude


dizer, nem após o enterro.

Quando volto para casa, as lembranças alegres estão lá na oficina,


chego, sento na poltrona, puxo o cheiro, o odor do estanho misturado
ao dele, o ferro de solda cheio de pó, de restos do produto de seu
trabalho.

Mamãe morreu, fiquei.

49
Sobre o autor:

CHARLES PENA SARAIVA é pai,


contista e servidor público municipal da
cidade de São Paulo. Pratica crossfit e
corrida. Escreve ficções depois que sua
filha dorme.

IG: https://www.instagram.com/charlespsaraiva/

50
Vestígios
Cidinha Ribeiro
A velha Tereza ruminava lembranças, passagens antigas da vida em
declínio. Cada vez que escapuliam da mente e pulavam em seu colo, as
histórias reais tremelicavam.

Os ouvintes se dividiam entre os desconfiados, os crédulos, os sem-


nada-a-dizer-para-não-serem-chamados-de-desalmados, os irônicos, os
sem dó nem piedade, estes os mais inconvenientes, porque desmentiam
os casos ouvidos no instante da narrativa.

“Conheci Lia no seu aniversário de quinze anos, e nos tornamos


grandes amigas. Ela usava saia jeans e blusa curtas. Sua barriga estava
sempre à mostra, o que incluía o umbigo – charmoso feito ele só. Lia
pedia à mãe para trançar seu cabelo e deixar uns fios soltos no arremate.
Não gostava de sua trança presa. “Amarras não combinam com meu
espírito libertário”, justificativa apresentada para o pedido.

Eu sempre via os pés de Lia calçados com rasteirinhas. Ela pisava com
leveza e saltitava sobre empecilhos deixados no caminho: ora ressaltos,
ora refugos jogados pelos desatentos. Ela saltitava feito dançasse e
caminhasse, caminhasse e dançasse.

Como eu, Lia gostava de sorvete de limão. Comprávamos dois e nos


assentávamos no meio-fio. Eu devorava, ela saboreava devagar. Dizia
que era para me deixar com inveja quando ela tivesse o que eu não tinha
mais. Mentira, ela sempre dividia comigo a parte final da economia doce
e gelada.

51
Minha amiga cultivava a delicadeza. Ela gostava de borboletas, de olhar
estrelas, de escrever versos sobre quase tudo. Carregava consigo um
bloco de notas para não perder as possíveis inspirações. “Um dia, serei
poeta de verdade”, a convicção dela se dispondo a me convencer da
certeza. E eu acreditava mesmo nela, com fé.

Aos vinte anos, Lia foi estudar no exterior. Tornou-se uma cientista de
fama internacional, ganhou prêmios merecidos. Senti muito falta, mas
sempre me lembro dela com orgulho. Minha amiga querida, onde está
você?”

“Conheci Lia no aniversário dela de dezoito anos. Ela usava roupas


formais demais para a idade: mangas, cores neutras, comprimento só
alguns dedos acima do joelho. Dizia que estava se preparando para ser
uma empresária de respeito. Nunca entendi a relação entre o presente
da minha amiga e o futuro extemporâneo da profissional. Até saltos
altos ela usava. E tropeçava.

Lia sempre pedia à cabeleireira para cortar seus cabelos bem curtos.
Valorizava a praticidade e desdenhava a informalidade excessiva de
outras garotas da mesma idade. Achava distintas as mulheres bem
penteadas, e os cabelos curtos facilitavam a elegância.

Minha amiga não gostava de comer em locais públicos e abertos.


Levava, para saborear em casa, o sorvete de limão que ela amava.

— Fast-food comido no banco da praça? E os cães famintos e sujos, as


bocas coloridas com catchup, os olhares desconfiados dos olheiros de
plantão? Comer fora de casa só seguindo um ritual. Para não se tornar
um ato vulgar, entende, amiga?

Lia se formou em administração pública e se tornou servidora pública.


Competente, sem dúvida, mas não empresária. Continuou usando
roupas discretas, saltos e comendo só em casa ou em restaurantes. Tudo
conforme o ritual instituído pela exigência.

52
Minha amiga querida, quanta falta sinto de você!

“Conheci Lia em seu aniversário de dez anos. Gostei tanto dela que
fomos as melhores amigas até ela se casar e mudar para outro estado.
Depois disso, continuamos nos falando, mas a relação se tornou
superficial. Nada de segredos divididos, de desabafos ao menor
desgosto, de juras de amor eterno. A vida de casada mudou seu jeito
irreverente e divertido de ser.

Lia era uma garota arteira e criativa em suas maluquices. A mãe insistia
em transformá-la em uma princesa com vestidos vaporosos, laçarotes e
sapatinhos finos e delicados. Ela insistia em usar shorts sujos, meiões
dos irmãos e tênis furados, em jogar bola na rua, em falar palavrões e
em sujar a roupa com o sorvete de limão, que ela amava.

Minha amiga e eu nos assentávamos na mesma carteira dupla na sala de


aula, e eu me divertia com suas artes. Até me oferecia para ficar de
castigo com ela, por considerar justo dividir o castigo depois de
tamanha diversão gratuita. A professora nunca aceitou o oferecimento,
mas carrego comigo a frustração pela negativa.”

Lia, minha amiga querida. Quanta saudade sinto de você!

Lia existiu de fato? Ando tão esquisita... Acho que estou envelhecendo.
Aos poucos, mas estou mesmo ficando esquecida — ruminações de
dona Tereza buscando resgatar a amiga perdida nas imagens distorcidas
do passado.

O labirinto da memória não tem setas indicativas da saída.

53
Sobre a autora:
CIDINHA RIBEIRO é mineira,
canceriana, paisagista e artesã. Mãe de um
casal, é avó do Rafael e do Miguel, seus
grandes encantamentos. Escreve desde
menina, tendo publicado seu primeiro livro
em 2015. De lá para cá, publicou outros
quatro: contos, crônicas e agora um
romance polifônico, nem um pouco
tradicional. Tem participações em
antologias físicas e virtuais e escreve para
revistas.

IG: https://www.instagram.com/umasenhoraescritora/

54
O Labirinto de
Espelhos
Olinda Pina Gil
— Quem quer, quem quer comprar o bilhete, para a nossa nova
atração? — apregoava um homem sozinho, sentado numa cadeira de
pau em frente a uma pequena mesa à procura de clientes.

As gentes começavam a chegar, acumulavam-se curiosas, mas por


muitas outras diversões, não aquela. Havia a montanha russa, o jogo de
tiros, a casa do terror… Era uma novidade para todos. Chegavam
famílias, casais de namorados, ranchos de adolescentes.

Foi no dia anterior de manhã que a azáfama começou. A feira de


diversões itinerante tinha chegado à vila, instalara-se num campo
abandonado, sem casas, árvores ou ervas, e tinham começado logo a
montar os equipamentos. Hoje, até pessoas de outros lugares vinham
até ali, curiosas, à procura de um dia diferente.

Mas o senhor continuava a apregoar sem que alguém parecesse dar-lhe


atenção.

— O senhor vende um bilhete para quê? — perguntei-lhe. Na verdade,


eu não estava ali por causa das atrações, mas por causa das pessoas.
Interessavam-me as pessoas, estudava como elas se movimentavam,
como se comportavam, o que faziam.

55
Eu ainda não tinha decidido se seria ator de teatro ou escritor. E
enquanto não decidia atuava nalgumas peças para ganhar algum e
tentava publicar contos em revistas obscuras que ninguém lia, e dos
quais não tirava qualquer rendimento. Tanto como ator como escritor
eu precisava de estudar as pessoas, e por isso estava ali. Sozinho e
distante como sempre.

— O meu bilhete é para um labirinto de espelhos. Ali, o seu reflexo dá-


lhe uma imagem diferente de si. Ali, pode ser uma mulher ou um anão.
Olhe que as pessoas costumam se divertir muito.

— Já vendeu algum bilhete? — atrevi-me a perguntar-lhe.

— Hoje não. Aqui as pessoas não parecem interessadas na experiência.


Mas em muitos locais esta tem sido uma das nossas atrações mais
visitadas.

O que eu queria mesmo era saber como as pessoas se iriam comportar


naquele labirinto. Mas sem ninguém lá dentro não seria interessante
para mim. Era mais interessante aquele homem, numa situação
daquelas.

— Vou comprar-lhe um bilhete e depois de dar a volta à feira regresso,


pode ser que até lá as pessoas comecem a interessar-se.

Não sei por que comprei o bilhete, talvez não viesse sequer a utilizá-lo.
Será que eu tive pena do homem, e fui naquele momento solidário?

Percorri a feira, vi os seus divertimentos, observei as pessoas. Comi uma


bifana acompanhada por uma cerveja. Olhei a forma como as famílias
interagiam, os namorados se seduziam, os adolescentes partilhavam
segredos.

Depois regressei, com o bilhete entre os meus dedos, para perto do


labirinto.

56
— Então, nada? — perguntei.

— Estamos na mesma — respondeu o vendedor. — Demorou tempo,


esteve a comer? — perguntou-me como se me conhecesse há muito
tempo.

— Sim, petisquei qualquer coisa.

— Se não tem mais nada para fazer, use o seu bilhete — sugeriu-me.

Que mal poderia haver num pequeno divertimento? Espelhos não eram
comigo, nunca se sabe que reflexos nos podem devolver. Como se
olhasses para um quadro que guardasse os teus piores segredos.

— Tem mesmo a certeza de que noutras localidades esta atração teve


muito sucesso?

— Então não? É mesmo pena não estar aqui um jornal com a notícia,
ou um habitante doutras paragens que confirmasse. Mas tem a minha
palavra, garanto-lhe.

Também não gosto muito de labirintos. Imaginava sempre labirintos de


sebes do século XVIII onde se cometeriam crimes de homicídio.
Labirintos de espelhos nunca tinha ouvido falar de nenhum, mas não
podiam augurar boa coisa.

Resolvi entrar. Prometi a mim mesmo que num instante verificava


aquela atração e que depois iria logo para casa. Também já não havia
mais nada o que fazer.

57
O primeiro reflexo devolveu-me um palhaço. Talvez aquilo que eu
tenho sido em vida. O segundo a minha pessoa desfigurada em
canalha, na verdade o resultado das minhas atitudes com os que me
rodeiam. O terceiro reflexo não tinha cabeça. Levantei-me, agachei-me,
sem que a cabeça aparecesse. Ora, a minha cabeça era algo em que eu
confiava, não me sentia satisfeito em que desaparecesse. Não havia
bailarinas, nem anões, nem animais monstruosos. Estava na hora de
regressar a casa.

Achava eu.

No quarto reflexo vi, finalmente, alguém ali comigo. Um reflexo rápido,


nem cheguei a ter tempo de me virar e defender, encapuçaram-me num
instante. Depois bateram-me com algo duro, dobrei-me sobre mim
mesmo perante a dor. Já não sabia se era apenas um atacante, ou mais.
Ouvi a voz do vendedor a rir alto. Eu sabia que um labirinto de
espelhos nunca podia ser boa coisa. Era uma armadilha.

Sobre a autora:
OLINDA PINA GIL estreou-se na
escrita no “DnJovem”, suplemento do
“Diário de Notícias”. Autora de “Contos
Breves” (2013), “Sudoeste” (2015) e de
“Sobreviventes” (2016) e dos livros infantis
“O Príncipe e o Lobo” (2022) e “A Menina
e o Circo” (2023). Para além de contos
publicados em ebook, tem colaborações
dentro e fora de Portugal. Foi agraciada em
vários prémios em conto e poesia.

IG: https://www.instagram.com/olindagil/

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Lar Açucarado Lar
Maryse Brito
— Labirinto morreu!

— ... de morte morrida.

— Não tem marca de tiro nem de faca.

— Teve um colapso!

— A mais bonita das mortes. Não dá trabalho a ninguém.

A boca do povo dizia. O acontecido se espalhava por aqui, por ali, por
acolá. Entrava pela porta da frente, disparava pelo quintal. Escapulia
feito vento ligeiro. Ficava um instantinho, coisinha pouca, nos ouvidos
das paredes. Ia se espalhando, se espalhando, fazendo levantar, de um
pulo só, os que não davam ligança aos pipocos do foguetório da
alvorada festiva. Quem já viu uma notícia ruim correndo, sabe do que
estou falando. A boca do povo dizia, dizia, dizia, e o povo corria, corria,
corria para a casa de Labirinto.

Eu espiava tudo de cima do barranco. Era gente vindo da rua do Fogo,


da rua da Linha, da rua do Banheiro, da rua da Baixinha, da rua da
Ladeira, descendo a Barriquinha. Gente vindo dali, de acolá e da Cajá.
Sebo nas canelas! Vindo do riacho de Ulisses, do pasto de Carlos Lanza,
correndo pelo cais, passando pelo pontilhão velho, atravessando o rio,
tomando topada nos trilhos, enfiando o arame na correia da percata.
Espera eu! Passando por cima dos arcos da ponte, apeando do cavalo
antes que o animal parasse...
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O povo, tirando as mulheres, foi se juntando. Não dava para escutar o
que falava. A boca da desolação é miúda. Tem morte que faz a gente
perder a fala. Eu espiava o movimento das cabeças se juntando,
formando uma meia lua ao redor do acontecido; os olhos que
esmiuçavam a plataforma da estação de trem desativada — o lar
açucarado lar de Labirinto.

Nada revirado. Tudo no lugar. A esteira de palha entre o corpo de


Labirinto e o chão frio; a coberta remendada que servia de travesseiro;
os pés de comigo-ninguém-pode e guiné plantados na lata de querosene
enferrujada; o caneco amassado emborcado na boca da moringa; a
caçarola areada com zelo; o fogareiro com brasas quase desmaiando; a
mesa dos santos (dois adobes e a tábua de uma penteadeira trazida pelas
águas do Jequiriçá).

— Foi capricho do santo!

— São Roque levou Labirinto e deixou Tainha. Poupou o bicho.

O focinho de Tainha enfiado no caco de comida, a língua de Tainha


lambendo o angu talhado pelo sereno da madrugada, os dentes de
Tainha nas lascas de “figo” doido, o pescoço de Tainha sem virar em
direção ao cochicho do seu nome.

Aos poucos, a curiosidade foi amornando, a cerca de gente foi se


desfazendo. O badalo do sino da matriz anunciou a primeira missa.
Antes de pegar o caminho de casa, o povo foi entrando no alambique
da esquina. O último gole na intenção de Labirinto! De dentro do
balcão, o dono apontou para a rua. Lá vinha, puxando a fila, o jegue
suado arrastando as tábuas presas à cangalha; no meio, os filhos
mabaços do carpina; por último, o carpina tangendo um, dois, três,
quatro vira-latas.

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— Ei, Carpina Cara Manchada de Bexiga! Labirinto merece um caixão
decente!

Eu nunca tinha presenciado o feitio de um caixão de defunto. Desci até


o pé do barranco. Cheguei mais perto para assuntar o sobe e desce do
martelo nas cabeças dos pregos. O carpina, concentrado na lida, pregava
as tábuas, limpava o suor que jorrava dos poros, não respondia a quem
lhe indagava, não reclamava dos mabaços que brincavam chutando o
caco de comida de Tainha. Martelo e pregos bem batidos. Tábuas
unidas, martelo e pregos bem batidos. O carpina não dizia uma palavra.
Tinha pressa e uma promessa a pagar. Assim que lixou a última quina da
tampa do caixão, ouviu os gritos esbaforidos de Chica Machefeme:

— A mortalha! A mortalha!

Dúzias e dúzias de foguetes anunciaram a saída da procissão. Faltava


pouco para as quatro da tarde. O andor de São Roque saiu da igreja. O
caixão de Labirinto saiu da estação de trem. Um desceu a ladeira da
igreja, o outro pegou o rumo da ladeira do cemitério. Mãos e ombros no
andor. Pega-solta-pega. Mãos nas alças do caixão. Solta-pega-solta.
Poucas mãos nas alças do caixão: as minhas, as dos bêbados, dos
mancos, dos bregueiros, dos poetas, dos sonhadores; a laia de gente sem
vergonha que vivia de entra-e-sai no “lar açucarado lar”, sem ligar para a
língua do povo. Língua do povo — chicote no lombo de Labirinto.

— Boa coisa não deve ser. Não tem procurador!

— Até hoje, ninguém sabe de onde veio.

Falando pouco e ouvindo muito; era assim que Labirinto vivia. Passava
horas e horas escutando o povo, tirando as mulheres.

61
— Amália... Amália de... Amália de Jesus — respondi ao coveiro.

Batizei Labirinto no instante em que o caixão foi arriado no fundo da


cova.

— Viva, aparentava ser mais leve — disse o coveiro, puxando as cordas.

— Segredo pesa mais que chumbo, coveiro. Mais que chumbo.

Saí do cemitério, dei um dedinho de prosa na venda de Matilde. Nada!


Nunca disse nada. Prometeu e cumpriu: levou todos os segredos para debaixo dos sete
palmos de terra. Desci a Barriquinha e fui pelo cais. O Jequiriçá seguia sem
pressa para o mar. Em frente ao obelisco, me deparei com São Roque
no seu passeio de todo ano. Subi os degraus da balaustrada para apreciar
a procissão do alto. O céu azul-alaranjado que recebia os cânticos, era o
mesmo que emoldurava o andor enfeitado com rosas vermelhas; as que
Amália mais gostava. Tainha latia?! Latia! E latia avexado, de olho no
andor, se embaraçando nas pernas dos fiéis, de olho no andor, se
embaraçando nas pernas dos fiéis. Tainha via Amália. Eu também via!
Eu via Amália juntinho de São Roque. Ela trajava o mesmo vestido de
noiva daquele cinzento dia de agosto em que foi largada na estação.
Acompanhei a procissão lembrando das poucas palavras que a boca de
Amália dizia e dizia:

— Amar é entrar de olhos vendados em um labirinto.

62
Sobre a autora:
MARYSE BRITO é baiana de Mutuípe.
Integrante do Mapa da Palavra da Bahia.
Tem textos em antologias e coletâneas.
Participa do Coletivo
Escreviventes. Em 2023, escreveu Cebola
e Sangue, poesia premiada na Antologia
Nós – Textos de Autoria Feminina , da
Selo Off Flip.

IG: https://www.instagram.com/isebrito13/

63
Faça-se o verbo
Deanna Ribeiro
Lá fora, avenida vazia. Aqui, alguma coisa rondando: sussurros quase
incompreensíveis; o sopro do vento vibra o vidro na janela; idiomas
desconhecidos, talvez já extintos. A compreensão só alcança o existir,
mas não o determina nem classifica.

Pode ser também que venha de dentro e queira explodir. Um nó na


garganta, a boca aberta no momento do grunhido que ainda não se fez
verbo, o pensamento fervente de imagens difusas. O que quer que seja,
de onde quer que venha, provoca, inquieta.

Sento diante da tela em branco, como muitas vezes antes, e — como


muitas vezes antes — não há palavra possível. A coisa não se mostra,
não se faz corpo. Por isso deixaria de ser? Estar aqui dentro ou
depositar-se desde lá de fora já não seria suficiente? Ela existe. Sim, ela
existe, ela é. Sinto sua presença pedindo que a interprete. Mas como?
Tenho apenas mãos, dedos e olhos para executar aquilo que não sei.

E o que posso dizer é do que me surpreende ao encarar a luz azul da


tela em branco. E desse sentimento de impotência diante do
desconhecido que não se mostra. Diante da coisa bruta, sem palavras
que tornem possível sua categorização.

64
Essa coisa amorfa me desafia a dizê-la, olha no mais profundo de mim,
não sem deixar escapar os dentes pelos lábios quase abertos, num riso
de lado. Talvez ela saiba da impossibilidade de materializar-se, ou queira
me levar a conhecer o plano em que o saber e o sensível se condensam
e formam um só corpo inseparável. Ou palavra seja o elo para o outro
lado, onde habita a compreensão.

Acontece que não sei chegar até lá. Meus caminhos falham entre a coisa
e o saber, têm buracos enormes, em que, uma vez se cai, mergulha-se
no vazio completo. Breu de confundir a alma. Labirinto sem novelo.
Cegueira de nascença.

Inútil dizer que não consigo. Ela insiste, vem e me desperta até que,
vencida, eu esteja de frente à tela sem saber. Ainda que seja madrugada,
ainda que me doam as costas, ainda que: ela queira corporificar-se.
Existir não basta, a coisa quer o concreto saber-se no mundo.

Sobre a autora:
DEANNA RIBEIRO nasceu no Recife
(PE), mas é olindense de criação e
formação. Graduada em Letras pela
UFPE, é autora do livro “Ao fechar os
olhos imagina a água" (Quintal Edições,
2024). Publicou em algumas antologias e
coletâneas e pode ser lida no Instagram
@deanna_ribeiro.

IG: https://www.instagram.com/deanna_ribeiro/

65
Bandeiras Rasgadas
Vera de Angelis
Quando o barco começou a afundar, a consciência de Arlindo foi se
misturando ao delírio. Enquanto pôde, reviu o vestido florido de Maria.
Imaginou o aroma do jantar nas panelas sobre o fogão e a mesa
arrumada com guardanapos de papel e copos de vidro. Uma lembrança
misturada ao tempo de menino e agora era a mãe, de vestido florido,
varrendo a calçada da praia.

Os peixes do dia foram escorregando do barco e devolvidos ao mar.

As mãos dormentes tentaram ainda se agarrar a algum pedaço de


madeira para tentar voltar à tona, mas a perna estava presa ao casco.

Um raio de sol penetrou na água cintilando as bandeiras rasgadas e


desbotadas do barco que jurava, todo dia, trocar.

Peixinhos enfileirados passavam por ele como crianças felizes a


caminho da escola.

O barulho do barco mergulhando se transformou numa voz distante e


familiar, mas não conseguia lembrar de quem. Não entendia o que dizia.
Era sua própria voz pedindo socorro no som deturpado pela água.

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Era como um pesadelo encharcado e infinito misturando memórias,
dores e alucinação: o canto de uma sereia, flores e algas se entrelaçando.
O vestido de Maria mergulhando com ele. Tão pouco tempo juntos.
Agora que o amor parecia ter dado certo na sua vida, ia ele, se perdendo
nas águas do mar sem fim.

Gostaria de voltar, mas o ar rareava cada vez mais.

Foi amolecendo e perdendo as forças.

Tentou pegar o vestido e se agarrar a ele para não morrer assim, tão só.
Ouviu o sino de uma igreja. Seu casamento, talvez. Ou um mundo de
fantasia submerso, com princesas e piratas.

O som foi se intensificando. Uma dor lancinante nos ouvidos. Os


tímpanos estourando. O labirinto, alagado, desgovernando para sempre
o seu equilíbrio.

Não ouviria mais a doce voz de Maria recebendo-o à porta:

— Vem jantar, meu amor. Hoje é dia dos namorados.

O vestido verde e florido esteve nela o dia todo. Trocou o uniforme de


gari por ele. O dia fluía com facilidade. Até o serviço colaborou. Pouco
o que varrer com a praia vazia, fora de temporada.

Tudo parecia perfeito em sua vida: o namorado, o emprego, finalmente


conseguido, e mil planos para o futuro. Quem sabe um bebê para o pai
levar a passear no seu barco? Com flâmulas novas, claro. Vivia
cobrando dele:

67
— Veja os outros barcos com suas bandeiras coloridas batendo
ao vento.

Mas nada poderia estragar o seu dia.

Voltou para casa com os braços já arrepiados do cair da tarde de


outono.

Foi direto para o fogão. Já tinha adiantado tudo: o peixe temperado na


geladeira, bastava pôr no forno. Arroz escorrido, cebola picada e
coentro à vontade.

A qualquer momento ouviria o assobio cansado dele. Saía de madrugada


para pescar.

O tempo foi passando e o frio aumentando também no seu coração. As


mãos geladas de preocupação. Bem diziam que esposa de pescador não
tinha sossego.

Vai ver foi acertar contas com o patrão. Entregar a feira do dia.

De repente bateram à porta. Já estava pronta para perdoar e enroscá-lo


num abraço apertado. Mas por que não foi entrando como sempre?
Decerto uma surpresa. Será que foi gastar dinheiro com bobagens para
mim? Não seria louco de amor assim.

Correu atender. Os passos leves. As flores do vestido se movimentando


com ela.

O sorriso se apagou quando viu os outros pescadores à sua frente.


Olhares tristes. Arlindo não estava entre eles.

68
Não foi preciso dizer nada. Agora sabia que ele não voltaria.

Foi preciso apoiar-se em alguém, aos prantos.

— Ainda não encontraram o corpo. Apenas pedaços do barco que


voltaram à superfície.

Um dos pescadores trazia um pedaço das bandeiras rasgadas que ela


tanto pediu para ele trocar.

Por mais feias que fossem, queria todas elas flamejando ao vento, no
barco do seu amor navegando em direção aos seus braços.

Sobre a autora:
VERA DE ANGELIS tem 69 anos, é
paulista e vive em Itatiba SP, há 17 anos.
Considera-se escritora desde os 16 anos de
idade, quando sentiu necessidade de
registrar em palavras sentimentos e
descobertas. Formou-se em Letras pela
USP, e foi bancária até se aposentar. Já
participou de seis edições da Revista
Contos de Samsara e adora seus desafios
que a motivam a escrever.

IG: https://www.instagram.com/veraldeangelis/

69
O Labirinto e a Corda
Celso Joabe
Na última vez que a vi, ignorei-a. Um objeto entre tantos, pensei, sem
importância. Abandonar a corda foi uma decisão contrária ao meu
espírito. Agora, enfrento os mesmos dilemas da vida, repetidamente,
como um banquete de sabedoria intragável. Entre redemoinhos de
enganos e arrependimentos, descubro a superficialidade do mundo.

Sigo em frente, cansado de encontrar curvas vazias, curvas que sempre


levam para dentro de mim. Não quero me olhar, enfrentar a persona
que criei, alimentei e já não posso mais sustentar. Minha respiração se
agita, minhas pernas se recusam a seguir, afinal, por que deveria?
Reclamei e amaldiçoei cada momento da falsa vida perfeita, almejando
qualquer coisa desde que fosse estar longe. Minha mente aceita o
destino, mas o meu corpo deseja aquela maldita corda; afinal, tem medo
do depois.

Reconheço minha superficialidade ao me preocupar com coisas triviais.


Como o sonho infantil de todos os mortais de poder morrer dormindo.
Preocupo-me com a posição em que meu corpo estará, como vão me
encontrar — bobagens, eu sei, mas isso me impede de desistir. Sigo
cada desvio, aceitando meus reflexos, confiando na sorte de que sei para
onde estou indo. Uma parede, vida sem saída. O prato de entrada do
banquete me serve o recomeço, o sentido de cada respirar. Odeio meu
erro, mas a vida não me deixa outra opção senão aceitá-lo.

70
Volto de onde vim, vendo outros cenários que são os mesmos. Minha
mente começa a divagar e criar rostos nas paredes; estou há muitas
horas sem comer ou beber. O tempo se esvai com aspereza e sadismo.
Meus passos, agora, me intrigam; andam como se fossem seres
separados de mim. Eu observo e descanso. Sinto o trabalho de cada
dedo, de cada articulação, e a contribuição do piso recebendo meus pés
descalços. Uma força divina me conduz para o julgamento. Sou levado
para longe da minha amada corda. Resisto. Grito. Meus pés me
ignoram, seguindo sua própria sabedoria. Entendo que eles têm seus
motivos, mas eu tenho os meus: preciso daquele pedaço de cipó, preciso
pedir, antes do meu último suspiro, perdão.

A saída deste labirinto pode estar nas fibras daquela corda. O caminho
para dentro de mim se guarnece nela, e nada é mais importante. Escuto
passos vindos de lugar algum. Me ajoelho em resignação. O prato da
resiliência me é servido. Custo a aceitar seu gosto amargo, o gosto de
estar só, de saber que não tenho um ombro para me apoiar, que meu
destino só depende de mim. Os passos ficam mais fortes, se
aproximam, assim como uma pulsão de vitalidade toma conta de mim.
Não serão meus passos nem os do desconhecido que irão me vencer; a
partir de agora, sigo rumo ao meu destino. Assumo o tédio das curvas
infinitas, das paredes com limo e do cheiro de mofo. Me divirto com as
nuances que cada momento tem por si próprio. Me acostumo com os
passos estranhos que são minha única companhia. A fome e a sede
ainda doem, mas aceito mais este prato do banquete. Escolho não
sofrer, não reclamar, apenas viver o desconforto que traz sua própria
sabedoria, evitada por aqueles presos em seus prazeres.

Entendo a tolice dos homens, algemados pelo medo da incerteza e da


dor que existir causa. Agradeço o entendimento de que a saída do
labirinto virá pela dor. Chegou a minha vez de servir a vida com o prato
mais nobre, ofereço minha gratidão por permitir-me perder neste
labirinto de ilusões, que oferece o contraste necessário para que eu
possa, por fim, ver. Neste estado de completude, a encontro, ali, em seu
lugar, à espera de minhas mãos. A corda da vida, da luz, do amor, da
paciência, da serenidade, do contemplar e do desapego, o mais
acrimonioso dos pratos.

71
Desejo que ela permaneça sempre comigo, prometi jamais a abandonar,
mas meus pés retomam sua marcha, conduzindo-me em frente. O chão
se purifica, o ar se torna mais leve, e os cantos dos pássaros ecoam
suavemente ao longe. Não sei se estou preparado para este novo
capítulo, apenas reconheço minha jornada diante do imponente portal.
Anseio por carregar minha preciosa corda em minhas mãos, para que
possa ser meu guia nos intrincados labirintos da vida, onde muitas vezes
o caminho parece sem saída.

Chego a um ponto de luz e ali a corda termina. Compreendo que devo


prosseguir sozinho; uma sensação de tristeza e abandono me envolve,
mas aceito o inevitável. Deixo-a escapar de minhas mãos com pesar,
sem antecipar a surpresa que está por vir. Um fragmento dela se
materializa em meu umbigo e uma voz suave murmura que, embora ela
seja arrancada de mim após cruzar o portal, o sinal de seu amor sempre
estará marcado em forma de cicatriz, guiando-me pelos novos
labirintos. Quando me sentir solitário e perdido, bastará olhar para meu
umbigo e a saída se revelará.

72
Sobre o autor:
CELSO JOABE é um músico
multifacetado que transita por diversos
gêneros musicais, como jazz, MPB, funk e
choro. Sua paixão pela música o levou a
mais de três décadas de experiência,
aprimorando suas habilidades no
Conservatório de Tatuí e se destacando na
cena musical de Assunção, no Paraguai.
Atualmente em Curitiba, Celso dedica-se à
cena instrumental, atuando como pianista
em diversos trios e quartetos, compondo
trilhas sonoras e compartilhando seu
conhecimento como professor. Sua
criatividade se expande para a literatura,
com a publicação do livro de contos
"Contos do outro lado" pela editora
Armazém de Quinquilharias e Utopias.

IG: https://www.instagram.com/celsojoabe_literatus/

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Apoena
Elaine Perez
Até nas profundezas dos infernos vejo as malditas texturas.

Mãe, percorri todo o lado leste do vale e esse cheiro de mijo de porco
dos seus ossos me embebedaram. Desgraçada, me pegou mais uma vez.

Meu peito arde. Tenho filas de pontos a sangrarem dessa pauta de dor.
Demônia dos infernos.

Com certeza me hipnotizou com o som de seu anel. Bimbalhar das


catacumbas. Som odioso. Me venceu.

Mais uma vez, me afastei dos sapatos luminosos para seguir essa música
de vaca no pasto. Sua vaca.

Eu vi os sapatos iluminados. Eu vi, ela veio. Os passos no chão deram


cor. Eu vi o rio do líquido vivo percorrer as valas. Eu segui. Meus olhos
me levaram.

Some no abismo, monte de ossos, porca fedida, vou arrancar o badalar


do seus dedos de punção afiada de ferro. Maldita.

Eu vi, passei pelas lajotas enormes com os buracos negros. Consegui


encaixar algumas peças no labirinto do vale das mães perdidas. O seu
cheiro me pegou.

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Como você consegue? Furos simétricos a perfurar meu peito. Odeio o
cheiro de urina. Nunca me esqueci.

Cada vez em que não chacoalhava como guizo falante e você percebia
minhas calças com pingos de medo, sentia suas mãos me furarem. Você,
maldita, contava, ponto por ponto. A umidade escorria de cada dedo.
Aprendi bem pequeno a contar os dedos das mãos. Vinte furos. Vinte
desgraçados dedos.

Amanheceu e você venceu. Passarei o dia com a camisa larga e escura.


São todas escuras. Tudo é escuro.

Se manchar ninguém verá. Os furos estancam rápido. Né, desgraçada?

A bengala é branca. Tem que ser. Café bem forte. A noite foi intensa.

Porque continuo a colocar esses óculos enormes? Você não está mais
aqui. Vai que eu assuste alguém no trabalho. Quem quer ver os olhos de
um cego? Vou jogar dominó com Soraia. Ela já consegue encaixar bem
os furinhos e combinar a quantia certa. Sua mãe me falou dos seus
sapatos vermelhos.

Eu vou conseguir. Vou chegar no outro lado do rio onde não há


texturas de defunta com cheiro de urina.

A noite logo se anuncia e o sono virá me chamar.

Vou cortar os dedos da boneca antes de dormir. Vinte desgraçados


dedos.

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Sobre a autora:
ELAINE PEREZ, nascida em
Sorocaba/SP. Educadora aposentada,
pesquisadora das infâncias, escritora e
compositora sorocabana. Escreveu as
obras: “Caminhos Poéticos de uma
educadora”, “Estudo poético da
Mediunidade”, “A pedra dos meus olhos”,
“Artmada”, “Na rede eu conto”,
“Arvoredo”, “Floral”, “Floral tradução”,
“Sabores que alumiam a alma”. Participou
de antologias de poesia e contos. Participa
de revistas. É integrante do Grupo o Ato
de Escrever, do Coletivo Escreviventes e
participa das oficinas com Mell Renault.

IG: https://instagram.com/elaineperezfo?r=nametag

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Minha Analista e Eu
Elena Chacon
É a terceira vez que passo neste mesmo lugar. Sei disso porque, de
tempos em tempos, coloco uma fitinha no caule de alguma planta para
fazer uma marcação. Mas é inútil; serve apenas como um efeito placebo
de esperança. Passo pelos lacinhos feitos do tecido rasgado da minha
roupa, finjo que não vejo. Faz tempo que não tomo banho, que não me
olho no espelho. Como devo estar? Um desastre… Será que as pessoas
ainda me reconheceriam, se me vissem? Improvável. Faz anos que me
prendi aqui neste labirinto. Me prendi, não, preciso aprender a ser mais
justa comigo. Me prometeram muitas coisas sobre esse lugar. Me
disseram que aqui eu teria controle de tudo, tudo mesmo, o tempo todo.
Me disseram que tudo sairia do jeitinho que eu quisesse, as pessoas
fariam os meus gostos, o dinheiro nunca faltaria, eu seria finalmente
aceita. Prometeram que meus defeitos, aqui, seriam qualidades, porque
eu é quem decidiria o que seria o quê. Imaginei a vida perfeita, sem
imprevistos, sem medos, sem ansiedades, sem nada que eu não pudesse
mudar a meu favor. Nunca mais teria de olhar para os meus traumas de
infância, nunca mais teria que mudar meu jeito de ser em uma roda de
conversa. Claro, foi tudo ilusão. Paguei minhas economias da vida pra
chegar aqui, foi uma viagem turbulenta e perderam minha mala no
caminho. Trouxe só a mim e esta bolsa que estava no meu colo e que só
tem pedras dentro. Não sei quem foi que me deu isso, mas tenho um
apego porque é a única coisa que trouxe lá de fora. Quando chegamos,

77
o piloto do avião olhou para mim e sorriu com tanta gentileza que senti
que ainda estávamos nas nuvens. Disse “que sua estadia seja incrível,
dona Júlia”. Mas não sei se Júlia era mesmo meu nome, porque me
lembro de ter um nome bem comprido. Às vezes, acho que me
confundiram com essa tal de Júlia, e ela está lá, no meu mundo
encantado, e eu vim parar aqui neste labirinto sem saída. Então ele me
empurrou para fora do avião, e eu caí aqui, com essa bolsa que acho
que, pelo menos, deveria ter um paraquedas. Acontece que agora já
estou aqui há tanto tempo que me acostumei com como as coisas
funcionam. Não sei se sinto falta do mundo real. Era bem difícil, eu me
lembro. Eu era uma menina esquisita e mirrada que tinha medo de tudo
e de todos. Aqui tive que aprender a caçar e pescar, ando o dia inteiro e
descanso um pouco à noite, mas não muito. Se eu não tomar cuidado,
os pássaros roubam minha bolsa de pedras. Eles já tentaram várias
vezes e uma vez quase conseguiram, mas pulei bem alto e me agarrei na
alça até ele soltar a gente; eu e a bolsa. Fiz minha cabaninha com galhos
e folhas, em um canto que marquei com uma bandeira bem alta para ver
de longe e até que eu vivia feliz. Isso tudo antes dessa moça chegar. Ela
é elegante, não é toda suja como eu. Caminha devagar como se pisasse
em ovos o tempo todo, mas com muita determinação. Não parece que
foi jogada do avião, parece que pousaram e estenderam um tapete
vermelho para que ela descesse. Ela vem aqui toda semana e me
pergunta “você não sente falta do mundo lá fora?” e eu não sei o que
responder. Aqui é mais seguro, sei como tudo acontece. Tenho hora pra
comer, dormir, andar, voltar. Tenho minha bolsa de pedras comigo. Sei
a hora em que o Sol nasce e se põe todo dia. Sei as plantas que posso
comer e as venenosas. Decorei cada esquina e cada passagem. Para que
voltar para um lugar onde tudo é desconhecido? Ela ri como se
soubesse de algo que eu não sei. Boba. É melhor ficar esperta porque
aqui quem manda sou eu, tenho vontade de dizer. Mas não digo, sinto
que ela quer me ajudar. Um dia, me convidou para sair e eu gritei
“NÃO EXISTE SAÍDA!” exasperada com tanto confronto com a
realidade. Será que ela não vê que estou presa em um labirinto? Por ora,
ela me parece inofensiva, mas seu jeito me assusta. Às vezes ela me fala,
“querida, já tentou ver as coisas por outro ângulo?” mas não entendo o
que ela quer dizer com isso. Ela acha que estou aqui por que quero, por

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que gosto? Me prenderam aqui, tá bem? Eu sairia se pudesse. “Mas você
pode. Pode tudo nessa vida.” Mas não posso isso. Sem contar que gosto
da certeza das coisas e a única certeza que tenho é a do labirinto. E na
semana passada ela voltou, dessa vez a vi entrar: afastou as folhas com a
mão e sorriu com ares de graça e plenitude. Acha que eu não vi que ela
sabe onde fica a saída? Eu vi, vi você entrar! “Então também sabe por
onde sair.” Fiquei sem ter o que dizer. Era verdade e agora não sair era
uma escolha. Mas eu não podia sair: eu não sabia por que tinha entrado,
e se fosse um motivo primordial para minha vida, para me proteger do
mundo? E se sair fosse um risco muito grande para o meu bem-estar?
“Esse, querida, é nosso próximo passo. Somente depois de entender os
motivos que te prendem nesse labirinto você será livre para decidir
sair.” Livre. Eu me achava livre aqui dentro, mas agora não sei. Essa
moça falou muitas coisas que me deixaram pensativa. Talvez eu devesse
baixar as armaduras com ela. Ouvir o que tem pra dizer. Decidir se ela
tem me falado a verdade ou lorotas. E o tempo que investi pra estar
aqui? Eu construí tudo do zero: as folhas, as encruzilhadas, os pássaros.
Não sei se a solução é ir embora assim, sem mais nem menos. Tenho
que ver direitinho. Mas até semana que vem, quem sabe eu já não tenha
entendido.

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Sobre a autora:
ELENA CHACON só tem 18 anos e
ainda tem muito o que viver. Transborda
suas experiências, emoções e
pensamentos em forma de palavras que
denunciam sua sensibilidade para com a
vida. Agarrada aos livros desde que se
entende por gente, Elena continua sendo
a garotinha sonhadora que escrevia
poemas sobre a natureza, mas agora suas
palavras exploram temas cada vez mais
introspectivos e sentimentais.

IG: https://www.instagram.com/ana.elenac?
igsh=dnMwbGRtb3c1ZGF0

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Folha
Crislaine Gruber
Fazia frio. Olhei para o jardim. Ele continuava lá. Um homem
atormentado. Me fitava com um olhar oco. Não desviava os olhos,
apenas piscava de vez em quando, muito menos do que o
necessário, deixando o branco do olho de um vermelho que antes
me enchia de pavor.

Não que eu conseguisse enxergar tudo isso de dentro de casa. Mas eu


podia imaginar, ver cada detalhe do seu rosto marcado por aquela dor
que também era minha.

Nossa filha morreu.

Na minha cabeça, inventei uma versão de contos de fada para


sobreviver. Ela tinha sido uma folha verde brilhante que brotou em uma
árvore do nosso jardim, mas que caiu no primeiro junho. Leve,
dançando com a brisa de uma tarde de luz intensa. Tardes outonais têm
cores só delas. Cumpriu seu ciclo na natureza. Beleza e queda. Força e
desprendimento.

Na história, que só eu e ela conhecíamos, seu fim era um felizes para


sempre. Nos meus sonhos, ela me contava que estava folha em outras
árvores, tocando passarinhos diferentes, experimentando outros sóis de
outono, assistindo crepúsculos multicores com seu corpo natureza.

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Eu sempre acreditei. Era o que eu podia fazer.

Ele não conseguia.

Fazia dez anos que eu assistia à mesma cena da minha janela. No dia da
partida da nossa menina, ele vinha, se prostrava no jardim, em pé,
braços pendidos, olhando para casa. Imagino que passava o dia a
fantasiar como seria se ela estivesse aqui. Se tivesse crescido. Se pudesse
brincar de pega-pega no gramado. Se ganhasse um cachorro e fizesse
estripulias com ele pelo quintal. Se conseguisse espiar pela janela ele
chegando do trabalho. Se tivesse se arrumado para uma festa junina e
saído toda sorridente porta afora para encontrá-lo. Se ficasse,
adolescente, lendo na rede em frente à casa. Se tivesse se apaixonado e
trazido alguém para apresentar para a família. Se crescesse e tivesse seus
netinhos, agora eles brincando no quintal. Se tivesse vivido.

Eram olhos ansiosos por um futuro que não existiria. Uma dor que não
tinha encontrado um caminho para repousar. Ficava perdida, vagando,
feroz, ainda gritando dentro dele.

A minha eu fui acalmando. Passamos de gritos agudos para pequenos


acordos. Hoje conversamos em um tom ameno, até mesmo
sussurrando, quase que contando segredos. Nossos segredos da perda.
Eu e minha dor.

Vivemos, eu e ela, em um labirinto de sebes tranquilo, remoto, bem aparado.


Caminho com persistência, passo por passo. Chego em cantos escuros de vez em
quando. Uma barreira que parece de novo intransponível. O encontro ali. O vejo
no estado de contemplação silenciosa, devastadora. Onde não quero estar. Nem
posso. Dou um passo atrás e retomo o ritmo, sigo na superfície de sonho da minha
dor. Nosso destino é seguirmos juntas, em nosso labirinto, até o fim. O meu fim.

Ele, eu não sei como segue. Só o vejo, ao final do dia, virar as costas e
partir. Até o próximo ano.

82
Sobre a autora:
CRISLAINE GRUBER nasceu em Rio
do Sul (SC), em 1988, e vive em
Florianópolis desde 2006. É professora no
Instituto Federal de Santa Catarina desde
2010, formada em Moda, mestra em
Design e doutora em Engenharia de
Produção. Apaixonada por literatura, tem
se dedicado aos livros de diferentes
maneiras, na docência, na escrita, no
voluntariado, na segunda graduação, agora
em Letras.

IG: https://www.instagram.com/crislainegruber/

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O que Deus une
Thais Silva de Castilho
Ela procurou o pároco da igreja para uma confissão. Se sentia em um
labirinto e não encontrava saída. Perdida e incapaz de tomar uma
decisão sozinha, buscava alguém para colocar um ponto final em suas
dúvidas. Assim, buscou o pároco para se aconselhar, antes de qualquer
decisão que viesse a ser tomada.

E, assim que o padre fechou a porta da sacristia, ela começou a falar


sem qualquer introdução. Era visível que estava atormentada pelo rumo
que a vida tinha tomado. Naturalmente, quando se casou, não imaginava
estar naquela situação. Usada, maltratada e falada por todos que a
conheciam... e tudo por culpa da ganância dele...

— Padre, eu o sustento. A administração dos negócios dele vai de


mal a pior.

— Permaneça casada — respondeu o padre.

— Padre, ele me destrata até na frente dos outros... Não me valoriza


como mulher e mãe de seus filhos.

— Permaneça casada. Ninguém é perfeito — falou o padre, sem


nenhuma alteração em sua voz.

— Padre, ele humilha os empregados, trata-os como se escravos


fossem. Nem parece ter Deus no coração.

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— Tudo passa, minha filha... Permaneça casada.

— Padre, todos já me olham com reprovação. Pensam que as decisões


dele, são tomadas com meu aval.

— O que Deus une, o homem não separa, minha filha — disse o padre.

— Mas, padre, ele aplicou vários golpes na praça. Os credores estão à


minha porta. Passo as noites em claro, diante deste futuro incerto. Todo
o dia alguém o processa. Já evitamos sair às ruas, pois acho que estamos
sempre sendo perseguidos.

— São só estes os defeitos dele? — indagou o padre. — Se sim,


permaneça casada.

— Mas padre, nem mais para o dízimo tenho...

Neste momento, o padre parou o que estava fazendo e somente então


pareceu escutar o que ela dizia.

— Então separe, minha filha. Se ele parou de dizimar, separe. Ele não
honra a palavra de Deus.

E foi assim que ela conseguiu permissão "divina" para se separar.

O que Deus une, só a falta do dízimo separa, pensou baixinho.

Apesar de decepcionada com os conselhos do padre, encontrou,


finalmente, a saída do labirinto, depois de tantas tentativas. Despediu-se
do padre e partiu livre para o recomeço.

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Sobre a autora:

THAIS CASTILHO é servidora


pública, casada e mãe de três filhos.
Recentemente descobriu o gosto
pela escrita.

IG: https://www.instagram.com/castilho2044/

86
Sinal Perdido
Joana Patacas
José segurava o telemóvel na palma da mão como se de um pássaro
ferido se tratasse. Os dedos cerraram-se em torno do aparelho, a
pressão aumentando, como se pela força da sua vontade pudesse
arrancar daquele objeto um sinal de vida. Mas ele permanecia mudo, um
pedaço de tecnologia fria e indiferente à sua crescente angústia. As suas
sobrancelhas grisalhas e indisciplinadas convergiram numa carranca de
consternação quando o seu polegar pressionou o botão de desbloqueio.
O ecrã brilhou em resposta, lançando sombras profundas nos sulcos do
seu rosto envelhecido — não tinha notificações.

Deslizou o dedo pela superfície fria. O ícone das mensagens estava


vazio, sem o habitual número de novas mensagens por ler. Percorreu os
poucos nomes listados nos contactos — a maioria sendo de familiares e
amigos, alguns dos quais já falecidos. Com um suspiro cansado, chegou
ao registo de chamadas. A última entrada datava de meses — uma
chamada ignorada de um número desconhecido — e as redes sociais
jaziam num silêncio sepulcral, como cidades fantasmas abandonadas à
erosão digital.

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Abanou a cabeça, os lábios contraindo-se numa linha amargurada.
Tinha de ser um problema técnico, uma avaria. Não conhecia
ninguém que não tivesse um telemóvel, pelo que não fazia sentido
nenhum estar à margem daquela realidade pulsante. Convencido de
que a falha residia na tecnologia e não nele próprio, rumou à loja onde
comprara o maldito aparelho, decidido a resolver aquela complicação
que o isolava do resto do mundo.

Caminhou pelas ruas apinhadas da baixa da cidade. Viu-se cercado


por olhares vidrados em ecrãs cintilantes, como mosquitos
enfeitiçados pela luz, dedos ágeis a deslizar sobre as superfícies
polidas, e orelhas adornadas com pequenos pendentes brancos.
Observava aqueles seres isolados, cada um aprisionado na sua própria
bolha digital, alheios ao zunido incessante que pairava no ar — uma
sinfonia dissonante de notificações, toques e alertas misturada com a
fanfarra estridente das buzinas. Ele próprio, com o dispositivo
silencioso e inerte do bolso, sentia-se como um astronauta sem
cordão umbilical, flutuando à deriva no vácuo. Ele era a anomalia, a
partícula desalinhada no campo magnético daquelas relações virtuais.
Acelerou o passo, sincronizando-o com a urgência de poder voltar a
fazer parte daquela bolha tecnológica.

Ao atravessar as portas automáticas da loja, um sopro de ar fresco


acariciou-lhe o rosto suado. Retirou uma senha e procurou um lugar
vago na sala de espera. A solidão da velhice tinha tomado uma nova
forma e tinha agora garras afiadas que lhe rasgavam a alma ansiosa.
Aquela ausência de sinais era perturbadora, um vácuo a sugar-lhe a
essência vital. Agarrou-se ao aparelho defeituoso como um ente
querido seguraria a mão de um paciente em coma, esperando por um
estremecimento que quebrasse a paralisia. “Por favor, que não esteja
avariado”, murmurava para si mesmo, as palavras a tropeçar umas nas
outras. A mera ideia de ter de o substituir era um peso esmagador nos
seus ombros já curvados pela idade e pelas privações. Há muito que a
garantia expirara e a sua reforma, uma migalha atirada pela sociedade
em troca de uma vida de labuta, esticava-se dolorosamente para cobrir
a renda e os medicamentos, como um elástico a ponto de estourar.
Comprar outro era um luxo que não podia sequer contemplar.

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Um som agudo trespassou a névoa dos seus pensamentos, como uma
agulha a perfurar um balão. Um bipe estridente reverberou pela sala,
seguido por uma voz eletrónica que anunciava o próximo número, com
a indiferença mecânica de quem não se importava com as histórias por
trás de cada chamada. Levantou-se, as pernas dormentes pela espera
prolongada, e dirigiu-se ao balcão com passos hesitantes. Um jovem
funcionário saudou-o com uma jovialidade ensaiada. As palavras
tropeçaram-lhe na língua ao expor a sua questão, a voz trémula e
quebradiça como um fio de caramelo esticado ao limite. Com agilidade,
o rapaz pegou no dispositivo, examinou-o. Sob o seu toque experiente,
testes de diagnóstico foram executados, botões pressionados e
aplicações abertas e fechadas. Após o que pareceu uma eternidade,
declarou: "O seu telemóvel está a funcionar, senhor. Precisa de ajuda
para perceber melhor como funcionam algumas coisas?”

Aquelas palavras ricochetearam nas paredes do seu crânio como balas


perdidas. Os seus olhos arregalaram-se, a incredulidade estampada no
rosto como um néon cintilante. Como era possível? O objeto jazia agora
na sua mão como uma concha vazia, desprovida de significado. E então,
como uma névoa a dissipar-se, revelando uma paisagem desolada, uma
dolorosa compreensão começou a assomar-se. Talvez o problema não
estivesse no aparelho, mas no facto de não haver ninguém que o
quisesse contactar. Esta epifania abateu-se sobre ele como um manto de
chumbo, esmagando-o sob o seu peso implacável.

Saiu da loja arrastando os pés, os ombros curvados como um Atlas


moderno, carregando não o mundo, mas o fardo esmagador da solidão.
O coração, outrora pulsante de esperança, era agora um vazio profundo,
ecoando apenas o silêncio de uma vida desprovida de ligações
significativas. Regressou a casa. As paredes estreitavam-se à sua volta,
transformando o lar num labirinto frio e silencioso. As divisões,
esvaziadas de risos e conversas, eram grutas abandonadas que
testemunhavam uma existência cada vez mais solitária.

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Guardou o telemóvel no fundo de uma gaveta e afundou-se na poltrona.
As sombras do final da tarde alongavam-se, infiltrando-se nos recantos
da sua mente, trazendo consigo a amarga constatação de que, nas idades
mais avançadas, a solidão raramente é uma escolha. É uma consequência
implacável do tempo, que leva consigo os entes queridos e deixa para
trás apenas lembranças desbotadas. Uma lágrima solitária traçou um
caminho sinuoso pela sua face envelhecida. Naquele momento,
compreendeu a verdadeira essência da vida. Não eram a quantidade de
notificações ou a constância dos contactos que lhe conferiam
significado, mas sim a profundidade e a autenticidade dos laços que
cultivara ao longo dos anos. E, apesar da solidão que agora o envolvia,
as memórias desses momentos de ligação genuína permaneceriam com
ele, aquecendo-lhe o coração e iluminando-lhe o espírito até ao fim dos
seus dias.

Sobre a autora:
JOANA PATACAS, com licenciaturas em
História e Jornalismo e especialista em
Storytelling, acredita no poder das palavras
para transformar factos em narrativas
inspiradoras na sua profissão como
copywriter. Cresceu rodeada por histórias,
contadas por várias gerações da sua família
e pelas páginas dos livros que sempre leu
com voracidade. A sua paixão pela escrita é
uma verdadeira vocação, que explora
também através da investigação
genealógica e do teatro, aos quais se dedica
há alguns anos.

IG: https://www.instagram.com/jujoanamaq/

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Os Caminhos Dentro
de Si
Daniele Rangel
A mesa estava posta para o jantar, ou melhor, estava posta desde o café
da manhã. Apenas foram sendo trocados os pratos, à medida que as
refeições mudavam, anunciadas pelo relógio na parede. De resto, ela
parecia estar posta. O bebê de nove meses ainda não dormia uma noite
completa e tirava muitos cochilos durante o dia, mas nenhum desse
intervalo era suficiente para a mãe se sentir que finalmente pegou no
sono. Os olhos pesavam, o corpo parecia se acomodar na cama ou
poltrona e de repente um chamado e ela já se sobressaltava, já a postos,
igual sua mesa na sala, mal arrumada, mas pronta para recebê-la para o
jantar

A mãe sentou-se culpada por sentir alívio em poder tomar seu café com as duas
mãos. Queria tomar um banho antes, tirar a camisola vestida desde a manhã, no
entanto era uma escolha muito difícil a fazer: tomar um banho rápido para sentir
menos cheiro de leite derramado em si ou jantar usando as duas mãos no pouco
silêncio daquele momento. Escolha difícil igual labirinto em suas ofertas cheios de
caminhos que dificilmente levaria a alguma saída. Para ela, um ou outro caminho
levaria para o mesmo final — ser interrompida a qualquer momento pelo
chamado do bebê. Escolheu seu café com leite e um pedaço de bolo.

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O cheiro de leite era seu novo perfume, o banho podia ficar para um
pouco depois, quando alguém chegasse em casa ou quando ele dormisse
de novo. Fechou os olhos e suspirou, lembrando do prazer que lhe era
tão corriqueiro nesse tão simples gesto de sentar-se à mesa sozinha para
comer seu bolo preferido. A culpa mais uma vez chegou para lhe fazer
companhia, enquanto trilhava seu labirinto em busca de si. “Ora! Não
há nada demais em eu me sentir feliz por meu filho não estar em meu
colo!”, dizia para si mesma para se convencer disso como uma verdade,
enquanto olhava o bebê pela babá eletrônica. “Se eu for um pouco mais
rápida, talvez dê tempo de eu tomar um banho também.” Preferiu se
demorar e sentir o café quentinho.

Uma mão na xícara, a outra segurando o garfo, os olhos na babá


eletrônica e os pensamentos brigando entre si. A nostalgia de ouvir o
primeiro chorinho, o dentinho nascendo, as risadas mais contagiantes,
as roupinhas que o tornavam um modelo mirim, sua mãozinha
segurando o peito construíam sua nova identidade de mãe. Era uma
mistura de realização e cansaço. Sentia-se feliz e logo era tomada por um
choro contido como se tivesse passado por um breve luto. Seus
pensamentos pegaram o caminho do enjoo da gravidez, da hemorroida
dolorida, da falta de ar sem posição para dormir, da camisola que não
havia tirado naquele dia, da xícara de café que já começava a esfriar...
“Talvez quando começar a dormir a noite toda, eu consiga também”.
Olhava a babá eletrônica prevendo suas noites fiscalizando se o bebê
dormiria mesmo. “Se pegasse no sono e não o ouvisse, se ficasse
engasgado, se tivesse febre?” Ela sabia que precisava relaxar, mas não
sabia que caminho pegar para começar. “Dizem que preciso parar de dar
o peito à noite para ele dormir mais. Que está fazendo meu peito de
chupeta! Mas, agora eu não quero parar, demorou tanto para eu
conseguir e agora eu simplesmente coloco pimenta no bico?”
Continuava buscando as soluções dentro de si, numa conversa mental
amarga cheia de culpa e desejos. “Mas, se ele deixar o peito, poderá
dormir com alguém e eu poderei ir para o cinema... que saudades do
cinema!” E, mais uma vez, a culpa lhe fez companhia. Não era
momento de pensar nessas situações. A chegada do bebê foi tão
esperada, tão sonhada, tão demorada... o tempo agora é todo dele!

92
Tomou mais um gole do seu café quase frio. O bolo conseguiu comer,
mas nem sentiu o gosto direito, seus pensamentos não deixaram. Ela
estava ali sentada, feliz e culpada por usar suas duas mãos na refeição.
Caminhando em seu labirinto interior, explorando os vários caminhos
— de quem seria dali para frente, de quem deixou de ser, de quem
gostaria de ser ainda. Todos pareciam ser longos demais, porém não
queria que fossem sem saída. Queria que pelo menos os levassem até a
ela mesma. Mas quem era ela? Ser mãe parecia ser sua única identidade
no momento. As frases que mais escutava eram: Cadê a mãe do ano?
Onde está a mãe desse bebê? Essa é a mãe do meu filho. Até o pediatra
começava a consulta com “Bom dia, mamãe, como está o Paulinho?”.
Sentia falta do seu nome, mas também se deslumbrava com a sua nova
versão recém-nascida.

Olhou para a babá eletrônica, e o bebê não estava. Tomou um susto e


quase se engasgou com o café, derrubando tudo. Levantou-se assustada!
“Cadê esse menino que não está no berço?” Entendeu ali o que significa
a velocidade da luz. Ela não tinha tirado o olho da babá um segundo e
havia perdido seu filho. Num ímpeto de correr até o quarto, viu o
tiquinho de gente só de fralda, com o pingo de baba escorrendo de seus
dois dentes à mostra num sorriso sapeca, em pé, segurando a parede no
corredor que dava para sala. Seria uma cena engraçada, se não fosse o
susto. Foi a primeira vez que ele desceu do berço sozinho.

— Mamainn!

Emocionou-se. Foi a primeira vez que disse seu nome.

93
Sobre a autora:
DANIELE RANGEL é
pernambucana, casada, mãe de quatro
filhos, graduada em Letras, com
mestrado em Psicanálise aplicada à
Educação, professora de Português do
Instituto Federal; adora chocolate, vinho,
praia e literatura. Ela acredita que ler é
uma ação transformadora, porque é
possível acessar nosso mundo interior
por meio das palavras e das experiências
dos personagens. É autora do conto "A
Filhinha do Papai" publicado na
Amazon, já tendo alcançado o segundo
lugar dos mais baixados.

IG: https://www.instagram.com/_dani.rangel/

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O Labirinto de
Iracema
Olivaldo Júnior
Iracema não se lembra ao certo de como foi parar naquela Unidade de
Terapia Intensiva. Morena, magra e tão alta quanto poderia ser uma
descendente de indígenas, Iracema, anagrama de América, era
professora e, momentos antes do acidente que a fez parar no Hospital
Municipal de Miraflores, no Estado de São Paulo, tinha brigado com
Henrique, um homem que conhecera por meio de um aplicativo de
namoro, há um ano e pouco. Tão bonito quanto Iracema, Henrique era
do tipo que atraía atenção por onde quer que passasse. Alto, magro,
aquele homem de olhos claros, entre o azul e o verde, também era
professor. Amavam-se, mas, apesar do amor, brigavam. E muito.
Iracema era muito possessiva, e Henrique não ficava atrás, então era
fogo na certa.

— Chamando Doutor Rubens. Atenção, chamando Doutor Rubens —


dizia incessantemente a locutora hospitalar, mas sem sucesso, enquanto
Iracema adentrava o prédio. Henrique, aliás, chegou pouco tempo
depois, impactado pela notícia de que Iracema talvez não estivesse
mais… Bem, você sabe. O carro dela se chocou com uma árvore.
Traumatismo craniano, disseram os médicos, ou melhor, os
paramédicos, no momento em que a encontraram, pobrezinha,
desmaiada no local. Desmaiada? Eu disse desmaiada? Sem sentidos, eu
quis dizer sem sentidos. Eu vi tudo, pois, me perdoe, sou o anjo da
guarda dela.

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— Chamando Doutor Rubens. Atenção, chamando Doutor Rubens —
continuava a locutora, enquanto Henrique circulava para lá e para cá,
como se fosse adiantar ficar assim.

Uma vez estabilizada, Iracema se acomodou. Parece estranho, eu lhe


dizer isso, né? Mas foi o que aconteceu. Ela pôde se acomodar em si
mesma e, mesmo que se encontrasse no escuro, parecia enxergar ao fim
do túnel uma luz. Uma luz e, ao lado dessa luz, sua irmã, Júlia, que,
mesmo longe, parecia acenar para ela.

— Onde estou? O que será que aconteceu comigo? — perguntava-se a


todo instante, sem entender. Sabia que estava no escuro, mas só.

Foi quando, ao caminhar, a professora de Literatura Brasileira se viu


mais perdida do que as personagens de Clarice Lispector, tentando
achar no escuro a maçã, na hora da estrela.

Então, com alguma pressa, começou a jornada rumo à pequenina luz


que, mesmo ao longe, parecia encantá-la. “Estarei eu num labirinto?”,
mentalmente indagava, quando, de repente, o caminho pareceu desviar-
se sozinho, levando-a para um quarto, um quarto onde uma conhecida
figura embalava um bebê. Era a mãe de Iracema, d. Dalva, que ninava
uma menina magra, morena, que chorava copiosamente sem motivo
nenhum. Sim, era ela mesma!

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Ao tentar se aproximar das duas, ou seja, de sua mãe e de si mesma
ainda bebê, como se uma lente se fechasse na objetiva de uma câmera,
voltou ao corredor escuro e, tremeluzentes, frias, sua irmã e a luz a
chamavam…

Com redobrada pressa, Iracema continuou andando, tendo em mente


que, de um jeito ou de outro, precisava de luz. Queria saber o que estava
acontecendo. O que estaria fazendo ali, naquele estranho labirinto,
como se estivesse… morta?

Novo desvio, foi direcionada para um pátio enorme, cheio de crianças,


o sinal tocando, intimando-as a voltarem para a sala, quando passou por
ela uma menina que Iracema de pronto reconheceu. Era ela mesma de
novo, mas mais velha, de olho em André, um “crush” da época escolar,
quando sequer havia essa expressão. Outra vez, ao tentar entrar em
contato direto com a menina que foi, novo corte, voltou ao labirinto.

Com ainda mais pressa do que antes, retomou a caminhada, já quase


trotando, a luz um pouco mais bruxuleante ao fundo, bem junto de
sua irmã.

— Dança comigo? — falou Cristóvão para a adolescente Iracema, em


pleno baile de formatura, em que também estava a própria. Tinha sido

97
remanejada para esse outro momento de sua vida pelo labirinto
encantado. No quarto, ela em coma, os aparelhos funcionando a mil.

— Sim, aceito.

E, entre aquelas luzes estroboscópicas, uma canção pouco romântica,


Iracema e seu novo amigo Cristóvão se deixaram levar pelo momento.
Cristóvão, o rapaz que veio do Irã para morar com o pai, refugiado, há
algum tempo.

Diante de nova tentativa de aproximação de Iracema a si mesma quando


jovem, novo corte, e o labirinto todo à frente outra vez. A luz!

Tateando no escuro, com pressa ainda mais urgente, Iracema começou a


perceber que a luz distante de outrora ficava mais próxima, e ela parecia
avançar. Porém, de repente, um novo clique se fez, ela se viu presa às
ferragens, sem poder se mexer, tendo, ao lado de fora do carro, d.
Dalva, com ela mesma ainda bebê em seu colo, ela criança e, um
pouquinho mais à frente, ela mesma adolescente, como se torcessem
para que ela saísse o mais ilesa possível de lá. Eu, como anjo da guarda
dela, a acompanhava, sabendo que daria tempo de a salvarem.

— Chamando Doutor Rubens. Atenção, chamando Doutor Rubens —


continuava a locutora, enquanto Henrique ainda circulava para lá e para
cá, como se fosse adiantar ficar assim. Em sua mente, a imagem de
Iracema o condenava, ele não podia mais suportar aquilo.

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Deitada, imóvel, a mente de Iracema voltava agora a momentos antes
do acidente, quando, ainda na escola, querendo surpreender o
namorado, entrou de supetão na sala quinze.

— Iracema! — e, suspendendo as calças, Henrique não sabia onde se


esconder. Logo abaixo dele, ao pé da cadeira, um rosto conhecido dela.

— Júlia! Eu sabia que você andava estranha comigo ultimamente! — e,


com as mãos levadas ao rosto, Iracema mal podia acreditar na visão.

— Perdão, mana! A gente não premeditou nada, mas… — disse a


primogênita de d. Dalva e seu Alceu, pais de duas meninas que
cresceram juntas, sempre parecendo apoiar uma à outra, já se
levantando, juntando as pregas do vestido.

Sem pensar em mais nada, a não ser em sair daquele momento, Iracema
entrou no carro e, ajeitando o cinto, tomou a estrada na contramão.

— Chamando Henrique Lopes. Atenção, chamando Henrique Lopes à


Central de UTI — clamava a locutora. No quarto, Iracema chegava à
luz, abraçava a irmã e voltava à vida.

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Sobre o autor:
OLIVALDO JÚNIOR nasceu em
Aguaí, São Paulo, mas mora em Mogi
Guaçu, cidade vizinha, desde menino.
Formado em Letras, com Habilitação em
Português e Inglês, e em Radialismo de
Locução, é poeta, escritor e músico,
cantor e compositor. Apaixonado por
fotografia, vive tirando fotos e
escrevendo a respeito. Incentivado por
seus pais, que lhe compravam discos e
livros sempre que podiam, e por alguns
professores, Olivaldo tem participado de
Concursos Literários regularmente,
obtendo diversas classificações país e
mundo afora.

IG: https://www.instagram.com/olivaldo.junior/

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O Coração Humano
Olívia Avelar
A mãe batia só nas galinhas. Depois, eu nasci. Eu era menina e já sentia
saudade delas, quando morriam. Cada uma canta do seu jeito, risca o
chão com ciscado diferente, bate as asas bem aberto, ou de lado, ou
assim, cambotinha, mostrando as penas pra gente ver. Eu sinto saudade
delas, sim. Os olhinhos miúdos. Pescocinho careca. A mãe chupa os
ossinhos do pescoço fazendo barulho.

O primeiro enterro que eu fiz foi debaixo do pé de limão. Nem teve


velório, foi só o enterro mesmo. Uma rolinha que o gato comeu só uma
asa, espalhou pena pelo terreiro todo e depois largou a coitada
despedaçada, na escada da cozinha. Eu não consegui ver. Virei o rosto
pro outro lado e desatei a correr. Mas me deu um aperto, uma tristeza
tão doída, a rolinha lá, sozinha e sem asa e já ia anoitecer. Voltei no
mesmo pé com que fugia. Catei o corpinho mole e fiquei zanzando com
ela. Ali já sumiu nojo, medo, sei lá mais o quê. Ela só tinha a mim. Eu
não podia faltar.

101
Depois da rolinha, perdi as contas. Enterrava sanhaço, gato
envenenado, outras rolinhas. Galinha não, delas só sobrava osso.
Cachorro foram só dois. Fiz velório pro Jagunço, tadinho, tava velhinho
quando morreu. Tava igual ao dono, seu Manoel Tinoco. Não demorou
muito pra ele ir também. Perdeu o companheiro, daí emborcou a
cabeça, arriou coluna, espinhela, não teve jeito, não. O outro era vadio,
passava na minha porta dia sim, dia não. Eu chamava ele de Zé
Chouriço, porque ele tinha cor de chouriço. Mataram na paulada, na
covardia. Pra ele, eu catei até flor. Gambá enterrei só um. Os dentinhos
afiados, tava morto e tava rindo.

Dia desses, comecei a ter um sonho ruim. Eu corria, corria, com a


rolinha na mão. Não era qualquer rolinha, era a primeira que enterrei.
Ela era roliça, mais clarinha, sei que é ela. Em todo sonho ruim eu tô
correndo. Teve outro, eu pulava uma cerca e ficava perdida, num pasto.
Tinha um homem com cabeça de boi, eu não o via , mas ele queria me
pegar. Eu gritava “mãe!”, e puxava a saia dela, igual eu fazia quando era
miúda ainda. Mas a mãe aparecia com a machadinha e me segurava pelo
pescoço, e me deitava no tronco de corte.

Fui ver Dona Cecília, a benzedeira. Me custou duas meiotas e os souza


paiol que consegui achar em casa. Me lavou com água de bacia e me deu
meia garrafada. Adiantou foi nada. Voltei de novo, dessa vez sem
pagamento, tinha outro sonho pra contar. Acordei colenta, tinha mijado
na cama. Tava lá o cabeça de boi, o Jagunço, o gambá risonho, o pasto
cheio de cercas e a mãe. E o machado da mãe. E o meu pescoço tinha
virado pescoço de galinha.

102
“Sonho é labirinto, fiota. Dê conta de acordar.” E Dona Cecília disse
mais nada. Assuntei por aí, ninguém me explicava o que era labirinto.
Seu Deocleciano me ofereceu um corte de tecido e uma chaleira pra eu
deixar a mãe sozinha e ir dormir na casa dele. Disse que lá não tem
sonho ruim. Pra que eu fui contar. “Questão de tempo, bichinha…
logo, logo, você vai ser igual sua mãe…” e fez o mesmo barulho
nojento que a mãe faz quando chupa osso.

Não tenho medo de enterrar os bichos. Cuido deles na vida, cuido deles
na morte. Ela bate, eu cuido. Tenho medo é de ir dormir. Medo de
sonho ruim, do cabeça de boi. Do labirinto da Dona Cecília. Tenho
medo que de tanto dormir e acordar, num dia o sol vai raiar e vai ser
minha vez de cortar pescoço. Tenho medo do Seu Deocleciano. Tenho
medo de virar a mãe.

Sobre a autora:
OLÍVIA AVELAR é formada em
Letras e pós graduada em Filosofia. Em
2022, publicou seu primeiro livro - Azul
da Prússia - pela Editora Folheando. É
professora e escritora membra da
Academia Cachoeirense de Letras.
Nasceu e vive em Cachoeiro de
Itapemirim, ES.

IG: https://www.instagram.com/olivia.batista.avelar/

103
A Bailarina do
Caderno
Jenny Rugeroni
Ainda me lembro das ruas quase vazias que percorria para voltar da
escola. Era início da década de 1990; quase ninguém tinha carro, nem
telefone. Eu carregava minhas apostilas e o caderno de matérias com a
bailarina na capa, que meus pais diziam se parecer comigo: as saias de
tule contrastando com o rosado das maçãs do rosto, os cabelos negros
presos no alto da cabeça. Donizete me apressava. Queria chegar logo, e
eu ficava cochichando com as meninas. Não que ele fosse entender; o
som do Technotronic no seu walkman era tão alto que podíamos ouvir
a dois metros dos fones. Sônia, a mãe da Suelen, estava sempre
debruçada no portão. Algumas casas tinham floreiras, anões de jardim,
tartarugas de gesso. E o gato amarelo da Suelen observava do alto do
muro, atrevido e soberbo como um rei.

Vanildo morava numa casa que não existe mais, nos fundos de um
terreno onde agora construíram um barracão. Lembro-me dele
descendo a rua da escola com ar desanimado: um rapaz não muito alto,
ombros largos, mãos ásperas, olhos verdes. Era louco por mim e não fiz
nada para isso, era apenas eu mesma. O lance com ele durou bem
pouco. Eu tinha catorze anos, era magra e desengonçada, vestia roupas
de segunda mão, porque meus pais não podiam comprar outras, mas as
pessoas me achavam bonita. O Donizete havia completado dezesseis
anos, e se achava adulto. Na época, eu vivia como se o tempo fosse
infinito. Era ansiosa, infeliz, entediada de ficar em casa enquanto a vida
explodia nas noites do centro da cidade.

104
Foi no carnaval que acabei ficando com o Vanildo. Não sei por qual
milagre meu pai me deixou ir. Mandou o Donizete me vigiar, mas era
fácil burlar meu irmão. Eu queria ficar com o Índio, que estudava
comigo e ganhou esse apelido porque era descendente da tribo dos
Tupinambás. Mas ele já estava com outra menina. No meio da multidão,
o Vanildo pegou na minha cintura. Dançamos, conversamos, falando no
ouvido porque a música estava alta. Depois ficamos nos beijando num
canto, sempre de olho para o Donizete não ver. Se meu pai descobrisse,
nunca mais me deixaria sair.

Quem viu e ficou chateado foi o Iverson, irmão mais novo da Suelen.
De onde a Sônia tirou esse nome? Ele me jogava beijos, queria se casar
comigo, e eu esnobava: se enxerga, moleque, você só tem treze anos.
Meus pais gostavam dele, mas não da Suelen, que aos dezessete anos
tinha uma filha de dois, a Cacá. Minha mãe dizia: nada de andar com
essa menina, é péssima companhia. Eu gostava da Suelen, atrevida e
soberba como o gato amarelo. Pena que diziam que ela não teria um
casamento decente.

Fiquei com o Vanildo mais uma vez. Até que ele era legal. Havia
abandonado a escola, falava tudo errado, e isso me incomodava. Pena
que você é virgem, disse ele, senão ia ver só uma coisa. E eu sentia um
frio na barriga; era uma pena mesmo, só que depois ninguém ia querer
casar comigo. A Sônia jurava que o Vanildo tinha uma namorada que
morava na casa com a palmeira na calçada. Além de preta é mãe solteira,
fofocava. Na época eu não percebia o absurdo do preconceito. Só achei
que ela não gostava da moça e ficava com implicância. Mãe solteira não
presta, dizia ela. A Suelen também era mãe solteira, então a Sônia não
tinha moral para falar.

105
Só sei que não deu certo, mas o Vanildo não desistiu. Vivia rondando o
portão da escola, puxando conversa com o Donizete para ficar por
perto. O que eu tinha, que a namorada mais velha não podia oferecer?
Saindo da aula, eu acenava para o Índio no ponto de ônibus. Ele era alto
e moreno, a pele perfeita como a terra, e me causava calafrios quando
sorria.

Com ele, também não deu certo, nem chegou a ser namoro. Ficamos
por uns quatro meses. Era pouco prazer e muita ansiedade, mas na
época eu não me dava conta. Ele era mulherengo, não queria namorar.
Escreveu uma carta: gosto de você, mas esse amor que você sente eu
não tenho, não. Chorei por uns dias, abraçada ao travesseiro. Depois
segui com a minha vida, virando o rosto quando passava pelo ponto de
ônibus.

Algumas semanas depois, completei quinze anos. Foi um aniversário


como qualquer outro, sem nada de memorável. Nem pude chamar o
pessoal da escola. A comida só dava para os vizinhos. Meu pai ia toda
hora abaixar o volume da música. A criançada fazia barulho, e a Suelen
dançava de um jeito que me dava inveja. Sônia tinha ido embora cedo,
levando a birrenta da Cacá. O Iverson me seguia com os olhos. Coitado,
ainda ia encontrar alguém da idade dele e ser feliz. No fundo eu não era
malvada, só fingia. Não queria que ninguém soubesse que meus pais
tinham razão, que eu era mesmo a bailarina do caderno.

Choveu depois da festa. A Suelen dormiu em casa. No meio da noite,


esgueirou-se para o quarto do Donizete. Bem que eu havia notado os
dois na festa, dançando agarradinhos. Quem era a Sônia para falar mal
de alguém, se a filha dela dormia com meu irmão debaixo do nariz de
todo mundo? Eu simpatizava com a moça preta mãe solteira. Mas havia
o Vanildo, e eu morreria de vergonha se ela soubesse que fiquei com o
namorado dela. Morava na casa ao lado da palmeira e eu nunca a vi,
nunca vi ninguém naquela casa que também não existe mais.

106
Passei umas duas semanas imaginando o que a Suelen e meu irmão
fizeram naquele quarto. Tinha sonhos estranhos com labirintos e
homens sem rosto, nos quais eu me transformava na Suelen, atrevida e
soberba como o gato amarelo. Acordava febril, imaginando o sorriso do
Índio, alto e moreno, a pele perfeita como a terra, o único garoto que
me importava e que eu não podia ter.

Sobre a autora:
JENNY RUGERONI é autora dos
romances “A Herdeira do Silêncio”,
“Um Céu de Estrelas Curiosas”, “O
Ano em que não Choveu” e
"Insubordinada", além de diversos
contos e crônicas. Vive com a família e
catorze gatos em São João da Boa Vista
- SP, na região da Serra da Mantiqueira,
onde a natureza é uma fonte de
inspiração. Vencedora de mais de
quarenta prêmios literários, apresenta
um olhar lírico sobre o cotidiano,
convidando à reflexão sobre a
desigualdade social e os dilemas
enfrentados pelas mulheres
contemporâneas.

IG: https://www.instagram.com/jennyrugeroni/

107
Viagem por Lugar
Nenhum
Bruno Andante
“Parque de diversões não é um bom nome”, pensou Alma. Parecia a
única criança entediada. Na praça central, agora observavam um mágico
retirando um sol do chapéu. A menina cansou de ser plateia.

ㅡ Onde vai? ㅡ sussurrou o irmão.

ㅡ Lugar nenhum ㅡ respondeu.

Andou sem rumo, sem ver graça em nada. Finalmente, uma placa
chamou a atenção: “labirinto”. Na direção apontada, viu uma tenda de
circo. Entrou. Que cena curiosa: só uma velhinha em uma cadeira de
balanço, junto a uma porta.

ㅡ É aqui o labirinto? ㅡ perguntou a menina.

ㅡ Em lugar nenhum.

ㅡ Hein?

108
A velhinha apontou a porta. Alma viu um pequeno corredor levando da
primeira porta até uma segunda.

ㅡ Não parece um labirinto ㅡ disse.

ㅡ Nunca parece. Cuidado.

“Que maluquice”, pensou Alma. Mas deu o primeiro passo, vendo que
só precisaria de dois.

Imediatamente, a segunda porta se afastou um pouco. Intrigada, deu


outro passo. Mesmo efeito. “Que mágica barata”, pensou. E correu. A
porta se afastou rápido. Alma parou, contrariada, e viu a saída mais
longe do que nunca.

Olhou para trás, e… se viu olhando de volta. Espelho? Sim, mas


estranho: seu reflexo era cinza. Ela tocou o espelho, que ondulou como
água. O reflexo se dissolveu, e cenas apareciam e desapareciam, se
misturando: cenas da sua vida. “Estou sonhando, só pode”, pensou.

Atravessou uma mão, e sentiu a água fria. Retirou a mão, prendeu a


respiração, e enfiou a cabeça. Frio! Mas conseguiu ver um espaço
escuro, com uma estátua, iluminada por uma velha lamparina. Uma
estátua sua.

Retirando a cabeça, deu alguns passos atrás. Olhou ao redor, e já não viu
as paredes, nem a saída. Deu meia volta: o espelho também sumiu.
Estava em meio a uma densa neblina. Silêncio completo.

Gritou alguns “olás”, e só ouviu ecos. Estava assustada, finalmente.


Respirou fundo. “Vou escolher um rumo e andar. Em algum lugar
chego.” Caminhou por um bom tempo.

109
Finalmente, ouviu algo. Música! Harpas e flautas. Contornos de árvores
apareceram, depois paredes... estantes? Muitas, cheias de livros. A
neblina se dissipou: estava em uma imensa biblioteca. Linda! Com
jardins, escadarias, muitos andares. Haviam até pequenos rios, e um
chafariz.

Não viu ninguém. A música vinha de todo lado. Andou pelos jardins,
cruzou uma pontezinha, e parou frente a uma estante solitária. Notou
em cima a estátua de uma coruja.

ㅡ Parece real ㅡ disse admirada.

ㅡ Como sabe o que é real? ㅡ a coruja respondeu, encarando-a com


olhos afiados. Após o susto, Alma se surpreendeu contente de ouvir
outra voz.

ㅡ Não sei se sei ㅡ respondeu. ㅡ Menos ainda aqui, nesse… sonho?

A coruja voou, elegante, e pousou em uma meia lua que Alma não viu
antes, pendurada a um céu estrelado. Agora era noite, e a biblioteca
estava iluminada com luminárias flutuantes.

ㅡ É um sonho, então? ㅡ a coruja perguntou.

ㅡ Parece.

ㅡ E de quem é?

ㅡ Ora… só pode ser meu.

ㅡ E quem é você?

ㅡ Meu nome é Alma.

ㅡ E quem é você?

110
Alma pensou, e respondeu com um sorriso irônico:

ㅡ Alguém que deveria se inscrever em um concurso de sonhos.

ㅡ Ótimo! Inscrição aceita.

A coruja voou e pousou na estante.

ㅡ Pode começar ㅡ disse apontando os livros com a asa. Alma olhou


intrigada. A ave continuou:

ㅡ Um livro, um sonho. Infinitos livros, infinitos sonhos. Você tem até


o sol nascer.

Alma suspirou. Sonhos dentro de um sonho? Não adiantava tentar


entender. Decidiu entrar na brincadeira. Escolheu um livro, sem olhar o
título. Só queria ver o que aconteceria.

O que aconteceu foi mais estranho do que tudo até ali. Ao começar a
ler, se sentiu sonolenta. Mas a sensação era confusa: parecia adormecer,
e ao mesmo tempo acordar. E então sonhou. Mergulhou num novo
mundo. Tão realista! Tanto que esqueceu que sonhava: vivia uma vida
normal.

A vida de outra pessoa. Uma moça, que iria se casar. Não estava feliz.
Desistiu daquilo, se tornou atriz, ganhou fama, viajou pelo mundo.
Momentos felizes, momentos tristes. Envelheceu. Se sentiu sozinha.
Morreu…

Alma se viu na biblioteca, ainda de pé, olhando a última página.


Atordoada, derrubou o livro.

111
ㅡ Cuidado! ㅡ disse a coruja, desde uma escadaria.

ㅡ Céus… que foi isso? ㅡ Alma perguntou. ㅡ Parecia tão real!

ㅡ Como sabe o que é real?

Alma balançou a cabeça, se livrando das lembranças. Toda séria, falou:

ㅡ Escuta: é incrível aqui, mas preciso encontrar uma saída.

ㅡ Então encontre.

Alma suspirou, irritada.

ㅡ Boa ideia. Só me ajude a lembrar: onde é mesmo?

ㅡ Não sei. Nunca entrei, nunca precisei sair.

ㅡ Céus… tem algum mapa aqui?

ㅡ Infinitos.

ㅡ E como encontro?

ㅡ Só encontra quem procura, só procura quem sonha.

ㅡ Socorro… preciso abrir mais livros?

Precisaria. “Mas serei cuidadosa”, pensou. Explorou a biblioteca. Era


organizada por temas. Encontrou uma seção chamada Procurando a
Saída, e separou vários livros. Sentou-se no jardim, tomou coragem, e
começou a ler.

112
Ela não saberia dizer quanto tempo passou. Viveu histórias inteiras,
sempre procurando saídas para algum labirinto. Alguns de paredes,
outros de nuvens. Aprendeu muito, e encontrou mapas. Mas nenhum
indicava a saída daquele labirinto. Tentava usá-los e encontrava sempre
um beco sem saída.

Se sentiu cansada, perdendo a esperança. Chorou. Sonharia para


sempre? Eram sonhos admiráveis, mas sentia saudade de casa. A coruja
pousou gentilmente em seu ombro.

ㅡ Quanto mais procuro, mais me perco! ㅡ reclamou a menina.

ㅡ Já tentou parar de procurar?

Aquelas palavras absurdas ecoaram na mente dela. “Peraí… a cada


passo a saída se afasta. E se eu parar?”

Então ela começou a parar. Parar o corpo foi fácil, parar a mente foi
muito difícil. Persistiu, cada vez mais quieta. Finalmente, em profundo
silêncio, se sentiu imensa… maior que a biblioteca. Sentiu então uma luz
a aquecendo.

ㅡ Alma? Alma! Acorda!

Ela abriu os olhos e viu seu irmão. Estava sentada em um jardim,


iluminada pelo sol de um dia lindo. Crianças brincavam por perto.
Música tocava em algum lugar, harpas e flautas.

ㅡ Você ficou fora vários minutos, sua maluca. O show do mágico vai
terminar, e o professor vai procurar a gente.

Alma sorriu, se levantou e se espreguiçou.

ㅡ Vamos ㅡ disse ela, andando. ㅡ Você não vai acreditar, mas… já sei
como ele tira o sol do chapéu.

113
Sobre o autor:
BRUNO ANDANTE é psicólogo,
iogue, escritor, músico e palhaço.
Facilita saraus de múltiplas artes e
oferece vivências imersivas de
meditação, criação artística e conexão
com a natureza. Atualmente, se dedica
em especial a concluir e publicar seus
primeiros livros de poemas e de contos.

IG: https://instagram.com/brunoandante

114
Cristo-vão
Camille Perissé
Ele colocou seu capacete, sem olhar para trás ou para os lados. O uivo
do vento era a única melodia desejada. Equilibrou-se, como ao montar
uma cela macia, e fez um giro cuidadosamente com a mão direita. Em
poucos segundos, tudo está longe, inclusive as vozes, os cheiros e a
mistura quente e fria de fluidos.

Para ele não há sagrado neste silêncio. Seu esvaziar-se é a fuga de uma
alma pela metade. A blasfêmia encarnada. É seguir um caminho às
alturas que encontrará o céu de portas fechadas. Assim está: obrigado a
dar voltas.

Como em incontáveis vezes, vai pelo aterro e, sem olhar para a vastidão
do mar, mas pressentindo-a pela brisa, respira cada vez mais fundo e
mais pausado. Pisa cada vez mais fundo e não pausa. Qual a diferença
entre este par de rodas e um par de asas? Mal sente a lei da física que o
prende ao asfalto, só percebe os espaços. A esta hora, a esta velocidade,
no fundo, nenhum átomo de matéria se encosta. Nunca encostou.

Não há pés roçando o pedal. O motor vibra e solta ondas, e tudo é


movimento. No entanto, nada, em nenhuma parte, nem mesmo aquele
empurrão... nem mesmo aquele grito... é capaz de atingi-lo, de roçar nele
ou nela.

115
O coração de alguém batia rápido e se atormentava. Mas essa sensação
permaneceu no ambiente que ele tinha deixado sem nada dizer. Sem
arrependimentos. Sem lembranças. Toda emoção é como uma poça
turva que um dia já foi água cristalina, que esqueceu-se de si mesma, de
sua natureza volátil, e misturou-se à poeira mais baixa. Por mais
impurezas que carregue, ela um dia evapora. Como Cris.

Evapora e regressa no chover.

Quem anda no labirinto de Cris não se dá por perdido. Esquece o início a


cada esquina dobrada. O brilho do fim do túnel é sedutor demais e o
conduz novamente à dor da alma bipartida. Então ele grita, bate, foge,
como todos os que andam atrás. Ah, desgraça... Linda, quer dar uma volta?

Sobre a autora:
CAMILLE PERISSÉ mora no interior
do estado de São Paulo. É jornalista e
pedagoga. Fez contação de histórias para
crianças em hospitais. Recebeu prêmio
de segundo lugar no 11ª Concurso de
Narrativas de Morro Reuter com o
conto "O homem da mala" e participa
do livro Conte como quiser (Paraquedas,
2021) com os contos "Espelhados" e
"Pequena Iriri". "De volta ao meio do
caminho" foi seu livro de estreia pela
editora Patuá (2023).

IG: https://www.instagram.com/camillepoeta/

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Vão
Vilma Martins Schiante
O cheiro úmido do cimento ardia o nariz. Pior, ainda, o de urina e
outros líquidos. As meninas nem ligavam. Nem os gatos. O abandono
não era da mãe, que gritava antes de sair para o trabalho:

ㅡ Não vão brincar no labirinto, ouviram?

Aquela palavra fazia brilhar os olhos da mais velha. A mãe se referia ao


edifício de corredores escuros, cômodos sem portas e ferragens
expostas.

ㅡ Assim VÃO pegar tétano! ㅡ palpitava a vizinha ao ver as meninas


correndo para lá, assim que a mãe virava a esquina.

Para não enlouquecer, ela fingia não saber que as filhas passavam a tarde
na construção inacabada. Também não era abandonada. Tinha de tudo.
De dia, virava quintal para brincadeira das crianças; de noite, diversão de
adultos.

A obra foi embargada uns anos antes da pandemia. A mais nova ainda
era bebê. Faltava o acabamento, mas o grosso estava praticamente
pronto. Piso no concreto e paredes no chapisco davam um ar de
solidão. O VÃO do elevador sem aviso de CUIDADO era um convite
para morte matada ou suicídio. A melancolia das máscaras aumentava
com o cinza do cimento. Planta queimada. A de papel, porque a verde
crescia nos cantinhos como as covinhas das meninas. Elas gostavam de
brincar de esconde-esconde lá.

117
As três irmãs, de 13, 10 e 6 anos, não viam risco. Só risada. A
brincadeira era se vendarem, uma de cada vez, com a máscara de pano e
girar como um peão até ficar tonta. E ainda tinha que contar até dez
para tirar a venda. Chegavam no piso térreo afobadas, sem ar, com
adrenalina saltitante.

Os meses foram se arrastando, e aquilo foi perdendo a graça. Mas não


tinham muita opção para passar o tempo. A do meio então sugeriu uma
nova brincadeira: achar a saída ainda vendada. O maior desafio seria
encontrar o corredor da escada e não confundir com o do elevador.

ㅡ Aí que tá a emoção!

ㅡ E como vou saber se você ou ela estão espiando por baixo da


máscara?

ㅡ Aí que tá a parte legal: a gente pode estar sozinha ou ter uma de nós
seguindo cada passo.

ㅡ É no risco!

ㅡ Se você tirar a máscara dos olhos e tiver uma de nós ali, vai ter que
descer pelo VÃO do elevador!

ㅡ Sério? Como vou descer no vão?

ㅡ Pendurada numa corda!

ㅡ Escalando a parede como uma aranha... Usa sua imaginação!

ㅡ Mas se estiver vendada, cuidado para não cair no vão, viu?

ㅡ VÃO!

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A pequena deu pra trás. A de 10, que conhecia cada metro quadrado
daquele prédio, foi na frente. Até que foi fácil. Chegou lá embaixo com
o coração pulando mais do que ela.

ㅡ Agora é sua vez ㅡ disse arfando, com rosto vermelho e sorriso de


campeã.

A mais velha foi largada no 10º andar, antes das 15 horas. O dia já
estava cinza e nada da irmã chegar ao térreo. Estava ficando tarde e frio.
A mãe ia ficar uma fera com elas. Mas, não. Quando a mãe voltou para
casa, as duas choravam.

ㅡ A mais velha tá lá ainda ㅡ disse a vizinha.

A sirene da polícia alertou a vizinhança que foi atrás da adolescente.


Muitos esqueceram de usar a máscara. Já era noite. Ali não era um lugar
seguro para crianças nesse horário. A pequena abria a boca, mas de
sono. Passou no meio das pernas do povo e foi para seu quartinho
dormir. Dessa vez, foi ela quem ficou sem ar. A irmã na cama, com
fones de ouvido, chorava de tanto rir.

ㅡ Até que enfim! Achei que vocês tinham se perdido naquele labirinto.

ㅡ Como você desceu, e a gente não viu?

ㅡ Segredo! Mas se quiser brincar amanhã, ensino a passagem secreta.

ㅡ A gente achava que você estava morta!

ㅡ Morri, sim, de rir.

ㅡ Eu sabia. Mas a mãe vai ficar louca quando ver você aqui.

ㅡ Relaxa, maninha.

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ㅡ Sério. Todo mundo acha que você caiu. Tem até polícia te
procurando no elevador. Sabia que aquele buraco é bem fundo?

ㅡ Então acho que a mãe vai ficar feliz, né?

ㅡ Rsrsrsrsrs...

Lá fora, os cachorros latindo em VÃO.

Sobre a autora:
VILMA MARTINS SCHIANTE fez
Propaganda, Letras e Jornalismo na
USP. Trabalha como redatora há mais
de 35 anos e tem contos, crônicas e
poemas em várias coletâneas. Em 2023,
foi classificada no Prêmio Carolina
Maria de Jesus e, na FLIP, lançou pela
Opera “Conto em uma linha”, seu
primeiro livro com 100 microcontos.
Com esse estilo, venceu o concurso da
Triumphus. “MAtA”, o segundo livro,
chega na FLIP 2024 pela Caravana.
Participa do Coletivo Escreviventes e
do Mulherio de Letras de SP. Está nas
edições Útero, Maçã, Asas, Viagem,
Noite e Livro de Contos de Samsara.

IG: https://www.instagram.com/vilmaschiante/

https://www.instagram.com/contocomvilma/

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O que se esconde
na luz
António C. Guerreiro
Ansiosa, faltam-me palavras. O que penso e sinto não se alinham.
Estranho. Há dias apercebi-me, sentir com o corpo e ter emoções são
coisas diferentes. Uma surpresa. A sério? Estou espantada.

Como é que cheguei aqui? O César.

Estava tudo tão bem. Ainda estamos atraídos, a ternura e o afecto


ressoam dentro sem esforço. Depois, um desentendimento em tudo.
Discutíamos cada vez mais e por coisas sem importância. Pontos de
vista diferentes. Antes, não era impedimento. Aguçava-nos o interesse
pela opinião um do outro. A conversa surgia, fluía naturalmente.
Tivemos assuntos que se prolongaram por dias até esgotar o que dizer.

Quando queríamos estar a sós, era na casa do César. Às escondidas dos


pais dele, claro. A minha mãe nunca gostou destes “períodos de
diversão alargados” e dizia-lo-nos sem rebuço. Comecei a sentir-me
pressionada. Azedámos nas palavras. As duas num mal-estar tristonho e
eu num remorso doído. O pai e a mãe se ressentiram; os do César não
sei, pareciam bem.

121
Antes estava muito por casa, uma vez ou outra saía. Jantávamos e
fazíamos serão. Começou a acontecer cada vez menos. O César
combinava encontros, visitas, idas aqui e ali fosse com quem fosse.
Ficaram mais e mais pesarosos, magoados.

Com o César, a efusividade e empatia do pai e da mãe desapareceram.


Melancólicos, sorrisos forçados, embaraçados pela falta de naturalidade.
Antes conversavam horas, sim, depois estes momentos tornaram-se
escassos até desaparecerem. Já só o cumprimentavam e saíamos a
correr, simulando pressa, por ter de chegar ou já estarmos atrasados
para alguma coisa.

Aquela estúpida manhã bem cedo. Um sábado. Pedi aos pais para nos
sentarmos na sala. Sem perceberem, acederam. Dei-lhes as mãos. «É o
momento certo de viver de outro jeito. Eu e o César andamos a ver casas para uma
vida juntos.» Surpresos, entreolharam-se em silêncio. O pai disse-me
então. «É cedo, esse namoro não amadureceu. É preciso paciência. Não basta viver
no mesmo tecto e ter toda a intimidade que lhes apeteça para haver um casamento,
um para durar. Estás a fugir à dificuldade em te relacionares connosco desde que
começaste em correrias. Fugir, seja por que razão for, não é solução, é aumentar o
problema, ou mesmo criar um novo.» A mãe bem concordou, sem saber o que
poderia dizer mais. Emocionou-se, a chorar, acariciando a minha face,
puxou-me para si. Deitei a sua cabeça sobre o peito, afagando-a com o
meu queixo. Ficámos em silêncio.

Após algum tempo, sem pressas, sem esforço para me conter,


repeti tudo de novo. «Tem de ser.» O pai procurou interromper.
«Mariana, é muito cedo…» Levantei a voz sem me atrapalhar. «Eu e o
César queremos assim.» Calou-se. Perceberam, já estava tudo acertado.
«…nas nossas costas sem que notássemos nada.» «Não conversámos sobre o
que decidir. Já decidiste!? Falamos sempre antes de alguma coisa…» A mãe
olhou-me chocada. O pai desabafou. «Ao menos alguma maturidade.
Com esse César, vejo agora, podias fugir — fugir, sim! Saíres sem dizer nada,
depois comunicares algo de raspão. Enfim, temi pior…» Resignado, deu a
mão à mãe, apertando-a com força. «Desejo-te que tudo suceda pelo
melhor, que corra bem. Vão casar?» Hesitei. Nunca pensáramos nisso,

122
nem o César jamais mencionara a palavra. «Depois se verá…» O meu pai
não é parvo. «Isso é vago. Um passo destes exige clareza do que esperam um do
outro, direcção. Um projecto de vida reflectido. Considerar todos os aspectos. Iludes-te!
Ao César falta maturidade. Essa crença no dinheiro e bens — não será isso que vos
manterá juntos. São um meio, não um fim, senão atrapalham, não ajudam.»
Engasgou-se, afligido. «Ceder, imitar colegas ou amigos. Que tolice! Fazer o que
outros fazem sem pensar — comer, dormir ou outra coisa, escola, faculdade, curso
disto, daquilo, casar-se, juntar-se, filhos — é uma forma desastrosa de viver. É
importante concretizar de forma cônscia, não por mimetismo. “Porque eles, elas
fazem, eu também farei o mesmo!” — não é um bom modo de vida, Mariana. Não
é…» Suas palavras soaram-me cada vez mais distantes até se tornarem
num sussurro ao longe. Não quis ouvir. Abracei um e outro, depois os
dois ao mesmo tempo. «Vou preparar as coisas no meu quarto.» Saí da sala a
correr.

Agoniada, lembro-me de tudo, vejo aquela conversa com nitidez.


Aflição. Acho que me precipitei, caí num pequeno inferno que não
estou a conseguir gerir. Lidar com o César. Começou a acontecer recear
zangarmo-nos cada vez que falávamos, levantarmos a voz, gritarmos um
com o outro, os gestos desarticulados, acabando por um se refugiar
noutra divisão da casa ou sair. Que amargura! Dói-me a garganta, reparo
— ironia — nunca batemos com a porta da rua, com porta nenhuma.
Só palavras…

César não voltou. Tentei e tentei. Não falámos mais. Passou um mês.
Ele enviou uma mensagem hoje. Uma mensagem!? «O aluguer está pago
por doze meses. Depois tens de ver…» Estupor.

Estes enjoos estão cada vez mais frequentes.

Falta-me horizonte, não sei o quê… nada parece uma solução. Lidar
com isto sem fazer nada para sair deixa-me ainda mais infeliz, tensa e
tensa. É-me difícil pensar e não pensar não é solução nenhuma. Ficar
neste estado é o que quero e não quero… não sei…

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Desejo puxar para mim o azul acima, navegar nele, descobrir o que se
esconde na sua luz, sair deste labirinto emaranhado do que penso e
penso. De rompante… vejo pelas minhas mãos: a textura aveludada das
pétalas, o sedoso das folhas, o piloso dos pelos, o macio da pele.
Descalço-me. O toque liso, granuloso do solo — «da terra que nos
alimenta e vivifica» como o pai diz. Labirinto?! Uma metáfora aos seus
olhos: impele à procura, novo passo, outra maneira de resolver.
Reagir… mover-me numa direcção… mas mover-me…!

Ah! O teste, o teste…! O resultado… é claro. Vem alguém a caminho.


O que faço? O pai e a mãe! Como é que reagirão? E os pais do César? E
ele? Vou ter um novo amigo, uma amiga? Vou, vou! Não irá
desaparecer. Vai voar comigo, ao meu lado. Vamos! De asas bem
abertas…

Sobre o autor:
ANTÓNIO C. GUERREIRO nasceu em
Lisboa, Portugal, e escreve prosa poética e
poesia desde 1997. As influências e referências
vêm de Camões, Almeida Garret, Antero de
Quental e Fernando Pessoa. Pelo caminho,
também William Blake, Emily Dickinson, Cecília
Meireles, Herman Hesse e Rabindranath Tagore.
Em 2021, decidiu aprender como escrever
histórias em prosa. Faz parte de um Clube de
Escritores onde tem publicado pequenos
microcontos. Tem alguma poesia publicada e a
publicar brevemente. Tem contos publicados na
Samsara 11, 12 , 13 e 14, e outro numa coletânea
de contos. Tem também em andamento a
escrita de três novelas. Para chegar à presente
versão deste conto, o autor agradece a boa
colaboração das leitoras beta, Ana Paula
Campos e Teresa Dangerfield.
IG: https://www.instagram.com/silvaantonioguerreiro/

124
Olhar o Céu
Maribel Vazquez
Ofereceram mapas na entrada. Apressado, peguei um em língua
desconhecida. Não sei se grego, turco ou japonês. Disseram que fui
poliglota, que decifrava signos e símbolos. Não lembro desse tempo. O
mapa que tenho nas mãos não me serve. Só leio o que estiver escrito no
meu idioma.

À frente o caminho se estreita. Melhor passar de lado. Minhas costas se


esfregam contra a parede. As asas começam a se desfazer. Vejo plumas
no chão. Quero achar a saída. Este lugar me rouba a vontade de seguir.
Estou perdido.

Posso parar, sentar uns minutos, mas a água é salgada e está subindo. Se
adormeço, morro afogado. Os peixes, cansados como eu, nadam lentos,
em fileira indiana. Em um matadouro os animais são alinhados em fila.
O abate exige organização.

Viro à esquerda, de novo à esquerda, ouço o som de um navio apitando,


dobro à direita e parece igual. Não saí do lugar. Todas as trilhas tem o
mesmo desenho.

125
Lembro do Minotauro, se tivesse comigo um fio, tiraria a prova. Estou
andando em círculos. A passagem se alarga, consigo ver algumas
árvores. A água não para de subir. Os animais de terra escapam subindo
nas árvores. Eu não subo em árvores. Sou do chão. Pés sentindo o solo
e me equilibrando entre pedras. Gosto da terra firme, da previsão do
tempo, do dinheiro guardado no banco.

O labirinto me tirou da estrada. Busquei roteiro novo. O certo é ficar


onde conheço as geografias e histórias. Essa doença que me atacou, que
faz doer o peito e querer experimentar outro sabor, me trouxe aqui.
Caiu uma pena, antes eram as penugens. Essa que caiu é das maiores.

Sinto o peso das asas se encharcando. Não lembro como elas


apareceram. Esqueço que as carrego às costas. São novas, nasceram sem
eu pedir. Deve ter sido uma mutação genética ou um presente de Deus.
Será que foi castigo? Não entendo isso, deve ser a doença ou um vírus
novo que faz nascerem penas.

Vou correr, assim distraio minhas ideias, não quero pensar em morte,
nem em fome, nem em medo.

Corre, corre, segue correndo e esquece!

Não dá mais. Cansei. Lá longe, vejo mais árvores e uma montanha.


Deve ser bonito olhar o mundo, depois daqui. Ouço vozes, não estou
perdido sozinho. Passos se aproximam, tem mais gente buscando saída.
Será que são de confiança? Ou vieram se divertir com a minha
confusão?

126
Os pés doem. Deveria ter vindo de tênis, mas resolvi, na última hora,
estrear o sapato. Logo hoje. Queria estar elegante em terras novas.
Maldita ideia de querer ficar bonito para passear. Quando vou pensar no
conforto? Mas tem a vaidade, ela se agarra nos pensamentos e eu
fraquejo. Quero ser o que não sou.

Os passos estão chegando mais perto. Melhor eu voltar a correr. Não sei
se são a ajuda que peço ou os inimigos que fiz. Busco placas e estradas
que me tirem daqui. Os passos estão muito próximos, meus pés
sangram e o coração a qualquer momento vai sair pela boca. Respiro
fundo, não quero desanimar. Quando me desespero, perco o controle.

Sinto um motor se ativando e o coração apertado. Tenho vontade


de chorar, mas as lágrimas vivem presas. Elas também não
encontram saída.

Ouço um grito na minha direção. Alguém movimenta os braços,


apontando para mim.

Você continua aqui? Voa, você tem asas, voa!

Ao comando da voz, minhas asas se movimentam, tento me agarrar ao


muro, mas meus pés se desprendem do chão. Devagar vou subindo. As
asas batem com força, mas não doem. Então era para isso que elas
serviam.

Do alto vejo o portão de saída. De longe tudo fica mais claro. Olho para
os lados, são muitos voando comigo. Eles sabiam o segredo. Eu que
nunca tinha olhado para o céu.

127
Sobre a autora:
MARIBEL VAZQUEZ Paulistana,
psicóloga, leitora. Encontrou na escrita o
melhor lugar. Em 2023, publicou dois
livros infantis: “Abelardo, estropiado” pela
Ed. Caravana e “Refugiadas - Escapando
de um céu em perigo”, pela Editora
Urutau. Colabora no Portal do Escritor
Brasileiro e na revista Subtextos. Integrante
do Coletivo Escreviventes. Premiada no 4o
Prêmio Escriba de Crônicas 2023.
Selecionada para a Antologia do Concurso
Literário da 4°edição da Flipira 2023. Seu
conto “Zona abissal” foi selecionado no
Prêmio de Literatura da UNIFOR 2023.

IG: https://www.instagram.com/tangerinacontos/

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Submissão
Alexandra Ferreira
Acordo cedo, ainda sonolenta e dirijo-me à varanda para ver a cidade a
desacordar. Observo as ruas quase desertas e desfruto desta quietude.
Tomo um duche, visto uns jeans e uma t-shirt azul. Deixo o cabelo
solto, maquilho-me com discrição e sinto-me aprontada. Volto a
espreitar o exterior — transeuntes caminham apressados quebrando o
silêncio duma rua já desperta.

Algo me incita a sair e abdicar da xícara de cafeína matinal. Fecho a


porta com delicadeza e desço vagarosamente até à rua. Os raios de sol
acolhem-me, mas estou inquieta. Dirijo-me à Rua da Alegria, a esta
hora já bem povoada. Sento-me na primeira esplanada e espio os
semblantes risonhos e descontraídos de quem elege a manhã de sábado
para fazer compras.

Uma pessoa destaca-se pela peculiaridade do calçado, uma bota


castanha e outra preta de cordões. Esta escolha deve ter um propósito.
Examino-a com atenção. Constato que é uma jovem de cabelos
desalinhados e rosto protegido por um boné que caminha com
passadas intranquilas e olhar cabisbaixo. Passa tão próximo de mim
que consigo identificar uma expressão de dor e cansaço. Quando chega
ao final do quarteirão retorna e faz o percurso inverso. Parece-me que
vagueia sem destino.

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Sinto-me desconcertada com a imagem desta mulher que deambula
como um fantasma. Tenho necessidade de questionar a sua desventura e
ajudar. Oscilo, não sei como abordá-la. Decido arriscar, levanto-me e
alcanço-a. Quando se apercebe da minha proximidade estremece, mas
para minha surpresa, não se afasta.

Reparo nos seus olhos negros, vazios, vejo olheiras profundas num
rosto pálido, cujas rugas revelam maturidade. Interpelo-a: bom dia,
posso ajudá-la?

Acena negativamente mantendo a marcha. Não desisto, caminho ao seu


lado em silêncio. Reduz as passadas, observo a debilidade dum cansaço
que começa a vencer. Ofereço-lhe um porto seguro para descansar.
Hesita. Não me conhece, porque há de aceitar? Retruco que também eu
não a conheço e estou disposta a arriscar. Está exausta, aceita.

Calcorreamos as ruas até chegar ao número nove. Vacila ao entrar em


minha casa, está muito receosa, é a primeira vez que aceita um convite
duma desconhecida. Acompanho-a até à sala e digo-lhe para se
acomodar no sofá enquanto preparo um café. Quando regresso tem na
mão o livro que estou a ler — “Vemo-nos em agosto”, de Gabriel
García Márquez. Degustamos o café caladas. Apercebi-me que precisa
de tempo para se desafogar. Por fim, decide partilhar:

— O António sempre foi controlador e ciumento… desde que herdou


a empresa, tornou-se abusivo e agressivo.

Respira profundamente para poder ganhar fôlego.

130
— A minha vida é um labirinto. A entrada que escolhi era incerta.
Percorri vários caminhos. Estou desorientada, não consigo encontrar a
saída, todas se afiguram dificultosas em transpor...

Os soluços impedem-na de continuar. Permaneço muda. Arregaça as


mangas da blusa de seda verde e desnuda os braços pisados. Desabafa,
esvaziando a mala cheia de medos, receios, desilusões… e falsas
esperanças. Para cada palavra delatora duas abonatórias. Ainda o ama!

Mantém a obra nas mãos o tempo todo como se precisasse de um


amuleto. Questiona-me:

— Está a gostar?

Apercebo-me que se refere ao livro. Respondo:

— Estou apaixonada. Com a habitual ousadia, o autor homenageia o


desejo feminino, a resistência do prazer ao passar dos anos. Um hino à
vida!

— Adoro Gabriel García Márquez. Há alguns anos li “Amor em tempos


de cólera”.

— Eu já li todos os livros dele — complemento.

— Não sei se vou querer ler este... Deixei de sentir prazer há algum
tempo… A dor suplanta o prazer. Sou mulher e tenho de viver com
essa consciência. Tenho de respeitar o meu marido, satisfazê-lo e estar
grata pela vida que ele me proporciona.

— Você merece ser respeitada e amada.

131
— Não compreende, ele cuida de mim. Nunca me bateu. Apenas impõe
dedicação…

— Não será submissão? É feliz assim?

Não responde. Esgotada, aninha-se no sofá e adormece.

Com tristura, contemplo a face serena duma alma conformada, incapaz


de o abandonar.

Sobre a autora:
ALEXANDRA FERREIRA nasceu em
Viseu em 1970. É Engenheira e Mestre
em Engenharia Rodoviária. Tem um filho
e vive no Porto desde 1999. Participa
ativamente em Seminários e Congressos
Nacionais e Internacionais, e é coautora
de artigos científicos e relatórios técnicos.
Tem paixão pela escrita. Em 2019,
publicou o romance “Sombras com
Rosto”; em 2023, o livro de contos “Um
Verão Sem Ti” e participou em antologias
- “Contos de Natal”, “Cartas de Amor,
Saudade, Liberdade”. Integra os Clubes
Escreviventes e Transatlânticos e o grupo
de contistas Contos de Samsarra. Tem
textos publicados em várias revistas.

IG: https://www.instagram.com/alexandraferreira288/

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Eu, o minotauro
Rafael Duarte Oliveira Venancio
Quem me vê, neste labirinto, mal sabe quem eu sou…

Só há gritos e tristeza. Punições injustas por causa de buscas vãs pela


glória. Todos aqueles de quem arranco as cabeças em uma patada, todos
mesmo estão estupefatos. Eles mal me olham nos olhos.

Sou feio, sou triste, sou inglório. Lembro disso toda vez que alguém
entra no meu labirinto. Tal como agora…

“Não. Não. O minotauro não.”

“Muuuuu…”

“Argh!”

Sangue. Tripas. Lágrimas. Minhas lágrimas. Basta eu ver um humano


que me transformo. Perco a minha mente. Não me lembro mais. Só
com a morte de outros, é que retomo à humanidade. Ou não.

Na verdade, acredito que nem lembram do meu nome mais.

133
Eu, o Minotauro apenas. Eu, Minotauro? Na verdade, eu sou Astério.
Eu sou o sucessor do reino de Creta. Do Rei Minos, eu sou o
primogênito. No entanto, nasci assim. Meio touro, meio humano.
Minha mãe até queria me desejar bem, mas todos me viam como algo
feio, algo triste para tal nobre família, algo inglório para o trono de
Minos. Aos poucos, ao crescer, minha mente foi se tornando dividida.

Meio humano, meio touro. O instinto do animal de sobreviver se une


com o humano ressentido de tanta maldade que sofre no entorno. Por
isso perdi a minha mente. Comecei a ser um risco. Por isso, o labirinto.

“Por Zeus, por Zeus… O que nós fizemos para estar aqui?”

“Deve ter uma saída. Não precisamos cruzar o centro onde o Minotauro
vive.”

“Olha ele lá… não! NÃO!”

um grito surdo que nem palavras podem representar]

Meu pai, após terminar o labirinto, se tornou um rei cruel. Por causa de
um acidente trágico com meu irmão Androgeu, demandou dívida de
sangue com os Atenienses. Tristeza, caos. Sete jovens atenienses a cada
sete anos deveriam ficar por sete dias dentro do labirinto. E não me
encontrar. Se encontrassem, o destino era certo. A morte pela força de
um touro movido pela torpeza humana.

Escuto sussurros.

“Te amo, Teseu.”

Parece a minha irmã, Ariadne.

134
“Tome este novelo. Após você matar a besta, você retornará para os
meus braços.”

Acredito que ela tem um plano. Uma esperança. Será que é a minha
esperança?

“Aí voltarei com você para Atenas para ser sua rainha.”

Acredito que sim. Ouvir a voz da minha irmã acalmou a minha mente.

“Eis você, besta-fera! Irá pagar pelo assassinato da juventude de


Atenas.”

Não sinto mais. O touro, amansou. O humano, apaziguou. Só estendi o


pescoço.

“Com esta espada, liberto Atenas de sua dívida injusta com Creta.”

Não, amigo. Você me libertou.

Eu, o Minotauro, finalmente estou livre da minha injusta punição.

135
Sobre o autor:
RAFAEL VENANCIO é escritor,
psicanalista, astrólogo e professor.
Possui doutorado e pós-doutorado na
área de Comunicação e Artes pela
Universidade de São Paulo, bem como
especializações e formações
específicas no campo da Psicanálise,
Astrologia, Cultura e Religião Védicas.

IG: https://www.instagram.com/rafaeldovenancio/

136
Último Labirinto
Mafalda Carmona
Na fila da loja do chaveiro, Cármen sentia a boca seca, a língua pesada
dentro da cavidade onde deveria estar confortável, e as mãos tremiam
dentro dos bolsos da gabardine. A mão direita segurava a chave que
subtraíra ao marido naquela manhã, quando ele regressara de mais uma
viagem.

Preparou-lhe uma refeição leve, cumpriu a obrigação de lhe esfregar as


costas, e, já lavado e de pijama, ele devorou a comida sem olhar para ela,
os olhos fixos na televisão. Depois, dirigiu-se pesadamente para a cama,
chamando-a para cumprir a função antes de adormecer. Ao entrar no
quarto, pensou em como ele se parecia com um Minotauro, a cara
quadrada e os olhos pequenos a espiar pelos cantos, o ritmo cadenciado
e brutal, os sons guturais antes de cair no sono.

Quando chegara a casa, ele esperava-a com a força de um braço a


desferir sobre a face o castigo pela demora, no desenhar uma marca em
forma de ferradura na maçã do rosto, junto ao olho. Depois o chão
começou a dança do vai e vem, na melodia desarmoniosa das tarefas
suspensas. Não tivera coragem para ir ao centro de saúde, para saber se
estava tudo bem, não lhe sentira os movimentos durante todo o resto
do dia, mas pela noite umas cócegas no ventre de gravidez discreta
tranquilizara-a. Não iria ao médico, nem lhe contaria a ele que estava
grávida, manteria segredo, pois seria o melhor para ela, estava
convencida disso.

137
Mas tinha que ser rápida. Na mala, o medicamento do marido, o álibi
para a saída autorizada da moradia, a ida à farmácia.

Ao regressar a casa, reflectiu sobre como seria bom se tivesse deixado


sinais ao longo da vida para a avisarem dos perigos de confiar nas boas
intenções e amor inexistente do marido. A voz da avó soava como uma
previsão nefasta: “nunca te deixes maltratar como um pano de chão.”

Como aquele chão, de um branco asséptico, da sua cozinha sempre lhe


causara desconforto. Lembrou-se do dia em que sua cabeça e corpo
passearam pelos ladrilhos enquanto descobria o que o chavão da avó
realmente significava. As pingas vermelhas do seu sangue a delinearem
um caminho em quadrados, revelaram-se difíceis de sair, não da parte
brilhante, mas na massa das juntas.

E o silêncio que se seguira, quase uma bênção quando a porta, por fim,
se fechou com um barulho seco seguido de dois estalidos metálicos.

Deixou-se estar. Não fazia sentido esperar por uma mudança. Mas desta
vez imaginou-se a sair dali, delírios talvez, mas era só o que tinha.

Os dias seguintes foram uma luta para adivinhar a localização dos


utensílios por entre os estores eléctricos fechados, sem perceber se era
dia ou noite, acompanhada pelos sons esporádicos vindos do exterior da
casa. Nem o gato de cerâmica na parede, com os olhos em tic-tac-tic-
tac, lhe trazia conforto.

Em três ou quatro dias ele regressaria, com os sacos das compras,


evitando olhar para onde ela se tentava esconder, lívida, miseravelmente
a combinar com o branco da cozinha. E ele sem esquecer a reprimenda
a acompanhar o gesto de atirar com os sacos para o chão.

138
Com total amnésia, diria, com as mãos junto ao peito como se estivesse
a rezar. “Cármen, outra vez fechada na cozinha, mas qual é o teu problema? Que
raio se passa contigo? Como queres que trabalhe em paz e fique descansado?”
Paternalista acrescentaria as mesmas frases de sempre: “Quero um bom
jantar, estou faminto.” Remataria ainda, antes de subir as escadas: “Não
te esqueças de pôr vinho na mesa, vamos comemorar.”

E seria aí, então, a sua oportunidade. Pegaria na chave da carrinha e


sairia. Deixaria na bancada da cozinha desarrumada, na mesa por pôr,
toda a vergonha. Essa vergonha a impedi-la de aceitar a ajuda da
senhora dos serviços sociais e das amigas quando vieram saber o que se
passava. De todas as pessoas se afastara ao afastar-se de si mesma. Tal
como agora, finalmente, se afastava. Pelo espelho retrovisor viu a casa
desaparecer na curva até estar a milhas de distância, longe dos sonhos,
sim, e longe dele.

Não se sentiria mais como um ratinho grande, preso nos corredores


infinitos em ziguezague que ele criara para ela. Disso nada contaria à sua
filha. Nada diria senão a verdade: “Quando te parecer bom demais para ser
verdadeiro, não te deixes enganar, é porque é falso, com enganos nas palavras, como
se estivessem escritas em areias movediças, sempre a mudarem de sentido, e
arrastarem-te com elas para um sítio sem saída.”

E outra coisa lhe diria: “Quando se descobre a porta de um infernal labirinto,


onde nunca deveríamos ter entrado, há que lutar para passar o resto da vida longe de
tal armadilha, a ilusão do amor é a pior entrada, lembra-te que o amor não dói, se
dói é outra coisa qualquer.”

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Sobre a autora:
MAFALDA CARMONA, arquitecta de
espaços, escreve sobre a vida e
memórias na poesia, inspirada pelo sítio
onde vive, na Cotovia, Sesimbra, perto
da Serra da Arrábida, Portugal. Desde
2023, as suas reflexões têm lugar no blog
"Cotovia e Companhia" e no Instagram
@mafalda.carmona. As suas poesias
habitam Colectâneas e Antologias,
marcam presença no Recanto das Letras,
na revista "Ofélia" e no projeto
"Fotografar Palavras". A poesia é sua
paixão, e nela encontra pontes para a
comunicação com o Outro e a alegria no
quotidiano. Tem como convicção de
que "Todos nascemos poetas, só é
preciso lembrá-lo. Saber é quase tudo.
Sentir é o Mundo."

IG: http://www.instagram.com/mafalda.carmona/

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Feitiço
Diana Silva
As maldições já não estão na moda, agora o normal são possessões ou
trocas de identidade.

Labirinto era o nome do feitiço. A alma ficava perdida no meio das


entradas e saídas do limbo, sem saber quem passara a ser o dono do seu
corpo. Uma entidade qualquer, ressequida pelos infernos.

"Tu não te lembras do que fizeste ontem?"

"Como é que te deixaste embebedar tanto?"

"Por que te deitaste com ela? Estamos juntos há quinze anos!"

"Ele atirou-se da ponte, paz à sua alma."

Há uns dias falei com uma dessas entidades, ela surgira de um fosso e
senti-me tentada a recebê-la, mas não o fiz. Ela levara-me para um beco
sem saída, a parede de tijolos e cimento, áspera na minha mão que
raspava. Pedi auxílio na minha mente, sem o corpo expressivo, o olhar
vítreo, o semblante pálido.

No final da viela, morava um espelho em cima de um poço.

141
Agachei-me com as articulações geladas e dei com uma pedra que
encaixava perfeitamente na minha mão, atirei-a. Aguardei o que parecia
uma eternidade, nunca cheguei a escutar a pedra a bater. Seria possível
que aquele poço fosse um abismo?

Afastei-me lentamente do poço velho, cheio de ramas secas e dejetos de


pássaros... Corvos talvez, aquilo só poderia ser a entrada para o
submundo.

ㅡ O que fazes aqui?

Seria a voz da minha cabeça?

Perguntou novamente, desta vez mais alto, mais forte, mais perto:

ㅡ O que estás aqui a fazer?

Virei e observei-me, o meu reflexo falava comigo.

As minhas pernas tremiam, os ossos já não sustentavam os músculos


doloridos de toda a caminhada. Andei em círculos até chegar ali, seria a
saída daquele sítio terrífico?

Não podia retorquir, não devia, ou será que me queriam fazer acreditar
em mentiras e desacreditar da minha própria imagem?

ㅡ A dúvida é o primeiro passo para a derrota se te mantiveres


suspensa nela.

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Prendi o olhar, a cor estava certa, o formato oval do rosto estava certo,
o nariz, os lábios, as mãos... Tudo ali estava certo.

ㅡ Queres sair do limbo? ㅡ questionou.

Assenti e ela apontou para a boca do poço, o quão ingénua seria eu para
crer que aquela era a única escapatória possível?

Soprou o vento, e a brisa trouxe o cheiro a eucaliptos, senti-me atraída


pelo conforto.

ㅡ Foca-te! Confia em ti mesma, o teu instinto trouxe-te até aqui, não


cedas ao engano.

Eu estava dividida em duas, repartida em emoção e raciocínio, a minha


intuição examinava-me com atenção.

Dei dois passos adiante, dei por mim a tocar na pedra empilhada, o breu
refastelava-se do pavor que emergia. Como podia sentir-me consumida
pelo inverno e aquela pedra ser tão quente?

Sem trocar novos olhares, atirei-me.

Fechei os olhos, não cheguei a sentir a água, nem o solo, senti os


tremores e o corpo a bater no colchão.

Acordei suada e sem rumo, o meu sono não fora tranquilo.

Levantei-me à cautela, estava no meu quarto e cheia de sede, a garrafa


de água na mesa de cabeceira era uma salvação. Os pesadelos eram cada
vez mais comuns, mais confusos.

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Acordei suada e sem rumo, o meu sono não fora tranquilo.

Levantei-me à cautela, estava no meu quarto e cheia de sede, a garrafa


de água na mesa de cabeceira era uma salvação. Os pesadelos eram cada
vez mais comuns, mais confusos.

O quarto iluminou-se, as paredes brancas engoliam o desespero


anterior, a cadeira com roupas empilhadas, o tapete fofo debaixo dos
pés, pedaços de alívio que me transportavam para a realidade.

Lavei o rosto, ansiava por algo fresco na pele. Onde teria ido parar
daquela vez?

Abri a porta da casa de banho e já não estava em minha casa, a escolha


agora era manter-me dentro do que me era conhecido ou atirar-me para
um novo labirinto e se me mantivesse fechada jamais iria descobrir
como escapar.

Fechei a porta atrás de mim, pisei a gravilha, era o único som para além
da brisa noturna. Esquerda, esquerda, direita, sem saída.

Direita, esquerda, direita, sem saída. As sebes eram altas e não


permitiam a passagem por lado algum, teria de descobrir por mim
mesma. O ciclo era interminável.

Cheguei ao centro, onde só existia uma cadeira, exausta da fuga e da


ironia, sentei-me.

ㅡ Por que paraste?

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Numa das entradas estava a minha imagem mais uma vez, parecia um
holograma.

ㅡ Estou cansada, quero dormir – respondi a sentir-me derrotada.

ㅡ Achas que tens o direito de parar? – perguntou, sem transmitir


qualquer emoção.

Tapei os ouvidos como se fosse uma criança e fechei os olhos, mas a


voz estava lá na mesma como se a minha carne não pudesse filtrar a
minha consciência.

ㅡ Se tu paras, morres! Ainda tens muito a fazer! ㅡ A voz ecoou um


último grito: – Corre!

Senti o ambiente a mudar antes mesmo de abrir os olhos novamente.


Estava totalmente escuro, mas um calor infernal, algo crepitava ao
longe, cheirava a fumo, os meus pulmões estavam densos com as cinzas,
o corpo era pedra, não sentia as pernas.

As memórias correram em flashes incessantes, as mãos dele a apertarem


o meu pescoço, o murro no estômago, o jarro que se partiu na minha
cabeça, agora compreendia porque não conseguia lavar o rosto, mas
sentia-o encharcado.

Presa no delírio este tempo todo, ele acreditou que tinha acabado
comigo, o melhor seria fingir que tinha sido um acidente, afinal não iria
perecer dos maus-tratos, iria ser queimada viva.

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Para azar dele, a sorte estava finalmente do meu lado, acabei por ser
encontrada a tempo. Iria sair daquele engodo, iria prevalecer e encontrar
a cura para o tempo que perdera por caminhos barrados.

Já ele… nunca sairia do maldito labirinto que ele mesmo criou, as


paredes dele serão grades.

Sobre a autora:
DIANA SILVA é natural de Lisboa,
autora de “Sonhar com as Estrelas”,
tem um pequeno negócio de cake
design e outro com cristais. Escrever é
um dos primeiros amores na sua vida,
assim como a leitura. Mãe de duas
meninas, espera um dia inspirá-las a
seguir os seus sonhos sem receios.

IG: https://www.instagram.com/dianasilvaautora/

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Pensamento
Descuidado
Mara Vanessa Torres
Naquela hora morta, os corredores do hospital estavam vazios. Para ser
sincera, todos os segundos vividos na indefinição de um leito hospitalar
indicam horas mortas. Mas eu continuava ali, de pé, estoica, aguardando
o vaticínio dos médicos a respeito do estado de saúde de Orhan. Eles
precisariam abrir o peito e colocar um marcapasso? Haveria alguma
complicação? Apesar de muito jovem, Orhan suportaria o
procedimento? E como se daria o pós-operatório?

Sim, as perguntas eram inúmeras e as respostas ínfimas. Eu havia me


separado de Orhan há algum tempo, mas agora me via ali, perdida no
silêncio sem fim daquele hospital universitário, enganando a ansiedade
ao observar as árvores gigantes do lado de fora. Vivíamos um verão
extremamente quente em Istambul e tudo parecia sufocante; um reino
dominado por mosquitos e outros insetos adoradores de altas
temperaturas.

Do lado de fora do quarto, fiquei remoendo as últimas palavras ditas


por aquele homem com quem me relacionei. No dia da separação, ele
vociferou frases cruéis. Até então, eu acreditava sinceramente que seria
possível esquecer um amor antigo com uma nova chance. Bem, esse
havia sido o conselho da minha terapeuta. Melhor seria ter me indicado
treino de arco e flecha ou corrida com obstáculos.

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— Eu não confio em você, Mariana. Não acredito em uma palavra que
desliza da sua boca. Seu comportamento é ridículo! Você defende esse
homem com unhas e dentes... Um sujeito imoral desses! Vá lá, fique
com seu homem problemático!

Orhan disse tudo isso aos gritos. Era um homem bonito, alto, de
cabelos pretos longos e físico avantajado. Tinha uma capacidade mental
e lógica muito acima da normalidade. Inclusive, devo dizer, esse era seu
velocino de ouro e seu calvário. Seu poderoso cérebro fazia conexões
existentes e não-existentes, gerando uma paranoia intensa. Orhan tinha
uma necessidade de controle absurda, fazendo com que desejasse entrar
na mente das pessoas.

Nosso relacionamento foi uma espécie de labirinto que eu criei para


mim mesma. Depois de muitas discussões, angústias e sofrimentos,
entendi que tudo estava realmente encerrado. Criei meu próprio fio de
Ariadne e deixei a caverna. Mas a vida tem jeitos engraçados de nos
puxar de volta para as galés. A saúde de Orhan foi um desses jeitos.
Doente, sua condição lhe deixava em uma balança que pendia entre o
mundo dos vivos e dos mortos. Na ausência de alguém que pudesse
acompanhá-lo, lá estava eu: o pedregulho indesejado.

Assim que deixei as reflexões malogradas de lado e entrei novamente no


quarto, vi Orhan com os olhos abertos, fitando o céu sem nuvens e sem
estrelas do lado de fora. No instante em que me aproximei para ajeitar
sua coberta, ele retirou minha mão e disse:

— Você está aqui, mas continua pensando nele, não é?

148
E lá estávamos nós de novo, falando do homem que sempre aparecia
em nossa mesa de jantar ou no meio da nossa cama. Sempre trazido pela
desconfiança eterna de Orhan.

— Será que você não consegue esquecer o Kaan?

— Tudo isso é sua culpa, Mariana. Sua culpa.

Enquanto ele falava sem parar, respirando forte como um urso


raivoso, um pensamento descuidado se transformou em uma miragem:
lembrei do antigo parque ecológico que costumava frequentar com
minha família quando eu era criança. Em algum ponto do lugar, depois
de ultrapassar uns metros de areia e urtigas, havia um pequeno
corredor que simulava uma centopeia. Caminhos com começo e meio,
mas sem fim.

Nesse instante visionário, me dei conta de que sempre buscamos


respostas fora de nós mesmos, tateando em busca de apoio, salvação,
resgate. Mas tudo isso pulsa no âmago do nosso peito, nas curvas
insondáveis de nossas emoções. Eu amei o Kaan desde o primeiro
minuto, mas o amor não foi suficiente. Nunca seria. Busquei em Orhan
o sentimento profundo que achava que havia perdido fora de mim, mas
que, na verdade, vivia em mim, fluindo no meu sangue, nas minhas
decisões, na minha mente e no meu peito. Um peito aberto, sempre
disposto.

Os médicos entraram. Sim, era preciso realizar a intervenção cirúrgica.


O marcapasso seria colocado no dia seguinte, às 10 horas.

— Vá embora, Mariana! — Orhan insistia.

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Balancei a cabeça e me sentei na cadeira. O silêncio opressor do quarto
era terrível, dando asas para outro pensamento negligente: será que eu
realmente amei o Orhan?

De todo modo, presa naquela teia de sensações e frases soltas infinitas,


percebi que, se não o amei antes, agora demonstrava um amor puro:
fraterno, humano, movido à compaixão, desinteressado. Eu estava ali,
tolerando as acusações daquele homem enquanto seguia firme para
testemunhar e apoiar o seu dia decisivo.

Mais uma escorregada no sabonete e lá estava meu pensamento de


novo. Agora, a poesia de Nurullah Genç, que Kaan havia dividido
comigo em um de seus ímpetos de revoada, voltava como um
bumerangue:

“Não estou cantando esse lamento porque você está morta. Você não está morta,
Rüveyda; o cavalo foi baleado; eu estou morto.”

“Uma volta sem fim, onde o espírito vence a matéria, como queria
Leonardo da Vinci”, pensei. Pensamentos são ciclos sem fim,
atemporais. Eles podem dar vida à memória. Eles trazem os
mortos de volta.

No dia seguinte, a cirurgia de Orhan aconteceu e foi bem sucedida.


Depois de alguns dias de recuperação no hospital, ajudei-o a voltar para
casa. Nunca mais o vi.

150
Precisei fechar os portões do meu subterrâneo e subir, motivada, as
escadas em direção à superfície. Olhando para aquele momento no
hospital, com seus corredores enigmáticos, solitários e mortos, um
imenso labirinto agonizante, percebi que sou a minha própria
eternidade. Outro pensamento descuidado me fez entrever as flores do
jardim que eu mesma preciso cultivar:

“Encontrarei a eternidade com você, Rüveyda? Ou ficarei sempre nesta sepultura,


Rüveyda?”

Sobre a autora:
MARA VANESSA TORRES
escritora, jornalista e revisora. Autora
do livro “Átomos Desfeitos” (editora
Minimalismos), também conta com a
publicação de contos, novelas e
poemas nos mais diferentes formatos
e plataformas. Uma mente que
acredita em enigmas.

IG: https://www.instagram.com/maravanessatorres/

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Escuro no
Fim do Túnel
Fernanda Germano
Às vezes, a gente só se encontra quando se perde, vovó me disse.

Mas vó, isso não faz sentido!

Ceci, faz todo o sentido do mundo… você já reparou que todos os movimentos que a
gente dá em direção à mudança vêm depois de uma decepção muito, muito grande?
Sem perda não existe avanço…

A vida era toda um labirinto. Feita para perder-se de si, perder-se da


própria vida. E era gelada: o vento, cortante, não deixava espaço para o
carinho; cortava da pele à paciência, deixava-me com um caroço de
azeitona na garganta, um engasgo, que nada mais era do que…

Ansiedade, Ceci…

Vó, a senhora não está entendendo… como pode eu perder tudo, ir pouco a pouco
deixando de ter o que eu tive e ainda assim ficar feliz com isso, pois “a mudança
virá”?

Ceci, é angustiante, eu sei. Mas as coisas boas levam tempo… notícia ruim é que
chega rápido.

152
Vovó se conformava com a situação que ela via acontecer há tempos.

Em setembro, uma primavera fria e úmida me despertava para viver.


Queria experimentar tudo, testar limites, sair da casa em que meus pais
me aprisionavam como se fosse carinho e apenas encontrar uma saída
para o labirinto em que eu me metera desde criança ㅡ a perfeição.

Sentei-me na última fileira da concha acústica, para ver um show de


samba orquestrado que, alguns anos antes, nem me chamaria a atenção.
Menti, dizendo que iria ao aniversário da minha melhor amiga. A gente só
se encontra quando se perde, vovó me dizia em mente. Caía uma chuva no
início, tímida, virgem de qualquer malícia. Eu olhava as mensagens:
zero. Ele não vem, Ceci, acorda, mamãe me aparecia na imaginação.
Começaram os músicos: organização sem defeitos, nada fora do lugar.
Orquestras não são labirintos; tudo deve funcionar perfeitamente bem;
um passo fora e o espetáculo está arruinado. Mas a vida não é uma
orquestra, a vida é um labirinto.

O casal da direita encontrava na chuva um motivo para reacender


qualquer coisa que lhes faltava. Dançavam no ritmo, teriam feito aulas
numa tentativa de reconexão após tantos anos de casados. Eu os olhava,
perplexa. Há tanta vida na vida de certos alguéns…

E meu celular: nada.

A chuva engrossava, pingos repletos e pesados caíam nas superfícies já


molhadas. As pessoas começaram a fugir, a se esconder em locais
parcialmente cobertos… Algumas se protegiam com sacolas plásticas
nas cabeças, outras, mais prevenidas, abriam os guarda-chuvas.
Enquanto eu, sozinha, esperava. Esperava a saída dos caminhos vir até
mim, abrir-se frente aos meus olhos e dizer agora sim, vai! E minha tela
apagada, nenhum sinal de vida.

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A música ficava mais intensa à medida que subiam ao palco artistas
renomados do samba brasileiro contemporâneo. Comecei a notar
palpitações, dores no tórax… eu estava… me perdendo? Era o prenúncio:
ele. Vejo uma mensagem:

Vem aqui pra casa…

Em um salto, não vi mais nada. A chuva, a plateia, o casal que dançava,


tornaram-se pinceladas distantes, fora da realidade. O que eu via era ele:
ele me queria, afinal de contas. Corri pela avenida, ensopada, só o que
importa é ele, só ele, ele me quer, tá vendo mamãe? ele me quer!, sem
pensar em virar as esquinas erradas, buscando encontrar o que havia se
tornado toda minha vida: ele. Cheguei a uma rua fechada de árvores,
com poucas casas, ninguém por ali. Estava num labirinto físico, cuja
saída eu sabia onde ficava ㅡ longe dali. Ele morava no final do caminho
escuro. Mato por todo lado, calçadas esburacadas, lixos abertos
revirados por gente, revirados por animais.

O escuro no fim do túnel. Cheguei ao portão branco, levada pela


necessidade de ser escolhida, de ser eu a escolhida, necessidade de
perfeição. Aprisionada em mim, eu não mais existia.

E se eu avisar “estou aqui” e ele não perceber?

Era sempre um risco.

E se eu voltar atrás nesse labirinto de rua e tomar um café quente?

Era sempre uma vontade de fuga.

E se eu… me encontrar?

Era sempre longe dali.

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Desisti de apertar a campainha. Voltei nos passos que havia dado. A
mesma avenida, agora mais clara. Placas de videntes, anúncios de pastéis
e pipoca, guardas de estacionamento. Tudo tão claro, tudo tão óbvio. A
música se aproximava, eu tinha vontade de dançar. Com ele, mamãe, eu
nunca podia dançar… Sentei-me no mesmo lugar. O casal ainda se
enlaçava. A música, agora mais intensa, mais feliz. A vida não é uma
orquestra, Ceci… organizada, perfeita. Não é triste o tempo todo também… é bem
possível fazer uma melodia feliz.

Notei que perdia muito naquela noite.

Às vezes, a gente só se encontra quando se perde, vovó me disse. E agora eu


entendia: é preciso perder as chegadas para encontrar saídas.

Sobre a autora:
FERNANDA GERMANO é leitora e
escritora. Publicou os romances “Cegueiras
na Calçada” (Editora Voz de Mulher, 2022)
e “Pelas Frestas” (Editora Penalux, 2023) e
o livro de contos “Pequena Terra Batida”
(Editora Patuá, 2023). Leitora desde a
infância, descobriu a escrita como forma de
contato com a realidade a partir de projetos
sociais em regiões periféricas da cidade de
Campinas, no interior de São Paulo, onde
reside atualmente. É quase-médica pela
Unicamp, atua em atendimentos a
populações residentes em territórios de alta
vulnerabilidade social e faz das visões
marginais substrato para a escrita e da
escrita, a vida.
IG: https://www.instagram.com/fernandagermanno/

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Caleidoscópio
Cecília Rogers
Pego o caderno de receitas. Olho as páginas manchadas pelo tempo. A
sua caligrafia caprichada. Seu esforço para manter a mão firme, para não
deixar transbordar o que estava dentro.

Lembro daquelas tardes de sábado em que você me chamava,

filha, vamos fazer um bolo?

Meu coração se alegrava. Já imaginava as etapas do preparo. Sentia ali


um entrelaçar nosso, uma composição para algo maior, feito das
pequenas porções dos ingredientes. Cumpríamos ali um ritual sagrado.

Você me pedia para pegar os óculos, abria o caderno. Eu ajudava a


separar as quantidades. Queria fazer tudo certo. Eu era uma pequena
aprendiz.

Só não gosto de pensar na sua tristeza. Ainda dói. Amava os dias


daquele preparo. Um bolo de muitos labirintos, como você, como eu.
Éramos duas e muitos caminhos, produzindo a essência da vida, o
amor.

Eu guardava você assim, inteira comigo. Era tão diferente dos outros
dias em que a tristeza a chamava para a cama. Em que eu deitava junto
para que me sentisse ali.

156
O bolo tinha partes de baunilha e de chocolate. Elas formavam
pequenas voltas, à medida que você ia deixando cair a massa. Eu
pensava nas suas nuances e mistérios. Alegre, triste. Triste, alegre. Tudo
muito bem batido. Nós e o bolo. Nossas alegrias e lágrimas prontas para
serem assadas no forno.

Você mexia a massa com leveza. Estava longe do escuro daquele mundo
só seu. Quando o bolo começava a cheirar, era a hora tão esperada. Eu
ajeitava a mesa, você passava o café. As gotas pingando lentas pelo
coador de pano. Era o nosso tempo bom escoando.

Os aromas no ar, a família se chegava. Você cortava o bolo, os claros e


escuros se abraçando na massa. Eu pensava que era a sua massa. Seu
sentir. Você era assim, mãe, como aquele bolo. Camadas que juntas
buscavam o sabor. Elas diziam de você. Elas dizem de mim.

Sobre a autora:
CECÍLIA ROGERS, de Niterói no RJ,
onde reside, é filha de baiana com inglês.
Acredita na força da literatura como via de
transformação. Engenheira e Mestra em Lit.
port. e africana – UFF, tem 4 livros de poesia
publicados, sendo os 2 últimos, “Contas do
Rosário” (2021, Penalux) e “Submersa”
(2022, e-book). Tem ainda 2 contos no
insólito (22/23, e-book) e está em antologias
e revistas diversas. Premiada no Concurso
Carvalho Jr. e finalista no Off Flip (2022).
Em 2023, publicou “Agualuz” (Mondru), seu
primeiro romance, um drama psicológico. A
ancestralidade e as questões que envolvem a
mulher percorrem sua escrita.
IG: https://www.instagram.com/ceciliarogers.poeta/

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Saída!
Leide Freitas
Labirinto verde-escuro, pura cor, devaneios e poesia. Respira devagar,
pulsa latente, tem coração, vida e brilho próprio como as estrelas. É
autossuficiente. Corpo emaranhado, proteção de invasores. Cântico dos
grilos e cigarras, vozes animais ressoam no silêncio noturno. Partículas
invisíveis e descontroladas se repelem e se chocam no difícil percurso. A
ordem é perder-se nos múltiplos desvios e caminhos.

Você, mochila às costas, boné e óculos de sol, me olha, pondera, e


avalia com olhos febris o perigo. Possui a calma, a experiência e o
controle da pantera antes do ataque. Sabe que sou imensurável e
imprevisível. Enfrentar-me é correr riscos e vários desafios, mesmo
assim, percorre com os olhos ávidos meu mar de vidas oscilantes e
sente na alma, no corpo uma atração irresistível, quase magnética, da
qual não consegue se desviar.

Meu corpo vívido é convite silencioso envolto em brumas, te chama


num sussurro acolhedor. Mesmo sabendo de todos os inevitáveis
perigos, você avança com o coração aos pulos como se fosse um cabrito
montês, persiste rumo ao desconhecido e se perde entre sombras,
árvores infinitas, orvalhos e galhos retorcidos, antigas raízes à mostra
como dentes animalescos expostos onde se colam serpentes
adormecidas.

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Para essa jornada é preciso bússola, bornal e cantil. É preciso domar os
medos e conquistar a prudência dos fortes. Continua a caminhada e
atento observa a vida pulsando nas minhas artérias verdejantes. Árvores
ancestrais ainda guardam antigos ninhos e águias peregrinas fazem ali
suas pousadas. Veredas estreitas sempre vigiadas por lobos selvagens.
Anoitece e o breu espesso, quase palpável, se entranha nesse espaço e
tempo.

Adormece seguro nos braços da árvore-mãe que lhe acolhe. Levanta e


segue caminhos sinuosos, trilhas banhadas de magia, velhos troncos
onde duendes, elementais e fadas da natureza se escondem. Ele não
anda, flutua entre lampejos de sol que anunciam a manhã. Olha as
múltiplas bifurcações, tantos mistérios, difíceis decisões. Leio sua mente.
Reflete um minuto que perder-se é um risco, talvez necessário, o duro
talvez seja vagar em círculos indefinidamente e morrer.

Observo. É preciso ter paciência. O invasor avança destemidamente,


enfrenta o caos. Tem sangue nos olhos, sentimentos quentes, valoroso
coração, não vai desistir. Caminha silenciosamente nesse labirinto
intrínseco, com os olhos negros sempre atentos para a beleza interior
entre flores e borboletas, rios, riachos e córregos que cantam. Lobos,
cervos, raposas e tantos animais majestosos vigiam entradas e saídas.
Um raio de sol matutino ofusca-lhe os olhos. Morrer! Hoje não.
Vislumbra a saída.

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Sobre a autora:
LEIDE FREITAS é cearense de
Capistrano-CE. Filha de Ezequiel Lima
Freitas e Francisca Rodrigues de Freitas.
Formada em Pedagogia-Universidade
Federal do Ceará. Especializada em Gestão
Escolar, Psicopedagogia e Educação
Especial Inclusiva. Autora das obras
“Reflexões Íntimas” (Editora Caravana),
“A casa da colina e o mistério dos jovens
desaparecidos” ( Disponível Amazon), “O
Tempo é Mulher” ( Disponível Amazon)
“Em tempos de pandemia” (Disponível
Amazon), “Zines: Semi-eróticos”;
“Renasço de todos os naufrágios” e “O
Diário de Sabrina” (SEDUC-CE).

IG: https://www.instagram.com/leidefreitas.escritora/

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